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2ª edição

BaNGUeLa
BANGUELA
A maior operação policial
do sul do Brasil

marcio Pessôa
caPa:
Rafael Ocaña Vieira

DiaGramaÇÃo:
Ricardo Schuck Rocha

FoTo Da caPa:
Orestis F

reVisÃo:
Lara Frichenbruder Kengeriski

DaDos iNTerNacioNais De
caTaLoGaÇÃo Na PUBLicaÇÃo

Pessôa, Marcio,
Banguela : A maior operação policial do sul do
Brasil / Marcio Pessôa. — Brasília : Editora Kiron,
2013. 2ed.
[300 p.]; 22,5 cm
ISBN: 978-85-8113-288-4
1. Política de Segurança Pública - Rio Grande do
Sul. 2. Conduta policial - Rio Grande do Sul. 3. Re-
portagens e repórteres - Rio Grande do Sul. I. Título

CDD 22. ed. 363.232098165

coNTaTo com o aUTor:


twitter: @marciovpessoa
blog: www.blogdopessoa.wordpress.com

eDiTora KiroN
sac@editorakiron.com.br
www.editorakiron.com.br
Meu agradecimento a Ale, Ataídes, Caco, Camilla, Camino, Chico
Júnior, Dai, Dill, Dona Zinha, Fabrício, Flavinha, Grohmann, Júlia
‘Barrinhas’, Leandro, Lu Grings, Marcelo, Marcos, Nádia, Patrícia,
Pedro, Rodrigo, Sandra, Telma, Tiago Alemão, Tine, Tobias, 33, Nana e
a um grupo incansável que infelizmente não pode ser citado. Do fundo
do coração, para Pínin, mãe do Zé Pedro, com muito carinho, o meu
especial agradecimento pelo apoio decisivo na publicação desta história
aos 45 do segundo tempo.
5

A história narrada aqui teve alguns cenários, diálogos, fatos e personagens


alterados e recombinados. Este livro foi escrito a partir de documentos
e experiências de pessoas que existem e viveram o que está detalhado.
Pretende-se trazer ao conhecimento público versões, pontos de vista de
testemunhas presenciais cruzados com documentos.

Diálogos considerados estratégicos para a produção deste livro foram


alterados com o objetivo de preservar a identidade de seus interlocutores.
Todas as fontes de investigações oficiais e do autor deste livro foram
tornadas ocultas. Para que essas lacunas na lógica da narração fossem
preenchidas, criaram-se personagens que suprem suas funções.

O jornal Carta Popular é fictício e um instrumento ilustrativo da narração.


Suas intervenções durante os capítulos e seu encarte especial ao final
do livro sugerem um debate que poderia ter sido feito enquanto esses
fatos eram explorados pela mídia; contudo, por diversos motivos, não
foi realizado.

Esta história ocorreu em um período real da segurança pública da região


Sul de um país que não parece, mas também é de verdade.

Marcio Pessôa
7

Existe uma casa em Lajeado que foi exaustivamente fotografada. Fica


em uma área calma da cidade. Essa casa ainda não foi aberta e a gente
tem indícios de que um homem de confiança do Caniço deixou muita
coisa lá dentro.

Ninguém nunca teve coragem de entrar no local porque se suspeita que


haja material explosivo guardado lá. Infos deram que são explosivos
C-4. Meio quilo desse troço explode um quarteirão inteiro.

O medo é abrir a porta e todo mundo ir pros ares. Eu acho que se alguém
chegar nessa casa, ela vai explodir. Imagina o que deve ter lá dentro?

Tigre Banguela
9

PreFÁcio 2ªEdição ................................................................... 11

aPreseNTaÇÃo .................................................................... 13

caPÍTULo i – esToPim ..................................................... 15


Pane seca? ............................................................................................17
Pelé, Maradona e a Operação Cavalo de Troia ..................... 31
A perícia ............................................................................................... 67
Gênese ..................................................................................................79
O Zé e o Mané .....................................................................................97

caPÍTULo ii – o GUarDiÃo ............................................. 103


Os guardiões ....................................................................................105
Churrascaria.................................................................................... 109
Vamo empurrá ................................................................................. 129
Nexus e complexus ........................................................................ 141
Comando de trânsito .................................................................... 153

caPÍTULo iii – a coLa Da HisTÓria ............................ 163


A batata quente ................................................................................ 165
MB e fredericos na escuta? ........................................................ 177

caPÍTULo iV – a eXaUsTÃo Do acaso ........................ 193


Sem respirar .....................................................................................195
Chuva de chumbo .......................................................................... 205
O roteiro de um peixe-piloto ...................................................... 217
Zonzos ................................................................................................. 221
O Florzinha ....................................................................................... 231
A dança dos guerreiros ............................................................... 245

ePÍLoGo ................................................................................ 261

GLossÁrio .......................................................................... 267

PosFÁcio 2ªEdição ................................................................ 301


11

Prefácio
2ª Edição
Apesar de o Sul ser extremamente importante para o Brasil do ponto de vista
histórico, político, econômico e cultural, às vezes tenho a impressão que é menos
abordado do que deveria pela mídia tradicional.
Nas novelas, nos romances, no cinema e também nos noticiários, o Sudeste e o
Nordeste me parecem mais presentes. Isso não significa, evidentemente, que o Sul
seja menos valioso ou que tenha menos a nos ensinar sobre o Brasil.
É óbvio que o Sul tem as suas peculiaridades, mas está claro também que guarda
grandes semelhanças com o resto da nação.
Para o bem e para o mal.
Isso fica óbvio para quem lê o excelente Banguela, livro de Marcio Pessôa. Um
misto de romance e de jornalismo, Banguela narra uma incrível operação policial
ocorrida na região Sul do país.
Um movimento de segurança pública que até o lançamento do livro, certamente,
não teve a atenção que merecia.
Além de contar de forma talentosa uma investigação eletrizante e caótica, que
terminou - quase que por acaso - desmantelando uma das maiores organizações
criminosas do sul do Brasil, Pessôa acaba contribuindo para embasar o clamor na-
cional por mudanças urgentes no modelo de segurança pública.  
Banguela deixa claro que não são apenas as polícias do Rio de Janeiro e de São
Paulo que carecem de estruturas adequadas, que são mal remuneradas e treina-
das. A obra descreve com maestria que não é só no Sudeste e no Nordeste que a
segurança pública sofre uma interferência política negativa, que compete com a
qualidade do serviço.
O livro mostra que a Polícia não só do Sul, mas brasileira, teima em atuar fora da
lei no que tange ao uso de grampos telefônicos, extorquindo e chantageando, agindo
com truculência e violência sistemática, e está fragmentada por uma divisão absurda
entre braços militares e civis.
Banguela expõe de forma quase didática que tal divisão é fonte eterna de con-
flitos entre funcionários públicos que deveriam trabalhar para o mesmo fim – ou
arrisco dizer, para  a mesma organização.
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Em suma, a obra mostra com clareza que não são apenas as polícias do Sudeste
e do Nordeste que precisam de reforma radical.
E, como um bônus, o livro de Pessôa “demonstra” ainda como policiais federais
tiveram acesso não autorizado a grampos de policiais civis, sugerindo que a esfera
federal da segurança pública também opera à margem da lei.
Ora, se o que acontece nas polícias do Sul do Brasil é bastante semelhante ao
que acontece nas polícias do Sudeste e do Nordeste, podemos suspeitar que as nos-
sas polícias, apesar de diversas culturalmente, têm problemas estruturais muito se-
melhantes.
Também podemos concluir daí que o modelo básico adotado para a estruturação
das nossas organizações policiais precisa ser modificado.
Para os estudiosos do assunto, Banguela pode ser um ótimo ponto de partida
para uma análise comparativa das nossas organizações policiais. Tal análise talvez
nos ensine muito a cerca da segurança pública do País.  
Já para quem gosta de literatura e de romances policiais originais, Banguela é
surpreendente e oferece ao grande público uma história dinâmica, com variações de
ironia e dramaticidade bastante raras. 
O texto é excelente pela riqueza, detalhes e pela forma criativa da narração.
Banguela é uma contribuição literária e jornalística de imenso valor para o grande
público.

José Bastos Padilha Neto, diretor de


Ônibus 174, Tropa de Elite e Tropa de Elite 2.
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Apresentação
No símbolo do Departamento Estadual de Investigações Criminais do Rio
Grande do Sul (DEIC) há um tigre. Sua aparência é feroz. Seus traços robustos,
imponentes. Vê-se um animal pronto para o combate, que representaria uma corpo-
ração em condições de cumprir o seu objetivo, seja ele qual for.
Durante cinco anos, porém, o tal tigre se tornou obcecado por um alvo que
não foi capaz de alcançar. Percebeu que suas presas e garras estavam menos
afiadas do que as da própria caça. Fora naturalmente ridicularizado. Não enten-
dendo a situação, buscou o espelho. Quis ver o que estava errado. Viu-se em um
sorriso demente, desdentado. Entrou em pânico. Caquético, ultrapassado e com
garras em sabugo, o Banguela não passava de um gato gordo atrás de um lince
em plena evolução, que vagava altivo pelas noites frias gaúchas e paranaenses,
dando-se ao luxo de contemplar o exuberante litoral catarinenense no verão.
O crime organizado chegou aos anos 2000 no Sul do Brasil tripudiando sobre
uma Polícia raquítica e carente. Era o lince rumo a um patamar de eficácia, agres-
sividade e profissionalismo jamais notados. Articulado, gélido, invisível, explosivo e
fortemente armado, zombava do gato que tropeçava em suas pernas frágeis, guiado
por visão embaçada, audição minimizada, cérebro torpe e vulnerável a “mil e uma
tentações”.
Banguela nos remete a um período de completa confusão na segurança pú-
blica brasileira, no qual a crônica policial do Sul do país foi tomada por um
único nome ou alcunha, criando um mito. Transformando um homem em um
lince e uma estrutura de segurança pública em um tigre desdentado, inofensivo,
a quem se deve neutralizar e um engodo a quem tem de ajudar. Foi quando san-
gue e pólvora se associaram a carros-fortes nas rodovias meridionais.
A quadrilha enfocada neste livro tivera ações apontadas pela mídia como ci-
nematográficas. Órgãos de segurança desmoralizados e confusos foram colocados
na berlinda. Iniciou-se um processo autofágico. Diretores e delegados foram des-
tituídos. Corporações investigaram corporações. Ninguém confiava em ninguém e
resultados pífios surgiram em cima de um sistema agonizante que urgia por refor-
mas eternamente adiadas. Banguela traz à tona o impulso derradeiro para frear um
bando que oxigenou caixas de organizações criminosas. Que promoveu atos bizar-
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ros, ceifando vidas e revelando chagas na segurança pública dos Estados de melhor
qualidade de vida do Brasil.
Esta história revela bastidores e informações consideradas sigilosas, não por des-
leixo, irresponsabilidade ou pretensão de sua produção, mas pelo apelo de agentes
e pela convicção de que, só assim, é possível uma discussão franca e eficaz sobre o
tema. Segredos desnecessários atrasam o debate e subestimam o cidadão. Tal prática
não tem mais espaço em um Brasil exausto e sequelado, carente de uma estrutura
de segurança moderna. O brasileiro se acostumou a ter medo da polícia e do ladrão
e engole uma lógica política que mais emperra do que ajuda a evolução do setor.
Alguns podem dizer que este livro registra o maior esforço da história da Polí-
cia Civil do Rio Grande do Sul e talvez da região Sul. Até se pode acreditar nisso.
Afinal, fazer com que um tigre gordo, sem garras e banguela adquira, de uma hora
para outra, as mesmas condições de combate de um lince em pleno vigor não deve
ser fácil. Porém, é melhor dizer que Banguela se trata de uma contribuição para uma
discussão sobre segurança pública no Brasil ou naquela região com somente clima
de “primeiro mundo”.
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capítulo 1

esToPim
17

PANE SECA?
Quinta-feira, 1º de dezembro, QUARTO ano de caçada
Km 110 da RST-453 – Localidade de Linha Burati, Farroupilha
Automóvel Corsa Sedan levando Giordano e Marlise Marconi

Ponto de vista de Giordano Marconi - corretor de imóveis


(Bento Gonçalves –> Farroupilha)
8h20min

Cravei o pé no freio em cima do caminhão que saía do posto de gasolina.

– Ma que corno!!
– Gigio, começa o dia xingando? – Lise grudava os olhos naquela revista de de-
coração.

Dirigia por uma leve descida da rodovia, entrava num breve corredor de rochas.

– Ma tu não me viu a merda que ele fez?!

Após o trecho, o caminhão ganhou mais velocidade, acelerou para a pista contrá-
ria e bateu em cheio em um carro-forte que saía da ponte sobre o rio Burati.

– Puuulltamer...! – invadi o acostamento, sem espaço para manobrar.

Lise atirou a revista pro lado.


O blindado foi arremessado para a valeta à margem da estrada, onde tombou
de lado.
Diminuí a velocidade pensando em socorrer as vítimas, trêmulo. Lise não tirava
as mãos do rosto.

– Para pra ajudá, Giordano!! Pelamoor!


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Pelo retrovisor, notei a chegada de um Vectra branco que parou próximo ao blin-
dado. Homens com toucas ninja saíram rapidamente do carro e do caminhão com
armas longas em punho. Um pegou um rojão e acendeu.

– Ma que ajudá o quê...Vamboragora!!!

Pisei fundo no acelerador e, pouco antes da ponte, notei uma sequência de mi-
guelitos. Não deu para desviar.

8h21min

O estouro seco do rojão pareceu ampliado pelo “corredor de rochas”. Mesmo


com os pneus do carro furados, consegui atravessar a ponte. Deixei o veículo no
terreno de uma casa, no acostamento da rodovia.

– Sai do carro e me pede ajuda naquela casa ali. Má fica lá, Lise!!!

Ela abriu a porta e cruzou o terreno. Saí do carro e me encurvei, abaixando a ca-
beça, ouvindo estouros curtos. Eram tiros. Joguei-me no mato às margens da pista.
Um caminhão com cabine vermelha que vinha no mesmo sentido do carro-forte in-
gressou na ponte. Comecei a rastejar em direção à residência onde Lise se escondia.
Virei a cabeça e vi dois dos encapuzados pararem o caminhão vermelho, apontando
armas longas para o motorista, que saiu do veículo sacudindo as mãos erguidas.
Ainda desprotegido, continuei rastejando até que um ruído estranho a minha reta-
guarda, semelhante a uma baforada, chamou-me a atenção novamente. Olhei em
direção à ponte e a cabine do caminhão que recém chegara estava em chamas.

Automóvel Tempra (Bento Gonçalves –> Farroupilha)


Ponto de vista de Alcides Antonioni, engenheiro mecânico
8h22min

A fumaça escura fazia sombra na estrada. O trecho de descida me fez perce-


ber a dimensão do fogo. Notei um blindado virado, um caminhão cavalo trator
sem carroceria atravessado na pista e algumas pessoas em volta. Resolvi estacio-
nar no posto de gasolina. Saí do carro e o barulho de tiros atraía a atenção de
frentistas e clientes às margens da estrada. Junto com outros curiosos, subi a pé a
encosta de pedras. De cima, a uma altura de uns oito metros da rodovia, observei
a ação do bando. “Encapuzado 2”, de pé, em cima da lateral esquerda do blin-
dado, praticamente encostava o cano do fuzil no vidro da janela do motorista
e atirava sem cessar. Perto da ponte, as chamas do caminhão atingiam mais de
cinco metros. Próximo ao posto, veículos formavam fila na estrada. Ninguém se
aproximava.
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– Jesus! Alguém chama a Polícia, pelo amor de Deus! – um homem que recém
subira, acompanhava a cena.
Era possível observar a movimentação atordoada dos seguranças através dos vi-
dros dianteiros do veículo tombado. “Encapuzado 2” insistiu com tantos tiros contra
o vidro da cabine do blindado que acabou perfurando-o.
Enfiou o cano do fuzil no buraco e atirou para dentro, onde estavam os dois
homens desnorteados, encapsulados. Eram agudos tiros de fuzil à queima-roupa.
Respingos vermelhos preenchiam os dois pequenos vidros dianteiros do blindado.
Fechei meus olhos até que o som intenso, opaco, de mola rouca, produzido pela
arma do encapuzado, parasse.
Abri os olhos e “encapuzado 2” caminhava pela lateral do blindado até a altura
da porta. Os tiros cessaram.

– Vamo! Sai logo, rápido! – “encapuzado 2” gritava apontando a arma para a


porta, na lateral que ficara para cima, na metade traseira do carro-forte.
– Calmaê, calmaê! Eu não consigo abri a porta – ouviam-se gritos abafados de
dentro do blindado.
– Rápido! Sai, sai!
– Só um pouco, cara! Calmaê...não atira mais!

Quem quer que estivesse ali dentro teria que agir contra a gravidade. Para em-
purrar a porta pesada que, com o blindado virado, estava “no teto”, era necessário
algum esforço.

– Sai largando as arma, meu!

O primeiro segurança conseguiu empurrar a porta com dificuldades, colocan-


do o braço para fora, largando uma espingarda na lateral do carro-forte. Pisando
no ombro do colega, saía por completo e ficava em pé na lateral do veículo. Puxou
o companheiro que o ajudara, fazendo com que ambos deixassem a cápsula blin-
dada.

– As arma, meu? – cobrava “encapuzado 2”, pegando a espingarda calibre 12 que


fora largada pelo primeiro segurança.
– A outra tá lá dentro – o segurança se esforçava para retirar o próprio corpo de
dentro do carro.

Ambos pularam para o asfalto e deram para encapuzados “4 e 5” seus coletes à


prova de balas e seus dois revólveres. Deitaram com a testa no chão entre o blindado
tombado e o caminhão em chamas. Encapuzados “4 e 5” pisavam em suas costas,
encostando os canos dos fuzis em suas cabeças.
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– Não te mexe!! – ordenava “encapuzado 4” a um dos homens com rosto no


asfalto.

“Encapuzado 2” entrou no carro-forte para pegar os malotes e jogá-los para fora,


enquanto “3 e 1” os levavam para o porta-malas do Vectra. Além dos malotes, outra
espingarda calibre 12 também foi retirada. “Encapuzado 1” pôs fogo em um rojão.

8h24min

Ouviu-se o estouro. Parecia a deixa para todos entrarem no Vectra. O veículo


seguiu na pista em direção a Bento Gonçalves, com encapuzados nas janelas, ati-
rando para cima. Na outra pista, fila de veículos cujos motoristas acompanhavam o
deslocamento do bando em sentido contrário.

Ponte do Rio Burati


Ponto de vista do Sargento Ferronatto
8h57min

Cheguei até o carro-forte quando estava tomado por policiais civis e militares
e técnicos do Departamento Médico Legal fazendo o local. Populares se concen-
travam em cima dos paredões rochosos e na lateral da pista cercada por viaturas
policiais. O cavalo-trator com placas de Porto Alegre estava atravessado na via.
Dentro do carro-forte, sangue parecia ter sido pulverizado nos vidros da parte
dianteira, com porções vermelhas, grossas, nos bancos e no painel.
Coloquei o rosto mais ao interior do blindado para entender a cena bizarra
e nauseei ao me deparar com a violência. Um corpo entre os assentos diantei-
ros e outro encostado no vidro da porta do carona – apoiada no asfalto onde
deitara o veículo. Um deles, sem metade da cabeça, o outro, com o tronco
dilacerado pelos tiros de fuzil. Em meio a tanto sangue, não entendia como os
outros dois seguranças restaram vivos.
Lembrava-me das instruções sobre os estragos de um tiro de fuzil. Um tiro de re-
vólver calibre 38 provoca lesão no corpo humano três vezes maior que o diâmetro de
seu projétil. A cavidade formada por um tiro de fuzil é de 30 a 50 vezes maior do que o
diâmetro da munição.
Saí de perto do carro-forte e ouvi a conversa áspera de um policial rodoviário e
homens da Seguroforte que chegaram depois, em meio à confusão provocada por dois
cadáveres dilacerados, um caminhão em chamas na pista e o buzinaço do congestio-
namento na rodovia.

– Pô, mas o que houve com o outro carro-forte que ia vir com esse? Fez diferença
no final, né, tchê? Isso não pode! Ao invés de tê oito segurança, tinha só quatro –
reclamava o patrulheiro da Polícia Rodoviária Estadual (PRE).
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– Não, é que a equipe não quis esperar oito minuto por aquele outro blindado
ali – o funcionário da Seguroforte apontava para um outro carro-forte, que estava
estacionado antes da ponte.
– Como assim?
– Eles quiseram sair no horário. Por isso, acabaram vindo sozinhos. O outro
carro estava em outro serviço e iria se atrasar.
– Não é possível. E tudo que foi combinado? A gente tava esperando eles a cinco
quilômetro daqui, checando o trecho Bento-Veranópolis – lamentava o militar.
– Mas o que é que a gente pode fazê? A orientação é atrasar se for o caso, mas
não deu pra controlar. O carro acabou vindo sozinho.

Aquela discussão sintetizava o efeito da ação da quadrilha sobre a Polícia e a


empresa: confusão. A atmosfera me inquietava, exorbitando meus sentidos com a
visão do sangue em excesso, o odor do óleo queimado, os homens vociferando, o
incômodo provocado pelo sol agudo da manhã da primavera – já invadida por um
prematuro verão serrano – e a amargura por não saber por onde começar.
Olhei pra mim, gordo, com a farda apertada. Girando em torno de mim mesmo,
observei os colegas trabalhando, pensei na minha esposa e nos meus filhos na minha
casa, não muito longe dali, em Nova Sardenha. Tive mais uma vez ânsia de vômito.

– Sargento! – soldado Heleno se aproximava acelerado.


– Fala.
– A vizinhança tá falando aqui que, um pouco antes da colisão, tinha um homem
com colete alaranjado e um balde na mão, fazendo sinal para o carro-forte reduzir
a velocidade.
– É... Pra passar por cima dos miguelito e virá com o impacto.
– Decerto é... Também encontraram um Vectra branco incendiado em uma es-
trada vicinal, na localidade de Linha São Miguel. O veículo tá em ocorrência de
roubo desde 23 de outubro.

Heleno se referia a um local a cinco minutos dali, em direção a Bento Gonçalves.


O caminhão utilizado para colidir com o carro-forte havia sido roubado em Canoas,
região metropolitana de Porto Alegre, no dia 16 de novembro, duas semanas antes
do ataque. Estava com placa alterada, de um veículo roubado há quase oito anos
em Fortaleza, Ceará. Vazara naquele momento que aquele carro-forte tombado era
um dos únicos que tinha cofre com chave-manual. Os outros tinham fechadura
randômica, com senha e contrassenha, sem a chamada “abertura programada”. O
blindado também não tinha monitoramento policial ou da empresa, nem portas de
fechamento automático. Informações fundamentais para quem conduz e para quem
assalta. Sorte dos vagabundos? Creio que não.
No local, não havia muita surpresa porque aquele método já era bem conhecido.
Comentava-se apenas o nome de um suspeito. Esse mesmo bando teria atacado
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outro carro-forte a um quilômetro dali, meses antes. Não levaram nada porque via-
turas policiais estavam próximas. Para ser franco, eles adoram a nossa região. Era um
ataque a cada semestre. Já tivemos ocorrências em Caxias do Sul, Antônio Prado,
Nova Petrópolis, duas vezes em Farroupilha, duas vezes em Veranópolis. Mesmo
assim, aquilo, daquele jeito, daquela vez, não era pra ter acontecido.

Domingo, 27 de Novembro
CINCO DIAS ANTES DO ATAQUE
Sede da Brigada Militar de Farroupilha
Ponto de vista do Sgt. Egídio Pezzoto – plantonista do telefone 190
da Brigada Militar
15h07min

– Brigada Militar, Sargento Pezzoto.


– Eh... Brigada?
– Sim, senhor. Pois não?
– Olha, ouvi uma cunversa aqui e achei meia estranha.
– Sim, senhor. Prossiga.
– Dois homi, vieru aqui num cumércio, eu tava comprando pão... eram bem
estranho, nunca tinha visto aqui.
– Sim, senhor?
– E eles falaru que vão atacá um carro-forte aqui no Burati.
– Onde o senhor ouviu?
– Aqui mesmo no cumércio. Eles tavu parado e eu comecei a cunversá com a
vizinha, dona do cumércio. Mas tava com um ouvido neles e outro nela. Percebi que
eles falaru que pudia sê de terça até sexta-feira... A gente conhece esses tipo, né. O
jeito que falaru eu vi que era coisa ruim. Falaru em um carro-forte na estrada que
leva dinheiro de Burati aqui até Capela Santo Inácio.
– Quem tava falando?
– Dois homi aqui que eu nunca vi. Tavu tomando café, no comércio aqui... eu
achei bem estranho.
– Como o senhor sabe que eles estavam falando de um carro-forte?
– Eles falaru carro-forte. E falaram que iam metê. Essa foi a palavra: metê...
isso mesmo. Deduzi que era coisa grande porque eles também disseru que era coisa
graúda.
– Eles não falaram quando, hora ou coisa assim?
– Não. Mas chegaru a falá em uns carro, uma caminhonete escura, falaram em
Cherokee, um Vectra e sei lá eu, outras que não me alembro.
– Sei senhor... onde é exatamente?
– Olha, ouvi que era aqui no Burati.
– Qual é o seu nome por favor?
– Olha, prefiro não dzê...
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– Não... mas o senhor é da região?


– Era só isso que tinha pra dzê, Seu.
– Claro que sim. Mas...
Claro que era estranho, um plano de assalto sendo comentado em uma
padaria alto o suficiente para ser ouvido por terceiros. Porém, apesar dessa
característica pouco usual, achei que as informações não poderiam ser ignora-
das. Pode ser que o informante tivesse seus motivos para não falar a verdade
sobre como tinha aquelas informações. Além disso, o sujeito ligou em uma
época crítica, próxima ao pagamento do décimo terceiro, quando a circulação
de dinheiro em carros-fortes é intensa. Repassei a informação pelo Relatório
Interno para unidades da Brigada Militar em Bento Gonçalves, Caxias do Sul
e Porto Alegre. Aí, teoricamente, o informe ganha força.

Segunda-feira, 28 de novembro
3º Batalhão Rodoviário da Brigada Militar em Bento Gonçalves
Ponto de vista do Sargento Medeiros
14h20min

Estava saindo da sala com alguns memorandos para entregar ao Major Beletti
e o telefone tocou.

– Sargento Medeiros.
– Oh, militar! É o Aloísio, tudo bom? – meu colega de turma, P2 da Brigada
Militar de Bento.
– Fala, Vinagre. Tudo tranquilo?
– Tamoaí... na luta. Seguinte, tô te ligando pra repassá um informe que chegô
pra Farroupilha ontem.
– Uhumm... Bom, diz.
– Seguinte, ó. Tá meio vago o negócio aqui. Eles dizem que de amanhã até sexta,
poderá acontecer um assalto a carro-forte na RST-453. No trecho de Burati à Ca-
pela Santo Inácio entre Bento e Farroupilha.
– Uhumm. Mais algum detalhe?
– Olha, é o que eu tenho. Um assalto a carro-forte... ó, podendo ser usada uma
Cherokee escura, tá? Entre Linha Burati e Capela, tá?
– Tá bem. Tá bem. Fica tranquilo, Vinagre. Vô passá pro major.

Na verdade se tratava de mais um dos vários informes recebidos pela Polícia


do Estado a respeito de assaltos a carro-forte. Conversei com o major, que pediu
para eu falar com as nossas frações e enviar um e-mail à Seguroforte de Farrou-
pilha. Eu fiz.
24

Terça-feira, 29 de novembro
14h48min
De: 3prebg@brbm.sjs.gov.br
Para: segurofortefarroup@seguroforte.com.br
Assunto: alerta

Recebemos o informe de que na data de hoje até sexta-feira, delinquentes es-


tariam planejando executar um assalto a um carro-forte na RST-453, localidade
do Burati até Capela Santo Inácio, entre Bento e Farroupilha. Referente a veículos
temos também o informe de que possivelmente seria usada uma Cherokee cor escu-
ra. Salientamos que pode ser um despiste o informe do local, para ataque em outro
ponto da serra.
Sgt. Medeiros - 3 BRPM

15h18min
De: segurofortefarroup@seguroforte.com.br
Para: 3prebg@brbm.sjs.rs.gov.br
CC: segurofortepoa@seguroforte.com.br
Assunto: Re: Alerta

Obrigado Sgt. Medeiros. Estaremos redobrando a segurança e contamos com a


costumeira colaboração deste batalhão.

Atenciosamente,
Sandra Hester
Coordenação de Segurança da Seguroforte Porto Alegre

Quinta-feira, 1º de dezembro – DIA DO ATAQUE


3º Batalhão Rodoviário da Brigada Militar
em Bento Gonçalves
Ponto de vista do Sargento Medeiros

Três patrulhas de Bento Gonçalves, Farroupilha e Veranópolis em alerta desde


segunda-feira. Monitoram o trecho que liga os três municípios, em sequência, na
RST-453 e na RSC-470. Todas as manhãs desta semana, o pessoal da Seguroforte
nos telefonou para pedir o apoio conforme combinado previamente em reuniões.
Na quinta-feira, não foi diferente.

7h45min

– Sargento Medeiros?
– Bom dia, Sargento, é o Bruno da Seguroforte. Estamos saindo com dois carros
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daqui a pouco, às 8h. Eles devem chegar às 8h50min em Bento. Precisamos de uma
atenção no trecho Bento e Veranópolis.

A ligação nos pedia atenção especial em um segmento um pouco mais distante.


O Burati fica entre Farroupilha e Bento Gonçalves.

8h15min

Fomos para a volta do Km 105 da RST-453, no entroncamento com a RSC-470,


ainda entre Veranópolis e Bento Gonçalves. O ataque seria a cinco quilômetros dali.

***

A ligação que teria ocorrido por volta das 7h45min do dia 1º de dezembro do
quarto ano de caçada é negada por fontes da empresa que não querem ser identifi-
cadas. As mesmas fontes preferem não se manifestar se existiram ligações partindo
da empresa para a Polícia Rodoviária Estadual (PRE) naquela semana em função
do alerta.
O mesmo e-mail que transitou por órgãos da Brigada Militar, Polícia Rodovi-
ária Estadual e unidades da Seguroforte foi enviado para a Delegacia Regional de
Santa Cruz do Sul. O material não foi aberto até horas depois do ataque ao carro-
-forte. Conforme o delegado da região, Ciro Paganini, ele só foi ver o e-mail quando
viajou para a Serra, mais de 150 quilômetros de sua região, para checar o ocorrido
com o blindado. Em Burati, ainda na cena do crime, teve contato com um dos
administradores da Seguroforte de Santa Cruz do Sul. O funcionário da empresa
informou-lhe que encaminhara o alerta.
Mais tarde, ele abriu o e-mail em uma delegacia de Farroupilha. “Esse funcio-
nário da Seguroforte já tem um relacionamento antigo conosco. Sempre quando
tinha algum transporte de valores de vulto aqui na região de Santa Cruz do Sul, nos
pedia um apoio especial para os blindados. Como o suspeito de liderar a quadrilha
é daqui da região, ele sabia que temos um banco de dados especial com tudo o que
é divulgado oficialmente, extraoficialmente e até na mídia sobre esse delinquente
e quis contribuir enviando mais este informe”, explicou o delegado da Região de
Santa Cruz, salientando que aglutina todo o tipo de informações sobre o suspeito
Manoel Barcellos Flores, vulgo Caniço.
26

ciDaDaNia & DireiTos

eNTreVisTa

sorTe e aZar NÃo


eXisTem. É eFiciÊNcia.
Oficial da PRE diz que falta de gasolina teria feito com que carro-forte
atacado no Burati saísse sozinho da empresa. Seguranças foram fuzilados.

REMO BERGAMINI, Caxias do Sul | remo.bergamini@cartapopular.com.br


Uma simples falta de gasolina, ou Conforme Beletti, a Seguroforte havia preendeu o blindado na RST-453, na
“pane seca”, segundo o comandante do indicado para os patrulheiros rodoviá- ponte sobre o Rio Burati. Dois seguran-
3° Batalhão Rodoviário da Brigada rios que dois veículos iriam transportar ças foram fuzilados e uma quantia não
Militar, tenente-coronel Erasmo Sérgio os valores e pediu para intensificar a se- revelada em dinheiro foi roubada.
Beletti, foi um dos fatores que teriam fa- gurança. No entanto, apenas um deixou Carta Popular tem informação de
cilitado a ação da quadrilha no assalto a garagem da empresa. A reportagem fonte que não quer ser identificada de
ao carro-forte na localidade de Linha procurou a Seguroforte, mas não houve que, na verdade, não teria faltado gaso-
Burati, município de Veranópolis. manifestação oficial. A quadrilha sur- lina no blindado, mas o segundo carro-
-forte teria se atrasado para concluir Autoridades da Polícia Civil quei- Secretaria de Justiça e de Segurança
uma tarefa. Por algum motivo, a equipe xam-se de que a informação não tran- (SJS). Por que a Polícia Rodoviária
quis cumprir o horário e o blindado ata- sitou pelos canais que tinha de transi- Estadual (PRE) não repassou aos
cado acabou saindo sozinho da garagem tar, independentemente da relação da outros órgãos da SJS o que já tinha?
da empresa. empresa com a PRE. A comunidade de TC Beletti: Porque a informação
Ligação para o 190 teria alertado inteligência não recebeu a informação, o veio do quartel da Brigada Militar
sobre o assalto com cinco dias de ante- DEIC também afirma não ter recebido em Bento Gonçalves que já havia
cedência, informando trecho de seis qui- e, por consequência, a Delegacia Regio- informado o escalão superior deles,
lômetros onde poderia acontecer. Beletti nal de Caxias do Sul também não teve o Comando Regional. Como nós
afirma que falta de exatidão na infor- acesso à denúncia recebida pelo 190. não sabíamos a fonte, supúnhamos
mação que chegou até o seu batalhão fez Alguns setores da segurança pública do que ela tivesse vindo das incontáveis
com que a quadrilha “lograsse êxito”. Estado ficaram mais indignados porque gravações feitas pelo Guardião (siste-
Apesar de ressaltar que seus patrulheiros frequentemente ocorrem assaltos naque- ma de grampos telefônicos da SJS).
estavam alertas desde a segunda-feira la área e se trata do período mais crítico E não competia a mim tomar uma
antes do assalto, o comandante reclama do ano, 1º de Dezembro. Ou seja, uma providência de informar o escalão
que a denúncia recebida pela PRE não ação conjunta preventiva seria uma ob- superior. A mim competia tomar as
tinha hora exata, fonte do informe, dia, viedade. providências de fazer o policiamento.
veículos que seriam utilizados, nem lo-
cal exato da ação. Ele diz que sem essas Repórter Remo Bergamini: Fala-
informações complementares, um infor- -se que não houve informação de
me não perde a “qualidade de boato”. qualidade passada para os órgãos da
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28

CIDADANIA & DIREITOS

O Sr. acha que a difusão da infor- nível de comando e chefia da Briga- Uma semana inteira nesse pon-
mação tinha de partir do 190 da Bri- da Militar. Até porque a Polícia Civil to? Nós não tínhamos a informação
gada Militar? faz o monitoramento dos telefones. A precisa de quando e de como... Claro
E essa difusão foi feita. A Briga- questão de atuação prática, num caso que é barbada se tivéssemos tal dia,
da Militar mandou de Farroupilha desses, que não tínhamos a informa- tal horário, em tal local...
para Bento, de Bento para Caxias e ção pontual, dia e horário de atuação,
de Caxias para Porto Alegre. A infor- não é questão de polícia de investi- O Sr. acha que falta infraestrutura e
mação também foi encaminhada para gação, mas de policiamento ostensivo. efetivo para fazer esse policiamento?
a unidade da Seguroforte, em Porto Nem é o caso. Era uma informação
Alegre, para quem meu pessoal enca- Chegou para vocês a informação tão tênue que nos chegou... Nós está-
minhou e-mail. de que o fato ocorreria em um trecho vamos no local. Tínhamos uma via-
entre Burati e Capela Santo Inácio. tura no Km 105. Outra, no Km 112,
Integrantes da Polícia Civil ale- Isso são quantos quilômetros? encontrou um caminhão Volkswagen
gam que a informação não chegou Não sei te dizer... deve ser uma abandonado. Então, nós estávamos
até eles. meia dúzia de quilômetros. trabalhando.
Não compete a mim. Nós não te-
mos que informar à Polícia Civil. E é difícil fazer o policiamento em Foi azar, o Sr. acredita?
Fica em nível de escalão superior, em seis quilômetros? Não. Sorte e azar não existem. É
eficiência, né? Eu acho que eles lo- Se, de repente, essa viatura não ti- chegar ao local, tínhamos ali o dele-
graram êxito. Porque no 112 nós en- vesse localizado esse caminhão no gado regional, os delegados de todas
contramos um caminhão Volkswagen 112 e tivesse continuado a transitar as delegacias da região, o delegado
abandonado, furtado. Então, nós já até o 110, provavelmente teríamos do Departamento Estadual de In-
estávamos tomando providências. frustrado a tentativa também na vestigações Criminais (DEIC). Será
Não sei se esse veículo estava pre- quinta-feira. E talvez ela fosse acon- que eles já não estavam em alerta?
parado para uma segunda ação ou tecer em um outro dia. Eu acredito que sim. Acredito pia-
foi frustrada. O que nós fazemos de mente que eles tinham a informação
acerto não aparece. Os possíveis as- O que o Sr. acha de o carro-forte provavelmente da mesma forma que
saltos que nós evitamos também não não ter saído acompanhado de ou- nós tínhamos. Que tinham, tinham.
aparecem. Com certeza, acompa- tro blindado, como o Sr. alega que Tanto é que, na ocasião, o delegado
nhamos várias vezes, monitoramos estava combinado entre a PRE e a da região deu depoimento para a TV
vários transportes ao longo do ano... Seguroforte? dizendo que tinha a informação. O
No 112, encontramos o caminhão. No mínimo, é estranho. Eu não delegado do DEIC disse que não ti-
No 105, estávamos lá. Aconteceu no sei... sinceramente não posso te dizer nha. Entraram em contradição no lo-
miolo (Km 110). como funciona. Por que eles não es- cal do fato. Mas eu te digo, bem claro,
peraram o conserto da outra, porque que estávamos trabalhando.
Mas é evidente que houve uma a outra também se pôs em movimen-
grande dificuldade porque, do con- to e chegou lá após o assalto. A Po-
trário, seria frustrado esse assalto. lícia Civil alega que não tinha a in-
Qual foi? formação, só que, antes mesmo de eu
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PELÉ, MARADONA E A
OPERAÇÃO CAVALO DE TROIA
Sexta-feira, 13 de janeiro, QUINTO ano de caçada
Operação Dilúvio – Delegacia Alfa do DEIC
Conversa telefônica de Milene, cunhada de Ricardo Baracy de Lima, o
Ricardinho, suspeito de integrar quadrilha de assaltos a carros-fortes
Ponto de vista de Guardião

13h15min

– Lene?
– Oi?
– Lene, sou eu!
– Jana? ( Janaína)
– Oi, mana!
– E aí, guria?
– Tudo bem, tudo bem!
– Muito sol aí?
– Não, não. Hoje tá nublado até.
– Puxa!
– É... e...
– Mas tomara que melhore pra aproveitá um pouquinho, né? Praia com chuva....
– É. Escuta...os pequeno tão bem? Tá tudo bem?
– Tudo tranquilo, Jana. Tudo bem. Vou levá eles na tia amanhã.
– Ah, que bom! A Carol não tá incomodando muito?
– Não, nada... tá um amor essa gordinha da tia. Taqui, tô vendo ela – Milene faz
uma pausa, termina o sorriso e prossegue – Tudo bem que tá nublado, mas vão tomá
um banho hoje de mar igual, né?
– Não. Não, deu um problema no jet ski dos guri na lagoa. Já é a segunda veiz
que o negócio incomoda. Os guri tão tentando arrumá aqui na oficina...
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– Baaaah!
– Eles tão aqui na oficina em função... não sei quanto tempo demora.
– Pena.
– Mas eu liguei só pra sabê.... e como é que tá a mãe?
– Meia braba...
– Por quê?
– Coisa dela. Vai sabê!
– Ãhumm...talvez mais denoitezinha te ligo de novo, tá?
– Tá. Tá bão...qué falá com as criança?
– Não, é rapidinho só pra sabê como tá o povo. Depois eu te ligo com calma.
– Tão tá bão. Um beijo!
– Tchau! Beijos pra todo mundo aí!
– Tá. Toma um banho por mim, hein?
– Tá. Tchau.
– Tchau.

Bairro Jardim do Salso, Zona Leste de Porto Alegre


Estacionamento do Departamento Estadual de Investigações
Criminais (DEIC)
Ponto de vista de Luiz Antônio Guedes Fontoura – agente da
Delegacia Sigma
15h20min

– Pra praia?
– Vamo, né? A gente tinha combinado no início da semana.
– Nãã... tudo bem. Acho uma boa.
– Então? Demora? A Melissa acabou de ligar, filho. Disse que tentou falar con-
tigo e não conseguiu. Ligou pra cá pra dizer que te encontra lá hoje à noite.
– Nãã... segura aí, mãe. Já tô chegando aí, tá?
– Tá, vou arrumando as coisa. Beijo.
– Oooutro.

Desliguei o telefone e saí do estacionamento para ser abordado por um colega de


outra delegacia. Ele avisou que o titular da delegacia Alfa, Valorisson Pires, queria
falar comigo. Fui correndo ao gabinete, encontrei a porta aberta e Soraya, escrivã da
delegacia, saía.

– Vai sê numa sexta-feira 13, hein, Luiz?

Não respondi, não sabia do que se tratava. Continuei fitando a colega, intrigado
com sua risadinha de boca fechada. Entrei na sala do delegado Pires ao sabor da inércia.
– Falaí, chefe. Mandou me chamar?
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– Tchê, é o seguinte, preciso de ti – dizia Valorisson Pires, um homem moreno,


magro, de aproximados 1,90 cm e 50 anos.
– O que houve?
– Vamo pro litoral pegá o “Cara”. Pode ir com a gente, né? Tu é o único que já
teve tête-à-tête com ele.

Percebi naturalmente de quem se tratava. Ele sabia que aquele caso era a minha
obsessão em todo o meu pouco tempo de Polícia. Foram vários meses sem descanso
atrás de um bandido cujos métodos não eram nada convencionais. A quadrilha de
Manoel Barcellos Flores, o Caniço, era suspeita de participar de cerca de 20 ataques
a carros-fortes na região Sul do Brasil nos últimos quatro anos. Todos com um
toque de ousadia que a tornou inconfundível, arremessando caminhões em carros-
-fortes e utilizando fuzis e até explosivos para obrigar os seguranças a saírem dos
blindados. Ele era o “Cara”.

– Claro, mas vou deixá o meu delegado ciente. Podsê? – aceitei, apesar de per-
tencer à outra delegacia.
– Sem problemas.

Free-Way (Porto Alegre –> Litoral) – Viatura Astra 1


Ponto de vista de Augusto Belmonte
15h50min

Conforme a operadora de telefonia fixa Comtel, o telefone móvel da cunhada de


Ricardinho recebeu a ligação de um telefone público quase em frente à rodoviária
de Arroio Teixeira, uma pequena e antiga praia do Litoral Norte do Estado. Janaína
era a companheira de Ricardinho e ligara para a irmã. Corríamos com duas viaturas
discretas Astra rumo ao litoral para surpreendê-los na oficina citada no diálogo.
Eram quatro agentes e o delegado. Apesar de ser sexta-feira, não pegamos o
horário de pique na Free-Way. Pires esperava que uma terceira viatura com mais
dois policiais terminasse diligência na zona Sul de Porto Alegre para se juntar a nós.

– Baaah, velho!
– O que houve, Luiz?
– Minha mãe tava esperando prontinha para ir comigo pra praia...
– Putz! Tu esqueceu?

Luiz pega o telefone celular no bolso da calça com alguma dificuldade por estar
dirigindo. Sua mão esquerda se mantém no volante e o polegar direito aperta bo-
tões do teclado. Segura o telefone, apertando o aparelho entre a cabeça e o ombro
direito, reduz um pouco o volume do rádio-comunicador da viatura, e volta a pegar
o telefone com a mão direita.
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– Mãe, tô na estrada, indo pra praia – o colega falava em tom de lamento.


– ... – não conseguíamos entender o que a mãe do colega dizia, mas parecia
chateada.
– Pois é, mas tô indo pegá o “Cara”. Tenta ir com a Melissa.
– ... – ele afastava o telefone e compartilhávamos a bronca da Senhora Fontoura.

Sexta-feira 24 de dezembro, TERCEIRO ano de caçada


Campana na rua Uruguai, bairro do Baú,
São Leopoldo, Vale do Sinos
Ponto de vista de Luiz Antônio,
após ceia de Natal com a família
22h44min

Havia muita gente na rua. Normalmente, o local fica deserto naquela hora. Po-
rém, na noite de Natal as famílias ficam até tarde fora de casa. Muitas crianças
brincavam, o que tornava o trabalho um bocado complicado.
A minha intenção era surpreender Gessileno Soares Coimbra, o Brinquedo, sus-
peito de ser parceiro de Caniço nos assaltos a carros-fortes, se ele entrasse ou saísse
da residência. Por se tratar de uma região pobre, a casa se destacava porque era grande
e típica de classe média. Tinha pátio dividido em grama e lajotas, um portão e espa-
ço para dois veículos na garagem aberta. Havia uma padaria ao lado. O automóvel
Pointer, da esposa do proprietário da residência, não estava na garagem. Eu tinha a
informação de que aquele veículo havia sido visto com Brinquedo durante a semana.
A casa estava bastante iluminada, luzes de Natal. As três janelas da parte frontal
abertas. Sabíamos do envolvimento da família com Brinquedo, pois uma amiga da
dona da residência tem um parente policial, que nos repassou todo o relacionamen-
to do proprietário daquela casa com o vago. Também tinha conhecimento de que,
no mês anterior, o assaltante participou de um churrasco de aniversário do filho do
casal. A última informação do colega é de que ele iria realmente aparecer na resi-
dência no Natal. Apenas não tínhamos a hora.
Chegou aos meus ouvidos a série de brigas que marido e mulher tinham porque
ela desaprovava o relacionamento dele com o parceiro de Caniço. A mulher já teria
encontrado na sua casa até mesmo fuzil utilizado em assaltos. O delegado que che-
fiava o DEIC sabia da campana que estava fazendo. O problema é que existia a pos-
sibilidade de Brinquedo não aparecer porque dois suspeitos de assalto a carro-forte
em Cachoeirinha, dez dias antes, foram presos. Como a ação deixou dois seguranças
mortos, os quadrilheiros do Vale do Sinos estavam em alerta porque sabiam que a
Polícia tinha que dar uma resposta pela ação violenta dos vagos. Portanto, qualquer
suspeito de integrar quadrilha de assalto a banco ou carro-forte na Região Metro-
politana ou no Vale poderia cair em cana.
Consegui perceber que apenas o marido, a esposa e o filho estavam em casa.
Ainda faltava o “motivo da minha campana” aparecer por ali. Tive que ficar em mo-
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vimento com o carro para não dar muita bandeira. Ouço sequência de bips no meu
telefone celular. Era a quinta mensagem de algum colega nas últimas duas horas.
“Amigo, um feliz Natal para vc e p família! [ ] Bernardo” – sempre no mesmo tom.
Dessa vez, não resisti e liguei. Enquanto o telefone chamava, enxerguei com lu-
cidez onde e quando estava fazendo aquela campana. Observei os casais que saíam
brindando e a gurizada que estourava fogos de artifício esperando a meia-noite.
Lembrei da minha infância, da minha saída repentina de casa após a ceia, da minha
mãe, irmãos e mulher lamentando o meu trabalho espontâneo, empolgado, em ple-
na noite de Natal.

– Comissário Bernardo? Como vai?!


– Cara, que surpresa! Quero te desejar mais uma vez, agora falando, um feliz
Natal pra ti e pra toda a tua família!
– Muito obrigado, comissário. O melhor presente que o Papai Noel poderia me
dar é pegá esses vago agora.
– Esquece isso, meu. Tenta relaxar. É Natal! A gente tem um Ano Novo inteiro
pela frente – Bernardo nem sonhava que eu estava em campana pra pegar o parceiro
do “Cara”.
– Tá na Praia?
– Sim, as irmã da mulher passam o verão aqui em Tramandaí e tamo tudo junto.
E tu? Vai passá em São Leopoldo?
– Ahã... – divido minha atenção entre a ligação e um homem de bermuda preta,
camiseta e boné, que vinha da esquina da padaria na quadra da residência acampa-
nada. Ele para no portão da casa, toca a campainha e se vira, observando atentamen-
te a rua. Aí consegui ver que era muito baixinho para ser o Brinquedo.
– Olha, fica com Deus e te cuida, ok? Até mais, irmão. Feliz Natal.
– Pra ti também, comissário. Obrigado!

23h40min

O telefone toca.

– Alô?
– Como é que é? Tu não vem mesmo, né? Quase meia-noite!
– Pô, amor, calmaí. Tô trabalhando. Te falei que o negócio não ia durá meia-hora,
precisava de mais tempo.
– Único polícia do Estado que faz tocaia na noite de Natal. É difícil, né, Luiz...
– Calmaí, eu tenho certeza que o vagabundo vai aparecê. E se ele aparecê, amor,
a gente arroxa ele e pega o “Cara”.
– Como assim, Luiz? A tua família toda te esperando, eu aqui meio deslocada e
tu montando tocaia pra bandido que a essa hora deve tá tranquilo fazendo a ceia de
Natal a quilômetros daí. Tem dó, né? E a gente tenta... – afastei o telefone da orelha.
36

– Mulher é foda! – falei sozinho, tapando com a mão o celular, e retomei – Cal-
ma, amor, eu já tô voltando pra casa. Já vai terminá, tá bom? Tu sabe o quanto é
importante pra todo mundo pegá esse cara, né? Já te expliquei.
– Tá bom, Luiz... tu que sabe o que é prioridade na tua vida. Espero que tu con-
siga hoje, colocar as mãos no tal do “Cara”. Mas quero que tu saiba que assim, meu
querido, tá aberta a contagem regressiva pra tu pará de colocá tuas mãos em mim.

Ela bate o telefone na minha cara. Eu respiro fundo e volto meus olhos para a
porta da casa.

Sexta-feira, 13 de janeiro, QUINTO ano de caçada


Praia de Arroio Teixeira – município de Capão da Canoa, Litoral Norte
do Rio Grande do Sul
153 Km de Porto Alegre
Ponto de vista de Homero
17h05min

Identificamos de cara a rodoviária, no segundo trevo formado pelo segmento as-


faltado de acesso a Arroio Teixeira – que liga a Estrada do Mar à antiga Interpraias.
A estação era a referência dada pela Companhia Telefônica para a localização do
orelhão, do outro lado da rua. Daquele telefone, há quase quatro horas, teria ocorri-
do o diálogo interceptado.
Quando paramos na rodoviária, localizamos não só o orelhão, mas também uma
oficina, a uns 30 metros. Instantaneamente, notamos o reboque com um jet ski na
entrada. Bom sinal. Havia pessoas na porta, mas, daquela distância, era difícil per-
ceber algum conhecido. Tentando não dar bandeira de que estávamos juntos, o que
era quase impossível, Belmonte, Luiz e eu atravessamos a Interpraias e entramos em
um bar em frente à rodoviária, na esquina oposta ao orelhão. A ideia era acampanar
a oficina, simulando ser freguês do boteco. Delegado Pires e seu braço direito, Itaqui
Sotilli, ficariam mais soltos pela praia. Dois colegas se acomodaram em uma mesa
enquanto eu ia ao banheiro do boteco. Já lavava as mãos quando meu telefone tocou.
Era o delegado Pires.

– Homero?
– Opa – eu atendia, saindo do modesto banheiro, secando as mãos na calça.
– Tô aqui no orelhão. Liguei para o meu celular e o bina confirmou. É o mesmo
número da ligação da mulher do vago – a voz do delegado Pires.
– Tá certo.

Era um alívio, porque no dia anterior tivemos uma porta fria em outra operação
em Porto Alegre, porque a Comtel deu o endereço errado de um telefone público
de onde fora realizada uma ligação interceptada.
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– Fala pro mais gurizão dar uma chegadinha ali na oficina. Diz pra ele dizer que
gostaria de alugar aquele jet ski, sei lá... se não tiver nenhum conhecido ali, vamo
tenta vê quando esse pessoal vai voltar pra pegar esse troço.
– Tá bem, delegado – me aproximava da mesa para sentar junto aos colegas.
– Vou pegá o Itaqui na rodoviária e vamo dá uma volta pela praia pra vê se a
gente pecha com eles, tá bom?

Desligamos e puxei a cadeira livre da mesa. Transmiti o recado para o Bel-


monte. O colega socou uma pistola na calça e partiu à oficina. Pedi uma cerveja e
dois copos. Luiz pediu água porque não bebe nada alcoólico. Concentrei-me para,
dissimuladamente, acompanhar o deslocamento do colega e percebi que, da mesa
de sinuca do bar, poderíamos ver em diagonal, através de uma janela, em primeiro
plano, o cruzamento formado pelo acesso à Arroio Teixeira e a Interpraias e, em
segundo plano, a porta de entrada da oficina.

– Vamo jogá uma sinuquinha? – perguntei para Luiz, já me levantando, eviden-


ciando o motivo da proposta.
– Claro.
– Amigo, vê também aí uma ficha pra sinuca pra nós – gritei para o atendente.

Apesar de Luiz não ser da nossa delegacia, trabalhou durante muito tempo na
Operação Casarão, instalada pela Delegacia Beta para também pegar Caniço. A
cerveja, a água e a ficha chegaram. Coloquei a bola branca na mesa, ajeitei as demais
no triângulo.

– Tu começa – permitiu Luiz.

Vi que não havia perigo de ser ouvido por terceiros e aproveitei pra puxar um
papo sobre o Caniço com o cara, que conhece bastante.

– Olha, tchê, na época que os brigadiano prenderu o Brinquedo, acabamo es-


tendendo as investigação da Operação Dilúvio, e encontramo um outro info – dei
a primeira tacada.
– Sim – Luiz examinava a movimentação das bolinhas na mesa.
– Ele nos disse que o Caniço seguido aparece na zona Sul de Porto, em um cam-
ping na praia do Lami. Tá sempre com uma moça ruiva – passei o giz na ponta, tava
ruim de negócio.
– Sério? Mas... mas como assim? Como foi?
– Sim, a gente tem a informação de que o cara adora esporte aquático e costumava
usá um jet ski no Guaíba – eu bebia um gole de cerveja e observava o colega se inclinar
para tentar colocar “a dois” na caçapa do meio – Tu vê, agora tamo aqui por causa de
um jet ski.
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– É mesmo. Tu sabe que quando eu tava na Delegacia Beta – Luiz faz uma pau-
sa, com a língua no canto da boca, para bater na bola branca e continua – a gente
também tava com umas escuta... acho que era do Fofo Ledo ou do Brinquedo...
Sabe, quando os dois já tavu preso? – ele falava de vagos grampeados em penitenci-
ária de alta segurança... nada foi encaçapado.
– Ahã – observei o jogo.
– Chegamo a pegá um dia o Caniço reclamando pra um deles de um fulano lá
que tinha vendido pra ele um jet ski roubado, cheio de problema. Nem entendemo
o troço direito. Pensamo até que fosse código dos vago.
– Aí tu vê, né? Essa informação não fez sentido pra vocês, mas faria pra nós
– digo observando que o colega pagava “a nove” na caçapa do canto esquerdo pra
mim. Inclinava-me para jogar, ficando de frente para a janela que me permitia ob-
servar Belmonte atravessar a rua – Se as delegacia tivesse juntado as informação...
– dizia olhando o colega na rua e tocando de leve na bola branca.
– A gente já podia tá mais avançado ou até já tê prendido o cara, juntando essa
quantidade imensa de informação solta – Luiz complementava observando que “a
nove” entrava na caçapa, enquanto Belmonte caía na oficina.

Oficina do Brambilla
Ponto de vista de Belmonte
17h50min

Havia três pessoas na mecânica e resolvi encarar.

– Opa! Tudo bem? – olhei pra um rapaz, talvez 25 anos, moreno, que mexia em
um Gol azul.
– Oi.
– Cara, pode me dá uma informação?
– Sim?
– Tô aqui na praia com umas mina e tô afim de alugá um jet ski pra fazê uma
preza pra elas e pá... passeá um pouco por aí, tá ligado?
– Aaahãã.
– Tu não qué alugá esse que tá aqui pra nós? Putz, achei ele dos mais furioso! –
apontei para o reboque que sustentava um jet ski à porta da oficina.
– Olha, tchê – o rapaz se levanta com uma chave de boca na mão – um pes-
soal aí deixô aqui pra arrumá – ele seca a testa com o antebraço – Acho que não
alugu. Ficaru de voltá aí...
– Ficaram de voltá aqui?
– Sim, ficaru de pegá aqui o jet ski, mas não sei direito quando. Tem que falá com
meu pai que recebeu eles mais cedo aí. Mas ele não tá aí agora.
– Tá bom então, velho. De repente, eu volto outra hora então, né?
39

Bar Interpraias
Ponto de vista de Homero
18h03min

Belmonte retornou em passo curto, entrando novamente no boteco.

– Seguinte, tem um Gol, um reboque e o jet ski na oficina – disse em tom


moderado para não chamar a atenção do proprietário do bar, que tinha apenas
dois outros clientes no momento, jogando sinuca do outro lado, e pareciam estar
de cara.
– Algum cunhecido? – perguntou Luiz, enquanto Belmonte servia um copo de
cerveja.
– Não, nenhum conhecido. Tinham quatro homens, mas nenhum conhecido. O
cara falou que eles vão voltá e pegá o jet ski, mas não sabe quando.

Saí do bar, fiquei mais na esquina para me distanciar dos colegas e das outras
pessoas, podendo falar ao celular discretamente para passar as informações para o
delegado.

Ponto de vista de Pires


19h33min

Quando chegamos ao boteco já estavam os dois policiais do Corsa, Francisco e


Marcelo. A fome começou a apertar e parte do grupo resolveu comer. O sol já se
punha e a oficina acabou fechando. Pensamos em falar com o pessoal da casa ao
lado da mecânica, onde suspeitávamos de que o proprietário do estabelecimento
morasse, mas não sabíamos se ele estava emendado com a quadrilha. Ficamos nos
revezando, alguns saíam pela praia, outros ficavam no boteco. Trocávamos as tare-
fas. E foi assim por muito tempo na esperança de que os suspeitos aparecessem a
qualquer momento. Supúnhamos que poderiam chegar no local à noite para não
serem notados. No meio tempo, até telefones de infos profissionais frios surgiram
na minha mão. Liguei pra um ou dois, mas nada consistente.

22h30min

Saí do bar para ligar para minha esposa sentindo que o tempo passava rápido.
Como não tínhamos avanço, provavelmente teria que pernoitar por lá. Notei um
policial militar se aproximando, usando a farda tradicional. Passou por mim seguin-
do em direção ao centro da praia. Desliguei o telefone.

– Sargento, por favor! – identifiquei-o pela divisa. Ele parou.


40

– Sou o delegado Pires, do DEIC de Porto Alegre, e precisamos de informações


sobre o pessoal dessa oficina. O Sr. conhece?
– Claro que sim. Faz três anos que sirvo aqui.
– Podemos confiar?

Levamos o sargento em casa para trocar de roupa. Ele conhecia o proprietário


da oficina e poderia nos apresentar para que ele falasse com facilidade. O sargento
garantiu que se tratava de família honesta, com filhos estudiosos e pessoas de boa
conduta na comunidade. Chegamos à residência, mas ninguém atendeu a porta.
Tentamos mais alguns minutos, mas a casa estava aparentemente vazia.

– Devem ter saído – concluiu o PM.

O sargento sugeriu que fôssemos a uma casa do outro lado da via de acesso,
onde uma pessoa poderia nos ajudar. Itaqui e eu ficamos no portão da residência
enquanto o PM à paisana batia na porta até um homem gordo, aparentando 60
anos, abrir. Percebi as pernas de duas crianças pela porta entreaberta. Pareciam
sentadas no chão, assistindo à televisão. O homem encostou a porta e veio em
nossa direção.

– Boa noite!
– Boa noite! – cumprimentou-me o homem.
– Sou o delegado Valorisson Pires. Este é o comissário César Itaqui. O senhor
conhece o proprietário dessa oficina aí?
– Bah! Há muitos ano. Sou amigo do Ângelo. Eu acho que ele deu uma saidinha, mas
já volta. Às veiz sai pra fazê compra com os filho que chegu tudo no final de semana. Eles
voltu tarde.
– Qual é o seu nome? – perguntou Itaqui.
– Valdecí... mas sobre quê seria, Seu?
– O Senhor sabe do trabalho da oficina? – continuou o colega.
– Tô sempre aqui com os guri. Acompanho o trabalho deles tudo.... sabe como
é, né? Fico aprendendo – sorria, com as bochechas fofas.
– Senhor Valdecir, temos aqui uma foto, gostaríamos de saber se o Sr. reconhece
uma pessoa. Posso lhe mostrar?
– Claro – o homem respondeu, franzindo a testa e apertando os lábios.
Mostrei para ele a foto de Caniço, uns 25 anos, mulato de cabelo curto e batidi-
nho. Ele estendeu o braço para pegá-la e vê-la em suas mãos.
– O senhor conhece esse? – pergunto.
– Olha, acho que sim... ó – começa a bater na foto de Caniço aparentando
convicção – Eu já vi esse aqui na oficina do Ângelo. Ele até me chamou bastante
atenção.
– Por quê? – perguntou Itaqui.
41

– Porque não descia. Falava co’as pessoa de dentro do auto. Ele e uma moça
ruiva, que tá sempre com ele.
– Tá e qual era interesse dele aqui? O que ele falava? – questionou Itaqui.
– Olha, eles vêm por causa do jet ski.
– Eles quem? Ele e a ruiva? – perguntei
– Não, assim ó, apareceu ele aí umas veiz. Aí, nos outros dia, vieru dois ou três
outro pra cuidare do mesmo assunto.
– No mesmo carro? – perguntei, testando o informante.
– Não, eles vieru em carros diferente. Cada dia vinha um, sozinho ou com uma
mulhé. Mas eu sei que o grupo é bem grande porque, esses dia, eu encontrei os mes-
mo cara no camping em Erê, aqui perto. Eles tavu com o mesmo jet ski.
– Esse jet ski que tá na oficina agora?
– Esse mesmo... já truxeru mais de uma veiz praqui e eu vi lá quando fui visitá
uns amigo que tavu de visita aqui. Agora, se não me engano, além de consertá o jet
ski, eles truxeru o reboque pra ligá a luz de freio.
– Qual carro trouxe? – perguntou Itaqui.
– Um Escort amarelo. No dia que esse aí apareceu – apontava pra Caniço na
foto – tava com um dos parafuso da placa do auto dele floxada.
– O senhor se lembra dos carro do pessoal que vinha aqui? – questionou Itaqui.
– Olha, eram alguns.... não me alembro direito, mas teve um dia que tinha um
Astra vermelho... acho que um Vectra branco e, no outro dia, um outro auto verde...
acho que um Golf. Até quando a placa do Vectra desse aí floxô, ele pediu pro Ânge-
lo uma chave de fenda pra apertá. Até achei estranho um carro novo daqueles com
as placa floxada – abria novamente o sorriso redondo.
– Todos estão parando nesse camping aí que o senhor falou?
– Olha, eu reconheci alguns do grupo do jet ski lá... lá, eu não vi o da foto. Há poucos
dia, quando eu fui lá, tinha uns quinze em volta do mesmo jet ski. Mas não sei se tão lá
ainda.
– É fácil acesso? Em que parte de Erê?
– Distante do centro. Segue aqui a Estrada do Mar às direita. Depois do acesso
à praia de Erê mesmo, pega as esquerda no acesso à Lagoa Itaramã. É depois da
ponte. É um campingzinho na beirinha da estrada, o pessoal todo conhece.
– Ahã...tá bom, Senhor. Muito obrigado pela ajuda – agradeceu Itaqui.
– Não há de quê.
– Uma boa noite, Senhor Valdecir – desejei.

Juntamos o grupo no boteco e ficamos mais uns 45 minutos acampanando o lo-


cal para ver se os donos do jet ski apareciam. Acabamos decidindo ir para uma praia
mais distante de Arroio Teixeira, ao Sul, passando Capão da Canoa, para montar
uma base. O local escolhido foi a casa da mãe de Luiz. Ele mesmo a ofereceu, por
ser uma residência grande. A ideia era repousar e articular um plano para surpreen-
der o grupo no camping em Erê, na manhã seguinte.
42

O croqui

Sábado, 14 de janeiro
Padaria do Inácio, praia de Arraia do Mar, município de Xangri-lá,
Litoral Norte do Rio Grande do Sul, 130 Km de Porto Alegre
Ponto de vista de Marcelo
7h20min

Tomávamos café na padaria. No local, encontramos ambiente confortável o su-


ficiente para discutir como iríamos abordar os vagos no camping. O delegado dei-
xava o grupo à vontade para opinar sobre como chegaríamos à quadrilha. Depois de
várias sugestões, uma foi encarada com mais simpatia.

– Delegado, colocamo alguém lá dentro pra gente tê uma noção de como é a


situação no camping. – sugeri.
– Olha, me deixa ir que eu faço o serviço – Luiz se ofereceu.
– Não, Luiz, tu não pode ir. O Caniço já te conhece – respondeu Pires.
– Delegado, arranjamo uma colega e colocamo um casal dentro do camping –
sugeriu Homero.
– Um casal... – pensou alto o delegado, olhando pra cima, apoiando o cotovelo
à mesa.
– Tá, mas onde é que a gente vai encontrá uma mulhé, véio? – questionava Bel-
monte.

– Cara, eu acho que aqui na DP de Xangri-lá tem – contribuía Luiz.


– Quem sabe vou eu e uma colega daqui da DP? – sugeriu Francisco, baixinho
grisalho, talvez não aparentando tanto ser um policial na ativa – Chegamo no cam-
ping, como quem não qué nada, e observamo os cara como dois aposentado.
– Acho uma boa. Ficam como um casal no camping, né? – aceitava o delegado.
– Isso, levamo umas cadeira de praia e um chimarrão, se instalamo por lá em
um lugar favorável e ficamo em contato, dando a situação – complementou Chico,
descrevendo um modo de operação.
– Segundo o que o “vizinho aquele” disse, eles deve tá em quinze no camping.
Precisamo ficá atento com isso porque, daqui a pouco, vamo tê que chamá gente da
Operação Verão – advertia Itaqui.
– Tá, mas não podemo chegá com os nossos carro lá. Eles conhece nossas viatura
tudo – dizia Homero.
– Olha, delegado, o pessoal de Xangri-lá tem uma moto. Eu conheço policiais
dali da sede do município – Luiz acrescentou.
43

Delegacia de Polícia de Xangri-lá


Ponto de vista de Homero
8h51min

Conversávamos em frente à Delegacia de Xangri-lá, esperando o delegado sair


do prédio com alguma novidade sobre as nossas solicitações. Alguns colegas esta-
vam abatidos, devido à noite curta e desconfortável. Não que as camas fossem ruins,
mas imagino que não foi fácil pra muita gente ali dormir às vésperas de uma ope-
ração que poderia resultar na prisão do criminoso mais procurado do Sul do Brasil.

Depois de conversar com a plantonista, Pires juntou o grupo.

– Pessoal, é o seguinte, conseguimos uma moto e uma colega para acompanhá o


Chico até o camping. Também contaremos com mais três colegas que estão na Ope-
ração Verão.
– Quem são os colega, delegado? – perguntei.
– Ainda não sei, mas quero os da nossa delegacia.

Mercado Tudo Barato, Xangri-lá


Ponto de vista de Marcelo
9h15min

Deixamos um grupo na delegacia da praia e ficamos uns 20 minutos na frente de


um supermercado, esperando o estabelecimento abrir. A ideia era comprar bermu-
das para disfarce. Afinal, seria estranho um monte de homem de calças compridas
andando pela praia. Era um sábado e a gente precisava aparentar descontração para
não levantar suspeita. O mercado abriu e entramos. Fui com três colegas para esco-
lher as bermudas. Ao chegar ao caixa, a discussão:

– Marcelo, tem dinheiro pra emprestá? – perguntou Luiz, constrangido.


– Cara, não tenho nada.

O funcionário do supermercado já chamava os três para o pagamento.

– Alguém tem dinheiro? Sei lá... Cartão? – Luiz, constrangido.


– Tá, eu tenho Banco Compras aqui... Aceita Banco Compras, moço? – sugeriu
Homero.
– Uhumm – o caixa demonstrava não ter paciência com a discussão.
– Três bermuda e duas camiseta – assumiu a frente Homero.
– Ô, velho, dá pra botá um boné, aí? – sugeri, voltando de um corredor de prate-
leiras próximas ao caixa, mostrando um boné azul com o símbolo do Grêmio. Todos
olharam o colega, surpresos. Maqueé? Vô precisá de um boné, né, véi!
44

Fundos do Café Colonial Ondas do Mar


Acesso à praia de Arroio Teixeira
10h50min

Paramos com dois Astras, um Corsa e uma moto nos fundos do Café no primeiro
trevo do acesso a Arroio Teixeira. Era uma área escondida pelas árvores e pelo pró-
prio casarão do Café Colonial. Já contávamos com a participação de três colegas da
delegacia que estavam na Operação Verão – Fernandes, Fonseca e Sid. Nem chega-
mos a vê-los. O delegado mandou, por telefone, dirigirem-se para o trevo de acesso
a Erê e se ligarem na movimentação de um Escort amarelo na região. Além dos
colegas, a policial da delegacia de Xangri-lá reforçava a equipe. Helena aparentava 45
anos e formaria o casal fictício com Chico. Era policial com experiência em investi-
gação e parecia tranquila para encarar uma operação daquele porte. Havia nuvens no
céu, o Nordestão soprava forte, enquanto o delegado combinava os últimos detalhes.

– Marcelo, Belmonte e Homero, quero que vocês fiquem de olho na oficina um


tempo. Qualquer movimentação suspeita do Escort, do reboque ou do jet ski, avi-
sem, ok? – dizia o delegado, observando os colegas se dirigirem a uma viatura Astra.
– Beleza – respondeu Homero.
– Olha, pessoal, a gente vai ficá por aqui esperando a ligação de vocês – Pires se
dirigia para Chico e Helena, que se ajeitavam na moto.
– Espera um pouco, gente. Eu vô me trocá. Tem um calção que usei no futebol ali
no carro – interrompeu Chico, sugerindo trocar de roupa para dar menos bandeira.

Pouco tempo depois, Chico volta ao grupo usando tênis sem meia, calção e ca-
miseta. Armados com telefone celular, sem chimarrão, sem cadeira de praia, o nosso
casal partiu.

Camping da Lagoa de Itaramã, Praia de Erê


Ponto de vista de Francisco
11h17min

O plano parecia bom, mas a responsabilidade da colega de Xangri-lá e minha


era bastante grande. Não poderíamos falhar, estavámos desarmados. Nada acontecia
conforme imaginava. Pensei que teríamos mais alternativas para fazer a figuração. O
portão do camping estava aberto. Ingressamos de moto lentamente.
Do lado esquerdo, grudada ao portão, na parte interna do camping, havia uma
pequena casa, uma recepção que mais parecia um barzinho. Estacionei a moto bem
devagar no banco em frente à casinha. A distância do portão para o início da lagoa era
de uns 150 metros. Entre a cerca frontal do camping e as areias da praia havia diversas
árvores e arbustos. Feixes de taquaras formavam uma linha que marcava o início da
areia às margens da lagoa.
45

Ao terminar de estacionar, uma senhora, aparentando 60 anos, veio ao nosso


encontro. Muito simpática, queria nos dar boas-vindas e verificar se precisávamos
de alguma informação.
– Olá, bom dia!
– Bom dia, senhora! Bonito o camping aqui, hein! – elogiei, saindo da moto,
ajudando Helena a fazer o mesmo.
– Ah, fiquem à vontade – ela tinha um largo sorriso no rosto vermelho.
– Muito obrigado. Viemos para dar uma relaxada, aproveitar um pouco do dia e
conhecer o lugar. Posso deixar a moto aqui? – perguntava olhando para um ponto
do lado esquerdo da entrada, junto às taquaras, onde havia alguns carros e um grupo
sentado, tomando chimarrão.
– Claro... Eu sou Cristina. De onde vocês são?
– Sou Zélia e ele é meu marido, Antônio. Somos de Santa Maria. Estamos pro-
curando um lugar para ficar. Viemos para dar uma olhada.
– Ah, vocês vão gostar daqui. É um lugar muito tranquilo! As pessoas que vem
são de muito boa paz. Eu e meu marido, Juremir, viemos do Vale do Sinos, mas so-
mos apaixonamos aqui pelo lugar – Dona Cristina gesticulava bastante, falava mais
do que precisava.

Enquanto a ouvia, observava o canto esquerdo. Embaixo de uma figueira, junto


a uma churrasqueira improvisada, estava um grupo de pessoas que parecia bastante
à vontade, com dois carros estacionados. Chamou-me atenção porque os veículos
destoavam dos outros no camping. Eram um Alfa Romeo prata e um Astra Ret
vermelho. Três homens, duas mulheres e cinco crianças. O grupo se concentrava no
extremo da área do camping, a uns 40 metros de onde estávamos.

Fundos do Café Colonial Ondas do Mar, Arroio Teixeira


Ponto de vista de Luiz Antônio
11h50min

– Delegado, vamo invadi o local com tudo.


– Calma, Luiz, deixa o Chico dá a situação! Se a gente chegar de surpresa, cer-
camos o camping e fazemos um bom serviço.
– Mas o senhor sabe que se esses cara tivere nesse camping, vamo tê que chegá
antes deles se ajeitare pra sair. Na estrada, vai dá merda, eles não aceitu...
– Sim, mas vamos esperá o Chico dá a situação.
– Claro, vamo esperá e ver como tá lá. Lógico. Mas o senhor sabe que se a gente
fizé o cerco, eles não vão aceitá. Se for o Caniço ainda, aí sim, ele não vai aceitá
mesmo.
– A gente tem que encontrá o melhor momento pra fazer.
46

O delegado argumentava de forma mansa. Era um cara que tinha minha ad-
miração pelas prisões emblemáticas que tinha feito. Foi ele quem prendeu um dos
maiores assaltantes de banco do Estado, o Nego Arara, detento que ainda dá o que
falar devido ao seu direito de progressão de pena.
– Vamo fazê um Cavalo de Troia, delegado.
– Como? Não temos como invadir. Os caras conhecem nossos carros.
– Tudo bem, mas a gente pode conseguir uma van, um furgão, sei lá... e entrá no
lugar. De repente até uma Kombi de um serviço público, sei lá...alguma coisa pra
botá o time dentro do camping de uma vez só. A gente chega com a Kombi perto
deles e já era – notava Itaqui se aproximar.

Pires fixou o olho em mim por segundos. Olhou para Itaqui. Virou-se, foi até os
carros no terreno do restaurante e teclou o celular, colocando o aparelho ao ouvido.

– Tchê, é o delegado Pires. Surgiu uma ideia aí.


– ... – era inaudível pra mim.
– Tu sabes onde a gente pode conseguir uma Kombi?
– ...
– O prefeito? Mas aí é difícil...
– ...
– Cunhado?
– ...
– Conhece o secretário?
– ...

Um parente de um policial do grupo é um importante empresário na região de


Xangri-lá e tinha contatos no executivo local. Daí, foi fácil conseguir uma Kombi.
Devido à burocracia do serviço púlbico, a Kombia iria dar uma certa polêmica de-
pois, mas se deu um jeito nisso, que acabou sendo um “galho fraco” diante de toda a
encrenca que se avizinhava.

Camping da Lagoa de Itaramã, Praia de Erê


Ponto de vista de Helena
11h50min

Chico e eu começamos a passear pelo camping na ideia de observar mais de


perto o grupo. Eles se deslocavam com um Astra Ret, levando uma lancha em um
reboque à beira da lagoa. Combinamos que eu memorizaria a placa do Alfa Romeu
e ele, a do Astra Ret que ia para a areia. O telefone toca mais uma vez. Chico atende.

– ...
– Delegado! – Chico coloca a mão no bocal do telefone.
47

– ...
– Tem um cara aqui, com óculos escuro, não sei se é o Caniço. Estão com um
Alfa Romeo e um Astra Ret.
– ...
– Não, não, tem mais de três homens no grupo. São duas mulher com eles e umas
criança.
– ...
– Ahã. Vou tentá me aproximá pra pegá as placa, então, ok?
– ...
– Tá bom. Tá, tá bom...até – Chico desligava o telefone, continuava com o apa-
relho em sua mão esquerda e me dava a mão direita.

De mãos dadas, nos aproximamos do Alfa Romeu, estacionado na parte esquerda


do camping, próximo ao taquaral. Memorizei a placa e fomos pra praia pegar a do
outro Astra.
Chico me deixou sentada na areia com seu celular e foi para a água, ficando a
poucos metros dos três homens que colocavam a lancha na lagoa. O telefone tocou.

– Chico?
– Não. É Helena.
– Lena, é o delegado Pires. Conseguiram as placas?
– Uma delas. Automóvel Alfa Romeo, IJH 3**5, Pato Branco, Paraná.
– Paraná?
– Preciso desligar, vem vindo a mulher do camping.

Dona Cristina se aproximou para conversar.

– E aí, tão gostando?


– Esta lagoa é maravilhosa, hein!
– Vai dar em Torres!
– Acho que valeu a pena a Senhora vir morar aqui. Eu também penso em me
aposentar e me mandar de Santa Maria.
– Seu marido está ali com o pessoal da lancha?
– É, sim. Ele se interessa por motor. Quem são estas pessoas com a lancha?
– Esse pessoal é muito querido. Eles têm um jet ski também. Um deles, o de
óculos, é corretor de imóveis. Ontem tinha uns 15 com eles. Fizeram uma churras-
cada... Só de coração era uns cinco quilo – ela gargalhava.
– Meu Deus do Céu! Que beleza, hein? Pena que não chegamos antes. Era
muita gente, é?
– Sim. Os dois casais que estão neste grupo tão acampando aqui desde o Natal.
Eles receberam umas visita, mas parece que as mulher deles e dos que vieram aí não
tavam se entendendo bem – Dona Cristina falava com um sorriso nos lábios – Mas
é tudo gente boa. Sempre pedem para a gente reservar um lugar pra eles.
48

Estacionamento do Restaurante Delícias do Mar,


Arroio Teixeira
Ponto de vista do delegado Pires
12h52min

Atravessamos a via de acesso a Arroio Teixeira e fomos para um restaurante em


frente ao Café. Alguns já tinham feito uma refeição, quando um Tempra e a Kombi
solicitada chegaram ao restaurante. Para a minha surpresa, o policial de Xangri-lá,
que viera no Tempra, apresentava-me o prefeito, Lindomar Ravelli, e seu motorista.
Ambos chegaram na Kombi. O veículo parecia perfeito para o Cavalo de Troia. Tinha
a logomarca da Prefeitura e poderia servir para entrarmos no camping sem problemas.
O prefeito e eu conversamos no estacionamento do restaurante. Ele pareceu
bem solícito, informado, compreendendo a dimensão da operação e a importância
do bandido que tentávamos capturar.

– Delegado, o motorista está à disposição de vocês. Se precisar, ele leva o grupo


até o camping.
– Não, prefeito. Por favor, não se preocupe. O senhor já está fazendo um grande
favor. Só temos a agradecer pela cooperação.

Parecia-me descabida a ideia de colocar um motorista da Prefeitura em linha


de tiro. Liguei para Luiz, Homero e Belmonte pararem de acampanar a oficina e se
deslocarem para o restaurante. Era o momento de combinar como seria a invasão.
Os policiais no trevo de acesso a Erê informaram sobre um posto de gasolina próxi-
mo onde estavam, no início da via que liga a Estrada do Mar ao camping.

Camping da Lagoa de Itaramã, Praia de Erê


Ponto de vista de Francisco
13h15min

Eu observava que os três homens não conseguiam fazer a lancha pegar. Ela
continuava em cima do reboque que, por sua vez, já estava dentro da água. Cheguei
mais perto. Um estava na dianteira da lancha, no volante; outro, na traseira, junto
ao motor, e o último na água, conversando com os companheiros. Foi com este que
puxei conversa.

– E aí, amizade? Não tão conseguindo ligá? – falei com o homem que usava
óculos escuros, retos, parecia acima do peso e tinha cabelos encaracolados tapando
as orelhas.
– É. Tá com algum problema – ele se voltou para mim, levantando os óculos,
esfregando o olho direito com o pulso direito, mas com o olho esquerdo aberto me
mirando. Seu semblante não mudou e ele recolocou os óculos.
49

– Olha, não pega mesmo!


– O motor é dois tempos... – ele parecia estar mordendo a isca, continuava com
voz tranquila, ficando de costas para mim, dando um passo à frente.
– Será que não molhou a vela? – eu me deslocava para um ponto mais para den-
tro da lagoa, observando a placa do automóvel.
– Pois é... não sei.

Afastei-me do grupo. Observei que conversavam, mas me concentrei em


falar com as crianças que estavam a alguns metros. Era sempre o mesmo grupo
de cinco. As idades pareciam variar de 3 a 10 anos. Os mais novinhos brincavam
na areia e um deles estava na água.

– Oi, velho... tudo bem? – eu puxei assunto com o maiorzinho.


– Tudo.
– Esse aí é teu pai?

Sabia que o filho de Caniço tinha 6 anos. Logo, se ele concordasse, sabia que não
era o homem que procurávamos. O guri era muito grande pra ter 6 anos. Ele me
respondeu sinalizando negativamente com a cabeça, o que, pra mim, foi indiferente.
Ele até poderia estar mentindo, mas, no fundo, tinha o sentimento de que, pelo tipo
físico do homem, não poderia ser Caniço mesmo. Já tinha visto fita de TV, foto do
sujeito e, com certeza, o homem que estava com os óculos era gordo demais, embora
também fosse mulato. Os cabelos também pareciam muito compridinhos.

– Qual é o teu nome?


– Roberto.
A resposta detonou uma dúvida inquietante. Sabíamos que o nome do filho de
Caniço é Paulo Roberto. No entanto, todas as características físicas não conferiam.
Ouvi o telefone que estava com Helena tocar e vi Dona Cristina vir em direção ao
trio. Fiquei sem jeito, tenso com as informações que chegavam de forma confusa. Fui
saindo da água e me despedi dos três homens da lancha para passar tranquilidade.

– Tem que cuidá essa criançada na praia! – afirmei em tom simpático, mas a
única resposta que tive foi do homem de óculos que sorriu sem mostrar os dentes,
balançando a cabeça em sinal afirmativo.

Fui ao encontro de Helena, que me oferecia o telefone. Cruzei por Dona Cris-
tina, cumprimentando-a baixando levemente a cabeça e peguei o celular, seguindo
em direção às taquaras.

– Alô...
– Itaqui?
50

– Fala, Chico! E aí? É o cara?


– Olha, acho que não é o cara, mas tem uma criança aqui que tem o nome do
filho do Caniço. Ele disse que é Roberto, mas é mais velho do que o filho do Caniço,
eu acho.
– Humm... Aí tu qué me enlouquecê!
– Mas eu tenho a placa do outro carro.
– Qual é?
– IXT 6**3, de Esteio. Já checaram o outro?
– Calmaí. Tamo destapando.

13h30min

Saímos da areia e fomos até o banco onde estava a moto. Vimos os três homens
levarem o reboque com a lancha até o local onde estavam as duas mulheres, no canto
do camping, no limite do taquaral. Dona Cristina levava uma bandeja com pastéis
para o grupo e eu aproveitei o momento que ela voltou para encomendar cinco
pastéis e dois refrigerantes para nós. O telefone tocou.

– Sim, delegado.
– Não, é o Itaqui. Seguinte, vamo prendê todo mundo.
– Mas acho que não é o Caniço. Pela foto, não tem nada a vê com o cara.
– Tá, mas destapamo as placa. A placa do Alfa Romeo é clonada. A verdadeira
proprietária tem um carro exatamente igual. A dona tava falando comigo ao telefo-
ne e olhando pro carro. É da cidade de Pato Branco, Paraná. A placa do Astra Ret
é quente. Como é o local aí?
– O terreno não é tão grande, eles tão tudo do lado esquerdo de quem entra no
camping. São cinco adulto e umas cinco criança.
– Vamo empurrá. Tão com carro irregular. Já dá pra entrá. Temo ordem de servi-
ço pra todo o litoral. Se não for o Caniço, colocamo em cana pelo carro.
– Tranquilo. Demoram muito? Onde é que vocês tão?
– Em Arroio Teixeira.
– Entendido.
– Olha, levanta mais um pouco do camping. Tamo chegando daqui a pouco, ok?
Tchau.

Posto Ipitomba, Estrada do Mar


Ponto de vista de Marcelo
13h46min

Chico nos dava alguns detalhes com relação ao terreno e isso fazia com que a
nossa chegada ao camping demorasse um pouco. Conversávamos para acertar a
51

inundação. Luiz, que era do grupo antissequestro e tinha experiência com armas de
grosso calibre, orientava naturalmente o pessoal:
– Eles não vão aceitá a cana. No mínimo, vão fugir. Então, nós vamo tê que pegá
os cara na unha.
– Beleza, vamo lá que vai dá tudo certo – eu apoiava, notando tensão no ar.
– Pessoal, não vamo rateá que eles deve tá bem calçado – advertia Belmonte,
outro integrante da Antissequestros.

O plano era chegar lá com policiais na Kombi, em um dos Astras que veio co-
nosco de Porto Alegre e no Astra dos três colegas que nos esperavam no trevo de
Erê. Deixamos a viatura Corsa e o terceiro Astra estacionados no posto de gasolina.
Entraram na Kombi os seis policiais que o grupo julgou como aptos para uma inva-
são daquele porte, que estavam com melhor preparo físico e técnico.

***

Ponto de vista de Tigre Banguela

Operação policial é um movimento de elevadíssimo teor corporativo, quando a


cumplicidade vale a segurança e o respeito de todos. É óbvio que “o polícia de alma”
quer colaborar porque é um dever, mas também tínhamos noção de que estávamos
lidando com um time diferente, que usava fuzis e explosivos em ataques a carros-
-fortes. Suspeitos de baixarem dois seguranças a sangue-frio há seis semanas, como
revide à morte de dois vagos após tentativa de assalto frustrada no Vale do Rio
Pardo em junho passado.
Não bastava Chico nos passar as informações por telefone, pois, por mais que ele
fosse esforçado, dificilmente teríamos a noção exata de quantos vagos iriam aparecer
na nossa frente se a bala comesse. E pior: qual seria o armamento que eles utiliza-
riam? Tínhamos de estar com poder de fogo suficiente para não haver surpresas.
Além de toda essa dificuldade, ainda havia o fantasma do rigor “oscilante” da
Cogepol. No final do ano anterior, um policial foi punido após atuar com uma pistola
9 mm, calibre que uma portaria nos desautorizava a usar, salvo em submetralhado-
ras. A punição poderia ter sido considerada normal, se a arma não tivesse sido dada
“em carga” pelo diretor da Divisão de Armas Munições e Explosivos (Dame), o que
torna seu uso regular. Era, na verdade, uma das pistolas dadas “em carga” pelo Poder
Judiciário à Polícia Civil. Absolutamente regulares.
Já o calibre ponto 40 era liberado para nós em pistolas, carabinas e submetra-
lhadoras. Também estávamos autorizados a usar, além de submetralhadora 9 mm,
as espingardas calibre 12. Todos tinham pelo menos uma pistola ponto 40 na ação.
Alguns do grupo estavam com armas curtas de outros calibres, que ficam sobres-
salentes. É normal em operações policiais os agentes utilizarem a chamada “back
up”, arma reserva para o caso de dar uma merda com a ponto 40 cedida pela SJS, o
52

que era bem possível. Contávamos também com uma espingarda calibre 12, uma
submetralhadora 9 mm e um fuzil AK-47.
Não que não pudéssemos usar armas de outros calibres – a questão era a procedência
das armas extras. O temor de qualquer policial naquela situação é encarar uma quadri-
lha de extremo poder ofensivo com as ponto 40, que já tinham engasgado nas mãos de
colegas. É complicado sair para uma operação daquelas com uma arma que pode falhar.
O Exército e a Polícia Federal usam pistolas 9 mm (calibre perfurante). Nós estávamos
com as ponto 40 “faiada” (calibre impactante que não fura lata de carro).
No segundo semestre do quarto ano de caçada, a Polícia Civil elaborou projeto
para a compra de fuzis. No entanto, todos os recursos já estavam destinados pelo or-
çamento e o Estado não tinha como atender à demanda ainda no quarto ano. Era ne-
cessário aguardar o quinto ano para iniciar a compra do armamento. Ou seja, precisa-
ríamos esperar vários meses para atuar pela primeira vez com fuzil próprio, do DEIC.
Aquele fuzil, uma AK-47 que levávamos para a investida no camping, era lindo.
Mas não era do DEIC. E ninguém poderia sonhar que aquela belezinha ainda ren-
deria muito pano pra manga meses depois.

***

Camping da Lagoa de Itaramã, Praia de Erê


Ponto de vista de Helena

Terminamos os pastéis e demos uma volta longa, da direita para a esquerda do


portão de entrada do camping. Na extremidade direita, havia uma casa, onde Dona
Cristina ficava com, supostamente, seu marido. Em seguida, tinha umas duas ou três
casinhas de cachorro, uma barraca com um automóvel Fiat Palio. Mais adiante, próxi-
mo às taquaras, um banheiro em atividade. Muitas árvores no caminho, alguns carros,
mais duas barracas e chegamos à linha do portão de acesso. Passamos a nossa moto
que estava em um banco à direita, próximo à linha de taquaras, caminhamos mais um
pouco e localizamos uma construção à esquerda, onde havia um banheiro com um
cartaz na porta avisando que estava desativado. Resolvemos parar no local, porque a
uns 20 metros dali estava o grupo que nos interessava.

– Vamo ficá por aqui. Vai um pouco no banheiro ali e volta pra gente matá tem-
po – Chico falou ao meu ouvido – Já falei com os caras uma vez. Se a gente chegá
mais perto, daqui a pouco tamo até mateando com os vago.

Ponto de vista de Francisco


13h50min

Saímos da área do banheiro e sentamos em um banco próximo à nossa moto, de


frente para o portão e de costas para a lagoa. Eu conseguia observar o grupo. Os três
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homens estavam sentados com as duas mulheres, ainda comendo os pastéis de Dona
Cristina no banco da churrasqueira.
O meu telefone não parava de tocar. Toda hora o delegado ou Itaqui me ligavam
para pedir algum detalhe ou informar o que estavam fazendo. Passava informações
sobre o camping e eles me diziam que já estavam chegando numa Kombi com a
logomarca da Prefeitura de Xangri-lá.
Um helicóptero se aproximou, vindo da lagoa. Rapidamente, houve uma movimen-
tação dos três homens. Eles saíram de perto da churrasqueira. Um deles entrou no Astra
Ret e estacionou de tal forma que o reboque ficasse embaixo da copa da figueira.

– Helena, a gente tá desarmado. Quando eles chegarem, orientamo para a po-


sição exata dos cara. Ali, naquele banco na frente, tem uma árvore que pode tapá
a visão deles da gente. Quem sabe a gente fica bem perto da árvore, de frente pro
portão? Os cara não vão nos vê e vamo podê sinalizá pra Kombi quando ela chegá.

Margens da rodovia de acesso ao Camping


Ponto de vista de Delegado Pires
14h04min

Estava no Astra com outro agente. Fomos até o trevo em Erê e chamamos os
três policiais que nos aguardavam. O Astra deles nos seguiu e ingressamos no acesso
à Lagoa de Itaramã. Estávamos a poucos minutos do camping.
Paramos os três veículos no acostamento, antes de uma ponte para colocar os co-
letes à prova de balas. Foi neste momento, que um Vectra branco passou pelo grupo
e o motorista encarou a nossa movimentação. Achei estranha aquela atenção toda.
O sujeito parecia conhecido. Ele passou em direção ao camping.

– Quando a gente entrá no camping, nos dividimo em dois time. Três vão pro
lado direito e três pro esquerdo – Luiz orientava, checando a submetralhadora 9 mm.
– Vambora! – um colega fazia o mesmo com a AK-47 e buscava dar segurança ao
grupo.
– Seguinte, vou ficá por último porque eu sô o mais pesado e maior – dizia Luiz,
deslocando-se para o canto traseiro esquerdo da Kombi.

Camping da Lagoa de Itaramã, Praia de Erê


Ponto de vista de Francisco

As crianças que estavam com o grupo passavam por trás de nós. Olhei para os
pequenos. O menor deles, talvez com 3 anos, correu com empenho pra tentar acom-
panhar os maiores. Ele olhou pros meus olhos e abriu um sorriso opaco quando
passava por mim, voltando o rosto pra frente, determinado. Parecia que o mundo
estava em câmera lenta. Tive um arrepio e uma letargia. Ele me olhou de novo e
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olhei no fundo do seu olho, já a alguns metros. Um novo arrepio, e meu telefone
tocou, acordando-me.

– Tamo chegando – era o delegado.


– Ok. Tamo logo na frente do portão. Não tem erro. Os vago tão tudo sentado
à esquerda do portão. Na extremidade do camping. São duas mulher e três home.
– Notaste algum tipo de arma com eles ou não?
– Não conseguimo vê arma. Tem uma lancha com eles em um reboque. Os carro
são outra referência, um Astra Ret vermelho e um Alfa Romeo prata, como já tinha
falado.
– Ok, passamos a ponte. Nos vemos aí. Não faço mais contato.

Operação Cavalo de Troia

Kombi da Prefeitura de Xangri-lá


Ponto de vista de Homero
14h10min

Belmonte estava ao lado de Luiz. À frente de ambos, Marcelo e eu respectiva-


mente.
Sabemos que a possibilidade de morrer em um confronto com armas de grosso
calibre é grande. Não tínhamos noção se os vagos estavam com fuzis e esse era o
medo de todos. Afinal, a maioria estava com pistola enquanto a quadrilha atuava
sempre com armamento pesado. O grupo tinha o semblante tenso e concentrado.
Alguns de cabeça baixa, outros olhando para o teto do veículo. Ninguém mais con-
versava, ninguém se olhava.

– Itaqui, avisa quando a gente entrá no camping, tá? Dá a metragem em con-


tagem regressiva, a partir do momento que a gente entrá no lugar, tá bom? – pediu
Luiz Antônio.
– Ok – Itaqui estava no banco do carona, ao lado de Fonseca, o motorista.

Para minha surpresa, do canto de Luiz Antônio, começava a ouvir o único som
da Kombi, uma espécie de murmúrio incompreensível:

– Al hamdu lillahi rabbil alamin; Arrahmanir rahim; Maliki yawmid–ddin!


Iyyaaka na’budu wa iyyaaka nasta’iin; Ihdinas–siraatal mustaqiim; Siraatal–laziina
an’amta alaihim. Ghairil magh–dhúbi alaihim, waladh dhalin. Amin.

(Louvado seja Deus, Senhor do Universo, o Clemente, o Misericordioso. So-


berano do Dia do Juízo. Só a ti adoramos e só a ti imploramos ajuda! Guia-nos à
55

senda reta. À senda dos que agraciaste, não à dos abominados, nem a dos extravia-
dos. Amém)

Fiquei nervoso.

Ponto de vista de Francisco


14h13min

Eu avistei a Kombi chegar à porta do camping e olhei para trás para ter certeza
de que a árvore esconderia os meus gestos da visão dos vagos. Vi que os suspeitos
continuavam no local, no canto esquerdo do camping, junto a uma churrasqueira.
Estavam no gramado e a única fuga para longe do portão seria a praia.
A Kombi passou lentamente o portão aberto e dei o sinal, apontando para os
vagos. Notei que Fonseca dirigia e me observava. Peguei a mão de Helena e a Kom-
bi chegou lentamente próxima da gente, passando o início da trilha que levava à
área esquerda do camping. Erraram o caminho. Dona Cristina se aproximou para
receber os “visitantes”.

Camping da Lagoa de Itaramã, Praia de Erê


Kombi da Prefeitura Municipal de Murichá
Ponto de vista de Fonseca

Engatei a ré para voltar com a Kombi até o portão de entrada e conseguir


ingressar na trilha à ala esquerda do camping. Recuei e, quando passei a parte
traseira da Kombi para fora do portão, uma senhora se aproximou da janela do
motorista.

– Moço, boa tarde! Deseja alguma coisa? – a senhora de rosto vermelho tentava
se aproximar da janela do motorista, acompanhando a manobra do carro.
– Só um pouquinho, minha senhora... só um pouquinho – falei alto, buscando a
trilha que me levaria até o grupo apontado por Chico.

Deixei a senhora para trás. Olhei para os vagos e percebi que eles notaram a
presença da Kombi.

Ponto de vista de policial dentro da Kombi

Não tinha noção de absolutamente nada. Não sabia nem quando iríamos come-
çar a descer. Não tínhamos a forma do camping. Sabíamos que eles estavam con-
centrados porque o Chico tinha passado informações, mas não sabíamos exatamen-
te como o grupo sairia da Kombi naquele terreno. Conversamos sobre o assunto,
mas não estávamos certos de muita coisa. Nada foi ensaiado.
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O mais difícil seria perceber o momento de deixar o veículo. Estávamos no escuro e


sabíamos que teríamos que agir, mesmo sem enxergar nada do lado de fora. Ouvia Itaqui
dar a localização dos vagos. Não havia um croqui e não é comum fazê-lo nessas horas.

– Os cara tão à esquerda....

Eu observava a AK-47 na minha frente. O fuzil deu uma balançada com o sola-
vanco de travada da Kombi. O veículo parou de andar, pareceu ter trancado o pneu
traseiro em um tronco ou em uma raiz de árvore. Fonseca colocou a primeira marcha
novamente e tentou com mais força, mas, mais uma vez, a Kombi não foi. Notando
que naquela velocidade discreta o veículo não iria, ele pisou mais fundo no acelerador.

– Ah, agora foi... 40 metro – Itaqui começava a contagem regressiva pela distân-
cia, enquanto a Kombi retomava uma velocidade discreta.

Olhei para a ponta do fuzil, mais uma sacudida. Muita coisa passou pela minha
cabeça. Meu corpo não queria reagir à minha coragem.

– 30 metro.

Aquela contagem parecia durar a eternidade, apesar da angústia, senti que me


liguei. Era um vazio completo de pensamentos. Um escuro na mente.

– 20 metro.

Tentava imaginar como seria o terreno, o rosto dos vagos, para que lado correr.
Não sabia por onde começar, era a hora do instinto se sobrepor à incerteza.

– 10 metro.

Foi o tempo de respirar fundo... talvez nunca tivesse demorado tanto para fazê-lo

– 5 metro.

Não sei quem abriu a porta e gritou:

– POLÍCIA, POLÍCIA...NÃO VAI!!!

Ponto de vista de Belmonte

Não sei se devido à chegada dos Astras ou se foi a redução de velocidade da


Kombi, mas dois dos vagos que estavam a nossa frente correram. Começaram os
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tiros. Eu vi um deles se dirigir à esquerda, em direção à areia da praia e fui atrás.


Foram poucos metros de perseguição. Fonseca e Itaqui vieram comigo. O homem
se movia com dificuldade na areia, estava desarmado.
Mesmo assim, conseguiu pular uma cerca e tentar se esconder atrás de uma
moita. Nos aproximamos e ele desistiu.

– Tá, seu! Tá, seu! – ele se levantou com as mãos pra cima.
– Vai fugi nadando pela lagoa, agora? – gritei, notando a presença de um quarto
colega.

O suspeito estava rendido.

Ponto de vista de Homero

Em meio ao barulho dos tiros a movimentação era instintiva. Pura tentativa


de resolução e proteção. Vi que os colegas corriam atrás do vago, que foi para a
esquerda em direção à praia e, ao sair da Kombi, coloquei os olhos em um sujeito
que não correu. Continuou sentado, do lado das duas mulheres, junto à churras-
queira.

– Não te mexe – adverti.


O homem olhou pra mim e permaneceu calado. Notei a presença dos nossos
Astras no camping. Delegado Pires saiu de um, aproximou-se e disse:

– Corre que eu guento eles aqui – apontando uma pistola para as duas mulheres
e o cara que permanecia quieto no banco.

Ponto de vista de Januário, homem que acampava

A movimentação me pegou de surpresa. Era tanto estouro que tive dúvi-


da se era realmente bala que comia, como acontece quando a gente ouve um
barulho desses na rua. Tratei de me esconder e observar o mínimo. Joguei-me
entre um pedaço de tronco de árvore utilizado como banco e o pneu de um
Fiat Palio.
Meu irmão e meu sobrinho fizeram o mesmo. Jogaram-se no chão, atrás de duas
árvores, que estavam mais atrás de mim. Não conseguia pensar em nada, apenas
fechava os olhos e torcia pra que aquilo tudo parasse logo. Era muito tiro! Tive
medo de morrer. Virei a cabeça para a esquerda, colocando meu rosto na terra. Abri
os olhos e notei na estrada de acesso ao camping um automóvel se aproximando
da entrada. Não consegui ver o motorista no detalhe, mas era um homem. O carro
parou quando ia dobrar para acessar o portão. Em um movimento muito rápido, deu
a volta na pista e retornou na direção oposta.
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Quando levantei a cabeça pra entender o que se passava, consegui observar um


homem dentro do camping atirando com duas pistolas apontadas para algum lugar
que não sei. Parecia filme de cowboy! Aquelas cenas do mocinho entrando no salo-
on com duas armas na mão.

Ponto de vista de Marcelo

Saí praticamente com Luiz da Kombi, sendo que ele veio atrás de mim. Percebi
que deixou a pistola cair e, meio que tropeçando, conseguiu pegá-la rapidamente e
continuar a corrida, mantendo a submetralhadora no braço.
Um gordo corria por entre as árvores, ao longo do camping, paralelamente à
lagoa. Serramos fogo nele, que passou o taquaral e ficou correndo na praia. Quando
fiz menção de passar também em uma próxima brecha, ele retornou da praia para a
grama, transpondo as taquaras novamente. Além de Luiz, percebia que outros dois
colegas corriam para a mesma direção atrás do gordo.
Olhei para o lado, os hóspedes do camping que acompanhavam a ação tratavam
de permanecer agachados, assustados. Mais ao fundo, um homem, aparentando 70
anos, gritava.

– O que vocês tão fazendo? O que tá acontecendo!?


– Para, Jura... volta pra cá – gritava uma senhora de rosto vermelho.

Ponto de vista de Luiz Antônio

Eram tantos tiros que era impossível saber de onde vinham. Cheguei a parar de
correr, porque projéteis atingiam o chão de forma cruzada na minha frente, a poucos
metros. Foi aí que tirei os olhos do gordo, para não mais vê-lo.
Quando os tiros pararam, diminuímos o ritmo da correria. A minha impressão,
desde o início da movimentação, era de que todos estavam correndo para o mesmo
lado. Na minha memória, a última imagem do gordo era correndo depois de um ba-
nheiro, à direita do portão de entrada do camping, com os projéteis levantando terra
a poucos metros de seus pés. Em meio ao tumulto, a uns cinco metros da linha de
tiro, consegui ver na minha diagonal esquerda, na porta do banheiro, uma perninha
pequenina no chão.
Corri ao local. Era uma criança. Larguei a matraca nas lajotas ao lado do corpo.
Havia sangue no piso. Estava com a cabeça próxima ao muro que separava o aces-
so dos banheiros dos homens e das mulheres, numa estrutura de tijolo à vista em
forma de “T”. Estava com a bochecha direita mergulhada na poça de sangue e virei
seu rosto, onde notei a marca do tiro. Outra menininha, mais velha, saía da mesma
porta. Peguei no colo a criança ferida, não deveria ter mais de 3 anos. Meu estômago
apertou.
59

Ponto de vista de Januário, homem que acampava

A coisa acalmou. Veio um homem de bermuda e colete à prova de balas com


uma criança no colo na direção de um sujeito que estava ao meu lado. Ela parecia
sangrar no rosto, à direita da boca.

– Tchê, Polícia! Vamo pro hospital... em Capão, rápido! – gritava o homem com
a criança nos braços.

Ponto de vista de Luiz Antônio

Como não sabia quem era quem naquela história toda, pensei até que tivesse pe-
dindo ajuda prum vago. Meio baratinado, com olhos esbugalhados, o homem abriu
a porta de trás do Palio e correu à frente do veículo para o volante. Eu fui pro banco
de trás. Na estrada, cruzamos por viaturas que chegavam para dar apoio. Disse para
o motora piscar a luz alta do veículo.
Apertava a criança junto ao meu peito. O pequeno não tivera nem tempo pra
chorar pela violência do golpe do projétil. Constatei pelo pulso que estava vivo.

– Amiguinho, não morre, por favor, não morre – eu sussurrava para a criança,
que permanecia de olhos fechados, sangrando.

Abraçava o pequeno com força proporcional a minha angústia pela vida ino-
cente que se esvaía e pela total impotência diante do fato. O sujeito me olhava pelo
retrovisor com olhos ainda mais esbugalhados, talvez impressionado com a quanti-
dade de sangue no rosto do guri, que permanecia imóvel.

Ponto de vista de Francisco

Percebi que um dos homens ainda não havia sido capturado. O mais gordo
deles, o sujeito dos óculos escuros. Comecei a vasculhar pelas taquaras. Olhei
para a outra extremidade do camping e notei que um vago era levado pelos
colegas até onde estavam os carros do bando. Nossos Astras posicionaram-se
perto do portão e todos se concentravam no homem e nas mulheres que nem se
mexeram para fugir.
A situação de não encontrar o gordo começou a me atucanar. O Belmonte estava
meio perdido, no meio do camping, procurando o cara mais perto do banheiro. Eu
me dirigi mais para depois do banheiro, perto de uma casinha de cachorro. Entrei
no taquaral e, mesmo desarmado, dediquei-me a vasculhar detalhadamente o local.
Quando fui para mais um segmento de taquaras, observei a alguns metros as costas
de um homem acocorado, protegendo a cabeça em meio ao mato.
60

O problema é que era somente ele e eu. Algumas pessoas já começavam a sair
de seus esconderijos, mas ninguém se aproximava de ninguém. Observei que os
colegas se concentravam do outro lado do camping. Se eu saísse dali para buscar
ajuda, ele poderia fugir. E se o cara estivesse armado, o que eu completamente
desarmado poderia fazer? Caso eu gritasse por ajuda ali, ele poderia me matar.
Sem alternativas, tive que surpreendê-lo da forma mais estranha. Usei o que tinha
na mão para imobilizá-lo. Pressionei a ponta da antena do meu telefone celular
na cabeça do vago.

– Tu para quietinho aí, se não eu vô te matá! Atiro agora mesmo!


– Não, Senhor... tudo bem. Sem esculacho! – ele não levantava a cabeça.
– O CANIÇO TÁ NA MÃO!!! TÁ NA MÃO, O CANIÇO!!! – gritei forte,
embora eu mesmo duvidasse do que falava.

Ele foi levantando lentamente. Itaqui, Marcelo e Fernandes se aproximaram


correndo para verificar a situação. Talvez percebendo a concentração de policiais
vindo de forma acelerada em nossa direção, o sujeito tratou de se esquivar da acu-
sação.

– PARAÊ, SENHOR!! EU NÃO SOU O CANIÇO!!! NÃO SOU O CA-


NIÇO, NÃO!!!! PARAÊ!!!! – ele gritava tão alto quanto eu para negar, querendo
entregar logo a sua identidade, talvez temendo ser arroxado pelos policiais que se
aproximavam, certos de que a prisão mais esperada dos últimos quatro anos estava
sendo executada.
– É mesmo, tchê... Qual é o teu nome, então? – Itaqui parecia inclusive reco-
nhecer o vago.
– Sou o Hamilton, senhor.
– É meeeeeesmo, tchê... – Itaqui misturava a fala com um soluço pasmo, leve,
provocado pela ironia da situação – Tu é o Resende, do Vale do Sinos!!! – Itaqui
colocava a mão na testa e abria um sorriso discreto.

Ponto de vista de Itaqui

Naquele momento, chegava ao fim uma caçada que durara quase uma década.
Hamilton Resende era há nove anos procurado, já havia virado uma lenda na Polí-
cia. Era alvo de sete pedidos de prisão preventiva e uma condenação por roubo de
cargas. Pensava-se que estava longe do Estado, que tinha até largado o crime. Era
um dos maiores ladrões de cargas da região Sul do Brasil, principal nome desse tipo
de delito no Vale.
A Polícia havia praticamente desistido de prendê-lo. A última foto que tínha-
mos dele é muito antiga. Estava magro, talvez uns 20 quilos a menos. Agora, gordo
e usando óculos, a dificuldade era maior para o reconhecimento. Até o Chico, que
61

trabalhou durante muito tempo no Vale do Sinos, não achou o rosto familiar ao
conversar com ele e o prender.
As duas mulheres que estavam com os vagos e as crianças foram liberadas. Uma
delas teve o estágio cancelado na Caixa do Brasil porque era suspeita de fornecer
informações estratégicas da agência para terceiros. Ela estava com Léo Scharlau, tam-
bém preso no camping, foragido do semiaberto. O cara é suspeito de atuar com Cani-
ço em alguns assaltos a carros-fortes e pedágios. Inclusive, seria um de seus atiradores,
por ter servido ao Exército e ter conhecimento de armas, principalmente fuzis.
O terceiro homem preso era um ex-caminhoneiro, Olmiro Cruzalda, suspeito
de se envolver no planejamento de crimes da quadrilha. Tinha a ficha limpa, mas
estava sendo visto no camping com o “lendário” Resende desde o Natal. Aliás, coin-
cidência interessante um motorista de caminhão ser flagrado com um assaltante de
cargas daquele calibre.

Kombi da Prefeitura de Xangri-lá


Estrada do Mar – indo para o Norte
Ponto de vista de Sid

O flagrante seria feito na Delegacia de Polícia (DP) de Torres. Tínhamos agora


a suspeita forte de emenda de Caniço e Resende, o que juntava nada mais, nada
menos do que o maior assaltante de carros-fortes em atividade no Sul do país e
um dos maiores ladrões de cargas do Brasil. Saímos do camping pouco depois da
chegada da imprensa. A notícia de que havia uma criança baleada era a principal
preocupação, apesar da baita cana.

– Olha a merda que deu! Ô, meu, tu não te mexe, que se não tu vai sê o primeiro
a tomá bala aqui dentro mesmo, ouviu?! – eu ameaçava Resende.
– Não, senhor, não vamo tentá nada.
– Que merda que vocês fizeru! Pra quê fugi? Agora tem uma criança no hospital
por causa de vocês! – dizia Marcelo, que nos acompanhava na condução dos vagos jun-
to a mais três colegas. Outros quatro veículos da Polícia, deslocados da Operação Verão,
que chegaram depois da invasão do camping para o rescaldo, também nos escoltava.
– Bah, seu, digo que preferia que aquele tiro tivesse sido nimim – lamentava um preso.
– Bah, na boa, é cana mesmo? – dizia um dos vago, talvez querendo um “acerto”.
– Claro que é cana, meu...olha a situação de vocês. Tão em cana. E envolvido
com o Caniço.
– Não tenho nada a ver com o cara, senhor. Não tenho nenhum envolvimento
– Resende negava.
– Ah, tá bom! Qué me convecê que o Maradona e o Pelé tão na mesma praia e
não vão batê uma bola? Ah, qualé, meu? – Marcelo perguntava, rindo do esforço de
Resende.
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Hospital Geral de Capão da Canoa


Ponto de vista de Luiz Antônio
15h42min

Esperava alguma notícia sobre o estado de saúde da criança. Informei ao de-


legado Pires de que o guri havia chegado com vida ao hospital, mas o ferimento
era grave. Logo após desligar, recebi o telefonema do Diretor do DEIC, delegado
Robledo Nunes.

– Onde é que é a oficina do jet ski?


– Arroio Teixeira, delegado.
– Vai pra frente do hospital, que tem alguém que vai te pegar aí e vai te deixar
no trevo de acesso a Capão. Vou te pegar lá no trevo. Luiz, quem afinal de contas é
a criança baleada? – perguntava o delegado, que suspendera suas férias.
– Ela foi pro camping com os vago, pelo que os colegas disseram por telefone.

Acabamos a ligação e pedi para uma enfermeira chamar o médico.

– Doutor, como é que ele tá?


– Olha, senhor – o médico respirou fundo, enquanto colocava o indicador e o
polegar direito nos olhos, levantando os óculos, contorcendo o rosto – o estado é
grave.
– Tenho que voltar ao trabalho, como posso saber detalhes?
– O senhor pode me ligar mais tarde – caminhou até um pequeno balcão de
atendimento, pegou uma folha e uma caneta. Falava, escrevendo um número de
telefone e seu nome – Possivelmente vamos transferir o menino para Porto Alegre.
Vamos ver.

Oficina do Brambilla – Arroio Teixeira


Pontos de vista cruzados
16h10min

Robledo Nunes, um homem com os cabelos restantes loiros, baixo e voz metálica,
acompanhado do delegado Anselmo, que trabalhava na Operação Verão, e de mais
cinco policiais, chegou em dois automóveis para me pegar no local combinado. Em
menos de 15 minutos estávamos na oficina, onde o jet ski era observado por alguns
policiais militares.
– Tá...cadê o homem que tava com o jet ski? – perguntou Robledo para um dos bri-
gadianos.
– Olha, ele estava sem documentos e foi pegar em casa. Mas o jet ski está sendo
apreendido, conforme pedido do delegado Pires.
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Sem acreditar que os policiais militares deixaram o suspeito sozinho “pegar seus
documentos em casa”, demos continuidade à operação. A ação no camping fez com
que viessem à tona várias informações sobre pessoas que estariam ligadas aos presos.
Pires ouviu que parte do grupo teria alugado uma casa em Erê. Seguimos da oficina
para lá. Tínhamos como descrição uma residência na rua Atlântica, cercada por
terrenos baldios, mas próxima a uma madeireira. Acreditávamos que a casa poderia
estar sendo alugada por Caniço. Não foi muito difícil encontrar a única madeireira
de Erê. A residência ficava a cerca de 300 metros da praia. Vizinhos relataram que
o movimento de carros caros no local era intenso, o que consideravam estranho.

Residência Suspeita – Praia de Erê

Dividimo-nos e acabamos chegando até o pátio dos fundos da casa pelos flancos.
As pessoas que estavam na grama, aproveitando a tarde embaixo de uma árvore, não
fizeram qualquer movimento de fuga. Havia duas mulheres, uma ruiva e uma mu-
lata, ambas aparentando 25 anos, além de um homem gordo e uma morena magra,
aparentando 40 anos, sentados em cadeiras. Crianças também transitavam no local.

– Polícia – disse calmamente um dos colegas, sem provocar muita reação das
pessoas que estavam na residência.
– O que vocês querem? – disse calmamente a mais velha.
– Assim, ó, gente.... Tamo aqui porque aconteceu um assalto com sequestro na
região. A gente pode dar uma olhada na casa? – solicitou Rômulo, inventando uma
história para passar calma para todos. Afinal, não tínhamos mandado.
– Claro! Pode olhá, pode olhá – disse uma das moças, um pouco mais áspera.

Ponto de vista de Luiz Antônio

Por não termos mandado, demos uma geral atrás de pessoas que poderiam estar
escondidas no local. Tomei a iniciativa de olhar a garagem. Havia um Fiat Uno
branco. Entrei no carro, chequei o porta-luvas, o espelho, atrás do banco, embaixo
dos tapetes e, ao sair do veículo, encontrei a carteira de identidade de Ricardinho.
Ele era suspeito de integrar a quadrilha de Caniço, mas não estava pedido.
Entreguei a carteira de identidade para o delegado Robledo, que conversava com
o gordo e as duas mulheres. Olhei para a frente da casa e três viaturas da Brigada
Militar paravam na rua. Desciam alguns brigadianos, e a impressão era de que as
coisas iam ficar mais tensas.

– Ok, senhores, estou com a carteira de identidade do Senhor Ricardo Baracy


de Lima, encontrada nesta casa. Onde ele está? – perguntava o delegado para a mu-
lher identificada como Janaína, que, para mim, era evidentemente a mesma Janaína,
companheira de Ricardinho.
64

– Foi jogá bola.


– Tá, mas já faz tempo? Volta quando? – insistia um colega, policial civil.
– Foi jogá bola – ela repetiu.
– Onde? Aqui na praia mesmo?
– Olha, não sei. Só sei que foi jogá bola.

Uma policial militar, recém chegada, reconheceu o gordo.

– Delegado, esse aí é o cara que foi buscá os documento e não voltô para a ofi-
cina.
– E aí, já está com os documento? – perguntou o delegado.
– Sim, tava procurando pra levá pros policiais na oficina.

O delegado Robledo me chama discretamente, enquanto os outros colegas fa-


zem perguntas ao grupo, e cochicha:

– O gordo deve ter dado a curva nos brigadiano, veio até a casa e deu o toque pro
Ricardinho e pro Caniço. Os dois vazaram. Deram balão nos PM.
– Vamo levá eles tudo pra delegacia, delegado. Não tem erro. Vambora – disse,
querendo apertá-los com mais tranquilidade em Porto Alegre.
– Não é o caso. Calmaí. Vamos procurar mais alguma coisa e a gente vê como fica.
A casa tá franqueada. Vamos aproveitar.
– Delegado! – Dirceu, colega que estava na Operação Verão e veio com Robledo,
aproximou-se – O Fiat tá com uma marca estranha no chassi. Acho que a numeração
tá raspada.

Mais tarde, saberíamos que o veículo era pertencente a uma grande revenda de
Porto Alegre e estava identificado como “locado” para Ricardinho. Estranho, porque
a revenda só vende. Não aluga.
Entrei na residência e, na sala, encontrei um tênis importado, tamanho 44. Com
certeza não poderia ser do gordo do pátio. Suspeitei que fosse de Caniço.

– Quem é o dono daquele jet ski que tá na oficina? – ouvi o delegado perguntar
para o gordo.
– Aquele jet ski é do tio do meu cunhado – respondeu automaticamente.
Chamei pra varanda da casa a moça ruiva que estava junto com a esposa do Ricar-
dinho e desabafei com o indicador em riste:

– Ó aqui ó, por causa desses vagabundo que vocês dão cobertura, uma criança foi
baleada e tá entre a vida e a morte no Hospital Geral de Capão, vocês sabem disso?
– Mas eu não conheço esse cara!
– Que cara?
– Esse tal de Caniço.
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– Mas quem é que te falou no Caniço?


– Ah, aquele baixinho ali – apontando para Robledo.

Dei um tempo, saí de perto dela e fui ao encontro do delegado de forma discreta.
Em meio às perguntas dos colegas, foi fácil tirar o delegado do foco para uma conversa
mais reservada.

– Ô, delegado, o senhor comentou pra moça ruiva ali sobre o Caniço? Falou no
nome do Caniço na frente dela em algum momento?
– Claro que não, Luiz.

Um helicóptero da Brigada Militar desceu em um terreno baldio, do outro lado


da rua.
67

A PERÍCIA
Sábado, 14 de janeiro, QUINTO ano de caçada
Município de Torres – 197 quilômetros de Porto Alegre
Litoral Norte do Rio Grande do Sul
Delegacia de Polícia
Ponto de vista de Nilo Ramos, repórter da
Rádio Porto Alegre
19h

Voltei ao balcão da DP, onde um colega e amigo do jornal Carta Popular con-
versava com um policial civil.

– Perdão, Melo – atrapalhei a entrevista do Sílvio Melo com o agente.


– Não. Tudo bem, velho – ele cedia espaço no balcão.
– Por favor, amigo, só mais uma perguntinha? Surgiu a notícia de que, há pouco,
apreenderam uma arma que estaria com o cara, né? Com o Resende...
– Meu velho, o pessoal chegou aí agorinha mesmo com um revólver calibre 38,
cinco tiro, com cartuchos deflagrados, coletado por uma testemunha. Foi encontra-
do onde tava escondido o Resende, no meio do taquaral. Eles fizeru o local com a
ajuda de populares e encontraru a arma.
– Ah, sim. Uma testemunha achou o revólver algum tempo depois, ajudando nas
buscas?
– É que tinha uma testemunha aí dizendo que o Resende apontou uma arma pra
ela na beira da lagoa durante a fuga. Aí voltaru pra buscá.
– O cara atirou, chegou a disparar a arma?
– Siiim... foru cinco tiro deflagrado, véi.
– Uhumm… tá – escrevia no meu bloco.
– Não é brincadera o troço, meu velho.
– Um 38 cinco tiro? – Melo perguntava, também anotando.
– Cinco tiro.
68

Deixei a DP meio cabreiro. Agora sim, esperava sair daquele lugar para não vol-
tar mais. Precisava ir ainda para o local do crime. Esse tipo de matéria é complicada,
porque a gente raramente consegue ter acesso a todas as informações com riqueza
de detalhes para repassar ao público. Seguindo a ideia de um emblemático professor
da universidade que dizia: “o bom jornalista duvida de tudo sempre”, eu praticava o
meu melhor esporte, no auge da minha pretensão. Não duvidei especificamente da
informação que me passaram, mas questionei todo o contexto oferecido.
O motorista da rádio, já bastante cansado, levava-me pela Estrada do Mar para o
camping. Concluíramos várias matérias gerais naquele dia e faltava só visitar o local
do tiroteio, para completar a jornada.

– Sérgio, vê se não é estranho esse negócio: um sujeito de extrema periculosidade


como esse Hamilton Resende aí... que eles pegaram nesse camping.
– Humm?
– Uma lenda na Polícia, cara cheio de mandado nas costas, visto nas ações sem-
pre fortemente armado.
– Ahã.
– Me responde, será que esse cara vai tá com um revólver calibre 38 que não era
nem seis, mas cinco tiros?
– Humhumhum... – a risadinha rouca do motora, debilitada pelo vício do cigar-
ro, sem abrir a boca, dizia absolutamente tudo, sem falar nada – Tu sabe que o 38
não ejeta a cápsula, né?
– Como assim?
– Sim, Nilô. Quando tu atira de 38, a cápsula fica no tambor do revólver, não é
ejetada.
– Tá e daí?
– E daí que ninguém pode prová se realmente alguém atirô ou não com um 38
no confronto. As cápsula não ficam pelo chão, fica tudo retida na arma. Então, Nilô,
vale o que os homi colocu no papel. Se aquele revólver tem numeração raspada ainda,
vale mesmo a versão dos polícia, que pode ter levado a arma com todos os cartucho
já deflagrado para “eventualidades”... se é que tu me entende.
– É arma de enxerto. Tá dizendo que eles enxertaram o 38?
– Não, Nilô... Não tô dizendo nada. Tô só te explicando. Não sei o que aconteceu.
– Mas diz que tem uma mulher que viu esse Hamilton Resente aí, apontando
uma arma pra ela... Tem uns colegas que falaram com populares também, que dizem
que o cara tava armado, mas não atirou. Os policiais falam que ele atirou.
– Ahã...
– E tem mais: o revólver, segundo os policiais, foi localizado por populares, mas
coletado horas depois.
– Hein, Nilô, por que horas depois?
– Porque uma testemunha jurou ter visto o cara armado e tal... E fez a Polícia
voltar pro local para procurar a arma, que não foi apreendida no momento da prisão.
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– Tá, mas os polícia não tinhu dito que o cara atirô?


– Sim.
– Então, Nilô? Por que os home sairu do camping sem essa arma? Só foru voltar
lá horas depois. Tá estranho esse troço, hein?
– É. Eu também acho – respiro fundo, com aquela sensação ruim de escrever
uma matéria grave sem ter a certeza de nada que vou colocar no papel. Parece-me
que o mais normal seria eles enxergarem o revólver durante o tiroteio, prenderem
o cara e só descansarem depois que coletarem a tal arma. O negócio é uma prova,
afinal de contas. Mas não foi o que fizeram. Pelo que parece, eles foram pra Torres
e voltaram pra Erê depois.
– É, vai sabê. Olha, essa arma pode até sê do Resende mesmo, Nilô, mas que
esse papo tá estranho... Ah, isso tá – concluía o experiente motorista, que tem mais
tempo em equipe de jornalismo do que eu de habitante deste planeta.

Camping da Lagoa de Itaramã


Ponto de vista de Juliano, 10 anos
19h10min

Antes tinha um monte de gente no camping, mas já tava ficando meio escuro e
tinha bem pouquinhas barracas. A gente enrolava uma cordinha de varal nas perni-
nhas do cachorro que tava preso em uma árvore perto do taquaral. O Leandrinho
quase levou uma mordida. Também, né, não para quieto. Parece que tá sempre com
o bicho-carpinteiro. Mas tava bem legal, porque o cachorrinho era tri mansinho. Só
mesmo o Leandrinho pra deixar o bicho brabo.
Aquele dia foi bem diferente. Sempre quando chega a hora mais legal minha
mãe chama pra gente ir embora. Como tava ficando tarde, pensei que a próxima
coisa que ia acontecer ali era a minha mãe gritar “Juliaaaaanooo, vambora!”, como
ela sempre fazia. Mas não foi bem assim.

– Ó lá, Juliano! Chegô o pessoal da tevelisããão! – Guga estava impressionado.


– O quê? – brincava com o cachorrinho, mas percebi que Dudinha já corria em
direção a uma pessoa que saía de um carro.

Ele foi o primeiro a chegar para ver de perto os homens que puxavam um monte
de coisa do banco de trás do carro. Um outro tinha uma máquina de fotografia e
mais um moço tava com um caderno na mão. Quando cheguei pertinho é que vi o
símbolo do canal de TV na porta do carro. Esse moço do caderninho é que foi falar
com o tio que cuidava do camping. Eles deixaram o carro da TV bem na frente da
barraca do pai do Leandrinho.
Nós quatro ficamos tri pertinho da câmera, pra ver o que eles iam filmar. Con-
versavam com o tio que cuidava do camping, que caminhava e apontava umas coi-
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sinhas que tavam no chão. Só depois é que eu fui vê que eram balas de revóvre. O
meu padrinho tinha uma coleção daquelas ali.
O tio do camping começava a catar umas balas que tinham no chão e começa-
mos a ajudar também.

– Olha, Juliano, tem um mooooonte! – Leandrinho foi o primeiro a começar a


catar no pé do tio do camping e logo depois Guga, gordo Beto e eu começamos a
ajudar também.
– Deixa isso aí, guri – o pai do Leandrinho, Seu Zeno, acompanhava tudo de
longe. Gritava, tomando chimarrão na frente da barraca. Mas a gente não tava atra-
palhando.

O homem de caderno e caneta nas mãos observava o tio do camping pegando as


balas também. Os meus amigos e eu só ajudamos o tio procurando um pouquinho
mais para o outro lado.
– Quantas tu conseguiu?
– Um montão – Guga me respondeu rindo, mostrando as bala de revóvre, jun-
tando as mãos em conchinha.

O tio do camping abria as mãos com algumas balas e a gente largou um pouco
do que tinha catado na mão dele também. Aí, o Leandrinho, o Guga, o gordo e eu
ficamos vendo o fotógrafo tirar a foto. Também veio outro homem com a câmera de
TV. Ficamos quietos, pra não atrapalhar. Ele filmou o tio segurando as balas na mão.

– Olha quantas eu já tenho! – Leandrinho catou outras e ficava atucanando o


homem do caderninho – Tira umas foto disso aqui, moço! – ele pedia, mostrando o
que tinha nas mãos, dando gargalhada, mas o fotógrafo nem ligava.
– Psssiu... – eu queria prestar atenção no que os repórti faziam.
– Tira aqui, moço... ó! Tem mais aqui, ó!
– Pschiiiiiiiu... Fica quieto Leandrinho – o piá não conseguia parar quieto um
minuto – Não vê que tá atrapalhando! Tri chaaaaato…

O pessoal da TV também filmou uma bala maior... uma que parecia uma garrafinha
(cápsula deflagrada de fuzil). Eu pedi emprestado as do revóvre do Leandrinho. Ele me
deu. Estava contando quantas ele tinha, quando o pai dele veio chamar, porque já era
hora de ir embora.

– Mas, pai! Esperaaa! – Leandrinho só faltou chorar. Tri fiasquento, foi obrigado
a largar as bala no chão.
– Pára, guri. Deixa isso pra lá!
71

Ponto de vista de Nilo Ramos,


repórter da Rádio Porto Alegre
19h40min

Chegamos ao camping quando os colegas da outra empresa de rádio e TV o deixa-


vam. O tempo estava fechado, já meio escuro. Tinha de gravar com alguma testemu-
nha. Esperava ter sorte. Saí do carro e imediatamente fui ao encontro de uma pessoa.

– O Senhor viu quem pode ter atingido a criança? – perguntei para um homem
que aparentava 60 anos e começava a colocar mochilas no porta-malas de um Gol
metálico, para sair do camping.
– Olha, amigo, foi tudo muito rápido. O que mais tá me impressionando nesta
história toda são estas criança aqui.
– Por quê?
– Elas tão aqui, juntando os projétil e brincando em um local que deveria tá
isolado. Absurdo! Houve um negoço grave aqui dentro, moço. Isso não pode ficá,
assim, largado. Nunca vi disso! – ele fazia uma pausa e limpava a saliva que escorria
no canto da boca – Agora fica as criança fazendo a perícia aqui. Tá louco! Não pode
isso! Onde é que já se viu? Não isolaram o local pra nada, não juntaru os projétil,
não fizeru nada. Saíru correndo depois que o garoto foi baleado.
– Qual é o seu nome? – liguei o gravador.
– Nã, nã.. não quero aparecê!! Tá loco!! Já larguei esse troço. Não me divulga.

Desliguei o gravador para preservar a testemunha e atender sua solicitação.

– Sô brigadiano aposentado, velho. Por isso tô achando tudo isso um absurdo.


Não sei nem se tinha gente atirando contra eles para eles tocarem tanto tiro assim.
Que tinha vagabundo aqui, isso é certo. Um colega que vem todos os ano aí comigo,
policial civil aposentado também, foi embora há pouquinho, assustado. Ele disse
que até salvou um louco de jet ski aí na lagoa esses dia. Diz que era vago também.
Tamo aqui cercado de vago...

– O senhor viu se tinha gente atirando nos policiais?


– Olha, tchê, não vi isso nem notei nada. Não vi nada. Me desculpa.

Domingo, 15 de janeiro
Ponto de vista de André, policial que não participou da investida
2h07min

Depois de despejar na garganta mais uma garrafa de um misto de vodka com


limão, apreendido com bebidas e mantimentos dos vagos no camping, oferecia para
os presos mais um pedaço de carne, que estávamos assando para levantar o moral na
72

hora de fazer o flagrante. Os dois colegas, que participaram da operação e faziam o


texto, fechavam o segundo dia sem descanso, envoltos em tensão.
Durante todo o momento, os presos foram tratados com gentileza, mas havia
um clima de preocupação no ar por causa do guri que permanecia em estado grave.
Depois de concluído o flagrante, o próximo desafio seria encontrar alguma peniten-
ciária na região que fosse adequada para levá-los. O Presídio de Torres foi descarta-
do pela chefia da operação. A ideia era a Modulada de Osório, onde poderiam ficar
sob a segurança que bandidos daquela importância mereciam.

Penitenciária de Osório, Litoral Norte do RS


Ponto de vista de Marcelo
8h37min

– E aí, delegado? Foi por pouco essa, então? Atiraram no Caniço e pegaram o
Resende – ironizava o brigadiano, plantonista na penitenciária.
– Foi um bom trabalho. Então? Deixamos ele aqui, né?
– Olha, doutor Pires, lamento muito, mas não podemos permitir que deixem o
Resende aqui.
– Coméqueé?
– Sim, o flagrante foi lavrado em Torres. Tem que deixar os presos em Torres.
– Só um pouquinho, amigo, tu tem que entender que eles não são presos comuns.
– Não dá, delegado. Lamento muito, mas a gente não pode ficar com eles aqui.
– Tá bom, vamos ver então.

Pires, nitidamente exausto e transtornado, ligou para o chefe de polícia, delega-


do Chináglia.

– Delegado, aqui é o Pires.


– ...
– Não, é que estamos tentando colocá-los aqui em Osório, mas eles não querem
os presos aqui. Querem que deixe em Torres porque o flagrante foi em Torres.
– ...
– Porto Alegre, delegado? Mas...
– ...
– Ok.

Surpreso pela sugestão e longe de estar satisfeito, Pires fez novo contato com um
integrante da cúpula da Susepe.

– Diretor Oribes?
– ...
– Olha, estamos com os detentos da operação de ontem em Erê e...
73

– ...
– Muito Obrigado.
– ...
– É que precisamos...
– ...
– Obrigado... Sim, precisamos deixá-los aqui em Osório devido às condições
da Penitenciária de Torres. Como são presos especiais, gostaria de saber se poderí-
amos...
– ...
– Sem problemas para o senhor diretor?
– ...
– Muito obrigado pela compreensão.
– ...
– Aaah... diretor?
– ...
– O senhor, por favor, poderia ligar para o plantonista nos receber?
– ...
– Obrigado e bom dia.

Finalmente pensei, pela primeira vez nas últimas 48 horas, que o próximo pe-
ríodo seria de descanso e sossego. No entanto, quando bati a porta da viatura para
retornar a Porto Alegre, o meu telefone tocou e me arremessou para léguas de dis-
tância do que idealizo como uma situação de paz.

– Marcelo?
– Sim.
– É o Luiz, velho.
– Oi, Luiz.... o que houve?
– Tenho uma notícia bem complicada, velho.
– O que deu? Fala logo!
– O guri...
– O que tem?
– Liguei pro HPS em Porto Alegre e...morreu, velho. Morreu.

Ponto de vista de Delegado Pires


11h20min

Comuniquei o falecimento do menino para o delegado Robledo e, em seguida,


recebi um telefonema.

– Delegado, é o Feitosa, aqui de Porto Alegre – me ligava o titular da delegacia


de Homicídios.
74

– Fala, Feitosa.
– Recebemos a notícia de que a criança baleada morreu no Pronto Socorro.
– Sim, estou sabendo.
– Por ser o filho do Caniço, Pires, a gente tá pensando em fazê uma segurança
especial no DML. O pessoal de lá tá solicitando...
– Não, paraí! Não é o filho do Caniço, nada!

Toda a operação não saía da minha cabeça. Lembrei-me do sujeito que passou de
Vectra quando colocávamos os coletes, pouco antes de invadirmos o camping. Naquele
dia, a fisionomia dele não me parecia clara. Mas ficou gravada na minha memória. Me-
ses mais tarde, daria-me conta de que se tratava presumivelmente de Milanês, um dos
integrantes da quadrilha.

***

Observações que pairam na atmosfera da segurança pública do RS

Milanês era um foragido, alvo de investigação da Delegacia Beta em cima de Ca-


niço, batizada de Operação Casarão. Entretanto, na Operação Dilúvio, desenvolvida
pela Delegacia Alfa do DEIC, o principal alvo de investigações era Ricardo Baracy
de Lima, o Ricardinho. Como as investigações das duas DPs do departamento não
eram cruzadas, o titular da Delegacia Alfa, em um primeiro momento, não conseguiu
reconhecer que o sujeito do Vectra era um dos principais nomes em torno de Caniço
e alvo de exaustiva investigação dos colegas da delegacia vizinha. Valorisson Pires se
tornou, naquele momento, vítima da chamada “compartimentação” das informações
no próprio departamento, um item que integra a doutrina moderna de “inteligência”
e também incrementa a “briga de beleza” na segurança pública.
Ainda no sábado à noite, um motorista da região de Arroio Teixeira foi pago
para levar oito pessoas, incluindo crianças, da casa alugada pelo grupo em Erê ao
bairro Mathias Velho, em Canoas. A cidade, na região Metropolitana de Porto Ale-
gre, era onde a namorada de Caniço morava. Algum tempo depois, foi comprovado
que, tanto Janaína Simões Azevedo, companheira de Ricardinho, como Marcela
Freitas Mazzitelli, namorada de Caniço, estavam em Erê, na residência que fora
submetida à checagem por policiais civis e militares na tarde de sábado, quando o
menino ATM, de 3 anos, foi baleado.

***

No final de semana seguinte, a imprensa publicaria um suposto plano de assalto


ao Aeroclube de Osório, conectando Caniço a Hamilton Resende. Equipe de re-
portagem de um dos jornais da capital teria localizado um mapa no lixo de uma das
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residências alugadas pela quadrilha, apesar da tentativa de manter a “maldita” im-


prensa fora do caso – reproduzindo termos utilizados por autoridades da segurança
do Estado. Tratava-se de um pedaço de papelão com vários rabiscos e o desenho do
aeroclube daquela que é uma das principais cidades do Litoral Norte.
Alguém reproduzira no papelão a pista de pouso e os acessos ao aeroclube, que
atendia as praias do eixo Tramandaí – Capão da Canoa. Havia desenhos de carros-
-fortes que poderiam descarregar remessas de diversas praias e simulação de aborda-
gens utilizando veículos. Setores da comunidade de inteligência do RS desqualificam a
informação levantada pela reportagem, afirmando que havia mais de um ano que não
se transportava valores utilizando aquele aeroclube. Mesmo assim, a matéria foi pu-
blicada com o título “O Maior Assalto da História do Estado”. Conforme a Polícia, a
previsão de roubo era de aproximadamente 5 milhões de reais (2,8 milhões de dólares).
Poucos cogitaram a possibilidade de a quadrilha estar se reunindo naquele cam-
ping para treinar uma fuga pela lagoa, caso efetivamente o assalto ocorresse no ae-
roclube. Foi apreendida uma lancha, que poderia estar sendo utilizada para treina-
mento. Alguns, com mais frieza, hoje analisam a forma de entrada no camping e
questionam a alegada existência de suspeitos armados no local. Ainda se supõe que
era possível a existência de integrantes do bando com fuzis. Seriam suspeitos que não
apareceram e não foram presos. Caso realmente houvesse, provavelmente alguns po-
liciais poderiam facilmente ser baleados, porque saíram de um ponto único, a Kombi.

***

A ação teve bastante repercussão na mídia. Quinze dias depois, laudo do Insti-
tuto Geral de Perícias apontou que um projétil 9 mm foi o responsável pela morte
do menino ATM, de 3 anos. No mês seguinte, o policial Luiz Antônio Guedes
Fontoura, 32 anos, que, segundo registros policiais, era o único portador de uma
submetralhadora calibre 9 mm, fora afastado da Polícia.
No calor da confusão, um agente de alta graduação da Polícia Civil do Rio
Grande do Sul – quando informado de que a criança baleada era afilhada de um
dos homens presos no camping – teria dito: “Ah, é deles? Que se foda, então!”.
Durante 11 meses, Fontoura foi acusado publicamente como autor do tiro que
resultou na morte do menino ATM. Passados exatos dois anos, cinco meses e seis
dias do incidente, foi lido relatório no Julgamento de Estágio Probatório do policial
no Conselho Superior de Polícia. O relator salientou a existência do laudo 2316/
quinto ano de caçada do Instituto Nacional de Criminalística (INC), que não re-
conhece o projétil que teria sido extraído do corpo de ATM como expelido pela
submetralhadora apresentada ao INC e que teria sido utilizada por Fontoura.
O projétil que teria atingido ATM e a submetralhadora foram enviadas ao INC
porque o Instituto Geral de Perícias do Rio Grande do Sul declarou que não havia
condições técnicas para identificar se o projétil teria saído da submetralhadora.

***
76

CIDADANIA & DIREITOS


eNTreVisTa

DeLeGaDo NeGa UTiLiZaÇÃo


De FUZiL em aÇÃo PoLiciaL
QUe maToU criaNÇa
Homem que comandou ação fala sobre suspeita de uso de fuzil
apreendido no Vale do Sinos na operação
SÍLVIO MELO, Porto Alegre | silvio.melo@cartapopular.com.br

O titular da delegacia Alfa do no ATM, de 3 anos, com um tiro des- dia 14 de janeiro do ano passado e
DEIC, Valorisson Pires, concedeu en- ferido supostamente por um policial envolveu 12 policiais que invadiram
trevista exclusiva à Carta Popular, em operação montada para pren- o camping às margens da lagoa de
para tentar esclarecer a ação poli- der o assaltante Manoel Barcellos Itaramã, entre os municípios de Ca-
cial que resultou na morte do meni- Flores, o Caniço. O fato ocorreu no pão da Canoa e Terra de Areia.
Pires, que se tornou famoso da Polícia Civil. Nesta entrevista, Eu tenho a dizer sobre isso que to-
após capturar, há oito anos, um o delegado dá sua versão sobre dos os policiais tinham pistolas
dos mais atuantes assaltantes de os armamentos utilizados pela Ponto 40. Todos. Nós levamos
banco da história do Rio Grande operação. A reportagem levan- também uma submetralhadora
do Sul, o Nego Arara, teve o cur- tou versões de fontes, cujas iden- Taurus 9 mm e uma espingarda
rículo de grandes prisões engor- tidades não podem ser reveladas, calibre 12. Eu não saberei dizer
dado naquele dia por tirar de cir- que os policiais portavam as se- se algum deles teria um (revól-
culação um dos maiores ladrões guintes armas autorizadas para ver) 38... talvez. Um específico,
de cargas do Estado, Hamilton o uso: pistolas ponto 40, subme- eu me lembro que tinha uma
Resende. Foragido há nove anos, tralhadora 9 mm e espingarda (pistola) 380 porque na hora
Resende já era considerado uma calibre 12. Também estavam da ação um (policial) alcançou
lenda no meio policial. Pratica- com armas de outros calibres, in- para o outro (porque a pistola
mente esquecido, caiu por acaso, cluindo um fuzil apreendido pela caiu no chão). “Ó, é do fulano.
na operação no camping. Polícia em operação no Vale do Segura!”. Então é uma 380 de
Quatorze meses depois, a satisfa- Sinos. um deles. Registrada. Quanto ao
ção do delegado só não é comple- fuzil, inexistia.
ta porque diz lamentar a morte Repórter Sílvio Melo: O que o
do menino ATM. Ele rejeita a tese senhor tem a dizer sobre essas O senhor é categórico...
de que a ação da Polícia contou versões levantadas pela repor- Vieram a existir fuzis na Po-
com armamento irregular, con- tagem? lícia, recentemente, depois da
forme investigou a Corregedoria Delegado Valorisson Pires: aquisição.
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78

CIDADANIA & DIREITOS

E quanto ao emprego deste fu- usava? de Polícia para uso. Agora, como a
zil que era considerado um “sal- Que, muito eventualmente, se Polícia comprou vários fuzis, não
va–vidas” da Polícia, uma vez usava eram armas apreendidas. sei se está em uso ou desuso essa
que era o único fuzil que tinha na portaria.
casa? E autorização pra estas armas
Não. A Polícia teve vários fuzis apreendidas, a polícia pode dar? Naquela situação, há um ano
apreendidos. Eu acho que existe uma porta- e três meses, qual era o senti-
ria do chefe de Polícia proibindo mento do senhor de “não poder
E emprega? o uso desses armamentos. A Po- recorrer a um fuzil” para en-
Pelo menos na minha delegacia lícia está autorizada a usar estes frentar de igual para igual uma
nunca se usou. Eventualmente, em calibres, mas havia uma portaria quadrilha como a do Caniço,
operações maiores, talvez se use, do chefe de Polícia que proibia o que utilizava fuzis?
mas naquele dia não, até em virtude uso dessas armas, enquanto não É, no mínimo, de deixar brabo. Ter
da pressa. houvesse “trânsito em julgado” um opositor com o poder de fogo
nos processos criminais. Todas as muito maior e tu teres apreendido
E esses fuzis, vem de onde? armas ficam apreendidas. Depois (fuzis) no teu departamento e não
Como “vem de onde”? de “trânsito julgado” são encami- poderes usar por proibição do chefe
nhadas para destruição. Então, de Polícia.
Os fuzis que eventualmente se não havia esta permissão do chefe
79

GÊNESE
Quarta-feira, 9 de março, QUARTO ano de caçada
Porto Alegre, bairro Jardim do Salso
Sala da Delegacia Beta do Departamento Estadual de Investigações
Criminais
Ponto de vista do Tigre Banguela na logomarca do DEIC
20h45min

A SJS havia instituído um Grupo de Trabalho (GT) há alguns meses com o


intuito exclusivo de avaliar a caçada a Caniço. Os encontros semanais normalmente
ocorriam no mezanino do Palácio da Polícia, em Porto Alegre. O número de de-
legados presentes variava de cinco a dez. Apesar de Manoel Barcellos Flores estar,
na época, completando quatro anos como foragido, suas ações provocavam tanta
repercussão que o objetivo do GT era cruzar informações que surgissem sobre ele e
seu bando em diferentes áreas do Estado. O GT contava normalmente com o chefe
de Polícia, delegados regionais, o diretor do DEIC e o titular da delegacia Beta do
departamento.
Aquela quarta-feira foi diferente. A reunião era no DEIC e nem todos compa-
receram. Estavam o delegado Regional do Vale do Sinos; os delegados regionais de
Santa Cruz, da Serra e do Litoral; o diretor do DEIC e o titular da Delegacia Beta.
Existiam indícios de que não só policiais do DEIC, mas integrantes da Brigada Mi-
litar do Vale do Rio Pardo, já haviam tido condições de prender Caniço, mas teriam
aceitado negociar sua liberdade: a chamada acertiva.

Ponto de vista do então titular


da Delegacia Regional do Vale do Sinos,
Robledo Nunes

Após a reunião, o chefe de Polícia, delegado Lucimar Chináglia, me chamou em


uma sala do departamento para uma conversa em particular.

– Robledo, o secretário tá cansado e eu também – dizia Chináglia, um homem


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grisalho, alto, magro, rosto quadrado e olheiras profundas. Dizem que tomava anti-
depressivos pesados.
– Calma, delegado, nós vamos dar um fim nisso.
– Tchê, eu te segurei mais um pouco aqui porque eu gostaria de falar reserva-
damente contigo... te fazer uma proposta – o chefe de Polícia baixa a cabeça, chega
mais perto, olha para os lados e me encara nos olhos. Eu quero que tu seja o novo
diretor do DEIC.
Fui pego de surpresa. Embora esperasse muito por aquele momento, não imagi-
nava que seria ali, naquela hora.
– Tchê, a tua missão vai ser só uma. Tu não precisa inventar mais nada. Tu vai
ter que prender o Caniço de uma vez por todas. Socar esse cara na prisão. O que tu
acha? Posso contar contigo?

Quatro semanas depois, já no comando do departamento, organizava um cerco à


quadrilha no Km 129 da RS-040, em Viamão. As informações imprecisas do Guar-
dião nos levaram a circular por um raio de oito quilômetros em torno do alvo. Eles
se comunicavam e, a cada ligação, o Guardião nos dava uma localização diferente.
Por sorte, encontramos parte da quadrilha. Houve tiroteio e eles fugiram jogando
miguelitos na rodovia, furando os pneus das viaturas.
Por encontrarmos algumas pistas nessa ação, acabamos prendendo pessoas que
gravitavam em torno do Caniço, mas não conseguíamos capturá-lo.

Terça-feira, 17 de janeiro, QUINTO ano de caçada


Porto Alegre, Bairro Centro
Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 8° andar
Gabinete do secretário de Justiça e Segurança, Gilberto Silveira Bins
Ponto de vista de quadro emoldurado do governador Armindo Peixoto
10h05min

Pouco mais de 48 horas depois da notícia da morte da criança baleada no cam-


ping, uma reunião definitiva foi convocada. As férias do diretor do DEIC, delegado
Robledo Nunes, foram suspensas a pedido do secretário de Justiça e Segurança Pú-
blica, Gilberto Silveira Bins. Parecia que as ondas das rádios e as letras das matérias
dos jornais sobre a ação do final de semana flutuavam nítidas, quentes e eloquentes
no gabinete.
Lucimar Chináglia, chefe de Polícia, e Valorisson Pires e Toniolo Fioravante,
titulares das delegacias Alfa e Gama do DEIC, também foram chamados para
o encontro. O secretário Bins queria saber detalhes sobre a morte do menino,
mas garantia de antemão que não seria a pressão da imprensa que iria fazer Pires
ser destituído do cargo. Depois de os delegados fazerem o relato, surgiram as
cobranças.
81

– Olha, secretário, as quatro prisões efetuadas pelo delegado Josué no final do


ano foram importantes. São colaboradores do Caniço. É gente ligada a ele.
– Eu sei Robledo – dizia Bins com sua voz imponente. Era um homem elegante,
sempre bem vestido, alto, cujo nariz revelava suas origens.
– Fora o fato de termos prendido o Hamilton Resende, que é uma lenda na cri-
minalidade do Estado. Isso os jornais não dão o destaque que merece, secretário... O
baita resultado que obtivemos não aparece. A ênfase é na morte do menino.
– É, Robledo, eu sei. Mas a questão é que não pegamos o Caniço. Esse é o pro-
blema, não é? Há quanto tempo esse cara tá azucrinando aí?
– Chegamos ao camping porque o Caniço esteve lá e planejando coisa grande
pelo jeito. O cara tava na mesma região do Resende. É certo que tavam aprontando
– considerava Chináglia.
– Sim, eu mesmo estive em Erê, na casa alugada pela quadrilha e por pouco não o
pegamos.
– Eu sei, Robledo, mas daqui a pouco vai acontecer uma desmoralização da Se-
cretaria. Não dá pra tolerar. Olha os jornais! Tão dizendo que a morte do menino
é fruto de ação desastrada da Polícia – Bins apontava para a mesinha central do
gabinete, onde estavam os periódicos do dia.
– Isso tá complicado. Meu telefone não para de tocá. É jornalista até de Santa
Catarina e do Paraná me procurando pra falá. Bom, fui bem claro que não vamos
nos pronunciar sobre isso – Chináglia adotava uma postura intermediária, entre
o secretário e seus comandados, e reproduzia a estratégia combinada na segunda-
-feira – Passamos tudo pra Cogepol. Disse que não vou prejudicá as investigações
da corregedoria. Deixa a Cogepol trabalhá.
– Isso. Não se fala sobre isso na imprensa. Assunto de consumo interno, ok?
Vamos corrigir pra dentro. Foram duas mortes no mês passado e a da criança neste
fim de semana. Não é possível agora deixarmos um saldo de mortes mensais se criar
– orientava Bins
– E a imprensa recapitula tudo, né... É foda! Colocaram as foto de todos os
mortos nas ações da quadrilha – reclamava Chináglia.
– Isso... E diante disso tudo, Robledo. Daquele episódio do Burati e desse do
camping, eu não vejo mais alternativas. Vamos ter que fazer ajustes estratégicos.
– Sim, mas estamos fazendo o trabalho. A questão é que as duas delegacias em
cima do Caniço também tão sobrecarregadas por outras demandas.
– Eu sei, Robledo. Por i...
– Temos também a complexidade das informações, que acabam não sendo com-
partimentadas no DEIC e vazam... – continuava o diretor, parecendo querer evitar
um eventual anúncio drástico, uma demissão da cúpula talvez.
– Eu sei, Robledo. Por isso, eu...
– Além disso, estamos fechando o cerco.
– Eu sei, Robledo. Por isso, eu quero perguntar o que tá faltando? Do quê vocês
precisam?
82

Todos se entreolhavam. Foi uma pergunta surpreendente o suficiente para ocor-


rer breve quebra no ritmo no diálogo.

– Olha, secretário...poderia se resgatar aquele plano operacional.


– Foi isso que pensei, mas preciso ouvir vocês.
– Secretário, se o senhor me permite, não houve a aprovação da ideia porque não
tinha de onde tirar os recursos – lembrava um dos delegados que o plano opera-
cional começou a ser pensado em novembro e apresentado na segunda quinzena de
dezembro para a cúpula da SJS, após as duas execuções no Burati.
– Olha, não tem mais como esperar. Tem que ter recursos. Vou providenciar com
a Direção Geral da Secretaria, vou falar com a (diretora) Ângela Leonini, sei lá...
Vamos conseguir o material que vocês pediram no plano. Vou pedir pro subsecretá-
rio Lavirme cuidar dos recursos pra locar os carros solicitados no seu planejamento,
Toniolo. Todo o resto vai se tornar segundo plano. O negócio é tirar esse delinquen-
te de circulação.

Durante alguns minutos, houve uma espécie de surto de otimismo no gabinete.


Foram levantadas questões, cujos esclarecimentos seriam fundamentais para im-
plementação do plano. Bins deu telefonemas, parecia disposto a resolver quaisquer
problemas de material e infraestrutura, por mais difíceis e crônicos que fossem para
a SJS.

– E outra: a gente já discutiu que tá vazando todo o tipo de informação da Polí-


cia para a quadrilha, né? Eu quero evitar isso – Bins tirava da gaveta folhas de papel,
possivelmente com o plano concebido pelo titular da Delegacia Gama do DEIC e
um agente. Pode ser que esteja enganado, não conseguia ver direito o que tinham
naqueles papéis.
– Sim, a questão é que os caras sabem até quando nossos carros saem da garagem
do departamento. Eles não só conhecem nossos veículos, como sabem quem são al-
guns dos nossos principais investigadores. Isso dificulta o trabalho – Pires aproveitava
para esclarecer.
– Olha, dei uma olhada boa no plano do Toniolo e podemos priorizar algumas rei-
vindicações. Além da escolha de policiais com aptidões simples, como conhecimentos
de informática, de escuta telefônica e da área de atuação da quadrilha, ele solicita
alguns recursos que poderíamos conseguir remanejando itens de outros órgãos, como
fuzis, por exemplo...
– São necessários, secretário – concordava Toniolo.
– Claro, pelo poder de fogo dos bandidos. Tu pedes fuzil 762, três ou quatro
tipos de granadas, gás lacrimogêneo, máscaras de gás, carros locados, microfones,
gravadores, máquina fotográfica, celulares diferentes dos utilizados pela Polícia Ci-
vil e acesso a uniformes de trabalhadores que atuam na rua, como garis, frentistas,
eletricistas, telefônicos...
83

– Sim, secretário – confirmava Toniolo.


– Mas se a gente locar esses carros e continuar no DEIC não há risco de a qua-
drilha saber? Não tá vazando informação de tudo que é lado?
– Sim, secretário. Há advogados que vão lá pra atender clientes e podem infor-
mar que estamos usando carros diferentes e outras coisas.

Robledo estava correto. Esse poderia realmente ser um canal de vazamento de


informações, mas não era o único. Uma das suspeitas mais consistentes e, por si só,
extremamente constrangedoras que circulavam pelas estruturas do DEIC era de
que algum servidor alertava a quadrilha quando agentes se deslocavam para efetuar
operações.

– Então, estive pensando...vamos montar toda esta operação no prédio da Secre-


taria, em sigilo absoluto. Vamos trazer todos os policiais que vocês escolherem pra
cá. Vou falar com a Leonini hoje mesmo pra tentar levantar esse material e vamos
ver uma sala aí. Falo com o Lavirme e a gente vai agilizar isso tudo o mais rápido
possível, ok?

Robledo e Pires tinham semblantes congelados. Naquele momento, Bins parecia


um especialista em segurança pública. Externava ideias de peso e ouvia bastante.
Tinha dados acumulados por diversas reuniões cujos temas se repetiam exaustiva-
mente ao longo de quase quatro anos. Assuntos que já desafiavam a paciência de
todos. Na verdade, o que acontecia ali era “chover no molhado”. O novo ali era a
vontade extrema que finalmente se sobrepunha à ânsia convencional e pouco obje-
tiva, infelizmente cotidiana naquela estrutura da adminstração pública.
Toniolo e Pires, técnicos do setor, tinham olhos ensaiando ligeiro brilho. Observa-
vam que, finalmente, a duras penas, quem tinha poder de decisão assimilara a necessi-
dade de mudanças radicais para que o “foragido número um” do Estado fosse definiti-
vamente neutralizado.

– Robledo, espero que vocês consigam pinçar essa agulha nesse palheiro antes
que nos pincem – o secretário ri do fraco trocadilho, provocando descontração se-
melhante nos interlocutores.

Ninguém sabia o que estava por trás daquela brincadeira, uma vez que não
interessavam mudanças de peças. Mas de uma coisa o secretário tinha certeza:
tinha força política para permanecer no cargo o tempo que lhe conviesse. Portanto,
ele não seria pinçado a contragosto. Até porque aceitara o desafio de assumir a
pasta mais complicada do governo. A Secretaria de Justiça e de Segurança Pública
era um pepino que poucos tinham coragem de pegar. Sempre no foco da opinião
pública, raramente elogiada e agredida diariamente pelo peso da criminalidade
crescente e combatida de forma discutível, com ranços ideológicos. Um constante
84

desgaste na imagem de um político de resultados invejáveis em todos os pleitos


que participara.
– Olha, tchê, eu quero que vocês recrutem os integrantes do grupo para ficarem
full time em cima dos rastros desse cara. Vocês são os homens de minha confiança
e convoquem os da confiança de vocês. Sigilo ab-so-lu-to. Não sai nada para quem
não for deste grupo. Vocês tão entendendo?

Um mês depois de sua concepção teórica, começou-se o trabalho para colocar


em prática uma operação especial de investigação no âmbito da Polícia Civil sem
precedentes na história do Rio Grande do Sul. O Estado oficialmente montou
um grupo secreto com a missão exclusiva de caçar um único homem: Manoel
Barcellos Flores, o Caniço. Por exigência do secretário, os policiais escolhidos
abandonariam qualquer outra função e investigação para se dedicar somente a
essa captura.
O secretário Bins se reuniu durante alguns dias de janeiro com a diretora da
SJS, Ângela Leonini, na intenção de priorizar recursos para a operação especial. A
ordem foi gastar menos no custeio geral da Secretaria. “Se tiver que gastar menos
na cota da Polícia Civil ou da Brigada Militar, gasta. Se tiver que gastar menos em
combustível para as forças, gasta”, ordenou Bins para Leonini. As ordens de priori-
dade usuais foram invertidas mensalmente. Todo o fluxo de recursos foi primeira-
mente destinado à operação.
A ideia era não haver limite de diárias para os servidores, uma vez que se lidava
com um quadrilheiro supostamente milionário, com produtos de assaltos estimados
em mais de 13 milhões de reais (5,5 milhões de dólares), potencial de estruturação
de esconderijos na região Sul do Brasil e habilidade de fuga privilegiada. Se a Se-
cretaria tivesse de cortar algo por restrição orçamentária teria de ser em outra área,
não na operação. A SJS negociava verba com a Secretaria da Fazenda e não poderia
expandi-la em hipótese alguma.
O orçamento da pasta para todo o quinto ano de caçada chegava a 250 milhões
de reais (106 milhões de dólares). A Polícia Civil tinha mais de 4 milhões de reais
(1,7 milhões de dólares) mensais para gastar em gasolina, diárias, horas extras, ali-
mentação, material de expediente e despesas gerais. Havia verba reserva para emer-
gências que chegava a 1 milhão de reais (430 mil dólares).
O problema é que as contas do Estado, na sua totalidade, estavam em situação
ruim. Em novembro e dezembro do quarto ano de caçada, houve recuo de gastos
em todas as Secretarias do Governo. Redução de cotas em quase todos os setores. A
pressão era constante por parte das secretarias da Fazenda e do Planejamento para
que as previsões fossem obedecidas. Janeiro é um mês de contas públicas bastante
apertadas, pois o orçamento ainda não está liberado. O Estado tem de pagar o dé-
cimo terceiro e, era de praxe, no primeiro mês do ano, a SJS ganhar metade da cota.
Apesar de todas as dificuldades orçamentárias, não faltou dinheiro para começar
a última cartada de Bins para tirar Caniço de atividade. Última porque, como pre-
85

tendia concorrer a um novo mandato na Câmara Federal, o secretário era obrigado


pela legislação a deixar a pasta até o dia 31 de março para reassumir o seu cargo
como deputado federal. É o chamado “prazo de desincompatibilização” que prevê
datas-limite aos agentes públicos que pretendem se candidatar. Em outras palavras,
sob o aspecto financeiro, o momento de menor sufoco para uma operação daquele
porte já tinha passado ou ainda estava por vir. Porém, como a opinião pública estava
ácida demais, o desgaste político era grande e o prazo de Bins na SJS se esgotava,
tinha de ser naquela hora.
Bins sabia, entretanto, que teria de deixar a pasta ainda mais cedo, porque tinha
a pretensão de assumir a vice-presidência da Comissão de Segurança e Combate ao
Crime Organizado da Câmara Federal. Uma posição de relevância em épocas de
PCCs e tráfico de armas e drogas. Como o prazo para assumir a vice-presidência
acabaria no dia 22 de março, valia a pena um último esforço para pegar o “inimigo
número um do Estado”. Afinal, seria um trunfo importante na sua nova caminhada
à Brasília.
Não passo de um quadro emoldurado, mas tenho olhos e ouvidos. Concluo que,
em um primeiro momento, conforme as reuniões que acompanhei entre o secretário
e a diretora da SJS, um obstáculo significativo foi providenciar cinco computadores
para a operação. Não havia nem o mínimo necessário para a tarefa diária da Secre-
taria, quanto mais para equipar uma nova sala. A direção chegou a negociar a cessão
de PCs por outros setores, mas havia resistência uma vez que ninguém queria ficar
sem seu material de direito. A duríssimas penas, foram colocadas à disposição má-
quinas do Comando do Policiamento da Capital, do Fundo da Segurança Pública
e da própria Direção da SJS.
Mas os itens de informática sugeridos pela direção à operação talvez nem te-
nham chegado a ser instalados. A nova filosofia da casa de “portas abertas para
pinçar Caniço” fez com que o material que seria realmente usado fosse constituído
por computadores novos, adquiridos meses antes pelo Departamento Estadual de
Informática Policial. Não houve uma compra específica para a operação, até porque
não havia tempo hábil para licitação.
O gabinete do ex-subsecretário Paulo Antenor Sampaio, na SJS, foi escolhido
por Bins como QG da equipe de policiais do grupo especial. A sala ficara vaga
porque Sampaio aceitara proposta de emprego na iniciativa privada e o novo subse-
cretário, Zélio Lavirme, trabalhava em outro local. O espaço era considerado funda-
mental para que a nova etapa de caça a Caniço fosse realmente secreta.
O gabinete do ex-secretário adjunto estava na área onde circulavam integrantes
da PM2, a inteligência da Brigada Militar – justamente o braço da Polícia Militar
gaúcha mais questionado pelos policiais civis. O setor estava sendo gradualmente
ocupado pela PM2 quando, de uma hora para outra, na segunda quinzena de janei-
ro, surgiram os policiais civis e a atmosfera do andar pesou. Disputas históricas de
anos se refletiram mesquinhamente na guerra por um espaço físico no local. Ouvi
falar que “quase houve socos por uma mera cadeira”, no segundo dia em que inte-
grantes da operação apareceram lá.
86

O mal-estar foi levemente dissipado após intervenção de autoridades da SJS.


Como realmente havia salas vazias, a operação acabou tendo quatro ambientes à
disposição, formando uma área em “L” no sexto andar do antigo prédio da Rede
Ferroviária Federal, sede da segurança do Estado. A maior sala seria usada para reu-
niões. Quando fossem analisadas interceptações telefônicas, seria usada sala especí-
fica com mapas – cartas de Porto Alegre, Região Metropolitana, Rio Grande do Sul
e Santa Catarina – e farto material de escritório. Foi montada equipe administrativa
dentro da operação apenas para cuidar de demandas organizacionais e burocráticas
em geral, incluindo as diárias de policiais. Acabou-se o problema de policiais fica-
rem sem crédito nos celulares por estourarem limite. Quem era da operação tinha
crédito “à vontade”.

Sábado, 21 de janeiro, QUINTO ano de caçada


Sala do Departamento Estadual de Investigações Criminais
Computador Pentium 100
Ponto de vista do Tigre Banguela na logomarca do DEIC analisando
arquivos
2h30min

De um Plano Operacional nasceu o movimento estratégico e secreto batizado


de Operação Pinça. O texto previa não apenas aporte financeiro para a locação
constante de automóveis, mas também para o aluguel de imóveis para bases (ou
bunkers) de emergência.
O armamento solicitado era baseado no material bélico apreendido em ope-
ração ocorrida em um sítio no município de Caraá, Litoral Norte do Rio Grande
do Sul, em 18 de fevereiro, terceiro ano de caçada. Na ocasião, foram mobilizadas
três delegacias de outra gestão do DEIC e 80 policiais militares. Seis assaltantes de
carros-fortes foram presos e dois fugiram – Caniço e Brinquedo.
Na entrada do sítio, havia uma base de rádio montada com uma antena de 10
metros no alto de um morro. A quadrilha conseguia ouvir as frequências de Polícia
Civil, Brigada Militar e Polícia Rodoviária. Toda a infraestrutura de comunicação
foi apreendida. Já o material bélico encontrado foi o que realmente chocou os poli-
ciais. Granadas, mais de 20 quilos de dinamite, munição para pistolas de diferentes
calibres, revólveres, metralhadoras e armas de uso das Forças Armadas, como quatro
fuzis e uma metralhadora de fabricação israelense.
Esse armamento se tornou referência sobre o que de mais pesado uma quadrilha
poderia levantar no Estado. Estava prevista negociação com a Brigada Militar e até
com o Exército, uma vez que o DEIC não dispunha de tudo aquilo. O armamento
da Operação Pinça ficaria completo com granadas de luz, som e gás lacrimogêneo e
coletes de proteção contra tiros de fuzil 762.
Dois anos e um mês depois desse cerco ao sítio, há quem diga que Caniço teria
voltado ao litoral, novamente com “grandes nomes” da criminalidade (Resende e
87

Cia.), para colocar em prática um assalto interrompido. O sítio em Caraá fica a


poucos quilômetros do camping da Lagoa Itaramã, lugar da investida da Delegacia
Alfa, que acabou resultando na morte do menino ATM.
É possível que o “Maior Assalto da História do Estado” – como o plano de
investida contra o Aeroclube de Osório foi batizado por setores da imprensa – es-
tivesse em planejamento já no terceiro ano de caçada. Os seis assaltantes presos
em Caraá eram nomes de peso na criminalidade. Homens experientes no ramo
que, muito provavelmente, iniciaram Manoel Barcellos Flores nos grandes “empre-
endimentos” criminosos. Alguns defendem que Caniço e Brinquedo fugiram do
sítio com o plano do “audacioso” assalto na cabeça. Brinquedo seria preso em ação
conjunta do Ministério Público com a Brigada Militar no final do mesmo ano, mas
Caniço sobrou. Mais experiente, ele fazia contato com pesos pesados do crime or-
ganizado do Estado e com “soldados de menor expressão” para finalmente concluir
o assalto pensado com os antigos comparsas, guardados em penitenciárias de alta
segurança dois anos antes.
Foi depois da ação em Caraá que muitos colocaram Caniço na posição de “líder”
de uma nova célula criminosa, integrada ainda por Brinquedo, que investia contra
carros-fortes. Porém, quando Brinquedo caiu, em depoimento no DEIC, declarou
que não se submetia a Caniço porque, segundo suas palavras, “duas capivaras gordas
não caminham na mesma trilha”.
Na verdade, ambos eram cabeças de lata que integravam grupo importante na cri-
minalidade gaúcha, abatido após o duro golpe em Caraá. Órfãos daquela quadrilha,
continuaram atuando, pois dominavam a técnica de forma excepcional. Brinquedo
saiu de cena, mas Caniço cresceu o suficiente para se tornar procurado na região
Sul, respondendo a 14 inquéritos, com 12 prisões preventivas decretadas. Ganhara
o rótulo de “número um” e maior peso no âmbito da criminalidade devido à atenção
da imprensa.
Além do acesso ao material bélico utilizado na operação do litoral, a Pinça tam-
bém solicitava equipamento de comunicação especial, nada usual no âmbito da corpo-
ração. Escuta ambiental, GPS, rastreadores. Como a SJS não tinha de onde tirar isso
tudo, a solução foi pedir auxílio de parceiros de empresas de segurança privada que
poderiam ceder o material de localização. A Secretaria nunca planejara a aquisição
desse equipamento. A justificativa institucional era de que só entraria em processo
de licitação caso o material fosse solicitado pela Polícia. Como esse tipo de material
nunca fora requisitado, o jeito era ser criativo.
A direção do DEIC estava a cargo do delegado Robledo Nunes, que ganhara
fama e currículo para assumir o cargo após a prisão do empresário Anselmo Sanida-
de, em junho do terceiro ano de caçada, acusado de matar a própria esposa. Robledo
escolheria os delegados da equipe especial. Valorisson Pires tinha no seu currículo
as prisões de Nego Arara e Hamilton Resende, além de várias informações sobre
Caniço, uma vez que comandava a Operação Dilúvio. O delegado Josué Pitta co-
ordenava a Operação Casarão. Vale lembrar que ambas operações visavam a prisão
de Caniço e nunca trocaram informações. Eram duas delegacias do mesmo depar-
88

tamento, agindo com o mesmo propósito, sem intercâmbio. Rivalidade e vaidade


também são coisas da Polícia.
Já o delegado Toniolo Fioravante, titular da Delegacia Gama, tinha um poten-
cial de organização e planejamento privilegiados. Realizara operação emblemática,
desmantelando a megaquadrilha que atuava no Vale do Sinos, região berço do crime
organizado gaúcho. Foi a chamada Operação Pinos Força e Luz, que prendeu o
fornecedor de armamento de Caniço, um quadrilheiro considerado o “Fernandinho
Beira-Mar gaúcho” e atendia pelo nome de Gelson Peludo. O trabalho foi feito em
parceria com a Polícia Federal. A equipe de Toniolo fez com que o DEIC tomasse
a frente das ações. Policiais federais e civis desmantelaram uma estrutura criminosa
que atuava em roubo de cargas, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e de armas.
Foram 56 pessoas presas. A experiência possibilitou aos agentes da Delegacia Gama
conhecerem a fundo o segmento de onde Caniço recrutava algumas de suas parce-
rias para os ataques.
No entanto, a Operação Pinos Força e Luz foi realmente benéfica porque o grupo
de policiais civis que atuou na investigação foi nutrido por rara experiência operacio-
nal, tendo contato com a estrutura de investigação da Polícia Federal. Foi um choque
de mundos. Os civis viram pela primeira vez um sistema de escutas telefônicas “des-
burocratizado” e azeitado, voltado para a análise das escutas, não somente o “grampo
pelo grampo”. Muito mais dinâmico e eficiente. Comparar o cenário da Superinten-
dência da Polícia Federal no RS com sua realidade precária de equipamento defasado
e uso dos recursos de grampos telefônicos restritos – onde dependiam da equipe de
“guardiões do Guardião” – era uma covardia.
As restrições de acesso ao Guardião, o programa de escutas telefônicas do Rio
Grande do Sul, atrapalhavam e desestimulavam os agentes gaúchos. Enquanto os
federais tinham notebooks com programa de grampos telefônicos instalado, po-
dendo repetir as escutas quantas vezes quisessem e localizar a região dos alvos fa-
cilmente, os gaúchos contavam apenas com seus telefones celulares para ouvir os
investigados. Eles podiam escutar os alvos, mas para ter mais repetições do diálogo
e a localização do telefone grampeado, precisavam ligar para a SJS para solicitar aos
“guardiões do Guardião” a chamada Recorrência (a repetição do áudio). Tempo,
paciência e a possibilidade de uma análise qualitativa da interceptação eram cons-
tantemente perdidos.
O plano operacional moldado por Toniolo pedia liberdade total no sistema de
escutas telefônicas da SJS. Em outras palavras, solicitava a abertura de uma caixa
mágica, da qual nenhum agente de rua sabia exatamente o que poderia sair. Consis-
tia em montar uma equipe de inteligência, não tão focada em um eventual enfrenta-
mento com a quadrilha, mas na análise qualificada de informações. Seriam agentes
aptos a levantar e avaliar informações, começando a caçada a Caniço do zero, se fos-
se o caso. Uma nova caminhada que se iniciaria com policiais de extrema confiança,
familiarizados com a Operação Dilúvio e a Operação Casarão. Seria a primeira vez
na história da Polícia Civil gaúcha que se trabalharia com uma análise criminal tão
minuciosa, envolvendo não só grampos telefônicos, mas o acesso a quaisquer rastros
89

que pudessem ser deixados por um alvo. Análise de campo, instalações urgentes,
equipamento para infiltrações, pesquisas em bancos de dados diversos – incluindo
contas de luz, telefone, água, etc...
Os três delegados ( Josué, Pires e Toniolo) deveriam escolher seus agentes, cujos
nomes seriam submetidos à avaliação do diretor do DEIC, delegado Robledo Nunes.
Os quatro delegados estariam em constante contato com o secretário Gilberto Sil-
veira Bins, que acompanharia a operação a fim de decidir sobre questões mais com-
plexas. Montada em pouco tempo, a equipe tinha 21 policiais, incluindo os quatro
delegados, que iniciariam um trabalho conjunto, de dimensões operacionais e nível
de aporte de recursos inéditos na história da Polícia Civil do Rio Grande do Sul.
Contingente semelhante de policiais é usado pela Polícia Federal constante-
mente, uma vez que a demanda é menor. A Polícia Civil do Rio de Janeiro já tinha
montado operação parecida para prender Fernandinho Beira-Mar. Porém, tratava-
-se de algo novo para a Polícia Civil do Rio Grande do Sul. Mobilizar 21 policiais
full time só para prender um criminoso é algo raríssimo para as Polícias Civis do
Brasil. O agente que aceitasse o convite dos delegados sabia que a tarefa o colocaria
em plantão 24 horas por dia, sem fim de semana. Não haveria tempo para a família
e seria proibido de comentar por onde andou e o que fazia. Não haveria hora para
deslocamentos, que poderiam ocorrer em qualquer local da região Sul do Brasil.

***

Ponto de vista do Tigre Banguela na logomarca do DEIC


analisando arquivos

A cúpula do DEIC da época era capaz de jurar que o plano poderia ter sido
colocado em prática ainda em dezembro, se não fosse uma espécie de redução de
pressão ocorrida no final do ano. Difícil sustentar a tese, pois a comoção popular
provocada pela execução dos dois seguranças na Serra no início de dezembro ainda
reverberava e as críticas à SJS eram duras. Ou seja, a pressão era constante.
De qualquer forma, é argumentado que teriam contribuído para a tal “despressu-
rização” fatores como a notícia da prisão de quatro pessoas ligadas a Caniço no final
do ano anterior; os primeiros passos da investigação que resultaria na identificação
da quadrilha no camping onde ATM fora baleado; as férias de atores importantes
da cúpula do DEIC e folgas de Natal e Ano Novo.
Agentes acreditam que precisou morrer a criança no camping para todos per-
ceberem que a dimensão do problema era muito maior e que a SJS não tinha con-
dições de pegar Caniço do jeito que estava trabalhando. Era evidente que a pressão
poderia aumentar nos meses seguintes, com novas ações do bando. O fato é que
se o plano operacional realmente esfriou em dezembro, como defende a cúpula do
DEIC, foi aquecido pelo fogo que aterrorizou o camping da Lagoa de Itaramã, na
tarde do sábado, 14 de janeiro, e matou ATM no “auge” de seus 3 anos.
90

Apesar de se citar a escassez financeira do Estado para a operação, supostamente


sobravam recursos para a corrupção na SJS. Nessa mesma época, teria ocorrido des-
vio de dinheiro público do Departamento Estadual de Trânsito (Detran), autarquia
vinculada à SJS na época. Teriam sido cerca de 44 milhões de reais (19 milhões de
dólares, na cotação de janeiro do quinto ano de caçada, mês que ATM foi morto)
em cinco anos. As fraudes teriam começado no segundo ano de caçada, quando o
órgão assinou o primeiro contrato com uma fundação ligada à Universidade Fe-
deral de Santa Maria, e teriam prosseguido até um ano e dez meses após a morte
de ATM, quando foi deflagrada a Operação Rodin, da Polícia Federal. Calcula-se
fraude mensal de 1 milhão de reais.
O que impressiona é que foram recursos desviados de campanhas para combater
a atividade de um dos maiores moedores de corpos humanos do mundo: a malha ro-
doviária brasileira, que trucida e mata mais de 60 mil pessoas por ano, segundo dados
oficiais – sabe-se que não são contabilizados os acidentados que morrem nos hospitais.
Os recursos alegadamente desviados seriam provenientes do seguro obrigatório para
todos os motoristas brasileiros.
Se dentro de uma autarquia vinculada à Secretaria de Justiça e Segurança ocorria
esquema para desviar dinheiro de um setor tão sensível no Brasil, por que pensar
que na mesma estrutura administrativa haveria pessoas capazes de levar em con-
sideração a perda da vida de uma criança em um ato de seus subordinados? Para
mentes irresponsáveis, ATM poderia sim ser considerado mais um. Quem discorda,
que se manifeste.
O que fez o “caso ATM” diferenciado foi a sua repercussão negativa para a SJS
no apagar das luzes da gestão Bins e, obviamente, a reação pressionada da gestão do
órgão público. Hoje, muitos arriscam dizer que a vontade política do secretário para
o início da Operação Pinça foi fundamental. Entretanto, a análise da tal “vontade
política” não pode ser separada das “ambições políticas” de um político. É arriscado
dizer que elas tenham pesado mais, mas não se pode afirmar que tenham pesado
menos. Afinal, Caniço era eleito pela opinião pública como o “inimigo do Estado”.
Bins tinha apenas três meses para expor a cabeça desse “mau feitor” e concluir um
projeto antigo de sua gestão, pendente e desgastante. Valia a pena uma última car-
tada? Claro que valia.

Ponto de vista de Solicitação de Recurso Orçamentário (SRO) -


EXTRACOTA

Os policiais solicitaram à SJS a locação de oito veículos de dez em dez dias. Em


termos de administração pública, é um processo bem complicado, uma vez que todo
contrato é celebrado por intermédio de licitação, o que demanda tempo. Colocar no
contrato que era necessário mudar de veículos de dez em dez dias já é um problema,
ainda mais sem poder informar o motivo da mudança devido ao sigilo da operação.
Dizem que a burocracia trava o Estado, mas quando se tem vontade política e peças
91

de influência a favor, na Ilha de Vera Cruz, parafraseando Pero Vaz de Caminha,


“em se plantando, tudo dá”.
Era necessária liberação rápida de recursos que não estavam previstos no orçamento e,
para isso, eu teria de ser aprovada por todos os nós de controle de saída de recursos extras
do Estado – e isso demora cerca de 60 dias. Sabendo disso, o subsecretário Zélio Lavirme,
juntamente com o subchefe de Polícia, Ronaldo Freitas, levou-me para duas reuniões no
mesmo dia.
A liberação de verbas extras precisa ser aprovada pelo Comitê de Controle e
Racionalização dos Gastos Públicos e pela Junta de Coordenação Orçamentária
( Juncor). Diante disso, foram marcadas duas reuniões urgentes. Primeiramente,
Lavirme e Freitas se encontraram com o presidente do Comitê de Controle de Ra-
cionalização dos Gastos Públicos, Marcelo Buchhändler. Foi explicado no detalhe
os motivos de eu estar sendo solicitada. Buchhändler entendeu a urgência e fez um
parecer favorável para eu ser oficializada.
Lavirme e Freitas marcaram compromisso posteriormente com o diretor do
Departamento de Programação Orçamentária da Secretaria Estadual de Coor-
denação e Planejamento, Hélio Tavareli. Levaram o parecer favorável de Buch-
händler e explicaram que a Juncor precisava me avaliar com urgência porque eu
garantiria a liberação de recursos para uma operação policial sigilosa, que ne-
cessitava rapidamente da locação de veículos. Com base no relacionamento de
confiança e na credibilidade de Lavirme, Tavareli me colocou na pauta da Juncor
como prioridade.
Tanto Buchhändler como Tavarelli ficaram sabendo qual seria o fim daqueles
recursos, mas em mim não poderiam constar detalhes porque a operação era ab-
solutamente confidencial. Preencheram-me, solicitando quase 70 mil reais (34 mil
dólares). Nesse episódio, o subsecretário, um técnico experiente no setor de contas
do Estado, falou bastante e escreveu pouco. O mesmo esclarecimento se repetiu
para o secretário da Coordenação e Planejamento, Paulo César Vaal Picos, que de-
libera na Juncor.

Sexta-feira, 20 de janeiro
Gabinete do secretário da Coordenação e Planejamento (SCP)
Reunião entre o titular da pasta da SCP, Paulo César Vaal Picos, e o
subsecretário da SJS, Zélio Lavirme
Ponto de vista de Solicitação de Recurso Orçamentário (SRO) –
EXTRACOTA
17h

– Então, Picos, na segunda-feira tá entrando um processo, SRO n° 00011. Já tem


parecer favorável do Buchhändler e o Tavarelli tá colocando como prioridade na pauta
da Juncor – explicava Lavirme, um homem moreno de estatura média, voz aguda e
cabelos escassos.
92

– Uhumm – Picos tinha o cotovelo na mesa e punho direito na boca. Semblante


tradicionalmente sério. Olhos miúdos atrás dos óculos, como que querendo se situar
em meio à publicumburoverborragia do subsecretário da SJS.
– Por isso, a gente precisa agilizar a liberação dessa SRO EXTRACOTA. A
gente tá precisando de velocidade nesse processo.
– Sim, e não está previsto gasto para locação no orçamento, né?
– Olha, até tem. A questão é que o pessoal da administração da Polícia me disse que
não tem como fazer lá por dentro, porque de locações estamos estourados. Não tem mais
locação de carro. Só na Operação Verão. E tu é da Junta. Pode nos ajudar a agilizar isso.
– Ceeerto.
– Eu coloquei aqui ó, “Locação de Veículos” sem o fundamento, porque a gente
não pode revelar o motivo dessa locação.
– Huhum. Como isso tramita dentro do Estado e depois, especificamente, den-
tro da Polícia. Vocês estão com medo que vaze?
– Exatamente! E estamos tomando essa decisão de sigilo absoluto porque a
sociedade e o governador tão cobrando a prisão desse cara. Parece que tem essa
suspeita de vazamento de informação de dentro da própria Polícia para a quadrilha.
– Viiiixe... não é possível!!! – o espanto típico nordestino.
– Sim. E as locações seriam uma das iniciativas no sentido da prisão desse delin-
quente.
– Então o governador tá sabendo da Força-Tarefa?
– Sim. Comunicamos ao governador Peixoto que faríamos a Força-Tarefa no sen-
tido de prender o Caniço. Evidente que não informamos os detalhes, mas ele tá sa-
bendo.

Picos tirava os óculos, mordia a alça, parecia pensar em várias coisas, mas per-
manecia atento, olhando-me.

– A quadrilha tá com uma ação muito ousada, muito violenta... Sabe, Picos. Esse
cara já é apontado pela mídia como o “Inimigo número um do Estado”.
– É, eu tenho lido isso.
– E muito dinheiro oxigena o crime, né. Esses caras atuam com grandes somas. São
carros-fortes. Não é o punguista ali da esquina, entende? O Caniço lida com carros-
-fortes, Picos.
– Tá bem. O governador sabe. Vamo tocá pra frente. Na segunda-feira, a gente
aprova isso.

Uma junta de secretários votou na aprovação dos recursos, os titulares das pastas
da Fazenda, Planejamento, Casa Civil e representante da Procuradoria Geral do
Estado. Uma semana depois, a bola voltou para a SJS. O recurso foi liberado por
meio de ato de dispensa de licitação, publicado para a celebração do contrato. Um
processo que geralmente dura 60 dias, precisou de apenas 10 para ser concluído. Ou
93

seja, sem a habilidade, o crédito e a iniciativa de Lavirme, a operação ainda poderia


estar esperando recursos.
O primeiro Contrato de Prestação de Serviço do ano foi celebrado no dia 30 de
janeiro com uma locadora de veículos da Zona Norte de Porto Alegre. A previsão
era o aluguel de cinco carros e duas motocicletas 125 cc. Prazo de devolução: 30 de
março. O preço: R$ 68.750,00 (US$ 30.944,80) . Os veículos não teriam hora para
ser retirados e o telefone do gerente comercial da locadora estaria à disposição para
abri-la na madrugada, caso a equipe necessitasse. A empresa também se comprome-
tia a colocar a cada locação película de controle solar nos vidros do automóvel, para
dificultar identificação de quem estivesse em sua parte interna.
Muitos consideram que, quando foi retirada a primeira leva de veículos, no dia
1º de fevereiro, começou oficialmente a parte operacional da Pinça.

***
94

CIDADANIA & DIREITOS


EDITORIAL
os ‘PerDiGUeiros’
JOÉSIA FONTELLA | Interina

A Operação Pinça pode ser consi- sos da operação. A SJS se tornou ge- da – após a execução de dois seguranças
derada um marco na Polícia Civil do nerosa com um dos seus setores mais da Seguroforte na ponte do Rio Burati.
Rio Grande do Sul por diversos fato- sucateados e moralmente frágeis, tudo O titular da Delegacia Beta solicitou o
res. Contudo, um especialmente chama isso em meio ao raquítico orçamento emprego de dois policiais afastados na
a atenção de quem discute segurança do Estado. Poderia se fazer economia operação. Os agentes em questão eram
pública no Estado. Foi o momento em outros setores, na robusta opera- suspeitos de praticar os crimes de con-
das “portas abertas” ao atendimento de ção contra o “Mané das Retro” (como cussão e extorsão. Foram caracterizados
reivindicações da corporação, algumas Caniço era chamado por ter trabalha- na tal reunião como sendo os “perdiguei-
inclusive históricas. A vontade política do com retroescavadeiras antes de se ros” de uma das delegacias do DEIC.
fez a diferença. Em nome da tentativa tornar o bandido nº 1 do Estado), não. Na Polícia, diz-se que ambos se
de prender Manoel Barcellos Flores, o Assim, nas primeiras reuniões de tratavam de profissionais altamen-
Caniço, tudo (ou quase tudo) que foi planejamento entre os quatro delega- te operacionais, com informantes de
solicitado foi atendido. dos que liderariam a Operação Pinça acentuada penetração no meio da cri-
A ordem na Secretaria de Justiça e e o secretário de Justiça e de Segurança minalidade e responsáveis por prisões
de Segurança Pública (SJS) foi prio- Pública, teria sido retomado o assunto importantes. A dupla gozava de res-
rizar a caça ao suspeito de mais de 20 embaraçoso que, conforme fontes de peito.
assaltos a carros-fortes nos últimos Carta Popular, já haveria sido comenta- Os dois policiais ficaram de 17 de
quatro anos. Foi proibido cortar recur- do em dezembro do quarto ano de caça- outubro a 22 de novembro – quarto ano
de caçada – na cela do Grupamento de teriam “colocado os pés na sala cedida na tava no seu próprio poder de escolha;
Operações Especiais da Polícia Civil secretaria”, disse uma das fontes. segundo, não apostava que os agentes
(GOE). Portaria n° 488/4º ANO, no dia O emprego dos agentes é negado pelo selecionados teriam capacidade de
22 de novembro, assinada pelo chefe de diretor do DEIC, delegado Robledo cumprir a missão. Nessa miscelânea
Polícia, afastou os policiais do exercício Nunes, e pelo então secretário de Justiça de suposições, a incrédula sou eu, que
da função até o esclarecimento dos fatos. e de Segurança Pública, Gilberto Silveira não vê lógica no emprego de recursos
Não há informações se, no mês de Bins. Porém, ambos confirmam que exis- tão diferenciados em tanta suposta in-
dezembro, os policiais teriam atuado – tiu realmente a solicitação de um delega- competência.
mesmo afastados das suas funções – nas do da operação para que os agentes par- E, cá pra nós, todos sabem que
investigações em torno de Caniço. Entre- ticipassem da Pinça, mesmo oficialmente se lida com a vida e a morte na se-
tanto, conforme informações de agentes afastados. “Neguei de imediato”, diz Bins. gurança pública – embora muitos
da própria SJS à Carta Popular, os po- O episódio traz à tona uma suposta profissionais pareçam ignorar isso.
liciais em questão teriam participado no falta de confiança dos comandantes da Prezando pela prevenção e conse-
mês de janeiro – do quinto ano de caçada Pinça no grupo que atuaria na operação, quência, não posso deixar de fazer
– dos primeiros movimentos da Opera- pelo menos nos seus primeiros dias. Por outra pergunta. E se acontecesse
ção Pinça, contribuindo com informa- que o emprego irregular de dois “perdi- com os “perdigueiros” alguma tra-
ções atuais sobre o “Mané das Retro”. gueiros”, se não houvesse dúvidas quan- gédia como a morte do menino
Inclusive, portando armas. As mesmas to à capacidade dos servidores que estão ATM no litoral, quem responderia?
fontes, contudo, negam que a partir do à disposição? Agentes inclusive selecio- Os próprios cães de caça ou quem
momento que a operação ganhou porte – nados pelos próprios delegados como a detém a coleira?
já nos primeiros dias de fevereiro, quando nata nos quesitos confiança e aptidão.
a equipe oficial tinha sala pré-equipada Duas possibilidades do campo do
na sede da SJS – “os perdigueiros” teriam absurdo podem explicar a situação.
continuado a atuar. Os policiais sequer Primeiro, o comandante não acredi-
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97

O ZÉ E O MANÉ
Breve relato de um folclore policial (primeira parte)
Memória coletiva e documentos da Polícia

No meio policial, uma das lembranças mais lúcidas de contato com Manoel
Barcellos Flores é a do titular da Delegacia Regional de Santa Cruz do Sul, Ciro
Paganini, um ano antes do início da caçada. “Ele era suspeito de receptação de um
Gol. Flores, conhecido na época como “Mané das Retro”, alegou que trocou esse
Gol no interior de Encruzilhada por conta de um serviço. Na época, era mais um
colono, meio guri, que trabalhava com tratores, abrindo estradas e açudes. Naquele
momento, entretanto, o Mané das Retro passava à condição de investigado.
No primeiro ano de caçada, há registros de dois ataques de extrema violência a
carros-fortes na Serra. Um em Galópolis – entre Caxias do Sul e Nova Petrópolis
– e outro em Nova Hartz. As ocorrências são de setembro e dezembro, respectiva-
mente. Apenas a última teve roubo consumado. Os órgãos de segurança da Serra
iniciaram investigações e se depararam com uma quadrilha diferenciada no âmbito
da criminalidade no Rio Grande do Sul. O grupo explodia dinamites, usava armas
pesadas e colocava fogo em veículos. O ataque foi o primeiro com o método de
arremessar caminhões contra carros-fortes no Estado.
Na mesma época, há notícias relacionadas ao bando investindo contra blindados
em Bento Gonçalves e um banco em Paraí, incluindo confronto com a Polícia. In-
vestigações levaram à residência de um suspeito: Sérgio Vieira Lucena – o Marme-
lada, morador do município de Ana Rech. Os investigadores estavam convencidos
de que a quadrilha se reunia na cidade para planejar os assaltos. Era o momento em
que surgia a figura de um assaltante que entraria para folclore da caçada a Caniço:
William Richard Fialho Koenig. Com passagens pela Febem e pela Fundação de
Atendimento Socioeducativo (Fase), era apontado como parceiro de Marmelada.
William Koenig teria sido iniciado muito cedo no crime. Desde o início da ado-
lescência tinha uma arma na mão. Fazia parte do contexto da bandidagem do Vale do
Sinos. Ninguém sabia onde morava, nem de onde surgia. O fato de ser audacioso e não
ter medo de morrer, propondo ações de risco, fez o bandido, ainda muito jovem, ganhar
respeito e ser conhecido no sistema como Zé Loucura. Levantou-se a informação de que
ele tinha a ideia de instalar uma metralhadora “ponto 30” com tripé na parte traseira de
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uma S-10 Ranger. A arma foi apreendida meses depois, em Caraá. Estava preparando
a caminhonete para chegar metendo bala. Entrar e sair dando tiro era o seu método.
Em 12 de junho do segundo ano de caçada, aos 20 anos, Loucura foi preso. Leva-
do à Delegacia de Furtos, Roubos, Entorpecentes e Capturas, foi reconhecido como
participante de alguns roubos na Serra. No entanto, era difícil confirmar sua atuação
em investidas onde a quadrilha utilizava máscaras, como o caso dos carros-fortes.

– Pra quê negá, meu? Tu tá fudido. Todo mundo te reconhece. Com tudo isso
na tua conta, tu pega no mínimo uns 30 ano de cana – sugeria o inspetor, querendo
uma confissão de Loucura e os próximos movimentos da quadrilha.
– Senhor, eu não sô home pra ficá preso – ele começava com sorriso no rosto – O
jeito mesmo é eu me matá, senhor.
– Como assim, meu? – perguntava o delegado.
– Se eu ficá preso eu vô ficá muito tempo trancado, entende? Eu vou me matá,
porque daqui a um ano ou dois eu nasço de novo, volto e faço muito mais.
– Para de brincar, meu. Tem muita coisa séria contra ti – dizia o inspetor.
– Eu vô me matá porque eu volto mais rápido do que se eu esperá pra saí da
cadeia, Seu. Eu me mato e volto antes. E volto solto, entende?

O raciocínio de reencarnação rápida assustava os investigadores. O bicho era


mais feio do que parecia. Loucura sempre negou todos os crimes. Teve prisão tem-
porária decretada e foi guardado na Penitenciária de Caxias do Sul. Em 17 de junho
do segundo ano de caçada foi ouvido e, no dia 18, amanheceu morto na cela, onde
estava sozinho. Não se sabe se realmente se matou ou fora “suicidado”.
No dia 24 de junho do segundo ano de caçada, surgia o episódio que tornaria a
figura de Loucura folclórica. Um ataque frustrado a um carro-forte na BR-116, em
Barra do Ribeiro, quando um dos assaltantes foi baleado no peito durante tiroteio.
Informações de populares levaram agentes da Delegacia Regional de Santa Cruz do
Sul à residência de um antigo armeiro do Exército. “Eu não sabia nem o que tinha
acontecido em Barra do Ribeiro, mas os informantes eram quentes. Os caras esta-
riam no bairro Belvedere”, diz um investigador. Cinco policiais chegaram ao local e
foram recebidos pelo próprio armeiro, um cidadão chamado Jorge Mengala Coser.

Quarta-feira, 24 de junho, SEGUNDO ano de caçada


Santa Cruz do Sul. Casa na rua Toledo, bairro Belvedere
Ponto de vista de foto em porta-retrato de Salete Mengala, a falecida
mãe de Jorge Mengala Coser, o armeiro
18h34min

– Vem cá, tchê – perguntava um inspetor, já dentro da residência.


– Sim, Seu... – Jorginho respondia.
– Tem um papo aí que tu tá escondendo um cara ferido no peito. Tá sangrando
bastante, o cara.
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– Nada, Seu. O senhor pode olhaí... – apontou para dentro da residência.


– Então eu vou olhar, cara – disse um homem que se apresentava como delegado.

Eles vasculharam a casa, mas não encontraram ninguém. Olharam mais um


pouco e, pela tranquilidade de Jorginho, começavam a se convencer de que não
tinha nenhum suspeito no local. Quando o delegado relaxara, pedindo inclusive um
copo de água para o meu filho, surgiu um policial segurando um homem pelo braço.

– Que é isso, Euclides? – o delegado se engasgava com água.


– Taqui, delegado.

O grupo observou um homem pálido com a camiseta empapada de sangue.

– Tava numa cama, no quartinho ali do fundo. Essa criança tava escarrando
sangue numa bacia ali.
– Ô, meu! O que tu tá fazendo aqui? – o delegado largava o copo em cima da mesa.
– Não. Tô aqui doente, meio mal do estômago.
– Mas eu te conheço, rapaz?
– Não, senhor. Acho que não.
– Não te faz.
– Não, não...O senhor nunca me viu.
– Vem cá, meu, tu não foi o cara que foi preso pela Brigada Militar em Sinimbu
há um mês atrás?
– É...pois é.
– Então como eu não te conheço, rapaz? Queéquetutáfazendoaqui? Tu era pratápreso.
– Não...ganhei (liberdade) provisória.
– Então puquetaquidenovo? – o delegado se aproximou, levantou a camisa do
homem e achou o furo em seu peito – Tu não tava doente do estômago, meu?

Ponto de vista de Euclides

O homem que encontramos na casa do armeiro, identificado como Sérgio Vieira,


o Marmelada, fora preso pela Brigada Militar no interior de Sinimbu, um mês e meio
antes, com uma caminhonete roubada em Caxias do Sul. Foi surpreendido por poli-
ciais militares quando o pneu do veículo furou e esperava seus comparsas chegarem
para trocá-lo. Quando a Polícia o abordou, os outros integrantes da quadrilha chega-
ram e houve troca de tiros. Os homens fugiram. Marmelada, não. A Polícia apreendeu
com ele uma das primeiras pistolas 9 mm na região de Santa Cruz do Sul.
Saímos da casa do armeiro e levamos Marmelada sangrando muito para o hos-
pital. Naquele momento, já tínhamos a informação detalhada sobre a investida con-
tra o carro-forte em Barra do Ribeiro. Sabíamos que, como Marmelada, poderia
haver outros quadrilheiros entocados na região.
100

– Como é que tu foi pará naquela casa, meu? – perguntei.


– Conheço o pessoal. Só fui lá, senhor.
– Ô, meu, tu ia morrê sabia? – lembrava o delegado.

Ele permanecia em silêncio.


– Salvamo tua vida. Se tu ficasse mais três horas ali com aquele troço no peito, o
médico disse que tu ia morrê.

Ele permanecia em silêncio.

– Como é que tu foi pará lá, meu?


– Não. Foi o Caniço que me levou lá.
– Caniço? – o delegado e eu nos olhávamos, emitindo a mesma palavra.

Depois que Marmelada, parceiro de Zé Loucura, deu as características do tal


Caniço é que conseguimos descobrir que se tratava do Manoel Barcellos Flores, co-
nhecido na região como “Mané das Retro”. Aquela alcunha (Caniço) era nova para
a Polícia. Marmelada nos revelou que pouco antes de chegarmos à residência, uma
viatura discreta da PM2 havia estacionado na frente da casa. Caniço teria notado
que era a Polícia e fugira pelos fundos.
No dia seguinte, surgiu a informação de que antes de ir para a residência do armeiro,
o bando havia ido para o interior de Sinimbu esconder armamento em um sítio. No
local, alguns anos antes, Caniço havia feito um açude e aberto uma estrada para o pro-
prietário da área. Por isso, conhecia bem a região. No dia seguinte, foram mobilizados
dezenas de policiais para vasculhar o local e tentar encontrar armas utilizadas no assalto
em Barra do Ribeiro.
Reforços de Caxias do Sul foram ajudar nas buscas. O que deu realmente esperan-
ças aos policiais depois de tanto tempo de trabalho foi a localização de cartuchos de
fuzil 3006 (o pai do 762) embaixo de tijolos. O material parecia bastante antigo, porém,
para um assalto que fora realizado no dia anterior. Os policiais insistiram e finalmente:

– Heiô, acho que achei um troço aqui! – foi ouvido um grito junto a algumas
árvores.

No pé de uma árvore, um agente desconfiou de um pouco de terra revolvida. Os


policiais caxienses cavaram cerca de 20 centímetros e localizaram a ponta de um
cano de PVC enterrado na vertical em um buraco de dois metros. Os orifícios do
cano estavam tapados com uma borracha enrolada à borda por um arame. Rom-
peram o lacre e acharam armas junto a mochilas. Eram quatro fuzis calibres 762,
ponto 30 e 223, uma carabina 9 mm e munição. Havia bananas de dinamite, cordéis
detonantes e espoleta. Curiosamente, existiam também tripas de salame e linguiça
para alimentar a quadrilha durante fugas pós-roubo, quando geralmente o bando
ficava por algum tempo escondido no mato.
101

O alimento havia sido comprado no supermercado Zeffer e ainda tinha o código


de barras com a data de um dia antes do assalto. Foi realizada perícia e constatado
que os fuzis haviam sido utilizados nos tiroteios ocorridos em Paraí e Bento Gon-
çalves. Essa era a prova de que William Richard Fialho Koenig, o Zé Loucura,
estava realmente emendado com o bando. Investigações levaram à conclusão de que
Loucura poderia ter sido o autor do disparo que matara um agente da Seguroforte
em um assalto em 16 de abril do segundo ano de caçada, na RST-287, entre Venân-
cio Aires e Santa Cruz do Sul.

Santa Cruz do Sul, bairro Centro


Quarta-feira, 5 de novembro, SEGUNDO ano de caçada
Ponto de vista de delegado Ciro Paganini
13h23min

Na segunda-feira, haviam explodido o cofre na praça de pedágios em Marques


de Souza, na BR-386. Na quarta, estava de plantão e me ligavam da DP.

– Bah, ô delegado, negócio é o seguinte: pessoal da Polícia de Lajeado tá ligando


desesperado, dizendo que tem um cara num orelhão no centro de Santa Cruz falan-
do que sabe quem roubou o pedágio em Marques de Souza. Ele tá querendo fazer
uma acertiva com a concessionária pra entregar os nome.
– Vamo identificá a ligação e vamo pegá o cara.
– O pessoal do pedágio já conseguiu o número pelo bina. É um orelhão no cen-
tro da cidade aqui.

Identificamos o telefone público e surpreendemos o sujeito.


Na DP, já preso, ele tentava explicar:

– Delegado, é o seguinte: o cara veio arrumá os óculos e me pagou com um saco


de moeda, com o logotipo da praça de pedágio – o homem dizia, após revelar que
era casado com a proprietária de uma ótica.
– Humm? – inspetor Euclides estimulava que o homem se esforçasse mais. Seu
ar sisudo dava a entender que não engolia a história.
– Como eu vi pela TV que assaltaram o pedágio, liguei um fato ao outro e pensei
em ganhá um dinheiro.
– Tá, meu, mas isso é extorsão. Nós vamo te prendê – alguém dizia.
– Como assim, Seu? Só queria ajudá...
– Negativo, tu vai em cana. Dá o cara – Euclides apertava.
Foi algum tempo de calor intenso até ele abrir o coração.

– Bah, eu não sei muita coisa. Conheço o cara por Zoião. No hotel onde eu tô
morando tem mais um saco dessas moeda.
102

O homem havia brigado com a esposa e estava em um quarto de hotel. Pegamos


as provas e nos encarnamos em tentar descobrir com o cara quem era o tal de Zoião.
Soubemos que seu sobrenome é Conti e levantamos Marco Aurélio Conti. Come-
çamos a monitorá-lo.

Breve relato de um folclore policial (segunda parte)


Memória coletiva e documentos da Polícia

No dia 5 de janeiro do terceiro ano de caçada, a quadrilha fez nova investida na


praça de pedágios em Marques de Souza. Após o assalto, o bando se escondeu às
margens do rio Taquari, em Venâncio Aires.
Um dia depois, Conti se deslocava para Santa Cruz do Sul. A Polícia o perse-
guiu discretamente e o prendeu sem muito alarde. Ele estava em um Vectra roubado
e tinha dois fuzis, munição e dinamite no veículo. Com interceptações telefônicas
de sua rede de relacionamentos, descobriu-se que Zoião era apenas o motorista da
quadrilha e tinha uma ligação bastante próxima com Caniço. A partir daí, surgiam
como suspeitos de integrarem o bando, além de Caniço, alvos amadurecidos do
DEIC como Coiote, Medalha e Celito. Na época, a crônica policial do Estado es-
tava concentrada em Adriano da Silva, um paranaense de 24 anos acusado de matar
12 crianças na região Norte do Estado. Isso fez com que os acontecimentos na praça
de pedágio não parecessem relacionados com os assaltos na Serra. A Polícia também
tratou de não dar ênfase.
As moedas roubadas da Praça de Pedágio de Marques de Souza criavam, por-
tanto, um fio de investigação que culminou com a megaoperação policial em Caraá,
em 18 de fevereiro do mesmo ano. Na ocasião, os prováveis líderes da quadrilha,
experientes assaltantes, foram presos. Apenas Caniço e Brinquedo fugiram. Com a
sucessão de assaltos de extrema violência e inconsequência, Caniço ganhou notorie-
dade. Após a morte de Zé Loucura, assumia a posição de “homem show”, em meio
a um bando que teimava em usar métodos ainda pouco registrados na bibliografia
recente da Polícia gaúcha. Os primeiros relatos comuns que dão conta de contatos
entre o Mané e o Zé são de dois anos antes do início da caçada. Manoel Barcellos
Flores teria ido fazer serviços em Caxias do Sul e Farroupilha e conhecido Loucura,
sendo iniciado e enfronhado em roubos de grande soma.
Após Caraá, parecia que Manoel Barcellos Flores deixava em definitivo de ser
o “Mané das Retro” para demonstrar rara audácia e liderança, evocando as caracte-
rísticas do falecido Zé Loucura. Ele ocupava, assim, o espaço deixado pela prisão e
alegado suicídio do ex-integrante do bando. O folclore induz que Zé Loucura mor-
rera e reencarnara rapidamente, mais rápido do que ele mesmo poderia imaginar, no
“Mané das Retro”. Cumpria-se a profecia de William Koenig e ele renascia, meses
depois, em um ícone midiático chamado “Caniço”.
103

capítulo 2

o GUarDiÃo
105

OS GUARDIÕES
Memória Coletiva e Arquivos

A legislação previa que o policial autorizado a efetuar uma escuta tivesse pleno
acesso aos mecanismos e às ferramentas do grampo para a melhor condução e con-
trole da operação. Justamente o contrário disso, porém, acontecia no Rio Grande
do Sul já cinco anos antes da implantação da Operação Pinça. O acesso dos agentes
era restrito, controlado pelos administradores do sistema de escutas. Para os gestores
dos grampos telefônicos no território gaúcho, o sistema conhecido como Guardião
deveria liberar informações solicitadas, de forma gradual. Qualquer repetição de
áudio e localização de grampeado tinha de ser autorizada pelos administradores do
Guardião.
Como o Rio Grande do Sul era um dos únicos Estados (se não o único) a trabalhar
assim, a situação gerava revolta de investigadores, que queriam liberdade para manipular
as escutas. Por este e outros fatores, a histórica falta de harmonia entre os órgãos da SJS
ganhou especial impulso na gestão Bins. As reclamações por acesso restrito aos gram-
pos se tornaram uma ladainha inquietante na cúpula da Segurança Pública, que, por
vezes, ganhava notoriedade na mídia. Quando isso acontecia, a denúncia jornalística era
mal feita pela característica sigilosa do tema. Como o assunto não poderia ser debatido
abertamente, tornava-se complexo demais para o cidadão compreender. Assim como
explodia, a polêmica se dissolvia ao natural.

O motim e os “guardiões do Guardião”

No segundo ano de caçada, ocorreu um dos episódios mais vexatórios da dis-


córdia envolvendo o sistema de escutas telefônicas do Rio Grande do Sul. Ao rei-
vindicar mais liberdade no sistema de grampos, policiais civis tentaram “tomar de
assalto” o Guardião. Foram barrados por policiais militares e houve tumulto em
pleno prédio da SJS. Mesmo com os ânimos controlados, os agentes permaneceram
amotinados na Secretaria, causando tensão nos gestores devido ao bloqueio do sis-
tema por algum tempo em função da discórdia e do impasse que se instalou.
106

A SJS apelou para o Ministério Público (MP) coordenar o Guardião Central,


porém o MP argumentou não ter condições de gerenciar a ferramenta. Algumas
metas foram lançadas para que se pudesse dar uma resposta a médio prazo aos
amotinados que, naquele momento, contavam com o apoio de praticamente toda a
corporação. Os esforços eram para, primeiro, resolver o conflito; segundo, esclarecer
às corporações e à sociedade (até onde fosse possível) sobre a ferramenta Guardião;
e, terceiro, criar um sistema de escutas de gestão mais equilibrado entre as forças,
tanto política como tecnicamente.
Assim, os gestores da segurança gaúcha apresentavam na reunião do Comitê
Interinstitucional de Monitoramento dos Registros de Ocorrências, que envolve as
cúpulas da SJS, Brigada Militar, Polícia Civil, Susepe e Instituto Geral de Perícias
(IGP), no dia 29 de junho do terceiro ano de caçada, a portaria que criava a Coor-
denadoria dos Serviços de Telemática e de Interceptações Telefônicas (CSTI). O
gerenciamento do novo órgão foi feito diretamente pelo secretário, com a coorde-
nação de um policial civil e um brigadiano. Apesar do esforço, a CSTI não caiu nas
graças dos agentes da Polícia Civil. Eles sabiam que a mudança mantinha o con-
testado major Moacir Coelho Neto, da Brigada Militar, respondendo pelo sistema
de interceptações telefônicas do Estado, como já o fazia um ano antes do “primeiro
ano de caçada” a Caniço.
Aos olhos de setores da PC, Coelho Neto personificava o suposto privilégio da
BM no sistema de escutas. Não raro, ouvia-se policiais civis afirmando que briga-
dianos tinham acesso a suas escutas telefônicas. Era um conflito autista, pois as duas
corporações brigavam por algo que não conheciam. O Guardião poderia ser seguro
em relação a fraudes, bastava que os controles previstos fossem feitos. Do contrário,
realmente poderia ser manipulado. Para acabar com o “mito do major”, a portaria
permitiu a inserção de uma delegada de Polícia na coordenação-adjunta do órgão.
O controle externo das atribuições da coordenadoria seria do Poder Judiciário, do
Ministério Público e de um comitê auditor implementado pela SJS.
A CSTI era autônoma na estrutura da SJS, desvinculada de instituições ou de-
partamentos, e constituída por um time batizado como os “guardiões do Guardião”.
Uma seleção de agentes da Polícia Civil e da Brigada Militar, que garantia o seu
funcionamento e gerenciamento, era encarregada de atender aos agentes usuários
das escutas, repetindo áudios, informações requisitadas e checando eventuais panes
no sistema.
Algumas fontes deste livro consideram que eventuais violações de áudios das
investigações policiais pertencem ao “folclore que envolve o sistema Guardião”. Para
essas fontes, é impossível cogitar que esses plantonistas pudessem monitorar 15
mil áudios que transitavam pelo sistema diariamente, repassando informações re-
servadas para setores externos à investigação em si. Porém, em um terreno onde os
fins justificam os meios, não parece demasia pensar que tudo é possível. A CSTI
pode ter sido um primeiro passo para “colocar ordem na casa”, mas na prática nada
mudou. Aliás, novas críticas político-institucionais surgiram e o sistema continuava
inadequado à demanda.
107

A Pinça

Evidentemente, não se pode ignorar a credibilidade ferida da Polícia Civil, uma


instituição envolta em irregularidades que não vinham à imprensa e, na maioria das
vezes, nem à Cogepol. Esse déficit moral, de alguma forma, explicava porque até
o MP tinha melhor acesso à tão importante ferramenta de investigação. Era um
“tiro no pé” liberar informações estratégicas que pudessem ser usadas por agentes
corruptos, cuja prática de extorsão era o prato predileto.
Parte dos “guardiões do Guardião” tinha elaborado o planejamento da descentra-
lização operacional e ampliação do Guardião. O projeto fora concluído quatro meses
antes de começar a Operação Pinça. Era o primeiro esforço para reformular um sistema
em colapso. A Operação Pinça nasceu com tal espírito dentro da SJS e, sem saber, seria
usada como laboratório, pois teria direitos no sistema de escutas do Estado que nenhum
grupo da polícia judiciária tivera, não porque o reivindicaram, mas porque a cúpula da
Segurança era a favor disso.
O projeto se fazia necessário e era viável. Somente com o dinheiro alegadamente
desviado do Detran, autarquia da SJS, seria possível ampliar o sistema Guardião em
80 vezes ao longo dos cinco anos de fraude. O colapso do sistema era uma obvieda-
de, assim como o desgaste entre as corporações era insuportável para quem conhecia
como a máquina funcionava. Entre os primeiros semestres do primeiro e do segun-
do anos de caçada, o número de interceptações telefônicas no Guardião explodira,
registrando crescimento de mais de 160%. O número de expedição de CDs finais de
escuta triplicara. A ferramenta contava com 400 canais e quatro Posições de Agente
(PAs – uma espécie de ilha de escuta telefônica), muito aquém da demanda.
O projeto previa modernização, integração em unidades de escuta e análise, am-
pliação da capacidade do Sistema Guardião. Também a descentralização das ati-
vidades administrativas e operacionais relacionadas às interceptações, por meio da
instalação de estações remotas, com habilitação para manuseio da repetição das
escutas, identificação da rede de relacionamentos do número, localização do alvo,
entre outros dispositivos ainda ocultos para o policial. O novo projeto previa que
os guardiões do Guardião atendessem policiais, agentes do Ministério Público e do
Poder Judiciário do Estado, administrando a parte burocrática-legal do equipamen-
to. Fariam a implantação da interceptação junto à operadora, controlando a validade
dos mandados judiciais, arquivando e expedindo os CDs definitivos e assistindo
tecnicamente às bases remotas ou PAs.
A informação é que ainda no quarto ano de caçada, antes da morte de ATM, foi
adquirido todo o material para a instalação de seis PAs para a Polícia Civil, duas para
a Corregedoria da Brigada Militar e manteria duas para o Ministério Público. Já o
sistema que abastecia a BM e a PC seria alvo de considerável inovação. Não se sabe
porque o material foi adquirido e não entrou em funcionamento imediatamente na
Polícia Civil no quinto ano de caçada.
Passados dois anos e cinco meses da morte de ATM, nem todas as delegacias
do DEIC utilizavam as PAs colocadas à disposição. A notícia era de que gran-
108

des delegacias em centros importantes do interior do Estado voltaram a recorrer


a “métodos alternativos” para trabalhar com escutas telefônicas, uma vez que não
havia equipamento para todos. Sabe-se que não é necessário apenas trabalhar com
o programa Guardião. Existem outros métodos legais e até mesmo as operadoras
telefônicas poderiam ser mais prestativas. A questão é que, para elas, isso não traria
lucro e comprometeria mão de obra.

O ensaio da mudança

A equipe da Pinça iniciou os trabalhos com uma PA, mas com menos direitos do
que o operador normal do aparelho. Os policiais envolvidos na investigação foram
ganhando mais liberdade no sistema ao longo das semanas. No início, podiam ape-
nas ouvir os áudios quantas vezes quisessem nas suas PAs, agilizando a análise das
informações. Outros itens chegariam posteriormente. Não que isso alterasse muito
as possibilidades de acesso e a análise do áudio proposta pelo antigo sistema, mas
era um avanço importante. Uma PA permite escutar áudios interceptados, controlar
recorrências (repetições do áudio), acessar rede de contatos do número-alvo e loca-
lizar telefones grampeados – embora esse seja um item fora do programa Guardião,
que estava disponível na internet para quem tivesse código de acesso.
Nesse contexto, a Pinça pode ser considerada um marco em uma caminhada
longa em direção a uma nova forma de encarar o sistema de escutas telefônicas no
Estado. Ela funcionou como um ensaio da queda do “mito Guardião” no aspecto
operacional. Entretanto, não é possível desconsiderar que essa operação ratificou a
criação de mais uma lenda no seio da criminalidade gaúcha: Caniço. O que parece
inquestionável é que a Operação Pinça foi chave para a possível quebra de tabus que
serão percebidos no decorrer desta história.
109

CHURRASCARIA
Quarta-feira, 8 de fevereiro, QUINTO ano de caçada
Município de Canoas,
Região Metropolitana de Porto Alegre
Estação Mathias Velho do Trensurb
Ponto de vista de Info 27
14h57min

Tava esperando o trem quando o celular tocou. Era uma chamada com número
bloqueado. Estranhei.

– Oi?
– Tô saindo daqui e chego no Mercado daqui a pouco, tá?
– Ahã, tô ligado. O trem já tá vindo também. Demoro uns 25 minuto para chegá
em Porto.
– Ok. Te vejo no Restaurante Marinho. Vô tá com calça preta, camisa branca e
óculos escuro, tá? Fala o que a gente combinou quando tu me ver.

15h25min

Desci do Trensurb, saí da estação e entrei no Mercado Público, onde o polícia


disse que ia tá me esperando. Cheguei no Marinho e não foi difícil vê ao fundo,
encostado na parede, o home com calça preta, camisa branca e óculos de sol.

– Com licença, Seu? O Senhô pode sê e pá? – perguntei, conforme o combinado.


– Sim, amigo, pode sentar. Tudo tranquilo? – ele perguntou, fazendo sinal para
o garçom.
– Tudo firmeza.
– Tá calor, né...qué uma água? – disse, já com o garçom esperando o pedido.
Fiz o sinal afirmativo com a cabeça – Duas águas, por favor – ele pedia, tirando os
óculos e torcendo a cara para se acustumá com a claridade – Então...
– Olha, ninguém pode sabê o que vô contá, hein? Senão, vão querê me matá...
Deus o livre.
110

– Claro. Fica na tranquila, que nunca venho aqui. Ninguém sabe quem eu sou.
Ninguém vai sabê que tu disse qualquer coisa pra nós.
– É, eu escolhi este bar porque lá em Mathias Velho é impussível cunversá né,
meu. Até porque todo mundo me cunhece e pá – avancei na água, começava a suar
muito.
– Conseguiu o telefone da moça?
– Claro, mano. Aqui, ó – entreguei um papel com o número – O negoço é o se-
guinte, nos últimos tempo o cara tá sempre andando com ela lá na banda... Sempre,
sempre, sempre, sempre.
– Querem mais alguma coisa? – o garçom interrompeu – Algo para acompanhar
a água?
– Não, obrigado.
– Não, dusmeu, tá tranquilo – esperei o garçom se afastá e continuei – Eu tinha
a fita que as coisa deles não ia durá pra sempre, né, mano. Mas tão ficando cada veiz
mais ligado e pá.
– Me confirma as descrições do namorado da Marcela e da própria, velho. Só pra
vê se tamo realmente falando das mesmas pessoas.
– De quem, do Caniço? Claro! O cara é moreno, sabe... mulato? Magro, alto,
talveiz 1,80m. Ela tem o cabelo vermelho, pintado que eu sei. Sabe, de ruivinha?
Nunca vô me esquecê dela, mano. Fui muito ligado na amiga dela, né, dusmeu...
É minha ex-mina. A Marcela tratava a minha mina... ou melhor, ex-mina, não
digo como melhor amiga, mas de forma especial. O que tu quisé sabê dela, eu
digo. Da ponta do dedão do pé até o cabelo.
– Tá. As descrições conferem mesmo. Prossegue. Então tu tinha me falado de
um cara que tá sempre com eles, né, velho? E volta e meia aparece lá em Mathias
com o casal.
– Ããhã! Milanês. Esse cara faz as mão pro Caniço e pá. Eu te dô na boa que ele
é o braço direito do Caniço. Tá sempre nas fita. Depois do home, quem manda é ele,
eu acho. Ele tem uma parceria que tem um estacionamento no Centro, onde eles
guardu todos os carro usado nas correria e pá...
– Onde é o estacionamento?
– Ah, não sei, mano. Eu sei que é no Centro, mas não sei exatamente onde é a
parada.
– Qual é o nome desse parceiro?
– Rogê, se não tô enganado.
– Quem é ele?
– Me disseru que não é do sistema, tá ligado? Inclusive, é filho de gente graúda
da Justiça lá de Canoas, mas não tenho muita certeza de quem é exatamente. O cara
é acima de qualquer suspeita, mano. Tem família, tudo... Talveiz por isso o Caniço
tenha colado nele e tão dividindo as fita junto agora.
– O que tu já soube de correria dele com o Caniço, fora que o Rogê cede o es-
tacionamento?
111

– Mano... – o polícia queria demais, mas tinha me proposto aquilo, agora já era.
Inclinava minha cabeça para ficá mais perto dele novamente, diminuindo o volu-
me da voz – Como já te disse, é um cara acima de qualquer suspeita. De correrio
mesmo, nas antiga, acho que ele não tem nada. Mas tem um papo aí na malandra-
ge da banda que eles tão querendo um troço graúdo fora do Estado. Diz que vai
sê islâmico o bagulho. Mas é dizque, né...

Ponto de vista do Tigre Banguela


na logomarca do DEIC

O número telefônico cedido por Info 27 possibilitou que a equipe montasse a


rede de contatos de Caniço. Um dos peixes que caiu nela foi justamente Rogério
Mancuzo Moreno, vulgo Rogê. O sujeito foi interceptado algumas vezes em con-
versas com Manoel Barcellos Flores e, em uma delas, identificamos o indício da tal
investida “graúda” fora do Estado.
Reiteradas ligações ocorreram na região do município catarinense de Lages.
Duas equipes foram enviadas para a área, mas, no meio das averiguações, recebe-
ram a ordem para retornar a Porto Alegre porque os delegados não conseguiram
a liberação de dinheiro para alimentação e pernoite. Para não abandonar a cami-
nhada, escutando que o bando realmente se preparava para um ataque na região,
um investigador argumentou que poderia pagar o quarto e a alimentação para
um companheiro. Os delegados concordaram. O carro locado com dois outros
policiais da delegacia Beta voltou para Porto Alegre, enquanto os agentes com o
conhecido Astra da SJS ficaram na região, tentando descobrir o que a quadrilha
queria na área.
O policial que pagaria todas as contas conhecia a estrada que liga Lages a Correia
Pinto – onde fora captado sinal do telefone de Caniço. Em uma das ligações, Rogê
respondia ao líder da quadrilha se “estava certa a locação dos quartos na pousada”. O
desafio era descobrir em qual pousada o bando estaria hospedado. O tempo passou e
o assalto não foi evitado.
O “Episódio do Avião”, como ficou conhecida a “investida graúda fora do Esta-
do”, ocorreu numa sexta-feira, 10 de fevereiro. Um bando, supostamente o de Cani-
ço, atacou um aeroclube no município de Caçador, Santa Catarina. Foram roubados
malotes que continham apenas cheques (folhas, no jargão do sistema). Um produto
geralmente rejeitado porque pode ser facilmente sustado. Dirigindo-se para o Rio
Grande do Sul, a quadrilha jogou as folhas na estrada e queimou dois bichos utili-
zados na ação.
Após a invasão do aeroclube, os dois agentes da Pinça chegaram a uma pousada
no município de Ponte Alta, com a ajuda da Polícia catarinense. Estiveram nos
quartos ocupados pela quadrilha. Da janela do dormitório utilizado presumivel-
mente por Caniço, era possível observar um largo trecho da rodovia, o que favorecia
o alerta a uma eventual chegada da Polícia. Como gato escaldado tem medo de
112

água fria, dessa vez os investigadores não deixaram de checar o lixo do abrigo dos
suspeitos. Localizaram notas de compras de telefones celulares e suas respectivas
embalagens. A quadrilha havia trocado os aparelhos para, provavelmente, se comu-
nicar durante o ataque sem ser interceptada. Nas embalagens jogadas fora, os poli-
ciais acharam o IMEI desses telefones. Esse número de identificação do aparelho
garantia o grampo, independentemente da eventual troca de chips. O IMEI está
para o telefone celular, assim como o chassi para um carro.
Os primeiros movimentos da Pinça davam a entender que a política de “portas
abertas” era limitada. A história dos recursos e “diárias a rodar” não era garantida.
O lado bom desse episódio foi que o número de telefone fornecido por Info 27 e
o registro dos aparelhos tirados do lixo da pousada garantiam a continuação dos
grampos telefônicos.

Taquarinha e a primeira suspeita de


“filtro nas escutas telefônicas”
Avenida Independência, Porto Alegre
Ponto de vista de Cleiton – agente da Operação Pinça
17h23min

– Alô? – uma mulher de forma acelerada, angustiada.


– Alô.
– Oi, Érica?
– Sim, sim... Quem fala?
– É a Mari. Tá ouvido bem?
– Sim... Tu, tu tá bem, Mari?
– Bah, mais ou menos.
– O que houve?
– Nem te conto.
– O que houve, fala logo!
– Teu irmão caiu preso.
– Como é que é?
– Foi. Hoje de manhã, aqui.
– Baaah. Eu falei pra ele se cuidar. Eu disse... eu disse. Era certo que isso ia acon-
tecer. E agora? O que é que a gente vai fazê? Onde é que ele tá?
– Olha, acho que ele ainda tá em São Leopoldo, mas vão levá hoje à noite pro Cen-
tral, né?
– Nã, não. Não pó... Não pode ir pro Central. Tu viu o que ele disse, né?
– Ah... Não sei... – Mari suspira
– Bah, mas que cooooisa! Eu falei pra ele! – Érica chorava. Parecia tratar a pri-
são do irmão como a morte.
– Calma. Eu te ligo mais tarde, tá?
– Tá bom.
113

– Calma que a gente vai dá um jeito, tá?


– Eu falei. Eu disse pra ele.
– Depois eu ligo. Tchau.

O número do telefone que Mari usava era um dos vários que havíamos gram-
peado no início da Operação Pinça, quando juntamos escutas feitas pelas operações
Casarão e Dilúvio. Ao longo do trabalho, cada agente tinha responsabilidade por
um número “x” de áudios e tinha de levar para o grupo nas reuniões uma análise
desses grampos. No início da investigação, a metodologia fazia com que a gente tra-
balhasse com muita informação sem saber o que realmente tinha a ver com Caniço.
Qualquer suspeita era seguida até realmente termos a certeza de que não sig-
nificava nada relevante. Por exemplo, por meio de uma escuta telefônica antiga
chegamos a Miro Batata (MB) – um dos maiores assaltantes do Estado, segundo
homem mais procurado pela Polícia na época, perdendo apenas para Caniço. MB
era um líder de quadrilha e revelava preferência por realizar trabalhos com um tal
de Taquarinha.
Esse Taquarinha nos dava muita dor de cabeça porque nos grampos chega-
mos a pensar que ele e Caniço fossem a mesma pessoa. Afinal de contas, caniços
também podem ser feitos de taquaras e diante de tantos códigos utilizados pelos
vagos quando falavam ao telefone, não custava supor que “taquarinha” poderia ser
uma forma de Miro Batata se referir ao “nosso” Caniço, justamente para despistar
eventuais grampos. O que reforçava a suspeita era que tínhamos indícios de um
eventual envolvimento de MB com Caniço. Em uma das interceptações de Miro
Batata, descobrimos que ele fora convidado para participar do assalto ao aeroclu-
be em Caçador, Santa Catarina. Ouvimos MB fazer alusão ao assalto, festejando
não ter conseguido participar “de um trabalho que só rendeu folha”.
O Taquarinha, fosse Caniço ou não, era um vago respeitado na quadrilha de
MB, sendo possivelmente um homem que lidava com explosivos, um dos maiores
problemas de Miro Batata para a execução dos ataques. Pelo peso que parecia ter
para MB e por saber usar explosivos, nossas suspeitas de que ele e Caniço eram a
mesma pessoa estavam cada vez mais fortes.
Quando a conversa de Mari foi interceptada, ela usava o telefone de Taquarinha.
Era namorada do vago. Sabíamos que Caniço tinha uma namorada chamada Mar-
cela, mas quem garante que não poderia ter mais uma?
Ligamos para Litto e Alencar a fim de encontrarem a mim e Gaspar no Lanche
do Rosário, um famoso local para rápidas refeições em Porto Alegre. Já comíamos
quando o telefone da minha escuta tocou. Ouvi o diálogo de Mari e Érica e chamei
a atenção do resto do grupo para que ouvíssemos a repetição natural do grampo no
viva-voz. Após o diálogo, meu lamento foi automático:
– Bah, com essa aí até perdi a fome, meu.
– Não acredito – lamentava Litto, afinal de contas, estávamos mobilizados so-
mente para isso, prender Caniço.
114

– Meu, puta que o pariu, o Caniço caiu em cana – Alencar não continha a de-
cepção.
– Não. Paraí. Vamo ouvi de novo a conversa das mulher – Gaspar ligava para o
operador do Guardião na SJS, a fim de solicitar a recorrência do diálogo. Trabalhá-
vamos com o celular de Gaspar no viva-voz para fazer com que todos entendessem
rapidamente a situação.
– Sargento César – o “guardião do Guardião” atendia o telefone.
– Oi, sargento, tu pode me repetir a última escuta que caiu no nosso telefone? –
Gaspar ditou o número ao sargento – Acho que o Caniço caiu em cana.
– Ok – o operador desligou.

Estranhamente, a recorrência não veio. Quase meia-hora depois, delegado Ro-


bledo ligou para Gaspar.

– Que conversa é essa de prisão do Caniço, Gaspar?


– Ó, delegado, foi uma informação que surgiu por meio de uma das escuta. So-
licitei a recorrência pra ter certeza, mas até agora não veio... Mas, paraí, como é que
o senhor tá sabendo disso?
– O secretário me disse que surgiu essa informação de prisão do Caniço, mas
eu não sabia de nada. O engraçado é que o secretário me ligou dando os parabéns,
“Olha, parabéns tua equipe conseguiu prendê o cara”, mas eu não tô sabendo de nada.
– Olha, delegado, eu não tenho certeza. Tenho que analisá a cunversa. Mas a
recorrência não veio ainda. Pedi há meia hora esse troço!
– Ok, dá uma olhada nisso aí e me informa.
– Tá bem. Vou ligá pra eles de novo pra pedir a repetição da ligação.
Gaspar fez novo contato.

– Sargento César – o “guardião do Guardião” atendia novamente o telefone.


– Sargento, é o Gaspar.
– Sim, Gaspar, pois não?
– Olha, pedi a repetição da ligação telefônica naquela hora e vazou para o secre-
tário Bins o conteúdo do grampo. Porra, tchê, o que houve?
– Olha, não tô sabendo, Gaspar.
– Tá, mas como é que o secretário ficou sabendo do conteúdo da ligação que só
nós monitorávamos? Cara, isso é contra a lei. Nenhum terceiro pode ficá sabendo
dos conteúdo dos grampo, só quem tem o alvará de interceptação.
– Olha, tô obedecendo ordens superiores.
– Como assim?
– Tenho ordens para informar para superiores, com urgência, qualquer informa-
ção relevante que surgir sobre o Caniço.
– Coméqueé? Tamo sendo monitorado, então? Como assim “informação re-
levante”, cara?
115

– Sim. É pra repassar qualquer informação que trate a respeito da prisão ou


morte do Caniço, Gaspar.
– Bah, cara, não acredito nisso – Gaspar se irritava com o brigadiano – Qué dizê
que a gente corre atrás do cara 24 horas e vocês ficu de butuca nas nossa investigação?
Porra, e se essa ligação levasse aonde o Caniço tá agora, por exemplo, eu tinha que ficá
esperando meia hora até tu informá o que tá acontecendo para os teus superiores e,
só depois, me atendê?

Ponto de vista do Tigre Banguela


na logomarca do DEIC

Eu entendo essa história da seguinte forma: para mim, o Gaspar havia dito que
pensava que o Caniço caíra em cana. Possivelmente, o plantonista do Guardião,
surpreso ou eufórico, possa ter repetido essa suposição aos seus superiores, que,
por sua vez, repassaram ao secretário como se fosse informação segura. Dar uma
notícia dessas em primeira mão ao superior hierárquico tem um valor que qualquer
pessoa fora do meio não consegue imaginar. Dá prestígio, promove, preserva cargos
e insufla egos.
O “telefone sem fio” chegou ao secretário, que, por sua vez, supostamente, soli-
citara previamente agilidade na transmissão dessa informação preciosa, dada a re-
percussão da cana. Ele precisava repassar ao público em primeira mão pois poderia
ter seu momento de brilho roubado por algum oportunista de plantão. Seria bem
injusto, eu diria. Entretanto, o que foi feito foi justo? É uma briga de foice pelo
“prestígio”!
Os agentes comunicaram o ocorrido ao nosso pessoal que estava no QG da
Operação Pinça, na SJS. O delegado Josué acabou indo até uma delegacia de São
Leopoldo fazer o reconhecimento do vago e ver se era Caniço mesmo. Deu nega-
tivo. Isso tranquilizava a equipe porque essa confusão de Taquarinha e Caniço fez
muita gente acreditar que MB estava procurando Caniço para algum serviço forte.
Seria mais uma tentativa de juntar “um Pelé com um Maradona”, o que daria um
bocado de trabalho.
Taquarinha acabou aparecendo morto dias depois no Presídio Central de Porto
Alegre. E agora dá para entender a aflição de sua irmã na ligação. No meio policial,
a primeira informação era de que tinha se suicidado na cela. No limbo obscuro entre
Polícia e malandragem, alguns infos deram, quase um ano depois, que ele teria mor-
rido porque abandonou um parceiro ferido durante um assalto em Santa Catarina.
Ele estaria, inclusive, em condições de apertar o PM que prendeu o comparsa, mas
preferiu fugir.
116

Porto Alegre, Bairro Centro


Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 8° andar
Gabinete do Secretário de Justiça e Segurança, Gilberto Silveira Bins
Ponto de vista do quadro emoldurado do governador Armindo Peixoto
18h23min

Mesmo sendo uma prioridade de gestão, a Operação Pinça não deixava de en-
carar os problemas crônicos da Polícia Civil. A diferença é que, dessa vez, os agen-
tes do grupo tinham a esperança de atendimento rápido de algumas demandas.
A política de “portas abertas” deu ao grupo uma “estação remota” (hardware com
programa específico instalado), que oferecia o direito de os policiais acessarem as
gravações efetuadas pelo Guardião. Muitos consideram esse um marco histórico na
Polícia Civil.
Sempre impressionou setores especializados da segurança pública o fato de o
Rio Grande do Sul ser considerado um dos piores Estados do Brasil na acessibilida-
de da Polícia investigativa ao sistema de escutas telefônicas. Foram anos de discus-
são sobre o assunto. Quem tinha, constitucionalmente e por essência, atribuição de
investigação (os policiais civis) denunciava não dominar o Guardião e se revoltava
com isso. Outros recursos eram menos complexos, mas igualmente precisavam de
esforço a mais para serem colocados à disposição, mesmo estando no âmbito da SJS
e previstos no Plano Operacional da Pinça.
– O que vocês precisam mais? – perguntava o secretário Bins.
– Continuamos sem potencial de fogo. Caso aconteça um confronto, precisarí-
amos de armas de grosso calibre, pesadas mesmo – Robledo tocava em um tema já
discutido quando Bins resolveu tirar a Pinça do papel.
– Quantas? – o secretário tira o telefone do gancho e tecla.
– Cinco fuzis para começar – respondeu delegado Toniolo, autor do planeja-
mento operacional.
– Coronel Conrado? – Bins perguntava ao telefone.
– ...
– Eu preciso que vocês emprestem cinco fuzis pro DEIC.
– ...
– Não vou ligar para o comandante. Eu quero agora cinco fuzis pro DEIC. Agora.
Tá ok?
– ...
– Ok – Bins coloca o telefone no gancho – Mais alguma coisa?
– Olha, secretário, na verdade nós temos, sim.
– Pois não, Robledo.
– Precisamos ter mais liberdade no Guardião. Volta e meia enfrentamos proble-
mas para buscar localizações, pedir repetições e preservar o sigilo das investigações.
Isso prejudica.
– Sim, mas o que já foi dado não ajuda?
117

– A questão é que os operadores do Guardião geralmente estão sobrecarregados


e não conseguem nos atender com a rapidez que precisamos. Não digo que haja má
vontade, é que é muito serviço para os plantonistas.
– Sei.
– Secretário, quem está na rua sofre, porque a autorização de escuta telefônica
é de 15 dias e qualquer demora atrapalha. Acaba ocorrendo um desgaste e garanto
para o senhor que já tá começando a surgir um ranço – ressaltava Toniolo.
– Tão boicotando vocês?
– Não. Embora os agentes já estejam enfrentando conflitos, creio que este não é
o ponto ainda – elucidava Pires, com a concordância dos colegas.
– Sim, e como poderíamos resolver isso?
– O ideal seria termos a possibilidade de distribuirmos as ligações para quem
está na rua. Sem que eles precisassem pedir para o plantonista do Guardião. Eu
acho que é até difícil para o plantonista estabelecer prioridade – Toniolo tentava
ser didático.
– Mas eu já defini como prioridade – a frase de Bins dava sinal de que talvez ele
não entendia ou, pelo menos, simulava não entender o que se passava. Talvez quisesse
ganhar tempo.

O silêncio dos interlocutores valeu como comentário à declaração do secretário.

– Sim, acho importante isso também. Vamos resolver – postergava Bins.


– Ok, vamos resolver isso, com calma. Já conversamos sobre o assunto, né? Des-
çam lá e vejam com o Coronel Conrado os fuzis para a equipe, tá bom?

Quanto ao armamento? Fulminante. Se tivesse uma barbada dessas para conse-


guir um FAL no episódio do camping, muita coisa maluca que veremos a seguir não
aconteceria. Mas vamos devagar. Afinal, temos que curtir esse novo momento que
se ensaia: policiais civis do DEIC gaúcho portando fuzis regulares. Isso era raridade,
era preciso treinamento. E foi feito na quarta-feira seguinte.

A Paraguaia

Segunda-feira, 13 de fevereiro
Campana no Bairro Mathias Velho
Ponto de vista de Miranda – integrante da Operação Pinça
14h50min

– Eaí, alguma novidade?


– Nada por aqui, delegado, mas acho que os cara mais uma vez não vieru hoje.
– Fica tranquilo que a gente tá com uma equipe na Tabaí, fazendo outros locais
que o cara pode ter se enfiado – dizia delegado Robledo ao telefone.
118

– Tudo bem.
– Guentaí que as antena do telefone do Milanês tão dando aí e na Tabaí...
– Tudo bem, o cara aqui da área (Info 27) disse que a Marcela esteve ontem à
tarde por aqui, na farmácia da família. Vamo aguardá.
– Falou com ele hoje?
– Ahã. Ele disse que ainda não viu ela saí... eu também não. Mas tô no bico.
– Tranquilo. Qualquer novidade comunica, ok?
– Tudo bem.

Monitoramos os números que Marcela, namorada de Caniço, fazia contato e,


na sequência, com quem seus interlocutores se comunicavam posteriormente. A
questão é que uma das características de Caniço como fugitivo era a sua velocidade
de movimentação. Uma hora, sua ligação dava na área de Canoas, outra em Palhoça
(Santa Catarina) e, no dia seguinte, poderia dar no Paraná. No mesmo dia, poderia
voltar para Tabaí, em uma sequência que confundia a operação. Além disso, era um
sujeito extremamente objetivo quando falava ao telefone.
Com o auxílio dos sinais das antenas das operadoras, que acusavam a área das
ligações, mapeávamos aos poucos os outros integrantes da quadrilha no município
de Canoas. Volta e meia, eles ligavam para Caniço. Sabíamos dos encontros fre-
quentes de quatro figuras: Milanês, alegado braço direito de Caniço – aquele que
o delegado Pires supôs ter visto em um Vectra branco minutos antes de invadir o
camping em Erê; Arsênio, figura nova nas investigações; Rogê, dado pelo Info 27,
e o próprio Caniço.
A esperança era pegar o Caniço pela namorada, por isso o cuidado especial em
montar campanas em Canoas, uma vez que ela morava em Mathias Velho, bairro
do município. O outro motivo é que havia um movimento intenso em um lugar
que os vagos chamavam de churrascaria nas escutas, cuja localização exata não
fazíamos a menor ideia, embora não descartássemos Canoas. Em princípio, para
nós, tratava-se de um restaurante, mas diante das dezenas de ligações nas quais
eles utilizavam a mesma palavra, concluímos que era um código. Afinal, não era
possível os vagos se encontrarem sempre no mesmo restaurante, um local aberto
ao público, com tanto polícia encarnado e com a fama de crimes da quadrilha cada
vez mais difundida.

Conversa telefônica de Milanês, diálogo com Caniço


Ponto de vista de Guardião
15h04min

– Vamo fazê aquele churrasco hoje de noite naquele localzinho?


– Onde?
– Na churrascaria.
– Ahã...
119

– Daquele mesmo jeito, né? Olha... quando chegá lá, tu dá um toque pro amigo
que vamo chegá também, tá? Tá? – Caniço marcava o encontro.
– Não, tranquilo. Fica frio, que tá tudo certo. Vou levá as mesma carne, tá? Se não,
não vale a pena. Só vamo fazê se tivé com tudo em cima lá. Se tivé como assá.
– Só não esquece do outro amigo, que nem aquele dia. Diz pra ele chegá com o
negócio lá, pra nóis cunversá.
– Sem problema. Vamo chegá por lá.
– A hora mesma, aquela, né?
– No mesmo horário.
– Tá, tá.

Ponto de vista de Andrade – integrante da Operação Pinça


15h06min

Cléber, Odilon e eu estávamos em um veículo locado e acabávamos de ouvir a re-


petição da conversa de Milanês com Caniço. Comentávamos que era muito estranho
os caras combinarem de “fazer um churrasco em uma churrascaria”, uma vez que todo
mundo sabe que o churrasco já vem pronto na churrascaria. Ainda analisávamos a
escuta quando meu telefone tocou novamente. Dessa vez, não era mais um grampo.

– Sim, delegado – atendi, reconhecendo o número do bina.


– Andrade, pega a tua equipe e se desloca agora para a região do Morro Santa
Tereza, em Porto Alegre.
– Como assim, delegado? Tamo onde o cara tá! A última deu aqui em Canoas,
tamo na região!
– Nada disso. Esquece. O Guardião tá dando que os caras tão na região da antena
do Santa Tereza. Já tamo deslocando todo mundo pra lá. Segue também.
– Mas deve ter alguma coisa errada. A ligação anterior foi em Canoas.
– Até o secretário viu, Andrade. Tá aqui com a gente e cobrando também. Vai –
dizia um dos delegados da operação.

Zona Sul de Porto Alegre


17h18min

Depois de seguir antena por antena na região de Canoas, o Guardião deu que
a posição de Caniço, na ligação das 15h, foi na zona Sul de Porto Alegre, porque
a antena que viabilizou a ligação seria do Morro Santa Tereza. Duas horas depois,
nenhuma novidade.

– Tchê, não pode ser aqui – eu protestava para Odilon.


– Porra de merda! Tem que tá errado esse troço – dizia Cléber, desconfiado de
que a nossa correria até o Santa Tereza era à toa.
120

– O delegado Pires tinha alertado sobre aquela informação de que o cara tinha
uns parceiro num camping na Praia do Lami, que é também aqui na zona Sul. Vamo
dá um bico na região. De repente o cara tá lá, meu – amenizava Odilon.
– Avisa o Gaspar e o delegado Josué que tamo indo pra lá – pedia para Odilon ligar
para companheiros de outras duas equipes que também saiam de Canoas e rumavam para
a zona Sul.

Todos os integrantes da operação com quem falávamos achavam estranho a an-


tena ter dado em Porto Alegre, porém como estávamos trabalhando naquele méto-
do, equipes se deslocaram até a zona Sul da capital por Viamão e pela área à beira
do Guaíba. Fazíamos uma espécie de patrulhamento na Praia do Lami, esperando
que Caniço se manifestasse mais uma vez por telefone para talvez termos alguma
pista do seu paradeiro. Eram oito veículos na região.

17h30min

– Alô.
– Oi, Andrade, é a Cláudia. Seguinte, cancela tudo. Eles não estão na região
da antena do Morro Santa Tereza. Esqueçam. Examinei junto aos plantonistas do
Guardião e a ligação não foi bem na antena do Santa Tereza. Foi em Nova Santa
Rita.
– Puta que o pariu! Eu falei, poorrrra!!!! –coloquei a mão no bocal do telefone,
na tentativa de respeitar a colega.
– Eu já estou falando com as outras equipes. Delegado Robledo e o secretário
Bins estão cientes do problema que deu... tão dizendo para todo mundo voltar, ok?
– Ah, o diretor e o secretário estão vendo isso, então? Essa confusão?
– Tão sim, Andrade. Tão sim. Tá todo mundo ciente.
– Que bom! Agora eles sentem na pele como é ruim trabalhar com esse time do
Guardião. Parecem que sabotam o nosso trabalho, porra!

Policial civil, em geral, não tem nada de bobo. Sabe quem exagera e quem o
torna realmente vítima. Na categoria, uma prática pouco rara era convencer juízes a
conceder escutas de telefones de pessoas inocentes. Como o Guardião é um modelo
permissivo, ou seja, só é possível iniciar uma interceptação telefônica com autori-
zação judicial, alguns colocavam números de inocentes em pedidos de escutas de
quadrilhas. O juiz autorizava a investigação e a corporação queimava o seu próprio
filme. Cidadãos inocentes comuns eram grampeados e crimes policiais começavam
a ser cometidos. Nesse tipo de caso, o grampo era consentido pela justiça por meio
do esforço de “fraudar a consciência do juiz”.
Na verdade, a Pinça e os bons policiais no geral eram vítimas dessa cultura.
Talvez, graças a esse tipo de golpe e tantos outros, as dificuldades para os civis
eram e são muito grandes no que se refere às escutas telefônicas no Rio Grande
121

do Sul. Extorsões, aluguéis de grampos...isso se tornou mais comum do que se


imagina no Estado, e o grupo da Pinça nadava contra essa corrente. Apesar disso,
não se pode ignorar que o grampo telefônico adquiriu um viés político. Somente
os gestores da Secretaria poderiam responder sobre o que pesa mais na hora de
autorizar ou desautorizar acessos maiores ou menores das corporações às ferra-
mentas de investigação.

Terça-feira, 14 de fevereiro
Conversa telefônica de Rogê, diálogo com Arsênio
Ponto de vista de Guardião
15h27min

– Alô! – Rogê atendia.


– Fala, irmãozinho, tudo bem!
– Tudo tranquilo, camarada. Como é que tá?
– Tudo bem... tudo bem. Viu...oi?
– Opa! Pófala.
– Seguinte, o pessoal tá querendo comê na churrascaria na sexta. Podsê?
– Claro, meu véio. Tudo bem. Pode vir.
– A gente tá levando os presente tudo, tá bom?
– Tudo bem. Mesma hora daquele dia?
– Sem problema. Mesma hora daquele dia.
– Tá bom. Tchau.
– Tá. Tá bom. Tchau, tchau.

Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 6º andar


QG da Operação Pinça
Ponto de vista de Dirceu – integrante da Operação Pinça
19h23min

O QG parecia definitivamente pronto. Material de escritório, mapas, compu-


tadores e impressoras haviam sido instalados. Espaço suficiente para todos, onde
trocávamos informações e avaliávamos a operação passo a passo. Com essa metodo-
logia, às vezes, evoluíamos muito em um dia.

– Pessoal, a boa notícia é que descobrimos o endereço e localizamos o telefone


público utilizado por Rogê em uma ligação para um celular à tarde. Na conversa,
eles falam em um encontro na tal da churrascaria – explicava o delegado Toniolo.
– Todos perceberam que o Arsênio... eu acho que era a escuta do Arsênio ali,
né, Belmonte? – perguntava Fidélis, observando o colega acenar afirmativamente –
Então, o Arsênio se refere a um provável encontro no local de onde o Rogê estaria
falando. Ele fala “aí na churrascaria”.
122

– Pode ser... agora a gente tem o recunha do local feito pelo Belmonte e pelo An-
drade, né, pessoal? – perguntava Robledo, dando a deixa para a dupla falar o que viu.
– O telefonema provavelmente saiu de um orelhão diante de uma lancheria que
fica do lado de um estacionamento, em frente ao Fórum de Canoas. Como o Info
27 tinha falado que o Rogê é dono de um estacionamento, o local chamou a nossa
atenção. É grande o troço, dá pra uns 50 carro – explicava Belmonte.
– A gente checou o proprietário do estacionamento. Tá aqui ó, “Estaciona-
mento Canoas”, proprietário Rogério Mancuzo Moreno. Ele meso... Rogê – dizia
Andrade.
– Segundo o Info 27, o estacionamento do Rogê seria inclusive usado pelos vago
– acrescentava Fidélis.
– Isso significa que o estacionamento seria a tal churrascaria, correto? – insinu-
ava Latorre.
– Sim, provavelmente. É o que a gente suspeita pelo diálogo do Arsênio e do
Rogê, referido pelo delegado Toniolo – constatava Belmonte.
– Chegaram a ver alguém conhecido por lá? – perguntei.
– Pra falar a verdade, a gente achou ter visto o próprio Caniço saindo do estacio-
namento com um Golf, mas não temo certeza.

O silêncio tomou conta da sala por alguns instantes. Colegas se entreolharam.


Andrade continuou o esclarecimento do companheiro, quebrando o silêncio.

– Chegamo a seguir o Golf vermelho até a entrada da BR-116, mas a rodovia estava
bem movimentada e acabamo perdendo o cara, como já aconteceu com alguns de nós
aqui, né?

O pessoal não sabia se acreditava na explicação ou supunha que tudo aquilo


era baseado em alucinação provocada por pura obsessão coletiva, que poderia levar
qualquer um do time a ver o Caniço em qualquer parte do planeta.

– Há pouco, o delegado Josué e o Gaspar voltaram de Canoas porque eu pedi


para estudarem possibilidades de campana no local. O que tem lá pra nós? – pedia
novamente Robledo.
– Sim, diretor. Depois que o Belmonte e o Andrade confirmaram que se trata-
va de um estacionamento, fomos verificar as possibilidades de campana no local.
Constatamos que era praticamente impossível fazer uma campana boa se ficásse-
mos na avenida.
– Tem um muro e um escritório na entrada que tapam praticamente tudo o que
acontece no interior – acrescentava Gaspar – Após sermos autorizados pelo secre-
tário, descobrimos a imobiliária e alugamos uma sala no quinto andar de um prédio
comercial bastante alto, em frente ao Fórum. Fica meio em diagonal ao estaciona-
mento, mas fica bom.
123

– Com a sala, podemos ter visão completa da parte interna do estacionamento e


verificar quem sai dos veículos com mais segurança – terminava Josué.
– Solicitaram a determinação judicial para o aluguel da sala? – perguntava To-
niolo.
– Sim. Mas pelo contato lá com a imobiliária, nem vai precisar – retomava Josué.

– Ok, pessoal, amanhã cedo a gente concentra as atenções nesse estacionamento,


tá bom? – Robledo encerrava a avaliação.

Ponto de vista de Gaspar integrante da Operação Pinça

Todos se levantaram da mesa e viram o diretor se retirar da sala juntamente com


os delegados Pires, Toniolo e Josué. Iniciaram-se conversas paralelas e corridas ao
banheiro.

– Tá, e a câmera, meu? Tu nem falô na câmera! – cutuquei Litto, que havia pro-
metido solicitar novamente o recurso em reunião.
– Tchê, a gente pediu essa câmera fotográfica há horas, mas eles nem se mexeru
– protestava Litto – Como não teve nenhuma resposta, encomendei semana passa-
da para um amigo da minha esposa que traz coisa do Paraguai. Comprei ontem à
noite mesmo, quando ele levou lá em casa o troço.
– Mas tu tá louco, cara! Uma Sony H-1 deve custar quase 2 mil real!
– Meu, é necessário pro serviço. Tá no carro. Foi do meu bolso mesmo.
– Putz, mas por que não esperou um pouquinho? Os cara tão disposto a abrí a
mão.
– Não, meu, tem a história desse estacionamento agora. Acho que a gente vai
precisá logo disso pra documentá esses troço. O parceiro trouxe do Paraguai, deu
muito mais barato do que aqui no Brasil. Fica frio – Litto, com alguma experiência
na Polícia, revelava incredulidade nas tais “portas abertas”.
– Ok, o negócio é contigo.
– Tá lá embaixo. Qualquer saída, pegamo a Paraguaia no meu carro e levamo na
operação que tivé – Litto ria da situação pouco engraçada.
– Humpf, Paraguaia... Tá bom.
– Não adianta fazê essa cara, meu. Tu sabe que a impressora e o notebook da de-
legacia também vieru do mesmo jeito, do meso bolso e do meso lugar! Fazê o quê?
Vou até trazê pra cá, porque vai ajudá pra caralho.

Ponto de vista de submetralhadora 9 mm, regular, apreendida

Além da Operação Pinça, outro setor específico da SJS também começou a de-
senvolver um trabalho minucioso impulsionado pela morte de ATM no camping: a
Corregedoria da Polícia Civil. A Cogepol buscava elucidar as circunstâncias daquela
124

“bala perdida”. Seria a responsável pelas respostas que a sociedade exigia em mais
um momento de comoção que marcava a caça a Caniço. Entretanto, em se tratando
de justiça no Brasil, não adianta espernear. A sociedade continuaria gritando e tal-
vez esperando anos pelo esclarecimento, temendo, inclusive, nunca saber realmente
o que se passou. E a família “que se f...” – como diria uma autoridade da SJS.
Mas, o que a Cogepol tinha levantado?
Tinha a mim – uma submetralhadora 9 mm apreendida. Um tiro que resultou
na morte da criança, identificado como oriundo de calibre 9 mm. Nenhum disparo
confirmado de um bandido com 9 mm. Alegados cinco disparos de Resende com
um revólver calibre 38. Cápsulas deflagradas de pistolas ponto 40 e de 9 mm (que
podem ser de pistolas ou expelidas por mim mesma). Os depoimentos oficiais dos
policiais relatam apenas a existência de pistolas ponto 40, espingarda calibre 12 e
de mim – uma submetralhadadora 9mm. Não se fala em pistolas de outros calibres.
Dessa forma, pelas provas que a Cogepol conseguira levantar, logicamente, o culpa-
do pelo tiro que atingiu a criança era um único policial, facilmente identificado, que
me portava no momento da ação.
Como essa foi a linha de raciocínio adotada quase que institucionalmente –
“quase” porque não existe nada por escrito, apenas testemunhos – a fase de encon-
trar um responsável pelo disparo que resultou na morte do menino passou, uma vez
que já havia um nome suspeito que viria a calhar pela reincidência em ações polê-
micas. O mesmo policial era apontado por, nove meses antes, ter sido responsável
pelo tiro que deixara outro inocente paralítico, em pleno Centro de São Leopoldo.
Parece brincadeira, mas ali ele fecundara o óvulo que resultaria no seu afastamento,
nove meses mais tarde, parido pela “mãe” Cogepol em um camping. Eliminar esse
integrante da tropa poderia render bons frutos políticos. Indicia-se e se lava as mãos.
Nessa caça às bruxas, tal tese, em princípio, servia para alguns “caciques”, mas
incomodava os investigadores da corregedoria pela falta de consistência. Senão, ve-
jamos. Uma vez que se saiba que, por um procedimento de praxe, agentes atuam
em situações de risco com uma arma reserva, a chamada back up, utilizada caso seja
necessário, como aceitar que só havia um único calibre de pistola no local – o ponto
40? Tal tipo de arma, inclusive, é de baixo impacto e já falhara anteriormente. Os
agentes da Cogepol são policiais com experiência de investigação e sabem que as
armas back up nem sempre são apenas ponto 40. Engolir a tese dos integrantes da
delegacia Alfa de que só havia pistola ponto 40 no camping é, no mínimo, temerá-
rio. Ainda mais em relação a uma quadrilha reconhecida por usar armas potentes.
Precisava-se de recursos para se ter chances de responder à altura em eventual en-
frentamento.
Mas de onde viria a pouca consistência das provas? Do fato de, nesse episódio
e por motivo ainda oculto, não terem ocorrido procedimentos básicos em cenas de
crimes. Não houve isolamento do local e as investigações da corregedoria foram
atravancadas por uma perícia precária, para não dizer inexistente. Não houve coleta
de materiais e informações para embasar uma investigação consistente e conclusiva.
Populares curiosos e até “colecionadores” se apropriaram de cápsulas deflagradas,
125

que dias depois foram recuperadas na marra pelos agentes da corregedoria. Não se
fez busca minuciosa na lagoa – mananciais são clássicos pontos de desova de provas.
Até mesmo armas de suspeitos ou de policiais podem ter sido lançadas na água.
Outra carência é que não houve reconstituição do crime, o que poderia fortale-
cer a tese de que o tiro que matou a criança partira de um policial visando o fugitivo
Hamilton Resende. Ou até mesmo levantar novas possibilidades, como a de um in-
tegrante da quadrilha – não localizado, escondido – ter disparado, tentando atingir
os policiais, mas acabou acertando o menino. Essa última teoria pode ser reforçada
pelo fato de Resende não ter buscado refúgio no banheiro onde ATM foi baleado.
A linha de tiro dos policiais contra Resende estava desviada uns quatro metros do
banheiro. Um “tiro policial” teria de ter sofrido o que ironicamente se chama, no
meio, de “rico ricochete”. Ou seja, um grande desvio, que, nesse caso, foi totalmente
trágico.
Entretanto, o que vai de encontro à tese de que o tiro que matou o menino não
teria sido “policial” também está no conteúdo do inquérito, que não revela marcas
de tiros na Kombi utilizada pela Polícia na ação. Logo, um eventual atirador, camu-
flado, fazendo a segurança de Resende, teria sido no mínimo incompetente ao ver
tantos homens armados, com coletes à prova de balas, saindo de forma cadenciada
de um único local, sem atirar. Outro indício é o fato de que as cápsulas deflagra-
das, coletadas por populares, foram encontradas concentradas na mesma área de
circulação dos policiais na ação. No meio desse show de suposições, salta aos olhos
apenas uma obviedade: se o tiro que matou a criança foi um “tiro policial”, foi ex-
tremamente equivocado.
Diante das imprecisões, o inquérito continuava em aberto e se necessitava tra-
balhar no que intrigava os agentes – nas contradições das provas. Para a consciência
dos investigadores da Cogepol, era importante ter a convicção de que o indiciamen-
to do colega suspeito realmente era justo – embora já fosse dado como praticamente
certo. Precisava-se descobrir se existiam armas de outros calibres que não fossem
ponto 40 nas mãos dos policiais e acabar com as dúvidas sobre a existência de armas
irregulares (ou não registradas) no camping, o que poderia resultar na responsabili-
zação de outros agentes.
As duas dúvidas eram movidas por indícios fortes. A maior desconfiança recaía
em cima de um suposto fuzil irregular, cuja existência foi cogitada após depoimen-
tos de testemunhas, apesar de a presença do armamento ser veementemente negada
pelos policiais que atuaram no camping. Essa dissimulação da existência do fuzil
apontava a uma possível “fraude processual” que despertou o apetite da corregedo-
ria. Reportagens da época deram a convicção para os policiais da Cogepol de que
alguém portava um fuzil e o disparara. Imagens de TV captaram uma cápsula de
fuzil deflagrada. Porém, as imagens não foram consideradas suficientes para saber
de que tipo de fuzil se tratava e a corregedoria traçou uma meta: identificar outras
armas e o fuzil utilizado.
No contexto político da Polícia Civil gaúcha, aquele fuzil poderia ser o trunfo
de nomes da corregedoria contra a ação apontada pela opinião pública como “de-
126

sastrosa”. Indiciar um policial envolvido em operações com repercussão negativa é


bom, soa como eliminar as laranjas podres. Desgastar a imagem de adversários, que
autorizaram o emprego de armas irregulares em uma ação que chocou o povo gaú-
cho também dá bastante lucro político. Para provar a existência do fuzil na ação do
DEIC, precisava-se recuperar a cápsula registrada pela emissora de TV ainda no dia
dos tiros, no final de tarde de sábado, quando o camping estava praticamente vazio.
Daí vinha o fato que intriga a todos: várias cápsulas foram recuperadas junto aos
populares curiosos e “colecionadores”, exceto a do fuzil. Mais uma vez, a “maldita
imprensa” (como diria um policial civil graduado) conseguiu ter acesso à prova, mas
a Polícia não.
As imagens foram veiculadas pela emissora no domingo à noite. Isso levava os
agentes a suspeitarem que alguém foi mais rápido na corrida atrás da cápsula defla-
grada. O caso ganhava ingredientes fortes demais para não ser levado a sério. Como
a investigação ficava cada vez mais complexa, a Cogepol poderia ter até recuado, mas
optou por algo mais audacioso, que surtiria um efeito que ninguém poderia imaginar.

Segunda-feira, 6 de fevereiro, QUINTO ano de caçada


Porto Alegre, Superintendência da Polícia Federal – RS
Ponto de vista do quadro emoldurado do presidente da República,
Lula da Silva
10h35min

Delegado Santos e inspetor Mabilde, da Cogepol, e delegado Pompei chegavam


à antessala do gabinete do superintendente.

– Os senhores podem entrar, por favor. O delegado está esperando – dizia a


secretária, apontando para a porta fechada do gabinete.
– Bom dia, delegado – cumprimentou Pompei ao abrir a porta da sala ampla do
delegado Mesquita, que esperava o trio acompanhado de outro homem de terno
preto.
– Bom dia – respondeu Santos.
– Estes são o delegado Santos e o policial Mabilde, da Corregedoria da Polícia
Civil – Pompei apresentava seus colegas a Mesquita, provocando apertos de mão
automáticos – E este é o delegado Mesquita e o delegado Nogueira – apontando
para o superintendente e o homem de terno respectivamente.
– Sentem-se – dizia o superintendente.
– Delegado, conforme o delegado Pompei deve ter informado para o senhor,
estamos recorrendo à Polícia Federal para... – iniciava o delegado Santos.
– Pois não, Santos – interrompia com calma, como é a sua característica – Já
conversei com ele sobre o assunto. A minha única preocupação é se está tudo dentro
da legalidade. Pedi para vê-lo porque gostaria de ter certeza disso.
– Sim, temos autorização judicial – delegado Santos saca o documento para
127

mostrar ao superintendente – Gostaria de explicar direito quais são os nossos pla-


nos...– tentava continuar.
– Não – interrompe delegado Mesquita – Sinceramente, não tenho o mínimo
interesse em saber quem vocês vão investigar. Apenas quero a garantia de que não
há ilegalidade.
– Pois não, delegado – dizia Santos.
– Temos autorização judicial para o grampo telefônico. O senhor pode ficar
certo disso – garantiu Mabilde.
– Claro... ãhh... vocês querem água ou café? Só não tomo chimarrão – disse de
forma descontraída, sorrindo.
– Água, por favor – pediu Mabilde.
– E vocês, café? – os três outros delegados responderam afirmativamente com a
cabeça – Norma, por favor – solicitava Mesquita pelo telefone à secretária – Uma
água mineral com gás? – olhou para o inspetor, esperando a sua sinalização, que foi
negativa – Não, desculpa, Norma, água sem gás e quatro cafés – ele desliga o tele-
fone – Pois não, continue.
– Então, como eu ia dizendo, viemos aqui para estabelecer um contato pessoal
para podermos atuar em conjunto no que se refere às escutas telefônicas. Precisamos,
na verdade...
– Com licença, doutor Mesquita – a secretária entrava na sala para atender o pe-
dido. Deixou quatro cafezinhos à mesa e um copo com água com gás. Cada agente
avançou no que interessava.

Mabilde ouviu todos agradecerem, mas não o fez. Pela terceira vez, a dupla da
Civil era interrompida e o pedido do agente não havia sido bem aquele.

– Olha, Santos, está tudo ok. Os delegados Nogueira e Pompei vão ajudar vocês no
que precisarem – Mesquita era ouvido pelos agentes da corregedoria, enquanto Mabil-
de me observava, com a minha faixa transversal verde e amarela, emoldurado na parede.
– Na verdade, gostaríamos de enfatizar o nosso interesse de completa autonomia
e sigilo no nosso trabalho, compreende, delegado? – acrescentava Santos.
– Sem problemas. O trabalho é de vocês. Vocês gravam, vocês tem acesso quan-
do quiserem a um computador separado somente para vocês. Não se preocupem
com isso – Pompei falava, enquanto Mabilde continuava me fitando. Nitidamente,
tinha muito para me dizer naquele momento.
– Perfeito, então. – dizia delegado Pompei em tom finalizador.
– A única diferença é que vocês terão que vir aqui para escutar as gravações. Você
está sabendo, não é?
– Como assim? – perguntou o inspetor da Cogepol.
– Diferentemente dos grampos do Guardião da SJS – pela primeira vez era
ouvida a voz do delegado Nogueira – vocês não terão como escutar os grampeados
com os celulares de vocês.
128

– Não teremos grampos móveis?


– Exato. Terão que vir diariamente para escutar tudo no computador – conti-
nuou Nogueira.
– Mas não se preocupe. O Nogueira e o Pompei vão explicar como funciona o
sistema disponível pra vocês – interrompeu Mesquita, se levantando da cadeira na
intenção de encerrar a conversa, forçando os civis também a se levantarem – Aqui,
vocês terão até mais autonomia do que na SJS com o Guardião – Mesquita gar-
galhava, acompanhado de seus dois colegas. A dupla da corregedoria pareceu des-
confortável, mas seguiu o embalo dos três federais, mostrando levemente os dentes.
Eram humilhados como nunca na história deste país.

Ponto de vista de chaveiro


da Polícia Civil no bolso de Santos

Saímos pelos corredores inoxidáveis da Superintendência da PF. Chegamos a


uma sala, no andar superior. Os federais mostraram como funcionava o chamado
Ponto Fixo de Escuta. Na verdade, um terminal de computador que eles diziam que
seria “somente da investigação”. Providenciaram crachá para o policial civil que iria
fazer a escuta no prédio e uma chave da sala onde estaria o computador à disposição.
Naquele momento, já procurava imaginar como seria o acesso dos agentes da
Cogepol aos computadores da Polícia Federal. Todo o dia alguém teria de fazer as
escutas ali, inclusive nos finais de semana. O problema seria as escutas da noite e
madrugada. Quem faria? E o risco de algum frederico “curioso” ter acesso aos telefo-
nes grampeados dos colegas? Isso era realmente possível de acontecer. No entanto,
julgou-se que valia a pena porque entre dividir as informações com a Polícia Fe-
deral, a Brigada Militar e os colegas da Polícia Civil, talvez o melhor fosse dividir
mesmo com os federais. Afinal, ninguém sabia o que poderia sair daquelas escutas.
Era o possível revés da investigação, fazer o quê?
A Cogepol se preparava, assim, para grampear três delegados e 12 agentes no dia
seguinte para elucidar o armamento utilizado pelos agentes da Delegacia Alfa no
dia da morte do menino ATM, em Erê.
129

VAMO EMPURRÁ!!!
Terça-feira, 21 de fevereiro
Centro de Canoas, avenida das Ostras
Campana em sala alugada no Edifício Profissional Jurerê
Ponto de vista de Gaspar
7h30min

Foi-se a madrugada do sétimo dia de campana na tal “churrascaria”. Sete dias


de poucos avanços, mas a Paraguaia trabalhara bastante. Graças a ela, tínhamos
bons registros de imagens para estudarmos o local. Interceptações levaram duas
equipes comandadas pelo delegado Josué para a região de Santa Cruz. Somente
mais tarde, observando registros policiais da região, constataram um assalto a
um frigorífico em Venâncio Aires. O grupo de Caniço era suspeito, mas, na ver-
dade, o modo de operação foi diferente do utilizado pela quadrilha, que, aliás,
teria sido corrida pelo vigia do estabelecimento, o que não era usual também.
O assalto não mobilizou o time da Operação Pinça apenas no interior.
Desde as primeiras horas daquela terça-feira, pelo menos uma equipe estava
no posto de observação no prédio em diagonal ao estacionamento no Centro
de Canoas, atenta a um provável encontro dos vagos voltando da ação em Ve-
nâncio. Os colegas que tinham ido para o interior informaram que provavel-
mente nem todos os integrantes da quadrilha participaram da investida. Algo
deve ter dado errado, mas era cedo para qualquer conclusão.
Amanhecera chovendo. Onde estávamos, o único fato atípico que ocorrera na ma-
drugada fora protagonizado pelos seguranças do prédio. Observaram a nossa movi-
mentação por debaixo da porta. Eles haviam nos visto chegar e devem ter achado bem
estranho quatro homens trancados em uma sala comercial vazia. Até eu desconfiaria.
Da sala alugada, no moderno prédio de nove andares, tínhamos noção das
dimensões da chamada “churrascaria”. A sua direita, um restaurante grande
com um pátio mal cuidado. À frente, do outro lado da rua, o Fórum de Canoas,
o que é interessante. Havia indícios de que Caniço não hesitava em montar
base praticamente a 100 metros de um prédio da Justiça. A parede do estacio-
namento dava para o terreno de grama alta do restaurante. À esquerda, um bar
130

com as piscinas do clube Barquense. O fim da piscina olímpica alinhava com


o muro traseiro do local vigiado. Havia portões de acesso à parte frontal e um
paredão no fundo, que separava o estacionamento de um terreno baldio. Em
frente a esse terreno, uma escola. Era uma área residencial com condomínios,
casas e pequenos comércios. O que destoava era o Fórum. No pátio estreito da
tal “churrascaria”, nas áreas laterais, havia 56 vagas para veículos.
Cleiton e eu estávamos em pé na janela da sala, observando a entrada do esta-
cionamento a olho nu. Um trabalho de extrema paciência, cansativo e monótono.
Não se tem noção se algo realmente vai acontecer. Outros dois colegas dormiam
no chão da sala alugada, exaustos por terem virado a madrugada em campana no
local. Estava desconcentrado na letargia, hipnotizado pelo canto dos primeiros
pássaros da manhã, quando chegou um veículo Golf vermelho, lentamente, no
pátio do estacionamento. Dobrou à direita e ocupou a antepenúltima vaga da
sequência. Me liguei.

– Olhali, olhali!– a manifestação de Cleiton em voz aguda fez com que Andrade
e Belmonte acordassem e buscassem a janela da sala para acompanhar – Ópalá!!

Um homem desceu do veículo, tirou um fuzil do banco de trás e se deslocou


até o porta-malas de um Vectra, parado na quarta vaga da mesma fila. Ele abriu o
compartimento do carro e colocou a arma dentro, sem fechá-lo. Depois entrou em
um Astra ao lado do Vectra. Outros dois homens saíram do mesmo Golf. Um deles
foi até a porta do estacionamento observar a movimentação na avenida. Um quarto
surgiu do nada com um saco de viagem que parecia estar bastante pesado.
A minha suspeita é de que estava levando armas dentro, mas a distância era
grande, mais de 200 metros, para se ter precisão a olho nu. Ele se deslocou até o
mesmo Vectra e colocou o saco no porta-malas. Fechou o compartimento traseiro,
abriu a porta do motorista, sentou no banco e manobrou, ficando de frente para a
saída. O homem que observava a avenida olhou para o interior do estacionamento,
mostrou o polegar e o Vectra deixou o local. Mais um homem saiu de dentro do
Golf e foi até um automóvel Brava que passara a noite na fila de vagas oposta.

– Tchê, olhalê, olhalê!! Eu acho que o cara que entrou no Brava ali é o Caniço
– disse Andrade.
– Ahã... – concordou Cleiton.
– Eu acho que é o Arsênio. Andrade e Belmonte, peguem o carro e vão atrás daque-
le Brava – sem tirar os olhos da “churrascaria”, pedia para os dois colegas se deslocarem.

Em pouco tempo, saíram em sequência o Astra e o Golf. O motorista do Brava


manobrou, deixando o carro parado no meio do pátio, de frente para a saída. Só foi
partir quando o homem que estava no portão do estacionamento, vendo a movi-
mentação na avenida, fez sinal positivo.
131

O carro saiu da “churrascaria”, dobrando à direita e fazendo o retorno em segui-


da, rumo ao acesso à BR-116. Nossos colegas conseguiram iniciar o acompanha-
mento com a Doblô alugada.

BR-116, Doblô alugada


Ponto de vista de Andrade – integrante da Operação Pinça
7h45min
Apesar do movimento no acesso a BR, conseguimos visualizar o Brava quando
ingressou na rodovia.

– Anotou a placa? – perguntei para Belmonte, pois caso o perdêssemos, ao me-


nos teríamos algo para a investigação.
– Parte, ele entrou muito rápido na estrada – explicava o colega no banco do
carona – Tenho que pegar o resto. Entra logo na BR.

Tivemos um pouco mais de dificuldade para ingressar na rodovia porque o trân-


sito era intenso. Quando ingressamos, me esforcei para ultrapassar alguns veículos
e ficar a uma distância de cautela. Tentei colocar alguns carros entre nós, mas a
movimentação do Brava de um lado para outro da rodovia era rápida. Nas brechas,
notava Belmonte escrevendo o que percebia da placa.

– Tchê, ele tá se distanciando. Não perde – dizia Belmonte.

Eu me esforçava para tentar ultrapassar os outros carros, mas a nuvem de água


parecia esconder cada vez mais o Brava. Ele parecia notar que estava sendo seguido
e mudava de lado na pista, fazendo um ziguezague que o possibilitava ultrapassar
outros automóveis. Ao nos aproximarmos do entroncamento da RS-118, o Brava
fez uma manobra súbita e aproveitou para ingressar na rodovia estadual.

– Gaspar? – Belmonte falava pelo telefone com o colega que ficara na sala – Ele
entrou na 118, mas preferimos não seguir.
– ... – para mim, o que Gaspar dizia era inaudível.
– Fica frio. Tamo com a placa do bicho.

Ah, qualé, comandante?

Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 6º andar


QG da Operação Pinça
Ponto de vista de Alencar
19h20min

Contávamos com o diretor da DEIC de Santa Catarina, Álvaro Muriel, e o che-


fe de Polícia daquele Estado, Cirus Braga, para acompanhar o trabalho. A quadrilha
132

de Caniço era suspeita de várias investidas contra carros-fortes e bancos em Santa


Catarina e Paraná. Sua prisão já seria considerada uma vitória para a Polícia do Sul
do Brasil.
Agentes catarinenses narram tiroteios, assaltos e fugas difíceis de se acreditar,
“cinematográficas”, como gostava de definir a imprensa gaúcha e catarinense. A
presença dos delegados de Santa Catarina era a ratificação de um trabalho conjunto
que se intensificara há quinze meses, única e exclusivamente devido a Caniço.
Litto abriu seu computador e mandou imprimir algumas fotos do estacio-
namento para podermos estudar o local em grupo. Gaspar explicou o que tinha
acontecido, utilizando as imagens no notebook. No auge da conversa, talvez pro-
vocado pela presença dos colegas catarinenses, nosso diretor levantou uma ques-
tão surpreendente.
– O problema é que, pelo relato de vocês, o local é fechado, cheio de residências
em volta e o armamento deles é muito pesado pra uma simples inundação. A gente
não tá acostumado a lidar com esse tipo de situação. Vocês viram só um fuzil? Com
certeza, Gaspar?
– Olha, delegado, é complicado a gente afirmá com certeza da distância que a
gente tava, mas tive a impressão que eles levavu mais arma dentro de um saco. Não
sei dizê se éru curta ou longa.
– Eu também tive esta impressão. O que eu consegui vê bem foi um FAL que o
home não fez questão de escondê quando tirô do Golf e colocô no Vectra – con-
cordava Cleiton.
– Diante dessa informação de que eles tão usando o local pra guardar os bicho
e fazer transbordo de arma, podemo empurrá aquele lugar quando a gente vê que
eles tão se organizando pra chegar...tão sempre falando que vão se encontrar na
“churrascaria”, vão voltar a qualquer momento – sugeria Josué.
– Gente, é arma de grosso calibre, situação de alto risco. Um lugar fechado com
possibilidade de outras pessoas estarem lá dentro. É uma zona residencial, não dá
pra esquecer disso – Robledo era transparente. Tinha medo. A morte de um ino-
cente seria muito difícil de ser tolerada após toda a repercussão negativa do episódio
do camping, há um mês. “Cachorro picado por cobra tem medo até de linguiça” –
Quem sabe a gente...a gente planeja direitinho, aguarda eles darem a deixa e chama
o GATE pra empurrá o local? Taí, ó, fechamos o cerco com a ajuda do GATE.

Todos se olharam pasmos. Era flagrante a frustração e o sentimento de des-


prestígio. Afinal de contas, estávamos montando todo o serviço e o Grupo de
Ações Táticas Especiais da Brigada Militar (GATE) iria entrar na “melhor parte”
para colher os frutos do nosso trabalho.

– Ah, mas vai me deculpá, comandante, não dá pra gente fazê todo o serviço e
deixá prus outro terminá – acrescentava Latorre, tendo manifestação de apoio da
maioria.
Talvez sentindo que não iria nos convencer a chamar o GATE, Robledo suge-
133

riu que a Pinça tivesse o reforço do Grupo Tático da Equipe de Antissequestro da


Polícia Civil (EAS).

– Não! Paraí! Pra quê chamá o pessoal do Tático? – reagia Litto.


– É. Eu também já tive em situação de alto risco, diretor. Tenho condições de
desembocá – reivindicava Miranda.
– Eu concordo que a gente tem que prender também. Acho chato outros cara
entrarem agora na história. Mas será mesmo que todo mundo aqui sabe usar uma
arma pesada? – perguntou Andrade, também integrante do Tático.
– Tá, mas peraí um pouquinho... Tamo fazendo todo o grosso da investigação.
Vamo terminá esse troço – protestava Gaspar.
– Gente, somos um grupo de inteligência, não de enfrentamento. O nosso tra-
balho é de levantamento. Eu acho que temos que encontrar a hora e o local de dar
o bote. Quem faz o bote efetivamente são outros setores da Segurança Pública. Se
quiserem, chamamos até o Exército, a Aeronáutica e o diabo a quatro pra cima do
cara – argumentava Toniolo.
– Pô, mas o que precisamos mais? Temos fotografia do local, sabemos as entradas
e as saídas, como chegar e onde nos posicionar, sabemos que é praticamente uma
ratoeira o troço. Não tem por onde sair. O que a gente vai esperar mais? – argumen-
tava Josué.
– Sim, mas a ação é de alto risco, pessoal – definia o chefe natural da operação,
delegado Robledo.

No meio da discussão, Robledo mandou um “emissário” consultar integrantes da


EAS para uma possível invasão no estacionamento em outro dia. Havia oposição
de ideias entre alguns delegados do DEIC e peças mais influentes do Grupo Tático.
Por isso, a atitude de pedir o apoio causou estranheza para muita gente que conhecia
politicamente o departamento.
A EAS era, na verdade, subordinada ao chefe de Polícia, delegado Chináglia. No
entanto, ele abrira mão do comando em favor do diretor do DEIC. Desde então,
os integrantes da EAS exalavam insatisfação. A Equipe de Antissequestro da Polí-
cia Civil era formada por quatro segmentos: Grupo Tático, Equipe de Negociação,
Equipe de Investigação e Equipe de Apoio Logístico. São equipes empregadas,
como o próprio nome diz, somente em situação de sequestro.
Um dos principais pontos de discordância era que os integrantes do Tático acre-
ditavam que todos os segmentos componentes da EAS deveriam dividir informa-
ções em ocorrências de sequestro. Já a direção do DEIC preferia compartimentar
informações e restringir funções. Também era voz corrente em alguns setores da
Polícia que não havia diálogo satisfatório entre as duas partes, porque o Tático so-
licitara por várias vezes itens para a atividade especial e nunca fora atendido. Com
esse choque de conceitos de método e ideologia, havia uma antipatia natural, pelo
menos, de uma das partes em relação à outra.
Apesar de ser superior hierárquico, Robledo não fez uma convocação aos inte-
134

grantes do Tático para uma eventual ação no estacionamento, mas uma consulta
informal, mandando um intermediário contatar policiais antigos, operacionais, que
tinham postura de liderança na EAS para saber se a equipe poderia ir. O mais
estranho é que a Operação Pinça, organizada e liderada por delegados do DEIC,
aplicava a metodologia reivindicada pela EAS em ocorrências de sequestro. Ou seja,
todos os integrantes da equipe dividiam diariamente as informações que surgiam.
Todos estavam por dentro de tudo o que acontecia, apesar de as informações, apa-
rentemente, estarem “compartimentadas”, no contexto do DEIC.

19h23min

A discussão prosseguia incômoda e divisória. Foi interrompida somente com o


toque do meu telefone. Coloquei no viva-voz porque era a escuta de Caniço.

– Ô, rapaz – dizia Caniço para seu interlocutor.


– Fala, amigo – a voz era parecida com a de Milanês.
– Vamo juntá os amigo na churrascaria hoje, tá?
– Vamo fazê, vamo fazê.
– Todo mundo tá avisadinho já, tá?
– Tá bem, tá bem, mas...
– Hã?
– Quando?
– Tipo, oito hora. Em uns quarenta minuto a gente se vê lá, tá?
– Tá.

Ninguém parecia normal. Aliás, ninguém poderia estar normal. Olhávamos a foto
impressa do local onde o nosso alvo estaria em 40 minutos. Todos se levantaram.
Alguns gritavam para irmos logo, outros batiam cabeça. Teve gente escorregando sem
saber o que fazer, gritando para pegarmos os vagos na chegada do estacionamento.

– Vamo lá! – Miranda se manifestava, correndo e abrindo a porta da sala, segui-


do por alguns colegas.
– Calma, pessoal! – pedia o Robledo, gritando na sala. Não sei se a gente deve ir
nessa. A ação é de alto risco.
– Eu também acho...não dá pra se atirar desse jeito! Podemos esperar outra
oportunidade – delegado Toniolo contribuía com Robledo.
– Olha, pessoal, é a chance – sugeriu um dos delegados catarinenses que acom-
panhavam o caso, fazendo com que o ímpeto da maioria engolisse a tentativa de
Robledo e Toniolo.
– A gente precisa de um planejamento. É a oportunidade. É agora! Mas vamo
planejá o negócio – insistia Gaspar.
– Vamo organizá a entrada no local – a declaração de Josué se uniu a outras ma-
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nifestações de apoio, que pesaram mais. A invasão foi definida naturalmente para
aquele momento – Gaspar, tu que tá indo lá direto, o que tu acha? – terminava a
pergunta e olhava para o diretor Robledo que fez sinal afirmativo, desistindo de se
opor à ideia, voto vencido.
– Olha, delegado... – Gaspar pega a foto impressa e escreve os nomes – ...co-
locaria dois em cima do telhado que dá pras piscina do Clube Atlético Barquense
à esquerda do estacionamento, o Latorre e o Alencar, talvez. Dois mais na parede
oposta, o Cléber e o Odilon. E, como acho que só vai restar os fundo para eles ten-
tarem fugir, a gente cobre o acesso traseiro do estacionamento com três na rua de
trás, na frente da escola. Talvez o Miranda, o Andrade e o Fidélis? – mostrava para
todo o grupo que se aglomerava às suas costas para acompanhar a sinalização na
foto – Agora, quem poderia empurrá?
– Quem sabe a gente fica à esquerda da entrada do estacionamento, na rua, pra
esperá o melhor momento, de acordo com o que o pessoal do ponto de observação
nos disser – acrescentava delegado Josué – Acho que poderia ser tu mesmo, Gaspar,
o Dirceu, o Fontoura e o Belmonte e eu. Quando for dado o ok, a gente mete.
– Seu Hermínio – motorista e braço direito do diretor do DEIC, que contava com
suficiente confiança do grupo – Pode ficar com o fuzil e estacionar a Saveiro no portão
do local pra tapar a entrada quando a gente estiver dentro. Montamo uma ratoeira mes-
mo – sugeriu alguém.
– Certo. A gente tem que tá bem calçado pra isso porque é certo que eles vão tá
bem calçado também e não vão aceitá – salientava Fontoura.
– Não, tudo bem. A gente tá com fuzil e metralhadora aí, vambora! – dizia Fi-
délis.
– Sim, e quem for empurrá fica com os fuzil – repetia Miranda.
– Vambora, então! – disse Robledo, o “voto vencido”.

A equipe da Operação Pinça nem chegou a receber a resposta negativa à consul-


ta aos integrantes da EAS. Estes, por sua vez, receberam a sondagem com surpresa.
Não foram formalmente convocados e preferiram não se arriscar, levando em conta
o episódio do camping no Litoral Norte, quando o integrante de outra delegacia
arcou com todo o ônus.

Terça-feira, 22 de fevereiro
Centro de Canoas, avenida das Ostras
Ponto de Observação no Edifício Profissional Jurerê
Ponto de vista de binóculo
19h55min

Cleiton, Litto, Cláudia, os delegados catarinenses, o gaúcho Robledo e eu es-


távamos no ponto de observação, no apartamento locado. A tarefa da equipe era
orientar todos os policiais que estavam nas ruas em volta da garagem, em função da
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visão privilegiada, apesar da noite que caia.


Gaspar e delegado Josué estavam na rua ao lado do estacionamento, em uma
viatura cujo porta-malas levava um fuzil sobressalente. Em outra viatura, estacio-
nada atrás deles, Belmonte e Fontoura aguardavam comando. As duas equipes tinham
submetralhadoras 9mm Taurus MT-12, carabinas CT-40 e um fuzil 762. Era o grupo
da inundação. Em frente à “churrascaria”, escorado na grade do estacionamento do Fó-
rum de Canoas, Dirceu. Seu Hermínio colocaria o carro na frente da entrada da “chur-
rascaria” quando os vagos chegassem.

20h05min

A nossa esquerda, observamos a aproximação de um Vectra branco. Pela hora,


pareciam um pouco atrasados. O carro suspeito passou pela frente do nosso prédio,
fez o retorno para o outro lado da via e entrou na “churrascaria”. O Brava chegou da
BR e entrou à direita no estacionamento. O telefone de Litto tocou.

Ponto de vista de Litto

Olhei o bina, era Gaspar.

– Fala.
– Litto, passô o Vectra. A gente conseguiu vê que o Milanês tá no carro. E no
Brava? É o Caniço?
– Olha, é complicado falá.
– É ou não é?
– De onde eu tô não consigo vê quem tá no carro, cara, mas uma coisa confere
– falava, segurando o telefone com uma mão e o binóculo com a outra – Tem um
Vectra branco dentro do estacionamento e um Brava também estacionando agora.
– Tá, tá, tá, mas descreve o boleia do Brava?
– Cara...olha, o cara não saiu do carro ainda, mas parece ter a pele escura e o cabelo
batidinho como o do Caniço, mas não tenho condições de falá com certeza, véi – fiz
uma pausa, peguei o binóculo, tentei visualizar melhor a placa, não consegui. Peguei a
Paraguaia, fiz um zoom e prossegui – Sim, sim... confere que é o Brava da placa levanta-
da pelos guri IGH 4**9. É o mesmo bicho de hoje de manhã, o motora deve sê o mesmo.
– Tá, mas então é o Caniço mesmo ou não?
– Cara, não sei. Vô passá aqui pro delegado Robledo.
– Eu vô passá pro delegado Josué – Gaspar também preferiu deixar a decisão
para “quem decide”.
– Sim? – dizia Robledo, ao meu lado.
– ...
– É, mas não temo certeza daqui – ele dizia, pressionado pelos dois delegados
catarinenses que insistiam que aquele era o momento.
– ...
137

– Tá. Então vamo metê.


– ...
– Bora, vamo metê.

Ponto de vista de Dirceu


20h08min

Vi os colegas dobrarem a esquina correndo, com fuzil e carabinas em punho.


Percebi que era a deixa pra empurrar o estacionamento. Puxei a arma e nem olhei
pros lados. Desgrudei-me da grade do Fórum e me juntei aos outros quatro forte-
mente armados que se aproximavam do portão de acesso da tal “churrascaria”.
Latorre e Alencar acessavam o telhado da sequência de vagas da direita da en-
trada do estacionamento. Tivemos contato visual com os vagabundos, ambos esta-
cionaram e já deixavam os veículos quando entrei.

Ponto de vista de Miranda

Andrade, Fidélis e eu chegamos à rua atrás do estacionamento. Nossa missão era


não deixar ninguém pular o muro da retaguarda do estacionamento, que, apesar de
alto, era possível de ser transposto. A ideia era sufocá-los. Transformar a “churras-
caria” em uma ratoeira. O problema é que havia o terreno baldio antes de chegar ao
limite traseiro do estacionamento dos vagos. Tínhamos que pular um muro inter-
mediário, de altura média, antes de chegar até o nosso posto.
Consegui. Andrade foi o segundo. Vi quando ele subiu e olhei pra frente.

– Baaahrg! – ele emitiu o som e, em seguida, ouvi o barulho do concreto quando


ele “desceu”, caindo no mato, abraçado ao que restava dos tijolos que não resistiram
ao seu peso. O colega tombou, e feio.
– Tudo bem, tudo bem? – perguntei.
– Vambora, vambora... – ele respondia, batendo no corpo para tirar o excesso de
concreto, já ouvindo os primeiros tiros no estacionamento.

Dirigimo-nos a uma brecha na quina da cerca do estacionamento, onde havia


apenas arame, não mais concreto. Ali, conseguia a vista necessária para impedir
qualquer vago de pular o muro dos fundos.

Ponto de vista de policial no pátio do estacionamento

Vi Arsênio se distanciar do Brava que havia estacionado em uma das úl-


timas vagas à minha esquerda. Milanês sacou a pistola e se escondeu atrás do
Vectra, na linha de vagas cobertas à minha direita. Gaspar deu tiros para o chão,
na direção de Arsênio. O mesmo foi feito por um colega que estava com uma
138

submetralhadora, na direção de Milanês. Ao ver o deslocamento do vago com


pistola, colegas de cima do telhado começaram a atirar para baixo, através de
uma brecha entre o telhado do estacionamento e o muro do clube.

– Fica parado que é polícia! – Miranda gritava ao meu lado, ameaçando de


matraca também, procurando Milanês, que aquela altura se escondia embaixo do
veículo, talvez percebendo que não tinha chance, diante de tanta arma pesada.

Arsênio fez menção de voltar para dentro do carro, mas Gaspar atirou novamen-
te perto do Brava.
Os vagos insistiam em tentar se esconder. Arsênio era o mais prejudicado por ter
se distanciado do carro o suficiente para Gaspar o imobilizar. Milanês parecia não
querer se entregar também.

Ponto de vista de Gaspar

Notei que os tiros que vinham dos colegas que estavam em cima do telhado
tocavam no chão, perto de Arsênio e de mim. Eram tiros para inibir Milanês de
ensaiar qualquer reação, uma vez que ele permanecia entocado entre os carros, mas
armado com uma pistola. Supus que a intenção era atirar para não deixá-lo reagir.
A questão é que um tiro daqueles poderia ricochetear no chão de concreto e sobrar
para mim, que estava no meio do pátio.

– Deita! – gritei, ameaçando Arsênio com a carabina CT-40, com aspecto seme-
lhante a um fuzil, o que deve tê-lo assustado.

Ele obedeceu. Pulei em direção ao homem deitado, agachei-me e o puxei pela


perna esquerda, o arrastando, para que saíssemos da linha dos tiros, próximos aos
carros estacionados do lado oposto aos colegas que atiravam do telhado à direita da
entrada do estacionamento e já furavam a lataria dos carros.

Ponto de vista de policial no pátio do estacionamento

– Desiste, meu! – gritava o delegado Josué, talvez pensando que o Milanês esti-
vesse respondendo aos tiros pelo barulho.
– Sai daí, meu! Vou me aproximá e tu larga a arma pra eu vê – sugeria Fontoura.
– Cabô! – Miranda ameaçava atirar próximo ao Vectra.
– Tá bom, tá bom! Não atira! – Milanês gritou e jogou a arma no meio do pátio,
parecia uma pistola 9 mm. Não tinha chance.

Deu um tempo e saiu do meio dos carros com as mãos pra cima. De cima do
139

telhado, uma algema cruzou o estacionamento próximo a Gaspar. O colega se


levantou e algemou Arsênio.
Milanês saiu debaixo dos carros em direção ao pátio e ergueu a cabeça. Miranda,
Cléber e Josué se aproximaram para efetuar a prisão. Vários colegas que estavam do
lado de fora do estacionamento começavam a aparecer. Não reconhecendo Caniço,
alguns instintivamente o procuravam embaixo dos automóveis. O alvo da Pinça
poderia estar escondido no estacionamento.
Começavam a ser ouvidas as sirenes das viaturas da Brigada Militar, cada vez
mais próximas. Uma mulher deixava a sala dos funcionários da oficina interna do
estacionamento. Abraçada a um homem, deslocava-se atônita, hesitando em se
aproximar do Gol ao lado do Vectra, lamentando as perfurações no carro. No meio
da confusão, um celular começou a tocar.

Edifício Profissional Jurerê


Ponto de vista de Cleiton
20h10min

Eu pensava em descer para ajudar nos procedimentos de prisão no estaciona-


mento, mas o chamado do celular provocava inquietude. Era número de grampo.
A escuta de Milanês, que recém fora preso lá embaixo. Coloquei no viva-voz para
todos da sala acompanharem. Fui até a janela e percebi que Fontoura ia em direção
ao Vectra no estacionamento, talvez ouvindo o celular chamar. Não o enxergávamos
mais, porque estava tapado pelo telhado.

– Alô – Fontoura atendia o telefone de Milanês no estacionamento.

Todos fizeram silêncio na sala para ouvir o grampo:

– Ô, rapaz, tô chegando em cinco minutinho, tá? Tá... – Caniço comunicava


que estava prestes a chegar ao encontro da dupla. Perguntava, respondia e desligava.

Olhei para baixo, na frente do estacionamento, os giroflashes da Brigada Militar


iluminavam toda a avenida e apagavam a possibilidade de chegada de Caniço. Ele
não seria otário. Fomos ao elevador do prédio, descemos e colocamos os pés no
asfalto da avenida, em uma noite de exceção. O tumulto obstruía a via. Populares
acorriam às janelas e às portas dos condomínios. Os fregueses dos barzinhos à volta
deixavam a cerveja, curiosos com a movimentação.
Entramos na “churrascaria” para ajudar os colegas, na certeza de que não seria
naquela noite que pegaríamos Caniço. Por cinco minutos, não atingimos nosso ob-
jetivo.
141

NEXUS E COMPLEXUS
Quinta-feira, 16 de fevereiro do QUINTO ano de caçada
Bairro Mathias Velho – município de Canoas
Automóvel Mondeo vermelho alugado,
com três policiais da Pinça
Conversa telefônica de Pinguinho, conhecido de Milanês, recebendo
ligação de pessoa não identificada
Ponto de vista de Guardião
20h35min

– Alô.
– Eaí, meu... tá me ouvindo?
– Como?
– Ô, meu, tá me ouvindo?
– ...
– Tá ouvindo?
– Ahã, agora tô. Eaí?
– Tudo bem. Tudo bem. Vem cá?
– Hã?
– Vai sair um dos cavalo pra nós também ou não?
– Bah, meu, acho que agora não é. Espera. Espera mais um tempo.
– É que tu disse, né, meu... tô só lembrando. Mas tá na boa, né?
– Olha, mano, acho que tem que dá mais um tempo. Eu vou subi aí pra cortá
mais algumas grama e daí a gente conversa, tá?
– Tá, mas é que o amigo teve aqui e me deixô um carvão aqui.
– Tá, mas o que tu... Não. Diz pra ele me esperá que a gente vê junto o negócio,
daí, tá?
– Ãhã.
– Mas não te perde. Não te perde que a gente vai vê junto isso aí, tá?
– Tá bom, então, meu.
– Tá bom então. Falô.
– Falô.
142

Um integrante da Operação Pinça monitorava o diálogo na companhia de outro


policial. Ele ligara para o Guardião e esperava a repetição natural da ligação.

Sexta-feira, 17 de fevereiro
Prédio da Superintendência da Polícia Federal - Avenida Ipiranga
Gravação do grampo de integrante da Operação Pinça que também
participara da investida no camping no Litoral – o agente é chamado
de “X” para ter a identidade totalmente preservada
Ponto de vista de Agente Florêncio, da Corregedoria da Polícia Civil
18h37min

O equipamento disponibilizado pelos fredericos tinha esse ponto negati-


vo, obrigava-nos a puxar as gravações feitas pela PA na Superintendência da
Polícia Federal, pelas “parciais”. Não conseguíamos ter acesso às escutas em
nossa base ou nos nossos telefones celulares, como estávamos acostumados.
Dava trabalho, mas tinha muita coisa preciosa ali dentro. Foram grampea-
dos três telefones celulares do diretor do DEIC, delegado Robledo; um do
delegado Pires e também tivemos acesso a todas as conversas de agentes que
participaram da investida no camping da Lagoa de Itaramã, que resultou na
morte do menino ATM.
Eu não sabia detalhadamente, mas corria um boato na SJS de que havia
uma operação especial do DEIC para prender o Caniço. Possivelmente po-
liciais da delegacia Alfa, que estávamos grampeando, também interceptavam
nomes em torno de Caniço. Nesse dia, aconteceu algo, digamos, diferente,
que eu nunca tinha visto, mas já tinha ouvido falar que poderia acontecer:
fizemos o “grampo do grampo”.
Isso ocorre quando grampeamos um telefone celular utilizado para es-
cutas telefônicas. É possível, assim, ter acesso não somente ao conteúdo das
ligações do nosso alvo, mas às escutas que ele está fazendo. Quando entra
uma interceptação feita pelo telefone que estamos escutando, conseguimos
gravar tudo o que, eventualmente, o nosso alvo pode falar e ouvir, inclusive o
grampo que ele esteja fazendo. Ou seja, ouvimos tudo o que ele ouve no seu
grampo e ainda qualquer barulho que ele emita ao telefone. É meio confuso,
mas possível. O esquema seria “A” escuta “B” que escuta “C”. “A” tem acesso
não somente ao áudio de “B”, mas ao áudio de “C”, quando “B” estiver ou-
vindo “C”.
O equipamento que usávamos na Polícia Federal interceptava quaisquer chama-
das que chegassem aos telefones dos policiais monitorados. Muitas dessas ligações
recebidas pelos aparelhos dos policiais eram grampos telefônicos por eles solicita-
dos. A PA dos fredericos gravava na carona os grampos que os colegas escutados
faziam. Ou seja, tínhamos acesso a todos os áudios das ligações que passavam pelo
telefone de “X”, incluindo suas interceptações.
143

Nesse dia, escutei uma chamada que era, na verdade, o grampo que um colega
investigado por nós fazia do telefone de um vago. Ele parecia dentro de um carro
com outro agente do DEIC, que não consegui identificar. Percebi, pela gravação do
aparelho da PF, que ele pedia para o colega ficar quieto porque queria ouvir os vagos
que grampeava.

– Pára aí, meu... só um pouquinho que eu quero entender o que esses vago tão
falando – dizia “X” para o colega, que insistia em conversar enquanto ele escutava o
diálogo de Pinguinho ao telefone {“Eaí, meu tá me ouvindo?”}
– Não, eu falei pro Itaqui, mas ele não quis me ouvir. Se encarnaram no troço –
dizia o colega, cuja voz também era captada pelo telefone grampeado de “X” – {“Tá
me ouvindo?”} – Ao invés de nos investigá eles tinhu é que tê ajudado a gente a fazê
o serviço, dá material e tudo. Como é que ele souberam desse fuzil? {“Ô, meu tá me
ouvindo?”} – o colega ignorava o apelo de “X”.
– Só um pouco velho, deixa eu terminá de ouvir os vago aqui – implorava “X”
{Ahã, agora tô. Eaí? – Pinguinho falava ao fundo}.
–... {“Tudo bem. Tudo bem. Vem cá?”} – o colega respeitava o apelo e fazia
silêncio.
– ...{“Vai sair um dos cavalo pra nós também ou não”} – “X” aproveitava o silên-
cio do colega e tentava se concentrar.
– E eles ainda tão procurando esse troço. Perda de tempo – o colega voltava a
falar, atrapalhando a escuta de “X” {“Bah, meu, acho que agora não é. Espera. Espera
mais um tempo” – Pinguinho era escutado por “X”}.
– Ó aí, ó, parece que vai tê coisa, ó – “X” tentava chamar a atenção do colega pra
escuta que fazia {É que tu disse, né, meu... to só lembrando. Mas tá na boa, né?}.
– ... {Olha, cara, acho que tem que dar mais um tempo. Eu vou subir aí pra cortar
mais algumas grama e aí a gente coversa, tá?}.
– Sabe por que a Operação Dilúvio se chama assim? Porque se todos os polícia
chorassem a falta de arma, material e infraestrutura, Porto Alegre teria um dilúvio
de lágrimas, com as pessoas andando em barcas pela cidade – dizia “X”, rindo, já
desconcentrado, contando que outros colegas da equipe possam ter entendido a
conversa grampeada {“Tá, mas é que o amigo teve aqui e me deixou um carvão
aqui.”}.
– ... {“Tá, mas o que tu... não, diz pra ele me esperá que a gente vê junto o negócio,
tá?”}.
– ... {“Ahã”}.
– ... {“Mas não te perde. Não te perde que a gente vai vê junto isso aí, tá?”}.
– Olha, quer saber, foda-se! Acho que a gente não fez nada de errado. O que
aconteceu no camping foi pura fatalidade. Foi realmente triste, mas uma fatalidade.
Podia ter acontecido com qualquer polícia {“Tá bom, então, meu.”}.
– Claro que poderia ter acontecido com qualquer um...ninguém ficou feliz com
o troço {“ Tá bom então. Tchau”}.
144

20h39min
– Alô?
– Delegado, é o Florêncio.
– Oi! E aí?
– Acabei de escutá o “X”.
– E...
– Ele fala sobre o fuzil com um outro policial enquanto faz a escuta de um vago.
Não consegui identificar com quem ele conversava, mas acho que o cara não estava
em Erê.
– Eles deixam claro que atuaram com fuzil em Erê, Florêncio? Tu tem certeza?
– Absoluta, delegado. Foi registrado do telefone do “X” no momento em que eles
também faziam uma escuta telefônica – completei, com a certeza de que ao telefone
seria meio difícil explicar – Amanhã a gente ouve junto, ok?
– Ok. Vemos isso amanhã então. Tchau.

Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 8° andar


Gabinete do secretário de Justiça e Segurança, Gilberto Silveira Bins
Ponto de vista do quadro emoldurado do governador Armindo Peixoto
Eram as últimas semanas do secretário de Justiça e de Segurança Pública no
cargo. O contexto não era dos melhores. Gilberto Silveira Bins estabelecera a prisão
de Caniço como prioridade, mas isso não significava que somente a Operação Pinça
trabalhava em cima de sua captura. Todas as forças estavam atentas a isso, e a ânsia
na SJS era tão grande que quem o pegasse primeiro certamente gozaria de prestígio
fora do comum junto à cúpula da segurança.
Em ano eleitoral, a prisão de Caniço tinha valor especial. Seria mais um ponto
a favor de quem precisa mostrar trabalho para merecer o voto do cidadão. Todo o
político é assim. Nas reuniões com os delegados, Bins costumava deixar bem claro
o quanto gostaria de ver o “delinquente” atrás das grades antes de sair da Secreta-
ria para reassumir as suas funções como deputado federal em Brasília. Não exercia
pressão evidente. Entretanto, muitos encaravam a data de saída do secretário como o
acionar de uma bomba relógio. Quando ele fosse embora, em pouco tempo poderiam
acabar os recursos extras e a vontade política. A operação poderia ser “explodida”.

Porto Alegre, bairro Centro


Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 6° andar
QG da Operação Pinça
Ponto de vista de Andrade
19h10min

Depois da investida no estacionamento em Canoas, todas as escutas da quadri-


lha “caíram”, como já era esperado. Os relacionamentos diretos de Caniço mudaram
145

números telefônicos. Tivemos que manter grampos suspeitos e, ao mesmo tempo,


voltar a ouvir vagos periféricos que detinham a nossa atenção há dois meses ou mais.
Escutávamos novamente Fofo Ledo, por exemplo, que se comunicava utilizando um
telefone celular grampeado – mesmo guardado em penitenciária de alta segurança.
O que talvez tenha agilizado a recuperação de algumas escutas telefônicas foi o
fato de estarmos bastante familiarizados com a análise de grampos. No mês de mar-
ço, depois de mais alguma choradeira e de o secretário ter visto o nosso desespero
durante algumas investidas, talvez querendo dar uma última cartada para prender
Caniço antes de sair do cargo, fora concedido um novo “direito” à nossa Estação
Remota. Agora, além de ouvirmos os grampos quantas vezes quiséssemos, também
distribuíamos as recorrências para a equipe de rua. Era a desburocratização defini-
tiva da análise e acesso aos áudios.
Não era necessário mais ligar para um “guardião do Guardião” e esperar que ele
enviasse as repetições dos áudios para o telefone celular. O secretário assinava uma
alforria parcial ao grupo da Operação Pinça. A boa vontade da política de “portas
abertas” atingia seu momento máximo. Dominávamos o programa de computador
Guardião, tendo acesso inclusive a outro software chamado Nexus – capaz de mon-
tar rede de relacionamentos a partir das ligações de um único aparelho, seguindo
as ligações dos telefones identificados como interlocutores do alvo. O programa
identifica grupo de potenciais “escutados” e também serve como instrumento de
rastreamento de eventuais fraudes no Guardião.
Todos pareciam empolgados, mas, francamente, a última concessão significava
muito mais por seu valor simbólico do que prático. Depois de anos de reivindicação,
uma equipe operacional da Polícia Civil gaúcha experimentava direitos inéditos na
etapa de análise de informações de uma investigação. Atingíamos distância inacre-
ditável dos “guardiões do Guardião”, embora a obrigatoriedade de fornecer cadastro
dos alvos a serem escutados e entregar renovações de alvarás de grampos permane-
cia a mesma, uma vez que se tratava de um procedimento legal e necessário para o
controle.
Os colegas do Estado que não participavam da tentativa de pinçar Caniço ainda
estavam na situação de terem seus telefones celulares conectados a um sistema “si-
ga-me”, que permite única e exclusivamente ouvir o alvo e se submeter a repetições
autorizadas pelos guardiões. A falta de conhecimento técnico sobre o programa era
o maior obstáculo para andarmos com as nossas próprias pernas. A verdade é que
a gente só tinha uma chance de saber o potencial e dominar todos os recursos em
tempo hábil de aproveitá-los na operação – se algum dos “guardiões do Guardião”
aceitasse engolir as rivalidades e picuinhas da SJS e nos ensinar algo.
E, por incrível que pareça, foi o que aconteceu.
Um belo dia, um dos “guardiões do Guardião” acordou magoado com seus
superiores. Ele havia sido deslocado para outra tarefa a contragosto e queria cha-
tear alguém. Revoltado, o dissidente não poupou esforços para nos ajudar. Nosso
“herói ferido” nos ensinou não somente a manipular, mas também a burlar algu-
mas regras. Por meio dele, soubemos finalmente como funciona o Vigia – sistema
146

utilizado pelas operadoras telefônicas para gerenciar uma interceptação legal. O


programa possibilita a localização da Estação Rádio Base (ERB) mais próxima
do telefone grampeado, estabelecendo o azimute da área onde ocorreu a ligação.
Também é possível saber os históricos das ligações de determinado alvo, entre
outros itens. Com contatos nas operadoras, driblamos os “guardiões do Guardião”
também nesse item, conseguindo acessar as ERBs pela internet. Era mais fácil do
que pensávamos.
O guardião dissidente ampliava a nossa alforria para entrar para a história da
Polícia Civil do Rio Grande do Sul e, creio eu, nem se dava conta disso. Um tabu na
segurança pública do Estado era quebrado. Finalmente, policiais civis – um grupo
restrito, claro – extremamente operacionais, manipulavam o mitológico Guardião
e seus apêndices. Era a queda do mito. A conclusão que tirávamos é de que alguém
mantinha o acesso ao Guardião restrito e nutria a necessidade de existência de seus
guardiões para se manter indispensável ou protegido. Esse alguém queria preservar
laços estreitos com o Ministério Público e com o Judiciário, porque o MP tinha am-
plos poderes sob o Guardião há algum tempo, ou também queria limitar eventuais
investigações que lhe tocassem.
O “alguém” também tinha realmente poder para barganhar a fim de continuar
controlando o sistema, uma vez que sua voz tinha peso e era persuasiva no âmbito
da SJS. A origem dessa força é motivo de teorias que conectam muita gente im-
portante do Estado. O que é certo é que, como diria um colega bastante ativo nesta
história, “quem tem informação sigilosa, tem como negociar qualquer coisa”.
A Operação Pinça entrou em março com Ariosto, Cláudia e Regiana nas ma-
drugadas, checando todas as conversas telefônicas dos investigados naquele período.
O volume de escutas era imenso. No final do mês, estaríamos com quase 200 gram-
pos solicitados, segundo dados oficiais.
Investigávamos um sítio em Viamão onde havia relacionamentos diretos de
Caniço. Informantes haviam dado que o local poderia servir de esconderijo, in-
clusive para dinheiro de assaltos. Suspeitava-se de que o nosso alvo poderia ter
enterrado cédulas no terreno. Equipes fizeram várias campanas no ponto para
tentar surpreender o assaltante, mas não houve nada de concreto. Com a des-
burocratização das escutas, o leque de interceptados ganhou vazão jamais vista
por aqueles agentes anteriormente. A equipe notava que os principais nomes do
crime organizado radicados no Rio Grande do Sul estavam sendo monitorados.
As redes de relacionamentos desses criminosos estavam se entrelaçando e isso
facilitava nosso controle. A malha ficava cada vez mais fina e peixes grandes
estavam na rede.
Desde o início de fevereiro, a estratégia foi se debruçar também sobre Miro Ba-
tata (MB). Sabíamos que ele e Caniço eram cabeças de duas quadrilhas que usavam
a mesma mão de obra. Chegamos muito cedo a MB, graças a um sujeito investigado
pela Delegacia Gama, Lindomar Rushol de Vargas, vulgo Beleza. Criminoso que
cumpria pena no regime semiaberto.
147

– Litto, Gaspar, Cléber e Odilon, vocês descobriram uma história sobre o MB,
né? Permanecem na escuta aquela, né? – Toniolo puxou o assunto, se referindo a
Miro Batata.
– Sim, tamo na escuta dum cara que a gente suspeita que pode tá esperando o
Caniço prum trabalho aí – respondeu Litto.
– É o Beleza, né? – sugeriu Pires.

Alguns tinham a tese de que esse “novo” nome poderia ser a ligação entre Caniço
e MB, porque seria peça acessada pelos dois líderes de quadrilha. Ao mesmo tempo,
voltava o receio da junção de dois pesos pesados para ações contra carros-fortes,
empreendimento criminoso no qual ambos eram especialistas. Quem sabe, com a
“neutralização” de Taquarinha, MB via a necessidade de contar com os serviços de
Caniço? Ninguém sabia.

– Isso. Pelas gravação que a gente tem analisado, a dificuldade é decifrá um


código que eles tão usando direto. O Beleza tá falando num tal de Nego Zé – Lit-
to coça a cabeça, hesita, mas completa – Putz, pra nós essa merda não tá dizendo
absolutamente nada.
Os colegas se olham, alguns ensaiaram sorrir, mais pelo jeito de Litto contar a
história do que pelo tema.
– Eles chegavu a apontá alguma situação envolvendo um trabalho grande, usan-
do palavras como notas, serviço, amigo, “Ele”, “máquinas” e “CB”.
– Vocês quatro continuem nisso, tá bom? Essas escutas tão com vocês? Assim
que surgir mais informações, dividam. O resto continua naquela situação que com-
binamos ontem, tentando ver se o Caniço cai na rede de novo e ouvindo outros vago
pra prever onde ele vai tá, tá bom? – pedia Josué.

Segunda-feira, 6 de março
Conversa telefônica de Beleza
Ponto de vista de Guardião
18h10min

– Opa, e o “amigo”? – um homem pergunta por Beleza.


– Só um momentinho – pede uma voz feminina. Ela passa o telefone dizendo
que é um “amigo”.
– Oi – atende Beleza.
– Oh, “amigo”. E e aí?
– Oh! E aí, “amigo”? – responde Beleza.
– O Negão Zé, aquele nosso amigo, ele é sentido bairro-centro à direita, ele é
bem na frente da “CB” aquela.
– É, então é aquele que eu tava lá mesmo.
– Ele é o vermelho, né?
– É – Beleza responde sem muita certeza.
148

– Tá é o vermelho. Não é o gremista, é o colorado, tá? Que tem o gremista que é


da mesma, mas não é. Tem uma banca de revista, né, amigão?
– Hum?
– Né? Tu viu, não?
– ... – parece não ter entendido.
– Teeeem, fica bem na calçada – o homem insiste com Beleza.
– Ahã, eu sei. Do outro lado tem o “te (inaudível)”. Do outro lado da calçada.
– Isso, e tem uma banquinha de revista, né?
– Humm?
– Tem uma banca de revista, tu viu?
– Banca de revista?
– Isso. E fica bem na calçada. Ali que o amigo faz anotação das máquina de
sorvete. Fica na calçada.
– Mas tem um ponto de táxi na frente, em todo ele.
– Não, acho que não. É o vermelho. Tem o azul, mas é o vermelho. Só tem um
que tem a CB, aquela. Tá?
– Ahã. Eu sei.
– Tá? Então, amanhã tu dá uma olhada lá e daí?
– Eu vou lá cedo de novo e daí eu te falo amanhã, tá?
– Não, porque diz que passaru lá. O outro amigo, que veio falá comigo, disse que
era aquilo ali mesmo.
– Passaru mesmo?
– Siiiim.
– Um amigo me perguntô... Tambéééém fica do mesmo lado, o Negão Zé. Tu
chega e para do mesmo lado.
– Ele para bem na ponta do Nego Zé, lá – explica o homem.
– Ah não. Então tá. Não, não...amanhã eu vô tá lá.
– Isso, ele para bem na calçada do Nego Zé.
– Amanhã eu vô tá lá. Então tá?
– Bem na calçada...fica bem na calçada do Nego Zé, lá.
– Não, então deixa comigo.
– Tá bom então.
– Feito.
– Tá bom então.

Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 6° andar


Ponto de vista de quadro do governador Armindo Peixotto
Terça-feira, 7 de março
20h20min

Litto, Gaspar, Odilon e Cléber debatiam sobre o que tinham referente ao tal do
“Nego Zé”.
149

– Eu acho que o troço vai ser forte – Odilon dizia, tomando um gole de café.
– Acho que sim... tão falando demais as mesma coisa sem sentido – respondia
Gaspar.
– Ninguém ouviu nada sobre autoestrada na Serra, no Vale do Rio Pardo? – per-
guntou Cléber, com a agenda aberta sobre a mesa.
– Não. E a mão de obra parece ser mais ligada ao MB, mas dão a entendê que o
Caniço pode entrá. Cara, tanto o time do MB como o do Caniço são do ramo. O
Beleza só pode tá fazendo o meio campo pros dois – Gaspar especulava.
– Apesar do grampo do telefone do Beleza, não tem nada concreto sobre o que
os dois time tão tramando, se é que tão tramando algo junto – Litto levantava-se e
abria o notebook para reproduzir algumas escutas armazenadas.

22h53min

A equipe se deu conta de que, entre os números telefônicos que realizavam cha-
madas para o aparelho, estava um orelhão na avenida Protásio Alves, uma das mais
importantes de Porto Alegre. Diante de diálogos citando reiteradamente a Protásio,
o número do tal telefone público ganhou imenso valor.
– Meu, o orelhão fica na Protásio Alves com a Carazinho – dizia Odilon, sem
aparente pretensão, destacando informação coletada junto à companhia telefônica.
– Tchê, Protásio Alves... O que um vago que as antena davu sempre fora de
Porto Alegre, de uma hora pra outra, surge com um orelhão na Protásio? E umas
ligação cheia de informação! – pensou Litto.
– Cara, vamo fazê o local?– sugeriu Gaspar.

Nós quatro descemos ao estacionamento da Secretaria e saímos com um carro


locado em direção a Protásio, para as proximidades da Carazinho.

Quarta-feira, 8 de março
Protásio Alves com Carazinho
Ponto de vista de Odilon
0h36min

Paramos em frente à Caixa do Brasil, que tinha na Protásio quase esquina com
a Carazinho, onde havia o orelhão identificado. Saímos da caminhonete e paralisa-
mos na avenida. Sem sabermos por onde começar, fomos até o ponto de ônibus para
não dar bandeira, ficando no local por alguns minutos olhando a região.
O pouco movimento da via na madrugada fazia os pensamentos acelerarem,
intensos, desesperados para serem expelidos com lógica, originando uma conclusão
plausível, ansiada por todos. Enfim, alguém rompia.

– Meu, “Nego Zé”? – questionei para os quatro.


150

Olhávamos para todos os lados procurando algo que não tínhamos noção do
que era.

– Paraí, meu. Só um pouquinho. O cara falou que tinha um ponto de táxi e uma
banca de revista, né? – Litto iniciou a recapitulação.
– Sim. E que era o colorado, não o gremista, correto? – continuava Cléber.
– Sim, e que “ELE” estaria no sentido bairro-centro – Litto olhava para um ponto
fixo, acima do meu ombro – Olha lá, à direita, o CB – apontava para a agência da Caixa
do Brasil – Olha aqui do outro lado da rua, o Negão Zé colorado – indicava o super-
mercado Zeffer vermelho, enquanto eu me virava e identificava o que Litto me sugeria.
– Olha do lado do Zeffer ali, meu...a banca de revista e o ponto de táxi – disse
Gaspar.
– Caramba! – exclamaram Cléber e Litto.
– Bah, não creio! – espantei-me.

O Negão Zé era um código para identificar a unidade de uma das maiores redes
de supermercados do Brasil, o Zeffer.

– Eu não acredito, meu! Eles tão pensando mesmo em metê o Zeffer? – pergun-
tava, ainda eletrizado por conseguirmos decifrar os códigos dos vagos.
– Chamamo o pessoal e fazemo uma campana aqui pra descobri – sugeriu Litto.
– Colocamo isso na avaliação amanhã? – referi-me à quarta-feira, que já come-
çara e não tinha percebido.
– Nada disso. Vamo tentá montá esse troço hoje. Os vago deixaru claro que vão
tá aqui – Litto, pelo contrário, se dava conta de que já estávamos na quarta.

Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 8° andar


Gabinete do secretário Bins
Ponto de vista de Anelise, secretária do secretário de Justiça e
Segurança
14h23min

O policial Eduardo apareceu na antessala do gabinete com aquele sujeito mal-


trapilho e cheio de cacoetes. Vestia bermuda verde de pano, camisa de física azul
com manchas marrons de lama ou piche...Olha, parecia um assaltante.

– Sim, Eduardo – perguntei sem desgrudar o olho do visitante desconhecido –


No que posso ajudar? – acho que o policial até estranhou o jeito que falei com ele.
Estava desconfiada, afinal de contas, e olhava o sujeito de cima a baixo.
– Anelise, o secretário Bins tá nos esperando. Pode nos anunciar pra ele?
– Como? Tá bom – puxei o gancho do telefone e liguei – Secretário, o policial
Eduardo já chegou.
151

– Ah, sim, Ane...pode pedir pra ele entrar, por favor.

Fiquei surpresa pelo aceite. O secretário não costumava receber pessoas tão mal
vestidas. Mas quem sou eu pra criticar, né? Tenho é que fazer meu trabalho.

– Podem entrar – levantei-me, abri a porta e observei o policial e o visitante


estranho entrarem.
– Oi, Eduardo! – disse o secretário para o policial, enquanto eu congelei segu-
rando a maçaneta da porta.
– Esse é o Jucinei – Eduardo apresentava o visitante que apertava a mão do
secretário.
– Um café, uma água? – O secretário perguntava para os dois.
– Um café... – dizia o tal de Jucinei, contraindo a maçã do rosto pelo cacoete,
devia estar nervoso.
– Dois – dizia o policial Eduardo.
– Três cafezinhos, tá Anelise? – o secretário pediu enquanto sentava-se à mesa
juntamente com os convidados, fazendo com que eu recuperasse a consciência e
fechasse a porta para atender ao pedido.

Ponto de vista do quadro emoldurado do governador Armindo Peixoto


14h30min

– Bom, secretário, como foi combinado, a gente foi até o Jucinei e ele se colocou
à disposição desde que a gente garanta algumas coisas pra ele, conforme já tínhamos
conversado – Eduardo abrevia a introdução do contato.
– Queria conversar comigo, não é, senhor Jucinei?
– É...na verdade...qué dizê, eu tenho que tê minhas garantia, né, seu secretário?
– Olha, a gente tem o maior interesse em lhe proteger e, com certeza, tudo o que
o senhor falar para nós será mantido em sigilo. Ninguém vai ficar sabendo.
– Com ceteza, seu secretário. Confio no sinhô – dizia Jucinei com a cabeça baixa.
– Então, o que o senhor tem a respeito do Caniço?
– Bastante coisa... – o sujeito olhava para o policial ao seu lado que, por conse-
quência, olhava para o secretário – Mas como eu falei com as autoridade da poliça
que foru lá em casa, não posso me arriscá sem tê garantias, né, seu secretário? O
sinhô entende, né? Sabe de quem tamo falando.
– Claro. Olha, eu conheço a sua ficha. Sei que o senhor está em liberdade con-
dicional e que continua aprontando – o secretário falava com franqueza para o ho-
mem – Mesmo assim, aceitei falar com o senhor porque acredito que está disposto
a conversar.
– Tô querendo ajudá. Vô dá as informação, mas temo que acertá antes... o senhô
sabe o jeito, né?
– Tá bom, Jucinei. São 3 mil reais, né? Tá. Te damo o dinheiro depois das infor-
mações, ok?
152

– Tá fechado.
– Pode falar, então.

Várias informações dadas por Jucinei serviram para que se fechasse foco em
propriedades rurais de Gravataí e Viamão. Seriam cidades frequentadas por Caniço,
e Jucinei seria alegadamente muito próximo a um contato do foragido. Apesar de
várias pendências com a justiça, parecia um informante precioso. Mesmo assim, os
dias passavam e ele deveria mostrar mais precisão.
153

COMANDO DE TRÂNSITO
Porto Alegre – bairro Petrópolis
Quarta-feira, 8 de março do QUINTO ano de caçada
Campana em prédio diante do supermercado Zeffer
Ponto de vista geral de Litto, Gaspar, Odilon e Cléber
8h15min

A Protásio congestionada, indiferente à sua gente, mormacenta, sintonizada com


o ar sisudo da manhã de nuvens esparsas, que lentamente se dissipavam no céu de
Porto Alegre. Fomos autorizados a conversar com o administrador de um prédio
comercial de doze andares em frente ao supermercado. Montamos a campana no ter-
raço, inventando para ele que investigávamos um suposto ponto de tráfico de drogas.
A missão era tentar identificar os integrantes do bando que poderiam aparecer
na frente do Zeffer a qualquer momento, de acordo com os diálogos que consegui-
mos ouvir nos grampos. A expectativa era de que Caniço surgisse na história.
Beleza apareceu pela manhã na esquina do supermercado. A campana foi complica-
da por causa do sol forte, mas conseguimos tirar algumas fotos com a Paraguaia, regis-
trando a movimentação do vago, que fingia falar ao telefone celular, acompanhado de
uma mulher e outro parceiro. Beleza observava um carro-forte azul marinho, estacio-
nando em frente ao supermercado. Os seguranças saíam do veículo com malotes prova-
velmente vazios e voltavam com os mesmos sacos supostamente carregados. Enquanto
o dinheiro estaria sendo retirado, registramos com nitidez o momento no qual Beleza
acompanha a operação do carro-forte.

Conversa telefônica de Beleza


Ponto de vista de Guardião
19h28min

– Opa!
– Eaí, amigão. Bah, te liguei umas trezentas veiz, cara! – reclama Beleza.
– Amigo, o telefone tá com problema. O Nego Zé tem um número de notas
pra pegá lá, mas acabou não pegando aquelas nota porque não deu certo, entendeu?
154

– Viu? Mas nove e quinze eu tava lá.


– É?
– Pra ti vê que eles parou...e não tem como ficar. “360” tinha lá. É muito praquele
tamaninho.
– É não, não, mas aquele...é 360, é?
– 360.
– O “amigo” me avisô que “Ele” tinha um número de nota pra pegá antes lá, né?
– Nós fiquemo conversando uns quinze minuto (inaudível) depois fomo embora.
– Ele disse que pegô umas nota pra te passá e não pôde te entregá.
– Ficamo um tempo lá e fomo embora.
– Tá. Então é o seguinte, amanhã de manhã...hoje de noite vou encontrá ele
pessoalmente e vejo se entrego estas nota pra ti.
– Tão, tá. Tu vê então tá? Depois te ligo de novo.

Quinta-feira, 9 de março
Campana em prédio em frente ao supermercado Zeffer
Ponto de vista de Paraguaia
10h15min

Essa campana surpreendeu por mais uma vez haver uma superexposição dos sus-
peitos. Consegui registrar parte do grupo que iria atuar no assalto. Os policiais conhe-
ciam as figuras em função de antigas operações. Tínhamos mais imagens deles na es-
quina, observando a movimentação de um carro-forte que parava em frente ao Zeffer.
Depois de alguns minutos, dois carros, um Mondeo e um Meriva, surgiram para
pegá-los. Era evidente que estavam fazendo mais um reconhecimento para uma ação,
provavelmente na sexta-feira. A única dúvida para a Polícia era a participação de Caniço.
Talvez a mesma fonte que dava informações para ele sobre os carros-fortes nas estra-
das, informava também o grupo do Beleza sobre o blindado. A participação de Caniço
poderia se resumir talvez em fornecer informações que só ele teria acesso. Ou participar
efetivamente do assalto. Por isso, os policiais estavam atentos. O alvo da Operação Pinça
poderia estar ali no dia seguinte.

Conversa telefônica de Beleza


Ponto de vista de Guardião
15h15min

– Alô.
– Opa! Eaí, “amigão”?
– E aí, mano.
– É o seguinte, eu falei com o amigo lá. Ele vai ver se o coisa vai tá lá na, na...o
amigo aquele vai podê ir lá na sexta, né? – policiais desconfiavam que ele teria falado
com um contato para saber se Caniço poderia estar na ação da manhã de sexta.
155

– O valor do aluguel é 360? – referindo-se possivelmente à previsão de roubo.


– 360.
– Tá, aí, amanhã tu não precisa ir lá, viu?
– Tá. Amanhã nem tem como. Só posso quinta.
– Então eu falo contigo depois, então.
– Na quinta-feira eu vô vê umas máquina lá de novo, tá?
– Tá bom feito então.
– Tchau.

Porto Alegre, bairro Centro


Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 6° andar
QG da Operação Pinça
Ponto de vista de Cleiton
19h20min

Depois do segundo dia de campana, estávamos indo para uma reunião da Ope-
ração Pinça antes da ação da quadrilha. A suspeita era de que o assalto aconteceria
na sexta.

– Delegado, pelas escuta, o pessoal do Beleza não tá conseguindo contato com o


vago que eles tanto aparentam esperar. Acho que o cara não vai participar da ação
de amanhã. Então, se eles se referem mesmo ao Caniço, é difícil que ele esteja no
negócio – dizia Cléber, que monitorava intensamente Beleza.
– É, acho difícil que ele participe. O Latorre e o Miranda tão acompanhando os
colegas do Paraná e de Santa Catarina lá e confirmaram que gente ligada ao Caniço,
ou o próprio, tirotearam com colegas paranaenses no bairro Cajuru, em Curitiba.
O pessoal da Furtos e Roubos do Paraná achou no local um caminhão e um Audi
roubados em São José dos Pinhais. Tão dizendo que ele também fugiu de um cerco
ontem de manhã lá em serra...serra... – Josué esquecia o nome da localidade.
– No Norte de Santa Catarina, na estrada Dona Francisca. Na fuga, subiram
com um Corolla para lá – Ariosto sabia da história e ajudava o delegado.
– Então...acho difícil os caras participarem desse negócio no Zeffer. As nossas
duas equipes tiveram acesso ao material apreendido e confirmaram que as placa
clonada do Corolla usado durante a fuga foram feitas pela mesma empresa que
produziu as placa clonada encontradas em carros utilizados por assaltos do Caniço
aqui no Rio Grande do Sul. O código da empresa é o mesmo – acrescentou Josué.

O grupo tomava conhecimento de um ritual de roubo a carro-forte interrom-


pido pela Polícia paranaense. O local era Vila Jardim Acrópole, bairro popular e de
infraestrutura precária em Curitiba. Investigações levaram a uma residência onde
estavam estacionados os dois veículos roubados. No que se chama no meio de pe-
chadinha, os policiais chegaram no momento em que quatro homens em um Co-
156

rolla se dirigiam à residência a fim de checarem os veículos. Houve troca de tiros e,


na fuga, os suspeitos deixaram cair um telefone celular cuja agenda havia diversos
números com DDD 51 (Região Metropolitana de Porto Alegre, litoral gaúcho e
Vale do Rio Pardo).
Os curitibanos alertaram a Polícia Rodoviária Federal (PRF), e os quatro ho-
mens do Corolla utilizado na fuga enfrentaram patrulheiros em Santa Catarina. Os
suspeitos abandonaram o veículo fugindo para o mato, à beira da estrada. Foram
localizados cartuchos de fuzis dentro do carro.

– Se o Caniço tá nesse lance do Paraná, deve ser por isso que o Beleza não con-
segue contato a tempo de planejar a ação com ele – supunha Odilon.
– É... pode ser – concordava Ariosto – O Latorre também disse que o pessoal
de Santa Catarina tá achando que eles estavam se preparando para metê um carro-
-forte na região porque encontraram lá um caminhão roubado de São José dos
Pinhais, Paraná. Tem coisa aí, meu... Eles não vão agir aqui, é certo.
– É, e a gente sabe que a região lá da Serra Dona Francisca é freguesa. Tem vá-
rias ocorrências de assalto a carro-forte lá. Acho que temos indícios suficientes para
acreditar que ele não vai estar por aqui amanhã – Pires fechava a questão com a con-
cordância de todos.
– Tá, mas mesmo sem o Caniço, vamo fazê o trabalho, botamo o pessoal do
Beleza em cana. Os cara tão caindo de maduro, tchê – dizia Pires.
– Acho que a melhor ideia não seria essa, delegado – interrompi querendo expôr
o que nós, da campana, achávamos prudente – A gente acredita que o ideal seria
pedir pra Brigada Militar marcar presença ali para espantar os cara. Sei lá... talvez
fazer um Comando de Trânsito na Protásio, com alguns brigadiano, de forma leve.
Uma barreirinha só pra forçá os vago a desistire da ideia do assalto. Talvez assim,
eles deixe o troço pra outro dia, ganhando tempo para voltá com o Caniço. Afinal,
o nosso principal alvo é o Caniço.
– É, a gente entendeu que um dos cara chega a falá com o Beleza em uma das
escuta, que, se o “cara aquele” não se decidi, já tem outro pro lugar dele – acrescenta
Cleiton.
– Tem certeza que é do Caniço que estão falando? – indagava Andrade.
– Não tenho, mas tudo indica que sim... – devolve Cleiton.
– É, delegado, mas a Brigada tem que atuar de tal forma que não desperte nos
vago a suspeita de que tão sendo grampeado, senão eles trocu de telefone e aí ó –
Odilon fecha uma mão e bate com a lateral do punho na palma da outra.
– Entendo – Robledo responde, pensativo.
– A gente acredita que se os brigadiano apenas inibire o assalto, sem efetuá a
prisão nem dá a entendê que sabiam da ação, podemo continuá nas escuta deles e
fazê com que os vago nos tragu o Caniço outro dia no “Nego Zé” – explicava melhor
Litto.
– Tá, deixem comigo que eu falo com o comandante e peço pra ele uma barreira
pouco ostensiva, apenas para inibir o assalto – encarregou-se o diretor Robledo.
157

– Tem mais fotos da campana? Tem algum detalhe a mais? – perguntou Pires.
– Claro, delegado. Identificamo que os integrante da quadrilha do MB pode tá
no ataque que vai acontcê provavelmente amanhã de manhã – Litto abria o com-
putador e mostrava fotos dos dois dias de campana – Aqui tão os encontro, como o
senhor pode vê. E, nas escuta, eles deixu claro que vão tá bem calçado e que o valor
do roubo vai chegar a 360 mil (em torno de 170 mil dólares na cotação do dia).

Todos observaram atentamente as imagens no computador do colega e as expli-


cações.

– Tá fechado então – dizia Robledo – Vamos pra lá pra prevenir, mas o negócio
é não perder as escutas.

Sexta-feira, 10 de Março
Terraço do Centro Profissional Jequitibá
Ponto de vista de Gaspar
6h37min

Litto, os delegados Josué e Pires, e eu aguardávamos a chegada dos vago, que po-
deria acontecer a qualquer momento. Embaixo, as equipes se posicionaram para neu-
tralizar a quadrilha, caso ela fosse efetuar o assalto mesmo com a barreira da Brigada.
Eram 15 agentes e dois delegados em campana na Protásio Alves com a Carazinho,
aguardando o pior.

– Gaspar, tu tá ouvindo alguma coisa? – perguntou Litto.


– Tchê, meu celular não acusa nenhuma escuta desde a noite de ontem.
– Cara, isso tá muito estranho.
– Vou ligá pro Odilon – teclei e escutei o chamado – Ô, meu, cês estão ouvindo
alguma coisa dos vago?
– Olha, Gaspar, não tô ouvindo nada deles há um bom tempo.
– Quem é que tá contigo aí na parada de ônibus?
– O Fidélis.
– Pergunta se ele ouviu alguma coisa dos vago desde ontem à noite? – espero um
pouco e a resposta...
– Nada... o Fidélis também não tá ouvindo nada nas escuta.
– Valeu! – desliguei e voltei a falar com Litto – Velho, ninguém tá ouvindo nada.
– Delegado, o senhor tá ouvindo alguma coisa dos vago?
– Não, Litto, desde ontem eu também não tô ouvindo nada das escuta – respondeu
Josué.
– Miranda?
– Não, Gaspar, nada.
158

Ponto de vista coletivo


9h05min

Notamos a chegada de uma viatura da Brigada Militar. Ela dá duas voltas na


quadra do supermercado Zeffer. Em seguida surgem mais viaturas do Batalhão de
Operações Especiais. Duas S-10 da Polícia Militar estacionaram em frente ao local
onde o carro-forte geralmente para. Seis viaturas começaram a dar voltas na quadra
de forma ininterrupta. Elas não se aproximavam muito durante o deslocamento.

Ponto de vista de Paraguaia


9h15min

Registrei a chegada do carro-forte azul marinho, que parava no local de praxe.


Desce o primeiro segurança e, a partir daí, os brigadianos das caminhonetes come-
çam a mostrar armamento pesado, espingardas calibre 12 e fuzis, saindo dos veícu-
los. Eram aproximadamente 20 policiais.

– PULLLTAMERDA, olha a quantidaaaade de brigadiano! – espantava-se Lit-


to.
– Merda, eles tão guarnecendo o supermercado – constatava o delegado Josué.
– Claro, eles deve tá pensando que o Caniço vai tá lá e querem pegá o cara pra
ganhá os mérito – concluía Litto.

Registrei também a chegada dos carros dos assaltantes. Um automóvel Mondeo


com cinco homens reduziu a velocidade para fazer a curva na Carazinho, mas seguiu
pela Protásio em direção ao Centro após verificar a presença ostensiva da BM. O
segundo automóvel, um Meriva, chegou a entrar na Carazinho, também reduzindo
a velocidade ao se aproximar do carro-forte estacionado na frente do supermercado.
O carro não parou, acelerando e sumindo na rua. Os policiais militares pareceram
não ter notado a movimentação do grupo.

11h15min

Voltamos para o QG na SJS e nossos telefones começaram a tocar de novo.

Conversa telefônica de Beleza


Ponto de vista de Guardião (fragmento)
11h15min

– Alô?
– Alô.
– Eaí, mano, tranquilo?
159

– Tranquilo.
– Seguinte, acho que deu problema naquele celularzinho e eu larguei fora, viu?
– É?
– É. Daí, vamo se falar fim-de-semana, mas daí tu traz outro daí tá, neguinho?
– Tá. Vou arrumá outro chip pra ti, cara.
– Nanão, mas já era. Depois eu falo contigo daí.
– Tão tá.
– Pra gente tê uma ideia daí, tá?
– Tá?
– Daí, eu falei com o amigo aí... talvez melhor é o fim-de-semana, né? Pelo meio-
-dia, né?
– Podsê.
(...)

Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 6º andar


QG da Operação Pinça
Ponto de vista de Ariosto
14h13min

Todos entraram na sala após o almoço e preencheram a atmosfera com ira e


frustração. O plano não tinha dado certo e tínhamos de recomeçar nosso trabalho
praticamente do zero. A conversa dos dois delegados que chegavam deu início à
reunião enquanto todos se acomodavam à mesa.

– E ainda, diretor, pra completar, ficamo sem escuta desde o momento em que
o senhor saiu para combinar a operação com o comandante – destacou um dos
delegados.
– Sim, a gente pode suspeitá que os brigadiano cortaru as nossas escuta e ficaru
ouvindo pra montá uma operação pra pegá os cara, ignorando o nosso pedido e o
nosso trabalho – supunha Belmonte.
– Ou que, por conta das escuta que estávamos fazendo, os brigadiano, que têm
conhecimento de todos os nossos grampo, podem ter ouvido as últimas conversa
dos vago e montado a operação em frente ao Zeffer – supunha Cleiton – De repen-
te, eles nos cortaram pra que a gente não atrapalhasse, pra gente ficá de fora, pra eles
prenderem o Caniço se ele aparecesse por lá.
– Não, paraí um pouquinho, meu. Também não é assim. Porra, é normal as liga-
ção caí. Vamo devagar. Não adianta fantasiá o troço – amenizava Fidélis.
– Não.... peraí! Só um pouquinho, Fidélis! O negócio só voltô a funcioná no
final da manhã, meu. Perdemo toda a conversa que os vago tiveru antes de saíre pra
tentá o assalto.
– Não acredito que isso seja possível, gente. Tão vendo chifre em cabeça de
cavalo. A gente tem autonomia no nosso sistema. Se caiu pra nós, caiu pra muitos
outros usuários. Acontece. Para eles interromperem as nossas escutas, acho que
160

teriam que interromper todas que acontecem no Estado hoje. Sei lá – interferia
Alencar.
– Porra, a gente pede pros cara fazere uma coisa e eles fazê outra – disse Gaspar,
indo para uma discussão mais plausível, mas ainda assim rançosa.
– Delegado, com todo o respeito, o senhor disse para eles apenas fazerem uma
espécie de barreira, correto? – Cléber se dirigia ao diretor.
– Siiiim, os comandantes da Brigada disseram que iriam montar uma operação
sem grande poderio pros assaltantes pensarem que o grupo de policiais militares
estava no local fazendo trabalho de rotina. Não porque tinham os escutado em
grampos telefônicos.
– Pois é, mas o que nós avistamos? – Litto apertava os botões do notebook para
mostrar as fotos da operação da manhã – A presença ostensiva de uma tropa. Um
monte de brigadiano fortemente armado, que pareciu esperá a quadrilha, como se
eles estivesse tudo pronto para grudá os vago.
– Pelas últimas escuta deles, acho que fica claro que não teremos mais os telefones
que estávamos grampeando. Eles vão baixá todos os número, meu – concluía Fidélis.
– Gente, depois dessa surpresa com a Brigada, é certo que temos que começar de
novo esse segmento da investigação – dizia o delegado Toniolo – Sugiro que a gente
mude nosso modo de operação. Daqui pra frente, ainda mais sigilo sobre qualquer
coisa falada aqui dentro. Nada pode vazar. Quem dava ou pensava em dar uma che-
gada no DEIC, agora nem pensa mais. Todo mundo se concentra aqui radicalmente.
Todas as forças que atuam no Estado querem o crédito de pegar o Caniço e a gente
está tendo investimento para isso, portanto, não vamos entregar a nossa caminhada
pra ninguém. A gente sabe que eles podem inclusive estar ouvindo as mesmas coisas
que nós. Mesmo assim, a gente tem que ter resguardo e continuar o trabalho, pô.

O celular do diretor toca. Ele se afasta, mas fala com o interlocutor de forma que
todos pudessem ouvir com algum esforço. Eu me concentrei e consegui.

– Sim, secretário. Estamos avaliando.


– ...
– Foram até o Zeffer e falaram com o gerente? – o delegado aumenta um pouco
a intensidade da voz, gesticulando para que prestássemos atenção.
– ...
– Ahã.
– ...
– Não, tudo bem... nós temos um data show aqui com a possibilidade de mostrar
toda a nossa operação.
– ...
– Sim, sim, estamos prontos. O senhor vai conosco?
– ...
– Ok, estamos indo para o gabinete.
Robledo desliga o celular e se dirige ao grande grupo:
161

– Gaspar, prepara o data show dessa investigação com as fotos de hoje de manhã.
Vamo mostrá o trabalho ao secretário e, provavelmente, teremos que explicar a operação
para a direção geral do Zeffer – Robledo percebe o silêncio e, sem se alterar, dirige-se à
porta, finalizando:
– Parece que outros estão dizendo que evitaram um assalto.
– Pulllta que o pariu, os brigadiano são foda – concluiu Litto.

Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 8° andar


Gabinete do Secretário Bins
Ponto de vista do quadro emoldurado do governador Armindo Peixoto
18h23min

Bins recém chegara de uma reunião fora do gabinete. Parecia cansado.

– Tá Jucinei. Já demos 3 mil pra ti, mas precisamos de mais exatidão. Conseguimos
pouco pelo que pagamos – dizia o delegado Valmor, ouvido pelo secretário e pelo pró-
prio informante.
– Tá, Seu. Mas eu tô nas elegância, dando o que eu sei.
– Não. Deixa eu explicar direito, Jucinei – falava calmamente o secretário – A
gente tá confiando em ti, assim como tu confias na gente. Mas queremos mais pre-
cisão, tchê. Queremos que tu nos ajude a montar uma operação para prender o cara.
Se não, não adianta.
– Como assim, Seu? Mas aí vão querê que ele me mate, né? – dizia Jucinei preo-
cupado.
– Não, nada disso – tentava tranquilizar o secretário – Queremos que tu fiques
tranquilo e seguro.
– Precisamos apenas que tu digas onde ele vai estar em um determinado dia,
compreende? – esclarecia Valmor.
– Ah, tá... mas não quero tá de perto quando isso acontcê, porque senão ele me
mata, Seu – ainda tenso, o visitante pega um copo de água mineral com gás de cima
da mesa.
– Claro. Tem que nos dá uma informação quente pra gente acabá com esta his-
tória de uma vez – insistia o delegado.
– Tá, Seu... tudo bem, tudo bem. Mas vai tê que tê uma acertiva aí – propunha
Jucinei.
– Só um pouquinho, amigo. Tu tiveste tudo o que tu pediste – lembrava o secre-
tário – Quiseste me ver e eu estou aqui contigo. Quiseste dinheiro e te damos. O que
mais tu queres?
– Olha, Seu... a situação é ruim e perigosa pro meu lado – Jucinei larga o copo
em cima da mesa do secretário e se encosta na cadeira procurando posição relaxante
– Tem que entendê. Se ele discunfiá que tô ajudando poliça, tenho que fugi pra não
morrê. Preciso de mais dinheiro, né, Seu... O sinhô sabe. Não é fácil.
– Não vai tê, não... – Valmor iniciava negativa à proposta.
162

– Não, Valmor. Espera um pouco...


Bins faz uma pausa, respira fundo e segue:

– Tudo bem. Mais mil reais, ok? E tu nos dá uma informação precisa pra gente pegar
o cara.
– Dois mil, seu secretário. Pelos perigo.
– Olha... – o secretário coça a cabeça, mira Valmor. Com a mão direita, aperta o
polegar e o indicador contra os olhos – Nem sei se estou fazendo a coisa certa – fala
quase inaudível aos interlocutores – Tá, vai... fechado.

Faltavam poucos dias para o secretário deixar o cargo. Disposto a coroar o seu
trabalho na pasta com a prisão de Caniço, Bins teria dado provavelmente de sua
própria conta mais dinheiro para que Jucinei fornecesse informações sobre o mo-
mento em que Caniço passaria por uma rodovia próxima ao município de Gravataí.
Na época, talvez devido às informações de Jucinei, policiais chegaram a ter contato
visual com o criminoso, mas, segundo a versão oficial, “não o reconheceram”. Caniço
fugiu.
Bins se despediu da SJS em março e, no final do ano, teria os “objetivos políticos
de um político” alcançados. Seria o deputado federal com maior número de votos no
Rio Grande do Sul. Quem quiser, julgue por quê.

***

Vale lembrar que se rascunhou nesse trimestre o projeto de regulamentação da


delação premiada e compra de informações. Entretanto, houve recuo em função das
fortes críticas principalmente do Ministério Público.
Policiais conseguiram negociar com empresas privadas a utilização de GPS e o
localizador via satélite foi aplicado durante um período importante da operação. A
SJS não teria como viabilizar o item se não fosse o bom relacionamento de alguns
policiais com setores da segurança privada. A primeira vez que o GPS foi aplicado
foi no que alguns autores chamam de segunda Guerra do Golfo, no início dos anos
de 1990. Algum tempo depois, foi liberado para o uso civil e passou a ser comer-
cializado. Na caçada a Caniço, o uso do recurso era banalizado para vários setores,
menos para Polícia.

***
163

capítulo 3

a coLa Da
HisTÓria
165

A BATATA QUENTE
Segunda-feira, 20 de março
Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 6° andar
QG da Operação Pinça
Ponto de vista de Ariosto
19h23min

– Senhores, é o seguinte – Robledo rompia a porta da sala de avaliações, trans-


tornado. Chegava atrasado, interrompendo o que conversávamos – um informante
do Conselho de Polícia me deu que, durante 15 dias, a Cogepol grampeou telefones
nossos! Os meus celulares e os de todos os policiais envolvidos na operação em Erê
– dizia o diretor do Departamento, acelerado e vermelho.

Conversas paralelas desconexas tomaram conta da sala, produzindo um barulho


excessivo. Todos ficaram alterados com a informação.

– Depois disso, meu velho, não dá mais pra confiá em ninguém – eu só consegui
entender a frase de Odilon, sob todo aquele barulho, porque ele afirmava isso voltado
para mim.
– Já não dava mesmo. Estamos sozinhos – respondia ao colega.
– E sabem qual Guardião eles usaram pra grampear a gente?

A pergunta ficava no ar, ninguém tinha ideia daquela história.

– O sistema de grampos da Polícia Federal.

Ninguém comentava. A perplexidade era geral.

– O pior disso tudo é que eles grampearam os três celulares funcionais no meu
nome, e todas as escutas da nossa operação entram por dois desses celulares. Tudo o
que temos sobre o Caniço, pelo menos daquele período, foi gravado. Ou seja, tudo
o que estamos falando e levantando de informações na Operação Pinça pode estar
166

sendo dividido com a Polícia Federal. O suficiente para eles pegarem o fio da meada
da nossa investigação – supunha Robledo bastante vermelho.
– Era só o que me faltava para este dia ficar ainda mais fudido. A minha mulher
me enchendo o saco porque descobriu a história com a Rosana e os frederico ou-
vindo as nossas escuta – concluía Litto, ligando o notebook, conectando a Paraguaia
ao computador.
– O sigilo das pessoas que nós estávamos ouvindo foi quebrado por quem não
tinha autorização para ouvi-las. Todos os meus interlocutores foram escutados.
Nesses dias em que fomos grampeados, eu falei com desembargadores, membros do
MP, deputados, prefeitos, secretário de segurança, chefes de Polícia... tudo – Ro-
bledo recebia um copo com água de Toniolo – Juro pra vocês, essa história não vai
ficar assim – concluía Robledo, tentando se acalmar.

Compartilhávamos da irritação do diretor. Além da notícia de sermos grampea-


dos, os recursos extra estavam murchando, a operação recebia a maior carga de pres-
são institucional desde sua criação e ainda suspeitávamos de que a Polícia Federal
supostamente fazia serviços a partir das nossas investigações.

– Diretor, por favor, me permite uma parte? – pergunta Josué.


– Claro.
– A gente tem provas de que todas as forças do Estado estão em cima do Cani-
ço. Pô, não existe consenso de inteligência institucional, nada. Tamo pagando vale!
Acho que a gente tá se concentrando demais em tentar pegar somente o Caniço e
deixando outros nomes de lado.
– Exatamente – concordava Robledo, certo de que alguma ideia deveria surgir e
estimulava para que surgisse o mais rápido possível, de preferência naquela reunião.
– Mas esse é o nosso alvo, Josué. A nossa missão é prender o Caniço – retrucava
Toniolo.
– Tudo bem, mas tem um monte de gente caindo de maduro aí, pedindo pra ser
presa – Josué completava o raciocínio.
– É... eu concordo – manifestava-se Miranda.
– Vamo prendê outros nomes fortes aí dessa corrente de vagabundo. Pô, se fizer-
mos isso, a gente isola o Caniço também. Se a gente for ver bem, tamo investigando
duas quadrilha e o nosso negócio é o Caniço. Dá cana nesses vago vai ajudá a fechá
o foco só no nosso alvo – incentivava Fontoura.
– Tamo aí com o Miro Batata aparecendo direto nas escuta, planejando assalto,
e outros vago aí na mão – dizia Josué.
– Sim, vamo prendê mesmo esses cara até pra mostrar que o serviço tá sendo
feito. Que a gente tá na cola deles – argumenta delegado Pires.
– Tá certo. Já que tá todo mundo em cima do Caniço, vamos pegar os periféricos
também – concordava Robledo.
– Se a estratégia for essa mesmo, surgiu um serviço aí que dá uma margem pra
gente segui a investigação por outro lado – Toniolo retoma.
167

Até quem discordava da ideia, não tinha como contra-argumentar. Cada dia
surgiam novos fatos ruins. O nosso chão estava ruindo.

– Como assim? – pergunta Robledo.


– Recuperamos a escuta do Beleza. Eles baixaram todos os telefones após a ten-
tativa de assalto no Zeffer, mas o celular da mulher do Beleza não caiu. Ela ligou pra
ele, interceptamos e temos de novo o telefone do Beleza para pedir escuta – Toniolo
dizia que se Beleza voltasse a se comunicar com os outros vagabundos, poderíamos
recuperar o fio da meada atrás de Caniço, uma vez que os dois poderiam fazer contato
entre si.
– Muito bom – Robledo, novamente.
– Ah, diretor.... e reconheci de novo o Miro Batata aparecendo nas escuta...
– Descobriram onde vai ser o assalto, afinal? Na última vez que o MB apareceu
nas escuta ele planejava metê um carro-forte – cobrava Robledo – É até interessante o
vago participar de um roubo do Zeffer e tentá metê também um blindado em rodovia
– reforçando suspeita de que MB iria atuar com Beleza na ação no Zeffer, algo ainda
não comprovado.
– Nas escuta ainda tá complicado sabê exatamente onde vai sê o assalto. Parece
que vai sê na Serra, mas os vago ainda tão combinando. Sempre alguém dá pra trás.
Quando o Taquarinha tava na rua, o problema era ele. Agora tem um tal de Veterano,
que ele tanto fala, que sempre falta. Tão com dificuldade de fazer o troço – o colega
falava, puxando a autoridade de quem estava com uns nove grampos relacionados a
MB. Quem já grampeou sabe como isso é difícil. Entra uma ligação no meio de outra
e muito conteúdo interessante se perde.
– Ahã...
– A novidade mesmo é que a gente conseguiu uma coisa bem rara no final da
noite de ontem – Odilon dá a manchete.

O grupo acentua o silêncio, esperando o que viria de Odilon, que mexia em suas
anotações.

– A mulher do MB ligou pra ele ontem – ou seja, tínhamos a mulher do MB e


o próprio nas escutas.
– Como é que vocês sabem que é a mulher dele? – perguntou o diretor.
– Porque ela explicou que viu uma batida policial na vila e ficou preocupada
pensando que fosse por causa dele. E ele perguntou pelos pequeno, termo que ele
usa falando com outros vago pra se referir aos filhos dele. E ela disse que eles esta-
vam com saudade.
– Viram a antena dela? – perguntou Pires.
– Deu onde a antena dele dava direto, Oroporé – respondeu Odilon.
– É verdade, dava sempre na madrugada em Oroporé e durante o dia em São
Leopoldo. Algumas vezes na Serra – acrescentava Fidélis.
– A ideia, delegado – continuava Odilon – é chegá amanhã na Brigada Militar
168

de Oroporé, vê onde foi a ocorrência que ela se referiu na ligação e destapá onde o
MB mora.
– Bom, então temos dois vagos para investigar e prender – tentava concluir
Robledo.
– Prendê?
– Sim! Vamo prendê. Tão caindo de maduro, vamo socá na cadeia – sublinhava
Robledo.

É interessante tal detalhe: sem nos darmos conta, de uma hora para outra, está-
vamos com os vagos mais perigosos do Estado na mão.
Quando falávamos de Miro Batata ao telefone, utilizávamos o código MB, não
por segurança, mas para abreviar mesmo. Foi costume. Suspeito de autoria de di-
versos delitos, após ter a progressão de pena ao regime semiaberto entrou na rede
da Operação Pinça por sua ligação com vagos também recrutados por Caniço. Com
suspeita, inclusive, de participar do “Episódio do Avião” com o próprio Manoel
Barcellos Flores.
Há alguns dias, suas escutas chamavam a atenção porque indicavam uma prová-
vel ação contra um carro-forte na Serra. Com antenas dando na região de Farrou-
pilha, certa vez comunicou-se com um comparsa dizendo “as menina passaram aqui
com os documento”, referindo-se aos carros-fortes que observava. Também dizia
que “já tinha conseguido o maquinário” para informar que já estava com os fuzis.
O colega dividia conosco a forte desconfiança de que MB e outros vagos – no-
mes conhecidos de Caniço, como Beleza e Vini Louco – iam fazer alguma ação
de vulto. Vini Louco tinha um apartamento em São Leopoldo, mas não sabíamos
onde. Às vezes, as antenas de MB e Vini davam na mesma área, o que indicava que
poderiam estar juntos, escondidos em uma residência.
Vini Louco e Beleza chegaram a cumprir pena juntos no regime semiaberto.
Eram companheiros de cela. Suspeitamos que Vini saía do semiaberto para planejar
e praticar assaltos na região Metropolitana. Beleza teria atuado muito com Caniço
e com Fofo Ledo há quatro anos, metendo empresas na região de Santa Cruz. Com
vocação para liderança, MB e Caniço dividiam a mesma mão de obra recrutada no
Vale do Sinos, na Serra, em Porto Alegre e na região de Santa Cruz.
Na maioria das vezes, Miro Batata não estava emendado com Caniço, mas am-
bos eram especialistas no mesmo ramo. Utilizavam peças iguais para jogar o mesmo
jogo. A diferença entre ambos era o conhecimento de material bélico. Caniço domi-
nava bem dinamites para estourar cofres em carros-fortes. Já Miro Batata preferia
carros-fortes com cofre sem chave eletrônica. Sabia-se que fechando o foco em MB,
Caniço poderia ressurgir nas investigações.
Nos meses de fevereiro e março, suspeitamos que MB e Caniço planejavam
coisa grande juntos, como teriam feito na ocasião do camping em Erê. A tese era de
que não somente Caniço, mas Miro Batata também tivesse articulado o assalto ao
aeroclube em Osório, chamado mais tarde pela imprensa como “O Maior Assalto
da História do Estado” por juntar Caniço e Hamilton Resende. Especula-se que
169

Beleza também pode ter participado do encontro dos vagos no camping às margens
da Lagoa Itaramã.
Os jornais não publicaram, mas provavelmente estavam na mesma ação nomes
fortíssimos da criminalidade da região, como Caniço, Resende e MB. Sim, tinha
tudo para ser o “O Maior Assalto da História do Estado” não apenas pela audácia e
planejamento, mas pelo plantel. Era Pelé, Maradona e Beckenbauer juntos. O time
dos sonhos do crime organizado do Sul do Brasil.

Terça-feira, 21 de março
Município de Oroporé, Vale do Sinos, a 79 Km
de Porto Alegre
Ponto de vista de Odilon – integrante da Operação Pinça

Os brigadianos me indicaram dois becos no bairro de Chácara do Bule, onde,


segundo eles, ocorreu a batida policial referida pela companheira de MB. Fui fazer o
local e puxei pelas companhias telefônicas e de energia elétrica todos os proprietários
de residências nos dois pontos. Nenhuma casa estava no nome da esposa de MB,
muito menos do próprio vago, o que já era esperado. Sabia o nome da mulher dele
pelos registros de visitas ao presídio, quando ele estava ainda em regime fechado.
Como, na escuta, Miro Batata perguntara para mulher se o “pequeno” tinha con-
seguido se matricular na escola e ela respondera que o Moisés já tinha se matricu-
lado e que a escola cobrava apenas alguns “documentos” pendentes, resolvi arriscar
na escola do bairro para descobrir, por meio do filho, a casa da companheira de MB.
Tarefa complicada. Ninguém poderia saber quem eu era.

Escola Municipal Engenheiro Cláudio Pinto, Oroporé


9h20min

Cheguei ao portão e o abri sem ser abordado por nenhum porteiro. O pátio
estava vazio, o que era um mau sinal. Eu tentava lembrar dos tempos de escola para
supor quando seria a hora do recreio, que seria o melhor momento para chegar
perto da professora, uma vez que estaria livre para conversar. Não sabia nem o que
iria dizer. Não queria mostrar que era policial para manter o sigilo na investigação.
Atravessei o pátio, que na verdade era um campinho de futebol de “areião” e fui
abordado por uma senhora magra, branca, aparentando uns 50 anos.

– Com licença, senhor. Posso ajudar?


– Hã? Acho que sim, senhora. Claro... Hããã, estou procurando a professora do
meu sobrinho Moisés.
– Moisés? Qual? Nós temos três.
– O Torres, da Chácara do Bule – tentei ajudar, sem ter a mínima certeza se
aquele era o nome que o guri e o pai dividiam.
170

– Ah, sim, sei. Mas ela está em aula, agora.


– Ah, certo. Então vou esperá a hora do recreio.
– Sim, bate às 10 horas. O senhor quer esperar na sala dos professores?
– Pode ser.

Fomos juntos até a sala dos professores no pavilhão à esquerda da entrada da


escola.

10h

A diretora foi até a campainha e deu o sinal do recreio. A vibração das crianças
nas salas de aula traduzia o prazer eterno daquele momento em todas as épocas e
lugares do planeta. Em pouco tempo, a sala foi sendo ocupada pelos professores que
chegavam para aproveitar o intervalo com os colegas.
Já estava meio constrangido como intruso na sala cheia quando a diretora me abor-
dou novamente, desta vez com uma mulher aparentando 30 anos, morena e bonita.
Muito bonita.

– Essa é a professora Roberta, senhor – a diretora apresentou e se retirou.


– Sim, no que posso ajudar? – perguntou sem muito sorriso.
– Claro... hãã... posso falá com a senhora no pátio? – tentava ganhar tempo para
afinar o pretexto.

Fomos até o pátio, a poucos metros da porta da sala dos professores.

– Professora Roberta, sou o tio do Moisés e estou preocupado com ele – baixei a
cabeça e procurava acertar o discurso para não vacilar na frente daquele espetáculo
de mulher.
– Como assim?
– Ele tá meio tristinho nos últimos dias, não qué mais jogá bola com os primo,
acho que tá acontecendo alguma coisa na casa dele, mas tá difícil de sabê ao certo.
– Ah, é mesmo?
– Sim, ele foi lá em Porto Alegre, pousou lá em casa e notamo como ele mudou
– baixava a cabeça mais uma vez e levantava tentando encarar a moça – Briguei com
o pai e a mãe dele porque acho que isso tá sendo provocado pela família.
– É?
– Ele até me falou que a escola tá cobrando papéis pra ele sê matriculado. Disse
que tá com medo de não estudá, acho que isso também tá prejudicando o Moisés.
Sei lá, talvez deixando ele meio nervoso.
– Sabe que tenho notado isso também.
– É mesmo?
– Sim, ele realmente parece estar meio desanimado. Que bom que alguém da
família veio falar comigo sobre isso. Podemos ajudar, né? – ela sorriu, meiga.
171

– Claro! Por isso é que vim aqui – eu sorri também, da forma mais doce que
podia – Sabe, minha esposa e eu achamos que a gente pode ajudá a família a se unir
de novo pra dá uma força pro Moisés.

Sem responder, ela me encarava, mexendo levemente a boca, abrindo um pe-


queno sorriso.

– Queremo mandá um presente pro guri e outro pro casal. Fazê uma surpresi-
nha, com uma carta bem bonita pra fazê as pazes com eles, sabe? Pra tentá conquistá
e sugeri coisas sem parecê invadi.
– Que bom... talvez isso ajude a todos – senti que ela caiu na história em defi-
nitivo com um ar doce que lhe deixava ainda mais bela – Às vezes pequenos gestos
são o suficiente, né? – eu começava a me apaixonar.
– Claro! O pai dele me proibiu de chegá perto da casa deles, por isso não fui
lá hoje pegá o endereço direitinho. Só sei o bairro. Quero mandá um negócio pelo
Correio, mas não tenho os números. Será que a senhora tem?
– Temos sim...
– Se não for incômodo...
– Não. Nada... vem cá.

Ela abriu um sorriso fabuloso e me convidou para entrar na porta ao lado da sala
dos professores, onde estava a diretora.

– Noêmia, este aqui é o tio do Moisés – ela me apresentava para a diretora, como
se apagasse da memória que foi quem nos apresentou – Ele quer fazer uma surpresa
para a família do guri. Sabe onde eles moram aqui em Oroporé, mas não tem o
número da casa para mandar os presentes de surpresa.
– Que tipo de presente, senhor? – perguntou a diretora, desconfiada.
– Minha esposa e eu moramo em Porto Alegre e sabemo que o meu con-
cunhado tá passando por problemas financeiros, então tamo pensando em
mandá uma bicicletinha pro meu sobrinho e um jogo de talheres e flores pro
casal. Mas ninguém pode sabê, viu – inclinava meu corpo, sussurrava para as
duas, evidenciando a intenção de “sigilo”.
– Ah, sim – parecia simpatizar com a ideia, mas mantinha o ar desconfiado –
Mas porque o senhor não passa lá na casa dele e não vê o nome da rua e o número?
– a diretora insistia ainda desconfiada.
– Porque o pai do Moisés nos proibiu de passá perto da casa deles e não queremo
criá mais problema – eu explicava calmamente para a diretora – Chega de peleia.
Acreditamo que dando o presente pro filho e mandando flores pro casal podemo
nos aproximá deles.
– Sei – desconfiada, ela abre o caderno de estudantes.
– Acho que vai ser uma boa ideia, seu... – Roberta sugeria que eu dissesse meu
nome.
172

– Cláudio...meu nome é Cláudio, professora Roberta. Muito prazer – simulei uma


apresentação formal com as duas, sorrindo para a professora num misto de ironia e
galanteio.
– Muito prazer, senhor Cláudio – a professora sorriu e estendeu a mão para eu
apertar. Desconcentrei-me olhando para aqueles olhos.
– Infelizmente, faz 15 dias que começaram as aulas e a mãe ainda não entregou
toda a documentação, por isso não temos o cadastro atual – a diretora interrompia o
meu momento com a professora dizendo o que, para mim, não era novidade.
– Mas temos o cadastro anterior porque ele foi nosso aluno no ano passado –
ajudou Roberta, juntando-se à diretora na busca.

Assistimos em silêncio à diretora procurar em outro fichário em uma estante.


Derrubava delicada, mas rapidamente algumas fichas, buscando os dados de Moisés.

– Taqui – a gostosa da professora retirava uma ficha e começava a ditar.


– Só um pouquinho, deixa eu anotar – tirei do bolso uma caneta e um papel –
Por favor, repita?
– Rua Inácio Corrêa, sem número. Bairro Chácara do Bule – ela repetiu um
pouco mais amistosa.
– Claro, muito obrigado – eu olhava para a diretora e para a professora – Apenas
gostaria de pedir mais um favor.
– Sim – as duas falaram ao mesmo tempo e eu pensei em mudar o rumo da
conversa para pedir também o telefone da moça.
– Por favor, não deixem que eles saibam que eu tive aqui. Nada pode atrapalhá a
surpresa – sorri meio sem jeito.
– Claro! – respondeu a professora.
– Meu Deus! – corria a diretora para a campainha ao lado da porta da direção,
dentro da sala – Esqueci de bater para o próximo período. São 10h16min! – en-
quanto me despedia da encantadora professora Roberta, a diretora tocava a campai-
nha e acabava com o meu recreio diante daquela maravilha de mulher.

Identificação da moradia de Claudiomiro Augusto Ferreira Torres,


vulgo “Miro Batata”, em Oroporé
Ponto de vista de Alencar
10h45min

Era uma casa de madeira, cor de laranja, em um beco. Se chegássemos de carro


e ficássemos parados por alguns minutos no local, MB ou “alguém dele” iria saber
de alguma forma. Em frente à residência, havia um campo de futebol e depois
do campo uma área de mato fechado, extensa, com árvores. Algumas ruas eram
de chão batido e outras de paralelepípedo. Havia ainda outras residências mais
esparsas na vila.
173

– Tchê, onde é que vamo trabalha aqui? Nos arvoredo? – perguntei pra Litto
enquanto identificávamos a casa.
– Olha, meu. Aqui não dá. Vamo manobrá. Liga pro Gaspar – Litto começava
a tirar a Parati alugada do local e começávamos a nos deslocar pelo bairro do vago.
– Oi
– Ô, meu, não dá pra ficá aqui por muito tempo.
– Por quê? Não era o local? – Odilon perguntava, falando ao telefone no carro com
Gaspar.
– Não, o Litto e eu acreditamo que se a gente fizé campana aqui na rua, eles vão
percebê.
– Ô, meu. Sabe a antena grande de telefone celular? Acho que, de onde tu tá, tu enxerga
ela? – olhei pra cima e não foi difícil localizar, já que era a construção mais alta da pequena
cidade.
– Sei.
– Venham pra cá que a gente acerta.

Ponto de vista de Litto


11h

Técnicos da empresa de telefonia celular estavam trabalhando na torre. Vimos


que eles subiam com equipamento de segurança para fazer a manutenção. Explica-
mos a situação da investigação e pedimos permissão para usar o material especial e
subir à antena.

11h09min

Escalava com a alça da Paraguaia no meu pescoço e com as faixas de couro


atravessadas na cintura e virilhas. Ventava muito naquele ponto de Oroporé. Cada
centímetro vencido era um aperto diferente em alguma parte do corpo. Meus mús-
culos e pulmões resistiam ao esforço. Não que estivesse cansado, mas parecia que
vencia o Everest. Já conseguia identificar a residência de madeira cor de laranja atrás
de outras tantas similares na forma, mas de diferentes cores.
Minha visão estava cada vez mais embaralhada. Era resistir ao mal-estar ou
pagar vale. Olhei para baixo, entre tantas coisas disformes que avistava, identifiquei
Alencar me olhando, colocando a mão espalmada na testa para proteger os olhos do
sol. Qualquer olhadela para baixo me consumia a alma. Meus joelhos pareciam ficar
cada vez mais fracos a cada degrau superado na escada metálica.
Acho que alcancei uns 25 metros de altura, talvez a metade da antena, e comecei
a suar muito. Tirei algumas fotos, mas meu coração parecia querer sair pela boca.
Já não tinha mais ar, minhas mãos queriam largar do degrau da escadinha, bateu o
desespero.
174

– Hei! – gritei para os três colegas no solo, que pareciam não me ouvir – Hei,
hei!!!! – agora todos se olhavam e me miravam em seguida – Eu vô descê, vem outro
aqui!!!

Descia com medo de cair. Um desespero que repercutia no meus órgãos inter-
nos, mas que tentava esconder para não me sacanearem.
Cheguei ao primeiro degrau, que ficava a uns dois metros do solo, me pendurei
naquele pedaço de metal, parecia um gato chapado. Ofegante, tremendo, sentindo
uma espécie de tontura, cheguei finalmente ao solo.

– Vai outro. Não consigo. Larguei esse troço.


– Mas o que houve? – perguntou Gaspar, rindo.
– Sei lá. Não consigo. Mal-estar, sei lá... – continuava ofegante.
– Descansa um pouco aí, que eu vô tirá as foto.

Entreguei a Paraguaia para Gaspar e sentei em uma pedra que havia ao lado
da antena de telefone celular que acabara de escalar. Meu objetivo era recuperar
o ar. Os outros dois colegas, Alencar e Odilon, foram ajudar Gaspar a alcançar o
primeiro degrau.

Torre da Óbvio, empresa de telefonia celular


Ponto de vista de Gaspar
11h15min

Na verdade, Litto não passara dos cinco metros. Alcancei metade da antena,
uns 15 metros. Aquela parte do Vale do Sinos é muito bonita, com uma área rural
grande. Era possível enxergar a estrada dali da torre e, naquele trecho, havia um rio
e uma sequência de taquarais. Olhei em diagonal, à esquerda, pra trás, e identifiquei
o Centro da cidade, onde havia alguns prédios um pouco mais altos. Era um centro
urbano de pequeno para médio porte, com uns 50 mil habitantes. A área rural era
bela e generosa.
Mas meu negócio não era ficar apreciando a paisagem. Apoiei o lado da Para-
guaia na torre e no degrau da escada. Tirei fotos amplas e mais fechadas da casa
laranja. Como referência, identificava em frente à suposta “residência de Batata” o
campo de futebol e, ao lado deste, uma mata fechada que acompanhava o relevo.
Antes do arvoredo no morro, mais próximas da gente, havia uma sequência de casas.
A Paraguaia era melhor do que eu pensava. Estávamos cerca de dois quilômetros e
meio do local e registramos bons detalhes para a campana e uma eventual operação
de prisão do vago.
175

Quinta-feira, 23 de março
Secretaria de Justiça e Segurança,
Centro de Porto Alegre – 8º andar
Gabinete do NOVO secretário de Justiça
e de Segurança Pública, Zélio Lavirme
Reunião do secretário com os delegados Chináglia, Ronaldo Freitas e
Robledo Nunes
Ponto de vista do quadro emoldurado do governador Armindo Peixoto
15h

Era o segundo dia de Zélio Lavirme na pasta. Não havia nada muito novo, pois
desde o início do governo ele estava na SJS. Era um técnico com experiência em
auditoria no Tribunal de Contas do Estado. Talvez por isso, não era possível esperar
outra postura que não fosse de frieza com a Operação Pinça, que já alcançava os 60
dias de aluguel de veículos. Lavirme não tinha compromisso com campanha eleito-
ral. A prisão de Caniço era importante, mas não seria um reforço na caminhada a
algum cargo eletivo. Como os resultados não estavam aparecendo, o diálogo que eu
testemunhava naquela sala me parecia justo.

– Olha, tínhamos um prazo de 60 dias de locação dos veículos. Acho que che-
gamos ao nosso limite. As coisas têm que ter um fim – já contra-argumentava La-
virme.
– Secretário, nós estamos minando a quadrilha. São mais de 300 telefones gram-
peados. É parente, advogado... muita gente. Uma teia de relacionamentos dos ban-
didos. Uma hora ele vai cair – argumentava Robledo.
– Foi o mesmo que a Polícia Federal me garantiu. Se vocês não prenderem, eles vão
prender.

Aquela frase era como um golpe no estômago dos policiais na sala.

– Tudo o que foi pedido pela equipe, foi dado. Temos quase um andar na Secre-
taria à disposição, computadores, carros locados, armamento diferenciado. Tudo...
Desculpem, mas as coisas têm que ter metas. A operação está em atividade desde
meados de janeiro. Acho que dois meses é o suficiente para a gente reavaliar, até
mesmo reconhecer que a estratégia não funcionou e voltar às atividades normais.

Não identifiquei se eles não tinham mais argumentos ou se aceitavam por uma
questão de hierarquia.

– Vamos combinar o seguinte, não posso continuar com essa estrutura aqui.
Concluímos 90 dias. O Bins fez um prazo de 60 dias porque era o prazo que ele
ficaria no cargo. Se o Caniço não for preso nesse período, a gente reavalia, mas com
176

a ideia de que o serviço no DEIC tem que continuar também. O Departamento


precisa dos seus agentes. Fica como prazo o início da segunda quinzena de abril.

De certa forma, Lavirme confirmava o que para alguns era boato. Dizia-se que
ele teria conversado com o superintendente da Polícia Federal, Saulo Mesquita,
que lhe garantira que Caniço iria ser preso em poucos dias. Não havia nenhum
movimento do novo titular da pasta para a renovação do aluguel dos veículos. A
lei permitia que ele fizesse um novo contrato para até mais 25% do valor com a
locadora. O que não poderia haver eram contratos superiores a 180 dias. A tão te-
mida pagação de vale estava iminente. O grupo tinha dificuldade de criar uma nova
situação clara de prisão como fora a do estacionamento em Canoas. Um insucesso
seria complicado de ser engolido.
177

MB E FREDERICOS NA
ESCUTA?
Sexta-feira, 24 de março do QUINTO ano de caçada
RS-020, acesso ao município de Oroporé
Ponto de vista de “guardião do Guardião”

Cleiton, Gaspar, Miranda, delegado Josué, Latorre e Fontoura fizeram contato


conosco em uma churrascaria no trevo de Taquara, muncípio vizinho a Oroporé. Ao
longo das investigações ficou claro que MB se comunicava de dois locais diferentes
no município: a “casa laranja”, na qual morava sua família, e uma outra “residência
alternativa” distante cinco quilômetros da tal casa laranja. O problema é que a região
dessa segunda casa concentrava pequenos sítios e propriedades rurais e estava difícil
identificar a casa alternativa.
O grupo saiu de Taquara e voltou para Oroporé, onde Litto, Alencar, Gaspar e
Cleiton se juntariam aos colegas. No trabalho de descobrir a “residência alternativa”
de MB, analisamos a possibilidade de esconderijos para campanas. O trabalho era
demorado. As equipes faziam o reconhecimento separadas, ocupando área circular
de um quilômetro de raio.

Ponto de vista de telefone celular de Josué


16h52min

– Gaspar, ouviu o MB agora?


– Como? Não estou ouvindo...
– Gaspar!
– Sim, delegado, tá muito ruim o sinal!
– Ouviram o MB agora?
– Não, delegado, acabou a bateria do celular do Cleiton.
– Ouvimos na escuta...Tchê acho que tem uma reunião de vago numa das casa.
Pedi pra identificare lá na Secretaria e a antena tá dando no azimute da casa da fa-
mília dele, não na que a gente estava procurando agora. Estou indo pra casa laranja.
178

– Ok. Vamo também pra perto da casa laranja?


– Isso. Vem logo que tamo chegando. Como não dá pra acampanar perto, vamos
tentar encontrar um local mais pra dentro da vila pra não sermos notados, ok?
– Tá bem.
– A gente ouviu que eles tão saindo daqui a pouco. O MB deixou escapar que
vai sair a cavalo, ou seja, de moto.

Quando menos esperávamos, demos de cara com a “casa laranja”. Tivemos que
voltar pelas vielas e foi complicado se achar. Não havia como acampanar, embora as
suspeitas eram de que MB poderia sair dali em instantes.

Ponto de vista de Alencar (estava com Litto em uma Parati alugada)


16h53min

Estavamos espalhados naquela área, mas subitamente encontramos o Astra com


Gaspar e Cleiton, que nos avisaram que MB iria sair de moto. Nós quatro sabíamos
onde era a casa laranja e fomos juntos. Era impossível dar o bote na residência da
família porque pairava a dúvida sobre a presença de Batata ali. O medo era de que
ocorresse uma porta fria e o trabalho fosse perdido. Subimos uma rua mais íngreme
que tinha uma curva aberta para a esquerda e, logo após, um trecho de reta. A via
terminava no acesso à casa laranja. Buscávamos um ponto no qual poderíamos ver
todo o veículo que deixasse o acesso à casa de MB. Satisfeitos com um local, vimos o
Astra da outra equipe passar por nós enquanto dávamos a ré para estacionar. Surgiu
na via um homem com uma moto Twister 250, com a viseira do capacete levantada,
vindo em nossa direção. Ele passou pelo carro dos colegas e olhou de canto para mim
e para Litto.

– Ô, meu...é o cara! – gritei para Litto.


– O que, velho? – ele perguntou, olhando para trás, manobrando para estacionar
na via adjacente, na ideia de iniciar a campana.
– Litto, é o cara! – o sujeito passava na nossa frente – Volta pra pista! É o cara de
moto ali!
– Calma, rapaz – pedia Litto ao volante – Vai que não é o cara?
– É o cara, meu, vai!!! – gritava, observando que o motoqueiro já fazia menção
de dobrar a primeira à direita, seguindo a enconsta do morro.

Litto olhou pra moto, mudou a marcha e seguiu atrás do homem.

Ponto de vista de Gaspar


16h55min

Observei pelo retrovisor os colegas deixando a rua adjacente e saindo rápido


para a via novamente.
179

– Vavavai, vai... olhalê, olhalê, olhalê! – Cleiton gritava para mim apontando
para os colegas da Parati que já se distanciavam.

Diante daquelas ações intuitivas, quem era eu para discutir? Não tive dúvidas,
dei a volta rapidamente e segui os colegas.

Ponto de vista de Litto


16h56min

O motoqueiro deu uma olhada pra trás percebendo que o seguíamos. Dobrou
a primeira à direita em uma descida de chão batido. Eu pisei fundo no acelerador
e encostei na roda dele. A moto dobrou em seguida à esquerda, dando uma leve
desestabilizada. Ele acelerou muito, tentando se distanciar. Adiante havia um en-
troncamento. Seguindo reto, daria em uma via de paralelepípedo. Ele parecia seguir
para lá, porém, no meio da encruzilhada, deitou a moto, optando continuar no chão
batido, dobrando à direita. A moto deu nova balançada e derrapou.
Estávamos rápido demais, fizemos a curva e acabamos colhendo o homem caído
na pista, com a moto em cima da perna. Arrastamos o sujeito por uns cinco metros.
Ele era lixado no chão batido, preso com as duas pernas e a moto embaixo da dian-
teira da Parati.
Parei o carro para não matá-lo. Virei ao banco traseiro, tentando acessar o fuzil.
Alencar fez o mesmo. Notei que o motoqueiro tentava puxar com as mãos as duas
pernas prensadas e trancadas com a moto debaixo do motor do carro. Coloquei a
mão na maçaneta da minha porta e puxei. Ela não abriu.

Ponto de vista de Gaspar


16h57min

Dobramos a esquerda e avistamos o entroncamento. Havia uma avenida de pa-


ralelepípedo e uma estrada de chão. Optei por seguir reto, acelerando no paralelepí-
pedo. Dei-me conta que perdi a Parati.

Ponto de vista da Litto

Alencar tentou descer, mas a porta não abriu. Acelerado, ele cravava as unhas no
revestimento interno da porta da Parati. Eu também forçava a outra porta com o jo-
elho e nada de abrir. O motoqueiro fez mais força e conseguiu puxar as pernas com
as mãos, retirando-as debaixo da dianteira do nosso carro e nos encarando enquanto
se levantava. Alencar desistiu de forçar a porta trancada e abriu a janela. Puxou o fu-
zil enquanto o fugitivo tirava o capacete. Mesmo mancando, ele corria para fora da
pista, à direita, no acesso a algumas residências de madeira. Alencar colocou a arma
para fora, pela janela, e atirou, mas o motoqueiro sumiu na viela, levando uma bolsa.
180

Permaneciamos presos pelo sistema de segurança do carro. Demorou algum tempo


para me dar conta que teria que desligar o carro para as portas serem destravadas,
desativando o sistema de segurança automático.

Ponto de vista de Gaspar


17h02min

Retornamos após ouvir os tiros. Vi Litto ao lado da Parati e a moto no chão.


Cleiton e eu saímos do carro e Litto apontou o caminho de fuga do motoqueiro.
Seguimos o pequeno acesso às residências. Localizamos Alencar no início de um
barranco. Era uma subida íngreme demais para um fumante inveterado, uma viela
longa na sequência de casas modestas. Alencar havia se adiantado atrás do moto-
queiro, mas estava exausto.

– Eaí, Alencar, cadê o motoqueiro? – o colega fazia um sinal de “T “com as mãos


espalmadas, pedindo tempo para ganhar fôlego.
Após pequena pausa, tentava falar, mas o ar não vinha o suficiente.

– Ele subiu esse barranco, vambora! – surgia Litto, empunhando o fuzil 762,
indicando a viela, que, no seu decorrer, ganhava características de trilha.

A vegetação ficava cada vez mais fechada. Olhávamos pra Alencar e ele conti-
nuava tossindo e amparado por Cleiton, que, por sua vez, tem problemas cardíacos.

– Vamo subindo devagarinho também – dizia Alencar me vendo subir, recupe-


rando o fôlego.

Litto e eu corremos muito. Distanciamo-nos bastante dos dois colegas. Próximo


do final do barranco, vi uma torneira no pátio de uma residência e coloquei a cabeça
embaixo d’água pra amenizar o desgaste provocado pelo calor e pela subida. Os dois
colegas vinham mais abaixo, bem distantes.
Vencemos o barranco e nos deparamos com uma área grande de mato fechado.
Litto e eu ingressávamos na mata, caminhando lentamente.

– Ele tá armado, meu? – perguntei para Litto.


– Tchê, ele saiu com uma bolsa. Tem chance de estar.

Agarrava ainda mais firme a CT-40, olhava para o colega e a sua tensão era evi-
dente. Olhos esbugalhados, empunhando o fuzil, o objetivo era ver o vago antes que
ele pudesse nos enxergar. Percorríamos uma área desconhecida, um tipo de terreno
nada corriqueiro no nosso serviço. A visão já começava a ficar prejudicada pelo final
de tarde. No mato, um barulho chamou nossa atenção. Ficamos quietos e nos en-
curvamos, no reflexo. Eram como uma troteada em folhas secas. Não conseguíamos
181

enxergar nada. Nos jogamos no chão, temendo que o fugitivo estivesse nos fitando,
armando um bote.
A pouca luz do entardecer prejudicava. Permanecemos no chão, percebendo a
movimentação no mato. Fiz um sinal para Litto sugerindo que recuássemos, raste-
jando em direção à trilha de descida do barranco para sair de uma possível visada do
vago. Quando chegamos a trilha, percebemos a chegada de Miranda, de moto, e do
delegado Josué, Fontoura e Latorre. Odilon também já estava avisado e reforçaria
a equipe em minutos. Em pouco tempo, com extrema cautela, voltávamos ao mato
com mais gente e armamento pesado para procurar o motoqueiro.

Ponto de vista de delegado Josué


17h15min

Grilos e cigarras já eram percebidas no mato enquanto fazíamos uma linha e


rastreávamos a área de vegetação. Parecia um grupo de guerrilheiros, todos de armas
em punho. O telefone da escuta tocou.

– Oi, amor, onde é que tu tá?


– Para, só me escuta.
– Fala.
– Tranca todas as porta e não me sai de casa. Fica quieta em casa.
– O que houve?
– Não pergunta nada, só me escuta. Eu tô no apartamento aquele, mas já vamo
resolvê – MB falava, bastante ofegante.

Investimos mais na mata. Ouvíamos, pelo grampo, MB fazer ligações e dar si-
nais evidentes de que ainda estava no mato. A visibilidade era cada vez menor e as
ligações ficaram intensas durante 15 minutos. Miro Batata falava direto daquela
área e nós não conseguíamos localizá-lo.

18h30min

Estávamos com três equipes no local. Praticamente não havia mais luz quando
ocorreu o último contato de MB.

– Ô, meu.
– Fala, rapaz, onde é que tu tá?
– Ô, meu, calma. Só me escuta...
– Hã
– Deu problema aqui. Tive que abandoná o cavalo.
– Ahã.
– Eu tô naquele apartamento, que vocês sabe... vocês sabe como é que é.
182

– onhum.
– Só que eu tenho que esperá aquele horário pra pudê saí daqui, tá.
– onhum.
– Aí vocês me pegue na “ponte nova”, tá.
– Tá... tá bom.
– Eu tô saindo, me pega na “ponte nova” em algum tempo.
– Não, fica tranquilo. Dexa pra nóis.

Com a pista de que ele deixaria o mato em poucos minutos, Odilon, que se dirigia
para a área, foi orientado a acessar o morro por um ponto próximo ao campinho de
futebol ao lado da “casa laranja”, perto da residência. Assim supúnhamos que consegui-
ríamos fechar o cerco.

Ponto de vista de Gaspar


18h45min

As equipes ficaram mais dispersas no mato. Josué e eu caminhávamos com cau-


tela, mas sem ver praticamente nada com nitidez. Notamos mais uma movimenta-
ção. Um vulto. Fizemos visada em algo que se movia a uns 15 metros. Estava pronto
para atirar, posicionado, atento onde a vegetação balançava.

– É ele delegado!? – perguntava praticamente sussurrando.


– Não sei. Pode ser. Calma – Josué respondia do mesmo jeito.

Preparei o tiro.

– Acho que perdemos o cara – uma voz veio do ponto enquadrado em minha alça
de mira.
– Delegado, não! – tentei alertar, reconhecendo a voz.
– Sim, sim... é o Odilon – ele deixava claro que não ia atirar.

Miro Batata ficara se comunicando pelo telefone por uns 40 minutos. De


uma hora para outra, simplesmente paramos de escutá-lo. Sem lanternas e
após quase dispararmos contra um dos nossos, chegamos à conclusão de que
era prudente desistir da investida na mata e apostar nesse novo local citado
por MB.
Depois de montarmos outra campana sem resultados em uma elevada na rodo-
via, na suposta “ponte nova”, voltamos para Porto Alegre, certos de que as escutas
iriam cair e o trabalho teria que ser refeito. A frustração mais uma vez tomava conta
do grupo.
183

Sábado, 1º de abril
Ponto de vista de Tigre Banguela

Com o fim do contrato, não havia como locar novos veículos. Os cinco au-
tomóveis e as duas motos utilizados naquela semana foram devolvidos. Tinham
sido executadas cerca de 10 trocas de carros. Foram acumulados no nome da
locadora mais de 5 mil reais (2.342 dólares) em multas que, 400 dias depois da
devolução dos carros, ainda não haviam sido pagas.

Quarta-feira, 5 de abril
Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 6° andar
QG da Operação Pinça
Memória coletiva

O mês começava complicado. Foi avisado para o grupo que as diárias para os
colegas do interior não seriam renovadas. Ou seja, estávamos com três baixas para
os próximos dias.
Após algum tempo, Miro Batata trocou de número de telefone celular, mas alguns
de seus relacionamentos grampeados, não. Depois de um período de silêncio, MB vol-
tou a conversar com Vini Louco. Voltamos a ouvi-los e nos encarnamos novamente.
Nas escutas, Batata dava a entender que estava parado para se recuperar de uma
lesão na perna, supostamente a que surgira após a perseguição em Oroporé, mas
mantinha ativo o plano de assaltar um carro-forte. Os vagos davam a entender que
iriam realizar o ataque ao blindado na quinta-feira, 6 de abril, mas ainda não tínha-
mos descoberto o lugar com segurança. Acreditávamos que poderia ser na Serra ou
na subida da Serra. A antena de suas ligações nessa situação dava reiteradamente
em São Leopoldo, na zona Central da cidade, onde, com alguma frequência, davam
as ligações de Vini Louco.

Conversa telefônica de Miro Batata


Ponto de vista do Guardião
17h30min

– Alô – uma mulher atendia o telefone celular.


– Oi.
– Sim, quem é?
– Sou um vizinho.
– Como? – a mulher parecia desconfiada, mas aceitava a brincadeira.
– Sim, tu sabe quem eu sou.
– Desculpa, acho que tem algum engano – ela tentava ficar séria, mas o sorriso
lhe escapava – Não faço a mínima ideia de quem tu seja.
– Não. Não faz assim... – MB fazia o tipo suave.
184

– Não faz assim como? – ela sorria.


– A gente se vê quase todo o dia. Já poderíamos ser grandes amigos de tanto que
a gente se vê – sua performance vocal assumia tom irônico.
– Para um pouquinho, essa conversa tá muito louca... não, sério, quem é que tá
falando? Eu não tô te reconhecendo e tô ficando assustada.
– Tu me vê sempre e não te assusta. Por que ficaria assustada agora?
– Como assim? Eu não conheço a tua voz e tu me conhece? Diz que me vê!
– Posso dizer como tu tá vestida agora?
– Ah, é? Como?
– Camiseta branca e calça jeans. Quer mais?
– Não acredito – ela sorri – Como é que eu sou?
– Morena clara, bem bonita.
– Eu não acredito! Tu tá me vendo da janela do outro bloco!

Ela dá gargalhadas ao telefone e, entre os soluços, prossegue.


– Como é que tu conseguiu meu telefone?
– Isso é segredo. Mas tu é muito simpática, sabia?
– Obrigada.

Ponto de vista de telefone celular de Odilon


18h10min

– Cláudia?
– Fala Odi.
– Assim, ó. O MB falou com uma mulher agora, que viu ele pela janela. Eles se
falaram se olhando pela janela, entendeu?
– Sim.
– Acho que dá pra pegá o telefone dela e destapá a identidade e moradia. Pode
sê? É legal também distribuir essa ligação.
– Tá, vô checá isso aí e já te dou o retorno.

18h15min

– Alô.
– Oi, Odi.
– Então, delegado, o senhor ouviu?

Odilon ligava para um dos delegados da operação para ver se o prudente era
localizar o apartamento e empurrar a residência.

– Sim, me parece que eles tão falando do mesmo prédio ou de prédios vizinhos.
– Pedi pra Cláudia destapá a proprietária do telefone celular pra ver endereço
e tal.
185

– Isso. Vamo fazê o seguinte: amanhã, se a gente conseguir a identificação e o


endereço da mulher, a gente trabalha em cima da casa dela e vê se empurra ou não.
– Tá bem, então. Amanhã a gente vê isso.
– Beleza. Abraço.
– Abraço.

Suspeitávamos que MB poderia estar no apartamento de Vini naquele momen-


to, mas não era uma ideia que remetia plena segurança. Como Vini cumpria pena
em regime semiaberto, poderíamos até pensar em montar uma campana discreta
para confirmar. Era fácil identificar a casa desse notório amigo de Miro Batata.

Quinta-feira, 6 de abril
Rodovia Castelo Branco, acesso a Porto Alegre
Ponto de vista de Delegado Josué
9h23min

– Alô! – atendi o telefone ao volante.


– Oi, Josué. É o Robledo – pela voz, o diretor parecia abatido.
– Oi.
– O Caniço caiu!
– Não acredito! Pegamo ele?! – vibrava ao telefone, pensando que o diretor fazia
um gênero para aumentar a minha surpresa.
– Não, não...
– Paraí, como assim?
– Foi preso em operação da Federal com o apoio da Brigada Militar. O delegado
Pompei me ligou há pouco.
– Putz... mas não pode sê....onde isso?
– Em São Leopoldo, no Centro. O pessoal da Federal quer que um de nós dê um
pulo até lá pra reconhecer o Caniço. Tu pode fazer?
– Sim. Onde?
– Num condomínio na José Simão, 243, bem no Centro.
– Só um pouquinho – ao volante, peguei uma caneta para anotar o endereço –
Repete pra mim.

Ele repetiu.

– Tá bem. O pessoal tá sabendo disso?


– Alguns.
186

Condomínio Jupiara, Centro de São Leopoldo


Ponto de vista de Josué
9h45min

Difícil melhorar a cara amarrada ao chegar ao local. Iria reconhecer o nosso alvo
nas mãos de outra corporação. Fui recebido por agentes federais que me levaram
até onde, para a minha surpresa, estava Miro Batata, não Caniço. O humor mudou.
Saí da sala e informei para os agentes federais que aquele não era Caniço, era
Miro Batata. Com MB, foram apreendidos explosivos, detonadores, munição de fu-
zil, colete a prova de balas, cocaína e um rádio comunicador. Alguns agentes federais
comentaram que os detonadores estavam localizados a poucos centímetros das car-
gas de explosivos. Se acionados por acidente, o prédio poderia estar comprometido
em até 30 segundos. Mais tarde, outros itens foram localizados em sua residência,
em Oroporé.
Dias depois, Lindomar Rushol de Vargas, o Beleza, também caiu após se apre-
sentar na Polícia Federal. A PF neutralizava dois nomes importantes da criminali-
dade gaúcha. Miro Batata era o segundo nome na lista de prioridades do Estado. Se
Caniço era pintado como “peso-pesado”, MB não ficava atrás.
Tentei entender como os agentes da PF conseguiram confundir Miro Batata
com Caniço, uma vez que só tinham uma coisa em comum fora o fato de assal-
tarem carros-fortes: as iniciais do nome de um e do apelido de outro. Um era
Claudiomiro Augusto Ferreira Torres, o Miro Batata, cujas letras iniciais do ape-
lido eram M e B. O nome de Caniço era Manoel Barcellos Flores, cujas iniciais
também eram M e B.
E o que mais me intrigava – principalmente depois de sabermos que foram
feitas escutas de integrantes da Operação Pinça pela Cogepol no equipamento da
Polícia Federal – é que somente nós chamávamos Miro Batata de MB. Isso ocorria
no nosso dia a dia. “Será que esses caras aproveitaram os grampos da Cogepol e
escutaram a nossa operação?”, pensava alto, seguindo para Porto Alegre.
Não digo que comemorei efusivamente a prisão da Federal porque, afinal de
contas, há alguns dias antes não pegáramos MB por muito pouco. Francamente,
era um alívio estranho. A caçada a Caniço ainda era uma questão aberta. Tínhamos
nova oportunidade para pegá-lo, mas cada vez menos tempo.

Segunda-feira, 10 de abril
Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 6º andar
Ponto de vista de Fidélis
19h23min

Após a prisão de MB pela Polícia Federal, a equipe só não desmobilizou por-


que trabalhava em dois focos. Fechamos o cerco nos principais relacionamentos
de Caniço e de outros comparsas, montando campanas e fazendo acompanha-
187

mentos discretos. Em função disso e de técnicas que não serão publicadas para
preservar a vida de inocentes, conseguimos os novos números da quadrilha. Desde
quinta-feira, podíamos ouvir Ricardinho e Caniço, que, por sua vez, praticamente
não falava. Esses números telefônicos faziam a gente enxergar que os fredericos
podem até ter nos “roubado o MB”, mas o verdadeiro alvo da Pinça ainda estava
no jogo.
– Pessoal, gostaria de recuperar alguns pontos com relação ao Caniço. No dia 6,
as escutas de Caniço deram em Garibaldi. Ele deixou a Marcela num cúmplice na
cidade – tentava retomar Toniolo.
– Isso. Tem o padeiro que tá emendado com eles...aquele, que acho que temos
que ficar no bico – lembrava Andrade.
– Exatamente. Aliás, bom trabalho, hein, pessoal! – o delegado Josué elogiava a
mim, a Dirceu e a Miranda por termos flagrado o encontro da Marcela com a mu-
lher desse padeiro, que dá apoio à quadrilha na Serra.
– Eu acho que até faltou um pouco mais de calma ali – Miranda, modesto, mi-
nimizava os elogios – Fizemos a campana, chegamos a segui-las, mas infelizmente
perdemos o contato visual quando a mulher do Caniço foi deixada em algum lugar.
Esse foi nosso erro.

Meses depois, seria revelada a versão de que Marcela teria nos despistado, o que
talvez tenha sido melhor. Como esperava-se que apenas Caniço estivesse por lá,
deparar-se com uma quadrilha inteira fortemente armada poderia ter um resultado
trágico. Estaríamos não somente inferiorizados numericamente, mas também com
poder de fogo menor.

– Acontece. Vamo adiante. No dia seguinte, sexta-feira, o áudio do Caniço deu


no Paraná, em São José dos Pinhais – destacava Toniolo.
– Mesmo lugar que ele teve no mês passado – salientava Belmonte.
– No dia 8, sábado, as escuta do Ricardinho começaram a dar em Lajeado. E as escuta
dos outro aqueles que tão ligando direto pra ele já começaram a dar na região de Santa
Cruz do Sul.
– A propósito, delegado, aquela informação que o senhor me pediu. Conversei
com os colega da região de Santa Cruz e eles fizeram acompanhamento de carros-
-fortes na região hoje, em função do nosso aviso de movimentação dos cara por lá.
Não houve nenhuma alteração – informava Belmonte.
– É, mas a verdade é que a gente tem uma concentração muito grande desses
vago na região de Santa Cruz e Lajeado. Isso é mau sinal! – concluía Pires.
– Bom, eles podem ter passado o final de semana inteiro planejando. No míni-
mo, amanhã vão fazer alguma coisa na região – arriscava Josué.
– Quem sabe a gente não vai pra lá amanhã pela manhã. Os cara tentaram as-
saltar duas vezes no município de Candelária, quem sabe eles vão tentar de novo?
– sugeria Pires.
188

Apesar do novo fôlego dado pelas descobertas dos números das quadrilhas, era
difícil entender de onde vinha a nossa disposição. A operação murchava, perdia
integrantes, tinha menos recursos do que no começo e os carros não eram mais
locados. No final da reunião, foi retomado o “caso Miro Batata”.
– Algumas coisas agora começam a fazer sentido pra mim – comentava Josué ao
grupo, quase à toa.
– Como assim? – perguntava Robledo.
– Sim, eu acho que a Federal realmente estava acompanhando as nossas escuta.
Não tem como aceitar o fato de a Polícia Federal chegar no MB sem sequer saber
quem tinha prendido – Josué trazia novamente a tese da “colagem de investigações”.

Ninguém arriscava interromper o raciocínio de Josué. Apesar de o fato em si,


flagelar o grupo.

– Sim. Os cara prenderam o Miro Batata e se confundiram, dizendo pra nós


que haviam prendido o Caniço. Devem ter confundido o MB de Miro Batata, que
escutavam quando nos comunicávamos nas nossas ligações, com o MB de Manoel
Barcellos, o Caniço. Talvez, pelas características físicas serem completamente di-
ferentes, quiseram que a gente confirmasse se era o Caniço que havia sido preso
naquele dia – concluía Josué.
– Eu acho que eles chegaram a nos ouvir por um período. Acho pouco provável
que tenham nos ouvido o tempo inteiro, mas o suficiente para pegar as nossas in-
vestigações e seguir por conta própria – deduzia Toniolo.
– Isso só serve pra afugentar o Caniço. Porra, o cara vai pensar que até os frede-
rico tão no pé dele e vai se ligá mais ainda – dizia Belmonte.
– Até agora não entendo porque a Cogepol me grampeou. Eu nem participei
da operação, fui lá depois – Robledo recuperava a inquietude por ter sido escutado
pela corregedoria durante as investigações sobre a ação que resultou na morte do
menino ATM.
– Tchê, eu não sei, não. Eu acho que esses frederico nos escutaru e bastante. Tá
na cara! – Litto parecia convencido.

Delegacia Regional de Santa Cruz do Sul (DRSIS)


Ponto de vista do titular da DRSIS, Ciro Paganini

Durante aquele final de semana, colegas do DEIC solicitaram que checássemos


duas antenas em uma área entre Santa Cruz do Sul e Vera Cruz. Localizamos os
dois pontos e fomos até a Brigada Militar para levantar se havia ocorrido alguma
movimentação relevante até aquele momento.
Descobrimos, quase por acaso, que agricultores levaram brigadianos a um Vectra
e um Golf roubados, localizados em Linha Michael, interior de Vera Cruz. Os auto-
móveis estavam escondidos em um mato à beira da estrada. Foram apreendidos e le-
vados para um depósito. Naquele ponto, a família de um homem com envolvimentos
189

em crimes na região, amigo de infância de Caniço, conhecido como Índio, tinha um


sítio. Tudo o que ocorria de estranho na área, a Polícia suspeitava imediatamente que
poderia estar ligado a Índio.
Mas não tínhamos certeza de que ele era um integrante da quadrilha de Caniço,
até porque a maioria de seus parceiros eram arregimentados fora de Santa Cruz
do Sul. Os homens que roubaram o Golf teriam usado um automóvel Bora, cor
branca, na ação. Na madrugada de segunda-feira, houve nova ocorrência de roubo
de veículos. Dessa vez, um Corolla na estrada de Venâncio Aires. Na segunda-feira,
o DEIC reiterou que estavam ocorrendo ligações telefônicas da quadrilha na nossa
área. Tivemos um informe de que Caniço havia sido visto chegando em Candelária,
localidade de Rebentona, onde está a propriedade rural de seu pai, com um carro
branco. Fizemos acompanhamentos a carros-fortes de forma discreta para não ge-
rar pânico. “Segunda-feira é um dia emblemático, eles adoram atacar blindados na
segunda”, pensei.
Apesar de não haver nenhuma alteração, a sequência de fatos durante o fim de
semana e na segunda-feira, colocava-nos uma “pulga atrás da orelha”. O DEIC
identificando antenas da quadrilha na nossa região, informe de Caniço em Reben-
tona e uma série de roubos a veículos eram péssimos sinais.

Secretaria de Justiça e Segurança Pública – 6º andar


Ponto de vista de Fidélis

O combinado era voltar às 6h da manhã de terça-feira para a Operação Pinça


ir a Lajeado e Santa Cruz. A ideia era aguardarmos alguma movimentação da qua-
drilha, uma vez que as escutas davam na região e que investidas contra carros-fortes
ocorrem no horário que os blindados circulam, das 8h da manhã ao final da tarde.
Saímos da SJS exaustos. Ninguém havia comido nada e, pelo que iria acontecer
ainda naquela noite, o cansaço só aumentaria.
190

CIDADANIA & DIREITOS

oPiNiÃo

PeNeirar, PeNeirar e eNTreGar


JORGE MIGUEL DE CÁSSIO, Porto Alegre | jorge.miguel@cartapopular.com.br

A cúpula do Departamento Estadu- cialmente à Polícia Civil (PC) só As interceptações telefônicas da


al de Investigações Criminais (DEIC) teria sido possível porque a Corre- Cogepol na estrutura da PF dura-
da Polícia Civil parece convencida de gedoria da PC (Cogepol) grampeou ram 15 dias e ocorreram no mês de
que a Polícia Federal (PF) teve aces- integrantes da Operação Pinça na fevereiro. Durante esse período, os
so às suas investigações em cima de estrutura de escutas da Superinten- policiais investigados ouviam di-
Manoel Barcellos Flores, o Caniço, dência da Polícia Federal em Porto álogos de Caniço e Miro Batata e
e montado uma operação paralela. A Alegre. A Cogepol investigava poli- pessoas ligadas a ambos. Por isso,
“cola” teria ocorrido durante a Opera- ciais que participaram da investida vazaram nos áudios captados pela
ção Pinça, destinada à prisão do fora- em um camping no Litoral Norte, corregedoria, diálogos de pessoas
gido número um do Estado. no dia 14 de janeiro, quando o me- investigadas pela Operação Pinça.
Segundo a tese, o acesso da PF às nino ATM, de 3 anos, fora baleado Como a corregedoria utilizou o
informações provenientes da quebra e morto. Parte do grupo da Opera- sistema de grampos da PF, seto-
de sigilo telefônico autorizado judi- ção Pinça participou dessa ação. res da segurança pública do Estado
acreditam que a PF teve acesso aos Batata pensando que era Caniço promotores públicos, integrantes da
áudios da investigação da Cogepol e – Manoel Barcellos Flores. “Eles Polícia Militar e Polícia Civil teria
consequentemente às escutas que os (federais) entraram em contato co- dado informação para a PF iden-
policiais da Operação Pinça faziam nosco dizendo que haviam prendido tificar o local para que os policiais
da quadrilha. Assim, dispondo dos o Caniço e solicitaram a identifica- federais lotados no Rio Grande do
diálogos do bando, a PF teria, con- ção. Fomos lá e constatamos que era Sul montassem a operação de prisão
forme a tese ventilada, montado sua MB”, diz uma fonte. de Miro Batata em São Leopoldo.
operação de captura a Caniço. A confusão pode ter ocorrido de Os federais também alegam que
Alguns agentes do Estado citam meados de fevereiro até o dia da as informações sobre Miro Batata
a prisão de Claudiomiro Augusto prisão de Miro Batata. Delegados chegaram de Brasília devido a um
Ferreira Torres, o Miro Batata, para do DEIC tiveram acesso à gravação suposto envolvimento do crimino-
sustentar a tese. O suposto assal- das interceptações feitas pela Coge- so com o assalto ao Banco Central
tante de carros-fortes foi preso no pol na Superintendência da Polícia em Fortaleza, o maior da história
dia 6 de abril em operação da PF Federal e o caldo começa a engros- do país. Mais tarde, a PF divulgou
em conjunto com a Brigada Militar sar. A suspeita de divisão de infor- a outra versão, envolvendo a Força-
(BM). mação foi grave o suficiente para o -Tarefa de Santa Catarina. “Nunca
Conforme policiais civis que não diretor do DEIC, delegado Roble- passou por nós envolvimento de
querem ser identificados, em fun- do Nunes, representar formalmente Miro Batata com o assalto ao Ban-
ção de Miro Batata ser reconhecido contra os comandantes das investi- co Central”, afirma fonte da Força-
pelas iniciais de seu apelido “MB”, gações da Cogepol. -Tarefa catarinense.
durante as investigações da Opera- A Polícia Federal nega a cola, Outra fonte afirma que a Comu-
ção Pinça, possivelmente os federais argumentando que a Força-Tarefa nidade de inteligência do Estado
se confundiram e prenderam Miro em Santa Catarina formada por desenvolvia um trabalho paralelo e
191
192

CIDADANIA & DIREITOS

articulado desde janeiro entre Mi- nos agentes federais devido à sus- ética” nesta história – considerando
nistério Público, Polícia Federal, peita de “cola” e nos policiais milita- que falar em ética aqui soa um boca-
Brigada Militar e Polícia Rodoviá- res porque ações, como a inibição de do mal aos meus ouvidos.
ria Federal para prender Caniço. Do um assalto no supermercado Zeffer Mas, cá pra nós. Diante da co-
outro lado, estava a Operação Pinça, da Protásio Alves, em março, cau- nhecida discrepância da infraes-
com esforços próprios, isolada, pen- saram conflito entre as corporações. trutura, das tarefas e até salarial
sando – envolta em um romantismo “Eles não fizeram o que solicitamos encarada pelos agentes da PC e da
entorpecente – estar isolada. e ainda queriam levar os méritos PF, uma eventual cola soaria como
A mesma fonte deixou claro que por uma eventual prisão”, desabafa o oportunismo bizarro do bom
a falta de confiança no trabalho da um policial civil. moço, estudado, cheiroso, bonito da
Polícia Civil, em função de indícios É indiscutível que fica nesta his- novela que tenta roubar a namora-
de desvio de conduta no caso Ca- tória a máxima amoral de Maquia- da conquistada a duras penas pelo
niço, especificamente ao longo de vel que rege a segurança pública. Os modesto biscateiro, feio, suado e se-
quase cinco anos, teriam feito ou- fins justificam os meios quando se mianalfabeto. Ah, e o tal bom moço
tros órgãos atuarem discretamente fala nesse setor talvez em todos os “só quer o prazer de comer o filé”.
na captura do principal quadrilhei- países do mundo. Também aqui é sa- A carne de pescoço, “deixa para o
ro do Sul do Brasil. Por outro lado, cramentada a falta de integração dos biscateiro”.
fontes da Operação Pinça dizem órgãos, uma vez que uma corporação
que não havia mais como confiar se sente “traída” e vítima de “falta de
193

capítulo 4

a eXaUsTÃo
Do acaso
195

SEM RESPIRAR
Sábado, 8 de abril do QUINTO ano de caçada
Nota em um jornal da Capital

“O criminoso Caniço, principal foragido do Estado, estaria planejando assaltos


na região Central. O alerta foi dado ontem pelo procurador Michel Killing. Ele
não deu detalhes sobre os levantamentos do MP, mas garantiu que a quadrilha de
Caniço teria como alvo bancos e estabelecimentos comerciais da região.”

Em abril, mais uma instituição escancarava a sua presença como “concorrente”


na caça a Caniço, e a pressão naturalmente se diferenciava em cima da Pinça.

Segunda-feira, 10 de abril, QUINTO ano de caçada


Conversa telefônica de Ricardinho com Janaína
Ponto de vista de Guardião (fragmento)
13h56min

(...)
– Tu recebeu as mensagens? – Janaína pergunta para o companheiro.
– Não, não recebi nada.
– Não, é por causa que meu telefone...eu acho que acabou o saldo de mensagens.
Humhum – ela supõe, finalizando com pequena risada.
– Mas não pode (inaudível) é 60 pila.
– Tá, eu mandava pra ti, só que dava “enviado” e daí logo dava “não enviado”.
– Uééé?
– Daí... desde ontem eu tô tentando te mandar.
– Mas não pode! Por que tá...tinha um monte!
– Daí eu botei 20 reais agora. Peguei da mãe, tá?
– Tá...
– Nós tamo aqui no Centro e vamo comprá uns tênis pra Carol, tá? E ela tá
gripada, reclama que dói os tênis dela.
– Coitadinha. Como é que tá...como é que ela tá?
196

– Tá bem gripada. Bem atacada.


– Ela tá chata?
– É. Choramingando o tempo todo e...
– Tão tá, amor.
– Tá. Se cuida, tá?
– Amanhã eu tô aí.
– (Inspira e expira fundo enquanto fala) Aaaai, amor, tá bom – Janaína demons-
tra apreensão.
– Tá?
– Tá. Eu não sei mais o que te dizer...
– Reza.
– Te amo, tá?
– Reza, reza, reza, reza.
– Tá aí no miúdo?
– Tô.
– Manda um beijão pra ele.
– Ele não tá. Saiu agora.
– Ah, tá. Então tá. Ah! O negão é gremista?
– Não, não. É colorado.
– Ah, tá, achei que era.
– O miúdo é gremista.
– Ah...
– A Ane tá junto?
– Na...se não eu ia dizer para dar os parabéns pra ele – referindo-se à final do
Gauchão, vencida naquele ano pelo Grêmio.
(...)

Nova ligação (fragmento)


16h38min

– Alô?
– Só pra te incomodar de novo.
– Fala, amor.
– Tá ocupado?
– Mais ou menos. (...)
– É só pra dizê que eu tô com saudade.
– Ah, tá. E a Branca tá bem?
– Tá.
– Melhorou da gripe?
– Ela m... tá rouca só...
– Comprô um calçadinho pra ela?
– Comprei dois tênis.
– Mas baratinho, né?
197

– É...30 pila cada um.


– TRINTA cada um! É... mas... menos que isso aí não acha, né?
– Não tem mais.
– Comprô na conta da tua mãe?
– Ahã. Em deiz veiz.
– PUUULTA merda!!! M... eu disse que não era pra ti comprá na conta da tua
mãe. E teu irmão não deu o dinheiro do coisa?
– Do quê?
– Que ele tinha que dá um dinheiro não sei do quê aí... da corrente.
– Ah, ele ... ele vai dar sim. Só que ele não retirou do banco ainda.
– Tem que fazê assim. Não pode comprá mais no nome da tua mãe. Depois tem
que ficá na obrigação de pagá. Se tivé no...no nome de, de, de... no teu nome ou no
meu nome e te desse pra comprá, daí não (inaudível)... se desse SPC não dá nada.
Tua mãe fica enchendo o saco. Mas tá bom. Tá?
(...)

O telefone de Ricardinho estava habilitado no nome de sua filha. As ligações


foram realizadas na região do Vale do Rio Pardo, em Vera Cruz e Lajeado.

Rua Santo André, município de Santa Cruz do Sul


Banheiro da empresa Santa Inês Rodovias
Ponto de vista do vigia Álber Waechter
21h51min

Urinava torto no vaso do apertado banheiro da oficina da empresa. Estante e


armário lotados de bugigangas fora de validade reduziam o espaço para colocar o
corpo, enquanto baldes, vassoura, rodo, pincéis e pá competiam com meus pés pelo
chão úmido. A posição incômoda e a necessidade de manter a concentração no
pátio não me permitiam relaxar para que o fluxo se tornasse contínuo e satisfatório.
A porta encostada me conectava ao alerta noturno. Alguém se dirigia ao banheiro
pelo estreito corredor formado pela grade da oficina vizinha e a parede da garagem
da empresa que vigio.
“É o Messias”, cogitei ser o colega do horário, querendo dizer algo. Olhos
fechados, buscando terminar o que fazia, percebi a porta do cubículo se abrir.
Senti o cano gelado na testa.
Meus olhos abriram-se e seguiram, na sequência, o cano da pistola cromada, a
mão, o braço e, por fim, a cabeça de um homem com máscara marrom e colete à
prova de balas azul. Era muita balaca para ser bandidinho daqui da cidade. Estava
bonito demais.

– Tu é o vigia, meu? – perguntou o encapuzado, incisivo, mas ainda brando.


– Bah, o vigia acabou de sair por esta mesma porta – menti, trancando o fluxo da
urina, atrapalhada quase no seu fim.
198

– Que o quê, rapaz!!! Tu é o vigia, não mente pra meeiim!!! – o encapuzado me


empurrou contra a estante de metal do banheiro, fazendo cair algumas latas vazias.

Fiquei irritado, mas me segurei. Precisava do momento certo para dar o bote, o
sujeito estava armado. Meu pensamento foi bloqueado por mais dois homens que
pararam em frente à porta do banheiro, juntando-se ao sujeito da cromada. Como vi
que a coisa ia encrespar, quase em reflexo, coloquei meus óculos no bolso da camisa,
para não quebrar caso tomasse mais alguns tapas, e fiquei na frente do rádio comu-
nicador que deixara em cima da pia. Torcia para que eles não notassem o aparelho.

– Calmaê, rapaz!!! O cara saiu pela porta!!! No mínimo, correu pros fundo aí.
Eu não sou o vigia! – tentava tranquilizá-los e aparentar franqueza, na esperança de
que Messias não tivesse dito que o vigia tinha entrado no banheiro naquela hora.
– Não! Tu é o vigia, tu tá nos tirando, meu! – insistia o encapuzado número 2,
que enfiava a cabeça pra dentro do banheiro.

Naquele instante, percebi que os dois que haviam chegado estavam com armas
longas, mas não consegui identificar quais. Aí sim, não tive dúvida de que se tratava
de coisa pesada.
– Tem mais alguém lá em cima? – questionava o encapuzado número 1.

Desconfiei que um deles pudesse conhecer a empresa ou pelo menos tê-la es-
tudado.

– Acho que não – respondi.


– Vamo saí daqui – encapuzado número 3 esticava o braço pra dentro do ba-
nheiro, puxando-me pela gola da camisa.

Oficina mecânica do Neno, vizinha da garagem da Santa Inês


Rodovias
Ponto de vista de Renato Gedeão
21h52min

Quando notei a presença dos encapuzados na Santa Inês Rodovias, me escondi


embaixo de uma betoneira, aonde as luzes dos postes da rua e da lâmpada da guarita
não chegavam. Mesmo assim, valia a reza para não ser visto. Observei que três su-
miram para a minha direita, em direção ao prédio da empresa, que tem apenas um
trecho de divisa física com a oficina onde trabalho, e reapareceram depois de alguns
instantes com o Álber. Encapuzado 1, com uma pistola cromada, agarrava o braço
direito do vigia, colando o revólver nas costas do colega.
Outros dois estavam com o operador de guinchos Messias. O colega esperava
para ser rendido por outro que ainda iria chegar, próximos à cancela, na frente da
199

guarita. Consegui ver pelo menos um na calçada, talvez fazendo a segurança do


grupo. Tive medo que maltratassem muito o Álber.

– Eaê, meu! Pegaru o vigia? – perguntava o encapuzado número 4 da cancela,


ao observar que Álber e os três parceiros se aproximavam.
– Eu não sou o vigia, meu. Não sou o vigia – repetia Álber, nervoso, conduzido
para uma laje ao lado da guarita para onde os encapuzados 4 e 5 se deslocavam e
também obrigavam Messias a sentar.
– Cala a boca, meu! – gritava o encapuzado 3 com o fuzil na mão.

Os cinco invasores próximos à guarita conversavam, mas era impossível compre-


ender o que diziam. Também não podia me mexer para não ser notado. Olhar Álber
e Messias, sentados na laje com a testa nos joelhos, era como se eu mesmo estivesse
dominado. Era impossível não ficar tenso diante de tanta arma pesada.

Ponto de vista do vigia Álber Waechter


21h53min

De cabeça baixa, tentei me comunicar com Messias. O colega tinha a respiração


ofegante.

– Ô meu, eu não sou o vigia. Tu não me dá o serviço. Eu não sou o vigia – sus-
surrava para o colega não revelar a minha função na empresa enquanto os invasores
conversavam. Caso soubessem que eu era o vigia, poderiam pedir a localização do
cofre e eu não saberia informar. Aí eles poderiam me arrebentar ou me matar pen-
sando que estivesse me fazendo.
– O que é que tu tá falando rapaiz!? – dizia encapuzado número 1.
– Nada, não! Ele que tá dizendo aqui – mexia meu corpo para indicar Messias
que estava com a perna e o ombro grudados em mim – que o vigia fugiu, pulou a
cerca.
– Tu viu o vigia pulá a cerca? – perguntou encapuzado número 1 para Messias.
– Si...sim, eu vi, vi...o vigia pulá a cerca lá do fundo – respondeu Messias com a
voz trêmula e fraca.
– Ô, meu, diz aí o que vocês querem – sugeria tentando dar tranquilidade – A
gente pode ajudá vocês.
– Fica quieto, rapaiz! Fica quieto! Tá falando demais, hein! – ele respondia.

Começava a calcular as chances de fuga. Eu consegui contar cinco bandidos e


isso dificultava muito as coisas. No entanto, se conseguisse chegar até a cancela, a
uns sete metros de onde estávamos, poderia correr pelo escuro da rua. Julgava que
cinco era o número limite para me sair bem em um eventual enfrentamento.
O meu problema era a nuvem de chumbo do tiro de espingarda 12. Para um
200

fuzil me atingir, o atirador teria que fazer mira. Fugindo em ziguezague, eu poderia
dificultar as coisas. Mas se o cara com a 12 atirasse em minha direção, a tática não
evitaria que eu fosse atingido até uma distância de 40 metros.
Para o meu pavor, ouço um grito da calçada e posterior aparição de seu emissor.
– Eaí, meu? – gritava um sexto encapuzado na calçada, do lado oposto à guarita,
entrando nas dependências da empresa – Pegaru o vigia?
– Não, cara. O vigia escapô! – respondia número “1” – Tu vê, cara. Já começô
errado o troço. Nós tinha que pegá o vigia, meu.

Eu fiquei mais tenso quando percebi que havia, no mínimo, seis homens na ação.
Pela discussão, ficava nítido o nervosismo do grupo. Lembrei que a situação poderia
se complicar mais, pois havia dois caminhões para chegar ao estacionamento, e os
motoristas poderiam me apontar como vigia.

Ponto de vista de Renato Gedeão


21h55min

Agora conseguia ter uma visão mais ampla de cada movimentação dos encapuza-
dos. Tanto dos três que estavam na rua, como dos cinco que dialogavam com Álber.
Servi ao Exército, meu conhecimento de armas é básico, mas tenho alguma noção.
Pra mim, havia três fuzis e uma espingarda calibre 12 nas mãos dos encapuzados.

– Ô cara, o que tu qué? Tô aqui pra te ajudá. O que tu qué? – Álber novamente
se aventurou a falar com o encapuzado número 1.
– Nóis queremo um caminhão, meu – finalmente ele abria o jogo, olhando para
os 12 veículos que estavam estacionados no pátio da empresa.
– Podscolhê – Álber se levantava lentamente e apontava para todos os cami-
nhões da empresa.

Eu olhava a cena e supunha que Álber oferecia a possibilidade de levarem um


dos caminhões da empresa, pois até os encapuzados esquentarem as máquinas dos
veículos, a Polícia já poderia ter chegado.
Até que ouvi algo trepidando no paralelepípedo. O som aumentava e, em segun-
dos, um pequeno caminhão embicava a dois metros da cancela, esperando alguém
abrir para entrar. Estacionados na boca da garagem, havia três carros que pareciam
ser dos bandidos. Um Bora, um Vectra e um Corolla.

Ponto de vista do vigia Álber Waechter


21h57min

A chegada do caminhão pequeno me fez temer que alguém da vizinhança já


tivesse notado a movimentação estranha, apesar de a rua ser escura e deserta.
201

– Vai tu, ô conversador! Tu que tá falando demais! – ordenava encapuzado nú-


mero 2 – Vai lá e recebe o caminhão!
– Não tenta nada, hein! Não tenta que tu vai morrê! – encapuzado número 1
advertia.

Fui com calma, aproximando-me da cabine do motorista. Rodrigues já parecia


perceber os homens armados. Procurei de canto o sexto homem na calçada, mas não
consegui localizá-lo. Aproveitei o barulho do caminhão pra falar com ele.

– O que tá acontecendo? – sussurrava Rodrigues, que recém chegara.


– Dá uma ré, meu. Te manda que nós tamo sendo assaltado – sugeri sussurrando
para o motorista, que engatou a ré.

Consegui ir para os fundos do caminhão em movimentos leves. Ao me


virar para correr à direita da entrada da garagem, dois novos encapuzados se
apresentaram, número 7 e 8.

– Não tenta, meu – número 7 dizia, grudando a ponta do fuzil no meu nariz.
– Sai do caminhão, meu – ordenou número 8, apontando a pistola para Rodri-
gues. Ele obedeceu e deu lugar ao encapuzado 6, que assumiu o volante.

Encapuzado número 5 abriu a cancela para permitir a entrada do caminhão


guincho pequeno, que estacionou no meio do pátio.

– Os dois fique sentado com o outro lá dentro – ordenou número 7, apontando


para a salinha ao lado da guarita.

Messias já havia sido conduzido pra lá e, agora, todos sentávamos no banco da


salinha de refeições ao lado da guarita. Comecei a tremer e perceber que meus cole-
gas tremiam também. Não havia como fugir. Eram oito encapuzados, armados até
os dentes e protegidos por coletes à prova de balas.

Ponto de vista de Renato Gedeão

Quem tá com o fuzil na calçada de uma área de casas de classe média, não tá
nem aí pra Polícia. Depois que o caminhão foi deixado no pátio, um pedestre se
aproximou do portão da empresa, talvez curioso com a movimentação. Encapuzado
número 8 surgiu da sombra e falou com o homem, um baixinho parrudinho.

– Entra, meu – disse o encapuzado.


– Como assim? – o pedestre fez menção de ir pra cima do bandido.
– Entra – número 8 apontou a pistola para o pedestre, que desistiu.
202

Sem esboçar resistência, ele foi conduzido ao local onde estavam os empregados
da empresa. Eram quatro reféns.

Ponto de vista do vigia Álber Waechter


21h58min

– Quero sabê o seguinte: quem é o vigia aí? – insistia mais uma vez número 2 –
Abrem a boca aí vocês e me dizem, quem é o vigia?
– Ô, meu, falem logo quem é o vigia – dizia o pedestre em pé, na minha frente.
– Ô, cara, como é que a gente vai dizê? – eu me irritava com o sujeito, repetindo
a mesma argumentação feita aos encapuzados.
– Mas se é um de vocês, fala logo, meu – insistia o pedestre.
– O vigia pulô a cerca dos fundo, meu. É ou não é Messias? – tentava a confir-
mação do meu colega que já contraía o seu rosto, neutralizado pelo medo.
– Ca, ca, claro... – o colega gaguejava – o vigia fufu–fu–fufu–fu–fugiu. Já fa... fafa,
falamo.

Quando ele finalmente terminou a frase, ouvi o motor do segundo caminhão


guincho que estava para chegar no horário. Desesperei-me. Encapuzado número
7 ficou na porta da sala, inclinando-se pra dentro para ser ouvido pelos comparsas:
– Bah, esse é que é o canal!! Chegô o nosso caminhão!
– Vamo nessa então! – dizia número 1 saindo da peça, observando os encapuzados 7 e
8 tirarem o motorista do veículo, que estava com o para-choque a pouco mais de um metro
da cancela.

Josimar, o motorista, foi tirado da cabine e conduzido até a sala, olhando para
baixo.

– Ô cara, na boa...na boa. Eu tenho família... – dizia Josimar procurando seu


espaço no local.
– O que vamo fazê com eles? – dizia encapuzado 1, ignorando os apelos do
recém-chegado.

Tive a ideia de responder, sugerindo que nos prendessem no banheiro. Mas um


deles foi mais rápido.

– Vamo levá pros porta-mala.


– Isso! Mas não esquece de deixá o porta-mala do Corolla livre – ordenou nú-
mero 1.

A ordem detonou um sentimento raro: a dormência no corpo por sentir que se


está perto da morte.
203

Ponto de vista de Renato Gedeão


22h

Todos saíam da pequena peça ao lado da guarita em direção aos três automóveis
à frente da garagem da empresa. Vi dois reféns sendo colocados no porta-malas do
Bora e os outros três no do Vectra. Álber tentou se negar a entrar no porta-malas
do Vectra e foi repreendido.
Um dos encapuzados entrou no caminhão guincho e o ligou. O grupo conver-
sou algo imperceptível e, rapidamente, se distribuiu nos três veículos à frente da
garagem. O caminhão liderava o grupo que descia à rua, dirigindo-se à esquerda
da empresa.

Ponto de vista de Álber Waechter


22h01min

No escuro, com todos calados, os solavancos provocados pelo Vectra em alta ve-
locidade no paralelepípedo nos movia como bonecos. O cubo apertado desesperava.
As sacudidas e a falta de ar me trouxeram pânico. A respiração não completava,
buscava oxigênio com a angústia de cem pessoas a disputar um copo de água após
um mês de sede.

– Eu não acredito, cara. Eu não acredito que eu vou morrê na mala desse carro –
rompia o silêncio no porta-malas – Nunca pensei que ia morrê assim, de graça, cara.

Nenhum dos outros dois falava.

– Vô morrê na mão da Polícia. Se esses cara entrá em confronto com a Polícia,


vai sobrá bala panóis – dizia novamente, torto em um cubículo, ainda sem respirar.
205

CHUVA DE CHUMBO
Posto de gasolina na rua Santo André com a 1º de outubro
Município de Santa Cruz do Sul
Segunda-feira, 10 de abril do QUINTO ano de caçada
Ponto de vista de Ataliba Boazur, frentista
22h02min

Ao sair da loja de conveniências para travar uma das bombas, percebi que um
caminhão GT Mercedes Benz guincho, cor branca, sem carga, desceu a Santo An-
dré em alta velocidade. Um Vectra prateado veio logo atrás, freando bruscamente na
esquina do posto. Quatro encapuzados dentro do carro gritavam algo e expunham
armas longas pelos vidros. Jogavam miguelitos no cruzamento.
Um Corolla e um Bora seguiram o mesmo trajeto. Ouvi um estouro e fui à
esquina. O Bora parara na sinaleira da Santo André com a Osvaldo Aranha, atra-
vessado na pista. Parecia algum problema sério porque tinha fumaça saindo do
motor. Os outros dois carros provavelmente seguiram pela Osvaldo Aranha em
direção a BR-471.
Meu instinto quase me leva até a esquina para ver o que aconteceu com o veículo,
mas dois encapuzados, um deles com arma longa, desciam do carro que enguiçara
com faróis ligados. “Que ver carro o quê”, pensei, voltando ao posto. A dupla se deslo-
cou à direita pela Osvaldo Aranha, em direção a BR. A menos de uma quadra, havia
o prédio da Seguroforte.

Sala de contagem de dinheiro da Seguroforte


Ponto de vista de Mileno da Rosa, contabilista
22h03min

Mais um dia de separação de dinheiro para os malotes bancários. Cercados por


câmeras, conferíamos cerca de 6 milhões de reais para entregar ao Banergs no dia
seguinte. Outros cinco colegas e eu geralmente trabalhávamos em silêncio para não
atrapalhar a concentração, afinal ninguém pode se perder.
Na sala, havia seis bancadas unidas frontal e lateralmente que viravam uma
206

“grande mesa” de aproximadamente 1,5 x 3 metros. Formávamos três pares de fun-


cionários, posicionados um de frente para o outro. Cada um tinha seu espaço bem
definido pelas bancadas, com muretas de uns 30 centímetros, para não haver confu-
são ou mistura de cédulas.
Um colega e eu, sentados frente a frente, estávamos encostados na parede fron-
tal do prédio. Do nosso lado, outros dois e os últimos dois contabilistas, mais no
meio da sala. Justamente nas bancadas desses dois últimos, na outra extremidade da
“grande mesa”, ficava uma sétima com uma máquina para contar dinheiro e mais
cédulas de 10, 20, 50 e 100 reais empilhadas.
Existia ainda uma oitava bancada encostada na parede do fundo do recinto. Entre
esse móvel e a “grande mesa”, um vão para acesso de um lado para o outro da sala. Nessa
passagem, quatro malotes fechados. Em suma: havia dinheiro em todas as bancadas
daquele lugar.

Guarita da central de arrecadação de malotes de dinheiro da


Seguroforte
Rua Osvaldo Aranha, Santa Cruz
Ponto de vista de prédio da Seguroforte
22h03min

Um caminhão, que vinha sentido BR-Centro, fez uma curva brusca no meio da
rua e subiu na calçada frontal da empresa. Pensei que aquele baita guincho perdera o
controle, mas, em vez de frear, ganhou mais velocidade quando ingressou no terreno
da empresa. O choque com a minha guarita era inevitável. Havia duas motos estacio-
nadas junto à fachada. Flagrei-me que a coisa não era por acaso. A batida do veículo
contra a parede seria bem forte.

Sala de contagem de dinheiro da Seguroforte


Ponto de vista de Mileno da Rosa, contabilista

– Aaaatchin! – espirrava Aurélio, que sofre de rinite. Imagine! Contar dinheiro


e sofrer de rinite.
– Tá complicado o negócio hoje, hein? Pô! – ironizava André a minha frente,
brincando com o problema do colega e provocando discretos risos.

Aurélio levantou o rosto para mais um espirro. Ao configurá-lo, o efeito na sala


foi devastador.

22h03min25seg

A parede onde eu estava encostado explodiu, espalhando tijolo, argamassa


e gesso. Fomos arrastados com o conjunto de bancadas uns dois metros para o
207

meio da sala. Vi-me deitado em escombros da parede e pensei que uma dinami-
te tinha destruído tudo. O dinheiro se desordenou, mas ninguém se importava
mais com aquilo. Todos trataram de correr como podiam. Escalei, de quatro,
os escombros tentando ficar o mais distante do imenso rombo que fora aberto
na parede. Porém, o deslocamento para os fundos da sala era difícil, meu pé
resvalava.
Uma nuvem de pó de concreto tomava conta do ambiente. Não havia mais o
vão de acesso de um lado para o outro da sala de contagens. Os malotes estavam
prensados, uma vez que a “grande mesa” fora arrastada até a parede oposta. Escalei
os escombros e alcancei a laje que cobre o piso do fundo da sala. Patinei nos cacos
de tijolos, angustiado, ao tentar dobrar para me esconder.
Cheguei a uma das extremidades junto com mais dois colegas. Os que acessaram
o outro lado puderam entrar no banheiro como alternativa de esconderijo. Nós três
ficamos mais expostos. Amontoamo-nos atrás de um cofre com pouco mais de um
metro de altura. Nem sabíamos o que acontecia, mas nos escondíamos com o rosto
colado na parede fria, abraçados, unidos pelo pânico.

Ponto de vista de câmera de segurança externa, ponto frontal do


prédio
22h03min25seg

O caminhão guincho colidira contra a sala de contagem do prédio, esmagando


uma das motos que estavam estacionadas em frente à parede. A guarita virou alvo
de diversos tiros, direcionados principalmente ao vidro à prova de balas por onde o
segurança poderia observar a aproximação.
Como se não bastasse o fuzilamento, 1min14seg depois da primeira colisão,
o caminhão dá mais uma investida contra a guarita, mascando a segunda moto.
Logo após, uma terceira investida na estrutura do prédio, arrastando a moto caída,
trancada embaixo da dianteira do guincho. O caminhão é deixado quase colado ao
prédio, obstruindo a visão da guarita, que está a uns três metros do rombo aberto
na parede.

Residência na Osvaldo Aranha


Ponto de vista de Sirlei Beobacht

Um estouro me tirou de dentro de casa. Abri a porta, cheguei ao pátio da frente, perto
do portão. Na esquina das ruas Santo André e Osvaldo Aranha havia um carro parado no
cruzamento, fazendo muita fumaça. Pensei que era um acidente. Concentrei-me para pro-
curar algum outro veículo, mas observei dois encapuzados que saíam do carro pelas portas
do carona e do motorista.
208

Eles desciam a rua e demorei a me flagrar que estavam armados e vindo na


minha direção. Ouvi mais estouros do lado esquerdo da minha casa. Eram outros
encapuzados atirando do meio da rua, diante da Seguroforte.
Fiquei atônita num primeiro momento. Quando olhei para direita, um encapu-
zado com arma longa, vindo do carro parado no cruzamento, se aproximou mais do
portão da minha casa. Corri para dentro e tranquei a porta. Não quis ver mais nada.

Loja de ferramentas, Osvaldo Aranha


Ponto de vista de Paulo Hexel

O grupo de funcionários da loja jantava no pátio, nos fundos do estabelecimen-


to. Fizemos uma festa de integração devido aos resultados positivos. Boa música,
bebida, comida. O alto astral foi interrompido por um estouro.

– O que foi isso? – perguntei para minha esposa.

Cristiana, uma das vendedoras, diminuiu o volume do aparelho de som. To-


dos ficaram em silêncio. A minha suspeita era de que tinha sido na Seguroforte.
Em segundos, começamos a ouvir gritos e mais estouros provenientes da rua.
Todos ficaram agitados. Juliano, um dos vendedores, foi em direção à porta de
acesso à loja. Pensei que iria correr para a rua.
– Juliano, volta aqui! – pedi para o vendedor – Não vai pra lá, rapaz, que ninguém
sabe o que é isso!
– Desliguem as luzes. Ninguém sai do prédio, gente – pediu Cardoso, meu sócio.

Acabou a festa.

Ponto de vista de câmera III (pátio da Seguroforte)

Um segurança da empresa deixa o setor da guarita e acessa o pátio correndo.


No local, há um carro-forte estacionado. De acordo com o meu cronômetro e o
da colega (outra câmera) que está na parte frontal do prédio, isso ocorre quase
dois minutos e meio antes da primeira colisão contra o edifício. Exatos 13 se-
gundos após a primeira batida, conforme nossos relógios, outro segurança deixa
o setor da guarita com uma espingarda calibre 12, fechando a porta de acesso ao
pátio em movimentos rápidos. Ele se desloca em direção ao blindado, parecendo
fazer o mesmo movimento que seu colega fizera anteriormente.
209

Sala de contagem de dinheiro da Seguroforte


Ponto de vista de câmera I
Canto superior direito, parte interna da parede quebrada

A sala está uma bagunça. Em meio à persistente nuvem de pó de concreto, não


vejo nada com nitidez. Apenas percebo cadeiras viradas nos escombros, pedaços de
tijolos e papel das bobinas das máquinas registradoras misturados no chão por todos
os lados. A “grande mesa” está fracionada, constituindo um bloco disforme.

22h03min54seg

Encapuzado 1 entra pelo rombo da parede com um fuzil e uma bolsa nas mãos.
Cambaleia ao pisar sobre os escombros, mas não cai. Larga o fuzil Rugger 556,
com coronha rebatida, na primeira bancada que vê e tira três bolsas de uma. Des-
cansa a primeira bolsa em cima de pedaços de tijolo e cédulas e começa a pegar
o dinheiro. Encapuzado 2 entra pelo buraco, surgindo também no meu quadro
de visão. Locomove-se com dificuldade sobre os pedaços de tijolo e concreto.
Armado com uma AK-47, vai ao fundo da sala, desaparece do quadro e retorna
colocando malotes em cima da segunda bancada, que, com a explosão, fora parar
no meio da sala.
Instantes depois, encapuzado 3 se abraça em malotes que estão na segunda ban-
cada e no chão. Dirige-se ao buraco e arremessa-os para fora, retornando ao fundo
da sala. Número 1 passa para a segunda bancada, ainda no meu lado da sala (à di-
reita do rombo na parede), e continua socando dinheiro da “grande mesa” na bolsa.
Números 2 e 3 operam no fundo de tal forma que não consigo enxergá-los.

Rua Gibraltar, terceira paralela à esquerda da Osvaldo Aranha,


sentido Centro-bairro
Viatura número 1
Ponto de vista de Soldado Leucimar, da Brigada Militar
22h04min

Nós queríamos somente jantar. Mariana e eu estávamos de serviço e saímos da


Companhia com o Capitão Bruxel e o soldado temporário Berlese.
Seguíamos em direção à região da rodoviária, às margens da BR, onde, um pou-
quinho depois, fica o restaurante Prato de Beira. Quando estávamos a 100 metros
do local, o rádio da viatura se manifesta mais forte do que a nossa vontade.

– Prioridade de rede. Alerta de VINTE E SETE (roubo com emprego de vio-


lência ou arma) na Santa Inês Rodovias. Suspeita de VINTE E SETE na Santa Inês
Rodovias. Elementos em deslocamento – ouvimos no rádio a situação descrita que,
apesar de confusa, fez com que déssemos a volta e seguíssemos em direção ao Centro.
210

– Leucimar, pega a Pio XII pra gente chegá pelo prédio administrativo da Santa
Inês Rodovias – pediu o Capitão para acessarmos a paralela a Santo André, fundos
da Santa Inês Rodovias, onde existia a cancela da garagem.
– Disparos de arma de fogo ouvidos na rua Osvaldo Aranha próximo com Santo
André – o rádio informava.

Estávamos na esquina da Pio XII, mas a nova informação do rádio me fez inver-
ter novamente a viatura e seguir pela Gibraltar em direção a BR.

– Aí, Leucimar. Pega a próxima à direita que é a Santo André – dizia o Capitão.

Sala de contagem de dinheiro da Seguroforte


Ponto de vista de câmera I
Canto superior direito, parte interna da parede quebrada
22h04min

Um malote é arremessado por alguém, cruzando o meu quadro de visão da direi-


ta para a esquerda, do fundo da sala ao buraco. Percebo número 1 se esforçando para
pegar algo que está em cima da bancada grudada na parede oposta ao buraco, de tal
forma que enxergo apenas suas pernas se esticando. Ele coloca algo na bolsa. Mais
um malote cruza o meu quadro de visão, no mesmo sentido do anterior.

Osvaldo Aranha, em frente à Seguroforte


Ponto de vista de Rodrigues, motorista da Santa Inês Rodovias
22h04min

O porta-malas abriu e me ergui ofegante. Percebi que os outros dois reféns que
estavam comigo também se levantaram. Nós três começávamos a deixar o com-
partimento do carro quando um encapuzado colocou a mão no ombro do sujeito a
minha direita.

– Tu não, velho. Tu fica pra nos ajudá a tirá os malote – ele ordenava o indivíduo,
enquanto o outro refém e eu corremos...e muito.

Segui reto, rápido, pra frente, ouvindo gritaria e tiros. Fiquei atordoado e dobrei
a primeira esquina à direita. A rua não tinha saída e comecei a bater em um portão.

– Pelo amor de Deus, abre a porta! – batia, esperneando-me no portão – Socorro,


por favor, abre a porta! Abre!
211

Ponto de vista de Alber Waechter


22h04min

Ao abrirem o porta-malas, meus pulmões encheram de ar. Corri para a luz mais
forte, à calçada oposta a Seguroforte. Pulei uma cerca, invadi um estabelecimento,
talvez uma madeireira, e me escondi do lado de uma pilha de tábuas. Não queria ver
mais nada, fiz questão de respirar fundo, forçando o movimento.
Segundos depois de ter encontrado a posição mais cômoda para aguentar tanto
tempo quanto fosse necessário no local, uma dúvida surgia para detonar em mim
novo período de tensão: “será que havia cachorro guardando a madeireira?”, pensa-
va. “Sempre tem cachorro em madeireira...”
– Quer saber? – falei comigo mesmo, em voz alta, me impondo ao suposto bicho
– pitbull perto daqueles fuzil é gatinho. Pode vir o bicho que vier. Não saio mais
daqui. Se ele morde, eu também mordo.

Sala de contagem de dinheiro da Seguroforte


Ponto de vista de câmera I
Canto superior direito, parte interna da parede quebrada
22h05min

Encapuzado 3 pega alguns malotes e faz o mesmo movimento da primeira vez,


arremessando-os pelo buraco. Número 1 vai para o outro lado da sala e continua
juntando mais coisas das bancadas – provavelmente cédulas – e colocando dentro da
bolsa. Número 2 sai do fundo da sala e surge com alguns malotes nas mãos. Dirige-
-se ao buraco e os toca para fora do prédio. Número 3 fica ao lado de número 1,
ambos do outro lado da bancada, e joga outro malote para fora.
Número 3 pega a bolsa de número 1 e sai pelo buraco. Número 1 sai em seguida,
levando o seu fuzil, acelerado, correndo. Número 2 fica no buraco, apontando o fuzil
para dentro da sala, como se estivesse se posicionando para dar cobertura aos dois
parceiros que se retiravam.

22h05min20seg

A sala fica sem encapuzados por 16 segundos. Encapuzado número 4 surge pelo bu-
raco sem armas nas mãos. Pega uma das duas bolsas do lado de cá da bancada – deixadas
por número 1 sob os escombros logo no início da investida – e caminha dois metros para
o fundo, deixando-a novamente nos escombros. Não o enxergo mais. Apenas consigo
captar dois malotes, ao mesmo tempo, cruzando a sala, por toda a extensão do meu qua-
dro de visão em direção ao buraco. Em seguida mais um, outro, um quinto e o último
fizeram a mesma trajetória.
212

Viatura BM número 1
Ponto de vista de soldado Leucimar
22h05min

Quando nos aproximávamos da esquina citada pelo rádio, percebi um Bora


branco atravessado no meio do cruzamento, com a frente voltada para o nosso lado,
mais precisamente para a esquina à nossa esquerda, a poucos metros da calçada. À
nossa direita, uma viatura da BM descia a Osvaldo Aranha lentamente.
Dei luz alta no Bora, verificando que havia fumaça saindo de seu motor e que o
veículo estava vazio. Reduzi a velocidade. Quando coloquei a viatura atravessada na
rua, dando a volta no Bora, bem no meio da via, ouvi os primeiros disparos.
Os tiros vinham de uns 150 metros, descrevendo pontos iluminados em nossa
direção. Projéteis batiam no chão e picavam por cima da viatura. Entendi que o
sujeito que atirava observava os tiros iluminados no chão e, aos poucos, erguia mais
a mira para corrigir a visada a fim de nos atingir. Engatei a marcha a ré.

Viatura número 2
Ponto de vista do soldado Reginaldo

Descíamos a Osvaldo Aranha e vimos os colegas da viatura do capitão Bruxel


cruzar a nossa frente, lentamente, e dar a volta no Bora. Quando ingressaram na
Osvaldo, uma chuva de projéteis começou a vir em nossa direção. Como estávamos
muito expostos, dobrei à esquerda na Santo André, a alguns metros da esquina.
Nem saímos do carro. O barulho dos tiros era forte. Não tínhamos como nos
deslocar até a Osvaldo Aranha e dar cobertura para os colegas que entraram na via.
A sensação era de que, caso colocássemos a cabeça na esquina, seriamos atingidos.
Uma terceira viatura chegou em seguida, mas ficou do nosso lado. Ninguém tinha
oportunidade, nem condições bélicas, de partir para o enfrentamento. Era chumbo sem
cessar.

Prédio residencial na avenida Osvaldo Aranha – 2º andar


Ponto de vista de Cláudio Baessler

Assistia à televisão com minha esposa na sala, enquanto meus filhos brincavam
no quarto. Ouvi uma sequência de estouros. Cheguei a pensar que se tratava da
queima dos fogos que restaram da comemoração dos torcedores do Grêmio pela
conquista do Gauchão, mas logo me flagrei de que o barulho era um pouco dife-
rente.
Diminuí o volume da televisão, apaguei as luzes e fui até a sacada da sala para ver
o que se passava na rua. A cena era assustadora. Homens encapuzados atiravam com
fuzis e pistolas. Os tiros produziam luzes vermelhas ou amarelas na sua trajetória,
iluminando o caminho que percorriam.
213

Servi ao Exército e sei que tiros de fuzil podem até mesmo furar uma parede como
a do meu apartamento. Pensei que iriam iniciar uma espécie de arrastão nas lojas de
veículos e residências próximas. Fui até o quarto das crianças e movimentei algumas
mobílias até a parede que dava para a rua. Imaginava que assim poderia evitar que
sobrasse algum tiro para nós. Gritei para todos em casa ficarem com o rosto no chão
até que os tiros parassem.

Viatura 1
Ponto de vista de soldado Leucimar

– Capitão, não dá mais. Vambora, vambora!!! – gritei assistindo ao capitão abrir


a porta da viatura, preparando-se para o revide com sua pistola Ponto 40 em punho.
“É loucura, eles estão de fuzil!”, pensei, vendo o capitão se expor aos tiros.
Eu tentei puxá-lo pela calça, na altura da coxa, mas ele colocou o pé direito para
fora. Quando se levantou do assento, escapou da minha mão. Desisti de fugir, não
havia mais como dar a ré. Agora era esperar a melhor forma de revidar.
O Capitão, então, acocorou-se para se proteger na porta aberta. A cadência de
tiros aumentou de tal forma que pareciam 30 pessoas disparando contra a nossa
guarnição. Era muita bala.
Como não havia mais como manobrar a viatura, protegi-me, agachado no volan-
te, colocando o máximo que podia do meu corpo no vão dos pedais do veículo. Ob-
servei que Berlese e Mariana se deitavam no chão do carro, atrás do carona. Naquele
momento, o capitão Bruxel estava com a pistola em punho, revidando o ataque.
A intensidade dos tiros aumentou ainda mais e observei o capitão tentar se le-
vantar, talvez para correr. No entanto, ele acabou caindo no chão de forma abrupta.
Pensei que desistira da ideia de prosseguir o confronto e tive uma estranha sensação
de alívio, imaginando que ele iria voltar à viatura para podermos fugir. Acocorado,
com a cabeça no volante, praticamente encaixado no espaço dos pedais, cansei de
esperar e me deitei com o peito em cima do banco do carona.
Foi quando consegui observar que o capitão havia sido atingido na cabeça. Seu
corpo estava com o braço caído por baixo do carro. Para o mesmo lado, estava sua
perna.

Escola Mato Grosso, rua Osvaldo Aranha,


a 600 metros da Seguroforte
Ponto de vista de Jorge Müller, 17 anos
22h05min

Saí um pouquinho antes do início da aula de História. Não queria assistir ao


último período. Cruzei o portão da escola e comecei a descer a rua. Quando estava
na segunda quadra, percebi uns estouros estranhos lá perto da BR, mas nada me
chamou atenção o suficiente para procurar saber o que era.
214

Até que ouvi um zunido e senti um movimento na minha calça, como se tivesse
tomado uma pedrada de raspão. Olhei para os lados e não vi ninguém. Agachei-me
e observei o tecido da minha calça: tinha um buraco na altura da canela, onde havia
sentido a tal “pedrada”. Arregacei a calça para ver se havia sido atingido. Minha
canela estava sem marcas, restando apenas um buraco na sobra da calça.

Quanto mais descia a rua, mais os barulhos ficavam nítidos, como se fossem
estouros vindos das últimas quadras da rua, antes da BR, a mais de 500 metros.
Corri pela calçada em direção à próxima esquina a fim de procurar um lugar seguro.

Viatura 1
Ponto de vista de soldado Leucimar

Através do para-brisa, notei que os tiros iluminados seguiam intensos em nossa


direção. Abaixei a cabeça e ouvi um barulho seco no encosto do banco do carona. Um
furo no local. Um tiro que teria entrado pelo vão da porta aberta e atingido o banco.

– Me acertaram, me acertaram!!! – gritava Mariana, em cima de Berlese. Ambos


permaneciam deitados no banco de trás, tentando se proteger.

Vi a colega colocar as mãos na parte posterior do ombro. Ainda encolhendo a


cabeça para não ficar exposta através do para-brisa, estiquei o braço e abri a porta
dianteira esquerda. Ouvi com clareza os tiros tocarem na parte de baixo do veículo
após ricochetearem no asfalto. Não pisei no asfalto da rua porque um tiro poderia me
arrancar o pé fora. Peguei meu revólver calibre 38, coloquei a mão para fora da viatura
e dei quatro tiros para baixo.

Madeireira Fialho, em frente à Seguroforte


Ponto de vista de Álber Waechter

Não me mexia, mas conseguia enxergar alguma coisa do que acontecia na rua. O
potencial de fogo dos encapuzados era impressionante, mas parei de assistir à cena
quando do bolo de madeiras onde me escondia partiu um barulho seco. Era como
se fosse uma pregada na tábua de cima.
Ouvi outra e mais outra. Notei que não se tratavam de pregos porque não tinha
sentido, não tinha martelo. Não eram pedras também. Possivelmente era alguém ati-
rando contra os encapuzados. Tentei identificar a origem e consegui ver um homem
de bermuda e sem camisa na outra quadra ao lado da Seguroforte. Com uma pistola,
ele tentava alvejar os assaltantes. Como eu estava na linha de tiro, poderia ser atingido.
Mudei de lugar para me esconder dele também. O cara parecia me mirar, talvez
pensado que fazia parte do grupo dos vagabundos. Era só o que me faltava, ser atin-
gido por um louco atirador anônimo. Morrer como bandido! Essa não!
215

Sala de contagem de dinheiro da Seguroforte


Ponto de vista de câmera I
Canto superior direito, parte interna da parede quebrada
22h06min

Encapuzado 4 surge novamente no quadro, deixando os fundos da sala, abraçado


em, provavelmente, mais dois malotes – não é tão nítido pra mim. Ele sai pelo buraco.
Encapuzado número 3 ressurge pelo rombo na parede. Parece ter esquecido algo nos
fundos da sala. Vai até lá sem nada nas mãos e volta segurando algo – a câmera na parede
oposta identifica que ele pegou uma pistola cromada. Ele deixa duas bolsas, aparente-
mente vazias, nos escombros.
A sala fica sem encapuzados por volta de meio minuto, até que número 2 surge.
Vai até o fundo, pega um malote e o joga para fora da sala pelo buraco. Ele sai do
fundo da sala abraçado em alguns sacos brancos, parecem de tecido, mas não con-
sigo perceber muito bem do que se trata. Sinto muito, mas minha captação não é
das mais nítidas.

Viatura 1
Ponto de vista de soldado Leucimar

A intensidade dos disparos diminuía e, então, aproveitei para me deslocar cor-


rendo para a parte traseira da viatura. Eles me viram sair do veículo e avivaram
novamente os tiros. Um projétil atravessou a sola do meu coturno, mas não me feriu.
Tentei abrir as pernas de tal forma que meus pés ficassem protegidos pelos pneus
da viatura, inclinada na rua. A munição continuava picando por baixo do carro e
de mim.
Fiz mais dois disparos, e os atiradores pareceram dar mais uma folga. Aproveitei
para abrir a porta traseira esquerda da viatura e puxar Mariana pelo colete. Ela san-
grava bastante nas costas. Coloquei a colega encostada na traseira do veículo.
Tinha sangue na boca. Tirei seu colete e sua camisa para verificar os ferimentos.
Constatei que ela não fora atingida no tórax. O tiro havia atingido suas costas apa-
rentemente de forma superficial. O sangue na boca vinha de seus lábios, cortados
pelos dentes quando batera a boca contra a cabeça de Berlese na hora em que ambos
procuravam abrigo atrás do banco do carona do carro.

– Fica aí. Não te mexe! Vem, Berlese! – deixei Mariana e corri para abrir a porta
para o colega, que estava bastante abalado com a situação.
– Meu Deus! Pegaram o capitão! – gritava a colega ferida.
– Balearam o capitão, Leucimar – constatava Berlese, em choque.

Os tiros se tornaram mais raros. Rastejei ao lado do pneu traseiro direito da


viatura até o corpo do capitão. Consegui pegar a pistola que estava no chão e me
desloquei por cima do seu tronco. Alcancei as pochetes na sua cintura e encontrei
216

os carregadores. Recuei até a traseira do veículo na intenção de iniciar um revide.


Fui correndo até a primeira árvore na calçada à esquerda. Esvaziei um carre-
gador, atirando na direção de um carro muito distante, mas, pelo posicionamento,
poderia estar dando apoio aos atiradores.

Corri para a próxima árvore na calçada, coloquei o outro carregador e disparei


mais uma sequência, assistindo a um grupo de encapuzados entrar em um auto-
móvel estacionado em frente a Seguroforte. O carro estava de frente para nós e fez
uma manobra circular, rápida, virando e seguindo a rua em direção oposta. Naquele
momento, desciam três outros colegas de outras viaturas para a aproximação.

Ponto de vista de Tobias, motorista que abastecia no posto às


margens da BR-471
22h07min27

O Corolla dava a ideia de estar extremamente pesado. O fundo estava baixo e


parecia que, a qualquer instante, o pneu encostaria na lataria, impedindo que o carro
se mexesse. Meu amigo Norberto e eu olhávamos o veículo porque não havia como
não ficar impressionado com os homens que estavam dentro dele.
Eram uns cinco encapuzados exibindo três armas longas pelas janelas. O veículo
chegou próximo ao cruzamento de acesso a BR, diante do posto, e parou para dar
passagem para um Gol. Quando o carro passou, o Corolla continuou lentamente
até verificar que não havia mais veículos. Seguiu pela BR, em direção ao município
vizinho de Vera Cruz.
217

O ROTEIRO DE UM
PEIXE-PILOTO
Sala de contagem de dinheiro da Seguroforte
Rua Osvaldo Aranha, município de Santa Cruz
Ponto de vista de câmera II
Canto superior direito da parede OPOSTA ao buraco
22h09min

O quadro que registro complementaria a captação de imagens da minha colega no


que se refere à sala de contagem. A questão é que não consigo captar uma das pontas,
pois é justamente onde estou instalada, no alto. Na outra extremidade, à direita, existe
um cofre onde os funcionários se esconderam. Consigo registrar quatro das bancadas
retangulares utilizadas pelos funcionários. Estão tortas devido à explosão da parede.
No fundo, atrás do cofre, um dos funcionários tenta se encolher ao máximo para
não ser visto por quem quer que seja. Muitas cédulas ainda estão sobre as bancadas,
principalmente sobre a sétima e a oitava, que formam uma “bacia” quadrada onde
está contido dinheiro. As notas espalhadas nessa “bacia” não são captadas por ne-
nhuma outra câmera, só por mim. Milhares de reais estão no chão, misturados com
papel das bobinas das máquinas dos contabilistas. Tenho um campo exclusivo de
visão. Enxergo do acesso ao banheiro até a outra extremidade horizontal.
Minha lente registra apenas um pouco da área aonde os escombros da parede
chegaram. Por incrível que pareça, no meu ângulo de captação, o piso original es-
taria limpo se não fosse a bagunça feita pelos encapuzados ao levarem os malotes e
cédulas. Cadeiras estão deslocadas para as paredes, afastadas das mesas pela correria.
Uma delas está abaixo de onde estou instalada e bloqueia o caminho ao banheiro.

22h09min18seg

Funcionário número 1 aparece abaixo de mim, no acesso ao banheiro. Ele expõe


a cabeça para enxergar a sala. Parece falar com um dos três colegas escondidos atrás
218

do cofre. Funcionário número 2 se estica e tira parte do corpo de trás do cofre. Eles
começam a conversar – um de cada lado da sala.
Funcionário número 3 começa a ser visto atrás do cofre também. Fico curiosa
para saber o conteúdo da conversa dos contabilistas, mas infelizmente sou surda.
Funcionário número 1 toma a iniciativa e afasta a cadeira que obstrui o acesso ao
banheiro, empurrando-a por um corredorzinho ao lado da “grande mesa”, acessando
a parede arrebentada. Ele ergue as duas mãos e vai saindo devagar, meio inclinado.
Funcionário número 2 também se ergue atrás do cofre e começa, lentamente, a
caminhar pelo lado oposto a mim, também ao longo da “grande mesa”, dirigindo-se
ao buraco na parede. Funcionário número 3 começa a se levantar, mas por algum mo-
tivo, parecendo tenso, sacode os braços erguidos e volta a se proteger atrás do cofre.

22h10min

Funcionários 3 e 4 ganham confiança e saem de trás do cofre. Espicham suas


cabeças e se movimentam lentamente. Surgem também, do acesso em baixo de mim,
funcionários 5 e 6. Dois se deslocam de um lado e dois do outro da grande mesa. Le-
vantam camisetas e moletons que vestem e erguem os braços se dirigindo ao buraco
na parede para sair do prédio.

O baile de debutantes

Ponto de vista de câmera II


22h10min59seg

Fardado número 1 entra pelo buraco da explosão e se aproxima da “bacia”, na


parede oposta. Só ele está na sala. Fica virado para mim, diante da “grande mesa”,
e parece conversar com fardado 2, que surge no meu campo de visão. Fardado 1
passa a mão esquerda no rosto e, com a direita, aperta a pistola apontada para
baixo. Ele se volta para a parede arrombada.
Fardado 2 se aproxima. Fardado 1 fica mais uma vez voltado para a minha pare-
de, não sei se me nota. Baixa a cabeça e permanece com a mão na boca. Parece olhar
para a “bacia” formada pela sétima e oitava bancada, colorida pelas notas de 10, 20
e 50 reais. Como eu, os fardados podem ver que os encapuzados não levaram tudo.
Ambos ficam lado a lado, de frente para mim. Observam a situação da sala, onde
várias cédulas também estão espalhadas no chão. Fardado 1 gesticula muito com
a mão esquerda, parecendo explicar algo para fardado 2. Mantém imóvel o braço
direito. Na mão, a arma permanece apontada para baixo.
Noto que fardado 2 também tem uma arma. Ele se desloca ao fundo, na altura
do cofre onde os funcionários estavam escondidos. Fardado 1 olha mais uma vez
a “bacia” e coloca a mão esquerda na testa, parece estupefato com algo – não me
arrisco a dizer o quê. Neste momento, fardado 2 se movimenta atrás de número 1,
ambos na extremidade esquerda do meu quadro de captação.
219

Fardado 1 coloca a mão na boca e volta o rosto para a “grande mesa”. Descreve
uma meia-volta para ficar de frente para fardado 2. Suas cabeças saem do meu qua-
dro de captação, mas percebo que um corpo está voltado para o outro.
Noto que às 22h11min37seg, fardado 2 dá chutes fracos em alguns objetos que estão
no chão. Os objetos se deslocam para trás do cofre que servira de esconderijo para os
funcionários. No entanto, não consigo perceber se os objetos chegam até lá porque far-
dado 1 tapa a minha visão do local. Também não consigo captar com exatidão o que foi
chutado por fardado 2. Registro o movimento, mas não o detalhe. Na minha memória,
porém, tenho que o mesmo objeto fora descartado pelos funcionários quando se escon-
deram no local, exatamente às 22h03min34seg. Fardado 1 parece novamente observar
a parede onde estou instalada.
Em um movimento rápido, que me causou surpresa, ele sobe na “bacia” de di-
nheiro e dá um passo largo, ficando em um objeto que lhe mantém a cerca de um
metro do chão, na mesma altura das bancadas. Agora ele está bem perto de mim.
Fico congelada. Ninguém costuma chegar tão perto assim, só o meu administrador.
Ele se agacha para colocar a cabeça no vão de acesso ao banheiro. Percebo ao fundo
que fardado 2 sai de trás do cofre com uma arma na mão esquerda e nada na direita.
Ao retirar a cabeça do vão de acesso ao banheiro, fardado 1 fica com a nuca
voltada para mim. Exatamente na minha altura, tapando por completo a minha
visão. Não registro mais os movimentos de fardado 2. Fico angustiada. Confusa,
espero voltar a fazer o meu ofício, registrar imagens da sala, para o que fui criada e
instalada.
Às 22h11min54seg, fardado 2 coloca o “coco” da cabeça na minha lente, fazen-
do com que o negro dos seus cabelos oculte a sala que observo no meu cotidiano.
Exatamente às 22h11min55seg, ele vira o rosto e olha pra mim. Baixa os olhos e
apresenta a sua testa, encostando-a na minha lente. Sinto-me impotente, desespe-
rada. Não creio que serei tolhida. Às 22h11min57seg, sua cabeça ergue a minha
lente para cima e eu fico condenada a observar o teto da sala. Como um vegetal
sem memória ou serventia, não registro mais nenhuma movimentação dos fardados
dentro da sala de valores.

Sala de contagem de dinheiro da Seguroforte


Ponto de vista de câmera I
Canto superior direito, parte interna da parede quebrada, ÂNGULO
OPOSTO à câmera II
22h11min57seg

Mas eu ainda estou ativa!!! Consigo registrar a chegada de fardado 3 através


do buraco. Ele para em cima dos escombros, voltando seu rosto para o canto
onde está a colega anulada por fardado 1. Fica parado por poucos segundos e
segue se deslocando por etapas, com dificuldade de transpor os escombros até
o fundo da sala.
220

Exatos 17 segundos após ter cabeceado a minha colega, fardado 1 surge no


meu quadro, caminhando em direção ao buraco na parede do outro lado da “gran-
de mesa”. Ele sai da sala pelo tal rombo. Fardado 4 surge com uma espingarda
calibre 12 e, atrás dele, fardado 1 volta à sala.
Ele, que há instantes anulara a minha pobre colega, apoiava-se no friso da pa-
rede, canto onde estou instalada. O receio toma conta do meu pequeno corpo. Não
congelo porque sou esperta. Mas, aos 22h12min35seg, ele me encara. Minha cora-
gem não impede de pensar que serei anulada também. Não desligo, continuo regis-
trando. Ele me fita, mas desvia o olhar rapidamente para outro lado. “Que alívio!”,
eu penso. Por um momento, achei que fardado 1 também me cabecearia. Ele segue
para os fundos da sala, à minha direita, onde não consigo mais registrar nem ele,
nem os demais fardados, apenas movimentações esporádicas.

22h13min

Funcionário número “1” retorna à sala, passando pelo buraco.

***

Ninguém tinha ideia de que a Seguroforte contasse dinheiro naquela sala. Ima-
ginava-se que a empresa o recolhia do banco, os valores dormiam dentro de cofres
e, no outro dia, as quantias eram devolvidas para as agências. No entanto, a empresa
abria toda noite os malotes e conferia o dinheiro na sala de contagem.
A Seguroforte levou três dias para divulgar o valor roubado, quase 4 milhões
de reais (pouco menos de 2 milhões de dólares na cotação do dia). Era a segunda
segunda-feira do mês, o dia que mais havia dinheiro dentro da empresa.

***
221

ZONZOS
Segunda-feira, 10 de abril do QUINTO ano de caçada
Cruzamento da rua Osvaldo Aranha com a Santo André, município de
Santa Cruz do Sul
Porta-malas do Bora
Ponto de vista de pedestre
22h19min

Não havia como tranquilizar o sujeito que permanecia no porta-malas comigo.


Aliás, não tinha como ficar calmo numa situação como aquela, então eu nem me
preocupava em fazer pose. Já perdíamos a noção do tempo que estávamos presos
no carro.

– Calma, amigo! Os tiros já passaram! – tentava relaxar o sujeito que estava an-
gustiado há alguns minutos.
– Eu não vou aguentar aqui dentro. Me tira daqui! – ele gritava e eu começava a
rezar, pedindo para que nos tirassem dali.

Não tínhamos noção de onde estávamos. Começamos a ouvir sirenes e perce-


bemos que o barulho de pessoas conversando era cada vez mais intenso e próximo.

– Ô, meu, bate na porta para ver se nos ouvem! – sugeri para o desesperado.

Começamos a bater na porta e gritar muito. Até que ouvi alguém forçar a porta
e bater de volta. Esperamos alguns segundos e ela finalmente abriu.

Ponto de vista do delegado Ciro Paganini


22h20min

Destranquei o porta-malas com a própria chave do Bora que os assaltantes


deixaram na ignição. Os reféns pareciam desesperados. Saí dali e desci um
pouco mais a rua. Chamei outros policiais, enquanto assistia ao sobe e desce
222

de brigadianos confusos e perplexos.


Havia um caminhão socado na parede frontal da Seguroforte. Alguns populares
apontavam a direção para onde os assaltantes haviam fugido. Descreveram um Co-
rolla, mas não sabiam dizer se o outro era um Vectra ou um Astra.
Preocupei-me em equacionar a situação, procurando estojos dos tiros desferidos
pelos bandidos, uma vez que populares aglomerados na rua narravam a ocorrência
de muitos disparos na frente da empresa. Encontrei poucos cartuchos de fuzil. No-
tei que as pessoas acumulavam estojos nas mãos como se fossem souvenirs.

– Devolve, devolve! Isso não é lembrança, meu!! Devolve! – gritava para alguns
adolescentes.

Passei algum tempo recuperando provas materiais do crime que estavam nas
mãos das pessoas. Coletei cápsulas de fuzis calibre 762 e 556. Funcionários e reféns
narraram a retirada de aproximadamente 30 malotes da Seguroforte, colocados no
porta-malas de um Corolla. O veículo, segundo relatos, teria ido para a BR e se-
guido à direita. Isolamos de forma precária a cena do crime e saímos alucinados
realizando buscas pela região quando reforços chegaram.

Ponto de vista do capitão Otacílio Flügel


22h25min

O chamado relatando a morte de um policial militar me tirou das férias. Aco-


metido de incredulidade, ainda à paisana, via-me tentando afastar as pessoas para o
isolamento completo do local do crime. O sentimento de todos os militares presen-
tes era de extrema comoção pela perda de um colega, que agora, mais do que nunca,
era um exemplo de bravura no cumprimento do dever.
Observei a viatura da guarnição e os projéteis na rua. Conforme informações
de colegas, havia miguelitos em cruzamentos nas cercanias da Santo André com a
Osvaldo Aranha. Uma viatura, inclusive, tinha furado os pneus em função disso. Em
meio à presença de policiais e curiosos, observei o abatimento do soldado Leucimar.

– Leucimar, tu conseguiu ver os carros utilizados?


– Capitão, eu não vi muita coisa. Era tanto tiro que a ideia passou a ser proteção.
– Chegou a ver se havia outras pessoas dando apoio pra eles na ação ou não?
– Olha capitão, pra mim, só havia tiros desferidos da frente da Seguroforte, mas
não consegui enxergar esse detalhe.
– Eram somente fuzis?
– Não faço ideia. Eu sei que tinham fuzis por causa da munição traçante.
– Tu tava com teu 38?
– Sim. Cheguei a revidar com a pistola do capitão Bruxel pra ver se inibia um
pouco a ação dos caras.
223

Fiquei calado, sem mais perguntas, talvez por um sentimento resultante da


mistura de orgulho pela bravura dos colegas e choque pelo nosso poder parco de
reação.

– O que eu mais sinto é que se a gente tivesse a menor ideia de que os caras esta-
riam tão bem calçado, a gente jamais teria chegado do jeito que chegou – lamentou
Leucimar.
– Perguntou pra algum funcionário quanto dinheiro tinha na empresa? – per-
guntei, meio que me arrependendo de mudar de assunto, provocando o tema “quan-
tia roubada”.
– Olha, alguns falaram em 70 milhões de reais em toda a empresa, mas os caras
não teriam levado tudo – dizia o colega, totalmente sem noção do que seria aquela
quantia de dinheiro.
– Meu Deus! – era muito dinheiro, não podia ser verdade.

Iniciamos uma megaoperação em toda a região com mais de 100 policiais.


Nossa principal suspeita era de que a ação havia sido coordenada por Caniço,
então vasculhamos em torno de 25 pontos em 11 municípios que nossa inte-
ligência levantara como prováveis esconderijos do bandido na região. Eram
vários locais, como casas na zona rural e prostíbulos. Outros tantos colegas
abandonaram suas férias e se juntaram ao mutirão de buscas. Particularmente,
caso encontrássemos os vagabundos, temia algum excesso devido à morte do
capitão. Nessas horas, é difícil cobrar que todos sejam técnicos. Todos estavam
com sangue no olho.
No cruzamento de informações, surgiu um informe de que os bandidos estariam
voltando em fuga da Polícia Rodoviária em direção à Santa Cruz do Sul com uma
Parati branca. Em perseguição, os suspeitos entraram no bairro Bom Jesus, celeiro
do crime na cidade e área frequentada há muitos anos por Caniço.
Houve troca de tiros e um acabou preso no local. Checou-se a identidade, viu-
-se o produto do roubo e se descobriu que ele não tinha nada a ver com o ataque à
empresa. O grupo, formado por um adolescente e três foragidos do semiaberto, teria
roubado duas propriedades rurais no interior na mesma hora em que a Seguroforte
fora invadida. Deram azar na fuga e caíram no meio da Polícia. Até o preso explicar
que não tinha nenhuma relação com o assalto foi bem arroxado.
Ficamos sabendo que alguns policiais civis do DEIC de Porto Alegre ti-
nham corrido para Lajeado após passarem por Santa Cruz e acompanharem o
rescaldo do trabalho da Delegacia local na Seguroforte. Eles supunham que um
dos prováveis integrantes da quadrilha de Caniço teria se dirigido para a casa
da família após o assalto. Mesmo sabendo que o ataque à empresa de valores
fora com fuzis, outros policiais civis fizeram até barreiras, armados somente com
pistolas, em estradas da região.
224

Pra mim, tanto militares como civis estavam meio confusos com o que tinha acon-
tecido em Santa Cruz. Talvez movidos pelo cansaço, estresse e surpresa, agiam quase
que instintivamente.

Terça-feira, 11 de abril
Conversa do telefone celular de Ricardinho
Conversa com “homem não identificado” (HNI)
Ponto de vista de Guardião (fragmento)
3h28min

– Aquela primeira ali, a PRIMEIRA, tá tranquila, né? – alguns interpretam que


Ricardinho, em fuga, pergunta para HNI sobre o primeiro posto da Polícia Rodo-
viária Federal, na BR-471.
– Todas tão tranquila. Sempre reto, tá? – HNI estaria indo na frente. Suspeitava-
-se de que o grupo se dirigiria a um esconderijo, em um sítio, no município de
Viamão, região Metropolitana de Porto Alegre, a mais de 160 quilômetros de Santa
Cruz do Sul.
– Tá, então dá uma seguradinha no acelerador que nós não passemo a primeira
ainda.
– A azul? – o interlocutor se refere ao posto da Polícia Rodoviária Federal.
– Hã?
– A azul ou a amarela? – procura esclarecer se é a Polícia Rodoviária Federal ou
a Estadual que Ricardinho se refere.
– Aaaaazul.
– Bah, véio! Tu desviou lá? – reclama HNI.
– Não passemo ainda aquela primeira que nós tinha que passá – diz Ricardinho.
– Tá, tá. Eu vou ir devagar então, tá?
(...)

3h36min

– Sim?
– Ô cara, acho que nós temo rápido. Nós já passamo até as moedinha ali, cara –
constata o HNI, usando como referência um posto de pedágio.
– Já pagaram ali o coisa?
– Sim, sim.
– Tá sereno?
– Bah! Sereno, sereno – HNI informa que a pista está livre.
– Não, mas va...vai na manha agora então.
(...)
225

4h22min

– Oi.
– Ali, ali. Ali, ali – Ricardinho parece estar falando com alguém dentro do seu
carro e prossegue a conversa com o interlocutor – Deu um probleminha, eu acho.
Mas tá quase resolvido já. Vamo vê.
– Viu?
– Hã?
– Tu não chegou no final da TABAÍ ainda – HNI se refere à rodovia perto do
município de Canoas, região Metropolitana de Porto Alegre.
– Não, é o seguinte. O LOUCO entrou para desviar lá. Lá na que ele te falou. E
daí acho que se compliquemo aí – segundo o que se pensa na atmosfera da seguran-
ça pública, Ricardinho disse que seu grupo desviou pela RS-350.
– Tá.
– (inaudível) Nós peguemo o outro.

Cai a ligação.

4h28min

– Vai devagar aí – HNI pede para o companheiro que está ao volante, enquanto
o telefone de Ricardinho ainda está chamando.

O telefone faz um ruído e o homem pensa que Ricardinho atendeu o telefone.

– Qual é a posiç...onde é que tu tá mais ou menos assim e quanto tempo tu vai


demorá pra chegá... Alô – ele percebe que está falando sozinho e desliga.

4h45min

– Ah!
– (INAUDÍVEL)
– Ô, pode. Pode ficar aí tranquilo que nós vamo demorá um pouco – esclarece
Ricardinho.
– Hã...tá. Na antiga... – diz HNI.
– Não, não.
– Na de antes, né?
– Eu te ligo. Não te preocupa, tá?
– Tá, mas na de antes não. Na santinha, né?
– Bah, cara. Fala aqui com o louco aqui? – muitos acreditam que naquele mo-
mento, Ricardinho passava o telefone para Caniço.
– Fala – diz o homem que seria Caniço.
226

– Esperá na outra, não na Santinha, né?


– Não... isso. Na outra. Onde que de...deu o engarrafamentinho lá que tu disse,
tá? – acredita-se que o local combinado seria a RS-340.
(...)

Ponto de vista de Miranda


20h30min

A última ligação da alegada fuga foi por volta das 6h da manhã, no entroncamento
da RS-118 com RS-040, em Viamão, município onde tínhamos informes antigos
da presença de Caniço. Antes mesmo da operação, em outros anos da caçada, foram
realizadas várias abordagens policiais a integrantes da quadrilha naquela área.
Praticamente toda a equipe da Operação Pinça se reuniu próximo ao pedágio
da RS-040 e definiu como estratégia o contato com a Brigada Militar para fazer
um Comando de Trânsito em toda a região da Branquinha. Tínhamos um pal-
pite, rastros de interceptações telefônicas, informações de populares e resultados
de investigações antigas que davam conta de que ele poderia estar em um sítio
naquela área.
A Brigada Militar também fez a segurança em diversos desvios e estradas vi-
cinais da região, formada por aproximadamente 100 sítios. Ficamos no local sem
dormir, tomando café e comendo pastéis.

Interceptação de mensagens de texto via telefone celular


Ponto de vista de Guardião
Marcela envia torpedo para Caniço
23h34min

– Ta feia a coisa pro meu lado estou correndo risco d vida.bjs te amo

Caniço envia para Marcela


23h43min

– O que ove quen esta te ameacando me dis ce voce poder fazer a carteira fas
para nos irmos enbora deu tudo certo mais ce voce achar que nao dar nao te preo-
cupe nos vamos embora acim mesmo para onde voce quizer te amo bjs

Marcela envia para Caniço


23h46min

– Sim. me avisaram q vao me pegar. para poder te pegar. e querem se vimgar d


vc.bjs te amo
227

Caniço envia para Marcela


23h56min

– So te cuida meu amor nao sai sozinha nunca estou cem credito amanhã nos
vamos falar melhor para a gente sumir guntos te amo milhoes de bjs te amo –
Marcela parecia adivinhar que seria sequestrada algumas vezes, meses depois, por
pessoas que perguntariam pelo dinheiro da Seguroforte.

***

Antes do episódio da Seguroforte, integrantes de elevado escalão da Brigada


Militar garantem que barreiras já estavam sendo feitas na região, em função de
ligações do Disque-Denúncia. Agentes da segurança do Estado afirmam categori-
camente que os invasores da Seguroforte estudaram as pessoas que trabalhavam na
empresa, suas rotinas, seus contatos. Para quem investigou o caso, os encapuzados
relacionaram a chegada de um caminhão adequado na Santa Inês Rodovias ao mo-
mento que poderia lhes ser mais “rentável” na Seguroforte. Foram estudadas rotas
de fuga nada convencionais porque a movimentação dos órgãos de segurança foi
intensa na região.
228

CIDADANIA & DIREITOS

eNTreVisTa

Deic TeNToU reiNTeGrar


PoLiciais aFasTaDos Para
PreNDer caNiÇo
Diretor do DEIC diz que suspeito de atuar em roubo que resultou na
morte de PM não ficou preso antes por estratégia
AFONSO MILHAR, Porto Alegre | afonso.milhar@cartapopular.com.br
O diretor do Departamento Es- não ficou preso quando foi captura- Seguroforte, em abril do mesmo ano,
tadual de Investigações Criminais, do pela Operação Pinça em um es- que resultou na morte do capitão
delegado Robledo Nunes, concedeu tacionamento no Centro de Canoas, Melquiades Bruxel. Nesta entrevista,
entrevista exclusiva à Carta Popular em 21 de fevereiro do quinto ano de Nunes revela outras informações de
para esclarecer porque Arsênio da caçada. Quase um ano e meio depois, bastidores da Operação Pinça. Con-
Luz, suspeito de integrar a quadrilha Arsênio continua foragido. Ele é sus- firma que, no início da operação, foi
de Manoel Barcellos Flores, o Caniço, peito de ter participado do assalto à cogitada a reintegração de policiais
afastados por desvio de conduta e dar a sua ação, deixar de atuar, se isso FREC da região sabia. Outra, o cara
explica por que o grupo da Pinça for atrapalhar investigação maior. Ele fala em Santa Cruz, mas o que ele vai
não avisou a Brigada Militar de que deixou de ser autuado por um simples fazer lá não se sabe.
Caniço operava em Santa Cruz no porte de arma. E eu vou te dizer o se-
dia do assalto à Seguroforte. Tal in- guinte: por porte de arma, hoje, o su- Havia o sentimento de que iria
formação poderia evitar que os PMs jeito não fica preso. O juiz concede a acontecer alguma coisa grande lá?
enfrentassem o bando com tão pouco liberdade provisória. Havia o sentimento de que eles es-
poder de fogo. tavam se arregimentando para uma
Por que não avisaram a Brigada ação, mas não se sabia se seria lá. Até
Repórter Afonso Milhar: Por que Militar da região de Santa Cruz de porque a experiência nos demonstra
não se prendeu o Arsênio naquela si- que a quadrilha estava se movimen- isso. O cara se reúne aqui e vai fazer
tuação (Operação no Estacionamen- tando pela área? um assalto em Torres. Só para tu teres
to)? Nós não tínhamos como avisar a uma ideia, dentro dessa investigação
Delegado Robledo: Na verdade, ele Brigada Militar porque o Caniço fa- do Caniço, eles se reuniram no Vale
foi preso naquela situação porque con- lava em uma região de manhã e falava do Sinos e realizaram um assalto em
tra ele havia um mandado de prisão em outra à tarde. O sigilo da investi- Caçador, Noroeste de Santa Catarina.
temporária por um roubo a estabele- gação é fundamental. Havia a com-
cimento comercial em Santa Cruz, de partimentalização da informação com O senhor tinha policiais altamen-
onde é oriundo. A não lavratura do referência ao DEIC. Nem aqui (no te especializados, presos no GOE
auto de prisão em flagrante dele foi Departamento) os policiais sabiam o (Grupamento de Operações Espe-
uma opção perfeitamente legal pela lei que estava acontecendo, por que nós ciais) suspeitos de concussão e extor-
10.217 (Lei do Crime Organizado), vamos estar abrindo para todo mun- são, que eram considerados impor-
que garante que a Polícia pode retar- do? Segundo: o delegado do DE- tantes porque têm informantes na
229
230

CIDADANIA & DIREITOS

rede de relacionamentos do Caniço ...isso em dezembro (quarto ano de O senhor acredita que a corrupção
e experiência nas investigações desse caçada). O que não foi atendido e até está na cultura policial?
criminoso. Fontes afirmam que foi não foi uma postulação forte nossa. Não é que a corrupção esteja na
cogitada a liberação desses policiais São policiais operacionais, tem infor- cultura policial. A cultura policial, na
afastados para se juntarem às inves- mações – embora nós tivéssemos a minha concepção, não sobrevive mais
tigações de Caniço. convicção plena de que a ferramen- a esse tempo moderno. Então eu vejo
Antes da criação do grupo da Ope- ta principal para a prisão do Caniço que a Polícia necessita sim de mudan-
ração Pinça, houve um pedido no sen- não seria um informante. E quanto ças fortes. Ao exemplo da Operação
tido de que se viabilizasse pela Secre- ao desvio de conduta, nós temos que Pinça, nós tínhamos que ter um grupo
taria (de Justiça e Segurança Pública) desmistificar que somente a Polícia é permanente, que agisse da forma que
a liberação de um ou dois policiais que corrupta. A corrupção está incrustada agiu. Um grupo realmente de inteli-
estavam afastados. Solicitou-se o re- em qualquer área da sociedade. gência, que faz um trabalho de campo,
torno deles às suas atividades. Dentro inclusive. Isso seria muito bom para a
do grupo jamais se passou qualquer O senhor acredita que a discussão sociedade. Seria um dos crescimentos
coisa nesse sentido. de reestruturação da Polícia também por assim dizer da instituição Polícia
passa por uma discussão sobre a cul- Civil.
Isso em dezembro, logo após a tura policial?
morte dos dois seguranças na Serra... Sem dúvida...da cultura policial.
231

O FLORZINHA
Terça-feira, 11 de abril, QUINTO ano de caçada
Grampo telefônico de Ricardinho
Conversa com Janaína
Ponto de vista de Guardião
20h48min

– Oi, mor!
– Tudo bem? E a Lu, como é que tá?
– Tá bem. Tá chorando aqui. Eu bati nela agora.
– Tu também tá bem?
– Tô bem. E tu?
– Tô legal hu...agora que eu tô deitando pra dormi. Já parei de trabalhá.
– Já?
– (inaudível)
– Aí, mor, eu te disse, amor. Se ele...se ele não qué assiná a tua carteira...
– (inaudível)
– Se ele não qué assiná a tua carteira, vem pra casa. Vem arrumá um serviço aqui.
– Tô...tá terminando o meu cartão. Daí eu tenho pouco dinheiro da firma...e eu
não vou botá outro cartão até sexta, tá?
– Tá. Até sexta?
– É.
– Tá.
– Tá bom? É só pra que... eu não boto outro cartão. Deixo pra botá semana que
vem.
– Tá bom.
– Deixa...deixa tuas coisa aí...meia pronta aí que, de repente, nós vamo lá no...
te...lá naquele teu tio lá.
– Tá bom. É. Ele tá meio ruim mesmo, amor, e é o aniversário dele.
– Pois é. Eu sei. Tá?
– Tá bom.
– Beijo.
232

– Beijo. Te amo.
– Também.

Quarta-feira, 12 de abril
Memória coletiva

Foi um cruzamento de fatores que levaram o foco da Operação Pinça para a


Estrada da Branquinha, no município de Viamão. Toniolo trabalhou a manhã in-
teira para identificar em que zona do Estado o grupo poderia estar. Antenas davam
reiteradamente na região e a área já havia sido alvo de investidas dos agentes ante-
riormente até mesmo no quarto ano de caçada. Sítios já haviam sido acampanados,
laranjas de Caniço na área estavam sendo investigados e bons infos ouvidos.
Durante o almoço, Toniolo entregou para Robledo a sua conclusão: um mape-
amento do provável local de guarida. A quadrilha estava na Branquinha e todos os
esforços tinham de ser concentrados para sufocar e impedir qualquer movimento de
fuga. A ação deveria começar o mais rápido possível porque, no último telefonema,
Ricardinho revelara ter planos de ir para Lajeado, seu município de origem, encon-
trar com sua companheira.
Um QG improvisado foi montado nas proximidades do pedágio da RS-040,
em Viamão. Não apenas os agentes da Pinça estavam na Branquinha, mas equipes
da Polícia Civil de Santa Cruz do Sul e de outros segmentos do DEIC. Fora da-
quela área, em Canoas – na região onde morava a namorada de Caniço e antigos
comparsas – residências estratégicas eram vigiadas por policiais em uma ação
voluntária de integrantes da Pinça. Não havia para onde ir. Uma hora a quadrilha
teria de sair.
A partir das 15h, barreiras da Brigada Militar foram montadas na região da es-
trada da Branquinha. O Pelotão de Operações Especiais do batalhão do município,
policiais rodoviários e demais agentes fecharam um anel em volta da área. O DEIC
fez investidas em alguns sítios suspeitos que, segundo os agentes, os proprietários
teriam franqueado para a investigação. A esperança era de que a movimentação da
Polícia no local provocasse alguma reação. E foi isso que aconteceu.
Os policiais sabiam que qualquer operação ali seria bastante complexa. Trata-se
de uma região de aproximadamente 30 mil habitantes, com diversas vilas populares
e mais de 100 sítios. A estrada da Branquinha tem um trecho de asfalto e o seu final
é constituído por chão batido plenamente trafegável, rico em ramificações e vias vi-
cinais de acesso a áreas que podem servir de esconderijo. A região é de fácil e rápida
ligação a diferentes rotas de saída da região metropolitana.
Depois do episódio de Erê, alguns não descartavam que a quadrilha poderia
até usar jet skis e lanchas para uma fuga pela praia de Itapuã, utilizando o Guaíba.
Outra hipótese pouco provável, mas possível graças à localização da Branquinha,
seria uma fuga ao Centro de Porto Alegre, pela Bento Gonçalves, Protásio Alves
ou Ipiranga.
233

Um dos episódios mais intrigantes daquele dia, e que não teria explicação mes-
mo anos depois, foi o fato de um sargento do Exército ser preso por estar com nove
caixas de fuzil 762 – um dos calibres disparados exaustivamente pelos encapuzados
que invadiram a Seguroforte – no porta-malas de seu veículo. Ele chegou a afirmar
para os PMs que tinha autorização do comandante do quartel para estar com a
munição. Questionado sobre o que fazia na região, disse que atendia a um familiar
doente. O comandante do quartel solicitou a liberação de seu subordinado, embora
todos saibam que existem regulamentações de armas e munições e nenhum militar
pode transportar material bélico daquele calibre, fora de serviço, sem documento
para tal.
Ao longo do dia, choveram informações desencontradas via Disque-Denúncia.
Corriam notícias de que a quadrilha teria ido para Santa Catarina. As barreiras da
Brigada Militar duraram mais de 12 horas na região. A cúpula da Operação Pinça
apelou ao comando da Brigada Militar para que as barreiras na região continuassem
também na quinta-feira.
Muitos afirmam que um Audi cor prata, que trafegava pela estrada da Bran-
quinha, repentinamente deu a volta após avistar a barreira da Brigada Militar. O
automóvel passou a ser suspeito, pois era o tipo de veículo que caia ao gosto da
quadrilha. Um Audi já havia sido queimado em Caçador no “Episódio do Avião”,
no dia 10 de fevereiro.
Um suspeito de integrar a quadrilha teria sido parado de moto por uma barreira,
checado e liberado. Não foi reconhecido pelos policiais. Durante a abordagem, o
motoqueiro teria prestado atenção na obsessão dos policiais e produzido os seguin-
tes áudios telefônicos.

Grampo do telefone de homem não identificado (HNI)


Ponto de vista de Guardião
19h10min

– Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens e estará sujeita
a cobrança após o sinal – um sinal eletrônico e a voz feminina gravada continua – Esta
é a caixa postal número 51 8*******. Após o sinal grave sua mensagem – e o bip para
a gravação.
– Tem barreira no caminho. Não vem que tem barreira na estradinha de chão.
Na estradinha de chão tem barreira – HNI deixa o recado.

Conversa telefônica de Ricardinho com homem não identificado (HNI)


Ponto de vista de Guardião
19h26min

– Ô, cara! – atende HNI.


– Ô, amigo.
234

– Hã?
– Assim, ó, deu um probleminha e nós tivemo que voltá por outro lado, mas...
– Tá?
– Tá tudo certo. Vai...
– Tá tudo...Tá tudo ok?
– Vai...
– Ô, cara, me abordaram duas veiz! Vocês não sai daí com esse carro. É só o que
eles falam é nesse carro, cara. – alerta HNI.
– Beleza, beleza, beleza, beleza. Assim, ó...não dorme lá onde tu dormiu a noite
passada que (inaudível).
– Tá. Ô, cara, não fica aí então, cara!
– Não. Tá, pode deixá pra nóis. Tá?
– Ô, cara... Bah, tem duas ali, ó. Por onde eu saí tem duas, cara.
(...)

Grampo do telefone de homem não identificado (HNI)


Ponto de vista de Guardião
21h02min

– Fala! – atende Ricardinho.


– Ô, me diz uma coisa, tá tudo bem, cara?
– Tá.
– É. Ô, te liga no que eu vô te perguntá, tá?
– Hã?
– Vocês saíram pra esquerda e tava ruim?
– Isso.
– Bem ruim?
– Mais ou menos.
– Ô, cara. E pra direita tava bem ruim. Tem que cuidá então. Tão no meio...Eu
não sei, mas...né?
– Tá, eu sei. Tá, me diz uma coisa?
– Hã?
– Mas já chegaram te pedindo daquele negócio?
– Não. Eu vi eles comentando. Não me pediram nada, nada. Só revistaram e tal.
– Revistaram também o que tu tava?
– N...não. Nada, nada, nada. Só aquilo, eles querem sabê. Mas é assim, só os
cachorro, né? Não é os grandão.
– Tá.
– Tá?
– E daí o seguinte, daí já chegaram e já te intimaram na...tu já escutô a conversa
daquele negócio.
– Eu escutei a conversa. É....(inaudível). Mas não me perguntaram nada.
– Tá
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– Então foi (inaudível)... bá, bá, bááá...bá, bá, bááá.


– Tá.
– Ó, mas só (corte na ligação) tá ruim.
– Não, pode deixá. Nós temo, nós temo agora ficando tranquilo já.
– Tão tá, ó. Bem tranquilo. E eu vou ficá pro negão... o rapaiz sabe, tá?
– Tá, eu sei. Coloca o....deixa ligado aí.
– Tá. Viu, tu qué um cartão, eu te passo o número?
– Mas fica assim, ó. Qualquer coisa eu te ligo a cobrá.
– Mas é melhor eu te passá um número. Eu vou te passá um número dum, tá?
– Tão me passa. Me passa então.
– Pera aí um pouquinho. Vou te ligá de volta, tá?
– Tá.

Quinta-feira, 13 de abril
Esquina das avenidas Ipiranga com Silva Só, Porto Alegre
Lancheria Mr. Ronalds
Ponto de vista de Odilon
0h55min

Os integrantes da Pinça já haviam sido liberados para se retirar do QG impro-


visado na 040 e descansar em casa. A ideia era retornar ao local na manhã de quinta
e esperar os vagos saírem. Duas equipes iriam para Lajeado ainda na madrugada,
por volta das 5h, a fim de surpreender Ricardinho ou mais integrantes da quadrilha,
caso eles conseguissem furar as barreiras, e o que foi dito na conversa das 20h48min
se concretizasse. Na ligação, ele fala para sua companheira que vai pegá-la na sexta-
-feira para visitar o “tio” dela.
Nosso pensamento era que, enquanto eles continuassem na Branquinha, não
havia problema porque estavam na iminência de serem capturados pela Brigada
Militar na madrugada, caso saíssem de forma convencional da região. As equipes
iriam para Lajeado na quinta, pois Ricardinho poderia sair mais cedo do esconderi-
jo, suspeitando de que estava sendo grampeado.
Apenas Gaspar, Litto e eu ainda estávamos na região da Branquinha. Quem
trabalha na rua tem dessas coisas. Podem dizer que estamos liberados, mas seguimos
porque estamos encarnados no troço. Ninguém poderia nos impedir de continuar
acompanhando as barreiras.
Após dois dias em alerta total, o cansaço, o sono e a fome eram avassaladores.
Com a pulga atrás da orelha, fomos para Porto Alegre. Depois de rodarmos muito,
indecisos quanto a um lugar para comer, optamos por uma lancheria. Pedimos um
Mr. Burger Animado para amenizar a frustração de sentir que o nosso tempo aca-
bava e os vagos continuavam atuando com cada vez mais violência, sigilo e precisão.
Estávamos iniciando o 89° dia após a morte do menino ATM, data que alguns
consideram marco para o início da Operação Pinça. Eram sete equipes mobilizadas,
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muito mais de três centenas de grampos telefônicos analisados, investidas frustra-


das, mortes, pressão de todos os lados. Enquanto isso, nosso alvo principal seguia
solto, colocando um pijama para dormir em algum lugar que não conseguíamos
imaginar.
Tentávamos resumir as informações da quarta-feira, projetar como seria a nossa
saída para o município de Lajeado. Olhei para o relógio. Calculei apenas duas ou
três horas de sono. Eu era o único que ainda comia quando o telefone de Gaspar
tocou no meio do seu bocejo. Ele colocou no viva voz.
Era um diálogo de Ricardinho com um sujeito não identificado. Poderia ser Ín-
dio, suspeito do Vale do Rio Pardo, que não conhecia muito bem as saídas da região
Metropolitana de Porto Alegre, então pedia informações para sair de Viamão.
Em um momento, Ricardinho disse que se deslocava próximo à “Estrada do
Guri”. Em março, tínhamos feito campana na casa de um parceiro do bando, conhe-
cido como “Guri”. O local era justamente num acesso à RS-118. Tudo se fechava.
Eles deixaram Viamão e entrariam provavelmente na RS-118. Em seguida, pode-
riam rumar para a RS-030, cortando os municípios de Gravataí e Cachoeirinha,
para chegar a Canoas e pegar a BR-386 em direção a Lajeado. Eles finalmente
saíam da toca.

Ponto de vista de Gaspar

A ligação fez com que deixássemos a lancheria e entrássemos no Astra. Não


tínhamos muita gasolina e estávamos cansados, mas decidimos dar mais uma in-
vestida devido ao furo do bloqueio, o que, diga-se de passagem, imaginávamos ser
impossível. Enquanto começávamos a nos deslocar para a saída de Porto Alegre,
ligamos para colegas e delegados. Por telefone, o delegado Josué nos ajudava a in-
terpretar os grampos e a identificar a movimentação pelos guardiões do Guardião.
Também liguei para o telefone funcional de Itaqui, mas não consegui completar a
ligação, sempre em sinal de ocupado. Instantes depois, meu telefone toca.

– Alô.
– Itaqui? – perguntei.
– Sim... – ele respondia, enquanto entrávamos em um posto de gasolina para
abastecer antes de sair à cata dos vagos.
– Eaí? Ouviu a conversa? – ambos perguntamos um ao outro, o mesmo texto.
– Ouvi...o que tu acha? – ele foi o primeiro a responder com tom de cansaço
extremo.
– Saíram do ninho, amigo... – disse, prestando mais atenção na manobra que
fazia ao lado de uma bomba para aguardar o frentista.
– Cadê o resto do pessoal?
– Consegui falar como delegado Josué. Os outros estão vigiando as possíveis
guaridas do bando em Canoas. Estamos indo pra 386. Os vago dão a entender que
tão indo pra lá também. Vamo?
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– Vamo, sim – ele respondia, enquanto um senhor idoso vinha nos atender.
– Nos espera na BR-116, no viaduto do Boqueirão – sugeri.
– Falou.

Flagramo-nos sem dinheiro no cartão corporativo para colocar combustível.


Explicamos a situação e, graças à boa vontade do proprietário do estabelecimento,
seguimos para Canoas. Ele encheu o tanque do Astra de graça. Bola dez!
Itaqui nos esperava com a viatura Vectra discreta do DEIC na altura do viaduto,
na BR-116, embaixo, conforme o combinado. Paramos o carro e conversávamos
sem sair dos veículos, na lateral da rodovia, quando o meu telefone e o de Odilon
tocaram. Atendi colocando no viva voz. Era o grampo de Ricardinho.

Grampo do telefone de Ricardinho


Ponto de vista de Guardião
1h28min

– Alô? – Ricardinho atendia o telefone.


– Viu, passei por aquela primeira casa ali, tudo tranquilo, entendeu? – informava
HNI.
– Sereno, sereno?
– Sereno, mas não é bom passar pela frente dessa casa porque tu sabe que né...
(falha de sinal).
– Ahã. Eu...tá tranquilo, então. Segue em frente.
– Tão tá. Viu, eu vô indo e logo adiante eu vô dá uma parada pra conversar com
o outro rapaiz lá. Tá?
– Tá beleza.
– Aí eu vou pará ali pra...pra conversá com ele um pouquinho pra conversá tran-
quilo pra ele...pra ele resolvê aquele negócio. Tá bom?
– Daí tu vai conversá comigo daí no caso?
– Não, não. Eu vou conversá com outro lá q (falha de sinal)...que vai....vaaai dá
uma mão amanhã na...naquele, naquelas pedra ali, naquelas coisa lá, tá?
– Tá, tá. Então tá beleza.
– Viu? Ó?
– Hã?
– Mas naí... te... tá. Depois nos falemo. Tá. Falou. Tudo tranquilo. Feito.
– Tá. Beleza.

Ponto de vista de Josué

Comecei a auxiliar a equipe de casa. Informava sobre a movimentação da qua-


drilha pelas estradas e passava tudo para os agentes que iniciavam a perseguição.
O problema é que as equipes em deslocamento estavam relativamente distantes
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das áreas onde as ligações telefônicas eram localizadas. O jeito foi requerer que os
serviços das estradas fizessem barreiras para surpreender os suspeitos. Liguei para
a PRE, solicitando intervenção na RS-118. Após, informei a Brigada Militar de
Canoas sobre o que estava acontecendo. Era uma situação complexa porque ouvia
o grampo, pedia a localização para o Guardião e tentava supor a trajetória que a
quadrilha fazia no deslocamento.
De Canoas, os escutados acessaram a BR-386. Acionei a PRF para informar
sobre o deslocamento. Pedi que os patrulheiros federais fizessem barreiras na pista.

Ponto de vista de Odilon


1h29min

A antena de Ricardinho deu em Nova Santa Rita. Deduzimos que ele poderia
estar atrás e havia um segundo veículo à frente, o de HNI. Talvez o carro estivesse
mais à frente, uma vez que ele disse que passou a “primeira casa”, o que supomos
ser o primeiro Posto da Polícia Rodoviária Federal na BR-386, em Montenegro.
Portanto, tínhamos um vago na altura de Montenegro e outro mais atrás, perto de
Nova Santa Rita.

– Eaí, Itaqui? O que é que tu acha? – gritei para o colega no outro carro, que
também tinha ouvido a conversa dos vago.
– Acho que eles tão mesmo na BR-386, sendo que um deles já passou o primeiro
posto da PRF.
– E o segundo tá em Nova Santa Rita – acrescentou Litto.
– Isso. Eu também acho, conheço aquela banda. Vamo largá pra lá. – concordei.
– Odilon, passa pro carro do Itaqui – Gaspar pediu para eu entrar no Vectra a
fim de sairmos em duas equipes.

Itaqui e eu fomos na frente com o Vectra. Gaspar e Litto ficaram mais atrás com
o Astra, que é mais veloz. O Vectra era bastante desgastado. Seguimos pela rodovia
com duas viaturas amaldiçoadas, decoradas pelos vagos, duas viaturas que não foram
locadas – já que os aluguéis dos veículos já haviam sido suspensos – uma das quais
fora desprezada durante quase três meses de operação.

Grampo do telefone de HNI


Ponto de vista de Guardião
1h53min

– Ôôôa.
– Passei aquela segunda ponte. Tranquilo, tá? – dizia HNI.
– A segunda?
– Isso aquela po...é aquela ponte grande. Daí entra...
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– Conseguiu falar com o loco lá?


– Consegui, consegui. Ele tá vendo já pra, pra vê aquilo lá amanhã.
– Daí...daí é só isso aí, então – presumivelmente Ricardinho fala e cai a ligação.

Ponto de vista de Litto


1h54min

Logo que acessamos a BR-386, passamos por um automóvel Gol preto. A placa era
de São José dos Pinhais, no Paraná. Ligações de Caniço foram rastreadas em regiões
daquele município na semana anterior, talvez recrutando alguém para o assalto na Se-
guroforte. Ficamos em dúvida em abordá-lo. Parecia ser só uma pessoa no veículo, até
meio velho para ser do bando – e eles estavam sempre bem calçados. Como percebemos
que ele andava a 80 Km/h, decidimos passá-lo e fazer a abordagem com segurança em
um posto da PRF. Até porque, com a ajuda de um patrulheiro, o serviço também não
geraria pânico caso o sujeito não fosse do bando.

Posto da Polícia Rodoviária Federal na BR-386, município de


Montenegro

Os colegas do Vectra também pararam no posto. Ganharam distância do Gol.

– Cês passaram por um Gol, né? – disse Gaspar.


– Ahã, achei estranho... – concordava Itaqui.
– Placa de São José dos Pinhais – eu sublinhei.
– Olha, quem sabe a gente atraca esse Gol aqui junto com os patrulheiro e vocês
segue? – perguntou Gaspar.

Itaqui e Odilon seguiram em frente. Gaspar e eu paramos, esperamos o Gol para


um atraque com um patrulheiro federal, sem informá-lo de quem se tratava. Foram
15 minutos, tempo suficiente. Nada do Gol.

Grampo do telefone (presumivelmente) de Ricardinho


Ponto de vista de Guardião
2h19min

– Conseguiu? – homem que poderia ser Ricardinho.


– Ainda não. O rapaz tá meio se amarrando. Acho que n...mas tá vindo né,
amigão... – provavelmente HNI se referia a outro integrante da quadrilha que iria
chegar de moto.
– Mas assim, ó.
– Hã?
240

– O louco aqui falou assim, ó, que não era bom ir muito pra frente, né, cara.
– Tá. Então o seguinte, eu vô dá uma segurada aqui e nóis já fiquemo por aqui,
eu acho, né?
– Isso, isso. Dá uma segurada que tá...ele tá meio assim, né?
– Tá, não, não pode ficá tranquilo. Eu vou, vou achá um lugar aqui e daí nós
fiquemo por aqui, tá?
– Tão dá uma segurada que nós temo a....logo atrás aí – suposto Ricardinho fala
com o parceiro quase deixando escapar a sua localização.
– Tá, tá, tá, tá...
– Valeu.

Ponto de vista de Gaspar


2h20min

O Guardião nos deu a localização da última ligação para Ricardinho. Localidade


de Coxilha Alta, após Montenegro. Liguei para os colegas para mudar o plano.

– Odilon, tu ouviu isso? – perguntava para o colega que tinha a mesma escuta.
– Ahã!
– Tchê, até agora não vimo o Gol. Não passou por aqui ainda.
– Ainda não? – admirava-se Odilon ao telefone.
– Não. E a última ligação já deu em Coxilha Alta.
– Tem um desvio por Capela de Santana antes do posto da PRF. Devem ter
pego o desvio para sair em Montenegro.
– Tá bom, tá bom...ó, segue em frente que a gente alcança vocês – respondi.

Saímos do primeiro Posto da Polícia Rodoviária Federal e exploramos todo o


motor do Astra para tentar nos aproximar dos colegas. Se havia algum dos vago no
Gol, conseguiu nos despistar.

Segundo posto da Polícia Rodoviária Federal na BR-386, município de


Tabaí
Ponto de vista de patrulheiro Rocha

Iniciamos barreiras a pedido de um delegado que comandava as duas equipes


que estavam atrás do bando de Caniço pela rodovia. Ele havia informado que os
policiais civis estavam relativamente atrasados e solicitou nosso apoio. O delegado
ligava para dizer onde davam as ligações dos suspeitos e, cinco minutos depois, o
Serviço de Inteligência da Polícia Rodoviária Federal (IPRF) informava o mesmo.
Não sei dizer exatamente de onde a nossa inteligência tirava as informações,
apenas garanto que ela não estava grampeando ninguém. O processo era o seguinte:
o delegado da Polícia Civil nos passava um dado. Cinco minutos depois, o colega
241

da IPRF ligava dando a mesma informação. Não sei quem comunicava a IPRF, mas
talvez atrasasse porque passava por alguns segmentos.
– Oi, Rocha. Tá na RS-287, já passou o posto de vocês – dizia o delegado.
– Mas, de que jeito, delegado? Estamos acompanhando a movimentação aqui.
– Sim, as torres estão dando depois do posto de vocês?
– A 287 vem de Montenegro pra cá, pode ser lá pelo outro lado também. Se
vocês estão monitorando torres de telefone, se é celular da Óbvio, tem uma antena
lá na 287. Se ele tiver na 386 aqui, no Km 395 ou 400, vai tá pegando aquela antena
da 287. Eles podem está indo por lá, delegado.

Algum tempo depois dessa ligação, um Vectra da Polícia Civil passou por nós. Não
paramos, pois reconhecemos que era uma viatura discreta por experiência de placas
de carros.

Grampo do telefone (presumivelmente) de Ricardinho


Ponto de vista de Guardião
2h25min

– Alô? – dizia outra voz, que ligou para o dito Ricardinho.


– Sim.
– Eaí?
– Conseguiu?
– Eu tô aqui no posto do Florzinha.
– Tá. Guenta aí.
– Beleeeiza.

Ponto de vista de Odilon


2h25min

A última ligação para Ricardinho foi estranha e complicada. Deixei a “repetição


natural” acontecer e continuei sem entendê-la direito. Resolvi ligar pra Gaspar.

– Ô, meu, ouviu a última ligação pro Ricardinho?


– Não...o que houve? – Gaspar respondeu, talvez com a janela do carro aberta, o que
dificultava a comunicação.
– Onde é que fica o Folinha? – perguntava, demonstrando não ter entendido o nome
correto.
– Cara, vai eu sabê? – respondeu o colega, tão perdido quanto eu.
– Ô, meu, tem certeza que não conhece nenhum Folinha?
– Certeza. Sei lá o que é isso, cara!
– Tá. Espera um pouquinho. Já te ligo.
242

Ambos já havíamos trabalhado naquela região e não sabíamos do que se tratava.


Liguei para a Secretaria para pedir mais uma repetição da escuta e sua localização.
Ouvi mais uma vez a ligação feita por alguém para Ricardinho. O local dado pelo
Guardião era Venâncio Aires, município do Vale do Rio Pardo. Mais uma vez,
liguei pra Gaspar, agora tinha entendido melhor o que o vago dizia.

– Ô, meu, é Florzinha...posto do Florzinha.


– Aahh! Florzinha eu sei! É um pouquinho antes do pedágio à direita.
– Tem um cara ligando direto pra eles dali!!!
– Tchê, então vai pra lá que a gente tá indo também.
– Tá, mas o Guardião tá dando que o Ricardinho tá em Venâncio Aires.
– Então ele tá louco!!! O Guardião tá looco!!!! – Gaspar falava do programa de
computador como se fosse gente – Se o Ricardinho tava mais atrás e tá chegando
no posto do Florzinha, ele não pode estar em Venâncio, que é muito depois. Se o
cara tá no Florzinha, é logo aí na frente. Antes da bifurcação que leva pra Lajeado
ou Venâncio.
– Então tá, vamo se tocá tudo pro Florzinha.

Olhei para Itaqui e ele pisava fundo no acelerador do Vectra. O bicho passava de
110 Km/h, se tremia todo e não tinha farol alto. Vi a placa, estávamos em Coxilha Alta.

– Tchê, que carro fudido! Puta que pariu! – reclamava solidário ao esforço do
colega em tentar tirar tudo o que podia do Vectra, com o rosto vidrado. Meu co-
ração batia como se eu corresse levando o carro e o colega nas costas pela rodovia
– Tamo rasgando tudo que podemo e não sai nada do carro!
– Porra, já tenho as vista meia boca, o negócio fica pior com esses farol baixo!

Segundo posto da Polícia Rodoviária Federal na BR-386


Município de Tabaí
Ponto de vista de patrulheiro Rocha

– Seguinte, Rocha.
– Sim, delegado Josué?
– Eles estão no posto do Florzinha. É essa a informação. Estão parados lá. Tem
uma viatura próxima e outra que está indo mais atrás.
– Vamo pra lá.

Dois colegas e eu pegamos uma espingarda calibre 12 e pistolas Ponto 40. Entra-
mos na viatura, e passou um Astra, dando dois toques na buzina em alta velocidade.
Reconhecemos o veículo como uma possível viatura da Polícia Civil. Saímos atrás.

***
243

Corporações (extra-DEIC) criaram uma mobilização institucional e fecharam


aliança alguns meses antes dessa situação para prender Caniço. Era uma força-tare-
fa paralela à Operação Pinça. Nesta noite, havia três fluxos de informações sobre os
grampos da quadrilha de Caniço, oriundos de apenas duas fontes diferentes.

Operação Pinça –> Operação Pinça (auxílio do Guardião da SJS)


Polícia Federal –> Brigada Militar (auxílio do Guardião da PF)
Polícia Federal –> Inteligência da PRF –> Posto da PRF (auxílio do Guardião
da PF)

Durante toda a Operação Pinça, a comunidade de inteligência, montada por


servidores de altíssimo conceito e conhecimento na Brigada Militar, Polícia Fe-
deral, Inteligência da Polícia Rodoviária Federal, Ministério Público e até Corre-
gedoria da Polícia Civil, trocou informações sobre a quadrilha em absoluto sigilo.
O objetivo era prender Caniço a todo custo. O fluxo de informações precisas foi
tão intenso que muitos afirmam que aquele foi o momento de fortalecimento da
Comunidade de Inteligência no Estado nos últimos anos.

***
245

A DANÇA DOS GUERREIROS


Quinta-feira, 13 de abril, QUINTO ano de caçada
Viatura discreta Astra, BR-386
Ponto de vista de Gaspar
2h30min

Um filme veio à minha cabeça no deslocamento em alta velocidade pela BR-386.


Pensei em tudo que vivi na trajetória de policial. Na primeira vez que ouvi falar em
Caniço que, de cabeça de lata de quadrilha se especializara no gerenciamento de células.
Não somos bobos. Trabalhamos em cima desses vagabundos há muito tempo e
sabemos quem é quem. Lidávamos com um sujeito volátil e inteligente. Costumá-
vamos dizer que ele tinha o dom. O cara estava sempre um passo à frente. Desligava
os telefones, tinha um deslocamento rápido e isso nos tirava de sua cola, por mais
encarnados que fôssemos.
Passou quatro anos nos despistando, fugindo das situações mais inusitadas. De
tiroteios, de assaltos frustrados, de canas praticamente certas. Na região onde ope-
rávamos naquele momento, tinha muita gente que o apoiava. Ninguém dava infor-
mação quando se tratava de Caniço. Era a área dele.
Muitas pessoas estavam sendo escutadas, mas ele raramente aparecia nas con-
versas. Sempre trocava de aparelho. Na BR-386, não ouvíamos Caniço nas escutas.
Apenas uma referência de Ricardinho, dando a entender que Caniço deu uma ordem
para HNI seguir na frente sem se distanciar muito. Nós tínhamos noção do que es-
tava prestes a acontecer e isso despertava um sentimento misto de receio, expectativa,
tentativa de profissionalismo extremo e fé. “É agora ou não é nunca”, concluía.

Posto do Florzinha, Km 373, na BR-386


Viatura discreta Vectra
Ponto de vista de Odilon

Chegamos ao posto bem devagar. O local estava tomado por veículos de grande
e médio porte, como caminhões e caminhonetes. Percebemos três filas de cami-
nhões paralelos ao canteiro que separava o posto da rodovia. Paramos o carro do
246

lado de uma van, que iniciava uma segunda fileira de caminhões. Descemos e fomos
conversar com dois homens, que aparentavam 50 anos.

– Boa noite! – Itaqui e eu nos aproximávamos cumprimentando os dois, que


dividiam o chimarrão escorados no caminhão.
– Boa noite! – eles responderam.
– Nós somos da Polícia – Itaqui começou – Vem cá, não teve um pessoal que se
reuniu aqui...uns cara novo de Audi prata?
– Olha, moço, difícil dizer alguma coisa. Aqui circula bastante gente. Há poqui-
nho desci pra fora, tava no caminhão dormindo.
– Ahã – puxei o telefone para ligar para Gaspar.

Ponto de vista de Gaspar

Estava com o fuzil 762 aos meus pés, no chão do banco do carona. Aquele era
outro equipamento desprezado durante praticamente toda a operação, isso porque
ninguém tinha conseguido tirar seu obturador de gases para a limpeza na semana de
treinamento na Brigada Militar. Ninguém gostava de usá-lo, embora o problema não
o impedisse de funcionar.
Dos seis fuzis cedidos para nós, aquele sempre fora preterido até aquele dia,
quando Litto acabou o tirando do armário. A questão é que todos os fuzis tinham
dois carregadores, menos aquele. A equipe tinha tanta certeza de que ele não seria
usado, que alguém pegou o carregador sobressalente do 762 e o deixou apenas com
um.
Talvez por não confiar no FAL e pelo sentimento de que algo forte estava pres-
tes a acontecer, larguei o fuzil com problemas no banco de trás do Vectra e peguei a
CT-40. Meu telefone tocou.
– Ô, meu, onde é que cês tão? – perguntou Odilon.
– Tamo em Paverama.
– Ô meu, nos tamo no posto já aqui, cara! Não tem ninguém. Tamo falando com
os caminhoneiro, tá tudo tranquilo...
– Tamo voando aqui, meu! Já passamos Coxilha Alta.
– ... – percebi que o colega fez um silêncio estranho.
– Alô

Notei que não tinha caído a ligação e, ao retomar o diálogo, rompeu o silêncio.
Tenso:

– Ô, meu, ondiéqcêstão?!! Ondiéqcêstão?!!


– Tamo quase chegando no posto, velho, calmaê!!
– Ô, meu, ondiéqcêstão?!! Eutôven! Tôvendo...
– O que, velho? O quê?
– Tem um Audi prata abastecendo.
247

2h37min

Quando Odilon terminou de falar, estávamos passando por ele e Itaqui, às margens da
BR-386. O carro dos colegas estava na entrada do estabelecimento, em um canteiro a 30
metros da primeira bomba de combustível.

– Litto, entra no posto! – gritei ao perceber que chegávamos no Florzinha.

O colega não conseguiu reduzir para ingressar no primeiro vão de acesso, passando a
entrada.

– Odilon, já chegamo – falava ao telefone para dar noção de onde estávamos.


– Ô, meu, os cara tão lavando um Audi – Odilon percebia o nosso carro – Ô, Gaspar,
entra, entra agora na segunda – ele orientava para entrarmos na segunda boca de entrada
do posto, onde os automóveis geralmente saem para seguir viagem em direção a Lajeado e
Venâncio Aires. Fritamos os pneus do carro para fazer a curva. Ficamos praticamente em
duas rodas no esforço para não passarmos o segundo vão.
– Beleza, beleza! É agora! – falei para Odilon e Litto, desligando o telefone.

Viatura da Polícia Rodoviária Federal


Ponto de vista de Rocha

– Monteiro, tu não entra no posto, hein. A gente tá muito identificado – dizia


para o colega do volante, que se dirigia à primeira entrada do Florzinha. A viatura
da PRF é colorida com giroflash. Seríamos um alvo fácil se nos aventurássemos.

Monteiro fez um retorno curto, utilizando o outro lado da estreita rodovia para
parar mais distante da primeira entrada. Havia um caminhão que nos escondia dos
policiais e de bandidos que pudessem estar no posto.

– Isso. Paraí pra gente ficar no bico. Se alguém acessar a rodovia, a gente segu-
ra daqui – dizia Valério com a 12, abrindo a porta e deixando o banco traseiro da
viatura.
– Esse cara vai querê fugi, ele não aceita... – dizia Monteiro, já com o pé no
asfalto.
– É certo que ele vai querer – completei, também deixando o carro.

Escondido, protegido, ratificava:

– Qualquer movimento de saída do posto é conosco, Valério.


– Ahã – ele apoiava a 12 no ombro, em posição de tiro, mirando o acostamento
voltado para a rodovia.
248

Há quatro pares de bombas paralelas no posto. Junto ao primeiro, a loja de con-


veniências. À esquerda da loja, um espaço vazio que leva para residências no terreno
dos fundos. À esquerda do acesso às residências, inclinada à linha da loja de conve-
niências, existe um minimercado. Ao lado desse comércio, praticamente no mesmo
prédio, um restaurante e, ao lado do restaurante, um hotel. Toda a construção for-
mava um “C”. Naquela madrugada, mais de 20 caminhoneiros utilizavam o posto
para descansar. Como de praxe, muitos dormiam nas cabines dos veículos.

Ponto de vista de Gaspar

Entramos no Florzinha e paramos com o carro voltado para a porta da loja de


conveniências, em relativa distância do Audi suspeito, na linha do terceiro par de
bombas. Um frentista passava um pano no para-brisa do suposto carro dos vagos. O
veículo estava com a frente para o nosso lado, entre a loja e o primeiro par de bombas.
O Vectra dos colegas também avançou, ficando na altura do nosso carro, mas no
outro lado da área das bombas. As viaturas discretas pararam inclinadas para o carro
que abastecia. A posição da frente do Audi em relação ao nosso Astra era a mesma
de sua traseira em relação ao Vectra. Cercávamos os vagos. De onde estava, conse-
guia ouvir o motor do Audi ligado. Parecia que só esperavam o para-brisa terminar
de ser limpo para deixar o local. Foram surpreendidos.

– Ô, meu, é pulícia! – gritei, abrindo mais a janela do Astra, colocando metade


do peito pra fora – Diz pra eles descere do carro que é pulícia, meu! – gritei para o
frentista avisar os dois homens.
– ... – não houve resposta, nem olharam para o guri.
– Desce que é pulícia! – eu gritei diretamente para os suspeitos colocando a
CT-40 escorada no retrovisor.

O motora mantinha a cabeça imóvel, mas mexia o braço direito lentamente. Não
conseguia ver a sua mão. O carona tinha o rosto voltado para baixo. Conseguia ver
seus olhos me buscando de canto.

RS-453, Km 18 - Posto da Polícia Rodoviária Estadual


Município de Cruzeiro do Sul
Automóvel Golf vermelho
Ponto de vista de Maximiliano Andreata,
engenheiro agrônomo
2h32min

Minha esposa e eu nos deslocávamos em direção a nossa casa em Encantado


após um jantar de amigos em Passo do Sobrado. Avistei o posto da PRE e quis parar
porque minha esposa passava mal.
249

– Alice, tu guenta até em casa ou paramo na Polícia Rodoviária? – aproximava o


veículo do prédio da PRE e notei uma movimentação intensa no local.

– Paraqui que eu tento usar o banheiro deles, Max. Não vô aguentá – ela puxava
do banco traseiro sua bolsa.

Enquanto ela pegava o que precisava, entrava na unidade da PRE e estacionava


o veículo. Parei, baixei o vidro para pegar ar enquanto ela saia do carro. Fiquei tenso
com a mulher naquele estado. Ela falou que era “por cima e por baixo”, mas eu tinha
medo que só fosse por cima e ela estivesse grávida mesmo, sem querer me dizer.
Observei Alice conversar com um patrulheiro, supostamente pedindo para usar o ba-
nheiro. Quando ela entrou, minha atenção foi desviada para viaturas da Brigada Militar
se movimentando intensamente do outro lado da unidade. Eram uns 30 PMs identifica-
dos como sendo do BOE (Batalhão de Operações Especiais). Pareciam se preparar para
a guerra. Não pude deixar de ouvir quando um policial, com telefone celular na mão, tirou
o telefone da altura do ouvido, tapou o bocal com a mão e gritou para um colega:

– Major, o Comando Regional, acho que confundiu a localização do posto do


Florzinha.
– Como assim?
– Tão perguntando aqui no telefone se a gente já chegou no Florzinha, na 386...
– Ah, é na 386, então? – espantava-se o superior hierárquico.
– Positivo... BR-386.

Paralisei observando a movimentação e me desliguei do mundo, talvez pelo can-


saço. Voltei a mim segundos depois.

– Max! Maaaax! – gritava minha esposa.


– Hã... o que? – acordei do meu transe com Alice batendo na porta trancada.
– Abre!

Puxei a maçaneta.

Posto do Florzinha, BR-386


Ponto de vista de Litto
2h32min

Abri a porta e coloquei o pé pra fora do carro, apontando a pistola para os sus-
peitos. O frentista se afastou para o lado da bomba, mas ficou perto do motorista do
Audi. Notei que o homem que estava no carona começou a mexer o braço esquerdo
devagar. À medida que ele se movimentava dentro do carro, o próprio veículo também
começava a dar a ré lentamente.
– Ô, meu, não te mexe! Polícia!!! – gritei mais uma vez, mas não fui atendido.
250

O carona puxou uma pistola e começou a atirar de dentro do carro em nossa di-
reção, perfurando o para-brisa dos dois veículos. Respondemos ao fogo com inten-
sidade. Concentrei no carona porque o frentista estava na linha de tiro do motorista.

Ponto de vista de Odilon

As luzes traseiras brancas do Audi acenderam, indicando que a marcha a ré fora


engatada. Eu abri a porta do carona do Vectra e coloquei o pé direito pra fora. Quan-
do os guri do Astra atiraram, peguei a submetralhadora 9 mm e comecei a apertar o
gatilho, que, por algum motivo, não respondia. Forcei, mas não conseguia atirar. O
frentista rolou no chão se perdendo entre as bombas, jogando esguicho e mangueira
para cima. Larguei a matraca e saquei a pistola da cintura. Cerrei fogo nos vago.
O veículo começou a se deslocar para trás. Iria arrancar a minha porta. Tive que
me encolher para dentro do carro, puxando a porta no reflexo, mas atirando, com o
braço pra fora, através da janela. Quase à queima-roupa. O motorista puxou a arma
com a mão esquerda, atirando nos colegas durante o deslocamento em marcha a ré.
Algo queimou minha mão.

Ponto de vista de Itaqui

O carro descreveu uma espécie de meia-lua para trás, um arco de aproxima-


damente 30 metros de raio. Uma curva aberta o suficiente para deixar a área das
bombas. Ele conseguia se desvencilhar das nossas equipes, rumando para o meio
do pátio, mas sua velocidade foi excessiva. Quando travara para seguir ao primeiro
vão de acesso ao posto e fugir, perdeu o controle do veículo e derrapou, cravando
a dianteira e parte da lateral direita do carro embaixo de um caminhão paralelo ao
canteiro que separava o posto da BR-386.
A porta do carona ficou para dentro, amassada e obstruída. Ouvia o Audi dos
fugitivos acelerar no limite. O motor gritava, agudo, mas o carro não conseguia sair
de debaixo do caminhão.

Ponto de vista de Litto

Fechamos as portas do Astra e seguimos a trajetória que os vagos fizeram. Pas-


samos o Vectra dos colegas e ficamos a cerca de 20 metros do veículo suspeito, com
a viatura inclinada, mas apontada para a BR. Desci do carro, meti a pistola por cima
da porta e dei os últimos três tiros que restavam na minha arma em cima do Audi.

Ponto de vista de Gaspar

A minha porta ficou de frente para a porta do motora. Mais uma vez, Caniço e
eu estávamos cara a cara. Percebia que, mesmo ciente de que era alvo de vários tiros,
251

ele tentava terminar a manobra de fuga, mas o Audi não conseguia se desencaixar
do caminhão, estava preso e tomando pipoco.
Abri a porta do carona, certo de que tudo acabaria ali com o choque do carro
da dupla no caminhão. Eles não tinham alternativa, deveriam se entregar. Com a
carabina na bandoleira, corri atirando em direção ao Audi. Dei poucos tiros no
veículo, avançando desprotegido. O chumbo tocava na lataria do carro e caia. Não
havia perfuração.
Puxei mais uma vez o gatilho, mas a arma não respondeu. A munição acabou.
A minha percepção não somente sobre toda aquela história, mas sobre o mundo e
a existência humana mudou quando a porta do Audi abriu e me foi apresentado um
fuzil inconfundível, uma AK-47 com o pente em curva e coronha de madeira. Potente.
Clássico. Respeitável.
Abortei a progressão. Recuei vidrado no fuzil. Quando o gatilho foi acionado,
encarei a boca do inferno, rugindo rouca no tom da AK. O som “opaco” e inquietan-
te do estopim parecia ativar descargas elétricas em meus músculos. Eles me senta-
vam o dedo de fuzil a 15 metros de distância. Ouvia o zunido dos projéteis passando
perto do meu corpo. Sem munição para responder fogo, torcia para que nada me
tocasse. Do contrário, seria dilacerado.

Ponto de vista de Litto

Ouvi o estampido do tiro deles. Era fuzil. Pensei alto.

– Esses cara tão dando tiro de fuzil em nós. Não adianta querê dá tiro de pistola!
Abri a porta e sai do banco do motorista, me arrastando no chão em direção à
traseira do veículo. Ergui o tronco, estiquei o braço, abri a porta traseira e, do chão do
pátio do posto, consegui alcançar o FAL que restava no banco de trás. Puxei a arma
e notei um peso anormal quando continuei a rastejar em direção ao porta-malas da
nossa viatura. Não me dei conta que havia um bornal – que guardava munição e uma
pistola – enroscado na mira do fuzil. Dei a volta passando rente ao pneu traseiro es-
querdo, por debaixo do porta-malas.

Ponto de vista de Gaspar

Vi Litto buscando abrigo, rastejando pela traseira do Astra. Ele tentava chegar
à roda traseira direita onde poderia contar com toda a extensão metálica, inclusive
o motor, como proteção para um tiro perfurante da AK. Olhei para o Vectra, na
esperança de me proteger, mas Odilon escorregava pelo capô do carro, contando
também com toda a extensão da lataria do veículo e do motor para se abrigar. Dian-
te dos tiros, Litto colocava as duas mãos na cabeça e o rosto no chão, em um reflexo
de proteção.
Sem alternativas seguras, o ponto relativamente mais próximo para abrigo
em meio àquele pátio aberto era o muro do minimercado, ao lado do vão que
252

levava às residências atrás do posto. Iniciei uma corrida de uns 40 metros onde
atraí mais a atenção dos vagos. Era um espaço aberto, um pátio de asfalto, in-
terminável como um percurso de maratona. Corri como nunca com a carabina
na bandoleira, agarrando-a com as duas mãos durante o deslocamento, tenso,
vendo pedaços das paredes do estabelecimento saltarem à medida que me apro-
ximava do abrigo. Os tiros estalavam os vidros das janelas do prédio. Todos
endereçados a mim.
Acessei degraus que conduziam à porta do minimercado e do restaurante.
Coloquei o pé no primeiro, percebendo que as lajotas dos últimos começaram
a levantar, despedaçadas pelos tiros de fuzil. Venci os degraus e notei a mureta
da varanda de entrada do minimercado. Pulei a mureta, tocando o solo com os
dois pés, caindo por cima do braço.
Fiquei agachado e me localizei. Estava no início do vão que separava o minimer-
cado da loja de conveniências – no acesso às residências. Grudei as costas na mureta,
fiquei abrigado. Peguei no bolso da calça jeans um pente para recarregar a arma. A
intenção era atirar utilizando a mureta como proteção. Era milagre estar vivo.
Erguia a cabeça lentamente para enxergar a dupla por sobre o muro. Parei
quando, a poucos centímetros do meu rosto, um projétil arrancava um azulejo
vermelho no limite superior da mureta, exatamente no ponto onde queria colo-
car os olhos. O pó sujou meus óculos.
Estava temporariamente fora de combate. Quase fazia o milagre ir por terra.
Percebia um instante de silêncio, parecia que todo mundo tentava recarregar as
armas. Eu tinha dado uns 30 tiros naquele posto. Pensava alto, ofegante enquanto
catava a munição para socá-la na carabina.

– Meudeeeeus do cééééu, quanto tiro, cara! O negócio não para e nós no meio
desse troço. Os cara não cooorrem.

Ponto de vista de Litto

Alcancei o pneu traseiro direito. Não era um abrigo perfeito, mas tinha visada.
Fiquei em posição de tiro embaixo do Astra – levemente inclinado em relação a
BR-386. Percebi a movimentação do carona, praticamente deitado ao longo do
carro. Ele tinha os pés entre os dois bancos da frente e o tronco no banco de trás.
Atirava de AK pela janela traseira esquerda. Não parecia afobado. Sentei-lhe o dedo
com o FAL apoiado no chão.

Ponto de vista de Itaqui

O motorista chutou a porta do Audi, atirando para todos os lados. Conseguira


rastejar por baixo da porta até um ponto entre a dianteira do caminhão no qual
colidira e uma van. Agachado, protegia-se e continuava acionando sua pistola.
253

Ponto de vista de Odilon

Uma fumaça cheirando a pólvora pairava no pátio do posto. Concentrei-me


no carona do Audi, que também atirava em Gaspar. O problema é que, de onde
eu estava, era difícil parar para fazer uma visada segura. Havia as duas viaturas
obstruindo o contato visual. No meio daquele chumbo todo, se me deslocasse,
poderia ficar vulnerável. O negócio era fazer o possível para dar cobertura aos
companheiros.
Parece que o tempo em um tiroteio ganha unidade própria. Não parecem se-
gundos. O tempo é mais perceptível, e as imagens mais curtidas “frame a frame”.
Talvez porque possam significar os últimos momentos da vida de um homem.
Cada instante de sorte é motivo de regozijo, mas é proibido comemorar – não há
espaço para subestimar o confronto. As ações são rápidas e a desconcentração, fa-
tal. O desejo de fazer os olhos brilharem por mais tempo nutre o encontro insano
dos guerreiros.
No meio daquele fogo todo, meus sentidos ficaram aguçados ao ponto de escutar
o tilintar dos cartuchos do fuzil de Litto caindo no chão, expelidos. Percebendo um
fuzil embaixo da viatura Astra, o carona desistiu de Gaspar e concentrou tiros de
762 no carro dos colegas que se rebaixava à medida que os pneus eram atingidos.
O carona atirava deitado no banco de trás, pela janela traseira, com as pernas entre
os dois bancos da frente. Percebia onde atingia e começava a corrigir a visada. Era
questão de segundos para atingir Litto.

Ponto de vista de Litto

Saturei o carro de tiros de 762. Por algum motivo, talvez pela arma ter descar-
regado e vendo que a gente não arredaria o pé dali, o homem que restava no Audi
pareceu mudar de ideia. Forçava saída pela porta traseira direita do carro.
Espremendo-se pela porta do veículo, saiu mancando, mas correndo. Ele se des-
locou à direita do posto, paralelamente a outros dois caminhões até sumir, entre o
último caminhão e a saída do posto, acessando a rodovia.

Ponto de vista de Gaspar

Percebi que o motora parou de atirar e estava escorado, agachado na parte


dianteira de uma Van, à frente do carro acidentado. Com arma carregada, retornei
ao tiroteio, me concentrado nele até que ele pareceu ter sido atingido. Liso, talvez
ferido, deslocou-se por entre os veículos, rumo à rodovia. Mais uma vez, um filme
conhecido me passou pela cabeça – Caniço desaparecia subitamente dos meus
olhos.
Os tiros pararam. Itaqui seguido por Litto se deslocava em direção aos cami-
nhões atrás do motora.
254

Viatura da Polícia Rodoviária Federal


Ponto de vista de Rocha

Eu me dirigia para a dianteira da nossa viatura e próximo ao caminhão que nos


protegia. Visualizei o Astra e o Vectra – as viaturas discretas da Polícia Civil. Pró-
ximo delas, por lógica, deduzi que os policiais atiravam contra alguém junto aos
caminhões estacionados, paralelos ao canteiro. Estávamos a 45 graus da linha de tiro
deles, portanto, fora de perigo de uma bala perdida. Eram rajadas em cima de rajadas.
Sem visada para participar do tiroteio, o nosso negócio era esperar que algum
vago saísse do esconderijo em direção à rodovia. O tiroteio cessou.

Quem é o pai da Criança?


(versões de um final cobiçado)

Ponto de vista de Itaqui

– Cuidado, cuidado que ele pode tá ali ainda!!! – dizia Litto, percebendo que os
tiros cessaram, ainda agachado no pneu traseiro do Astra, trocando o fuzil pela pistola.
– Vamo tê que ir atrás desse puto. Não pode escapá dessa vez! – respondia para
o colega, recarregando a minha pistola.

Corri até a traseira da Van. Entrei no espaço entre ela e o caminhão, visualizando
o canteiro antes da rodovia.

Viatura da Polícia Rodoviária Federal


Ponto de vista de Rocha

– Olhaalê!!! Olhalê!! Tá vendo? – gritava para o colega porque surgia um ho-


mem engatinhando, saindo debaixo de um caminhão, subindo o canteiro que divi-
dia a rodovia e o posto. O suspeito levantava-se para começar a correr, olhando para
nós. Quando vi que “a coisa” brilhou na mão dele, não esperei para ele apontar para
mim, até porque perdi meu esconderijo.

– Tôvend, tôvend!!! – Valério respondia e também atirava.


Atiramos a uns 40 metros de distância. Eu dei dois tiros. Notei o primeiro tiro
do colega. Não deu para ouvir mais nada depois porque o estampido da 12 dele foi
ao lado do meu ouvido. O suspeito tombava largando a arma sobre o canteiro.

Ponto de vista de Itaqui

Observei o motorista rastejando já no acostamento da BR, ferido. Ali o grudei.


– Para, meu! É Polícia – gritei.
255

– Já era, Seu. Já era, já era... – o motorista dizia.


– Qual é teu nome, meu?
– Luciano.

Ele se deslocara de quatro por debaixo da cabine do caminhão, junto ao para-


-choque, até a rodovia.

Ponto de vista de Odilon


(ainda no pátio do posto)

Corri atrás do carona, um homem pesado que abandonava o carro e corria em


direção à saída do posto. Dei tiros em sua direção, mas ele se agachou, perdendo-
-se por baixo dos caminhões, buscando acessar a rodovia. Não iria me meter nos
caminhões porque poderia ser emboscado. Cheguei à saída do posto e surpreendi
o carona atravessando a BR na linha do segundo acesso ao posto, à nossa esquerda.
Apertei o gatilho, mas sem sucesso, a arma descarregou.
Ele chegou até o outro lado da rodovia, sumindo na escuridão. Atravessei a BR
recarregando a pistola.

Viatura da Polícia Rodoviária Federal


Ponto de vista de Rocha

Assim que os tiros pararam, um caminhoneiro surgiu do nada, perto de onde está-
vamos. Embarcou no seu veículo e deixou rapidamente o posto. Não quis saber o que
estava acontecendo. Eu guentava o suspeito caído. Não sabia quem era e nem se ainda
estava em condições de fuga. Permanecíamos à distância, tentando controlar a situação.
Notamos o deslocamento de um homem atravessando a rodovia, saindo pelo outro vão
de acesso do posto, com uma pistola na mão. Monteiro apontou e se posicionou para o
tiro. Não sabíamos quem era, estava distante. Não atiramos e o sujeito atravessou a pista.

– Ô meu, aquele cara com pistola na mão era policial? – perguntava Monteiro.
– Sim. Acho que sim.
– Bhhoa! Quase que atiro nele! – Monteiro, na dúvida, não atirou.

Segundos depois, mais um homem com arma longa atravessava a pista. Hesitamos.

Ponto de vista de Odilon, que quase fora alvo de fogo amigo pela
segunda vez em menos de um mês

Cheguei à outra margem da rodovia, transpus uma pequena elevação. O terreno


era acidentado. Enxerguei o sujeito correndo a uns 10 metros. Visada no escuro e
tiro. O carona tombava. Acho eu, devido ao meu tiro.
256

Reduzi a distância. Saí da elevação e encarava uma depressão no terreno. Havia


nova elevação. Devagar, fazendo a visada para depois do segundo morrinho, sentin-
do a vegetação na canela. Fui me aproximando lentamente do local onde o sujeito
caíra. Não sabia se estava morto, ferido ou montando emboscada. À medida que su-
bia a nova elevação no terreno, enxergava parte de seu corpo, talvez o tronco, estava
escuro. A uns quatro metros do carona, dei mais duas sapecadas.

– Perdi, perdi! Tô desarmado! – gritava o carona no chão – Pelo amor de Deus,


não atira! Não me mata!
– Levanta as mão! – ordenei.

Desci o barranco e corri para guentar o sujeito. Revistei o carona e encontrei dois
carregadores de fuzil dentro do bolso do abrigo. Peguei seus pulsos.

Ponto de vista de Gaspar

Atravessei a rodovia e mergulhei na escuridão para não deixar Odilon sozinho.


O movimento na estrada não era intenso, mas era impossível atravessar sem perder
alguns segundos. Lembrei-me do dia em que quase atiramos nele, no meio do mato
em Oroporé, na caçada a MB.

– Vem, Gaspar! Vem que ele tá aqui! – já ouvia e enxergava o colega pedir para
me aproximar.

Ponto de vista de Odilon

– Gaspar, me dá uma algema!!! Rápido, me joga uma algema!!! – gritava.


– Calma, rapaz, tem uma algema dentro do teu colete – Gaspar lembrava que
eu tinha colocado uma algema presa no colete, entre o equipamento e meu peito.

Tentei levantar o vago.

– Não, não... – ele protestou – Não tô sentindo minha perna... tô fudido.

Sua canela parecia rompida e frouxa. Presa ao resto da perna somente pela carne
ou pela calça. Não sei como conseguira correr daquele jeito. O homem utilizava co-
lete à prova de balas, no qual eram perceptíveis marcas de tiros. Pelo seu peso, tinha
certeza de que não era Caniço.
257

Viatura da Polícia Rodoviária Federal


Ponto de vista de Rocha

Esperamos policiais aparecerem próximo ao homem deitado no acostamento,


próximo à primeira entrada do posto. Quando o primeiro agente surgiu junto ao
suspeito, saindo dos caminhões, coloquei um facho de luz da minha lanterna no
homem caído na rodovia. O policial notou a minha presença e chegávamos mais
perto do corpo. Era um homem mulato e magro.

– Bah!!! Belo tiro – dizia o policial.

Percebi então que o homem tinha a perna ferida e, ao seu lado, havia a pistola
prateada, que brilhava no asfalto com a pouca luz do poste de entrada do posto.
Valério, Monteiro e outro policial civil se aproximaram.

Ponto de vista de caminhão


estacionado junto ao canteiro

Veículos passavam a poucos metros de distância. Os patrulheiros rodoviários


e dois homens à paisana já observavam o homem deitado no asfalto. Parecia vivo.

– Ô, meu, tu é o Caniço? – perguntava um dos homens para o sujeito deitado,


que levantava as mãos.
– Não... não. Meu... meu nome é Luciano – o homem deitado no asfalto respondia.
– Ô meu, tu é o Manuel Barcellos Flores, sim! – um do grupo gritava mais nervoso.
– ... – não houve resposta, apesar da pressão.
– Fala! Tu é o Caniço, né? – alguém endurecia na porrada.
– Caralho, vamo apertá esse cara – alguém sugeria matá-lo no auge da adrenalina.
– Não, não... segura. Segura. Calmaê! – outro tentava acalmar.
– Fala! Tu é o Caniço, né? – alguém endurecia novamente e arroxava o homem.
– Uhumm – desistia o sujeito, sem mais condições de negar por algum motivo
que não consegui perceber. Deve ter sido dor, levou porrada.

Um à paisana virou o sujeito de bruços e um patrulheiro o algemou. Aos poucos,


caminhoneiros que estavam dentro das cabines e funcionários do Florzinha come-
çaram a sair de seus abrigos. Eu nunca vi tanto tiro assim na minha vida.

Ponto de vista de perna do carona, dilacerada

Um homem de farda se juntava aos dois paisanos junto ao corpo que eu ainda
teimava em integrar.
– O outro ali é o Caniço, né, meu? – gritava um deles.
258

– Não sei! Não conheço.


– O outro ali é o Caniço, né, meu? – senti uma pisada dolorosa.
– **** – ele emitia um som, mas eu não conseguia ouvir porque tinha um pé
em cima de mim.
– É o Caniço, meu??? – apertaram-me novamente.
– Caiu a casa!... É o Caniço... é sim! – dizia o gordo em meio à dor.
– Tá, e cadê o resto? – perguntava um deles.
– Já passaru... já passaru.

Ponto de vista de Odilon

Mais um agente da Polícia Rodoviária Federal, que chegara numa segunda via-
tura naquele momento, se aproximou do sujeito de perna dilacerada.

– Não quero morrer! Tenho filhos! – dizia o ferido.

Todos observavam o sujeito bastante tenso.

– Ô, companheiro! – um patrulheiro falava comigo. Era Monteiro. Reconhecia


porque já trabalhei em Venâncio Aires, onde ele também servira.
– Opa! – respondi.
– Atirei naquele outro lá estirado do outro lado do posto – dizia Monteiro.

Gaspar e eu preferimos não responder, afinal tínhamos trocado tiros com os vagos.

– Eu vi os esguicho da perna desse aqui fazendo um rastro de sangue na rodovia.


Como é que ele conseguiu correr 200 metro com essa perna assim? – dizia Mon-
teiro para o patrulheiro recém-chegado, que parecia ser seu superior hierárquico.
– A gente recebeu ordem de tomá conta dessa bronca aqui – disse o “mais gradu-
ado”, interrompendo o diálogo com o seu colega e se voltando para mim.
– Como assim, meu? – rompi o meu silêncio.
– Olha, a gente teve ordi para vir aqui até este posto, prendê o Caniço e fazê
inclusive a segurança do local. Como é que vocês souberam que eles estavam aqui?
Não tô entendendo nada – insistia o mesmo agente da PRF.
– Paraí, só um pouquinho, quem é que caiu de paraquedas aqui? Como é que vo-
cês souberam que eles tavam aqui? – eu devolvia a pergunta – A gente tá na cola dos
cara desde o assalto em Santa Cruz. Quem é que tava aqui quando vocês chegaru?
Nós tava aqui tiroteando com os cara, vocês não. Chegaram depois.
– Tá bem, tá bem...confio em ti – desistia Monteiro, que tentava fechar discussão
porque acompanhara o início da perseguição.
– Ô, Gaspar!! – um dos colegas gritava do outro lado da rodovia – É o Caniço!!!
– Tô sabendo!!! – Gaspar gritava para os colegas – O outro já deu aqui!!!
259

Ponto de vista de Gaspar

O cara praticamente perdera a panturrilha. Deve ter sido atingido por fuzil. Mas
como conseguira correr mais de 100 metros sem a panturrilha? Puxei o celular do bolso
e fui atravessando a rodovia para me aproximar dos policiais que estavam com Caniço.

– Delegado Toniolo? – liguei para informar a situação, correndo pela rodovia.


– Oi, Gaspar. Fala.
– Prendemo o Caniço.
– Ah! Não acredito!!!
– Não, tá...tá, tá na mão – chegava perto dos colegas com Caniço, que estava com
os olhos fechados e com a perna ensanguentada.
– Tá vivo ou morto?
– Tá morto... eu acho – eufórico nem me dava conta direito do quadro. Parecia
um sonho.

Fiz novas ligações para os delegados Josué e Robledo.

Memória coletiva de integrantes da Pinça


3h10min

Eram cerca de 30 viaturas, aproximadamente 50 policiais militares e rodoviários


que chegavam de todas as partes. Havia oficiais, figuras graduadas das corporações
querendo ter acesso aos feridos. Colocamos Caniço algemado junto ao Audi e iso-
lamos a área. Ficamos, nós quatro, tomando conta do preso, temendo que alguém
quisesse “assumir a criança” na mão grande, mas ela tinha nome e pai definidos. Nós,
sozinhos, contra os uniformizados. E o pior é que nossos delegados demoravam a
chegar. “O BOE atravessava viaturas, tirava fotos. Tentavam se adonar da bronca.”
Dentro do Audi de placas clonadas, roubado em Vacaria na semana anterior,
encontramos miguelitos, granada, um fuzil extra além do utilizado pelo motorista e
três pistolas. Havia bastante sangue no banco do carona.
Em um primeiro momento, não conseguimos identificar o homem encontrado
com Caniço. Provavelmente era o sujeito que havia se comunicado com o restante da
quadrilha, dizendo que estava no Florzinha. Aparentemente, pelo sotaque, era de fora
do Estado. Talvez o paranaense que surgia na investigação no mês passado, quando
fomos até Santa Catarina em função de um assalto em São José dos Pinhais, no Paraná.
Uma ambulância do pedágio ajudou a colocar Caniço e seu parceiro entre as nos-
sas viaturas. Nosso carro tinha furos por todos os lados e havia sinais do tiroteio em
todas as paredes da ala esquerda do Florzinha. Algum tempo depois, com a chegada
dos nossos, Caniço e o parceiro foram levados ao Pronto Socorro de Porto Alegre.
260

Posto Florzinha, município de Paverama


Ponto de vista de Gaspar
7h12min

Durante toda a noite, a grande questão era onde tinha se enfiado Ricardinho.
Nossa suspeita era de que ele saiu de Viamão com Caniço e ambos chegaram até
o Florzinha para encontrar o comparsa que acabou perdendo a perna no tiroteio.
Acreditávamos que ele fugiu durante o confronto.
O Posto do Florzinha é cercado por mato. É possível que ele tenha sido resga-
tado de alguma forma, mas não tínhamos a menor ideia de onde poderia estar. O
Astra tinha ficado inutilizado e acabei pegando carona com colegas da Delegacia
de Lajeado. Falávamos no mistério que envolvia a fuga de Ricardinho, quando meu
telefone tocou. Olhei pelo bina e identifiquei a ligação.

– Fala, Itaqui! Tu tá onde?


– No Pronto Socorro acompanhando o Caniço, mas o negócio é o seguinte, ouvi
uma conversa da mulher do Ricardinho com um sujeito agora...
– Ããhã.
– Ela chama o cara de Doutor Riválio, acho que é um advogado. A antena tá
dando em Lajeado. Na conversa, ela disse que precisava falar com ele urgentemente.
– Ããhã. É, então vamo tentá levantá um possível advogado do Ricardinho.
Três colegas da Delegacia de Lajeado e eu fomos para a cidade. Chegamos à
casa de um advogado de nossa confiança, que confirmou que realmente existia um
colega seu de nome Riválio. Não revelamos por que estávamos atrás do colega dele
e, mesmo assim, informou onde era o escritório do tal Dr. Riválio. Fomos pra lá.
Chegamos na porta do prédio, onde supostamente ficava o endereço de Riválio. Um
homem alto, aparentando 50 anos, abriu o portão do edifício, coincidentemente após
tocarmos a campainha da sala 25. Mantivemos a porta aberta após a saída do homem.

– Sim? – respondia a voz pelo interfone.


– Dr. Riválio? – Jamir, um colega da delegacia de Lajeado, perguntava.
– Sim.
– Somos da Polícia. Sabemos que Ricardo Baracy de Lima, o Ricardinho, está
aí – disse sem ter certeza que Ricardinho realmente estava lá.
Ouvindo o som característico de abertura do porteiro eletrônico. Era desnecessário.
Subi para o segundo andar. A porta estava aberta. Cheguei a um guichê no aces-
so à sala. Dentro, vi um homem num sofá, com cabeça baixa e cotovelos no joelho.
– Ricardinho?

Ele me olhou.

– Tu tá preso. Me acompanha.
261

EPÍLOGO
Cacos ainda espalhados

Arsênio e Índio assaltavam mercados e levavam malotes na região de Santa


Cruz. Sempre foram escassas as provas que levassem a Polícia à dupla. São pesso-
as consideradas de “extrema periculosidade” por setores da segurança pública, com
inúmeros registros policiais na região do Vale do Rio Pardo por roubo. No entanto,
a dupla nunca teve ligação com empreendimentos maiores.
Índio tinha um cunhado que se chamava Ernesto Fagundes dos Reis, que sem-
pre participou de roubos com a dupla. Porém, na hora de montar o bando para
atacar a Seguroforte, Reis foi deixado de lado. A troca dele por Caniço teria rendido
meio milhão de reais a seus dois parceiros no assalto à empresa de valores.
O efeito foi uma revolta pelo desprestígio. Reis se sentiu traído e criou inimizade
forte com Índio. Para quem estava acostumado a pegar de 4 mil a 6 mil reais num
“assaltinho”, aquilo era uma “mina de ouro”.
Magoado, montou seu próprio time. Já tinha metralhadoras, fuzis e dinamites
para o grande empreendimento. Queria organizar um grupo para roubar carros-
-fortes, no mesmo método de Caniço. O objetivo era preencher a lacuna deixada
pela prisão de Manoel Barcellos Flores.
Após seis meses de investigações pela Delegacia Regional de Santa Cruz do
Sul, Reis acabou preso e todo o seu material foi apreendido. Seu cunhado, pelo qual
nutria inimizade, também caiu 15 meses depois da morte de ATM1. Índio havia
investido parte do dinheiro em veículos. Foi identificada, inclusive, uma residência
que ele estava construindo, provavelmente com o dinheiro do assalto. Foram apre-
endidos carros, caminhões e um táxi. Caiu com entorpecentes e armas.
Arsênio foi preso 20 meses após a morte de ATM. Chegou a ser capturado
na invasão da Pinça ao estacionamento em Canoas, mas foi liberado “estrategica-
mente”, segundo a Polícia. Livre, “estrategicamente”, teria participado da investida
contra Seguroforte, que resultou na morte de um capitão da BM.

1 A escolha da alcunha ATM foi motivada pela pressão gerada no meio


policial pela morte do menino, trata-se da sigla de uma unidade de
medida de pressão.
Depois da captura de Caniço e de seu parceiro, com o desmantelamento da
célula criminosa, a Polícia acredita que tanto Índio como Arsênio só não realizaram
mais ataques a carros-fortes porque o referencial do grupo caíra. Cinco pessoas
foram indiciadas pelo assalto à Seguroforte. Testemunhas narram a participação
de oito assaltantes. Isso leva a crer que armas e integrantes do bando que invadiu a
empresa ainda estão na rua ou não foram identificados.

Curioso (parte I)

Ninguém comenta se foi coincidência os bandidos, em dois meses consecutivos,


desligarem os celulares ou trocarem de aparelhos horas antes de fazer uma investida
de vulto. Em fevereiro, no “Episódio do Avião”, pouco antes de atacar o aeroclube de
Caçador, a quadrilha, provavelmente de Caniço, trocou de celulares. No episódio do
“Nego Zé”, outra vez, os investigados desligaram celulares ou buscaram outra forma
de comunicação, mas sumiram do monitoramento dos policiais. Muitos alegam que
foi defeito no grampo telefônico. Mas ninguém sabe o que realmente aconteceu.
É pura inocência pensar que o crime organizado não sabe que está sendo mo-
nitorado ou desconhece os instrumentos de investigação policial. O uso de códigos,
a estratégia de mudar telefones, chips, os diálogos obscuros mostram a capacidade
de reação das quadrilhas diante dos métodos de investigação. A prevenção dos ban-
didos é fato e não pode ser encarada pela sociedade como novidade ou de forma
pueril.
Outra ingenuidade é pensar que as quadrilhas aprendem isso somente com a
imprensa. Com a relação tão próxima de policiais com quadrilheiros, por que não
imaginar que agentes públicos corruptos ou com boa penetração na criminalidade
também não detalhariam métodos de investigação por escuta telefônica? Parece
lógico.
Em tempos de Primeiro Comando da Capital (PCC), também não surpreende
o grampo telefônico autorizado dentro das penitenciárias, o que subverte o próprio
conceito da pena – segregação. Naquela época, já havia recursos para evitar a co-
municação dos detentos com o meio externo por telefones celulares. Existiam os
sistemas bloqueadores ativos (que atuam na emissão do sinal) e os fixos (que atuam
com a adoção de telas, chamadas “gaiolas”, que impedem a propagação do sinal).
Na verdade, essa atitude interpretada como negligente pela sociedade poderia ser
um prejuízo calculado pelas autoridades.
É evidente que a Polícia vai encontrar informações preciosas interceptando liga-
ções de presos guardados em penitenciárias de alta segurança. A questão é que, no
momento em que chacinas são comandadas de dentro de presídios pelo telefone, o
que vale mais: as informações interceptadas ou a segurança das pessoas que podem
ser vítimas do crime ordenado por um homem atrás das grades? Não se quer cogitar
que alguns crimes contra a vida, por exemplo, interceptados em ligações telefôni-
cas, não sejam evitados porque as eventuais vítimas são foras da lei. “Isso é acerto
263

de conta entre vagabundo, deixa pra lá...”, como se ouve seguidamente na vida de
repórter.
Fofo Ledo estava preso e, graças ao fato de usar o telefone celular seguidamente,
algumas escutas de Caniço foram recuperadas. Eis um exemplo claro do lado “bom”
de “permitir” o crime de se comunicar via telefone de dentro das penitenciárias. Isso
evidencia que, às vezes, interessa mais para uma investigação manter um detento
com um telefone celular na mão a calá-lo.
Uma fonte da comunidade de inteligência brasileira identifica que a partir da
histórica onda de atentados do PCC em São Paulo – articulados por detentos, ba-
sicamente via telefone celular, advogados e parentes – a tolerância visando grampos
telefônicos de presos passou a ser condenada. “Acabou sendo hipocritamente apon-
tada como vilã. Antes, quando contemplava os interesses do Ministério Público e
dos segmentos policiais especializados, era claramente aceita”, diz a fonte. O mes-
mo técnico afirma que o uso de celulares nos presídios, empregando tecnologias
existentes, inclusive já disponíveis junto às operadoras, pode ser “controlado, tanto
para a supressão, quanto para a hipótese de interceptação, atendendo gerenciamento
técnico e policial”. O método só esbarraria em uma questão corporativa: “quem faria
o controle?”. Surgem os primeiros problemas, uma vez que todos os órgãos querem
ter a honra e poucos (ou ninguém) desejam partilhar.
A empresa fabricante está no seu papel. Vende sob a chancela do judiciário e do
MP um sistema exclusivo externo às operadoras, repassando a tecnologia aos Esta-
dos ou instituições. O que a fonte destaca como ponto negativo é que “o serviço po-
deria ser prestado sem maiores investimentos pelas operadoras diretamente à gestão
penitenciária e policial.” Ele afirma que o Ministério Público estaria interessado
no acesso, com exclusividade – a todos os telefones existentes no ambiente prisio-
nal, provavelmente com escuta preliminar, mediante autorização judicial implícita
– para definir quais seriam os telefones suprimidos e quais seriam os monitorados.
É o chamado Modelo de Monitoramento-Controle.
“Em todo esse processo, tanto a Polícia quanto os agentes penitenciários detêm
atuação marcantemente acessória ou secundária. Legalmente, nada impediria que a
gestão penitenciária e a Polícia solicitassem mensal ou semanalmente às operadoras,
a partir de autorização judicial específica, relatórios identificando celulares nos pre-
sídios”, esclarece. A fonte finaliza, afirmando que “tal procedimento poderia barrar
a tentativa de constituição de ‘monopólio’ por parte do MP”.
Essa declaração foi feita um ano após a Operação Pinça. Se isso efetivamente
aconteceu ou não... segue o sigilo.

Curioso (parte II)

Outro fato pouco comentado e que merece discussão é a reiterada advertência


de policiais durante a apuração deste livro de que é fácil grampear quem quer que
seja, do mais perverso criminoso ao mais cândido cidadão. Basta fazer uma boa jus-
264

tificativa judicial para tanto, se é que realmente precisa em todos os casos, uma vez
que as auditorias que deveriam ser feitas podem não estar ocorrendo pelo grande
volume de interceptações. O Fulano ou Cicrana, pai ou mãe de família, professor
ou professora, advogado ou advogada, arquiteto ou arquiteta, jornalista, costureiro
ou costureira, enfim todo ou qualquer cidadão ou cidadã de vida lisa, que paga
impostos e nunca fez mal a uma mosca, pode ter seu sigilo telefônico quebrado se
a justificativa for “embasada” o suficiente. Ou seja, se o nome do cidadão for, por
exemplo, apresentado à justiça como alguém com ligação a investigados – mesmo
que efetivamente não tenha nenhuma relação com criminosos – ele pode ser “escu-
tado”. Isso também deve ser discutido.
Um delegado de cargo importante na Polícia Civil do Rio Grande do Sul con-
fidenciou, em determinada altura, que só fazia ligações por orelhão. Quando tinha
informações importantes para trocar com o secretário de Justiça e de Segurança Pú-
blica, com seus colegas, utilizava um telefone público. “É mais seguro”, argumentava.
Vivia com um cartão telefônico no bolso. Por quê? Tinha convênio com a Telecom?
“Já se descobriu a conduta sexual de muita gente aqui dentro da SJS pelos grampos”,
outra fonte garante. Não seria exagero meditar sobre o assunto e imaginar no que
deter informações privadas pode resultar. Informação é moeda de barganha. Não
raro, escuta-se colegas jornalistas desconfiarem de que estão sendo grampeados. Pa-
ranoia? Talvez. Mas passa a ser temerário quando agentes do meio da inteligência e
da segurança do Estado não duvidam que isso realmente possa acontecer.
Para finalizar, o caso de outro delegado que, ao descobrir que este livro estava
sendo escrito, tornou-se extremamente solícito – como jamais fora nas consultas
das matérias do dia a dia. Causou-me estranheza, mas fiquei feliz em conhecer
finalmente, o lado simpático e atencioso do homem. Ao longo da conversa, quan-
do ele percebeu que eu estava extremamente bem informado sobre alguns temas,
estabelecemos um ponto de diálogo que classifico como o “nível excelente do res-
peito profissional mútuo (NERPROM)”. É o momento em que o entrevistado para
de interpretar, leva a sério a reportagem. Nesse tal “NERPROM”, as autoridades
param de subestimar o repórter, descem do pedestal e a conversa fica séria, olho
no olho. O jornalista Percival de Souza, no seu livro Sindicato do crime, descreve
com perfeição quando isso ocorre. Para ele, “é preciso saber perguntar. Mocinhos e
bandidos só falam quando quem interroga sabe conduzir perguntas e tem munição
factual para buscar respostas”. O respeito é tão grande que quando tu sacas o teu
cartão profissional, o olho do interlocutor brilha.

– O senhor pode me ligar, se tiver alguma dúvida, se quiser acrescentar algo –


disse na ocasião ao delegado.

A frase aumentou o brilho nos olhos do interlocutor e fez suas mãos voarem
para o cartão, vorazes, objetivas, como o séquito no fascínio de sua recompensa.
Rápidas, como se corresse o risco de eu cambiar de ideia.
– Claro – respondeu, dissimulando.
265

Arrependi-me de ter dado o meu cartão quando percebi a reação voraz. Mas
seria descortês voltar atrás. Seria um absurdo, eu diria, diante de inédita atenção
dispensada pela autoridade e de tamanha colaboração.
É claro que ele nunca me ligou. É óbvio também que a sua satisfação ao rece-
ber o número do meu telefone aguçou o estado de alerta no qual vivi no período
de apuração deste livro. Não, eu não me arrisco a dizer nada que interprete aquela
atitude com justiça e clareza. Suposições podem ser demasiadas. Mas ninguém pode
me proibir de estranhar aquele comportamento, no mínimo, curioso. E diante da
experiência de apuração de alguns fatos, a atitude não só me colocou com uma pulga
atrás da orelha, mas me fez pensar em, primeiramente, desativar meu celular, que
acabei não fazendo por julgar que não havia informação que passasse por ele que
merecesse ser escondida.
267

GLOSSÁRIO
Abrir o coração: fornecer informações, confessar, revelar detalhes.
Aceitar: entregar-se, render-se, submeter-se à prisão.
Acertiva: acordo.
Antena: Estação de Rádio Base de telefonia celular (ERB).
Apertar: coagir, pressionar, executar ou matar (depende do contexto).
Arroxar: espancar.
Arrego: propina, chance e complacência.
Atracar: parar para revistar algum suspeito.
Atucanado: nervoso, insatisfeito, impaciente.
Bagulho: usado frequentemente como referência a drogas, o termo também
substitui qualquer objeto ou tarefa.
Baixar: matar, desligar (quando se trata de aparelho).
Banda: região (daí pode derivar dar uma banda: dar uma volta).
Balaca ou balaqueiro: sujeito que faz pose para qualquer situação, faz-se de roga-
do, marrento ou marra (bras. Rj).
Balão: dar balão é enganar, dar a informação errada.
Bicho: carro utilizado em assalto.
Bico: acompanhar, vigiar, olhar, conferir.
Boleia: sujeito que dirige carro utilizado em crime.
Bronca: encrenca, crime, ocorrência policial.
Brigadiano: integrante da Brigada Militar, a Polícia Militar do Rio Grande do
Sul.
Cabeça de lata: sujeito sem voz de comando na quadrilha.
Cabreiro: desconfiado, intrigado.
Calçado: armado, “bem calçado”: fortemente armado.
Caiu a casa: expressão que significa que algo saiu do controle, rendição.
Caminhada: experiência, investigação.
Cana: prisão.
Cogepol: Corregedoria da Polícia Civil do RS.
Colocar no papel: formalizar denúncia, assinar testemunho.
Colono: termo pejorativo para se referir a descendente de alemães no Sul do Bra-
sil, geralmente associado à atitude interpretada como grosseira ou pouco polida.
Correria: tarefa, serviço.
Curva: dar a curva, enganar.
Dar um bico: dar uma olhada.
De canto: discretamente.
De cara: sóbrio, sem nenhum entorpecente; aborrecido, enraivecido.
Destapar: descobrir, desvendar, identificar.
Dizque: boato que pode, caso confirmado, passar a ser informação.
Emendar-se: integrar-se a quadrilha, envolver-se com.
Empurrar: invasão policial para checagem.
Encarnar-se: obcecar-se
Enxertar: plantar uma prova falsa contra alguém.
Estar no bico: significa estar acompanhando, vigiando.
Fazer o local: fazer o levantamento técnico policial de um local de crime.
FAL: fuzil automático leve.
Ficar frio: ficar calmo.
Fita: caso, história.
Folhas: cheques.
Fredericos: como setores da segurança pública chamam policiais federais.
Free-Way: estrada de acesso ao Litoral Norte do Rio Grande do Sul de grande
tráfego.
Furioso: fora do comum, interessante. bras: muito legal. port: giro.
269

Guardião: Programa de computador utilizado como ferramenta de investigação


pela segurança do Rio Grande do Sul para fazer os grampos telefônicos. Sua
função básica é organizar escutas telefônicas e localização aproximada de celu-
lares grampeados. Vulgarmente o nome é usado para designar setor de trabalho
de inteligência da SJS.
Guentar: manter suspeitos rendidos.
Grudar: prender.
Info: Informante, pessoa que ajuda a polícia fornecendo informações.
Interpraias: estrada antiga que ligava os balneários do Litoral Norte gaúcho e
passava pelo centro de algumas praias adquirindo o nome de Paraguaçu. Devido
ao péssimo estado de conservação serviu de justificativa para a construção da
Estada do Mar, RS-389.
Inundação: equipe invade ambiente de tal forma que todos os seus comparti-
mentos são vistoriados. Os operadores retornam ao ambiente principal, conti-
nuando a progressão dentro do ambiente.
IMEI: International Mobile Equipment Identity, número de identificação do
aparelho, com 15 algarismos, que é programado na fábrica. Mesmo se o chip do
aparelho for trocado, é possível a realização de seu grampo.
Islâmico: extraordinário, impressionante, de extrema audácia.
Mané: sujeito que é passado para trás ou demonstra inocência, termo importado
de outros estados do Brasil.
Mão grande: pegar à força, roubar.
Matear: tomar chimarrão.
Meia boca: medíocre, mais ou menos, nem carne nem peixe (port. Port.)
Meter: roubar objetos, estabelecimentos bancários, comerciais ou residências.
Invadir algum local.
Matraca: metralhadora ou submetralhadora.
Miguelitos: objeto constituído de pregos entortados e unidos, utilizado para fu-
rar pneus de automóveis.
Motora: motorista, condutor.
Na manha: com calma, devagar.
Nordestão: como os gaúchos chamam o vento da direção Nordeste no Litoral
Norte que é bastante intenso e, para alguns veranistas, significa mar escuro.
Operação Verão: operação de reforço do policiamento no Litoral Norte do RS
durante o verão.
270

Pagar a bola: em jogo de bilhar ou sinuca, “paga-se a bola” quando a deixa pronta
para o adversário colocar na caçapa.
Pagar vale: dar motivo para ser humilhado, ser alvo de gozação.
Pechar: encontro casual com assaltante ou autor de outros crimes.
Pedido: uma pessoa está “pedida” quando tem o mandado de sua prisão autori-
zado pela justiça.
Pila: como as pessoas no Rio Grande do Sul se referem a dinheiro. Seria a mo-
eda oficial do colóquio cotidiano do gaúcho.
Pipoco: tiro.
Piá: criança, guri.
Porta fria: pista falsa, investida falsa, dica que não é quente.
Queimar (o filme): denegrir a imagem, prejudicar, levar à derrocada.
Ratear: dar mancada, vacilar.
Recunha: reconhecimento, confirmação.
Sangue no olho: estar com “sangue no olho” é estar com ódio.
Sapecar: atirar.
Se fazer: fazer-se de rogado ou se dar bem após alguma situação.
Sentar o dedo: puxar o gatilho, atirar.
Sistema: sistema carcerário, comunidade dos indivíduos em conflito com a lei,
dos criminosos.
Te liga: fica atento.
Time: quadrilha ou grupo de policiais.
Troço: termo que substitui qualquer objeto ou tarefa (como negócio).
Tri: termo usado no Rio Grande do Sul que substitui advérbios de intensidade
como muito.
Vago: vagabundo.
Vazar: fugir, correr.
Vila: favela no Sul do país, conglomerado ou complexo de residências de baixa
renda com ou sem saneamento e que não oferece condições básicas de vida ao
ser humano.
272

CIDADANIA & DIREITOS


reVisTa esPeciaL | 13 De aBriL | Um aNo aPÓs o TÉrmiNo Da caÇaDa

o QUe VocÊ NÃo LeU No aNo QUe VocÊ ViVeU


iNTro, POR JORGE MIGUEL DE CÁSSIO *

Prezados leitores,
Nesta edição da revista semanal Poucos sabem que, para tirar Ma- Veja detalhes que praticamente
de Carta Popular, a equipe de re- noel Barcellos Flores de circulação, a ninguém conhece.
portagem da editoria de cidadania e secretaria de justiça e de segurança Carta Popular traz informações
direitos relembra a maior operação pública teve de montar uma equipe que jamais vieram à tona e ain-
da história da polícia civil do Rio dedicada exclusivamente à sua caça, da destaca questões surpreendentes
Grande do Sul. Nossa reportagem deflagrando uma ação sigilosa sem nesta edição.
revela os bastidores do grupo espe- precedentes na região, que ganhou
cial formado para prender o alvo de o nome de operação pinça. Apenas
órgãos de segurança pública do sul os integrantes desse grupo sabem * Editor de Cidadania e Direitos
do Brasil durante quase cinco anos. das dificuldades transpostas ou não. jorge.miguel@cartapopular.com.br
TesTemUNHo

era GasoLiNa e PÓLVora


Fuzis, carabinas, pistolas e granadas à disposição em
um posto de gasolina
FLÁVIA BLONDCHEN, Santa Cruz do Sul | flavia.blondchen@cartapopular.com.br

Uma das prisões mais importan- drilha que assaltara a sede da em- lesão sofrida durante o tiroteio.
tes da história da Polícia Civil gaú- presa Seguroforte, em Santa Cruz Impossível saber quantos disparos
cha ocorreu na madrugada do dia do Sul, naquela semana, quando ocorreram no Posto do Florzinha,
13 de abril do quinto ano de caça- um oficial da Brigada Militar foi mas quem estava no local não es-
da, no município de Paverama, no morto. quece as rajadas e os estragos no
Posto do Florzinha, na BR-386. Na- complexo que conta com loja de
Caniço foi baleado em dois pon-
quele dia, Manoel Barcellos Flores, conveniências, restaurante, mini-
tos da perna e tinha ferimentos no
Caniço, foi preso juntamente com mercado e hotel.
rosto e nas costas. Péricles teve a
Zacarias Gusmão Péricles. Ambos
perna amputada devido à grave O Audi utilizado pelos suspeitos
são suspeitos de integrarem a qua-
273

O QUE VO CÊ NÃO LEU NO ANO QUE VO CÊ VIVEU


274

CIDADANIA & DIREITOS

tinha placas clonadas e fora rou- sendo que oito diretamente na li- saram três tiros que entraram por
bado uma semana antes da ação. nha de fogo. Muitos dormiam nas baixo do sofá–cama do caminho-
Restaram apreendidos uma car- cabines dos veículos. Um frentista neiro que dormia na cabine, a um
teira vazia, fuzis 762 (FAL) e AK- e um segurança trabalhavam no palmo de sua cabeça. Depois que
-47, uma pistola 9mm cromada, local. os bandidos estavam algemados,
uma pistola Glock Ponto 40, uma uns 40 minutos depois do tiroteio,
Uma testemunha que não pode
pistola Tauros PT100 com número um policial bateu na porta para
ser identificada passou quase des-
raspado – modelo idêntico ao utili- ver se o motorista estava bem. Aí
percebida pelo Florzinha. Viu a re-
zado pela Polícia Rodoviária Fede- o motorista criou coragem para
ação das pessoas e relembra com
ral, carregador de FAL com muni- sair. Todo aquele tempo ele esta-
emoção aquela madrugada.
ção traçante, um controle–remoto va em pânico dentro da cabine do
de garagem, cinco toucas ninja Como foi o tiroteio? caminhão. Ele disse que parou no
em uma bolsa com o símbolo do Os barulhos eram marcantes. Florzinha porque o radiador do
Sport Club Internacional de Porto Era muito tiro. Eu nunca ouvi tanto veículo estava furado.
Alegre. Agentes de segurança cal- tiro na minha vida e não pretendo Havia uma Van próxima a esse
culam que aproximadamente 20 ouvir de novo. O caminhão onde o caminhão, o motorista não foi
caminhões estavam estacionados carro bateu tomou vários tiros, to- ferido?
no Posto no momento do tiroteio, dos abaixo da linha da porta. Pas- Ninguém sabia que alguém dor-
mia na van, até porque é muito (risos) Fazer o quê? Eu nem costas e na coxa. O terceiro tiro
desconfortável. O motorista saiu conversei muito com ele, mas ele foi abaixo do joelho, que quebrou
de dentro do veículo uma hora e se escondeu lá pra trás. Se você o osso.
meia depois (do tiroteio). Ele co- olhar o carro dos bandidos (Audi), Como tu sabes desses deta-
mentava: “policial civil não anda a quantidade de tiro que atra- lhes?
com farda e tinha um monte de vessou aquele carro... nas costas Sou curioso. Fiquei transitando
gente andando armada lá dentro. dele (Caniço), acho que foi só um por ali enquanto estava cheio de
Quem é marginal e quem não é chumbinho de arma, de 12, talvez. polícia no local. Aí, é só ficar ante-
nessa hora? Vão dar mais tiros? Um tiro pegou o pedal do freio e nado, né. No meio da euforia, ouvi
Não sei, ora.” ele tinha um tiro na coxa. Ouvi di- uma coisa, vi outra. Um amigo da
E o segurança do posto? zer na região que talvez esse tiro Polícia diz uma coisa, outro diz
Interessante que todos os tiros no pedal tenha feito ele perder o outra.
foram pro lado da churrascaria, controle do carro na fuga e bater Como o motorista não foi atin-
onde não tinha movimento na- no caminhão. Porque ele era fa- gido de fuzil?
quele horário. O segurança esta- moso por ser um bom motorista. Eu acho que quando ele viu que
va do outro lado do prédio. Se ele Disseram que tinha preferência ele tinha batido, deve ter saído
estivesse na churrascaria, teria por marcha hidramática para po- muito rápido do carro. Por isso,
levado um tiro. der fugir atirando. ele escapou. Eles foram muito rá-
Ninguém do estabelecimento No carro dele, o que tu viste? pidos, mas pra nós parecia uma
quer falar. Tu tiveste acesso ao Alguns tiros na frente e a maio- eternidade.
segurança. O que ele falou? ria na lateral. Ele foi baleado nas
275

O QUE VO CÊ NÃO LEU NO ANO QUE VO CÊ VIVEU


276

CIDADANIA & DIREITOS

esPeciaL

QUerem roUBar a criaNÇa


Curiosidades sobre a madrugada da prisão de Caniço
AFONSO MILHAR, Porto Alegre | afonso.milhar@cartapopular.com.br

Após a remoção de Caniço e de Za- “Todo mundo queria o criminoso que tiveram de fazer o rescaldo da ope-
carias Péricles do posto do Florzinha, prendemos. E ficamos justamente nós, ração sozinhos. “O preso é teu, certo?
todos pareciam ter esquecido dos pro- sobreviventes, psicologicamente abala- Você deu o flagrante nele.”
cedimentos normais em locais onde dos. Nós ficamos lá terminando o servi-
Para quem está de fora, a revolta
ocorrem tiroteios. Dos mais de 50 ço. Nós que prendemos, que tiroteamos,
é exagerada. Mas naquele dia, esses
agentes de segurança que estiveram que levamos tiros, não vimos o cara
policiais não somente realizaram pri-
no estabelecimento após os suspeitos porque ficamos preservando o local. É
sões importantes para a corporação,
serem dominados, apenas três ficaram incrível isso!”, protesta um dos agentes.
como colocaram as mãos no elo entre
no local realizando procedimentos de Os mesmos agentes também guardam
as duas células mais atuantes do cri-
praxe – os policiais que trocaram tiros alguma revolta por não terem conse-
me organizado no Sul do Brasil. Eram
com a dupla. guido “ver os homens presos”, porque
bandos de origens diferentes, mas o
ramo de atuação e as frequentes ações tes de outras corporações que mos- que não se chegasse à autoria do dis-
conjuntas já os tornavam uma única tram inquietação diante da investi- paro”, protestava a fonte. O laudo que
quadrilha – organizada, objetiva e im- gação do tiroteio na Seguroforte, em afirma que o projétil encontrado no
placável. Santa Cruz do Sul, quando um oficial colete da PM ferida seria proveniente
da Brigada Militar foi morto. Na oca- de uma das armas apreendidas no ti-
A prisão concentrava tanta atenção
sião, um projétil de fuzil, que teria sido roteio do Florzinha está em um Inqué-
e era tão cobiçada, que médicos fla-
desferido pelos assaltantes, foi loca- rito Policial Militar (IPM) que também
graram discussões entre integrantes
lizado no colete da policial ferida no indiciou dois PMs por não preservação
do Batalhão de Operações Especiais
banco traseiro da viatura da PM. Foi de local de crime e “atitude incompatí-
da Brigada Militar (BOE) e de uma das
pedida a análise do objeto. A ideia era vel com atividade profissional” durante
delegacias do DEIC que não partici-
verificar se poderia ser proveniente o assalto à Seguroforte.
pou da Operação Pinça. “No Hospital
das armas apreendidas no posto do
de Pronto Socorro, o BOE queria tomar O outro fuzil apreendido é de fabri-
Florzinha com Caniço. “Uma análise
o cara. Colegas tiveram que pegá-lo cação argentina. Trata–se de um FAL
desse padrão não demora sete dias
de volta. Era uma briga por causa do de uso exclusivo das Forças Armadas
após a requisição”, disse uma fonte da
preso. Tínhamos que fazer o flagrante daquele país. Talvez mais um produto
comunidade de inteligência do Estado.
e o BOE queria levá–lo sei lá pra onde. da chamada “Rota Gaúcha” do tráfico
O laudo ficou pronto, mas foi entregue
Se fosse um “João Ninguém”, ninguém de armas, alimentada pelo crime orga-
aos requerentes 40 dias depois do pe-
queria. Mas como era um assaltante nizado do Sul do Brasil e outras células
dido.
famoso...”, um policial civil depõe sobre dos Estados da região Sudeste.
o fato. “Erro cartorial desqualificava o docu-
Todas essas vivências e teses são in-
mento e a prova. Tudo conspirava para
Carta Popular também ouviu agen- gredientes de uma história que transi-
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O QUE VO CÊ NÃO LEU NO ANO QUE VO CÊ VIVEU


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CIDADANIA & DIREITOS

ta entre a ética policial, a desconfiança – Uma ambulância de uma praça de para o local. O posto da PRF mais pró-
sobre uma corporação abalada pela pedágio foi acionada logo após o ti- ximo deslocou todas as suas viaturas
corrupção e a vontade extrema de ver roteio, mas chegou quase duas horas para apoiar a ocorrência.
uma prioridade cumprida. O fim da depois. “A concessionária temia levar
– O Grupo de Operações Especiais
caçada a Caniço foi resultado de um um preso de alta periculosidade em sua
da PRF deveria ter se deslocado para
esforço estrutural sem precedentes na ambulância”, revelou uma fonte que
acompanhar os patrulheiros que fo-
história da segurança pública gaúcha não quis ser identificada. Os paramé-
ram até o posto reforçar a investida
e mais curiosidades surgem no decor- dicos só foram ao local depois de vá-
dos policiais civis. Não se deslocou
rer do exame cuidadoso do caso. rios orgãos de segurança garantirem
porque considerou que era uma “porta
a escolta da ambulância. Os suspeitos
PONTO A PONTO: fria”. Não viram lógica no rastro apon-
foram algemados e colocados juntos
tado pelo órgão de inteligência com
– Alguns “fardados” confessam que na maca para o atendimento em Porto
base nas ligações telefônicas. “Quem é
tiveram de conter colegas para que os Alegre.
do trecho sabe que a informação não é
dois presos (Caniço e o companheiro)
– Havia a suspeita de que outro car- desencontrada”, disse um agente de se-
não fossem espancados, mesmo es-
ro dos bandidos estivesse escondido gurança das rodovias.
tando feridos. O motivo da revolta era
no Posto do Florzinha, por isso foi feito
a morte do PM durante a ocorrência – O Audi de Caniço não teria passado
o reforço da segurança. Todo o efetivo
na Seguroforte. pela BR-386 naquela noite. Provavel-
operacional da região foi deslocado
mente teria se deslocado por uma das
inúmeras estradas vicinais da região. como “muito pesado”, para a beira da te foi motivo de desconfiança durante
Teria desviado em Coxilha Alta, muito pista. Ele havia perdido a panturrilha muitos meses. Caniço pagou a conta
antes do posto da Polícia Rodoviária e a perna estava quebrada. Alguns di- de 111 reais da gasolina com 121 re-
Federal. Parara no posto para lavar o zem que ele teria quebrado a perna ais, deixando a diferença para o fren-
carro provavelmente devido à sujeira devido ao terreno irregular do outro tista. A carteira de Caniço foi apreendi-
provocada pelas estradas de chão. lado da rodovia. Sem a panturrilha, da vazia. A pergunta que muitos ainda
praticamente com a perna reduzida fazem: como um sujeito que rouba
– O inquérito não confirma se agen-
ao osso, houve a fratura. Teve de ser milhões na segunda-feira tem apenas
tes da PRF foram autores dos disparos
removido, pulando em um pé só para R$100 na carteira três dias depois, e
que feriram e derrubaram Caniço na
as margens da rodovia a fim de espe- entrega tudo para um frentista como
rodovia. “Até prefiro que seja assim.
rar socorro. gorjeta?
Quem fez a prisão foi a Polícia Civil,
quem tomou mais tiros foram eles. O – A perna do parceiro de Caniço teria – Por conta do dinheiro roubado da
fato é que sem a PRF não haveria a sido dilacerada por um tiro de fuzil. “O Seguroforte, a namorada de Caniço foi
prisão. Se nossos agentes não estives- Audi tem esses sinais. Ele deve ter sido sequestrada várias vezes nos meses
sem lá, ele teria fugido, atravessado a atingido por uma bala enquanto esta- que se seguiram à prisão. Ela estava
rodovia acessando um campo escuro. va sentado no banco. Um tiro que atra- sendo ameaçada já logo após o assalto.
A minha ideia é de que o trabalho foi vessou o carro. Ali tinha muito sangue. Muitos acreditam que alguém, não se
feito. Essa é a minha mentalidade”, con- Tem tiro que entra, transpassa a caixa sabe de que lado, se achava no direito
forma-se um policial rodoviário. de câmbio e sai do lado dele”, disseram de pressionar o suspeito usando a na-
policiais. morada, reivindicando, provavelmen-
– Uma das tarefas mais complicadas
te, parte do produto do roubo.
foi levar o carona de Caniço, lembrado – O dinheiro roubado da Segurofor-
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O QUE VO CÊ NÃO LEU NO ANO QUE VO CÊ VIVEU


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CIDADANIA & DIREITOS

esPeciaL

QUaNTo cUsTa PreNDer o NÚmero


Um? NiNGUÉm saBe, NiNGUÉm ViU...
SJS não tinha pessoal para registrar o orçamento da Operação Pinça

MOACIR ARANHA, Porto Alegre | moacir.aranha@cartapopular.com.br

Quando Brinquedo, um dos princi- Grande do Sul por algo em torno de Sabe–se que armar uma quadrilha
pais integrantes da quadrilha de Ca- 5 mil reais (2.800 dólares). Os trafi- para grandes assaltos só é fácil para
niço, foi preso em ação conjunta do cantes preferem não alugar porque se bandidos com experiência e com bom
Ministério Público e da Brigada Mili- alguém é preso com um fuzil alugado, fôlego financeiro, que precisam ofere-
tar revelara que um fuzil no Paraguai perde-se o produto. Em outros Esta- cer garantias para os negociadores do
custava parcos 350 reais (equivalente dos, chegam a ocorrer empréstimos material bélico.
na época a aproximadamente 140 dó- de armas. Como pagamento, parte do
Essa flexibilidade é aceitável entre
lares). Claro que não é verdade. Fuzis lucro do empreendimento criminoso
criminosos, mas na Segurança Públi-
eram vendidos naquela época no Rio vai para o fornecedor da arma.
ca a perda de controle nos gastos com responsáveis pelas finanças da SJS. Em relação à Pinça, assim como em
ações de combate ao crime organi- Calcula–se que foram investidos algo operações de desocupação de terras
zado chega a ser ofensiva diante dos entre 450 mil a meio milhão de reais geralmente do MST ou da Via Campe-
poucos recursos disponíveis. O Esta- (equivalente a um valor entre 210 mil sina, não há valores calculados. “Puxa,
do gaúcho não tem noção de quanto e 230 mil dólares) com aluguel de ve- é uma fortuna! E a gente não tem um
custa combater uma organização cri- ículos e imóveis, diárias, combustível, valor calculado até para dizer... tudo
minosa. Desde o episódio da morte do ligações e grampos telefônicos e ma- bem, a gente tirou os sem–terra, mas
menino ATM até a prisão de Caniço, terial de expediente. “O valor total tal- a população pagou um milhão por isso
foram quase 90 dias. Conforme um vez chegue a 500 mil reais, o que não e não sabe. Nós não estamos organiza-
servidor que trabalhava na época em parece tanto diante do orçamento total dos e nosso grupo é pequeno, fazemos o
um cargo considerado de alta respon- de 4 milhões de reais da Polícia Civil. Se que é mais urgente para fazer a máqui-
sabilidade na Secretaria de Justiça tivesse que manter um grupo perma- na andar. É algo que demandaria duas
e de Segurança Pública, o órgão não nente com essas características, tería- pessoas contabilizando para chegar a
tinha pessoal nem mecanismos para mos que nos organizar para que fosse um valor confiável”, revela a fonte de
apurar quanto foi gasto na Operação colocado em prática”, opina o servidor. Carta Popular. Ora, convenhamos, so-
Pinça. Alguns servidores chegam a O cálculo que se faz sobre escutas te- mente duas pessoas para uma pres-
destacar que é um sonho profissional lefônicas na Operação Pinça chega a tação de contas adequada não é nada
ter a noção exata de quanto se gasta 90 mil reais (42 mil dólares). Todo o diante do benefício que significaria
mensalmente em operações extras. tempo de escuta tem pulso telefônico esse serviço. Porque, então, não fazer
pago. Fontes oficiais falam em cerca um esforcinho em nome da transpa-
Carta Popular realizou uma esti-
de 190 grampos na operação. rência?
mativa de gastos ouvindo pessoas
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O QUE VO CÊ NÃO LEU NO ANO QUE VO CÊ VIVEU


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CIDADANIA & DIREITOS

esPeciaL

PoLÍcia FeDeraL NeGa Ter coLaDo


em iNVesTiGaÇÃo Da PoLÍcia ciViL
Delegado diz não ter confundido Batata com Caniço e revela
que prisão foi solicitada por Força-Tarefa em SC
JOÉSIA FONTELLA, Porto Alegre | joesia.fontella@cartapopular.com.br

O delegado Regional de Com- o assaltante Manoel Barcellos lícia Civil (Cogepol), que investi-
bate ao Crime Organizado, Lírio Flores, o Caniço. Agentes da PC gava irregularidades na ação que
Pompei, nega que a Polícia Fe- gaúcha revelaram à reportagem resultou na morte do menino
deral (PF) teve qualquer conhe- de Carta Popular que parte das ATM em um camping no litoral
cimento do conteúdo da investi- escutas da Operação Pinça foi di- norte, em janeiro do quinto ano
gação da Polícia Civil (PC) sobre vidida com a Corregedoria da Po- de caçada. A Cogepol grampeou
telefones de integrantes da Ope- das pela Pinça. Os policiais civis são foi confirmada por autorida-
ração Pinça, utilizando o sistema acreditam que os federais con- des da Força-Tarefa catarinense.
de escutas da Polícia Federal. Al- fundiram as letras “MB”, iniciais “Prender o Caniço era interesse
guns policiais investigados pela de Miro Batata utilizadas pelos da nossa Força-Tarefa. Não reve-
corregedoria faziam, por sua vez, integrantes da Pinça em diálogos lamos quem tínhamos intercep-
escutas de integrantes e colabo- telefônicos, com as iniciais do tado, mas demos a localização de
radores da quadrilha de Caniço nome Manoel Barcellos Flores um integrante da quadrilha de
– uma investigação que interes- e prenderam Miro Batata, pen- Caniço – sem especificar qual –
sava a Polícia Federal. Nessa rede sando que estavam prendendo que caíra na nossa investigação.
de interceptações também esta- Caniço. Essa informação, ligada a infor-
va o grampo telefônico de Miro mações que a Polícia Federal no
Pompei nega. Diz que a Força-
Batata, chamado de MB pelos RS já tinha, resultou nesse exce-
-Tarefa de Santa Catarina – for-
policiais civis. lente trabalho da PF”, lembra o
mada no Ministério Público com
promotor de justiça e coordena-
Integrantes da Polícia do RS o apoio de agentes da Polícia Ci-
dor do Centro de Apoio Opera-
acreditam que federais acessa- vil, Polícia Militar e Polícia Rodo-
cional a Investigações Especiais,
ram as escutas que estavam sen- viária Federal – teria indicado o
Pedro Gaston, salientando a tro-
do feitas pela Cogepol no equipa- local para que os policiais fede-
ca de informações e a afinidade
mento da Superintendência da rais lotados no Rio Grande do Sul
com a PF do RS.
PF e iniciaram uma investigação montassem a operação de prisão
paralela para prender Caniço de “integrantes” da quadrilha de O delegado Pompei defende
com as informações levanta- Caniço em São Leopoldo. A ver- que a Força-Tarefa de SC estaria
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O QUE VO CÊ NÃO LEU NO ANO QUE VO CÊ VIVEU


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CIDADANIA & DIREITOS

investigando Miro Batata devido durante as investigações em cima garante o promotor catarinense.
à suposta participação em assal- de Caniço.
Na ocasião da prisão de Miro
to a um aeroporto no município
Segundo Gaston, a Força-Tarefa Batata, a Polícia Federal ventilou
de Caçador, no dia 10 de feverei-
catarinense acreditava que Miro que chegou ao criminoso seguin-
ro do quinto ano de caçada. Aí a
Batata participasse da quadrilha do o rastro do dinheiro roubado
versão do policial federal começa
de Caniço devido às informações do Banco Central de Fortaleza, no
a ficar confusa porque essa infor-
cedidas pela Polícia, mas não ti- maior assalto da história do Bra-
mação é desmentida pela coor-
nha nada concreto sobre a atua- sil, 167 milhões de reais (ação su-
denação da Força-Tarefa de Santa
ção de Batata em Santa Catarina. postamente bancada pelo PCC).
Catarina. “O assalto foi alvo de in-
Ninguém ouvido pela reportagem Pompei afirmou para um jornal
vestigação da DEIC catarinense,
em Santa Catarina consegue pro- que o dinheiro roubado no Nor-
não da Força-Tarefa. E na ocasião
var se Batata foi realmente alvo deste estaria financiando ações
não foi constatada a presença de
da tal Força-Tarefa nem se ele criminosas em todo o Brasil.
Miro Batata”, afirma Gaston. O
atuou em território catarinense. Agentes da Divisão de Repressão
diretor da DEIC, Álvaro Muriel,
“Não temos registro disso, ape- a Crimes contra o Patrimônio, de
demonstra familiaridade com o
nas repassamos as informações a Brasília, foram enviados à região
nome de Miro Batata, confirman-
quem possa interessar no âmbito metropolitana de Porto Alegre
do que fora alvo de sua equipe
da comunidade de inteligência”, para investigar se esse dinheiro
financiava também os assaltos Pompei diz que tinha informa- identidade.
de Caniço. Na quarta-feira, 5 de ções de que Caniço poderia estar
Parece óbvio que qualquer in-
abril, o endereço foi levantado. na casa de Batata. “Por isso pedi-
vestigação para elucidar a possí-
“Infelizmente, no momento da mos para a Polícia Civil a confir-
vel “cola” está fadada ao insuces-
ação, só estava lá Miro Batata”, mação da identidade do homem
so pela falta de rastros e porque
afirmou Pompei para o jornal. que estávamos prendendo. Pen-
os órgãos são afins e estão fecha-
sava–se que Caniço poderia estar
Os catarinenses negam que dos na questão. Afinal de contas,
por perto, mas o homem preso era
qualquer envolvimento de MB como se diz neste setor, “o bem
um pouco gordo e nos deixou em
com o assalto em Fortaleza te- maior foi alcançado”. Quando
dúvida.”
nha passado pela Força-Tarefa. se tem criminosos presos para
“Nunca nos chegou qualquer in- A prisão foi executada pela mostrar às câmeras, alguns acre-
formação sobre o relacionamento Brigada Militar. Setores da BM ditam que os fins podem jus-
de Miro Batata com o roubo do afirmam que a Patres (Patrulha tificar os meios. Carta Popular
BC em Fortaleza”, afirma Gaston Especial) que realizou a prisão tentou ter acesso ao processo
para Carta Popular. Ninguém de Miro Batata o teria visuali- contra Claudiomiro Augusto Fer-
nega qualquer relacionamen- zado na rua. “Chegamos a ele reira Torres, o “MB”, procuran-
to de Miro Batata com Manoel através do disque–denúncia e da do algum indício da realização
Barcellos Flores. Isso depõe a comunicação da Polícia Federal. de escutas telefônicas durante a
favor da versão dos federais, que A prisão ocorreu na rua. Depois investigação ou qualquer infor-
dizem acreditar que Miro Bata- o apartamento foi invadido”, diz mação que elucide se ocorrera
ta fornecia armas para Caniço. a fonte que pede sigilo quanto à “cola” de investigações ou não. A
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O QUE VO CÊ NÃO LEU NO ANO QUE VO CÊ VIVEU


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CIDADANIA & DIREITOS

reportagem esbarrou “no lacre” legado Mesquita (Saulo) que qualquer informação sobre
do segredo de justiça, que para autorizou alguma coisa nesse Caniço nas escutas da Cogepol
muitos técnicos consultados pela sentido. É 0% (de chance) que e deu continuidade a uma in-
reportagem foi surpreendente. tenha ocorrido alguma coisa as- vestigação paralela com seus
Assim, não foi permitida a con- sim. Em segundo lugar, o pessoal próprios meios?
sulta pública que poderia trazer da Polícia Civil, que prendeu o
Não. Totalmente equivocada
mais pistas sobre a “cola”. Miro Caniço, fez um trabalho em con-
essa interpretação. Sempre tem
Batata responde processo por junto conosco da Polícia Federal
um início a operação. E o início
tráfico de drogas. – que foi a Operação Pinos Força
foi a Força-Tarefa de Santa Cata-
e Luz – e aprendeu a trabalhar
Delegado, o Senhor acredita rina.
no Guardião (sistema de escutas
que não houve colagem de in-
telefônicas da SJS) conosco aqui. A prisão do MB (Miro Ba-
vestigação aproveitando as es-
Então, nunca houve esse tipo... tata) teria sido realizada por
cutas realizadas pela Cogepol?
eu nem sabia dessa insinuação. uma demanda de Santa Cata-
Não. 100%. Inclusive, eu não Estou sabendo agora também. rina, correto? (Neste momento a
sei o que foi feito pela Cogepol Mas é totalmente equivocada. repórter se refere a Miro Batata,
na Polícia Federal. Isso foi o de- mas Pompei se confunde com Ca-
A Polícia Federal não pegou
niço. O ato falho do delegado ao ... do Caniço? Ordem não. Na verdade, havia
responder a pergunta é o mesmo algumas informações de que a
É. Do dia 12 pra 13 de abril.
que os civis defendem que os fede- quadrilha poderia se deslocar
Quem avisou a PRF para ir para
rais tiveram ao “colá–los”, confun- para aquele local. Nós passamos
o local?
dindo o MB de Miro Batata com o as informações pra PRF e é com-
MB de Manoel Barcellos – o Cani- Quem avisou? petência da PRF fazer qualquer
ço. A alusão MB a Miro Batata só A Polícia Federal. Então, nós abordagem nas rodovias fede-
era feita pela Polícia Civil). nem mandamos nenhum agente rais.
É. Aí eu também não sei te di- para o local e continuamos tendo Através da escuta da quadri-
zer bem. Porque nós continua- informações depois disso. Mas lha toda?
mos acompanhando após a pri- não especificamente do Caniço.
As investigações que a Polícia
são do Miro Batata e, aí sim, em Poderia ser da quadrilha, da-
Federal tinha davam indícios de
contato com a Polícia Civil... e nós quele assalto de Santa Cruz, que
que os investigados poderiam
tínhamos algumas informações nós tínhamos interesse também.
fugir por rodovias federais. Essas
que repassamos para a Polícia O nosso pessoal esteve lá. Lá ti-
informações foram repassadas,
Civil e para a Polícia Rodoviária nham policiais de Brasília fazen-
até porque a PRF atua 24 horas,
Federal (PRF) naquela noite (da do investigações também.
e a PF não tem nenhum interesse
prisão de Caniço). Por isso a PRF De onde partiu essa ordem em atuar sozinha ou coisa assim.
também foi naquele local. Nós tí- para a PRF se deslocar para o Pelo contrário. Passou as infor-
nhamos uma parte e a Polícia Ci- posto do Florzinha? mações porque o objetivo era
vil tinha a outra da investigação...
prender o Caniço.
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O QUE VO CÊ NÃO LEU NO ANO QUE VO CÊ VIVEU


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CIDADANIA & DIREITOS

eNTreVisTa

ameNiZei a riVaLiDaDe
eNTre as PoLÍcias
Ex-titular da SJS garante que não há caso concreto de disputa
externa envolvendo BM e PC
MOACIR ARANHA, Porto Alegre | moacir.aranha@cartapopular.com.br

O ex–secretário de Justiça e Segu- Ele afirma que amenizou a rivalida- da segurança pública. Apesar de fon-
rança Pública (SJS), Gilberto Silveira de entre a Brigada Militar e a Polí- tes da reportagem de Carta Popular
Bins, principal incentivador da Ope- cia Civil na sua gestão e garante que garantirem a intervenção direta do
ração Pinça, concedeu entrevista ex- muitos delegados estavam satisfeitos então secretário para dar o crédito à
clusiva à Carta Popular quase um ano com a gestão do Guardião, ferramen- Polícia Civil (PC) ao evitar o ataque
e meio depois do início da operação. ta de grampos telefônicos dos órgãos ao Zeffer da Protásio Alves – reivin-
dicado pela Brigada Miliar junto à (DIAE -Departamento de Inteligência rivalidade entre a Brigada Militar
gerência daquela unidade da rede e Assuntos Estratégicos). Tanto que o e a Polícia Civil?
de supermercados – Bins afirma que DIAE foi administrado durante três
No meu período, não houve rivali-
não se tem caso concreto de disputa anos por um delegado de Polícia. Em-
dade externa. Eu herdei, na verdade,
externa envolvendo BM e PC. bora alguns delegados se queixem do
um sentimento antigo de disputa
funcionamento do Guardião até hoje,
Como o Senhor via a disputa da entre as polícias que penso ter con-
outros tantos não se queixam. Acima
ferramenta Guardião, considerada seguido dar uma forma, porque criei
de tudo, é importante passar para a
por muitos uma questão histórica um comitê que envolvia os coman-
sociedade que o Guardião é um ins-
na polícia, jamais resolvida? dantes da Brigada Militar, os chefes
trumento de absoluta confiança. E
de Polícia, delegados e oficiais (mili-
O Guardião acima de tudo precisa que, claro, é um braço operacional da
tares), que se reunia semanalmente
oferecer confiança ao secretário que Polícia Civil, mas pode ser repartido,
no meu gabinete. E essa “rivalidade”
é o responsável por todo o funciona- dividido entre Polícia Civil e Briga-
antiga, na verdade, no meu período
mento da Secretaria. Eu tomei a de- da Militar, com o acompanhamento
ela foi muito amenizada. Tanto que
cisão de manter como coordenador permanente do Poder Judiciário e do
não se tem caso concreto de disputa
do Guardião um oficial da Brigada Ministério Público, que fazem as roti-
externa envolvendo Brigada Militar e
Militar e como coordenadora–adjun- neiras inspeções com relação ao fun-
Polícia Civil, coisa que se via antiga-
ta uma delegada de Polícia. Portan- cionamento do Guardião.
mente. Chegou num assalto, “o caso é
to, eles trabalhavam em conjunto. E
Como o Senhor via essa dificul- meu, não é teu”. Briga por isso, briga
tomei a decisão de oferecer à Polícia
dade de trânsito de informações por aquilo... No nosso período não
Civil a diretoria do Departamento que
entre os órgãos da SJS por alguma houve.
tem a responsabilidade do Guardião
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O QUE VO CÊ NÃO LEU NO ANO QUE VO CÊ VIVEU


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CIDADANIA & DIREITOS

Para o Senhor, o que significou a bando super organizado, super arti- nio da Luz, foi preso na periferia de
prisão de Caniço? culado, com ramificações em Santa Rosário do Sul, na Fronteira Oeste
Catarina e no Paraná, que passaram do Estado, pelos mesmos agentes da
Do Caniço e de sua equipe toda, dos Polícia Civil que o deixaram solto por
um bom tempo atormentando a vida
quadrilheiros todos... alegada estratégia. Vale lembrar que
de todos.
Não todos. Dos suspeitos de par- a estratégia policial adotada, que
Deu dor de cabeça para o Se- pode ou não ser discutida, permitiu
ticiparem do assalto à Seguroforte,
nhor? que Arsênio supostamente partici-
Arsênio continua solto (continua-
va na época da entrevista). Deu. Junto com aquele matador de passe do ataque à Seguroforte.
12 crianças no Norte do Estado... Na ocasião de sua prisão, foi di-
Um só ou dois, né?
vulgado pela imprensa que Arsênio
... o Adriano da Silva.
O que significou para o Senhor a estava em Rosário há alguns meses.
prisão dele? Ex–secretário Gilberto Silveira Teria sido surpreendido pela polícia
Bins: É... junto com este, foram os dois enquanto preparava um churrasco
Significou, junto com a prisão de
maiores casos. para a esposa e os filhos. Com ele, fo-
Ricky Pezão, que foi preso na minha
ram apreendidos 4,5 mil reais e uma
época..., Brinquedo, Fofo Ledo, Mila- *** pistola Taurus 380 com 16 cartuchos.
nês e o Zé da Dama, que fugiu e foi Exatamente um ano e oito meses Na ocasião dessa entrevista com Bins,
preso. Na verdade, se deu fim a um após a morte do menino ATM, Arsê- ele ainda estava em liberdade.
eNTreVisTa

eLe Nos aTormeNToU


Ex-secretário de segurança pública diz que não houve
exageros ao montar operação especial para prender Caniço
SÍLVIO MELO, Porto Alegre | silvio.melo@cartapopular.com.br

O ex–secretário de Justiça e de tado foi preso uma semana antes ca e exclusivamente em Caniço. O
Segurança Pública Zélio Lavirme da Força-Tarefa da Polícia Civil se ex–secretário confessa que o crimi-
exerceu absoluta pressão no que dissolver. noso atormentou a todos com seu
chama de “Força-Tarefa” que caçou método de operação.
Nesta entrevista exclusiva ao re-
Caniço por praticamente três me-
pórter Sílvio Melo, Lavirme revela Parece–me que a prisão de Ca-
ses. Carta Popular levantou que a
que não houve exageros ao montar niço foi realizada aos 45 minutos
Operação Pinça tinha prazo para
uma operação especial que mobi- do segundo tempo. No momento
terminar e o principal assaltante
lizou 21 policiais para pensar úni- que ela aconteceu, o seu senti-
que surgiu nos últimos anos no Es-
291

O QUE VO CÊ NÃO LEU NO ANO QUE VO CÊ VIVEU


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CIDADANIA & DIREITOS

mento foi de que somente com nuto. O que conta é a vitória. Como No dia 21 de março, quando o
pressão a polícia funciona? nós, até por formação, gostamos de Senhor assumiu a pasta, tinha
trabalhar tendo uma meta, um re- presente que era preciso esta-
O meu sentimento foi de que a
sultado – e meta e resultado só são belecer um prazo para a prisão,
Polícia Civil gaúcha, quando dotada
válidos dentro de um prazo proje- criando um clima de pressão nos
dos meios que precisa e focada em
tado – nós tínhamos um prazo para policiais que estavam na ope-
um trabalho, oferece os resultados
essa operação de 90 dias. O meu ração. Como o Senhor chegou à
do seu tamanho. Qual é o tamanho
sentimento era de que transcorri- conclusão de que era necessário
da Polícia Civil gaúcha? É a melhor
do esse prazo, deveríamos termi- estabelecer esse limite?
Polícia Civil do Brasil. Então, quan-
nar com aquele esforço ou sermos
do essa polícia recebe os meios e Não seria para acabar com a ope-
convencidos de que estamos com
é instada a trabalhar, ela oferece ração, mas rediscutir a sua valia
o trabalho amadurecido, pronto
os resultados. Eu não vejo que a dentro da perspectiva do tempo
para colher, sendo uma questão de
prisão tenha acontecido no “início fixado. Iniciamos com 60 dias e foi
mais dia ou menos dia. Nunca tive
ou no final do jogo”. Nós tínhamos prorrogado para 90. Quando assu-
nenhum tipo de preconceito para
um jogo para ser jogado. Um jogo, mi, disse que teríamos a operação
prorrogar esse prazo desde que eu
a gente ganha dentro do prazo. A até o final (do prazo), mantida com
fosse convencido de que essa pror-
vitória vale tanto quanto se o gol todas as condições. Após o pra-
rogação traria os resultados.
fosse ao primeiro ou ao último mi- zo, poderíamos voltar a trabalhar
como fazíamos até dezembro (do sa ser medido. randi e depois de sua captura não
quarto ano de caçada). Será que tivemos mais assaltos a carro-forte.
Foi um esforço diferenciado do
trabalhamos até dezembro de uma De modo que a resposta que se deu
Estado para prender apenas uma
forma tão ruim? à sociedade gaúcha foi retirar de
pessoa. O Senhor não considera
circulação não somente uma pes-
Para o Senhor o que fica após a um exagero?
soa, mas toda a sua representação,
Operação Pinça?
Não. Eu acho que não é exagero toda a capacidade que os recursos
Nós chegamos a esse estado de porque nós precisamos verificar o que ele roubava teriam para finan-
coisas na Segurança Pública por- potencial criminoso dessa pessoa e ciar outras atividades criminosas.
que os sucessivos governos (muni- a liderança que ela exerce no meio Colocamos esforço e dinheiro pú-
cipal, estadual e federal) esquece- da criminalidade em que se insere. blico para buscar um líder do crime,
ram anos a fio de prover condições. Sem nenhum demérito a qualquer a cabeça do crime. E cabeça é difícil
Quando tem os meios disponíveis, tipo de atividade, o gari que varre de se substituir. Mãos e pernas se
ela (a polícia) dá respostas como as nossas ruas e o presidente da substituem. Talvez se tivéssemos
essa, prender o principal líder do República são pessoas. Ruy Barbo- prendido o motorista da viatura do
crime no Rio Grande do Sul. Esse sa disse que igualdade é tratar desi- Caniço, ele recrutaria outro moto-
tipo de trabalho, do ponto de vis- gualmente os desiguais na medida rista. Eu vejo que foi feito um esfor-
ta científico, tem que ser feito com de suas desigualdades. E o Caniço, ço não em cima da pessoa, mas em
prazos e metas. É uma experiência pela capilaridade e liderança que cima daquilo que ela representava
válida. Eu não vejo como custo, mas tinha no crime, é um desigual. Tan- do ponto de vista de seu potencial
como investimento. Agora, ele pre- to que, durante um bom tempo, nos ofensivo para sociedade gaúcha.
cisa ter prazo e meta para que pos- atormentou com o seu modus ope-
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O QUE VO CÊ NÃO LEU NO ANO QUE VO CÊ VIVEU


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CIDADANIA & DIREITOS

esPeciaL

ciNemaToGrÁFico
Queda de Caniço teria iniciado desarticulação da principal
célula do crime organizado do Sul do Brasil
ANÍSIO FIORAVANTE, Curitiba | anisio.fioravante@cartapopular.com.br

Zacarias Gusmão Péricles, preso Santa Cruz. “Se não for a maior, se- cia suficiente para sugerir nomes
com Caniço, foi recrutado em São guramente uma das maiores apre- para ações criminosas. Os policiais
José dos Pinhais, Paraná. O que um ensões de armamento da história do paranaenses só se deram conta dis-
paranaense fazia pelos pagos gaú- Paraná ocorreu com Homem–Ara- so quando localizaram provas de
chos junto ao nome mais procura- nha, em São José dos Pinhais”, afir- sua atuação no crime organizado
do do Sul do Brasil? A tese é de que ma o delegado do Centro de Opera- do Sul do país na mesma casa onde
um traficante de armas paranaense ções Policiais Especiais (COPE) do ele guardava suas armas, em São
conhecido como Homem–Aranha Paraná, Sergio Mantiqueira Fles- José dos Pinhais. Foram apreendi-
indicou Péricles para o assalto em cha. Homem–Aranha teria influên- dos computadores com mapas ro-
doviários de todo o Brasil, fotos de dos investigadores do COPE para- “Havia células regionais prontas, es-
trechos de estradas e de aeropor- naense. “Ele centralizava seu ser- perando a chegada de Caniço para o
tos por onde seriam transportados viço, não dividia muito com outros serviço”, lembra o titular da delega-
valores e um arsenal militar. Os in- bandidos. Isso dificultava sua pri- cia Beta do DEIC do RS, Josué Pitta.
vestigadores acreditam que, com são”, esclarece o delegado Flescha. Policiais paranaenses dizem que
esse equipamento, Homem–Ara- existem sinais evidentes da ligação
A independência era uma ca-
nha rastreava carros-fortes, plane- entre os dois criminosos. “Suposta-
racterística comum entre os dois
java e estruturava ataques. mente ele (Homem–Aranha) era um
quadrilheiros, que se complemen-
grande fornecedor de armas para
As especialidades do paranaen- tavam para empreendimentos cri-
várias quadrilhas. O que podemos
se seriam receptação e aluguel de minosos acima do Mampituba (rio
afirmar é que há indícios de que o
armamento de grosso calibre para que divide o Rio Grande do Sul de
Homem–Aranha forneceu armas
ações do crime organizado. Não Santa Catarina). As informações e o
para o Caniço nas ações em Santa
era homem de frente em assaltos, material que Caniço precisava para
Catarina”, revela Flescha.
mas se envolvia no planejamento. realizar assaltos fora do Rio Gran-
“Ele não sujava a cara, empresta- de do Sul poderiam ser fornecidads Policiais civis da região Sul acre-
va a arma para o empreendimento rapidamente por Homem–Aranha. ditam que ambos eram conhecidos,
criminoso. Como queria garantia de Caniço cumpria tarefas com distin- articulados e conectados, tendo
que o armamento que emprestasse ção, por isso era convocado e espe- inclusive planejado juntos várias
lhe traria lucro, fazia o levantamen- rado para investidas de alto risco. ações em Santa Catarina. Entre-
to e organizava as ações para que Comandava as ações, mas liderava tanto, demorou algum tempo para
fossem bem-sucedidas”, explica um diferentes grupos de assaltantes. que os órgãos de segurança do Sul
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O QUE VO CÊ NÃO LEU NO ANO QUE VO CÊ VIVEU


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do Brasil chegassem à conclusão de Outro homem apontado como naense Homem-Aranha e o gaúcho
que Caniço e Homem–Aranha ha- provável fornecedor de armamen- Manoel Barcellos Flores?
viam unido suas forças. to de grosso calibre para Manoel
O titular da Delegacia de Roubos
Barcellos Flores é outro traficante
A aliança teria ocorrido entre o da Polícia Civil paranaense não
de armas conhecido como Gelson
final do segundo ano e o primeiro descarta que um assaltante cata-
Peludo. Apontado como receptador
trimestre do terceiro ano de caça- rinense conhecido como Miúdo
de material bélico proveniente da
da. Desde então, proliferaram–se possa ser um dos prováveis elos
Argentina, na chamada Rota Gaú-
ataques a carros blindados em ter- entre os dois criminosos. O delega-
cha, Peludo foi preso e sua queda
ritório catarinense. “Não temos dú- do Fernando Oscar Scherer afirma
coincide com um período de redu-
vidas de que Homem–Aranha era o que Miúdo trabalhou para ambos e
ção nas ocorrências de ataques a
autor intelectual dos crimes e Cani- tem notoriedade no mundo do cri-
carros-fortes no Rio Grande do Sul.
ço os executava”, opina o diretor da me. Entretanto, Scherer vai mais
DEIC, Álvaro Muriel. Nessas investi- A ponte entre duas gerações longe, ligando duas gerações do
das, segundo a polícia catarinense, crime organizado gaúcho com pas-
A Polícia acredita que, por mo-
Caniço utilizava não somente seus sagens no Paraná. “Nós consegui-
rarem no mesmo Estado, Peludo
homens de confiança, mas também mos identificar dois assaltantes que
e Caniço tinham fácil diálogo. Mas
conhecidos de Homem–Aranha. atuaram tanto com o Caniço quanto
quem teria sido o elo entre o para-
com Nego Arara”, explica Scherer, se
referindo a um dos mais polêmicos e Homem–Aranha surgiu, no final catarinense. “Trocamos tiros com
assaltantes de banco do Rio Grande do terceiro ano de caçada, a união homens em um Corolla aqui em
do Sul, famoso pela progressão de das investigações. “Passei um ano Curitiba. Não sei se Caniço estava,
penas. e meio somente atrás desse cara mas sabemos que eram seus co-
(Caniço), em contato quase que di- nhecidos. O Péricles, que foi preso
Os agentes do COPE também se
ário com os colegas do Rio Grande com ele no Florzinha, estava nessa
lembram de um assalto ocorrido no
do Sul. O Caniço era prioridade nú- bronca. Eles fugiram para Santa Ca-
terceiro ano de caçada atribuído a
mero um pra nós. Fiz campana no tarina”, lembra também o delegado
gaúchos, supostamente com Cani-
Ano Novo para pegá–lo. Foi a maior paranaense Scherer.
ço. “Em Garuva, aqui no Paraná, eles
integração (entre polícias de dois
colidiram um caminhão contra o A polícia catarinense acredita que
Estados) que fiz em todos os meus
carro-forte”, lembra o investigador Caniço e Homem–Aranha também
43 anos de polícia”, lembra Muriel.
paranaense. “Eu consigo identifi- podem ter planejado pelo menos
car ações independentes do Caniço Os principais assaltantes do Sul seis assaltos a carros-fortes no Es-
aqui na região de Curitiba. Sabemos do Brasil, prioridade das forças de tado nos últimos dois anos antes de
que após muitas ações em Santa segurança da região, foram neutra- suas prisões. Em uma das investi-
Catarina, ele montava base e apoio lizados entre abril e julho do quinto das, no fim do quarto ano de caçada,
de criminosos em Curitiba e Ponta ano de caçada. “Para nós, era ques- teriam arremessado um caminhão
Grossa”, esclarece Scherer. tão de honra prender o Caniço”, diz contra um blindado na Serra Dona
Muriel, que reitera várias vezes Francisca e instalado dinamites na
SANTA CATARINA
que participou de tiroteio com o porta do carro-forte capotado. Não
Com a aparente aliança de Caniço quadrilheiro gaúcho em território teriam conseguido levar o dinheiro,
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CIDADANIA & DIREITOS

mas um vigilante foi fuzilado. guntamos nem para quê ela servi- raná, Romeu Nicarágua, quando da
ria”, destaca Flescha. prisão de Homem–Aranha.
Cai Caniço, cai Homem–Ara-
nha. É lógico? Para os catarinenses, a queda do FOGO CONTRA FOGO
traficante de armas paranaense
Os policiais do COPE afirmam A técnica utilizada por Caniço –
após a prisão de Caniço não seria
que Homem–Aranha foi preso em arremessar caminhões contra car-
à toa. Hoje se sabe que as informa-
função de investigações de policiais ros-fortes – não é original. Já tinha
ções liberadas por todos os detidos
paranaenses. Consideram impor- sido adotada por bandos em outras
desde a prisão de Manoel Barcellos
tante a troca de informações en- áreas do Brasil. Em março do pri-
Flores foram cruzadas e que as neu-
tre as polícias, mas não dizem se a meiro ano de caçada, quando Cani-
tralizações de Homem–Aranha e
queda do gaúcho provocou neces- ço entrou no sistema da Polícia por
Caniço têm relação de causa e efei-
sariamente a prisão do criminoso desacato, a Polícia Federal prendeu
to. “Unir os serviços de inteligên-
paranaense. “A integração sempre Mariano Adesvaldo de Lima, assal-
cia, trabalhar de forma interligada
houve, mas essas investigações (de tante que realizava ataques seme-
é uma das principais maneiras de
Homem–Aranha e Caniço) aproxi- lhantes em São Paulo. Neste ano,
combater o crime organizado, que
maram e intensificaram o diálogo no dia 06 de setembro, é registra-
hoje atua em diversos estados de-
das polícias da região Sul. Às vezes da a primeira tentativa de assalto
safiando as polícias”, dizia o secre-
eles pedem informações e não per- a carro-forte com uso de caminhão
tário da Segurança Pública do Pa-
no Rio Grande do Sul, na BR–116, sido uma inspiração para as qua- não soubesse, mas o tempo provou
em Vila Cristina, região de Caxias drilhas tupiniquins. A sinopse lem- que seu raciocínio tinha fundamen-
do Sul. bra outro item da metodologia ado- to, apesar de os 12 assassinatos em
tada por Caniço: “um homem reúne três anos colocados na conta dessas
Coincidência ou não, Lima
profissionais no crime para realizar ações não serem nenhuma ficção.
foi preso em um condomí-
uma série de roubos em Los Ange- Ao contrário, são fatos reais, con-
nio de luxo também no Para-
les”. Segundo a polícia gaúcha, Cani- tundentes o suficiente para fazer
ná – território de Homem–Ara-
ço teria células em diversas regiões, com que a “crítica” reflita sobre as
nha. No depoimento, ele teria
pessoas especializadas que faziam palavras de seus “críticos”.
confessado que assistiu ao filme
os assaltos com ele. “Eram como
Fogo contra fogo (Heat título ori- O filme Heat foi lançado em 1995.
equipes regionais”, afirma o delega-
ginal, filme dirigido por Michael Mariano de Lima foi preso e reve-
do Josué Pitta.
Mann, estrelado por Al Pacino, Ro- lou o seu segredo um ano antes de
bert De Niro e Val Kilmer) várias Curiosamente, tanto a mídia gaú- Caniço começar a ser caçado. Des-
vezes para absorver a metodologia cha quanto a catarinense foram de então, ocorrências com o uso da
do “Caminhão contra o carro-forte”. alvo, durante muitos meses, dos técnica do caminhão foram veri-
Em uma das primeiras cenas, um chamados “críticos da crítica”, por ficadas também em São Paulo, no
caminhão–guincho colide em alta rotular as ações de Caniço como Nordeste e em Goiás. Segundo as
velocidade contra um carro-forte, “cinematográficas”, dando uma empresas seguradoras, as ações de
que é cercado por homens mas- aura de glamour aos atentados, al- Caniço teriam tornado o Rio Gran-
carados portando fuzis e bombas. guns dos quais trágicos. Talvez o de do Sul “campeão” nesse tipo de
Ou seja, o filme pode realmente ter repórter que atribuíra o conceito assalto no território brasileiro.
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Uma obra reveladora


O maravilhoso livro que acabo de ler retrata de maneira concreta e verídica o
maior erro da Polícia Civil do Rio Grande do Sul nos últimos anos – quando sua
busca frenética pelo “bandido número um” desencadeou operações desastrosas.
A primeira metade de Banguela é um livro à parte. Trata, com maestria e deta-
lhes surpreendentes, da morte de uma criança de três anos, um caso que caiu nas
minhas mãos. O fato ocorreu, como é narrado no livro, em um camping do litoral
norte do Rio Grande do Sul.
O livro escrito por Marcio Pessôa surpreendeu até a mim e me fez viajar nas
volumosas páginas do processo cível que movi em face ao Estado e constatar que ele
apresenta lacunas ainda a serem preenchidas.
Como advogado, tentei provar a culpa do Estado nesta morte e obtive vitória
em primeiro grau. A sentença determinou o pagamento de 400 salários mínimos.
Além disso, haverá  pagamento de pensão de 3/4 do salário mínimo no período em
que o menino teria entre 14 e 25 anos e de 1/3 do salário mínimo no período em
que teria entre 25 e 65 anos.
Esta é a notícia mais recente sobre o caso. Pessôa se mostrou incrédulo com
qualquer resposta do Estado na primeira edição de Banguela, achava que a família
nunca teria nenhuma reparação pois o envolvimento político no caso é evidente.
Após quatro meses do lançamento do livro, houve a sentença em favor da fa-
mília.
A causa era realmente desafiante e difícil devido a esses ingredientes políticos.
Passei dias debruçado sobre esse processo, e ficou provado que o Estado não queria
trazer a verdade à tona. Inclusive o promotor que declarou que a Polícia estava en-
cobrindo o homicídio foi afastado.
O autor do livro tratou de forma pertinente a fragilidade da nossa segurança pú-
blica. Usou como técnica de narrativa a troca dos nomes e isso não mudou o prazer
da minha leitura de sua obra.
O que me surpreendeu foi que Pessôa tocou detalhada e corajosamente em al-
guns pontos que inquéritos e documentos oficiais não tocam. Fez uma investigação
paralela e provou questões que estavam pendentes e limitavam processos.  
Ao ler Banguela, coloquei o nome verdadeiro em cima dos nomes trocados, tudo
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de cabeça, o que tornou a leitura ainda mais agradável, intensa e completa – longe
da frieza do processo judicial.
Eu, que respirei este processo por três anos, digo que o que temos em Banguela
é uma obra de altíssimo nível e uma contribuição legítima para o debate sobre a
segurança pública do Estado.
Trata-se de uma obra que deveria cair nas mãos de juristas, policiais, estudantes
e especialistas em gestão pública. O texto contribui para o debate que visa acabar de
uma vez por todas com os vícios que ainda comprometem a qualidade na prestação
do serviço de segurança pública no sul do Brasil.
Rodrigo Rollemberg Cabral - advogado.
Editora Kiron
Brasília (DF): C-01, lote 01/12, sala 434 - Ed. TTC - Taguatinga
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