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Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de

história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;


Barbosa
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais – IFCHS


Programa de Pós
Pós-Graduação em História – PPGH

ANAIS

IV Encontro Estadual de História

Ensino de história no Amazonas, democracia e


desigualdades

ORGANIZADORES
Keith Valéria de Oliveira Barbosa
Leandro Coelho de Aguiar
James Roberto Silva
Júlio Claudio da Silva

ANAIS ELETRÔNICOS
Manaus - 2018

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Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

Universidade Federal do Amazonas – UFAM

Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais - IFCHS

Programa de Pós-Graduação em História – PPGH

IV Encontro Estadual de História - Ensino de história no Amazonas, democracia e


desigualdades.

Promoção
ANPUH Brasil, PROEXT - UFAM.

Comitê Organizador do Evento:


Dra. Keith Barbosa – UFAM
Dr. Julio Claudio da Silva – UEA
Dr. James Roberto Silva – UFAM
Marcos Vinicius Ribeiro Alvarenga – UFAM
Girlane Santos da Silva – UFAM
Alexandre da Silva Santos – UFAM

Comitê Técnico-Científico do Evento:


Dr. Davi Avelino Leal – UFAM
Dr. Jaime Ricardo Teixeira Gouveia – UFAM
Dra. Joana Campos Clímaco – UFAM
Dr. Glauber Cícero Ferreira Biazo – UFAM
Dra. Maíra Chinelatto Alves – UFAM
Me. Leandro Coelho de Aguiar – UFAM
Dr. Daniel Souza Barroso – UFPA
Dr. Gustavo Pinto de Sousa – UFOPA
Dr. Francisco Jorge dos Santos
Dr. Auxiliomar Silva Ugarte

Comissão Organizadora dos Anais


Dra. Keith Barbosa – UFAM
Dr. Julio Claudio da Silva – UEA
Dr. James Roberto Silva – UFAM
Me. Leandro Coelho de Aguiar – UFAM

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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

E56a Encontro Estadual de História (4. : 2018 : Manaus)


Anais [recurso eletrônico]: ensino de história no Amazonas,
democracia e desigualdades / Organização: Keith Valéria de Oliveira
Barbosa ... [et al.]. -- 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do
Amazonas, 2018.
620p. : il., color.

ISBN: 978-85-526-0060-2

Disponível em: http://www.ppgh.ufam.edu.br/

1. História – Ensino – Amazonas. 2. Amazonas – Democracia. 3.


Amazonas – Desigualdades. I. Barbosa, Keith Valéria de Oliveira
(Org.). II. Aguiar, Leandro Coelho de (Org.). III. Silva, James Roberto
(Org.). IV. Silva, Julio Claudio da (Org.) V. Universidade Federal do
Amazonas. Programa de Pós-Graduação em História.

CDU 94(811.3)

Observações:
a) Todas as questões tratadas e abordadas nos textos que integram esta publicação são de
exclusiva responsabilidade dos respectivos autores.
b)Como critério de organização dos textos utilizamos a ordem alfabética dos autores.

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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

SUMÁRIO

Apresentação, p. 09

Textos

CRIME, FÉ E OBRAS: A TRAJETÓRIA DE VIDA DE RAIMUNDO LUCAS DE JESUS,


PASTOR DA IGREJA CARCERÁRIA EM PARINTINS (AM)............................................... p. 10
Alain Martins Pereira

A LITERATURA COMO FERRAMENTA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA DAS ÁFRICAS.


............................................................................................................................................................p. 19
Alexandre da Silva Santos

A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE TRABALHISTA DURANTE A DÉCADA DE 1930


NO AMAZONAS.............................................................................................................................. p.29
Amaury Oliveira Pio Junior

VILAS DE CASAS EM MANAUS (1900-1920): HERANÇA CULTURAL E ANTIGAS


FORMAS DE MORADIA............................................................................................................... p.40
Ana do Nascimento Guerreiro

MUSEU AMAZÔNICO E A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO DOCUMENTAL: AS


MEMÓRIAS ATRAVÉS DAS FALAS DE SEUS EX DIRETORES..........................................p.51
Ana Estela dos Santos Ferreira
Leandro Coelho de Aguiar

IRMÃS DA CONSOLATA: DESAFIOS DOS PRIMEIROS ANOS 1949-1974........................p. 64


Andressa Ferreira Félix

BATIZADOS, MERCADORIAS, RAPTO E TRÁFICO, TRABALHAORES E AIAS:


INFÂNCIAS INDIGENAS NA CAPITAL DA BORRACHA – MANÁOS 1880 – 1907...........p. 70
Bruno Miranda Braga

A FESTA DE IEMANJÁ REPRESENTADA POR CARYBÉ E ODORICO TAVARES........p. 86


Bruno Rodrigues Pimentel

HISTÓRIA ORAL E MEMÓRIA: CLINTON THOMAS E A IGREJA DE CRISTO EM


URUCARÁ........................................................................................................................................ p.96
César Aquino Bezerra
Júlio Cláudio da Silva

A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE HISTÓRIA PARA A CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E


POLÍTICA, p 109
Daiane Cristina Souza de Souza

HISTÓRIA ORAL E MIGRAÇÃO (APONTAMENTO DE PESQUISA) DISCRIMINAÇÃO E


PRECONCEITO: OS INDÍGENAS URBANOS DE PARINTINS...........................................p. 118
Edgar Viana

MULHERES INDÍGENAS CRISTÃS: ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA EM UM MUNDO


COLONIAL CRISTÃO (SÉCULOS XVII-XVIII),....................................................................p. 124
Érica Garcia de Freitas
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O SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO, A PACIFICAÇÃO E OS ÍNDIOS DO RIO


JAUAPERY.....................................................................................................................................p. 131
Evelyn Marcele Campos Ramos

“EU SOFRI MUITO NA JUTA”: HISTÓRIA E MEMÓRIA DOS TRABALHADORES DA


JUTA DA COMUNIDADE SÃO SEBASTIÃO DA BRASÍLIA PARINTINS-AM (1950-
1980).................................................................................................................................................p. 141
Everton Dorzane Vieira
Júlio Cláudio da Silva

DO REPERTÓRIO ÀS PESSOAS: UM OLHAR PARA AS PRÁTICAS MUSICAIS DE


FUNÇÃO RELIGIOSA NA CATEDRAL NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO A PARTIR
DO FUNDO DE DOCUMENTOS MUSICOGRÁFICOS RECOLHIDO AO ARQUIVO DA
CÚRIA METROPOLITANA DA ARQUIDIOCESE DE MANAUS....................................... p. 154
Fernando Lacerda Simões Duarte

POVOS INDÍGENAS E REGIME CIVIL-MILITAR NO BRASIL: AGÊNCIAS INDÍGENAS


NA LUTA PELA AUTODETERMINAÇÃO E RECONHECIMENTO DA DIVERSIDADE E DA
DIFERENÇA...................................................................................................................................p. 165
Fernando Roque Fernandes
Eduardo Gomes da Silva Filho

UMA “DÁDIVA DO CÉU PARA ALÍVIO DA HUMANIDADE”: A IGREJA CATÓLICA E AS


ESTRATÉGIAS DE DISSEMINAÇÃO DA VACINA EM PORTUGAL NO INÍCIO DO
SÉCULO XIX.................................................................................................................................p. 174
Fillipe dos Santos Portugal

O MUSEU COMO RECURSO DIDÁTICO EM HISTÓRIA: O TERREIRO DE CANDOMBLÉ


DA MÃE YATYLISSÁ EM BOA VISTA-RR, COMO PROPOSTA DE MONTAGEM DE
MUSEU NA ESCOLA................................................................................................................... p. 185
Fylippio de Almeida Santos Castro

CHARGES COMO UMA ATIVIDADE CRÍTICA DO ENSINO DE HISTÓRIA NA ESCOLA


ESTADUAL DOM GINO MALVESTIO.....................................................................................p. 192
Guilherme Maciel
Matheus Rodrigues
Arcângelo Ferreira

A DOCUMENTAÇÃO DO PORTO DE MANAUS: CONSIDERAÇÕES ACERCA DE SUA


HISTORICIDADE E O (DES) CASO COM O PATRIMÔNIO DOCUMENTAL.................p. 204
Janine Rodrigues Saraiva Maria

PATRIMÔNIO E INTERPRETAÇÕES HISTÓRICAS: UMA ANÁLISE DOS PAINÉS


ESCULTÓRICOS DA PRAÇA DA LIBERADDE, PARINTINS/AM.................................... p. 215
Jessica Dayse Matos Gomes
Lucileni de Souza Meneses

“PROCURAÇÃO DE NEGROS” MEMÓRIA, HISTÓRIA ORAL E HISTÓRIA NO


MOVIMENTO QUILOMBOLA DO ANDIRÁ, FRONTEIRA AMAZONAS/PARÁ........... p. 226
João Marinho da Rocha

O DOCUMENTO ARQUIVÍSTICO DIGITAL COMO PATRIMÔNIO DOCUMENTAL A


SER PRESERVADO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO USO DO E-ARQ BRASIL........ p. 239

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Jorge Vicente Borges Lira

MONTEIRO LOPES, O DESEMBARGADOR E O BISCOITO.............................................p. 253


Juarez Clementino da Silva Jr

INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DO AMAZONAS: CEM ANOS DE


PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO..................................................................p.261
Kelly Cristine Oliveira do Nascimento

RESTAURAÇÃO DO PATRIMÔNIO DO AMAZONAS: O CASO DOS LIVROS DE


REGISTRO CIVIS DO INSTITUTO DE IDENTIFICAÇÃO “ADERSON CONCEIÇÃO DE
MELO”............................................................................................................................................p. 269
Kathyuscia Castilho Correa

CLUBES E ASSOCIAÇÕES RECREATIVAS: ENTRE A SOCIABILIDADE E A


CRIMINALIZAÇÃO DE PRÁTICAS SOCIAIS EM MANAUS, 1890-1910..........................p. 282
Kívia Mirrana de Souza Pereira

JOGO DA MEMÓRIA COMO PRÁTICA EDUCATIVA....................................................... p. 295


Laise Carvalho de Oliveira

CRIME E CRIMINALIDADE PRATICADOS POR ESCRAVOS NA MANAUS


OITOCENTISTA.......................................................................................................................... p. 302
Laura Stella Passador de Luiz Blanco

A RÁDIO ESCOLA COMO FERRAMENTA DE ENSINO-APRENDIZAGEM PARA O


ENSINO DE HISTÍORIA E DIREITOS HUMANOS............................................................... p. 318
Letícia Araújo Brandão
Maxlander Dias Gonçalves

PRESERVAÇÃO, CONSERVAÇÃO E RESTAURO DO PATRIMÔNIO DOCUMENTAL:


BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA FORMAÇÃO E EVOLUÇÃO DA PESQUISA E
DO ENSINO DA ÁREA NO BRASIL......................................................................................... p. 326
Letícia Sá Cabral

A CLASSE TRABALHADORA INDUSTRIAL E A CONSTRUÇÃO DO NOVO


SINDICALISMO NO ESTADO DO AMAZONAS (1978-1985).............................................. p. 340
Luiz Lima da Costa

AS OBRAS FICCIONAIS DOS MOÇAMBICANOS MIA COUTO E UNGULANI BA KA


KHOSA E O ENSINO DE HISTÓRIA DAS ÁFRICAS NO BRASIL ................................... p. 356
Marcos Vinicius Ribeiro Alvarenga

OS ALIENADOS DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA E DO HOSPÍCIO EDUARDO


RIBEIRO.........................................................................................................................................p. 368
Maria de Jesus do Carmo de Araújo

O ESTUDO DA HISTÓRIA LOCAL E DO COTIDIANO A PARTIR DAS NARRATIVAS


ORAIS............................................................................................................................................ p. 381
Naia Maria Guerreiro Dias

O GOLPE CIVIL-MILITAR NO AMAZONAS: PERSEGUIÇÃO POLÍTICA E CONTROLE


SOCIAL......................................................................................................................................... p. 391
Nataly Oliveira da Silva
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Bruno Venâncio Peragine

A ATUAÇÃO EPISCOPAL DE DOM JOSÉ AFONSO DE MORAIS TORRES NA


AMAZÔNIA IMPERIAL (1844-1857) ....................................................................................... p. 405
Pamela Sousa dos Santos

LEVANTAMENTO BIBLIOGRAFICO ACERCA DOS ESTUDOS SOBRE PATRIMÔNIO


DOCUMENTAL E A HISTÓRIA DAS INSTITUIÇÕES, ACERVOS E PRÁTICAS DE
ARQUIVOS NO AMAZONAS ................................................................................................... p. 416
Paola da Cruz Rodrigues
Leandro Coelho Aguiar

ALDEAMENTOS MISSIONÁRIOS NO ESTADO DO MARANHÃO E GRÃO PARÁ:


CONQUISTA, OCUPAÇÃO E “POSSE” DA AMAZÔNIA PORTUGUESA (SEGUNDA
METADE DO SÉCULO XVII) ................................................................................................... p. 427
Rafael Ale Rocha

“ACEITAM-SE COSTURAS DE SENHORAS”: O TRABALHO DE MULHERES MODISTAS


NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX ..................................................................... p. 437
Rafael da Silva Curintima

HISTÓRIA ORAL E GÊNERO: IMIGRAÇÃO DE MULHERES CHINESAS EM MANAUS


1980-2017 ....................................................................................................................................... p. 446
Raphaela Martins Pereira

RASTROS DE CATIVOS: PROTAGONISMOS E PRECARIDADES DA ESCRAVIDÃO NO


RIO BUJARU OITOCENTISTA DA PROVÍNCIA DO PARÁ .............................................. p. 457
Roberta Tavares

HISTÓRIA ORAL, GÊNERO E MEMÓRIA: O LUGAR DAS MULHERES NA ARENA


POLÍTICA DE PARINTINS-AMAZONAS (1964-2004) ......................................................... p. 471
Roger Kenned Repolho de Oliveira
Júlio Cláudio da Silva

SATERÉ-MAWE E O WARANA NA MUNDURUCÂNIA .................................................... p. 480


Rômulo Ribeiro Machado

OS TRABALHADORES EXTRATORES NA AMAZÔNIA: UMA DISCUSSÃO TEÓRICA


SOBRE UMA DAS FORMAS DE TRABALHO NÃO LIVRE DO INÍCIO DO
SÉCULO XX ..................................................................................................................................p. 494
Rômulo Thiago Oliveira de Souza

“SANTOS EM COMISSÃO”: MEMÓRIAS E CULTURAS NO ANDIRÁ-MIRIM,


FRONTEIRA AMAZONAS/PARÁ ............................................................................................ p. 510
Ronaldo Adriano Ferreira da Silva
João Marinho da Rocha

AS MENSAGENS DOS GOVERNADORES À ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO


AMAZONAS: REFLEXÕES SOBRE A GUARDA DOCUMENTAL E O PRINCÍPIO DA
INDIVISIBILIDADE OU INTEGRIDADE ............................................................................... p. 522
Rosangela Oliveira França

O PROTESTANTISMO EM MANAUS: PRIMEIROS PASSOS, OS PIONEIROS E A


LEGISLAÇÃO BRASILEIRA .................................................................................................... p. 532
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Sandro Amorim de Carvalho

“UNO COLONIAL – UMA EXPERIÊNCIA DE PRODUÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO NO


ENSINO DE HISTÓRIA” ........................................................................................................... p. 547
Sarah dos Santos Araujo

ARQUIVO HISTÓRICO DO TEATRO AMAZONAS: HISTÓRIA E MEMÓRIA ATRAVÉS


DAS FALAS DE SEUX EX-GESTORES .................................................................................. p. 556
Sílvia Angelina Lima dos Santos

“REZAS PARA AS ALMAS”. MEMÓRIAS E CULTURAS SÓCIO RELIGIOSA EM SANTO


ANTÔNIO DA MALOCA, PARANÁ DOS RAMOS BARREIRINHA – AM ....................... p. 567
Soraia Lacerda dos Santos
João Marinho da Rocha

“O SANGUE DOS TICUNA DERRAMOU COMO ÁGUA ENXURRADA NO RIO


SOLIMÕES”: 30 ANOS DO MASSACRE DO CAPACETE .................................................. p. 579
Tamily Frota Pantoja

JUSTIÇA DO TRABALHO, TRABALHADORES E RESISTÊNCIA A PARTIR DOS


PROCESSOS DA JCJ DE ITACOATIARA (1980 - 1984) ...................................................... p. 591
Tamir Regina da Silva Carvalho

OS TRABALHADORES E O GOLPE CIVIL-MILITAR NO AMAZONAS (1961-1964) .. p. 601


Thaieny Gama Barata

EDUCAÇÃO HISTÓRICA E O PENSAMENTO HISTÓRICO DE JOVENS: CONCEPÇÕES


DE ALUNOS DO 9O ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL DA REDE MUNICIPAL DE
MANAUS/AM ............................................................................................................................... p. 612
Thalia Abreu de Carvalho

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APRESENTAÇÃO

O IV Encontro Estadual de História, ocorrido nos dias 22 a 24 de agosto de 2018, nas


dependências da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), na cidade de Manaus, estado
do Amazonas, pretendeu ser um fórum de discussão científica nos quais diversos
pesquisadores, docentes e discentes da Amazônia e de diversas regiões do Brasil apresentaram
e debateram os resultados parciais e finais de suas pesquisas. Nesse sentido, o encontro
organizado pela ANPUH-AM foi um bem sucedido espaço de socialização de pesquisa, tendo
“Ensino de História no Amazonas: democracia e desigualdades” como tema. A eleição deste
tema norteador colocou o evento em um franco diálogo com os debates desenvolvidos nas
outras vinte e seis sessões estaduais e no âmbito da própria direção central da Associação
Nacional de História, órgão máximo dos profissionais de História no Brasil. Dado os exitosos
resultados do evento, entendemos que os capítulos que compõem esta obra apresentam e
colocam os leitores em contato com as diversas possibilidades enfrentar os desafios da
pesquisa e do ensino de história no Amazonas em um contexto de permanente luta pela
ampliação da democracia e da superação das desigualdades.

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CRIME, FÉ E OBRAS: A TRAJETÓRIA DE VIDA DE RAIMUNDO LUCAS DE JESUS,


PASTOR DA IGREJA CARCERÁRIA EM PARINTINS (AM)

ALAIN MARTINS PEREIRA

Introdução
Parintins é o segundo maior município do estado do Amazonas, e sua história oficial está
atrelada à Igreja Católica. As transformações contemporâneas no campo religioso têm imposto,
entretanto resistências a essa visão, principalmente com o crescimento dos evangélicos. Até pouco
tempo atrás a maioria das obras sociais e do reconforto espiritual aos doentes, abandonados e
encarcerados estava nas mãos das pastorais católicas. Recentemente isso tem mudado. Este artigo é
fruto de uma pesquisa de Iniciação Científica realizada no ano 2017 na unidade prisional de Parintins.
Investigamos a Igreja Carcerária que foi fundada em 2001 por Raimundo Lucas de Jesus, ex-detento.
Sua vida e marcada por um crime de homicídio e pela conversão evangélica pentecostal. Essa igreja
tem a missão de oferecer ajuda espiritual, evangelismo/estudos bíblicos, e a ressocialização dos
detentos juntamente com o apoio das familias. Me objetivo no momento é mostrar através das
narrativas do Pastor Raimundo Lucas a sua trajetória de vida, tratando ao mesmo tempo de sua prisão
(desafios e experiências na cadeia), conversão e novos desenhos de pastoral alternativos, daqueles
praticados pela pastoral católica carcerária. Para tanto, utilizo como método a história oral, que na
perspectiva de Verena Aberti (2008) “permite o registro de testemunhos e o acesso a "histórias dentro
da história" e, dessa forma, amplia as possibilidades de interpretação do passado”. “É um
procedimento integrado a uma metodologia que privilegia a realização de entrevistas e depoimentos
com pessoas que participaram de processos históricos ou testemunharam acontecimentos no âmbito da
vida privada ou coletiva” (DELGADO,2010, p.8).
No ano de 2015, Raimundo Lucas de Jesus improvisou juntamente com os fiéis detentos um
pequeno espaço que serve como templo, (entre os muros e as celas), aonde são promovidas reuniões
religiosas, e os encontros com as demais lideranças evangélicas locais que acontecem geralmente os
finais de semana.
Apenas muito recentemente estudiosos tem problematizado a questão da diversidade religiosa
local. “Temos buscado em nossas pesquisas traçar um quadro amplo do processo de pluralização do
campo religioso em Parintins” (Bianchezzi; Silveira,2015a;2015b). Parintins embora ainda muito
marcado pela força institucional do catolicismo, merece destaque no senário atual o crescimento
explosivo dos evangélicos, que aos poucos ocupam espaços antes reservados aos católicos, inclusive
na assistência a parcela mais carente da população. Nas periferias, pequenas igrejas pentecostais se


Acadêmico do curso de História do Centro de Estudos Superiores de Parintins CESP/UEA
alan_mpereira@hotmail.com
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multiplicam, no centro da cidade, pastores começam a disputar com os padres o cuidado espiritual dos
enfermos e encarcerados.

“Foi assim que me tornei prisioneiro”


Raimundo Lucas de Jesus é natural de Parintins, viveu boa parte de sua infância na
comunidade São José, zona rural do município de Parintins. Seus pais eram católicos,
descendentes de nordestinos. Além de Lucas, a família teve mais 6 filhos. As ocupações em
São José concentravam-se no plantio de juta e na agropecuária. Em 1953, quando tinha 11
anos de idade sua família se mudou para Parintins em busca de melhores condições de vida, e
também por conta do falecimento de sua Irmã. No entanto, a vida na cidade exigia da família
recursos financeiros para sobrevivência, e Lucas teve que trabalhar para ajudar nas despesas
da casa. Sua mãe faleceu quando ainda estavam recentes em Parintins. Sobre as dificuldades
encontradas em Parintins ele ainda nos diz o seguinte:

Quando a mamãe faleceu foi mais uma barreira que nós enfrentamos. Eu tinha
praticamente 11 anos e meu irmão caçula estava com um ano e seis meses de vida.
Mamãe passou pouco tempo por aqui [Parintins], isso foi uma certa dificuldade
tanto para o papai como para nós todos, sabe? Ai, o papai começou a trabalhar por
aqui e logo em seguida eu comecei a trabalhar também, nós fomos dividindo as
atividades, cada um fazia alguma coisa para ajudar na casa. Os meus irmãos
vendiam docinho na rua, sabe? E meu irmão mais velho pescava. E assim nós fomos
crescendo [...] (LUCAS, entrevista em maio,2018).

Com base nas narrativas de Raimundo Lucas podemos perceber as dificuldades


encontrada pela família e sua adolescência que é marcada pelo trabalho. Por conta disso, pai
de Lucas teve que traçar novos planos para a Família, e em determinados momentos os avôs e
parentes foram fundamentais nas assistências sociais e financeira para minimizar as despesas
da casa. Nas palavras de Lucas, “eles foram uma boia de escape”. No entanto, seu Pai não
consegui se adaptar na cidade, além de outras razões que lhe tiravam o sono, e além disso ele
trabalhava como autônomo. Sua vocação, diz Lucas, “era para a trabalhar com agricultura
mesmo”, ramo em que possuía vasta experiências principalmente nos tempos em que
residiram em São José”. Então, ele decide retornar para a zona rural, comunidade do Zé Açú,
(área de terra firme), próximo à Parintins. Sobre o retorno para a zona rural, Lucas nos diz que
desta vez, a família investiu principalmente no plantio de arroz que possuía grande aceitação
no mercado e outros grãos. Vejamos:

Ele conseguiu um pedaço de terra, e, eu morei uma temporada com eles por lá com a
intenção de ajudar o papai, que plantava arroz, feijão, milho, sabe? Nesse período
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aqui em Parintins o arroz era industrializado, e o papai era um dos produtores de


arroz na Comunidade do Zé Açu. Continuei por lá um certo tempo, lá tinha uma
escola que ainda existe até os dias de hoje, mas eu não cheguei a estudar nela estudei
só aqui em Parintins porque fui o filho que menos tempo morei por lá [...] depois o
papai adquiriu um pequeno comercio lá no Zé Açu. Tinha uma família aqui
[Parintins] que eles pediram do papai para eu ficar com eles, e, eu acabei ficando. Eu
trabalhei com essa família, eles possuíam um pequeno comercio de gêneros
alimentícios (LUCAS, Maio,2018).

No período em que a família investiu no agronegócio na comunidade do Zé Açú, eles


conseguiram uma certa estabilidade, nas palavras de Lucas, “possuíram até mesmo um
pequeno comercio”. Mas ele logo retornou a Parintins para prosseguir nos estudos, aliás, foi o
período em que Lucas mais frequentou a escola na vida, “estudei no sindicato” diz ele “onde
funcionava a escola Hirota Oyama”, concluiu o supletivo que era ofertado na época para o
ensino fundamental. Quando completou 16 anos de idade em Parintins, Raimundo Lucas
viajou para Manaus e morou com seus tios paternos, almejava oportunidades no mercado de
trabalho e dar continuidades nos estudos. Na casa dos tios, diz ele, “eu ajudava nas tarefas da
casa e estudava”. Aos 18 anos entrou para o exército. Durante sua trajetória no exército,
trabalhou como auxiliar de serviços gerais, se profissionalizou como eletricista, e atuou
também como motorista de transporte escolar. Após deixar a carreira militar, trabalhou em
diversas empresas no polo industrial de Manaus. Nessa época ele nos diz que “ já era
independente, morava sozinho, morei por muito tempo em quartos alugados por uma decisão
minha mesmo, até mesmo para ver se eu ia ter condições de me manter sozinho, sabe? ”
(LUCAS, entrevista, Maio, 2018). As perseveranças da labuta logo lhe agregaram resultados
positivos – resolveu trabalhar por conta própria, e adquiriu uma pequena empresa que
prestava diversos serviços. No entanto, sua maior atuação foi na área de manutenção
industrial (serviços elétricos), “foram 15 anos no ramo” argumenta. Foi a profissão que mais
lhe trouxe benefícios materiais e financeiros, inclusive adquiriu casa própria e uma
companheira com quem teve filhos, mas se divorciou por conta das desavenças. A separação
lhe ocasionou muitos problemas financeiros, chegou a ser internado inclusive no centro de
internação psiquiátrico de Manaus por apresentar problemas psíquicos.
Em 1998 Lucas retornou à Parintins e sua vida foi marcada por um crime de
homicídio onde foi condenado a cumprir pena durante 4 anos e 8 messes no presidio local.
Sobre o crime, ele delata o seguinte:
[...] eu fui funcionar um motor [ barco] eu sempre tinha a habilidade de botar para
funcionar ele, sabe? Nesse dia a máquina não queria funcionar. Passei praticamente
o dia todo mexendo tentado ver possíveis problemas, no motor que me tirou a
paciência. E aí, houve um desentendimento, uma confusão entre eu um rapaz dentro
do barco agente se ofendeu primeiro oralmente, aí fomos para o confronto físico e
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ele estava armado. E eu com intenção me proteger peguei uma arma [revolver] e
disparei contra ele [...] A arma era do proprietário do barco. Foi assim que me tornei
prisioneiro. (LUCAS, entrevista Maio, 2018)

Através das palavras deste sujeito, podemos perceber seu comportamento, profissão e o
motivo que o levou para prisão. Assim, portanto, Lucas foi indiciado, julgado e condenado por crime
de homicídio, o juiz da comarca de Parintins determinou o cumprimento de pena em regime fechado
de 4 anos e 8 meses na unidade prisional local.
Durante os primeiros meses na prisão, ele se deparou com inúmeros irregularidades estruturais
e administrativas, a unidade prisional funcionava junto a delegacia de polícia. Ele alguns
conhecimentos da legislação penal desde os tempos do exército, percebeu que os seus direitos e do
demais presos de justiça não eram atendidos. Vejamos:
Eu logo vi que o preso de justiça não tinha alimentação. Aí eu procurei saber com
uma promotora pública da época sobre a destinação da alimentação do preso de
justiça. Comecei a exigir meus direitos. Houve um determinado dia que os presos se
alimentaram de uma sopa e a ossada ficou jogada no corredor, agente sabe que osso
é uma arma [...] O Estado deve dar as condições para o preso de justiça, de maneira
que ele possa ser reinserido na sociedade. Deve oferecer – educação, trabalho,
alimentação, promover ações que possa motivar a socialização sabe? Então essa
situação que passamos é preferível a pena de morte, isso era um ato de tortura. Eu
fiz diversas denúncias verbalmente sobre as irregularidades do presidio logo quando
eu entrei (LUCAS, entrevista, Maio,2018).

Através da fala de Lucas, podemos perceber além da sua atitude como detento a situação da
instituição carcerária local, a violação dos direitos das pessoas na condição de prisão e principalmente
a ausência do estado. Assim, as atitudes e “espirito” de liderança fizeram de Lucas um sujeito
respeitado na prisão capaz de ganhar elogios dos líderes evangélicos que prestavam assistência
religiosa aos detentos. Segundo Lucas, Deus o chamou assim:
No presidio tinha o grupo IDE, eles faziam evangelismo lá dentro era um grupo
externo da assembleia de Deus do Brasil, inclusive eu fiz parte desse grupo [...] foi
através desse grupo de irmãos dentro do presidio mesmo que me converti ao Senhor
Jesus, entreguei minha vida pra Deus. Jesus tinha um plano na minha vida, ele me
levou para presidio para eu fazer a sua obra. Eu já tinha o temor por Deus, já tinha
lido a bíblia toda. Cheguei a frequentar diversas igrejas evangélica quando eu ainda
não era detento [...] quando eu me converti Procurei buscar no Senhor o que dizia a
palavra de Deus - o zelo que Deus tem pela sua palavra. (LUCAS, Maio/2018).

Nessa perspectiva os crentes na condição de prisão quando convertidos “ao pentecostalismo


passa a compreender o seu passado no crime como uma transgressão às leis divinas, percebendo, dessa
forma, o seu presente – o tempo passado na prisão – como um momento de castigo e, ao mesmo
tempo, de aprendizado” (Dias2005, p.43).
As experiências adquiridas quando ainda não era detento fora crucial para Lucas na prisão. Ele
também botou em pratica alguns conhecimentos dos tempos em que era militar principalmente sobre
questões culturais e religiosa. Lucas argumenta que nos tempos de exército havia uma um oficial
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Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
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militar cuja a orientação era voltada para religião, o batalhão oferecia também cursos diversos para
incentivo e bem-estar dos soldados:
Quando eu era do exército eu fiz um curso antidroga. Na época eu tinha 18 anos,
parabenizo esse homem [instrutor] até os dias de hoje por tudo o que ele me falou.
Verdadeiramente é correto, sebe? Esse cidadão quando me ensinou a respeito das
drogas foi de fundamental importância para minha vida. Então, eu fui refletir tudo o
que eu aprendi lá dentro do presidio, o poder das drogas na vida das pessoas
(LUCAS, entrevista, Maio,2018)

O bom comportamento, as experiências da carreira militar contribuíram para o sucesso


e a dedicação ao evangelismo no presidio. O “irmão Lucas” como ficou conhecido após sua
conversão, adquiriu respeito e status de “homem de Deus” na cadeia. Desta forma, seu perfil
de liderança lhe trouxera respeito e prestigio da administração prisional e das igrejas
evangélicas que visitavam o presidio, e no ano de 2001 ele foi consagrado e ungido a pastor
pelos próprios líderes evangélicos a pastorear o rebanho das ovelhas aprisionadas da unidade
prisional de Parintins. Camila Nines Dias (2005 p.62) chama a atenção ao afirmar que para a
“administração prisional as práticas religiosas são vistas simplesmente como funcionais, já
que seus integrantes, em geral, dão menos trabalho, em termos disciplinares, para os
funcionários dessas instituições”. Alessandro Bicca (2005, p.96), ao estudar a honra na
relação entre detentos crentes e não crentes em um determinado presídio no Sul do País
argumenta que “a honra é adquirida, entre os detentos crentes e não crentes, com o tempo, e
em uma relação pessoal, onde a conduta é constantemente avaliada”. Por conta disso, “O
discurso religioso resignifica a trajetória biográfica do indivíduo, dando novas cores e novos
sentidos ao seu passado, presente e futuro; o trabalho e, junto com ele a educação passam a
ser visto como vias de retorno à legitimidade social; e, por fim os laços familiares”.
(DIAS,2005, p.42). Desta forma, Raimundo Lucas de Jesus se dedicou exclusivamente auxílio
espiritual para os “irmãos” encarcerado.

Uma das características das conversões nas prisões é que, os detentos “ao se
converterem vem a religião como uma válvula de escape e muita das vezes, “buscam resgatar
os laços que, na maioria das vezes, se encontravam estremecidos ou mesmo rompidos”
(DIAS,2005, p.44). Isso é recorrência da entrada dos pentecostais nos presídios, ultimamente,
duas novas ideias aparecem se estruturar: a santificação de vida de homens e mulheres presos
pela força da palavra bíblica e a estruturação de um cotidiano religioso, articulados pela
conjuração de pastores que vêm de fora (para visitas e pregações) e de obreiros que mantem
atividades religiosas constantes dentro das unidades prisionais, foi o caso de Raimundo Lucas,
quer pelos suprimentos das “necessidades materiais dos internos” ou pela boa conduta dos
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novos fieis, as lideranças evangélicas tem acabado por constituir “uma parcela informal com
os diretores” e agentes penitenciários (LOBO,2005b, p.74), até mesmo ocupando, as vezes o
lugar do Estado em assistências sociais.

As boas obras da igreja carcerária.

A Igreja Carcerária faz do presídio de Parintins uma terra fértil para semear as boas
novas do Reino de Deus, de acordo com o pastor Lucas ela “transforma bodes em ovelhas”.
Ela mantém suas atividades sobre o controle do pastor que conduz o rebanho e está sempre
em constante vigilância a qualquer investida do inimigo. O pastor é o patrono desta “obra”
juntamente com o movimento interno dos crentes evangélicos. “Essa igreja está ativa até os
dias de hoje e tem sido uma benção para os presos” diz ele. Para o pastor Lucas, sua missão é
“ganhar almas para o Senhor Jesus”, promover o evangelismo interno oferecendo ao mesmo
tempo liberdade de crença, atuar nas práticas de ressocialização, confraternização e atividades
sociais, com o apoio das famílias. Sobre a fundação da igreja carcerária e os primeiros
trabalhos no presidio ele nos informa o seguinte:

Eu lembro dos os parceiros [detentos] que me ajudaram muito na época – irmão


Weliton, Irmão João Boás, mas eles foram embora eram detentos, e eu fiquei, na
época eu era detendo, dei continuidade na obra. Nesses tempos a igreja assembleia
de Deus deu apoio para nós, e, eu era membro inclusive. Nós conseguimos motivar
os irmãos internos, outras igrejas de fora nos incentivaram também e o grupo se
fortaleceu na palavra de Deus (LUCAS, entrevista, maio,2018)

Podemos destacar através do pastor a intenção de promover a liberdade de crença na


unidade prisional, um direito inclusive, e a organização de um grupo religioso que além de
almejar “ganhar almas” aprisionada, objetivou a ressocialização. Camila Caldeira Nunes
(2005, p.45) destaca que o grupo religioso “Fornece ao preso, em suma, a possibilidade de
estabelecer laços sociais que o vincule novamente à sociedade e que dê sentido à sua pertença
social”. Desta forma, o sistema carcerário, que tem a função não só de punir, mas dar
condições para que o infrator retome seu lugar na sociedade, no entanto, muitas das vezes tem
sido dependente dos grupos religiosos que têm desempenhado este papel.

Os encontros da igreja carcerária geralmente são promovidos aos finais de semana, e


em alguns casos são acompanhados de ações sociais e conta com a ajuda “extramuros” das
igrejas evangélicas locais que também aproveitam investem no espaço para reproduzirem suas

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crenças. Seu templo e um pequeno espaço adaptado entre os muros e as selas construídos
pelos próprios féis detentos, ele “constitui, por assim dizer, uma “abertura” para o alto e
assegura a comunicação com o mundo dos deuses” (ELIADE,1992, p.19). Durante os 16 anos
evangelizando no presidio, o pastor Lucas se sente honrado, ele além de obter respeito da
massa carcerária, tem têm se destacado nas atividades fora do presidio inclusive. Essas
parcerias com as lideranças evangélicas locais ajudam a promover o evangelismo interno e
uma das estratégias é o envolvimento das famílias dos fiéis detentos:

Muitos presos se converteram, se arrependeram, saíram do mundo das drogas,


juntamente com o apoio da família, isso foi fundamental, sabe? Temos irmãos que já
estão em liberdade, estão trabalhando, até mesmo alguns dirigindo igrejas, e outros
que não quiseram nada com a vida, mas eles ouviram, inclusive volta de novo para o
presidio, e quando eu os vejo por lá, recebo novamente com o mesmo carinho e
respeito de antes, sempre digo nos cultos – sejam bem-vindo, a igreja está aqui,
venha ouvir a palavra de Deus. (LUCAS, entrevista, Maio, 2018)

O pastor Lucas também nos conta que em um determinado tempo se “sentiu só na


obra”. O peso do cajado lhe trouxera cansaço, fadiga e muita responsabilidade, “a obra é de
Deus e ele entregou nas minhas mãos” argumenta. E ainda nas suas palavras, “aconselhar
preso não é tarefa fácil. Lá dentro é um aprisco onde estão - ovelhas, lobos, mulas, burros,
aviões, e muito mais. Para aconselhar essas pessoas, tem que ter compaixão (LUCAS,
entrevista, Maio, 2018).

A igreja carcerária sempre buscou promover ações sociais para os “irmãos” internos
principalmente para aqueles que estão em condição de abandono familiar. Já ouve muitos
casos em que de alguns detentos se encontrarem em situações pecaria como por exemplo, a
falta de roupa, remédio e materiais de higiene pessoal, e muitas das vezes eles chegam no
presidio ferido dependendo da gravidade de seus crimes. Vejamos o que ele diz sobre isso:

Os irmãos da igreja carcerária têm contado com a ajuda das igrejas cujas ofertas são:
creme dental, roupas usadas, sabonete, barbeador, coisinhas de higiene pessoal do
dia-dia que é responsabilidade do Estado inclusive, e além de bíblia, folhetos,
livretos om mensagens religiosas, roupas usadas [...]Deus tem abençoado a obra
mesmo, sou isso é muito gratificante para nós [...] nós temos os nossos
equipamentos para promover os cultos como: caixa de som microfone, púlpito,
cadeira. Tudo isso foi doado de fora dos irmãos parceiros da obra [...] Deus tem
ouvido nossas orações, somos muito gratos por tudo (LUCAS, entrevista,
Maio,2018),

A igreja carcerária através do seu pastor juntamente com a administração carcerária


são os responsáveis pela organização das visitas das demais denominações evangélicas locais
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organizam as festas comemorativas que acontecem na unidade prisional. Desta forma,


segundo o pastor Lucas, é para evitar desordens por parte das próprias igrejas que tem seus
horários determinados em cronogramas. Todos os “irmãos” aos entrarem no presidio são
submetidos a revista. Geralmente nos momentos de cultos, o pastor Raimundo Lucas sempre
prioriza os testemunhos dos crentes ex-detento, um método para impactar os presos não
crente. Ele inclusive, já levou vários pregadores de nível nacional cuja vida é marcada pelo
submundo do crime, além de cantores gospel e obreiros locais. Nas palavras do pastor, “o
testemunho destes homens estremece o inferno e é impactante ”

Finalizando

Neste artigo busquei através das narrativas do pastor Lucas mostrar sua trajetória de
vida tratando ao mesmo tempo das suas experiências na cadeia, conversão e pudemos
também refletir sobre novos desenhos de pastorais alternativos, aqueles praticados pelas
pastorais católicas carcerária. A vida deste sujeito é marcada pelo trabalho infantil, pelas
adversidades encontradas na zona rural e na cidade. No entanto, seu maior momento de gloria
foi na prisão, principalmente quando se converteu ao pentecostalismo. Sua trajetória é repleta
de contradições. Ele, através da religião no cárcere adquiriu capital simbólico e o status de
homem de Deus, contando ao mesmo tempo com o apoio da administração interna e das
lideranças evangélicas locais. Essa “missão” dentro do cárcere, segundo ele, foi fundamental
para sua empreitada em coordenar e incentivar os fiéis na busca de novas oportunidades tendo
a igreja como principal “esteio”. O bom comportamento e o trabalho social fizeram a
diferença para o status do pastor Lucas. Do posto de vista religioso, Lucas fez uma leitura de
sua realidade e percebeu que a religião no presidio tem o poder de envolver as pessoas. Os
detentos, assim como ele, carecem de perdão, salvação, esperança e oportunidades.
Raimundo Lucas é um personagem ímpar, diz ele “eu comi o pão que o diabo amassou”, mas
não desistiu da vida.

Portanto, o pastor Lucas, faz do presidio parintinense um aprisco fértil para os


evangélicos, eles oferecem novos métodos de sociabilidade, juntamente com o apoio das
famílias, e tem subtraído “almas” para suas igrejas periféricas. A igreja carcerária tem
priorizado atividades sociais, diz ele, “ minha missão agora é resgatar do inferno”, e durante
os dissésseis anos como coordenado o objetivo principal é a conversão. Muitos homens que
cumpriram pena no presidio de Parintins tiveram a oportunidade de participar da Igreja
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Carcerária, e mudaram de vida. Eles voltaram para o seio da família e adquiriram novamente
o respeito da sociedade. No entanto, há aqueles que inda se encontram na condição de prisão,
mas vem na religião esperanças de recomeço e oportunidades na sociedade. Raimundo Lucas
continua ativo nas atividades dentro do presidio, e a cada momento seu aprisco se renova.

Referências Bibliográficas
ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In. PINSKY, Carla Bassanezzi. Fontes
Históricas, São Paulo, Contexto, 2011.
SILVA JUNIOR, Antônio Carlos da Rosa. “Campo religioso brasileiro prisional”: o lugar das
instituições religiosas no contexto de encarceramento”. In: Anais do XV Simpósio Nacional da
ABHR. Juiz de Fora: ABHR, 2015. pp. 1373-1383.
BIANCHEZZI, Clarice & SILVEIRA, Diego Omar. "Demografia, cartografia e história das
religiões em Parintins: novas possibilidades para o estudo da diversidade religiosa na
Amazônia". In: BIANCHEZZI, Clarice (et. al.). Pensar, fazer, ensinar: desafios para o ofício
DIAS, Camila Caldeira Nunes. Evangélicos no cárcere, representação de um papel
desacreditado”. In: Revista Debates do NER. Dossiê Religião e prisão. Porto Alegre: UFRGS,
ano 6, n. 8, julho/ dezembro de 2005. p. 39-55
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História oral – memória, tempo, identidades. Lucília
de Almeida Neves Delgado. – 2 ed. – Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
EDILEUZA, Santana Lobo. “Ovelhas aprisionadas, a conversão religiosa e o rebanho do Senhor nas
prisões”. In: Revistas debates do NER. Dossiê religião e prisão. Porto Alegre: UFRGS, ano 6 n. 8
julhos/dezembros de 2005b. pp. 73-85
ELIADE, Mircea, 1907 1986.O sagrado e o profano / Mircea Eliade ; [tradução Rogério
Fernandes]. – São Paulo: Martins Fontes, 1992. – (Tópicos)

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A LITERATURA COMO FERRAMENTA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA DAS


ÁFRICAS
ALEXANDRE DA SILVA SANTOS*

Introdução
Atualmente, discutir sobre o ensino de uma história das “Áfricas” está imbricado em
inúmeras discussões que procuram promover um rompimento de estereótipos ligados a fome e
a selvageria, disseminados por veículos de comunicação que reduzem o continente negro a
um lugar homogêneo, povoado por animais e homens selvagens e grupos étnicos em conflitos
constantes, como discorre o Professor Dr. Anderson Oliva (2008:30), ao questionar a imagem
construída pela mídia e o real conhecimento que se obtém sobre a África.
Tal concepção sobre essa temática ganhou maiores contornos a partir da aprovação da
Lei 10.639/03 e, posteriormente, a Lei 11.645/08. Elas se tornaram a maior conquista de
diversos movimentos sociais, pois, impunha aos estabelecimentos de educação fundamental e
médio de todo o território nacional a incluírem conteúdos de história e cultura afro-brasileira,
africanas e indígenas em sua grade curricular.
Nesse sentido, fazer uso da literatura como ferramenta de ensino, significa atender as
demandas que esse legislativo criou para se discutir em sala de aula a compreensão dos
processos que formaram as instituições e patrimônios que se ergueram em um determinado
instante ao longo do continente africano.
É um recurso que pode ser utilizado para que o aluno possa atentar-se a uma específica
época em que houveram movimentos em luta pela independência política ou compreenderem
os reinos que já existiram naquele território, por exemplo.
Nesse sentido, esse tipo de entendimento a respeito do uso metodológico que esse tipo
de fonte possibilita ao professor, permite ao aluno melhor situar-se no contexto do fato
histórico abordado em sala de aula. Assim, nosso exposto é similar ao de Oliveira (1984), em
Literatura e Sociedade, cuja compreensão acerca da produção literária percorre a saber que
ela resulta de convicções, crenças, códigos e costumes sociais que emergem de uma peculiar
realidade histórica.
Com efeito, é importante ressaltar a criação do legislativo que prevê a obrigatoriedade
do ensino de História e Cultura Africana e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino
público e privado em todo o país, porque a partir disso foi surgindo gradualmente a

*
Mestre em Letras- Estudos literários, PPGL-UFAM. Mestrando em História, ambos pela Universidade Federal
do Amazonas (UFAM). Bolsista Capes. E-mail: alexandresantosp@gmail.com.
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necessidade da utilização das chamadas “linguagens alternativas para o ensino de história”


(ABUD, 2005:310) como: teatro, produções cinematográficas, jornais, literatura, música.
Dessa forma, esta proposta visa contribuir em assuntos relacionados à sala de aula, que
em tempos de mudanças decorrente do novo ensino público no Brasil, constituem em uma
reorganização de conteúdos ministrados nos segmentos do fundamental e médio, constituem
um pacote de fatores auxiliares ao trabalho do docente e à aprendizagem do discente. Em
síntese, tem o intuito de fazer com que o aluno consiga de forma mais viabilizada,
compreender o conteúdo a ser trabalhado pelo professor.
Para tanto, partindo do pressuposto que ensinar exige práticas educativas e críticas, o
uso desse tipo de linguagem alternativa (a literatura), propicia condições aos educandos de
investigação, descobrimento e questionamentos acerca do passado e presente de sua realidade
como um todo. A partir do instante em que eles interpretam isso, passam a assumir-se como
seres sociais, históricos, culturais e pensantes dentro do processo de ensino e aprendizagem.
A escola é um espaço privilegiado de aprendizagem, é nesse local em que deverão ser
lançadas as bases acadêmicas para a formação do indivíduo. E é nele que privilegiamos o
ensino de história das Áfricas neste estudo, pois, de maneira mais abrangente do que
quaisquer outros, há nele um estímulo ao exercício da cognição, a percepção do real em suas
várias camadas. Por isso é importante que os agentes de uma escola, assim como os pais,
saibam os seus papéis da formação do educando ou seja: mediadores do conhecimento.
Com efeito, esse discente será o que Freire expõe, isto é: “O sujeito que se abre ao
mundo e aos outros, inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como
inquietação e curiosidade” (FREIRE, 1996:154).
Nesse contexto, todo esse exposto tem na nossa proposta uma aula de introdução sobre
o continente africano, em âmbito do ensino fundamental, através de Mitos Africanos, de Gary
Jeffrey, publicado em 2002 e voltado para iniciar alunos da educação básica aos estudos sobre
esse lugar, a partir da mitologia local. Um livro ilustrado com histórias que percorrem a
ancestralidade, tradição oral e mitos dos povos africanos, constituído pelas narrativas:
“Origens, “Três mitos africanos”, “A história da criação do povo iorubá da África Ocidental”,
“Como Ananse se tornou o dono de todas as histórias que as pessoas contam”, “A história do
cão e do chacal”, e “Outros personagens míticos”.
Uma vez essa literatura trabalhada em sala de aula, o docente pode começar a
organizar os assuntos específicos que se referem à África a partir da compreensão que os
discentes possuem (aquelas que eles trazem de mundo) sobre o homem que ali reside e a

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condição humana existente. Esta é o fruto da vivência coletiva dos homens num mundo
comum e em condições sociais determinadas.
Por fim, espera-se que este estudo posso servir de auxílio à professores licenciados
pelas universidades brasileiras em história, e possui a ciência de que muito há de ser feito para
que os estudos africanos, em âmbito da educação básica no Brasil, possam ser discutidos com
maior clareza e importância. Avanços já foram obtidos, mas ainda estão em dinâmica de
surgimento outros, por isso sabemos que esta proposta não é um fim, mas um dos caminhos
que dão o suporte para o exercício da docência em nosso país.

Procedimento metodológico
O presente estudo realizou-se por meio de um estudo bibliográfico, partindo da leitura
inicial de Mitos Africanos, de Gary Jeffrey, de 2002, em específico as narrativas: “Origens” e
“A história do cão e do chacal”. Posteriormente, iniciou-se as leituras concernentes aos
estudos africanos, teoria da literatura e ensino de história.
Nessa etapa, foi realizada uma leitura informativa para a coletas de dados pertinentes
à formação docência, de acordo com a proposta da Lei 10.639/03, 11.645/08 sobre o ensino
de história e cultura da África por intermédio também de linguagens alternativas.
Logo após, foram realizados fichamentos desses textos para se observar os possíveis
percursos metodológicos que podem ser adotados em sala durante exposição dos temas
relacionados ao ensino da História da África, em singular utilizando a literatura como
ferramenta de ensino.
Assim, no intuito de sistematizar os dados obtidos para a realização de outras
literaturas relacionadas à proposta deste estudo, foi utilizado como caminho metodológico
uma abordagem reflexiva a partir da literatura de Freire (1996), em Pedagogia do Oprimido.
Dessa forma, a realização dessa etapa permitiu iniciar outra, isto é, compilar as informações
necessárias, considerando que o universo de uma sala de aula é repleto por diversos contextos
e situações de mundos que estão sob orientação do professor.
Por sua vez, as comparações realizadas objetivam expor um pensamento reflexivo
sobre a atenção que se deve possui a respeito das diversas formas de se ensinar História da
África, em ambiente da educação básica no Brasil.
Não é uma cartilha metodológica, nem mesmo um postulado sobre como deve-se
ministrar aula, ao contrário, é um diálogo a ser estabelecido e que possui na natureza de sua
proposta uma contribuição ao processo de ensino e aprendizagem de história.

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Nesse sentido, uma vez os textos lidos e organizados, deu – se início a uma análise
temática, interpretativa e de síntese pessoal acerca do assunto abordado. Com isso, pode ser
feito um levantamento e discussão de problemas relacionados à mensagem obtida dos teóricos
mencionados, no intuito de elaborar este artigo, cujo tema proposto em questão aborde uma
reflexão interdisciplinar nos campos da Literatura, História e Ensino de História da África.

Discussão
Por muito tempo houve a crença de que a produção da literatura de viés artística,
aquela orientada por Aristóteles como representação da realidade, chamada de mimese, ou por
Gil Vicente como instrumento de denúncia social pela comédia ou no trato irônico dos vícios
da sociedade portuguesa do final do século XV, ou ainda nos devaneios dos românticos do
século XIX, influenciados pelo espírito da Revolução Francesa - não era aceito como um
construtor de conhecimento e saberes, apenas ficção.
Partindo da premissa que Chartier (1999) expõe em História e Literatura, a relação
entre essas formas narrativas de se contar a história são muito próximas por conta das
modalidades discursivas, morfológicas e históricas de identificar o fato histórico. O teórico
considera que o autor da literatura “é o resultado de uma mobilidade social, política e cultural,
ao oposto do autor enquanto ator (aquele que faz a representação de uma realidade)”
(CHARTIER, 1999:197).
Nesse sentido, quando a literatura tematiza a realidade, ela ultrapassa as questões
clássicas dos historiadores e os leva a construir de outro modo o próprio objeto de sua
indagação. A história, ao mesmo tempo, se confunde e se opõe à ficção.
A partir da criação dos Analles e da História Cultural, a proposta interdisciplinar de
realizar o estudo histórico, permitiu a possibilidade de se observar na literatura uma fonte de
compreensão de variadas realidades que foram representadas pelo homem, por ser esse
escritor o resultado de uma construção de um determinado tempo, de uma específica época.
Para Bloch (2001), por exemplo, através de métodos interdisciplinares de se investigar
a realidade ao seu redor, o historiador deve ter a ciência de que “tudo o que o homem diz ou
escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele” (BLOCH, 2001:79).
Sendo assim, as narrativas históricas e literárias se apresentam de formas distintas, mas
constroem uma identidade coletiva e individual com o mundo.
Em outros termos, toda ficção que está enraizada na sociedade é em determinadas
condições de espaço, tempo, cultura e relações sociais, a matéria prima do escritor que através

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da linguagem materializa sua subjetividade criadora. Por conta disso, Chartier em A história
ou a leitura do tempo, de 2009, escreveu que algumas obras literárias realizam uma profunda
representação da coletividade do passado.
Em virtude disso, os historiadores devem compreendê-las como fontes, que
comunicam contextos históricos e sociais e isto requer consulta de outras informações acerca
de uma determinada época. Porém, sempre é preciso estar atento aos ambientes socioculturais
do período analisado para se evitar anacronismos.
Diante disso, quando um historiador também se ocupa da docência, uma prática muito
comum no Brasil, ele deve ter a percepção de que o aluno que ali está sentado à sua frente é
um homem que é fruto da vivência coletiva das condições humanas social e historicamente
determinada, tudo isso representado em jovens que chegam à escola em busca do saber e da
convivência com os colegas.
E é através da Educação que as sociedades sobrevivem, se renovam e se estabelecem
valores. Para tanto, mediante as inúmera transformações ocasionadas, principalmente, pela
regulamentação da lei 11.645/08, o ensino de história deve ser repensado a partir das
necessidades de se contemplar as demandas que são oriundas das perspectivas atuais sobre o
papel dos negros na formação do processo histórico do país. E consequêntemente, a
desmistificação de estereótipos que reduzem esses atores a meros coadjuvantes de suas
histórias, assim como prevê os objetivos estipulados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais
– PCNs – (1998) de História para o Terceiro e Quarto Ciclo do Ensino Fundamental:
Conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como
aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer
discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo,
de etnia ou outras características individuais e sociais; (BRASIL, 1998:7)

Em outras palavras, a Lei 11.645/08 que altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de


1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003 visa em um dos pontos incluir e
esclarecer quais são os aspectos sobre a história e cultura da África e dos africanos que
deverão ser trabalhados em todo o currículo escolar.
Segundo essa legislação, a luta dos negros e indígenas no Brasil, a cultura desses e o
seu papel da formação da sociedade brasileira deve ser considerada consoante suas
contribuições nas áreas políticas, sociais, culturais, econômicas e outras pertinentes à história
brasileira.
Assim, após essas mudanças, foi necessário que escolas e professores repensassem em
estratégias de ensino que envolvessem essa temática para que não se tornassem profissionais

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“(...) obsoleto e ser considerado como mobília antiga que muitos guardam como lembrança de
alguém ou de um tempo passado.” (FREITAS; PETERSON, 2015:34).
Diante disso, a literatura como parte de uma linguagem auxiliadora no processo de
ensino da história, proporciona também a elucidação de assuntos tidos como enfadonhos e
desinteressantes, auxiliando a compreensão de forma facilitada de determinados temas, como
por exemplo, aqueles que discorrem sobre a África antes da diáspora, fazendo o discente
perceber naquele contexto os conhecimentos e saberes produzidos, como também a tecnologia
utilizada, a arquitetura, as navegações, e demais especificidades de cada grupo étnico.
Uma vez abordado tais assuntos, é necessário estabelecer um diálogo em sala de aula
com o aluno, orientando a compreensão de uma parte da história de nossos antepassados (de
acordo com a série escolar), para entender que na África as etnias formaram realidades
múltiplas oriundas de diversas tradições culturais, cujas dinâmicas permitem que as mudanças
ainda sejam algo permanente.
Tudo isso só foi possível também graças a Lei 11.645/08. Esta informa no segundo
parágrafo que: “Os conteúdos referentes a História e Cultura Afro-Brasileira devem ser
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação
Artística e de Literatura e História Brasileira” (BRASIL, 2008:2).
Com efeito, é possível perceber como é viável o diálogo entre literatura e história em
âmbito da sala de aula. Não é por acaso que essa relação em contexto de ensino, desde o
período do Renascimento perdeu o caráter público e passou ao privado, isto é, consoante
Zilberman (2006), em Sim, a literatura educa, transferiu-se para a escola a tarefa de ensinar
(o literário) em natureza pedagógica. Mais tarde, após a Revolução de 1789, a autora expõe
que “Os franceses introduzem na escola a literatura nacional, que, a partir de então torna-se
objeto da história literária...” (ZILBERMAN, 2006:19).
Este aspecto do uso pedagógico da literatura é mais uma possibilidade metodológica
ao docente de história para ministrar as suas aulas. Ela pode ser usada como tal porque as
mudanças que ocorreram desde o século XVI, conferiram ao ensino daquela o objetivo de
conhecer a história de um país, de um grupo, de uma sociedade.
Por isso é importante que essa característica de aula seja um espaço funcional. Há uma
'docência do espaço' dentro da sala de aula e este deve ser aproveitado pelo professor.
Segundo Vital Didonet em A escola que queremos, de 2013, esse lugar é referido como um
lugar onde os alunos aprendem lições sobre a relação entre o corpo e a mente, o movimento e

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o pensamento, este lugar tem que gerar ideias, sentimentos, movimentos no sentido da busca
do conhecimento.
Um dos exemplo do exposto acima e que pode ser utilizado ao longo da aula, ou para
iniciar a mesma, provém da narrativa intitulada “Origens”, de Jeffrey (2002). Neste tecido
textual, há a informação de que o continente africano é três vezes maior que a Europa e é
dividido ao meio pelo deserto do Saara. O professor pode explorar a partir dessa exposição o
mapa político da região e expor que no continente não somente vivem negros, brancos
também e os primeiros estão situados, em geral, na África subsaariana.
O docente pode expor, conforme o decorrer da leitura, que os povos africanos
possuem lendas e mitos que explicam a origem das coisas, da humanidade e do universo
(dadas as relatividades, parecido com a mitologia grega). Em uma outra aula ele pode
apresentar aos alunos a narrativa do cão e o chacal, do povo Bushongo
1
, do Congo. Após realizar a leitura com os alunos ele faz a exposição sobre esse grupo
étnico e ensinar sobre o país mencionado.
Essas histórias são dois exemplos, de outros possíveis que demonstram como o uso da
literatura no ensino de História possibilita um diálogo alternativo e rico de informações para a
exposição de assuntos relacionados à história africana.
Elas corroboram a assertiva da Lei de Diretrizes e Base – LDB (2001), sobre a
educação abranger os processos formativos que estão inclusos no desenvolvimento da vida de
uma pessoa, como: família, convivência humana, trabalho, movimentos sociais e
manifestações culturais, porque estas etapas são componentes principais no ato de aprender,
que associados a um bom intermédio (professor) possibilitam o sucesso garantido de que se
interessa a educação, isto é, a formação do individuo como ser pensante.
Por conseguinte, após essas mudanças, outra deveria ocorrer, pois a necessidade de
uma reformulação da LDB tornou- se urgente para que se permitisse a flexibilização do
currículo que as leis orientavam. Nesse interim, foram alterados os artigos 26-A, 79-A e 79-B
que também tornaram obrigatórios o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, nos
segmentos do fundamento e médio. Sendo assim, a história da África e dos africanos, a luta
dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na sociedade nacional.
Segundo os professores Mariana Heck e Fábio Amorim (2016), o objetivo dessa lei foi
possibilitar aos alunos uma noção sobre a história do continente africano e do homem que ali

1
Grupo étnico da região central da África, em uma época pré-colonial, hoje o país do Congo.
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reside, contribuindo para um ensino crítico e orientando os discentes para compreensão dos
modos de vida daquele lugar.
Paralelo a isso, a Resolução 01/04, logo após a aprovação da Lei 10.639, visa atender
as demandas de afrodescendentes, que antes de todo esse cenário possuíram pouca
visibilidade dentro do contexto educacional. Muito desse quase invisível ocorre do
desconhecimento em relação à história do continente africano, como também das diferenças
culturais e sociais ali existentes. Todo esse conjunto ajuda na criação e ainda permanência de
preconceitos e visões exóticas acerca do homem daquele lugar.
Por fim, pensar no uso da literatura como ferramenta de ensino de história, permite a
possibilidade de se trabalhar com discursos que revelam as contextualizações de uma
determinada época. Em outras palavras, ela é o observatório das representações de uma
sociedade em um específico tempo, sendo ela esse atributo, a história é o seu complemento.
Isto é, esta observa e registra as temporalidades, aquela humaniza a historicidade.
Nesse interim, o ensino de história vai além da aprendizagem de fatos e situações
históricas. A partir das mudanças nas Leis mencionadas, PCNs e LDB, possibilitou-se ao
aluno compreender que essa área de conhecimento está em construção e a novas reflexões
sobre os acontecimentos históricos.

Considerações finais
A educação lança mão de modelos que nada são do que visões acerca do homem que
se pretende educar. Segundo Siman (2005): “A atual política nacional curricular atribui ao
ensino de história o papel de formar um novo cidadão que, dentre outras características, seja
capaz de compreender a história do país e do mundo como resultante de múltiplas
memórias...” (SIMAN, 2005:350)
As mudanças que a Lei 10.639/03 e a 11.645/08 vem ocasionando sobre o ensino da
História da África e Cultura Africana. Como o observado, esse novo cenário também se deve
ao processo de ensino que considera o uso da Literatura, Música, Teatro, Educação Artística
e outras linguagens para realizar uma aprendizagem com qualidade.
Diante desse quadro, em específico no uso do texto literário, acreditamos que ele
consegue o ferramenta de mediação do conhecimento histórico por parte do professor, edifica
e compartilha saberes sobres os assuntos relacionados aos povos continentes.
Com efeito, esse novo modo de aula permite que o discente obtenha um tipo de
conhecimento sobre as Áfricas e seus descendentes que percorre desde o entendimento sobre

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as diásporas, como também a compreensão sobre a vida cotidiana e a respeito das dinâmicas
de expressão e reconhecimento de histórias do período pré-colonial. Além disso, esse jovem
estudante poderá ter acesso a um passado histórico em que houveram lutas e conquistas para
se obter a independência política.
Tudo isso desaloja conhecimentos continentais engessados e fechados em si mesmos.
E é nesse contexto que surge a literatura como a expressão que nos ajuda a entender sobre nós
e a realidade circundante. Esta situação corrobora com o pensamento de Achebe (2013) a
respeito do continente africano, ou seja, que a África não é ficção e possui gente de verdade.
O aluno que obtém conhecimento sobre os traços culturais, sociais, políticos econômicos a
partir das aulas de história das Áfricas, irá perpetuar essa compreensão sobre aquele lugar.
Em síntese, a promulgação das leis e as diversas formas metodológicas que já
surgiram sobre o ensino de história nesse contexto, rompem com uma tradição de se ensinar
os assuntos relacionados àquele continente. Diante do exposto, é necessário que o cotidiano
seja de mudanças na totalidade dos estabelecimentos educacionais do Brasil, para que haja
uma maior produção de conhecimentos sobre os estudos africanos e, dessa forma, maior
conscientização sobre quem somos, uma vez que a população brasileira é indígena e é negra.

Referências
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BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e
dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 10 jan. 2003.
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A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE TRABALHISTA DURANTE


A DÉCADA DE 1930 NO AMAZONAS.
AMAURY OLIVEIRA PIO JUNIOR

Introdução
A década de 1930 no Brasil seria marcada como o início de uma nova
contextualização nas relações entre trabalhadores, patrões e um novo papel do Estado sobre
estes. Verificaríamos a partir de então a constituição de um edifício legal que embora de
pronto buscasse atender o mundo do trabalho urbano para certas categorias mais específicas,
com o decorrer dos governos de Getúlio Vargas seria ampliado de forma significativa.
Nossa pesquisa se debruça sobre plataformas políticas voltadas à aplicação no Estado
do Amazonas da recém criada legislação, especialmente aquela relacionada ao novo papel
desejado para com os sindicatos de trabalhadores.
Utilizando como principais fontes a imprensa jornalística da época, voltaremos nossa
atenção sobre ojornal Tribuna Popular. Inicialmente sob o subtítulo “Órgão do Partido
Trabalhista Amazonense”, levaria a partir de julho de 1935 a denominação de “Órgão do
Partido Popular Amazonense”, resultado da união de lideranças do Partido Socialista
Amazonense liderados por Álvaro Maia, e do Partido Trabalhista Amazonensesob o comando
de Luís Tirelli.
Embora controlado por lideranças políticas, muitas das quais ligadas as antigas
estruturas do sistema partidário da denominada República Velha, o Partido Trabalhista do
Amazonas tinha por base diversos sindicatos amazonenses, o que dava voz ao movimento
operário nas páginas de seu órgão de divulgação – o Jornal Tribuna Operária – em especial
aos não reconhecidos oficialmente pelas novas leis impostas aos sindicatos pelo Ministério
do Trabalho, que deixavam pouca margem de manobra política aos que não se enquadravam
no oficialismo estatal.
Além disso, são justamente nas páginas do Jornal Tribuna Popular, nos discursos e
campanhas ali promovidos, que podemos encontrar a consolidação do grupo político que de
fato melhor representou os ideais varguistas-trabalhistas nos anos que se antecederam ao
Estado Novo, e sua interação com boa parte do movimento sindical entre 1934 e 1936; uma
época de tensões, de momentos ora de afastamentos ora de unificação entre suas lideranças


Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Amazonas, Professor do Centro de Mídias do Governo do Estado do Amazonas e-
mail:amaurypio@hotmail.com
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políticas, que nada mais foram reflexos do que o país como um todo também assistiu, sentiu e
ficou marcado.

O Panorama do Mundo do Trabalho Brasileiro antes dos anos 30

Os movimentos das lutas operárias no Brasil datam do século XIX, embora suas
entidades tivessem até então marginalizadas pela negação de reconhecimento tanto pelo
Estado Brasileiro quanto através de suas Leis. Mesmo assim, a existência de sindicatos de
empregados no Amazonas naquele século permite afirmar que “o movimento operário de
Manaus já era significativamente atuante, como destacado pela identificação da greve dos
catraieiros em 1883” (PINHEIRO, 1999, p. 70)2. Profissionais portuários e gráficos tiveram
neste período destacado papel quanto a organização sindical regional.
A falta de uma legislação específica sobre o assunto levava a via de regra, que a
maioria dos acordos realizados em negociações grevistas fossem sumariamente descumpridos
pelo patronato. Embora fosse um dos fundadores da Organização Internacional do Trabalho
em 1919, para o governo brasileiro naquelas primeiras décadas do século XX, as relações
trabalhistas deixavam cada vez mais de ser um problema social para tornar-se policial não
sendo exagero “dizer que até o final do ano de 1930, não existiam leis trabalhistas no Brasil.
Ou melhor, se algumas existiam, não eram aplicadas” (GIANNOTTI, 2007, p.101).
Apontamentos indicam que a primeira vez que um governo aceitou intermediar
grandes greves foi em 1917, em São Paulo “durante o alastramento do que começou no mês
de junho no bairro da Mooca e se espalhou por toda cidade durante trinta e cinco dias,
obrigando o governo a interferir, tendo como resultado os trabalhadores conquistando parte
das reivindicações" (GIANNOTTI, 2007: p.68).
Os direitos trabalhistas eram entendidos pelo Estado como não legitimados por ele
mesmo e, portanto, as ações que o reivindicavam eram dignas de repressão. Por outro lado, o
empresariado entendia que as relações trabalhistas estavam reguladas pelas leis civis, no
instituto da ‘locação de serviços’. Desse modo, as greves de 1917 podem ser vistas como um
meio de luta não apenas para a efetivação de alguns direitos pontuais, mas sim da necessidade
de criação de um direito especial para um novo sujeito que se consolidava no mundo do
trabalho brasileiro: o operário urbano.

2
Quando Manaus ainda não possuía o Porto Flutuante, os navios ficavam no meio do rio Negro, sendo que estes
profissionais, em canoas denominadas de “catraias” faziam o transbordo entre a terra firme e as embarcações.
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A partir dos anos 1920, a radicalização dos movimentos Tenentistas, como a Revolta
dos 18 do Forte de Copacabana em 1922 e da Coluna Prestes entre 1922-1927, alémda
Revolução Paulista de 1924, levaram tanto governos Estaduais quanto Federal, a evocarem
em diversos momentos, medidas de repressão, como o estado de sítio e outras estratégias que
engessavam greves e manifestações.
Este período se não representou os avanços esperados – em alguns casos como o dos
anarquistas, a intensa perseguição do governo Bernardes promoveu um grande
enfraquecimento que por outro lado seria aproveitado por dois novos agentes que dominariam
o cenário do movimento operário: os cooperativistas e os comunistas3.
Apesar dos Cooperativistas - liderados por Sarandy Raposo -trazerem propostas que
procuravam transitar politicamente entre os dois grupos adversários, anarquistas e
comunistas- “acabaram por ficar mais alinhados com os últimos, até mesmo por conta dos
desafios institucionais políticos que as eleições para a Câmara de Deputados a acontecer em
fevereiro de 1927 exigiriam” (GOMES, 2005: p. 161).
A reação das lideranças sindicais comunistas através da criação da legenda “Bloco
Operário”, depois BOC (Bloco Operário Camponês) isolaria sob este aspecto, os sindicatos
ligados aos anarquistas que assistiriam um sucessivo esvaziamento de suas fileiras nos anos
seguintes.
Seria sob esta conjuntura onde cada vez mais os sindicatos atrelavam-se a projetos e
grupos políticos de âmbito nacional, que a emergência de um papel protagonista da parte do
governo brasileiro no mundo do trabalho encontraria um momento apropriado para o
estabelecimento das bases do Trabalhismo no país.

Implantação gradual e consolidação do Trabalhismo como Política de Estado


Logo após assumir o Governo Provisório em fins de 1930, Getúlio Vargas
providencia a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio transparecendo uma
premente preocupação em reordenar as relações conflituosas entre entidades sindicais e o
patronato, conforme assistidas ao longo da década anterior.
Um extenso conjunto de leis seria logo adotado para isso, a exemplo do Decreto
19.770 de março de 1931, que estabelecia novas normas de sindicalização. A proposta ali

3
As notícias acerca do massacre promovido pelo governo bolchevique russo contra a Revolta do Kronsdat, onde
a maioria rebelde eram anarquistas, chegaram ao Brasil causando afastamento destes das organizações operárias
ligadas aos comunistas. Acirrou-se uma intensa disputa entre os dois grupos pelo controle das instituições como
Sindicatos, Associações e Federações.
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contida, segundo Ângela de Castro Gomes em A invenção do Trabalhismo, vinha


“transformar e ao mesmo tempo concorrer com o padrão de associações até então existentes
no movimento operário” (GOMES, 2005, p.163).
A sindicalização “facultativa” seria outra estratégia que empurraria muitos operários
ao novo modelo, pois somente sindicalizados gozariam de benefícios de leis que surgiriam.
Sob Salgado Filho “veríamos um período-chave onde seriam promulgadas a maioria destas
leis, que procuravam regularizar condições de trabalho como horários, férias, atuação de
mulheres e menores até a criação de instrumentos de enfrentamento dos conflitos que
surgissem, como Comissões e Juntas de Conciliação e Convenções Coletivas de Trabalho”
(GOMES, 2005, 164).
A construção do arcabouço Trabalhista se dá de maneira ambivalente nesta fase, ao
deixar evidente a negação da existência dos movimentos sindicais legítimos e suas lutas nas
décadas anteriores a 1930, ao mesmo tempo que retoma o discurso ainda do século XIX –
ressignificados em novo contexto – do valor fundamental do trabalho como meio de ascensão
social e não de saneamento moral, sendo este entendimento, juntamente com a dignidade do
trabalhador como “eixo principal do qual se monta sua comunicação com a sociedade e com o
mundo da política” (GOMES, 2005: p.27).
Ainda para Ângela Gomes, estes primeiros anos teriam mais um caráter
“pedagógico”, haja visto a resistência sindical especialmente de entidades ligadas aos
comunistas. Aponta-se que precisamente a fase de efetiva imposição desta legislação se daria
somente após o Golpe de Estado de 1937, também onde a adesão substancial do
empresariado se daria sob o receio do “avanço comunista” que o Plano Cohen apregoava.
O papel que o novo sindicalismo desempenharia seria fundamental para a execução
das teses Trabalhistas, em uma conjuntura que o Estado, principalmente após 1937, deveria
preocupar-se em se mostrar diferente das propostas comunistas e nazistas. Seria através da
atuação sindical, em sua nova roupagem, que fundamentalmente faria o Estado Novo infiltra-
se no indivíduo trabalhador.
Diante desta consolidação do discurso Trabalhista a nível nacional, resta-nos
averiguar sob que condições este se apresentaria sob os aspectos regionais do Estado do
Amazonas.

Um Trabalhismo com feição Amazonense

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No caso do Amazonas, as lideranças políticas locais identificadas no estabelecimento


de um discurso sob diretrizes trabalhistas foram em boa parte agentes que anteriormente a
1930,haviam despontado tanto através do Movimento Glebarista, quanto na efêmera, mas
intensa Revolução Tenentista de 1924, onde Manaus destacou-se por ter sediado um dos focos
mais radicais do movimento. Pesquisas ressaltam que “identificar a atuação destes
personagens nos eventos desencadeados nos anos 1920 é passagem obrigatória para
compreender a instalação do trabalhismo no Amazonas nos anos 1930” (SANTOS, 1989:
p.22).
O primeiro fator que permitiu o surgimento de novas lideranças4 pode ser observado
no desgaste das oligarquias tradicionais locais, geralmente em disputas que chagavam ao
governo Federal através de reiterados pedidos de intervenções, vinda de adversários
derrotados nas eleições locais. Foi assim, por exemplo, quando para o pleito ao governo
estadual no quadriênio 1920/1924, embora ocorresse a vitória de Luiz Wortingnen Ferreira –
apoiado pela facção de Silvério Nery - o grupo ligado a Guerreiro Antony consegue após
solicitação ao Presidente da República Epitácio Pessoa, a nomeação do desembargador César
do Rego Monteiro.
A administração Rego Monteiro, ao encontrar um Estado sob grandes dificuldades
financeiras acaba piorando substancialmente a penúria, após desastrosas tentativas de
empréstimos malsucedidos, tornando crônicos os longos atrasos do funcionalismo público, o
que gerava repercussão não somente nos diretamente afetados como no comércio das cidades,
principalmente Manaus.
As eleições previstas do próximo quadriênio, onde a força do grupo Rego Monteiro
indicaria para sucessão Aristides Rocha, logo encontraria um percalço: a Rebelião de 1924.
Trazidos para o Amazonas como forma de punição as Revoltas Tenentistas de 1922, diversos
líderes militares logo perceberiam a oportunidade de novamente engajarem-se em outra
Rebelião, acertada para ocorrer a nível nacional.
Em julho de 1924 liderados pelo tenente Ribeiro Junior, controlam não só a capital
Manaus, mas boa parte do Estado estendendo suas ações até Óbidos e Santarém no Pará,
quando ao largo de um mês de posse destas guarnições militares, são atacados pelos reforços
federais que finalmente promovem a rendição do tenente Ribeiro Junior e os quadros que

4
Embora muitas destas lideranças também pertenciam à oligarquias locais, traziam em sua formação intelectual
muito do que viam e ouviam dos locais para onde haviam sido enviados, principalmente capitais do nordeste e o
próprio Rio de Janeiro.
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fizeram parte de um tênue, mas intenso governo onde parte das contas públicas fora posta em
dia, principalmente a moralização quanto a salários.
Aparece diante deste quadro, um dos nomes que mais se destacaria nos anos
posteriores como representante do movimento trabalhista no Amazonas: o jovem Álvaro
Botelho Maia. Ao rastrear seus textos desenvolvidos no breve governo tenentista, como
Velhos e Novos Horizontes – O Amazonas e a Revolução de 1924, No Limiar da Intervençãoe
tambémApós a Campanha, a pesquisadora Eloína Monteiro, destaca como esta futura
liderança política buscava pontuar as suas posições de maneira antagônica ao modelo de
facções oligárquicas em constante crise política e ameaças de intervenção federal. (SANTOS,
1997: p. 37-39).
Embora oriundo do que seria parte da elite amazonense da época, filho de
seringalistas, enviado para fora do Estado para formar-se em Direito, sempre foi atuante em
diversos movimentos culturais, onde talvez tenha mais se destacado no Glebarismo, de forte
atuação desde a segunda metade da década de vinte entrando nos anos trinta, onde parte da
intelectualidade amazonense nata chamava para si a tarefa de retomar os rumos de um Estado
acostumado a intervenções federais e desmandos de uma oligarquia política bastante
fragmentada por lutas internas pelo poder.

O Jornal Tribuna Popular como voz unificante do discurso Trabalhista no Amazonas


O início do regime varguista iniciado em 1930 e que se estenderia até 1945, encontrou
na sua conjuntura inicial uma amálgama de interesses bastante difusos, dada a formação de
um novo governo que não só a nível federal, mas também nos Estados, refletia uma
diversidade senão ideológica, mas que opunham aqueles que se encontravam na oposição
durante a década de 1920 e agora tinham o anseio de participar da então denominada
Revolução de 1930, e as forças políticas da denominada República Velha.
O Amazonas como não poderia ser diferente, também sentiu os efeitos deste novo
leque de apoio ao novo regime, que incluía além de lideranças surgidas nos embates sindicais
dos anos 1920 - a exemplo do almirante de fragata Luiz Tirelli agora na liderança de
sindicatos ligados aos marítimos - também aqueles que como Álvaro Maia haviam se ligado
ao movimento Tenentista de 1924 - também “consistia-se da Liga Eleitoral Católica sob a
direção da benemérita Maria de Miranda Leão, a “Mãezinha”, e por fim um relevante grupo
ligado a Ação Integralista Brasileira ( AIB) que incluía um significativo número de políticos

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pertencentes a diversas siglas partidárias, como por exemplo, Leopoldo Carpinteiro Peres,
ligado aos trabalhistas (COSTA, 2001: p. 134-177).
Tal diversidade também era refletida nas organizações partidárias. Com o
enfraquecimento dos partidos ligados ao regime anterior a 1930 – principalmente quanto ao
Partido Republicano Amazonense – fazia-se necessário um reordenamento político que
resultaram no ressurgir em escala local de iniciativas que foram frustradas a nível nacional na
década de 1920: a criação do Partido Trabalhista Amazonense e do Partido Socialista
Amazonense. O primeiro criado em fevereiro de 1933 e o segundo em abril do mesmo ano.
( Diário Oficial do Amazonas (D.O.A), 1934: p. 12).
Estas informações nos levam a importante indagação: por que criados justamente em
1933, um intervalo de três anos após a Revolução de 1930? Em um primeiro momento,
Getúlio Vargas fez-se apoiar numa política centralizadora de seu poder, onde tentava
controlar as forças regionais pela atuação de interventores nomeados. No Amazonas, mesmo
sendo um nome bastante interessante para Vargas, por trazer um lufada de renovação e
juventude, Álvaro Maia ficou pouco mais de um ano como interventor nomeado, resultado de
pressões políticas locais que embora conseguissem um novo interventor, não possibilitou na
estabilização da política local, dado o registro da passagem de diversos nomes pelo cargo
entre 1931 e 1933.
O desencadeamento da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte por
Vargas após 1932, provocará um período curto para a reorganização das agremiações
partidárias. Diante deste quadro é que verificamos a fundação do Partido Trabalhista quanto
do Partido Socialista Amazonense, necessários para que as lideranças se tornassem aptas a
concorrerem aos cargos.
Este arranjo tornou possível uma maior clarificação das forças locais ligadas a defesa
das propostas varguistas, em especial referentes à aplicação da recém elaborada legislação
sindical por parte do Ministério do Trabalho.
Eis portanto o contexto em que surge o Jornal Tribuna Popular, que em uma primeira
fase, inaugurada em 10 de outubro de 1933 - da qual consta-se o forte apelo em prol podemos
da liderança de Luís Tirelli5 – único deputado eleito pela aliança dos trabalhistas com os
liberais na chamada “Aliança Trabalhista Liberal do Amazonas” - com forte atrelamento a
classe trabalhadora a exemplo da manifestação de apoio na coluna Voz do Operário:

5
Filiado ao Partido Trabalhista Amazonense, elegeu-se em maio de 1933 deputado à Assembleia Nacional
Constituinte na legenda da Aliança Trabalhista Liberal do Amazonas (...) ,FONTES: ASSEMB. NAC. CONST.
1934. Anais (1).
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Na representação amazonense tem o proletariado seu legítimo defensor na pessoa


criteriosa e altamente digna do Sr. Comandante Luís Tirelli, vitorioso candidato do
P.T.A., de quem tudo esperamos em favor do Estado e do seu povo. O proletariado
que tem na pessoa do Comandante Tirelli seu destemido defensor, seu ídolo e por
ele cultiva verdadeira admiração e deposita em S. Exa., todas as suas esperanças. E
tem razão justificada para tal. Relevantes serviços têm ele prestado à causa
proletária, empregando o melhor de suas energias em favor das classes menos
favorecidas, harmonizando e influindo nas reivindicações de seus direitos
6
conspurcados.

Esta preocupaçãoinfere-se certamente ao cerceamento que o movimento sindical


passava na época, onde a política do novo regime somente permitia direitos aos sindicalizados
em entidades que fossem reconhecidas pelo Ministério do Trabalho – e obviamente por ele
assistidas e controladas – mas que viam em seus representantes daquela Assembleia
Constituinte de 1934, a esperança de poderem ter um campo de ação oficialmente mais
flexível, o quê acabou não acontecendo.
Mesma percepção nos parece na época bastante clara aos Trabalhistas do Amazonas,
que se preocupavam em congregar ao redor do seu Partido, as entidades sindicais que
estivessem “aptas”ou seja, legitimadas perante a nova legislação do Regime Varguista, como
nos aponta ainda a primeira edição do Jornal Tribuna Popular, onde se divulga a relação de
sindicatos e de associações operárias a eles ligadas.
A lista indicava a existência de uma federação de trabalhadores, oito sindicatos (
pilotos e práticos, estivadores, padeiros, diaristas, gráficos, sapateiros e motoristas) além de
quatorze associações (maquinistas, cigarreiros, motoristas, taifeiros, marinheiros, foguistas e
comerciários), além de indicar uma preocupação do Partido com a ramificação de
representantes no interior do Estado, como nos municípios de Parintins e Itacoatiara.
(Tribuna Popular, n. 09:1933).
Levando em conta que os registros oficiais davam conta da existência de 15
sindicatos de empregados e um sindicato de profissões liberais registrado no Ministério do
Trabalho, podemos apontar que de fato, na prática o Partido Trabalhista Amazonense tinha
em suas bases mais da metade das entidades sindicais que estavam respondendoàs proposta de
Vargas neste momento de reorganização do sindicalismo nacional (ANUÁRIO ESTATÍSTICO
1936 : p. 133).
Esta efêmera fase do jornal, mas não do Partido Trabalhista Amazonense, viria a ser
uma voz consolidada de importante parte do movimento partidário em uma segunda fase,
inaugurada em 15 de maio de 1934 onde em sua primeira edição além de informar em

6
Vóz do Operário. In: Tribuna Popular, Manaus, n. 03, 1933.
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subtítulo ser um “Órgão do Partido Trabalhista Amazonense”, no primeiro editorial, apontava


o que provavelmente, fosse uma importante razão de maior sobrevida: ser editado em “oficina
própria” (TRIBUNA POPULAR, n.08: 1934).
Este seria entre 1934 e 1936 o principal meio de comunicação de um grupo político
que se fortaleceria posteriormente sob a estrutura do “Partido Popular Amazonense”,
resultado da união das lideranças de Álvaro Maia como governador escolhido Governador
Constitucional para o período de 1935 a 1939 e o deputado estadual constituinte Luis Tirelli,
o primeiro do Partido Socialista Amazonense e o segundo do Partido trabalhista
Amazonense.7
Em aberta disputa pelas vagas da Assembleia Constituinte Estadual, durante todo ano
de 1934 percebe-se no Tribuna Popular que os Trabalhistas sob a liderança de Luís Tirelli e
Vivaldo Lima pautavam-se abertamente contra o Partido Socialista e seu nome maior, Álvaro
Maia.
O fator determinante para a união dos dois grupos seriam as eleições indiretas entre
os deputados constituintes estaduais eleitos para escolha do Governador que dirigiria o Estado
no período, onde o desgaste de Álvaro Maia entre os socialistas tornou-se evidente, ao não
conseguir eleger-se com votos de sua bancada, mas com a ajuda dentre outros,
escancaradamente divulgada no Jornal Tribuna Popular, dos que até pouco tempo haviam
“trocado espadas” na eleição estadual de 1934: o Partido Trabalhista Amazonense(TRIBUNA
POPULAR, n.42: 1935), que havia feito para esta Assembleia 4 deputados percentualmente
sendo 13 por cento aproximados do total. (COSTA, 2001: p. 166).
Desgastado pelos próprios correligionários, mas novamente no cargo de Governador,
Álvaro Maia organiza com seu grupo dissidente, tratativas com os trabalhistas que por fim
dão origem ao Partido Popular Amazonense, e consequentemente a continuidade do Jornal
Tribuna Popular, que em sua edição n. 64, do dia 15 de julho de 1935, além de anunciar a
nova legenda, utilizando-se do mesmo formato, inclusive em suas letras, propunha-se a ser o
porta voz deste grupo, que definiriam se posteriormente como consolidados entre os
representantes mais legitimados do regime de Vargas, inclusive após a instauração do Estado
Novo.
O Jornal Tribuna Popular até sua última edição em de abril de 1936 ao contrário de
indicar qualquer grave divergência no seio do Partido Popular Amazonense, do contrário nos

7
Quanto ao Partido Socialista Amazonense, consta-se que não possuindo um jornal próprio, utilizava-se de
outros órgãos como “O Jornal” para divulgar suas propostas.
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revela um otimismo alastrado mesmo entre seus apoiadores em regiões mais distantes da
capital, como quando menciona moção de agradecimento da Câmara Municipal de Tefé “pela
maneira patriótica que vem defendendo a causa deste Estado, sob a liderança de Álvaro
Botelho Maia” (TRIBUNA POPULAR, n.115 :1936).
Sem desmerecer diversos nomes que também colaboraram na implantação do
Trabalhismo no Amazonas, destacamos aqui os de cunho intelectual e de atuação bastante
expressiva na política local e mesmo nacional, agindo por vezes, como verdadeiros porta-
vozes entre os demais interventores e Vargas, papéis desempenhados tanto por Álvaro Maia,
quantopelo Deputado Leopoldo Carpinteiro Peres. Este último certamente podendo ser
incluído no bojo dos grandes ideólogos do projeto varguista, prova disto em obras como:
Política e Espírito do Regime de 1941 e Getúlio Vargas o Homem e o Chefe, de 1944.
Álvaro Maia com o discurso entusiasta de retomada da economia gomífera8,
vinculante ao entendimento que “eram os seringalistas e os seringueiros dois operários que se
auxiliavam na aventura e na conquista da terra” (MAIA, 1926: p.70), pensamento bastante
atrelado portanto a um conjunto em que ideias centrais como regionalismo e nacionalismo
estavam bastante atreladas. Outro nome que consoava com aspectos semelhantes foi Leopoldo
Peres, com seu “caboclo resignado”, “homem da floresta”, que deveria ser melhor atendido
pelo Governo Federal9.
Desta forma, nossa pesquisa até onde nos traz, permite perceber que o Jornal Tribuna
Popular não foi apenas mais um dentre outros tantos periódicos que surgem e desaparecem ao
sabor de realinhamentos políticos, percebidos até em nossos dias na política regional do
Amazonas.
Antes, superou-se como elemento divulgador de um período que ainda o campo
historiográfico pouco penetrou, lembrando não só o próprio governo de Getúlio Vargas e seus
reflexos sob o Trabalhismo no Amazonas, mas como a identidade deste Trabalhismo se
construiu no Estado naquele período.
De certa forma, dentre seus maiores legados podemos identificar ter permitido voz a
um movimento operário marginalizado, o qual arvorava no Amazonas novas perspectivas de
certo protagonismonas altas esferas políticas, algo inédito até então.

8
Fazia questão de ser colaborador dos Diários Associados de Assis Chateaubriand escrevendo onde podia
divulgar a nível nacional a situação do Amazonas sob seu comando.
9
Posterior a este período, conseguiria Leopoldo Peres, deputado constituinte em 1946 finalmente inserir naquela
Carta Magna o artigo 199, que criava o Plano de Valorização Econômica da Amazônia.
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Se não conseguiram isto como o pretendido, não podemos notar que entre 1933 e
1936, através do Tribuna Popular conseguiram um canal comunicativo com boa parte da
sociedade amazonense, da capital e interior. Uma voz que nos anos posteriores se consolidaria
através da aplicação mais ampliada da CLT e a confirmação de um novo perfil para o
sindicato brasileiro.

Referências
Fontes:
Anuário Estatístico do Brasil. Ano II Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Estatística, 1936.
Jornal Tribuna Popular. Edição n. 25: Manaus, 1933.

Bibliografia:
Registro dos partidos no TRE/AM. In: Diário Oficial do Amazonas: Manaus, 10/10/1934.
COSTA, Maria das Graças Pinheiro. O Direito à Educação no Amazonas (1933-1935),
Tese(Doutorado), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUCSP, São Paulo,SP,
2001.
GIANNOTTI, Vito.História das Lutas dos Trabalhadores no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad
X, 2007, p.68
GOMES, Ângela Maria de Castro. A Invenção do Trabalhismo – 3ª. Ed. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2005, p. 156 a 161.
PARANHOS, Adalberto. O Roubo da Fala: Origens da ideologia do trabalhismo no Brasil.
2ª. Edição. São Paulo: Boitempo: 2007
MAIA, Álvaro. Na Vanguarda da RetaguardaAmazonas. Departamento estadual de imprensa
e propaganda, 1943, p.70.
MAIA, Álvaro Botelho. Imperialismo e separatismo. Manaus: Armazéns Palácio Real, 1926.
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte – A Cidade sobre os Ombros – A cidade sobre os ombros:
trabalho e conflito no Porto de Manaus (1899-1925) – Manaus: EDUA, 1999
SANTOS, Eloína Monteiro dos. A Rebelião de 1924 em Manaus. 2ª. Ed. Manaus, Gráfica
Lorena: 1989.
SANTOS, Eloína Monteiro. Álvaro Maia, Uma Liderança Política Cabocla. Manaus: Editora
da Universidade do Amazonas, 1997, p. 37 – 39.

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VILAS DE CASAS EM MANAUS (1900-1920): HERANÇA CULTURAL E ANTIGAS


FORMAS DE MORADIA
ANA DO NASCIMENTO GUERREIRO*

Manaus foi protagonista de uma fase econômica impar na história - o período da


borracha (1879-1912), momento em que a exploração da economia extrativista do látex
proporcionou o florescimentode cidadescomo Manaus, Belém e Rio Branco, dentre várias
outras, que são testemunhas da ocupação e do desenvolvimento nesse contexto específico da
industrialização em escala mundial. O seu valor histórico não se deve apenas pela importância
no processo de ocupação da Amazônia brasileira, mas também pelo acervo edificado que o
ciclo da borracha deixou como herança para gerações seguintes, um significativo conjunto
arquitetônico que ainda permanece, mesmo sob grande pressão e ameaça da dinâmica caótica,
desordenada e degradada em seu sitio histórico.

A questão mais discutida acerca da preservação do Centro histórico de Manaus é, mais


especificamente, o que devemos preservar dentro desse sítio? O que preservar e porque
preservar? As diferentes interpretações do passado histórico e sua importância muitas vezes
são observadas pelo ponto de vista das expectativas institucionais estabelecidas pela
políticavigente de proteção do patrimônio, nas diversas esferas do poder público, constituída
com base no instrumento do tombamento.

O tombamento, para a política do patrimônio, é um ato administrativo realizado pelo


poder público, com o objetivo de preservar, por meio da aplicação da lei, bens de valor
cultural, histórico, arquitetônico e ambiental para a sociedade, impedindo que eles sejam
destruídos ou descaracterizados. No entanto, é no enfrentamento diário dos problemas dos
centros históricos que se justifica a necessidade de conhecer e aprofundar sobre aspectos da
política do patrimônio.

Compreendendo o Centro Histórico de Manaus como sendo um espaço que tem a


função de guardião da memória social e coletiva, a apropriação do conhecimento, por meio da
identificação e registro de suas características físicas de suas edificações, bem como
levantamentos sobre os dados históricos tem sido executada através de inventários por órgãos
públicos desde 1985, por iniciativa do órgão municipal de planejamento urbano, quando da
urgência de criar uma política de preservação até então inexistente. O marco inicial para essa

*
Arquiteta e Urbanista, mestranda em História PPGH-UFAM.
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iniciativa foi a demolição autorizada do Cine Guarany, despertando a população para a


ameaça que o crescimento intensificado pelo evento Zona Franca causou desde sua
implantação a partir de 1967. O resultado desse inventário compôs o Cadastro Arquitetônico e
Histórico de Manaus -1985, onde foram identificados um total de 869 imóveis classificados
como unidades de interesse de preservação”, onde 284 unidades eram consideradas de 1º grau
(unidades monumentos) e 585 unidades de 2º grau (unidades de acompanhamento). A partir
desse listagem, foi possível ter conhecimento necessário para fundamentar a Lei Orgânica do
Munícipio de Manaus (1990) e posteriormente a Lei nº 671/2002 o Plano Diretor Urbano e
Ambiental, onde o artigo 14 determinava a execução de “I - inventário atualizado de todos os
bens imóveis considerados de interesse cultural, já protegidos ou não, em articulação com
órgãos e entidades federais e estaduais de cultura e patrimônio; II - inventariar e registrar as
manifestações culturais – tradições, hábitos, práticas e referências culturais de qualquer
natureza – existentes no município que conferem a identidade de suas populações e dos
espaços que habitam e usufruem”.

A proteção legal do Centro Histórico da Cidade de Manaus está fundamentada na Lei


Orgânica do Município de Manaus (art.342), de 1990 que delimita e tomba a área denominada
Centro Antigo abrangendo o segmento denominado Sítio Histórico (art.235, §2). O Decreto
municipal nº 7176 de 2004, estabelece o Setor Especial das Unidades de Interesse Patrimonial
- SEIUIP, que classifica e lista as edificações que devem conservar suas características
originais, quanto às fachadas, à volumetria e taxa de ocupação do solo, também está baseada
nas estratégias estabelecidas no Plano Diretor e Ambiental do Município de Manaus, Lei
Complementar no.002 de 16/01/2014.

O decreto municipal nº7176 de 10 de fevereiro de 2004, comprometeu enfim a


administração pública municipal em promover e incentivar a preservação, recuperação e
revitalização das edificações de relevante interesse, como forma de proteção do patrimônio
histórico, artística e turístico da cidade de Manaus. Essas unidades de interesse de preservação
foram cadastradas e classificadas como sendo de 1º e 2º Grau, Orla Portuária e Praças
Históricas. Essa listagem contém cerca de 1666 imóveis e 10 praças, onde se pode observar
pela primeira vez a inclusão de cerca de 10 vilas de casas, um número bem inexpressível e
talvez, equivocado na interpretação dos critérios que determinam o interesse da preservação e
o reconhecimento do caráter simbólico dessa tipologia de habitação, onde estão listadas as
seguintes:

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Denominação Endereço Unidades Uso Atual


Vila Nair Av. Joaquim Nabuco nº 1771 Alterado Serviços de Saúde - Samel
Vila Georgette Rua Lauro Cavalcante nº 73 20 Residencial

Vila Ninita Av. Sete de Setembro ao lado Palácio Rio Alterado Secretária de Cultura do
Negro Amazonas -SEC
Vila Rezende Rua. Alexandre Amorim nº 193 16 casas Residencial

Vila Lucy Rua. Igarapé de Manaus nº 151 5 casas Residencial

Vila Ercília Av. Joaquim Nabuco nº 991 10 casas Residencial

Vila Augusta Beco José Casemiro nº 12 8 casas Residencial

Vila Baima Av. Sete de setembro nº 1419 8 casas Residencial


Vila Portela Rua Visconde de Porto Alegre nº 85 Alterado Residencial
Vila Arminda Rua Visconde de Porto Alegre nº 684 Alterado Residencial

Tabela 1 - Vilas localizadas no Centro Antigo tombadas pela legislação municipal. Fonte: Anexos I e II
do Decreto nº7176 de 10 de fevereiro de 2004 – Prefeitura Municipal de Manaus.

Quanto à Legislação Estadual, temos a Lei no. 1582 de 26/05/1982, que dispõe sobre o
patrimônio histórico e artístico do Estado do Amazonas e os respectivos decretos pelos quais
foram tombados 30 imóveis.
Vila

Mapa 1 –Mapa de Tombamento do Centro Histórico de Manaus 2010. A seta em vermelho


aponta a localização da Vila Georgette. Fonte: IPHAN-AM`. A seta

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Fundamentada no Decreto-Lei nº 25 de 1937, a proteção Federal do patrimônio, na


cidade de Manaus, no âmbito da Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo, estava restrita a quatro
certidões de tombamento do IPHAN, sendo o Teatro Amazonas, o Mercado Municipal
Adolpho Lisboa, o Reservatório do Mocó (localizado fora do perímetro do centro histórico) e
o Conjunto Arquitetônico e Paisagístico do Porto de Manaus. Em 22/11/2010, foi publicado
no D.O.U a Notificação a Respeito do Tombamento do Centro Histórico de Manaus
promovido através do Processo n.º 1.614-T-10 (Processo n.º 01450.012718/2010-93), dado
em razão do seu elevado valor histórico, arquitetônico, urbanístico e paisagístico, conforme
delimitação das poligonais definidas como “de tombamento” e “de entorno”, como podemos
verificar no (Imagem 1). Os critérios de tombamento instituídos pelo IPHAN se mostraram
bastante equivocados e questionáveis, quando refletimos acerca dos juízos de valor histórico
na seleção dos conjuntos arquitetônicos protegidos, que excluiu, ou deixou de incluir, aqueles
que não representam a memória hegemônica, que reforça a narrativa do apogeu da cidade
dentro do ideário da monumentalidade dos edifícios de estilo eclético que ostentavam a
riqueza da época, excluindo outros objetos, tais como as palafitas, vilas de casas, elementos
naturais da paisagem, como apresenta Vládia Heimbecker:

A prioridade dada ao patrimônio eclético no centro histórico de Manaus e a ênfase


com que ele comparece nas listas de bens imóveis sobre os quais incide a legislação
preservacionista, evidencia o alinhamento do juízo seletivo institucionalizado e o
esforço em se fazer perpetuar uma memória na qual o ciclo da economia da borracha é
representante mais nobre. Ainda que Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional tenha estabelecido um novo perímetro de tombamento no centro histórico, as
listagens operaram até o momento, como a base referencial para a proteção do
patrimônio edificado local. Desta forma, uma série de edificações, como as de caráter
moderno, situadas no centro histórico ou não, além de elementos naturais, como os
igarapés que sofreram intervenções recentemente para implantação por parte do
governo estadual, de moradias de interesse social, e as ocupações sobre as águas, não
são consideradas no processo de proteção patrimonial, evidenciando a
desconsideração no conjunto da legislação em vigor para proteção do patrimônio, de
seu valor para a paisagem cultural de Manaus, cujas feições preservadas derivaram de
uma compreensão histórica restrita temporal e socialmente. (HEIMBECKER, 2014:
199)

Trazer à luz a discussão das Vilas de Casas enquanto Patrimônio histórico vai nos
levar a buscar algumas definições e fazer algumas indagações. Para Francoise Choay
(CHOAY,2006, p.12), “o culto que se rende hoje ao patrimônio histórico, deve merecer mais
do que uma simples aprovação”. Requer um questionamento porque “constitui um elemento
revelador de uma sociedade e das questões que ela encerra”. Sendo assim, entre a
incomensurável abrangência do conceito de patrimônio, para este estudo, apropria-se como
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categoria exemplar, aquele que relaciona mais diretamente vida cotidiana de todos: o
patrimônio histórico é a herança edificadaque tem como destino e função dar abrigo ao
indivíduo e sua família – a habitação familiar (casa) “domus”, compreendendo o caráter
construtivo desse espaço que se estende do privado ao público.

Patrimônio Histórico designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade que


se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela acumulação contínua de uma
diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum: obras de artes e
obras-primas das belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os
saberes e savoir-feire dos seres humanos. Em nossa sociedade errante, constantemente
transformada pela mobilidade e ubiquidade de seu presente, patrimônio histórico
tornou-se uma das palavras-chave da tribo midiática. Ela remete a uma instituição e a
uma mentalidade (CHOAY,2006, p.11)

Nessa perspectiva, falar de patrimônio histórico, é falar de preservação da memória,


do que queremos preservar eporque precisamos não esquecer.De acordo com Jacques Le
Goff, “a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em
primeiro lugar para um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode
atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas”. (LE
GOFF, 2003, p.419).É imprescindível compreender a preservação do patrimônio histórico, no
sentido de preservar a vidas das pessoas na própria história da cidade, através de seus
edifícios diversos ocupados pelas famílias, empresas e atividades que dinamizam a vida das
cidades. De outra forma, o edifício vazio logo se tornará uma ruína.

Nessa perspectiva, o patrimônio histórico não pode ser compreendido como algo
hermético e limitado aos prédios dotados expressão monumental. São lugares dotados de
sentidos e significados e refletem as mudanças das sociedades que podem nos expressar e
contar algo que precisamos continuar a lembrar: nossa identidade.Nas palavras de Maria
Elaine Kohlsforf:

Os lugares possuem, como qualquer fenômeno real, capacidade de transmitir


mensagens que serão interpretadas como revelação de certos sinais codificados. A
arquitetura urbana comunica-nos informações de várias naturezas, expressando suas
diversas características por meio de signos captáveis pelo nosso sistema dos sentidos.
(KOHLSDORF,1996 p.26)

As narrativas sobre a cidade de Manaus, quase sempre, privilegiam os aspectos do


fausto econômico, desviando o olhar dos aspectos mais negativos e o alto preço que sociedade
acaba sempre a pagar pela desigualdade. As opções tomadas pela administração pública, em
uma perspectiva histórica, quase sempre emergem do discurso que defende a sociedade, a
moral, os bons e saudáveis costumes, a ordem e o trabalho. No entanto, ao nos distanciarmos
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no tempo, podemos lançar um olhar mais crítico sobre a produção do espaço urbano manauara
em 1900, no que tange à arquitetura e seus significados, na reflexão de Leandro Tocantins:
Se a arquitetura é o símbolo mais visível de uma sociedade, a fisionomia urbana de
Manaus reflete bem o espirito da sociedade que floresceu em fins do século passado e
princípios do atual. Não se trata de uma frase, ou simples generalização sociológica. A
arquitetura de Manaus – arquitetura mais antiga – exprime uma atitude emocional e
estética da burguesia enriquecida pelo comércio :(TOCANTINS, 1972, p.265):

A cidade ocultada e revelada por Edinea Mascarenhas Dias (DIAS, 2007, p.122)
evidencia-se nas práticas e regulamentações contidas nos no códigos de posturas municipais,
“a preocupação em livrar a cidade dos elementos nocivos à saúde, à ordem e aos bons
costumes, ao mesmo tempo em que definem o espaço da cidade em seus mais diferentes
níveis econômicos, social e cultural”. A negação da realidade física do território busca a todo
custo construir uma imagem de cidade civilizada, materializada nas intervenções urbanas de
embelezamento fundamentadas no padrão e representação simbólica de ostentação da riqueza
do ideal burguês, em contraponto a sua própria geografia, desprezando a paisagem e harmonia
natural do lugar.
As normas continham as disposições gerais e detalhamentos sobre como construir as
habitações dentro do padrão desejável e sujeitavam a construção ao licenciamento por parte
do órgão público competente, além de um conteúdo extremamente moralizante que pretendia
impor um tipo de comportamento ideal. A aplicação dessas e o rigoroso controle no perímetro
urbano excluiu parte da população que crescia na cidade, mas não se enquadrava nas
possibilidades e conceitos da cidade dentro da visão burguesa de uma cidade ideal. Assim
sendo, iniciou-se um processo de segregação e exclusão espacial dos mais pobres para áreas a
beira dos igarapés da Cachoerinha (Educandos) e Igarapé da Cachoeira Grande (São
Raimundo), que ficavam fora do perímetro regulamentado, atravessando os igarapés para
acessar a cidade e local de trabalho através dos serviços das catraieiros.
Fica evidente que o discurso disciplinador das Posturas Municipais de Manaus sobre o
controle do corpo era preceito básico organizado em um sistema de regras e punições rígidas.
A estratégia do processo civilizador visava fazer da punição e da repressão das ilegalidades
uma função regular no cotidiano e de responsabilidade e aprovação por parte da sociedade,
fazendo do infrator um inimigo comum, lembrando as reflexões de Michel Foucault, sobre a
mecânica da disciplina é exercida pelo poder:
As sociedades modernas, a partir do século XIX, até os nossos dias, de um lado a
legislação, um discurso, uma organização do direito público articulados em torno do
princípio da soberania do corpo social e da delegação, por cada qual, de sua soberania
de Estado; e depois temos, ao mesmo tempo, uma trama cerrada de coerções

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disciplinares que garante, de fato, a coesão desse mesmo corpo social. (FOUCAULT,
1999, p. 44).

A exemplo do que acontecia nas grandes metrópoles emergentes no início do século


XX, o espaço urbano que se produzia na Manaus de 1900 é incontestavelmente fruto das
transformações advindas do progresso tecnológico e industrial na lógica capitalista que se
consolidava no mundo, onde as cidades amazônicas que prosperaram representam uma peça
importante em um curto e intenso período na história. Ao mesmo tempo, contradições à
riqueza e à prosperidade emergem nas camadas sociais cuja mão de obra é explorada nesse
processo: a exclusão social e espacial a qual as classes trabalhadoras sofrem no período de
fausto da Belle Époque não era um dado ignorado pelo poder público. Dias relata a
manifestação do superintendente municipal Adolpho Lisboa em 1903, cuja fala explicita a
situação precária, insalubre e promíscua das habitações do proletariado da cidade. Isto se
evidencia na leitura dos relatórios apresentados ao Conselho Municipal:
É preciso fomentar, por meio de prêmios e isenções fiscais prazo que compense o
emprego de capitais, as construções mais em voga em outros países – agrupamentos
de casas, formando vilas e núcleos de famílias – seria, com efeito, magnifica tentativa
para mais depressa se povoar os subúrbios da capital, sem onerar os cofres da
municipalidade (DIAS, 2007, p.125).

A iniciativa da administração pública na época limitou-se a incentivar o investidor


privado com isenção do Imposto Predial durante o prazo de 15 anos, para “a construção das
chamadas vilas operárias” (idem, p.126), mas impunha uma série de condições findavam por
inviabilizar as propostas. A ideia era que essas vilas fossem construídas em terrenos mais
afastados, em áreas menos valorizadas que o centro. No entanto, os investidores teriam que
arcar com as despesas de desapropriação dos terrenos necessário, assim como apresentar a
submissão da administração a tabela de preços de aluguel. “As casas proletárias seriam
alugadas à classe proletária, a funcionários públicos ou a qualquer um que se obrigasse a sua
conservação e aluguel” (idem, p.126).
O resultado dessa contenda foi que os investidores preferiram optar pela construção de
prédios no centro. Atendendo as conformidades da aparência externa, “mas internamente com
péssimas condições de moradia”, no que se refere a ventilação e iluminação e equipamento
sanitário. “Essas habitações eram alugadas aos trabalhadores por 50, 60, 70 mil réis mensais”.
Muitos dos investidores que exploravam esse tipo de moradia, ganhavam tanto dinheiro a
partir dos alugueis, que passaram a morar fora da cidade; “na primeira década de 1900, muitos
imóveis localizados em ruas de alto valor lucrativo pertenciam à mesma família”.

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Imagem 1 – Incêndio na Vila Georgette(Manaus/AM) - 2012. Autora: Monica


Dias/G1/AM. Acesso em 09/11/2016:http://g1.globo.com/am/amazonas/

Dois momentos motivaram a pesquisa sobre as Vilas do Centro Histórico de Manaus,


e envolvem o mesmo conjunto de casas: primeiro foi o incêndio ocorrido na noite da quarta-
feira de 08 de agosto de 2012, quando a cidade de Manaus foi surpreendida com a notícia de
que 7 das 20 casas da antiga Vila Georgette, localizada na Rua Lauro Cavalcante, nº 73,
foram destruídas em um incêndio. As investigações apontaram para uma possível fábrica de
salgados clandestina que funcionava na unidade no fundo do lote. ; o segundo momento foi
um artigo publicado no jornal a Crítica em 24 de fevereiro de 2013 intitulada “Charme das
Vilas: o pacato estilo de vida de quem mora nesses conjuntos”, a matéria assinada por Nelson
Brilhante, traz no texto algumas afirmações que provocam e alimentam minhas indagações:

Passa o tempo, a cidade avança rapidamente em direção aos “fundos”, a classe média
alta se afugenta nos afastados e “blindados” condomínios e a vida nas vilas do Centro
continua, se não a mesma, mas a passos lentos em todos os sentidos. A convivência
segue tão pacata e as reformas dos prédios tão esquecidas que tem-se a impressão de
que a modernidade insiste em não entrar nas estreitas vielas cercadas de casas. (...)
Somente nesses pequenos conjuntos é possível manter alguns dos velhos costumes
que a violência urbana se encarregou de “arquivar”. Em algumas vilas ainda é
possível, por exemplo, colocar a cadeira na porta de casa e “bater papo” com a
vizinhança, afinal, vizinhos desconhecidos é coisa de condomínio e prédio de
apartamentos. (BRILHANTE, 2016)

Um dos moradores, o vendedor de churrasco Evandro Celestino Cruz, era morador dos
apartamentos do Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (Prosamim) do
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Igarapé do 40, mas preferiu alugar uma das casas na Vila Georgete pelo valor de R$ 800,00
pelo motivo da proximidade com o lugar onde comercializa seu produto. Celestino fez o
seguinte comentário ao repórter: “Além da gente conversar com todo mundo, a criançada
pode brincar a vontade. A gente fica despreocupado, principalmente porque sabe que aqui as
crianças não correm risco de acidente de trânsito. Que bom se essa tranquilidade fosse em
toda a cidade, como era antigamente”. (BRILHANTE, 2016).

Outro morador, o eletrotécnico João Bonfim, disse que “foi um “achado” encontrar a
irmã de criação morando numa das vilas do Centro”. Como era inquilino no igarapé do 40,
não teve direito a apartamento do Prosamim. Hoje divide o aluguel de uma das casas com a
irmã e não quer outra vida. “Não tenho problema de ônibus, vou a pé para o trabalho, os
meninos podem brincar à vontade, enfim, parece vida de antigamente”.

Imagem 2 – Aspecto da fachada (Manaus/AM) - 2018. Autora: Ana Guerreiro.

De acordo com Mario Ypiranga Monteiro, a Vila Georgette, na rua Lauro Cavalcante,
é uma das mais antigas vilas que se tem notícia em Manaus; a implantação se de modo muito
peculiar e racionalmente organizada: são quatro casas maiores na fachada de frente para rua
na face da quadra, cuja fachada é revestida de “tijolinhos polidos”, herança típica da
arquitetura portuguesa. Um portão de ferro com pórtico em arco tem o nome da vila e abre
para o via privativa de casas alinhadas ao lado esquerdo, contendo 16 casas geminadas em
gosto eclético, com platibanda e bordas nas portas e janelas.

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Na rua do Dr. Lauro Cavalcanti ainda existe a “Avenida Georgette”, arruado de casas
do lado esquerdo, boas casas dotadas de porão habitável e de espaço econômico
sofrível. É uma das mais “velhas” de que se tem notícia em Manaus. No porão da
última casa funcionava o jornal “Vanguarda”, do Sr. Jacy Zany, em que me fiz
jornalista ali pelas calendas 1927. À entrada dessa “avenida” existem casas de fachada
de tijolinhos polidos, produto daquele ciclo dos azulejos, e numa delas residiu o
professor de língua portuguesa Dr. Encarnação. Como ele era de espirito
tradicionalista, além de conservar o sotaque luso, e somente ler obras produzidas em
Portugal, os tijolinhos da fachada continuam respeitando-lhe a idiossincrasia, e a
excelente biblioteca não foi extraviada. (MONTEIRO, 2006: 87).

Um dado a acrescentar sobre a proteção existente sobre esse bem imóvel, reconhecido
pelas pessoas e pelo poder público municipal como patrimônio a preservar, foi que a
poligonal de proteção delimitada pelo IPHAN excluiu ou deixou de incluir,
inexplicavelmente, a quadra onde a Vila Georgette está inserida, como pode ser verificado no
mapa 1.

O fenômeno das Vilas de Casas em Manaus acontece de maneira semelhante e


diferente das Vilas Operárias de outras capitais brasileiras. Semelhante, naquilo que
compreendemos com fato gerador da decisão do edificar essas habitações: o incomodo
causado às elites pela presença de moradias insalubres, precárias e pobres em áreas centrais
valorizadas e “bem habitadas”. Diferente, porque localizou-se nas áreas centrais e valorizadas
da época - e não nas periferias. Essa decisão de edificar as Vilas Operárias Privadas para
aluguel no centro, acabou por determinar uma diferença na forma de habitar o centro. Essas
habitações que hoje estão localizadas e incluídas em perímetros delimitados pelos órgãos que
protegem o Patrimônio Histórico, onde muitas delas se encontram esvaziadas, deterioradas,
desvalorizadas pelo mercado imobiliário ou ainda pior: em situação de risco, face às ligações
clandestinas de luz, instalações obsoletas e precárias e usos incompatíveis com o residencial.
Por outro lado, essa resistência acontece dentro de um cenário de exploração e deterioração,
pois ao mesmo tempo em que os inquilinos não tem acesso aos proprietários para negociar
melhorias.

Referências Bibliográficas
DAOU, Ana Maria. A Belle Époque Amazônica. Rio de janeiro: Jorge Zahar.2004.
DIAS, Edineia Mascarenhas. A Ilusão do Fausto – Manaus 1890-1920. Manaus: Ed. Valer,
2007.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São
Paulo. Martins Fontes, 1999.
KOLSDORF, M. E. “A apreensão da forma da cidade”. Brasília. UnB, 1996.
LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003
MESQUITA, O. Manaus - História e Arquitetura (1852-1910) Manaus: Ed. Valer. 2006.
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MESQUITA, O. La Belle Vitrine: Manaus entre dois tempos (1880-1900). Manaus: Ed.
UFAM. 2009
MONTEIRO, Mário Ypiranga. Arquitetura: Tratado sobre a evolução do prédio amazonense.
Manaus: EDUA, 2006
SAMPAIO, Patrícia Melo. Posturas Municipais Amazonas (1838-1967).Organização de
Patrícia Melo Sampaio. Manaus. EDUA, 2016.
TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia.
Rio de Janeiro: 4ª Edição. Companhia Editora Americana, 1972.
Documentos Oficiais
GOVERNO DO ESTADO DO AMAZONAS – Lei nº 1528 de 26 de maio de 1982 – D.O.A.
de 26/05/1982.
PREFEITURA MUNICIPAL DE MANAUS – Decreto nº 7176, de 10 de fevereiro de 2004 –
publicado no D.O.M. nº 938 de 11/02/04
PREFEITURA MUNICIPAL DE MANAUS – Plano Diretor e Ambiental da Cidade de
Manaus – Lei Complementar nº 002, de 16 de janeiro de 2014 – D.O.M. de 16/02/2014
PREFEITURA MUNICIPAL DE MANAUS – Lei Orgânica do Município de Manaus de 05
de abril de 1990.
IPHAN – Dossiê do Tombamento do Centro Histórico de Manaus - DEPAM/IPHAN – 2010
Jornais na Internet
DIAS, Mônica; SOUAZ, Marina. Incêndio destrói sete casas em vila histórica no Centro de
Manaus. G1. Disponível em:
<http://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2012/08/incendio-destroi-sete-casas-em-vila-no-
centro-de-manaus.htm> Acesso em: 09/11/2016.
BRILHANTE, Nelson. Charme das Vilas: pacato estilo de vida de quem mora nesses
Conjuntos. A Crítica-Uol. Disponível em:
<http://acritica.uol.com.br/noticias/Amazonas-Manaus-Cotidiano-preservacao-urbanismo-
Charme-vilas> Acesso em 11/07/2016.

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MUSEU AMAZÔNICO E A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO DOCUMENTAL:


AS MEMÓRIAS ATRAVÉS DAS FALAS DE SEUS EX-DIRETORES
ANA ESTELA DOS SANTOS FERREIRA*
LEANDRO COELHO DE AGUIAR**

Introdução
Tal trabalho faz parte do projeto de pesquisa “Patrimônio documental no Amazonas:
história das instituições, acervos e práticas de arquivo”, coordenado pelo professor Me.
Leandro Coelho de Aguiar e vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica (PIBIC) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e que tem por objetivo
ajudar na compreensão da concepção histórica e sociocultural do Museu Amazônico, que,
apesar de existir há 27 anos, ainda é pouco conhecido pela sociedade amazonense.
Pretende-se assim recuperar e organizar os registros da trajetória do Museu através da
visão dos homens e mulheres que por lá passaram. Dando vazão a duas vertentes, de um lado
o próprio papel dos diretores, que poderão contar a história a partir de seu ponto de vista, e de
outro lado, tentar remontar as ações dos mesmos e como contribuíram na construção da
história do Museu. Acredita-se que as entrevistas com os ex-diretores vêm assim ajudar na
consolidação da identidade histórica do Museu.
O Museu Amazônico busca se inserir na sociedade amazonense como um dos locusde
construção de uma identidade do homem amazônico, numa concepção histórica e
sociocultural das diversas identidades presentes na formação da Amazônia, entretanto a
mesma ainda carece de uma consolidação da própria identidade. A falta de um certo
autoconhecimento da própria memória não é exclusividade do Museu Amazônico, e por isso
que em 2017 o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) utilizou dois de seus eventos
principais para buscar construir e consolidar tais memórias. A 15º Semana Nacional dos
Museus, com a temática “Museus e história controversas: dizer o indizível nos museus”, que
veio propor o diálogo sobre a construção das histórias contadas nos museus e a forma como
tais histórias são expostas, e a 11º Primavera dos Museus, com a temática “Museus e suas
memórias”, que buscou refletir a partir da memória da própria instituição, levando em
consideração o processo de transformação que sofreram impacto dentro das instituições, e as
mudanças sofridas, a partir desta perspectiva.

*
Graduanda do curso de Arquivologia da Universidade Federal do Amazonas - UFAM. E-mail:
anaestela.ufam@gmail.com
**
Professor coordenador do projeto. Professor da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade
Federal do Amazonas..
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Aproveitando os debates realizados dentro das atividades organizadas pelo IBRAM


em 2017 é que este projeto busca assim incentivar tais reflexão acerca do papel do Museu
Amazônico ao longo das suas quase três décadas, possibilitando criar uma memória
institucional, assim como, refletir acerca de suas ações, apropriações e seu papel diante da
sociedade amazonense. Pensar no papel do Museu diante da sociedade amazonense é inserir
uma identidade regional ao homem amazônico criando um mecanismo de interligação dos
bens culturais regionais.
No caso deste trabalho, busca-se considerar a importância do patrimônio documental
guardado e conservado pelo Museu Amazônico. Registros de fontes históricas que dão início
às condições de pesquisa e investigação sobre os vários momentos da sociedade que ajudam a
entender as diversas histórias dos povos regionais da Amazônia.
Nota-se a importância em observar e reconhecer que o Museu Amazônico nasce
através de uma vertente histórica ligada justamente ao patrimônio documental, já que foi
idealizado para fazer a guarda do acervo documental da então também criada Divisão de
Pesquisa e Documentação Histórica - DPDH, que é responsável por fazer a higienização,
classificação e identificação da documentação histórica que formam os fundos que a
compõem. Outrossim, compuseram inicialmente seu acervo os documentos da Empresa J. G.
Araújo que nos remete a história do extrativismo na Amazônia, do período áureo da borracha
e a formação socioeconômica na região, e o acervo do antigo CEDAM - Centro de
Documentação da Amazônia - criado pela UFAM através do curso de História, mas que ao ser
finalizado, teve que conseguir um lugar para preservar seu acervo, que se tratava
principalmente da temática da Amazônia Colonial dos séculos XVII e XVIII.
Assim sendo, o Museu criou uma relação muito próxima da documentação história e
com práticas de arquivamento ao adicionar sob sua guarda outros fundos documentais,
principalmente, através da Divisão de Pesquisa e Documentação Histórica. Todavia, e é essa a
hipótese de tal pesquisa, é possível observar a perda do reconhecimento e da importância no
discurso identitário do Museu de sua vertente histórica.
Acerca da atual composição do acervo documental sob guarda do Museu Amazônico,
como pode ser observado no Quadro 1, possui hoje uma profusão documental, que vai desde
o acervo pessoal até o empresarial, além de contar com o acervo da Universidade Federal do
Amazonas e órgãos governamentais, como a Funai. Pertinente citar que, o Museu possui
ainda, um sub-fundo que faz parte do fundo J G Araújo.

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Quadro 1 - Lista dos fundos documentais existente no Museu Amazônico

- Fundo J G Araújo
- (Sub-Fundo) Vila Amazônica
- Fundo Silvino Simões Santos Silva (fotografo oficial do J G Araújo)
- Fundo Amazônia Colonial
- Fundo SPI Funai (Serviço de Proteção ao Índio)
- Fundo da Faculdade de Direito da UFAM
- Fundo Thiago de Mello
- Fundo Administrativo do Museu Amazônico
- Fundo diversos avulsos da província, municípios e estado do Amazonas
- Fundo fotos Manaus Antiga
- Fundo da Escola de Serviço Social da UFAM
- Fundo fotografias da UFAM (ASCOM).

Fonte: Museu Amazônico, 2018.

Visto que o Museu não guarda apenas peças tradicionalmente museológicas, mas,
como já apresentado aqui, também fundos documentais arquivísticos, cabe ressaltar assim sua
importância na guarda e acesso de fontes e na própria pesquisa. Assim como, é notório que o
Museu Amazônico possibilitou uma relação para além da pesquisa, de publicações de artigos
e integração apenas com a comunidade da UFAM, mas também fora dela, na medida em que
tenta organizar os fundos documentais tornando-os acessíveis à sociedade de forma geral.
Mas pensar tais mudanças da própria concepção e ação do Museu, consiste em pensar
também as mudanças que a própria sociedade passou, e é através da história oral junto de seus
atores sociais que pretendemos identificar tais momentos. A história oral, como uma das
técnicas advindas da História, será a coadjuvante no levantamento de informações de
funcionários e ex-funcionários para reconstruir talhistória administrativa e a memória
institucional.
Um importante trabalho que discute o uso da história oral como recurso metodológico
na prática arquivista, Sousa (2008) apresenta a técnica da história oral como uma das opções
para o fazer arquivístico, no âmbito da gestão documental. A classificação vista como função
arquivística, não identifica o seu produtor dentro da instituição, daí a necessidade do
arquivista recorrer à pesquisa de atos constitutivos das instituições, de atas de reunião e os
documentos de direção do qual faz-se uso para obter informações concretas, que vão

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consolidar o arranjo documental, que ocorre quando o documento se encontra em sua fase
permanente, onde os sub-fundos precisam ser identificados. Assim sendo, para o autor,

[…] apesar da história oral ser mais do que uma preenchedora de lacunas, ou seja,
construtora de registros escritos, onde não existia, ela tem se construído em uma
ferramenta importante, pois pode fornecer algo que os textos legais não conseguem:
a realidade concreta das instituições a partir de entrevistas com os sujeitos daquelas,
ou seja, os seus funcionários. (SOUSA, 2008, p. 25)

A proposta de uso da metodologia de análise de fonte oral refuta o entendimento do


conteúdo da mesma e de suas características, razões pelas quais é produzida e as razões pelas
quais será utilizada. Verifica-se a necessidade de compreender a fonte oral como informação
que deve ser tratada e recuperada.
A metodologia de pesquisa da história oral consiste em realizar entrevistas gravadas,
seja por gravador, por vídeos, ou outro meio com pessoas que podem testemunhar sobre
acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros aspectos da história de
forma contemporânea. Ela passou a ser utilizada nos anos 1950, após a invenção do gravador,
nos Estados Unidos, na Europa e no México, e desde então se difundiu bastante. Segundo
Amado e Ferreira (2006, p. 6), a história oral ganhou cada vez mais adeptos, ampliando-se o
intercâmbio entre os que a praticam: historiadores, antropólogos, cientistas políticos,
sociólogos, pedagogos, teóricos da literatura, psicólogos e outros.

[...] acreditar-se que ela é uma "frente pioneira" da pesquisa histórica e um dos
campos em que se opera a sua renovação, como ignorar os múltiplos impulsos, os
incentivos e os exemplos que ela encontrou fora dela, a ponto mesmo de alguns se
perguntam se a história oral não deveria parte do seu sucesso ao fato de ter sabido
adaptar à história do tempo presente as problemáticas e os métodos desenvolvidos
pelo que ainda há pouco chamávamos de "nova história"? (AMADO; FERREIRA,
2006, p.6)

As entrevistas pautadas na metodologia da história oral são tomadas como fontes para
a compreensão do passado, ao lado de documentos escritos, imagens e outros tipos de
registro. Mas outro ponto relevante é a sua caracterização, por serem produzidas a partir de
um estímulo o pesquisador procura o entrevistado e lhe faz perguntas direcionadas sobre fatos
ou conjunturas, que se quer investigar.
Além disso, faz parte de todo um conjunto de documentos de tipo biográfico, ao lado
de memórias e autobiografias, que permitem compreender como indivíduos experimentam e
interpretam acontecimentos, situações e modos de vida de um grupo ou da sociedade em geral
e, neste caso do Museu Amazônico.

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Segundo Jardim (1995, p.1)

Recorre-se atualmente, com muita freqüência, à temática da memória, expressão de


interesses e paixões e objeto de um campo interdisciplinar. Diversos termos tendem
a ser associados à memória: resgate, preservação, conservação, registro, seleção etc.
Neste sentido, a memória parece visualizada, sobretudo como dado a ser
arqueologizado e raramente como processo e construção sociais.(JARDIM;1995,P.
1)

Então, como criar essa relação da história oral com a memória de uma instituição? A
árdua tarefa de conceituar memória nos remete a reconstrução de experiências que buscamos
captar de um tempo passado. E é a partir das transformações que percebemos as inovações
ocorridas dentro da sociedade, atribuindo impressões vividas e com representatividade no
presente.
Segundo Castro (2008, p. 18):

É importante perceber que a memória – quer em sua dimensão pessoal, quer social –
não é o registro de tudo o que se passou. A memória é seletiva e envolve uma
escolha, mais ou menos consciente, entre o que deve ser esquecido e o que deve ser
lembrado. É impossível preservar, física e mentalmente, todo o passado. Um conto
de Jorge Luis Borges, “Funes, o memorioso”, ilustra bem este ponto.(CASTRO;
2008, p. 18)

A construção da memória, portanto, envolvem aspectos históricos conscientes, que


prezam pela observância de tradições, mitos, aumento da verdade entre outros. A memória
expressa à percepção de lembrança de mínimos detalhes do que se viveu.
Barreto (2007, p.164) infere o seguinte:

A memória trabalha sobre o tempo, porém sobre um tempo experienciado pela


cultura. Nela, o tempo passado é reconstruído e revivenciado, o que traz um efeito
restaurador, uma vez que permite a ressignificação do sentido existencial,
atualizando conteúdos experimentados. A memória costura, tece o passado no
presente, compondo tramas e enlaçando-se em novas possibilidades existenciais.
(BARRETO; 2007, p. 164)

É com a experiência vivida e através da memória que tentaremos construir a história


oral do Museu Amazônico, suprindo a necessidade de criação de laços e fontes que torne o
estudo da história mais concreto e próximo, facilitando a apreensão do passado pelas gerações
futuras e a compreensão das experiências vividas por outros.
O trabalho com a metodologia de história oral compreende todo um conjunto de
atividades anteriores e posteriores à gravação dos depoimentos. Exige, antes, a pesquisa e o
levantamento de dados para a preparação dos roteiros das entrevistas.
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Após o levantamento dos nomes dos ex-diretores junto do próprio Museu, foi
realizada a pesquisa acerca de quem eram esses ex-diretores, qual área de atuação e qual
cargo dentro da UFAM. Tais pesquisas foram realizadas pela internet através da Plataforma
Lattes, no site da própria unidade a qual pertencem (ou pertenciam), assim como pelo site de
busca do Google.

O Museu Amazônico como objeto de pesquisa


O Museu Amazônico foi criado em regimento em 1975, através do Artigo 8º do
Estatuto da Universidade Federal do Amazonas, mas somente foi implantado em 1989, sendo
inaugurado em 1991, quando o então reitor Marcus Luiz Barroso Barros, nomeou sua
primeira Diretora Edinea Mascarenhas Dias, com a ideia de resgatar e reconstruir a história do
homem da Amazônia, abrindo as portas à pesquisa sobre o tema Amazônia garantindo assim
as múltiplas identidades culturais.
Esta abordagem constituiu um importante papel cultural de conhecimento e
informação para coletividade, exigindo de seus funcionários e gestores padrões elevados de
prática profissional. Por certo ao ser pensado, a quase três décadas, o Museu Amazônico se
propôs,

“[…] a resgatar e reconstituir acervos e informações acerca da Amazônia, bem como


pesquisar suas repercussões como forma de garantir a preservação da identidade
cultural regional [...]

Ele compromete-se com a organização e guarda de fontes históricas, de registros,


dos fatos e pensamentos dos homens que viveram na Amazônia, em vários
momentos históricos.” (MUSEU AMAZÔNICO. BOLETIM INFORMACIONAL,
v. 1, nº 1, 1991, p. 04)

O museu como espaço expositivo foi criado para sociedade abrindo possibilidades e
desconstruindo paradigmas dando ressignificância às peças documentais que o cercam.
Acerca do papel social do Museu,segundo a UNESCO (Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura), em sua Recomendação de 20 de novembro de 2015:

Os museus são cada vez mais vistos, em todos os países, como tendo um papel
chave na sociedade e como fator de promoção à integração e coesão social. Neste
sentido, podem ajudar as comunidades a enfrentar mudanças profundas na
sociedade, incluindo aquelas que levam ao crescimento da desigualdade e à quebra
de laços sociais.(UNESCO, 2015)

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Estas mudanças vêm sendo observadas desde a implantação do Museu, com a


necessidade de produzir pesquisas científicas, que retrata fatores de crescimento e
desenvolvimento da região. Ademais, outros pontos relevantes foram produzidos a partir da
influência dos gestores, que buscaram dar, já a época, harmonização a este lugar de memória
com outros espaços culturais. O papel social do Museu é procurar fazer esta integração de
diferentes classes sociais, buscando enaltecer para além as diversas possibilidades que o
mesmo possui.
Tais possibilidades, antes desempenhavam um papel diferente dentro dos museus,
vistos como sendo apenas lugar para exposição, lugar onde se armazenava coisas velhas, não
raro, os objetos que ali se encontravam faziam parte de coleções possivelmente particulares,
doados por pessoas abastadas que dividiam os seus objetos raros e conhecimento com as
minorias sociais.
Com a mudança de perspectiva, os museus buscam enaltecer hoje uma visão moderna
que aproxima a minoria, e não só a minoria, mas as diferentes classes sociais, dando voz e
prestando serviço à sociedade, fazendo com que em cada nova exposição sua coleção tenha
uma nova ressignificação. Desta forma é possível que a sociedade compreenda cada novo
conjunto como uma visão única.
Assim sendo,

O Museu Amazônico tem a complexa tarefa de articular a diversidade do povo da


região Norte por já nascer histórico, pois possui em seu acervo um pouco da história
do extrativismo na Amazônia e sua formação socioeconômica, bem como
documentos dos séculos XVII e XVIII com a temática indígena criados pelos
professores de história. (MUSEU AMAZÔNICO. BOLETIM INFORMACIONAL,
v. 1, nº 1, 1991, p. 04)

Por certo, contextualizar a tarefa do Museu, que já nasce histórico, não é fácil, haja
vista ser necessário fazer uma relação com a formação, consolidação e reinterpretação das
identidades sociais e culturais do momento vivido. Com efeito, o público visitante do Museu,
busca não somente uma distração, mas uma forma de aprender um pouco mais sobre si
mesmo, trocando experiências e criando um sentimento de pertencimento cultural.
Além disso, os museus são segundo o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM),

[...] instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam,


interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação,
contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico,
técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da
sociedade e de seu desenvolvimento. (IBRAM, 2017)

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Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

Porquanto, o museu necessita estabelecer vínculos que ajudem na construção de


sentido do patrimônio documental da região, através dos serviços oferecidos. Considerado
uma das categorias de patrimônio cultural, o que se pode inferir sobre ‘patrimônio
documental’. Segundo Jardim:

[...] noção de patrimônio histórico/cultural insere-se neste processo pelo qual o


Estado se organiza mediante a criação de um patrimônio comum e uma identidade
própria. A construção desse patrimônio pressupõe valores, norteadores de políticas
públicas, a partir dos quais são atribuídos qualificativos a determinados registros
documentais. (JARDIM, 1995)

Tal ideia fica mais clara com a publicação da Constituição Federal de 1988, em seu
Artigo n° 216, que embasa o conceito de fato e atribui a esfera pública competência para gerir
tais documentos:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e


imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:[...]
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;[...]
§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
§ 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação
governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela
necessitem. [...]
§ 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
(BRASIL, 2006, p. 152)

Como posto, a Constituição deixa claro o conceito de patrimônio documental e sua


abrangência, cabendo aos gestores a interpretação e ação dentro de cada especificidade.
Rememorar a especificidade de cada objeto dentro do museu, ou mesmo dar sentido ao
conjunto documental, requer do profissional que dirige a instituição a construção da memória
coletiva, baseado nos objetivos propostos no ato constitutivo da instituição. Além disso, os
diretores que passaram pelo Museu Amazônico, ao total sete até hoje, fazem parte do seleto
corpo Docente da Universidade, profissionais das mais diversas áreas de conhecimento, que
se propuseram a esta construção da memória.

Quadro 2. Relação dos Diretores e período de gestão

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Diretores do Museu Amazônico desde sua fundação

Edinea Mascarenhas Dias 1989 – 1993 (4 anos)

Geraldo Sá Peixoto Pinheiro 1993- 1996 (3 anos)

Francisco Jorge dos Santos 1997 – 2001 (4 anos)

Luiz Balkar Sá Peixoto Pinheiro 2001 – 2005 (4 anos)

Almir Diniz de Carvalho Junior 2005- 2009 (4 anos)

Sérgio Ivan Braga 2009 – 2011 (2 anos)

Maria Helena Ortolan 2011 – 2017 (6 anos)

Dysson Telles Alves 2017 – atual

Fonte: Museu Amazônico, 2018.

O Museu Amazônico é uma unidade suplementar da UFAM e ligada diretamente ao


Gabinete do Reitor, sendo o cargo de diretor do Museu Amazônico é indicado diretamente
pelo Reitor. Acerca do tempo de gestão de cada diretor, podemos observar através do Quadro
2, que mais da metade dos diretores exerceram o cargo em média por 4 anos, sendo a gestão
mais longa da Profa. Dra. Maria Helena Ortolan, - 8 anos -, que possui graduação em
Bacharelado e Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas,
Mestrado em Antropologia pela Universidade de Brasília e Doutorado em Ciências Sociais
pela Universidade Estadual de Campinas. Hoje, professora da Universidade Federal do
Amazonas, atuante no Departamento de Antropologia e no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social.
De todos os diretores, apenas Geraldo Pantaleão Sá Peixoto Pinheiro, o segundo
diretor do Museu, não se encontra vivo, faleceu em 25 de maio de 2018. Em sua gestão, foram
organizadas a documentação colonial sobre o Grão-Pará e a Capitania do Rio Negro, copiadas
do Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal pelo antigo CEDAM. Como apaixonado pela
cultura indígena, focou seu trabalho na Amazônia, onde coordenou exposições como Ara
Watasara e algumas mostras da cultura indígena.
Atualmente, quem dirige o Museu Amazônico é o servidor Dysson Teles Alves,
Doutor em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará, atuando
principalmente com a temática de História indígena na Amazônia Colonial. Fez seu Mestrado
abordando o tema “História Colonial da Amazônia”, onde se concentrou nas cidades coloniais
da Amazônia no século XVIII.

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Cabe ressaltar que a designação do atual diretor rompe com a tradição de docentes na
direção do Museu Amazônico, sendo ele o primeiro servidor técnico da UFAM lotado no
Museu Amazônico a exercer o cargo de diretor, sendo também, o único com alguma
aproximação com a Arquivologia a administrar o Museu, tendo em vista que possui
especialização em arquivos e documentação pelo Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo (USP). Antes de exercer o cargo de diretor do Museu, o mesmo
foi durante muito tempo o diretor da Divisão de Pesquisa e Documentação Histórica do
mesmo Museu, coordenando principalmente os projetos de organização arquivística do
Acervo Empresarial J. G. Araújo (1789 - 1984) e do Arquivo manuscrito dos documentos dos
séculos XVII e XVIII referentes à Amazônia Colonial.
Ademais, cabe ressaltar que todos os Diretores que por lá passaram, contribuíram de
alguma forma para o desenvolvimento do Museu, mas com a difusão perante a sociedade, e a
construção do lugar de memória. Relacionar história com memória não é algo simples de se
fazer, por isso chamamos atenção para a área de formação de todos os ex-diretores e o atual.
Podemos observar no Gráfico 1, desde sua fundação o Museu foi administrado,
principalmente por historiadores, assim como por antropólogos. Uma questão interessante é
observar que os primeiros diretores foram todos historiadores, tendência que mudou nas
últimos três ex-diretores, que eram antropólogos, sendo que o Sérgio Ivan Braga, tinha
graduação em História, mas doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São
Paulo.

Gráfico 1 - Área de Formação dos Diretores

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Fonte: Currículo Lattes, 2018.

Tendo concluído o levantamento acerca dos nomes dos diretores, foi possível conhecer
um pouco mais sobre esses profissionais que ajudaram na construção da História do Museu,
por certo torna-se relevante conhecer um pouco mais, sobre a área de atuação e o cargo que
ocupavam dentro da UFAM para entendermos o que de fato influenciou o desenvolvimento
dos trabalhos no Museu, para assim tentarmos contextualizar o que motivou tais ações.
No Gráfico 2, é possível observamos que os diretores do Museu, em sua maioria,
foram provenientes do Departamento de História (5), seguidos pelos professores do Programa
de Pós-graduação de Antropologia Social – PPGAS (2) e o atual diretor que, como já foi
mencionado acima, é o primeiro servidor técnico da UFAM como diretor do Museu.

Gráfico 2. Unidade de Origem dos Diretores

Fonte: Plataforma Lattes,2018.

Tais informação observada nos Gráficos 1 e 2 nos remete a uma questão norteadora
dentro do projeto. Até que ponto a mudança no perfil dos diretores ao longo de sua existência
influenciou nas ações e no entendimento acerca do papel do Museu Amazônico? Assim como,

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qual o entendimento acerca do papel da Divisão de Pesquisa e Documentação História com a


identidade histórica do Museu e sua preservação do patrimônio documental no Amazonas?

Considerações finais
O Patrimônio Documental não é apenas algo que foi guardado ou um objeto antigo,
ele conta a história de um povo e demonstra de forma concreta a criação da identidade, o
Museu Amazônico buscou resgatar essa história, preservando os documentos dos fundos
documentais já apresentados. A significância desses documentos, materiais, registros escritos,
coleções de fotografias e obras de arte, demonstra que o Museu cumpre seu papel diante da
sociedade amazonense, construindo assim um “Lugar de Memória” onde podemos realizar
pesquisas e dar significado a história do homem amazônico.
Contar a história oral Museu Amazônico é um privilégio, pois os depoimentos
coletados ajudarão na compreensão do passado do Museu, fazendo com que o Museu tenha
sua história contada por aqueles que o ajudaram a construí-la.
Preservar essa memória expõe também o fato de que, de certa forma, houve o
amadurecimento do pesquisador e da própria instituição que buscou valorizar o esforço das
pessoas que contribuíram com ações de valorização do povo que habitou a região, em
períodos diferenciados, guardando documentos que servissem como prova dos
acontecimentos ocorridos à época. De sorte que hoje contamos com tais documentos, para
embasamento de pesquisas nos mais diversos ramos do conhecimento, o que proporcionou a
solidificação da pesquisa sobre o homem amazônico.

Referência
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de
1998 / obra de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo
Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Livia Céspedes. 38a ed. Atual. – São Paulo:
Saraiva, 2006.BOOTH, W.; COLOMB, G.; WILLIAMS, J. A arte da pesquisa. 2000. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
BURGER, Ednéia Regina; VITURI, Renée Coura Ivo. Metodologia de pesquisa em ciências
humanas e sociais: história de vida como estratégia e história oral como técnica: algumas
reflexões.
CASTRO, Celso. Pesquisando em arquivos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2008.
INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. XI Primavera dos Museus. 2017.
JARDIM, José Maria. A invenção da memória nos arquivos públicos. Ciência da Informação.
Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Brasília, v. 25, n. 2. p. 1-13,
1995.
LEGOFF, J. História e Memória. Campinas: UNICAMP, 1990.
RODRIGUES, Georgete Medleg. Construindo um objeto de pesquisa em Arquivologia:
algumas reflexões. Informação Arquivística, v. 1, n. 1, p. 69-90, jul./dez. 2012
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Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

SOUSA, Renato Tarcisio Barbosa de. Em busca de um instrumental teórico-metodológico


para a construção de instrumentos de classificação de documentos de arquivo. In: BARTALO,
Linete; MORENO, Nádina Aparecida (Orgs.). Gestão em Arquivologia. Londrina: EDUEL,
2008, p.11-52.
UNESCO. Recomendação relativa à proteção e promoção dos museus e das coleções, da sua
diversidade e do seu papel na sociedade. Disponível em: http://icom-
portugal.org/multimedia/documentos/UNESCO_PMC.pdf. Acesso: 19/07/2018.
ZANIRATO, Silvia Helena; RIBEIRO, Wagner Costa. Patrimônio cultural: a percepção da
natureza como um bem não renovável. Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 26, n.
51, jan.-jun. 2006.

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IRMÃS DA CONSOLATA: DESAFIOS DOS PRIMEIROS ANOS 1949 -1974


ANDRESSA FERREIRA FÉLIX*

A igreja católica foi muito presente e atuante desde a chegada dos primeiros
colonizadores nas terras que viriam a ser denominadas como Brasil, o que ocorrera no século
XVI. Ao decorrer do tempo, essa presença se estendeu por todo território nacional, exercendo
influências diversas sobre a população.
De acordo com o autor Fábio Gumieiro (2013), o primeiro registro de um católico no
território que viria a ser o Brasil data da chegada dos portugueses em 22 de abril de 1500,
quando o frei Henrique de Coimbra, pertencente a ordem dos franciscanos celebrou a primeira
missa onde hoje é o estado da Bahia. Porém, a primeira ordem religiosa – que são instituições
internas da igreja Católica, as quais desenvolvem um modelo próprio para seguir e propagar o
cristianismo - a desembarcar no Brasil de maneira organizada e permanente foram os
Jesuítas10, em 1549, os quais eram a ordem oficial de Portugal e tinham a função de propagar
o cristianismo em todos os territórios “conquistados” pelos portugueses, os membros da
companhia de Jesus obtiveram uma exclusividade oficial nesse território até 1580. A união
entre as coroas de Portugal e Espanha entre os anos de 1580 a 1564 possibilitou que a
exclusividade com a companhia de Jesus fosse quebrada e entre os séculos XVI e XVII,
foram chegando outras ordens religiosas organizadas. É importante ressaltar que os membros
dessas ordens religiosas eram intrinsicamente ligados ao aculturamento dos indígenas, assim
como com o surgimento de aldeamentos, cidades e fundações de escolas em todo o território
colonial. Guimeiro quando ao se referir aos jesuítas ainda nos primeiros séculos de ocupação
portuguesa cita:
Sua participação foi crucial para a formação e organização das cidades de Salvador,
Rio de Janeiro, São Vicente, entre outras, pois mesmo com um número de padres
considerável,ainda era insuficiente para catequizar tanta gente, assim surgiram os
aldeamentos, pois estando os indígenas em um mesmo local, eles poderiam
catequizar vários indivíduos ao mesmo tempo.
Das diversas atividades desenvolvidas pelosmembros da Companhia de Jesus no
Brasil Colônia, uma das mais importantes, sem dúvida estava diretamente ligada ao
campo educacional.
(GUIMERO, 2013, pp. 66 - 67)

Da mesma maneira, outras ordens que desembarcaram nessas terras utilizaram


métodos de catequização parecidos, utilizando-se da educação e contribuindo de maneira

* Universidade Federal de Roraima, Graduanda do 5 semestre do curso de história


10
Ordem fundada em 1534 e a oficial da coroa portuguesa entre o ano de 1759.
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veemente para o surgimentos de aldeamentos os quais facilitavam o trabalho de catequização


pois agrupava os nativos em um só lugar – assim como de cidades.
Na região amazônica essas ordens desempenhavam, além de um papel religioso e
educacional, uma função econômica. Pois se encontravam na Amazônia produtos
economicamente valorizados na Europa, as chamadas Drogas do sertão. A Nesse aspecto, as
ordens religiosas que atuavam nesse território utilizavam a religião, por meio da catequização,
para se aproximar dos nativos - fato que contribuiu tanto para que a cristianização ocorresse
no imaginário indígena, o que facilitou a institucionalização da igreja católica na Amazônia,
quanto para a utilização da mão de obra nativa na extração das drogas do sertão. Essas
vantagens econômicas e religiosas geraram uma disputa entre as ordens religiosas, a qual
culminou em uma divisão religiosa em 1693, como afirma o autor Helysson Oliveira.
Em 1693, a região Amazônica é dividida entre as principais ordens religiosas aqui
estabelecidas, ficando assim definidas as áreas de atuação para cada uma delas: os
Jesuítas ficaram com o sul e à direita do rio Amazonas, já o norte e a esquerda,
ficaram para os demais: Mercedários, Franciscanos de Santo Antônio, Franciscanos
da Piedade e a dos padres Carmelitas.(Oliveira, 2017, p. 19)

A área, que até então pertencia ao estado do Amazonas, ficou sob domínio religioso
da Ordem dos carmelitas, os quais chegaram a essa região em 1725, depois de um longo
período - entre 1693 até 1725 - esse âmbito passou a estar sob a influência religiosa dos
monges beneditinos11, que chegaram aqui em 1909 e a partir de 1948, após a expulsão dos
beneditinos, os Missionários da Consolata12 passaram a estar à frente dos trabalhos religiosos
dessa localidade. Segundo a autora Mary Mwangi (2015), a organização religiosa a consolata,
originária da Itália, possuía uma determinada diversificação para que pudesse atender as
necessidades dos brasileiros fazendo com que a diocese seguisse um catolicismo tradicional,
onde centralizavam-se suas atividades na catequização de nativos e locais, educação e
trabalhos sociais.
O trabalho desenvolvido, era, também, uma forma de combate ao protestantismo, sendo
estimulados pelas autoridades eclesiásticas a abrirem escolas.13 Podemos citar, em Boa Vista
a escola São José e posteriormente a escola Euclides da Cunha, quais eram regidas pela igreja
católica seguindo os dogmas religiosos.

11
Ordem religiosa italiana fundada na idade média, em 529 d.c, que privilegia a autonomia de suas congregações.
12
Fundada pelo padre italiano José Alamano. Em 1901 foi criado um instituto de missões para membros do sexo
masculino, alguns anos depois, em 1910, se deu origem a um instituto de missões para irmãs, a partir de então as
missões passaram a percorrer países de todo o mundo.

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No território do Rio Branco, as atividades realizadas por membros de ordens religiosas


nem sempre eram associados as questões sacras. Semelhantementeas ordens que atuaram
séculos antes, grande parte do trabalho dessa ordem estava ligado a satisfação de anseios do
estado, a exemplo disso na década de 1940 o trabalho realizado por essa ordem com os
indígenas ligava-se às políticas governamentais de Getúlio Vargas, cujo objetivo era integrar
os índios a populações indígenas.
A chegada dos missionários da consolata ao então território do Rio Branco não era
esperada pelos missionário beneditinos. Segundo relatos do padre Marcon (1983, p.3), os
beneditinos deveriam ter recebido um telegrama informando as modificações, porém tal
mensagem não foi recebida antes de os novos religiosos aportarem no território do Rio
Branco em 14 de julho de 1948.
No ano seguinte da chegada dos membros religiosos do sexo masculino, as primeiras
freiras da ordem da Consolata chegaram no Território do Rio Branco, especificamente em 12
de maio de 1949 (foto 01). Segundo relatos extraídos do livro “As missionárias da consolata
na Amazônia brasileira: 1949 -2011”, ao pousarem aqui, por meio de um avião das forças
armadas, elas não tinham conhecimento sobre os costumes locais ou mesmo a língua dos
habitantes.

Foto 01 – Freiras da ordem da Consolata em um navio a caminho do Brasil


Fonte: Mwangi (2015)

Cabe ressaltar que a sociedade boa-vistense do início do século XX era dominada


predominantemente por homens. As mulheres religiosas não tinham o mesmo espaço que os
religiosos do sexo masculino e se detinham a poucas atividades administrativas.

Diante de uma sociedade majoritariamente masculina, as mulheres tiveram seu


espaço no meio religioso, mesmo sendo consideradas menos importantes e por isso
denominadas de segunda ordem, considerando a primeira sempre a dos homens.
(GUIMERO, 2013, p. 68)

Perante isso, era mais propício a elas desenvolverem trabalhos sociais. Apesar da
falta de domínio e conhecimento da língua e costumes nativos, Mwangi (2015) ressalta que,
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de acordo com os princípios católicos, elas cumpriram suas atividades voltadas ao público
com excelência.
A primeira residência (foto 02) das missionárias da consolata se encontrava, como
cita a autora Mary Mwangi (2015, p. 64), se encontrava anexa ao hospital Nossa Senhora de
Fátima. Tratava-se de uma localidade estratégica, pois se situava no centro da cidade e
próximo as áreas onde elas iriam atuar – ao lado da igreja matriz, de fundo com o hospital
nossa Senhora de Fátima e ao lado do Colégio católico São José e aproximo a outro colégio,
Euclides da Cunha – inaugurado em 1949.

Foto 02 – Primeira casa das irmãs da Consolata. Fonte: Mwangi (2015)

Nos primeiros anos, as missionárias da consolata obtiveram dificuldades com a


comunicação, pois ainda não falavam a língua local, com o clima tropical e com a diferença
cultural. Mesmo com as dificuldades encontradas pelas consolatas nos primeiros anos, elas
desenvolveram um importante trabalho social em diversas áreas – social e espiritual, como as
visitas aos enfermos (foto 3) e acompanhamento de famílias carentes; além do trabalho
educacional, por meio da administração de escolas onde além das disciplinas seculares eram
ensinados bons modos e, no caso das meninas, eram ensinados bordados e serviços diários do
lar.

Foto 03 – Irmãs saindo para visitas. Fonte: Mwangi (2015)


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Segundo informações cedidas pela Ir. Leda14 em entrevista – membra da ordem das
consolatas – devido à proximidade da casa com o que é denominado atualmente como bairro
Caetano Filho, as membras realizavam diversos trabalhos com pedintes, alcoólatras e
prostitutas.
Ainda utilizando o relato desta irmã - que apesar de ter chegado aqui em 1974
conviveu diretamente com as irmãs que atuavam nesta região desde 1949 – havia uma sala
específica para atender essas mulheres, para realização de exames e conversas com religiosas.
Além disso, era oferecido a elas “apoio espiritual”, muitas dessas jovens chegavam a
passar alguns meses convivendo com as religiosas, porém tinham plena liberdade para sair a
qualquer momento que desejassem.
A educação era uma forte aliada para os desejos católicos. Cabe ressaltar, que um
dos principais motivos para as missões era uma tentativa de “combate ao protestantismo”,
tendo em vista que os primeiros cristãos protestantes chegaram a essa região ainda nas
primeiras décadas do século XX.
Os religiosos católicos comandavam duas instituições educacionais da época –
Colégio São José e Ginásio Euclides da Cunha - na cidade de Boa Vista, localizada no
território do Rio Branco.
O colégio São José foi oficialmente fundado em outubro de 1924, porém, de acordo
com pesquisas, funcionava desde 1922, desde o ano de sua inauguração até o ano de 1948 foi
dirigido pelas irmãs beneditinas, porém a partir da chegada das irmãs da consolata, por meio
da Ir. Piergiulina Conti, passou ao comando das mesmas, a partir do ano de 1949.

Foto 4 - Madre Madalena – educadora na escola são José – com estudantes


Fonte: Mwangi (2015)

14
Membra atuante da ordem das Consolatas, a qual chegou no sul do Brasil na década de 1930 e em 1974
chegou a Roraima para dar continuidade ao seu trabalho.
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O ginásio Euclides da cunha foi inaugurado em dezembro de 1949, em uma área


cedida pela prelazia. Foi inaugurado pelo professor Aloísio Neves, porém o direito de
propriedade foi doado em julho de 1951 a prelazia do Rio Branco, hoje diocese de Roraima.
Ambos os estabelecimentos de ensino tinham, além da educação secular, educação
religiosa enfática, a qual estava ao comando principalmente das irmãs da consolata.
Essa era não somente uma forma de proclamar a educação, como também de
evangelizar, expandir o catolicismo e entrelaçar o mesmo a cultura local.
As consequências desses trabalhos estão presentes até os dias atuais na cultura boa-
vistense, os colégios que outrora foram dirigidos por elas se tornaram referência de qualidade
de ensino, os mais cidadãos mais velhos da cidade relembram com certa nostalgia os eventos
escolares organizados por elas. As dificuldades enfrentadas pela dificuldade com a fala, falta
de hábito com o clima, costumes não foram puseram barreiras nas atividades desenvolvidas
pelas irmãs da consolata.
Porém, ao analisar os fatos relacionados a chegada e os trabalhos das irmãs da
consolata, pode-se inferir que tais atos não estavam apenas ligados a “bondade proporcionada
pela fé e vocação”, mas também a um contexto de disputa de poder religioso e social.
Não se pretende com isso retirar os méritos e contribuições de tais ações, mas
esclarecer os fatos, ligados aqui a questão religiosa, que impulsionaram tanta dedicação a um
trabalho social mais próximo da população e uma atenção voltada a educação.

REFERÊNCIAS
A ORDEM DE SÃO BENTO. Disponível em: <https://www.msbento.org.br/beneditinos>.
Acessado em: 10 de janeiro de 2018
Conheça José Allamano.Disponível em: <http://imc.consolata.org.br/conheca-jose-allamano-
2/> Acessado em: 10 de janeiro de 2018
GUMIEIRO, Fábio.As ordens religiosas e a construção sócio-política no Brasil: Colônia e
Império. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 46, p. 63-78, Curitiba, 2013.
MAWANGI, Mary Agnes Njeri. As Missionárias da consolata na Amazônia brasileira:
1949-2011. 1a ed. Goiânia: Gráfica e Editora América, 2015.
OLIVEIRA, Helysson Silva de. As ordens religiosas na Amazônia: Os missionários
beneditinos e os conflitos políticos no vale do Rio Branco (1840-1948). 2017. 62f,
Monografia. Boa Vista, 2017.
Por que existem tantas ordens religiosas na Igreja?. Disponível em:
<https://pt.aleteia.org/2013/04/26/por-que-existem-tantas-ordens-religiosas-na-igreja/>
Acesso em: 20 de janeiro de 2018.
SANTILI, Paulo. Política e Ritual:a faina missionária beneditina entre os Makuxi no Vale do
Rio Branco.São Paulo, Unesp, v. 10, n. 2, p. 35-61, julho-dezembro, 2014.

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Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

BATIZADOS, MERCADORIAS, RAPTO E TRÁFICO, TRABALHADORES E AIAS:


INFÂNCIAS INDÍGENAS NA CAPITAL DA BORRACHA- MANÁOS 1880-1907

BRUNO MIRANDA BRAGA

Introdução: Os índios, a Cidade e o ser criança indígena na cidade


Que havia indígenas na cidade de Manáos durante a Belle Époque é fato inegável. Que
resistiam ao que lhes era imposto também não duvidamos. E com relação aos menores? As
infâncias? Havia uma diferenciação entre os indígenas que nasciam na hinterlândia e os que
nasciam na cidade, uma questão de identidade que o governo prorrogava como sendo os
nascidos nas matas “selvagens por não terem sidos gerados no seio da civilização”,
representada na cidade.
Discutir sobre a questão de índios urbanos em Manaus ainda hoje gera uma
diversidade de questões que fogem aos objetivos desse texto. De fato, houve em Manáos um
grande êxodo rural, que também pode ser chamado de migração compulsória.15Nisso,
queremos apresentar que o indígena ao se estabelecer em Manáos tornara-se um “índio
urbano”, mas, por aqui, o termo índio foi generalizado de uma forma multiescalar, assim,

[...] falar dos “índios de Manaus” torna-se altamente pretensioso e impreciso; algo
assim como falar dos “latino-americanos”, considerando que o México e a Bolívia, a
Venezuela ou o Chile são uma única e mesma coisa; ou falar dos “africanos”,
desconhecendo as par9ticularidades de nações e de povos nesse vasto continente.
Essa pretensão só revela profunda ignorância e, quando não, um cinismo político do
qual é preferível precaver-se. Em Manaus, tivemos a oportunidade de encontrar
índios Apurinã, Arapaso, Baré, Baniwa, Dessana, Kokama, Macuchi, Mundurucu,
Mura, Pira-Tapuya, Saterê-Mawé, Siriano, Tariano, Ticuna, Tukano, Tuyuca e
Yanomami. Povos diferentes pelas línguas, histórias, tradições, formas de
organização, territórios e interesses. (BERNAL, 2009, p. 28 grifos meus)


Esse artigo é uma versão modificada de um item do capítulo terceiro de minha Dissertação de Mestrado em
História Social intitulada: Manáos uma Aldeia que virou Paris: Saberes e Fazeres Indígenas na Belle époque
Baré 1845-1910, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas –
PPGH/UFAM, em 2016.

Licenciado em História (UNINORTE, 2013) Licenciado em Geografia (UEA, 2017).Especialista em Gestão e
Produção Cultural (UEA, 2018). Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Amazonas – PGH/UFAM. Atualmente, é professor Formador do Plano Nacional de
Formação de Professores da Educação Básica PARFOR/CAPES, locado na Universidade do Estado do
Amazonas, no Curso de História. E-mail: brunomirandahistor@hotmail.com.
15
Embora no sentido coerente dos termos, entendemos que êxodo rural se refere a transferência de populações
do meio rural para a cidade em busca de melhores condições. É algo pessoal e escolha livre. A migração
compulsória é aquela que cidadãos são obrigados a se transferirem para outras regiões por questões políticas,
naturais e/ou econômicas. A nosso ver, a vinda dos indígenas para Manaus nesse período, foi um êxodo rural
pois estes foram retirados de suas regiões originarias, mas houve uma obrigatoriedade, muitos foram trazidos
para a cidade para serem mão de obra. Enfim, o que pretendemos apresentar é que de fato, muitos indígenas
foram trazidos a cidade em grande escala contra sua vontade.
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Se nos dias atuais fazer essa distinção é difícil e gera uma ampla discussão de
etnogênese, no oitocentos a dificuldade se amplia à medida que quem se diferenciava dos
“civilizados”, era índio! Assim, entendemos que:
Dinâmicas migratórias e tipos de estabelecimentos diferentes marcam o percurso de
cada uma dessas comunidades. Determinados grupos indígenas contam às vezes
mais de três gerações de vida urbana, outros chegaram recentemente. Uns vieram
buscar trabalhar como domésticos. Outros emigraram por motivos de insegurança
nas suas regiões de origem ou seduzidos pelos encantamentos dos “civilizados”.
Outros, ainda, se instalaram recentemente enquanto representantes de organizações
étnicas. (IDEM, p. 29)

Portanto, é nessa vinda a cidade que centraremos as poucas fontes disponíveis que
apontam para os menores, para aqueles que estevam aqui, silenciados por diversos lados, e
por sua pequenez, estavam sempre na tutela ou domínio de outrem. Falar das crianças
indígenas em Manáos durante o decurso do oitocentos, evoca uma discussão amplamente
sentimental pois visualizamos situações nas quais os menores foram hostilizados, feridos de
uma maneira violenta e desprezível, como se fossem algo não humano ou vivo.
Muitos meninos foram trazidos, arrancados de suas aldeias afim de serem educados no
Instituto dos Educandos Artífices, esses meninos vinham de diferentes localidades, de
diferentes populações indígenas das diferentes regiões dos rios que circuncidam a cidade e a
Amazônia.
Ser criança na cidade de Manáos nesse período significava, ser preparado para exercer
trabalho. A legislação do Império do Brasil regulamentava que o trabalho era a forma mais
pedagógica e eficiente que existira. Assim,
Arriscamos em afirmar que a regulamentação das vidas das crianças no Brasil, entre
meados do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, teve caráter
educativo-preventivo e corretivo. Chamamos de leis de caráter educativo-preventiva
as leis voltadas para criação de asilos, casas de recolhimentos e escolas internatos
para crianças. Aos asilos eram encaminhados os meninos menores de 12 anos que
viviam na mendicância, assim estabelecia um dos artigos do Decreto de 17 de
fevereiro de 1854. Segundo tal decreto, enquanto as casas de asilo não haviam sido
criadas, os meninos seriam entregues ao pároco ou a professores que, através de um
pagamento mensal do governo, garantiriam sua manutenção e instrução. (PESSOA,
2010, p. 50)

A autora acima citada mostra-nos que as crianças, no Brasil do fim do XIX, careciam
de uma boa formação para possuírem um doutrinamento educativo e corretivo, para não
caírem na mendicância, nem no meio dos desvalidos. Certamente, quando se tratava de
menores indígenas essas assertivas se duplicavam, pois, ser indígena ou descendente de
indígenas já trazia uma carga de “preocupações” educativas e preparatórias para serem úteis
aos serviços da cidade. Concordamos ainda com Alba Barbosa (2010, p. 51) quando afirma

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[...]as crianças eram vistas como seres que necessitavam de auxílio. Não sendo
possível a família dar-lhes a devida assistência, caberia ao Governo garantir-lhes o
sustento e o ensino de um ofício. Tal postura era uma medida de prevenção para que
estas não viessem a cair na vadiagem que tanto era temida pela camada dirigente.

No século XIX, no Brasil criara-se a perspectiva discursiva na qual os indígenas


desapareceram das narrativas. John Manuel Monteiro aponta que essa tese de
desaparecimento fora sustentada por diferentes e sucessivas corretes de pensamento social no
Brasil, pois, ao entrar no país, o pensamento antropológico ancorava-se na própria história
desenvolvimentista nacional. Acreditava-se, em meios acadêmicos, que o indígena estaria
fadado ao desaparecimento, pois se teorizava que tais povos se encontravam na “infância da
civilização”, que a educação e a moral trariam um novo jeito de ser aos indígenas daqui, com
o avanço das regiões agrícolas e com a evolução das cidades, esses povos que “se
encontravam na ignóbil hostilidade”, seriam civilizados e acrescidos ao trato social.
John Manuel (2004) nos esclarece que essas medidas,
[...] posto na prática redundava no deslocamento de populações, na imposição de
sistemas de trabalho que desagregavam as comunidades, na assimilação forçada, na
descaracterização étnica e, em episódio de triste memória, até na violência
premeditada e no extermínio físico. Mesmo nas fases mais esclarecida da proteção
social, os órgãos indigenistas trabalhavam no sentido de amenizar o impacto do
processo civilizatório, considerado um fato inevitável que, dia mais, dia menos,
levaria à completa integração dos índios a nação.

Uma questão que entra em choque é o próprio perfil da escola nesse momento. Antes
de uma função formativa e intelectual como concebemos hoje, a escola detinha mais um perfil
de conduzir, de preparar para uma determinada atuação, seja profissional seja social, no meio
da cidade. Para os meninos e meninas indígenas, essa prerrogativa se ampliava pois, ao
chegarem numa escola da cidade, não encontravam uma escola que se adequasse a suas
diferenças, porém, deviam se enquadrar nessa escola, posto que, se hoje a escola ainda não
está preparada para receber alunos indígenas, no período em que pesquisamos, estava menos
ainda, à medida que queria-se romper com os elementos da cultura indígena, conceituada
como “atrasada e hostil”, assim, não pensemos que a educação no final do oitocentos “acolhia
bem” como narram algumas fontes, os indígenas que nela ingressavam. Como sabemos,
Manáos possuía características de uma cidade bilíngue. Embora desde o período da Amazônia
Pombalina, a obrigatoriedade do uso da Língua Portuguesa se oficializara, pouquíssimo se fez
para torná-la generalizada, uma vez que a maior parte dos moradores da cidade ainda
preferiam o uso do Nheengatu, ou de suas línguas maternas.

Sob a tutela do Estado: a formação das meninas indígenas


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Assim, acreditamos que as crianças indígenas estavam plenamente entregues ao


Estado para serem “domesticadas, ” se tornarem úteis aos diversos ofícios que a cidade
necessitava, como vimos anteriormente, os meninos indígenas eram educados para o trabalho
no interior do Instituto dos Educandos, havia também em Manáos o estabelecimento no qual
as meninas eram ensinadas a serem donas de casas e aias, damas de companhia e atuarem na
casa da elite.
O instituto das moças órfãs, chamado de Asilo Orfanológico Elisa Souto, era, como
muito bem expressou Ana Luiza Morais (2014, p. 65) “a menina dos olhos do governo”.
Com a leitura da documentação, as referências ao Instituto são as mais prodigiosas
cabíveis. De fato, o governo via nesse estabelecimento uma possibilidade de suplantar a
questão da orfandade, e atrelavam-se a esse local múltiplos discursos. Vemos o discurso de
caridade, o discurso de benevolência, o discurso religioso, o discurso social, o discurso
educacional e pedagógico, o discurso sanitário, todos esses embutidos em discursos maiores
que eram o trabalho e a moral ou como o trabalho estabelecia uma moral e o preparo para este
serviço era dever do estado.
Porém, este estabelecimento não fora o primeiro (como muitos escrevem) voltado para
instrução das meninas órfãs da Província. Em 1860, em sua Exposição Governamental, o 1º
Vice-Presidente Manoel Gomes Correa de Miranda, aponta para a instituição de um
estabelecimento voltado para ensino de meninas, “um estabelecimento das Educandas”, nos
moldes do Estabelecimento dos Educandos, já em pleno funcionamento. O vice-presidente
descreve que este estabelecimento foi criado pela lei 29 de novembro de 1859, mas foi
instalado desde 07 de maio de 1859 com a denominação de Colégio Nossa Senhora dos
Remédios.16
Na Província, no ano de 1872, o presidente José de Miranda da Silva Reis, informa
que foi fundado e estava sendo fiscalizado pelo padre Dr. José Manoel dos Santos Pereira,
vigário geral da Província e da Paróquia da Capital Manáos, o “Azilo Nossa Senhora da
Conceição”. Quem mantinha esse estabelecimento era a Província, e haviam no momento
dez meninas “pobres e de preferência tiradas das classes das indígenas selvagens”. Este foi

16
EXPOSIÇÃO APRESENTADA ao Exmo. Sr. Dr. Manoel Clementino Carneiro da Cunha, Presidente da
Província do Amazonas pelo 1º Vice-Presidente da mesma o exmo. Sr. Dr. Manoel Gomes Corrêa de Miranda
por ocasião de passar-lhe a administração da mesma Província. Manáos, 24 de novembro de 1860.
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instituída em forma de contrato com o Governo Provincial, celebrado em 16 de julho de


1869.17
O presidente também salientou que as alunas, ou seja, as meninas indígenas além dos
princípios religiosos, aprendiam leitura, caligrafia, ortografia, geografia, história nacional,
línguas portuguesa e francesa, música e piano, costura bordados e mais prendas domésticas.18
Mas tarde, o estabelecimento reformado passou a abrigar “moças órfãs”, e desvalidas,
já denominado de Asilo Orfanológico. Percebemos pela leitura de fontes que este
estabelecimento sempre for bem quisto por prestar relevante serviço a educação e formação
das moças órfãs desvalidas.
O Instituto das moças órfãs se dedicava ao ensino de prendas e gracejos domésticos as
educandas ali inseridas. Assim como os meninos deviam ser bons servidores públicos e/ou
privados, deviam ter um ensino profissionalizante, as meninas deviam ser educadas para
servirem nas casas de particulares e/ou serem boas e prodigiosas esposas. Salientamos que
essas meninas eram em sua maioria índias retiradas de suas comunidades ou aquelas que seus
pais morreram precocemente.
Assim, o universo educacional da Província e do início do Governo, em especial da
capital, estava voltado para educação que “transformasse”, que fizessem os indígenas serem
incorporados aos ensinamentos e posturas do mundo branco. Era uma união entre igreja e
estado, clero e educação visando estabelecer novas sociabilidades aos menores indígenas,
mas, sem respeitar seus fazeres e menosprezando seus saberes. Em 1884, assim se
pronunciava o Presidente Dr. Theodoreto Carlos de Faria Souto;
A catequese e a educação, e com elas as colônias orfanológicas para abrigo da
infância desamparada e dos ingênuos e particularmente dos índios, o ensino de arte e
ofícios, o melhoramento das missões, os asilos e pequenos institutos profissionais, a
civilização pela ação combinada da lei e da religião, visando antes de tudo a
instrução dos menores e considerando leis sagradas – a inviolabilidade da vida do
homem selvagem e o respeito a sua liberdade, à sua honra, e a sua família, tornando-
se efetiva a ação criminosa para todos os delitos praticados contra a personalidade
do índio, como contra personalidade do homem civilizado.19

As infâncias indígenas na Manáos da Belle Époque eram personificadas, como vemos,


pela fala do Presidente como aptas a civilização. Essa prerrogativa evidencia que o ensino

17
RELATÓRIO APRESENTADO à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na Primeira Sessão da 11ª
Legislatura no dia 25 de março de 1872 pelo Presidente da Província o Exmo. Sr. General Dr. José de Miranda
da Silva Reis. Manáos: Impresso na Typografia do Commercio do Amazonas, de Gregório José de Moraes,
1872, p.p. 248, 249. Acervo IGHA.
18
Idem, Loc. Cit.
19
EXPOSIÇÃO APRESENTADA à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na Abertura da Primeira
Sessão da 17ª Legislatura em 25 de março de 1884, pelo Presidente Dr. Theodoreto Carlos de Faria Soutoo.
Manáos: Typ. do Amazonas de José Carneiro dos Santos, 1884. p.02. Acervo IGHA.
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asilar, das artes e ofícios eram essencialmente voltadas para dar esses menores “brutos”, um
contato com as regras do trato social e para estes não se perderem na mendicidade e na
vadiagem tão comuns no cotidiano citadino de então. Essas infâncias indígenas eram o
espelho da cidade, estavam sendo instruídas para não se perderem nos caminhos errôneos que
a cidade oferecia, e também para serem empregados a altura da elite, a altura daquilo que os
enriquecidos esperavam.
Em 1885, a diretora do Asilo a senhora Eulália Fernandes Rego Monteiro, informa em
seu relatório anexo, que os antecessores e o atual Presidente da Província fizeram valer que a
preferência de meninas no estabelecimento eram as desvalidas filhas de escravas e as filhas de
indígenas da Província do Amazonas.
O Asilo Orfanológico configurou-se não somente como assistencialista, mas o seu
caráter educacional pertenceu a sua origem. No Relatório do Amazonas de
25/03/1886, além do curso primário, o asilo foi considerado um “viveiro” de escolha
de professoras, pois nele funcionava o Curso Normal do sexo feminino, com aval do
novo Regulamento da Instrução Pública nº 56, de 17/03/1886. Nesse período, o asilo
funcionava na rua da Independência (atual Frei José dos Inocentes).
A análise de que as instituições assistenciais possuíam o caráter educacional [...] é
pertinente no caso do Asilo Orfanológico. Mais tarde, enquanto Instituto Benjamin
Constant, o Curso Infantil “Froebel” fora criado para o atendimento das crianças
pequenas. (MIKI, 2014, p. 146)

Logo as meninas estavam sendo preparadas em termos de educação também. Reitero


que a educação aos menores indígenas na cidade era ligada a crenças progressistas e
etnocêntricas das quais apenas o ensino e o trabalho regularizado trariam a estes menores uma
vida plena e feliz, e proporcionaria a estes “saírem da escuridão em que estavam inseridos”,
por terem nascidos indígenas. Esse pensamento perdurou por toda a Província e primeira parte
da República.
O Asilo Orfanológico foi reconfigurado e mudara de nome para Instituto Benjamin
Constant, no Governo de Eduardo Ribeiro, este considerou que o Asilo devido a suas péssima
organização e má orientação nada tinha produzido “que compensasse os gastos e sacrifícios
feitos para melhorar o futuro das órfãs. ”20 As imagens seguintes apresentam uma menina da
etnia Pamary no ano de 1893, 21

20
DECRETO Nº 11 de 26 de abril de 1892: Extingue o Asilo Orfanológico Elisa Souto, cria o Instituto
Benjamin Constant e dá regulamento ao mesmo. In: ESTADO DO AMAZONAS. Decretos, Leis e
Regulamentos colecionados na Administração do Exmo. Sr. Dr. Fileto Pires Ferreira. 1889 a 1896. TOMO IV –
1892. Manáos: Imprensa Oficial, 1897. Embora ainda se chame de Benjamin Constant, hoje o Instituto é
mantido pelo Governo Estadual e oferece cursos técnicos na área de informática pelo Centro de Educação
Tecnológica do Amazonas CETAM. Abrigou durante muito tempo uma escola que formava Normalistas, e a
posteriori uma escola de Ensino Médio regular da rede Estadual de ensino. Quanto ao edifício, após diversas
reformas e restauros, continua com os principais traços originais e se localiza no Centro de Manaus cito a
Avenida Ramos Ferreira, 991 CEP: 69010-120.

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Pela leitura das fontes referentes ao Instituto Benjamin Constant, percebemos que
neste, ao contrário do Asilo Orfanológico, existe uma ausência, não há diretamente uma
preferência pelas meninas indígenas. As fontes silenciam com relação as identidades étnicas
das educandas e como era formado seu alunato. Mas cremos que pela maior parte da
população de Manaus ser indígena ou tapuia, as alunas eram em sua maioria indígenas.

O tráfico de menores indígenas


Porém, nem sempre o destino dos índios órfãos e órfãs trazidos à Manáos eram
positividades e alegrias. Pesquisando jornais do período, nos defrontamos com diferentes
queixas e denúncias sobre os “menores” que habitam a cidade, e muitos dos quais “estão
entregues ao relento”, na vadiagem e mendicância.
Em fins do oitocentos, a cidade presenciara uma diversidade de casos de tráficos de
menores índios de uma forma horrenda e demasiada. Em 27 de agosto de 1881, o presidente
da Província Alarico José Furtado, informa a Assembleia Legislativa22 que o juiz de órfãos
deste Termo expandiu um mandato para que o cidadão Alexandre Nogueira de Lacerda,
residente na povoação de Alvarães entregasse os dois órfãos que se achavam em seu poder.
Certamente se tratava de menores indígenas que seriam traficados para serem comercializados
em Manáos, a fim de servirem como escravos a particulares. O presidente informou que
houve muita oposição por parte de Nogueira de Lacerda, que com sua dureza, feriu ao
subdelegado regional. O mesmo foi indiciado.
Já no ano seguinte, 1882, sete meses após o ocorrido, na cerimônia de entrega da
administração provincial, Alarico José tornou a mencionar o caso dos dois órfãos. O
presidente reiterou sua fala do dia 27 de agosto de 1881, agora afirmando que se tratavam de
dois menores índios, que foram trazidos para Manáos e ficaram em sua guarda. Um dos dois
falecera no Hospital da Caridade, e o outro se encontrava na antiga Casa dos Educandos,
confiado aos cuidados do Reverendo Sr. Vigário Geral. Alarico José afirma que pesquisou
onde residiam os pais destes menores, afim de “efetuar sua restituição”, porém não teve êxito
em sua busca. O presidente concluiu que o melhor a ser feito era destiná-los a companhia de
menores.
Escravidão de Índios
[...]

22
FALA COM QUE o Exmo. Sr. Dr. Alarico José Furtado, abriu a Sessão Extraordinária da Assembleia
Legislativa Provincial do Amazonas, em 27 de agosto de 1881. Manáos: Typ. do Amazonas de José Carneiro dos
Santos, 1882. Acervo IGHA.
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As autoridades judiciais e policiais da província, reiterei em 24 de fevereiro último,


as recomendações que, por várias vezes em diferentes épocas, têm sido feitas por
esta Presidência no intuito de proteger os índios e por um paradeiro a esse comércio
revoltante, que consiste em arrancá-los de suas malocas, para empregá-los na
extração da goma elástica, ou dá-los como criados a pessoas da Capital desta
Província. Comércio indigno, que revolta todas as fibras da natureza humana, que
fere as leis divinas e os sentimentos sagrados da família, que pode provocar
dificuldades internacionais e substituir, eu já o disse, nesta província a escravidão
negra, que tende a desaparecer sob influência dos princípios cristãos, pela escravidão
vermelha.
Confio que esse comércio irá desaparecendo sob a ação enérgica da autoridade,
auxiliada pelos bons cidadãos, e eu tenho a satisfação de registrar nesse relatório,
que além dos dois índios que acima refiro-me, não tive notícia de outros, que
viessem para esta capital e fossem aqui distribuídos como criados. [...].23

Alarico José finaliza dizendo que os custos com o menino indígena que estava
confiado aos cuidados do Vigário Geral correrão por conta da Presidência. Com o relato do
presidente verificamos que o tráfico, rapto e comércio de crianças indígenas na cidade não era
uma questão desconhecida, mas antes disso uma questão de leis e jurisprudência. Embora o
presidente afirme não ter conhecimento de outros casos da natureza, há uma diversidade de
fontes que apresentam bem esta questão.
Na quinta feira, 23 de fevereiro de 1893, o Diário de Manáos, famoso periódico que
circulava na cidade, num artigo bem expressivo, denunciava a situação que os órfãos e órfãs
indígenas estavam sujeitos, inclusive os que adentravam no Instituto Benjamin Constant, e
Estabelecimento dos Educandos Artífices:
Benefício a Civilização!
A título de Benefício à Civilização! Os primitivos exploradores das florestas do
Amazonas, ávidos de fortuna, devastavam os rios, assaltavam as malocas, atiravam
sobre os índios que se recusavam submeter-se, amarravam e amordaçavam os outros
a pretexto de chamá-los ao grêmio da civilização, como se tratasse de uma caçada de
homens!...
Violentados por essas nefandas expedições também denominadas – Descimentos de
índios - que tinha por único fim escraviza-los; depositavam-nos no Curral (Caicará
– em língua indígena) nome afrontoso que deram ao lugar ainda hoje infelizmente
conhecido no Rio Solimões. Ali como animais, os infelizes filhos das selvas eram
vendidos como escravos e flagelados de modo brutal!
As mães separadas dos filhos e uma grande parte de vida dizimadas pelos açoutes,
pela fome e miséria, tudo enfim era insuficiente para tocar aos brutais instintos dos
nossos expedicionários, que, como negros das costas da África, não se distanciavam.
O grito de aflição de tamanho barbarismo não deixou felizmente de ser acudidos
pela humanitária carta de Lei de 6 de junho de 1755 que aboliu semelhante comércio
até então legal e considerou os índios do Pará e Maranhão isentos da ociosa
escravidão.24

23
EXPOSIÇÃO com que o Ex-Presidente do Amazonas, exmo. Sr. Dr. Alarico José Furtado, passou a
administração da Província ao 2º Vice-Presidente, Exmo. Sr. Dr. Romualdo de Sousa Paes de Andrade. Manáos,
07 de março de 1882. Acervo IGHA.
24
JORNAL Diario de Manáos. Quinta feira, 23 de fevereiro de 1893. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/cache/2078703629512/I0002282-. Acesso em 03 de fevereiro de 2015, às
14:15.
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Inicialmente, o redator apresenta-nos um quadro histórico da situação dos grupos


indígenas na Amazônia desde a colonização. Com esse excerto, o redator procurou enfatizar
que pouco se tem feito para de fato inserir o indígena na “benéfica civilização”, mas como o
mesmo apresenta, a situação agravava-se, pois, as leis não estavam sendo devidamente
cumpridas. O autor faz um paralelo entre a Lei de 6 de julho de 1755, e a áurea de 10 de julho
de 1884.25 Prossegue o relator afirmando que dessas leis de fato,
[...] O confronto, porém, da lei áurea de 10 de julho de 1884 com esta, quanto a sua
fiel observância, é vergonhosa, triste e lastimável.
A de 10 de julho, feliz, rápida em sua plenária execução; de 1755 particularmente
par o Amazonas somente modificou, mas não extinguiu o comércio, a sujeição, mau
trato e violências aos pobres índios que tiveram a infelicidade de mais sofrerem à
proporção que os escravos desamparavam a casa de seus ex-senhores, substituindo-
nos de modo ainda mais vergonhoso.
De forma que com libertação dos negros, quase que trouxe como consequência a
nova escravização dos índios órfãos, do Benefício da civilização dos duros tempos
coloniais.26

Com o paralelo realizado pelo redator do artigo, vemos que a situação do indígena na
cidade e nas demais localidade da Província era de um regime de semiescravidão, sofrendo o
índio diversas espoliações. O autor critica a postura das leis pois as mesmas pouco fizeram
para, de fato, auxiliar o indígena a se integrar na sociedade, mas era constante sua
escravização em meio públicos e particulares. Assim, na Província, os órfãos que eram aptos
para a “civilização”, acabavam sendo inseridos em outras práticas, contrarias inclusive a dita
civilização.
No Purus, Juruá, Madeira não ignoramos a maneira porque o pobre índio é tratado
pela faina dos regatões e extratores que os vendem a pretexto de que lhe são
devedores, (dividas que nunca saldam) arrancando-lhes os filhos com enganosas
promessas ou os trocam com futilidades.
Constantemente vemos com desgosto essas pobres crianças cobertas de farrapos nos
vapores que demandam aqueles rios conduzidos a semelhança de animais
domésticos (xerimbabos) como encomenda ora para esta capital e as mais vezes para
fora do Estado e mesmo do país, onde não mais voltam.

25
A Lei de 6 de julho de 1755, estabelecida pelo Marquês de Pombal, estabelecia entre outras coisas a garantia
de terras reservadas aos índios: "(...). Os índios no inteiro domínio e pacífica posse das terras ... para gozarem
delas por si e todos seus herdeiros." Segundo Patrícia Sampaio (2012, p.137, et seq.), a oferta de mão de obra
africana fora reduzida na Colônia, levando o governo a apresentar garantias mínimas de acesso a mão de obra
indígena. Assim, com a publicação dessa lei, chamada de “Lei de Liberdades” de 1755, foi uma maneira de se
estabelecer o poderio sobre a mão de obra indígena, à medida que, estes não se rendiam ao poder português.
Ainda de acordo com Patrícia Sampaio, o seu vigor dependeu de diversas medidas, onde se destaca como
primeira o Diretório de 1757. Já a Lei de 10 de julho de 1884, foi a lei que extinguiu a escravatura no Amazonas,
este se antecedeu quase 4 anos do restante do país, no governo do Presidente da Província Theodoreto Carlos de
Faria Souto.
26
JORNAL Diario de Manáos. Quinta feira, 23 de fevereiro de 1893. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/cache/2078703629512/I0002282- Acesso em 03 de fevereiro de 2015, às
14:15.
78
Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

Os índios assim despreparados pelo roubo dos filhos, de seu penoso trabalho, maus
tratos e desconhecendo a ação da justiça, não trépida acometer os civilizados por um
desforço natural e não por instinto malévolo que muitas vezes se lhes quer imputar.27

Ao descrever o rapto e o tráfico das crianças índias, o autor do artigo apresenta-nos


uma dura realidade da qual estavam sujeitas as crianças indígenas de então. Ao serem
raptadas, e consequentemente vendidas, essas crianças perdiam toda e qualquer relação com
seus pais, que desolados pouco sabiam o que fazer para reivindicar seu direito paterno. O
autor relata como era a situação de translado dessas crianças para a capital e para o exterior,
uma desumanidade sem descrição. Seguindo o autor descreve como a região do Rio Branco
formada por grandes populações indígenas era de fato a melhor região onde o indígena era
bem tratado.
Chegamos à parte mais importante desta fonte para nossa pesquisa que é a parte na
qual o relator nos apresenta situações desses órfãos indígenas em Manáos:
[...] Na capital do Estado, é penoso não só ver a maneira lastimosa porque são
mantidos a maior parte dos infelizes índios apurinãs, japurás, etc., e sejamos
francos, mesmo os infelizes órfãos, que a pretexto do ensino são tirados das mães e
entregues a pessoas que muitas vezes não tem a precisa moralidade, meios de
educar, e outras vezes a família que além de os maltratarem, a pretexto de um sem
número de futilidades, até ciúmes, fazem das raparigas amas secas, que é o menos,
vendedeiras de doce, frutas, bugigangas etc., pelo mercado e ruas da capital vestida
de um modo imundo, que causa comiseração. Encontramo-las a cada passo, neste
lamentável estado, impróprios a civilização e ao decoro da nossa sociedade, pelas
tabernas e quantos lugares impróprios; que se lhes devia evitar, mas que
infelizmente só tem servido para dali serem seduzidas pela soldadesca, que quase
sempre são os felizes mortais, que tiram melhor partido com estas infelizes.
Sem muita demora vão dar elas entrada nos hospitais já em estado muitas vezes de
verdadeira lástima ou andar aí pelas ruas e cachoeiras a vagabundar na mais crassa
devassidão! 28

Temos uma imagem da situação de diversos menores indígenas em Manáos na Belle


Époque, vemos que existiam uma diversidade de grupos indígenas trazidos, ou vivendo por
aqui, vemos também que embora o discurso fosse em nome do progresso e da civilização,
muitas vezes, as crianças trazidas do meio de seus pais e parentes eram entregues a pessoas
que as fariam enveredar por caminhos ruins ou hostis. E prossegue:
Às vezes, as pobres órfãs, além do ensino que lhe proporciona a mestra é este
completo pelo mestre ou tutor, filho ou afilhado da casa mimoseando-lhe com o
estado interessante no qual é incontinente deitada no olho da rua!! Outras muitas
circunstâncias, concorrem para a infelicidade destas desventuradas.
A mestra, se há de chamar o mestre ou o filho às contas, uma vez descoberto este
fracasso, entende-se com a paciente a que julga sempre a única culpável no caso e é
condenada a quantos martírios ou judiarias se pode imaginar, enquanto não é
seguido o preceito do - olho da rua!

27
Idem.
28
Idem. Grifos meus.
79
Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

Parece incrível, mas temos presenciado a desfaçatez de uns tantos degenerados –


tutores ou chefes de famílias que blasonar do caso que acabamos de expor! Eis mais
ou menos o modo quase invariável com que a órfã é obrigada as mais das vezes a
compensar o ensino que lhe dão os seus tutores.29

Embora meio prolixo e redundante, com muitos eufemismos e metáforas, a proposta


deste excerto da fonte era divulgar que muitas das índias órfãs eram entregues
conscientemente ou não aos deleites sexuais de seus tutores que lhes “provinham educação”
no Instituto Benjamin Constant, já mencionado neste trabalho. Fica evidente que estas
meninas eram seduzidas por seus tutores, filhos, ou afilhados que acreditavam que manter
relações sexuais com elas era uma forma de pagamento por seus “incentivos” dispensados na
sua educação. Essa triste realidade vivenciada por essas menores, parece ter sido bastante
presente no cotidiano da cidade, pois o relator apresenta uma veemência em sua crítica e se
policia em encobrir nomes e posturas de possíveis usurpadores ou transgressores dessas
menores.
A seguir, vemos a situação mais clara de como as coisas funcionavam nos
estabelecimentos dos órfãos indígenas.
O asilo Benjamin Constant – não comporta de certo modo todas estas infelizes
criaturas, mas terão ali maior número delas se não estivesse os seus lugares
ocupados pelas intrusas de pais e mães abandonadas ou em condições menos
precárias quanto as que verdadeiramente deveriam merecer este favor e para cujo
fim instituiu-se aquele estabelecimento de educação.
O mau trato de que estes infelizes são vítimas é doloroso e a tanto não chegavam os
aplicados aos escravos, porque enfim estes custavam dinheiro e aqueles um simples
presente de um amigo seringueiro, comandante de vapor, se é índio, e se é órfão
pelo próprio juiz que quase sempre é iludido nestas requisições e empenhos.30

Vemos uma denúncia contida nas entrelinhas desta parte do artigo. Quando o redator
aponta que as vagas do Instituto/Asilo Benjamin Constant, que em sua maioria eram
destinadas as órfãs indígenas, inclusive regimentado por lei, este estabelecimento estava
abrigando outras “intrusas” que vinham se apropriando dos lugares das meninas índias que de
fato deveriam estar ali abrigadas.
Com relação aos meninos indígenas, a situação não parecia ser tão diferente, pois o
redator enfatiza:
Os órfãos – rapazinhos – enfim, são homens, quando não adquirem o ensino preciso
a sua vida é menos precária, conquanto tenhamos razão de sobra para lamentar essa
turba que encontramos de tabuleiros na cabeça a formar a turba de moleques a jogar
pincho nas esquinas e ruas.
Com o estabelecimento dos Educandos, que grandes proveitos têm dado nestes
últimos tempos, acontece a mesma coisa que com o Asilo Benjamin Constant – mais
afilhados do que propriamente necessitados -. A despesa com o estabelecimento da

29
Idem. Grifos meus.
30
Idem. Grifos meus.
80
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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

ordem do Educando nunca é demasiada; antes desse-lhe melhores proporções e


aumente-se o número dos infelizes, que quando não tenham muito a ganhar com o
ensino, ao menos será um futuro vagabundo de menor. [sic.]31

A prioridade para ingresso nos Institutos Educacionais da Cidade de Manáos eram os


menores indígenas. Os trabalhos de Ana Luiza Morais, de Alba Barbosa Pessoa, de Irma
Rizzini, também concordam com isso, mas pela leitura da fonte transcrita, vemos que entre o
estabelecido pela lei e a prática, havia uma ambiguidade onde o discurso se diferenciava
bastante do vivido. Reitero que, durante o período estudado, de fato, foi instituído um
discurso de amplas realizações, porém, o discurso diferia e muito das práticas citadinas.
Ao encerrar o artigo, o autor nos diz que:
Com esta ligeira exposição não temos por fim estigmatizar a ninguém e sim apelar
para o sentimento humanitário das pessoas a quem são confiadas estas pobres
criaturas; as autoridades a quem incumbe salvaguardar as liberdades e direitos
humanos; pugnando por nossa vez pelos infelizes sobre quem pesa ainda uma
pressão imprópria da época em que vivemos e chama-los ao grêmio da civilização a
que tem eles justo direito, pois são brasileiros e amazonenses como nós.32

Com a leitura da fonte acima transcrita e comentada, destacamos a presença de


infâncias indígenas na cidade, e mais ainda, observamos como a sociedade as tratava,
desmerecendo sua pequenez e seus direitos assegurados legalmente, como bem destacou o
redator do jornal.

Batismos e vida cenas da vida cotidiana

E quanto a cristianização? Viver na cidade nesse período era assumir-se cristão

temente e praticante dos princípios católicos. Para os indígenas ser batizado e

consequentemente assumir a fé cristã era receber o nome, o título de Cristão. Ser batizado era

sinônimo de ser cidadão. Nisso, concordamos que

[...] Ser cristão significava ocupar um lugar no grêmio da igreja, passar,


definitivamente, a fazer parte da “civilização”. O modelo colonizador e civilizador
dos europeus justificava-se através da ideia de salvar as almas dos gentios e torna-
los vassalos e cristãos úteis. Por outro lado, esta nomeação passou a ter uma
“existência concreta”. Esta existência não se reduz somente ao termo classificatório
criado pelos europeus, mas antes e principalmente, foi assumido e assimilado pelos
próprios “índios”. (CARVALHO JÚNIOR, 2007, p. 125)

31
Idem. Grifos meus.
32
Idem.
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Na cidade de Manáos, os batismos eram frequentes e era demasiado o número de


cidadãos que recebiam este sacramento. Muitos jornais noticiavam os números de batizandos,
e destacavam de onde provinham, se eram estrangeiras, se vinham de outras províncias etc.
No dia 12 de janeiro de 1908, noticiava o redator do Jornal Amazonas, maravilhado que no
ano findado, 1907, haviam sido batizadas na Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios 1224,
sendo 618 do sexo masculino, 616 do sexo feminino e 280 ilegítimos. Ainda curioso e bem
expressivo, o redator informa-nos que ainda no número de batismos deram-se 4 casos de
crianças gêmeas e foram batizadas 4 crianças índias.33
Como o caso acima reportado, há em diferentes jornais com diferentes números que
apontam para uma grande presença e participação indígena na cidade durante a Belle Époque.
As infâncias indígenas na cidade eram muito presentes assim como fica evidente uma
participação de seus pais, provavelmente muitos dos quais foram os trazidos a trabalhar nas
obras dos edifícios públicos da cidade, bem como os que aqui já viviam. Ao serem batizados,
os menores indígenas iriam participar também da catequese e se preparar para receber os
demais sacramentos da fé cristã, uma vez que o Batismo era a conversão e a aceitação aos
ensinamentos eclesiásticos, bem como significava se tornar cidadão.
Assim como na colônia, acreditamos que os indígenas resistiam e viam no batismo
uma forma de sobrevivência também; receber o sacramento podia ser uma astúcia na qual os
índios souberam se colocar a fim de evitar espoliações e serem inserido na sociabilidade
“branca”, sem serem desprezados ou diminuídos. Assim ao se tornarem “índios cristãos,”34
esses sujeitos estavam agindo na lógica do poder sem deixa-la, bem como estavam se
tornando cidadãos, convertidos a fé cristã lembremos que:
[...] Somente os batizados poderiam ser “cristãos” e somente os “índios” entram
nessa categoria. Portanto, “índios cristãos” são especiais. Compõem-se de etnias
diversas em sua origem, mas definem um tipo de inserção social particular. A
identidade dos índios cristãos significou a resposta inovadora que as populações
ameríndias, subjugadas e integradas, deram ao projeto civilizador. Era uma forma de
se apropriarem de seu destino. Ser cristão, antes de ser um enquadramento
genérico, era uma decisão – era fruto de uma ação, mesmo que muitas vezes,
forçada. (IDEM, 2007, p.127 –grifos meus)

De fato, há em diversas fontes que norteiam essa pesquisa a referência a índios aptos
ao convívio social, sendo aqueles que entre outros critérios já haviam recebido o Sacramento
do Batismo. Ao utilizarmos do dado da fonte citada e enfatizando que há outras fontes que

33
JORNAL AMAZONAS. Ano XLIV, Nº 62. Domingo, 12 de janeiro de 1908. Manáos Amazonas. Acervo:
Hemeroteca do IGHA.
34
A expressão é de Almir Diniz de Carvalho Júnior, 2005.
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corroboram a ideia levantada sobre os índios que estavam sendo batizados na cidade,
pretendíamos destacar dois pontos: o primeiro, já citado aqui era que de fato havia indígenas
na cidade e estes exerciam certas práticas do poder dominante e sobreviviam. Um segundo
ponto, segue a linha do pensamento do historiador Almir Diniz (2007) quando este propõe
que ao se batizarem, os índios não estavam completamente investidos a fé cristã, mas, faziam
tal simbolismo e participavam deste ato litúrgico como forma de burlar o poder dominante
sem deixá-lo, e assim, poderem exercer suas vivências na cidade, era um “processo de
conversão sincera a seu modo, transformando a nova religião a seu modo”.
Mesmo passando por uma ressignificação, por um “embraquecimento”, como dissera
Otoni Mesquita, a cidade ainda se divertia e mantinha muitos hábitos caboclos, indígenas,
exercendo práticas muitas das quase proibidas nos Códigos de Posturas. Em 1895, no auge da
Belle Époque, assim era relatado um fato muito inusitado em um jornal muito popular da
Cidade, o Diário de Manáos:
Que susto!

Em dias da semana passada, defronte dessa cidade, no lugar Marajó, deu-se uma
tragédia verdadeiramente tropical.
Um caboclinho de nome Idalino foi a tomar banho e no momento de lançar-se ao
rio, ficou preso por uma perna nas mandíbulas de um jacaré. O caboclinho não
perdeu o ânimo e sustentou com tão feroz inimigo, por espaço de uma hora, uma tão
luta insólita quanto desigual.
Quando já estava quase extenuado de fadiga e de susto, lembrou-se de meter os
dedos dentro dos olhos do jacaré, e este com dor abriu a boca e deixou escapar a
presa.
Idalino nadou com toda a força para a terra e começou a gritar pedindo auxilio.
Acudiu gente da casa, trazendo flechas e arpões com os quais executaram o terrível
anfíbio, que media dezoito pés de comprimento.
Que susto! Dizia Idalino ao contemplar ufano o cadáver de seu inimigo.35

Nesta passagem, observamos uma cena cotidiana comum na cidade e no seu entorno:
um cidadão possivelmente um rapaz visto que, o redator se refere a ele como “caboclinho de
nome Idalino”. Embora o redator diga que o fato ocorreu no lugar denominado “Marajó”, o
mesmo fica na entrada de Manáos,36 era próximo, esse lugar pertencia e pertence a cidade, é
entorno. O historiador Leno José Barata de Souza (2005, p. 278) em sua pesquisa sobre

35
JORNAL Diário de Manáos. Ano 01, nº 176. Sábado, 27 de dezembro de 1890. Acervo Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro. Disponível em: http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/. Acesso em 30/01/2015 ás 09:58.
36
De fato, na proximidade da cidade de Manaus ainda hoje existem diversas ilhas, vilas e comunidade. Não se
encontram numa distância em larga escala da cidade. Há quem as considere distritos urbanos da cidade, que
mesmo possuindo certa autonomia, ainda obedecem a gestão citadina. A mais famosa delas é a Ilha de Marapatá
considerada “Porta de entrada” de Manaus. Outra é a Vila de Paricatuba, já mencionada nesse trabalho.
Possivelmente o referido local pertencia a essa vila, ou seria a Ilha de Marapatá com outra denominação.
83
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queixas e vivências populares nos jornais de Manaus sobre molecagens, desordens citadinas
vinculadas a infâncias, destacou que:
Ao todo, em meio às questões de ordem, somaram-se quase 40 queixumes que
potencializaram uma representação da infância, ou melhor, de uma determinada
infância da Manaus no início do XX voltada exclusivamente para os difíceis viveres
dos chamados “moleques” no seio de uma urbe extremamente madrasta [...].
Viveres infantis que como destaca Fraga Filho, voltando-se para a sociedade baiana
do oitocentos, “... faziam das ruas o espaço de trabalho, de divertimento, de
peraltices, de jogos e brincadeiras”, ou como suscita Ednea Dias sobre os meninos
de Manaus de outrora: “passavam o dia às sombras das árvores, conversando ou
jogando bola, incomodando com sua ociosidade as autoridades”.
Os menores nas Queixas do Povo, tanto poderiam despontar na condição de
“moleques”, com toda carga pejorativa que o termo insere: vadios, desocupados,
desordeiros, como, devido principalmente à violência sofrida por parte de pais e
tutores, na condição de vítimas; momento em que mais pareciam assumir a condição
de criança, ser frágil, que precisava de proteção da sociedade, ao contrário dos
denunciados “moleques malcriados”, aos quais lhe faltaria mesmo a
correção.(grifos do autor)

Pretendemos mostrar que haviam menores indígenas em Manáos e mesmo que


expostos a diferentes tipos de maus tratos e condições sub-humanas, aqui eles estavam. Outra
questão que apontamos é que, como existiam crianças indígenas na Cidade, a posteriori
haveriam homens e mulheres confirmando nossa ideia central de que a cidade jamais perdera
sua tez indígena, suas culturas indígenas, seus fazeres e saberes indígenas. Era de fato uma
necessidade para a elite “branca”, esconder, expelir essa tez do cotidiano citadino, assim, uma
das tentativas mais utilizadas foi a de mandá-los, “empurrá-los” para o mais distante possível
da área central.
Agora, o grande problema era o da habitação, em uma cidade civilizada, não é
admissível conviver junto com a elite, a classe trabalhadora e inferior.

Referências
BERNAL, Roberto Jaramillo. Índios Urbanos: Processo de Reconformação das identidades
étnicas indígenas em Manaus. Manaus: Editora da Universidade Federal do
Amazonas/Faculdade Salesiana Dom Bosco, 2009.
CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Líderes Indígenas no Mundo Cristão Colonial.
Canoa do Tempo: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Amazonas. Vol. 01, nº 01. Manaus: Editora da Universidade Federal do
Amazonas, 2007.
DECRETO Nº 11 de 26 de abril de 1892: Extingue o Asilo Orfanológico Elisa Souto, cria o
Instituto Benjamin Constant e dá regulamento ao mesmo. In: ESTADO DO AMAZONAS.
Decretos, Leis e Regulamentos colecionados na Administração do Exmo. Sr. Dr. Fileto Pires
Ferreira. 1889 a 1896. TOMO IV – 1892. Manáos: Imprensa Oficial, 1897.
EXPOSIÇÃO APRESENTADA à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na
Abertura da Primeira Sessão da 17ª Legislatura em 25 de março de 1884, pelo Presidente Dr.

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Theodoreto Carlos de Faria Souto. Manáos: Typ. Do Amazonas de José Carneiro dos Santos,
1884. P.02. Acervo IGHA.
EXPOSIÇÃO APRESENTADA ao Exmo. Sr. Dr. Manoel Clementino Carneiro da Cunha,
Presidente da Província do Amazonas pelo 1º Vice-Presidente da mesma o exmo. Sr. Dr.
Manoel Gomes Corrêa de Miranda por ocasião de passar-lhe a administração da mesma
Província. Manáos, 24 de novembro de 1860.
EXPOSIÇÃO com que o Ex-Presidente do Amazonas, exmo. Sr. Dr. Alarico José Furtado,
passou a administração da Província ao 2º Vice-Presidente, Exmo. Sr. Dr. Romualdo de Sousa
Paes de Andrade. Manáos, 07 de março de 1882. Acervo IGHA.
FALA COM QUE o Exmo. Sr. Dr. Alarico José Furtado, abriu a Sessão Extraordinária da
Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, em 27 de agosto de 1881. Manáos: Typ. Do
Amazonas de José Carneiro dos Santos, 1882. Acervo IGHA.
JORNAL AMAZONAS. Ano XLIV, Nº 62. Domingo, 12 de janeiro de 1908. Manáos
Amazonas. Acervo: Hemeroteca do IGHA.
JORNAL Diário de Manáos. Ano 01, nº 176. Sábado, 27 de dezembro de 1890. Acervo
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Disponível em: http://bndigital.bn.br/hemeroteca-
digital/. Acesso em 30/01/2015 ás 09:58
JORNAL Diario de Manáos. Quinta feira, 23 de fevereiro de 1893. Disponível em:
http://memoria.bn.br/docreader/cache/2078703629512/I0002282- . Acesso em 03 de fevereiro
de 2015, às 14:15.
JORNAL Diario de Manáos. Quinta feira, 23 de fevereiro de 1893. Disponível em:
http://memoria.bn.br/docreader/cache/2078703629512/I0002282- . Acesso em 03 de fevereiro
de 2015, às 14:15
MIKI, Pérsida da Silva Ribeiro. Aspectos da Educação Infantil no Estado do Amazonas: o
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1933). Itatiba: Tese Doutorado em Educação – Universidade São Francisco –USF, 2014.
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Da; GRUPIONE, Luiz Donisete Benzi (orgs). A temática indígena na escola: novos subsídios
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PESSOA, Alba Barbosa. Infância e Trabalho: Dimensões do Trabalho Infantil na Cidade de
Manaus (1890-1920). Manaus: Dissertação de Mestrado em História - Universidade Federal
do Amazonas – UFAM, 2010.
RELATÓRIO APRESENTADO à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na
Primeira Sessão da 11ª Legislatura no dia 25 de março de 1872 pelo Presidente da Província o
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SOARES, Ana Luiza Morais. Os Indígenas na Cidade de Manaus (1870-1910): entre a
invisibilidade e a assimilação. Manaus: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social,
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SOUZA, Leno José Barata de. Vivência Popular na Imprensa Amazonense: Manaus da
Borracha (1908-1917). São Paulo: Dissertação de Mestrado em História Social. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, 2005.

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A FESTA DE IEMANJÁ REPRESENTADA POR CARYBÉ E ODORICO TAVARES


BRUNO RODRIGUES PIMENTEL

A ideia inicial deste texto é desenvolver uma reflexão sobre construções de Iemanjá e
da sua festa no cotidiano do Recôncavo Baiano. Para desenvolver esse estudo teremos como
fontes privilegiadas o número 7 da Coleção Recôncavo (CARYBÉ, 1951)37, intitulado “Festa
de Yemanjá” e o capítulo “O Reino de Iemanjá” do livro “Bahia: imagens da terra e do povo”
(TAVARES, 1961), ambas as obras tiveram sua primeira edição publicada em 1951.

Na introdução do número 7 da Coleção Recôncavo de Carybé38, José Pedreira39


destacou a popularidade de Iemanjá na Bahia e mencionou, especificamente, a sua glória na
cidade de Salvador. O autor acrescentou, que “Yemanjá, a rainha das águas”, é a favorita dos
baianos e que “(...) em todos os jardins da Bahia, cultivam-se flores para ‘ela’”. Pedreira
destacou que o grande presente oferecido a essa deusa no dia 2 de fevereiro de cada ano,
“numa grande procissão que reuni os mais dignos representantes dos mais respeitados
‘terreiros’ da Bahia, não é suficiente”. As cenas dos ogans, com os corpos vergados, sob o
peso dos balaios floridos, de acordo com ele, traduzem, apenas em parte, a grandeza do culto
a Iemanjá, “mãe de todos nós” (PEDREIRA, 1951, s/p).


Doutorando em História Social no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Bolsista FAPERJ.
37
No ano de 1951 foi lançada a Coleção Recôncavo pela Livraria Turista. Esta obra é de autoria de Carybé, mas
conta com textos de alguns colaboradores. A Coleção soma 10 volumes, cada qual sobre um tema de aspectos da
cultura presente na região do Recôncavo Baiano, desenvolvidos através dos desenhos feitos por Carybé. Na
Coleção, para cada conjunto temático de desenhos, existe um texto introdutório. Os textos foram assinados por
Vasconcelos Maia, Odorico Tavares, José Pedreira, Wilson Rocha, Carlos Eduardo, Pierre Verger; e pelo próprio
Carybé.
38
Hector Julio Páride Bernabó, que usava o pseudônimo Carybé, nasceu em Lanús-Argentina em 1911 e morreu
na cidade de Salvador em 1997. Após passar parte de sua infância na Itália, Carybé veio para o Rio de Janeiro
com sua família em busca de melhores condições de vida, tendo em vista as dificuldades econômicas que a
Europa do pós-guerra enfrentava. Em 1928, ingressou na Escola Nacional de Belas Artes. Em 1929 Carybé
interrompeu os estudos na ENBA para voltar para a Argentina com a sua família. A primeira viagem de Carybé a
Salvador ocorreu em 1938 e nesta ocasião ele permaneceu na cidade por seis meses. Na década de 1940 Carybé
realizou mais duas viagens à cidade de Salvador e tornaram-se inevitáveis as suas representações dos ritos do
candomblé, das feitas populares, da capoeira, do sampa, dos mercados, dos casarões do Pelourinho, entre outras
coisas. As experiências que este artista foi adquirindo e a proximidade com esse universo fez com que ele se
apaixonasse pela cidade de Salvador. Em 1950 ele foi morar definitivamente na Bahia.
39
José Pedreira foi um dos fundadores do bar galeria Anjo Azul e escritor, também colaborou na Revista
Cadernos da Bahia com o seguinte título “O culto às águas na Bahia” que foi ilustrado por Carybé. Neste texto,
Pedreira comenta, sobre a força sagrada das águas baianas, e em especial o Dique, que, antes de qualquer coisa é
a lagoa encantada onde habitam Oxum e Iemanjá. Ele foi responsável por escrever a introdução do número 7 da
Coleção, “Festa de Yemanjá”.
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Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

Assim, Pedreira destacou que o culto a Iemanjá não está restrito ao dia 2 de fevereiro,
mas que, na Bahia, ela é cultuada o ano inteiro. Além dos festejos populares, ela faz parte do
cotidiano das pessoas, ela é vista pelos pescadores, que pedem sua proteção, benção e
prosperidade por meio de preces e cânticos entoados em meio a execução das suas atividades
habituais. Iemanjá é representada como a mãe de muitos filhos, a que está presente em todos
os cantos do Recôncavo Baiano e da Bahia.

Odorico Tavares40 desenvolveu, na obra mencionada, variados temas da cultura baiana


e seu trabalho pode ser, inclusive, compreendido como um verdadeiro guia turístico dos
aspectos socioculturais do Recôncavo Baiano41. Odorico iniciou o capítulo “O Reino de
Iemanjá” narrando as belezas e os lugares da Baia de Todos os Santos. Ele apresentou o
Recôncavo Baiano para o leitor por meio de um passeio de saveiro42, outro símbolo da Bahia
daquele tempo. Seu “passeio”/narrativa tem início na Ponta de Montesserrate, passa pelas
praias mansas da Ribeira, atravessa Plataforma, Aratu, Mataripe. Seguiu adiante, pelo mar
tranquilo, sem presa e chega em São Francisco do Conde em São Roque. Em algum dia de
sol, depois de fazer a volta inteira na Baia de Todos os Santos, chega em Itaparica e em tantos
outros locais e ilhas perdidas. Odorico diz que quem domina esse mundo do Recôncavo,
como seu ponto maior, é a cidade de Salvador. Mas alerta que os encantos não param por aí,
pois o mar que se estende fora da Barra também deve ser apreciando com calma. Ondina, Rio
Vermelho, Amaralina, Pituba, Armação, Chega Negro, Boca do Rio, Piatã, Itapoã, também

40
Odorico Tavares, foi responsável pela redação que inicia o volume 2, 5 e 6, respectivamente, “Pelourinho”,
“Festa do Bonfim” e “Festa da Conceição da Praia” - da Coleção Recôncavo. Ele chegou a Salvador em 1942,
aos 29 anos de idade. Vinha do Recife, a pedido de Assis Chateaubriand, para dirigir os Diários Associados na
Bahia. Lá, entusiasmou-se com a Bahia e tornou-se um promotor da cultura baiana e atuou como crítico de arte.
41
Importante salientar que muitos dos temas desenvolvidos por Odorico Tavares no livro “Bahia: imagens da
terra e do povo” também foram desenvolvidos por Carybé na Coleção Recôncavo. Como, por exemplo: Pesca
de Xaréu, Festa de Iemanjá, Feira de Água de Meninos, Candomblé, Capoeira, Conceição da Praia e Nosso
Senhor do Bonfim.
42
Os saveiros eram, até a década de 1940 e 1950, os principais responsáveis pela realização do transporte de
mercadorias entre as cidades do Recôncavo Baiano. Cada cidade tinha um pequeno e modesto porto para a
realização do transporte das suas mercadorias e movimentação do comercio local. No entanto os pequenos portos
foram perdendo importância e alguns até mesmo desapareceram. Segundo Brito “a navegação nas águas da Baía
de Todos os Santos era, provavelmente, o meio de transporte mais importante” (BRITO, 2008: 40). Os
transportes também eram realizados por meio de grandes embarcações, mas os saveiros eram os responsáveis
pela maior parte da movimentação das mercadorias entre os portos do Recôncavo. Os portos, a princípio, tinham
como principal função enviar e receber os produtos de subsistência, pois o Recôncavo Baiano era um grande
fornecedor de produtos agrícolas, principalmente para a Capital. De acordo com Pierre Verger “esses veleiros
traziam dos diversos pontos do Recôncavo, da extensa Baía de Todos os Santos, pessoas e mercadorias”. Verger
acrescenta que, segundo Odorico Tavares, a madeira e o carvão eram trazidos de Itaparica; “o café e o cacau, de
Nazaré das farinhas; as bananas, laranjas, legumes e a farinha de mandioca, de Maragogipe; os charutos e os
rolos de fumo vinham de Cachoeira e de São Félix” (PIERRE, 2002: 38).

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devem ser amados e apreciados. Cenários paradisíacos e integrantes do reino de Iemanjá,


segundo o autor (TAVARES, 1961: 51-52).

Segundo Tavares o mar é um grande senhor que penetra a Bahia, que, por sua vez, se
orgulha do seu império das águas. Esse grande império por sua vez é regido pela deusa das
águas. Como o autor diz:

(...) há uma fôrça que rege, que impera senhora absoluta de tôdas as águas, de
tudo que em função da água vive e possa viver, há uma fôrça que ordena, que
manda, que decide sôbre a vida dos pescadores, dos saveiristas, dos
doqueiros, dos pais e mães de santo, de todos que têm vistas para alcançar o
azul dos mares baianos. Em cada recanto dêstes mares, nas praias, nas
cabanas dos pescadores, nos altos destes montes, ela é a grande Senhora.
Ninguém pode dizer que não é vassalo dos mais servis do reino de Iemanjá
(TAVARES, 1961: 53).

O trecho acima indica a soberania de Iemanjá no seu reino. O reino de Iemanjá


apresentado por Odorico Tavares era, e continua sendo, muito importante para toda a
Bahia.Os seus domínios e o poder exercido sobre eles influenciavam diretamente a vida dos
baianos, não só os pescadores, saveiristas e doqueiros, mas também os comerciantes, os
produtores rurais, os agricultores, os feirantes e todos que habitavam a Bahia. O Recôncavo
Baiano, parte importante do Reino de Iemanjá descrito pelo autor, sempre foi uma região de
grande importância econômica por causa do desenvolvimento das atividades canavieiro-
açucareira e fumageira (ALMEIDA, 2008: 13). Foi nessa parte do reino de Iemanjá também
que teve início no Brasil a exploração comercial de petróleo, a partir da década de 1940 e
permaneceu sendo a única que região de exploração até a década de 196043 (BRITO, 2008:
74; MORAIS, 2013: 45; SANSONE, 2008: 1-2).

43
Apesar do petróleo ter sido descoberto no Recôncavo Baiano em 1938, foi somente em 1941 que teve início a
sua exploração econômica (MORAIS, 2013: 74), com as descobertas dos campos de Cadeias e Itaparica,
respectivamente. De acordo com José Mauro de Morais foram feitos vários poços na localidade de Lobato em
1938, bairro de Salvador, mas em 1939 eles se mostraram não comerciáveis por conta da baixa produtividade.
No entanto, essa descoberta fez com que o governo nacionalizasse a área no entorno da região de Lobado com
efeito de dá continuidade à exploração (MORAIS, 2013: 46). A descoberta em Lobato foi importante para
impulsionar a exploração na área ao seu entorno, tornando assim a região do Recôncavo Baiano área de
prioridade para o desenvolvimento de estudos geológicos, geofísicos e explorações empreendidas pelo Conselho
Nacional do Petróleo. A partir daí a primeira jazida de petróleo comerciável encontrada foi na localidade de
Candeias, que neste período ainda era periferia da cidade de Salvador, em 1941 a mais de mil metros de
profundidade. No final do mesmo ano teve início a produção de petróleo em escala comercial no Brasil, poço de
Candeias-1. Em 1941 ocorreram descobertas de gás natural em Aratu e no ano seguinte foi descoberto petróleo
em Itaparica. Essas localidades passaram a ser consideradas como pontos pioneiros de exploração de petróleo no
Brasil (Lobato, Candeias, Aratu e Itaparica). No Brasil, o Recôncavo Baiano foi o único produtor petrolífero até
a década de 1960

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Como demonstramos de acordo com as ideias desenvolvidas nos textos de Pedreira e


Tavares, que seguiam das representações artísticas de Carybé, nada poderia acontecer no
reino de Iemanjá sem que ela quisesse. “Nada se faz, nada se altera, nada se transforma, sem
que seja por foça de sua vontade” (TAVARES: 1961: 53).

Festa de Iemanjá
O Número 7 da Coleção Recôncavo possui representações artísticas dos diferentes
momentos da festa de Iemanjá. Carybé desenhou os momentos da festa desde a sua
preparação até as oferendas em cortejo no mar. Nesse número Carybé expressou através dos
seus traços como são feitas, com muita devoção e dedicação, as oferendas à Iemanjá, a deusas
mais popular na Bahia de seu tempo. Além dos momentos da festa ele representou também o
cotidiano dos pescadores, deu indícios de como a rotina da cidade de Salvador estava ligada
ao mar e as atividades que giram ao seu entorno – o comércio, por exemplo. Bares e pequenas
barracas são representados, indicando o movimento à beira-mar. Modestas casas de
pescadores e outros trabalhadores também estão presentes nas suas representações. O artista
demonstrou, nos seus desenhos, como o mar e tudo que vem dele está diretamente ligado ao
povo baiano. Isso parece “justificar” tamanha devoção à deusa que habita as suas
profundezas.
O sustento dessas pessoas, como as imagens nos “dizem”, vem das atividades ligadas
ao mar. Essa relação de dependência está na construção que o artista desenvolveu. Nas suas
representações, Carybé, destacou as pessoas simples, as classes subalternas. Os homens são
representados com corpos bem definidos, talvez os músculos bem delineados sejam resultado
do tralho duro que exercem no mar ou na sua proximidade, pesca, manutenção de redes e
embarcações, além de outros trabalhos manuais que exigem força e vigor físico para serem
cumpridos. Eles estão, na maioria das vezes, sem camisa ou com simples camisetas e calção
típico para banho. As mulheres também aparecem representadas com belos corpos, pois as
curvas típicas do corpo feminino são destacadas pelo artista. O vento marinho ajuda a cumprir
essa tarefa, pois o vento, em algumas representações, movimenta os vestidos contra os corpos
das mulheres, o que acaba por ressaltar as suas formas.

No entanto, mesmo em meio a toda simplicidade e labuta pela sobrevivência, as


pessoas estão representadas felizes. Mesmo não tendo um motivo aparente para tal felicidade,
ainda assim elas estão felizes. Por esse motivo o artista recebeu críticas e foi, inclusive,

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chamado de alienado, pois representava o negro à margem dos problemas sociais que eram
comuns ao seu cotidiano.

Os trabalhos mais pesados e que exigiam pouca ou nenhuma especialização estavam


destinados a eles, isso significa que eram mal remunerados e, em muitas das vezes, viviam em
condições difíceis, moradias precárias, entre outras coisas. Mas, mesmo assim, Carybé os
representavam felizes e harmônicos em uma cidade que, na sua construção, comportava muito
bem as diferenças, sejam elas sociais, culturais, econômicas e, sobretudo, religiosas. A crítica
chamou Carybé de alienado, pois os negros representados por ele, não reivindicavam, eram
negros apáticos politicamente, que não lutavam para uma melhor condição, negros
acostumados e felizes com o que tinham. O artista, de acordo com esse pensamento, não
representou o negro que buscava uma melhor condição de vida, de trabalho, que lutava por
mais respeito para com as suas expressões culturais. Ele representou os negros felizes,
integrados harmonicamente numa cidade que comportava as diferenças.

No entanto, também devemos ter em mente que a construção de Carybé não resultou
de escolhas apenas feitas por ele. Sabemos que Carybé mudou-se definitivamente para a
cidade de Salvador em 1950, pois em 1949, Rubem Braga44, escreveu uma carta para Anísio
Teixeira, que na ocasião era Secretário de Educação e Saúde do estado da Bahia,
recomendando Carybé para desenvolver estudos folclóricos. Não tivemos acesso a carta, mas
podemos ter indícios dos planos de Rubem Braga45 em relação a Carybé por meio de uma
crônica escrita em 1948. O título da crônica é “Que venha Carybé” e nela Braga diz o
seguinte:

O general Peron vem ao Brasil, o que é uma coisa importante. Muito mais
importante, todavia, será a vinda de Carybé. Odorico Tavares me disse que falaria a
Anísio Teixeira e a Otávio Mangabeira sôbre a urgência de recuperar para a Bahia
esse argentino de alma baiana.

Carybé andou a tempos por La Paz e se deixou ficar às margens do Titicaca


aprendendo coisas com os índios. Mas hoje é casado e pai de um filho. Teve de
voltar para Buenos Aires, onde ganha a vida como técnico de paginação em um

44
Rubem Braga (1913-1990) foi um jornalista e cronista brasileiro, correspondente na Itália durante a Segunda
Guerra Mundial, autor, dentre muitas outras obras, do livro intitulado "Com a FEB na Itália", de 1945. Foi
correspondente do Jornal O Globo em Paris, em 1947. Foi nomeado Chefe do Escritório Comercial do Brasil em
Santiago, Chile, em 1953. Na década de 1960, foi Embaixador do Brasil no Marrocos. Ver:
http://enciclopedia.itaucultura.org.br/pessoa6903/rubem-braga
45
É importante destacar que Rubem Braga era amigo de Jorge Amado, ambos haviam, inclusive dividido um
apartamento na cidade de São Paulo. Amado foi preso em 1937 e depois de ter sido solto, em 1938, ele
transferiu-se do Rio para São Paulo, onde morou com Braga. Entre 1941 e 1942, Jorge Amado exilou-se no
Uruguai e na Argentina, neste período Carybé vivia nos arredores de Buenos Aires, mas não encontramos
evidências se ele e Amado se encontraram nesse período.
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jornal e como ilustrador de livros. Não seria difícil para elê ganhar a vida também no
Rio do mesmo jeito. Mas Carybé está cansado de oficinas e editoras. Disse que ele
quer morar na Bahia. Não conhece nem Anísio Teixeira nem Otávio Mangabeira:
mas conhece uma quantidade de negros de candomblés e capoeiras, tem altas
relações entre malandros e tocadores de viola. (...)

Alguns amigos acharam que ele podia ser contratado pelo governo baiano para fazer
estudos de folclore. Eu por mim conheço o que ele fez por simples amor à coisa,
sôbre a dança e o canto do jogo da capoeira. Carybé fez muitas centenas de desenhos
rápidos e ágeis para documentar a dança de combate. E quanto a letra e a música
acho que não tomou nenhuma nota por escrito. Mas com um pandeiro na mão êle
passa horas cantando – com aquela prodigiosa justeza da pronúncia com que ele
canta qualquer coisa das Américas.

Depois soubemos que o governo baiano já contratou um professor de folclore norte-


americano para fazer estudos na Bahia. Está certo. Mas Carybé poderia ser um
fabuloso auxiliar para este professor. E Carybé não precisa de muito dinheiro.
Apenas para aguentar a esposa e o filho em Salvador e poder viajar pela Bahia a
dentro, como é seu sonho.

Hector Bernabó, vulgo Carybé, Jornalista, pintor, cantor e macumbeiro tem sido em
muitos países da América um espantoso propagandista da Bahia. Êle está precisando
de mais Bahia: precisa encher seus tanques de coisas baianas. Vamos tirá-lo dr.
Mangabeira, dr. Anísio Teixeira, dr. Mariani, vamos tirá-lo das oficinas de
46
“Críticas”, onde êle suspira triste, e soltá-lo no seu Recôncavo querido?

Braga destaca que alguns amigos achavam que Carybé poderia ser contratado pelo
governo baiano para desenvolver estudos folclóricos e em seguida discorreu sobre temáticas
que já haviam sido desenvolvidas pelo artista e descreveu também a maneira como as obras
foram elaboradas. Braga dá a entender, por meio da sua narrativa, que Carybé manteve
contato direto com sambistas, capoeiristas, adeptos do candomblé e, por isso, era um
conhecedor das manifestações culturais características desses grupos. O autor demonstra que
o artista já desenvolvia temas relacionados ao folclore baiano e que ele desejava poder voltar
a desenvolver essas temáticas, que se identificava tanto.

Além disso, um precedente é apresentado por Rubem Braga. O fato de um professor


norte-americano ter sido contratado pelo governo baiano para desenvolver estudos folclóricos,
o mesmo poderia acontecer com Carybé, um argentino. Ou, como sugere Braga, Carybé
poderia ser um fabuloso auxiliar para o professor, que não conseguimos identificar quem era,
já que Rubem Braga não entra em detalhes.

No decorrer da crônica, Braga destacou as qualidades artísticas de Carybé e defendeu


que elas poderiam ser usadas para o desenvolvimento dos temas folclóricos do Recôncavo

46
BRAGA, Rubem. Que venha Carybé. Jornal Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 28 de maio de 1948, primeira
seção, página 3.
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Baiano. Além de citar dois importantes nomes do cenário político baiano daquele período,
Braga ainda cita Clemente Mariani Bittencourt, que naquele momento era Ministro da
Educação e Saúde Pública, do Governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951). O cronista pede,
deliberadamente, ao governador da Bahia, ao Secretário de Educação do Estado da Bahia e ao
Ministro de Educação, para que Carybé fosse “solto” no Recôncavo, ou seja, para que o
artista fosse contratado para representar artisticamente a cultura daquela região.

Deste maneira, os temas e a maneira como eles seriam desenvolvidos deveriam


ressaltar aspectos do cotidiano e da cultura local. Um dos fatores que fazem das
representações realidades construídas é o fato dos artistas realizarem escolhas (sob as mais
variadas influências), existe uma verdadeira e minuciosa seleção do que será representado. Só
é possível ver nas representações o que o artista julgou ser conveniente e o que estava de
acordo com os propósitos estabelecidos.

Carybé, por ser do candomblé, seguia um código de conduta e nas suas representações
ele ocultava tudo que pudesse de algum modo, contribuir para a formação de uma imagem
negativa do candomblé. O fato desse artista ter optado por representar o negro feliz mesmo
em meio as problemas existentes, pode ter uma relação com isso, pois o negro estava, nas suas
obras, diretamente ligado ao candomblé e se seu objetivo era gerar uma imagem positiva e
harmônicadesse culto, nada mais obvio do que representar o negro feliz e devidamente
integrado a cidade, pois o negro e o candomblé não aparecem de modo algum dissociados.

A festa de Iemanjá representada por Carybé resulta da sua observação da festa que
ainda acontece anualmente na praia do Rio Vermelho. Na imagem I, que segue abaixo,
podemos observar a construção romantizada que esse artista desenvolveu da Festa de Iemanjá.
Na representação podemos ver as pessoas sobre toda a extensão da faixa de areia da praia,
dentro do mar e no calçamento da rua. Pequenas embarcações também aparecem
representadas. Mulheres, crianças e homens participam, fazem oferendas, batem palmas,
fazem gestos que parecem ser em saudação. Flores são entregues a deusa. Fogos estouram no
céu do Rio Vermelho. Tudo isso para agradecer as bênçãos alcançadas e para receber novas
graças de Iemanjá. Os fogos podem ser interpretados como o início do cortejo marítimo.

O artista destacou a devoção e a alegria das pessoas. Esse é um típico exemplo do foi
dito anteriormente. O artista representou os fiéis expressando sua fé e felicidade. Negro, fé e
felicidade estão fortemente associados nessa representação, assim como em muitas outras.

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Carybé elegeu momentos específicos para as suas representações. Ele elegeuos momentos de
felicidades da festa. No entanto ele também representou o trabalho duro dos negros na região
litorânea e nos mercados.

Imagem I

Carybé, Coleção Recôncavo, Festa de Yemanjá.

Imagem II

Carybé, Coleção Recôncavo, Festa de Yemanjá.

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Na imagem II, Carybé representou o memento em que as oferendas são preparadas


para serem entregues a Iemanjá por meio do cortejo marítimo. Além dos presentes que
aparecem na imagem, podemos observar um quadro situado no seu centro. O quadro tem a
representação de Iemanjá. A divindade do candomblé que a rainha do mar aparece na figura
de uma sereia.

A representação de Carybé demonstra a preparação ritual de pessoas que


compartilham uma determinada crença. O embrulho maior,que aparece na representação, é
um grande balaio. É comum no dia da festa deIemanjá adeptos e simpatizantes dessa crença
ou da deusa em específico levam balaios comoferendas para serem depositados no mar.
Muitas vezes essas oferendas são feitas emagradecimento ou são feitas com o objetivo de
alcançar graças por meio da benção dessadeusa.

A imagem em análise nos comunica um ato religioso e nostransmite disposições de


ânimo e sentimentos. Iemanjá representada no quadro que fazparte da composição do artista,
em muito se aproxima da deusa descrita por Tavares (TAVARES, 1961: 54-46) e Pedreira
(CARYBÉ: 151: s/p). Cabelos longos, contorno dos seus seios estãodestacados, pois
avantajados são características atribuídas a Iemanjá. Da cintura para cima possuem
características femininas e da cintura para baixopossuem uma calda. Aparece representada
como uma bela sereia. Representação típica dessa deusatão popular entre os pescadores,
marinheiros, trabalhadores dos portos e demais pessoas.
Carybé, José Pedreira e Odorico Tavares destacaram nas suas representações a
popularidade dessa deusa na Bahia. Eles destacaram, cada um a seu modo, a devoção, o
respeito, a admiração do povo baiano. Na construção de Tavares vimos que Iemanjá tem o
Recôncavo como parte integrante do seu vasto reino e que nada acontece com os seus
súditos/filhos sem a sua permissão. Carybé, por meio dos seus desenhos demonstrou como a
vida dos baianos estava diretamente ligada a essa divindade. Iemanjá é construída como a
rainha não somente do mar, mas como soberana de toda a Bahia.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Adriano Bittencourt. A cidade de Salvador, dos idos de 1959: os olhares de
Jorge Amado e Milton Santos, In:PINHEIRO, D.J.F, SILVA, M.A, (orgs). Visões imaginárias
da cidade da Bahia: diálogos entre a geografia e a literatura. Salvador: EDUFBA, 2004.

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ALMEIDA, Paulo Henrique. A economia de Salvador e a formação de suaRegião


Metropolitana. In:CARVALHO, I.M.M., PEREIRA, G.C. (Orgs). Como anda Salvador e sua
região metropolitana [online]. 2nd. edição. Salvador: EDUFBA, 2008.
BAHIA, Joana D’Arc do Valle. O Rio de Iemanja: uma cidade e seus rituais. Revista
Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, n. 30,Janeiro/Abril de 2018, 177-215.
BRITO, Cristóvão. A PETROBRAS e a gestão do território no Recôncavo Baiano [online].
Salvador: EDUFBA, 2008.
CARYBÉ, Pseud. Festa de Yemanjá: 27 desenhos de Carybé. Salvador: Livraria Turista,
1951. (Coleção Recôncavo, n.7).
CAMPOS, Marcelo Gustavo Lima. Carybé e a construção da brasilidade: arte e etnografia
para uma análise além das representações. Dissertação (Mestrado em Artes visuais).
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2001.
CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a história. Debate com José Leite Sérgio Lopes. Topoi, Rio
de Janeiro, mar. 2002.
MORAIS, José Mauro de. Petróleo em águas profundas: uma história tecnológica da
Petrobras na exploração e produção offshore. Brasília: Ipea: Petrobras, 2013. p. 45.
PIERRE, Verger. Retratos da Bahia. Salvador:Editora Corrupio, 2002.
SANSONE, Lívio. Um contraponto baiano de Açúcar e Petróleo: mercadorias globais,
identidades, globais? Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia,
realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil, 2008, p. 1-2.
TAVARES. Odorico. Bahia: imagens da terra e do povo. Editora Civilização Brasileira S.A.
Rio de Janeiro. Ilustração de Carybé, 3º edição, 1961.

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HISTÓRIA ORAL E MEMÓRIA: CLINTON THOMAS


E A IGREJA DE CRISTO EM URUCARÁ

CÉSAR AQUINO BEZERRA*


JÚLIO CLÁUDIO DA SILVA**

Em 1965, uma família de norte-americanos chega de barco em uma pequena cidade


amazonense. Os Thomas vinham como missionários para Urucará, estabelecer a primeira
igreja evangélica da cidade. Como foi a trajetória dessa família até chegar em Urucará? Por
que decidiram morar em Urucará? Como foram suas relações com os moradores da cidade,
com as autoridades, com outras igrejas? Quais memórias estão guardadas sobre a fundação da
Igreja de Cristo em Urucará? São questões como essas que norteiam essa pesquisa.
Este artigo baseia-se em entrevista realizada com Thomas Joel Thomas, nascido em 11
de janeiro de 1964, no estado do Colorado, Estados Unidos, o caçula dos três filhos de
Clinton e Phyllis Thomas. Também conhecido como “Tomé”, ele trabalhou em fábricas e
oficinas de mecânica nos dois países. Tomé residiu no Brasil até a década de 1990, e teve dois
filhos de seu primeiro casamento, Juliana e Tomé, além de quatro netos. Voltou a morar no
Brasil em 2015, e está casado com Alcilene França da Gama Thomas, nascida em 04 de abril
de 1965, e professora da rede estadual de ensino.47

História oral e memória


Procurando apreender tais questões, essa pesquisa enquadra-se no que denominamos
história do tempo presente. Por séculos, a historiografia, que celebrava o uso de fontes
escritas, rejeitou a possibilidade de escrever uma história do tempo presente, pois incluiria o
uso da memória, rejeitada por sua subjetividade, e clamava-se sempre pelo necessário
afastamento, possível apenas nos documentos escritos e fontes oficiais. Porém, conforme
Márcia Menendes Motta (2012), as discussões historiográficas do século XX admitiram novas
concepções a respeito da memória, e consequentemente do tempo presente. A história do
tempo presente nos permite a construção de “uma narrativa científica acerca do que vivemos,
do que estamos consagrando como memória e, por contraste, do que estamos esquecendo”
(MOTTA, 2012:34).
*
Acadêmico de Licenciatura em História da Universidade do Estado do Amazonas - Centro de Estudos
Superiores de Parintins. E-mail: cesaraquinobezerra@gmail.com
**
Professor adjunto do Colegiado de História na Universidade do Estado do Amazonas - Centro de Estudos
Superiores de Parintins. E-mail: julio30clps@gmail.com
47
Dados biográficos a partir da entrevista realizada com Thomas Joel Thomas, em 19 de agosto de 2017, em
Urucará/AM. Acervo pessoal/GEHA/CESP.
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Parte da oposição à história do tempo presente devia-se ao uso do que chamamos de


história oral. Segundo Verena Alberti, “a História oral permite o registro de testemunhos e o
acesso a ‘histórias dentro da história’ e, dessa forma, amplia as possibilidades de interpretação
do passado” (2014:155). Mas, o que é História Oral?
A História oral é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes para o
estudo da história contemporânea surgida em meados do século XX, após a
invenção do gravador a fita. Ela consiste na realização de entrevistas gravadas com
indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do
passado e do presente. Tais entrevistas são produzidas no contexto de projetos de
pesquisa, que determinam quantas e quais pessoas entrevistar, o que e como
perguntar, bem como que destino será dado ao material produzido. (ALBERTI,
2014:155)

Sem esquecer que a História oral “responde apenas a determinadas questões e não é
solução para todos os problemas” (ALBERTI, 2014:165), consideramos que esta metodologia
permite estudar “as formas como pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram experiências,
incluindo situações de aprendizado e decisões estratégicas” (p. 165). Estudar essas
experiências “torna possível questionar interpretações generalizantes de determinados
acontecimentos e conjunturas” (p. 165). A entrevista pode ampliar a percepção histórica, e
permitir a “mudança de perspectiva”. Entretanto, “entre gravar as entrevistas e delas tirar
conclusões consistentes para os campos de investigação escolhidos vai uma grande distância”,
pois “não é fácil trabalhar com a chamada fonte oral” (ALBERTI, 2014:168).
A gravação de entrevistas é uma especificidade marcante da história oral: ela produz
sua própria fonte. A “entrevista de História oral é, ao mesmo tempo, um relato de ações
passadas e um resíduo de ações desencadeadas na própria entrevista” (ALBERTI, 2014:169).
Na História oral, há no mínimo um entrevistado e um entrevistador – dois autores. Assim, a
entrevista nasce da interação entre entrevistado e entrevistador, e “tanto um como outro têm
determinadas ideias sobre seu interlocutor e tentam desencadear determinadas ações” (p. 169).
Além disso, a entrevista de História oral também é fruto da ação de interpretar o passado.
Nisso, chama-se “a atenção para a possibilidade de ela documentar as ações de constituição de
memórias - as ações que tanto o entrevistado quanto o entrevistador pretendem desencadear
ao construir o passado de uma forma e não de outra” (p. 169). Apenas pela narração há a
transmissão do acontecimento que o entrevistado viveu, ou seja, “ele se constitui (no sentido
de tornar-se algo) no momento mesmo da entrevista” (p. 171). É no contar das experiências
que “o entrevistado transforma o que foi vivenciado em linguagem, selecionando e
organizando os acontecimentos de acordo com determinado sentido” (p. 171).
Para Alessandro Portelli, “a narração oral da história só toma forma em um encontro
97
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Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

pessoal causado pela pesquisa de campo” (2010:19). É apenas no diálogo entre duas pessoas,
a fonte e o historiador, o entrevistado e o entrevistador, que aquilo que está guardado na
memória será relembrado, organizado e narrado. Por isso, o entrevistador deve provocar as
memórias e colaborar com sua criação: “por meio da sua presença, das suas perguntas, das
suas reações” (p. 20). Com os estímulos do entrevistador, o narrador pode ser levado a
explorar setores e aspectos da sua experiência, antes mantidos longe quando relata suas
histórias aos seus conhecidos.
Não sendo a narração um fim em si mesmo, já que visa a produção de um documento,
o espaço da entrevista institui o que Portelli chama de “bipolaridade dialógica” (2010:20),
pois dois sujeitos estão face a face, com a mediação de um microfone. Assim, “os dois se
olham” (p. 20), o pesquisador olha para sua fonte, o narrador olha para seu entrevistador, e
portanto, por suas percepções, modela seu discurso, durante a “troca de olhares”. Dessa
forma, considera que “a história oral é um gênero multivocal, resultado do trabalho comum de
uma pluralidade de autores em diálogo” (p. 20).
Mas, Motta (2012) alerta ao equívoco de considerar memória e história como
sinônimas; assim, persiste a necessidade de o historiador fazer uma reconstrução crítica e não
apenas restaurar memórias, compreendendo que estas tanto são fontes históricas quanto
fenômenos históricos. Da mesma forma, Alberti reitera que não podemos considerar o relato
como a própria “História”, ou seja, quando “a entrevista, em vez de fonte para o estudo do
passado e do presente, torna-se a revelação do real” (2014:158). É preciso entender que a
entrevista é mais uma fonte que precisa ser interpretada e analisada.

A Igreja de Cristo
A Igreja de Cristo nasceu nos Estados Unidos, no início do século XIX, a partir de
movimentos que buscavam um retorno ao cristianismo primitivo, unidade dos cristãos e
valorização da Bíblia. Esses movimentos, tendo como líderes principais os pastores Barton
Stone (1772-1844), Thomas Campbell (1763-1851) e Alexander Campbell (1788-1866),
ficaram conhecidos como Movimento de Restauração ou Movimento Stone-Campbell, apesar
de se nomearem apenas como Cristãos ou Discípulos de Cristo. Tendo objetivos comuns, em
1832, os movimentos liderados por Stone e Campbell se uniram, apesar de suas diversidades
internas serem permitidas, seguindo um de seus lemas: “No essencial, unidade; nas opiniões,
liberdade; em todas as coisas, o amor”. As congregações do movimento, conhecidas como
Igrejas de Cristo ou Igrejas Cristãs, se expandiram pelos Estados Unidos e enviaram

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missionários para outros países.48


Segundo o site Movimento de Restauração, mantido por membros da Igreja de Cristo
no Brasil, a permissão de teologia e práticas plurais acarretou na divisão dos Discípulos em
três vertentes. Em 1906, a primeira divisão aconteceu com o grupo das Igrejas de Cristo (A
Capella), chamado de ramo radical. A segunda separação aconteceu entre a década de 1920 e
1968, por um grupo mais liberal e ecumênico, formando a Igreja Cristã (Discípulos de
Cristo). Os membros que não seguiram a nova denominação formaram a comunhão da Igreja
Cristã/Igreja de Cristo (Discípulos independentes). É nesse grupo que nossos estudos irão se
concentrar. Nas estimativas oficiais da igreja, os independentes foram o segundo grupo
religioso que mais cresceu nos EUA no fim do século XX, somando mais de três milhões de
membros na América do Norte.49
No final da década de 1920, as igrejas A Capella enviam três missionários para o
Brasil. Porém, devido às dificuldades, os trabalhos não tiveram sucesso e os missionários se
uniram à nascente Igreja Assembleia de Deus.50 Depois, os Discípulos independentes enviam
o casal David e Ruth Sanders, que chegam ao Brasil em 25 de março de 1948, com destino à
futura capital. Como Brasília ainda estava em construção, os Sanders decidem ficar em
Goiânia-GO, onde a primeira igreja foi instalada, em 7 de setembro de 1948. Vários
missionários norte-americanos se juntaram aos Sanders, e igrejas são estabelecidas no Pará,
Amazonas, Amapá, Tocantins e no Distrito Federal. Líderes nacionais começam a surgir
ainda no fim da primeira década, mas apenas a terceira geração de líderes brasileiros assume a
direção da Igreja de Cristo no Brasil. A igreja brasileira também foi alcançada pelo
Pentecostalismo, mas, sendo composta de igrejas independentes umas das outras, não houve
divisão entre as igrejas que aceitaram e as que não aceitaram o Pentecostalismo.51 Conforme
estimativa de líderes, no site Movimento de Restauração, a Igreja de Cristo no Brasil possui
mais de seiscentas igrejas52, principalmente em Goiás e Distrito Federal, mas também em

48
AGOSTINHO JÚNIOR, Pedro. Introdução à História do Movimento de Restauração de Stone e Campbell.
Movimento de Restauração. Disponível em <http://movimentoderestauracao.com/2008/05/26/introducao-a-
historia-do-movimento-de-restauracao-de-stone-e-campbell/>. Acesso em 20 de agosto de 2017.
49
AGOSTINHO JÚNIOR, Pedro. Introdução à História do Movimento de Restauração de Stone e Campbell.
Movimento de Restauração. Disponível em <http://movimentoderestauracao.com/2008/05/26/introducao-a-
historia-do-movimento-de-restauracao-de-stone-e-campbell/>. Acesso em 20 de agosto de 2017.
50
AGOSTINHO JÚNIOR, Pedro. Ibidem.
51
FIFE, Jefferson Davis. As Igrejas de Cristo/Cristãs e o Movimento de Restauração. Movimento de
Restauração. Disponível em <http://movimentoderestauracao.com/2009/07/29/as-igrejas-de-cristo-cristas-e-o-
movimento-de-restauracao/>. Acesso em 20 de agosto de 2017.
52
AGOSTINHO JÚNIOR, Pedro. Introdução à História do Movimento de Restauração de Stone e Campbell.
Movimento de Restauração. Disponível em <http://movimentoderestauracao.com/2008/05/26/introducao-a-
historia-do-movimento-de-restauracao-de-stone-e-campbell/>. Acesso em 20 de agosto de 2017.
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outros estados, além de projetos missionários, formação de pastores, assistência social, e


outras frentes de atuação.53

Clinton Thomas e a Igreja de Cristo em Urucará


Dentro da primeira onda de missionários da Igreja de Cristo no Brasil54, estavam
Clinton e Phyllis Thomas. Clinton Benjamin Thomas nasceu em 28 de setembro de 1930, em
Williamsport, no estado da Pensilvânia, Estados Unidos.55 Filho de Benjamin e Lucinda
Thomas, formou-se no Johnson Bible College56 em 1955. Phyllis Eleanor Thomas, nasceu em
26 de dezembro de 1934, também em Williamsport, Pensilvânia. “Desde criança, iam na
mesma igreja”, e se casaram no final da década de 1940. Depois, “foram juntos para o
colégio, como casal”, mas quanto à Phyllis, “faltou um ano para terminar”. O casal Thomas
teve três filhos: Timothy Benjamin Thomas, Theodor Andrew Thomas e Thomas Joel
Thomas. Respectivamente, nasceram em “56 o Timóteo, Teodoro em 59 e eu sou de 64”.57
Questionado sobre porquê seus pais foram enviados como missionários para o Norte
do Brasil, Tomé narra: “Meu pai era um mecânico de aviação que a missão tinha um avião. Só
que quando ele chegou aqui não precisaram mais dele”. “Ele veio em 54, mas ele voltou né”,
depois disso, “ele voltou para o Estados Unidos, vendeu as coisas e voltou em 56”. Em outra
fala, reitera que “na primeira vez ele voltou, vendeu as coisas que tinha lá e... veio”. O filho
caçula afirma que Pastor Clinton “gostou do Brasil e quis voltar”.58
Os Thomas atuaram primeiramente nas cidades de Belém-PA e Macapá-AP.59
Moraram em Belém, “na faixa de 2 anos”, onde nasce o primeiro filho: “ela veio grávida lá
dos Estados Unidos”. Como “os missionários queriam que ele trabalhasse no outro lado do
rio, em Macapá”, Tomé relata que a família Thomas mudou-se para o Amapá: “lá onde o
segundo irmão nasceu em Macapá, tinha casa, igreja lá”. Por quanto tempo? “Parece que 10
53
FIFE, Jefferson Davis. As Igrejas de Cristo/Cristãs e o Movimento de Restauração. Movimento de
Restauração. Disponível em <http://movimentoderestauracao.com/2009/07/29/as-igrejas-de-cristo-cristas-e-o-
movimento-de-restauracao/>. Acesso em 20 de agosto de 2017.
54
O Mensageiro das Igrejas de Cristo. Jan/Fev. 2007, nº 126. Disponível em
<http://movimentoderestauracao.com/2007/01/01/o-mensageiro-jan-fev-2007-n-126-historia-eles-tambem-
fazem-parte/>. Acesso em 13 de setembro de 2017.
55
BRAZIL CHRISTIAN WIKI. Clinton and Phyllis Thomas. Disponível em
<http://en.brazilchristianwiki.org/wiki/Clinton_and_Phyllis_Thomas>. Acesso em 15 de agosto de 2017.
56
Fundado por Ashley e Emma Johnson, o seminário nasceu em 1893 como The School of the Evangelists, em
Knoxville, sendo renomeado como Johnson Bible College em 1909. Em 2011, tornou-se Johnson University.
Disponível em <http://history.johnsonu.edu/index.html>. Acesso em 10 de maio de 2018.
57
Entrevista realizada com Thomas Joel Thomas, em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
58
Ibidem.
59
RODRIGUES, Gezo. Movimento de Restauração: A Igreja de Cristo de Volta às Origens. Disponível em
<http://movimentoderestauracao.com/2014/12/18/movimento-de-restauracao-a-igreja-de-cristo-de-volta-as-
origens/>. Acesso em 13 de setembro de 2017.
100
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anos nessa área, Belém e Macapá”.60


Sobre as relações dos missionários Thomas com a Igreja de Cristo norte-americana,
Tomé descreve o apoio das igrejas nos Estados Unidos: “eu acho que cada missionário tem
uma base do estado que eles vêm da Igreja... ajuda no suporte financeiro...” Assim sendo,
Pastor Clinton recebia recursos da igreja da Pensilvânia. Ainda que não saiba sobre os outros
missionários no Brasil, acredita “que cada qual tem o seu programa, né, de ajuda
financeira”.61
Depois de Macapá, eles voltaram aos Estados Unidos, conforme Tomé: “59 a 60 ele
voltou, passou uns anos lá quando eu nasci”. Durante os anos nos Estados Unidos, Clinton
trabalhou “com torno, ele também tinha uma loja de armas no Colorado”. Permaneceu “uns 3
anos naquela área, mas aí pediram pra ele voltar pra missão”. Foi nessa ocasião “que ele veio
pra essa área de Urucará”. O primeiro destino novamente foi Belém: “porque o voo chegou
em Belém, aí pega a chatinha62 até Urucará”. Até aquele momento, Clinton “só tinha vindo de
Belém até Manaus”. A viagem até Urucará se deu “subindo parece que a chatinha nos anos
60, 65 né, chatinha, que é de lenha, naquele tempo, ia parando e demorava bastante (...) a
chatinha demorava meses pra chegar...” De acordo com Tomé, “era a primeira vez” que a
família viajava naquela direção.63
Apresentamos então nosso espaço de pesquisa: a cidade de Urucará, no estado do
Amazonas, pertence à Mesorregião do Centro Amazonense e Microrregião de Parintins, com
área de 27.903,534 km². O nome Urucará deriva da junção de duas palavras indígenas: “uru”,
cesto de palha, e “cará”, inhame. A cidade originou-se do povoado de Santana da Capela,
fundada em 1814, por Crispim Lobo de Macedo. A freguesia de Nossa Senhora Santana de
Capela foi criada em 3 de maio de 1880, sendo elevada à vila de Nossa Senhora Santana de
Urucará por lei provincial em 12 de maio de 1887, desmembrada do município de Silves. Em
1892, uma lei altera o nome do município de Senhora Santana de Urucará para simplesmente
Urucará. Um ato estadual em 1930 suprime o município e anexa seu território ao de
Itacoatiara, sendo restabelecido em 1935. Em 31 de março de 1938, a sede do município
recebe foros de cidade, e a comarca de Urucará é criada em 1952. Em 1981, uma emenda
constitucional desmembra o território para a criação de São Sebastião de Uatumã.64 Segundo

60
Entrevista realizada com Thomas Joel Thomas, em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
61
Ibidem.
62
Meio de transporte fluvial.
63
Entrevista realizada com Thomas Joel Thomas, em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
64
CÂMARA MUNICIPAL DE URUCARÁ. Disponível em <http://www.ale.am.gov.br/urucara/o-
municipio/historia/>. Acesso em 13 de setembro de 2017.
101
Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
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o IBGE, a população de Urucará em 2010 era de 17.094 habitantes. Destes, 4.052 se


declaravam como evangélicos.65
Por que Clinton Thomas foi para Urucará? Tomé Thomas relata que “ele queria uma
área nova onde não tinha igreja (...) queriam achar cidade que não tinha igreja cristã. Em
Urucará foi uma”. Poderia ter sido outra: “tinha cinco assim (...) então, aqui era uma, então
ele ficou”. Não havia nada de específico em Urucará: “chegou aqui e resolveu ficar”.66
Tomé afirma que Clinton não conhecia ninguém da cidade, mas várias pessoas
estavam observando sua chegada, já que “o pessoal ficava lá na frente da cidade, quando a
embarcação chegava... pra ver quem chegava, quem ia embora (...) todos estavam esperando
ele lá, quando ele subiu...” Por quê? “Ele era branco né, ninguém sabia o que ele tava
procurando. Aí o seu Arthur Libório recebeu ele... disse que tava esperando um homem como
ele.”67
O morador Arthur Libório estava esperando não o pastor Clinton especificamente.
“Porque o pai dele disse que um dia vinha um homem branco, que vinha trazer um
evangelho... e ele achou que aquele era o momento.” Arthur ouvira isso de seu pai em
Manaus. Tomé não conhece bem essa história: “eu não sei, eu só sei que o pai dele disse que
um dia viria um homem com ensinamentos da escritura e pra abraçar a fé”. Esse
acontecimento torna-se importante na trajetória de Clinton Thomas, e “quando o papai
visitava as igrejas ele contava as histórias”, sendo esta uma das mais importantes ao legitimar
sua ação religiosa no interior do Amazonas.68
Segundo Tomé Thomas, seu pai “comprou uma casa próximo do seu Arthur, depois
vendeu e comprou onde é a casa principal, que era uma usina de arroz”. Quanto ao trabalho
missionário, eles começaram logo: “Foram começando sim!” Urucará, “aquele tempo não
tinha eletricidade e nem água né”. As primeiras reuniões aconteciam na casa: “primeiro a
igreja teve que ser em casa porque não tinha estabelecimento...”69
Tomé não soube dizer sobre possíveis reações negativas dos moradores após a
chegada da família Thomas, mas narra sobre um caso emblemático daqueles primeiros dias:
“o único problema eu acho que foi quando ele foi lavar uma rede de uma pessoa que era
doente de lepra né”. Se a cidade não tinha água encanada, pastor Clinton foi lavar a rede no

65
IBGE. Urucará. Disponível em <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/am/urucara/panorama>. Acesso em 17 de
setembro de 2017.
66
Entrevista realizada com Thomas Joel Thomas, em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
67
Entrevista realizada com Thomas Joel Thomas, em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
68
Ibidem.
69
Ibidem.
102
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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
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rio em frente à cidade, e “as pessoas tomavam banho no rio e não gostaram daquilo.”70

Foi logo que chegou. Que a filha queria madeira pra fazer um caixão, e ele queria
saber quem faleceu, e... a filha disse que ele não faleceu, mas ninguém entrava na
casa pra ajudar ele, porque ele tinha doença. (...) Aí ele foi e ajudou o homem, e
ainda recuperou... ele fez tratamento em Parintins e morou diversos anos depois
aqui. (...) Tinha que limpar ele né, porque ninguém entrava na casa... e naquele
tempo todo mundo tinha medo, eles davam comida por um buraco na porta, num
caniço. E ele caiu da rede e pensaram que ele ia morrer lá. (...) Aí já iam preparar o
caixão pra ele. [risos]71

Pastor Clinton foi a primeira pessoa que se dispôs a ajudar esse homem, já que
“naquele tempo era desconhecido os efeitos da doença né”. Tomé identifica o homem como
Paulo Serrão. Clinton o ajudou a ir para Parintins, “porque era um local que tinha um
tratamento, o outro era em Manaus”. Após essa ajuda do pastor norte-americano a Paulo
Beltrão, os moradores, “logo que viram a recuperação, acho que começaram a confiar no
trabalho do papai né, ajudando as pessoas...” Diversos casos são lembrados por Tomé, em que
Pastor Clinton ajudava pessoas doentes e feridas, “é porque não tinha... não tinha outro para
ajudar né”. Seus conhecimentos médicos vieram de sua mãe, “a mãe dele era enfermeira”, e
“ele tinha os livros, estudava antes de vim... era um dom de Deus que ele tinha”. Tomé relata
que “qualquer coisa as pessoas corriam com ele naquela época”.72
Após a chegada, pastor Clinton “comprou a primeira, e a segunda residência ele foi
comprando”, com a ajuda da igreja norte-americana. “Ele tinha uma parte em dinheiro que ele
trouxe... parece que a usina de arroz era... dois mil réis, naquele tempo... onde é a casa agora.”
Tomé Thomas não sabe quando foi construído o templo: “eu acho que logo fizeram... o
estabelecimento da igreja. Que desde a minha memória de pequeno já tinha um local né”. A
primeira igreja “era de madeira. Só tinha uma parede. Os bancos de madeira”, no mesmo
endereço, “é a mesma que a atual agora”, “na rua da frente”. O próprio pastor “terminou o
serviço”; “em 80 mais ou menos que fizeram uma de alvenaria”. Os recursos vieram dos
Estados Unidos: “E veio dinheiro de fora para ajudar a missão (...) pessoas independentes e da
igreja pra ajudar a fazer a construção de alvenaria (...) a missão, e os grupos que ajudaram ele
que mandavam ajuda financeira”.73
O terreno da usina ficava próximo à Igreja Matriz de Santa Ana, “ela fazia fundo com
a igreja”. O prédio da Igreja de Cristo foi construído no mesmo terreno, “no mesmo

70
Ibidem.
71
Ibidem.
72
Entrevista realizada com Thomas Joel Thomas, em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
73
Ibidem.
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quarteirão”. Dessa forma, uma característica singular da primeira igreja evangélica de Urucará
é sua proximidade com a Igreja Católica: “porque a igreja já fica na praça, é bem próximo”.
Apesar da proximidade, Tomé Thomas afirma que não haviam problemas entre os fiéis, se
encontrando na direção de suas reuniões religiosas: “Não! Não! Não! Nessa parte... só barulho
de festa quando tinha alto falante...” Como durante as festividades na Igreja Católica era
usado um alto falante, isso atrapalhava os cultos evangélicos, “porque o programa de um era
diferente que do outro né”.74
Tomé assegura que essa localização não teve algum motivo especial, mas
simplesmente porque “a cidade era pequena naquele tempo, eu acho que era um local que
tinha pra comprar né”. A população de Urucará “era menos de cinco mil eu acho”. Sua renda
era “a pescaria né, comum na área, e a prefeitura, até hoje, é a renda principal”.75
A chegada dos missionários também teria efeito sobre a atuação católica em Urucará.
Até a década de 1960, de acordo com Tomé, “o padre só vinha uma vez por ano, durante a
festa (...) Não sei qual era a festa naquele tempo, eu acho que era Santana”. Porém, “depois
que ele chegou, aí mandaram o padre... pra ficar aqui, permanente”. Apesar das animosidades
possíveis na relação entre as duas igrejas cristãs, como verificado em outras regiões76, havia
amizade entre os religiosos, “porque a maioria era canadense, então eles conversavam em
inglês”, e inclusive “os padres vinham visitar ele”. Os padres “norte-americanos sempre se
deram bem”, entretanto, com a mudança dos sacerdotes, “os mexicanos não se deram tanto
com o meu pai”. Tomé não viu problemas entre as igrejas por divergências: “Eu acho que... os
padres faziam os trabalhos dele e papai fazia o trabalho cristão, que era as Escrituras, a base
da Igreja Cristã. Então não era motivo de encrenca.”. Entretanto, sem entrar em detalhes,
Tomé atesta que haviam diferenças: “Sempre tem, a diferença de quem está certo ou errado
(...) Mas se você precisa ajuda de alguém, você não vai brigar com aquela pessoa”. Dessa
forma, pastor Clinton “era aceito... porque ele ajudava em outras áreas, além da igreja”. Seu
trabalho alcançava “a comunidade em geral, tanto faz católico ou da Igreja de Cristo”. Com
isso, reitera o papel fundamental do missionário na cidade: “O papai era a única pessoa,
naquele tempo, que podia correr pra ele”.77
Tomé explica a ajuda financeira que a família recebia. “Uma pessoa encarregada” nos

74
Ibidem.
75
Ibidem.
76
Ver por exemplo: RODRIGUES, Cesar Augusto Viana. Conflitos religiosos em Parintins na década de 50.
Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura Plena em História. Universidade do Estado do Amazonas,
Parintins, 2008.
77
Entrevista realizada com Thomas Joel Thomas, em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
104
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Estados Unidos era responsável por receber as contribuições: “podia mandar pra aquela
pessoa quando precisasse né. Não era por mês ou por semana, era quando tinha alguma coisa,
ia para aquela pessoa responsável”. Pastor Clinton tinha acesso a esse dinheiro através do
banco: “eles mantinham a conta bancária no Estados Unidos... e quando o papai precisava ele
podia pegar o dinheiro”. Ele não recebia ajuda financeira do Brasil, “aqui no Brasil não tinha
nada não”, nem mesmo de outras congregações brasileiras da Igreja de Cristo, pois Tomé
menciona que “naquele tempo, não tinha igreja na área né”.78
As relações com as autoridades da cidade de Urucará teriam sido problemáticas em
algumas ocasiões, recorda Tomé Thomas: “Porque é... política você tem que estar de um lado
ou de outro, se você não está... de acordo com o prefeito, você se torna um contra né,
inimigo... e já que ele não participava na política, sempre perseguiam ele.”. Os prefeitos,
“alguns se davam com ele, e outros não”. Também policiais, “tinha alguns que não gostavam
dele”, já que o pastor Clinton procurava manter-se livre das questões políticas da cidade.
“Porque ele era independente do... do que o prefeito queria né”. Clinton Thomas “não gostava
de som alto e ele reclamava sempre”, e como os habitantes “diziam que pagavam direito,
então era um motivo de encrenca (...) era pelo alto falante e barulho, naquele tempo, que
perseguiam ele”. Como era de conhecimento público onde aconteciam as reuniões
evangélicas, “eles faziam barulho né, sabendo que ele tinha o culto”.79
A atuação médica de Clinton Thomas dispunha da contribuição de um médico
brasileiro: “só tinha o doutor João Lúcio que dava amostra grátis pra ele, medicamentos, em
Manaus”. João Lúcio era amigo do pastor Clinton, e fornecia “medicamentos pro papai trazer,
distribuir aqui pro pessoal”. É provável que esse seja o médico que nomeia um hospital na
capital amazonense: “eu acho que o Hospital Doutor João Lúcio é o nome dele”. Pastor
Clinton “ia em Manaus, numa base de uma vez por mês, fazer compras e ia visitar o doutor
João, sempre tinha um estoque de remédio para mandar pra ele”.80
As consultas eram realizadas “de manhã até meio-dia”. Havia “fila de pessoas”, que
“ocupava bastante tempo” do pastor Clinton. O local das consultas era sua residência: “ele
tinha um consultório em casa, as pessoas vinham... com muitos, muitos problemas né”. Além
disso, “pessoas que não podiam chegar em casa ele ia visitar na casa deles”. Apesar de sua
ajuda, em casos mais sérios, ele pedia que o doente fosse para Itacoatiara ou Manaus: “alguma
coisa que não tinha tratamento aqui, tinha que... aí nesse ponto as famílias, a prefeitura,

78
Ibidem.
79
Entrevista realizada com Thomas Joel Thomas, em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
80
Ibidem.
105
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pediam uma ajuda, uma passagem, se não tivesse”. Não havia médicos na cidade, “só depois
né, dos anos 80 que veio aparecendo os médicos”. Segundo Tomé, as autoridades da cidade
apoiavam o trabalho medicinal do pastor Thomas, “porque todo mundo precisava dele. Se ele
doava o tempo dele ninguém ia empatar ele né (...) tanto faz prefeito, policial, todo mundo
confiava nele, no trabalho dele”.81
Tomé Thomas revela que seu pai “nunca cobrou medicamento de ninguém... nem
ajuda, só na área de mecânica, porque precisava o material e ele teria que pagar pra ajudar
então ele cobrava, mas, era pouco”. Apresentando a atuação mecânica de seu pai, Tomé
descreve que “ele tinha torno, ele fazia de tudo, até peças pra máquina elétrica”. Assim, ele
cuidava dos veículos, “alguns né, que não tinha muitos naquele tempo”. Enquanto as manhãs
eram para o atendimento médico, “pela tarde ele trabalhava na área mecânica (...) assim,
ajudando o povo”.82
Ocupando suas manhãs e tardes, como Clinton conciliava suas atividades com o
serviço pastoral? Tomé Thomas afirma que os cultos eram “domingo de manhã, domingo à
noite, quarta-feira, tinha culto de oração”, “então ele tinha bastante tempo pra ele ficar...”
Também “ajudava quando as pessoas iam visitá-lo né, se, tinham alguma pergunta espiritual,
podiam conversar com ele”. Tomé recorda que “até em 1980 era bem assistido”, já que “antes
de televisão, era bem assistido, porque não tinha motivo de reunir as pessoas né”.83
E em que áreas a Sra. Phyllis Thomas atuava? Tomé relata que sua mãe “tinha hobbies
né, de fazer costura, com grupos de mulheres, é, tecido de metro e meio de tapete, assim, pra
conversar e ter algum objeto pra fazer as coisas né”. Também dava aulas “na escola pública e
particular”. Ela ensinava “inglês particular”, e trabalhou na Escola Estadual Ramalho Júnior.
Clinton substituiu Phyllis algumas vezes nas aulas de inglês: “Se ela... é, viajasse ele
preenchia assim, uma noite, que ela não podia ir, mesmo que ele não era um professor, mas
ele... acho que tem pessoas que tem lembrança dele...” E sua atuação na igreja? Tomé fica
indeciso um momento e diz que “ela tinha as partes né, que ela trabalhava mais com as
senhoras, e ele com os homens”.84
A Igreja de Cristo foi a primeira igreja evangélica de Urucará, mas “nos anos 90,
chegou outras denominações”. Como eram as relações entre as diferentes igrejas evangélicas?
“Sempre tem a crítica de prática. Cada um tem o seu método, não é? De igreja com mais

81
Ibidem.
82
Ibidem.
83
Entrevista realizada com Thomas Joel Thomas, em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
84
Ibidem.
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número, sempre se acha certa porque o número é maior...” Tomé também relata sobre as
mudanças dos fiéis: “é porque os outros quando vem, eles já vem atrás de evangélicos que
tem a base... é mais comum tirar alguém da igreja que já é evangélico para ajudar, do que
achar uma pessoa nova, né?”.85
Tomé credita às novas igrejas a diminuição da frequência na Igreja de Cristo: “Vir os
outros movimentos, e as pessoas começaram a sair”. Urucará “também cresceu, então as
pessoas ficavam mais distantes da igreja, e começaram a frequentar a mais próxima de sua
casa”. Ainda que “sempre vai saindo, e vem entrando novos, né, mas... Outros era estudo em
Manaus, ou trabalho em Manaus”, pois “a imigração pra Manaus foi grande”. Com tudo isso,
os membros foram diminuindo. Entretanto, ainda que muitos membros tenham saído, “tem
muitas pessoas que reconhecem a base de crescimento que papai espalhou, na infância deles,
mesmo que eles, hoje pratiquem com outras igrejas, né...”86
Depois de trinta anos em Urucará, é à sua mãe que Tomé Thomas atribui a saída dos
missionários da cidade:
Sim, porque a mamãe queria voltar. Acho que saudade, né, de família. Tantos anos
fora... e motivo de escola foi motivo que ela queria terminar... que ela não terminou
quando ela veio em 56, ela não tinha terminado ainda a escola. Então ela sempre
cobrava do papai para voltar um dia e terminar...87

O casal Thomas retornou aos Estados Unidos na segunda metade da década de 1990,
aposentando-se de suas ações missionárias. Visitavam Urucará algumas vezes nos anos
seguintes, e Pastor Clinton vem a falecer em 21 de abril de 2007, no Baptist Hospital em
Knoxville, Tennessee.88

Considerações finais
Ao privilegiar aspectos da história da região do Baixo Amazonas, buscamos suprir
lacunas na historiografia amazonense, tendo em visto a inexistência de análises acadêmicas
sobre a trajetória de Clinton Thomas e a Igreja de Cristo em Urucará. A nível nacional, não
encontramos pesquisas científicas sobre a Igreja de Cristo no Brasil. Procuramos desbravar
esse campo, analisando as redes de relações de Clinton Thomas com Urucará, com a Igreja de
Cristo no Brasil e com a Igreja de Cristo nos Estados Unidos. Além de seu relacionamento
com outras pessoas no Brasil e com outros estrangeiros, que viviam ou visitavam Urucará e
85
Ibidem.
86
Ibidem.
87
Entrevista realizada com Thomas Joel Thomas, em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
88
BRAZIL CHRISTIAN WIKI. Clinton and Phyllis Thomas. Disponível em
<http://en.brazilchristianwiki.org/wiki/Clinton_and_Phyllis_Thomas>. Acesso em 15 de agosto de 2017.
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outras cidades do Norte brasileiro.


Diversas questões ficam em aberto, apontando as possibilidades da pesquisa. Através
da metodologia da História Oral, poderemos acessar as “histórias dentro da história”
(ALBERTI, 2014:155). A trajetória de Clinton Thomas e Phyllis Thomas, e seus três filhos,
nos dois países, suas relações, as ações missionárias em três estados da Região Norte do
Brasil, sua atuação médica, educacional e mecânica, a influência na sociedade urucaraense, a
permanência da igreja após sua saída, e outras problemáticas, poderão ser conhecidas através
das narrativas de Phyllis Thomas e seus filhos, de primeiros frequentadores da Igreja de Cristo
e de outros moradores de Urucará, além de permitir a busca de colaboradores em outros
estados e nos Estados Unidos.

Referências Bibliográficas
ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes
históricas. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2014, p. 155-202.
MOTTA, Márcia Maria Menendes. História, memória e tempo presente. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier,
2012, p. 21-36.
PORTELLI, Alessandro. Sempre existe uma barreira: A arte multivocal da história oral. In:
_______. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010, p. 19-35.

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A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE HISTÓRIA PARA A CONSCIÊNCIA


HISTÓRICA E POLÍTICA.

DAIANE CRISTINA SOUZA DE SOUZA*

Introdução
A pesquisa analisa o movimento que foi organizado pelos professores das Escolas
Estaduais do Município de Parintins durante a greve dos funcionários públicos da área da
educação no ano de 2018. Vivenciamos essa experiência durante o Estágio Supervisionado II
e foi muito importante, pois acendeu-nos a reflexão sobre a importância do professor na
consciência histórica e na transformação da realidade. Este movimento exigia dentre outros
direitos o reajuste do piso salarial, por isso a ação foi denominada como greve dos professores
o que culminou na paralisação das aulas da rede pública de ensino estadual. Ganhando força
posteriormente, com o apoio de outros servidores como os merendeiros, porteiros e
professores aposentados. Em busca dos seus direitos, os servidores envolvidos chegaram a
ficar acampados na Praça de São Benedito, espaço cedido pela Igreja Católica, que também
apoiava a luta do movimento grevista. Reconstituiremos esse importante momento por meio
das entrevistas que fizemos com os envolvidos e que foram devidamente registradas e
analisadas à luz das questões trazidas pela História Oral. Esta metodologia estabelece e
norteia os procedimentos desta pesquisa. Essa greve foi muito importante para fortalecer os
laços entre as escolas estaduais e mostrar a união dos professores, que depois de muita luta
conseguiram algumas conquistas como o reajuste salarial de 27%. Durante o acampamento na
Praça São Benedito, os professores decidiram ocupar, também, o prédio da representação da
SEDUC no município. O acampamento foi realizado por professores e servidores e contou
com a participação em massa de alunos e de seus responsáveis.
O movimento que nasceu da base e no início ocorreu à revelia do Sindicato da
Categoria fez surgir novas lideranças como o professor de história Rooney Vasconcelos e a
professores de língua portuguesa Keila Regina Nogueira. A organização do acampamento era
feita por todos os professores da rede estadual, que revezavam entre os horários diurno e
noturno. Também alternavam- se na limpeza do espaço que ocupavam e na produção de
alimentação para o grupo. Além disso, promoviam ações como vendas de guloseimas para
custear os gastos do acampamento.

*
Esta pesquisa é fruto da experiência vivida na prática do Estágio Supervisionado em História I na graduação de
História da UEA/CESP, realizada no primeiro semestre de 2018, sob a supervisão da profª Drª Mônica Xavier.
Graduanda do 8º período do curso de Licenciatura em História da Universidade do Estado do Amazonas
(CESP/UEA). Contato: daisouzacris@gmail.com
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“ESTAMOS UNIDOS, DISPOSTOS A LUTAR POR NOSSOS DIREITOS”.

Assim como outros setores, a educação sempre foi um dos problemas mais atuais
dentro do cenário brasileiro. Também é verdade que a valorização e dignidade dos nossos
mestres, nunca foi de fato reconhecida pelos nossos representantes governamentais, o que é
lamentável, uma vez que são eles que trabalham para formar todas as outras profissões e
muitas vezes por sinal, em condições precárias.
Dentro desta perspectiva a qual estão esses sujeitos, é notório que os docentes e
funcionários da educação, não suportariam muito mais tempo, tanto descaso e desvalorização
de seu trabalho.
Foi justamente o que aconteceu com os Servidores Públicos do Amazonas, cansados
de tantas promessas e esperar por reajustes e outros benefícios, decidiram em assembleia por
paralisarem as aulas nas escolas estaduais. Contando apenas com o apoio dos pais e de alunos
e também com uma boa parcela da comunidade parintinense, que aprovavam as
manifestações. Os professores começaram as articulações, promovendo assembleias, indo
para as ruas reivindicando seus direitos e promovendo vendas para custear os gastos da greve,
já que não contavam com nenhuma ajuda financeira de nenhuma entidade. Organizados e
amparados pela lei, uma vez que a greve é um direito constitucional foram posicionando- se
de maneira critica e exigindo melhorias sociais, políticas e civis, através deste movimento dos
servidores da educação.

As Reinvindicações dos servidores públicos


No dia 15 de março, teve inicio em Parintins, um grande movimento contra a
desvalorização da categoria da educação do estado e que mais tarde viria se estender por todo
o Amazonas como “A greve dos servidores públicos”.

Este movimento inicialmente foi encabeçado e estruturado somente pelos professores


das Escolas Estaduais, que exigiam dentre outros direitos o reajuste do piso salarial, de 35%
ao que se refere aos últimos quatro anos, além da Participação do interior na revisão do Plano
de Cargos Carreira e Remuneração. Também lutavam para garantir a reposição de aulas por
parte dos professores sem descontos das faltas, o reajuste do vale alimentação, auxilio
localidade de acordo com a distância, benefício este, que deveria se estender aos merendeiros,
vigias, ao corpo administrativo e retornando aos aposentados. A saúde também era um dos
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pontos reivindicados por eles, buscando a extensão de atendimento do plano de saúde para os
interiores e sua extensão para os dependentes (menores de idade), também exigiam melhorias
na merenda escolar, transporte para os servidores de todos os municípios do interior e
transparência na aplicação de recursos do FUNDEB, muitas outras questões foram levantadas
e foi em busca dessas melhorias e direitos que se articulou o movimento grevista. Os
servidores ressurgem não apenas como trabalhadores inertes, que seguem o que é determinado
pelo sistema e se erguem afim de transforma sua realidade. Sobre isto, Paulo Gomes Lima
afirma:
Esta educação transformadora promove a consciência de quem desenvolve o
trabalho pedagógico- o professor, a equipe técnica e colaboradores, bem como o
desenvolvimento do estudante; todos são participantes, de uma historia construída
por meio de vez, voz e voto e mais do que isso, os saberes que são adquiridos e
desdobrados passam a ter um outro sabor: uma ênfase na construção do homem
como ator social e não como sujeito passivo que deve, simplesmente, consumir um
conhecimento intelectual linearizado (LIMA, 2012 s/p.)

No primeiro momento esta ação foi denominada como greve dos professores o que
culminou na paralização das aulas da rede pública de ensino estadual, ganhando força
posteriormente, com o apoio de outros servidores como, auxiliares administrativos,
merendeiros, porteiros e professores aposentados, que também estavam reivindicando os seus
direitos, após anos de serviços prestados a educação, desta maneira tiveram a necessidade de
mudar o nome do movimento para “Greve dos Servidores de Parintins”.
Na ação de exigir aquilo que se tem por direito e até mesmo na criação das pautas
levantadas, muitas reuniões eram realizadas, afim de discutir as ações do grupo, onde todos
eram ouvidos e podiam dar a sua opinião, discutindo ações que fortaleceriam a greve.
Oficialmente, a greve foi definida para o dia 22 de março de 2018 em Assembleia da
categoria realizada em Manaus, porém em várias cidades do interior e em muitas escolas da
capital o movimento já se colocava pela base. Em Parintins, os professores já estavam
mobilizados desde janeiro deste ano.

Acampados por dignidade e valorização


Após muitas articulações e reuniões com os servidores, ficou decidido que os
envolvidos ficariam acampados na Praça de São Benedito, espaço cedido pela Igreja Católica,
que assim como pais e alunos, também apoiava o movimento grevista, tendo o próprio
arcebispo de Manaus divulgado carta em apoio ao movimento dos professores.
Esta foi a forma que encontraram para pressionar o governo do Estado do Amazonas
para negociarem suas reivindicações. Com o posicionamento dos funcionários da educação, o
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governo tentou um acordo com o Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado do


Amazonas(Sinteam), que por sinal é “representante legal” da classe, e que para a surpresa de
todos entrou em consenso com o Governador Amazonino Mendes firmando um acordo de
apenas 8% do reajuste, mas a categoria não aceitou a oferta e mostrando que estavam firmes
na sua decisão continuaram com a greve.
Visivelmente chocados com Sinteam e insatisfeitos com a proposta dada pelos
nossos administradores, na pessoa do governador Amazonino Mendes, a categoria em
reuniões decidiu que o mínimo que se esperaria como acordo para finalizarem a greve seria o
reajuste de 27%.

FONTE: SOUZA, 2018.

Os servidores da rede Estadual de Ensino todos os dias em que estiveram acampados,


produziram atas com assinaturas dos mesmos, também fizeram passeatas e manifestações nas
ruas da cidade de Parintins.
Alguns grupos da mídia e até o próprio governador, associava a ação grevista a
politicagem, onde segundo ele, os professores estavam sendo orientados por terceiros, afim de
prejudicar o governo vigente, afirmação esta que foi negada por todos os participantes da
greve. Os servidores embasados na lei e sem nenhum tipo de parceria particular ou política
para manutenção do movimento grevista, seguiu contando apenas, com a colaboração dos
membros envolvidos que alternavam- se para produzir seus alimentos, cuidando do
acampamento, dialogando e traçando estratégias para o sucesso da manifestação grevista.
Como relata Valeria Fragata, educadora da escola João Bosco;
Estou no movimento desde janeiro, tenho cinco anos de experiencia e em janeiro nós
começamos a reunir. Eu, a professora Keila do João Bosco, o professor Gideão do
João Bosco e o Roney, que é do Álvaro Maia e Gentil Belém. Nos passamos as
nossas férias nos articulando, então o nosso movimento desde o inicio sempre foi
organizado, tudo documentado, tanto que nós não temos nenhuma reclamação da
coordenaria ou da polícia de baderna, de nada. Então sempre foi organizado.

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Contavam ainda com a participação e apoio da maioria dos pais de alunos e os


próprios estudantes que demonstrando solidariedade aos seus mestres e que também estavam
em peso nas passeatas, com seus cartazes e gritos de ordem, mostrando que as
“transformações só são possíveis quando arregaçamos as mangas e vamos em busca dos
resultados (aluno da escola Dom Gino).
Percebe- se o quão esse movimento foi importante para os estudantes e o quanto se
faz necessário que se trabalhe dentro de sala de aula sobre as questões políticas e sociais,
mostrando para os alunos a necessidade de se formarem sujeitos críticos, conscientes dos seus
deveres e direitos e que isto depende a construção do ser cidadão.

Fonte: LACERDA, 2018. Vendas para a manutenção do acampamento.

Também sobre a organização do acampamento é importante destacar a conservação


do espaço. Alternavam- se na limpeza da área que ocupavam e também destinavam quem
seriam as pessoas responsáveis pela produção de alimentação para o grupo, fazendo cotas
para comprar o que se fizesse necessário. Além disso promoviam ações como vendas de
guloseimas para custear os gastos do acampamento, assim foi possível alugar a tenda onde
muitos professores reversavam-se entre os horários diurno e noturno, para pernoitarem no
local. A professora Valeria Fragata, explica como se deu a organização do acampamento:
O nosso acampamento também foi organizado. Nós fizemos um revezamento entre
as escolas por turnos, a cada seis horas ficam três escolas responsáveis pelo
acampamento. Eles se organizam para alimentação, água e estrutura. Nós temos um
fundo de greve, organizado por todos, que paga a locação do acampamento, da tenda
e do estrado. Tudo está sendo com o nosso dinheiro. Nosso fundo inicialmente foi
com a colaboração de cada professor né, e depois começamos a movimentar vendas,
porque os professores não têm dinheiro todo tempo para estarem dando, então nós
começamos a vender salgados e mingau. Também estamos com uma venda hoje,
com a sexta cultural, para arrecadar fundos e cobrir as nossas despesas. Então tudo
desde o início, pagamento de carro, de som, pagamento de locais, que nos
utilizamos, foi pago com esse dinheiro. (FRAGATA,2018)

“Passa-tempo”, não!

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Muitas pessoas que não entediam a greve ou não estavam a favor da mesma, não
davam muita credibilidade às manifestações dos servidores. O que para mim enquanto
pesquisadora designada pela Dra. Monica Xavier (que ministrava a disciplina de Estágio II)
para atuar em campo na greve, é uma ideia distorcida e errônea dos fatos.
Nós que estivemos presentes nos dias finais da greve, percebemos a união e o quão
determinados estavam os servidores, apesar de todo o cansaço do grupo, estavam
esperançosos em um retorno que favorecesse a todos. Muitas conversas surgiram durante a
greve que descontentaram os participantes, um deles foi reclamações de algumas pessoas que
usaram redes sociais e grupos de whatsApp para desqualificar o movimento grevista.
Situações como essas partiram de alguns pais de alunos, que não concordavam com a
paralisação das aulas, relatando a falta de compromisso dos docentes com os seus filhos.
Devo dizer que este foi um grande desapontamento para mim enquanto cidadã,
como estudante e também como futura colaboradora da educação, mas que também me
estimulou a trabalhar com meus futuros alunos, sobre o papel de ser um cidadão, conhecedor
dos seus deveres com a sociedade, mas também consciente dos seus direitos, refletindo e
questionando, propondo mudanças para o bem maior da sociedade. Dessa forma, mostrar aos
alunos e para toda a sociedade que se temos deveres enquanto cidadãos, da mesma maneira
temos direitos, estes que estão garantidos dentro da Constituição Federal do Brasil, nas
palavras de Sergio Martins (2012); “Se o direito de greve está inserido no capitulo II, dos
Direitos Sociais, do Título I, já é possível dizer que os interesses são sociais, dizendo respeito
às condições de trabalho, a melhoria das condições sociais, inclusive salariais”.

Fonte: LACERDA, 2018. Descontração e articulações.

Foram, muitos relatos de que os professores reclamavam sem motivos e que eram
uma desculpa para não estarem em sala de aula. Essa ideia repercutiu muito, dentro da
comunidade parintinense, havendo algumas manifestações por redes sociais e grupos de pais,
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ao nosso entendimento devido alguns professores durante o acampamento promoverem


conversas e algumas brincadeiras, mas percebemos que durante esses momentos de
descontração, eles discutiam estratégias para o melhor funcionamento do acampamento,
promovendo diálogos que ajudavam a fortalecer o movimento. Tudo o que estava sendo
organizado, partiu de uma rotina cansativa, que exigia muita determinação e esforço por parte
dos grevistas, como podemos ver na declaração da professora Valéria;

Nós fomos para rua, colocamos a cara no sol, na chuva. Chamamos a atenção
da sociedade, falamos diretamente com os pais nas suas casas e em uma
reunião que nós organizamos. Realizamos eventos, caminhadas, demos
entrevistas para chamar a atenção e pedir apoio da sociedade, tudo muito
organizado, resultado de muito trabalho mesmo. (FRAGATA,2018)

Inclusive muitas ideias surgiam dessas reuniões em pequenos grupos, a própria


música usada pelos professores surgiu de conversações como estas, e que mais tarde viriam
ser um hino para a Greve dos servidores Públicos de Parintins.

“O equívoco dos professores”


Jogar a responsabilidade de um governo para o outro já virou rotina dentro do
cenário político. Seguindo essa linha, o Governo do Estado do Amazonas, apesar de
reconhecer a injustiça que os professores vêm sofrendo ao longo do tempo tentou desarticular
o movimento dizendo que os professores estavam “equivocados” em fazer uma greve neste
momento, pois segundo ele, essa manifestação deveria ter sido realizada nos anos de 2015 e
2016.
O Governo do Estado do Amazonas posicionou-se contra a greve e afirmou que não
seria possível conceder o aumento reivindicado, pois caso o fizesse descumpriria o chamado
“limite prudencial” da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Assim, durante boa parte do
movimento, o governador afirmava que um aumento além do 4,57% oferecido seria
impossível. Argumentou ainda que o governo estava reajustando alguns benefícios como o
auxilio alimentação e a gratificação de localidade.
Como os servidores não cederam a essas justificativas, o Governador Amazonino
Mendes, propôs um aumento de 8% ao Sinteam, responsável legal dos Servidores Públicos do
Amazonas, o que foi aceito por esse representante, mas não pelos os grevistas que sentiram-
se desassistidos e prejudicados pelo acordo e após reunião em assembleia resolveram
continuar com a paralização.

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O governador veio à cidade de Parintins, pioneira nesta greve do Amazonas, mesmo


assim não houve acordo, pois na “conversa” o governador desvalorizou o diálogo com os
representantes que foram à reunião e, ao se sentirem desrespeitados e mais uma vez
desvalorizados, o acordo não foi firmado. Com o desfecho negativo, Amazonino Mendes após
uma acalorada manifestação que seguiu o mesmo até o aeroporto, volta para Manaus sem
sucesso nas negociações, deixando os grevistas bastante revoltados com o tratamento
descabido por parte do governo.
Depois de três negociações frustradas com o governo do estado, a Assembleia
Legislativa do Amazonas, aprovou no dia 6 de abril o percentual referente às perdas salariais
dos últimos quatro anos da categoria com o reajuste de 27,02% para os professores e
servidores da rede pública de ensino do estado,
Participamos de todo o findar das negociações, os professores acompanhavam com
muita atenção por meio de uma caixa de som e ouviam a cada fala positiva dos legisladores ao
fim da cessão. Muita euforia com o resultado afinal é uma das maiores conquistas para a
classe, que apesar de não terem conseguido sucesso em todas suas reivindicações, deu um
grande passo para a educação e uma lição importantíssima do que é ser cidadão consciente
dos seus direitos e deveres.

Considerações finais
Diante do que foi exposto neste trabalho, posso concluir que através do contato com
a Greve dos Servidores Públicos do Amazonas, por intermédio da disciplina de Estágio
Supervisionado II, pude compreender algumas dificuldades por qual irei passar enquanto
educadora. Das mazelas que os professores e outros servidores da educação tem que enfrentar
todos os dias.

Devo salientar que essa experiência contribuiu de forma significativa com a minha
formação como futura professora de História, com mais disposição para interferir e promover
novas possibilidades na minha vida profissional e social, assim como na vida dos meus
alunos.

Ainda abre espaço para refletir sobre o que é ser um cidadão consciente de suas
obrigações e seus direitos, entendo a greve como um direito constitucional do servidor
público. Exercendo-a dentro da legalidade e com responsabilidade, pois é um direito social
que não se restringe somente a classe de trabalhadores da educação, mais de todos os

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cidadãos, lhe dando condições para viver com dignidade, através da valorização e
reconhecimento de seu trabalho.

Referências
LIMA, Paulo Gomes. A Importância do papel do professor para o sucesso da educação.
Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/13500666/A- IMPORETANCIA-DO-PAPEL-DO-
PROFESSOR-PARA-0-SUCESSO-DA-EDUCAÇÃO-PRF-DR-PAULO-GOMES-LIMA-
UFGD Acesso em 03 de agosto de 2018.
MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 28a Ed. Atlas: São Paulo, 2012.
FOTOS
LACERDA, Soraia. Fotos/ Arquivo pessoal. 2018.
SOUZA. Daiane. Fotos/ Arquivo pessoal. 2018.

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HISTÓRIA ORAL E MIGRAÇÃO (APONTAMENTO DE PESQUISA)


DISCRIMINAÇÃO E PRECONCEITOS: OS INDÍGENAS URBANOS DE
PARINTINS
EDGAR VIANA

Introdução
As etnias indígenas brasileiras têm tido ao redor do país e de sua história uma
carregada e marcante trajetória de dificuldades enfrentadas desde a escravidão a forma de
apagamento da própria história. uma das atuais dificuldades enfrentadas por estes
personagens ea discriminação e o preconceito sendo estes evidenciados em episódios que
cuja as próprias testemunhas são condizentes com a situação pois a caracterização e a cultura
do outro é ensinado desde o berço a ser ignorado e tratado como o errado havendo uma total
falta de austeridade e essas questões da própria sociedade são os fomentadores de conflitos
que acontecem desde o sair de casa, dentro de escolas e durante o trabalho.

Essa discriminação e preconceito podem ser vistas em discursos políticos e na própria


história do país a há também uma questão de perda de cultura pois há um senso comum do
que define o indígena como suas vestes e características portanto para alguns e improvável
que um indígena possa possuir bens de consumo como celular pois a partir do memento em
que ele passa a ter esses itens em sua vida ele deixa de pertencer a sua etnia e torna-se um
“civilizado”.

A história do tempo presente é um campo de estudos que faz parte da historiografia


contemporânea, algo recente neste campo cientifico pois a história recente não era feita por
historiadores. Essa temática era inicialmente feita por outras ciências humanas e sociais, como
a Sociologia e Antropologia, mas a história oral permitiu aos historiadores uma janela para a
pesquisa do passado mesmo ele tendo acontecido não muito tempo atrás. O que se considera
tempo presente na historiografia parte-se do recorte temporal do ano de 1945 como uma
ruptura, o final da Segunda Guerra Mundial, e deste recorte cronológico pôde-se começar a
fazer alguns dos primeiros estudos nesse campo. A partir da utilização da história oral foram
feitas pesquisas usando como fonte as entrevistas de ex-combatentes de guerra e testemunhas
de fatos do ocorrido através das suas memórias (POLLAK, 1992; MOTTA, 2012). E assim o
historiador pode reconstruir o passado recente problematizando-o e procurando uma
representação crítica deste novo pretérito não o eliminando, mas reinterpretando-o a partir de
teorias e fontes que a historiografia oferece (MOTTA, 2012).

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A história oral produz documentos segundo ALBERTI (2012) através das entrevistas
que se tornam posteriormente a fonte analisada faz com que o pesquisador possa através da
análise do testemunho encontrar uma experiência de vida que tenha relação com o objeto de
estudo. A história da experiencia segundo Lutz Niethammer e o que deixa os pesquisadores de
história oral mais próximos do que ele considera o significado de história dentro da história.
Como a história oral permite obter o conhecimento sobre diferentes modos de vida e de
vivencias de grupos sociais partindo de uma memória ao qual esses grupos sociais e modos de
vida geraram o que torna a memória um objeto que possa a ser analisado através dos
testemunhos de seus guardiões pelo método da história oral que torna-se um instrumento
necessário para a com a pluralidade e sua fragmentação pois a memória é flexível e pode ser
reconstruída.

A memória segundo MOTTA (2012) para alguns autores que trabalham com a
metodologia da história oral como Michel Pollak e Maurice Halbwachs entendem que ela e
algo construído no íntimo do indivíduo ou até de um coletivo onde se encontram as noções de
realidade que esse grupo/pessoa ao criar sua memória demonstra entender, mas essa memória
está sujeita a mudanças e transformações ao decorrer do tempo. Apesar da memória ter uma
característica de estar em constate mudança e transformação existem traumas ou momentos da
memória em que não se alteram. A memória também é uma fonte histórica pois elas ao serem
recordadas demonstram contradições, elos e visões distintas sendo possível assim analisa-las
criticamente para que possam descontruir outras memórias consagradas.

No caso das entrevistas realizadas com o indígena da etnia Sateré-Mawé José Ferreira
de Souza (conhecido também como “Zezinho”) e com seus familiares (seu filho Alcimar de
Souza e sua esposa Ada da Costa Silva) é demonstrado repetição de uma experiência
proporcionada pela migração feita por essa família da sua moradia na reserva indígena de
nome ponta alegre próximo do distrito de João madeira para sede da cidade de Parintins onde
essas pessoas começariam a passar por episódios em locais específicos da rotina de seu dia-a-
dia que não haviam passado em seu antigo lar. O conjunto familiar formado por “José Ferreira
de Souza” (1973-2017) que possuía um cargo de importância na sociedade da etnia sateré-
mawe o qual herdou de seu pai e zezinho em seguida explica que seu pai lhe concede o cargo
de capitao geral da tribo Sateré Mawé após seu falecimento e que junto ao cargo de tuxaua
(um outro cargo na hierarquia Sateré) comandam toda a população que se encontra no que ele
define como sua nação. Em seguida temos a sua esposa Ada da Costa Cabral que não se
identifica como uma Sateré-Mawe, mas convive com eles desde seu nascimento na área
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indígena e por último seu filho Alcimar da Costa Souza este último nos dias atuais está
exercendo as funções do cargo de seu pai pois este já apresentava em suas palavras forte
empenho político para com as questões indígenas

O pai de “Zezinho” Francelino Gregório de Souza como já dito antes possuía um


cargo hierárquico de Capitao da tribo sateré-mawe cuja a função seria a de comandar junto ao
tuxaua a nação uma posição de extrema necessidade pois este que ocupava o cargo deveria
estar sempre a estar a par de soluções para os problemas que surgissem na área indígena e
com sua nação. este cargo só pode ser repassado para descendentes do sexo masculino do
atual detentor do cargo se o atual detentor não possuir um membro da família assumira como
um irmão ou sobrinho.

“Zezinho” ao fazer sua odisséia a sede da cidade de Parintins em busca principalmente


de uma melhor qualidade de educação para seus filhos já que sua comunidade estava limitada
apenas ao ensino fundamental incompleto fez com que ele fosse procurar em um contexto
urbano uma condição de ensino diferente para seus filhos. A partir desse momento “Zezinho”
e seus familiares se deparariam com situações nunca antes passada em sua antiga residência.

A própria questão da convivência com o diferente causava conflitos entre os novos


moradores (indígenas) e os antigos moradores da cidade e mesmo após o estabelecimento
ainda residem ressentimentos de experiências passadas e os estereótipos que permanecem na
sociedade “civilizada” essa sensação e notada pelos moradores que se reconhecem
etnicamente como indígenas. Pois sentem que sua simples presença é um incomodo alheio,
apesar do tempo de estabelecimento na residência e no bairro ainda parece que seus vizinhos
apresentam ressentimentos quanto as primeiras experiências proporcionadas pelo primeiro
contato com os novos moradores. No relato de Zezinho:

“Seu Zé: Faz muito tempo que nós cheguemos aqui... 20 e poucos anos... Aqui era...
Índio já viu
como é né? Quando barco chegava lá tudo ficava admirado... Hoje a gente passa aí...
Têm
Às críticas pra mim não valem nada...
En: Mas que críticas são essas?
Seu Zé: A gente é índio, índio come isso, toma aquilo,
... Que índio é lascado..
Seu Zé: É... Por causa de adulação(zoação?) de dizer ah tu é índio, tu come saúva e é
preguiçoso não sei quê... Ele partia pra cima...”89

89
Gravação de 08 de maio de 2017 entrevistado: José Ferreira de Souza
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Isso nos leva a questão de racismo que a família de zezinho passou foi apresentada
desde sua chegada no local até os locais onde ele deveria ser combatido pois o intuito de
“zezinho” ao ir a sede da cidade de Parintins era a de uma melhor qualidade de educação já
que seu antigo local de moradia não atendia as suas necessidades nas escolas foram onde
ocorreram os episódios de discriminação com maior frequência em uma das falas de Zezinho:

“Z: Meu filho tem 40 anos, brigava muito aí...


EN: É mesmo?
Z: É... Por causa de adulação de dizer ah tu é índio, tu come saúva e é preguiçoso
90
não sei quê... Ele partia pra cima...”

Durante o decorrer das entrevistas e notável o aparecimento de questões de


preconceito como e é o caso da entrevista com Alcimar que demonstra em alguns trechos de
seu relato que o preconceito as etnias indígenas ocupam vários espaços da sociedade até
mesmo onde essa atitude deveria ser incentivada a não existir como nas escolas onde Alcimar
estudou e segundo ele a sala se dividia em pessoas que queriam aprender sobre a sua cultura e
aquelas que formavam um grupo que não tolerava a presença deles dentro de uma sala de aula
ou mesmo na cidade essa questão ainda seria levada para a sala de aula de uma universidade
do estado:

“...Sofria isso na escola né? Era brincadeira de mau gosto né? Ah ele é índio,
inclusive na época eu briguei com um colega meu que sempre bagunçava, tudo era ô
índio, quando aparecia algum trabalho que era pra falar de índio, ele sempre levava
pro lado de discriminação”.91
“...Tinha colegas nossos que queriam saber como era a nossa cultura e como que era
a nossa convivência, mas tinha outros não que... tem até hoje né? Tem gente que não
quer nem papo com índio né? Que não gosta... A gente não agrada a todos né? Tem
gente que não gosta...” 92

“Colocar o ano em que o ensino sobre cultura afro e indígena foi colocada em lei para
problematizar mais a questão da intolerância dentro da sala de aula e depois descobrir em que
ano Alcimar entrou na universidade e quando foi que veio estudar em Parintins para
relacionar as datas pois se forem após 2011 na universidade deveriam haver no mínimo
palestras sobre as questões de intolerância.”
“…questão da faculdade também, tinham uns colegas meus que não se davam bem
com a gente, por causa da questão indígena, porque eles dizem que índio só... Eu
acho que o choque que eles levam e que... A gente só quer o bem-bom, eles sempre
veem as nossas reivindicações, tem na mídia sempre reivindicando e questionando,
mas eles pensam que a gente quer tudo a mão, tudo de bem. Mas não é assim
também não, a gente que é índio sente na pele”. 93

90
Gravação de 08 de maio de 2017 entrevistado: José Ferreira de Souza
91
Gravação de 06 de maio de 2017 entrevistado: Alcimar da Costa Souza
92
Gravação de 06 de maio de 2017 entrevistado: Alcimar da Costa Souza
93
Gravação de 06 de maio de 2017 entrevistado: Alcimar da Costa Souza
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“Eu tinha um colega que falava assim: Ah não, esses índios querem demais, tem
muita terra, não querem trabalhar, índio é preguiçoso, índio é isso... Sabe ele falou
na lata, e a gente tinha que se defender né? Não é assim também não, a questão de
ser preguiçoso, a questão é que o nosso modo de vida é outro, nossa cultura é outra.
Não é o que eles pensam... O que a gente pensa... E... A gente sentia na pele essa
questão aí de discriminação... Quando eles pensam que a gente quer que o governo
94
dê pra gente, não, a gente só quer nosso espaço e lutar pelos nossos direitos”.

Logo após os comentários de Alcimar ele também se utiliza de frases que remetem ao
conhecimento sobre sua própria identidade pois apesar de todas as influências que a sociedade
propõe a Alcimar ele ainda se vê como um indígena segundo suas palavras:
“Eu posso ser o que você é sem deixar de ser o que sou. Eu sempre falava isso pra
eles, eu posso ser um deputado, um prefeito, mas nunca vou deixar de ser índio, eu
posso chegar a qualquer cargo desse, mas sempre valorizando meus princípios
95
indígenas, sempre levando minha identidade”.

Alcimar conta outro caso de discriminação que aconteceu durante o período que
trabalhava (não há especificação de seu oficio) no ano de 2013 quando o seu patrão descobre
que havia sido furtado de algum pertence seu então todos os trabalhadores são colocados em
fila e o patrão vai verificando cada um de seus contratados, mas quando chegou a vez de
Alcimar por possuir uma condição étnica diferente das demais presentes seria acusado como
autor do crime:
“Ele foi falando de cada um né? E quando chegou em mim ele falou: eu não
conheço ele, ele é índio, ele é índio, não sei como é a vida dele.” 96

Em seguida após uma investigação séria provando que não teria sido Alcimar que teria
cometido tal ato e depois da comprovação da sua inocência ele receberia um tratamento
melhor vindo de seus colegas de trabalho e até mesmo recebendo desculpa do próprio patrão:
“Depois passaram a me conhecer realmente né? Que eu não era aquela pessoa, que
eu era diferente... Eu saí de lá com a consciência tranquila, todos eles me gostaram,
até ele(chefe) me elogiou e pediu desculpa pelo que ele tinha falado.” 97

Conclusão

Conclui-se que mesmo havendo políticas e órgãos voltados a extinguir estes estigmas
da sociedade brasileira ainda existem resquícios que permaneceram sem cura já que não havia
naquele momento pessoas envolvidas no embate pois existem em espaços onde não deveriam
existir e se apresentam através de quem deveria ser o mais avido combatente a esse tipo de
questão. Para que esse tipo de episódio não volte ou ao menos diminua sua intensidade e

94
Gravação de 06 de maio de 2017 entrevistado: Alcimar da Costa Souza
95
Gravação de 06 de maio de 2017 entrevistado: Alcimar da Costa Souza
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Gravação de 06 de maio de 2017 entrevistado: Alcimar da Costa Souza
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necessário uma conscientização sobre o assunto nas diversas camadas da sociedade


principalmente entre os professores de escolas públicas pois este sendo um dos principal focos
de disseminação de conhecimentos sobre as mais diversas formas de diferença e de culturas
esta entre as melhores formas de combater o preconceito e discriminação não apenas para as
etnias indígenas como também para outras formas de agressão já que este e o espaço
institucionalizado para o aprendizado e ao meu ponto de vista o melhor modo de tratar desta
questão.

Referência
SOUZA, Hellen C. Entre a aldeia e a cidade: estudantes indígenas em contextos urbanos no
Brasil. Trabalho apresentado na 26ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os
dias 01 e 04 de junho de 2008, Porto Seguro, Bahia, Brasil.
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Novos domínios da história. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2012.
PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2011.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5,
n. 10, 1992.
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol. 2, n. 3, 1989.

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MULHERES INDÍGENAS CRISTÃS: ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA


EM UM MUNDO COLONIAL CRISTÃO (SÉCULOS XVII-XVIII)

ÉRICA GARCIA DE FREITAS*

Introdução
A presença da mulher indígena nos séculos XVII-XVIII é imprescindível para a
manutenção da colônia, porque as tarefas desempenhadas pelas indígenas dentro do
aldeamento, eram essenciais para a manutenção da vida – preparo da farinha, o principal
alimento da colônia - e da economia - confeccionando tecidos de algodão que serviam como
moeda de troca (CARVALHO JÚNIOR, 2013: 91-92). Mais tarde, como aponta Leila Mezan,
à medida que essas mulheres vão entrando nos espaços domésticos, como escravas ou criadas
nas casas dos senhores, as técnicas de produção da farinha de mandioca vão sendo
incorporadas pelas portuguesas. Outra prática absorvida pelas senhoras, apoiadas pelos
conhecimentos de suas escravas, foi a administração de remédios caseiros (ALGRANTI,
1997:127-144).
Ao serem absorvidas por este novo mundo, as mulheres indígenas tornaram-se
escravas domésticas e usadas para o sexo, simultaneamente, imputando-as uma moralidade
estranha e distinta de sua realidade. Além de que, "por mais contraditório que possa parecer,
embora escravas, adquiriram mais liberdade" (CARVALHO JÚNIOR, 2013:223). Esta
“liberdade” refere-se ao fato de poderem se livrar da vigilância constante dos missionários.
Apesar de já conhecerem a fé católica, essas mulheres não abandonaram por completo as
tradições ancestrais e, na casa dos senhores, acabavam por se especializarem em magia e
encantamentos, abarcando até mesmo as senhoras ao solicitarem as especialidades místicas
das índias.

Apesar dos muros, a vida doméstica na sociedade colonial não era tão privada, por
conta da grande interação com a rua e os vizinhos. Os processos e denúncias do Santo Ofício,
no Estado do Grão-Pará, nos permite adentrar na intimidade da colônia e visibilizar o
protagonismo dos sujeitos denunciados e processados. Segundo Ronaldo Vainfas, os
visitadores da Inquisição Portuguesa, nas portas das igrejas, apontavam quais eram as
condutas que deveriam ser denunciadas, e por medo do poder, a sociedade colonial
denunciava seus parentes, seus vizinhos, seus desafetos e seus rivais (VAINFAS, 1997:228).

*
Graduanda em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Amazonas.
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A mulher nas interpretações do Gênesis, livro sagrado cristão, era vista como
responsável pela expulsão da humanidade do Paraíso. Os europeus, com isso, sustentavam
essa visão a partir dos seus códigos de posturas, cuja, as mulheres eram vistas como
vulneráveis ao pecado da carne e, imediatamente, precisavam ser controladas por não
conseguirem fazer nada com moderação:
As mulheres são, por natureza, mais impressionáveis e mais propensas a receberem
a influência do espírito descorporificado; e quando se utilizam com correção dessa
qualidade tornam-se virtuossismas, mas quando a utilizam para o mal tornam-se
absolutamente malignas. [...] possuidoras de línguas traiçoeiras, não se abstém de
contar às suas amigas tudo o que aprenderam através das artes do mal; e, por serem
fracas, encontram modo fácil e secreto de se justificarem através da bruxaria.
(KRAMER; SPRENGER, 1997:115-116)

Malleus Maleficarum, ou “Martelo das Feiticeiras”, é dirigido principalmente às


mulheres, atacando-as como bruxas através de estereótipos caracterizados pelos seus autores -
Kramer e Sprenger - a fim de reprimir a intimidade, a sexualidade e a fertilidade. Este livro,
escrito entre 1430-1505, era a grande referência para identificar as bruxas e hereges nos
Tribunais do Santo Ofício, influenciando durante séculos o comportamento feminino, tanto na
vida pública, quanto na vida privada e de ambos os lados do Atlântico.

Este artigo busca identificar, através das menções do missionário João Daniel, as
diferentes maneiras que as mulheres indígenas entendiam estas normatizações teocráticas e
rituais da fé católica impostas a elas, formando assim estratégias de resistência que consistiam
na ressignificação destes rituais para obter uma certa liberdade do julgo missionário, ou para
outros benefícios próprios. Ambas as fontes - Malleus Maleficarum e os relatos de João
Daniel serão analisadas, a partir da Nova História Cultural, considerando as abordagens da
Nova História Indígena e a categoria de Gênero.

Abordagens e Metodologias: Nova História Cultural, Nova História Indígena e História


de Gênero

A História Cultural se encaminhou, entre as décadas de 1960 e 1990, em direção a


antropologia (antes disso era usada para se referir à “alta” cultura, às artes e às ciências), ao
emprestar dela vários conceitos e construindo uma nova abordagem que ficou conhecido
como “antropologia histórica” (BURKE, 2008: 42-44). Foi a partir do encontro entre História

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e Antropologia que o termo “cultura” empregou-se de forma mais ampla, outras ideias da
antropologia interessaram aos historiadores:

O conceito amplo de cultura dos antropólogos era, e continua sendo, um outro


atrativo, vinculando os estudos dos símbolos - que havia sido abandonado pelos
historiadores especialistas em arte e literatura. [...] A ideia antropológica de “regras”
e “protocolos” culturais também atraiu os historiadores culturais; a ideia de que -
como crianças - eles tinham que aprender como as coisas eram feitas: como pedir
uma bebida, como entrar em uma casa, como ser um rei medieval ou um santo da
Contra-Reforma. (BURKE, 2008: 57)

A Nova História Cultural desenvolveu-se a partir da antropologia histórica, dando uma


virada coletiva na teoria e na prática da História Cultural. Certas teorias culturais fizeram com
que os historiadores tomassem conhecimento de novos problemas, que até então eram
ignorados, a preocupação com a teoria é uma das características distintas da Nova História
Cultural (BURKE, 2008: 70). As Práticas, como um paradigma deste novo estilo de história
cultural, tiveram um grande impacto nos campos mais tradicionais: “a história das práticas
religiosas e não da teologia, a história da fala e não da linguística, a história do experimento e
não da teoria cientifica” (BURKE, 2008: 75). Ao utilizar a antropologia histórica, como
categoria de análise da Nova História Cultural, analisamos os sujeitos “vindos de baixo” a
partir de fontes ditas “oficiais” .

Para o surgimento da Nova História Indígena uma outra junção foi importante: a da
antropologia e do indigenismo. Para John Manuel Monteiro, a relação dessas perspectivas
possibilitou ampliar a visibilidade dos povos nativos da América portuguesa, que quase
sempre eram omitidos, e revelou as perspectivas desses povos sobre o seu próprio passado. A
antropologia histórica vai incluir os povos indígenas como atores históricos, não os
minimizando a apenas vítimas dos processos da conquista e colonização, colocando-os como
sujeitos que desenvolveram estratégias diante dos desafios das relações de dominação
(MONTEIRO, 1995).

A história de gênero, como vai apontar Joan Scott, é um campo de pesquisa já


consolidado. O termo gênero fez sua primeira aparição dentro do movimento feminista sob o
intuito de enfatizar o aspecto relacional das definições normativas de feminilidade. Ao utilizar
Gênero como categoria de análise, podemos compreender a diferenças entre os sexos e seus
papéis nos simbolismos sexuais em diversas sociedades e períodos, encontrando um sentido
de como eles funcionavam para “manter a ordem” ou mudá-las (SCOTT, 1990: 72).

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Para usar teorias do campo de Gênero sobre a trajetória das mulheres indígenas no
período colonial, é necessário compreender que, apesar das diferenciações culturais entre as
mulheres ocidentais - o qual estamos mais habituados a discutir sobre gênero - e as mulheres
indígenas, em um contexto de colonização, foram-lhes impostas uma moralidade atribuída, a
princípio, às mulheres brancas. Portanto, ao impor normatizações aos nativos, os
missionários, como representantes da Igreja, demonstraram em seus relatos as práticas que
consideravam heréticas, identificando esses atos, dentre outros, por meio do livro Martelo das
Bruxas (1430 - 1505), considerado como a “bíblia do inquisidor”.

A partir desses três campos de pesquisa - Nova História Cultural, Nova História
Indígena e História de Gênero - pudemos identificar não apenas os contextos de violências
nos quais as mulheres indígenas foram protagonistas, mas suas representações num mundo
cristão no qual foram inseridas. Através do diálogo com esses campos, podemos destacar o
seguinte recorte: étnico (indígenas), das hierarquias sociais (os subalternos esquecidos pela
historiografia tradicional) e de gênero (mulheres).

Casamento e batismo: ressignificação de sacramentos da fé cristã como forma de


resistência das mulheres indígenas
Os indígenas foram identificados pela historiografia de forma dualística, entre os
resistentes e colaboradores, radicalmente opostos e complementares. Monteiro busca romper
com essa visão de extremos, mostrando como a resistência caminha (MONTEIRO, 1999:239-
240). A resistência muitas vezes é explicada e entendida como reação às forças externas,
envolvidas em um mundo colonial, as mulheres indígenas desenvolveram outras formas de
resistir, tais como a ressignificação de rituais da fé cristã como o batismo e o casamento,
podendo oferecer “benefícios” de seus interesses.

Ao utilizar os relatos do missionário francês Yves d'Evreux, Ronald Raminelli aponta


as seis “classes da idade” das mulheres ameríndias tupinambás – do nascimento ao
envelhecimento – observando-se as diferenças entre os dois sexos, feminino e masculino, nos
costumes e tradições desse povo. A partir do nascimento até o sétimo ano de vida não havia
distinção e nem separação das tarefas entre os meninos e as meninas, tendo esta distinção de
deveres somente a partir dos sete aos quinze anos, quando as meninas aprendiam os deveres
de mulheres tais como: fiar algodão e fazer farinha. Quando jovens, seus pais as ofereciam

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aos homens franceses em troca de quaisquer gêneros materiais, não recebessem outros
convites de casamento (RAMINELLI, 1997: 21-23).

A forma de como os indígenas entendiam a união marital na sua cultura, poderia


influenciar o entendimento de como funcionava o matrimônio cristão. Desse modo, Carvalho
Júnior afirma que o casamento ficou tão popular na Colônia que foi usado de forma irregular,
ficando ele mais patente após as denúncias e Visitação do Santo Ofício (CARVALHO
JÚNIOR, 2013: 168).

Ao mesmo tempo, estas mulheres estavam sendo denunciadas por não cumprirem as
normatizações dos códigos português, tal como estava escrito, encontrando caminhos para
burlá-los e ressignificá-los através dos rituais de sacramento cristão, como, por exemplo, o
batismo. Carvalho Júnior aponta que, no bispado do Maranhão, era pecado gravíssimo manter
coito com mulheres não cristãs. Logo, para manter a liberdade sexual própria da sua tradição,
as mulheres indígenas se batizavam e, agora cristãs, poderiam ter relações sexuais com os
homens brancos, podendo também casar-se com um homem indígena, visto que o sexo para
os povos indígenas era entendido de forma distinta da cultura europeia. João Daniel observa
em Tesouro Descoberto do Rio Amazonas (1772-1776) como se davam os papéis de gênero
no casamento indígena, sobretudo ao homem, afirmando que,

quando se casam é bastante fundamento para o marido repudiar a mulher, o acha-la


virgem, e intacta: porque, diz o marido, é tal, que ninguém a quis, e assim que
também eu a não quero. [...] a sua muita rudeza não lhes deixa apreender a
gravidade, e malícia deste vício: e por estas mesmas causas estão os mesmos já
nascido, e creados nas missões, e todos os dias doutrinados oferecendo as filhas, e
talvez as mesmas mulheres por qualquer ridicularia, como é um frasco de ágoa
ardente (DANIEL apud CARVALHO JUNIOR, 2013: 234 ).

O controle do corpo, principalmente o do feminino, era concebido como foco de


problema duramente combatido pela Igreja, como irá apontar Mary del Priore, eram os
pecados da carne, a luxúria, a lascívia os mais combatidos esses tempos. “Afinal, como se
queixava o padre Anchieta, além de andar peladas, as indígenas não se negavam a ninguém”
(DEL PRIORE, 2014: 17).

O Martelo das Feiticeiras (1430-1505) irá dar as razões pela qual as mulheres mais
suscetíveis, segundo a Igreja e a bíblia cristã, aos pecados da carne e as heresias:

A razão natural está que a mulher é mais carnal do que o homem, o que se evidencia
pelas suas abominações carnais. E convém observar que houve uma falha na

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formação da primeira mulher, por ela ter sido criada a partir de uma costela recurva,
ou seja, uma costela do peito, cuja a curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão
do homem. E como virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre
decepciona e mente (KRAMER; SPRENGER, 1997: 115-116).

As Índias Cristãs98 não abandonaram por completo as tradições de seus ancestrais,


encontrando dentro dos rituais cristãos estratégias de resistência, por isso foram elas
denunciadas e processadas por crimes de heresia - feitiçaria e bigamia - pelo Tribunal do
Santo Ofício. As estratégias de resistência adotadas por essas indígenas, não consiste na
negação da fé católica, mas sim como a sua ressignificação tendo por base as práticas
ancestrais desses povos.

Considerações Finais
Este artigo buscou evidenciar o protagonismo e a resistência das mulheres indígena
inseridas em um mundo colonial cristão, no século XVII-XVIII, tendo como fonte as menções
dos missionários e códigos de posturas vigentes da época. O tema aqui apresentado faz parte
de um dos objetivos do meu projeto de Pesquisa de Iniciação Científica (PIBIC), ainda em
desenvolvimento, que busca um diálogo entre a Nova História Cultural, a Nova História
Indígena e História de Gênero, essa última deve ser matizada em um contexto de
diferenciação cultural, considerando os universos culturais específicos dessas indígenas.

A Nova História Indígena, segundo Monteiro, “busca romper com as abordagens que
enxergam a resistência como apenas uma reação anônima, coletiva e estruturalmente limitada.
Novas leituras do espaço intermediário poderão revelar o sinuoso caminho por onde passou -
e passa- a resistência” (MONTEIRO, 1999: 243).

Por conseguinte, as mulheres indígenas, como sujeitos históricos, agiam de acordo


com o mundo ao seu redor, neste caso, um mundo colonial e cristão, é então através da
ressignificação do batismo e casamento, que elas puderam de alguma forma burlar a constante
vigilância dos missionários e as normatizações que eram impostas pela Igreja sem ao menos

1
Termo “Índios Cristãos” foi criado por Almir Carvalho Junior por ser entendida como uma construção histórica.
Somente os batizados poderiam ser “cristãos” e nessa categoria só os “índios” entram. cf. CARVALHO
JÚNIOR, Almir Diniz. Índios Cristãos: Poder, Magia, e Religião na Amazônia Colonial. Curitiba: CRV, p.26,
2017.

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considerar suas diferenças culturais, denominando seus costumes, práticas e sexualidade


como atos demoníacos.

Referências
ALGRANTI, Leila Mezan. Família e Vida Doméstica. In: NOVAIS, Fernando. História da
Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São Paulo:
Companhias das Letras, 1997.
ARAÚJO, Emanuel. A Arte da Sedução: sexualidade feminina na colônia. In: DEL PRIORE,
Mary. História da Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,1997.
BURKE, Peter. O que é História Cultural?. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2008.
CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz. Bigamia indígena nas malhas da inquisição:
apropriações e mediação cultural. In: Simpósio Internacional de Estudos Inquisitoriais,
Salvador, 2011.
CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz. Índios Cristãos no Cotidiano das Colônias do Norte
(séculos XVII e XVIII). Revista de História USP, n° 168, 2013
CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz. Índios Cristãos: Poder, Magia, e Religião na Amazônia
Colonial. Curitiba: CRV, 2017.
DANIEL, João. Tesouro Descoberto do Rio Amazonas (1722-1776). Anais da Biblioteca
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Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

O SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO, A PACIFICAÇÃO E OS ÍNDIOS DO RIO


JAUAPERY
EVELYN MARCELE CAMPOS RAMOS*

Introdução
Este artigo pretende apresentar os resultados do trabalho de iniciação científica
intitulado: O Serviço de Proteção ao Índio e os índios do rio Jauapery. Tem como recorte
temporário os anos de 1912 a 1930. O trabalho pretende fazer um balanço historiográfico dos
trabalhos publicados sobre os índios do rio Jauapery, visando identificar os atos de estado
presentes na política tutelar do SPI e os impactos sobre os povos indígenas do rio Jauapery,
analisando as estratégias de etnopolíticas e as formas de agenciamento indígena em face às
políticas indigenistas. Esse projeto este projeto está vinculado tema: História, Etnicidade e
Formas de Agenciamento Indígena na Amazônia (XIX e XX).

Com relação a região do rio Jauapery, esta é situada no baixo rio Negro, em uma área
que hoje faz fronteira entre o Estado do Amazonas e o Estado de Roraima, mas que no início
do século XX, pertencia ao Amazonas e estava sob a influência econômica e até política de
empresas seringalistas situadas na cidade de Manaus.

Sobre o SPI – Serviço de Proteção ao índio, órgão esse que teoricamente colocaria em
prática a política indigenista, tem como protagonista o indígena que a partir 1910 passa a ser
agenciado pelo governo e começa a ter problemas pois, o que serviria como um programa que
protegeria as comunidades indígenas torna-se um facilitador da exploração da mão de obra
indígena. Uma vez que o conflito fora inserido no monopólio do regime tutelar e nos seus
dispositivos administrativos a atividade de “amansar o índio” e torná-lo dócil inserindo ao
progresso num lugar subalternizado e sob um ambiente controlado.

A Importância desse tema

Como forma de contribuir no debate sobre a história indígena e do indigenismo na região


Amazônica e também ir preenchendo algumas lacunas sobre determinados povos é que essa
pesquisa se coloca. Algumas áreas do estado já estão sendo esquadrinhadas pelos

*
Graduanda em História na Universidade Federal do Amazonas (UFAM]); voluntária no Programa institucional
de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), sob orientação do Professor Doutor Davi Avelino Leal; vinculada ao
Laboratório de História da Imprensa no Amazonas, sob a coordenação da Professora Doutora Maria Luiza
Ugarte Pinheiro.
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pesquisadores e o nosso entendimento sobre a relação entre a história dos povos indígenas e o
poder estatal avança.

Porém, algumas regiões ainda estão a descoberto, quase que na invisibilidade, e cabe aos
(as) pesquisadores (as), lançar luz sobre esses espaços opacos da historiografia de forma que a
gente possa ter um quadro cada vez mais completo e complexo das estratégias indígenas e das
formas de agenciamento dessas populações face as políticas indigenistas.

Esse é o caso da região do rio Jauapery, situado no baixo rio Negro, em uma área que
hoje faz fronteira entre o Estado do Amazonas e o Estado de Roraima, mas que no início do
século XX, pertencia ao Amazonas e estava sob a influência econômica e até política de
empresas seringalistas situadas na cidade de Manaus.

As propriedades do comerciante português J.G de Araújo espraiavam sobre essa imensa


região e já no final do século ela havia entrado na rota de preocupação do governo estadual
que para lá enviava equipes técnicas de levantamento das potencialidades econômicas da área.
Lendo os relatórios dos governadores dos últimos anos do século XIX chama atenção a
preocupação governamental com o Jauapery e também com o rio Branco e o incomodo que
representava os conflitos com índios Uaimiri. Se os povos indígenas do rio Madeira havia
sido o principal obstáculo da expansão da segunda metade do XIX, os índios do rio Branco
tornaram-se a “pedra no sapato” do governo.

Tal aspecto é significativo para se entender porque determinadas áreas são escolhidas
como prioritárias para a atuação do SPI no Amazonas a partir de 1910. O Madeira volta para
o centro das preocupações, mas agora ele não está sozinho. O rio Jauapery e as suas
populações indígenas farão parte desse roteiro de atuação militarizada.

De acordo com Antônio Carlos de Souza Lima, durante sua existência, o Serviço de
Proteção aos Índios, agiu com sagacidade, pois usou a tutela dos indígenas brasileiros, criando
uma relação de controle e poder, onde o estado deveria atuar como o defensor dos povos
indígenas, e como moeda de troca tinha acesso recursos humanos e financeiros nos
estabelecimentos indígenas. O plano de proteção, buscava controlar os conflitos entre as
populações indígenas e a sociedade nacional e transformar essas populações indígenas em
trabalhadores nacionais no fim das contas, a proteção oferecida pelo SPI aos indígenas estava
ligada aos interesses da sociedade nacional (LIMA, 1995).

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Essas populações estavam tuteladas a Postos indígenas, esses postos eram locais onde
essas comunidades tinham contato com oficinas, escolas, remédios e médicos. O SPI
enfrentou durante toda a sua existência problemas de carência de recursos e dificuldades de
qualificação de seu pessoal. A atuação do órgão acabou por gerar resultados opostos à sua
proposta. Eram frequentes as denúncias de casos de fome, doenças, assassinatos e
escravização.

Pela amplitude que esses postos tinham, foi feita a escolha de um dos postos mais antigos
era o Posto indígena do Jauapery criado em 1911, o mesmo tem uma grande quantidade de
ofícios enviados à Inspetoria e recebidos da Inspetoria. Por fim, faz-se presente a necessidade
de descortinar esse processo de atuação dos agentes do Serviço de Proteção ao Índios, pois
durante o período de existência do órgão, várias denúncias foram efetuadas contra os mesmos.

Uma discussão necessária


Para a elaboração desse projeto foram feitas as leituras de obras e fontes que nos
mostram de forma ampliada quais os motivos da implantação desse serviço, bem como nos
ajuda a verificar o que pensaram aqueles foram ligados diretamente ao órgão como foi o caso
de Alípio Bandeira99. As obras que falam diretamente do Serviço de Proteção ao Índio,
mostram que, desde o início da colonização, ocorreu o processo de extermínio da população
indígena. Em diversos momentos da história brasileira, as consequências trazidas pelo contato
do índio a com a sociedade nacional significou mudanças sociais, econômicas e demográficas
traumáticas para a sobrevivência física e cultural do índio.
No que diz respeito a conquista das terras indígenas, estas ações ocorriam de forma
extremamente violenta. A terra foi um importante objeto motivo de muita ambição dos
colonizadores. Por conta desse pensamento índio nada mais significou que um obstáculo e
nenhuma razão existia para que fosse preservado.
É importante destacar, que esse processo não ocorreu de forma homogênea. Sendo a
população indígena um grupo dividido em várias comunidades. Deste modo, teremos povos
que tem cultura, etnia e línguas diferentes, bem como suas particularidades. Por serem muitos
povos, podemos entender que cada visita do estado nacional era uma surpresa, pois cada
contato foi recebido de maneira diferente.

99
O Coronel era oficial do Exército e companheiro de Rondon na demarcação de fronteira. Ele organizou a
primeira legislação de proteção aos índios no Brasil, em 1910, quando criaram o SPI no início do século XX.
Como representante do Serviço de Proteção ao Índio percorreu a região onde se localiza o rio Jauapery, quando
ocorreram novos contatos amistosos com esses indígenas, agora denominados de Uaimirys.
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No período colonial as relações do império com os índios eram mediadas pelas


missões religiosas, quem fazia parte do corpo das missões tinham visão muito etnocêntrica
dessa população chamada nesse período de “sociedade primitiva”. O índio, além de ser visto
como um ser primitivo, era visto como detentor de uma cultura considerada “profana” e
graças a visão eurocêntrica essa cultura deveria ser erradicada, devendo-se buscar ensinar os
costumes corretos de vestir, comer, falar, relacionar-se, modificando suas crenças na
perspectiva de salvar suas almas. O trabalho de catequização intolerante e fanático produzido
pelas antigas missões religiosas levaram ao extermínio de muitos povos e aos que
sobreviveram deixaram um vazio, pois essas, missões destruíram a confiança desses índios
em seus valores, sem terem sido capazes de apresentar outros preceitos que lhes assegurassem
condições de sobrevivência.
Com a virada de século marcada por grandes mudanças, é notório no final do sec.
XIX, no período em o Brasil torna-se república vemos uma mudança, onde política pró-
extermínio dá lugar um Brasil disposto a ter trabalhadores nacionais e após a experiência
“Rondonista”100 o Estado acha possível fazer uma pacificação entre a sociedade e povos
indígenas. Em 1910 foi criado o Serviço de Proteção aos Índios – SPI. A criação do SPI
marcou uma mudança importante na política indigenista. Retirou-se da Igreja a
responsabilidade total na relação com os índios.
No papel observamos uma série de medidas do que viria “beneficiar a esses tutelados”,
mas tanto as leituras dos textos, quanto os relatórios das inspetorias, nos mostram quão
violentos foram muitos desses contatos. Apesar dos avanços da legislação em relação aos seus
direitos, na prática os índios não deixaram de ser encarados como um entrave ao
desenvolvimento nacional. Os jornais do início do século registraram impressionantes relatos
sobre massacres e assassinatos decorrentes do conflito entre índios e colonos.
David Stauffer que escreveu um importante artigo na década de 50 afirma:
“Era difícil encontrar relatórios de testemunhas oculares sobre conflitos com
os indígenas escritos imparcialmente. A importância de tais relatórios não
está nos detalhes de massacres praticados por um ou por outro lado, mas
antes no fato de que eles apareciam nos diários, servindo àqueles que
desejavam contribuir para um sentimento popular em favor da proteção ou
do extermínio daqueles índios.” (STAUFFER, 1954, p.86)

100
O Tenente-Coronel Cândido Rondon era visto como herói nacional, esse prestigio era consequência do
trabalho foi desenvolvido desde 1890, de construção da rede telegráfica nas áreas estratégicas do país. Ao longo
desses anos este fez amizade com inúmeros povos indígenas e conseguindo fazer com que esses indígenas
trabalhassem lado a lado com ele durante a instalações dessas redes.
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No que diz respeito ao Amazonas, o primeiro posto do SPI foi criado no Rio
Jauapery101 localizado entre os Estados de Roraima e Amazonas, este era cercado por mais de
15 grupos indígenas tendo destaque os Uaimiry102 tanto no relatório de Alípio Bandeira que
leva o nome do rio onde fez sua inspetoria: Jauapery(1911), quanto Barbosa Rodrigues
famoso pelo seu relato chamado A pacificação dos Crichinás(1884).
A história oficial do contato dos esses povos inicia-se no final do século XVIIII, com
João Barbosa Rodrigues, este é conhecido como primeiro pacificador desse povo.
Segundo os relatos, Barbosa Rodrigues percorreu diversas vilas103 próximas do
território indígena com o objetivo de coletar registros e relatos sobre aquele povo. Ele os
denominou Crichanás, justificando que essa era a etnia encontrada no período de suas
expedições e que os violentos e ardilosos indígenas cuja sua braveza era espalhada por todo
estado ali não existiam.
Os relatos desse período mostram que esses indígenas não eram vistos apenas como
bravos:
O Jauapery é o esconderijo de algumas tribos intatas, chamadas de bravas ou
antropófagas por não tolerarem nada dos chamados “civilizados”. Dizem que agora
o rio está totalmente abandonado pelos seringueiros. Com a última matança inútil,
promovida por uma expedição punitiva vinda de Manaus, em 1905, que, segundo se
diz, custou a vida de duzentos índios de ambos os sexos e diferentes idades, estes
ficaram irritados. Diz-se que só vêm ao rio principal na estiagem, para pegar
tartarugas; na época das chuvas retiram-se para longe, para as cabeceiras. Que, no
ano passado, algumas canoas com índios Jauaperí estiveram novamente em Moura
para trocar mercadorias. O fato de esses índios tentarem repetidamente relacionar-se
de modo pacífico com a civilização prova que não são os canibais ferozes que têm a
fama de ser. Os heróis de Moura só ousam ir até o Jauaperi em companhia de vinte a
trinta barcos para, na estiagem, pescar e pegar tartarugas. Nessas ocasiões, é
muitíssimo frequente atirarem imediatamente em qualquer índio que apareça; não se
pode, pois,condenar esses índios quando, ocasionalmente, se vingam da corja
mestiça. (Koch-Grunberg, 2006: 32)

No início do século XX, Alípio Bandeira, representante do Serviço de Proteção ao


Índio – SPI viajou na região onde se localiza o rio Jauapery, quando ocorreram novos
contatos amistosos com esses indígenas, agora denominados de Uaimirys, valendo-se da
mesma estratégia utilizada por Barbosa Rodrigues, a oferta de “brindes”. Alípio Bandeira
encontra, guardadas as devidas proporções e momento histórico, a mesma situação de
hostilidade entre indígenas e não indígenas, quando em 1905, um incidente provocou o

101
O rio Jauaperi é um grande curso de água ao sul do estado de Roraima. Seu curso dá-se nos municípios de
Caroebe, São João da Baliza, São Luís e Rorainópolis tendo como foz o rio Negro.
102
Atuais Waimiri Atroari.
103
Existiam três vilas próximas a esses grupos indígenas, sendo que a única que era atacada era a Vila Moura,
todas essas vilas já haviam agido contra aos índios do Jauapery, os ofícios da época e os textos de dos autores
acima citados falam que não sabem o motivo de apenas um lugar ser atacado.
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massacre daquele povo, por tropas do governo, autorizado pelo governador do Estado,
Constantino Nery.104
Para efeito de síntese, pode-se dizer que a gestão do inspetor Alípio Bandeira, embora
de curto espaço de tempo (julho de 1911 a janeiro de 1912), revestiu-se, segundo a ideologia
que informava o SPILTN, de extrema importância, à proporção que promoveu a chamada
“pacificação” dos povos indígenas do rio Jauapery. Nesse particular, como afirma Souza
Lima(1995:166), “as pacificações têm uma dimensão espetacular fundamental na constelação
de temas político-administrativos enfeixados pelo poder tutelar”.
Em 1912 instalou o primeiro posto de atração aos índios no rio Jauapery. A partir
dessa data, o SPI passa a coordenar os trabalhos e a política indigenista na região. Isso
teoricamente, pois esse órgão governamental pouca autonomia teve para impor as políticas
indigenistas vigentes nessa época, dada as proporções que Pessoas ligadas ao governo e
grandes donos de seringais viam o potencial que as terras daquela região tinham.
Alípio por ter participado da formação desse posto indígena, ficou sempre informado
da situação que essa população Uaimiry passava e no seu livro ele deixa tudo isso explicando
de forma detalhada de quem era culpa de toda aquela violência e quis motivos eram trazidos
como argumentos daqueles crimes pelos fitos “civilizados”.
Coordenados pelo Inspetor Bento Lemos esses índios foram reordenados para região
de Tauacuerera onde durante 5 anos conseguiram fazer moradias fixas, porém, viram seu
território ser invadido por exploradores de recursos naturais (peles de animais, castanha,
balata, pau rosa, entre outros) e, contra esses invasores, armavam-se de arco e flecha.
As condições de saúde colocavam em questão a administração do SPI. As doenças
eram interpretadas como relações de conflito entre os indígenas e a empresa seringalista, não
obstante a perspectiva funcional e harmônica de Bento de Lemos ao enfatizar a ação
econômica. Em relação ao Posto do Jauapery, houve a ocorrência de gripe, causando a morte
de três indígenas:

104
“Em 1905, o Sr. Coronel Antonio Bittencourt, vice-governador, tinha no Jauapery um barracão de sociedade
com o Sr. Antunes, em Maracacá. Aí foram os índios uma vez. Vidal, criado de Bittencourt e Antunes tocou os
índios de casa para fora e, como, ao chegar à escada, um deles resistisse a descer, Vidal deu-lhe um empurrão
que o jogou abaixo. O índio, assim que caiu, flechou Vidal. Vidal matou-o com um tiro de rifle. Os
companheiros do índio queestavam na praia com um companheiro de Vidal, mataram-no. Bittencourt pediu,
então, uma expedição a Constantino Nery, governador. Essa expedição, comandada pelo Capitão catingueira
entrou no Jauapery e, guiada pelo índio Manoel, do Sr. Horta, foi à maloca, matou muitas mulheres e crianças e
aprisionou um certo número de índios que pretenderam transformar em soldados. Quase todos morreram de
nostalgia. O Sr. Nazareth reconduziu a Moura doze desses índios sobreviventes que voltaram à sua maloca”.
(Bandeira, 1926:22).
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“[...]Comunico-vos que dos índios domiciliados faleceram os seguintes: Gregori,


Perej a índia, e uma criança do sexo masculino de aproximadamente 3 meses[...]”
(Documentos do Posto indígena do Jauapery, pp.535)

A fama de valentia desse povo chegava até a capital da província do Amazonas e


expedições militares eram organizadas para tentar retaliar toda a comunidade indígena. Nessa
tentativa de afastar os invasores de seu território, muito mais perdas, segundo os relatos e
documentos.
O governo estadual105, nesse período, tinha sua economia alicerçada nos produtos
extrativistas. Dessa maneira, a população indígena tornava-se um incômodo para os coletores
das "drogas do sertão", que viam nas terras indígenas um grande depósito desses produtos.
Alípio Bandeira fala sobre isso:
Em outubro de 1921, Simplício Coelho de Rezende Rubim, aproveitando a
circunstância de ser governador do Estado o seu tio desembargador Rego Monteiro,
associou-se a outros indivíduos para a exploração de castanhas e requereu grandes
lotes cujos autos em maio deste ano estavam na Seção de Terras para conferência.
Entraram assim no rio, justamente na sua melhor parte, além de Simplício, Bezerra
& Irmão, Gregório Horta, José Francisco Soares Sobrinho, Guilherme Baird e
outros. (Bandeira, 1926: 30).

No governo do Desembargador Rego Monteiro76 a situação se agravou. As


“invasões” passaram a acontecer, inclusive, em terras que haviam sido destinadas pela Lei
941, de 16 de outubro de 1917, a serem demarcadas como terras indígenas. Isso se deve ao
seguinte fato:
O Governo do estado editou lei, no ano de 1922, revogando a supracitada lei, com o intuito de
favorecer tais invasões, em sua maioria protegidos ou parentes seus, conforme abaixo:
“E que o poder executivo. Atuando sobre a Assembléia Legislativa do Estado, fez
que esta votasse uma lei, já sancionada, revogando a de nº 941, de 16 de outubro de
1917, que não só reconhecia o direito dos índios sobre as suas posses havidas por
ocupação primária, como reservara, desde logo, aos silvícolas várias áreas situadas
nos rios Surumú, Seruhiny e Jauapery. A nova lei draconiana é concebida nos
seguintes termos:
Artº 1º - Fica revogada a lei nº 941, de 16 de outubro de 1917.
Artº 2º - O Governador do Estado concederá às famílias ou tribos indígenas a área
de terra, que a seu critério julgar conveniente para domicílio e aproveitamento
dessas famílias ou tribos conforme o destino agrícola ou pastoril que for dado a
essas terras.
Parágrafo Único – Desta concessão serão excluídas as terras que já tenham sido
concedidas pelo Estado, e as que já estiverem ocupadas e cultivadas para qualquer
pessoa, com residência habitual e cultura efetiva.
Artº 3º - Os interessados pela concessão dessas terras promoverão perante o
executivo do Estado, o respectivo processo, que obedecerá ao que for determinado
no Regulamento da Repartição de Terras do Estado.
Artº 4º - Revogam-se as disposições em contrário.

105
Governado nesse período pelo o Srº Rego Monteiro
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A pesquisa revela que muitos desses empresários de drogas do sertão tentavam ter
controle dos postos indígenas tentando colocar membros de sua família como inspetores do
serviço de proteção ao índio como mostra a carta enviada pela firma Cardoso e Barros para
Bento Lemos:
Caçaduá, 9 de março de 1921
Digníssimo Sr. Dr. Bento
Desejando-vos bastante saúde e toda sorte de felicidade, juntamente a Exª. família e
adorados filhos, respetivamente cumprimento-vos bastante acanhado, peço-vos
venia, para mais uma vez importunar-vos, com um pedido que presentemente, só o
Sr., honrado Dr., poderá satisfazer, tirando-me da difficil situação em que encontro-
me.
Sendo arrendado o nosso seringal (“Caçaduá”,) ao dedicado Tenente Barros, para
pagar-se do soldo que lhe sou devedor, relativamente a nossa sociedade que
grupava, sobre a firma (“Cardoso e Barros”) e receio de não collocar-me durante o
respectivo praso referido arrendamento, maxime, na epocha em que tudo é difícil;
venho respeitosamente solicitar-vos a ocupação de um cargo qualquer Posto
Indígena, até mesmo administração do Posto Jauparery, que com a vossa capiciente
instrução para bem amparar os interesses dos nossos irmãos das selvas.
O Ilustre Dr. Já tem provas bastantes, de que sempre fui ardoroso. Emº do Índio e
quando estiver ocupando o responsável cargo de encarregado do posto Jauapery,
melhor vos provarei, identificando-me solicitamente com honrosa e emmorredoura
causa dos silvícolas.
Enquanto o meu procedimento o distinto Dr. já deve conhecer; sou distituído de
vícios prejudiciaes e de prodigalidades; já a índoli, já por ter recebido os melhores
exemplose concelhos do vosso abnegado Tenente Barros.
Certo por ter atendido no meu pedido, desde já, penhoradíssimo agradeço-vos.
Otávio dos Santos Cardoso. (Documentos do Posto indígena do Jauapery, pp.222 e
223)

Invasões em áreas ocupadas por indígenas eram incitadas e denúncias dessas invasões
eram tidas como calúnias contra os coletores, feitas por pessoas que impediam o crescimento
da economia estadual. Devido ao reduzido número de combatentes, a posição dos Uimirys era
mais de defesa do território, da honra, da comunidade. Aldeias inteiras eram dizimadas em
ataques-surpresa, mesmo assim os índios combatiam com extrema habilidade guerreira.

Conclusões

A pesquisa aponta, que com o trabalho de Rondon e seus companheiros, garantiu-se a


criação do Serviço de Proteção aos Índios, em 1910. A criação do SPI não representou,
contudo, a derrota dos interesses que permeavam as posições de indivíduos como os
moradores da Vila de Moura. Apesar dos avanços da legislação em relação aos seus direitos,
na prática os índios não deixaram de ser encarados como um entrave ao desenvolvimento
nacional.

Nos três primeiros anos do SPI garantiu-se as verbas solicitadas. Em relação a pessoal,
Rondon contava com a equipe formada durante a construção das linhas telegráficas e com
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intelectuais que participaram da luta pela criação do SPI. A autoridade garantiu-se através do
exercício pois o SPI era constituído em sua maioria de oficiais.

Era necessário garantir verbas suficientes, pessoal altamente qualificado e autoridade


para se impor aos poderes locais. No caso do posto indígena do Jauapery aponta que pessoas
como Simplício Rezende Rubim, sobrinho do então Governador Sr. Rego Monteiro, juntou-se
Bezerra & Irmão, Gregório Horta, José Francisco Soares Sobrinho, Guilherme Baird para
exploração de castanhas e essas terra que estes tinham conseguido autorização para
exploração era justamente o a região Taucauera, onde estavam se organizando povo após
pacificação, estes usaram o indígenas como desbravadores, quando viam o quão fértil era o
local, viam e de forma violenta os tirando se suas instalações e aos que teimavam em ficar, a
eles restavam o trabalho exploratório.

É valido chamar atenção, que a ação do SPI garantiu que imensas regiões do país
fossem ocupadas pacificamente e os índios que as habitavam passassem a viver nos Postos
Indígenas que correspondiam a pequenas partes dos territórios. A visão "romântica" dos
positivistas de "que uma vez asseguradas oportunidades de desenvolvimento, as comunidades
desabrochariam da condição fetichista para etapas cada vez mais avançadas e se integrariam
harmonicamente à sociedade nacional", foi rapidamente desmentida. Além do mais, a ação do
SPI não impediu o efeito de desagregação cultural dos grupos indígenas, nem conseguiu
conter os invasores porque o Estado não garantiu os direitos legais dos índios,
fundamentalmente, a posse da terra necessária à sua sobrevivência. Se, por um lado, é verdade
que a ação do SPI salvou povos da extinção total, por outro, o processo de pacificação dos
povos hostis ocasionou a disseminação da fome, de doenças, da desintegração tornando os
índios parte do grupo mais miserável dos segmentos marginais da sociedade.

O que chama a atenção na trajetória do SPI é que parece estar presente, em todos os
mecanismos de intervenção estatal da questão indígena, a contradição entre a atuação de
indivíduos profundamente motivados pela vontade de proteger as populações e a dinâmica
estrutural que produz a miséria e a degradação física aos tutelados.

Fontes e Referências Bibliográficas


Fontes:
Ofícios remetidos ao posto do Jauapery. Disponíveis em: Museu Amazônico.
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“EU SOFRI MUITO NA JUTA”: HISTÓRIA E MEMÓRIA DOS TRABALHADORES


DA JUTA DA COMUNIDADE SÃO SEBASTIÃO DA BRASÍLIA PARINTINS-AM
(1950-1980)*

EVERTON DORZANE VIEIRA**


JÚLIO CLÁUDIO DA SILVA***

Introdução
Neste artigo analisamos a história e a memória de ex-trabalhadores que atuaram no
cultivo da juta no período de 1950 a 1980, na Comunidade de São Sebastião da Brasília,
localizada aproximadamente a 7 km do município de Parintins, no interior do Estado do
Amazonas, região do Baixo Amazonas106. Também buscamos analisar a história das
experiências com o trabalho e suas condições no processo do cultivo da juta a partir da
metodologia da História Oral.
Esta metodologia foi essencial para o desenvolvimento deste trabalho, pois
realizamos entrevistas com ex-trabalhadores, que atualmente moram na comunidade, e por
meio dessas narrativas, identificamos quais foram às atividades laborais diretamente
relacionadas à produção de juta, conhecemos quais foram às condições de trabalho e
percebemos como era a divisão social do trabalho entre homens e mulheres. Com base nestes
relatos, nossa intuição é de valorizar suas vozes e iluminar o seu sentido histórico, e através
de suas trajetórias de vida evidenciamos quais foram as consequências econômicas do
trabalho deixadas na comunidade para estes homens e estas mulheres no período do apogeu
da produção da juta na Amazônia.
Abordaremos em seções os seguintes itens para estruturação desta produção. Na
primeira seção, faremos uma breve comunicação sobre a juta no município de Parintins, desde
os acordos políticos, bem como a imigração japonesa na década de 1930, e os impactos
econômicos trazidos ao município por meio deste acontecimento econômico, social e cultural.
Na segunda seção faremos uma apresentação da comunidade São Sebastião da Brasília, desde
o seu surgimento, oficialmente e não oficialmente, a chegada da juta a estes comunitários, e

*
Apontamentos de pesquisa do Programa de Apoio à Iniciação Científica – PAIC, da Universidade do Estado do
Amazonas – UEA, do Centro de Estudos Superiores de Parintins – CESP. Financiado pela Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM.
**
Acadêmico do Curso de História da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, no Centro de Estudos
Superiores de Parintins – CESP. E-mail: everton.parintins@gmail.com
***
Professor Adjunto da UEA/CESP. E-mail: julio30clps@gmail.com
106
Consulta realizada no site www.sidra.ibge.gov.br no dia 04 de maio de 2018.
141
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principalmente o que a juta proporcionou economicamente no período de 1950 a 1980, os


festejos que acontecem e a estruturação da comunidade.
E finalizaremos com uma seção que argumenta sobre a história e memória dos ex-
trabalhadores da juta da comunidade São Sebastião da Brasília, que através dos relatos desses
colaboradores podemos identificar aspectos que objetivam nossa comunicação. E argumentar
a importância da história oral para este tipo de trabalho de pesquisa, no que tende a elucidação
da memória como algo primordial para a construção de uma trajetória de vida ou história de
um determinado acontecimento como marco positivo ou negativo de quem narra.
Numa dessas narrativas, utilizamos uma frase para titularmos esta discussão. Frase
de um ex-trabalhador da juta na comunidade, e nisto percebemos em todas as narrativas que o
trabalho do cultivo da juta, foi para estes ribeirinhos, nada mais que um trabalho árduo e
sofrido.

A juta no município de Parintins


A juta chegou a Parintins por volta da década de 1930, com imigração japonesa, e a
partir deste município, a juta foi espalhando-se para outros municípios e outros estados do
país. Para Schor e Marinho (2013) “a história da juta em Parintins inicia-se com a chegada de
uma missão, chefiada pelo deputado, Dr. Tsukasa Uetsuka”. Os autores também afirmam que
a viajem do político tinha por finalidade a escolha de um local em Parintins, cujo objetivo era
“destinado à instalação do núcleo de Kotakuseis (como eram chamados os alunos diplomados
pela Escola Superior de Colonização do Japão)” (SCHOR; MARINHO; 2013, p. 241).
De acordo com Ferreira (2016), a juta foi uma modalidade crescente neste período,
este afirma que “a partir do êxito de Ryota Oyama em 1934, essa modalidade agrícola não
parou mais de crescer e alcançar novas áreas”, o autor ainda afirma que “de Parintins, ela se
espalhou por quase todo o Amazonas, Pará, e em algumas localidades dos estados do Amapá
e Espírito Santo” (FERREIRA, 2016, p. 145).
Neste caso podemos compreender que a juta no município de Parintins foi um
propulsor para os demais municípios do estado do Amazonas, e esta proporcionou emprego e
renda a esses municípios. Mas para os cultivadores da juta que habitavam em comunidades
ribeirinhas, isso foi considerado por eles, um trabalho árduo e difícil, no que causou doenças e
mortes ao longo do tempo de cultivação no período de auge da juta.
O processo de implantação da juta no Amazonas deu-se por dois momentos. O
primeiro momento, foi no período de 1927, com a assinatura do governador Ephigenio Salles

142
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para conceder terra aos japoneses para cultivação da juta no estado do Amazonas. O segundo
momento, foi o processo de saída dos imigrantes japoneses das terras amazônicas, por conta
dos acordos de Vargas com os norte-americanos, sucedeu a retirada dos japoneses do Brasil,
neste período. Assumindo a juta, grandes empresários que reorganizaram juntamente com o
governo o “retorno da juta”.
Após a retirado dos japoneses, o negócio com a juta ficou nas mãos de empresários
brasileiros, que no caso do Amazonas, utilizaram bastante a mão-de-obra ribeirinha por conta
das áreas de várzeas na qual se localizam as comunidades. E uma dessas comunidades que foi
utilizada para este ramo de trabalho no período de 1950 a 1980, foi a comunidade de São
Sebastião da Brasília.

Comunidade São Sebastião da Brasília


A comunidade São Sebastião da Brasília, está localizada à margem esquerda do Rio
Amazonas, com cerca de 7 km do Município de Parintins, estado do Amazonas, região do
Baixo Amazonas (IBGE, 2010). E de acordo com Arcângelo Cerqua esta foi criada
oficialmente em 28 de março de 1968, pela Igreja Católica, por meio da Comunidade Eclesial
de Base (CEB), que tinha como missão reorganizar as localidades rurais a levar ensinamentos
religiosos católicos aos comunitários do interior (CERQUA, 1980).
Em uma de nossas entrevistas, encontramos na oralidade do Sr. Antônio Soares
Ribeiro Filho, conhecido na comunidade como Pampam, sobre a formação da comunidade
não oficializada pelo governo ou pela igreja. E este respondeu, não lembrando a época, que
seus avós vieram de Portugal e foram aos poucos construindo a comunidade antes da inclusão
da instituição religiosa católica. Ele afirma que,
“Eles vieram de Portugal e se coisaram aqui através da juta, e foram se mudando, se
mudando e aí trabalhava na juta e aí foram construindo assim a família, um filho
casava com um, outro filho casava com outra e assim ia saindo à comunidade aqui
foi aumentando, ainda não era comunidade, não era comunidade, era só os
moradores a granel, cada um fazia sua casa” 107.

“Moradores a granel” eram os primeiros comunitários que não tinham identificação


oficial registrada, como Pampam afirma. E podemos compreender nesta narrativa o registro
não oficial desta comunidade. Ao perguntarmos sobre os primeiros moradores da
comunidade, Pampam nos afirmou que seus pais, tios e avós já haviam falecidos e que
lembrava raramente somente o que seus pais lhe contavam sobre a história da comunidade.

107
Entrevista com Sr. Antônio Soares Ribeiro Filho (Pampam) no dia 26/03/2017, na comunidade de São
Sebastião da Brasília.
143
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No período de 1950 a 1980, a juta foi um gênero agrícola de grande relevância


econômica e social, influenciando o modo de vida das populações ocupantes das várzeas do
Rio Amazonas (SOUZA, 2008). Ela proporcionou certa economia ao município de Parintins,
empregando homens e mulheres que trabalharam nas chamadas “prensas”, antigos armazéns
que na maioria eram mulheres que atuavam no trabalho de prensar a fibra para exportação.
Mas antes da juta chegar ao município ela era cultivada nos interiores do Amazonas,
que no caso, a comunidade em questão, foi uma das comunidades que atuaram praticamente
em grande proporção dos seus comunitários para o cultivo da juta no período abordado. A juta
proporcionava uma escassa economia a esses comunitários, conforme seus relatos, tinha que
entregar uma certa quantidade de juta conforme o combinado com o “patrão”, e este lhe
“servia” como alimentos básicos e pouco dinheiro.
Naquele período os ribeirinhos usavam o termo “patrão” a pequenos empresários que
faziam a compra e venda da juta, ou seja, compravam dos cultivadores nos interiores, essa
compra era feita conforme exigências e regras desses patrões, e depois vendiam aos armazéns
que faziam outros serviços derivados da juta para a exportação. Esse sistema de “patronagem”
é relacionado ao sistema de aviamento no período da exploração da borracha na Amazônia,
também registrado pela Literatura da região. Segundo McGrath “aviar significa fornecer
mercadoria a prazo com o entendimento que o pagamento será feito em produtos extrativos
dentro de um prazo especificado” (MCGRATH, 1999). Esse tipo de sistema fez com que o
lucro monetário se concentrasse apenas nas mãos de poucos, que no caso, eram os patrões e
demais empresários que submetiam comunidades em troca de produtos alimentícios. E pela
necessidade de obter o alimento ou um pouco dinheiro em um período em que estes
comunitários não tinham outro método de sobrevivência, tinham apenas a força da mão-de-
obra como ferramenta principal de trabalho.
Para o filósofo húngaro István Mészáros, este tipo de situação fez com que poucos
enriquecessem e muitos ficassem cada vez mais na miséria, principalmente pela valorização
da propriedade. Para os brasilienses da comunidade, o fato de terem um pedaço terra para
morar e por alguns terem conseguido na juta, ou por heranças de seus pais que também
trabalharam na juta, fez que essa valorização fomentasse a importância de luta diária pela
conquista. Mészáros afirma que,
“Aconteceu que a elite foi acumulando riquezas e a população vadia acabou por
ficar sem ter outra coisa para vender além da própria pele. Temos aí o pecado
original da economia. Por causa dele, a grande massa é pobre e, apesar de se
esfalfar, só tem para vender a própria força de trabalho, enquanto cresce
continuamente a riqueza de poucos, embora esses poucos tenham cessado de
trabalhar há muito” (MÉSZÁROS, 2007, p. 113).
144
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Na comunidade, atualmente, são comemoradas duas festas. A primeira é realizada no


mês de janeiro em homenagem ao padroeiro São Sebastião, festa realizada e organizada pela
Igreja. E a segunda, consiste na festa do mastro, que de acordo com Charles Wagley é algo
típico de muitos interiores da Amazônia (WAGLEY, 1988). Sua organização e realização
ficam por responsabilidade da associação da comunidade juntamente com alguns moradores.
A igreja é uma das instituições que determina o modo de vida dos comunitários,
Charles Wagley afirma que,
“Existem instituições e poderes sociais de âmbito regional, nacional, e até mesmo
internacional, que determinam a tendência de vida de cada pequena comunidade. A
igreja, as instituições políticas, o sistema de educação convencional, o sistema
comercial e muitos outros aspectos de uma cultura, são muito mais difundidos e
mais complexos em sua organização do que parecem quando observados em uma
comunidade” (WAGLEY, 1988, p. 43).

Ainda há na comunidade uma outra festa surgida a partir do trabalho desses


comunitários. Além dessas duas comemorações festivas há também a festa do camarão, sua
realização acontece no mês de agosto, no período em que a pesca pelo crustáceo é realizada
com mais frequência. Segundo a associação de moradores e os registros paroquias, residem
atualmente, cerca de 69108 famílias na comunidade, e suas habitações são construídas no
modelo de palafitas, por causa do período de enchente e vazante que ocorre todo ano na
Amazônia. Há também na comunidade a Igreja do Santo Padroeiro; uma escola com ensino
regular; uma sede da associação, na qual acontecem reuniões e eventos. Não há uma Unidade
Básica de Saúde na comunidade, quando necessário, os comunitários vão ao hospital do
município de Parintins.

História, história oral e memória do trabalho com a juta


Na comunidade, fizemos entrevistas sobre o trabalho que tiveram com cultivo da
juta, no período de 1950 a 1980. Como descrito acima, nosso objetivo é compreender como
foi esse trabalho e principalmente valorizar as vozes e as memórias desses comunitários que
vivenciaram o que foi trabalhar na juta. Entrevistamos algumas famílias da comunidade, e
ouvimos os homens e mulheres que atuaram nesse árduo trabalho que foi o da juta.
A história e a memória desses ribeirinhos foram analisadas segundo suas narrativas,
ou seja, de cunho autobiográfico. Em uma entrevista o pesquisar tem que conformar-se com

108
Também referenciada no site www.institutoamazonia.org.br, acessado em 28 de maio 2018.
145
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que está sendo narrado, principalmente quando não há registros literários de quem está
narrando. Nesse sentido, Pierre Bourdieu (1998) afirma que,
“produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato
coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja
conformar-se com uma ilusão teórica, uma representação comum da existência que
toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar” (BOURDIEU, 1998,
p. 185)

Nas análises das narrativas, iniciaremos com o Sr. Antônio Soares Ribeiro Filho,
como descrito acima, conhecido como Pampam nasceu na comunidade de São Sebastião da
Brasília, no dia 2 de novembro de 1940. O antigo trabalhador da juta, na data da entrevista,
contava com 77 anos de idade. Segundo seus relatos o trabalho com a juta parecia ter sido um
legado de seus pais e iniciado em sua infância.
Sendo a juta um trabalho familiar, seus pais o introduziram juntamente com seus
irmãos nesta labuta, pois a mão-de-obra é a ferramenta principal do trabalhador ribeirinho, e
esta força de trabalho auxilia diretamente no sustento da família. Nas palavras de Pampam,
este afirma que todo esse trabalho era “pra criar os filhos que eles já estavam tendo”. Aos dez
anos de idade o pequeno Antônio “já ajudava” seus pais na juta109.
Conforme o tempo ia passando, e os pais de Pampam já com idade avançada,
juntamente com seu irmão tinha que dar continuidade na juta, para o sustento de toda a
família. Pampam nos relatou esse momento em que seu pai passara a responsabilidade do
trabalho com a juta para si e seu irmão. “Ele (pai de Pampam que também tinha por nome de
Antônio) me chamou e me disse ‘meu filho eu já tô velho”.110 Desse momento em diante
Pampam e seu irmão sendo mais jovens faziam o trabalho que exigia mais força.
“Aí meu irmão, nós era só dois irmãos, aí meu irmão mais velho que foi na frente,
nós trabalhava junto, mas os velhos mesmo velho ajudavam nós também, nós
brocava o roçado, se fosse uma quitaria, nós faziam assim de trocar dia um com
outro pra fazer aquele serviço de cinco, seis ou sete pessoas pra roçar mato, fazer
uma quitaria, uma quitaria tem cem metro de comprimento com cem de largura, nós
fazia só num dia aí se queimava, a gente fazia o brocamento tudinho só num dia e aí
queimava o roçado e aí a gente pegava a semente da juta e ia plantar e aí era só
zelar, aí tem aquele que chamam de... mas aqui na várzea só chamam de carieiro, só
que o carieiro ele comia a juta, então o senhor tinha que cuidar assim andando pelo
aceiro do roçado pro bicho não coisarem”.111

109
Entrevista com Sr. Antônio Soares Ribeiro Filho (Pampam) no dia 26/03/2017, na comunidade de São
Sebastião da Brasília.
110
Idem.
111
Idem.
146
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O trabalho que eles faziam consistia no plantio da juta, no corte, no afogamento, na


lavagem, na secagem, no enfardamento, e por fim na entrega dos fardos aos destinados
patrões, conforme o negócio entre as partes. O processo de plantação era feito com uma
máquina, que segundo Pampam, eles a chamavam de tico-tico, Pampam às vezes passava de
três dias plantando uma quitaria (100m²), “não acabava e no outro dia, dois dias, três dias
acabava uma quitaria de plantar”112, afirma.
Após o plantio da juta, eles faziam o processo de corte conforme o tamanho decidido
pelo agricultor ou quando fosse o melhor para a colheita. Pampam também nos relatou ainda
sobre o processo de plantio da juta, o período até a colheita, “o plantio da juta era em
novembro”. Esse período foi um exemplo utilizado pelo Pampam, e continuou “e o senhor
contava, dezembro, janeiro, em fevereiro o senhor cortava por causa da água que vinha”. Na
Amazônia acontece o período de enchente e vazante das águas, a agricultura, a piscicultura e a
agropecuária são organizadas conforme esse período. Na subida das águas, a juta tinha que ser
cortada e passar por vários processos até o momento da entrega, “a água vinha e a gente ia
cortando, ia cortando e afogando”113.
O processo de “afogar” era a parte mais árdua do trabalho com a juta. Eles faziam
um sistema para realizar este tipo de afogamento, que mesmo sendo na água não era o
processo de lavagem.
“Afogar era reunir tudinho os fechos que era amarrado com a mesma fibra da juta,
só que a fibra da juta era a juta verde e a gente tirava, e quebrava assim, tah! Tirava
aquela envira e atracava um fecho, vamos dizer assim, uma comparação com isso
aqui, o senhor cortava e ia amontoando um em cima do outro, aí o senhor pegava a
envira e amarrava, aí o senhor fazia a pilha que nós chamamos da juta, pra ela
amolecer, o senhor faz de quinze, de vinte, de cinquenta, quarenta fechos, uma da
ilharga do outro, mesmo que ser essas tábuas aqui, certo! Que era pra botar o pau em
cima pra fazer a pessoa que era pra ela ficar dentro da água assim, mais ou menos no
fundo, com mais ou menos um palmo de fundura e com uma semana ela estava
mole”114

A lavagem da juta era realizada para a retirada de uma película que havia nos feixes
de juta, “a água era suficiente e senhor sacudia ela na água pra lá, pra cá, tirava tudinho aquela
pelica que é a casca”. Esse trabalho de lavagem da juta era realizado em grande pelas
mulheres, mas elas também faziam os demais processos da juta. “Ela ainda me ajudou bem a

112
Idem.
113
Idem.
114
Idem.
147
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trabalhar na juta, ela mesmo, ela capinou, ela me ajudava, quando era em terra ela me ajudava
a cortar com o terçado e na água lavava mais e também fazia tudo”115.
A secagem da juta era realizada em uma espécie de madeira com grande
comprimento conhecida como “vara” pelos ribeirinhos. Essas varas eram colocadas com
ligações feitas por pontos de conexões, e os feixes de juta eram colocados em cima dessas
varas e expostos ao sol, como relata Pampam, como um grande varal. Após os feixes de juta
secarem, após ficarem dias expostos ao sol, eles recolhiam os feixes para serem prensados ou
enfardados.
O enfardamento da juta era realizado na comunidade, pois tinha que ser entregue em
fardos e pronto para a pesagem. Esse sistema era o último processo a ser feito antes da entrega
para o patrão. Pampam nos mostrou como funcionava esse sistema, uma prensa manual feita
de madeira. “Enfardar é uma prensa, eram oito paus, afincava quatro aqui, um pau aqui, outro
pau aqui e outro pau aqui, essas duas bocas aqui, essa boca daqui era a boca e jogava de lá
duas cabeças e de lá ele virava aqui e de lá virava, botava daqui e virava pra lá”116.
E ainda nos explicara que o tamanho do fardo era feito conforme o instrumento de
trabalho, “o senhor fazia o fardo da juta do tamanho que o senhor quisesse fazer, do peso que
o senhor quisesse fazer conforme a prensa”117.
Pampam continuou nos explicando esse processo até sua finalização,
“No nosso sistema nós chamava prensa e aí o senhor pegava e enfardava aquilo, nós
pegava quatro tipo assim de coisa, mas então nós pegava assim na mão, que era pra
quando a prensa enchesse o senhor pegava em cima do fardo e ele arreava com seu
peso aí eu pegava e chamava essa minha mulher aí. Quando ela não estava pra me
ajudar ia só eu, pegava um pedaço de pau e ia enrolando assim, ia enrolando,
enrolando, enrolando até que desse assim pra mim acochar, ia acochando,
acochando, e metia lá e tirava o fardo, dava cinquenta quilos, sessenta, quarenta,
quarenta e cinco quilos, aí é como eu tô dizendo, o senhor fazia o fardo do tamanho
que o senhor quisesse fazer, se o senhor quisesse fazer dez quilos era dez quilos, se
quisesse fazer cinco quilos era cinco quilos mas a gente não fazia assim porque o
negócio do carreto era coiso, a gente entregava na canoa que era pra levar pro patrão
da gente que tinha valido a gente no verão pra se manter, pra fazer o roçado e colher
a produção e entregar tudo pra ele”118.

O último processo era considerado a parte principal para estes trabalhadores, pois era
o momento da entrega conforme o combinado, ou seja, seguir com os acordos. Primeiramente
a produção era transportada de canoa para ser entregue ao “patrão”. Pampam nos informou
que o seu patrão ficava com tudo o que havia produzido, e uma parte da produção era

115
Idem.
116
Idem.
117
Idem.
118
Idem.
148
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utilizada para pagamento de dívidas já contraídas, “o senhor pagava a sua dívida pro seu
patrão com aquela fibra. Aí ele dizia ‘olha! Ainda ficou? Eu quero a produção tudo que tu me
entregue’ aí o senhor não tinha como dizer não”119.
Essas dívidas citadas por Pampam condiziam no “servir” como citado no início desta
produção. Naquele período os patrões forneciam alimentos, roupas e demais produtos
alimentícios em troca de mão-de-obra, e também faziam pagamentos com o dinheiro da
época, que no caso era o cruzeiro. Ele nos relatou, que eles (patrões) serviam primeiro estes
itens para que depois os comunitários “pagassem” com produção da juta, e às vezes eles
continham um pequeno saldo desta produção.
Pampam nos forneceu uma informação importante sobre esse sistema de trabalho.
Ele relatou que não era o único a negociar no modelo deste sistema, e que os demais
comunitários e até mesmo outras comunidades trabalhavam dessa forma imposta por esses
patrões. “E não era só uma pessoa que fazia isso como eu, eu trabalhava com meu patrão,
finado Túlio Melo, finado Didinho, essas coisas assim, finado Chiquito, eu trabalhava com
eles assim, eu colhia toda a produção... finado Zé Tavares era um que morava lá”120.
Assim como Pampam, também entrevistamos sua companheira, Dona Maria do
Rosário dos Anjos Ribeiro; o Sr. Valdo Monteiro Gama, conhecido na comunidade como
Fadô, e sua companheira, Dona Luzia Cândida da Silva Gomes; o Sr. Valdino Jacaúna
Franco, conhecido na comunidade como Careca, e sua companheira, Dona Cecília Soares
Ribeiro Franco, também irmã do Pampam.
Nos relatos dos demais entrevistados comparados ao de Pampam, antes da juta,
percebemos que o cacau foi bem produzido e comercializado pelos moradores da Brasília, de
acordo com as narrativas de Fadô e Careca. Fadô nos relatou no período que trabalhava com
cacau, “a gente colhia, a gente secava, e vendia pro comerciante que tinha ali no Paraná”121.
Careca nos afirmou que durante o período de comercialização do cacau a sua principal função
era a coleta do produto, “pra nós ir colher o cacau, nós ia colher o cacau”122.
Sobre o início do trabalho com a juta, assim como Pampam, Fadô também iniciou na
juta desde criança trabalhando com seus pais, “eu sofri muito na juta, eu trabalhava desde os

119
Idem.
120
Idem.
121
Entrevista com Sr. Valdo Monteiro Gama (Fadô) no dia 26/03/2017, na comunidade de São Sebastião da
Brasília.
122
Entrevista com Sr. Valdino Jacaúna Franco (Careca) no dia 26/03/2017, na comunidade de São Sebastião da
Brasília.
149
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meus 11 anos na juta”123, afirma Fadô. E após a cegueira derivada da idade avançada de seus
pais, Fadô teve que assumir a responsabilidade do trabalho com juta da sua família. Também
nos afirmou que seus antecedentes, os avós, eram de Portugal, assim como os antecedentes de
Pampam. Além da juta, os antecedentes de Fadô trabalhavam com cacau, com a seringa, e
outras plantações, mas ale afirmou que neste período, o cacau era muito comercializado,
assim como a juta, “sempre teve comércio daqui da Brasília com a cidade”. A juta, o cacau e
seringa, eram os principais produtos na qual a família de Fadô trabalhava mais, e nos relatou
que cada um tinha o seu tempo de produção, afirmando que o “difícil era com a juta”124.
Dona Luzia nos relatou que também iniciou cedo a labuta com a juta, “eu comecei
bem novinha com a juta, tive que ajudar minha mãe”. E afirmou que conheceu o Fadô na juta,
“quando tinha 17 anos, eu fui morar com ele, já era nós dois na juta”125. A mulher era vista
como “ajudadora” do homem, e o seu trabalho não era visto como principal e sim como
coadjuvante (TORRES, 2004).
A narrativa de Careca sobre seu início na juta deu-se pelo fim do trabalho com o
cacau, “quando eu tinha 10 anos, minha mãe me colocou pra juntar cacau”. E nos afirmou que
logo após o trabalho com o cacau, foi para o ramo da juta, “quando eu tinha 18 anos, aí eu fui
trabalhar na juta já, entrei na juta com meu pai”126. Dona Cecília relatou que trabalhou na juta
com Careca, mas afirmou que quase não trabalhava com seus pais, passou a trabalhar mais
quando passou a conviver com Careca, “eu não trabalhei muito com meus pais, mas o
Pampam, eu ajudei mais o Careca quando a gente começou a viver junto, a gente precisava
né”127.
No processo inicial do trabalho com a juta, comparados aos relatos de Pampam, Fadô
afirmou como era após receberem a semente do patrão, que dependendo do negócio, ou era
vendida ou era socializada, “gente ia né, roçava, plantava aí, queimava né, quando queimava
bem né a gente plantava de máquina”128. Antes de Careca iniciar a sua história com a juta, ele
introduziu sobre a história da juta na Amazônia, uma história contada de pai para filho. “Foi

123
Entrevista com Sr. Valdo Monteiro Gama (Fadô) no dia 26/03/2017, na comunidade de São Sebastião da
Brasília.
124
Idem.
125
Entrevista com a Sra. Luzia Cândida da Silva Gomes, no dia 26/03/2017, na comunidade de São Sebastião da
Brasília.
126
Entrevista com Sr. Valdino Jacaúna Franco (Careca) no dia 26/03/2017, na comunidade de São Sebastião da
Brasília.
127
Entrevista com Sra. Cecília Franco, no dia 26/03/2017, na comunidade de São Sebastião da Brasília.
128
Entrevista com Sr. Valdo Monteiro Gama (Fadô) no dia 26/03/2017, na comunidade de São Sebastião da
Brasília.
150
Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

um japonês, esse japonês, o Ryota Oyama. O pai dele, quando veio para o Brasil, trouxe a juta
aqui (mãos), a semente, nas unhas, a semente”129.
O sistema de trabalho com cultivo da juta, consistia no plantio, no corte, no
afogamento, na lavagem, na secagem, no enfardamento, e finalizava com a entrega do produto
na comunidade. Esse sistema funcionou com estes ex-trabalhadores e trabalhadoras da
Comunidade São Sebastião da Brasília durante este período pesquisado. E quando
questionamos sobre as formas de pagamento, cada um fez sua declaração conforme os
negócios acertados.
Comparados aos relatos de Pampam sobre este quesito, Fadô nos informou que o
pagamento era com cestas básicas e vestimentas para toda a família, e que sobrava conforme
o negócio era o saldo que apuravam de toda uma temporada de trabalho, “ai pagava a gente
quando tinha saldo né”130 relata. Já com Careca, a forma de pagamento que presenciava
quando via os negócios de seu pai com patrão era baseada apenas na alimentação, “não tinha
pagamento, o pagamento era boia”. E quando assumiu os negócios por conta, Careca nos
informou a situação do pagamento, “ele botava a despesa para nós trabalhar, ele só ia comprar
uma roupa, uma coisa para nós, com que nós nos beneficiávamos”131.

Considerações finais
A juta foi uma atividade laboral que trouxe diversas consequências para aqueles que
trabalhavam dia a dia com este vegetal. No caso da comunidade pesquisada, houve mortes
durante a execução do trabalho, além de ser um trabalho árduo e sofrido, o pagamento que
estes recebiam era praticamente um desprezo total ao ser humano. Pampam e Dona Rosária,
Fadô e Dona Luiza, Careca e Dona Cecília, foram apenas algumas de diversas pessoas do
Amazonas, que tiveram suas vidas transformadas pela experiência do trabalho com a juta.
Para estes homens e mulheres a juta foi a única forma de sobrevivência desse
período, mesmo utilizando outros ramos de vida, a juta era a principal para o comércio da
época. Todos sofreram na juta, principalmente economicamente, onde havia muito trabalho e
pouco lucro. Não tinha como negar o trabalho com a juta, um trabalho que envolvia toda a

129
Entrevista com Sr.Valdino Jacaúna Franco (Careca) no dia 26/03/2017, na comunidade de São Sebastião da
Brasília.
130
Entrevista com Sr.Valdo Monteiro Gama (Fadô) no dia 26/03/2017, na comunidade de São Sebastião da
Brasília.
131
Entrevista com Sr.Valdino Jacaúna Franco (Careca) no dia 26/03/2017, na comunidade de São Sebastião da
Brasília.
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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

família, homens, mulheres, crianças, idosos, todos trabalhavam para o sustento de todos, que
na maioria dos casos era apenas por uma simples cesta básica.
Os sete passos do trabalho com a juta estão até hoje na memória de milhares de ex-
cultivadores, que alguns tiveram apenas a juta como única opção de sobrevivência. O trabalho
de plantar, cortar, afogar, lavar, secar, enfardar e entregar, foi diversas vezes repetido durante
décadas na vida daqueles que moram até hoje às margens do rio Amazonas.

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DO REPERTÓRIO ÀS PESSOAS: UM OLHAR PARA AS PRÁTICAS MUSICAIS DE


FUNÇÃO RELIGIOSA NA CATEDRAL NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO A
PARTIR DO FUNDO DE DOCUMENTOS MUSICOGRÁFICOS RECOLHIDO AO
ARQUIVO DA CÚRIA METROPOLITANA DA ARQUIDIOCESE DE MANAUS
FERNANDO LACERDA SIMÕES DUARTE*

Introdução
Dentre os muitos vestígios materiais de práticas musicais pretéritas, os documentos
musicográficos – documentos textuais com notação musical – constituem uma importante
fonte para os estudos da Musicologia histórica. Além deste gênero ou categoria documental,
seria possível citar ainda enquanto fontes diretas para o estudo da Musicologia, segundo
Gómez González e seus colaboradores: os registros sonoros e audiovisuais nos mais diversos
suportes – cassetes, vinis, rolos de cera etc., libretos de óperas e outros textos interpretados,os
escritos pessoais dos compositores, os tratados sobre música,documentação de órgãos
governamentais ou instituições com atividades musicais,os estatutos e regulamentos de
entidades em que se pratica música,entrevistas, instrumentos musicais, objetos artísticos – nos
quais alocaríamos como subcategorias os objetos tridimensionais, tais como a imaginária
sacra e iconografia –, livros de contas – ditos, em âmbito religioso, livros de caixa ou de
fábrica, cerimoniais religiosos e civis,expedientes de oposições para admissão de músicos no
período colonial, documentação avulsa; livros sacramentais, documentos pontifícios,
documentos notariais ou cartoriais, impressos relativos a práticas musicais, tais como as
críticas musicais em periódicos de circulação, bem como anúncios e cartazes de concertos,
além das correspondências. Ainda segundo os autores, existem ainda fontes indiretas, dentre
as quais, os guias de acervos,inventários,catálogos e bases de dados, bem comoíndices
informatizados (GÓMEZ GONZÁLEZ et al., 2008: 93-102).
No Brasil, o estágio de sistematização das chamadas fontes diretas ainda é inicial. À
exceção de grandes acervos pontuais já sistematizados – a exemplo dos acervos João Mohana,
recolhido ao Arquivo Público do Maranhão, as coleções realizadas pelo padre Jaime Diniz
que hoje se encontram na Fundação Gregório de Mattos, em Salvador-BA e no Instituto
Ricardo Brennand, em Recife, do Museu da Música de Mariana, do Museu da Inconfidência
de Ouro Preto, que custodia a coleção Francisco Curt Lange e do Acervo Ernesto Nazareth,
recolhido à Biblioteca Nacional –, é possível perceber na maior parte dos casos a necessidade
de cuidados básicos, que vão desde o recolhimento ou passagem dos documentos
musicográficos a uma fase intermediária de arquivamento (BELLOTTO, 2002),
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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
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acondicionamento, higienização e conservação, até a produção de instrumentos de pesquisa.


Se esta situação marca a maior parte dos acervos brasileiros, fica evidente, portanto, a
carência de instrumentos de pesquisa da documentação em nível local – inventários e
catálogos – e de um guia de acervos, cuja produção demanda, a nosso ver, um intenso e
coordenado trabalho interdisciplinar (DUARTE, 2017).
Neste trabalho, buscamos analisar um fundo composto por documentos
musicográficos procedentes da Catedral Metropolitana de Manaus, que hoje se encontra
recolhido ao Arquivo Arquidiocesano de Manaus. Este conjunto de documentos
musicográficos é constituído por partituras, partes instrumentais e vocais avulsas, sendo tais
fontes apresentadas de forma manuscrita e impressa. Em que pese às limitações deste tipo de
fonte para a produção de um trabalho historiográfico mais profundo – uma vez que os dados
contidos nas fontes são, em sua maior parte, informações a serem convertidas em som, ou
seja, parâmetros musicais de altura, duração e intensidade das notas musicais, o texto a ser
cantado e os instrumentos a serem utilizados –, é possível problematizar questões específicas
acerca das práticas musicais que ocorreram na Catedral de Nossa Senhora da Conceição no
período aproximado da datação das fontes. Assim, deram origem à presente investigação as
seguintes questões: qual a situação de recolhimento deste patrimônio musical documental e
quais as condições de sua conservação e acondicionamento? O que as fontes musicais revelam
das práticas musicais do passado? Quais os sujeitos envolvidos em tais práticas e quais as
características dos grupos que interpretavam este repertório? Quais as características do
repertório em termos estilísticos? O repertório e as práticas reveladas neste documento se
adequavam aos paradigmas do motu proprio “Tra le Sollecitudini”, principal documento
romano a disciplinar as práticas musicais católicas no período ou é possível observar
negociações? O repertório e a maneira de executá-lo apresentam muitas peculiaridades ou
refletem as práticas musicais no Brasil como um todo neste período?
Para responder a tais questões, foi empreendida pesquisa documental in loco no
Arquivo da Cúria Metropolitana de Manaus, bem como a digitalização das fontes e
cooperação para seu acondicionamento, com a doação de pastas plásticas de tamanho A3 para
que os documentos maiores não fossem ainda mais danificados em seu acondicionamento.
Ademais, foi realizada pesquisa bibliográfica e documental sobre a legislação romana que
versava sobre a música ritual, bem como em arquivos religiosos de outras regiões do país. A
análise dos dados se baseia na relação entre memória coletiva e identidade em Joël Candau
(2011), nos lugares de memória Pierre Nora (1993), na teoria das três idades documentais

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apresentada na obra de Heloísa Bellotto (2002) – com a devida crítica à sua aplicabilidade aos
documentos musicográficos –, bem como em noções inerentes à musicologia histórica, tais
como a de patrimônio musical, a de fontes para o estudo da musicologia e a de controle
normativo das práticas musicais, em Ezquerro-Esteban (2016), Gómez González (et alii,
2008) e em nossa própriainvestigação sobre as práticas musicais no catolicismo romano
(DUARTE, 2016), respectivamente. De acordo com Candau (2011), existe uma estreita
ligação entre memória coletiva e a identidade compartilhada pelos grupos. Tal memória se
inscreve – como uma espécie de extensão da própria memória – também nos documentos
escritos. Assim, determinados lugares de memória seriam responsáveis por deter o
esquecimento do passado, os chamados lugares de memória, dentre os quais os arquivos. Não
há de se falar, entretanto, no presente estudo, de uma memória viva, que ainda é
compartilhada pelos sujeitos no presente, mas de uma memória histórica, que pode ser
acessada por meio destes arquivos e a partir dele, buscar-se alcançar algumas respostas sobre
o passado (NORA, 1993).
Ainda sobre os vestígios do passado, Ezquerro-Esteban (2016) procedeu a uma
taxonomia do que chamou de patrimônio musical, enquanto patrimônio cultural. Para este
autor, os instrumentos musicais constituiriam uma categoria, a do patrimônio organológico.
Por meio de conversas informais com diversos interlocutores, soubemos da existência de um
órgão tubular na Catedral de Nossa Senhora da Conceição, que hoje não se encontra mais no
coro alto da mesma. As fontes documentais musicográficas também vêm a corroborar a
existência de tal instrumento. Não foi localizado, entretanto, o paradeiro do instrumento no
presente. A própria catedral constituiria, na classificação de Ezquerro-Esteban uma categoria
de patrimônio, o patrimônio espacial, ao passo que a noção de patrimônio documental é
bastante ampla, abrangendo não apenas as partituras e partes instrumentais e vocais avulsas –
documentos musicográficos –, mas a documentação produzida pela própria catedral, tais
como livros de tombo e fábrica, fotografias (iconografia), provisões de sacerdotes e mestres-
de-capela no passado, registros audiovisuais das celebrações, dentre outras. A maior parte
desta documentação ainda não nos foi possível, contudo, consultar. Por esta razão, o presente
trabalho está centrado em responder problemas relativos às práticas musicais a partir do fundo
documental. Finalmente, a classificação do patrimônio musical abrange uma quarta categoria,
que é o patrimônio propriamente musical. Este patrimônio estaria relacionado ao próprio fazer
musical, sendo, desta maneira, sonoro, evanescente, cessando sua existência tão logo deixe de
soar o último som.

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De posse desta conceituação inicial, é possível buscar responder os problemas


formulados, partindo-se de um breve apanhado histórico da própria catedral em comparação
com os marcos temporais que delimitam o acervo em questão. Em seguida, será apresentada
uma descrição pormenorizada das fontes, buscando analisar, para além das informações
propriamente musicais como este repertório se articula com os movimentos hegemônicos o
catolicismo romano neste período. Para tanto, será traçado um breve panorama das práticas
musicais na Igreja Católica Romana no Brasil no período compreendido pelas fontes
analisadas, a partir de nossa investigação doutoral, que teve extensão territorial de setenta
cidades brasileiras, nos vinte e seis estados e no Distrito Federal (DUARTE, 2016).
Finalmente, serão apontados dados referentes às pessoas, tais como nomes de intérpretes, a
presença ou ausência de intérpretes ou copistas mulheres, formações instrumentais, dentre
outras que eventualmente constem das fontes.

Do patrimônio musical espacial ao documental

A presença sistemática da Igreja Católica associada à Coroa Portuguesa na Amazônia


remete ao século XVII, com os processos de missionação de jesuítas, franciscanos e
carmelitas, que partiram do Maranhão rumo a Oeste, e da posterior chegada dos frades
mercedários, antiga ordem cavalariça cujos religiosos vieram de Quito rumo a Leste. Em
âmbito diocesano, a instituição, em 1667, do bispado do Maranhão – que não era sufragâneo
da Bahia, mas diretamente ligado ao Patriarcado de Lisboa – foi também um marco da
expansão dos poderes secular e religioso na região. Décadas mais tarde, a criação do bispado
do Grão-Pará, em 1719, viria a selar, no âmbito eclesiástico, a expansão lusitana e o
adensamento populacional decorrente do comércio das chamadas “drogas do sertão”.
A fundação da Catedral de Manaus está ligada, entretanto, à missionação carmelita,
que erigiram a primeira capela em honra de Nossa Senhora da Conceição, segundo Corrêa
(2011: 86-87), em inícios de 1696, ao chegarem ao Forte de São José da Barra do Rio Negro,
edificado pelos portugueses em 1695. Outras fontes consultadas sugerem, entretanto, como
marco de fundação da primeira capela o ano de 1695. Há de se notar que a passagem da
primeira e rústica capela até a catedral foi um processo de quase dois séculos, uma vez que
somente em abril de 1892 houve o desmembramento da província eclesiástica do Grão-Pará,
sendo então constituída a Diocese do Amazonas. Note-se que até o momento em que houve o
desmembramento, Manaus contava apenas com duas paróquias ou matrizes, Nossa Senhora

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da Conceição e Nossa Senhora dos Remédios.A primeira nomeação episcopal viria quase dois
anos mais tarde, em princípios de 1894, tendo sido Dom José Lourenço da Costa Aguiar o
primeiro a assumir o trono episcopal do Amazonas (PACHECO, [20--]). A elevação de
Manaus a arquidiocese somente viria a ocorrer em 1952, no pontificado de Pio XII.
Diferentemente da história de longa duração da Catedral Metropolitana de Manaus, o
fundo de documentos musicográficos dela procedente tem balizas temporais pouco extensas,
tendo como possível marco inicial a segunda década do século XX e final, o início dos anos
1970. Percebe-se, portanto, nestas fontes, um silêncio das práticas musicais religiosas do
período colonial, cujos papéis de música também não se encontram recolhidos ao Arquivo
Arquidiocesano de Manaus. Longe de ser um fenômeno isolado, algo semelhante foi
percebido em nossa investigação doutoral (DUARTE, 2016) na maior parte das dioceses e
arquidioceses visitadas. Há de se observar, entretanto, dois fatores na configuração de tal
lacuna. O primeiro deles é a presença de ordens religiosas em missionação ao tempo de
fundação da capela. Hoje é bastante conhecido que os frades carmelitas cultivavam intensas
práticas musicais na Amazônia como um todo, inclusive com classes de Filosofia, Teologia e
Solfa (Música) em sua casa do Maranhão (SANTIN, 2008: 151) – onde eram concedidos,
inclusive, títulos de doutor em Filosofia e Teologia –, tendo se valido também da música em
distintas ocasiões de missionação, conforme atesta a documentação:
Nas missões do Solimões, como nas missões do Rio Negro, os carmelitas
mantinham aulas de música e de canto, aproveitando as habilidades e inclinações
dos catecúmenos para as artes. Em Tefé, por exemplo, onde sediavam as missões do
Solimões, mantinham uma orquestra, em que os instrumentos tinham sido feitos
pelos nativos. Em Mariuá, onde sediavam as missões do Rio Negro, mantinham um
coro na igreja local, o qual se fez ouvir por ocasião da chegada do Capitão-General
Mendonça Furtado, durante a solenidade religiosa que ali se realizou em
homenagem ao mano de Pombal. [...] O historiador Arthur Reis afirma: Nas
missões do Solimões, como nas missões do Rio Negro, os carmelitas mantinham
aulas de música e de canto, aproveitando as habilidades e inclinações dos
catecúmenos para as artes (SANTIN, 2012).

Do mesmo modo que ocorreu com os jesuítas e demais ordens que empreendiam
missionação, contudo, nenhum documento musicográfico referente aos Quinhentos e
Seiscentos que revele o repertório cantado ou como este seria praticado se preservou no
Brasil. Parece-nos claro que a investida do Marquês de Pombal contra as ordens religiosas no
século XVIII tenha sido um fator determinante para esta lacuna relativa às fontes musicais.
O segundo aspecto que parece determinante para a ausência de documentos musicográficos
anteriores aos Novecentos parece ter sido um incêndio de grandes proporções que destruiu a

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antiga Matriz em 1850, tendo a atual edificação sido empreendida entre 1855 e 1878. Apesar
de a integridade do templo não garantir a preservação dos acervos musicais – a exemplo do
que temos observado em nossas pesquisas na Arquidiocese de Belém –, fato é que o incêndio
certamente afetou o patrimônio musical em suas vertentes documental, espacial e
organológica, tendo muito provavelmente se refletido ainda nas práticas musicais a partir de
então (patrimônio propriamente musical).

Em relação ao acondicionamento das fontes que chegaram ao Arquivo Arquidiocesano


de Manaus, estas se encontravam em pastas denominadas de arquivo-morto quando de nossa
pesquisa, ainda sem uma sistematização dos dados a elas relativas em um instrumento de
pesquisa. Ademais, as partituras e partes não se encontravam ordenadas e agrupadas de
acordo com as obras, de modo que, em nossa pesquisa, procuramos agrupá-las minimamente.
Quanto ao modo como era realizado acondicionamento, algumas partituras de proporções
maiores precisavam ser dobradas ou amassadas para adequarem-se ao tamanho do invólucro.
Com vistas a solucionar tal questão, adquirimos para o acervo uma pasta plástica de
proporções maiores que as caixas de arquivo que lá se encontravam, em tamanho A3.
Ademais, no processo de consulta às fontes, nos foi possível ainda digitalizar parcialmente o
acervo com o uso de uma câmera digital compacta. Todos os documentos manuscritos foram
digitalizados, ao passo que as coletâneas mais recorrentes em acervos brasileiros – tal como a
Harpa de Sião, organizada pelo padre verbita João Batista Lehmann – o foram apenas por
amostragem, ou seja, fotografadas as capas e eventuais anotações manuscritas. Tendo deixado
uma copa das mais de mil e oitocentas imagens digitais no acervo, acreditamos estar
cooperando não apenas para a conservação dos documentos físicos, mas também para a
difusão deste patrimônio musical documental.

O fundo documental da Catedral de Manaus


O acervo hoje se encontra no que seria possível classificar como fase permanente de
recolhimento, ou seja, seu uso se limita à pesquisa e não mais à execução musical. Em outras
palavras, o documento se preserva em razão de seu valor secundário, das informações nele
contidas (BELLOTTO, 2002). Há de se observar, entretanto, que ao contrário do que se aplica
aos documentos administrativos, os documentos musicográficos sempre podem voltar à fase
corrente, ou seja, servirem à interpretação musical enquanto as informações representadas
pela notação musical deles constante puderem ser compreendidas e transformadas em música.

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A datação das fontes concentra-se principalmente na primeira metade do século XX.


Trata-se principalmente de documentos manuscritos, à exceção de uma coletânea de música
para órgão, dois impressos de repertório anterior à década de 1960 e o repertório dito pós-
conciliar, ou seja, posterior ao Concílio Vaticano II (1962-1965). O repertório constante das
partituras e partes avulsas, ao contrário, é bastante diversificado e a data dos documentos não
necessariamente equivale à data das composições que foram neles registradas e interpretadas
pelos cantores e instrumentistas no período: é possível perceber, neste sentido, uma longa
duração, que se estende do período próximo ao Concílio de Trento – com um arranjo para
canto e órgão da Missa “Lauda Sion” de Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594) até
compositores da década de 1970, sendo mais recorrentes, contudo, obras compostas entre o
século XIX e início do XX.
A opção pelo resgate da obra de Palestrina é bastante justificada no panorama musical
religioso da primeira metade do século XX, período conhecido como Restauração musical
católica. Neste período, as práticas musicais litúrgicas foram disciplinadas pelo motu proprio
“Tra le Sollecitudini”, promulgado por de Pio X em 1903, um documento normativo que se
pretendia um “código jurídico de música sacra” (SOBRE MÚSICA SACRA, 1903). Dentre as
principais disposições do motu proprio estavam o combate à influência estilística que a ópera
e a música sinfônica exerceram sobre a música religiosa no século XIX – inclusive como um
desdobramento da aversão da Romanização aos ideais iluministas de maneira mais ampla –, a
declaração do canto gregoriano o repertório oficial do catolicismo romano de rito latino e
modelo composicional por excelência – a composição moderna seria tão mais adequada ao
culto católico quanto se aproximasse dos referenciais melódicos gregorianos –, o resgate com
o mesmo empenho da música polifônica do século XVI, sobretudo da obra de Palestrina, além
da declaração do órgão tubular como instrumento oficial da Igreja Católica. Dentre as
proibições do documento, é possível destacar aquelas dirigidas aos coros mistos, à presença
de bandas de música (fanfarras) no interior dos templos, aos pianos e instrumentos de
percussão, bem como às interpretações vocais que remetessem à ópera.
A música litúrgica que fosse composta a partir dos referenciais do motu proprio ficou
conhecida, em razão do grande movimento da Restauração musical católica, como repertório
restaurista. A prática deste repertório era incentivada não apenas por força da legislação
eclesiástica, mas por um complexo sistema de controle normativo (DUARTE, 2016), que
envolvia propaganda e censura promovida por organismos censores – as comissões
diocesanas de música sacra – publicadas em periódicos especializados. Ademais, havia uma

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difusão dos valores restauristas por meio da formação musical do clero e até mesmo de
relatórios apresentados periodicamente pelos bispos sobre as situações de suas dioceses.
O acervo procedente da Catedral de Nossa Senhora da Conceição se adéqua em grande
parte aos paradigmas musicais restauristas. Assim, é possível perceber composições dos
frades franciscanos observantes Basílio Röwer e Pedro Sinzig, ambos de origem alemã, que se
empenharam em difundir no Brasil os ideais do motu proprio desde inícios do século XX.
Igualmente, há obras e uma coletânea organizada pelo padre verbita João Batista Lehmann,
outro sacerdote alemão radicado no Brasil. A presença de obras do monsenhor italiano
Lorenzo Perosi no repertório sinaliza para a assimilação do principal compositor restaurista.
Além deste, outros nomes de compositores restauristas relativamente recorrentes no Brasil
podem ser percebidos no fundo documental, dentre os quais, Michael Haller, Johann Gustav
Stehle e Oreste Ravanello. A presença de uma indicação “O Sanctissima, do Sicilianishes
Schillerlied” aponta para a estreita ligação entre as cópias realizadas localmente em Manaus e
fontes primárias propriamente restauristas alemãs. Outros compositores restauristas são
menos recorrentes em acervos brasileiros, sendo localizados quase exclusivamente em
Manaus: Francisco Tavoni, A. Hellá, John Wiegand, Henn du Mont e Julian Vilaseca.
Há ainda os compositores cujas obras não se adequavam totalmente ao paradigma
composicional restaurista, sendo possível citar o padre jesuíta Lambillotte, Haendel, Charles
Gounod – cuja Missa conventualis, copiada em 1925, apresenta também o título “Convend
Mass”. Dentre os compositores posteriores ao Concílio Vaticano II, chama atenção a presença
de Luigi Picchi, cujas obras também podem ser localizadas em outros acervos brasileiros,
apesar de serem relativamente incomuns.
Desta maneira, é possível afirmar que o acervo reflete uma situação preponderante na
fase restaurista no Brasil como um todo, que foi o acolhimento do repertório produzido de
acordo com os paradigmas do motu proprio de Pio X, mas uma relativa negociação em
relação às normas, por meio da utilização também de um repertório considerado menos
adequado de acordo com o documento. Ademais, há de se observar que o acervo da Catedral
de Manaus tem quatro compositores bastante específicos, sugerindo uma via de difusão do
repertório diversa daquela observada na maior parte dos acervos brasileiros, muito
possivelmente por meio de músicos vindos diretamente da Europa para o Teatro Amazonas,
que acabavam por difundir este repertório menos canônico.

Do repertório às pessoas

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Acerca dos atores envolvidos nas práticas musicais da catedral manauara, além da
hipótese da circulação de obras diretamente da Europa – de somente poderá ser confirmada ou
refutada a partir de estudos mais aprofundados, que envolvam uma diversidade muito maior
de fontes –, é possível perceber outro fenômeno relativamente comum no Brasil: apesar de a
legislação eclesiástica tratar o órgão como instrumento oficial da Igreja Romana (e nos parece
praticamente certo o fato de ter havido também na Catedral um órgão tubular na primeira
metade do século XX), a presença de grupos instrumentais foi comum em todo o Brasil. Há
de se notar, contudo, uma peculiaridade, que não é traço exclusivo de Manaus, mas foi menos
recorrente nos acervos que visitamos: a grande presença de partes instrumentais para
instrumentos de cordas friccionadas (arcos).
Quanto ao canto, não parece improvável a presença feminina, sobretudo pelo fato de
se observar na Missa Coral “Pio X”, de Julian Vilaseca, a indicação: “Cópia de Nair Alves
Ferreira 27/10/937”. A presença feminina nos coros sacros foi outro aspecto bastante
recorrente no Brasil, apesar de ser fruto de uma negociação em relação às normas, conforme
abordamos em trabalho recente (DUARTE, 2018).
Outro aspecto que pode sugerir uma circulação considerável de europeus é a
nomenclatura dadas às diversas partes instrumentais da cópia da Missa in honorem B. V. M.
de Loreto, de Vincent Goller:na parte de 1º Violino, lê-se: “Vozes 1, 2, 3, 4, Violino,
Clarinetti, Cello, Baixo, Orgel”, ou seja, parte da instrumentação é indicada em italiano e
parte, em alemão. Ainda acerca da instrumentação, há cópias com partes de Basso
(contrabaixo de cordas), Flauta em Dó, Violinos I (2) e II (3), violoncelo e piston (trompete).
Destaca-se ainda a assinatura ao final da partitura da Missa em Honra Imm.
Conceição, para coro e órgão em duas claves, “Ney Rayol 6-12 1933”. É sabido que um
músico maranhense Antonio Rayol (século XIX), compositor, violoncelista e cantor barítono,
que teria atuado em Manaus (CARVALHO SOBRINHO, 2004: 16). A distribuição do
sobrenome Rayol entre músicos pela Amazônia é bastante intensa, abrangendo também o
nordeste do Pará, o que possibilitaria um estudo de eventuais relações familiares, da
manutenção do ofício musical nesta família, bem como das rotas de deslocamento motivadas
pela atividade musical entre a segunda metade do século XIX e primeira metade do XX.
Finalmente, sobre os intérpretes, destaca-se que a indicação “Côro Santa Cecilia,
Catedral de Manaus” é interessante, por possibilitar que se descubram novas informações
sobre este grupo musical não somente em outras eventuais partituras, mas também na
documentação da própria catedral (eventualmente, no livro de tombo ou de fábrica, nas

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despesas com o coro) ou até mesmo em periódicos diocesanos ou até mesmo em periódicos de
circulação em Manaus neste período, que podem ter registrado alguma observação ou nota
crítica sobre a atuação do coral na liturgia da catedral.

Considerações finais
Ao final deste trabalho, é possível afirmar que o fundo documental procedente das
práticas musicais realizadas na Catedral Nossa Senhora da Conceição, de Manaus se encotra
recolhido – com as devidas adaptações necessárias a este tipo de documentação – à fase
permanente (BELLOTTO, 2002).As fontes não foram inventariadas, apesar de terem sido
parcialmente digitalizadas quando de nossa pesquisa no Arquivo Arquidiocesano de Manaus.
Os documentos musicográficos, em sua maioria, da primeira metade do século XX,
revelam inicialmente uma lacuna que é comum a todas as regiões do Brasil: a ausência de
documentos musicográficos relativos à missionação carmelita e das demais ordens religiosas
nos séculos XVI e XVII. Ademais, um incêndio havido na Matriz em meados do século XIX
pode ter sido a principal causa do perecimento de documentação musical dos séculos XVIII e
primeira metade do XIX.
O fundo documental estudado aponta para a presença de grupos instrumentais e vocais
nas práticas musicais da catedral, bem como um repertório predominantemente restaurista,
composto de acordo com os paradigmas musicais romanos, mas também certo grau de
negociação revelado pelo uso de obras e de grupos instrumentais que pouco se adequavam ao
motu proprio, tal como ocorreu em diversos templos católicos no Brasil neste mesmo período.
Quanto às pessoas envolvidas, merece destaque a presença de grupos instrumentais, do uso de
diversos idiomas para designar instrumentos de uma mesma obra – sugerindo a presença de
músicos estrangeiros de diferentes nacionalidades – e também a presença feminina por meio
da atuação da copista Nair Alves Ferreira, que embora não fosse incomum no Brasil
(DUARTE, 2018), sempre merece destaque, uma vez que era silenciada nos documentos
oficiais romanos sobre a música litúrgica.
Finalmente, destaca-se que esta pesquisa teve caráter exploratório. Seu
aprofundamento dependeria de ampla consulta à documentação de cunho administrativo da
Igreja no Amazonas, recolhida ao Arquivo Arquidiocesano de Manaus, especialmente os
livros de tombo e fábrica das matrizes e eventuais contratos com músicos, além de iconografia
e eventuais notícias em periódicos de circulação da primeira metade do século XX.

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Referências

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Associação de Arquivistas de São Paulo, 2002.
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.
CARVALHO SOBRINHO, João Berchmans de. A música no Maranhão Imperial: um estudo
sobre o compositor Leocádio Rayol baseado em dois manuscritos do Inventário João Mohana.
Em pauta, Porto Alegre, v.15, n.25, p.5-37, 2004.
CORRÊA, Marcus Vinicius de Miranda. Cápsula do Tempo: Arqueologia da Arquitetura na
Catedral Metropolitana de Manaus. São Paulo: Biblioteca24horas, 2011.
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feminina na Restauração Musical Católica no Brasil. Anais do V Simpósio Brasileiro de Pós-
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carmelita do Maranhão a faculdade de dar o título de doutor aos frades de sua Ordem. Revista
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Disponível em http://www.vatican.va/holy_father/pius_x/motu_proprio/documents/hf_p-
x_motu-proprio_19031122_sollecitudini_po.html. Acesso em: 3 mai. 2009.

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POVOS INDÍGENAS E REGIME CIVIL-MILITAR NO BRASIL: AGÊNCIAS


INDÍGENAS NA LUTA PELA AUTODETERMINAÇÃO E RECONHECIMENTO DA
DIVERSIDADE E DA DIFERENÇA

FERNANDO ROQUE FERNANDES132


EDUARDO GOMES DA SILVA FILHO133

Introdução
Na segunda metade do século XX, o Brasil passou por profundas transformações que
abalaram suas estruturas políticas e sociais. A instauração do Regime Civil-Militar concorreu
para o acirramento de uma série de debates que envolveram demandas de diferentes
movimentos sociais que articularam estratégias de reivindicação de direitos sociais diante do
regime de exceção.
Dentre as ações coletivas, desenvolvidas por diferentes grupos sociais, determinados
grupos indígenas passaram a se articular através de assembleias em âmbito local, regional,
nacional e, mesmo, internacional. A fracassada tentativa de integração compulsória de vários
grupos étnicos, financiada pelo Estado, foi respondida através da efervescência dos
Movimentos Indígenas. Naquele contexto, processos de emergência política e social de povos
indígenas historicamente submetidos às relações de dominação de grupos com interesses
muitas vezes econômicos, teve seu fundamento jurídico através do texto constitucional de
1988.
As lutas que levaram ao reconhecimento da diversidade e da diferença de povos
existentes no país resultaram de uma complexa rede de protagonismos indígenas de caráter
individuais e coletivos, característicos daquele período. As políticas indigenistas voltadas à
assimilação, integração, etnocídio, extermínio, submissão às relações de trabalho forçado,
cristianização e, nos anos 1970 e 1980, daquilo que passou a ser chamado de “falsa
emancipação”, foram subvertidas por uma série de agências indígenas que informaram modos
de proceder característicos dos movimentos étnicos no Brasil contemporâneo.
Atualmente, a quantidade de pesquisas desenvolvidas sobre o período no âmbito das
universidades ainda deixa a desejar. Até recentemente, apesar de uma reviravolta nas
análisesqueinformam uma nova percepção sobre o lugar ocupado pelos povos indígenas
nasnarrativashistoriográficas, aquilo que passou a ser chamada de uma “Nova História

Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Doutorando em História Social da Amazônia pela Universidade
Federal do Pará (UFPA). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas. Professor da Universidade Federal de
Roraima (UFRR).
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Indígena”, pouco valorizou este período tão importante para a compreensão do protagonismo
indígena na atualidade. No contexto do regime Civil-Militar no Brasil (1964-1985), os povos
indígenas articularam estratégias particulares para o reconhecimento da diversidade e da
diferença de vários povos, especialmente no que diz respeito à manutenção de suas tradições.
Além disso, os estudos contemporâneos relacionados ao protagonismo empreendido
pelos coletivos indígenas a partir dos primeiros contatos ocorridos ainda no período colonial,
indicam que tais coletivos têm, historicamente, articulado estratégias particulares de
sobrevivência diante de instituições opressoras e limitadoras de suas ações.
Por outro lado, tais instituições ao longo das relações de contato, investiram de modo
contundente na criação de diferentes projetos de integração, assimilação e extermínio de
sujeitos e coletivos étnicos espalhados por diferentes partes do atual território geopolítico
brasileiro. No entanto, consideramos que os processos que informam o protagonismo indígena
desencadeado no contexto do regime Civil-Militar, foi algo particular que apresentou
características históricas específicas daquele período, conjuntura política e processo histórico.
Na segunda metade do século XX, sujeitos e coletivos indígenas passaram a se
apropriar de mecanismos de articulação político-institucional e passaram a utilizá-los em
benefício próprio. Diante de um projeto de integração compulsória, empreendido pelo regime
de exceção sobre os povos indígenas, estes criaram estratégias específicas que precisam ser
melhor problematizadas de modo a possibilitar a evidenciação do protagonismo dos
“Movimentos Indígenas no Brasil Contemporâneo”.
Nesse sentido, o objetivo desta comunicação é apresentar elementos característicos das
agências indígenas nas relações políticas que passaram a estabelecer com o Estado na
reivindicação do direito à diversidade e a diferença no contexto do regime Civil-Militar no
Brasil (1964-1985). Para tanto, propomos uma reflexão sobre as articulações políticas
indígenas desenvolvidas no âmbito plurinacional brasileiro a partir das correlações que
passaram a estabelecer no âmbito político-institucional, através de encontros de caráter local,
regional, nacional e mesmo internacional, com o aporte da Constituição Federal de 1988. Esse
novo paradigma constitucional, abriu espaços no campo das discussões jurídicas, acerca da
importância dos processos de demarcações dos territórios tradicionais, que já se arrastavam há
décadas, sem uma solução aparente, principalmente por causa da negligência do poder
público.

Resistências e agências do protagonismo indígena

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Durante as décadas de 1970 e 1980, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o


Governo Civil-Militar (1964-1985), sofreram duras críticas de diferentes setores sociais. Este
período foi marcado por intensas transformações políticas que resultaram da articulação de
grupos de interesse que nem sempre se posicionaram nas estratificações hegemônicas da
sociedade brasileira. Associações e organizações indígenas e pró-indígenas, se articularam de
forma estratégica diante de propostas que defendiam a assimilação dos povos indígenas pela
sociedade envolvente. As discussões relacionadas aos binômios tutelado/emancipado e
integrado/não integrado, se mostraram incompatíveis com às práticas empreendidas pelos
sujeitos indígenas.
Dentre as finalidades dos discursos em jogo se incluía a modificação do Estatuto do
Índio.134 O pretexto utilizado pelos representantes do Estado, era de que esta legislação não
atendia aos interesses dos grupos indígenas. Mas na visão de antropólogos, professores
universitários, missionários, juristas, lideranças indígenas, dentre outros,afirmavam que o
Estatuto não dava conta do atendimento das demandas dos grandes grupos empresariais
interessados nas terras e na mão de obra indígena. Por conta disso, várias propostas de
modificação do Estatuto foram apresentadas.
A desapropriação sutil das terras indígenas foi mascarada por propostas de
emancipações compulsórias coletivas. Para os indígenas era necessário haver uma
transformação do sentido da FUNAI. Esta deveria passar a atuar como um mecanismo de
representação indígena perante o Estado, e não como instrumento de assimilação dos povos
indígenas, objetivo para o qual havia sido criada. Por conta de suas contradições, o Estatuto
do Índio parece ter sido utilizado como justificativa à criação de propostas assimilacionistas
que propunham a derrocada das culturas indígenas,mas houve resistência.
Foi na gestão do General Bandeira de Mello, que presidiu a FUNAI entre 1970 e 1974,
que o General Emílio Garrastazu Médici, então Presidente da República (1969-1974),
sancionou o Estatuto do Índio em 1973. As discussões que tiveram como culminância a
criação desta lei, não eram recentes. A novidade no conteúdo dos debates não era,
especificamente, o tema da emancipação dos índios. Isto já era discutido há algum tempo em
diferentes projetos relacionados às ideias de nacionalismo, como podemos observar em
(GARFIELD, 2000).

134
Cf. Leinº 6.001, DE 19 de dezembro de 1973.
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O que parece ter mudado com a criação desta lei, foi que tais propostas passaram a ser
reguladas e amparadas pelo caráter jurídico estabelecido. As articulações políticas que
surgiram naquela conjuntura passaram a ter prerrogativas estabelecidas na própria legislação.
Logo após sua sanção, em dezembro de 1973, o Estatuto do Índio já levantava
polêmicas. Em 27 de janeiro de 1975, o Ministro do Interior Maurício Rangel Reis, em
entrevista coletiva à imprensa, sugeria que essa legislação fosse alterada, permitindo a
emancipação das comunidades indígenas. Conforme suas análises, as modificações a serem
feitas na legislação possibilitariam uma espécie de “emancipação coletiva”, onde grupos
inteiros seriam emancipados de uma só vez. No dia 2 de fevereiro, cinco dias depois, o
presidente da FUNAI e General do Exército Ismarth Araújo de Oliveira, defendia as ideias
apresentadas pelo Ministro do Interior, General Maurício Rangel Reis, admitindo que talvez
fosse perigosa a existência de uma legislação única para todos os índios, (COMISSÃO PRO-
ÍNDIO, 1979).
Mesmo reconhecendo a necessidade de considerar a diversidade de povos, o
presidente da FUNAI defendia como necessária a alteração da lei. Naquele mesmo dia,
antropólogos do Museu Paraense Emílio Goeldi, criticavam a atitude do Ministro, afirmando
que não se tratava apenas de emancipação, já que “o índio sempre se integra à sociedade
nacional num nível mais baixo do que desfrutava em sua vida tribal”.
Nos idos de 1978, as discussões sobre a emancipação dos índios tomaram maiores
projeções. Em junho daquele ano, veio a conhecimento público a existência de uma minuta de
decreto de regulamentação que alterava os artigos 9º, 10º, 11º, 27º e 29º do Estatuto do Índio,
que havia sido enviada ao Presidente pelo Ministro Rangel Reis. Conforme aponta a matéria
intitulada:Emancipação indígena vai a Geisel, publicada pelo periódico Jornal do Brasil, na
edição de 22 de outubro de 1978, havia se reunido em Brasília um grupo restrito para discutir
não mais a elaboração de um projeto de lei, o qual era a intenção inicial do governo, mas um
projeto de decreto de lei.
A diferença é que esta estratégia visava afastar a discussão pelo legislativo, anulando
as possibilidades de os antropólogos fazerem pressão sobre o Congresso na tentativa de
impedir sua aprovação, (JORNAL DO BRASIL, 1978).Não se sabia ao certo sobre o teor do
documento, senão apenas que se tratava de uma proposta de reestruturação dos artigos
relacionados aos processos emancipatórios.A minuta de decreto se direcionava
especificamente para os artigos que tratavam da questão da assistência e da tutela dos índios e
sobre suas terras. Para muitos estudiosos do assunto, inclusive em âmbito internacional, os

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processos que conformavam essas proposições, tinham forte relação com os projetos
desenvolvimentistas e sua relação com as terras indígenas, como nos aponta (VIDAL, 1979).
As propostas apresentadas pelo Ministro Rangel Reis, foram denominadas por vários
antropólogos de “falsa emancipação”. Isso resultou do fato de que, conforme prescrição do
Capítulo IV do Estatuto, apesar de os territórios indígenas serem de posse e usufruto dos
índios, os mesmos eram tidos como propriedades inalienáveis da União. Para tais
antropólogos, este seria o aspecto responsável pela manutenção e preservação das terras
indígenas, impedindo que a “cobiça alheia” dominasse esses espaços, (PRO-ÍNDIO,
1979:18).
Assim, as propostas sobre a emancipação dos povos indígenas contrariavam a
manutenção de suas terras. E esta não era uma leitura feita apenas pelos antropólogos.
Em Carta datada de 26 de outubro de 1978, enviada ao General Ismarth de Araújo
Oliveira, a Indian Rights Association, conhecida associação indigenista norte americana,
atuando desde 1882 nos Estados Unidos, criticava as propostas apresentadas pelo presidente
da FUNAI, observando que “quando a terra indígena está em jogo, as questões são encobertas
por uma nuvem de nobre retórica sobre a necessidade de se civilizar o índio, conceder-lhe
cidadania, terminar o ‘degradante’ sistema de reservas”, (CARTA DA INDIAN RIGTHS
ASSOCIATION, 1978:24).
Monções de apoio como estas, resultavam dos posicionamentos dos próprios
representantes do Estado. No dia 12 de fevereiro de 1978, o Ministro do interior Maurício
Rangel Reis, afirmava em nota à imprensa: “a política indigenista atual terá fracassado se não
emancipar, pelo menos, 1 [um] índio”, (PRÓ-ÍNDIO, 1979:12). As mesmas palavras já
haviam sido ditas pelo Ministro em outras ocasiões (como na CPI do Índio, ocorrida em
1968). Em outra ocasião o mesmo enfatizava: “achamos que os ideais de preservar a
população indígena dentro de seu habitat são belas ideias, porém irreais”, (Idem:12). Dois
anos depois declarava: “se não emancipar algumas comunidades indígenas até o fim do
governo, estará frustrada a política indigenista do governo Geisel”, (Idem:41).
A jornalista Eliana Lucena, havia redigido uma matéria intitulada:A emancipação (das
terras) dos índios, que foi publicada pelo periódico Movimento, na edição semanal de número
139, de 27 de fevereiro de1978. Nela, o padre Egydio Schwade, secretário do Conselho

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Indigenista Missionário (CIMI),afirmava que “por detrás da emancipação do índio está o


interesse na ‘emancipação’ de suas terras”,(LUCENA, 1978:8)135.
Eliane Lucena foi responsável por diversas matérias publicadas, entre 1973 e 1978, no
jornal O Estado de Mato Grosso.As matérias abordavam questões que diziam respeito aos
povos indígenas. Uma delas foi intitulada: União, a única defesa dos índios,(HEMEROTECA
DIGITAL, 2017).
Publicada em 15 de dezembro de 1973, na cidade de Cuiabá, a referida matéria
apresentava questões relacionadas à condição dos povos indígenas na Amazônia frente aos
projetos desenvolvimentistas implementados na região. Em certa altura do texto, a jornalista
observa que apesar da polêmica sobre como integrar o índio, num ponto FUNAI, sertanistas,
antropólogos e técnicos indigenistas concordavam: “o índio seria muito feliz se pudesse
continuar isolado no seu habitat. Mas isso é uma ideia utópica, já que ninguém poderá deter o
processo de desenvolvimento”, (LUCENA, 1973:3). Continuando, Lucena destacaria a fala de
um sertanista e ex-funcionário da FUNAI chamado Antônio Cotrim Neto, na qual se lia: “o
índio não pode se constituir num entrave ao desenvolvimento da Amazônia e deve ser
integrado gradativamente na sociedade”, (Idem:3).

O papel das lideranças indígenas


O indígena Megaron, da etnia Txucarramãe,foi também destaque na matéria.Nascido
em 1951, esta liderança indígena ficou conhecida por acompanhar Orlando Villas Boas em
suas viagens pelo país, passando inclusive, por São Paulo. Sabia ler, escrever, falava o
português e não escondia o gosto pelas músicas da comunidade envolvente. Naquela ocasião,
com o fim de seguir para a aldeia dos Txucarramãe, Megaron foi visto pela jornalista
enquanto esperava uma canoa no Posto Indígena Diauarum, localizado no Parque Indígena do
Xingu, a cerca de 650 km da cidade de Cuiabá, no Estado do Mato Grosso.
Acompanhado de sua mulher, seu cachorro, uma máquina fotográfica, um gravador,
duas redes e calças da marca Lee, o indígena revelaria à Eliana Lacerda os motivos daquela
viagem. Em suas palavras: “soube que está havendo problemas com a minha tribo e os
posseiros em Piará-Açu. Por isso, vim logo para cá, pois podem precisar de mim e, além do
mais, preciso visitar a minha mãe, que já está velha”, (LUCENA, 1973:3).

135
Este periódico circulava, chegando por vias aéreas, na maioria das principais cidades da região norte do país,
dentre elas, Manaus, Santarém, Altamira, Macapá, Porto Velho e Rio Branco.
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A fala de Megaron, destacada na matéria, nos permite observar diferentes nuances das
relações que este sujeito estabelecia com a comunidade envolvente, sem descuidar das
responsabilidades que tinha como militante das causas indígenas, das causas de sua
comunidade. Ademais, considerando as diferentes nuances da questão apresentada pela
jornalista em suas matérias, podemos observar que as divergências de opinião já se faziam
sentir desde antes da validação do Estatuto do Índio, em fins de 1973. O caso de Megaron,
reflete as ações de lideranças indígenas que, apesar da relação com a comunidade envolvente,
não estavam alheias às necessidades de seus grupos étnicos, com eles mantendo relações em
defesa dos interesses das coletividades das quais faziam parte.
Eliana Lucena finalizava a matéria observando que enquanto não se chegava a uma
conclusão sobre o melhor método de integração dos povos indígenas, um ponto parecia ser
fundamental: “se não for garantida a terra ao índio, ele talvez não consiga assistir a sua
própria integração no mundo do branco”, (Idem:3).
Pelo teor da matéria, é possível observar que, independente das posições tomadas em
relação à questão indígena, era perceptível que as propostas de emancipação mascaravam
outros interesses. Para diferentes grupos da sociedade, a emancipação dos sujeitos e povos
indígenas deveria ser desenvolvida, considerando os processos que conformavam os modos
de vida dos sujeitos indígenas. Forçá-los a emancipação significava entregar suas terras aos
interesses de grandes empreendimentos de caráter desenvolvimentista.
Para os antropólogos da Comissão Pró-Índio de São Paulo, os problemas fundiárias
pelos quais o país passava, não deveriam ser resolvidos à custa dos índios. Os objetivos dos
projetos emancipacionistas seriam ausentes de justiça e inviáveis de serem alcançados. Em
outras palavras, integrar os indígenas significaria entregar suas terras aos interesses de
grandes grupos empresariais. Para alguns estudiosos do assunto:
“[...] emancipar grupos indígenas [era] entregá-los desarmados a forças
infinitamente mais poderosas, que lhes arrebatarão, em maior ou menor prazo, as
terras a vil preço, por grilagem ou por execução das dívidas, absorvendo-os como
mão-de-obra barata”, (PRÓ-ÍNDIO, 1979:18).

Outros grupos também se posicionavam contrários à forma como os projetos de


emancipação dos índios eram desenvolvidos. Assim como foram contrários à proposta de
emancipação forçada, apresentada pelo Ministro do Interior ao Presidente Geisel.

Lula e o discurso pró-indígena

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No encontro de lideranças indígenas e entidades de apoio, “ocorrido entre 26 e 30 de


abril de 1981 em São Paulo, na Sessão Pública da reunião da Diretoria da União das Nações
Indígenas (UNI)”, como discorreu (DEPARIS, 2007:89).Feita para a escolha de uma nova
diretoria para coordenar as atividades da UNI, Luiz Inácio Lula da Silva, então Presidente do
Partido dos Trabalhadores, convidado pelas lideranças indígenas Mário Juruna (da
comunidade Xavante)e o líder indígena Olair (da comunidade Carajá), subia à Plenária para
discursar da seguinte maneira:
Companheiros e companheiras: hoje tive a satisfação de receber, no Sindicato de
São Bernardo do Campo, o Cacique Mário Juruna e um representante da tribo
Carajá, o Olair. Eu acredito que para mim foi uma grande lição. Uma lição porque
eu imaginava encontrar um cacique falando uma língua que eu não conhecia. Sem
brincadeira, às vezes chegava a imaginar um homem de arco e flecha na minha
frente. Afinal de contas, eu não posso ter culpa disso, e acredito que ninguém do
plenário poderia ter culpa disso, porque a formação que nós recebemos sobre o índio
nas grandes cidades é uma formação deturpada, recebemos a informação de que o
índio é selvagem. As nossas crianças quando entram na escola, recebem essa
informação de que os índios são selvagens e a coisa não para por aí; quem liga a
televisão, assiste um filme de bang-bang americano, com os brancos matando os
índios como forma de garantir a sobrevivência da raça supostamente tida como
maravilhosa e bondosa, a raça branca. [...] Sempre existe aqueles que tentam dizer
que o problema do índio é um e o problema do trabalhador é outro, mas é mentira, o
problema é um só, é a fome, é a exploração, é a miséria. É tudo igual! É a
multinacional comprando ou roubando a terra do índio, é a multinacional roubando
o sangue e o suor do trabalhador em São Bernardo do Campo [...]. (PRÓ-ÍNDIO,
136
1982:47).

Ressalvadas as considerações sobre a relação com a causa dos trabalhadores, o teor do


discurso de Lula enfatizava, justamente, a forma como a imagem sobre os povos indígenas
poderia ser manipulada para naturalizar a imagem de que lugar de índio é no meio do mato e,
ainda assim, somente enquanto é assimilado pela civilização.
Como bem evocou Lula, os projetos desenvolvimentistas empreendidos com o
consentimento do Estado, esbarravam nos inúmeros conflitos com as populações indígenas
estabelecidas por todas as partes do país. Massacres eram cometidos, fome e miséria
assolavam os grupos indígenas que eram expulsos de suas terras, muitas vezes, com o
consentimento do próprio órgão responsável pela manutenção, fiscalização e defesa de seus
direitos.
A situação era insustentável, aliás, não que tenha se tornado sustentável em algum
momento,mas era preciso criar mecanismos que fortalecessem a luta dos povos indígenas em
defesa dos parcos direitos que tinham conquistado com o Estatuto do Índio e lhes permitissem
conquistar mais direitos, principalmente, se quisessem que o Estado cumprisse seu papel de
136
Sessão Pública da Reunião e discussões relacionadas à votação da nova diretoria da UNI, feita pelas lideranças indígenas
presentes no Encontro de abril de 1981, em São Paulo (Reunião fechada aos não índios).
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possibilitar às comunidades indígenas o direito à terra, a saúde e a educação, permitindo a


esses povos o exercício dos direitos à cidadania brasileira, sem que fossem forçados a deixar
de ser índios.
Para defender seus direitos, as lideranças indígenas precisavam dialogar com a
comunidade envolvente. No entanto, abrir mão de suas diferenças para serem assimilados não
parecer ter sido a intenção dos povos indígenas, que passaram a ascender politicamente
naquele contexto. A ideia de integração à comunidade nacional era entendida por estes a partir
de suas cosmologias e experiências junto à comunidade envolvente.

Considerações finais
Para muitos líderes indígenas que iniciaram na década de 1970 o processo de
articulação entre grupos étnicos de diferentes regiões do país, o direito à cidadania brasileira
não deveria se conformar pelas políticas emancipacionistas ou civilizatórias empreendidas
pelo Estado,mas sim, a partir da lógica dos próprios sujeitos indígenas. Para estes, a
integração junto à comunidade nacional deveria ocorrer em seus próprios termos.
Cabe-nos a observação de que o evento para o qual Lula havia sido convidado por
Juruna e Olair, apesar de ser organizado para possibilitar o diálogo entre lideranças indígenas
e entidades de apoio, acabou por se constituir como o primeiro encontro de lideranças
indígenas em perspectiva nacional, reunindo um número expressivo de chefes de várias partes
do país, sendo por elas dirigido e encaminhado nos três dias que se seguiram.
O país passava por intensas agitações políticas e sociais. Democracia, Cidadania e
Direitos Humanos eram temas que estavam na pauta de primeira ordem nas agendas dos
movimentos sociais. Os movimentos indígenas, para além das especificidades étnicas de suas
articulações, não estavam alheios a essas mudanças. Suas lutas seriam legitimadas pelo
reconhecimento de suas diferenças prescrito no texto constitucional de 1988.

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UMA “DÁDIVA DO CÉU PARA ALÍVIO DA HUMANIDADE”: A IGREJA


CATÓLICA E AS ESTRATÉGIAS DE DISSEMINAÇÃO DA VACINA EM
PORTUGAL NO INÍCIO DO SÉCULO XIX.
FILLIPE DOS SANTOS PORTUGAL*

Em 1798, o inglês Edward Jenner descobriu a vacina antivariólica, daí se tornou


comum chamá-la de vacina jenneriana. A vacina antivariólica era retirada de uma doença que
acometia os gados bovinos chamadacow-pox. Jenner obteve a vacina pela observação de que
pessoas que trabalhavam com o gado e contraiam o cow-pox, consequentemente, não
adquiriam a varíola. Em contrapartida não se tinha referenciais teóricos para explicar o
processo imunizante. Como esta não era uma doença muito comum no gado, acabava-se a
utilizar o método de vacinação braço a braço, retirando-se o fluído vacínico de uma pessoa já
vacinada e aplicando direto no braço de outro indivíduo. (FERNANDES, 2010: 31-32.)

Os discursos sobre a vacina e a sua aplicação foram uma questão polêmica por toda
Europa. No início do século XIX, diversas dúvidas foram suscitadas quanto à eficácia da
vacina e a possibilidade de transmissão de outras doenças através de sua utilização, de modo
que, grande parte da população leiga tinha receio em se vacinar. Até mesmo entre os médicos
também não havia consenso quanto a sua prática.

Em Portugal a prática de vacinação foi introduzida logo nos primeiros anos após o
desenvolvimento do método, todavia, a vacina foi difundida a partir de uma base individual,
voluntarista e não sistemática - o que dificultava a vulgarização da prática. As pessoas que
vacinavam eram oriundas de diversos grupos sociais, desde médicos e cirurgiões, até mesmo
indivíduos não especializados, como padres, sangradores e pessoas movidas por ideais
filantrópicos ou humanitários. Para Teixeira da Silva, a distribuição da vacina ficou restrita a
poucas áreas de Portugal, e se formou uma “malha bastante rarefeita e pouco eficaz em
termos de cobertura do território”. (SILVA, 2015: 272-273)

O marco de difusão da vacina antivariólica em Portugal foi a criação da Instituição


Vaccinica da Academia Real das Sciencias de Lisboa, no ano de 1812. Esta instituição foi
fruto do incentivo de um grupo de médicos portugueses ligados a sobredita academia que
tinham o propósito de levar a vacina a todo território português. A institucionalização da

*
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz. Casa
de Oswaldo Cruz, 2018.

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prática possibilitou uma maior expansão e sistematização dos serviços de vacinação e


conseguiram isto devido a diversas estratégias, utilizadas pelos médicos para promover a
vacinação. (PORTUGAL,2018: 86-92)

Segundo o sócio fundador da instituição, o médico Bernardino Antonio Gomes, dentre


as principais estratégias para difundir a vacina seria: lembrar constantemente a todos das
mortes, das deformidades e dos incômodos da varíola; divulgar a “benignidade da vacina e
seu poder antivarioloso”; além de divulgar o exemplo de outras nações europeias que já
tinham maior experiência com a prática(GOMES, 1812: 25-30).Segundo esse médico, na
Alemanha, a bexiga não existia mais, porque todos os pais haviam sido obrigados a vacinar os
filhos sob penas estabelecidas, bem como na França, Itália e Inglaterra, lugares onde a vacina
já era amplamente praticada. O exemplo escocês seria, segundo Bernardino Gomes, o mais
bem recomendado, pois cada pároco, após batizar uma criança, poderia intimar a seus pais
dizendo-lhes:

Se esta criança morrer de bexigas naturais, vos somente sois culpado de sua
morte, por que tendes não um prompto e eficaz meio de a livrar deste fatal
enfermidade, e heste meio é a vacina dadiva do céu para alivio da fragilidade
humana.(GOMES,1812:30)

O discurso do médico Bernardino Antonio Gomes é interessante, pois apresenta uma


estratégia da instituição que visava aumentar a aceitabilidade da vacina entre a população.
Porém, a prática percebida e nomeada como uma “dádiva do céu” desentoava que
representaria a vacinação na percepção de muitos médicos e políticos da época. Neste sentido,
mesmo com todo este incentivo, por muito tempo, boa parte da população tinha sido refratária
ao método quanto à utilidade e eficácia.

A questão da população ter sido resistente a esta profilaxia nos leva a pensar diferentes
problemáticas com as mais variadas causas. Diversos casos foram citados pelos médicos
como: o de facultativos opositores da vacina embasados na obra de Heliodoro Carneiro137; tais
como: a pouca credibilidade do efeito protetor da vacina;o surgimento de doenças e epidemias
atreladas a vacinação, entre outros. Em uma matéria da Gazeta de Lisboa,em 1814, foi
narrado que “o povo clamava que a vaccinação não é só um acto irreligioso, antecipando a

137
Médico português que escreveu a obra Reflexões sobre a Pratica da Inoculação da Vaccina e suas funestas
consequênciaspublicada em 1808, foiuma obra totalmente voltada contra a vacina e causou grande repercussão entre os
médicos e a população portuguesa.
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vontade do Altissimo, mas também que he uma moléstia de animaes irracionaes, que não
pode ser sem peccado transmittida a especie humana” (Gazeta de Lisboa, 1814:(s/p)).

É importante salientar, como o historiador Bruno Barreiros afirmou, que, na primeira


metade do século XIX os cuidados médicos na saúde pública em geral foram ampliados,
assim como também, ocorreu um esforço para uniformizar e fiscalizar as práticas de saúde de
maneira a reprimir as práticas diversas da medicina popular, que possuíam concepções
diversas sobre saúde e doença, então amplamente difundidas por todo Portugal(BARREIROS,
2014:77-88.). Neste sentido, em 1815 o médico português, José Feliciano de Castilho, lente
da Universidade de Coimbra, em uma matéria publicada no Jornal de Coimbra, relatou o que
uma das suas pacientes pensava sobre a vacina:

[...]Dizia-me ésta pobre mulher, que a Vaccina he a maior das desgraças, que tem
vindo ao mundo; que pela sua Terra toda a gente se vaccina, mas he porque o seu
Parocho os ameaça com prisão e Portagem se não o fizerem. Acrescentou que ter
filhos he o maior mal que pode succederá gente pobre, que com a criação d’elles não
pode cuidar na sua vida, ir á lenha, a herva, etc.; que para bexigas he que os pobres
apellavão para se verem livres dos filhos; e que agora nem esse recurso lhes-resta;
que ninguem morre de bexigas, nem já as-ha, nem se-tornão a esperar na sua
Terra.(Jornal de Coimbra,1815:73)

Para o médico José Feliciano de Castilho, o relato desta paciente na verdade era um
grande elogio à vacinação, pois mostrava a efetividade da prática. Todavia, podemos perceber
uma postura de imposição e coercitividade da vacina, mesmo que sua obrigatoriedade não
fosse imposta pelo governo. Neste sentido, a participação dos padres e da Igreja no processo
de vacinação foram indissociáveis das tentativas de convencer a população portuguesa a se
vacinar neste período. Ademais, os próprios membros da Igreja poderiam ser coagidos, como
podemos perceber na pastoral em prol da vacinação feita pelo Bispo d’Elvas, D. Joaquim da
Cunha de Azeredo Coutinho, em 1814, na qual determinou que o corpo eclesiástico “que se
empenhe em promover este bem, e aos omissos, ou rebeldes faz lembrar o poder da sua
jurisdição” (Gazeta de Lisboa, 1814: s/p). Esta relação também estava bastante clara no ofício
expedido pelo Intendente Geral da Polícia, João Antonio Salter de Mendonça, para todos os
prelados diocesanos do Reino em 1813:

[...] Como apesar de tantos desvelos e notórias utilidades, ainda há bastante


negligência ao cumprimento da dita obrigação por falta de conhecimento e
persuasão. E é servido recomendar a V. Ex.a. 1º. Que V. Ex.a. promova a vacinação
por todos os meios possíveis, especialmente pelo exemplo, sempre mais poderoso,
que o conselho, procurando não só fazer vacinar todas as pessoas de sua família, que
não tiverem tido bexigas, os empregados e alunos dos seminários, e outras
corporações, que estiverem de baixo da sua inspeção, mas também persuadir as
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pessoas principais a que imitem tão louvável procedimento, pois a prática deste
saudável invento depende inteiramente da opinião pública, para se introduzir em
todas as famílias e classes da sociedade. 2º.Que V. Ex.a. ordene aos párocos, seus
súditos, que não cessem de persuadir aos fregueses por todos os modos,
especialmente na citação da missa em alguns domingos as utilidades da vacinação,
exortando a que se pratique por todos que dela necessitarem.(Correio Braziliense:
Ou Armazem Literario,1813:242-243.)

A ordem do Intendente Geral da Polícia o “exemplo do alto escalão”, ou seja, de


membros das altas hierarquias e autoridades governamentais, também citado, fez parte da
estratégia recorrente utilizada para difundir a vacina. O fato de D. João ter vacinado seus
filhos foi um argumento sempre lembrado pelos vacinadores. Diversos cirurgiões atestaram
terem utilizado tal estratégia para conseguir difundir a vacina, como,por exemplo, na carta do
médico Francisco Gomes da Motra endereçada, em 1814, à Instituição Vaccinica da
Academia Real das Sciencias de Lisboa, na qual afirmava ter tentado introduzir a vacina na
vila da Macejana usando a estratégia de conseguir a presença de dois ministros e do
Corregedor da Comarca no primeiro ato de vacinação afim “de animar, atrair e encher o povo
de confiança”. Todavia, os planos do médico foram frustrados, pois, das 40 pessoas que foram
vacinadas, em nenhuma delas a vacina teria funcionado (Jornal de Coimbra, 1814: 96-97).

Outro exemplo interessante foi do médico Antonio de Almeida, secretário da


instituição vacínica, que relatou que em meio a uma epidemia de coqueluche estavam
aparecendo “bexigas muito discretas e benignas”, que não teriam tido progresso graças a
vacinação. Todavia começou a se espalhar pela freguesia de Travança, que a mortandade de
crianças naquele território pela coqueluche era devida à vacinação que havia sido introduzida
há pouco tempo. O médico relatou que conseguiu deter os boatos com ajuda do padre e o
capitão-mor da freguesia, demonstrando o fato que a coqueluche estava se espalhando por
outras regiões em que não havia vacinação. Antonio de Almeida afirmava que para se pudesse
atribuir à vacina o surgimento de qualquer doença, seria preciso que ela fosse inteiramente
nova ou que atacasse com mais regularidade antes da vacinação (Jornal de Coimbra, 1817: 8-
9).

Além do alto escalão, pessoas “respeitáveis” também poderiam servir de exemplo para
o resto da população, mesmo assim, esta medida não garantia que o povo não continuasse
refratário ao método. É importante salientar que a estratégia de utilizar exemplos para
disseminar a vacinação mais do que direcionados à população em geral, eram destiandos aos
os chefes de família. Desta forma, quanto mais legitimada a efetividade da vacina, maior se
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tornava o discurso médico de culpabilização destes indivíduos pela ocorrrência de casos


varíola, seja por sua negligência, letargia ou incredubilidade que trariam como resultado
direto a perda de entes queridos. Neste sentido, a narrativa de Bernardino Antonio Gomes,
feita em 1815, é interessante, pois ao ressaltar que em Lisboa o número de vacinados era
muito baixo, relacionou um pequeno aumento nos números de vacinados a uma tragédia onde
as bexigas haviam ceifado uma família, atacando dois meninos e uma menina de 18 anos
“formosa, mui prendada, e de excelente indole”. Fato este que teria aumentado o medo das
pessoas de tal forma que “o severo castigo, que derão ao incredulo e infeliz Pai daquelles tres
irmaos, que despertaram muitos negligentes, e converterão alguns incredulos”(Historia e
Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1816:52.).

Outro exemplo interessante foi o fragmento de memória sobre a utilidade da vacina


que foi publicada no Jornal de Coimbra em 1815:

Os pais hão-de chegar a persuadir-se que não são menos obrigados a


innocular(vaccinar) os seus filhos do que a alimentallos e vestillos...? Que diferença
ha entre assacinar um filho e abandonallo a disposição da peste e ds bexigas?...
Haverá por ventura Mães que se atrevão a supportar a voz de um filho, morto de
bexigas, que lhe grita da sepultura,, Mãe insensivel e dsesumana? por que me
deixaste morrer? que desculpa tens para dar, de haveres suffocado o brado da razão,
que poz nas tuas mãos o meio mais seguro e infallivel de me salvar? Com que
direito deste ouvidos as preocupações que me sacrificarão?(Jornal de
Coimbra,1815:195-196.)

Além dos argumentos de culpabilização, medidas mais enérgicas para difundir a


vacina foram encontradas de forma espassada ao longo de nossa análise. Primeiramente,
como mostramos, em 1813 foi expedida uma ordem pelo Intendente Geral da Polícia para que
os párocos prestassem uma ampla ajuda nos serviços de vacinação. Esta ordem também foi
expedida para os corregedores das comarcas portuguesas. Estes deveriam contabilizar o
número de vacinadores de sua jurisdição e, além disso, criar planos para suprir os lugares em
que os vacinadores estivessem em falta. (Correio Braziliense: Ou Armazem Literário,
Londres, 1813: 243-245).

Seria de atribuição dos corregedores publicar por edital os nomes e as residências


destes vacinadores para persuadir a opinião pública, porém ,João Antonio Salter de Mendonça
advertia que eles deveriam utilizar sempre a persuasão e o exemplo, mas nunca a autoridade,
pois “em semelhantes assuntos, em vez de aproveitar, só pode servir de impecer o fim
pretendido”. Todavia, apesar da precaução do intendente, a prática da vacinação não ocorria

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desta forma, pois havia umaordem explicíta para que os corregedorres vacinassem todos os
individuos à eles subordinados, isto incluía: os órfãos, as pessoas empregadas nos hospitais ou
os convalescentes que deles saissem, os presos nas cadeias públicas, os expostos, os alunos
das casas de educação que lhe fossem sujeitos, ou qualquer outra pessoa sob sua jurisdição.

Vários médicos da Instituição Vaccinica da Academia Real das Sciencias de Lisboa


cobravam uma maior obrigatoriedade e empenho do governo para auxiliar a difusão da
vacinação. Além disso, quanto mais os números de vacinação declinavam maiores eram as
críticas neste sentido. Por exemplo, para Ignácio Benevides, membro da Instituição Vaccinica
da ARSL, embora o serviço de vacinação fosse filantrópico, seria necessário algum incentivo,
principalmente pelo fato de os “prejuízos dos povos ainda persiste”. Benevides acreditava que
seria muito difícil persuadir o povo da necessidade da vacinação, pois as medidas tomadas
pelo governo eram pouco enérgicas, e entendia que este deveria seguir o exemplo de outros
povos, como o sueco, que admitia a denúncia daqueles que não vacinavam seus filhos, e de
outras nações onde esta obrigação era incluída no Catecismo doutrinal e incorporadas nas
práticas dos párocos e nas missas conventuais(Historia e Memorias da Academia Real das
Sciencias de Lisboa,1819: 40-41).

Em 1820 a vacinação se tornou obrigatória aos membros do Exército as autoridades


civis e eclesiásticas. Estas autoridades ficaram imbuídas na promoção da vacinação e na
prestação de conta dos seus progressos enviada trimestralmente à Instituição Vaccinica da
Academia Real das Sciencias de Lisboa. Nestes avisos estava determinado que os provedores
fossem encarregados de promover a vacinação nas suas comarcas, de receber dos vacinadores
as relações de vacinados, e de as remeter à instituição no fim de cada trimestre, cabendo o
mesmoao Chefe da Repartição de Saúde do Exército. As contas trimestrais seriam entregues
diretamente ao Rei,com as informações sobre as pessoas que a promoviam e aquelas que
dificultavam sua prática.(Historia e Memorias da Academia Real das Sciencias de
Lisboa,1821:28-42.)

Para além da questão da obrigatoriedade, para muitos médicos e autoridades


governamentais um dos fatos que mais prejudicava a vacinação eram os boatos e rumores em
torno da vacina, sendo o principal deles o de que vacinados contraíam bexigas. Sobre isto, o
intendente de polícia português, João Antonio Salter de Mendonça, discorreu que os médicos
davam o nome de bexigas a diferentes moléstias e com isso “podem illudir o povo, e destruir
a confiança, que todo este reino vai tendo na eficácia da vacina, ao atestarem que vacinados
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tiveram bexigas”. Devido a isso o intendente expediu uma ordem, em 1819, para que os
médicos que atestassem que algum vacinado tivesse adquirido bexiga, deveriam emitir este
parecer por escrito para que o fato fosse examinado por médicos correspondentes da
Instituição Vaccinica da Academia Real das Sciencias de Lisboa, que assim iriam emitir seu
parecer sobre o caso e se esta pessoa havia tido realmente vacina verdadeira ou não.

Os rumores e boatos sobre a vacina ressaltados pelo intendente não cessariam


facilmente com a promulgação de um decreto e continuaram frequentes nas reclamações dos
médicos da Instituição Vaccinica da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Em nossa
análise documental, um dos melhores exemplos que encontramos de boatos sobre a vacina foi
uma carta, de autoria do “Anti-Impostor”, dirigida ao redator do Correio Braziliense e
publicada, em 1813, neste mesmo jornal. Na carta, o autor fez diversas críticas a um opúsculo
publicado no mesmo jornal,que era favorável à vacinação,além referir-se a diversas
reclamações sobre a vacinação, citando fatos como a interferência dos párocos no incentivo à
vacinação, a obrigatoriedade velada da vacinação e até o fato de se colocar “moléstias de
Brutos na Economia animal”,o que gerava doenças cutâneas como sarnas e tinhas em
Portugal( Correio Braziliense: Ou Armazem Literário, 1813: 824-827).

Um fato interessante, também debatido na carta, foi relativo à aprovação de D.João ao


método. Segundo o “Anti-Impostor”, o fato de que D. João tivesse vacinado seus filhos, não
levava à conclusão de que ele fosse favorável à vacina, pois tendo sete filhos apenas vacinou
dois e somente tardiamente. Relatou, ainda, que D. João observara frequentemente no Brasil
os “funestos e repetidos effeitos da vacina”, e que fora por este o motivo que não havia
permitido que vacinassem seus outros filhos. Para o “Anti-Impostor” a vacinação dos filhos
de D. João foi um fato que teria reforçado a oposição do Rei à vacina, pois os dois que foram
vacinados possuíam uma saúde extremamente precária diferentemente do restante da Família
Real, fato este que seria de conhecimento de todos os frequentadores do Paço imperial no Rio
de Janeiro.

Claramente o “Anti-Impostor” levantava alguns dados pouco críveis, na medida em


que, no Brasil, o monarca português fora amplamente favorável à vacinação,tendo inclusive
criado a Junta da Instituição Vaccinica da Corte no Rio de Janeiro em 1811. Porém, o boato
de que D. João não era favorável à vacina era mais um exemplo de boatos espalhados na
época, os quais poderiam diminuir a credibilidade da prática de vacinação.

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Conclusão

O interesse governamental em difundir a vacina esbarrou em um fator relevante em


Portugal: a pouca aceitabilidade do método pela população. Destarte, podemos perceber que
em Portugal as autoridades buscaram ampliar o número de vacinados através do
“convencimento” com o auxílio da Igreja Católica e de figuras “ilustres”, que foram
fundamentais para aumentar a aceitação da prática no povo.

Mesmo não se tornando obrigatória em Portugal, muitas vezes a prática ocorreu de


forma coercitiva. Cabe ressaltar que o discurso de muitos médicos do período seguia o
caminho de incentivar a obrigatoriedade do povo a se vacinar. Como afirmou Bruno Barreiros
em seu artigo, o século XIX foi um período onde os discursos e as práticas médicas se
ampliaram junto a um esforço de fiscalizar e tornar cada vez mais uniformes as práticas de
saúde, de maneira a reprimir as práticas da medicina popular, que possuíam concepções
diversas sobre saúde e doença(BARREIROS, 2014, 77-88.).

O auxílio de membros importantes da Igreja Católica no processo de vacinação de


Portugal foi fator premente tendo em vista a importância da instituição na administração do
estado português, deste modo o clero português buscou incentivar ou mesmo coagir os fiéis
em seus trabalhos religiosos para que utilizarem esta prática médica. Assim, a história da
vacina antivariólica em Portugal é interessante por deslumbrar o quanto as práticas de saúde,
as concepções populares e instituições como a igreja católica se tencionavam.

Todavia, cabe ressaltar que isto não foi uma exclusividade do governo português. A
título de elucidação, há o caso da Rússia. Foi noticiado em uma matéria na Gazeta de Lisboa,
que naquele país a vacina teria sido introduzida em 1801 pelo Collegio Imperial de Medicina
e parece ter tido boa aceitabilidade da população. Tal aceitação contribuiu para, a queda do
número de mortes por varíola, em 1802,para apenas119 pessoas. Porém, segundo o redator,
devido ao fato do povo ter ficado mais “frouxo” sobre o assunto, em 1804, o número de
pessoas mortas por varíola teria subido novamente, para um total de 379 pessoas. Neste
quadro, o governo teria ordenado que os pais de família, quando levassem seus filhos para
serem batizados, deveriam ser advertidos pelos ministros da religião que se alguma criança
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falecesse por bexiga, seriam eles os responsáveis pela sua morte, por um descuido
indesculpável. (Gazeta de Lisboa, 1805: (s/p)).

Ademais, em 1814, houve uma Ordem Papal para o Proto-Medicato de Roma, para
que continuasse a propagar a vacina “descobrimento precioso, que será para os povos mais
hum motivo de gratidão, e reconhecimento a hum DEOS sumariamente bom”(Gazeta de
Lisboa, 1814:(s/p). Por fim,esta ordem papal, bem como outras matérias publicadas em
diversos periódicos, indicam que a igreja católica teve um papel importante no processo de
promoção da prática da vacina no início do século XIX na Europa.

Fontes
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Literário, Londres, n.66, novembro de 1813, p.824-827.

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Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, junho de 1814. Jornal de Coimbra, Lisboa,
n.XXX, parte I, junho de 1814, p.321-322.

Conta anual da Instituição Vaccinica da Academia Real das Sciencias de Lisboa, pronunciada
na sessão pública de 1815 por Bernardino Antonio Gomes. Historia e Memorias da Academia
Real das Sciencias de Lisboa. Lisboa, Tomo IV, parte II, 1816, p.52.

Continuação do Exame Sobre as observaçoens, e reflexoens relativas à prática da inoculação


da Vaccina, e suas funnestas cconsequencias feitas em Inglaterra pelo Dr. Heliodoro Jacinto
de Araujo Caneiro. O Investigador Português em Inglaterra ou Jornal literario, político, &c,
Londres, v. 2, n. VIII, janeiro de 1812, p. 359.

Diario Vaccinico de Jose Feliciano de Castilho em Coimbra, nos meses de abril, maio, e
junho de1815. Jornal de Coimbra, Lisboa, n. 38, 1815, p.73

Discurso Histórico sobre os trabalhos da Instituição Vaccinica, recitado na Sessão publica da


Academia Real das Sciencias de Lisboa, em 24 de Junho de 1818 por Ignacio Antonio da
Fonseca Benevides.Historia e Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, Lisboa,
Tomo VI, parte I, 1819, pp.40-41.

Discurso Historico sobre os trabalhos da Instituição Vaccinica, lido na sessão pública de 24 de


junho de 1820 por José Maria Soares. Historia e Memorias da Academia Real das Sciencias
de Lisboa, Lisboa, Tomo VII, 1821, pp.28-42.

Extracto de uma carta de Francisco Gomes da Motra a José Feliciano de Castilho, sobre
vaccina, febres intermitentes, etc. Jornal de Coimbra, Lisboa, n. XXXII, 1814, pp.96-97.

Lisboa 12 de Fevereiro. Gazeta de Lisboa, Lisboa, n.38, 13 de fevereiro de 1819. (s/p)

Lisboa 22 de Fevereiro. Gazeta de Lisboa, Lisboa, n.46,23 de fevereiro de 1820. (s/p).

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Gazeta de Lisboa, Lisboa, n.209,5 de setembro de 1814. (s/p).

Lisboa 19 de Novembro. Gazeta de Lisboa, Lisboa, n.274,19 de novembro de 1814. (s/p).


Para os Corregedores das Comarcas. Correio Braziliense: Ou Armazem Literário, Londres,
n.63, agosto de 1813, pp.243-245.

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Braziliense: Ou ArmazemLiterario, Londres, n.63, agosto de 1813, pp.242-243.

Memória sobre a utilidade da innoculação das Bexigas Vaccinas, traduzida do Alemão por
um amigo da Humanidade.Noticia. Jornal de Coimbra, Lisboa, n.XL, 1815, pp.195-196.

Seis Contas mensais de Antonio de Almeida, médico em Penafiel, sócio da Acad. R. das
Scienc. De Lisb. e correspondente da Inst. Vaccin., as quaes pertencentes ao 1° semestre do
anno corrente 1817. Jornal de Coimbra, Lisboa, n. LV, parte I, 1817, pp. 8-9.

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O MUSEU COMO RECURSO DIDÁTICO EM HISTÓRIA: O TERREIRO DE


CANDOMBLÉ DA MÃE YATYLISSÁ EM BOA VISTA-RR, COMO PROPOSTA DE
MONTAGEM DE MUSEU NA ESCOLA.

FYLIPPIO DE ALMEIDA SANTOS CASTRO*138

Introdução
As origens de espaços museológicos datam desde a Grécia Antiga: era um local
sagrado, que detinha coleções consideradas místicas das conquistas materiais que perpetuaram
ao longo do tempo, pois se agradeciam aos deuses, ofereciam sacrifícios e guardavam objetos
em nome das vitórias em batalhas. Esse papel de conservação e coleção caracterizada pelos
museus foi mudando seu objetivo no decorrer de sua história, porém sua essência de guarda
dos objetos de relevância memória permaneceu.
Existe a prática muito comum em todo o universo social de guarda material para
memoração. Seja por recordação, ou ressuscitar aquele momento que viveu em um passado
recente ou distante. Essa prática não é contemporânea, pois está presente na História de
muitos Estados onde certos fragmentos de coleções materiais que revivem o passado e
momentos históricos estão disponíveis em recintos próprios (seja por estátuas, bustos de
pessoas consideradas importantes, arquitetura, pinturas e etc). O ambiente do museu tem
práticas parecidas à preservação da memória e conhecimento material de uma época. A visita
a este espaço é um momento onde há uma quebra de monotonia do meio escolar, é uma
ocasião do pesquisador/docente aproveitar para transmitir um conhecimento de maneira mais
sólida, auxiliados pelos objetos diferentes. Não se deve somente ater o foco ao museu no
sentido de causar este ''impacto'' de um lugar diferente, mas também se necessita levar em
consideração a metodologia a ser usada para o conhecimento adquirido no museu e como tal
experimento vai auxiliar no ensino de História e entender como esse produto histórico chegou
até os dias atuais.
Hoje existe uma espécie de especialização temática para cada tipo de museu,
dedicados não só para a disciplina histórica, como também para a guarda de objetos
pertinentes a outras disciplinas como a zoologia, arqueologia (tanto em materiais pequenos,
mas também monumentos in situ), antropologia e outras temáticas pertinentes a materiais
específicos, além disso, concomitantemente com a renovação científica do século XX, refletiu
nos objetos de novos museus temáticos que surgirão no respectivo período, como é o caso dos
grupos historicamente esquecidos da historiografia tradicional que emergem para dar forma às

*Acadêmico do curso de licenciatura em História pela Universidade Federal de Roraima.


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novas questões, novos personagens, sujeitos históricos, culturas, grupos, além da apresentação
de novas problemáticas das quais podemos ter como exemplo as mulheres, crianças, negros,
indígenas, operários, história da educação dentre outros temas pertinentes às novas categorias
sociais explorados cientificamente.
Dentro desta perspectiva, usou-se como demonstração em forma de museu a religião
do Candomblé, uma cultura que sobreviveu ao longo dos séculos resistindo em sua riqueza da
herança imaterial, pois tais aspectos são importantes para esclarecer questões descritivas da
religião como produto de análise e compreensão por parte de quem participa da apresentação.

O Museu e o Candomblé: Uma experiência da cultura imaterial através de recurso


didático.
O ponto central da presente pesquisa é demonstrar a execução de certas práticas de
recurso didático mesmo com certas limitações de logísticas e de espaço. É importante
ressaltar que existe cada vez mais uma reciclagem de novas práticas de ensino, principalmente
pela parte docente para o aprimoramento no ensino didático-pedagógico.
Uma aula expositiva pode ser enriquecida, aprimorada com a utilização de alguns
recursos didático-pedagógicos, que não seja o quadro e o giz. Esta é uma
preocupação constante de alguns profissionais da educação [...]. Dessa forma os
educandos sairão da situação de agente passivo passando a ser agente ativo de sua
própria aprendizagem, podendo aprender os conteúdos expostos pelo professor e
interagir com os colegas (SANTOS, 2016:2)

Vale ressaltar que apenas o museu em si não é um recurso didático, mas sim a sua
forma de explicar os objetos ali expostos para o levantamento de problemáticas e agregação
no conteúdo intencionado. Tal espaço, tem seu caráter educativo e de contribuição social, ao
mesmo tempo em que pode ensinar, também pode atingir outro objetivo fundamental que os
objetos materiais podem exercer sobre os alunos: o questionamento, pois a partir daí pode
surgir a problematização do tema. Para Ribeiro:
No museu de História, esses vestígios são organizados e expostos para promoverem
uma ''viagem no tempo''. O veículo dessa viagem é exposição museológica que, ao
construir uma narrativa por meio de diferentes formas, perspectivas e temáticas,
possibilita aos visitantes a oportunidade de observar, pensar, descobrir, explorar,
investigar, questionar e elaborar novas narrativas. […] Ao nos depararmos com
evidências materiais de outros tempos, sinais preservados ou em ruínas deixadas
pelas pessoas do passado, somos impelidos a imaginar: quem produziu? Para quê?
Como foram usados? Perguntas que intrigam o olhar e mobilizam os atos de ensinar
e aprender História na escola e em outros espaços (RIBEIRO,2011:135)

Tais questionamentos também são fundamentais para não deixar a visita ao museu

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apenas uma evocação de uma memória descritiva, ou celebrar um mero momento histórico
sem o objetivo primordial de ser um laboratório de pesquisa. Assim, existem vários cuidados
de interpretação, observação, planejamento e estudo para a visita ao museu ter sua máxima
efetividade no que diz respeito ao estudo dos objetos ali expostos.
Além disso, é inerente para a vida escolar do aluno uma nova abordagem de análise da
fonte histórica exposta devido ao contato direto, novas problematizações e representações que
aqueles objetos denotam, também devem ser explorados tanto por parte do aluno quanto por
parte do professor, fomentando um rico debate e ''contribuir para que o educando reflita sobre
seu papel como ator social pertencente a uma determinada comunidade, que possui
patrimônios individuais e coletivos, memórias e legados que devem ser preservados. (amanda
pessoa 2016) ''
Segundo o artigo 6º dos Estatutos do Comitê Nacional Brasileiro do Conselho
Internacional de Museus (ICOM):
''O museu é um espaço de produção de conhecimentos abertos ao público, sua
função é adquirir, conservar, pesquisar, comunicar e exibir evidências materiais do
homem e de seu ambiente para fins de pesquisa educação e lazer''.(adaptado)¹

A partir daí, evidencia-se a função educativa dos museus. Porém, há de se desconstruir


os estereótipos dos museus como espaço apenas de se ''guardar'' coisas velhas. Esse
pensamento é constante também na concepção do significado de museu para as pessoas em
geral e também deve ser pauta na apresentação dos objetivos e importância de se constituir
esse precioso espaço.
Logo, os objetivos e a preparação para a visita ao museu são de suma importância para
o sucesso da excursão. Não é viável apenas a visitação ao espaço na espera de absorção do
conhecimento de forma inata com a simples exposição dos objetos sob a pena de uma
experiência superficial e indiferente, principalmente por parte dos alunos. Também é
imperioso estar preparado para quaisquer imprevistos que possam ocorrer, prevenindo para
uma possível frustração à excursão em vez de uma experiênciapositiva que agregue o
conhecimento dos alunos.
O estudo de caso remete-se à disciplina da Universidade Federal de Roraima práticas
de ensino I – Recursos Didáticos. O museu como tema foi bastante atrativo e tão logo foi
escolhido para a elaboração de uma aula para os acadêmicos com elementos museológicos.

¹
Adaptado do 6º artigo do ICOM. Disponível em www.icom.org.br/wp-content/uploads/2013/05/Estatuto-ICOM-
BR.pdf. Acessado em 31/05/2018
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Normalmente, na proposta do recurso de museu, existe a prática da retirada dos estudantes do


espaço escolar (no caso universitário), para a visitação do museu e assim elucidar os estudos,
interpretações e análises dos objetos expostos, porém, não há museu na cidade de Boa Vista –
Roraima, pois o museu que antes havia se encontra desativado. Devido às circunstâncias
limitativas para a efetivação da experiência de museu, optou-se por levá-la até a sala de aula.
Ao buscar a temática a ser mostrada no ensaio de museu em sala de aula, foi acordada a
religião do candomblé como objeto de estudo. A prática litúrgica do candomblé vem de
origem africana. O candomblé sofreu um sincretismo religioso com a religião católica na
época colonial e imperial do Brasil para o exercício religioso devido à subjugação da
sociedade brasileira à cultura africana. A combinação foi uma espécie de camuflagem para a
atividade religiosa que resultou na continuidade da cultura material e imaterial dos praticantes
candomblecistas que permaneceu viva até a contemporaneidade. O que ocorreu com sucesso,
pois é perceptível até os dias atuais a gerência e práticas litúrgicas dessa religião no seio
social brasileiro. Mesmo assim, o candomblé, assim como muitas religiões de origem
africana, é alvo de represálias e preconceitos pela mesma sociedade, evidenciando os
resquícios da intolerância que muitos paradigmas culturais de origem africana sofreram
durante a escravidão e que se perpetuaram ao longo do tempo. O trabalho abordou a
exposição dessa cultura imaterial que sobreviveu, sob a ótica do museu, gerando um impacto
sensorial que a exposição dessa cultura possa conceber, visando como objetivo a integração
do conhecimento através dos materiais e a oratória ali exposta de forma análoga aos museus
para melhor entendimento dos alunos sobre o tema.
Com o intuito de buscar auxílio para enriquecer a apresentação em forma de
exposição, buscou-se o terreiro da mãe Yatylissá que prontamente auxiliou com os objetos a
serem mostrados, então improvisou-se uma sala para mostrar aos acadêmicos as peças e
utensílios e além de uma pequena palestra feita pela própria mãe Yatylissá em sala a respeito
dos costumes do candomblé e dos desafios para gerenciar a prática da religião.
A importância de utilizar métodos para abordar tais temas considerados tabus são
pertinentes para amenizar as visões preconceituosas que muitos cultos sofrem no seio da
sociedade brasileira, o exemplo do presente ensaio para o uso de materiais para demonstração
da cultura material e imaterial do candomblé tem um duplo objetivo principal, da qual além
de desmitificar o senso comum que o aluno possa ter (muito comum o discente ter uma visão
preconceituosa e eivada de repercussão negativa), a exposição ajuda no conhecimento
histórico relativo ao culto religioso e sua sobrevivência na discriminação presente

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contracultura africana ao longo do tempo, gerando questões, problematização de pesquisa,


aguçando a percepção social, histórica e cultural que o aluno possa despertar no contato do
museu.

Desta forma, para atingir tais objetivos, foi exposto em uma sala no Centro de
Ciências Humanas da Universidade Federal de Roraima uma abordagem análoga ao museu
com a exposição de vestimentas, imagens e objetos pertinentes à religião, bem como um
breve histórico sobre a religião para suprir a função do museu de conhecimento de cultura
passada. No fim, foi exposto uma oratória feita pela mãe Yatylissá, bem como a demonstração
fictícia de alguns rituais da religião do candomblé e no final foi aberta à perguntas. Logo,
entende-se que a exposição dos objetos e da cultura material e imaterial é de bom proveito
para observar a herança que uma cultura que sofreu represálias ainda é presente na sociedade
contemporânea.

Conclusão
A apresentação dos objetos e a exposição oratória auxiliam na desconstrução de
muitos preconceitos enraizados em nossa sociedade, além do contato direto com os materiais
para o entendimento correto do funcionamento das liturgias candomblecistas. As práticas de
religiões africanas são frequentemente sujeitos passivos dos mais variados tipos de
preconceito pois, desde a escravidão no Brasil, tudo relacionado ao afrodescendente era
subjugado e visto de maneira inferior aos olhos da sociedade, essa essência maculada ficou
pertinente até os dias atuais, igualmente visto quando se trata da religiosidade que faz parte do
bojo cultural africano. O candomblé é um perfeito exemplo da resistência de suas práticas
perante o preconceito institucionalizado, que é fruto da herança colonial e imperial no Brasil.
É importante salientar que no currículo escolar apenas o cristianismo é ensinado como
religião primária a ser seguido, quando a escola pública tem o ensino religioso na estrutura
disciplinar. No antro privado de ensino, a educação religiosa é determinada pelas políticas
próprias da escola das quais são mais comuns as de essência cristã, quando pautadas sobre
organizações de religiosidade e ensino concomitantemente. Isto abre dois caminhos a serem
analisados quando se trata do ensino sobre religião: A primeira é uma espécie de obrigação de
princípios a serem ‘’estudados’’, trazendo uma sensação de que o cristianismo seria a crença a
ser seguida, criando muros para religiões que não compactuam com os dogmas cristãos.

A segunda seria que o aluno oposto à fé cristã, não fica inserido no ambiente escolar,
tanto devido ao preconceito que já é presente na sociedade quanto a falta de abordagens
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pertinentes às doutrinas diferentes do


cristianismo. Muito comum, por exemplo, casos de alunos que sofrem preconceito e não são
orientados pela gestão escolar ou pelo professor, quando não existe preparo docente, nem
administrativo para tratar de assuntos que desmitificam muitas visões errôneas comuns. Foi
bastante positivo a participação dos alunos e professores,
professores, além de obter o primeiro contato
com os adereços e objetos do candomblé, o conhecimento adquirido com a participação da
mãe Yatylissá auxiliou nesse primeiro contato e inovar na forma de participação da
comunidade para os estudos nas áreas sociais.
soci

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CONSELHO DE MUSEUS. Disponível em: <www.icom.org.br/wp
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CHARGES COMO UMA ATIVIDADE CRÍTICA DO ENSINO DE HISTÓRIA NA


ESCOLA ESTADUAL DOM GINO MALVESTIO

GUILHERME MACIEL*
MATHEUS RODRIGUES**
ARCÂNGELO FERREIRA***

Introdução
Partindo da perspectiva de usar novas ferramentas e formas de ensinar História, torna-
se necessário o manejo de diferentes modos de ensinar essa disciplina, para que ela se torne
um encanto para aqueles protagonistas da aprendizagem. Os alunos. E dentro desse contexto,
esse artigo tem por finalidade tratar a forma de como foi utilizado a charge, no ensino de
historia, a partir da oficina realizada na escola Dom Gino Malvestio pelos bolsitas do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid). Foram realizados oficinas
com alunos de 2º e 3º ano do ensino médio e a temática escolhida para ser trabalhada na
escola foi Política.
Com aulas expositivas e contextualizando a temática, objetivo era fazer com que os
alunos desenvolvessem o pensamento critico a respeito do significado de política para eles.
Varias opções metodológicas foram apresentadas, para que expressassem sua compreensão e
reflexão, alguns exemplos como: produção textual, cordel, música e as charges. Essa última
opção de se trabalhar com os alunos foi uns dos métodos mais utilizados como forma de
expressão dos alunos, sobre a compreensão da temática. No presente artigo apresentaremos
nosso relato de experiência sobre as aulas expositivas e dialogadas assim como o resultado da
produção na sala de aula – as charges - e as conclusões das análises das charges que os alunos
criaram.

Uma nova-velha ferramenta crítica


Durante a história da humanidade, onde foi possível o homem entender a realidade em
que vivia e até questionar essa realidade, ele foi capaz de criar formas de protestos e
contrapontos que batiam de frente com as determinadas linhas ideológicas, políticas e
econômicas da época. Não salvo da própria revolução francesa onde as mulheres invadiram

*
Acadêmico da Universidade do Estado o Amazonas (UEA), Centro de Estudo Superiores de Parintins (CESP). Email:
dexopo.maciel@gmail.com
**
Acadêmico da Universidade do Estado o Amazonas (UEA), Centro de Estudo Superiores de Parintins (CESP). Email:
matheuskarl895@gmail.com
***
Professor titular da Universidade do Estado o Amazonas (UEA), Centro de Estudo Superiores de Parintins (CESP).
Formado em História pela Universidade
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Versalhes para capturar Maria Antonieta, Rainha da França, em revolta aos autos gastos e a
forma espalhafatosa dela consumir luxo, ou trabalhadores cruzando os braços para seus
patrões em busca dos direitos trabalhistas, contra a exploração e o respeito que a maior classe
existente merece, a classe trabalhadora.
De uns séculos pra cá, outras formas de protestos e de criticar vieram surgindo, através
das artes e literatura, essas formas abriram uma nova forma de construir críticas muito mais
acessíveis, uma delas com força bem emblemática, as Charges. NERY (2001) nos ajuda a
pensar um pouco como utilizar as charges na sala de aula. Com o nome advindo do francês
que significa literalmente carga, as charges trazem realmente um sentido de peso, força e
exagero naquilo que elas pretendem passar para seu público, que geralmente não é um
especifico, pois são sátiras fáceis de compreender por pessoas de varias idades e classes
sociais, porém elas sempre vão criticar e fazer alusão a um tipo determinado de
acontecimento no tempo e espaço, o que geralmente remete a estar dentro do contexto de
algumas charges para poder compreender ela como um todo.
As charges e caricaturas como conhecemos hoje, herdeiras do jornalismo ilustrado
surgido sobretudo na Inglaterra e na França dos séculos XVIII e XIX, têm suas raízes
igualmente fincadas na iconografia da Idade Média e na atividade dos ateliês de pintura dos
séculos XV e XVI.Exemplos bem fortes de que as charges podem satirizar e contrapor
acontecimentos – ainda tendo a frança como exemplo nesse contexto – foi o emblemático
episodio francês, onde Luis XVI após a descoberta da sua fimose, (e o motivo de ainda não ter
“tentado” gerar filhos) os jornais da época fizeram varias sátiras em relação à situação do rei
da França. Alguns historiadores acreditam que ele cedeu à pressão e o escárnio que a
população impusera sobre ele e em uma cirurgia seu problema foi resolvido.
Elas – as charges – sempre tiveram um caráter imediatalista, e dentro dessa idéia da
charge ser resultante do contexto do momento, aplicamos uma atividade para os alunos dos 3º
e 2º anos do ensino médio da Escola Estadual Dom Gino Malvestio durante o ano de 2017. A
atividade consistiu na elaboração e na produção de charges sobre o tema política, que foi o
tema em questão trabalhado pelos pibidianos de História na escola.
De modo geral, as charges produzidas pelos alunos possuíram um teor critico
satirizando a conjuntura política atual num englobamento nacional e outras focadas na política
mais local. Obviamente o que estava sendo avaliado era o conteúdo em si da charge, e não seu
lado mais artístico, sendo que algumas delas mesmo possuindo um visual simples,
apresentaram reflexões criticas e pertinentes ao contexto do período em que a charge foi

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produzida. E no caso da oficina aplicada na Escola Dom Gino, dentro do tema política, os
alunos usaram os acontecimentos que estavam ocorrendo no Brasil, e a partir da produção
desse material dos alunos, pudemos ver o antes e o depois da visão de mundo em relação á
política dos alunos antes, durante e depois das oficinas aplicadas.

Conjuntura política de 2017 durante as oficinas139


Em 2017 foi um ano conturbado para a política brasileira, escândalos de corrupção,
reforma da previdência, reforma do ensino médio e reformas trabalhistas, estiveram na pauta
das discussões políticas e MENDONÇA (2012) trabalha a problemática de se estudar uma
História Política, pois ela afirma que a História Política tem inúmeras vertentes, e a idéia nas
oficinas era apresentar elas aos alunos e explicar a intenção de cada uma.
Com a saída da presidente Dilma Rousseff, seu vice presidente Michel Temer junto a
seus aliados iniciaram reformas radicais na economia, levando a perda de direitos básicos.
Com a ascensão de Michel Temer, a direita passou finalmente a reter todo o poder, passou a
controlar os três poderes, legislativo, judiciário e executivo. E com uma idéia que visa o lucro
e a exploração, os primeiros ataques foram na retiradas dos direitos básicos, privatização de
estatais e dos recursos naturais. O ano em que o silêncio tomou conta do país que até 2016
estavam na rua pedindo a “saída da presidenta”, que sem justificativa legal, foi retirado do
poder. O regime que se instaurou foi apoiado pelos meios de comunicação e pelos
movimentos de direitas em rede sociais como MBL e grupos religiosos. E assim como 1964 o
caminho para uma política autoritária estava aberto. Com o propósito de atender a classe
industrial brasileira e os latifundiários, o governo atual, tem um desproposito, com a
população.
A tentativa de sair de uma crise-econômica, e que agradassem a elite política, era necessário
alguém que atendesse seus “apelos” que fizesse as mudanças necessárias que os
beneficiassem coisas que não haviam conseguido no governo Dilma, que mesmo com
mudanças econômicas, não conseguiu atender a demanda de banqueiros e empresários do
país. A conjuntura da política no âmbito nacional tornou-se uma amostra do que acontece nas
cidades e nos estados de todo o país, onde as elites políticas passam a reter o controle,
mantendo o sistema de oligarquia, privilegiando determinados grupos que ainda matem uma
rotatividade no poder, em comum acordo, como no período da república do café com leite.

139
Segundo informes midiáticos e sites nas referencias bibliográficas.
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Seguindo a análise da conjuntura política brasileira, objetivo ao apresentar esse tema aos
alunos de 2º e 3º ano do ensino médio na escola Dom Gino Malvestio, teve como foco fazer
que os mesmo desenvolvessem um pensamento crítico, e como isso está implicado
historicamente na vida desses sujeitos. Com a problematização e contextualização, se iniciou
o desenvolvimento das oficinas, no qual as charges foram a principal forma que os colegiais
escolheram para expressar suas compreensões sobre o que é política no Brasil.
Os detalhes nas caricaturas exibiam uma clara crítica centrada aos políticos sua associação à
corrupção e a desigualdade social, correlacionando com a perda de direitos, e falta de políticas
públicas, junto à inércia dos representantes públicos, locais e nacionais. O sentimento
expresso era de insatisfação, que refletia a crise do atual cenário político, e suas repercussões
na economia, educação, saúde, infraestrutura e segurança, que no ano de 2017 passou a ser
mais visível aos olhos dos brasileiros, graças à tecnologia de informação e comunicação –
TIC. E o problema passa a ser o excesso delas e como filtra-las, e como isso desenvolver uma
análise crítica, objetivo das charges foi exatamente fazer os alunos levantarem esse ar de
criticidade, e mostrar que a política vai fazer parte de sua vida, enquanto sujeito histórico, seja
na escola, na universidade, no trabalho, em casa, na igreja, etc.
Vivemos em um período onde a desigualdade, intolerância, discriminação e a exploração
estão cada vez mais presentes no cotidiano, resultado de um longo processo histórico, que
legitima um sistema de opressão e que visa apenas o lucro, em contraposição e uma sociedade
cada vez mais marginalizada, sem direitos ou voz. A escola torna o espaço vital para
problematizar e resignificar a palavra política, possibilitando cada vez mais a participação
popular, fazendo-a questionar, com breves ponderações desde Aristóteles afirmando que o
homem é um ser político até alguns autores mais modernos (incluindo a definição dos
próprios alunos sobre política)

A problemática das charges na política e local e nacional


O projeto exposto no ano de 2017 que se refere a exposições de oficinas em salas de aula que
começou dia 26/04/2017, foi realizado através dos bolsistas de História da Universidade do
Estado do Amazonas dentro de uma realidade escolar, onde os alunos da escola Dom Gino
Malvestio foram colocados para praticar pequenos exercícios de reflexão e critica sobre a
conjuntura da política local e nacional, aplicamos uma oficina onde os alunos puderam
expressar através de alguns textos e charges que eles mesmos produziram, a forma como
enxergavam a política numa perspectiva local e nacional através do seu conhecimento.

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Antes das oficinas serem iniciadas, houve pequenos debates e diálogos com os alunos dos
terceiros anos sobre o que era a política, cada um tinha uma opinião sobre o tema, e com o
decorrer das aulas, explicamos de forma clara o que era política e como ela estava diretamente
ligada as nossas vidas. A estratégia aqui, junto com conversas informais, era sondar o
conhecimento dos alunos, e partir do seu senso comum para a reflexão critica, que era um dos
nossos objetivos finais desejados com a articulação das oficinas dentro da sala de aula. As
discussões ficaram dividias em política local e política num âmbito nacional.
Durante as primeiras conversas com os alunos, ficou notável que possuíam certo
conhecimento, mesmo que ainda a grosso modo, sobre política, porém um pouco voltada para
a política partidária; claro que a nossa primeira pergunta foi “Você sabe o que é Política?”, e a
partir daí os diálogos tiveram inicio. Foi levantado a questão sobre a importância de conhecer
política e a função que ela tem em nossas vidas pois como diria Aristóteles “ninguém
escolheria a posse do mundo inteiro sob a condição de viver só, já que o homem é um ser
político e está em sua natureza o viver em sociedade”(1991), viver em sociedade te faz um
agente político, cabível de suas próprias escolhas. O curioso é que mostrar como os alunos
estão inseridos na sociedade, que decisões políticas “lá em cima” podem afetá-los de
determinada forma aqui em baixo, foi uma das melhores estratégias para chamar-lhes a
atenção para o tema. Uma que vez que conseguiam se ver como tais agentes políticos, e como
estavam implantados no tempo e espaço, ficava mais fácil aprofundar as discussões.
Ainda com base em Aristóteles, onde ele afirma que “os sofistas pretendem ensinar política,
mas não são eles que a praticam, e sim os políticos, que parecem fazê-lo graças a uma espécie
de habilidade ou experiência, e não pelo raciocínio.” (1991). Colocamos questões mais
complexas, agora que teoricamente sabem que são agentes políticos, a conclusão que
conseguimos chegar juntos com os alunos foi a intencionalidade de Políticos, Empresários,
Emissoras, etc., de tornar o assunto Política e desagradável para a população, pois na frase dos
próprios alunos “se a população não quer fazer política, deixa que a gente faz”, e então os
políticos e outros transformam o campo da Política num show de horrores.
Essas conversas foram de suma importância para o desenvolvimento das oficinas, logo
estávamos problematizando situações do cotidiano que antes eles não sabiam que tinham forte
ligação com suas vidas e que podiam interferir nas suas escolhas para o futuro. Um dos
exemplos que rendeu bastante discussão construtiva foi o caso da Lixeira de Parintins – que
por si só gera bastante assunto, alvo até mesmo de pesquisas e trabalhos acadêmicos em
Parintins – que é bastante famosa e gera opiniões sobre seu posicionamento e toda uma

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questão ambiental. Perguntamos aos alunos se a lixeira incomodava eles, a escola tem uma
distância considerável da lixeira, e a maioria dos alunos moram nos arredores, provavelmente
por isso a maioria das respostas foi que a lixeira não incomodava. “Já aconteceu de um dia o
caminhão de lixo não passar na rua onde moram, por dois ou mais dias?”. Foi o suficiente
para instigar a reflexão, pois como os próprios alunos afirmaram, as ruas ficaram cheias de
lixo, as casas ficaram incomodadas por não saberem a maneira de despejar o lixo acumulado
em algum lugar apropriado. Essa parte das discussões ficou bastante ligada aos problemas
locais, mas não se prendeu somente ao caso da lixeira. Questões sociais e até mesmo escolares
da Escola Dom Gino, foram abordadas na sala de aula, vale pontuar que no inicio do projeto
PIBID em 2016 na escola, ela estava se preparando para se transformar em uma escola
militar, até os últimos dias que as oficinas foram aplicadas, nenhuma mudança na forma como
a escola dirigia seus alunos mudou.
A compreensão da política nacional também era de vital importância para situar o
aluno da conjuntura atual, foi perguntado a eles o que entendiam sobre política nos seguintes
aspectos: se sabiam o que era ideologias, e o significado de “esquerda”, “direita” e “centro”.
Obter essas informações sobre os conhecimentos prévio dos alunos sobre a temática era
essencial para que nos os aplicadores do projeto conseguisse encontrar o melhor meio
didático-pedagógico de problematizar junto com eles a questão apresentada. Muitas das
respostas iniciais dos alunos eram sempre associadas a corrupção e a políticos se tratando da
política nacional. Ainda não possuíam uma compreensão real sobre a política atual, e o que
ocorreu em 2016 no impeachment da presidente Dilma Rousseff, cuja serie de cortes e
reformas econômicas feitas pelo seu sucessor e atual presidente Michel Temer que os
afetavam diretamente os alunos e a população geral. Havia pouco interesse dos alunos sobre o
temática, sendo considera chata e alguns recusavam a participar ou opinar sobre o assunto.
Durante as oficinas, ao localizar e encaixar os alunos no fato político-social do Brasil,
mostrando a eles sua ligação com as “forças maiores”, que até mesmo o Estado tenta ter o
poder sobre seus próprios corpos das mais variadas formas possíveis, como coloca Foucault
(2010), apresentar-lhes as formas como são afetados por decisões aparentemente tão alheias a
sua realidade cotidiana; essa experiência em particular gerou bastante curiosidade e interesse
nos alunos, pois uma vez que conseguem se enxergar como agentes políticos, como
protagonistas de uma história que achavam que não eram deles, as questões, reflexões e as
criticas sobre Política, começaram a acalorar. Era aparente no discurso dos alunos uma nova

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compreensão sobre a temática, começando a problematizar a questão de modo mais critico e


abrangente a política presente no seu cotidiano, sua rua, bairro, sua cidade etc.
Ao fazer uma analise da produção das charges feita pelos alunos a partir do contexto dado
sobre o tema, ainda era nítido que a visão de política ainda se matinha sobre os políticos, que
sempre era caracterizado em cenas de corrupção e caricaturas satirizando personagens do
cenário político nacional. Notamos que havia alguns plágios nos trabalhos, já que os alunos
não buscavam traduzir sua compreensão de modo autentico devido ao sobre o tema. Mas a
maioria dos alunos conseguiu atingir a proposta apresentada quando o tema foi escolhido, que
era desenvolver o senso critico para pensarem sobre o tipo de política feita no Brasil e quem
se beneficiava dela. Algumas charges tiveram uma grande critica social e política, que
exemplificava sua compreensão de tudo que havia sido exposto nas salas de aula.
Após os diálogos aplicamos duas oficinas, uma produção de texto e a produção de charges,
essa última sendo objeto da nossa analise e escolhida pela maioria dos alunos. Eles se saíram
muito bem nas duas atividades, tivemos parodias, poemas e textos com experiências próprias.
Nas charges a criatividade e a sátira foram usadas como ferramentas de critica social e política
de forma interessante, nas charges os alunos reproduziram seus pontos de vista, sentimentos,
criticas, posicionamento político sobre Política em vários aspectos e esferas de atuação. Em
ambos os casos os alunos demonstraram boas articulações e domínio sobre o conteúdo.
Adiante a seleção de algumas charges que apresentam o resultado das discussões e debates em
sala de aula. A escolha de cada charge foi feita seguindo critérios que expõem a visão dos
alunos sobre Política em diversos níveis seja local ou nacional.
Charge 01140

(Autor: Alunas do 3º ano 1)141

140
Todas as charges foram transferidas para mídia digital e editadas pelos autores dessa publicação para melhor
visualização do leitor do referente artigo.
141
Optamos por manter o nome dos alunos em anonimato, por questões éticas profissionais.
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Optamos por expor em análise essa charge como sendo a primeira, pois ela reflete um
aspecto bastante local do cotidiano dos alunos do ensino básico da rede pública, ela se encaixa
como um retrado da política escolar abordada em sua prática pedagógica na qual os alunos se
encontravam; o descontentamento com essas abordagens e a falta de políticas escolares local
pode ser visto na charge em questão. Essa charge é a representação do aluno se vendo como
agente político e questionando decisões políticas escolares apresentadas a eles. Ainda nessa
charge as alunas fazem uma critica a disciplina de Filosofia e como ela é abordada durante o
ensino médio. Concluindo que Filosofia é o amor à sabedoria.
Charge 02

(Autor: Alunos do 2º ano 4)

Essa é uma das charges que nos chama a atenção. Pois além dela retratar a questão
salarial dos trabalhadores, enfatizando a luta por melhores condições de pagamento, a charge
faz uma previsão de um evento que ocorreu no primeiro semestre de 2018 em Parintins e
depois em várias cidades do Amazonas. Os professores da rede pública de Parintins
começaram um movimento exigindo um reajuste salarial do Governo do Estado do
Amazonas. O interessante é que o movimento começou com professores que atuavam na
Escola Dom Gino.

Charge 03

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(Autores: Alunas do 2º ano 2)

Essa charge em especial retrada a desigualdade social e a falta de políticas públicas, na


qual a diferença entre as classes sociais fica bastante evidente. A produção artístico
artístico-textual
em questão é uma das poucas que possuem titulo, “A igualdade no meu paíss me orgulha” é
uma das produções que já no titulo expressa de forma irônica o que as alunas sentem em
relação à questão de igualdade social.
Charge 04

(Autores: Alunos do 2º ano 1)

Ainda na linha da política partidária, essa charge representa a série de


de alianças e
interesses dos partidos políticos que resultaria nos acontecimentos como o golpe de 2016
contra presidente Dilma. As características expostas nas charges também fazem criticas
corrupção e ao fato que a lutas e articulação entre partidos é mais
mais relevante do que
desenvolver políticas públicas para a população, e parte da compreensão dos alunos foi isso
que eles passaram ao produzir essa charge.

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Charge 05

(Autores: Alunos do 2º ano 1)

Outra charge que, de todas produzidas escolhemos para exemplificar o resultado das
discussões na sala de aula foi a Charge 05, retratando a diminuição da jornada de trabalho,
assim como o sucateamento das leis trabalhistas. Como estávamos num contexto pós golpe, a
charge se associa às leis trabalhistas do até então presidente Temer (que assumiu após a
destituição da ex-presidenta Dilma do Governo do Brasil) apresenta no inicio do seu governo
e posteriormente implementa.

Charge 06

(Autor: Alunos do 2º ano 5)

Por fim, essa última charge resume o caos em que se encontra o Brasil representado
iconograficamente na visão de um aluno, e não deixa de ser a mesma opinião de boa parte da
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população brasileira; o interessante é que mesmo alguém que afirme não saber nada sobre
política, tem uma opinião formada, na maioria das vezes pode ser uma opinião negativa, mas
é o que esperar tendo exemplo aqueles que na teoria deveriam representar nossos interesses,
defender nossas causas e resolver nossos problemas. E aí está o problema da maioria das
pessoas – uma conclusão alcançada junto com os alunos – o problema do comodismo político.
Infelizmente não é possível apresentar todas as charges e tampouco comentar mais
sobre cada uma delas, que nas suas individualidades cada uma apresenta particularidade,
carisma e crítica a um aspecto do vasto amplo da Política, e ressaltando que forma produzidas
charges sobre mundo do trabalho, políticas publicas, política escolar, política partidária,
política estatal etc., porém, apenas dois temas não foram abordados pelos alunos: saúde e
segurança assim como temas co-relacionados, o que vale a curiosidade, pois durante as
oficinas, essas temáticas também foram abordadas.

Considerações finais
Um dos maiores problemas que afligem a população brasileira é o analfabetismo
político, juntamente com uma espécie de comodismo. Nas primeiras conversas com os alunos
percebemos isso, e por mais que eles afirmem que não gostem de falar sobre política, aqui
está algumas charges que podem provar o contrário. O projeto que apresentamos através do
PIBID sobre política na Escola Dom Gino Malvestio, foi uma experiência acadêmica e
pessoal de grande aproveitamento, pois a troca de conhecimento foi grande.
Situar os alunos na conjuntura política e mostrar que são agentes políticos capazes de
atuar para transformar a sociedade em que vivem, foi um dos resultados e alcançados mais
esperados e gratificante, como por exemplo na Charge 01 – que nas palavras do Guilherme
Maciel, “a minha charge favorita” – onde as alunas conseguiram se ver como agentes
políticos capazes de questionar as contradições das regras da política escolar do Dom Gino.
Outro fator satisfatório foi à notícia de saber a escolha de pelo menos seis alunos do
Dom Gino, de se inscreverem para o vestibular de História no CESP-UEA. Queremos nos
iludir de ter uma parcela de contribuição na escolha dos alunos ao optarem por esse curso.
Outras quatro alunas que tivemos estão cursando alguma disciplina na área de humanas, como
Letras por exemplo. Mas é certo que a contribuição das oficinas do PIBID foi algo que deixou
algo para os alunos refletirem posteriormente.

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O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) foi um meio para


alcançar alunos do ensino médio da rede publica. Trabalhar política e/ou qualquer assunto que
dificilmente é debatido em sala de aula, mas é cobrado pela sociedade, como temas
transversais: sexualidade, gênero etc., é fundamental para quebrar paradigmas da educação
tradicional ou bancária, como afirmaria Paulo Freire. Problematizar os acontecimentos
históricos em vez de decorar datas e nomes, é o que a disciplina de História faz hoje. Entender
o que aconteceu lá atrás, e o que levou as coisas a estarem do jeito que estão é um dos papeis
fundamentais da História como disciplina, e consequentemente evitando preconceito,
discriminação e aquele analfabetismo político, nos fazendo atuar diretamente como agentes
políticos.
E com o fim do programa PIBID, projetos como nosso não serão mais possíveis, ou
nas suas novas configurações que aceitam apenas alunos dos primeiros períodos da graduação
com pouca leitura critica e referencial teórico para debates em sala de aula. A idéia aqui não é
desqualificar os calouros, mas sim a queda da qualidade e aprofundamento sobre os temas.
Ciro Flamarion em uma entrevista afirma que o historiador é empirista, ou seja, o
conhecimento vem das leituras e reflexões sobre ela. Com o fim do Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação à Docência, todos nós só temos a perder, alunos do ensino médio,
discentes, professores e por aí vai, pois como já foi afirmado, durante a aplicação das oficinas,
houve imensa troca de experiências, ensinamos e aprendemos. E outra, o que “quebra” o
Brasil é outra coisa, e não o acadêmico que ganha uma bolsa de 400 reais por mês.

REFERÊNCIAS
ARISTOTELES. Ética a Nicômaco; Poética. 4a ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos Vol. VI – Repensar a Política. São Paulo: Forense
Universitária, 2010.
12 FATOS que marcaram a política brasileira em 2017. Disponível em:
https://pleno.news/brasil/politica-nacional/12-fatos-que-marcaram-a-politica-brasileira-em-
2017.html. Acesso em: 16/03/2018
https://www.cartacapital.com.br/revista/974/anovidade-pertubadora-da-politica. Acesso em:
16/03/2018
MENDONÇA, Sonia Regina de; FONTES, Virgínia. História e teoria política.In:
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org). Novos Domínios da História. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2012.
NERY, Laura. Charge: cartilha do mundo imediato. IX Seminário da Cátedra Padre António
Vieira de Estudos Portugueses da PUC-Rio em Novembro de 2001, intitulado “A situação da
narrativa no inicio do século XXI. Saudades de Sherazade”. Acesso: 15/03/2018 In:
http://www.letras.pucrio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/7Sem_10.html

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A DOCUMENTAÇÃO DO PORTO DE MANAUS: CONSIDERAÇÕES ACERCA DE


SUA HISTORICIDADE E O (DES) CASO COM O PATRIMÔNIO DOCUMENTAL
JANINE RODRIGUES SARAIVA MARIA

Introdução

Este artigo é consequência do Trabalho de Conclusão de Curso, o qual foi defendido


em julho de 2018 no Curso de Arquivologia da Universidade Federal do Amazonas, com
orientação do Prof. Me. Leandro Coelho Aguiar. Neste trabalho serão apresentados breves
resultados obtidos no estudo da documentação do Porto de Manaus, acerca do (des) caso com
seu patrimônio documental.
Este estudo tem como base uma evidenciação complexa, que sobreveio a documentos
públicos brasileiros de vasta importância para a história do Amazonas. Destarte, transcendem
o mundo arquivístico diante das questões que envolvem seu valor histórico e social. O acervo
em questão é composto por documentos pertencentes à administração do Porto de Manaus,
que foram enviados para o “descarte” sem qualquer técnica arquivística envolvida. O objeto
desta obra baseia-se no estudo da documentação do Porto de Manaus referente o início do
século XX, que sofreu com descaso por parte da administração no momento da concepção do
Museu do Porto.
Cabe ressaltar que neste artigo a palavra descarte será utilizada com aspas, tendo em
vista que ela – na Arquivologia – significa um termo técnico e, após passar pelo processo de
avaliação, remete a arquivos excluídos. De acordo com o Dicionário de Terminologia
Arquivística do Arquivo Nacional (2005, p.41) a avaliação “estabelece os prazos de guarda e
a destinação, de acordo com os valores que lhes são atribuídos”.
Este trabalho tem como objetivo geral, contribuir com o estudo da concepção de
patrimônio e preservação documental no Amazonas. Como meios auxiliares de atingir o
objetivo principal, serão concebidos os seguintes objetivos específicos: mapear a tipologia
documental dos documentos do Porto de Manaus arquivados no APEAM; verificar o motivo
pelo qual os documentos foram rejeitados pela administração do Porto e do Museu; identificar
a trajetória da documentação entre o “descarte” pelo porto até a guarda no APEAM; e
averiguar a percepção dos atores sociais nesse processo de salvamento da documentação.


Bacharel em Arquivologia pela Universidade Federal do Amazonas.

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Como metodologia foram realizadas consultas a atores sociais, órgãos, instituições e


documentos, que remetem a este período, analisados com intuito de obterem-se respostas na
compreensão dos motivos que levaram os documentos ao “descarte”. A importância de tal
documentação foi ignorada no momento da sua supressão do acervo do Porto, o que
conduziria a consequências irreversíveis caso os documentos não fossem resgatados à época.
No Amazonas nos deparamos com grande dificuldade cultural, na descoberta de fatos
históricos que contemplaram importantes fases econômicas e sociais na cidade e no Estado
como um todo. Ressalta-se principalmente, a história do Porto de Manaus, esta que existe
como um quebra-cabeça, a qual deve ser estudada, pensada e montada de forma a concluir
alguns fatos importantes para o descobrimento da mesma.

Estado da arte
Ao longo da história arquivística diversas instituições produziram documentos no
decorrer da realização de suas atividades, sendo que algumas prezavam pela guarda
documental sem preocupações com a proveniência, o acesso e as técnicas de preservação dos
mesmos. Já outras, preocupavam-se em manter os mesmos organizados, da maneira que
julgavam corretas e funcionais. Também se verificou aqueles órgãos e instituições que
acreditavam na pouca importância da organização documental, não considerando a construção
social relevante que os mesmos deixariam de promover com seu desaparecimento ou
eliminação indevida.
Como início deste estudo, serão consideradas as instituições, acervos e práticas de
arquivos como construção histórica da sociedade, para manter seus acervos disponíveis e
preservados. Também serão estudados os arquivos permanentes como história e memória da
sociedade, e as formas como estes devem manter suas informações preservadas para
contribuir no desenvolvimento de uma memória social.
A patrimonialização e preservação dos acervos permanentes como construção social,
também será contextualizada, diante da necessidade de preservar e determinar como
patrimônio histórico e cultural os arquivos prejudicados pelo descaso, antes que os mesmos
não possam disponibilizar informação alguma, caso ocorra sua destruição.
As instituições arquivísticas integram um conjunto social de preservação da história de
uma nação, cujos problemas e inquietações refletem até os dias atuais nas questões de guarda
documental e práticas de arquivos. No intuito de evitar a perda de dados importantes que - nos

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limites do tempo - contribuem para a construção de bases sociais modernas e propagação do


conhecimento.
Ivana Parrela em sua obra “Patrimônio Documental e escrita de uma história da pátria
regional – Arquivo Público Mineiro 1895-1937” discute as inquietudes que a levaram a
buscar compreensão das memórias e iniciativas de preservação dos acervos documentais do
APM. Arquivo de grande importância histórica e cultural para o estado de Minas Gerais, onde
guarda até os dias atuais maior parte da história da construção da capital mineira e
desenvolvimento do estado.
Para que possamos compreender a história e prática dos arquivos e acervos diante das
instituições e sociedade, precisamos comunicar-nos com os arquivos como uma referência de
conjunto de responsabilidades tanto para a instituição, para os profissionais arquivistas e
acima de tudo para a sociedade.
Livia Iacovino trata deste tema em sua obra “Os arquivos como arsenais de
responsabilidade”, que manifesta de maneira clara e compreensível diversos fatos
contribuintes para que um arquivo funcione de forma acessível e democrática, mesmo diante
dos diversos casos de irresponsabilidade por parte de seus administradores.
Logo no início, a autora destaca a diferença entre os termos:
Os termos “prestação de contas” ou “responsabilidade” (account-ability) são
sinônimos de “transparência”, “abertura” e “confiança”, em oposição e “segredo”,
“escamoteação” e “corrupção”. Em países que possuem governos eleitos acesso
democraticamente, esses termos são sinônimos de acesso aberto aos arquivos de
Estado. (IACOVINO, 2016, p.261).

Conforme descrito na citação anterior, países com governos democráticos como o


Brasil possuem normalmente acesso aberto aos arquivos do estado. Sendo que o Brasil conta
com a Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso a Informação), como uma vantagem para aqueles
que desejam acesso aos dados sobre as atividades meio e fim do governo federal e seus órgãos
vinculados. Porém, nem sempre o acesso é simples diante dos diversos casos de eliminação
documental indevida, terceirização de serviços, privatização de órgãos públicos, dentre
outros.
As duas autoras – Parrela e Iacovino – tratam de tema importante na discussão
arquivística atual, na análise das ações e responsabilidades de instituições que possuem
arquivos com funcionamento e acesso de forma integrada e popular. Parrela destaca o APM -
instituição com relevante significado social – no apontamento das ações que o local realiza
acerca da documentação criada ao longo de sua jornada administrativa, bem como a história
do Arquivo na contribuição da construção social.
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Iacovino (2016) destaca os arquivos como “arsenais de responsabilidade”, tendo em


vista a carga histórica, jurídica, pessoal e social que os mesmos carregam em seus
documentos. E da mesma forma evidencia as funcionalidades do arquivo como um local que
deve ser acessível, democrático, com os princípios arquivísticos atuantes, mesmo que diante
das dificuldades encontradas na guarda e preservação de um acervo.
A administração dos arquivos do Porto de Manaus, bem como dos documentos do
Museu do Porto, não vislumbrou a questão de responsabilidade que os mesmos possuíam e
ainda possuem. Principalmente nos dias atuais, diante das necessidades de busca e
entendimento do passado regional, e nos estudos realizados acerca do período auge do Ciclo
da Borracha. Tendo em vista que no período que antecedeu a concepção do Museu do Porto
de Manaus, foram “descartados” documentos importantes como livros de embarcações,
documentos funcionais de trabalhadores do porto, portarias e despachos, dentre outros de
mesma relevância. Tentava-se eliminar então da mesma forma, a possibilidade de
conhecimento da movimentação administrativa do porto diante deste período importante e
histórico.
A possibilidade de conceber informações sobre as embarcações que cruzavam o
Amazonas no período, bem como as contratações de funcionários e contratos de serviços
realizados na construção e modernização do Porto na época, quase foram impossibilitadas de
distribuir o conhecimento e responsabilidades adquiridas no momento de sua criação. Isto
ocorreria se os documentos não fossem salvos no momento da possível “eliminação” e
mantidos até os dias atuais no APEAM
A relação entre as palavras documento e responsabilidade existe de forma
contundente, isto é inegável, porém se verificou o estreitamento desta relação através dos atos
de corrupção, fraudes, escândalos da administração pública que demonstram o menosprezo
com questões éticas. Segundo Iacovino (2016, p.261) “Os arquivos não são capazes de evitar
fraudes ou corrupção, mas podem ajudar a detectá-las”. A administração pública e
profissionais arquivistas em conjunto com a sociedade, realizam a verificação de tais fatos,
impedindo assim a perpetuação das irregularidades que possam vir a prejudicar o
desenvolvimento da coletividade. Não são apenas questões administrativas, mas acima de
tudo éticas que devem ser observadas.
A abertura é negada onde há uma cultura de segredo, onde os direitos legais de
acesso não são respeitados, onde as imunidades são tão disseminadas que acabam
por negar o acesso e onde a implementação de regras é incômoda e dispendiosa. A
expectativa de ameaças terroristas globais vem sendo usada como desculpa para
restringir a informação e coletar maior quantidade de dados pessoais sobre os
cidadãos. (IACOVINO, 2016, p.261).
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A história dos arquivos do Porto de Manaus pode ser escrita na forma de conhecer os
anseios da administração na época, bem como a criação do museu e escolha dos documentos
que fariam parte do acervo. Porém, as dificuldades nas consultas aos participantes deste
processo poderá prejudicar a construção desta história diante da falta de informações
concretas.
As normas arquivísticas foram elaboradas para que sejam aplicadas em suas diversas
formas de atendimento aos arquivos, porém, as mesmas devem ser analisadas diante do
contexto de tempo e lugar. Sendo assim, o arquivista tem a responsabilidade de proceder com
essa análise e reproduzir suas funções, exercendo seu domínio sobre os documentos dentro do
importante mundo dos arquivos.
As obras de Parrela e Iacovino são leituras que se aproximam diante de seus temas
principais, arquivos permanentes, e contribuem para o entendimento das realizações
arquivísticas em outros acervos, bem como a não observância dos procedimentos de guarda e
preservação documental. O arquivo do Porto de Manaus, bem como do Museu do Porto,
deveriam primar pela estrutura do local onde guardam parte da história do Amazonas, diante
da sua responsabilidade em conservar documentos importantes para o estudo do
desenvolvimento histórico do estado. Porém a falta de políticas públicas eficazes, a
fiscalização da produção documental e sua destinação – ao longo da vida de uma instituição –
geram problemas de descarte indevido, deterioração de documentos, descaso por parte da
administração e outros fatores que contribuem para a perda da memória documental.
A memória de uma sociedade se produz a partir de preservação dos arquivos como
patrimônio histórico de formação da coletividade e na dinâmica da produção do conhecimento
humano. Como seria possível compreender o presente sem realizar um panorama com o
passado? São estudos que ainda necessitam de discussões acerca da relação dos arquivos,
memória e história como forma de prova, buscando dimensionar como se chegou a
determinadas situações vividas atualmente.
Sem dúvida, há diversos fatos históricos que nunca serão conhecidos pela sociedade,
tendo em vista a eliminação indevida e degradação dos arquivos, mas é importante ressaltar
que estes procedimentos foram realizados inadequadamente. Sejam por causas naturais ou
mesmo pelo poder humano de eliminar, a ocultação da memória social ainda vem
acompanhada do risco de injustiças e equívocos, quando esta assume a forma de prova
documental de acontecimento histórico.

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A arquivística tem trabalhado arduamente nos conceitos de preservação documental


como fonte de patrimônio histórico e cultural de uma sociedade. Patrimônio este, que serve
para o desenvolvimento e reconhecimento de culturas sociais e história da humanidade, pois o
homem vive em busca da evolução e utiliza-se da busca dos fatos históricos e seus contextos
para assim compreender o presente.
Pensando no descaso com o patrimônio histórico documental do Porto de Manaus,
verificamos que fatores de preservação e guarda de uma história regional não foram
relevantes no momento do “descarte” dos documentos da instituição. O que os
administradores do porto e do museu tinham como concepção de “acervo” histórico, torna-se
uma questão cabível de análise, sendo que poderiam ter criado uma coleção específica de
documentos relacionados ao período, mantendo assim a preservação documental deste
patrimônio.
Estudar os arquivos permanentes como história e memória, conduz a uma reflexão
quanto à preservação destes como conservadores de um período importante e de interesse
comum de uma sociedade. A história contida nos arquivos permanentes vive as limitações e
dificuldades de preservação constantemente, sobrevivendo aos infortúnios da eliminação
indevida.
A patrimonialização dos arquivos deve ser pensada como forma de construção de uma
sociedade, diante da existência de um acervo que poderá colaborar com o entendimento da
história de um povo, região ou grupo social. Quando um acervo é preservado para servir de
objeto de estudo, comprovação ou divulgação, o mesmo está sendo patrimonializado como
objeto de construção cultural, nisto considerando que o acervo deverá ter como responsável
de sua preservação uma instituição, órgão ou grupo de pessoas. Trata-se da garantia de
salvaguarda de um patrimônio cultural – seja material ou imaterial - que contribuirá de
alguma forma para o conhecimento ou descobrimento de fatos sociais importantes.
Quando determinado arquivo não é contemplado com o processo de
patrimonialização, o mesmo se perde diante das necessidades para o qual foi criado, e agrega
lacunas no conhecimento da sua história, cultura, fatos e comprovações. Assim como ocorreu
nos documentos do Porto de Manaus, que por motivos que ainda serão estudados não foram
patrimonializados, sofreram com “descarte” pela administração na época.
Pode ser uma questão implícita quando se fala nestes documentos, porém o fato da não
patrimonialização dos mesmos contribui para seu resgate e guarda por atores sociais – mesmo
que esteja sem os procedimentos corretos para manter a preservação – no APEAM. Os

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mesmos poderiam ter sido descartados de qualquer forma, não havendo tempo de resgate, o
que impediria nos dias atuais a consulta a estes documentos e possíveis processos de estudos
sobre informações contidas nos mesmos. Existem diversas dificuldades encontradas para a
preservação dos arquivos permanentes dentro da realização de práticas arquivísticas e
atendimento dos princípios básicos da arquivologia, assim como a complexidade de
patrimonialização dos documentos e acervos históricos. São estudos que devem ser
examinados e mantidos a margem de novas descobertas que possam contribuir para a
preservação dos documentos

Procedimentos metodológicos
A pesquisa foi realizada através do método exploratório, tendo em vista a sua função
de esclarecer ideias e formular o problema foco do estudo, sendo que poderá futuramente dar
continuidade a outros conhecimentos referente ao tema. O método exploratório foi utilizado
através de pesquisa junto ao APEAM, IGHA, IPHAN e Porto de Manaus, utilizando-se de
questionamentos junto a estes órgãos acerca dos documentos do Porto “descartados” e
daqueles que compõem o acervo do antigo Museu do Porto. Foram realizadas também
entrevistas com os atores sociais que participaram do processo do (des) caso com os
documentos do Porto, e até mesmo com aqueles que receberam informações na época acerca
da situação do acervo.
Inicialmente pensou-se em análises dos documentos que fazem parte do acervo do
Museu do Porto e daqueles que sofreram o “descarte” que se encontram no APEAM. Porém,
foi possível analise in loco apenas dos documentos localizados no APEAM, já os documentos
do museu não puderam ser consultados tendo em vista a negativa de liberação por parte da
administração do local. Dos atores sociais participantes deste momento descrito no estudo,
poucos aceitaram formalizar suas entrevistas, estas que foram acumuladas nesta obra no
subtópico “memórias não oficiais”.
As entrevistas foram realizadas na tentativa da descoberta dos motivos que levaram ao
“descarte” da documentação, já que não foi possível identificar em consulta ao órgão gerador
dos documentos – Porto de Manaus – e tampouco nos documentos relacionados à concepção
do museu, estes disponibilizados pelo IPHAN. E mesmo diante dos relatos nas entrevistas não
oficiais, não foi possível detectar os motivos para a ação do “descarte”.
Foram realizadas pesquisas bibliográficas, partindo de estudos já desenvolvidos, para
que seja possível o desenlace do conhecimento pretendido. Nas pesquisas bibliográficas o
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foco se desenvolveu na questão de patrimônio, patrimônio documental, arquivos permanentes,


preservação de documentos históricos, as técnicas arquivísticas de preservação e no
tratamento documental na administração de portos e museus.
A pesquisa bibliográfica é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído
principalmente de livros e artigos científicos. Embora em quase todos os estudos seja
exigido algum tipo de trabalho desta natureza, há pesquisas desenvolvidas
exclusivamente a partir de fontes bibliográficas. Parte dos estudos exploratórios
podem ser definidos como pesquisas bibliográficas, assim como certo número de
pesquisas desenvolvidas a partir da técnica de análise de conteúdo. (GIL, 2008, p.50).

As dificuldades encontradas no acesso ao arquivo do Museu do Porto impediriam a


análise tipológica dos documentos, porém o IPHAN disponibilizou o documento “Registro do
Acervo do Museu do Porto” que possibilitou a consulta aos documentos existentes e
identificação das tipologias. O mesmo processo de identificação tipológica foi realizado nos
documentos arquivados no APEAM, promovendo a realização do comparativo já cogitado
inicialmente.

Algumas análises
Com analise preliminar acerca do assunto, realizamos pesquisas junto a atores sociais,
onde histórias foram contadas informalmente, pois estes atores não desejaram popularizar
seus relatos ou até mesmo a possibilidade de alguns fatos terem sido esquecidos diante das
diversas situações que permeiam o principal objeto de estudo, o des(caso) dos documentos do
Porto de Manaus.
Segundo relatos, no processo de concepção do Museu do Porto, foi realizada uma
seleção pela administradora portuária daqueles itens que fariam parte da exposição e
integrariam o acervo do museu. Foi então que decidiram que alguns documentos não fariam
parte do acervo, desta forma então, os mesmos foram “descartados”. Neste episódio,
historiadores que verificaram tal situação, recolheram os documentos que já se encontravam
em processo de eliminação, e os levaram para o IGHA142, onde permaneceram por
determinado período embaixo de uma escada no prédio do Instituto. Após temporada no
IGHA, os documentos foram enviados para o APEAM onde permanecem até os dias atuais.

142
Fundado em 25 de março de 1917, e instalada na Câmara Municipal de Manaus, em histórica sessão liderada
pelos intelectuais Bernardo Ramos, que se tornaria seu primeiro presidente; Agnelo Bittencourt e Vivaldo Lima,
o Instituo Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA) apresenta hoje inegável vigor físico e intelectual. Sua
atual diretoria, que tem como presidente a professora Marilene Correa de Feitas, e vice-presidente o historiador
Francisco Gomes da Silva, propõe-se a executar ousado plano de trabalho na gestão2017/2018 com o
fundamental suporte do governo do Amazonas.
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Algumas informações descritas acima não foram oficializadas, haja vista que se tratam
de relatos de pessoas que participaram do processo de concepção do museu ou do “descarte”
dos documentos - outras até mesmo não atuaram, porém tem conhecimento de fatos – e desta
forma dominam os acontecimentos. Os participantes foram consultados formalmente, porém
não obtivemos retorno até a finalização deste estudo, tornando assim esta exposição com
ausência de oficialidade, mas com relevância para expor um pouco da memória.
Outros pontos importantes a serem destacados são a relevância da história do acervo
do Museu do Porto de Manaus, do APEAM e das tentativas de resgate da preservação
documental diante dos documentos estudados.
Acerca do acervo documental do Museu do Porto de Manaus, poucas informações
puderam ser coletadas, e algumas dúvidas não foram sanadas diante das dificuldades em
acessar o arquivo e verificar o seu estado de conservação. O acervo encontra-se inacessível
conforme informações recebidas da ManausCult, que através do Diretor de Cultura do órgão,
Marcio Braz, foi consultado sobre o acesso ao acervo do Museu do Porto. Este informou que
diante do curto prazo em que assumiram a administração do local, seria impossível realizar o
acesso de público externo (pesquisadores) ao acervo.
O Arquivo Público do Estado do Amazonas (APEAM) foi criado em 1897, e segundo
cadastro da entidade junto ao CONARQ143 (2018), tem a missão de:
Coleta, organização, armazenamento e recuperação dos documentos oriundos dos
órgãos e entidades da Administração Pública Estadual; Manutenção de um sistema
atualizado de consulta à documentação administrativa e histórica do Estado.
(CONARQ, 2018).

Ao realizarmos o levantamento da documentação do Porto de Manaus, quase quarenta


anos após o resgate da mesma, conseguimos identificar que a falta do interesse de políticas
públicas de preservação e o descaso de órgãos responsáveis pela preservação do patrimônio
público, trazem a tona uma documentação deteriorada, porém de alguma forma preservada. O
APEAM vivencia a trajetória do descaso de seus documentos históricos, com a falta de verba
pública para a preservação dos mesmos e ainda assim com a ausência de profissionais
especializados para a realização do trabalho.
Foi identificado que os documentos do acervo do Museu do Porto de Manaus e os
documentos do Porto arquivados no APEAM (que passaram pelo processo de “descarte”)
possuem mesma tipologia documental, o que impede o entendimento acerca dos critérios
utilizados para determinar quais documentos seriam “eliminados”.

143
Disponível em: http://conarq.gov.br/consulta-a-entidades/item/arquivo-publico-do-estado-do-amazonas.html
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Desde o período de sua criação até a completa desativação das atividades, o Museu do
Porto passou por diversas situações que levaram a destruição, extravio e perdas documentais,
que poderiam nos dias atuais conservar e preservar a história do Amazonas. Uma história de
importância sociocultural, que devido desentendimentos de órgãos e empresas da esfera
pública e privada, contribuíram para a repartição do acervo e, consequentemente, o
encerramento das atividades do museu.

Considerações finais
Foi possível identificar neste trabalho a necessidade de expansão das políticas de
preservação documental da história e os atores sociais que pensaram na preservação dos
documentos do Porto de Manaus na época do “descarte”. Não obstante é possível perceber a
falta de uma cultura madura de conservação documental, que perfaz em casos como o
estudado. Os parâmetros arquivísticos de preservação e difusão do conhecimento nem sempre
são seguidos em sua integralidade, e ainda por vezes são ignorados deixando como herança
um patrimônio documental histórico e cultural cercado de lacunas.
A análise dos dados aponta que os documentos “descartados” pelo Porto de Manaus
sofreram os danos do descaso, porém diante do apoio dos atores sociais que participaram de
seu resgate, permanecem preservados em sua quase totalidade. Os documentos conservados
no APEAM, neste ano de 2018 passaram por uma readequação, onde foram acondicionados
em estantes de aço. Ainda assim, necessitam os mesmos de apoio quanto ao restauro e
conservação, para que suas características iniciais e detalhes da função administrativa
continuem preservados. Já os documentos do Museu do Porto não puderam ser consultados,
tendo em vista questões burocráticas relativas à sua posse, da mesma maneira que não foi
possível identificar seu estado de conservação. O IPHAN contribui constantemente nas
questões relativas à preservação da edificação e dos acervos, bem como na tentativa de
preservação dos documentos e possibilidade de reabertura do Museu do Porto.
O descaso que sofre os documentos no estado do Amazonas ocorre também em outras
instituições de guarda documental de forma geral, provocada justamente pela falta de uma
cultura contínua de preservação.
A história do patrimônio documental do Porto de Manaus em específico, ainda
encontra-se em formação, que demanda um trabalho a ser executado, principalmente junto às
lembranças dos atores sociais que participaram dos fatos elencados neste estudo. Muitos
outros episódios precisam ser pesquisados para fechar o ciclo de descobertas acerca do que

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levou a tentativa de eliminação documental no Porto de Manaus. Que este trabalho possa
servir de inauguração de outros estudos no mesmo sentido, dando continuidade as pesquisas,
para que assim a visibilidade em torno da documentação do Porto de Manaus venha ressurgir
juntamente com a história ignorada ao longo do tempo.

Referências
CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS. Resolução nº 27, de 16 de junho de 2008.
Disponível em: <http://www.conarq.gov.br/index.php/resolucoes-do-conarq/269-resolucao-n-
27,-de-16-de-junho-de-2008>. Acesso em: 02 mai. 2018.
GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6 ed. São Paulo: Editora Atlas
S.A, 2008. 200 p.
IACOVINO, Lívia. Os arquivos como arsenais de responsabilidade. In: EASTWOOD, Terry;
MACNEIL, Heather (Orgs.). Correntes atuais do pensamento arquivístico. Belo Horizonte:
UFMG, 2016, p.261-302.
PARRELA, IVANA. Patrimônio documental e escrita de uma história pátria regional:
Arquivo Público Mineiro 1895-1937. 1a ed. Belo Horizonte, São Paulo: Annablume; PPGH-
UFMG, 2012. 294.

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PATRIMÔNIO E INTERPRETAÇÕES HISTÓRICAS: UMA ANÁLISE DOS


PAINÉIS ESCULTÓRICOS DA PRAÇA DA LIBERDADE, PARINTINS/AM.

JESSICA DAYSE MATOS GOMES


LUCINELI DE SOUZA MENEZES

As iconografias são fontes para o estudo histórico, pois, representam


significativamente a história de determinadas culturas. Os registros do passado ou do
presente, que representam a cultura de um povo constituem-se como patrimônio cultural, que
está relacionado à identidade, a relação entre o antigo e o atual.
Os patrimôniospassam de geração a geração, mantendo conexão com a ancestralidade
o que dá ao indivíduo o conhecimento de sua própria história. Para Ferreira (2006) o
patrimônio é portador de tempo evivências.
Vários patrimônios são identificados no território brasileiro, sendo que muitos deles
apresentam - além da riqueza cultural – todo um conjunto de conhecimentos ou interpretações
que acabaram por constituir tais bens importantes para as sociedades. Essas interpretações dos
patrimônios podem ser estudadas no ambiente da educação básica, de forma diferenciada e
dinâmica para o conhecimento histórico crítico e coerente com sua realidade.
Este trabalho apresenta análises de painéis escultóricos da Praça da Liberdade,
localizada no município de Parintins, interior do Estado do Amazonas.O estudo das
iconografias apresentadas neste documento é resultado de pesquisas realizadas pelos
acadêmicos da pós-graduação em Metodologia do Ensino de História, da Universidade do
Estado do Amazonas, Centro de Estudos Superiores de Parintins, sob orientação da professora
mestra Mary Tânia dos Santos Carvalho.
Numa abordagem qualitativa, utiliza-se pesquisa bibliográfica sobre iconografias,
fontes históricas (PINSK, 2005), imagem e imaginário (MAFFESOLI, 2001) assim como a
análise de painéis escultóricos que representam fatos, símbolos e períodos da história do
município de Parintins. O estudo das fontes iconográficas é uma metodologia diferenciada,
sobretudo para ensino na educação básica, possibilitando que haja maior proximidade e
contextualização com a história ensinada no ambiente da sala de aula.
A pesquisa foi desenvolvida em primeiro momento na sala de aula, com os
embasamentos teóricos; e, com a pesquisa de campo realizada na Praça da Liberdade, onde


Mestre em Sociedade em Cultura na Amazônia, Universidade Federal do Amazonas – UFAM e professora da
rede pública de ensino do estado do Amazonas – SEDUC/AM.

Mestre em Sociedade em Cultura na Amazônia, Universidade Federal do Amazonas – UFAM e professora da
rede pública de ensino do estado do Amazonas – SEDUC/AM..
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foram observadas as quatro obras, tendo sido feito registro fotográfico das mesmas e coleta de
informações referentes aos painéis.
Deve-se considerar que as fontes não devem ser concebidas como verdades absolutas,
sobretudo as iconografias, pois as mesmas reproduzem versões dos acontecimentos históricos
nas diferentes interpretações de pessoas de diferentes épocas. As obras iconográficas, assim
como outras fontes refletem interesses e subjetividades de quem as criou nos distintos
contextos e épocas. É importante desmistificar as fontes históricas para em seguida reconstruí-
las, juntamente com nossos alunos e acadêmicos, evitando incorrer no viés de uma História
positivista.

Fontes Históricas e seu uso na sala de aula


No ambiente escolar cotidiano, o estudo da história local é de suma importância para a
consciência histórica dos alunos que deve ser desenvolvida através de pesquisas que lhes
possibilitem o contato com diferentes fontes históricas, sejam documentais,
orais,iconográficas entre outras.
Os painéis escultóricos (fonte iconográfica) localizados na Praça da liberdade de
Parintins podem ser usados como fontes de ensino, pois, são entendidos como monumentos
históricos na medida que estão carregados de subjetividades e intencionalidades. Tais obras,
que apresentam interpretações da história local de podem ser significativas para o aprendizado
dos alunos, os quais poderão associar a teoria à prática e com isso, estar desenvolvendo seu
senso crítico a partir da iniciação à pesquisa científica, atuando como protagonistas de seu
aprendizado e de sua História.
Para Nikitiuk (2004:33) “o processo de construção do conhecimento requer pesquisa -
neste caso científica-, (...)caminho privilegiado para a construção de autênticos sujeitos do
conhecimento que se propões a construir sua leitura de mundo”.
Em consonância com esta abordagem, Silva (2003:18-19.) considera que:
é fundamental entender ensino e pesquisa de história como faces de uma
mesma atividade...Identificar pesquisa e ensino significa preservar o rigor da
produção do saber, próprio à primeira, e o compromisso de sua presença na
cena social ampliada e sob o controle de seus agentes, inerente ao segundo,
pensando numa síntese desses atributos.

O uso de registros históricos no ambiente da sala de aula deve transcorrer em


comunhão com a prática da pesquisa, em que o educador poderá trabalhar a História a
partir do diálogo com diferentes personagens, que emergem a partir de fontes
diversificadas, representados por fotos, iconografias, filmes, depoimentos orais, etc.
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Na atualidade, a iconografia é tida como “registro histórico realizado por meio de


ícones, de imagens pintadas, desenhadas, impressas ou imaginadas, e ainda esculpidas
(...). São registros com os quais os historiadores e professores devem estabelecer um
diálogo contínuo” (PAIVA, 2006:17). As interpretações e narrativas que advém do
contato com as fontes iconográficas permitem ao aluno/pesquisador percorrer e sentir a
atmosfera do passado, que se faz tão presente no cotidiano, produzindo conhecimento
científico com rigor histórico.
Profissionais da História tem inúmeras possibilidades de trabalhar a disciplina por
meios das diversas fontes que são apresentadas no ambiente atual. Tais fontes são produzidas
pelo próprio homem que ao longo do tempo vem deixando importantes registros para que
possamos compreender a realidade de nosso tempo e analisar os contextos de outrora.
No entanto, é preciso cuidado na utilização das fontes na sala de aula, uma vez que, no
espaço da educação básica as mesmas não devem ser tratadas por profissionais do ensino de
História, sob hipótese alguma, como comprovação da verdade, muito menos para tornar aulas
mais agradáveis aos discentes. Schimidt e Cainelli (2009:127) afirmam que:
Hoje o desafio de usar diferentes documentos como fontes de produção para o
conhecimento histórico e também como veículo para o ensino da historia é
amplamente debatido. Busca-se diversificar as possibilidades de usos de documentos
históricos em sala de aula com o objetivo de construir propostas de ensino
identificadas com as expectativas e cultura do aluno.

Para as autoras pode-se inserir a problematização dos fatos históricos dentro da prática
docente. Pinsk (2005: 7) considera que as fontes históricas são “o material o qual os
historiadores se apropriam por meio de abordagens específicas, métodos diferentes, técnicas
variadas para tecerem seus discursos históricos”.
Com essa metodologia, os alunos são estimulados a se posicionarem de maneira crítica
ao fato apresentado, refletindo, conversando e dialogando com as fontes, mais acima de tudo
estabelecendo uma compreensão de que todos fazem parte da história que está sendo
construída e reconstruída constantemente, porque todos são sujeitos, peças fundamentais do
processo histórico com visões diferentes de toda essa dinâmica.

Painéis da Praça da Liberdade: patrimônio e interpretações da história local


Entende-se por patrimônio a herança de culturas onde estão inseridas as memórias e
identidades sociais (Cerqueira: 2005), relevantes para o saber histórico e formação cidadã do
estudante.O Patrimônio Cultural é um conjunto de bens que mostra a formação e identidade
de um povo, grupo ou sociedade. Cada geração dá a sua contribuição, preservando ou não
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essa herança. Uma população que reconhece seus patrimônios e os valoriza é uma população
consciente de sua história, da sua memória e da sua identidade. Conforme Evelina Grunberg
Patrimônio Cultural são também os que se produzem no presente como expressão de cada
geração, nosso “Patrimônio Vivo” (GRUMBERG, 2007).
Em Parintins,município localizado à margem direita do Rio Amazonas distante cerca
de 369 quilômetros da capital do Estado do Amazonas, Manaus, os patrimônios materiais e
imateriais tem seu destaque devido a divulgação de Festival Folclórico que evidencia os bois
bumbás Garantido e Caprichoso como expressões da identidade local regional e até mesmo
nacional.
Por outro lado, o município também possui bens tangíveis e intangíveis que não
recebem tamanha evidência, causando questionamentos sobre o grau de conhecimento dessas
formas de expressão, saberes, modos de fazer e técnicas por seus moradores locais.
Sendo alguns desses bens materiais e simbólicos do município, as iconografias ou
painéis escultóricos da Praça da Liberdade são obras que representam interpretações da
história de Parintins de acordo com a ótica dos artistas que as esculpiram.
As imagens se transfiguram em esculturas de alto relevo que contam partes da história
do município de Parintins, envolvidas em técnica, pois, Maffesoli (2001) considera que uma
escultura é um objeto técnico. As obras também demonstram também a criatividade dos
artistas parintinenses. Mas todas as interpretações estão envolvidas em conceitos, influencias
e análises dos percursos históricos assim como o momento político da época.
Nesta discussão, de modo específico, serão feitas análises das obras iconográficas da
Praça citada, apresentando sua imagem e os dados da mesma. O primeiro painel estudado Os
primeiros habitantes(Figura 1).

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Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

Figura 1: Painel Os primeiros habitantes

Fonte: Pesquisa de Campo (2014)

Como trabalhar essa imagem em sala de aula? Como problematiza-la? Como extrair
dela as informações que precisamos para nossa compreensão histórica? Parece-nos um grande
desafio e é esse o grande objetivo, vencer esses desafios, saindo da representação tida como
verdade para a problematização dos documentos/monumentos e construção da narrativa
histórica considerando as mudanças, rupturas e continuidades.
O painelEscultórico foi confeccionado com cimento, ferragens e pintura pelo
artista Luís Antônio. Não foi encontrada a data de sua criação, apenas o registro de que
em 2013 a obra foi revitalizada. O painel representa a chegada do branco colonizador,
os nativos do lugar e a exploração dos recursos naturais feita por eles. A imagem mostra
o branco em meio aos indígenas apresentado um símbolo cristão, no intuito de realizar a
conversão dos indígenas para dominá-los.
Sobre o painel escultórico intitulado: Primeiros Habitantes não se sabemos exatamente se a obra se refere aos primeiros
habitantes do que hoje é o município de Parintins ou se faz uma referencia aos primeiros
povos habitantes da Amazônia.
O segundo painel (Figura 2) analisado é intitulado Descobrimentos: Caravelas de
Francisco Orellana (Figura 2),confeccionado por Frank Bentes, que utilizoucom cimento,
ferragens e pintura. A obra não possui data de produção, mas foi revitalizado em 2013.

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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

Representa o hipotético encontro de Francisco Orellana e seus tripulantes com o grupo de


mulheres indígenas nomeadas de Amazonas.

Figura 2: Painel Descobrimentos: Caravelas de Francisco Orellana

Fonte: Pesquisa de Campo (2014)

Este encontro foi relatado pelo cronista da expedição o então Frei Gaspar de Carvajal
que de acordo com ele “Estas mulheres são muito brancas e altas e tem longos cabelos
trançados e enrolados na cabeça, são musculosas e andam nuas em pelo, cobrindo sua
vergonha com arcos e as flechas nas mãos e lutando como dez índios”(CARVAJAL 1992: 79-
81).
essa descrição nos parece uma referência às mulheres amazonas da Grécia Antiga, salientando a representação do imaginário cultural do europeu que ainda estava bastante carregado da cultura grega
antiga e que eram difundidas através dos contos e lendas.
Percebe-se nesse painel escultórico que a visão do artista muito se aproxima com a visão descrita por Carvajal, uma visão europeia, permeada de mitos e lendas comuns da cultura do “velho mundo” e isso
nos leva a perceber como profissionais da História como o artista muitas vezes é levado a reproduzir aquilo que lhe foi dado como verdade absoluta, aquilo de que alguma maneira em determinado momento ele aprendeu,
seja na escola ou por meio dos livros.
De maneira alguma buscamos aqui colocar no descrédito a bela obra apresentada como exemplo, ao contrario, nosso objetivo maior é extrair da obra aquilo que nos é importante destacar dentro da sala de
aula enquanto profissionais quando nos apropriamos dessas fontes como recurso pedagógico.
É importante destacarmos as contradições, as interpretações do fato apresentado, a valorização da obra como documento histórico, a visão do artista, e sua importância como agente construtor de sua
própria história, historicizando uma representação dentro do contexto artístico.
Nós professores de História, temos como dever do ofício trabalhar em sala de aula a diversidade de informações que todas as obras apresentadas nos painéis nos fornecem, essa é a riqueza da Historia, isso
é construir um saber histórico, levar o aluno a dialogar com as fontes, e fazê-lo aproximar-se da pesquisa histórica dentro do ambiente escolar, mostrando por meio delas que existem diversas visões sobre o que lhes é
apresentado.

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Figura 3: Painel Começo do extrativismo

Fonte: Pesquisa de Campo (2014)

O painel denominado Começo do extrativismo (Figura 3), confeccionado pelos artistas Nonato, Luís Antônio e Rob
Barbosa com cimento, ferragens e pintura, também foi revitalizado em 2013 mostra seringueiros extraindo
o leite da seringueira, preparando as pelas da seringa e o transporte da mesma na região Amazônia. Considerando o conceito de extrativismo, segundo o dicionário Aurélio o extrativismo caracteriza-se como “uma atividade
produtiva baseada na extração ou coleta de produtos naturais não cultivados (como, por exemplo, madeiras da floresta amazônica)”.
Com base nesse conceito, Santos (2010) destaca que na fase arcaica da Pré-História da Amazônia a população nativa já praticava o extrativismo, uma vez que, o comércio entre eles era intenso através do
escambo. Entretanto, dentro da visão colonizadora o extrativismo na Amazônia não teria iniciado com o comércio da borracha e sim com a coleta das drogas do sertão por volta do século XVII como afirma Santos (2010) no
seu livro História do Amazonas:

De modo semelhante á historiografia tornou conhecida a expressão “drogas do


sertão” para designar um conjunto diversificado de produtos nativos ou
aclimatados existentes na Amazônia do período colonial, que eram extraídos da
floresta pela mão de obra indígena, e comercializados nos mercados europeus.
Foi por volta do século XVII, mais precisamente durante o reinado de D. Pedro II (1667-1706) Portugal empreendeu uma nova política de reerguimento do seu império, as “drogas do sertão” se tornaram
naquele momento a oportunidade econômica que a metrópole precisava para recuperar sua economia e a partir dai a região amazônica passou a ser a fornecedora dessas especiarias.
A palavra começoiniciando o título da obra intitulada: Começo do Extrativismo tem um significado forte, nos levando a compreender dentro da historiografia de que toda atividade econômica na região
amazônica teria tido como ponto de partida o comércio da borracha desenvolvido pelos nordestinos que foram enviados ate a região, contudo é importante dentro de sala de aula orientar nossos alunos para uma
compreensão importante desse fato histórico e aqui nesse painel, há três pontos relevantes que podem e devem ser abordados e discutidos: 1) O significado de extrativismo e comercio dentro do contexto capitalista; 2) A
história linearda atividade econômica dentro da visão colonizadora e 3) A visão do artista e a sua compreensão a respeito do fato histórico.
Se formos analizar a atividade economica na amazonia dentro do contexto capitalista acabaremos deixando de fora uma abordagem historiográfica do intenso comércio realizado pelos povos indigenas na
Amazônia antes mesmo da chegada do colonizador, e ai estaremos difundindo uma ideia linear, e positivista, deixando as minorias (povos indígrenas) e exaltando o papel do branco colonizador como único sujeito historico
capaz de realização de progresso no meio amazônico.
Também é importante analisar a visão do artista, e tentar uma aproximação a respeito de sua compreensão sobre o referido assunto, não se trata de querer encontrar ou impor uma verdade ou mesmo
colocar o autor e sua obra e situação vexatoria, trata-se de uma exploração intelectual que a obra oferece, e os inumeros argumentos, informações, que ela oferece a ponto de enrriquecer o trabalho histórico, pois o oficio
do históriador é esse: dialogar com as fontes e extrair dela o maior numero de informações possiveis.

O painel escultórico denominado “Prédio histórico – antiga prefeitura e cine teatro


Brasil” (Figura 4) foi confeccionado com cimento, ferragens e pintura pelo artista Luís
Antônio. Assim como os outros painéis o mesmo não possui data de produção, mas foi
revitalizado em 2013.
O painel apresenta os Prédios históricos do Palácio Cordovil (Antiga Prefeitura)
e Cine Brasil, localizados no centro da cidade.

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Figura 4:Prédio histórico – antiga prefeitura e cine teatro Brasil

Fonte: Pesquisa de Campo (2014)

Os painéis caracterizam-se como fontes iconográficas carregadas de imaginários e


intencionalidades interligadas ao período histórico em que as obras foram construídas. Tais
obras demonstram as formas de expressão da rica arte parintinense compondo assim o
patrimônio cultural deste município. Para Maffesoli (2001) “A existência de um imaginário
determina a existência de conjuntos de imagens. A imagem não é o suporte, mas o resultado”.
Considerações Finais
O uso de painéis escultóricos no ensino de História configura-se como uma metodologia diferenciada para ser trabalhada no ambiente da sala de aula. As aulas de História podem ter pesquisas voltadas
para a realidade local, apresentando aos alunos períodos da historiografia local que muitas vezes os próprios desconhecem e possibilitando que os discentes conheçam as diferentes interpretações que foram constituídas
sobre fatos da história do município.
Nessa perspectiva, o educador pode organizar suas aulas a partir da utilização de diferentes fontes e levar os alunos a problematizarem, entendendo que a História é dinâmica e que todos somos sujeitos
históricos. Além disso, nos proporciona uma oportunidade de trabalhar a História local através dos registros feitos por pessoas que possuem memórias dos acontecimentos locais, sem formação acadêmica na área de
História, mas que se constituem como colaboradores guardiões da memória relevantes para a prática pedagógica visto que, são fontes presentes no cotidiano do aluno, formando no mesmo uma atitude reflexiva acerca de
sua realidade social.
As análises feitas nos quatro painéis mostram, de modo geral, que os mesmo apresentam uma visão tradicional, positivista, eurocêntrica, perpetuando uma memória coletiva de um determinado grupo
social, mas com esse trabalho pretendemos desconstruir essa visão linear da História, apresentando novas possibilidades de conhecimento do fazer histórico.

Referências

CARVAJAL, Fray Gaspar de. Relación del Nuevo Descubrimiento del famoso Río Grande de
las Amazonas. Relatório do Novo Descobrimento do famoso Rio Grande escrito pelo capitão
Francisco de Orellana. In: GIUCCI, Guilhermo. Frei Gaspar de Carvajal. Edição
bilíngüe.Trad. Adja Balbino Barbieri Durão e Maria Salete Cicaroni. São Paulo: Scritta;
Brasília: Consejería de Educación de la Embajada de España, 1992.
CERQUEIRA, Fábio Vergara. Patrimônio Cultural, Escola, Cidadania e Desenvolvimento
Sustentável. Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 9, n. 1, p. 91-109, 2005
FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi. Patrimônio: discutindo alguns conceitos. Diálogos -
Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, vol.10,
núm. 3, Universidade Estadual de Maringá, 2006, pp. 79-88. Disponível em:
http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=305526866005
GRUNBERG, Evelina. Manual de atividades práticas de educação patrimonial. Brasília, DF:
IPHAN, 2007.
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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.
LEMOS, Carlos. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense, 1981.

MAFFESOLI, Michel. O imaginário é uma realidade. Revista FAMECOS. Porto Alegre, No


15, agosto 2001. Disponível em
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/3123/2395.
Acesso em 29/05/2018.
PAIVA, Eduardo. História & Imagens. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

PINSK, Carla Bassanezi. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.


SANTOS, Francisco Jorge dos. História do Amazonas. 1ª série, Ensino Médio. Rio de Janeiro: MEMVAVMEM, 2010.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora: CAINELLI, Marlene. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2009.
SILVA, Marcos. História: O prazer em ensino e pesquisa. São Paulo: Brasiliense, 2003.

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“PROCURAÇÃO DE NEGROS”
MEMÓRIA, HISTÓRIA ORAL E HISTÓRIA NO MOVIMENTO QUILOMBOLA DO
ANDIRÁ, FRONTEIRA AMAZONAS/PARÁ

JOÃO MARINHO DA ROCHA

Introdução
Este texto versa sobre as relações entre Memória, história oral e História no
movimento quilombola do Rio Andirá, fronteira Amazonas/Pará144. Os trabalhos de produção,
enquadramento e institucionalização de memórias145 deu a tônica aos seus processos sociais e
políticos de lutas por diferenciação étnico-racial. Além de marcar profundamente seus
caminhos pelos reconhecimentos, também acabou produzindo sínteses históricas sobre si.
Fato que os (re)ligou aos mundos do trabalho não livres na Amazônia, sendo auto
reconhecidos como quilombolas em 2013.
Este texto é parte dos estudos para compor tese de doutorado junto ao programa de
pós-graduação “Sociedade e Cultura na Amazônia” - PPGSCA/UFAM sobre os processos de
construção da Identidade e territorialidades quilombolas no Rio Andirá146. Trazemos aqui uma
reflexão acerca das relações entre Memória, história oral e História no movimento quilombola
do Andirá, por diferenciação étnico-racial. O fazemos a partir dos procedimentos da História
Oral (ALBERT, 2011).
Essas comunidades reuniram e ressignificaram, à luz de suas demandas
contemporâneas, as memórias e tradições orais sobre as conexões das experiências de
tetravós, avós, bisavós e pais, com os mundos do trabalho na Amazônia, apontando em certos
casos para fins do século XIX e por todo o século XX, sendo continuamente amplificadas via
agentes externos ali achegados.
A memória oral do Rio Andirá aponta para projetos de identidades. Segundo consta
nas memórias “vivenciadas por tabelas” (POLLACK,1992) naquelas comunidades e
institucionalizadas no movimento quilombola, Benedito Rodrigues da Costa, negro angolano

144
A fundação Cultura Palmares através da Portaria Nº 176, de 24 de outubro de 2013 registrou no Livro de
Cadastro Geral nº 16 e certificou, de acordo com a autodefinição e o processo em tramitação, junto à referida
Fundação que as comunidades Comunidade de Boa Fé, Ituquara, São Pedro, Tereza do Matupiri, Trindade
se definem como remanescentes de quilombo. Ver: Diário Oficial da União. Seção 1. Nº 208, sexta-feira, 25 de
outubro de 2013. Já possuem relatório Antropológico publicado e aguardam processos finais de titulação de seu
território.
145
Para aprofundar isso ver Pollak (1989;1992)
146
Sob orientação da professora Marilene Corrêa da Silva Freitas
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com passagens pelo Pará, por exemplo, promete quando liberto fosse, retornaria àquele rio
para casar-se com a indígena Gerônima Sateré, que conheceu em uma festa no barracão de
sua Mãe, a índia Júlia Sateré, no lugar denominado “Terra Preta”147. Se a promessa ocorreu
de fato, nunca saberemos. Mas, para além dessa indagação fixa, o fato é que as genealogias
dos Castro e Rodrigues produzidas por Siqueira (2016), a partir da memória social partilhada
nas comunidades, indicam ser este casal inter étnico que deu prosseguimento à sua
reprodução física, econômica e sociocultural desde os fins do século XIX até aos que hoje se
auto identificam quilombolas do Andirá.
A memória teve, portanto, papel fundamental para a produção da Nova Identidade
étnico-racial e territorialidades quilombolas no Rio Andirá. É o que aponta e reconhece a
liderança Maria Amélia ao afirmar que foi “a memória das pessoas que fizeram nós ser
reconhecido como remanescente quilombola. Pra nós é uma satisfação imensa, de a nossa
história, que a nossa memória tá sendo valorizada, dentro das entidades que se chama UEA,
dentro da UFAM [...]148.
Tais constatações, como as apontadas pela liderança nos obrigam objetivar e produzir
ferramentas para compreendê-las, em suas e a partir das suas realidades e vozes, a partir de
utilização de metodologias como a História Oral, a qual vem sendo visualizada como “uma
metodologia de investigação social e/ou como instrumento de luta política” (KHOURY, 2012,
p.7). E, não somente, a partir de modelos estatísticos. Para tanto, levam-nos a (re)pensar os
antigos modelos, que não os permitiram existir no pós-abolição no Amazonas, pelo menos em
suas diversidades, enquanto sujeitos históricos que possuem uma memória acerca das suas
trajetórias históricas e sociais. Trajetórias essas que nem sempre estiveram contempladas nos
esquemas disponíveis para explicar a história da presença negra neste Estado do Amazonas no
pós-abolição. Mas que se mostram nestas primeiras décadas do século XXI, apresentando-se
como um desafio à sua compreensão da História que, para tal desafio de compreensão dessa
história do tempo presente, carece de diálogos com outras áreas do conhecimento científico e
principalmente de metodologias que se abram a tais diálogos, como é o caso da já citada
História Oral, pois
Na conjuntura globalizada que vivemos, em que contingentes cada vez
mais numerosos da população vivem processos de desarticulação e de
desenraizamento de modos culturais de viver, de trabalhar, de se

147
Ocupação de maior antiguidade nas memórias do movimento quilombola. Situado entre os atuais quilombos
de Ituquara e Boa Fé. Ainda residem ali algumas famílias, que resistem em “descer de vez” para os núcleos
comunitários, institucionalizados a partir da segunda metade do século XX.
148
Maria Amélia dos Santos Castro. Entrevista. Agosto de 2016. Parintins-AM.
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socializar, a história oral tem se constituído numa prática significativa,


alcançando maior reconhecimento em ambientes acadêmicos,
profissionais e militantes e uma dimensão pública mais ampla.
Praticada nesses ambientes como metodologia de investigação social,
ou como área do conhecimento, e ou/ como instrumento de luta
política, ela tem gerado trabalhos ricos e variados, visibilizando
sujeitos e lugares ocultados e silenciados por esses processos, trazendo
novas questões para o debate. Uma de suas maiores riquezas é a forma
como congrega vários campos de conhecimento e de prática
profissional, ampliando os horizontes de investigação social e da
consciência crítica daqueles que se colocam indagações sobre a
realidades social e histórica. Essa diversidade tem contribuído no
aprofundamento dos debates sobre problemáticas sociais, sobre
metodologias e técnicas de investigação social, tanto quanto sobre
concepções de memória e história e sobre suas mútuas relações
(KHOURY, 2012, p. 7)149.

Optamos por isso, em analisar as produções das identidades étnico-raciais e


territorialidades quilombolas no Rio Andirá, a partir das perspectivas dos próprios sujeitos
sociais envolvidos nesse processo de constituição de “identidades e projetos políticos”150
contemporâneos, com isso, iluminado para o pós-abolição nas fronteiras Amazonas/Pará,
quando tentamos perceber, em seus discursos como sujeitos de direitos, seus protagonismos,
suas ações políticas, os significados de tais ações e para onde apontam no sentido de iluminar
processos históricos e sociais naquela região da Amazônia. Estamos atentos para as relações,
as possibilidades e também eventuais problemas, possibilidades e perspectivas advindas para
a pesquisa a partir do par História e Memória. Especialmente para o fato de que os grupos
sociais, a exemplos dos “novos quilombos" que emergem contemporaneamente, se apropriam
da memória e das possibilidades dela advindas, para produzir suas “sínteses” e perspectivas
históricas. E nesse movimento político, (re)qualificar-se frente o estado

Memória , história oral e história no movimento quilombola do Andirá:possibilidades na


“procuração de negros”151.
As comunidades quilombolas do Rio Andirá, como os “novos quilombos” do Brasil,
conectam-se de inúmeras maneiras, aos processos sociais produzidos e sistematizados no
âmbito das mobilizações dos movimentos sociais das décadas finais do século XX.

149
KHOURY, Yara Aun. Apresentação. In: Portelli. Alessandro. Ensaios de História Oral. [seleção de textos Alessandro
Portelli e Ricardo Santiago; tradução Fernado Luiz Cássio e Ricardo Santiago]. – São Paulo: Letra e Voz, 2010. – (coleção
ideias).
150
ABREU, Marta; DANTAS, Carolina Vianna; MATTOS, Hebe (ORGs). Histórias do pós-abolição no mundo atlântico:
identidades e projetos políticos – volume 3 / organizado por– Niterói: Editora da UFF, 2014. – 7,2 MB ; PDF.
151
Maria Cremilda Rodrigues. Entrevista. 2015. Parintins, AM.
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Mobilizações essas que dentre outras coisas, com suas Ações sociais marcadas por
protagonismos diversos, alargaram conceitos e significações de elementos que até então
impossibilitavam olhares para realidades sociais de centenas de comunidades negras rurais
existentes no Brasil. Muitas das quais com existências de memórias e tradições que entre
outras coisas remetiam aos tempos do cativeiro e ou denunciavam as relações sociais tecidas
por tais sujeitos por todo o pós abolição. Dentre os temas alargados, ressignificados e,
portanto, que receberam novos olhares, estão a memória pública sobre a escravidão, sobre os
sentidos da liberdade conquistada, sobre os marcos e datas comemorativas até então
cristalizadas que passaram a por reapropriações (MATTOS,2006). Tais revisões estiveram
como pautas do movimento negro contemporâneo que a partir das décadas finais do XX,
encampou a questão quilombola como símbolo de lutas do povo negro(MATTOS,2006;
Domingues & Gomes, 2013).
Ocorre que do Rio Andirá, comunidades até então classificadas pelo Estado e
“reconhecidas” regionalmente como “caboclas-ribeirinhas”, passaram a construir mecanismos
de afirmação e diferenciação étnico-racial, como quilombolas. Tal reconhecimento, em linhas
gerais e, apenas para efeito de início desta reflexão, foi marcado, dentre outras questões por:
A) Um despertar para possibilidades de superação das suas condições sociais
contemporâneas precárias e reconhecimento de certas marcas históricas, enquanto grupo
social com trajetória históricas e memória social ligadas aos mundos do trabalho no pós-
abolição no Amazonas. Em outras palavras, num processo social contemporâneo em que se
viram como negros e precisaram aprender a ser quilombola, puxaram por tais memórias,
remetendo-se aos tempos dos “troncos velhos”, como se referem os quilombolas
contemporâneos, ao se referirem aos seus antepassados que teriam adentrado aquele rio em
fins do XIX. Metáfora não apenas registradas no Andirá, mas em outras partes da Amazônia,
como o Oeste Paraense, como registrados por Funes (1995);
B) Muitas lutas internas, materializadas dentre outras coisas, nos conflitos entorno de
quais memórias seriam eleitas para descrever a história oficial do novo grupo étnico. Também
nas lutas extras-locais, especialmente com seus vizinhos fazendeiros, extratores de madeira e
demais intrusos de suas terras tradicionalmente ocupadas pelos “antigos”, como são chamados
os sujeitos das primeiras gerações quilombolas, pelos demandantes contemporâneos;
C) Inúmeros processos contínuos de mapeamentos e de (re)ordenamento de suas
tradições orais, que passaram a ser constantemente politizadas, ressemantizadas e tornadas

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“capital simbólico” nos contextos atuais de luta política e demandas por direitos frente o
Estado brasileiro;
D) Um processo de (re)construção do passado por meio das “memórias do
cativeiro”(RIOS&MATOS 2006), “herdadas por tabela”(POLLAK, 1989;1992) dos “antigos
troncos”. Memória, cuidadosamente reatualizadas nestes tempos presentes de necessidades
por diferenciação étnico-racial e marcação das territorialidades específicas, são também
continuamente materializadas nas práticas socioculturais. Especialmente nas festas, danças e
das sociabilidades, como também nos modos de vida e nas novas formas de acesso e uso do
território, quase sempre referidas às práticas e ideias que, intentam remeter ao passado do
grupo, ali referenciado naquele rio;
E) Um processo constante de (re)configurações das histórias e das trajetórias
familiares dos sujeitos contemporâneos aos mais velhos das comunidades. Pautado, em muito,
nas memórias orais dos velhos que, ainda guardavam as memórias do que aqueles “troncos
antigos” contavam sobre suas vidas e mundos do trabalho na Amazônia. Indicando sempre
suas pretensas origens angolanas e que adentram a região a partir da província do Pará;
F) Conflitos internos e externos, mobilizações políticas e construções de formas
variadas de conhecimentos, a exemplo das práticas socioculturais como as festas populares.
Práticas essas que, ao serem analisadas em seus sentidos e significados, atribuídos pelos seus
organizadores, servissem para afirmar sua nova pertença étnico-racial. Tanto para si mesmos,
como para os demais grupos sociais do Rio Andirá, com os quais, produzem relações sociais.
Os trabalhos de (re)ordenamento de tais práticas socioculturais serviram,
especialmente, para indicar e demandar ao Estado, saídas para suas condições de
vulnerabilidades e exclusão social contemporânea, produzidas ao longo do pós-abolição.
Condições fortemente relacionadas à opressão histórica sofrida pelo grupo social ali
estabelecido, segundoas memórias, há mais de cem anos.
Os processos sociais de (re)tomada dessas informações que, dentre outras coisas,
apontaram para produção de conhecimentos sobre si. Conhecimentos, em muito, advindos
após conflituosos processos de produção de suas sínteses históricas. Marcadas, em muito, por
impasses locais entre as famílias e os grupos que começaram a fomentar disputas dos fios das
memórias dos “troncos velhos” e, das pretensas direções para onde apontariam os indícios de
tais memórias.
Dependendo do seu narrador e do grupo político a que se filiava, tais indícios, geraram
inúmeras formas de narrativas sobre o grupo. Mas todas guardando similaridades entre si,

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especialmente, no que diz respeito aos “troncos velhos”, especialmente a versão oficializada
pela Federação das Organizações Quilombolas do Município de Barreirinha - FOQMB sobre
a centralidade do personagem Benedito Rodrigues da Costa como liderança do grupo que teria
adentrado as águas do Rio Andirá em fins do século XIX.Nisso, as narrativas destoam apenas
quando descrevem sua chegada naquele rio e por conseguintes, apropriações dos espaços e
produção das sociabilidades, solidariedades e territorialidades específicas ao logo do pós-
abolição na Fronteira Amazonas/Pará.
Nesse movimento por diferenciação étnico-racial no Andirá, os sujeitos politizaram e
etnicizaram tais memórias. Oficializando-as e materializando-as nas práticas socioculturais, a
partir da FOQMB, que logo elegeu os “autorizados a falar” (HAMPANTÊ BÂ,2010. p.167) e,
os “guardiões da memória” (GOMES,2003) do cativeiro e da história do grupo. Isto, a nosso
ver, garantiu e pautou, cada vez mais a necessidade urgente de reparações que deveriam ser
materializadas no Andirá para atender aquelas comunidades.
Para tanto, precisaram tais comunidade, construir caminhos para acessos os
dispositivos constitucionais presentes no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias - ADCT da Constituição de 1988. Com os quais, entraram em contato mais
sistematicamente a partir de 2005, tendo como mediadores privilegiados, pesquisados de
instituições como da Fundação Osvaldo Cruz - FIOCRUZ, Universidades Estadual do
Amazonas - UEA e Federal do Amazonas - UFAM e por último, e talvez o mais decisivo nos
seus processes de materialização de direitos, o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia -
PNCSA.
Estamos falando de Santa Tereza do Matupiri, Boa Fé, Ituquara, São Pedro, Trindade
e outros núcleos associados a tais comunidades (Pagoa, Distrito São Paulo do Açú, São
Marcos e Lírios dos Valle), município de Barreirinha-AM. Comunidades que no início deste
século, a partir de um despertar para sua condição, enquanto “sujeitos de direito”, passaram a
acionar uma memória do cativeiro remontada ao século XIX, que deu sustentação para sua
luta por reconhecimento como comunidades remanescentes de quilombo. Em 2013
conseguiram certificação como tais da Fundação Cultural Palmares-FCP, estando nas etapas
finais de titulação de seu território reivindicado socialmente via movimento social
quilombola. Ao que tudo indica, a memória passou a desempenhar importante papel na
(re)construção de caminhos que os levassem ao “aprender a ser” e a “dizer-se e ser”
(BRANDÃO ET AL., 2010)negros e, por conseguinte, quilombolas no Andirá. Fornecendo com

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isso, também os dispositivos necessários para a nova identificação étnico-racial e


territorialidades específicas quilombolas no Leste do Amazonas.
As análises dos “arquivos de fontes orais" mapeadas nas comunidades, dão conta que
as primeiras estratégias das lideranças do movimento quilombola local, foram marcadas pelo
levantamento das reminiscências dos velhos, que passaram a ser “os guardiões da memória”,
implicando-lhes novos valores às histórias contadas por seus pais, avós e bisavós. Tais
valores, foram logo revestidos com a força da tradição oral. Esta tentativa, ao que percebemos
nas análises do conjunto das memórias catalogadas, os ligou a um passado da escravidão
negra na Amazônia e, a uma origem Angolana, com passagens pela província do Pará.
Legitimando as suas lutas por titulação de suas “terras tradicionalmente ocupadas”, desde o
século XIX, segundo consta nas memórias dos antigos “troncos”, em indícios deixados nos
documentos paroquiais e, oficializada pela FOQMB.
Essa memória do cativeiro, passou então, a servir de base para (re)construção de
modos de ser e viver naquele território tradicionalmente ocupado. Auxiliou principalmente
nos processos de (re)organização da vida cultural das comunidades que, passaram a legitimar
a feitura de festas populares, como o festival de boi-bumbá. Também com a presença de
inúmeras danças, tidas, a partir de então, como tradicionais, como ocorreu com o lundum,
gambá e da onça te pega, para citar a principais, constantemente reordenadas ao longo do
movimento social quilombola. Entram nesses processos de (re)ordenação das práticas
socioculturais, também os cordões de bichos e/ou pássaros como a jaçanã e a garcinha.
Passaram também a dar outros sentidos e configurações às festas de seus santos do
catolicismo popular, como São Sebastião. Observando rigidamente os devidos equilíbrios
entre os tempos dos antigos pretos do Matupiri e os tempos atuais dos reivindicantes por
diferenciação étnico-racial como quilombolas do Andirá.
Elegemos aqui como indicativos daquelas tentativas, observância e equilíbrio, a
(re)estruturação da festa de São Sebastião. Tornado “padroeiro dos quilombolas”, no
processo do movimento social contemporâneo por diferenciação étnico-racial. Celebrado na
antiga “capela da ponta”, local onde existiu um dos primeiros núcleos familiares que deu
origem à comunidade de Santa Tereza do Matupiri, protagonizados pela matriarca Maria
Tereza que ali festejava, a seus modos híbridos, os “seus santos de terreiro”152. Práticas

152
Maria Amélia dos Santos Castro. Entrevista. Setembro de 2017. Quilombo Santa Tereza do Matupiri, rio
Andirá, Barreirinha-AM.
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socioculturais que foram continuadas por seus filhos e filhas153, muitos dos quais como Nézia
e Terezita, mulheres protagonistas de inúmeras “proezas”154 na “Ponta de São Sebastião”e.
Abandonada continuamente após a década de 1960155, mas reordenada continuamente no
movimento quilombola, a partir de 2005 como um dos lugares simbólicos de pertencimentos,
marcadores da Nova identificação étnico-racial e territorialidade específica quilombola no Rio
Andirá. Muitos dos quais indicadores de territorialidades múltiplas, capazes de promover
união dos tempos antigos e novos. Espaços simbólicos e de pertencimentos, que acabaram
servindo como elementos importantes nas lutas políticas das “sementes”156, que produziram
caminhos por meio da memória para acessar os “troncos velhos”157 e, nisso legitimar suas
lutas por reconhecimento. Lembramos que “o fato de que as formas contemporâneas sejam
predominantemente políticas não reduz em nada seu caráter étnico”(BARTH, 2005, p. 37).
Nisso, afirmar suas diferenças frente aos demais grupos sociais locais do Rio Andirá, mas
principalmente frente ao Estado Nacional.
Estamos falando de processos sociais e políticos entorno de (re)classificação social no
Rio Andirá. Como já aludido anteriormente, a partir de um despertar para a suas condições,
enquanto “sujeitos de direitos” previsto no artigo 68 da dos Atos e Disposições
Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, os negros desse rio, passaram construir

153
Em 1933, Maria Terezadeslocou-se até o núcleo “Moura” do lado direito do Andirá, onde solicitou batizado
para Manuel xisto, Raimundo xisto, da Nersia, da Terezita, da Maria do Carmo, da Nila e da Usulina. Muitos dos
quais, também batizaram seus filhos. Livro de Batismo Cúria Diocesana de Parintins.
154
Expressão corrente no Rio Andirá entre os quilombolas para referir-se aos trabalhos realizados nos terreiros
pelos grandes curandeiros ou mestres como são conhecidos os homens e mulheres que exerceram suas
manifestações de fé nas fronteiras entre as práticas das religiões de matriz africana, a pajelança indígena e o
catolicismo popular nas profundezas da Amazônia. As informações sobre Nersia e Terezita constam na
entrevista com Maria Amélia dos Santos Castro. Entrevista. Setembro de 2017 em Santa Tereza do Matupiri,
ocasião em que acompanhamos um pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia-PNCSA ao
quilombo para lhes comunicar da construção de um Museu de Saberes na referida comunidade. Construído em
local a ser escolhido em assembleia geral, sendo o ponto mais cotado entre as lideranças da Federação a “antiga
ponta”, onde morou Tereza Albina e seus filhos. Dentre os quais, as já mencionadas mestras Terezita e Nersia.
155
Quando após intensa águas grandes, e o considerável aumento populacional, a comunidade expande-se da
ponta para a área mais alta acompanhando o rio Matupiri, onde localiza-se atualmente o “quadro” da
comunidade.
156
Metáfora largamente utilizada nos discursos das lideranças do movimento quilombola do Andirá,
especialmente por Maria Amélia, sendo percebido também em narrativas como a de João Freitas da comunidade
Trindade, para referirem-se à si próprios, enquanto demandantes que buscavam (re)ligar-se historicamente aos
passados de tetravós, bisavós, avós e pais, por eles nominados como troncos velhos. Maria Amélia dos Santos
Castro, Entrevista Realizada em Agosto de 2016, em Parintins-AM, ocasião em que promoveu conferência
“trajetórias do movimento quilombola no Rio Andirá”, para estudantes de História da Universidade do Estado do
Amazonas, Centro de Estudos Superiores de Parintins-UEA/CESP, e professores de História da Rede Estadual
de Ensino-SEDUC, durante o Evento “Diálogos de Saberes I. Universidade e comunidades quilombolas do
Andirá”, promovido pelo Núcleo de Estudos Afro brasileiros CESP/UEA. João Freitas de Castro. Entrevista
realizada em Julho de 2016 na comunidade de Trindade, contexto última audiência pública do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária-INCRA para fechar o relatório de identificação e demarcação do Território
quilombola -RTDI
157
Idem
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ferramentas metodológicas e institucionais, como é o caso de uma “Federação”. Instrumentos


capazes de a acionar, registrar e materializar, “memórias do cativeiro”, remontadas ao final
do século XIX e prepará-los para demandar frente o Estado Brasileiro, que os reconheceu
como grupo étnico quilombolas em outubro de 2013. Esses fenômenos de construção de
novas identificações étnico-raciais e territorialidades específicas quilombolas que se vem
assistindo no Estado do Amazonas, aparecem como que um desafio a ser compreendido.
Dizemos isso, pois, se olharmos às realidades e às condições contemporâneas das inúmeras
comunidades negras rurais amazônicas, principalmente se o fizermos, a partir de observações
atentas aos seus modos de vidas, práticas e processos socioculturais indicados por suas
realidades. São necessários, para tanto, olhares descompromissados com ideias fixas
emprestadas à ciência que costuma pensar a Amazônia. Dizemos fixas, por serem marcadas
por visões “Biologizadas, Geografízadas e Edenizadas” (ALMEIDA,2008 b), sobre as
existências desses grupos sociais. Se assim procedermos, talvez possamos contribuir, por
meio da ciência que hora se produz, para a construção de outros olhares, outras histórias para
as gentes amazônicas. Ciência que pode produzir histórias mais conectadas com as questões
reais, mais relacionadas com as sociedades e com as culturas.
Sociedades e culturas amazônicas diversas, apesar de terem sido historicamente
projetadas em imagens homogêneas e frigorificadas (ALMEIDA,2008 b) e, de estarem
também marcadas pelos processos sociais e históricos de produção de pobrezas e exclusões
extremadas (PINTO, 2008; FREITAS,2009). Muito das quais, resultantes das situações
históricas a que foram e continuam a serem expostas, contra o que, no entanto, lutaram e
lutam continuamente. Aliás, o movimento contemporâneo para diferenciação étnico-racial
indica essa (re)atualização das lutas de todo o século XX por acessar direitos étnicos, sociais e
territoriais naquela fronteira Amazonas/Pará. Lutam, portanto, contra a imagem projetada e
“as representações correntes sobre o povo brasileiro emergida no pensamento social brasileiro
como povo pobre” (PINTO, 2008, p. 107).

Considerações

No exercício de pensar as emergências étnico-raciais contemporâneas no Amazonas, a


partir de metodologias como a História oral, julgamos iluminar para o conhecimento das
táticas desenvolvidas por tais movimentos sociais contemporâneos na Amazônia, palco de
diversos impasses e lutas sociais por direitos de existências de povos e comunidades

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tradicionais como ocorreu/ocorre na Fronteira Amazonas/Pará. Dizemos isso por acreditarmos


que não dá mais para ler a presença negra na Amazônia apenas pelo viés da quantidade
numérica, pois, “aplicado à Amazônia, todo procedimento em busca do conhecimento torna-
se plural” (FREITAS, 2012, p.39). Em nossas pesquisas buscamos não somente considerar os
dados estáticos em si, mas também os múltiplos significados da presença negra. Nesse
sentido, estamos interessados em perceber como a presença negra se articularam aos espaços
e mundo amazônicos e aqui construir novos espaços de liberdades e territorialidades
específicas. As práticas socioculturais e memórias contemporâneas de tais comunidades,
portanto, acabaram/acabam esticando os seus presentes, e nisso os sujeitos acabam
reconstruindo os seus passados a partir de suas demandas políticas contemporâneas,
objetivadas no movimento social quilombola. É nessa “viagem das memórias” que intentamos
conhecer um pouco das histórias desses sujeitos, até pouco tempo classificados como “pretos
do matupiri”. E a partir de 2013 foram (re)classificados como “quilombos do Rio Andirá”.
Fato que segundo Maria Amélia dos Santos Castro, significa que terão “Outros Valores158”,
mais que isso, “seremos tratados diferentes159”. Tal assertiva é uma projeção futura, onde a
liderança esperançosa anseia mais respeito, tanto por parte do Estado, como dos seus
vizinhos.

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158
Maria Amélia dos Santos Castro. Entrevista. Agosto de 2016. Parintins -AM.
159
Idem.
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O DOCUMENTO ARQUIVÍSTICO DIGITAL COMO PATRIMÔNIO


DOCUMENTAL A SER PRESERVADO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO USO DO
E-ARQ BRASIL

JORGE VICENTE BORGES LIRA*

Introdução
Grande parte dos documentos estão em locais de guarda, como arquivos, centros de
documentação, museus e bibliotecas, correndo riscos de deterioração ou destruição por fatores
naturais ou da ação humana, ou falta dela.

No tocante ao sentido orgânico, observa-se que os documentos em determinado


contextual cronológico, tem sua importância em razão de registrar um fato, uma ação, de
relevância para a sociedade. É a memória coletiva e documentada.

A relação entre o documento como peça de acervo a ser considerado como patrimônio
cultural e a sua posição como integrante de um arquivo permanente, sugere que em
determinado tempo passado, este documento não tinha a mesma relevância. Isso nos faz
pensar esta relação nas práticas de registrar informação em suportes de nova geração
tecnológica.

Com os avanços tecnológicos e a criação de outros tipos de suportes, com destaque


para o meio eletrônico digital, observou-se o surgimento de outro cenário.A dinâmica
formatação do modo de registrar informações em um suporte mudou consideravelmente o
tratamento do documento, sendo ele arquivístico ou não, com suas especificidades e
complexidades.

Porém,os documentos arquivísticos digitais encontram-se sob a mesma condição de


risco dos documentos considerados convencionais, devido a instabilidade tecnológica dos
hardwares, softwares e formatos, motivando preocupação com a preservação da memória
digital a longo prazo.

O e-ARQ Brasil é um modelo adotado para a produção ou avaliação de sistemas


informatizados prontos, de gestão arquivística de documentos somente digitais, ou seja, o
próprio documento, e também de documentos digitais e convencionais, ou seja, o registro das
referências em base de dados, os metadados.

*
Universidade Federal do Amazonas – Curso de Arquivologia – Graduando.
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O objetivo do e-ARQ Brasil é de orientar a implantação de um sistema de gestão


arquivística de documentos independente da área de atuação e tipologia documental.

Informação, suporte e documento

É importante fazermos uma referência à informação, suporte e documento, pois são


estes que formam o pilar da cadeia documental, bem como importantes impulsionadores da
criação do arquivo.

Discorrer sobre o tripé informação-suporte-documento, objetiva-se formar ideia das


características que um documento possui no seu interior, ou seja, um conteúdo, uma
mensagem, uma informação, e que este documento necessita estar montado, escrito, apoiado
em um suporte.

As ações humanas ao longo da história produziram e produzem quantidade


significativa de informações, que servem de prova e testemunho dessas ações em um
determinado tempo e lugar.

A Ciência da Informação, em linhas gerais, explica que: Informação é um conjunto de


dados sistematicamente dispostos que referencia um evento ou um fato. É um fenômeno
humano emitido e recebido no contexto de suas ações.

No contexto da arquivologia a informação é reconhecida como objeto, no sentido


orgânico, conforme explica Lousada (2011, p. 21),
A informação orgânica é por natureza arquivística, pois é fruto das ações da
organização/instituição. Contudo, a informação arquivística nem sempre é orgânica,
no sentido de que não foi necessariamente produzida no interior de uma determinada
organização, isto é, pode ter sido produzida em ambientes externos à organização.

A informação arquivística manifesta-se na produção ou recebimento, no exercício das


atividades de uma organização física ou jurídica, públicas ou privadas. Nas instituições
públicas, por exemplo, é produzida ou recebida no desempenho das atividades administrativas
ou jurisdicionais, podendo ainda ser originada por motivos funcionais, administrativos ou
legais. Por conseguinte, da informação surge o documento, este funcionando com o seu
suporte, fazendo transmitir assim uma ideia ou mensagem.

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A ideia de suporte é a concepção de guardar informação “eternamente” segura, íntegra


e acessível. O suporte é o meio físico que serve de base para a materialização de uma
informação.

O documento por sua vez, é o resultado da produção de informação com sentido


contextual. Todo documento é uma fonte de informação.

Ao se formar a ideia que, documento é informação registrada em um suporte, logo, a


ideia de “documento de arquivo” dá ao documento “comum” particularidades, características,
que o conceituam como “arquivístico”.

Observa-se que, três condições são necessárias para que se reconheça um documento
como sendo arquivístico. A primeira condição, é que deve estar escrito, ou afixado, num
suporte com uma determinação de suas funções e relações formais. A segunda condição, é
que deve possuir um elo, um conteúdo, com um acontecimento relacionado ao contexto no
qual é produzido. E a terceira condição, é possuir uma forma, isto é, uma configuração física,
conforme normas pré-fixadas.

Vale salientar que, o que faz um documento ser considerado um documento


arquivístico não é o tipo de suporte, e sim, as razões para as quais o documento foi criado.

Os documentos considerados, de arquivo, ainda que possam apresentar aspectos


diferentes na sua forma, isto é, no suporte em que a informação está registrada, possuem
características que os diferenciam de outros documentos que podem conter informações de
valor científico, histórico e cultural.

Além dessas características de sentido, os documentos de arquivos apresentam


características quanto a sua autenticidade. Estas características se apresentam de forma
isolada, porém devem estar em conjunto no documento, para que um documento autêntico
seja íntegro e fidedigno.

Partindo dessa ideia, a informação produzida e guardada em equipamento eletrônico, é


um “documento eletrônico”, ou seja, é todo registro que tem como meio físico um suporte
eletrônico. Segundo Rondinelli (2002, p.130), documento eletrônico,

é o documento processado por meio eletrônico, em formato digital. Entretanto, há


outros documentos que, embora não sendo digitais, são processados

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eletronicamente. É o caso das fitas de áudio e eletromagnéticas analógicas, que


também podem ser entendidas como documentos eletrônicos.

Vale salientar que, o que dá sentido ao documento, ou seja, a cadeia de dados contidas
no documento, é a sua representação, seu sentido e significado em relação ao conjunto
documental.

Os documentos eletrônicos e os convencionais, possuem os seguintes elementos


característicos entre si: Suporte, conteúdo, forma (ou estrutura), ação, pessoas, relação
orgânica e Contexto.

Salientamos como reforço, que novos conceitos profusos em decorrência de


documentos tendo como seu suporte, o suporte eletrônico, estes documentos também devem
conservar as características dos documentos convencionais, entre elas, razão, sentido e forma
definida, conservando-se a integridade, autenticidade e fidedignidade.

E-ARQ Brasil

Desenvolvido em razão da existência de um significativo patrimônio documental


produzido em formato digital, o eARQ Brasil ao longo do tempo vem sendo tratado por
especialistas interdisciplinares, entre os quais, os das áreas de arquivologia e de tecnologia da
informação, que têm como tarefa principal, conceituar o documento arquivístico e o
documento arquivístico digital para construir e propor soluções mediante os desafios impostos
por este formato.

O e-ARQ Brasil foi publicado por meio das Resoluções do CONARQ de nº 25, de 27
de abril de 2007, e pela Resolução nº 32, que dispõe sobre a inserção dos Metadados na sua
Parte II.

De acordo com o (CONARQ, 2011, p.9), o e-ARQ Brasil é


uma especificação de requisitos a serem cumpridos pela organização
produtora/recebedora de documentos, pelo sistema de gestão arquivística e pelos
próprios documentos, a fim de garantir sua confiabilidade e autenticidade, assim
como sua acessibilidade. Além disso, o e-ARQ Brasil pode ser usado para orientar a
identificação de documentos arquivísticos digitais.

O e-ARQ Brasil é um modelo adotado para a produção ou avaliação de sistemas


informatizados prontos, de gestão arquivística de documentos somente digitais, ou seja, o

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próprio documento, e também de documentos digitais e convencionais, ou seja, o registro das


referências em base de dados, os metadados.

Para melhor ilustrar, consideremos o primeiro caso, o documento somente digital


quando a sistematização do mesmo acontece desde sua produção, o nato-digital, ou seja,
nasce digital, “morre” digital em forma de registro em base de dados. No segundo caso,
consideremos um mixer. O documento nasce “físico”, passa por processo eletrônico digital
(digitalização) e seus dados são registrados em base de dados (metadados).

O objetivo do e-ARQ Brasil é de orientar a implantação de um sistema de gestão


arquivística de documentos na administração pública (federal, estadual ou municipal) ou
empresas privadas independente da área de atuação e tipologia documental, para criação ou
aquisição de umSIGAD.

O CONARQ (2011, p. 10) definiu o SIGAD como:


É um conjunto de procedimentos e operações técnicas, característico do sistema de
gestão arquivística de documentos, processado por computador. Pode compreender
um software particular, um determinado número de softwares integrados, adquiridos
ou desenvolvidospor encomenda, ou uma combinação destes. O sucesso do SIGAD
dependerá, fundamentalmente, da implementação prévia de um programa de gestão
arquivística de documentos.

O e-ARQ Brasil observa a fundamental importância dos sistemas eletrônicos


gerenciadores de documentos se fundamentem nos conceitos arquivísticos para assegurar as
características de confiabilidade e autenticidade destes documentos.

Instrumentos utilizados na gestão arquivística de documentos

São necessários vários instrumentos de apoio aos procedimentos e operações técnicas


de gestão arquivística de documentos, definidos em instrumentos principais e adicionais
conforme o CONARQ (2011, p.36):
Instrumentos principais
 plano de classificação, codificado ou não, baseado nas funções e
atividades do órgão ouentidade;
 tabela de temporalidade edestinação;
 manual de gestão arquivística dedocumentos;
 esquema de classificação referente à segurança e ao acesso aos
documentos.

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Instrumentos adicionais
 glossário;
 vocabuláriocontrolado;
 tesauro.

Plano de classificação e código de classificação

A classificação é o principal procedimento de organização de um arquivo. É uma


atividade física e intelectual que se destina a agrupar os documentos hierarquicamente entre
classes e subclasses, conforme as funções e atividades de seu produtor, de maneira sistemática
e compreensível através de códigos (numéricos ou alfanuméricos).

Segundo o CONARQ (2011, p.36),


Um plano de classificação é um esquema de distribuição de documentos em classes,
de acordo com métodos de arquivamento específicos, elaborado a partir do estudo
das estruturas e funções de uma instituição e da análise do arquivo por ela
produzido.

Tabela de temporalidade edestinação

A Tabela de Temporalidade é um instrumento onde são definidos os prazos para a


destinação dos documentos, por terem cumprido os valores arquivísticos previstos, de acordo
com a codificação estabelecida no Plano de Classificação.

Sobre a tabela de temporalidade, o CONARQ (2011, p.37) afirma que:


A tabela de temporalidade e destinação deve contemplar as atividades-meio e as
atividades-fim. Sua estrutura básica deve apresentar os seguintes itens:
 identificador de classe;
 prazos de guarda nas fases corrente eintermediária;
 destinação final (eliminação ou guardapermanente);
 observações necessárias a suaaplicação.
 Deve-se elaborar um índice alfabético para agilizar a localização dos assuntos no
plano ou código e natabela.

Observamos que a tabela de temporalidade determina o período do documento no


arquivo corrente e intermediário, onde findo este prazo, é realizada sua eliminação ou

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recolhimento ao arquivo permanente onde serão preservados considerando-se seu valor como
fonte para a história ou probatório para ainstituição.

Manual de gestão arquivística dedocumentos

O manual de gestão arquivística de documentos é um conjunto de procedimentos e


regras que determinam as orientações desde a produção até a destinação final dos documentos
orgânicos, para a condução das atividades da instituição.

Esquema de classificação de acesso e segurança

O esquema de classificação de acesso e segurança tem por finalidade definir as


permissões de acesso por perfis de usuários do sistema de gestão arquivística desde a
produção até a destinação final dos documentos. Segundo o CONARQ (2011 p.38) “é a
definição das categorias de usuários e das permissões de acesso e uso do sistema de gestão
arquivística para produção, leitura, atualização e eliminação dos documentos.”. As restrições
adotadas aos documentos devem estar de acordo com legislação vigente.

Glossário

A princípio, glossário é um conjunto de conceitos essenciais de um determinado


campo de ação. Atualmente já existem processos organizados, lógicos e sistemáticos para
transformar glossários em ontologias, léxicos computacionais e terminologias de qualquer
ramo tecnológico. Conforme o CONARQ (2011, p.38),

Glossário é um vocabulário afeito a uma área específica do conhecimento, que


envolve definições conceituais, dispostas em ordem alfabética. Num glossário, os
termos não guardam relações entre si. Um glossário pode estar anexo ao plano de
classificação e à tabela de temporalidade e destinação, bem como ao manual
degestão.

Vocabulário controlado

É uma representação de categorias sob uma forma hierárquica.

Para o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística (2005, p.174), vocabulário


controlado é “conjunto normalizado de termos que serve à indexação e à recuperação da
informação.”.

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O termo indexação indica o processo utilizado para representar o documento com


palavras-chaves ou descritores, possibilitando a recuperação da informação.

Tesauro

Tesauros são vocabulários controlados, semanticamente relacionados, formados por


termos, organizados por temas, que definem a terminologia de um domínio do conhecimento
e são utilizados principalmente para indexar e recuperar informações por meio de seu
conteúdo.

Os termos estão divididos em descritor e não-descritor. O descritor é aquele que


representa um único significado, uma interpretação, um conceito; não ambíguo. O não-
descritor ou remissivo, é aquele que remete a um descritor e é ligado por uma relação de
equivalência.

Nesse sentido o CONARQ (2011, p. 38) define tesauro como,


uma lista controlada de termos ligados por meio de relações semânticas,
hierárquicas, associativas ou de equivalência que cobre uma área específica do
conhecimento. Em um tesauro, o significado do termo e as relações hierárquicas com
outros termos são explicitados.

O tesauro é fundamentado na ideia de se utilizar um vocabulário controlado para a


indexação e busca da informação. A normalização terminológica dos vocabulários de
indexação proporciona clareza na pesquisa documental.

Especificação de requisitos para um SIGAD:

O eARQ Brasil apresenta um conjunto de requisitos que obedecem um formato padrão


de sistemas computacionais para gestão de documentos de arquivo conforme apresentados no
item anterior. Estes requisitos obedecem aos métodos procedimentais empregados para uma
gestão de documentos eletrônicos. Vale salientar, como reforço, que todo o processo faz parte
da essência da gestão documental.

As especificações de requisitos para sistemas informatizados de gestão arquivística de


documentos (SIGAD) e seus aspectos de funcionalidade estão subdivididos nas seguintes
classes principais conforme o CONARQ (2011), compiladas a seguir:

Organização dos documentos arquivísticos: plano de classificação e manutenção dos


documentos.
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A organização dos documentos arquivísticos é feita com base num plano ou código de
classificação. Tal instrumento constitui-se no núcleo central de qualquer SIGAD. Por meio
dele, são estabelecidas a hierarquia e a relação orgânica dos documentos, devidamente
demonstradas na forma como eles são organizados em unidades de arquivamento.

Tramitação e fluxo de trabalho.

Os requisitos desta seção tratam apenas dos casos em que o SIGAD inclui recursos de
automação de fluxo de trabalho (workflow). Eles abrangem funções para controle do fluxo de
trabalho e atribuição de metadados para registro da tramitação dos documentos, incluindo-se o
status do documento (minuta, original ou cópia).

Captura.

A captura consiste em declarar um documento como documento arquivístico ao


incorporá-lo num SIGAD por meio das ações de registro, classificação, indexação, atribuição
de metadados e arquivamento.

A captura do documento convencional será realizada pelo SIGAD por meio das
atividades de registro, classificação e indexação. O arquivamento será feito da forma
apropriada ao suporte, formato e tipo de documento.

Avaliação e destinação.

No contexto de um SIGAD, a avaliação dos documentos refere-se à aplicação da


tabela de temporalidade e destinação de documentos. Essa tabela define o prazo pelo qual os
documentos têm que ser mantidos em um SIGAD e a destinação dos mesmos após esse prazo,
ou seja, recolhimento ou eliminação.

Um SIGAD deve ter capacidade de exportar documentos para apoiar as ações de


transferência e recolhimento de documentos, ou ainda para realizar uma migração ou enviar
uma cópia para outro local ou sistema.

A eliminação de documentos arquivísticos deve ser realizada de acordo com o previsto


na tabela de temporalidade e destinação de documentos, após a avaliação dos documentos e
de acordo com a legislação vigente.

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Os documentos arquivísticos convencionais e os híbridos gerenciados pelo SIGAD


devem ter os procedimentos de avaliação e destinação controlados pelo SIGAD, da mesma
forma que os documentos digitais.

Pesquisa, localização e apresentação dos documentos.

Um SIGAD precisa prover funcionalidades para pesquisa, localização e apresentação


dos documentos arquivísticos com o objetivo de permitir o acesso a eles.

Todas essas funcionalidades têm de ser submetidas aos controles de acesso descritos
na seção Segurança.

A pesquisa é o processo de identificação de documentos arquivísticos por meio de


parâmetros definidos pelo usuário com o objetivo de confirmar, localizar e recuperar esses
documentos, bem como seus respectivos metadados.

Um SIGAD pode conter documentos arquivísticos com os mais diversos formatos e


estruturas, e deve ter a capacidade de apresentar esses documentos ao usuário sem adulterá-
los, seja exibindo-os na tela do computador, imprimindo ou emitindo som.

Segurança

Esta seção contém um conjunto de requisitos para serviços de segurança: cópias de


segurança, controle de acesso (tanto baseado em papéis de usuário como em grupos de
usuários), classes de sigilo, trilhas de auditoria de sistemas, criptografia para sigilo, assinatura
digital e marcas d’água digitais.

As cópias de segurança têm por objetivo prevenir a perda de informações e garantir a


disponibilidade do sistema. Os procedimentos de backup devem ser feitos regularmente e pelo
menos uma cópia deve ser armazenada, preferencialmente off-site.

Além dos requisitos de autoproteção, o SIGAD deve interagir com outros sistemas de
proteção, tais como antivírus, firewall e anti-spyware.

Os documentos arquivísticos completos não podem, em regra, ser alterados e


eliminados, exceto no término do seu ciclo de vida num SIGAD. No entanto, os
administradores podem precisar apagar documentos arquivísticos para corrigir erros de

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usuário (p. ex., declarar documentos de arquivo no dossiê/processo errado) ou para cumprir
requisitos jurídicos no âmbito da legislação sobre proteção de dados.

Armazenamento

A estrutura de armazenamento em um SIGAD deve fazer parte de uma arquitetura


tecnológica que permita a preservação e a recuperação de longo prazo dos documentos
arquivísticos. Por isso, essa estrutura deve abrigar os documentos, seus metadados, os
metadados do sistema (informações sobre segurança, direitos de acesso e usuários, entre
outros), trilhas de auditoria e cópias de segurança. Do ponto de vista físico, tais informações
residem em dispositivos de armazenamento eletrônicos, magnéticos e ópticos.

Os dispositivos de armazenamento de um SIGAD e os documentos neles armazenados


devem estar sujeitos a ações de preservação que garantam sua conservação de longo prazo.

Preservação

Exatamente como no caso dos documentos convencionais, a preservação de


documentos arquivísticos digitais não é um fim em si mesmo. Antes possui um propósito que
deve ser considerado na definição e implementação das estratégias de preservação. A razão
para se preservar um determinado documento pode ser seu valor probatório e/ou informativo.

Conformidade com a legislação e regulamentações

Um SIGAD tem que cumprir a legislação e as regulamentações vigentes. Setores de


atividades distintos apresentam requisitos legislativos e regulamentares diferenciados. Sendo
assim, todos os requisitos desta seção são genéricos e têm que ser adaptados à realidade de
cada órgão produtor de documentos arquivísticos.

Usabilidade

Um sistema de software com boa usabilidadedeve apoiar a realização de tarefas


simples, diretas e objetivas, que garantam as metas de produtividade e qualidade de trabalho
do usuário. Se os usuários de um SIGAD encontrarem inúmeras dificuldades de operação, sua
efetiva implantação pode fracassar, ocasionando desperdício de recursos.

Interoperabilidade

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A adoção de regras e padrões de comunicação já consolidados permite a consulta entre


sistemas heterogêneos sem que o usuário perceba as operações envolvidas, convergindo para
uma relação sinérgica entre as partes.

Disponibilidade

Os requisitos de disponibilidade devem ser especificados pelo administrador do


SIGAD de acordo com o nível de serviço a ser fornecido. Por exemplo, os períodos previstos
de atendimento (“8x5” indica oito horas por dia útil, “24x7” indica atendimento contínuo),
bem como o tempo máximo tolerável em interrupções previstas. O grau de disponibilidade a
ser estabelecido deve levar em conta fatores como as regras de negócio da organização, a
necessidade de realização de backup, manutenções planejadas, entre outros.

Desempenho e escalabilidade

Os requisitos de desempenho enfocam a eficiência no atendimento aos usuários, de


acordo com suas expectativas quanto ao tempo de resposta. Os tempos de resposta são
influenciados por fatores externos ao SIGAD, como, por exemplo, infraestrutura de rede,
volume de tráfego de dados e dimensionamento dos servidores e estações de trabalho.

Em um SIGAD, entende-se escalabilidade como a capacidade de um sistema


responder a um aumento do número de usuários e do volume de documentos arquivísticos,
mantendo o desempenho de suas respostas.

Para tanto, faz-se necessário que a cada aumento de hardware corresponda um


aumento de desempenho.

Considerações finais

Ao abordarmos os fundamentos arquivísticos dos documentos ditos convencionais e


eletrônicos digitais, a visão proposta quanto a preservação dos documentos se dá através de
métodos diferentes quanto ao tratamento físico entre ambos, porém a intencionalidade do
trabalho foi construir pensamento no sentido orgânico. Os métodos são similares, o que muda
é a ferramenta devido a constituição do suporte.

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O eARQ Brasil foi elaborado com o objetivo de construir procedimentos através de


requisitos para manter a autenticidade, integridade, fidedignidade e acesso aos documentos
eletrônicos digitais.

Com o tratamento adequado para estas novas formas de registrar e preservar


informações, conservando-se os princípios, funções e metodologias arquivísticas, estes
registros, documentos eletrônicos digitais, de alguma forma poderão ser considerados como
patrimônio documental?

Neste sentido, os documentos eletrônicos digitais são tratados da mesma forma pela
gestão documental dos documentos tradicionais, consequentemente podendo tornar-se peças
integrantes do acervo permanente, diante da sua relevância, integrante do patrimônio
documental cultural.

Em razão do tempo de uso das tecnologias para registrar documentos em banco de


dados através de ferramentas (softwares), existem raros exemplos de como estes documentos
se consideraram como patrimônio cultural.

Referências

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de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental, 4. ed., Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2006, 320p.
BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Arquivo: estudos e reflexões. Belo Horizonte: Ed. da UFMG,
2014.
CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS – CONARQ, Glossário – Câmara Técnica de
Documentos Eletrônicos – CTDE. 5.1 versão. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2010.
E-ARQ Brasil, Modelo de requisitos para sistemas informatizados de gestão arquivística de
documentos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011.
LE COADIC, Yves-François. A ciência da informação. Brasília,DF: Briquet de
Lemos/Livros, 1996.
LEI No 8.159, DE 8 DE JANEIRO DE 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos
públicos e privados e dá outras providências.
LOPEZ , André Porto Ancona. Princípios arquivísticos e documentos digitais , Brasília:
UNB, Arquivo Rio Claro - n. 2 - 2004.
LOUSADA, Mariana. Informação orgânica como insumo estratégico para a tomada de
decisão em ambientes competitivos / Mariana Lousada. – Marília, 2011. 250 p., 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Faculdade de Filosofia e Ciências,
Universidade Estadual Paulista, 2010.
PAES, Marilena Leite. Arquivos: teoria e prática. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. 228 p.
249
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Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

RONDINELLI, Rosely Curi. Gerenciamento Arquivístico de Documentos Eletrônicos: uma


abordagem teórica da diplomática arquivística contemporânea. 3. ed. Rio de Janeiro: FGV,
2005. 158 p.
RONDINELLI, Rosely Curi. O documento arquivístico ante a realidade digital: uma revisão
conceitual necessária. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2013. 280.

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MONTEIRO LOPES, O DESEMBARGADOR E O BISCOITO.


JUAREZ CLEMENTINO DA SILVA JR.*

O presente texto foi originalmente elaborado para compor parte da minha dissertação
de mestrado, sobre Manoel da Motta Monteiro Lopes, pernambucano, Advogado e o primeiro
Deputado Federal negro e com discurso afirmativo do Brasil, representante do então Distrito
Federal e falecido em 1910 no Rio de Janeiro. No entanto, o texto não pode ser aproveitado
dado o caráter monográfico do trabalho. Na verdade já é um novo desmembramento de texto
mais amplo, que trata de 150 anos da história de protagonismos de uma incomum família
negra de nome Monteiro Lopes originária de Pernambuco, incluindo e principalmente, o seu
ramo amazônico, fundado por José Elias Monteiro Lopes, irmão mais velho do já citado
Deputado Manoel da Motta Monteiro Lopes. José Elias lá pelo início da República deixou
Recife e se radicou no estado Pará, onde advogou e depois foi juiz, teve seis filhos, entre eles
o nosso agora protagonista Agnano de Moura Monteiro Lopes. Hoje o ramo amazônico dos
Monteiros Lopes está disperso parcialmente para o Rio de Janeiro e fora do país, mas ainda
presente na Amazônia.
Iniciamos pois uma curta biografia do paraense Agnano de Moura Monteiro Lopes,
que foi Juiz assim como o pai, entremeada da curiosa história do biscoito paraense que leva o
nome da família.
Agnano nasceu em Belém do Pará em 1910 e chegou a Desembargador e Presidente
do Tribunal de Justiça do Pará 160. Ficou orfão de pai aos 11 anos de idade. Com isso, o então
adolescente Agnano e toda a família tiveram uma brusca queda do padrão de vida, segundo
conta sua filha Vera Lúcia Monteiro Lopes Leite 161, as coisas não ficaram fáceis, Agnano foi
jornaleiro, depois, através de uma oportunidade surgida por conta de sua facilidade com o
texto, começou a escrever para a Folha do Norte, de Belém, ajudando assim na subsistência
familiar e na manutenção dos estudos.
Se formou em Direito aos 20 anos, segundo seu perfil biográfico publicado em
homenagem póstuma pelo TJPA-Tribunal de Justiça do Pará (PARÁ, 2001) foi nomeado no

*Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas, juarez_silva@hotmail.com .


160 Trecho do prefácio de publicação do TJPA: O nosso homenageado nasceu em 17/11/1910, isto é, no
século passado, nesta cidade de Belém do Pará, filho do casal pernambucano aqui radicado, de invejável
envergadura moral e conduta ilibada, predicados esses, absorvidos pelo eminente Desembargador Agnano
Moura Monteiro Lopes, em sua trajetória como juiz. Urge inserir que, José Elias Monteiro Lopes genitor do
homenageado, exerceu também a magistratura neste Estado, profissão que deve ter concorrido na formação à
carreira escolhida. Ver ( PARÁ, 2001)
161 Informações prestadas pela filha Vera Lúcia Monteiro Lopes Leite, em entrevista em Manaus no dia
19/03/2016.
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mesmo ano para Juiz Substituto na distante Comarca de Faro, divisa com o Amazonas,
prestou concurso para Promotor público, sendo aprovado e nomeado para Muaná, em 1933
aos 22 anos assumiu a promotoria em Marabá, comarca instalada em 1914 por seu pai, o Juiz
José Elias, que hoje dá nome ao fórum local.
Fig. 01- Capa da publicação, homenagem póstuma

Fonte: foto sobre arquivo pessoal de Vera Lúcia Monteiro Lopes Leite

Em 1935 é tranferido a pedido para Igarapé-Miri, em 1936 retorna a Marabá e 1939


segue para Macapá, que na época, junto com o restante do atual estado do Amapá ainda fazia
parte do Estado do Pará, prestou então concurso para Juiz, sendo aprovado e classificado em
primeiro lugar, permanecendo como Juiz em Macapá até 1941, quando é então removido para
Igarapé-Miri. Em 1960 é nomeado Desembargador do TJPA. Foi empossado presidente do
Tribunal em fevereiro de 1968, o presidindo até 1975.
A partir do relato de sua filha Vera Lúcia Monteiro Lopes Leite, foi possível
acrescentar algumas informações muito interessantes a essa história. Agnano se casou

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com Laura Borges, de família portuguesa, que acrescentou ao nome o Monteiro Lopes,
tiveram 4 filhos, Mário Juracy, Carlos Jurandir, Rodrigo Otávio e Vera Lúcia.

Fig. 02 – Casal Laura e Agnano Monteiro Lopes

Fonte: Arquivo familiar de Vera Lúcia Monteiro Lopes Leite

Uma pausa no fluxo oficialesco da história, para narrar e esclarecer uma outra história
que tem muito a ver com uma já tradição muito cara à cultura paraense, em especial a de
Belém. Agnano e Laura se conheceram muito jovens, ela do município de Breves-PA, foram
56 anos de casamento.
Antes disso porém, como já dito, na adolescência a situação da família de Aganano
não era das melhores, muitos esforços foram feitos visando a formação de todos os filhos, a
família portuguesa da adolescente Laura, não aceitava o romance com o jovem negro, que
pouco adiante aos 20 anos se tornaria bacharel e pouco depois Juiz Substituto.
Por preconceito, a família a expulsou de casa, a mãe de Agnano, D. Julia, diante de tal
situação lhe deu guarida. É a partir desse fato que surge uma tradição muito popular em
Belém do Pará, o biscoito Monteiro Lopes.

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Fig. 03- Biscoito Monteiro Lopes

Fonte: Composição a partir de Cacauverde.com e Tipicas.com.br

Em Belém do Pará é muito popular e comum nas festas um tipo de confeito, um


biscoito conhecido por Monteiro Lopes, pela Internet é comum encontrar receitas e video-
receitas da delícia, assim como uma versão para seu surgimento:
Monteiro Lopes é uma espécie de biscoito preparado em massa delicada e
crocante, além de conter uma cobertura com chocolate empanada em açucar
cristal. É um biscoito típico do Norte do Brasil. O nome “Monteiro Lopes”, é
uma homenagem à família que criou a receita. Emiliana Moraes, paraense, conta
a seguinte história: Entre 1850 e 1890, em Santa Maria de Belém do Grão Pará,
existiam duas padarias: uma na Oriental do Mercado Ver o Peso e a outra na
Ocidental do mesmo mercado (antiga Cidade Velha, bairro de Belém do Pará).
Uma era proprietária de Manuel Monteiro, um mulato e a outra de Antônio
Lopes, um português. Eram concorrentes e, por tradição, cada um produzia um
biscoito de cores e paladares diferentes. Os filhos de ambos, após a morte dos
pais, se casaram e deixaram de ser concorrentes, juntando cores e sabores num só
biscoito, nascendo assim o Monteiro Lopes. Conta Emiliana que quem lhe contou
esta história foi Lima Josué, professor de História e Ciência da Religião
(BISCOITINHOS, 2012)

Invariavelmente é essa mesmíssima versão que aparece em todas as ocorrências retornadas de


busca web, exceto por uma, publicada no Diário do Pará e replicada no site do Tribunal de
Justiça do Pará, que atribui a origem do nome relacionando com o Desembargador Agnano
Monteiro Lopes, afirmando que seria consequência do antigo costume de se referir
‘elogiosamente’ a pessoas negras consideradas ou de proeminência como ‘negro de alma
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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

branca’ (MENEZES,2013), já que a aparência do biscoito, conteúdo branco envolvido por


uma cobertura cor de chocolate, sugeriria a mesma situação.Não localizamos fonte alguma
que validasse a primeira versão, o professor citado existe, mas não é memorialista, nem
publicou nada a respeito, portanto a informação passada à citada aluna parece ter sido em
carater anedótico, mera reprodução do tipo “lenda urbana”, quanto a segunda, de início
imaginávamos a mais plausível, no entanto entrevistando a filha do desembargador, surge a
terceira versão, muito mais lógica e verossímil, tendo inclusive sido informada e publicada no
site do TJPA:
O TJ-PA foi o primeiro tribunal brasileiro a ter um negro presidente, em 1968,
com o desembargador Agnano de Moura Monteiro Lopes, filho de escravos.(sic)
Jovem, se enamorou de uma moça branca portuguesa, cuja a família, a princípio,
não aceitava o casamento. Acabaram se casando na Igreja da Trindad. Em
homenagem a esse amor que superou preconceitos, uma doceira amiga da mãe de
Agnano batizou o biscoito “Monteiro Lopes” com o nome do magistrado, já que
o doce é formado por uma metade preta e outra branca, simbolizando a união das
raças. Dessa união nasceram cinco filhos. GRIFO NOSSO (PARÁ, 2014)

Com alguns erros, possivelmente de interpretação por quem colheu a informação,


como o fato de ser filho de escravos, quando de fato não era, tanto os pais quanto os avós
eram livres, é praticamente a mesma versão que nos contou D. Vera Lúcia, filha do
Desembargador Agnano, acrescentando que quando menina, viu muito a avó Júlia envolvida
com o preparo dos docinhos, e que a mesma explicava que as cores simbolizavam a união
dois pais e que ‘o branco não se separa do preto, tem que estar juntos para sempre’.
Aliás, a primeira versão parece ser apenas uma deturpação dessa última, pois guarda
elementos semelhantes, como famílias negra e portuguesa, preconceito/antagonismo, filhos
que se enamoram e depois casam formando um casal interracial.
Esclarecida essa interessante questão, retornamos ao fluxo da narrativa biográfica.
Seguindo a tradição familiar de excepcionalidades, pioneirismos e protagonismos, o
Desembargador Agnano de Moura Monteiro Lopes, foi o primeiro negro presidente de um
Tribunal de Justiça no país (PARÁ, 2014). Segundo informou sua filha Vera Lúcia, ao
assumir em 1968 a presidência do TJPA, também passou a assumir esporádica e
extraordinariamente o governo do Pará em impedimentos do Governador Alacid Nunes.
Foi na sua gestão em 1970 que o TJPA teve pela primeira vez sede própria, e em 1971
foi inaugurado o Museu do TJPA, o primeiro museu judiciário do Brasil.

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Fig. 04 – Des. Agnano, recepcionando o Presidente da República,


Gen. Emílio Garrastazu Médici em sua visita a Belém em 1971

Fonte: Arquivo familiar de Vera Lúcia Monteiro Lopes Leite

O Desembargador Agnano de Moura Monteiro Lopes se aposentou em 1.977 e faleceu


em 02 de maio de 1994, aos 84 anos de idade, passadas 4 décadas de seu afastamento do
TJPA ainda é lembrado e festejado, o auditório do Tribunal leva seu nome, sua imagem e
nome ainda tem apelo midiático, em 2014, na comemoração dos 140 anos do Tribunal de
Justiça do Estado do Pará foi homenageado, recebendo postumamente a medalha
comemorativa (AGÊNCIA PARÁ, 2014).

Fig 05 – Des. Agnano Monteiro Lopes, vivo na memória

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Fonte: Composição a partir de imagens no Diário do Pará , Site do TJPA e Arquivo Familiar

No projeto Museu sobre rodas do TJPA, escolares visitam parte dessa história, tiram
fotos com a toga e o retrato do Desembargador, enquanto saboreiam, uns biscoitinhos
Monteiro Lopes (PARÁ, 2014).
O ramo amazônico dos Monteiro Lopes, está hoje na quarta geração. Como os demais
descendentes do patriarca José Elias, a descendência do desembargador Agnano, mantendo a
tradição e a partir do coeficiente acumulado de mobilidade social familiar, aplicando seus
talentos, também obtiveram destaques pessoais/profissionais relevantes. Dos seus filhos estão
vivos dois, Carlos Jurandir, Jornalista, Musico e Escritor, que mora no Rio de Janeiro e Vera
Lúcia, Engenheira Mecânica, que vive em Manaus com os filhos Ana Laura, Psicóloga e
Administradora de Empresas e Euclides Jr., Engenheiro Químico.

Fig 06 – Carlos Jurandir Monteiro Lopes, RJ e Família Monteiro Lopes, núcleo Amazonas

Fonte: O autor

Esperamos em breve poder juntar essa e outras histórias da família Monteiro Lopes,
incluindo o constante da dissertação, em um livro.

Referências
AGENCIA Pará. PLENO do TJPA celebra 140 anos de fundação. 2014. Disponível em:
<http://www.agenciapara.com.br/exibe_clipping.asp?id=45443>. Acesso em: 22 nov. 2016.
BISCOITINHOS Monteiro Lopes. 2012. Blog Rabiscos na cozinha. Disponível em:
<http://rabiscosnacozinha.tumblr.com/post/16006036487/esse-biscoitinho-é-tradicional-na-
minha-cidade>. Acesso em: 21 abr. 2016.
MENEZES, Carolina. Um pedaço da história da Justiça no Estado do Pará. Diário do Pará.
Belém, 13 out. 2013. Política, Caderno A, p. 3-3. Disponível em:
<http://digital.diariodopara.com.br/pc/edicao/13102013>. Acesso em: 21 abr. 2016.

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PARÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Poder Judiciário (Ed.). Desembargador


Agnano de Moura Monteiro Lopes: Homenagem Póstuma. Belém: Tjpa, 2001. (Perfil dos
Magistrados do TJPA).
PARÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Poder Judiciário. TJ-PA: Primeiro a ter um
negro presidente. 2014. Disponível em:
<http://www.tjpa.jus.br/PortalExterno/imprensa/noticias/Informes/955-TJ-PA---PRIMEIRO-
A-TER-UM-NEGRO-PRESIDENTE.xhtml>. Acesso em: 21 abr. 2016.
PARÁ. Tjpa. Poder Judiciário. Museu do TJ fica em Parauapebas até dia 7. 2014. Disponível
em: <http://www.tjpa.jus.br/PortalExterno/imprensa/noticias/Informes/1697-Museu-do-TJ-
fica-em-Parauapebas-ate-dia-7.xhtml>. Acesso em: 22 abr. 2016.

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INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DO AMAZONAS: CEM ANOS DE


PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO.

KELLY CRISTINE OLIVEIRA DO NASCIMENTO*

Introdução
Desde a pré-história o homem sente a necessidade de registrar informações, a cerca de
dez mil anos atrás esses registros eram feitos pelos nossos ancestrais através de desenhos (as
chamadas pinturas rupestres), deixadas em cavernas ou superfície rochosas; essas
representações poderiam ser do cotidiano, da caça, rituais, do nascimento de uma criança, ou
até mesmo de coisas simples como a própria alimentação diária.
Essas representações artísticas, chamadas também de registros da informação,
deixadas por nossos ancestrais, possibilitou que nos dias de hoje pudéssemos ter acesso a
histórias que assim como muitas outras dão base para toda uma sociedade, histórias essas que
jamais poderiam ser conhecidas atualmente, se tivessem sido registras. Nos dias atuais o
registro da memória e da história se dá por meio de documentos gerados pelas atividades
desenvolvidas por determinada organização, pessoa ou família. O que seria da sociedade,
hoje, sem seus documentos? Os documentos são a essência de uma organização, “A memória
de uma sociedade, é uma ponte no tempo.” (DURANTI e THIBODEAU,2008)
Desta maneira, o presente artigo pretende colocar em evidencia a importância do
patrimônio histórico para a sociedade, destacando o trabalho do Instituto geográfico e
histórico do Amazonas como fonte de acesso a informação. O Instituto Geográfico e Histórico
do Amazonas é uma das formas de manter viva nossa história, e tem como objetivo ajudar a
preservar, compreender e consolidar a própria concepção histórica das diversas identidades na
formação da Amazônia, entretanto mesmo com seus 100 anos de existência e ação, o mesmo
ainda é pouco conhecido pela sociedade amazonense.
Sendo assim, tal projeto de pesquisa, busca ajudar na difusão sobre a importância do
Instituto como fonte de conhecimento, através da organização dos registros da sua trajetória
baseada nos métodos de história oral, dando voz aos colaboradores, funcionários, e a diretoria
do IGHA, na tentativa de realizar uma dupla reflexão, de um lado observar que concepções
que os mesmos têm a respeito da importância do Instituto, assim como observar tais
personagens como agentes ativos do IHGA.
Objetivos:

*
Universidade Federal do Amazonas (UFAM), graduanda em Arquivologia.

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Geral: Criar uma memória institucional do IGHA através das falas dos seus ex-diretores,
memória esta que irá, não apenas, moldar o próprio entendimento da missão e ações do IGHA
dentro desses cem anos, mas também possibilitar moldar e planejar as ações futuras do IGHA
enquanto instituição de memória das sociedades amazônicas, buscando assim consolidar sua
representatividade junto da sociedade; Específico: (1) Pesquisar acerca da história do IGHA
com intuito de conhecer e contextualizar suas atividades e seus atores sociais ao longo da
história; (2) pesquisar e listar os nomes dos ex-servidores do IGHA, assim como seus
respectivos contatos atuais e elaborar uma biografia de cada um dos diretores com objetivo de
organizar e preparar melhor as entrevistas; (3) realizar as entrevistas aos antigos diretores do
IGHA e analisar os dados com objetivo de criar a memória institucional do IGHA.
A metodologia proposta pelo presente trabalho busca desenvolver uma reflexarão
através de entrevistas orais feitas aos funcionários do IGHA, abordando assuntos como: a
importância de se preservar o patrimônio histórico, como o Instituto vem trabalhando para
que a sociedade tenha acesso as informações contidas nos documentos que estão sobre a
guarda do Instituto e como essas informações podem influenciar o saber cultural da sociedade
em geral e estudiosos da área que procuram o IGHA como fonte de acesso a informação. As
entrevistas foram feitas na própria sede do IGHA, em dias alternados da semana.
Por meio das entrevistas é possível trocar experiências individuas que compõem a
narrativa do sujeito, tornando o diálogo dinâmico e subjetivo, como aponta Mercedes
Villanova:
A entrevista significa duas pessoas que estão se olhando. E é nesse olhar-se um ao
outro que a fonte oral se justifica, porque constitui um processo de aprendizado. Não
estamos estudando fontes; estamos conversando com pessoas que buscam diferentes
conhecimentos. E é nessa síntese nova que elaboramos através do diálogo, estamos
convencidos, e vivemos essa experiência, que vamos mudar uns aos outros.
(VILLANOVA, 1994:47)

Desta maneira podemos conhecer o Instituto através de olhares, falas e experiência dos
indivíduos que fazem parte da história da criação do IGHA e do trabalho diário realizado por
cada um deles.

Os Institutos regionais: guardiões da memória e do patrimônio162


O Patrimônio histórico não é apenas uma questão pública, mas da sociedade como um
todo, são memórias que pertencem a todos nós, fazem parte da nossa história, seja direta ou
indiretamente. É preciso que haja uma conscientização em relação e importância do
162
Revista Brasileira de História. Print Version ISSN 0102-0188 on- line version ISSN 1806-9347
http://dx.doi.org/10,1590/S0102-0188201000100004
260
Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

Patrimônio Histórico, sua guarda e preservação.


Patrimônio histórico é conceituado como:
O conjunto de bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de
interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil,
quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou
artístico sendo os bens “de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. (CONSTITUIÇÃO
FEDERAL, 1998, Artigo 216).

Foi pensando na guarda, na preservação e na difusão da história que os Institutos


Históricos e Geográficos foram criados; atualmente são 23 Institutos estaduais e 52
municipais. Ambos com o objetivo de proporcionar aos seus usuários, sejam eles, professores,
pesquisadores, colecionadores, e/ou sociedade em geral, o acesso as informações. Os
Institutos se preocupam não somente com o acesso a informação, mas também em se
manterem envolvidos com a sociedade, promovendo palestras, minicursos, exposições,
buscando inovar seus acervos, de moda a não permitir que se tornem IHGS engessados, como
se tivessem parado no tempo.
Infelizmente sabemos que culturalmente falando as pessoas não buscam conhecer a
fundo a história de como tudo começou, quem foram os principais envolvidos na história do
Brasil, e como essas informações são relevantes nos dias de hoje; Não é de praxe que as
pessoas escolham lugares como museus, teatros, bibliotecas como roteiro para passeio, mas
todos esses órgãos de utilidade pública estão aí para oferecer um arsenal de informações,
curiosidades e histórias surpreendentes.
Foi em 1838 no Rio de Janeiro, que o primeiro Instituto Histórico e Geográfico do
Brasil foi fundado, único expoente da produção do saber histórico. Seus fundadores foram:
Marechal Raimundo José da Cunha Matos e cônego Januário da Cunha Barbosa. Imagine só a
importância e responsabilidade que o IHGB possuía, o instituto representava toda uma nação.
Embora criado por iniciativa da sociedade auxiliadora da Indústria Nacional, o Instituto
Histórico organiza-se administrativamente independente daquela instituição. Contanto com
cinquenta membros ordinários (25 na seção de História e 25 na seção de Geografia), um
número ilimitado de sócios correspondentes nacionais e estrangeiros, além de sócios de honra.
Antes da maioria dos institutos históricos e geográficos serem criados, não havia
institutos destinados de guardar e preservação do conhecimento e a história das cidades e
estados, o IHGB foi o primeiro no Brasil a lutar pela guarda e preservação do patrimônio
cultural. Com 177 anos de idade, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro é caracterizado
pela realização de uma série de atividades que se relacionem tanto com os setores históricos,
261
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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
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como também culturais e cívicos do nosso país.


Com o passar dos anos, ele reuniu um grande acervo, repleto de dados museológicos,
dados de arquivo e bibliográficos, dados cartográficos, iconográficos e hemerográficos. A
disposição de tais informações é para todo o público, sendo conferidos principalmente entre
exposições, cursos, congressos e demais conferências que são não só organizadas como
também realizadas pela entidade, anualmente.

O Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA)


Para abordar a história da fundação do Instituto, é preciso fazer um breve esboço do
período da crise da borracha amazônica, já que o IGHA nasceu em meio à euforia da mesma.
A crise da borracha Amazônica teve seu início nas últimas décadas do século XIX, quando
foram retiradas, da Amazônia, sementes de seringueiras que iriam constituir uma grande
plantação no continente asiático, o que acarretaria, anos mais tarde, uma desvalorização da
borracha no mercado mundial, diminuição da arrecadação de impostos nos Estados e
Territórios da Amazônia e uma desestruturação da organização especial da produção de
borracha. Contudo, isso só ocorreria na primeira década do século xx.163 Era o fim do domínio
da exportação do produto dos seringais naturais da Amazônia (quase que exclusivamente
gerada no Amazonas), deflagrando o início de uma lenta agonia econômica para a região. O
desempenho do comércio manauara tornou-se crítico e as importações de artigos de luxo e
supérfluos caíram rapidamente. Manaus, abandonada por aqueles que podiam partir,
mergulhou em profundo marasmo. Os edifícios e os diferentes serviços públicos entraram em
estado de abandono.
Foi na aurora do século XX, que o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas foi
fundado, mais precisamente em 25 de março de 1917. Ainda em meio a euforia da crise da
borracha, seu fundador foi Bernardo Ramos, que juntamente com seus sócios luram para ter
um lugar onde pudessem guardar o acervo da história regional. A primeira diretoria do IGHA
se deu da seguinte maneira: como primeiro presidente: Bernardo de Azevedo da Silva Ramos,
nascido em Manaus, 13 de novembro de 1858, e falecido no Rio de Janeiro, 5 de
fevereiro de 1931. Fundador e primeiro presidente do Instituto, além de eminente arqueólogo,
egiptólogo e numismata. Bernardo foi funcionário dos correios e participou da comissão de
limites Brasil- Venezuela, chefiada pelo Barão de Parima, em 1879. Ajudou a fundar o Clube

163
OLIVEIRA NETO, Thiago; NOGUEIRA, Ricardo Jose Batista. A cidade de Manaus e a crise da borracha:
uma breve análise histórica. Estação Científica (UNIFAP), Macapá, v. 6, n. 3, p. 09-27, 2016.

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Republicano do Amazonas, um dos primeiros a instalar-se no Brasil, que lançou um


Manifesto contra o império, durante a visita do Conde D’Eu a Manaus. 1°Secretário: Agnello
Bittencourt, nascido em Manaus,14 de dezembro de 1876 e falecido no Rio de Janeiro,19 de
julho de 1975, foi um geógrafo, administrador público e historiador brasileiro e membro da
Academia Amazonense de Letras, publicou diversos livros de história e geografia do
Amazonas, além de dezenas de artigos científicos, publicados em várias revistas brasileiras de
ciência e cultura. 2º Secretário: Henrique Rubim, e como Orador: Vivaldo Palma Lima,
nascido em Salvador, 10 de abril de 1877 e falecido em 23 de novembro de 1949, foi
um médico, advogado, jornalista e político brasileiro, faleceu no exercício do mandato
de deputado federal pelo estado do Amazonas, aos 72 anos de idade. Tesoureiro: Antônio
Clemente Ribeiro Bittencourt, nascido em Belém,23 de novembro de1853, falecido em
Manaus, 3 de março de 1926, foi um político brasileiro e maçom, um dos signatários da
primeira constituição do estado do Amazonas, prefeito de Manaus em 1891, e governador do
estado do Amazonas, de 23 de julho de 1908 a 1 de janeiro de 1913. Além dos membros
citados anteriormente tiveram vários outros envolvidos com a criação e instalação do
IGHA.164
O IGHA é a instituição cultural mais antiga do Amazonas, seu acervo, matriz
iniludível para a historiografia do Estado do Amazonas é um dos mais completos do país, com
sua preciosa biblioteca, as coleções dos jornais e documentos Engloba além de estudos
amazônicos, Geografia, História, Arqueologia, Sociologia, Antropologia Cultural, Linguística
e Ciências correlatas; além de possuir uma hemeroteca dos jornais regionais, peças indígenas
arqueológicas e atuais, alguns quadros e moveis antigos, uma boa mapoteca, muitas
fotografias e documentos como atas, cartas com mensagens ao governador, mensagens a
câmara municipal, mensagens ao congresso; e conta também com uma biblioteca de obras
antigas e modernas.
A sede do IGHA passou por restauro na década de 1980, durante a presidência do
consócio Robério dos Santos Pereira Braga, e adequada aos serviços que se dispunha a
prestar. Foi restabelecido o Museu Crisanto Jobim, disposto em duas seções: uma composta
de peças da etnografia amazônica, que pertencera ao Museu Rondon, criação e manutenção do
próprio homenageado. O acervo deste museu foi doado ao IGHA pelo interventor federal,
capitão Nelson de Mello, na década de 1930. A outra seção expõe objetos e peças de diversas
procedências, entre estas, a espada do comandante Plácido de Castro, que rememora a
164
REVISTA DO IGHA, Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, 97° ano da sua fundação – FASE IV-
n° 04- ano 2014.
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Revolução Acreana (1900-04). Também nesta gestão, foi organizada a biblioteca, que recebeu
o nome do falecido sócio efetivo Walmiki Ramayana de Paula e Souza de Chevalier, nascido
em Manaus, era médico formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, também coronel da
Polícia Militar do Estado, mas que se notabilizou pelos escritos e debates jornalísticos.
A origem desse espaço cultural está vinculada ao Museu Rondon, criado e organizado
pelo pesquisador Crisanto Jobim. Em 25 de outubro de 1926, com o objetivo de adquirir essa
coleção particular, a Intendência Municipal concedeu ao Instituto Geográfico e Histórico do
Amazonas - IGHA um auxílio financeiro no valor de cinco contos de réis. Contudo, a compra
do antigo Museu Rondon foi efetivada somente em 1934, quando o Governo do Estado o
adquiriu e o repassou ao Igha, à época, dirigido por Agnello Bittencourt. Nesse período, o
IGHA já possuía algumas peças de referências históricas, etnográficas e arqueológicas sobre a
região, reunidas desde a fundação do instituto, em 1917. Com a incorporação da coleção do
Museu Rondon, foram adquiridos novos mostruários que serviram para a exposição das peças,
na sede própria do IGHA, na Rua Bernardo Ramos, n. 117, Centro – local em que se encontra
até hoje.
Em 1976, o museu foi reorganizado pelo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas
Sociais, atual Fundação Joaquim Nabuco, em conjunto com a Fundação Universidade do
Amazonas, atual Universidade Federal do Amazonas. Após esse trabalho de recuperação, sua
reabertura foi realizada no dia 7 de setembro daquele mesmo ano.165
Em 2017 o Instituto completou 100 anos, mostrando grande vigor físico. são décadas
trabalhando arduamente, enfrentando problemas, passando por crises, com único objetivo, não
deixar morrer a nossa história, cuidando e guardando para que essa geração e a vindoura tenha
acesso a esse arsenal de informações que o IGHA possui.
Poder voltar ao tempo é facilmente possível, basta passear pelos salões do museu e se
maravilhar com as gravuras feitas dos índios, de seu trabalho, suas vidas; artesanatos feitos
por tribos que hoje nem existem mais, objetos usados pelos seringueiros na produção do látex,
vários outros objetos encontrados em bairros de Manaus que fizeram parte de um povo, uma
época, uma história que para muitos é desconhecida.
Atualmente a direção é composta por:

Quadro 01: Diretoria do Centenário – Eleita para o biênio 2017-1018.

165
CEDPHA-AM. Manaus – Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, site:
http://www.infopatrimonio.org

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DIRETORIA ATUAL
Presidente: Marilene Corrêa da Silva Freitas
1°Vice-presidente: Francisco Gomes da Silva
2º Vice-presidente: Humberto Figliuolo
Orador: Robério dos Santos Pereira Braga
Orador Adjunto: Max Carpentier Luís da Costa
Secretário-Geral: José Geraldo Xavier dos Anjos
Secretário Adjunto: Abrahim Sena Baze
Tesoureiro (a): Edineia Mascarenhas Dias
Tesoureiro adjunto: Paulo Pinto
Conselho Fiscal titulares: Almir Diniz de Carvalho, Marita Socorro Monteiro, Arlindo
Augusto dos Santos Porto
Conselho Fiscal Suplentes: José Roberto Tadros, Pedro Lucas Lindoso, Luís Carlos Bonates
Fonte: REVISTA DO IGHA-Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, 98° ano da fundação-fase IV-n° 05-
ano II.

A atual diretoria do IGHA tem vários Projetos como: Campo de Estágio no IGHA;
Projeto de Seminários e Estudos Temáticos com o eixo Conhecimento e Memória; apoio às
Atividades de Manutenção do Patrimônio físico no que diz respeito à conservação e
restauração do edifício-sede e outros imóveis pertencentes ao IGHA; apoio ao Projeto de
Digitalização do Acervo Documental e Biblioteca do IGHA no âmbito da ação da Biblioteca
Virtual do Governo do Amazonas; atualização do site e criação do Portal de Acesso aos
serviços do IGHA e ao Projeto Funcionamento do Museu Etnográfico Crisanto Jobim e à
manutenção de suas exposições permanentes e temporárias. Desde sua criação do instituto a
maior preocupara da direção sempre foi a preservação da história do Amazonas, dando acesso
a todos que tiverem o desejo de conhecer um pouco mais das nossas raízes.

Conclusão
Dado o exposto, podemos entender a importância e um pouco do trabalho que os
Institutos Geográficos e Históricos, desenvolvem e como contribuem para que a história do
Brasil como um todo não seja esquecida e apagada ao longo dos anos. Esses Institutos são
verdadeiros guardiões da história, do patrimônio histórico e das informações contidas nos
documentos. O Trabalho e objetivo desses Institutos nada mais é que manter vivo os

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elementos de determinado momento da história, trabalho este que exige dedicação e cuidados
como: preservar e guardar de forma segura as informações, documentos, móveis, fotos,
mapas, livros e outros, dar acesso à informação a sociedade e estudiosos, fazer atividades que
contribuam para o desenvolvimento cultural.

Referência
IHGB- História do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Disponível em:
https://www.ihgb.org.br.
PORTAL DA AMAZÔNIA. Disponível em: http://portalamazonia.com
REVISTA DO IGHA- Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, 97° ano da fundação,
fase IV, n° 04 - ano 2014. Out/Nov/Dez.
REVISTA DO IGHA- Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, 98° ano da fundação,
fase IV, n° 05 - ano 2015. Jan/Fev/Mar.
VILLANOVA, Mercedes. Pensar a subjetividade: estatística e fontes orais. In: MORAES,
Marieta (Org.).História Oral. Rio de Janeiro: Diadorim/FINEP, 1994, p.45-74.

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RESTAURAÇÃO DO PATRIMÔNIO DO AMAZONAS: O CASO DOS LIVROS DE


REGISTRO CIVIS DO INSTITUTO DE IDENTIFICAÇÃO “ADERSON
CONCEIÇÃO DE MELO”.

KATHYUSCIA CASTILHO CORREA*

Introdução
A constituição de 1988 no Art. 216 refere se ao documento como um dos elementos
que integram o patrimônio cultural brasileiro:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

É percebido que os documentos constituem a memória da sociedade e também o


patrimônio cultural brasileiro, o qual é composto por expressões materiais e imateriais. A
administração pública assim como a comunidade tem a responsabilidade de proteger o
patrimônio cultural, pois a “memória de todos é registrada e perpetuada em meios aos bens
culturais, refletindo o conjunto de indivíduos da nação” (MERLO; KONRAD, 2015:6).
Para Portela 2012 o conjunto documental tornar-se um patrimônio documental, deve
ter algumas características como: cumprir sua função imediata e a razão para qual foi criada,
já ter passado pelo arquivo corrente, pela tabela de temporalidade e ter sido recolhido para o
arquivo permanente pelo seu valor informativo.
Os documentos devem cumprir sua função social, administrativa, jurídica, técnica,
científica, cultural, artística e histórica, dada a sua importância é fundamental que eles sejam
preservados, organizados e acessados para se cumprir essa função tem a preocupação da
preservação desde sua criação até a avaliação onde será recolhido ou eliminado.
Para os documentos cumprirem sua finalidade é preciso preservar seu significado e
valor desde sua criação, assim ele irá desempenhar seu papel no desenvolvimento da
sociedade e contribuindo para proteção da memória individual e coletiva, promovendo a
democracia e sustentando os direitos dos cidadãos.

*
Universidade Federal do Amazonas – UFAM, Discente em Arquivologia.
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Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
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Restauração do Patrimônio do Amazonas: o Caso dos Livros de Registro


CivisdoInstituto de Identificação “Aderson Conceição de Melo”

Os arquivos resguardam a memória da sociedade, são constituídos por um patrimônio


único e insubstituível, pois registram as ações, memórias e decisões que podem ser
transmitidas para outras gerações.
Quando o homem recupera sua essência encontra se o processo de sua existência,
soluciona sua dependência entre história e consciência, e memória e consciência, pois é a
partir dos homens que se faz a história e a memória. De acordo com Oliveira “coletiva ou
individual, a memória é sempre histórica e, por isso, circunscrita ao tempo e espaço humanos”
(2002: 19).
Um dos processos sociais construídos pelo homem é a memória no que diz a respeito
dos comportamentos e mentalidades coletivas, onde a lembrança individual está ao encontro
da inserção social e histórica de cada individuo. A partir da memória compreendemos o
passado, o presente e o futuro, agindo no que foi vivido, atuando em torno de lembranças no
cotidiano do individuo ou grupo, fundamentando sua identidade social.
A memória
É vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentindo, ela está em permanente
evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas
deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de
longas latências e de repentinas revitalizações (NORA, 1981:6).

A memória não se restringe apenas ao ato de recordar, mas revela a base da existência
humana e as experiências de vida incorporadas no presente, atribuindo significados, sendo a
memória um processo em frequente construção.
Para Le Goff a memória se confunde com a história, no mundo contemporâneo a
história estaria sobre a pressão da memória coletiva e procura os criadores e dominantes da
memória coletiva. O estado, os meios sociais, os políticos, essas novas concepções
desenvolve uma nova forma de historiografia, a história da história, começa a fazer o estudo
sobre a manipulação da memória coletiva de um fenômeno histórico. Memória é “a
propriedade de conservar certas informações, propriedade que se refere a um conjunto de
funções psíquicas que permitem ao individuo atualizar impressões ou informações passadas,
ou reinterpretadas como passadas” (LE GOFF, 1990:266).
A memoria é o suporte da consciência tanto individual como coletiva, ela reordena e
reconstrói lembranças, tornando a dinâmico, renovável e dialética. E a partir da memória se

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constrói a identidade de uma comunidade, pois o ato de recordar está inserido na vida social
humana, o qual possui cultura, experiências, símbolos, crenças e valores.
A história não se limita aos acontecimentos descritos na memória, tanto a história
quanto a memória possuem processos bidimensionais, não há história sem memória e
memória sem a essência da história, elas encontram sua base no homem, que precisa se
reconhecer como um ser histórico e produtor da história.
A história não faz nada - em si mesma -, ‘não possui uma riqueza imensa’, ‘não dá
combate’, é o homem, o homem real e vivo que faz tudo isso e realiza combates;
estejamos seguros de que não é a história que serve do homem como um meio para
atingir-como se fosse um personagem particular-seus próprios fins; ela não é mais
que a atividade do homem que persegue os seus objetivos (MARX, 1984 apud
OLIVEIRA, 2002:17).

A memória e história são distintas e possuem espaços de saber diferenciados, a


primeira não se limita a memorização e lembranças, mas se refere ao passado presente e
futuro. A memória é um processo ativo, dinâmico, complexo e interativo.
A memória é
Por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história,
ao contrario, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o
universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no
objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações
das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo. (NORA,
1981:6)

A memória não mais como um espaço inerte, mas um território vivo, politico é
simbólico onde se encontra lembranças e esquecimentos do ser social de forma dinâmica e
criativa, ela institui identidades e garante a permanência dos grupos.
A memória é uma atividade que ao mesmo tempo cria e continua a exercer sobre o
território a atividade de recuperar o que foi esquecido. Ela apresenta várias aberturas para a
história, possibilita desde a própria historiografia, onde se possa repensar os pressupostos
fundamentais das teorias até as probabilidades do uso da memória individual e coletiva como
fontes históricas.
Sendo a memória um resgate, preservação, recuperação do passado, tendo o arquivo
como um lugar de guarda, de transmissão de acontecimentos vividos é um meio de difundi-la.
Existe a necessidade de uma memória registrada, que não é estática, mas um
pensamento de uma organização ou individuo, o arquivista deve ter a responsabilidade de
conservar a memória custodiada pelo arquivo. “Os arquivos são práticas de identidade,
memória viva, processo cultural indispensável ao funcionamento no presente e no futuro”
(MATHIEU; CARDIN, 1990 apud JARDIM, 1995:6).

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O arquivo é um lugar da memória material, que deve ser simbólico, cristalizando e


transmitindo a lembrança, uma interação entre a memória e a história, na falta de intenção da
memória os lugares de memórias serão considerados lugares da história.
Assim se vê a importância do arquivo como um lugar de memória, e os arquivos
públicos são considerados como lugares de um determinado tipo de memória, consequente
das relações entre o estado e a sociedade.
Os arquivos é um produto essencial para o funcionamento de uma sociedade e suas
diversas complexidades, para produção do saber, pois quanto mais é desenvolvida uma
sociedade se observa que as atividades humanas são mais diversificadas, independentes e
numerosas.
A finalidade e o papel do arquivo, segundo a autora Bellotto é quando se “ocupam no
processo social, cultural e administrativo de um país. Nessa direção, cabe-lhes, em
corresponsabilidade, a informação, a divulgação científica, tecnológica e social, assim como o
testemunho judiciário e histórico” (2014:30-31).
Os homens veem o documento como um ato de assegurar e registrar seus
relacionamentos, aumentando a produção e uso dos documentos, o homem faz o uso do
documento como prova.
O documento segundo Shellenberg é:
Todos os livros, papéis, mapas, fotografias ou outras espécies documentárias,
independentemente de sua apresentação física ou características, expedidos ou
recebidos por qualquer entidade pública ou privada no exercício de sues encargos
legais ou em função das suas atividades e preservados ou depositados para a
preservação por aquela entidades ou por seus legítimos sucessores como prova de
suas funções, suas políticas, decisões, métodos, operações ou outras atividades ou
me virtude do valor informativo dos dados neles contidos” (2000:.41)

Enquanto o documento arquivístico é:


Um documento dito como pertencente à classe dos arquivos é aquele elaborado ou
usado no curso de uma transação administrativa ou executiva (pública ou privada)
da qual tomou parte; e subsequentemente preservado sob sua custódia e para sua
própria informação pela pessoa ou pessoas responsáveis por aquela transação e seus
legítimos sucessores. (RONDINELLI, 2011:150)

Podemos perceber que a definição de documento e documento arquivístico apresenta


no seu começo certa igualdade, pois é toda informação registrada independente de seu
formato ou suporte como prova, fatos, formas de pesquisa, etc., porém o documento
arquivístico possui organicidade garantindo a característica das atividades de uma instituição.
O arquivo e formado por manifestação e testemunhos da civilização humana, são
evidencias do passado, estas passam a ser nosso patrimônio, cujo é definido como um
conjunto de bens que pertence a um individuo ou a um grupo, sendo uma:
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Construção coletiva pertence a todos e todos os cidadãos, devem ter o direito e o


dever de preserva-lo, como possibilidade de resgate de sua identidade social (dentro
da comunidade de origem) e individual (frente a frente consigo mesmo no espelho
da alma) (PORTELLA, 2012 apud GARBINATTO, 2002, pag.19).

Os arquivos são instituições responsáveis pela preservação de todo o patrimônio


documental e informacional criado por uma sociedade, para Bellotto (2006) “o arquivo e sua
constituição, enquanto um lugar privilegiado do saber, que vai além de um suporte, de uma
estrutura formal, representa toda uma rede de informações contextualizadas”, essa rede de
informações remete se a cultura, ideologia cujo refletem o pensar e o saber das pessoas,
grupos sociais e dá própria instituição organização.
O patrimônio cultural “refere se sempre as manifestações e testemunhos significativos
da civilização humana.” (PORTELLA, 2012 apud MARILLAS, 2003:19). Refere se a
humanidade como seus aspectos que caracteriza cada povo, sociedade ou grupos ou nação,
seus aspectos da existência social e seu modo de vida, compreendendo elementos materiais e
imateriais, naturais e culturais, do passado e presente, onde um determinado grupo se
reconhece e constrói sua identidade. Hoje patrimônio cultural não se limita apenas em
monumentos artísticos de uma civilização, mas como um conjunto de bens culturais
relacionados à identidade coletiva de um povo.
O patrimônio cultural estabelece a construção, reconstrução e a manutenção da
identidade coletiva ou individual diante da vida cotidiana. Sendo a identidade uma
representação das relações entre o individuo e o grupo diante do cotidiano em conexão com
seu meio social, espaço, tempo e produção. O patrimônio cultural e a junção do passado e
presente de uma sociedade, na qual colabora para a construção de identidade e da sua história.
Patrimônio cultural é o “conjunto de bens tangíveis e intangíveis que refletem a
herança cultural de um povo, etnia ou grupo social, instituído um sentido de pertencimento”
(PORTELLA, 2012:20). O patrimônio cultural esta relacionado com a memória de um grupo,
ela é constituída por objetos, registros e produtos concretos que foram criados pelos homens
durante seu desenvolvimento reconhecidos como bens culturais.
Na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, afirma que os conjuntos
documentais fazem parte do patrimônio cultural, para Bellotto (2000 apud PORTELLA,
2012) patrimônio documental é “caudatário do patrimônio cultural, ou seja, pode ser
entendido como uma das linhas do patrimônio cultural, sendo bens culturais, tanto quanto os
demais”.
O patrimônio documental são os registros que descrevem os fatos, as informações e as
atividades de uma instituição pública ou privada, de pessoas ou família, constituindo algumas
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características como movíveis, feitos de símbolos, códigos, sons, imagens, criados a partir de
um processo documental e sua configuração se dá pelo conteúdo informativo e seu suporte
garantindo uma parte importante para a memória.
Os documentos que compõem o patrimônio documental devem ser preservados e
disponibilizados pelo seu valor de prova e testemunho, de acordo com a Organização das
Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) o patrimônio documental
representa boa parte do patrimônio cultural mundial sendo constituído pela memória coletiva,
que pode ser construída pelos documentos demonstrando a evolução dos pensamentos,
realizações e descobertas da sociedade.
Para os documentos cumprirem sua finalidade é preciso preservar seu significado e
valor desde sua criação, assim ele irá desempenhar seu papel no desenvolvimento da
sociedade e contribuindo para proteção da memória individual e coletiva, promovendo a
democracia e sustentando os direitos dos cidadãos.

Intervenção nos Livros de Registro Civil


A formulação do conceito de preservação segundo Beck surgiu pela primeira vez no
Traité de Documentatión (1934) de Paul Ptlet, mas é consolidado pelo documento da
UNESCO Memória do Mundo: diretrizes para a salvaguarda do Patrimônio Documental
Mundial publicado em 2002 onde “o objetivo da preservação é o acesso permanente”
(MEMÓRIA DO MUNDO, 2002, apud, BECK, 2006:1). Este programa propõe uma
aproximação entre a gestão da informação e a preservação documental, definindo seu
conceito, as atividades coordenadas à salvaguarda e a integridade dos acervos documentais
para o acesso. “A preservação é a soma das medidas necessárias para garantir a acessibilidade
permanente do patrimônio documental” (MEMÓRIA DO MUNDO, 2002, apud BECK,
2006:7).
Para Cassares preservação é “um conjunto de medidas e estratégias de ordem
administrativa, política e operacional que contribuem direta ou indiretamente para a
preservação da integridade dos materiais.” (2000:12)
A politica de preservação requer tomada de decisões de pessoas e instituições
responsáveis pela definição de quais bens materiais culturais devem ser preservados “a quem
interessa esses bens, qual o sentindo deles para a cultura ou a história da humanidade.”
(FRONER;SOUZA,200:5)

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Para se entender a preservação “é fundamental compreender que o sentido da


preservação perpassa questões profundas, subordinadas aos conceitos de valor, poder político
e econômico.” (FRONER; SOUZA, 2008:6). A preservação pressupõe um conjunto de
técnica referente à segurança da obra onde a finalidade é evitar que as ações externas não
prejudique a integridade do suporte. “A preservação é um termo amplo. Ela engloba
conservação, restauração e o que se refere à gestão de uma política de manutenção de um
acervo” (BARROS, 2009:21)
Em 1980 ocorreram mudanças da mentalidade e uma nova visão na politica da
preservação, foi Gael de Guichen que definiu uma nova mentalidade da preservação para
conservação preventiva, este novo conceito ‘está associado à visão de que a preservação só é
eficiente quando envolve ações planejadas para a salvaguarda dos acervos em seu
conjunto’(BECK, 2006:2) com isso ocorre uma mudança no objeto da preservação antes era o
artefato histórico, com a mudança o objeto passa a ser os conjuntos informacionais.
Conservação preventiva
Requer uma mudança profunda de mentalidade. Onde ontem se viam objetos, hoje
devem ser vistas coleções. Onde se viam depósitos devem ser vistos edifícios. Onde
se pensava em dias, agora se deve pensar em anos. Onde se via uma pessoa, devem
ser vistas equipes. Onde se via uma despesa de curto prazo, se deve ver um
investimento de longo prazo. Onde se mostram ações cotidianas devem ser vistos
programas e prioridades. A conservação preventiva significa assegurar a
sobrevivência das coleções (GUICHEN, 1995, apud BECK, 2006, p.2)

A conservação preventiva “abarca procedimentos relacionados à adequação das


condições ambientais, físico-químicas, sob as quais uma coleção se encontra.” (FRONER;
SOUZA, 2008:9).
Para Beck essas mudanças ocorreram em momentos distintos quando é verificada a
fragilidade do suporte e questões essenciais quanto ao acesso dos documentos “em pouco
tempo se tornavam quebradiços, advindo a consequente necessidade de salvar grandes massas
de informação que corriam o risco de desaparecer” (2006:3).
Conservação “é um conjunto de ações estabilizadoras que visam desacelerar o
processo de degradação de documentos ou objetos, por meio de controle ambiental e de
tratamentos específicos (higienização, reparos e acondicionamento).” (CASSARES, 2000:12).
A finalidade da conservação é
Prolongar a vida útil de determinadas obras ou artefatos com o intuito de preservar
suas características originais, auxiliando assim nos processos de pesquisa, exposição
e documentação, ao levar em consideração alguns fatores primordiais: o caráter
insubstituível da obra de arte ou artefato; (FRONER; SOUZA, 2008:3).

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Cabe lembrar que todo procedimento feito no âmbito da preservação é seletivo e


criterioso, devem considerar o interesse da sociedade nas diversas esferas sociais, escolhidas a
parti de critérios específicos que seu significado apresente o importante valor de memória,
identidade e história.
Todo procedimento de restauração é considerado “uma ação de conservação”
(FRONER; SOUZA, 2008: 10) a qual esta baseada em uma intervenção direta a estrutura do
suporte. É restauração “qualquer intervenção destinada a manter em funcionamento, a facilitar
a leitura e a transmitir integralmente ao futuro as obras e os objetos definidos nos artigos
precedentes” (IPHAN, 1975:2).
Umas das exigências fundamentais da restauração é respeitar e salvaguardar a
autenticidade dos elementos construtivos. “Este principio deve sempre guiar e condicionar a
escolha das operações” (IPHAN, 1975:9).
A ação de restauração vai desde a limpeza simples até os procedimentos químicos,
alterações no seu suporte como preenchimentos com polpa de papel japonês, enxerto,
reintegração, reconstituições das partes faltantes, aplicações de vernizes, entre outros
procedimentos.
Restauração “é um conjunto de medidas que objetivam a estabilização ou reversão de
danos físicos ou químicos adquiridos pelo documento ao longo do tempo e do uso, intervindo
de modo a não comprometer sua integridade e seu caráter histórico.” (CASSARES, 2000:12)
Para realizar o processo de restauração é necessário suceder estudos preliminares
(documentação extensiva, análise histórica e de uso, análise morfológica e sobre as técnicas
construtivas, avaliação do estado de conservação, proposta de tratamento baseada nessas
informações prévias), ao verificar a coleta das informações iniciais se podem elaborar uma
proposta de tratamento para a intervenção que é a restauração.
Na proposta de restauro deve conter os materiais a serem usados, os métodos e
técnicas a serem utilizados, as pessoas envolvidas e o tempo necessário para realizar o
processo além de conhecer os conceitos fundamentais aos procedimentos de intervenção “uma
intervenção de restauro deve ser vista como uma intervenção cirúrgica e o objeto, como
paciente.” (FRONER; SOUZA, 2008:8) deve estudar que tipo de procedimento será realizado
no objeto, não se pode fazer uma intervenção irresponsável, de qualquer forma sem respeitar a
estrutura e sua originalidade.
Qualquer intervenção que vise estacionar a degradação e restituir as características
originais do objeto-seja estética ou de resistência-implica na introdução de novos
materiais ou na utilização de métodos mais drásticos, submetendo-o a uma serie de

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variações e mudanças que interferem em seu comportamento físico-estrutural e até


mesmo químico. (FRONER; SOUZA, 2008:9)

Para realizar o processo de intervenção é preciso observar esses princípios e analisar


se o procedimento irá ser eficaz quanto à preservação do suporte assim uma “ação
interventiva-restauração-determina câmbios profundos na estrutura da matéria, sendo
justificada apenas quando o objeto for retornar para um local apropriado, planejado a partir de
parâmetros da conservação” (FRONER; SOUZA, 2008:9).
A restauração são procedimentos reversíveis que irão devolver ao objeto, na mediada
do possível os atributos perdidos ou danificados por ações externas, respeitando as
propriedades e técnicas do suporte utilizando materiais reversíveis para não agredir a
integridade e originalidade do objeto.
Garantir a condição original do objeto é uma questão essencial durante o processo de
intervenção de restauro ou conservação, pois muitos objetos estão com ‘vulnerabilidade
cultural’ devido ao tempo a ‘vulnerabilidade material em decorrência do seu uso e manuseio.
A finalidade deste artigo é mostrar o trabalho realizado pela equipe do Ateliê de
Conservação e Restauro de Obras de Arte e Papel que está vinculado ao Departamento de
Patrimônio Histórico e Arquitetônico pertencente à Secretaria de Cultura do Estado do
Amazonas (SEC), e as etapas do processo de restauro executado nos livros de registro civis
para que estas informações sejam preservadas em longo prazo e para que a sociedade possa
rememorar a história.
No processo de restauração deve haver a preocupação de utilizar obrigatoriamente
equipamento de proteção e segurança individual como luvas, máscaras, touca, jaleco e se
necessário óculos de proteção. Feito essa ação preventiva começa o procedimento de
restauração dos livros de registro civis. É iniciado o trabalho de restauro com a identificação
do livro preenchendo a ficha de diagnóstico fazendo uma analise inicial do suporte. É
necessário fotografar todo o suporte, capa (frente e verso), laterais (cortes, lombadas), folha
de rosto, as páginas (anverso e verso), pois é a partir das fotografias que podemos visualizar
com clareza a evolução do trabalho de restauração. Nesse momento ocorre a analise,
identificação e registro do suporte.
Durante a análise se preenche o diagnóstico com informações sobre a obra, por
exemplo, o titulo, autor, dimensões, etc. tipo de suporte, características gerais sobre a
informação informando se existe deterioração da encadernação e do suporte.
Após esta identificação é iniciado a limpeza mecânica dos cortes do livro, ainda
encadernado retirando a sujeira com uma trincha macia. “A higienização mecânica ou limpeza
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superficial é um método de limpeza, a seco, eficiente para remoção de sujidades superficiais


de documentos e objetos de arquivo, bibliotecas e museus.” (CARRASCO, s/d: 5) O próximo
procedimento foi numerar todas as páginas com lápis 6b no canto inferior direito e somente
no anverso da folha e depois a desmontagem do livro.
Foi realizado o teste de solubilidade da tinta para verificar se existira sua saída ou não,
neste caso a tinta apresentou- se solúvel descartando o procedimento de banho de
desacidificação das folhas.
A próxima etapa foi à higienização mecânica, folha por folha com uma trincha macia e
o bisturi, este utilizado para a retirada das sujidades como excrementos de insetos e pontos de
ferrugem.
Segundo Spinelle et al, higienização
Trata da eliminação mecânica de todas as sujidades que se encontre nos documentos
e dos agentes considerados agressores, tais como: os clipes oxidados ou não, os
excrementos de insetos, os grampos metálicos, os itens generalizados utilizados
como marcadores de páginas, as poeiras e, todos os elementos espúrios à estrutura
física dos documentos.(20011:4)

Após a higienização realizou se reparos e enxertos com papel japonês, os dois


procedimentos foram feitos devido o suporte apresentar rasgos e perdas em diversas áreas.
Reparos
São diminutas intervenções que podemos executar visando interromper um processo
de deterioração em andamento. Essas pequenas intervenções devem obedecer a
critérios rigorosos de ética e técnica e têm a função de melhorar o estado de
conservação dos documentos. (CASSARES, 200:33)

Em seguida ocorreu a planificação, a digitalização e a encadernação do livro.


A memória é o fundamento das identidades, pois ela possui fatos e bens que procuram
mostrar a trajetória do homem, independente do acontecimento possuir um valor histórico,
mas as recordações expõem os efeitos dos homens no seu cotidiano, sendo a identidade um
processo dinâmico apresenta vestígios do passado e questões do tempo presente.
Preservar informação relevante requer atualmente o envolvimento de equipes
multidisciplinares na seleção de preservação, no estabelecimento de prioridades com
base no valor informacional, na demanda de uso e na vulnerabilidade dos meios. A
partir destes dados podem ser definidas políticas que asseguram o acesso
continuado. A preservação deve ser uma questão de constante interlocução com as
equipes de gestão documental, ou desenvolvimento de coleções (BECK, 2006:4).

Diante disso se vê a importância da preservação e restauração dos livros já que estão


repletos de informações que nos remetem a memória, identidade e a uma produção
historiográfica.

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A restauração visa à salvaguarda dos bens culturais, por meio de ações técnicas de
caráter intervencionista nos documentos executando o trabalho de removibilidade dos danos
causados no suporte sejam, eles físicos ou químicos, desde modo restaurar é o processo de
recuperação do documento em suporte de papel.

Considerações Finais
O patrimônio cultural e documental estabelece a construção, reconstrução e a
manutenção da identidade coletiva ou individual diante da vida cotidiana. Sendo a identidade
uma representação das relações entre o individuo e o grupo diante do cotidiano em conexão
com seu meio social, espaço, tempo e produção. A memória é um resgate, preservação,
recuperação do passado, tendo o arquivo como um lugar de guarda, de transmissão de
acontecimentos vividos é um meio de difundi-la.
A relação de patrimônio cultura/pesquisa histórica “os documentos do arquivo são
[...], recursos culturais. Fazem parte do patrimônio cultural de uma comunidade, nação ou
povo” (BELLOTTO, 2014:308). Os documentos que já cumpriram sua função imediata foram
avaliados é considerado de valor permanente, devido seu valor informativo e testemunhal
passando a fazer parte do patrimônio documental, sendo uma construção social coletiva, de
identidade e memória de um povo.
A finalidade da restauração é resgatar a integridade do documento e garantir sua
preservação por um longo período, pois o documento é um produto da sociedade e a
informação um elemento básico para o desenvolvimento social e intelectual do ser humano. A
ação de preservação e restauração dos livros de registros civis demostram uma grande
importância para a cidade de Manaus, devido ao seu valor arquivístico, da história regional e
da memória para a população, é compreendido seu caráter social e cultural já que possui
conhecimento inestimável para a história, memória e para o patrimônio cultural e identidade
da sociedade manauara.
A restauração pode ser compreendida como um conjunto de esforços, com a finalidade
de prolongar ao máximo a vida útil do objeto por meio de intervenções diretas, controladas e
conscientes, preservando suas características originais e não se limitando apenas ao suporte,
mas também em ações no ambiente externo.
O resultado obtido dessas intervenções é garantir a preservação do suporte, já que
apresenta um valor histórico e cultural para o estado do Amazonas, podendo difundir seu
conteúdo na forma digital, auxiliando a pesquisa e a produção de conhecimento, e caso haja

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necessidade pode ocorrer o manuseio do livro na forma física sem perdas do suporte e da
informação.

Referências
BARROS, Gabriella da Silva Motta. Restauração de documentos com suporte em papel: um
estudo de caso no Centro de Documentação da Universidade de Brasília. Monografia
apresentada ao Departamento de Ciência e Documentação da Universidade de Brasília.
Brasília, 2009.
BECK, Ingrid. O ensino da preservação documental nos cursos de arquivologia e
biblioteconomia: perspectivas para formar um novo profissional. 2006. Dissertação
(Mestrado em ciência e informação)-Universidade Federal Fluminense/Instituto Brasileiro de
Informação em Ciência e Tecnologia, Rio de Janeiro, 2006.
BELLOTTO, H. L. Arquivo: estudo e reflexões. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
_______. Arquivos Permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
BRANDI Cesare. Teoria da restauração. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: texto
constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com alterações determinadas pelas
Emendas Constitucionais de Revisão nº 1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais nº 1/92 a
91/2016 e pelo Decreto Legislativo nº 186/2008. Diário Oficial [da] União. Brasília, DF, 5
out. 1998. Disponível em:
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Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

CLUBES E ASSOCIAÇÕES RECREATIVAS: ENTRE A SOCIABILIDADE E A


CRIMINALIZAÇÃO DE PRÁTICAS SOCIAIS EM MANAUS, 1890-1910.

KÍVIA MIRRANA DE SOUZA PEREIRA*

Era período republicano e a cidade de Manaus exibia sinais indeléveis que rumava
para um novo tempo. Graças à explosão gomífera, a partir de 1890 nota-se um investimento
econômico na região com o objetivo de construir uma cidade moderna, limpa, a frente de seu
tempo. Tal período, conhecido como “Belle Epoque”, caracterizou-se pelas grandes
mudanças urbanas e arquitetônicas, crescimento da população e introdução de elementos e
costumes europeus, “podendo-se fazer uma analogia desta fase de mudanças com a montagem
de uma vitrine” (MESQUITA, 2006, p. 142). Essa comparação se deu justamente para
explicar as modificações culturais, políticas e econômicas que Manaus estava passando, onde
a “cultura local despia-se das tradições de origem indígena e vestia-se com características
ocidentais” (MESQUITA, 2006, p. 145).
Entretanto, essa cidade idealizada para ser um modelo em civilidade, não pode ser lida
e interpretada somente por sua forma estrutural, como uma casa de brinquedo. No bojo dessas
transformações, novos hábitos, costumes, normas, modelos e relações terciam as vivências
dos cidadãos com o espaço citadino. As questões que perpassam o cotidiano da cidade e de
seus habitantes envolvem duas reflexões: a primeira sobre as imposições feitas a ela pelo viés
econômico e estrangeiro e a segunda, sobre a ação e reação de seus cidadãos, pois Pro
a modernidade em Manaus não só substitui a madeira pelo ferro, o barro pela
alvenaria, a palha pela telha, o igarapé pela avenida, a carroça pelos bondes
elétricos, a iluminação a gás pela luz elétrica, mas também transforma a paisagem
natural, destrói antigos costumes e tradições, civiliza índios transformando-os em
trabalhadores urbanos, dinamiza o comércio, expande a navegação, desenvolve a
imigração. É a modernidade que chega ao porto de lenha, com sua visão
transformadora, arrasando com o atrasado e feio, e construindo o moderno e o belo.
(DIAS, 2007, p. 29)

Nessa dinâmica, a elite local e do Estado estruturaram a cidade de Manaus para servir
os gostos e padrões estrangeiros, buscando um reconhecimento cultural, social e econômico.
Avenidas, praças, bares, teatros, estabelecimentos foram criados para dar à cidade uma
aparência moderna. Além de servir o capital nacional e estrangeiro por meio de serviços e
mão-de-obra ao capital, os seus cidadãos viviam, divertiam-se e compartilhavam experiências

*
Discente no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) com o
projeto “Sociabilidade e Identidades: Clubes, Associações e Sociedades Recreativas em Manaus, 1890-1915”.
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Capes. E-mail:
mirranakivia@gmail.com.
280
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sociais nos mais variados níveis e lugares. Seja no trabalho, no porto, na fábrica, na rua, na
igreja, nos bares ou praças, as relações sociais ligavam o sujeito com o seu espaço, e vice-
versa.
Os clubes recreativos que surgiram nesse momento se estabeleceram como
importantes recintos para convívio e interação social. Nesses ambientes, frequentados por
homens, mulheres, nacionais e estrangeiros, a diversão por meio de jogos lícitos, danças,
teatros, esportes, piqueniques e outras atividades recreativas, permitiam que novas relações
sociais fossem criadas e consolidadas além do espaço doméstico, dando ao ser social uma
vida mais pública e urbana, como pontua Simone Villanova:
A sociedade de modo geral passou a se organizar em torno das associações
recreativas, artísticas, culturais, esportivas, carnavalescas, filantrópicas, etc. Isso
significa que a cultura do lazer no século XIX não se restringia somente ao ambiente
doméstico. Ficava cada vez mais comum a essa época o encontro e as diversões
públicas, como os grêmios e clubes, tornando-se importantes expressões de convívio
social. Com o desenvolvimento das cidades e, por seguinte, da urbanização houve o
aumento desse fenômeno, fazendo com que o convívio social fora de casa se
transformasse em um hábito urbano cada vez mais comum à família.
(VILLANOVA, 2015, p. 60)

Analisar os espaços de sociabilidade nos permite refletir também sobre duas outras
dimensões: como institucionalmente se configuram esses espaços e suas práticas na dinâmica
do controle social e também a experiência de viver o conteúdo destas práticas166. Ou seja,
significa refletir a própria atuação dos clubes e sociedades recreativas frente à modernização,
ora instrumentalizando, disciplinalizando e contribuindo com os desejos civilizatórios e ora
compartilhando experiências dessas práticas por meio da coletividade e solidariedade.
O historiador E. P. Thompson167nos convida a estudar esses espaços de interação,
visto quepodem revelar a importância das relações sociais, ações dos sujeitos e dos rituais que

166
Tomo como referência a proposta de Déa Ribeiro Felenón que ao reconhecer a complexidade e variabilidade
da luta de classes afirmaque o seu constante fazer-se e refazer-se nos possibilita analisá-la de forma mais
especifica e diferenciada, por ter seu próprio processo. A autora também nos chama para o desafio de
compreender esse processo de constituição de classe em suas mais variadas dimensões e expressões, como, por
exemplo, o aspecto religioso: “do exame da religiosidade e das práticas religiosas para perceber, de um lado,
como institucionalmente se configuram a religião e a Igreja na instrumentação do controle social, mas também a
experiência de viver o conteúdo desta religiosidade e, da pobreza e dos despossuídos, sobretudo para
acompanharmos o processo em que se agrava o medo das ‘classes perigosas’ tomando necessário separá-las das
classes trabalhadoras, mas também para acentuar como este processo está intimamente relacionado ao
crescimento das cidades e todos os problemas sociais daí decorrentes.” (FELENON, 2009, p. 47)
167
Em “As fortalezas de Satanás”, Thompson salienta “Precisamos de mais estudos sobre as atitudes sociais de
criminosos, soldados e marinheiros, e sobre a vida nas tabernas; e deveríamos olhar as evidências, não com olhos
moralizadores (nem sempre os “pobres de Cristo” eram agradáveis), mas com olhos para os valores brechtianos
– o fatalismo, a ironia em face das homilias do Establishment, a tenacidade da autopreservação. E devemos
também lembrar o ‘submundo’ do cantor de baladas e das feiras que transmitiu tradições para o século 19 (até o
music hall e animadores de Hardy); pois dessa forma os “sem linguagem articulada” conversavam certos
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se constituem em tradições subpolíticas168. Rituais como a venda de esposas, rough music,


motim e turba que ocorriam no mercado, na feira, na taberna ou em praça pública, afetaram a
formação do primórdio movimento operário inglês. Logo, temos a noção que além de estudar
os comportamentos dos sujeitos, devemos analisar os seus espaços de atuação, tendo em vista
que nestes ambientes os indivíduos criavam e externavam suas noções de direito,
solidariedade e cultura, uma vez que esses “espaços autônomos de sociabilidade que, embora
conflitivos e plurais, possibilitavam o desenvolvimento de fortes noções de coletividade e a
formulação de valores diferenciados” (FORTES, 2006, p. 204).
Por meio da catalogagem no Jornal Amazonas, Jornal Correio do Norte e outros
periódicos, tivemos acesso a notícias sobre esses clubes e sociedades recreativas. Graças a
essas informações, até o momento, encontramos 32 clubes169, entre os anos de 1868 a 1910,
instalados na cidade que tinham suas atividades voltadas ao divertimento e recreação. Além
disso, cabe ressaltar que tomando a “grande imprensa” e os jornais desses clubes como fonte
histórica, compreende-se que problematizar o papel da imprensa, significa tomá-la como força
ativa do capitalismo, e não como mero lugar de anúncio dos acontecimentos, eventos e
atividades que essas associações estavam promovendo170. Assim, cabe reafirmar que a
imprensa local se apresentou também como um espaço privilegiado de e para articulação de
projetos políticos, culturais, modernizadores e elitistas de uma sociedade idealizada aos
moldes europeus e capitalistas.
Segundo o memorialista Thiago de Mello, em “Manaus, amor e memória”, havia três
categorias de clubes na cidade. Os considerados “clubes da nata” frequentados pela elite local,

valores– espontaneidade, capacidade para a diversão e lealdade mútua –, apesar das pressões inibidoras de
magistrados, usineiros e metodistas”. (THOMPSON, 1987, p. 62)
168
As tradições subpolíticas se colocam como formas alternativas de luta e resistência, para além do embate
político, partidário e associativo. Por meio dessa resistência cotidiana, que pode se manifestar através da cultura,
do costume e por meio de práticas de resistência e solidariedade, a classe popular se opõe às pressões do capital,
criando sua própria identidade, moral e tradição. (THOMPSON, 1987, p. 62)
169
São eles: Clube Scientifico (1868) do Pará que tinha sócios do Amazonas, Sociedade Harmonia Amazonense
(1870), Clube Familiar (1872), Jockey Clube (1872), Club Literário (1879), Clube Girondinos (1880), Clube
Recreativo Juvenil (1883), Club Limitado (1890), Club Ebat (1890), Club Amazonense (1890), Clube Athenas
(1890), Clube Tesoura (1890), Club 5 de Setembro (1892), Hight-life-Club (1892), Clube Polyanthéa (1893),
Clube Sempre-Viva (1893), Reform Club (1893), Atheneu Comercial (1893), Clube Amazonas (1898), Sport
Club (1898), White Club (1906), Club Internacional (1906), Club dos Nippões (1906), Ideal Club (1906), City
Club (1906), Club P. D. dos oficiais do Regimento (1906), Iracema (1906), Club do Esperanto de Londres
(1906); Terpaychore (1907); Club José do Patrocínio (1906); Club da Guarda Nacional do Amazonas (1906);
Derby Club (1909), Grêmio Gil Vicente (1910).
170
O texto de Heloísa de Faria Cruz e Maria do Rosário da Cunha Peixoto, Conversas sobre história e imprensa,
nos ajudaram no desenvolvimento da metodologia e na problematização das fontes históricas, compreendendo o
periódico como um monumento, ou seja, uma fonte destinada a transmitir à posteridade a memória “de fato” ou
pessoa notável (Dicionário Silveira Bueno). Portanto, devemos lidar com as intencionalidades explícitas ou não
em suas páginas.
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os clubes populares destinados à classe média e os clubes dos subúrbios voltados para atender
a população mais pobre, os considerados “freges”. Entretanto, apesar das diferenciações,
limitações e dependendo dos estatutos de cada associação, consideramos a possibilidade das
camadas intermediárias e mais pobres usufruírem de alguma forma dos serviços desses
espaços. De outro modo, sociedades recreativas, beneficentes ou clubes carnavalescos, de
caráter étnico e mutualista, também poderiam agregar imigrantes de diferentes camadas
sociais ou diversas categorias em um só local.
Não sabemos ao certo qual foi o primeiro clube recreativo instalado na capital
amazonense. No entanto, por meio da notícia no jornal “Amasonas”, desde 1868, ainda no
período imperial, Manaus já possuía o desejo de elitizar e moldar sua cultura ou participar de
sociedades e programações com esse intuito. Por não haver nenhum clube de recreação na
capital, alguns membros da elite manauara se vincularam ao “Clube Scientífico” de Belém –
PA, que apesar da emancipação econômica e política da região em relação à província
paraense, os vínculos, alianças e interesses culturais e políticos ainda se mantiveram.
O referido clube, com sede em Belém, fundado em 06 de abril 1866, tinha como sócio
honorário o Sr. Capitão José Justiniano Braule Pinto, residente em Manaus. O capitão e
administrador local foi responsável por desenvolver obras públicas na região e para tanto, em
1869 fundou a sociedade e instituto educacional “Atheneu das Artes”. Em sua passagem a
Belém, em 05 de abril de 1868, o capitão recebeu as congratulações dos sócios do Clube
Scientifico, que pontuaram que a sociedade paraense reconheceu a necessidade que tinha de
acercar-se de homens ilustrados e de alta posição na sociedade, para não baquear e sucumbir
no meio de tantos óbices e dificuldades que soavam sempre como oposição a esse desejo171.
Além disso, os discursos do clube nas páginas dos periódicos paraenses mostravam a sua
preocupação com projeto em disciplinar e educar o povo por meio da literatura e
cientificidade:
A literatura, senhores, é um dos elementos necessários para a vida moral de qualquer
povo; por ela é que se avalia o estado da civilização, por ela se conhece o progresso
da instrução, por ela finalmente julga-se a importância que merece qualquer uma
nação.
Um povo sem literatura é uma árvore sem frutos. E certamente que ideia podereis
fazer de um homem, que no gozo de todas as suas faculdades ainda vos não mostrou
que sabia pensar? Convireis comigo que é estupido, mesmo que vos apresente um
diploma de sábio: assim também o povo, que anela os foros de ilustrado, deve
apresentar uma literatura própria por onde os estranhos o possam aquilatar.
Uma excelente literatura representa o progresso das ciências, o florescimento das
artes, e é a melhor garantia da civilização.
[...]

171
Jornal “Amasonas”, 16/05/1868.
283
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Vós todos conheceis, senhores, a importância das associações literárias, como esta.
São elas sem contradição, bem como os jornais, o clero e o teatro, os alicerces da
instrução de qualquer povo. Se conheceis a sua utilidade, deveis também não ignorar
quais os cuidados, que se devem empregar a fim de tornar real, e não fictício, o
nome com que vos ornais.
(Diário de Belém, 17 de dezembro de 1868)

Apesar de se tratar da sociedade paraense, o discurso revela o pensamento da época.


Como é notório, governadores, administradores e a elite local, por prezar pelo progresso,
tentam impor, direta – por meio de leis, decretos e códigos de posturas – ou indiretamente –
por meio da cultura, normas e padrões de civilidade e comportamento.
Na sociedade manauara não foi diferente. Com o investimento econômico na região e
a mudança de sua paisagem, era esperado que uma cultura erudita se constituísse na mente e
no comportamento de seus habitantes. Para isso, os espaços de sociabilidade, como a igreja, o
teatro e os clubes, apresentavam programações que tinham o intuito de reunir pessoas que
compartilhassem das mesmas práticas e gostos e ensinar bons modos e costumes.
A exemplo disso, o Sport Club Amazonense, fundado em 24 de outubro de 1897172,
tinha como objetivo desenvolver o gosto pelos exercícios, especialmente a velocipédica,
ginástica, esgrima, patinação e jogos atléticos, além dos demais jogos não proibidos, assim
promovendo recreios e diversões uteis, compatíveis com o meio social e climático manauara.
Para se associar ao clube, segundo o artigo 4º do estatuto, era preciso cumprir as seguintes
formalidades:
a) que o proposto goze de bem conceito e cumpra posição social decente;
b) que seja adepto reconhecido de qualquer um dos ramos de diversão compreendidas
no programa do Club;
c) que seja apresentado por um dos sócios em pleno gozo de seus direitos;
d) que seja aprovado pela diretora, a quem deve ser dirigida a proposta sendo tal ato de
sua exclusiva competência.
(Estatuto do Sport Club Amazonense. Diário Oficial. 02 de janeiro de 1898.)

Cabia aos sócios observar o fiel cumprimento dos estatutos, regulamento e demais
deliberações dos corpos administrativos do clube; trabalhar para o engrandecimento e
prosperidade dos bens e crédito da coletividade, impulsionar os exercícios que formavam o
fim da instituição e pugnar para que fosse despertado o gosto por eles, e pagar de uma só vez
100 mil réis, pela joia de admissão, diploma, estatutos e regulamentos e contribuir mais
mensalmente com a cota de 10 mil réis.

172
Estatuto do Sport Club Amazonense. Diário Oficial. 02 de janeiro de 1898.
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Essas imposições não são à toa, vazia e sem significado, mas manifestam algo que
perpassa o debate teórico e as vivências humanas: a luta de classe173. Por classe, com clara
inspiração e tradição marxista, Thompson elucida:
Classe é uma formação social e cultural (frequentemente adquirindo expressão
institucional) que não pode ser definida abstrata ou isoladamente, mas apenas em
termos de relação com outras classes; e, em última análise, a definição só pode ser
feita através do tempo, isto é, ação e reação, mudança e conflito. Quando falamos
em uma classe, estamos pensando em um corpo de pessoas, definindo sem grande
precisão, compartilhando as mesmas categorias de interesse, experiências sociais,
tradições e sistema de valores, que tem disposição para se comportar como classe,
para definir, a si próprio em suas ações e sua consciência em relação a outros grupos
de pessoas, em termos classistas. Mas classe, mesmo, não é uma coisa, é um
acontecimento. (THOMPSON, 2012, p. 169)

Para a formação da classe, Thompson considera a atuação dos sujeitos em relação em


relação as estruturas sociais de um dado momento histórico. Nessa analise os sujeitos não são
meros receptores, vítimas ou sem consciência, muito pelo contrário, suas ações, sentimentos e
valores são significativos para a defesa de seus direitos, garantia de sua forma de vida e
criação de sua própria cultura. É nesse sentido que Thompson defende a formação da classe
operária, no qual as experiências são norteadoras para a união de interesses em comum
(classe) e para a elaboração em termos culturais, de tradições e valores (consciência de
classe):
A classe acontece quando alguns homens, como resultados de experiências
comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus
interesses entre si e contra outros homens cujos interesses diferem (e
geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em
grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou
entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas
experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições,
sistema de valores, ideias e formas institucionais. (THOMPSON, 1897, p.
10)

Tão certo, nesse momento de constante transformação na capital amazonense, no qual


a imposição capitalista se põe no sentido de disciplinamento e ordenamento da cidade em prol
da modernização, os conflitos no cenário político, econômico, social, cultural e até mesmo
imaginário se colocam diante das práticas e formas de vida, tendo em vista que essas

173
Como Marx enfatiza: “A história de todas as sociedades até agora tem sido das lutas de classe. Homem livre e
escravo, patrício e plebeu, barão e servo, membro das corporações e aprendiz, em sumo, opressores e oprimidos,
estiveram em contraposição uns aos outros e envolvidos em uma luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que
terminou sempre com a transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio conjunto das
classes em conflito.” (MARX, Kal. 2008, p. 08)
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“contradições externam ao mesmo tempo uma luta acerca de valores” (THOMPSON, 1978,
pp. 189-190), ou seja, uma luta de classes. É nessa disputa por valores que os espaços de
recreação se constituem como segmentos de interesse de classe, uma vez que por meio de
discursos, práticas e deveres, os indivíduos compartilham a sua visão de mundo com os seus
pares, criando e externando a sua própria identidade, como defende Decca, “forma-se
normalmente por sinais externos e por um conjunto de símbolos e valores a partir dos quais se
opera uma identificação” (DECCA, 2002, p. 08) e seria uma falácia se não considerássemos a
interação e identificação dos indivíduos com o seu espaço de atuação, sabendo que os
“valores não são pensados, nem chamados; são vividos, e surgem dentro do mesmo vínculo
com a vida material e as relações materiais em que surgem as nossas ideias” (THOMPSON,
1978, p. 194).
É interessante o encaminhamento desse processo, pois durante a formação e
constituição dos clubes ou associações de caráter recreativo nota-se a permanente ideia de que
os mesmo se apresentam e representam os interesses de um grupo e/ou classe, uma vez que os
indivíduos que se unem nesses espaços são seres dotados de pensamento e práticas políticas e
sociais na defesa se sua visão de mundo. Considerando que todos os seres e indivíduos são
políticos e partem em defesa de suas ideias, valores e concepção, a recreação não deixa de ser
um espaço para posicionamento político e social, uma vez que constitui ou fortalece uma
cultura, como o Derby Club, fundada em 13 de dezembro de 1909, que além de promover
corridas de cavalos, apostas, páreos de corridas a pé, tiro ao alvo, prestavam homenagens à
elite local no qual a própria sociedade estava muitas vezes associada. A primeira edição do
jornal da entidade, presta homenagens ao governador Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt,
Do coronel Antônio Bittencourt, pode-se dizer que nos governa
patriarcalmente, sem ódios nem parcialidades, sem precipitações nem
vexames; por isso, a população, em unanimidade, sente-se satisfeita com o
seu primeiro magistrado e abençoa os dias de seu governo.
O esporte hípico, sentindo-se renascer gradualmente, associa-se, por
intermédio da sociedade DERBY CLUB, as festas desta data almoçadeira,
trazendo a S. Exc. os seus aplausos e as flores de sua gratidão pelo apoio
moral que tem recebido com a presença continua do chefe do Estado as suas
diversões.
Espera, todavia, o DERBY CLUB, de sua magnanimidade e largueza de
vistas, que o aniversariante de hoje não se esqueça de estender o manto
protetor dos poderes públicos sobre a instituição hípica – auxilio este que
redundará no desenvolvimento da indústria pastoril no Amazonas. (Derby
Club – Órgão da Sociedade, 23 de julho de 1910)

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Exemplos de caráter mutualista e solidário são os clubes e associações de caráter


étnico e recreativo que se formaram em Manaus, como o Luso Sport Clube, Sociedade
Espanhola Recreativa e de Beneficência e a Sociedade Italiana de Socorros Mútuos.
Essas sociedades recreativas de caráter étnico além de afirmarem e reafirmarem a sua
identidade, tinham o compromisso mútuo e assistencialista com os seus conterrâneos e sugere
uma diversidade e multiplicidade de tradições, costumes, valores, sociabilidades. A Sociedade
Italiana de Socorros Mútuos fundada em 1900, por exemplo, realizou diversas festas e
comemorações com tons patrióticos e nacionais até pelo menos a década de vinte e promovia
disputas, torneios, teatros, cinemas, futebol entre outras práticas de recreação consideradas
lícitas a fim de informar os italianos residentes em Manaus sobre a situação da I Guerra
Mundial e levantar recursos financeiros para enviar nos auxílios e cuidados com os feridos. Já
a Sociedade Espanhola Recreativa e de Beneficência, fundada em 1918, tinha o intuito de
agregar a todos os espanhóis e oferecer funções teatrais genuinamente espanholas, reuniões
literárias e musicais, bailes de sociedade quermesses e outras diversas distrações honestas e
distinguidas; a sociedade também pretendia abrir aulas noturnas e gratuitas com turmas de 1ª
e 2ª série para os sócios e familiares.
A festividade em uma data simbólica era muito importante para essas sociedades
étnicas. Assim como a sociedade italiana e outras sociedades étnicas comemoravam datas
como a independência ou descobrimento do país residente pelos seus colonos conterrâneos, a
Sociedade Espanhola Recreativa e de Beneficência externava a sua identidade e unia-se para o
congraçamento e fortalecimento de relações afetivas. No caso espanhol, no dia 12 de outubro
era celebrado o descobrimento da América com grande festa e banquete. Nesses momentos, o
discurso valorizava tanto a terra de origem como a nova terra:
Se passaram quatro séculos do dia em que Cristovam Colombo gritou “terra!” ao
visualizar com algo fantástico, o contorno de uma praia ao longe. Mas o sentimento
em relação a Colombo não morreu nos corações espanhóis, em direção ao feliz
navegador que colocou uma jóia única, magnífica e brilhante, na coroa de uma
grande rainha.
Os espanhóis de Manáos, unidos em abraço fraterno com os filhos nobres desta
simpática terra brasileira, para celebrar o aniversário da descoberta da América,
vêem a Espanha como pátria dos espíritos e a celebram com festivais cheios de
intelectualismo e beleza.
Que os partidos de hoje, no Clube Ideal e nas Sociedades espanholas, servem para
fundir ainda mais os laços de amizades que unem o Brasil à Espanha. (El-Hispano
Amazonense, 12/12/1918)

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Além dessas ocasiões serem abertas ao público geral, há uma clara manifestação do
desejo de inserção numa nova cultura por meio do reconhecimento e enaltecimento da pátria
receptora. Esse desejo pode ser interpretado como uma de resistência e adaptação à nova
sociedade, pois os imigrantes “demonstravam o desejo de inserção numa nova cultura,
estabelecendo uma relação simbólica de reciprocidade, ao compartilhar com os moradores
locais seus valores, seus símbolos, sua arte, suas visões de mundo e suas memórias”
(VISCARDI, 2014, p. 209).
É necessário pontuar que as sociedades italianas, espanholas e associações portuguesas
realizaram algumas festividades, jogos e atividades recreativas juntas em Manaus. Nesse
sentido, notícias nos jornais evidenciam o apoiam que as entidades davam umas às outras que
engloba desde parabenizar as instituições em alguma data comemorativa até realizar
campanhas, eventos e jantares beneficentes em prol de seus associados, outros imigrantes e
países que precisavam de algum recurso financeiro em momentos de crise, guerra e outras
carestias. Apesar dos conflitos, rivalidades e preconceitos que se davam muitas vezes no
cotidiano dos imigrantes, as associações parecem ser um dos elos de ligação e
representatividade das vivências e experiências em comum. Não queremos dizer com isso que
em alguns momentos essas sociedades não divergiam, mas podemos considerar que o
“mutualismo apresentava-se como um contraponto a esse tipo de inserção, saudando, em suas
festividades e cerimônias, o congraçamento entre povos de origem distinta.”1.
Outro ponto que consideramos é o caráter pluriclassistas das associações2, pois a
existência de sociedades que exercem ao mesmo tempo o assistencialismo, o recreio, as
festividades, o socorro mútuo, as artes não nos permitem enquadrá-las em uma única
denominação. Resta também pontuar a importância de estudar as sociedades recreativas,
mutualistas e das categorias dos trabalhadores como um conjunto, sem ignorar as suas
particularidades, pois sabemos que muitos imigrantes ligados as sociedades étnicas poderiam
se associar a outras entidades, assim sendo, poderia se estabilizar financeiramente e

1
Idem.
2
Concordamos com Jesus em sua análise sobre o “caráter pluriclassistas” das associações em dois sentidos: “A
existência de associações exclusivamente beneficentes, filantrópicas, artísticas e comemorativas, convivendo
com outras que exercem todas ou algumas dessas funções ao mesmo tempo, impõe a necessidade de se investir
continuamente na construção de uma tipologia do fenômeno associativo, ainda que tal investimento não deva se
apresentar como o objetivo final de qualquer pesquisa” e “embora os estudos de associações de socorro mútuos
organizadas por categorias profissionais sejam, desde sempre, os mais numerosos, será preciso ampliar a análise,
abrangendo cada vez mais os componentes do fenômeno associativo do século XIX que não se limita à
participação exclusiva de trabalhadores.” (JESUS, 2014, p. 129)
288
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socialmente, fazer circular ideias e informações, constituir e agregar em diversos outros


espaços.
Essas práticas mostram o caráter comunitário e solidário que perpassam as relações e
interações socais dentro de sociedades e associações sejam sindicais, políticas e até mesmo
recreativas. Certamente esses espaços também colaboram para a formação e consolidação da classe
trabalhadora no Amazonas, tendo em vista que além da fábrica, os sujeitos compartilham laços de
amizade e solidariedade em outros espaços citadinos.
A historiografia tradicional investiu por muito tempo em uma ideia de que a classe
trabalhadora se formou e se consolidou dentro das categorias, sindicatos ou partidos políticos,
considerando outras formas de sociabilidade, como os clubes esportivos, dançantes e literários
como desmoralizadores e sem caráter e consciência de classe. Desse modo, ignoraram e
marginalizaram outras formas de organização e experiência em prol de uma “verdadeira”
organização. Cabe a pergunta: como podemos analisar o fazer-se da classe sem analisar
espaços, formas e outras características de atuação? A classe, como bem pontua Thompson,
não está isolada ou dentro de uma caixa, fora do convívio social, político e econômico com
outras classes e nem tampouco comunica-se ou interage somente com ela mesma. É da através
do conflito, da troca de ideias, valores e experiências com outra (s) classe (s) que ela se faz e
refaz constantemente. Lappa, acrescenta:
Mesmo que se considerem os riscos que a sociabilidade não deixa de trazer em si,
quer servindo ao sistema econômico-social, diga-se à ordem social burguesa, quer
simplesmente ao mundanismo, ou, dito de outra maneira, mesmo que a sua
organização possa envolver a indiferença, o oportunismo, a exclusão, a
discriminação, o canibalismo em relação ao outro ou aos próprios agremiados, ela
por outro lado compreendia sentimentos altruístas, mediava entre os interesses
privados e os da comunidade, entre os indivíduos e a sua cidade e o Estado. Dessa
maneira, pode conquistar novos espaços, coletivando-os, otimizando seu uso para o
trabalho, encontros, celebrações com atos solenes, jantares, bailes, recepções, etc.
(LAPPA, 2008, p. 149)

É nesse sentido que não podemos afirmar de forma categórica que os trabalhadores
(as), a classe popular ou os mais pobres estivessem ausentes desses espaços ou que
reproduziram as normas e cultura dos clubes como meros receptores, sem consciência do que
faziam ou do que participavam. Muitas vezes poderiam não estar associados aos sindicatos ou
as associações de sua categoria, mas poderiam forjar laços de amizade, solidariedade e
experimentar da vida coletiva e do modelo organizativo de classe por meio do futebol, da
dança, do piquenique e de outras formas de recreação; poderiam também ter acesso a
educação nesses espaços, tendo em vista que durante as primeiras décadas do século XX, a
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instrução à classe trabalhadora se deu por meio dos sindicatos, associações mutualistas e
instituições religiosas. Logo, embora diferentes em suas formas de execução, as organizações
são múltiplas e diversas, mas contribuem para entendermos as relações sociais dadas em
outros espaços, sejam nas entidades militantes ou associativas. Sobre isso, Batalha pontua:
Por cultura associativa entendo, como já foi dito, o conjunto de propostas e práticas
culturais das organizações operárias, a visão de mundo expressa nos discursos, bem
como os rituais que regem a vida das associações que muitas vezes são herdados de
formas de organização mais antigas, como as corporações. Em outras palavras, um
conjunto de valores compartilhados, pelas associações operárias. Essa cultura
associativa, ainda que receba influência e influencie as culturas das diversas
correntes atuantes no movimento operário – as culturas militantes –, é distinta dessas
últimas. A cultura militante assume aspectos específicos a cada corrente ideológica,
preservando, todavia, traços comuns dessas correntes. (...) E, ainda, a cultura
militante é posterior e bem mais restrita que a cultura associativa que
cronologicamente a precedeu. (BATALHA, 2004, p. 99)

As tentativas de perceber a experiência de classe somente através de greves, passeatas,


mobilizações e manifestações culturais dadas no seio dos sindicatos ou partidos, muitas vezes
reduz as identidades, sociabilidades e resistências às esferas políticas e núcleos sindicais, que
apesar de sua grande importância para a história do movimento operário no Amazonas e no
Brasil, não pode ser visto como as únicas expressões de identidade e consciência.
O processo histórico real coloca em evidência outros sujeitos e outra formas de fazer
política justamente porque é constitutivo de diversas experiências e indivíduos. Essa política
encarnada no cotidiano entende que através das lutas, resistências e vivências, os sujeitos
históricos se fazem e refazer através da constante relação entre as estruturas, as classes e os
espaços. Assim, nem a história, nem a cultura, nem os lugares, tampouco os indivíduos e
classes sociais estariam estáticos, mas em constante transformação, gerando sentidos e modos
de vida. Através das experiências na vida familiar, nos bares, nos clubes recreativos, nos
festivais, no trabalho, na religião, a experiência é transmutada em processo e a consciência
social encontra sua realização e expressão, conforme E. P. Thompson:
Parentesco, costumes, as regras visíveis e invisíveis de regulação social, hegemônica
e deferência, formas simbólicas de dominação e resistência, fé religiosa e impulsos
milenaristas, maneiras, leis, instituições e ideologias – tudo o que, em sua totalidade,
compreende a “genética” de todo o processo histórico, sistemas que se reúnem
todos, num certo ponto, na experiência humana comum, que exerce ela própria
(como experiências de classes peculiares) sua pressão sobre o conjunto.
(THOMPSON, 1978, p.189)

Por fim, cabe salientar que o processo de defesa de interesses se dá em todas as esferas
e está presente tanto no cotidiano dos trabalhadores/as como da elite e/ou governo. Dessa
maneira, tida como resultado de lutas e experiências, a forma como as pessoas externam suas

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tradições e valores não dados de um único modo. Assim, são inúmeras as possibilidades e
peculiaridades de consciência dos trabalhadores e sujeitos sociais.

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conversas sobre história e imprensa. São Paulo, SP: Projeto História, 2007.
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tradicional. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
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VILLANOVA, Simone. Sociabilidade e cultura: a história dos “pequenos teatros” na cidade


de Manaus (1859-1900). Manaus: EDUA, 2015.
VISCARDI, Claudia Maria Ribeiro. O ethos mutualista: valores, costumes e festividades. In:
BATALHA, Claudio H. M.; CORD, Marcelo Cord. (Orgs). Organizar e proteger:
trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX). Campinas, SP:
Editora UNICAMP, 2014.

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JOGO DA MEMÓRIA COMO PRÁTICA EDUCATIVA


LAISE CARVALHO DE OLIVEIRA*

Introdução

O professor como agente de transformação social, deve compreender a importância do


aspecto lúdico que os jogos proporcionam para aprendizagem de seus alunos. Tendo em vista,
que as utilizações de atividades lúdicas de forma adequada dentro de sala de aula como
recurso pedagógico, poderão contribuir de forma enriquecedora para o desenvolvimento
intelectual, cultural e social do aluno. O presente trabalho foi desenvolvido para que os
professores tenham em mãos um material didático-pedagógico capaz de cumprir o papel de
facilitador e ao mesmo tempo proporcionar uma aprendizagem prazerosa e significativa sobre
o patrimônio cultural da pré-história da Amazônia.
Assim, foi realizada uma adaptação do jogo de memória, no intuito de transformar
aprodução de conhecimento científico acerca das peças de cerâmica da cultura marajoara em
conteúdo didático, despertando na criança o desafio de trabalhar a parte superior do cérebro,
onde ela utiliza sua memória e compreensão sobre o conteúdo, trabalhando o processo
cognitivo e exigindo a atenção e concentração das crianças em função das peças de cerâmicas
marajoaras que serão expostas no jogo. A decisão em relação ao desenvolvimento do jogo de
“Memória da Cultura Marajoara” está relacionado a vontade de demonstrarque é possível
ensinar um determinado conteúdo de maneira leve e divertida, sem correr o risco de perder o
propósito principal.
A cultura marajoara foi escolhida por ser uma das maiores riquezas do Norte brasileiro
e por trazer a história de um dos primeiros povos a habitarem a Amazônia, em suas cerâmicas
mundialmente reconhecidas. Ela é famosa por suas peças altamente elaboradas e
diversificadas. Por ela possuir um grande acervo de peças em cerâmica, foi decidido trabalhar
algumas características específicas desta cultura, onde pode-se destacar a alimentação, vestes,
xamãs, rituais e enterros, que são expressas nas peças de cerâmica e a partir disto utilizá-las
para a produção do jogo de memória.
Para alcançar o objetivo proposto neste trabalho, foram realizados levantamentos
bibliográficos, apoiado nos autores que já pesquisaram sobre a cultura marajoara como o

*
Graduanda em História na Universidade Federal de Roraima (UFRR). laiseoliveirawhite@gmail.com

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arqueólogo André Prous, e sobre aqueles que trabalham com a psicologia da aprendizagem
como os teóricos Skinner, Piaget e Vygotsky e o autor Nelson Piletti.
Quanto a organização textual, está estruturado da seguinte forma: primeiramente a
história da cultura marajoara e suas principais características, logo em seguida é apresentado o
jogo e suas regras, a faixa etária ao qual o jogo foi destinado e como ele contribui para o
processo de ensino-aprendizagem e desenvolvimento dos educandos, as considerações finais e
ao final desta produção textual encontra-se as referências dos autores pesquisados para o
desenvolvimento deste trabalho.

Cultura Marajoara
A cultura marajoara foi a que alcançou um elevado nível de complexidade social na
pré-história brasileira, e essa complexidade é expressada em suas cerâmicas de fama mundial,
que chamam a atenção para sua decoração detalhada e diversificada. Estudos desenvolvidos
na região da bacia Amazônica trouxeram a luz a existência destas cerâmicas, que em
referência ao local de sua descoberta recebem a classificação de fase marajoara. As peças
marajoaras pertencem à tradição policrômica3 e carregam em si formas diversificadas,
representações geometrizantes e tem como características mais marcantes a presença de
relevos e atributos antropomorfos e zoomorfos, que possibilitaram estudos mais detalhados na
região e a compreensão acerca da cultura arqueológica atribuída aos povos que habitaram a
ilha de Marajó, no período do século IV ao XIV.
Encontradas na Ilha do Marajó, maior ilha do arquipélago do Marajó, no estado do
Pará, as cerâmicas são fruto da civilização indígena que habitou a região aproximadamente
entre 410 A.D. e 690 A.D., segundo o arqueólogo, André Prous4. Na ilha de Marajó, assim
como nas outras ilhas próximas, houveram várias ocupações de grupos indígenas que
expressaram diferentes formas de cerâmicas, fato verificado pela mudança no estilo da
decoração das mesmas. Ao todo são contabilizadas cinco fases na ilha: Ananatuba,
Mangueiras, formigas, Marajoara e última seria a Aruanã.
Pesquisas em torno das peças propuseram-se a interpretar a história e o estilo de vida
dos indígenas que habitavam a região amazônica na pré-história, onde verificaram através da
iconografia traços reveladores, onde a arte encontrada nas cerâmicas possuía o papel de

3
Palavra grega, s.f, que significa “estado, qualidade de um corpo com diversas cores”.
4
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília, DF: Editora: Universidade de Brasília, 1992.

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comunicação e repasse de informações entre os povos sem escrita, diante disso é importante
ressaltar que:
Diferentemente da concepção de arte ocidental, a arte dos povos sem escrita,
segundo o conceito de alfabetização, seria confeccionada a partir da necessidade do
grupo e de indivíduos, e não para deleite do artista. A arte pré-colombiana, portanto,
teria uma função social e utilitária, além de artística (BARRETO, 2005;
SCHAAN,1999).

Os objetos encontrados durante as escavações na ilha do Marajó, atualmente, em sua


maioria fazem parte do acervo arqueológico do Museu Goeldi, localizado no estado do Pará e
também no Museu de História Natural, em Nova Iorque nos Estados Unidos da América.
Dentro dessas coleções existem uma série de vasos, urnas funerárias, tangas, estatuetas,
bancos, pratos, entre outros. Os padrões encontrados nas peças de cerâmica marajoara
sugerem que existia uma divisão de trabalho dentro daquela sociedade pré-colombiana5, e
diante das análises realizadas sobre as cerâmicas marajoaras, os pesquisadores Betty Meggers
e Clifford Evans (1957) afirmam que cultura marajoara pode ser considerada como a mais
evoluída em comparação com as outras fases da ilha.
Os padrões encontrados nas cerâmicas apontam para uma sociedade hierarquizada e
politicamente organizada, esses aspectos foram levantados através de análises, onde em
comparação com alguns tribos contemporâneos chegou-se a hipótese que objetos como as
tangas eram utilizados como enfeites corporais pelas mulheres daquele grupo indígena, os
pratos, alguidares e vasos seriam peças vinculadas a questão de hábitos alimentares, os
bancos, as estatuetas e as simbologias encontradas nas cerâmicas levaram os pesquisadores a
ideia que a sociedade marajoara era de ordem xamânica, onde se praticavam diversos rituais.
Urnas funerárias encontradas, sugerem a questão de poder social, onde algumas urnas são
ricas em detalhes e relevos, enquanto outras são de característica simples, gerando a ideia que
existia uma organização social hierarquizada entre os membros da cultura marajoara.
Essa complexa sociedade viveu séculos em ambiente sujeito a enchentes e com solo
pobre de nutrientes, esses aspectos naturais levaram esse povo a construírem grandes morros
para fugir das enchentes, denominados tesos, onde abrigavam as moradias dos marajoaras.
Escavações nestes locais trouxeram bases para formulações de teorias sobre o tipo de vida
daquela população. Em alguns Tesos foram encontrados uma sequência de cerâmicas com
ossos humanos. Segundo o casal Evans, existem duas categorias para o Teso. A primeira é

5
O adjetivo pré-colombiano é usado para designar aquilo que aconteceu ou que havia na América antes das
expedições de Cristóvão Colombo
295
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quando a estrutura do local é mais singela em suas proporções, com altura e comprimento
moderados. Coletas realizadas nestes locais reuniram peças de cerâmicas mais simples, sem
muita decoração e sepultamentos raros. A segunda categoria é dos Tesos que apresentam
maiores dimensões e um número significativo de cerâmicas decoradas, assim, como
numerosas peças funerárias. Estabelecendo assim, a ideia de que houvesse ‘sítios-habitações’
e ‘sítios-cemitérios’.
Nos dias atuais, a cerâmica marajoara é reproduzida por artesãos descendentes de
indígenas, como forma de manter viva a exuberante decoração e preservar este patrimônio
cultural do Brasil. Assim como para promover o turismo da região, gerando renda para
diversas famílias da ilha do Marajó.

Memória da Cultura Marajoara: o jogo


Não se sabe ao certo a época e a origem do jogo da memória, acredita-se que esse jogo
é praticado desde a história antiga, em especial pelos povos egípcios, mas para outros o jogo
da memória teve sua origem na China, no século XV e era formado por um baralho de cartas
ilustradas e duplicadas, ou seja, cada figura se repetia em duas cartas diferentes. No jogo
clássico as peças são postas com as figuras voltadas para baixo, para que os participantes não
vejam as figuras. Cada jogador, na sua vez, deve virar duas peças e deixar que os outros
participantes vejam. Caso as figuras sejam iguais, o jogador deve recolher o par e guardar
consigo e jogar novamente, mas caso as peças forem diferentes, estas devem ser viradas
novamente, e a vez é passada para o próximo jogador. Mesmo tendo a sua história incerta, o
jogo da memória mostra-se capaz de continuar agradando diferentes povos e idades.
Sendo assim, foi elaborado um jogo de memória, onde as imagens das peças de
cerâmica da cultura marajoara são utilizadas para exercitar o conhecimento prévio trabalhado
pelo professor em sala de aula sobre os indígenas da pré-história brasileira, possibilitando
uma contribuição significativa para o conhecimento científico e ao mesmo tempo incentivar o
respeito às demais culturas e estimular as habilidades mentais do jogador. Para tornar este
jogo de memória desafiador foram feitas alterações no jogo, o que o tornou diferente em
relação ao padrão existente.
O jogo “Memória da Cultura Marajoara” foi desenvolvido como uma proposta
material didático-pedagógico que tem como finalidade contribuir com as aulas, o ideal é
utilizá-lo para fechar o conteúdo de uma aula expositiva. O diferente desse jogo é que ao
invés de formar um par de imagens idênticas, como é visto no jogo de memória tradicional, a
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criança deverá virar a carta e encontrar uma imagem e o par a compor não será uma imagem
idêntica, mas sim a representação daquela imagem por meio descritivo, ou seja ao ver a
imagem de uma urna funerária, o aluno terá que procurar uma carta de descrição que se
encaixe com as características presentes na carta imagem. O jogo é composto por 34(trinta e
quatro) cartas, que são divididas da seguinte forma: um cartão contendo as regras do jogo,
dezesseis cartas com imagens referentes as cerâmicas marajoaras, dezesseis cartas com textos
que descrevem cada uma das cartas imagens e um cartão contendo as respostas dos pares.
A etimologia da palavra jogo, se origina do vocabulário latino ludus, que significa
diversão, tendo isso em vista, as regras do jogo “Memória da Cultura Marajoara” foram
desenvolvidas para que todos os jogadores possam aproveitar as possibilidades de
aprendizagem oferecidas pelo jogo de memória. As regras quando utilizadas, exigem das
crianças raciocínio e estratégia. E se uma criança se mostra capaz de seguir regras, logo pode-
se observar o reflexo em seu relacionamento com outras crianças e adultos, demonstrando que
os jogos podem influenciar no processo de aprendizagem. Segundo a autora Gisela Wajskop
(2002), baseado no pensamento de Vygotsky, a brincadeira é entendida como uma atividade
social da criança, onde ela encontra elementos fundamentais para a construção de sua
personalidade e compreensão da realidade do ambiente ao qual está inserida. As possibilidade
não se limitam a estas, o jogo proporciona aos participantes chances iguais, onde até o erro se
mostra de forma positiva, cabendo apenas ao jogador aproveitar.

A criança na terceira infância


A terceira infância corresponde a faixa etária de 6 a 12 anos. Este período é o
momento onde a criança começa desenvolver de maneira mais avançada a parte física, motora
e cognitiva. O jogo tem como objetivo alcançar essa fase da infância, pois é o momento em
que a criança passa a pensar com lógica, a memória e habilidades de linguagem aumentam e
os ganhos cognitivos melhoram a capacidade de absorver e tirar proveito da educação formal.
Cognição significa processar informações com a finalidade de perceber, integrar,
compreender e responder adequadamente aos estímulos do ambiente, levando a criança a
pensar e avaliar como cumprir uma determinada tarefa. Ao realizar tal tarefa, a criança vai
passar pelo processo de aprendizagem, ou seja, vai ocorrer uma mudança de comportamento,
assimilação de informações.
Então, a ideia do jogo é proporcionar o desenvolvimento de uma boa aprendizagem
pois através dele ocorre a integração de aspectos: físico, social, intelectual, emocional,
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ocasionando uma motivação interna e uma construção de conhecimento. Quando a criança for
brincar ela irá colocar o que ela aprendeu durante as aulas expositivas, no jogo, ou seja, a
criança vai sair da teoria para a prática, e assim ocorrerá o “reforçamento” da aprendizagem.
O termo “reforçamento” vem da teoria de aprendizagem do cientista Skinner6, ele afirmava
que a aprendizagem ocorre através de estímulos e reforços, de modo que se torna mecanizada.
Através do jogo da memória a criança estará reforçando o conhecimento que recebeu
passivamente do professor, dessa forma o ensino irá se utilizar da memorização e fixação dos
conhecimentos. Então analisando esse método de ensino, segundo Skinner (1968), quando
nosso comportamento é reforçado positivamente, nós dizemos que gostamos do que estamos
fazendo; dizemos que estamos felizes e assim aprendemos com facilidade.

Considerações finais
Ao longo deste trabalho, foi apresentado um jogo que possibilita que professores
passem o conteúdo sobre a cultura marajoara de forma lúdica para os seus alunos. Tendo isso
em vista, buscou-se compreender primeiro a faixa etária ao qual esse jogo se aplica, que no
caso oscila entre crianças de 6 a 12 anos e depois qual o papel esse jogo desempenharia dentro
do ensino. Por se tratar de uma tradição rica em peças de cerâmicas foi decidido trabalhar
através da imagem, possibilitando que essas crianças tenham um contato com as peças de
cerâmica e que elas possam reconhecê-las através de seus detalhes e também que percebam a
importância da preservação do patrimônio arqueológico para a sua comunidade, buscando
criar ou reforçar relações de memória e identidade. Dessa forma o conhecimento científico foi
transformado em um conteúdo didático de qualidade, divertido, agradável e significativo, mas
com a capacidade de despertar curiosidade, fazendo com que essas crianças busquem mais
informações sobre a temática trabalhada. Diante do exposto, espera-se que este trabalho
contribua para a prática educacional, e que os profissionais da área possam compreender a
importância dos jogos e brincadeiras para o desenvolvimento e aprendizagem dos educandos
e que também que ampliem o espaço para educação patrimonial dentro do meio escolar.

Referências bibliográficas
AMORIM, Lilian Bayma de. Cerâmica marajoara: a comunicação do silêncio. Belém:
Museu Paraense Emilio Goeldi, 2010.

6
LEFRANCOIS, Guy R. Teorias da aprendizagem: o que o professor disse. São Paulo: Cengage Learning, 2016.

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LEFRANCOIS, Guy R. Teorias da aprendizagem: o que o professor disse. São Paulo:


Cengage Learning, 2016.
MEGGERS, Betty J. & EVANS, Clifford. 1957. Archeological Investigations at the Mouth of
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299
Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

CRIME E CRIMINALIDADE PRATICADOS POR ESCRAVOS NA MANAUS


OITOCENTISTA

LAURA STELLA PASSADOR DE LUIZ BLANCO*

O presente estudo busca empreender um estudo de açõespraticadas por escravos e


tidas como transgressorascom o intuito de compreender assim, algumas facetas do mundo da
escravidão na cidade de Manaus. O estudo da criminalidade7praticada por esse agrupamento
permitirá a ampliação do quadro de entendimento das relações sociais em suas mais diversas
manifestações, contribuindo ainda, para melhor compreender os vínculos desses sujeitos em
relação a outros setores sociais.
A expansão do sistema capitalista e a inserção da região na ordem burguesa
propiciaram um contexto tenso e conflituoso, transformando-a em um cenário privilegiado
para a análise do comportamento, práticas e resistências negra. É importante salientar que
foram as “reformas pombalinas” e a as atuações da Companhia de Comércio do Grão-Pará e
Maranhão (1755-1778) que intensificaram a presença sistemática de africanos na região
amazônica.
No século XIX, a economia extrativista gerou a necessidade latente de trabalhadores.
Na década de 1870 a cidade contava com uma população classificada em sua maioriacomo
“caboclos” (12.084 indivíduos), categoria censitária utilizada para enquadrar as populações
indígenas que viviam em espaço urbano e que compunham a maioria dos trabalhadores da
região. Outros homens e mulheres de cor (pretos e pardos) de Manaus somavam 2.603
pessoas e nem todas eram livres: 377 deles eram escravas”8.
O cenário manauara se mostra privilegiado por contar com um trânsito populacional
intenso, tensões engendradas por meio de discursos normativos e teorias racialistas, além das
tentativas incessantes de erradicação das práticas socioculturais e crenças das populações
indígena e africana. A cidade fora aparelhada de acordo com valores aburguesados, vide a

*Mestranda em História Social do PPGH-UFAM sob orientação da Profª Dra. Patrícia Melo e com auxílio
financeiro da CAPES.
7
Neste projeto a distinção entre crime e criminalidade acompanha a conceituação estabelecida por Boris Fausto:
“As duas expressões tem sentido específico: a criminalidade se refere ao fenômeno social na sua dimensão mais
ampla, permitindo o estabelecimento de padrões através da constatação de regularidades e cortes, enquanto
crime diz respeito ao fenômeno em sua singularidade, cuja riqueza em certos casos não se encerra em si mesma,
como no caso individual, mas abre caminho para muitas percepções”. FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a
criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 09.
8
Ver SAMPAIO, Patrícia M. Os fios de Ariadne: tipologias de fortunas e hierarquias sociais em Manaus: 1840-
1880, Manaus: EDUA, 1997.
300
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criação periódica de Códigos de Posturas, que procuravam estar em sintonia e espelhar os


padrões tidos como civilizados das modernas nações do continente europeu.
O marco temporal definido para a realização do trabalho proposto situa-se entre os
anos de 1846 a 1884, recorte que em sua baliza inicial abrange a criação da Província do
Amazonas atéa abolição da escravatura na Província. O estudo da criminalidade na urbe
manauara permitirá confrontar o desenrolar da criminalidade praticada por escravos com os
desdobramentos políticos, jurídicos, econômicas e sociais até o último ano do cativeiro.
A análise microscópica das vivências dos escravos e de seu tratamento pelo Judiciário
imperial, provincial e local, faz parte de um procedimento metodológico que visa, em última
instância, reconstituir algumas das tramasque os envolvia e revisitaralgumas das
possibilidades peculiares da escravidão na Manaus oitocentista. O estudo será de grande valia
para a historiografia local, em especial, àquela que ao longo dos últimos anos se dedica a
desmistificar o discurso secular de uma Amazônia sem a presença negra9
Compreender as manifestações desses sujeitos históricos nos permitirá entender com
maior plenitude o que é ser negro no Brasil de hoje, em especial nas problemáticas ações da
conjuntura política atual em relação às políticas públicas que combatem diretamente o
racismo no Brasil. É primordial colocar no cerne do debate a necessidade de se garantir e
perpetuar mecanismos que não acobertem as desigualdades, preconceitos e discriminações e
garantam condições mais iguais em nossa sociedade.
A historiografia nacional dedicada ao estudo do cativeiro demonstrou que a história do
cativeiro não poderia ser compreendida exclusivamente sob o viés da grande propriedade
exportadora, já que expressiva parcela da população cativa do país esteve distribuída entre
proprietários de pequenos grupos de escravos. Com base nesta assertiva, os estudos se
multiplicaram, complementando o debate com evidências a respeito do cotidiano do cativeiro
praticado nas mais diferentes regiões do Brasil.
Por ocasião do centenário da abolição no país, um conjunto de estudiosos inspirados
pelos desdobramentos da historiografia internacional, em especial nas análises empreendidas

9
Deve-se destacar os trabalhos de Patrícia Maria Melo Sampaio, Ygor Olinto Cavalcante, Provino Pozza Neto,
Manuel Nunes Pereira, Vicente Salles, Anaíza Vergolino-Henry, Arthur Napoleão Figueiredo, Colin
MacLachlan, Rosa Acevedo-Marin, Eurípedes Funes, Flávio Gomes e José Maia Bezerra Neto.
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por Edward P. Thompson10 em relação ao século XVIII inglês e Eugene Genovese, em Roll
Jordan roll11, redimensionou as possibilidades de análise do cativeiro no Brasil admitindo-se
outras formas de exploração e resistência. Assim, sob a constituição de uma inovadora
proposta teórico-metodológica aplicada a um conjunto diversificado de fontes desenvolveu-se
o diálogo com os trabalhos precedentes e novas conclusões foram obtidas.
Embora em Manaus, boa parte da mão de obra fosse composta pelo uso do trabalho
compulsório dos índios, a presença do trabalho escravo também a caracteriza como uma
região escravista, dotada de particularidades, mas ainda sim escravista. Uma parcela
significativa dos cativos que viveram no país pertencia a senhores de posses modestas,
habitantes de localidades rurais ou urbanas que, para o trabalho de produção de gêneros
alimentícios e mercadorias destinadas ao consumo e ao mercado interno, contavam com uma
mão-de-obra mista composta por poucos cativos12 (na maioria dos casos, menos de cinco
escravos), um ou outro trabalhador livre ou liberto e familiares.
Homicídios, ferimentos, roubos e furtos têm sido estudados na perspectiva de uma
história do cotidiano que muito contribuiu para a interpretação de “práticas, costumes e
estratégias de sobrevivência”13 protagonizadas por homens e mulheres que viveram em
diferentes épocas e lugares. Realizando a análise dos autos criminais de Campos dos
Goitacazes produzidos entre 1750 a 1808, Sylvia Hunold Lara14 optou por dialogar com a
historiografia que lhe antecedeu a partir da análise do cotidiano dos cativos que ali viveram e
manifestaram-se por meio de comportamentos tidos como transgressores.
Considerando a peculiaridade das categorias crime e criminalidade, neste trabalho a
distinção entre as mesmas acompanha a conceituação estabelecida por Boris Fausto:

10
THOMPSOM, E. P. Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998.
11
Obra que teve sua primeira parte traduzida no Brasil em: GENOVESE, Eugene Dominick. A terra prometida:
o mundo que os escravos criaram. Rio de janeiro: Paz e Terra,1988.
12
Herbert Klein e Francisco Vidal Luna afirmam que “o uso de mão-de-obra escrava, inicialmente de índios e
depois de negros, para produzir gêneros de subsistência e destinados ao mercado local, foi uma das
características distintivas da escravidão brasileira. Poucas foram as outras sociedades escravistas nas Américas
que fizeram uso tão sistemático da cara mão-de-obra escrava nessa área de produção.” LUNA, Francisco Vidal ;
KLEIN, Herbert S. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2005. p.107-108.
13
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Hermenêutica do quotidiano na historiografia contemporânea. Projeto
História. São Paulo, (17), nov. 1998.
14
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro (1750-
1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
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As duas expressões tem sentido específico: a criminalidade se refere ao fenômeno


social na sua dimensão mais ampla, permitindo o estabelecimento de padrões através
da constatação de regularidades e cortes, enquanto crime diz respeito ao fenômeno
em sua singularidade, cuja riqueza em certos casos não se encerra em si mesma,
15
como no caso individual, mas abre caminho para muitas percepções” . (KLEIN,
2005:107-108)

Reconhecendo as distinções das categorias propostas, apresentar-se-ará um balanço da


criminalidade escrava na região de Manaus e com o “(...) intento de abordar os
comportamentos criminosos em sua complexidade e apanhá-los em seus nexos com a trama
social, privilegiou-se em segundo lugar, como objeto de análise, o crime em si”16. Colaborar
para a escrita da história da punição e do encarceramento no Brasil é muito significativo, pois
contribui para a compreensão de uma temática que até hoje persiste em constranger o sistema
democrático nacional.

Atentados contra a ordem: crimes praticados por escravos


Ao nos retermos aos demonstrativos de criminalidade praticada por diversos atores
sociais, especialmente pautada nas análises inferidas da documentação relativa aos relatórios
dos presidentes de províncias nos deparamos com crimes que envolvem principalmente as
práticas de homicídios, tentativas de ofensas físicas tanto graves quanto leves, fuga de presos,
roubos, furtos, estelionato, desobediência, resistência, deserção, ajuntamento ilícito, ofensa
moral, estupro, infração de posturas, entre outros.
A Falla dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, na abertura da 2º
sessão ordinária da 5º legislatura no dia 03 de maio de 1861 pelo presidente da mesma, o
excelentíssimo senhor doutor Manoel Clementino Carneiro da Cunha, nos permite uma
apreciação interessante dos dados prisionais já que os traz com uma regularidade ímpar
abrangendo os anos de 1852 a 1859, permitindo uma análise tanto de caráter provincial
quanto local.
Em relação aos dados provinciais, 31% das prisões foram motivadas por ferimentos e
ofensas físicas, seguido por homicídios que somaram 15,5% e 13, 8 % das deserções do
exército da armada. As péssimas condições das cadeias púbicas provinciais colocam a fuga de
presos em quarto lugar com 9,22 % das prisões seguida pelas tentativas de homicídio com 4,5
15
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense,
1984, p. 09.
16
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras
paulistas 1830-1888. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014, p.18.
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% dos casos prisionais17. Vale ressaltar que o alto índice atribuído a fuga de presos se deu
graças a uma evasão em massa que ocorrerá em 1858 e que levou à prisão 19 pessoas
elevando os índices gerais, mas nos demais anos a média de prisões por fuga de presos fica
entre 2 a 3.
No cômputo geral do período analisado, a segunda metade da década de 1850 se
mostra mais violenta se comparada a primeira, sendo que os anos mais tensos sob perspectiva
da criminalidade geral, foram respectivamente os de 1858, 1855, 1856, 1859 e 1857. O ano de
1858, o mais violento, acumula o índice de 18,5% dos crimes de toda a década de 1850, tendo
em suas fileiras os crimes de deserção, ferimentos e ofensas físicas emplacando as primeiras
posições ao somarem 56,01% das reclusões.
Os recrutamentos forçados tinham alvos muito bem delineados: homens livres negros,
índios e mestiços sem propriedades e trabalho regular, ou mesmo, pessoas que representassem
qualquer tipo de ameaça a comunidade ou aos poderes locais. Qualquer indivíduo visto como
potencialmente insurgente era agraciado com a convocação obrigatória, que se tornaram ainda
mais frequentes com a entrada do Império Brasileiro no conflito da região Cisplatina,
conhecido como Guerra do Paraguai.
Representavam os alistamentos compulsórios um “(...) distanciamento da comunidade
à qual pertencia, o esfacelamento dos laços étnicos e familiares”18. Igor Olinto ao tratar da
temática pondera que o processo de resistência ao cativeiro, senão esteve profundamente
articulado com às resistências às práticas de recrutamento para os corpos de trabalho e
exército, certamente compartilhou algumas agruras da mesma repressão. Essas perseguições,
com contornos de uma política imperial restritiva, explicam os índices tão elevados de
deserções.
Esse receio em relação aos recrutamentos acabava afetando diretamente a produção
dos censos na província pelo temor que de que essa contabilização populacional não passasse
de um mecanismo dos poderes normativos para o “(...) recrutamento dos trabalhadores ou

17
Todos os dados apresentados foram por mim computados a partir dos dados disponíveis na Falla dirigida à
Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, na abertura da 2º sessão ordinária da 5º legislatura no dia 03
de maio de 1861 pelo presidente da mesma o excelentíssimo senhor doutor Manoel Clementino Carneiro da
Cunha. Typografia de Francisco José da Silva Ramos, pp. 8.
18
CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. Uma viva e permanente ameaça: resistências, rebeldias e fugas
escravas no Amazonas provincial. Jundiaí, Paco Editorial, p.179.
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outro fim não explicitado. Isto acarretaria (e explicaria) tanto as fugas das povoações quanto
as declarações incompletas.” (SAMPAIO, 2014:27).19
Em relação a Comarca da Capital foram presas 181 pessoas ao longo do período de
1852 a 1859, computando assim 53,86 % das reclusões da Província. Ao longo desse período,
a ocupação máxima da Cadeia Pública da Capital de presos foi de 32 indivíduos e a
ocupação mínima de 1920. Os anos referentes à ocupação máxima e mínima não foram
especificados na Falla de 1861. Os números apresentados vão de encontro com as apreciações
feitas dos Livros da Secretária de Polícia do Amazonas.
A partir de ambas as documentações, nos deparemos principalmente com o
enfrentamento de uma criminalidade mais corriqueira como: prisões por embriaguez, jogos
proibidos pelas posturas municipais, desordem, desobediência, insubordinação, apreensão de
desertores, furto e resistência, em especial ao recrutamento obrigatório. Os dados da Falla
Provincial propiciam uma análise mais coletiva do quadro de delitos e da criminalidade,
enquanto os Livros da Secretária de Polícia e os processos crimes nos permitiram reconstruir
mais detalhes das trajetórias desses sujeitos e dos conflitos relacionados à repressão.
Do total das reclusões da Capital, 40,34% das detenções foram causadas por
embriaguez, seguidas por 16,6% de prisões para averiguação por suspeitas de criminalidade e
15,47% para correção. As prisões para correções são também dirigidas aos escravos,
especificadas na documentação como a requisição dos senhores e correspondem a 4,42% das
prisões21. No decorrer das análises dos Livros da Secretária de Polícia nos deparamos com
diversas prisões realizadas a mando dos senhores dos escravos com o intuito de penitenciá-
los, evidenciando que em múltiplos momentos as punições transcenderam o âmbito das
relações pessoais e recorrem aos poderes normativos.
No dia 16 de outubro de 1878, foi registrado pelo chefe de polícia José Jorge de
Carvalhal as prisões dos escravos Manoel Taciano Murillo Torres e Manoel Gomes de
19
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Os fios de Ariadne: fortunas e hierarquias sociais na Amazônia, século XIX.
São Paulo: Editora Livrais da Física, 2014, p.27.
20
Todos os dados apresentados foram por mim computados a partir dos dados disponíveis na Falla dirigida à
Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, na abertura da 2º sessão ordinária da 5º legislatura no dia 03
de maio de 1861 pelo presidente da mesma o excelentíssimo senhor doutor Manoel Clementino Carneiro da
Cunha. Typografia de Francisco José da Silva Ramos, pp. 9.
21
Todos os dados apresentados foram por mim computados a partir dos dados disponíveis na Falla dirigida à
Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, na abertura da 2º sessão ordinária da 5º legislatura no dia 03
de maio de 1861 pelo presidente da mesma o excelentíssimo senhor doutor Manoel Clementino Carneiro da
Cunha. Typografia de Francisco José da Silva Ramos, pp. 9.
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Antônio Martins por requisição de seus senhores ao subdelegado de polícia do 1º Distrito da


Capital22. A soltura foi noticiada no dia 18 de outubro por ordem do mesmo subdelegado de
polícia. As motivações para o aprisionamento não são explicitadas, mas a curta duração da
reclusão nos leva a crer que os cativos devam ter praticado algum delito considerado leve
tanto pelos senhores como pelas autoridades policiais, como desobediência, distúrbios, brigas,
embriaguez ou mesmo ofensas morais.
As repressões dos poderes normativos envolvem notadamente os grupos
marginalizados da sociedade local como: escravos, libertos, indígenas e estrangeiros de
determinadas procedências. O número de prisões motivadas por embriaguez e desordem
envolvendo africanos livres e indígenas, largamente estigmatizados pelas autoridades como
ébrios e rixosos, é preponderante quando nos debruçamos sob a documentação referente ao
ano de 1963 dos livros da Secretária de Polícia do Amazonas. A presença dos africanos livres
nesse corpus documental é recorrente, fato que intriga já que essa população na província, e
na capital era reduzida se comparada a outros grupos sociais.
Os cativos também aparecem na Falla de 1861 quando é abordada a prisão de escravos
fugidos. Os índices somam 3,87% das prisões totais. Os jornais da localidade exibiram 44
anúncios de escravos fugidos entre os anos de 1854 a 186923, e as poucas prisões demonstram
que um número pequeno de fugitivos era recapturado. Outra estimativa relevante, que acaba
recaindo sobre os mesmos sujeitos sociais marginalizados, são as prisões com base em
distúrbios que somavam 5,53% do total.
Resta-nos questionar, levando em conta os padrões demográficos, se de fato esses
delitos eram praticados em maior grau por estes atores sociais como apresentam os
documentos referidos ou se os comandos policiais e representantes dos poderes normativos
eram mais rígidos com os deslizes de determinados grupos, vistos como passíveis de controle
e subordinação, e coniventes com os delitos de outros, como por exemplo aqueles praticados
por membros considerados mais prestigiosos da localidade.
A carta enviada pelo comerciante português João da Rocha Nogueira ao chefe de
polícia Joaquim José Pinto de França nos dá alguns indicativos sobre essas ações e dualidades

22
Arquivo Público do Estado do Amazonas. Livro da Secretaria de Polícia 1878 n. 84. N.268. 16 de outubro de
1878.
23
CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. Uma viva e permanente ameaça: resistências, rebeldias e fugas
escravas no Amazonas provincial. Jundiaí, Paco Editorial, 2015, p.181.
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de posturas das autoridades quando expõe uma espécie de denúncia: “(...) tem motivo de
queixa contra as autoridades policiais; e se teme alguma desordem por parte das mesmas
autoridades (...) declarar se lhe consta que estas autoridades procuraram ou tem procurado
perseguir a súbdito portugueses.24” Se esse tipo de encalço ocorria em relação aos residentes
lusos, é muito provável que as perseguições e ações disciplinadoras sob os escravos e
indígenas fossem ainda mais severas e constantes.
A partir dos dados concernentes aos processos compulsados, unidas as amostragens
oferecidas pelas demais fontes trabalhadas, mostra-se mais plausível a hipótese de que a
criminalidade escrava ativa permaneceu relativamente constante entre as décadas de 1840 a
1880. Os crimes contra a propriedade, como roubos, furtos e danos,revelam-se preponderantes
nos dados apresentados somando 50% dos crimes analisados, seguidos por crimes contra a
pessoa (homicídio e ferimento) e contra a ordem pública (resistência e responsabilidade)que
representam respectivamente 25% dos delitos.
Ao considerar os tipos de objetos furtados ou roubados podemos inferir que os atos se
focavam tanto na busca de víveres para eles e seus pares, já que muitos conviviam em
circunstâncias de extremada carência material reagindo assim à situação social que lhe era
imposta, quanto também àbusca por determinados objetos que denotassem um status
diferenciado ambicionando assim“(...) apropriação dos símbolos de dominação branca,
caracterizando-se dessa maneira como crimes integrativos.”25 (MACHADO, 2014:53).
O crime praticado no ano de 1946 pelos escravos Valentim e Maria Antônio
corroboram com essas perspectivas, já que os cativos do vigário João Antônio da Silva
roubaram diversas mercadorias da casa do Tenente Raimundo da Cruis Nonato. Dentre os
bens usurpados podemos exemplificar fazendas de tecidos, camisas de chita, sabão, entre
outros, e ao que tudo indica no processo o ato se deu com o intuito de revenda dos bens
tomados e consequente acúmulo de pecúlio por parte dos réus.
Nem sempre a aquisição de elementos simbólicos integradores se deu por meio
de furtos ou roubos, em diversas localidades onde a presença escrava se fez, são múltiplos os
episódios constatados pela historiografia de objetos adquiridos por meio de compras por parte
dos escravos, que utilizavam seus pecúlios, e que obviamente estavam sob suspeição, já que o
24
Arquivo Público do Estado do Amazonas. Livro da Secretaria de Polícia 1878 n. 105. N.252. 21 de setembro
de 1878.
25
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras
paulistas 1830-1888. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014, p.53.
307
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controle sob a população escrava era um dos fatores de união dessa população branca que
tinha como intuito maior o controle e a vigilância sobre a escravaria.
Os crimes contra a propriedade envolviam tanto pequenos atos, tais quais furtos de
sabão, alimentos, peças de roupas, fazendas de tecidos, joias, ou mesmo pequenas quantias de
réis como grandes empreitadas aquela identificada por meio de um processo crime que
compreendia o furto de 50 arrobas de goma elástica praticados pelo escravo Jacyntho, seu
senhor Joaquim dos Santos Pinto Belleza e o filho de seu senhor Antônio dos Santos Pinto
Belleza na região do Rio Jacaré, um afluente do Rio Madeira, no ano de 1973.
Em uma região financeiramente mais modesta,as ordens do proprietário direcionado
ao cumprimento das práticas delituosas recaía sobre todos da casa, inclusive filhos e escravos.
Além da iminente morte dos cativos durante os atentados, deve-se considerar ainda que eles
também recebiam armas, como no caso escravo Jacyntho, para o cumprimento de suas
missões, as quais poderiam ser utilizadas contra os senhores; no entanto, em nenhum dos
processos analisados foi possível perceber a ocorrência desta prática, em contrapartida nos
deparamos com o assassinato de um escravo por outro escravo.
A muitos cativos urbanos eram permitidas atividades que gerassem renda a seus donos
e aos próprios escravos, especialmente no que concerne a senhores de poucas posses.
Conforme classificação de Teixeira de Freitas em Consolidação das Leis Civis (1858), os
escravos pertenciam à classe dos bens móveis, ao lado dos semoventes26.(FREITAS,1896:
37). Com os semoventes, figuravam nos contratos de terras como bens acessórios dos
imóveis.O escravo podia pertencer a mais de um proprietário, como objeto de condomínio.
Nesses casos o escravo seria alugado a um dos condôminos ou a terceiros, Ord., Ls IV, Tit.
96, § 52:
Tendo os herdeiros ou companheiros, alguma coisa, que não possam entre si partir
sem dano, assim como escravo... não há devem partir, mas devem-na vender a cada
um delles, ou a outro algum qual mais quiser em ou por se aprazimento trocarão
com outras cousas... e não poderem por esta maneira a vir, arrendala-ão e partirão
27
entre si" .MALHEIRO, 1866:81)

Os acordos entre os proprietários e os cativos determinavam que estes deveriam obter


uma certa quantia em valores, denominada jornal, que era repassada ao final do dia ao seu

26
Freitas, Augusto Teixeira - Consolidação das Leis Civis, 3- ed., Rio de Janeiro, H. Garnier, Livreiro - Editor,
1896 (P. XXXVII).
27
MALHEIRO, Agostinho Perdigão. Escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social, Rio de Janeiro,
Ed. Nacional, 1866, p. 81 (nota 335).
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senhor e parte era destina ao escravo.É importante salientar que uma demanda trabalhista
própria dos centros urbanos foi deslindada tanto por condições econômicas quanto sociais
peculiares de cada localidade, mas ainda sim permitindo aos cativos uma relativa
flexibilidade.

Prisões: sentina de todos os vícios


Apresentada como o esperançoso lugar da recuperação daqueles que se desviaram das
condutas socialmente aprovadas, na prática não passavam de locais relegadas ao abandono,
como um apêndice incomodo do qual as autoridades não sabiam se livrar. Os governos
usavam a prisão, como exibição de sua modernidade e adesão aos princípios liberais, como
conclamado no artigo 179 e o parágrafo 21 da Constituição do Império: “as cadeias serão
seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para a separação dos réus, conforme
suas circunstâncias e natureza dos crimes”28.
Seguindo tendências internacionais o Brasil, segundo os ditames do Código Criminal,
dispor-se à construção de estabelecimentos onde pudessem ser aplicadas as penas de prisão
simples e, principalmente, de prisões com trabalho, objetivando a correção moral do
criminoso e sua consequente devolução ao convívio social, disciplinado e acostumado com a
rotina do trabalho. Inspirados nos mais respeitados referenciais europeus e estadunidenses, é
de suma importância observar que o modelo punitivo brasileiro não foi simplesmente uma
cópia dos pares estrangeiros, mas sim uma adaptação das influências externas às
particularidades de sua sociedade escravista.
A manutenção e regulamentação das instituições carcerárias ao longo do Império
estavam nas mãos das autoridades provinciais, o que ocasionava particularidades, por
pressões dos interesses das elites locais, que permaneciam ambíguas entre as formas punitivas
tradicionais e os atrativos da modernidade em que queriam se reconhecer. Os discursos em
relação às cadeias e suas condições são constantes nos relatórios dos presidentes de província,
e se dividiam entre aqueles dispostos aos investimentos e os reticentes com os gastos.
Ygor Olinto Rocha Cavalcante ao analisar a realidade das cadeias da província entende
que “(...) problemas morais permanecem incontornáveis não apenas em decorrência das

28
Amazonas, Governo do. Relatório que a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas apresentou na
abertura da sessão ordinária no dia 7 de setembro de 1858. Francisco José Furtado, presidente da mesma
província. Manaus, Typographia de Francisco José da Silva Ramos. 1858, p.32.
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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
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práticas de tortura impostas aos recolhidos, mas também pela falta de celas que separassem os
presos por sexo, condições e graus de crimes cometidos.”29 (CAVALCANTE, 2015:169)A
superlotação carcerária afrontava a condição humana dos detentos, aumentando a
insegurança, os abusos sexuais, o consumo de bebidas e drogas, diminuindo as chances de
reinserção social do sentenciado, além de contrariar as condições mínimas exigidas pelas leis
imperiais.
Nas instituições de controle, travavam-se importantes embates, e estes não estavam
exclusivamente nas mãos dos atores políticos privilegiados, como evidenciado no exemplo da
escrava Catharina Maria Roza da Conceição.Em 27 de agosto de 1875, a cativa requereu ao
Juiz de Direito da Comarca, Francisco de Paula Lins de Guimarães Peixoto, uma ordem de
Habeas Corpus em seu favor por sofrer constrangimento ilegal por ter sido reduzida a
escravidão em poder do detento Antônio Joaquim Pereira do Socorro Valente na cadeia
pública de Manaus. A queixosa também relata em seu interrogatório ter sido vítima de
ofensas físicas graves e “bárbaras”, comprovadas no exame de corpo de delito30.
Situações como a de Catharina se unem às agressões, fugas individuais e em massa,
tentativas de homicídios, assassinatos, espancamento, brigas, denunciando as condições de
precariedade e ilegalidade nas quais o sistema punitivo da capital e da província se
encontravam. Mas suas apreciações são de extrema importância por contradizerem as
perspectivas que apresentam o sucesso ímpar do efetivo controle social das classes burguesas
sobre as camadas pobres e marginalizadas da população por meio das prisões.
Além do exemplo de Catharina, é mister se colocar o exemplo do escravo Amâncio
Jozé Antônio31 que estava aprisionada na Cadeia Pública da Barra do Rio Negro e fora
processado por um outro detento, Joaquim Antônio de Andrade, que o acusava de agressão
com um cabo de vassoura no dia 13 de fevereiro de 1853 na dita prisão. No estágio de
inquirição das testemunhas,também detentos da Cadeia Pública, Amâncio Jozé Antônio
acaba sendo culpabilizado pelo crimepor Félix Gomes do Rego chefe de polícia interino da

29
CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. Uma viva e permanente ameaça: resistências, rebeldias e fugas
escravas no Amazonas provincial. Jundiaí: Paco Editorial, 2015, p.169.
30
Arquivo Geral do Tribunal de Justiça do Amazonas. Fundo Juízo de Direito. Subfundo Juízo de Direito (1874-
1877). Código JD.JD.PJ. ACH1875:08(05)
31
Arquivo Geral do Tribunal de Justiça do Amazonas. Fundo Juízo de Direito. Subfundos Juizo de Direito (1874-
1877). Código JD.JD.PJ. ACH1875:08(05)
310
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província e pelo promotor público da ComarcaClementino José Pereira Guimarães com base
no artigo 6032 do Código Criminal.
No desenvolvimento das sessões do Tribunal do Júri fez-se a reviravolta, os jurados
compreenderam ser notório que o réu para evitar um mal maior contra a sua pessoa, usa da
agressão como forma de defesa própria. O tribunal não enumera quais seriam as ameaças que
o escravo Amâncio Jozé Antônio vivenciava na prisão pela pessoa Joaquim Antônio de
Andrade, mas compreende que elas existiam, o retirando ao fim do julgamento do rol dos
culpados e garantindo sua inocência nesta acusação.
Por mais que o espaço carcerário de Manaus apresentasse melhores condições em
comparação com outras localidades da província, o ambiente se mostrava em condições de
precariedade e insalubridade extremadas, não sendo capaz de cumprir minimamente o que
preconizava a legislação, tal como apreciado no exposto feitos por Felippe Honorato da
Cunham chefe interino de polícia, ao concluir:
(...) é sensível a falta de cadeias regulares em toda a província. Podemos dizer que
não temos uma só com acomodações precisas. A construção de uma nesta capital é
de reconhecida necessidade e de vantagens para os cofres provinciais, se se fizessem
divisões para as oficinas onde os presos que forem artistas poderão trabalhar.(...).
Morreram de varíola e de outros males moléstias, digo, de outras enfermidades oito
33
criminosos de homicídios, sendo seis já condenados e dois em processo

José Jorge Carvalhal, chefe de polícia da capital, em anos posteriores relata sua
preocupação em relação ao estado conservação da cadeia da capital ao então presidente de
província Barão de Maracajú quando: “Rogo a V.Exa. a expedição de suas ordens à fim de
ser a possível brevidade consertada a porta da prisão 5, pois acha-se quase podre a madeira e
sem a solidez necessária par suportar as ferragens, resultando disto perigos a conservação dos
presos nela existentes.34”
As cadeias eram instaladas em casas alugadas pelo poder público e adaptadas às
necessidades mais latentes facilitando situações como a tentativa de fuga que ocorrera na

32
BRASIL. Artigo 60 da Lei de 16 de dezembro de 1830: “Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena, que não
seja a capital, ou de galés, será condemnado na de açoutes, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor,
que se obrigará a traze-lo com um ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar. O número de açoutes será
fixado na sentença; e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta.”
33
Arquivo Público do Estado do Amazonas. Livro n. 10. Secretaria de Polícia do Amazonas. Expedidos. N.322.
15 de fevereiro de 1874
34
Arquivo Público do Estado do Amazonas. Livro da Secretaria de Polícia 1878 n. 52. . N.290. 28 de outubro de
1878
311
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cadeia pública de Manaus em 12 de abril de 1874 e fora exposta pelo chefe de polícia
Eutterquio Carlos Gama ao presidente da província Domingos Monteiro Peixoto:
Ontem pelas 6 horas da tarde os presos militares, que se achavam recolhidos a uma
da prisões da cadeia civil desta cidade tentaram evadir-se arrombando a parede
inferior em que assenta a grade de ferro de uma das janelas a frente do edifício, mas
pressentindo a tempo o arrombamento pelo comandante da guarda comunicou ao
carcereiro que deu imediatamente parte ao oficial de estado do terceiro batalhão a
que pertencem os referidos presos os quais foram logo removidos para o xadrez do
mesmo batalhão. Solicito, portanto, de vossa excelência suas ordens para com
35
brevidade sejam reparado o supradito arrombamento

A falta recursos para reformas e melhorias nas cadeias, dificuldade de preencher


vagas, a ausência de meios de transportes, como um vapor exclusivo à disposição das forças
policias ou mesmo pessoas idoneamente e profissionalmente preparadas para cumprirem
minimamente os requisitos exigidos aos encargos se mostram como problemas persistentes e
quase insolucináveis ao longo do período imperial.
Uma das grandes dificuldades girava em torno do preenchimento das ocupações de
carcereiro, já que as mesmas eram entendidas como de extrema responsabilidade por uns ou
depreciativas por outros, tanto pelo baixo pagamento como pelo status socialmente pejorativo
do cargo. As documentações referentes à Secretária de Polícia do Amazonas são ricas em
relatos envolvendo essa função, como a do carcereiro da Cadeia Pública da capital Fortunato
Antônio Correia que é acusado de soltar por conta, sem autorização prévia de qualquer
autoridade, os indivíduos Hilário Delgado Manoel Inocêncio da Silva e Joaquim Duarte da
Fonseca presos por embriaguez e desordem no dia 3 de janeiro de 1874 e acabou sendo
demitido pelo chefe de polícia da capital Felippe Honorato da Cunha.
Na carceragem, contribuíam junto ao trabalho de vigilância do carcereiro as figuras
dos guardas nacionais que também chegavam a causar situações tumultuosas como a do
guarda nacional em destacamento Carlos Antônio Gama da Silva que fazia parte da guarda da
cadeia pública da capital no dia 24 de fevereiro de 1874 e não apenas se embriagou durante
seu turno como também repassou bebida alcoólica (aguardente) para os presos Marcelino e
Nicolau Mariano que se embriagaram a tal ponto de brigarem e ferirem-se mutuamente,
findando na prisão do dito guarda36.

35
Arquivo Público do Estado do Amazonas. Livro n. 10. Secretaria de Polícia do Amazonas. Expedidos. N.445.
13 de abril de 1874
36
Arquivo Público do Estado do Amazonas. Livro n. 10. Secretaria de Polícia do Amazonas. Expedidos. N.352.
24 de fevereiro de 1874
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A insegurança obrigava a administração a desenvolver uma relação dúbia com os


sentenciados, mantendo privilégios e combinações com alguns, para poder assegurar a ordem
e preservar suas próprias vidas. Diante da desproporção numérica entre presos e
administradores, a força não poderia ser o instrumento preferencial de controle. Até porque os
próprios destacamentos não inspiravam muita confiança, como no caso supracitado.
Seja por conta de terem sido escolhidos entre os militares indisciplinados, como forma
de castigo, ou pelo longo convívio entre os praças e os presos, que acabava por criar relações
de camaradagem. Essas relações sociais nem sempre eram harmônicas e livres de conflitos.
Olavo Bilac pareceu compreender a essência do sistema prisional brasileiro como poucos e
sob uma perspectiva tanto do passado quanto do presente ao inferir:
“Que vais fazer agora o governo? Vai demitir o administrador da Casa de Detenção?
Daqui a pouco será obrigado a demitir o cidadão que o substituir, e as coisas
continuarão no mesmo pé-porque a causa dos abusos não reside na incapacidade de
um funcionário, mas num vício essencial do sistema, num defeito orgânico do
aparelho penitenciário. E não há de ser a demissão de um administrador que há de
consertar o que já nasceu torto e quebrado”.

Na Falla dirigida a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas em o 1.o de


outubro de 1857 pelo presidente da província, Ângelo Thomaz do Amaral, percebemos outros
pontos de obstaculização: “a polícia dessa vastíssima província ressente-se principalmente: de
tão longas interinidades, de falta de pessoal habilitado para os cargos de delegados,
subdelegados e até inspetores de quarteirão, das distâncias que há de percorrer para efetuar-se
qualquer diligência (...)37.
O alerta feito pelo presidente da provínciaem questão corrobora com o que foi
apreciadono processo criminal analisado em que o escravo Jacyntho José Ferreira figura
como réu junto ao seu senhor Joaquim dos Santos Pinto Belleza e o filho de seu senhor,
Antônio dos Santos Pinto Belleza. Os réus são acusados do roubo de cinquenta arrobas de
borracha dentre outros muitos danos na propriedade do influente Pedro Luiz Sympson, Major
Comandante da Guarda Nacional do Rio Madeira eCavaleiro da Imperial Ordem de Cristo.
Como os supostos crimes foram praticados em um lugar distante da capital, chamado
Hortência- distrito de quarteirão do Rio Jacaré (um afluente do Madeira), as autoridades
depararam-se com múltiplas dificuldades para se efetivar as inquirições: problemas de

37
Amazonas, Governo do. Falla dirigida a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas em o 1.o de outubro
de 1857 pelo presidente da província, Ângelo Thomaz do Amaral. Rio de Janeiro, Typographia Universal de
Laemmert, 1858, p.16.
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deslocamento de peritos para a realização do exame de corpo de delito, a ausência dos réus ao
longo das mais distintas etapas de interrogatórios ou mesmo a prisão dos mesmos fez com
que o processo fosse delongado por anos e os custos tornassem-se aviltantes, embaraçando
por muitos momentos uma conclusão definitiva.
Percebe-se que além das dificuldades que a distância impõe para se inquerir e
comunicar testemunhas, acusador e réus, há o problema do deslocamento das forças
normativas e a ausência de números suficientes de seus representantes nas regiões mais
distantes, impossibilitando muitas vezes, a celeridade e eficácia do trabalho. A fala de Miguel
Gomes de Figueiredo, juiz municipal dos termos de Manaus e Barcelos ao aplicar o
aditamento ao libelo em 25 de Outubro de 1873 no caso dos Belleza e do escravo Jacyntho
José Ferreira supracitado, demostra nitidamente alguns dos obstáculos ponderadas até agora:
“(...) requeiro que sejam notificadas as testemunhas e que além das demais diligências legais,
seja expedido um mandado de prisão contra os réus e que se requisite força para efetuar-se
essa diligencia visto no Rio Madeira não existir suficientemente para esse fim (...)”38.

Referências
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de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história da escravidão na Corte. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. Uma viva e permanente ameaça: resistências,
rebeldias e fugas escravas no Amazonas provincial. Jundiaí, Paco Editorial
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São
Paulo: Brasiliense, 1995.
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo:
Brasiliense, 1984.
GENOVESE, Eugene Dominick. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram.
Rio de janeiro: Paz e Terra,1988.
GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática,1990.
GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de
fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX), São Paulo: Ed. UNESP/POLIS, 2005
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de
Janeiro (1750-1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas
lavouras paulistas 1830-1888. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014.

38
Amazonas, Governo do. Falla dirigida a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas em o 1.o de outubro
de 1857 pelo presidente da província, Ângelo Thomaz do Amaral. Rio de Janeiro, Typographia Universal de
Laemmert, 1858, p.16.
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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
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NETO, Provino Pozza. Como se fora de ventre-livre: estudos sobre alforrias no Amazonas
imperial, Programa de Iniciação Científica – PIBIC/CNPQ/UFAM, Relatório Final,
agosto/2009, disponível na Biblioteca Setorial do ICHL/Universidade Federal do Amazonas.
REIS, João José e GOMES, Flávio dos Santos (org.). Liberdade por um fio: história dos
quilombos no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SAMPAIO, Patrícia M. “Nas teias da fortuna: acumulação mercantil e escravidão em
Manaus, século XIX”. Mneme – Revista de Humanidades, Caicó, v. 3, n.6 (2002).
___________, Os fios de Ariadne: tipologias de fortunas e hierarquias sociais em Manaus:
1840-1880, Manaus: EDUA, 1997.
THOMPSOM, E. P. Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo, Companhia das Letras, 1998.
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez, Sonhos africano, vivências ladinas: escravos e forros
em São Paulo (1850-1888). São Paulo: Hucitec, 1998.

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A RÁDIO ESCOLA COMO FERRAMENTA DE ENSINO-APRENDIZAGEM PARA


OENSINO DE HISTÓRIA E DIREITOS HUMANOS

LETÍCIA ARAÚJO BRANDÃO*


MAXLANDER DIAS GONÇALVES**

Introdução
O desafio que se coloca no contexto escolar para o processo de ensino-aprendizagem,
relacionando conteúdos múltiplos sem perder a noção do que de fato é a razão de ser da
educação tem nas tecnologias uma problemática. Isso porque tais ferramentas podem servir
simplesmente para florear uma frágil formação acadêmica que segue sendo transmitida nos
ambientes estudantis.
A tecnologia não é a garantia de uma virada na educação. Tampouco é o seu ocaso. É
preciso compreendê-la ante a uma sociedade que muda constantemente, cujos consagrados
elementos formativos, outrora imprescindíveis, estão em decadência, bem como suas
metodologias - testadas e aprovadas por séculos neste dispositivo chamado escola.
Há necessidade de reconhecer o território educacional do “fazer com”, dirimindo
barreiras entre discentes e docentes, diluindo as rígidas estruturas catedráticas, entrelaçando as
grades disciplinares. E neste ponto, em particular, a tecnologia pode ser um instrumento a
favor do saber.

O rádio enquanto ferramenta pedagógica


O rádio, historicamente, contribuiu de modos variados para o desenvolvimento da
educação e da cultura, com destaque para: a amplitude da fala e seu caráter democrático,
tendo a autonomia e o protagonismo preponderância na oralidade; a persistente marca do
regionalismo, característica da riqueza linguística brasileira; e a simplicidade na operação dos
equipamentos e na construção da narrativa radialística. Conforme Ferrareto (2001), o rádio
sintetiza este esforço da humanidade na busca pela fala à distância, a um número considerável
de indivíduos, levando mensagem de longo alcance como se fosse por contato direto.
Na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, fundada em 1923 pelo professor Roquette-
Pinto, havia um desejo de levar conhecimento através das ondas sonoras. Prontamente o
conteúdo educacional marcaria as primeiras produções, inclusive em face da influência

*
Professora de História do Instituto Federal de Rondônia (IFRO/Ariquemes) e Doutora em História Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
**
Professor de História do Instituto Federal de Rondônia (IFRO/Ariquemes) e doutorando em História Social das Relações
Políticas pelo PPGHIS/UFES
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escolanovista. Obviamente, seu potencial publicitário foi explorado de maneira singular


(inaugurando o que posteriormente seria uma tendência entre as mídias como um todo,
especialmente a TV) logo que o rádio foi se popularizando e o caráter educacional foi sendo
preterido. Todavia nas décadas que se seguiram, na alvorada das lutas sociais em todo o
mundo, o rádio foi um forte aliado dos engajados grupos militantes, bem como dos mais
abjetos regimes políticos do planeta. Por baixa frequência, alta frequência ou mesmo
conectada por fios a rádio foi interligando pessoas nesta saga comunicativa. E o espaço
escolar não ficou de fora dessa rede.
Especialmente na década de 1960 no Brasil houve um entrelaçamento da prática
educacional com o radialismo, através do Movimento de Educação de Base em um primeiro
momento. Preconizava a necessidade de propagar conhecimento para regiões ainda
inalcançadas pelo escolarização, em favor de grupos não alfabetizados, no caso camponeses
nortistas e nordestinos.
A pedagogia de Paulo Freire tem relevância neste percurso buscando ensinar pela
leitura do mundo para além da decodificação das palavras e serviu sobremaneira para um
percurso de formação política (PRETTO; TOSTA, 2010). Com a ruptura democrática em
1964 e o consequente fechamento do regime militar a iniciativa do MEB foi descontinuada,
sendo substituída pelo projeto Minerva e o Movimento Brasileiro de Alfabetização -
MOBRAL. Destarte, o rádio não deixou de ser útil enquanto ferramenta para um tipo de
educação (CONSANI, 2012).
Ainda na década de 1950, a partir das aulas de Engenharia, foram construídos
transmissores a fim de que os discentes compreendessem princípios de frequência sonora.
Tendo a permissão do governo para operar uma estação no campus da UFRGS, o acordo
estabeleceu que o conteúdo a ser transmitido por esta rádio escola deveria ser educativo
(FERRARETTO, 2001, p.140). O ambiente universitário se tornou um lugar para
experimentação dessas atividades e as rádios educativas até hoje estão, em sua maioria, nas
mãos das universidades. Tornou-se, por conseguinte, o ambiente onde uma teoria que unisse
educação e comunicação pudesse se desenvolver. Daí para a incorporação do rádio como
ferramenta pedagógica, como facilitador do trabalho discente e docente foi um pulo,
entendendo que o uso das linguagens audiovisuais possibilita ao educando uma melhor
compreensão entre os elementos da escola e da própria sociedade (PENTEADO, 1998, p.25).

Os estudos que envolvem educação e comunicação


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Entre os estudiosos deste campo transdisciplinar que se constitui chamado de


Educomunicação há alguns consensos. O primeiro deles parte da própria mídia cujo papel é
formador, em algum sentido. O segundo aceita que as tecnologias, assimiladas a uma didática
exercitada na capacidade dialógica, ou seja, educação e comunicação, tem um potencial
transformador “rumo a uma educação escolar formadora, reveladora, suporte para o exercício
pleno da verdadeira cidadania” (PENTEADO, 1998:13).
Boa parte dos projetos educomunicacionais nasceram, cresceram e se desenvolveram
problematizando o sistema escolar tradicional, da educação bancária conforme preconiza
Paulo Freire. Nesse sistema “a hierarquização das funções, a meritocracia, a determinação
autoritária dos objetivos e a eficiência é sempre uma medida de julgamento para a avaliação
do produto” (D’ÁVILA, 1985:29).
Ademais, conforme assinala Cunha (1985:21), “a educação, numa sociedade de
classes, cumpre (como serviço oferecido e controlado basicamente pelo Estado) uma função
legitimadora do status quo”, além de promover a socialização dos indivíduos a fim de serem
retransmissores de uma ideologia dominante. No que assinalam Bourdieu e Passeron (1975),
ao analisar os modos de reprodução da desigualdade numa estrutura classista, a partir da
escolarização, acabando por definir a escola como um lugar de dissimulação da verdade.
Sendo assim, “algumas instituições escolares, conscientes das contradições presentes
na sociedade e, consequentemente na escola, têm incorporado em seu contexto meios de
comunicação, entendidos como recursos facilitadores do trabalho docente” (PENTEADO,
1998:25). Partem do princípio que as linguagens audiovisuais possibilitam ao educando
estreitar as relações entre a sociedade e a escola, diminuindo o fosso entre o que é ensinado e
o que é vivido.
Os teóricos da Educomunicação creem que os meios de comunicação contribuem
substancialmente para a formação humana, com todas as idiossincrasias possíveis,
obviamente. Somente na vivência de uma didática cuja capacidade comunicacional humana
seja exercitada é que as tecnologias comunicacionais “ganharão a possibilidade de exercer o
seu poder transformador, rumo a uma educação escolar formadora, reveladora, suporte para o
exercício pleno da verdadeira cidadania” (PENTEADO, 1998:13). Daí “é preciso que a
relação da escola com esses meios encaminhe-se para uma abordagem pedagógica que tenha
por meta legitimar uma ideologia democrática de educação”, fazendo ampliar o interesse
discente e docente pelo processo de ensino/aprendizagem (PORTO, 2001:28).

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A cooperação entre as diversas áreas do saber e entre os diferentes agentes envolvidos


no ato de aprender e ensinar pressupõe a relação com o outro. “O conhecimento precisa de
expressão e de comunicação. Não é um ato solitário”, conforme pontua Gadotti (2002:06). A
comunicação, o diálogo, a compreensão e a cooperação são condições imprescindíveis para a
plenitude do desenvolvimento humano e da sociedade.
A escola, em Paulo Freire, é o espaço que extrapola as quatro paredes da sala de aula.
O ‘Círculo de Cultura’ freireano já pressupunha isso em suas primeiras experiências. “Na
sociedade do conhecimento de hoje isso é ainda muito mais verdadeiro já que o espaço
escolar é muito maior que a escola”, pois, dentre tantas instituições possíveis, a mídia foi mais
uma que ampliou a noção de sala de aula (GADOTTI, 2002:06).
“Obstaculizar a comunicação é transformá-los [os homens] em quase coisa” (FREIRE,
1987:125). É inserida nesta cultura, “em que professor e aluno ocupam o lugar de sujeitos
comunicantes, que as modernas tecnologias da comunicação poderão transformar a educação
escolar, colocando-a no patamar da modernidade e contemporaneidade que desejamos”
(PENTEADO, 1998:21). Para Kaplun (2011:184)
No que diz respeito ao emprego de meios na educação, bem vindos sejam, desde
que sejam aplicados crítica e criativamente, a serviço de um projeto pedagógico,
ultrapassando a mera racionalidade tecnológica; como meios de comunicação e não
de simples transmissão; como promotores do diálogo e da participação; para gerar e
potenciar novos emissores mais do que continuar fazendo crescer a multidão de
receptores passivos. Enfim, não meios que falam e sim meios para falar.

Por fim, as teses acerca da Educomunicação pressupõem que a revolução tecnológica


trouxe vários benefícios, mas se, conscientemente, não caminharmos em direção à
democratização dos meios, da sociedade e rumo à libertação da palavra no ambiente escolar,
continuaremos com uma imensa distorção entre o que se preconiza como ideal e o que se
experimenta, de fato, enquanto vivência coletiva.

Uma educação dialógica e comunicativa: as ideias de Paulo Freire


A premissa da educação enquanto possibilidade de uma prática libertadora é uma
referência que acompanha os escritos de Paulo Freire desde o início. De fato é o próprio
indivíduo em sua descoberta do mundo, na leitura particular daquilo que o cerca, num
processo reflexivo, que pode se descobrir e se conquistar “como sujeito de sua própria
destinação histórica” (FREIRE, 1987:9).

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A alfabetização de adultos, através dos círculos de cultura, enquanto um método


pedagógico capaz de fazer com que o sujeito aprenda a ler para além das letras, tem no prévio
conhecimento do indivíduo um evento disparador, a saber: ninguém ignora tudo. Do mesmo
modo ninguém sabe tudo. Cabe ao educador comprometido com a prática da liberdade, “em
diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem” unir esforços,
transformando cada pensar numa busca pelo saber mais, num reconhecimento de que sempre
há algo a ser aprendido tanto por quem educa quanto por quem é educado (FREIRE,
1983:25).
Para além da educação de adultos Paulo Freire provoca uma reflexão sobre o caráter
da pedagogia em si que tanto pode estar comprometida com a opressão quanto pode desvelá-
la e, por conseguinte, superá-la. A opressão nos textos freireanos tem fundamentos estruturais
e a pedagogia do oprimido fundamenta-se na práxis que está comprometida com a crítica
dessa condição subalterna que atravessa a muitos cujo resultado educacional para os nossos
dias reflete numa espécie de repetição de ciclos de baixo desenvolvimento escolar, pobreza de
conteúdo e, por fim, evasão. Ela é espelho de uma circunstância limitadora da ação da
pedagogia enquanto libertação, daí a essencialidade da comunicação, por ser a mesma uma
atividade que não visa encher o outro “de conteúdos cuja inteligência não percebe; de
conteúdos que contradizem a forma própria de estar em seu mundo” (FREIRE, 1983:28).
Destarte, Freire acredita que a comunicação deve ser compreendida como um
elemento de humanização do homem, por permitir o diálogo desse indivíduo com outros
homens. A comunicação, no entanto, jamais poderá ser confundida com o que ele chama de o
conceito de “extensão”, uma transmissão de saberes ou informes em que os sujeitos, no
processo de ensino-aprendizagem, estão em posições hierarquicamente antagônicas (FREIRE,
1983:67). Assim,
[...] a tendência do extensionismo é cair facilmente no uso de técnicas de
propaganda, de persuasão, no vasto setor que vem se chamando “meios de
comunicação de massa”. Em última análise, meios de comunicados às massas,
através de cujas técnicas as massas são conduzidas e manipuladas e, por isto
mesmo, não se encontram comprometidas num processo educativo-libertador
(FREIRE, 1983:72).

A verdadeira comunicação, portanto, deve se fazer de forma dialógica, não como meio
de transferência do saber, mas como encontro de sujeitos interlocutores que buscam “a
significação dos significados” (FREIRE, 1983:69). Para ele, os meios de “comunicados”
transformam os homens em objetos e devem ser compreendidos dentro das relações de poder

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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
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nos quais estão inseridos. Isso não quer dizer que eles possam ser pensados como bons ou
ruins em si mesmo. São o resultado da tecnologia, expressões da criatividade humana. O
problema, “é argumentar a serviço do quê e a serviço de quem os meios de comunicação se
acham. E esta é uma questão que tem a ver com poder e é política, portanto” (FREIRE;
GUIMARÃES, 1984:14).
Nesse sentido, o “mito da neutralidade” está tão presente nos meios de comunicação
quanto no processo de ensino-aprendizagem. Ambos são atos políticos, diretivos e
intencionais: “não temo parecer ingênuo ao insistir não ser possível pensar sequer em
televisão sem ter em mente a questão da consciência crítica. É que pensar em televisão ou na
mídia em geral nos põe o problema da comunicação, processo impossível de ser neutro”
(FREIRE, 2000:109).
Essa discussão assume um grau ainda maior de relevância quando se percebe que, na
atualidade, a mídia vem cada vez mais concorrendo com instituições formais de educação, tal
como a escola, atuando em lógicas de ensino que, embora distintas dela, assumem igual
importância. Se a escola ensina, a mídia também. Desta forma,
a questão que se coloca não era o fim da escola, a morte da escola. Para mim, é a
demanda de uma escola que estivesse à altura das novas exigências sociais,
históricas, que a gente experimenta. Uma escola que não tivesse, inclusive, medo
nenhum de dialogar com os chamados meios de comunicação. Uma escola sem
medo de conviver com eles, chegando mesmo até, risonhamente, a dizer: “Vem cá,
televisão, me ajuda! Me ajuda a ensinar, me ajuda a aprender!”, não? Assim, essa
escola necessariamente se renovaria, com a presença desses instrumentos
comunicantes que a gente tem aí, e poderia também ajudar até a tarefa dos meios de
comunicação. (FREIRE; GUIMARÃES, 1984:24-25).

Considerações finais
Destarte, trabalhando com o rádio no ambiente escolar, tendo a disciplina de história
como elemento aglutinador e a defesa dos direitos humanos (dentro os quais o direito humano
à comunicação), enquanto fator a ser observado constantemente no ambiente escolar, tem-se
uma ferramenta destacada para ampliação do conhecimento acadêmico. O resgate da
oralidade e da memória comunitária para a história é algo que vem se diluindo na medida em
que avança a sociedade imagética. O rádio acaba funcionando como um instrumento crucial
para o fortalecimento e democratização das vozes. Pode fazer reverberar outras falas para
dentro do ambiente escolar, na medida em que se estruturam entrevistas com indivíduos da
comunidade do entorno ou mesmo especialistas quando o assunto assim o requerer.
O rádio na escola tem outros fatores que o favorecem enquanto ferramenta
pedagógica, especialmente seu baixo custo de instalação, por se tratar, na prática, de uma
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rádio-poste e simples manuseio, bem como produção. Por trabalhar com música, que é
pertinente ao universo juvenil, tem um fator atrativo e possível de ser tematizado. As canções
também tem alto valor histórico, falam de uma época que nem sempre foi de liberdade de
expressão, bem como carregam consigo uma gama de questões passíveis de serem debatidas
no que concerne aos direitos humanos. Seu uso no intervalo, no recreio, pode se desdobrar
enquanto debate para a sala de aula na sequência.
O exercício do protagonismo também é algo a ser destacado. O rádio permite ao
discente um espaço de fala e visibilidade que, em muitas ocasiões, não lhe é concedido pela
própria dinâmica escolar. Também é um ambiente de aprendizado da tecnologia, por mais
simplificado que venha a ser o equipamento e sua montagem, por detrás da aparelhagem
existe uma técnica de uso da mídia rádio e isso tem sua relevância num ambiente onde,
geralmente, o quadro e o pincel são as ferramentas mais frequentes. A produção daquilo que
vai ao ar previamente gravado, os programetes temáticos, pode inclusive ser objeto de
compartilhamento entre instituições, na medida em que uma rede de educomunicação puder
se formar. De algum modo o produzir rádio envolve, ademais, uma projeto de oficina cujos
sujeitos aprendem na prática a fazer uso do mesmo, e a oficina pressupõe a replicação, o que
provoca um efeito importante. O grande desafio é conseguir fazer uso didático do rádio, que
está presente em muitas escolas até hoje, todavia sendo um mero reprodutor de músicas na
hora do recreio.

Referências bibliográficas
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do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1975.
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FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? Tradução de Rosiska Darcy de Oliveira. 7. ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
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<http://www.acervo.paulofreire.org:8080/jspui/bitstream/7891/3250/1/FPF_PTPF_01_0375.p
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Odair; COSTA, Maria Cristina Castilho. (Org.). Educomunicação: construindo uma nova área
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PRETTO, Nelson de Lucas; TOSTA, Sandra Pereira. Do MEB à WEB: o rádio na educação.
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PRESERVAÇÃO, CONSERVAÇÃO E RESTAURO DO PATRIMÔNIO


DOCUMENTAL: BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA FORMAÇÃO E
EVOLUÇÃO DA PESQUISA E DO ENSINO DA ÁREA NO BRASIL

LETÍCIA SÁ CABRAL*

Introdução

Desde os primórdios o homem demonstra a necessidade de registrar seu cotidiano, de


inicio seus registros eram através de sinais gráficos, e com o passar dos anos foram sendo
utilizados outros tipos de suportes, até chegar aos dias de hoje, na “era digital”. Sendo assim,
podemos relacionar a escrita com o surgimento dos arquivos, pois com os apontamentos, já
iniciava um acompanhamento histórico, tanto da humanidade quanto dos suportes.
Compreende-se, então, que a organização dessas informações é uma empreitada que
dever ser realizada por profissionais da área enquanto qualificados, para o procedimento de
organização dos acervos existentes, que podemos destacar dentro desses procedimentos, a
preservação, conservação e restauro de documentos que tem como finalidade manter a
informação para dar acesso, e restaurar a informação para que ela não seja perdida com ao
longo tempo.
O problema que se destaca é até que ponto existe uma harmonização entre os cursos
de arquivologia no Brasil, até que nível a harmonização chega entre eles. Para isto, realizou-se
inicialmente uma analise das literaturas referentes à preservação, conservação e restauro de
documentos, e por segundo a análise das ementas para identificação dos dados desta pesquisa.
Configurando-se um estudo exploratório, descritivo, com procedimentos de levantamento de
dados, sendo qualitativo e quantitativo.
Diante do exposto, vale destacar que o estudo das grades e ementas visam ser
importantes para o amadurecimento da área, observando as tendências, as mudanças que
ocorreram durantes o passar dos anos e a criação dos cursos por diversos Estados do País e
suas especificidades, tendo em panorama o extenso território brasileiro, que muita das vezes
dificulta a logística dos docentes e até mesmo da metodologia de ensino.
Sendo assim, nesta pesquisa, que se apresenta, objetiva conhecer e fazer conhecer os
parâmetros de ensino nos cursos de arquivologia do Brasil, de todas as instituições, sejam elas

*
Graduanda do Curso de Arquivologia da UFAM.
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federais ou estaduais, delimitando as disciplinas de preservação, conservação e restauro de


documentos.

Ensino de Arquivologia no Brasil


Vedoin assinala que ao longo dos anos “o volume informacional tomou proporções
gigantescas, o que demandou uma necessidade de formação de profissionais capacitados para
gerir as informações arquivísticas que se originavam e se acumulavam” (VEDOIN, 2010: 22).
Em vista disso, o primeiro órgão a se preocupar com a criação de cursos de
aperfeiçoamento de seus funcionários foi o Arquivo Nacional, como relata Souza:
Os primeiros órgãos aos quais incumbia difundir a teoria arquivística foram os
arquivos nacionais, seguidos posteriormente pelas universidades. Desta maneira, os
primeiros espaços de formação tinham uma vinculação muito próxima com os
próprios agentes, que necessitavam de conhecimento para exercer as funções nos
arquivos. (SOUZA. 2012: 129).

Então no ano de 1911, por meio do decreto n° 9.197, de fevereiro, que instituiu que
existiria no Arquivo Nacional, pela primeira vez, um curso de diplomática, que continham as
disciplinas de paleografia, cronologia, critica histórica, tecnologia diplomática e regras de
classificação (MONTEIRO, 1998). Bottino cita que “Os cursos de formação de arquivistas
originam-se em 1922 (Decreto nº 15.596, de 2 de agosto) quando o diretor do Arquivo
Nacional, Alcides Bezerra, propõe a criação de curso técnico para a habilitação dos
funcionários do Arquivo Nacional.” (BOTTINO, 1994: 13).
Com isso o Arquivo Nacional começa a tomar suas iniciativas, trazendo ao Brasil,
para ministrar cursos e um treinamento intensivo aos seus funcionários, o professor francês
Henri Boullier de Branche. Tanus (2013) menciona em sua produção que o norte americano
Theodore Roosevelt Schellenberg também veio ao Brasil, para realizar um estudo sobre a
situação arquivistica brasileira, onde o mesmo cedeu direitos autorais de importantes obras
suas para tradução, marcando desse modo a influência norte americana no ensino da
arquivologia no Brasil.
Então a criação do curso de Arquivologia em nível superior, só foi aprovada em 24 de
janeiro de 1972, através do voto da Câmara de Ensino Superior; e, em 1974, a Resolução n.º
28 do Conselho Federal de Educação que fixou as matérias do currículo mínimo do Curso de
Graduação em Arquivologia, como Rego menciona em seu trabalho “Introdução ao Estudo do
Direito - Introdução ao Estudo da História - Noções de Contabilidade - Noções de Estatística -
Arquivo I - IV - Documentação - Introdução à Administração - História Administrativa,
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Econômica e Social do Brasil - Paleografia e Diplomática - Introdução à Comunicação -


Notariado - Uma língua estrangeira moderna “(FONSECA, 1999; ARAUJO, et al., 1994 apud
REGO, 2015).
Segundo Marques e Rodrigues, só em 1977 o curso permanente de arquivo recebeu o
título de curso de arquivologia, sendo transferido para a Federação das Escolas Federais
Isoladas do Estado do Rio de Janeiro, atual UNIRIO, reconhecido por alguns profissionais
como primeiro curso da aérea (ARQUIVO NACIONAL, 1977, p.37-38 apud MARQUES;
RODRIGUES, 2008, p.9). Mas conforme o e-MEC – Sistema de Regulação do Ensino
Superior, o curso da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO deu início
em 1911, segundo a data do Decreto n° 9.197 que se refere a aprovação da regulamentação do
Arquivo Nacional, conforme estabelecido no Artigo 10:
Art. 10. Fica instituido no Archivo Nacional um curso de diplomatica, em que se
ensinarão a paleographia com exercicios praticos, a chronologia e a crítica historica,
a technologia diplomatica e regras de classificação. Funccionara, uma vez por
semana, começando 12 mezes depois da aprovação deste regulamento, devendo ser
feitas, opportunamente, as instruções especiaes. Paragrapho unico. Os logares de
professores do curso de diplomatica serão exercidos pelos funccionarios do Archivo
Nacional. (BRASIL, 1911, ortografia da época).

Ocorreu que no mesmo ano, em 1977, iniciam-se as atividades dos cursos de


arquivologia, onde foram sendo criados os cursos pelos estados do Brasil, como segue o
quadro a baixo:

Quadro 1: Ano de criação de cada curso por Estado.

Sigla Universidade Estado Ano de Criação

UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro RJ 1977

UFSM Universidade Federal de Santa Maria RS 1976

UFF Universidade Federal Fluminense RJ 1978

UNB Universidade de Brasília DF 1990

UEL Universidade Estadual de Londrina PR 1997

UFBA Universidade Federal da Bahia BA 1997

UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul RS 1999

UFES Universidade Federal do Espírito Santo ES 1999

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UNESP/Marilia Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho SP 2002

UEPB Universidade Estadual da Paraíba PB 2006

UFPB Universidade Federal da Paraíba PB 2008

FURG Universidade Federal do Rio Grande RS 2008

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais MG 2008

UFAM Universidade Federal do Amazonas AM 2008

UFSC Universidade Federal de Santa Catarina SC 2009

UFPA Universidade Federal do Pará PA 2011

Fonte: Elaborado pela autora

Com base nas informações acima, observa-se que houve um aumento significativo do
curso nas instituições nas últimas décadas, conforme o e-MEC – Sistema de Regulação do
Ensino Superior, o curso da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO deu
início em 1911, segundo a data do Decreto n° 9.197 que se refere a aprovação da
regulamentação do Arquivo Nacional, conforme estabelecido no Artigo 10:

Art. 10. Fica instituido no Archivo Nacional um curso de diplomatica, em que se


ensinarão a paleographia com exerciciospraticos, a chronologia e a crítica historica,
a technologiadiplomatica e regras de classificação. Funccionara, uma vez por
semana, começando 12 mezes depois da aprovação deste regulamento, devendo ser
feitas, opportunamente, as instruções especiaes. Paragraphounico. Os logares de
professores do curso de diplomatica serão exercidos pelos funccionarios do Archivo
Nacional. (BRASIL, 1911, ortografia da época).

Ressalta-se que o curso de arquivologia no Brasil tem tido um crescente crescimento


até então, notando-se sua relevância social do conhecimento arquivístico e a importância de
ter profissionais qualificados dentro desta área.

Preservação, conservação e restauro: de área d econhecimento à discipliona acadêmica

Antes de qualquer coisa é necessário que seja abordado a conceituação de patrimônio,


pois a preservação, conservação e restauro surgiram a partir do patrimônio. Segundo Choay
“A idéia de patrimônio vem de uma noção antiga relacionada a bens familiares, herança, em
seus desdobramentos jurídicos e econômicos.” (CHOAY, 2001). A palavra, ao longo dos

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anos, ganhou diversos usos, sendo o “patrimônio histórico” uma de suas principais
significações. Por patrimônio histórico é possível compreender bens designados ao uso pela
sociedade, que constituem um grupo de objetos com passado em comum.
De início quando se falava em patrimônio, logo era pensado em edificações, como
castelo e edifícios medievais, conforme foi passando o tempo, essa visão foi sendo
modificada, ou seja, esse conceito foi sendo expandido. Conforme Choay (2001) ocorre uma
tripla extensão da nação de bem patrimonial: tipológica, cronológica e geográfica. O que era
só edificação de antiguidade passou a ser “qualquer” objeto que tenha um valor histórico, pois
o ponto essencial do mesmo é o valor, sendo assim são reconhecidos valores distintos para os
itens, como social, artístico, histórico, religioso, tendo isto exposto, pode-se trazer como um
exemplo simples, o samba que virou um patrimônio do Brasil.
Situando os valores dos itens para a comunidade é o primeiro passo a ser dado, para
que possam começar a entender o caráter patrimonial e consequentemente a indigência de
preservar.
O conceito de preservação recentemente é uma palavra que abrange a definição de
políticas e opções de ações, incluindo o trabalho de conservação. Para Conway “Preservação é
a aquisição, organização e distribuição de recursos a fim de impedir posterior deterioração de
acervos”. (CONWAY, 1996). No XVIII Congresso Anual ABPC (1988) preservação foi
definida como sendo a utilização de todas as técnicas cientificas disponíveis para assegurar a
manutenção dos artefatos e das coleções artísticas e históricas de acordo com os critérios que
buscam as melhores condições para um acondicionamento adequado.
Conforme Gomes “ainda que para muitos, as ações sejam vistas distintas, os conceitos
de preservação e conservação liquefazem-se em um conjunto de ações para salvaguardar as
informações contidas nos suportes. Silva cita em seu trabalho a relação de ambos nas línguas
estrangeiras. “Conservaciónem espanhol corresponde a Conservatione Preservation no
inglês e a Conservation em francês. Já o especialista em espanhol tem como correspondente
em inglês Conservator ou ConservationScientist, em francês Profissional de la
Conservatione Conservateurque é também o arquivista ou museólogo. Um conservatoratua
tanto na preservação quanto na conservação como a preservação, e o restorer, apenas na
restauração”(GOMES, 2000; SILVA 1998).
Conservação é um conjunto de procedimentos, onde tem por objetivo manter a
integridade física do suporte da melhor forma possível, fazendo com que prolongue a vida útil
do documento. SILVA define conservação como um conjunto de procedimentos que tem por
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objetivo melhorar o estado físico do suporte, aumentar sua permanência e prolongar-lhe a


vida útil, possibilitando, desta forma, o seu acesso por parte das gerações futuras. (SILVA,
1998 apud GOMES, 2000)
Conservação preventiva é um termo que tendo sido bastante utilizado nos dias de hoje,
sendo ela bastante atuante na iluminação, temperatura, manuseio, umidade entre outros
fatores que podem deteriorar o suporte, consequentemente ameaçando a informação. BECK
traz em seu trabalho que conservação preventiva “é concebida como um conjunto de ações
que visa a manter a integridade física dos acervos através do controle de agentes de
degradação ou a retardar a deterioração dos objetos.” (BECK, 1995)
Assim como todo conceito, ao longo dos anos vai sendo modificado ou reajustado,
conforme a necessidade do tempo, com o conceito de restauração não foi diferente. Sabe-se
que já no século V a.C em diante já se trabalhavam em obras recuperando-as, caso não fosse
possível, era feito uma cópia da mesma. GOMES cita:

“A publicação da obra “Essaisurl’art de restaurerles estampes et les libres”, em


1858, em Paris, marcar o início de estudos e trabalhos sobre restauração. Para
Baldini (1994) o melhor restauro não é aquele no qual se conseguem ótimos
resultados estéticos, mas o que devolve a leitura da obra respeitando sua integridade
física e química”. (GOMES, 2000).

Para Moor (1956) citado por Mazarro (1994), citado por Gomes, “restaurar é permitir
a conservação e a consulta de uma obra nas condições normais, com o mínimo de elementos
novos e o respeito absoluto pelos elementos antigos, retornando o conjunto fisicamente solido
e estético”(MOOR, 1956 apud MAZARRO, 1994 apud GOMES, 2000).

Os conceitos modificam, mas há pontos comuns, que são os princípios da restauração.


Onde as técnicas antigas deverão ser respeitadas, apenas sendo utilizados materiais mais
tecnológicos, mesmo assim que não poderão ser incompatíveis com essas técnicas.

A partir do século XX, a conservação tornou-se uma profissão multidisciplinar. A


conservação é uma ação altamente especializada, com isso, é exigido um alto conhecimento
em diversos assuntos, por isso ela é considerada uma profissão multidisciplinar, pois o
profissional precisa ter conhecimento biológico, físico, tecnológico, entre outros.

Os problemas que foram surgindo com o papel ao longo do tempo, fez com que
surgisse interesse entre os arquivistas e os bibliotecários para ir à busca das soluções de
intervenção desses problemas, onde estavam se perdendo documentos pela ação do tempo.

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Houve uma preocupação quanto à postura do bibliotecário, segundo Bansa (1986) o


bibliotecário deve ser educado para a conservação, deve estar consciente para este problema e
estar disposto a mudar os velhos hábitos e o estudante de biblioteconomia deve ser preparado
para enfrentar o problema nas bibliotecas.

Para Lopes a “educação dos estudantes é a base da preservação. É necessário que o


profissional de biblioteca e arquivo tenha uma noção básica sobre preservação para se ter
condições de trabalhar no planejamento e organização de bibliotecas e arquivos” (LOPES,
1990).

Fazendo um parâmetro geral da área no mundo, o EUA em 1897 já se preocupava com


problemas relacionados com o papel, mas só houve um interesse real por volta dos anos 60 e
70, onde foi criado o Preservation Office na Library of Congress. Na Inglaterra, em 1982 foi
criado o Cambridge Conservation Project, para que as pessoas possam ter conhecimento das
políticas e práticas de conservação. Mas o evento que marcou a maior consciência da
necessidade da conservação, foram os danos causados pela inundação do Rio Arno, na Italia,
em 1966. Foi um acontecimento que mobilizou a todos para recuperação do acervo, sendo
assim, tendo que fazer uso das técnicas, e pensando em outras formas de recuperarem os
suportes. O mesmo mobilizou o movimento de conservadores bibliotecas e arquivos da
Europa para a América do Norte.

No Brasil, foi a partir de 1896 que ocorreu a preocupação com os acervos, como relata
o cientista Herman Von Ihering em seus relatórios. Porém, a figura do conservador só aparece
no relatório de 1950. Assim como aconteceu nos Estados Unidos, no Brasil a conservação deu
início nos museus, depois disso, as outras instituições, individualmente, foram desenvolvendo
estudos para terem mais conhecimentos sobre essa ação.

Podemos citar uma das instituições que continuam atuando dentro dessa área é a
Biblioteca Nacional, onde possui laboratórios de conservação e restauro, crescendo com seu
conhecimento em cima de pesquisas nas áreas, químicas, bioquímicas e biológicas, realizando
ainda cursos para estudantes desta área. E não pode deixar de falar do Arquivo Nacional, onde
o mesmo tem sido um grande local de aprendizado nessa área informacional. Ele mantém
parceria com a ABER – Associação Brasileira de Encadernação e Restauro, recebendo vários
estagiários, por um período de quatro meses, onde esses estudantes passam por todo processo
ali disponível, como higienização, pratica de desinfestação, encadernação e restauro, tudo isso
com acompanhamento de profissionais.
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Gomes (2000) cita em sua obra vários estados brasileiros onde tem laboratório e
cursos de conservação e restauro, mas a maioria deles é de bens imóveis, sendo eles em Minas
Gerais, Rio de Janeiro, Ouro Preto, Brasília. No Paraná é promovido o curso de
especialização lato-sensu em conservação de Obras em papel. Em Florianópolis a Associação
de Amigos do Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, coordena um pequeno curso de
conservação de arquivos direcionados a técnicos de arquivos e comunidade em geral.

Temos no Brasil aCommissiononPreservetionandAcess atuante no de um a


cooperativa de informação sobre conservação preventiva em arquivos e bibliotecas, para
preservação do patrimônio documental brasileiro, onde ele reúne e propaga conhecimento e
atualizando os profissionais acerca das mudanças da preservação dos registros. Uma das
principais atividades deles é estimular o ensino de conservação preventiva e facilitar a
integração desse ensino das instituições.

Estudo fundamentado nas ementas: análise quantitativa e qualitativa


Para o desenvolvimento da presente pesquisa, se fez necessário primeiramente
identificar, por meio do E-MEC, as instituições de ensino que continham o curso de
Arquivologia em sua grade, para em seguida obtermos informações a cerca da disciplina de
Preservação, Conservação e Restauro através do E-SIC (Sistema Eletrônico do Serviço de
Informação ao Cidadão).
Nessa intenção, foram identificados 16 cursos de Arquivologia no Brasil, sendo que
três cursos são no âmbito Estadual e treze no âmbito Federal. Mediante a essa situação,
apenas os trezes cursos foram encontrados e consultados no E-SIC, por ser um sistema de
informação Federal, os outros três cursos obtiveram as informações de ementário através de
seus sites, conforme ilustrado no quadro a baixo.

UNIVERSIDADE ÂMBITO LOCAL DE PESQUISA

Fundação Universidade Federal do Rio Grande Federal E-SIC


Universidade Federal da Bahia Federal E-SIC
Universidade Federal do Espírito Santo Federal E-SIC
Universidade Federal Fluminense Federal E-SIC
Universidade Federal de Minas Gerais Federal E-SIC
Universidade Federal do Pará Federal E-SIC
Universidade Federal da Paraíba Federal E-SIC
Universidade de Santa Catarina Federal E-SIC

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Universidade Federal de Santa Maria Federal E-SIC


Fundação Universidade de Brasília Federal E-SIC
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Federal E-SIC
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Federal E-SIC
Universidade Federal do Amazonas Federal Site
Universidade Estadual da Paraíba Estadual Email
Universidade Estadual de Londrina Estadual Site
Universidade Estadual Paulista Estadual Site

Quadro 2: Âmbito das universidades e seus veículos de pesquisa. Fonte: Elaborado pela
autora
Tendo em vista que todas as instituições responderam com suas ementas, plano de
curso e histórico, faremos uma analise critica dos ementários, para identificarmos as
disciplinas que abordam a Preservação, Conservação e Restauro de documentos, e o que elas
têm de ponto de encontro e diferença.
Em um primeiro momento, analisamos qual a nomenclatura que é utilizada para cada
disciplina em cada curso, como observado no quadro a baixo.
NOMENCLATURA DAS DISCIPLINAS DE ACORDO COM AS UNIVERSIDADES
Fundação Universidade Federal do Rio Grande Fundamentos de Conservação e Preservação de documentos.
Universidade Federal da Bahia Preservação de acervos.
Preservação e conservação de Documentos I
Universidade Federal do Espírito Santo
Preservação e conservação de Documentos II
Universidade Federal Fluminense Preservação e conservação de acervos documentais.
Universidade Federal de Minas Gerais Preservação de acervos
Preservação e conservação de documentos.
Universidade Federal do Pará
Restauração de documentos.
Universidade Federal da Paraíba Preservação e Conservação de acervos.
Universidade Federal de Santa Catarina Preservação e Conservação de documentos.
Conservação Preventiva de arquivos.
Universidade Federal de Santa Maria
Restauração de documentos.
Fundação Universidade de Brasília Conservação e restauro de documentos.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Conservação preventiva de documentos.
Política de Preservação e Conservação de acervos
Documentais.
Universidade Estadual da Paraíba
Laboratório de preservação e conservação de documentos.
Conservação Preventiva de acervos documentais
Universidade Estadual de Londrina Preservação e Conservação de acervos documentais.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Fundamentos da preservação de documentos.
Universidade Federal do Amazonas Preservação e restauro de documentos.
Universidade Estadual Paulista Preservação em arquivos

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Texto integrando dos Anais [recurso
[recu eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Barbosa
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.
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Quadro 3: Nomenclatura das disciplinas conforme cada universidade. Fonte: Elaborado pela
autora
Dentro do mundo da preservação, conservação e restauro como apresentado, pode ser
notado que se diferencia muito de faculdade para faculdade, mas a essência é a mesma entre
todas elas, onde é realizado em determinado momento da criação até o seu ciclo final.
Em relação aos nomes dados as disciplinas observam-se
observam se que são bem semelhantes um
ao outro, mas o que é mais utilizado é “Preservação e conservação de documentos” (8 cursos,
47%), ou seja, a preservação e conservação é uma das ações primordiais para o acervo, pois se
a conscientização começar da produção do documento, não haverá necessidade de restaurar,
porém, encontramos uma problemática, pois os documentos mais antigos, como os históricos,
necessariamente precisarão de uma restauração,
restauração, pois vão se deteriorando com o passar do
tempo, por causa dos materiais utilizados nos séculos passados, e as condições que passaram
ao longo de toda sua vida. Os cursos que utilizam a “Restauração de documentos” como
nomenclatura é a minoria, apenas 11%, e os outros 42% das nomenclaturas utilizadas estão na
variação entre as acima citadas, conforme visualizado no gráfico a baixo.

Restauro de Conservação Disciplinas


documentos e restauro
5%
Conservação 11% Preservação
de e
documentos conservação
16% 47%

Preservação
de
documentos
21%

Gráfico 1: Representação gráfica das nomenclaturas. Fonte: Elaborado pela autora.

Disciplinas devidamente identificadas,


identificadas, é importante destacar também o caráter de cada
disciplina aqui apresentada, bem como a carga horária das mesmas, pois podemos ver que
alguns cursos tem mais de uma disciplina com essa temática, sendo assim é importante expor
aqui essa característicaa de cada uma delas.

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Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

CARATER E CARGA HORÁRIA


DISCIPLINAS CARATER CARGA HORÁRIA
Fundamentos de Conservação e Preservação de
OBRIGATÓRIA 60 horas
documentos.
Preservação de acervos. OBRIGATÓRIA 68 horas
Preservação e Conservação de Documentos I.
OBRIGATÓRIA 60 horas

Preservação e Conservação de Documentos II.


OPTATIVA 60 horas

Preservação e Conservação de acervos documentais. OBRIGATÓRIA 60 horas (30h práticas)


Preservação de acervos
OBRIGATÓRIA 60 horas (20h práticas)

Preservação e Conservação de documentos.


OBRIGATÓRIA 60 horas (30h práticas)

Restauração de documentos. OPTATIVA 60 horas (30h práticas)

Preservação e Conservação de acervos. OBRIGATÓRIA 60 horas


Preservação e Conservação de documentos OBRIGATÓRIA 36 horas
Conservação Preventiva de arquivos. OBRIGATÓRIA 60 horas

Restauração de documentos.
- 30 horas

Conservação e restauro de documentos. - -


Conservação preventiva de documentos. OBRIGATÓRIA 60 horas
Política de Preservação e Conservação de acervos
60 horas (20hrs teórica,
documentais. OBRIGATÓRIA
10 orientada, 30 lab.)

Laboratório de Preservação e Conservação de 40 horas teóricas 10


OBRIGATÓRIA
documentos. orientadas 10 lab.

Conservação preventiva em acervos de documentais. OPTATIVA -

Preservação e conservação de acervos documentais. - 30 horas


Fundamentos da Preservação de documentos. OBRIGATÓRIA 60 horas
Preservação e Restauro de documentos. OBRIGATÓRIA 60 horas
Preservação em arquivos OBRIGATÓRIA 60 horas

Quadro 4: Representação do caráter e carga horária das disciplinas. Fonte: Autoria própria.

Observa-se na representação acima, que poucos são os cursos que tem um momento de
aula prática, e consecutivamente entendemos que a menor parte dos mesmos tem laboratórios,
seja ele de preservação ou restauro. Não podemos assegurar que esses laboratórios são
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Texto integrando dos Anais [recurso
[recu eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Barbosa
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.
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realmente utilizados, ou as aulas praticas ocorrem em outras instituições, pois essa informação
não foi conferida junto a instituição.
Fazendo uma análise mais minuciosa dos ementários, despertamos para o referencial
teórico utilizado por cada curso. Cabe
Cabe ressaltar que apesar das disciplinas terem a mesma
linha de pensamento, algumas delas tratam mais de assuntos específicos, como pode ver na
disciplina de Restauro de documentos, vai tratar mais sobre as etapas e todos os assuntos que
envolvam restauro e assim acontece com as outras mais específicas.
Dentro do universo das referências bibliográficas de preservação, conservação e
restauro destaca-se
se o uso massivo de manuais e artigos, onde 65% são manuais, 15% artigos e
os outros 20% estão livros, capítulos
capítulos de livros e textos acadêmicos. Percebe-se
Percebe uma
predominância muito grande de quatro autores que são trabalhados nessas disciplinas,
conforme analisado no gráfico abaixo:

Conselho Nacional de
arquivo

Jayme Spinelli

Série 1
Norma Ciaflone Cassares

Ingrid Beck

0 2 4 6 8 10

Gráfico 2: Autores mais citados nas disciplinas. Fonte: Autoria própria.


Percebe-se
se então que a autora Ingrid Beck é a mais citada entre todas as ementas
analisadas, onde se destacam dois manuais mais utilizados pelos cursos que é o “Manual de
Preservação de Documentos” e “Manual de Conservação de Doc
Documentos”
umentos” ambos da mesma
autora.

Considerações finais
A arquivística vem demonstrando crescente crescimento no âmbito de ensino e
pesquisa nas ultimas décadas. Esse aumento faz com que surja a necessidade de uma atenção
maior, voltada para a graduação em arquivologia. Neste contexto objetiva
objetiva-se uma analise

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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

critica das disciplinas, apontando a existência ou não da ponte de harmonização entre os


ementários de cada curso.
Desta forma, nota-se que a grande maioria segue a mesma linha, com conteúdos, nome
intitulado a disciplina em questão, mas a minoria ainda não está em sintonia com os outros
cursos, o que é questão de tempo e estudo. A área ainda tem muito que ganhar, visando à
perspectiva das disciplinas que discutem aspectos nucleares para o tratamento de acervos.
Como é uma área da informação a atualização de assuntos, técnicas, metodologias tem que ser
constante.
Conclui-se, com esta pesquisa, que a preservação, conservação e restauração é
universo vasto, onde o curso de arquivologia ainda tem certa dificuldade para conseguir seu
100% de aproveitamento, por ser uma disciplina conceitual e prática, existem alguns cursos
que na área pratica não consegue se encaixar por vários motivos, esses que não foram citados
ao longo da pesquisa. O que é evidente, que são necessários mais estudos voltados ao tema, já
que não foram esgotadas as temáticas de pesquisa dentro deste amplo campo.

Referências
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Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
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A CLASSE TRABALHADORA INDUSTRIAL E A CONSTRUÇÃO DO NOVO


SINDICALISMO NO ESTADO DO AMAZONAS (1978-1985).
LUIZ LIMA DA COSTA
A memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A
memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é
articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do momento
constituem um elemento de estruturação da memória. Isso é verdade também em
relação à memória coletiva, ainda que esta seja bem mais organizada. Todos sabem
que até as datas oficiais são fortemente estruturadas do ponto de vista político.
Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio de datas oficialmente
selecionadas para as festas nacionais, há muitas vezes problemas de luta política.
(POLLAK, 1992:204)

É basicamente nessa perspectiva dada por Pollak, que pretendemos com este
artigocompreender o cenário político e social o qual se insere a classe trabalhadora do
Amazonas, sobretudo, no polo industrial de Manaus, mostrando de que forma o processo
chamado “novo sindicalismo” influenciou o protagonismo da mesma e quais
astransformações resultantes das greves construídas no recorrente período. Foram utilizados
neste trabalho dados e informações acerca do processo de criação e desenvolvimento da Zona
Franca de Manaus e o impacto da industrialização empreendida sobre a vida dos trabalhadores
industriais, delineando quais foram os objetivos com a sua criação para a região do Amazonas.
Nesse sentido estabelecemos um diálogo com autores que trabalham com o conceito chamado
de “novo sindicalismo”.

A greve dos metalúrgicos do ABC paulista ocorrida no final da década de 1970 é


claramente referência para os trabalhadores brasileiros e certamente para os trabalhadores
amazonenses o que é um grande marco para a história da luta operária amazonense. Iniciando
uma luta contra o arrocho salarial, a organização sindical estabelecida pela greve pôde
conquistar reconhecimento e resistir contra a ditadura militar que a muito controlava o
processo de organização sindical e lideranças operárias. Podemos enfatizar a notável greve do
ABC paulista de 1979, evento resultante das grandes mobilizações de trabalhadores das
montadoras automobilísticas que teve um impacto imediato nas indústrias locais, reunindo
somente no primeiro dia cerca de 300 mil operários. Por outro lado, o Estado nacional ainda
vivia o contexto da ditadura militar, o que acentuava a perseguição e repressão aos
movimentos grevistas e líderes sindicais.

O processo de Industrialização no Brasil: Algumas considerações



Graduado em História pela Universidade Federal do Amazonas, integrante do Laboratório de estudos sobre Trabalho e
Ditadura – Universidade Federal do Amazonas.
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Nas décadas de 1930 e 1940 o corporativismo se faz presente nas relações de trabalho,
advindo do legado deixado pelo Estado novo. É justamente nessa perspectiva que o mercado
brasileiro viria a formatar o que seria os primeiros passos para o reconhecimento dos direitos
trabalhistas empregados à classe trabalhadora, no entanto, esta medida desencadeia mudanças
no sistema vigente como uma perda de autonomia pela parte classista e um enfraquecimento
da esquerda brasileira.Cabe ressaltar que no começo do século XX, a economia empregada no
Brasil ainda era a agricultura, essencialmente baseada no café. Esse produto tem influência
direta na mudança do sistema econômico que mais tarde viria a acontecer no país. A abolição
da escravatura dá nesse sistema um excesso de mão-de-obra, a qual provém da cultura
cafeeira. Devido aos grandes números de exportações deste produto, foi possível acumular
capital e com a crise no setor exportador, que ocorreu devido a Crise de 1929, novas
mudanças ocorrem fazendo com que o mercado precise se adaptar a estas. Dadas as bases
para a industrialização no Brasil, foi possível a diversificação das atividades econômicas
internas. Havia uma necessidade pelo mercado em adquirir bens de consumo como máquinas,
equipamentos, materiais de transporte, implementos agrícolas e etc., criando no país, meios ou
condições para o desenvolvimento das indústrias.

Assim, na observação do modelo de industrialização concebido no Brasil, onde a


função do Estado para a implementação do desenvolvimento e, consequentemente, o
progresso econômico se dá de maneira direta, é também o Estado o realizador
(mediador) da aliança com o capital externo e o maior e principal impulsor estrutural
do desenvolvimento industrial – destacando que o modelo internacional de
associação se constituiu na própria condição da expansão industrial para os países
capitalistas periféricos. (MOURÃO, 2012:71).

No período republicano, o país deixava de lado o modelo agroexportador para dar início
ao que de fato seria um projeto de industrialização. Com a chegada de Getúlio Vargas ao
poder, é lançada a política do nacional desenvolvimentismo que tinha como finalidade tornar
a economia nacional algo mais sofisticada, do que uma simples fornecedora de produtos
primários para o mercado internacional.

Entre 1930 e 1945 a indústria recebeu altos investimentos de ex-cafeicultores,


havendo construção de ferrovias para o transporte de mercadorias, pessoas, matérias-primas,
assim como a facilitação por meio dos transportes no que diz respeito aos produtos para outras
regiões do país. Com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional entre 1942 e 1947, esta
abasteceria com matérias-primas outras regiões do Estado brasileiro, principalmente com

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metais. Em 1953, o governo então cria o que seria uma das maiores empresas estatais e que
seria de extrema importância para o país: a PETROBRÁS.

A respeito à política trabalhista empregada pelo governo, enfatiza-se o controle dos


sindicatos, os quais deveriam defender os trabalhadores, e que na verdade serviam as vontades
do governo, não cumprindo sua função histórica de combate como nos anos anteriores,
emerge nesse cenário os chamados “pelegos”, burocratas sindicais que estavam a serviço do
então governo vigente.

Durante o governo JK (1956-1961), período também conhecido como Indústria


pesada, o Estado passa a estimular as multinacionais, constituindo-se instrumentos para as
políticas econômicas. Têm-se, nesse sentido um elevado processo de internacionalização da
economia, antes pouco dependente do capital estrangeiro. O setor industrial, nessa dinâmica,
integra-se à estrutura mundial por meio das multinacionais. O processo industrial nacional
agora passa a depender do capital estrangeiro fazendo com que o processo produtivo, a priori,
traga algumas mudanças ao setor industrial durante esse período.

A característica principal da economia brasileira neste período consiste na


consolidação da industrialização brasileira, quando se instala a indústria pesada,
principalmente a automobilística, ao mesmo tempo em que a indústria de base ganha
novo impulso com a instalação de novas indústrias siderúrgicas e o desenvolvimento
acelerado da indústria de construção naval. Os principais problemas enfrentados
foram de três tipos: O déficit no balanço de pagamentos e a deterioração dos termos
de troca; os pontos de estrangulamento (internos e externos); a inflação.
(BENEVIDES, 1979:201).

A Criação da Zona Franca de Manaus

Idealizada pelo Deputado Federal Francisco Pereira da Silva, a Zona Franca de


Manaus (ZFM) foi criada pela lei n° 3.137 de 06 de junho de 1957, como porto livre. Após
dez anos, é criado um decreto de lei pelo governo federal, n° 288 de 28 de fevereiro de 1967,
ao que estabelece incentivos fiscais por 30 anos. O polo industrial de Manaus nasce em plena
ditadura militar com a lógica de uma era de política desenvolvimentista que ocorrera em todo
o Brasil nos anos anteriores. Manaus por muitos anos permaneceu fora desta lógica. Nesse
sentido, a Zona Franca de Manaus se constituía em um polo industrial, comercial e
agropecuário, fundamentando-se na necessidade de ocupação da região amazônica, dotando-a

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de “condições de meios de vida” e infraestrutura que atraíssem para ela a força de trabalho e o
capital, nacional e estrangeiro. Segundo dados da ASFRAMA:

A Zona Franca de Manaus é uma área de livre comércio de importação e exportação


e de incentivos fiscais especiais, estabelecida com a finalidade de criar no interior da
Amazônia, um centro industrial, comercial e agropecuário dotado de condições
econômicas que permitam seu desenvolvimento, em face dos fatores locais e da
grande distância que se encontram os centros consumidores de seus produtos.39

Durante a década de 1970, várias empresas multinacionais e transnacionais investem


na capital amazonense por meio de concessões de incentivos fiscais incentivando ainda mais
as relações econômicas do Estado do Amazonas com o capital estrangeiro, passando dessa
forma a produzir bens industrializados e é ainda a partir dos anos 1970 que de fato se
consolida o parque industrial de Manaus. Podemos destacar como investidores nesse período
algumas empresas transnacionais criando diversos pólos, tais como o eletroeletrônico, este
responsável por arrecadar grande parte do capital para as empresas: pólo relojoeiro, o de duas
rodas, o de bebidas, o mecânico e etc.
a implantação da Zona Franca de Manaus em 1967 não é apenas um projeto de
desenvolvimento econômico regional pretensamente destinado a recuperar o
dinamismo perdido com a débâcle da borracha. É uma decisão política do governo
brasileiro com múltiplas implicações envolvendo diferentes atores sociais. Estado,
empresas e trabalhadores, cada um dispondo de diferentes tipos de capital,
combinam-se na conformação de uma estrutura econômica industrial moderna
orientada para a produção/montagem de produtos destinados ao mercado extra
regional. (VALLE, 2000:107).

Importante compreender que a economia da zona franca é baseada na política de


substituição de importações de reserva de mercado e que hoje há uma nova dinâmica que a
faz competir em relação ao mercado estrangeiro, isso em decorrência de sua abertura com o
mercado nacional, ou seja, há uma valorização dos produtos nacionais sendo esse um modelo
de pleno desenvolvimento econômico implantado na região e administrado pela SUFRAMA –
Superintendência da Zona Franca de Manaus.
Entre 1967 e 1975, havia liberdade de importação na dinâmica da zona Franca, e isso
ocasionou a expansão das empresas que ali estavam sediadas, formando-se dessa forma, um
mercado interno. Destacam-se nessa primeira fase os aspectos internos como: a não limitação
sobre importação de produtos, o grande número de visitantes turistas, vindos pela venda de
produtos, a expansão no setor terciário e o de fato, início das atividades industriais.
39
ASSOCIAÇÃO DOS SERVIDORES DA SUFRAMA – ASFRAMA. Coletânea Legislativa da Suframa. S.D.
p. 42.
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É nesse mesmo contexto, após o decreto de número 1.435, que crescerá a indústria de
montagem, o que propiciará para o contexto nacional uma contribuição acerca de produtos
eletrônicos como componentes e insumo. É importante enfatizar os objetivos das
multinacionais nesse processo:
as multinacionais se instalaram na Zona Franca a fim de usufruírem, além dos
incentivos fiscais, da mão-de-obra barata para a montagem dos seus produtos; a
economia de escala na montagem dos produtos no próprio mercado consumidor
exclusivo, isto é, cativo em decorrência do modelo de substituição de importações
por ‘produtos nacionais’; terreno a preço simbólico para suas instalações; facilidades
cambiais para o investimento da sede na filial e remessa de lucros sem barreiras; e a
proximidade estratégica de outros centros consumidores da América Latina.
(ALVES, 2005: 27-28).

Repercussão na Imprensa Manauara


No ano de 1957 a Zona Franca de Manaus (ZFM) é idealizada, mais precisamente
em 06 de Junho pela lei n° 3.137. Alguns jornais que circulavam pela cidade nesse período
demonstravam pleno interesse por essa dinâmica, como é o caso, por exemplo, do Jornal do
Comércio, queem sua primeira página,datado de 13 de Julho de 1957, divulga a notícia de
uma reunião no gabinete do presidente da Associação Comercial do Amazonas (ACA):

A tarde de ontem, no gabinete da presidência da Associação comercial do Amazonas


reuniram-se os membros da comissão responsável pela elaboração de um ante-
projeto para a regulamentação da lei que criou a Zona Franca de Manaus. Acentua-
se que à reunião compareceu, também, o industrial Isaac Benalon Sabbá, discutindo-
se, na oportunidade, as providências iniciais para a organização do trabalho da
40
comissão, que deverá ser concluído dentro de pouco tempo.

Percebe-se na narrativa do jornal, em primeiro momento, a preocupação em noticiar


a regulamentação da ZFM por meio de um ante-projeto. Em Julho do mesmo ano, o mesmo
jornal veicula outra notícia acerca da regulamentação, no entanto agora se tratando de uma
comunicação de figuras locais com o presidente da república, Juscelino Kubitscheck. Nela, o
jornal enfatiza que JK está interessado na regulamentação da Lei que criou a "Zona Franca".

O deputado Pereira da Silva enviou telegrama ao industrial Isaac Benalon Sabbá,


informando que o presidente Kubitscheck recebeu com satisfação as notícias
referentes às presidências adotadas pela Associação Comercial do Amazonas, no
sentido da urgente regulamentação da Lei que criou a Zona Franca de Manaus. No
mesmo telegrama, o deputado acrescenta que uma equipe de técnicos cuidará da
questão, bem como os senhores Isaac Benalon Sabbá, Sócrates Bomfim e Cosme
Ferreira Filho serão nomeados pelo chefe da Nação, para a comissão referida.41

40
Jornal do Commércio, edição de 13 de Julho de 1957, p.1.
41
Jornal do Commércio, edição de 30 de Julho de 1957, p.4.
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Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

Em outra ocasião, agora após uma década, o jornal na edição de edição de 1 de Março
de 1967 ainda demonstrava seu interesse em notícias relacionadas à ZFM, sobretudo aqui a
cidade de Manaus já estava sob a gestão do governador Danilo Areosa. O Jornal relata a
“pre
ocup
ação
”do
gove
rno
Fede
ral
com
o
Esta
do
do
Amazonas, argumentando ainda que o povo amazonense, devido a esse feito, devia ser grato
ao General Castelo Branco.

Vale lembrar que aqui o Estado brasileiro já havia passado pelo golpe militar em 1964,
o qual o presidente João Goulart foi deposto, dando lugar a uma ditadura.

A Classe trabalhadora nos anos da Ditadura Militar

O golpe militar de 1964 desencadeou uma série de transformações na sociedade


brasileira que até então vivia um período de democracia. Na época o então presidente Jango
que assume em 1961 o cargo de presidente, passa por uma série de pressões e
questionamentos proferidos pela elite brasileira. Jango defendia veementemente as políticas
de reforma de base, como a reforma agrária e o petróleo brasileiro tendo muito prestígio pelas
camadas populares, em principal, a classe trabalhadora. Esse viés político defendido pelo
presidente fora crucial para que causasse uma histeria coletiva na classe burguesa da época

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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
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como empresários, militares e políticos de oposição já que tais reformas iriam de total
confronto aos seus interesses.

O governo Goulart teve de lidar com as lutas no campo, onde os camponeses lutavam
ferrenhamente pela reforma agrária (não só os camponeses, mas sim os grupos de esquerda
propriamente), tendo no seu discurso a reforma na lei ou na marra. A questão da reforma
agrária foi a grande problemática do período, tendo maiores conflitos não tanto por se fazer
tal reforma, mas sim sobre como fazê-la. Enquanto as esquerdas queriam que as
desapropriações das terras produtivas e improdutivas fossem feitas sem pagamento prévio em
dinheiro, os conservadores queriam que a desapropriação fosse feita conforme como estava
previsto na constituição, com pagamento prévio em dinheiro (o que seria impossível pelas
condições financeiras do país). Mesmo depois a proposta mais moderada de reforma
apresentada pelo PSD (desapropriação somente das terras improdutivas, mas não toda, e com
correção em 50% dos títulos da dívida pública) não satisfez as esquerdas mais radicais, assim
levando esses a negarem tal acordo. Tais conflitos gerados sobre a questão agrária do país
inviabilizaram que Goulart conseguisse implementar um projeto de reforma. Tal
dificuldade se dava principalmente pelo descarte das esquerdas mais radicais a uma
negociação, a uma concessão (medidas estas inaceitáveis para esses grupos, totalmente contra
qualquer tipo de conciliação).

O golpe pôde ser sentido em praticamente todas as esferas da sociedade, e na esfera


sindical não foi diferente, atingindo principalmente os sindicalistas progressistas, o golpe
fragiliza as formas de luta sindicais por estes trabalhadores com o início de uma série de
intervenções praticadas pelo General Castelo Branco (1964-1967). Nesse sentido, o governo
passa a controlar o que seriam as greves de solidariedade, atingindo até mesmo a legislação
trabalhista, o que reforça o controle aos movimentos sindicais do período. Órgãos de
repressão como a polícia política são criados para estabelecer o controle sindical, o que
provoca uma espécie de análise prévia dos candidatos pelo Ministério do trabalho e pela
polícia no sentido de avaliar o histórico de cada candidato que possa ser considerado
“subversivo” ao governo.Com a prisão de lideranças sindicais, a perseguição de militantes
pela ditadura, o movimento sindicalista se vê a mercê de renunciar seus trabalhos como causa
operária No entanto, a perseguição à classe pelo poder central não foi suficiente para
desmobilizar mesmo que silenciosamente as organizações no chão das fábricas.

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Em termos concretos, a ditadura buscava uma reestruturação da vida sindical. Para


tanto, ela tenta cortar os elementos e mecanismos da forma de funcionamento
anterior. Além de intervir nas cúpulas sindicais, atacava duramente a estrutura de
organizações nos locais de trabalho que podiam servir de pilar para a recomposição
do movimento sindical “combativo”. (SANTANA, 2008:283).

Dessa forma, a medida tomada pelo Estado militar é de afastamento por qualquer
instância sindical se relegando ao papel de controlar os trabalhadores, no entanto, não ocorre a
princípio o enfraquecimento destes, que passam a buscar outros meios de organização, como
por exemplo, se fortalecer por meio do sistema corporativo.

Diante dos interventores nos sindicatos (chapas aliadas ao governo), e as dificuldades


de se inserir novamente nas direções dos sindicatos, por todo o país serão criadas chapas
independentes no sentido de vencer os interventores. É dado início, mesmo que sutil aos
primeiros passos de mobilizações nos locais de trabalho. É importante ressaltar a atuação do
PCB nesse contexto já que a o controle exercido pelo governo sobre os trabalhadores
estimulará nos partidos de esquerda um novo rumo às forças trabalhadoras. Nesse sentido, as
militâncias do partido comunista passam a direcionar as lideranças sindicais no sentido de as
instruírem quanto às eleições dos sindicatos. Vale salientar que esse aspecto instrutivo teve
fundamental importância na organização política dos sindicatos.

Ao findar de 1968, com a consolidação do regime militar, ocorre o decreto do Ato


Institucional n° 5 (AI-5). Esse momento é marcado pela dura perseguição que recai sobre as
entidades sindicais, assim como grupos de esquerda os quais o governo trabalha no processo
de desarticulação. Com a perda de espaço, os sindicatos combativos se fragilizam na medida
em que acontecem os avanços do governo militar. Tal processo cria para o meio sindical
novos mecanismos de articulação, alguns até clandestinos direcionando-os até mesmo para as
vias armadas na luta contra o regime.

É ainda em plena ditadura militar, durante os anos 1970 que a classe trabalhadora
encontrará saídas que propiciarão repensar suas estratégias. Nesse sentido o próprio poder
central ditatorial começa a se fragilizar perante as suas próprias práticas, com a alta do preço
do petróleo, tanto nas derrotas eleitorais e na economia, o governo acaba sofrendo com crises
inestimáveis, o que acentua ainda mais a lógica do Estado brasileiro para um possível
processo de redemocratização, com a chegada do então General Ernesto Geisel em 1974, o

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que não reduziu até aquele momento as práticas repressivas tida pela ditadura militar, ao
contrário, isso ainda ocorria as escondidas. Sobre as crises, Maria Célia Santiago enfatiza que:

desde 1973/74, com a crise do petróleo, as categorias profissionais classificadas


como médias vinham sentindo no bolso o preço do arrocho salarial. E o que até
então era o cotidiano do operariado industrial, qual seja, a superexploração do
trabalho e o arrocho salarial, passou a atormentar e a fazer parte do dia-a-dia dos
assalariados médios. Uma tabela compilada por Antunes mostra que em 1978 dos
137 setores atingidos por greves oito eram de assalariados de classe média e 104 de
trabalhadores industriais. Já no ano seguinte são 66 setores da classe média e 61 dos
trabalhadores industriais. Classe média aqui entendida como médicos, professores e
bancários e outros profissionais de nível superior ou servidores públicos.
(SANTIAGO, 2010:45).

Os anos 1970 tiveram um forte impacto nos movimentos sociais e de trabalhadores.


Havia um clima favorável a estes, principalmente quando tomam conhecimento de um
episódio definido por Giannotti como “Roubo do Delfim”, o qual em agosto de 1977, o
governo federal divulgara dados falsos acerca da inflação no período de 1973-1974 e ficando
com parte destes salários dos trabalhadores. É justamente neste contexto de descobertas que a
classe trabalhadora ganha forças para lutar não só a favor de seus direitos, mas também contra
a ditadura.
Vistos até então, como individualistas, desorganizados e sem consciência, em 1978,
os trabalhadores desafiaram a vigilância, a repressão e a as concepções acabadas de
classe com que eram caracterizados, fazendo greves, protestos, atos públicos e
passeatas. A força e a organização desses movimentos obrigaram ao Governo a
mudar suas estratégias e aos historiadores a rever suas análises. (RIBEIRO,
1987:37).

Ainda em 1978, inicia-se um processo de campanha salarial. Iniciado pelas


lideranças do sindicato dos metalúrgicos, estas passam a exigir do governo reajustes e cruzam
os braços perante seus patrões. No entanto, desta vez, esta campanha termina como as
anteriores. No entanto o sindicato, ao ganhar força pela união da classe recusa-se a qualquer
tipo de negociação por meio da justiça do trabalho. A principal estratégia do sindicato era
mostrar ao público as injustiças cometidas pelo governo com a classe trabalhadora,
principalmente sobre o episódio do roubo de seus salários efetuado pelo governo em 1973-74.

De Golpe Militar à transição democrática: O novo Sindicalismo no Brasil e no


Amazonas

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O final da década de setenta no Brasil foi marcado pelo surgimento do que se


convencionou chamar de “Novo Sindicalismo”. Este seria caracterizado por praticas
que indicariam sua novidade na recente historia sindical brasileira: origem no setor
moderno da economia, autonomia frente aos partidos e ao Estado, organização
voltada a base e ímpeto reivindicativo direcionado para o interesse dos
trabalhadores. (AURÉLIO, 1998:1).

A greve do ABC paulista de 1979, foi um evento resultante das grandes


mobilizações de trabalhadores das montadoras automobilísticas e que teve um impacto
imediato nas indústrias locais, reunindo somente no primeiro dia cerca de 300 mil operários.
Por outro lado, o Estado nacional ainda vivia o contexto da ditadura militar, o que acentuava a
perseguição e repressão aos movimentos grevistas e líderes sindicais. É nesse cenário de
greves e lutas políticas que surge em meados da década de 1970 o chamado novo
sindicalismo, como forma de contrapor o “velho” sindicalismo dos anos anteriores, tendo
como pauta novas medidas de organização e a perda de vínculo com o governo resultando em
uma organização autônoma e corporativista. Esses trabalhadores tinham a clara ideia de que o
Estado brasileiro trabalhava em prol da burguesia e defendiam uma reestruturação do
movimento sindical.

O movimento operário e sindical brasileiro experimentou, no fim da década de 1970,


um momento marcante para sua história. Submergido após o duro impacto
promovido pelo golpe militar de 1964, que lhe havia deixado pouco ou quase
nenhum espaço para manobra, senão aquele no silencioso trabalho no interior das
empresas e de pontuais tentativas mais visíveis de contestação, o sindicalismo de
corte progressista emergia, cobrando a ampliação dos espaços para a representação
dos interesses da classe trabalhadora. No cenário político mais amplo, a emergência
do movimento dos trabalhadores acabou estremecendo os arranjos políticos da
transição para o regime democrático, que iam sendo pensados sem eles. O retorno
dos trabalhadores foi marcado, também, pelo aparecimento do que se convencionou
a chamar de “novo sindicalismo”, supostamente caracterizado por práticas que
indicariam sua novidade na recente história sindical brasileira. (SANTANA, 2007:
286-287).

No início da década de 1980, o país dá os primeiros passos ao que seria uma “transição
democrática”. Após vários anos de repressão militar, podemos perceber que esta década pode
ser considerada como a década de ouro para o movimento sindical brasileiro. O sindicalismo
combativo ganhava voz nas lideranças sindicais da época e as estruturas sindicais passam a ter
autonomia. É nessa lógica que o país transcende para um Estado democrático.
Qualquer balanço de sua trajetória naqueles anos deve apontar para três de suas
características: a rápida consolidação no plano organizacional e a pujança
mobilizatória, bem como sua importância na luta pela democratização do país,
espelhada, entre outras, em sua participação no movimento por eleições livres e
diretas para presidente (o Diretas Já) e pelo estabelecimento de uma Assembléia
Nacional Constituinte. Em 1985 é eleito, por via indireta, no parlamento, o primeiro
governo civil pós-1964. Ele poria fim aos governos militares, vinte e um anos
depois. (SANTANA, 2008:306).
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No Amazonas, inicialmente o novo sindicalismo pode ser compreendido a partir da


dinâmica dos intelectuais e de várias entidades sindicais do período que visavam a
participação dos trabalhadores nas reuniões que discutiam os rumos da classe. É justamente
essa oposição que desencadeia uma influência embrionária sindicalista no Estado do
Amazonas, como a Associação de Professores Profissionais do Estado do Amazonas –
APPAM, Associação dos Docentes da Universidade do Amazonas – Adua e os sindicatos dos
Bancários e Metalúrgicos.
As informações eram passadas de forma clandestina sobre a organização sindical de
trabalhador a trabalhador dentro das empresas. Esta atuação dos operários que
participavam do processo inicial de organização dentro das fábricas instaladas na
Zona Franca de Manaus. (SANTIAGO, 2010:57).

Nesse contexto, o partido dos trabalhadores surge da necessidade de se organizar


perante as medidas tomadas ainda no período militar, em meados da década de 1970, com a
ascensão das greves históricas desse período, tendo sido responsável por encabeçar grandes
lutas; eleição de governantes que entraram para a história seja na esfera municipal, estadual
ou nacional.
A participação de entidades religiosas, no entanto, foi fundamental para dar os primeiros
passos na construção de uma consciência revolucionária nos trabalhadores amazonenses,
sobretudo, com a pastoral operária que em 1980, já com uma posição libertária, ou seja, sem
alinhamento a partido político algum, mas contando com apoio de movimentos sociais e
algumas associações, prezava pela formação política dos operários que adentravam o distrito
industrial de Manaus. A conscientização se dava dentro das próprias fábricas com grupos de
estudos formado por jovens que reuniam os operários para discutir temas ligados ao processo
sindical como exploração de classe, capitalismo, sindicalismo, mais-valia. Esse papel inicial
da pastoral foi importante para sensibilizar principalmente aqueles trabalhadores sem
formação política ou ligação com movimentos sociais fora das fábricas. Percebe-se que nesse
momento, a classe trabalhadora amazonense agora já se atém para seus direitos e o espírito da
luta por melhores condições de trabalho se fortalece a medida que mais operários se
mobilizam. Milton Reis Filho chama a atenção para o trabalho desenvolvido pela pastoral
operária, afirmando que
A pastoral Operária foi o organismo formador da concepção operária no Amazonas
e no Brasil. Colocou-se como uma espécie de intelectual orgânico juntamente com
os partidos políticos de esquerda, cujo desfecho desse processo tem uma síntese na
criação do Partido dos Trabalhadores em 1980 e da Central Única dos
Trabalhadores, em 1983. (REIS, 2008:23).
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A CUT nasceu de várias entidades, organizações e correntes da esquerda, de um


sindicalismo independente dos partidos políticos mas com uma influência direta da Igreja
Católica, aliada a chamada Teologia da Libertação e que tinha em sua pauta a defesa dos
oprimidos.
Era um ideário diverso, multifacetado dentro das esquerdas, mas com um ponto
básico convergente: estruturar uma central sindical de âmbito nacional capaz de
constituir-se em um instrumental decisivo para a ação do trabalho em nosso país.
Intimamente vinculada ao Partido dos Trabalhadores, contava, entretanto, com
militantes de outros partidos, como o PDT, além de significativo contingente de
militantes sindicais não-partidários. Era, pois, o escoadouro natural desses
grupamentos que empenhavam-se, há muito, na constituição de uma entidade
sindical nacional de corte autônomo e independente. (ANTUNES, 1991:49).

No Amazonas, a CUT surge da iniciativa dos metalúrgicos da Oposição Sindical, ligada


a chapa puxirum, que ganhou as eleições dentro do mesmo sindicato. Marlene Pardo Ribeiro
chama a atenção para a criação da CUT/Amazonas, argumentando que nos anos iniciais a sua
criação eram os metalúrgicos que direcionavam o processo sindical, afirmando que
Os operários que construíram a Oposição Sindical Metalúrgica Puxirum faziam
parte da delegação que participou em agosto de 1983 em São Bernardo do Campo,
da criação da CUT. Retornando a Manaus, junto com outras categorias, iniciaram a
divulgação do Plano de Lutas da CUT, preparando o 1º CECLAT. A CUT/AM
funcionou até julho de 1986 numa sala do Sindicato dos Metalúrgicos. Foi este
Sindicato também que sediou e se responsabilizou pela quase totalidade dos recursos
materiais e financeiros para a realização dos dois congressos estaduais (CECLAT/84
E CECUT/86) e inclusive pelo deslocamento e acomodação das delegações de
trabalhadores rurais, representantes de mais de uma dezena de municípios.
(RIBEIRO, 1987:335)

O ápice do novo sindicalismo no Amazonas, contudo, pode ser melhor visualizado a


partir das greves ocorridas durante a década de 80 em Manaus e em especial com a greve dos
metalúrgicos no dia um de agosto de 1985. Nessa data a cidade de Manaus foi palco da maior
greve do Estado do Amazonas ocorrida no distrito industrial de Manaus, reunindo cerca de
trinta mil trabalhadores, o movimento conseguiu aglutinar não só os operários do distrito
como também, trabalhadores de outras categorias.
No dia da grande greve, as primeiras fábricas a pararem suas atividades foram a Philco,
Philips e em seguida Semp e Moto Honda. Muitos comandos de greve foram formados ainda
durante a noite em assembleia, e as que não conseguiram, formaram pela manhã. O momento
era de efervescência para a classe operária amazonense, pois muitos trabalhadores ainda não
haviam passado pela experiência de participar de uma greve geral com tamanha proporção.
A principal pauta desta greve era a campanha salarial e Manaus até então nunca havia
experimentado no setor industrial uma greve com grande participação de trabalhadores. Como
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já mencionamos, até esse momento, grande parte destes trabalhadores já haviam amadurecido
sua consciência revolucionária, advinda em grande parte dos movimentos ocorridos em São
Bernardo do Campo.
Empenhados e lutando por uma causa em comum, estes trabalhadores demonstraram
união, força e coletividade. Conscientes de que sofriam maus tratos, superexploração e até
mesmo ameaças de serem mandados para a rua, estes operários se organizaram para exigir
não só reajuste salarial, como também estabilidade no emprego, melhorias na alimentação, no
transporte, a democratização da CIPA e eleições livres no sindicato.
Foi no clima da solidariedade que a cidade de Manaus parecia toda juntar-se no
PIM. A solidariedade aos operários era vista por vários ângulos, impressionando o
próprio presidente, Ricardo Moraes, do Sindicato dos Metalúrgicos com a proposta
rápida e amiga da população de Manaus. As parabenizações aos trabalhadores pelos
seus atos e ousadias soavam em tom de incentivo, salientando que a greve é um
direito de todos os trabalhadores e afirmando que sairiam vitoriosos na batalha
travada contra a exploração dos trabalhadores brasileiros. A cidade inteira parecia
estar solidária, menos a Polícia Militar. Porém, esta já entendia que estava ali para
defender a propriedade privada, que para isso foi inventada. Ela jamais poderia
cometer os excessos, tão comuns, da Velha República. Um ato que também chamou
muito a atenção foi a atitude de uma senhora de seus 60 anos. Ela foi ao Sindicato,
com um pequeno embrulho nas mãos. Era uma mulher visivelmente pobre e
humilde. E foi com toda a humildade que ela entregou ao Fundo de Greve meio
quilo de café, “para os meninos que querem ganhar mais para ajudar a família a não
passar fome”. (REIS, 2008:127).

Como pontuou Milton Reis Filho, a atitude da senhora, mostra que naquela época, anos
80, o espírito da solidariedade ainda movia muitos cidadãos que acreditavam no poder das
greves gerais. Essa compreensão pela parte da sociedade civil fora fundamental durante
muitas greves ocorridas nesse período na cidade de Manaus.
A greve Geral de 1985, sem dúvidas foi um exemplo para a categoria de trabalhadores
metalúrgicos de Manaus e até mesmo para outras categorias uma vez que o processo embora
não tenha alcançado o seu êxito, pôde inserir no campo das lutas os companheiros do distrito
industrial, propiciando uma experiência importante para a classe trabalhadora da década de
80, o que resulta posteriormente importantes transformações tais como flexibilidade nas
relações de trabalho, na estabilidade social, reconhecimento pela sociedade civil, na
comunicação com órgãos do governo e de comunicação.
A construção desta greve mostra que os trabalhadores do polo industrial de Manaus,
souberam de fato se organizar contra o patronato explorador, e que embora não tenham saído
vitoriosos deste movimento, o maior ganho não foi o reajuste salarial, mas sim a unificação
dos trabalhadores metalúrgicos, a experiência de organização, a conscientização da classe e o
entendimento de que unindo as forças, a luta nunca cessaria.
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Texto integrando dos Anais [recurso eletrônico] do IV Encontro Estadual de História - Ensino de
história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

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história no Amazonas, democracia e desigualdade. Organização: Keith Valéria de Oliveira Barbosa;
Leandro Coelho de Aguiar ... [et al.]. - 1. ed. -- Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.

AS OBRAS FICCIONAIS DOS MOÇAMBICANOS MIA COUTO E UNGULANI BA


KA KHOSA E O ENSINO DE HISTÓRIA DAS ÁFRICAS NO BRASIL

Marcos Vinicius Ribeiro Alvarenga*

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo central apresentar os resultados preliminares do


projeto referente ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC),
intitulado “Territórios Descolonizados: dimensões históricas e sociais na produção ficcional
de escritores moçambicanos”. O elemento norteador desta pesquisa foi realizar uma reflexão
em torno da sociedade moçambicana pós-colonial através da literatura. A reflexão a ser
empreendida se propõe a estabelecer possibilidades para a aplicação da Lei federal 10.639 de
2003, que se manifesta no artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996
(LDB), que torna obrigatório o ensino de História afro-brasileira e do continente africano nos
estabelecimentos públicos e privados. Além disto, a lei torna clara que tal obrigatoriedade
deve ser prioridade nas disciplinas de História, Educação Artística e Literatura.42

No entanto, é preciso esclarecer que esta lei é fruto de uma longa luta de diversos
setores da sociedade brasileira em prol das questões étnico-raciais referente às Áfricas e a
cultura afro-brasileira. Segundo a historiadora Mônica Lima (2009), esses estudos no contexto
acadêmico brasileiro são muito mais antigos que esta lei. Segundo ela: “Em algumas
universidades, a existência de cursos de história da África data de algumas décadas, e desde
meados do século XX vêm sendo criados centros de estudos e pesquisas sobre o tema”
(LIMA, 2009: 150).

Alguns importantes avanços são notórios, como o fato da obra “Terra Sonâmbula”,
publicada em 1992 por Mia Couto ser hoje leitura obrigatória para o vestibular da

*
Graduando em História na Universidade Federal do Amazonas. Membro do Grupo de Estudos Africanos –
GEA.
42
Ver: Ver: BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei número 9394, 20 de dezembro de
1996. Disponível em:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/529732/lei_de_diretrizes_e_bases_1ed.pdf Acesso:
03/08/2018.
354
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).216 No entanto, este ainda é o único autor
moçambicano de relevância no mercado editorial brasileiro, permanecendo no desconhecimento
do público leitor Ungulani Ba Ka Khosa, João Paulo Borges Coelho ou mesmo Paulina Chiziane.

A mera existência da lei é um importante avanço para a sociedade brasileira, mas ainda há
muito caminho a percorrer. No contexto da produção científica do Estado do Amazonas,
podemos citar como importantíssimo marco para as discussões referentes à cultura afro-brasileira
a obra organizada por Patrícia Melo Sampaio (2011) “O Fim do Silêncio”. Como o próprio título
deixa a entender, este conjunto de textos organizados por Sampaio se propõem a uma análise
acerca da ínfima presença negra na Amazônia, se comparada com o Sudeste do país. No entanto,
o fato de ser ínfima não significa que se deva negar a importância histórica desses sujeitos. De
acordo com a autora: “(...) estamos diante de um tema muito pouco frequentado pelos estudiosos.
Um silêncio que insiste em apagar memórias, histórias, e trajetórias de populações muito
diversificadas que fizeram desta região seu espaço de luta e de sobrevivência” (SAMPAIO, 2011:
8).

Em sua análise acerca da realidade do contexto do Rio Grande do Sul, Marisa Antunes
Laureano (2008) aponta que uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos profissionais é o
desconhecimento com relação à temática. Ela também destaca, em diálogo com as proposições de
Lima (2009) de que para além de uma luta isolada de movimentos como o negro, a defesa do
ensino de História das Áfricas deve ser tomada pelo conjunto da sociedade brasileira
(LAUREANO, 2008: 334). Trata-se de uma sociedade em que no passado recebeu grande parte
das Áfricas que adentraram as Américas, sendo gestada sob a violenta experiência da escravidão.

No entanto, a história do tráfico não deve ser a única possível para o continente africano.
Este território possui uma longa trajetória em que o transporte forçado desses homens e mulheres
constituiu-se apenas como um capítulo a parte. O artigo 26-A da LDB deixa bem claro este ponto
ao diferenciar “história dos africanos no Brasil” de “história do continente africano”, ressaltando
a importância do ensino desta última. Autores como Cláudia Mortari e Vinícius Gomes (2006),
trabalhando sob uma perspectiva decolonial, veem no ensino de História das Áfricas uma

216
Ver: Disponível em: https://livreopiniao.com/2014/05/01/mia-couto-e-leitura-obrigatoria-para-vestibular-
unicamp-2016/ Acesso em 03/08/2018.
355
oportunidade para promover uma reflexão que vá além do paradigma europeu, considerado por
séculos o único relevante. Segundo esses autores:

Nessa perspectiva, aqueles que não se encontram inseridos na lógica do mundo


ocidental, ou numa racionalidade moderna, não são colocados como produtores de
conhecimento, mas como criadores de mitologias e “crendices”. São os povos infantis
sem história de Hegel, no século XIX, aqueles que não possuem nenhuma qualidade e
grandiosidade nas artes ou na ciência (MORTARI; GOMES, 2016: 73).

Os resultados que veem sendo obtidos no projeto “Territórios descolonizados: dimensões


históricas e sociais na produção ficcional dos escritores moçambicanos” tem evidenciado o
poder que esta literatura possui de romper com concepções essencialistas e estereotipadas, tais
como “o africano” ou até mesmo “o moçambicano”. São escritores que na gestação de uma
identidade nacional veem defendendo a ideia de um país, como é o caso de Moçambique, que
seja capaz de dar conta do rico mosaico que o constitui. Mia Couto, quando perguntado sobre
essa questão em uma entrevista realizada em 2012, afirma temer justamente que Moçambique
perca esse elemento plural e hibrido, tornado-se aquilo que ele chama de “um país como os
demais” (COUTO, 2012).

Aqui evocaremos os resultados obtidos através de algumas obras de Ungulani Ba Ka


Khosa (pseudônimo em língua tsonga de Francisco Essaú Khosa) e Mia Couto (pseudônimo de
António Emílio Leite Couto), são elas: “Ualalapi” (1990), “Mulheres de Cinza” (2015) e
“Sombras da Água” (2016). As três possuem como denominador comum a construção de uma
narrativa ficcional acerca dos últimos anos do Império de Gaza, sob liderança de Ngungunyane
(Gungunhana para os portugueses), unidade política existente no extremo sul de Moçambique até
finais do século XIX, que foi um empecilho para uma ocupação efetiva dos portugueses na
região.

Nosso objetivo não se tratou de uma busca de acontecimentos acerca do período tratado.
O que aqui se propõe é analisar os usos que esses autores fizeram, por meio de suas
representações, em relação ao início da ocupação colonial portuguesa na costa oriental africana,
ressaltando nisso o poder de construção de historicidade e autocrítica da realidade que tal
produção ficcional; trata-se, em síntese, de ouvir o que as sociedades africanas têm a dizer acerca
de si mesmas pela via do romance.

356
João Paulo Borges Coelho (2008), ao estabelecer uma reflexão em torno da escrita
acadêmica e escrita literária aponta que ambas, de diferentes maneiras, são capazes de fornecer
respostas acerca da realidade. No entanto, a última é capaz de abarcar elementos aos quais a
primeira possui certas limitações, tais como os sentimentos humanos de uma forma geral
(COELHO, 2008: 234). Mais do que mera fonte de um historiador, colocada abaixo do saber
científico da História: a literatura é vista aqui como instrumento de contestação da realidade e foi
capaz de produzir, após as independências nos países africanos, conforme apontado por Josilene
Campos (2008) ao tratar de países cujo denominador comum foi o colonizador lusitano,
historicidade em um contexto marcado por uma inexistente produção historiográfica dessas
sociedades, tendo sido de predomínio do europeu (CAMPOS, 2008: 3).

A autora supracitada também ressalta o papel que essa produção literária teve no papel de
formação da nacionalidade, assim como de luta contra o colonizador em prol da independência.
Sobre isso, ela destacará o papel da poesia, que foi capaz de mobilizar em prol desta causa
(CAMPOS, 2008: 4).

Considerações sobre o “Gungunhana de verdade”

De acordo com Gabriela Aparecida dos Santos (2007), em seu trabalho de dissertação de
mestrado intitulado “O reino de Gaza: o desafio português na ocupação do Sul de Moçambique”,
o sul de Moçambique era importante devido ao escoamento da produção da África do Sul. Nessa
região, interesses europeus encontrava-se em disputa: os britânicos tinham planos de colonizar
“do Cabo ao Cairo” e nessa esteira se encontrava o atual território moçambicano (SANTOS,
2007: 11). Em meio a esse bojo, o “Leão de Gaza” representava uma ameaça que deveria ser
eliminada o quanto antes pelo colonizador lusitano. Estamos falando de uma figura controversa,
que fez acordos tanto com britânicos como portugueses na defesa de seus interesses.

Ainda ancorado na abordagem histórica feita acerca da ocupação lusitana em


Moçambique, Santos faz um importante apontamento acerca das origens do reino de Gaza. De
acordo com a autora, essa unidade se originou com os nguni oriundos da África do Sul, que
durante a primeira metade do século XIX irão se expandir até a região do vale do rio Zambeze,
compelidos por diversos confrontos, realizando ataques aos portugueses estabelecidos na região
357
(como o ocorrido em 1821 em Lourenço Marques) e dominando outras etnias na região. Sob
liderança de Manicusse, paulatinamente essa unidade política se espraiaria pelo atual território
moçambicano e, devido a escassa presença portuguesa na região, os que ali se encontravam não
tinham muita escolha a não ser se sujeitarem aos seus mandos e desmandos e doravante de seu
filho, Muzila, que inclusive recebeu apoio dos lusos em uma guerra de sucessão contra seu irmão
Mawewe, pois o primeiro lhe concederia o maior número de vantagens.

Gabriela Aparecida dos Santos (2008) divide seu recorte em dois contextos: um de
Manicusse e Muzila, em que a presença lusitana na região era, como já mencionado, incapaz de
fazer frente à Gaza e por fim, um segundo, marcado pela Conferência de Berlim, em finais do
século XIX, compelindo Portugal a uma ocupação efetiva, através da força militar, naquela
região, em nome de uma “herança” referente a contatos que remetem ao século XVI, com os
prazos da coroa estabelecidos na região do vale do rio Zambeze.

De acordo com Eric Hobsbawm (2014a): (...) a permanência dos principais territórios
portugueses na África (Angola e Moçambique), que sobreviveram às outras colônias
imperialistas, deveu-se basicamente à incapacidade de seus rivais modernos chegarem a um
acordo quanto à maneira exata de dividi-los entre si” (HOBSBAWM, 2014a: 95).

Ainda Gabriela Aparecida dos Santos, evocando o historiador Valentim Rodrigues, aponta
que a perda das possessões portuguesas na América gerou uma crise que compeliu Portugal a
pensar um projeto colonial para a África. O objetivo, segundo o raciocínio da autora, era criar
“um novo Brasil” a fim de garantir a própria sobrevivência do país como uma nação. (SANTOS,
2007: 53)

Segundo Hobsbawm (1990), um dos critérios para a existência de uma nação, no contexto
da primeira metade do século XIX, era: “(...)dado por uma prova de capacidade de conquista.
Não há nada como um povo imperial para tornar uma população consciente de sua existência
coletiva como povo (...)”. (HOBSBAWM, 1990: 49-50) Não restavam dúvidas, Portugal
precisava novamente se voltar para o mar para garantir sua existência, e a violenta conquista
encabeçada por Mouzinho de Albuquerque entra neste bojo.

De acordo com Fernando Bessa Ribeiro (2005), a derrota de Ngungunyane e seu Império
foi apropriada pelos dirigentes políticos como um símbolo nacional. De acordo com ele: “Não
358
existindo como entidade política, cultural ou social até o século XIX, a identidade nacional de
Moçambique teve de ser construída de um modo acelerado pelos militantes e dirigentes políticos
nacionais” (RIBEIRO, 2005: 265). Ainda ancorado na perspectiva de Ribeiro, estava claro quem
era o herói e o vilão nesta história: de um lado o Ngungunyane, como “guardião” de uma nação a
ser construída e do outro o colonizador lusitano.

Desmistificação pela literatura

O personagem Ualalapi, tem lugar somente por ser o assassino de Mawewe, irmão do
Imperador e possível ameaça a seu reinado: após realizar a tarefa a que foi designado, ele
simplesmente desaparece. Muito provavelmente este seja um recurso usado por Khosa no ato de
sua escrita, tendo em mente o contexto delicado em que a obra foi escrita e publicada: 1987, ano,
como já mencionado, em que os restos de Gungunhana, símbolo nacional explorado FRELIMO,
estariam a voltar para solo moçambicano. Além disso, o país encontrava-se assolado por uma
guerra civil entre a FRELIMO, e a Resistência Nacional Moçambicana – RENAMO. É
Gungunhana o grande protagonista e em torno dele que os acontecimentos

É bem provável que a desmistificação feita por Khosa em seu romance, tenha relação com
o contexto de guerra em que se encontrava escrevendo. Ambos, embora não tenham sido
afetados diretamente pelos horrores deste acontecimento, escrevem em meio a uma Moçambique
em situação grave, com milhares de deslocados e ausência de comida. De acordo com Khosa, em
uma entrevista concedida ao portal Buala, em 3 de agosto de 2011, aponta que:

Era um ambiente de dificuldades. Havia gente que, para ficar com o cartão do
abastecimento, ia enganar a administração para ter mais uns quilos de comida. Fiz essa
ficção em torno desse ambiente pesado. E hoje nós contamos às outras gerações o que
vivemos, vamos aos supermercados de Moçambique e eles estão cheios de comida. E eu
lembro-me como era antes a paisagem no supermercado: quanto muito via-se uma barata
a circular pelas montras, não havia nada. É por isso que eu digo, a literatura tem a força
de trazer essas histórias, trazer esse ambiente e essa época, muito difíceis, que
nós vivemos. (KHOSA, 2011)

Na estória “O cerco ou fragmentos de um cerco” de sua obra “Ualalapi”, em que retratará


a investida dos homens de Ngungunyane aos machope (ou chope), etnia que se opôs à Gaza e que
inclusive tece alianças com os portugueses, os representantes dos nguni cercam a habitação onde
359
encontram-se tanto chopes “comuns” como suas lideranças. No entanto, somente os primeiros
passam por maiores penúrias, o que poderia ser uma evidente crítica ao seu contexto: em uma
guerra, não importa o lado em que esteja, quem sofrerá são sempre os chamados
“desconhecidos”:

“Crianças de barrigas enormes caçam moscas verdes que esvoaçam sobre os cadáveres.
Mulheres com crianças ao colo circulam como sonâmbulos sem destino pelo cercado.
Xipenanyane aproxima-se da ponta norte do cercado. Vê guerreiros lutando pela posse
de bosta fresca da última cabeça de gado abatida para os chefes. Três guerreiros lutam
pela posse líquidos intestinais. Um pouco distante da cena uma mulher dá sua urina para
uma criança. (KHOSA, 85: 1990)

Khosa está representando o passado sob os olhos do presente. Nesse processo de


desmistificação, o alvo é a figura de Gungunhana, feito herói nacional e protetor da nação
moçambicana, que simboliza todo aquele projeto nacional que desmoronava com a guerra civil.
Trata-se de era um homem que fez uso da violência contra as etnias que se opuseram ao seu
domínio. Ainda acerca do conto que trata do cerco aos machope:

Durante dias não tivemos outro objectivo que dar oportunidade aos machope de virem a
nós e entregarem as lanças, as zagaias e os escudos. Não o fizeram. E por uma razão
muito simples: são animais. É isto que esquecemos, guerreiros. Um animal habituado à
selva nunca conviverá com homens e muito menos seguirá regras mais elementares a
existência humana. E esta verdade não inventei, mas disse-a o nosso rei Ngungunhane há
muitos e muitos anos. Nessa altura, convidou-os para esta grande comunidade de
homens que somos e que construímos. Recusaram a nossa mão carinhosa e preferiram
andar a morte, incomodando-nos à noite com os seus uivos e estragando nossas
machambas. (KHOSA, 1990: 86-87)

Nessa representação, no qual o guerreiro invoca como autoridade do que fala o imperador
Ngungunyane, é exposta como os nguni depreciavam aqueles que se opunham a esse grupo,
também pertencente ao que seria a nação moçambicana do “herói”.

Com relação a trilogia “Areias do Imperador”, podemos afirmar que uma das grandes
estratégias na desmistificação de Ngungunyane seja o caráter completamente secundário dado ao
imperador. Ainda evocando sua entrevista fornecida à DN, em 11 de outubro de 2016, ele aponta,
quando perguntado o porquê de tornar o imperador de Gaza protagonista e ao mesmo tempo
secundário, ele aponta que essa aparição só se dá, fisicamente, no segundo livro:

360
“E da única maneira que me interessava: com as suas fragilidades humanas, conflitos
internos e alguém que, sendo muito poderoso, é profundamente infeliz e solitário. Um
homem que tem mais de 300 mulheres e a única que ama é assassinada pela corte.
(COUTO, 2016e)

Desmistificar, vale ressaltar, não é sinônimo de abordar Gungunhana como uma espécie
de vilão, mas sim desconstruir narrativas que fogem a realidade do que de fato esse sujeito era,
trazendo uma perspectiva humana a esse homem. No entanto, isso não significa negar todo o
histórico de violência praticada por ele e seu império: “De um lado, transformaram-no num herói,
acima dos humanos, e do outro fizeram dele um tirano e um criminoso.” (COUTO, 2015b)

Seguindo o estilo de seu primeiro grande sucesso, “Terra Sonâmbula”, publicado pela
primeira vez em 1992, Couto visa nesta trilogia dar voz a aqueles que teriam sido esquecidos
pelas guerras. É como se o fio condutor que uniu “Terra Sonâmbula”, “A Varanda de
Frangipani” e o “Último Voo do Flamingo” tivesse retomado nessa nova trilogia, que se volta
para o século XIX, para tratar do caráter desumanizador da guerra.

Uma das protagonistas e também um dos narradores do romance é Imani, uma jovem
menina machope de 15 anos de idade, etnia que Khosa explorou em seu romance para tratar da
resistência ao Ngungunyane, ainda que de maneira secundária. Em Couto, parte desse elemento é
retomado, mas dessa vez dando voz de fato a esses sujeitos: “Os outros povos, nossos vizinhos,
moldaram-se à língua e aos costumes dos invasores negros, esses que chegaram do sul. Nós, os
VaChopi, somos dos poucos que habitam as Terras da Coroa e que se aliaram aos portugueses no
conflito contra o Império de Gaza (COUTO, 2015a: 17).

Na fala de Imani, percebemos a intenção do autor, em um contexto posterior as guerras


que assolaram o seu país, de elucidar como não somente os europeus fizeram usos de formas de
violência (neste caso de caráter até mesmo simbólico, por via da imposição da língua e da cultura
por parte dos nguni), mas também aquele que por muito tempo fora usado como símbolo de uma
suposta oposição à colonização portuguesa, esta que também teve como características a
imposição de um idioma e de modos de vida.

Em uma fala intitulada “Os sete sapatos sujos”, proferida por Mia Couto para a ISCTEM,
faz uma reflexão acerca do fato de ser comum em muitos países do continente africano o costume

361
de culpar a colonização como a única causa das dificuldades que se enfrentam atualmente, a esse
sentimento ele atribui ao primeiro “sapato sujo” da lista, das quais se deve desfazer:

“Estamos sendo vítimas de um longo processo de desresponsabilização. Esta lavagem de


mãos tem sido estimulada por algumas elites africanas que querem permanecer na
impunidade. Os culpados estão, à partida, encontrados: são os outros, os da outra etnia,
os da outra raça, os da outra geografia. (...) Quarenta anos depois da Independência
continuamos a culpar os patrões coloniais por tudo o que acontece na África dos nossos
dias. Os nossos dirigentes nem sempre são suficientemente honestos para aceitar a sua
responsabilidade na pobreza dos nossos povos. Acusamos os europeus de roubar e pilhar
os recursos naturais de África. Mas eu pergunto-vos: digam-me, quem está a convidar os
europeus para assim procederem, não somos nós?” (COUTO, 2011b: 17-18)

Muito mais que negar a violência colonial (Couto a conhece, inclusive a vivenciou), mas
sim realizar uma autocrítica de que a miséria vigente em países como Moçambique, é fruto não
somente de um ente externo, mas também possui participação das elites locais, de sua corrupção
e ineficiência denunciadas por Couto, tanto em falas como esta como nas “entrelinhas” de sua
literatura.

Em outro trecho, Mia Couto volta a tecer graus de comparação entre os portugueses e os
nguni, usando sua personagem: “A nossa terra, porém, era disputada por dois pretensos
proprietários: os VaNguni e os portugueses. Era por isso que se odiavam tanto e estavam em
guerra: por serem tão parecidos em suas intenções” (COUTO, 2015a: 17).

Imani, pertencente a uma família com vínculos bastante estreitos com os portugueses, será
a porta-voz na figura de narradora de toda essa violência praticada pelos homens de
Ngungunyane. Ela própria educada pela missionação de padres (relata ter vivido em uma missão
durante alguns anos), dominante da língua portuguesa com maestria, como percebido pelo
sargento português Germano de Melo, no momento em que chega a Nkokolani: “És tu a tal
moça? E bem que falas português, a pronúncia corretíssima! Deus seja louvado! (...) Mas tu tens
uma cara bem bonita!” (COUTO, 2015a). Germano de Melo, aliás, será o segundo narrador do
romance, através de cartas que troca com José d’Almeida, que se revelará Ayres de Ornelas ao
final do primeiro volume.

Germano de Melo, de acordo com as informações fornecidas por Mia Couto, é um


republicano desterrado para a África, acusado de participar de um movimento cujo fim era a

362
abolição da monarquia em Portugal. Desse modo, sua função seria a supervisão da cantina de
Sardinha, em Nkokolani, com o objetivo de fazer desta um quartel.

Na lógica do colonizador, a qual Couto tenta ser fiel no sentido histórico da narrativa, na
medida em que Imani se apresenta da “pronúncia correta” da língua portuguesa, isso mostra o seu
grau de civilizada, a ponto de estar na fronteira entre “ser africana” e “ser branca”, como se
questiona diversas vezes ao longo da narrativa. Nesse ponto, Couto exerce uma crítica acerca das
visões essencialistas e reducionistas com relação à África, explorando o caráter fluído e dinâmico
das identidades, para além de uma suposta pureza.

Em um artigo “E se Obama fosse africano”, Mia Couto faz uma crítica com relação a
comemoração de muitos líderes de países africanos com relação a vitória do presidente norte-
americano, por ser considerado negro em seu país. Em sua crítica, Couto aponta que devido a
coloração um pouco mais clara da pele de Barack Obama, sua autenticidade de “africano” seria
questionada em muitos países:

Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama
fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele
fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho
sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um
“não autêntico africano”. O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo
presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos “outros”,
dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?). (COUTO, 2011a: 106)

Em síntese, Mia Couto relega Gungunhana ao segundo plano, ao passo em que explora
questões acerca da do caráter fluído das identidades, condenando essencialismos, como o fez em
momentos como o supracitado em “Terra Sonâmbula”. Nesta obra, um dos elementos centrais é
justamente a questão do exclusivismo racial de caráter negro, fazendo com que ascendentes de
indianos e portugueses sofressem restrições.

Conclusão

Este trabalho, por meio da análise histórica empreendida sobre os romances, se propôs a
estabelecer caminhos para um ensino de História das Áfricas através de uma das formas que as
sociedades africanas têm feito uso para falarem de si mesmas: a produção literária. Conforme
363
evocado, na incipiência de quadros na historiografia, os próprios africanos resolvem adentrar no
mundo da ficção. Mia Couto e Khosa, no contexto moçambicano, fazem parte de um grupo de
escritores que para além de construir uma nação, irá se propor a abordá-la de uma maneira mais
crítica. Respeitando o mosaico étnico moçambicano e desconstruindo mitos, como os de
Gungunhana, aos quais a FRELIMO usou da imagem para promover uma unidade nacional, essa
literatura tem como sua principal marca de promover uma ruptura na questão de os europeus
contarem a história das sociedades africanas; essas são as protagonistas, ainda que sejam para
falar de problemas gestados por elas mesmas, tais como a Guerra Civil moçambicana. Tratar
dessas sociedades, de acordo com a bibliografia consultada, é por si só um exercício de ruptura
com os padrões estabelecidos pela Europa, evidenciando que outras realidades merecem ser
analisadas e estudadas.

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_______. “Quem é que não tem um pouco de realismo mágico?”. Entrevista concedida a Luís
Miguel Queiros, Portal Público, 30 de Outubro de 2015b.Disponível em:
364
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realismo-magico-1712462
_______. Cada homem é uma raça. São Paulo: Companhia das Letras, 2016b.
_______. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016c.
_______. Mia Couto fala sobre a trilogia “Areias do Imperador”. Entrevista concedida à Nara
Rúbia Ribeiro, Revista Pazes, 4 de outubro de 2016d. Disponível em:
http://www.revistapazes.com/5703-2/
_______. “Não há tentativa de branquear a história ou de memorizar o que foi criminoso”.
Entrevista concedida a José Céu e Silva, Portal DN, 11 de outubro de 2016e. Disponível em:
https://www.dn.pt/artes/interior/nao-ha-tentativa-de-branquear-a-historia-ou-de-menorizar-o-que-
foi-criminoso-5434650.html Acesso 31/01/2018
_______. O bebedor de sonhos, novo romance de Mia Couto. Entrevista concedida ao portal
Esquerda.net, 9 de novembro de 2017. Disponível em: http://www.esquerda.net/artigo/o-bebedor-
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_______. Entrevista de Mia Couto ao programa “Roda Viva”. Disponível em:
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365
OS ALIENADOS DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA E DO HOSPÍCIO EDUARDO
RIBEIRO
MARIA DE JESUS DO CARMO DE ARAÚJO

A Manaus da virada do século XIX para o XX, é uma cidade de contrastes. Nela parecia
caber um pouco de tudo, de todos os lugares do mundo, ela era o reflexo de um sonho importado
a la carte da França, mas que tinha sua identidade mesmo que discretamente, mesmo que
silenciosamente. Manaus nunca conseguiria extinguir toda a sua regionalidade porque ela
sobrevivera nas memórias de seus moradores, nas confusões expostas nos jornais da época, no
dizer não às autoridades, nos cabelos negros de seus habitantes, no gosto do peixe fresco, na água
escura do rio negro, na mata verde da floresta, no banho do rio, na construção da casa fora dos
padrões exigidos, no grito ou gemido dos alienados e em muitas outras formas de resistência.
Isso nenhum discurso e nem o tempo vão poder apagar da cidade de Manaus.

Partindo dessa ideia, sabemos que o discurso da época era que Manaus tivesse novos
hábitos, de preferência o do europeu. A cidade foi construída para poucos, mas quem a fez ser a
Paris dos Trópicos foram as mãos dos trabalhadores, em especial a dos nacionais. Indivíduos que
vieram atrás dos seus sonhos, de conquistas, mas se depararam com uma cidade para poucos.

Começamos esse tópico pelos trabalhadores, pois eles configuravam a grande maioria dos
enviados como indigentes para a Santa Casa de Misericórdia e para o Hospício dos Alienados
Eduardo Ribeiro. Eles foram um dos principais alvos da política de higienização e purificação da
área central de Manaus e porque eles também eram confundidos por suas atitudes com alienados.
Podemos citar que se tinha algum sintoma comum entre os doentes de alienação recolhidos nas
instituições para alienados na cidade de Manaus e os trabalhadores, esse era a agitação. Por
consequência seus atos (gritos, agressividade, entre outros) eram igualmente confundidos. Tanto
é que a polícia era quase sempre acionada para fazer o recolhimento dessas pessoas.


Professora na Secretaria de Estado de Educação e Qualidade do Ensino do Amazonas (SEDUC-AM). Mestra em
História pela Universidade Federal do Amazonas.

366
Como vários indivíduos compuseram a história das instituições para alienados, muitos
serão os atores sociais que irão compor esse tópico, mulheres, homens, menores, indigentes,
vadios, prisioneiros, alienados, nacionais.

Os alienados assustavam os “normais”, por aparentemente não terem controle de si e pelo


fato dos outros também não o controlarem. Os gritos, os sussurros, as previsões, os arranhares
dos dentes, o se despir, entre outras ações, faziam com que as pessoas tivessem medo do
imprevisível, ou seja, do que lhe causava desconforto.

O incômodo que os loucos causavam eram denunciados às autoridades. Os gritos eram o


que mais perturbavam as pessoas, mas não era só isso. Eles serem visíveis numa cidade que
passava por um processo de reurbanização era um problema. Para a elite seria mais pertinente tê-
los afastados da área de maior circulação na cidade,

Ontem, por volta de 11 horas da noite, pouco mais ou menos, o indivíduo Manoel
Zeferino, entrou pelos fundos da repartição onde funciona a polícia, incomodando toda a
vizinhança com os gritos que soltava.
A autoridade de serviço tomou conhecimento do fato, chegando a conclusão de que
Manoel Zeferino achava-se sofrendo de alienação mental, providenciando em seguida
no sentido de ser o infeliz recolhido ao hospício de alienados. (A Federação,
23/06/1899, n.365, p.1)

Manoel foi “diagnosticado” pelos gritos que soltava, foi constatado que sofria de
alienação pelo médico da polícia e encaminhado para recolhimento no Hospício. Outro fato para
refletirmos é o que levaria Manoel a invadir a repartição? Não podemos diagnosticá-lo por uma
nota de jornal, mas com certeza, esse indivíduo precisava de ajuda, seja ela médica ou de
caridade. Se fosse um criminoso, acreditamos que ele buscaria invadir outro espaço, ao invés de
invadir uma instituição que zelava pela ordem.

Não vemos os alienados aqui como meros figurantes, os vemos como atores, de sua vida,
da sociedade e do trabalho, pois eles não ficavam estáticos, as suas atitudes exigiam outras e com
os fragmentos que nos chegaram dessas cenas, conseguimos resgatar o que lhes foi roubado, a
sua própria história de vida.

Muitas das atitudes dos indivíduos eram “reconhecidas” como alienação. Neste caso, estar
alcoolizado poderia ser considerado um caso de alienação. Essa condição é encontrada, inclusive,

367
na classificação de grandes psiquiatras como J. Falret ,Morel e Krafft-Ebing217, e na qual se
encaixa o José Joaquim, “Foi recolhido ontem, ao hospital de Alienados, por se achar sofrendo de
delírio alcoólico, [...] atestado do médico da polícia”(A Federação, 16/06/ 1899, n. 359, p. 2).
José foi recolhido no Hospício, pois tratava-se de uma alienação alcoólica, sendo assim, ele
estava em local adequado para receber o tratamento. Porém, não podemos generalizar que todos
os bêbados encontrados em Manaus se tratavam de alienados, por isso a crítica em mandar
recolher no Hospício todos aqueles que estavam sofrendo por conta do álcool. O que respalda o
envio de José, é o fato de ser atestado pelo médico da polícia. Compreendemos assim que
algumas falhas nos fizeram buscar um caminho menos perverso que já foi para esses doentes.

José Joaquim representa muitos atores que foram recolhidos no Hospício por estarem
alcoolizados. Apontamos que o álcool poderia ser entendido como meio de fuga da realidade pela
qual passavam. Não soubemos de onde ele veio ou o que fazia, soubemos somente sobre o seu
recolhimento, como já foi exposto. Magali Engel salienta,

Decididamente não havia chegado ainda a época em que, com base na avaliação médica
de que o alcoolismo era ao mesmo tempo causa e feito da doença mental, os bêbados da
cidade eram despejados pela polícia no hospício, a ponto de se tornarem tão numerosos
que alguns psiquiatras começariam a reivindicar, como será visto, a criação de
estabelecimentos especialmente destinados ao seu tratamento. (ENGEL, 2001:39)

O álcool nesse período era usado para se “distrair”, principalmente, nos seringais da
região, o que não deixa de ser uma fuga da rotina de trabalho exploratória, de estar longe da
família, e de outras situações. Mas a alienação alcoólica acaba perdendo esse status e,
posteriormente, se tornou uma doença independente. Sendo assim, o delírio alcoólico deveria ser
tratado, mas isso não ocorria. Os indivíduos eram recolhidos, recebiam o mínimo de tratamento e
acabavam, também, à mercê da salvação divina.

O indivíduo que ingeria álcool não era visto apenas como alienado, era visto como um
problema, e, portanto, deveria logo ser tratado nos primeiros sinais, para Maria Cunha

O alcoolismo, que fornece uma grande porcentagem dos casos de internamento


masculino, é quase sempre composto desta forma: quadro patológico “à caminho” da

217
As classificações dos alienados podem ser encontradas no livro, PESSOTTI, Isaias. Os nomes da loucura. São
Paulo. Ed. 34, 1999.
368
loucura e agregado a classificações nosográficas como “fraqueza do espírito”, “tarado”,
“degeneração”, “idiota”.
A busca do degenerado “à caminho” da loucura, do louco potencial que está solto nas
ruas visa, em última análise, a limpeza da sociedade e a busca da ordem urbana, quase
funções de polícia na “defesa” contra a criminalidade. (CUNHA, 1986:136-137)

Entendemos que o delírio alcoólico é visto como um problema médico e social, e passível
de disciplina. Por isso eram recolhidos em estabelecimentos fechados para receberem tratamento,
segundo Vera Portocarrero

O exame é um olhar que normaliza, uma vigilância que normaliza, uma vigilância que
permite qualificar, classificar e punir os indivíduos. Ele impõe o princípio de
visibilidade, através dos quais os indivíduos são diferenciados e sancionados. Por esta
razão, o exame é o dispositivo da disciplina mais submetido a rituais – na escola, no
hospital etc. (PORTOCARRERO, 2009:201)

Estar alcoolizado na classificação de alienação trazia consequências mais agravantes que


ser recolhido em uma instituição de saúde, ou à cadeia. Poderia custar-lhe a própria vida, como
foi o caso do Manoel Saraiva. “As pessoas relataram que ele era uma pessoa calma até que teve
um surto e tentou asfixiar várias pessoas, incluindo uma criança (que veio a falecer). Criança essa
de quem o pai, em um ato para tentar salvar seu filho, acabou assassinando Manoel” (A Capital,
26.03.1918, p. 2). Muitas vezes a agressividade do alienado não conseguia ser contida por outras
pessoas, os alienados que recolhidos nos estabelecimentos de saúde eram classificados como
loucos agressivos e acabavam por receber tratamento isolado dos demais, pois apresentavam um
risco aos outros e a ele próprio.

A política de higienização e o saber médico vão se unir para “tratar” as cidades


brasileiras, por conta da ideia de ordem e progresso para o país. Por conta desse ideal, muitos
foram recolhidos para instituições de saúde para serem tratados. “No ano de 1922, a cidade já
afetada por causa da crise da borracha, traz demonstrativos do número de 116
indigentes”(Relatório da Santa Casa de Misericórdia. Manaus: Typ do CA e LA, 1923, p.119.),
situação que acabou por sobrecarregar ainda mais o espaço já não adequado para os alienados.

A crise da borracha mudaria novamente o cenário da cidade. A circulação de pessoas se


intensificaria à procura de trabalho, não conseguindo, muitas acabariam por burlar os códigos e
regulamentos, fazendo delas um perigo social. Nesse contexto, os presos de justiça, já vistos

369
como perigosos, aparecem sendo recolhidos para as instituições médicas por motivo de doença,
ferimento, e para serem medicados,

Por ordem do dr. Chefe de Polícia, foram recolhidos à Santa Casa, por motivo de
moléstia, os célebres passadores do Conto de Vigário: Antonio de Vasconcellos e Arthur
Pereira Ramos, que se achavam presos na cadeia de detenção. (A notícia, Ano I,
04/12/1908, n.1, p. 2)
Baixaram o hospital de misericórdia para serem medicados os presos de justiça: Joaquim
Pedro Page, Felisberto Baca e Alfredo Jose d’Andrade. (O século, Ano 1, 11/01/1890, n.
3)

No que tange os presos de justiça, eles se faziam mais presentes na Santa Casa, “no ano
de 1905, somando 81 presos de justiça. Muito provavelmente levados para receber cuidados
básicos, como curativos” (RELATÓRIO da Santa Casa de Misericórdia de Manaus, apresentado
às Mesas da Assembléia Geral e Administrativa, em sessão de 1 de Janeiro de 1906, pelo
provedor Coronel Affonso de Carvalho. Manaus, 1906. Anexo 2). O que nos faz pensar nesses
atores, é o fato deles provavelmente estarem no mesmo ambiente que os alienados, já que a ala
destinada para os alienados continuava funcionando na Santa Casa. Quando ligamos alguns casos
com a lei de reorganização de 1903, entendemos que eles não poderiam estar no mesmo ambiente
que os presos de justiça, mesmo que fosse para receber cuidados básicos.

Ainda sobre os presos de justiça, encontramos ainda o caso do José Francisco, “O réu,
condenado a 29 anos e nove meses, pelo júri passado, de cuja sentença apelou, não entra na
presente época, por achar-se recolhido ao hospício de alienados” (A Federação, 22/12/1899,
n.522, p.1). Entendemos que a luta de José é por ter sua liberdade de volta. Enquanto preso,
porém, deve ter sido “diagnosticado” com alienação e transferido para o Hospício dos Alienados
Eduardo Ribeiro. Nessa perspectiva explorava-se mais uma área para o saber científico, o da
psiquiatria com a criminalidade, Magali Engel explica,

Não se previa explicitamente o envio de loucos para prisão, a não ser nos casos em que
no momento do crime a razão e a consciência tivessem sido recuperadas. Critério
bastante difícil de ser avaliado mesmo depois da difusão das discussões acerca dos
intervalos lúcidos na loucura que mobilizariam psiquiatras, jurista e legistas em fins do
século XIX. A adoção desse critério na definição do louco criminoso deixava, portanto,
uma grande brecha para que muitos fossem efetivamente enviados para as prisões. Além
disso, como inexistiam espaços especialmente destinados “aos loucos que tivesse
cometido crimes” na cidade do Rio de Janeiro até o início da década de XX, é possível
supor que a possibilidade de enviá-los às “casas para eles destinadas” referia-se, de fato,
a à reclusão na Santa Casa da Misericórdia ou nas cadeias ou casas de correção.
(ENGEL, 2001:184)

370
Na cidade de Manaus, “os meios coercitivos não ocorriam apenas em ambientes fechados,
mas também em espaços abertos utilizando, inclusive, os seringais para as práticas coercitivas”
(DIAS, 2007:133).Além desse aspecto nos anos iniciais da República, a própria ideia de asilo
mais colônia vai ganhar espaço assumindo essa função para os alienados218, logo pensamos no
João José,

Na noite do dia 23 de Setembro foi acometido de alienação mental o indivíduo de nome


João José da Silva Larangeira, sendo recolhido na Cadeia por haver tentado ferir seu
cunhado de nome Casimiro, sendo depois transferido para o hospital da Santa Casa de
Misericórdia, d’onde embarcou para a província vizinha. (RELATÓRIO, Exm. Sr. Dr.
Ernesto Adolpho de Vasconcellos Chaves presidente da Província do Amazonas instalou
a 1 sessão da 18 legislatura da Assembléia Legislativa Provincial, em 25 de março de
1886, p. A-7.)

João foi a primeira fonte que encontramos sobre alienados na cidade de Manaus. O vimos
numa primeira análise como indivíduo expulso só por estar doente, porém, com o passar das
repetidas leituras dessa fonte, entendemos que ele foi enviando para a província vizinha, pois a
cidade ainda não tinha estabelecimento próprio para o tratamento de alienados. Mas João poderia
muito bem se encaixar no perfil de limpeza urbana que a cidade vivia. Logo a história dele nos
remete à mais romanesca das Naus, a da loucura exposta por Michel Foucault

Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve
existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma
cidade para outra. [...] Esse costume era freqüente particularmente na Alemanha: em
Nuremberg, durante a primeira metade do século XV, registrou a presença de 62 loucos,
31 dos quais foram escorraçados. Nos cinqüenta anos que se seguiram, têm-se vestígios
ainda de 21 partidas obrigatórias, tratando- se aqui apenas de loucos detidos pelas
autoridades municipais. [...] Às vezes, os marinheiros deixavam em terra, mais cedo do
que haviam prometido, esses passageiros incômodos; [...] Freqüentemente as cidades da
Europa viam esses naus atracar em seus portos. (FOUCAULT, 2010:9)

Abandonados pelo Estado e por familiares (aqueles que tinham algum parente na cidade),
os alienados faziam parte do cenário do Fausto, mudando o cotidiano daqueles que eram
perturbados pelas ações dos alienados. Apesar de todos os problemas estruturais e
administrativos que as instituições para alienados passavam, o Estado possuía um Hospício

218
Sobre a ideia de Asilo-Colônia, ler: CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo:Juquery, a história
de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
371
destinado para esses doentes. Era comum o Hospício Eduardo Ribeiro receber doentes de outras
localidades da região, como é o caso Tomaz Quimquim Corrêa, que veio da vila Boa Vista do
Rio Branco, acompanhado por dois praças, e tivera por intermédio da polícia seu internamento no
Hospício Eduardo Ribeiro. (Jornal do Comércio, 02/10/1917, p. 1)

Muitas pessoas vinham do interior para a capital para receber tratamento. Os alienados
tinham a sua mudança decretada para outras localidades antes da construção do Hospício. Como
exemplo, Manuel e Miguel que eram considerados perigosos, pois atacavam as pessoas que se
aproximavam. “No caso de Miguel, ele tinha família, mas acabou sendo abandonado pela esposa
e filhos. Já Manuel atacava mulheres nas ruas, independente, de serem casadas ou não, e não se
preocupava com a idade que tinham.” Esses dois casos ganharam as páginas do jornal, que
solicitava a ação da polícia e que fossem enviados para Belém, que possuía um manicômio
recentemente construído. (Diário de Manáos, 21/07/1893, p. 1)

As viagens pelos rios do Amazonas também foi cenário para surtos de alienados enquanto
viajavam de uma localidade para outra e, casos desse tipo, não eram raros de acontecer dentro
das embarcações. “Vicente B. Lima, era um louco que vivia em Porto Velho, porém, a cidade
não tinha Hospício para tratá-lo, então foi encaminhado para Manaus. Em meio à viagem teve
várias crises, atentando contra passageiros e contra si mesmo, tentando sem sucesso se jogar no
rio.” (Jornal do Comércio, 07.07.1916, p. 1.). O caso de Vicente, é um dos muitos que
encontramos nas páginas dos jornais. Nesses casos, os alienados atacavam várias pessoas e
acabavam sendo contidos pelos tripulantes. Chegando ao destino final, eram entregues à polícia,
que os encaminhava para o Hospício Eduardo Ribeiro.

A ação da polícia era de saúde, mas também de ordem, principalmente, para tirar aqueles
que de alguma forma interferiam no espaço em comum. Por isso, na maioria dos casos, levados
para o Hospício Eduardo Ribeiro, onde passavam, inicialmente, pela polícia na figura do médico
que atestava a alienação e, em seguida, ao recolhimento na instituição de saúde. “Francisco
Pereira Cambaia, foi uma dessas pessoas que foi recolhida pela polícia e logo transferida para o
hospício. O motivo que o levou para tal estabelecimento foi que ele perturbava o sossego
público.” (Comercio do Amazonas, 14/10/1880, p. 1)

372
As ações dos alienados incomodavam, pois interferiam na ordem e progresso que o país
buscava. Partindo dessa premissa, o louco, o vadio, o mendigo, as prostitutas, entre outros,
deveriam ser disciplinadas e isso só viria com a correção de seus atos, uma delas seria o trabalho.
O trabalho era visto como mecanismo de disciplina e de progresso, pois o Brasil tentava fugir da
economia agrícola para industrializada. Para que isso viesse ocorrer, era necessária a qualificação
da mão de obra, que foi buscada na Europa.

No entanto ninguém estava livre de ser acometido com a enfermidade de alienação.


Destacamos a situação que ocorreu com “um funcionário dos correios que estava em uma
embarcação e se apresentou agressivo no retorno para sua casa, tendo que ser contido por
passageiros da embarcação para não se atirar e nem as correspondências que estavam sob sua
responsabilidade ao rio.” (A Capital, 04.10.1917, p. 1). Rogerio, teve o mesmo destino que
outros alienados tiveram ao aportar, o seu recolhimento no Hospício.

O trabalho como meio de recuperação social não deveria atingir apenas os sãos, mas os
doentes que pudessem produzir algo para o país, portanto, mãos úteis para o trabalho. Segundo
Maria Cunha

A intenção era de que, através do trabalho “terapêutico” dos internos, se atingisse o


estágio da auto-suficiência e, possivelmente, mesmo um pequeno excedente destinado ao
mercado. O louco, que constituía até então um ônus sobre os ombros do governo ou da
família, seria de alguma forma reintegrado a um circuito produtivo e arcaica com o custo
da sua própria subsistência– condição, aliás, indispensável para que se pudesse ampliar a
escala da assistência. (CUNHA, 1986:70)

Na realidade, o que o Estado buscava era ter um retorno do que foi investido no alienado,
então utilizaram os hospitais para tratar o alienado inserindo-o no trabalho como meio
terapêutico e também de retorno financeiro. A atividade escolhida, no caso da cidade de Manaus,
foi a horta. Esse discurso ganhou mais força na década de trinta, transformando o Hospício em
Colônia, utilizando atividades agrícolas para ter o retorno terapêutico e econômico.

Manter a ordem nos espaços em Manaus não era fácil, pois não tinha como controlar a
vontade dos indivíduos em circular nos espaços público. O alienado era visto como um problema,
por ele ser imprevisível e, nos momentos de crise, agressivo. Não ter controle sobre esse
indivíduo, fez com que o Estado tomasse medidas, mandando recolhê-los em espaço “adequado”.

373
Invadir um lugar que não era seu seria ameaçar a ordem, “Chamamos a atenção da
autoridade competente para um louco, que vive vagando pela praça de S. Sebastião proferindo
obscenidades e alarmando as famílias com altos gritos. Será um ato de caridade recolher esse
infeliz no Hospício de Alienados.” (A Federação, Ano VII, 07/ 11/1900, n. 791, p. 2), nesse
caso, o louco é visto como ameaça e perturbador da ordem pública, e deveria ser recolhido em
lugar específico para ser tratado. Mas pensamos em outra questão: o local no qual esse louco
encontrava-se no perímetro central é de maior circulação de pessoas, se ele estivesse em um lugar
afastado do centro da cidade, ele seria notícia? Por esse tipo de caso relacionado à localização, foi
solicitado que o Hospício dos Alienados Eduardo Ribeiro fosse construído distante da área
central, para evitar esse tipo de inconveniência e ajudar no tratamento do alienado.

As mulheres também estavam presentes na Santa Casa e no Hospício dos Alienados. No


entanto, a mulher na passagem do século XIX para XX não deixa de ser uma construção do
período. Sua forma de se vestir, falar, seu modo de agir, entre outras ações, eram observadas por
uma sociedade que buscava a beleza. Desta forma, a mulher se via no espelho, mas nem sempre o
reflexo dessa imagem era a sonhada pela família ou sociedade. Muitas vezes ela era privada de
socializar-se, de ter novas descobertas, ou ainda, agir por conta própria. No entanto, não podemos
deixar de visualizar, também, aquelas mulheres que saíram do conforto do seu lar e foram à luta,
ou ainda, em busca dos seus maridos que para a cidade de Manaus vieram.

Muitas mulheres compuseram esse período, como a Raymunda uma das muitas que
encontrei nos jornais, e a quem a pesquisa ajudou a emergir da ocultação histórica. Imigrante,
mulher, a qual era apenas identificada pelo primeiro nome seguido de tal e nacionalidade, “Com
guia da 1ª delegacia foi recolhida à Santa Casa de Misericórdia a indigente Raymunda de tal,
espanhola.” (A notícia, Ano I, 28/12/1908, n. 25, p. 2). Deve ter chegado à cidade em um dos
inúmeros vapores que aqui aportavam, em busca de algo ou fugida por algum motivo, mas que
veio para Manaus, e acabou sendo recolhida na Santa Casa juntamente com várias indigentes que
ali eram recolhidas.

Percebemos ainda que os estrangeiros recolhidos nessas instituições eram identificados


dessa forma nos jornais, mas que seus nomes não se encaixavam na nacionalidade exposta.
Podemos dizer que ao chegarem à cidade, eles ganhavam um nome abrasileirado, como o caso de
Raymunda, de nacionalidade espanhola.
374
Encontramos nas mensagens dos governadores, o caso da “Maria Antonia Spadini,
italiana, que teve sua ida decretada para o Hospício Eduardo Ribeiro pelo Dr. L. Cavalcante,
médico da delegacia.” (MENSAGEM, lida perante ao Congresso do Amazonas na abertura da 2º
Sessão ordinária da 8º legislatura, Exm. SNR. Dr. Jonathas Freitas Pedrosa, Governador do
Estado do Amazonas, em 10 de julho de 1914, p. 135). Esta, diferentemente de Raymunda,
possui uma nomenclatura característica de sua nacionalidade, ajudando a compor essa
multiplicidade de nacionalidades que para Manaus vieram.
Um outro caso envolvendo mulheres nos chamou atenção: o de Manoela. Ela foi contida
pela polícia, que logo diagnosticou que se tratava de um caso de loucura, “O Sr. Capitão prefeito
de segurança fez ontem deter Manoela Fernandes, que andava pela praça da Constituição
propalando que seu ex-amásio Nino Perez queria matá-la. Parece que se trata de um caso de
loucura”(Quo Vadis?,Ano I, 25/11/1902, n.6, p. 2). O caso de Manoela, nos chamou atenção,
pois tratava-se de um relacionamento fora do padrão aceitável pela sociedade. Mas entendemos
que essa mulher logo é diagnosticada por não estar dentro dos padrões ditos normais, por ela estar
agitada e também por estar fazendo acusações questionáveis para a conduta das mulheres da
época.

No caso das mulheres alienadas, a doença assim diagnosticada está intimamente ligada à
sua sexualidade, para Maria Cunha, “No que compete às mulheres, a sexualidade está relacionada
desde longo tempo a diferença das categorias da insanidade: tradicionalmente os alienistas
associaram a loucura feminina a fases críticas de seu corpo”(CUNHA, 1986:54).

Com a propaganda estimulada pelo estado e também nos jornais sobre a fortuna que o
látex proporcionava a quem trabalhava com ele, muitos sonharam em enriquecer com o ouro
branco da Amazônia. Mas nessa história, muitas outras foram esquecidas, famílias separadas,
mortes nos seringais, mulheres atrás de seus esposos, podemos assim refletir sobre a “Francelina
do Rego Brazileiro, que foi recolhida como indigente ao Asilo.” (Comércio do Amazonas, Ano
XXXII, 04/ 11/ 1899, n. 61, p.1). Não sabemos o motivo da sua vinda para a cidade de Manaus,
ou se tinha filhos ou esposo, mas que aqui esteve, e teve como seu destino o Hospício.
Assim como Francelina, encontramos muitas outras. Marias, Fátimas, Isabeis, Ritas, entre
outras atrizes de sua história, que tiveram como parte da sua trajetória de vida o recolhimento à

375
Santa Casa de Misericórdia ou ao Hospício Eduardo Ribeiro. Mas não podemos deixar de citar as
lutas que essas mulheres enfrentaram em seu tempo.

A luta delas por vezes foi escondida, pela composição histórica de vitórias de heróis que o
Brasil estimulou, para que assim construíssem a sua própria identidade. Mas as mulheres cada
vez mais saem da sombra do homem e conquistam seu espaço na historiografia regional. Não
estamos aqui para construir uma história de gênero, mas para construir a história de exclusão dos
alienados de Manaus, na qual também se inserem alienadas.

Não negamos que a história que antecede a dos Annales deu sua contribuição para que
tornássemos a ciência que somos hoje. Porém se essa transformação de mentalidade não tivesse
ocorrido, deixaríamos de conhecer muitos atores e atrizes de sua história. Nessa perspectiva, para
Marcos Silva “A memória dominante, para se afirmar, precisa sufocar ou submeter memórias
autônomas, provando que sua existência se dá num espaço de lutas, configurando poderes menos
visíveis e muito eficazes na construção de identidades sociais.”(SILVA, 2003:67)
A imagem da mulher, por vezes possui uma dualidade principalmente nas obras de arte ou
literatura. Na virada do século XIX, isso também caberia, pois as mulheres são vistas como
saudáveis ou não, e passam a ser mais observadas pelo que vestem e pela forma que agem. Mas,
nesse caso, as burguesas da Belle Époque manauara não nos atraem, mas sim a mulher que estava
no espaço público, ou mesmo no privado, exercendo o papel de trabalhadora, ou ainda, de
excluída do processo de modernização da cidade.

O corpo da mulher é um lugar restrito, segundo Ligia Bellini, “Os médicos tinham pouco
acesso ao corpo feminino”(BELLINI, 1989:56.) e, por isso, vai ser tornar objeto de interesse
médico por todo o século XIX. Levando em consideração muitos fatores, mas principalmente o
que envolve a sexualidade feminina, em alguns casos ocasionaria no diagnóstico de alienação.

“Thereza Maria de Jesus, foi recolhida em local adequado pois estava sofrendo de
alienação” (A Federação, 19/ 05/ 1899, n. 425, p. 2). Mas pelo que consta na notícia, ela não
passou por nenhum médico especialista e logo foi diagnostica como “por se achar sofrendo das
faculdades mentais”. Vamos trabalhar com Thereza, a partir da ótica de que ela realmente
sofresse de alienação. Ela iria para a ala feminina do Hospício e receberia o tratamento mínimo
que era dado a todos, porém, estaria à mercê de sofrer agressões e ter a privacidade do seu corpo
376
invadida nos banhos. Thereza dificilmente teria sua razão recuperada com o tratamento fornecido
dentro da instituição.

A luta alienista não foi discutida e aplicada da mesma forma em todo o país, as cidades
que se destacam no levante dessa bandeira foram São Paulo e o Rio de Janeiro. Manaus só
entraria para esse rol com a conquista do Hospício dos Alienados Eduardo Ribeiro em 1894,
mesmo assim elas não foram muitas, pois a instituição apresentou problemas desde o início da
construção, levando por anos até o fim da construção da obra no sítio do O Pensador em 1927, e
ainda assim, continuou com problemas de estrutura e corpo clínico.

No entanto, não podemos desprezar tudo o que o Estado realizou para tratar esses doentes.
Encontrar o alienado no regulamento do Código de Postura para ser recolhido em local adequado,
e até mesmo as instalações para o tratamento desses doentes na ala da Santa Casa inicialmente e
posteriormente ao Asilo Eduardo Ribeiro, foram os primeiros passos para que mudanças viessem
mais tarde.

Aos alienados, que sofreram com o processo de exclusão e um rapto de sua história, nos
restou algumas linhas nas páginas dos jornais. Mas a história desses doentes, é mais extensa, pois
eles foram atores de suas vidas, doentes ou não, de forma patológica ou não, eles fizeram com
que o Estado os vissem, para isso agiram sem pudor de suas ações, e foram vistos, através de
poucas linhas dos jornais, e dessa pequena dissertação, pela legislação, pelos códigos de postura e
por toda uma sociedade, que almejava o que não podia ter nas mãos com total eficácia, a eles
deixamos uma resposta de um alienado, “Nesse hospício de alienados, há quanto tempo está
aqui? Perguntou um visitante a um doido. - Estou aqui desde que os de lá de fora perceberam que
eu tinha descoberto que os doidos eram eles” (A Federação, Ano VII, 14/07/1900, n.700, p. 2)

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Brasiliense, 2003.

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legislatura, Exm. SNR. Dr. Jonathas Freitas Pedrosa, Governador do Estado do Amazonas, em 10
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RELATÓRIO da Santa Casa de Misericórdia de Manaus, apresentado às Mesas da Assembleia
Geral e Administrativa, em sessão de 1 de Janeiro de 1906, pelo provedor Coronel Affonso de
Carvalho. Manaus, 1906. Anexo 2.
RELATÓRIO, Exm. Sr. Dr. Ernesto Adolpho de Vasconcellos Chaves presidente da Província do
Amazonas instalou a 1 sessão da 18 legislatura da Assembléia Legislativa Provincial, em 25 de
março de 1886, p. A-7.
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Jornais
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A Federação, Ano VII, 07/ 11/1900, n. 791, p. 2.
A notícia, Ano I, 04/12/1908, n.1, p. 2.
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A Notícia. Manaus, Ano II, 18/01/1909, n. 46, p. 2.
Comercio do Amazonas, 14/10/1880, p. 1.
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Diário de Manáos, 21/07/1893, p. 1.
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Quo Vadis?,Ano I, 25/11/1902, n.6, p. 2.

378
O ESTUDO DA HISTÓRIA LOCAL E DO COTIDIANO A PARTIR DAS NARRATIVAS
ORAIS

NAIA MARIA GUERREIRO DIAS*

História oral: uma metodologia de pesquisa interdisciplinar

A História Oral é compreendida na perspectiva de Ferreira (1996) como disciplina,


técnica ou metodologia de pesquisa, cabendo ao pesquisador fazer a sua escolha. Por sua vez,
Meihy (1996, p. 10) a compreende como uma “percepção do passado como algo que tem
continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado (...) garante sentido social à vida de
depoentes e leitores que passam a entender a sequência histórica e a sentirem-se parte do contexto
em que vivem...”
Essa metodologia de pesquisa consiste em fazer o registro das narrativas, vivências, as
lembranças dos sujeitos que se colocam a disposição para compartilhar suas memórias com a
coletividade vindo a constituir fontes importantes para a análise de diferentes temáticas. A
história oral é por si só uma metodologia interdisciplinar.
Segundo Morais (2007), a história oral surgiu para valorizar as memórias de indivíduos,
experiências vividas por atores sociais que a história tradicional deixou à margem. E da mesma
forma que a história oral é ferramenta da pesquisa qualitativa, o método de história de vida está
intrinsecamente ligado à história oral.
Há três elementos fundamentais para construir uma história oral: “o entrevistador, o
entrevistado e a aparelhagem de gravação” (MEIHY, 1996, p. 15-16). A partir desses elementos
apresentados, este autor destaca três ações: “[...] a da gravação, a da confecção do documento
escrito, a de sua eventual análise.”
Seguindo esses parâmetros, o presente artigo se apresenta como um ensaio da utilização
da metodologia da História Oral para o conhecimento da História local, nesse caso específico, a
região de Valéria, situada na divisa entre os estados do Amazonas e Pará.

*
Mestra e Doutoranda em Sociedade e Cultura na Amazônia PPGSCA - Universidade Federal do Amazonas-
PPGSCA/UFAM; Pesquisadora da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Amazonas- FAPEAM.

379
Ensinar e aprender a história local e do cotidiano é parte do processo de (re) construção das
ideias individuais e coletivas, sendo fundamental para que os sujeitos possam se situar, compreender e
intervir no espaço local em que vivem como cidadãos críticos. No atual contexto histórico, no qual
cada vez mais as identidades são líquidas, fluidas como diz Bauman (2005), é desafiador relacionar
local/global; singular/plural, universal/universo.

Sítio Arqueológico Santa Rita de Cássia região de Valéria: um lugar de memória


O sítio arqueológico Santa Rita localizado na região de Valéria, foi estudado Hilbert e
Hilbert(1975); Simões e Araújo (1978), durante a realização de pesquisasno Baixo Amazonas,
ficando registrado como AM-PT-01.
Mas os sítios da região da Valéria já se faziam presente nas descrições Curt Nimuendajú
(1927, p.4) durante realização de sua excursão pela Amazônia “...Os antigos sítios do lago
Curumucuri ainda revelavam a nítida influência da cerâmica de Tapajós, enquanto os da Serra de
Parintins evidenciavam em contrapartida o estilo Konduri, conhecido da margem setentrional...”
De um modo mais específico (HILBERT e HILBERT, 1975), descrevem o sítio Santa Rita
da Valéria como um sítio de terra preta de índio, resultante da alta densidade de material orgânico
e outros elementos no lugar, que a torna bastante fértil, propícia para a produção agrícola, que é
resultado da ação de grupos humanos que habitaram essa localidade amazônica.
Nele foram encontrados os artefatos de cerâmica pertencentes a três tradições: i) tradição
Incisa e Ponteado, conhecida como Konduri; ii) a tradição Borda Incisa da qual a fase Paredão
faz parte (Séc.VII e XI d.C.); iii) Fase Açutuba (Iranduba) que se assemelham as cerâmicas
antigas dos sítios Pocó e Boa Vista, dos rios Trombetas e Nhamundá, no Baixo Amazonas
(HILBERT e HILBERT, 1980; LIMA et all, 2013 e CARVALHO 2009).
Na arqueologia konduri, há a forte presença de cerâmicas construídas com motivos
antropomorfos (motivos humanos) e zoomorfos (motivos animais). “Um aspecto interessante da
arqueologia konduri é a presença de pequenas estatuetas de pedra polida, que representam seres
humanos e animais, com destaque onças e as sucuris” (NEVES, 2006, p. 69).

380
Figura
s 1, 2
e 3.
Artefa
tos
arqueo
lógico
s do sítio Santa Rita de Cássia/ Valéria. Fonte: Pesquisa de campo, fevereiro 2017

Como pode ser percebido nas imagens a cima, no sítio AM-PT-01, os moradores
convivem diariamente com diversos artefatos que encontram-se por toda a extensão territorial da
Valéria. Alguns moradores têm coleções de cerâmicas retiradas do sítio e que ficam guardadas em
suas casas.
Outros artefatos encontrados ficam armazenados na Escola Municipal Marcelino
Henrique, fato este que ocorreu após a presença da equipe da arqueóloga Helena Lima, em uma
ação conjunta desenvolvida através do Projeto Amazônia Central e o Projeto Baixo Amazonas, os
quais realizaram diversas oficinas e atividades de educação patrimonial.
Aqui em casa eu tenho várias “caretinhas”que eu encontrei aqui no terreiro de casa. Eu
desde criança sempre gostei de pegar esses pedaços de vasilhas e caretinhas, porque para
mim eram meus brinquedos. Nunca pensei que morava num sítio arqueológico tão
importante. Fiquei sabendo quando as pessoas que vieram aqui pra fazer pesquisa,
cavaram e foram mostrando pra nós que aqui onde a gente mora é um lugar de muito
valor, por ser um sítio arqueológico. E até aquele momento, para mim e pra muitos dos
meus amigos, compadres, era entendido só a nossa comunidade que a gente tem muito
orgulho. Bom, aí eles começaram a falar pra gente deixar no local mesmo as peças pra
que fosse feito um estudo ou mesmo zelado, e as outras peças que estavam em muitas
casas foram doadas pra escola; e na verdade esses estudiosos, pesquisadores, até
emendaram os pedaços e montaram vasos, urnas, muitas coisas... que ficaram na escola;
mas o que eu quero dizer é que a gente brincava e até mesmo dava pra alguém que
chegava aqui porque não conhecia o que era, agora que a gente já tem outro
conhecimento, já deixamos ai mesmo....( ENTREVISTA REALIZADA COM
MORADOR DO SÍTIO, PESQUISA DE CAMPO, JULHO, 2017)

Sobre os artefatos encontrados, Lima e Moraes (2010, p. 5) dizem que “[...] as


interpretações dadas pelas comunidades que convivem com os vestígios arqueológicos advém de
situações, experiências e informações adquiridas”. As percepções que cada pessoa tem dos
artefatos e mesmo do ambiente são inerentes a cada uma e ao modo como foi sendo ensinado. Por
isso que, se não houver conhecimento da importância do patrimônio arqueológico, muito da

381
história será perdido e consequentemente a compreensão do passado não será consolidada nos
locais assentados sobre os sítios.
O sítio Santa Rita, evidencia que os povos pretéritos que ali habitavam eram numerosos,
tinham um processo sociocultural dinâmico e complexo, e precisam ser conhecidos para
fortalecer o sentimento de pertencimento por parte de quem reside atualmente no lugar.
A historiografia da Amazônia ressalta que diferentes etnias indígenas construíram seus
aldeamentos às margens dos rios, mantendo diferentes interações com o ambiente, fato este que
pode ser confirmado pela grande quantidade de sítios arqueológicos presentes na região.
Tais sítios com terra preta podem ser vistos indicadores de mudança nas relações sociais e
econômicas das sociedades que ocuparam a localidade amazônica (NEVES, 2006). E, por todo o
lugar do Sítio Arqueológico da região de Valéria/AM, encontram-se diversas vasilhas e
fragmentos cerâmicos – vasos, machado de pedra em pequena quantidade e muiraquitãs – os
quais estão associados à arqueologia konduri.
Porém, a falta de documentos históricos sobre a ocupação da área da Valéria dificulta
estipular com precisão quais foram os grupos indígenas que ocuparam a região em períodos
diversos. Na literatura sobre a região da Valéria, não há confirmação eficiente sobre povos que
legaram os vestígios, o que contribui para hipóteses relacionadas à presença de índios Aratu,
Apoicuitara, Godui, Yara e Curiató – que posteriormente foram subjugados pelos Tupinambás
(CERQUA, 2009, SILVA et al., 2009).
De acordo com as narrativas de alguns os moradores antigos, a expressão artística deles
advém desses povos que habitaram a localidade, seus ancestrais deixaram o legado da arte. “...
está na nossa veia, vem desse chão a nossa criatividade, veja só essas obras de arte!!!! (
caretinhas) espalhadas e encontradas por todos os terreiro das casas; É nossa identidade”.(
ENTREVISTA REALIZADA EM NOVEMBRO DE 2017)
A identidadeestá diretamente ligada à memória de uma sociedade e faz referência ao
cotidiano dos grupos sociais, sendo um dos responsáveis em representar as práticas sociais,
culturais e identitárias desses grupos. Para Pollack, (1992, p. 5) “a memória é um elemento
constituinte do sentimento de identidade tanto individual como coletiva, na medida em que ela é
também um fator extremante importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma
pessoa ou de um grupo em sua reconstrução..”

382
Partindo desse pressuposto, compreende-se o sítio arqueológico da Serra de Valéria como
um lugar de memória (POLLACK, 1992) no qual se desenvolvem diferentes relações e
representações sociais ao longo de sua historicidade. Apesar de tratar de um lugar de memória, o
mesmo autor nos chama atenção para a compreensão de que a memória é construída e nesse
sentido vai apresentando o sentimento de identidade e pertencimento dos sujeitos sociais.
Maurice Halbwchs (1990) o primeiro teórico do que chamamos memória coletiva afirma
que toda memória se estrutura em identidades de grupo. Corroborando com essa premissa, o
historiador Pierre Nora (1997) definiu como lugar de memória locais materiais ou imateriais nos
quais se encontram ou cristalizam memórias de uma nação e onde se cruzam memórias pessoais,
familiares e de um grupo, os quais precisam estar mobilizados para a prática permanente de
apoio, reconhecimento e proteção da riqueza cultural amazônica de maneira crítica e
participativa.
A memória tem sido um marco importante para a construção da identidade porque é
através dela que podemos fixar e reconhecer os acontecimentos passados, conservando certas
informações que o homem considera importantes para a sua memória individual ou coletiva.
Através de um processo de construção de identidades culturais, é possível chegar a uma
real formação de comunidade que se reconheça com afinidades de presente e passado como
podemos perceber nas narrativas do morador do sítio da Serra de Valéria/AM:
Moro aqui desde que nasci, e meus pais e avos já ensinavam a gente a cuidar de nossa
terra. A gente deve cuidar daquela que nos dá o alimento, a moradia e a vida....Parece
besteira, mas é da terra que vem a vida. E aqui nessa nossa região moravam muitas
pessoas que já sabiam fazer muitas coisas que foi e é ensinado ainda hoje para a gente
daqui para poder dar continuidade a outras gerações que ainda virão.( ENTREVISTA
REALIZADA COM MORADOR 72 ANOS/ PESQUISA DE CAMPO, 2016)

Na memória do morador há notadamente uma forte ligação com local em que reside. A
preocupação em cuidar do ambiente, é algo de destaque na fala, e isso marca a identificação que
ele tem como o socioambiente. Com base no exposto, a memória coletiva contribui para a
compreensão da identidade de um determinado grupo, por ser possível através das narrativas
conhecer como era o modo de vida, os costumes e cultura dos antepassados e exercitar a
alteridade.
Outras práticas cotidianas dos moradores locais, é o curandeirismo, mítica cosmológica e
medicina tradicional, o que lhes confere identidade local. Silva et al. (2009) afirma que no local,
além de cerâmicas com decoração em motivosantropomorfos e zoomorfos, também se encontram
383
patrimônios culturais que precisam ser considerados como materialidades representativas de
crenças espirituais.
A esse respeito Maués e Villacorta (2011, p. 26)) afirmam que é comum na região
amazônica a prática do curandeirismo “ a pajelança não indígena continua muito viva no interior
da Amazônia, como parte integrante das concepções religiosas das populações regionais,
integradas ao catolicismo e passando por transformações, como processo social e dinâmico que
tem influência na vida regional.”
Nesse contexto, o estudo da memória e história de vida dos moradores do sítio da região
de Valéria/AM se apresenta como um elemento sólido para o ensinamento da história local e do
cotidiano, as quais podem vir a ser transmitida de geração a geração. O aprendizado nesse
processo é fundamental para a capacitação de indivíduos na elaboração e construção de suas
histórias, posto que a memória se estrutura em identidades de grupo (HALBWACHS, 1990).
Compreende-se portanto, que a memória é plena de conhecimentos e sensibilidades,
relacionadas com o vivido. E que os saberes e fazeres ensinados a gerações pretéritas podem vir a
ser um elemento muito forte para a compreensão da história dos trabalhadores desse contexto
amazônico.
Neves (2006, p. 78) afirma que o desafio é “[...] conhecer a Amazônia a partir de seus
próprios parâmetros culturais e ecológicos, para que esse patrimônio não se perca para sempre”.
E ainda, embora sítios estejam em constante alteração, tendo em vista o aumento de ocupações na
comunidade, com as edificações construídas, por exemplo, o número de habitantes subindo, não
tende a ser um problema, pois se entende que a sociedade é dinâmica. Entretanto, faz-se
importante o conhecimento da história local, no sentido de conhecer a sociodiversidade cultural
não só do passado, mas a que se faz presente na contemporaneidade.

Sítio arqueológico São Paulo/Valéria- AM-PT-02


Assim como o sítio Santa Rita, o sítio arqueológico São Paulo da Valéria/AM, foi
pesquisado e identificado como AM-PT-02 através da pesquisa de Hilbert e Hilbert (1975), faz
parte da tipologia de sítios denominada de terra preta de índio. Apesar de ser menor em extensão
territorial em relação ao sítio de Santa Rita tem igual importância e significado para os moradores
que nele habitam atualmente.
[…] para a gente daqui da Valéria essas vasilhas, vasos, baldes, cacos ou como a gente
chama aqui de caretinhas, tem um valor meio que de nosso passado. Representa que aqui
384
alguns índios que viveram aqui antes de nós. Não sei bem quem, mas minha avó
contava que quem morava antigamente na Valéria, eram povos guerreiros, pode ser que
seja os da tribo de índios Parintitin, parece. Essas caretinhas, alguns pedaços de vasos,
panelas de barro a gente junta quando tamo fazendo o roçado lá mais em cima na terra
preta, e guardamos em nossa casa. Tem muito dessas coisas lá minha roça
(ENTREVISTA DE CAMPO, DEZEMBRO DE 2015).

Note que o entrevistado afirma a relevância do socioambiente para a sua vida, história,
identidade e memória social local. Por estarem sempre em contato com artefatos ou caretinhas,
como eles denominam, conhecimentos oriundos do saber tradicional foram sendo disseminados
ao longo da história local e ficaram inseridos nas representações sociais das pessoas sobre seu
patrimônio. Funari (2003, p. 33) afirma que “o artefato, por outro lado, não é apenas um
indicador das relações sociais, mas, enquanto parte da cultura material, atua como direcionador e
mediador das atividades humanas”.

Figuras 4. Artefatos arqueológicos São Paulo da Valéria. Fonte: Pesquisa de campo,


janeiro/2016

No sítio AM-PT-02, foram identificados as cerâmicas pertencentes as três tradições:


Tradição Incisa e Ponteada, prevalência da fase Kondurí e fragmentos da fase Pocó; Tradição
Borda Incisa, representada pela fase Paredão; Tradição Açutuba (HILBERT e HILBERT, 1975;
LIMA et all, 2013; CARVALHO, 2009).
A historiografia da Amazônia ressalta que diferentes etnias indígenas construíram seus
aldeamentos às margens dos rios, mantendo diferentes interações com o ambiente, fato este que
pode ser confirmado pela grande quantidade de sítios arqueológicos presentes na região. Tais
sítios com terra preta podem ser vistos indicadores de mudança nas relações sociais e econômicas
das sociedades que ocuparam a localidade amazônica. (NEVES, 2006). E, por todo o lugar do
385
Sítio Arqueológico São Paulo/Valéria/AM, encontram-se diversas vasilhas e fragmentos
cerâmicos – vasos, machado de pedra em pequena quantidade e muiraquitãs – os quais estão
associados à arqueologia konduri.
Sabe-se até o momento que artefatos arqueológicos afloram por toda a área da Valéria,
indicando que foi ocupada por um grande número de habitantes e que faz parte de sua cultura
local. Isso sugere que a cada momento da ocupação territorial as pessoas tendem a apresentar
determinada relação com o ambiente em função de seu modo de vida e seus aspectos
socioculturais.
Para o morador Otávio Costa, “aqui nessas terras devem ter morado muitos índios porque
o que a gente acha aqui é muita coisa, muito dessas vasilhas que os antigos moradores faziam [se
acha]. Agora, quem eram eles? Ainda não sei ao certo, mas deixaram seu legado pra gente,
principalmente na arte” (ARTESÃO, MORADOR DE SÃO PAULO, ENTREVISTA,
REALIZADA EM ABRIL 2016). O conteúdo expresso na fala do artesão sobre o legado, que no
caso é a produção artesanal, indica que há uma relação de pertencimento com o sítio, apesar da
lacuna sobre os primeiros habitantes da região. Isso leva a crer que estes elementos são
formadores de uma identidade coletiva e socioterritorial da comunidade, sendo a partir dela que
as relações vão se estabelecendo nesse espaço e os indivíduos vão atribuindo significados às
coisas (HAESBAERT e LIMONAD 2007; ARRUDA, 2002). Outrossim, há que se destacar que
até o ano de 2012 as peças de cerâmicas pertencentes ao sítio e que foram retiradas do solo
ficavam salvaguardadas em um “minimuseu” – uma casa de palafita construída por moradores
locais, tendo como responsável o presidente da comunidade.

Figura
5: Antigo Minimuseu do Sítio AM-PT-02-Foto: Naia Dias, pesquisa de campo
2016
386
Atualmente, devido não haver local para abrigar os professores que vêm ministrar aulas
na localidade, o minimuseu, foi desativado, vindo a ser a casa dos professores. As peças que nele
se encontravam foram conduzidas para a Escola Municipal São Francisco. Alguns artefatos de
cerâmica ficam expostas em uma mesa da sala de aula; outras estão ensacoladas e só são expostas
quando há visita na comunidade. Embora a atitude dos moradores tenha sido pouco correta – de
trocar o espaço de armazenamento dos artefatos arqueológicos – ela se deu para atender a uma
situação emergencial. Eles não se desfizeram dos artefatos, procuraram guardar seu patrimônio, o
que indica, para Horta et al. (1999), Machado (2009) e Neves (2013), que a comunidade está
atuando como protagonista da história local, vindo a ser a guardiã de seu patrimônio cultural.

Considerações Finais
O trabalho investigativo sobre a História local norteado pela metodologia da História
Oral configura-se como um meio significativo para a compreensão das rupturas e permanências
vivenciadas por uma determinada sociedade. O pesquisador é motivado a levantar os
testemunhos vivos, as evidências orais da história do lugar, buscando explicações sobre o por que
esta situação é assim? Por que isto mudou e aquilo permaneceu? As interrogações sobre o local
em que vivem podem levar a busca de sentido, à compreensão do próximo e do distante no
espaço e no tempo.
Seguindo esses pressupostos, buscamos realizar as entrevistas com moradores da região
de Valéria, no sentido de construir fontes significativas para traçar uma breve historiografia do
lugar considerando aspectos relacionados a memória que eles tem acerca do sítio arqueológico
em que residem e a sua relação na construção da identidade local.
Pontuamos a relevância da continuidade de pesquisas sobre História e memória da Região
de Valéria/Amazonas, pois nesse estudo apresentamos de modo embrionário um breve ensaio
historiográfico dessa localidade amazônica pelo víeis da História Oral, compreendendo que essa
metodologia de pesquisa nos permite adentrar universos até então desconhecidos, nos leva a
compreender e dialogar com o outro, além de trazer a tona do conhecimento sujeitos sociais que
estiveram historicamente à margem da sociedade, tendo ainda como uma possibilidade para o
estudo da História local e do cotidiano.

387
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388
O GOLPE CIVIL-MILITAR NO AMAZONAS: PERSEGUIÇÃO POLÍTICA E
CONTROLE SOCIAL (1964-1967)

NATALY OLIVEIRA DA SILVA *


BRUNO VENÂNCIO PERAGINE **

Introdução
Este trabalho traz consigo a responsabilidade de expor a partir de nova ótica, a
representação dos mecanismos de repressão do período militar no Amazonas, com enfoque no
recorte temporal de 1964-1967, observando-os a partir do trabalho com a fonte de imprensa,
baseada principalmente no Jornal do Commercio enquanto mecanismo central de imprensa e
comunicação da época, entretanto, também usando-o como objeto de pesquisa, e buscando
compreender seus objetivos e modelos de discurso enquanto entidade empresarial e mecanismo
de informação da época.
A ideia de trabalhar o Jornal do Commercio de uma nova forma, não apenas utilizando
suas matérias e manchetes como fonte a ser problematizada, mas também problematizando o
próprio jornal enquanto organização, surgiu uma necessidade de compreender a apropriação pelo
Jornal do Commercio, do discurso empregado no momento da deflagração do golpe civil-militar.
Portanto, mesmo com o objetivo inicial deste projeto sendo o de expor os mecanismos de
repressão e controle social impostos e administrados pelo regime militar no Amazonas, findou-se
percebendo a necessidade de trabalhar as formas de discurso adotados pelo Jornal do Commercio,
por percebermos que, considerando a posição deste órgão de imprensa na época, o público que
ele atingia e sua forma de comunicação, é inevitável a percepção do alcance da fala do jornal
perante a sociedade amazonense do início dos anos 1960. Por isso, tornou-se nosso objetivo,
nessa fase do projeto, a consideração do Jornal do Commercio como objeto de pesquisa para
principalmente buscarmos compreender o embasamento do discurso lançado por ele.
Ao passo que a pesquisa foi sendo “desenhada” e ganhou progresso, a importância do
Jornal do Commercio enquanto fonte de pesquisa para compreendermos os processos políticos e
principalmente, a forma como a sociedade amazonense reagia ao cenário de deflagração do golpe
civil-militar (1964) e no decorrer da década de 1960, foi imprescindível. Portanto, ao
consultarmos o periódico, foi inevitável a detecção de um modelo de discurso adesista aos planos

*
Universidade Federal do Amazonas – UFAM, FAPEAM.
**
Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
389
do regime militar por parte do jornal. Enquanto sabia-se que a imprensa seria a melhor opção de
fonte para compreender os reflexos desse período no Amazonas, era necessário compreender que
o jornal, enquanto entidade e organização, tinha sua própria forma de representar a realidade
social. Nesse sentido, Rafael Lapuente219 reforça que:
A importância de levantar essa discussão decorre do uso crescente dos periódicos nas
pesquisas acadêmicas de História, nos últimos anos, sem muitas vezes estar
acompanhado de uma maior reflexão sobre essa fonte de pesquisa, bem como a
influência que o jornal exerce em seu contexto, seus interesses e a atuação junto ao seu
público leitor. Como qualquer fonte histórica, os jornais devem ser utilizados
criticamente pelo historiador, para não correr o risco de se deixar levar pelo discurso da
fonte e, consequentemente, realizar uma análise precipitada, acrítica e superficial.
(LAPUENTE, 2015)

Sendo assim, o objetivo central desta fase do projeto foi o de levantar uma reflexão sobre
a atuação do Jornal do Commercio, levando em consideração a sua construção enquanto
organização nos decorrer do século XX, e a afirmação de uma postura partidária e adesista, tendo
em vista que, quando se pesquisa e escreve sobre uma história da imprensa, compreende-se que
ao mesmo tempo torna-se parte desse trabalho uma história social em um nível mais amplo, ou
seja, a presença dos jornais na sociedade está em conexão direta com as relações culturais e
sociais de uma determinada região, relações essas que tem suas continuidades e descontinuidades
no decorrer do tempo e dos processos históricos. Um exemplo claro disso, é a relação que existe
entre a imprensa alternativa e os jornais “oficiais”, que em diversos momentos da histórica, como
na década de 1960, atuam em âmbitos diferentes e se relacionam de maneira diferente com os
setores sociais.

Metodologia
No que se refere ao método de se trabalhar um tema a partir da imprensa, neste caso,
utilizar o que antes era fonte como objeto, e relacionar sua atuação com o que queremos
desvendar, partimos da análise de Renée Zicman, que levanta uma discussão entre dois campos
de trabalho com imprensa, intitulados História da Imprensa, e História Através da Imprensa220

219
Doutorando, pelo Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
apresentou em 2015, no GT de História da Mídia Impressa, o artigo, “O jornal impresso como fonte de pesquisa: delineamentos
metodológicos”, no qual trabalha as questões que permeiam a pesquisa histórica na utilização de mídia impressa como fonte.
220
Renée Barata Zicman trabalha em seu artigo História Através da Imprensa – Algumas considerações
metodológicas (1985) uma visão crítica sobre o método de se trabalhar a imprensa dentro da História, seja enquanto
fonte ou objeto, e ressalta a necessidade de se buscar observar que tipos de relações estão engendradas nos discursos
390
onde ela delimita espaços de relação entre a investigação histórica relacionados a imprensa, um
sendo espaço de análise e aprofundamento acerca dos jornais enquanto entidades, e de suas
formações e o outro sendo um espaço em que o historiador utiliza os jornais como fonte auxiliar
de pesquisa, quando raramente os jornais utilizados são levados a um patamar de aprofundamento
e problematização. Nesse sentido, a autora ainda considera que o jornal, por ser um mecanismo
de comunicação e interação com a sociedade, de forma alguma pode estar isento de demonstrar a
utilização de um “filtro” de informações e discursos, ou seja, todo jornal está ligado a um
discurso político, possui sua ideologia e suas relações mais estreitadas com determinados grupos
políticos que acabam por articular relações de poder e influência.
Assim, todo jornal constitui uma estrutura de discurso que não apenas informa sobre fatos
e eventos da realidade, mas constrói uma realidade a ser difundida a partir de seus “filtros”, ou
seja, ele possui o poder da utilização da linguagem, que está intimamente ligada ao “perfil” do
jornal, uma forma de escrita e de representação da realidade que acaba identificando o jornal,
além da expressão da utilização de imagens e distribuição de informações. Portanto, torna-se uma
tarefa imprescindível para o pesquisador, a busca pela compreensão das estruturas que
possibilitam a comunicação entre a organização de imprensa escrita e os diversos públicos que a
ela tem acesso. Mais adiante, ressalta-se ainda os pontos a serem esquematizados para o
levantamento de uma caracterização do jornal, a fim de conseguir desvendar o que o jornal
representa e para quem representa, através de seus aspectos materiais, como o papel, formato,
imagens; aspectos históricos, como sua fundação, origem, proprietários e vinculações; aspectos
econômicos, seu financiamento, anúncios, publicidades, controle fiscal e os aspectos de público
alvo, ou seja, a quem o jornal se dirige diretamente enquanto leitores e interessados. Nesse
sentido, utilizar-se desse esquema de caracterização da imprensa, e do método de análise de
conteúdo, aplicando-o à estrutura um jornal de grande circulação diária, nos permite ir além da
simples utilização de seus textos e recursos para condenar ou enaltecer a postura empresarial e
ética do mesmo. É necessário que o historiador esteja atento a esses aspectos para que possa,
através do método científico evitar o que a autora descreve como “compreensão espontânea”.

da imprensa, e a forma de comunicação que os jornais adotam ao selecionar o que é ou não notícia ou aquilo que tem
potencial de se tornar notícia. Nesse sentido, a autora propõe o estudo da imprensa partindo de três campos principais
baseadas em Pierre Albert: o “atrás” do jornal, o “em frente” ao jornal e o “por dentro” do jornal. Campos esses que
buscam compreender o entrelace de fatores que constitui a imprensa escrita, principalmente os diários e jornais de
grande circulação.
391
O método da Análise de Conteúdo consiste num conjunto de técnicas e instrumentos
metodológicos capazes de efetuar a exploração objetiva de dados informacionais ou
“discursos”, fazendo aparecer no conteúdo das diversas categorias de documentos
escritos – artigos de imprensa, entrevistas, questionários, documentos históricos, textos
literários, etc – alguns elementos particulares que possibilitam a elaboração de um certo
tipo de caracterização. Esse instrumental metodológico polimorfo e polifuncional
caracteriza-se fundamentalmente como um exercício de desocultação fornecendo-nos
uma melhor “descrição” dos textos e permitindo-nos avançar para além das significações
primeiras dos discursos e escapar dos perigos da compreensão espontânea. (ZICMAN,
1985)

No que concerne à interpretação, reforçamos neste o olhar da professora Marialva


Barbosa, que já foi colocado anteriormente e que continua tendo uma aplicabilidade
extremamente presente neste momento da pesquisa, talvez até ainda mais relevante agora, quando
ela afirma que para construir uma história da imprensa, o necessário “é perceber a história como
um processo complexo, no qual estão engendradas relações sociais, culturais, falas e não ditos,
silêncios que nos dizem mais do que qualquer forma de expressão, e que na maioria das vezes
não foram deixados para o futuro”221, ou seja, o trabalho do historiador a partir dessas fontes deve
ser não só analítico, mas investigativo e questionador, tendo como objetivo o resgate daquilo que
muitas vezes não foi colocado como informação central, ou foi ignorado, os silêncios e os gritos
silenciados no decorrer das relações sociais e políticas.
Assim, falar em história da imprensa é falar em processos comunicacionais e das
intricadas relações que se desenvolvem em torno desse sistema de comunicação. Esse
sistema deve considerar aquilo que Robert Darnton conceitua como o circuito da
comunicação, isto é, o percurso que se faz e que vai dos produtores do texto às formas
de apropriação diferenciadas das mensagens pelo público. Falar em história da imprensa
é, portanto, se reportar ao que se produziu, de que forma, ao como se produziu, para
quem se produziu e que conseqüências trouxe essa produção para a sociedade. É se
referir, igualmente, a forma como o público reagiu àquelas mensagens e perceber de que
forma realizaram leituras ou interpretações plurais. Formas de leituras, formas de
apropriação, interpretações plurais de sentido. (BARBOSA, 2004)

Desenvolvimento
A partir desse momento, pretende-se trabalhar o desenvolvimento do que foi proposto nessa
etapa do projeto, que é o protagonismo do Jornal do Commercio enquanto objeto de pesquisa,
suas formas de comunicação com a sociedade amazonense da década de 1960, o trajeto que o
jornal enquanto entidade percorreu para ter a centralidade da comunicação escrita no Amazonas
nesse período, suas relações com a política, suas afirmações diante dessas relações, a postura

221
BARBOSA, Marialva. Como escrever uma história da imprensa? Comunicação apresentava no II Encontro
Nacional da Rede Alfredo de Carvalho. Florianópolis, abril de 2004.
392
adquirida para com o público, as formas de discurso adotadas durante o período do qual se trata a
intencionalidade desse projeto, e principalmente, as relações que o jornal desenvolve com a
sociedade e as representações dessas relações.
Pretende-se desenvolver essas análises em dois tópicos principais, que terão como objetivo,
problematizar e expor o engendramento das representações da realidade política e social do
Amazonas e do cenário político nacional propostas pelo discurso adesista do Jornal do
Commercio para com a deflagração do golpe civil-militar, e o decorrer dos primeiros anos após
esse acontecimento, tomando como ponto inicial a investigação histórica e o resgate de fatores
formadores da organização Jornal do Commercio, resultantes de relações políticas que foram
estreitadas ao longo do século XX, chegando à década de 1960, fundamentando principalmente
diante do cenário de tensão política nacional, a defesa direta e ferrenha de um discurso
protecionista e em diversos momentos, permeando o sensacionalismo.
Nesse sentido, vale ressaltar que acerca do sensacionalismo, principalmente no que se refere a
análises partindo do campo da história cultural e das modernizações no mundo da comunicação,
desenvolvendo-se a partir da metade do século XX, considerava-se as características centrais do
que definia o sensacionalismo como uma ferramenta da comunicação excessivamente popular,
que durante esse processo de modernização da imprensa, deveria ser evitado. Entretanto, o
próprio sensacionalismo se moderniza em um processo que não se prende somente ao âmbito
nacional, no que tange principalmente a um campo da cultura popular, devendo-se
principalmente à uma reformulação no público leitor. Ou seja, para que se venha a compreender
uma leitura do sensacionalismo nos jornais nacionais desse período, é importante considerar as
reformulações que ocorrem seio das transformações culturais, que está diretamente relacionado
também com o espaço social ocupado pela cultura da oralidade, e que agora se redimensiona e
mescla-se com a modernidade da comunicação jornalística para uma sociedade de públicos, ou
seja, de diferentes (e novas) leituras da informação. O que podemos considerar uma reação ao
“aristocratismo cultural”222 definido por Martín-Barbero.
Em seguida, como parte central, o corpo do trabalho de interpretação do discurso do Jornal do
Commercio, está a problematização da presença dos aspectos mencionados acima, em destaque
as formas de reação pelo modo de comunicação do jornal para com o público leitor menos
favorecido, muitas vezes reservando pequenos recortes de notícias ou temas relacionados ao

222
(MARTIN-BARBERO, 2003 apud GUIMARÃES, 2008)
393
cotidiano urbano, de forma a buscar delimitar intencionalmente, e até de forma pejorativa espaços
de leitura e interação , direcionando não só as notícias mas também as formas de linguagem a
seus respectivos públicos. Sobre isso, a professora Maria Luíza Ugarte Pinheiro expõe:
Desta forma, até mesmo um periódico tradicionalmente ligado aos grupos dominantes,
como o Jornal do Commercio, foi possível encontrar sessões como Coisas Policiais ou
Queixas do Povo, por onde temas considerados “menos nobres” para o leitor da elite
eram cotidianamente veiculados. Tais colunas traziam obviamente uma carga
preconceituosa pejorativa para com as camadas populares da sociedade local, algumas
vezes, tratada de forma genérica como sendo o “populacho” [...] (PINHEIRO, 2009)

Por fim, pretendemos utilizar toda essa carga de trabalho analítico acerca da linguagem e
das formas de comunicação, e investigativo, apontando diretamente as veiculações estruturais do
jornal enquanto organização e órgão de comunicação, direcionando-o para o cenário dos
primeiros anos da ditadura militar, afim de atingir o patamar de compreensão das relações de
poder político e social entre os grupos dominantes e o Jornal do Commercio.

O Jornal do Commercio, imprensa e as relações de poder na sociedade amazonense. (1964-


1960)
O Jornal do Commercio se destaca como o mais antigo periódico ainda em
funcionamento no estado do Amazonas. Vindo de uma entrelace de gestões que partiam de
relações familiares (assim como outros periódicos do mesmo período), o jornal passou a tomar
forma sob essas relações de poder advindas de nomes de peso na sociedade da época, como
Vicente Reis, pai do historiador Arthur Reis, que contando com o auxílio do sogro, Cosme
Ferreira, foi dono do Jornal do Commercio entre os anos de 1907 a 1943, ano a partir do qual o
jornal passou a pertencer ao grupo Diários Associados, mudando de proprietário novamente
somente no ano de 1984, para Guilherme Aluízio de Oliveira, que ainda hoje preside o jornal e a
Rádio Baré.
É a partir da execução desse levantamento, que partimos para a tentativa de elaboração de
uma dimensão do atrelamento das mídias jornalísticas com o poder, focando no recorte temporal
proposto, e relacionando-o ao contexto político dos anos anteriores. Sobre isso, é importante
notar que, a partir da década de 1950, principalmente, o modelo de imprensa jornalística vai se
rendendo à um novo formato, constituído por grandes grupos de imprensa, que se definem
pretensiosamente como “objetivos” e reformulam os espaços que antes pertenciam a

394
manifestações de uma imprensa menos caracterizada pelas grandes representações, como os de
mídia independente.
A partir disso, e sabendo que o jornal passa a ter um protagonismo maior frente à
sociedade amazonense em constante desenvolvimento, o que inclui a formação de novos grupos
letrados na sociedade, e, portanto, uma variação de interesses no que concerne à leitura, e
considerando ainda a elaboração de um sensacionalismo mais presente na comunicação,
entendemos que os processos de direcionamento pelos quais o jornal passou até a década de
1960, pesam quando se considera a adoção de uma determinada postura política não declarada
oficialmente.
Sabe-se, portanto, que a imprensa, como qualquer organização, possui seus próprios
relacionamentos quanto à diversos tipos de manifestação cultural, política e empresarial, o que
neste cenário, vai complementar uma competitividade entre órgãos de imprensa. A imprensa
produz a informação em um formato característico de cada órgão midiático, e a produz para uma
absorção por um determinado público. Portanto, a medida que as práticas da vivência social se
dinamizam, a imprensa acompanha esses processos trilhando um perfil empresarial e midiático
daquilo que ela mesma propõe como sua identidade, e é nesse contexto, que ao entrar em contato
com os reflexos da atitude postural do Jornal do Commercio diante dos acontecimentos
explosivos do ano de 1964, torna-se inevitável a detecção de um discurso não só adesista, como
ferrenho defensor do protecionismo usado como justificativa para a deflagração do golpe.
No âmbito da historiografia, a investigação desses fatores deve estar unida de uma
percepção da “história como um processo complexo, no qual estão engendradas relações sociais,
culturais, falas e não ditos, silêncios que nos dizem mais do que qualquer forma de expressão, e
que na maioria das vezes não foram deixados para o futuro. ”223Assim, a busca pelo resgate do
cenário que engloba as atuações sociais, identificando aquilo que muitas vezes está escondido nas
entrelinhas ou silenciado, mas que é possível de ser encontrado quando problematizada a fonte,
os métodos e os envolvimentos presentes nas falas e nos silêncios. Ou seja:
[...] propõe dialogar com o processo de constituição e atuação de atores sociais por meio
do estudo de uma gama extremamente rica e variada de periódicos por eles produzidos e
que se constituíam em um dos principais espaços de articulação coletiva e de difusão e
visibilidade pública de suas concepções, propostas e projetos.

223
BARBOSA, Marialva. Como escrever uma história da imprensa? Comunicação apresentava no II Encontro
Nacional da Rede Alfredo de Carvalho. Florianópolis, abril de 2004.
395
Trata-se de entender a imprensa como linguagem constitutiva do social, que detém uma
historicidade e peculiaridades próprias e requer ser trabalhada e compreendida como tal,
desvendando, a cada momento, as relações imprensa/sociedade e os movimentos de
constituição e instituição do social que essa relação propõe. [...]
[...] Pensar a imprensa com essa perspectiva implica, em primeiro lugar, tomá-la como
uma força ativa da História e não como mera depositária de acontecimentos nos diversos
processos e conjunturas. Como indicam Robert Darnton e Daniel Roche, é preciso
pensar a sua inserção histórica enquanto força ativa da vida moderna, muito mais
ingrediente do processo do que registro dos acontecimentos, atuando na constituição de
nossos modos de vida, perspectivas e consciência histórica. (CRUZ, 2013)

A partir desse raciocínio, é que buscamos entender que, ao mesmo tempo em que o jornal
pertence aos processos de constituição dos modos de vida, e representa um importante
ingrediente para o relacionamento social, ele pode assumir pretensiosamente uma postura de
avaliador dos acontecimentos, como aquele que apenas vê, relata e comenta os acontecimentos
sem estar diretamente ligado a eles, mesmo que se manifeste de maneira direta sobre eles, o que
apenas confirma a fala de que a imparcialidade não é um elemento que constitui a relação da
imprensa com o público leitor, por expor mesmo que sem querer, a quem sua fala está
direcionada. É sob essa perspectiva que iniciaremos o próximo tópico mais diretamente
relacionado aos anos subsequentes a deflagração do golpe de 1964.

3.2. O Jornal do Commercio, adesão ao discurso e a repressão da ditadura (1964-1967)

Já nessa fase do projeto, procuramos esclarecer com base no que foi proposto pela análise da
bibliografia, a postura do Jornal do Commercio, a partir da deflagração do golpe. Inicialmente, o
destaque maior será designado ao discurso empregado pelo jornal no ano de 1964, quando foi
percebido, durante o processo de pesquisa a exposição de um sentimento de saudação do golpe,
não só aceitando como reproduzindo a imagem midiática do episódio como “Revolução
Democrática”224. É importante perceber nesse cenário, que estudar e investigar uma história da
imprensa em meio a deflagração do golpe civil-militar de 1964, é dar atenção para às importantes
formas de expressão das ideias produzidas e distribuídas através das publicações, ou mesmo as
que não aparecem, ou são censuradas. Portanto, não se pode homogeneizar as posturas adquiridas
ou mantidas nesse período por toda um corpo da imprensa. Pelo contrário, é dever mínimo

224
JORNAL DO COMMERCIO. Manaus. Órgão dos Diários Associados, [3 de abr.1964]- pp.1.Diário.Disponível
em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>;. Acesso em: 29 de nov. 2017.
396
compreender que, a cada setor da imprensa esse processo atinge de maneiras diferentes, inclusive
durante os vinte e um anos do regime.
Sendo assim, elencando o Jornal do Commercio no setor da imprensa comercial, que visa
atingir um público mais específico, seleciona suas manchetes voltadas a esse público, e isso se
identifica desde o uso da linguagem, as formas de comunicação assumidas pelas colunas, mesmo
pelas propagandas, a estrutura das manchetes, elencando principalmente os destaques
relacionados à setores voltados para as questões econômicas e políticas, de grupos mais
favorecidos e influentes dentro da sociedade amazonense, torna-se possível a detecção do
discurso, que se justifica por garantir apoio à “democracia” supostamente resgatada pela
deflagração do golpe, que teatraliza o reestabelecimento da ordem hierárquica, levantada, na fala
do jornal, com “bravura heroica”, generalizando totalmente a compreensão superficial e
sensacionalista do termo comunismo225, e ainda o afirmando como presente ameaça para a
sociedade democrática.
A postura direta do jornal para com os discursos defensivos do golpe, demonstrando um
espaço adesista de fala, não é notada apenas regionalmente, ou mesmo somente no Jornal do
Commercio, vale ressaltar que, tais demonstrações estão presentes em diversos espaços
nacionais, com é o exemplo do jornal O Globo226 e outros jornais de grande circulação nas
grandes capitais do país.

Como dizíamos, no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ser a garantia da


subversão, a escora dos agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade, não
seria legítimo admitir o assassínio das instituições, como se vinha fazendo, diante da
Nação horrorizada.
Agora, o Congresso dará o remédio constitucional à situação existente, para que o País
continue sua marcha em direção a seu grande destino, sem que os direitos individuais
sejam afetados, sem que as liberdades públicas desapareçam, sem que o poder do Estado
volte a ser usado em favor da desordem, da indisciplina e de tudo aquilo que nos estava a
levar à anarquia e ao comunismo.
Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os
nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com
má-fé, demagogia e insensatez. (O Globo, p.01, 02 abr. 1964)

225
Em diversas manchetes e mesmo em pequenas notas, o jornal menciona o comunismo e o relaciona a algo presente
no seio da sociedade brasileira, que merecia ser combatido e expurgado por ser causador do caos social e desordem
em diversos setores da sociedade, conferindo de forma direta e genérica agregações e distorções conceituais ao que
poderia ser, na visão do jornal, uma ameaça comunista contra a ordem nacional. JORNAL DO COMMERCIO.
Manaus. Órgão dos Diários Associados, [3 de abr.1964]- p.1.Diário. Disponível em:
<http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>;. Acesso em: 29 de nov. 2017.
226
O GLOBO. Rio de Janeiro, [2 de abr. 1964] – p.01. Diário. Disponível em:
<http://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=196019640402>;. Acesso em 30 de nov.
2017.
397
É sob esses olhares que a imprensa alternativa, que já exercia um papel primordial na
Amazônia, se movimenta também para denunciar as agressões políticas feitas contra classes
populares. A importância da imprensa alternativa para a formação de uma consciência crítica
tornou-se com o passar dos anos no século XX, uma ferramenta de comunicação poderosíssima
no que diz respeito ao contato da comunicação jornalística e literária com as camadas populares
da sociedade.
A imprensa alternativa, na região repercutiu principalmente como instrumento de
informação para denunciar as ocupações ilegais, assim como grilagem de terras públicas,
desmatamento e trabalho escravo, muito comum na região. Muitas vezes essas atividades
eram provenientes da ação ilegal de madeireiros e garimpeiros e também de grandes
corporações. (FERREIRA, 2003)

Sobre a postura do Jornal do Commercio com relação ao anticomunismo e protecionismo,


já mencionado anteriormente em outros dois relatórios desse projeto, vale complementar, até para
que sirva para a conclusão do que foi abordado do relacionamento das formas de comunicação
com a formação cultural, que a presença da imprensa na constituição do imaginário e das
vivências sociais é imprescindível, ao passo que ela, enquanto espaço de dinamização da
linguagem, torna palpável o relacionamento das ideias, e dos silêncios presentes nos diálogos,
colunas e críticas. A familiaridade do jornal em questão com as relações de poder do setor
econômico e político do Amazonas, não são atípicas em outros órgãos de imprensa ou mesmo na
fala de muitos personagens imortalizados pela sustentação de um nome cravado na história, seja
por atuação presente, ou por articulações bem fundamentadas, ou mesmo por base em
interpretações próprias de uma realidade caricata que lhe fornece ângulos específicos de
observação.
Sobre isso, a reações do jornal, por exemplo, com as trocas de cargos em setores públicos
durante a ditadura militar, suas falas centralizadas no enaltecimento de uma figuração de ordem
vindo do poder central, principalmente dos personagens militares que ganham notoriedade nesse
momento, são reflexos dessa familiaridade. Uma clara demonstração disso, é a forma como o
jornal se refere a deposição do governador Plínio Coelho, e ao início do mandato do Arthur Reis
em 1964, e como ele vai se pronunciando sobre essa administração com o passar dos anos. A
própria permanência do Jornal do Commercio em plena circulação diante por exemplo, do
fechamento, ainda em 1964 dos jornais O Trabalhista e A Gazeta, demonstra o encaixe dele nas

398
expectativas que a censura instaurada (que já era presente e violenta nesse momento) tinha para
com as manifestações no setor da comunicação.
O que nos serviu nesta fase do projeto, foi um novo olhar sobre o trabalho com as fontes
jornalísticas, as diversas formas de se analisar a imprensa, por diversos ângulos e entrelinhas,
buscar em suas feições literárias e visuais suas principais referências.

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402
A ATUAÇÃO EPISCOPAL DE DOM JOSÉ AFONSO DE MORAIS TORRES NA
AMAZÔNIA IMPERIAL (1844-1857)
PAMELA SOUSA DOS SANTOS*

Por quase todo o século XIX, a Igreja Católica Apostólica Romana continuou, através do
Bispado do Pará, sendo elemento essencial para a dinâmica social amazônica, uma vez que
integrava a própria estrutura dos poderes estatais da Província do Pará, por causa do Padroado
Régio227. Nesse contexto, marcado pelo regime monárquico, ocorreu a autonomia da Comarca do
Alto Amazonas em relação à Província do Pará (1850), quando aquela foi transformada em
Província do Amazonas. Se por um lado houve uma desvinculação político-administrativa entre
essas regiões do norte do Império do Brasil, o mesmo não ocorreu com as suas jurisdições
eclesiásticas, dado que a Comarca Eclesiástica do Alto Amazonas, criada em 13 de maio de 1855
(sucedendo a Vigararia do Rio Negro), não foi elevada à categoria de Bispado ou Diocese,
ficando, portanto, subordinada ao Bispado do Pará.
Segundo o historiador Celestino Ceretta, o problema não residia no aspecto da autoridade
religiosa sobre a região, mas na falta de sacerdotes para atender a um território tão vasto
(CERETTA, 2008). De fato, era gritante a falta de sacerdotes quer fosse para o ofício de pároco,
quer para o ofício de missionário, além de outras obrigações que se impunham ao clero local,
como a atividade docente nos estabelecimentos educacionais abertos nas vilas amazônicas.
A estrutura da Igreja Católica na Amazônia de meados do século XIX sofria, ainda,
gravemente as consequências do governo do Marquês de Pombal (1750-1777), principalmente no
que diz respeito à ausência de padres missionários, uma vez que aquele governo havia promovido
a expulsão dos missionários jesuítas e mercedários e estabelecido controle sobre a entrada de
novos religiosos. Ainda sobre a consequência das ações pombalinas para a Amazônia do século
XIX, disse o presidente da Província do Amazonas, conselheiro Herculano Ferreira Pena, em
Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas em outubro de 1853:

*Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM, professora efetiva
(SEDUC-AM) e membro do grupo de pesquisas HINDIA (UFPA-PA).
227
O Padroado teve origem em sucessivas bulas pontifícias, frutos das negociações entre a Santa Sé e os reinos
ibéricos. Essas bulas assumiram valor jurídico, pelo qual a Santa Sé delegava aos monarcas católicos o direito da
administração e organização das igrejas em seus territórios. Em contrapartida, passava a ser do rei a responsabilidade
da arrecadação do dízimo para construção e provimento de igrejas, bem como a nomeação de párocos e a indicação
de nomes para bispos, sendo esses posteriormente confirmados pelo Papa. No Brasil, o Padroado vigorou, grosso
modo, até a Proclamação da República em 1889, sendo elemento inicial do processo de separação entre Igreja e
Estado que concretizou a laicização do Estado brasileiro na Constituição de 1891.
403
Exterminando os jesuítas não previu o Governo Português que assim decretava também
a destruição dos índios, que por espaço de dois séculos tinham vivido felizes e contentes
sob a paternal tutela daqueles religiosos, entendeu pelo contrario o celebre Ministro d’El
Rei D. José que essa tutela poderia ser vantajosamente substituída pelo mando dos
Diretores então criados; mas o novo sistema não teve desgraçadamente outros efeitos se
não a decadência das Aldeias já formadas, e a impossibilidade de fundar outras que as
imitassem como se observa no Brasil inteiro.(PENA, 1853, p.51)

Percebemos que a decisão tomada quase cem anos antes ecoava, no início da segunda
metade do século XIX, como um problema para as autoridades civis e eclesiásticas, já distantes
do tempo pombalino, as quais desejavam novamente o serviço missionário, não somente pela
emergência de um claro projeto civilizador, como também pela necessidade de mão de obra para
o crescimento da nova província. A população do norte do Império brasileiro era, até a década de
1870, majoritariamente indígena. Essa população encontrava-se em diferentes graus de inserção
cultural na sociedade neobrasileira, desde índios “civilizados” e “semicivilizados” até índios
ainda relativamente sem contato com agentes da sociedade ocidental brasileira. Quanto a esses
últimos, cabia à Igreja a tarefa de sua catequização e civilização, com o objetivo de prepará-los
para o convívio amistoso com os demais membros da sociedade norte-brasileira e para o mundo
do trabalho do tipo ocidental, principalmente após o decreto de 24 de julho de 1845, mais
conhecido como Regulamento das Missões.228
Na estrutura criada pelo decreto, havia um Diretor Geral de índios, nomeado pelo
imperador. Um Diretor de Aldeia para cada aldeamento, sendo este nomeado pelo Diretor Geral,
mais um pequeno corpo de funcionários que deveriam incentivar o cultivo de alimentos,
monitorar os contratos de trabalho, dentre outras atividades previstas. Aos missionários cabia:
instruir os índios nas máximas da religião católica; servir de pároco na aldeia, e no seu distrito,
enquanto não se criasse paróquia; fazer o arrolamento de todos os índios pertencentes à aldeia e
seu distrito, com declaração dos que moravam nas aldeias e os fora delas, dos batizados, idades,
profissões, dos nascimentos, óbitos e casamentos; dar parte ao Bispo Diocesano, por intermédio
do Diretor Geral da Província, do estado espiritual da aldeia, informando as necessidades que
encontrasse e apontando a providencia que lhe parecesse mais cabível; informar ao Diretor Geral,

228
O Decreto de 24 de julho de 1845 é composto por onze artigos e um total de setenta parágrafos, onde os artigos 1º
e 2º tratam da competência do Diretor Geral e dos Diretores de Aldeia. Os artigos 3º, 4º, 5º, 7º, 8º e 9º tratam das
competências dos funcionários do aldeamento e dos procedimentos administrativos. Já artigo 6º trata especificamente
do trabalho do missionário. Quanto aos artigos 10º e 11º, os mesmos tratam dos processos e das condições em caso
de substituição dos cargos e das graduações recebidas em remuneração aos serviços prestados.

404
por intermédio do Diretor de Aldeia, em caso de necessidade de outro missionário; ensinar a ler,
escrever e contar às crianças e aos adultos, que sem violência se dispusessem a adquirir instrução;
e, finalmente, substituir o Diretor de Aldeia, quando estivesse impedido o Tesoureiro, nos casos
em que este o pudesse substituir o Diretor.
Em 1º de outubro de 1849, o presidente da Província do Pará, Jerônimo Francisco Coelho,
registrou em sua Fala à Assembleia Legislativa a existência de três missões religiosas no
Amazonas, sendo elas: Porto Alegre, no rio Branco, fundada por frei José dos Santos Inocentes;
Japurá-Içá e Tonantins, no rio Solimões, sob os cuidados do padre João Martins de Nine, e
Andirá, do capuchinho frei Pietro de Ceriana. Já em 1852, ao assumir a Província do Amazonas,
João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha encontrou as três funcionando em estado precário,
sendo que, somente a do Andirá possuía missionário, frei Pietro de Ceriana que ali habitava com
cerca de 570 índios maués. Em contrapartida, em 1854 a Missão do Andirá foi desativada, e dela
fora afastado frei Pietro de Ceriana, sob suspeita de enriquecimento ilícito por apropriação
indevida dos pagamentos devidos aos índios aldeados. Contudo, logo que se extinguiu a Missão
do Andirá, o capuchinho frei Pietro de Ceriana foi encarregado da fundação de outra no rio
Purus, para onde partiu em 24 de julho daquele mesmo ano, levando alguns tecidos, ferramentas
e outros objetos a serem distribuídos como brindes aos índios.
Em 1855, apenas três missionários atuavam no Amazonas: frei Gregório Maria de Bene,
nos rios Uaupés e Içana;229 Frei Joaquim do Espirito Santo Dias e Silva, na Missão de São Pedro
de Alcântara, no rio Madeira; e frei Pedro de Ceriana já encarregado da nova Missão no Purus.
Assim os acanhados resultados obtidos neste ramo do serviço público permaneciam se devendo à
falta de missionários, que somente seria amenizada com a chegada dos primeiros capuchinhos
italianos em 1870.
Em seu episcopado, D. José Afonso de Morais Torres enfrentou essa situação adversa com
duas diretrizes: o incentivo à formação do clero amazônico e a ação pastoral por meio das visitas
às diferentes jurisdições eclesiásticas do Bispado paraense. Era o segundo bispo brasileiro posto à
frente da diocese do Pará, sucedendo Dom Romualdo de Souza Coelho. Este último teve seu
episcopado marcado por dois momentos políticos de grande agitação: primeiramente, foram as
lutas que levaram à anexação do Pará ao Império do Brasil, em 1823; em segundo lugar, foi a
229
A região do alto rio Negro fornecia índios que melhor cumpriam os prazos nas obras públicas, como afirmava o
presidente Herculano Ferreira Pena: “São desta parte da Província os índios, que empregados nas obras públicas da
Capital têm preenchido de melhor vontade o prazo que lhes se amarra”.
405
revolta dos Cabanos, que só se daria por finda poucos meses antes do fim do seu episcopado, em
1840. Sua ação pastoral foi lembrada em duas biografias, uma escrita por Ladislau Monteiro
Baena, no século XIX, e a outra por Arthur Cézar Ferreira Reis, no século XX. Do mesmo
reconhecimento não parece ter compartilhado o seu sucessor, D. Afonso de Morais Torres, o qual
pouco foi lembrado pela historiografia da Igreja.
Nascido na cidade do Rio de Janeiro, em 23 de janeiro de 1805, D. José Afonso de Morais
Torres estudou no Colégio do Caraça, em Minas Gerais, um importante centro de formação
eclesiástica. Professou seus votos religiosos em 3de fevereiro de 1826 e foi ordenado sacerdote
em 1 de maio de 1829. Em maio de 1843, o governo imperial indicou seu nome para Bispo do
Pará, o que se confirmou em 22 de Janeiro do ano seguinte por meio da bula de Gregório XVI.
Sua sagração episcopal foi realizada em 21 de Abril de 1844 no Rio de Janeiro e, finalmente, em
15 de maio de 1844 tomou posse do Bispado do Pará, por meio de procuração.
No decorrer do seu episcopado, D. Afonso fundou dois seminários, o Seminário de São
Luís de Gonzaga (em Óbidos) e o de São José (em Manaus). Deu novos estatutos ao Seminário
episcopal (Belém); implantou no mesmo Seminário a cadeira de língua Tupi (Nheengatu) que
representava uma necessidade para o serviço de catequização dos índios; contou com a atuação
de missionários capuchinhos – chegados a partir de1843 –, para realizarem a catequização dos
índios.
Em 1857, aos 52 anos de idade, D. Afonso renunciou ao episcopado paraense, alegando
um estado de saúde debilitado. Segundo o historiador Riolando Azzi,três fatos se destacam como
elementos explicativos para o quase esquecimento de D. Afonso na História da Igreja no Brasil: o
de ter sido egresso da Congregação da Missão, sua renúncia à Diocese do Pará e a atuação do seu
sucessor, Dom Macedo Costa, que teria sido significativa para contribuir com o esquecimento de
seu antecessor (AZZI, 1982, p. 178 ).
É justamente em razão desse vácuo historiográfico a respeito de D. Afonso que desejamos,
neste artigo, propor uma discussão em relação a sua ação pastoral de Bispo do Pará, destacando a
sua preocupação com a formação de um clero local, o estabelecimento de Seminários e sua
prática das visitas pastorais.

A formação de um clero local e a preocupação com os seminários

406
Sendo D. Afonso egresso da Congregação da Missão e tendo ele feito toda a sua formação
no Seminário do Caraça, trouxe consigo uma grande preocupação com a formação sacerdotal e,
consequentemente, com os Seminários, preocupação que se reforçou a partir do momento da sua
chegada à Amazônia, onde entrou em contato com as especificidades da região e o velho
problema da insuficiência de sacerdotes. Vale destacar que a preocupação com a reforma do
clero, a restauração dos seminários e a instituição de novos era uma preocupação comum ao
movimento dos bispos reformadores,230 que se implantou no Brasil a partir do século XIX.
Sua preocupação inicial à frente da Diocese paraense foi a reorganização do seminário
Episcopal já existente desde 1751. Já na sua primeira carta pastoral expressava a sua preocupação
com o estado em que se encontrava o seminário Episcopal, adiando inclusive o inicio das visitas
pastorais em prol do mesmo: “obstou-me porém o estado, em que se achava o seminário
Episcopal, porquanto tive de dar-lhe novos estatutos, que procurei acomodar quanto pude ao do
Seminário do Caraça, onde fui educado, e que tem dado grandes homens à Religião, e ao
Estado”(TORRES, 1852, p. 3).
Como se pode notar, para D. Afonso o seminário do Caraça, pertencente à Diocese de
Mariana, representava o padrão e, por conseguinte, o exemplo de organização dos seminários
brasileiros. Para a tarefa da reorganização do seminário de Belém, D. Afonso trouxe consigo o
seu mestre de lógica, o padre José Joaquim Mendes de Moura Alves, para dedicar-se à formação
dos novos seminaristas, além do próprio D. Afonso que se encarregou de ministrar algumas
disciplinas.

O Seminário de Óbidos
Fundado em 17 de dezembro de 1846, o Seminário de São Luiz Gonzaga em Óbidos servia
também de colégio para os filhos das famílias católicas da região. É importante ressaltar que esse
estabelecimento educacional foi iniciado logo nos primeiros anos de atividade pastoral de D. José
Afonso. Em maio de 1848, durante visita pastoral, D. Afonso, ao passar pela cidade de Óbidos,
declarou:
Quando entramos em Óbidos tive imenso prazer em ver a regularidade do colégio de S.
Luiz Gonzaga, e o adiantamento dos meninos: em todas as tardes dos domingos e dias

230
As determinações previstas no Concílio Ecumênico de Trento (1548-1566) não foram impostas com o seu devido
rigor no Brasil, chegando aqui os seus ecos somente três séculos mais tarde, quando eclodiu a chamada reforma
ultramontana, que tinha como objetivo geral um clero mais preparado, menos subserviente ao Estado e uma Igreja
mais ligada às diretrizes do papado.
407
santos, depois de explicarem a doutrina na Igreja, saíam os pequenos em procissão com
a imagem de N. Senhora, cantando o terço a que acompanhava o povo; mas infelizmente
o seu diretor achava-se gravemente enfermo, e veio a falecer (TORRES, 1852, p.102).

Como se pode notar, as visitas pastorais possuíam uma dimensão muito maior que
simplesmente observar o estado das paróquias, dado que havia uma dimensão do cuidado com as
obras já empreendidas e também com o cotidiano das populações da Diocese.

O Seminário de São José


Entre 7 de abril e 14 de junho de 1848, D. José Afonso esteve na sede da Comarca do Alto
Amazonas, Vila de Manaus, carinhosamente chamada por ele de “cidade da Barra do Rio Negro”.
Naquela ocasião, decidiu D. José Afonso pela fundação do Seminário de São José. Durante esta
visita, realizou as solenidades da Semana Santa, mandando vir de Belém todos os paramentos
necessários e no dia de Pentecostes abriu-se o Seminário Episcopal. Para a manutenção do novo
estabelecimento, D. Afonso fundou a irmandade de São Vicente de Paulo para mandar os
meninos pobres para o Seminário. Em seu discurso na solenidade de abertura do Seminário, disse
o Bispo:
Cheio de alegria, senhores, venho hoje anunciar-vos á abertura d’um Seminário nesta
Comarca do Alto Amazonas; e quem pode desconhecer as grandes vantagens que
resultam dos colégios destinados a instrução, e educação da mocidade, para neste
momento, em que vamos dar começo a aquele estabelecimento não sentir em seus
corações os mais vivos transportes de jubilo, e de prazer? As casas de educação foram
em todos os tempos consideradas, como outros tantos asilos em que se salva da
ignorância, e imortalidade a mocidade, que sem estes recursos deixa sepultados muitas
vezes índoles, e talentos, que se podiam aproveitar, e de grandes esperanças para a
Religião e para o Estado: são elas a fonte de que dimanam torrentes de mil bens á
sociedade e donde tem saído esses raros homens, que a engrandecem nos diferentes
ramos de que a mesma compõe (TORRES, 1852, p. 99).

Percebemos que D. Afonso considerava o seminário mais do que um espaço de formação


religiosa, mas um espaço que se tornaria um centro de irradiação cultural para a região benéfico
para a Igreja é claro, mas também ao Estado já que seria aquele um espaço de educação para os
jovens, ideia que se confirma no trecho a seguir:
E que vantagens não tira a Comarca com esta criação? As ciências, as luzes aqui
recebidas irão em breve tempo deste foco de ilustração aos diferentes pontos dela,
ramificando-se desta arte a instrução; porque senhores, os seminaristas serão outros
tantos mestres espalhados em diferentes pontos, que irão comunicar os conhecimentos
aqui obtidos á seus patrícios, convidados pelo interesse, ou pelo zelo patriótico de ver
aproveitada a mocidade (TORRES, 1852, p. 99).

As Visitas Pastorais
408
Além dos seminários, outra grande preocupação de D. Afonso eram as visitas pastorais. As
visitas eram uma determinação desde o Concílio de Trento e, desde então, a Igreja passou a
incentivar os bispos para que fizessem visitas pastorais às diversas paróquias de suas respectivas
Dioceses. No Brasil, foi com o movimento dos bispos reformadores, durante o período imperial,
que as visitas tornaram-se mais frequentes.
No Pará, D. Afonso dedicou boa parte do seu governo episcopal às visitas pastorais, por
motivos que explica já em sua primeira carta pastoral em agosto de 1845:
Quando o Exmº. Ministro da Justiça me comunicou a nomeação que S.M. o Imperador
se designou fazer-me para o Episcopado, disse-me entre outras coisas que o desejo de
S.M. era que percorresse o Amazonas, procurando chamar à civilização as diferentes
tribos indígenas, que habitam suas matas, e não desfrutar as delícias de Belém: esta
advertência unida à rigorosa obrigação, que têm os Bispos de visitarem as suas Dioceses,
fez crescer em mim o desejo de fazer ouvir a minha voz até a ultima, e mais distante
ovelha do rebanho que a providência quis confiar à minha fraqueza (TORRES, 1852, p.
3).

Portanto, duas eram as razões que levavam D. Afonso à prática das visitas pastorais: a
primeira era o pedido expresso do Imperador D. Pedro II, de quem recebera a nomeação para o
episcopado, a segunda era a própria determinação da Igreja por meio do Concílio de Trento.
As cartas das visitas pastorais foram publicadas em seu Itinerário de Visitas (Pará, 1852).
O Itinerário possui 103 páginas e 23 cartas das três visitas realizadas entre agosto de 1845 e julho
de 1848. A riqueza de informações contidas no Itinerário é de grandes proporções, pois, através
dele é possível obter dados variados, dentre eles descrições minuciosas das vilas visitadas, o
estado das paróquias, sobre os párocos, as atividades econômicas locais, as autoridades, os
festejos locais, as recepções em que o bispo era homenageado, as celebrações e, finalmente,
dados muito específicos como, por exemplo, o número de crismas, batizados e casamentos
realizados.
Tomando como exemplo a primeira visita realizada em 1845, podemos observar o fluxo das
viagens e os dados informados. Foram cinco vilas visitadas: Vigia, São Caetano de Odivelas, Vila
Nova d’El Rei, Cintra e Salinas; somente dessas cinco vilas é possível chegar a um número de
1200 crismas e 120 casamentos realizados. Quanto às casas paroquiais, a maioria era de templos
que remontavam aos Jesuítas, e quase todos se encontravam em bom estado. No entanto, segundo
D. Afonso, a igreja da paróquia de Vila Nova d’El Rei, apesar do bom aspecto geral, necessitava
de reforma; já a igreja da paróquia de São Caetano de Odivelas foi a pior na avaliação do bispo,
que a descreveu como pequena, pobríssima e arruinada.
409
A dimensão do administrador era, assim, cumprida, bem como a do pastor também o era.
Ao longo das visitas, muitas pessoas iam ao encontro do bispo, não somente para a obtenção dos
sacramentos, mas também para conselhos espirituais ou mesmo para a solução de problemas
conjugais ou familiares. A preocupação com a catequização se manifestava em diversos
momentos, sobretudo no encontro com índios e negros. Assim, a dimensão do pastor se mostrava
acima da do administrador, sem que uma excluísse a outra no ministério episcopal. Marcado pela
experiência das visitas D. Afonso disse:
É com toda a razão que o Concílio de Trento exige que os Bispos percorram suas
Dioceses; porque, ainda quando poucos façam colhem sempre fruto centésimo: se eu que
rastejo apenas sobre as pisadas desses grandes prelados, cujo brilho de saber, e virtude
me ofuscam, e me lançam em uma perfeita nulidade, pude conseguir tanto, em beneficio
de meus Diocesanos, o que não fará Deus com esses homens, que lhe devem merecer sua
particular predileção? (TORRES, 1852, p. 11).

Portanto, D. Afonso procurava não somente cumprir um dever pastoral, como também
reconhecia os frutos que poderiam ser recolhidos dessa atividade para a vida religiosa da diocese.

Os Religiosos e o Processo de Reforma do Clero Diocesano


Além dos seminários e das visitas pastorais, a presença de religiosos estrangeiros também
constituiu um importante elemento não apenas para suprir a carência de sacerdotes em que vivia a
Amazônia, como também para a implantação do processo de reforma católica, que chegou ao
Brasil a partir da segunda metade do século XIX.
No passado colonial, duas grandes ordens atuaram na Amazônia, os Jesuítas, expulsos em
1759, e os padres das Mercês, cuja ordem foi extinta no Pará em 1787. Apesar disso, outras
ordens continuaram atuando na Amazônia, ainda que de forma precária. Durante o governo
episcopal de D. Afonso, duas das antigas ordens permaneciam em atividade: a dos franciscanos e
a dos carmelitas.
A Diocese do Pará pouco podia contar com a colaboração daqueles religiosos, tendo em
vista a crise pela qual passavam naquele período. Havia uma grande baixa dos rendimentos que
mantinham as ordens; até então a maior parte dos rendimentos vinha das esmolas dos fieis ou dos
ofícios funerários. Entretanto, com a proibição dos enterramentos no interior dos templos, a
Diocese paraense já não se podia mais contar com esse tipo de ganho.
Nessas condições, D. Afonso solicitou ao então presidente da província do Pará, Fausto
Augusto Aguiar, auxilio provincial para a causa dos religiosos e dos conventos dos carmelitas
410
calçados e de Santo Antônio. Assim, pediu a quantia de 100$00 réis anuais para cada religioso
para que pudessem se sustentar.
Desde que chegou à Diocese do Pará, D. Afonso pode constatar a situação precária em que
a mesma se encontrava. Desse modo, tentou que seus ex-confrades padres da Missão se fixassem
na Amazônia; no entanto, somente o seu ex-mestre de Lógica, o padre José Joaquim de Moura,
atendeu ao seu pedido e, mesmo assim, somente por algum tempo.
Desse modo, D. Afonso encontrou nos capuchinhos italianos a colaboração mais efetiva
que poderia contar. Os religiosos foram enviados pelo governo imperial para a catequese dos
índios; contudo, foram fundamentais em outras atividades, como nas visitas pastorais, sendo que,
na primeira visita, o bispo pode contar com a ajuda de frei Pietro da Ceriana, que o acompanhou
e ajudou no púlpito e confessionário, conforme relata em seu Itinerário de visitas pastorais.
As dificuldades da Diocese não se restringiam à carência de sacerdotes e aos percalços
financeiros. A precária formação intelectual e moral dos sacerdotes diocesanos também era alvo
de grande preocupação, tanto para as autoridades eclesiásticas como para as autoridades civis,
como demonstra a Fala do Presidente da Província do Amazonas, Tenreiro Aranha, em 1852:
Os acanhados resultados, que se tem colhido neste ramo do serviço público, a despeito
dos esforços que se ao empregado, e as causas a que atribuo este fato, as expus no meu
citado relatório: são em resumo, a carência de missionários esclarecidos, e animados de
fervor religioso, e de patriotismo; a insuficiência dos meios pecuniários de que se tem
disposto; e a falta de um sistema de educação mais apropriado.(ARANHA, 1852, p, 17)

Para a Diocese do Pará, D. Afonso preocupou-se em estabelecer um novo tipo de padre, de


sólida formação moral, orientado totalmente para a vida espiritual. Esse novo clero deveria
sobrepor-se ao antigo, que frequentemente acabava se enveredando para os interesses políticos.
O que se desejava eram sacerdotes aptos para o ministério sacerdotal tanto no altar, no
púlpito e no confessionário. No entanto, não era uma tarefa fácil mudar os hábitos internalizados,
que resistiam ao processo de reforma; desse modo, podemos concluir que não foi de todo pacífica
a atrasada implantação do modelo de Igreja tridentina.

A Renúncia Do Episcopado
Apesar de todo o esforço realizado para a implantação da reforma católica na Diocese do
Pará, diversas dificuldades ocorreram para tornar bastante atribulado o episcopado de D. Afonso:
a carência de sacerdotes, a dificuldade na reforma do antigo clero e principalmente seu estado de
saúde fragilizado. De fato, as sucessivas viagens em visita às igrejas do bispado realizadas muitas
411
vezes em pequenas embarcações, como canoas, quase sempre sem coberturas e a sujeição às
intempéries climáticas se somaram em forças que abateram não só o corpo, como o estado de
espírito de D. José Afonso de Morais Torres. Assim, a alternativa mais coerente que lhe ocorreu
foi a renúncia ao episcopado, concedida em 8 de julho de 1857.

Fontes e Bibliografias

Fontes impressas
AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo. Dicionário topográfico histórico descritivo da
Comarca do Alto- Amazonas. Manaus: Associação Comercial do Amazonas, 1984.
BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio corográfico sobre a província do Pará. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2004.
Itinerário das visitas do EXMº. E RMº. SENHOR D. José Afonso de Morais Torres. Pará:
tipografia de Matos e Companhia, 1852.
Falla dirigida á Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, no dia 1º de agosto de 1854, em
que se abriu a sua 3º sessão ordinária, pelo presidente da província, o conselheiro Herculano
Ferreira Penna. Barra do Rio Negro, Typ. M. S Ramos, 1854.
MATTOS, João Wilkens de. Alguns esclarecimentos sobre as missões da Província do
Amazonas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. TOMO XIX. Rio de Janeiro,
Typografia Universal de Laemmert, 1856.
REIS, Arthur Cézar Ferreira. A Igreja no Amazonas ao findar o período colonial IN: RIHGB, nº
349. Rio de Janeiro, 1985.
Relatório que, em seguida ao do Exmo. Sr. presidente da Província do Pará, e em virtude de
circular de 11 de março de 1848, fez sobre o estado da província do Amazonas, depois da
instalação dela, e de haver tomado posse o seu primeiro presidente o Exmo. Sr João Batista
Figueiredo Tenreiro Aranha, em 30 de abril de 1852 - Manáos. Typographia de M. da Silva
Ramos, 1852.

Fontes digitais
Coleção de Leis do Império do Brasil-1845, página 86. Vol. pt III. Portal Câmara dos
Deputados< http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-426-24-julho-1845-
560529-publicacaooriginal-83578-pe.html>. Acesso em 21 de dezembro de 2015.

Bibliografias
AZZI, Riolando. Dom José Afonso de Morais Torres, Ex-Lazarista, no Bispado do Pará. Revista
Convergência. Abr 1982. Ano XVII. Nº 151.
CERETTA, Celestino. História da igreja na Amazônia Central. Manaus: Biblos/Valer, 2008.
HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja na Amazônia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990.
KODAMA, Kaori. Os índios no Império do Brasil: a etnografia do IHGB entre as décadas de
1840 e 1860. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ: São Paulo: UDUSP, 2009.
LOUREIRO, Antonio José Souto. O Amazonas na Época Imperial. 2º edição. Manaus: Valer,
2007.
REIS, Arthur Cézar Ferreira. História do Amazonas. 2ºed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.

412
REIS, Arthur César Ferreira. A conquista espiritual da Amazônia. 2ed. Manaus. Editora da
Universidade do Amazonas/ Governo do Estado do Amazonas, 1997.
SAMPAIO, Patrícia Melo. Política Indigenista no Brasil Imperial IN: GRINBERG, Keila e
SALLES, Ricardo. (Organizadores.) O Brasil Imperial (1808-1889). Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 2008.
SOARES, Elisângela Socorro Maciel. Igreja de Manaus - porção da Igreja universal, a diocese
do Amazonas vivendo a romanização (1892-1926). Manaus: Valer, 2014.

413
LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO ACERCA DOS ESTUDOS SOBRE
PATRIMÔNIO DOCUMENTAL E AHISTÓRIA DAS INSTITUIÇÕES, ACERVOS E
PRÁTICAS DE ARQUIVOS NO AMAZONAS.
PAOLA DA CRUZ RODRIGUES*
LEANDRO COELHO DE AGUIAR**

Introdução

Serão apresentadas na comunicação resultados preliminares de uma das atividades do


projeto de pesquisa intitulado “Patrimônio documental no Amazonas: história das instituições,
acervos e práticas de arquivo”, coordenado pelo prof. Me. Leandro Coelho de Aguiar, que tem
como objetivo refletir acerca da historicidade e do conceito de patrimônio documental no
Amazonas.
A comunicação tem por objetivo apresentar as reflexões gerais acerca do projeto, assim
como resultados já alcançados da atividade de levantamento bibliográfico em trabalhos de
conclusão de curso, artigos de periódicos acadêmicos, teses e dissertações que mencionam o
Arquivo Público do Estado do Amazonas, o Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas e a
Biblioteca Pública do Estado do Amazonas. O interesse por tais instituições se faz pelo fato de
serem instituições centenárias de guarda231, preservação e acesso ao patrimônio documental em
nosso estado, assim como o fato de que tais instituições devam ser pensadas para além de seus
aspectos puramente técnicos e de “depósitos de documentos”, mas como construções sociais que
remetem a diálogos e embates políticos na perspectiva macro do tempo. Para tal, torna-se
pertinente também esquematizar e elaborar por meio das fontes a história dos principais
personagens e instituições envolvidas na criação e atuação das três instituições, assinalando

*
Graduanda em História pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Bolsista do Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação Científica, sob orientação do prof. Me. Leandro Coelho de Aguiar com o projeto: Levantamento
bibliográfico em artigos, teses e dissertações: estudo da arte acerca da concepção de patrimônio documental e
história das instituições, acervos e práticas de arquivo no Amazonas. Financiado pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM.
**
Professor coordenador do projeto. Professor da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal
do Amazonas..
231
O Arquivo Público do Estado do Amazonas, foi criado pelo artigo 29 do Decreto nº 184, de 19 de agosto de 1897.
O ato, assinado pelo governador Fileto Pires Ferreira. O Instituto Geográfico e Histórico, foi fundado em 25 de
março de 1917, considerado de utilidade pública pela Lei Estadual nº 897, de 24 de agosto de 1917, e pela Lei
Municipal nº 1.071, de 22 de outubro de 1973. A Biblioteca Pública do Amazonas, foi criada pela Assembleia
Legislativa Provincial, por meio da Lei n. 205 de 17 de maio de 1870 presidida por Ramos Ferreira.
414
possíveis redes sociais direta e indireta, assim como evidenciando os possíveis paradigmas acerca
do que tais personagens sociais entendiam o conceito de patrimônio documental dentro da criação
e atuação das três instituições.
A pesquisa bibliográfica teve início através da busca de palavras chaves nos instrumentos
de pesquisas existentes, como campo de busca dos periódicos acadêmicos e dos repositórios
institucionais de dissertações e teses dos programas de pós-graduação de áreas e temáticas afins
da região norte, bem como diretamente no acervo físico, quando for o caso, de revistas e
bibliotecas de TCCs sem instrumentos digitais de acesso e busca.
O primeiro produto que se propõe ser idealizado com a pesquisa será justamente a criação
de um repositório digital com as principais informações referentes aos trabalhos encontrados,
para só então poder desenvolver análises acerca do resultado da pesquisa acerca da historicidade
e o conceito de patrimônio documental no Amazonas. Frente ao exposto, apresentaremos
reflexões que norteiam o pensamento arquivístico e historiográfico em torno das práticas e da
teoria acerca do patrimônio documental e as relações sociais que permeia sua construção.

O papel do Arquivo: Um lugar de construção de memória social


A arquivologia nas últimas décadas, tem passado por grandes transformações, rompendo
seus moldes e sofrendo grandes mudanças em suas bases, particularmente no que se trata do
“pensamento arquivístico acerca da natureza, do propósito do arquivo, do papel dos arquivistas e
das instituições do patrimônio documental” (EASTWOOD; MACNEIL, 2016:7). Essas
mudanças relacionam-se aos motivos para a existência dos arquivos e as formas de preservação
utilizadas pelos arquivistas, existindo um processo de transformação entre a ideia de um
arquivista passivo e neutro para um arquivista que atua como formador do patrimônio
documental.
A Arquivologia durante o século XIX e início do XX possuía uma forma muito tecnicista,
que tinha uma metodologia pragmática de trabalho, dando aos arquivistas um papel de “guardião
passivo e neutro dos documentos” (COOK, Terry, 2012: 123-148). Os estudos de Terry Cook se
pautam na quebra com essa ideia de arquivista pragmático, indo contra o método de arquivar por
arquivar. O autor não nega a prática, mas a reconstitui através de um olhar “pós-custodial” com a
influência da pós-modernidade, tendo em vista que nessa teoria o arquivista e os arquivos não

415
eram mais inertes, eles trabalham em diálogo com as estruturas, logo o arquivista é também
agente nos procedimentos que constituem o patrimônio documental.
No século XIX a partir do surgimento de arquivos históricos como instituições o trabalho
arquivístico de classificação e organização dos arquivos deixa de ser feito com base apenas em
um critério de “importâncias” muitas vezes pautadas em interesses privados sobre os documentos
para ser realizado com base na origem dos conjuntos documentais e pela estrutura do documento
produzido por determinada entidade.232
Nesse contexto a evolução de pensamento em torno do arquivo permite uma
reconsideração do papel tradicional do arquivista não mais um guardião passivo e neutro de
documentos, mas alguém com papel ativo na formatação da memória social em vista do processo
de escolha que o arquivista estabelece através das práticas interpretativas sobre a compreensão
dos documentos que estão nos arquivos.
Além disso o estudo histórico também evoluiu, os métodos, as fontes, as formas de
interpretação do conhecimento histórico passaram por modificações. O reflexo disso está na
mudança da produção historiográfica que antes buscava investigar muitas vezes as origens,
utilizando quase que estritamente como fonte documentos diplomáticos e políticos, e no século
XX amplia as pesquisas para diversos aspectos de atuação humana, utilizando-se de um número
muito maior de fontes.
Existe também uma mudança quanto a percepção do arquivo não apenas como fonte mas
como objeto de estudo, ao se pensar o “saber dos arquivos”, o problema segundo Marlon
Salomon se dá entre o discurso metodológico e o discurso teórico da história que pressupõem o
arquivo como fonte, o que impossibilita uma reflexão sobre a construção e a produção dos
arquivos.233 Ou seja, pensar a história das instituições é algo novo, não apenas pelos
historiadores, mas também pela ciência arquivística e pelos arquivistas que passaram a
desenvolver um conjunto de práticas de arquivamento.
…, aquilo sobre o que silencia um documento é muitas vezes mais importante do que
aquilo sobre o que ele fala. Os arquivos dependem da interrogação histórica e dos tipos
de problemas que lhes são formulados: esta é uma evidência manual que não pode ser
esquecida. (SALOMON, M. J., 2011:14.)

232
Cf. EASTWOOD, Terry. Um domínio contestado. A natureza dos arquivos e a orientação da ciência arquivística.
In: Correntes atuais do pensamento arquivístico. Belo Horizonte (MG): Editora UFMG. 2016. p.21.
233
Cf. SALOMON, M. J. Saber dos Arquivos. 1. ed. Goiânia: Ricochete, 2011. v. 1. p. 14.

416
Esse conjunto de práticas possibilita modos diferentes de interrogar os arquivos, a partir
de um conjunto de problematizações. A transformação pela qual a arquivologia passa permite ao
arquivo ser um objeto de questionamentos político e social. Essa discussão leva as instituições
arquivísticas e os próprios arquivos a uma perspectiva de interesse social pautado em um ideal de
memória coletiva, dando ao arquivo um papel de efetivação de responsabilidade e organização
coletiva.234
Essa relação de arquivo e memória coletiva é inserido no debate sobre como e se os
arquivos proporcionam o reconhecimento ou a recuperação da memória dentro de um espaço
específico sob situações específicas. Essa relação faz parte de um debate macro sobre o papel dos
arquivos e de outras instituições como estruturadoras da memória social presente na literatura
arquivística, principalmente nas relações da memória com as instituições responsáveis e a
influência dos arquivistas na preservação ou não dos documentos.
A reflexão aqui está em torno do que é preservado ou não e principalmente os motivos
que levam a isso, nesse debate compreender a história das instituições possibilita um
entendimento sobre o que existe nos arquivos e o que inexiste.235
Na medida em que as relações entre as práticas arquivísticas e a memória social vão
tornando-se mais complexas, a realidade profissional e técnica dos arquivistas deverão responder
de algum modo a essa complexidade. Isso proporcionou mudanças no modo como os arquivos os
arquivistas buscam preservar os documentos. Conforme a colocação de Heather MacNeil,
“identificar e preservar documentos de valor permanente e torná-los disponíveis para uso são
funções tradicionalmente desempenhadas no interior das instituições arquivísticas”.236
Por conseguinte, a mudança no pensamento arquivística reflete na estrutura de
compreensão e organização dos arquivos. Essa mudança é expressa por Glenn Dingwall no

234
Cf. MACNEIL, Heather. Correntes em transformação. In: Correntes atuais do pensamento arquivístico. Belo
Horizonte (MG): Editora UFMG. 2016. p.8.
235
Cf. HEDSTROM, Margaret – Arquivos e memória colectiva: mais que uma metáfora, menos que uma analogia,
in: Terry Eastwood e Heather MacNeil (org.) - Correntes atuais do pensamento arquivístico, Belo Horizonte, Editora
UFMG, 2016, p. 237-260
236
Cf. MACNEIL, Heather, op.cit., p.10.
417
modelo do continuum237, que futura uma expansão da competência dos arquivistas no que
corresponde a seleção de quais documentos devem ser preservados e arquivados.
Desse modo, a evolução do pensamento arquivístico proporciona uma revisão sobre os
aspectos metodológicos da arquivologia, bem como o papel dos arquivistas, não mais como um
guardião de documentos mas como alguém que está em relação com os documentos,
principalmente de forma histórica e social, como exposto por Catherine Hobbs, existe nas novas
correntes da arquivologia a dimensão psicológica adotada pelos indivíduos ao fazer, guardar e
organizar os documentos.238
Por fim, é importante colocar que a mudança do pensamento arquivístico também permite
questionar a neutralidade dos arquivistas e até mesmo os arquivos, as práticas arquivística e
história das instituições também precisam ser pensadas a partir dos novos modelos interpretativos
que se coloca na maneira de problematizar o arquivo.
É nesse contexto que atividade de levantamento bibliográfico em publicações está
pautado, refletir sobre o que se tem publicado acerca de patrimônio documental, de que formas os
pesquisadores têm utilizado das instituições, e qual o contexto em que se tem utilizado os
arquivos.

Levantamento Bibliográfico
A primeira etapa da atividade consistia no levantamento bibliográfico que citassem as
instituições que são objeto da pesquisa, ou seja, o Arquivo Público do Estado do Amazonas, o
Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e a Biblioteca Pública do Estado do Amazonas.
Nesse momento a pesquisa se direcionou a revistas e periódicos da Universidade Federal do
Amazonas, a pesquisa foi realizada no Portal de periódicos da Ufam.239
Todas as revistas foram analisadas individualmente, buscando inicialmente nos títulos dos
artigos e em alguns no próprio texto referências as instituições, o que foi perceptível logo de
início é que as instituições eram citadas como depósitos das fontes que eram utilizadase não

237
Esse modelo questiona a existência das fronteiras existentes no modelo do Ciclo Vital, delimitando e distinguindo
o que separa a gestão de documentos correntes da gestão de documentos históricos e estipula também parâmetros que
delimitam as funções dos arquivistas.
238
Cf. HOBSS, Catherine. Vislumbrando o pessoal. in: Terry Eastwood e Heather MacNeil (org.) - Correntes atuais
do pensamento arquivístico, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2016, p. 303-340
239
Acesso disponível em: http://www.periodicos.ufam.edu.br/.

418
como objeto de estudo. Está listada abaixo as revistas pesquisadas da Universidade Federal do
Amazonas e o material encontrado.

Quadro 1 - Revistas Pesquisadas da UFAM


1. REVISTA ELETRÔNICA PESQUISA E PRÁTICA EM EDUCAÇÃO INCLUSIVA
2. CONEXÕES: REVISTA DE RELAÇÕES PÚBLICAS E COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL
3. CANOA DO TEMPO - REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL
DO AMAZONAS
4. XIX SEMINÁRIO NACIONAL DE BIBLIOTECAS UNIVERSITÁRIAS
5. REVISTA AMAZÔNIDA: REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DO AMAZONAS
6. MANDUARISAWA - REVISTA DISCENTE DO CURSO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
7. REVISTA GEONORTE
8. WAMON - REVISTA DOS ALUNOS DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DA UFAM
9. PRISMA - REVISTA DE FILOSOFIA
10. CADERNO DE RESUMOS ELETRÔNICO DO XXXIV ENEBD
11. SOMANLU - REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM NATUREZA E CULTURA NA AMAZÔNIA

Fonte: Portal de periódicos da UFAM. 2018240.

Durante a realização da atividade foi sendo notada a falta ou quase inexistência de


publicações que estivessem relacionadas a história das instituições, em vista disso ampliamos a
consulta para universidades públicas da região Norte do Brasil como um todo, na expectativa de
maior retorno de trabalhos referentes ao tema patrimônio documental no Amazonas. Foram
pesquisadas então as revistas das seguintes universidades listadas a abaixo, com o mesmo
procedimento metodológico, acessar os periódicos e procurar nos títulos das revistas de forma
individual as publicações que mencionasse o Arquivo Público do Amazonas, o Instituto
Geográfico e Histórico do Amazonas e a Biblioteca Pública do Estado do Amazonas.
Quadro 2 – Revistas Pesquisadas da UFAC
1. REVISTA TXAI DE ARTES CÊNICAS
2. REVISTA EDUCAR PARA TRANSFORMAR
3. REVISTA VAZANTES DE ARTES CÊNICAS
4. ACTA CIENTÍFICA DA AMAZÔNIA OCIDENTAL
5. REVISTA EM FAVOR DA IGUALDADE RACIAL
6. JAMAXI

240
Acesso disponível em: http://www.periodicos.ufam.edu.br/.

419
7. REVISTA COMMUNITAS
8. ANAIS DO ENCONTRO NACIONAL DOS GRUPOS PET
9. UÁQUIRI. A GEOGRAFIA E A AMAZÔNIA EM QUESTÃO
10.ARIGÓ
11.ANAIS DO SIMPÓSIO LINGUAGENS E IDENTIDADES DA/NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL
12.REVISTA DE INICIAÇÃO E PRÁTICAS DOCENTES
13.MUIRAQUITÃ - REVISTA DE LETRAS E HUMANIDADES. ISSN: 2525-5924
14.PSICOLOGIAS
15.SOUTH AMERICAN JOURNAL OF BASIC EDUCATION, TECHNICAL AND TECHNOLOGICAL
16.ANTHESIS
17.JOURNAL OF AMAZON HEALTH SCIENCE
18.ANAIS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFAC
19.TROPOS
20.NAWA

Fonte: Portal de Periódicos Eletrônicos da UFAC. 2018.241

Quadro 3 – Revistas Pesquisadas da UFPA


1. COMPLEXITAS – REVISTA DE FILOSOFIA TEMÁTICA
2. AMAZÔNIA: REVISTA DE EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICAS
3. AMAZÔNICA - REVISTA DE ANTROPOLOGIA
4. REVISTA MARGENS INTERDISCIPLINAR
5. ARTERIAIS - REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM ARTES
6. MOARA – REVISTA ELETRÔNICA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
7. REVISTA BRASILEIRA DE ANÁLISE DO COMPORTAMENTO
8. REVISTA AGROECOSSISTEMAS
9. AGRICULTURA FAMILIAR: PESQUISA, FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO
10.REVISTA EXPERIMENTART
11.REVISTA CONEXÕES DE SABERES
12.NOVOS CADERNOS NAEA
13.HENDU – REVISTA LATINO-AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
14.RVE - REVISTA VER A EDUCAÇÃO
Fonte: Portal de Revistas Científicas da UFPA. 2018.242

Quadro 4 – Revistas pesquisadas da UFRR


1. HEALTH AND DIVERSITY
2. REVISTA GEOGRÁFICA ACADÊMICA
3. ACTA GEOGRÁFICA
4. ARENTA
5. EXAMÃPAKU

241
Acesso disponível em: http://revistas.ufac.br/.
242
Acesso disponível em: https://periodicos.ufpa.br/.

420
6. RCT - REVISTA DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA
7. REVISTA AGRO@MBIENTE ON-LINE
8. REVISTA DE ADMINISTRAÇÃO DE RORAIMA – RARR
9. TEXTOS E DEBATES
Fonte: Portal de Revistas da UFRR. 2018.243

A segunda etapa da atividade consistia na criação um banco de dados com as principais


informações referentes as publicações encontradas nas revistas, como ano da publicação, número,
volume, nome da revista, título do artigo, autor(es), página inicial e final, link ou localização, e
observação acerca do resultado da pesquisa. Dentre as revistas pesquisadas apenas uma
apresentou trabalhos referente aos termos buscados, a revista é da Universidade Federal do
Amazonas, do programa de pós-graduação em natureza e cultura na Amazônia e é denominada
Somanlu.
O primeiro artigo encontrado tem como título “Arthur Reis: da relação com os intelectuais
amazonenses à sua colocação nos Institutos Históricos”244, tem como autora Lademe Correia de
Sousa, Mestre em História pela Universidade Federal do Amazonas, e professora substituta na
mesma instituição, o artigo analisa, a partir das correspondências recebidas por Arthur Reis, a
trajetória deste, sua importância entre os intelectuais amazonenses e sua relação com os Institutos
Históricos do Brasil. Arthur Reis foi membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas
desde o início de sua juventude, desse modo a autora evidencia a relação de Arthur com o
Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), inaugurado em março de 1917.
Um dos pontos importantes que a autora coloca também é o prestígio que o IGHA, dentre
outros institutos históricos e geográficos possuía. O que era utilizado pelos intelectuais
associados ao IGHA para inserção numa associação que respaldasse seus trabalhos, que os
fizessem ser reconhecidos como pertencentes a um grupo seleto de intelectuais Amazonenses.

243
Acesso disponível em: https://revista.ufrr.br/.
244
SOUSA, Lademe Correia de. Arthur Reis: da relação com os intelectuais amazonenses à sua colocação nos
Institutos Históricos (1930-1940). Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos, [S.l.], v. 10, n. 1, p. 85-105, ago. 2013.
ISSN 2316-4123.

421
O segundo artigo também da Revista Somanlu, que possui como título “MEMÓRIA
CIENTÍFICA AMAZONENSE: Reflexões sobre os arquivos pessoais de cientistas.”245, apesar
do artigo não abordar diretamente as instituições até então pesquisadas, possui no texto um
debate interessante sobre lugar de memória e memória coletiva, o que nos remete não somente
aos arquivos pessoais, mas aos arquivos públicos também, assim como trabalha os arquivos de
intelectuais amazonenses que tem um passado histórico como diretores ou pessoas de grande
importância dentro das instituições como o IGHA, o que possibilita uma relação entre a
importância dada para os arquivos pessoais e os arquivos públicos. O artigo tem como autores,
Rodolfo Almeida de Azevedo, Kátia Viana Cavalcante e Marcos Araújo Silva, o artigo aborda o
conceito de memória científica no Amazonas, mais particularmente arquivos pessoais de
cientistas, levando em consideração o conceito de lugar de memória e memória coletiva,
mediante observação da trajetória de vida de alguns cientistas amazonenses, selecionado como
Mário Ypiranga Monteiro, Samuel Benchimol, Milton Hatoum e Renam Freitas Pinto,
principalmente o exemplo do caso da Biblioteca e Arquivo Arthur Cezar Ferreira Reis.
O artigo também mostra um pouco sobre o processo de desvalorização da memória
documental no Amazonas, afirmando isso com base na observação nos arquivos públicos, no
caso, o arquivo Estadual e o arquivo Municipal. Com foco nos arquivos pessoais, é ressaltado a
necessidade de pensar a desvalorização dos arquivos, trabalhar essa problemática e as suas
consequências, principalmente a perda da memória da cidade e mesmo do Estado, bem como a
perda da própria história e memória da sociedade.
Em vista do material coletado é notório que ainda é pouco pesquisado ou ao menos pouco
publicado sobre temas que abordam a história das instituições, dos acervos e as práticas de
arquivo, o que podemos relacionar com o fato dessa corrente de pensamento arquivista ser ainda
recente. Como coloca Barros:
... no caso brasileiro, o desenvolvimento teórico da arquivística caminha entre as
tradições norte americana e europeia em maior ou menor grau dependendo época e do
contexto em que se discute. A Arquivística, enquanto área profissional e carreira
universitária, foi deixada de lado, em grande parte pelas características antidemocráticas
e autoritárias do governo brasileiro, que culminaram com uma falta de incentivo político
e fiscal”. (BARROS, 2013: 135-157).

245
DE AZEVEDO, Rodolfo Almeida. MEMÓRIA CIENTÍFICA AMAZONENSE: Reflexões sobre os arquivos
pessoais de cientistas. Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos, [S.l.], v. 14, n. 1, p. 43-62, dez. 2017. ISSN 2316-
4123.

422
Existe ainda uma cultura de observar as instituições detentoras de acervos documentais
como depósitos de documentos, que podem apenas ser utilizados como fontes, não existe ainda
uma percepção dessas instituições como objeto de estudo, que ressaltam sua construção política e
social, o pensamento direcionado aos arquivos e o papel do arquivista ainda precisa ser melhor
refletido principalmente no âmbito acadêmico, a não existência de publicações referentes ao tema
nos mostra a necessidade de explorar mais essa concepção de patrimônio documental, de
instituições como formadoras de memória coletiva.
A arquivologia principalmente na região norte ainda está em processo de construção, o
curso é recente, terá feito 10 anos de criação em 2019, contando atualmente comapenas 74
arquivistas formados, além da área é pouco reconhecida no estado, um reflexo disso é que o
cargo de arquivista não é um cargo oficial dentro do quadro público, ainda sendo recente o
esforço dos arquivistas por tal reconhecimento.
Uma possível etapa seguinte é expandir a pesquisa e o levantamento bibliográfico para
revistas das demais universidades da região norte do Brasil, não apenas as federais, mas também
as estaduais, assim como estender a pesquisa para trabalhos de conclusão de cursos de graduação,
teses e dissertações dos programas de pós-graduação em áreas das ciências humanas e sociais das
universidades da região Norte e principalmente do Amazonas.
Dessa forma, as discussões que se esperam sobre o entendimento e o conceito de
patrimônio documental, a história das instituições, acervos e práticas de arquivos, a relação entre
arquivista e arquivo, a função do arquivo para com a memória coletiva, discussões pautadas no
debate social e cultural das questões públicas e políticas sobre memória e também sobre
esquecimento ainda precisam ser desenvolvidas e ampliadas no Amazonas.
“A memória coletiva e sua forma científica, a história, aplicam-se a dois tipos de
materiais: os documentos e os monumentos. De fato, o que sobrevive não é o conjunto
daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam
no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à
ciência do passado e do tempo que passa...” (Le Goff, 1992:535.)

Para que se possa refletir a história das instituições, e qual o contexto de cada documento,
entender por que diferentes documentos foram guardados e outros descartados, pois os arquivos
compõem a memória que é criada, determinam aquilo que é esquecido, o que se enquadra em um
debate muito mais amplo aos elementos centrais das correntes do pensamento arquivístico.
423
Referências
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históricos e conceituais. Informação Arquivística, Rio de Janeiro, RJ, v. 2, n. 1, p. 135-157,
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Informação Arquivística, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p. 123-148, jul./dez. 2012.
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3.
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424
ALDEAMENTOS MISSIONÁRIOS NO ESTADO DO MARANHÃO E GRÃO PARÁ:
CONQUISTA, OCUPAÇÃO E “POSSE” DA AMAZÔNIA PORTUGUESA (SEGUNDA
METADE DO SÉCULO XVIII)

RAFAEL ALE ROCHA

Introdução
Em fins do século XVII, as Coroas de Portugal e França iniciaram negociações para sanar
os conflitos que envolviam os territórios coloniais amazônicos de ambas as potências. Esses
embates estão relacionados à posse do chamado Cabo Norte (Amapá), que, objeto de disputa
entre diversas potências europeias no século XVII (ingleses, holandeses, franceses e
portugueses), passou a ser frequentado por missionários jesuítas e, principalmente, vassalos
franceses a partir da década de 1670. Assim sendo, os franceses intensificaram o comércio
(escambo) – nomeadamente, a troca de cativos indígenas (resgates) e outros gêneros por
utensílios europeus – que praticavam com as diversas “nações” indígenas habitantes da região –
incluindo, além do Cabo Norte, a Ilha de Joanes (Marajó) e arredores. As autoridades
portuguesas, em vários momentos, encontraram franceses comerciando com esses índios em
terras (que julgavam) lusitanas. Portanto, foram incumbidas da construção de fortificações,
posteriormente, tomadas por via das armas pelos mesmos “estrangeiros” (REIS, 1993: 65-101).
Nessa conjuntura, a amizade/vassalagem daquelas nações indígenas, como procuramos
demonstrar em outro estudo, tornou-se objeto de disputa entre franceses e lusitanos. Embora o
comércio fosse a via privilegiada dessa disputa, por parte tanto dos franceses quanto dos
portugueses, as estratégias dos contentores possuíam características um tanto diferenciadas: se os
primeiros investiam sobretudo no comércio, os segundos, especialmente através dos jesuítas e
dos franciscanos, também intentavam instituir aldeamentos missionários com esses indígenas
(ROCHA, 2017b; eROCHA 2018).
Como a disputa culminou na luta armada mencionada, as duas Coroas – tendo em mente
os conflitos ocorridos no continente Europeu que gerariam a Guerra da Sucessão de Espanha
(1701-1714) – optaram por remediar a questão pela via diplomática. O resultado das negociações,
que envolvera intensos debates entre embaixadores e diplomatas de ambas as partes, fora o
Tratado de Utrecht, que, assinado em 1713, concedia o Cabo Norte de uma vez por todas à Coroa


Professor Doutor da Universidade do Estado do Amazonas. A pesquisa conta com o financiamento do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
425
portuguesa e proibia o comércio francês na região246. Num desses debates, ocorrido no ano de
1699, o conselheiro português Roque Monteiro Paim apresentara o que veio a ser, nos anos
subsequentes, uma das principais justificativas para a consolidação das posses coloniais lusitanas
na América, isto é, as ideias de “domínio” – títulos legais referentes a unidades administrativas
concedidos por um estado moderno europeu, como, por exemplo, capitanias reais ou donatariais
– e “posse” – a ocupação de fato através, sobretudo, da expansão da fé católica aos índios247.
Tendo em mente que, não obstante a assinatura do Tratado de Utrecht, as nações indígenas do
Cabo Norte, Ilha de Joanes e circunvizinhanças continuaram a comerciar com os franceses
durante toda a primeira metade do século XVIII, especialmente os índios aruãs, esses ideais eram
por vezes reiterados. A fala de um frei, escrita no calor desses acontecimentos, é clara nesse
sentido:
Não basta para constituir título de posse nas conquistas, nem para adquirir direito a elas comerciar
com os naturais chegando a seus portos, é necessário ocupá-los e introduzir por eles a pregação do
Evangelho que é o fim com que os príncipes católicos podem justamente senhorear as terras do
gentio; e faltando aos franceses esta circunstância com que se anteciparam os portugueses por que
já pelos anos de 1615 e 1616 contendiam no Cabo Norte com os holandeses, e ingleses, presidindo
(sic.) as fortificações de que os lançavam, e estabelecendo missões por aquele sertão. [...]
Estas concessões de El Rey de França [companhias de comércio para atuar de Caiena à foz do rio
Amazonas] foram muito posteriores a que temos referido que El Rei católico fez ao governador
Bento Maciel Parente [em 1636] que por estes tempos já estava de posse de toda a capitania do
Cabo do Norte pelo distrito determinado no rio Vicente Pinson ou Oiapoque, governando as nações
daquele sertão, fazendo provimentos por suas patentes aos principais, capitães e mais postos em
ordem ao governo militar e político como ainda de presente costumão observar os governadores
daquele Estado, sem que os franceses não cá (sic.) intentassem povoar nem tomar posse das terras
desta capitania [...]. (AHU: cx. 12, doc. 1108)

Observe que, segundo o frei, a criação de um oficialato – por via da concessão da carta
patente – cumpria as duas funções descritas por Monteiro Paim. Consolidava o chamado
“domínio”, no caso, um aldeamento missionário enquanto unidade jurídica integrante de uma
determinada capitania. Em outras palavras, com o oficialato, o aldeamento passava a ser uma

246
Antes deste, em 1700, fora assinado um tratado que instituía o Cabo Norte como área neutra. O Tratado de
Utrecht, portanto, representava a resolução desse impasse.
247
“O domínio e a posse tem suas diferenças, que se unem em um só sentido. O domínio requer título, e não pode
haver mais justo que o que tem a Coroa de Portugal em todas as terras do Brasil, nas quais se compreende sempre o
Maranhão, como fica dito e adiante se mostrará. A posse consiste no ânimo e no fato com que se possui, e esta teve
sempre igualmente no mesmo Estado do Brasil esta Coroa, mostrando-se o ânimo de possuir pela incessante
diligência com que foi descobrindo e povoando terras, e domesticando os gentios, e exercitando a posse pelos
mesmos atos com que tinha adquirido o domínio, pondo marcos e fazendo divisões das mesmas terras, doando umas
e senhoreando todas; estimando e procurando sobretudo a redução das almas dos mesmos gentios ao grêmio da
igreja, e fundando sempre sobre esta obrigação do zelo da fé e da salvação das almas os primeiros mais fortes e
seguros alicerces das suas fortalezas” (REIS, 1993: 111-112).
426
instituição legalmente estabelecida por um estado moderno europeu. Por outro lado, eram
encarados como a materialização de uma comunidade católica estável e sedentária, ou seja, além
do “domínio”, constituía a “posse”. Portanto, o objeto deste ensaio é, justamente, os aldeamentos
nos quais habitavam os oficiais indígenas do Estado do Maranhão e Grão-Pará que receberam
cartas patentes durante a segunda metade do século XVIII. Esse Estado, cabe informar, constituía
o “domínio” referente à Amazonas Portuguesa, que, além de capitanias donatariais, comportava
as capitanias reais do Pará, Maranhão e Piauí. Do ponto de vista metodológico, é importante
informar que, primeiramente, identificamos as patentes concedidas aos índios (fonte primária
localizada no Arquivo Público do Estado do Pará) para, em seguida, levantar dados (a partir de
bibliografia específica) sobre os aldeamentos os quais, conforme os textos das cartas patentes,
pertenciam esses oficiais. Nossa hipótese afirma que a conjugação entre o contexto amazônico –
marcado pelas ameaças nas fronteiras com os franceses (Cabo Norte), holandeses (rios Negro e
Branco) e espanhóis (rio Solimões) – e as características gerais próprias dos mencionados
aldeamentos fundamentam a estratégia portuguesa referida (assentada nos princípios do
“domínio” e da “posse”). Nesse sentido, dentre as características intrínsecas aos aldeamentos em
estudo, destacamos: 1) estavam localizados em conformidade com o contexto fronteiriço
referido; 2) longevidade no tempo; 3) e, por fim, as nações dos índios aldeados eram elementos
estruturantes importantes. É claro que essa dependência frente aos indígenas concedia aos
mesmos intensa margem de manobra e, mesmo, alta possibilidade de barganha. Ou seja,
lembrando o alerta de Regina Celestino de Almeida sobre o Rio de Janeiro colonial, os
aldeamentos eram, também, “espaços dos índios” (ALMEIDA, 2003:119). Provavelmente, a
terceira característica acima apresentada seja reflexo deste fato, mas, devido ao reduzido espaço
destinado a este ensaio, essa questão será melhor desenvolvida em outro estudo – ainda que
referida no presente em breves momentos. Nas páginas que se seguem, enquanto principal
objetivo deste artigo, passaremos a descrever essas características.

Aldeamentos indígenas e fronteiras amazônicas


Em outro estudo, demonstramos que o estado português procurou integrar as lideranças
ou os chefes indígenas do Estado do Maranhão e Grão-Pará, enquanto vassalos cristãos do
monarca lusitano, ao aparato burocrático típico de uma instituição local de comando, prestígio,
administração e, enfim, poder: isto é, à semelhança do oficialato das ordenanças, milícias locais
427
não deslocáveis248, recebiam a patente dos governadores que, teoricamente, estava sujeita à
confirmação régia para a sua efetivação. Cabe lembrar que, também chamada de nobreza da terra,
as elites locais, por política própria e normatização da monarquia, tendiam a concentrar os cargos
oficiais das ordenanças nas “principais” famílias locais. Observamos também que o texto das
cartas patentes concedidas aos indígenas, em muitos casos, vinculavam diretamente o oficial
nomeado à sua vila de origem e, em algumas situações, destacavam o parentesco com outros
oficiais – por vezes, constituindo verdadeiras linhagens. Outro ponto de suma importância para o
entendimento da concessão dessas patentes, também relacionado às elites portuguesas (e à
sociedade lusa como um todo), era a sua condição de remuneração por serviços prestados pelo
oficial e/ou sua família – qualidade explicitamente expressa nas patentes (ROCHA, 2017a).
Referimo-nos à um total de 62 patentes relativas a 27 aldeamentos249.
Se observamos a localização desses aldeamentos, conforme o mapa apresentado por John
Hemming (HEMMING, 2007: 30-31), concluiremos que os mesmos ocupavam as principais
regiões fronteiriças, que, por sua vez, estavam guarnecidas por fortes ou fortalezas construídas, a
maior parte, no final do século XVII – Gurupá, Rio Negro, Paru, Pauxis e Tapajós. Assim, em
sua maioria, correspondiam a uma faixa que percorre o rio Amazonas, por vezes penetrando
levemente os seus afluentes mais importantes, entre Belém (capital da capitania do Pará) e o
encontro dos rios Negro e Solimões – localização do forte do Rio Negro. As maiores
concentrações desses aldeamentos estavam localizadas em dois espaços: as circunvizinhanças da
Ilha de Joanes (nas proximidades, no seu entorno e/ou na própria ilha) e no baixo Amazonas, isto
é, próximo ao referido forte do Rio Negro. Assim, do total correspondente a 27 aldeamentos,
nada menos do que 18 ou 19 – isto é, cerca de 2/3 – estavam assentados nas duas localidades
referidas. A região anexa à Ilha de Joanes compreendia a grande maioria, comportando 14, ou
seja, pouco mais do que a metade do total. Os aldeamentos localizados entre esses dois extremos
(arredores da Ilha de Joanes e proximidades do forte do Rio Negro), cerca de 4 ou 5, cumpriam a

248
O deslocamento era possível, somente, em casos excepcionais.
249
Patentes registradas (cópias) nos códices Livro de Sesmarias, localizados no Arquivo Público do Estado do Pará
(doravante APEP, LS): livro 3, f. 147v. e 148; livro 4, f. 83v., 105 e 107; livro 5, f. 164; livro 6, f. 43, 101, 102,
103v., 104, 114v., 133v., 135v., 149, 159v., 170v., 173v. 181v.; e livro 7, f. 9, 22v., 28, 29, 40, 42, 45v., 99v., 129,
132, 137v., 145, 163v. e 165. As informações relativas aos aldeamentos estão baseadas nas obras de Serafim Leite,
Venâncio Wileke, Arthur Cézar Ferreira Reis, David Sweet e Roberto Zahluth de Carvalho Jr. (LEITE, 2000: 235-
366; WILEKE, 1978: 146-150; REIS, 1997: 11-49; SWEET, 1974: 288-326; e CARVALHO JR., 2015: 136-137).
428
importante função de entreposto. Em síntese, 1 aldeamento estava localizado no Piauí, 1 ou 2 no
Maranhão e o restante, 24 ou 25, no Pará.250
Esses espaços eram reconhecidamente ameaçadas fronteiras com outras potências
europeias. Nesse sentido, desde finais do século XVII, o jesuíta Samuel Fritz, a serviço da coroa
espanhola, iniciara um trabalho missionários que, repelido pelos portugueses nas três primeiras
década do século XVIII, alcançara o médio Solimões (HEMMING, 2007: 615-625). Quanto ao
rio Negro, sabe-se que os índios manaus comerciavam com os holandeses do Suriname através de
intermediários indígenas – por via do rio Branco (afluente do Negro) – desde finais dos
seiscentos. A suposta ameaça holandesa e a preação dos manaus à indígenas aliados dos
portugueses – na busca de escravos a serem vendidos aos batavos – foram a justificativa, por
parte dos lusitanos, para o início de uma “guerra justa” contra esses índios que, ocorrida na
década de 1720, findara em 1730 (HEMMING, 2007: 339-645; e FARAGE, 1991: 61-68). Por
fim, conforme descrito na introdução deste ensaio, a Ilha de Joanes e arredores, incluindo o Cabo
Norte, era ameaçada desde a década de 1670 pela presença dos franceses de Caiena. Apesar da
assinatura do Tratado de Utrecht (1713), durante principalmente as décadas de 1720 e 1730, a
fronteira estabelecida por aquele tratado fora constantemente transpassada por franceses,
portugueses, negros, índios, dentre outros. Um percurso comum era a fuga dos escravos negros
de Caiena ao Pará e a passagem dos índios vassalos lusos, aldeados na Ilha de Joanes, Cabo Norte
e circunvizinhanças, para o lado francês no intuito de migrar e/ou comerciar (resgates) (ROCHA,
2017b). Curiosamente, todas as 62 patentes em estudo foram concedidas nas décadas de 1720 e
1730, isto é, nesses tempos de intensos conflitos nas fronteiras (ver as referências citadas na nota
4). O governador Alexandre de Sousa Freire, em 1731, elaborara uma patente cujo nome do
oficial estava em branco, ausência a ser preenchida pelo capitão do forte do Rio Negro para
premiar o índio que descesse outros, se submetesse à vassalagem do monarca português, aceitasse
um missionário e efetuasse comercio de cativos com os lusos (APEP: LS 6, f. 101). Em 1733, o
índio Felipe recebera a patente de sargento mor do aldeamento de Urubuquara (localizada no
médio Amazonas) por ter servido muitos anos nas tropas de guerra “que tem ido ao gentio
bárbaro” e, também, por estar atuando na tropa comandada pelo capitão Belchior Mendes de

250
Informações sobre os aldeamentos conforme a bibliografia citada na nota anterior. A dúvida existente consiste na
localização exata do aldeamento de S. Cristóvão, pois ora é identificado no Maranhão (Alcântara), ora no rio
Solimões.
429
Moraes. É possível, portanto, que tenha atuado na guerra contra os manaus, pois o capitão
mencionado fora o responsável pela derrota desses índios (APEP: LS 6, f. 133v.).
Além dessa primeira característica, referente às questões geopolíticas, uma segunda diz
respeito à longevidade desses aldeamentos. Quase a totalidade fora estabelecida nas últimas
décadas do século XVII e, nos anos 1750, posteriormente foram elevados à vilas ou lugares. Em
outras palavras, boa parte foi secularizada e transformada em municípios (com câmara
municipal), e, cabe informar, ainda hoje são cidades dos estados do Pará e Amazonas. Portanto,
para 22 aldeamentos, excluindo-se 5 para os quais não possuímos informações, 20 ou 21 foram
fundados no século XVII e, do total de 27 mencionados, 18 atualmente são municípios num dos
estados referidos (nota 4). Nesse sentido, apesar das dificuldades para manter a estabilidade
desses aldeamentos, visto que não eram raras as fugas e as transferências dessas comunidades
para outros territórios, a maioria conseguiu estabelecer considerável constância no espaço e no
tempo. Do ponto de vista demográfico, observamos que tais povoados comportavam boa parte da
população de todo o Estado e, especialmente, poderiam representar a principal força armada da
Amazônia Portuguesa (nota 4). Em síntese, tratavam-se de aldeamentos que, não obstante as
dificuldades existentes, conseguiram se manter longevos e relativamente populosos. Talvez a
noção de territorialidade nos ajude a entender esse fenômeno. Segundo João Pacheco de Oliveira,
a territorialidade correspondia ao estabelecimento sedentário por ação exterior de uma população
que se via autóctone, ainda que tal percepção estivesse fundamentada em questões cosmológicas,
e estabelecia uma relação de identidade com esse espaço. Conforme o autor, escrevendo sobre os
índios do nordeste, o primeiro momento desse processo fora, justamente, a formação de
aldeamentos missionários que, após a segunda metade do século XVIII, num segundo momento
resultara nas chamadas vilas ou lugares pombalinos – a secularização acima referida
(OLIVEIRA, 1997: 23-24).

Oficiais e nações indígenas


Quanto às nações indígenas, além do vínculo com o aldeamento e o serviço prestado (pelo
patenteado e/ou sua família), o texto das cartas patentes, não raro, mencionava a nação de
pertença do oficial. Assim sendo, daquele total de 62 patentes levantadas, 28 mencionavam a
nação do patenteado (quase metade), por vezes indicando claramente o etnônimo, por vezes
somente informando que o oficial pertencia a uma nação não identificada. Assim, percebe-se que
430
a carta patente visava consolidar – isto é, legitimar através da burocracia estatal – a pertença
étnica dos oficiais. Ao que parece, no contexto colonial, não se podia ignorar essa forma básica
de organização sócio-política. Portanto, esses dados indicam a importância nada desprezível da
nação como elemento estruturante dos aldeamentos. A característica multiétnica é dominante,
pois, em relação aos povoados em estudo, corresponde a quase 2/3 dos casos – do total de 23
(para 4 não possuímos informações), 14 ou 15 eram multiétnicos, enquanto que 8 ou 9 possuíam
uma só nação (nota 4)251. A essa altura da pesquisa, ainda em andamento, não encontramos
referências a uma política indigenista preocupada com a gerência das nações no interior dos
aldeamentos. Sobre a questão, os dados podem nos levar a pensar que, à primeira vista, intentava-
se consolidar o poder de mando de um oficial sobre um dado aldeamento independente das várias
nações por ventura existentes, pois, das 62 arroladas (total), 48 patentes informavam que o oficial
estava relacionado à comunidade como um todo – ignorando-se uma possível divisão entre
nações – e somente 11 afirmavam que o patenteado comandaria uma nação específica (nota 4).
Contudo, apesar da ambiguidade por vezes apresentadas pelos textos das cartas patentes, se em
alguns momentos visava-se a consolidação de oficial que reunisse sob seu comando todas as
nações de um aldeamento multiétnico, em outros intentava-se distinguir nitidamente o comando
de um oficial sobre a sua nação de “origem” numa comunidade de mesma característica
(multiétnica). Assim, por exemplo, o principal Cabyvari, do aldeamento de Auauydâ (rio Nergo),
e o capitão Barnabé, do Igarapé Grande da Ilha de Joanes, foram nomeados como oficiais “dos da
sua nação” (respectivamente, caurabitana e aruã) (APEP: LS 6, f. 106; e LS 7, f. 145). Por outro
lado, Cipriano, da nação coxiará, foi provido como “principal da dita aldeia de S. Ana de
Guajaratuba [rio Negro] e dos aldeanos dela de qualquer nação que seja” (APEP: LS 6, f. 103v.).
Ora, esse último aldeamento era um daqueles que, ao que parece, comportava muitas nações
(CARVALHO JR., 2015: 260). A indistinção étnica forçada, talvez, poderia originar conflitos na
povoação. No caso de Itacuruçá (rio Xingu, próximo à Ilha de Joanes), cujas patentes do sargento
mor, ajudante, capitão e alferes não identificavam ou discriminavam as respectivas nações dos
seus oficiais apesar da condição altamente multiétnica do aldeamento, os conflitos entre os
indígenas explicavam os esforços dos jesuítas na criação de outros povoados no intuito de apartar
os disturbios. Ora, segundo a narrativa de Serafim Leite, motivaram os conflitos as diferenças
étnicas (LEITE, 2000: 350-353).

251
Existe uma dúvida se o aldeamento do Gurupá é ou não multiétnico.
431
A adoção das aspas no termo “origem” acima utilizado possui uma explicação. Sabe-se
que, tanto na América Espanhola quanto na América Portuguesa, muitas nações eram criações do
contexto colonial, o que pode ser explicado pelas noções de etnogênese – a emergência física,
cultural e/ou identitária de um novo grupo étnico – e etnificação – quando o colonizador elegia
um etnônimo, normalmente um termo indígena que ilustrava relações de conflito ou aliança, para
identificar um grupo étnico (que, não raro, apropriava-se do nome que lhe fora imputado)
(BOCARRA, 2005; WHITEHEAD, 1990; MONTEIRO, 2007; e ALMEIDA, 2003: 56-72). No
que se refere ao objeto do nosso estudo, são os casos dos aruaques e dos nheengaíbas. O nome
aruaque é identificado em 7 patentes – 4 no aldeamento de Viramucu (rio Jarí, próximo ao
Gurupá/Ilha de Joanes), 2 no de Guaianazes (Ilha de Joanes) e 1 no de Guatumã (rio Negro) (nota
4). Contudo, conforme os estudos de Neil Whitehead e Nádia Farage, o termo aruaque, na
verdade, identificava variadas nações indígenas aglutinadas com esse único nome no ambiente
colonial (WHITEDEAD, 1990: 146-148; e FARAGE, 1991: 101-109). Já o nome nheengaíba,
por sua vez, deve ser entendido em oposição aos tupis, pois a língua geral (derivada dos dialetos
tupis) o identificava como um grupo de fala “travada”, no qual, na verdade, integravam ao menos
7 nações (ROCHA, 2018). O aldeamento de Guaricurú, localizado no continente em frente à Ilha
de Joanes, era também chamado de aldeia dos nheengaíbas por comportar, em sua formação,
índios dessa nação. Em diversas outras povoações encontramos índios identificados como
pertencentes a uma nação nheengaíba: Urucará (em frente à Guaicuru), Conceição do Igarapé
Grande da Ilha de Joanes, Aldeia dos Bocas (próximo à mesma ilha) e, talvez, Camutá (rio
Xingu, nas circunvizinhanças da mesma região) (nota 4). Curiosamente, conforme o mapa etno-
histórico de Curt Ninuendajú, os nheengaíbas, com as 7 nações mencionadas, pertenciam ao
tronco linguístico aruaque. Conforme o autor, integrava esse tronco outras diversas nações
(NIMUENDAJÚ, 1981), que, assim como os nheengaíbas, eram oriundas das regiões nas quais
foram respectivamente aldeadas (nota 4). Em outras palavras, não foram objetos de grandes
migrações (mas, em alguns casos, pequenos deslocamentos). De forma geral, os aruaques,
predominavam nos aldeamentos em estudo (NIMUENDAJÚ, 1981).

Considerações finais
Em 1729, diante do generalizado, ilegal e intenso trânsito que desrespeitava a fronteira
estabelecida pelo Tratado de Utrecht, o governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará, João da
432
Maia da Gama, enviava carta ao monarca relatando a situação. Do ponto de vista dos lusitanos, a
preocupação principal girava em torno dos aruãs, grupo nheengaíba/aruaque em parte aldeado a
partir de meados do século XVII na região onde “originalmente” habitavam – Ilha de Joanes,
Cabo Norte e arredores. Muitos desses índios, apesar da condição de vassalos portugueses,
insistiam em comerciar com os franceses (resgates) – alguns capturando indígenas
aldeados/vassalos portugueses e se dirigindo a Caiena para tal. O governador português
demonstrava inquietação especial com um determinado índio: Jaraú, que, antigo morador de um
aldeamento português localizado na ilha de Caviana (entre o Cabo Norte e a Ilha de Joanes),
possuía patente concedida pelo governador anterior (não identificada em nosso levantamento) e
praticava tais razias no intuito de obter cativos para comerciar com os franceses (AHU: cx. 12,
doc. 1108). Ao que parece, a preocupação do governador remetia às estratégias portuguesas de
conquista a partir dos princípios de “domínio” e “posse”: estabelecer um aldeamento estável e
sedentário para garantir, de fato, o território colonial diante das ameaças “estrangeiras”. As
características dos aldeamentos em estudo (aqueles nos quais um ou mais índios seus habitantes
receberam patentes), localização geográfica específica, longevidade e aproveitamento da nação
como estrutura organizacional básica, revelam claramente este intento. Mas o caso com o qual
fechamos este ensaio demonstra, também, a opção e a capacidade de barganha indígena que,
acreditamos, eram potencializadas pelo contexto fronteiriço explanado.

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434
“ACEITAM-SE COSTURAS DE SENHORAS’’: O TRABALHO DE MULHERES
MODISTAS NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX.
RAFAEL DA SILVA CURINTIMA*

Introdução

O sol escaldante de uma primavera amazônica anunciava o inicio da nova temporada para
o estilo da cidade de Manaus, trajava agora os modelos no século XX. Assim, desde meados de
1890, a cidade começou a passar pela tendência de reconstrução que advinha da economia do
látex.Com isso, é importante pensar numa peça de dupla face, no qual o surto urbanizador trouxe
de um lado edifícios que foram erguidos para atender um novo público que transitava pela urbe e
do outro um processo de exclusão da população indígena. De acordo com Francisco Jorge dos
Santos, com esse processo de metamorfose, uma verdadeira febre de construção tomou conta da
cidade, varrendo tudo aquilo que poderia evocar os povos indígenas. A cidade, antes um espaço
comum, modifica-se e estratifica-se segundo uma nova configuração: a de classe (SANTOS,
2000: 10).

Nesse contexto de classe, é possível apontar a existência de famílias tradicionais


ligadas a terra, mas se tratava de uma elite em formação recente(DAOU, 2000: 9) então na região
apresentou-se uma configuração diferenciada de concentração de poder em segmentos urbanos,
de comerciantes e profissionais liberais por exemplo, extrativistas e aviadores com papel
importante de controle da cidade, transvestindo as ideias em marcha da conjuntura estrangeira, a
modernidade , vão ditar um novo estilo de vida, produzindo grandes alterações, não só materiais,
como também espirituais e culturais (DIAS, 2007: 28)
As modificações das últimas décadas do século XIX vão ser responsáveis pela
criação de dois elementos complementares de movimentação da economia local. Na observação
de Santos, o setor industrial e comercial:
atesta que além dessas melhorias de infraestrutura básica na área centro da cidade,
contava-se também como um incipiente parque industrial, dedicando à produção de
instrumentos de trabalho utilizados nos seringais e de bens de consumo imediato, tais
como: porongas, lamparinas, baldes e tigelas para coleta do leite da seringueira, malas,
vassouras de piaçaba, cigarros, confecções de roupas, sabão, vela, água mineral e
cerveja. SANTOS, 2010: 233)

*
Graduando em História pela universidade federal do Amazonas.
435
Esses produtos são responsáveis pela manutenção dos seringais e da cidade. Nesse
sentido, esse abastecimento movimentará uma cadeia de comercialização da borracha. A cidade
será responsável por abrigar as casas importadoras e exportadoras, transformando em lugar de
tráfego de mercadorias, mas o papel fundamental da economia será das casas aviadoras. Então
nesse primeiro momento é perceptível uma primeira expansão do comércio como pilar de
sustentação da principal fonte de renda da capital, no trabalho de Kleber Barbosa Moura é
possível observar o seguinte quadro:
Em geral, a rede comercial funcionava da seguinte forma: o seringueiro extrai o látex e o
vendia ao patrão, que podia ser o seringalista (dono do seringal ligado ao comércio
exportador) ou diretamente ao representante de uma casa aviadora, que podia ser um
negociador. Fazia parte dessa rede comercial o “regatão”, vendedor itinerante que
abastecia os ribeirinhos com produtos diversos necessários à subsistência. (MOURA,
2013: 24-25)

À medida que o espaço urbano vai se transformando e o látex ganhando mais valorização
no mercado internacional a cidade se torna uma grande loja com vitrines encantadoras, atraindo
muitos imigrantes. Esses novos atores são atuar em vários setores do tecido urbano, é importante
dizer que a chegada desses contingentes de imigrantes nacionais e estrangeiros foi o fator
decisivo para ampliação das atividades no comércio (DIAS, 2007: 29). e também, para atender as
varias demandas dos setores urbanos.
Nesse pano de fundo, ocorre um segundo momento desse comércio urbano, originando
uma ramificação para o setor do comércio varejista. O comércio varejista vinculando-se á
necessidade de abastecimento dos seringais alcançou grande expansão cujo processo dentro da
área central da cidade foi controlado através dos códigos de postura municipais (PINHEIRO,
2015).

No decreto nº 5, de 10 de janeiro de 1890 é possível atestar a participação do município


através da burocratização da abertura de novas casas de venda que vão se instalando, como se
percebe o artigo seguinte:
Art. 86- ninguém poderá abrir ou conservar abertas casas de comércios, fábrica,
oficinas, boticas, drogarias, casas de saúde, açougues, padarias, hotéis, casas de jogos
não proibidos, escritórios comerciais, armazéns, trapiches de deposito ou outro
qualquer estabelecimento sem alvará de licença da Municipalidade, o qual será
passado a vista de documentos que provem terem sidos pagos os impostos gerais,
provinciais e municipais do exercício em que tiver de ser dado a licença- o infrator
incorrerá na multa de dez mil réis ou dois dias de prisão e o dobro na
reincidência.(Decreto nº 5, de 10 de janeiro de 1890)

436
Na urbe são perceptíveis no código de postura acima dois elementos: A datação do
decreto que é promulgado no período de embelezamento da cidade, por isso deveria ter um
controle dessas construções, e a valor dessas casas para aumentar a renda do município através
dos impostos advindos do alvará de funcionamento e das multas no total de dez mil réis para o
infrator que não possuir o documento.
À medida que a cidade vai ganhando um novo aspecto de capital da borracha, será o setor
varejista o principal responsável pelo abastecimento de familiares de seringalistas, comerciantes e
trabalhadores que habitam na capital. Por volta do ano 1900 ocorre uma proliferação de hábitos
estrangeiro assim novas casas comerciais vão inaugurando e colocavam no mercado os mais
diferentes produtos lançados na Europa (DIAS, 2007: 36).

Além dessas, o novo século ocasionou uma reconfiguração para a situação feminina,
abrindo espaço para atuação no mundo do trabalho para algumas mulheres e mudando os modos
de trabalho de outras. O presente artigo tem como objetivo apresentar a investigação acerca da
inserção de mulheres no mundo do trabalho, através da profissão de modistas no decorrer das
primeiras décadas do século XX.

A cidade vestindo o consumo

Em 1900, as transformações da cidade trouxeram uma nova roupagem, não somente no


aspecto arquitetônico, mas no processo de ressignificação, que também atingiu os costumes do
tecido social no final do século XIX e início do XX, períodoque habitualmente era chamado de
belle Époque. Se antes os moradores da província compartilhavam de costumes mais simples, de
uma população dispersa que vivia nas áreas de floresta, a transição dos séculos trouxe uma
efervescência das mudanças, abriu-se espaço para prática de novos costumes de uma população
urbana. Assim, ocorreu um aumento e a diversificação desses habitantes, se em 1852 Manaus
contava com uma população de 8.500 habitantes, em 1890 tem sua população ampliada para
50.300, sendo o processo migratório o principal responsável por este crescimento populacional
(DIAS, 2007)
A nova feição da cidade coloca de lado os costumes de origem indígena vista como
primitiva, descrito outrora, e a chegada dos contingentes de imigrantes implicavam na atuação em
diversas áreas, principalmente como força de trabalho na construção civil, então esses atuantes

437
vão precisar consumir produtos para abastecimento básico de sobrevivência abrindo espaço para
mentalidade do hábito de consumo.
Assim, se existe uma variedade populacional, do modo que o sistema seja complexo de
vivência, e cada grupo vai resinificar esse espaço de acordo com sua cultura de origem, mas
significa que não houvesse alguns costumes coletivos dentro da população, advindo da corrida
pela modernização da cidade. Dessa maneira, é necessária uma análise dos “responsáveis” os
controladores do poder local. Diferente do Pará que existe uma elite tradicional oriunda da
agropecuária, então mais antiga, na região ocorreu uma peculiaridade, no Amazonas, inexistiam
famílias tradicionalmente ligada à terra, pois se tratava de uma elite de formação recente, mas
predominava os segmentos urbanos, de comerciantes e profissionais liberais. (DAOU, 2000: 9)
Se antes existisse uma classe consumindo produtos de abastecimento simples, logo
mudará, pois sem uma elite tradicional com costumes do campo, esses setores de dominação
estão em contato constante com os ideais da Europa e o mundo da modernidade, vão transformar
e dão novos significados, deste modo os comerciantes começam a ter dimensão do habito de
consumo, o abastecimento passar significar meio de produção; a ambição passa a conviver com
oportunidades de lucro
Acompanhando o processo de transformação da cidade, os investimentos vão se
diversificando. Novas casas comerciais colocam no mercado os mais diferentes produtos
lançados na Europa, que atendem à demanda de uma cama da população representada
pelas famílias dos seringalistas, dos comerciantes e trabalhadores que residem na cidade.
(DIAS, 2007, p. 38)

Assim, a abertura dessas novas lojas na cidade indica primeiramente essa introdução
massiva de costumes europeus travestidos através dos variados produtos encontrados nesses
estabelecimentos. Além do mais, a cultura Francesa é a mais difundida dentro do tecido social
sendo chamada até de “Paris dos trópicos” pelos viajantes que passaram na região na época. Em
segundo, esse aumento de artigos assinalam um crescimento nas vendas, logo havia uma
demanda forte, assim aquela sociedade dispersa torna-se numa cidade de consumo procurando a
todo custo manter aparência fazendo jus ao processo de urbanização em prol do progresso.

A nova configuração obedeceu aos ditames do capital internacional, representado por


uma elite preocupada em extrair o máximo da produção do látex e estabelecer aqui um
centro reprodutor da cultura e dos costumes da sociedade europeia. Por esse motivo, essa
nova configuração urbana foi denominada de “Paris dos trópicos”, numa alusão à cidade
de Paris, considerada na época um símbolo do progresso e da civilização (MOURA,
2013: 25)

438
Diante disso nos parece que essa busca pela reprodução do modo de vida Parisiense
ocasionou essa alteração do comportamento, junto da estabilização internacional da borracha,
sendo possível identificar-nos mais diversos aspectos do corpo social.

Costurando um espaço: Mulheres Modistas e o papel na cidade

O que seria modista? Segundo o dicionário da língua Portuguesa de 1968, modista seria “
mulher que tem por oficio fazer vestuário de senhoras e crianças ou que dirige feitura deles”. A
presença das modistas dentro do Brasil é marcada antes do século XX, pois o segundo o famoso
Artista aquarelista Jean Baptiste Debret que chegou ao Brasil junto da Missão Artística Francesa
em 1817 descreve várias atividades de mulheres negras livres na cidade do rio de janeiro,
principalmente como operárias nas lojas de modistas ou de costureiras francesas “titulo esse que
lhe permite conseguir trabalho por conta própria nas casas, trajando-se com rebuscamento e
decências” (MOURA, 2004: 288) É no final do período imperial que ocorre um aumento
significativo da atuação delas, junto da entrada de estrangeiros, principalmente dos advindos da
Francesa, elas vão instala-se em grande maioria no Rio de Janeiro, capital do Brasil, centro do
imaginário Europeu que enraizou no final do século XIX.

Nas primeiras décadas do século XX é possível apontar dentro da cidade de Manaus o


papel importante delas para harmonia entre os habitantes e a nova feição arquitetônica, elas são
responsáveis primeiramente: atender a necessidade básica do vestir-se, recebendo encomendas de
todas as classes da sociedade, além do mais, elas são bastante requisitadas principalmente por
damas e mademoiselles da elite Manauense para recriar modelos da moda. É preciso entender à
moda como pilar da modernidade, em primeiro por conta dos padrões de beleza da época cuja
origem era advinda da Europa. Segundo, à moda carrega a função de distinção dos gêneros.
Assim, as roupas diferenciadas de homens e mulheres eram consequências da divisão de tarefas e
das possibilidades destinadas a cada gênero, principalmente em uma sociedade com um passado
fortemente patriarcal, como a brasileira (FEIJÃO, 2011).

Por volta de 1908 é possível identificar através das fontes um grupo de mulheres modistas
atuando na área central da cidade, principalmente na rua Joaquim sarmento próxima da rua
municipal (avenida central da cidade), elas atuam junto do grupo de imigrantes que formavam o
439
comércio retalhista da região, não temos muitas informações sobre a origem das modistas, mas
sabemos que elas conquistaram seu espaço e acessão socioeconômica, administrando seus
ateliers.

O papel das modistas era de atender apenas o público feminino, conhecimento dos
últimos modelos lançados no exterior, habilidades com desenhos, modelagem, cortes e
principalmente do manuseou das fazendas (tecidos) procurando saber qual tecido próprio para
cada vestido. Essas mulheres contavam com auxílio de costureiras cujo exercício era realizar era
os cortes e costuras. A cadeia de produção funcionava da seguinte forma: A cliente entrava em
contato com a modista solicitando uma peça da moda em alta no momento, a modista era
responsável por está por dentro dos lançamentos da estação principalmente com os últimos
lançamentos de paris, o próximo estágio era a confecção feita pelas costureiras, recebimento da
cliente. Deste modo, temos uma pequena indústria de confecção na cidade. Esse processo é
necessário por conta da ausência de casas de moda vendendo peças a prontas entrega e roupas
sendo produzidas em grande escala só havia roupas feitas por encomenda, Apenas nos anos de
1910 haverá uma abertura maior para entrada de casas de comercio de roupas prontas, pelo
menos para publico feminino.

A comercialização de roupas prontas teve início nas décadas de 1910 a 1940, mas o que se via
eram roupas feitas por modistas, alfaiates ou costureiras que serviam a um público de luxo, que
tinha acesso a tecidos importados, e do outro lado, a uma população que vestia roupas feitas em
grande escala, com tecidos rudimentares e padronizados (FUJITA; JORENTE,2015).

Os anuários e a moda

Nesse sentido, os anuários e indicadores econômicos são documentos importantes para


identificação do grupo de mulheres que atuavam neste oficio, existindo um total de quatro
estabelecimentos deste segmento atuando na cidade. São eles: O Atelier Palmyra, Madame
Marietta, Adolfina e Etelvina Britto. Sem adentrar detalhadamente em cada atelier,
apresentaremos, o caso do Atelier Palmyra, cuja proprietária era Palmyra Santos. Primeiramente,
em 1909, estava localizado na rua Joaquim Sarmento número 6, mas em novembro do mesmo
ano, mudou de endereço para Rua Henrique Martins nº 24 (Jornal do Commercio, 03/11/1909). A
proprietária foi apontada como “da conhecida” pela imprensa, isso mostra como Palmyra Santos
já atuava algum tempo na cidade e já era reconhecida pelas consumidoras da região. Segundo a

440
propaganda publicada no indicador ilustrado de 1910, o seu atelier recebia novidades por todos os
vapores, bem como os produtos oferecidos as clientes: vestidos e chapéus. Na imagem publicada
é possível identificar uma grande quantidade de chapéus e duas sombrinhas no fundo, elemento
importante da elegância feminina da época (figura 1).
Outro ponto importante é a oportunidade de empregos proporcionados por esses ateliers
para muitas costureiras. Deste modo, no caso de Palmyra é possível identificar através da fonte
um total de seis funcionarias todas devidamente uniformizadas: Saia reta com babado na barra,
corpinho com babado nos ombros, gola alta e broche em formato de flor na altura de busto,
ambas em cor branca, exceto a mulher sentada que possivelmente seja a proprietária dona
Palmyra Santo, trajando um vestido diferenciado com tecido estampado, três camadas de babados
na barra da saia e manga bufante. Além do mais, essas trabalhadoras são de identidade étnico-
racial: eram Negras, indígenas, mestiças e brancas.

Figura 1: Atelier Palmyra (1909)

Fonte: Indicador Ilustrado do Estado do Amazonas, 1910.

Considerações finais: “Aceitam-se costuras de senhoras”

A rua henrique martins n. 68, aceitam-se costuras de senhoras, meninos e meninas,


trabalha-se com perfeição, por figurino e preço razoaveis.acceitam-se também meninas
para ensinar prendas, costura e primeiras lettras.

441
Segundo o anúncio retirado do Folha do norte do domingo dia 12 de julho de 1906 é
possível pontuar alguns serviços oferecidos pelas mulheres modistas dentro da cidade, O
acabamento ideal para finalização deste artigo. Na medida que a cidade passa por um acelerado
processo de urbanização e alterações de hábitos e costumes à moda é o primeiro elemento
modificado para adequar-se ao novo século, bem como os agentes integrantes do tecidos social
precisam vestir-se de acorda com a norma. O papel dessas mulheres será crucial neste contexto
seja para produzir uma peça para um simples trabalhador, ou mês, um vestido de luxo para um
concerto de opera no teatro Amazonas.
Além do mais, o atelier é lugar da dimensão do feminino, lugar da magia, da
sobrevivência, e da resistência em lugar totalmente masculino. É o lugar atuar de várias maneiras
criando como modista ou costurando como costureira. A moda, um elemento da modernidade,
vista como uma futilidade do novo século, mas é equivocado e um tanto superficial uma analise
deste ponto de vista, afinal à moda como foi a pontada será a porta de entrada das mulheres no
mudo do trabalho.

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Indicador Illustrado do Estado do Amazonas, 1910.

443
HISTÓRIA ORAL E GÊNERO: IMIGRAÇÃO DE MULHERES CHINESAS EM
MANAUS 1980-2017

RAPHAELA MARTINS PEREIRA *

Este artigo é fruto de uma pesquisa de Iniciação Cientifica, e o objetivo do mesmo é


reconstruir as memórias das mulheres chinesas que migram para Manaus em busca de ampliar
seus horizontes e melhores condições de vida. Pois entendemos que o modo de migrar de
homens e mulheres é diferente, e com esse intuito nos baseamos nas fontes orais para resgatar
essas memórias, porém não descartamos as fontes de jornais que muito nos auxiliaram a
entender o processo de migração dessas mulheres.
No primeiro momento discutiremos a condição da China e quais fatores levaram os
chineses a migrarem para outros países. No segundo ponto refletiremos a cerca da concepção
do ser mulher na China, como a mulher chinesa é vista dentro da sociedade na qual ela está
inserida, visando apresentar a história que há por trás de séculos de tradição e costumes que
mantinham a margem a mulher chinesa. E em seguida debateremos em cima das fontes orais,
aproximando-se das vivencias das mulheres chinesas que migraram para Manaus.
De fato, a China vem ocupando um espaço maior na economia mundial, se tornando uma
grande exportadora, vários países importam seus produtos sejam eles eletrônicos ou artigos
diversos. O crescimento da economia chinesa se baseia em uma politica adotada a partir 1976
onde se instituiu as ``quatro modernizações``: agricultura, indústria, defesa e ciência e
tecnologia. Essas medidas impulsionaram o país tanto internamente quanto externamente,
promovendo um investimento internacional intenso a partir da década de 1990.

O estoque de capitais constitui-se, podemos dizer, como o ``pulo do gato`` para que a
China chegasse a ser hoje não apenas a segunda maior economia do mundo, atrás apenas
dos Estados Unidos, mas também o maior exportador e importador mundial. Ademais,
fomentando a entrada de capitais globais, a China estruturou uma indústria nacional que
passou a fabricar desde manufaturados simples, a produtos de alta tecnologia, como
carros, motos, computadores, celulares, com vistas a exportação. (BRITO & MACIEL,
2016)

*
Graduanda em Licenciatura em História na Universidade Federal do Amazonas
444
Essa abertura econômica para o exterior impulsiona os chineses a migrarem junto com
essas empresas ou se vinculando ao comércio de artigos diversos, o que importa é o fato de que
com um olhar para fora do país economicamente, ocasiona perspectivas e expectativas em
relação à mudança de um país com uma população superior a um bilhão de habitantes, onde a
procura de emprego é bem maior. O jornal Estado de São Paulo (2011) veiculou uma interessante
reportagem, que dizia que:“O Brasil é visto como a “bola da vez” por chineses em busca de um
novo país”.
Com o crescimento das exportações e visando cada vez mais lucro, a China em 2001 passou
a participar da Organização Mundial do Comércio, o que facilitou a implantação de empresas
chinesas em zonas industriais estratégicas no exterior. O governo influencia diretamente nos
processos de administração e financiamento da China em outros países.
Os investimentos chineses e o fluxo migratório são maior nas cidades do Rio de Janeiro e
em São Paulo, mas atualmente Manaus vem ganhando um olhar diferenciado nos dois âmbitos.
Em nossas pesquisas, embora não tenhamos encontrado dados estatísticos específicos acerca da
presença dos chineses em Manaus foi possível observar sua presença marcante no centro da
cidade. Várias lojas que constituem o comércio do Centro pertencem a chineses. Outro elemento
importante a ser notado é a presença de empresas chinesas que atraídas pela isenção fiscal
praticada em Manaus, via Zona Franca, tem impulsionado a vinda de muitos chineses para ocupar
cargos estratégicos. Segundo o “Portal da Amazônia”, três empresas chinesas devem abrir filiais
no Polo Industrial de Manaus no ano de 2014, as empresas Welling E GMCC (Guandong Midea
Toshiba Compressor Corporation), integrantes do Grupo Midea Carrier, e mais o Grupo Hisense
International CO. Ltda visam investir cerca de US$ 15 milhões, projetando cerca de 20 mil
empregos na capital amazonense.
No presente, o nosso olhar recai sobre as mulheres chinesas, pois entendemos também que
os sentidos de migrar são diferentes para homens e mulheres e desde nossas primeiras
observações pudemos perceber a presença significativa de mulheres que chegaram e ainda
chegam, seja acompanhando irmãos, pais, tios ou maridos ou mesmos sozinhas. E são justamente
as vivências dessas mulheres que nos impulsionou à pesquisa. Compreender como reconstroem
suas vidas, suas relações, como se adaptam a uma nova cultura, se elas impõem e como impõe
suas culturas. Através dessas mulheres chinesas na capital do Amazonas podem-se acessar as
suas memorias desde suas vidas na China até a vinda para Manaus, observando-se as dificuldades
445
de sobrevivência até a adequação de novos costumes e a procura de espaço em uma sociedade e
neste sentido, podemos também compreender a própria constituição das relações sociais em
Manaus.
A História do Tempo Presente nos possibilita ter um entendimento melhor acerca das
experiências das mulheres chinesas que migram/migraram para Manaus, como Marieta Ferreira
elucida que
Assim, a história do tempo presente constitui um lugar privilegiado para uma reflexão
sobre as modalidades e os mecanismos de incorporação do social pelos indivíduos de
uma mesma formação social. Do exposto, fica óbvia a contribuição da história oral para
atingir esses objetivos. (FERREIRA, 2000:122)

Seguindo essa perspectiva utilizamos da oralidade para dar maior visibilidade a essas
experiências. Entendemos que a memória possui várias dimensões. Assim, não é apenas o que
lembramos, mas o quê lembramos, porque lembramos e como lembramos. É preciso considerar
também os silêncios, os esquecimentos, e fundamentalmente pensar em sua dimensão coletiva, ou
seja, a memória é histórica e sofre oscilações em dados momentos. Como Michael Pollak enfatiza

A memória deve ser entendida também, ou, sobretudo, como um fenômeno coletivo e
social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações,
transformações, mudanças constantes. (POLLAK, 1989)

A história oral nos abra um leque de informações que não estão descritas nos
documentos oficiais, mas que não nos impede de consultá-los e analisa-los criticamente.
Janaina Amado aponta que

O uso sistemático do testemunho oral possibilita a história oral esclarecer trajetórias


individuais, eventos ou processos que as vezes não tem como entendidos ou elucidados
de outra forma: são depoimentos de analfabetos, rebeldes, mulheres, crianças,
miseráveis, prisioneiros, loucos. (AMADO)

Trazer a tona a histórias dessas mulheres que na sociedade chinesa foram deixadas de
lado, mostrar suas relações com o mundo. É resgatar a memorias dessas mulheres no
presente, para interpretar o passado.

446
Para compreendermos as relações que as mulheres chinesas compõem em Manaus é
necessário situar-se na história da mulher na China. Entendemos que a sociedade chinesa tem
tradições milenares culturalmente e socialmente. A mulher chinesa, por tradição e por ser
uma sociedade também patriarcal, ocupou por séculos uma posição marginalizada e submissa.

A mulher chinesa tem um lugar apagado na sociedade chinesa. Ela é o elemento Yin,
escuro, noctívago, recolhido. O seu brilho lunar a exercer-se, deve ser discreto e
confinar-se aos aposentos interiores da casa. Ela é dominada por um poder patriarcal que
abarca todas as esferas do seu mundo. (ALVES, 2002:)

A filosofa Ana Cristina Alves coloca que a mulher chinesa exemplar nos séculos
anteriores era aquela que seguia fielmente os preceitos da submissão, castidade e obediência
ao ser masculino, a mulher que vivia para o lar, sem grandes sonhos e sem virtudes. Porém a
filosofa apresenta as mulheres que desafiavam todo o sistema, as mulheres do mundo, as
quais deviam ser evitadas apenas por sentirem o mundo como ele é:

As mulheres do mundo, com ou sem marido, eram aquelas que estavam de algum modo,
em contato com a sociedade que as rodeava. Viviam comprometidas com o mundo do
trabalho, da arte e, até do estrangeiro. (ALVES, 2002)

A filosofa faz um levantamento a cerca da condição da mulher chinesa ao longo dos


séculos, apontando como essas mulheres eram estereotipadas na sociedade. As mulheres
chinesas parecem ter crescido em uma sociedade que as abominavam, onde a principal função
era gerar um filho.

Podemos observar que a mulher chinesa foi submetida a uma educação rigorosa e
conservadora em que não tinha nem o direito de se expressar sexualmente, pois isso ia de
encontro aos valores impostos por uma sociedade machista que visava controlar ao máximo
essas mulheres. Situemos que a China nesse momento da década de 1980 está em um
profundo processo de reforma política e social, mas entendemos que culturalmente as
mudanças são muito mais lentas. A China em 1949 se tornou o Estado Socialista da China e
as implementações a nova constituição era a igualdade de gênero entre homens e mulheres.

Observamos que desde final do século XX, muitas leis foram incorporadas na
Constituição para garantir direitos das mulheres chinesas, mas será que realmente essas

447
mulheres gozam de todos os direitos descritos na lei? A socióloga Fatima Patrício coloca que
´´Na prática, muitas dessas leis e regulamentações não são implementadas ou fiscalizadas
adequadamente, muitos fatores (econômico, politico e cultural) contribuem para o
desfasamento. ´´

A autora nos mostra que

Ensinamento de Confúcio sublinhava que a mulher era a causa de muitas desordens, a


mulher não deveria governar e que suas ideias não poderiam ser levadas em
consideração. Muitas ainda hoje influenciam a maneira como as mulheres chinesas são
tratadas ainda hoje. (PATRICIO, 2011)

Contudo, isso não significa que essas mulheres não lutem no dia a dia por seus direitos,
por seu espaço. As mulheres chinesas vêm vencendo barreiras milenares nos últimos 40 anos,
têm colocado suas vozes em evidencia e seguem lutando pelos seus interesses e se
emancipando.

Como Dona Toka uma das nossas primeiras entrevistadas nos conta como foi sua
chegada a capital amazonense.

Queria ir para os Estados Unidos, mas vim para o Brasil, certo. Daí eu vim, fiquei sete
meses em São Paulo. Passei um ano e meio em Montes das Cruzes. Então depois de lá
vim para cá isso em 1970, 1974. Daí para cá nós veio para Manaus. Primeiro local que
eu fiquei foi o bairro de São Francisco. Daí gostamos daqui. Enfrentamos no alto e no
baixo, dificuldade, enfim até hoje.

De acordo com Shu Chang-Sheng, o período de 1966 a 1974 fora de grandes extremos
para a emigração chinesa para o Brasil, pois após a revolução chinesa de 1949 (onde os
comunistas assumiram boa parte das províncias da China e para eles era um grande ato de
traição deixar o país), as relações diplomáticas entre Brasil e China foram cortadas, devido o
Brasil seguir uma política americanista em relação a China. Então os chineses não podiam
obter visto diretamente do governo da China ou do Brasil, precisavam ir até Macau para obter
o passaporte da República da China- regime nacionalista de Taiwan, que era reconhecido pelo
Brasil, isso era um processo muito demorado e tortuoso. Mas antes da guerra de 1949 entre
comunistas e nacionalistas os chineses podiam ir a Hong Kong solicitar visto brasileiro

448
normalmente, em consequência houve um grande fluxo de chineses para o Brasil, por falta de
dados específicos não se sabe o número certos de chineses que chegaram ao Brasil em tal
época.

A partir 1979 inicia-se um afrouxamento das proibições e muitos chineses começaram a


viajar para o exterior em busca de uma vida melhor. Entretanto o que não se fala na história
desses chineses é como as mulheres reagiram a tudo isso, ao processo de emigração,
sobrevivência na China em períodos de crise e como se adaptaram a novos lugares com
culturas diferentes.

Dona Toka migrou para outro país em um momento de intensas mudanças na China,
culturalmente e socialmente. Apesar dos chineses impulsionarem a China economicamente,
essas transformações acabam não abrangendo todos na população, visto que o índice
populacional da China é muito elevado252. Dona Toka migrou para outro país em buscar de
melhores condições de vida. Ela nos conta que quando chegou em Manaus fora logo trabalhar
com seu irmão em uma loja de eletrônicos que tinham no Centro da cidade.

Dona Toka é super ativa nas atividades econômica de Manaus, ela nos fala com bastante
afinco ``O que eu puder fazer pelo Amazonas, tô aqui.``. É importante problematizar esse
discurso, pois, visto que ela é uma mulher migrante em um país totalmente diferente do seu, e
o interesse é ser aceita para poder lucrar com suas atividades comerciais. Em um momento da
entrevista deixa soltar que está trabalhando com outros chineses para trazer novidades para
Manaus.

Agora, nesse momento estamos trazendo de outras cidades, novidades pra Zona Franca,
porque parece que não tem. É na área de confecção, enfim trazendo empresas de fora
para montar indústria.

Percebemos que é uma manobra pra eles lucrarem mais, pois, trazendo novidades eles se
destacam de outras empresas. Porque os produtos chineses são os mais baratos do mercado, o
que facilita essa transição de materiais, de artigos, de roupas. E ao ser perguntada como se
relaciona com os manauaras, ela ri dizendo que acha que todo mundo gosta dela e enfatiza o
que puder trazer de novo para cá, ela irá trazer. Ou seja é uma tentativa de aceitação para

252
China tem 1,3 de habitantes, segundo o censo de 2010.
449
poder obter lucros, D. Toka tenta passar o ar de harmonia, como se os conflitos não
houvessem.

Entendemos que os discursos colocados nas entrevistas não são a verdade absoluta, mas
a oralidade nos possibilita a olhar novos horizontes com a memória, como Yara Khoury
explica

Na história oral, as versões pessoais sobre experiências vividas e compartilhadas são


representativas de horizontes que se colocam para muitos outros. Nesse sentido,
oferecem um campo de possibilidades criativas do trabalho da memória e da história em
suas mutuas relações. `` (KHOURY, 2004)

Dona Toka é uma mulher ativa, com seus sessenta e poucos anos (Ela não me revelou
sua idade), casada, dona de uma loja de artigos chineses na Rua Guilherme Moreira,
personalidade forte e como ela mesma diz `` Meu compromisso é social``, na entrevista
ressalta sempre que o que puder fazer pelo Amazonas ela faz, e através da igreja ajuda
pessoas com doenças em Manaus com a acupuntura.

De acordo com a filosofa Ana Cristina Alves em relação aos tipos de mulheres chinesas
que a sociedade coloca, podemos dizer então que Dona Toka é uma mulher do mundo.

Com ou sem marido são aquelas que estavam de algum modo, em contato com a
sociedade que as rodeavam. Viviam comprometidas com o mundo o trabalho, da arte e,
até, do estrangeiro. Pode se incluir as mulheres comerciadas, as famosas mui tchai.
(ALVES, 2002)

É claro que não estereotipamos dona Toka, apenas fazemos uma abordagem de como as
mulheres chinesas são colocadas na China quando vão de encontro aos parâmetros
tradicionais.

Dona Toka vê na cidade Manaus uma oportunidade de crescer e fazer a diferença, de


levar seus costumes a outras pessoas, de sair do tradicional para olhar um novo mundo.

E no Centro de Manaus há muitos chineses com comércios estabelecidos, que se


misturam no cotidiano da cidade com suas famílias. Coloquemos aqui é difícil contata-los
devido que são fechados e não gostam muito de falar sobre sua vida aqui ou na China.

450
A chinesa Annie Wang, 30 anos, veio para Manaus a cerca de 2 anos, pois seu marido é
manauara e se conheceram quando ele estava na China a negócios. Annie é da província de
Anhuí na China, seus pais são fazendeiros e tem um irmão mais novo.Ela nos conta um pouco
da sua infância na China de forma bem alegre.

Durante a minha infância eu tinha muita diversão e boas memórias, como vivíamos em
uma aldeia, tínhamos mais liberdades comparadas a outras crianças que viviam em
cidades. Como nossos pais estão trabalhando na fazenda, não tinham muito tempo para
restringir a gente do que fazer. Também toda nossa comida éramos nós mesmo que
produziam, tudo era natural.

Como sabemos a China ainda tem muito o aspecto rural em suas províncias, e Annie foi
criada nesse meio, onde o sustento da sua família era a agricultura.

Sobre direitos e liberdade, Annie relata.

As mulheres na China hoje em dia são muito diferentes de 10-20 anos atrás, a maioria
delas está na indústria. Mas, em relação às roupas, as mulheres de 25 anos ainda se
vestem bem mais conservador do que as mulheres no Brasil. Nos direito das mulheres,
sinto que o Brasil está bem melhor, soube que aqui o homem não pode bater na mulher,
e se acontecer elas podem denunciar. Para nós mulheres chinesas não temos essa lei
muito clara, e aqui as mulheres tem mais liberdade.

Como dito acima há um número considerável de empresas chinesas que se estabelecem na


Zona Franca de Manaus, tais empresas são atraídas pela isenção fiscal praticada em Manaus,
via ZF. Do mesmo modo, chineses são impulsionados a virem para a cidade para a ocupação
de cargos estratégicos.

No nosso primeiro levantamento encontramos a chinesa Zhang Refang que trabalhava na


empresa Moto Traxx da Amazônia. Zhang está em Manaus desde 2007 quando a empresa
chegou, trabalhou primeiramente como supervisora, porém atualmente ocupa o cargo de
diretora industrial. Mas não conseguimos entrevista-la pois a Empresa fechou e Zhang voltou
para a China. Mas encontramos a chinesa Becky Liu que está em Manaus desde 2012, veio da
província de Fujian no sudoeste da China. Primeiramente passou por vários países na Europa
antes de chegar a Manaus, trabalha na empresa TPV que produz eletrônicos. Liu é casada
com um chinês que trabalha na mesma empresa e possuem uma filha.

451
Em relação ao machismo Becky assume que antigamente era muito mais difícil uma
mulher chinesa trabalhar fora de casa.

Realmente no passado a mulher era bem submissa, ela não podia assumir algumas
posições. Por exemplo, eu jamais poderia assumir o cargo que tenho na fábrica, no
passado. Então depois da revolução, as coisas começarão a mudar e hoje o cenário é
diferente. E a gente consegue ver muitas mulheres em cargos altos na sociedade chinesa.
Mas até hoje consigo também ver casos de pessoas que... homens dizendo “não mulher
vai ficar em casa, vai cozinhar, vai cuidar de criança”... Mas eu no caso acabo
trabalhando mais, porque eu vou cuidar de filho, da casa e tudo mais.

Com relação a sua vida em Manaus, ela diz que aqui é mais difícil para ela devido à
mobilidade e comida, o cardápio não é muito variado e ela sofre mais pressão no trabalho por
causa da sua relação com a China, ou seja, os chefes chineses cobram muito mais dela do que
os trabalhadores brasileiros.

Mais difícil em Manaus: a vida de Manaus não é tão adequada quanto à China, hoje em
dia tudo em China é cada vez mais desenvolvido do que Manaus. Aqui não há algumas
compras, nenhum lugar para jogar, menos produto pode comprar... Mais pressão e tarefa
no trabalho, não para uma mulher, mas como chinesa.

A oralidade nos ajuda a trazer luz para essas questões, no caso das mulheres chinesas,
nos auxilia a entender os contrastes que há em ser uma mulher chinesa na China e em outro
país. Janaína Amado expõe:

O sujeito quando fala de suas experiências/vivências, está apontando para a forma como
lida com as questões postas no seu cotidiano, como reelabora seu passado partindo de
suas experiências presentes, pois ao rememorar seu passado, este vem à luz do seu
presente, as narrativas, portanto, ainda que sejam reflexões individuais, estão dentro de
um conjunto de valores, sentidos e costumes que é também de grupo. Sendo assim,
compreende-se que as fontes orais conferem às pesquisas aspectos que muitas vezes
foram negligenciados pelas fontes escritas, possibilitando dessa forma, alargar o
entendimento e captar intenções, sentimentos, razões e motivações de pessoas que
participaram ou tiveram algum envolvimento com os fatos e/ou eventos ou processos
que se deseja conhecer. (AMADO, 1995)

No tocante à migração é preciso dizer que se concorda que História Oral tem sido:

... uma ferramenta importante para entender o que John Bodnar descreveu como os
“mundos internos” dos imigrantes para explorar como a subjetividade – conhecimento,
sentimentos, fantasias, esperanças e sonhos – dos indivíduos, famílias e comunidades

452
informa e molda a experiência da migração em todos os seus estágios, e é por sua vez
transformada por essa experiência” (THOMPSON, 2002)

Percebemos que as mulheres chinesas migram de uma forma diferente do homem


chinês, há uma carga psicológica, cultural e tradicional muito presente em seu meio. O modo
de se expressar, de se vestir, de agir ainda é complicado, fazem tudo de uma maneira discreta,
que não chamem atenção. Podem ser consideradas mulheres do mundo, de casa, da vida, mas
antes de tudo elas são as mulheres que elas quiserem ser, que discretamente vão assumindo
seus lugares na sociedade, lutando diariamente pelo direito de serem elas mesmas.

Podemos observar que há dois aspectos nas entrevistas de Dona Toka, Annie e Becky, o
primeiro como estabelecem ligações com o lugar em que vivem, e o segundo é a forma como
elas concebem o mundo em que vivem. Dona Toka no momento da entrevista tenta esconder
como foi sua vida na China, porém Annie ressalta que a vida para as mulheres chinesas é
ainda difícil. E Becky mostra que sim é difícil, mas as mulheres chinesas estão cada vez mais
mudando seus destinos, traçando planos e ocupando espaços que antigamente eram relegados
a elas. Estão sendo agentes de suas próprias histórias.

Referências
ALVES, Ana Cristina. A mulher chinesa contemporânea. Administração, Macau, n.57, vol. XV,
2002-2003, p. 1015-1028 .
CAAR, Edward Hallet. A sociedade e o individuo. In: _______. Que é história? Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1982.
HERMANN, Pedro Thomas Vilela. Indicadores da atividade econômica na China.
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KHOURY, Yara Maria Aun. Narrativas orais na investigação da história social. Projeto História,
São Paulo, Departamento de História da PUC/SP, n. 22, p. 79-104, jun. 2001.
______ et al. A pesquisa em história. São Paulo: Ática, 2002.
FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrópolis,
v.94, nº3, p. 111-124, maio/jun., 2000.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Proj. História, São Paulo,
n° 10, dez. 1993.
POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.10,
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PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: Narração, interpretação e significado nas
memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996.
PROST, Antoine. Os fatos e a critica histórica. In: _______. Doze lições da História. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008

453
RAGO, Margareth. Trabalho feminino e sexualidade. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História
das mulheres do Brasil. São Paulo: Contexto, 2001.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para analise histórica. Nova York, Columbia
University Press, 1989.
THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e
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______. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 198
XINRAN. As boas mulheres da China: vozes ocultas. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

454
RASTROS DE CATIVOS: PROTAGONISMOS E PRECARIEDADES DA
ESCRAVIDÃO NO RIO BUJARU OITOCENTISTA DA PROVÍNCIA DO PARÁ

ROBERTA TAVARES*

No dia 19 de abril de 1882, o jornal a Constituição, estampava na sua edição de quarta-


feira, uma fuga coletiva de escravos,o anunciante era o senhor José de Lima Caxias, reclamante e
proprietário dos escravos, haviam fugido de sua fazenda Santo Antônio, no rio Bujaru, os
escravos João, Melchides, Florêncio e Jorge253. O Anúncio faz uma série de descrição sobre as
características físicas dos escravos, diz que os três primeiros tinham entre 19 e 20 anos, e que o
último teria mais ou menos 25 anos. No entanto, uma informação em particular, chama atenção,
um alerta para o fato de que todos eles tinham parentes na capital. Essa informação, sem dúvida é
colocada para deixar os leitores atentos para a possibilidade de que os cativos andassem
circulando por Belém durante a fuga, algo comum naquele período, onde a cidade do Pará, se
caracterizava numa espécie de quilombo urbano itinerante, em que cativos de diversas regiões da
Província se direcionavam a ela,254 mostrando que a mobilidade espacial entre área campestre e
urbana, assim como era parte da vida dos senhores também o era dos escravizados, que o
colocavam em prática por conta própria, inclusive a despeito das vontades senhoriais, como nesse
caso. Além disso, mostra ainda o espraiamento espacial da própria família dos escravos, e isso
obviamente pode estar relacionado com a própria condição precária a qual a família estava
subjugada na estrutura da escravidão, que muitas vezes condicionava a separação física através
das transações de compra e venda, ou divisão de bens entre herdeiros. Sentidos tênues em que se
configurava as famílias, mas, nesse caso aqui, poderia também se caracterizar numa espécie de
possibilidades de cumplicidade e acolhimento, quando do deslocamento através das fugas em
direção a capital, o que o jornal parece pretender sugerir, ao fazer o alerta. Questão que se
relaciona com a complexidade dos significados da família escrava e seus limites entre
precariedade e protagonismo.


Pesquisa parte da dissertação de mestrado em face de desenvolvimento financiada pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES).
*
Mestranda no Programa de História Social da Amazônia (UFPA, 2017).
253
A Constituição, ano IX, n. 86, p. 02, penúltima col. Hemeroteca digital.
254
O historiador José Maia Bezerra Neto em seu artigo intitulado “Historias urbanas de liberdade: escravos em fuga
na cidade de Belém”, mostra a recorrência desse movimento de cativos. Revista Afroásia, 2002.
455
Era comum que os proprietários do rio Bujaru fossem detentores e negociante tanto de
terras quanto de escravos, aliás, terras e escravos eram os principais investimentos naquele vale
de rio, porém, os escravos normalmente apresentavam preços mais altos comparados com as
sortes de terras. O alferes Jerônimo Paes Fernandes da Silva, por exemplo, membro de uma das
famílias de proprietários mais importantes do rio Bujaru, (os Paes Fernandes da Silva) é bastante
representativo no que tange tais negociações. No dia 10 de janeiro de 1870, ele comprava de
Anacleto Raimundo Alves da Cunha, por 500 mil réis (500$000), 465 braços de terra. E no dia 31
de julho de 1871255, vendia uma escrava de 18 anos de idade256, também pelo preço de 500 mil
réis (500$000). Já em 1873, no dia 05 de setembro, Jeronimo Paes Fernandes da silva vendia para
Marcelino Nunes da Vera cruz e irmão, conhecidos comerciantes de terras e escravos no rio
Bujaru, uma casa coberta de telha e 30 braças de terra, por 400 mil réis (400$000), ainda nesse
mesmo ano de 1873257, no dia 13 de outubro o alferes vendeu outra casa coberta de telhas, situada
na foz do igarapé Arapiranga, afluente do rio Bujaru, a Benedicto da Costa e Silva, pelo preço de
100 mil réis (100$000)258.
É perceptível, no entanto, que os negócios mais lucrativos que fazia o alferes Paes
Fernandes da Silva, eram negócios envolvendo os corpos dos escravizados, o comercio de gente,
as transações envolvendo corpos humanos, tanto é que no dia 26 de junho de 1875, por exemplo
ele aparece novamente no cartório de Santa Anna de Bujaru, para lavrar documento da compra
que fazia de uma escrava de 18 anos de idade, chamada Crescência, no valor de 800 mil réis
(800$000)259. Mas, não somente os negócios envolvendo o alferes levavam os nomes de seus
escravos, aos registros do cartório de Bujaru, outras questões de precariedades envolvendo suas
vidas também os levavam. Foi assim que, no dia 26 de outubro de 1877, Jerônimo Paes
Fernandes da silva, precisou ir registrar, que naquele mesmo dia, pelas sete horas da manhã,

255
Livro de notas e escrituras do cartório de Santa Anna do rio Bujaru, compra e venda de sorte de terra em
10/01/1870
256
Livro de notas e escrituras do cartório de Santa Anna do rio Bujaru, compra e venda da escrava Veríssima em
31/07/1871
257
Livro de notas e escrituras do cartório de Santa Anna do rio Bujaru, compra e venda casa coberta de telha e 30
braças de terra em 05/09/1873
258
Livro de notas e escrituras do cartório de Santa Anna do rio Bujaru, compra e venda de casa coberta de telha em
13/10/1873
259
Livro de notas e escrituras do cartório de Santa Anna do rio Bujaru, compra e venda da escrava Crescência em
6/06/1875
456
havia falecido no seu sítio, o recém-nascido de nome Manoel, filho de sua escrava Caetana260. O
registro não diz a causa da morte, nem a idade de Manoel, mas, outros registros, de morte de
crianças, filhas de escravas, foram feitas naquele ano, normalmente especificando que eram livres
pela lei 2040, o que com certeza era o caso de Manoel, descrito apenas com o recém-nascido. No
mês anterior, dia 22 de agosto daquele mesmo ano havia falecido o pequeno José de dois anos e
seis meses de idade, filho da escrava Leonor de Pedro Alexandrino Alves da Cunha, no seu sítio
no rio Bujaru, causa da morte não especificada261. E no dia 17 de dezembro daquele mesmo ano,
foi vez de dona Brígida Antônia de Menezes Gomes registar no cartório o falecimento no dia
anterior havia falecido no seu sítio Castanheiro, no rio Bujaru, o menor Petromillo de apenas 23
dias de nascido, filho de sua escrava Mirandolina, era livre pela lei 2040, causa da morte
moléstias desconhecidas262.Os registros de morte prematura, nos dão indícios do quão precária
era a maternidade escrava e a condição de natalidade das crianças, inclusive após a lei de 1871.
Talvez seja preciso ainda esmiuçar a documentação que envolva a saúde e a mortalidade
de crianças nascida de ventre escravo, antes e depois da lei 2040, essa talvez ainda seja parte
importante para se compreender os impactos positivos ou negativos dessa lei na vida de mulheres
e seus filhos, considerando que precariedade e mortes já existiam amiúde antes da lei, e mesmo
durante todo tempo de vigência da escravidão, mas, talvez após 1871 as recorrências delas
possam guardar diferenciações que apontem para as mudanças especificas nas relações cotidianas
no seio do escravismo, o que em Santa Anna do rio Bujaru, não deve ter sido tão diferente.
Este ensaio é um esforço também de exercitar um diálogo com alguns autores, para além
da historiografia da história social da escravidão, nesse sentido, remeto-me,ao famoso artigo da
indiana (SPIVAK, 2010) cujo o título é a autora já faz uma interrogação se pode ou não o
subalterno falar? Obviamente que Gayatri Chakravorty Spivak, no mencionado artigo, não está se
referindo propriamentea um trabalho historiográfico que trate deaspectos de um passado situado
no século XIX, como o caso deste, mas, sem dúvida me leva a pensar em algumas questões
metodológicas envolvendo a historiografia da escravidão no Brasil, a possibilidade de pensar o
escravismo, partindo da perspectiva dos escravizados, considerandoque não temos praticamente

260
Livro de notas e escrituras do cartório de Santa Anna do rio Bujaru, registro de óbito do recém-nascido Manoel em
6/10/1877
261
Livro de notas e escrituras do cartório de Santa Anna do rio Bujaru, registro de óbito do menor José em
22/08/1877
262
Livro de notas e escrituras do cartório de Santa Anna do rio Bujaru, registro de óbito do menor Petromillo em
17/12/1877
457
nenhuma possibilidade de ter acesso a fontes documentais escritas e produzida pelos próprios
cativos.
Desta forma, os rastros dos escravizados chegam a nós somente através de fontes
produzidas pelas classes de proprietários, por aqueles a que lhes possuíam como bens
semoventes. Portanto, os fios que nos conduzem aos rastros desses sujeitos, não são propriamente
diretos, mas há neles filtros senhoriais e, é nesse sentido que me remeto a pergunta formulada por
Spivak se é possível os subalternizados dos cativeiros falarem através de fontes produzidas por
aqueles que foram detentores de seus corpos e de suas vidas. No dia 07 de fevereiro de 1870, por
exemplo, a senhora Raymunda da Conceição Neves registrava carta de alforria de sua escrava,
carafusa de 35 anos de nome Ignácia.
(..) plena liberdade que poderá gozar de agora em diante como se de ventre livre
nascesse sem que a isto herdeiro algum meu possa por embaraço pois que o faço por
muita amizade e afeição que tenho pela dita carafuza e bons serviços que me tem
prestado peço, portanto, a justiça de sua majestade imperial dê a minha carta todo valor
263
que em direito se requer ”.

Nesse mesmo dia a dita senhora não somente “concedia” alforria para sua escrava Ignácia, como
ainda fazia venda de mais três escravos seus, eram eles: a escrava Imbelina de 32 anos264 vendida
por 600 mil réis (600$000), para a senhora Leopoldina Maria da Gloria e Costa. Outro escravo
vendido por Raymunda da Conceição Neves, foi um escravo chamado Gil265 de 10 anos de idade
“pouco mais ou menos”, por 300 mil réis (300$000) para o comprador Pedro Lourenço da Costa,
também residente no rio Capim, vendeu ainda para o mesmo comprador outraescrava de nome
Serafina266 de 18 anos de idade “pouco mais ou menos”, a 600 mil réis (600$000). Ocorre que
oito dias depois, os escravos Gil e Serafina,267 são novamente vendidos, desta vez, o senhor Pedro
Lourenço,os vende no dia 14 de fevereiro, para um senhor chamado José Pedro das Neves.
Em a caza de morada do capitão Pedro Lourenço da Costa onde eu escrivão foi (vindo?)
e sendo alih prezente o mesmo capitão Pedro Lourenço da costa de huma parte como

263
Livro de notas e escrituras do cartório de Santana de Bujaru/carta de emancipação da escrava Ignácia do dia 07 de
fevereiro de 1870 serviram de testemunhas testemunhas Taumaturgo da Trindade e Souza e (....) Lourenço da Costa,
escrivão Petrolino de Souza e Oliveira.
264
Livro de notas e escrituras do cartório de Santana de Bujaru/escritura de compra e venda da escrava Imbelina do
dia 07 de fevereiro de 1870. Testemunhas Gregorio Thaumaturgo da Trindade e Souza e Manoel Ignácio da Vera
Cruz
265
Livro de notas e escrituras do cartório de Santana de Bujaru/escritura de compra e venda do escravo Gil
comprado por Pedro Lourenço da Costa, 07/02/1870
266
Escritura de compra e venda da escrava serafina/livro de notas e escrituras do cartório de Santana de
Bujaru/07/02/1870
267
Escritura de compra e venda dos escravos Gil e Serafina do dia 14 de fevereiro de 1870 comprados por José
Pedro das Neves/livro de notas e escrituras do cartório de Santana de Bujaru
458
vendedor, e de outra como comprador José Pedro das Neves, todos residentes nesse
districto de Santa Anna do rio capim de mim conhecido de que trato e dou fé.

O escrivão de Bujaru, Petronillo de Souza e Oliveira, demonstra ter se deslocado de Santa


Anna do rio Bujaru até Santa Anna do rio Capim, à casa de morada do comprador, para lavrar a
carta de alforria, esse deslocamento é percebido pela própria narrativa da fonte. O comprador
dessa vez pagou 20 mil réis (20$00) a mais no escravo, que antes tinha sido vendido por 300$00,
já a escrava Serafina de 18 anos, é comprada pelo preço de 740 mil réis (740$000), e que antes
havia sido vendida por 600 mil réis (600$000), ou seja, agora ela é vendida por 140 mil réis
(140$000) a mais. A diferença de preço foi bem mais significativo para Serafina por ser uma
escarava em idade produtiva, na freguesia de Bujaru os preços das mulheres em idade produtiva
iam de 600$00 a 800$000 mil réis, e essa idade produtiva para mulheres estava aproximadamente
entre a casa dos treze a trinta anos de idade.
É importante atentar para as teias familiares que tanto escravos como senhores parecem
entrelaçados, José Pedro das Neves, pelo nome me leva a pensar que era alguém da rede de
parentesco da senhora Conceição Neves anterior proprietária dos escravos. Ficam, portanto, as
indagações sobre os motivos que levaram a ter comprado de volta os dois escravos Gil e Serafina
depois que se passaram apenas oito dias da venda anterior. Talvez Pedro das Neves fosse,
sobrinho, irmão, neto, ou filho de Raymunda da Conceição Neves e que Gil e Serafina tivessem
algum parentesco,e que de alguma forma talvez pudessemter conseguido barganhar a
possibilidades de retorno e permanências nas localidades, onde provavelmente já haviam
estabelecido laços afetivos e de sociabilidades, visto que essas mudanças,consequências dos
negócios senhoriais colocavam em jogo também esses laços.
É interessante, portanto, pensar também sobre os limites e fronteiras entre essas freguesias
campestres marcadas pelas presenças de rios e igarapés, que eram muito próximas
geograficamente, e pensar nessas proximidades no século XIX é pensar a relevância dos
caminhos líquidos, os caminhos de águas que faziam essas conexões e que aparecem nos
registros dessas negociações, de mundos escravistas, onde senhores do Rio Capim se deslocavam
ou propiciavam deslocamentos negociar com senhores do rio Bujaru.

459
Filhos, percursos e liberdades: a escrava Águida
Fiquemos agora com alguns aspectos da trajetória de uma mulher escravizada, também da
freguesia de Bujaru, chamada Águida, pertencente ao sítio Santa Maria, de propriedade de dona
Ludovina Raymunda Alves da Cunha, a dona do Santa Maria foi viúva duas vezes e registrou
inventário e testamento em cartório da capital da Província entre os dias 08 e 10 de agosto do ano
1881, constando 24 escravos arrolados entre os bens que possuía.268
Destaco algumas conexões do grupo familiar de Águida e as nuances do seu percurso
frente e ao lado de alguns membros de sua família, em diversas situações, até a conquista de sua
carta de alforria. Vejamos no pequeno quadroa relação da rede familiar de Águidae os preços de
cada umno sítio Santa Maria, na ocasião da feitura do inventario da proprietária:
Quadro 1: Relação da rede familiar de Águida, por preço de cada escravo.

Escravos Cor Idade Filiação Profissão Preços

Lino liberto Preto 36 Águida Pedreiro

Raimundo Preto 19 Águida 800$000

Paulo Preto 18 Águida 800$000

Balbina 21 Águida

Águida preta 55 100$000


Fonte: Adaptado de Inventário de D. Ludovina Alves da Cunha (CMA, 1881)

A primeira vez que me deparei com o nome de Águida foi na carta de alforria de um
escravo chamado Lino,guardada entre os papeis antigos do cartório de Santana de Bujaru,carta
datada do dia 09 de janeiro de 1873, Lino possuía 27 anos de idade naquele momento, e
apareceria anos depois na condição de livre, entre os bens arrolados no inventário de sua
proprietária. Naquele dia 09 de janeiro de 1873,Lino compareceu ao cartório da freguesia de
Bujaru para lavrar sua carta de alforria:
Em o meu cartório compareceu o molato Lino e em razão do meu oficio pediu me que
lhe lançasse a carta do theor seguinte: declaro eu em abaixo assignada que entre os bens
digo os mais bens que possuo se inclue o molato oficial de pedreiro de nome Lino, filho
legitimo de minha escrava Águida a cujo escravo os meus herdeiros serão obrigados a
lhe passar logo depois de minha digo do meu falecimento carta de liberdade visto que o

268
Inventario de Ludovina Raymunda Alves da Cunha/Ano: 1881/Referência: Cartório Odon, cx. 38. (arquivo:
CMA)
460
seu merecimento de serviços a mim prestados se faz merecido. E para firmeza do que
dou aqui qualquer clauzula ou clauzula que por ventura forem ommetidas na
prezente declaração que Pedi a meu sobrinho Anacleto Raymundo Alves da Cunha que
por mim fizesse, e a meu rogo assignasse o meu genro Pedro Alexandrino Alves da
Cunha em presença das testemunhas João Paes Fernandes da Silva e Jeronimo Paes
269.
Fernandes da Silva. Escrivão Petronilo de Souza e Oliveira (grifo meu)

A trajetória de Lino se entrelaça a outras trajetórias escravas e não escravas da freguesia


de Bujaru, durante aqueles anos do século XIX, sua mãe a escrava Águida, aparece também mais
tarde com cinquenta e cinco anos de idade em 1881 no inventário da proprietária do sítio Santa
Maria, um dos mais conhecidos do vale do rio Bujaru daquele período270.
A história de Águida também não poderia fugir da discussão a respeito da complexidade
da importância das famílias escravas e a relação comas lutas por liberdades e/ou mais autonomias
no mundo da escravidão, ela que quando da avaliação do inventário de dona Ludovina, em 1882,
constava com a idade de cinquenta e cinco anos, avaliada em cem mil réis (100$000). Podemos
verificar no pequeno quadro acima a extensão de sua maternidade, eram seus filhos Lino liberto,
de trinta e seis anos de idade; o preto Raymundo de dezenove anos de idade avaliado em
oitocentos mil réis (800$000); o preto Paulo, de dezoito anos de idade, avaliado no mesmo preço
do irmão, e no mesmo quadro ainda consta outra filha chamada Balbina que infelizmente não foi
possível localizá-la nas outras páginas do inventario, além da página que consta um quadro da
relação de todos os escravos do sítio Santa Maria. Existem no inventario preços separados dos
escravos em várias páginas, mas, Balbina não aparece nelas junto da avaliação de preços dos
bens, com outros escravos, também nunca a encontrei sendo citada na documentação do cartório
de Santana de Bujaru.
No quadro mais amplo do inventario Balbina aparece com 21 anos, não constando seu preço, no
entanto, os preços que aparecem no inventario, denotam que a idade produtiva e de preços mais
elevados, entre as mulheres do Santa Maria, como da região do rio Bujaru no geral, estava na
faixa dos 13 anos e talvez fosse até a casa dos 30 anos, considerando que as mulheres mais caras
que constam na tabela, são escravas de treze, quatorze e dezesseis anos de idade. A única escrava
na casa dos trinta anos que aparece, é uma escrava chamada Bibiana, avaliada em quinhentos mil
réis (500$000), as de preços mais elevados valem entre seiscentos (600$000) e setecentos mil réis
269
Livro de notas e escrituras do cartório de Santana de Bujaru; Carta de manumissão do escravo Lino, de
09/01/1873. p. não id.
270
Arquivo do Centro de Memória da Amazônia (CMA/UFPA). Cartório Odon, (2ª vara cível) Inventários post-
mortem 1881 cx 38. Autos cíveis de inventários post-mortem. Inventario de Ludovina Raymunda Alves da
Cunha.
461
(700$000), diferença apenas de cem (100$000) a duzentos mil réis (200$000) dos homens em
idade produtiva da mesma propriedade.
Como já transcrito acima o liberto Lino adquiri sua alforria condicionada ainda no ano de
1871, sendo registrado em cartório em 1873, aproximadamente dez anos antes da morte de sua
senhora. Naquele ano de 1873 sua mãe Águida estava ainda entre 40 e 44 anos de idade, quiçá ela
e Lino já sonhavam com uma futura vida mais autônoma ou em liberdade, provando mais uma
vez que mesmo as condições mais precárias dos cativeiros não eram capazes de conseguir tolher
as capacidades e pretensões dos escravizados, que ao contrário do que se acostumou pensar,
foram ativos dentro de suas possibilidades de resistências no tempo histórico e espaço a que
estavam inseridos
De que forma os membros das famílias escravas planejavam conseguir liberdade através
da alforria? Que critérios escolhiam para determinar a ordem dessas compras, quando
trabalhavam para juntar pecúlio? Será que Lino depois de conseguir sua alforria condicionada
conversava com sua mãe os esforços que continuaria a fazer até conseguir juntar pecúlio para
pagar os cem mil réis (100$000) de sua liberdade? Claro que Lino deve ser devidamente
compreendido dentro das dinâmicas de trabalho existentes para um escravo de oficio.
Um escravo oficial de pedreiro no século XIX, com certeza teria maior possibilidade de
adquirir prestígios do que um escravo sem especialização, e consequentemente mais
possibilidade de juntar pecúlio, tanto é assim que, no dia 25 de maio de 1882, dez meses depois
da morte de dona Ludovina, no mesmo cartório em que foi feito o testamento da matriarca Alves
da Cunha, na cidade de Belém do Pará, compareceu o inventariante Pedro Alexandrino Alves da
Cunha e por ele foi dito que na forma de petição e despacho de folhas de número 37, havia
recebido o pagamento, na quantia de cem mil réis (100$000) do liberto Lino Máximo dos Santos,
pela liberdade da escrava Águida, sua mãe. Escritura feita pelo escrivão Joaquim Martins da
Silva271.
Podemos perceber então que a carta de alforria no rio Bujaru era também um mecanismo
utilizado pelos trabalhadores escravizados como um elemento importante nas suas investidas pela
liberdade, na segunda metade do século XIX, notadamente depois da lei 2.040, de 28 de setembro
de 1871, que mesmo dentro das suas limitações acabou por abrir brechas de legalidade para as
lutas escravas, possibilitando assim que muitos recorressem até aos tribunais quando os senhores

271
Cartório Odon 2ªvara cível. Carta de alforria da escrava Águida de 25/05/1882. Arquivo CMA.
462
recusavam a oferta do pecúlio pela compra da liberdade, já que o próprio artigo 4° da lei lhes
permitiam utilizar desse recurso jurídico.272Os trabalhadores cativos do rio Bujaru, é claro não
poderiam deixar de utilizar esses mecanismos legais em seus benefícios, os manipulando das
formas mais eficientes possíveis.
Não quero aqui, de forma alguma passar a ideia de uma lei não parcial para as noções de
propriedade dos senhores escravistas da época, pelo contrário, é preciso demarcar o caráter
legalista/conservador da lei, que sem sombra de dúvida estava muito bem delineada dentro dos
planos conservadores das elites econômicas e políticas escravistas do Império, que queriam de
todas as formas uma abolição gradual, que fizesse com que o fim do regime não fosse capaz de
mudar as estruturas da hierarquia social, das relações de subordinação e poder, baseadas em
critérios para além de econômicos, extremamente raciais, onde negros continuariam ocupando os
papeis mais subalternizados. Mas a questão de extrema importância a considerar também é a
maneira como os escravos se apropriaram dessa lei a manipulando e recorrendo a ela ajudando
dessa forma aguçar ainda mais os debates em torno do elemento servil.273
É certo que esses mecanismos existentes no campo jurídico esbarrava numa série de
limitações, concernentes as possibilidades econômicas para acúmulo de pecúlio, como a
determinação de que os senhores tivessem que permitir a junção desse pecúlio, negociações que
poderiam perpassar pelo nível de prestigio que os escravos viessem grassar nas suas relações
sociais, e isso normalmente tinha relação com o papel exercido no mundo do trabalho, o que
provavelmente tenha sido o caso de Lino, haja vista, que possuía oficio especializado.
(KARASCH, 2000) mostrou as recorrências de senhoras idosas que quando temiam a morte
súbita, normalmente recorriam a alforria para proteger um escravo estimado das possíveis brigas
entre herdeiros ou para obriga-los a permanecerem aos seus lados até o fim da vida, a alforria de
Lino cabe muito bem dentro dessa lógica, mas, prefiro considerar as apropriações feitas pelos
próprios escravos frente as pretensões senhoriais.

272
Anexo II da lei do Ventre Livre. Art. 4°: É permitido ao escravo a formação de pecúlio com o que lhe provier, de
doações, legados e heranças, e com o que por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economia. O
governo providenciará nos regulamentos sobre a colocação e segurança do mesmo pecúlio.
273
Ver CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012; ver também: PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial: jurisconsulto,
escravidão e a lei de 1871. 2 ed, Campinas, São Paulo, ed Unicamp, campo de pesquisa em história social da
cultura, 2001.
463
É necessáriotentar entender a ótica dos trabalhadores cativos, como eles conseguiam
driblar percalços, manipulando e utilizando as mínimas brechas que pudessem ter dentro da
jurisdição conservadora do abolicionismo, como o próprio artigo 4°, de lei de 1871. Pensar a
utilização desse artigo não somente como mais uma forma dos senhores garantirem seus lucros
como proprietários, mas, também a partir das estratégias de resistências dos próprios escravos, e
que, para além disso, nos demostra quão informados e conhecedores das políticas do Estado
brasileiro sobre questões inerentes aos seus próprios destinos e vida.
As experiências dos escravos tratados aquiestão localizadas num espaço físico especifico,
o vale do rio Bujaru, ou seja, se trata de um espaço geográfico reduzido, trazendo para a
historiografia agentes que se perderiam dentro das nomenclaturas “Amazônia e/ou Grão-Pará”.
Considerando também que, embora a freguesia de Bujaru se assemelhasse com as características
do restante da Província, e principalmente com sua capital, pertencendo a mesma comarca como
uma das suas freguesias campestre, no que tange as relações sociais pautadas no escravismo,
talvez pudessem guardar características próprias e diferenciadas e que, portanto, somente seria
possível notar sem generalizar colocando tudo dentro de uma fôrma chamada Grão-Pará ou
Amazônia colonial e imperial.
Talvez ainda seja necessário construir uma historiografia da escravidão dos vales de rios,
e no caso da Amazônia mais necessário ainda se consideramos que as duas regiões entendidas
como de mais expressividade do escravismo no Grão-Pará oitocentista se concentravam em vales
de rios, Baixo-Tocantins e Zona Guajarina274, esta última, onde se localiza o rio Bujaru. Essas
duas regiões também apresentavam a peculiaridade de ser as mais antigas de lavoura canavieira
onde se estabeleciam os engenhos e as engenhocas de produção de açúcar e aguardente.
Quais seriam as dinâmicas das relações sociais, níveis de prestígios e possibilidade de
negociações que envolviam os outros filhos de Águida, naqueles vales de rio, e de mobilidade
entre a freguesia campestre de Bujaru e a capital da Província? Quais eram os planos de Paulo,
Raymundo e Balbina? Considerando que esses filhos estavam em plena idade produtiva quando
da compra da alforria da mãe pelo irmão Lino, e que isso por si só, se caracterizasse, talvez, na

274
Era nas regiões do Baixo Tocantins e Zona Guajarina onde estavam localizados as maiores propriedades
escravistas do Pará, tanto a nível de números de cativo como no quesito da dimensão das propriedades. Nos vales de
rios como Acará, Capim, Moju se concentravam as maiores escravarias, propriedades contendo acima de 100
escravos, que para a Amazônia eram de dimensões proporcionais. Sobre esses dados ver: obras de Baena, Salles,
Bezerra Neto, Daniel Barroso, Edna Castro, Rosa Acevedo e Anaíza vergolino.
464
maior barreira, a de conseguir um pecúlio tão alto, haja vista, que nenhum deles, diferente de
Lino, aparecem como trabalhadores especializados em algum oficio. Nesse caso, o dispositivo
legal da compra de alforria, talvez fosse um mecanismo um tanto difícil, embora não impossível,
principalmente depois de 1871 e com o crescimento depois do abolicionismo. Isso, no entanto,
não quer dizer que também assim como o irmão liberto, eles não fizessem seus projetos de buscar
liberdades ou mais autonomias.
Fiquei imaginando então quais outras possibilidades os irmãos de Lino teriam para
construir caminhos de liberdades e autonomias, se não fosse através da alforria, por outros
caminhos, talvez fora do campo da legalidade, foi então que posteriormente, vasculhando jornais
na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, me deparei com duas notícias, uma de 1886 e
outra de 1887. O jornal O Diário de Belém, na edição do dia 11 de fevereiro de 1886 anunciava,
na nota Archivos da polícia, que entre outros detidos pela polícia no dia anterior, estava o escravo
Raimundo da propriedade de Pedro Alexandrino Alves da Cunha, preso a requisição do
mesmo.275 Já O Liberal do Pará, na edição do dia 25 de novembro de 1887, na parte policial,
anunciava que entre outros que haviam sido detidos pela polícia, foi posto em liberdade o
escravizado Paulo, também de Pedro Alexandrino276. Os escravos Paulo e Raimundo, como
podemos notar, aparecem no inventário da proprietária do sítio Santa Maria, quando da avaliação
dos seus bens e ficaram os dois no quinhão de sua filha, dona Eliza de Lanzide Alves da Cunha, a
proprietária do Santa Maria deixava bem explicito no testamento que queria fazer dona Eliza a
única herdeira da terça de seus bens, dizia que ficariam também com sua filha outros escravos em
idade produtiva, além dos filhos de Águida. Desse modo, os escravos mais valiosos ficaram em
posse do casal, pois além do mais, a dona do Santa Maria dizia em testamento dever ao genro e
também sobrinho, uma quantia na casa dos quatro contos de réis (4:000$000).(KELLY-
NORMAND, 1988) chama atenção para a questão da mobilidade espacial dos senhores
escravistas da área rural da Província paraense, o que se mostra evidente quando recorremos ao
corpo documental, encontrando seus nomes estampados nos jornais e periódicos oitocentistas,
quando da denúncia da fuga ou captura de um cativo, da “concessão” de uma alforria, lavrando
documentos nos cartórios da capital, mandando rezar missas em igrejas como da Sé, pela alma de

275
O Diário de Belém, Edição de quinta-feira, 11 de fevereiro de 1886, n. 32, ano XIX, p.03, primeira coluna.
276
O Liberal do Pará. Edição de sexta-feira, 25 de novembro de 1887, n. 267, ano XVII, p. 02, coll 4.
(Escravizado é o termo usado no próprio jornal para se referir a Paulo, não muito usual no século XIX)
465
algum membro familiar que recorrentemente eram enterrados nos cemitérios de Santa Isabel ou
da Soledade.
Retorno à pergunta feita por Spivak em seu artigo, e mencionadas neste ensaio ousando a
afirmar que sim, é possível os subalternos falarem, mesmo considerando todos os limites
impostos pelas possibilidades das fontes históricas. Com um olhar atento para as minúcias da
documentação, minúcias que escaparam do controle da pena dos escrivães e dos discursos que os
senhores brancos talvez quisessem deixar nos registros, nosdocumentos produzidos a mando de si
próprios, informações guardadas nas entrelinhas, ou nos silenciamentos tanto das cartas de
alforrias como nas transações de compra e venda, ou nas notícias de fugas dos jornais.
No caso das alforrias entendê-las não apenas a partir das palavras escritas nas fontes como
algo “concedido” quase como benevolência, mas, entender esse dispositivo quando alcançado,
como fruto dos esforços particulares também dos escravizados em arrancar a liberdade, fruto de
negociações que eram muitas vezes injustas, mas que mesmo assim eram as possibilidades
possíveis que cativos encontravam de investir em mais autonomias nas suas próprias vidas.
Os escravos, recorrentemente desembolsavam determinadas quantias para pagar suas
alforrias, e mesmo as que não aparece registro de quantia em dinheiro, não devem ser
compreendidas como concessão gratuita. As alforrias, portanto, na prática nunca eram
simplesmente concessões da bondade dos senhores, muitas vezes os próprios escravos ou alguém
de sua rede de parentesco já haviam trabalhado os anos mais produtivos de suas vidas por elas, e
muitas outras, como no caso de Lino que ainda teria que ficar esperando até a morte dos
proprietários para ter acesso integral a compra da liberdade.
Pensar o mundo da escravidão na perspectiva das ações dos indivíduos escravizados
acende um desafio de exercitar um diálogo, além do costumeiramente feito com a historiografia
mais clássica da escravidão no Brasil, com outras vertentes teóricas. Remeto-me a(GLISSANT,
1989) por exemplo, quando sugere pensar numa escrita dos gritos sufocados dos navios
negreiros, posto que neles, o que somente haviam de registros escritos eram os preços de
mercadorias e dos corpos de pele negra transportado pelo Atlântico. Volto a pensar em como
lidar com uma documentação cartorária de compra e venda de pessoas, e não me deixar ludibriar
simplesmente por suas cifras, e sim, conjecturar sobre os esforços dos escravos em interferir nos
seus trajetos, tentar manter a proximidade física com suas redes de parentescos, encontrar
maneiras de barganhar para poder mudar os cursos das trocas comerciais envolvendo seus corpos.
466
Nesse sentido entendo que trabalhar contra a subalternidade dos sujeitos, como diz
Spivak, é sobretudo trazê-los para a narrativa historiográfica como ativos nos seus tempos
históricos, mesmo dentro de uma estrutura tão desproporcional como o mundo da escravidão,
neste caso a narrativa histórica se torna também, parafraseando (GLISSANT, 2005) uma escrita
“ato de sobrevivência” e não apenas uma simples narrativa.
Continuar a pensar numa nova história da escravidão após o advento da história social,
continua a ser um repensar, refazer ainda o lugar dos escravizados na narrativa, podendo também
fazer esse diálogo com outras vertentes teóricas, é reposicionar os escravizados à altura dos seus
protagonismos durante o regime escravista, sem cair na armadilha de negação da violência
estrutural do sistema.
Por fim, penso também na história da escravidão relacionada com as categorias propostas
por (MIGNOLO, 2003) da necessidade de construção de um pensamento liminar à luz de novas
perspectivas epistemológicas, de uma espécie de descolonização epistêmica, onde os agentes
subalternizados possam figurar ativamente dentro da construção do conhecimento cientifico.

Referências
BARROSO, Daniel. El senzala na floresta? Notas sobre as estruturas da posse escrava no
Grão-Pará oitocentista. Texto apresentado no 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional, Curitiba (UFPR), de 13 a 16 de maio de 2015
BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra no Grão-Pará (séculos XVII-XIX).2ª ed.
Belém: Paka-Tatu, 2012.
CHALHOUB, Sidney. Visões de Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1990].
GLISSANT, Edouard. Espaço fechado, palavra aberta. Estudos Avançados, vol. 03, nº 07, 1989, pp.
159-169.
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce do Carmo
Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.
KARASCH, Mary. A carta de alforria. In: A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850).
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
KELLY-NORMAND, Arlene. Africanos na Amazônia: cem anos antes da Abolição. Cadernos
do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Belém, n. 18, out-dez/1988,pp.01-21.
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
MACHADO, Maria Helena P. T. Sendo escravo nas ruas: a escravidão urbana na cidade de São
Paulo. In. PORTA, Paula. História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p.59-
99.
SAMPAIO, Patrícia Melo. Escravos e escravidão africana na Amazônia.In: SAMPAIO,
Patrícia Melo (Org.). O fim do silêncio: presença negra na Amazônia. Belém: Editora
Açaí/CNPq, 2011, p. 13-42.

467
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor – esperanças e recordações na formação da família
escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2 ed.corrig. Campinas, SP: Editora da Unicamp. 2011.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida,
Marcos P. Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
MIGNOLO, Walter. Desobediência Epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidadeem
política. Cadernos de Letras da UFF, 2008.
VERGOLINO-HENRY, Anaíza; FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A presença negra na
Amazônia colonial: uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Pará, série documentos
históricos, 280 p, 1990.

468
HISTÓRIA ORAL, GÊNERO E MEMÓRIA: O LUGAR DAS MULHERES NA ARENA
POLÍTICA DE PARINTINS-AMAZONAS (1964-2004)
ROGER KENNED REPOLHO DE OLIVEIRA
JÚLIO CLÁUDIO DA SILVA**

Introdução
Qual o lugar da mulher no cenário político de Parintins? Qual a relevância deuma história
da atuação política das mulheres em Parintins? Qual a relação dessasatuações com os projetos e
processos políticos nacionais? Pretendemos responder a esta eoutras perguntas ao analisarmos
aspectos das trajetórias da professora e vereadoraGeminiana Bulcão Bringel e Valdete Preste
Pimentel. A partir da metodologia dahistória oral(Verena Alberti, 2000; Marietta de Moraes
Ferreira, 2012; Mary Del Priore,1998,) desenvolveremos uma análise queincorpore as noções
compartilhadas pelos estudos de memória (Michel Pollak,1992) emdiálogo com a história das
mulheres (Rachel Soihet, 1997; Joan Scott, 1989) e das relações de gênero(Eni de Mesquita
Samara, 1997; Elizabete Silva Passos; 2001; CAMPOS, 2008).

História oral e memória

Segundo Verena Alberti, história oral é uma metodologia de pesquisa e produção de


fontesdifundida na segunda metade do século XX.
A história oral como metodologia traz novas possibilidades de estudos ao darvez e voz a
novos temas e abordagens proporcionando outras perspectivas e versões até então não relatadas
por nãopossuírem “legitimidade” em seus depoimentos, devido a sua posição na sociedade aqual
vive, ela vem trazer em muitos casos versões que só podem ser vistas através do relato oral que
trazendo “esquecidos versões menosprezadas história de movimentos sociais onde uma vertente
da história oral se tenha construído com uma ligação a da história dos excluídos”. (FERREIRA,
2012, p. 171).
Apesar de ser uma história de resistência, a história oral vem ganhando maisaceitação no
campo acadêmico e em diversas áreas dada a sua vocação interdisciplinar. “O trabalho de história


Apontamento de pesquisa relativo ao projeto “História oral, gênero e política em Parintins (1964-2004)”.

Acadêmico do curso de História da Universidade do Estado do Amazonas-CESP.
**
Professor adjunto do Colegiado de História na Universidade do Estado do Amazonas - Centro de Estudos
Superiores de Parintins. E-mail: julio30clps@gmail.com
469
oral se beneficia de ferramentas teóricas de diferentes disciplinas das Ciências Humanas, como a
Antropologia, a História, a literatura e a Psicologia por exemplo. Trata-se, pois, de uma
metodologia interdisciplinar por excelência”. (ALBERTI, 2001, p. 156)
Por ser um método de pesquisa que registra o testemunho e a experiência, a história oral
se aplica a chamada história do tempo presente, ou seja, aos eventos ocorridos no pós-segunda
guerra mundial.
Segundo Marieta de Moraes Ferreira, “a memória só pode acionar o passado até certo
limite e é o tempo que alimita de conhecer os fatos por isso não há como ter parcerias entre
ambas segundoMaurice Halbwacks”(2012, p. 24).
Mas o historiador deve ter em mente que a memória vive em total função dopresente, e
que alguns grupos faz o uso da memória para legitimar-se algumacaracterística que se quer
perpassar, então a memória é esclarecida através do presente e este presente que influencia a
memória a partir de determinado um grupo.“Explicando assim que o presente influencia a
memória a retirar de seu passado apenas alguns elementos que possam lhe dar uma forma
ordenada e com coerência”. (FERREIRA, 2012, p. 24).
Então cabe ao historiador o papel crítico dessa fonte para fazer uma análisede
conjunturas da mesma, para identificar o que determinada memória pode trazer consigo,ou o que
ela tenta esconder e achar os porquês.
A memória não quer dizer apenas o que o indivíduo quer representar, mas tambémuma
representação de como ela quer ser vista e como ela quer que as outras pessoas a vejam, vendo a
si própria.
A imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem
que ela constrói e apresenta s outros e a si própria, para acreditar na sua própria
representação, mas também para ser recebida da maneira como quer ser recebida pelos
outros. (POLLACK, 1992, pg.05).

História das mulheres e das relações de gênero

A procura por tentarmos entender o lugar das mulheres na esfera política deParintins, suas
estratégias, protagonismos e desigualdades, nos conduz para o campodedicado a pensar os
desafios históricos porque passa metade da população mundial. Ahistória das mulheres por muito
tempo foi silenciada. Elas ficavam como espaço deespectadoras como é observado por Mary Del

470
Priore, “(...) tradicionalmente são vistascomo espetadoras do teatro no qual se defrontam com
seus mestres e senhores os homens” (1998, pg.217).

Este quadro conjetura, em certa medida, os resquícios de uma história tradicional,factual e


positivista que visava apenas os grandes políticos e grandes acontecimentos,dando voz apenas
aos governantes, em geral homens pondo assim as mulheres a umpapel de invisibilidade. Ela traz
um retrocesso, pois segundo Soihet “seu exclusivo interesse pela história política e pelo domínio
público. Privilegiam-se as fontes administrativas, diplomáticas e militares, nas quais as mulheres
pouco aparecem” (1997, p.400).
O local das mulheres nesta historiografia reflete as desigualdades existentes emuma
sociedade patriarcal.
(...) o público identifica-se com vida politica, vividas por pessoas com o poder de
argumentação e de decisão, em oposição a vida privada, que consistia naquela que
consistia naquela desenrolada na cena do lar, por pessoas que não participavam da polis,
como escravo e as mulheres (...). (SILVA PASSOS, 2001, p.24).

Esses dados nos posicionam a qual que mulheres se encontravam nasociedade, “As
mulheres são encontradas ‘nas margens’ da sociedade junto comoutros grupos como os escravos,
os índios os judeus e cristãos-novos, e oshomossexuais”.(DEL PRIORE, 1998, pg. 227).
A invisibilidade da mulher na historiografia remete a seu lugar social, a função que a
sociedade lhe impõe, limitadora da sua aparição diante domasculino na sociedade fazendo com
que seu protagonismo passe despercebido. Para mudar essa situação e preciso um embate
continuo.
Colocam-se, com isso, os limites e as possibilidades dos indivíduos, a partir de seu sexo.
Para os homens, pertencentes ao mundo da polis, do publico, o limite e a liberdade; as
mulheres, ao contrario, vivem na luta continua para ultrapassar a limitação que as
necessidades impõem. (PASSOS, 2001, p. 24,25).

Uma das principais características do século XX foi a ampliação e consolidaçãodos


movimentos feministas na luta pela ampliação de direitos e cidadania das mulheres.As batalhas
travadas nas ruas e no âmbito da sociedade civil refletiram-se nos trabalhosacadêmicos sobre o
protagonismo das mulheres. Segundo Mary Del Piore (1998, p. 220) “Depois de um primeiro
impulso dado a questão, as universidades abriram suas portas aos grupos de pesquisa”.
Segundo Heloísa Lara:
Outra questão que notamos é a de existência de uma predominância quase que cem por
cento de autoras nos trabalhos sobre gênero por quê? Isso demostra que a ideologia do
471
patriarcado ainda está presente na cabeça dos pesquisadores, pesam que, estudar gênero,
estudar mulher, ainda é uma questão da mulher e eles não tem nada a ver com isso; tal
visão.(CAMPOS, 2008, p.168).

É neste sentido que o presente artigo busca compreender o protagonismo deGeminiana


Campos Bulcão Bringel eValdete Prestes Pimentel em suas atuaçõespolíticas na vereança
parintinense, iluminando, nas trajetórias das três ex-vereadorasseus processos de inserção e
protagonismos nas lutas políticas.
Durante a década de 1970 com a explosão do feminismo e o afloramento das ciências
como Antropologia, História das mentalidades, História social e pesquisas jamais feitas sobre
memória popular, fizeram com o posicionamento sobre a constatação do esquecimento da mulher
na história surgisse o que levou as mulheres fazerem históriadas mulheres muito antes da
historiografia (DEL PRIORE, 1998, pg.220).
Os avanços do campo da ciência permitiram os estudos sobre os papéis sexuais e trazendo
um novo perfil na historiografia podendo então descrever os papéis femininos. “Papeis femininos
chegou-se a decifrar um certo número de práticas específicas que por meio de um jogo de
compensações, de interferências simbólicas terminaram por esboçar os traços de uma cultura
feminina sem a qual o sentido social não existira”. (DEL PRIORE, 1998, pg.221).
O estudo sobre a história das mulheres não trouxe consigo rupturas no campo, pois não
proporcionou modificações na história tradicional ou até mesmo renovação nos seus
métodos.“Não se tinha conseguido revolucionar a ciência histórica de dentro para fora,
inscrevendo ai uma diferença sexual que fosse além das funções e papéis codificados pelas
sociedades masculinas.”(DEL PRIORE, 1998, pg.223).
Tal discrepância levou aos historiadores a buscar novas formas de análises, issoocorreu
por pelo menos duas razões: a primeira porque a propagação de estudos de casos na “história das
mulheres parece exigir uma perspectiva sintética que possa explicar as continuidades e
descontinuidades e dar conta das desigualdades persistentes, mas também das experiências
sociais radicalmente diferentes”(SCOTT, 1989, p. 05).E a outra seria, “os limites das abordagens
descritivas que não questionam osconceitos dominantes no seio da disciplina ou pelo menos não
os questionam de forma aabalar o seu poder e talvez transformá-los”. (SCOTT, 1989, p. 05).

472
O que se obteve com a História das mulheres foi apenas um reconhecimento
daparticipação das mulheres na história, mas sem que ela tivesse alguma interferência na esfera
política fazendo com que deixassem de lado a história das mulheres como adendo à história.
No que diz respeito à história das mulheres, a reação da maioria dos(as) historiadores(as)
não feministas foi o reconhecimento da história das mulheres para depois descartá-la ou
colocá-la em um domínio separado (“as mulheres têm uma história separada da dos
homens, portanto deixemos as feministas fazer a história das mulheres, que não nos
concerne necessariamente” ou “a história das mulheres trata do sexo e da família e
deveria ser feita separadamente da história política e econômica”). (SCOTT, 1989, p.
05).

Houve a necessidade de um estudo que trouxesse essas contribuições nãolucidadas pela


história das mulheres. O uso da categoria “gênero” trouxe consigo uma contribuição teórica
muitosignificativa ao considerar as desigualdades presentes na relação entre homem e mulher,
pois “através desse conceito foi possível trabalhar diversas inter-relações entre homem e
mulheres, mostrando o poder não só que se realizava na dominação de homens sobre mulheres,
mas também de mulheres sobre homens e homens sobre homens” (CAMPOS, 2008, p. 164).
A categoria “gênero” tem mais neutralidade de análise, pois visa a seriedade deum
trabalho, pois tem em sua essência um conotação imparcial e prática e de que ocunho científico
das ciências sociais e afasta-se da política do feminismo o seu uso.
Neste uso, o termo gênero não implica necessariamente na tomada de posição sobre a
desigualdade ou o poder, nem mesmo designa a parte lesada (e até agora invisível).
Enquanto o termo “história das mulheres” revela a sua posição política ao afirmar
(contrariamente às práticas habituais), que as mulheres são sujeitos históricos legítimos,
o “gênero” inclui as mulheres sem as nomear, e parece assim não se constituir em uma
ameaça crítica.(SCOTT, 1989, p. 06).

Ao pensarmos na categoria e olharmos para América Latina se vê aproblemática da


diversidade cultural e linguística, a compreensão dessa diversidadeessencial é o primeiro passo a
uma crítica da construção de estereótipos, enquanto as últimascontribuições avançam nas
questões como o estudo da mulher e da família, na discussãodo feminismo, das relações de
gênero e na construção de identidade como mulheres (SAMARA, 1997, p.00).

Gênero e esfera pública

Embora estejamos analisando trajetórias com deslocamento do privado para opúblico e na


esfera pública, para a política, o espaço privilegiado do exercício dopoder patriarcal, na sociedade

473
brasileira, vale a pena visitarmos alguns estudosdedicados a pensar o processo de deslocamento,
conflito, tensões, limitações e protagonismo das mulheres sob as desigualdades de gênero.
Segundo Samara Eni de Mesquita (1997, p. 18), “(...) ao se tratar da opressãofeminina e
da sua circunscrição ao trabalho doméstico, enfatiza que isso não impediu asua presença em
inúmeras outras atividades”. Heloisa Lara Campos observa que a mulher está passando por um
processo de modificações em sua identidade. “E de umamaneira geral, os trabalhos sobre
identidade mostram sempre esses conflitos sobre asmudanças que a mulher esta passando trazidas
pela contemporaneidade e pelos padrõestradicionais cristãos que ainda firmam os papéis
tradicionais” (2008, p.167).
E apesar de seu protagonismo que até então estava atrelado ao privado,
maisespecificamente ao cenário doméstico, elas mostram essa divisão limitadora de sua presença
no espaço público, e que as mesmas tem capacidade e a competência de enfrentá-lo, deixando a
passividade perante o patriarcado e assumindo aresponsabilidade de seu sustento, de sua prole,
onde faz parte de seu dia tomar decisõesdifíceis e assumir as consequências de suas decisões
(PASSOS, 2001, p.28).
Mas, apesar de já haver mudanças na vida das mulheres através de lutas e ganhos
devidoao seu protagonismo, a pesquisa recente de Elizete Silva Passos intitulada “Gênero
eUniversidade” mostra que ao terem que optarem por uma área de conhecimentocientífico para
sua formação profissional, as pessoas, tanto homens quanto mulheres, escolhem profissões de
caráter sexista, onde a escolha de homem ou uma mulher temcaracterísticas de predileção
determinado por seu sexo, quando o estudo visa às escolhasprofissionais dos discentes e dos
docentes (2001, p. 29).
Teoricamente, partiu-se do pressuposto de que as escolha profissionais de homens e
mulheres seguem a divisão sexual, estabelecida culturalmente, que classifica as pessoas
a partir de estereótipos e transformam seres essencialmente iguais em diferentes. Ente
consequências que as atitudes sexistas produzem, no campo profissional as mulheres ao
contrário dos homens são levadas a carreiras mal renumeradas, limitadoras e de menor
prestigio (PASSOS, 2001, p. 29).

Em face destas ponderações apontadas por Elizete Passos uma questão se coloca.Qual
a relação desta divisão social do trabalho nas carreiras das primeiras mulheres comatuação
política em Parintins?
À luz da categoria gênero é possível identificarmos algumas estratégiaspossíveis,
adotadas por Germiniana Pimentel e Valdete Preste Pimentel em seus processos de construções
474
detrajetórias profissionais na esfera pública. As duas personagens tem em comum, além
daexperiência como vereadoras da Cidade de Parintins, o magistério como ofício.
Os primeiros investimentos de pesquisa, sobre a trajetória de Geminiana Bulcão, não
conduziu diretamente a ela, mas à colaboradora Valdete Pimentel.
Valdete Preste Pimentelnasceu em Parintins, estado do Amazonas, no dia 31 de janeiro de
1952. Seus pais,Raimundo Gadelha Preste Pimentel e Maria da Silva Preste, também são naturais
deParintins. Sua infância foi vivida em uma residência situada nas proximidades daesquina da
Avenida Amazonas com o Beco Coronel José Henrique, em frente aoMercado Municipal.
Valdete Pimentel estudou no Colégio Nossa Senhora do Carmo,onde, posteriormente, trabalhou
como educadora por sete anos. Cursou o NormalSuperior e cursou especialização em
Psicopedagogia. Foi presidente do grêmioda Liga Desportiva de Parintins e em 1992 candidatou-
se a vereança. Foi vereadorapor três mandatos, no período de 1991-1995, 1996-2000 e de 2001-
2004. Segundo seu relatoé de sua autoria parte das diversas solicitações para a implantação da
delegacia dasmulheres de Parintins. Também participou da manifestação ocorrida na frente do
Fórumde Parintins denunciando e combatendo a violência contra a mulher. 277
“Conheci dona Gemica, Geminiana foi minha colega de curso na UERJ, ela era também
supervisora escolar, estudamos juntas, era professora, ela também foi diretora aqui da
unidade educacional de Parintins né? Ela era diretora e ela estudou comigo, foi a
Geminiana, naquele tempo ela era do MDB antigo né? Que hoje eu acho que é o PMDB,
278
Movimento Democrático Brasileiro (...)” .

Geminiana Campos Bulcão Bringel nasceu em Parintins no início da década de 1920.


A sua datade nascimento parece ser controversa. Em alguns documentos, como o título de
eleitorhá a indicação de 10 de julho de 1923. Em seu curriculum vitae seu nascimento
teriaocorrido no mesmo dia e mês do ano de 1926. Primeira entre as mulheres de atuação política,
de nossa pesquisa, atuou como professora e supervisora escolar. Em 1956iniciou sua atuação na
carreira política ao assumir uma cadeira na Câmara deVereadores de Parintins, como suplente do
vereador Acioly Teixeira (1956-1959). Entre1960 e 1963 cumpre o mandato de vereadora, sendo
eleita em 1963 como vice-presidente dacâmara. Este cargo lhe permitiu assumir a Prefeitura de
Parintins quandodas ausências do Prefeito e do Vice Prefeito (BUTEL, 1978). Segundo

277
Entrevista de dona Valdete Preste Pimentel (02/12/20016).
278
Entrevista com dona Clotilde da Cruz Valente (01/04/2017).
475
DonaRaimunda Ribeiro da Silva“então ela foi presidente da câmara, e lá viajaram os dois né?
Prefeito e vice-prefeito, aí ela ficou, como prefeita, tá? Interina’’279.
Acompanhar a trajetória política de Geminiana Bulcão nos permite estabelecerconexões
preciosas entre a História Política Local e a Nacional. Um dos eventos maisrememorados entre os
entrevistados, sobre a atuação política de Geminiana Bulcão, foifato de ter acompanhado o
anticandidato a Presidência da República, Ulisses Guimarãesem sua viagem ao Amazonas e
Parintins. Provavelmente a viagem se deu entre 1973 e1974, pois a eleição no Colégio Eleitoral
ocorreu em 15 de março de 1974.
Ingrid Corrêa na dissertação Ulysses Guimarães: trajetória política de um liberal-
democrata na luta contra a ditadura militar (1971-1984), diz que o Jornal O Globo noticiou
acobertura da I Convenção Nacional Extraordinária do MDB, ocorrida no Plenário do Senado
Federal, em 22 de setembro de 1973. Na ocasião Ulysses Guimarães, entãopresidente do partido
foi indicado a postular a vaga de Presidente da República tendocomo vice-presidente o jornalista
Barbosa Lima Sobrinho (SILVA, 2001, p. 37).

Considerações finais
Um dos eventos mais citados pelos colaboradores desta pesquisa foi a visita deDoutor
Ulysses a Parintins. Embora citando em outra data o tema emerge no processode construção de
memória de alguns colaboradores. Segundo o Senhor Geraldo Medeiros, Ulysses Guimarães teria
280
sido recebido por Geminiana “Foi em 68 e 69”. O eventomemorável é também citado por
outro colaborador. Segundo José Maria Pinheiro: “elae o partido conseguiu trazer em Parintins o
Ulysses Guimaraes pra fazer um comício à noite né, tudo programado movimentação bacana o
281
MDB estava com aquela música ‘MDB, MDB, MDB ai preparamos o comício’”. Um
investimento ainda está por ser feito voltado para uma pesquisa na qual se ilumine osvários nexos
entre o local e o nacional. Em diálogo com a historiografia dedicada aos estudos da história das
mulheres, das relações de gênero e da história política. Os nexosdessas dimensões da história

279
Dona Raimunda Ribeiro da Silva (30/11/ 2016).
280
Segundo o senhor Geraldo Medeiros (entrevista no dia 30 de novembro de 2016).
281
Jose Maria Pinheiro (entrevista no dia 16 de junho de 2017).

476
estão postos na memória dos contemporâneos do protagonismo político dos personagens da
pesquisa que deu origem a esse artigo.

Referências bibliográficas

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Históricas. São Paulo: Contexto, 2011. pp. 155-202.
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1947ª 1951. Parintins: Câmara Município de Parintins,2011.
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indivíduos, coletividades, gênero e etnias. Recife: Ed. Universitária daUFFPE, 2008.
FERREIRA, Marieta de Moraes. História oral: velhas questões, novos desafios. In: CARDOSO,
Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro:
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PASSOS, Elizabete Silva. As mulheres e os saberes: construção do gênero nas Universidades do
Norte e Nordeste e as repercussões nos campos social e politico. In:FERREIRA, Mary;
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poderes das mulheres: a construção do gênero. São Luíz: EDUFMA/Núcleo Interdisciplinar
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(org). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998.
SAMARA, Eni de Mesquita. A construção da identidade social de gênero. In: SAMARA, Eni
Mesquita; SOIHET, Rachel e MATOS, Maria Izilda S. de. (org). Gênero em debate: Trajetórias
e perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997.
SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics of
history. New York, Columbia University Press. 1989.
SOIHET, Rachel. Emergência da Pesquisa da História das Mulheres e das Relações de
Gênero. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, nº 54, p. 281-300 – 2007.

Entrevista realizada no dia 2 de dezembro de 2016 com Valdete Preste Pimentel.


Entrevista realizada no dia 1 de abril de 2017 com Clotilde Cruz Valente.
Entrevista realizada no dia 30 de novembro de 2016 com Raimunda Riberio da Silva.
Entrevista realizada no dia 30 de novembro de 2016 com Geraldo Medeiros.
Entrevista realizada no dia 16 de junho de 2016José Marinho pinheiro.

477
SATERÉ-MAWÉ E O WARANA NA MUNDURUCÂNIA

RÔMULO RIBEIRO MACHADO282

Introdução

Ao longo de todo o território brasileiro são intensas e complexas as manifestações


identitárias dos mais diversos grupos indígenas. São pontos relacionados a sua condição dentro
da sociedade, história e cultura. Na cidade de Maués, estado do Amazonas(Maués/AM), na sua
Zona urbana e rural, não é diferente, uma vez que existe forte presença e influência do povo
Sateré-Mawé, fato este que estimula a pesquisar sobre o tema.
Cabe ressaltar que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 231, assegurou aos
povos indígenas o respeito a sua dignidade. Neste contexto se inseri o respeito à sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições. Sendo assim, o objetivo geral deste estudo é
descrever como pesquisadores e memorialistas representam a identidade do cidadão pertencente
ao povo Sateré-Mawé, que se faz presente na zona urbana e rural de Maués/AM.
Tem-se como objetivos específicos: Apontar quais fontes de informação e de saberes o
povo Sateré-Mawé é descrito na sociedade local; Averiguar qual é a percepção da identidade
etnicorracial do cidadão pertencente ao povo Sateré-Mawé nos documentos; e, Expor elementos
do tratamento dada a questão etnicorracial no município de Maués.
No primeiro momento é descrito a história e a cultura deste povo; no segundo, fala-se
sobre esta etnia e sobre o guaraná, como a sua identidade está entrelaçada com este produto; e, no
terceiro sobre a cidade de Maués e como a história desta cidade está intimamente relacionada
com a história deste povo e deste produto. Por fim, nas considerações finais será feito um
fechamento dos questionamentos propostos no trabalho e apontadas questões relevantes para o
cenário local.
Assim, exponho que este estudo seguiu uma investigação qualitativa na perspectiva dos
estudos culturais (BOGDAN e BIKLEN, 1991, p.61), motivado pela necessidade de dialogar com
significados, motivos, aspirações, crenças, valores, atitudes, com a linguagem e as formas de
expressá-la e/ou representá-la. Foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental. Porque

282
Mestre em Ciências, ênfase em Educação Agrícola, pelo Instituto de Agronomia da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (IA/UFRRJ) e Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (PEBTT) do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, campus Maués (IFAM/CMA).
478
foram levantadas informações sobre o objeto a partir de livros textos e documentos já existentes.
Sobre isso Menga Lüdke e André (1986, p.39) falam o seguinte:

Os documentos constituem também uma fonte poderosa de onde podem ser retiradas
evidências que fundamentam afirmações e declarações do pesquisador. Representam
ainda uma fonte “natural” de informação. Não são apenas uma fonte de informação
contextualizada, mas surgem num determinado contexto e fornecem informações sobre
esse mesmo contexto.

A partir de uma pesquisa bibliográfica, feito a partir de material já publicado e de registro


disponível nas universidades e bibliotecas públicas presentes na cidade de Maués e, também na
internet foram utilizados documentos impressos como livros, pesquisas, artigos, dissertações,
teses etc.Contudo, vale ressaltar que parte do material bibliográfico encontrado nas bibliotecas da
cidade de Maués, tem um forte cunho político e de divulgação pessoal. Constatou-se que vários
políticos locais e representes do poder público local se interessaram em escrever sobre a temática
declarando motivos variados.
Para o município de Maués este produto agrícola tem pesos diferenciados na construção
da identidade e economia local. Mas, para o povo Sateré-Mawé é a pedra angular na construção
da identidade etnicorracial. Portanto, este estudo tem relevância estratégica para este povo,
produtores locais, poder público municipal, estadual, estudiosos da área e demais pesquisadores.

A história de um povo
O povo Sateré-Mawé fora identificado, pelos portugueses, pela primeira vez na segunda
metade do século XVII, habitavam a região da Mundurucânia, que significa “País dos Guerreiros
Mundurucus”. Região compreendida entre os rios Amazonas, Madeira e Tapajós. Portanto do
ponto de vista botânico ou geológico uma das mais pitorescas e opulentas da Amazônia Brasileira
(PEREIRA, 2003, p. 21). Eles podem ser chamados de Sateré ou de Maués. A palavra Maués não
é uma denominação clânica, mas, sim da etnia e pode significar papagaio falante. Já a palavra
Sateré, vem de Çaterê e, Eles podem ser assim chamados porque, outrora, os Maués, se dividiam
em grandes clãs, que dentro da sua cultura procediam de seres vivos da flora e da fauna
(FARACO, 2006, p. 18).
O clã Çaterê, por muitos é considerado como mais importante por todos os outros clãs da
etnia, por isso a denominação Sateré-Mawé. Tal fato pode se confirmar em razão de que, pela
tradição todos os tuxauas, o chefe da aldeia, eram escolhidos dentre os sujeitos pertencentes a
479
esse clã. A escolha deste líder local tinha como critério a nobreza e a valentia e os Çaterês tinham
destaque por isso. Os demais clãs ficavam sob sua influência econômica, social e religiosa deste
clã (FARACO, 2006, p. 19).
Próxima da cidade de Maués, temos as terras acidentadas do planalto do Tapajós, relevos
e colinas, campinaranas e depressões de vales. Tendo como ponto mais afastado a ilha
Tupinambarana, atual cidade de Parintins/AM e pontos extremos os rios Marmelos, Aripuanã,
Sucurundi, Abacaxis, Padauari, Anamã e Mariacauã. São localidades que as populações locais
chamam de terras pretas. São regiões propicias as concentrações populacionais e atividades
agrícolas (RIBEIRO, 2000, p. 66), tendo o guaraná como produto plantado mais relevante para a
economia local.
Com o passar dos anos e por conta das condições geográficas e sociais, a partir da
conquista territorial da Amazônia por parte dos europeus, eles foram sedentarizando. Os seus
limites territoriais foram se estreitando (SILVA, 2004, P. 144). Eles perderam a margem do
Tapajós e foram se alocando nas florestas próximas aos rios Mariacauã, Andirá, Araticum, Maué-
Açu, Maué-Mirim, Abacaxis, Canumã e os paranás do Ramos e do Urariá.
Os lagos e rios piscosos que irrigam as terras pretas, as florestas, e campinaranas ricas em
caças, de toda a espécie deve ter sido um local importantíssimo para a caça, pesca e coleta para
eles. Região, de nome Noçoquém ou Nusoken, onde se poderiam encontrar todos esses tipos de
alimentos, plantas e animais, utilizados pelos Mawé, na Lenda do Guaraná, corresponde a esse
território por eles ocupado um dia (PEREIRA, 2003, p. 22).
As guerras, moléstias, estiagens ou inundações, que devem ter influenciado para os
deslocamentos sucessivos dos Maués para a atual localização. Nela, eles mantêm sua organização
socioeconômica, descrita da seguinte forma, “Alguns se especializaram em certas atividades
econômicas, como os Mawé, que se tornaram conhecidos pela alta qualidade do guaraná que
cultivavam” (RIBEIRO,1996, p.57).
Nunes Pereira, verificou o nome deste Povodesde o início da conquista da Amazônia foi
confusapor conta dos cronistas, preadores de índios, desbravadores e, pelos missionários
(PEREIRA, 2003, p. 26). Receberam diversos nomes:Maoz, Mabué, Mangués, Manguês,
Jaquezes, Maguases, Mahaés, Magués, Mauris, Mawés, Maraguá, Mahé, Magueses entre outros.
Mas, o nome atual, Mawé, por força da tradição prevaleceu.
Contatos entre os Maués e europeus aconteceramno século XVII. Em 1691, o padre
480
Samuel Fritz registrou. Sabe-se que contatos podem ter acontecido por meio de viajantes, que
navegavam nos Rios Madeira e Arinos para comprar guaraná (SILVA, 2004, P. 81). Porém, os
Maués tinham receio de contatar os europeus, por conta dos métodos de dominação, escravização
e de comércio (SILVA, 2004, P. 84) não eram vistos com bons olhos por eles.
Os portugueses sistematicamente organizavam expedições contra os povos lavradores
(SILVA, 2004, P. 87), alegando insubordinaçãocontra as autoridades e traficantes que buscavam
as drogas do sertão. Desenvolveram inúmeras formas de luta, tais como, a conservação de capelas
e santos em locais que antes eram missões jesuíticas. Era uma forma inteligente de viver à
sombra dos padres e da Igreja Católica (PEREIRA, 2003, p. 34).
Outra forma de resistência era a proibição imposta as esposas de aprender o português.
Resistiam,sutilmente ao não “aprender” usar instrumentos, ideias, práticas e os costumes (SILVA,
2004) a eles impostos pelos portugueses. Preservando a sua própria cultura, mas, sem, contudo,
deixar de coexistir com os mesmos (RIBEIRO, 1996, p. 57).
Rios com enorme volume de água e floresta densa, somada a diversidade sociocultural
não permitiram uma uniformidade regional durante todo o período colonial, Primeiro e Segundo
Reinado e, após a Proclamação da República. A geografia contribuiu para criar uma situação
desfavorável para o colonizador. Essa condição facilitou sua resistência até os dias atuais,
contribuindo para preservar a sua identidade cultural (SILVA, 2004, P. 200-201).
Darcy Ribeiro descreve: “... conservaram sua identidade tribal e, a despeito de falar
português e viverem como caboclos amazonenses típicos consideram-se índios e assim são
considerados.” (RIBEIRO, 1996, p. 57). Tentaram miscigená-los, transformá-los em tapuios,
índios sem-terra, caboclos, camponeses sem-terra, trabalhadores urbanos e agrícolas. Lutaram
contra atraimentos, descimentos, catequese, guerras ofensivas, práticas e estereótipos pejorativos
(SILVA, 2004, P. 153).
Atuaram na Cabanagem283 (1835-1840). Com o fim do movimento houve uma retração
socioeconômica. Uma década depois foi que as condições de vida começaram a melhorar, em
função do guaraná e da borracha. A importância da borracha ao final do século XIX provocou
uma investida dos seringueiros sobre as terras, bem como sobre a sua mão de obra.

283Grande revolta popular do Período Regencial, entre 1835 e 1840, que aconteceu na Região do Pará e Amazonas,
antiga Província do Grão-Pará. Recebeu esse nome porque muitos dos revoltosos eram cabanos, homens e mulheres,
pobres, negros, indígenas e mestiços, que viviam da extração e coleta de produtos florestais e viviam em casas a
beira dos rios semelhantes a cabanas.
481
Até os dias atuais muito de sua cultura mantêm suas características originais. Entre os
anos de 1910 até o ano de 1968, os Maués foram monitorados pelo Serviço de Proteção do Índio
(SPI), órgão do Governo Federal. Sucedido pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), com a
função de tutelar os índios.
O projeto de construção de uma estrada,em 1979, que ligaria Maués/AM, a Itaituba/PA,
atravessaria suas terras e por ele foi combatido por eles até ser abandonado. Entre 1980 e 1982,
ELf-Equitaine, empresa francesa, para descobrir petróleo trouxe graves danos ambientais na
região ao fazer um trabalho de sondagem petrolífera. Sônia da Silva Lorenz, fala sobre esse
trabalho:
“‘Entraram como ladrão pela janela, sem bater na porta e perguntar do sono se podiam
entrar’.”
Com estas palavras o tuxaua geral do rio Marau, Emílio, expressou seus sentimentos
com relação à invasão da Elf-Equitaine em seu território.
Em agosto de 1981, resguardada por um contrato de risco firmado com a Petrobras, a
empresa estatal francesa invadiu o território Sateré-Mawé, efetuando um levantamento
sismográfico que visava descobrir lençóis petrolíferos. Para tanto, abriu 200 km de
picadas e clareiras para pouso de helicópteros na região do Andirá (mapa 4), derrubando
indiscriminadamente a mata. As explosões com cargas de dinamite enterradas nas
picadas levaram o pânico aos Sateré-Mawé, além de afugentar a caça da região.”
(LORENZ, 1992, p. 97).

Perceberam que só organizados, como povo, poderiam lutar de forma mais eficiente pelos
seus direitos. Então, a partir deste momento eles se mobilizaram para criar legalmente, sua
instituição máxima, o braço político de representação, o Conselho Geral do Povo Sateré-Mawé
(CGPSM), fato que aconteceu anos mais tarde, no ano de 1989.
Reunidos em assembleias decidiram entrar na justiça contra essa empresa, vencendo-a
foram indenizados, contudo, com um valor abaixo do que havia sido calculado originalmente.
Assim, além de terem recebido um valor que julgaram injusto, na hora da divisão, houve disputas
internas, que acarretaram em mortes.
Para evitar disputas, em 1989, foi criado o Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé
(CGTSM), expressão política das Nações (yvãnia) Mawé, instrumento social e comunitário do
território Sateré-Mawé, que é constituído pela Terra Indígena Andirá-Marau, organizaçãomembro
da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).
Em 1982, antes da criação do CGTSM, com demarcação das suas terras, só finalizado em
1986 com a homologação, tentaram acabar as invasões e episódios como da empresa francesa.
Estabeleceu-se que suas terras tivessem um total de 788.528 hectares, localizadas entre os vales
482
dos Rios Andirá e Maués, nos municípios de Maués, Parintinse Barreirinha, no Amazonas, e
Itaituba e Avieiro, no Pará.
Apesar de todas as políticas de extermínio a qual os indígenas foram submetidos desde a
chegada dos portugueses, passando pelo período republicano até o presente momento vemos que
esse povo vive até os dias de hoje, articulam-se com os poderes públicos, conseguindoviver da
melhor forma que possível apesar das dificuldades (RIBEIRO, 1996, p. 55).
Seus roçados são principalmente de mandioca, milho, arroz, cará, batata-doce, feijão,
favas, fumo, algodão (RIBEIRO, 2000, p. 39). Tubérculos são utilizados muitas vezes para a
prática da magia, mas o principal produto agrícola é o guaraná. Produto, que recebe um
tratamento diferenciado em todas as fases do processo, do plantio seu consumo.
O trabalho é dividido por gênero e idade, quando terceirizado recebe o nome de putirum
ou puxirum e pode ser pago com parte da produção outros gêneros ou objetos de uso. Mulheres e
crianças fazem a derrubada e nas roças e podem ajudar na coleta e pescarias, os homens caçam,
constroem as habitações e defendem a aldeia.
Quando uma criança nasce os pais passam por um “resguardo”. Comem saúva, urupê e
“maniuara”, conhecidas como formigão das terras. Na puberdade, as meninas também passam
por uma quarentena, que pode durar até 10 meses. Os rapazes participam de uma dança, chamada
Tocandira ou Tucandeira, no qual são ferrados por uma formiga do mesmo nome.
Nelas jovens entre 6 a 20 anos são ferrados indistintamente. Mas, para os últimos tendo
outro significado, por conta da idade e atuação dentro das aldeias. Tem-se com isso o intuito de
reforçar a sua identidade masculina. Neste evento é servida a bebida típica, o Tarubá, cuja
embriaguez, dizem, pode durar até trinta dias (PEREIRA, 2003, p. 61).
A morte é tratada de forma ritualística. Enterram seus mortos às margens dos barrancos,
com seus objetos pessoais. Ao morrer o tuxaua,chefe da aldeia, toda população ligada a ele
demonstra pesar. Mas, se o tuxaua é o chefe geral o luto dura um ano. A família não come peixe
pegado no timbó ou anzol, não comem carne remosa e bananas.
Casamentos são simples precisando somente do consentimento das famílias. Essas uniões
podem ocorrer durante a Dança da Tocandira, também chamada de Festa da Tocandira. A partir
deste momento o casal pode viver em moradia própria, contudo, sujeitando-se à vontade do
sogro, por serem famílias patriarcais (PEREIRA, 2003, p. 80).
Cultuam totens e ridicularizam quem pede afrodisíacos. Sua arte plumáriaestá quase
483
extinta.Tal fato se repete no trançado ou espartaria, da fiação e da tecelagem. Seus trançados
utilizados na confecção de paneiros, cestos, puçás, peneiras, abanos e vassouras são tecidos a
partir da palha das palmeiras existentes nas matas e igapós.
Seu idioma, para muitos, tem como sua base o Tupi, entretanto, difere do Guarani-
Tupinambá. Quanto à gramática ele se assemelha ao Tupi, mas o vocabulário contém elemento
estranho a esse idioma. Com isso, não pode se relacionar a nenhuma família linguística,
afirmando assim que é um idioma do tronco Tupi ou Para-Tupi.
Os pajés têm muito prestígio social. Na tradição oral aparecem como animais aquáticos,
representados nos peixes sem escama, considerados feiticeiros, que atuam sempre com um
ajudante. Dão muita importância ao sonho e conhecem muitas canções para diferentes fins. Eles
dizem que conseguem rejuvenescer os velhos e curar os impotentes com o miatã ou muiratã, que
é considerado afrodisíaco.
Após a ação dos missionários religiosos ao longo dos séculos até os dias atuais podemos
constatar a existência de inúmeras memórias dessas liturgias. Os Maués guardam muitas
ladainhas, cânticos e orações, transmitidas oralmente. Contudo, esses mesmos missionários não
conseguiram extinguir da mente desse povo suas tradições.Tem-se como exemplo as inúmeras
pedras que os Maués não permitem que sejam vistas por estranhos.
Também tem a figura do pajé, que exerce a medicina. Mas, homens, mulheres e até
crianças do povo Maué conhecem as propriedades medicinais contidas na fauna e flora da região.
Costumam se tatuar com sumo do jenipapo e de urucu para afastar as possíveis doenças
provocadas pela Mãe da Doença.
OPorantim ou remo mágico, feito pelo tuxaua Uaciri-Pót, grande legislador e pajé da
tribo (FARACO, 2006, p. 19), do clã Çaterê, num tempo por eles “impossível” de se determinar,
que entregou ao seu filho, o tuxaua Muratu, que antes de morrer deixou para o seu filho,
passando assim de uma geração para outra, que o guarda na Terra Preta.
O remo mágicopossui dois lados. Num lado foram talhados símbolos, cobertos com
camadas finas de argila branca e vermelha. Esses símbolos lhes da “força” é a sua “lei é a sua
identidade como povo. Interpretam esses sinais como sendo as origens, ligados a seres e as coisas
da terra. Num lado o mito da origem, a Lenda do Guaraná e, no outro o mito da guerra. Todos
esses acontecimentos retratados e contados na Festa da Tocandira ou Tucandeira. Eles se prendem
ao Porantim no ciclo das lendas, nos fatos mais antigos e importantes deste povo.
484
Percebemos a importância mitológica, histórica, social e mágica dada por esse povo a esse
artefato, que liga tradição à magia que esse povo crê. Dois elementos que constroemsua
identidade cultural. Essas narrativas têm um valor importantíssimo, pois remetem para um
momento da sua história, no qual eles eram senhores absolutos dessa região. Por isso, a luta pela
sua preservação. Tal situação é confirmada pelas palavras apresentadas por, DIEHL:

Narrativa como origem pode designar um lugar privilegiado do passado e de uma


recusada modernidade, pois nesse locus convergem simultaneamente os impulsos
restaurativos e utópicos. Ela representa o retorno a harmonia anterior, perdida pelos
processos de modernização objetivos da sociedade. Buscar um passado perdido é
articulado como se o ideal estivesse no passado. (DIEHL, 2002, p.100).

Concluímos que mesmo com quase quatro séculos de contatos com povos alheios a sua
cultura; eles vêm lutando, ganhando, perdendo, vivendo e convivendo. Os Sateré-Mawé, hoje,
com uma população de aproximadamente 13350 habitantes de acordo com números fornecidos
pelo CGTSM (2014), como consta no site Povos Indígenas no Brasil, não se afastam da sua
própria cultura e da sua língua materna, o Mawé. Habitando uma área de aproximadamente
790.000 hectares, demarcada e homologada pelo Governo Federal, este povo nos apresenta uma
magnífica história e identidade sociocultural. Apontando, que este povo guarda um grande valor e
que deve ser por isso reconhecido e respeitado.

Warana, Guaraná, Paullinia Cupana


Para o povo Sateré-Mawé a paullinia cupana, nome científico, ou guaraná, nome
popular, recebe o nome de warana e tem para este povo importância na sua organização
socioeconômica (LORENZ, 1992, p. 39). Eles se autodenominam “os filhos do guaraná”
(LORENZ, 1992) (TEIXEIRA, 2005, p. 130).
O guaraná beneficiado pelos Sateré-Mawé é considerado de melhor qualidade, recebe
o nome de guaraná das terras, guaraná das terras altas e guaraná Marau, produzido praticamente
para o seu próprio consumo e pouco comercializado. O segundo, de nome Luséia, antigo nome da
cidade de Maués é produzido em grande escala e considerado inferior.
No processo produtivo, o guaraná das terras recebe um tratamento diferenciado. O
plantio de novas árvores de guaraná é um momento de alegria. Os pajés promovem cerimônias
prosperidade à colheita dessas novas plantas. A alegria é tamanha que este acontecimento é
comemorado com danças ao som de instrumentos musicais, violas, gambás, caixas, reco-recos e o
485
Tarubá é servido a todos.
Para eles o consumo do guaraná pode receber o nome de çapó. Sua ingestão como
bebida possui um significado social e religioso muito importante. Ele é preparado pelas mulheres,
mas geralmente é a dona da casa quem faz. O pão de guaraná é ralado contra uma pedra de grão
fino, extraindo assim, um pó que se torna solúvel em água.
Quando o consumo é coletivo sua ingestão tem significado ritualístico. O dono da
casa pega uma cuia, que é posta diante dele e a coloca sobre um suporte de madeira, mantendo-
ana horizontal. Retirando dessa cuia uma porção menor e a coloca num recipiente de madeira
menor, ele bebe e da direita para a esquerda todos os presentes vão consumindo.
Para este povo ingeri-lo pode ser bom para fazer chover, proteger a roça, curar certas
moléstias e prevenir outras, vencer na guerra e na disputa por amores. Contudo, mesmo
acreditando que ele auxilia na conquista amorosa, os mesmos não creem que seja possuidor de
poderes afrodisíacos e ridicularizam quem acredita nisso (PEREIRA, 2003, p. 83).
Os Maués sempre querem beber o çapó, bebida típica que contém significado social e
religioso. Acreditam que o guaraná bebido de forma coletiva favorece a tudo. Sua ingestão tem o
intuito de iniciar diálogos, favorecer negócios, animar o ser humano e estimular o seu trabalho
diário. O dia, a sua vida só começa após o seu consumo.

Terra do guaraná
Situada à margem direita do rio Maués-Açu, fundada por Luiz Pereira da Cruz e José
Rodrigues Preto, em 1798. Teve diversos nomes, começando por Luséia, uma junção das sílabas
dos seus fundadores até chegar ao nome atual. Esse nome, Maués, se origina da união de dois
vocábulos de língua Tupi, o Máu, que pode significar curioso, inteligente, abelhudo; e Uêu, uma
ave trepadora, do grupo dos papagaios (FARACO, 2006, p. 28).
A palavra Mau-uêu, se modificou para Mauuêu, por fim se tornando Mauê ou Maué.
Nome que denomina todo esse povo indígena, significa papagaio curioso ou inteligente. O S, no
final, uma característica do plural pertence à gramática da língua portuguesa e faz referência ao
expressivo número de pessoas da etnia Maué. Atualmente, traduzem-se Maués como Cidade dos
Papagaios Inteligentes ou Cidade dos Papagaios Faladores.
As primeiras informações que temos datam de 1669. Elas foram retratadas pelo padre
Bettendorf, superior provincial dos jesuítas na época, que habitavam residências na “Vila dos
486
Maguases”, forma de escrever Maués naquele período e nome dado à região, residências
temporárias dos missionários jesuítas (FARACO, 2006, p. 30).
Para o colonizador, a história dessa região começa com a chegada de missionários
jesuítas. A missão dos Maguases (Maués) foi criada na foz do rio Magués (Maués-Açu), numa
aldeia de índios Maraguases, etimologicamente os atuais Mawés (CARNEIRO, 2012, p. 17). Eles
construíram e residências temporárias, pois os mesmos residiam nas missões de Tupinambarana
e Abacaxis, atual cidade de Parintins/AM.
A Vila dos Maguases conseguiu crescero em função do cultivo do principal produto
agrícola da região, o guaraná (SILVA, 2004, p. 120). Este produto já cultivado há muito tempo
pelo povo Mawé foi apresentado aos missionários. Dessa forma, oficialmente, esse produto foi
levado para a Europa, ficando assim conhecido em outro continente.
A partir das reformas pombalinas, no governo de D. José I, Regente de Portugal, iniciadas
na segunda metade do século XVIII, os jesuítastiveram suas ações missionárias coibidas
progressivamente (SILVA, 2004, p. 121), após serem acusados de não darem apoio aos serviços
dos índios para a coroa, interferirem na ação da justiça e de não concordarem com o uso da força
para obtenção de indígenas para o trabalho compulsório.
No ano de 1775, com a criação da Capitania de São José do Rio Negro, atual Estado do
Amazonas e, com a criação de sua capital, Barcelos, o governo português começa a restringir
legalmente a ação dos jesuítas na região. Retirando das mãos deles a administração temporal dos
aldeamentos da Amazônia.
As pressões sobre os jesuítas vão aumentando até a definitiva expulsão dos mesmos do
Brasil e de todas as colônias pertencentes a Portugal. Deixando assim, os aldeamentos e os índios
que neles habitavam de certo modo desemparados. Provocando uma retração em todos os níveis
dessas localidades.
Portugal se utiliza de missionários de outras ordens religiosas (CARNEIRO, 2012, p. 20)
para repovoar a região. Em 1796, a missão de Maguases é reativada. No local só restaram dois
povoados em situação de precária. Para repovoá-los foram capturados e recolocados neles
pessoas dos povos Abacaxis e Mawés, que viviam nos arredores e Toras e Mundurucus
capturados entre os rios Madeira e Tapajós (CARNEIRO, 2012, p. 20).
Para fundar o povoado de Luséia foram reunidas mais de duzentas e quarenta famílias
pertencentes ao povo Mawés e Mundurucu. Agora, sob a direção do frei José Álvares das Chagas,
487
da ordem carmelita. Ficando, ele, encarregado de difundir o cristianismo católico na região.
O colonizador chamava o povoado de Luséia, em homenagem a seus dois fundadores. Os
Mawés a chamavam de Uacituba, que significa terra grande ou terra fértil. Entretanto, seu nome
oficial era Povoação Nossa Senhora da Conceição de Luséia, nome dado pelo governo português
(CARNEIRO, 2012, p. 20).
No ano de 1803, foi criada oficialmente a Missão Maués, que recebe incentivos do
governo para prosperar. Mas, conflitos entre os carmelitas e colonos prejudicam seu pleno
desenvolvimento. Esses conflitos continuaram até 1807. O termino desses conflitos permite um
melhor desenvolvimento agrícola da região, em especial do guaraná, que se intensifica
seguidamente até a Revolta dos Índios Mawés no ano de 1832, já na época do Brasil Império.
Esta revolta aconteceu em virtude de rumores que apontavam para um plano de escravizar
os Mawés da região. O Tuxaua Manoel Marques após dar grito de guerra dominou a Missão e
mandou matar colonos e trinta soldados que guarneciam a Missão. Contudo, no mesmo ano, com
a vinda de uma expedição militar paraense foi que se conseguiu fazer com que a região voltasse
ao controle do governo provincial (RIBEIRO, 1996, p. 57).
No ano de 1833, a Missão apresenta prosperidade para os padrões da época, em função do
intenso comércio do guaraná feito pelos povos indígenas e colonos. Maués é elevada
seguidamente a categoria de vila e município. Recebendo então o nome de Vila Luséa e criando
no ano seguinte, 1834, a festividade em homenagem ao Divino Espírito Santo.
A Cabanagem, de 1833 a 1839, movimento de contestação das populações, caboclas,
negras e indígenas, descontentes com a sua condição de vida, a região é sacudida mais uma vez.
Nessa região, os grupos autônomos de Mawés, Mundurucus e Muras participaram ativamente
dessa revolta (RIBEIRO, 1996, p. 58), dominando a Vila Luséa.
Com a desmobilização do movimento cabano, com a retomada do poder por parte do
governo imperial e, ao perderem o controle das principais cidades, as capitais, Belém e Manaus,
os cabanos rumam para a Amazônia Ocidental e espalham-se pelo interior para continuarem os
confrontos. Em sua fase final, de 1837 a 1840, os cabanos perderam seus principais líderes em
combates. Em 1838, Miranda Leão pacífica a região.
Ao final do conflito a Província do Pará estava arrasada, as suas populações diminuíram
em número e ficaram empobrecidas. O crescimento é retomado em ritmo lento. No ano de 1850,
a Comarca do Alto Rio Negro é elevada à categoria de Província, com o nome de Amazonas.
488
Esta Comarca tinha quatro municípios autônomos, sua capital Manaus, Maués o terceiro
maior colégio eleitoral, Barcelos sua primeira capital; e, Tefé. Em 1865, por Lei Provincial Vila
Maués tem seu nome mudado para Vila da Conceição, em homenagem à padroeira municipal,
Nossa Senhora da Conceição.
Passados os anos e com o advento da República, em 1889, o governo provisório do
Amazonas dissolve a Câmara Municipal, que se torna Intendência municipal de Maués.
Mantendo a condição de município e, no ano de 1892, oficializa-se o nome “Maués”, para o
município. Ainda no mesmo ano, ela é elevada à condição de comarca e quatro anos mais tarde,
em 1896, ao status de cidade, recebendo o nome de Cidade de Maués.
O Dr. Luiz Pereira Barreto, cientista, em 1905, após pesquisa com o guaraná desenvolve o
extrato que torna possível a fabricação do refrigerante. Surge o “Sorf Drinks”, produzido pela
empresa Antártica Paulista. Sementes começaram a ser beneficiadas, por meio da torragem, seu
valor de mercado sobe. Pois, até então seu consumo era apenas de produto em pó ou bastão. Tal
fato impulsionou ainda mais o comércio e a vinda de imigrantes.
No início do século XX, além do crescente e prospero comércio do guaraná vinheram
para Maués imigrantes de outras regiões do Brasil e do mundo. Vinheram judeus, italianos,
japoneses e portugueses vindos de suas terras natais por motivos diversos. Todos trabalharam
com o comércio ou com a agricultura, ligada principalmente ao guaraná.
Com o advento da república brasileira, esta cidade começou a ser administrada por
intendentes municipais nomeados pelo governo do Estado. Essa situação perdurou até o ano de
1947, quando foi eleito o primeiro prefeito. Esta cidade sempre foi administrada por famílias
tradicionais da região, donas de terras ou de ricos comerciantes locais. Hoje, ela é o sétimo
colégio eleitoral do estado do Amazonas.
Maués, hoje, é subdividida, na sua área urbana entre os bairros do Mirante do Éden,
Ramalho Júnior, Mário Fonseca, Santa Luzia, Centro, Maresia, Santa Tereza, Donga Michiles,
Santo Domingos e Senador José Esteves. Possui mais de 105 comunidades rurais espalhadas
pelas calhas dos seus rios. Sua população atual, distribuída nessas diversas localidades e estimada
em 62.212 habitantes (IBGE, 2017).
Estabelecimentos comerciais ficam lotados durantes os grandes eventos da cidade. Todo o
ano acontece o Carnaval Popular de Maués, Festa do Divino Espírito Santo, Aniversário de
Maués, Festival Folclórico da Ilha da Vera Cruz, Festival de Verão e Festa do Guaraná. Este
489
último evento é considerado maior evento sociocultural e econômico da região.
A Festa do Guaraná é um dos maiores eventos do Estado do Amazonas e contribui para
propagar a imagem da cidade como sendo a “Terra do Guaraná”. Mesmo sendo uma festa com
atrações culturais está embutido nela à ideia de atrair novos investimentos, com o objetivo de
desenvolver economicamente o município, bem como as suas potencialidades turísticas. O ponto
culminante deste evento é a apresentação da Lenda do Guaraná.

Considerações finais
Nesta podemos afirmar que os pesquisadores e memorialistas retratam que o guaraná tem
ligação estreita com o povo Sateré-Mawé e com a cidade de Maués. Que povo é retradado e se
autoproclama “Filhos do Guaraná” e o segundoaceita a ideia de ser autodenomino “Terra do
Guaraná”. Justifica questões políticas, econômicas e sociais. E, para a sociedade local essas duas
ideias estão muito ligadas, a existência de um justifica a existência do outro.
Eles retratam essa ligação na Lenda do Guaraná. Que todos os anos é encenado na Festa
do Guaraná. Para eles este produto é tão importante que podemos descrever que eles são o
guaraná e o guaraná são eles. A sua identidade é a mesma que a do fruto. Portanto, a Lenda do
guaraná, nasceu com o povo e cidade de mesmo nome, Maués, e é o símbolo de suas raízes
culturais e identitárias.
Foi descrito que mesmo com quase quatro séculos de contatos com povos alheios a sua
cultura, são retratados como lutadores que ganharam, perderam, viveram, vivem e convivem com
demais pessoas e povos. Hoje, com população de aproximadamente 110000 não se afastam da
sua própria cultura e da sua língua materna, o Mawé.
Habitando uma área de aproximadamente 790.000 hectares, demarcada e homologada
pelo Governo Federal, este povo nos apresenta uma magnífica história e identidade sociocultural.
Apontando, que este povo guarda um grande valor e que deve, por isso, ser reconhecido e
respeitado.
Encerra-se assim essa parte relatando que é vital atuar na desconstrução de preconceitos e
discriminações, que podem naturalizar a condição da existência de uma cultura menor,
fortalecendo assim as relações de silenciamento e ocultamento da identidade indígena, aqui
representada pelo povo Sateré-Mawé.

490
Referências
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TEIXEIRA, Pery (organização e coordenação geral). Sateré-Mawé: retrato de um povo
indígena. UNICEF. 2005.

491
OS TRABALHADORES EXTRATORES NA AMAZÔNIA: UMA DISCUSSÃO
TEÓRICA SOBRE UMA DAS FORMAS DE TRABALHO NÃO LIVRE DO INÍCIO DO
SÉCULO XX

ROMULO THIAGO OLIVEIRA DE SOUSA*

Introdução
O objetivo central deste texto é utilizar das contribuições teórico-metodológicas dos
textos que foram objeto de discussão na disciplina Tópicos Especiais em História III: Formas de
Trabalho não-livre no mundo contemporâneo284 e demonstrar como alguns autores, relevantes
para historiografia sobre os seringueiros, caracterizaram e categorizaram a relação de trabalho
entre os seringalistas e os trabalhadores extratores do látex da Hevea brasiliensis e ao final do
texto categorizar as atividades desenvolvidas por estes trabalhadores, se for o caso, como uma
forma de trabalho não livre.
A partir dos anos de 1980 ocorreu um processo de revisão historiográfica com a inserção
de novos procedimentos metodológicos e modelos analíticos que questionaram perspectivas
consagradas em dois campos, até então dissociados, da História Social: os estudos sobre a
escravidão e os estudos a respeito da classe operária285. Sidney Chalhoub e Fernando Teixeira286
apontam Ângela Maria de Castro Gomes como uma das historiadoras a notar o paralelismo

*
Graduado em História e Pós-graduando em História Social pela Universidade Federal do Amazonas, bolsista
financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES. E-mail:
thiarom@gmail.com.
284
Paper elaborado para obtenção de nota na disciplina de Tópicos Especiais em História III: Formas de trabalho
não livre no mundo contemporâneo ministrada pela Professora Dr.ª Patrícia Maria Melo Sampaio do Programa de
Pós-Graduação em História-PPGH da Universidade Federal do Amazonas-UFAM.
285
Claudio H.M. Batalha ao fazer um balanço sobre as pesquisas escritas sobre a História do trabalho no Brasil nos
primeiros anos do século XXI aponta que um dos aspectos mais evidentes foi a ampliação de enfoquese enfatiza que
“a discussão sobre quem englobar em uma história do trabalho. Qual, afinal, seria seu objeto? Hoje, em tese, quase
todos os seus praticantes estão de acordo que a redução da história do trabalho ao operariado fabril é inaceitável,
que seria necessário incluir trabalhadores livres e não livres, urbanos e rurais, assalariados e autônomos,
contratados e sazonais. Refletindo essa perspectiva, já há pesquisadores da escravidão e do mundo rural que se
identificam na história do trabalho”. BATALHA, Cláudio H.M. Os desafios atuais da história do trabalho. Anos
90, Porto Alegre, v.13, n.23/24, p.87-104, jan./dez.2006. p.89.
286
Sidney Chalhoub e Fernando Teixeira em artigo denominado de Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e
trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980 fazem uma análise da historiografia desses dois
campos da pesquisa histórica, onde o argumento central da investigação está fundamentado na revisão
historiográfica, iniciada nos anos de 1980 fortemente influenciada pelo contexto político da época e do contato dos
historiadores com os estudos de E.P. Thompson, de obras cujas perspectivas canonizaram a ideia de uma ausência de
cultura política vinculado aos trabalhadores escravizados e aos trabalhadores urbanos “livres”. Além de apontarem
para as dificuldades de diálogo entre esses dois campos temáticos por causa da presença de um muro de Berlim
historiográfico. CHALHOUB, S. e SILVA, Fernando T. Sujeitos no Imaginário acadêmico: escravos e
trabalhadores na historiografia brasileira. Cad. AEL, v.14, n.26, 2009, p. 37.
492
existente entre as problemáticas da história social da escravidão e da história social do trabalho,
dando vigor a um processo de reflexão em relação à constituição de variadas formas de relações
de trabalho, que vão além da categoria denominada de trabalho livre, na sociedade brasileira
marcadas pela experiência da escravidão.
O que é denominado de uma das formas de trabalho não livre é conceitualmente
expressado em artigo intitulado de Labor – Free or Coerced? A historical reassessment of
diferences and similarities,escrito por Robert J. Steinfeld e Stanley L. Engerman287, onde são
apontadas as variadas formas de trabalho coercitivos, indo além da escravidão institucional, e não
se encaixando na categoria de trabalho livre como elaborada por Marx288.
Ricardo Figueira em artigo denominado de Por que o trabalho escravo? ao discorrer e
analisar um fenômeno costumeiro em fazendas dos interiores do Pará, também, presente em
diversas partes da Amazônia brasileira, nos anos de 1970, alcunha de o problema da escravidão,
enfatizando para as diferentes características doproblema:
(...) entre elas as atividades produtivas, o tempo de execução das tarefas, as formas de
reter a pessoa na área de trabalho, ou as formas de retenção dos refratários ou
insubordinados. Em comum havia sempre a dívida, que podia ser real ou fictícia, e a
obrigação de saldá-la antes de sair do imóvel.(FIGUEIRA, 2000:33)

Ao enumerar variadas questões para compreensão do fenômeno analisado, que ao longo


do texto, apenas algumas são respondidas, o autor nos presenteia com um manual metodológico,
que nos ajudará na caracterização e, posteriormente, na categorização do nosso objeto de estudos.
Algumas das questões norteadoras deste texto são: Como os autores que falaram da relação de
trabalho entre seringalistas e seringueiros categorizaram esta relação? Quais são as características
do trabalho não livre? Por que o trabalho realizado pelos extratores do látex da Hevea
brasiliensis, do início do século XX, deve ser considerado uma forma de trabalho não livre?289

De uma relação de livre comércio para uma forma de trabalho não livre?
Resistência e controle social

287
Artigo publicado no livro cujo título é: Free and unfree labour: the debate continues, organizado por Tom Brass e
Marcel Van Der Linden.
288
Sobre a categoria de trabalho livre elaborado por Marx ver LINDEN, Marcel Van Der. Rumo a uma nova
conceituação histórica da classe trabalhadora mundial. / Marcel Van Der Linden. Tradução: Alexandre Fortes.
História, São Paulo, v.24, nº 2, p. 11-40, 2005, p.13.
289
Estas são questões reformuladas que estão presentes no artigo de Ricardo Figueira. FIGUEIRA, Ricardo Rezende.
Por que Trabalho Escravo?Estudos Avançados, v. 14, n. 38, p. 31-50,2000; p. 33.
493
No início da relação social, entre os atores, da empresa mercantil extrativista da borracha,
o patrão, que posteriormente foi denominado de seringalista, em algum momento fora chamado
de seringueiro, aquele que explorava economicamente a Hevea brasiliensis, e o seringueiro, o
extrator do látex, era denominado de freguês290. O termo freguês291 foi utilizado para designar
uma relação comercial como apontava o Novo Diccionário da Língua Portuguesa de Cândido
Figueiredo de 1913, o que evidencia uma relação de livre negociação de duas ou mais partes
interessadas, mas, parece que houve, no decorrer do desenvolvimento desta relação, mudanças de
características durante este processo. Esta mudança dialoga, apesar das diferenças marcantes,
com o fenômeno que Prabhu Mohapatra analisa no artigo intitulado de Informalidade
regulamentada: construções legais das relações de trabalho na Índia Colonial(1814-1926). Ao
questionar a identificação corrente entre informalidade e ausência de regulação das relações de
trabalho na Índia, Mohapatra alega que o crescimento do setor informal é resultado de longa
intervenção estatal naquele país. O autor afirma que não há como definir as relações informais
sem recorrer à negação das relações formais, e toda investigação histórica das relações informais
de trabalho tem de partir da explicação do surgimento de estruturas formais de
regulamentação292. Para isto, ao longo do texto, Mohapatra demonstra como ocorreu o processo
de regulamentação do trabalho, pelo Estado Colonial, baseado na criminalização do trabalho
livre, com a repressão de mecanismos costumeiramente utilizados pelos trabalhadores indianos,
mecanismos que possibilitavam a mobilidade dos trabalhadores, caracterizando o trabalho livre.
O que queremos argumentar, salvaguardando todas as diferenças, é que no caso amazônico, com

290
Leandro Tocantins traçou a mudança de denominação dos atores das relações de trabalho do seringal, afirmou que
chegando ao conhecimento dos portugueses tais objetos, saudados como úteis à civilização, o seu nome passou a
ser, também, o da árvore que jorra o leite. Árvore de seringa. E de seringa surgiu o seringal, o espaço físico-social
onde se erguem, dispersas pela floresta, as espécies vegetais da borracha. E do seringal, o seringueiro, o homem
que se associa à planta, para explorá-la. Uma trilogia marcadamente ecológica. Ainda na mesma página e em nota
de rodapé, o autor fala depois do ano de 1920, apareceu o neologismo seringalista, para designar o proprietário do
seringal, que, antes, era o patrão ou mesmo seringueiro, confundindo-se, na nomenclatura, com verdadeiro extrator
da borracha. Hoje, a palavra está definitivamente integrada no vocabulário regional. Assim, passou a ser um
quarteto ecológico: seringa, seringal, seringalista e seringueiro. TOCANTINS, Leandro. Amazônia: natureza,
homem e tempo. Coleção temas brasileiros, sob a direção de Arthur Cezar Ferreira Reis. Editora Conquista; Rio de
Janeiro, 1960; p. 165.
291
Definição do termo freguês e alguns variantes: Freguês, (fré) m. Habitante de uma freguesia. Cliente. Aquelle que
compra ou vende habitualmente a determinada pessôa. (Cast. feligrés, talvez do lat. filius gregis); Freguesa, (fré)
(fem. de freguês); Freguesia, (fré) f. Paróchia. Igreja parochial. FIGUEIREDO, Candido. Novo Diccionário da
Língua Portuguesa de Cândido Figueiredo de 1913. Projeto Gutenberg EBook; Biblioteca Nacional de Portugal.
Disponível para pesquisa em: http://dicionario-aberto.net; p. 52 e 908.
292
MOHAPATRA. Prabhu. Informalidade regulamentada: construções legais das relações de trabalho na Índia
Colonial (1814-1926). Cad. AEL, v.14, nº 26, 2009; p. 58.
494
a expansão da empresa mercantil vinculado à extração do látex da Hevea brasiliensis e a
efetivação das relações de trabalho entre seringueiros e seringalistas, houve uma mudança da
livre negociação dos produtos para a uma forma de trabalho não livre, ou apenas a não adequação
conceitual do termo a esta relação, ou ainda, um outro uso para o termo freguês, que foge do uso
convencional, para nomear um ator de um novo fenômeno, moldado nas experiências293 da
escravidão e nas formas legais de compulsão ao trabalho294, mascarado de livre negociação.
A não circulação de dinheiro ou papel-moeda nos seringais, acarretava a troca da
borracha, que os seringueiros produziam, pelos produtos que os seringalistas disponibilizavam,
chamado de sistema de aviamento.295 Arthur Reis, em livro intitulado de O seringal e o
seringueiro,ao falar sobre as relações entre o patrão e o freguês apontou uma das características
desta relação:

Porque, se o aviador e o seringalista exploram o seringueiro, este não se comporta


melhor. Vinga-se com as armas de que dispõe e de acordo com primarismo de sua
inteligência, das coisas e dos homens. Assim é que negocia às escondidas a produção de
sua safra, lesando o seringalista, entrega-se à madraçaria, diminuindo a produção ou
extraindo látex por processo proibido para aumentar a purgação e dispor de safra maior
que lhe garantirá saldo-credor. (REIS, 1977: 178)

O fato de os trabalhadores extratores do látex da Hevea brasiliensis negociarem às


escondidas suas produções com outros atores da rede desta empresa mercantil, os regatões, e a

293
Conceito formulado por E. P. Thompson, explicitado no capítulo intitulado de O termo ausente: experiência do
livro A miséria da teoria ou um planetário de erros: Uma crítica ao pensamento de Althusser, no qual diz:
Exploramos tanto na teoria como na prática, os conceitos de junção (como “necessidade”, “classe” e
“determinação”), pelos quais, através do termo ausente, “experiência”, a estrutura é transmutada em processo, e o
sujeito é reinserido na história. (...). E quanto à “experiência” fomos levados a reexaminar todos esses sistemas
densos, complexos e elaborados pelos quais a vida familiar e social é estruturada e a consciência social encontra
realização e expressão (...): parentesco, costumes, as regras visíveis e invisíveis da regulação social, hegemonia e
deferência, formas simbólicas de dominação e de resistência (...) tudo o que, em sua totalidade, compreende a
“genética” de todo o processo histórico, sistemas que reúnem todos, num certo ponto, na experiência humana
comum, que exerce ela própria (...) sua pressão sobre o conjunto.THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou
um planetário de erros: Uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981; p. 188 e 189.
294
Patrícia Melo Sampaio em artigos intitulados de Africanos e Índios na Amazônia: Experiências de precarização
da liberdadeeNos confins do Império: Diversidade e etnicidade no mundo do trabalho na Amazônia do século XIX
ao tratar dos encontros entre índios, escravos e africanos livres no mundo do trabalho amazônico, dialogando com
autores como Beatriz Mamigonian e Sidney Chalhoub, mostrou como o Estado imperial contribuiu para limitar a
mobilidade de trabalhadores, o que nos ajudou a pensar a problemática passagem do trabalho escravo para o livre e
as diversas formas de trabalho existentes da segunda metade do século XIX e início do século XX. SAMPAIO,
Patrícia Melo. Nos confins do Império: Diversidade e etnicidade no mundo do trabalho na Amazônia do século
XIX. In: Histórias da escravidão e do pós-abolição para escolas. Org. por Giovana Xavier. Belo Horizonte: Fino
Traço Editora; Rio de Janeiro: MC&G Editorial; Brasília: MEC, 2015, p.179-194; p. 181.
295
REIS, Arthur Cezar Ferreira., op. cit.; p. 176.
495
necessidade da criação de regulamentos296 pelos proprietários dos seringais, fez com que autores,
à luz dos avanços das revisões e discussões da história social, interpretassem tais práticas,
respectivamente, como uma das muitas formas de resistência297 e de controle sobre os
trabalhadores, o que de fato são.
A questão que fazemos aqui é: poderíamos pensar a negociação às escondidas da
borracha pelos seringueiros com outros interessados pelo produto como tentativa de praticar a
livre negociação conceitualmente evidenciada no termo freguês? E a necessidade de criação de
regulamentos dentro dos seringais, culminando na imobilização da mão de obra, como um
processo que caracterizará uma forma de trabalho não livre? A proposta é pensar não como uma
evolução, ou mesmo regressão, da livre negociação para uma das formas de trabalho não livre, e
sim como apontam muitos historiadores, a coexistência de ambos298 e a conveniência, baseadas
nas experiências da escravidão e nas formas legais de compulsão ao trabalho, como exposto
acima, por parte dos patrões de controlarem a mão de obra extratora299.
David McGrath em artigo intitulado de Parceiros no crime: O regatão e a resistência
cabocla na Amazônia tradicional, explica, através das diversas literaturas sobre o tema, como
funcionavam as relações comerciais entre os sujeitos do sistema de aviamento:

Como é implícito nessas relações, existem dois componentes no sistema de aviamento:


de um lado, o sistema comercial, com transações baseadas principalmente no escambo e
no crédito, raramente envolvendo dinheiro em moeda; do outro, a rede comercial,
baseada neste tipo de relação, com produtores individuais ligados às casas aviadoras
específicas através de uma rede de intermediários. (MCGRATH, 1999:59)

296
Davi Leal em sua dissertação intitulada de Entre barracões, varadouros e tapiris: os seringueiros e as relações de
poder nos seringais do rio Madeira (1880-1930) mostra como os regulamentos dos seringais tinham a função de
controle da mão de obra e apresenta-os como a forma mais direta de estabelecimento do contrato de trabalho entre o
patrão e o freguês. LEAL, Davi Avelino., op. cit.; p. 99.
297
Em artigo intitulado de Parceiros no crime: O regatão e a resistência cabocla na Amazônia tradicionalDavid
McGrath escreveu como o regatão, pequeno comerciante itinerante, exerceu um papel de resistência, juntamente,
com o produtor independente, o seringueiro, a margem das relações comerciais do capitalismo mercantil em voga na
Amazônia do final do século XIX e início do século XX. MCGRATH,David. Parceiros no crime: O regatão e a
resistência cabocla na Amazônia tradicional. Novos cadernos NAEA, vol. 2, nº 2 – dezembro de 1999; p. 64.
298
Quanto a possibilidade de existência de variadas formas de trabalho coercitivo ver LINDEN, Marcel Van Der.,
op. cit.; p. 11-40; STEINFELD, Robert J.; ENGERMAN, Stanley L., op. cit.; p. 108-126.
299
Sidney Chalhoub em artigo denominado de Costumes Senhoriais: escravização ilegal e precarização da liberdade
no Brasil Império a partir do diálogo com o aparato conceitual de E.P. Thompson evidencia como as elites brasileiras
do século XIX consideravam costumeiros os atos, com a condescendência das instituições imperiais, de escravização
de pessoas livres de cor, formulando o conceito de precarização da liberdade. CHALHOUB, Sidney. Costumes
Senhoriais: escravidão ilegal e precarização da liberdade no Brasil Império. In: AZEVEDO, E. et alli (orgs)
Trabalhadores na cidade. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 2009, p.23-62; p. 25.
496
Mas o que nos interessa aqui são alguns dos argumentos apresentados por McGrath, em
diálogo com Barbara Weinstein, quanto à resistência do produtor individual, o seringueiro, que
vendia às escusas seus produtos para os regatões. Para o autor, o isolamento relativo dos
seringueiros dificultava o controle da mão de obra pelos patrões e facilitava a resistência300. Com
base nos escritos de Russan, gerente de um seringal de propriedade inglesa na expansão da
empresa mercantil extrativistada borracha, que escreveu, em 1902, o quanto achava incomum que
nas regiões de extração da borracha do Brasil a produção não pertencesse ao dono do seringal e,
sim, ao seringueiro que a vendia ao patrão301, McGrath diz:

(...) Russan dá o exemplo da Rubber States of Pará, que produzia em média 250
toneladas de borracha por ano sob controle brasileiro, mas que conseguiu apenas 50
toneladas por ano sob duas firmas inglesas sucessivas. “O que houve com a diferença, as
duzentas toneladas?”, pergunta Russan. “Há pouca dúvida”, ele escreve, “de que algo
como essa quantidade de borracha foi vendida aos piratas fluviais” (Russan, 1902:7).
(...). Foi através de uma vigilância constante e a disposição de “remover o infrator da
face da terra”, uma opção não disponível para firmas estrangeiras, que os seringais
brasileiros foram capazes de manter a resistência dos seringueiros e regatões em níveis
aceitáveis. Portanto, apesar do fato de os regatões não terem um papel significativo no
comércio ou na acumulação de capital nesse período, eles tiveram um impacto
considerável no caráter do sistema de aviamento e na direção do desenvolvimento
amazônico; (MCGRATH, 1999:68)

O que explica a discrepância da produção da Rubber States of Pará quesob o controle


brasileiro atingiu uma média de 250 toneladas de borracha por ano e que sob o controle das
firmas inglesas conseguiu apenas 50 toneladas por ano? O controle coercitivo da mão de obra
pelas elites comerciais da Amazônia, talvez, tenha sido uma maneira de acumular capital e, ao
mesmo tempo, rechaçar a livre negociação dos extratores do látex da Hevea brasiliensis, com os
regatões, cujas atividades não possuíam um papel proeminente na acumulação de riqueza,
consequência ou não deste controle, visto que esta relação foi costumeiramente negada, com
consentimento do Estado302, como aponta a historiografia sobre o tema.
Carlos Teixeira, que defendeu sua dissertação em sociologia nos fins da década de 1970,
apontou que o sistema de aviamento considerava o seringueiro, teoricamente, como produtor
livre ou freguês, interpretando que esta relação estava impregnada de um conteúdo ideológico
que deu ao seringueiro o status de participante das relações da empresa mercantil, o autor julga

300
MCGRATH, David., op. cit.; p. 58.
301
Ibid.; p. 59 e 60.
302
McGrath evidencia como os comerciantes vinculados a extração da borracha, coadunados com a política regional,
impuseram altíssimos impostos aos regatões.Ibid.; p. 62.
497
esta situação como artificial, pois como freguês, o seringueiro, não poderia participar livremente
negociando seus produtos, e como trabalhador, não se encontrava livre para vender sua força de
trabalho, portanto, qual seria a condição do trabalhador que extraia o látex da Hevea brasiliensis?
Carlos Teixeira direciona uma resposta:

Nesse sentido, se é inclinado a admitir tratar-se de uma forma especifica de sujeição do


trabalhador, ao capital, sujeição que se dá mediada pelo aviamento e mais
particularmente pelo barracão. (TEIXEIRA, 2009:130)

Caracterizando o trabalho não livre: apontamentos das peculiaridades da relação de


trabalho entre seringueiros e seringalistas com base na historiografia

Para ser considerado trabalho não livre, uma forma intermediária entre a escravidão
institucional e o trabalho livre assalariado303, é necessário que haja algumas características,
apontadas por autores citados na introdução deste texto, que ajudarão a evidenciar esta forma de
trabalho existente no processo de expansão da empresa mercantil vinculada a extração do látex.
Os atores envolvidos no processo de recrutamento e, em muitos casos, na imobilização da
mão de obra, foram o Estado304, os patrões ou seringalistas e as forças policiais.
O Estado complacente as demandas comerciais, como demonstrado acima, impondo altos
impostos aos regatões, como forma de impedir a livre negociação. Os patrões ou seringalistas,
que muitas vezes, também, faziam o papel de agenciadores, os chamados Paroaras305, estes que

303
Norberto O. Ferreras em artigo cujo título é O Brasil e o trabalho análogo à de escravidão: a questão das
migraçõesdiz que: (...) Desde o momento em que a escravidão passou a ser legalmente abolida nos diferentes países,
outras alternativas de controle compulsório de trabalhadores foram acionadas. Uma vez que a abolição da
escravidão foi consagrada, vieram à luz outras formas de controle do trabalho, como a dívida e o tráfico de pessoas,
que passaram a ser os principais meios de forçar os grupos vulneráveis de pessoas ao trabalho compulsório. Muitas
vezes estas formas de recruta de trabalhadores estavam no limite da legalidade. A escravidão legal acabava, mas
apareceram novas e velhas formas, fossem legais ou ilegais, de sujeição dos trabalhadores. FERRERAS, Norberto
O. O Brasil e o trabalho análogo à de escravidão: a questão das migrações. /Norberto O. Ferreras. Revista do
arquivo geral da cidade do Rio de Janeiro. N.º 11, 2016, p. 407-422; p. 411.
304
Arthur Reis no capítulo intitulado de As condições sanitárias. Epidemias mais constantes. O desgaste humano e
econômico. A ação dos curandeiros diz que (...) na voracidade de tirar da floresta o que ela possuía capaz de
satisfazer ao apetite da indústria estrangeira que crescia numa velocidade espantosa exigindo a matéria-prima que
a alimentasse, nem o Estado, interessado apenas nos lucros que lhe advinham dos impostos, nem os aviadores,
preocupados no maior volume de produção que lhes chegava da selva, nenhum deles se preocupou com a
modificação daquele quadro. REIS, Arthur Cezar Ferreira., op. cit.; p. 262.
305
Alexandre Cardoso salienta(...)que João Gabriel de Carvalho e Melofoi um sujeito que fugiu a regra, figurando
entre uma minoria que prosperou economicamente, estabelecendo-se enquanto proprietário de terras no território
que atualmente situa-se entre os estados do Acre e Amazonas(...) é importante entender como foi o constituir-se das
escolhas dos migrantes, como foram articulados os caminhos que os levaram até o Amazonas. (...) A figura do
Paroara, ricamente descrita na obra de Rodolpho Theóphilo, era um dos vetores de disseminação desse tipo de
498
vieram para Amazônia no decorrer da segunda metade do século XIX, provavelmente, alguns,
foram os sujeitos das primeiras levas de migrantes que procediam, geralmente, das províncias do
Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e outras, que com a expansão da empresa
mercantil conseguiram acumular fortuna e voltavam para suas terras bem vestidos e com indícios
de riqueza, provocando orgulho e inveja em seus conterrâneos, estes eram a imagem dohomem
que deu certo em outras terras e tornando-se intermediários do processo de recrutamento da mão
de obra306.
E as forças policiais e judiciais, como os juízes municipais que na prática, vez ou outra,
também exerciam as funções de chefe de polícia307, estes, como aponta Davi Leal em dissertação
defendida no ano de 2007, tinham o papel preponderante no processo coercitivo da mão de obra,
visto que, um destes, no ano de 1900, condenou a prisão, seringueiros por cometerem o crime de
furto, pois haviam negociado a borracha produzida, as escondidas, com Antônio Xavier da
Fonseca, um provável regatão308.
Quais são os elementos do processo de recrutamento da mão de obra que culminou em
sua imobilização? Primeiro, o desemprego e a pobreza nas áreas de recrutamento309. Os sujeitos
vindos das diversas províncias, do que hoje denominamos de nordeste brasileiro, segundo Arthur
Reis, emigraram, primeiramente, pela impiedade das secas e, posteriormente, pelas possibilidades
de enriquecimento que a empresa mercantil vinculada à extração do látex da Hevea brasiliensis
oferecia310. Apreende-se que houve variados movimentos migratórios das províncias nordestinas

informação, apresentando aos seus conterrâneos um mundo farto resguardado na distante e rica
floresta.CARDOSO, Antônio Alexandre Isidio., op. cit.; p. 90 e 137.
306
Samuel Benchimol diz que (...) os paroaras, como eram chamados, no Ceará, os filhos da terra quando voltavam
enriquecidos do Pará. BENCHIMOL, Samuel. Os “cearenses”: Nordestinos na Amazônia. In: Amazônia:
Formação social e cultural. / Samuel Benchimol. 3ª ed. – Manaus: Ed. Valer, 2009; p. 164.
307
Alexsandro Nascimento afirma que (...) a atribuição dos cargos era confusa. Com funções parecidas para os
responsáveis da justiça e punição, possivelmente os juízes e membros da polícia deviam discutir quem era o
responsável a realizar uma determinada atribuição. NASCIMENTO, Alexsandro Ribeiro do Nascimento. A Justiça
quase perfeita: Discussões sobre os Juízes municipais na Comarca do Recife. XXVII Simpósio de Nacional de
História-ANPUH; Conhecimento histórico e diálogo social; Natal-RN; 22 a 26 de julho de 2013; p. 03.
308
Davi Leal no capítulo Heterotopias: construindo espaços de resistência apresenta o caso: A borracha desviada
furtivamente, continua a nota, foi vendida a Antonio Xavier da Fonseca, comerciante no Alto Madeira. Para o juiz
municipal, os seringueiros citados cometeram o crime de furto, pois subtraíram e se apropriaram de coisa alheia
móvel, contra a vontade do respectivo dono, que no caso é Fidel Bacca, patrão e aviador dos seringais onde a
borracha foi subtraída e vendida (HUMAYTHAENSE, Humaitá, domingo, 28 de março de 1900). LEAL, Davi
Avelino., op. cit.; p. 136.
309
FIGUEIRA, Ricardo Rezende., op. cit.; p. 43.
310
REIS, Arthur Cezar Ferreira., op. cit.; p. 233 e 234; Samuel Benchimol diz que (...) procediam geralmente das
zonas do agreste e do sertão do Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e outros estados nordestinos,
sendo tangidos pela seca – imigração por fome –, ora simplesmente atraídos pelo apetite da seringa – imigração por
499
para a vasta região amazônica, por motivos e em momentos diferenciados, como são apontados
por diversos autores. Alexandre Cardoso em dissertação defendida em 2011, evidencia os fluxos
migratórios ocorridos, ao longo da segunda metade do século XIX, como um processo histórico
que foi constituído e motivado por uma pluralidade de fatores, que vão além dos interesses
oficiais e econômicos, perpassando pela construção de redes de sociabilidade propiciando as
escolhas dos próprios sujeitos pela migração.311 O segundo elemento é a propaganda312 atraindo
pessoas para a região onde tornar-se-ão mão de obra, Alexandre Cardoso atenta que o
deslocamento para a Amazônia era uma realidade bastante propagandeada, pelas políticas de
colonização da região, possibilitada pelas sociabilidades daqueles que já tinham migrado com
aqueles que migrariam e as facilitações de navegação com a implantação da Companhia de
Navegação e Comércio do Amazonas.313 O terceiro componente do processo de recrutamento da
mão de obra é o aliciamento feito por meio de promessas314. Finalmente o quarto fator, a
conivência das autoridades, sejam elas estatais, judiciais e policiais315, o que já mencionamos
anteriormente.
Esses fatores contribuíram para que ocorresse o deslocamento de pessoas em massa para a
região amazônica316 no decorrer da segunda metade do século XIX e início do século XX,
ocasionando o desenraizamento dos indivíduos317. Essa situação, nos faz pensar que muitos
desses trabalhadores, apesar das redes de sociabilidade e comunicação no processo de migração

cobiça, fortuna e aventura, ou simultaneamente ambos.BENCHIMOL, Samuel., op. cit.; p. 153 e 154. Euclides da
Cunha no tópico Judas-Asvero, da primeira parte do livro À margem da História, publicado postumamente, em fins
de 1909, representa o quanto o seringueiro se punia(...) afinal, da ambição maldita que o levou àquela
terra.CUNHA, Euclides da. Amazônia: Terra sem história. In: CUNHA, Euclides da. Amazônia: Um paraíso
perdido. / Euclides da Cunha. Organização: Tenório Telles. 2ª edição. Manaus: Editora Valer, 2011; p. 74; No
capítulo I intitulado de A ocupação da terra e o problema da mão de obra, o autor fala que vários foram os fatores
que levaram as migrações de contingentes humanos do Nordeste para a Amazônia, mas a grande seca de 1877 foi o
fator mais imediato, pois coincidiu com o período em que a produção de borracha iniciava uma fase de considerável
expansão. TEIXEIRA, Carlos Corrêa., op. cit.; p. 36.
311
CARDOSO, Antônio Alexandre Isidio., op. cit.; p. 31-32 e 137.
312
FIGUEIRA, Ricardo Rezende., op. cit.; p. 32.
313
CARDOSO, Antônio Alexandre Isidio., op. cit.; p. 19.
314
Euclides da Cunha no tópico Judas-Asvero representa o quanto o seringueiro se punia (...) da ambição maldita que
o levou àquela terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos da rebeldia recalcando-o cada vez
mais ao plano inferior da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu, escravo, à gleba empantanada dos
traficantes, que o iludiram.CUNHA, Euclides da. op. cit.; p. 74.
315
FIGUEIRA, Ricardo Rezende., op. cit.; p. 32.
316
Alexandre Cardoso afirma a participação de casas aviadoras e do Estado no processo migratório: (...) a sanha por
novos seringais, a abertura de novos campos de exploração, puderam guiar, (viabilizadas pelo financiamento de
várias casas comerciais, seguidas de perto pelo Estado), a ida de trabalhadores para locais tão longínquos das
praças de Belém e Manaus. CARDOSO, Antônio Alexandre Isidio., op. cit.; p. 57.
317
FIGUEIRA, Ricardo Rezende., op. cit.; p. 37.
500
apontados por Alexandre Cardoso, talvez, não tinham relação entre si ao chegarem no lugar onde
eram submetidos a esta relação de trabalho, principalmente no período de expansão da empresa
mercantil que espalhava-se pelo vasto território amazônico.
Quais são as características dos trabalhadores para que ocorresse, com maior efetividade,
a imobilização da mão de obra, caracterizando uma forma de trabalho não livre? Segundo
Ferreras, a baixa escolaridade ou ausência de escolaridade e situação de vulnerabilidade
socioeconômica são elementos que facilitariam o processo de imobilização dessa mão-de-obra318.
Arthur Reis, ao falar sobre o cotidiano das relações trabalhistas do seringal, diz que, após o fim
de cada período de coleta do látex e produção da borracha, que ele denomina de safra, o
seringueiro ia à sede do seringal, onde eram conferidas as contas e verificado se tinha saldo a
receber. No entanto, os trabalhadores ficavam sujeitos à desonestidade dos patrões, visto que
eram em sua maior parte analfabetos319.
Quanto à situação de vulnerabilidade socioeconômica dos migrantes, como é conhecido.
Em sua maioria, eles eram retirantes320 em busca de melhorias de vida, pessoas cujas condições
de sustento eram limitadas. Porém, não devemos pensar as secas e o Estado como os principais
atores que determinaram o processo histórico, anulando a capacidade de ação dos sujeitos no
processo migratório321, como ressaltado por Alexandre Cardoso.

318
Ibid.; p.34; Norberto O. Ferreras., op. cit.; p.407-422.
319
Arthur Reis diz que (...) Estão, assim, sujeitos à honestidade ou não dos que lhes são devedores ou credores. A
escrita dos seringais, onde deverão encontrar averbado o produto de todo o trabalho a que se entregam no seio da
floresta, será exata? Os que por eles podem lê-la, falarão a verdade? REIS, Arthur Cezar Ferreira., op. cit.;p.175 e
176; Barbara Weinsteinafirma, também, que (...) alguns observadores acusavam o patrão de adulterar suas contas
para trapacear ainda mais o seringueiro analfabeto, de desestimular a pequena agricultura no tempo da estação
morta, e de forçar o seringueiro a aceitar mercadorias desnecessárias e supérfluas. WEINSTEIN, Barbara., op. cit.;
p. 36 e 37.
320
Euclides da Cunha escreve que (...) Tem um reverso tormentoso que ninguém ignora: as secas periódicas dos
nossos sertões do norte, ocasionando o êxodo em massa das multidões flageladas. (...) Quando as grandes secas de
1879-1880,1889-1890, 1900-1901 flamejavam sobre os sertões adustos, e as cidades do litoral se enchiam em
poucas semanas de uma população adventícia, de famintos assombrosos, devorados das febres e das bexigas – a
preocupação exclusiva dos poderes públicos consistia no libertá-las quanto antes daquelas invasões bárbaras
moribundos que infestavam o Brasil. (...). Mandavam-nos para a Amazônia – vastíssima, despovoada, quase ignota
– o que equivalia a expatriá-los dentro da própria pátria. A multidão martirizada, perdidos todos os direitos, rotos
os laços da família, que se fracionava no tumulto dos embarques acelerados, partia para aquelas bandas levando
uma carta de prego para o desconhecido, e ia, com os seus famintos, os seus febrentos e os seus variolosos, em
condições de malignar e corromper as localidades mais salubres do mundo. (...) Cessava a intervenção
governamental. Nunca, até aos nossos dias, a acompanhou um só agente oficial, ou um médico. Os banidos levavam
a missão dolorosíssima e única de desaparecerem.CUNHA, Euclides da. op. cit.; p. 52
321
Alexandre Cardoso compreende (...) que os migrantes não tiveram que cumprir uma sina predestinada por fatores
externos a sua vontade, e nem seus caminhos foram feitos ao acaso, sem nenhuma reflexão sobre as possibilidades
da travessia. Refuta-se o posicionamento que articula seus argumentos através da anulação das ações humanas nos
501
Qual a forma de reter o trabalhador na área de trabalho e quais as características de
imobilização dos trabalhadores? A sujeição física e/ou psicológica do trabalhador que tem a
obrigação de quitar uma dívida, antes de sair do local de trabalho322, é a forma mais comum nos
seringais de reter a mão de obra. Euclides da Cunha na primeira parte de À margem da História,
fala o quanto o tratamento do poderes públicos ao colono italiano, nas fazendas de são Paulo, era
diferenciado do tratamento dado aos migrantes nordestinos que estavam imobilizados nos
seringais a uma cadeia de dívidas:
(...) o cearense efetua, à sua custa e de todo em todo desamparado, uma viagem mais
difícil, em que adiantamentos feitos pelos contratadores insaciáveis, inçados de parcelas
fantásticas e de preços inauditos, o transformam as mais das vezes em devedor para
sempre insolvente. (...). A sua atividade, desde o primeiro golpe de machadinha,
constringe-se para logo num círculo vicioso inaturável: o debater-se exaustivo para
saldar uma dívida que se avoluma, ameaçadoramente, acompanhando-lhe os esforços e
as fadigas para saldá-la. (CUNHA, 2011:54)

Esta situação de quase permanente dívida323 foi elucidada por inúmeros autores,
divergindo apenas em suas interpretações perpassando pelas diversas perspectivas de análise.
Segundo Figueira, as características que nos auxiliam a compreender como ocorreu o processo de
imobilização da mão de obra extratora do látex da Hevea brasiliensis são: o desconhecimento do
ambiente do local de trabalho e o isolamento do trabalhador324. Para alguns dos autores citados
acima, para a maior parcela dos trabalhadores recém-chegados aos seringais da Amazônia, este
era um ambiente desconhecido. Alexandre Cardoso considera um equívoco afirmar que os
migrantes desconheciam completamente as características das vivências amazônicas, visto que:
Um dos meios de comunicação que esteve presente nesse cenário foram as cartas
enviadas por esses sujeitos, embebidas de testemunhos, de relatos de experiências, que
davam sentido a construção de referências sobre a floresta em outras paragens.
(CARDOSO, 2011:202)

processos históricos, que consideram os sujeitos impotentes diante de imperativos estruturais, lidos através de
cânones teóricos que superdimensionam os poderes de ordem econômica e política. CARDOSO, Antônio Alexandre
Isidio., op. cit.; p. 155.
322
FIGUEIRA, Ricardo Rezende., op. cit.; p. 37.
323
Arthur Reis faz uma crítica aos escritos de Euclides da Cunha e de outros literatos ao analisar o sistema de
aviamento e o processo de endividamento dos seringueiros (...) Essa situação de quase permanente dívida,
amarrando o seringueiro ao seringalista e este ao “aviador”, como consequência de safras más, de preços que não
compensaram, aviltando-se em face às despesas realizadas nos seringais, como fruto da exploração impiedosa que
se fazem entre si, deu margem a uma literatura que acusou seringalista e aviadores de manterem os seringueiros na
condição de escravos e não de homens livres. REIS, Arthur Cezar Ferreira., op. cit.; p. 178; A questão do
endividamento dos trabalhadores da extração do látex foi analisado, também, por WEINSTEIN, Barbara., op. cit.; p.
37; TEIXEIRA, Carlos Corrêa., op. cit.; p. 131.
324
FIGUEIRA, Ricardo Rezende., op. cit.; p. 32 e 43.
502
Quanto ao isolamento da maioria dos seringueiros, isto era uma consequência do próprio
processo de extração do látex, visto que as seringueiras estavam dispersas pela imensidão da
floresta. Semanalmente ou mensalmente, dependendo da localização dos trabalhadores dentro dos
seringais, eram abastecidos pelos chamados comboios com os produtos e alimentos que
solicitavam. Arthur Reis diz que estes comboios eram aguardados ansiosamente pelos
trabalhadores, uma vez que, para o seringueiro isolado este era um momento de contato com
outras pessoas325. Euclides da Cunha, ao retratar o isolamento do seringueiro, influenciado pelos
escritos de Dostoiévski, representou a agonia326 desses homens no processo de extração do látex e
indicando a floresta como sua própria prisão:

E vê-se completamente só na faina dolorosa. A exploração da seringa, neste ponto pior


que a do caucho, impõe o isolamento. Há um laivo siberiano naquele trabalho.
Dostoiévski sombrearia as suas páginas mais lúgubres com esta tortura: a do homem
constrangido a calcar durante a vida inteira a mesma “estrada”, de que ele é o único
transeunte, trilha obscurecida estreitíssima e circulante, ao mesmo ponto de partida.
Nesta empresa de Sísifo a rolar em vez de um bloco o seu próprio corpo – partindo,
chegando e partindo – nas voltas constritoras de um círculo demoníaco, no seu eterno
giro de encarcerado numa prisão sem muros, agravada por um ofício rudimentar que ele
aprende em uma hora para exercê-lo toda a vida, automaticamente, por simples
movimentos reflexos – se não o enrija uma sólida estrutura moral, vão-se-lhe, com a
inteligência atrofiada, todas as esperanças, e as ilusões ingênuas, e a tonificante
alacridade que o arrebataram aquele lance, à ventura, em busca da fortuna. (...)
Sobretudo isto, o abandono. O seringueiro é, obrigatoriamente, profissionalmente, um
solitário. (...) É a conservação sistemática do deserto, e a prisão celular do homem na
amplitude desafogada da terra. (CUNHA, 2011:54 e 55)

A coerção física ou ameaça que impede que o trabalhador possa afastar-se sem sanção,
além da vigilância permanente327 são componentes fundamentais para que se possa compreender
o processo de imobilização da mão de obra. Arthur Reis, ao ressaltar as características do patrão,
afirmou que este era um disciplinador por excelência e muitas vezes se utilizava de métodos
violentos, bárbaros, mas necessários para manter a ordem nos seringais. Tais atitudes, segundo
Reis, teriam lhe o que lhe rendido a acusação de exploração desumana e os títulos de senhor de
escravos e barão feudal328. O autor narra os processos de coerção do seringalista sobre aquele que

325
REIS, Arthur Cezar Ferreira., op. cit.; p. 213.
326
HARDMAN, Francisco Foot. A vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna /
Francisco Foot Hardman; São Paulo: Editora UNESP, 2009. p.47.
327
FIGUEIRA, Ricardo Rezende., op. cit.; p. 34.
328
REIS, Arthur Cezar Ferreira., op. cit.; p. 222.
503
tenta sair do seringalapresentando uma das formas de repressão aos refratários ou
insubordinados329:

O senhorio que exerce precisa ser mantido sem hesitações. (...) Quando os fregueses
ousam fazer-lhe exigências, pretendem abandonar o trabalho, cometem faltas, empregam
processos condenados na extração do látex, os meios de punição ou de correção que
aplica são realmente violentos. Tortura-os, prendendo-os nos troncos, como se fossem
negros da época da escravidão. Se entende que sofreu uma desfeita que lhe macula a
dignidade, pondo em jogo a própria honorabilidade, não treme na ordem para eliminar o
ofensor. Age, assim, sem freios. Sua vontade é lei. A autoridade do magistrado civil ou
militar que vive na sede da Comarca e, pela distância e falta de elementos materiais,
quase não pode chegar ao seringal para o policiamento moralizador e disciplinador, ele a
exerce (...). Faz justiça como lhe parece que deva ser feita. (REIS, 1977:224)

Barbara Weinstein apesar de considerar que o seringueiro era extremamente móvel, e


como consequência, estava longe do controle do seringalista para que suas dívidas funcionassem
como meios de coerção330, acabou por evidenciar como era posta em prática a coerção física ou
ameaça que imobilizava a mão de obra:

Contudo, a maior parte dos seringalistas e dos comerciantes não tinha como impedir
totalmente a seus aviados o acesso aos meios de subsistência – caça e pesca, por
exemplo, sempre foi uma atividade comum entre os seringueiros – e dificilmente podiam
responder por cada quilo de borracha extraído em suas terras. Ainda assim, decidiam
ocasionalmente castigar algum seringueiro transviado. O gerente de uma propriedade
inglesa, muito atormentado pelo hábito dos seringueiros de vender a borracha aos piratas
do rio, acreditava que o único meio de intimidação eficiente contra esse tipo de
comportamento só poderia ser empregado por quem “tivesse perdido todo o respeito
pelo sexto mandamento”. E não fazia um chiste, mas sim reconhecia que os aviadores
empregavam frequentemente a ameaça de violência, ou a própria violência, para manter
o sistema funcionando. (WEINSTEIN, 1993:40)

Sendo assim, consideramos que a coerção física ou ameaça, talvez, em algum nível tenha
impedido que o trabalhador extrator do látex se afastasse sem sofrer sanção, por parte do patrão,
além de serem vigiados frequentemente pelos funcionários dos seringais com intuito de evitarem
que estes vendessem a borracha a outros interessados331. Porém, em alguns casos, alguns dos
seringueiros conseguiam escapar desta relação como podemos vislumbrar no trecho escrito por
Euclides da Cunha:

329
FIGUEIRA, Ricardo Rezende., op. cit.; p. 34.
330
WEINSTEIN, Barbara., op. cit.; p. 38.
331
REIS, Arthur Cezar Ferreira., op. cit.; p. 246 e 247.
504
O impaludismo significa-lhe, antes de tudo, a carta de alforria de um atestado médico. É
a volta. A volta sem temores, a fuga justificável, a deserção que se legaliza e o medo
sobredourado de heroísmo, desafiando o espanto dos que lhe ouvem o romance
alarmante das moléstias que devastam a paragem maldita. (...). Porque é preciso
coonestar o recuo. (CUNHA, 2011:48)

Outro aspecto citado por Ricardo Figueira que impediria o afastamento do trabalhador
sem sanção seria o controle sobre a documentação pessoal e ausência de contrato332, apesar de
Davi Leal apresentar os regulamentos como a forma mais direta de estabelecer o contrato de
trabalho333 entre o seringalista e o extrator do látex, ainda assim, não obtivemos outras
informações sobre esses aspectos na historiografia analisada.

Conclusão
Por que o trabalho realizado pelos trabalhadores extratores do látex da Hevea brasiliensis,
com a expansão da empresa mercantil no final do séc. XIX e do início do séc. XX, deve ser
considerado uma forma de trabalho não livre?
Desta maneira, como afirma Jurandir Malerba, há a necessidade de retificar as versões do
passado histórico, ou seja, a historiografia, que é operada a cada geração e apoia-se em recentes
descobertas documentais e / ou no alargamento do horizonte teórico metodológico da
disciplina334. Podemos concluir que a relação existente entre o patrão e o freguês, após a mudança
da relação de livre negociação dos produtos para a uma relação de trabalho não livre no ápice da
empresa mercantil vinculada a extração do látex da Hevea brasiliensis, nos fins do séc. XIX e
início do sec. XX, possuía todas as características de uma relação de trabalho não livre, marcada,
como dito acima, pelas experiências que as elites brasileiras e amazônicas possuíam da
escravidão e das formas legais de compulsão ao trabalho.

Referências
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Amazônia: Formação Social e Cultural. / Samuel Benchimol. 3ª ed. – Manaus: Editora Valer, 2009.

332
FIGUEIRA, Ricardo Rezende., op. cit.; p. 34.
333
LEAL, Davi Avelino., op. cit.; p. 99.
334
Jurandir Malerbafala que (...) A retificação, motivada e condicionada pela própria inserção social do historiador
em seu contexto, costuma apoiar-se também em recentes descobertas documentais e / ou no alargamento do
horizonte teórico metodológico da disciplina. Desse modo, como ensina Rüsen, cada geração conhece mais e melhor
o passado do que a precedente. É essa historicidade do próprio conhecimento que obriga ao historiador a haver-se
com toda a produção que procura superar. Nasce aqui a necessidade incontornável da crítica. MALERBA,
Jurandir. Teoria e história da historiografia. In: A história escrita: teoria e história da historiografia. Organizador
Jurandir Malerba. – São Paulo: Contexto, 2006; p. 17.
505
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por Eurípedes Antônio Funes (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Ceará, Centro de
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Lima da Costa (Mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia) – Universidade Federal do Amazonas,
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506
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507
“SANTOS EM COMISSÃO”: MEMÓRIAS E CULTURAS NO ANDIRÁ-MIRIM,
FRONTEIRA AMAZONAS/PARÁ

RONALDO ADRIANO FERREIRA DA SILVA 


JOÃO MARINHO DA ROCHA

Memórias e Histórias no Andirá-Mirim


A região do Andirá-Mirim, é formada por oito (8), a saber: comunidade Cristo Redentor, Nossa
Senhora da Conceição, São Tomé, Laguinho do Andirá, Castanhal, Canarinho, Jabutituba, Acurucaua;
comunidades e um (1) distrito que é Barreira do Andirá. Cristo Redentor, distante da sede do município
de Barreirinha 4 horas de embarcação de centro335, e 3 horas de “rabeta” canoa motorizada, e de lancha
rápida/voadeira 40 minutos é onde referencia-se a festa em honra a Nossa Senhora do Livramento.
A partir do iníciodo século XX, com a chegada dos povos nordestinos nessa região, aprofunda-
se uma miscigenação que possibilitou a hibridação cultural entre os povos indígenas Sateré-Mawé e os
tais migrante, criando novas tradições culturais, caso este na qual abordamos no referido artigo,
tradições religiosas denominada “santo em comissão”.

Por meio da memória das pessoas mais idosas, essa expressão da cultura popular ganhou força,
devido a fé dos povos amazônicos que na região habitavam. Mediante narrativas contadas e repassada
por intermédio da convivência com sujeitos da supracitada região, pois nasci e me criei nas localidades
do Andirá-Mirim. Neto de Antônio Vieira e Maria Nezila, avós paternos, moradores radicalizados na
região, as narrativas nos conta que a devoção direcionada unicamente a um santo (a) fazia da pessoa
um devoto que mediante uma graça alcançada, mandava sair um grupo de pessoas, para peregrinar com
a imagem do santo nas casas da localidade e demais comunidades adjacentes. Esse grupo geralmente
era composto por cinco (5) homens, os mesmos denominavam-se foliões (comissários) que em uma
canoa viajavam durante vários dias pela região levando o santo. Em seus trajetos rezavam nas casas,
arrecadando donativos para a festa, essas idas às casas significava uma forma de convite para a festa.
Em relação tais acontecimentos, modificações ocorridas ao longo dos tempos remetendo
diretamente a transformação, e com isso novos hábitos surgirem de maneira gradativa, houve
necessidade de identificar o aspecto sociocultural e religioso do povo Andiraense.Por meio da memória


Acadêmico do 7º período de história da Universidade do Estado do Amazonas-UEA. ronaldoadrianos650@gmail.com

Professor mestre do colegiado de história da Universidade do Estado do Amazonas. Doutorando do Programa
Sociedade e Cultura na Amazônia. PPGSCA/UFAM.
335
Meio de transporte movido a diesel, cobertura de toldo, nominado de barco.
508
e relatos orais de pessoas que vivenciaram certos acontecimentos em um período, através de coletas de
dados objetiva-se reconstruir fatos históricos e suas transformações ocorridas ao longo dos tempos.
Nesse campo de pesquisa da história social da cultura no Andirá-Mirim, via manifestação sociocultural
e religiosa intitulada “festa em comissão”. “A história social mantém, entretanto, seu nexo básico de
constituição, enquanto forma de abordagem que prioriza a experiência humana e os processos de
diferenciação e individuação dos comportamentos e identidades coletivos sociais- na explicação
histórica.” (CASTRO, 1997, p. 89).
A construção do texto está elaborada a partir da convivência com os sujeitos protagonistas do
meu universo de pesquisa, que através das entrevistas e seus relatos, de suas memórias e experiência de
vida, tomando como ponto principal, situando esse processo no contexto social, no que tange ao
catolicismo popular. Fenelon (1993, p.75) afirma “[...]a partir de suas concepções e perspectivas (as da
História Social) que os chamados 'temas malditos', ou seja, quase todos que tratam dos excluídos
sociais, sejam pobres, vagabundos, prostitutas, negros, mulheres, índios [...]” ganham destaque na
historiografia, pois por meio de relatos de experiências tornam-se protagonistas.

Cultura festeira no Andirá-mirim


A devoção aos santos
Andirá-Mirim região ocupada originalmente por povos indígenas Sateré-Mawé e migrantes
vindos de várias regiões do Brasil, caso dos Nordestinos, formando uma miscigenação, e hibridando
suas culturas com os povos Sateré-Mawé. Antigamente grande maioria das casas amazônicas tinha
imagem de santo.
[...] a devoção do santo, que se expressa de maneira mais enfática no momento da festa, não
pode limitar-se aos atos rituais “sagrados”: missas, novenas, orações contritas, sacramentos. O
“sagrado “e o “profano”, se bem que separados na mentalidade popular, não estão em oposição,
durante a festa religiosa, mas são complementares, embora entre eles possa haver uma
hierarquia que valorize o primeiro (MAUÉS, 2011, p. 08)

É cena comum encontrar no interior da residência dos moradores da Amazônia lugares


denominados de “oratório”, feito segundo uma estrutura de igreja, porém tamanho reduzido, lugar
específico para guardar imagens de santos. Segundo Galvão (1976, p. 03), “[...] como da Amazônia em
geral, é católico não obstante, sua concepção do universo está impregnada de ideias e crenças que
derivam do ancestral ameríndio”. Suas crenças eram hibridas, pois acreditavam tanto no profano
quanto no sagrado, característica do catolicismo popular, isso fazia dessas pessoas veneradores de

509
imagens de santos, que por graças recebidas, passavam a tornar-se festeiros dos conhecidos “Santos em
Comissão”.
Essas festas era de santos, faziam festa de santo, os santos saia nas comissões, nesse tempo ai
tinha festa. Ai chegava a festa lá no mesmo trecho lá, festa da dona Florinda ai era tal dia, 12 de
outubro, de, de junho. Ai quando era naquele dia nós ia embora pra lá, todos se divertia lá,
quando era três hora da manhã. – vombora! Todo mundo pra casa, não ficava ninguém, e assim
mais os outros, tinha festa no Castanhal do Andirá, é do são Miguel dia 28 de setembro também
era a mesma coisa, a mesma coisa eles faziam.336

“As festas era assim, porque naquela época tinha essas imagem de santos que chamava na
época que saía nas comissões de caixa e gambá, e hoje desapareceu.”337 O “Santo em Comissão” é
uma prática sócio-religiosa que ganhou destaque anterior ao surgimento das comunidades
institucionalizadas no Andirá. Até então um exemplo existente que ainda resiste “sobre comissão”, é a
festa dos marujos na Freguesia do Andirá, festejada todos os anos no mês de Dezembro, mesmo com a
proibição por parte da paróquia, prevalece atualmente. “O culto e os festivais organizados em honra
desses santos são organizados pela freguesia na maior parte das vezes, o dia de festa não coincide com
o calendário oficial da igreja católica, ou o mesmo santo”. (GALVÃO, 1976, p. 03).
Nas palavras do entrevistado Luiz Tavares dos Santos, exemplifica a resistência da festa como
uma das parábolas bíblicas “o semeador”, quando se refere a separação, do Joio do Trigo. Ou seja, as
proibições feitas pela diocese, não estagnaram o modo de crer da população Andiraense veneradores de
imagens, e também festa de “Santo em Comissão” caracterizada ao catolicismo popular, esta maneira
de dominação dos padres não surtiu efeitos desejados, pois não fiscalizavam os interiores
intensivamente. Então, as culturas festivas de santos particulares continuam nos interiores, nas
cabeceiras dos rios, lugares escondidos, fato este que o entrevistado faz uma alegoria “o padre peneira
mais não joga né”338. Então é notório a tradição repassada durante gerações, que se faz presente nos
dias atuais.
[...]antigamente era assim, tudo mundo quase sabia. A família Carvalho ali no Ramos, pó todos
eles sabiam, e aqui no Andirá quase toda a família sabia, e ai só que eu também quando começu
eu não sabia não, tinha, mais tinha uns velhos antigos que sábio [...] os que teve de aprender, a
gente tinha...
A vontade que a gente tem, que chamam de noção né. Tinha noção pra isso e ai foi aprendendo
por ali de vagar devagar, foi o que aconteceu. Eu sei rufar tamborino [...] é!

336
Benedito Pereira Vieira, filho adotivo de Antônio Vieira, ex-morador da região Andirá-Mirim. Entrevista. 24.05.2017/
2018. Parintins-AM.
337
Luiz Alves de Souza Ex-integrante da comissão, sua ocupação era encarregado, morador atualmente da comunidade
Laguinho do Andirá. Entrevista. 26.05.2017 / 2018. Parintins-AM.
338
Luiz Alves de Souza, 84 anos morador domiciliado na comunidade laguinho do Andirá, ex-encarregado da festa de nossa
senhora do Livramento Andirá-Mirim. Entrevista. 26.05.2017.
510
Eu sei cantar folia dos antigos [...], eu sei a ladainha também [...] eu sei tudo, é uma coisa
importante [...] pra quem viu, conheceu, hoje em dia se for fazer isso é uma novidade grade que
eu acho que ficam acreditando e duvidando né.339

Mediante promessas feitas a um santo (a) e por meio de graças alcançadas, tanto no que refere a
salvamento de um perigo ou resultado alcançado em uma plantação ou colheita, a pessoa passava a ser
devoto, cultuando e adorando uma determinada imagem de santo (a), em outros casos se tonaria
festeiro, compromisso que era repassado de pai para filho como símbolo de respeito e devoção a um
santo específico. Sobre isso, afirma o Sr. Osvaldino Viana, ex-festeiro em honra nossa senhora de
Nazaré, localidade pertencente atualmente a comunidade institucionalizada, Nossa senhora da
Conceição, Rio Andirá-Mirim, que
Foi assim como tava explicando, foi divido a, o, um ataque de uma fera paresque que começou
né, foi uma fera aquilo né, não viu, não soube o quefoi. Não viu uma cobra, não viu outro tipo,
foi aquilo pegar no casco dele, e puxo o casco dele, puxou, puxou, puxou, puxou... que parou, e
ai quando empurrou espumou o rebujo, e ele foi parar lá no meio da Canarana, uma coisa muito
envocada, muito envocada340.

Em relação as devoções, cada morador Andiraense especificamente tinha um santo para


venerar, Benedito Pereira Vieira relata:
É porque lá nossa senhora do livramento que era padroeira, a protetora dele, que era o festejo
grande. Quando era 1 de janeiro ela saia pra comissão, tinha os que iam fazer a comissão, era os
‘ermãos’ Belém. Que eram, tinha o finado Raimundo Belém que agora todos pra bem dizer já
‘murreru’ eles eram o encarregado, tinha seu Luiz Tavares com o irmão deletambém, eles eram
os chefe que gostavam da. Então tinha uma canoa grande, no tempo tinha essa ‘canua’ que era
Grafira, aguentava, ai eles ‘comessavu’, iam pra banda de cima até freguesia, rodavam pelo
lago grande, baixavam, vinham da barreira do Andirá pra subir novamente pra chegar pra lá.
Conclusão, ‘chegavu’ pra lá já, em fevereiro, quando era dia 1 de fevereiro 4 horas da tarde eles
chegavam com a santa lá em casa, ai já ia na chegada era o festejo, ai ia suspender mastros, ai
se matava porco, se matava gado boi, que o pessoal ‘doavu’ boi de coração mesmo ‘doavu’.341

Por meio do exemplo citado acima, depreende-se que o motivo da devoção do santo (a),
tomando como obrigação festejar e doar comes e bebes para os convidados e participantes que
frequentavam assiduamente os festejos. Essa devoção acontecia de maneira recíproca, o modo de crer
das pessoas, tanto da família quanto da comunidade não institucionalizada na qual viviam.

339
Luiz Tavares dos Santos, 87 anos, morador na comunidade São Tomé, Andirá-Mirim. Ex-rezador de Ladainha nas festas
em comissão. Entrevista 04.07.2017.
340
Osvaldino de Castro Viana, ex-festeiro em honra Nossa Senhora de Nazaré, local pertencente a comunidade atual Nossa
Senhora da Conceição, Andirá-Mirim. Entrevista. 08.07.2017.
341
Benedito Pereira Vieira, 68 anos, ex-morador da supracitada região, filho adotivo de Antônio Vieira dono de Festa de
Santo na região. Residente domiciliado em Parintins. Entrevista. 24.05.2017.
511
Os bichos visagentos” não recebem qualquer culto ou devoção. A atitude do caboclo é de evitá-
lo tanto quanto possível ou de recorrer a técnica de imunização ou de neutralização de seus
poderes malignos. Os santos, ao contrário, recebem culto e deles o caboclo se aproxima através
de orações, de promessas e de atos festivos. Acredita-se que protejam a comunidade e o
indivíduo (GALVÃO,1976, p. 04).

Fato que fazia com que muitos sujeitos se tornassem mordomos ativos de santos, pois mordomo
era uma pessoa que ajudava na festa, tanto na construção de barracões como financeiramente.
Essa festa era, aquela, tinha como a padroeira da festa dela a Nossa Senhora da, Nossa Senhora
é, Livramento. Ai ela arranjava as pessoas, o grupo pra sair, andar com o santo em donativo,
era umas, 8 ou 10 pessoas numa canoa grande, ai a gente butava caixa Gamba, chamava pra
bater, ai era uma alegria. [...] tinha aquelas bandeiras de pano, branco era vermelha, branco e
vermelho se usava, e ai saia na comissão do santo. Tinha o, o, o que era responsável pela
viagem chamava se MESTRE SALA ou encarregado.
Encarregado, É! [...] que saía, e tinha os, os foliões, tinha o caxero que era de bater aquele
tamburinho, o caxero e tinha o que segurava aquele pau de bandeira que era a primeira, que
fazia a primeira voz, segunda voz e terceira voz.342

Na região todos os sujeitos respeitavam imagens de santos, em suas casas tinham a cultura de
fazer dependendo da condição financeira oratórios para cultuar como símbolo de veneração, esses
lugares eram ornamentados com flores e velas, pois as imagens variavam de tamanho. “A maioria das
crenças não católica do caboclo amazônico deriva do ancestral ameríndio. Foram, entretanto,
modificadas e influenciadas no processo de amalgamação com outras de origem ibérica e mesmo
africana” (GALVÃO, 1976, p. 04).
Na própria região tinha sujeitos que esculpiam em madeira santos por encomenda. Apesar da
característica dos santos ser de madeira, grande maioria das vezes ser mal esculpida, para as pessoas ter
em suas casas um santo significava proteção divina. “Os santos protegem a comunidade e asseguram o
bem-estar geral. Seus favores e sua proteção obtém através de promessas e orações que propiciam sua
boa vontade” (GALVÃO, 1976, p. 05) fazendo com que as pessoas se auto denominem “adoradores de
santo”, em busca de proteção. Maués (2011, p. 10) ressalta que “o santo é também tratado
frequentemente como uma pessoa viva. Uma mulher, proprietária de pequena casa de comércio em
Vigia, conta que sua mãe possui uma imagem de São Benedito e, quando o santo está zangado, ele se
põe de lado no oratório.” Uma característica particular de tratamento por cada dono de santo, remetente
a uma ideia de poder sobre a imagem.
Os santos em comissão

342
Luiz Alves de Souza, 84 anos morador domiciliado na comunidade Laguinho do Andirá, ex-encarregado da festa de
Nossa Senhora do Livramento Andirá-Mirim. Entrevista. 26.05.2017.
512
Para formar o grupo de comissários que deveriam sair na região “Andirá-Mirim” em busca de
donativos para festa, contava principalmente com a participação espontânea dos sujeitos, que serviriam
de comissários, sem ganhar contribuições financeiras, então o festeiro (a) escolhia entre os sujeitos que
se disponibilizavam, quem deveria ocupar suas devidas funções na comissão, já formada a comissão,
utilizavam embarcação canoa movida a remo, instrumento da época constituindo as idas e vindas na
região do “Andirá-Mirim” rumo o objetivo central a casa do festeiro
Essas festas era de santos, faziam festa de santo, os santos saia nas comissões, nesse tempo ai
tinha festa. Ai chegava a festa lá no mesmo trecho lá, festa da dona Florinda ai era tal dia, 12 de
outubro, de, de junho. Ai quando era naquele dia nós ia embora pra lá, todos se divertia lá,
quando era três hora da manhã. – vombora! Todo mundo pra casa, não ficava ninguém, e assim
mais os outros, tinha festa no Castanhal do Andirá, é do são Miguel dia 28 de setembro também
era a mesma coisa, a mesma coisa eles faziam.Tinha no seu Raimundo Viana 8 de setembro
nossa senhora de Nazaré também nós íamos pra lá mais era assim. Se visse Pedro, Irineu e mais
os outros era porque tava seu Antônio Vieira e dona Nezila lá343.

Sobre as festas e a formação da irmandade, vale lembrar que


Festas de santos, é irmandade religiosa. Nas festas como nas organização das irmandades,
elementos sagrados e profanos se misturam. Deus e Cristo recebem culto e reverencia, porem
são considerados demasiado remotas. A devoção individual ou da comunidade se faz sentir
sobre os santos, ou mais explicitamente sobre as imagens desses santos. Como símbolo de culto
religioso essas imagens ou simples cromos, têm lugar de maior preeminência que a cruz. alguns
desses santos, representados pelas imagens locais, são considerados patronos ou advogados de
profissões. Assim são S. Tomé é advogado dos roceiros, S. Benedito, dos seringueiros
(GALVÃO, 1976, p.29).

O respeito era uma característica familiar, pois todos tinham vinculo de parentesco, não
importava ser parente de sangue, as pessoas tinham consideração uns pelos outros, chamavam tio, tia
ou primo, um motivo que fazia com que facilitasse o controle social, através do pedido de colaboração
das pessoas, e ajuda gratuita. Após o festeiro formar a comissão com oito (8) componentes. Cada um
tinha sua função e obrigação na comissão, porém todos eram guiados pelo Popeiro, sujeito esse que
conduzia o trajeto da canoa onde faziam esmolações, levando a imagem do santo (a) nas casas, esse
sujeito tinha responsabilidade e dever de manter organizado os componentes a bordo da embarcação.
Caso alguém não seguisse a regra do grupo da comissão, era submetido disciplinado.
O folião tem que ser disciplinado. Pode beber cachaça, mas se embriagado ou inconveniente é
punido. Os que deixam de atender ao chamado do mestre, ou que faltam com respeito ao santo,
abandonando a folia para procurar mulher, são castigados. A forma mais simples de castigo é a
advertência em público, através da quadra de punição, versos cantados pelo mestre e coro que
aludem à falta e ridicularizam o indivíduo, que é obrigado manter-se ajoelhado sob a bandeira
da folia (GALVÃO, 1976, p. 42)

343
Benedito Pereira Vieira. Entrevista. 24.05.2017
513
Outro elemento dos “santos em comissão” denominava-se de “Encarregado”. Este personagem
tinha a responsabilidade somente de carregar e tomar conta da imagem do santo (a) durante o trajeto da
comissão pelos rios da região do Andirá-Mirim, pois a imagem não poderia pegar chuva nem sol. Além
de coordenar os grupos de comissários, sua função também era proteger a imagem do santo (a). O
mesmo mantinha a responsabilidade de tomar decisões sobre os comissários, caso tivesse alguma
desorganização pelos componentes dentro da embarcação. Nada poderia se fazer sem pedir permissão
do “Encarregado”.
Outro componente da comissão era o “caixeiro”. Conhecido popularmente como “mantenedor”,
designado na utilização de instrumentos de percussão com a “caixinha”, instrumento esse feito de
madeira e couro de animais silvestres. Em meio esse grupo de comissários, tinha um responsável pelos
donativos, denominava-se “Mestre Piloto”. Sua responsabilidade era carregar os donativos que a
comissão recebia durante a viagem, eram na maioria das vezes animais, frutas, verduras, derivados da
mandioca, farinha, beiju pé-de-moleque e biscoito. Esses mesmos sujeitos cantavam durante a viagem,
tanto nas casas quanto durante o trajeto nos rios. Em sua maioria eram responsáveis “nas tiragens” de
ladainhas que eram rezadas em latim e serviam de apoio na viagem, tanto para remar e conduzir a
locomoção vias fluviais.
É!É!, temo primeiro, o 1ª o, cacheiro, dá se o nome de mantenedor, 2ª da, da, da comissão, o 3ª
da segunda voz. o 4ª é o piluto. A função do piluto, ele tem uma possibilidade, um direito e uma
possibilidade de mandar na canoa, [...] o que pertence, o que vir da..., da. O que vir da, da, da,
pessua, que pega, que leva, que carrega a imagem, que dá se o nome de, de, de... [...] sim que
pega a [...] Tem o cacheiro. É! o encarregado! O encarregado da imagem, ela, ela, ela promove,
ele tudo, ele tudo. Ela, é um governo que ela tem uma autorização de Governar, é... essa, essa
comissão.
Ela tem um direito, o direito dela, ela governar essa comissão. Nada, nada pode fazer se não foi
combinado com ela, ou com ele. Entendeu! Depois de passar da mão dela, vai pra canoa, é o
piloto lá quem manda, pra tira de lá já tem que falar com o piloto. Com o piloto, ele é um dos
vesp muito recebe muita responsabilidade. Agente pensa que é uma coisa simples, quem não
conhece não sabe, não sabe mesmo. Mas quem sabe é uma coisa muito certa.
De lá é isso que se tem. Entendeu! Não tem mais outra coisa. Tem é o caixeiro. O caixeiro é o
que bate a caixinha. [...] é o que bate a caixinha, ele é o mantenedor da caixinha, e é o
responsável da comissão que é da reza, que chega na casa das pessoas pra fazer as vistorias.344
Quando era 1 de janeiro ela saia pra comissão, tinha os que iam fazer a comissão, era os ermãos
Belém. Que eram, tinha o finado Raimundo Belém que agora todos pra bem dizer já morrero
eles eram o encarregado, tinha seu Luiz Tavares com o irmão deletambém, eles eram os chefe
que gostavam da comissão.345

Todo o grupo saía em um período que variava dependendo do trajeto a ser percorrido, entre 20
dias a um mês, com objetivo de arrecadar donativos (mantimentos) para a festa. Os comissários

344
Osvaldino Castro Viana. Entrevista. 08.07.2017.
345
Benedito Pereira Vieira. Entrevista. 24.05.2017.
514
iniciavam seus trajetos no Andirá-Mirim, que no período anterior os anos de 1968, tinha pequenos
núcleos não institucionalizados como comunidades. Em seguida passavam em Freguesia do Andirá,
especificamente no distrito em si, após fazerem visitas nas casas levando o santo, concluíam se
despedindo e continuavam viagem rumo a Barreira do Andirá e demais comunidades não
institucionalizadas, pertencentes ao Andirá-Mirim. Posteriormente regressavam rumo a casa do
festeiro, passando por algumas casas nas adjacências.
Por exemplo, é quando eles tinham uma boa [...] uma boa oferta que davam né, eles não pidiam,
mais o povo tinha, eles tinham culturas de doar, ai se mandava avisar que tinha um ‘bucado’
decoisas pra ir, ai a gente ia buscar onde tivesse, onde eles tivesse fazendo o, o ritual, fazendo
aquilo.346
Então tinha uma canoa grande, no tempo tinha essa ‘canua’ que era Grafira, aguentava, ai eles
‘começavu’, iam pra banda de cima até freguesia, rodavam pelo lago grande, baixavam, vinham
da barreira do Andirá pra subir novamente pra chegar pra lá. Conclusão, ‘chegavu’ pra lá já, em
fevereiro, quando era dia 1 de fevereiro 4 horas da tarde eles chegavam com a santa lá em casa,
ai já ia na chegada era o festejo, ai ia suspender mastros, ai se matava porco, se matava gado
boi, que o pessoal ‘doavu’ boi de coração mesmo ‘doavu’.347

O meio de transporte dos comissários era a canoa, conhecida popularmente como igarité348
sempre ornamentada de flores, fitas coloridas e bandeiras que no total somavam cinco (5), todas com
cores diferentes, nessa caracterização simbólica a comissão se deslocava para cumprir seu objetivo,
arrecadação de donativos. Quando a comissão chegava em uma residência, não importava o que as
pessoas tivessem fazendo, se deixava todos os afazeres domésticos, para prestigiar e adorar o santo
(imagem), na recepção do santo (a) os devotos acendiam velas, ornamentavam apressadamente o
ambiente com flores onde o santo deveria ficar. As mulheres que moravam na residência onde o santo
tinha acabado de chegar, se reunião em procissão para recepcionar os comissários juntamente com a
imagem. Segundo o Sr. Luiz Tavares, ex-comissário, sua função era encarregado no grupo, relata, que
na presença da procissão formada no porto da casa, os comissários, começavam a cantar em louvor de
chegada, como o que segue :Já chegou em vossa casa, o ramo de salvação...”Ai pega a segunda:“ Já
chegou o... em vossa casa, o ramo... de salvação... [...]“A vinda vossa visita e alegrando os coração,
fazendo a vossa visita de alegrar os coração...”349Todos subiam cantando no batuque do gambá, rumo

346
Luiz Alves de Souza. Morador residente domiciliado na comunidade Laguinho do Andirá, ex-comissário, encarregado de
santo. Entrevista. 26.05.2017.
347
Benedito Pereira Vieira, ex-morador da supracitada região, residente domiciliado no município de Parintins. Entrevista.
24.05.2017.
348
Meio de transporte fluvial (Canoa).
349
Luiz Tavares dos Santos, 87 anos, morador na comunidade São Tomé, Andirá-Mirim, ex-comissário. Entrevista
04.07.2017.
515
a casa, onde se encontrava um lugar conhecido como “oratório”, nesse lugar as pessoas tinham imagens
de santos na qual faziam suas orações
A comunicação ou aproximação com o santo para dele se obter auxilio se faz sobretudo através
das ladainhas e novenas, independente de tratar-se de orações na igreja ou capela, ou nos
pequenos oratórios domésticos. Praticamente, todas as casas possuem um pequeno altar, onde a
falta de imagens, são exibidos cromos e figuras de santo recortadas de livros ou almanaques
(GALVÃO, 1976, p. 30)

Após chegar na casa do devoto, rezavam em latim e cantavam. Posteriormente o dono da casa
entregava seus donativos ao encarregado que em seguida descarregava na canoa os objetos recebidos.
Após rezarem e fazerem o ritual de agradecimento o entrevistado Luiz Alves relata que
Na saída eles pediam licença da dono da casa [...] que eles já iam viajar, então eles agradeciam
muito o agasalho lá agradeciam muito e saía, ai o dono da casa, a dona por exemplo da casa
ordinariamente, era as mulheres que levavam o santo lá na canoa. Botava o santo aqui, o guarda
sol segurando daqui, ai ia levar lá na ‘bera’ da canoa, lá o encarregado pegava. Quer dizer era
ele que levava o santo aqui no colo assim, e a sombrinha ou guarda sol, pra esconder do sol350

Na saída cantavam novamente louvor de despedida em agradecimento, como a que segue


“Cantamos a despedidas, Chega com muita alegria...Cantamos a despedida. Chega com muita
alegria... Jesus Cristo Rei da gloria... Filho da virgem Maria...”351. Todo o ritual de despedida era
acompanhado pelas pessoas do lugar na qual o santo se encontrava, esse ato acontecia como sinal de
agradecimento pelas graças recebidas durante o ano, tanto na colheita como para saúde física, motivos
particulares, por serem devotos do santo (a) em comissão. Dessa maneira imagem esculpida era tratada
como uma pessoa onipresente, não podendo pegar chuva ou sol.
As práticas religiosas naquele tempo, que vinha lá em casa, onde tinha um barracão grande, se
fazia as festas dançante de nossa senhora de, do livramento que era no dia primeiro (1) de
fevereiro, aí vinha freguesia, antes eles vinham, aténs eles vinham uma vez por mês fazer um
culto lá. Foi nessa animação foi que nasceu, a comunidade Cristo Redentor, porque eles
estavam pensando que o pessoal lá da freguesia que vinho junto com o pessoal do Jabutituba, os
marianos e as, as apostoladas pesavam que iam fundar já lá em casa no, no terreno nosso lá a
comunidade. Não eles vinham aqui, convidavo os outros pra se fazer a pregação evangélica.352

Outra característica que fazia parte como ritual nas idas e vidas da comissão juntamente com o
santo na região, eram as ladainhas rezadas, pois tinha várias maneiras de tiragem da ladainha, tanto no
latim cantado, como somente no latim sem acompanhamento em ritmo de coro, as mesmas eram

350
Luiz Alvez de Sousa, 84 anos, morador residente domiciliado na comunidade Laguinho do Andirá. Ex-comissário,
encarregado de Santo. Entrevista. 26.05.2017
351
Luiz Tavares dos Santos 87 anos, morador na comunidade São Tomé, Andirá-Mirim. Ex-comissário, rezador de
ladainha. Entrevista 04.07.2017
352
Benedito Pereira Vieira, ex-morador da supracitada região, residente em Parintins atualmente. Entrevista.
24.05.2017.
516
rezadas por homens e em determinados momentos acompanhadas por mulheres, uma das festas
exemplificadas onde se tirava a ladainha e também sendo protagonista por ser a festa na qual se
direciona a pesquisa, é a festa de Nossa Senhora do Livramento, festejada por Antônio Vieira e sua
esposa Maria Nezila Belém Maciel. Um fato interessante, era que apesar do dono da festa ser seu
Antônio Vieira, quem administrava a festa do Santo em Comissão era Maria Nezila, essa característica
de Antônio Vieira se destacar ao invés de sua esposa que era a organizadora é pelo fato do patriarcado
está presente na época. Pois as mulheres apesar de estarem presente, não se destacavam de maneira
gradativa.

Tantas eram as características e símbolos culturais que representava a ida da comissão nas
casas, segundo o entrevistado Benedito Pereira Vieira:

Há, quando chegavam numa residência eles, chegavam lá, já chegavam sempre cantando né,
chegavam lá na residência, ai o que levava o tamburinho ia batendo [...] ai ele já ia cantando a
chegada né, chegava eles, chegava o comissário levava o santo aqui, agasalhado assim. Ai
vinha a pessoa de lá da casa estava esperando né, chegava também já com a toalha na mão aqui,
botava como se carregava uma criança aqui no colo, ai o santo passava pra ele, e a mesa já
tava arrumada entrava na casa, lá eles iam fazer a chegada deles, cantar de tudo jeito, fazer o
cerimonial deles353.

As idas às casas tinham seus significados e simbolizações, pois não necessitava fazer convites
formais, pelo motivo de que quando as comissões faziam suas visitas, significavam arrecadações de
mantimentos, no mesmo tempo simbolizava o convite para a festa, raramente se fazia oralmente o
convite, pois era mais simbolicamente. É mencionado na entrevista sobre o saber acolher uma imagem
em uma residência, característica cultural que não existe mais, se estagnou com o passar dos tempos.
Quando a comissão chegava na residência juntamente com o santo (a) e o devoto quisesse que a
comissão pernoitasse na casa, disponibilizava a alimentação e abrigo, durante a noite os vizinhos
adjacentes se dirigiam para a residência na qual se encontrava o santo (a) para participarem da “tiração”
da ladainha, após tinha a festa na batida do gambá, caixinha, e tamburinho, os animadores eram
conhecidos como músicos, todos eram Comissários do santo. Essa característica instigava vontade aos
jovens serem integrantes nas comissões, pois exigia experiência para que pudessem manejá-los.
Os tambores e demais instrumentos são guardados com especial carinho e respeito. Crianças e
indivíduos inexperientes não podem maneja-los. Os foliões, como os empregados, não recebem
qualquer pagamento, porem durante as viagem alimentos e bebidas lhes são fornecidos. Essas
despesas que ocorrem por conta da irmandade são de pouca monta porque os devotos, além da
esmola, sentem-se obrigados a prestigiar a folia com hospedagem e contribuições diretas, em

353
Benedito Pereira Vieira, ex-morador da supracitada região, residente em Parintins atualmente. Entrevista.
24.05.2017.
517
alimentos e bebidas, aos seus componentes. É essa uma maneira de honrar o santo,
agasalhando-o em casa, e à bandeira, além de uma ocasião de divertimento pelas músicas que
a “folia” proporciona”. (GALVÃO, 1976, p. 41-42)

O interesse de aprender o ritual religioso, tirar ladainha em latim e batucar gambá, era muito
significativo para as gerações que viviam no Andirá-Mirim. Um fato totalmente oposto da atualidade,
pois a sociedade contemporânea vive meio a tecnologia e esquece a cultura de seus ancestrais, não
abstrai para si das possibilidades, desta maneira tanto a cultura quanto a história se fragmentam no viés
educacional.
Dentro de uma comissão existia ocupações e suas utilidades, porém, cada uma com sua
característica e significado com suas devidas particularidades, por exemplo, tinha os Mordomos tanto
para a festa quanto para o mastro, segundo Viana explica, “a uma irmandade, pois cada festeiro na
região independentemente de qual fosse o santo, tinha seus foliões e seus mordomos em particular”354.
Os mordomos da festa ajudariam com mantimentos, que supririam a despesa da festa, doando
alimentos e dinheiro. Diferentemente dos mordomos do mastro, responsável por ajudar com produtos
que confeccionariam o mastro, os produtos eram frutas, derivados da mandioca (beiju, biscoito,
tapioca, farinha) e grande maioria das vezes contribuição em dinheiro, todas essas doações dos
mordomos constituíam a ornamentação do mastro, pois nas idas das comissões nas casas, eles
arrecadavam produtos designados pelos mordomos. Após terem percorrido todos os lugares
objetivados, retornavam a casa na qual aconteceria a festa.
Em sua chegada já se aproximando do ambiente da festa, lugar conhecido por todos os
visitantes como cabeceira do Camarão, os comissários eram recepcionados com foguetes e batuque de
gambá, em seguida já ancorados no porto do festeiro, a população que já se fazia presente a espera,
formava uma procissão para buscar a imagem do santo juntamente com os Componentes de comissão,
todos subiam cantando no batuque do gambá em louvor o santo (a). Ao chegarem no barracão da festa
rezavam, cantavam não importava que hora do dia tivessem chegado, em seguida preparavam a
programação noturna. Rotineiramente era estruturada por ladainhas em latim acompanhados por
mulheres. Após o momento religioso, servia-se os comes e bebes para todos os presentes. Após a janta
os comissários cobriam a face do santo (a), e tinha o arrasta pé, que era a festa acompanhada por
instrumentos rústicos. Gambá, caixinha, reco-reco e tamburinho. Essa característica no terreno do dono
festeiro, simbolizava a véspera da festa do santo em comissão. Estavam preparados os cenários e as

354
Osvaldino Castro Viana, residente domiciliado na comunidade Nossa Senhora da Conceição, ex-dono de festa de Santo.
Entrevista. 08.07.2017.
518
arrecadações necessárias para a promoção da festa em Honra a Nossa Senhora do Livramento e outras
dezenas de Santos de devoção que configuravam o catolicismo popular no Baixo Amazonas.

Considerações finais
As transformações pelas quais passaram as práticas sócio religiosas no Andirá-Mirim, ao longo
da segunda metade do século XX, não se referem somente a questão de instrumentos e ritos do
catolicismo popular. Mas referem-se à questão de alimentos que na época eram todos doados para
população, atualmente se pensa sobre lucro, então nada se doa, tudo se vende. De certa maneira a
mudança levou a transformação da comemoração da cultura dos “santos em comissão”. Principalmente
com as institucionalizações e/ou fundações das comunidades existentes contemporaneamente. A
cultura amazônica hibridada se transformou ao ponto de acabar com práticas de intensa sociabilidade e
comunicação das massas do Andirá-Mirim, principalmente como mencionado anteriormente no texto,
os padres passaram a proibir, quando as pessoas resistiam, grande maioria mandava tomar a imagem do
santo, uma característica com objetivo de romanizar a população, que continua, a seus modos, a exercer
sua fé hibridada.

Referências
CASTRO, Hebe. História Social: O surgimento da história social. in. História - Filosofia. 2. História -
Metodologia. I Cardoso, Ciro Flamarion S. – II.Vainfas, Ronaldo.1942.
FENELON, Déa Ribeiro. Cultura e história social: Historiografia e pesquisa. Proj. História, São
Paulo, (10), dez 1993.
GALVAO, Eduardo. Santos e visagem: um estudo da vida religiosa de Itá, Baixo Amazonas. 2. Ed.
São Paulo Ed. Nacional: Brasília, INL, 1976.
MAUÉS, Heraldo Raimundo. Outra Amazônia: os Santos e o Catolicismo Popular. Norte Ciência, vol.
2, n. 1, p. 1-26 (2011).

519
AS MENSAGENS DOS GOVERNADORES À ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO
AMAZONAS: REFLEXÕES SOBRE A GUARDA DOCUMENTAL E O PRINCÍPIO DA
INDIVISIBILIDADE OU INTEGRIDADE.

ROSANGELA OLIVEIRA FRANÇA

Introdução

O presente trabalho faz parte do projeto Patrimônio Documental no Amazonas: história das
instituições e práticas de arquivo coordenado pelo professor Leandro Coelho de Aguiar, que tem
como um dos objetivosespecíficos identificar as instituições que fazem guarda das mensagens
dos Governadores, assim como sua situação quanto ao arranjo, preservação e acessibilidade de
sua história documental e arquivística.
As Mensagens de governadores e relatórios dos secretários do governo ao Congresso
Legislativo são documentos apresentados por cada chefe do poder executivo estadual aos
respectivos congressos, com intuito de prestar contas, apresentar as ações feitas pelo poder
executivo, assim como a situação do estado em assuntos importantes e justificar pedidos de
liberação de verbas. Tais mensagens podem ser ordinárias ou extraordinárias. As ordinárias
tratavam de assuntos triviais da administração pública, como ganhos e gastos, ações das
secretarias, situação do patrimônio público, assim como os detalhes pormenorizados através dos
respectivos relatórios formulados pelas secretarias dos estados. Já as extraordinárias, possuem o
caráter emergencial, normalmente de pauta única de interesse público como, por exemplo, verba
extra para alguma ação emergencial do governo e ou posicionamento político diante de um fato
excepcional, e que o congresso legislativo tenha que se posicionar.

Foto 1 – Imagens das mensagens dos Governadores.


 Fonte: Autora, 2018.
Discente do Curso de Graduação em Arquivologia pela Universidade Federal do Amazonas.
520
Tal acervo acaba sendo uma importante fonte para se pensar a historicidade dos
governantes e suas políticas e prioridades.
Devido ao seu teor e característica, produzida pelo poder Executivo do Estado do
Amazonas, as mensagens possuem o caráter de documento permanente, e assim sendo,
deveriam ser guardadas no Arquivo Público do Estado do Amazonas, com o objetivo de
preservar e dar acesso. Todavia, observa-se outra situação, onde a documentação está dispersa
e sob guarda de inúmeras outras instituições de guarda documental no Amazonas e pelo
Brasil.
Há inúmeros outros casos como este, espalhados pelo Brasil e que, remetem a um
importante debate dentro da Arquivologia, especificamente a um dos princípios arquivísticos,
o da indivisibilidade, também conhecido como princípio da integridade documental, pois “os
fundos de arquivo devem ser preservados sem dispersão, mutilação, alienação, destruição não
autorizada ou adição indevida (BELLOTTO,2006, p.88) ”.
Segundo Schellenberg:

O princípio [da integridade] ajuda a revelar o significado dos documentos, pois os


assuntos de documentos individuais somente podem ser completamente
compreendidos, no contexto, com documentos correlatos. Se os documentos são
arbitrariamente tirados do seu contexto e reunidos de acordo com um sistema
subjetivo e arbitrário qualquer, o real significado dos mesmos, como prova
documentária pode se tornar obscuro ou até se perder (SCHELLENBEG, 2006,
p.260.

Levando em consideração os princípios da integridade, em que os arquivos não


poderiam ser dispersos de seus fundos, não é isto que acontece com muitos acervos,
principalmente por causa das características históricas da administração pública e da própria
fragilidade da rotina e do conhecimento arquivístico no Brasil. Observam-se justamente o
inverso, situações onde a documentação acaba sofrendo perdas e sendo separadas sem
quaisquer critérios, ficando a mercê dos poderes locais e da sorte do acaso.
Atualmente é conhecido que tais documentosencontram-se espalhados por diversas
instituições, por outro lado, pouco se sabe oficialmente os motivos que levaram a tais
fragmentações. Além do Arquivo Público do Amazonas, também se tem conhecimento de que
a Biblioteca Pública do Estado do Amazonas, o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas
e o Centro Cultural Povos da Amazônia possuem e fazem guarda de tal documentação.

521
522

Faz pouco tempo que as reflexões arquivísticaspassaram a preencher lacunas na


administração pública, portanto torna-se importante observar justamente a trajetória histórica
dessa prática tão comum, assim como entender empiricamente qual o entendimento da
missão, usos e apropriações dos arquivos públicos e demais instituições de guarda do
patrimônio documental ao longo da história.
Uma questão que agrava a situação é que tais instituições não se comunicam para tentar
criar mecanismos de intercâmbio informacional, o que acaba dificultando o trabalho dos
pesquisadores, pois cada instituição guarda e descreve os documentos de forma que se
considera o ideal e/ou possível. A criação de um instrumento de pesquisa padronizado, como
por exemplo, um guia temático interinstitucional, seria uma forma de minimizar possíveis
danos por tal fragmentação. Outra situação é que estas instituições possuem dificuldade na
produção de instrumentos de pesquisas básicos, dificultando assim, o conhecimento acerca do
arranjo e da história documental e arquivística de seus acervos. Diante de tais questões é que
este projeto se torna importante.

Primeiros resultados
O Objetivo geral deste artigoé apresentar os primeiros resultados em relação à dispersão
do fundo documental, repatriação de arquivos e o princípio da indivisibilidade, pois estas
mensagens estão dispersas por diversas instituições até mesmo em localidades além do Estado
do Amazonas, através de sites institucionais de museus e bibliotecas públicas.
Um dos objetivos específicos do artigo é mapearpela internet instituições no Amazonas
que fazem guarda de documentos permanentes e históricos, principalmente de documentos
oficiais do Estado do Amazonas. Nesta etapa foi realizada a pesquisa em cada uma das
instituições encontradas, através dos respectivos mecanismos de atendimento.
Outro objetivo específico é confirmar as instituições que possuem as Mensagens. Nesta
etapa, foram realizadas visitas in loco às instituições encontradas na pesquisa, para saber se
fazem (ou não) a guarda da documentação específica e as possibilidades de acesso.
O último objetivo específico é escrever os resultados encontrados, verificando há
instrumentos de pesquisa e se estão de acordo com as normas da Nobrade.
No Quadro 1, estão listados os lugares que foram pesquisados a respeito das mensagens
dos Governadores do Estado do Amazonas. As pesquisas foram divididas em duas categorias:
in loco e nos sites institucionais.

Quadro 1 – Locais pesquisados

522
523

Instituições Pesquisadas Tipo da Pesquisa Documentos encontrados?

Biblioteca Pública do Amazonas Pesquisa in loco Sim

Biblioteca Mario Ypiranga(Centro Cultural Povos da Pesquisa in loco Sim


Amazônia)

Biblioteca Arthur Reis (Centro Cultural Povos da Pesquisa in loco Sim


Amazônia)

Arquivo Público do Estado do Amazonas (APEAM) Pesquisa in loco Sim

Center For ResearchLibraries Pesquisa no site Sim

Museu Amazônico Pesquisa in loco Não

Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA) Pesquisa in loco Sim

Arquivo Nacional Pesquisa no site Não

Biblioteca Nacional Pesquisa no site Não

Fonte: Autora, 2018.

Como podemos observar no Quadro 1, foram mapeadas 9 instituições de guarda de


documentos, sendo encontrado as Mensagens em 6 instituições, a qual serão apresentadas
mais a diante. Outras 3instituições também foram pesquisadas, porém, não foi encontrada
nenhuma informação pertinente a esta pesquisa: Museu Amazônico, Arquivo Nacionale
Biblioteca e Nacional.

Biblioteca Pública do Estado do Amazonas355

A Biblioteca Pública do Estado do Amazonas, que faz parte da Secretaria de Cultura do


Estado, é responsável por receber as Mensagens dos governadores a cada publicação feita do
Diário Oficial. Esta instituição faz a guarda do material no intuito de prestação de contas e
uso para consultas em uma espécie de portal de transparência, para eventuais pesquisas.
Todas as mensagens dos governadores estão em formato de livros, contendo 62
publicações, com algumas edições repetidas que contém entre de 2 a 7 volumes. Sua forma de
indexação está nas normas da Biblioteconomia e correspondem aos governos de 1950 a 2016.

355
Informações obtidas através de entrevistas com funcionários da Biblioteca Pública do Estado do Amazonas,
em pesquisa in loco.

523
524

A disponibilidade de acesso está em formato impresso na Biblioteca Pública do Estado


do Amazonas e no site da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas. Todo o material
publicado está em perfeito estado de conservação.

Biblioteca Mário Ypiranga356

A Biblioteca Mário Ypiranga integra parte do Centro Cultural Povos da Amazônia, e


compõe de um acervo particular que pertenceu ao Professor, Escritor e Advogado
amazonense Mário Ypiranga Monteiro. Dono de uma vasta obra, a maioria na imprensa diária
e de seus trabalhos de pesquisas. Participou de entidades como a Academia Amazonense de
Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Dentro de suas obras está contida
parte das Mensagens dos governadores à Assembleia Legislativa do Estado. Essas mensagens
são referentes aos anos de 1901 a 1975 contendo 1.936 páginas, publicadas em 15 livros.
Trata-se de uma documentação específica do Governo do Estado de natureza jurídica, que foi
adquirido pelo governo comprando de seus familiares após seu falecimento e que, agora
fazem parte do acervo da Biblioteca do Museu Mário Ypiranga. Como pessoa de grande
influência no Amazonas o mesmo tinha acesso a tais documentos o poderia tê-lo vindo a
adquirir guarda dessas unidades documentais. Sua indexação está segundo as normas da
Biblioteconomia no Guia de fundo do CDD (Classificação Decimal DEWEY), estão em
perfeito estado de conservação e suas condições de acesso estão disponíveis em formato físico
na biblioteca.

Biblioteca Arthur Reis357

A Biblioteca Arthur Reis está também situada no Centro Cultural Povos da Amazônia,
seu acervo reúne quase 90 anos da vida de Arthur César Ferreira Reis que foi
professor, político, historiador brasileiro e membro do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro – IHGB -, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas – IGHA - e da
Academia Amazonense de Letras - AAL. Tamanha influência contribuiu para que as
Mensagens dos governadores fizessem parte do seu acervo pessoal. A secretária de cultura

356
Informações obtidas através de entrevistas com funcionários da Biblioteca Mário Ypiranga, em pesquisa in
loco.
357
Informações obtidas através de entrevistas com funcionários da Biblioteca Arthur Reis, em pesquisa in loco e
em catálogos.

524
525

comprou todo o acervo e implantou em 2001 a biblioteca que reúne as obras que compunham
a biblioteca do professor e amazonólogo. Contendo cerca de 21 mil volumes, disponíveis em
quatro suportes técnicos: coleção de livros, coleção de folhetos, coleção de periódicos e
alguns materiais iconográficos. Dentro de suas coleções amplamente especializadas tem
assuntos referentes a conhecimentos gerais no campo da história e política geográfica. Neste
campo estão disponíveis as mensagens dos governadores à Assembleia Legislativa do Estado.
Tais mensagens são referentes aos anos de 1898 a 1974, catalogadas em 1.949 páginas, em 12
publicações. Sua forma de indexação segue as normas da Biblioteconomia pelo Guia de fundo
do CDD (Classificação de Decimal de DEWEY). As mensagens estão em perfeito estado de
conservação e sua condição de acesso é apenas em formato físico na biblioteca.

Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA)

Fundado em 25 de março de 1917, na Sala de Sessões da Câmara Municipal de Manaus,


o Instituo Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA) apresenta hoje, inegável vigor físico e
intelectual. As mensagens dos governadores que compõem parte do acervo histórico
permanente da biblioteca Ramayana de Chevalier ao qual faz parte do Instituto Geográfico e
Histórico do Amazonas (IGHA). São mensagens entre os anos de 1915 a 1996, armazenadas
em caixas Box, divididas em 7 caixas com o equivalente a 15.890 mensagens publicados em
formato de livros. Algumas dessas mensagens em perfeito estado de conservação e parte delas
deterioradas devido ao fator de tempo e conservação.

Arquivo Público do Estado do Amazonas358

O Arquivo Público do Estado do Amazonas é uma instituição pública de vinculação


administrativa da secretaria de Estado e Administração e Gestão-SEAD. O arquivo coleta e
organiza, fazendo o armazenamento e recuperação dos documentos oriundos de órgãos e
entidades da administração pública estadual, tendo sua função mantenedora da guarda de

358
Informações obtidas através de entrevistas com funcionários do Arquivo Público do Estado do Amazonas, em
pesquisa in loco.

525
526

documentação histórica e administrativa do poder Executivo do Estado, disponibilizando a


estudantes e pesquisadores para consulta. Dentre essa documentação estão as Mensagens dos
governadores da Assembleia Legislativa do Amazonas. Todas essas documentações referentes
às mensagens estão armazenadas em 5 estantes com 8 prateleiras, contendo 6,8 metros
lineares.
Alguns fatores administrativos e de gestão pública ocasionam diversos problemas com
relação ao acervo do Arquivo Público, que, apesar da enorme quantidade contabilizada, a
mesma poderia ser maior se toda a documentação estivesse sido preservada através
daconservação correta. O material está disponível a pesquisa somente em forma presencial na
instituição. Até o momento, os colaboradores da instituição fazem o trabalho de recuperação
desses documentos e de guarda359. Sua forma de indexação é feita por datas respectivas a cada
ano correspondentes as datas de publicação dessas mensagens. Um código de referência vem
sendo criado pelo o professor da UFAM Leandro Coelho Aguiar, ao qual seu projeto de
extensão junto ao Arquivo Público do Estado do Amazonas, tinha por objetivo diagnosticar a
situação do acervo e criar um código de referência, na tentativa de organizar essa
documentação, segundo as normas arquivísticas.

Plataforma digital Center For ResearchLibraries

Dentre as pesquisas institucionais algumas plataformas digitais foram consultadas a


fim de coletar dados que poderiam fazer guarda e disponibilizar tal documentação histórica. O
Centro de Bibliotecas de Pesquisa (Center For ResearchLibraries, também conhecido por sua
sigla, CRL) é um consórcio de universidades, faculdades e bibliotecas de pesquisa
independentedos Estados Unidos, com base em um conceito de adesão para a participação nos
consórcios. O consórcio adquire e preserva recursos tradicionais e digitais para pesquisa e
ensino e os disponibiliza para instituições membros por meio de empréstimo entre bibliotecas
e entrega eletrônica. Também reúne e analisa dados relativos à preservação de recursos físicos
e digitais e promove o compartilhamento de conhecimentos, a fim de ajudar as bibliotecas-
membro a manter suas coleções.
O LAMP (antigo Latin American Microform Project) no Center for ResearchLibraries
recebeu fundos em 1994 da Andrew W. Mellon Foundation para explorar aspectos da
digitalização a partir de microfilmes. Trabalhando em cooperação com a Biblioteca Nacional

359
Houve inúmeros projetos de professores da UFAM para organizar a documentação.

526
527

no Rio de Janeiro, a LAMP selecionou sua coleção de documentos do governo brasileiro por
causa de sua escassez, importância e volume. Concluído em dezembro de 2000, o projeto
digitalizou mais de 670.000 imagens de páginas de publicações do governo, disponíveis
gratuitamente na web360.
Na coleção do Center for ResearchLibraries, encontram-seas mensagens dos
Governadores do Estado do Amazonas, dos anos de 1891 a 1930. Ao todo, os arquivos
textuais somam 10. 226 páginas, em 157 anexos no formato de (300-dpi TIFF image) por
página.

Considerações Finais
No Quadro 2, pode-se observar o nome das instituições que possuem as mensagens dos
Governadores do Estado do Amazonas e os respectivos limites temporais.

Quadro 2 – Instituições que possuem as mensagens dos Governadores do AM


Instituições Ano das mensagens
Biblioteca Pública do Amazonas 1950 – 2016
Biblioteca Mario Ypiranga 1998 – 1974
Biblioteca Arthur Reis 1901 – 1975
Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA) 1915 – 1996
Arquivo Público do Estado do Amazonas (APEAM) 1852– 2000
Center For ResearchLibraries 1891 – 1930
Fonte: Autora, 2018.
Este artigo tem a finalidade buscar e identificar as instituições que fazem guarda das
mensagens dos governadores do Estado do Amazonas. Foi elaborada uma pesquisa nas
principais instituições que guardam tais documentos e descobriu-se que tais instituições não
se comunicam entre si e que não possuem mecanismos de intercâmbio documental,
dificultando o acesso de cenários reais das épocas, pois as informações ficaram fragmentadas,
ferindo assim, o princípio da indivisibilidade ou integridade.Além das questões de política de
arquivos e das próprias questões institucionais, vindo a ferir os princípios arquivisticos
causando a dispersão de fundos, assim como pode ser a expressão da própria “fragmentação”
desses registros documentais.
Na Biblioteca Pública do Estado do Amazonas, as mensagens dos governadores estão
em formato de livros, contendo 62 publicações (2 a 7 volumes). Sua forma de indexação está
nas normas da Biblioteconomia e o acesso está em formato impresso na própria biblioteca e

360
Pesquisa no site Institucional, no endereço eletrônico: <https://www.crl.edu/>

527
528

no site da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas. Na Biblioteca Mario Ypiranga


(Centro Cultural Povos da Amazônia), contendo 1.936 páginas, publicadas em 15 livros, sua
indexação está segundo as normas da Biblioteconomia no Guia de fundo do CDD
(Classificação Decimal DEWEY).Na Biblioteca Arthur Reis encontra-se às mensagens estão
catalogadas em 1.949 páginas, em 12 publicações e a indexação segue as normas da
Biblioteconomia pelo Guia de fundo do CDD. No Instituto Geográfico e Histórico do
Amazonas (IGHA), as mensagens catalogadas em 1.949 páginas, em 12 publicações, suas
formas de indexação também seguem as normas da Biblioteconomia pelo Guia de fundo do
CDD. Já no Arquivo Público do Estado do Amazonas, às mensagens estão sendo catalogadas
e passando por um processo de criação de códigos de identificação e referência das
mensagens dos governadores segundo as normas arquivisticas. E no siteCenter for
ResearchLibraries, encontram-seas mensagens dos anos de 1891 a 1930, nos formatos de
arquivos textuais digitalizados, disponível no formato de (300-dpi TIFF image) por página.
O próximo passo dessa pesquisa seráde análise in loco dos acervos, buscando identificar
cada mensagem (data da mensagem, governador, quantidade exata de páginas, condição de
conservação das informações) para assim, criar um banco de dados que possa servir para
pesquisas futuras. As reflexões e dados acima apresentados servem de possibilidades tendo
osacervos documentais como objeto de estudos e pesquisas, de pensar os arquivos como fonte
histórica, poisa manutenção de registros é uma “espécie de testemunho que deve ser
preservado a sua integridade e indivisibilidade em meio a tantas intervenções não só de
produção, acumulação, como também na interoperabilidade dos fundos de arquivos.

Referências

ANPUH, Associação Nacional de História – Seção Amazonas. Normas de participação.


Disponível em: <https://sites.google.com/view/anpuh-amazonas/iv-anpuh-am-2018/normas-
de-participa%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 01. AGO. 2018.
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4ª Ed. Rio
de Janeiro: Editora da FGV, 2006.
BOOTH, Colomb; BOOTH,Willims. A arte da pesquisa. 2000 (capítulo 1-Pensar por
escrito: Os usos públicos e privado da pesquisa, p. 7-14).
L. S. Ascensão de Macedo. Repatriação dos arquivos ou a reunificação virtual: o caso dos
fundos conventuais madeirenses dispersos, entre o Arquivo Nacional Torre do Tombo e o
Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira.
MACEDO, L. S. Ascensão de. Repatriação dos arquivos ou reunificação virtual? O caso
dos fundos conventuais madeirenses dispersos entre o arquivo nacional torre do tombo e o
arquivo regional e biblioteca pública da madeira. Disponível em: <http://orcid.org/0000-0001-
7251-7314>. Acesso em: 28. ABR. 2018.
MILLAR, Laura Agnes. A morte dos fundos e a ressurreição da proveniência: o contexto

528
529

arquivístico no espaço e no tempo.


NOBRADE.Norma Brasileira de Descrição Arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2006.
RODRIGUES, GeorgeteMedleg. Construindo um objeto de pesquisa em Arquivologia:
algumas reflexões. 2012.
ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Os fundamentos da disciplina arquivística.
Lisboa: Publicação Dom Quixote, 1988.
SCHELLENBERG, Theodore R. Arquivos Modernos: princípios e técnicas. 6ª Ed. Rio de
Janeiro: Editora da FGV, 2008.
SILVA, Eliezer Pires da; MELO, Mariana Tavares de. A Dispersão de Fundos de Arquivos
Pessoais.

529
530

O PROTESTANTISMO EM MANAUS:
PRIMEIROS PASSOS, OS PIONEIROS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

SANDRO AMORIM DE CARVALHO*

Considerações iniciais
Nascido no século XVI com a Reforma, o protestantismo colocou-se como opositor do
Catolicismo Romano. Com ímpeto, diversos convertidos lançaram-se na propagação da fé
protestante, e todas as oportunidades eram aproveitadas para a disseminação da mensagem,
porém após esse momento o entusiasmo foi diminuindo até tornar as igrejas protestantes em
serenas comunidades que se preocupavam em cuidar daqueles que estavam ligados ao seu
grupo.
Contudo, o século XIX testemunhou a mobilização das igrejas protestantes para a
busca por novos campos para semear o evangelho, considerado pelos protestantes mais puro
que aquele apresentado pela igreja Católica Romana. Esse período dentro da história da igreja
protestante ficou conhecido como Século das Missões Protestantes. Movimento de caráter
global, porque todas as nações conhecidas receberam missionários protestantes, que não
poderia deixar de incluir o distante vale amazônico, em especial as duas capitais que se
destacavam economicamente por meio da extração do látex, Belém e Manaus.
Este texto visa apresentar em linhas gerais como esse movimento de caráter mundial
proporcionou a chegada da igreja protestante chegou à cidade de Manaus, ainda no século
XIX, através da atuação de diversos missionários das diversas denominações existentes no
final do século XIX e início do XX.

A Legislação Brasileira e o campo religioso


A “Constituicão Politica do Imperio do Brazil (de 25 de março de 1824)”, outorgada
por D. Pedro I, determinou em seus artigos referentes a religião que o Império possuía uma
religião oficial, o Catolicismo Romano e como deveriam proceder aqueles que professam
religiosidades distintas.

Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do


Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou
particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.
(grifo nosso).
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros,
que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida
pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
V. Ninguem póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do
Estado, e não offenda a Moral Publica. (grifo nosso)

530
531

Os imigrantes que se dirigiam para a cidade de Manaus poderiam manter seus rituais e
suas práticas religiosas, todavia deveriam observar essas proibições legais para poder
continuar praticando sua religiosidade sem receio de perseguições. Pelo texto da lei, seria
dada a liberdade de culto às religiões diferentes da oficial, porém com restrições quanto à sua
manifestação pública, tanto no que se refere à divulgação, como aos seus locais de reunião,
que deveriam ser “sem fórma alguma exterior do Templo”. Suas reuniões teriam caráter
particular e não deveria haver por parte de seus adeptos nenhum proselitismo, pois isso seria
considerado crime. Na prática acontecia o contrário, qualquer identificação de membros do
protestantismo na sociedade era motivo de balburdia. Esse ambiente de tolerância legal e
intolerância social perenizou-se na sociedade brasileira, destacamos o termo tolerância e não
liberdade, pois quem tolera ou permite a confissão particular, mas não pública, de outra
religião não está, necessariamente criando um ambiente de liberdade religiosa, mas de
omissão do estado frente aos ataques sofridos por outros credos, pois uma vez que a lei
autoriza a manutenção particular de um credo ela proíbe sua manifestação pública.
Consequência disso? Uma sociedade intolerante com o a diversidade religiosa, o que origina
uma sociedade intolerante com qualquer outra manifestação de alteridade361, seja cultural ou
social, pois o outro se torna o adversário, o inimigo, aquele que deve ser eliminado, foi assim
no final do Império e início da República, está sendo assim em nossos dias.
Com o início da República, o “Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do
Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos do Brasil, constituido pelo Exercito e
Armada, em nome da Nação” publicou o Decreto Nº 119-A, de 7 de Janeiro de 1890, cujo
conteúdo intencionava proibir “a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados
em materia religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece
outras providencias”, e oferecer a mais plena liberdade religiosa. O referido Decreto afirma:
Art. 1º E' prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados,
expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião,
ou vedando-a, e crear differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços
sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas
ou religiosas.
Art. 2º a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o
seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos
particulares ou publicos, que interessem o exercicio deste decreto.
Art. 3º A liberdadeaqui instituida abrange não só os individuos nos actos
individuaes, sinão tabem as igrejas, associações e institutos em que se acharem
agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituirem e viverem
collectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder
publico. (grifo nosso)

361
Alteridade (derivado do latim "alter", outro), trata-se da presença do outro que se constituí diante
da identidade.

531
532

Este decreto do chefe do governo republicano legitimou a separação entre a Igreja, em


qualquer de suas manifestações, e o Estado, que se declarava laico362, garantindo aos
protestantes o reconhecimento e a proteção legal para suas atividades religiosas. Eram novos
tempos, e tornava-se necessária a criação de um ambiente favorável aos imigrantes, às suas
famílias e seus credos, pois a economia agrícola do país dependia dessa mão-de-obra.
A Constituição de 1891, da primeira da República, traz em seu Art.72, o seguinte
texto:

A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a


inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á
propriedade, nos termos seguintes: (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3
de setembro de 1926)
§ 2º Todos são iguaes perante a lei. (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3
de setembro de 1926)
A Republica não admitte privilegios de nascimento, desconhece fóros de nobreza, e
extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerogativas e regalias, bem
como os titulos nobiliarchicos e de conselho. (Redação dada pela Emenda
Constitucional de 3 de setembro de 1926)
§ 3º Todos os individuos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente
o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as
disposições do direito commum. (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de
setembro de 1926)
§ 4º A Republica só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.
(Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)
§ 5º Os cemiterios terão caracter secular e serão administrados pela autoridade
municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a pratica dos respectivos ritos
em relação aos seus crentes, desde que não offendam a moral publica e as leis.
(Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)
§ 6º Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos publicos. (Redação dada
pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)
§ 7º Nenhum culto ou igreja gosará de subvenção official, nem terá relações de
dependencia ou alliança com o Governo da União, ou o dos Estados. A
representação diplomatica do Brasil junto á Santa Sé não implica violação deste
principio. (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926).
(grifo nosso)

Esta confirmação da separação entre Estado e igreja, tanto administrativa como


economicamente, a liberdade de culto individual e coletiva, o reconhecimento do casamento
civil, a laicização dos cemitérios e da educação são importantes conquistas legais para a
abertura definitiva das fronteiras do país ao protestantismo.
Sem a intervenção estatal nas questões religiosas e com o reconhecimento oficial do
direito ao culto, a tendência das igrejas protestantes foi a manifestação pública de suas crenças
e imediata ação evangelística, atividade que certamente já ocorria de modo velado, agora
usufruindo de legalidade, tende a crescer.

362
O Estado posiciona-se com neutralidade diante das religiões, não professando uma religião oficial, mas não se
opondo a qualquer manifestação religiosa.

532
533

O Protestantismo no Brasil e o Campo Religioso em Manaus


No final do século XIX e início do XX, o Catolicismo Romano ainda predominava
como religião estabelecida na região amazônica. Porém, nesse período chega a Manaus para
estabelecer-se outra manifestação do Cristianismo, o Protestantismo. Nascido no século XVI
com a Reforma Protestante esse ramo do Cristianismo encontrava-se em franca expansão nas
outras regiões do país. Contudo, chegará à Manaus apenas nesse período, talvez motivado
pela expansão da economia gomífera que movimentava o mercado e a vida local é que a
cidade tenha entrado na lista das missões evangelísticas. Visto que por causa desta expansão
econômica Manaus tornou-se uma “Babel” atraindo imigrantes de diversos países: norte-
americanos, ingleses, barbadianos, italianos, espanhóis, portugueses, japoneses e judeus. E
migrantes, por exemplo, cearenses e maranhenses, assim como de outros lugares do país
(BENCHIMOL, 2009).
Nesse contexto a religião de Católica Romana era hegemônica. Todavia, esse campo
religioso dominado pelo catolicismo sofreu forte concorrência do protestantismo de
imigração. O país enfrentava violenta instabilidade político-social nesse período, diversas
manifestações populares que contribuíam para isso. Momento em que o volume de imigrantes
recebidos pelo Brasil era intenso, o historiador Boris Fausto afirma “cerca de 3,8 milhões de
estrangeiros entraram no Brasil entre 1887 e 1930” (FAUSTO, 1995, p. 275). Considerando
que esses imigrantes trouxeram, além da esperança de dias melhores para suas famílias, suas
crenças e experiências religiosas, uma fé diferente da estabelecida no país e em Manaus. Eles
eram protestantes que migravam em busca das riquezas, mas traziam em sua bagagem a nova
forma de conceber o cristianismo.
Visando atender a esses imigrantes com assistência religiosa surgiram sociedades
missionárias que deram origem a outra vertente da missionação protestante denominada
protestantismo de missão, que é o protestantismo que chegará à cidade de Manaus. Que
naquela ocasião era a capital mais distante do centro administrativo do país, e foi a última
capital a ser alcançada pela missionação protestante era, portanto o último reduto intacto do
catolicismo na nascente República. O protestantismo, consolidado nas principais nações que
promoviam o neocolonialismo e mantinham relações comerciais com o Brasil, pensava que o
país era carente do evangelho encontraria no Brasil um campo promissor para sua inserção no
país.

533
534

Há de se mencionar ainda entre os pioneiros aqueles que distribuíam Bíblias,


chamados de colportores363, eles iam de casa em casa, de comunidade em comunidade
vendendo as Bíblias que eram produzidas pela Sociedade Bíblica Britânica.

Os missionários pioneiros em Manaus.


A cidade de Manaus, capital da província do Amazonas, crescia economicamente
graças à exploração extrativista da borracha, a cidade deixava de ser um porto de lenha para
transformar-se em uma cidade cosmopolita, marcada por uma diversidade de pessoas, estilos
e modos de vida renovada, nessa efervescência sociocultural e econômica a cidade crescia
cada vez mais. Ainda que a riqueza da atividade extrativista não fosse usufruída por todos. As
levas de migrantes e imigrantes eram constantes, a cada vapor que chegava ao porto de
Manaus um novo grupo, novas expectativas, sonhos e desejos nascidos de um imaginário em
que a Amazônia promovia a riqueza a todos os que se aventurassem nela.
O trabalho de evangelização protestante no Amazonas no final do século XIX ocorreu
de modo pontual. Exemplo disto é o Rev. Richard Holden que distribuía Bíblias na tentativa
de implantar o anglicanismo, contudo não iniciou um trabalho permanente na região,
alcançando poucos resultados, ele visitou Manaus no intuito de assistir a um grupo de
estrangeiros que residiam na cidade e professavam a fé anglicana, contudo não estabeleceu na
cidade nenhum ponto de pregação ou congregação que pudesse ser identificada como uma
igreja evangélica implantada na capital do Amazonas. Outro exemplo, que poderia ser
chamado de protestantismo de imigração, foi “quando em princípios de 1866 o Major
Lansford Warren Hastings e outros chegaram a Belém para estabelecer uma colônia de
confederados no Pará” (DREHER apud CERETTA, 2008, p. 425).
Esses pioneiros deixaram seus vestígios sem, contudo, implantarem alguma das
diversas denominações protestantes que existiam à época. Mas são exemplos de como aos
poucos o protestantismo foi se instalando na região do Amazonas.

As primeiras denominações
O final do século XIX e início do XX é o período a cidade de Manaus testemunha que
houve o estabelecimento das primeiras igrejas protestantes na cidade e que permanecem até
aos nossos dias exceto a Igreja Anglicana que encerrou suas atividades no ano de 1944 e até o
momento não retornou.

363
Vendedores de literatura cristã, porém seus objetivos ultrapassavam a simples venda, tinham o desejo de
divulgar a mensagem cristã através da literatura: porções bíblicas e textos explicativos.

534
535

Os Metodistas
Poderíamos considerar os metodistas a primeira denominação protestante a
estabelecer-se na cidade de Manaus. Quem eram os Metodistas? A Igreja Metodista nasceu da
obra evangelística de John Wesley na Inglaterra do século XVIII dentro de um Anglicanismo
voltado para as elites. Inicialmente, Wesley liderou um grupo que se intitulava Clube Santo.
De acordo com o historiador protestante Earle Cairns “os membros deste grupo foram
apelidados de Metodistas, [...] por causa do seu estudo metódico, seus hábitos de oração e
suas iniciativas frequentes de ação social nas prisões e entre os pobres” (CAIRNS, 1995, p.
329). A evangelização realizada por Wesley, segundo Cairns (1995, p. 329) promoveu o
chamado reavivamento inglês. Os metodistas estavam presentes em Belém desde 1880 com o
Rev. Justus H. Nelson e em 1887, recebeu o missionário norte-americano Rev. Marcus
Ellsworth Carver de origem metodista oriundo da Conferência de New Hampshire
pertencente à Igreja Metodista Episcopal, juntos decidiram que Carver iria para as cidades de
Santarém e Manaus (REID, 1895. Vol. 1 p. 299).
Chegando à cidade de Manaus em janeiro de 1888, permanecendo até 1908, Marcus
Ellsworth Carver realizou um trabalho pioneiro na evangelização protestante em Manaus,
apesar da oposição por parte do Catolicismo Romano ele permaneceu na cidade de Manaus, e
em sua atividade missionária implantou, em caráter definitivo, o protestantismo na cidade.
(CARVALHO, 2015). Por um ano atuou como missionário metodista, mas em 1889 desliga-
se dessa denominação e funda a Missão Bethesda. “Creio, contudo, que não podemos deixar
de considerar o Dr. Marcus Carver entre os desbravadores e pioneiros do metodismo no
Brasil, assim como o foram Spaulding e Kidder” (LONG, 1965, p. 107). Ainda que não tenha
deixado um marco permanente em Manaus, aqueles que se congregavam em sua igreja
tornaram-se membros de outras denominações que chegaram à cidade (LONG, 1965, p. 107).

A Missão Bethesda e o Anglicanismo


A Missão Bethesda, que tinha por finalidade divulgar a mensagem protestante na
cidade e seus arredores. Ao fundar essa missão independente Carver passou a adotar a liturgia
Anglicana. O objetivo da Missão Bethesda era evangelizar o vale amazônico, o projeto
evangelístico de Carver visava Manaus e seus arrabaldes. O primeiro fruto dessa missão foi a
inauguração da Egreja Evangelica Amazonense, a primeira igreja protestante fundada em
Manaus. Com esse ato Carver considerava que a evangelização na cidade de Manaus estava
estabelecida, deixando por conta de Juvêncio Paulo de Melo a direção dos trabalhos na

535
536

cidade, voltando-se para o interior, no intuito de evangelizar os ribeirinhos e os indígenas. A


Missão Bethesda prosseguiu a sua marcha o ano de 1899, quando a 18 de setembro desse
mesmo ano, resolveu constituir-se em uma congregação local que passou a denominar-se
Egreja Evangélica Amazonense, de caráter independente e funcionando na Rua Leonardo
Malcher. “Adotou nos cultos públicos o ritual e a liturgia da Egreja Protestante Episcopal,
permanecendo o Dr. Carver no pastorado da Egreja" (LONG, 1968, p. 105). A fundação da
Egreja Evangelica Amazonense (1899), marca a implantação em caráter definitivo do
protestantismo em Manaus
A Igreja Anglicana surge na Inglaterra e seu líder era o próprio Rei Henrique VIII que
tirou proveito desse estado de inconformismo para alcançar interesses próprios. Como afirma
Pierre Chaunu (2002, p. 173) “a Igreja inglesa, apesar de suas estruturas, acabará por ser uma
Igreja da Reforma, a Igreja protestante da Inglaterra estabelecida por lei”. No que se refere ao
aspecto doutrinário a Igreja Anglicana, ainda que tenha mantido alguma proximidade com a
Igreja Católica, abraçou o calvinismo como orientação teológica. O Rei distribuiu a
administração da igreja aos bispos que eram mantidos pelo Estado. A declaração de fé e
doutrinária da Igreja Anglicana encontra-se exposta nos seguintes documentos: Os Trinta e
Nove Artigos e O Livro de Oração Comum, usados por todas as Igrejas Anglicanas. Um
aspecto litúrgico importante refere-se à leitura bíblica, pois “as leituras dos dois Testamentos
são exigidas em todos os cultos normais” (ALLISON in ELWELL, 1993, p. 301).

Os Batistas
A presença batista em território amazonense data do ano de 1897, quando chega a
cidade de Manaus o missionário Eurico Nelson e sua esposa, a Sra. Ida Nelson. O pastor
Eurico Nelson passou à História conhecido como o “Apóstolo da Amazônia” graças ao seu
trabalho missionário nessa região. Tendo sempre ao seu lado sua fiel companheira D. Ida
Nelson. Em sua atividade missionária fundou igrejas em Belém, Santarém, Manaus, Porto
Velho, Itacoatiara e outras.
Ao chegar à cidade de Manaus foi recebido pelo “Coronel Manoel Cavalcante de
Araújo, um homem de grande projeção e respeito na cidade” (PEREIRA, 1945, p. 48). Foi-lhe
dada a oportunidade de pregar o evangelho enquanto estava hospedado na residência do
Coronel Araújo, ocasião em que a esposa deste veio a converter-se sendo em seguida batizada
por Eurico Nelson. Outras quatro senhoras que ouviam a mensagem também se converteram e
foram batizadas pelo missionário. Essas cinco vidas foram a base da formação da Primeira

536
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Igreja Batista de Manaus organizada em 05 de outubro de ano de 1900, localizada na estrada


Silvério Nery, hoje Av. Joaquim Nabuco. É a igreja mais antiga em atividade na cidade de
Manaus, visto que a Egreja Evangelica Amazonense encerrou suas atividades no ano de 1944.
Segundo Dreher (1992, p. 331) a igreja contava com 20 membros de diferentes
camadas sociais, em sua organização. No ano seguinte contava com 54 e em 1903, 122
membros. Para a época isso pode ser considerando um crescimento bastante rápido.

Os Presbiterianos
A história da Igreja Presbiteriana em Manaus também está ligada à missão Bethesda
fundada por Marcus Carver, de sua congregação saíram os primeiros membros da igreja
Presbiteriana. “Desta congregação anglicana veio a se derivar a congregação presbiteriana,
acrescida de elementos migrados do Nordeste para Manaus em busca do “ouro negro’”
(DREHER, 1992, p. 331)”.
Desde 1902, residia na capital amazonense o Pr. Lourenço de Barros que já pastoreava
um pequeno grupo de presbiterianos. Tendo recebido o reforço do missionário Pr. William M.
Thompson organizaram, em 18 de novembro de 1904, a Egreja Presbyteriana em Manaós.
Lourenço de Barros morreu vitimado pelo beribéri em abril de 1905.
Júlio Andrade Ferreira (1959, p. 327) afirma que o trabalho enfrentou grandes
dificuldades, que poucos dados são disponíveis para descrever essa congregação
presbiteriana. “Sendo assistido por pastores que permaneciam em Manaus por pouco tempo.
O trabalho manteve-se com a ajuda de presbíteros que perseveraram, sem deixar o trabalho
morrer” (IPM, 2015). Segundo Dreher (1992, p. 329), “em 1922, existia apenas um pequeno
punhado de presbiterianos na capital do Amazonas”.
Nos anos de 1942 a 1945, com a designação do pastor Josafá Siqueira, por parte do
Presbitério Ceará-Amazônia, a Igreja Presbiteriana de Manaus passou a evangelizar a
vizinhança da igreja recebendo muitas pessoas humildes das redondezas que frequentavam os
cultos e a Escola Bíblica Dominical (IPM, 2015). Foi a partir da década de 60 que trabalho de
evangelização expandiu a igreja para a periferia da cidade implantando igrejas nos bairros de
Educandos, São Jorge, Crespo e Petrópolis.

Os pentecostais: A Assembleia de Deus


Em 19 de novembro de 1910, os suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg chegaram a
Belém do Pará, procedentes dos Estados Unidos da América, onde após um ano fundaram a
Missão da Fé Apostólica, semente da Igreja Assembleia de Deus.

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A Igreja expande-se pelo território do Pará e no ano de 1917, chega a Manaus por
intermédio do Sr. Severino Moreno de Araújo vindo de Belém, PA, que lança a semente da
Igreja Assembleia de Deus na cidade de Manaus. Seu trabalho foi grandemente abençoado e
rendeu muitos frutos. Porém, sentindo a necessidade de alguém para cuidar do pequeno
rebanho, solicitou à igreja em Belém (PA) um pastor. Em resposta a esse pedido, no dia 18 de
outubro de 1917, embarcava em Belém, com destino a Manaus, o casal de missionários
suecos Samuel e Lina Nystron.
No dia 1º de janeiro de 1918, Samuel Nystron e Lina Nystron organizaram e fundaram
a Igreja Evangélica Assembleia de Deus em Manaus, com sede à Rua Henrique Martins
esquina da Rua 13 de Maio (atual Avenida Getúlio Vargas). O primeiro batismo nas águas foi
efetuado pelo missionário Samuel Nystron, nas águas do igarapé Mestre Chico (terceira
ponte), quando 15 pessoas desceram às águas.
Como a igreja não tinha um local próprio para se reunir, a irmã Augusta doou um
terreno localizado na Praça Visconde do Rio Branco, 8-A (atual Rua Duque de Caxias, 340).
Em 31 de dezembro de 1929, ainda faltando terminar a construção, o templo foi inaugurado.
Assim surgiu o primeiro templo da Igreja Evangélica Assembleia de Deus em Manaus, que
hospedou a primeira Convenção Regional realizada de 15 a 22 de novembro de 1936. Hoje
conta com cerca de 3 mil templos em todo o Estado e 2179 pastores cadastrados na
Convenção Estadual da Assembleia de Deus no Amazonas, CEADAM, mais de 10.000
lideres de células, e um número geral de membros da ordem de 300 mil.

Embates entre Católicos e Protestantes: a experiência de Marcus E. Carver


Desde a Antiguidade o cristianismo é considerado perigoso e subversivo. Por isso, os
judeus, não apenas acusavam os cristãos de transtornar a religião, como, também, de
transtornarem a ordem política instaurada pelo Imperador Romano, indo além da ordem
religiosa permitida por ele aos judeus. Esses acusavam os cristãos de anunciar sua mensagem
ameaçadora não só contra os judeus, mas também, contra César, contra a ordem estabelecida.
Nessa perspectiva o projeto de missionação, em que participam religiosos protestantes no
século XIX, como foi o caso de Marcus Carver, assume o caráter de agitador, pois interessa
agitar, transformar, “virar de cabeça para baixo” as sociedades nas quais se inserem,
promovendo ações diversas no sentido de incentivar a evangelização, buscam a transformação
de práticas e representações sociais, esforçam-se para alcançar a modificação do habitus da
sociedade. A presença protestante na sociedade ultrapassa as fronteiras da religiosidade e,

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carregada de ação política, envidava esforços para transformação social e cultural do local
onde se encontrava no sentido em que traz a ideia de confronto com o estabelecido.
Essa presença religiosa diferente, divergente e contrária ao catolicismo causou
incomodo aos “crentes romanos”, identificação utilizada por Carver em seu periódico A Paz.
O incômodo que esse evento causou pode ser percebido por meio dos relatos de confrontos
entre Carver e católicos, descritos em seus escritos e em outros jornais que circulavam na
cidade de Manaus à época.
No jornal A Paz (1898), por ocasião da passagem do aniversário de Marcus Carver, o
Major Honorário do Exército Antônio José Barbosa escreve um elogio, cujo relato inclui a
ocasião em que Marcus Carver, enquanto pregava a Bíblia publicamente na Colônia Oliveira
Machado364, foi atacado, evento no qual ele “quasi é victima (sic) de um grupo de crentes
romanos, que o aggredio (sic), por estar pregando o Evangelho” (A Paz, 1898, p. 2). Essa
demonstração de intolerância religiosa promovida por adeptos da religião oficial, que o
atacaram por estar pregando uma fé distinta da vigente, exibe a disputa pelo direito ao
discurso e ao campo de atuação. O discurso religioso de Marcus Carver divergia do oficial e
nessa disputa, o discurso tornava-se o “pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar” (FOUCAULT, 2013, p. 10), torna-se um campo de disputa pelo direito de quem
deve fazer prevalecer seu regime de verdade. De um lado, Carver querendo inserir uma nova
perspectiva religiosa, de outro, os “crentes romanos” lutando por manter sua fé e seu campo
de atuação “imaculado” do erro protestante.
Por isso, cremos que, semelhante ao conflito entre os primeiros cristãos e os judeus, o
cristianismo protestante nascente e o catolicismo romano, o protestantismo que chegara à
Manaus, aqui representado por Marcus Carver, simbolizava um transtorno, não apenas da
ordem religiosa aceita e incontestada até aquele momento, como também da ordem social que
se encontrava estabelecida, organizada, imaculada e intocada das “contaminações”
protestantes, pois assim era vista a Manaus da Belle Époque, pelos católicos que nela
residiam.
Outro momento significativo desses confrontos foi o embate teológico que se encontra
descrito no jornal Imprensa Evangelica que circulava no Rio de Janeiro, capital da República,
em sua edição de número 37, de 27 de setembro de 1890, entre um “Círculo Catholico”
(NOVO DIA, ANNO I, NUM 2, 03 Ago. 1890) que havia na cidade de Manaus, grupo que

364
Bairro de Manaus, localizado na Zona Sul da cidade. “A colônia foi aberta por Joaquim de Oliveira Machado,
vigésimo-nono presidente da Província do Amazonas, em 1889, tendo sido ocupada inicialmente por
portugueses e espanhóis” (http://www.portalamazonia.com.br/secao/amazoniadeaz/interna.php?id=359). Sendo
depois ocupada por migrantes nordestinos. Local que abrigava forte presença católica.

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era responsável pela edição do Jornal Novo Dia, o qual teve “confiada a sua parte intellectual
a pennas de reconhecida capacidade como as dos illustres drs. Júlio Mario da Serra Freire,
Pedro Ayres Marinho, Padre dr. Israel Freire da Silva, Manoel de Miranda Leão e Bertino de
Miranda Lima (NOVO DIA, ANNO I, NUM 2, 03 Ago. 1890), esse círculo tinha o objetivo
de combater, por meio de debates escritos e verbais, os protestantes, nesse momento
representados pela figura de Marcus Carver. Destaca-se desse grupo o Padre Dr. Israel Freire
da Silva, professor do Seminário de São José, importante centro de formação católica. O Pe.
Dr. Israel é mencionado na Imprensa Evangelica (NUM. 37, 1890, p. 3) em uma disputa
intelectual com Marcus Carver cujo conteúdo transcrevemos abaixo:
No domingo 24, o novíssimo jornal de Manaós ‘Novo Dia’ órgão do clero romano,
publicara um desafio do padre Israel Freira da Silvadirigido ao Sr. Marcus E.
Carver, para este responder a um pamphleto anonymo e antiquado, intitulado
‘Perguntas respeitosas dirigidas ao Sr. E. Carver ministro da Igreja Evangelica
nesta provincia, por um Neophyto da mesma Igreja’, obra esta que foi distribuída
em Manaós no anno de 1888. Este pamphleto jesuítico, como muitos já sabem, e
que fingia ser obra de amigo cordeal e até membro do gremio do Sr. Carver, era
simplesmente uma transcripção (com uma ou outra palavra alterada), de uma serie
de ‘Perguntas feitas’ pelo mesmo ‘Neophyto’ fingido, e que foram cabalmente
respondidas pelo Dr. Robert R Kalley em 1880, sete annos antes de chegar o Sr.
Carver em Manaós. Agora, como a igreja romana gosta de especular com as
antiguidades, ressuscitou-se este opúsculo duas vezes morto, ao menos, e fez-se o
assumpto do desafio referido.
O repto atirado contra o Sr. Carver, foi acceito pelo Sr. Gentil Baptista Pereira que
sob sua assinatura principou uma serie de artigos publicados no diário do
‘Amazonas’. Estavam as coisas nesse pé quando ali chegou o Sr. Wright. Este irmão
não recuou de tomar parte na discussão e por intermédio do Sr. Gentil publicou um
convite ao padre Israel para marcar o dia e a hora em que ouvir a resposta do seu
desafio, que se faria em conferencias pública com assistência de todos que
quisessem comparecer. (grifo nosso)

O conflito estava instalado, os ataques e agressões físicas não eram isolados havia,
também, os ataques intelectuais e retóricos. Acusações e defesas de ambos os lados, pelo que
nos consta o Pe. Israel não fugiu ao debate. Porém, visto que Marcus Carver não se
encontrava na cidade só seus apoiadores aceitaram o desafio, como é o caso do Sr. Gentil
Baptista Pereira que publicou diversos artigos em jornal secular365Amazonas, cujo conteúdo
tratava de assuntos políticos e das resoluções do Congresso Amazonense, do qual o Sr. Gentil
era membro, portanto político conhecido na cidade de Manaus. Ele toma para si a tarefa de
responder ao desafio lançado pelo Pe. Israel e acrescenta perguntas que desafiam
publicamente o padre, quais sejam:
Além desse convite acrescenta o Sr. Gentil:

365
O termo secular é tomado aqui em seu sentido de oposição ao religioso, “que não é próprio da Igreja; que
não pertence à Igreja; leigo, profano (educação secular)”. Disponível em:
http://www.aulete.com.br/secular#ixzz3tpMGFCzX. Acesso em: 07 dez. 2015.

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Lembramos ao Sr. Padre Dr. Israel que terá que responder também na conferencia
pública às seguintes perguntas:
1. Porque, prohibindo o segundo mandamento da Lei de Deus, constante da Bíblia
dos padres – fazer-se e dar-se culto às imagens de escultura, se não cumpre na sua
igreja esse preceito do Senhor?
2. Porque, sendo o casamento, como se disse no numero anterior do Novo Dia santo
e divino ou abençoado por Deus, e conierindo366 (sic) graças, visto ser sacramento,
recusam-se os padres casar-se contra o que diz S. Paulo no capítulo iii da 1. Ep. a
Timoteo? (grifo do autor) (IMPRENSA EVANGELICA, NUM. 37, 1890, p. 3).

Esses questionamentos demonstram duas das principais divergências entre católicos e


protestantes, a adoração às imagens e o celibato sacerdotal, o debate era aberto, por meio da
imprensa local e ganhava projeção nacional, através da divulgação em jornais do Rio de
Janeiro. Perguntas diretas, objetivas que implicavam na necessidade de uma resposta, tanto de
um lado como de outro. Os conflitos entre católicos e protestantes em Manaus do início do
governo republicano marca um momento no país de lutas políticas, mas também religiosas.
Lutas que aconteciam no campo das ideias e também no físico com ataques, como
mencionamos anteriormente, e como podemos ver nos ataques ao templo construído por
Marcus Carver para a realização das atividades religiosas, agora permitida sua manifestação
pública.
O primeiro templo construído por Carver para ser utilizado pela Missão Bethesda foi
destruído em um incêndio, cujas causas não se sabe, nem ao certo a data em que ocorreu esse
sinistro, Carver não específica. Contudo, foi durante esse ataque sofrido por ele, que dois, dos
cinco auxiliares de Marcus Carver, que infelizmente não são nomeados em nenhuma das
fontes encontradas, foram agredidos e em pouco tempo faleceram por causa dos ferimentos. O
prejuízo foi enorme, nesse incêndio também se perdeu um harmonium, órgão portátil que
produz som quando o ar pressionado por dois foles acionados por pedais passa por palhetas
que vibram e produzem um som semelhante ao acordeão, tratava-se de um instrumento
popular entre as igrejas no século XIX e início do XX, tornando-se a alternativa para os
missionários que se dirigiam aos lugares distantes o que inviabilizava a utilização do
tradicional órgão de tubos. Foi nesse templo, que ao final de um culto no domingo à noite,
ocorreu um atentado a tiros contra a igreja e seus membros, conforme descreve Carver: “[...]
em 1897, [...] dois tiros foram disparados contra nosso prédio, logo depois do culto por algum
inimigo secreto da obra” (CARVER, 1899, p. 7, tradução nossa). Isso implica dizer que havia
a liberdade legal, mas a intolerância religiosa fazia um dos lados esquecer preceitos

366
Pelo contexto acredito tratar-se da palavra “conferindo”.

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importantes da vida religiosa cristã, o amor ao próximo, os protestantes continuavam a serem


vistos como inimigos da verdadeira religião, o catolicismo.

Considerações finais
O cristianismo protestante, desde seu surgimento no século XVI, configurava-se como
opositor do catolicismo romano. Pois, constituía-se como nova forma de entender o
cristianismo, apresentava novas formas de interpretação bíblica e liturgia divergente da
católica romana. Ao buscar popularizar-se o protestantismo apresentou-se como novo modo
de entender o cristianismo, isto é, colocar o ser humano em acesso direto a Deus, por meio de
Jesus Cristo e independente de qualquer intercessão humana. A ideia era libertar o
cristianismo de sua clausura monástica e dispô-lo aos homens comuns, a vivência cotidiana.
Aliás, havia nesse empreendimento o desejo de retirar a autoridade do papa sobre a igreja e
devolvê-la ao seu verdadeiro e legítimo detentor, Jesus Cristo.
Diante dessas lutas a atuação protestante em Manaus sofreu forte oposição, foi
perseguido, agredido, insultado, mas manteve-se fiel aos seus princípios e fundou na cidade
uma obra evangelística em caráter efetivo. Esse imaginário fomentou as missões protestantes
do século XIX, tanto no que tange à ação evangelística, quanto no confronto aberto com o
catolicismo.
Apesar de todos os embates e das tentativas de frear a evangelização protestante em
Manaus por parte do catolicismo nela instalado, o projeto missionário protestante prosperou e
outras denominações enviaram missionários para a cidade: batistas, presbiterianos e
assembleianos. O movimento protestante fincou raízes na cidade de Manaus e permanece até
aos nossos dias, com características próprias.

Referências
A PAZ. Manaus: [s.n.], 1898.
BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: formação social e cultural. 3ª ed. Manaus: Editora
Valer, 2009.
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. De 24 de Fevereiro de
1891. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm>. Acesso em: 08
Nov. 2015.
BRASIL. Constituição do Império do Brasil. De 25 Março 1824. Disponível em:
<https://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/viwTodos/e964c0ab751ea2be032569
fa0074210b?OpenDocument&Highlight=1,&AutoFramed>. Acesso em: 08 Nov. 2015.
BRASIL. Decreto Nº 119-A. De 7 de Janeiro de 1890. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm>. Acesso em: 08 Nov.
2015.

542
543

CARVALHO, Sandro Amorim. O povo do livro: uma história da inserção do


protestantismo em Manaus (1888-1944). 2015. 140 f. Dissertação (Mestrado em História) -
Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2015.
CARVER, Marcus E. A Short History of Bethesda Mission. Manaus: [s.n.], 1899.
COLÔNIA Oliveira Machado, bairro de Manaus. Disponível em:
<http://www.portalamazonia.com.br/secao/amazoniadeaz/interna.php?id=359>. Acesso em:
05 dez. 2015.
DREHER, Martin. História dos protestantes na Amazônia até 1980. In HOORNAERT,
Eduardo. História da Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992. 416 p
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2ª ed. São Paulo: EDUSP, 1995.
FERREIRA, Júlio Andrade. História da Igreja Presbiteriana do Brasil. São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana, 1959. (Vol. 2)
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France,
pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 23ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013.
(Leituras filosóficas)
IEADAM. Nossa História. Disponível em: <http://ieadam.com.br/nossa-historia/>. Acesso
em: 01 set. 2016.
IMPRENSA EVANGELICA. Rio de janeiro: [s.n.], 1890.
IPM. Nossa História. Disponível em: <http://www.ipmanaus.org.br/sobre/ipmanaus/>.
Acesso em: 26 nov. 2015.
LONG, Eula Kennedy. Do Meu Velho Baú Metodista. São Paulo: Igreja Metodista do
Brasil, 1968.
PEREIRA, J. Reis. O Apóstolo da Amazônia: Eurico Alfredo Nelson. Rio de Janeiro: [s.n.],
1945.
NOVO DIA. Manaus: [s.n.], 1890.
REID, J. M. Missions and Missionary Society of the Methodist Episcopal Church. New
York: Hunt & Eaton, 1895. Vol. 1
SECULAR. In: Novíssimo Aulete: dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Rio
de Janeiro: Lexicon, 2011. Disponível em:
http://www.aulete.com.br/secular#ixzz3tpMGFCzX. Acesso em: 07 dez. 2015.

543
544

“UNO COLONIAL – UMA EXPERIÊNCIA DE PRODUÇÃO DE MATERIAL


DIDÁTICO NO ENSINO DE HISTÓRIA”

SARAH DOS SANTOS ARAUJO

O ensino de história é mais um dos grandes desafios na educação hoje. E como as


outras disciplinas, necessita de atrativos que façam os alunos se interessarem pelas discussões
que a “matéria” traz consigo. Pensando nas estratégias para alcançar os interesses do alunado
para o conteúdo ministrado, a partir da década de 70 o ensino de História passou por várias
transformações que se pautavam em repensar o modelo de ensino/aprendizagem brasileiro.
Entender como o ensino era pensado no período anterior a década de 70 e como
passou a ser trabalhado com as pesquisas que se desenvolveram a partir de então, demonstram
um importante debate no campo da historiografia do Ensino de História, que não nasce apenas
na escola:
Pesquisas realizadas nos 70, 80 e 90 do século XX sobre as mudanças ocorridas no
ensino de história e os processos de formação de professores demonstraram a
enorme distância – e até mesmo discrepância – existente entre as práticas e os
saberes históricos produzidos, debatidos e transmitidos nas universidades e aqueles
ensinados e aprendidos nas escolas de ensino fundamental e médio. Enquanto, nos
cursos superiores, os temas eram objeto de várias leituras e interpretações e
predominava uma diversificação de abordagens, problemas e fontes, nas escolas de
ensino fundamental e médio, de uma maneira geral, as práticas conduziam à
transmissão de apenas uma história, uma versão que se impunha como a verdade. A
formação universitária constituía o espaço da diversificação, do debate, do confronto
de fontes e interpretações. A escola, o lugar de transmissão. E o livro didático, na
maioria das vezes, a principal – senão a única – fonte historiográfica utilizada por
professores e alunos. (FONSECA, 2003: 59-60)

Podemos assim, refletir sobre o modelo tradicional de ensino que se guiava


essencialmente com o uso de lousa, giz e livro didático, formatado na ideia de que o professor
seria o detentor de todo conhecimento e os alunos receptáculos do conhecimento que seria
recebido dentro da sala de aula.
Como mencionado, a transformação do ensino não se fez apenas na escola, ela se
constituiu também nas universidades. Os saberes acadêmicos que eram levados às escolas,
eram muito diferentes do que se vivenciava e se praticava em sala de aula. Por causa disso, o
lugar que era para produzir o direcionamento para os futuros professores, produzia um saber,
e quando os profissionais saiam da universidade e ingressavam no espaço escolar produziam
outro tipo de saber. Mas por que isso acontecia?


Professora mestra em História Social pela Universidade Federal do Amazonas atua como docente pela
Secretaria de Estado de Educação e Qualidade do Ensino – SEDUC/AM e no Centro Universitário do Norte -
Uninorte – Laureate Internacional Universities. Contato – araujosarahsantos@gmail.com

544
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Durante muito tempo o espaço acadêmico se pautou numa produção do conhecimento


que se limitava do acadêmico para o acadêmico. Muito criticado também nos anos 70 e 80,
vemos o renascer de pesquisas que buscaram romper com a ideia de “licenciatura idealizada”
das universidades, e a busca pelas vivências em sala de aula com todas as dificuldades e
burocracias que nelas existem. Isso, diferente do que se pensava propiciou ver a escola e o
ensino de novas formas. Promoveu-se, então o início de um movimento que ainda se propaga
até hoje, que é trabalhar em meio às adversidades da educação brasileira.
Trazendo essas adversidades de forma mais clara falamos de: indisciplina, desinteresse
pelos estudos, falta de amparo familiar, superlotação de salas de aula, isso só para citar
algumas das questões mais alarmantes. São essas as dificuldades que marcam diariamente a
vida dos docentes, da rede pública de ensino, que devem buscar alternativas para trazer um
aluno a se interessar pelo conteúdo ministrado.
Não queremos também dizer que as transformações na historiografia do Ensino de
História do século passado, tenham modificado completamente o olhar da produção
universitária a ponto de transformá-lo, entendendo-o unicamente como “mercado de
trabalho”, ou simplesmente como exercício da licenciatura. Mas, ainda é possível perceber
permanências representadas nas dificuldades de professores ao encarar a realidade da sala de
aula, com tudo o que ela representa na nossa sociedade hoje.
Trazemos essa questão apenas para salientar um dos pontos que vemos como
importantes para entender o que o professor vai vivenciar no exercício da profissão. E para
poder atuar no ensino de história, mas não apenas nele. Pois, ao adentrarmos o ambiente
escolar estamos inseridos no universo de representações e experiências cotidianos que vão
moldar nossa percepção de como trabalhar a educação. Problematizando a percepção
acadêmica sobre isso, e a docência in loco, traz a potencialidade de desenvolver o ofício do
professor de história em suas múltiplas dimensões. Diante disso, uma das que vemos como
principais no exercício em sala de aula se relaciona com o método.
Quais as metodologias que o professor deve utilizar para elaborar suas aulas? Como
vai executá-la? Quais mecanismos serão trabalhados para que os alunos possam compreender
o conteúdo ministrado? Essas são algumas das questões que vemos como importantes para o
desenvolvimento de uma aula. Pelo método tradicional, temos o caminho da apresentação oral
de conteúdo e elaboração de atividades, como exercício de fixação do conteúdo. Contudo, não
estamos aqui para dizer que esse tipo de método não deva mais ser utilizado, ou que é
ultrapassado. Circe Bittencourt sobre a questão da renovação metodológica no ensino de
História nos diz:

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546

(...) É essencial entender que ele, assim como qualquer método de ensino, foi criado
segundo uma concepção de aluno e de aprendizado. Fundamenta-se na ideia de que
ensinar é transmitir um conhecimento e aprender é repetir tais conhecimentos da
maneira como foi transmitido, sustentando a visão de que o aluno não possui
nenhum saber sobre o que está sendo apresentado como objeto e ensino (...)
(BITTENCOURT, 2008: 230).

A autora problematiza o método e explica como ele ainda faz parte processo de
ensino-aprendizagem. Na vivência escolar esse método ainda é um dos mais frequentemente
trabalhados, porém ele possui o perigo da “zona de conforto” que acaba tornando-o repetitivo
e diante do público diverso de sala de aula, por vezes, pode se tornar ineficaz, diante de outros
atrativos comuns à juventude. Destacamos isso, por causa do público jovem que caracteriza o
ensino fundamental e ensino médio, que veem na escola espaço para socialização e expressão
de suas múltiplas realidades como comenta Mariane Costa:
(...) para compreendermos os jovens que estão presentes na escola, precisamos
enveredar pelo entendimento dos anseios e das necessidades desses sujeitos, por
vivermos em uma sociedade marcada pro transformações econômicas, sociais e
culturais; somente esse fator já requer quebras de paradigmas no interior da escola,
pois ser jovem está relacionado a um período de mudança, de transição entre a
infância e a vida adulta; atente-se, também, para o estilo de vida próprio de cada
jovem, vivendo num período caracterizado por laços de amizade, de críticas às
normas e às regras sociais ou marcado por rebeldia, com também caracterizado pelas
redes de transmissão da ideologia do mercado “nicho de mercado”. Tal nicho
influencia muitos jovens no estilo de vida por meio da moda e da necessidade de
acompanhar a era da informatização com todas as suas novidades, como: internet,
mp3, mp4, aipod, dentre outras formas que se caracterizam como encantadoras e, de
certa forma, diretamente ligadas aos jovens na contemporaneidade (COSTA, 2010:
98).

Diante disso, o professor além de estar preparado no domínio de seu conteúdo, deve
lidar com essas “diferentes manifestações da juventude”, como chama a autora, e fazendo a
leitura delas, produzir métodos que contemplem e alcancem os interesses dos jovens.
Entendemos que o espaço escolar foi criado para o ensino-aprendizagem, mas a maioria dos
alunos que deveriam está ali para aprender, tem outros múltiplos objetivos na escola.
Além disso, precisamos trabalhar a questão da consciência histórica que também faz
parte desse universo. Estimular essa percepção nos alunos faz parte do trabalho do professor,
entretanto, essa ação se conforma em mais um dos grandes desafios dos docentes em sala de
aula. Antes de problematizarmos essa consciência histórica diante dos desafios da didática em
sala de aula, temos que compreendê-la de forma específica dentro desse mundo em constante
transformação, que se cruza com o da juventude vivenciando suas percepções históricas. O
desenvolvimento de si que se faz dentro do espaço escolar, pode ser trabalhado e percebido
dentro de uma concepção histórica. Memórias, construções do passado, anseios pelo futuro

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547

fazem esse cruzamento das representações múltiplas da juventude, com a percepção da


consciência histórica, serem um eixo a relevante para esse trabalho.
Luís Fernando Cerri ao pensar essas questões, traz a sentença que resume um pouco
dessa ideia:
(...) o pensamento histórico vinculado a uma prática disciplina no âmbito do
conhecimento acadêmico não é uma forma qualitativamente diferente de enfocar a
humanidade no tempo, mas sim uma perspectiva mais complexa e especializada de
uma atitude que, na origem, é cotidiana e inseparavelmente ligada ao fato de estar no
mundo (CERRI, 2001:100)

Deste modo, pensar o jovem nesse espaço restrito, que é a escola, não o tira da
condição de pessoas que constituem sua humanidade no tempo, de forma complexa. E o
professor tem a missão de tomar esse fio condutor, cruzá-lo, e, atender por um lado o
interesse dos alunos e por outro o da consciência histórica. Para isso, temos de estar próximos
à realidade da juventude para perceber quais elementos compõem seu universo, e assim cruzá-
lo com os interesses do ensino-aprendizagem em história.
Mecanismo para retirar essa ideia do campo teórico, para nós é com a metodologia
utilizada em sala de aula. A metodologia, vista como complexa quando adentramos ao espaço
escolar, é uma das aliadas dos docentes na busca de transformar o conhecimento em algo que
possa ser interessante aos alunos. Porém, não recebemos de todo, os instrumentos para utilizá-
la, e, isso acaba levando alguns professores por se encaminhar para a mencionada aula
tradicional. Contudo, como já mencionado, ela não é a vilã do ensino, só precisa ser
trabalhada na medida certa.
Não estamos aqui para dizer que a produção de metodologias diferenciadas de ensino
sane todas as questões problemáticas da educação, principalmente em escolas públicas.
Contudo, estamos colocando em pauta que uma das funções dos docentes de hoje, é buscar
transformar esse local que muitas vezes é visto como depósito de pessoas. A crítica aqui vai
nesse sentido, de que professor não é mais o dono de todo o conhecimento que deve ser
transmitido ao aluno, mas que ele se tornou responsável por outras dimensões da vida dos
alunos e alunas que vão à escola. E uma dessas dimensões acaba passando por transformar o
ensino, que o Estado a cada dia trabalha para sucatear, em algo que possa mobilizar a
existência de quem aprende na escola.

Uno Colonial – relato de experiência

547
548

Em diálogo com o professor Vinícius Alves do Amaral367, discutimos uma proposta


por ele elaborada com seus alunos de ensino médio. Nela ele trabalhou a questão da
“Escravidão Brasil” por meio de um jogo de cartas. Nossa proposta, inspirada no trabalho
dele, foi desenvolver com a estrutura do jogo “Uno”, um jogo baseado no conteúdo de
América portuguesa, afunilando para o tema da colonização na Amazônia368.
Para isso estruturamos grupos e designamos os conceitos trabalhados no capítulo do
livro didático denominado “A marcha da colonização na América Portuguesa” (BOULOS
JÚNIOR, 2015:32). No capítulo percebemos, como na maioria dos livros, que o tema de
colonização dialogava com as diversas partes do nosso território, porém ao tratar da região
norte, as menções foram breves sobre a atuação dos jesuítas e “Revolta de Beckman”. Sem
trazer leituras aprofundadas sobre o trabalho indígena implementado com vigor pela atuação
dos missionários e as formas de exploração vivenciadas pelas populações indígenas.
Por isso, resolvemos aprofundar um pouco as questões em torno do processo de
colonização da nossa região. Daí além dos personagens e conceitos já apresentados no livro
como: Jesuítas missionários, Colonos exploradores, Donos de Terra (fazendeiros),
Comerciantes, Tráfico de Escravos, Negros (escravos), Mestiços, Drogas do Sertão.
Trabalhamos com especificidades da exploração dos povos indígenas diante do processo de
colonização e o contexto que produziu essas ações. Deste modo, adicionamos os temas:
Guerra Justa369, Descimento370, Resgates371 e o Diretório dos Índios372. Temas e conceitos que
trabalhamos de acordo com os estudos do historiador Francisco Jorge dos Santos (SANTOS,
2002).

367
Agradeço imensamente ao Professor Mestre Vinícius Alves do Amaral por sugerir a atividade, incentivar o
uso com os alunos do fundamental II, além de acompanhar o desenrolar deste breve relato.
368
Utilizamos o conceito de Amazônia de forma abrangente, compartilhando das ideias de alguns historiadores
da nossa região que já buscam perceber a nossa formação em diálogo com a História do Maranhão e Grão-Pará e
suas distintas transformações que nos fazem perceber em nossas especificidades regionais. Ver: SAMPAIO,
Patrícia Melo. Administração Colonial e Legislação Indigenista na Amazônia Portuguesa. In. Os Senhores dos
rios. Organizadores: Mary Del Priore, Flávio dos Santos Gomes. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.CARVALHO
JÚNIOR, Almir Diniz de. Índios Cristãos: poder, magia e religião na Amazônia Colonial. Curitiba: CVR, 2017.
369
As “guerras justas” eram legalizadas por regimento da Coroa Portuguesa, quando algum indígena “gentil”
cometesse algum crime, ou insulto contra colonos. Porém, era usada como justificativa para fazer indígenas
prisioneiros se tornarem escravos.
370
Era uma forma de recrutamento de força do trabalho indígena. Ela ocorria de dois modos: o primeiro por
persuasão dos missionários que iam até a aldeia dos nativos para convencê-los a viver uma “vida civilizada”. A
outra forma era por coação, obrigando os nativos a irem para os núcleos coloniais.
371
Índios oriundos de “resgate” eram aqueles que eram presos das guerras intertribais, também conhecidos como
“índios de corda”, seriam salvos da iminente morte nas mãos de uma nação indígena rival que o teria capturado.
Assim, os colonos os salvariam de seu destino de morte para serem escravos.
372
Diretório que reformulou o “governo dos índios” na colônia. As questões em torno do “Governo Geral dos
Índios”, “Civilização dos Índios” e “Economia”, saíram do domínio dos missionários jesuítas, e passaram para as
mãos de colonos. Criou-se a figura do “diretor de índios” que era o responsável pelos núcleos coloniais e
repartição da mão de obra nativa.

548
549

Cada um dos conceitos e temas foi estudado e discutido ao longo das aulas e os
direcionamentos dados, para os grupos elaborarem seu jogo com base neles, seguindo mais ou
menos a seguinte ordem, como do jogo uno373: 1 – Indígenas livres; 2 – Jesuítas/Missionários;
3 – Colonos/Exploradores; 4 – Donos de Terra/ Fazendeiros; 5 – Índios Aldeados; 6 –
Negros/Escravos; 7 – Diretor de Índios; 8 – Tráfico de Escravos; 9 – Comerciantes; Inversão
– Guerra Justa; Bloqueio – Descimento; +2 – Resgate; Curinga +4 – Drogas do Sertão;
Curinga – Mestiço.
Foi cobrado dos alunos que seguissem essa estrutura e confeccionassem o material de
acordo com a quantidade de cartas e cores originais do jogo Uno.Cada conceito deveria ter as
cores do jogo: azul, verde, vermelho e amarelo. Com os temas de 1 a 9, mais as cartas
especiais. Podendo usar a criatividade para inserirem imagens dos temas e conceitos
trabalhados em sala. Com essas orientações poderiam fazer as cartas de forma impressa,
desenhada, ou até mesmo escrita com os nomes dos temas e conceitos. Essa liberdade
direcionada para a produção estimulou o interesse dos alunos, o que fez com os grupos se
tornassem mais participativos na atividade.
Na avaliação foi cobrado o resultado da confecção das cartas, com apresentação oral
dos significados de cada carta, sendo descrito de acordo com as definições históricas de cada
tema/conceito, além de uma simulação do jogo com os critérios que poderiam ser pensados a
partir das definições das cartas.

373
Uno é um jogo de cartas desenvolvido pela Mattel. Recomenda-se de dois a dez jogadores para jogá-lo, a
partir de 7 anos de idade.Objetivo: ser o primeiro jogador a ficar sem cartas na mão, utilizando todos os meios
possíveis para impedir que os outros jogadores façam o mesmo.Como jogar: Cada jogador recebe 7 cartas. O
restante do baralho é deixado na mesa com a face virada para baixo e então vira-se uma carta do monte. Esta
carta que fica em cima da mesa serve como base para que o jogo comece.O jogador a esquerda do que distribuiu
as cartas inicia o jogo, que deve seguir em sentido horário. Os jogadores devem jogar, na sua vez, uma carta de
mesmo número, cor, ou símbolo da carta que está na mesa. Exemplo: se a carta inicial for um 2 vermelho o
primeiro jogador deve jogar sobre ela um 2 (não importando a cor) ou uma carta vermelha (não importando o
número). O jogador sucessivo faz o mesmo, dessa vez valendo como base a carta colocada pelo jogador anterior.
Ao jogar a penúltima carta, o jogador deve anunciar em voz alta falando “UNO". Se não fizer isso, os demais
jogadores podem obrigá-lo a comprar mais duas cartas. A rodada termina quando um dos
jogadoreszerarassuascartasnamão.Cartas especiais: Além das cartas numéricas, o baralho de UNO possui mais
5 cartas especiais que produzem diferentes efeitos durante o jogo:
+2: o jogador seguinte apanha duas cartas e passa o seu turno ao jogador seguinte;Inversão: o sentido de jogo
inverte-se. Se o sentido do jogo está no sentido horário, quando jogada uma carta "Inverter", joga-se em sentido
anti-horário;Bloqueio: o jogador seguinte perde a vez;Curinga: pode ser jogada durante qualquer momento do
jogo independentemente da carta que se encontra no topo de descarte. O participante que jogar essa carta escolhe
a próxima cor do jogo (verde, azul, vermelho ou amarelo);Curinga +4: o jogador seguinte apanha quatro cartas
do baralho e perde o turno, o jogador que a descartou escolhe a próxima cor do jogo (verde, azul, vermelho ou
amarelo). Esta carta só deverá ser jogada quando o jogador não possui nenhuma outra carta que possa usar. No
entanto, se o jogador prejudicado desconfiar que o primeiro jogador está “blefando”, pode pedir para conferir a
mão deste, se estiver certo, o jogador que jogou terá que apanhar as 4 cartas como punição. Caso a jogada tenha
sido legal, o jogador que desconfiou deve apanhar seis cartas.
Ver: <http://manualzinho.blogspot.com/2009/08/como-jogar-uno.html> Consultado em 05/08/18, às 19:20.

549
550

Diante dos resultados pudemos perceber a adesão de quase a totalidade das turmas.
Um dos pontos a salientar é que como era uma atividade em grupo e as turmas são muito
grandes, a chance de se perder o foco ao longo do desenvolvimento do trabalho poderia
ocorrer. Porém, os alunos estavam interessados e envolvidos na produção do Uno Colonial, de
modo que, a atividade trouxe o benefício do foco e dedicação ao trabalho direcionado. Outro
benefício associado a este foi poder desenvolver essa atividade em turmas numerosas,
possibilitando uma participação mais efetiva dos alunos.
Essa é uma questão que merece um pouco mais da nossa atenção, pois como discutido
no início do texto um dos desafios do ensino hoje é a superlotação das salas, e ao fim de tudo
o professor acaba tendo que desenvolver atividades que agreguem a quantidade de alunos que
estão na sala de aula. Deste modo, pensar metodologias e abordagens que consigam abarcar
grande quantitativo de aluno é um dos caminhos para se conseguir obter resultados positivos
no ensino aprendizagem. A questão mesmo é conseguir criar essas abordagens que alcancem
todos os alunos presentes na sala.
Outro aspecto importante foi como os alunos fizeram suas leituras particulares dos
conceitos por meio de imagens e desenhos que usaram para colocar nas cartas. A inserção de
aspectos da Amazônia Colonial possibilitou uma interpretação mais aprofundada do processo
de colonização e da percepção desse processo no nosso território, assim, os alunos ampliaram
seu repertório sobre a história das populações indígenas. Analisando-os diante dos distintos
processos históricos que sobrevieram no período da chegada dos colonizadores.
Refletir sobre Guerra Justa, Descimento, Resgate e a criação do Diretório de Índios,
trouxe a possibilidade dos alunos conhecerem mais da história da nossa região, uma vez que
os didáticos, na maioria das vezes, não trazem esses temas detalhados. Sendo de extrema
importância para conhecer a história da nossa região. Com isso, os alunos reconhecem nosso
processo histórico formativo, se conscientizam sobre a exploração, transformação e destruição
das populações indígenas que aqui viviam, por conta do processo de colonização. Além disso,
passam a perceber as questões referentes ao silenciamento sobre a história dos nossos grupos
étnicos e sua importância para o desenvolvimento do trabalho na Colonial.

Considerações finais
O desenvolvimento dessa atividade foi uma experiência proveitosa para mim como
docente, por perceber a participação e compreensão do conteúdo trabalhado em sala de aula, e
para os alunos, por desenvolverem suas capacidades na confecção das cartas e na
compreensão dos temas e conceitos que, por vezes, são ensinados, mas não criam um sentido

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completo para os alunos. Ao longo das aulas e com os diálogos sobre o tema, eles foram
compreendendo os significados do processo de colonização da América Portuguesa e as
peculiaridades da nossa região. Essa compreensão é importante, porque além de entenderem o
sentido do processo histórico, eles conseguem se perceber como parte dele, à medida que
reconhecem as populações indígenas como nossos ancestrais.
A percepção da ancestralidade indígena comum que temos na América é importante,
pois ajuda a desmistificar algumas ideias consolidadas e desconstruir preconceitos. Das ideias
consolidadas, temos a questão da vitimização das populações indígenas, ou o apagamento de
suas ações no processo histórico. Estas são resultado da constante marginalização, diante do
processo civilizatório e de uma história marcadamente eurocêntrica. Daí a necessidade de
trabalharmos, discutirmos e criticarmos o processo constituído, para realizarmos uma história
que preze pelo protagonismo indígena dando a importância que nossa história merece.
Outro fator que se relaciona com o mencionado e precisa ser desconstruído na sala de
aula é o fato dos alunos não se verem como descendentes das populações indígenas que
habitavam nosso território, ou pouco conhecerem as que ainda subsistem. Muitos alunos
renegam essa ancestralidade, na verdade a maior parte dos habitantes da Amazônia hoje não
percebe sua ancestralidade indígena e a renega. Por isso, é importante trabalharmos de forma
mais aprofundada esses temas, para que os alunos possam entender os motivos do
silenciamento/marginalização das populações indígenas. Deste modo, criar uma consciência
de valorização, preservação da memória desses grupos, além do desenvolvimento da ideia do
pertencimento a esses grupos, para que os alunos percebam que eles são descendentes dessas
populações indígenas.

Referências
BITTENCOURT, Circe Maria (Org.). O saber histórico na sala de aula. 5ª edição - São
Paulo: Editora Contexto, 2001.
BITTENCOURT, Circe Maria. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo:
Cortez Editora, 2008.
BOULOS JÚNIOR, Alfredo. História sociedade & cidadania, 8° ano. 3 ed. São Paulo: FTD,
2015.
CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Índios Cristãos: poder, magia e religião na
Amazônia Colonial. Curitiba: CVR, 2017.
CERRI, Luis Fernando. Os conceitos de consciência histórica e os desafios da didática da
História. Revista de História Regional, V. 6, n. 2, 2001.
COSTA, Mariane Brito da. As diferentes manifestações da juventude na escola: uma visão
dos impasses e das perspectivas. Conjectura, Caxias do Sul, v.15, n. 1, p.93-105, jan./abr.
2010.
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de história: Experiências, reflexões
e aprendizados. – Campinas, SP: Papirus, 2003.

551
552

JOANILHO, André Luiz. História e prática: pesquisa em sala de aula. São Paulo: Mercado
das Letras, 1996.
SAMPAIO, Patrícia Melo. Administração Colonial e Legislação Indigenista na Amazônia
Portuguesa. In. Os Senhores dos rios. Organizadores: Mary Del Priore, Flávio dos Santos
Gomes. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.
SANTOS, Francisco Jorge dos. Além da Conquista: Guerras e rebeliões indígenas na
Amazônia Pombalina. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 2002.
SANTOS, Silmar Leila dos Santos. Ensino nos anos finais do ensino fundamental: análise
documental de seis estados brasileiros. Cadernos cenpec, São Paulo, v.5, n.2, p.255-283,
jul./dez. 2015.

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ARQUIVO HISTÓRICO DO TEATRO AMAZONAS: HISTÓRIA E MEMÓRIA


ATRAVÉS DAS FALAS DE SEUS EX-GESTORES.

SÍLVIA ANGELINA LIMA DOS SANTOS*

Introdução
Este artigo objetiva explorar e discutir acerca do papel do Arquivo Histórico do Teatro
Amazonas, do qual está incorporado à Secretaria de Estado de Cultura do Amazonas (SEC –
AM), perscrutando apreender valor e relevância da instituição no âmbito das suas ações
defronte da sociedade amazonense, e assim conceber uma memória institucional mediante as
falas de seus ex-gestores. Desta forma, esta memória delineará a compreensão sobre a missão
e ações futuras do Arquivo.
Precipuamente, o Teatro Amazonas possui 12 (doze) décadas, sendo uma instituição
com papel fundamental na preservação da memória da história do Amazonas, e assim, o
Teatro também possui sua história organizacional. Desta maneira, valendo-se das ponderações
com a efetuação da 11ª (décima primeira) Primavera dos Museus, no decurso de 2017,
elaborado pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), ao qual trouxe como proposição
“Museus e suas memórias”, e com o intuito de sobrelevar a magnitude de se enaltecera
memória institucional como vinculação primordial na memória instituída com base em
divergentes pontos de vista.
Porquanto, este estudo pretende delinear o incitamento à reflexão quanto ao ofício do
Arquivo Histórico do Teatro Amazonas, suscitando dar existência e origem a uma memória
institucional, pois o Teatro possui diversas reminiscências, que estão na sua esfera e da qual
atuaram os funcionários e o público-alvo do Teatro, que requerem e têm de ser reconhecidas,
conservadas e mantidas.
De certo, o que dá significado à existência é a memória, logo preservá-la é de total
relevância, assim proposita-se manter a instituição ativa e com os alicerces confortados. O
autor Candeau (1998) argumenta que é através da memória que as atividades coletivas são
fundadas.
Como é lembrado em Le Goff:
A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em
primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode
atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como
passadas.(LE GOFF, 2003: p.419)

*
Aluna de graduação do curso de Arquivologia.

553
554

Por esta razão, verifica-se que, memória pode ser determinada como a reestruturação
de experimentações dentre um período pretérito.
Não obstante, Jardim infere que:
A memória, ao contrário da história, não seria um conhecimento intencionalmente
produzido. É subjetiva e, como tal, um guia para o passado, transmissor de
experiência, simultaneamente seguro e dúbio. [...]. A memória é, portanto,
processo,projeto de futuro e leitura do passado no presente. (JARDIM, 1995:p.2)

Logo, a memoria é o processo que exteriora a assimilação de recordações, e desta


maneira ocasionando a transferência de vivências.
Conforme Halbawchs (1990), as memórias não são rememorações leais do que
aconteceu, no entanto são reformulações remodeladas e dispostas de modo contínuo.
Em suma, a memória institucional é a sustentação da personalidade, condecoração
como também autenticação da instituição.
Desse modo, a proporção planejada da memória e do seu objetivo na estruturação da
identificação da instituição, de tal forma que, a história oral está no ponto central do primeiro
passo, pois as experimentações das memórias através das descrições e narrações particulares
estão associadas às conjunturas da instituição.
Isto é, a história oral foi utilizada para o recolhimento de conhecimento dos
colaboradores e ex-colaboradores para refazer a história administrativa e a memoria
institucional do Teatro. Assim, compreender o desempenho desses indivíduos na história da
concepção do arquivo.
Destarte, empregar a história oral como metodologia de pesquisa fundamenta-se em
realizar entrevistas com pessoas que viveram fatos, ocorrências, episódios etc. As
procedências para o entendimento do que já aconteceu são as entrevistas de história oral, onde
o investigador direciona perguntas sobre circunstâncias e situações para o entrevistado. Assim
sendo, proporciona depreender de que jeito as pessoas sentiram, passaram, atuaram,
experienciaram e compreenderamepisódiosnum âmbito. Assim, recuperar e organizar os
registros a trajetória do Arquivo baseada nos métodos de história oral, ou seja, dar voz aos
gestores do Teatro, aqueles que tinham como função coordenar e direcionar as atividades do
Teatro em concordância com a missão mesmo, ou pelo menos aquilo que cada entendia como
missão.
A entrevista é mostrada como um método frequentemente empregue em trabalho de
campo, objetivando levantar narrativas de uma realidade vivenciada, sendo compreendida
como uma conversa com propósitos estipulados, presumidos e subjetivos. Esta técnica
confirma a importância do vocabulário e do sentido da fala social. (CRUZ NETO, 2002)

554
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Goldenberg infere que a entrevista é “o instrumento mais adequado para a revelação


de informação sobre assuntos complexos, como as emoções [...], observar o que diz o
entrevistado e como diz, verificando as possíveis contradições”. (GOLDENBERG,
2011:p.88)
Assim, compreende-se que a entrevista é um recurso utilizado para a compreensão e
interpretação da realidade de acordo com o ponto de vista do entrevistado, pois levam em
conta as considerações que os mesmos fazem de suas ações.
À vista disso, a memória institucional do Arquivo Histórico do Teatro Amazonas será
produzida através das experiências, vivências e recordações de seus ex-gestores. Desta
maneira, selecionando acontecimentos marcantes que auxiliam na concepção do presente e
preparação que está por vir.
Ademais, refletir sobre a atuação do Arquivo histórico é salientar que o mesmo não é
só um guardião, mas também um produtor de memória. O patrimônio documental, cujo pode
ser compreendido como o assentamento da memória e da identidade coletiva, que utilizado
como fonte de pesquisa em que os documentos asseguram um acontecimento sucedido.

O Teatro Amazonas como instrumento de estudo


O Teatro amazonas representa um período de abundância, grandeza e esplendor, pois
nesta época a Província do Amazonas prosperava com o Ciclo da Borracha, que gerava
fortuna transformando Manaus em uma terra cheia de glória. E foi nesta fase que o deputado
provincial Antônio José Fernandes Jr com o projeto nº 45 de 21 de maio de 1881 na
Assembleia Legislativa, apresentou a ideia de construir em Manaus um teatro de alvenaria
confortável. Entretanto somente dezesseis anos depois, em 1896, o Teatro foi inaugurado após
muitos obstáculos políticos. Posteriormente, o Teatro foi submetido às diversas reformas.
Desde sua inauguração o Teatro proporciona ao público espetáculo variados, tais
como: óperas, operetas, musicais, peças de teatro, shows de cantores líricos e populares,
festivais, grupos de dança, bandas de música, corais, orquestras, etc.
Não obstante, o ofício de teatro está ao lado do papel de lugar de memória, de
patrimônio cultural e de museu. Logo, o Teatro é um espaço designado á memória da cidade
de Manaus.
Bem como, a existência física e monumental do Teatro completa toda a narrativa
explanada em seu percurso museológico.
Além disso, o Teatro Amazonas dispõe um acervo de objetos e documentos que
rememoram as variadas fases da sua história, desde a sua construção aos dias atuais. Parte

555
556

dele pode ser visto ao longo do percurso de visitação, outra parte encontra-se em Reserva
Técnica e no Arquivo Histórico, e destina-se a estudos e eventuais mostras temporárias.
A partir da necessidade de organizar e sistematizar a documentação restante
dos seus mais de cento e vinte anos de atividades é que foi criado o Arquivo Histórico do
Teatro Amazonas, assim desenvolvendo algumas atividades como: pesquisa documental em
outros setores da Secretaria de Cultura do Amazonas, organização do acervo institucional e
captação de acervo com funcionários e ex-funcionários.
O patrimônio documental de uma instituição, quando preservado, registra as memórias
institucional e coletiva. O acervo arquivístico do Museu é composto por documentos que
datam do século XIX aos dias atuais, doados, adquiridos, incorporados e gerados pela
atividade da instituição.
No arquivo administrativo estão os documentos administrativos, pareceres e laudos
técnicos, cartas, plantas da OBREDETCH, ofícios, atas, materiais gráficos de divulgação das
atividades do Teatro entre outros.
O Arquivo Histórico do Teatro Amazonas está localizado nas duas salas do Mezanino
no terceiro (3º) pavimento. O Arquivo Histórico está incluso dentro da Gerência de
Patrimônio e Museu do Teatro.
Figura 01

FONTE: Gerência de Patrimônio e Museu do Teatro Amazonas, 2018.

Como é ilustrado na figura um (01), a Gerência de Patrimônio e Museu está ligada à


Gerência Administrativa do Teatro. A própria possui as seguintes atribuições: gerenciamento
da entrada e saída de bens patrimoniais, tanto históricos quanto não históricos; atender
solicitações externas e internas de pesquisas no acervo documental; como também diligência
da salvaguarda dos itens expostos nas exposições museológicas.
Observa-se que, o Arquivo Histórico não aparece no organograma do Teatro.

Gestores do Teatro Amazonas

556
557

Utilizou-se um questionário e entrevistas como recursos para a aquisição, a abordagem


e a análise dos dados, tencionando alcançar os propósitos apresentados. Destacam-se as
especificidades quantitativa e qualitativa da pesquisa, uma vez em que se coloca como
pesquisa na condição de entrevistadora e os profissionais participantes das ações do Teatro
Amazonas, na condição de entrevistados.
Antes da entrevista e questionário, os colaboradores escolhidos, conforme os
parâmetros traçados, foram contatados com o intuito de que lhes fosse mostrado o objetivo da
pesquisa e esclarecido pontos sobre a investigação a ser realizada. Assegurando-se o respeito
à confidencialidade, à liberdade em participar da pesquisa e de, futuramente, ter acesso aos
dados colhidos e seus resultados. Quanto ao esquema da entrevista, seguiu-se por perguntas
abertas, as quais permitem o entrevistado dizer a sua opinião e descrever suas vivências.
O questionamento foi enviado para seis (06) gestores e colaboradores que atuaram
direta e indiretamente no Arquivo Histórico. Sendo os mesmos:
I. A Sra. Jessilda Furtado, atual diretora do Teatro, possui Licenciatura Plena em
Educação Física pela Universidade do Amazonas, pós graduada em Gestão e
Produção de Eventos pela Universidade do Estado do Amazonas e mestranda
em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do
Amazonas. A própria colaborou para a coleta como também seleção de
material para o acervo, escolha da atual sala do Arquivo e acompanhamento da
rotina de atividades empenhadas no Arquivo;
II. A Sra. Inês Daou, diretora do Teatro no período de 1995 à 2003, possui MBA
em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas.A mesma contribui para a
implementação da organização do Arquivo Histórico;
III. A museóloga Veralúcia Ferreira, cuja elaborou exposições museológicas no
local onde está localizado atualmente o Arquivo Histórico, mas também
utilizou materiais do supracitado para compor exposições;
IV. O Sr. Robério Braga, ex-Secretário de Estado de Cultura, ao qual administrou
a SEC e, assim sendo, o Teatro Amazonas;
V. O Sr. Denilson Novo, atual Secretário de Estado de Cultura, cujo superintende
a SEC e, por conseguinte, o Teatro Amazonas.
VI. O Sr. Hélio Dantas, historiador e servidor estatutário, que labora diretamente
no Arquivo Histórico, onde algumas de suas atribuições são: atender demandas
externas e internas de pesquisas no acervo documental, triagem da
documentação, mas também acondicionamento em ordem cronológica.

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Assim, apenas três colaboradores responderam ao questionário e entrevista. Uma


entrevistada recusou-se a responder e justificou afirmando ter efetuado um trabalho
minucioso no Teatro, porém o mesmo não foi valorizado e desfeito. E dois indivíduos não
retornaram contato. Conforme demonstrado no gráfico abaixo:

Gráfico 01: Representação dos resultados obtidos nos questionários.

Fonte: Elaborado pela autora

Dessa forma, a primeira pergunta apresentada foi “quais suas considerações acerca da
função e importância do Arquivo Histórico do Teatro Amazonas?”, assim, todos os
entrevistados reconhecem que o Arquivo Histórico é fundamental para a preservação da
memória e resgate de informações. A entrevistada C menciona que “(...) o Teatro Amazonas
se reveste de um significado importante e somente por meio da guarda da memória é que
podemos ter a real noção de como e por que as coisas se deram”.
Analogamente, o entrevistado B destaca que “tem uma importância primordial para a
história da cultura e das artes no amazonas, tanto por abrigar documentação relativa a uma das
mais importantes instituições culturais do estado, agrega documentação relacionada à
memória de outras instituições”.
Assim sendo, é reconhecível pelos os gestores a concepção da História através do
acervo documental armazenado no Arquivo, do qual transfiguram a memória social.
Por conseguinte, observa-se que, na pergunta “quais informações e fatos você acha
importante acerca da história de criação, trajetória e função do Arquivo Histórico do Teatro
Amazonas?”, o entrevistado B ressalta que “a história da acumulação da documentação carece
de mais dados e informações, há muitas lacunas, pois não há documentação oficial
relacionada, por exemplo, sobre onde foram encontrados os documentos, como se
encontravam acondicionados, tampouco informações mais precisas de funcionários
relacionados a tais atividades. de forma que este trabalho ao qual respondo este questionário é

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559

o início de uma investigação que urge ser feita”.


Comumente, documentos das atividades do Teatro encontram-se nos âmbitos onde
foram elaborados, ou podem ser descartados em algum momento. Essa documentação leva a
incerteza sobre seu destino.
Sobre a existência de relatórios, técnicos ou atas de reunião que ajudam a entender a
criação e ação do Arquivo Histórico, dois entrevistados relataram desconhecer sobre esses
documentos. Entretanto o entrevistado B menciona que “(...) encontramos documentos,
principalmente dos anos 80 e 90, que trazem nos versos deles um carimbo escrito Arquivo
Histórico do Teatro Amazonas. Alguns documentos com esse carimbo tem a data de entrada
no arquivo”.
Observa-se que, no decorrer dos cento e vinte anos de atividade do Teatro o Arquivo
foi reconhecido como setor de gerenciamento de documentos.
As considerações acerca da criação do Teatro Amazonas que os entrevistados acham
importantes, o entrevistado A destaca que “(...) o Teatro Amazonas foi criado a partir de um
cenário econômico e social, o qual demandou a construção de um espaço apropriado para
apresentações culturais”. O entrevistado B acrescenta que “o Teatro Amazonas fornece
espetáculos regulares e a visitação guiada. Ele é considerado museu e Teatro-escola, onde
essa denominação Teatro-escola foi dada pelo IPHAN, porque o Teatro instrui gente de todas
as áreas de conhecimento”.
Desta forma, o Teatro é um local de entretenimento, mas também é um local de
pesquisa, preservação e apresentação de documentos, utensílios e experiências que colaboram
as mais diversas áreas de conhecimento.
Sobre o debate quanto à construção do acervo documental do Teatro para compor o
Arquivo Histórico, as reposta dos entrevistados foram diferente, por exemplo, o entrevistado
C narra que “durante minha permanência (...) não havia debate, apenas a decisão firme de que
tudo deveria ser arquivado, catalogado e bem conservado”. Entretanto o entrevistado B
menciona que “não. eu arrisco dizer que somente a partir da nossa entrada esse espaço e essa
documentação passaram a ser pensadas, ainda que de forma incipiente, com um olhar voltado
para a arquivologia, pois anteriormente me parece que sempre foi percebido mais como uma
reserva técnica museológica”. Em contraste, o entrevistado A relata que não possui
conhecimento sobre esses debates.
De certo, nota-se que, os gestores não possuem preocupação com a gestão documental
no Arquivo, a saber, não há registro de debates acerca o arranjo ou descrição do acervo
documental.

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560

Por conseguinte, em relação aos tipos documentais que compõem o Arquivo


Histórico, todos os entrevistados afirmaram possui conhecimento do que possui no acervo e
anunciaram alguns tipos como: recortes de jornais, documentação administrativa (bilhetes,
cartas, ofícios, memorandos, folhas de pagamento, notas fiscais, etc.), flyers, cartazes,
programas de espetáculos, livros, plantas, fotografias.
Porquanto, sobre o acervo ter passado por algum descarte, a maioria afirma não ter
conhecimento. No entanto, o entrevistado A diz que “não houve. Os materiais encaminhados
ao arquivo são aqueles que realmente ficarão arquivados no espaço”.
Indubitavelmente, é imprescindível que os gestores do Teatro Amazonas entendam o
programa de gestão documental, em suas fases correntes, intermediária, e a permanente.
Na pergunta “tem conhecimento se o acervo passou por algum tratamento de
conservação, preservação e/ou restauração? Se sim, saberia explicar quais?”, a maioria
respondeu que plantas das construções e restaurações do séc. XIX foram restauradas. No
entanto a entrevistada C relata que desconhece se ocorreram esses procedimentos.
Observa-se a dificuldade do Arquivo em desenvolver tratamento de preservação,
restauração e conservação documental, pois ex-gestores não tinham conhecimento da
relevância de programas de gestão voltados para a conservação e preservação de documentos
históricos.
Acerca da pergunta “consegue informar sobre a existência de documentos como
relatórios e atas de reuniões que ajudem a entender a criação e formação do acervo?”, dois
entrevistados responderam que não conhecem, no entanto, o entrevistado B menciona que
“tem documentos das décadas de 80 e 90 que são atas de reuniões que discutem a criação da
Secretaria de Cultura, o embrião do que viria a ser a SEC, mas não são valorizados”.
Nota-se que, os gestores têm de implantar um plano de gestão documental que abrange
todos os documentos que estão custodiados no Arquivo Histórico do Teatro.
Destarte, mais considerações sobre o acervo documental do Arquivo Histórico do
Teatro Amazonas, o entrevistado C ressalta que “(...) o Teatro Amazonas é um museu vivo,
que ali se construía a história nos palcos a cada noite e que não se devia deixar que o museu, a
visita dos turistas se sobrepusesse aos ensaios das orquestras durante o dia, e sim faze-los em
harmonia. Penso que assim deve ser a trajetória e função do Arquivo Histórico, caminhar em
conjunto com o patrimônio e fazer-se parte viva dele, tornando-se acessível e interessante,
para justificar-se perante o público que muitas vezes não tem a extada dimensão de sua
importância”.

560
561

Como é destacado pelo entrevistado B “em Manaus inteira o senso comum, e é


alimentada pelos meios de comunicação, uma obsessão pelos documentos que remetem aos
tempos gloriosos do Ciclo da Borracha. É o período que mais desperta interesse, porque
Manaus é modernizada, então há uma supervalorização deles. E existe uma série de
documentos que são tão importantes quanto eles, mas não recebem a mesma atenção. (...)
precisamos de um profissional de arquivo urgentemente”.
Por fim, a documentação que está sob a custódia do Arquivo do Teatro precisa ser
avaliada. O Arquivo precisa decidir quais documentos eliminar e quais recolher para a guarda
permanente. Similarmente, é necessário que os gestores tenham consciência sobre conservar e
preservar todo o acervo documental, não apenas uma pequena parte da documentação, que é
de propriedade da sociedade amazonense.

Considerações finais
O Teatro é uma instituição com muitas atividades planejadas e executadas
diariamente. Por consequências, o Arquivo Histórico deve ir junto com essa dinâmica no seu
delineamento.
Além disso, o Arquivo Histórico do Teatro Amazonas exerce o papel de arquivo
permanente, cujo recolhe os documentos produzidos e acumulados pelo Teatro no
desempenho de suas ações, e que serão preservados. Assim, deve ser atribuição do Arquivo a
efetivação da gestão de documentos, que conduza a criação e tramitação de documentos do
Teatro. E, compete ao Arquivo Histórico gerenciar, conservar e preservar o patrimônio
documental para quando ocorrer demandas de pesquisas, estas sejam atendidas.
Observa-se que, os gestores do Arquivo do Teatro necessitam possuir conhecimento
sobre gestão documental, e, por conseguinte, executarem uma sondagem na elaboração de
documentos nos setores da instituição, introduzir os períodos de custódia nestes setores, bem
como os prazos de encaminhamento para o Arquivo Histórico ou eliminação. .
Como resultado, a gestão de documentos tem que envolver as atividades-meio e
atividades-fim do Teatro, e, por consequência, os documentos devem ser encaminhados ao
Arquivo. Com efeito, depois da determinação de parâmetros para a avaliação documental, a
deliberação acerca da eliminação ou preservação de documentos deverá ser em companhia de
museólogos, arquivistas e gestores do Teatro.
Diante das reflexões apresentadas e analisadas, nota-se que o acervo documental está
vivendo uma fase de reconhecimento como Arquivo Histórico. Nesse contexto estão
envolvidos recursos materiais, espaços físicos, pessoas qualificadas e dispostas a dirigir as

561
562

ações do Arquivo e, consequentemente, do Teatro. Consoante, as mudanças são alvorotadas,


porque se baseia em ajuste e adequação. Deste modo, as pessoas são preparadas para as
mudanças com a viabilidade de que pode ocorrer paralisação em algum período.
Desta maneira, compreende-se que os gestores do Arquivo Histórico do Teatro
Amazonas são indivíduos, que atuaram na construção e manutenção da memória institucional.
Em conclusão, os gestores do Teatro devem elaborar o planejamento das atividades e a
definição dos limites de atuação do Arquivo Histórico. Além disso, similarmente, têm que
deliberar e originar métodos para o tratamento técnico do acervo documental, os espaços de
custódia e as atribuições do Arquivo. Como resultado essas ações proporcionarão o controle,
conservação e a preservação dos documentos sob a guarda do Teatro. E consequentemente,
um melhor resgate da memória institucional do Teatro Amazonas.

Referências
CANDEAU, Joel. Memoire et identité. Paris: P.U.F., 1998.
CRUZ NETO, Otávio. O trabalho de campo como descoberta e criação.
In: MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.) Pesquisa social: teoria,
método e criatividade. 21ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 51-66
Monteiro, Mário Ipyranga — Teatro Amazonas – Quarto Volume. Manaus: SEBRAE-AM,
1997. 78p. color., il.
GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa
qualitativa em Ciências Sociais. 12ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão. 5 ed. Campinas: Editora
da UNICAMP, 2003. Disponível
em:<http://ftp.editora.ufrn.br/bitstream/123456789/863/1/MEM%C3%93RIA.%20Hist%C3%
B3ria%20e%20mem%C3%B3ria.%20LE%20GOFF%2C%20Jacques.%202008.pdf>. Acesso
em: 23 jul. 2018.
JARDIM, José Maria. A invenção da memória nos arquivos públicos. Ciência da
Informação / Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia.
Brasília: IBICT, 1995a. v. 25, n. 2. p. 1-13. Disponível em:
<http://revista.ibict.br/ciinf/article/view/659/663>. Acesso em: 27 jul. 2018.
REZENDE, Darcilene Sena. Patrimônio documental e construção de identidade em
tempos de globalização: a classificação arquivística como garantia da pluralidade de
memórias. Comunicação apresentada no VII Congresso de Archivologia del MERCOSUR,
Chile, 2007. Disponível em: <http://gpaf.info/dtd/ArqPerm/PatrDoc.pdf>. Acesso em: 24 jul.
2018.

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“REZAS PARA AS ALMAS”. MEMÓRIAS E CULTURAS SÓCIO RELIGIOSA EM


SANTO ANTÔNIO DA MALOCA, PARANÁ DO RAMOS BARREIRINHA-AM

SORAIA LACERDA DOS SANTOS*


JOÃO MARINHO DA ROCHA**

Memória, História Oral e História na Maloca.

Este trabalho está inserido no campo da História Social. “Ainda hoje, a expressão
“história social” é frequentemente utilizada como forma de demarcar o espaço desta outra
postura historiográfica frente à historiografia tradicional” (CASTRO, 1997, p 76). Dessa
forma, as analises serão feitas por meio de sujeitos ditoscomuns, que descreveram como essa
pratica religiosa (Rezas para as Almas) que acontecia na “Agrovila Santo Antônio da
Maloca”. Este estudo esta situado nesse campo porque “vem trazendo as problemáticas que
foram suscitadas pelos Annales em seu sentido mais amplo”(CASTRO, 1997, p, 80).Esta
pesquisa utilizar conceitos teóricos porque compreendemos que a memória é um processo
individual que ocorre em um meio social
dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados (PORTELLI,
1997).
E para que possamos trabalhar a trajetória desse ritual sócio religioso usaremos os
métodos empregados pela história oral. Dessa forma, Pollak vem ressaltando a importância de
“memórias subterrâneas” que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se
opõem à "memória oficial" (POLLAK, p, 2). Alerta o mesmo autor pontuando acerca “do
problema da ligação entre memória e identidade social, mais especificamente no âmbito das
histórias de vida, ou daquilo que hoje, como nova área de pesquisa, se chama de história oral”
(POLLAK, p, 1).Partindo dessa perspectiva utilizaremos as narrativas desses sujeitos para
compor e recuperar essa importante prática sócia religiosa que vem se perdendo entre as
gerações mais recente da “Maloca”. O uso de tais fontes pauta-se nas assertiva de que, “as
narrativas, tal qual os lugares da memória, são instrumentos importantes de preservação e
transmissão das heranças identitárias e das tradições” (DELGADO, 2006, p. 13).
A primeira colaboradora dessa pesquisa foi à senhora Elizangela Lacerda Albuquerque
37 anos, nascida no dia 26 de julho de 1980 na “Agrovila Santo Antônio da maloca”, ela é

*
Estudante de Graduação 8° Período do Curso de História do CESP-UEA, email:
soraialacerdadossantos5@gmail.com
**
Orientador adjunto do curso de licenciatura em historia da Universidade do Estado do Amazonas CESP, email:
jmrocha.his@hotmail.com

563
564

casada com Alciney Barbosa e tem cinco filhos. A participação dela foi fundamental, pois ela
nos ajudou a chegar às pessoas que seriam entrevistadas.
A segunda colaboradora é a senhora Antônia Albuquerque Barbosa de 93 anos.
Nascida em 1925, filha de Marciana Firme de Albuquerque (ela não chegou a conhecer o pai)
ela teve seis filhos e foi casada com João da Silva Barbosa. Dona Antônia Albuquerque
nasceu na antiga comunidade da “São Paulo da Maloca”, onde sua família por parte de mãe
morava. Segundo ela, depois de casar por volta dos 17 anos, passou a morar num lugar as
margens do Paraná do Ramos (afluente do Rio Amazonas), onde seus filhos nasceram. Depois
de um tempo, ela voltou a morar na comunidade de “São Paulo da Maloca”, mas como as
famílias desse lugar estavam se mudando para uma nova comunidade (Santo Antônio da
Maloca) que estava surgindo, sua família também entrou no processo e se mudou para lá.
O terceiro personagem que também nos ajudou nesse estudo é o seu Manuel Freitas da
Silva de 75 anos. Nascido em 1947, filho de Manuel Pereira da Silva e Valentina Fretas. Seu
Manuel é pai de seis filhos e foi casado com a já falecida Francisca Albuquerque (irmã de
dona Antônia Albuquerque). Segundo seu Manuel ele nasceu na “Maloca”, já que nesse
tempo ainda não existia a comunidade da “Santo Antônio da Maloca”. Conforme ele explicar
ela só viria existe 1973, quando umas comissões lideradas por Darlindo Albuquerque Gloria e
Manuel Domício dos Santos resolveram, de fato, fundar uma comunidade e para isso pediram
a ajuda da Igreja Católica em Barreirinha, nesse período seu Manuel ficou como secretário do
local.
Associada a antigas ocupações indígenas374, maloca, segundo as análises dos relatos
indicam que o primeiro nome a ser cogitado para a comunidade foi “Vera Cruz”, era o nome
de uma provável fazenda que tinha no lugar pertencente a Álvaro Freitas, que é apontado com
morador antigo do local. Dessa forma, eles conseguiram apoio para que a “Maloca” viesse a
se tornar “Santo Antônio da Maloca” em 1973.
Outra pessoas que nos ajudou a reconstruí o ritual que acontecia na semana santa
“Rezas para as Almas” foi o senhor Pedro Vieira dos Santos 63, nascido 1950 no Município
de Parintins No seu relato seu Pedro Vieira nos informou que ainda muito jovem foi morar na
“Santo Antônio da Maloca” devido sua mãe ser daquela região. Dessa forma, por volta dos 33
anos de idade ele entrou para o grupo que saia em cortejo (rezas para as almas) nas noites de

374
Nas narrativas dos mais antigos dessas localidades eles sempre apresentam ideias que nos faz pensar que
naquele local se constituiu uma espécie de “mocambos de índios”, por isso aparece muitas vezes nos seus relatos
“o povo mura”. No entanto, sabe-se que essa é uma generalização que foi criada para o povo dessa região no
período da colonização, o fenômeno do “mura agigantado”. Seja como for, precisamos de estudos para conhecer
tais “viagens da memória”.

564
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quinta-feira santa. Ele participou desse grupo durante 15 anos ate que se mudou para Parintins
na década de 90.

Constituição histórica e social das malocas: São Paulo e Santo Antônio


Tratamos aqui sabre à constituição histórica da antiga “São a Paulo da Maloca” e da
atual “Agrovila Santo Antônio da Maloca”. Consta nas narrativas que a área chamada “São
Paulo da Maloca” foi composta por famílias nordestinas que chegaram ali provavelmente no
final do século XIX e início do século XX e que possivelmente se misturam ao povo indígena
que já habitava o lugar. Essas famílias ainda faziam parte do movimento migratório que
aconteceu na segunda metade do século XIX entre o Nordeste e a Amazônia. Dessa forma,
podemos pensar que a Maloca se constituiu um antigo lugar de resistências, fazendo com
houvesse o que aconteceu na Amazônia inteira que é a mistura de crenças, costumes, festas,
povos e etc. “Não [...] Meu avô era do Ceará ele era cearense. Agora minha vó era Barbosa, não sei
de o que, Barbosa cearense também por que...” 375.
Sobre as configurações físicas da Maloca, “[...] Era, não era assim num mato, no mato não no
centro né, onde dizem que aqui era lugar de índio antigamente [...] os chamados malocas, pra ali tem
aquele outrozinho lá (rio) que é a maloquinha” 376. A “São Paulo da maloca” se constitui em uma área
antiga, acrescido por meio de um pequeno número de novos habitantes vindos da região nordeste.
Segundo dona Antônia Albuquerque Barbosa seus avós eram uns desses novos habitantes que, ao
chegar ali fixaram moradia. Foi dessa forma, que novas famílias foram se formando e algumas delas
com uma nova conjuntura, por causa da união entre os índios e nordestinos.
[...] A minha avo era índia que casou com esse pessoal que chegou aqui (nordestino)
ela moravam aqui na maloca, ela era pouco já braba quando agente fazia o que ela
não queria ela batia na gente. Ela era baxinha bem morena, ela inda falava iqual
índio à gente nem entendia ela (risos)377.

A “Vila”, como dona Antônia Albuquerque costuma chamar para a “São Paulo da
Maloca”, já que para ela esse local não chegou a ser uma comunidade, era na verdade um
lugar onde as famílias viviam da agricultura de subsistência pesca e caça, as casas eram feitas
de madeira, barro, palha e ficavam perto uma da outra. No local não havia Igreja e os santos
que eram festejados eram de famílias e de promessas, ficavam na casa dos seus respectivos
responsáveis. “Tinha São Bento, nossa Senhora do Rosário que era da minha família e ficava lá m

375
Antônia Albuquerque Barbosa. Entrevista realizada em 6 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da
Maloca.
376
Rosangela Lacerda Albuquerque. Entrevista realizada em 7 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da
Maloca.
377
Idem.

565
566

casa mesmo, foi alguma promessa que a mamãe fez. Hoje agente ainda faz almas rezas, mas não é,
mas como era no São Paulo”378.
Na “São Paulo da Maloca” se fazia festa de Nossa Senhora da Trindade, Nossa
Senhora do Rosário e São Bento. As datas dessas festividades não condiziam com a data
oficial da Igreja Católica e também não eram reconhecidas por essa instituição religiosa, elas
também eram organizadas pelas próprias famílias com a ajuda das comunidades vizinhas.
Ainda segundo dona Antônia Albuquerque no local não havia precedente e nem secretario
eram as famílias que organizavam tudo. “Eram as próprias familiais que organizavam aquele
local era muito bonito e lá nunca foi padre. Também não tinha presidentes era só os mais
velhos” 379.
Dona Antônia relata também que apesar da “São Paulo da Maloca” ser um lugar
bastante organizado as pessoas que iam até lá para participar das festividades sempre
questionavam porque eles não se mudavam para outro local mais próximo do Paraná do
Ramos, talvez porque chegar até ale seja difícil, principalmente no período da seca. O lugar
mais próximo dali era a área que os moradores chamavam de “Maloca” foi para nesse local
que tempo depois as famílias iriam se mudar e forma a comunidade da “Santo Antônio da
maloca”.
O lugar lá era São Paulo mesmo era bonito tinha guaranazal ao redor das casas era
muito bonito, muito laranjeira, muita laranjeira, laranja era, quando dava laranja ele
era “vixi Maria” e guaraná ao redor Da. das casas né. Então era muito bonito ele! Só
qui era longe e pessoal perguntava por que nos não mudava pra outro lugar perto (do
Paraná do Ramos) 380.

As primeiras famílias nordestinas a vieram morar nesse lugar antigo dos indígenas,
foram a de Álvaro Luiz de Freitas, Jose Silva e Luiz Passos. Nesse primeiro momento a
pequena vila que estava se formando passou a ser chamada de “Vera Cruz”, porém dona
Antônia afirma que os moradores não teriam se identificado com o novo nome, já que
estavam acostumados a chamar aquele local de “Maloca”. Depois que essas famílias vieram
para a ainda “Vera Cruz” as outras também passaram a vim. Mas esse processo não teria
ocorrido de forma imediata, já que ainda havia família residindo na “São Paulo da Maloca”

378
Antônia Albuquerque Barbosa. Entrevista realizada em 6 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da
Maloca.
379
Antônia Albuquerque Barbosa. Entrevista realizada em 6 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da
Maloca
380
Antônia Albuquerque Barbosa. Entrevista realizada em 6 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da
Maloca

566
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até a década de 80. “Minha finada vó morou lá ate morrer em 80 por ai. Eu ainda me lembro
da casa dela, era bem alta, foi lá que o finado papai morreu no São Paulo” 381.
A comunidade da “Santo Antônio da Maloca” só nasceria de foto com esse nome,
segundo seu Emanuel de Freitas em 1973 quando Darlindo Albuquerque Glória e Manuel
Domício dos Santos, tidos como os primeiros presidentes da comunidade que trabalhariam
para o local recebesse esse título por parte do município de Barreirinha. E para que isso fosse
possível foi preciso à presença de um padre no local, o que facilitou a institucionalização da
nova comunidade, já que os agentes pastorais agiram, também, com esse proposito na
Amazônia na segunda metade do século XX. Afirma Maués:
As “novas formas de cidadania” emergentes na Amazônia a partir da atuação dos
agentes de pastoral da Igreja Católica, ao trabalharem, motivados pela Teologia da
Libertação, na implantação de Comunidades de Base. “Tal aspecto será enfatizado
ao longo do texto, pois representa um ganho político para as populações locais
influenciadas por essa ação, em reação interativa que, portanto, não se processou
num único sentido, mas constituiu-se numa forma de reciprocidade” (MAUÉS,
2010, p. 14).

Ainda segundo Maués esse tipo de ação se “aplica também a muitas outras
“comunidades” amazônicas, “re-inventadas” ou transfiguradas pela ação de agentes pastorais
católicos nos últimos anos, desde a segunda metade do século XX” (MAUÉS, 2010, p.14).
Essa atuação feita pelo Igreja Católica é evidenciado também pelo fala de dona Antônia
Albuquerque.
(Hum, hum [concordância]) [...] que... Eu ainda trabalhei muito, Trabalhei muito
pra, pra ajuda a construir a Igreja grande nos, nos... Nos tinha Igreja, mas ainda era
assim de hum [pensamento] de tapua né tudo cercado de tapua tudo, ate que nos
conseguimos essa grande. Um padre veio pra cá, padre Gabriel (dona Antônia não se
lembrar do nome completo dele) veio ver como que estava aqui ai ele [...] viu que
dava pra fazer uma comunidade. Nos pedimos ajudasse nós pra nos fazer uma igreja
grande [...] ele ajudou, mandava pede dinheiro lá da terra dele (risos) vinha dinheiro
[...] ai nos ajudemos, vixe Maria! quebrei muita pedra, areia... [...]. Finado
Raimundo Dutra... Veio pra ajuda, então nos pedimos pra ele [...] pra botar uma pra
nós que nos queria trabalhar de noite pra ver se aprontava essa Igreja e como ele
disse que ia se aposentar ia... Pede [...] graças a Deus (hum, hum [concordância])
conseguimos com a Igreja382.

Ainda segundo dona Antônia foi a partir desse momento que quase todos outros
moradores da “São Paulo da Maloca” resolveram também vir para o local, já que ale estava se
constituindo uma comunidade. Em 2012 à comunidade foi elevado ao patamar de “Agrovila”
e passou a se chamar “Agrovila Santo Antônio”, porém mais uma vez os moradores não

381
Rosangela Lacerda Albuquerque. Entrevista realizada em 7 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da
Maloca.
382
Antônia Barbosa Albuquerque. Entrevista realizada em 6 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da
Maloca.

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568

concordaram com a retirada da “Maloca” e assim ela passou a se chamar “Agrovila Santo
Antônio da Maloca”. Hoje a comunidade tem em torno de 55 casas e cerca de 200 pessoas
vivem na sede da Agrovila. E como informa Maués na maioria das vezes seus habitantes
constituíam “unidades familiares que mantêm entre si laços de parentesco, vizinhança e
compadrio” (MAUÉS, 2010, p.17). A agrovila é regida por dois presidentes, sendo um
religioso, responsável pelas festas e o outro administrativo que tem o compromisso de selar e
buscar benefícios para o local. Além disso, a uma comissão que é formada pelos secretários e
tesoureiro.
Recorre ao presidente da comunidade. Tem o presidente administrativo que é o
segundo presidente da comunidade mesmo, recorre mais o presidente administrativo
ele é o caixa maior, agente chega mais com ele o presidente da comunidade mesmo
é só presidente, mas o administrativo é mais importante383.

Atualmente a agrovila tem uma igreja, um barracão de festas, uma sede para as festas
dançantes, um campo de futebol, a igreja de Santo Antônia e o barracão ficam um ao lado do
outro, bem em frente à agrovila. Do outro lado, fica a sede social e o campo para jogos de
futebol ficam na parte de trás, formando dois espaços distintos. Santo Antônio também possui
uma escola municipal chamada “Thiago de Freitas”, um poço artesiano e luz elétrica ainda
possuem quatro ruas ainda não asfaltadas e dois comércios que adente os moradores.

Processos e práticas sócio-culturais


Abordaremos as festas de santos que aconteciam na área da “São Paulo da Maloca” e
também das festas de santo da “Santo Antônio da Maloca”, assim faremos uma descrição
delas através dos relatos dos envolvidos na pesquisa. Na “São Paulo da maloca” se realizava
festejos em honra Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Trindade e São Bento, todos
esses santos particulares/de promessas e pertenciam às famílias do local. “Todas essas santos
eram de promessas São Bento, Nossa Senhora Rosário e zoutros também com certeza o São
Sebastião é dos Freitas por exemplo e Nossa Senhora do Rosário era da mamãe” 384.
Segundo dona Antônia “Nossa Senhora do Rosário” pertencia a sua família e eles
com a ajuda dos outros moradores do local preparavam tudo para a festa ser realizada no dia 2
de maço, ela conta que nela se servia muita comida no barracão da santa para as pessoas que
vinham de outras comunidades. Também se realizava novena e depois tinha muita música à

383
Rosangela Lacerda Albuquerque. Entrevista realizada em 7 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da
Maloca.
384
Antônia Albuquerque Barbosa. Entrevista realizada em 6 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da
Maloca.

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noite toda (fora Nossa Senhora do Rosário ela não sabe dizer a quais famílias os outros santos
pertenciam). Os outros santos igualmente eram festejados pelas outras famílias. “Lá, lá todos
faziam sua festa. Por isso só era uma noite nos só tinha condição pra uma noite, mas agente
se ajudava e as outras comunidades também, até hoje aqui na maloca” 385.
Ainda segundo dona Antônia, depois que essas as famílias foram vindas para a
“Maloca” esses santos pararam de ser festejados, porém, “ainda hoje se fazem rezas e é só,
386
mas não em todos os anos” . Seu Emanuel me relatou a sequente história, que em 1973
procedeu-se uma reunião para fundar de fato uma comunidade na “Maloca”. Foi então que
chegou ao ponto onde se perguntaram qual santo iria ser o padroeiro da comunidade e uma
das pessoas presente disse o seguinte “-meu avó tinha um santo, Santo Antônio de Assis de
Pádua (Santo Antônio era um frade franciscano que viveu a maior parte de sua vida em
Pádua, na Itália. Os moradores do local sabem dessas historia, por isso se referem assim ao
santo)”387 foi quando as pessoas concordaram que não havia festa naquela região
representando o santo. Dona Antônia Albuquerque narrou que esse santo era de seu tio Álvaro
Freitas e que ele foi cedido à comunidade.
[...] É... Eu nem sei. Como foi escolhido Santo Antônio? Porque tinha um Santo
Antônio finado tio Álvaro [Álvaro Freitas] tinha um santinho, Santo Antônio um
pequeninho (ela fez gesto com a mão para mostra o tamanho do Santo Antônio)
assim ele tinha santo botar Santo Antônio, festa de Santo Antônio foi crescendo,
crescendo agora já este santo Antônio grande388.

Esse tipo de relato não é difícil de encontra na região Amazônica como nos revela
Heraldo Maués:
Mas um comerciante influente do lugar, devoto de Santo Antônio, levou para lá uma
imagem deste santo, conseguindo motivar o povo a trocar de padroeiro, erguendo-se
capela para abrigar o novo santo, enquanto São Benedito continuava sendo guardado
e cultuado na casa de sua “dona” (MAUÉS, 2011, p, 11).

Dessa forma, já no ano seguinte comeram os festejos do santo entre os dias 4 a 13 de


junho dês de então. Durante as noites do dia 4 a 11 são feitas novenas, leilão, torneio de
futebol e bingo das bonecas vivas e do santo, as outras comunidades trazem prêmios para
colocar no bingo do santo, já que a agrovila também faz a mesma coisa nas festas dessas
comunidades. Já o dia 12 e 13 são os dias que de fato ocorre à festa, então durante esses dois
dias pela manhã serve-se o café com beiju de tapioca, biscoitos de polvilho, frito de crueira
entre outros, logo depois tem a missa com batismo e outras cerimônias religiosas.
385
Antônia Albuquerque Barbosa. Entrevista realizada em 6 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da
Maloca.
386
Manuel Freitas da Silva. Entrevista realizada em 6 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da Maloca.
387
Idem.
388
Antônia Albuquerque Barbosa. Entrevista em 7 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da Maloca.

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570

O almoço é servido a partir das 11 horas com diversos tipos de comidas como peixes,
carnes e além de almoçar no próprio barracão do santo, as famílias também podem levar
comida para suas casas, é nesses dias também que se erguem os três mastros que só serão
derrubados no final da festa. “É assim que é a festa do Santo Antônia aqui na Maloca, sevem
comida pros visitantes, café e muito mais. Isso vem de muito tempo atrás” 389.
No período da tarde acontece a procissão que percorre toda frente da comunidade e
termina na Igreja com a missa, depois da missa ocorre o leilão e o desfilhe das bonecas vivas
e apresentações de quadrilhas e atrações vindas vezes de outras comunidades. A parte
religiosa da festa termina por volta das 10 horas da noite. A partir daí começa a festa
dançante, então as pessoas se encaminham para a parte de trás da agrovila para a onde fica a
sede, local onde as pessoas podem dançar e consume bebidas alcoólicas. Essa parte da festa
vai ate lá pelas cinco da manhã. A festa de santo Antônio termina no dia 13 com a derrubada
dos três mastros que ficam bem enfrente da Igreja e quem pegar a bandeira do santo será o
festeiro do ano seguinte.
O Santo Antônio é todo anos eles colocam uma bandeira na frente da igreja né, dois
mastros que tem duas bandeiras ai no caso que é a derruba do mastro que falam
quando a bandeira vai... O mastro vai caindo as pessoas vão... Quem quer ser os
festeiros do outro anos corre pegam a bandeira e já vai ser festeiro do outra ano390.

A segunda festa mais importante da comunidade é a do “Sagrado Coração de Jesus”


que ocorre no dia 26 do mês de fevereiro. Essa festa surgiu através do apostolado de oração,
um grupo formado só por senhoras e foram elas que trouxeram o santo para comunidade. Na
época, a líder do grupo era dona Antônia Albuquerque foi ela que comprou o santo e depois o
trouxe para Santo Antônio da Maloca. A Festa dura somente dois dias e na parte religiosa
também há procissões com a missa logo depois, bingo, leilão, torneios de futebol e desfile de
bonecas vivas. “Aqui tem bingo, torneio de futebol, boneca viva, leilão, procissão do santo,
essa é a parte religiosa da festa e tem também a festa dançante que começa a parte das 11
horas e vai ate amanhecer o dia mesmo”391.
Além da festa do padroeiro e do Sagrado Coração de Jesus também existem outras
manifestações sócias culturais, como por exemplo, os santos de promessas pertencentes às
famílias do local como “São Sebastião”, que já foi muito comemorado antigamente chegando
a se comparar com a festa de Santo Antônio, mas que hoje se resume a uma novena e leilão na
noite do dia 20 de janeiro assim também como do Santo Expedito. Além dessas práticas

389
Rosangela Lacerda Albuquerque. Entrevista em 7 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da Maloca.
390
Elisangela Lacerda Albuquerque. Entrevista em 7 de maio de 2018. Agrovila Santo Antônio da Maloca.
391
Pedro Vieira dos Santos. Entrevista em 5 de moço de 2018. Município de Parintins.

570
571

também houveram movimentos que foram trazidos de outras localidades, um exemplo disso, é
a “Rezas para as Almas”, que descreveremos a seguir.

“Rezas para as almas”


Essa temática surgiu da curiosidade de se entender como ocorria uma das tradições
religiosas mais antigas da “Agrovila Santo Antônio da Maloca”. Nessa agrovila ocorria
durante a semana santa (data que a Igreja Católica revive a morte e ressuscitação de Cristo)
uma série de ações que relembram essa importante data como, por exemplo, missas, grupos
de orações, novenas, etc. Além de todos esses atos que vêm tradicionalmente da Igreja
Católica, acontecia também um ritual que os locais chamavam de “Rezas para as almas”, que
vinha sendo repassado de geração para geração através das memórias dos antigos.
Consta que o ritual chamado “Rezas para as almas” era formado por um grupo no qual
só podiam pertencer homens. Durante a Semana Santa eles encapuzados saiam pelas ruas da
agrovila e também de outras comunidades entoando e fazendo preces para as almas dos que já
haviam “partido dessa vida”. Dessa forma, os dias que antecediam essa data os homens mais
velhos desse grupo que eram chamados de “cabeça”, uma espécie de liderança, reunia os
outros membros para acertar todos os detalhes do que iria acontecer nas noites de cerimônias.
No entanto, se houvesse algum jovem que quisesse participar do movimento que era uma
espécie de “irmandade”, essa pessoa tinha que obedecer a certas regras como, por exemplo,
aprender entoar os contos, as rezas, se vestir a caráter e, “acima de tudo agir com muito
respeito para com os mortos” 392.
Durante a Semana Santa os participantes do movimento “passavam os dias rezando e
treinando os cânticos393”. As cerimônias aconteciam na quarta, quinta e sexta-feira. Inclusive
a sexta era o dia mais importante para eles, já que é o dia da morte de Jesus, segundo a
tradição católica. Quando a tarde chegava “lá pelos seis horas os cabeças se reuniam para
planejar os últimos detalhes” 394, já que cada membro tinha uma função dentro do grupo, por
exemplo, havia os que tocavam os instrumentos, os que cantavam os cantos como primeira,
segundo, terceira e quarta voz, pós uma voz tinha que ser mais grave do que a outra. Os que
levavam o sino, as velas, eram eles pediam permissão para “rezar na frente da casa das
pessoas”395, entre outras funções secundárias. “Quem era responsável pelo sino chegava e

392
Pedro Vieira dos Santos. Entrevista em 5 de moço de 2018. Município de Parintins.
393
Pedro Vieira dos Santos. Entrevista em 5 de março de 2018. Município de Parintins.
394
Idem.
395
Idem.

571
572

tocava o sino. Aquilo já era sinal que íamos rezar pras almas ali, muitas vezes eles deixavam
beju, pé de moleque, chá pras almas” 396.
Segundo seu Pedro Vieira, esse ritual era composto por uma espécie de irmandade, por
isso os participantes faziam juramentos de obediência e concordância. Como esses eram atos
que vinham de muito tempo ele não soube explicar como tudo começou ali na Maloca, ele só
nos relatou que seu pai já fazia essa peregrinação naquela região quando o mesmo era ainda
criança. No entanto, ainda segundo ele, nada do que eles faziam era reconhecido pela Igreja
Romana. A igreja, portanto, não tinha envolvimento nenhum com esses atos, “tudo era feito pela conta
dos próprios participantes. Era nos mesmo os que organizavam tudo. A igreja nem sabia de nada (risos). Mas
tudo com muito respeito não só de nos como também dos comunitários” 397.
As cerimônias ocorriam “lá pelas nove, dez horas da noite os membros do grupo
saiam em direção ao cemitério398”, ao chegarem lá, o “cabeça” começava “rezando o pai
nosso e outra prece” 399, isso tudo era para pedir permissão para que as almas focem retiradas
do cemitério. A partir desse momento, tanto os mais velhos, quanto os mais novos, cobriam a
cabeça com uma espécie de véu que era um pedaço de pano transparente. Esse pano era
sagrado para eles e em nenhum momento eles podiam retirar. Outra regra que todos buscavam
respeitar era de que “não podia olhar para trás” 400, já que havia muitas histórias de pessoas
que haviam olhado e acabavam vendo coisas apavorantes como ossos de pernas, almas, vultos
e alguns até sentiam cheiros.
Não podia olhar para trás, por que... Ate agente mesmo que fazia isso sentia coisas
estranhas. Uma vez, não era do meu tempo, mas contavam que um homem olhou pra
trás, ele quase ficou maluco, depois que ele voltou (do desmaio) ele disse que ele viu
coisas horríveis gente morta coisas assim não sei se é verdade, mas acho que seja
né401.

Na Agrovila Santo Antônio da Maloca, essa cerimônia tomava contornos ainda mais
arrepiantes aos olhos das gerações mais novas, já que na agrovila até os dias de hoje não
existe cemitério. Então, para que esse ritual acontecesse, os responsáveis tinham que “ir a
remo” ao Distrito de Pedras (distante cerca de vente minutos da Agrovila Santo Antônio da
Maloca), pois, só assim as almas dos que viveram na agrovila podiam “voltar ao seu seio
familiar” 402. Ao retornar ao destino, o grupo começava uma longa caminhada e em cada casa
que chegavam encontravam uma “vasilha com beiju-de-tapioca e chá” entre outras coisas.

396
Idem.
397
Idem.
398
Idem.
399
Pedro Vieira dos Santos. Entrevista em 5 de moço de 2018. Município de Parintins.
400
Idem.
401
Idem.
402
Idem.

572
573

Mas toda essa recepção alimentar não era a espera dos homens vivos, mas sim das almas que
retornavam uma espécie de oferenda. “A gente mesmo não podia tocar não era pra nos era
pros mortos. Ali isso, era uma regra entre nos, nos não podia beber e nem comer nada ali”
403
.
Dessa forma, eles passavam praticamente a “noite toda indo em casa em casa fazendo
404
as preces e os cânticos” . Entre as cantigas mais entoadas durante a noite, ainda segundo
essa mesma testemunha, estavam “se não pecasse meu Desus..., acordai irmão meu...,
405
fugindo para o Egito..., sexta, sexta, sexta santa...” . Quando estava perto do amanhecer
por volta das três, quatro horas da manhã eles voltavam para o cemitério para deixar as almas.
Mas um pequeno detalhe todos tinham que saber “quem participasse uma vez da cerimônia
era obrigado a ficar pelo menos sete anos fazendo o mesmo ritual” 406 e quem não cumprisse
“seria desseguido pelas almas dos mortos” 407. Essa práticas sócio religiosa, no entanto, veio
se perdendo ao longo dos anos.
Hoje tudo isso está se perdendo a juventude não quer mais nado disso só que já esse
negócio de internet é uma pena. Mas oque agente pode fazer, nos já estamos velhos
pra fazer isso e quem tem que tá afrente disso é uma pessoa jovem compromissada,
mas ate agora ninguém. Já faz tempo, tempo não, só que não querem mais nada e
tudo está se perdendo408.

Seu Pedro Vieira termina o sua narrativa com um toque de nostalgia, isso por que,
segundo ele essa prática religiosa que foi tão importa no calendário da “Santo Antônio da
Maloca” está deixando de assiste. Pois não há mais interesse por parte dos jovens em
participar dessa cerimônia, o que faz com que, aos poucos, essa incrível celebração venha
sendo esquecida, ficando somente na memoria dos moradores mais antigos da agrovila.

Referências
CASTRO, Hebe. 1997 In: Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia/ Ciro
Flamarion Cardoso, Ronaldo Vainfas (orgs.). - Rio de Janeiro: Campus, 1997.
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Outra Amazônia: Os Santos e o Catolicismo Popular. Norte
Ciência, vol. 2, n. 1, p. 1-26 (2011).
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Comunidades “no sentido social da evangelização”: CEBs,
Camponeses e Quilombolas na Amazônia Oriental Brasileira. Religião e Sociedade, Rio de
Janeiro, 30(2): 13-37, 2010.
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História oral e narrativa: tempo, memória e
identidades. História Oral, 6, 2003, p. 9-25.
403
Idem.
404
Idem.
405
Idem.
406
Pedro Vieira dos Santos. Entrevista em 5 de moço de 2018. Município de Parintins.
407
Idem.
408
Idem

573
574

PORTELLI, Alexandro. O que faz a Historia oral diferente. Proj. Historia São Paulo, (14),
fev.1997.
POLLAK, Michel. Memoria e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5.
n. 10, 1992, p. 200-212.

574
575

“O SANGUE DOS TICUNA DERRAMOU COMO ÁGUA ENXURRADA NO RIO


SOLIMÕES”: 30 ANOS DO MASSACRE DO CAPACETE

TAMILY FROTA PANTOJA

Introdução
A partir da contextualização do massacre de quatorze índios da etnia Ticuna ocorrido
em 28 de março de 1988, na região do igarapé do Capacete (Benjamin Constant/AM), o
presente texto busca refletir acerca da atualidade dos desafios enfrentados pelos povos
indígenas para o reconhecimento dos seus direitos territoriais e por seus modos tradicionais de
vida, revelados nas disputas que desdobram nos processos criminais/judiciais que lhes
concernem, de modo a ser recuperada no passado a realidade social em que foram produzidos
discursos políticos antagônicos versados sobre o referido massacre.

A luta dos Ticuna pela continuidade da demarcação dos territórios tradicionalmente


ocupados, fortemente expandida na década de 1980, deve ser entendida no conjunto das
diversas formas de violência enfrentadas por este grupo étnico relacionadas à força repressiva
dos mantenedores do comércio ilegal de madeira nas terras indígenas já homologadas e
naquelas sem reconhecimento pelo Estado, além da atuação do indigenismo oficial que,
naquela conjuntura, potencializou tais conflitos de acordo com o alinhamento aos poderes
dominantes regionais.

Conforme aponta o antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho, as oito áreas


indígenas propostas para demarcação correspondiam a 30,4% de toda a superfície dos
municípios de Benjamin Constant, Santo Antonio do Içá e São Paulo de Olivença, nos quais
os Ticuna “correspondem a uma parcela significativa da população”409, sendo reconhecidas
por decreto até em 1988 apenas quatro, que totalizavam 9,32% “das reivindicadas e ocupadas
pelos Ticuna”.

O avanço das iniciativas indígenas pela questão do território foi proporcionado por
estratégias de maior ressonância pública das denúncias contra a violação dos seus direitos
exercida pelos madeireiros. Neste sentido, a formação do Conselho Geral da Tribo Ticuna


Graduanda de História pela Universidade Federal do Amazonas.
409
Nos municípios de Benjamin Constant e Santo Antônio do Içá, os Ticuna são, “respectivamente, 23,7% e
32%” do total da população. São maioria no município de São Paulo de Olivença, onde equivalem a “64,6% da
população rural cadastrada pelo IBGE em 1980”. Os Ticuna são o maior povo indígena do Brasil em termos
demográficos, ocupando também territórios no Peru e Colômbia, ou seja, para além da Amazônia brasileira. Ver:
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. “O nosso governo”: os Ticuna e o regime tutelar. São Paulo: Marco Zero,
1988.

575
576

(C.G.T.T.), em 1982, marca também um momento importante da articulação dos Ticuna por
uma posição de defesa autônoma de seus direitos perante o Estado, onde lideranças e o
“capitão” das aldeias atuam nas relações mais imediatas com as instituições responsáveis pela
investigação de casos de agressão contra os índios.

Na qualidade do cargo de capitão da aldeia São Leopoldo, Leonílio Ramos Lopes


convocou, em 27 de março de 1988, membros de outras comunidades a se deslocarem para o
lugar “Boca do Capacete”, onde aguardariam a presença do advogado da Fundação Nacional
do Índio (FUNAI) e de policiais militares de Benjamin Constant para que fosse investigado o
desaparecimento de um boi pertencente a São Leopoldo, que possivelmente teria ligação com
a intrusão de não-índios na área indígena.

Essa estratégia de impedir graves conflitos no contato direto com aqueles que
representavam ameaças aos Ticuna não evitaria toda a tensão estabelecida no momento em
que estes se aproximavam da região de moradia dos homens que atuam a serviço do
madeireiro Oscar Castelo Branco, e que infundem na população local o sentimento de repulsa
aos índios pela idéia de que estes chegam à cidade para vingarem radicalmente suas perdas, a
partir de ataques generalizados. As condições materiais desfavoráveis da FUNAI também
acrescentaram preocupação aos índios durante a empreitada, como indica o depoimento de
Leonílio: “permaneceram em Benjamin Constant até por volta do meio dia, quando foi
comunicado pelo advogado da FUNAI de que não seria possível o deslocamento ao lugar
Boca do Capacete, por falta de combustível”410. Os outros índios que permaneceram na Boca
do Capacete estavam na casa do Ticuna Aseliares Flores Salvador, quando foram rodeados
por homens armados com espingardas e que abriram fogo numa ação deliberada de acabar
com a vida de quantos índios pudessem.

Na publicação “A lágrima Ticuna é uma só”, de 1988, pelo MAGÜTA: CDPAS –


Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Solimões, foi incorporado o no 31 do Jornal
Magüta, no qual é anexada uma carta-relatório, escrita por Santo Cruz Mariano Clemente ou
Picüracü, que expressa a profunda consternação dos índios pelos seus mortos e feridos e que,
ao mesmo tempo, denuncia a contínua brutalidade a eles direcionada e fundada na
intolerância à existência do grupo étnico:

410
Depoimento de Leonílio Ramos Lopes na PF/TBT, em 05.04.1988. Recorte do inquérito policial aberto por
esta instância em 29.03.1988. Fonte transcrita na publicação RÜ AÜ I TICUNAGÜ ARÜ WU’I – A LAGRIMA
TICUNA É UMA SÓ. Magüta – CDPAS. Centro de documentação e Pesquisa do Alto Solimões. 1988.

576
577

Eles fizeram isso porque os brancos têm raiva de todos os Ticuna, por causa da terra
deles. Antes disso, eles não respeitavam a nossa área, todos os dias eles entravam e
entram com espingardas e, se um Ticuna dissesse alguma coisa para eles, eles iam
queimar na mesma hora [...] E quão e lamentável a nossa situação, porque foi
derramado o nosso sangue. (Magüta, no31, 29.03.1988)

Naquele dia, foram 14 índios mortos e 23 foram feridos, depois de serem perseguidos
desarmados em suas tentativas de escapar principalmente pelas águas do Solimões, em canoas
ou até mesmo a nado, além de buscarem evadir pela mata.

Sendo levantado um histórico de ameaças e agressões diretas aos Ticuna, não há recuo
diante das possibilidades futuras de recrudescimento da violência, mesmo com as denúncias
oficializadas. A segunda metade da década de 1980 revela um quadro estarrecedor da
violência dispensada aos índios por grandes comerciantes locais que atuavam na ilegalidade,
como é o caso de Oscar Castelo Branco que, além de ter sido o mandante do massacre na
Boca do Capacete, em 1985 foi registrado seu envolvimento na exploração de trabalho
escravo dos Ticuna em uma plantação de epadu (cocaína brasileira), administrada em
conjunto com o comércio de pele de animais silvestres e de madeira:

Em locais onde o acesso somente pode ser feito por helicóptero, os Ticuna eram
colocados sob forte vigilância para trabalhar nas plantações do epadu. Durante a
operação, foi constatado que alguns índios apresentavam precárias condições de
saúde, sendo levados para tratamento nas unidades médicas da região (Última Hora,
15.08.1985)

Os mártires de um sistema genocida e escravocrata de exploração dos recursos


naturais no Alto Solimões são protagonistas na construção de um campo de resistência que
atravessa vigorosamente o nosso tempo presente.

Os Ticuna, o indigenismo tutelar e o sentido histórico do direito nos processos


criminais/judiciais

As abordagens produzidas por Oliveira Filho (2004) discutem a repercussão contínua


na sociedade brasileira de questionamentos – em caráter de negação – quanto ao volume de
terras designadas indígenas e em torno do reconhecimento étnico dos grupos que as ocupam,
muitas vezes expressos em reivindicações políticas na contramão das legislações atuais que
acompanham o avanço das políticas indígenas e indigenistas. Esses pressupostos de

577
578

ilegitimidade acabam por silenciar apreensões manifestadas pelos próprios índios nas
instâncias oficiais onde registram suas denúncias, e, neste sentido, a atuação tutelar do órgão
oficial de assistência aos índios merece ser investigada com atenção a sua face de dominação.

O referido autor, em seu estudo sobre a relação dos Ticuna com o regime tutelar
perpetuado pela Funai a partir de 1967, destacou a “tentativa de instituir uma organização
étnica, autônoma em face da FUNAI” (1988, p.13) como um dos eixos fundamentais de
compreensão da realidade dos Ticuna contemporâneos. Isso porque o órgão anterior de
mediação das relações dos povos indígenas com o Estado, o Serviço de Proteção aos Índios
(SPI)411, embora em alguns momentos tenha freado o domínio privado em terras indígenas,
foi estabelecido por uma lógica de “pacificação” dos tutelados, refletindo uma idéia de
gradual integração destes aos padrões nacionais de civilização, de modo a gerir também as
opressões que tal estrutura requer. Os então “sujeitos de uma indianidade genérica” não
poderiam ter representatividade própria e direta perante a burocracia que circunscreve os seus
direitos sobre os territórios habitados reconhecidos desde a Constituição Federal de 1934. É
longo o período de legitimação dessa tutela pelo Estado e poderosa sua expressão nas
intervenções da FUNAI frequentemente adversas aos interesses defendidos pelas
organizações indígenas. Um cenário diferente para a articulação das demandas indígenas pode
ser vislumbrado somente após a promulgação da CF de 1988, em termos de reconhecimento
do caráter pluriétnico da nossa sociedade e da garantia de representação jurídica autônoma por
parte dos povos indígenas, isto é, independente da intervenção pela FUNAI.

É preciso, no entanto, buscar uma análise distanciada da perspectiva unilateral acerca


das transformações institucionais favoráveis às pautas indígenas. Ao caracterizar “o embate
de forças no qual ocorreu a gestação do texto constitucional” de 1988, Oliveira Filho (2016,
p.289) aponta posicionamentos de agentes do Estado contrários aos dispositivos
constitucionais que assegurariam largamente a demarcação e homologação dos territórios
tradicionais indígenas, entendidos por Romero Jucá, presidente da FUNAI naquele contexto,
como “riscos” que representariam “para a segurança das fronteiras e o desenvolvimento da
região amazônica” (2016, p.291). A fala de Jucá é paradoxal por não se associar aos interesses
que fundamentam a existência do cargo público o qual ocupava, a manifestar o inverso do que
a FUNAI assume enquanto órgão de defesa dos direitos indígenas. É frágil seu argumento do

411
O órgão indigenista foi criado em 1910, como Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos
Trabalhadores Nacionais (SPILTN), designado somente SPI em 1918, sendo instalado nas áreas Ticuna a partir
de 1942. Fonte: Idem, p. 18.

578
579

ponto de vista do que são realmente as terras indígenas demarcadas: territórios de domínio
exclusivo da União, onde são vedadas quaisquer intervenções que não estejam a ela
vinculadas.

O reconhecimento da exclusividade do uso dessas terras pelos índios implica na


fundamentação do crime de genocídio, quando o massacre de tais grupos é entendido para
além da morte de indivíduos, mas pelo intuito de “extermínio físico de uma determinada
categoria social”, resultando em processos de etnocídio “pela destruição sistemática dos
recursos naturais e dos meios de vida, que asseguram a reprodução física e social de uma dada
etnia” (ALMEIDA, 2000:199)

Se, por um lado, os Ticuna vão buscar perante a Justiça412 o fim dos ataques,
compondo comissão para a ida à capital federal, por outro, é possível revelar toda a
obscuridade de desafios postos nas esferas judiciais competentes para a punição do crime de
genocídio e uma verdadeira disputa discursiva no decorrer dos processos. Importa analisar
como as forças sociais e políticas opostas às pautas dos movimentos indígenas são
respaldadas conforme a instituição de ideias que justificam sua hegemonia na burocracia
estatal, a partir da crítica à ideologia que precisamente oculta os antagonismos sociais no
processo histórico.

Devemos olhar para os processos criminais/judiciais dos quais lançamos mão nesta
pesquisa conforme a proposta de destacar sua historicidade, de recuperar questões do universo
social que atravessam sua produção em determinados lugares de exercício da autoridade, isto
é, onde funcionam normas historicamente construídas. O uso desse conjunto documental nos
conduz a perscrutar como “configuram-se discursos, tanto de acusação como de defesa,
capazes de representar uma importante fonte ‘para a apreensão de fatos e valores e
representações sociais’” (SILVA, 2004:56). Deste modo, nos aproximamos de uma discussão
também sociológica ao apreendemos as limitações da suposição do “direito como um sistema
fechado e autônomo, cujo desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a sua lógica
interna”, essencialmente pelo fato de os textos jurídicos serem elaborados por
412
“Alarmados com a perspectiva de impunidade dos culpados, os Ticuna elegem uma comissão de seus
representantes para viajar à Brasília e buscar providências urgentes das autoridades. Levam uma carta, pedindo
por três medidas de curto e longo prazo: 1) punição exemplar dos agressores; 2) auxílio às famílias vitimadas
(assistência de saúde e aposentadoria das viúvas pelo INAMPS; 3) decretação de todas as áreas Ticuna e atuação
imediata de comissão Interministerial para resolver o problema fundiário da região” (Magüta, 1988:62). Na
capital federal, os Ticuna entregaram suas reivindicações no Ministério da Justiça; na Comissão de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana; na Procuradoria Geral da República; na Ordem dos Advogados do Brasil; no
Ministério do Interior; e no Congresso Nacional. O presidente do C.G.T.T., na época, era Pedro Inácio Pinheiro,
de 28 anos.

579
580

agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste na


capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou
autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo
social(BOURDIEU, 2002: 219-212).

Nos debrucemos sobre as fontes a partir das quais apresentamos questões para a
temática indígena. Em 16 de dezembro de 1991, a Procuradoria da República no Amazonas
(PR/AM) estabelece a ação penal que percorreu detalhes do massacre os quais fundamentam a
concepção do genocídio, sendo restituída sua conjuntura a partir do depoimento de 32
testemunhas vítimas da brutalidade dos “civilizados”, tendo requisitado à Polícia Federal
cópia do inquérito policial no 01/88.

Na chacina [...] concentraram-se no pólo ativo civilizados, residentes no Município


de Benjamin Constant, e no pólo passivo indígenas, tendo sido esses vítimas do
massacre que teve sua origem no fato deles serem da etnia Tikuna, detentora de
usufruto de área tradicionalmente por eles ocupada e habitada em caráter
permanente. (grifo original)413

No entanto,a instância judicial, a saber, a 1ª Vara de Seção Judiciária no Amazonas,


estabelece que o julgamento deveria acontecer no Tribunal do Júri, o qual possui a
competência de julgar crimes de homicídio, diferentemente da competência do Juízo Singular,
da esfera federal, que julga o crime de genocídio conforme a responsabilidade direta da União
em preservar os direitos territoriais indígenas.
Segue ao “pedido de reconsideração” sobre o julgamento do crime inserido na ação
penal pelo procurador Ageu Florêncio (PR/AM) uma análise sobre o genocídio fundamentada
também no texto da “Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio”414, que
aponta como genocídio quaisquer atos
cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional,
étnico, racial ou religioso”, em destaque os seguintes: “a) assassinato de membros
do grupo; b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c)
submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasione a
destruição física total ou parcial;.

O argumento para essa ação segue com a premissa “de que o bem jurídico tutelado, no
caso, seria a etnia, e não a vida, o que afastava a competência do Tribuna do Júri.” (SANTOS,

413
Ação penal no 91.0001720-5. Autor: Ministério Público Federal. Réu: Wanderlei Penha do Nascimento e
outros. Peça: Pedido de Reconsideração. Procuradoria da República no Amazonas, em Manaus, 23 de maio de
2000.
414
Tratado internacional do qual o Brasil é parte contratante por Decreto no30.822, de 6 de maio de 1952.

580
581

2017:147). A procedência da Justiça, neste caso, implicava um notável entrave para que
fossem atendidas as demandas dos índios:
[...] a instituição do júri encontra fundamento no fato de o juízo de reprovabilidade
da conduta violadora da paz ser submetida à avaliação de membros da comunidade
local, segundo o contexto social e cultural que lhe é peculiar, mas que eventual
critério de definição de competência, nesse sentido, seria inaplicável ao caso, a partir
da clara possibilidade do comprometimento da isenção de eventual conselho de
sentença, que seria composto somente por não índios, ou civilizados. (SANTOS,
2017:147)

É oportuno retomarmos a realidade de tensão social que envolve os Ticuna e os não-


índios moradores dos municípios que circunscrevem as suas comunidades. Existe uma
significativa repercussão pública em torno da legitimação da violência imposta aos índios
naquelas localidades mobilizada, inclusive, por políticos profissionais que sustentam um
discurso carregado de preconceitos culturais os quais, neste caso, são inseparáveis dos seus
interesses de propriedade. Neste sentido, é exemplar a fala de José Henrique Ataíde de
Oliveira, que ocupou o cargo de vereador de Benjamin Constant e de presidente da
Associação de Vereadores do Alto Solimões, que faz a seguinte acusação:
O índio não mais solicita, exige. O índio não mais negocia, saqueia. O procedimento
de uma minoria de indígenas depredando domicílios é que nos impele a levar o
nosso mais veemente protesto. Não podemos silenciar diante de um acontecimento
tão grave. Não devemos assumir uma posição de passividade. (A Crítica, Manaus,
31.03.88)

Associada a esse contexto, a interpretação jurídica do genocídio evidencia uma


dimensão simbólica das experiências de resistência que produzem a realidade em que os
Ticuna mobilizam uma luta política para a transformação das estruturas de poder que
legitimam a coerção sobre eles. Suas iniciativas criam possibilidades de mudança da lógica
tutelar ao assumirem uma organização coletiva autônoma que se faz presente nas disputas
políticas acerca dos seus direitos.
Nos é cabível investigar a quem interessa que seja ocultado o crime de genocídio, pra
quem serve o discurso criminal alheio às reivindicações do movimento indígena, as quais
possuem fundamento na CF/88. É útil, portanto, colocarmos em perspectiva histórica algumas
questões importantes sobre o campo jurídico, compreendendo que “é justamente na relação
entre a produção de vários discursos sobre o crime e o real que está a chave da nossa análise.”
(GRINBERG, 2012:188) Nesta direção, estamos propondo situar posicionamentos
antagônicos dos agentes sociais envolvidos no contexto do massacre do Capacete. Na disputa
que envolve a manipulação do real, o superintendente da FUNAI/Manaus, Sebastião Amâncio
da Costa, tornou explícito o lado do órgão oficial indigenista no exercício da dominação:

581
582

A FUNAI atribui às entidades de apoio ao índio e aos sem-terra, toda a


responsabilidade pelo incidente ocorrido em Benjamin Constant e dos conflitos
anteriores que vem ocorrendo na região por questões fundiárias. A Notícia, Manaus,
02.04.88, p. 8.

As “entidades de apoio” são uma referência ao Magüta e ao CIMI – Conselho


Indigenista Missionário, acusadas arbitrariamente pena FUNAI em razão destas estarem
aliadas ao movimento indígena por vários anos, assim Sebastião da Costa reafirmou sua
versão em um outro momento: “as investigações que vêm sendo feitas ‘dão como causa
principal para o massacre, o envolvimento do CIMI no incitamento à comunidade dos
Tikunas, principalmente insuflando a luta armada entre brancos e índios’” (O Liberal, Belém
do Pará, 05.04.88). Ainda que o agente da FUNAI não estivesse, de fato, fundamentando suas
declarações nos processos criminais, o mesmo referenciou sua afirmação a supostas
“investigações que vêm sendo feitas” como estratégia de legitimação da sua versão
intencionada a parecer neutra.
Não podemos individualizar este tipo de versão na medida em que ela representa um
posicionamento institucional, e potencialmente se instrumentaliza como hegemônica. Desde a
interpretação do massacre como um “incidente”, a ocultação dos interesses que o
desencadearam conduziu ao encobrimento da própria realidade histórica, conforme a
finalidade de não se fazer registrada a existência de crimes de genocídio no Brasil. Neste
sentido, é exemplar a narrativa de Cláudio Fonteles, então subprocurador geral da República e
membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Ministério da Justiça:
Brasília – [...] Cláudio disse entender que na sua opinião particular não ocorreu a
chacina dos índios ticunas, explicando que os pistoleiros não agiram contra aquela
nação indígena especificamente, mas por interesse comercial na área.
O genocídio pressupõe, disse, a matança de uma raça, com o caso típico de
extermínio de judeus na Segunda Guerra Mundial. No Brasil, segundo explicou,
nunca houve caso de genocídio e nem mesmo de apartheid, se caracterizaria como
tal porque a ação não visa o coletivo. Diário do Grande ABC, 08.04.88.

O que está colocado como “opinião particular” nos mostra como operam as “instâncias
hierarquizadas” no âmbito da Procuradoria Geral da República (PGR). De acordo com as
colocações de Bourdieu:
o campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio de dizer o direito, [...] na
qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e
técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de
maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a
visão legítima, justa, do mundo social. (2002:212)

Embora a ação penal produzida pela PR/AM, subordinada a PGR, tenha detalhado que
“as circunstâncias peculiares que desenharam a execução o crime de genocídio não deixavam

582
583

dúvidas quanto à intenção de destruir parte de grupo nacional e étnico” (SANTOS, 2017:135),
a Justiça Federal/AM havia rejeitado tal denúncia, conforme verificamos no pedido de
reconsideração da PR/AM, sob o argumento de que o crime “já estava sendo processado pelo
juízo competente, no caso, o Tribunal do Júri da Comarca de Benjamin Constant”, porém,
registrado como homicídio qualificado. Impugnada a decisão de rejeição da denúncia em 10
de julho de 1992, a Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) foi
“sorteada para julgar o recurso interposto”, no entanto, esta demonstrou-se “ainda menos
receptiva à aceitação da competência federal para o processo e julgamento do crime de
genocídio decorrente do massacre da ‘Boca do Capacete’” (SANTOS, 2017:136-137),
procedendo com a seguinte decisão:
O crime de genocídio, definido e disciplinado pela Lei no 2.889, de 1º/10/56, não se
inclui, por certo, no enunciado DISPUTA SOBRE DIREITOS INDÍGENAS.
Primeiro, porque não ficou estabelecida a competência criminal; segundo, porque o
genocídio é crime contra a HUMANIDADE e não contra o ÍNDIO. (grifo original).

O procurador da República que assinou a referida ação penal, Carlos Frederico dos
Santos, em seu livro Genocídio indígena no Brasil: uma mudança de paradigma, contestou a
decisão do TRF1,
pois, além da controvérsia criada quanto à natureza do índio, desenhou um
paradigma de genocídio diverso do construído pelas Nações Unidas, modelo
adotado pela nossa dogmática penal [...] Já não se sabia, ao certo, se o índio, por ser
índio, não faz parte da humanidade e, portanto, jamais poderia ser crime contra a
humanidade [...] Ao que se percebe, o entendimento da então Quarta Turma do
Tribunal Regional Federal da 1ª Região estava permeado pela visão eurocêntrica
de genocídio, vinculada ao holocausto nazista [...] apegada à valorização da
ideologia, do aparelho burocrático do Estado e da violência em massa, algo de
grandes proporções, compreendendo que tais elementos integravam a conduta
genocida, a não permitir se enxergar a possibilidade da prática de crime dessa
natureza na realidade nacional, da qual faz parte o índio. (2017:138-139) (grifo
nosso)

Esta interpretação contrapõe valores discriminatórios que permearam a noção de


genocídio por qual se sustenta a decisão do TRF1, explícitos na rejeição da concepção de
mundo das próprias vítimas do massacre. É inegável que o massacre se inscreve na disputa
por terras, mas essa explicação não é suficiente; também não se pode negar os significados
que as terras tradicionalmente ocupadas abrangem para a vida dos povos indígenas, ou seja,
como o seu uso coletivo imprime sentido às experiências desses sujeitos. O povo Ticuna, cujo
nome originário é Magüta, tem registrado o próprio protagonismo nas prospectivas a seu
respeito:
Magüta é o nome do povo pescado por Yo’i. Yo’i disse que este povoirá cultivar a
terrae serdono dela até o fim do mundo. Mesmo que termine o século, este pessoal
vai formar outra gente. Magüta tem que viver para sempre. Se o povo Magüta
morrer, acaba o mundo. Jornal Magüta, no 32, 03.04.88.

583
584

Ainda que o povo Ticuna seja, hoje, “o maior povo indígena da Amazônia
brasileira”415, isso não significa que sua história esteja marcada por poucas perdas devido à
violência recorrente a partir da entrada de grandes comerciantes nas suas áreas. A idéia de que
“no Brasil nunca houve caso de genocídio” distorce profundamente a história da formação
dessa nação, fundada no apagamento étnico pelo extermínio e por políticas coercitivas de
Estado de esbulho e usurpação das terras indígenas, de legitimação da violência por meio da
tutela e pela omissão. Decerto, a visão eurocêntrica de genocídio que perdurou como
paradigma no Brasil contemporâneo também não contempla a nossa realidade histórica, nosso
contexto específico. Diante do perigo do uso da força do passado para o silenciamento de
grupos discriminados, temos o enorme dever de reconhecer esse passado que se faz presente
com toda sua potencialidade de atualização da dominação.

Considerações finais
Os arquivos investigados para esta pesquisa puderam ser problematizados a partir da
perspectiva que valoriza o protagonismo dos povos indígenas nos processos históricos dos
quais participam. Isto significa buscar ir além da ênfase nas relações de poder que fazem parte
da realidade social onde aqueles se inserem, mas trazer à luz da interpretação as agências
indígenas que nos revelam a dinâmica dessas relações, o que nos permite reconhecer sua
historicidade.
John Manuel Monteiro, grande nome da “nova” história indígena, em muito contribuiu
para que fossem desenhados caminhos de estudos neste campo na contramão da idéia de
“assimilação” ou “aculturação” dos índios, os quais, deliberadamente, não poderiam “articular
um projeto prospectivo para o seu povo” (1999:237) a ser registrado em nossa
contemporaneidade. Um dos principais elementos norteadores para desafiarmos essa
concepção engessadora da história é o conceito da resistência indígena, a ser compreendida
em suas diversas modalidades, distante de visões essencialistas e generalizantes.
O povo Ticuna tem articulado estratégias de resistência vinculadas ao projeto de
demarcação de suas terras ocupadas tradicionalmente, de forma a imprimir nas instituições do
Estado sua força política destinada a romper com a tutela e a favorecer uma mediação
democrática, ainda que desproporcional à força do autoritarismo nas instâncias oficiais. São
iniciativas pensadas e construídas coletivamente, elaboradas a partir da significação das suas

415
Fonte: Instituto Socioambiental. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Ticuna. Acesso em:
08 ago. 2018.

584
585

experiências em um contexto particular, portanto, não seria suficiente explicá-las sob o ponto
de vista da “reação”. Intentamos, neste sentido, recuperar um papel criativo desses sujeitos na
História.

Referências
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entre a chacina e o genocídio. In: OLIVEIRA, J. A de.; GUIDOTTI, Pe. H. (orgs.). A Igreja
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Brasil. In:_____.; CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). Direitos dos povos indígenas em
disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
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Amazônica: Alto Solimões, de 1650 a 1910. Caderno CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p.17-31,
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_____. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de
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585
586

586
587

JUSTIÇA DO TRABALHO, TRABALHADORES E RESISTÊNCIA A PARTIR DOS


PROCESSOS DA JCJ DE ITACOATIARA (1980 - 1984).

TAMIR REGINA DA SILVA CARVALHO*

A história do trabalho no Brasil é um campo com crescente pesquisa desde a década


de 80. Vários autores vêm se debruçando sobre esse tema e ampliando as potencialidades que
ele traz consigo (CHALHOUB e SILVA; 2009). Discutir relações de trabalho, espaços de
convivência, resistências e luta dos trabalhadores, marcam apenas algumas das possíveis
dimensões das pesquisas que podemos encontrar ao fazer um breve levantamento
bibliográfico.
O trabalho com as fontes processuais por mais que ainda recente, tem um papel
extremamente significante na história social. Por meio destas, o historiador enquanto
pesquisador é capaz de exercer análises e estudos acerca da história do cotidiano, refletir
sobre a relação ente trabalho e cidade e a reivindicação de direitos pelos trabalhadores junto a
Justiça do Trabalho em Itacoatiara. É possível não tão somente fazer uma compreensão do
modo como viviam estes trabalhadores, mas também do mundo em que viviam e como sua
visão de mundo os influencia enquanto agentes de sua história e de suas lutas.
A relevância desse conjunto documental se dá ao considerar que estes nos
possibilitam ter acesso à fala do trabalhador em seu termo de audiência, assim também como,
através da presença de testemunhas, suas formas de articulação, solidariedade e vivências. A
partir daí é possível refletir sobre a experiência desses sujeitos históricos: homens e mulheres
trabalhadoras de Itacoatiara, que se apresentam nos autos processuais da Junta de Conciliação
e Julgamento. Tais personagens quando entram em cena (SADER; 1988) revelam as lutas
travadas também no âmbito daquela Justiça do Trabalho.
Dentro do recorte temporal de 1980 a 1984, puderam-se observar constantes
repressões das reclamadas, que causam transtornos aos trabalhadores que aparecem
registrados nas reclamatórias que tratam de distintas reivindicações, dentre elas: “horas extras
noturnas”, pagamento de diferença salarial, gratificação de natal, FGTS, “assinatura de
carteira”, reconhecimento de vínculo de trabalho, férias proporcionais, “auxílios de doença
ilíquidos”, etc. Estas reclamatórias, mesmo que sumariamente anotadas, exigem reflexão e
crítica. Os processos trabalhistas até o momento pesquisados evidenciam, portanto,
regularidades de procedimentos em períodos definidos. Sobram sentidos para a análise
histórica da presença de: “capatazes”, violências contra a condição de gestante, manipulação
despudorada do tempo do trabalhador, inclusive de descanso semanal, suspensões e

587
588

manipulações várias, mas igualmente as resistências desses trabalhadores, coletivamente


organizados e sindicalizados.
O recorte temporal dos processos utilizados nos remete ao contexto de uma ditadura
civil-militar (1964/1985). Neste período o que temos é uma grande repressão aos
trabalhadores, que sofriam com as mudanças estruturais no campo da exploração do trabalho,
como também o arrocho salarial, o aumento de custo de vida, inflação e violência no campo
(TOMELIN JR. E PEIXOTO; 2017) de tal forma que a “a sociedade brasileira fora silenciada
pela força e pelo medo da repressão”, mas os trabalhadores ainda sim buscaram formas de
resistir e de reivindicar seus direitos.
A Justiça do Trabalho é instituída em 1941, e as demandas de trabalhadores que a
recorriam já eram grandes. Ângela de Castro Gomes nos apresenta a classe trabalhadora como
já conhecedora do que representava a Justiça do Trabalho e o interesse de serem amparados
por ela. Após serem silenciados politicamente durante e depois da ditadura militar de 1964, os
trabalhadores começam a surgir na cena política novamente em 1978, buscando sempre
representatividade e revelando a existência de formas de organização social que haviam
engendrado à margem dos mecanismos tradicionais montados para representá-los, mas que
findavam por exercer sua cooptação, enquadramento e controle (PAOLI; 1983). A lei e a
Justiça (especialmente a Justiça do Trabalho) começam a deixar de ser vistas como
instrumentos de dominação e passam a configurar-se como recursos que podem ser
apropriados por diferentes sujeitos históricos, que passam a lhe atribuir significados sociais
distintos.
Deste modo, os Tribunais e posteriormente as Juntas de Conciliação surgem para
resolver conflitos e sanar os desentendimentos oriundos das relações empregatícias nas quais
o elo mais frágil, o trabalhador, não podia ter seus interesses reivindicados. O estudo
realizado através dos processos trabalhistas permite, assim, vislumbrar as complexidades e
dificuldades das negociações entre empregador e empregado. Com isso, as reclamações
evidenciam a desigualdade de força/poder das partes.
Ao pensar-se a classe trabalhadora, parto daquilo que aponta E. P Thompson que não
vê esta como uma estrutura ou mesmo como categoria, para ele a classe acontece quando
“alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e
articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra todos os homens cujos interesses
diferem (e geralmente se opõem) aos seus” (THOMPSON; 1987). Partindo disso é possível
atentar que a classe se constitui por homens e mulheres em suas relações sociais, culturais e,

588
589

portanto adquire existência ao longo do processo histórico que envolve as experiências dos
trabalhadores.
Eleonora da Silva acrescenta nesta linha de raciocínio, que o processo de
identificação não pode ser creditado apenas aos aspectos econômicos, “a velha luta entre
capital e trabalho, entre expropriador e expropriado”, mas envolve as experiências cotidianas
culturais, as ideias, as tradições e os valores das pessoas, de forma que “o fazer-se dos sujeitos
na classe se dá a partir das experiências delas”.
A experiência é “o terreno comum em que os trabalhadores se reconhecem enquanto
classe” (THOMPSON, 1987), esta acima de tudo os define como sujeitos de sua própria
história, portanto não sendo definidos apenas por sua posição econômica que ocupam em uma
estrutura. Essa relação da experiência com a consciência de classes se traduz numa
identificação ou formação de uma classe social. E é a partir desta perspectiva que se buscou
compreender a classe trabalhadora de Itacoatiara, a partir dos processos da JCJ, suas relações
sociais, de seus viveres, de seus modos de vida, de suas experiências em comum que
permitem o surgimento dessa identidade.
Ainda com Thompson, podemos ter uma perspectiva da compreensão das leis
enquanto “campo de conflito”. Ao abordar a Lei Negra inglesa do século XVIII, Thompson
faz uma reflexão sobre o campo jurídico e aponta que a lei é proposta como um mecanismo de
dominação de classe, mas para que esta possa desempenhar sua função, não pode ser apenas
isto. E. P. Thompson coloca o seguinte:

Se a lei é manifestamente parcial e injusta, não vai mascarar nada,


legitimar nada, contribuir em nada para a hegemonia de classe
alguma. A condição prévia essencial para a eficácia da lei, em sua
função ideológica, é a de que mostre uma independência frente a
manipulações flagrantes e pareça justa. Não conseguirá parecê-lo sem
preservar sua lógica e critérios próprios de igualdade; na verdade, às
vezes sendo realmente justa. (THOMPSON; 1997)

A perspectiva de Thompson a respeito da lei abre um espaço para se pensar as


diversas formas para as quais os “dominados” se voltaram para a justiça na busca de
reivindicar seus direitos e imprimindo novos sentidos às elaborações legais. A Justiça do
Trabalho no Brasil toma seus primeiros passos durante o regime do Estado Novo, ela é
instituída como uma forma governamental de controle e manipulação dos trabalhadores.
Os processos aqui trabalhados foram analisados por meio de leituras sequenciadas
que permitiram trazer a tona diversas práticas de violência contra os trabalhadores, sejam elas
físicas ou simbólicas. Há processos que evidenciam as duras condições laborais dos
589
590

trabalhadores, que ficam sujeitos à locais insalubres de trabalho. Pode-se destacar também a
precariedade dos vínculos empregatícios, pois em diversos casos o que ocorre é a contratação
verbal dos trabalhadores, que fazem acordos com seus empregadores e muitas vezes saem
prejudicados pelo não comprimento do mesmo. Este tipo de contratação pode evidenciar o
universo do trabalho informal, que é constante na região.
Destacam-se, dentro destas violências contra o trabalhador, casos em que estes são
coagidos, ameaçados e até agredidos de inúmeras formas por seus empregadores. Em
processo arrolado o vigia Neris Batista Pinheiro416 em sua reclamatória aponta:

(...) Que durante o período de sua vinculação laboral, compreendida de 05.05.84 a


05.12.84, quando ocorreu a rescisão do seu contrato, sem tudo haver dado causa
para a mesma, não lhe foram pagas as verbas indenizatórias, impostas por lei, não
obstante haver procurado por diversas vezes o titular da firma em busca dos seus
direitos.
02.- Que durante o período de sua vinculação laboral, nunca lhe foram pagos
salários mínimos, sempre percebendo a menor, (...)
03.- Que não obstante haver apresentado as Xerox das certidões dos seus quatro
filhos menores, não logrou êxito no que tange a percepção de salário-família,
preconizada na legislação consolidada - Decreto nº 53.153 de 10 de dezembro de
1963, como também sua CTPS não foi anotada, o que sem sombra de dúvidas
acarretará prejuízo no futuro, quando suas forças minguarem e for em busca de
amparo previdenciário para lhe assistir na velhice.
04.- Que da última vez que procurou a reclamada em busca dos seus haveres
indenizatórios, o reclamante foi surpreendido com a maneira brusca com que foi
atendido, inclusive disse a reclamada, dentre outras coisas, que “ PODERIA
PROCURAR SEUS DIREITOS QUE QUERIA VER QUE OBRIGARIA A
PAGAR SEUS DIREITOS, MESMO QUE FOSSE AO MINISTÉRIO OU
JUSTIÇA”. (Fólios 2 e 3)

Outro trabalhador, o tratorista Antônio José de Oliveira dos Santos417, que ao


envolver-se em um acidente de trabalho com um colega de trabalho, foi obrigado a assinar
diversos documentos, sob a ameaça de sua dispensa. Em audiência realizada no dia 22.02.85,
quando interrogado o trabalhador disse o seguinte:
Que foi obrigado a assinar diversos documentos autorizando o desconto semanal de
seu salário, pois foi ameaçado de que não o fizesse não receberia seu pagamento;
que diante das dificuldades que já passa para se manter não lhe restou outra
alternativa se não assinar tais documentos, como forma de preservar o recebimento
de seu salário; que nunca deu qualquer juízo à empresa (...) (Fólio 5)

Os processos acima possibilitam compreender como se dão algumas de suas relações


com seus empregadores, que se recusam a pagar a seus trabalhadores o que lhes é de direito e
que em outros casos os enganam afim de que estes assinem documentos em brancos, ou

416
Processo JCJ – 625/84, nº de arquivamento 5937 - Cx 01/07.
417
Processo JCJI – 045/85, nº de arquivamento 5977 - Cx 02/07.

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documentos que não se sabe sua natureza, sempre em benefícios dos próprios empregadores.
Mas ainda sim, pode-se perceber a forma de resistência dos reclamantes que vão a JCJ
providos de documentos que comprovem suas reclamações, e de testemunhas que são seus
colegas de trabalhos e acabam por estabelecer uma rede de solidariedade mesmo que não
organizados em sindicatos.
A partir do conjunto documental disponível no arquivo do Centro de Memória
(CEMEJ/TRT 11ª REGIÃO), destacam-se processos que podem nos remeter a remanejos de
função, onde os trabalhadores são contratados para exercer uma função em específico, mas
findam por fazer outros serviços que não lhes cabem e também não são pagos por estes. É o
caso do trabalhador Lino Vieira da Costa, sindicalizado pelos Sindicatos dos Oficiais
Marceneiros e Trabalhadores nas Ind. De Serrarias e Móveis e Madeira de Itacoatiara,
afirmando ter sido admitido na empresa para exercer a função de braçal, entretanto, desde sua
admissão, exercia a função de Operador de Máquina, sendo determinado pela reclamada a
prestação de serviço em máquina elétrica utilizada para serrar toros de madeira, para a
transformação em material compensado. O reclamante diz ainda no termo da inicial que a
reclamada não anotou na CTPS a função efetivamente exercida, tampouco efetuava o
pagamento do correspondente salário pela função especializada que o reclamante sempre
exerceu, de forma a ocorrer o descumprimento das obrigações de contrato por parte da
reclamada.
Mais uma vez pode-se perceber práticas das empregadoras de ludibriar seus
trabalhadores no intuito de desvencilhar-se de seus devidos pagamentos, de forma que apenas
ela se beneficie, enquanto o trabalhador sai totalmente lesado.
Até então, a partir dos processos mencionados, é nítida a enorme precarização do
trabalho. Nos anos 1980, a Justiça do trabalho alcançou uma maior abrangência, de forma a
permear um maior número de demandas, tanto individuais como coletivas, mas como destaca
Fernando Teixeira esta abertura da Justiça as crescentes demandas “decorre, sobretudo, da
enorme precarização das condições de trabalho e da deslegitimação da norma jurídica pelos
capitalistas” (TEIXEIRA; 2016), com isso ele quer dizer que os empregadores se utilizam de
meios legais, durante este período de inflação alta, para financiar débitos trabalhistas a juros
mais reduzidos que os praticados por instituições financeiras.
Em muitos processos é nítido que os trabalhadores são submetidos a locais de
trabalhos insalubres e que suas condições de trabalho são precárias, e os mesmo apontam isso

591
592

em suas reclamações, como é o caso do trabalhador Agenor de Lima Xavier418, que pleiteia de
seu empregador saldo de empreitada. No decorrer da audiência, o trabalhador expõe a precária
condição de trabalho em que se encontrava:

Que trabalhou para o reclamado durante três semanas no mês de abril como
operador de moto-serra; que recebia por produção, tendo acordado com o reclamado
o preço de ₢$20.000 por fornada; (...) que alimentação, a gasolina e a corrente eram
compradas diretamente do reclamado; (...) que no total recebeu apenas ₢$130.00, já
descontadas todas as despesas; que assinou um recibo, mas não sabe ler e portanto
não pode precisar o valor desse documento; que deixou o serviço por faltas de
condições para trabalhar (...) (Fólios 5)

Outra situação que ainda pode-se destacar neste processo, é o fato de o reclamado
descontar do reclamante os valores correspondentes à gasolina que era utilizada na moto-serra
e também do rancho que era destinado à alimentação do mesmo:
Que comprava o rancho que necessitava o reclamante, debitando pelo valor das
compras; que além do rancho o reclamado comprava gasolina no posto e óleo e
levava para o reclamante descontando dele o valor correspondente (...) que possue
(sic) outros empregados trabalhando no mesmo setor e nas mesmas condições do
reclamante, morando na sua propriedade. (Fólio 6)

As partes, reclamante e reclamado, não acordam, portanto o processo é sentenciado


pela JCJ. Na sentença o que se destaca é o seguinte:
O salário do empregado é inatingível, não podendo ser tocado pelo empregador.
Como regra geral, não pode sofrer descontos.
Por força do art. 462 da CLT é defeso ao empregador efetuar descontos no salário do
empregado, salvo os previstos em lei, convenções coletivas ou em casos de dano,
observadas as condições do § 1º.
O Art. 458, § 2º da CLT, estampa a proibição para descontar-se do empregado
materiais e acessórios utilizados no local de trabalho e necessário à sua realização.
(...) Conforme ensina Russomano, o “equipamento necessário à prestação do
trabalho corre a conta da empresa, que é quem dirige o serviço e sofre seus riscos”.
(...) Seria, evidentemente, absurdo admitir-se a faculdade de o empregador exigir do
motorista, por exemplo, o combustível para movimentar o seu veículo; à datilógrafa,
os encargos com a energia elétrica para operar a sua máquina; ao enfermeiro, as fitas
de esparadrapo na enfermaria do hospital; ao professor, o giz, e assim por diante.
(Fólio 11)

Portanto, é claro a partir do que foi colocado, mais uma tentativa do empregador de
beneficiar-se através de seu empregado. Podemos evidenciar isso primeiramente, quando o
reclamante afirma ter recebido um recibo, mas este não sabia identificar o que nele continha,
pois não sabia ler. Em seguida, temos o que foi mencionado acima, onde o trabalhador
basicamente tinha que pagar para usar o seu material de trabalho, o que não faz sentido
algum, como bem exemplificar o trecho da sentença.

418
Processo JCJI – 129/85, nº de arquivamento 6061 - Cx 05/07

592
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Itacoatiara é uma cidade, ainda durante a década de 1980, como uma economia
pautada no setor primário, portanto são constantes as reclamações que remetem a serviços de
empreitadas, sejam para o plantio de gêneros alimentícios, ou para a derrubada de hectares. A
influência do capital internacional juntamente com políticas desenvolvimentistas na região
Amazônica atreladas ao Estado na década de 70 podem ser percebidas nos processos da JCJ
através de inúmeras reclamadas que aparecem em constante nestes autos trabalhistas. Fruto
desses incentivos surge à presença massiva das madeireiras. As madeireiras tinham um papel
importante no desenvolvimento da região de Itacoatiara que acabam por emergir uma nova
classe trabalhadora.
Em contrapartida, “as políticas destinadas ao trabalhador agiam em favor dos
empresários, ao garantir compensação salarial, cerceamento das formas de organização
coletiva dos trabalhadores”. Diversas empreiteiras, ao obter acesso ao aparelho do Estado,
visavam apenas à maximização de seus lucros, sem a menor preocupação com o trabalhador
ou a qualidade de seus serviços.
A terceirização dos trabalhadores é outro ponto que pode ser visto em diversos dos
processos arrolados na Junta de Conciliação, são inúmeras as reclamações por ainda se tratar
de uma zona estritamente rural até meados da década de 90, era frequente o uso de
subempreiteiras que prestavam serviços a diversas empresas tanto rurais como de madeiras.
Como mostra o processo em que o reclamante Romualdo Maria dos Santos419 entra
com reclamação contra seu empregador e solicita o pagamento de aviso prévio, 13º salários,
férias proporcionais, anotação de CTPS, saldo de produção, juros e correção monetária. Em
audiência realizada ao 01 de fevereiro de 1984, a reclamada alegou que o reclamante não é
seu empregado, mas sim de uma empresa de Construção S/A, sucedendo a seguinte
manifestação da Junta:
(...) A Junta tem observado em processos de reclamatória das S/A, que várias
empresas tem aparecido periodicamente naquela área, sem que fosse possível até
este momento apurar em processo regular o limite de responsabilidade e de atuação
de cada uma. Entretanto, é inequívoco que esse procedimento resulta em prejuízo
para os empregados que ficam sem saber, na maioria das vezes, para quem
efetivamente estão trabalhando, pois, aparentemente, essas mesmas empresas se
justapõem na execução e serviços de natureza variável. Por isso, com a finalidade de
esclarecer em definitivo a questão para que empresas não venham arcar com
responsabilidade de outra, determino: que sejam notificadas a massa falida e
Fazendas Unidas S/A, através de seu síndico; a massa falida de Capemi S /A; a Agro
Industrial Rio Preto Ltda., a Empresa de Construção Lima Ltda., alem a própria
reclamada neste processo, para integrarem a lide na condição de litisconsortes
passivas, encaminhando-se termo da reclamação a cada uma. (Fólio 7)

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Processo JCJI – 103/84, n° de arquivamento 5439 - Cx. 04/14.

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As diferentes formas de contratação de trabalho geravam complicações na hora de


definir o tipo de atividade que o trabalhador estava exercendo. Deste modo, identificar qual
era o tipo de contrato de trabalho realizado, era uma das primeiras ações movidas dentro do
processo burocrático da Junta de Conciliação. Com isso é possível analisar como se davam a
natureza das relações trabalhistas e suas complexas e difíceis negociações. Patrões e
empregados eram projetados em novo patamar legal de direitos e deveres na medida em que a
Justiça do Trabalho era acionada (TEIXEIRA; 2016).

Conclusão
A pesquisa realizada por meio dos processos da Junta de Conciliação e Julgamento
de Itacoatiara proporcionou uma enorme reflexão a respeito do mundo do trabalho, mais
especificamente, do trabalhador de Itacoatiara. As informações dispostas nos processos
contribuíram também para perceber as experiências cotidianas dos trabalhadores e como elas
contribuem para formação da classe trabalhadora.
A cidade de Itacoatiara, no contexto da década de 1980, por ainda se tratar de uma
região estritamente rural, apresenta uma classe trabalhadora com uma identidade particular.
Muitos se tratam de trabalhadores braçais e rurais, que apresentam suas reclamações quase
sempre contras as mesmas reclamadas, que se fazem presente neste cenário a partir das
políticas desenvolvimentistas na região e com a abertura para o capital estrangeiro, que teve
grande impacto no período ditatorial.
As madeireiras presentes na região estão fortemente atreladas as serviços de
empreitada, que configuram aspectos remetentes a terceirização, que visivelmente já é uma
pratica muito constante na região no período da década de oitenta. Magda Barros Biavaschi,
no livro A Justiça do Trabalho e a sua História estabelece em que contexto a terceirização
aparece e qual a sua função:
Ajuizada no final da década de 1980, quando o Brasil economicamente estagnara
(...) a reclamatória traz à discussão uma nova forma de contratar trabalhadores que
começava a preponderar naquele cenário pesquisado, com força lesiva importante:
um terceiro era introduzido no binômio empregado-empregador, em ajustes
simulados e de pequena duração que buscavam afetar a legislação trabalhista.

A terceirização acaba por fomentar a precarização do trabalho, onde práticas de


desrespeito com o trabalhador, tais como o não pagamento de salários e o calote até mesmo
em direitos trabalhistas e fundamentais são efetivados com o intuito de beneficio e
enriquecimento próprio das empresas e amparados pela legalidade do capital. A terceirização

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implica fortemente na falta de estabilidade do emprego, onde a subcontratação passa a ser


norma incorporada na prática das empresas.
Partindo da leitura sequenciada dos processos, se percebe casos em que há uma
demissão em massas dos trabalhadores, estes se organizam e se solidarizam, ao servir de
testemunhas dos companheiros de trabalho, e levam suas reclamações a Justiça do Trabalho.
Como já apontado, a crescente demanda de reclamações se dá em muitos casos por conta da
excessiva precarização das condições de trabalho.
Podemos então, chegar à reflexão de que ainda na década de 80 há práticas que
remontam uma escravidão “moderna ou contemporânea”, na qual a servidão por contrato, a
terceirização, o trabalho autônomo, doméstico, infantil e de subsistência seriam formas
residuais de exploração do trabalhador.
Trabalhadores a mercê de seus empregadores de forma análoga a escravidão foi
pauta de discussão dentro de um âmbito da história da Justiça do trabalho desde a chamada
“Revolução de 1930” que, como comenta Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da
Silva, trouxe mudanças políticas, econômicas e sociais no Brasil com a criação dos
ministérios de “Educação e Saúde e o do Trabalho, Indústria e Comércio”. Com eles fica
demarcado a presença do Estado nos “assuntos de interesse social” e a montagem do aparato
para fiscalizar esses setores que até então atendiam apenas aos interesses de uma pequena
oligarquia (GOMES e SILVA; 2013).
As fontes da Junta de Conciliação e Julgamento de Itacoatiara permitem que o
pesquisador recupere o papel histórico das lutas desses diversos atores sociais, a dinâmica
desses conflitos, o contexto socioeconômico, o papel do Judiciário na construção de diversos
vieses das normas de proteção ao trabalho, além das diversidades regionais e as distintas
compreensões do Direito, evidenciando como as decisões dialogam com a materialidade das
relações socais (BIAVASCHI; 2013).
Portanto, o trabalho buscou dimensionar as relações de vida material e simbólica,
além de: práticas e tradições, crenças e valores, instituições. Trouxe a chance de refletir um
pouco sobre como se reproduz a pobreza, a exclusão, a informalidade, a terceirização, e a
precariedade dos vínculos, assim como, as distâncias e aproximações com os antigos modos
de produção, distribuição e consumo.

Referências
BIAVASCHI, Magda Barros. Justiça do Trabalho e Terceirização: um estudo com processos
judiciais. In: SILVA, Fernando Teixeira da; GOMES, Angela de Castro. (Org.). A Justiça do
Trabalho e sua História. 1ed.Campinas: UNICAMP, 2013, v. 1, p. 447-480.

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CHALHOUB, Sidney e SILVA, Fernando Teixeira da. Sujeitos no imaginário acadêmico:


escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. In: Cadernos Ael,
v.14, n.26, Campinas: Unicamp (IFCH/AEL), 2009, pp.15-44.
GOMES, Ângela de Castro e SILVA, Fernando Teixeira da (org.) A Justiça do Trabalho e sua
história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas: Editora Unicamp, 2013.
PAOLI, Maria Célia; SADER, Eder; TELLES, Vera da Silva. “Pensando a classe operária: os
trabalhadores sujeitos ao imaginário acadêmico”. In: RBH, São Paulo, vol.3, n.6, set, 1983.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à
Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
SADER, Eder. Quando Novos personagens entram em cena: experiências e lutas dos
trabalhadores da grande São Paulo, 1970- 1980. São Paulo: Paz e Terra, 1988.
SILVA, Eleonora Félix. E.P. Thompson e as contribuições para a História Social e os estudos
sobre a escravidão. 2008. (Apresentação de Trabalho/Comunicação).
SILVA, Fernando Teixeira da. Trabalhadores no Tribunal: Conflitos e Justiça do Trabalho em
São Paulo no Contexto do Golpe de 1964. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2016. v. 1. 307p.
TOMELIN JR., Nelson e PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. História e Justiça em
Processos Trabalhistas: Cultura de resistência de trabalhadores na Amazônia brasileira. In:
Projeto História, São Paulo, v. 58, pp. 298-326, Jan.-Mar. 2017
THOMPSON, Edward P. A Formação da Classe Operária Inglesa: A Árvore da Liberdade.
Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987. 210 p.
THOMPSON, Edward. P. Senhores & caçadores. A origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1997 (2a edição).

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OS TRABALHADORES E O GOLPE CIVIL-MILITAR NO AMAZONAS


(1961-1964)

THAIENY GAMA BARATA*

O golpe civil-militar no Brasil foi acompanhado de uma intensa repressão aos sindicatos
e suas principais lideranças.
No contexto de grande efervescência sindical e de grande agitação dos trabalhadores
que, em 1962, é criado o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). O CGT é criado a partir
de três Confederações: a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), a
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Marítimos, Fluviais e Aéreos
(CNTTMFA) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito
(Contec).
Sua fundação ocorre após um momento político e econômico conturbado, marcado pela
renúncia do presidente Jânio Quadros e pela posse – que só ocorreu em virtude da
mobilização que impediu a realização de um golpe já naquele momento – de seu vice, João
Goulart. É importante ressaltar o papel desempenhado pelos trabalhadores na mobilização que
garantiu a posse de Jango: com a renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, e a
ausência de João Goulart – que estava em visita diplomática à China-, o Congresso Nacional
empossa o presidente da Câmara, Ranieri Mazzili. Três dias depois, os militares encaminham
ao Congresso um documento vetando a posse de João Goulart, o que levou a uma intensa
mobilização das forças progressistas e à deflagração de uma greve conclamada pelo
movimento sindical a fim de garantir a posse de Jango.
O CGT será a principal liderança nas lutas dos trabalhadores brasileiros. A luta pela
reformas de base, luta pelo plebiscito que colocasse fim ao regime parlamentarista e a
resistência do CGT à ameaça de decretação do estado de sítio no mês de outubro de 1963.
Com a deflagração do golpe civil-militar, a maioria dos dirigentes do CGT é presa de
imediato. Durante o mês de abril, sindicatos, federações e confederações vinculados ao CGT
sofreram intervenção: cerca de 350 sindicatos, 22 federações e as seis confederações de
trabalhadores tiveram nesse período suas diretorias destituídas, sendo que muitos dos antigos
dirigentes sindicais foram presos, outros se exilaram e houve mesmo os que desapareceram
sem deixar vestígio. Entender como esse processo se desenvolveu no estado do Amazonas é o
objetivo central desse trabalho.
Objetivo geral: Compreender a atuação dos trabalhadores amazonenses e de suas
associações durante os momentos que antecederam a eclosão do golpe civil-militar de 1964.

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Objetivos específicos:
 Analisar o contexto político amazonense nos anos que antecederam o golpe;
 Compreender a organização sindical brasileira e, mais especificamente, a organização
sindical do Amazonas entre 1945 e 1964;
 Identificar os principais sindicatos, Federações e associações de trabalhadores no estado do
Amazonas e suas principais lideranças;
 Analisar a atuação dos sindicatos do estado nos momentos que antecederam o golpe;
 Discutir os impactos do golpe civil-militar de 1964 sobre a estrutura sindical do Amazonas.

1º momento: leitura bibliográfica


Na perspectiva de compreender o período que antecedeu o golpe civil-militar, algumas
leituras bibliográficas foram realizadas. Cada leitura contribuiu para o entendimento do
contexto político nacional e regional.
A obra de Fausto Boris, História do Brasil (1995), foi indicada para facilitar a
compreensão, de uma forma geral, sobre a história do Brasil desde a chegada dos portugueses
até os anos de 1980. Boris explora os aspectos econômicos, políticos e sociais, destacando
suas relações. Sua abordagem cronológica não nos prende aos anos estabelecidos em seus
capítulos, mas aos acontecimentos que se concentravam na classe dominante do poder do
país, assim como, o desdobramento das decisões dessas classes nas regiões do Brasil. O
capítulo sete é o mais intensificado na leitura porque destaca o governo de Getulio Vargas, a
partir da revolução de 1930 que desencadeia em uma ditadura getulista, e, posteriormente o
retorno do regime democrático e, por fim, o golpe civil-militar. Dessa forma, Boris, conta a
história do Brasil e contribui para a compreensão inicial da trajetória dos anos de chegada ao
Brasil até os anos de redemocratização.
Em História do Brasil Contemporâneo – da morte de Vargas aos dias atuais (2015),
Carlos Fico apresenta de forma analítica os acontecimentos do período do suicídio de Getúlio
Vargas até o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa leitura contribuiu para a
compreensão do processo político que o Brasil se constituiu a partir da apresentação de fontes
de jornais, poemas e letras de músicas que no período reforçavam a narrativa da história.
Além disso, Carlos Fico expõe uma visão panorâmica da economia, das relações sociais e da
política do país, destacando os personagens protagonistas e coadjuvantes da narrativa. O
capítulo de maior significância para a pesquisa foi o “Desenvolvimento e retrocesso” que
narra o período após o suicídio de Vargas até o governo de Castelo Branco e seus desafios em
controlar os militares mais radicais. Por fim, Carlos Fico afirma que a neutralidade para o

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historiador que fala de seu próprio destino deve ser abandonada e transformada em energias
para movimentar nossos anseios e sonhos, destacando a História do Tempo Presente como
desafio diante das memórias em disputas.
Na dinâmica da leitura sobre o contexto nacional o artigo ‘O Governo João Goulart e o
golpe de 1964: memória, história e historiografia’, de Jorge Ferreira (2003), apresenta uma
análise sobre as diversas interpretações e historiografias do governo de João Goulart, do seu
descontentamento em 1960 e do golpe civil-militar de 1964. Essa leitura não incorpora a
narrativa da história do Brasil nesse período, mas debate a memória e o esquecimento e os
desdobramentos dessa relação para o historiador. Além disso, Jorge Ferreira impulsiona para
a discussão da temporalidade da historiografia desse período na academia. Dessa forma, a
leitura contribui para a pesquisa porque nos apresenta a estrutura no qual foi narrada esse
período da história no Brasil.
Para compreender o contexto regional, primeiramente houve a leitura da obra ‘História
do Amazonas’ de Aguinaldo Figueiredo (2011). Essa leitura abordou de forma geral a história
do Amazonas desde o período pré-colonial até o Amazonas Republicano. Conforme a leitura
foi sendo realizada, paralelamente, as relações com o contexto nacional foram se constituindo
e se percebendo o encontro dessas narrativas. O capítulo com mais significância para a
pesquisa foi o Amazonas Republicando destacando o Amazonas no pós-30 e os governadores
populistas. Com isso, podem-se perceber as alianças partidárias a nível nacional que se
seguiam para a região, mas que não estavam isentos de descontentamentos e desconfortos
políticos. Essa percepção contribuiu para compreendermos os desmontes das alianças e o
processo que o Estado se encaminhou, bem como, o retorno de antigos atores políticos do
período do Estado Novo para o Estado de regime democrático.
Seguindo na dinâmica da leitura sobre o contexto regional, o artigo ‘O trabalhismo de
Plínio Ramos Coelho e o Golpe de 1964 no Amazonas’, de César Augusto Bubolz Queirós
(2014) apresenta a trajetória do político Plínio Ramos Coelho. Além disso, destaca as relações
políticas que favoreceram sua carreira política desde ao cargo de deputado estadual até a
governança do Estado do Amazonas, bem como sua decomposição do cargo devido ao golpe
civil-militar de 1964. A leitura contribuiu para a pesquisa devido à compreensão do processo
político desse período e as relações das disputas políticas pelo poder no estado, assim como, a
opção de Plínio Ramos pelo desenvolvimento industrial.
Na tese ‘Ressonâncias da Política na Literatura Amazonense’ de Paula Mirana de Sousa
Ramos (2016) encontramos uma análise sobre as obras e discursos do político Álvaro Maia
que representou o Estado do Amazonas como intervencionista no Estado Novo e tornou-se

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governador do Estado no retorno do regime democrático. A partir disso, a leitura contribuiu


para compreender o processo da liderança intelectual e política Álvaro Maia, destacando sua
relação com Getúlio Vargas e a implementação das decisões do seu partido a nível nacional
no estado.
Enfim, essas leituras foram primordiais para compreender de forma geral e específica o
contexto do período que antecederam o golpe civil-militar de 1964, no âmbito da política,
economia e social do Brasil e do Estado do Amazonas.

2º momento: Resultados da pesquisa: cenário político amazonense – 1947 a 1960


O ponto de partida para apresentar o cenário político amazonense no período de 1947 a
1960 será a partir da transição do Estado Novo para o reestabelecimento do estado
democrático. O fim do Estado Novo se dá após a queda do presidente Getúlio Vargas em
1945. De acordo com Boris (1995), o calendário das novas eleições estava previsto para 02 de
dezembro e o candidato, general Eurico Gaspar Dutra (PSD – Partido Social Democrata),
recebeu apoio de Getúlio Vargas. Surpreendendo a oposição (UDN – União Democrática
Nacional), o general Dutra se elege a presidência da república assumindo em janeiro de 1946.
Nesse período, a Assembleia Constituinte também foi convocada. “As eleições
legislativas foram realizadas para a Câmara e o Senado. As duas casas se reuniram
conjuntamente como Congresso Constituinte até ser aprovada uma Constituição.” (BORIS,
1995, p. 399)
Além da aprovação da Constituição Brasileira de 1946, o Brasil se definia como uma
República federativa, dividindo-se em União, Estado e Municípios. Foram atribuídas funções
para os três poderes: Judiciário, Legislativo e Executivo. (BORIS, 1995, p. 400)
Para representar o Estado do Amazonas na Assembleia Constituinte, de acordo com
Figueiredo (2011), o PSD liderado por Álvaro Maia, representante regional no Estado Novo,
elegeram Waldemar Pedrosa para o Senado e mais três deputados federais, enquanto que a
coligação UDN e PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) elegeram dois deputados federais.
O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (2009)
afirma os nomes dos eleitos para a Assembleia Nacional Constituinte de 1946: os senadores
foram Álvaro Maia e Valdemar Pedrosa (PSD); os deputados federais: Leopoldo Peres,
Pereira da Silva e Cosme Ferreira pelo PSD; Severiano Nunes pela UDN e Leopoldo Neves
pelo PTB. (CPDOC | FGV, 2009)

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Segundo Ramos (2016), Álvaro Maia foi orientado pelo governo federal para organizar
o PSD na região e dar apoio a Getúlio Vargas no processo de transição do Estado Novo para o
estado democrático. Álvaro Maia torna-se um dos fundadores do PSD no Amazonas.
Após a saída de Álvaro Maia, como interventor federal do Estado do Amazonas,
Figueiredo (2011) informa que Stanislaw Afonso, desembargador, assumiu interinamente o
governo do estado. As eleições para a Assembleia Estadual, para a terceira vaga do Senado e
para as eleições suplementares para governador, ocorreriam em janeiro de 1947.
O primeiro governador eleito do Amazonas após o retorno do período democrático foi o
Leopoldo Amorim da Silva Neves em 1947. Segundo Queiros (2014), Leopoldo Neves
“elegeu-se por uma aliança esdrúxula entre o seu partido (o PTB) e a UDN (União
Democrática Nacional).” Para a vaga de Senado, foi eleito o Manuel Severiano Nunes. Essa
aliança partidária se constituiu com o objetivo de quebrar a presença de Álvaro Maia que
anteriormente dominou o cenário político no Amazonas.
Leopoldo Neves demorou assumir o majoritário porque os seus adversários políticos
contestaram sua vitória, por isso, nos meses de fevereiro a maio, João Nogueira da Mata
governou o Estado do Amazonas. Também não encerrou seu mandato devido sua saída para
concorrer a vaga de Senador. (QUEIROS, 2014)
A aliança ocorrida entre PTB e UDN para a eleição de Leopoldo Neves se desfaz por
conta de descontentamentos dos membros do próprio PTB ao governo do estado, resultando
de forma negativa para a ascensão dos petebistas na política amazonense. Esse rompimento
procederá ao retorno de Álvaro Maia a governança. (FIGUEIREDO, 2011)
Nas eleições seguintes a governador do Estado do Amazonas em 1950, o PSD e o PDC
(Partido Democrata Cristão) formaram uma aliança denominada como Frente Libertadora.
(QUEIROS, 2014).
Ramos (2016) afirma que Álvaro Maia utilizou o slogan “o libertador” de acordo com a
aliança Frente Libertadora, com o intuito de propagar que sua saída do governo do estado
acarretou em grandes problemas que avançavam pelos anos sem soluções plausíveis. Por isso,
o slogan traduziria a necessidade de seu retorno ao poder:

Seu carisma surgia principalmente em momento atípicos da vida social amazonense,


em momento de crise; a força de seu carisma estava ligada a setores que viam nele
os traços de uma liderança salvadora, portador de uma poder mágico. Seu retorno ao
governo do estado revela a força desse poder sobre o grupo. (RAMOS, 2016, p. 216)

Nas eleições de 1950 Getúlio Vargas foi eleito à Presidência da República. Boris (1995)
destaca que sua eleição foi baseada em estratégias com viagens aos estados na perspectiva de

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“garantir a lealdade dos chefes da máquina política montada pelo PSD no campo e ao mesmo
tempo construir uma base sólida”. (BORIS, 1995, p. 404)
Ramos (2016), afirma que o retorno de Getúlio Vargas e de Álvaro Maia, agora por
meio do regime democrático, se dá devido à ausência de alternativas ao projeto da nação que
não se constituíram nesse processo político. Dessa forma, a sucessão presidencial torna-se
uma continuidade do sistema anterior e a pressão da opinião pública foi primordial para o
retorno de Maia.
Nas eleições de 1954, Plínio Ramos Coelho torna-se governador do Estado do
Amazonas pelo PTB. Nesse período, há grandes mudanças destacadas por Figueiredo (2011)
como melhoria no método de arrecadação fiscal, reorganização da economia extrativista, nova
tributação para o comércio, criação do Banco do Estado do Amazonas, melhoria na
urbanização da cidade de Manaus com abertura da estrada intermunicipal de Manaus e
Itacoatiara e outros: “investimento em áreas sociais, como a construção de conjuntos
habitacionais, hospitais e maternidades, escolas primárias e secundárias, delegacias de polícia,
postos de saúde e assistência a indígenas e imigrantes.” (FIGUEIREDO, 2011, p. 143)
De acordo com Queiros (2014), a eleição de Plínio Ramos Coelho representou uma
ruptura com o poder que se consolidara no estado do Amazonas. Com isso, havia um
desconforto das elites locais com o novo governador, pois sua proximidade com o meio
sindical ameaçava as elites no poder. “Coelho iniciara a implantação de um programa
nacionalista, estatista e popular em cuja administração as lideranças sindicais eram chamadas
a participar ativamente”. (QUEIROS, 2014, p. 53)
O sucessor de Plínio Ramos Coelho em 1958, indicado pelo PTB, foi o Gilberto
Mestrinho, apesar do acordo político entre o Plínio Coelho e o senador Vivaldo Lima. Queiros
(2014) destaca que devido ao enfraquecimento da influência de Plínio sobre os trabalhistas,
esse acordo foi dissolvido. Figueiredo (2011) afirma que Gilberto Mestrinho não se mostrou
versátil quanto seu antecessor e suas ações voltavam-se para a época de eleição, “bem como
proceder a distribuição de brinquedos para crianças em época de Natal, limitar a ação de
jornais de oposição ao seu governo, apoiar concursos de miss e trazer artistas do circuito do
rádio, para distrair o povo.” (FIGUEIREDO, 2011, p. 144)
Porém, Queiros (2014) destaca que o governo de Gilberto Mestrinho afirma o
trabalhismo tão quanto o governo de Plínio Ramos: “a consolidação do trabalhismo no
Amazonas se intensifica com o fortalecimento das relações do governo com as lideranças
sindicais locais, principalmente os estivadores.” (QUEIROS, 2014, p. 57)

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Mesmo assim, nas eleições de 1962, Plínio Ramos Coelho retorna a governança do
estado apoiado pelo PSD e UDN. Na proposta de apresentar o contexto político regional,
percebemos a alternância de poder de um grupo político e o retorno de outras figuras políticas
do período do Estado Novo.

Organização sindical brasileira e amazonense

A Organização Sindical Nacional no Brasil que reuniu diversos sindicatos brasileiros se


organizou a partir de lutas e conquistas dos sindicalistas ligados ao PCB (Partido Comunista
do Brasil) e ao PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Essa organização denominou-se como
CGT (Central Geral dos Trabalhadores) e foi responsável por centralizar as decisões para as
greves trabalhistas no período que antecedeu o golpe civil-militar. Sua fundação enquanto
organização nacional aconteceu em 1962:

O Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), a grande central sindical, foi o


resultado de várias lutas e conquistas de sindicalistas do PTB e do PCB. Essa central
sindical, fundada em agosto de 1962, tinha sua direção partilhada por sindicalistas
dos dois partidos. O CGT aglutinou sindicatos, federações, confederações e
intersindicais, centralizando as decisões a serem tomadas. Seu programa defendia
políticas nacionalistas, estatistas e reformistas, a exemplo das reformas de base, da
presença do Estado na economia, da defesa das empresas públicas, da estatização de
empresas estrangeiras em setores estratégicos da economia, do controle do capital
estrangeiro e da remessa de lucros, por exemplo. (FERREIRA; GOMES, 2014. p.
53)

No Amazonas, os trabalhadores também se organizam em sindicatos de acordo com as


categorias de trabalho. Mantinham relações com as lideranças a nível nacional que
normalmente recebiam a visita do presidente ou de algum membro da presidência sindical.

Visualizamos essa relação no Jornal do Comércio que destaca a presença do Dr. Dante
Pelarcani da Federação Nacional dos Gráficos, em uma Conferência na Casa do Trabalhador,
com os associados do Sindicado dos Trabalhadores das Indústrias Gráficas de Manaus, com o
objetivo de debater os problemas dos interesses sindicais. A partir desse destaque,
observamos a relação que os sindicatos amazonenses estabeleciam com os sindicatos
nacionais. (Jornal do Comércio, 29 de outubro de 1959)

A Casa do Trabalhador do Amazonas que se localizava na Rua Marcílio Dias, Centro de


Manaus, era um espaço que os sindicatos se encontravam para suas reuniões e deliberações.

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Além disso, o Jornal do Comércio traz a informação sobre as delegações locais dos
sindicatos que participariam das Assembleias Nacionais Sindicais. (Jornal do Comércio, 15 de
novembro de 1959)

Ferreira; Gomes, 2014 destacam que desde o governo de Juscelino Kubitschek (JK)
ocorreu um processo de organização nas das lutas dos trabalhadores do campo na década de
1960. João Goulart teve que enfrentar mais esse desafio em seu governo. Alguns estados são
apontados quanto à organização dos camponeses em associações:

Se não bastassem os desafios do parlamentarismo e da gravidade da crise


econômica, Goulart ainda teve que enfrentar uma questão política muito sensível: o
aumento das lutas no campo. Em processo de organização desde o governo JK, os
trabalhadores rurais iriam se tornar atores políticos de grande relevância no início da
década de 1960. Seu associativismo crescera e eles realizavam invasões de terras em
vários estados: Maranhão, Paraíba, Goiás, Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do
Sul. Em novembro de 1961, em Belo Horizonte, ocorreu o I Congresso Nacional de
Lavradores e Trabalhadores do Campo. Com seiscentos delegados vindos de todo o
país, estiveram também presentes representantes da classe operária, dos estudantes,
intelectuais e políticos, entre os quais o governador de Minas Gerais, Magalhães
Pinto (UDN) e o próprio presidente da República, como convidado especial.
(FERREIRA; GOMES, 2014, p. 62)

As manchetes do Jornal do Comercio em 1960 destacavam as convocações para as


assembleias dos sindicatos com intuito de eleger novas diretorias. Como por exemplo, o
Sindicato dos Despachantes no Estado do Amazonas. (Jornal do Comercio, 14 de janeiro de
1960, p. 03)

Além disso, os sindicatos convocavam seus sindicalistas para o pagamento do imposto


sindical, como o Sindicato da Industria de Cerveja e Bebidas em Geral de Manaus e o
Sindicato do Comercio Varejista no Estado do Amazonas. (Jornal do Comercio, 02 e 03 de
janeiro de 1960)

Em 1960 algumas denuncias a Sindicatos foram registradas nas manchetes do Jornal do


Comercio, como o Sindicato dos Vigias do Porto de Manaus sobre o vazamento dos canos de
esgoto da embarcação “Mauá” que transportava trigo. (Jornal do Comercio, 17 de fevereiro de
1960). As greves que aconteciam em sindicatos de outros estados brasileiros foram destacadas
no Jornal do Comercio na coluna “Noticiário dos Estados”.

No final do ano de 1960, o Amazonas aderiu ao movimento paredista do Sindicato dos


Aeroviários. O Sr. Márcio Correa de Albuquerque, delegado do Sindicato Nacional dos
Aeroviários, foi o incentivador e convenceu seus pares amazonenses a adesão da greve. A
pauta reivindicatória era o aumento salarial. (Jornal do Comercio, 15 de dezembro de 1960)
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Em 1961 as noticias sobre os sindicatos também eram voltadas sobre o pagamento de


imposto sindical e as convocações para as assembleias eletivas de novas diretorias. Há uma
publicação convocatória do Diretório dos Estudantes da Escola Técnica de Comércio Solon
de Lucena para uma manifestação em repúdio ao Sindicato dos Condutores Autônomos de
Rodoviários de Manaus que propusera o aumento de 100% na tarifa do transporte coletivo. A
liderança do diretório, Joaquim dos Santos, articulou com os estudantes secundaristas o ato.
(Jornal do Comercio, 13 de janeiro de 1961)

As Classes Operárias movimentavam-se em 1961 para apoiar a Companhia de


Eletricidade de Manaus (CEM) que buscava junto ao Presidente Jânio Quadros liberar as
dotações restantes da companhia. Essa articulação também foi noticiada pelo Jornal do
Comercio. (Jornal do Comercio, 12 de fevereiro de 1961)

O Sindicato dos Estivadores convocou seus sindicalistas para uma Assembleia Geral
Extraordinária cuja pauta seria a discussão sobre a viagem do presidente do sindicato ao Rio
de Janeiro para o encontro da Federação Nacional dos Estivadores. Nesta assembleia os
associados discutiriam sobre os reajustes salariais e os direitos da Previdência Social. (Jornal
do Comercio, 14 de janeiro de 1961)

Essa convocação no Jornal do Comercio aponta as articulações e presença dos


representantes sindicalistas amazonenses nos encontros nacionais dos Sindicatos. O que
reforça que os sindicatos participavam das deliberações nacionais. (Jornal do Comercio, 14 de
janeiro de 1961)

Sindicatos identificados no Jornal do Comércio e suas respectivas lideranças

Data de Publicação
Sindicato Lideranças
Jornal do Comercio
Sindicato dos Trabalhadores das
Aviz do Amaral Valente 27/09/1959, p. 02
Industrias Gráficas de Manaus
Companhia Nacional das Borrachas Cosme Ferreira Filho 30/09/1959
Armando dos Santos
Sindicato dos Empregados Bancários 1959
Teixeira
Sindicato dos Operários Metalúrgicos David Macdonald 18/10/1959
João Pinto Monteiro
29/10/1959
Sindicato dos Empregados no Neto
Comercio de Manaus Deputado Junot Carlos
13/01/1959, p. 04
Frederico
Sindicato dos Representantes
Danilo Mattos Areosa 29/11/1959
Comerciais de Manaus
Sindicato dos Jornalistas Profissionais Deputado Arlindo Porto 05/12/1959

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Milton de Magalhães
Cordeiro – 1º secretário
Sindicato das Industrias de Extração Francisco das Chagas
15/01/1960
da Borracha Leopoldo
Francisco Balbino da
Sindicato dos Oficiais Marítimos 24/12/1959
Silva
Sindicato da Industria de Cerveja e
Dr. Dioclecio Correia 02/01/1960, p. 03
Bebidas em Geral de Manaus
Sindicato do Comercio Varejista no
Miguel Jorge 03/01/1960, p. 02
Estado do Amazonas
Sindicato do Comercio Atacadista no
Felipe Abrahim 05/01/1960, p. 03
Estado do Amazonas
Sindicato dos Despachantes no Estado
Arnobio Peixoto Valente 14/01/1960, p. 03
do Amazonas
Sindicato dos Empregados no
Francisco Washington 31/01/1960
Comercio Hoteleiro de Manaus
Associação Profissional dos
Operadores e Empregados em
Carlos Amorim Pereira 22/02/1960
Empresas Exibidoras
Cinematográficas de Manaus
Sindicato das Empresas de Navegação Pablo Severino de
24/03/1960, p. 06
Fluvial no Estado do Amazonas Rezende Machado
Sindicato dos Estivadores de Manaus Antogildo Pascoal Viana Março 1960
Sindicato dos Trabalhadores nos Manoel Amâncio de
08/04/1960
Serviços Portuários de Manaus Oliveira
Associação dos Agrônomos e Dr. Antonio de Castro
12/04/1960, p. 05
Veterinários do Amazonas Carneiro
Sindicato do Comercio Atacadista de Antonio Jorge da Silva
24/06/1960, p. 04
Louças, Tintas e Ferragens de Manaus Junior
Sindicato da Industria de Serrarias,
Carpintarias e Tanoarias no Estado do José Mathias Nov/1960
Amazonas
Sindicato dos Condutores Autônomos Antonio Loureiro
25/12/1960
de Rodoviários de Manaus Marques
Manoel Amancio de
Sindicato dos Portuários 19/01/1961
Oliveira
Sindicato dos Trabalhadores em Manoel Rodrigues da
1961
Construção Civil Silva
Sindicato dos Bancários Napoleão Lacerda 02/01/1964
Sindicato dos Contabilistas do Estado Orlando de Lemos
02/03/1961
do Amazonas Falcone
Sindicato dos Panificadores Antonio Simões 16/03/1961

Referências
BARBOSA, Marialva. Como escrever uma história da imprensa?. Comunicação apresentada
no II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho. Florianópolis, abril de 2004.
BORIS, Fausto. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
Fundação de Desenvolvimento da Educação, 1995.

606
607

FICO, Carlos. História do Brasil Contemporâneo – da morte de Vargas aos dias atuais. São
Paulo: Contexto, 2015.
FERREIRA, Jorge. O Governo Goulart e o Golpe civil-militar de 64. In: FERREIRA, Jorge e
DELGADO, Lucília (Org.). O Brasil Republicano: o tempo da experiência democrática. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela. 1964, o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao
regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2014.
FIGUEIREDO, Aguinaldo. História do Amazonas. Editora Valer, 2011.
QUEIROS, Cesar. O Trabalhismo de Plínio Ramos Coelho e o Golpe de 1964 no Amazonas.
Revista Mundos do Trabalho, volume 8, numero 15, 2016, p. 49 a 65.
RAMOS, Paula. Ressonâncias da Política na Literatura Amazonense. Tese (Doutorado em
Sociedade e Cultura na Amazônia) Universidade Federal do Amazonas, 2016.

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EDUCAÇÃO HISTÓRICA E O PENSAMENTO HISTÓRICO DE JOVENS:


CONCEPÇÕES DE ALUNOS DO 9O ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL DA REDE
MUNICIPAL DE MANAUS/AM
THALIA ABREU DE CARVALHO*

Introdução
Observa-se que mudanças substanciais na educação brasileira vem ocorrendo desde a
segunda metade dos anos de 1990. Podemos apontar toda uma legislação420 que possibilitou e
fomentou uma nova dinamicidade para a educação brasileira de forma geral, e para o ensino
de História, de forma específica. Dentre elas, a implementação dos Parâmetros Curriculares
Nacionais em 1997, que incorporou discussões recentes da historiografia e propôs avanços
singulares no ensino da disciplina.

A proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais para a disciplina de História no


ensino fundamental apresenta reflexões amplas para estimular o debate da área. Objetiva levar
os educadores a refletirem sobre a presença da História no currículo e a debaterem a
contribuição do estudo da História na formação dos estudantes (PCN’S 1998).421

Os parâmetros enumeram objetivos no propósito de orientar os professores em como


desenvolverem o ensino de história, de forma que os alunos sejam capazes de:

“compreender a cidadania como participação social e política, assim como exercício


de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de
solidariedade, cooperação e repúdio ás injustiças, respeitando o outro e exigindo
para si o mesmo respeito; posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva
nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos
e de tomar decisões coletivas; conhecer características fundamentais do Brasil nas
dimensões sociais, materiais e culturais como meio para construir progressivamente
a noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência ao país; [...]
questionar a realidade formulando-se problemas e tratando de resolvê-los, utilizando
para isso o pensamento lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade de análise
crítica, selecionando procedimentos e verificando sua adequação; ’’(PCN’S 1998)422

* Graduanda em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Amazonas. Bolsista Cnpq pela
Programa de Bolsas de Iniciação Científica.
420 Desde a promulgação da Constituição de 1988, novas demandas tem se colocado para se repensar a
educação no Brasil. Ver Lei de Diretrizes e Bases de 1996/PCN’s onde consta as mudança relativas as leis
10.639 e 11.645, ou acessar http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm,
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm
421Parâmetros curriculares nacionais : história /Secretaria de Educação Fundamental. - Brasília : MEC / SEF,
1998, pag.15

422Ibidem pag. 7-8.

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De forma geral, percebe-se que esses parâmetros visam a construção do conhecimento


histórico do aluno e a percepção de si como agente histórico numa relação com a sociedade. A
construção do conhecimento histórico consistiria no aprendizado de determinados elementos
que possibilitariam perceber as relações existentes na comunidade social.

Diante de tais propostas é necessário fazermos alguns questionamentos na relação


teoria-prática. Quais aproximações e quais distanciamentos podemos observar nas noções de
temporalidade, identidade, consciência histórica, do aluno? Essas são questões que
procuramos desvelar através da pesquisa. Para sua realização buscamos estabelecer reflexões
a partir das perspectivas e entendimentos de alunos do 9o ano da Escola Municipal Agenor
Ferreira Lima, localizada na cidade de Manaus, bairro Zumbi. E na Escola Municipal
Carolina Perolina Almeida, no bairro São José.

A opção pelos alunos do 9o. ano se dá pelo fato de compreendermos que a referida
série encerra a última etapa do ensino fundamental e portanto, os objetivos propostos pelos
PCN’s para o ensino de História devem ou deveriam estar plenamente consolidados neste
momento.

A escolha das escola se deu ao fato de estas também terem sido espaços onde se
desenvolveu o subprojeto de História do Programa de Iniciação a Docência (Pibid), do qual
participei como voluntária, oportunizando a experiência docente e uma relação mais próxima
dos alunos.

A constituição da consciência histórica e da literacia histórica

Os conceitos de consciência histórica e literacia histórica tem subsidiado de forma


fundamental os estudos no campo de ensino de História.

Luis Fernando Cerri423 nos aponta que o passado e o futuro participam ativamente do
presente de nossas sociedades por meio do que denominamos “consciência histórica”, essa
noção tem se constituído elemento-chave para a construção do conhecimento histórico do
aluno que a princípio ainda está avulso e/ou deslocado em sua percepção sobre as funções
sociais que a história tem em sua vida de forma indireta e direta.

423CERRI, Luis Fernando. Ensino de história e consciência histórica: implicações didáticas de uma discussão
contemporânea. Rio de janeiro: Editora FGV. 2011

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Entendemos que investigar e compreender as concepções que os alunos/adolescentes


tem a respeito da História seja de fundamental importância, pois nos permite refletir acerca
de como tem se constituído a consciência histórica, percebendo como os alunos compreendem
estas ideias construídas e trabalhadas e como, a partir delas, passam a se perceber enquanto
sujeitos históricos.

Para Jorn Rüsen, ideólogo do conceito: “A consciência histórica é a realidade a partir


da qual se pode entender o que a história é, como ciência e por que ela é necessária” (RÜSEN,
2001: 56) e a análise da consciência histórica como fenômeno do mundo vital, ou seja, como
forma da consciência humana que está vinculada a vida prática.

A consciência histórica, portanto, revela a interpretação que homens, mulheres e


crianças trazem de suas experiências temporal do seu mundo de si mesmos. (RÜSEN,2001:
57)

Refletir sobre a conscientização história é indispensável ao processo de ensino e


aprendizagem. A formação dessa consciência não depende somente do saber escolar pois tem
influência nos meios de comunicação e em todos os espaços de sociabilidade que o aluno faz
parte: família, igreja, lugares de lazer que frequenta etc. Dessa forma os alunos, ao entrarem
na escola, já possuem uma consciência histórica formada, sob influência de suas experiências
pessoais. No entanto, o saber escolar possibilita meios para a ampliação dessa consciência.

A “literacia histórica”, conceito elaborado por Peter Lee, está vinculada às habilidades
para movimentar conceitos sobre História, para interpretação de dada realidade. Mais do que
isso – uma competência de leitura e compreensão lingüística – a “literacia histórica” está
intimamente ligada à Educação Histórica, como indispensável para que ocorra o
desenvolvimento da Consciência Histórica. (BARCA, 2006; SCHIMIDT, 2009)

Peter Lee utiliza o termo “literacy”, como “alfabetização”, a palavra “literacia” vem
sendo utilizada mais especificamente pelos pesquisadores ligados ao campo da Educação
Histórica. Neste sentido, como explicitado pelo próprio autor, a “literacia histórica” baseia-se
nos estudos de Jörn Rüsen sobre a Consciência Histórica, e em suas considerações sobre a
função do conhecimento histórico para a “vida prática” enquanto orientador da experiência
humana no tempo (LEE, 2006, p. 134).

Para Petter Lee, qualquer consideração útil a respeito na noção de Literacia histórica
exige prestar atenção em dois componentes: primeiro, as ideias dos estudantes sobre a

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disciplina de história; segundo, sua orientação em direção ao passado (o tipo de passado que
ele pode acessar e a relação deste com o presente e o futuro).

Dessa forma, em busca de compreender a conscientização histórica que alguns alunos


do nono ano da rede municipal de Manaus trazem consigo, utilizamos da história oral,
fazendo entrevistas com um grupo de alunos voluntários das escolas escolhidas para a
pesquisa. As perguntas bases eram: O que é História pra você? Pra que serve a História? E
quem faz a História?424

O uso da fonte oral, na pesquisa, deve-se ao fato de entendermos que perceber a


consciência histórica não deve ser um processo feito com dados objetivos, as perguntas feitas
aos alunos, são subjetivas, e estes também carregam a subjetividade humana. Alessandro
Portelli, em A filosofia e os fatosnos ajuda a perceber a importância da subjetividade presente
naquilo que narramos:

“É inegável que a subjetividade existe e constitui uma característica idestrutível


dos seres humanos […] Nossa tarefa não é, pois, a de exorcizá-la, mas a de
distingüir as regras e os procedimentos que nos permitam em alguma medida
compreendê-la e utilizá-la. Se formos capazes, a subjetividade se revelará mais
do que uma interferência; será a maior riqueza, a maior contribuição cognitiva
que chega a nós das memórias e das fontes orais”. (PORTELLI, 1996:59)

Na primeira pergunta, Pedro, 15 anos, respondeu da seguinte forma:


Pra mim, é uma matéria de estudo que vai mostrar o que aconteceu no nosso
passado ne? O que os fatos (...) Os fatos grandes que aconteceu no passado que puderam
mudar em alguma coisa agora no futuro.

Pra que serve a História?

Pra ver nossa origens né? Saber de onde a gente veio, saber como começou a
miscigenação da gente. Com os portugueses e os indígenas. Várias coisas né? Tem
muita coisa envolvida também, tipo coisas que a gente precisa saber pra agora,
coisas que (...) A gente não precisa saber tipo muito de História por que a única
coisa que a gente vai precisar em História é pra passar no vestibular, eu tenho isso
pra mim. Por que quando eu fazer um curso para arquitetura e urbanismo, eu não
vou precisar. Então, eu penso assim ne? Mas pra gente passar no vestibular, vai ter
algo envolvido de História que mesmo a gente não querendo saber a gente precisar
estudar. É por isso que a gente tem que ter em mente (...) Pra mim o mais importante
são as datas, as datas dos acontecimentos, as causas, o resto. (Pedro, 15 anos)

As repostas acima revelam uma permanência de concepções da história tradicional e


oficial focada nos “fatos grandes que aconteceram no passado”.

424
Foram entrevistados 10 alunos no decorrer da pesquisa. Todas as entrevistas foram feitas na biblioteca da
escolas. Utilizamos para fins deste trabalho a entrevista de três dos alunos entrevistados e utilizamos também
nomes fictícios, por serem menores de idade. O uso dos trechos das foram autorizados pelos responsáveis.

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Também relevam a percepção de que a história está ligada a nossa identidade, no


entanto, para Pedro que no momento da entrevista fala sobre seu desejo de ser tornar
arquiteto, imagina que história não estaria tão presente no exercício de sua profissão, mas para
alcançar seu objetivo é preciso conhecer os assuntos que cairão no vestibular, logo a história
tem um valor prático e a curto prazo.

Quem faz a História? Essa pergunta que ferrou com a gente (risos). E agora? (...)
Acho que nós mesmos. Nós mesmos temos assuntos que podem influenciar a
história, de repente eu estou aqui, poh um menino qualquer, ou talvez antes de você
tá aqui e me conhecer, sabia nem que eu existia, mas é (...) Através de você me
conhecer, influenciou. Você não vai se esquecer mais de mim, entendeu? Eu posso
fazer história, eu posso fazer alguma coisa aqui e influenciar o futuro. Eu posso
fazer, tipo, posso estudar pra caramba aqui, deixar de lado o tempo no celular, ou
algumas coisas que eu gosto de fazer pra estudar. Isso vai influenciar meu futuro. Aí
daqui a uns cinco anos eu posso ver que o que eu fiz agora não foi em vão (Ângelo,
15 anos)

Perguntei a Ângelo, como ele acha que o conhecimento do passado pode influenciar
o futuro, ele respondeu da seguinte maneira:
Através de atitudes de certas pessoas do passado, analisando os pensamentos deles,
o que eles achavam sobre alguns assuntos que ainda rola nos dias de hoje. Analisar e
fazer uma reflexão ou uma (...) introduzir algo que nós pensamos.

Quando Ângelo fala sobe a influência através da “atitudes de certas pessoas”, parece
que se ausentar dessa influência, no entanto, essas atitudes podem ser incorporadas as nossas,
por que todos nós fazemos história, o que se tornou resposta comum entre os estudantes. Ele
comenta então, sobre a influência que a história pode exercer nas suas relações pessoais e nos
seus estudos.

Ainda sobre como a história está presente em seu cotidiano, Ângelo comenta:

Na minha opinião todas as matérias são essenciais, português e matemática eu sei


que são as principais, mas História e Geografia contam muito sobre os
acontecimentos, sobre...tem esses feriados, as vezes eu não sei qual é o feriado, tem
dia da Independência, Proclamação da República. Mas a História pro nosso dia a dia
tem que ser colocada como (...) como, peraí (...) caramba eu esqueci da palavra!
Fugiu da mente... No nosso dia a dia ela pode ser introduzida como um mecanismo
em que você consegue saber o que tá sendo comemorado, a importância daquele dia,
o que aconteceu naquele dia, naquela data. Ela poder ser um marco, vamos dizer um
marco, ou algo parecido. (Ângelo, 15 anos)

Maria, 14 anos, fez o seguinte comentário em uma das aulas de história que
acompanhava “A História serve pra nós compreender os nossos erros no passado, pra fazer
nosso presente ser melhor e não cometer esses erros no futuro”. Quando convidei Maria
para a entrevista, perguntei-lhe sobre quem, na sua percepção, faz a história”: “Quem faz

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história são as pessoas que mudaram o passado (...) Que mudaram as ideias, os conceitos, e
a ordem. Elas mudam estudando, fazendo algo importante, como reis e rainhas, cientistas.
Algumas pessoas assim que mudaram a História”

E você acha que história está presente no nosso dia a dia?


As pessoas usam a História pra falar de jogos de futebol, da história do Brasil, de
política principalmente (...) mas no dia a dia acho que não, a não ser que a pessoa vá
fazer alguma palestra ou algo do tipo...
E se a gente for viajar pra um país do exterior, a gente já vai conhecer sua história e
ter a oportunidade de conhecer mais ainda, a gente não vai ficar naquele
interrogativo toda hora (...) É uma coisa que muita coisa que muita gente usa em
História, pra falar do local, o que aconteceu lá. (Maria, 14 anos)

A forte presença de concepções da história tradicional nas respostas dos alunos


dando enfoque as “grandes eventos” ou às datas comemorativas, a forma como percebem a
história presente no cotidiano e na identidade de cada um, mas com dificuldade de colocar-se
como sujeitos históricos chamou nossa atenção, e tem nos levado a pensar como tem sido
trabalhado a conscientização histórica nas escolas e se tem caminhado para o seu fim.

Todos que conhecem qualquer coisa sobre educação histórica concordam que há
mais na história do que o conhecimento de lembranças de eventos passados, mas nem sempre
há concordância sobre o que esse “mais” deveria ser, e que, na confusão da vida escolar, a
prática pode variar enormemente, mesmo num único sistema nacional (LEE, 2006). Uma
forma de superarmos este problema, é pensando em propostas metodológicas que levem em
conta os conceitos da consciência e da literacia histórica.

Segundo Rüsen, o pensamento histórico ou consciência histórica exprime a carência


humana de orientação das ações no tempo. A partir dessa carência é possível constituir a
ciência da história e torna-la inteligível como resposta a uma questão (2001:30)

Tal carência de orientação no tempo que são dirigidas ao pensamento sobre o passado
requer critérios de sentido para as mudanças do homem e do seu mundo. Pensando ainda na
nesta pragmática, onde a constituição do pensamento histórico serve a vida prática é
importante que se trabalhe junto aos alunos que a narrativa história não está ligada somente ao
passado, pois como já a muito afirmava Marc Bloch “a História é ciência dos homens no
tempo”. (BLOCH, Marc. Grifo nosso)

Portanto, afirmar que “A História serve pra nós compreendermos os nossos erros no
passado, pra fazer nosso presente melhor e não cometer esses erros no futuro” está dentro
dos princípios da Razão História de Rüsen. Mas não deve ser um conceito fechado em si

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mesmo, é ainda necessário compreender a História como um conhecimento específico, que


possui objeto próprio, metodologias de pesquisa e vocabulário característico.

Ao reconhecer a história como algo que transcende a orientação de “senso comum”, mas
ainda unindo-a em caminhos complexos com ações no mundo cotidiano, a consideração de
Rüsen sobre a consciência histórica sugere alguns princípios para construir um conceito de
literacia histórica. Uma primeira exigência da literacia histórica é que os alunos entendam
algo do que seja história, como um “compromisso de indagação” com suas próprias marcas de
identificação, algumas ideias características organizadas e um vocabulário de expressões ao
qual tenha sido dado significado especializado: “passado”, “acontecimento”, “situação”,
“evento”, “causa”, “mudança” e assim por diante” (LEE, 2006: 136)

Isso sugere que os alunos devem entender, por exemplo:


- como o conhecimento histórico é possível, o que requer um conceito de
evidência;
- que as explicações históricas podem ser contingentes ou condicionais e que a
explicação de ações requer a reconstrução das crenças do agente sobre a situação,
valores e intenções relevantes (BEVIR, 1999, 2002; COLINGWOOD, 1993, 1999;
DRAY, 1995; VAN DER DUSSEN, 1981);
- que as considerações históricas não são cópias do passado, mas todavia podem
ser avaliadas como respostas para questões e termos (ao menos) do âmbito do
documento que elas explicam, seus poderes explicativos e sua congruência com
outros conhecimentos. (LORENZ, 1994, 1998; BEVIR,1994)

Dessa maneia, diante da análise das respostas e do desafio de refletir, sobre natureza
epistemológica da História, pensamos em uma proposta metodológica que pudesse orientar a
intervenção cognitiva dos alunos. A ideia foi fazer oficinas temáticas de História,
mensalmente, nas turmas das escolas onde foi desenvolvido o projeto de pesquisa. Ao final
desse processo, faríamos as mesma perguntas da entrevista aos alunos voluntários, a fim de
avaliar os resultados da pesquisa-ação.

A pesquisa- ação: uma práxis dialógica

As escolhas dos temas das oficinas foram feitas a partir da necessidade dos alunos,
levando em consideração suas respostas nas entrevistas, e as conversas dentro e fora da sala
de aula. Pois, se há mais na história do que somente acúmulo de informações sobre o passado,
o conhecimento escolar do passado e atividades estimulantes em sala de aula são inúteis se
estiverem voltadas somente à execução de ideias de nível muito elementar, como que tipo de

614
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conhecimento é a história, e estão simplesmente condenadas a falhar se não tomarem como


referência os pré-conceitos que os alunos trazem para suas aulas de história. (LEE, 2006)

O objetivo das oficinas não foi de conscientizá-los historicamente, ou ensiná-los tudo a


respeito das especificidades históricas, pois como já foi dito, a consciência histórica está
presente em cada ser humano, é formada através das experiências de todos os espaços de
convívio. Mas executar uma proposta em que o ensino de história seja um espaço de diálogo e
possibilidades, para a ampliação da consciência.

Vale ressaltar que processo de conscientização histórica não é transmitida do educador


ao educando, como escreve Luis Cerri em diálogo com Paulo Freire:

“Não se trata de imaginar a consciência como algo que se tem ou não tem, ou que se
tem do jeito certo ou errado, ou que possa ser doado de um sujeito a outro, pois isso
significaria imposição cultural de uns sobre os outros. A consciência do mundo,
dentro da perspectiva que aqui é tecida, é inerente ao ser humano, e poder ser mais
ou menos aprofundada, mais ou menos adequada ao seu contexto, mais ou menos
envolvida por mitos e preconceitos, mas o educador não é aquele que traz luz aos
cegos. Pelo contrário, dentro do princípio freiriano ele é uma espécie de parteiro que
ajuda no processo de conscientização não lhe cabendo em nenhum momento impor
sua própria visão de mundo” (CERRI, 2011: 67)

Portanto, as aulas das oficinas foram pensadas nesta perspectiva, buscando uma relação
horizontal entre o professor e alunos e uma dinâmica em que os alunos sentissem a vontade
pra participar das aulas.

Foram feitas no decorrer do ano letivo, três oficinas.

Na primeira oficina, com o tema O que é História? Foi feita uma roda de conversa
com a turmas, a fim de fazer uma sondagem do que os alunos pensavam, na maioria, do que
se trata a história. As respostas ficavam quase sempre fechadas em “A história é o estudo do
passado” ou “A história serve pra contar como foi nosso passado”

Dessa maneira, observamos neste primeiro momento a necessidade se trabalhar com


a noção se temporalidade e apresentar algumas tarefas básicas do trabalho do historiador,
enfatizando que não se pode ter conhecimento do passado tal como ele foi, mas podemos ter
vestígios, e estes podem ser encontrados em tudo que se relaciona ao homem, como
fotografias, objetos, artefatos, cartas, documentos, etc.

Na segunda oficina O que é pensar historicamente? enfatizei a importância de


nunca aceitar as informações, ideias, dados etc. sem levar em consideração o contexto em que
foram produzidos: seu tempo, suas peculiaridades culturais, suas vinculações com

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posicionamentos políticos e classes sociais, as possibilidades e as limitações do conhecimento


que se tinha quando se produziu algo. E nunca deixar de lado que toda ação tem um ou mais
sujeitos em sua origem, e é importante saber quem são esses sujeitos, pois isso condiciona o
sentido da mensagem/discurso. (CERRI, 2011:59).

Enfatizamos como frases do senso comum com o “sempre foi assim” e “vai ser
sempre assim” são expressões de quem não está pensando historicamente, pois quando
julgamos que chegamos a um momento em que as coisas não irão mudar nós estamos
petrificando a temporalidade. Colocando as coisas fora da História, como se não pudessem,
daqui em diante sofrer a ação do tempo. (CERRI, 2001)

Como exemplo, conversei sobre a frase conhecida na atualidade de que “tempo é


dinheiro”, e como esta noção foi construída historicamente e reforçada pelo capitalismo
industrial, utilizando os estudos de E. E Thompson sobre o tempo, disciplina e trabalho em
Costumes em comum:estudos sobre a cultura popular tradicional, como base.

Mostrando aos alunos como antes da invenção dos relógios havia formas diferentes
de percepção de tempo, e que estas formas se relacionavam as tarefas domésticas, sendo
assim uma orientação por tarefas. Dessa forma, não havia distinção do tempo do trabalhador e
seu próprio tempo. Com a Revolução Industrial, e com a maior facilidade de se ter acesso aos
relógios, “o tempo agora é moeda, ninguém passa o tempo e sim o gasta”. (THOMPSON,
1998: 272) O capitalismo industrial intensificou ainda mais a necessidade de produzir mais
em menos tempo para gerar lucro, tal noção traz consequências práticas as nossas vidas.

Dessa forma, é possível perceber como os processos históricos influenciam e agem


nas expressões do cotidiano.

Na terceira oficina História do cotidiano e história local foi trabalhado a importância


de se estudar o local, para que haja o sentimento de pertencimento, e a valorização daquilo
que é próximo a nós. Ao estudarmos o cotidiano, levamos em consideração que todos são
sujeitos históricos, que a história não é feita somente por “grandes personagens” presentes no
livro didático, mas é constituída por pessoas comuns. Foi dado como exemplo da história
local escrita na perspectiva de pessoas comuns trechos da pesquisa “Entre os restos:
memórias de mulheres garis em Manaus (1985-2015) que através de fontes orais, investigou
histórias e memórias das mulheres garis na cidade de Manaus, refletindo acerca da

616
617

constituição das relações sociais na cidade através das questões de gênero e trabalho, no
período em que a Zona Franca de Manaus se estabelecia na região. 425

Após a oficina foi pedido que os alunos fizessem uma atividade que consistia em
entrevistar algum morador antigo do bairro que moravam. Para isso, foi feito também uma
oficina de história oral, os alunos foram orientados sobre como realizar uma entrevista e
receberam um roteiro de perguntas.

“Entrevistar estar alguém é uma experiência muito legal, saber como era o passado,
entrevistei minha vó e descobri como era o bairro onde moro antes de eu nascer, ver
como o mundo está mudando. Jamais pensei em entrevistar minha avó, o mundo está
tão conectado com a tecnologia que não damos nenhuma importância para nosso
passado e como dizia a professora ‘todos nós fazemos história’, no começo da entrevista
foi um pouco tenso mas depois ela foi se soltando e contando com mais clareza coisas
sobre o bairro e sobre ela”. (Transcrição dar redação de uma aluna, residente no bairro
Zumbi)

Não se pretende, de forma alguma, criar com a oficinas modelos prontos e acabados a
ser seguidos por todos os educadores. Pois, concordamos com Charlot quando diz que o papel
da pesquisa não é dizer o que o professor deve fazer. O papel da pesquisa é forjar
instrumentos, ferramentas para melhor entender o que está acontecendo na sala de aula; é criar
inteligibilidade para entender o que está acontecendo ali (CHARLOT, 2002, pg. 01)

Procuramos aqui refletir sobre a necessidade de trabalhar numa perspectiva dialógica,


assuntos além dos presentes nos livros didáticos e do calendário escolar. Tais assuntos, que
podem auxiliar no processo de conscientização histórica, devem ser pensados coletivamente,
o professor deve estar disposto a ouvir os alunos, saber quais são suas dúvidas, suas
demandas, buscar atrelar o conhecimento prévio dos alunos a cada tema.

Selva Guimaraes no seu livro Didática e práticas de ensino de História, nos lembra do
óbvio: o professor de História não opera no vazio. Os saberes escolares, os valores culturais e
políticos são ensinados na escola a sujeitos que trazem consigo um conjunto de crenças,
significados, valores, atitudes e comportamentos adquiridos nos outros espaços educativos.

“Isso implica a necessidade de nós, professores, incorporamos no processo de ensino


e aprendizagem variadas fontes, linguagens, suportes e estratégias de ensino. O
professor ao diversificar fontes e dinamizar a prática de ensino democratiza o acesso
ao saber, possibilita o confronto e o debate de diferentes visões, estimula a
incorporação e o estudo da complexidade da cultura e da experiência histórica.”
(GUIMARÃES, 2013:69)

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PANTOJA, Ramily Frota. Entre os restos: memórias de mulheres garis em Manaus ( 1985-2015).
Manduarisawa-Revista Discente da Ufam. n 1. v 1: História Social do Trabalho na Amazônica,2017.

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A fim de analisar e refletir os resultados da experiência, da pesquisa-ação e da relação


dos conteúdos e temas abordados com o processo de conscientização histórica, foi feita uma
segunda etapa de entrevistas com os alunos voluntários no final do ano letivo.

Quando perguntei a Pedro, o que achou das oficinas e o que pôde aprender, ele
respondeu:

Achei a surpreendente. Tipo, vocês vieram abrir nossos conhecimentos sobre


história, então, já que não sabia, eu tentava responder as perguntas com o que já
sabia sobre história. E a gente ficava assim: será que tá certo? Será que não tá? Aí
depois eu achei bacana as perguntas que fizeram, lá no hora, e falei: ah! Vou dar
uma pesquisada, pra ver se consigo aprender mais. E lá tava falando que a história é
o estudo do passado, que pode envolver o futuro, o que a gente achou surpreendente
por causa que a história pra gente era uma coisa que a gente não ia precisar levar, era
só sobre o que aconteceu no passado, quando a gente for fazer vestibular é pouca
coisa que vão pedir de mim. Meu pensamento era esse, que abordasse mais
português e matemática, que eram as matérias que tava tentando me especificar
mais. E história pra mim, queria saber só o que aconteceu no passado, e o passado
tinha nada a ver com o futuro. Mas depois que vocês começaram a falar sobre o
estudo do passado, a gente conseguiu entender mais que não é só isso. Que o
presente tem a haver com todos esses acontecimentos. (Pedro, 15 anos)

Quando Pedro fala vocês, refere-se a todos integrantes do Programa de Iniciação à


Docência que atuavam na escola. Entendemos a ideia de que viemos “abrir o conhecimento
dos alunos sobre a história” é equivocada, pois o que buscamos é atuar com nossa
consciência, buscando influenciar a consciência dos educandos (CERRI, 2011). É important
destacar o interesse de Pedro em buscar em outros meios, como em pesquisas pela internet,
possíveis respostas para as perguntas, pois o processo de ensino e aprendizagem não se limita
à sala de aula. Os alunos agregam o que aprendem pelos meios de comuniçação e espaços de
convívio, com aquilo que é ensino no ambiente escolar.

Eu achei as oficinas sensacional, com elas eu pude aprender muitas coisas e lembrar
conteúdos. Assim, foi bem legal que eu via meus outros amigos também
aprendendo, isso é muito legal. Poder interagir com vocês. A história é uma coisa
muita extraordinária, é tão importante quanto as outras matérias e ela nos dá
situações de análise maior para pensarmos em um reposta para o futuro. [...]Ela não
fica só no passado, ela fala muito do presente, ela nos dá situações que já passaram
pra que agora a gente possa compreender por que as pessoas tomaram aquele atitude
naquela época e que influência as ações dela vão ter no nosso presente e futuro. A
gente fica mais ligado nas coisas. Ela nos ajuda a repensar nossas atitudes [...] Nós
fazemos história a todo tempo.... A minha história, são as decisões que tomei
(Ângelo, 15 anos)

Ângelo fala sobre uma história mais presente no seu cotidiano, constituída pelas suas
ações. E a percepção da temporalidade histórica não está presa ao passado. Reforçando várias
vezes na sua fala a ligação que o passado tem como o presente, que nos orienta ao futuro que
queremos construir.

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A entrevista feita com Maria foi feita em Dezembro, na última semana do calendário
escolar. Após esta semana os alunos entrariam de férias e já não estudariam na escola, que
atende somente turmas de ensino fundamental. Ela conduziu a entrevista, sem que fosse
necessário fazer muitas perguntas, e se emocionou durante a fala, ao lembrar de algumas
atividades desenvolvidas na escola, como um Sarau feito com os alunos do nono ano,
organizado por alguns professores junto dos alunos.

Esse ano eu aprendi muito coisas sobre história, eu aprendi que a História são as
ações dos homens no tempo, como que nós mesmo fazemos história. E nas nossas
aulas a gente tava fazendo história. Por exemplo, todas aquelas pessoas cantando
juntos, ensaiando, pra fazer o sarau fizeram história de uma certa forma. Por que
isso marcou cada um de nós. A gente vai lembrar disso quando ouvir as músicas. E
os professores vão se lembrar da gente também.
Uma das coisas que aprendi foi a importância da história no nosso dia a dia, eu só
pensava na história de outros países e não na nossa história local. Eu não imaginava
que digamos assim, se essa escola continuasse a mesma coisa de sempre, se as
pessoas não tivessem mudado, a gente não estaria do jeito que tá agora, não teríamos
feito o sarau, não teria feito outros trabalhos, não ia saber da história local, não teria
aprendido tantas coisas. Então eu percebi que a história age nas nossas vidas e nas
vidas das outras pessoas, por que as outras pessoas nos ajudam fazer história. Acho
que uma das coisas que mais vou sentir falta dessa escola aqui são das pessoas.
(Maria, 14 anos)

As experiências e lembranças individuais, a afetividade com as pessoas e apego a


escola, também fazem parte do processo de conscientização histórica, se pensarmos na
dinâmica entre nossa identidade e a identidade coletiva. E esta é ligação entre a consciência
histórica e o ensino de história, bem como os vários usos sociais que o conhecimento histórico
assume (CERRI,2011)

Quando perguntei novamente a Maria o que é e quem faz história, ela responde com o
que talvez tenha, de maneira pessoal, mais tenha me marcado durante a experiência.

“A história é uma maneira de lembrarmos de pessoas, lugares e eventos históricos.


Tanto no passado como nos dias de hoje [...]Eu faço história com as pessoas que são
próximas a mim, eu faço história com as pessoas que ainda vou conhecer e eu faço
história agora”. (Maria, 14 anos)

Considerações finais

Podemos perceber, através das respostas, que o processo de ensino e aprendizagem,


abordando novos temas e pensado na educação como diálogo, possibilitou a ampliação e
aprofundamento da consciência histórica de todos envolvidos, pois o professor se abre pra ser
conscientizado sempre. A minha consciência, enquanto educadora, não saiu da mesma forma
que entrou, desde que iniciei a pesquisa.

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Tal processo, no entanto, não chegou ao seu fim, considerando que o processo
educativo que promove a conscientização não tem um ponto de chegada (e muitas vezes
nenhum caminho) preestabelecido (CERRI, 2001). Pensamos, dessa forma, como um
processo em continuidade, em que os alunos levarão consigo o que foi aprendido e agregarão
aos novos aprendizados

Referências
BARCA, Isabel. Literacia e Consciência histórica. Educar, Curitiba, Especial, p. 93-112,
2006. Editora UFPR.
BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton. [Organizadores] Tecendo
Amanhãs: o Ensino de História na Atualidade. Rio de Janeiro/ União da Vitória: Edição
Especial Sobre Qntens, 2015.
BITTENCOURT, Circe Maria F. Ensino de História-fundamentos e métodos. 4 ed, São
Paulo: Cortez, 2011.
CERRI, Luis Fernando. Ensino de história e consciência histórica: implicações didáticas de
uma discussão contemporânea. Rio de janeiro: Editora FGV. 2011
GUIMARÃES, Selva. Didáticas e Práticas de ensino. Papirus Editora - 13 ed Campinas-Sp,
2013.
CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo. 2001
LEE, Peter. Em direção a um conceito de literacia histórica. Educar, Curitiba, Especial, 2006.
Editora UFPR. p. 131-150.
RÜSEN, Jörn. Razão Histórica: teoria da história/ Jorn Russen: tradução de Estevão Rezende
Martins-Brasília: Editora Universidade de Brasília,2001.
RÜSEN, Jörn. O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma
hipótese ontogenética relativa à consciência moral. In: SCHIMIDT, Maria
Auxiliadora;BARCA, Isabel e MARTINS, E. R. (Orgs.) Jörn Rüsen e o Ensino de História.
Curitiba. Editora UFPR, 2011.
SCHIMIDT, Maria Auxiliadora.Literacia histórica, um desafio para o ensino de história no
século XXI. História & Ensino, Londrina, v15 p. 09-22. Ago 2009.
SCHMIDT; M. A.; BARCA,I. Apresentação. In:SCHMIDT; M. A.; BARCA, I. Aprender
história:perspectivas da educação histórica. Ijuí: Ed. Unijuí, 2009. p.11-19.
SCHIMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; GARCIA, Tânia Braga. Significados do
pensamento de Jörn Rüsen para investigações na área de Educação Histórica. SCHIMIDT,
Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel e MARTINS, E. R. (Orgs.) Jörn Rüsen e o Ensino de
História. Curitiba. Editora UFPR, 2011.
SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de Identidade. Uma introdução às teorias do currículo.
Belo Horizonte, Autêntica, 2004.

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