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BERKELEY EM BEf,I-AGIO

Áinih que não me lenbre, legarei *Yfu:


(Sexta Elegia)

A marada em qae nasci rnc babiu,


'
§ona Elega)
FlrnÍclo CmPnrryrn

*
le não falava inglês. Quando deu seu primeiro pas-
lseio pelo campus de Berkeley, viu não estar motiva-
do. Saberia voltar atrásl Não se arrependeria ao ter de
mendicar
mendigar
..-.9.,-
de novo em seu se" país pãiíIlãTiffimIffi§iilue
de origem? -t''ingtr que
-+*.*.*t,-e'**IF*,_*ff-
não pedia pedindó iéfeições, ou â câsa de veraneto de um
a."iÉa-amr;têiiõ-iiíiié'ffi ôÉãrd'eêiõíêiiffiãôüo-Iiffi"-
,n,[o"r,áJospirügurn-s-"ne§amA;iâlffi üêlããffi êmo
sul do Brasil, o vento passa destelhando e umâ voz no-
turna chama, chama pelo desaparecido infante... E[e não
falavainglês e se perguntava se algum dia arranjaria dis-
posição para aprender mais uma língua além do seu por-
tuguês üciado; com cujas palawas iái nía conseguia dizer
metade do que alcançava âté tempo§ etrás, ântes de ficar
assim meio esquecido depois da queda à porta do banhei-
ro, sem o tempo de gritar por Léo, o homern â quem cos-
tumava chamar de namorado mas que lhe era bem mais,
um parceiro de cuja ardência ainda lhe vinham certos lai-
Berkeley em Bellagio João Gilberto Noll

que instável'
vos: um fluido indeciso, de repente inundando-o todo, quele ponto parâ um rito de retiro, mesmo
junto à
sumindo de repente, sempre escorregando de sua própria em constante ameaçâ de invasores' Quando caiu
e sua
mão que pretendia por vezes segui-lo, tocá-lo, fechá-lo porta do banheiro, Léo socorreu-o num instante
cln'pus
entre os dedos prendê-lo na boca... E ele então o sor- força era tanm que ele, que caminhavaagora pelo
via novamente,- recomeçava o jogo, agora num bosque da üniversidade da Califórnia, em Berkeley, preferiu pa-
ocorre-
quâse impermeável àquela rarde com mais azul do que râr pâra teÍ certeza de que nenhum mal-estar lhe
estivesse numa terrâ estranha sem falar a
um ensimesmado podia suportar... Esse homem cami- ,i,
"rqrrrr,to uma
nhava pelo campas da Universidade, sim, em Berkeley, língua do lugar. Claro, sabia pedir um sanduíche'
alunos de
naquela Califórnia gelada muito embora ensolarada e, .oãr, ,lgo ,rri-, mâs no mais falava com seus
por um segundo, como quem acorda, lhe acendeu a- dú- cultura brasileira em português, ia a reuniões
na casa de
do seu por-
vida se estâvâ ali chegando do Brasil, ou, ao contrário, se alguns deles, que estavam sempre â tirâr fotos
alu-
já estava voltando ao Sul do planeta, para aquela falta de te ainda convicto, rodeado pelos gatos e gâtâs seus
Todos que-
trabalho ou de aceno de qualquer coisa que lhe restiruís- nos, gârotada american a, asiática, mexicana"'
e vinham
se a prática do convívio em volta de uma refeição, sob um riam saber sempre mais a respeito de Caetano'
autógrafos de ca-
endereço seguro esse país, esse país, pois é, deixa de fins de semana em Los Angeles com
-«2,11,
marim do baiano, que acreditava ter-me lido em
pra lá, deixa pra lá que agora vou mijar", ruminou nâ sua algum
Ihe ocorria' sim' vâ-
entoação secretâ, aquela sim que nunca soubera levar aos livro do qual não lembrava o nome:
relatar pelos
Iábios por timidez ou covardia... Em vez de mijar, desa- gâmente, uma cena que um aluno tentava
uma aula' num es-
pertou o cinto, assim, sem nenhuma necessidade que não ãor..dor", do Dwinelle Hall ao fim de
toda em
fosse a de deixar alguma coisa andar. E se lhe rriesse uma trepitoso português, por onde se via zua língua
risada que pudesse por si só responder a tudo o que ele írrd-r, carridadàs, pequenas erosões' Ele caminhâvâ en-
que não
não sabia perguntâr (e que parecia prendê-lo no mesmo tre esquilos pelo campus de Berkeley e pensou
mesmo erâ
lugar)? Mas, não, agorâ se coçava todo, na certa esconju- adiantava se lembrar de quase nada; precisâvâ
rando uma espécie de dívida que nunca quis largá-lo ir à ação, falar inglês, testem'nhâr nessa língua a todos
porrâ, ele dizia, porra, mas porra pâra o quê ou quem? - qrr" p.td"rrem se i=rra.,t"" por sua vida' Quase
ninguém
terra, era verdade, não podia negar mas com
Falava com o Brasil ou com aquela porção sombria de na- nrqo.l, -
idiomáticas
trreza a lhe servir então como uma espécie de refiigio o pà.rrdo dos verbos irregulares e expressões
histórias'
contra a língua inglesa? Por ali, poucos estudantes passâ- nás lábios, teria mais chances de protagonizar
com um
vâm, a não ser um ou outro, talvez à procura também da- optâr por viver definitivamente naquele país

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João Gilberto Noll

bom salário de professor de cultura


brasileira... Aposen_ suportar? Ele precisava mesmo era correr auás do que o
tado no futuro iria duas, t ê,
,"r., _ Brasil a cada ano, manteria inteiro, ou então que caísse novamente à porta
traria de lá um garoro bronzeado
de Copacabr"r, ;;;;; do banheiro, útima de um aneurisma nada comprovado,
existiriam garotos bronzeados
de Copa"abana prontos e sem ter Léo para ajudá-lo, levá-lo âté o pronto-socorro
para ir aos States com um homem
màuro; mais próximo e se encârregar dele pelo resto de umâ re-
poderia ür a ser seu secretário "rr"'grrãã
bilíngüe, salário que faria \eção jâ, a ponto de apagar. De fato, aquela assistência de
o rapaz esquecer a pobreza; ere já
sãria então ú
seria sim seu âssessor, seu amante, -;,
santo, se não fosse
Léo ao seu corpo temporariamente combalido era uma
aquele que o mataria ao final, desdobrada despedida. Depois, aqueles dois não se tocâ-
d,rrrrt. o sono, sem que riam mais. De uma noite para outa, um não decifraria
ele jamais rriesse a saber _ rígido,
frio como aquela pe_ mais os sinais pela pele do outro, seriam corpos distântes,
dra à beira do riacho qr. .oíi,
_rrro pelo bosque de memórias mútuas cade- vez mais nebulosas; um belo dia
Berkeley, âpenas mais ,rma pr.r.rrç,
,atural entre tantâs só duas plumas nâ âragem e, num golpe, aproveitando
pareciam a tudo ignorar. A parte
Jl,.llT _repouso,
vel oa iloresta, no errtantorvagavasem origem
inüsí_ para sumir num pé-de-vento... Enquanto andava pelo
ou desti_ carTrpus apareceu-lhe Mana, â moçâ brasileira com quem
no: ele via a poeira dentro d. .i,
facho ae sol enffe âs ár_ vivera um caso logo ao chegar à Califórnia. IJma ântro-
a agitação ali,não parecia ter
desfecho, ,ão ." póloga que começâvâ um curso sobre o que os amigos
âssentavâ em nada, em Iunática
ebulição. E esse .rrr, ,_ hispano-americanos chamavam de Escuela de las Ameri-
hognem, se cansavâ antes da hora?
A frimeira üsta nada cas, um instituto norte-americano, algo assim, se não me
et7 próprio parecia
-r:::^1.
vrera ]yar,
parâ um país do qual não falava "rirgnrdo
desde que engâno, no estado da Geórgia, formando militares e di-
, úrg.rr, mante;d; tadores parâ â América Latina, como, por exemplo, o ar-
uma distância gentil de seus alunos...
Mrr, orr, também gentino Gualtieri... Maria estava mâgrâ, meias negras lhe
eles com o inglês disponível .
*ao qrr. todos pareciam subiam pelas pernas que sempre foram belas mâs, ago-
possuir em volta, ninguém no fundo
â^r, de
-
râ, nesses tempos em que os dois pareciam não saber o
estar em gozo com a vida, aquela
coisa que^impressão
âquece: o tato que fazer da üda, se iam, se ficavam, as pernâs tinham-se
no segredo de um outro, e este â relutar
um pouco para tornado finas, esqueléticas quâse... Seus cabelos aos trin-
r€r em dobro logo mais... De súbito,
descia_rhe a ilusão ta e poucos anos já grisalhos. AIgo ali no can pas de Ber-
de uma orgia intimista e conclusiva
que o brindaria ffans_ keley os convidava agora â recompor algum diálogo, cer-
portando-o para fora daquele ,o*por,
drqr.l. prir, ào to, recompor algum nexo que os esclarecesse a si mesmos
mundo até quem sabe... §r"rrt,
seria capaz de depois daquela relação rompida sem explicação. O rom-
"át,rçao
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pimento os levou de novo a corpos


do mesmo sexo, de isso. E que eles permanecessem pacienciosos, apenas dei-
onde ambos, agorâ viam, jamai,
i.rr.rirm ter se afastado. xassem de aguardar qualquer prosseguimento e dessem
Ah, uma dúvida sempre os martelaya:
até quando ou isso margem, pouco â pouco, a um estalar de galhos em suas
ou aquilo...t Ele alugara aquele
andar na Arch Street, em mentes, â um pestanejar de esquilo dando-se em carícia a
Berkeley flores
- cor graúdas nas calçadas, as camélias que
ele confundira descer por suâs frontes; e que depois, somente depois,
mavera,depoiso,[""il:]#,;:llil;,1ff:,'.:;,H:,1,.X_ pudessem relembrar que um dia foram âmântes sem qua-
seguir o visro de permanência se quererem nada além de um abraço. Ela o masturbava
nos Estados unldos. Fez sem avidez. Ele enfiava o dedo primeiro com suavidade
três vezes em vinte dias porto
Alegre _ São paulo _ por_ pela vagina dela e encontrava lá no fundo um pênis em
to Alegre de ônibus rumo âo consulado
nheiro emprestado, levando recortes
,_".i"rro, ái_ miniatura; quando chegava ali, a coisa já o esperava, em
de jornais ."á*_ riste, e nela ele mexia como num pênis sem glande ou
tando seu período como escritor_residente
em Berkeley, prepúcio, pura umidade que â promessa de seus dedos ti-
agorâ como futuro professor
convidado, dando .rr..o, ,o_
bre Clarice, Graciliano, Raduan, nha o dom de excitar. Naquele ponto ocluso se banque-
Criã, Uirlrola e alguns teâvam, até que o seu próprio pau monstruosamente
ouúos, mais alguns cursos sobre
MpB, quando.l. .irrtr_ maior viesse a toda e entornâsse o leite pelas coxas dela.
va, ele que gostava de cantar
desde p"qr.ro, cântava so_
bretudo bossa nova e tropicália Aliás, ele nuncâ conseguiu (nem procurou, por certo)
como um emissário de uma única informação sobre essa peça do corpo feminino
pérolas brasileiras que os ,lrro,
americanos pareciam re_ que bem longe estâvâ do clitóris. Só Maria a possuía? Se-
ceber com a efusão conveniente
às melhores notâs _ ria um quisto provedor de benefícios sem conta, o pau fe-
para depois de formados poderem
operar as mais produ_ minino primevo, simétrico aos mamilos masculinos que
tivas relações internacionais prm
o'prí. deles controlar tânto prazer de carícias poderiam dar a alguns homens?
melhor o cosmos. Mas agora .r,rà .rt . .rqrilos sal_
"1.
ti_tantes naquele bosque apartado Agora os dois de novo ali, no silêncio do bosque de Ber-
dos pesados prédios da keley, sem que nenhuma emissão anglófona alcançasse a
IJniversidade, ele estavâ ,li dirrrt.
dálr, Mrnr, â moça aura palpitante do encontro, penumbrosa, esquecida, a
brasileira que conhecera logo q,r.
"i"gr.a à Califórnia.
O ímpeto primeiro foi o de J. .rrrdir.-"rrm ponto de se sentirem fora da férrea geografia com suâs
do outro sem leis pesadas de idiomas, nacionalidades, üstos, retalia-
expliôações nem nada. Logo uma
corrente submersa que
ambos desde sempre sentiam ções. Os dois numa intimidade tão independente de ou-
ao se encontrar pôs_se a la_
tejar sem pedir uma única palawa, tros laços que se sentiam à beira de tudo ou quase, até do
pôs_se a latejar, só gesto mais sinistro, a tal ponto que preferiram enfim

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aproximar-se, não exatâmente um do outro, mas de um


vcnto âo norte e a velha figueira ao sul, há mais de sécu-
núcleo qualquer onde pudessem reatâr em paz o compro_
Lr sem se opor a nada; por onde vou, meu Deus, com que
misso com as coisâs. Tocaram-se, mas já não se lemtra_
t'rridados,, se aqui por onde Penso que entro mais me fixo,
vâm â propósito do que deveriam falar. Se falar naquele
gclado?§o primeiro dia de curso, olhei a cara dos alunos
instante pressupunha, como parecia, uma animaçao àté a
ui que umâ garota loira e sardenta na primeira fila olha-
extremidade de algum entendimento, se falar fosse sinô_ "
,, prm a região do meu púbis, meio parva, nada acalora-
nimo disso tudo, ah, eles, os dois, não queriam mais. Se tla. Pensei, falando no Graciliano de Angústia, se de fato
tocaram, gelados. Nenhum burburinho em volta, ne_ que ha-
i rninha braguilha creme lhe aguçava o sentido do
nhum sare, of course, I did, now. Eles habitavam no mo_ I uia no outro lado, se a curiosidade vinha-lhe de sua pri-
mento um outro reino, miraculosamente impessoal, nada
vação ou seu excesso, se âpenas fitava o que não via pata
demandante, em conformidade com âs linhas da Golden
rne agradar â ponto de eu lhe entregar â nota máxima"'
Gate que os dois costumavam acompanhar das colinas de (lom menos do que isso, um dia ela me disse, não se con-
Berkeley, ao entardecer: elas se cobriam pouco a pouco
formava, pois queria no futuro ser embaixadora nesses
de uma mortalha de névoa, apâgavam-se simplesmente,
países ao sul do equador, é, queria aiudar na. erradicação
sem desejo ou mágoa. Quando ele chegou aos Estados
daquela pobreza em nâtureza abastada que nem conse-
IJnidos, tinha menos de cem dólares. A chefe do Depar_
guia imaginar direito. Ajudar?, lhe perguntei; ela acredi-
tamento de Espanhol e Português em Berkeley o
tarra, sim, que o desenvolvimento de países pobres depen-
va no'aeroporto de San Francisco toda de preto,".p.rr_
dia de mutirões de dedicados voluntários destá nação
I
loira,
sorrindo meio culpada por tantas atribulações que o con_
aqui com dois oceanos e que lhe oferecia tudo, tudo, até
sulado americano em São paulo tinha me causado por
bãm mais do que sua juventude permitia supor, tal a pre-
não ser um câra de altas formações acadêmicas, por estâr ' vidência do gigantesco rincão de onde ela um dia queria
desempregado, sem endereço fixo, penso eu, por tudo
isso relutar duas, três vezes meu passaporte voltara
I prrtit âo encontro do mundo indigente - pâra estender
a Porto Alegre sem o visto
I ,.rls braços de fada, fazendo a Íalta verdejar e sobre as
temendo com certeza que
-
eu quisesse imigrar como tantos
\ -"rm choverem refeições, que bela fada aquelal, tentan-
patrícios. Lembro que
numâ dessas tardes de verão em porto Alegre, ,o ra."b",
\ do adivinhâr meu pau e saco atrás da braguilha de bauni-
um não do consulado, sentei-me à beira do Guaíba e dis_ \lh, q.r. ela parecia querer tomar de mim como um sor-
1rr"a. prm me encantâr, até eu torná-la a minha preferida,
ser eu vou, eu vou embora pàra um lugar que ainda não l" p"r.o, para quem eu daria o melhor da América do Sul,
foi feito e que me espera entre a sombra da io.re do con_
o meu conhecimento com a ternura que possivelmente

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Berkeley em Bellagio
Joã.0 Gilberto Noll

ela nunca dvera no seu doce lar. E quando


se sentisse su_
lx)s em tempos os vultos dos alunos
por trás, eu me per-
ficientemente segura em seus propósitos quanto
â mim, Huntavâ quem estâva ali de fato interessado por esses
pensei ao mesmo rempo ouvindo o rangido
insistente das t;uadros de miséria afastados de seüs cótidianos quase
rodas da carretâ no filme ,,Vidas secrs,;,
que eu mostrâva principescos. O que fariam com essâs imagens que pàra
aos alunos no escuro de uma sala coberta
de cortinas ne_ cles deveriam reverberâr como campós de refugiados de
gras, olhando os retirantes na tela, amulher
com cargâ na t«rdo o azar do planeta? que eles nunca iriam con-
cabeça que só se vê ainda em países _
como o nosso e tatar fora de suas embaixadàs, de deüílõréis de seguran-
quando então se sentisse suficientemente
segura, eu me ça eletrônica ou desarmados de suas fantasias
de ajuda às
respondia, a minha aluna deixaria de exibir
para mim, populações carentes de onde eu viera (para lhes ensinar
com exclusividade, na primeira fila, fora do
aicance dos cm vão). Simulavam então diante de mim um interesse
demais, o seu olhar impreciso, nada lúbrico,
como se rnais que suficiente para thes render êxitos a mais em seus
pousasse a vista em algo sem pertinência
comprovada, re_ currículos de agentes não importa de que instituição, se-
frão maníaco de uma atenção para todo o sempre
desgas_ creta ou não, âgentes da bandeirâ que fingiam amar sobre
tada. Todos ali simulavam, faziamum jogo
para extraírem todas as coisas, mesmo que tentâssem às vezes molestá-la
de mim as melhores notas, jogo duro
de'seàução onde eu em minha presençâ, afetando visão crítica p^ra me mi-
ainda era muito incipiente paia dominar.
Enquanto mos_ mar. Ele não queria lembrar, queria tão-só estar nos bos-
trava alguns dos meus filmes brasileiros prediletos, ,,São
ques de Berkeley diante da brasileirâ que o fez pela pri-
Bernardo", "A hora da estrela,', O p
e â moçâ,,, meira vez vibrar com uma fêmea na camâ eternamente
"Deus e o diabo...,,, ,,\fo1-ca-fomos qaã -àre
fàDes", "Ailh; redemoinhada de cobertores, trâvesseiros, lençóis... Mais
das flores", alguns outros, a"qor.rto
eu sentiâ o banzo uma vez perguntâvâ a si mesmo se voltando a seu país te-
vago de uma coisa que certamente eu não
tinha vivido ria teto, emprego, as famigeradas refeições ou aquela mu-
nem no Brasil nem em lugar nenhum, fabricada
com cer_ lher para acompanhá-lo na desdita. Mas não queria lem-
teza pela minha idéia recorrente do país,
bem mais em_ brar, não; estâva diante de uma figura parecendo com
bebida talvez no cinema feito no nio do
que na maréria mais idade do que tinha, que âo voltar ao Brasil iria se
da bruta realidade um banzo, sim, dessas imagens que
- mais com juntar ao Moúmento dos Sem-Terra, vivendo ao lado de
talvez nem existissem esse jeito assinalado, as_ um dos líderes de um acâmPamento no interior do Rio,
sinaladas como se delas emanâsse a unidade
,r.iorráI, o um homem que a levou a Campos e lá pediu-lhe que fos-
magma de uma identidade artísticâ exemplar...
Em meio se até a primeira Estética e tingisse seus cabelos com a
às divagações sem fim, na úrtima fira, a controrar de tem-
cor de antes, que procurasse lembrar da cor natural de

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Berkeley em Bellagio
Joã.o Gilberto Noll

seus cabelos, mas_ ela não queria ou já


não sabia lembrar, t'onseqüência o que contar. Foi esse carâ que veio a so-
âgora era umâ ativista, toda voltada ao
Movimento, sem corrê-lo mais tarde à porta do banheiro, naquela estranha
a:*.po de recompor o seu passado atomizado,
cáprrla rra_ tlueda que até hoje os médicos não souberam explicar de
zta tmersâ em seus interesses absúatos,
como o de estu_ rrrodo veÍàa. Não, ele não queria voltar ao exterior para
dar o tema da Escuela de las Americas florescida
em al_ nlorar, ah, não, âpenas cultivava um convite, que lhe caí-
gum ponto da Geórgia, esse instiruto dedicado
a formar ra do céu, de trabalhar no seu novo romance por um lar-
ditadores para os países latinos daquele continente
ao sul go tempo em Bellagio, aldeia nas proximidades de Milão,
de tudo. Nas pausas lia a corresporrdêrr.i,
entre llannah iunto ao lago di Como, rodeado de montanhas com picos
Arendt e Heidegger e, de fato, gostava então
mais desse nevados; Bellagio por onde ele andava com sauda-
núcleo íntimo do conhecim"nto, ond. obseryaya ^goÍà
o malo_ rles do caso que tivera com esse rapaz e que acabara de se
gro existencial de alguns lutadores de idéias,
dessas idéias cxtinguir (ou não?) ah, a sua memória depois da que-
que tentavam formar com obsessão a tal
ciência humana da!
-
saudades do caso, sim, e não exatamente do senti-
de seu tempo, ântes que o vento levasse
suâs mentes para -
rnento teimosamente preambular que nutria por Léo, o
o espaço, pluft! Foi ali, assim, sem mais, que os
doi, ," rapaz gerente da farmácia, o cara que lhe emprestâva um
beijaram na boca.bem suavemente, ,abenjo
que ambos pouco da prática da vida: em quem confiar ou não, como
nunca mais se veriam, sem poderem adivinha,,ro
conseguir o que eu não atinava pedir por algum orgulho,
to que ela, depois do capítulo de mais duas amantes, "rrarrr_
iria rarefação oral, medo de não ser aceito e não sei que mais.
p ra os braços de um câra proeminente do MSt ,._
po_ Antes de Bellagio, pois é, eles se sentirâm impossibilita-
derem adivinhar também qre ele voltaria prr,
prm dos de resistir à tirania da rotina os apartando um do ou-
se enamorar de um homem mais jovem, "rr"
nem tanto, ge_ tro até o ponto em que voltar pârâ casâ tornavâ-se martí-
rente de uma farmácia em porto Alegre,
onde costumava rio, mesmo que na hora anterior ao desenlace (e houve?)
medir sua pressão. Na-verdad. prr.Jo a medir
suâ pres_ os dois tenham ido para a c^ma em pleno dia, ali ejacu-
são quase rodo santo dia, dizenào que
ia embora dL ve, lando iuntos sem se olharem, sem se abraçarem, se toca-
do Brasil estratagema parâ acender no cara a idéia
rem, apenâs para selar com o jorro amarelado a história
aventura: -se ele o seguisse, conheceria a
de
bem_aventuran_ deles dois, mais nada. Quando saiu a conhecer o vilarejo
ça de viver num país estrangeiro mais qualificado, de
de Bellagio, não conseguiu ver o que esperava encontrâr
língua, sIr,, todos pareciam querer
i;irp.t.ld.l l-, :oI,
sair do a.brigo da língua porruguesa, *.ro, ele, escritor,
numâ aldeia italiana típica de filmes como "Cinema Pa-
11
rr,,que temrâ se extraüar
radiso", "O carteiro e o poeta"l não üa como dali pode-
de sua própria língua sem ter por riam sair histórias autenticamente pessoais, dramas, hu-

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mor, mâlícia, tédio. Na semana santa turistas atravânca- ncrn tânto; ele, sim, apontado como o que desviava o de-
vam as ruelas muito, muito estreitas; a cada momento sci«r de outros jovens das "metas proliferantes da espé-
precisava paÍar, encostar-se a uma parede geralmente t'ic". Por que era ele esse emissário de um mundo que os
avermelhada paru deixar pâssâr um ou ortro prqridémi_ rliscursos dos padres condenavam ao silêncio sepulcral?
co caminhão de obras. Sentou-se a uma mesâ no passeio (.)rrem era ele afinal, por que se roía a ponto de o levarem
ínfimo, bebeu um, dois, três expressos e pôs_se a olhar
l):rrâ o Sanatório para ali se revolver impregnando-se
de
muito mais para dentro, âo encontro talvez de um senti_ t'hoques insulínicos, como se só na convulsão pudesse re-
mento que provocasse nele a noção antiquada de uma co_ rnctliar um erro que ainda não tivera tempo de notar den-
munidade, seja ela qual fosse, mas o que viu lá dentro não lr«r de si? De quem ele gostava, por quem se apaixonava?
correspondia àquele domingo de páscoa pela manhã, sal_ l)or aqueles jovens atletas, pois eram todos atletas no co-
vo um sino que tocava, isso poderia quem sabe lhe rea_ lúgio, menos ele, o contemplativo, o que cultivava a inér-
cender â atmosfera idealizada da infância, onde a beleza t'ia, o que vivia para se refugiar nas pâusas que jamais sa-
irreal de certas imagens urbanas de filmes e gra\nras aco_ ravam. Ao revolver seus membros e espumar como um
lhia o desejo de ali ficar, prâ sempre... Ele nao ficaria ali cão raivoso, ele recobraria os movimentos, a pronta ação
um dia além do período reseryado pela Fundação ameri_ rlos machos. Mas esse resultado não se deu de fato, olha
cana para a sua estadâ, que seria impressionantemente cle ali sentado na frente de um café de Bellagio, como se
longa parâ os cânones desses *"..rrio. internacionais. íirsse apenas o gerador de um olhar que a nada reconhe-
Ele'só tinha mesmo o que olhar na sua porto Alegre, nes_ cia mais, nem mesmo o lago di Como cercado de monta-
sa cidade por onde a cada caminhada costumâva desco_ nhas de topos nevados, nem mesmo essa vista do seu es-
brir, por entre as ruas de história ainda incipiente, novos údio na Fundação americana, tudo the parecia um mero
focos de resistência da memória, fosse como fosse a sua tluadro arrancado de seu berço histórico. Quem iria pen-
esta mesma, cuja nascente quase se dissolve de uma sar ali em algum súdito dos Césares avançando, avânçân-
-
vez por todas ao levar os choques insulínicos na adoles_ clo sempre mais para colonizar o mundo dos bárbaros,
cência, por não querer pâsseâr com ouúos jovens, por dar-lhe "padrão, poesia, ârte e a sã moeda"? Hoje, quân-
não querer ao menos estudar, freqüentar uma escola càm do caminhava pelas ruelas de Bellagio, o que ele via? \4a
seus calendários viris de futebol, brigas, socos, muito, certâ moto, um jovem lindo dando o ârranque em cima
muito mais. Ao ser pego abraçado a um colega no ba_ dela, fugindo, fugindo para esquecer o que sua força não
nheiro, abocanhando a carne de seus lábios, aliúndo seus podia mais comprâr, escapando talvezpâra as mãos de sua
cabelos ondulados, ele era o culpado já, o colega, não, amada da estação, mais nada. Talvez se ele pegasse um jo-
-
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Berkeley em Bellagio Joao Gilberto Noll

vem tão belo quanto aquele que beijara nas privadas de unr carrossel de vozes todos se apressavam afalar' Ele sa-
sua adolescência e o levasse â seu quarto da Fundação lrirr, sofrendo assim de mutismo feito o mais total disléxi-
americana para honrar aquele domingo radioso com o ('() crn língua inglesa ou em qualquer outra, âpenas se em-
lago muito calmo, a barca a atravessá-lo sabe_se lá com lrclledaria daqueles sons sem semântica, não se
que histórias no seu bojo, se ele levasse o jovem até seu ('orlrprometeria com nenhum âssunto, em pensâmento
quârto e ali lhe baixasse a calça pouco a pouco, na sua corrtinuaria disposto tão-só para aquele parágtúo do li-
frente então se ajoelhasse como fazem diante do crucifi_ vr<t in prlgress que teimava em não avânçâr, temendo tal-
cado, talvez assim ele pudesse chegar ao fundo do domin_ vcz que o âutor tivesse de dizer ao fim e ao cabo o que
go, bem assim, sem pressa, e lá no seu limite soubesse re_ nuncâ conseguira revelar antes nem nos liwos nem na
tirar o que agora lhe faltava, talvez o frescor, a graça de vitla: sua oralidade, mesmo em sua própria língua, não vi-
toda a geogtafr,a, e com ela voltasse â escutar a memória nl'ra de uma necessidade genuína: ao falar, expressava não
que âgora apenas lhe fincava o cenho, deixando mârcâs lrcm a forma daquilo que pensava ou sentia, e sim parecia
com certeza, não a história. por enquanto ele descia as illterpretar umâ voz além das proporções, que assim o re-
escadas parâ o piso térreo da ailla italiana que abrigava já muito, muito longe do
os l)resentava limpo, estruturado,
hóspedes da Fundação americana, a \flla Solti, eà di.e_ câos â que pretendia aludir: esse mesmo o seu' Porra,
-
ção ao dinner de terno e gravata de todas as noites. En_ csse carâ contra quem ele próprio começâva a se indispor
quânto ia descendo as escadas ouvia o burburinho dos seriamente queria o tatibitate infantil ou o simultaneísmo
coÍrvivas, a maior parte acadêmicos americanos de áreas de todos os assuntos que lhe vinham à baila? Nem menos
mais voltadas às ciências, à tecnologia. Ouvia o burburi_ rrem mais? Sabia mesmo que até ao falar fazendo alguma
nho, parava no degrau, apertava a balaustrada e respirava coisa que exigisse sua atenção, como lavar pratos, esten-
fundo para não recuar. Ouvia o burburinho. pr""rr.hi, o cler o lençol na cama, sentâr na privada e nada conseguiq
pensamento com bobas sentenças que lhe sedavam o ín_ ir até o armário onde lhe esperava o supositório de glice-
timo um pouquinho: se eu fosse o homem ffansparente rina diário, o que o fizia coner de volta ao trono - sim,
daquele filme, daquele antigo cujo nome esqueci, não mesmo ao falar com alguém durante esses afazeres, quan-
precisaria suar tanto de vaga apreensão âo me encami_ do parecia conseguir fugir por instantes do seu alhea-
nhar não só para as noites, mas també m os breakfasts, os mento convulso, impertinente até, como se o encarcerâs-
llncbs, para qualquer encontro com os colegas do palácio. se numa masmorra anterior à lógica da frase mesmo aí
Dessa vez ele de fato não estava nada disposto a conver_
-
o que tentâvâ fazer não era bem sair dessa masmorra,
sar. Sentaria a umâ daquelas mesas redondas, onde feito pôr-se em liberdade, mas espiar por umâ fresta o fio infi-

24 25
Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

nito, clâro, retilíneo, cujo sentido unânime


para, a,prática
do convívio ele, friamente, não .orrr.g.ri, rlialização é essa que não ârmma um jeito de acabar com
alcançar. Sen_ rrs línguas em troca de uma comunicação imediata, sem
tou-se então a uma daquelas mesas,
,ã lrdo a. ,_, intcrmediação fonética, ou seja, purâ expressão virtual? E
lena moradora de Nova york har.iá
mais de vinte anos,"ii
mulher morena, ainda bela, que trabalhava não seria esse o único êxtase possível nesses tempos?
nas N;;à.; ( )heguei-me perto da feminista chilena, tencionando fa-
Unidas ({IN, como ela dizia),no
ramo dos Direitos Hu_
zcr-lhe um agrado que resultou na confissão do meu mas-
Tr"T mais propriamenre no râmo dos Direitos da Mu_
lher. Tinha ido ao Brasil inúmeras culino desamparo: {p9,e;the em- r_neu inglês esfarrapado
,.r.r, citou_me várias (pre eu era o caçula de uma família de nove irmãs, e que
feministas de São paulo e Rio
das qrrri, nuncâ ouüra
falar; comentei que, sim, era ,- ", nle sentia um sobrevivente dos mares femininos, que me
irorro. a siruação da
maioria das mulheres brasileiras, lrerdoasse então pelo fato de ser assim aéreo, como se
implorando , O.r, qrr.
nunca tivesse conseguido o fio pedestre de qualquer fala,
i!, ela não me pedisse para especifi.r,
ria dar à minha crítica ao machismo"
dir.ção que ., qi,"_ cm qualquer língua, que ela não acreditasse que em por-
dos trópicosl eu não
estâva em condições de especificar tuguês as coisas para mim funcionavam melhor, que
nada a. ,rár, ,r"_ nada, eram ainda mais vergonhosas porque ditas na mi-
mesmo em portunhol; apenas respondi_lh.
qrrlqr". b.r_ nha própria língua e exclusivamente para os meus pró-
teira no meu inglês de ginasianà
."trrdrdá, ;e'qrr. .lr, prios patrícios. Exclusivâmente, claro, uma vez que rarís-
que tinhâ mamado no castelhano,
sentia ,ro'portogre,
não, bem. uma língua, mas uma simos cidadãos de nacionalidades que realmente
espécie a. dÉrrrio
qual o falante de outro idioma jr-ái, i"lo contâvâm parâ essa cúpula de scbolars em Bellagio, Pou-
seria capazde en_
veredar. Ela dizia cos, muito poucos compreendiam minimamente o portu-
d.rr" típo como se não me per_
doasse o cárcere do":i:.r,
idioma do q,ral
guês. Ela corou. Falei que era só por esse deficit lingüísti-
ruo pretendia sair. co que me tornara escritor aliás, não poderia chamar
Então, para ajtdar de alguma ft.m,"rr -
,á p.orr.grimenro isso de escolha, melhor diria se chamasse o meu ofício de
daquela roda de assuntos, eu
me concentrei todo numa
região do cérebro que imaginei câstigo, que jeito? Ela respondeu que as Nações Unidas
ser o centro de todas as
lrnguas, um ponto que, se dominado, ainda não tinham formalizado uma ação para resguardar
me dava a fluência os direitos humanos dos afásicos, dos pobres de espírito,
necessária para andar pelo inglês,
f.rr"ã., italiano, russo, dos neuroconturbados. Afrouxei o nó da gravata, pedi li-
finlandês, chinês, esperanto... Ainda
consegui pensar, ân_
tes de me ater novâmente ao palco cença, sei lá, e pus-me a andar pelos salões da Fundação
das conversações sob
a epiderme maníaca do inglês, no passo de um dançarino exausto, condenado a não sair
consegui pensar que mun_
dos bastidores. Quem seria esse homem um tanto taci-

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27
Berkeley em Bellagio Joã.0 Gilberto Noll

turno â encontrar estátuâs, quadros clássicos pela frente utiltnn a em Bérgamo, até que ela morresse e fosse embo-
para impressionar americanos, colunas, obeliscos, ho- ril o encanto. Quem é esse ragazzo, hein?, e quem será
mens seminus, mulheres fartas, gestos largos, quem era csse homem aqui que já não se reconhece âo se surpreen-
mesmo esse homem nascido em abril em porto Alegre, rlcr de um golpe num imenso espelho ornado em volta de
no hospital Beneficência Portuguesa, às seis da manhã, rkrurados ârabescos, um senhor chegando à meia-idade?
criado no bairro Floresta, sem poder imaginar que um li se ainda quisesse algum pÍazer da carne, a hora era
dia estaria aqui nesse castelo, ao norte da Itália, perto de cssa, o ragazzo o esperava desde sempre, estâva ali a pos-
Milão, na chamada jocosamente ou com t«rs, calça pretâ, colete listrado em branco e preto, â repe-
-
"Catedral" americanal quem era esse homem que já se lir "prego';, "prego, mi signore", sim, um bom signore, geral-
cansâva da noite tão cedo, louco pra dormir, sonhar, re- lrrente sem ter onde cair morto em suâ própria terrâ, mâs
generar-se para, ao longo do dia seguinte, cair no mesmo hoje um escritor famoso a receber convites do mecenato
enfado ansioso pra dormir em horário de criança, internacional, mormente o norte-âmericano, é claro;
-
quem sabe de hospitais, tudo pra sonhar de novo o mes- rnesmo que pudesse contar fora dos muros do palácio
mo sonho de um cão escorraçado num acampamento de com â efusão latina, prima de seu país de origem, ali es-
ciganos, uivos!, tudo pra fingir que acordava na manhã tava ele, acorrentado àqueles scholars americanos em sua
seguinte para ouvir seus camaradas, dessa vez no todo- maioria, e, no mâis, no momento, à chilena da ONU, a
poderoso inglês, mesmo estando sob o céu da Itália (cadê uma poetâ tcheca, três músicos coreanos, um filipino,
o italiano que ainda não conseguira escurar?). Não adian- não muito mais que isso. Vivia ali sobretudo acorrenta-
tava, erâ no inglês que â trâma diária ia se fazend o, até do a ele mesmo, a esse brasileiro se interrogando que
que ele topasse com um mordomo, ragazzT belo como imagem poderia câusâr na "Catedral" americana com
tantos da península mediterrânea, parado â um canto da seu jeito aloirado, sobrenome alemão, vagando sem sâ-
sala de música como se aguardasse os convidados da noi- ber por que vâgavâ tânto por aqueles salões dos corte-
te pâra bem servir com seu encanto jovem. Esse não, esse sãos, na maioria protestantes, sabendo que de hora em
não falava a língua de Byron ou Mark Tivain. euando lhe hora o cura da igreia medieval da aldeia de Bellagio pu-
agradeci em inerme compulsão por estar entrando ali, ele xavà t corda do seu sino e se embalava e embalava ^ to-
disse "prego", mostrava não ir além de sua língua, só se dos que ouvissem a sua arte católica, pobre cura!, talvez
por acâso fosse transportado por uma milionária ameri- nunca tenha tido a chance de ultrapassar o faustoso por-
câna parâ o outro lado do Atlântico e ali permanecesse, tão da Fundação americana, sim, pois durante os break-
mandando todo o mês parte da gigolotagem pâra sua violentado a púbere
fasts corriao boato de que ele tinha

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Berkeley em, Bellagio João Gilberto Noll

que morâvâ no promontóriO da outrâ margem do lago di rrr sc desperdiçava pela garganta sedenta de outro macho'
Como... Isso o escritor brasileiro ouvia calado, como (l rtgazzo limpou-se na cortina e o homem ajoelhado viu
sempre, louco para o último gole do café para então su- (prc suâ liturgia estava finda, era hora de partir prâ camâ,
bir até o quârto, adentrar depressa em seu esúdio ao lado lxl xnte pé no mármore, bem silencioso, para que ne-
e esquecer do mundo em sua escrita que alguns críticos irlr,rm residente da Fundação pudesse vê-lo saindo de fi-
chamavam de rara. Raro é esse ragazzo pàÍa, quem ele rrirrho não para à camà) mas pârâ a noite fria uivando em
olha agora e diz: sim, Deus baixou aqui, é vivo. De ime- st'rrs ciprestes, sim, debaixo do céu bem estrelado, cuidan-
diato tocou na espádua arcaica do peninsular divino, mes- rl,r para não provocar ruído no cascalho -láia ele subin-
mo que o ragazzl não soubesse, não importa, era Deus rkr a gola do paletó já todo contra o vento, 1á ia ele sem
que ele continha no seu peito arfante, não o Deus que não íirz.cr barulho pela noite fria, pois queria mais, bem mais
saía das igrejas, mâs o Deus que pulsava atrás da calça rlc rudo, de tudo vinha um riso envergonhado da traqui-
apertada do ragazzo, o Deus que se aplumava e se punha nrrgem que havia pouco ftzeta no rapaz, sacramentado
rígido, colossol o Deus que foi levado pelo escritor rrgorâ parâ sempre em sua lavra noturna pelos cantos,
-,
porto-alegrense para trás de uma cortina malcheirosa rrtrás das cortinâs, entre os móveis de autêntico estilo, não
pelo tempo, o Deus que ali se deixou ordenhar como um irrrporta, ele era o santo que oficiava pelas sombras o ri-
bovino e que ali se deixou beber não bem em vinho, mas trnl cla sina. O escritor porto-alegrense continuava ali, ao
em leite que o nosso senhor gaúcho engoliu âos poucos, vcnto mâis que Minuano, sem saber se cuspia no pedre-
na carestia da idade, lembrando-se da Primeira Comu- grrlho da trilha ou se engolia mais e mais aquilo que lhe
nhão, terço nas mãos, ar de bem-aventurança de joe- íizcra um homem vivo, o mesmo esperma de seu pai, pois
lhos olhou o ragazzo como se rezasse pelos mortos - seus o sêmen de um só homem contém o espermâ de toda a
amigos, por aqueles que não mais podiam aproveitar a hrrrnanidade, ele estava na Itália, não esqueçam, perto de
vida desse jeito, sentindo sim o gosto áspero que ele não tloma, e assim voltava a acreditar nos velhos carnavais li-
experimentava haüa tanto, gosto desse nobre líquido que trirgicos encabeçados por coisas tipo o Corpo Místico de
corre em seus microfilamentos vários cavalos no páreo ( lristo, a Comunhão dos Santos, tudo isso na diversidade
-
até um só ter a sorte ou a infelicidade, já, nã,o sei, de fe- rlos povos contida em apenâs uma carne que ao pó retor-
cundar a vítima. Era desse líquido com o inóspito gosto nrtrá do mesmo jeito que dele se extraviou, assim mesmo,
de rudimento da espécie que ele bebia ajoelhado, um lí- rlc fininho, como fazia agora aquela figura no escuro do
quido que talvez esperâsse aflito seu dia de criar um san- lr«rsque de Bellagio, com vontâde de fugir daquela irman-
to ou um monstro nas entrânhas de sua vítima, e que ago- .la«le que almejava comandar o mundo com suas idéias

l0 1t
Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

orquestradâs, com vontâde de pelo mundo se perder mais t('ru'rte que vinha e lhe escapâvâ sem o apoio de cordas,
tarde num navio fogoso ou num trem de subúrbio, ârma- s(,1)ros, bemóis, nessâ sutilização do significado que não
do... Foi quando ouüu um bicho correr enrre as rama- o lcvava a parte alguma, daí vinha o sinal de que o seu
gens. Depois, logo depois, um piano heróico no meio do tcrupo interior se esterilizavâ â ponto de ele não ver mais
arvoredo a se crispar ao vento. primeiro pensou se tratâr ('onro se desenredar: quisesse ou não, já se aventurava
de um engâno auditivo, motivado pelo fogo cerrado de scrrl retorno por essa louca deserção. Que importância
anglofalantes do jantar onde mais uma noite ele, incauto, tt:ria a decifração do mundo pâra quem já queria só vol-
tinha entrado até por falta de opção, pra não morrer de tirr pâra casa, de onde talvez nem precisâsse ter saído?
fome já que geralmente ficava sem almoço para des- (.)ue importância teria a semântica da prosa mais esclare-
-
cânsar das gralhas que não parâvam um só instante. Mas t'itla a quem só ansiava se abraçar ao seu quintal? Que im-
o piano permanecia ali, a alguns passos, na cabana de portância isso teria quando ele já fosse âpenas um punha-
- o busto
janelões acesos, a exibir de um homem curvado rlo de cinzas em meio à terra, que por certo nuncâ mais o
sobre seu teclado. Quem erâ esse homem que toca Liszt rrr«rldaria em carne? Não fosse um homem ter despejado
em sua cabana no meio da floresta?, ele pensou, se apro_ scu gozo dentro de uma mulheq não fosse isso o filho que
ximando inconscientemente de uma das janelas. Apioxi- t:lc era não estaria aqui nem haveria para suâ escuta o
mou-se como uma criança se aproxima de algo que lhe l,iszt que ele ouvia àgoÍa nada, só a paz dessa floresta de
desperta abrupto interesse, nada preocupada óo.r., p.r- llcllagio, o assovio intermitente do vento noturno não
tinência ou não da curiosidade. O pianista era alguém lá -
haveria ele nesse corpo perpetuamente redivivo enquan-
nos seus quârentâ anos, pouco mais, quem sabe. Tocava to houvesse pensamento, fábula, história, ele pensou, co-
algo de Liszt, isso ele sabia porque, mesmo sendo escri- çrrndo-se ao infinito. Foi então que não agüentou mais
tor, ouvia mais música do que abria liwos; de uns tempos irtluele gosto de porca jâ passada na gârgantâ e cuspiu, es-
pra cá,, não queria mais saber de romances, novelas, con_ cârrou tudo e um pouco mais ali, bem perto da cabana. O
tos, muito embora os escrevesse. euando sentia a,goÍa a pianista assustou-se com â veemência do bicho que ele
necessidade da palavra, ia direto a algum poema. paia ele, rrchou que fosse à primeira vista, levantou-se, foi à jane-
a poesia era o verbo em estado musical, se algum sentido la, pálido que estavâ, e deu de carâ com o homem que vi-
ela expressavâ este não vinha de outra coisa que não da nha da floresta tentando ouvir o Liszt que ele gerava aca-
melodia deslizante pelas entrelinhas feito um rr.io d'ág.r" krrado. Ficaram parados, sem falaq sem nenhum gesto,
que mal, mal se percebe. Nesse elã que sentia p.lo qre nenhum sinal em que pudessem se comunicar, saber a
ainda não se fixara em norma do sentido .rr. algo ia_ identidade um do ouúo, suas intenções, seus vícios, trau-
-
)t
Berkeley em Bellagio Joã.0 Gilberto Noll

mas... Parados, sem esboçar a mínima significância em t,iset vivera por alguns meses em 1837, amando a sua
seus corpos, urdiam quem sabe algum veneno que tentas- Mirdame D'Agoult, torridamente, e lendo Dante à som-
se desfazer âquele encontro assim tão rude. Se os dois já lrrr rle alguns plátanos... Em dezembro deste ano nascia
se conheciam, se ambos eram residentes da Fundação, ( lrsima. Sim, a Fundação acolhia também músicos, e
nada disso interferia ali, eles eram agora bem menos do na floresta pâra que me-
lxrra eles construíram cabanas
que identidades, portavâm em suas figuras uma espécie lh«rr se concentrassem e ao mesmo tempo não interferis-
de estranhamento original, dois seres embalados pela scnl na audição dos residentes de outras atividades' O
mesma melodia já ausente, um na claridade do seu esú- lirto é que, de repente, assim, sem mais, vi surgir uma
dio bucólico, o outro querendo se banhar naquela mesmâ rrrulher ao lado dele, e essa mulher estava vestida com um
luz cativante, a alma da cabana, e que a Fundação parecia trrrje dos oitocentos, verdadeira heroína de uma história
querer esmagar sob o tacão das estatísticas de alguns hós- (ple eu começava a ficar louco para conhecer' Seria essa
pedes economistas que em certas noites recitavam suas rirulher uma enviad a pàÍà desfazer o gelo em que aqueles
-
receitas categóricas pâra o fim do desemprego mundial, h«rmens permaneciam, meio que acossâdos, parecendo
na sala de música, depois do mais lauto jantar. por que int«rcados pela presença um do outro, tendo ainda por
era preciso sempre dar continuidade a tudo?, parecíamos t'irna a vidraça entre os dois, para mais refluí-los do aca-
nos perguntar no âmago da floresta. por que o pianista so desse encontro, hein, seria? Mas essa mulher parecia
não voltava ao seu piano, o escritor ao seu abrigo na Fun- rrão ter chegado aneida além de uma personagem - pá-
dação americana, e nada cârecesse de maiores explica- titla, sem g.itor, de vida nela só o colo que vinha e volta-
ções regadas a gemidos, risos, palpitações, alívios? O es- vil numa lenta respiração ornada com um colar' Quem
critoq da parte dele, não tinha urgência em se aliviar de crâ essa mulher, eu me perguntâva, â quem servia uma
nada, jâ tinha escarrado todo o resro do sêmen do ragaz- lrcleza assim tão fora do meu tempo: seria uma âtriz, umâ
zo, e preferia agora não dar às suas pernâs nenhuma di- cortesã que vinha à noite satisfazer os caprichos daquele
reção que o afugentasse da cena entre eles dois ali, am- pianistai Quem era, mas quem erâ mesmo essa mulher
bos barbados. Pois no fundo, era ali que queria ficar, ieo diáfrtt, que seu colo agora parecia porcelana des-
quem sabe mais umâ vez ouvindo Liszt, sem a ansiedade lnaiada, qrr" Àrtro se recâtavâ pouco â pouco, a ponto de
de precisar dar a seu corpo um rumo diferente, um rumo não se nàtar mais ali nenhuma ação orgânica"' Olhei
considerado com certeza mais salutar do que aquele de cada um, olhei primeiro igual a um bisturi, tentando pe-
âparentemente importunar um pianista que tocava Liszt netrar em toda a extensão daquela extrâvagância, como
numâ noite fria de Bellagio, na Bellagio onde o próprio se umâ criança interrogativa, num conto muito antigo,

,4 3'
Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

perdida na floresta, desse de cara com uns seres alheios a rcscrvada apenâs a quem tem o privilégio de morrer no
qualquer comunidade, ali parados feito estátuas, sem de- grrriprio leito, cercado pelos seus âmores, sabendo que a
monstrar o menor desejo de participar da prosa apressâ- rrrrio que afaga seus cabelos, e essa agora a segurar â sua
da que o visitante noturno poderia estar nâ iminência de ('()rno se do alto de uma embarcação puxando a mão do
gerar. Mas na verdade, enquânto eu estivesse ali, parado, rrríufrago, que essâs mãos são as últimas sensações de
olhando aqueles dois afantasmados, eu estava pronto a vitla. fu presençâs que tocam a agonizante já perderam a
me deter no tempo, a economizar de forma radical mi- srra identidade, já nada podem fazer além dessa formali-
nhas batidas cardíacas, ser âpenâs mais um elemento da rlrrtle de tentar puxar a morta à tona novâmente, enquan-
floresta, um corpo que não precisasse batalhar por mais ro a pobre jánão reconhece nenhum interesse em conti-
um dia e, quando despertâsse novamente, nenhum nuar ali, a salvo. Eu era Berkeley, o célebre filósofo
-
desgaste das horas teria me marcado com seu ferro em scnsualista que acreditava, dizem, que a subsistência das
brasa; aliás, a minha cabeça teria idéias totalmente emân- r'«risas dependeria da qualidade da percepção e não da fei-
cipadas das antigas, tudo me seria mais fácil, não teria re- liçaria da linguagem e qual percepção eu poderia ter
ceio do futuro, controlaria os inforúnios do âcâso com a -
rlc mim mesmo naquele vão noturno que quase me engo-
respiração no ritmo digno de um estóico, por onde escor- lc num repente? Quem me responde, e iá, se o fato de eu
regasse e evoluísse um âr tão qualificado quanto o desse cstar aqui andando pelo bosque em plena madrugada me
bosque de Bellagio. Faria parte com eles de um gracioso confere alguma garantia de que eu não seja um outro que
destacamento de estátuas, já que lá dentro na "Catedral" rlc fato sou, um estrangeiro de mim mesmo entre norte-
discutia-se obliquamente a patc americana. Eu era Berke- rumericanos (embora pisando em solo italiano)? Sou al-
ley em Bellagio, o bispo e filósofo irlandês em retiro pi- guém que se desloca pârâ me mânter fixo? E os pâssos me
sando em folhas secas, me afastando da janela atrás da conduzem para o esúdio pegado âo quârto ou às lisonjas
qual um pianista moderno e uma mulher vestida de ou- rrrúruas reinantes na Fundação hein?, não fiz umas
trora talvez ensaiassem alguma ópera, talvez chamada -
l)erguntâs, tchê? Sei que vejo Cosima espantosâmente
"Fantasia quase sonâtâ depois de uma leitura de Dance", pálida em seu leito de morte, toda transparente, toda ir-
em honra sim de Liszt, que aqui vivera uma paixão férvi- rcal, quem sabe ineústente... Voltei àailla, os circundan-
da, enquanto eu caminhavâ com cuidado, temendo escor- tes continuavam acordados, agora na sala de música, sen-
regâr no limo da umidade, ouvindo Cosima quem sabe a tados em poltronas, belos sofás, quadros e estátuas
cantar em seu leito de morte qual a Dama das Camélias... renascentistâs que eu jamais saberei se são reais ou mero
Nenhuma cena humana erâ mais pungente do que essâ, csforço posterior de algum abnegado artesão. Um pro-

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Berkeley eru Bellagio João Gilberto Noll

fessor de física da New York University cantava e tocâva velho contava dos poemas que fizera na juventude, ela
standards americanos ao piano; fui para perto de um gru- distribuía as novidades entre os americanos em volta, to-
po que ouvia atentamente afala da poeta tcheca toda li- dos homens, salvo eu que era brasileiro e não tão fanáti-
qüefeita em vinho a relatar sua amizade estreita comJoão co quanto eles pelos encântos da tcheca repetindo os ter-
Paulo II; ganhou algum prêmio do Vaticano, algo assim, rnos em francês que usava ao lado de João Paulo II aí
talvez uma medalha católica dedicada aos poetas, tudo eu -
talvez eu fosse o único a entender, visto sempre ter sido
ouyia como sempre ouvia os cortesãos da Fundação, pe- o francês o meu forte, coisa de que hoje me arrependo já
gando pedaços, nacos de frases, logo me desinteressando, que ninguém mais usâ o repertório gaulês fora da Fran-
às vezes retornândo pra verificar se daria para lastimar ça; com ceÍteza, sim, ali eu erâ o único a entender enfim
mais tarde ter passado ao largo do assunto que poderia algrma coisa naquela ilha anglófiIa, e os americanos re-
me render mais romances, mais contos, mais novelas, l)etiam "tÍadtz, traduz pra nós, oh musa, doce coração!",
quem sabe dessa vez um poema dramático à la T. S. cu juro, eram palavras assim a jorrar dos bacantes nova-
Eliot, quem sabe coisa alguma, âpenas uma fofoca a mais i«rrquinos na noite imperial de Bellagio; um deles per-
prâ que eu voltasse pro meu quârto sorrindo pelos corre- guntou se ela indagara de Sua Santidade se de fato era in-
dores do castelo feito um cidadão feliz, satisíeito, dispos- fâlível, "infolible, infalible", repetiâm às gargalhadas ao
to para mais um sono liso, lisinho pelos cômoros de areia som de "Smoke gets in your eyes", enquanto a tcheca ro-
da minha praia na extremidade sul do Éd.rr... Mas dessa çando sua perna nâ pernâ de um historiador bem manco
vez o papo era sério e versâvâ sobre a estreita amizade de sc ruborizava toda, a repetir que não, que não, que o Papa
uma poeta de Praga, agora ébria, com o Papa, nem mais cra um homem modesto, tão modesto que foi se curvan-
nem menos, o Papa. Ela contavâ que Sua Santidade só rlo, se vergando ao peso do seu humilde lenho sânto...
conseguia ler em tcheco, ao falar nesse idioma sua língua lsso tudo só eu que escutava, já que ali ninguém parecia
refreava, a saliva refluía e ele se engasgâva. Sentaram-se :rrranhar o francês como eu, que tinha cinco anos de Al-
lado a lado logo depois da cerimônia de outorga das me- liance nâs costâs; que burro fui eu, reclamava baixinho,
dalhas do prêmio aos poetâs que contribuíam para a fé lx)r que não aprendi inglês se na minha mocidade já era
cristã, sei lá se era exâtamente isso, pois o inglês que ela csse o idioma que começava â contar para o mundo, en-
falava bêbada era ainda mais medonho do que o meu, se (luanto eu ali no Je uous aime, fazendo biquinho, corren-
é que podem acreditar, não minto ela estava à rlo a procurâr em vão por Porto Alegre um único sebo
mesa com o Santo Padre, o Papa pedia que falassem em (fue me pudesse oferecer algum liure de pocbe, er,quanto
francês devido a seu bloqueio com o vernáculo tcheco; o rraquelas livrarias as portâs já se escancaravam sim pros

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Berkeley em Bellagio

João Gilberto Noll

pocket books, bem rr:?,


,rr, bye setbobo, vá colher
uvas nâ
Provence, vá fazer Uiqui"lárrôh;p, Adiantei-me e fiz as clássicas
Elysées ou vá ba_ perguntas sempre de pron_
ter numa porta tidão a cada novo enconrro.
Foch, p.ài. qí"-lh. .*;;_ O. oÀd" você é, o quê e onde
guem porque em 1fa-Avenue
seu país tá brabo, camelôs, já que ali era ,.i"o
barrigas vazias, nem pro p.diíto, lars. Ah,- ele vinha do Equado.
fecioll " ;;;à abrolrrto dos sctto_
s:nra: E então?, perguntei
café com leite o bolso
se apre_ .;;; dava aulas. flaba_
lhava numa instituição filr"t
à noite sil api., fr!rr."r"r. Tinha for_
j: 11",u
na no
de, pé de .,l". i.io
cascalho. Essa noite parecia
;;r#':á,.T .|f,:jl
mação em engenharia, achar.a
nosso continente iria longe.
qrrJ Jorn a tecnologia o
não ter fim. Já não ti_ Faü,ra português perfeita_
nha vontade de d, -llr!: Uma professora carioca mrito próxima de sua fa_
tivessete,-i,,ã;'iTj:":::.ll;l,,rff
escuridão que jamais deveriaiermi"rr. l,:#tr j:,":; mília lhe ensinara com dedicaçao
ideologia suficiente para
,iirg, a. !á nãoexistia
foaorl, onde es_ encarar a consüução de um
tavam os demais? parei. pro_
Continuei our.indo o cascalho, .ieto nacional. A realidade. é um;"g".
alguém se aproximava Ha uma ética?, per_
guntei. Élt.r, sim, mas dentro
e deviaser por trás. Custei um aJ r-, vastidão amoral.
pouco a me virar. Estar Se os poderes venais puderem
entre o, ,o .ã*rin"i., que venham!
abordar qr..-
;;;.
qr. seja com DescartarP, só essa
como se todos estivessem
nóia e a todos ,.1*igirr"
vivendo às ",,:,?:I[foffi; nha ncçeà
;;; i,ffifi
"h ;f il: j[:lTiijIl* t_
qr. ;;;;r}:."rtJ:iirrffi_
ciente a ponto de s" útraprrrr."_lií_,,te
sadaptados ao circuito
um lugar onde a sociedade
social,
"r_i"fr_"s à procura de
não se pode resoonsabilizar além do qual já il_r;;;;Jprrd"r.. alcançar.
Seres sem cidadania.ou
pelos seus âros. qualificação, ele se apressou
,ao "ingrl;
Tüdo era medido quando zer. Sim, respondi, é isso a di_
," ãr,-rã bêbado, que to_ mesm.: lbJ;, devem jogar seu
dos se segurassemem seus casulos, não se jogo até o fim, ele insistia,
aproximassem essa a ,^reo-arestarmos
de ninguém além do O aperfeiçoâmento das regras aqui.
que a Demo craciaAmericana,
ca, soberana, pudesse a úni_ a.rr.;"g.1 _ ah, a única
conter em seu código relativo promessa. posso conceder,
aos
ele se ,pr.lrr, que, de certa
"Direitos e Deveres Dialógicos,,. ;r;; Íorma, enrrará na roda ,,É
além do quar a História
.r.. i*';;;rr. desajustado,
se ãncothia-;;il como você mesmo diz, também
cristalizar platônica, sly fi:fifr:T:
nadl _ri, p., ."dimir, elaborar, de drogas, o mercenário,
o criminoso, o traficante
o louco, iàà"r';.gr_ o seu
viver. Era a torre do Novo pa_
Crpiirf I. *guendo, basta... seja assim. Só o seu
Ouvi a música do cascalho.
ú..i. óJ prrror, atrás de ::l:j^l.T
nao .que
rogar, coitado, talvezseja o que
fro.rgorir,a pensa
mim, pararam. Voltei_me. nenhum proveito desse maícb. -ri, ;ogr, e sem drar
Era
";;* tipo bem latino.
nia afirmativa ou negativa,
d;";il falta éa cidada_
não frrp*ir, e sair desse lim_
40

4t
Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

bo que afeta só a ele, me âcredite, não se engâne. Ele era dnente, mormente a equâtoriana". Eu era um escritor de
jovem, 34 anos, eu já o estâvâ vendo com a faixa presiden_
olhar heaay. como eu mesmo lhe dissera, e ele tinha todas
cial equatoriana, era â nova elite sul-americana, esse sim as abstrações de sua estéticâ parâ me ofertar pela graça de
um verdadeiro filósofo orgânico apenâs acreditava, di_ minha conversão. Claro, ele dizia, na novâ cosmovisão la-
zia ele, na promoção social dos-povos e que depois de dno-americana não havetá a diáspora entre o Indivíduo e
morto o jogo continuava, pois éramos um continuam no o lJniverso como no Pecado Original católico: o câra es-
IJniverso e, como Giordano Bruno declarava, éramos tará apto a receber de Deus aqui mesmo as prolíficas re-
ainda mais, o próprio espelho de Deus; sendo assim, o .o*p"trm do trabalho. Ah, eu quero isso, eu respondia
jogo continuava no plst-n lrÍem., potco importava se feito um idiota, tamanho o meu desejo de ver esse râpaz
numâ reencarnâção, em outra esfera que não a física, ou naquela noite no ápice da América Latina, um gato bem
mesmo se Deus não passasse de uma criação da nossa em
frustração cósmica. No mais, só a beleza salva a perma-
-or"rro, misto de índio, espanhol, todo empenhado
seduzir mais um pro seu futuro calibre de poder, ah, de
nência desse jogo. Suas regras, é fato, são no mais das ve_ trópico a trópico, com certeza assim seria' Viva o Equa-
zes enfadonhas, feitas pra golpear de morte a nossâ auto_
dor, suspirei sardônico, viva esse que parece âté um certo
nomia; mâs preste âtenção, â autonomia é um vício presidente pós-moderno do Brasil em jovens anos de exí-
mental, não passa da tal autonomia abstrata que esse seu iios! Exílios que este dali pensava não viver na pele; mal
herói literário teima em redigir. Beleza? Ele tinha dois sabia ele ser mais um exilado, sim, exilado do quê?, me
palmos para além de mim (que pra homem baixo não ser_ perguntei baixinho, se ele está convencido de estar fla-
via), sabia que me seduzia com esse papo de Beleza, esse ,".,ão feito um dândi da filantropia pelos cinco conti-
Platão dos pobres que se prepârava pâra no próximo ou_ nentes? Mas naquela noite nem isso me importava, não
tono começâr seu doutorado em princeton, o Gatsby sul_ me importava até meu próprio eílio branco no conforto
americano, lindo! Eu ali me converti à sua doutrina, pelo de universidades e fundações americanas, sem conseguir
menos durante aquela noite. E se eu o levasse para meu entabular em inglês uma única frase que prestasse, não
quarto e o transviasse de sua rede filantrópica internacio_ importava, não importava nada se naquela noite eu tives-
nal pelo bem de um escritor da espécie, repito, pelo me_ se o príncipe de Quito na minha câmâ. Seu português era
nos durante apenâs uma noite, na certa ele me daria seus brilhante, melhor do que algum dia pudera supor saindo
tesouros na forma mais acabada de suas tergiversações, da boca de um falante hispânico, não havia um erro em
afastando-se temporariamente da ,,concretud. d, pro-o_ sua pronúncia, nenhuma distorção em sua sintaxe' Quem
ção social junto às camadas pobres da população do con_ era a professora carioca que the ensinara tão bem o por-
Berkeley em Bellagio João Gilberto Noll

dimensão
tuguês, que nele não se descobria nenhum sedimento de da cueca, mas sozinho, sem saber a verdadeira
como ela só' sem
outrâ língua? Tinha sido sua namorada, amante, precep- do estrago na úrilha sonhadora, besta
tora ou devoradora? Ele não iria me contar. Ali, era ape- me dar lir,rt do teor do leite derramado' se erâ purâ
brb", ," porrr, se de fato mijo de tânto eu rir por
dentro
nâs um homem todo exposto à minha fantasia, mas nada
iria acontecer nem agora nem mais tarde, ele ficaria ali e ,, .roit. próxima dos Alpes onde estarás meu fidalgo'
gâto em cio
eu aqui, talvez no máximo dançássemos sob a lua que era unde estarás que por ti padeço, mio feito um
clara, cheia, tão clara que nesse instante àpagav^todas as J"poi. deitá, dàito .obtt um banco de pedra no feitio
estrelâs, deixando a relva perolada a ponto de se poder
"da Roma ântiga âs margens laterais em leve relevo ar-
- que me
imaginar gota â gota do orvalho; muito embora a baixa redondado. Largo um peido, finjo que choro'
temperâtura, suávamos, eu sei, nós ambos, e a correr derramo em lágrimas, sacudo a cauda, empalideço"'
tão
como a brincar de pega-pegâ entramos num quiosque Acordo em sobressalto, é noite ainda, reconheço -
penso que o
todo envidraçado, igual àquele de "A noviça rebelde,,, só estou no quiosque enüdraçado que 8uâ-
um sonho' faço na Itália?' me
quando o românce deles dois começa. Por que havia tan- po equâtoriano foisó Que
tâ coisa a descascar até que pudéssemos estâr aquém da p".g.rnro e isso éItália, se âté âgorâ só ouú inglês eo
-
["fã pot*guês do futuro presidente -equatoriano? Me
gente, nos transformârmos em ninguém ou quase, quase
nada, e só então, sem nome nem espécie, podermos nos toão de novo sobre o banco de pedra da antiga
"rrror.oquisera ser uma ave ferida bem na asa' e aqui fiôar
beijar na boca? Precisei pensar na câsta Julie Andrews e Roma,
porque já
no circunspecto viúvo Christopher Plummer no quios- até que alguém viesse para só cuidar de mim

nem sei q,i" frço ,r"- qrr" digo, se é que digo'
nem^sei
que no meio do bosque do tal filme, para aplacar o meu
t"""tte, é uma soprâno' é Co-
tesão, a baba na cueca, para aplacar o equatoriano que ar- se sonho. Ouço uma
"o' choro
dia em sua liderança, me traduzindo uns versos de um jo- sima, eu grito fechado no quiosque e quâse 1go1'
isolamento. Reajo, abro a porta de vi-
vem poetâ peruâno, seu colega de internato na infância, no mais a-b.ol,to
de certa
hoje um diplomata de carreira em Roma, a quem iria ü- dro, vou pârâ os iardins, vejo o busto em pedra
sitar depois que terminasse o seu seminário em Bellagio figura qorl o- senador romano, se não um dos Césares;

"Experiências Inovadoras para Liderânças em Filan- .íro, lrito, faço que vou despencar no precipício' mo-r-
-tropia no Desenvolvimento da América Latina,,, a latina rer no Trrrdo aã hgo di Como, tudo é mentira'
me refa-
que cânta "Bongiorno"' cân-
doida!, digo eu pra não chorar, e rio e rimos tanto que a ço, vou ao enconÚ; davoz
Bronx que foi embora paÍ^ ^
lua feminina se retrai aúás de umâ montanha. Estava eu iao a, ópera do músico do
aqui, agora, no abrigo do quiosque, encharcado debaixo ii.itir rr", Prl"r-o, terra de seus ancestrais mafiosos' tão

4t
44
Berkeley em Bellagio João Gilberto I',loll

revolução de espécie
poderosos que lhe deram condições de estudar na Juil- llcito inflamado, não, não é preciso
liard School e tudo o mais que um músico nova-iorquino ,,11p-r, tudo tem seu próprio ritmo - democracia, edu-
deve ter para viver em condições tranqüilas pelo menos, cnção para âs massas e, enfim, a tecnologia, a única ma-
ah, eu bem me lembro que num ponto desta noite eu ü rr"ira áe todos se acessârem mutuamentel enfim, é esse o
o seu fantasma e o de Cosima, a heroína de sua ópera, rrrais ambicioso programa dessa hora, e só com mutirões
mas dessa vez, aqrri, falo de Edwin em carne e osso: Ed- rlc voluntários teremos condições de aplicá-lo pelo mun-
win veio â essa Fundação americana para Íazer uma cân- rl«r; por isso estamos todos aqui nesse instante grave
em
tata dos anjos da Sardenha, com vozes de um coral ado- ,1u" ,i.,d" não se sabe bem quem realmente está por trás
lescente; com ele estâvâ a libretista e dramatist, que lhe ,i, qr"d, das torres em New York, fato que não será a
,,.rrra Qoeda de Constantinopla, não se iludam - se
escrevia como se salmos, veio com o marido professor de é

sociologia em Minneapolis, que por aqui esrudou duran- v«rcê, se sou eu o mentor dessa hecatombe, logo a
huma-
te um mês as desigualdades entre o Norte e o Sul, sua rridade ficará sabendo com ceÍtez^, e aí adeus ansiedade
obra se chamaria Toward a More Equitable World, não sol- global, pois já teremos as porções dos bens do mundo
ta-va a foto em preto-e-branco de uma índia velha em irem distribúdas all oaer tbe world, isso sem milagres ou
roupas aculturadas de uma dama, brincos, mas tão, tão irléias imantadas de santos caudilhismos, porque então
no
velha que já,não tinha nem um tiquinho de chance de co- tluro o inimigo estará exterminado, esse inimigo que
nhecer um dia um mundo mais igualitário: seu rosto im- pode ser você, o filipino ali com seus trâies típicos olhan-
pressionante parecia puro barro estorricado, cheio de ,lo prm o pico da màntanha mais nevada, paralá' além do
sulcos de uma terra seca; mâs era esse o mote dele, a pro- trgà ai Como, além do horizonte, do arco-íris, mais além
to-história de um mundo em novâ ordem para todas as ,lida do que podemos conceber, lá onde ele será pó uma
Américas e para os cinco Continentes! O que fazer?, ele vez por toàrr, nos deixando em pâz aqui no manso círcu-
mesmo respondia: acabar com os governos corruptos, de- lo dã um mundo mais eqüitativo, enfim, na única história
sentrâvâr o processo democrático em cada região, pegân- sem embromação, é issol Ele e a esposa libretista estavam
se despedindo dos convivas, iriam embarcar de volta
do a tal, a mitológica oportunidade a todo cidadão, um a

cidadão que poderia com orgulho se espelhai, ou melhor, Minneapolis dali a alguns segundos, seus olhos lacrime-
se inspiraE perdão, a cada manhã na Democracia Ameri- javam, me destroçâvâm o coração, não tanto eles' vos
cana "espalhada pelo mar revolto", completei diante dele confesso, mas o músico nova-iorquino, Edwin, que tam-
durante um café após o lunch no terraço da \tlla Solti bém partia naquele instante, só que pàrl' a' Sicília de seus
nãol, ele respondeu, virando axícara de café sobre o seu- que fizeram fortuna incalculável na
-rfioro,
ancestrais

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Berkeley em Bellagio Joã.0 Gilberto Noll

América lá ia ele pra Palermo, o músico que na noite parar diante da minha portâ com meu nome escrlto num
-
anterior apârecera à janela com sua Cosima em figurino cartão com margens em finos arabescos de metal doura-
de época, a bela soprâno que surgira de repente atrás da do, ele se aproximou um pouco e repetiu: Joao, Joao'
tal vidraça e que não tomou mais corpo depois diante da treinando um til com o dedo pelo ar, a repetirJoao,Joao'
enquanto eu abria a porta, ele entrava junto, eu pâssavâ
minha üsta já bem exausta por tanros cafés, breakfasts, â

lunchs, dinners engravatados, onde sempre havia alguém a .hrr,. *" aproximando de seus lábios sonhadores' To-
discursar, lágrimas a derramaS uma boa comida sem dú- quei-os com os meus, de leve, as línguas quâse se roçâ-
üda, feita por exímios maítres italianos, sobremesas, ve- ram, recuarâm, eu queria sim entrar por suâ boca aden-
las, aplausos, talheres zunindo nos cristais das taças, cha- ffo, inteiro, nele peimanecer em mim bem dentro dele'
mando a atenção dos circundântes para este dali que eu acompanhá-lo paia sempre ou mais, ser ele, ir à Sicília'
jamais descobrira quem era, de onde viera, o que fazia ali u", P"l.r-o, .rrá1,r, parâ câsa, a dele, em pleno Bronx' ali
pois este dali também queria exibir o ser speech, por- ficar compondo músicas ainda mais sublimes do que as
-que alguns chegavam, eram saudados, outros se iam, que ele cÀseg.rira fazet até ali, óperas completas dedica-
eram brindados, e o mundo não parava de rodar em alta áa, a ,rão sei ã quê que a nossa imaginação só no futuro
rotação âté se retrair em certo ponto da jornada, largar a iria comportar. Na despedida, no terraço ensolarado' nos
última faísca, e então descer sua pálpebra secrera, nos es- abraçamãs e eu chorei, confesso' E choraria mais
por
toda a vida por esses desencontros quase que diários'
condendo de tudo o mais, de nada... Mas por enquânto até
eü não queria que nada se acabasse, mâis uma vez alme- que uma ,roi,. pudesse ter alguém ao meu lado' nós
".,
java um companheiro que comigo sim ficasse, como Ed- iois deitados sobre os lençóis recém-lavados, ainda tépi-
tlos pelo ferro de passar, sem nada mais a aspirar além
win por exemplo, esse tal músico que partia p^Ía Sicília de
de seus mafiosos ancestrais, me deixando com a sublime^ u- iono. Mas nem tudo ainda conseguira ultrapassar
aquela noite, eu juro, e já estávamos nâ târde do dia
melodia de uma canção de "Cosima", â suâ ópera (soube se-
um palá-
depois que decidira por esse título), a tal ária,,Bongior- goirra. no terraço da "Catedral" que de fato era
no". Ainda antes de vê-lo com a soprano vestida de heroí- lio, .r, sei, não nego. Eu dizia que a noite anterior não se
na atrás de sua üdraça, quando me mostrava ao piano da cumprira toda ainda, mas é urgente que tal se faça agora,
sala de música do palácio âs suâs canções, cântatas, árias, de imediato, para toda a gente que me ouviu, me ouve'
em suâ voz mais do que bela, prometi lhe dedicar o liwo me ouvirá no relato que periga até se esfarinhar, sei lá -
para todos poderem sentir que a vida noturna sempre
que escrevia na "Catedral" americana de Bellagio, retri- se
o
buindo assim a sua arte! Subimos parâ os quartos, e ao refaz, faz frio, não quero mais o anseio por um amante'

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Berkeley em Bellagio João Gilberto Noll

das mãos ta-


que quero mesmo é voltar âo cemitério dos monges me- tura que me devolva aos vivos"' Com uma
negro'
dievais no porão da "Catedral" da Fundação americana, t"io qo. tateio, sinto a pele de um-tecido' vejo ser
o foco para o rosto' é ele'
capela do século XI
-
a Death Cltapel como chamam aqui -r.ià, meio sorrâteiro, le"at'to com quem fui para trás-de
pegar a minha lanterna, verificar se a pilha agüenta até o rngnrroitaliano, o mordomo
-a eternidade, tentar ser um pingava a sobra
deles, sim, e âgora. Vou pas- uma cortina e que agora iátnão quero; ele
sando o foco pelas pinturâs restaurâdas pela Fundação, ã. -i;o na superfícíe daquele século.X[- ali tão apertado
náo quero nada
passando pelas paredes anciãs desse porão; passo bem de- no porão dos mortos." Eu me afastei' iá
me vem a ilumi-
vagar diante de cada sepultura sem nenhum relevo, ape- nem ninguém, sou sânto, é na Itália que
zgora
nas encimadas por já pálidas pinturas de crânios, abaixo .rrçao, não poderia ter sido na profana Califórnia'
dois ossos cruzados em xis, não sei se de fêmures, ante- ,"* pr""irarei mais do meu desejo incalculável por em todos
braços, sei que ali não quero mais ninguém; deito no os homens e por aquela única mulher'
a brasileira
com seu penls
chão frio, a lanterna contrâ um nome desses mortos, não Berkeley, â que me fez suar em frêmitos
ragazzo' imagino
consigo ler, não importa, o que é um nome?, e por que submersol âgorâ me ajoelho diante do
a b"raguilha aberta, a sua torâ de fora'
preciso dessa liturgia do avesso se não tenho ministério? a glande
;;;; no co-
é, não àai.rdr, lortro"rr; falo em meu latim que aprendi
-a Fundaçãorepresento nada; mas, por outro lado, por que
me vem à boca'
americana teria mais direitos do que eu na in- légio do meu tempo de garoto, falo o que
dentes' gengivas
timidade com esses ossos seculares, o que é o capital en- oãrpo rr".rí.rlo, -ão' lábios, meus
úe â aspereza fóssil onde imagino estar tocando aquém "*
não interessa o que tenho pra dizer na
língua morta'
dessas paredes que não me metem medo, nada?; para que
-eu mesmo já estou morto, digo ao ragazzo que me esque-
seu estupor diante deste louco' o
acumular tanto dinheiro se ninguém precisa dele nem de ça que eu esquecerei
sob a lua
nada, sou apenâs um escritor pretérito, me amanso, não *ordorrro ,. ,frra, e foge, toti", vai gemendo
congela o seu
quero criticar nada nem ninguém, sou sombra, nada mais até que o vento grosso entre as montanhas
sentidos'
me âssusta, provoca minha ira, meu descontentâmento. ,"rrá, diante da carne que em mim perde seus
Ouço por perto agoÍà pingar uma água insistente, duvi- à".-ri, sobre a laie fria ta"' Entre a queda e
o meu despertar, se despertar aqui de fato houve'
não
do por um instante de que a Fundação não tivesse toma-
a máquina do
do providências diante de um vâzamento ou de um len- aconteceu nada, se nada pode ser chamada
não deu uégua
çol geológico aqui se derramando, mas já não tenho corpo que bem ou mal, quâse pârândo'
dúvidas, me levanto com a lanterna em punho, vou âo en- .orro, à ,n", desejo áe fazer companhia âos monges'
me enterrâsse nos
contro do som parâ que as gotâs não se tornem uma tor- Queria que a Fundação americânâ
'ar-

t0
Berkeley em Bellngio
./oã.0 Gilberto Noll

dins da "Catedral", para não alterar, é claro, âs pâredes


históricas do porão das tumbas. Eu gostaria, eu juro, eu lamento, sei que ouço uma banda a tocar em procissão lá
gostaria de ficar ali naquela paisagem à beira desse lago fora, Nino Rota não faria nada mais belo, ah, é Sexta-Fei-
di Como cercado de montanhas de picos nevados, iníc-io ra Santa, as lentas velas do Senhor Morto por ruelas e
dos Alpes, debaixo desse céu azul sem mácula, ouvindo ruelas, a Madona de roxo, lágrimas em pedras semipre-
essâ voz grossa pela madrugada que nem é mais do vento
ciosas luzindo à luz das velas, mas nada disso nessas altu-
passeando entre os montes colossais, é uma alergia lom_ ras me interessa, eu ficarei aqui à espera que encontrem
barda que só eu escuto quieto no meu canto sem motivo o meu museu e nele eu possa produzir riquezas só com a
âlgum para soltar um ai! Quando acordei ouvi o sino que minha auto-exposição: eu ali, parado, no retângulo envi-
de hora em hora tocâ nâ Bellagio das ruelas ercadr.Lr. draçado, correntes forradas de veludo em volta para que
"
Sentei e percebi que tinha perdido o meu próprio não se aproximem tanto, quem sou?, por que provoco tâ-
fio de
história, como se acordasse, num repente, io." d, cápsu_ manha curiosidade alheia?, o que que faço?, se é isso que
la que me sustentâra por anos; pensei na minha idade, vi todos querem ver, enfim, eu sou alguém que nada faz,
que isso para mim já, não dizia nada, nem o nome que me que nada tem, nem âo menos o seu próprio corpo"' Do-
deram na pia batismal lembrava, se é que em algum dia mingo, tarde enevoada, alguém se dirige ao Museu Gug-
me deram um nome, um corpo definido, uma imersão no genheim, Quinta Avenida, Nova York; põe-se na fila,
tempo, se é que o tempo ainda não corre para esse nin_ ão-pt, o ticket para me ver, eu sei que ela me deseja, de-
guém que acabei sendo em meio à Fundação americanal seja o tal corpo vazado, sim, o meu, sem nada dentro'
me coço todo como sempre faço em situações assim, te_ Pergunta à guia filipina o nome dessa obra que ela não
nho ainda meus ovos, apalpo-os, arregaço meu prepúcio, direito, na verdade é quase cega se já não o for
".,rãrg,
mostro minha glande para essâ escuridão formidável, me_ inteiramente, mostra a bengala fina e esbranquiçada para
a guia filipina que arrisca um espanhol estropiado com â
dieval, meu pau expele um cheiro desagradável de graxas
substâncias, fede, sim, pois é: nas catacumbas figura cega que já confessara ser de São Paulo; a guia fi-
-ã ..r_
do, não sei exatamente a que ou a quem, me",rendo, sei lipina responde numa frase quase cubista em castelhano,
que não quero nem saber se fui idealizado por alguém; se a bem dizer sem pé nem tronco, mas â visitante brasilei-

esse alguém existe que me exponha pra ganhar


ra entende tudo porque foi feita para isso, para entender
grr_
na num museu em Nova York, em San Francisco, "1rra os que não querem mais ser entendidos, os que já se reti-
Chica_
go, ou sei lá, Toronto; que a multidão me veja no repuxo, raram do conúvio da expressão, são como mudos, vivem
e tânto hz de que lado o show for visto, não import, ,r"rn
do que lhes assoma dentro dos miolos, dizem o necessá-
rio pra ganhar o seu sustento, nenhuma palavra entrâ em

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Berkeley em Bellagio João Gilberto Noll

seu lazer, se é que suas vidâs ainda o comportam. Que la- blico que permânece ali como que viveu sem saber a eter-
zer comportaria esses dias dominicais exatamente como nidade irrài.r, é disso justamente que vem o fascínio des-
deveria ser aquele enevoâdo, sem nâda prafrzer além de sa população pela imagem ausente: é que, ao contemplar
um espreguiçar, bocejos, um arrastar de pernas pelo trit f-iao.er, o tal ser em exposição imanta-se de todo o
quarto, como se convalescendo de uma enfermidade ima- tempo favorável que the sobra, o favorável, escutem!' ex-
ginosa? A pessoa ainda tem pela frente vários domingos pulsando então âs âmeâças vindouras, bombardeios'
assim, mas vai em frente nem sabe bem pra onde, dobra suicidas chocando-se contra torres, doenças, trai-
a esquina, entra na fila do Guggenheim, comprâ o seu rzc-
"ü0., e o público aí tem a sensação de simplesmente
ções
ket para ver a obra que a filipina não sabe lhe dizer o
-
não serup.rrm mais um entre já tantos, tem a impressão
nome, se é que tem um nome, um corpo inexistente ape- de que ,. furrdiu em harmonia a tudo num segundo' em
nâs a perceber o que se pâssa em volta além do vidro, que ,.olt, daqrele menestrel ali sem melodia, sem alaúde'
apenâs reconhece estar ali pârâ ser visto sem nada o que poesia, ,rlrro natural dos peregrinos já fazendo a volta
,
mostrar, um homem que ficou como que morto nos po- .ro qrrr.t.irão só para assisti-lo, depois entrando pelo
rões da "Catedral" da Fundação americana à beira do museu com o coração aos pulos, a bem dizer dementes
lago di Como, ântigo palácio que já hospedara até Da para contemplá-lo no invisível de que foi refeita sua car-
Vinci, sim, na Lombardia, no outro lado do Adântico, e ,r", qrr" ,, io-brrdia ficou em pa4 prâ sempre "' }J'á\
agorâ está aqui no Guggenheim, sem que o público in- uma mulher na frente dele, sim, a cega, à cega que pare-
cessante se aproxime muito da corrente que o protege ce querer vê-lo tanto e tânto que levanta os braços' a ben-
desse mundo, ele é um faquir sem assento de pregos nem gala cai com estrondo, na ponta dos pés ela fica como se
com fome, que âpenas escuta o senso estético na virtuali- á dr.tçrt, gemendo, a guia filipina se aproxima, quer acu-
dade máxima do mundo, pois o vidro não é à prova de di-la mas"não sabe ao certo o que pode fazer, se pode' se
som e ele escuta, escuta sim quase o tempo todo, mas â cega tornou a erxergar @manho o espânto diante da
nada lhe custa nada, e ele inclusive até pode se alhear dos mi.rha presença aquém do vidro, muito além da física'
ruídos que assim jamais o mortificam, ele esquece, esque- igual à pr"r.rç" fraudulenta de um deus atrás da cortina
ce com facilidade o que ocorre em torno, se refluindo até do sacrário, sim, a cega torna aver, é isso, a multidão a se
um ponto onde não chega nada, nem o som, nem o que dispersar da fila prr"i. confirmar o tal fenômeno' todos
se chama de a face humana, um sorriso, a tal lágrima fur- ." po.- t^g^ril^, em volta daquele tabernáculo profa-
^
tiva, nada, e fica assim por algum tempo que jamais des- no onde eu vivia em meu resíduo agoÍa muito além dali'
cobre, pois ao voltar nada se passou, e o mesmíssimo pú- já de visita ao meu pobre corpo da Lombardia' desinte-

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Berkeley em Bellagio
Joã.0 Gilberto Noll

grândo-se já no outono frio,


na cera amarelada em que
carne se transforma, meio a versar com angloparlantes dessa ailla da Lombardia tinha
esmal ;ada até,parece, ,ra, ,ãr_
peras de perder enfim sua se blindado de tal modo que não se deixava penetrar mais
superfície e chegar aos ossos
eles próprios em ruínas: pelo úrus de nenhuma outrâ língua, porque é certo, não
entã; -" "";" aqui em Bellagio
o q:. fazer de-i-, i.río ior, ,- sono qualquer, eu estavâ perto de entender -
a intuição de que
lur':,:ib_.:
na murro não saio daqui I'm interstanding, é isso, I'm speaking euerything -) eÍà
de onde adiünho o, *",r. dlrl
pojos no pó que se levanta esse o sono pelo qual os gringos em volta estâvam espe-
misturado ao sol que não
anima mais mas me devora, me rando, parâ que a partir daí eu passasse definitivamente a
hora que lenta cai atrás daquel.
a.*__. no ocaso dessa frzer parte deles, talvez com um disco rígido nâ mente
o topo já bem nevado de nàvo, -orrt. .orn o programa inteiro dessa tal de língua inglesa' Tirei
Iá na frente, com
o venro ardendo em mi_
nhas orelhas como se eu algo do bolso, abri o papel amarelado: erâ uma foto que
ainda as possuísse: estou aqui,
vejo o monte, a noite que rora só .útei a identificar... Ali estava eu nâ tarde ensolartda,
p.i".*or,a e esconde de camisa aberta ao peito, em primeiro plano numa passea-
mim a imagem que nem sei se
tenho ou tive, se não fui
um engano... It,s ok,_it,s ok, ta contra a Alca no verão porto-alegrense, claro, durante
me surpreendi prri"rdo d"rJ
jeito num repente. \Ãrei_me, o Fórum Social Mundial; eu segurando um cartaz que di-
.li;i;r;; cima e ü a ,.Ca_ zia "Não à Alca" quem tinha tirado aquela foto, por
,.did_ j-3 Fundação americana ptrritra" -
no alto da coli_ que agorâ dentro do meu bolso? Só tinha uma coisa a fa-
na da Villa Solti, como o local
ainda á chamado nas pu_
blicações turísticas expostas
pelas ruelas de Bellagio.
,.. .o- ela: apertá-la, apertá-la o suficiente até torná-la
Virei-me, olhei para ,l.Crt.dral,, uma coisinha infima. fusim fr2. E enfiei-a sem dor pelo
americana, ü que ela
continuava ali com toda a r.ra cu. Ali ela ficaria enquanto eu não cagâsse, enquanto eu
po_pr, rrao irnpo.rr, o que
importava de fato naquele não cagasse ela ficaria como a memória subterrânea de
irr.irrrt q.r. eu já pensava
em inglês, já nã,o conseguia "r" um
processar
o-" t"id" de verão em Porto Alegre, não tânto da cami-
pensâmento nhada em si, mas de uma luz escaldante que não quer pâs*
que não fosse em inglês,1e
p.rg.rrrr.rr"m de onde tinha
vindo a rependna fluência sâr, tão forte quanto o súbito inglês dentro de mim' Um
me ouüa cá denffo responderia
,rr*r, um cínico que
i.:* qo."", bela tarde de verão em Porto Alegre hein?, quer mais?
fora iluminado -
duranre o meu lonuo, longo Confesso que no meu primeiro pensamento aceitei essa
;;;i.;spírito Santo _ condenaçãÀ de dominar âpenâs uma novâ e mais do que
Holy Ghost, é lósicã, tudo em
inglês. Na minha sã cons_
ciência eu já acf,ava que não, poderosa língua, não nego. Dias tranqüilos com Edwin
achava que, durante esse
meu interminável soná, tudo no Bronx, embarcando todas as tardes no subway prâ pe-
o que fàrr levado â con_
", gar um filme europeu ou brasileiro, iraniano talvez, claro,

t6
t7

r
Berkeley em Bellagio
loão Gilberto Noll

todos legendados _ pagar


os ilcketscom os proventos
meu lavoro traduzido do cle, é ele sim, pergunto de onde: tratâ-se de um escritor
O:.1 : i"Sier, o russo, o japonês,
me sentia no circuito globaliza"do iá rle Chicago, mais precisamente um playwriter com quem
á, fi.çao.imf;;;;#
qáS1.:.: de papel. Subúdo , oiit, q,r. ia não precisarei mais flagelar a língua pâra me fazer enten-
dral" da t""a,çlll eu dizia q;;-;;r=.rquanro, dar na ,,Cate_
der, é belo o homem, conversamos, ele pergunta sobre o
pero me-
nos, não queria viver. ensaia.rào que que eu escrevo, vou lá filosofando em torno do meu
juvenis, não; eu viveria irl",rrrs ürtuais em shes personagem de sempre que apârece a cada liwo; ele per-
,_ por"o com Edwin, um pouco
em Paris, pâssagens pelo
Rià, Sao prrto, ofr* r";;*: gunta meio irritado o que acontece de fato nos meus li-
mo Fórum Mundial em pomo vros, digo que não sei contar talvez porque nada aconte-
A[;;" eu aparecesse na o que
caminhada nela
Bo.g.rã! ça de fato nessas minhas histórias, mâs conte, conte
Medeiros com um
caÍtaz em inglês,fve1id.,
U U,!r:, p"., qu. de fato âcontece nesse não-acontecer nada, pára!, res-
ninguém p.r;;;.;-; -
minha mensagem pedindo
p.f* p""., que ainda estavam pondo no meu inglês irretocável, de um golpe entendo
por ür: não os es na pele o mood americano para a açáo, tá certo, fora da
q u er m omer r.,
rXll'fi .H' :"r,ffi ação eles não ficam muito tempo, querem sempre o mo-
L?#_
rn.rrno":','#J#i
zem demais suas" consciência, vimento em progressão, mais e mais, e mais ainda, não
qre a favor de sua
permanência e ho importa para quê, se para matâr, dominar, construir,
tona com morrer, salvaq amâr, mâs que se siga adiante; esse escri-
"rsu_,'111,;:X,lT:-,1.d:.i#:lT;
mostrem muito enrusiasmo pelas indústrias tor americano por exemplo na minha frente só tem um
de consciên-
cia de vocês, não, não, t^luri"ã" desafio a fizer â seus alunos na lJniversidade de Chicago,
gâr sua existência à.força,
ú;rLeresse mais vin_
talu., qr.i.r_ âpenas conti_ ele conta: não quero saber do sentido dessas coisas que os
nuar molhandoos pés no
Guaíba ;-;; di como, personâgens fazem, a perguntâ é: o que acontece, o que
à noite
se porem no melhor
trajeparuouvirem seus poemas, acontece, contem, contem, o resto é ninharia para enro-
can_ lar a fome intelectual dos povos subalternos; não adianta
ções, operas, sei Iá, tudo aquilo
q";.;;r.grirem erguer
na sombra de uma boa árvore
.o_o ..* .qui já meio des_ tentar arrancâr à força, sem anestesia, o estrâto da mor-
folhada peto ourono de Beltagi;;-;;;;" te ou de outra inércia menos grave; só o que transparece
orho enquanro
subo pela trilha e vejo
que um novo residente nâ suâ velocidade genuína é o que interessa pâra os ou-
chegou...
Ele desce indo para a alàeia,
pá;;, ;;bo sem maiores tros. Eu quase que me encolho diante das assertivas dele,
surpresâs que
ele tem o pbystqae d.i rôk os meus românces então não pâssam de seqüelas do sub-
do romance que vim para a, pr"arg.rir,, desenvolvimento, esses personâgens um tanto crônicos
escrever aqui e que avança,
é que faço, que não sabem nem pâra onde ir, se for verda-

t8
í9
Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

de que procural_a.lgum
caminho; ainda nâo
nem ao menos a técnica enconúararn rrrinhas caminhadas a partir da Usina do Gasômetro até a
mais el..rr
não sabem como rr"rr*
i,"r;;Hffi.11J:*;:if: l)rrrça da Matdrz, descendo aí paru a Praça da Alfândega,
c rlo entrar no Shopping Rua da Praia contâr quântos gâ-
assim' di'
**.jr::,;'u cavar seu próprio "i;;;,ra
se desraca da na- rr»tos de programa estão postados nas imediações da por-
pondo num asso enredo' s"", ;;;- ;;: llrria, quantos homens maduros, mesmo velhos, a rondar
suprema pegando
do sobretud" , I:*-'ucidez do borso por ali farejando a companhia de um deles, mas qual de-
r,*r; ;;;;;#i1:l"lJTflyJ[ :om
a quar ro.g.,- lcs?, há tantos
-
então os mestres grisalhos sentam por
nagem enúe a in rrli, alguns no café do McDonald's, logo ao lado do üdro
l)âra a rua, um aquário não para quem cobiça a carne, mas
;,:::A'*'g::*'#ili:['J#]:1i:#"JH: rr grânâ desses mestres sem lição aparente para partilhar,
;{ã,ffi
*iminha r folhear jornais e revistas disponíveisl um deles, cava-
da üiü.jr: :ffi ::tiffi:H1ff ;Li:
máquina:-noto qu. esia áolhado na
nhaque azulado, diante de um livro de poemas, Auden, dá
perulância do seu ürilha. para ler ao se chegar mais perto; muitos ficam a esperâr a
púbis já ;;;il"; a

l l:.r*f:i .- pr* o ê-";


pelo meu foco, sim, * ;';:,1:,;,,:{:::::!;:; sorte grande de um gâroto sentados num banco da praça
ao lado de ancesúais amigos que ali fazem o mesmo, fa-
é ele si#;;"-;
a""''"'*;T :#:Tí!T;l#] rejam o gozo dessa tarde que já vai em meio
-
há hotéis
l"',ffi H[;f}" mão
que udo já voltou
na braguilha para testemunhar
nos arredores, cobram pouco por um quarto, quase nada,
o movimento é grande, grande a rotatividade, o garoto
seu. caminh., o*...r. pede quase sempre o pâgâmento antes do encontro, o ho-
Bellagio que ele *,..á 1!L::Tff
p.l, ü;;;;t;
;: ;"":il#Hl: mem maduro então revive sempre os mesmos gestos,
condnuo tendo o
m",,'.,,1,.I^':':'li
quamo e ao lado ':", .p?, certo... Ah, como se fosse a mesma lenda a se desenrolâr em todo o
aio, dàle o *.u .rül fim de tarde: o jovem permânece de pé, o homem se ajoe-
r,g. "*ir,r;;;0r.,
ai cá_ã,HHff;I:
balsa com os beros.
.
ffi,"*,anera,
;..; lha, abre pouco a pouco a calça hirta do rapaz que tam-
bém sabe de cor aquele ritual de poucâs palawas, se é que
rrr,.olol#..",#I.j:l;l,TfiI:
sim, as mesmas,
existe alguma ainda a ser dita; pârâ que palavras se esse si-
*::::torno, não me t lêncio enúecortado de respirações fora do ritmo é o su-
ffii*?:J','ij: a escrita d" *., r;:X:T,.ti:üi?
ro,,, er.g;; ffi ;Iffi .r*Xl;:;.ffi,ru;:l
ficiente para abrir com lentidão medida a ctlça do rapaz
que âgorâ começâ de fato a respondeq reage ajudando o
mestre que esperâ com os lábios entreabertos esse exato

60

61

H
Berkeley em Bellagio João Gilberto Noll

rnstânte em que a feru vai em frente e se estremece na rila outra porta do mundo teria o meu nome exposto as-
gargântâ desse velho sátiro demente... Eu ando como sim frontàI, inequívoco, ardendo nâ presença de seu
sempre por esse shopping com o ar um tanto alheio, às ve_
dono, ardendo inutilmente... Olho o meu próprio corpo'
zes uma ou outrâ caretâ pâra quem me olha em demasia,
vejo que continuo o mesmo, uma quimera em carne viva'
sobretudo pâra os mesmos segurânças, esses que se lixem,
louco como em Porto Alegre pra me iogar na câmâ e me-
quero só ser invisível, não me deixam, e então vou pro ditar sobre a delicadeza de um outro homem, dessa vez é
banheiro mais imundo, me tranco e bato rma ponhei, a Edwin e pensar que a máfia em Nova York não cravou
me ferir a pica!, voltando logo para dormir no meu horá_ -
suas mârcas no seu gênio! E o que ele sabia me contar
rio de hospital, puro, câsto, sânto, como sempre fui até além da música era isso: à noite, ele dizia brincando com
chegar a Bellagio e me sentir um outro por esse corredor
suâ grâvata italiana, à noite, meio que adormecendo'
ten-
por onde vou pâra o meu quarto, pr.r.rào diante da por_
to ,[r"rd", teu nome e o repito, repito sem saber ao cer-
ta de Edwin para confirmar, maníaco, se de fato o cara já é de fato o mesmo que ouü da sua boca num dos
to rà
partiu em lazer paÍa â. Sicília faço meus cálculos pra "1"
corredores da "Catedral", você ali, você, meu caro amigo
ver se já deu pâra ter retornado-a Nova york criando rom
brasileiro, â repetir pela milésimàYezpàÍà que eu pegas-
canções românticas: pâro diante da porta que foi a dele
e se parâ,"*prá, Joao, Joao quase grito deitado no
vejo agora o nome Mr. Lovell, ah, o escritor que acabou *"o qrrr,o, ouvindo no radinho um carâ da RAI, sempre
de se comunicar com o meu repentino inglês Íiuente, tão
, RAI, falando que falando no seu programâ cultural dos
fluente que de seu corpo deslizou o sêmen que não pode
sábados, dessa vez entrevistando alguém sobre as chagas
seguir as conveniências ao se arremessâr sem seu dono
do Brasil concenffadas agorâ no meu dente que pega a la-
mesmo se dar conta; depois vim a saber que Mr. Lovell
tejar, doer, fazend'o me cobrir inteiro debaixo das cober-
era casado com umâ alemã da pesada, cineastâ da desme_
tas. Sei com toda a ceÍtez^ de que estou de novo no meu
mória entre bêbados e drogados que acordam sem saber corpo e que ele dói, dói tudo o que tinha pra doer, até que
como foram dar ali naquele quarto, um pires com leite eu me lerante, vá tomar uma ducha e depois nu diante
do
espelho me aperceba de que o meu corpo já cansou da
para algum bichano no chão, ao pé da cama; a câmera vai
pegando a brancura do leite, nele se afoga _Mr. Lovell,
dor, pra sempre' que ele úiunfou, é belo, com ele eu po-
eu cochicho para o cartão que eübe o seu nome tendo
deria conviver o resto dos meus dias, mesmo que esses
nas bordas uma pequena moldura dourada igual à minha
dias se somassem em séculos; conüver com ele feito ago-
râ, trazendo para trás o meu prepúcio, examinando a mi-
na porta do meu quârto; quando encontro ali meu nome,
sei que ainda estou vivo e em Bellagio, porque em nenhu_
nha glande, àlhando no espelho pros meus olhos, meu

62 63
Berkeley em Bellagio João Gilberto Noll

lá pelos
nàriz, a boca, os dentes que não sabem o que é doer
John Kennedy antes de ele ser John Kennedy;
'rn,rs ou seja' o
muito, muito mesmo; eu já conheço esse meu corpo 40 aqui já era uma fábrica de líderes'
teiro, e nele virá alguém, eu espero, e o fará sentir formando suâs futuras lideran-
[o com que eu já nem contavâ mais tocando nesse ou
irr.a" .rpital americanoBellagio' uma verdadeira incuba-
em
çrs de Washington
nesse aqui agoÍa assim tão branco quânto eu l,;;;; po. "rfr"o tui dar ali, o que fazer' prossigo? oSim'
magro, veias salientes, a franja recuada pâra que â testo renascentistâs' es-
rte. úa àr.olhi olho para os quadros
onde ele devia se
ir"irrá ."- rnoidor,
toda, os olhos, o sorriso sejam beijados e morrâm outra .h"i" d"
"abescos
cena' não' não havia
vez, mals outra e outrâ... Eu me debato agora, corro pelo rrrirar estudando o seu futuro em
que io-
quarto como se numa dança afro, bato com a cabeça ne .,tJrlr.f.i" no pedaço,John era mocinho' dizem
da colina por
parede porque só consigo pensâr em inglês, o que treino
;;;;.á;;;;a quadra dos iardins lá em cima
suado e na corrida'
pra dizer no imaginário para alguém já sai corrido nessa «rnde eu passavâ todo o ú' d" manhã
língua como se o idioma tivesse pressa de chegar para me ajudasse no aprender
f.* qo.'. circulação sangüínea hóspedes desse Cen-
vencer meu português, matar o meu oficio, a minha ocu_ inglês pra convers,t to--o' outros
qação deportar no primeiro vôo de Milão para São quem?' a talcir-
;;"?r.. ela acabou me respondendo'inglês
Paulo, parâ eu descer em Porto Alegre como um gringo ;"1;;- "- plena forma, ela me deu 9 brilhode-dobandeia' idioma
desvalido, sem saber o que fazer de mim numa ãia"á" rÉi, foi elà, foi ela a responsável
pelo
que eu jánão reconheço, não sei meu endereço, não lem_ ""
que ostento como natureza' o idioma que
bro de parente, se perguntam onde fica essa tal rua eu "^' 'ágt"'da foi o antigo hóspede
me fará ser outro, um lídei como o
nada entendo, se sou eu â perguntar alguma coisa é a ou_ desse quarto, vou levar um tiro
bem nâ nuca sem esposa
trâ pessoâ a me olhar sem dar rumo âo pensamento, o in_ miolos e os erguer acima das na-
glês é a minha língua de repente, não poderei sobreviver
;;;Gt" segurar meusLovell, o airoso som das taças de
ià"r, "., briido com só encosto a
com meu gasto português já esquecido, abro as janelas, .hrrrrprarh" se tocando, sim, brindamos'
gota' continuarei na
penso o que faze4 se me jogo no di Como, se volto cor_ borda da taça nos lábios, não bebo
rendo pro Brasil, até que vejo que vem vindo o escritor das glórias da Po-
minha âscese para desfrutar mais tarde
o mesmo quâr-
de Chicago, o tal do Lovell que esporrou diante do meu tência, não sou mais brasileiro, freqüento
ainda sou
inglês em risre, âgora ele volta da aldeia de Bellagio, olha to de Kennedy na sua iuventude',eu também
,r* *oço, ,"rr'ho o tempo a meu f*ol terei meus
pra cima, pergunta se não quero tomar umas e outrâs livros
todos os
com ele no seu quarto, não penso duas vezes e já estou qoriq.r.r liwaria dá Hemisfério Norte em
sentado numa das poltronas do âposento que abrigou "-
idiomas, mas o aroma do champanhe
me dá uma caga-

64
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Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

neirâ, periga eu ser umâ gâtâ borralheira


passâda a meia_
noite, corro até o banheiro do quarto não quero mais ficar aqui nem um só dia, se é que vão
de Mr. Lovell, me -me deixar sair, agora é tarde, só entendo o inglês, mâs na
exâuro, fico magrinho, bem
-rgrirrho como se não tives_ Itália o português teria mais utilidade: um dia fui pedir a
se mais nada o que câgar no meu
resto de vida; faço es_
forço pra me levanraq ãho_-. no small coke e me vieram com um vaso de porcelana, não
espelho, digo à _irrh.
imagem que sou mais o Mr. Lovell "próprio digo nada, pago pelo vaso, vou em frente, na primeira
dá qr. ele al_
gum dia projetou ser Iá dentro dele, ruela de degraus eu desço e jogo o vâso escada abaixo.
o .rp.iho^p".."" Uma mulher se assusta, frca hirta rente à parede cor de
querer ver a minha caveira: mosüa_me
doente, boa, telha, eu me aproximo, abro sua gabardine, seus braços
seca, a palidez impressionante,
parece que desse jeito" es_
quecerei o meu inglês, voltandá estão em crtz, vejo a máquina de fotografar dependura-
,o _., já saturado por_
tuguês, ah, me yiro contra o espelho, da ao peito, seu inchume de álcool e massâs que deve es-
limpo a bunda e o tar comendo muito aqui, quem é?
papel higiênico volta de lá com diz ser mulher do
sangue, estou mal, esrou -
arquiteto australiano, chegou há pouco em Bellagio para
morrendo nos aposentos de Kenneãy _
de que adianta encontrá-lo e irem juntos a Paris; o arquiteto australiano
a realeza?, voltarei pâra meu próprio
quarto palaciano e
volto mesmo, Mr.. Lovell ,raá .á-p.eende sei muito bem quem é, encontro-o pelos corredores, pa-
nada, ainda rece de tão pouco falar quanto eu; embora odeie Nieme-
ouço ele puxar a descarga pois esqrreci
a merda toda lá
denffo com certeza, puxâ mai, ,rma yeq diz que gostaria de conhecer o Brasil, diz todas as
vez, mais outrâ, en_
.tro no meu quarto e já bobagens que todo mundo diz em volta de um piano,
não ouço nada, caio no ,rp"a., .tro_
mito o que me sobra, é ralo, quase nada _ após o jantar engrâvâtâdo e com o copo de uísque na
perco os sen_ mão. Eu abro a gabardine da australiana em pânico, digo
tidos com a sensação d. .rtrr num
vôo rumo âo Brasil
onde todos os santos haverão de que andei bebendo, uma mentira, pois não ponho pingo
me ajudar mâs eu j,ínem
sei se quero estar lá, aqui ou no de álcool na boca há anos, ela é quase bela não fosse o seu
inferno... euando acor_
do me vem de novo o inglês, sann! inchume, fala até â morte sobre qualquer coisa, digo que
d.ny, ,rrr ntind e to_
das as expressões em que eu abri sua gabardine para que ela pudesse sair do seu mal
antes tropeçava com yee_
mente insistência sem saber por quê. súbito, digo que quero agora velar os mortos em algum
Levanto, olho mais
uma vez p-a:a a imponência cansativa cemitério que encontral pergunto se ela me acompanha,
da paisagem à fren_
te, estou febril, tenho sede, se sede é tão bom falar inglês sem ter de precisar de outra língua
ainda posso chamar o
vácuo onde caberia não só água, que vou falando sempre em frente, sei que ela me enten-
mas comida, pedras,
barro, e todas as promessas masdgadas de às mil maravilhas e que gostaria de entrâr nâ conver-
nesses anos todos
sação, mas não dou brecha, já que quiseram que assim

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Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

fosse o inglês àgora é todo meu, só


meu, eu a puxo pelo religião católica que eu, como brasileiro, certamente já o
braço em busca de um cemitério, conto
que sou um ex- lirsse, pelo menos já dewa ter sido alguma vez na vida.
morto, que já visitei os infernos mâs me (Jue nos convertêssemos enfim para alguma coisa que
encontro nova_
mente dentro desse corpo, ela queq em certâ
pausa desa_ nos tirasse os pés da lama. Capire?, ela falou pra demons-
visada minha, quer sa_ber .o-ã é que
um morto pode trar sua adequação ao meio onde tentava estâr. Capire,
estar aqui puxando pelo braço dela, levando_"
p"_ rnurmurei, capire, e recomecei a andar pela trilha olhan-
las aléias desse cemitério quá enconüramos: "r.iá
como finado tlo a noite clara era realmente bem clara naquela épo-
sou um pouco menos do que eu, confesso,
mâs continuo
-
ca do ano em Bellagio. Para falar a verdade, eu já subia
üvo, emendo, só que quando penso estâr no
passado é no aquela trilha mais uma vez sozinho, a australiana tinha
presente que me vejo, quantâs vezes
penso estar vivendo me escapado como geralmente tudo, eu teria de me virar
agoÍa e quando me apercebo ainda .ito,
po, ter a expe_ sozinho a partir de agora, não resolvia nada resmungâr
riência no futuro, ah, não imaginas a confusão
de instan_ exclusivamente em inglês, já não podia adivinhar se isso
tes, tudo anda amalgamado ãm mim,
em mim tudo é me adiantaria de alguma coisa um dia lá na frente. Igual
pura massa informe, sem face que me
distinga entre os à australiana que sumira de repente, eu também sumira
demais. Só você me vê como de fato
sou, sou este, e co_ dela, e talvez esse seria o destino de agora em diante para
migo assim visitaremos cada sepultura, uma os habitantes dessa terra: continuariam a se freqüentar,
a uma, e a
üda que às vezes parece ser feioz se aquieta na certa, mâs tudo bem avulso, só algumas instituições
enffe nós
dois, vem cá, relaxa... por essas noites,
talvez algumas como a da Fundação americana resistiriam firmes como
mais, mais outras, teremos o abrigo da
Fundação r-e.i_ pedra; os seus residentes como eu agorâ seríamos todos
cana. Clamo que ela venha comi[o subir
a tai colina da como óbitos a curtíssimo prazo, ninguém saberia de nin-
chamada "Catedral,,, que não r"
de que esse bra_ guém por muito tempo, as crianças cresceriam num pla-
sileiro quis seu bem, que ele não "lqr"ç,
à ,rrn ,...orista, nada no outro do que tínhamos conhecido até aqui: plantariam
disso, não mata uma- mosca em pàzvive
, consigo e agora suâs sementes desde cedo, colheriam após um, dois anos
quer dormir tristonho... A australiana pára
no meio da seus proventos, não precisariam dos adultos, não, por
trilha para a "Catedral,, diz que ,.,
-r.ido é .hrto, por_ muito tempo: aos dez, onze anos já seriam elas próprias
co fala, só se queixa. Havia alguma coisa
no ar que eu não adultas, antes de menstmarem ou terem esperma pra jor-
conseguia pegar. Seu mando é chato, e
eu com isso? eue rar ficariam pelos cantos se roçando, se roçando, até es-
fôssemos nós dois para Bérgamo, ela
me convida. euem târem prontas pra gerar. O jovem macho então se lambe-
sabe lá nos convertêssemos não necessariamente
prr" , ria ainda ávido e voltaria para o seu ponto de caça em

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Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

esquina, enquanto a jovem fêmea,


.rlry-,
bêbada
Iânguida de (luem me fala essas coisas é aquele que todos chamam de
se deixaria
lamber p.to nn ot", assim _
até acor_ «r "Bispo" da Fundação. E uma espécie de diretor da ail-
dar... Ficavam encolhidrs rmrr.o_
,, outrâs essas crian_ ln, et relembro e ele continuâ: necessário descascar as
çâs, se escondiam em ruelas fétidas do Iixo
d. i.rrtiru4ã., sombras e chegar como um milagre âo ponto, esse ponto
como essa daqui onde enúo agoÍa,sabendo
entrando n ela já nã,o tenho .Ão
qr. rr_r,r* que os americanos souberam expor com galhardia duran-
prescindir do seu abri_
go. Vou direto para o meu quarto, te o século passado, âo apârecer por exemplo alguém
antes procuro investi_
gar se a porta ainda mostra o como Hemingway, provando que o estilo só se estabele-
meu nome _ está ali, sua_
do.pra chegar até-esse dia nessa po_pr, ce quando se o esquece. Falei boa-noite... Ele tentou um
tendo como movimento em minha direção, me bafejando mau hálito
moldura uma fina linha dourada
cieia de voltinhas, de dentro de suas vestes eclesiais, tudo em púrpura ou ver-
meandros, ah, entro aliviado no
meu quârto, vejo que ele
é meu ainda, na cama preparada melho, sei lá naqueles corredores os corpos erâm sem-
, .oü.r," dobrada com -
pre penumbrosos, como se a luz de fora ali se recolhesse
distinção numa das pontas superiores;
levanto_a, olho para com mais força se irradiar nos principescos quartos
por baixo, vejo mais u* que há àoi, .obert;;.;;-i;
superior, bem lisinha, !^^ e esúdios; andando meio manco pelo corredor coisa
lençol de linho, ffavesseiros fartos. -
que eu fazia às vezes, a fraudar meus rastros, esperando
de deitar ligo o radinho qrr.
T,.r. oorr" comigo do Bra_ receber uma espécie de salvo-conduto da humanidade
sil, sab.endo que aqui eu teriâ ,rid,
d" .orrvento, sem TV
ou rádio no quârto, sem nada diante da minha insuficiência pelo corredor senti o
tarefa a que me propus: um livio
que me dispersasse da séria -
"Bispo" me seguindo como sempre. Deu para chegar
que r. prod.r, quâse so_
zinho é só sentar à frente do à.o com vida diante do meu nome à porta do meu quarto,
- kpnp epronto, lá quando afirmei, queixo contrâ o peito pra despistar al-
v.em a história que eu não
conhecia aindà, É irrà, hi;;_
ria qu_e eles querem que eu faça: " gum sinal que surgia pouco â pouco em mim e me com-
conte uma história, não
complique; alguma coisa que prometia, disse que amanhã faria mais duas páginas, que
dê para amanhã mosúâr
pros nossos filhos, netos quem esperâsse para ver a síntese pulsando ali, sem nenhum en-
sabe; o certo é que já es_
tarão. bem longe das letras, e feite, sem nada que a maculassei Que bom, ele respondeu,
então pra fixar_lhes â aten_
ção é necessário contar direito o q,r. se passou, que bom, até amanhã, tenha um bom sono, leve a bom
sombra do caos de onde viemos,
sem a termo a vida de suas páginas! Ah, quase me esqueço de
poir rro ambiente uteri_
no tudo é caos, e não é d. ..g_..rrão contâr: antes ainda passei por um quarto onde duas mu-
de muito mais, de ,r-
que p.".lrr_, e lheres de uma universidade de Boston, uma argentina e
"1.,
-,r.ão que áesdig uma americâna, posavam deitadas numa cama de casal,

70
Berkeley em Bellagio João Gilberto Noll

nuas; posâvam pâra umâ fotógrafa lésbica que conheci na que nelas sempre cabe mais do que o previsto, desde que
aldeia de Bellagio, ourra chamada Cosima, que mosffou não se saiba de que berço vieram, se nâsceram de enco-
vários ensaios fotográficos de mulheres nuas pâra mim menda ou de parto fortuito: basta que se aceite o fato de
num bar chamado La Divina Commedia, orn bar dividi_ a canção ter sido roubada de seu silêncio, ela retira sua
do, em seu pequeno espaço, nas três estações do poeta; belezajustamente desse furto, talvez não haja mais nada
nos encontrávamos justamente no purgâtório _ onde a lembrar do primeiro murmúrio de onde foi se extrain-
mais apropriado seria para nós dois?, pois ambos vivía_ do a sua singeleza, essa dona poesia que talvez nos acom-
mos procurando alguém que nos desse a razão para es_ panhe muito além da sepultura, por que não?, pergun-
tancâr a compulsão por praticamente todos os outros tou-me uma vez t fotógrúa lésbica, a loira Cosima, por
corpos iguais âo nosso que não, hein?, me diz por quê?, ela insistia desenhando
- nosalguém que esperávamos
esse
âcontecer e assim de súbito conduzisse ao pomar da com o dedo pelo ar umâ linha imaginária que eu acom-
cama, um ouúo alguém do mesmo gênero, é certo, pois panhava enquanto sentiâ um formigamento pelo meu
essa adição do mesmo nos inspirava mais a pele, ,ràrm Lairo-rrentre, como se me libertasse, enfim, da minha
fonte arcaica de afeição, desde o dia longínqro .- qo" própria forma. Entrei no quarto, incontinenti liguei o rá-
tocamos nosso púbis pela primeira vez sem a intenção de dio como sempre, nâ mesma RAI em que discutiam tân-
usá-lo para mijar, quando o gozo que âté ali não viera em tos assuntos culturais, políticos, e que às vezes também
plenitude nos arrebatou justo da nossa própria forma trazia música Schubert, Nino Rota, Jobim, Elis e tan-
parâ outra idêntica; erâ nesse campo que eu jogaria e Co_ -
tos outros que â torto e a direito davam o espâço que de-
sima também, algo que âté ali só podíamos imaginar no veria ser só deles para tâgarelas recitarem em italiano
ptazeÍ subentendido nos vértices púberes do sono. Sei suas bobagens âcerca da vida dos tais músicos e outros,
que âo pâssar pelo tal quârto notei que era aniversário de outros mais, mais outros sempre há um mâestro por
uma delas, pois vinha dali a canção ,,Lâs mafranitas,,, uma -
perto, uma cântora lírica e não sei mais quem para dis-
canção de aniversário em alguns países do México pra Lrrrrr sobre a biografia e detalhes da obra daqueles que
baixo
- sim, eles despertam o aniversariante com eisa
música, tarnbém no Dia das Mães, no dia do santo ono_
se âpresentam pâra oferecer tão-só a chispa pâra o prosai-
co palheiro! Cavalos relinchando sob relâmpagos, Úo-
mástico, contou-me uma venezuelana artista plástica que vões continentais, só isso calaria a voz que tergiversa em
esteve na Fundação por um relâmpago: tais versos podàm cima dessa cantâta de Bach onde me aquieto e adormeço'
ser cantados pâra a mãe que em sua data é acordada pe_ Acordo. Sento. O que fazet? Dessa vez tocâvam uma mú-
los filhos com essâs insinuações poéticas tão segredaàas sica hindu; saí da camâ, sentei no tapete e pus-me em

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Berkeley em Bellagio
Joao Gilberto Noll

pranto feito um bebê chorão, o choro


vinha inflado de armário que teimosamente range, nada se ouüa, parecia
uma alegria insana, alegria que eu
só podia receber numa a véspera do fim do mundo, pelo menos desse aqui cer-
profusão de lágrimas, ourindo o etàrno
sino da igreja cado de todo esse conforto, as refeições na hora certa,
medieval tocar as horas, não mais que
duas, t e. brãrlá_ três pratos anunciados no menu do jantaq a sobremesa,
das, elas me bastavam nessâ exata
duração, não mais que todos os jardins disponíveis pârâ as caminhadas mais re-
isso, só para lembrar da onda passageira
em que estamos, paradoras, o quase inaudível marulhar da fonte, tudo isso
próximos, bem próximos de cÀegaÃ
praia... b, po. *i_ parecia a ponto de se apagar na noite. De amanhã em
nem dormia mais aquela noite, ã.arra'de
vigília ro .* diante eu dependeria só de mim, queria ver se ainda dis-
lo, pois algum sinal ainda incipiente
parecia me dizer que poria do reembolso da passagem que a Fundação ameri-
não recuasse da minha consciência,
qre mrntivesse meu câna me garântira pata a véspera do meu retorno, pâra
inglês na guarda; antes que o galo
.rrrrrrr. eu ouviria de chegar com algum em Porto Alegre, me dirigir âo meu
novo "Las mafranitas,,, dessa ír.
pé do rr", oorrido, apârtamento sem ter como me comunicar com â esmaga-
^o
dessa vez convidando-me a d.rp"rt"r'não
para os meus dora maioria monoglota dos vizinhos, só eu no meu in-
ânos e sim cinicamente pâra o cadafalso;
mâs se eu qui_ glês sozinho pela sala, se é que ainda tinha o âpartâmen-
sesse fugir ainda tinha. t"--po,
agora)depois ninguém'ha_ to ou se alguma vez esse recinto foi de verdade ou não
veria de querer me ajudar, ,r"À hrrr.rià
aha i"r, irro. passou de um pensâmento desejante como diz esse inglês
Sorri, alisei as cobertas, me despi, acho
que nem era mais que, traiçoeiro, não quer me deixar de novo só com o
a mesma noite, acho que não.
Era essa a minh, hom pr._ português poxâ, se o português ao menos retornasse,
dileta, me,preparâr para uma ausência -
consentida, sem se eu pudesse me virar novamente em Porto Negre, pro-
câusâr nenhuma espécie-de trânstorno,
só o privilégio de curar alguns amigos, um ou dois parentes, pedir empre-
me dar a pausa, um arrefecimento
dos sentidos, ah, e sem go numa livraria, quem sabe, começar tudo de novo, vol-
saber se haverá um outro dia, se
dessa cama eu sairei com
vida, ah, não existe modo mais intenso tar a ser aquele que eu era antes de me meter em
de aventura, é mais Berkeley e Bellagio, um câra a viver sem realidade maci-
do que subir até o topo do monte
mais gelado, é mais do
que descer pâra o abraço do pélago ça a não ser para alguns leitores, que vinha e ia de lá pata
mais profundo: deitar, cá pelo centro da cidade sem antever o endereço que que-
adormecer é não contar nem .oÃ
,o.orro, pois ninguém ria alcançaq se é que esse endereço algum dia estará
pode velar por mim enquânto que
por esse estado me in_ pronto, o que é bem pouco provável, aceito: mas ando,
cursiono. Não se ouviam o, ,orm aúafados
de outros hós_ ando para encontrar em Porto Alegre em mais essa ma-
pedes, aquele surdo toque na parede
ao lado, a porta do nhã o garoto bonito que serve o meu café e para quem já

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7t
Berkeley ern Bellagio
João Gilberto Noll

dei todos os meus liwos; ele


comenta discreto suas leiflr-
ras, não sei se realmente os
leu ou quanto, o que careço tle qualquer paixão carnal, liberto enfim dessa procura in-
mesmo é de leváJo Íâme por outro macho. Agora aqui, na frente desse espe-
eu trasa, ra ti a d e r.,,:
::ilff;
sonho... Ele nada quer, âpenas
:i#::;ffi
;ff l,::l
lH
lho, me vejo novamente ardente, quisera não sentir mais
nada, voar pra Porto Alegre e adentrar pelos umbrais da-
dra os sapatos, deita_se na
cama, dorme, geme quiçi
p..rã"i.l".roio rr_ ooo- quela fase em que sabemos que já vimos tudo, não há
co sobre as iniciais do meu",r- l
muito mais, nem mesmo em sonos. Vou para o banho,
pai na fronhá, eu tomo prorri.
dências, busco uma toalha j-iar,;:;;;, i
visto a roupâ mais bonita, corto as unhas, ârrumo enfim
pasta amarela_
da de cima dessas iniciais as malas e vou em frente parâ o gabinete do "Bispo" da
de que i._n'.;;;#;r* Fundação, o bondoso homem. Ele está sentado junto à
faço "._
puro, vivo para o outro, não
mais sexo, só filanropia
íntima, sou só um dissiderr,. lareira acesa, a sua mulher (sim, tem umâ, mesmo que o
"_ ,i,ir"
à" atrevido, da_
quele velho sátiro de1en1e.. homem não largue suas vistosas vestes eclesiais) lendo
Bongiorno alguém _;;;rdr,
ei!, abro os olhos e não he nirfrre...i um policial israelense, a fitha adolescente na janela, cabe-
l..rrrrro, abro as
cortinas, vejo a mesmâ pairagÃ
cansadvamente impo_
leira loira indo até as nádegas para assim "melhor dançar
nente dos Alpes, ah, certo,
é"essa . hàr, de enfrenmr a salsa". O "Bispo" levanta-se, me passâ num envelope o
o
dia^, na early morning,
eu sei, mas não ouço ,,Lãs reembolso das passagens como o prometido: me pâssa o
mafiani_
tas" que esperava ouvir quando
acordasse hoje, e hoje é
envelope alisando a minha mão com tal subentendida
meu aniversário?, me pergunto
e digo ,im, á íoi", i^ç, empáfia que me sinto pertencer a ele como um cão cam-
tanros ânos que iá me perdi
na contí, oho_me;;;;:: pestre que parte parà a caça mas que voltará, voltará tra-
lho, vejo um carâ forte ainda,;;il zendo à boca â carne inocente de seu liwo' Na sala ao
que bonito, mas
ainda no ponto para um corpo
r.orpo.o_ outro alguém lado não há ninguém para o breakfa*, ao contrário de ou-
na cama _ mas não entendo, tras manhãs, quando ao descer as escadas, mal saído do
ah nãà entendo mair".rs.,
engatados a rolar sobre os
lençóis, não os ..r*I sono, ouvia o vozerio dos conviva s, o morning, moming de
:orlos
do desde quando entrei na casa
do, _àrror, você sabe, todas as alvoradas... Pois hoje iánão havia ninguém, nem
aquela vez em que recusei
a ordenha no corpo do ragaz_ os gârçons, nem o próprio breakfast, nada de ntdar t*Ca-
zo no escuro cômodo dos
monges medievais, desde tedral" vazia (o negócio tinha quebrado?)... Olhei pâra o
do senti em meu
nripfo i;il; d;;_ envelope que acabara de pegar, pensei que eu estavâ com
desejo para um
outtro, e então me aliüei ali "orpã,
em branco, no século X[ me so.te de terem devolvidoo -.o dirrh"iio. E a Fundação
send com menos um dos fardos,
.rrrrr, ago., alforriado em grâve crise?, ocorreu-me perguntâr em meio àqueles
aposentos mudos, mil corredores desertos, mâs seria uma

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77

H
Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

perguntâ tão grosseira que


preferi aceitar o enigmâ, en_ minha própria carga, talvez com a língua inglesa a me sair
o. envelope no bolso, prr.i,
Ir. p;.;-" âeroporto de Mi_ em golfadas e com resíduos do almoço, jantar ainda
lão, chegar ao Brasil p"lo ,".opo'.ià
a. Crr-lhos, outro -
vôo para porto Alegie. um conseguirei então algum trabalho a mais, no mundo in-
üerced., .- frente ao cas_ teiro todos precisam de alguém que fale inglês, não fica-
telo me esperaya; ainda havia,
.r,rrrrlr.i, o mordomo para rei desempregado agoÍa,' terei o que comer, como manter
pegar minhas malas e acomodá_las
dentro do .rr.o, ,i_, meu apârtâmento que não estou certo de encontrar vazio
era o mordomo cuja carne
eu tinha devorado e que r. _ã como o deixei antes de encârar a "Catedral", a essa hora
deixassem eu devoraria mais
,_r rr.r r,.ás das moitas do já longe lá no alto da colina: quando chegar a Porto Ale-
bosque à minha frente, o
bosque de sempre, mas já sem gre lrou ver se minha casa não está sendo habitada por al-
os jatos d'água que saíam
em iroríficr, ,o....rr"s sobre gum sem-teto, há tantos por lá, tantos, eu mesmo já fui
a
grama em todas as manhãs
, .rm hora. O tesão reflores_ um deles só ú verei como me safar da situação sem
ciaP Eu não era mais o fantasma
d" B"rk.l.y que o vento -
contâr com o meu velho português, hoje apenas um fan-
frio de noires idas me assoprara?
O fantasma de Berkeley tâsma arrancado do meu instrumental fonético; deverá
estavâ mesmo era lá dentro,
prisioneiro na ,,Catedral,, da por certo estar perdido por aí, sofrendo, sem ter onde en-
Fundação já vazia de schotars.
n",ro ," carro, divago que cârnar, ninguém o quer lá pras bandas onde deverá estar
o ragazz, deve ser um mordomo
daqueles bem il?; vagândo, ah, faço o check-in, digo pra moça que estou vol-
acompanham a derrota do
dono âré; fim, irrot, q,rrtJ
;;;
se transformam no autor tando prâ câsa, sempre que for a Porto Alegre me avise,
do crime, sempre a mesma his_
tória, o mundo precisaria de estarei no âeroporto na hora combinada, quero prestar
fôlego s. qrrir.rr. mesmo favores nem se os impuser à força, não faz mâI, sou'um
mudar para melhor em algum,
.Jir, I o vai des_ serviçal, além das minhas próprias malas querp carregàÍ
cendo pelas trilhas arenosas "rr.o
que levam ao portão da en_ àgorào mundo inteiro às costas, um Atlas desvalido, tudo
trada, vai me levar ao âeroporto
qtando chegar o motoristâ
de Malpensa, sei que bem, mas com umâ boa vontade que lhe âssoma tão for-
check-in, com âs mãos ocupadas
-. ,.o_prnhará até a fila do te de repente que ele só tem tempo mesmo de tentar le-
pela _irrt , bagagem, en_ vâr o mundo às costas, entende? Mostra o passaporte,
quânto eu apenas fâço principal,
o que pelo detector de metais ou até quem sabe o de men-
possa fazer por mim. : talvez passa
euando elá ,.iãr*"i"guer.,as malas em tiras, olha mais uma vez no painel eletrônico a confirma-
volta dos meus pés compreendo
que de agora em diante é só sen-
passarei a viver mais uma ção da hora ão seu vôo, tudo oÉ, em cima, agoru
vez e cettamente para sempre
como todo mundo, sem mordomia, tar em torno de hordas de árabes ou assemelhados com
pegandà o p.ro.d, suas mulheres silenciosas, algumas de lenço na cabeça
-
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Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

eles cheiram à fuga, hindus a,goÍà chegam, são todos fu- aproveitava que não erâ em português e descansava da se-
gitivos?, penso eu, o que aconteceu no mundo nesse tem- mântica, como costumava fazer nas refeições do palácio
pô em que vivi na Fundação americanâ sem TV disponí- antes de ser inundado pelo inglês. Melhor que eu abra os
vel, sem procurar saber das circunstâncias momentâneas olhos, depressa, que procure saber um pouco de cada ci-
do resto do planeta, o que houve que não pâram de che- dadão em volta, sim, ligeiro e sem receio porque a vida
gâr aos montes esses peregrinos do além-fronteiras? sempre está com pressa, essa é a sina, correr atrás do tem-
Ouço uma aeromoça da American Airlines comentando po, tentar fazer mais e mais laços, porque do contrário
com outra que essa gente se dirige a Porto Alegre, no volto a Porto Negre e vou morrer sozinho com meu in-
Brasil, que lhes dará asilo, sim, é fato: compro um jornal glês saindo aos borbotões inutilmente; ninguém virá com
inglês, é isso mesmo, levas de migrações, "depois do de- tradutor em minha casa, mesmo que eu esteja no meu lei-
sastre"(?), rumo â Porto Alegre, "extremo sul do Brasil,,, to de morte; e depois, de que adianta dormir em minha
cidade que costuma sediar o Fórum Social Mundial e que cama se quando acordo não tenho ninguém pra quem di-
passará a ouvir mais e mais línguas: afegãos, palestinos, zer bom-dia, até amanhã talvez? Armo um sorriso pàra a
hindus, africanos darão novo molho à algaravia das mi- menininha afegã ou avizinhada, ela não responde, eles
nhas velhas artérias de arrabalde, tentarão quem sabe no são sérios, não digo sérios, mas üvem no semblante essâ
início abocanhar o sustento com seus cânticos de origem tensão da mudança de país; serei um guia para ela, um pai
pela rua da Praia, Borges de Medeiros, Largo Glênio pe- se ela não o tivet ou pelo menos um tio mais velho, car-
res. Conseguirão? Por que Porto Alegre e não uma me- regado de sabedoria e que lhe dirá coisas como pode iq
trópole de um país rico?, pergunto aos meus botões e cuidado, não exageral A menininha não responde; como
faço que adormeço à espera da chamada paÍa o vôo. E não conseguir ler o pensâmento de uma criança tão novi-
por que tânto adormeço ou faço de conta que? É ú.io o, nha?, ela nem ao menos me olha como todas as crianças
modo de fugir das circunstâncias? Espero aqui fugir do que pegam a te olhar quando começas na ruâ ou no ôni-
quê? De uma reviravolta, do desconcerto das nações que bus com micagens; eu sorrio, boto a língua, faço um ba-
eu perdi nos meus cochilos no quarto de Bellagio? Ah, foi lão com as bochechas, não sei o que mais, não adianta, ela
o sertão que âgora virou mar, foi isso? Dói-me a cabeça. não voltou a me olhar, encostou o rosto na saia longa da
Aperto-a, âperto-a como se quisesse esmigalhá-la. Os mãe e fica ali escondida pârâ o resto, não quer saber de
acontecimentos me ultrapassaram de forma incalculável nada, de ninguém, como se reclusa em sua grutâ, no chei-
1á na Villa Solti. Quando ouvia os tagarelas italianos nos
ro de sua mãe, na sua verdade inteira, sem compromisso
intervalos entre as músicas discutindo o sexo das escalas, com ninguém de fora. Eu seria seu tutor se ela quisesse;

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Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

em Porto Alegre precisará da minha ajuda, ela é que não voltar pra casâ é o melhor da vida; aí vejo que mancada
sabe; sei onde comprâr âs mais belas frutas no Mercado dei falando isso à mulher asilada, digo sem querer que ela
do centro da cidade, aquelas com o preço mais em conta; não pense muito, que vá fazendo sua vida sem olhar mui-
onde será que irão alojá-los, na Vila do IApI, em Ca- to para atrás tchau, tchau, eu vou embora, vou prâ
choeirinha, na Cavalhada, na tJsina do Gasômetro, onde, -
casa, que hoje ainda tenho muito o que escrever, preciso
hein? Mas a criança não quer saber de mim nem nada, aproveitar a minha língua portuguesa, que ela voltou pra
aqueles blocos humanos em minha volta parecem remer mim, a danada, é fato, já a domino de novo, só sei falar
os estrangeiros, e no entanto é para uma terra estranha por ela tudo o que me vem à mente, o inglês já está fa-
que eles estão se dirigindo, justo a minha, onde nasci, me lhando novamente, ontem mesmo eu perguntei alguma
criei, vivo sozinho. Se eu fosse üsitá-la todos os domin- coisa ao dicionário, uma palawa me escâpàva) era bonita
gos à tardinha, essa menina teria um novo amigo que pe- t*ttful de confiante, passava a tê-la de novo, confian-
garia o ônibus no centro da cidade, desceria na parada - em quê, em quem?, eu já nem sei... Em tudo, ora!
çâ
próxima à casa dela, atravessaria a várzeaonde garotos jo_ Acordei com a chamada final para o vôo. Entregue o car-
gam bola com enormes palawões, bateria palmas ao che- tão de embarque à moça ruiva, corri sozinho pelo tubo
gar à cerca de sua casa, não há cão pra me assustar, venho que leva às aeronaves, ah!, lá dentro dava a impressão de
com â notícia de que consegui vag pàÍa a criança numâ que eu estava num país árabe ou assemelhadol sentei e,
escola pública bem perto, a dez minutos desse endereço, pasmem, ao lado da bambina que tinha me chamado a
amanhã virei buscá-las, ela e sua mãe que âpresentarei, à atenção na sala de embarque. Ficaria um tempo fazendo
professora, umâ anrigâ amiga minha de colégio, quero que não a tinha visto, tudo bem, até que ela estivesse com
ver os olhos da menina, ela olhará uma última uu p^r^ jeito de aquiescer âo meu sorriso e o respondesse com um
mãe antes de entrar na sala cheia de tintas pra pintar? Os^ outro, já desarmada, agorà por estar no âr, flutuando nos
olhos arregalados, temerosos, a professora alisando seu céus desse planeta, sem dever mais sua clausura nem para
cabelo para deixá-la confiante, a mãe me agradece mistu- os olhos da mãe. Eu estava num avião de refugiados, mâs
rando português com sua língua meio exasperada, o dia é para mim pareciam mais peregrinos que encontrariam
quente, azul, eu me despeço da mulher toda de preto, os em Porto Alegre a teÍÍà prometida, o novo reino de Alá
cabelos já soltos: digo que a guriazinha está bem encami- ou de qualquer profeta menor, de alguma tribo. Ao de-
nhada àgpr\ será uma brasileira como âs outras, falará, o sembarcarmos em São Paulo, ü que a menininhâ, que nâ
português tão bem quanto eu que já esqueci o inglês que verdade nem no avião quis saber de mim, ia agora no colo
me tomara inteiro; digo-lhe que tenho o que festeja! que da mãe a cabeça curvada no ombro da mulher de len-
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Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

ço na câbeça. Passamos pela alfândegâ, polícia federal, torrão natal, isso acontece nesses dias, um cidadão qual-
por essâ triagem que hoje há em todo o canto, a toda
quer se impregna de uma forma tão fulminante da língua
hora, em qualquer lugaq ,,sorria, sorria, você está sendo
de outro povo, que tal marco traumático faz com que es-
filmado", esse cinismo idiota que ostentâm no Brasil den_
queçâ completamente a sua língua de nascença. Vj numas
tro de qualquer lavanderia de terceira classe, sei lá, sei que
re\ristas americanas, se bem me lembro, o depoimento de
sentei na sala de embarqu e parà porto Alegre; senti
qrl a vários cidadãos que já não falavam a língua marerna que
população imigrante estava mais falante, menos
tensa, ao usavâm com exclusividade até a idade adulta súbito,
menos parecia ser assim, enfim estâvâm em terra firme - o apa-
geralmente o inglês lhes arrombava inteiramente
no país para onde vieram pra fica5 ah, e tudo atrasou
de_ relho fonético, como se alguém fizesse neles a conversão
mais, porque demoraram muito, muito mesmo vâscu_
parâ outro registro, mais útil, mais capaz parâ que com
lhando a bagagem dessa população de pereg"rinos, a mi_
ele se manuseie tudo, de tudo se saia bem, sem confusão,
nha foi num instante, vi que na deles o, fir"r], remexiam,
mal-entendidos. A primeira coisa que frzno aeroporto de
apalpavam, fisionomias solenizadas, verdadeiro, .rrrrr_
Porto Alegre foi deixar a bagagem num guarda-volumes
trões à procura do tesouro terrorista cuja descoberta
lhes e me dirigir ao balcão de informações e perguntar onde
daria uma comissão polpuda da CIA ou do raio que
o podia encontrar na cidade algum curso de português para
partâ que soubesse suborná-los, em troca sempre
dás se_ esffangeiros. A moça me deu um cartão com o telefone
gredos e pecados no incessante trânsito ,obr. a Terra;
eu do tal curso; complementando a informação num inglês
qre sentei, preciso me sentar um pouco a cadameia
hora, sofrível, disse que erâ no centro da cidade. perguntou em
que eu ansioso esteja a caminho de uma terrâ sânta
como que hotel eu ficaria, respondi no Plaza São Raphael, o
erâ o caso agorâ, mesmo assim eu precisava sentâr por
primeiro que me ocorreu; ah, é perto, ela disse, bem per-
um tempo, e, olhando o imediato a mim, âpenas pensâr
to do curso de português para estrângeiros. Voltei-me
se a coisa era como eu via de fato, se não estava
vendo pâra um outro lado e uma faísca saltou de mim: wake up,
tudo deformado ou do avesso, embora ali parecesse que
desperta, meu râpaz, enfrenta as coisas como são e vá em
não, que estava definitivamente na estrada a"rt",
qr" rrão frente, vá pra sua casâ se conseguir enconúá-la; se não, vá
haüa o que temel que umâ certa pazque se procura não
para um hotelzinho barato na Voluntários, não importa o
morde, é mansa, já chegou; .r.rr r- Lrasileiro a pensâr
endereço, importa, sim, que comeces a rever cada canto
em inglês o tempo todo, eu era outro em mim, naá
tinha da cidade, tentando nesse método recuperar o português
importância quando chegasse a porto Alegre iria para
um curso de -português para estrangeiros no meu próprio
que com o calor úmido q:ue faz deve estar escorrendo pe-
las paredes, muros, a sua língua-mãe padece o ,.,
"o-
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It
Berkeley em Bellagio João Gilberto Noll

extravio, vai em frente, não pensa tanto, pegâ um táxi, lhe dadeira saudade, apenas de um e outro camarada, muito
devolveram o dinheiro que você desembolsou parâ as pouco parâ quem não contâ com mais de uma vida, cer-
pâssagens, ida e volta, ainda é uma grana razoável prâ te to? O táxi parou em frente ao prédio que logo reconhe-
manter por um, dois meses pelo menos, vai, vai, sim, ci como sendo o meu, de fato, é aqui, falei estupefato de
pega o primeiro táxi, quem sabe ao sentar no carro e in- encontrar novamente a minha casa, menos mal, pensei,
dicar o rumo pro motorista a língua de Drummond lhe falta agora recuperar meu português, não perdem por es-
volte à cabeça, assim, num verdadeiro blow ap, tão de re- perâr, vão ver. O zelador me cumprimenta. Eu digo ái,
pente, que você se reconverterá de um golpe à sua reali- bello, ele me ajuda quieto com âs malas, quinto andar; no
dade, ao dia-a-dia como gostas, tardes de caminhar, ir aos mais, sorrisos de mutismo entre nós dois, como se reco-
mesmos cafés, fazer as mesmas coisas. É irro mesmo que nhecêssemos, sem explicação, que a hora erâ grave para
eu quero?, perguntei, e isso ainda é possível?, com esses mais... Forço a primeira chave que encontro no meu bol-
retirantes de roupas escurâs fazendo a sua inóspita alga- sol é com ela, sim, que abro e entro enfim no meu apar-
ravia para reordenar seu caos no mundo, dessa vez aqui tamento. Agradeço ao zelador, digo grazie, o mesmo ter-
em Porto Alegre, nessâ novâ terrâ santa até parece! mo com que eu agradecia ou apenâs saudava os garçons,
-
Entrei no táxi, sabia agora que morava na área central, na os mordomos da "Catedral" da Fundação em Bellagio.
Fernando Machado, não sei há quanto tempo; se é que Deixo as malas no corredor que leva à sala, avanço, entro
não me enganava eu saíra muito antes do horário do vôo de verdade. De fato tem alguém sentado em minha pol-
que me levaria a São Paulo e depois Milão, Bellagio, que- trona um homem, eu não o reconheço... Mas preciso?,
ria conhecer o aeroporto novo da cidade, despachar as -
preciso reconhecê-lo ou apenas aceitá-lo, tentar dar cur-
minhas coisas no cbeck-in com tempo de vagar por tudo so ao encontro, eu aqui, ele a alguns passos, quem é?,
ali, pensando que talvez, confesso, eu não voltaria mais a quem poderia ser senão o próprio Léo, de quem pensâvâ
vê-lo, esse âeroporto não voltaria nunca mais à minha ter me separado, é ele, sim, é o cara que eu pensava ter
-
cidade. IJm certo sentimento apocalíptico tentava me in- enterrado para sempre como parceiro e tal, é ele que aqui
cendiar de sopetão às vezes, era um gancho rasgando a está agora a me esperar assim e desde sempre, o homem
minha pele do pescoço ao púbis, assim mesmo, bem de que se levanta da poltrona a me dizer alguma coisa numa
repente, e depois então a calmaria me inundava, como se língua estrangeira que desconheço, ou não, é o portu-
eu mudasse de planeta e tivesse de conviver apenas com guês sim que sai de sua boca e que eu, talvez perfidamen-
pedras banhadas pela luz fria da lua, só eu de humano, te pâra ele, ainda não consigo compreender nem nada...
olhando o azul do globo de Gagarin sem nenhuma ver- Ele me abraça, eu sinto o abraço não como de nova aco-

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Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

lhida, mas como um abrâço de morte, é mesmo âssim que


pelos meus cabelos, é a mão de Léo, conheço-a de cor
o-sinto e grito, peço!, peço que me poupe por enquanto,
ainda, não, não a esqueci como não esqueci de fato o por-
ele estremece, recua, diz que sua filha dãrme ,à
quarto, sim, ele teve uma filha com uma norueguesâ que
-", tuguês, tudo me volta nessa escuridão aqui do meu quar-
to em Porto Alegre; eu é que tinha sedado a história com
partiu para Oslo preferindo deixar a criança o iri; Léo, fui um ladrão de luvas, retirei-a da cabeça talvez
não tinha tempo de se dedicar à menina pois "ã- vivia entre numa sutil operação durante um desses sonos ferrados, só
Oslo, Roma e Nova York. Eu me adianto até o quârto,
Deus sabe; da parte desse cara cuja mão descansa agorâ
vejo a criança ressonar suada. Então entendo, de um só
no meu ombro, da parte dele continuou vivendo a histó-
golpe entendo. Passou-se bem mais tempo do que eu
ria, mesmo sem cartas, e-mails, telefonemas, isso!, esse
contava. Eu já nem lembrava. Fui para ficar um ano, sei
ca;ra a qualquer momento me esperava com a menina, Sa-
lá, dois, o certo é que fiquei o tempo necessário para que
rita! a mãe dela tinha üvido a infância no México, gos-
Léo se envolvesse com a norueguesâ e com ela
irocrias_
-
tava dos nomes espanholados... A minha memória pârece
se: a menina hoje deve estar com quatro, cinco ânos;
tro_ mesmo que retornâ aos poucos, aos frangalhos, como um
veja, agora um raio, a tempestade pâssâ a cair rependna,
soldado deve vir da guerra, espionando o que ficou do
açoitando a vidraça, chega a ffincar um vidro, Léo e eu
tempo, se é que ficou alguma coisa, não há problema, to-
vamos pras janelas, fechamos as venezianas, fica tudo es_
dos se traíram e a vida recomeçâ a partir de agora, será
curo no quarto, sala, cozinha e o banheiro, falta energia,
mesmo isso?, me pergunto, será que âgorâ é só mirar que
ficamos sem luz, a menina acorda, grita e chora, .ha"-;
ya amanecití?, ah, o temporal desaba lá, fora, tudo é escu-
pelo pai, eu a abraço, cânto uma canção, ,,Las mafrani_
ro,láfora pelo jeito o dia transformou-se em noite, Léo
tas", sim, "Despierta, amiga mia/ Mira que
la amaneci6,,... diz que o calor estâva a pedir isso, fazia tanto!, tamanha a
Ela sossega o choro âos poucos, conta devagarinh o, voz
seca, que as rádios sem parar vinham anunciando esse di-
pálida, que lembra essa canção, sua mãe i^nt^u^ p^r^
^ lúvio. Começo a compreender na alma onde estou, com
despertá-la, até a véspera de voltar pra Oslo. Meu quem estou, há quanto tempo, não faz muito eu sei, al-
ção bate contrâ o seu ouvido... Será que nesse escuro "ãra_
ela guns minutos, devagarinho vou ganhando a lembrança
sabe que não sou o seu pai?, que é outro o homem que
a do meu português, a língua sai de mim em pedacinhos,
afaga e canta?; não sei, não consigo dizer nada, sou
eu escorregâ de repente, apanho-a cansado, devolvo-a à mi-
que agorâ estremeço, sou eu que começo a entender de
nha boca, a palawa ecoa novâmente, vibra mais alto ago-
novo o português pela voz dessa criança que acabei de
ra, o seu sentido como que sacode a cabeleira, me enco-
acalmar em castelhano, sou eu que sinto a mão passando
lho para disfarçar esse momento, penso que logo

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Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

recomeçârei a trabalhar no meu romance, onde eu estâvâ zer o pai da menina agorà âpenâs num sorriso. Olho-o e
mesmo?, me pergunto, ah, estâva ainda no bosque de es- me pergunto seriamente se ainda é o meu cara. Em se-
quilos, bem me lembro agoÍà, reencontrâva a mulher gundos percebo que ele traduziu meu pensâmento. Por
brasileira, Maria, na nâtureza do campus da Universidade alguma razão qualqueq vejo que â parceria ainda existe,
da Califórnia em Berkeley: não sabíamos exatâmente o que é bom não relutar, mesmo que não se saiba até quân-
que fazer, como se tivéssemos esquecid o o script, bem as- do... Agora tem essa menina aqui, é uma sobremesa.
sim como agora no meu quarto em Porto Alegre, não sei Brinca de desabotoar minha camisa, parece querer dizer
o que pode âcontecer com Sarita quando a luz voltar e ela que eu venha púa a cama junto dela para brincar de bo-
olhar com nitidez os dois homens que esperam , ela talvez tar o trâvesseiro por dentro da camisa, que ela volta a
ainda pense que quem a abraça é o pai, que há outro ho- abotoar pârâ que a minha pança fique assim enorme; eu
mem ali, por certo, mas este está de pé, um amigo do pai digo que ela espere um pouco, que já volto; vejo que Léo
bem pode ser; o que ela ainda não pode comp.eendei e saiu do quârto, desabotôo de novo a camisa, tiro o traves-
que o pai por trás me alisa a cabeça e um estrânho alisa seiro, ela reclama, digo que me espere, não demoro nada.
os cabelos dela; agora só se ouvem os úovões, um novo Léo está na cozinha abrindo o forno, fala que tem um
raio por perto, estremecemos os três juntos... ,,Good wis- frango pro jantar. Me vê de camisa aberta, vem me lam-
hes in an eady morning", era o que me contavâ umâ vene-
ber num dos mamilos, desce a língua até o umbigo, digo
zuelana, volátil hóspede de Bellagio, sobre o significado que a menina pode vir atrás de mim, que prometi voltar
primeiro de "Las maffanitas" que eu cantei todinha para num instante para brincar com ela, ele se afasta, fala que
a menina abraçada a mim agoÍa... Volta a luz. euem é?, continua trabalhando na mesmâ Íarmâcia, que se prepa-
pergunta Sarita, pârece que sem trâuma; eu digo em meu Ía par^ o vestibular, fará justamente o curso de farmá-
ainda menos que titubeante português que eu sou eu, um cia... Quem é esse cara que está parecendo um garoto
amigo, conto que vim no avião com uma menina que se imberbe, àgoÍ^ pàrtfuâ pârâ o vestibular, nem sei se não
parecia muito, muito com ela, os mesmos cabelos more- me enganei de apartamento, de homem, de vida. Acho
nos e lisos, os mesmos olhos castanhos quase também ne- que não, percebo olhando minhas mãos claras, dedos
gros, sim, você puxou a seu pai, é a cara dele, veja só esse longos, afirmativos, como se exigissem que eu ficasse
nariz aqui, não é o dele em miniatura? Abraço-a, dou-lhe aqui, não fosse emborài erà ele mesmo que você buscava;
um beijo no nariz, ela volta a deitar de tanto riq eu rio, ouçâ essa voz em que ele conta das traquinagens da me-
Léo ri, temos muito pela frente, é bom rir, mas não de- nina, da creche onde ela passa boa parte dos dias, das
mais, porque senão nos afogamos nâs risadas, parece di- cantigas que aprende não é a mesma voz que você dei-
-
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Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

xou âqui, não lembra mais, não quer lembrar?


saia daqui ouür que não era nada sério, apenâs noite maldormida,
então se tiver peito, vá para a Í\a, mesmo
sabendo qle ou um "yem cá, não vem?, tá bom, eu espero!". Vinha ele
nessa cidade cedo ou tarde acabará
reconhecenao .t_ geralmente primeiro com uma história, sabia contar
guém que lhe dará algum suporre paÍa
avida, mesmo que como ninguém o que se pâssâvâ a cada dia, agora tinha
seja esse suporte quâse nada, enfim,
nunca se sabe, mâs o mais material ainda, tinha a filha, e com ela nós, os dois,
fato é que poderá ficar um bom tempo
dormindo pelas nos ocuparíamos: um a levaria, o outro a buscaria na cre-
praçâs, debaixo das marquises, sei
e., ü mai, onde; àtão che, histórias se fariam, com a minha chegada ele queria
saia, saia, aproveite esse branco repentino
que lhe asso_ fazer um curso pré-vestibular noturno, eu ficaria com Sa-
ma âgora, ponha em seu rompante devazioa
determina_ rita, lhe contaria histórias fabricadas na hora, como fazia
ção de ir, tente voltar quem sabe para a ,,Catedral,, ame_ o meu pai à noite, no escuro me contava coisas macabras
ricana, beijar as mãos da Fundaçâo, voltar
pra lá com o de outro mundo, são essas histórias as melhores, recolhia
rabo entre as pernas, pois vá, ,rrá, ,d.rr,
bye, bye... por os casos do meu pai e os passavâ a Sarita mortos que
nada desse mundo
r#:,:i;ffi';# -
voltavam como eu voltara no escuro, em meio a um ven-
por quê, mas havia :: 11..TlÍ,itr daval, beijos, carícias em mulheres de véu negro sentadas
reparado.antes de partir para Bellagio:
ele pieenchia tan_ no Alto da Bronze em horas caladas; vem o herói e àac -
to a minha viuyez nas rotinas, sim, pois me sentia ricia, beija-lhe o véu, suspende-o: é uma caveira, isso de
com
certa freqüência como se me faltasse qualquer
detalhe fato se passou com o meu pai, eu contâvâ a Sarita, que
apreciado num passado justo, talvezrela
isso o que cha_ dobrava o travesseiro contrâ os ouvidos para não ouvir o
mam de nostalgia intransitiva: costumava
acontecer em resto do enredo; mas sei que ela ouvia, sim, deixava sem-
períodos de horizontes sombrios, é verdade,
e não ficava pre uma fresta por onde entrava a minha voz drtmatiza'
tristonho por alguma falta localizável, não,
ficava assim da, ah, e depois ria, ria que ria de um certo clima pâra o
por algo que já não sabia mais se declarar
aos meus olhos qual nunca pensarâ em dar um nome, apenâs ria, acho
pelo menos, algo vago, sem üsibilidade,
mas que sabe en_ talvez que de nervoso, acho talvez por algo que lhe asse-
fraquecer o usuário dessa sensação quando
no exercício diava como um mal por vir, talvez fosse isso que a fazia
entre os demais. Na solidão, presume-_se,
pode_se conhe_ gargalhar feito um exorcismo que acabava por lhe dar um
cer quem sabe um lenitivo bem proüsório
para a tal sono cálido, quâse milagroso, pois nem bem pusera um
doença. Só Léo ali na frente contando
de Sarita, só ele ponto final na minha narrativâ, sem tempo até de eu lhe
podia brincar de médico, se bem quisesse,
com essa mi_ dar o beijo de boa-noite, assim, sem mais, seu ressonâr
nha sensação de desejo interrompiào, só
dele eu poderia me soprâvar euâse me embriagava de um sono que eu

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Berkeley eru Bellagio
João Gilberto Noll

prendia, deixava no meu estoque íntimo para usá-lo mais


certez4' o lençol mantinha suas manchas que com o avân-
tarde depois que Léo chegasse. Eram assim meus dias, e
çar do tempo não conseguíamos tirar nem na máquina de
eu avânçavâ no meu liwo, encontrava nele caminhos in-
lavar que compráramos em leves prestações... O não-
suspeitados, atalhos, trilhas abertas a machadadas, e de
querer-mais-muita-coisa fez Léo se afastar do curso pré-
repente perdia o fôlego, ele, este que em mim chamavam estou velho para isso, assim dizia ele sem se
vestibular
de livro, refluía exaurido para à concha da pausa, e eu ân- -
explicar demais. Havia naquele apartâmento três vidas
tes do descanso acabava sempre tocando com cuidado pârâ preservâr, pouco mais que isso, e pârâ tanto éramos
nesse seu retiro todo em musgo e que âmanhã ücejaria se
ali bons operários, sem demonstrâr nenhum fervor espar-
eu soubesse tratá-lo como hoje. Tocava ali em seu reces-
ramado; ah, tínhamos dois, três bons amigos, amigos que
so aveludado âté me contagiar de sono. Sarita continuava
eu nunca soubera ter em Porto Alegre quando viüa sozi-
a dormir com o pai no quarto, eu dormia no meu confor-
nho, encabulado se alguém do meio cultural me visse,
tável sofá da sala, estâvâ tudo bem assim, eu tinha um por estar gastando à toa o meu tempo histórico, sim, es-
bom sono, aliás todos dormiam bem naquela casa. Em tava nâ moda à época se falar em tempo histórico, o tem-
certâs noites Léo vinha pârâ o meu sofá, fechava â porta
po em progressão, usado sobretudo para melhorar os dias
do quarto para não acordar a garota, e vinha ao meu en- de necessidade que corriam, até que se pudesse reviver a
contro no sofá. Muitas vezes só pârâ um abraço, nada lenda de um reino onde folgaríamos plenamente supri-
mais que isso a vida se mostravâ agora tão parcimonio-
- dos, e não só daquilo que nos mântém o corpo de pé, mas
sa que todos ali ficariam contentes se tivessem à sua espe-
também de uma humanidade novamente coesâ em hor-
ra não aquele apârtamento, mas a cela de um religioso das pela selva, ou melhoq os corpos esfolados pelas que-
medieval, bem algo assim, uma vida que nos oferecesse das e espinhos bebendo de novo de um paraíso mais à
apenas uma refeição diária, um copo d'água sempre que
frente, quem sabe além daquele rio, logo após aquela ár-
necessitássemos, um banho, a roupâ lavada no fim do dia,
vore venha...! Eu e Léo, porém, começávamos â com-
o sono nu, de manhã novamente seca pâra que a usásse- -
preender que o desejo em demasia enfraquece, paralisa, e
mos. Falo de um quadro.em que enúaríamos sem pensât
que o melhor mesmo era a paciência, preparar o dia se-
incluindo a pequeninha, e assim continuaría*o, ,rão p"- guinte sem pensâr nele como um esposo que necessaria-
dindo nada além do que o dia nos âpresentâsse, pouco, mente nos dará mais do que pedimos. O que é que pedi-
muito pouco para muitos, até demais para nós, que talvez mos, hein? Antes de me respondeq se é que chegaria a
precisássemos de muito, muito menos, âpenas esse roçar
tânto, Léo corria para atender Sarita, que chorava acor-
de dois corpos completos ereções iam e vinham com dando da sesta, pobrezinha, eu dizia pela casa, como se de
-
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Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

chuteiras de uma seleção divina, para dar-me o clima nada disso. O certo é que o meu dia iá estâ bem remexi-
onde pudesse me fazer de atleta imbatível, o único! fu- do com os impulsos de Sarita, já começa com esse cheiro
sim, por uns segundos, musculâva-me de dentro para de fruta descascada, mingau, meleca, ranho... Mesmo as-
fora, isso que os psicólogos dizem que se faz até umâ cer- sim eu sempre quero, eu posso, eu sinto, eu vejo todo o
ta idade e que eu desminto, não sou mais tão moço, mas tempo, mas nesse instante não posso deixar de largar a
a cada dia me surpreendo mais com o que não realçava escrita do meu liwo em curso, ir para â rua' nem sei por
em mim, e isso me desmente também, ah, me desmente, quê ou para quê; eu saio, encontro um vizinho na Portâ-
sim, agora, pois ainda há pouco me vi a elogiar o mínimo, ria do prédio, a tentação que tenho é a de ignorá-lo, não
menos talvez, um quase nada. Então bato no peito por the responder o cumprimento, me confundir com as coi-
três vezes, reconheço: preciso trâvar uma guerra ainda sâs, ser apenas mais uma entre todas, não dar um passo
sem nome, quero ainda muito mais que tudo vem Sa- preciso, não ser visto, apenas flutuar num espaço que o
- à mesa
rita, pede-me parâ eu descascar uma laranja,sento olho humano não alcança. No entanto sorrio paru o vtzi-
da cozinha, me dou por satisfeito por cumprir essa târe- nho, não me darei trégua, respondo ao cumprimento, sou
fa, num relâmpago não quero mais a volúpia de sair para um cara medianamente simpático, não mais do que me-
âs ruas à procura do que se nega ao menor laivo de bus-
dianamente para poder seguir toda a extensão do périplo
ca, estou aqui, dando gomo por gomo a Sarita, ela rece- sem maiores acidentes, aberto mas não muito, apenas o
be os pedaços da fruta como se sorrisse, é pequena essa suficiente pâra o encontro sem seqüelâs entre o que me
menina, toda morena, mesmo tendo a mãe norueguesâ, vem à mente e aquilo que me exibem como sendo o na-
puxou toda ao pai, e isso me faz vê-la ainda mais do que tural de cada instante. Eu tomo o que vejo qual em colhe*
uma filha, é como se fosse o próprio Léo pequenininho e radas de uma sopa, agota sou eu a criança indefesa, al-
eu o ajudasse na manutenção da vida: aquela vida ali ain- guém me passâ as ondas nutritivas sem que eu o entenda
da não se daria em continuidade apenas com seus pró- nem ao menos o veja sabe o que mais?, chuto uma lata
prios meios. Tirdo se arruinaria antes do tempo não fos- -
só de raiva da balela com que explicam tudo, não impor-
se aquela minha mão a descascar uma laranja, doá-la em ta, importa o trânsito entre a memória se formando e o
pequeninos gomos parà a mastigação espreguiçada da que está prestes a ocorrer ali na bucha, parece que vivo
criança que acorda e que só âos poucos retomâ o mexe- nesse hiato, ao ocorrer a coisa ainda não a tenho o sufi-
mexe de seu dia. Eu aqui na cozinha já sozinho, Sarita na ciente pâra socorrer-me em suâ identidade, e depois é
creche, não tenho ceÍteza de nada do que penso, tudo como se eu nuncâ pegâsse o tempo â tempo, sempre é tar-
pode ser assim de fato, ou mais ou menos por aí, ou nada, de para tanto, ele já mergulhou nas águas da memória, e

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Berkeley ern Bellagio .foão Gilberto Noll

aquilo que o complementará depois já estou vivendo sem briagando até as águas do Guaíba: vejo as crianças no seu
saber, sempre achando que errei de capítulo, que estou ,rorerio, me afasto, volto para a cadeira do engraxate, sua
joelhos
fora de hora. Vou pâra o café no Shopping Rua da Praia, cabeça, seus cabelos ondulados roçam entre meus
entre esses amigos com quem nunca falei tem um muito pelo esforço curvado para conseguir um resultado mais
especial, me pisca o olho todo dia, acho que cumprimen- ão qr" justo pela minha gorieta, bem mais até, é puro
ta o escritor em mim, não sei, sei que olha como se me brilho o meu sapâto, com ele serei recebido nos salões da
acariciasse, é isso, âgora sei que é isso, que nele está a for- corte novâmente, lá em Bellagio,lâ, para lá levarei esse
engralrate, sua mulher, seus filhos, e com eles correrei
pe-
ça toda de um só segundo, fecho os olhos, entro por sua
boca como quis fazer com Edwin, o músico americano, los-jardins da "Catedral" da Fundação americana' Ah' o
sinto que ele tem uma circulação pausada, ainda abre um seu trabalho está pronto, ele me olha e eu digo sim, é
sorriso para mim ântes que eu desapareça dentro dele e isso, está perfeito, ele que me agradece, é um cavalheiro'
ele saiba que não há remédio, estamos como se fadados a um outrocavalheiro que me aparece no caminho, àgota
irmos ao café no mesmo instante diariamente, é isso que já sáo tantos, tantos que já vivendo a harmonia das esfe-
nos amplia o horizonte e é tão pouco, ele sabe enfim, e eu ,rrt or", peido ao descer da cadeira de trabalho do tal
também, que hoje é o meu dia de desaparecer e me fun- moço, mas é tal o rebuliço urbano em volta que ninguém
dir a ele, amanhã será o moümento oposto, ele virá e en- ouve o câvo som dos meus eternos gases' Sei que agora
trará em mim por não mais do que um átimo as xíca- tenho de buscar Sarita na creche, vou depressâ antes que
ras já vazias, ele abaixa a cabeça um pouco, as - mãos no me atrase, corro num certo ponto do caminho, assobio
balcão do café, deixa que eu saia sem fazer barulho, bem junto para que ninguém pense que corro fugindo da po-
discreto continuo a caminhaE pego a Praça da Alfândega, ii.i, oo tenianto salvar alguém de uma tragédia, âgora eu
é de manhã, é de madrugada, é de manhã como dizia o canto, canto a correr pela cidade inteira, ela é só minha'
jovem Caetano no curso de MPB que eu dera em Berke- minha e de Sarita, de Léo, do amigo do café, do engraxa-
ley, Bethânia é quem cantâva, bem me lembro, é de ma- te, das mulheres que não tive, ela é de todos, por isso cor-
nhã, não mais de madrugada e sim manhã; sento na ca- ro mais e mais sem contâ, preciso pegâr essa menina an-
deira para engraxar os sapatos, é ainda o meu amigo que tes que ela dê pela minha falta, seria iniusto fazer isso
os engraxâ, mora perto da praia do Lami lá no Guaíba, no .o- Léo está tranqüilo ao balcão de sua farmácia' to-
"1r,
dos já se esfumam tamanho o gozo, não há mais nada'
verão seus filhos enúam pelas águas enfim limpas depois só
de décadas como asilo fecal, suas crianças iam loucas pe- Sarita ainda me espera no pátio da creche bem sozinha'
las águas nesse calor fora de época, ele contava me em- bem como queria vê-la agora. E de fato lá está ela, sozi-

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Berkeley em Bellagio João Gilberto Noll

nha no páto, corro como se fosse salvá-la da queda nurq que agora a devolúa ao solo pedregoso do pátio da cre-
abismo, âgarro-a com força, puxo-a com rapidez ao colo, che, que se afastava um pouco para olhá-la na distância,
abraço-a, canto resfolegante a canção que ela adora, ela afogueada, é claro, pelos meus bruscos moümentos...
"Quisiera ser solecito/ Para entrar pnr ta aentaaa/ Y ilarte los Mais tarde nesse dia, nas imediações de seu sono da noi-
buenos dias/ Ácostadito en t'u can a". Sarita parece não estrê. te, ela pediu na janta que â puséssemos para dormir no
nhar o meu exagero físico, talvez porque se sinta abriga. sofá da sala, que os dois fôssemos dormir na câma de ca-
da em tal entusiasmo e mais, talvez se divirta co[r os ÍIlor sal do quarto; dizia que Léo roncava muito, quase â es-
vimentos dessa solicitude veemente, como se estives§q magava às vezes, rolando com seu sono pesado
colada a um brinquedo, uma gangorrâ, um chicote, mofu
- queria
agora maior liberdade para ela própria rolar, rolar como
tada num cavalo de carrossel em seu sobe-e-desce' é vet\ na grâma, que pudesse dormir naquele bom espaço do
dade, eu a jogavapâra o àt, a aimpatàva, provocava suas ri1 sofá, ouvindo pra adormecer o CD das historinhas; en-
sadas em câscata, aquela euforia era tudo o que nós doil quanto eu e ela estávâmos ainda ali no pátio do colégio,
precisávamos naquele minuto!, depois voltaríamos pa{qg eu a olhando de longe, assim, bem quieto, ainda não po-
casa e seria outro o clima, mais pacíficorLéo, ela e eu efi deria adivinhar sua demanda dessa noite, apenas fui ao te-
volta de uma mesa, a brisa na janela, os dois pais deqSfli lefone público ali pertinho e liguei pra Léo, Léo, vou
menina adivinhando calados que hoje Parecra um hoje aproveitar o início do horário de verão para passear
mais do que adequado para Léo me visitar à noite no soff" um pouco mais com a menina, a gente volta um pouqui-
da sala; jantávamos como que sentindo que as coisas nho mais tarde, não vamos muito longe. Reconto a Sari-
davam bem, a noite poderia ser festiva e ele ficar comi ta uma história: flma menina como tu acaba de chegar
até de manhã, quando Sarita então choramingava pedi!.r aqui em Porto Alegre. Toda moreninha também, mas
do a proteção do pai ou então a minha, nunca se sabi esta vem de longe, bem longe, lá das terras dos desertos,
premiado da manhã, assim jantávâmos, eu dizia, mas camelos, vais conhecêJa hoje. Muita gente de seu larveio
vezes com uma presença a mais, a sombra passageira junto, vieram passar o resto da vida por aqui, porque lá
sinuando que todo aquele quadro poderia expirar a onde eles viviam houve qualquer coisa que os obrigou a
quer hora. Sarita estava agora ali comigo, pois é, mudar pata cá, parece que vulcão, tempestade de fogo,
seu outro pai, nem primeiro nem segundo, mas esse não sei mais, sei que alguns vieram comigo no avião, ou-
tro que deveria lhe passar a impressão de que tudo o tros num navio atulhado de quem precisava fugir. Ah, foi
vinga na üda vem em duplo, pronto!, para recom uma guerra que os trouxe até aqui, foi sim, ag,oÍa lembro.
afalta da mãe ela tinha dois homens de pai, o outro e Todo esse povo está acampado num grande, grande ter-

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Berkeley em Bellagio
João Gilberto Noll

reno meio na divisa entre Sapucaia e São Leopoldo,logo aqui o guarda sorriu para a tal moça que dava na altu-
lá, por enquanto em tendas até que possam ajeitr as coi- -
ra do meu bolso, as crianças olhavam como sempre reser-
sâs, terem suas câsas, seus empregos, trabalhos, como eu vadas, os adultos falavam ansiosos diante desse visitante
que escrevo meus liwos, o Léo na sua farmácia. Não é aqui, segurando pela mão essâ criança que parecia uma
distante daqui, verás que não, pegaremos esse trem urba- das tantas que por ali tentavam brincar, perÍnanecer pelo
no, em pouco tempo estâremos lá, queres ir?, ah, ela só menos com algum conforto naquele imaginário comum
quer, quer sim, ver homens e mulheres alguns de vestes que deveria ser ocupado por fantasmas que eu e essa
longas, falando línguas arrevesadas, não, não são ciganos -
menina que trazia pela mão quem sabe nunca saberíamos
como aqueles que viste no liwo que te li a história toda criar: tufão de areia no deserto, solo esfarinhado aqui, pe-
ontem, aquela da menina que é encontrada perdida por dregoso acolá, cabras, tiros de canhões bem sucateados,
uma cigana e parte em caravana a viver de terra em terra, rios secos, bombardeios caindo de aüões possantes
assim, sem parat como se não soubessem morar na mes- tudo fugindo da guerra?, Sarita perguntou assim bem de
-
mâ casa a üda inteira; esse povo que vâmos conhecer es- repente, como se enfim tivesse penetrado com fulminân-
pera um dia encontrâr uma cozinha, quartos, uma sala cia na imagem conflagrada que eu cultivava, feito aper-
como a nossâ onde a chuva não alague, onde o tempero tasse na mão uma semente de história. Da guerra, sempre
part ajanta pode ficar sem fim no mesmo pote guardadi- a mesmâ guerrâ eu sem querer falei, da guerrâ, ela repe-
nho nesse canto sentado ao lado dela no metrô, faço tiu, e espichou olhando pârâ uma poçâ onde se viu num
-
com a mão um gesto âpartado e arredondado, como um espelho se ondulando pelo estardalhaço de vozes e pai-
cantinho onde algo pudesse ficar em pazpor todo o tem- xões em volta. Havia até galinhas ciscando por ali, sei lá
po sem precisar morrer para ali ficar qüetinho. Desce- como ainda vivas e não forrando o estômago das popula-
mos. E, de fato, em folgados passos, não mais que a dois
ções que ali esperavam a hora de terem a Íamília sob um
quilômetros da estação, avistamos o vasto acampâmento. teto, os documentos em dia, crianças na escola, mesmo
Partimos pra procurar essa menina pensando que jamais que tivessem de andar por milhas e mais milhas até che-
a encontraríamos numa multidão assim cerrada; cachor- garem à escola com goteiras, sem entenderem no início
ros latiam não dando para saber se de fome ou festa, fu- nada do que a professora falava... Tüdo em volta era fei-
maça de cozidos talvez, talvez uma queimada para o lixo. to de sons que valiam por si mesmos, a língua nova, ne-
Pedimos a um brigadiano licença pâra entrarmos no nhum fonema tinha serventia para se entender o que as
meio dessa algaravia que precisávamos encontrar umâ imagens do mundo por si só não davam conta de fazer.
criança para poder aprender português com essa moça Apenas ficar olhando em torno sem saber o que a vozfala

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Berkeley em Bellagio João Gilberto Noll

é como deve ser um surdo-mudo, só a inteligência xucra cia de todo o movimento, eu e Sarita estávamos ali como
investigando a imagem, e no mais vivendo apenas parâ verdadeiros voluntários, enffe o cheiro azedo do suor do
estranhar o conteúdo misterioso da boca em movimento. ajuntamento nós avançávamos, sem Cruz Vermelha ne-
Eu caminhava conduzindo Sarita por minha mão esquer- nhuma parâ representar, apenas com umâ vontade quâse
da, no meu lado direito tudo atuava em franca pantomi- obscena de se meter no meio deles de passagem, sempre
ma: diante das pessoas, principalmente das crianças, o de passagem, até púàr quase, quase na borda norte do
que eu dizia com os meus gestos espalhafatosos e a face acampamento. Ela tinha me reconhecido, a menina do
em rebordosa não era muito, nem sei se comunicavâ mes- aeroporto de Milão, a menina que não quisera saber de
mo alguma coisa, eu queria tão-só tentar dar um curso mim colando o rosto na saia da mãe. Ela agora estava di-
benevolente âos nossos pâssos tortuosos enúe crianças, ferente: sim, me olhava, ainda sem que eu pudesse tradu-
cachorros, galinhas, velhos afirmar que a minha zir seu sentimento, certo, mas me olhava muito provavel-
- dura pra ser sonho visita
junto da criança era só um pouco mes- mente porque âgora eu não estava sozinho, trazia ao
mo, não chegava porém a ter nem substância clara, já que encontro dela outra criança, uma menina com o seu tâ-
viúamos em eterno deslocamento, em fortuita expansão manho, a mesma pele, até as feições meio parecidas, ela
por enúe os acampamentos dos sobreviventes; os nossos poderia âgora ter confiança em mim, eu devia ser pai da-
sapatos em barrados queriam dizer que nos movimentá- quela outra ali que lhe sorria... Milagrosamente, Sarita
vamos pelo mesmo terreno que eles e que isso ia passar, descobria por si mesma que erâ aquela a menina sobre a
e etfazia expressões doidivanas que pareciam querer des- qual eu lhe contara, a tal criança fugitiva da guerra junto
bravar a ferro e foice o sentido da nossa aparição no meio a seu povo, atrâvessando mâres, continentes e agora ali,
daquele povo em inquietude, se é que algum sentido con- com os pés no barro da chuva que caíra na noite anterior
cluído havia não, não conseguiam rir com minhas mi- pela cidade e arredores... Soltei a mão de Sarita, deixei-a
-
cagens, nem tampouco se assustar nem nada, eu era com que andasse a caminho da outra. Sarita disse oh, assim
Sarita apenas a convicção de que ainda havia o que seguir mesmo, oh, como se ainda não soubesse falar, virgem de
em alguma direção, nós íamos, Sarita parecia embriagada semântica. É qr. ela descobria naturalmente como ensi-
pelo caminho que ftzíamos entre gente tão diferente e nar umâ língua pârâ um ser estrangeiro isso não se
com jeito reticente de quem não pode fazer o mesmo,
-
aprende, é puro dom, assim oh, OH!, como se estalasse o
pois estavam ali coçando-se, dando banho nas crianças, primeiro sentido da espécie, o espantol, espanto diante
tentando preencher um tempo que não lhes dava nada do outro com o meu corpo, que podia estar aqui onde eu
em troca. Para que compreendessem de novo a eloqüên- estou, e eu naquele espaço preciso que ela ocupa agota,

104 10t
Berkeley em Bellagio

oh!, é mâis que espanto, ou menos, melhor, bem menos:


designa a câlmâ tentâção qu,e faz Sarita tirar do bolso um
botão perdido, talvez de sua própria roupa, um grande
botão vermelho cor de sangue, parecia até envernizado,
brilhava de vermelho, o sol caía um homem ajoelhava
curvando-se, todo voltado paÍa -a direção de sua Meca,
outros o seguiam, ouvia-se um cântico serpenteado ao in-
finito, Sarita passava o botão vermelho p^Ía amão da ou-
tra menina, que olhou pra mim não bem com um sorri-
so, mas olhou parecendo suspirar pacificada...

106
Este liwo usa a fonte tipográficaJanson, que por müro tempo
julgou-se ter sido criada pelo holandês AntonJanson em Leipzig,
entre os anos de 1668 e 1687. Posteriormente comprovou-se, contudo, f\
que aJanson foi nabalho do húngaro Nicholas Kis (1650-1702),
discípulo do holandês Dirk Voskens. AJanson é um nítido exemplo da \
influência que exerceu a tipografia holandesa em toda Europa antes do
surgimento dos designs do inglês William Caslon (1692-1766).

Foror,rros E rMpREssÃo DA ALAúDE, ErvÍ pÁpEL pór-BN sor,o »p 90c.


Eorrone FneNcrs, wnÃo pr,2004.

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