Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
um prelúdio
Entrevistas com críticos e curadores de arte selecionados
por Paulo Sergio Duarte
Rio de Janeiro, maio a julho de 2008
Silvia Roesler,
Rio de Janeiro, 7 de outubro de 2008
arte brasileira contemporânea
um prelúdio
sumário
créditos
Projeto e proponente
Instituto Cultural PLAJAP/ Jacqueline Plass
Projeto, coordenação e edição
Silvia Roesler Edições de Arte
Projeto gráfico
eg.design
Edição de textos
Paulo Sergio Duarte e Fernanda Lopes
Revisão e padronização
Alexandra Bertola
Versão para o inglês
Steve Yolen e Peter Warner
Transcrição das fitas gravadas
Vania Chalfum Gomes de Almeida e
Margaret Bugarin Mansur
Transcrição para a entrevista de Ronaldo Brito
Danielle Prado e Reynaldo Picozzi
Produção do CDRom
CDA Produção Gráfica e Digital
Ronaldo Brito
Entrevista realizada por Paulo Sergio Duarte
PAULO SERGIO DUARTE_ Ronaldo, podemos começar conversando sobre essa questão da arte contem-
porânea. Qual o sentido que você vê, hoje, nesse sintagma mesmo – a arte brasileira contemporânea, a
arte contemporânea de uma forma mais geral – e o que mudou em relação a um período em que você foi
um dos introdutores, com rigor, dessas questões no cenário brasileiro, quando você era crítico do jornal
Opinião na década de 1970?
RONALDO BRITO_ Olha Paulo Sergio, o que eu proporia hoje seria uma rediscussão do próprio conceito
de contemporaneidade, porque para nós aquilo era um horizonte indiscutível e estava sob o princípio do
experimentalismo. A contemporaneidade brasileira tinha uma característica que podia ser, por um lado,
problemática, mas, por outro, muito estimulante, porque se vinculava à própria modernidade, se vincula-
va à instituição dos valores modernos de fato. Para nós, eu me lembro, trabalhamos juntos, quando você
fez o projeto ABC, que era um projeto onde conviviam Waltercio Caldas e Tunga, com Sérgio Camargo,
com Eduardo Sued, porque isso era muito local, isso se devia a essas características da modernidade
incipiente sempre recomeçada no Brasil. Era muito distinto, imagino, do contexto europeu, onde evi-
dentemente o moderno, a linguagem moderna, eram linguagens que ocupavam um outro lugar institu-
cional e cultural das linguagens contemporâneas. Isso no Brasil, na precariedade brasileira, essas coisas
formavam quase como um volume só. Isso foi muito bom, eu imagino, para a nossa formação pessoal,
pelo contato com linguagens muito vivas. Acredito que essas mesmas linguagens, lá fora, já estivessem
muito mais institucionalizadas, ou pelo menos a atitude desses artistas já fosse muito menos aberta, e
aqui a gente podia desfrutar desse convívio aberto com Amílcar de Castro, com Eduardo Sued, com Sér-
gio Camargo. Isso foi muito importante para nós.
De qualquer maneira, pessoalmente, eu estava envolvido em um horizonte de contemporaneidade
que seria uma modernidade modificada, uma modernidade hipercrítica. Na verdade, uma modernidade
radicalizada. Seria tudo, menos um pós-moderno, pelo menos no seu desenho oficial hoje que pressupõe
o esgotamento da mentalidade moderna, ou da série de linguagens modernas, e do processo crítico
mesmo da modernidade.
Acredito, e digo sempre aos meus alunos, sou obrigado a ponderar, que o conceito de contemporâ-
neo claro que é muito mais do que cronológico. Ele envolve uma expectativa, se não um projeto, mas uma
PSD_ Acredito que essa indiferenciação entre cultura e arte é um traço contemporâneo, e isso permite,
por exemplo, que uma instituição como o Guggenheim alterne uma exposição de motocicletas Harley-
Davidson, com uma exposição de Ellsworth Kelly, depois uma exposição do Mario Merz, depois uma
exposição de roupas do Armani. E com isso em nível, digamos assim, comunicacional mais amplo, social,
o que funciona é que uma coisa é igual à outra. E isso é feito dentro dessas estratégias, dessa invenção do
curador, que é hoje o grande inventor. A figura do curador tal como aparece hoje inventando temas...
RB_ Às vezes dá a impressão de ele ser o verdadeiro autor da arte contemporânea, já que, mais do que
o mediador, ele é o intérprete para o público, ele já entrega uma arte falada. Dependendo do dia, do
modo como eu acordo, do meu humor, eu tendo a achar que a distinção talvez seja um pouco simplista,
mas que a distinção passe exatamente aí: entre aqueles que acreditam na arte como um fato autônomo,
como um processo de linguagem moderna autônoma, e que evidentemente vai tomar o lugar na cultura,
mas que não é exatamente discurso cultural, e aqueles que resumem a arte a um processo cultural. Isso
se insere no jornalismo generalizado. Então a arte perde aquele momento opaco, poético, aquele travo,
não utópico, porque eu não gosto disso, mas atópico, para virar discurso cultural pura e simplesmente.
E dentro desse quadro evidentemente o “curandor”, como eu chamo – profissão que às vezes eu exerço,
fazer “curandorias” –, ele é na verdade o novo mágico, ou era, porque eu não sei se isso também já está
em recesso, mas eu enfatizo muito para mim essas diferenças. Para mim, o moderno está muito calcado
nesse momento poético, que é por definição refratário ao discurso cultural imediato, a essa apropriação
imediata. Agora, isso tudo tem que ser tratado mais e mais como uma relíquia metafísica.
PSD_ Dentro desse universo das passagens do moderno ao contemporâneo, um traço peculiar no Brasil,
então, seria essa contaminação do moderno com o contemporâneo. Não há traços de uma revolta, eu
chamaria assim, edipiana, do filho contemporâneo em relação ao pai moderno. A gente estava conver-
sando um dia, em Porto Alegre, que é talvez a baixa institucionalização do Brasil, essa questão de você
não ter as instituições instituindo uma modernidade...
RB_ É uma história da arte imaginária. Também pondero muito com os alunos isso. Digo: “Olha, essa
é a minha história da arte, que é imaginária”, porque se a gente quiser testar o conteúdo de verdade, o
PSD_ Persistiria ainda no universo atual um vigor em alguma produção contemporânea que você de-
tecta, aqui no caso brasileiro, por exemplo?
RB_ Acho o seguinte: primeiro, sou um crítico de ateliê, de estúdio. Eu me considero um crítico contem-
porâneo, porque eu gosto de ser contemporâneo ao trabalho, eu gosto de assistir o vir a ser do trabalho,
de participar do vir a ser do trabalho. Então, o que eu tenho, se é que eu tenho alguma, mas se eu tiver
alguma autoridade, vem desse meu contato direto com o vir a ser dos trabalhos. Para mim é muito
secundário esse cálculo, esse juízo sobre uma eventual importância histórica, contemporânea, dos tra-
balhos, já que o horizonte está muito empastelado. A gente tem certezas locais. Ou eventualmente, eu
trabalhei, eu escrevi, por exemplo, um texto sobre o Richard Serra, outro sobre Sean Scully, que são va-
lores assim. Trabalhei com eles, não vi, estive até no ateliê e tudo, mas não foi uma coisa exaustiva. Mas
trabalhei com o trabalho deles da mesma forma que eu trabalhei com todos, e eu estou citando dois,
para mostrar, por exemplo, como, a meu ver, existe uma pintura contemporânea, o Sean Scully, e existe
uma grande poética escultórica, o Richard Serra. E da minha parte, por exemplo, estou envolvido hoje,
por acaso, com dois trabalhos muito díspares. Estou envolvido com o Nelson Felix, sobre quem escrevi
um primeiro texto há uns dois anos atrás, lá para o Museu da Vale, em Vila Velha, Espírito Santo. E ele
tem um trabalho em andamento, um processo muito, digamos assim, classicamente contemporâneo,
de invisibilidade e tudo. E nós periodicamente nos encontramos, e batemos papo, e conversamos, e eu
sinto que tem uma coisa ali que participa muito daquele espírito experimental contemporâneo, embo-
ra eu não veja nisso nenhum experimentalismo – o experimentalismo per se não existe mais. E estou
envolvido, por outro lado, com um pintor de aparência muito convencional, como o Paulo Pasta, e que
eu peguei por acaso em um momento de transformação do trabalho. Estou vendo o acontecimento do
trabalho dele, e estou vendo como isso toma lugar dentro da nossa, por um lado poderosa e por outro
lado incipiente, história da pintura. Como isso é muito para mim uma seqüência de Volpi, de Milton Da-
costa, de Eduardo Sued, porque essa é mais a linha do trabalho dele. E dentro disso, como isso respira
um ar de liberdade, de contemporaneidade.
RB_ Ah! Isso é inegável, não é? Qualquer leitura hoje, teleológica, do tipo que fazem com essa recepção
do Hélio Oiticica e da Lygia Clark como artistas que foram adiante de Amílcar de Castro, de Sérgio Ca-
margo, tudo isso é de uma incipiência. A verdade histórica dos trabalhos... Se tem alguma coisa em que
eu ainda acredito é no conteúdo de verdade histórica do processo da arte moderna. Então isso tudo,
mais uma grande ironia, uma grande contradição, que esses artistas que atravessaram o conceito de
obra, porque esse conceito era correspondente a um sujeito burguês, a uma unidade de consciência, a
um idealismo... Esses artistas certamente não saíam satisfeitos com o destino tristemente cultural que o
trabalho, que a poética deles conheceu hoje. Ou conhece, porque isso atravessava uma obra em direção
a uma pulsão que está longe de se resumir a essa questão da vida. A vida nesse sentido da vidinha. É uma
ironia, porque aqueles artistas que teriam uma pulsão mais experimental, e sacrificaram então o conceito
de aprofundar a obra, são os artistas lidos em um registro jornalístico, de um registro cultural, estéril.
O problema do pós-moderno é isso. Não é porque eu não gosto, ou não entenda, é porque eu entendo
demais. Não tem desafio nenhum nessas linguagens, são linguagens que já vêm prontas, sem falar que
uma linguagem hoje, sobretudo uma linguagem que se dispõe a enfrentar um espaço institucional, que
tem essa pulsão crítica, eu não sei se ela consegue, que é outro quanto, é outro volume. É por isso que eu
coloco uma dúvida sobre o conceito de contemporaneidade, senão a gente fica aqui o Museu Duchamp.
Por outro lado, sou incapaz de ver um trabalho fora dessa expectativa, que eu não quero de modo algum
que seja utópica, fora dessa expectativa, porque isso daí eu não conseguiria. Quer dizer, de alguma ma-
neira tem sempre uma vinculação disso e do processo do mundo, pelo menos do processo cultural, mas
ao mesmo tempo aquela contemporaneidade enfática, experimental, e que estava embutida inclusive
em uma teleologia que hoje considero inaceitável. Enfim, são esses dois pólos em que eu me debato
longamente. E que rebate aqui no Brasil sobre esse problema, que você, por exemplo, que é, além de
crítico, o homem da realidade também, capaz de produzir iniciativas. E você viveu isto, como por um lado
havia certa contradição nessa pronta institucionalização do contemporâneo, e por outro, essa missão era
inevitável, e se juntava a esse projeto de institucionalização, de instituir o moderno, que, nas décadas de
1970 e 1980, não estava instituído.
PSD_ Falando agora dessa questão da mercantilização. A mercantilização assistiu a um salto, uma mu-
dança muito brutal, a partir dos anos 80 no mundo, que a arte não tinha. Você imaginar a possibilidade
RB_ A culturalização do trabalho de arte também é produto dessa pronta mercantilização, instituciona-
lização, historicização, teorização. Um trabalho que já vem muito falado, um trabalho que já vem muito
consumido, que já vem muito mediado. E a sensação que eu tenho, por exemplo, com o passar dos tem-
pos, é que o último artista que pôde enfrentar isso produtivamente foi o Andy Warhol. E veja que naquele
momento aquilo está acontecendo mesmo, ele consegue tirar partido e colocar em risco criativamente
o conceito de arte moderna, o conceito de grande arte, justamente nesse limite com o dinheiro, com a
mercantilização. E isso é um gesto, assim como o gesto do Duchamp, irrepetível. E o que se vê hoje é que
ninguém pode mais ser um artista do dinheiro, como o Warhol, talvez porque o dinheiro seja maior ain-
da, e porque também esses gestos são sempre gestos inspirados em certo momento. Sem um conceito
de arte moderna potente e já americano, não existiria o Warhol. Agora, o que eu me pergunto é se pode
existir um artista hoje, contemporâneo, que possa desafiar aquele museu cada vez mais antecipado ao
trabalho. Então, antes o trabalho podia ir para o museu forçando os limites inclusive físicos do museu.
Hoje o trabalho é uma dócil mercadoria do mundo da arte. Evidentemente, isso não proíbe as pessoas de
fazerem uma experiência poética desse trabalho, mas essa experiência é feita sem computar a presença
institucional dele, porque a presença institucional dele não é mais matéria de observação crítica. Não sei
se estou me fazendo explicar.
RB_ Uma das coisas mais sintomáticas foi o que aconteceu com o minimalismo, com a land art, com a
arte povera é que os museus com esse ressurgimento da Europa na década de 1980, em seguida, come-
çaram a ser feitos em uma escala da arte contemporânea, que passou então a existir ali dentro, como
um conteúdo indiferente dentro do continente, quando aqueles trabalhos foram feitos até para forçar
os limites físicos. E mais essa ironia, que são trabalhos que passaram quase de uma semiclandestinidade
para uma institucionalização plena, sem passar sequer por um consenso público variado, como acontecia
com os modernos. Entendeu? É a ironia.
Ao ver aqueles trabalhos ali, você vê como tudo vira arte, e como tudo vira arte ali dentro comoda-
mente, como esse processo corrosivo das poéticas, evidentemente, tem que ser repensado. Porque não
há nada hoje mais melancólico – para alguém como eu que gosto muito do Duchamp – do que ver essa
leitura livresca que fazem do Duchamp. Quando a gente vê que o Duchamp é outro pólo, como o Picas-
so e o Matisse, ele tem que ser rediscutido dentro disso tudo. Ele não é o profeta bíblico abrindo novos
caminhos. E o que acontece, que eu constato, e não gosto do que eu constato, mas eu constato, é que
nas instalações, primeiro mentem em relação ao seu nome, porque elas não instalam coisa nenhuma. A
maioria dessas instalações é uma cenografia muito ruim, é figura de fundo, é cenário, não passaria nem lá
na escola de teatro onde eu dei aula há muitos anos. E depois, quer dizer, contraria a sua própria origem.
PSD_ É uma transformação muito brutal, essa dócil domesticação do trabalho é de uma violência extre-
ma. Paradoxalmente, é uma violência muito grande, quando se apagam exatamente aqueles aspectos
corrosivos, que a gente está falando que faziam parte do atrito do trabalho na resistência ao mundo e
a sua inscrição definitiva como matéria de cultura. Agora a coisa já nasce assim, como se já nascesse
“contemporânea”.
RB_ Há uns artistas por quem eu tenho implicância solene, porque eles são ilustrativos, finalmente. Ilus-
tram. Essa é a demanda, seja ilustrar Duchamp, seja ilustrar Beuys, seja ilustrar as questões que seriam as
questões da pauta do dia-a-dia de uma democracia liberal, que oscila sempre entre uma sacralização imbe-
cil e farisaica da arte, e uma banalização brutal desses processos de linguagem. E então eu também, depen-
dendo do dia, eu me felicito por ser poeta, ou seja, não existir, e não artista. Não existir no mundo e não ser
um artista, que de qualquer maneira tem que materializar o trabalho dele no mundo, e que mundo!
RB_ Eu sinto que houve realmente essa ironia do viver no plano, essa caracterização, digamos, emanci-
patória de nos livrarmos da perspectiva histórica, já que a perspectiva histórica era não só a história da
opressão, e da repressão, como a história poderia ser sempre um peso castrador. A outra grande trans-
formação é que nós não estamos mais no universo da norma, então não tem nada mais patético do que
gestos transgressivos. O transgressivo se você não tem o horizonte da norma... Essa é a grande trans-
formação que eu me pergunto se, mesmo Nietzsche, chegou a alcançar o pensador nisso, quer dizer, um
processo onde todo mundo pode tudo. E nós ainda pegamos o último momento em que o possível era
alguma coisa que entrava em choque com o real. A possibilização era mais forte do que hoje. Como tudo
é possível, então o experimentalismo está muito identificado com essa posição, uma posição de choque
contra as normas. Você não pode tirar o Duchamp do universo da norma. Quer dizer, não integralmente.
Uma boa leitura dele vai muito além, por exemplo, do que eu acho que há numa boa leitura, nesse sen-
tido, do Picabia, um tipo de libertário, de libertino, que não vive fora do seu oposto. O Duchamp é um
homem mais profundo do que isso; é uma poética mais profunda. De qualquer maneira pertence àque-
le horizonte da norma. Esse horizonte que não existe hoje, quando tudo é possível, entendeu? É meio
patético um elogio do experimental como uma atitude transformadora do real repressivo. O real não é
mais repressivo. Se ele é repressivo, é repressivo em outros termos que não são os termos da norma, e
do conflito. Isso não é mais a sociedade do conflito e da norma nos termos freudianos, marxistas. E isso
desalimenta muito aquela pulsão crítica. Por outro lado, a grande arte moderna. Há pouco tempo eu revi
o ateliê do Giacometti em Paris. Puxa, Giacometti é o mundo, é o mundo, aquilo ali... Por que vou abrir
mão dessa experiência em nome dessa superficialidade da arte como discurso cultural, da arte como dis-
curso de gêneros, de etnias e tudo? Isso tudo está sobre a égide do politicamente correto, que é a palavra
pavloviana da democracia liberal. Onde entra o politicamente correto, a arte sai pelo outro lado, seja qual
for o programa dele, porque pode ter um programa “x”, o programa “y”, o problema é que esse momento
romântico e pós-romântico de arte não consente esse gênero de aprisionamento. Por outro lado, é como
estou dizendo: como fazer uma arte com esse conteúdo moderno-crítico no momento em que a crítica
se esvazia. Porque eu não acredito mais que nós estejamos vivendo no horizonte da norma. Está muito
mais para uma banalização de tudo, quer dizer, quem é que vai supor hoje, pode até acontecer uma po-
ética, um horizonte de libertação sexual, o horizonte. É um pouco do que ocorre com a política. Quem é
que vai nessa massa da política; quer dizer, desencanto atrás de desencanto. Então eu não sei. Prefiro a
experiência com os trabalhos emergentes, ou a experiência, aí sim, histórica. Mas você tem razão, que
essa contemporaneidade de hoje, se é que ela existe, ela seria com certeza contrária ao pós-modernismo
vigente. Ela é alguma coisa muito mais, digamos, hermenêutica, muito mais espessa, controversa, que
tem que ter uma visão histórica de longo prazo, senão a gente precisa ver há quantas décadas estão ma-
tando a pintura. O Hélio Oiticica tem um texto sobre pintura, mas a pintura nem tinha começado direito
para ele. Depois que ele falou isso, o Iberê Camargo pintou talvez as melhores telas da arte brasileira.
RB_ É. Como a gente assistiu, artista até da nossa geração e críticos, oprimidos pelo saber, e como isso
era um peso ainda naquele universo da norma, aquele universo, digamos, quase patriarcal, aquele uni-
verso estruturado do conflito. E hoje, por outro lado, tem um elogio generalizado da ignorância. Essa
ignorância, ela vai ter que ser muito inspirada, senão ela é só o que ela é mesmo, a ignorância. E nesse
sentido, pondero que essa contemporaneidade tem que ter uma inteligência histórica muito plástica e
também muito profunda. Ao mesmo tempo em que isso não é uma coisa extrínseca ao processo do ar-
tista, isso vai junto. O que eu acho é que acabou essa ilusão do grau zero duchampiano, entendeu? Todo
o fazer, ou esse grau zero, ou essa idéia de uma arte em si crítica, e que vai ser essa divisa arte-vida. Com
o tempo, a gente vai passando e não tem arte-vida na história brasileira. Acho muito difícil alguém ter
dado uma contribuição maior para esse termo do que o Iberê Camargo: radicar mais na vida, radicar mais
na existência, ter uma obra que seja quase o ser vivo no mundo, entendeu? Uma coisa é ficar falando de
arte e vida, outra coisa é ultrapassar a obra. Eu, pessoalmente, gostava muito da Lygia Clark, que tem um
trabalho muito vivo, mas é um trabalho, do meu ponto de vista, que a experiência dele é uma experiência
mais rápida. O Amílcar de Castro me deu 50 anos de pensamento de escultura. Não estou querendo opor
um ao outro, nada disso. Estou dizendo que, com o tempo, você vai ficando mais exigente. Vou querendo
trabalhos mais resistentes à minha investigação crítica e teórica. E depois, esses trabalhos que estou
conhecendo, da Lygia, não é uma recepção acéfala. Talvez não esteja em um momento ruim para quem
gosta de arte, porque eles estão vivendo a rebordosa de que tudo aquilo que eles supunham que ia trans-
formar a vida não ocorreu. Porque a vida ficou a antítese de todo aquele programa, mesmo o programa
da Lygia de liberação do corpo. Tudo aquilo aconteceu de outra maneira. Quer dizer, o sistema precisa de
corpos sexuados liberados, porque o consumo do sexo é... Então, quer dizer, teria que se fazer a leitura da
Lygia a contrapelo, ver ali um núcleo poético, porque senão é mais ou menos como ver o gesto libertário
da cor do Matisse, e da forma picassiana. Claro, foram eles, mas quem é que vai imaginar isso depois de
50 anos? Quer dizer, tem também que saber ler Picasso contra os clichês de Picasso, Matisse contra os
clichês do Matisse, Duchamp contra os clichês de Duchamp. Ao mesmo tempo, esses trabalhos agüen-
tam, quer dizer, a gente chega lá e enfim.
Contra essa ignorância instituída, tem o saber acumulado da arte moderna. Eu praticamente não
conheço outra ética, senão a ética da arte. E eu não me considero de modo algum uma pessoa antiéti-
ca, mas aprendi muito sobre a ética da vida, fazendo a experiência do trabalho de arte. Você acha que
é um delírio isso?
PSD_ Não, pelo contrário. Hoje para você conectar ética com estética, você precisa traçar estratégias, e
planejamentos e planejar esses encontros. E naquela época era indissociável a atitude de um Mondrian,
RB_ Ele é perverso. Como é que é aquele negócio? Polimorfo. Ele é perverso polimorfo. Nós é que vira-
mos entidades fixas, não é? Ele é perverso polimorfo, ele toma essa forma. Ao mesmo tempo em que ele
é establishment, porque ele está interessado na reprodução, na sua própria reprodução. Em geral esses
eventos, os eventos de arte, por exemplo, são eventos que quem gosta de arte tem que se preservar mui-
to deles, porque certamente não é um lugar para se ver, fazer a experiência da arte. É um paradoxo. Tem
sempre uma dose pessoal. Acho impossível entrar em uma exposição, ver a arte e duzentos milhões de
coisas. Uma reação a isso, que também acho que não é inocente, mas, por exemplo, você vai para uma
Dia Foundation, está certo. Bruce Newman lá é só um artista. O Beuys lá, que está mal até, é só um artis-
ta, mas pelo menos você vê que tem condições, não é o supermercado do Guggenheim. Pelo menos você
vê. A tendência é isso. Veja que o Judd já tinha feito a sua própria fundação. Os artistas, e o Duchamp de
novo foi um precursor, porque ele insistia muito, insistiu que os trabalhos dele ficassem juntos, embora
ali tenha mais o que pensar, muito mais do que ver. Ele queria que aquilo ficasse junto no museu, quer
dizer, essa é uma alternativa a esse mundo da massa. Não que seja contra o mundo da massa. Quem sou
eu. Só estou dizendo o seguinte: nesses lugares não parece possível ter forma de individualização e de
subjetivação. Não estou falando de nenhuma formação arcaica não. Estou falando de formas mínimas de
subjetivação que consigam vencer o estereótipo da mercadoria.
Enfim, me parece, que isso tudo envolveria, aqui no Brasil, um trabalho duplo, talvez: um “chega
dessa invisibilidade, dessa imaterialidade pública das obras brasileiras”. Agora vai inaugurar a Fundação
do Iberê Camargo (Porto Alegre, RS). Espero que os outros sigam isso, quer dizer, os trabalhos têm que
estar à disposição do público, têm que enfrentar o teste do real, chega de mitificação. E também essa
idéia de que o artista expôs lá fora, teve sucesso lá fora... Eu estou lá interessado nisso?! Interessa... Sei lá
o que que é lá fora. Está entendendo? É, como sempre, essa coisa colonizada, ridícula. E continua ainda
a se falar nesse negócio de brasilidade. Não agüento mais. Nasci sob esse discurso ridículo e pelo visto
vou morrer sob o assédio dessa brasilidade, que é uma coisa de gringo. Brasileiro não se pergunta pela
brasilidade, porque isso está intrínseco.
Tem essa questão institucional. A institucionalização tem que ser mais inteligente por um lado, lá
pelos artistas; por outro lado, chega dessa invisibilidade pública. Cadê a sala do Volpi? Cadê a Fundação
do Amílcar de Castro? Cadê essas coisas públicas dentro da malha urbana? Dentro das cidades? E que a
gente possa ter o teste do real, com os trabalhos. Chega dessa mistificação e tudo. Quer dizer, falo isso
porque não sou um agente prático, nunca fui e nunca serei, mas isso é a expectativa. Isso, por um lado, e,
por outro, o que eu acho que a gente está precisando seria não de colóquios, Deus me livre, mas de dis-
cussões livres que reponham em questão não só a modernidade, mas o conceito de contemporaneidade,
o conceito do experimental, por exemplo. Eu não quero abrir mão dele, mas acho que o experimental
hoje é muito mais localizado, diferenciado. O tempo passou, e a gente vê como o Jorginho Guinle prati-
PSD_ O conceito de experiência foi perdido no sentido do Dewey, por exemplo. Aquele conceito de que
a arte só poderia existir enquanto experiência. Não existiria uma arte fora da experiência dela mesma. E
isso está perdido a meu ver, porque, como você disse antes, quando já vem toda mediada, já teorizada,
já discursada, que experiência eu vou fazer se já está tudo pronto e acabado? Eu me encontro com a coisa
pronta e acabada, e não cabe à minha experiência completá-la.
RB_ Ao mesmo tempo, você sabe, a gente continua gostando de arte, ou seja, tem essa possibilidade.
Eu trabalho lá... Quando eu vou conversar com o Nelson Felix, por exemplo, o que acontece de vez em
quando, é que tem um objeto ali que eu não sei, poético, porque não está nada materializado, entendeu.
Isso é uma coisa. Quando eu volto lá no ateliê do Paulo Pasta, que eu vi lá as telas, é outra experiência
totalmente diferente. Mexe para lá, vira para cá. Ou quando eu repenso, estou sendo obrigado a repensar
o Jorginho Guinle. Sendo obrigado, não. Ninguém me obrigou. Eu quero. Quero dizer que estou dentro
desse processo de reler o Jorginho. Então, refazendo aquela experiência, tudo fica vivo. Estou lá interes-
sado quem é que está à frente ou atrás?! Isso não existe. E essa contemporaneidade programática, pelo
amor de Deus! Já acabou, isso não existe.
RB_ É, essa não permite. A experiência está viva, agora, as condições de existência no mundo da arte
hoje, às vezes estão além das minhas forças. Porque essa é uma mistura. Você me desculpe, é uma mis-
tura que eu acho que eu não consigo. É a mistura da burrice com a frivolidade, essa química da burrice
com a frivolidade, que parece dominar o mundo da arte (risos). Confesso que não dou conta disso, por
temperamento ou por cansaço acumulado também. Claro que não existe só isso, mas parece que esse é
1 Traduzido do site da Fundação Beyeler: “A história. Durante um período de cinqüenta anos, em paralelo à sua bem-sucedida atividade de mar-
chands, Hildy e Ernst Beyeler construíram uma excepcional coleção de mestres modernos. Sua coleção, que foi transferida para uma fundação em
1982, teve a primeira exibição pública da totalidade de suas obras no Centro de Arte Reina Sofia em 1989. Compreendendo atualmente cerca de
200 obras, a Coleção Beyeler documenta uma visão muito pessoal da arte moderna e segura habilidade para reconhecer a qualidade.” V. <http://
www.beyeler.com/fondation/e/html_02stiftung/sti_fr_main01ges.htm>. Acesso em: 21 de agosto de 2008. Endereço da Fundação Beyeler: Ba-
selstrasse 101, CH-4125 Riehen / Basel. Phone +41 - (0)61 - 645 97 00Fax +41 - (0)61 - 645 97 19Infoline (prerecorded message): +41 - (0)61 - 645 97
77e-mail fondation@beyeler.com
PSD_ Um artista sobre o qual você trabalhou, pensou, e teve já diversos textos sobre ele, que é o José
Resende. O trabalho dele para mim é muito instigante.
RB_ Para mim também. Por acaso não gostei da última exposição dele lá, aquele sabonete e tudo, achei
muito duchampiana. E tem uma idade para as coisas. Ninguém vai virar duchampiano depois. Mas eu
gosto muito da pessoa e do trabalho do Zé Resende, e eu sou amigo dele. É um trabalho que eu acho que
precisa de um volume, de uma massa forte para ir a público, e o Brasil é muito fracote. Porque esse é talvez
o único da nossa geração que tem uma escala de escultura até os limites. Ele não é um experimentalista
radical. É mais um escultor. Esse precisaria desse diálogo com a cidade. Então eu receio que possa aconte-
cer com ele o que já aconteceu com o Weissmann, com o Amílcar, que são artistas destinados, mais do que
o Sérgio Camargo, que era mais delicado. Mesmo assim, o Camargo tem um projeto lindo de concreto lá
para a Lapa. Não há jeito de alguém se comover com isso. Mas eu acho que o Zé, ele é muito o artista da
cidade, da metrópole. No entanto, talvez esteja além das possibilidades dele criar isso, e criar sozinho, é
um ponto. Mas é um artista que eu gosto, sobre quem eventualmente espero voltar a escrever e tudo.
Eu nunca dou aula sobre arte contemporânea. Dei uma vez só o ano passado, e digo. Olha, tem que
desconfiar muito, porque os trabalhos... E assim a gente vai cansando de alguns trabalhos que a gente se de-
bruçou. Mas isso não é sinal de fragilidade dos trabalhos, é só sinal que a gente está periodicamente cansado
daquilo, como a gente cansa de outros artistas. Teve um momento em que eu gostava muito de Morandi.
Hoje não estou muito para ver Morandi. A gente cansa, isso não pode ser tomado como um juízo sobre um
trabalho. Então, graças a Deus, tem esse movimento, assim como se eles pudessem falar, os trabalhos tam-
bém diriam para a gente: “Chega, não agüento mais esses seus textos. Vai falar de novo a mesma coisa?”.
Essa relação produtiva do texto com a obra, isso está por ser explorado, embora evidentemente
nesse critério contemporâneo, eu fico me perguntando... Eu não seria capaz de escrever sobre um traba-
lho que eu não tivesse feito a experiência. E mais, acho que só a experiência do trabalho autoriza o crítico
a dar um juízo. Porque o resto é uma impressão, uma impressão de longe. Às vezes a impressão é tão
forte, que a gente diz, ali eu não chego perto, porque não é para mim. Mas, daí a ser um juízo, a gente
tem que ser muito prudente com esse negócio de um indicativo, mesmo porque não importa a mínima.
Também acho que os artistas devem se interessar pelos críticos que se interessam pelo trabalho deles.
Talvez esse critério de contemporaneidade para mim esteja muito enraizado nisso, de a gente viver o
texto no calor da obra. Mas certamente o mundo da arte hoje não favorece isso. Ou então é uma falsa
impressão minha. Detestaria ter que lavrar sentenças sobre mundo da arte. Eu não estou aqui para isso.
Agora eu fico pensando, eu acho que a Bienal de São Paulo é uma coisa importante e tudo, desde que
eu não tenha que ir, e se eu for, eu vou lá ver aquilo, ou ver aquilo outro, ver aquele trabalho, ver aquele
outro, porque são eventos de massa. Por exemplo, uma coisa que se perdeu, eu nunca cheguei a ir, mas
tinha aqueles eventos experimentais. A Documenta de Kassel, por exemplo, que hoje não é mais o que
era. Tinha esses eventos experimentais. Hoje não tem eventos experimentais, porque o conceito de
experiência tem que ser redimensionado agora ao nível mais diferenciado do contexto. Talvez, aí sim,
RB_ É, morte da arte, morte de não sei o quê. Ao mesmo tempo, claro, você não pode descartar uma
hipótese dessas, não é? De qualquer maneira, acho que a nossa morte vem antes. Não é um problema,
portanto, não deve ser muito problema. Então tem essas palavras de ordem. Bom, enfim, tem que man-
ter a disponibilidade e a autonomia para fazer a experiência dos trabalhos.
Entrevista realizada em 15 de abril de 2008 na residência de Murilo Salles e Daisy Xavier, no Rio de Janeiro