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arte brasileira contemporânea

um prelúdio
Entrevistas com críticos e curadores de arte selecionados
por Paulo Sergio Duarte
Rio de Janeiro, maio a julho de 2008

As entrevistas que se seguem foram feitas pelo curador


e crítico de arte Paulo Sergio Duarte, visando à inserção
de trechos dos depoimentos no DVD que acompanha
arte brasileira contemporânea este livro e que é dirigido por Murilo Salles. O projeto
um prelúdio
propôs ao curador o desafio de conceituar e fazer uma
introdução (em mídias diferentes: um livro e um DVD)
capaz de oferecer chaves ao público não especializado
para a compreensão do complexo e plural universo da
arte contemporânea. Agrupando artistas com diver-
sas linguagens e abordando as principais questões que
trazem surpresa e perplexidade para este público, sem-
pre à luz da história e tecendo suas relações com a arte
no mundo.
Ao longo do trabalho, percebemos que essas entre-
vistas, se publicadas na íntegra, seriam excelente fonte
de pesquisa e informação. Um material que permitirá
cotejar a diversidade de análises críticas e, simultanea-
mente, as coincidentes questões que tocam os teóricos
especializados e induzem a uma ampla reflexão sobre a
arte hoje, excluindo os conceitos fechados.
É este o trabalho que a edição do livro Arte Brasile-
ira Contemporânea, um prelúdio mostra neste CD Rom.
Esperamos que sejam um ponto de partida para no-
vas investigações e algumas luzes para os leitores.

Silvia Roesler,
Rio de Janeiro, 7 de outubro de 2008
arte brasileira contemporânea
um prelúdio

sumário

1_ Ana Paula Cohen 1


2_ Fernando Cocchiarale 29
3_ Ferreira Gullar 41
4_ Gloria Ferreira 60
5_ Ivo Mesquita 73
6_ Lisette Lagnado 91
7_ Luisa Duarte 104
8_ Luiz Camillo 116
9_ Luiza Interlenghi 131
10_ Marcelo Araujo 147
11_ Paulo Herkenhoff 160
12_ Paulo VenâncioFilho 174
13_ Rodrigo Naves 187
14_ Ronaldo Brito 195
15_ Sônia Salzstein 208
16_ Sugestões de leitura
arte brasileira contemporânea
um prelúdio

créditos

Projeto e proponente
Instituto Cultural PLAJAP/ Jacqueline Plass
Projeto, coordenação e edição
Silvia Roesler Edições de Arte
Projeto gráfico
eg.design
Edição de textos
Paulo Sergio Duarte e Fernanda Lopes
Revisão e padronização
Alexandra Bertola
Versão para o inglês
Steve Yolen e Peter Warner
Transcrição das fitas gravadas
Vania Chalfum Gomes de Almeida e
Margaret Bugarin Mansur
Transcrição para a entrevista de Ronaldo Brito
Danielle Prado e Reynaldo Picozzi
Produção do CDRom
CDA Produção Gráfica e Digital
Ronaldo Brito
Entrevista realizada por Paulo Sergio Duarte

PAULO SERGIO DUARTE_ Ronaldo, podemos começar conversando sobre essa questão da arte contem-
porânea. Qual o sentido que você vê, hoje, nesse sintagma mesmo – a arte brasileira contemporânea, a
arte contemporânea de uma forma mais geral – e o que mudou em relação a um período em que você foi
um dos introdutores, com rigor, dessas questões no cenário brasileiro, quando você era crítico do jornal
Opinião na década de 1970?

RONALDO BRITO_ Olha Paulo Sergio, o que eu proporia hoje seria uma rediscussão do próprio conceito
de contemporaneidade, porque para nós aquilo era um horizonte indiscutível e estava sob o princípio do
experimentalismo. A contemporaneidade brasileira tinha uma característica que podia ser, por um lado,
problemática, mas, por outro, muito estimulante, porque se vinculava à própria modernidade, se vincula-
va à instituição dos valores modernos de fato. Para nós, eu me lembro, trabalhamos juntos, quando você
fez o projeto ABC, que era um projeto onde conviviam Waltercio Caldas e Tunga, com Sérgio Camargo,
com Eduardo Sued, porque isso era muito local, isso se devia a essas características da modernidade
incipiente sempre recomeçada no Brasil. Era muito distinto, imagino, do contexto europeu, onde evi-
dentemente o moderno, a linguagem moderna, eram linguagens que ocupavam um outro lugar institu-
cional e cultural das linguagens contemporâneas. Isso no Brasil, na precariedade brasileira, essas coisas
formavam quase como um volume só. Isso foi muito bom, eu imagino, para a nossa formação pessoal,
pelo contato com linguagens muito vivas. Acredito que essas mesmas linguagens, lá fora, já estivessem
muito mais institucionalizadas, ou pelo menos a atitude desses artistas já fosse muito menos aberta, e
aqui a gente podia desfrutar desse convívio aberto com Amílcar de Castro, com Eduardo Sued, com Sér-
gio Camargo. Isso foi muito importante para nós.
De qualquer maneira, pessoalmente, eu estava envolvido em um horizonte de contemporaneidade
que seria uma modernidade modificada, uma modernidade hipercrítica. Na verdade, uma modernidade
radicalizada. Seria tudo, menos um pós-moderno, pelo menos no seu desenho oficial hoje que pressupõe
o esgotamento da mentalidade moderna, ou da série de linguagens modernas, e do processo crítico
mesmo da modernidade.
Acredito, e digo sempre aos meus alunos, sou obrigado a ponderar, que o conceito de contemporâ-
neo claro que é muito mais do que cronológico. Ele envolve uma expectativa, se não um projeto, mas uma

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expectativa de correspondência e de transformação do mundo que eu sinceramente não sei se está em
vigor. Porque o grande acontecimento, pelo menos da década de 1990 para cá, tem sido a transformação
do mundo da arte, a escala do mundo da arte em todos os sentidos, e o fato de que finalmente se entroniza-
ram as artes plásticas no processo da cultura de massa, onde através dos museus, através das instituições,
a arte toma lugar na indústria do lazer, na indústria do turismo. Isso tudo fica na ordem dos espetáculos de
massa. As linguagens contemporâneas, você bem sabe porque participava disso comigo, deixam de ter um
atrito com esse mundo. Esse mundo é muito mais multiforme, é muito mais potente. Elas tomam o lugar,
elas se encontram ali docilmente, pacificamente, e o problema se deslocou muito daquela expectativa que
pretendia ser uma autocrítica da modernidade, ou uma crítica do idealismo moderno, mas que, de fato,
hoje isso não se consuma. Ironicamente, a arte moderna finalmente veio ao plano do mundo, à superfície
do mundo, mas como sempre veio em uma forma não-artística, não-poética. Veio quase como o contrário
de si mesma, sobre a égide do divertimento, sobre a égide da cultura no sentido mais estéril.

PSD_ Acredito que essa indiferenciação entre cultura e arte é um traço contemporâneo, e isso permite,
por exemplo, que uma instituição como o Guggenheim alterne uma exposição de motocicletas Harley-
Davidson, com uma exposição de Ellsworth Kelly, depois uma exposição do Mario Merz, depois uma
exposição de roupas do Armani. E com isso em nível, digamos assim, comunicacional mais amplo, social,
o que funciona é que uma coisa é igual à outra. E isso é feito dentro dessas estratégias, dessa invenção do
curador, que é hoje o grande inventor. A figura do curador tal como aparece hoje inventando temas...

RB_ Às vezes dá a impressão de ele ser o verdadeiro autor da arte contemporânea, já que, mais do que
o mediador, ele é o intérprete para o público, ele já entrega uma arte falada. Dependendo do dia, do
modo como eu acordo, do meu humor, eu tendo a achar que a distinção talvez seja um pouco simplista,
mas que a distinção passe exatamente aí: entre aqueles que acreditam na arte como um fato autônomo,
como um processo de linguagem moderna autônoma, e que evidentemente vai tomar o lugar na cultura,
mas que não é exatamente discurso cultural, e aqueles que resumem a arte a um processo cultural. Isso
se insere no jornalismo generalizado. Então a arte perde aquele momento opaco, poético, aquele travo,
não utópico, porque eu não gosto disso, mas atópico, para virar discurso cultural pura e simplesmente.
E dentro desse quadro evidentemente o “curandor”, como eu chamo – profissão que às vezes eu exerço,
fazer “curandorias” –, ele é na verdade o novo mágico, ou era, porque eu não sei se isso também já está
em recesso, mas eu enfatizo muito para mim essas diferenças. Para mim, o moderno está muito calcado
nesse momento poético, que é por definição refratário ao discurso cultural imediato, a essa apropriação
imediata. Agora, isso tudo tem que ser tratado mais e mais como uma relíquia metafísica.

PSD_ Dentro desse universo das passagens do moderno ao contemporâneo, um traço peculiar no Brasil,
então, seria essa contaminação do moderno com o contemporâneo. Não há traços de uma revolta, eu
chamaria assim, edipiana, do filho contemporâneo em relação ao pai moderno. A gente estava conver-
sando um dia, em Porto Alegre, que é talvez a baixa institucionalização do Brasil, essa questão de você
não ter as instituições instituindo uma modernidade...

RB_ É uma história da arte imaginária. Também pondero muito com os alunos isso. Digo: “Olha, essa
é a minha história da arte, que é imaginária”, porque se a gente quiser testar o conteúdo de verdade, o

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conteúdo de realidade de um Volpi, ou de um Goeldi, é coisa que só pode se fazer com o tempo. Isso tudo
é um processo daquela coisa do consenso estético, e ninguém sabe de onde vem, pode ser uma conspira-
ção, não há uma estatística. Mas isso tudo precisa do teste do real, quer dizer, aonde é que a gente vai ver
um Volpi? Isso tem que estar permanente lá. Quando a gente começou, com certeza, os valores moder-
nos, ditos modernos no Brasil, eram contrafações tipo Di Cavalcanti, Portinari, e uma leitura que teve que
ser renovada no Guignard, e há uma leitura. Então, por incrível que pareça, a nossa linguagem moderna,
que conheceu um desfecho extraordinário, como Mira Schendel, Iberê Camargo, Sérgio Camargo, Willys
de Castro, pertencia ao horizonte crítico em relação ao status quo – que também não era muito status
quo, porque para ter status quo é preciso ter status, precisa de alguma maneira ter uma coisa instituída,
então é muito... era um quintal, não é?
E, enfim, para nós pessoalmente foi, porque esse conflito talvez a longo prazo seja infrutífero. Uma
obra como a do Jorginho Guinle, por exemplo, que eu considero uma obra importante, ela talvez tenha
aprendido nesse contexto brasileiro a lidar de uma maneira não-edipiana com o seu chamado semi-deus
moderno. Então tem ali uma disponibilidade, que talvez não pudesse ter em uma pintura, porque a pin-
tura era um pouco feita contra os ícones modernos.

PSD_ Persistiria ainda no universo atual um vigor em alguma produção contemporânea que você de-
tecta, aqui no caso brasileiro, por exemplo?

RB_ Acho o seguinte: primeiro, sou um crítico de ateliê, de estúdio. Eu me considero um crítico contem-
porâneo, porque eu gosto de ser contemporâneo ao trabalho, eu gosto de assistir o vir a ser do trabalho,
de participar do vir a ser do trabalho. Então, o que eu tenho, se é que eu tenho alguma, mas se eu tiver
alguma autoridade, vem desse meu contato direto com o vir a ser dos trabalhos. Para mim é muito
secundário esse cálculo, esse juízo sobre uma eventual importância histórica, contemporânea, dos tra-
balhos, já que o horizonte está muito empastelado. A gente tem certezas locais. Ou eventualmente, eu
trabalhei, eu escrevi, por exemplo, um texto sobre o Richard Serra, outro sobre Sean Scully, que são va-
lores assim. Trabalhei com eles, não vi, estive até no ateliê e tudo, mas não foi uma coisa exaustiva. Mas
trabalhei com o trabalho deles da mesma forma que eu trabalhei com todos, e eu estou citando dois,
para mostrar, por exemplo, como, a meu ver, existe uma pintura contemporânea, o Sean Scully, e existe
uma grande poética escultórica, o Richard Serra. E da minha parte, por exemplo, estou envolvido hoje,
por acaso, com dois trabalhos muito díspares. Estou envolvido com o Nelson Felix, sobre quem escrevi
um primeiro texto há uns dois anos atrás, lá para o Museu da Vale, em Vila Velha, Espírito Santo. E ele
tem um trabalho em andamento, um processo muito, digamos assim, classicamente contemporâneo,
de invisibilidade e tudo. E nós periodicamente nos encontramos, e batemos papo, e conversamos, e eu
sinto que tem uma coisa ali que participa muito daquele espírito experimental contemporâneo, embo-
ra eu não veja nisso nenhum experimentalismo – o experimentalismo per se não existe mais. E estou
envolvido, por outro lado, com um pintor de aparência muito convencional, como o Paulo Pasta, e que
eu peguei por acaso em um momento de transformação do trabalho. Estou vendo o acontecimento do
trabalho dele, e estou vendo como isso toma lugar dentro da nossa, por um lado poderosa e por outro
lado incipiente, história da pintura. Como isso é muito para mim uma seqüência de Volpi, de Milton Da-
costa, de Eduardo Sued, porque essa é mais a linha do trabalho dele. E dentro disso, como isso respira
um ar de liberdade, de contemporaneidade.

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Para mim, não faz muita diferença. Nelson Felix ou Paulo Pasta, o que me interessa é a experiência do
trabalho. Por outro lado, antes eu tinha a certeza, uma segurança, ou uma expectativa, de que isso tudo
tomava parte em um processo de transformação do meio de arte no Brasil, do circuito de arte, do mundo
de arte. Hoje, não tenho a menor ilusão nesse sentido. A mudança do mundo da arte, que evidentemente
é internacional e que nós caricaturamos, como sempre, foi o grande experimento, digamos assim, em
arte. Porque o que me desagrada nessa produção de aeroporto, nessas instalações que vão para lá, vão
para cá, nessa academia Duchamp – coitado do Duchamp (risos). O que me desagrada nisso é o paradoxo
da reprodução experimental. Algo que não pode ser reproduzido por definição, e se reproduz. Ao mesmo
tempo ponderando, não sei se eu ou você somos capazes de entrar em uma obra sem certa expectativa
e sem certo projeto latente, pulsante, do que seja o processo cultural.

PSD_ Essa perda do caráter experimental que você vê...

RB_ Ah! Isso é inegável, não é? Qualquer leitura hoje, teleológica, do tipo que fazem com essa recepção
do Hélio Oiticica e da Lygia Clark como artistas que foram adiante de Amílcar de Castro, de Sérgio Ca-
margo, tudo isso é de uma incipiência. A verdade histórica dos trabalhos... Se tem alguma coisa em que
eu ainda acredito é no conteúdo de verdade histórica do processo da arte moderna. Então isso tudo,
mais uma grande ironia, uma grande contradição, que esses artistas que atravessaram o conceito de
obra, porque esse conceito era correspondente a um sujeito burguês, a uma unidade de consciência, a
um idealismo... Esses artistas certamente não saíam satisfeitos com o destino tristemente cultural que o
trabalho, que a poética deles conheceu hoje. Ou conhece, porque isso atravessava uma obra em direção
a uma pulsão que está longe de se resumir a essa questão da vida. A vida nesse sentido da vidinha. É uma
ironia, porque aqueles artistas que teriam uma pulsão mais experimental, e sacrificaram então o conceito
de aprofundar a obra, são os artistas lidos em um registro jornalístico, de um registro cultural, estéril.
O problema do pós-moderno é isso. Não é porque eu não gosto, ou não entenda, é porque eu entendo
demais. Não tem desafio nenhum nessas linguagens, são linguagens que já vêm prontas, sem falar que
uma linguagem hoje, sobretudo uma linguagem que se dispõe a enfrentar um espaço institucional, que
tem essa pulsão crítica, eu não sei se ela consegue, que é outro quanto, é outro volume. É por isso que eu
coloco uma dúvida sobre o conceito de contemporaneidade, senão a gente fica aqui o Museu Duchamp.
Por outro lado, sou incapaz de ver um trabalho fora dessa expectativa, que eu não quero de modo algum
que seja utópica, fora dessa expectativa, porque isso daí eu não conseguiria. Quer dizer, de alguma ma-
neira tem sempre uma vinculação disso e do processo do mundo, pelo menos do processo cultural, mas
ao mesmo tempo aquela contemporaneidade enfática, experimental, e que estava embutida inclusive
em uma teleologia que hoje considero inaceitável. Enfim, são esses dois pólos em que eu me debato
longamente. E que rebate aqui no Brasil sobre esse problema, que você, por exemplo, que é, além de
crítico, o homem da realidade também, capaz de produzir iniciativas. E você viveu isto, como por um lado
havia certa contradição nessa pronta institucionalização do contemporâneo, e por outro, essa missão era
inevitável, e se juntava a esse projeto de institucionalização, de instituir o moderno, que, nas décadas de
1970 e 1980, não estava instituído.

PSD_ Falando agora dessa questão da mercantilização. A mercantilização assistiu a um salto, uma mu-
dança muito brutal, a partir dos anos 80 no mundo, que a arte não tinha. Você imaginar a possibilidade

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de um Piero Maria Bardi em um segundo pós-guerra fazer o MASP, claro que com o apoio e os estímulos
do Chateaubriand – que a gente sabe como é que aquilo foi feito. Mas de qualquer maneira hoje seria im-
possível a constituição de um acervo como aquele. A partir dos anos 80 a coisa ganha um vulto inédito, e
vai nisso também essa institucionalização da arte contemporânea, onde você assiste um Basquiat chegar
a 5 milhões de dólares, uma coisa impensável. Agora, como é que você vê isso, essa aproximação muito
grande entre o laboratório, que antes seria o ateliê do artista contemporâneo, e o mercado?

RB_ A culturalização do trabalho de arte também é produto dessa pronta mercantilização, instituciona-
lização, historicização, teorização. Um trabalho que já vem muito falado, um trabalho que já vem muito
consumido, que já vem muito mediado. E a sensação que eu tenho, por exemplo, com o passar dos tem-
pos, é que o último artista que pôde enfrentar isso produtivamente foi o Andy Warhol. E veja que naquele
momento aquilo está acontecendo mesmo, ele consegue tirar partido e colocar em risco criativamente
o conceito de arte moderna, o conceito de grande arte, justamente nesse limite com o dinheiro, com a
mercantilização. E isso é um gesto, assim como o gesto do Duchamp, irrepetível. E o que se vê hoje é que
ninguém pode mais ser um artista do dinheiro, como o Warhol, talvez porque o dinheiro seja maior ain-
da, e porque também esses gestos são sempre gestos inspirados em certo momento. Sem um conceito
de arte moderna potente e já americano, não existiria o Warhol. Agora, o que eu me pergunto é se pode
existir um artista hoje, contemporâneo, que possa desafiar aquele museu cada vez mais antecipado ao
trabalho. Então, antes o trabalho podia ir para o museu forçando os limites inclusive físicos do museu.
Hoje o trabalho é uma dócil mercadoria do mundo da arte. Evidentemente, isso não proíbe as pessoas de
fazerem uma experiência poética desse trabalho, mas essa experiência é feita sem computar a presença
institucional dele, porque a presença institucional dele não é mais matéria de observação crítica. Não sei
se estou me fazendo explicar.

PSD_ Essa mudança do mundo da arte que você sinalizou...

RB_ Uma das coisas mais sintomáticas foi o que aconteceu com o minimalismo, com a land art, com a
arte povera é que os museus com esse ressurgimento da Europa na década de 1980, em seguida, come-
çaram a ser feitos em uma escala da arte contemporânea, que passou então a existir ali dentro, como
um conteúdo indiferente dentro do continente, quando aqueles trabalhos foram feitos até para forçar
os limites físicos. E mais essa ironia, que são trabalhos que passaram quase de uma semiclandestinidade
para uma institucionalização plena, sem passar sequer por um consenso público variado, como acontecia
com os modernos. Entendeu? É a ironia.
Ao ver aqueles trabalhos ali, você vê como tudo vira arte, e como tudo vira arte ali dentro comoda-
mente, como esse processo corrosivo das poéticas, evidentemente, tem que ser repensado. Porque não
há nada hoje mais melancólico – para alguém como eu que gosto muito do Duchamp – do que ver essa
leitura livresca que fazem do Duchamp. Quando a gente vê que o Duchamp é outro pólo, como o Picas-
so e o Matisse, ele tem que ser rediscutido dentro disso tudo. Ele não é o profeta bíblico abrindo novos
caminhos. E o que acontece, que eu constato, e não gosto do que eu constato, mas eu constato, é que
nas instalações, primeiro mentem em relação ao seu nome, porque elas não instalam coisa nenhuma. A
maioria dessas instalações é uma cenografia muito ruim, é figura de fundo, é cenário, não passaria nem lá
na escola de teatro onde eu dei aula há muitos anos. E depois, quer dizer, contraria a sua própria origem.

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As instalações viraram uma cômoda mercadoria do museu atual. Elas se prestam mais a essa sociedade
de espetáculo, do que à própria pintura e tudo, embora eu pessoalmente, hoje em dia, não veja a menor
diferença em instalação, pintura, escultura, porque não são gêneros. Quer dizer, também aquilo que a
gente tinha uma expectativa desse artista sem uma disciplina material, esse artista planetário, alguma
coisa que para mim continua vivo, por exemplo, Yves Klein – um artista que cada dia que passa eu gosto
mais –, mas isso não transforma o Yves Klein em alguma coisa mais atual do que uma releitura viva de um
Picasso, se é que isso é possível, ou de um Matisse.
Enfim, essa é uma observação que eu tenho muito assim, que mudou muito o mundo da arte, as
linguagens da arte.O que eu vejo é como a gente assistiu ao desfecho extraordinário de alguns modernos
brasileiros, o que é inesquecível. Botar o Franz Weissmann aí também, o Eduardo Sued está aí produzin-
do, enfim, cada ano que passa aqueles objetos ativos do Willys de Castro melhoram, como os Bólides do
Hélio OIticica melhoram, como o Amilcar de Castro vai mostrando a sua potência, como o trabalho do
Sérgio Camargo. Tudo isso respira um ar, isso tudo dá esse desfecho, tem essa correspondência aí, quem
vai negar hoje. Eu gosto muito do Michael Heizer, como de um Donald Judd. Ao mesmo tempo, um Judd,
eu hoje percebo que é um grande artista, e ao mesmo tempo eu vejo como aquilo que parecia assim ca-
sual, quase duchampiano, mostra que tem muito mais a ver com uma disciplina da matéria também, e da
cor, então aquilo é uma grande escultura. Enfim, nós somos obrigados hoje a uma consideração histórica
de longo prazo, e também a ponderar muito a profundidade dos trabalhos.
O problema do experimentalismo é que em muitos trabalhos ele ficou raso, nem todo mundo é
Duchamp ou Beuys – que o Beuys continua hoje pulsando, você o encontra onde menos espera. Então,
quer dizer, eu sou um dos que defendem a consistência dos trabalhos. O que parece para muita gente,
aqui não conta muito porque é sempre uma mimese, quer dizer, lá fora parece que esse conceito de obra
é metafísico. Não tenho por que abrir mão da minha experiência romântica com o trabalho de arte em
nome dessas discussões de etnias, de gênero, desse particularismo pós-moderno, que já não precisa
de arte. Então, dependendo do dia, e também eu digo, sempre existiu isso, os fariseus, os filisteus, que
nunca entenderam nada de arte, e evidentemente também esses caras sempre estiveram no poder. Arte
sempre foi uma minoria, sempre foi minoria também o discurso sobre a arte produzido de uma maneira
próxima ao trabalho, ao mesmo tempo em que isso talvez seja uma resposta insatisfatória para uma
transformação dessa magnitude.

PSD_ É uma transformação muito brutal, essa dócil domesticação do trabalho é de uma violência extre-
ma. Paradoxalmente, é uma violência muito grande, quando se apagam exatamente aqueles aspectos
corrosivos, que a gente está falando que faziam parte do atrito do trabalho na resistência ao mundo e
a sua inscrição definitiva como matéria de cultura. Agora a coisa já nasce assim, como se já nascesse
“contemporânea”.

RB_ Há uns artistas por quem eu tenho implicância solene, porque eles são ilustrativos, finalmente. Ilus-
tram. Essa é a demanda, seja ilustrar Duchamp, seja ilustrar Beuys, seja ilustrar as questões que seriam as
questões da pauta do dia-a-dia de uma democracia liberal, que oscila sempre entre uma sacralização imbe-
cil e farisaica da arte, e uma banalização brutal desses processos de linguagem. E então eu também, depen-
dendo do dia, eu me felicito por ser poeta, ou seja, não existir, e não artista. Não existir no mundo e não ser
um artista, que de qualquer maneira tem que materializar o trabalho dele no mundo, e que mundo!

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PSD_ Hoje a gente vê também uma estratégia de certos trabalhos junto com essa espetacularização. Há
um desaparecimento mesmo de perspectiva histórica, não é, você concorda com isso? Porque nós, na
nossa geração, nos alimentávamos muito de uma perspectiva crítica, e hoje existe um universo pragmá-
tico muito imediato. A arte participa desse universo, que é maior que a própria arte. Faz parte do mundo
contemporâneo, esse elogio do pragmatismo. E isso não tem nada a ver com William James, pelo contrá-
rio. Pragmático não no sentido de um Dewey.

RB_ Eu sinto que houve realmente essa ironia do viver no plano, essa caracterização, digamos, emanci-
patória de nos livrarmos da perspectiva histórica, já que a perspectiva histórica era não só a história da
opressão, e da repressão, como a história poderia ser sempre um peso castrador. A outra grande trans-
formação é que nós não estamos mais no universo da norma, então não tem nada mais patético do que
gestos transgressivos. O transgressivo se você não tem o horizonte da norma... Essa é a grande trans-
formação que eu me pergunto se, mesmo Nietzsche, chegou a alcançar o pensador nisso, quer dizer, um
processo onde todo mundo pode tudo. E nós ainda pegamos o último momento em que o possível era
alguma coisa que entrava em choque com o real. A possibilização era mais forte do que hoje. Como tudo
é possível, então o experimentalismo está muito identificado com essa posição, uma posição de choque
contra as normas. Você não pode tirar o Duchamp do universo da norma. Quer dizer, não integralmente.
Uma boa leitura dele vai muito além, por exemplo, do que eu acho que há numa boa leitura, nesse sen-
tido, do Picabia, um tipo de libertário, de libertino, que não vive fora do seu oposto. O Duchamp é um
homem mais profundo do que isso; é uma poética mais profunda. De qualquer maneira pertence àque-
le horizonte da norma. Esse horizonte que não existe hoje, quando tudo é possível, entendeu? É meio
patético um elogio do experimental como uma atitude transformadora do real repressivo. O real não é
mais repressivo. Se ele é repressivo, é repressivo em outros termos que não são os termos da norma, e
do conflito. Isso não é mais a sociedade do conflito e da norma nos termos freudianos, marxistas. E isso
desalimenta muito aquela pulsão crítica. Por outro lado, a grande arte moderna. Há pouco tempo eu revi
o ateliê do Giacometti em Paris. Puxa, Giacometti é o mundo, é o mundo, aquilo ali... Por que vou abrir
mão dessa experiência em nome dessa superficialidade da arte como discurso cultural, da arte como dis-
curso de gêneros, de etnias e tudo? Isso tudo está sobre a égide do politicamente correto, que é a palavra
pavloviana da democracia liberal. Onde entra o politicamente correto, a arte sai pelo outro lado, seja qual
for o programa dele, porque pode ter um programa “x”, o programa “y”, o problema é que esse momento
romântico e pós-romântico de arte não consente esse gênero de aprisionamento. Por outro lado, é como
estou dizendo: como fazer uma arte com esse conteúdo moderno-crítico no momento em que a crítica
se esvazia. Porque eu não acredito mais que nós estejamos vivendo no horizonte da norma. Está muito
mais para uma banalização de tudo, quer dizer, quem é que vai supor hoje, pode até acontecer uma po-
ética, um horizonte de libertação sexual, o horizonte. É um pouco do que ocorre com a política. Quem é
que vai nessa massa da política; quer dizer, desencanto atrás de desencanto. Então eu não sei. Prefiro a
experiência com os trabalhos emergentes, ou a experiência, aí sim, histórica. Mas você tem razão, que
essa contemporaneidade de hoje, se é que ela existe, ela seria com certeza contrária ao pós-modernismo
vigente. Ela é alguma coisa muito mais, digamos, hermenêutica, muito mais espessa, controversa, que
tem que ter uma visão histórica de longo prazo, senão a gente precisa ver há quantas décadas estão ma-
tando a pintura. O Hélio Oiticica tem um texto sobre pintura, mas a pintura nem tinha começado direito
para ele. Depois que ele falou isso, o Iberê Camargo pintou talvez as melhores telas da arte brasileira.

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O Eduardo Sued pintou algumas das melhores telas, entendeu? Isso tudo... Agora, evidentemente que
aquele horizonte dele, que era uma premência de transformação vital, não se realizou. Ao contrário, se
eu fico pensando se o Hélio estivesse vivo, embora eu não tivesse contato com ele, como ele poderia
existir fora desse universo da norma, porque o ideário todo dele é caduco, quer dizer, é contraditório.
Quem é que vai fazer elogio da bandidagem de hoje? Quem é que vai supor que droga é o transformador,
o zênite espiritual de transformação da consciência? Quem é que vai supor isso?

MURILO SALLES_ Mas a questão da ignorância é muito preponderante.

RB_ É. Como a gente assistiu, artista até da nossa geração e críticos, oprimidos pelo saber, e como isso
era um peso ainda naquele universo da norma, aquele universo, digamos, quase patriarcal, aquele uni-
verso estruturado do conflito. E hoje, por outro lado, tem um elogio generalizado da ignorância. Essa
ignorância, ela vai ter que ser muito inspirada, senão ela é só o que ela é mesmo, a ignorância. E nesse
sentido, pondero que essa contemporaneidade tem que ter uma inteligência histórica muito plástica e
também muito profunda. Ao mesmo tempo em que isso não é uma coisa extrínseca ao processo do ar-
tista, isso vai junto. O que eu acho é que acabou essa ilusão do grau zero duchampiano, entendeu? Todo
o fazer, ou esse grau zero, ou essa idéia de uma arte em si crítica, e que vai ser essa divisa arte-vida. Com
o tempo, a gente vai passando e não tem arte-vida na história brasileira. Acho muito difícil alguém ter
dado uma contribuição maior para esse termo do que o Iberê Camargo: radicar mais na vida, radicar mais
na existência, ter uma obra que seja quase o ser vivo no mundo, entendeu? Uma coisa é ficar falando de
arte e vida, outra coisa é ultrapassar a obra. Eu, pessoalmente, gostava muito da Lygia Clark, que tem um
trabalho muito vivo, mas é um trabalho, do meu ponto de vista, que a experiência dele é uma experiência
mais rápida. O Amílcar de Castro me deu 50 anos de pensamento de escultura. Não estou querendo opor
um ao outro, nada disso. Estou dizendo que, com o tempo, você vai ficando mais exigente. Vou querendo
trabalhos mais resistentes à minha investigação crítica e teórica. E depois, esses trabalhos que estou
conhecendo, da Lygia, não é uma recepção acéfala. Talvez não esteja em um momento ruim para quem
gosta de arte, porque eles estão vivendo a rebordosa de que tudo aquilo que eles supunham que ia trans-
formar a vida não ocorreu. Porque a vida ficou a antítese de todo aquele programa, mesmo o programa
da Lygia de liberação do corpo. Tudo aquilo aconteceu de outra maneira. Quer dizer, o sistema precisa de
corpos sexuados liberados, porque o consumo do sexo é... Então, quer dizer, teria que se fazer a leitura da
Lygia a contrapelo, ver ali um núcleo poético, porque senão é mais ou menos como ver o gesto libertário
da cor do Matisse, e da forma picassiana. Claro, foram eles, mas quem é que vai imaginar isso depois de
50 anos? Quer dizer, tem também que saber ler Picasso contra os clichês de Picasso, Matisse contra os
clichês do Matisse, Duchamp contra os clichês de Duchamp. Ao mesmo tempo, esses trabalhos agüen-
tam, quer dizer, a gente chega lá e enfim.
Contra essa ignorância instituída, tem o saber acumulado da arte moderna. Eu praticamente não
conheço outra ética, senão a ética da arte. E eu não me considero de modo algum uma pessoa antiéti-
ca, mas aprendi muito sobre a ética da vida, fazendo a experiência do trabalho de arte. Você acha que
é um delírio isso?

PSD_ Não, pelo contrário. Hoje para você conectar ética com estética, você precisa traçar estratégias, e
planejamentos e planejar esses encontros. E naquela época era indissociável a atitude de um Mondrian,

Ronaldo Brito | arte brasileira contemporânea 202


de um Giacometti, para pegar dois exemplos diametralmente opostos em termos de linguagem. Era indis-
sociável da ética. A ética era um pressuposto para o trabalho poético poder existir. E ele hoje se dissociou
inteiramente, exatamente porque esse mundo como você falou, é um mundo sem norma, vale tudo.

RB_ O mundo oficialmente sem norma. O establishment, ele tem essa...

PSD_ Admite qualquer coisa. Tudo pode entrar.

RB_ Ele é perverso. Como é que é aquele negócio? Polimorfo. Ele é perverso polimorfo. Nós é que vira-
mos entidades fixas, não é? Ele é perverso polimorfo, ele toma essa forma. Ao mesmo tempo em que ele
é establishment, porque ele está interessado na reprodução, na sua própria reprodução. Em geral esses
eventos, os eventos de arte, por exemplo, são eventos que quem gosta de arte tem que se preservar mui-
to deles, porque certamente não é um lugar para se ver, fazer a experiência da arte. É um paradoxo. Tem
sempre uma dose pessoal. Acho impossível entrar em uma exposição, ver a arte e duzentos milhões de
coisas. Uma reação a isso, que também acho que não é inocente, mas, por exemplo, você vai para uma
Dia Foundation, está certo. Bruce Newman lá é só um artista. O Beuys lá, que está mal até, é só um artis-
ta, mas pelo menos você vê que tem condições, não é o supermercado do Guggenheim. Pelo menos você
vê. A tendência é isso. Veja que o Judd já tinha feito a sua própria fundação. Os artistas, e o Duchamp de
novo foi um precursor, porque ele insistia muito, insistiu que os trabalhos dele ficassem juntos, embora
ali tenha mais o que pensar, muito mais do que ver. Ele queria que aquilo ficasse junto no museu, quer
dizer, essa é uma alternativa a esse mundo da massa. Não que seja contra o mundo da massa. Quem sou
eu. Só estou dizendo o seguinte: nesses lugares não parece possível ter forma de individualização e de
subjetivação. Não estou falando de nenhuma formação arcaica não. Estou falando de formas mínimas de
subjetivação que consigam vencer o estereótipo da mercadoria.
Enfim, me parece, que isso tudo envolveria, aqui no Brasil, um trabalho duplo, talvez: um “chega
dessa invisibilidade, dessa imaterialidade pública das obras brasileiras”. Agora vai inaugurar a Fundação
do Iberê Camargo (Porto Alegre, RS). Espero que os outros sigam isso, quer dizer, os trabalhos têm que
estar à disposição do público, têm que enfrentar o teste do real, chega de mitificação. E também essa
idéia de que o artista expôs lá fora, teve sucesso lá fora... Eu estou lá interessado nisso?! Interessa... Sei lá
o que que é lá fora. Está entendendo? É, como sempre, essa coisa colonizada, ridícula. E continua ainda
a se falar nesse negócio de brasilidade. Não agüento mais. Nasci sob esse discurso ridículo e pelo visto
vou morrer sob o assédio dessa brasilidade, que é uma coisa de gringo. Brasileiro não se pergunta pela
brasilidade, porque isso está intrínseco.
Tem essa questão institucional. A institucionalização tem que ser mais inteligente por um lado, lá
pelos artistas; por outro lado, chega dessa invisibilidade pública. Cadê a sala do Volpi? Cadê a Fundação
do Amílcar de Castro? Cadê essas coisas públicas dentro da malha urbana? Dentro das cidades? E que a
gente possa ter o teste do real, com os trabalhos. Chega dessa mistificação e tudo. Quer dizer, falo isso
porque não sou um agente prático, nunca fui e nunca serei, mas isso é a expectativa. Isso, por um lado, e,
por outro, o que eu acho que a gente está precisando seria não de colóquios, Deus me livre, mas de dis-
cussões livres que reponham em questão não só a modernidade, mas o conceito de contemporaneidade,
o conceito do experimental, por exemplo. Eu não quero abrir mão dele, mas acho que o experimental
hoje é muito mais localizado, diferenciado. O tempo passou, e a gente vê como o Jorginho Guinle prati-

Ronaldo Brito | arte brasileira contemporânea 203


cou uma pintura experimental muito mais do que muitos outros duchampianos da sua geração, que são
muito mais ilustrações de Duchamp. Não fizeram uma operação experimental com Matisse e Picasso,
como o Jorge fez, como de Kooning. Sem querer fetichizar, porque estou por acaso montando uma expo-
sição do Jorge Guinle lá na Fundação Iberê Camargo, e, claro, ele era meu amigo, eu gostava do trabalho
dele, mas quero ver agora o real. Vamos para o teste do real, porque, que diabos de valores estéticos
são esses daqui que ninguém vê, e é tudo construído, meio de coluna social, meio de ouvir dizer, meio
de mito? Que diabo de lugar é esse? Que diabo de governo é esse que não faz o Museu do Goeldi, um
gigante desse, que nos acompanha. Então você vê, tem o Nuno Ramos. O Nuno Ramos que é um artista
inteligente, como ele releu o Goeldi, como o Goeldi foi importante para ele. Cada vez tem mais feiras
de arte... Imagino que cada vez se venda mais, e, no entanto, não tem Museu do Goeldi. Aí a gente tem
que tomar cuidado para não ser empurrado para uma posição conservadora como eles ficam dizendo.
Conservador, porque gosta do Goeldi, ou gosta... (risos). Fariseu não é? O que eles gostam mesmo... eu
sei lá... De arte não é, entendeu? Porque quem gosta de arte está sempre envolvido com processo de tra-
balho. Estou lá interessado nos programas culturais dos artistas de hoje em dia?! A ideologia de produção
de um Sérgio Camargo não podia ser mais diferente do que a ideologia de produção do Iberê Camargo. O
que interessa hoje a ideologia de produção deles? Duas forças, não é? A gente tem que ir lá na Fundação
Iberê Camargo. É ali que eu aprendo a ser brasileiro de alguma maneira. Está muito em questão talvez,
sem querer nem um tom grandioso, o próprio conceito de experiência da arte.

PSD_ O conceito de experiência foi perdido no sentido do Dewey, por exemplo. Aquele conceito de que
a arte só poderia existir enquanto experiência. Não existiria uma arte fora da experiência dela mesma. E
isso está perdido a meu ver, porque, como você disse antes, quando já vem toda mediada, já teorizada,
já discursada, que experiência eu vou fazer se já está tudo pronto e acabado? Eu me encontro com a coisa
pronta e acabada, e não cabe à minha experiência completá-la.

RB_ Ao mesmo tempo, você sabe, a gente continua gostando de arte, ou seja, tem essa possibilidade.
Eu trabalho lá... Quando eu vou conversar com o Nelson Felix, por exemplo, o que acontece de vez em
quando, é que tem um objeto ali que eu não sei, poético, porque não está nada materializado, entendeu.
Isso é uma coisa. Quando eu volto lá no ateliê do Paulo Pasta, que eu vi lá as telas, é outra experiência
totalmente diferente. Mexe para lá, vira para cá. Ou quando eu repenso, estou sendo obrigado a repensar
o Jorginho Guinle. Sendo obrigado, não. Ninguém me obrigou. Eu quero. Quero dizer que estou dentro
desse processo de reler o Jorginho. Então, refazendo aquela experiência, tudo fica vivo. Estou lá interes-
sado quem é que está à frente ou atrás?! Isso não existe. E essa contemporaneidade programática, pelo
amor de Deus! Já acabou, isso não existe.

PSD_ É essa que não permite a experiência.

RB_ É, essa não permite. A experiência está viva, agora, as condições de existência no mundo da arte
hoje, às vezes estão além das minhas forças. Porque essa é uma mistura. Você me desculpe, é uma mis-
tura que eu acho que eu não consigo. É a mistura da burrice com a frivolidade, essa química da burrice
com a frivolidade, que parece dominar o mundo da arte (risos). Confesso que não dou conta disso, por
temperamento ou por cansaço acumulado também. Claro que não existe só isso, mas parece que esse é

Ronaldo Brito | arte brasileira contemporânea 204


o motor do comércio da arte hoje, e da institucionalização. Só existe o que vai parar no jornal, tudo é um
pretexto para dar notícia, e eu tenho absoluta convicção que nenhuma formação cultural é feita de fora
para dentro. Quer dizer, o espaço que a arte brasileira tem no jornal, duvido que tenha lá fora. Duvido. É
um espaço brutal, e, no entanto, isso não forma uma materialidade cultural, porque essas coisas têm que
vir de dentro. Isso precisa ter uma inteligência de dentro, precisa ter agentes. Esse é o ponto. Você tem
agentes culturais que tenham essa vida aí, a questão da história.
Eu estive na Fundação Beyeler. Não conhecia esse Beyeler, nem nada. Mas enfim, sempre partici-
pou, era um partícipe de um processo cultural, era uma fundação extraordinária em tudo, aquilo foi uma
vida com valores. Fica em Riehen, um vilarejo perto de Basel. Eu não conhecia, fiquei maravilhado, e ao
mesmo tempo fiquei surpreso, o cara era um marchand.1 Acho que ele já está muito velhinho, fechou
a galeria, e aí eu li sua história. É claro que eu não vou acreditar em tudo, mas enfim, são aqueles valo-
res modernos, uma coleção extraordinária. E aí tem de fato isso que eu não considero de modo algum
conservador, que é um lugar no qual a gente vai e faz a experiência dos trabalhos, faz a experiência da
arte, de Cézanne, de Pollock. E é disso que gosto, eu que talvez não seja restritivo. Acho que isso inclui o
Beuys, inclui o Anselm Kiefer que eu gosto, gosto do Georg Baselitz.
Enfim, esse mundo da arte passa por uma subjetivação sempre, e – você que faz mais essa experiên-
cia do que eu – deve ser duro resistir dentro desse processo, conseguir resistir a essa massa de estupidez
e frivolidade que se estabelece. E muitas vezes sempre em nome da chamada democracia. Para mim isso
não é democracia nenhuma; isso é tirania da ralé espiritual. Não há democracia nenhuma, o processo da
democracia sempre envolve uma autotransformação que passa, a meu ver, por um processo também de
subjetivação, que de modo algum significa coroamento do eu burguês. Também quem é que vai defen-
der hoje em dia isso? Tudo está atomizado.
Mas enfim, esse conceito de experiência bem colocado, bem pensado, é a chave, porque nessa es-
petacularização do trabalho de arte não tem lugar para a experiência pessoal. E não sabem nem o que
fazer com arte, porque para muita gente a arte, pelo visto, é a substituta da sociologia, ou de uma psico-
logia de massas. Quer dizer, então voltamos ao domínio do ilusionismo.
Porque o que eu gosto é de ver aparecer. Estar no ateliê e estar ali, estar no convívio. Ver aparecer
lá o trabalho da Gabriela Machado, ou então ver ou acompanhar o trabalho do Antônio Manuel. Agora,
me lembrei, vou ter um desafio aí que é escrever um primeiro texto do Daniel Feingold, que eu conheço
há muitos anos, foi meu aluno, ouvinte. Não sei, eu nunca tinha escrito. Eu me sinto um pouco, não vou
dizer deslocado, deslocado é bom, porque inadaptável é uma boa coisa. Sinto-me inadaptado no sentido
em que é claro, é um amigo. Dez anos, quinze anos, e nunca ter escrito um texto. O Paulo Pasta foi uma
circunstância, depois aí vai, entra em uma... Não quero, não estou de jeito nenhum dizendo que esses
sejam os artistas importantes do momento. Estou dizendo que esses são os artistas que, por acaso, eu
estou trabalhando. Esse também não é tão por acaso assim, porque eu só trabalho com artistas de quem
me aproximo, mas poderiam ser outros.
Gostaria muito de ter acesso, por exemplo, a uma conversa com o Michael Heizer, que eu gosto muito.

1 Traduzido do site da Fundação Beyeler: “A história. Durante um período de cinqüenta anos, em paralelo à sua bem-sucedida atividade de mar-
chands, Hildy e Ernst Beyeler construíram uma excepcional coleção de mestres modernos. Sua coleção, que foi transferida para uma fundação em
1982, teve a primeira exibição pública da totalidade de suas obras no Centro de Arte Reina Sofia em 1989. Compreendendo atualmente cerca de
200 obras, a Coleção Beyeler documenta uma visão muito pessoal da arte moderna e segura habilidade para reconhecer a qualidade.” V. <http://
www.beyeler.com/fondation/e/html_02stiftung/sti_fr_main01ges.htm>. Acesso em: 21 de agosto de 2008. Endereço da Fundação Beyeler: Ba-
selstrasse 101, CH-4125 Riehen / Basel. Phone +41 - (0)61 - 645 97 00Fax +41 - (0)61 - 645 97 19Infoline (prerecorded message): +41 - (0)61 - 645 97
77e-mail fondation@beyeler.com

Ronaldo Brito | arte brasileira contemporânea 205


E eu sei lá se é possível, gostaria de eventualmente conversar com ele, ou estar no ateliê do Baselitz. Tem
muita coisa acontecendo. E quando a gente pára para ver os trabalhos, aí sim, trabalhos “x”, “y”, aí que acho
que há uma compensação, o mundo da arte, esse mundo tão desagradável, que é o mundo da arte, ele
recua para aparecerem, então, os trabalhos. É isso que pessoalmente me dá prazer, me estimula e tudo.

PSD_ Um artista sobre o qual você trabalhou, pensou, e teve já diversos textos sobre ele, que é o José
Resende. O trabalho dele para mim é muito instigante.

RB_ Para mim também. Por acaso não gostei da última exposição dele lá, aquele sabonete e tudo, achei
muito duchampiana. E tem uma idade para as coisas. Ninguém vai virar duchampiano depois. Mas eu
gosto muito da pessoa e do trabalho do Zé Resende, e eu sou amigo dele. É um trabalho que eu acho que
precisa de um volume, de uma massa forte para ir a público, e o Brasil é muito fracote. Porque esse é talvez
o único da nossa geração que tem uma escala de escultura até os limites. Ele não é um experimentalista
radical. É mais um escultor. Esse precisaria desse diálogo com a cidade. Então eu receio que possa aconte-
cer com ele o que já aconteceu com o Weissmann, com o Amílcar, que são artistas destinados, mais do que
o Sérgio Camargo, que era mais delicado. Mesmo assim, o Camargo tem um projeto lindo de concreto lá
para a Lapa. Não há jeito de alguém se comover com isso. Mas eu acho que o Zé, ele é muito o artista da
cidade, da metrópole. No entanto, talvez esteja além das possibilidades dele criar isso, e criar sozinho, é
um ponto. Mas é um artista que eu gosto, sobre quem eventualmente espero voltar a escrever e tudo.
Eu nunca dou aula sobre arte contemporânea. Dei uma vez só o ano passado, e digo. Olha, tem que
desconfiar muito, porque os trabalhos... E assim a gente vai cansando de alguns trabalhos que a gente se de-
bruçou. Mas isso não é sinal de fragilidade dos trabalhos, é só sinal que a gente está periodicamente cansado
daquilo, como a gente cansa de outros artistas. Teve um momento em que eu gostava muito de Morandi.
Hoje não estou muito para ver Morandi. A gente cansa, isso não pode ser tomado como um juízo sobre um
trabalho. Então, graças a Deus, tem esse movimento, assim como se eles pudessem falar, os trabalhos tam-
bém diriam para a gente: “Chega, não agüento mais esses seus textos. Vai falar de novo a mesma coisa?”.
Essa relação produtiva do texto com a obra, isso está por ser explorado, embora evidentemente
nesse critério contemporâneo, eu fico me perguntando... Eu não seria capaz de escrever sobre um traba-
lho que eu não tivesse feito a experiência. E mais, acho que só a experiência do trabalho autoriza o crítico
a dar um juízo. Porque o resto é uma impressão, uma impressão de longe. Às vezes a impressão é tão
forte, que a gente diz, ali eu não chego perto, porque não é para mim. Mas, daí a ser um juízo, a gente
tem que ser muito prudente com esse negócio de um indicativo, mesmo porque não importa a mínima.
Também acho que os artistas devem se interessar pelos críticos que se interessam pelo trabalho deles.
Talvez esse critério de contemporaneidade para mim esteja muito enraizado nisso, de a gente viver o
texto no calor da obra. Mas certamente o mundo da arte hoje não favorece isso. Ou então é uma falsa
impressão minha. Detestaria ter que lavrar sentenças sobre mundo da arte. Eu não estou aqui para isso.
Agora eu fico pensando, eu acho que a Bienal de São Paulo é uma coisa importante e tudo, desde que
eu não tenha que ir, e se eu for, eu vou lá ver aquilo, ou ver aquilo outro, ver aquele trabalho, ver aquele
outro, porque são eventos de massa. Por exemplo, uma coisa que se perdeu, eu nunca cheguei a ir, mas
tinha aqueles eventos experimentais. A Documenta de Kassel, por exemplo, que hoje não é mais o que
era. Tinha esses eventos experimentais. Hoje não tem eventos experimentais, porque o conceito de
experiência tem que ser redimensionado agora ao nível mais diferenciado do contexto. Talvez, aí sim,

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um problema histórico, dentro da história da pintura brasileira, da história da pintura propriamente, aí
é que se vai medir uma potência, por exemplo, do Brice Marden, ou do Sean Scully, ou um que o Paulo
Pasta estava me mostrando, aquele Luc Tuysman, um belga – que tinha coisas que eu gostei, outras eu
não gostei, mas, enfim, eu não conhecia. E ver como é que está o Kiefer, um Baselitz. Agora na Suíça
eu vi um Baselitz extraordinário. E até artista que não me interessava muito, e que eu acho que alguma
coisa tinha ali, como o Cy Twombly, que eu vi. Enfim, fazer parte desse processo. Então, esse negócio
de morte da arte, isso...

PSD_ Morte da pintura.

RB_ É, morte da arte, morte de não sei o quê. Ao mesmo tempo, claro, você não pode descartar uma
hipótese dessas, não é? De qualquer maneira, acho que a nossa morte vem antes. Não é um problema,
portanto, não deve ser muito problema. Então tem essas palavras de ordem. Bom, enfim, tem que man-
ter a disponibilidade e a autonomia para fazer a experiência dos trabalhos.

PSD_ Acho que está bom, está muito bom.

Entrevista realizada em 15 de abril de 2008 na residência de Murilo Salles e Daisy Xavier, no Rio de Janeiro

Ronaldo Brito (Rio de Janeiro, RJ, 1949)


Vive e trabalha no Rio de Janeiro
Crítico de arte, professor da Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC/
RJ. Iniciou sua atividade como crítico, assinando uma coluna no semanário Opinião,
entre 1973 e 1977. Foi um dos editores da revista Malasartes (1975-1976) e do jornal
A parte do fogo (1980). Publicou ensaios e artigos em livros, periódicos e catálogos,
dedicados à obra de diversos artistas, tais como Amilcar de Castro, Iberê Camar-
go, Sérgio Camargo, José Resende, Tunga e Antônio Manuel. Integrou o Conselho
Editorial da revista Gávea (PUC/RJ). É autor dos volumes de poesia O mar e a pele
(1977), Asmas (1982) e Quarta do singular (1989), e dos livros Aparelhos – Waltércio
Caldas (GBM, 1979), Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasilei-
ro (Funarte, 1985/Cosac&Naify, 1999), considerada a mais importante publicação
sobre o movimento neoconcreto, Amílcar de Castro (Takano, 2001), Goeldi (Silvia
Roesler Edições de Arte/ Instituto Cultural The Axis/2002). Entre suas curadorias es-
tão exposições sobre os artistas Paulo Pasta (Centro Cultural Banco do Brasil, 2008)
e Jorge Guinle (Museu Iberê Camargo, 2008). Parte de seus textos está reunida no
livro Experiência crítica (Cosac & Naify, 2005), com organização de Sueli de Lima.

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