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Fahrenheit 451: O grau de destruição da palavra escrita.

Carla Ferreira de Castro - Universidade de Évora

Se sentant sans cesse coupable de sa propre solitude, (l’écriture littérare)


n’en pas moins une imagination avide d’un bonheur des mots, elle se bâte
vers un language rêvé dont la fraîcheur, par une sorte d’emancipation
idéale figurait la perfection d’un nouveau monde adamique où le langage
ne serait plus aliené. (…) La Littérature devient l’utopie du langage.

Roland Barthes, Le degré zéro de l’écriture

Classificada como uma obra fantástica, Fahrenheit 451, insere-se também no


género utópico visto tratar os problemas da modernidade que se vislumbram num
futuro consumista que apela à suposta felicidade associada à anulação da memória, à
uniformização de uma identidade fabricada e à subsequente ausência de ideias.
Sabendo que as utopias não constituem lugares de verdade, é viável
analisarmos o texto de Bradbury sob o ponto de vista de uma utopia moderna que
exprime um lugar de negação, desconstruindo modelos e inventando paradigmas, uma
vez que o propósito último em Fahrenheit 451 é a redução do mundo à palavra que já
não é lida, mas sim reproduzida oralmente.
Desde logo, é curiosa esta perspectiva da linguagem escrita ser o veículo
utilizado para difundir a apologia do poder da memória face à destruição do texto
impresso. Daí a importância da adaptação cinematográfica de François Truffaut que
confere um maior destaque ao poder daquilo que se diz - de notar que, logo no início,
a ficha técnica é declamada e não escrita.1 O facto de existir uma discrepância entre
mensagem e forma, visto que o ecrã é o meio utilizado para questionar a influência
negativa das imagens, intensifica os laços que aproximam de forma irónica o
espectador contemporâneo desta irrealidade que lentamente adquire contornos que
permitem uma aproximação com a nossa realidade virtual. 2
Se entendermos a utopia como um projecto de uma sociedade ideal, pelo
menos na óptica do seu criador, então Ray Bradbury apresenta vários modelos em
acção de possíveis sociedades, para no final colmatar as falhas de um mundo quase
perfeito pelo sonho de Montag que lembra a noção de Karl Krauss, ao defender uma
linguagem que não se deixa dominar, mas que controla em absoluto o indivíduo.

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A divisão em três momentos narrativos acaba por corresponder a três fases
distintas nesta busca de um paraíso perdido ou, simplesmente da felicidade. Num
primeiro momento, é apresentada uma sociedade onde a imagem é o principal
nutriente do indivíduo. Numa segunda fase, os malefícios deste tipo de controlo são
denunciados e confrontados com um mundo anterior que está próximo da realidade do
leitor. Por fim, dá-se a definitiva tomada de posição com o vislumbrar de uma
identidade diferente que renascerá depois de uma guerra necessária para expurgar os
males da civilização.
Em toda a descrição, o fogo é o elemento primordial que desempenha funções
antitéticas: o fogo infernal que tudo destrói com o sopro breve de um extintor
transformado em lança-chamas pelas mãos de um “bombeiro” e o fogo que aquece e
revitaliza. Este culto do fogo, enquanto princípio elementar, está presente em cada um
dos momentos supracitados e subjaz a este discurso do pós-guerra que vive no limiar
de uma modernidade estética à procura de uma renovada identidade.

1ª Parte: O Inferno da Fornalha e da Salamandra

Dans la clairiére de tes yeux


Montre les ravages du feu ses oeuvres d’inspiré
Et le paradis de sa cendre.

Paul Éluard

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No início queimar era um prazer. A identidade contra a qual Montag se
insurgirá vive do poder destruidor do fogo imposto pelas forças da ordem de uma
sociedade onde tudo é ignífugo - Não só as casas como as pessoas que, salvo uma
pequena minoria em vias de extinção, sobrevivem à prova do calor das emoções.
Neste cenário de total inversão de valores tudo é analisado e determinado sob a
forma de uma doutrina pragmática e eficaz:

Aqueles que não constroem devem queimar. 4

Uma vez aceite esta premissa, o trabalho do bombeiro é simples e


inquestionável:

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É um bom trabalho. Segunda-feira queimar Millay, Quarta -feira Whitman, Sexta-feira
Faulkner, transformá-los em cinzas e depois queimar as cinzas. É o nosso estribilho oficial. 5

Na génese desta demanda pela identidade, existe a tentativa de eliminar o que


complica a vida criando referentes que exterminem a discórdia que acabam, não
obstante, por atrofiar a mente e impedem a reflexão. A vida fica reduzida a cinzas,
sem uma chama que revitalize e reconstrua a vontade empreendedora. A grande
metáfora é a do fogo breve de um incêndio ateado por mãos criminosas que
rapidamente se extingue deixando um rasto de desolação e esterilidade.
Mildred e o grupo em que se insere são, por excelência, seres verdadeiramente
infecundos e atrofiados que vegetam em função de uma “família” televisiva, que
habita nas suas paredes com o simples premir de um botão, constituída por “tios” e
“primos” que, através de um mecanismo dispendioso, pronunciam o nome da
telespectadora antes de cada frase. Através das imagens, a mulher de Montag
consegue participar no teatro da vida sem sair de casa, pois basta-lhe a ironia de falar
literalmente para as paredes para ser feliz.
O principal objectivo é o controlo remoto dos indivíduos. Não se debatem
ideias, porque a divergência de opiniões é tida como algo pernicioso, gerador de
sofrimento, havendo uma concordância uniformizada que não contribui sequer para a
formação de uma consciência colectiva .
A ”família” e os comprimidos ingeridos ao acaso, como quem toma um
aperitivo, são, aparentemente, o bastante para espantar os fantasmas da memória,
apagando qualquer vestígio de lucidez que um poema, ou outros géneros literários,
poderiam despertar. Nesta medida, a felicidade torna-se sinónimo de previsibilidade -
tudo está pré-estabelecido e mesmo quando Mildred ingere demasiados calmantes, 50
dólares e uma máquina sofisticada devolvem-lhe a existência abúlica, ao mesmo
tempo que aumentam o seu grau de amnésia, pois, como afirmam os enfermeiros:

Chupa-se o que está velho para pôr novo em seu lugar e tudo fica outra vez certo. 6

Apesar de se tratar do retrato de uma sociedade do futuro, dá-se, contudo, um


retrocesso na forma como a destruição dos livros e das pessoas lembra as práticas
medievais dos autos de fé. Aliás, é o capitão Beatty que cita o exemplo de Latimer e

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Nicholas Riddley queimados por heresia em pleno século XVI. O método dos
bombeiros é inquisitorial, vive de denúncias e do faro de um cão mecânico. À falta de
um livro que reúna as preferências de todos, queimam-se as palavras e reduzem-se a
pó os textos e os seus autores. Diz Montag, após assistir ao suicídio de uma mulher
que é cremada com os seus livros:

(…) pela primeira vez, notei que, atrás de cada um desses livros estava um homem.
Algumas vezes é necessária toda uma vida a um homem para pôr as suas ideias por escrito,
olhar o mundo e a vida à sua volta; e eu chego e bum! Em dois segundos tudo se acaba. 7

Montag, ao ser abordado por Clarisse, desperta para uma consciência profunda
da pluralidade intrínseca a cada ser e transforma-se em leitor das obras que destrói,
compreendendo, neste processo, que o sofrimento pode ser benéfico quando ligado à
reaprendizagem da vida.
Sendo a felicidade entendida como um axioma, o questionar da mesma torna-
se no pesadelo de Montag que compreende o grau do seu infortúnio quando concluí:

Deve haver alguma coisa nesses livros, coisas que não podemos imaginar,
para decidir uma mulher a ficar numa casa que arde. (…) Lembrar-me-ei
desse fogo toda a minha vida! Toda a noite na minha imaginação tentei apagá-lo. 8

A primeira resposta é-lhe dada pelo capitão Beatty, líder exemplar, na medida
em que possui memórias do passado, ainda que seleccionadas, conhece o conteúdo de
alguns textos e cita mesmo alguns excertos, quando testemunha que os livros nada
dizem de importante. A tarefa do bombeiro é, nas palavras do capitão:

A supressão do sentimento de inferioridade tão compreensível como temível


entre os homens (…). Os negros não gostam de Little Black Sambo . Queimemo-lo.
A cabana do Pai Tomás não agrada aos brancos. Queimemo-la. Queimemos tudo.
O fogo é brilhante. O fogo é limpo. 9

Porém, o delírio destruidor de Beatty já não é suficiente para apagar as dúvidas


de Montag que decide desligar-se da “família” digital e retroceder no tempo, lendo as
palavras dos outros.

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Vamos recomeçar, partindo do princípio. Ao proferir esta sentença, Montag
inicia a desconstrução da sociedade perfeita.

Segunda Parte: O Limbo da Peneira e da Areia.

Este capítulo intermédio estabelece a ponte entre a qualidade do conhecimento


e o direito de actuar em consonância com o que Montag julga estar correcto.
Corresponde pois a um tempo de aprendizagem que depende da assimilação que é
feita da leitura.
Montag experimenta pela primeira vez a nostalgia das palavras dos outros.
Nesta perspectiva, A Bíblia já não é o repositório de uma religião, é um livro antigo
que merece ser venerado, não pela doutrina que apresenta, mas pela idade das palavras
que contém.
Este processo de aprendizagem está ligado à repetição e à memorização. Pouco
habituado a utilizar os prodígios da memória, Montag lê e relê as mesmas passagens
na tentativa de descodificar o significado que encerram, tarefa que é dificultada pelo
facto de, até no metro, o apelo ao consumo ser feito através de mensagens inócuas que
têm como objectivo último controlar e uniformizar o pensamento.
A ajuda de Faber é preciosa no sentido em que este é o contraponto de Beatty.
Ambos possuem memória do passado e se o Capitão funciona como representante de
uma tese, Faber é o porta-voz da antítese. Contudo, Montag não mais poderá aceitar
os argumentos de Beatty, uma vez que já possui a experiência da leitura. Assim a
utopia dos bombeiros e do poder vigente, torna-se a distopia daqueles que acreditam
na força redentora dos livros e que recordam um passado onde nos quartéis existiam
soldados que apagavam o fogo.
Ao desafiar as amigas de Mildred a escutarem um poema, Montag quebra
todos os interditos, já que as novelas compactas de um minuto que a televisão mural
apresenta, nada têm em comum com as palavras que declama. Durante o serão, por
momentos, as convidadas de Mildred quase conseguem conversar pelo simples facto
de a Srª Phelps discordar da Srª Bowles, mas a lei e a necessidade de obedecerem aos
parâmetros da sociedade, sobrepõem-se a qualquer discussão.
No final, incapaz de viver em transgressão, Mildred denuncia o marido, facto
que também não está distante da realidade de vários países, em diferentes momentos

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da história. Uma vez mais, a ordem e a lei prevalecem e a justiça é implacável mesmo
tratando-se de um dos seus discípulos.

3ª Parte: Claro Ardente: O Paraíso Reinventado

Neste último momento, confrontado com a inevitabilidade da fuga, Montag é


obrigado a pensar para existir. A passagem pelas águas do rio purifica-o, no sentido
em que o liberta do fogo destruidor, infernal, para uma experiência nova.
Na outra margem do rio existe uma forma de sonhar que agrada a Montag,
uma utopia em gestação que aguarda o momento oportuno para se manifestar. Trata-se
do ideal de uma sociedade nómada, desconhecida dos telespectadores da vida que
habitam a margem do rio de onde Montag é proveniente. Nesta sociedade nova e ao
mesmo tempo tão antiga como o princípio do mund, a natureza e a literatura
conjugam-se em homens que se intitulam bibliotecas vivas.
Este grupo constituído, na sua maioria, por diplomados de Harvard alimenta-se
de um passado ficcionado na expectativa de resgatar a civilização que vive dependente
da imagem. Assim, as palavras dos autores que fixaram valem como herança de
sensações, isto é, ao ouvirem-se mutuamente aprendem as emoções já que, como diz
Granger:
Os bons escritores tocam frequentemente a vida com os dedos (…),
eles mostram os poros do rosto da vida. 10

Montag experimenta o prazer inédito de falar de tudo, de partilhar um fogo


acolhedor e redescobre que além da audição existe o tacto que lhe permite agarrar na
terra para apagar o fogo com as suas próprias mãos.
Uma nova identidade começa nesta organização discreta e fragmentada de
bibliotecas vivas por dentro que aguardam o desfecho de todas as guerras-relâmpago,
para lembrarem as obras que se julgavam perdidas. De notar, como os livros citados
são, maioritariamente, visões utópicas como A República de Platão e as Viagens de
Gulliver de Swift, por exemplo.
Após o fim do mundo na outra margem, Montag deixa a sua condição precária
de Ícaro para se metamorfosear na Fénix. Porque se lembra do momento em que

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conheceu Mildred e consegue sofrer por ela, Montag liberta-se do poder exercido
pelos bombeiros, como se o homem que capturaram no seu lugar representasse,
simbolicamente, a sua vida anterior. Após todas estas transformações, é-lhe possível
recordar a passagem bíblica, também ela utópica, do livro de Eclesiastes que contém a
filosofia da nova sociedade:

E nas duas margens do rio nascia uma árvore da vida,


dando doze frutos e um em cada mês; e as folhas
dessa árvore serviam para curar as nações. 11

Conclusão:

Fahrenheit 451 à semelhança de 1984 de George Orwell, serve-se de


elementos fantásticos, situando os acontecimentos num futuro próximo e discutindo o
perigo do absolutismo do poder de um big brother, no caso de 1984, ou do terror que
os bombeiros instauram ao serviço de um poder que centraliza as mentes através da
hipnose pelas imagens fabricadas, no caso do texto de Bradbury.
O que faz de Fahrenheit 451 uma utopia, não é a proposta de uma nova
linguagem, de um novo código universal que reaproxime as pessoas, é antes a forma
como expõe um lugar de inverdade, a partir de um pressuposto que não está muito
distante da nossa realidade.
Apesar de não possuirmos a televisão mural, florescem os programas onde o
espectador é levado a participar por via telefónica, transformando-se num número das
estatísticas do tribunal improvisado, do referendo simulado ou do debate. Se, por
vezes há uma moeda de troca que recompensa a obediência do telespectador em
responder aos apelos feitos, muitas das vezes, o único incentivo reduz-se à vontade do
indivíduo em agir em conformidade com a sociedade.
Mais do que na busca do prazer e da felicidade pela exploração do consumo,
Fahrenheit 451 focaliza-se na condição humana, na génese do conhecimento, na
formação de uma consciência individual e social capaz de alertar o leitor para as
imperfeições do presente que transformou a máxima do ver para crer no leitmotiv do
querer ver. Nesta perspectiva, o temor do presente já não são as guerras, é antes a
adrenalina provocada pela eventual transmissão directa na CNN dos jogos de guerra.

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Notas:
1. Contudo, em Portugal, a legendagem inviabiliza, desde logo, o propósito do realizador.
2. Posteriormente Wim Wenders em “Until the End of the World” voltou a questionar a influência viciante das
imagens que é superada pelo poder de uma obra de ficção inédita. Já em “Lisbon Story” contam-se imagens
roubadas ao acaso e as palavras tornam-se acessórias, reformulando a noção Becketiana que nada há a dizer,
contudo diz-se ainda.
3. Ray Bradbury, Fahrenheit 451, Edições Livros do Brasil, Lisboa, s.d., p. 11
4. Ibidem, p.114
5. Ibidem, p. 16
6. Ibidem, p. 24
7. Ibidem, p. 68
8. Ibidem, p. 67
9. Ibidem, pp. 76-77
10. Ibidem, p. 106
11. Ibidem, p. 195

Bibliografia:
AA. VV., Utopia Mitos e Formas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1993.
Ray Bradbury, Fahrenheit 451, Edições Livros do Brasil, Lisboa, s.d.

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