contrafissura e

plasticidade psíquica

antonio lancetti

~'e~ejo . HUCITEC
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Slo P11.1lo • H~~, 2015
IJ4 p , 18 on. (Sall&le lolilCUn,, S0; Pola6'u do <bcjo, S)
ISKN 978-85·84CM·O'i4- •
1. Saiklc pübl1a. - BruiiL 2. Polll>CI de n~ 1M11td 3. Scnieot
de ,-Mie ni.!nbll. "· Paq11r,mia. l Titulo. 11 Slric.
IS-26626 CDO: '62.l
CDU. :164269
 SUMÁRIO

Prefácio, Antonio Nery Filho 15

Agradecimentos . • 21
lntrodução . 23
1. A conrrafissura 25
2. A formação do caráter do trabalhador de Caps AD . 42
3. Conversações com Davi Abdo Beuetti sobre consul-
tórios de n1a e na rua 70
4. Mais d uas questões sobre os consultórios na rua 78
5. "De Braços Abertos", um projeto de uma"º'"' polJ-
t1ca pública . 82
6. Gabriel e o mundo do submundo. A nto,úo Lancetti
e Galileu 11 1
7. O segundo disparo 113
8. Algumas questões sobre o ProjL-to T erapêutico S in-
gular . 121
9. David Amigo 127

9

3.
CONVERSAÇÕES COM
DAVl ABDO BENE,TTI SOBRE
CONSULTÓlUOS DE E NA RUA
ANTONIO l ,ANCETTI
Eu já acompanhei muitos campos no Nordeste e no Sul do
Rrasil, também na cracolándia paulistana, mas o que ,na1s me
impressionou quando saí com vocês foi o fato de chegar ao
território, estacionar a wn e logo os usuários começarem a
procurar a equipe do consultório.
Lembro que naquela noite um usuário tenmva convencer
voc-ês sobre (> malefício das drog-.ts e vocês relativl'zavam, al-
guém falou até na etimologia da palavra.
O liomem acabou pedindo atenditnento e depois foi ao
Caps AD; antes de ir embora foi falar com alguém que csta,-a
en1 uso a uns sessenta metros da equipe e disse a ele: "quando
passar a noiasai falar com eles".
De repente um homem alcoolizado caiu na nossa frente;
cle bateu no meio-fio e estava desacordado com a garrafa de
pinga quebrada. E enquanto vocês o atendiam, chegou um
70
auxiliar de cnfcrm31:,,cm que estava saindo de seu plantão de
um hospital privado e outras pessoas moradoras da comuni-
dade que se aproximararn e se prontificaram a ajudar.
Uma viatura de polícia que tinha ido ~'TTlbor~ voltou para
oferecer ajuda.
- Qi,1erem que chamemos o Samu?
- Não precisa, já chamamos, muito obrigado.
O Samu chegou logo a seguir. E enquanto essa cena acon-
tecia passava uma camionete com um cartaz cm favor da não
legalização da maconha. As pessoas que estavam no automó-
vel viram a situação mas cscafcdcram•se.
A outra coisa que me impressionou foi o trabalho sistemá-
tico de dcstcrritorialização que operarn quando fazem pique-
nique ou passeios, fortalecendo os vínculos com os usu~rios,
além elo sa,nba das sextas-feiras e o preparo de comidas...
E por último o trabalho que fazem com a rede, talvez po-
deriamos começar por aí. . .
DAVI B ENETTI
A Reduçiio de Danos, em seus pn1nórdios, quando era mal-
dita, não aceita pelos governos, no irúcio de sua existência como
Programa, teve as ações vinculadas à questão educativa, à es-
cuta, conversar com usuário, firLer o vínculo . .. Essa é a estra-
tégia da Redução de Danos.
úsa é a base principal da Estratégia da Redução de Danos.
O conteúdo do Consultório de Rua.
O Consultório de Rua, quando não era aceito pelas esferas
71
de governo, começou a desenvolver ações de vinculaç-ao e de
educação, agora é diferente.
ANTONIO L ANCE"ITI
Isso tem que ver com a mudança de Consultório de Rua
para Consultório na Rua?
DAVJ BENETTI
Consultório de Rua é a invenção de Antonio Ncry, na Rua
é a marca do Ministério da Saúde.
ANTONIO LANCF.TTI
Acho que Antonio Nery enunciou os conceitos funda,nen
tais do Consultório de Rua e na rmí; ele levantou a questão do
desejo do usuário de maneira mais radical que o Cesare de
J<1orio La Roca do Projeto Axé (de educação na rua e não só
na rua), que se autodenominou pedagogia do desejo. Ele disse
que as pessoas não se drogam para morrer mas para viver. E le
tamb~m estabeleceu bases para a metodologia do consultório
de e na rua. Ele disse que o operador precisa ter inteligênc,a
emocional e criatividade.
DAVI BENET fl
Sim essas são as bases, o conteúdo do consultório. Mas ho-
je cm dia o Consultório na Rua ganhou toda a potência den
tro da Saúde ao se tornar um dispositivo do SUS. O Consul-
tório na Rua é o veículo Ele é o veículo e o principal difusor
72
da Estratégia de Redução de Danos... co1n essa normatiza-
ção o Redutor pode vir a ter fururamcntc outr-il posição como
classe. Mas hoje está den tro da Saúde como um todo, fazendo
parte do Sistema Único de Saúde.
ANTONIO LANCF.TTt
Voe~ acha que essa evolução, por assim dizer, tem que ver
curn a p-.;ssagem de Consultório de Rua para Consultório na Rua?
DAv1 Bt:Ni::·rn
Depende. Depende da vontade política dos governos e da
potencialidade das equipes . . .
ANTOl\10 LANC ETTI
Vamos falar mais desses modelos diferentes e das diferentes
mancirJs de operar dos diferentes Consultórios de Rua e na Rua.
DAl'l BCNF.TTI
Hoje nós damos acesso à rede de saúde aos usuários e cir-
culamos pelas zonas de uso, pelas redes de saúde, pelos wnas
de prostituição e pelas bal:idas de adolescentes.
Mas ramb~m remos uma ação mais incisiva cm situações
de crise. Por exemplo, outro dia nós fomos requisitados para
intervir com uma mulher em situação de nia que estava jo-
11.indo pedras nos carros e havia agredido uma mãe com seu
hcbê. O caso já estava nos jom,íis, mas ainda não havia chega-
Jo ao juiz.
73
 I>.: m,mcira que o consultório primeiro foi até o local para
um., avaliação. Identificando a mulher debaixo de três guar·
da-chuvas, tentamos uma abordagem, a mulher falou que não
<Jucri:i :ijuda nenhuma e que ela não sairia dali e não sabia que
a prefeitura de SBC agora não permitia as pessoas donnirem
na~ ruas.
~•ando saímos do local notamos que a mulher nos obser-
vava como quem esperava uma reação da equipe.
Reuni a equipe e pactuamos não tentar insistir no acolhi-
mento dela naquele momento, porém quando observan1os no
entornú, ali,,uns vizinhos moradores vieram discretamente e re-
lataram que a mãe també,n não aceitava ajuda e parecia estar
também enlouquecida, ficando com ela na praça, o irmão a ex-
pulsara de casa, acrescentando que o irmiio era usuário de crack.
No dia seguinte levarno,; o caso para discutir coo, o Caps
111 Centro e voltamos com as equipes w local, uma casa apa•
rentando familia de classe média que mora numa boa casa de
esquina. Encontramos o irmão que a expulsou de casa.
Declarou que já havia sido internada duas vezes: na Uni-
camp e no Caism (Centro de A tenção I ntegrada à Saúde
Ment:tl) da Vila Mariana e não havia adiantado nada; ela sem-
pre fugia e que também a im1ã o havia denunciado por estupro.
Então disse: ~'Orno vou estuprar a minha irntã? Eu sou gay,
não gosto de mulher. Para mim o que vocês podem fazer é
levar ela, isso já far.í bem à minha saúde mental...
Perguntamos se haveria outro familiar para contatar, ele
nos forneceu o nome e endereço do irmão que ajudava a
74
mwter a família, Ligamos para este irmão e o encontrsmos,
aproximando-o da equipe para criar uma estratégia de acolhi-
mento.
~ando nós voltamos pela quinta vez, com o Samu, técni-
cos do Caps TTT, a mãe e o irmão, foi só abrir a ainbulãncia
que ela entrou, agora está no P rú nto Atendimento sendo me-
dicada. Agora estamos pensando com as outr-.is pessoas d,~ rede
de saúde mental como continuar o atendimento, o irmão está
em Santos, pois o pai que mora lá infartou.
ANTONIO LANCEITl
Há várias inversões nesse caso. Em v~-z de tirar a pessoa da
rua vocts provocaram o pedido de ajuda da mulher, e de saída
pcnsarnm na família.
De certa forma, não obedeceram à demmd:1, ou melhor
dizendo, analisaram a demanda de todos os implicados e atua-
ram segundo a própria metodologia.
O craqueiro que é sempre ú expulsado de casa, neste caso
foi o <'J ue expulsou. Mas o que é eficaz é o IJ'abalho em Rede.
Com a Rede de Saí,de Mental e com a Rede de Saúde, mas
tarnhé,n operam em parceria com a as.~isténcia social e com a
guarda municipal que cada ,-cz mais faz menos "rapas".
O que é mais difkil no consultório?
DAVI B ENF,TTl
Pensando em tantos casos que a gente acolheu, pcrgunto-
·me: quantos continuaram o tratamento no Caps AD? Não é
75
que tenha essa expectativa... Nós tivemos discussõe,; no
começo sobre luta antimanicomial e Redução de Danos, todo
dia as coisas vão mudando. Acho que o mais dificil é o oontato
com os adolescentes, mas hoje o consultório atende um grupo
de vinte e cinco adolescentes que começaram a frequentar o
samba, a oficina de capoeira.. . Eles moram mun dos bairros
mais prohlemáticos da cidade, nenhum deles faz uso, pode
ser uma maconha, mas não fir,.cm uso problemático. Nós infor•
mnmos a respeito de drogas, antes que eles usem. Nós infor·
mamos a respeito do sexo com e sem camisinha. Eles fazem
uso do espaço do Caps e fizeram até mesmo um refrão sobre
o Caps. Eu chamo isso de Redução de Danos Preventiva.
DAVI B ENETTI
Eu cima que n(>s operamos tecnologias 1~-ves. Suave...
ANTONIO LANCETTI
Félix Guattari falava cm novas suavidades. Ol•c não são
menos intensas mas sem dúvida são mais velozes. É isso. Vo-
c~s são as no,-as suavidades transitando pela dureza, IegaLsta e
brutal de uma pane de nossa Súciedade que outra parte da
sociedade não quer ver.

ANT ONIO LANCE"ITI

Vocfs têm tambén, trabalho com travestis...

DAV I BENETTI
É o nossn campo de madrugada, a dos profissionais do sexo.

ANTO'l lO LAI--CETI 1
Você sabe que eu não gosto muito do nome Redução de
Danos. Na Clínira pmpatlri~a falamos em ampliação da vida.
Antonio Nery ao dizer que a função do Consultório de
Rua é tornar visíveis as pessoas que estão em situaçii.o ele n,a,
propõe um enunciado que é preciso sopcsar. Visível é mais
forte que reduzir danos.
Se vocé tivesse de dar um nome ao modo de operar, à meto•
dologia? ·
76 77

4.
MAIS DUAS QUESTÕES SOBRE
OS CONSOCfÓRIOS NA RUA
Nos anos 90 e.xperimcntamos uma tensão metodo-
lógica entre o Projeto Meninos e Meninas de Santos' que
comandávamos com o poder local, na Prefeitura de Santos e o
Projeto Axé, de Salvador, Bahia.
Para nós, o Projeto A:xé era considerado o irmão mais ve-
lho. Além da paixão pedagógica que exalava o seu condutor,
sabia mos muito pouco a respeito de Cesare de Florio La Roc-
ca. O nome completo é Projeto Axé: Pedagogia do Desejo.
Os educ-,dorcs do Projeto Axé adotaram uma versão laca-
niana de desejo que consistia numa ideia-força: o menino só
vai sair da rua quando desejar.
Nós tínhamos uma posição de exercício do poder público
ancorada na potência de nossos operadores. Éramos muito sim-
páticos à paixão que respirava aquele homem quando narrav-A
a sua Pedagogiâ dei Dmder,o.
1 Ant0nio U.n«tti. "Como cons.rn,inM)$ t) Projeto ~\1eninos e Memnat de
Sam06" (p. 17) t: Al~•lindu, De Brito ZulTo. "O mundo d1 ~ .. (p. 37). lo:
Auifltnçi11 1«-ial r ridmllfnia Sto Paulo: Hucitcc; 1996.
78
Cesare era um hometn entregue autenticamente, como pou-
cos, à causa dos meninos e meninas co,n vidas difkeis.
Nós éramos influenciados pela Pedagogia da Presença de
Antônio Carlos Gomes da Costa. Numa das preciosas con-
versas que tive com ele ouvi histórias sobre a generosidade
daquele homem, generosidade que não era só de pensamento.
Mas os educadores do Projeto Axé adotaram uma ,,ersào
lacaniana do desejo dos meninos e meninas, uma espécie de
alllpliação e rransposiçao da prática psicanalítica de consult(;
nos para a rua.
Em Santos, quando o crAck chegou à cidade, iniciamo$ atl-
vidadcs de presença nas ruas de madrugada; quando os meni-
nos estavam donnindo, os acordávamos pelo nome e os lev:íva-
m0$ par-~ uma jornada de convivência.1 Nessa expcàência vimos
como esses encontros provocavam nos men inos desejos de
mudança e de engajamento numa infinidade de oportunida-
des que as redes e o forte trabalho do território ofereciam.
Por~m, se o desejo é pro,,ocado pela falta ou pela presença a
questão é a mesma - como provocar no outro desejos e afec-
ções vitais e enriquecedoras.
Com o passar dos anos obscrva,nos que o Projeto A:xé pe-
netrou na t-ultura baiana e tratou com luxo (educação, arte,
moda ...) o que é produzido e tratado como lixo.
O Projeto Av..é foi desenvolvido cm território complexo e
violento - só para se ter ideia, vi há pouco tempo men,nos
2 Aoronio Lan«lh. ~crack. endurN:(1' GCm puder a ttrnun•. ln: Asmlbt-
ti• ,orwl, ,;Jnd11,,io. Slo Paulo: Huci1cc, 1996, p 31.
79
com marcas de queimaduras provocadas por ácido no centro
de Salvador, mas o Projeto Axé é um projeto vencedor, entre
outras coisas, porque expôs a questão do desejo dessas crian-
.
ças e JOvens.
Desde a criação dos pri meiros Consultórios de Rua até ho-
je, muitas experiências foram desenvolvidas no Brasil, e o ad-
vento do Programa "De Braços Abertos" traz muitas questões
ao debate dos Consultórios de Rua e dos Consultórios na Rua.
Como afirmou Davi Benetti no capítulo anterior, o con-
teúdo, o fundamento dos consultórios de rua ou na rua de-
veria ser o mesmo.
A questão do desejo está ligada imediatamente à questão
ética.
Nos Prindpios Éucos enunciados no Gui.., do Projeto Con-
sultório de Rua,3 Antonio Ncry e sua equipe afirmam:
1. "toda conduta humana é portadora de sii:,'llificaç,ío pes-
soal";
2. d~-vc-se "respeito ao sofrimento e ao tlhos h umano";
3. ter "responsabilidade dos atos", ou conduzir o cuidado
dos danos associados ao álcool e ourras drogas de modo não
assistencialisra.
Os territórios conhecidos como zonas de uso são muito
diferentes. Nos locais onde os governos trabalham juntos e
não houve repressão sistemática, como cm Sao Paulo e no Rio,
os usuários são muito mais F.lceis de se relacionar.
J Gu,a d, Pr.j ttfl C;ms11/14,i11 tk- R:ur. chttp·//""•ww obld.tcnád.gov.br>.
80
A detestavelmente chamada cracolãndia paulistana, junto
com a invisibilidade das pessoas e suas vidas e histórias criou
uma hipervisibilidadc. Uma espécie de Reality Sh{)'UJ. Há uma
hiperabundância de holofotes e câmeras. E há mmbém tensão
constante, tensão entre traficantes, usuários, polícia, projetos
antagônicos, mldias.
Esse, como outros territórios, coloca as equipes dos consul-
tórios na rua na defensiva. A aproximação torna-se mais difl-
cil, o que exige repensar a cada dia a metodologia dos Consul-
tórios na Rua.
Os Consultórios na Rua hoje contam com mais recursos
onde se adotaram os conceit08 de casa primeuo (fJqusi11g Fint),
como e1n Silo Paulo, nos locais cm que funciona111 08 pontos
de apow e maior acesso às Redes de Saúde e Assistência.
Diante dessas transformações seria importante sempre re-
visitar os três enunciados éticos antes citad08, não só para não
perder os princípios, mas para potencializar a clínica.
81