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arte brasileira contemporânea

um prelúdio
Entrevistas com críticos e curadores de arte selecionados
por Paulo Sergio Duarte
Rio de Janeiro, maio a julho de 2008

As entrevistas que se seguem foram feitas pelo curador


e crítico de arte Paulo Sergio Duarte, visando à inserção
de trechos dos depoimentos no DVD que acompanha
arte brasileira contemporânea este livro e que é dirigido por Murilo Salles. O projeto
um prelúdio
propôs ao curador o desafio de conceituar e fazer uma
introdução (em mídias diferentes: um livro e um DVD)
capaz de oferecer chaves ao público não especializado
para a compreensão do complexo e plural universo da
arte contemporânea. Agrupando artistas com diver-
sas linguagens e abordando as principais questões que
trazem surpresa e perplexidade para este público, sem-
pre à luz da história e tecendo suas relações com a arte
no mundo.
Ao longo do trabalho, percebemos que essas entre-
vistas, se publicadas na íntegra, seriam excelente fonte
de pesquisa e informação. Um material que permitirá
cotejar a diversidade de análises críticas e, simultanea-
mente, as coincidentes questões que tocam os teóricos
especializados e induzem a uma ampla reflexão sobre a
arte hoje, excluindo os conceitos fechados.
É este o trabalho que a edição do livro Arte Brasile-
ira Contemporânea, um prelúdio mostra neste CD Rom.
Esperamos que sejam um ponto de partida para no-
vas investigações e algumas luzes para os leitores.

Silvia Roesler,
Rio de Janeiro, 7 de outubro de 2008
arte brasileira contemporânea
um prelúdio

sumário

1_ Ana Paula Cohen 1


2_ Fernando Cocchiarale 29
3_ Ferreira Gullar 41
4_ Gloria Ferreira 60
5_ Ivo Mesquita 73
6_ Lisette Lagnado 91
7_ Luisa Duarte 104
8_ Luiz Camillo 116
9_ Luiza Interlenghi 131
10_ Marcelo Araujo 147
11_ Paulo Herkenhoff 160
12_ Paulo VenâncioFilho 174
13_ Rodrigo Naves 187
14_ Ronaldo Brito 195
15_ Sônia Salzstein 208
16_ Sugestões de leitura
arte brasileira contemporânea
um prelúdio

créditos

Projeto e proponente
Instituto Cultural PLAJAP/ Jacqueline Plass
Projeto, coordenação e edição
Silvia Roesler Edições de Arte
Projeto gráfico
eg.design
Edição de textos
Paulo Sergio Duarte e Fernanda Lopes
Revisão e padronização
Alexandra Bertola
Versão para o inglês
Steve Yolen e Peter Warner
Transcrição das fitas gravadas
Vania Chalfum Gomes de Almeida e
Margaret Bugarin Mansur
Transcrição para a entrevista de Ronaldo Brito
Danielle Prado e Reynaldo Picozzi
Produção do CDRom
CDA Produção Gráfica e Digital
Fernando Cocchiarale
Entrevista realizada por Paulo Sergio Duarte

PAULO SERGIO DUARTE_ Fernando, estamos aqui para conversar sobre a arte contemporânea em ge-
ral, mas sobre a arte contemporânea brasileira em particular. Você teve uma experiência muito ampla,
que veio primeiro da década de 1970 como artista e, a partir do final dos anos 70, como crítico, curador e
historiador da arte.
Como você vê hoje a arte contemporânea, que é alvo também de muitas críticas, alvo às vezes até
de críticas indevidas, como se em todas as épocas da história todos os artistas fossem bons. Se pensar-
mos que Van Gogh morreu sem vender nenhuma tela a não ser para o próprio irmão, e Modigliani, que
morreu de fome... Algumas pessoas hoje transformam a arte contemporânea em uma espécie de Judas
de sábado de aleluia e eles se esquecem da própria história da arte.
Gostaria de saber como você vê a arte contemporânea hoje e, particularmente, a arte contempo-
rânea brasileira no que ela tem de diferencial. Pela experiência que tenho observado nos últimos anos, é
gritante a diferença de qualidade da arte brasileira em relação à da maioria dos países da América Latina,
ou em relação à quase totalidade dos países da América Latina. Então, gostaria que você nos desse esse
painel seu, com a sua experiência, sobre a arte contemporânea e depois tentar verificar esses diferenciais
da arte contemporânea brasileira.

FERNANDO COCCHIARALE_ Vou começar pelo mais geral. Sei que é polêmica a idéia até da existência
de uma arte contemporânea. O fundamento diz que estaríamos ainda em um período de desdobramen-
to da modernidade. Vários autores pensam desta maneira. Mas eu diria que, se nós quisermos observar
ou mapear momentos específicos, é possível estabelecermos com alguma clareza quais seriam as dife-
renças entre arte moderna e contemporânea.
A primeira coisa: a arte moderna é fruto, é resultado, de uma operação do Iluminismo onde a arte
se separa rigorosamente de todos os outros ofícios. Na Grécia, em Roma, as noções de tecnê e ars eram
mais ligadas à idéia de ofício, por isso abrangiam da escultura, ao músico, ao sapateiro, ao ferreiro, à arte
de governar, quer dizer, tudo era arte.
A operação que declara a separação entre arte e o resto dos ofícios é uma operação intelectual do
século XVIII, quando surgem a História da Arte com Winckelmann, quando surge a crítica de arte com
Diderot. Se quisermos pensar em estabelecer certos marcos, a estética com Alexander Baumgarten e

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também com Kant, Lessing, etc. Todos vão, pela primeira vez, distinguir a atividade do artista do resto
dos outros ofícios. Essa separação entre as Belas Artes e as outras artes, porque tudo era arte, vai criar
aquilo que se chamou de autonomia da arte que não existia antes.
Antes do Iluminismo, como você via pinturas? Você via em um templo ou em um palácio. Também você
ouvia música no templo. A arte não tinha seus templos próprios. Ela estava submetida a um regime em
que ela se inscrevia no âmbito religioso. Isso se refere também à música, a todas as artes.
O fato é que quando a arte adquire autonomia, em primeiro lugar você pode falar da autonomia
de locais aonde a pessoa vai especificamente para ver aquela arte e não mais uma operação cinestésica
ouvindo uma música junto com uma pintura, com um vitral e com uma missa. Agora você tem os museus
e, ao longo do século XIX, você terá as galerias. Portanto, a arte se torna autônoma em relação aos outros
ofícios, sem hierarquia, mas em primeiro lugar, porque ela agora passa a ter seus templos próprios.
Em segundo lugar, livre dos vínculos da encomenda, o artista agora pode criar o que quiser, onde e quan-
do quiser, porque ele não tem que se sujeitar às expectativas do seu cliente. Por isso mesmo ele pode
pesquisar linguagens, ele pode produzir o que quiser, embora ele agora vá ter que concorrer com seus
colegas no mercado. Essa é a nova realidade. É uma produção artesanal, mas que se inscreve no capita-
lismo via mercado e não mais pelos vínculos da encomenda.
Essa autonomia da arte, que separa a arte do artesanato, em certa medida torna a arte uma coisa
distante da experiência cotidiana, o que não acontecia com a arte religiosa. Você ia à missa, estavam lá
os santos, você via. Sem essa proximidade do cotidiano, começam a surgir mediadores: o crítico, o mar-
chand, o historiador. Enfim, a arte se torna uma especialização como qualquer outra. Não é por acaso
que a arte moderna vai discutir a pintura, vai discutir a linguagem da pintura; a escultura vai sair da idéia
do bloco, porque vai discutir a sua inserção no espaço onde ela própria é levantada; e assim por diante.
A arte moderna adquire essa autonomia e essa autonomia nada mais é do que a liberdade de pesquisa e
invenção formal, independentemente de associações com as formas naturais.
Eu poderia apontar, como o clímax desta autonomia, o abstracionismo. Não há em nenhum mo-
mento uma arte mais distante, entre aspas, da experiência cotidiana. Porque discute princípios, porque
discute formas, porque discute, enfim, no caso da abstração informal, expressão humana. Essa auto-
nomia da arte, se quisermos datar o clímax dela, é logo no pós-guerra, 2ª Guerra Mundial, década de
1950. O que vai acontecer é o seguinte: na passagem dos anos 50 para os anos 60, os artistas começam
a reivindicar uma reaproximação da arte com a vida de diversas maneiras. Eu diria que a década de 1950
é crucial, porque o pós-guerra representa uma espécie de desencanto radical com os fundamentos do
Iluminismo. O mundo ordenado pela razão, um mundo secular, laico, onde todas as disciplinas encon-
tram suas finalidades específicas, onde a razão tenta ordenar todo o espaço social, jamais poderia prever
que seu anticlímax seria a Alemanha nazista. Porque, na verdade, toda a irracionalidade nazista é funda-
mentada em princípios pseudo-racionais, pseudocientíficos. Por exemplo, a importância do médico na
Alemanha nazista, ou seja, a quantidade que se condena nas câmaras de gás, todas essas coisas, eram
médicos. A superioridade racial, eram antropólogos. Não estou discutindo a qualidade, o estatuto, mas
há uma legitimação. Enquanto os espanhóis dizimaram os astecas por conta de Deus, agora você elimina
judeus, ciganos, homossexuais, etc. em nome de princípios. Não pode haver anticlímax mais brochante
para o Iluminismo do que o nazismo.
Depois da 2ª Guerra Mundial você tem o desencanto. Começam a surgir coisas que não existiam
como o jovem revoltado, James Dean, beatniks, depois hippies, já em uma tentativa de conciliação. Que

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há uma revolução comportamental e um desencanto dos princípios do Iluminismo no pós-guerra, isso é
praticamente consensual. Essa mudança que vai justificar a crise de alguma coisa que também veio do
Iluminismo, que é a autonomia formal. Se formos observar, por exemplo, o que é a arte pop. Ao eleger um
tipo de ícone que você encontra no supermercado, na revista de publicidade, na história em quadrinhos,
isso é a contramão da transcendência aspirada pela grande arte que emerge do Iluminismo. Mas afora
a esfera icônica você também tem o grupo Fluxus. Você tem, no caso brasileiro – e já estou começando
a tratar da segunda questão que você colocou –, o Brasil entra na chamada nova figuração quase que
sincronicamente com o nouveau realisme francês, com a pop, com a outra figuração na Argentina. Existe
uma defasagem de dois, três, quatro anos, mas as coisas estão muito sincronizadas. E aqui mesmo, no
Brasil, se pegarmos a experiência da Lygia Clark, da Lygia Pape e do Hélio Oiticica, em graus variados,
eles também buscaram uma reaproximação com a esfera sensível, com um cotidiano. Um parangolé, por
exemplo, é pintura liberada do quadro, mas ele usa um passista da Mangueira. Há toda uma tentativa de
reaproximação da arte com a vida em várias esferas aqui no Brasil com eles. O fluxus, a pop, a nova figu-
ração brasileira, quando um Gerchman faz as novas casas de morar. Todos aqueles objetos são objetos
que têm uma espécie de pulsão à vida, ao modo pelo qual ela se articula.
É curioso responder ou tentar entender por que o Brasil entra na arte contemporânea. Estou con-
siderando aqui o início da arte contemporânea, a pop, a retomada do ícone, etc. em contraposição ao
auge do abstracionismo. Curiosamente, o Brasil entra sincronizado na arte contemporânea, porque ele
conseguiu, entre o pós-guerra até o final da década de 1950, viver de maneira condensada décadas de ex-
periência que os modernistas na Europa tinham vivenciado através dos vários “ismos”, dos vários mani-
festos. O que vai representar esta experiência moderna concentrada é a emergência dos abstracionistas,
tanto o geométrico na sua vertente concreta ou neoconcreta, quanto à abstração informal. Essa expe-
riência no Brasil retifica um modernismo lateral que tivemos e, atípico, se comparado com o paradigma
norte-americano. Porque o modernismo brasileiro, aquele da Semana de 1922 e mesmo o que veio antes,
ao tentar se enfronhar no que é brasileiro, perde a discussão que era típica das vanguardas européias de
discussão de forma e linguagem, para definir alguma coisa que não é necessariamente do campo da arte,
que é o Brasil. Pode ser do âmbito do parlamento, do âmbito da antropologia, mas não é uma questão
típica moderna.
O Brasil, assim como o México com o muralismo e os outros países da América Latina, durante
muito tempo entendeu que modernizar era deformar. Por isso é que os expressionismos têm um trânsito
imenso, porque o expressionismo é, dentre os “ismos”, o menos passível de ser definido do ponto de
vista plástico formal, já que ele é uma espécie de fluxo. Em geral o expressionismo traz coisas com uma
deformação, etc. e isso teve um trânsito enorme na América Latina e, no Brasil, com alguns artistas ex-
cepcionais como um Goeldi.
Não estou falando mal desse momento. O que eu quero dizer é que a primeira vez que a arte brasilei-
ra assume um comportamento mais semelhante ao das vanguardas internacionais, ou seja, “vou discutir
agora forma e linguagem”, quem faz isso são os abstracionistas. O Brasil vivencia isso de uma maneira
compacta e concentrada ao apagar as luzes da modernidade, com produtos fantásticos. O construtivis-
mo brasileiro tem coisas fantásticas. Apropriando-me de uma frase da Tarsila, não sei bem como é, mas
tem a ver com esse espírito: é o serviço militar da forma. É como se os artistas, enfim, tivessem entendido
a questão moderna, radical e definitivamente.

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PSD_ Para você, as bases desse vigor da arte contemporânea brasileira encontram-se nesse território
construtivo mais denso que se forma?

FC_ Não diria só construtivo. Diria uma pesquisa mais abrangente. Por exemplo, um Antônio Bandeira,
que foi para a França... Porque o construtivismo é mais fácil de você precisar o legado. Os construtivistas
tiveram uma produção textual, intelectual. Eles refletiram sobre princípios, no caso dos concretistas pau-
listas, ou sobre o estatuto da experiência e da expressão com a geometria, no caso dos neoconcretos. E
os informais não produziram muitos textos, porque eles estavam mais ligados a uma expressão que vinha
de dentro, a idéia de uma liberdade de expressão. Mas diria, em termos amplos, que os abstracionismos,
os geométricos e o informal, estão nessa raiz. Não diria que eles estão na raiz da arte contemporânea. Há
uma profunda descontinuidade entre o que chamamos de moderno e o contemporâneo que é a quebra
da idéia progressiva, da idéia de uma forma e de uma pesquisa formal autônoma. Não estou valorando
isso. Estou apenas reconhecendo e constatando.
A arte brasileira, por ter vivido radicalmente o canto do cisne da autonomia da arte, pode também
radicalmente se desencantar dessa autonomia mais ou menos ao mesmo tempo em que o mundo in-
teiro, com composições muito específicas aqui no Brasil. Porque normalmente pensamos que uma mu-
dança no campo da produção cultural é sempre trazida por outra geração. Quase nunca pensamos que
existem artistas que fazem a transição dentro do seu próprio trabalho. Por exemplo, não acho casual que
o catálogo da exposição Nova objetividade brasileira (1967) seja apresentado por dois artistas que vieram
desse canto do cisne da modernidade: o Waldemar Cordeiro, que era o grande teórico da área plástica
do concretismo paulista, que escreve sobre os “popcretos”; e o Hélio Oiticica, um dos grandes artistas do
neoconcretismo, que vai justamente escrever o Esquema geral da nova objetividade.
Por exemplo, no caso brasileiro, contemporaneidade é sobredeterminada por uma coisa que é espe-
cífica, que é a ditadura militar. A contemporaneidade do Brasil começa com um teor político fortíssimo
que a pop, por exemplo, não tem. Essa é uma característica. Mas existe uma espécie, talvez até por causa
da situação política, existe uma frente composta pelos artistas jovens, então jovens, da nova figuração
– Antonio Dias, Gerchman, Carlos Vergara, Roberto Magalhães e outros – e artistas originários da expe-
riência construtivista, que se juntam na nova objetividade. Não estão juntos no Opinião 65, mas estão
juntos na nova objetividade.

PSD_ Houve participação do Hélio em 1965 com os parangolés. Ele participou com os parangolés. Isso
foi importante. A diferença é que na nova objetividade é organizada pelos artistas, enquanto Opinião 65
são dois marchands que organizam: a Ceres Franco e o Jean Boghici.

FC_ Esse caso dessa frente no Brasil é peculiar e eu entenderia por um lado, por um inimigo comum, que
é a ditadura. Não é por acaso o mote do Mário Pedrosa, “exercício experimental da liberdade”, e o do
Hélio Oiticica, “da adversidade vivemos”. Se compusermos os dois ele cria um campo específico para o
surgimento da arte contemporânea no Brasil. E, por outro lado, esses artistas, no caso o Hélio e o Walde-
mar Cordeiro, mas também as Lygias, vivenciaram na produção deles uma passagem do moderno para
o contemporâneo. Os objetos do Waldemar Cordeiro. Quando ele morre, ele está pesquisando a arte
iônica, com linguagem de computador. E o Hélio com os parangolés.

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PSD_ Podemos falar agora, também dentro desse quadro geral muito importante e introdutório, dessa
questão do vigor da arte contemporânea brasileira. Pinço assim artistas como Cildo Meireles, Tunga, José
Resende – com o trabalho apresentado em uma das edições do ArteCidade levantando seis vagões de
trem. São trabalhos que têm uma força, uma presença plástica. Babel do Cildo, ou A luz de dois mundos,
de Tunga, falando de trabalhos mais recentes. Como O sermão da montanha - Fiat lux, de Cildo Meireles,
no final dos anos 70; ou A luz de dois mundos, Lizarts do Tunga; os trabalhos de José Resende, até mesmo
a pintura do Antonio Dias contemporânea, que é uma pintura no sentido de um controle técnico, de uma
artesania formidável, mas ao mesmo tempo tem uma força plástica diferenciada. Gostaria que você fa-
lasse mais sobre esse “serviço militar da forma”, quando você toma emprestado da Tarsila, e como você
vê essa produção em relação à produção de outros países que eu não vejo. Eu diria mais, depois podemos
até conversar discorrendo sobre isso. Vejo uma maior afinidade eletiva entre a produção contemporânea
brasileira, a alemã e a italiana, do que com a francesa, anglo-saxônica em geral.
Vejo um parentesco mais forte nas afinidades eletivas, que é uma arte com uma reflexão rigorosa
sobre ela mesma, mas que não renuncia à generosidade plástica. Chamaria isto de poética da reflexão,
ou seja, uma arte que se materializa plasticamente com vigor e, ao mesmo tempo, esse vigor não se
entrega em um simples jogo retiniano. Exige uma cumplicidade do espectador com os problemas formu-
lados internamente ao próprio trabalho, que seria uma densidade reflexiva forte. Isso é um diferencial
que vejo. Encontro isto na arte contemporânea alemã, encontro na arte contemporânea italiana. Encon-
tro menos na arte contemporânea francesa, por exemplo, menos na arte contemporânea inglesa. Esses
países têm alguma coisa de parentesco. Você falou de uma condensação da experiência moderna muito
forte, que antecede à descoberta da arte contemporânea no Brasil, que faz uma experiência condensada
muito forte do que existe de melhor na experiência moderna nos processos de abstração.
Se nós tivemos uma debilidade na questão das aquisições modernas aqui, por motivos históricos
muito óbvios e claros de país periférico, em uma época que não se falava, nem se sonhava em falar em
globalização, embora processos de intercâmbio internacional já existissem, não existiam na escala que
existe hoje. Mas eu via uma diferença, por exemplo, quando encontro uma produção de uma Rebecca
Horn, de um Joseph Beuys, de um Anselm Kiefer, de um Baselitz ou de um Luciano Fabro, de um Jannis
Kounellis, de um Mario Merz... Encontro mais afinidades com esses procedimentos, esses processos e
essas produções do que com a produção de um Support/Surface, dos desdobramentos de um Support/
Surface, de uma nova pintura de um Louis Cane, por exemplo, em um trabalho mesmo que pensado mais
rigorosamente de um Boltanski e a Messager. Vejo menos afinidade com a produção brasileira nesse
sentido de uma densidade poética generosa plasticamente e, no entanto, não foge essa generosidade
plástica a uma reflexão.
Esses dois países, Alemanha e Itália, tiveram um interregno na modernidade. Uma por causa do
nazismo e a outra por causa do fascismo. É um blefe pensar que o fascismo foi moderno e fez conces-
sões. É claro que ele é muito menos duro do que o nazismo na Alemanha, mas o fascismo, aquela casa
de Cuomo moderna na arquitetura, a demonstração de arquitetura moderna na Itália, aquilo é uma
exceção à regra. O que Mussolini gostava mesmo era da estação central de Milão. Uma coisa horrível
do início do século XX, final do século XIX. Aquilo que era a arquitetura dos sonhos do Mussolini, que
era elogiado, que ele gostava.
Queria que você falasse um pouco como pensarmos uma produção como essa de um Cildo, de um
Waltercio, de um José Resende, de uma Carmela Gross, de um Tunga, de um Antonio Dias, dentro desse

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panorama que não vejo, em relação pelo menos ao restante da América Latina, nenhum corpus de pro-
dução artística com a mesma densidade e o mesmo vigor. Não sei se você concorda com isso.

FC_ Essencialmente sim. Volto novamente para a experiência compactada dos abstracionistas dos anos
50. Se olharmos um sintoma disto, o Manifesto Ruptura, lançado em 1952, ele rompe simultaneamente
com o naturalismo acadêmico renascentista, com o naturalismo errado, como eles dizem, “das crianças,
dos loucos, dos primitivos, dos surrealistas, dos expressionistas” e, no final, eles rompem com o abstra-
cionismo informal, com o abstracionismo hedonista, produto do gozo para tudo. O Brasil é o único país
que em um manifesto só rompe com tudo aquilo que os outros manifestos romperam ao longo da Histó-
ria da Arte. São sintomas. É sintomático que o Manifesto Ruptura precise se reportar a Leonardo da Vinci.
A arte antiga foi grande quando foi inteligente. Essa coisa da experiência formalista, digamos assim, ou
formal, melhor dizendo, das abstrações no Brasil foi vital e, na verdade, poucos países da América Latina
tiveram essa experiência. Poderia citar a Argentina com o Concreto-Invención e o Madí ainda nos anos
40. Poderia citar a Venezuela com Soto, Cruz Diaz, etc. A Colômbia mais timidamente e, não é por acaso
que esses países, afora o Brasil, são os países que têm a produção artística contemporânea hoje em dia
das mais interessantes na América Latina.
Essa experiência do “serviço militar da forma” livrou-nos, em certa medida, da discussão temático-
nacional da brasilidade. Os países do resto da América Latina que não tiveram essa experiência ficaram
imersos nessa questão, que é um problema americano, em geral, não só latino-americano. É o fato de
eles serem uma espécie de outra margem do Ocidente. Porque você não pode comparar os efeitos da co-
lonização portuguesa, espanhola, mesmo americana nas Américas, com a colonização inglesa na Índia.
Na Índia, eles continuaram falando as suas mesmas línguas, tendo os mesmos deuses, etc. Aqui houve,
enfim, uma transferência grande de várias culturas. A busca da especificidade desses países latino-ame-
ricanos, certa recusa em se inscrever. Acho que o Brasil tem essa característica. Ele quer se inscrever no
concerto internacional como se ele fosse igual aos países da Europa ou dos Estados Unidos. Ele não quer
reivindicar uma diferença de teor, sei lá, expressivo. Na música, mesmo a música brasileira, é muito dife-
rente da experiência musical desses países. Isso é vital. De que maneira?
No Brasil criou-se uma história da arte, não importa se ela é verdadeira ou falsa, se historiografica-
mente ela carrega no construtivismo – que acho que carrega –, mas o fato é que o artista jovem brasileiro,
na sua lista de referências, ele pode ter, como você mesmo disse dentre os artistas que você mencionou,
um Cildo, um Barrio, um Waltercio, mais atrás um Antonio Dias, um Vergara, mais atrás ainda um Hélio
Oiticica, um Waldemar Cordeiro, uma Mira Schendel, e quando olhamos, temos uma história da arte que
nos referencia que tem, no mínimo, uns cinqüenta e tantos anos. Poucos países da América Latina têm
essa história. Isso cria um espaço de referência muito grande. E isso certamente influenciou a produção
desses artistas que você mencionou. Como um Cildo, por exemplo, que tem uma contundência, uma
força, uma contemporaneidade inegável, mas que, ao mesmo tempo, não abre mão do mínimo de for-
malização que assegura a esse trabalho, inequivocamente, um lugar no campo da arte. É muito diferente
de outras experiências que vêm da desmaterialização, etc. etc.
O que você não mencionou, mas eu acrescentaria, é que no Brasil hoje em dia, ao lado dessa, diga-
mos, se posso chamar assim, tradição inaugurada nesses últimos 50 anos, novas modalidades de produ-
ção contemporânea estão surgindo. Por exemplo, você tem os ativistas, os coletivos. Você tem pessoas
que estão fazendo uma gigantesca produção baseada na experiência da videoarte. Você tem desdobra-

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mentos da arte conceitual. A arte brasileira hoje em dia, contemporânea, é ainda muito mais plural do
que essa alternativa que emergiu geneticamente dos desdobramentos do “serviço militar da forma”, há
40, 50 anos atrás. Você tem hoje em dia uma diversidade impressionante na produção artística brasileira.
Essa diversidade não faz parte de um mesmo fluxo, são pontos independentes que vão se encontrando.
Isso tem a ver com minha própria experiência, a experiência dos alunos da Anna Bella Geiger, muitos, por
exemplo, Paulo Herkenhoff foi aluno da Anna Bella. Não foi propriamente aluno, ele freqüentava as aulas
dela. Eu fui aluno, a Sônia Andrade foi aluna, a Letícia Parente, que fez o vídeo Made in Brazil foi aluna.
É uma genealogia que foi aberta e que não passa nem pela experiência do construtivismo, porque Anna
Bella vinha da abstração informal, nem do experimentalismo de origem neoconcreta. É outra via que se-
meou, curiosamente, um monte de jovens artistas que hoje em dia vêem na Anna Bella uma referência,
coisa que a tradição construtivista negava.
A arte brasileira... Por exemplo, São Paulo tem uma experiência muito diferente. O que se chama de
arte conceitual em São Paulo, a meu ver, é antes um desdobramento da poesia concreta do que um pro-
jeto de desmaterialização radical. Um Julio Plaza, por exemplo, tem muito mais a ver com a tradição da
poesia visual, poesia concreta, do que com a desmaterialização da arte conceitual, porque há uma preo-
cupação com a página, com a localização da letra, da palavra, coisa que as experiências conceituais mais
radicais estavam pouco se importando. Diria até que existe uma Escola Paulista – como tem a Escola da
Califórnia, a Escola de Nova York – e uma Escola Carioca. O Rio de Janeiro, talvez por influência do Hélio,
mas também de muitos outros, desenvolveu poéticas mais, não saberia dizer, povera não é a palavra. E as
coisas em São Paulo muitas vezes precisam mostrar uma produção complicada, com helicóptero, filman-
do de cima. É a Ruth Escobar derrubando o teatro para fazer o balcão. É como a mulher de César, onde
tudo tem que parecer caro. Não estou querendo diminuir a experiência do pessoal de São Paulo, que eles
têm artistas maravilhosos, desde o Flávio de Carvalho, um dos grandes antecedentes da produção con-
temporânea brasileira, passando por Mira Schendel, por Waldemar Cordeiro, por Luiz Sacilotto. Não tem
nada a ver de carioca X paulista. Há uma diferença de tradição. O pessoal em São Paulo, tanto críticos
quanto artistas, todos são doutores, pós-graduados, mestres. Aqui, a formação se deu contra a Escola de
Belas Artes durante muito tempo, vide Iberê Camargo e muitos outros, e só recentemente o artista e os
teóricos do Rio de Janeiro estão preocupados com uma carreira acadêmica, por uma questão simples: na
hora das bolsas, na hora dos benefícios internacionais, leva quem tem mais pontos na carreira docente,
acadêmica ou sei lá o quê. São coisas que vão transformando a realidade da produção artística.
Esse setor da arte brasileira que você mostrou e que são os grandes artistas da passagem da década
de 1960 para 1970. Por exemplo, o Cildo, o Antonio Dias, o pessoal que veio da nova figuração.

PSD_ Você estava falando dessa produção e citou inclusive Flávio de Carvalho. Muito importante isso
porque Flávio de Carvalho é realmente uma figura singular.

FC_ E que ainda não foi pensada.

PSD_ Não.

FC_ Estava falando das diferenças entre, estava falando entre aspas de uma “escola carioca” e uma “es-
cola paulista”. Temos que considerar também artistas como um Artur Barrio, por exemplo, que não é

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propriamente um artista que trabalhe no sentido dessa formalização e é um artista que já existe desde
o final dos anos 60, atuante na arte brasileira. A produção contemporânea tem várias genealogias. Tem
a genealogia do grupo de São Paulo; do Rio de Janeiro; tem os experimentais; tem a vertente mais con-
ceitual no início da Anna Bella; tem a experiência do Barrio. Mas gostaria de chamar atenção para uma
coisa, porque hoje em dia há uma discussão internacional sobre arte política. Diria que uma produção
como a produção brasileira sempre foi política. O surgimento da arte abstrata no Brasil é um triunfo
político. Se observamos a fortíssima hostilidade de um Portinari, de um Di Cavalcanti à emergência de
um abstracionismo. A própria idéia do Hélio, “Da adversidade vivemos”, mostra que a produção artística
brasileira sempre é uma conquista que conspira contra as limitações da própria realidade, a ausência de
um mercado de arte forte, de uma série de traços que caracterizaram as vanguardas européias no pas-
sado e o mundo contemporâneo hoje em dia. Embora não se tenha mais uma arte estética, digamos, no
main stream na produção contemporânea internacional, o mercado está mais ativo e mais forte do que
nunca, proliferando feiras e todas essas coisas.
Temos que pensar a produção contemporânea brasileira desde a sua gênese, lá na passagem dos
anos 50, no início dos anos 60, como uma coisa que é muito marcada pela genealogia construtivo-
nova figuração, mas que outras tendências foram acontecendo paralelamente. A exposição da nova
figuração em São Paulo, com o grupo Rex, com o Nelson Leirner, etc. é muito diferente daquela que
foi desenvolvida aqui no Rio de Janeiro. Isso é muito rico, um panorama com um campo complexo de
relações e de conexões entre essas várias vertentes, mas na historiografia brasileira ainda tendemos –
e eu mesmo aqui referendei ao falar do “serviço militar da forma” – a pensar em uma espécie de main
stream que seria pela via construtivista. Mas não é a única. Existem outras que se entrecruzam na pro-
dução contemporânea atual.
Isso é parte do caldo que empresta qualidade à produção contemporânea brasileira, que é o fato de
ela ser muito plural e possuir genealogias independentes, mas não significa que não se entrecruzem em
algum momento posterior. Não estou falando de linhagens puras. Estou falando de linhagens que têm
origens separadas, mas que frequentemente se entrecruzaram. O trabalho do Cildo, por exemplo, as In-
serções em circuitos ideológicos, a ação do Antônio Manuel no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
que se despe na inauguração do Salão Nacional de Arte Moderna (1970). Ou Flávio de Carvalho andando
com traje tropical em São Paulo nos anos 1950 (1956). Tudo isso são atitudes que poderiam fazer parte
de uma genealogia que fundamenta certo tipo de ativismo, embora tenhamos algumas diferenças mui-
to grandes. Por exemplo, quando o Barrio faz a intervenção no Ribeirão do Arruda, em Belo Horizonte;
quando o Antônio Manuel fica nu no MAM do Rio de Janeiro; quando o Cildo Meireles, já mais tarde, nos
anos 80, faz o Fiat lux. São ações contundentes, inclusive do ponto de vista político, por outro lado põem
em risco em primeiro lugar a integridade e a figura do próprio artista. Ele está correndo risco. Os ativistas
hoje em dia muitas vezes botam outros em risco enquanto eles ficam protegidos em uma espécie de ano-
nimato que tem muito mais a ver com certa modalidade de se fazer política no mundo atual do que o tipo
de politização de que estava investido em um país que era uma ditadura militar, onde o inimigo comum
eram os militares. Há uma diferença, mas podemos estabelecer uma genealogia. No entanto, você pode
fazer uma triagem desses artistas que estão na origem disso. Um Flávio de Carvalho, genealogicamente
não tem nada a ver com Cildo Meireles e não tem nada a ver com Antônio Manuel. Mas eles se cruzam em
uma história. Se você quiser fazer uma história do ativismo, podem-se considerar as ações Experiência
nº 2 e Experiência nº 3, do Flávio de Carvalho, espécies de proto-ativismo lá atrás. O que faz com que o ar-

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tista brasileiro, para ser ativista, não precise necessariamente lançar mão do situacionismo que grassou,
por exemplo, na Áustria do início dos anos 60.
Há uma espécie de movimento, não acho que é orquestrado, não acho que é causalidade, que possa
ser pensado como uma linha única, mas começa a acontecer uma série de manifestações que eventual-
mente se cruzam. Podem ter origens diferentes, ou o contrário, como o Ronaldo Brito mostrou no livro
Neoconcretismo – Vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro (Funarte, 1985). Neoconcretismo tem
duas direções posteriores, uma que é o vértice dessa consciência construtiva que encontramos nas pes-
quisas do Amílcar, do Weissmann, etc. e uma ruptura com esses postulados através da ação das Lygias e
do Hélio. O neoconcretismo é uma genealogia que se bifurca. Você tem genealogias que nascem bifur-
cadas e que no futuro se entrecruzam. O que mostra que é na produção, na esfera da produção, falando
em termos de produção, da produção artística brasileira uma complexidade que pode explicar também
essa qualidade. Hoje a produção artística brasileira, embora todos nós tomemos posição ou preferências
dessa ou daquela coisa, ela tem um leque de possibilidades que escapam muito a essa genealogia do
construtivismo, que evidentemente tem sua força e seu papel, mas que se tornou uma espécie de main
stream que já origina dissidências. Não é por acaso que certos artistas jovens começam a negar. “Morra
Cildo Meireles” e essas coisas que eles às vezes falam. Não vou julgar se é bobagem ou não, senão en-
traremos na discussão do cinema de que o Glauber é uma merda. Não estou querendo dizer isso. O fato
é que a existência dessas coisas mostra que outras alternativas já não reconhecem nessa genealogia
construtiva a sua genealogia. Isso é muito interessante.

PSD_ Você estava falando antes que uma das características dessa arte contemporânea brasileira vigo-
rosa era conciliar não somente uma dinâmica política, uma interrogação reflexiva, questões reflexivas,
mas também que ela se colocava com exigência de formalização.

FC_ Sem dúvida.

PSD_ Na produção atual você vê uma herança desse tipo de preocupação? E, por exemplo, em que artis-
tas você veria na produção mais recente?

FC_ Diria que não dá para afirmar, não dá para encontrar ou reconhecer na produção atual uma hege-
monia dessa tradição. Dentre os artistas brasileiros que têm maior projeção internacional hoje em dia,
talvez na obra do Ernesto Neto eu pudesse ver ainda uma permanência ou uma persistência dessa con-
temporaneidade formalizada. Sem dúvida nenhuma. Ou, mas aí não tem nada a ver com essa geração,
no caso de alguma pintura brasileira, como da Cristina Canale, que é uma pintora maravilhosa, a Beatriz
Milhazes, a Adriana Varejão, essas pessoas que têm uma formalização, elas não vêm do construtivismo,
no caso dessas pinturas. Mas elas têm essa formalização. Um Vik Muniz, em certa medida, tem essa for-
malização e não vem dessa genealogia. Muitos outros, sobretudo os artistas mais jovens, poucos deles
têm a ver com esse tipo de coisa.

PSD_ Às vezes nem sabe o que é construtivismo.

FC_ Quando li outro dia que um jogador da seleção brasileira não sabia o que foi 1958. Aliás, é incrível.

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Hoje você fala de alguma coisa para um jovem que ele não conhece, a resposta é: “Não é do meu tempo”.
E a minha, invariavelmente, é: “Nem Ramsés II”. Não é do meu tempo e sei quem é. A Theda Bara nem é
do meu tempo e sei quem é. Todos nós sabíamos.
Há uma pergunta que temos que fazer. Por que a consciência e o interesse pela história se tornaram
uma coisa tão difusa quando era uma coisa tão concentrada e intensa nos anos 60, 70, dos movimentos
de massa, dos movimentos estudantis? É uma questão interessante. Os jovens artistas, muitas vezes,
têm uma autoconsciência da sua inscrição na arte brasileira que passa por suas vivências pessoais. Isso
não é propriamente uma novidade, mas isso é um problema porque para nós, aqui do outro lado, os cura-
dores, os críticos, temos que inscrever esses fenômenos, essas manifestações, em um conjunto universo
que não é o de um conjunto de intersubjetividade. Trabalhos em rede, certos coletivos. É interessante
pensarmos nisso, porque os artistas modernos se agrupavam em torno de questões plásticas formais
comuns. Os neoconcretos, para não irmos longe, uma Superfície modulada ,da Lygia Clark, uma escultura
do Amílcar, um Metaesquema, do Hélio Oiticica, são trabalhos pessoais, mas que dialogam com muito
mais força entre eles do que se comparados a um Hermelindo Fiaminghi ou a um Waldemar Cordeiro,
que por sua vez são concretos e têm mais afinidades entre eles.
Os coletivos não são mais formados em torno dessas questões que seriam questões estéticas ou
artísticas. Eles são formados quase como comunidades intersubjetivas e que talvez operem muito mais
como aquele conto do Borges do Zoológico do imperador, do que como uma leitura biológica quase, onde
macaco é macaco, não é periquito. Neoconcreto é neoconcreto, cubista é cubista, e assim por diante.
Hoje você tem, nesses coletivos, muitas vezes o agrupamento de pessoas que podem fazer parte de ou-
tros coletivos. É uma coisa meio fluida. O problema da discussão das identidades – não estou falando de
identidades regionais ou nacionais, não estou falando disso –, da identidade do que é o artista, do que é a
autoria de um trabalho. Essas coisas são muito fluidas. Mas diria que essa é uma característica do mundo
contemporâneo como um todo. Esse deslizamento das fronteiras, até porque acho que se a imagem do
nosso mundo é a rede, ela é uma imagem horizontal, oposta à imagem vertical do especialista. A rede
qualifica identidades a partir das conexões. Quando você se reconecta, você não tem mais a mesma
identidade. E não estou falando da Internet. A Internet é o exemplo clamoroso e óbvio disso. Mas, por
exemplo, nos coletivos hoje em dia há uma questão, uma discussão muito curiosa que é uma discussão
sobre autoria: se é coletivo, de quem é a autoria? Do coletivo.
Há certos artistas que foram identificados como autores de determinadas ações e que hoje dizem: “Ah,
mas não fui eu não. Foi a minha namorada que fez”. A própria noção de autor que plasma como um sujei-
to autor, seu estilo individual, sua unidade na obra, é uma noção que é muito fluida hoje em dia. Ela pode
ser muito forte em alguns artistas contemporâneos.

PSD_ Felipe Barbosa, por exemplo.

FC_ Felipe Barbosa, por exemplo. O Felipe Barbosa estaria nessa tradição formalizada, só que o Felipe
Barbosa não tem nada a ver com essa genealogia. Nada a ver com essa genealogia do construtivismo.
Até porque hoje é mais fácil você pensar livre daquela história determinista e holística que o marxismo
apresentava. Hoje se pode pensar a contribuição individual em outro tipo de registro. Existem pessoas
que por tendência individual, por competência, por habilidade, encontram em um processo de trabalho,
cuja chegada seja uma formalização mínima, a única possibilidade de produzir. Existem outros que têm

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plena familiaridade com mídias menos materializadas, menos formalizadas. Hoje, mais do que essas ge-
nealogias rigidamente estabelecidas, prevalecem tendências pessoais e as pessoas vão procurando en-
contrar suas respectivas tribos. Mas as tribos têm uma mobilidade que os “ismos” não tinham, sobretudo
entre os ativistas, nos coletivos, nas intervenções. E é também uma manifestação paradoxal, porque
muitas dessas pessoas que questionam a idéia de uma autoria individual na sua própria prática, quando
estão lidando com uma instituição, por vezes elas são rigorosamente autorais. É curioso isso. “Você não
vai mexer nesse trabalho, porque o trabalho é meu”. No entanto, quando está fora do contexto institu-
cional, porque também há certas coisas que são um pouco confusas. O Brasil é um país cujo calcanhar
de Aquiles na nossa área, na área das artes é justamente o sistema institucional e mercado. Lutar contra
a instituição no Brasil é lutar contra o que não existe. As pessoas tinham que lutar por instituições fortes
que não estivessem à mercê do arbítrio deste ou daquele político, desse ou daquele indicado por esse po-
lítico e, no entanto, por uma espécie de afinidade com práticas antiinstitucionais então em curso lá fora.
É muito fácil detonar os museus quando você vive em uma cidade que tem o Louvre, porque o Louvre não
vai acabar. Isso que é interessante.

PSD_ Quando cheguei, voltei após oito anos fora, final dos anos 70, encontrei um movimento antipsiqui-
átrico, mas não havia psiquiatria no Brasil, não havia hospital psiquiátrico no sentido francês da palavra,
no sentido alemão da palavra, no sentido italiano da palavra. Ou seja, não havia uma psiquiatria institu-
cionalizada, assistindo à população psiquiatricamente, como os CNPT’s na França.

FC_ Mas as pessoas já tinham lido a História da loucura.

PSD_ Já tinham lido História da loucura, já tinham lido sobre Guatarri, a experiência de Guatarri.

FC_ Que são grandes pensadores.

PSD_ São ótimos. Mas transportado para cá, ou seja, você tinha pardieiros para depósitos de loucos
pobres na lama, sem nem lençol, sem cama.

FC_ Você vai lutar por lençol, cama. É claro.

PSD_ A mesma coisa é a luta contra os museus onde os museus não são instituídos.

FC_ Além disso, o forte na arte brasileira é a esfera da produção. As outras esferas, como a esfera da
reflexão, também têm se fortalecido. Mas a esfera institucional de museus já avançou, sem dúvida ne-
nhuma, mas ainda é pífia se comparada aos paradigmas que nós brasileiros nos reportamos sempre. Mas
há hoje um discurso de curadores do Primeiro Mundo que são contra essas instituições talvez até porque
dormindo lá, inconscientemente, eles sabem que eles podem gritar que as instituições vão continuar
existindo. Porque se pudesse haver uma troca efetiva, dávamos alguns bons artistas brasileiros, nos da-
vam Picasso. Isso eu não reclamaria. Faria uma troca. Mas a questão não é essa.
Há nesses coletivos a identificação de um inimigo que também passa por essa subjetivação que
marca todas as práticas no mundo contemporâneo, inclusive as práticas curatoriais. O curador hoje em

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dia apõe a sua subjetividade à subjetividade defendida pelos artistas. Quando a subjetividade curatorial
contradiz a subjetividade do artista, é fácil identificar no curador o seu opressor, em um esquema meio
esquisito de compreensão do que seria uma micropolítica. No entanto, o circuito de arte brasileiro está
cheio de exemplos muito mais retrógrados desde escolas de arte a determinados arautos de conserva-
dorismo que, curiosamente, não são tocados por esses coletivos. Isso é um fenômeno interessante a ser
pensado. Na ditadura, o inimigo comum, quem totalizava a luta de todos os segmentos, era o corpus da
ditadura. O inimigo comum unificava a diáspora que havia do lado de cá. Mas sem inimigo comum, a
diáspora acaba escolhendo adversários pontuais para suas investidas ou suas ações. É um caso interes-
sante a ser pensado.
Não estou moralizando. Só estou constatando coisas.

Entrevista realizada em 15 de abril de 2008 na residência de Fernando Cocchiarale, no Rio de Janeiro

Fernando Cocchiarale (Rio de Janeiro, RJ, 1951)


Vive e trabalha no Rio de Janeiro
Crítico de arte, curador e professor. Professor de Estética e do Curso de Especializa-
ção em História da Arte e Arquitetura no Brasil, na PUC/RJ e professor da Escola de
Artes Visuais do Parque Lage-RJ. No período entre 1972 e 1974, estudou no Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ) e participou de várias mostras, es-
pecialmente de vídeo, no Brasil e no exterior. Foi um dos primeiros artistas visuais
a utilizar a fotografia no contexto das artes contemporâneas, tendo integrado, no
início da década de 1990, a mostra retrospectiva , no Parque Lage, no Rio. Em 1977,
graduou-se em filosofia pela PUC do Rio de Janeiro e passou a escrever, mais siste-
maticamente, para publicações de arte. Foi coordenador de Artes Visuais da Funarte
(1991-1999), curador-coordenador do programa Rumos Itaú Cultural Artes Visuais,
das edições 1999-2000 e 2001-2002, e curador do Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro (2000-2007). Tem textos publicados em catálogos e revistas de arte. É autor
de livros como Lygia Pape – entre o olho e o espírito (Mimesis, 2004) e Abstracionismo
geométrico e informal (Funarte, 1987), junto com Anna Bella Geiger. Foi curador de
exposições como O Corpo na arte contemporânea brasileira (Itaú Cultural, 2005).

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