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Prefácio de John-Hart
INTRODUÇÃO
PRIMEIRA PARTE
ESSÊNCIA DA TECNICIDADE
CAPÍTULO I – Gênese da tecnicidade
I. A noção de fase aplicada ao devir: a tecnicidade como fase
II. A defasagem da unidade mágica primitiva
III. A divergência do pensamento técnico e do pensamento religioso
CAPÍTULO II – Relações entre o pensamento técnico e as outras espécies de
pensamento
I. Pensamento técnico e pensamento estético
II. Pensamento técnico, pensamento teórico, pensamento prático
CAPÍTULO III – Pensamento técnico e pensamento filosófico
CONCLUSÃO
Introdução
INTRODUÇÃO
Este estudo é animado pela intenção de suscitar uma tomada de consciência do sentido
dos objetos técnicos. A cultura se constituiu como sistema de defesa contra as técnicas;
ora, essa defesa se apresenta como uma defesa do homem, supondo que os objetos
técnicos não contêm realidade humana. Nosso intuito foi mostrar que a cultura ignora, na
realidade técnica, uma realidade humana, e que, para desempenhar plenamente seu papel,
a cultura deve incorporar os seres técnicos enquanto conhecimento e valor. A tomada de
consciência dos modos de existência dos objetos técnicos deve ser efetuada pelo
pensamento filosófico, que deve cumprir aqui um dever análogo àquele que desempenhou
na abolição da escravidão e na afirmação do valor da pessoa humana.
A cultura trata o objeto técnico como o homem trata o estrangeiro quando se deixa levar
pela xenofobia primitiva. O misoneísmo orientado contra as máquinas é menos um ódio
pela novidade do que uma recusa da realidade estrangeira. Ora, esse ser estrangeiro é
ainda humano, e a cultura completa é aquilo que permite descobrir o estrangeiro como
humano. Da mesma forma, a máquina é a estrangeira; é a estrangeira na qual está
aprisionado algo de humano, desconhecido, materializado, escravizado, mas ainda
humano. A mais forte causa de alienação no mundo contemporâneo reside nesse
desconhecimento da máquina, que não é uma alienação causada pela máquina, mas pelo
não-conhecimento de sua [10] natureza e de sua essência, pela sua ausência do mundo
das significações e por sua omissão no quadro dos valores e conceitos que participam da
cultura.
A cultura é desequilibrada porque ela reconhece certos objetos, como o objeto estético, e
lhes atribui cidadania no mundo das significações, e ao mesmo tempo rechaça outros
objetos, em particular os objetos técnicos, no mundo sem estrutura daquilo que não possui
significações, mas apenas um uso, uma função útil. Diante dessa recusa defensiva,
pronunciada por uma cultura parcial, os homens que conhecem os objetos técnicos e
sentem sua significação buscam justificar seu julgamento atribuindo ao objeto técnico o
único estatuto atualmente valorizado além daquele de objeto estético, aquele de objeto
sagrado. Nasce então um tecnicismo intemperante que não passa de uma idolatria da
máquina e, através dessa idolatria, por meio de uma identificação, uma aspiração
tecnocrata ao poder incondicional. O desejo de poder consagra a máquina como meio de
supremacia e faz dela o elixir moderno. O homem que quer dominar seus semelhantes
suscita a máquina andróide. Diante dela, ele abdica de sua humanidade e a delega. Ele
busca construir a máquina de pensar, sonhando poder construir a máquina de querer, a
máquina de viver, para ficar atrás dela sem angústia, liberado de todo perigo, eximido de
todo sentimento de fraqueza e triunfante mediante sua invenção. Ora, nesse caso, a
máquina que a imaginação torna esse duplo do homem que é o robô desprovido de
interioridade, representa de maneira bem evidente e inevitável um ser puramente mítico
e imaginário.
Queríamos precisamente mostrar que o robô não existe, que ele não é uma máquina da
mesma forma como uma estátua não é um ser vivo, mas apenas um produto da imaginação
e da fabricação fictícia, da arte da ilusão. No entanto, a noção da máquina que existe na
cultura atual incorpora em ampla medida essa representação mítica do robô. Um homem
culto não se permitiria falar dos objetos ou personagens pintados sobre uma tela como
verdadeiras realidades, tendo uma interioridade, uma vontade boa ou má. Esse mesmo
homem fala, no entanto, das máquinas que ameaçam o homem como se atribuísse a esses
objetos uma alma e uma existência separada, autônoma, que lhes conferisse sentimentos
e intenções para com o homem.
A cultura comporta assim duas atitudes contraditórias com relação aos objetos técnicos:
por um lado, ela os trata como puros [11] conjuntos de matéria, desprovidos de
verdadeiro significado e apresentando apenas utilidade. Por outro lado, ela supõe que
esses objetos são também robôs e que eles são animados por intenções hostis com relação
ao homem, ou representam para ele um perigo permanente de agressão, de insurreição.
Julgando ser bom conservar o primeiro caráter, ela quer impedir a manifestação do
segundo e fala em colocar as máquinas a serviço do homem, crendo encontrar na redução
à escravidão um meio seguro de impedir qualquer rebelião.
De fato, essa contradição inerente à cultura provém da ambigüidade das idéias relativas
ao automatismo, nas quais se esconde um verdadeiro erro lógico. Os idólatras da máquina
apresentam geralmente o grau de perfeição de uma máquina como proporcional ao grau
de automatismo. Ultrapassando aquilo que a experiência mostra, eles supõem que, por
um crescimento e um aperfeiçoamento do automatismo, chegaríamos a reunir e
interconectar todas as máquinas entre si de maneira a constituir uma máquina de todas as
máquinas.
Ora, na verdade o automatismo é um grau bastante baixo de perfeição técnica. Para tornar
uma máquina automática, é preciso sacrificar várias possibilidades de funcionamento,
vários usos possíveis. O automatismo – e sua utilização sob a forma de organização
industrial que chamamos de automação – possui uma significação econômica ou social
mais do que uma significação técnica. O verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas,
aquele que, poderíamos dizer, eleva o grau de tecnicidade, corresponde não a um aumento
do automatismo mas, ao contrário, ao fato de o funcionamento de uma máquina guardar
uma certa margem de indeterminação. É essa margem que permite à máquina ser sensível
a uma informação exterior. É por essa sensibilidade das máquinas à informação que um
conjunto técnico pode se realizar, muito mais do que por um aumento do automatismo.
Uma máquina puramente automática, completamente fechada sobre si mesma num
funcionamento pré-determinado, não poderia oferecer mais que resultados sumários. A
máquina dotada de alta tecnicidade é uma máquina aberta, e o conjunto das máquinas
abertas supõe o homem como organizador permanente, como intérprete vivo das
máquinas umas com relação às outras. Longe de ser o vigia de um grupo de escravos, o
homem é o organizador permanente de uma sociedade dos objetos técnicos que precisam
dele como os músicos precisam do maestro. O maestro da orquestra só pode reger os
músicos porque ele interpreta, como eles e tão [12] intensamente quanto todos eles, a peça
executada. Ele acalma ou apressa os músicos, mas é também acalmado e apressado por
eles; de fato, através dele, a orquestra acalma e apressa cada músico. Ele é para cada um
deles a forma movente e atual do grupo em sua existência presente; ele é o intérprete
mútuo de todos com relação a todos. Assim, o homem tem por função ser o coordenador
e o inventor permanente das máquinas que estão à sua volta. Ele está entre as máquinas
que operam com ele.
A presença do homem às máquinas é uma invenção perpetuada. Isso que reside nas
máquinas é algo da realidade humana, do gesto humano fixado e cristalizado em
estruturas que funcionam. Essas estruturas precisam ser sustentadas no curso de seu
funcionamento, e a maior perfeição coincide com a maior abertura, com a maior liberdade
de funcionamento. As máquinas de calcular modernas não são puros autômatos; elas são
seres técnicos que, acima de seus automatismos de adição (ou de decisão pelo
funcionamento de basculadores elementares), possuem possibilidades muito vastas de
comutação de circuitos, que permitem codificar o funcionamento da máquina restringindo
sua margem de indeterminação. É graças a essa margem primitiva de indeterminação que
uma mesma máquina pode extrair raízes cúbicas, ou traduzir um texto simples composto
de um pequeno número de palavras e de formas de uma língua para outra.
É ainda por meio dessa margem de indeterminação, e não pelos automatismos, que as
máquinas podem ser agrupadas em conjuntos coerentes, trocar informação umas com as
outras por meio desse coordenador que é o intérprete humano. Mesmo quando a troca de
informação é direta entre duas máquinas (como entre um oscilador piloto e um outro
oscilador sincronizado por impulsões), o homem intervém como ser que regula a margem
de indeterminação a fim de que ela seja adaptada à melhor troca possível de informação.
Ora, poderíamos nos perguntar qual homem pode realizar em si a tomada de consciência
da realidade técnica e introduzi-la na cultura. Essa tomada de consciência dificilmente
pode ser realizada por aquele que é ligado a uma só máquina pelo trabalho e pela fixidez
dos gestos cotidianos; a relação de uso não é favorável à tomada de consciência, pois seu
recomeço habitual esfuma no estereótipo dos gestos adaptados a consciência das
estruturas e dos funcionamentos. O fato de governar uma empresa utilizando [13]
máquinas, ou a relação de propriedade, não é mais útil do que o trabalho para essa tomada
de consciência: ele cria pontos de vista abstratos sobre a máquina, julgada pelo seu preço
e pelos resultados de seu funcionamento mais do que em si mesma. O conhecimento
científico, que vê em um objeto técnico a aplicação prática de uma lei teórica, tampouco
está no nível do domínio técnico. Essa tomada de consciência pareceria antes poder ser o
feito do engenheiro de organização, que seria como o sociólogo e o psicólogo das
máquinas, vivendo no meio dessa sociedade de seres técnicos da qual ele é a consciência
responsável e inventiva.
Para devolver à cultura o caráter verdadeiramente geral que ela perdeu, é preciso
reintroduzir nela a consciência da natureza das máquinas, de suas relações mútuas e com
o homem, e dos valores implicados nessas relações. Essa tomada de consciência exige a
existência, ao lado do psicólogo e do sociólogo, do tecnólogo ou mecanólogo. Além
disso, os esquemas fundamentais de causalidade e de regulação que constituem uma
axiomática da tecnologia devem ser ensinadas de maneira universal, como são ensinados
os fundamentos da cultura literária. A iniciação às técnicas deve ser colocada sobre o
mesmo plano que a educação científica; ela é tão desinteressada quanto a prática das artes,
e domina tanto as aplicações práticas quanto a física teórica; ela pode atingir o mesmo
grau de abstração e de simbolismo. Uma criança deveria saber o que é uma [14] auto-
regulação ou uma reação positiva como ela conhece os teoremas matemáticos.
Essa reforma da cultura, procedendo por alargamento e não por destruição, poderia
devolver à cultura atual o poder regulador verdadeiro que ela perdeu. Base de
significações, de meios de expressão, de justificações e de formas, uma cultura estabelece
entre aqueles que a possuem uma comunicação reguladora; saindo da vida do grupo, ela
anima os gestos daqueles que assumem as funções de comando, fornecendo-lhes normas
e esquemas. Ora, antes do grande desenvolvimento das técnicas, a cultura incorporava as
técnicas usuais, na forma de esquemas, símbolos, qualidades, analogias. Ao invés disso,
a cultura atual permanece presa aos esquemas ultrapassados das técnicas artesanais e
agrícolas dos séculos passados, esquemas que servem de mediadores entre os grupos e
seus chefes, impondo, por causa de sua inadequação às técnicas atuais, uma distorção
fundamental. O poder se torna literatura, arte de opinião, defesa baseada em
verossimilhanças, retórica. As funções diretrizes são falsas porque não existe mais entre
a realidade governada e os seres que governam um código adequado de relações: a
realidade governada comporta homens e máquinas; o código repousa apenas sobre a
experiência do homem trabalhando com ferramentas, ela mesma enfraquecida e distante
porque aqueles que empregam o código não acabam, como Cincinato, de largar o arado.
O símbolo se reduz a simples fórmula de linguagem, o real está ausente. Uma relação
reguladora de causalidade circular não pode se estabelecer entre o conjunto da realidade
governada e a função de autoridade: a informação não chega mais porque o código se
tornou inadequado ao tipo de informação que ele deveria transmitir. Uma informação que
exprimirá a existência simultânea e correlativa dos homens e das máquinas deve
comportar os esquemas de funcionamento das máquinas e os valores que eles implicam.
É preciso que a cultura, especializada e empobrecida, volte a ser geral. Essa extensão da
cultura, suprimindo uma das principais fontes de alienação e restabelecendo a informação
reguladora, possui um valor político e social: ela pode dar ao homem meios para pensar
sua existência e sua situação em função da realidade que o rodeia. Essa obra de
alargamento e aprofundamento da cultura também tem um papel propriamente filosófico
a desempenhar pois ela conduz à crítica de um certo número de mitos [15] e de
estereótipos, como aquele do robô, ou dos autômatos perfeitos a serviço de uma
humanidade preguiçosa e saciada.
Para operar essa tomada de consciência podemos tentar definir o objeto técnico em si
mesmo pelo processo de concretização e de sobredeterminação funcional que lhe dá sua
consistência ao termo de uma evolução, provando que ele não poderia ser considerado
um puro utensílio. As modalidades dessa gênese permitem apreender os três níveis do
objeto técnico e sua coordenação temporal não dialética: o elemento, o indivíduo, o
conjunto.
O objeto técnico sendo definido por sua gênese, é possível estudar as relações entre o
objeto técnico e as outras realidades, em particular o homem adulto e a criança.
O problema técnico é, portanto, muito mais aquele da convergência das funções em uma
unidade estrutural do que aquele de uma busca de compromissos entre exigências em
conflito. Se o conflito subsiste entre os dois aspectos da estrutura única no caso
observado, é somente enquanto a posição das nervuras correspondendo [23] ao máximo
de rigidez não é necessariamente aquele que convém ao melhor resfriamento, facilitando
o escoamento dos filetes de ar entre as abas quando o veículo está em movimento. Nesse
caso, o construtor pode ser obrigado a conservar um caráter misto incompleto: as abas-
nervuras, se elas são dispostas para o melhor resfriamento, deverão ser mais espessas e
mais rígidas do que seriam se fossem somente nervuras. Se, ao contrário, elas são
dispostas de maneira a resolver perfeitamente o problema de obtenção da rigidez, elas
têm uma superfície maior, afim de recuperar por um desenvolvimento da superfície aquilo
que o ralentamento dos filetes de ar faz perder na troca térmica; enfim, as abas podem
ainda ser, em sua própria estrutura, um compromisso entre as duas formas, o que exige
um desenvolvimento maior do que se apenas uma das funções fosse tomada como fim da
estrutura. Essa divergência das direções funcionais permanece como um resíduo de
abstração no objeto técnico, e é a redução progressiva dessa margem entre as funções das
estruturas plurivalentes que define o progresso de um objeto técnico; é essa convergência
que especifica o objeto técnico, pois não há, numa época determinada, uma pluralidade
infinita de sistemas funcionais possíveis; as espécies técnicas são em número muito mais
restrito do que os usos aos quais destinamos os objetos técnicos; as necessidades humanas
se diversificam ao infinito, mas as direções de convergência das espécies técnicas são em
número finito.
O objeto técnico existe, portanto, como tipo específico obtido ao termo de uma série
convergente. Essa série vai do modo abstrato ao modo concreto: ela tende para um estado
que faria do ser técnico um sistema inteiramente coerente consigo mesmo, inteiramente
unificado.
ESSÊNCIA DA TECNICIDADE
ESSÊNCIA DA TECNICIDADE
[154] A existência dos objetos técnicos e as condições de sua gênese colocam ao
pensamento filosófico uma questão que ele não pode resolver pela simples consideração
dos objetos técnicos em si mesmos: qual é o sentido da gênese dos objetos técnicos com
relação ao conjunto do pensamento, da existência do homem e de sua maneira de ser no
mundo? O fato de que existe um caráter orgânico do pensamento e do modo de ser no
mundo obriga a supor que a gênese dos objetos técnicos tem repercussão sobre as outras
produções humanas, sobre a atitude do homem com relação ao mundo. Mas esta é apenas
uma maneira lateral e muito imperfeita de colocar o problema ao qual conduz a
manifestação dos objetos técnicos como realidade submissa à gênese e tendo por essência
verdadeira apenas as linhas desta gênese. Com efeito, nada prova que seja aí uma
realidade independente, a saber o objeto técnico tomado como tendo um modo de
existência definido.
Se este modo de existência é definido porque ele provém de uma gênese, esta gênese que
engendra objetos talvez não seja apenas a gênese de objetos, ou mesmo a gênese da
realidade técnica: talvez ela venha de mais longe, constituindo um aspecto restrito de um
processo mais vasto, e talvez ela continue a engendrar outras realidades depois de ter feito
aparecer os objetos técnicos. É, portanto, a gênese de toda a tecnicidade que será preciso
conhecer, aquela dos objetos e aquela das realidades não objetificadas, e toda a gênese
implicando o homem e o mundo, de que a gênese da tecnicidade talvez não seja mais que
uma pequena parte, apoiada e equilibrada por outras gêneses, anteriores, posteriores ou
contemporâneas, e correlativas daquela dos objetos técnicos.
Entretanto, a noção mesma de gênese merece ser precisada: a palavra gênese é entendida
aqui no sentido definido no estudo sobre A individuação [155] à luz das noções de forma
e de informação, como o processo de individuação na sua generalidade. Há gênese
quando o devir de um sistema de realidade primitivamente supersaturado, rico em
potenciais, superior à unidade e contendo uma incompatibilidade interna, constitua para
este sistema uma descoberta de compatibilidade, uma resolução por advento de uma
estrutura. Esta estruturação é o advento de uma organização que é a base de um equilíbrio
de metaestabilidade. Uma tal gênese se opõe à degradação das energias potenciais
contidas num sistema, por passagem a um estado estável a partir do qual nenhuma
transformação é mais possível.
Nossa hipótese geral sobre o sentido de devir da relação do homem com o mundo consiste
em considerar como um sistema o conjunto formado pelo homem e o mundo. Esta
hipótese não se limita, entretanto, a afirmar que o homem e o mundo formam um sistema
vital, englobando o vivo e seu meio; a evolução poderia, com efeito, ser considerada uma
adaptação, isto é, a busca de um equilíbrio estável do sistema por redução da distância
entre o vivente e o meio. Ora, a noção de adaptação, com a noção de função e de finalidade
funcional que lhe está ligada, levaria a conceber o devir da relação entre o homem e o
mundo como tendendo para um estado de equilíbrio estável, o que não parece correto no
caso do homem, e talvez nem mesmo no de qualquer ser vivo. Se quisermos conservar
um fundamento vitalista para esta hipótese do devir genético, poderíamos apelar à noção
de impulso vital apresentada por Bergson. Ora, esta noção é excelente para mostrar aquilo
que falta à noção de adaptação frente a uma interpretação do devir vital, mas ela não
concorda com ela, e subsiste um antagonismo sem mediação possível entre a adaptação e
o impulso vital. Estas duas noções opostas parecem poder ser substituídas, no par que elas
formam, pela noção de individuação dos sistemas supersaturados, concebida como
resoluções sucessivas das tensões por descobertas de estruturas no seio de um sistema
rico em potenciais. Tensões e tendências podem ser concebidas como existindo realmente
num sistema: o potencial é uma das formas do real, tão completamente quanto o atual. Os
potenciais de um sistema constituem seu poder de devir sem se degradar; eles não são a
simples virtualidade dos estados futuros, mas uma realidade que as impulsiona a ser. O
devir não é a atualização de uma virtualidade, nem o resultado de um conflito entre
realidades atuais, mas a operação de um sistema possuindo potenciais em sua [156]
realidade: o devir é a série de acesso de estruturações de um sistema, ou as individuações
sucessivas de um sistema.
Ora, a relação do homem com o mundo não é uma simples adaptação, regida por uma lei
de finalidade auto-reguladora encontrando um estado de equilíbrio cada vez mais estável;
a evolução desta relação, da qual participa a tecnicidade entre outros modos de ser,
manifesta ao contrário um poder de evolução que vai crescendo de etapa em etapa,
descobrindo formas e forças novas capazes de fazê-lo evoluir mais, ao invés de estabilizá-
lo e fazê-lo pender para flutuações cada vez mais restritas; a própria noção de finalidade,
aplicada a este devir, parece inadequada, pois podemos certamente encontrar finalidades
restritas ao interior deste devir (busca de alimento, defesa contra as forças destrutivas),
mas não há um fim único e superior que possamos sobrepor a todos os aspectos da
evolução para coordená-los e dar conta de sua orientação pela busca de um fim superior
a todos os fins particulares.
É por isso que não é proibido apelar a uma hipótese que faz intervir um esquema genético
mais primitivo do que os aspectos opostos da adaptação e do impulso vital, e que inclui
ambos como casos limite abstratos: aquele das etapas sucessivas de estruturação
individuante, indo de estado metaestável em estado metaestável por meio de invenções
sucessivas de estruturas.
Segundo, uma vez que a aparição da tecnicidade marca uma ruptura e um desdobramento
na unidade mágica primitiva, a tecnicidade, como a religiosidade, herda um poder de
divergência evolutiva; no devir do modo de ser do homem no mundo, esta força de
divergência deve ser compensada por uma força de convergência, por uma função
relacional mantendo a unidade apesar desta divergência; o desdobramento da estrutura
mágica não seria viável se uma função de convergência não se opusesse aos poderes de
divergência.
É por estas duas razões que é necessário estudar de onde vem a tecnicidade, aonde ela
chega e quais relações ela mantém com os outros modos de ser no mundo do homem, isto
é, como ela se oferece às funções de convergência.
Existiria, assim, não somente uma gênese da tecnicidade, mas também uma gênese a
partir da tecnicidade, por desdobramento da tecnicidade original em figura e fundo, o
fundo correspondendo às funções de totalidade independentes de cada aplicação dos
gestos técnicos, enquanto que a figura, feita de esquemas definidos e particulares,
especifica cada técnica como maneira de agir. A realidade de fundo das técnicas constitui
o saber teórico, enquanto que os esquemas particulares geram a prática. São, ao contrário,
as realidades de figura das religiões que se constituem em dogma coerente, enquanto que
a realidade de fundo se torna ética, desligada do dogma; entre a prática proveniente das
técnicas e a ética proveniente das religiões, como entre o saber teórico das ciências, vindo
das técnicas, e o dogma religioso, existe ao mesmo temo uma analogia, vinda da
identidade do aspecto representativo ou ativo, e uma incompatibilidade, oriunda do fato
de que estes diferentes modos de pensamento vêm, seja de realidades de figura, seja de
realidades de fundo. O pensamento filosófico, intervindo entre as duas ordens
representativas e as duas ordens ativas do pensamento, tem por sentido fazê-las convergir
e instituir entre elas uma mediação. Ora, para que esta mediação seja possível, é preciso
que a própria gênese dessas formas do pensamento seja completamente conhecida e
realizada a partir das etapas anteriores da tecnicidade e da religiosidade; o pensamento
filosófico deve, portanto, retomar a gênese da tecnicidade, integrada no conjunto dos
processos genéticos que a precedem, a seguem e a rodeiam, não apenas para poder
conhecer a própria tecnicidade, mas a fim de entender, em suas próprias bases, os
problemas que dominam a problemática filosófica: teoria do saber e teoria da ação, em
relação com a teoria do ser