Do cogito cartesiano ao cogito freudiano Penso, logo sou. Desejo, logo sou.
Rene Descartes Sigmund Freud
1596 a 1650 1856 a 1939
O que sou eu? A questão sobre a subjetividade só foi formalizada metodologicamente pela primeira vez por Descartes no século XVII. A fim de responder a pergunta “o que sou eu?” ou “qual é a verdade que me faz existir?” Descartes propõe o método da dúvida hiperbólica. Por esse método não se podia ter como referência os sentidos e as percepções da realidade. Duvida-se de tudo, nada do que vemos, ouvimos, tocamos, cheiramos ou degustamos garante a verdade sobre a realidade. As percepções enganam e assim Descartes, com o exercício da dúvida hiperbólica, desconstrói totalmente a realidade. Entretanto o pensador chega a uma conclusão inesperada. Há uma coisa de que ele não pode duvidar, precisamente de que ele duvida e de que o exercício da dúvida é um exercício do pensamento. Há, então a certeza de que pensamos e exatamente nesse ponto garantimos nosso existência. Assim, Descartes chega a sua celebre frase:
“Cogito ergo, sum.” ou “Penso, logo sou.”
O que sou eu? Penso, logo sou “[...] o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser destacado de mim. Sou, existo isto é certo, mas porquanto tempo? O tempo que eu pensar, pois, talvez, se eu deixasse de pensar eu poderia deixar de existir. Não admito agora nada que não seja necessariamente verdadeiro: não sou senão uma coisa que pensa.” (2000, p. 11) Descartes nos apresenta o paradigma fundador do pensamento científico, bem como do espírito da era moderna. A razão humana torna-se capaz de extrair da realidade, através de pensamentos claros e distintos, a verdade. O homem racional, dominador de suas paixões, ganha o papel de detentor do saber. Nesse momento é então inventada a loucura como aquilo que se opõe a razão do homem iluminado. A razão fabrica a loucura e a consequente exclusão social daqueles considerados loucos. Ser um louco implicava diretamente na perda da racionalidade. O louco não pensa, se pensasse teria um entendimento claro e distinto de sua realidade. O cogito freudiano A invenção do método psicanalítico proposto por Freud produz uma ruptura no paradigma cartesiano. Segundo o próprio Freud a psicanálise impôs a humanidade uma terceira ferida narcísica. A primeira se dera quando Copérnico retira a terra do centro do universo. A segunda quando Darwin retira o homem do lugar de maior importância em meio as outras espécies. E a última, realizada pela psicanálise quando Freud retira o homem do centro de si mesmo. A revolução freudiana se exprime magistralmente na seguinte frase: “O homem não é senhor em sua própria casa.” Nesse contexto da crença no progresso científico e da centralização da razão humana como fundamento do ser, é que Freud vem propor a existência de conteúdos psíquicos que escapam a razão. O que Freud pretendia demonstrar era que nem todo pensamento poderia ser acessado pela razão, alguns pensamentos são inconscientes, inacessíveis a consciência, e não apenas isso, tais pensamentos são mais determinantes a vida cotidiana do que pensamentos racionais. Para Freud o que governa o homem não é sua capacidade de esclarecimento racional e de domínio próprio, mas desejos ocultos a consciência. Mas como Freud chega a esta conclusão? Desidero ergo sum A frase acima pode ser traduzida por desejo, logo sou. É assim que poderíamos conceber o cogito freudiano. Se para Descartes o homem racional tem domínio sobre si e sobre a natureza através de pensamentos claros e distintos, para Freud o homem é dominado por desejos que ele mesmo desconhece. São esses desejos a verdade sobre o que somos. Freud, mesmo permanecendo convicto de sua vocação científica e tentando provar o método psicanalítico como um método científico, ao propor a importância da existência de desejos inconscientes provocou uma poderosa ruptura epistemológica com o pensamento de seu tempo, além do impacto cultural que aos poucos foi ganhando espaço nas artes. Para Freud, assim como para Descartes, a questão sobre a subjetividade encontra resposta no fato do pensamento. A diferença é que para Descartes, trata-se de um pensamento racional, claro e distinto e para Freud o pensamento como suporte da subjetividade não é senão inconsciente. O método psicanalítico e a teoria da sedução
Bertha Pappenheim (Anna O.)
A TEORIA DA SEDUÇÃO Freud usará o método catártico em Frau Emmy von N. e perceberá nessa paciente assim como em outros a presença de uma resistência ao tratamento. Mesmo que o paciente fosse facilmente hipnotizável nem sempre era evidente que ele conseguia trazer a tona a memória do evento traumático. Torna-se, então, primordial para Freud a noção de defesa. O conteúdo que insistia em permanecer oculto, assim o fazia devido a uma necessidade de defesa. Afim de investigar com mais propriedade o fenômeno da defesa Freud será obrigado a abandonar a hipnose que segundo ele ocultava o fenômeno da resistência. “A história da psicanálise só começa com a nova técnica que dispensa a hipnose.” (Freud, 1914/1996, p. 26) A TEORIA DA SEDUÇÃO A essa nova técnica Freud dará o nome de método psicanalítico, a qual lhe permitirá entrever, no discurso que o paciente profere, sua defesa contra o núcleo traumático gerador da patologia. Para Freud o evento traumático seria responsável por criar um núcleo patogênico do qual emanaria toda energia responsável pela existência dos sintomas. O mecanismo que ligaria o núcleo patogênico a formação do sintoma poderia ser chamado conversão. A memoria do evento traumático seria evitada e até mesmo encoberta pelos mecanismos de defesa do aparelho psíquico. O tratamento psicanalítico consistiria então em tornar consciente as ideias ligadas ao trauma, afim de que essas pudessem ser elaboradas e, consequentemente, desinvestidas da formação sintomática. Assim, Freud abandona o método catártico e inaugura o que ele chamou de método psicanalítico. 1. Evento 1. Memória do traumático evento Psicanálise 2. Núcleo 2. Defesa Patogênico 3. Ficção A TEORIA DA SEDUÇÃO Em suas observações sobre a histeria salta aos olhos de Freud o aspecto sexual sempre presente nesta patologia. Tanto na relação com o médico, quanto nas características dos sintomas a sexualidade dessas mulheres se apresentava tacitamente. Freud, então, a contra gosto de Breuer levanta a hipótese de que o trauma causador da histeria seria a de um abuso sexual. Grosso modo o que Freud estava afirmando é que toda histérica teria sido abusada sexualmente na infância. Mais tarde Freud faz uma importante correção na teoria; a sedução sofrida na infância não necessariamente precisava ser real para que houvesse o trauma. Uma fantasia sexual infantil já era o suficiente para que o núcleo traumático patogênico fosse instalado. Em Resumo A partir da carta 69, vira-se uma página na história dos conceitos de Freud, todo o esquema teórico da Teoria da Sedução vai sendo progressivamente substituído pelo que conhecemos como “sexualidade infantil” e “inconsciente”. O conceito de repressão envolve uma transação de forças: algo reprime e algo é recalcado. Era necessário, nesta altura, traçar uma geografia dinâmica da mente, para explicar o fenômeno da repressão e seus efeitos, a produção de um inconsciente e em particular das neuroses. Por outro lado, a verificação de que a sexualidade era privilegiada nos fenômenos repressivos, somada à descoberta do conteúdo sexual das fantasias histéricas, tornava imprescindível a elaboração de uma teoria sexual que desse conta dos fatos observados na clínica. Estes fatos (repressão e sexualidade) exigem de Freud toda uma série de investigações, que podem ser incluídas sobre dois temas: A investigação do aparelho psíquico E a investigação da sexualidade infantil A Interpretação dos Sonhos, a que Freud passará a se dedicar foi a via escolhida para abordar o problema da neurose e da estrutura do aparelho psíquico. “Tentei neste volume fornecer uma explicação da interpretação dos sonhos e, ao fazê-lo, creio não ter ultrapassado a esfera de interesse abrangida pela neuropatologia. Pois a pesquisa psicológica mostra que o sonho é o primeiro membro de uma classe de fenômenos psíquicos anormais, da qual outros membros, como as fobias histéricas, as obsessões e os delírios, estão fadados, por motivos práticos, a constituir um tema de interesse para os médicos. Como se verá a seguir, os sonhos não podem fazer nenhuma reivindicação semelhante de importância prática, mas seu valor teórico como paradigma, é por outro lado, proporcionalmente maior. Quem quer que tenha falhado em explicar a origem das imagens oníricas dificilmente poderá esperar compreender as fobias, obsessões ou delírios, ou fazer com que uma influência terapêutica se faça sentir sobre eles.” Podemos agora, talvez, começar a suspeitar que a interpretação dos sonhos é capaz de nos proporcionar informações a respeito da estrutura do nosso aparelho psíquico o que até agora esperávamos, em vão, da Filosofia.
... é minha intenção utilizar minha atual elucidação dos sonhos
como um passo preliminar no sentido de resolver os problemas mais difíceis da psicologia das neuroses. (Freud, 1900) A CONSOLIDAÇÃO DA PSICANÁLISE Em 1900 Freud publica sua obra prima, A Interpretação dos Sonhos. Apesar do fracasso de vendas da primeira edição, aos poucos, a teoria freudiana vai ganhando espaço até alcançar no inicio do século XIX sua difusão em mais de 42 países.
Neste trabalho Freud abandona parcialmente a teoria do trauma e
da sedução e atribui a causa da histeria a existência de um conflito psíquico inconsciente. A noção de inconsciente torna-se central na teoria freudiana, fazendo com que os sintomas histéricos, assim como os sonhos, sejam considerados expressões de desejos inconscientes. Os sintomas histéricos podem então ser interpretados, o que contribuirá para o continuo desenvolvimento da técnica psicanalítica. VISÃO PRÉ-CIENTÍFICA Os povos na Antiguidade Clássica aceitavam como axiomático que os sonhos estavam relacionados com o mundo dos seres sobre-humanos, os sonhos tinham uma finalidade importante, que era, via de regra, predizer o futuro. A visão pré-científica adotada pelos povos da Antiguidade estava em completa harmonia com a sua visão do universo em geral, que os levou a projetar no mundo exterior, como se fossem realidades, coisas que de fato, só gozavam de realidade dentro de suas próprias mentes. MATERIAL DOS SONHOS O que quer que os sonhos ofereçam, seu material é retirado da realidade e da vida intelectual que gira em torno dessa realidade. Todo o material que compõe o conteúdo de um sonho é derivado, de algum modo, da experiência, ou seja, foi reproduzido ou lembrado no sonho. VIGÍLIA E SONHOS Os homens sonham com aquilo que fazem durante o dia e com o que lhes interessa enquanto estão acordados. Nosso exame científico dos sonhos parte do pressuposto de que eles são produtos de nossas próprias atividades mentais. O que caracteriza o estado de vigília é o fato de que a atividade do pensar ocorre em conceitos, e não em imagens. Já os sonhos pensam essencialmente por meio de imagens. DOIS MÉTODOS DE INTERPRETAR OS SONHOS Dois métodos de interpretar os sonhos do mundo leigo: 1)Considera o conteúdo do sonho como um todo e procura substituí-lo por outro conteúdo – interpretação simbólica – é impossível dar instruções sobre o método de se chegar a uma interpretação simbólica. 2) Método da decifração trata os sonhos como uma espécie de criptografia em que cada signo pode ser traduzido por outro signo de significado conhecido. Os dois métodos populares não são confiáveis, pois o primeiro é restrito em sua aplicação e impossível de formular em linhas gerais e o segundo depende da confiabilidade do código. ÊXITO DA INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS O êxito da psicanálise depende de ele notar e relatar o que quer que lhe venha à cabeça e não suprimir uma ideia por parecer sem importância e irrelevante. Na interpretação dos sonhos não se deve pegar o sonho como um todo, mas partes separadas de seu conteúdo. Considerava minha tarefa cumprida quando revelava para o paciente o sentido oculto de seus sintomas, não me considerava responsável por ele aceitar ou não a solução. O SONHO É REALIZAÇÃO DE DESEJOS Os sonhos não são absurdos, não são destituídos de sentido, são fenômenos psíquicos de inteira validade. Sonho de conveniência – sede e desejo de beber. Os sonhos de crianças pequenas são frequentemente pura realização de desejo. Com que sonham os gansos? Com milho. MATERIAL E AS FONTES DOS SONHOS Três características da memória nos sonhos: 1) Clara preferência pelas impressões dos dias imediatamente anteriores. 2) Fazem sua escolha com base em diferentes princípios de nossa memória de vigília. 3) Tem a sua disposição as impressões mais primitivas da nossa infância. Em todo sonho é possível encontrar um ponto de contato com as experiências do dia anterior. Os sonhos podem selecionar seu material de qualquer parte da vida do sonhador, contanto que haja uma linha de pensamento ligando a experiência do dia do sonho (as impressões recentes) com as mais antigas. PULSÃO SEXUAL Nenhuma outra pulsão é submetida, desde a infância, a tanta supressão quanto à pulsão sexual, com seus numerosos componentes. (...) Ao interpretar os sonhos, nunca nos devemos esquecer da importância dos complexos sexuais, embora também devamos, é claro, evitar o exagero de lhes atribuir importância exclusiva. Não posso descartar o fato óbvio de que existem numerosos sonhos que satisfazem outras necessidades que não as que são eróticas, no sentido mais amplo do termo: os sonhos com a fome e a sede, os sonhos de conveniência, etc. A asserção de que todos os sonhos exigem uma interpretação sexual, contra a qual os críticos se enfurecem de modo tão incessante, não ocorre em parte alguma de minha “A Interpretação dos Sonhos”. AFETOS NOS SONHOS A expressão do afeto nos sonhos não pode ser tratada da mesma forma depreciativa com que, depois de acordar, estamos acostumados a descartar seu conteúdo. Um afeto experimentado num sonho não é de modo algum inferior a outro de igual intensidade sentido na vida de vigília. A análise nos mostra que o material de representações passou por deslocamentos e substituições, ao passo que os afetos permanecem inalterados. Os afetos são o componente menos influenciado e o único que nos pode dar um indício de como preencher os pensamentos que faltam. A descarga do afeto e o conteúdo de representações não constituem uma unidade orgânica indissolúvel. Os ditos nos sonhos decorrem de ditos na vida real. TRABALHO NO SONHO Trabalho do sono não é apenas mais descuidado, mais irracional, mais esquecido e mais incompleto do que o pensamento de vigília; é inteiramente diferente deste em termos qualitativos e, por essa razão, não é, em princípio, comparável a ele. Não pensa, não calcula, nem julga de modo nenhum; restringe-se a dar às coisas uma nova forma. Esse produto, o sonho, tem, acima de tudo, de escapar à censura, e com este propósito em vista, o trabalho do sonho se serve do deslocamento das intensidades psíquicas a ponto de chegar a uma transmutação das intensidades psíquicas. Qualquer afeto ligado aos pensamentos oníricos sofre menos modificação do que seu conteúdo de representações. No fundo, os sonhos nada mais são do que uma forma particular de pensamento, possibilitada pelas condições do estado do sono. É o trabalho do sonho que cria essa forma, e só ele é a essência do sonho – a explicação de sua natureza peculiar. RESUMO PARCIAL Resumamos os principais resultados da nossa investigação: os sonhos são atos psíquicos tão importantes quanto qualquer outros; sua força propulsora é, na totalidade dos casos, um desejo que busca realizar-se; o fato de não serem reconhecíveis como desejos devem-se à influência da censura psíquica a que foram submetidos durante o processo de sua formação; à parte a necessidade de fugir a essa censura, outros fatores que contribuíram para a sua formação foram a exigência de condensação de seu material psíquico, a consideração a sua representabilidade em imagens sensoriais e – embora não invariavelmente – a demanda de que a estrutura do sonho possua uma fachada racional e inteligível.
A característica psicológica mais geral e mais notável do processo de sonhar:
um pensamento, geralmente um pensamento sobre algo desejado, objetiva-se no sonho. SONHOS DESPRAZEROSOS
Os sonhos desprazerosos e os sonhos de angústia são tão
realização de desejos quanto o são os sonhos puros de satisfação. Os sonhos desprazerosos podem ser também sonhos de punição. O que neles se realiza é também um desejo inconsciente, a saber, o desejo do sonhador de ser punido por uma moção de desejo recalcada e proibida. O mecanismo de formação dos sonhos seria muito esclarecido, em geral, se, em vez da oposição entre consciente e inconsciente, falássemos na oposição entre o ego e o recalcado. O caso Schereber