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le não falava inglês. Quando deu seu primeiro pas-
lseio pelo campus de Berkeley, viu não estar motiva-
do. Saberia voltar atrásl Não se arrependeria ao ter de
mendicar
mendigar
..-.9.,-
de novo em seu se" país pãiíIlãTiffimIffi§iilue
de origem? -t''ingtr que
-+*.*.*t,-e'**IF*,_*ff-
não pedia pedindó iéfeições, ou â câsa de veraneto de um
a."iÉa-amr;têiiõ-iiíiié'ffi ôÉãrd'eêiõíêiiffiãôüo-Iiffi"-
,n,[o"r,áJospirügurn-s-"ne§amA;iâlffi üêlããffi êmo
sul do Brasil, o vento passa destelhando e umâ voz no-
turna chama, chama pelo desaparecido infante... E[e não
falavainglês e se perguntava se algum dia arranjaria dis-
posição para aprender mais uma língua além do seu por-
tuguês üciado; com cujas palawas iái nía conseguia dizer
metade do que alcançava âté tempo§ etrás, ântes de ficar
assim meio esquecido depois da queda à porta do banhei-
ro, sem o tempo de gritar por Léo, o homern â quem cos-
tumava chamar de namorado mas que lhe era bem mais,
um parceiro de cuja ardência ainda lhe vinham certos lai-
Berkeley em Bellagio João Gilberto Noll
que instável'
vos: um fluido indeciso, de repente inundando-o todo, quele ponto parâ um rito de retiro, mesmo
junto à
sumindo de repente, sempre escorregando de sua própria em constante ameaçâ de invasores' Quando caiu
e sua
mão que pretendia por vezes segui-lo, tocá-lo, fechá-lo porta do banheiro, Léo socorreu-o num instante
cln'pus
entre os dedos prendê-lo na boca... E ele então o sor- força era tanm que ele, que caminhavaagora pelo
via novamente,- recomeçava o jogo, agora num bosque da üniversidade da Califórnia, em Berkeley, preferiu pa-
ocorre-
quâse impermeável àquela rarde com mais azul do que râr pâra teÍ certeza de que nenhum mal-estar lhe
estivesse numa terrâ estranha sem falar a
um ensimesmado podia suportar... Esse homem cami- ,i,
"rqrrrr,to uma
nhava pelo campas da Universidade, sim, em Berkeley, língua do lugar. Claro, sabia pedir um sanduíche'
alunos de
naquela Califórnia gelada muito embora ensolarada e, .oãr, ,lgo ,rri-, mâs no mais falava com seus
por um segundo, como quem acorda, lhe acendeu a- dú- cultura brasileira em português, ia a reuniões
na casa de
do seu por-
vida se estâvâ ali chegando do Brasil, ou, ao contrário, se alguns deles, que estavam sempre â tirâr fotos
alu-
já estava voltando ao Sul do planeta, para aquela falta de te ainda convicto, rodeado pelos gatos e gâtâs seus
Todos que-
trabalho ou de aceno de qualquer coisa que lhe restiruís- nos, gârotada american a, asiática, mexicana"'
e vinham
se a prática do convívio em volta de uma refeição, sob um riam saber sempre mais a respeito de Caetano'
autógrafos de ca-
endereço seguro esse país, esse país, pois é, deixa de fins de semana em Los Angeles com
-«2,11,
marim do baiano, que acreditava ter-me lido em
pra lá, deixa pra lá que agora vou mijar", ruminou nâ sua algum
Ihe ocorria' sim' vâ-
entoação secretâ, aquela sim que nunca soubera levar aos livro do qual não lembrava o nome:
relatar pelos
Iábios por timidez ou covardia... Em vez de mijar, desa- gâmente, uma cena que um aluno tentava
uma aula' num es-
pertou o cinto, assim, sem nenhuma necessidade que não ãor..dor", do Dwinelle Hall ao fim de
toda em
fosse a de deixar alguma coisa andar. E se lhe rriesse uma trepitoso português, por onde se via zua língua
risada que pudesse por si só responder a tudo o que ele írrd-r, carridadàs, pequenas erosões' Ele caminhâvâ en-
que não
não sabia perguntâr (e que parecia prendê-lo no mesmo tre esquilos pelo campus de Berkeley e pensou
mesmo erâ
lugar)? Mas, não, agorâ se coçava todo, na certa esconju- adiantava se lembrar de quase nada; precisâvâ
rando uma espécie de dívida que nunca quis largá-lo ir à ação, falar inglês, testem'nhâr nessa língua a todos
porrâ, ele dizia, porra, mas porra pâra o quê ou quem? - qrr" p.td"rrem se i=rra.,t"" por sua vida' Quase
ninguém
terra, era verdade, não podia negar mas com
Falava com o Brasil ou com aquela porção sombria de na- nrqo.l, -
idiomáticas
trreza a lhe servir então como uma espécie de refiigio o pà.rrdo dos verbos irregulares e expressões
histórias'
contra a língua inglesa? Por ali, poucos estudantes passâ- nás lábios, teria mais chances de protagonizar
com um
vâm, a não ser um ou outro, talvez à procura também da- optâr por viver definitivamente naquele país
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mor, mâlícia, tédio. Na semana santa turistas atravânca- ncrn tânto; ele, sim, apontado como o que desviava o de-
vam as ruelas muito, muito estreitas; a cada momento sci«r de outros jovens das "metas proliferantes da espé-
precisava paÍar, encostar-se a uma parede geralmente t'ic". Por que era ele esse emissário de um mundo que os
avermelhada paru deixar pâssâr um ou ortro prqridémi_ rliscursos dos padres condenavam ao silêncio sepulcral?
co caminhão de obras. Sentou-se a uma mesâ no passeio (.)rrem era ele afinal, por que se roía a ponto de o levarem
ínfimo, bebeu um, dois, três expressos e pôs_se a olhar
l):rrâ o Sanatório para ali se revolver impregnando-se
de
muito mais para dentro, âo encontro talvez de um senti_ t'hoques insulínicos, como se só na convulsão pudesse re-
mento que provocasse nele a noção antiquada de uma co_ rnctliar um erro que ainda não tivera tempo de notar den-
munidade, seja ela qual fosse, mas o que viu lá dentro não lr«r de si? De quem ele gostava, por quem se apaixonava?
correspondia àquele domingo de páscoa pela manhã, sal_ l)or aqueles jovens atletas, pois eram todos atletas no co-
vo um sino que tocava, isso poderia quem sabe lhe rea_ lúgio, menos ele, o contemplativo, o que cultivava a inér-
cender â atmosfera idealizada da infância, onde a beleza t'ia, o que vivia para se refugiar nas pâusas que jamais sa-
irreal de certas imagens urbanas de filmes e gra\nras aco_ ravam. Ao revolver seus membros e espumar como um
lhia o desejo de ali ficar, prâ sempre... Ele nao ficaria ali cão raivoso, ele recobraria os movimentos, a pronta ação
um dia além do período reseryado pela Fundação ameri_ rlos machos. Mas esse resultado não se deu de fato, olha
cana para a sua estadâ, que seria impressionantemente cle ali sentado na frente de um café de Bellagio, como se
longa parâ os cânones desses *"..rrio. internacionais. íirsse apenas o gerador de um olhar que a nada reconhe-
Ele'só tinha mesmo o que olhar na sua porto Alegre, nes_ cia mais, nem mesmo o lago di Como cercado de monta-
sa cidade por onde a cada caminhada costumâva desco_ nhas de topos nevados, nem mesmo essa vista do seu es-
brir, por entre as ruas de história ainda incipiente, novos údio na Fundação americana, tudo the parecia um mero
focos de resistência da memória, fosse como fosse a sua tluadro arrancado de seu berço histórico. Quem iria pen-
esta mesma, cuja nascente quase se dissolve de uma sar ali em algum súdito dos Césares avançando, avânçân-
-
vez por todas ao levar os choques insulínicos na adoles_ clo sempre mais para colonizar o mundo dos bárbaros,
cência, por não querer pâsseâr com ouúos jovens, por dar-lhe "padrão, poesia, ârte e a sã moeda"? Hoje, quân-
não querer ao menos estudar, freqüentar uma escola càm do caminhava pelas ruelas de Bellagio, o que ele via? \4a
seus calendários viris de futebol, brigas, socos, muito, certâ moto, um jovem lindo dando o ârranque em cima
muito mais. Ao ser pego abraçado a um colega no ba_ dela, fugindo, fugindo para esquecer o que sua força não
nheiro, abocanhando a carne de seus lábios, aliúndo seus podia mais comprâr, escapando talvezpâra as mãos de sua
cabelos ondulados, ele era o culpado já, o colega, não, amada da estação, mais nada. Talvez se ele pegasse um jo-
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vem tão belo quanto aquele que beijara nas privadas de unr carrossel de vozes todos se apressavam afalar' Ele sa-
sua adolescência e o levasse â seu quarto da Fundação lrirr, sofrendo assim de mutismo feito o mais total disléxi-
americana para honrar aquele domingo radioso com o ('() crn língua inglesa ou em qualquer outra, âpenas se em-
lago muito calmo, a barca a atravessá-lo sabe_se lá com lrclledaria daqueles sons sem semântica, não se
que histórias no seu bojo, se ele levasse o jovem até seu ('orlrprometeria com nenhum âssunto, em pensâmento
quârto e ali lhe baixasse a calça pouco a pouco, na sua corrtinuaria disposto tão-só para aquele parágtúo do li-
frente então se ajoelhasse como fazem diante do crucifi_ vr<t in prlgress que teimava em não avânçâr, temendo tal-
cado, talvez assim ele pudesse chegar ao fundo do domin_ vcz que o âutor tivesse de dizer ao fim e ao cabo o que
go, bem assim, sem pressa, e lá no seu limite soubesse re_ nuncâ conseguira revelar antes nem nos liwos nem na
tirar o que agora lhe faltava, talvez o frescor, a graça de vitla: sua oralidade, mesmo em sua própria língua, não vi-
toda a geogtafr,a, e com ela voltasse â escutar a memória nl'ra de uma necessidade genuína: ao falar, expressava não
que âgora apenas lhe fincava o cenho, deixando mârcâs lrcm a forma daquilo que pensava ou sentia, e sim parecia
com certeza, não a história. por enquanto ele descia as illterpretar umâ voz além das proporções, que assim o re-
escadas parâ o piso térreo da ailla italiana que abrigava já muito, muito longe do
os l)resentava limpo, estruturado,
hóspedes da Fundação americana, a \flla Solti, eà di.e_ câos â que pretendia aludir: esse mesmo o seu' Porra,
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ção ao dinner de terno e gravata de todas as noites. En_ csse carâ contra quem ele próprio começâva a se indispor
quânto ia descendo as escadas ouvia o burburinho dos seriamente queria o tatibitate infantil ou o simultaneísmo
coÍrvivas, a maior parte acadêmicos americanos de áreas de todos os assuntos que lhe vinham à baila? Nem menos
mais voltadas às ciências, à tecnologia. Ouvia o burburi_ rrem mais? Sabia mesmo que até ao falar fazendo alguma
nho, parava no degrau, apertava a balaustrada e respirava coisa que exigisse sua atenção, como lavar pratos, esten-
fundo para não recuar. Ouvia o burburinho. pr""rr.hi, o cler o lençol na cama, sentâr na privada e nada conseguiq
pensamento com bobas sentenças que lhe sedavam o ín_ ir até o armário onde lhe esperava o supositório de glice-
timo um pouquinho: se eu fosse o homem ffansparente rina diário, o que o fizia coner de volta ao trono - sim,
daquele filme, daquele antigo cujo nome esqueci, não mesmo ao falar com alguém durante esses afazeres, quan-
precisaria suar tanto de vaga apreensão âo me encami_ do parecia conseguir fugir por instantes do seu alhea-
nhar não só para as noites, mas també m os breakfasts, os mento convulso, impertinente até, como se o encarcerâs-
llncbs, para qualquer encontro com os colegas do palácio. se numa masmorra anterior à lógica da frase mesmo aí
Dessa vez ele de fato não estava nada disposto a conver_
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o que tentâvâ fazer não era bem sair dessa masmorra,
sar. Sentaria a umâ daquelas mesas redondas, onde feito pôr-se em liberdade, mas espiar por umâ fresta o fio infi-
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turno â encontrar estátuâs, quadros clássicos pela frente utiltnn a em Bérgamo, até que ela morresse e fosse embo-
para impressionar americanos, colunas, obeliscos, ho- ril o encanto. Quem é esse ragazzo, hein?, e quem será
mens seminus, mulheres fartas, gestos largos, quem era csse homem aqui que já não se reconhece âo se surpreen-
mesmo esse homem nascido em abril em porto Alegre, rlcr de um golpe num imenso espelho ornado em volta de
no hospital Beneficência Portuguesa, às seis da manhã, rkrurados ârabescos, um senhor chegando à meia-idade?
criado no bairro Floresta, sem poder imaginar que um li se ainda quisesse algum pÍazer da carne, a hora era
dia estaria aqui nesse castelo, ao norte da Itália, perto de cssa, o ragazzo o esperava desde sempre, estâva ali a pos-
Milão, na chamada jocosamente ou com t«rs, calça pretâ, colete listrado em branco e preto, â repe-
-
"Catedral" americanal quem era esse homem que já se lir "prego';, "prego, mi signore", sim, um bom signore, geral-
cansâva da noite tão cedo, louco pra dormir, sonhar, re- lrrente sem ter onde cair morto em suâ própria terrâ, mâs
generar-se para, ao longo do dia seguinte, cair no mesmo hoje um escritor famoso a receber convites do mecenato
enfado ansioso pra dormir em horário de criança, internacional, mormente o norte-âmericano, é claro;
-
quem sabe de hospitais, tudo pra sonhar de novo o mes- rnesmo que pudesse contar fora dos muros do palácio
mo sonho de um cão escorraçado num acampamento de com â efusão latina, prima de seu país de origem, ali es-
ciganos, uivos!, tudo pra fingir que acordava na manhã tava ele, acorrentado àqueles scholars americanos em sua
seguinte para ouvir seus camaradas, dessa vez no todo- maioria, e, no mâis, no momento, à chilena da ONU, a
poderoso inglês, mesmo estando sob o céu da Itália (cadê uma poetâ tcheca, três músicos coreanos, um filipino,
o italiano que ainda não conseguira escurar?). Não adian- não muito mais que isso. Vivia ali sobretudo acorrenta-
tava, erâ no inglês que â trâma diária ia se fazend o, até do a ele mesmo, a esse brasileiro se interrogando que
que ele topasse com um mordomo, ragazzT belo como imagem poderia câusâr na "Catedral" americana com
tantos da península mediterrânea, parado â um canto da seu jeito aloirado, sobrenome alemão, vagando sem sâ-
sala de música como se aguardasse os convidados da noi- ber por que vâgavâ tânto por aqueles salões dos corte-
te pâra bem servir com seu encanto jovem. Esse não, esse sãos, na maioria protestantes, sabendo que de hora em
não falava a língua de Byron ou Mark Tivain. euando lhe hora o cura da igreia medieval da aldeia de Bellagio pu-
agradeci em inerme compulsão por estar entrando ali, ele xavà t corda do seu sino e se embalava e embalava ^ to-
disse "prego", mostrava não ir além de sua língua, só se dos que ouvissem a sua arte católica, pobre cura!, talvez
por acâso fosse transportado por uma milionária ameri- nunca tenha tido a chance de ultrapassar o faustoso por-
câna parâ o outro lado do Atlântico e ali permanecesse, tão da Fundação americana, sim, pois durante os break-
mandando todo o mês parte da gigolotagem pâra sua violentado a púbere
fasts corriao boato de que ele tinha
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que morâvâ no promontóriO da outrâ margem do lago di rrr sc desperdiçava pela garganta sedenta de outro macho'
Como... Isso o escritor brasileiro ouvia calado, como (l rtgazzo limpou-se na cortina e o homem ajoelhado viu
sempre, louco para o último gole do café para então su- (prc suâ liturgia estava finda, era hora de partir prâ camâ,
bir até o quârto, adentrar depressa em seu esúdio ao lado lxl xnte pé no mármore, bem silencioso, para que ne-
e esquecer do mundo em sua escrita que alguns críticos irlr,rm residente da Fundação pudesse vê-lo saindo de fi-
chamavam de rara. Raro é esse ragazzo pàÍa, quem ele rrirrho não para à camà) mas pârâ a noite fria uivando em
olha agora e diz: sim, Deus baixou aqui, é vivo. De ime- st'rrs ciprestes, sim, debaixo do céu bem estrelado, cuidan-
diato tocou na espádua arcaica do peninsular divino, mes- rl,r para não provocar ruído no cascalho -láia ele subin-
mo que o ragazzl não soubesse, não importa, era Deus rkr a gola do paletó já todo contra o vento, 1á ia ele sem
que ele continha no seu peito arfante, não o Deus que não íirz.cr barulho pela noite fria, pois queria mais, bem mais
saía das igrejas, mâs o Deus que pulsava atrás da calça rlc rudo, de tudo vinha um riso envergonhado da traqui-
apertada do ragazzo, o Deus que se aplumava e se punha nrrgem que havia pouco ftzeta no rapaz, sacramentado
rígido, colossol o Deus que foi levado pelo escritor rrgorâ parâ sempre em sua lavra noturna pelos cantos,
-,
porto-alegrense para trás de uma cortina malcheirosa rrtrás das cortinâs, entre os móveis de autêntico estilo, não
pelo tempo, o Deus que ali se deixou ordenhar como um irrrporta, ele era o santo que oficiava pelas sombras o ri-
bovino e que ali se deixou beber não bem em vinho, mas trnl cla sina. O escritor porto-alegrense continuava ali, ao
em leite que o nosso senhor gaúcho engoliu âos poucos, vcnto mâis que Minuano, sem saber se cuspia no pedre-
na carestia da idade, lembrando-se da Primeira Comu- grrlho da trilha ou se engolia mais e mais aquilo que lhe
nhão, terço nas mãos, ar de bem-aventurança de joe- íizcra um homem vivo, o mesmo esperma de seu pai, pois
lhos olhou o ragazzo como se rezasse pelos mortos - seus o sêmen de um só homem contém o espermâ de toda a
amigos, por aqueles que não mais podiam aproveitar a hrrrnanidade, ele estava na Itália, não esqueçam, perto de
vida desse jeito, sentindo sim o gosto áspero que ele não tloma, e assim voltava a acreditar nos velhos carnavais li-
experimentava haüa tanto, gosto desse nobre líquido que trirgicos encabeçados por coisas tipo o Corpo Místico de
corre em seus microfilamentos vários cavalos no páreo ( lristo, a Comunhão dos Santos, tudo isso na diversidade
-
até um só ter a sorte ou a infelicidade, já, nã,o sei, de fe- rlos povos contida em apenâs uma carne que ao pó retor-
cundar a vítima. Era desse líquido com o inóspito gosto nrtrá do mesmo jeito que dele se extraviou, assim mesmo,
de rudimento da espécie que ele bebia ajoelhado, um lí- rlc fininho, como fazia agora aquela figura no escuro do
quido que talvez esperâsse aflito seu dia de criar um san- lr«rsque de Bellagio, com vontâde de fugir daquela irman-
to ou um monstro nas entrânhas de sua vítima, e que ago- .la«le que almejava comandar o mundo com suas idéias
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Berkeley em Bellagio
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orquestradâs, com vontâde de pelo mundo se perder mais t('ru'rte que vinha e lhe escapâvâ sem o apoio de cordas,
tarde num navio fogoso ou num trem de subúrbio, ârma- s(,1)ros, bemóis, nessâ sutilização do significado que não
do... Foi quando ouüu um bicho correr enrre as rama- o lcvava a parte alguma, daí vinha o sinal de que o seu
gens. Depois, logo depois, um piano heróico no meio do tcrupo interior se esterilizavâ â ponto de ele não ver mais
arvoredo a se crispar ao vento. primeiro pensou se tratâr ('onro se desenredar: quisesse ou não, já se aventurava
de um engâno auditivo, motivado pelo fogo cerrado de scrrl retorno por essa louca deserção. Que importância
anglofalantes do jantar onde mais uma noite ele, incauto, tt:ria a decifração do mundo pâra quem já queria só vol-
tinha entrado até por falta de opção, pra não morrer de tirr pâra casa, de onde talvez nem precisâsse ter saído?
fome já que geralmente ficava sem almoço para des- (.)ue importância teria a semântica da prosa mais esclare-
-
cânsar das gralhas que não parâvam um só instante. Mas t'itla a quem só ansiava se abraçar ao seu quintal? Que im-
o piano permanecia ali, a alguns passos, na cabana de portância isso teria quando ele já fosse âpenas um punha-
- o busto
janelões acesos, a exibir de um homem curvado rlo de cinzas em meio à terra, que por certo nuncâ mais o
sobre seu teclado. Quem erâ esse homem que toca Liszt rrr«rldaria em carne? Não fosse um homem ter despejado
em sua cabana no meio da floresta?, ele pensou, se apro_ scu gozo dentro de uma mulheq não fosse isso o filho que
ximando inconscientemente de uma das janelas. Apioxi- t:lc era não estaria aqui nem haveria para suâ escuta o
mou-se como uma criança se aproxima de algo que lhe l,iszt que ele ouvia àgoÍa nada, só a paz dessa floresta de
desperta abrupto interesse, nada preocupada óo.r., p.r- llcllagio, o assovio intermitente do vento noturno não
tinência ou não da curiosidade. O pianista era alguém lá -
haveria ele nesse corpo perpetuamente redivivo enquan-
nos seus quârentâ anos, pouco mais, quem sabe. Tocava to houvesse pensamento, fábula, história, ele pensou, co-
algo de Liszt, isso ele sabia porque, mesmo sendo escri- çrrndo-se ao infinito. Foi então que não agüentou mais
tor, ouvia mais música do que abria liwos; de uns tempos irtluele gosto de porca jâ passada na gârgantâ e cuspiu, es-
pra cá,, não queria mais saber de romances, novelas, con_ cârrou tudo e um pouco mais ali, bem perto da cabana. O
tos, muito embora os escrevesse. euando sentia a,goÍa a pianista assustou-se com â veemência do bicho que ele
necessidade da palavra, ia direto a algum poema. paia ele, rrchou que fosse à primeira vista, levantou-se, foi à jane-
a poesia era o verbo em estado musical, se algum sentido la, pálido que estavâ, e deu de carâ com o homem que vi-
ela expressavâ este não vinha de outra coisa que não da nha da floresta tentando ouvir o Liszt que ele gerava aca-
melodia deslizante pelas entrelinhas feito um rr.io d'ág.r" krrado. Ficaram parados, sem falaq sem nenhum gesto,
que mal, mal se percebe. Nesse elã que sentia p.lo qre nenhum sinal em que pudessem se comunicar, saber a
ainda não se fixara em norma do sentido .rr. algo ia_ identidade um do ouúo, suas intenções, seus vícios, trau-
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mas... Parados, sem esboçar a mínima significância em t,iset vivera por alguns meses em 1837, amando a sua
seus corpos, urdiam quem sabe algum veneno que tentas- Mirdame D'Agoult, torridamente, e lendo Dante à som-
se desfazer âquele encontro assim tão rude. Se os dois já lrrr rle alguns plátanos... Em dezembro deste ano nascia
se conheciam, se ambos eram residentes da Fundação, ( lrsima. Sim, a Fundação acolhia também músicos, e
nada disso interferia ali, eles eram agora bem menos do na floresta pâra que me-
lxrra eles construíram cabanas
que identidades, portavâm em suas figuras uma espécie lh«rr se concentrassem e ao mesmo tempo não interferis-
de estranhamento original, dois seres embalados pela scnl na audição dos residentes de outras atividades' O
mesma melodia já ausente, um na claridade do seu esú- lirto é que, de repente, assim, sem mais, vi surgir uma
dio bucólico, o outro querendo se banhar naquela mesmâ rrrulher ao lado dele, e essa mulher estava vestida com um
luz cativante, a alma da cabana, e que a Fundação parecia trrrje dos oitocentos, verdadeira heroína de uma história
querer esmagar sob o tacão das estatísticas de alguns hós- (ple eu começava a ficar louco para conhecer' Seria essa
pedes economistas que em certas noites recitavam suas rirulher uma enviad a pàÍà desfazer o gelo em que aqueles
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receitas categóricas pâra o fim do desemprego mundial, h«rmens permaneciam, meio que acossâdos, parecendo
na sala de música, depois do mais lauto jantar. por que int«rcados pela presença um do outro, tendo ainda por
era preciso sempre dar continuidade a tudo?, parecíamos t'irna a vidraça entre os dois, para mais refluí-los do aca-
nos perguntar no âmago da floresta. por que o pianista so desse encontro, hein, seria? Mas essa mulher parecia
não voltava ao seu piano, o escritor ao seu abrigo na Fun- rrão ter chegado aneida além de uma personagem - pá-
dação americana, e nada cârecesse de maiores explica- titla, sem g.itor, de vida nela só o colo que vinha e volta-
ções regadas a gemidos, risos, palpitações, alívios? O es- vil numa lenta respiração ornada com um colar' Quem
critoq da parte dele, não tinha urgência em se aliviar de crâ essa mulher, eu me perguntâva, â quem servia uma
nada, jâ tinha escarrado todo o resro do sêmen do ragaz- lrcleza assim tão fora do meu tempo: seria uma âtriz, umâ
zo, e preferia agora não dar às suas pernâs nenhuma di- cortesã que vinha à noite satisfazer os caprichos daquele
reção que o afugentasse da cena entre eles dois ali, am- pianistai Quem era, mas quem erâ mesmo essa mulher
bos barbados. Pois no fundo, era ali que queria ficar, ieo diáfrtt, que seu colo agora parecia porcelana des-
quem sabe mais umâ vez ouvindo Liszt, sem a ansiedade lnaiada, qrr" Àrtro se recâtavâ pouco â pouco, a ponto de
de precisar dar a seu corpo um rumo diferente, um rumo não se nàtar mais ali nenhuma ação orgânica"' Olhei
considerado com certeza mais salutar do que aquele de cada um, olhei primeiro igual a um bisturi, tentando pe-
âparentemente importunar um pianista que tocava Liszt netrar em toda a extensão daquela extrâvagância, como
numâ noite fria de Bellagio, na Bellagio onde o próprio se umâ criança interrogativa, num conto muito antigo,
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perdida na floresta, desse de cara com uns seres alheios a rcscrvada apenâs a quem tem o privilégio de morrer no
qualquer comunidade, ali parados feito estátuas, sem de- grrriprio leito, cercado pelos seus âmores, sabendo que a
monstrar o menor desejo de participar da prosa apressâ- rrrrio que afaga seus cabelos, e essa agora a segurar â sua
da que o visitante noturno poderia estar nâ iminência de ('()rno se do alto de uma embarcação puxando a mão do
gerar. Mas na verdade, enquânto eu estivesse ali, parado, rrríufrago, que essâs mãos são as últimas sensações de
olhando aqueles dois afantasmados, eu estava pronto a vitla. fu presençâs que tocam a agonizante já perderam a
me deter no tempo, a economizar de forma radical mi- srra identidade, já nada podem fazer além dessa formali-
nhas batidas cardíacas, ser âpenâs mais um elemento da rlrrtle de tentar puxar a morta à tona novâmente, enquan-
floresta, um corpo que não precisasse batalhar por mais ro a pobre jánão reconhece nenhum interesse em conti-
um dia e, quando despertâsse novamente, nenhum nuar ali, a salvo. Eu era Berkeley, o célebre filósofo
-
desgaste das horas teria me marcado com seu ferro em scnsualista que acreditava, dizem, que a subsistência das
brasa; aliás, a minha cabeça teria idéias totalmente emân- r'«risas dependeria da qualidade da percepção e não da fei-
cipadas das antigas, tudo me seria mais fácil, não teria re- liçaria da linguagem e qual percepção eu poderia ter
ceio do futuro, controlaria os inforúnios do âcâso com a -
rlc mim mesmo naquele vão noturno que quase me engo-
respiração no ritmo digno de um estóico, por onde escor- lc num repente? Quem me responde, e iá, se o fato de eu
regasse e evoluísse um âr tão qualificado quanto o desse cstar aqui andando pelo bosque em plena madrugada me
bosque de Bellagio. Faria parte com eles de um gracioso confere alguma garantia de que eu não seja um outro que
destacamento de estátuas, já que lá dentro na "Catedral" rlc fato sou, um estrangeiro de mim mesmo entre norte-
discutia-se obliquamente a patc americana. Eu era Berke- rumericanos (embora pisando em solo italiano)? Sou al-
ley em Bellagio, o bispo e filósofo irlandês em retiro pi- guém que se desloca pârâ me mânter fixo? E os pâssos me
sando em folhas secas, me afastando da janela atrás da conduzem para o esúdio pegado âo quârto ou às lisonjas
qual um pianista moderno e uma mulher vestida de ou- rrrúruas reinantes na Fundação hein?, não fiz umas
trora talvez ensaiassem alguma ópera, talvez chamada -
l)erguntâs, tchê? Sei que vejo Cosima espantosâmente
"Fantasia quase sonâtâ depois de uma leitura de Dance", pálida em seu leito de morte, toda transparente, toda ir-
em honra sim de Liszt, que aqui vivera uma paixão férvi- rcal, quem sabe ineústente... Voltei àailla, os circundan-
da, enquanto eu caminhavâ com cuidado, temendo escor- tes continuavam acordados, agora na sala de música, sen-
regâr no limo da umidade, ouvindo Cosima quem sabe a tados em poltronas, belos sofás, quadros e estátuas
cantar em seu leito de morte qual a Dama das Camélias... renascentistâs que eu jamais saberei se são reais ou mero
Nenhuma cena humana erâ mais pungente do que essâ, csforço posterior de algum abnegado artesão. Um pro-
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Berkeley eru Bellagio João Gilberto Noll
fessor de física da New York University cantava e tocâva velho contava dos poemas que fizera na juventude, ela
standards americanos ao piano; fui para perto de um gru- distribuía as novidades entre os americanos em volta, to-
po que ouvia atentamente afala da poeta tcheca toda li- dos homens, salvo eu que era brasileiro e não tão fanáti-
qüefeita em vinho a relatar sua amizade estreita comJoão co quanto eles pelos encântos da tcheca repetindo os ter-
Paulo II; ganhou algum prêmio do Vaticano, algo assim, rnos em francês que usava ao lado de João Paulo II aí
talvez uma medalha católica dedicada aos poetas, tudo eu -
talvez eu fosse o único a entender, visto sempre ter sido
ouyia como sempre ouvia os cortesãos da Fundação, pe- o francês o meu forte, coisa de que hoje me arrependo já
gando pedaços, nacos de frases, logo me desinteressando, que ninguém mais usâ o repertório gaulês fora da Fran-
às vezes retornândo pra verificar se daria para lastimar ça; com ceÍteza, sim, ali eu erâ o único a entender enfim
mais tarde ter passado ao largo do assunto que poderia algrma coisa naquela ilha anglófiIa, e os americanos re-
me render mais romances, mais contos, mais novelas, l)etiam "tÍadtz, traduz pra nós, oh musa, doce coração!",
quem sabe dessa vez um poema dramático à la T. S. cu juro, eram palavras assim a jorrar dos bacantes nova-
Eliot, quem sabe coisa alguma, âpenas uma fofoca a mais i«rrquinos na noite imperial de Bellagio; um deles per-
prâ que eu voltasse pro meu quârto sorrindo pelos corre- guntou se ela indagara de Sua Santidade se de fato era in-
dores do castelo feito um cidadão feliz, satisíeito, dispos- fâlível, "infolible, infalible", repetiâm às gargalhadas ao
to para mais um sono liso, lisinho pelos cômoros de areia som de "Smoke gets in your eyes", enquanto a tcheca ro-
da minha praia na extremidade sul do Éd.rr... Mas dessa çando sua perna nâ pernâ de um historiador bem manco
vez o papo era sério e versâvâ sobre a estreita amizade de sc ruborizava toda, a repetir que não, que não, que o Papa
uma poeta de Praga, agora ébria, com o Papa, nem mais cra um homem modesto, tão modesto que foi se curvan-
nem menos, o Papa. Ela contavâ que Sua Santidade só rlo, se vergando ao peso do seu humilde lenho sânto...
conseguia ler em tcheco, ao falar nesse idioma sua língua lsso tudo só eu que escutava, já que ali ninguém parecia
refreava, a saliva refluía e ele se engasgâva. Sentaram-se :rrranhar o francês como eu, que tinha cinco anos de Al-
lado a lado logo depois da cerimônia de outorga das me- liance nâs costâs; que burro fui eu, reclamava baixinho,
dalhas do prêmio aos poetâs que contribuíam para a fé lx)r que não aprendi inglês se na minha mocidade já era
cristã, sei lá se era exâtamente isso, pois o inglês que ela csse o idioma que começava â contar para o mundo, en-
falava bêbada era ainda mais medonho do que o meu, se (luanto eu ali no Je uous aime, fazendo biquinho, corren-
é que podem acreditar, não minto ela estava à rlo a procurâr em vão por Porto Alegre um único sebo
mesa com o Santo Padre, o Papa pedia que falassem em (fue me pudesse oferecer algum liure de pocbe, er,quanto
francês devido a seu bloqueio com o vernáculo tcheco; o rraquelas livrarias as portâs já se escancaravam sim pros
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Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll
bo que afeta só a ele, me âcredite, não se engâne. Ele era dnente, mormente a equâtoriana". Eu era um escritor de
jovem, 34 anos, eu já o estâvâ vendo com a faixa presiden_
olhar heaay. como eu mesmo lhe dissera, e ele tinha todas
cial equatoriana, era â nova elite sul-americana, esse sim as abstrações de sua estéticâ parâ me ofertar pela graça de
um verdadeiro filósofo orgânico apenâs acreditava, di_ minha conversão. Claro, ele dizia, na novâ cosmovisão la-
zia ele, na promoção social dos-povos e que depois de dno-americana não havetá a diáspora entre o Indivíduo e
morto o jogo continuava, pois éramos um continuam no o lJniverso como no Pecado Original católico: o câra es-
IJniverso e, como Giordano Bruno declarava, éramos tará apto a receber de Deus aqui mesmo as prolíficas re-
ainda mais, o próprio espelho de Deus; sendo assim, o .o*p"trm do trabalho. Ah, eu quero isso, eu respondia
jogo continuava no plst-n lrÍem., potco importava se feito um idiota, tamanho o meu desejo de ver esse râpaz
numâ reencarnâção, em outra esfera que não a física, ou naquela noite no ápice da América Latina, um gato bem
mesmo se Deus não passasse de uma criação da nossa em
frustração cósmica. No mais, só a beleza salva a perma-
-or"rro, misto de índio, espanhol, todo empenhado
seduzir mais um pro seu futuro calibre de poder, ah, de
nência desse jogo. Suas regras, é fato, são no mais das ve_ trópico a trópico, com certeza assim seria' Viva o Equa-
zes enfadonhas, feitas pra golpear de morte a nossâ auto_
dor, suspirei sardônico, viva esse que parece âté um certo
nomia; mâs preste âtenção, â autonomia é um vício presidente pós-moderno do Brasil em jovens anos de exí-
mental, não passa da tal autonomia abstrata que esse seu iios! Exílios que este dali pensava não viver na pele; mal
herói literário teima em redigir. Beleza? Ele tinha dois sabia ele ser mais um exilado, sim, exilado do quê?, me
palmos para além de mim (que pra homem baixo não ser_ perguntei baixinho, se ele está convencido de estar fla-
via), sabia que me seduzia com esse papo de Beleza, esse ,".,ão feito um dândi da filantropia pelos cinco conti-
Platão dos pobres que se prepârava pâra no próximo ou_ nentes? Mas naquela noite nem isso me importava, não
tono começâr seu doutorado em princeton, o Gatsby sul_ me importava até meu próprio eílio branco no conforto
americano, lindo! Eu ali me converti à sua doutrina, pelo de universidades e fundações americanas, sem conseguir
menos durante aquela noite. E se eu o levasse para meu entabular em inglês uma única frase que prestasse, não
quarto e o transviasse de sua rede filantrópica internacio_ importava, não importava nada se naquela noite eu tives-
nal pelo bem de um escritor da espécie, repito, pelo me_ se o príncipe de Quito na minha câmâ. Seu português era
nos durante apenâs uma noite, na certa ele me daria seus brilhante, melhor do que algum dia pudera supor saindo
tesouros na forma mais acabada de suas tergiversações, da boca de um falante hispânico, não havia um erro em
afastando-se temporariamente da ,,concretud. d, pro-o_ sua pronúncia, nenhuma distorção em sua sintaxe' Quem
ção social junto às camadas pobres da população do con_ era a professora carioca que the ensinara tão bem o por-
Berkeley em Bellagio João Gilberto Noll
dimensão
tuguês, que nele não se descobria nenhum sedimento de da cueca, mas sozinho, sem saber a verdadeira
como ela só' sem
outrâ língua? Tinha sido sua namorada, amante, precep- do estrago na úrilha sonhadora, besta
tora ou devoradora? Ele não iria me contar. Ali, era ape- me dar lir,rt do teor do leite derramado' se erâ purâ
brb", ," porrr, se de fato mijo de tânto eu rir por
dentro
nâs um homem todo exposto à minha fantasia, mas nada
iria acontecer nem agora nem mais tarde, ele ficaria ali e ,, .roit. próxima dos Alpes onde estarás meu fidalgo'
gâto em cio
eu aqui, talvez no máximo dançássemos sob a lua que era unde estarás que por ti padeço, mio feito um
clara, cheia, tão clara que nesse instante àpagav^todas as J"poi. deitá, dàito .obtt um banco de pedra no feitio
estrelâs, deixando a relva perolada a ponto de se poder
"da Roma ântiga âs margens laterais em leve relevo ar-
- que me
imaginar gota â gota do orvalho; muito embora a baixa redondado. Largo um peido, finjo que choro'
temperâtura, suávamos, eu sei, nós ambos, e a correr derramo em lágrimas, sacudo a cauda, empalideço"'
tão
como a brincar de pega-pegâ entramos num quiosque Acordo em sobressalto, é noite ainda, reconheço -
penso que o
todo envidraçado, igual àquele de "A noviça rebelde,,, só estou no quiosque enüdraçado que 8uâ-
um sonho' faço na Itália?' me
quando o românce deles dois começa. Por que havia tan- po equâtoriano foisó Que
tâ coisa a descascar até que pudéssemos estâr aquém da p".g.rnro e isso éItália, se âté âgorâ só ouú inglês eo
-
["fã pot*guês do futuro presidente -equatoriano? Me
gente, nos transformârmos em ninguém ou quase, quase
nada, e só então, sem nome nem espécie, podermos nos toão de novo sobre o banco de pedra da antiga
"rrror.oquisera ser uma ave ferida bem na asa' e aqui fiôar
beijar na boca? Precisei pensar na câsta Julie Andrews e Roma,
porque já
no circunspecto viúvo Christopher Plummer no quios- até que alguém viesse para só cuidar de mim
já
nem sei q,i" frço ,r"- qrr" digo, se é que digo'
nem^sei
que no meio do bosque do tal filme, para aplacar o meu
t"""tte, é uma soprâno' é Co-
tesão, a baba na cueca, para aplacar o equatoriano que ar- se sonho. Ouço uma
"o' choro
dia em sua liderança, me traduzindo uns versos de um jo- sima, eu grito fechado no quiosque e quâse 1go1'
isolamento. Reajo, abro a porta de vi-
vem poetâ peruâno, seu colega de internato na infância, no mais a-b.ol,to
de certa
hoje um diplomata de carreira em Roma, a quem iria ü- dro, vou pârâ os iardins, vejo o busto em pedra
sitar depois que terminasse o seu seminário em Bellagio figura qorl o- senador romano, se não um dos Césares;
"Experiências Inovadoras para Liderânças em Filan- .íro, lrito, faço que vou despencar no precipício' mo-r-
-tropia no Desenvolvimento da América Latina,,, a latina rer no Trrrdo aã hgo di Como, tudo é mentira'
me refa-
que cânta "Bongiorno"' cân-
doida!, digo eu pra não chorar, e rio e rimos tanto que a ço, vou ao enconÚ; davoz
Bronx que foi embora paÍ^ ^
lua feminina se retrai aúás de umâ montanha. Estava eu iao a, ópera do músico do
aqui, agora, no abrigo do quiosque, encharcado debaixo ii.itir rr", Prl"r-o, terra de seus ancestrais mafiosos' tão
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revolução de espécie
poderosos que lhe deram condições de estudar na Juil- llcito inflamado, não, não é preciso
liard School e tudo o mais que um músico nova-iorquino ,,11p-r, tudo tem seu próprio ritmo - democracia, edu-
deve ter para viver em condições tranqüilas pelo menos, cnção para âs massas e, enfim, a tecnologia, a única ma-
ah, eu bem me lembro que num ponto desta noite eu ü rr"ira áe todos se acessârem mutuamentel enfim, é esse o
o seu fantasma e o de Cosima, a heroína de sua ópera, rrrais ambicioso programa dessa hora, e só com mutirões
mas dessa vez, aqrri, falo de Edwin em carne e osso: Ed- rlc voluntários teremos condições de aplicá-lo pelo mun-
win veio â essa Fundação americana para Íazer uma cân- rl«r; por isso estamos todos aqui nesse instante grave
em
tata dos anjos da Sardenha, com vozes de um coral ado- ,1u" ,i.,d" não se sabe bem quem realmente está por trás
lescente; com ele estâvâ a libretista e dramatist, que lhe ,i, qr"d, das torres em New York, fato que não será a
,,.rrra Qoeda de Constantinopla, não se iludam - se
escrevia como se salmos, veio com o marido professor de é
sociologia em Minneapolis, que por aqui esrudou duran- v«rcê, se sou eu o mentor dessa hecatombe, logo a
huma-
te um mês as desigualdades entre o Norte e o Sul, sua rridade ficará sabendo com ceÍtez^, e aí adeus ansiedade
obra se chamaria Toward a More Equitable World, não sol- global, pois já teremos as porções dos bens do mundo
ta-va a foto em preto-e-branco de uma índia velha em irem distribúdas all oaer tbe world, isso sem milagres ou
roupas aculturadas de uma dama, brincos, mas tão, tão irléias imantadas de santos caudilhismos, porque então
no
velha que já,não tinha nem um tiquinho de chance de co- tluro o inimigo estará exterminado, esse inimigo que
nhecer um dia um mundo mais igualitário: seu rosto im- pode ser você, o filipino ali com seus trâies típicos olhan-
pressionante parecia puro barro estorricado, cheio de ,lo prm o pico da màntanha mais nevada, paralá' além do
sulcos de uma terra seca; mâs era esse o mote dele, a pro- trgà ai Como, além do horizonte, do arco-íris, mais além
to-história de um mundo em novâ ordem para todas as ,lida do que podemos conceber, lá onde ele será pó uma
Américas e para os cinco Continentes! O que fazer?, ele vez por toàrr, nos deixando em pâz aqui no manso círcu-
mesmo respondia: acabar com os governos corruptos, de- lo dã um mundo mais eqüitativo, enfim, na única história
sentrâvâr o processo democrático em cada região, pegân- sem embromação, é issol Ele e a esposa libretista estavam
se despedindo dos convivas, iriam embarcar de volta
do a tal, a mitológica oportunidade a todo cidadão, um a
cidadão que poderia com orgulho se espelhai, ou melhor, Minneapolis dali a alguns segundos, seus olhos lacrime-
se inspiraE perdão, a cada manhã na Democracia Ameri- javam, me destroçâvâm o coração, não tanto eles' vos
cana "espalhada pelo mar revolto", completei diante dele confesso, mas o músico nova-iorquino, Edwin, que tam-
durante um café após o lunch no terraço da \tlla Solti bém partia naquele instante, só que pàrl' a' Sicília de seus
nãol, ele respondeu, virando axícara de café sobre o seu- que fizeram fortuna incalculável na
-rfioro,
ancestrais
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América lá ia ele pra Palermo, o músico que na noite parar diante da minha portâ com meu nome escrlto num
-
anterior apârecera à janela com sua Cosima em figurino cartão com margens em finos arabescos de metal doura-
de época, a bela soprâno que surgira de repente atrás da do, ele se aproximou um pouco e repetiu: Joao, Joao'
tal vidraça e que não tomou mais corpo depois diante da treinando um til com o dedo pelo ar, a repetirJoao,Joao'
enquanto eu abria a porta, ele entrava junto, eu pâssavâ
minha üsta já bem exausta por tanros cafés, breakfasts, â
lunchs, dinners engravatados, onde sempre havia alguém a .hrr,. *" aproximando de seus lábios sonhadores' To-
discursar, lágrimas a derramaS uma boa comida sem dú- quei-os com os meus, de leve, as línguas quâse se roçâ-
üda, feita por exímios maítres italianos, sobremesas, ve- ram, recuarâm, eu queria sim entrar por suâ boca aden-
las, aplausos, talheres zunindo nos cristais das taças, cha- ffo, inteiro, nele peimanecer em mim bem dentro dele'
mando a atenção dos circundântes para este dali que eu acompanhá-lo paia sempre ou mais, ser ele, ir à Sicília'
jamais descobrira quem era, de onde viera, o que fazia ali u", P"l.r-o, .rrá1,r, parâ câsa, a dele, em pleno Bronx' ali
pois este dali também queria exibir o ser speech, por- ficar compondo músicas ainda mais sublimes do que as
-que alguns chegavam, eram saudados, outros se iam, que ele cÀseg.rira fazet até ali, óperas completas dedica-
eram brindados, e o mundo não parava de rodar em alta áa, a ,rão sei ã quê que a nossa imaginação só no futuro
rotação âté se retrair em certo ponto da jornada, largar a iria comportar. Na despedida, no terraço ensolarado' nos
última faísca, e então descer sua pálpebra secrera, nos es- abraçamãs e eu chorei, confesso' E choraria mais
por
toda a vida por esses desencontros quase que diários'
condendo de tudo o mais, de nada... Mas por enquânto até
eü não queria que nada se acabasse, mâis uma vez alme- que uma ,roi,. pudesse ter alguém ao meu lado' nós
".,
java um companheiro que comigo sim ficasse, como Ed- iois deitados sobre os lençóis recém-lavados, ainda tépi-
tlos pelo ferro de passar, sem nada mais a aspirar além
win por exemplo, esse tal músico que partia p^Ía Sicília de
de seus mafiosos ancestrais, me deixando com a sublime^ u- iono. Mas nem tudo ainda conseguira ultrapassar
aquela noite, eu juro, e já estávamos nâ târde do dia
melodia de uma canção de "Cosima", â suâ ópera (soube se-
um palá-
depois que decidira por esse título), a tal ária,,Bongior- goirra. no terraço da "Catedral" que de fato era
no". Ainda antes de vê-lo com a soprano vestida de heroí- lio, .r, sei, não nego. Eu dizia que a noite anterior não se
na atrás de sua üdraça, quando me mostrava ao piano da cumprira toda ainda, mas é urgente que tal se faça agora,
sala de música do palácio âs suâs canções, cântatas, árias, de imediato, para toda a gente que me ouviu, me ouve'
em suâ voz mais do que bela, prometi lhe dedicar o liwo me ouvirá no relato que periga até se esfarinhar, sei lá -
para todos poderem sentir que a vida noturna sempre
que escrevia na "Catedral" americana de Bellagio, retri- se
o
buindo assim a sua arte! Subimos parâ os quartos, e ao refaz, faz frio, não quero mais o anseio por um amante'
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seu lazer, se é que suas vidâs ainda o comportam. Que la- blico que permânece ali como que viveu sem saber a eter-
zer comportaria esses dias dominicais exatamente como nidade irrài.r, é disso justamente que vem o fascínio des-
deveria ser aquele enevoâdo, sem nâda prafrzer além de sa população pela imagem ausente: é que, ao contemplar
um espreguiçar, bocejos, um arrastar de pernas pelo trit f-iao.er, o tal ser em exposição imanta-se de todo o
quarto, como se convalescendo de uma enfermidade ima- tempo favorável que the sobra, o favorável, escutem!' ex-
ginosa? A pessoa ainda tem pela frente vários domingos pulsando então âs âmeâças vindouras, bombardeios'
assim, mas vai em frente nem sabe bem pra onde, dobra suicidas chocando-se contra torres, doenças, trai-
a esquina, entra na fila do Guggenheim, comprâ o seu rzc-
"ü0., e o público aí tem a sensação de simplesmente
ções
ket para ver a obra que a filipina não sabe lhe dizer o
-
não serup.rrm mais um entre já tantos, tem a impressão
nome, se é que tem um nome, um corpo inexistente ape- de que ,. furrdiu em harmonia a tudo num segundo' em
nâs a perceber o que se pâssa em volta além do vidro, que ,.olt, daqrele menestrel ali sem melodia, sem alaúde'
apenâs reconhece estar ali pârâ ser visto sem nada o que poesia, ,rlrro natural dos peregrinos já fazendo a volta
,
mostrar, um homem que ficou como que morto nos po- .ro qrrr.t.irão só para assisti-lo, depois entrando pelo
rões da "Catedral" da Fundação americana à beira do museu com o coração aos pulos, a bem dizer dementes
lago di Como, ântigo palácio que já hospedara até Da para contemplá-lo no invisível de que foi refeita sua car-
Vinci, sim, na Lombardia, no outro lado do Adântico, e ,r", qrr" ,, io-brrdia ficou em pa4 prâ sempre "' }J'á\
agorâ está aqui no Guggenheim, sem que o público in- uma mulher na frente dele, sim, a cega, à cega que pare-
cessante se aproxime muito da corrente que o protege ce querer vê-lo tanto e tânto que levanta os braços' a ben-
desse mundo, ele é um faquir sem assento de pregos nem gala cai com estrondo, na ponta dos pés ela fica como se
com fome, que âpenas escuta o senso estético na virtuali- á dr.tçrt, gemendo, a guia filipina se aproxima, quer acu-
dade máxima do mundo, pois o vidro não é à prova de di-la mas"não sabe ao certo o que pode fazer, se pode' se
som e ele escuta, escuta sim quase o tempo todo, mas â cega tornou a erxergar @manho o espânto diante da
nada lhe custa nada, e ele inclusive até pode se alhear dos mi.rha presença aquém do vidro, muito além da física'
ruídos que assim jamais o mortificam, ele esquece, esque- igual à pr"r.rç" fraudulenta de um deus atrás da cortina
ce com facilidade o que ocorre em torno, se refluindo até do sacrário, sim, a cega torna aver, é isso, a multidão a se
um ponto onde não chega nada, nem o som, nem o que dispersar da fila prr"i. confirmar o tal fenômeno' todos
se chama de a face humana, um sorriso, a tal lágrima fur- ." po.- t^g^ril^, em volta daquele tabernáculo profa-
^
tiva, nada, e fica assim por algum tempo que jamais des- no onde eu vivia em meu resíduo agoÍa muito além dali'
cobre, pois ao voltar nada se passou, e o mesmíssimo pú- já de visita ao meu pobre corpo da Lombardia' desinte-
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de que procural_a.lgum
caminho; ainda nâo
nem ao menos a técnica enconúararn rrrinhas caminhadas a partir da Usina do Gasômetro até a
mais el..rr
não sabem como rr"rr*
i,"r;;Hffi.11J:*;:if: l)rrrça da Matdrz, descendo aí paru a Praça da Alfândega,
c rlo entrar no Shopping Rua da Praia contâr quântos gâ-
assim' di'
**.jr::,;'u cavar seu próprio "i;;;,ra
se desraca da na- rr»tos de programa estão postados nas imediações da por-
pondo num asso enredo' s"", ;;;- ;;: llrria, quantos homens maduros, mesmo velhos, a rondar
suprema pegando
do sobretud" , I:*-'ucidez do borso por ali farejando a companhia de um deles, mas qual de-
r,*r; ;;;;;#i1:l"lJTflyJ[ :om
a quar ro.g.,- lcs?, há tantos
-
então os mestres grisalhos sentam por
nagem enúe a in rrli, alguns no café do McDonald's, logo ao lado do üdro
l)âra a rua, um aquário não para quem cobiça a carne, mas
;,:::A'*'g::*'#ili:['J#]:1i:#"JH: rr grânâ desses mestres sem lição aparente para partilhar,
;{ã,ffi
*iminha r folhear jornais e revistas disponíveisl um deles, cava-
da üiü.jr: :ffi ::tiffi:H1ff ;Li:
máquina:-noto qu. esia áolhado na
nhaque azulado, diante de um livro de poemas, Auden, dá
perulância do seu ürilha. para ler ao se chegar mais perto; muitos ficam a esperâr a
púbis já ;;;il"; a
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rnstânte em que a feru vai em frente e se estremece na rila outra porta do mundo teria o meu nome exposto as-
gargântâ desse velho sátiro demente... Eu ando como sim frontàI, inequívoco, ardendo nâ presença de seu
sempre por esse shopping com o ar um tanto alheio, às ve_
dono, ardendo inutilmente... Olho o meu próprio corpo'
zes uma ou outrâ caretâ pâra quem me olha em demasia,
vejo que continuo o mesmo, uma quimera em carne viva'
sobretudo pâra os mesmos segurânças, esses que se lixem,
louco como em Porto Alegre pra me iogar na câmâ e me-
quero só ser invisível, não me deixam, e então vou pro ditar sobre a delicadeza de um outro homem, dessa vez é
banheiro mais imundo, me tranco e bato rma ponhei, a Edwin e pensar que a máfia em Nova York não cravou
me ferir a pica!, voltando logo para dormir no meu horá_ -
suas mârcas no seu gênio! E o que ele sabia me contar
rio de hospital, puro, câsto, sânto, como sempre fui até além da música era isso: à noite, ele dizia brincando com
chegar a Bellagio e me sentir um outro por esse corredor
suâ grâvata italiana, à noite, meio que adormecendo'
ten-
por onde vou pâra o meu quarto, pr.r.rào diante da por_
to ,[r"rd", teu nome e o repito, repito sem saber ao cer-
ta de Edwin para confirmar, maníaco, se de fato o cara já é de fato o mesmo que ouü da sua boca num dos
to rà
partiu em lazer paÍa â. Sicília faço meus cálculos pra "1"
corredores da "Catedral", você ali, você, meu caro amigo
ver se já deu pâra ter retornado-a Nova york criando rom
brasileiro, â repetir pela milésimàYezpàÍà que eu pegas-
canções românticas: pâro diante da porta que foi a dele
e se parâ,"*prá, Joao, Joao quase grito deitado no
vejo agora o nome Mr. Lovell, ah, o escritor que acabou *"o qrrr,o, ouvindo no radinho um carâ da RAI, sempre
de se comunicar com o meu repentino inglês Íiuente, tão
, RAI, falando que falando no seu programâ cultural dos
fluente que de seu corpo deslizou o sêmen que não pode
sábados, dessa vez entrevistando alguém sobre as chagas
seguir as conveniências ao se arremessâr sem seu dono
do Brasil concenffadas agorâ no meu dente que pega a la-
mesmo se dar conta; depois vim a saber que Mr. Lovell
tejar, doer, fazend'o me cobrir inteiro debaixo das cober-
era casado com umâ alemã da pesada, cineastâ da desme_
tas. Sei com toda a ceÍtez^ de que estou de novo no meu
mória entre bêbados e drogados que acordam sem saber corpo e que ele dói, dói tudo o que tinha pra doer, até que
como foram dar ali naquele quarto, um pires com leite eu me lerante, vá tomar uma ducha e depois nu diante
do
espelho me aperceba de que o meu corpo já cansou da
para algum bichano no chão, ao pé da cama; a câmera vai
pegando a brancura do leite, nele se afoga _Mr. Lovell,
dor, pra sempre' que ele úiunfou, é belo, com ele eu po-
eu cochicho para o cartão que eübe o seu nome tendo
deria conviver o resto dos meus dias, mesmo que esses
nas bordas uma pequena moldura dourada igual à minha
dias se somassem em séculos; conüver com ele feito ago-
râ, trazendo para trás o meu prepúcio, examinando a mi-
na porta do meu quârto; quando encontro ali meu nome,
sei que ainda estou vivo e em Bellagio, porque em nenhu_
nha glande, àlhando no espelho pros meus olhos, meu
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lá pelos
nàriz, a boca, os dentes que não sabem o que é doer
John Kennedy antes de ele ser John Kennedy;
'rn,rs ou seja' o
muito, muito mesmo; eu já conheço esse meu corpo 40 aqui já era uma fábrica de líderes'
teiro, e nele virá alguém, eu espero, e o fará sentir formando suâs futuras lideran-
[o com que eu já nem contavâ mais tocando nesse ou
irr.a" .rpital americanoBellagio' uma verdadeira incuba-
em
çrs de Washington
nesse aqui agoÍa assim tão branco quânto eu l,;;;; po. "rfr"o tui dar ali, o que fazer' prossigo? oSim'
magro, veias salientes, a franja recuada pâra que â testo renascentistâs' es-
rte. úa àr.olhi olho para os quadros
onde ele devia se
ir"irrá ."- rnoidor,
toda, os olhos, o sorriso sejam beijados e morrâm outra .h"i" d"
"abescos
cena' não' não havia
vez, mals outra e outrâ... Eu me debato agora, corro pelo rrrirar estudando o seu futuro em
que io-
quarto como se numa dança afro, bato com a cabeça ne .,tJrlr.f.i" no pedaço,John era mocinho' dizem
da colina por
parede porque só consigo pensâr em inglês, o que treino
;;;;.á;;;;a quadra dos iardins lá em cima
suado e na corrida'
pra dizer no imaginário para alguém já sai corrido nessa «rnde eu passavâ todo o ú' d" manhã
língua como se o idioma tivesse pressa de chegar para me ajudasse no aprender
f.* qo.'. circulação sangüínea hóspedes desse Cen-
vencer meu português, matar o meu oficio, a minha ocu_ inglês pra convers,t to--o' outros
qação deportar no primeiro vôo de Milão para São quem?' a talcir-
;;"?r.. ela acabou me respondendo'inglês
Paulo, parâ eu descer em Porto Alegre como um gringo ;"1;;- "- plena forma, ela me deu 9 brilhode-dobandeia' idioma
desvalido, sem saber o que fazer de mim numa ãia"á" rÉi, foi elà, foi ela a responsável
pelo
que eu jánão reconheço, não sei meu endereço, não lem_ ""
que ostento como natureza' o idioma que
bro de parente, se perguntam onde fica essa tal rua eu "^' 'ágt"'da foi o antigo hóspede
me fará ser outro, um lídei como o
nada entendo, se sou eu â perguntar alguma coisa é a ou_ desse quarto, vou levar um tiro
bem nâ nuca sem esposa
trâ pessoâ a me olhar sem dar rumo âo pensamento, o in_ miolos e os erguer acima das na-
glês é a minha língua de repente, não poderei sobreviver
;;;Gt" segurar meusLovell, o airoso som das taças de
ià"r, "., briido com só encosto a
com meu gasto português já esquecido, abro as janelas, .hrrrrprarh" se tocando, sim, brindamos'
gota' continuarei na
penso o que faze4 se me jogo no di Como, se volto cor_ borda da taça nos lábios, não bebo
rendo pro Brasil, até que vejo que vem vindo o escritor das glórias da Po-
minha âscese para desfrutar mais tarde
o mesmo quâr-
de Chicago, o tal do Lovell que esporrou diante do meu tência, não sou mais brasileiro, freqüento
ainda sou
inglês em risre, âgora ele volta da aldeia de Bellagio, olha to de Kennedy na sua iuventude',eu também
,r* *oço, ,"rr'ho o tempo a meu f*ol terei meus
pra cima, pergunta se não quero tomar umas e outrâs livros
todos os
com ele no seu quarto, não penso duas vezes e já estou qoriq.r.r liwaria dá Hemisfério Norte em
sentado numa das poltronas do âposento que abrigou "-
idiomas, mas o aroma do champanhe
me dá uma caga-
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nuas; posâvam pâra umâ fotógrafa lésbica que conheci na que nelas sempre cabe mais do que o previsto, desde que
aldeia de Bellagio, ourra chamada Cosima, que mosffou não se saiba de que berço vieram, se nâsceram de enco-
vários ensaios fotográficos de mulheres nuas pâra mim menda ou de parto fortuito: basta que se aceite o fato de
num bar chamado La Divina Commedia, orn bar dividi_ a canção ter sido roubada de seu silêncio, ela retira sua
do, em seu pequeno espaço, nas três estações do poeta; belezajustamente desse furto, talvez não haja mais nada
nos encontrávamos justamente no purgâtório _ onde a lembrar do primeiro murmúrio de onde foi se extrain-
mais apropriado seria para nós dois?, pois ambos vivía_ do a sua singeleza, essa dona poesia que talvez nos acom-
mos procurando alguém que nos desse a razão para es_ panhe muito além da sepultura, por que não?, pergun-
tancâr a compulsão por praticamente todos os outros tou-me uma vez t fotógrúa lésbica, a loira Cosima, por
corpos iguais âo nosso que não, hein?, me diz por quê?, ela insistia desenhando
- nosalguém que esperávamos
esse
âcontecer e assim de súbito conduzisse ao pomar da com o dedo pelo ar umâ linha imaginária que eu acom-
cama, um ouúo alguém do mesmo gênero, é certo, pois panhava enquanto sentiâ um formigamento pelo meu
essa adição do mesmo nos inspirava mais a pele, ,ràrm Lairo-rrentre, como se me libertasse, enfim, da minha
fonte arcaica de afeição, desde o dia longínqro .- qo" própria forma. Entrei no quarto, incontinenti liguei o rá-
tocamos nosso púbis pela primeira vez sem a intenção de dio como sempre, nâ mesma RAI em que discutiam tân-
usá-lo para mijar, quando o gozo que âté ali não viera em tos assuntos culturais, políticos, e que às vezes também
plenitude nos arrebatou justo da nossa própria forma trazia música Schubert, Nino Rota, Jobim, Elis e tan-
parâ outra idêntica; erâ nesse campo que eu jogaria e Co_ -
tos outros que â torto e a direito davam o espâço que de-
sima também, algo que âté ali só podíamos imaginar no veria ser só deles para tâgarelas recitarem em italiano
ptazeÍ subentendido nos vértices púberes do sono. Sei suas bobagens âcerca da vida dos tais músicos e outros,
que âo pâssar pelo tal quârto notei que era aniversário de outros mais, mais outros sempre há um mâestro por
uma delas, pois vinha dali a canção ,,Lâs mafranitas,,, uma -
perto, uma cântora lírica e não sei mais quem para dis-
canção de aniversário em alguns países do México pra Lrrrrr sobre a biografia e detalhes da obra daqueles que
baixo
- sim, eles despertam o aniversariante com eisa
música, tarnbém no Dia das Mães, no dia do santo ono_
se âpresentam pâra oferecer tão-só a chispa pâra o prosai-
co palheiro! Cavalos relinchando sob relâmpagos, Úo-
mástico, contou-me uma venezuelana artista plástica que vões continentais, só isso calaria a voz que tergiversa em
esteve na Fundação por um relâmpago: tais versos podàm cima dessa cantâta de Bach onde me aquieto e adormeço'
ser cantados pâra a mãe que em sua data é acordada pe_ Acordo. Sento. O que fazet? Dessa vez tocâvam uma mú-
los filhos com essâs insinuações poéticas tão segredaàas sica hindu; saí da camâ, sentei no tapete e pus-me em
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eles cheiram à fuga, hindus a,goÍà chegam, são todos fu- aproveitava que não erâ em português e descansava da se-
gitivos?, penso eu, o que aconteceu no mundo nesse tem- mântica, como costumava fazer nas refeições do palácio
pô em que vivi na Fundação americanâ sem TV disponí- antes de ser inundado pelo inglês. Melhor que eu abra os
vel, sem procurar saber das circunstâncias momentâneas olhos, depressa, que procure saber um pouco de cada ci-
do resto do planeta, o que houve que não pâram de che- dadão em volta, sim, ligeiro e sem receio porque a vida
gâr aos montes esses peregrinos do além-fronteiras? sempre está com pressa, essa é a sina, correr atrás do tem-
Ouço uma aeromoça da American Airlines comentando po, tentar fazer mais e mais laços, porque do contrário
com outra que essa gente se dirige a Porto Alegre, no volto a Porto Negre e vou morrer sozinho com meu in-
Brasil, que lhes dará asilo, sim, é fato: compro um jornal glês saindo aos borbotões inutilmente; ninguém virá com
inglês, é isso mesmo, levas de migrações, "depois do de- tradutor em minha casa, mesmo que eu esteja no meu lei-
sastre"(?), rumo â Porto Alegre, "extremo sul do Brasil,,, to de morte; e depois, de que adianta dormir em minha
cidade que costuma sediar o Fórum Social Mundial e que cama se quando acordo não tenho ninguém pra quem di-
passará a ouvir mais e mais línguas: afegãos, palestinos, zer bom-dia, até amanhã talvez? Armo um sorriso pàra a
hindus, africanos darão novo molho à algaravia das mi- menininha afegã ou avizinhada, ela não responde, eles
nhas velhas artérias de arrabalde, tentarão quem sabe no são sérios, não digo sérios, mas üvem no semblante essâ
início abocanhar o sustento com seus cânticos de origem tensão da mudança de país; serei um guia para ela, um pai
pela rua da Praia, Borges de Medeiros, Largo Glênio pe- se ela não o tivet ou pelo menos um tio mais velho, car-
res. Conseguirão? Por que Porto Alegre e não uma me- regado de sabedoria e que lhe dirá coisas como pode iq
trópole de um país rico?, pergunto aos meus botões e cuidado, não exageral A menininha não responde; como
faço que adormeço à espera da chamada paÍa o vôo. E não conseguir ler o pensâmento de uma criança tão novi-
por que tânto adormeço ou faço de conta que? É ú.io o, nha?, ela nem ao menos me olha como todas as crianças
modo de fugir das circunstâncias? Espero aqui fugir do que pegam a te olhar quando começas na ruâ ou no ôni-
quê? De uma reviravolta, do desconcerto das nações que bus com micagens; eu sorrio, boto a língua, faço um ba-
eu perdi nos meus cochilos no quarto de Bellagio? Ah, foi lão com as bochechas, não sei o que mais, não adianta, ela
o sertão que âgora virou mar, foi isso? Dói-me a cabeça. não voltou a me olhar, encostou o rosto na saia longa da
Aperto-a, âperto-a como se quisesse esmigalhá-la. Os mãe e fica ali escondida pârâ o resto, não quer saber de
acontecimentos me ultrapassaram de forma incalculável nada, de ninguém, como se reclusa em sua grutâ, no chei-
1á na Villa Solti. Quando ouvia os tagarelas italianos nos
ro de sua mãe, na sua verdade inteira, sem compromisso
intervalos entre as músicas discutindo o sexo das escalas, com ninguém de fora. Eu seria seu tutor se ela quisesse;
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em Porto Alegre precisará da minha ajuda, ela é que não voltar pra casâ é o melhor da vida; aí vejo que mancada
sabe; sei onde comprâr âs mais belas frutas no Mercado dei falando isso à mulher asilada, digo sem querer que ela
do centro da cidade, aquelas com o preço mais em conta; não pense muito, que vá fazendo sua vida sem olhar mui-
onde será que irão alojá-los, na Vila do IApI, em Ca- to para atrás tchau, tchau, eu vou embora, vou prâ
choeirinha, na Cavalhada, na tJsina do Gasômetro, onde, -
casa, que hoje ainda tenho muito o que escrever, preciso
hein? Mas a criança não quer saber de mim nem nada, aproveitar a minha língua portuguesa, que ela voltou pra
aqueles blocos humanos em minha volta parecem remer mim, a danada, é fato, já a domino de novo, só sei falar
os estrangeiros, e no entanto é para uma terra estranha por ela tudo o que me vem à mente, o inglês já está fa-
que eles estão se dirigindo, justo a minha, onde nasci, me lhando novamente, ontem mesmo eu perguntei alguma
criei, vivo sozinho. Se eu fosse üsitá-la todos os domin- coisa ao dicionário, uma palawa me escâpàva) era bonita
gos à tardinha, essa menina teria um novo amigo que pe- t*ttful de confiante, passava a tê-la de novo, confian-
garia o ônibus no centro da cidade, desceria na parada - em quê, em quem?, eu já nem sei... Em tudo, ora!
çâ
próxima à casa dela, atravessaria a várzeaonde garotos jo_ Acordei com a chamada final para o vôo. Entregue o car-
gam bola com enormes palawões, bateria palmas ao che- tão de embarque à moça ruiva, corri sozinho pelo tubo
gar à cerca de sua casa, não há cão pra me assustar, venho que leva às aeronaves, ah!, lá dentro dava a impressão de
com â notícia de que consegui vag pàÍa a criança numâ que eu estava num país árabe ou assemelhadol sentei e,
escola pública bem perto, a dez minutos desse endereço, pasmem, ao lado da bambina que tinha me chamado a
amanhã virei buscá-las, ela e sua mãe que âpresentarei, à atenção na sala de embarque. Ficaria um tempo fazendo
professora, umâ anrigâ amiga minha de colégio, quero que não a tinha visto, tudo bem, até que ela estivesse com
ver os olhos da menina, ela olhará uma última uu p^r^ jeito de aquiescer âo meu sorriso e o respondesse com um
mãe antes de entrar na sala cheia de tintas pra pintar? Os^ outro, já desarmada, agorà por estar no âr, flutuando nos
olhos arregalados, temerosos, a professora alisando seu céus desse planeta, sem dever mais sua clausura nem para
cabelo para deixá-la confiante, a mãe me agradece mistu- os olhos da mãe. Eu estava num avião de refugiados, mâs
rando português com sua língua meio exasperada, o dia é para mim pareciam mais peregrinos que encontrariam
quente, azul, eu me despeço da mulher toda de preto, os em Porto Alegre a teÍÍà prometida, o novo reino de Alá
cabelos já soltos: digo que a guriazinha está bem encami- ou de qualquer profeta menor, de alguma tribo. Ao de-
nhada àgpr\ será uma brasileira como âs outras, falará, o sembarcarmos em São Paulo, ü que a menininhâ, que nâ
português tão bem quanto eu que já esqueci o inglês que verdade nem no avião quis saber de mim, ia agora no colo
me tomara inteiro; digo-lhe que tenho o que festeja! que da mãe a cabeça curvada no ombro da mulher de len-
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ço na câbeça. Passamos pela alfândegâ, polícia federal, torrão natal, isso acontece nesses dias, um cidadão qual-
por essâ triagem que hoje há em todo o canto, a toda
quer se impregna de uma forma tão fulminante da língua
hora, em qualquer lugaq ,,sorria, sorria, você está sendo
de outro povo, que tal marco traumático faz com que es-
filmado", esse cinismo idiota que ostentâm no Brasil den_
queçâ completamente a sua língua de nascença. Vj numas
tro de qualquer lavanderia de terceira classe, sei lá, sei que
re\ristas americanas, se bem me lembro, o depoimento de
sentei na sala de embarqu e parà porto Alegre; senti
qrl a vários cidadãos que já não falavam a língua marerna que
população imigrante estava mais falante, menos
tensa, ao usavâm com exclusividade até a idade adulta súbito,
menos parecia ser assim, enfim estâvâm em terra firme - o apa-
geralmente o inglês lhes arrombava inteiramente
no país para onde vieram pra fica5 ah, e tudo atrasou
de_ relho fonético, como se alguém fizesse neles a conversão
mais, porque demoraram muito, muito mesmo vâscu_
parâ outro registro, mais útil, mais capaz parâ que com
lhando a bagagem dessa população de pereg"rinos, a mi_
ele se manuseie tudo, de tudo se saia bem, sem confusão,
nha foi num instante, vi que na deles o, fir"r], remexiam,
mal-entendidos. A primeira coisa que frzno aeroporto de
apalpavam, fisionomias solenizadas, verdadeiro, .rrrrr_
Porto Alegre foi deixar a bagagem num guarda-volumes
trões à procura do tesouro terrorista cuja descoberta
lhes e me dirigir ao balcão de informações e perguntar onde
daria uma comissão polpuda da CIA ou do raio que
o podia encontrar na cidade algum curso de português para
partâ que soubesse suborná-los, em troca sempre
dás se_ esffangeiros. A moça me deu um cartão com o telefone
gredos e pecados no incessante trânsito ,obr. a Terra;
eu do tal curso; complementando a informação num inglês
qre sentei, preciso me sentar um pouco a cadameia
hora, sofrível, disse que erâ no centro da cidade. perguntou em
que eu ansioso esteja a caminho de uma terrâ sânta
como que hotel eu ficaria, respondi no Plaza São Raphael, o
erâ o caso agorâ, mesmo assim eu precisava sentâr por
primeiro que me ocorreu; ah, é perto, ela disse, bem per-
um tempo, e, olhando o imediato a mim, âpenas pensâr
to do curso de português para estrângeiros. Voltei-me
se a coisa era como eu via de fato, se não estava
vendo pâra um outro lado e uma faísca saltou de mim: wake up,
tudo deformado ou do avesso, embora ali parecesse que
desperta, meu râpaz, enfrenta as coisas como são e vá em
não, que estava definitivamente na estrada a"rt",
qr" rrão frente, vá pra sua casâ se conseguir enconúá-la; se não, vá
haüa o que temel que umâ certa pazque se procura não
para um hotelzinho barato na Voluntários, não importa o
morde, é mansa, já chegou; .r.rr r- Lrasileiro a pensâr
endereço, importa, sim, que comeces a rever cada canto
em inglês o tempo todo, eu era outro em mim, naá
tinha da cidade, tentando nesse método recuperar o português
importância quando chegasse a porto Alegre iria para
um curso de -português para estrangeiros no meu próprio
que com o calor úmido q:ue faz deve estar escorrendo pe-
las paredes, muros, a sua língua-mãe padece o ,.,
"o-
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extravio, vai em frente, não pensa tanto, pegâ um táxi, lhe dadeira saudade, apenas de um e outro camarada, muito
devolveram o dinheiro que você desembolsou parâ as pouco parâ quem não contâ com mais de uma vida, cer-
pâssagens, ida e volta, ainda é uma grana razoável prâ te to? O táxi parou em frente ao prédio que logo reconhe-
manter por um, dois meses pelo menos, vai, vai, sim, ci como sendo o meu, de fato, é aqui, falei estupefato de
pega o primeiro táxi, quem sabe ao sentar no carro e in- encontrar novamente a minha casa, menos mal, pensei,
dicar o rumo pro motorista a língua de Drummond lhe falta agora recuperar meu português, não perdem por es-
volte à cabeça, assim, num verdadeiro blow ap, tão de re- perâr, vão ver. O zelador me cumprimenta. Eu digo ái,
pente, que você se reconverterá de um golpe à sua reali- bello, ele me ajuda quieto com âs malas, quinto andar; no
dade, ao dia-a-dia como gostas, tardes de caminhar, ir aos mais, sorrisos de mutismo entre nós dois, como se reco-
mesmos cafés, fazer as mesmas coisas. É irro mesmo que nhecêssemos, sem explicação, que a hora erâ grave para
eu quero?, perguntei, e isso ainda é possível?, com esses mais... Forço a primeira chave que encontro no meu bol-
retirantes de roupas escurâs fazendo a sua inóspita alga- sol é com ela, sim, que abro e entro enfim no meu apar-
ravia para reordenar seu caos no mundo, dessa vez aqui tamento. Agradeço ao zelador, digo grazie, o mesmo ter-
em Porto Alegre, nessâ novâ terrâ santa até parece! mo com que eu agradecia ou apenâs saudava os garçons,
-
Entrei no táxi, sabia agora que morava na área central, na os mordomos da "Catedral" da Fundação em Bellagio.
Fernando Machado, não sei há quanto tempo; se é que Deixo as malas no corredor que leva à sala, avanço, entro
não me enganava eu saíra muito antes do horário do vôo de verdade. De fato tem alguém sentado em minha pol-
que me levaria a São Paulo e depois Milão, Bellagio, que- trona um homem, eu não o reconheço... Mas preciso?,
ria conhecer o aeroporto novo da cidade, despachar as -
preciso reconhecê-lo ou apenas aceitá-lo, tentar dar cur-
minhas coisas no cbeck-in com tempo de vagar por tudo so ao encontro, eu aqui, ele a alguns passos, quem é?,
ali, pensando que talvez, confesso, eu não voltaria mais a quem poderia ser senão o próprio Léo, de quem pensâvâ
vê-lo, esse âeroporto não voltaria nunca mais à minha ter me separado, é ele, sim, é o cara que eu pensava ter
-
cidade. IJm certo sentimento apocalíptico tentava me in- enterrado para sempre como parceiro e tal, é ele que aqui
cendiar de sopetão às vezes, era um gancho rasgando a está agora a me esperar assim e desde sempre, o homem
minha pele do pescoço ao púbis, assim mesmo, bem de que se levanta da poltrona a me dizer alguma coisa numa
repente, e depois então a calmaria me inundava, como se língua estrangeira que desconheço, ou não, é o portu-
eu mudasse de planeta e tivesse de conviver apenas com guês sim que sai de sua boca e que eu, talvez perfidamen-
pedras banhadas pela luz fria da lua, só eu de humano, te pâra ele, ainda não consigo compreender nem nada...
olhando o azul do globo de Gagarin sem nenhuma ver- Ele me abraça, eu sinto o abraço não como de nova aco-
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recomeçârei a trabalhar no meu romance, onde eu estâvâ zer o pai da menina agorà âpenâs num sorriso. Olho-o e
mesmo?, me pergunto, ah, estâva ainda no bosque de es- me pergunto seriamente se ainda é o meu cara. Em se-
quilos, bem me lembro agoÍà, reencontrâva a mulher gundos percebo que ele traduziu meu pensâmento. Por
brasileira, Maria, na nâtureza do campus da Universidade alguma razão qualqueq vejo que â parceria ainda existe,
da Califórnia em Berkeley: não sabíamos exatâmente o que é bom não relutar, mesmo que não se saiba até quân-
que fazer, como se tivéssemos esquecid o o script, bem as- do... Agora tem essa menina aqui, é uma sobremesa.
sim como agora no meu quarto em Porto Alegre, não sei Brinca de desabotoar minha camisa, parece querer dizer
o que pode âcontecer com Sarita quando a luz voltar e ela que eu venha púa a cama junto dela para brincar de bo-
olhar com nitidez os dois homens que esperam , ela talvez tar o trâvesseiro por dentro da camisa, que ela volta a
ainda pense que quem a abraça é o pai, que há outro ho- abotoar pârâ que a minha pança fique assim enorme; eu
mem ali, por certo, mas este está de pé, um amigo do pai digo que ela espere um pouco, que já volto; vejo que Léo
bem pode ser; o que ela ainda não pode comp.eendei e saiu do quârto, desabotôo de novo a camisa, tiro o traves-
que o pai por trás me alisa a cabeça e um estrânho alisa seiro, ela reclama, digo que me espere, não demoro nada.
os cabelos dela; agora só se ouvem os úovões, um novo Léo está na cozinha abrindo o forno, fala que tem um
raio por perto, estremecemos os três juntos... ,,Good wis- frango pro jantar. Me vê de camisa aberta, vem me lam-
hes in an eady morning", era o que me contavâ umâ vene-
ber num dos mamilos, desce a língua até o umbigo, digo
zuelana, volátil hóspede de Bellagio, sobre o significado que a menina pode vir atrás de mim, que prometi voltar
primeiro de "Las maffanitas" que eu cantei todinha para num instante para brincar com ela, ele se afasta, fala que
a menina abraçada a mim agoÍa... Volta a luz. euem é?, continua trabalhando na mesmâ Íarmâcia, que se prepa-
pergunta Sarita, pârece que sem trâuma; eu digo em meu Ía par^ o vestibular, fará justamente o curso de farmá-
ainda menos que titubeante português que eu sou eu, um cia... Quem é esse cara que está parecendo um garoto
amigo, conto que vim no avião com uma menina que se imberbe, àgoÍ^ pàrtfuâ pârâ o vestibular, nem sei se não
parecia muito, muito com ela, os mesmos cabelos more- me enganei de apartamento, de homem, de vida. Acho
nos e lisos, os mesmos olhos castanhos quase também ne- que não, percebo olhando minhas mãos claras, dedos
gros, sim, você puxou a seu pai, é a cara dele, veja só esse longos, afirmativos, como se exigissem que eu ficasse
nariz aqui, não é o dele em miniatura? Abraço-a, dou-lhe aqui, não fosse emborài erà ele mesmo que você buscava;
um beijo no nariz, ela volta a deitar de tanto riq eu rio, ouçâ essa voz em que ele conta das traquinagens da me-
Léo ri, temos muito pela frente, é bom rir, mas não de- nina, da creche onde ela passa boa parte dos dias, das
mais, porque senão nos afogamos nâs risadas, parece di- cantigas que aprende não é a mesma voz que você dei-
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chuteiras de uma seleção divina, para dar-me o clima nada disso. O certo é que o meu dia iá estâ bem remexi-
onde pudesse me fazer de atleta imbatível, o único! fu- do com os impulsos de Sarita, já começa com esse cheiro
sim, por uns segundos, musculâva-me de dentro para de fruta descascada, mingau, meleca, ranho... Mesmo as-
fora, isso que os psicólogos dizem que se faz até umâ cer- sim eu sempre quero, eu posso, eu sinto, eu vejo todo o
ta idade e que eu desminto, não sou mais tão moço, mas tempo, mas nesse instante não posso deixar de largar a
a cada dia me surpreendo mais com o que não realçava escrita do meu liwo em curso, ir para â rua' nem sei por
em mim, e isso me desmente também, ah, me desmente, quê ou para quê; eu saio, encontro um vizinho na Portâ-
sim, agora, pois ainda há pouco me vi a elogiar o mínimo, ria do prédio, a tentação que tenho é a de ignorá-lo, não
menos talvez, um quase nada. Então bato no peito por the responder o cumprimento, me confundir com as coi-
três vezes, reconheço: preciso trâvar uma guerra ainda sâs, ser apenas mais uma entre todas, não dar um passo
sem nome, quero ainda muito mais que tudo vem Sa- preciso, não ser visto, apenas flutuar num espaço que o
- à mesa
rita, pede-me parâ eu descascar uma laranja,sento olho humano não alcança. No entanto sorrio paru o vtzi-
da cozinha, me dou por satisfeito por cumprir essa târe- nho, não me darei trégua, respondo ao cumprimento, sou
fa, num relâmpago não quero mais a volúpia de sair para um cara medianamente simpático, não mais do que me-
âs ruas à procura do que se nega ao menor laivo de bus-
dianamente para poder seguir toda a extensão do périplo
ca, estou aqui, dando gomo por gomo a Sarita, ela rece- sem maiores acidentes, aberto mas não muito, apenas o
be os pedaços da fruta como se sorrisse, é pequena essa suficiente pâra o encontro sem seqüelâs entre o que me
menina, toda morena, mesmo tendo a mãe norueguesâ, vem à mente e aquilo que me exibem como sendo o na-
puxou toda ao pai, e isso me faz vê-la ainda mais do que tural de cada instante. Eu tomo o que vejo qual em colhe*
uma filha, é como se fosse o próprio Léo pequenininho e radas de uma sopa, agota sou eu a criança indefesa, al-
eu o ajudasse na manutenção da vida: aquela vida ali ain- guém me passâ as ondas nutritivas sem que eu o entenda
da não se daria em continuidade apenas com seus pró- nem ao menos o veja sabe o que mais?, chuto uma lata
prios meios. Tirdo se arruinaria antes do tempo não fos- -
só de raiva da balela com que explicam tudo, não impor-
se aquela minha mão a descascar uma laranja, doá-la em ta, importa o trânsito entre a memória se formando e o
pequeninos gomos parà a mastigação espreguiçada da que está prestes a ocorrer ali na bucha, parece que vivo
criança que acorda e que só âos poucos retomâ o mexe- nesse hiato, ao ocorrer a coisa ainda não a tenho o sufi-
mexe de seu dia. Eu aqui na cozinha já sozinho, Sarita na ciente pâra socorrer-me em suâ identidade, e depois é
creche, não tenho ceÍteza de nada do que penso, tudo como se eu nuncâ pegâsse o tempo â tempo, sempre é tar-
pode ser assim de fato, ou mais ou menos por aí, ou nada, de para tanto, ele já mergulhou nas águas da memória, e
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aquilo que o complementará depois já estou vivendo sem briagando até as águas do Guaíba: vejo as crianças no seu
saber, sempre achando que errei de capítulo, que estou ,rorerio, me afasto, volto para a cadeira do engraxate, sua
joelhos
fora de hora. Vou pâra o café no Shopping Rua da Praia, cabeça, seus cabelos ondulados roçam entre meus
entre esses amigos com quem nunca falei tem um muito pelo esforço curvado para conseguir um resultado mais
especial, me pisca o olho todo dia, acho que cumprimen- ão qr" justo pela minha gorieta, bem mais até, é puro
ta o escritor em mim, não sei, sei que olha como se me brilho o meu sapâto, com ele serei recebido nos salões da
acariciasse, é isso, âgora sei que é isso, que nele está a for- corte novâmente, lá em Bellagio,lâ, para lá levarei esse
engralrate, sua mulher, seus filhos, e com eles correrei
pe-
ça toda de um só segundo, fecho os olhos, entro por sua
boca como quis fazer com Edwin, o músico americano, los-jardins da "Catedral" da Fundação americana' Ah' o
sinto que ele tem uma circulação pausada, ainda abre um seu trabalho está pronto, ele me olha e eu digo sim, é
sorriso para mim ântes que eu desapareça dentro dele e isso, está perfeito, ele que me agradece, é um cavalheiro'
ele saiba que não há remédio, estamos como se fadados a um outrocavalheiro que me aparece no caminho, àgota
irmos ao café no mesmo instante diariamente, é isso que já sáo tantos, tantos que já vivendo a harmonia das esfe-
nos amplia o horizonte e é tão pouco, ele sabe enfim, e eu ,rrt or", peido ao descer da cadeira de trabalho do tal
também, que hoje é o meu dia de desaparecer e me fun- moço, mas é tal o rebuliço urbano em volta que ninguém
dir a ele, amanhã será o moümento oposto, ele virá e en- ouve o câvo som dos meus eternos gases' Sei que agora
trará em mim por não mais do que um átimo as xíca- tenho de buscar Sarita na creche, vou depressâ antes que
ras já vazias, ele abaixa a cabeça um pouco, as - mãos no me atrase, corro num certo ponto do caminho, assobio
balcão do café, deixa que eu saia sem fazer barulho, bem junto para que ninguém pense que corro fugindo da po-
discreto continuo a caminhaE pego a Praça da Alfândega, ii.i, oo tenianto salvar alguém de uma tragédia, âgora eu
é de manhã, é de madrugada, é de manhã como dizia o canto, canto a correr pela cidade inteira, ela é só minha'
jovem Caetano no curso de MPB que eu dera em Berke- minha e de Sarita, de Léo, do amigo do café, do engraxa-
ley, Bethânia é quem cantâva, bem me lembro, é de ma- te, das mulheres que não tive, ela é de todos, por isso cor-
nhã, não mais de madrugada e sim manhã; sento na ca- ro mais e mais sem contâ, preciso pegâr essa menina an-
deira para engraxar os sapatos, é ainda o meu amigo que tes que ela dê pela minha falta, seria iniusto fazer isso
os engraxâ, mora perto da praia do Lami lá no Guaíba, no .o- Léo está tranqüilo ao balcão de sua farmácia' to-
"1r,
dos já se esfumam tamanho o gozo, não há mais nada'
verão seus filhos enúam pelas águas enfim limpas depois só
de décadas como asilo fecal, suas crianças iam loucas pe- Sarita ainda me espera no pátio da creche bem sozinha'
las águas nesse calor fora de época, ele contava me em- bem como queria vê-la agora. E de fato lá está ela, sozi-
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nha no páto, corro como se fosse salvá-la da queda nurq que agora a devolúa ao solo pedregoso do pátio da cre-
abismo, âgarro-a com força, puxo-a com rapidez ao colo, che, que se afastava um pouco para olhá-la na distância,
abraço-a, canto resfolegante a canção que ela adora, ela afogueada, é claro, pelos meus bruscos moümentos...
"Quisiera ser solecito/ Para entrar pnr ta aentaaa/ Y ilarte los Mais tarde nesse dia, nas imediações de seu sono da noi-
buenos dias/ Ácostadito en t'u can a". Sarita parece não estrê. te, ela pediu na janta que â puséssemos para dormir no
nhar o meu exagero físico, talvez porque se sinta abriga. sofá da sala, que os dois fôssemos dormir na câma de ca-
da em tal entusiasmo e mais, talvez se divirta co[r os ÍIlor sal do quarto; dizia que Léo roncava muito, quase â es-
vimentos dessa solicitude veemente, como se estives§q magava às vezes, rolando com seu sono pesado
colada a um brinquedo, uma gangorrâ, um chicote, mofu
- queria
agora maior liberdade para ela própria rolar, rolar como
tada num cavalo de carrossel em seu sobe-e-desce' é vet\ na grâma, que pudesse dormir naquele bom espaço do
dade, eu a jogavapâra o àt, a aimpatàva, provocava suas ri1 sofá, ouvindo pra adormecer o CD das historinhas; en-
sadas em câscata, aquela euforia era tudo o que nós doil quanto eu e ela estávâmos ainda ali no pátio do colégio,
precisávamos naquele minuto!, depois voltaríamos pa{qg eu a olhando de longe, assim, bem quieto, ainda não po-
casa e seria outro o clima, mais pacíficorLéo, ela e eu efi deria adivinhar sua demanda dessa noite, apenas fui ao te-
volta de uma mesa, a brisa na janela, os dois pais deqSfli lefone público ali pertinho e liguei pra Léo, Léo, vou
menina adivinhando calados que hoje Parecra um hoje aproveitar o início do horário de verão para passear
mais do que adequado para Léo me visitar à noite no soff" um pouco mais com a menina, a gente volta um pouqui-
da sala; jantávamos como que sentindo que as coisas nho mais tarde, não vamos muito longe. Reconto a Sari-
davam bem, a noite poderia ser festiva e ele ficar comi ta uma história: flma menina como tu acaba de chegar
até de manhã, quando Sarita então choramingava pedi!.r aqui em Porto Alegre. Toda moreninha também, mas
do a proteção do pai ou então a minha, nunca se sabi esta vem de longe, bem longe, lá das terras dos desertos,
premiado da manhã, assim jantávâmos, eu dizia, mas camelos, vais conhecêJa hoje. Muita gente de seu larveio
vezes com uma presença a mais, a sombra passageira junto, vieram passar o resto da vida por aqui, porque lá
sinuando que todo aquele quadro poderia expirar a onde eles viviam houve qualquer coisa que os obrigou a
quer hora. Sarita estava agora ali comigo, pois é, mudar pata cá, parece que vulcão, tempestade de fogo,
seu outro pai, nem primeiro nem segundo, mas esse não sei mais, sei que alguns vieram comigo no avião, ou-
tro que deveria lhe passar a impressão de que tudo o tros num navio atulhado de quem precisava fugir. Ah, foi
vinga na üda vem em duplo, pronto!, para recom uma guerra que os trouxe até aqui, foi sim, ag,oÍa lembro.
afalta da mãe ela tinha dois homens de pai, o outro e Todo esse povo está acampado num grande, grande ter-
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reno meio na divisa entre Sapucaia e São Leopoldo,logo aqui o guarda sorriu para a tal moça que dava na altu-
lá, por enquanto em tendas até que possam ajeitr as coi- -
ra do meu bolso, as crianças olhavam como sempre reser-
sâs, terem suas câsas, seus empregos, trabalhos, como eu vadas, os adultos falavam ansiosos diante desse visitante
que escrevo meus liwos, o Léo na sua farmácia. Não é aqui, segurando pela mão essâ criança que parecia uma
distante daqui, verás que não, pegaremos esse trem urba- das tantas que por ali tentavam brincar, perÍnanecer pelo
no, em pouco tempo estâremos lá, queres ir?, ah, ela só menos com algum conforto naquele imaginário comum
quer, quer sim, ver homens e mulheres alguns de vestes que deveria ser ocupado por fantasmas que eu e essa
longas, falando línguas arrevesadas, não, não são ciganos -
menina que trazia pela mão quem sabe nunca saberíamos
como aqueles que viste no liwo que te li a história toda criar: tufão de areia no deserto, solo esfarinhado aqui, pe-
ontem, aquela da menina que é encontrada perdida por dregoso acolá, cabras, tiros de canhões bem sucateados,
uma cigana e parte em caravana a viver de terra em terra, rios secos, bombardeios caindo de aüões possantes
assim, sem parat como se não soubessem morar na mes- tudo fugindo da guerra?, Sarita perguntou assim bem de
-
mâ casa a üda inteira; esse povo que vâmos conhecer es- repente, como se enfim tivesse penetrado com fulminân-
pera um dia encontrâr uma cozinha, quartos, uma sala cia na imagem conflagrada que eu cultivava, feito aper-
como a nossâ onde a chuva não alague, onde o tempero tasse na mão uma semente de história. Da guerra, sempre
part ajanta pode ficar sem fim no mesmo pote guardadi- a mesmâ guerrâ eu sem querer falei, da guerrâ, ela repe-
nho nesse canto sentado ao lado dela no metrô, faço tiu, e espichou olhando pârâ uma poçâ onde se viu num
-
com a mão um gesto âpartado e arredondado, como um espelho se ondulando pelo estardalhaço de vozes e pai-
cantinho onde algo pudesse ficar em pazpor todo o tem- xões em volta. Havia até galinhas ciscando por ali, sei lá
po sem precisar morrer para ali ficar qüetinho. Desce- como ainda vivas e não forrando o estômago das popula-
mos. E, de fato, em folgados passos, não mais que a dois
ções que ali esperavam a hora de terem a Íamília sob um
quilômetros da estação, avistamos o vasto acampâmento. teto, os documentos em dia, crianças na escola, mesmo
Partimos pra procurar essa menina pensando que jamais que tivessem de andar por milhas e mais milhas até che-
a encontraríamos numa multidão assim cerrada; cachor- garem à escola com goteiras, sem entenderem no início
ros latiam não dando para saber se de fome ou festa, fu- nada do que a professora falava... Tüdo em volta era fei-
maça de cozidos talvez, talvez uma queimada para o lixo. to de sons que valiam por si mesmos, a língua nova, ne-
Pedimos a um brigadiano licença pâra entrarmos no nhum fonema tinha serventia para se entender o que as
meio dessa algaravia que precisávamos encontrar umâ imagens do mundo por si só não davam conta de fazer.
criança para poder aprender português com essa moça Apenas ficar olhando em torno sem saber o que a vozfala
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é como deve ser um surdo-mudo, só a inteligência xucra cia de todo o movimento, eu e Sarita estávamos ali como
investigando a imagem, e no mais vivendo apenas parâ verdadeiros voluntários, enffe o cheiro azedo do suor do
estranhar o conteúdo misterioso da boca em movimento. ajuntamento nós avançávamos, sem Cruz Vermelha ne-
Eu caminhava conduzindo Sarita por minha mão esquer- nhuma parâ representar, apenas com umâ vontade quâse
da, no meu lado direito tudo atuava em franca pantomi- obscena de se meter no meio deles de passagem, sempre
ma: diante das pessoas, principalmente das crianças, o de passagem, até púàr quase, quase na borda norte do
que eu dizia com os meus gestos espalhafatosos e a face acampamento. Ela tinha me reconhecido, a menina do
em rebordosa não era muito, nem sei se comunicavâ mes- aeroporto de Milão, a menina que não quisera saber de
mo alguma coisa, eu queria tão-só tentar dar um curso mim colando o rosto na saia da mãe. Ela agora estava di-
benevolente âos nossos pâssos tortuosos enúe crianças, ferente: sim, me olhava, ainda sem que eu pudesse tradu-
cachorros, galinhas, velhos afirmar que a minha zir seu sentimento, certo, mas me olhava muito provavel-
- dura pra ser sonho visita
junto da criança era só um pouco mes- mente porque âgora eu não estava sozinho, trazia ao
mo, não chegava porém a ter nem substância clara, já que encontro dela outra criança, uma menina com o seu tâ-
viúamos em eterno deslocamento, em fortuita expansão manho, a mesma pele, até as feições meio parecidas, ela
por enúe os acampamentos dos sobreviventes; os nossos poderia âgora ter confiança em mim, eu devia ser pai da-
sapatos em barrados queriam dizer que nos movimentá- quela outra ali que lhe sorria... Milagrosamente, Sarita
vamos pelo mesmo terreno que eles e que isso ia passar, descobria por si mesma que erâ aquela a menina sobre a
e etfazia expressões doidivanas que pareciam querer des- qual eu lhe contara, a tal criança fugitiva da guerra junto
bravar a ferro e foice o sentido da nossa aparição no meio a seu povo, atrâvessando mâres, continentes e agora ali,
daquele povo em inquietude, se é que algum sentido con- com os pés no barro da chuva que caíra na noite anterior
cluído havia não, não conseguiam rir com minhas mi- pela cidade e arredores... Soltei a mão de Sarita, deixei-a
-
cagens, nem tampouco se assustar nem nada, eu era com que andasse a caminho da outra. Sarita disse oh, assim
Sarita apenas a convicção de que ainda havia o que seguir mesmo, oh, como se ainda não soubesse falar, virgem de
em alguma direção, nós íamos, Sarita parecia embriagada semântica. É qr. ela descobria naturalmente como ensi-
pelo caminho que ftzíamos entre gente tão diferente e nar umâ língua pârâ um ser estrangeiro isso não se
com jeito reticente de quem não pode fazer o mesmo,
-
aprende, é puro dom, assim oh, OH!, como se estalasse o
pois estavam ali coçando-se, dando banho nas crianças, primeiro sentido da espécie, o espantol, espanto diante
tentando preencher um tempo que não lhes dava nada do outro com o meu corpo, que podia estar aqui onde eu
em troca. Para que compreendessem de novo a eloqüên- estou, e eu naquele espaço preciso que ela ocupa agota,
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Este liwo usa a fonte tipográficaJanson, que por müro tempo
julgou-se ter sido criada pelo holandês AntonJanson em Leipzig,
entre os anos de 1668 e 1687. Posteriormente comprovou-se, contudo, f\
que aJanson foi nabalho do húngaro Nicholas Kis (1650-1702),
discípulo do holandês Dirk Voskens. AJanson é um nítido exemplo da \
influência que exerceu a tipografia holandesa em toda Europa antes do
surgimento dos designs do inglês William Caslon (1692-1766).
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