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"[...] é permitido a todo indivíduo que tenha consciência da verdade regularizar sua vida como
bem entender, de acordo com os novos princípios. Neste sentido, tudo é permitido [...] Como
Deus e a imortalidade não existem, é permitido ao homem novo tornar-se um homem-deus,
seja ele o único no mundo a viver assim." - F. Dostoiévski - O diálogo com o demônio (in Irmãos
Karamazov, 1879)
Na Europa do Século XVI, em plena época Humanista, surgem certas ideologias hostis ou
estranhas à religião as quais irão originar um processo de secularização da sociedade que se
estenderá progressivamente ao século posterior. O século XVII é uma época que se apresenta
como um «verdadeiro campo de batalha» entre a verdade científica e outros tipos de verdade,
nomeadamente as religiosas. Fica assim marcado, a partir desse momento, de forma evidente,
o afastamento e o divórcio do pensamento ocidental, em relação ao discurso que recuse o
universo da ciência.
Nos inícios do século XIX acontece o culminar de uma fase da história, de uma civilização, que
durante séculos tinha servido de suporte do edifício religioso da Igreja, desenvolvendo-se em
paralelo, no plano político, uma luta entre o sistema monárquico e o da livre escolha popular. A
Revolução na Europa cultivara uma dimensão anticatólica originando Estados laicos «estranhos
a qualquer obediência religiosa». Esta Revolução foi muito diferente da que acontecera no
tempo da Reforma a qual pretendia purificar a Igreja e fazê-la regressar às origens. As
ideologias do século XIX passam a atacar os fundamentos do Cristianismo.
Nesta época tudo se reunia para favorecer um renascimento intelectual profundo já que se
estava numa época de paz política, de liberdade de pensamento e de expressão e de progresso
na técnica. O terreno era pois propício para o fervilhar de ideias do aparecimento de modos de
expressão literária, de sistemas filosóficos e ainda o avanço das ciências. A filosofia aristotélica
e mesmo os sistemas de Descartes e de Spinoza eram rejeitados, começando a dominar os de
Kant, Hegel, Feuerbach e Comte – com tudo de profundo e revolucionário que traziam para a
filosofia tomista tradicional.
Em termos sintéticos a tese de Scheleiermacher pode ser descrita como a tentativa de basear o
teísmo – doutrina do Deus único e pessoal criador do mundo e dele distinto – na consciência
religiosa. Não evitou, no entanto, críticas profundas, já que o conceito de entidade divina
permanece encerrado na consciência humana. A sua teoria constituiu assim uma tentativa de
desvio do rumo, do método do raciocínio natural, que posteriormente se tornará no veículo do
ateísmo.
É na sequência deste criticismo à consciência religiosa que outro filósofo alemão, Ludwig
Feuerbach (1804-1872), na obra A Essência do Cristianismo (1841), a qual exerceu significativa
sobre Karl Marx, concluiu pela negação dos pressupostos românticos. Nesta obra seminal do
ateísmo contemporâneo L. Feuerback procurou de uma forma mais ou menos explicita atingir a
meta, que visava converter a ciência de Deus em ciência do Homem, ou seja transmutar a
Teologia em Antropologia. Sustentava, para isso, que a consciência religiosa humana não
representa mais do que a projecção dos seus mais sublimes ideais, num ser sobrenatural. A
projecção não deve ser feita sobre Deus mas sobre o Homem, com o fim do seu
aperfeiçoamento. Apesar de ser ateísta, Feuerbach, não teve como objectivo a destruição da
religião, mas antes pelo contrário, encetar um movimento que visava aperfeiçoa-la.
Continuador das teses de Feuerbach, Karl Marx considerou o fenómeno religioso como um
fenómeno demasiado importante para ser interpretado superficial e sumariamente, uma vez,
que representa a tentativa, por parte do homem, de superar a alienação e de verdadeiramente
se realizar, embora tal realização seja remetida para o plano da imaginação.
A religião para Marx situa-se no plano da fantasia , não deixando contudo de exprimir algo
importante para a existência humana já que a necessidade de transformar a sociedade e o
Homem em «realizações mais autênticas e verdadeiramente humanas», surge precisamente da
superação do dogmatismo e da alienação.
À perspectiva de Marx e do seu precursor sobre o fenómeno religioso pode-se ainda associar a
visão de Sigmund Freud (1856-1939), o qual também considera que a religião se realiza no
plano da fantasia. Na obra o Futuro de uma Ilusão (1927), S. Freud interpreta o fenómeno
religioso, utilizando como Feuerbach o conceito de projecção. Através deste explica que os
dados religiosos são apenas projecções no universo, do que na realidade são processos
psicológicos. Para Freud os princípios religiosos sobre o mundo são inválidos, uma vez que o
fenómeno religioso só se explica ao nível empírico, ou seja, em termos naturalistas. A visão de
Freud, aponta no sentido do gradual desaparecimento da fé religiosa, considerada cada vez
mais como uma ilusão.
Constituindo a designada trilogia dos mestres da suspeita com Karl Marx, Sigmund Freud,
Frederich Nietzsche, possuiu a convicção de que o mundo estaria definitivamente condenado
caso não se abandonasse a religião. Tendo sido um dos grandes ateus do século XIX, foi o
precursor da consciência moderna europeia e o seu psicólogo mais profundo e ainda um
estudioso das consequências da perda de fé em Deus, no campo dos valores.
O filósofo do Anti-Cristo considera que após a morte de Deus, só nos resta o vazio (ausência de
certezas), uma vez que o Homem já não pode ter a certeza do que está certo ou errado. No
entanto a filosofia de Nietzsche não é uma pura filosofia do desespero fatalista, constitui antes,
uma tentativa de reestruturar todo o nosso sistema de valores, substituindo-o por outro que
não se baseasse nos princípios do teísmo tradicional.
Buckley MJ, As Origens do Ateísmo Moderno (1987);