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A EXPERI~NCIA VIVA DO TEATRO

2~ ed ição

\
Eric Bentley
O presente livro é uma história informal da literatu-
ra dramática, de ~squilo a Beckett, examinando
todas as tendências formais que dominaram diferen-
tes épocas. O autor estuda-lhes as motivações psi-
cológicas e as condições sociais que as criaram, de-
monstrando haver uma inter-relação constante entre
os mais variados gêneros e uma continuidade, só
alterada nas aparências, entre coisas tão distintas
como a tragédia e a farsa.

O teatro tem vida própria, afirma o autor, e passa a


demonstrá-lo através de uma fascinante expedição
A EXPERIÊNCIA
às essências da literatura dramática, justificando o
máximo aproveitamento do palco, a sua desinibição
dos cânones do realismo sala-de-estar, que só passa-
VIVA DO TEATRO
ram a ser contestados pelos profissionais depois da
Segunda Guerra, enquanto em outras artes a van-
guarda formal já começara a fazer experimentos Tradução de
importantes a partir de 1870. BENTLEY reabilita atá Álvaro Cabral
os estereótipos do melodrama e da farsa, mostrando Apresentação de
como, às vezes, possuem maior validade dramática
Paulo Francis
do que certos estudos psicológicos feitos com apa-
rente seriedade e profundidade. Ele vê no teatro um .
organismo complexo, em permanente fluência, não
Segunda edição
sujeito às r(gidas classificações acadêmicas, que ten-
dem a torná-lo estacionário no tempo e limitado
quanto ãs possibilidades de interpenetração dos di-
versos gêneros de expressão.

O que BENTLEY procurou fazer, em última análise,


foi uma conclllação dos formalistas com aqueles que
procuram no teatro uma experiência intelectual.
Mostra que há lugar para todo mundo em cena, e
que essas duas tendências dominantes do pensamen-
to crttlco, longe de serem antagônicas, em verdade
se fundem e se complementam pois coexistiram na
época de ~squilo e na de Shakespeare, não havendo
motivo palpável por que não possam tornar a fazê-lo ZAHAR EDITORES
em nosso tempo, quando o teatro voltou a deixar RIO DE JANEIRO
sua marca entre as artes de maior impacto social.

continue ns 2'! sba


Título original :
The Life of the Drama
Traduzido da primeira edição , publicada em 1965 por
Methuen & Co. Ltd ., Londres, Inglaterra.
Copyright © 1964 by Eric Bentley
Direitos reservados .
A reprodução não autorizada
desta publicação , no todo ou em parte, Índi c e
constitui violação do copyright. (Lei n? 5.988 )
A CONCILI AÇAO D E BE:'oJTLEY, np resentação d e PAULO FRANCIS 9
Primeira edição brasileira: 1967
PARTE I : ASPECTOS DE UMA PE ÇA
Capa:
Érico 17
i. EN RE DO .
A MATÉruA- P IU M A DO ENREDO .• •. • .•• . •• . • ••• • • ••• • 17
A I M ITAÇÃO DA VIDA . •• . •. . • . . •. . •. • . • •.. . •• • •• . . . . 22
ASSOM BRO ou ADMmA ÇÃo E "SUSPENSE" . • . •.• •• •• .• • • 25

~~
A IM ITAÇÃ O DA A Ç ÃO •. • .. • . .• . •. . • .•• • . .•. .•••••.
A P REV E N Ç ÃO CO!'..,ltA O E N RE DO • • .• . . • . •• . • . • • • • . .•
A P ROVOC AÇÃO DA PHEVENÇÃO • .. • •• .• • . •• .• . • •••.• 32
SHA KESPEARE . 36
UM ENREDO NÃO É UMA PEÇA . •.. . • ••• • • • . • • • • . • • •• 41

2. PE RSONACEr-.t . . 43

A ?-fATÉRlA-PHIMA DA P ER SO NA G EM . .. . . .. . • .•• . . . . .• 43
DO FATO À FICÇÃO . . . . . . . . •.. . . . . . . . . . . . . . .. . • •.• . 45
E ?-[ LO UVOR nos TIPOS . . . . . •. . • . • . . . . . . . . . • . . . . •. •. • 49
TIPO F AR Q U ÉTI P O . • .. . . . . . • . . • . . . • . . . . . . • . • . •• • • • • 54
TI P OL OGI A E MIT OLOG IA . .. • . . . . . . • . • . . .. .. . . • . . •. • • 58
O M ODERNO DI\A MA P SI COI. ÓGI CO . . .• .. . . . . . . . . ..• ••• . 60
64
1981 PA lIA ALÉM DE T I P O S E I N DI V í D UOS • . . .• .• .. • • • . . . • • •
A SUBSTÂNCIA DOS .>ONHOS . 72
Direitos para a língua portuguesa adquiridos po r
ZAHAR EDITORES 75
Caixa Postal 207 ZC-OO Rio 3. DI ÁLO GO . .
que se reservam a propriedade desta versão 75
" F A L A I" .... . . ... .. .. .. .... . . . . . .... ... .. . ... . .. ..
Impresso no Brasil O DIlAMATUTIGO COMO FALADOR • • • •. . .. .. •.•. •• • • . •• 78
6 A EX PEIU Ê ~CIA VIVA DO TEATRO
Í :":JJ1CE 7
A ELOQ Ü Ê N CIA NO DI Á LOGO •• • • •• • • ••• • • • • .• . • . • . • . . 81
N ATURALISl\IO •• • • • • • • • • • • • • • . • • • • • • • • • •• • • . . . ••• • •
PAliTE lI : Dl FE HE NT E S C8 \:EHOS DE PEÇAS
84
PROSA RETÓR ICA • . • • ••• •• ••• • . • •• •• ••••• • • . ••. •• . . 87 fi . \ IELO J)H.\ \I:\ . ISI
VERSO RET ÓRI CO • • . . . .• ••• .. •• • •.• •. • •.• •.• . .. .. . •. 90
A 1\1.-\ FA~ IA DO 1\I ELO[)I I.-\ :-'IA IHI
POESIA . ... ... .... .. . . ... .. ... .. .. ... . ... . .. .. . . . 91
.

ANTIPOESIA . .. .. ... . .. .... .. .... .. .. .... . .. .... .. . E :-'l L O U\'O!l DA LA:-r ÚnL-\ 182
9G
18.'5
ANTlPEÇAS . .. ... . .. ... . .. .. .. ... .. . .. .. .... . .. .. . 99
CO\ Il'A IX /\O E Tl,:- IOn .
I·:X .\ C EII O J H~ ~
L1 ;\;( ; I'AC E I-I . 190
4. PENSAMENTO . .. ........ .. ... .. . .... . . ... . .... . ZOLA E DEPOI S . l D'3
10~
A Q U I :":TESSÊ!':CIA DO DlIA .\ f.\ . I DS

PE:-lSAMENTO E SENTIMENTO o • • • • • • • • • • • • • •• • • •• • • • •
1m 7. F AHSA . 201
O "PATHOS" DO PENSAME!'.'TO o • ••••• • • • •• • •••• • • ••• •• 104
MÁS IDÉIAS .. ..... ......... ........ ...... . .. .... .. lOS , \'IO LÊ:":C IA . 201
PROPAGANDA . .. .. .. ..... . ........ .... .. ...... .. .. 109 ZO~ IIlA !l DO C AS Al\ rE:":TO ' . 20G
UMA PEÇA É miA C OISA INTELECTUAL • • • . • . .. . . . • • . • • 111 .; C AT Ali SE CÔ:-'lI C A . 20()
O DRAMA E SPA N H OL •••••• ••• ••••• •.•. . • •.. . . . • •. • 115 '{ I' IA Il.-\S E TFATIlO . 211
O DRA1\IA ALE1\fÃO ••••.• •• ••• • • ••.•.•. . •• . • • ••. .• .. 119 \ DOCES E AMA nCAS F O :-;TES . 216
SH A \ V • •• •• . • • • • •• •• • • ••• • • • . •• .•• • . • . • •• • . • ••• . . . 121 b A DIALÉTI C A DA FAIISA . . 219
PffiANDELLO . . . ... . . .. . .. . .. . . . . . . . .. . . .. . . . .. ... . 127 -1 A T n A \' E SSlJ RA CO:-IO FA TALII)ADE .. . . . . . . . . . .• .t . 222
BRECHT ••• ••••••• •• ••• ••• • • • •••• • • ••• •• •• • ••• • • .• 130 ~ À 1:- I AC E:- 1 E SE~IEL IIA:":ÇA DO 1\I,\ CA CO .. . . . .. . . .. . . . • . 225
A DIGNIDADE DA SIGNIFICÂNCIA •• • .••• • • ••• •• • • • • . .•• 136 q A Ql' I:-;TESSÊ :":CIA DO TEATRO . 2~8
' O "o SO l' RO DE LIIJEHDADE 1~ IAGI:":/\H1A" . 231

5. REPRESENTAÇAO . . . . .. . .. . . . . ..... . . . . . . .... . . 111 1). T H:\CrmI:\ 2.'33


AS FOR:- I AS S UPEHIOH ES . 233
LITERATURA " VE IIS US" TEAT R O ••• ••. • •• •.. • • • .. . •.. .. i41 ,\ pEnSO!':ACE1' 1 :'-IA CO\ f h ll .\ E :-; \ TH ,\ CÍ-: Il['\ . ~lR
INTERPRETA R , OBS ERVAR E SER OnSERVA DO • .•. •. • •••. . • • 14~ A l\ IO nTE l\' A \' JI) A COTl IJI A:":A .. .. . . . . . . .. .. . . . . • •. • . 21G
SUnSTITUIçÕES •• ••• . • • •• • • • • •• ••• • •• •. • • •• •• .. • . .. 149 "LA OSCt.'HA RA íz DEL r.nrro " . 249
IDENTIFICAÇÕES •• • • • •• •• • •• • ••• • • • •• • •• • • • ••• • ••• . 150 T l·: nRO Il . . . . . . . .. •. .. . . . . . .. . .. . . . . . . . . . . .. . . . .. . . 2.5·1
EMPATIA E ALIENAÇÃO •••.•. •. ••• •• ••. •••• • •.• • • • • • 152 CO ~ [ P A I X Ã O . . .• .. .. . . . . . . . . . .. . . . . ' . 25(-i
o ADULTO E O INFANlIL • • •••• •••••• •••••••• •••••••• 152 DE SII AKES PE AnE A KLE IST . 258
FINAL DA ADOLESCÊNCIA ••• •••• •• ••• • ••• • •• •• ••• ••• 154 InA •.• •• • .• . . . . • . . .. . • . •. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2GO
O QUE O ATOR DÁ AO DRA1\fATURGO •• • • • •••• ••• • •• • • • 156 A OI AL li:TI CA DA T nA(;É IJIA 2GI
O QUE O DRAMATURGO DÁ AO ATOR • • • • • • • • ••• " • • ••• 160
GRANDE ATUAÇÃO NO MELODRAMA . " •• ••• •••• • •• " . •• 161 9. C O \ H~ DI.'\ 2Gfi
A OCORRÊNCIA TEATRAL •• • • •• • • • •• • • • •••• • •. • . • • • • • • I6f)
EU rS1A\'A APE!': :\S nm :-';CA:-; I)O !" . 2GG
nru NCAR, REPR ESE N T AR , DE SE MPE!'.TJ[ AR • . • .• . • . . • . . • . . . 169
":-': ,\0 I.E\· F. ~[O S A S C OIS AS 1'.\1 1.-\ !':SSE I.ADO! " . 2G9
PSICODHA1\fA • • •• • •• • • • • . .• • •• •• • •• • • . . . .• . . . • • . . . • 172
"IL GllJO CO DEI.LI:: P A RU " THA C}:IHA E COl\rf:IHA : A I Ct ' ~1 A ~ G E:":En .\ L1Z.\ Ç i)ES . 27 1
175
C O:- IO GOSTA IS . 27 ~)
8 A EXPEmÊNCIA VIVA DO TEATRO

10 . TRAGICOMEDJA 284
TRAGf.:DIA EVITADA F. TRAl'SCE:-IDIDA . .•. •.•.. . • •..•••• 284
VIl'GANÇA, JUSTIÇA, PERDÃO • •.•. •.•• •.• ••• ••.•• ••• • 287
DESESPERO , ESPERAl'ÇA • . • • • . • . . • • . • • . •• ••. • ••.•.••• 300

REFER~NCIAS o •• • • •• • • • • • •••• • • • •• • • • • • •• • • • • • • • • • • • • • • •
317

AGRADECIMENTOS ..... ... . .............. ............... 321


A Conciliação de Bentley

E RIC BENTL EY examina a inter-relação dos diversos gê-


neros de teatro em A Experiência Viva do Teatro. Defende
gêneros "desacreditados" como o melodrama e a farsa. :b riotá-
vel que faça isso, pois, em The Playwright as Thinker, postulava
um teatro onde o intelecto tinha primazia absoluta. Todos nós
mudamos um pouco nossas opiniões, o estacionarismo intelec-
tual é o apanágio dos medíocres, e BentIey passa de urna posi-
ção a outra com erudição e brilho que não têm paralelo na
crítica teatral do nosso tempo.
A Experiência Viva do Teatro parece-me um livro de im-
portância vital para o estudioso de teatro. Bentley demole a ri-
gidez clássica associada a palavras como tragédia, comédia, dra-
ma, farsa etc. Mostra que o teatro é um organismo complexo,
em permanente fluência, que mantém a sua integridade básica
mediante certos atributos de comunicação, certos traços de hu-
manidade comum, derivados de nossa experiência de vida. Exa-
mina-lhes a motivação psicológica, valendo-se, em grande parte,
do freudianismo moderno. e considera as variações de uso e
prazer propiciadas pela literatura dramática em face de condi-
ções sociais diferentes. Realiza, essencialmente, um ensaio anti-
acadêmico sobre teatro, sobre a capacidade infinita de renova-
ção do teatro.
A tendência acentuada por Bentley, a vida própria do pal-
co, há muito já domina a cena contemporânea. Ele a combateu
em livros como o mencionado The Playwright as Thinker, In
11
lO A EXI' Elllt::-:CIA \'I\'A no TEATno A CONCILIAÇÃO DE BENTLEY

Searcli o/ Theatre, Be. nard Sliaw, Wliat is Theatre'l e The Dra- do e mostra a imensa fecundidade desse método de approacli
matic Event, Bentley propunha, então, um realismo mais amplo à nossa compreensão do teatro. ,
e complexo nas manifestações formais do que aquele formulado Trata-se, em suma, de um livro seminal, que certamente dara
por Ibsen e Checov, mas recusava o anti-realismo da linha Jo- aos nossos críticos, aos profissionais e à platéia _engagé ~o pal -
nesco & Beckett, e o teatralismo de diretores como Elia Kazan co novas e ampliadas diretrizes para sua funçao de cnadores
e Peter Brook. É evidente que este grande crítico fez uma revi- e de guardiães da criação. O teatro, nos últimos ~nos, com a
são profunda de seu pensamento, pois, nesta obra, traça um ver- emergência de dramaturgos do porte de Peter ~.elss, Osborne,
dadeiro mapa explicativo e anotado dos rumos do anti-realis- sem falar da divulgação plena de Brecht, tem exibido uma. cap~~
mo e do teatralismo, nos quais encontra agora uma existência cidade de inovação formal e de influência social que muitos ja
afim com as próprias origens do teatro. julgavam impossível, em virtude das. limit~ções t~cnicas ~o pal-
co. O teatralismo experimental, aqui explicado a exaustao por
A Experiência Viva do Teatro é também uma história in- Bentley, matou esse último mito. As "duas tábu.as ~ uma paixão':,
formal da literatura dramática, de Esquilo a Samuel Beckett,
prescritas por Shakespeare, revela~aI~ uma vlt~hdade msuspei-
e o talento de Bentley torna-a imprescindível ao profissional tada, desde que se livraram dos gnlhoes do reahsmo de sala-de:
e ao leigo interessado no métier. Faço-me mais claro: Bentley estar que dominou a cena até o fim da 11 Grande Guerra. J a
não recusa a conceituação de conteúdo que defendeu tão ardo- era tempo que um grande crítico nos desse conta desse progres-
rosamente no passado. Apenas a expandiu para incluir manifes- so cujas possibilidades só agora começam a s~r exploradas er:t
tações atuais do virtuosismo cênico, quando o que há de revo- sua plenitude. Foi o que Eric Bentley conseguiu em A Experi-
lucionário em criação se concentra mais na forma, na vanguarda ência Viva do Teatro.
experimental. Fez um livro de conciliação entre as duas tendên-
cias dominantes da crítica teatral do nosso tempo. Demonstra PAULO FRANCIS
que ambas têm razão, à sua maneira, e que unidas podem res-
taurar o prestígio algo abalado do palco ante formas mecânicas
de expressão como o cinema e a televisão.
Ao submeter "grandes pensadores" do teatro como Shakes-
peare e Esquilo a um escrutínio formal, Bentley nos enriquece
com o conhecimento desses escritores, antes discutidos quase
sempre em tom acadêmico, sob a pompa de uma retórica histo-
ricista e superada. Bentley encontra nos palhaços e figuras trá-
gicas de Shakespeare componentes de vida cênica semelhantes
às dos estereótipos do melodrama e da farsa, em geral despreza-
dos pela crítica intelectualizada. Reabilita os últimos e amplia o
sentido dos primeiros.
Outra análise de importância ele dedica à resposta do espec-
tador ao teatro. O crítico, acentua Bentley, procura acrescentar
à obra de arte conceituações que vão muito além do objeto
observado, desenvolve idéias e preconceitos próprios, apenas uti-
lizando a obra de arte como uma espécie de foguete propulsor.
Condena esse comportamento, pede um retorno à objetividade,
à limitação honesta do crítico ao que se propõe o objeto critica-

'--'"
A M em ória do Meu Amigo

P ERR Y MILLER
A uf die ewige Lebendigkeit kommt es an, nicht auf das
ewige Leben .
NIETZSCHE

. .. ce principe certain de l'art, qu'il n'y a ni moralité ni


intérêt au théâtre sans un sccret rapport du sujet drama-
tique à nous.
BEAUMARCHAIS
PARTE I

Our descent into the elements 01 our being is then iustiiieâ


by our subsequent [reer ascent toward its goal: we revert Aspectos de uma Peça
to sense only to jind food for reason . . .
SANTAYANA
1
- - ---,1?\
J!Eredo

A MATÉRIA-PRIMA DO ENREDO

A EXPERIrnCIA VIVA de uma peça de teatro, como de uma


novela, ou de uma peça musical, é um caudal de sentimentos
que flui dentro de n6s, ora célere, ora lento, aqui placidamente
espraiando-se entre as margens largas, além precipitando-se em
torrente entre as ribas estreitas, agora deslizando por uma ver-
tente, logo atirando-se em vertiginosos rápidos, depois precipi-
tando-se numa catarata, adiante sustado por uma represa, até
desaguar num oceano. Com tudo isso, a imediata experiência, a
erudição e a crítica e a pedagogia, surpreendentemente, pouco
têm que ver. Os especialistas dispõem de teorias a respeito do
Hamlet e têm a certeza de que são corretas. Mas pergunte-se-
lhes por que vão a um show ou ao cinema no sábado à noite e
vê-Ios-emos muito menos seguros de si. Ora, Q.eY~tª--parecer um
tanto susReito gue se p ~tenda r~olver os problemas mais avança-
dos sem que se tenham solucionado os mais elementares. Mas
alguma vez foram solucionados os elementares? As perguntas
mais-fáceis são as mais difíceis. E s6 é possível cõITíeçãi adiscuti:
las tal como se- disc utem as maiscornlexãS:fraê!!entan o-as
em suas parcelas componentes, detendo as mais cruas e tratando
de abrir caminho através das menos cruas.
- -- -
O ue é enredo? O produto acabado que ocorre à mente
é, sobretudo, intrincado e sutil. De ue matérias- rimas se fez o
roduto? Da vida, poderíamos confiantemente aventar, a vida
em sua diversidade e sem exclusão do seu aspecto mais desagra-
ASPECTOS DE t ';"I ·\ PEÇA ENREDO 19
18

d ável. Mas não pode ha ver respostas, mesmo provisórias, en- foram compostos por um infatigável jornalista pouquíssimo
quanto as perguntas forem tão genéricas. A ~n á l ise do ma.terial preocupado com a verossimilhança.
do enredo só Qoderá começar quando for isolada alg~ ~a unidade
menor gue a "vida" de Qreferência - uma vez gue o nosso Estas linhas f?ram ~scri~a~ na década de 1930 por ROBERT
tema é o emedo no teatro - uma unidade característica do BR~SILL~CH, e s,ena muito f ácil comparar tais "dramas" com os
teatro, em particular. Na busca dessa unidade, aproveito uma de jornais das decadas de 40 , 50 e 60. A vida, tal como relata-
sugestão de GEORGE SANTAYANA para efeito de que, enquanto ?a nos jornais, é dramática. Se não fosse isso, de que viveria a
o novelista verá os acontecimentos por intermédio da mente de Imprensa?
ffiiifõ s -h o~l ens - Õ dr amãtüi:go~õr seu lado, "consente que ve- Mas, apesa.r de tudo, talvez se argumente, Lindbergh era
jamos a mente d~ outros homens, por interméaiooe ev~ntos"~ um caso exc~pclOnal, por ser herói nacional, e os gangsters são
Se o enredo é um edifício, os tijolos de que está construído são casos excep~lOnais, porque são gang sters. Os jornais dirigem-se
acontecimentos, ocorrências, suce ssos, incidentes. aos ~u~ros, aqueles que s~nham ser heróis nacionais e suspiram
de alIVIO porque seus bebes não foram raptados. Sejam quais fo-
Os eventos não são dramáticos em si. O drama requer os
rem as conseqüências, a vida dos outros - dos milhões de ou-
olhos do espectador. ~er dr. ma nalguma coisa é nassua. os tros - é convencionalmente encarada como não-dramática e a
etonentos de conf.lito e reagir emocionalmente a esses etcmsntos- opinião convencional, como compete à convenção, corresponde
Essa reação emocional consiste em ficar impressionado, ser atin- aos aspectos exteriores do caso. Nós apenas sonhamos ser he-
gido de espanto, na presença do conflito. O ró rio conflito .!ill!l- róis. nac!onais. Mas isso é outro modo de dizer que somos heróis
bé não é intrinsecamente dramático, Se todos perecermos nu-
naCIOnaIS nos. nossos sonhos. Assim que percebermos que so-
ma guerra nuclear, continuará havendo conflito - nos domí-
nhamos ,a maior parte do tempo, .teremos de inverter a opinião
nios da Física e da Química. Não se trata de um drama e ape- convencional e declarar que , no fim de contas as nossas vidas
nas de um processo. S o drama é uma coisa gue se _vê, tem de são dramáticas. '
haver alguém Rara ver. A mte dramática é humana, FREVD escreveu um livro revelador, intitulado The Psycho-
Até que ponto a nossa vida é dramática? Existe, por certo, pathology. oi Everyday Lije, * em que mostrou que as ativida-
a opinião de que os elementos dramáticos são raros, e de que a des verbais sem conteudo aparente encerram, na realidade um
experiência cotidiana é cacete, sem conflitos. Que as coisas pas- tesouro de significações. Não poderíamos falar, numa acepção
sam e repassam num vai vém infindável poder-se-ia dizer, e tem- semelhante, do drama da vida cotidiana, mesmo onde o drama
se dito, da vida em geral. Tem-se dito também de certas épocas pareça faltar completamente?
e lugares. Usei a palavra sonhos de um modo desprendido. Quero di-
Mas se o drama é uma questão não só de acontecimentos, zer tanto os devaneios quanto os sonhos que temos durante o so-
propriamente ditos, mas também das nossas, rea~ões en~~cio~~i~, no: Quero dizer todas as nossas fantasias - que era uma das
então a pergunta "até que ponto a nossa VIda e dramática? c, coisas que os nossos ancestrais tinham em mente quando afirma-
em parte, uma questão subjetiva. O que uma pessoa sente como vam, como tantas vezes o fizeram, que a vida é um sonho. Essas
coisa aborrecida, outra acha emocionante. Mesmo um homem l antasias não são a expressão direta ou illiJireta de de se .os sen-
que considere a vida, em geral, não-dramática, notará exceções. d~ que desejar é o combusyvel que alimenta a máquina hu~ana.
Nao se tra~a aRenas. da vida nos Rarecer dramáti.êa~"1)esejamos
Um banqueiro que foge num avião, gangsters que raptam o _que ela seja dramática: p-ortanto, é - visto que se trata_de_um
filho de um herói nacional, uma jovem que se transforma em
rapaz, um pintor de paredes que se converte em César, po- • Psicopatologia da Vida Cotidiana, de S. FREVO, tradução e apre-
sentação nossa para a coleção PSYCHE Zahar Editores, Rio de Janeiro,
demos dar um nome a todos esses episódios novelísticos que 2.3 edição (1966). (N. do T.) ,
20 ASPE CTOS DF: U~fA PEÇA ENREDO
21
dese'o dramático e im erioso. Até nossa queixa constante de nhez da vida cotidiana, consegue sugerir _ como realmente
que a vida é cacete serve de testemunho, principalmente, à nossa
deve - a grandeza da vida de todos os dias, as dimensões da-
recusa de uma vida monótona . Insistimos em que todas as vinte quelas fantasias que vão desde a vida secreta de Walter Mitty até
e quatro horas do dia sejam um drama em vinte e quatro. ~tos. os devaneios heróicos de Don Quixote.
A própria rejeição da vida - quando seres humanos a rejeitam
- é um drama. Descobrimos em qualquer caso de suicídio um VIRGINIA WOOLF referiu-se certa vez à novelística como
um prolongamento do âmbito da nossa bisbilhotice. O drama
elemento de vingança e um derradeiro, um patético espasmo de
exibicionismo. O ue ~ não-dramático no com ortamento huma- sendo em geral um fenômeno mais violento, poderia ser conside-
no (como nas maneiras anglo-saxãs) é um ardil de ênfase por rado uma ampliação do âmbito do escândalo. Ambos os gêne-
atenua ão da realiaade.Os mll o:sãXõessão tão arrogantes que ros testemunham o amor humano à informação que diga respei-
gritam em surdina. O nBo-dramatismo constitui seu drama e- to a o~tros seres humanos, particularmente àquele tipo de in-
culiar. forn;aç~o que, normalmente, é retido ou negado; e o dramatur-
go e, llISSO como em muitas outras coisas, um extremista um
A idéia convencional é que a vida só é dramática depois
hom~m que, noutras circunstâncias, poderia ter sido um bisbi-
de um jornalista ou um dramaturgo "dramatizarem" os assun-
tos. Sem mencionar aquilo com que os jornalistas e dramaturgos
lh~telfo ou um espião da policia. Se isso não for aceito como
COIsa cert~ logo de início, apenas servirá para sentirmo-nos frus-
principalmente contam: o nosso insaciável apetite de drama. trados mais tarde, como acredito que alguns em tudo o mais ex-
Consideremos a atividade conhecida como ócio. Pensemos em celentes críticos se. sentiram - EDW~ MUIR, por exemplo, que
que o cansaço é tanto que nem ~á para deva~eios. Cochilamos escreveu em seu livro sobre a novehstica:
em nossa cadeira. Talvez nos SIntamos relativamente serenos
em nosso cochilo. Mas tão cedo adormecemos e logo, como se
Um deleite irresponsável nos acontecimentos vigorosos é o
diz, "o diabo fica à solta". Lutas gigantescas, perseguições ter-
que ~~s encant~ na. novela de ação. Por que uma simples
ríveis, frustrações angustiosas, desencadeiam-se no íntimo dos
descrição de açoes VIOlentas nos agrada é uma questão para
nossos sonhos. os psicólogos.
Se, ao menos, cessassem quando despertamos! Mas a dis-
posição gerada durante o sonho persiste, co~o. é ?at.ural~ se c_on- O segundo período transcrito fornece, incidentalmente, uma
siderarmos que consubstancia as nossas prmcipais inquietações. pequena pro~a de que o homem literário talvez deseje evitar
Descarregamos em nossa esposa. Uma peça de STRINDBERG! A os fatos_ mais elementares da experiência literária, porquanto
nossa irritação tem as mesmas dimensões do nosso pesadelo. MUIR nao poderia querer dizer que é difícil encontrar o moti-
O telefone soa. Um pequeno problema surgiu no escritório. ~a~, vo para a atração exercida pelas ações violentas. Por que nos
nesse momento, o pequeno já é enorme. O problema do escritó- agrada mesmo uma péssima descrição de ações violentas? E co-
rio adquire as proporções de um bombardeio aéreo. Suspende- mo poderia deixar ?e ~ag~adar? Inclinamo-nos a sentir Que a nos-
mos o fone coléricos. Um drama social! 1'a VIda carece de vlOlencIa e ostamos de ver aguilo ue nos fal-
Por um lado, os grandes dramas dos Lindberghs e dos f!i- ta. ~endemos P?ra ~ma existência enfadonha, e gostamos de ser
tlers; por outro lado, os pequenos dramas de c~da ~m ~e n<:s, colhidos fi? excitação _de outre:n. Somos agressivos, e gostamos
de cada dia. Mas esses pequenos dramas, para a imagmaçao, sao d.e presen~lar a agressao. (Se nao sabemos que somos agressivos,
grandes e estão moldados à semelhança, precisamente, dos gran- ainda mars prazer nos dá presenciar a agressão.) Nunca nos
des dramas descritos nos jornais. Assim é que as peças, em ge- ~imos em tão ?randes apuros, e gostamos que os outros este-
ral, são a respeito de grandes pessoas, embora o que. e]as dizem jam passa?do ainda p.ior. E mesmo que haja uma guerra, e nos-
se aplique às pequenas. E há o inverso dessa proposrçao: qua~­ sa VIda seja de fato VIolenta, matando "o inimigo" ou agredindo
do um grande dramaturgo, como CHECOV, apresenta a mesqui- os nossos "camaradas", quando os oficiais não estão por perto,
22 ASPECTOS DE ~A PEÇA E:-lI\EDO
23
ao entardecer, quando as luzes esmorecem, gostamos de ligar t-
ao s~~pre. c~pli:ando que, para ARISTÓTELES imitação não
a TV e vermos nossos semelhantes entrematando-se imperturba- quer rzer rmrtação , Mas quer dizer, apesar de' tudo.
velmente nalgum divertido filme de bang-bang, Dessa maneira . Escreveu ARISTÓTELES:
podemos assegurar-nos de que a violência será absolutamente
ininterrupta em nossa vida, pois .certarnente não necessita ser in-
terrompida durante a noite, quando sonhamos. ? f!ns~into de imitação está implantado no homem desde a
Esta é, portanto, a resposta a MUIR: a violência interessa- Intanela, sendo uma das diferenças existentes entre ele e os
ou ros seres anima' AI' .
nos porque somos violentos. E o exteriormente mais gentil e eriatu . IS ~ue e e e a mais imitativa de todas as
tranqüi o ode ser, interiormente, o mais turbulento. Essa possi- te I rads Vivas... ~bJetos que olhamos com pena são con-
blll a e tem sido, de fato, acentuada a tal ponto que, hoje em rnp a os com deleite quand duzi
fidelid d . _ o repro uzidos com minuciosa
dia, já suspeitamos de que todo Milquetoast é um Torquemada . a e. ' " ASSim, a razao pela qual os homens gostam de
apreciar uma semelhança é. " ue o d e ' .
reprimido, de que todo Jekyll é uma simples máscara para Hyde. prios:. "SI'm, aqUi'1o é ele". q P m dizer para SI pró-
Mas a violência não está limitada às pessoas de comportamen-
to não-violento. Está presente em todos, excetuando-se, de um
lado, as pessoas excepcionalmente debilitadas e, do outro, certas "Ob' t
leite ua je os que olh~mos com pena são contemplados com de-
espécies de santos. E, embora a debilidade possa ser congênita, q ndo reprcduzídos com minuciosa fidelidade" P
a santidade não-violenta não o é. A violência foi expurgada no tras ~alavras, uma fatia intra ável da vida oderá . vida e
santo por meio de um incessante, um infatigável labor moral. en olida como arte. Não é ual . . ser servI a e
Ora, aos santos não faz falta o dramatismo; e os pobres de corpo o ue nos deleita O fato d . ~er ~esvI~ ?a realIdade da vida
e espírito não podem alcançá-lo. E tenho por vezes cogitado se _ ª-.d or em . e ImI ar e SufICIente ara converter
- - - Rrazer._
te dr~::~ue~ tentativa de elaboração de uma psicologia da ar-
não faria melhor sentido ensinar aos dramaturgos incipientes, em
vez da habitual Técnica Dramática, duas regras fundamentadas
na natureza humana: se uereis atrair as atenções da audiên- ra a' it lC~ eve começar pelo reconhecimento do impulso pa
cia sede violentos; se gucreis mantê-la, sede novamente viol~n­ imita~~lI a~ao pura. O. q~e se pode dizer contra uma tão fiei
ao nao .e .9 ue seja Infundada , em princípio, mas a en
tos. f: verdade gue as más eças se baseiam em tais p'rincíp'ios, ~ue suas pOSSIbIlIdades são extremamente limitadas na pr~r as
mas não é verdade que as boas peças sejam escritas desafian- omeçamos a. enxergar outras possibilidades no moment ica,
do-os. que no~ .deSVIamos da estrita fidelidade . Continua send o em
erro rcjeítar a matéria-pri O", o um
e as "açõ . I " ma. s aconteCImentos vigorosos"
oes VIO entas de que falou MUIR nã - .
A IMITAÇÃO DA VIDA r~legar para as classes inferiores da arte PodeomsasoercbOI~as para
SI própria . ' arxas em
brotam ass'f:;;::s a~naass ~~ me~lda em dq ue ~ ~olo ~ rasteiro: dele
Qual é a relação entre o material violento e o enredo aca- na ação c . res a arte ramatlca tem suas raízes
rua .
bado?
A arte reflete a vida . A alavra de ARISTÓTELES é mimesis.
r Foi certa vez dito por um crítico teatral do The New Y ork
n~~l~S qU~ ~m dram~turgo deve ter algo de um charlatão. Isso
Somos or demais sofisticados se não p'ermitimos à p'alavr1Lqu..~
tur e v:r ~ e, mas ha. uma certa verdade envolvida. Um drama-
nos dê a sua denotação literal: re rodução Qura . Existiria se-
d go ~ao e uma solteIrona. Raramente esquece a parte animal
quer a arte se os homens não desejassem viver duas vezes? Te-~ a nossa ~atureza. Não refinar á a natureza humana senã
.mos a nossa vida ; e -.!!Q...Qalco, temo-la de novo. Isso é simp'les,
mas nem or essa razão menos válido. Os helenistas eruditos es- ,
~~~~o ~edlda em qu~ es.ti~~r também interessado pelo r~fi~:~
umano. A mais ci vilizad a das grandes tragédias até hoje

....
21 ASPECTOS m: l'~IA PEÇA E:\H Ll ll l

escritas talvez seja Fedia; mas Fcdra era meia-irmã do Minotau- qua Ld os 12lanos é o mais necessan o : o solo ode existir sem a
ro e, por assim dizer, enteada de um touro. Embora, para alguns flor,..1l.!.f!..s a flor não ode existir sem o solo.
leitor es anglo- saxões, o gênero de drama de RACINE pareça
estreito e esp ecializado, vai realmente dos cumes do espírito
hum <1I10 às profundidades do anirnalismo. Se porventura o jul- ASSO :\IBIW ou AD i\llf~ I\ Ç;\O I: " S US P E NS E "
garm os ultr acivilizado, reconheçamos também que é ultrab árbaro,
Depois há SHAKESPEAR E. Existem coisas em SHAKESPEARE A-ar te d r<ll.!:! (lt~a está firmemente radi cad a na natureza
que nos encaram de frente , mas cuja evidência não podemos ou human a, e ser human o é deleit ar -se co m infortlJnios e desastre s.
não queremos ver. A respeitabilidade moderna assemelha-se ao ;\ ': IST01'1: l. ES a ~re sc el ~t a qu e po de rá ter-se prazer na simpl es
bom gosto ncocl ássico: é uma form a de cegueira. A menos que nnita ção desses infort únios e desas tres . Mas a simples imitação
se compartilhe do "irresponsável deleite nos acontecimentos vi- ----:- ,a imit ação tão simp lesme nte empree ndida - jam ais produ-
gorosos" de SIIAK ESPE ARE , urna pessoa é demasiado polida para zira um en red o. N~ verda de , o abismo entre a vida tal como é
ser capaz de apreciar o que ele fez com tais eventos. A comédia -s-".a vida nas nar rati vas dos mestres dr~\In ático s é tão pr ofund o
de SIIAKrSI'EAR E é muito mais terra-a-terra do que os modernos ue ode remos duvidar se alguma vez serú tran sposto. Thficil-
ment e surpree nde o fato de alguma s pessoas supo rem que a vi-
encen adore s admitem, sua tragédia muito menos uniformemente
da real pode ser compl etam ent e men ospr ezad a.
sublime . Cert as encenações européias recentes , pretensamente
influ enc iada s pelo comunismo, foram muito superiores às ame - H á um meio caminho entre a vida e o enre do, e isso é estó-
ricanas e brit ânicas que temos visto , principalmente porque são r!a. Se possuirm os uma boa por ção de incident es, tud o o que pre-
influ enciad as, prim eiro, pela vida crua à nos sa volta e, segundo, cisamos para deles fazerm os um a estór ia é a pala vra c. A psico-
pela ar te cr ua que nos cerca (filmes de gangstc rs , arte sensa- logia das estó rias é p rimiti va. É tud o uma qu estão daqu ele inte -
resse nas ações violentas que Murn tan to despreza, Pois se ali-
cion alista etc. ) . ment armos tal inter esse pe la bisbilhotice, pelo escâ ndalo, pelos
Nenhum dr amaturgo teme a ação cru a, como suced e a ac ide ntes mor tais e catástrofes. tudo o que é prec iso fazer é con -
M uru. O própri o MAETEIU.INCK utiliza a ação crua quase até tnrcm -nos o incidente A pa ra qu e tam bém desejemos co nhece r
° extremo da porn ografia em M 01l11a V all ll a . SIIAW falou con- ° incident e B , En tão , ü medid a que o narrad or vai abrindo ca-
tra o enred o, mas usou abundantemente a ação na maioria de minho ao longo do ulfal»..to, o nosso ap etite cresce com o ali-
suas pcças e, nalgum as de suas melhores obras, construiu enre- mcnt o e não deixarem os (!UC a nnrru tiva acabe . C como o ape tite
dos int ricad os. CIIECOV colocou a sua obj etiva numa relação in- por certas co midas, Pod er .i não se ~ost:lr pa rticularmen te delas,
comum com a ação violenta , mas a ação existia, apesar de tudo, 111;IS não se é capaz de as p ôr de lado. Foi esse I' s\.' !~ r l'll o (IL' Schc-
e era aind a cr ucia l. Só a sua dest reza proficiente impede que a hcr nzadc nas Mil c Unia No it es. Ma ntin ha ore i' tã o inte ressa-
audi ênciu se ape rceba de qu e o Professor Serebriakov, Natasha do em A e B que ele refreava o intuit o de a decap itar. par a n ão
e Madam c R anc vsky são animais de rapina - são os vilões das perd er a narrativa ele C e D. Esse rei asse melha-se ü "rcsistên-
peças e incutem-lhes uma ação de dcstruti vidadc aterradora e cia" de tod os os leitore s ; e Schchcraz ndc a todos os contad ores
tradi cional. el e estórias e dram aturgos.
O dr am a é mais cru el o que a poes ia lírica e a novela neste O q ue é q ue gera a expecta tiva? Não é mer am ent e a igno-
aspecto : não esconde seq uer as su as relaç ões com aqu eles ele- rân cia do que aco ntecera a seQ1Ii r, mas também um dese jo ati-
ment os prim ários que nos interessam "irresponsavelmente", f: vo de sabê-lo. um dese jo que foi suscitad o por UIl1 estímulo an-
esta a explicação P,U:l o bem conhecido fato de que uma boa terior. A )rim eira da s ):lixiies d iz D r Sc,\ RTFS c o l1ssl' mbro ou
peç a de teatro pod e ser apreciada em planos distintos por pla- ( dmir: çflo ( {/d lll ;m t ;•.' ) . cident e A tem de nos cau sar assom -
téias de diferentes grau s de refinamento. imp a te rele a br o ou adllliração antes de ficarm os ansiosos r c ')11 h n-
26 ASPECTOS DE UMA PEÇA
ENREDO 27

cidente B. A matéria- rima violenta não só a sociedade, mas cada indivíduo em duas zonas: a inte-
do é a ro riada desde o come or uanto se lectual e a iletrada.
com o nosso interesse nela. Passar do rimeiro incidente ara
o segundo re quer uma aplicação mínima da arte do narrador.
A IMITAÇÃO DA Açxo
Tais são os dois ingredientes do suspense na narrativa.
São suficientes para a composição das ficções mais toscas, tais H' uma vida com seus acontecimentos, real..e.caparen-
como as novelas e westerns da TV, e uma vez mais faço alusão tement vasta vida que ' tod dram mas em que os dramas
aos fenômenos crus, não para desdenhá-los, mas, num certo sen- não são escritos, encenados e egresen ados. Há narrativa, que
tido, para acolhê-los. Tal como outros sintomas da infância ou exemp'lifiguei na sua forma mais rudimentar: sua mola real é
neurose, não devem ser banidos por pessoas adultas e relativa- o suspense e o método é a disposição dos incidentes numa or-
mente saudáveis, mas incluídos na definição de maturidade ou dem cronolómca. Finalmente há o enredo, que é narrativa com
saúde. Como NIETZSCHE diz, não devemos jogar fora as coisas "retogues" algo gue se lhe acrescenta. Esses retbques consti-
sem préstimos; pode ser que estejamos num oceano e podemos tuem uma rediseosição dõSincIoentes na orüeii"t mais calculada
agarrar-nos a elas. ara gerar o efeito certo. O algo que se acrescenta é um princí-
A fórmula de novela e filme de mocinho do rádio e da TV p'io em cujos termos os incidentes assumem um sigqificado: até
está perfeita. Se o leitor não passa os dias e as noites assistindo 0_ rincí io de causalidade converterá uma estória num enredo.
a eles é apenas porque tem outras coisas a fazer. Provavelmen- Como diz E . M. FORSTER, em Aspects oi the Novel, "o rei mor-
te, acabariam sendo monótonos depois de algum tempo, mas, reu e depois morreu a rainha" é estória; mas transforma-se num
possivelmente, como os cigarros e amendoins, não seriam. Mes- enredo se escrevermos: "o rei morreu e depois a rainha morreu
mo numa tela de TV, a violência da ação e o suspense da narra- de dor".
tiva só muito raramente poderão deixar de despertar e manter O enredo ortanto é sobretudo artificial. Resulta da in-
o interesse. A Psicologia está certa e cada homem é um ser hu- tervenção do cérebro do artista, gue faz u..!!! cosmos a partir de
mano - um espécime da psicologia humana - antes de ser acontecimentos gue a natureza deixou em caos. Nas palavras de
um erudito ou um cavalheiro. RIkHARD MOULToN o enredo é "o lado puramente intelectual
Existe um argumento para dispensar a novela radiofônica da ação", "a ampliação da trama à esfera da vida humana". Sen-
que é especialmente relevante nesta altura. Podemos passar sem do o enredo um elevado e intrincado exem lo de Arte na medi-
ela, na- sua mais pura e medíocre forma, porque podemos obtê- da em ue a Arte se situa em contraste com a Vida como de
la como parte de uma forma muito mais ampla e complexa. As o enredo ser também considerado uma imita ão da vida? Não
grandes narrativas não são o oposto das narrativas baratas: ode. Poderá inco orar aI mas da nelas imita ões fiéis ue
são novelas radiofônicas mais algo. Um crítico francês deu-se ARISTOTELES mencionou, mas, em si mesmo, é uma alteração-
uma vez ao trabalho de mostrar que as estórias das peças de da vida e um seu melhoramento.
CoRNEILLE eram idênticas às estórias dos filmes na era de Ro- ARISTÓTELES não diz ue o 'enr edo é uma imita ão da vida.
DOLFO V ALENTINO. O fato de se gostar de V ALENTINO não é uma .Ele diz: "O enredo é uma imita ão da A ão". O ue é a A ão?
prova de que, presumivelmente, se goste de CORNEILLE; mas de- ARISTÓTELES esqueceu-se de explicar. Um crítico francês, PIER-
testar-se-á CORNEILLE se for lido, por assim dizer, do pescoço RE-AIMÉ ToucHARD, sugere que é "o movimento geral ue oca-
para cima e se se impedir o fã cinematográfico de encontrar e siona o nascimento. desenvolvimento e morte de aI ma coisa,
desfrutar em CORNEILLE o que este tem de comum com VALEN- entre o rincíp'io e o fi ". A observação é útil pelo fato de não
TINO. Um certo refinamento, ainda uma tradição na vida acadê- ser excessivamente útil. Seria ocioso esperar localizar-se a Ação
mica, mesmo nesta era de campos de extermínio, tende a dividir em qualquer outro lugar senão naquele em que TOUCHARD, mui-
28 ASPECTOS DE UMA PEÇA /-::-;Il U)U
29

to obviamente, a pôs - em nossas mentes. Jamais afirmaríamos re~os Il ;~d a sepa rece m co m o que rea lmen te aco ntece " . RAGLAN
a existência de tal movimento geral se não pretendêssemos que afirm a o scg umtc. a respeito d a tr ama do H enriqu e I V de SHA-
já o tínhamos sentido. Mas isso é o que proclamamos quando KESI'EARE:
estamos sob a influência de um enredo. Para o dramaturgo, cor-
respondentemente, imitar uma Ação é encontrar equivalentes o Prín cipe H e n riqu e d a hist órin. qu e p assou o tempo todo
objetivos para uma experiência subjetiva. Uma Ação é uma de- p rocl~rando s u pri ~lir os galeses e os Icl a rd os, e o Príncipe
finição, em termos de incidentes e eventos, de algo indefinido H enrique das est órias. qu e passo u se u tempo em p ândegas
que se oculta no íntimo do dramaturgo. Não se pretende afir- com F al st af I, pod er ·se ;io e nco ntrar no c ampo de Shrews,
mar que isso seja tudo o que constitui uma Ação, e que o drama, bu ry, m as são c r ia turas d e m u ndos int eir amente di stintos, e
por conseguinte, trate apenas do mundo íntimo do escritor, mas o mundo do seg u ndo é o do m it o . N esse mundo do mito a s
unicamente que, seja o que for que uma peça abranja, no mun- personagens prin c ip ais são du as, um herói e um bufão'.. .
do interior ou no exterior, o seu autor é, de fato, o autor do que
ela é: a vida da sua peça é a sua vida. Houve bons dramaturgos !~mada como a imit açã o, não da hist óri a, mas da lenda
cuja compreensão do mundo era, na verdade, muito superficial; a est or,la de Falstaff faz mais se n tido. e a rejeição de Falstarf
mas um dramaturgo cujo sentido do "movimento geral" de uma aea,bara, parecend o, não impro v ável, mas ne cessária. RAGLAN
Ação for superficial só poderá ser um dramaturgo superficial. esta atr ás de u~la te.o ria de arqu étip os narrativos, tal como MAUD
Outro crítico francês, HENRI GOUHlER, sugeriu que a idéia BODKIN cquacionana mai s tarde no se u muito conhecido livro
de uma Ação se tornará mais clara se remontarmos à origem do A rchetypat Patterns in Poctry. Incidentalm ente , BODKIN não
processo criador. Os psicólogos sabem há muito tempo que a preclso~ realment~ b?sear suas conclusões nas teorias especiais
imaginação criadora, quer de cientistas ou de artistas, nem sem- de J UN G.. Seu principal p onto, certamente. é que em arte o
pre elabora todos os detalhes e deixa a descoberta da unidade ~econhecllllc.~to é 'preferível ao conhecimento: uma boa estória
global para o final. Freqüentemente, começa por uma unidade e. um ;~ que j u ?u vlmos a ntes; isto é. um bom narrador de est ó-
vagamente apreendida e vai descobrindo os detalhes à medida nas visa o efeito de rccont a r ; um bom dr am aturgo, de reintcr-
<,

que avança , KEPLER trabalhou dessa maneira. E poder-se-ia pretar"- E neste pont o qu e o r itua l int er vém : o ritual é reinter-
afirmar que o dramaturgo também procede assim . prcta ção GII .RERT MU R,RAY di sse o seguinte (como BODKIN
Num profundo capítulo de seu livro L'Energie Spirituelle , rec onh ece ) so bre o at rati vo q ue as es tó rias primitivas exercem
BERGSON denominou "esquema dinâmico" essa unidade. Apli- no hom em mod ern o :
cando as concepções bergsonianas ao teatro, proporíamos um
processo em quatro fases : primeira, a emoção criadora do au- ._. . em r ~lr.l e . eu desconf io, dep ende da m e ra re pe tição . ..
tor; segunda, sua vaga, mas, ao mesmo tempo, persistente idéia Es sas es [o fla~ : situa :;ões estão . . . pr ofund amente impl anta-
geral, ou "esquema dinâmico"; terceira, a sua Ação, qu~ é ~ma d:1S na rncm ou a d a raça . . . algo d entro de nós que salta à
"imitação", objetificação e elaboração do esquema dinâmico; vi st a daqu ela s, um gr ito d o sa ng ue q ue no s d iz qu e sem p re
e quarta, a peça concluída, ou Ação equipada de personagens, as conhecemos .
diálogo e espectáculo,
Outro pensador que contribuiu para a compreensão da psi- E se as velhas es tó rias são se mp re no vas, as novas estórias
cologia dramática foi LORDE RAGLAN. Empenhou-se, no seu li- devem ser se_mpr e antigas se q uise rmos qu e nos empolguem .
vro The Hera, em acentuar a medida em que os enredos não É lI~na q~~st ao de so!n e ~ t~ se rmos capazes de aprender o que
são uma imitação direta da vida. Com efeito, ele reescreveu até scnum o« ja sa ber, da lllutl!ldade do sa ber sem perceber, de todo
a afirmação de que o enredo é a imitação da Ação. Para RA- o aprend er como Rcconh ecimen to con scient e ou inconsciente
GLAN , o enredo é a imitação do mito. Observando que "os en- (Gnagll or;.I'is) .

. 1.
30 ASPECTOS DE UMA PEÇA ENHEOO
31
o enredo, diz SANTAYANA, em The Sense o/ Beauty, espe-
damente vinculado às pretensões dos seres humanos. Os seres
culando em torno de ARISTÓTELES, "é a parcela mais difícil da
humanos têm sua grande opor tunidade na novela.
arte dramática". Por isso tem sido a menos explorada e con-
tinua sendo a menos compreendida. Por que, nos tempos mo-
dernos, passou a ser também a menos respeitada? Em resultado de sua habilidosa manipulação de incidentes,
os dramaturgos e HENRY JAMES realizam beleza - mas à custa
da verdade . E num momento impulsivo FOR5TER aplicou essa
A PREVENÇÃO CONTRA O ENREOO teoria a RACINE.

Uns ressentem-se da vida; outros da arte. Ambos esses Nas peças teatrais - nas de RA CIN E, por exemplo - [a Be-
ressentimentos se revelam na prevenção contra o enredo. A leza] poder-se -á justificar porque pode ser um grande empre-
matéria-prima do enredo ofende por seu primarismo. O enredo endimento no palco e reconc iliar-nos com a perda dos ho-
concluído ofende por sua falta de primarismo, seu artificialismo, mens que conhecemos.
Ambos os ressentimentos podem ser sentidos pela mesma pessoa.
O falecido JOHN VAN DRUTEN dizia: "Uma peça que fosse toda Poderia algu ém que não foss e momentaneamente empol-
atmosfera sem enredo de espécie alguma teria a minha prefe- gado por uma idéia representar RACINE, entre todos os drama-
rência". A preferência pelo não-enredo corresponde ao moder- turgos, como o que sacrifica "os homens que conhecemos" para
no desagrado pelo artifício, e a expressão "toda atmosfera" tra- o efeito de criar beleza?
duz a moderna repulsa pela ação violenta.
FORSTER deixou muitas coisas , inexplicadas. Por exemplo,
Se EDWIN MUIR é um exemplo de crítico que trata com embora o enredo seja importante em todos os bons dramas não
sobranceria a literatura de acontecimentos violentos e ações vi- é sempre enredo no sentido popular de uma intrincada trama
gorosas um crítico igualmente distinto que fica embaraçado pela de incidentes '. RACINE teria associado essa definição popular à
estória acabada e o enredo completo é E . M . FORSTER. "Sim", obra do seu rival , CORNEILLE, e ele próprio visava a uma Ação
diz ele com um ar de tédio, "oh, sim, a novela conta uma es- reduzida ao menor número possível de incidentes, relacionados
tória" .' E acha que o preço pago por HENRY JAMES pelo vir- entre si da maneira mais diret a e simples . Seria muito difícil
tuosismo, no entretecer dos padrões narrativos, foi "a maior fazer des se gênero de enredo um obstáculo para o retrato de
parte da vida humana ter de desaparecer antes que ele pudesse homens, que parece ser tudo o que FORSTER entende por enre-
apresentar-nos uma novela". . do. t igualmente difícil falar de RACINE e H ENRY JAMES em
FORSTER também diz que o drama é apropnadamente conjunto, visto que o segundo empregou um intrincado padrão
dominado pelo enredo. de incidentes. E com JAMES ainda se faz necessária uma disse-
cação maior. FORSTER talvez tenha razão ao dizer que, por
No drama, toda a felicidade e rmserra humanas tomam (e vezes, JAMES deixou que sua engenhosidade dissecasse suas es-
devem tomar) a forma de ação Caso contrârío, sua existên- tórias. A questão seria apurar se isso aconteceu com freqüência
cia mantém-se ignorada, sendo essa a grande diferença entre bastante para caracterizar o autor . FORSTER parece ter sido
o drama e a novelística. seduzido por uma possibilidade ; ao acentuar a importância do
enredo. do "aspecto puramente intelectual da ação", é possível
~as acrescenta: p~rder ,co n t a ~o com o aspecto não-intelectual , emocional _ quer
dIze:,. e possível que o enredo perca contato com a sua própria
O drama poderá olhar para as artes pictóricas, poderá dei- matena-pnma. Mas não se poderá esperar isso mais do que
xar que ARISTÓTELES o discipline, pois não está tão profun- talvez que uma flor perca o contato com a raiz, e as obras com-
32 ASPECTOS DE ~A PEÇA EN HEI>O 33

pletas de JAMES aí estão como prova de que o Mestre muito Uma tragéd ia [diz V OLT AIR E] de via ser toda ela ação . . .
raramente perdeu o contato com o seu próprio daimon . Uma Cada cena deveria servir para enlaçar e desenlaçar a intriga,
tese melhor do que a de FORSTER é a de JACQUES BARZUN: cada fala deveria ser preparação ou obstáculo.
a de que, no fundo, JAMES era um melodramático.

o ABADE DE AUBIGNA C declarara francamente que a lei


do teatro era o suspense. Contudo, outro teórico neoclássico.
A PROVOCAÇÃO DA PREVENÇÃO MAR Moi'1T EL, pensou nos métodos e processos: o ritmo, admi-
tiu ele, como qualquer crítico da Broadway, é o sine qua non
As primeiras pessoas a provocarem o des~rédito do enredo e, quanto ao suspense, aconselha o autor teatral a manter o in-
foram os seus paladinos. Os grandes campeoes do teatro de teresse sempre num crescendo, deixando que as situações se
enredo foram os franceses. Não todos os franceses, claro, mas desenrolem numa cuidadosa gradação.
a maior parte dos seus teóricos e a maio!ia dos dramatu.rgos Um corolário desse critério em relação ao teatro é a hosti-
durante os dois grandes séculos de formaçao teatral, aproxima- lidade a SHAKESPEARE, pela qual são famosos os franceses do
damente, de 1650 a 1850. E o que os franceses disseram e século XVIII. Que a doutrina francesa ultrapassou as fronteiras
fizeram no drama determinou as normas para o resto do mundo. da França é um fato bastante claro, através das declarações de
Talvez nunca um determinado método de escrever teatro, em FREDERICO, o GRANDE, da Prússia, discípulo de VOLTAIRE, que
toda a história da arte dramática, foi imposto com tanta persis- descreveu as peças de SHAKESPEARE como "farsas dignas dos
tência e outros métodos tão desdenhados. Em franco contraste selvagens do Canadá" . O próprio VOLTAIRE tem sido freqüen-
situam-se a Dramaturgia Elisabetiana ou a Dramaturgia Espa- temente citado para um efeito muito semelhante e revelou o
nhola. Ninguém tentou impor o método ~e. SHAKESPEARE ~ mesmo baixo conceito a respeito dos gregos, cujas peças, com
LoPE DE VEGA ao mundo. Não só nunca fOI Imposto como fOI suas danças e poemas corais; dificilmente pareciam, para a
esquecido. Temos de contar aqui com a paixão francesa pela época, ser drama de alguma espécie. Mesmo as obras-primas
propaganda e legislação culturais. do classicismo francês não eram bastante clássicas; VOLTAIRE diz
Haveria menos a deplorar se a propaganda tivesse sido em que eram excessivamente longas e declara textualmente que todo
favor de CoRNEILLE, RACINE ou MOLIERE, mas os componen!es o último ato do Horácio de CORNEILLE é supérfluo.
dessa grande trindade, embora multo influc:nciados pelas teonas No começo do século XIX, a face da arte dramática mu-
correntes na época, negaram-se tao notonamente a confo~a­ dou. A prosa substituía, cada vez mais, o alexandrino, e o
rem-se às mesmas que foram atacados ferozmente por sua 10- cenário moderno o antigo. A idéia de drama mudou menos .
correção . Aquilo a que chamo a idéia f~ancesa de arte ~ramá­ "A ação de um poema [dramático] pode ser considerada", es-
tica foi obra de críticos, teóricos e praticantes secundários, só creveu MARMONTEL, "um gênero de problema de que o desen-
atingindo sua forma final e de maior influência no século XVIII lace constitui a resposta". A observação corrobora não só uma
_ nos comentários de VOLTAIRE. teoria, mas um estado de espírito. Suspense. Ritmo . Interesse
A teoria neoclássica ou voltairiana de drama é uma re- crescente. Situações dosadas . O prolongamento da incerteza.
dução de ARISTÓTELES . Se o argumento aristotéli~o é ~esen­ O encadear e desencadear de uma intriga. Ação, ação, ação!
volvido , isso ocorre apenas ao longo de uma tenu.e linha. Hoje estamos dispostos a simpatizar rapidamente com esse vo-
ARISTÓTELES dissera que o enredo é a alma da tragédia. VOL- cabulário. f: usado nos cartazes dos cinemas e nas críticas tea-
TAlRE diz que a alma da tragédia é o prolongamento, tanto trais da imprensa. Só "o encadear e desencadear de uma intriga"
quanto possível, de uma incerteza, o que soa. a ARISTÓTELES soa antiquado. Contudo, estava ainda em voga um século de-
adaptado aos nossos cursos modernos de escnta teatral. pois disso ter sido escrito . O teatro do século XIX era o teatro
34 ASPECTOS DE UMA J'EÇA ENREDO
35
da Peça Bem Feita. E a Peça Bem Feita é uma forma da tragé- Contribui para aquela visao da vida que é fornecida pela
dia clássica - uma forma que poderá ser adjetivada de degene- peça teatral como um todo.
rada ou final , segundo o ponto de vista .
Tendo a Peça Bem Feita monopolizado por algum tempo
Esse gênero de drama é ."todo enredo", e mesmo que não os palcos do século XIX, é fácil compreender como enredo aca-
se conhecesse qualquer Peça Bem Feita, poder-se-ia adivinhar bou sendo uma palavra obscena . BERNARD SHAW escreveu em
com facilidade por que o gênero acabou fazendo inimigos entre sua coluna de música :
as pessoas pensantes. Visto que tudo é enredo, nada existe com
que o enredo possa engrenar-se ou em que possa interferir: b
Quando os críticos só sabiam falar da "construção" das pe-
abundante de animação, mas sem movimento em qualquer dire-
ças, mantive obstinadamente que uma obra de arte é um de-
ção determinada. Dele não pod.emos extrair .u~, "senti,dó de
senvolvimento e não uma construção. Quando os Scribes e os
algo que nasce, depois cresce e finalmente declina , AplIc~ndo
Sardous produziram vistosos e elegantes berços, os críticos
a fórmula quádrupla de BERGSON, nã_o c?contramos ple!lltud<;
exclamaram: "Com que refinamento foram construídos!"
dramática porque não há uma Açao mt~gr. .a d?ra, nao ,ba E eu perguntei: "Onde estão as crianças?"
Ação alguma porque não tem um esquema dinâmico q,:e a ~n­
forme, e não há esquema dinâmico porque falta a emoçao cna-
dora subjacente em todo o esforço. Ora, SHAW não era realmente contra a construção, e muito
Essa ínfima forma intelectual de drama - esse drama para menos era incapaz de produzir as suas. Os recursos de SCRIBE
não-intelectuais - fracassa por falta não de cérebro, mas de passam despercebidos nas peças de SHAW porque ele os pôs em
emoção. Certo, é um recurso para a criação de uma emoçã.o ação, obrigou-os a servirem um determinado propósito. Como
(a comichão do suspense), mas não pode alcançar as d.emals o que estava errado no padrão da Peça Bem Feita era o isola-
emoções. E só pelo cérebro é possível dar-lhe alguma unidade, mento do enredo em relação ao resto do drama, SHAW estava
se acaso se puder incluir no conceito de "cérebro" a posse de arrumando as coisas na boa ordem. O fato dele continuar fa-
uma queda para o teatro. Com ~aior freqü!n,cia usamos a lando como se as suas peças não tivessem qualquer trama podia
desorientar, claro. .
palavra "queda" no sentido de facilidade rnecamca, e a" Peça
Bem Feita foi construída de acordo com um esquema mecanico, SHAW encontrou o signific ado do enredo em seu artificia-
tal como qualquer obra de arte realmente boa é construída em lismo . Usou os enredos parodisticamente, num contraste flagran-
te entre o que acontece em SCRIBE e o que acontece na vida
conformidade com um esquema orgânico.
real. InsEN foi capaz de adotar os enredos de SCRIBE direta-
O enredo imita uma Ação, diz ARISTÓTELES. Imita um mente. Eram o que ele justamente preci sava. Se foi o primeiro
mito imaginei LORD RAGLAN replicando. Em qualquer caso, dos modernos, foi o último dos c1assicistas franceses.
é
não a peça toda, mas apenas uma parte. E não está s,eparado IBSEN e SHAW são exceções. O movimento principal no
do significado de conjunto da peça, mas, pelo contrário, con- teatro era naturalista, e o naturalismo proclamou a rejeição do
tribui para esse significado e, por sua vez, é mo?elado p~r ele. enredo, substituindo-o pela concepção documcntária . A revolta
Esta é ainda outra maneira pela qual o enredo difere da Simples subseqüente contra o naturalismo no teatro chamou-se expres-
imitação da vida . sionismo, mas , num aspecto importante (aquele que nos interes-
sa aqui) , o expressionismo foi uma continuação do naturalismo.
Buscou a realização de um drama sem enredo. O mesmo acon-
O enredo criador [RAMON FERNANDEZ] não é, meramente, uma
teceu com um movimento que existiu paralelamente ao natura-
transcrição fiel de probabilidades. Deve sua totalidade glo-
lismo na última década do século XIX: o simbolismo. O sim-
bal, seu impacto e seu interesse ao seu significado.
bolista MAETERLINCK proclamou uma dramaturgia não só isenta
~

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36 ASrf:CTOS DE UMA PEÇA
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de enredo, mas também de acontecimentos, um drama que


"perdeu o nome de ação". outr?? Se f?r a segunda hipótese, então significa que somos
O homem que retomou a idéia de enredo para o drama do hostis ao metodo narrativo de SHAKESPEARE .
século XX foi BERTOLT BRECHT. Não propôs o retomo à Peça _ Mesmo entre os investigadores e críticos profissionais, raros
Bem Feita. Uma das coisas estarrecedoras da Peça Bem Feita sao os que pensam_ter SHAKESPEARE revelado um grande talen-
era limitar a imagem que cada um faz de enredo àquela espécie to para a elaboraçao dos enredos . Ouvimos falar de todos os
particular de enredo. BRECHT não queria um drama que fosse o~tr~s setores ~a su~ obra e, quanto ao enredo, procuram im-
"todo enredo" nem a estrutura fechada e claustrofóbica de pmgrr-nos a afl~açao de que extraiu seus enredos de outros
SCRIBE. Sua concepção de ação derivava diretamente de BÜCH- escr.ltores. Frequentemente, aproveitou as estórias de outros
NER e, portanto, indiretamente, de SHAKESPEARE. Que melhor escritores, mas~ e?1 geral, transformava-as e tinha de preparar
modelo poderia haver? O dramaturgo que os paladinos france- sempre s:u proprio enredo. Mesmo que a elaboração da trama
ses do enredo desprezavam como um bárbaro era ele próprio . se resumisse, apenas, à m.is~ura de duas estórias, seria de qual-
'0 mestre supremo da arte do enredo. Mas era uma supremacia quer m.odo uma prova suficiente de sutil engenho. SHAKESPEARE
diferente da deles e uma espécie diferente de trama. fez da Jnteraç~o ~~ duas estórias uma arte superior e um veículo
de profundo significado .
. ~arece.-me útil , talvez necessário até, voltarmos a uma idade
SHAKESPEARE mais AII~fantJl e lermos SHAKESPEARE como se ainda não o co-
nhecessemos - o que significa, sobretudo, seguirmos o que vai
Nos últimos cento e cinqüenta anos, SHAKESPEARE tem sido acontecen~o . . Par~~e fácil, mas existem pelo menos dois obstá-
um autor popular, mas por quê? Principalmente, poderia parecer, cul?s . PrJn!elrO, ja estamos estragados e não nos entregamos
pela Poesia e os Grandes Personagens. A Poesia pode ser exi- facilmente a narrativa pura. Segundo, longe de serem simples
bida em fragmentos e extratos. As Personagens podem ser ce- os e?redos de SHAKESP EARE são co~plicados , por vezes a pont~
lebradas em livros que as extraem das peças, inventando-se para de sc~ern . desconcertantes. Quantas Informações podemos colher
elas o que o poeta esquecera de mencionar. Essa maneira de ~o prrmerro ato do. Hamlet! Ignorando-as, estaremos seguindo a
pensar tem sido mais recentemente criticada; mas de modo algum h~ha ?e menor reslstênci~. Não admira que não desejemos ou-
desapareceu. E a tendência para separar a poesia da peça só vir cOI.sa alguma a respeito de Fortinbras posteriormente!
tem sido reforçada pelo interesse do século XX na imagem me- . EIS uma pe~a sobre a qll~1 cen~enas, se não milhares, de
tafórica. livros foram escritos, e nos quais serra de esperar que todos os
Ao longo de toda a época moderna tem sido pressuposto, detalhes tenham sid.o ana!isados ad nauseam . Contudo, pergun-
se não afirmado, que a maneira como SHAKESPEARE tratava to-~e se o que fOI an~hsado não terá sido sempre o mesmo
uma estória estava longe de ser notável. Pequenas anedotas conjunto de , q.uatro ou CinCO pontos, ilustrados a partir das mes-
contra os seus enredos têm-se convertido no prato forte do jor- ~as. duas . d úzias de falas ou cenas . Li muitos exemplares dessa
nalismo semi-sofisticado . O desrespeito pelas suas narrações blb~~og~afJa s?bre ~ .Ramlet e posso-me recordar de muitas ex-
tem tido expressão nos cortes praticados em suas peças por di- penenc:as primordiais que a peça nos proporciona e que , em-
retores teatrais e cinematográficos. Alguém poderia seguir o bor~ nao sejam Simples , raramente são mencionadas. Quanto
filme Hamlet de OLIVIER se não conhecesse já a peça? E poder- a mim , uma das partes mais enigmáticas do Hamlet sempre foi
se-á perguntar, a respeito dos Hamlets muito mais longos, en- a que se s~g~e ao regresso de Hamlet da Inglaterra. Qual é
cenados no teatro; a maior parte da estória de Fortinbras é a.gora a posi çao de Hamlet em relação a Claudius? Qual o mo-
omitida apenas porque a peça é comprida demais ou porque são tivo para o, s.eu esta~~ de espírito muito mais desanuviado? Por
insensíveis à relação entre um trecho de narrativa e qualquer qualquer lógica familiar , o assassínio final de Claudius é aci-
dental . Que teria acontecido, não fosse essa circunstância aci-
38 ASPECTOS DE UMA PEÇA ENIl I-;llü
39
dental? . " Lêem-se milhares de páginas do que se reputa ser
cumprimento, a ascensão e queda de um indivíduo ou, sim-
a melhor crítica do Hamlet e não se encontram as questões bá- plesmente, uma est ória.
sicas desde que se trate de questões de enredo.
'Talvez os enredos de SHAKESPEARE não sejam apreciados
. Nos enredos dos mestres, nenhum detalhe é pequeno de-
precisamente por serem tão bons - porque são ~nvis.,íveis, PO!- mais para estudo, e muito se pode aprender observando como
que afetam constantemente o tema e as caracterizações, e nao
podemos examinar uns sem os outros.
S~AKESPEARE ou LOPE DE VEGA ligam um incidente com o se-
gU1~te . Contudo, isso é o menos que, em todos os sentidos, eles
Ricardo 111 tem freqüentemente parecido às pessoas mo- realizaram, Os. grandes enredos não se obtêm adicionando um
dernas um assunto áspero - quantas coisas desagradáveis acon-
rnars um e mais u,m, mas pela aplicação de certos princípios in-
tecem na peça! Revela-se como um exemplo soberbo de "feitura
te~ra?t~s. Um oraculo e seu cumprimento constituem um desses
teatral" quando observamos as diretrizes em que a peça está
pnnclplOS . Nas peças, as profecias não se fazem gratuitamente
feita, quando vemos, segundo as pala~ras de RICHAR? M?uL T?;;' Tudo o que f,~r profetizado no Ato I tornar-se-á realidade mai~
"a intrincada trama de que o padrao recorrente e Nêmesis .
tarde e a plat:l,: o sabe. Logícamente, há alguma coisa de pueril
MOULTON pôde demonstrar, creio que ~efinitiv~mente, que ;~sa em tal proposlçao. Mas e Justamente isso: é a criança que exís-
peça tantas vezes considerada frouxa e sinuosa e, pelo contrário,
~e dentr~ de ?ós que reage às estórias, e o antagonismo moderno
precisa e solidamente entretecida. Os cálculos de SHAKES.PEARE a narr<:tlva e uma atitude exclusivamente adulta demais para
são matematicamente rigorosos e resultam em maravilhosas um arnsta , Em qualquer público sadio (em contraste com um
grupo de doutrinári~s), pode-se confiar na atitude pueril ade-
proezas de enredo, à semelhança de um ponto culminante que
provoca enorme emoção porque está preparado e colocado de q~ada para u~a COIsa no genero de uma profecia. Uma vez
um modo tão infalível . feita a. profecia, a mente pueril est á interessada em ver o seu
Ou atente-se na cena que as pessoas modernas rejeitaram cumpnmento .
freqüentemente por sua improbabi~i~ade: o nar:noro ?e Lady
Anne . A peça decorre na guerra civil. ~s yorkistas v':l1gam-se Q~e s,ucede, ~nlão.' ao suspense? Sem dúvida, conhecer a
nos lancastristas, caso após caso, e depois os lancastntas d~s­ conclusao ~ o opo~to dl~elo de ser mantido em suspense . Logi-
forram-se dós yorkistas. Lady Anne é, entre todos os lancastns- camente, sim. PSIcologIcamente, não. f: uma questão não de
tas, quem mais sofre às mãos dos yorkistas, e Ricardo !oi quem frustrar ~ suspense, mas de sua complicação . Embora não tenha-
infligiu maiores sofrimentos . Justamente por essa razao, Lady m,0~ razao para duvidar do desfecho, ainda nos sentimos em
Anne vê o casamento com ele como a solução possível para a dúvida e deseJam..0s ~er se a profecia realmente se realizará. O
reconciliação e a paz. Mas, pelo processo em 9ue. ~la procura que queremos nao e tanto informação para a cabeça quanto
achar um termo para a maldição, Lady Anne e vitimada pela uma confJa?ça renovada para o coração, atitude essa que é aná-
própria maldição. O que temos aqui é ~ma. co~binação . su- Ioga. ~ mUltas situações da vida em que fornos advertidos do
perlativamente engenhosa das cenas, uma imaginaçao audacI~sa que Ira acon.tecer, mas, m~smo depois de ter acontecido, nos en-
de acontecimentos e confrontos, e tudo de acordo com a pnn- contr~m~~ dlzend? para nos próprios: "Ainda não posso acredi-
cipal idéia, que fora colocada e~ grande ~estaque p:lo encon- tar DIsso . Dcvenamos ter presente essa psicologia quando lês-
tro inicial. Isso significa narrativa dramática nas maos de um sem~s que os gregos conheciam sempre a estória da peça. Co-
mestre. nheCIam-na, e o fato. de a conhecerem fazia uma grande diferen-
Falando ainda sobre Ricardo IIl, MOULTON diz: ça: C~n~udo, essa dIferença não era uma inversão da situação
P,slcologlca, era uma complicação da mesma. Um equilíbrio ins-
tavel estabAelcce-sc ?O csplr.lto entre a certeza e a incerteza. (Creio
o enredo apresenta sucessões de eventos na vida humana que
que ? fen~meno so s~ infiltron ?a .crítica e na erudição através
tomam a forma de crime e seu castigo, um oráculo e seu
da FIlosofia . Ao analisarem o slglllficado da tragédia grega, os
42 ASPECTOS DE UMA PEÇA

não é surpresa e suspense, não é enredo. A teoria de que é


foi "derivada" de ARISTÓTELES, mas à revelia de sua própria
intenção. Mesmo quando alude a estratagemas tais como Inver-
são e Reconhecimento, considerando-os "elementos poderosís-
simos de interesse emocional", é evidente que ARISTÓTELES
tem em mente algo mais do que mera curiosidade. Ele prevê 2
uma platéia que "estremece de horror e se enternece de piedade".
Horror (o medo) e piedade são, evidentemente, as emoções Personagem
citadas no mais famoso, se não o mais lúcido pronunciamento
de ARISTÓTELES - quando afirma que a tragédia, através da
compaixão e do medo, efetua "a própria catarse dessas emoções".
Basta dizer, por enquanto, que, apesar de todas as interpreta-
ções variadas dessa afirmação, ninguém tentou até hoje reduzi- A MATÉRIA-PRIMA DA PERSONAGEM
la a uma defesa do drama de mero "interesse" (ou curiosidade).
O que é um bom enredo? A pergunta é difícil de ser res-
pondida porque um enredo não é bom em si mesmo, mas uma
parte integrante de um padrão . Ao chamar ao enredo a "alma"
da tragédia, ARISTÓTELES está afirmando, talvez, que na sua
opinião o enredo é o principal instrumento do dramaturgo, en-
tre muitos outros. Se o drama é uma arte de situações extremas,
o enredo é o meio pelo qual o dramaturgo nos leva a penetrar
nessas situações e (se assim o desejar) a sair novamente delas.
O enredo é o processo pelo qual o dramaturgo cria as neces-
sárias colisões - como um perverso agente de trânsito que
orientasse os carros não para se cruzarem, mas para se choca-
rem uns nos outros. As colisões despertam curiosidade e po-
dem ser combinadas de modo a criarem suspense. Por enquan-
to, dispomos de um sólido teatro de segunda ordem. Algumas
das coisas que o enredo pode fazer para criar um teatro de
primeira ordem foram sugeridas neste capítulo. Falta sugerir
as contribuições que podem ser dadas para tal teatro pela per-
sonagem, pelo diálogo, pelo pensamento e pela representação

40 ASPECTOS DE UMA PEÇA E N HEDQ


41
críticos suspeitaram freqüentemente de que um delicado equilí- UM ENR EDO N;\o B UMA PEÇA
brio foi conseguido entre liberdade e necessidade, entre livre
arbítrio e determinismo. Por outras palavras, o resultado é uma . A ma.téria-pr.iIT,Ia do enredo é vida, mas não a média so-
conclusão prevista e, ao mesmo tempo, não é.) fr~v~lda Vida cotJ~tana em sl~a banalidade exterior; pelo con-
A ascensão e queda de um indivíduo poderá, à primeira tr~fI~, ?s ra~o~ clJmax das situações extremas da vida ou a
eXlste?CIa cotidiana, em suas formas secretas, não inteiramente
impressão, parecer que tem muito pouco em comum com urt:l
~ons~lentes; .A perspectiva que rejeite essas situações extremas
oráculo e seu cumprimento. Psicologicamente, o padrão pode e antIdramatIca.
prestar ao dramaturgo um serviço semelhante. O final está pre-
_ O .enredo ~ a, ~rdena~ão desse material. Acarreta a aplica-
figurado no começo. Ainda que a queda não seja anunciada, é
çao de um pnncrpio racional aos caos do irracional. Logo
uma daquelas coisas que a platéia pressente, e o dramaturgo q~alquer enredo tem um caráter dualista: compõe-se de matéri~
confia imenso em coisas tais como as percepções da platéia. ~IOlentamente ~rracional , mas a "composição" é em si racional,
Poupam explicações e tempo. Mais importante, revestem-se da- mte~e~tual. O mteresse num enredo - ainda o mais rudimentar
quele efeito trêmulo que acompanha um sentimento de inevita- - e. mtere:se et;t ambos esses fatores e, talvez ainda mais, na
bilidade e destino. E têm-no, como eu disse, sem tirar o sus- s?a mteraçao mutua. Somos renitentes em conceder a existên-
pense. era de um elemento intelectual nas novelas do rádio e da TV
Se porventura dei a entender que um padrão pode realizar o"u ~outras for!llas de melodrama. I;: o reverso da nossa relu-
tancla. em aceitar um elemento cruamente emocional na arte
o trabalho de um artista por ele, essa ilusão é facilmente desfeita
supe:lOr ' . Contudo, o elemento intelectual é muito restrito na
mediante a comparação da obra de um artista com a de outro
~rte m!enor: Está apenas na escala do elemento intelectual dos
como, por exemplo, algumas das primeiras ascensões e quedas Jogos ~nfantls. Entretanto, os jogos requerem verdadeira en-
elisabetianas com um supremo exemplo do gênero, digamos, o genhosldade para a solução dos pequenos problemas que criam
M acbeth. O artista menos grande confia, forçosamente, de um l!.m enredo é como um tabuleiro de xadrez: seu desafio e atra~
modo substancial, nos padrões do gênero, isto é, na obra dos çao, em parte considerável, são devidos ao amor ao engenho
outros. Por exemplo, tende simplesmente a aumentar a rapidez ou talento.
da queda. Dessa maneira, poderá mostrar-se persuasivo para "Todos os homens desejam , por natureza, conhecer", diz
muitos que concordam com VOLTAIRE, segundo o qual o drama- ARIST.ÓTELES . Numa estória policial, desejamos descobrir "o
turgo deveria tomar sempre o caminho mais rápido para seus assass!no desconh~cid?" e, ao desejá-lo, somos filósofos. A
objetivos. Isso faz-nos pensar em fórmulas populares como "Pre- emoçao e~ causa e 3 ânsia de descobrir - chamamos-lhe a sede
cipitar-se Para O Seu Fim Irremediável" e, na verdade, em de conheCimentos quando aprovamos, investigação quando de-
todas as frases que são usadas na publicidade dos filmes e outras saprovarnos, e curiosidade quando somos neutros . Torno-me
ficções vulgares. A superioridade de SHAKESPEARE vê-se em seu CU.flOS~ qua.ndo me surpreendem e deixam a surpresa sem ex-
uso não do acelerador, mas do freio. A queda de um Macbeth plicação, FICO sobre b~asas até que me esclareçam. :B sobre
essas brasas que se cozinha o drama simples. A palavra é sus-
reveste-se de grande ímpeto. Semelhante queda tomar-se-á mais
horrivelmente impressionante se esse ímpeto for de algum modo
pen~e. A_ expressão "enredo engenhoso" significa uma hábil
mampulaçao da surpresa e do suspense.
contrariado . Então, obtemos o efeito de um homem não des-
Contudo, nem todas as obras dramáticas são assinaladas
pelo "enre?o engenhoso" nesse sentido, e a maior parte do~
penhando-se de um muro, mas escorregando, centímetro a cen-
tímetro, por uma vertente rochosa . E é esse o efeito que SHA- dram.as assim marcados é de segunda categoria. Se a finalidade
KESPEARE obtém. em vista é um drama de primeira categoria, a finalidade em vista
44 ASPECfOS DE UMA PEÇA PERSONAGEM 45

Do FATO À Frc ção

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46 ASPEcrOS DE UMA PEÇA PEnSONAGEM 47

ossibilidade de reconhecimento ou ele projeta e controla essa suscetibilidade constante, essa inces-
sante readaptação, a infatigável sofreguidão. Tem de descobrir
o ri? subterrâneo das em?ções : então trabalhar como um enge-
nheiro, represando-o aqui, desviando-o acolá, mas fazendo sem-
pre o maior uso de sua energia natural.
Voltando à pergunta: o artista reproduzirá, ao menos, a
parcela .de vida que ele pode ver? A pura reprodução acontece,
de fato, mas o processo não é uma simples duplicação do filme
reduzido que se projeta em nossas retinas. Ficção é uma boa
palavra para descrevê-lo e talvez devêssemos usar a palavra de
modo a abranger tanto a novelistica quanto as obras de teatro.
~~ .ambos os cas.os .há composição e invenção. A fantasia pos-
sibilita uma continuidade e totalidade em ambas - a novela
e a peça de teatro - que a realidade impediria. A verdade é
Se pensamos abstratamente numa novela, ocorre-nos à mente mais estranha do que a ficção, pois esta faz sentido de um
um interesse de amor - um homem e uma mulher que se modo que a verdade não logra.
querem unir e talvez consigam. Se pensamos em nossa pró-
pria vida, em termos abstratos, ficamos com uma impressão
muito diferente e mais complexa... A constante suscetibili-
dade das personagens entre si... é notável e sem paralelo
na vida. .. Paixão, intensidade, em certos momentos - sim,
mas não essa constante percepção consciente, essa incessante
readaptação, essa sofreguidão infatigável.

Se o novelista está reproduzindo uma parte da vida, tam-


bém a reúne numa configuração inteiramente nova." arte é E FORSTER exemplifica finalmente sua tese com um con-
arte 12m ue não é vida" disse GoETHE. A empregada domés- traste entre novelas e livros de História . Estes limitam-se ao que
tica não precisaria da novela barata se tais ocorrências fôssem realmente se tornou público. O novelista conta as verdades que
predominantes nos fundos da casa, nem sejamos tolos pensando se mantiveram dentro da cabeça das pessoas. Mas ele s6 as co-
que a cozinha é um caso especial. Nenhum de nós escutaria um
nhece através da fantasia; a sua verdade é uma invenção. Não
quarteto de BEETHOVEN se tivéssemos tal serenidade e êxtase à
se trata também de que sua estória seja "falsa". O método gera
nossa disposição. BEETHOVEN é BEETHOVEN porque não é de
um mundo que opera segundo princípios parcialmente diferen-
nós. Ou, por outras palavras, houve dois BEETHOVEN. O se-
gundo foi um músico que criou a liberdade emocional que o tes dos do mundo que conhecemos. Pois tudo nele é intencional
primeiro, um solteirão neurótico, não conseguiu criar nas rela- e a intenção é uma coisa que, em certo grau, compreendemos:
ções com o seu sobrinho e o mundo em geral. E MS recorre- Embora o mundo físico, tal como hoje o vemos, esteja longe de
mos à música de BEETHOVEN por motivos muito semelhantes ser antropocêntrico, f ua send o centro do uni-
(basicamente) aos por que ele recorreu. O gênio do escritor - erso da arte . Da arte dramática ele tende a ser 'o centro e a
na novelística ou no teatro - ver-se-á na habilidade com que circunferência.
48
ASP ECTOS I>F. UMA PEÇA I'E I\SONA< ;EM 49

Se bem que FORSTER não creia que o dramaturgo possa EM L O UVO R DOS TIPOS
apro veitar tão bem as pessoas quanto um novelista, o princípio
que ele estabelece aplica-se efetivamente ao drama . A peça tea-
tral também é uma forma clarividente e confessional. O drama
também possui leis que não são deste mundo . E a rinei, aI razão (
ara assistir a uma e a como ara ler uma novela sera sem re
a necessidade de emo ões ue se' am tão coerentes e contínuas
uanto fortes .
Há um interessante comentário sobre a diferença entre o
teatro e a vida, no tão eitado ensaio de EOWARO BULLOUGH so-
bre Psychical Distance:

Os que não gostam de DICKENS têm uma excelente alegação.


Ele devia ser mau.
ASPECTOS DE UMA PEÇA P En S O :-;A C: E~{ 51
50
Então, o senso de humor de FOR5TER leva a melhor sobre o que nos interessa na obra de um poeta é o vislumbre que
obtemos de cert os estado s de espírito profundos ou lutas
a sua lógica e ele acrescenta: íntimas.

o imenso êxito [de DICKENS] com os tipos sugere que t~lvez


haja mais na chateza do que os críticos mais severos admitem,

A estreita ligação entre os tipos e a comédia não foi desta-


cada por ninguém tão .veementemente quanto por BERGSON,
em seu ensaio sobre o nso .

cormcas são tipos. Inversamente, tudo


Todas as personagens
quanto se assemelha a um tipo tem algo de cômico., .

Foi uma infelicidade que, depois de ter concluído que os


ti os odiam ter um lugar no mundo, BE~~SON passasse a de-
li~ita; esse lugar com um excesso de precisao gaulesa.

. di ue a comédia nus dá
Não só estamos autorizados a izer q
. ais mas poderíamos acrescentar, ainda, que se trata
tipos ger 1 , • lid de
da única forma de arte que tem por fito a genera I a ...

E o argumento segue por aí fora numa depreciação ,d~ c~­


média como arte , que quase n~o é mas apenas u~a esp~~l~e ~
encruzilhada entre a arte e a Vida. Apresenta-nos tipos P q
superficial:

Assente na superfície, não irá mais além da flor da pele, tra-


tando as pessoas nos pontos em que elas entram em contato
e tornam-se capazes de se assemelhar umas com as outras.

Esclarecer "os pontos em que elas [as pessoas] entram ~m


contato" equivale, certamente, a esclarecer todas ~s ~elaçoes
· que BERGSON sustenta como alternativa.
h umanas. E lS o
~ ~ ie- .J

~ ~I O C.t'JV\,1
7-9~
'y '
:'\ li
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I'»)() fM11t.t.
~
52 ASPECTOS DE ~A PEÇA PERSONAGEM
53
Que espécie de pessoa era Bdipo? A única sugestão q~e ouvi di-
zia tratar-se de um homem arrebatado. Mas de maneira alguma
se esclarece no Édipo Rei se ele era invulgarmente arrebata~o
para um monarca; e se arrebata~o for .tud? o que ele era, entao
não passa de um tipo, na acepçao mais simples,
E que dizer de Hamlet - o exemplo clássico d~ um indi-
víduo no mundo dramático? Diz-se que COLERIDGE VIU Hamlet
em sua própria imagem. Também se diz que GOETHE viu ~am­
let em sua própria imagem. Ora GOETHE e C:0LERID?E nao ~e
pareciam nada um com o outro. E, quanto a ISSO, cr íticos mais
recentes, de gêneros diversos, também viram Hamlet em suas
próprias imagens ou na imagem de seus eus sonhados. O grande
rebelde russo BELINSKY viu -o como um grande rebelde russo.
SALVADOR DE MADARIAGA viu-o como um príncipe maquiavélico.
Tudo isso parece provar que Hamle~ n~~ est~ limitado pelo.seu
autor a uma fisionomia altamente individualizada. A rmagma-
ção do mundo parece tacitamente admitir outro tanto, pois en-
quanto o texto diz que Hamlet era gordo, o mundo t:m-no pen-
sado freqüentemente como um homem magro. Entao, Hamlet
não é um tipo?
A observação corrente do pedagogo sobre tipos (a de que
a raça humana não está dividida em homens ~i?mentos~ homens
coléricos e assim por diante) é sumamente, v~lIda, : nao temos
motivo para supor que os dramaturgos cl ássicos .nao a conhe-
ciam. Pelo contrário, em vez de procurare~ reduzI.r cada ?m de
nós a uma fórmula dissecada, colocam muito da VIda afetiva de
cada um em seus tipos. Se numa definição um tipo é uma par-
cela da espécie humana (nação, classe, raça etc.), noutr~, um
tipo ultrapassa as fronteiras de nações, classes, raças, e e uma
parcela de cada ser humano. Através do se~ Peer Gy~t, IBSEN
atinge o mentiroso auto-sugestionado, fantasista, que ha em ca-
da um de nós. Através de Don Quixote, CERVANTES alcança, o
romântico aventureiro e angustiado que há em cada um de nos.
(Simplifiquei demais. Na realidade, a Defin~ção Um ajus-
tar-se-ia melhor a Don Qúixote no princípi~ d~ livro, onde e~­
contramos, não a nós próprios; mas um excentnco da classe. hi-
dalga, muito característico da nação espan~ola e da raça lat!na.
Depois, essa definição vai gradualmente deixando d~ ter .valida-
de e impõe-se a segunda. O mesmo acontece nos Pickwlck Pa-
ASPECTOS \lE UMA PEÇA PEI\SO:-lAr.EM 55
54
O uma ação e não um 'ser. 'b I arrastando-nos da idéia estática - "um homem ciumento"
é válida porque sugere I:.~go. corn tipo na mais comum acepção para uma experiência de ci úme. Sendo uma experiência, não
certo que lago não c?nst.lttUl, '~Hma' urna porção de lagos na nos-
moderna,. rungu ' ém Vai .gn ar .
tido em que eXiste um I ago em I
I
consiste em qualidades abstratas nem pode ser por elas defini-
da. Está definida pelo diálogo (poesia) e ação (incluindo a
sa CIid a d e " . Mas é um tipo no sen I ação íntima, ou luta, conforme foi mencionado por COLERIDGE).
cada U:TI de nós,
I A impressão dada é menos a de uma personagem típica que foi
rotulada do que a de um homem com uma experiência típica.
A experiência não está inteiramente implícita no seu caráter e,
TIPO E ARQuÉTIPO \
assim, não ilustra meramente o seu caráter. E não se trata ape-
rínci ais e secundárias nas de um "ser ciumento", como o Mister Page de As Alegres
Estive. ,fala.ndo , em ta altura ue as ersona ens r~n- Comadres de Windsor (uma personagem "chata"), Trata-se,
mas talvez a se a eVidente nes - o das secundárias. Osnc, sobretudo, da perda devastadora na nobre imagem de uma pes-
ci ais não são ti os na ~~sm~ ~c~ t~ o que se enquadra bem soa amada. Se tivéssemos de dizer que ateio exemplifica algu-
uma personagem secundana, e p "chata" Seria muito ma coisa, poderíamos afirmar que ele ilustra a natureza de tal
R' uma personagem '
no conceito de F OR~TE , ietivo a Hamlet. Ou observe-se devastação e de tal perda,
difícil desejar-se aph~ar,aq~e~: ag~AKESPEARE, de quem algun~ Outro exemplo desse "deslocamento de acentuação" é for-
uma personagem pnnclp~ . ' ples Otelo para esses, e necido por O Misantropo. MOLIERE chama a Alceste "o misan-
, da especle mais snnrnes- 'f ,,-o
fariam um tlp,O " 'arte o fato de que a ra~e na tropo", um tipo característico por definição. E no século XVII
"um homem cIUmento , ?ra, a p frase é do própno Ote- era comum escrever descrições desses tipos gerais na forma de
.
facilmente cíumen to" esta
. no texto - 'a a muitíssimo di'f'ICI'I d es-
uma breve peça convencional em prosa. Mas a personagem de
lo e não forçosamente smcera -: sento ou a sua caracteriza- MOLIERE não corresponde a tal caractere de um misantropo.
meramente cíumen ,
crever Ote I o como. bordar unicamente (ou mesmo 'b um idealista. Suas esperanças para a raça humana são, origi-
ção como uma tentat~~a pa~ a ponto as palavras de COLE- nalmente, muitíssimo elevadas, Não só é capaz de alimentar sen-
primordialmente) ~ ~I.ume. es te , timentos em relação a outras pessoas como está perdido de amor
RIDGE parecem deflmtlvas: por Célirnêne. Também não é um solitário por natureza. Tem
, ressiona como o detalhe mais im- uma necessidade crônica de alguém a quem se queixar, até de
Não é o ciúme que me irnp ] , obretudo a angústia de um grupo que seja simultaneamente o seu auditório e o alvo de
,- (de OTELO ; e, s ' I
portante na pa~xao vas de que a criatura que e e sua resmunguice. O mais próximo que ele está de um misantro-
q ue se concretIzassem
r I
as pro ,
era Impura e
desprezível. a luta
É
po, mesmo no final, é que gostaria de ser misantropo. Quando
acreditava ser ang e ica ', ' ~r _ moral e a pena de que a cai o pano, pode confiar em que será atormentado por seu ami-
para não amá-Ia, É a 10 Ig~açao go, tal qual sucedia quando o pano subiu para o Primeiro Ato,
virtude caísse daquela maneira. Se Otelo é "o homem ciumento" que se revelou melhor ou
ue algumas ou todas as ex- pior do que um ciumento, Alceste é "o misantropo" que se mos-
Ora, poder-se-ia argumentar, q I ta a indignação e a pe- tra melhor ou pior do que misantrópico: e um de seus verdadei-
, .t das a ago ma a u , d- ros problemas é o ciúme. Quer isso dizer que MOLIERE descre-
periências aqur CI a c , - t 'ente ao ciúme. Contu o, nao
na - associam-se ,mUlto ca;.ren e~ qualquer modo, COLERIDGE ve o ciúme, apresenta esse estado do ser, escreve, essencialmen-
são o ciúme propnamente ItO .e: e estava ausente da peça. Os te, a respeito de qualidades? Tanto quanto SHAKESPEARE. Em-
não pretendia afirmar que o CIU,"lte têm início no ciúme e SHA- prega mais os caracteres - pelo menos, um desses estereótipos
a seu respei o e . der
nossos pensamen to.S taneiou que assim devia suce _ . é inserto no texto - pois essa era a sua tradição e a da sua
KESPEARE, presumivelmente, p. J omo desloca a acentuaçao, platéia. Mas o seu método de apresentação de um protagonista
A sua arte revela-se na maneira c
ASPECTOS DE UMA PEÇA I'LI\SU:'\ACE~( 57
5G

é o clássico do drama: pela ação. As paixões, em suas peças, deste jamais se apresentaram como uma circularidade demonía-
provocam acontecimentos e são ~istas no~ ~contecimentos, en- ca, tal como a turbilhonante ária define. Quando recuamos pa-
tre os quais se incluem os acontecImentos .mtlmos. -:- embora. ~e ra o século XVII, o mistério, em vez de esclarecer-se, ainda
convertam em eventos exteriores por meio do diálogo. O ClU- mais se adens á. Interpretações diretamente opostas do Dal! Iuan
me no drama, como qualquer outra paixão, não pode apenas ser; de MOLll:RE têm sido sugeridas . Alguns afirmam que, nessa pe-
deve ser revelado por palavras e atos. Jorra de Alce.ste numa ça, MOLlERE toma a defesa do ateísmo; outros, que o ataca. Só
torrente de clareza. Também tem um ponto de partida e um faltava ess~. ateí smo! Ora, o meu amig o X é um devoto que fre-
destino pois as cenas devem não só movimentar-se, mas passar qiicnta assiduamente a igreja; mas não estão as igrejas repletas
de um' ponto para outro, numa certa direção. Um "e~que~a" de moças? Também não é verdade que . na peça de MOLlERE,
que podemos imaginar ter estado na cabeç~ de MOLIERE e a a teoria ateísta tenha precedente sobre a personagem. Esse Don
idéia de partir da Misantropia (como no titulo), passand? ao J uan não é somente o porta-voz de uma filosofia. Consubstan-
Furor (está nas linhas iniciais e, depois, quase paSSI111) e so en- cia uma atitude. É o marginal e o rebelde, de um modo tanto
tão mostrando que o homem é Ciumento. social quanto teológico. Um pequeno toque, e acabaríamos ten-
Que as crsona ens rinci ais ue são ti os tenham de s~r do pena dele: vive tão isolado. Suas sed uções não são exibições
mais com Icxas ue as secundárias não é sur reen~ente nem .Sl- de sensualidade, mas de técnica. Gosta de sentir o seu poder e
nificativo mas serve de indica ão ara um fenomeno mUlto até de mostrá-lo. SganareIle é um ouvinte bem-vindo. A platéia
mais amplo: nas mãos dos mestres, tendc~ a c~n.v~rter-se .em teatral identifica-se com ele, e ele é o voveur do exibicionismo
arguétip- s e a tradic'onais r,!e sona ns fi a tlp- f.. n Q de Don Juan. No final, Don Juan é punido com o fogo do infer-
menores os ru os com suas fra uezas e excentricidades - no; mas poderemos considerar seriamente essa punição, para
a ersona em ar lJetí ica ti ifica as coisas maiores e as carac- não citarmos já o seu sentido literal? Talvez possamos; mas de
terísticas ue são mais do ue idiossincrasias Don Quixote e modo algum é certo que devamos . Como RAMON FERNANDEZ
Pccr Gynt já foram mencionados. Depois, t.emos o arq~étipo 110tOli , MOLIERE converteu a impunidade num grande tema
plástico, como Fausto, que teve um desenvolVImento atraves dos dramático: estava propenso a ver homens maus cometendo assas-
sínios impunemente. O castigo final de Don Juan é tão pouco
séculos. "
Qual a diferença entre "os homens que conhecemos na enfático, em relação à impunidade que o precede, que a comé-
vida e tais arquétipos? Suponhamos que, por um momento, re- dia, no seu conjunto, provoca o pensamento: o final seria assim
temos em nosso espírito a imagem de uma pessoa real que nos na vida real? O de MOLIERE é um Don Juan que caminha na
fez lembrar um arquétipo ou que nos foi recordada por um ar- sombra. E o mesmo poderíamos dizer do primeiro de todos os
quétipo. Pensarei no meu amigo X que tem fama de Don Juan. Don Juans, o burlador de Trnso DE Tvllll.lNA. Está muito certo
Qual dos Don Junns na literatura dramática se parece com X? observar que El Burlador de Scvilla, de TIRSO. é mais teológico
O de BERNARD SHAW, hoje o mais famoso, seria posto de lado do que psicossexual, desde que se acrescente que a teologia está
como um paradoxo ou uma paródia. O de ZORRILLA, bem co- elaborada em termos dramáticos - quer dizer, em termos emo-
nhecido das platéias hispânicas. també~l é "in:omum:',. visto de- cionais. Não mais do que em MOLll:I~E é a teologia pura e abs-
monstrar, no final, ser tão suscetível a sedução teológica qua~­ trata. Don J uan desafia Deus ao violar costumes sagrados, a lei
to à sexual. O de MozART? Aqui está um Don Juan qu~ ~odm da hospitalidade, o sacramento do matrimônio, o respeito pela
receber uma análise de cem páginas de um grande psicólogo idade, paternidade, laços de parentesco. Embora esse Don J uan
teológico: KIERKEGAARD . Escutem a música da estátua - ou não seja ateu e lhe falte a grandeza do de MOLlERE, é também
até, simplesmente, a chamada ária do champanhe: Qualquer des- um grande rebelde e concentra na sua pessoa singular a rebeldia
ses dois trechos nos dará a personagem mozartl~na._Mas nu~­ de milhares... E assim por diante. Quanto mais avaliamos as di-
ca uma estátua se apresentou ao Sr. X, nem as ligações sexuais mensões da lenda, tanto mais a realidade é sobrepujada por

~ ..
,
58 ASPECTOS DE UMA PEÇA
l 'UISO:\A CE :--l 3D

aquela. Embora X seja um ser humano, e suas pretensões de in- MEREDITH - não foram capazes de sugerir é que o centro do
dividualidade sejam inculcadas não só por ele próprio mas pelos interesse não está nos traços característicos da personagem, mas
seus contemporâneos en masse, todos individualistas, reduz-se na cncruia humana ou inumana .
à insignificância em face dos Don Juans dos grandes dramatur- Or71, entre os que sabem que a conimcdia de/farte foi, du -
gos, que são apenas tipos. rante alguns séculos, o principal veículo da tradição das perso-
nagens fixas, quantos percebem que foi também o agente da
tradição do brio. da I'CrI 'C c da diablcric cômicos? O segundo
TIPOLOGIA E MITOLOGIA
fato não é necessariamente mais importante do que o primeiro,
mas este é um fato claudicante e vulnerável sem o segundo,
Em suma, aquilo a que FORSTER chama a personagem "cha- porquanto permite a observação de tipos considerados deficien-
ta" e BERGSON o tipo cômico não esgota, de maneira alguma, tes, a observação de que se trata de personagens regulares às
o elemento na caracterização dramática que pode razoavelmente quais falta alguma coisa, em vez de criações v álidas e positivas.
considerar-se típico. Nem sequer faz justiça, finalmente, aos Se. corno é opinião ~!eral , a comnicdia dcll'arte é arte tea-
próprios tipos fixos tradicionais, se são esses tipos os que en- tral num estado puro . então poder á ser citada para mostrar o
contramos nas comédias dos mestres clássicos. As personagens que um teatro drum áiico pode e não pode dispensar. Pode dis-
de BEN JONSON, por exemplo. São bastante chatas, se a redu- pensar os estudos permanentemente novos e originais do caráter
ção de traços a um único, ou a poucos, for o critério adotado. individual. Não pode dispensar caracterizações francamente aces-
Aproximam-se muito, em inúmeros casos, das fórmulas da co- síveis e. se a platéia quiser cambiante s e novidades. terá de en-
média romana e italiana. Mas nem a "chateza" descrita por contrá-Ia não em gente nova. ma s em novas representações e
FORSTER, nem a qualidade "mecânica" salientada p~r. BERGS?N, suas interpretações de um contato sempre renovado c vivo en-
vão longe no caminho de nos explicarem que especie de VIda tre pessoas.
essas personagens têm. O próprio JONSON, que era também u~
Poder-se-ia escrever um livro para estabelecer em bases
teórico de bom gabarito, não ficou longe do cerne da questao
mais sólidas que as personagens fixas são uma realização posi-
em sua famosa descrição do que entendia por "um humor" -
tiva . Teria de mergulhar exaustivamente no assunto da tipologia .
isto é, uma personagem na comédia jonsoniana:
Se r.i profundo usar palavrns como Extrovertido e Introvertido.
e superficial usar pala vras como Pulcinclla e Scararnouchc?
Como no caso de um homem possuir, de fato, Perceber que não é significa meter ombros ao estudo do que
Uma tal e peculiar qualidade, que atraia talvez con stitua a tipolagia clás sica , na tradição ocidental : a ti-
Todos os seus afetos, seus espíritos e seus poderes, pologia do teatro tradicional. em geral. c ela conuncdia dell'artc,
Em suas confluências, todos correndo num sentido, em particular.
A isso poderá certamente chamar-se um humor. Da tipologin, semelhante livro teria de passar Ü mitologia .
É óbvio que os arquétipos nos fazem mergulhar profundamente
no mito; são mitos , e os seu s criadores encontram-se entre os
Quão débeis e afcminadas são as descrições habituais da maiores inventores de mitos. Neste ponto, se não antes. com-
personagem cômica ao lado desta! A imagem não é a de uma preendemos que os nossos dois gêneros de personagens típicas
simples excentricidade, algo tolo o~ ~rdil.oso, amaneirado o.u não estão fundamentalmente separados. Mesmo os não -arqué-
vagamente ridículo, mas a de uma cnaçao SImultaneamente mais tipos. as mais modestas personagens fixas (1:1 tradição latina ,
vital e menos humana, mais arrojada, profundamente mórbida, constituem uma mitologia. como FFRN\i\iDEZ corretamente ar-
mas vivendo no ritmo de um dervixe estonteante, monomanía- gumentou. Somos vagarosos em compreendê-la, apenas porque
co. O que os teóricos - seja FORSTER, BERGSON ou, neste caso, a mitologia no drama significa. para nós. as histórias que ser-
60 P En SONAGEM
ASPECTOS DE ~A PEÇA 61

vem de base à tragédia. Na tradição trágica, as personagens po- xas teve o intuito de aprese n t~r um Don Juan russo ; a segunda,
dem ser sempre diferentes, porque a estória é sempre a mesma. um, Ham~et ru sso , Sobre esta ultima, Ivanov , escreveu ele: "Por
Na comédia, as personagens é que se mantêm constantes, ao pas- mU,Ito ma. qu~ .a ,p eça seja, n ão importa: cri ei um tipo que tem
so que as mudanças eram introduzidas nos enredos. Se a tragé- v,abdad e 1I,terana . Quanto às ,suas obra s-p rimas, os que as con-
dia emprega o mito narrativo, a comédia faz uso do mito carac- siderarn so atmosfera e cornbi ant cs não viram algumas de
. ' I"d ' suas
terológico. rnars ~c:. I as ~a~acteflsticas, tais corno que cada peça contém
A finalidade de qualquer mito é fornecer um elemento co- u_m Vilão tradicionaj, que serve o propósito tradicional dos vi-
nhecido como ponto de partida e proteger-nos do vácuo da no- loe~ nos enredos dramáticos, ou seja , conduzir a Ação para a
vidade absoluta. A arte é uma questão de satisfazer certas ex- cata~trofe . O Professor, em O Tio Vânia, Natacha, em As Três
pectativas, e o mito estabelece as expectativas com um mínimo Irmãs, e ~a?ame Ranevsk~, em O Cerejal, cumprem justamen-
de agitação. A arte também é, como eu disse no capítulo ante- te ess~ rmssao.. E~l A Gaivota, a vilania ficou repartida entre
rior, uma questão não de conhecimento, mas de re-conhecimen- Arkadina e Trigorín.
to : nada nos diz que não saibamos já (o catálogo telefônico po- . De IBS:N !ambé~ se pode afirmar que começou pelas ten-
de fazer isso); conta-nos algo que "sabemos" e faz-nos compre- t~!lvas de c,f1açao de gigantescos protagonistas arquetípicos: Ju-
ender. Ora, é geralmente reconhecido que os mitos gregos ofe- lião, o Apostata, Brand e Peer G ynt. Em seguida, como todo
recem um material perfeito para impor essa compreensão: daí, mu~do sabe,. o~or~eu uma mudança, mas, mesmo depois disso,
para dar apenas um exemplo entre milhares, todas as Electras as figuras pnncrpais de IBSEN seriam justamente celebradas pe-
desde f:SQUILO a O'NEILL e SARTRE. Menos justiça tem sido fei - lo _seu carater representativo. BERNARD SHAW observou que a
ta aos mitos caracterológicos da Nova Comédia Grega, que de- açao de Casa da Bon eca localizava -se em qualquer subúrbio eu-
monstraram sua vitalidade ao sobreviverem mais de dois mil ropeu. RILKE notou a va sta, cósmi ca resson ância de O Pato
anos. BERNARD SHAW, pelo menos, reconheceu com prazer o Se.!vagem - uma peça em que, como foi observado por muitos
apoio que recebeu da tradição de Punch, bem como de Arle- :rJalr,nar se destaca como arqu étipo do idealismo das camada~
quim e Colombina. Mas são muitas as pessoas tão ocupadas em ~ n fefl or~s da classe méd ia, A mai s surpreendente de todas as
falatórios sobre indivíduos que nem percebem o que se pode J1ustra70e~: . quando SIGM UND FR EUD est a va procurando o ca-
fazer com tipos. so mais ttpico de uma certa neu ro se, confessou-se incapaz de
encontra~ qu alquer ex emplo entre os seus p acientes reais que
fosse. mal,s cab~lmente típico do qu e uma das heróinas de IBSEN.
O MODERNO DRAMA PSICOLÓGICO E fOI a b~ografJa de REBECCA W EST que ele incluiu no seu ensaio
sobre "TIpos Caracterológicos".
A opinião de que o drama se ocupa de "indivíduos, não Os ~ue defendem os indivíduos contra os tipos desenvol-
de tipos", deriva, em considerável medida, do moderno drama vem frequ entemente seu raciocínio e revelam-se favoráveis a um
psicológico. Se a defesa dessa opinião fosse realmente sólida, te- ~:ama em ~~e a personag~m tem precedente sobre o tema, o en-
ria de aplicar-se, pelo menos, à dramaturgia dessa escola. Mas, edo e o díãlogo. O d~~aflO, nesse caso, dirige-se especialmente
de fato, mesmo esse drama tem muita coisa de "típico". a uma concepçao tradicional, aristotélica, segundo a qual a per-
Entre os dramaturgos "psicológicos" de grande mérito, os sonagem de~e estar subordinada ao enredo, JOHN GALSWORTIIY
mais psicológicos são IBSEN e CHECOV. Desde o começo, CHE- replicou assim :
cov foi atraído para as personagens de tipo padronizado e em-
pregou de um modo fascinante os tipos burlescos em suas peças Um ser humano é o melhor enredo que existe . . , O drama-
em um ato. Também desde o início trabalhou na criação de pro- turgo que subordina suas personagens ao enredo em vez de
tagonistas arquetípicos. Sua primeira peça de dimensões ortodo- submeter este às personagens, comete pecado capital.

~ .
62 ASPECTOS DE UMA PEÇA J' En SO N A GE ~(
63
Como tais opiniões resultaram, indubitavelmente, do movi-
mações sobre uma pe sso a do que em revelar alguma grande ver-
mento moderno, é justo, imperativo até, indagar se os mestres
modernos as subscreveram, consciente ou inconscientemente, da.de sobre elas , num clarão de reJ5mpago dramatúrgico. Nisto,
na teoria ou na prática. evidentemente, a personagem também não está sujeita à ação.
Quando explicou que escreveu três rascunhos de suas pe-
Perso~agem e . a~ão encontram-se tão bem coordenadas que a
questao de pnondade perde toda a relevância .
ças, IBSEN acrescentou que esses rascunhos diverg~am "mu!tí~­
simo entre si na caracterização das personagens, nao na açao Se o drama moderno é " todo psicologia", "todo caráter"
Por outras palavras, a ação não esteve sujeita a revisão, ao pas- então IBSEN não é um modernista. É um dramaturgo social ~
so que a motivação sim . IBSEN fornece mais detalhes: mas num. senti~o muito mais profundo do que se pretendeu
quando fOI elogiado ou atacado, há muito tempo, pela suposta
mensagem d: Cala de 1!:J1leca ou Os .Esp ectros. Se os seus pro-
[No primeiro rascunho] senti como se tivesse com as min~a .. tagomstas nao sao heróicos pelo cahbre moral têm contudo
personagens o grau de convivência que se adquire numa VIa- a_ qualidade representativa dos heróis antigos. (Tem~s prope'n~
gem de trem: as pessoas conhecem-se e batem papo sobre isto sao para esquecer que o herói grego não era necessariamente
e aquilo. Com o seguinte ... eu conhecia as personage?s po~­ um gladiador ou um escoteiro, mas representava, necessariamen-
co mais ou menos como qualquer pessoa Os conheceria apo~ te, a sua comunidade: quando um morria, a outra morria e
algumas semanas de permanência numa estância balneária: vice versa.) O que impressionou R:LKE a respeito de O Pato Sel-
fiquei conhecendo os traços fundamentais de seus caract.eres vagem foi a sensação de fatalismo que paira na obra. IBSEN dis-
bem como suas pequenas idiossincrasias; contudo, resta ainda se certa. vez _que não abandona uma personagem "enquanto
a possibilidade de que eu possa estar redondamente engan~' s~u destino nao fc:r cumprido~', e é essencial observar que as
do nalgum aspecto essencial. No último rascunho, colo~uel' fl?uras de IBSEN tem um d estino marcado, não apenas um ca-
me finalmente no limite do conhecimento: conheço a minha rater . Quanto ao velho aforism o "Caráter é destino" se acaso
gente através de uma estreita e prolongada associação - são significa o que parece , só passou a corresponder a urna verdade
meus amigos íntimos, não me desapontarão, vê-los-ei sempre depois dos maus dramas, excessivamente psicológicos, da dé -
como agora vejo. cada de 1920 . O caráter jamais fora destino por si próprio.
Desti~o sempre foi uma palavra para abranger tudo o que era
Os traços, portanto, mesmo os fundamentais, podem ser exterior aos homens, mas se a batia fatalmente sobre eles _ "uma
ilusórios " nalgu ns aspectos essenciais" ., C? mode~o dramaturgo força não em nós próprios qu e contribui para a realização da
psicólogo está menos interessado, em ultima análise, n~s ~~aços justiça" ou para o inverso . A idéia de que o destino está real-
e idiossincrasias que utiliza do que "nalgum fator essencial , ~a­ n: en te dentro dos homens produzirá , na melhor das hipóteses,
nao peças como as de IBSEN, mas como as de EUGENE O'NEILL,
ra o qual esses traços e idiossincrasias não aponta~, n,:cessarIa-
mente. O que é finalmente efetivo sobre a caractenz~çao d? Se- em que a Psicologia comete incesto com a Psicologia. O destino
nhora Alving, por IBSEN, não é qualquer dos traços tao habilido- em IBSEN, como antes dele, é um nome para aquilo que dizemos
samente apresentados nos primeir~s .dois atos, mas, pelo, c~n­ que "paira no ar" c que para um dramaturgo está na atmosfera
trário, a angustiosa revelação no ultImo. ato, para ela propna, como a trovoada está no ar num dia quente e abafado. Urna
para Oswald e para nós, de que ela p~rtIClpa da culpa que an- característica essencial das personagens de IBSEN e CHECOV é
teriormente projetara sobre o seu mando. Por outras palavras, que cada uma delas carrega e desprende um sentido de fatalismo
IBSEN não está do lado de JOHN GALSWORTHY. Em sua obra, a que é algo mais do que o seu fatalismo próprio. Pois o que
estava fatalm,:nte cond~nado era toda uma cultura, razão por
ação não está sujeita à personagem. Tal como os dramat~rgos
mais antigos, IBSEN está menos interessado em acumular infor- que ambos sao, na mars ampla acepção, dramaturgos sociais.
Suas personagens tipificam .uma civilização e uma época.
64 ASPECTOS DE UMA PEÇA I' EnSONACEM
6S

PARA ALÉM DE TIPOS E INDIVíDUOS detalhes realistas inspirados pela novclística, constituiria a mais
original característica do "novo drama", no que dizia respeito
Mas seria insincero abandonar a questão neste ponto, dei- a suas personagens.
xando a impressão de que IBSEN e CHECOV não só foram parti- Contudo, não está provado que o resultado possa descre-
dários de um drama de tipos, mas resolutamente contra um ver-se c,o~o "i~~ivíduo~, não tipos", primeiro, por causa das
drama de indivíduos. IBSEN também disse, e suas palavras são caractenstIcas típicas acrma mencionadas e, segundo, porque a
válidas também para CHECOV: ~~finição de "indivíduo" continua sendo vaga. A palavra tipo,
ut!l por algum tempo, como espero ter demonstrado, também
a!mge um pont~ .d~ decrescente retribuição. Quando os tipos
Antes de escrever uma só palavra, tenho de elaborar minu-
tem, ~e s:r subdivididos em duas espécies e quando uma dessas
ciosamente a personagem na mente. Tenho de penetrar até o
espeCIes e complexa - e inclui Hamlet - será perdoável inda-
mais recôndito de sua alma. Parto sempre do indivíduo. A
gar se, no fim de contas, não poderíamos chamar-lhe um indi-
encenação, o conjunto dramático, tudo isso vem: naturalmen-
te e não me causa qualquer preocupação, logo que estiver víduo. Is.so. se:ia definir um indivíduo como um tipo complexo!
certo a respeito do indivíduo, em todos os aspectos da sua A, distinção deve, de bom ou de mau grado, ser deixada
humanidade. Tenho de fixar também o seu exterior na mi- para tras numa certa fase, pois o interesse dos grandes drama-
nha mente, até o último botão, como anda e se senta, seu turgos pela Personagem, seja típico ou individual tinha limites
comportamento, qual o som de sua voz. mesmo que o interesse de algumas pessoas nele fosse ilimitado:
ARISTÓTELES notou isso, mas a sua observação parece depender
de outro aspecto: o de que o Enredo é mais importante. O en-
Palavras como essas depõem sobre um gênero de drama redo em si poderá não ser mais importante . Argumentarei num
que era tão novo no seu tempo quanto, por exemplo, o drama capítulo ulterior que o mais ,importante é a peça como um todo,
elisabetiano na época de Elisabete. Se o vemos negativamente, nao o enredo . No tocante a personagem, a questão é idêntica.
é porque o conhecemos sobretudo através dos produtos do seu A personagem está subordinada a alguma outra coisa e a su-
declínio subseqüente, durante o século XX. IBSEN e CHECOV bordinação é de natureza muito delimitadora. Há muita coisa
contam-se entre os mais notáveis porta-vozes, na arte, do mo- a. respeito do.s seres humanos que o dramaturgo está impedido de
derno sentido da significação individual. Eu destacaria as pa- d!zer por exigências do enredo, diálogo, tema, para não rnen-
lavras na arte, pois não está em causa a defesa de qualquer cIOn~r ? de~empenho .. Isso quer dizer que são impostos rigoro-
ismo. O individualismo, especialmente, foi algo que não enga- sos limites as oportunidades do dramaturgo para criar "tipos"
nou nem um nem outro. O famoso individualismo da econo- ou "indivíduos".
mia de livre concorrência revelava-se comprovadamente hostil , . ~uando digo que o interesse do dramaturgo na Personagem
à vida do indivíduo. Tendia, com efeito, a asfixiá-lo. IBSEN e e limitado, quero dizer também que ele não vê os seres humanos
CHECOV eram inimigos desse individualismo porque eram ami- como Caracte.res, apenas, quer individuais ou típicos. Qual é
gos da individualidade. Por diferentes caminhos, suas obras res- a. outra maneira que existe de vê-los? O que é caráter? Basta
pectivas estavam impregnadas de amor pelo ser individual e dizer por agora que consiste em algo que, na vida, pode racio-
parecem ter inventado um novo método de apresentação das per- nalmente ser encarado como uma coisa má. No livro Character
sonagens que, por falta de melhor termo, poderíamos chamar A nalysis, de WILHELM. REICH, é descrito como uma espécie
biográfico. Uma personagem tem agora uma biografia atrás de armadura que a cnança enverga como proteção contra o
dele, e se o dramaturgo não puder expô-la numo s6 passagem mundo - uma carapaça psíquica. SANDOR FERENCZI formula
soltará a informação em parcelas que o leitor ou espectador o mesmo pensamento da seguinte maneira: "O Caráter é ...
poderá depois ajustar e reunir. Isso, a par de uma notação de uma espécie de anormalidade, um tipo de mecanização de uma
A SP E CTO S IIE l"~IA P EÇA
GO P ERSONAGEM 67

determinada maneira de reagir ". A literatura não aceita que os


seus "caracteres" sejam apenas isso, mas tais interpretações
sexto dia fez ° Homem, embora não nos seja explicado se o
homem tinha um caráter.
ajuda m-nos a recordar até que ponto a per sonagem, mesmo em
" "Todo o teatro é existencial", diz ETIENNE SoURIAU.
literatura, é apenas uma idéia - a idéia que um homem faz ,Fazer co~ que caracteres [ou personagens] imaginários existam
de si próprio, a idéia que um autor faz de um homem . Tais e o.seu tnunfo e um ato heróico". Esta sentença faz o melhor
idéias obedecem a padrões estabelecidos, conformam -se a uma sentido, em minha opinião, se acentuarmos a palavra existam
série de convenções. Quando falamos de "uma personagem em vez da palavra caracteres. A primeira intenção do drama-
muito bem caracterizada", estamos rendendo horncnaucm a um turgo, qua.nto às suas personagens, é criar existências. Um
novo desempenho de urna velha rotina. Mesmo o s~ntido po-
modo particular de existência está implícito: a ação . ARISTÓ-
pular da frase , em alusão a alguém, "Mas que personagem! " TELES notou-o, e GEORGE SANTAYANA, em The Sense 01 Beau-
contém uma implicação de artifício: é como se essa pessoa não
~', acrescentou que o dramaturgo é, nesse sentido, um perfeito
estivesse viva, mas surgisse de uma peça de teatro. filósofo da vida:
"Bem, o que há de mal nas personagens das peças?" Mes-
mo os maiores escritores têm de usá-las e aceitar a concomi-
tante simplificação. Mas vimos em O/elo como um dramaturgo o en::do. é a síntese de ações, e é uma reprodução daquelas
pode passar do caráter do protagonista para a sua humanidade. experrencras de que derivaram originalmente as nossas no-
S"AKESPEARE mostra freqüentemente menos interesse em atri- ções sobre os homens e as coisas; pois o caráter nunca po-
buir qualidades às pessoas do que em fornecer uma demons- derá ser observado no mundo, exceto quando manifestado na
tração de que elas estão vivas, de que pertencem a este mundo. ação. Os atos são os dados e o caráter é o princípio inferido.
Identificamo-nos com uma personagem de SHAKESP EARE menos
no sentido de "Sou esse homem , tenho esses traços de caráter"
do que no sentido de "Tornando-me como esse homem, sei o Ora, talvez pareça que estou escrevendo como se as ações
que significa viver" . O que falta ao drama em definição de ocorressem nur:n vazio e os caracteres andassem , por aí, por si
caracteres é compensado por uma descrição concreta da dinâ- mesmos. O pintor de um retrato, no fim de contas, poderá
mica da vida. aI?resen!ar as parecenças de uma pessoa . Por que o dramaturgo
H á em tudo isso uma certa simplicidade. recordando-nos nao fana o mesmo, ?U não. apresentaria até muitas pessoas, cada
o sentid o em que, como GOETIIE observou. toda a arte é super- uma delas em s_ua smgul~ndade ? Não fosse a personagem, para
ficial : a arte trabalha com as superfícies da vida . O que é tão ele, uma questao de a çao, poderia tentar. Mas "nenhum ho-
obviamente verdadeiro em relação à pintura é, nalguns aspectos. mem é uma ilha", e as ações de nenhum homem estão isoladas
igualmente válido para a dramaturgia . A superfície da vida , das d: outros hO?1ens .. Pelo contrário, são principalmente: e
para um dr amaturgo, é os seres humanos caminharem, pararem. essencialmente, COIsas feitas a outros homens. Não deveríamos
sentarem-se, falarem , gritarem e cantarem. Mostrar essas ativi- ficar surp:eend~dos ao aprender na moderna Psicologia que até
dades num palco é teatro. a derra?elra açao de um homem contra si próprio - o suicídio
Muito sugestiva é uma [rase de B ENJ At-f1N CONSTANT: - é simultaneamente uma agressão contra os sobreviventes .
"a ondulante mobilidade que pertence à natureza humana e Ou mesmo contra os não-sobreviventes, porquanto um suicídio
forma os seres reais". Antes de apresentar as personagens, o poderá ser o remate de um ódio contra alguém desde há muito
dramaturgo apr esenta essa ondulação, essa mobilidade que nos morto, caso esse em que o auto-homicídio é uma agressão na
forma , que é nós . E talvez pudéssemos descrever os drama- fantasia (como nalgumas peças de teatro) : "Como Fulano fica-
tur gos como doadores de vida , em lugar de criadores de perso- ria magoado com o meu ato!" Falamos das relações de um ho-
nagens . Assim é a sua iniitatio Dei - c d'Elc sabemos que no mem com ele próprio, mas como as apreenderemos, como en-
68 ASPECTOS DE UMA PEÇA P EHSO NA(;EM 69

contraremos sequer palavras para defini-las, se não for através Que dizer do monólogo? Poderá essa forma, pelo menos,
de suas relações com outros homens, vivos ou mortos? figurar como um retrato individual teatralizado? Parece que não.
Em principio, o drama apresenta relações humanas - as Quer pensemos em Before Breakjast, de EUGENE O'NEILL, La
coisas que os homens fazem uns aos outros - e nada mais. Voix Humaine, de COCTEAU, ou mesmo num poema sem inten-
Outras coisas não se apresentam no palco, mas, se "aí" estive- ção teatral, como My Last Duchess, de BROWNlNG, o estrata-
rem, será de um modo meramente implícito. No Rei Lear, gema do monologuista (um bom estratagema) é fazer de um
muito está implícito sobre a Natureza e os deuses, mas apre- caráter não-cênico uma personagem tão real quanto o do palco,
sentados no palco estão apenas um rei e seus súditos, um pai procedendo em tudo o mais segundo as diretrizes dramáticas
e seus filhos . A crítica dramática enfatiza as implicações por ortodoxas, isto é, realizando o drama a partir das relações entre
sua conta e risco. Tivessem sido aqueles os interesses prin- pessoas. Quanto ao solilóquio numa peça regular, está delimi-
cipais do escritor, não teria escolhido a forma teatral. MILTON tado de ambos os lados pelo diálogo e poderia definir-se como
teve razão em não a escolher para um drama cuja intenção era um longo "à parte", em que o drama das relações humanas é
"justificar aos homens os caminhos de Deus". E, per contra, o momentaneamente continuado por outros meios (discurso dire-
drama religioso espanhol, quando é grande, é porque apresenta to à platéia) .
a teologia existencialmente: isto é, em termos de existência, Quando vemos uma peça teatral, o que é que vemos? Pos-
seres humanos em interação mútua. Conquanto, teologicamente, sivelmente contra um fundo pictórico, vemos pessoas que se
esses seres são súditos de Deus, dramaticamente até Ele está encontram umas com outras. Isto e, em princípio, nada mais;
sujeito a eles . Semelhante drama acrescenta à tensão entre arte se, digamos, forem acrescentadas acrobacias, trata-se rigorosa-
e vida a existente entre arte e teologia. Daí seu caráter apaixo- mente de um recurso extra - ou um modo mais demonstrativo
nado, fremente . O teólogo católico GILSON perguntou se todas de encontro. A afirmação de que o drama nasceu quando um
as grandes obras de arte não envolveriam, num certo grau, uma solista se destacou do coro e declamou um monólogo talvez
renúncia de Deus, e do dramaturgo católico poder-se-ia dizer deva ser corrigida para: o drama nasceu quando dois solistas
estar procurando complicações. Estarei afirmando mais adiante se destacaram do coro e travaram um diálogo . Ou, talvez, o
que os grandes autores espanhóis deliciavam-se justamente em primeiro solista tenha tomado o próprio coro para seu interlo-
procurá-Ias . cutor, e o diálogo foi inventado dessa maneira. Em qualquer
A nossa era tem sido não de teologia, mas de individua- dos casos, o encontro é o que faz o drama representado, tal
lismo, e o que perturba as pessoas a respeito do dramaturgo como o conhecemos .
é estar este, num sentido profundo, menos preocupado com o Ao fazer do encontro pessoal o ponto focal da existência e
indivíduo do que com a sociedade. KARL MARX disse que um da terapêutica (a correção da existência), J. L . MORENO, o
homem é o conjunto de suas relações com outros homens e, a fundador do "psicodrama", é verdadeiramente "psicodramático".
esse respeito, a alma do dramaturgo é por natureza marxista, Num encontro pessoal, feito sem inibições, funcionamos plena
embora possa definir a sociedade em termos de família e não e francamente na mais direta relação de que somos capazes: a
de classe . Com efeito, em lugar de tentar retratos estáticos, à que se estabelece com outro ser singular. Tal encontro é "uma
semelhança da pintura, o dramaturgo apresenta a dinâmica das cena de uma peça" : é inteiramente representada. Inversamen-
relações. Isto explica por que o simples leitor moderno pode te, as peças contêm uma enorme série de cenas de encontros
abordar os clássicos dramáticos e verificar uma notável ausên- de duas pessoas . Mesmo as cenas com muitas personagens no
cia de "verdadeiros seres humanos". Encontra enredo e tema. palco são, freqüentemente, cenas de encontro de duas pessoas.
Pois o simples leitor mod erno é um individualista e não con- " Orgulhosa Titânia, é mau indício assim nos encontrarmos ao
sidera possível que a essência da humanidade se encontre mais luar!" A presença de bandos de duendes, na famosa cena de
na vivacidade das relações do que no peso morto do ser isolado. Sonho de Uma Noite de Verão , não impede que a cena seja,
70 ASPECTOS DE UMA PEÇA PERSONAGEM
71

principalmente, o encontro do rei e da rainha. Por absurdo tem de acompanhar tal ação com en contros reais de outras pes-
que seja, de um ponto de vista naturalista, a quantos pares, no soas ou fazer que o não-e~c?ntro resulte num encontro, depois
drama, "acontece encontrarem-se"! Um encontro é uma entre- de tudo. Um exemplo do último paradoxo encontra-se na situa-
vista marcada com o destino. Caminhos cruzados que as es- ç~o de Alceste e Oronte no Ato I de O Misantropo. Não po-
padas podem traçar. diam encontrar-se em mútuo respeito, nem sequer em compre-
É esse o paradoxo de "drama e vida": a vida é dramática, ens~o mútua. Daí a polidez requintada com que tecem uma
mas o seu drama não pode ser definido e apresentado sem des- cortina entre ambos. Mas se não existe respeito nem de um
vios dos processos usuais da vida. Na nossa usual "vida tal lado, compreensão, de ambos os lados, há furor. E dessa reci-
como é vivida" reinam as inibições. As confluências nem sem- procidade resulta, finalmente, um encontro, uma cena consu-
pre se convertem em encontros. Nem poderiam: seria excessi- mada.
vamente inconveniente, demasiado exaustivo. Em lugar de en-
contros e de encarar gente o dia inteiro, precisamos de recursos A vida essencia~nte.dupla da comédia tende a complicar
para mantê-Ia a certa distância. Cortesia, etiqueta, maneiras, os e,n,:ontros. Estes sao VIstos de um modo mais simples na
convenções, costumes, são os nomes para tais recursos. Dize- tr~g:?m e no drama. E poder-se-ia levar um pouco mais longe
mos "Tenho prazer em vê-lo" para evitar ofendermos quando a Idem de MORENO, c?m a ajuda de um pensador que pertenceu
não temos prazer em ver alguém. Dessa maneira, a "cena" de ao mesmo grupo de Jovens intelectuais vienenses, por volta de
ofensa feita e recebida - terminando talvez num duelo e morte 1910: MARTIN BUBER . A vida num verdadeiro encontro é vida
- não é representada . No palco, teria sido a grande cena, a c0!U0 a. desejaríamos em algo mais do que a boa saúde de sua
scêne à faire. A vida no palco não é inibida, é representada; é psicologia, a higi~ne : eficiência~ por assim dizer , do pequeno
uma das razões por que não suportamos mais do que umas SIstema de comuDIcaçoes que esta organizado . BUBER diria que
duas horas de vida no palco de cada vez. Quanto aos recursos nas confluências que não logram ser encontros , estamos redu-
para colocar a vida a certa distância, não fazem falta no palco zindo as pessoas a coisas ou, por outras palavras, coisificando
para preencher essa função natural, mas aí os encontraremos, os nossos semelhantes . Num encontro, o outro homem é inevi-
quer queiramos ou não, por vezes como documentos compro- tavelmente um Tu, e poderíamos acrescentar que nos idiomas .
vativos de que os seres humanos usam, de fato, esses recursos, em que existe a forma íntima, ele é Thou Du Tu Mas fora da
algumas vezes (e isto na comédia) para caracterizar o compor- "vida real", a maioria dos grandes enc~ntro~ de ' Eu ; Tu en-
tamento indireto, existente simultaneamente em dois planos. A co~tra-se nos diálogos dos mestres dramaturgos, para não re -
comédia de costumes, por definição, ocupa-se especificamente petirrnos que qualquer boa cena de uma peça consiste muito
desses recursos, oferece-os aos olhos e ouvidos do público e, provavelmente, ou contém um dess es encontros . Onde existe
não obstante, para realizar uma obra de arte, tem de fazê-los um "Amo-te" de quatorze anos de idade mai s completamente
fracassar em seu objetivo de esconderem os sentimentos huma- expresso que em Romeu e Iulieta ou um de paixão adúltera
nos e evitarem encontros reais. Existe comédia no próprio fato superior ao de Antônio e Cleópatra?
de que essas cerimoniosas criaturas tentam evitar encontros e . Embora !enhamos sido criados na crença de que o que nos
não o conseguem . Isso é mais divertido, talvez, quando um mter~ss~ ?a VIda representada no palco é o caráter de cada um
casal usa as maneiras para dar a entender uma falta de amor dos mdI vIduos, . um fa~or que ~rovavelmente influi mais para
no momento, justamente, em que os dois se cortejam . Mirabell manter-nos fascI~ado: e o espetaculo de uma espécie mais ade -
c MilIamant, de CONGREVE, vêm-nos à idéia. quada de comunicaçoes com outros; logo, de relações com ou -
No palco, as convergências são encontros. Mesmo para tros, do que podemos encontrar na vida. Tal é a relação dos
dramatizar um não-encontro - a convergência, digamos, de encontros reais em que (com exceções que são significativas
duas pessoas que falam , passando urna pela outra - o autor como tal) todos os Eus encontraram os seus Tus .

\\
ASI'ECTOS DI': UMA I'EÇA I' EI\SONAGEM 73
72

(Obras de bons dramaturgos que põem em dúvida se tais nosa no centro, mas alastrando-se em sombras para as margens,
relações podem existir não constituem exceção. A fim de decla- envolta num mistério metafísico!
rar que os seres humanos não podem comunicar-se, BRECHT.. Um sentido desse mistério domina com força e majestade
em Im Dickicht der Stãdte - Na Selva das Cidades, teve de es- toda a tragédia grega, não estando ausente também na comédia.
crever cenas em que eles se comunicam mutuamente - se bem O drama romano é de segunda ordem, por faltar-lhe esse sen-
que de uen modo sado-masoquista. E para fazer o Pai agonizar tido. RAClNE têm-no sempre, e CoRNEILLE quando não consegue
em seu aparente isolamento de todos, em Seis Personagens em suprimir ~ua percepção da dolorosa e contraditória verdade das
Busca de Autor, PIRANDELl.O usa o encontro traumático, infin- coisas. É inerente aos grandes Faustos e Don Juans, através
davelmente repetido, do Pai e da Enteada. Pode-se dizer que o das diversas interpretações de seus caracteres respectivos. As
isolamento vem depois do trauma; a questão é que PIRANDELLO primeiras falas do Dr. Fausto dizem-nos que MARLOWE possuiu-
tem de retornar então ao trauma, a [ortiori, para defini-lo. ) o e infalivelmente o reconhecemos, também, na primeira página
de EI Burlador de Sevilla, de TIRSO DE MOLlNA:

A SUBSTÂNCIA DOS SoNHOS


Ali, cielol Qui én eres, hombre?
iQuién soy? Un hombre sin nombre,
Seja-me consentido acrescentar aqui, visto que tem uma
certa conexão com o tema em estudo, uma observação sobre (Pelos céus! Quem sois, homem?
grandeza na caracterização dramática. As "grande~" persona- Quem sou? Um homem sem nome .)
gens - Hamlet, Fedra, Fausto, Don Juan - contem algo de
enigmático. Nisso, colocam-se em solene e rematado contraste
com, por exemplo, as pessoas do atual teatro psicológico, que KLEIST e BÜCHNER revelaram participar desse sentido de
são completamente explicadas . O efeito de uma peça moderna mistério, no começo do século XIX; IBSEN, STRINDBERG e
é urJ racionalismo puro : a razão explicou tudo ou está em pro- CHECOV no final. PIRANDELLO deu-lhe uma forma caracterís-
cesso de fazê-lo, e um elenco de personagens é, nos melhores tica do século XX - como uma emanação de personagens em
casos, uma cadeia de vulcões extintos. A natureza enigmática peças ainda em elaboração. O próprio SHAW o sentiu, em certos
das grandes personagens também acarreta uma impli~ação cós- momentos; como na apresentação de 'J oana, em seu epílogo .
mica: a de que a vida não é mais do que uma pequernna luz no Foi algo que BERTOLT BRECHT jamais teria desejado para si,
seio da vasta escuridão. mas que, malgré lu i, incutiu aos seus arquét ipos de autodivisão,
Galileu e Mãe Coragem.
Se o efeito final de grandeza na caracterização dramática
Somos aquela substância é um mistério, vemos, uma vez mais, até que ponto é mau para
De que os sonhos são feitos. E nossa pequena vida nós, o público, exigir ou esperar que todas as personagens sejam
Está circundada de sono. tipos abstratos predefinidos ou indivíduos concretos novamente
definidos. Um caráter misterioso reveste-se de uma definição
Estes versos são tão familiares que esquecemos poderem aberta - não completamente aberta, ou não existirá caráter
(ou deverem, até) ser considerados a conclusão final do maior algum, e o mistério reduzir-se-á a uma embrulhada, mas tão
dos dramaturgos sobre o seu tema principal: os seres human?s. aberta quanto, por exemplo, um círculo cuja circunferência
Quão verdadeiras são, em todo caso, essas palavras, a respeito ainda não foi totalmente traçada. Hamlet pode-se considerar
dos seres humanos nas obras teatrais de WILLIAM SHAKESPEARE! um exemplo aceito de tal caráter pois, caso contrário, o que
Com que fidelidade representam a vida das peças - tão lumi- estiveram fazendo todos aqueles críticos que perpetuamente se
ASPECTOS DE ~A PEÇA
7-1

empenham em redefini-lo? Estiveram fec~an~o o cír~ulo que


SHAKESPEARE deixou incompleto. O que nao e u~a tolice, mas,
muito provavelmente, o que SHAKESPEARE !enClOnava fazer.
Tolos são unicamente aqueles críticos que supoem que o grande
geômetra teria deixado o círculo aberto por acaso. 3

Diálogo

"FALA!"

TODA A LITERATURA é feita de palavras, mas as peças tea-


tráis são feitas de palavras faladas. Embora qualquer literatura
possa ser lida em voz alta, a~ peças são escritas para serem de-
clamadas. f: porque o drama apresenta homens falando que o
teatro contrata homens falantes para comunicá-lo. f: dispendio-
so. E nada depõe com mais segurança sobre o interesse da
gente em ouvir palavras faladas do que a nossa boa disposição
em pagar para isso.
Uma pessoa adulta afirma, por vezes, ter aprendido um
idioma estrangeiro sem aprender a falá-lo ou a compreendê-lo,
quando falado. Qualquer pessoa que tenha tentado isso sabe
até que ponto é diminuta a experiência que pode esperar dessa
proeza. As palavras aprendidas dessa maneira ("Vire à Direita",
"Não Pise a Grama") podem ter uma certa utilidade, mas nun-
ca poderão ser o que as palavras são nos idiomas que falamos
e ouvimos . No fundo, a linguagem é muito pouco uma questão
de estrita utilidade. Uma certa espécie de manuais sustenta que
as crianças aprendem palavras a fim de pedirem coisas. Na
realidade, a maneira mais convincente de pedir o gênero de
coisas que as crianças querem é gritar sem dizer uma palavra
- o que as crianças fazem, antes e depois de aprenderem a
falar. Quem tiver escutado crianças de dois anos de idade sabe
que elas não falam tanto para obter coisas como por terempra-
zer nisso. Aos dois anos, o meu filho Philip disse: - Mamãe.

"
70 ASPECTOS DE U~IA PEÇA DIÁLOGO
77
não fale! Philip fala! - Ele gostava de ouvir o som de sua Júlio César e do Rei Duncan está a decisão de matá-los, uma
própria voz e diferia de um adulto, unicamente, pelo fato de decisão a que se chegou com palavras. Aí se encontra a opor-
não se envergonhar disso. tunidade do dramaturgo.
E no sexto dia, Deus fez o homem e disse: Homem, fala! Grandes oradores, dizemos muitas vezes , são os que urdem
E o homem falou, e nunca mais deixou de falar até hoje. A uma espécie de fascinação, e a magia, numa acepção mais lite-
ontogenia repete a filogenia. Cada um de nós pode afirmar sin- ral , é desde o início a finalidade em vista. Acreditar em magia
ceramente: Eu gostaria de falar incessantemente. Por quê? Em é acreditar no poder máximo das palavras: pois que, se os con-
primeiro lugar, porque Narciso é Narciso, e só usava um espe- juros são válidos, então as palavras podem mover montanhas.
lho porque o gravador de fita magnética ainda não fora inven- A ~é nas palavras sempre foi mais forte e mais propagada que
tado. Falar é, sem dúvida, entre todas as formas da vida que a fe na fé. Homens sem crença em Deus murmurarão as fórmu-
conhecemos, o modo primordial de auto-af~rmação, . do berço las verbais de tais crenças quando estiverem em apuros. Não
ao púlpito, da cabana do lenhador à Casa Branca. Tampouco estão por esse motivo recuperando a fé em Deus; estão .apenas
é destituído de astúcia. Muitas vezes comparado aos trinados mantendo sua fé nas palavras. Para as pessoas mais civilizadas
amorosos de pássaros, poderia igualmente ser equiparado· aos afrase "a magia das palavras" é ligiíi-átiva. Abrange fenômenos
rugidos de feras famintas. Em seus infatigáveis esforços para bons e maus: Hitler também foi um mágico da palavra. Do
se ferirem mutuamente, os homens usam um milhão de palavras lado positivo, "a magia das palavras" sugere o feitiço da lite-
para cada bala. Pois ainda mais que balas, as palavras habili- ratura e, em especial, da literatura dramática.
tam-nos a combinar o máximo de hostilidade com o máximo Significa também que eu gostaria de falar não s6 incessan-
de covardia . temente, mas incomparavelmente. Aos dois anos de idade, estou
B interessante notar que a Psicanálise é uma terapêutica convencido de que posso; talvez ainda aos três e quatro anos;
exclusivamente verbal. O analista e o paciente nada mais fazem mas pelo caminho essa ilusão vai-se perdendo com outras, o
senão falar ou deixar pausas entre as falas. Esse, ainda mais que é uma sorte, visto que, num mundo de tantos milhões de
do que as duas dúzias de volumes de suas obras completas, é pessoas, dificilmente seria viável para cada pessoa falar o tempo
o tributo de FREUO ao Verbo. Na verdade, da maneira de falar todo. Desiludidos, caímos no silêncio; e, pela primeira vez,
de um homem tudo o mais pode sér deduzido a seu respeito. estamos livres para escutar . Felizmente, a nossa estrutura inclui
À parte aquilo que ele diz, a dedução pode efetuar-se através de um mecanismo que nos impede de sucumbirmos de pura inveja
sua ignorância de quando deve parar, ou de quando começar, se o que ouvimos é uma fala incomparável. B esse o ato de
de suas hesitações, de sua recusa em permitir pausas que pos- identificação. Se não os puderes vencer, une -te a eles . Se não
sibilitem a resposta de outras pessoas. A falta de estilo faz o puderes ser um grande falador, identifica-te com os grandes
homem. faladores. Cantando "O Sole Mio" no banheiro, a nossa voz
FREUO viu os homens como delatores de si mesmos. Ou- ressoa, de maneira notável (em nossa opinião), como a de
tros, à maneira de Judas, podem trair com um beijo; na maioria CARUSO . Rivalizando com CARUSO, qualquer um de nós pode
das vezes denunciam-se eles pr6prios com palavras. Com sua rivalizar com Wrnsro» Q-!URCHJLL, DEMÓSTENES, LAURENCE
intuição para tudo o que era humanamente significativo, FREUO OLIVIER, DAVID GARRICK, OSCAR WrLOE, BERNARO SHAW. E,
logo acertou com o que parecia constituir um excêntrico assunto desde que essa rivalidade não seja levada a sério, a situação é
de deslizes da língua e erros verbais em geral. Lendo o que salutar e deveras necessária se quisermos que se estabeleça um
ele tinha a dizer-nos a tal respeito, compreendemos ser carac- contato vivo entre as grandes palavras e nós próprios. Disse
terístico da língua cometer deslizes, e que as palavras são. ~uilo . NIETZSCHE: "No fim de contas, só nos experimentamos a nós
co~m que os homens .contam, usualmente, para errar,; antes . de próprios", e, quer esse comentário abranja ou não a verdade
seus erros converterem-se em ação . Antes dos assassinatos de toda, chama a nossa atenção para certas limitações inalteráveis
78 ASPECTOS DE UMA PEÇA
79
aos poderes e possibilidades de cada um. Se não somos elo-
qüentes, agarramo-no.s à, eloqüênci~.?e .outr?s. _ A~ q~e par~ce, sas mais ambiciosas esperanças con seguir igual á-los . De uma
ninguém pode prescindir da eloqüência: e tao indispensável sensação de incapacidade int erior e de uma sensação de que
quanto irresistível. Poderemos lamentar esse fato qu~ndo pen- em algum lugar, no exterior, existe essa capacidade, resultou o
samos na eloqüência de alguns demagogos ou evangelistas, mas respeito pela eloqüência . Evidentemente, nã o entendemos o que
é também a ele que devemos o perene interesse humano pcl:",; os adultos estão dizendo: sua sabc doria , c at é a confiança que
grandes obras dramáticas, as quais, como RONALD PEACOCK diz, irradiam , são aceitas sem reservas . Mas essa confiança é fácil
"baseiam-se na voz do poeta" . nas crianças . Se as palavras são magia , esta necessita de pala-
vras para seus conjuros . Dar nome ao dem ônio, encontrar uma
palavra para ele, é exorcizá-lo. Como as crianças reverenciam
o DRAMATURGO COMO FALADOR e aceitam a eloqiiência imaginada dos adultos , os adultos tam-
bém reverenciam e aceitam as mensagens de qualquer pessoa
Por que não somos eloqüentes? Por que não só não somos cujo poder sobre as palavras suscite um sentimento semelhante
oradores como não conseguimos conversar como desejanamos.., ? ou seja similarmente superi or à própria capacidade. Um orador
Falar envolve o.homemtodoe falar entre pessoas envolve a so- impressiona de acordo com o gr au de falta de eloqüência de
cada um .
ciédade fadá. A faluyp_er!~Hixa. .sõpodería existir entre super-
homens, numa utopia de super-homens. Entre os hO?1ens, tal Assim é a vida. As artes são compensat órias. Para a má
como os conhecemos, nas sociedades do nosso conh:clm~nto, a escrita cotidiana, a literatura fornece boa escrita, para espanto
fala é má - tanto positiva como negativamente - Isto e, pelo e deleite. Para o mau falar de todos os dias , a arte dramática
que as pessoas dizem ou pelo que de~xa~ de dizer . Todos fa- fornece boas falas. para espanto e d eleite . O teatro é o sonho
lamos demais ou de menos. Alguns nao sao capazes de se cala- do falad or e a vingança do homem taciturno , pois é "tudo con-
rem; outros não conseguem abrir a boca. Tivem?s um Pre.si- versa". Uma peça é escr ita por a lguém qu e não deseja outra
dente dos Estados Unidos que, com a maior regular:dade,.perdIa- coisa senão falar para um p úblico qu e cst.i res ignado a não
se no meio de suas próprias frases. A conversaçao deixou de fazer outra coisa senão escutar a conversa .
existir salvo como idéia' na prática, há apenas pessoas que
falam 'ao passarem umas ~elas outras . Apresentados ao "maior
Evidentemente, o desejo de "apenas falar " inclui o desejo
de desempenhar todos os papéis . " O patrão aproximou-se de
conversador do nosso tempo", deparamos apenas com o com-
mim e disse . . . " As fórmulas n arrati vas da fala introduzem
positor dos mais longos monólogos do mundo . Apresentados
aq ueles di álogos de uma pessoa, qu e são as pi êccs de rcsistance
a alguns dos homens mais sábios do nosso tempo, vemo-los
demasiado tímidos para falarem. de todos os solista s faladore s . O falador ininterrupto coloca
palavras em muitas bocas, c constatar-se-tí, muitas vezes , que
Um animal falante, o homem não é um grande êxito como
o falador ininterrupto realmente fluente re alizou sua tarefa _
animal falante. E em cada um de nós, excetuando o loquaz,
que consi ste 'em escutar o que se di z e lembrar-se di sso dep ois .
.- uma sensação de inarticulação, de ineficácia verbal,. é ~T~ força
-I poderosa, se bem que negativa. - o compone?te lingUIStI.cO d.a Todos nós praticamos um pouco esse exe rcício de escutar e
lembrar, caso contrário não sabe ría mos o qu e o patrão disse
nossa parcela humana de sofnme~to. ~ sentimento de. l1~arti­
culação suscita o respeito pela articulação. Quanto ~ats ma~­ quando se aproximou e, nesse caso, não poderíamos inventar
mais tarde a brilhante réplica que nos esquecemos de dar no
ticulados somos, tanto mais razões temos para Invejar a artí-
culação. Feitas as contas, só aprendemos a falar porque, em momento oportuno . Sendo muitos d iálogos inventados em diva-
primeiro lugar, todos os que vivem à nossa volta s~o adultos gações, cada homem sendo o seu p róprio dramaturgo, aquele
falando de um modo tão rápido e furioso que excederia as nos- que espera ser um dramaturgo para tod os os homens começa,
forçosamente , com as divagações de todos os homens .

I,
RO ASPECTOS nE U"lA PEÇA DIÁLOGO
81
Gostamos de dizer a nós próprios que o drama não idea- séria concluir que RACINE teve a intenção de criar gente taga-
, .
liza e, num certo sentido, isso é verdade: o drama não encobre rela , palavrosa, visto que as suas peças são escritas em longos '
nem atenua as crueldades da vida, contudo, existe uma especie discursos, mas é igualmente certo que uma parte compreendida
de crueldade que pode, e deve, e que muitas vezes disfarça de de cada personagem de RACINE é sua adequação verbal às situa-
bom grado: a do nosso mau falar e nosso pendor taciturno. ções humanas mais complexas. Na vida, nenhum de nós está
O mau falar e o silêncio só podem ser usados numa peça como verbalmente adequado a essas situações. Não seríamos mais
efeitos excepcionais. Por exemplo, é possível demonstrar que
capazes de encontrar palavras que as definissem com exatidão ~
o mau falar é mau. Isso consegue-se rodeando o mau falar de
do que encontrarmos música que lhes fizesse justiça e começar
bom. Ou exagerando o mau até o ponto de ficar burlesco, isto
a contar quando algo terrível acontecesse, à semelhança dos
é, cômico. Mas fazer uma peça inteira com silêncio seria escre-
heróis de VERDI ou WAGNER. O que está em causa não é tanto
ver o argumento de uma pantomima, e construir toda uma pe~a
a caracterização de determinados papéis quanto a suposição de
com falas de má qualidade seria fazer mau teatro. Não vejo
que a natureza humana está apta a explicar-se em palavras .
qualquer exceção real a essa regra. As exceções aparentes são
Para o dramaturgo, os seres humanos falam com facilidade. As
peças cujo texto não é inteiramente mau ou aquelas em que o
palavras são o pendão e insígnia de sua humanidade. Somos
autor está retratando pessoas que falam mal, conseguindo en-
levados a pensar na jovem HELEN KELLER, cuja humanidade
tretanto fazê-lo sem escrever maus diálogos. Esta última tarefa
só podia tornar-se manifesta se e quando encontrasse as pala-
parece impossível, mas tem sido freqüentemente realizada: Pá- vras .
ginas eloqüentes e expressivas de diálogo podem ser escntas a
partir do gaguejar de gente que não fala com facilidad~: o
Woyzeck de BÜCHNER foi, talvez, a primeira prova dISSO. .
Reverterei dentro de pouco ao drama antieloqüente. F; excep- A E LOQÜÊN CIA NO DIÁLOGO
cional. A regra é que a fala da vida seja idealizada no palco.
Um dramaturgo toma um discurso de EISENHOWER e dá-lhe o ~mgeral ,.um . dramaturgo tem de escrever eloqüentemente,
timbre de um OruRCHILL. Daí o prazer primário do diálogo querendo isso dizer que tem de atingir um nível de discurso não
dramático: o prazer da perfeita articulação. Nada que seja per- para uma personagem, mas para peças inteiras, muitíssimo su-
tinente é deixado sem expressão. Cada declamador diz tudo perior ao da nossa fala cotidiana. Por si só, isso -consüiüi já
o que devia dizer e di-lo perfeitamente - de. acor~o. com o uma tarefa de tal envergadura que , num determinado momento
gênero de perfeição apropriado ao contexto, seja espirituoso e d~ história, pode resultar impossível. Noutro momento, poderá
conciso, seja poético e elaborado. O que poderá parecer. uma ocupar toda uma geração de dramaturgos, antes desse nível ser
coisa bastante simples de fazer . Mas, em face da confusao de alcançado . A eloqüência das primeiras peças de SHAKESPEARE,
coisas neste mundo e da inadequação da maioria das pessoas como tem sido muitas vezes reconhecido, foi obra não s6 de
à maior parte das ocasiões, uma peça de bom diálogo é sempre, SHAKESPEAR E, mas dos seus predecessores que inventaram o
por si mesma, uma fonte de prazer e atinge-nos com o impacto verso branco e gradualmente o converteram num meio eloqüen-
da surpresa. te. Na história da arte dramática, a elaboração de tais recursos
BÜCHNER é claro e fluente ao apresentar a dificuldade de ocupa, legitimamente, um lugar proeminente. A eloqüência fran-
falar de Woyzeck, mas escrever toda uma peça em tomo de tal cesa do século XVII seria inconcebível sem o alexandrino, o
homem foi uma proeza sem precedente. SHAKESPEARE divertiu- qual, quando RAClNE apareceu, estava pronto para ele, como se
se com Dogberry, que falava com dificuldade, e livrou-se dele tivesse sido uma criação deliberada . Tradicionalmente, os auto-
numa cena ou duas. Pois, de um modo geral, o drama s6 tem
lugar para faladores proficientes. Certo, não seria uma crítica
a,
res dramáticos não trabalhavam, com . linguagem ..da . rua, mas
com uma linguagem tornada mais expressiva por predecessores
82 ASPECTOS DE UMA PEÇA DIÁLOGO
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e , colegas, num veículo especialmente eloqüente que pertence d~ co:uprimento. caracteriza as falas de todos os dramaturgos de
não à vida, mas à literatura. pnrnerra categoria. Essa correção tem um significado que ultra-
Diz ROBERT BRASILLACH: "Le théâtre c'est le stylc": E, passa as boas maneiras e costumes. O "elemento" dramático é
tradicionalmente, o estilo foi estabelecido pelo poeta, não pelo tempo; e o t:atro é uma forma breve. Esses dois fatos implicam
encenador, nem pelo diretor ou mesmo o ator, os quais têm de que cada unidade de tempo - segundo, minuto ou seja qual
adaptar-se todos ao estilo do texto. Tive certa vez oportunidade for - tem u~ alto val?r. GEORGE COHAN disse que suas críti-
de perguntar a JEAN VILAR o que havia nas peças de PAUL cas eram medidas. ;entlmetro por centímetro, e qualquer dra-
CLAUDEL que lhe davam a possibilidade de representá-Ias para maturgo mede o dialogo por fração de segundo. Quanto tempo
mineiros sem educação. VILAR respondeu-me: "L'éloquence": uma pes~oa fala pode ser tão importante quanto o que ela diz.
E manteve que a eloqüência era o mais necessário em qualquer O pnmeiro esboço redigido pelo dramaturgo para uma cena de
peça difícil, se quiséssemos que ela chegasse ao público. grupo poderia ~uito bem conter um apontamento como "aqui
Mas o diagnóstico do diálogo dramático não se pode en- A f~la durante cinco segundos". Com efeito, o autor poderá ter
contrar no "estilo" nem na "eloqüência", pois tem-nos em co- sentido a di~ensão e ritmo de uma cena antes de ter elaborado
mum com toda a outra literatura. O que destaca o diálogo do ~ seu conteudo. Quebrar esse ritmo seria mais funesto que omi-
resto da literatura é precisamente o diálogo, em oposição ao mo- tir esta ou aquela declaração. STARK YOUNG assinalou até que
nólogo, o intercurso verbal, em oposição ao discurso verbal. };: ponto pode ser desastroso para os tradutores de um mestre da
certo que o diálogo também ocorre na noveIística, mas se a no- ~ramaturgia .converterem uma frase curta num longo período
vela fosse toda em diálogo, seria muito menos novela e, por ou- para trad~lrem todo o seu significado". O diálogo não é obri-
tra parte, muito mais teatro. A obra-prima espanhola La Celes- gado a cobrir qualquer área determinada: não é um ensaio nem
tina, para citar o mais famoso caso do gênero, tem sido alter- um tratado. Só tem de respeitar as exigências do próprio drama.
nadamente denominada uma peça e uma novela em diálogo. Uma Logo, uma personagem de uma peça não fala meramente para
tendência oposta encontra-se na peça com excessivas direções
cênicas, o que poderá muito bem indicar que o autor é um no- mostrar com? ~ nem está autorizado, tampouco, a ocultar-se.
Encontra-se limitada em suas falas ao que interessa à peça como
velista que não se encontrou. Inversamente, um dramaturgo nato
é um homem que não precisa de direções cênicas: a realidade, u~ todo,. ao que a mantém em movimento, avançando até onde
seja preciso avançar e com o ritmo apropriado.
tal como ele a vê - aquela parte da realidade que ele vê -
pode ser comprimida em diálogo e expressa por este. . . ~ .isso co.nstitui uma idealização suprema da vida, pois
Se eloqüência e estilo são qualidades de discursos singula- Significa uma VIda que tem um significado claro e unitário urna
res, o problema especial do dramaturgo é a relação entre discur- direção, um. movimento prof~~damente intencional para u~ fim.
sos ou falas. Vejamos a duração de uma fala. Na vida, cada fala, A tal respeito, a arte dramática é um dos grandes sonhos de
numa conversa, é demasiado longa ou demasiado curta. No tea- concretização de anseios, pois nada há que os seres humanos
tro, cada fala tem exatamente o comprimento certo. Não' só ca- mais ardentem:nte desejem do que serem pessoas em tal drama.
da pessoa sabe como comunicar plenamente, mas sabe também ~a Idade Média, era doutrina oficial que a humanidade perten-
quando parar, quando a vez do comparsa seguinte chegou, en- CIa a esse, ~rama, pelo que a arte dramática representava um
fim, sabe como dar e também como receber. As famosas cenas fato .metaflsl~. Mas essa arte tem uma pungência tão grande
de discussão nas peças de SHAW são discussões sonhadas, as ou ainda maror numa época como a nossa, em que se considera
únicas discussões perfeitas, provavelmente, que se conhecem. geralmente o universo ininteligível, amorfo e não-dramático, pois
Eis uma razão por que são tão deliciosas. Contudo, há poucas a arte atual oferece-nos o único drama integrado, e só podemos
cenas de discussão, mesmo em SHAW, ao passo que o princípio ser p:ss~as numa Ação perfeitamente construída quando, ao que
de fala perfeita é válido para todo o diálogo, e a correção exata tudo indica, lemos ou vemos uma peça teatral.
84 ASPECTOS DE UMA PEÇA DJ.·\LO GO
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to ~ o ~entid~ q~e possuem da imp ortância do conteúdo, de que
NATURALISMO

a VIda e o propno tema da arte. Como a arte dramática é a arte


Se o diálogo dramático é fala ideal subordinada à peça co-
das palavras faladas, deve conservar sempre uma relação discer-
mo um todo.. um vasto campo de possibilidade está ao ·se.u al-
nível. ~o.m a Iinguagcm, tal como se fala. Essa relação poderá
cance. Mas, em princípio, está excluído o falar, mesmo .ideal,
ser difícil de discernir nos estilos mais trabalhados, como no tea-
que não se subordine a uma ação dramática, e a essa c~tegona
~r? clássico francês , principalmente se tentarmos distingui-la em
excluída pertence, evidentemente, ..a. nossa fala real na ~~a. So-
idiomas que não são o nosso, mas se qualquer pessoa observar
mos testerniinhas êrn várias gerações passadas, das mumeras
a linguagem mais altamente elaborada das grandes obras drarná-
tentativas malogradas de construir diálogos a partir apenas disso,
ticasem sua própria língua, descobrirá, creio eu, que essa lin-
pois vivemos numa idade sempre disposta a fazer da vida um
guagem utiliza muito mais o ritmo e até o vocabulário coloquial
culto, particularmente a vida primária e brutal de qualquer es-
do que, por exemplo, a poesia épica e lírica da mesma cultura,
pécie, uma idade que está inclinada a ignorar ou negar todas as
(Um inglês poderia comparar o estilo de Antônio e Cleópatra
diferenças entre a vida e a arte,
com o de Paraíso Perdido ou o Homero de CHAPMAN.)
f: a idade do gravador magnetofônico. E s~~á convenie?te
descrever as diferentes espécies de diálogo dramático na medida . T.ambé~l f?vorável a~ critério naturalista é o fato de que a
lInguagem nao e um material em bruto, ou o é apenas em termos
em que divergem, mais ou menos, dos registros em fita _das con-
relativos. Não é completamente amorfa, mas, pelo contrário,
versações reais. Inseri a palavra "reais" para excluir as co?ver-
tem de ser moldada e formada antes mesmo da fala poder che-
sas que os interlocutores sabem estar sendo gravadas, po~s tal
gar .a ser falada. O dramaturgo pode pensar na comunidade que
conhecimento constituiria o primeiro desvio da espontaneidade
dá forma e contorno a um idioma como sua colaboradora. JOHN
e, portanto, uma primeira aproximação ~a arte, boa ou má. Se
as pessoas sabem que suas conversas esta~ sendo gravadas, pro-
SYN~E fico,u famoso por pensar dessa maneira a respeito da co-
cedem a ajustamentos de forma e conteudo, começ~m a f~lar
mU~I~ade Irl,andesa e, em especial, a de Aran, mas o exemplo
scrvrra tambem para nos recordar que certos idiomas ou dialetos
para a posteridade, principiam a ser artistas,. O deSVIO seguinte
são muito mais ricos - esteticamente falando _ que outros,
da vida em bruto ocorrerá quando a gravaçao. ~or coor~enad~.
Na pre~ença de u~a fala tão rica de espírito e imaginação como
A coordenação acarreta um certo grau de seletividade"e ISSO, J.á
a dos Irlandeses, e verdade que, na presença também de uma
em si nos dá um espécime de arte, embora de um genero pn-
mitiv~. Por outras palavras, a _arte. pode ser. .vi~~Lm_~!!~~~g9.J Ação, o diálogo dramático poderia ser criado mais por reprodu-
ção do que por criação escrita. A existência de um dialeto tão
em vez . de vida mais algo; se o elemento .subtraído for o peso
ric? oferece possibilidades, como sucede ao dialeto, para esse
morto do tartamudear, fazer .p'ausas, .repetír, h~tar,. .esten(Jer-se
efeito, de algumas das grandes cidades, como Nova York. Uma
demaisem, explicações etc, (A arte.. p.o~.e _ser VIda ~enos ~lgo,
grande parte da vida das peças de CLlFFORD ODETS provém de
se falarmos em termos de .purá quantldadê dê .du~açao, ~ ainda
sua boa recordação do que o povo diz no Bronx . Sabemos que
vida mais algo se introduzirmos elementos qualitativos tais como
ele freqüentava bares onde passava horas sentado tomando no-
pureza, intensid~de;. ênfase, austeridade ... ) .
t~~ e, para The F1~wering Peach, recorreu até ao gravador. O
. A palavra para o tipo de diálog? que se ~proX1ma tanto
dl<\logo de SEAN O CASEY, em seus melhores momentos, pare-
quanto possível do falar real é naturalista e, ob~lamente, ~s es-
ce-me _um pouco mais "criad?r" - isto é, criado. O'CASEY pa-
critores naturalistas correrão freqüentemente o rISCO de nao s~­
rece nao so recordar e selecionar, mas também desenvolver o
lecionarem o suficiente assim se precipitando da arte para a VI-
material, elaborando-o de modo a alcançar alturas mais eston-
da - do que resulta n'ão uma impressão da vivacidade de exis-
teantes ,d~ fantasia, por sua própria iniciativa. Apesar de seus
tência, mas da chateza e monotonia da arte que. não é arte. ~
coment ários, JOHN SYNGE parece ter inventado um dialeto ir-
é esse o pecado que assedia os escritores naturalistas, seu mén-
landês que nenhum irlandês fala. Se ele é um autor naturalista ,
86 ASP ECTOS DE UMA PEÇA
DIÁLOGO
87
então o naturalismo contém um delicioso elemento de persuasiva
fluência. Provavelmente, o melhor tipo de peça naturalista - a es-
O diálogo naturalista apela, quando não é extraordinaria- pécie em que a fala é bem coordenada e até um pouco desen-
mente espirituoso ou imaginativo, para a nossa preocupação hu- volvida pelo cérebro e pela imaginação - parece ser, para a
maioria das pessoas modernas, o próprio tipo de teatro, em seu
mana com o real - o nosso desejo de manifestar anuência a
conjunto. Tudo o mais seria classificado como "não-habituat'. O
uma pretensão de rigorosa justeza. Isso é algo que interessa mui- ·
que constitui uma reaçao sobremodo razoável ao teatr~ - tal co-
to às crianças de três anos de idade, e o que poderia chamar-se
mo o conhecemos nas duas últimas gerações. Para o teatro dos
o elemento de três anos, na arte, nunca poderá ser desprezado
últimos dois mil anos seria uma resposta injustificável, pois nun-
levianamente. Uma criança de três anos rejeitará com indigna-
ca foi prevista uma tão grande aproximação com a fala cotidia-
ção um nome errado para uma coisa ou um relato errôneo de na. A teoria literária oferece algumas frases cediças para o efei-
um incidente. Há, evidentemente, uma boa dose de prazer para
to de que a linguagem real do homem é ouvida no teatro cômi-
o Roma sapiens na simples afirmação de que as coisas são assim
co ("a linguagem tal como os homens a usam"), mas basta-nos
e não de outra maneira. O historiador, diz LEOPOLD RANKE, de-
recordar que a comédia foi escrita em verso até o Renascimento
ve mostrar o objeto como realmente era (wie es eigentlich ge- e mesmo depois, algumas vezes, para concluir que tais frases
wesen) e cada ser humano, mesmo cada pequena criatura de são elásticas, e que o formalismo de um homem é o coloquialis-
três anos, gosta de considerar-se um juiz de historiadores e ou- mo de ,outro . As épocas passadas eram muito menos propensas
tros contadores de verdades. do que a nossa a deixar a arte atolar-se na confusão da vida.
O prazer parece residir no ato de reconhecimento. "Recor- A sua tentação era, normalmente, a inversa: deixar a arte defi-
do coisas que foram como você diz, e agora você as trouxe de nhar, por vezes, em virtude de uma excessiva abstração da vida.
novo à minha memória, o que me dá prazer." Uma pessoa con- Se o grande defeito do diálogo moderno é um vernáculo não-ca-
tará a outra a estória de um filme, que ambas viram, e as duas racterístico, o grande defeito do diálogo em períodos anteriores
regozijam-se juntas enquanto as várias peripécias refluem aos era a retórica vazia - em seu tempo, SHAKESPEARE foi talvez
olhos da mente. A peça naturalista, tal como a conhecemos ho- o único dramaturgo que escapou disso.
je na Broadway, especializa-se em lembranças íntimas e domés-
ticas. "Temos uma cadeira de balanço na sua varanda; e a peç~
desse homem apresenta uma cadeira de balanço na sua varanda.
O diálogo, em semelhante teatro, converte-se numa série de lem - PROSA R ETÓRICA
bretes de que a gente caseira fala num idioma caseiro. A perso-
nagem é apresentada através de uma fraseologia que nos recor- Todo o diálogo teatral, excetuando o moderno, é sumamen-
da a Tia Lúcia e o Tio Jorge. Na mentalidade banal do drama te retórico, quer dizer, é guindado muito acima do coloquial por
que nos apresenta a baixa classe média, notaremos de n~vo que um artifício deliberado, Nomínimo, é "retórica" no sentido po-
o naturalismo deriva para a vida tal como ela é, para a nao-arte. pular - pretensioso, floreado, empolado Por exemplo, as pe-
O diálogo tende a não receber qualquer melhoria, a ser fala ças em prosa do século XIX, antes de InsEN, exprimem-se num
não-selecionada e, o que é sumamente interessante, pa!ece ser estilo oratório convencional que , em conseqüência do modernis-
proporcionalmente mais difícil para o autor tcatra! c~13r uma mo ibsenista, passou a ser olhado desde então como coisa bas-
peça à qual o diálogo fique subordinado; daí a te~dencIa_ do na- tante ridícula . A retórica do melodrama vitoriano é a retórica
turalismo para o episódio - que não é outra COIsa senao uma de todo o teatro em prosa do período e foi aceita por toda a cul-
tendência para a sinuosidade, para a perda de rumo, em conclu- tura . DICKENS não está imune ao seu uso nas novelas que es-
são, uma tendência para a disformia. creveu. Nem foi evitada pela primeira geração de naturalistas.
A Teresa Raquin , de ZOlA, o primeiro manifesto da cena natu-
88 ASPECTOS DE UMA PEÇA OJ.~LOGO
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ralista, é "retórica" do princípio ao fim. Os críticos atuais cha-
mar-lhe-iam "sentimental".
o A ~art:nto - não são muitas vezes mais complexos do que um
catecismo e, em certos casos, precisamente como um catecismo.
A prosa retórica do teatro do século XIX pode ser atribuí-
A retórica em pros~ _poderia considerar-se mais naturalista
da, em SUJlS origens, ao século XYUI. Diz-se que o século XVIII do que a retórica em verso, não apenas porque as pessoas falam
inventou o drama da insípida vida da classe média e, assim, pas-
eo: prosa, .mas ~orque se baseia mais acentuadamente nos pa-
sou do verso para a prosa coloquial. Mas até que ponto o colo- droes da Vida, nao da arte, ou, mais exatamente, nos padrões de
quial é coloquial - no século XVIII? Na realidade, parecia outras artes de caráter mais prático do que a literatura. O teatro,
que os dramaturgos da vida da classe média buscavam uma re~ nesse departamento da prosa retórica, baseou-se, de maneira
tórica que fornecesse uma espécie de equivalente burguês da ~ev:ras subs~ancial, em duas outras instituições "artísticas": a
poesia. GEORGE LILLO, por exemplo, é a tal ponto não-moder- Igreja e o tnbunal. Usualmente, quando as pessoas dizem que
no que acha difícil não escrever em verso branco. uma pe~a em prosa é um "sermão", referem-se ao seu conteúdo,
A mais interessante escola de teatro em prosa no século mas existe uma associação orgânica entre o sermão e o estilo
XVIII é a Sturm und Drang alemã. O nome do movimento apli- d.e diálogo de uma boa parte do teatro em prosa. f: uma infeli-
ca-se por excelência ao diálogo da,s peças. Sem, d~vida, o te~a Cidade o fato da palavra "sermão" acarretar um estigma. O
de Amor e Intriga, de SCHILLER, e da classe média, mas o .dl~­ mundo moderno parece ter esquecido que o sermão pode ser
logo, longe de ser anti-retórico e subalterno, como requer a mSI- u~a das m.ais sublimemente eletrizantes de todas as representa-
pidez da classe média, é bizarro, floreado, extravagante" num çoes. Era. ISSO, certamente, e não a moralização insípida, o que
grau quase intolerável. Mas se tudo no Sturm und Drang e exa- LESSING tmha em mente quando expressou sua idéia do teatro
gerado, mais ou menos em princípio, a intenção era honesta; como um púlpito. O drama em prosa parece ter sofrido algo em
e a intenção era, embora admitindo o meio burguês famosamen- seu prestígio com o declínio paralelo dessa arte homilética da
te não-dramático, não ceder um palmo no estilo do histrionismo. qu.al .tanto dependia. Contudo, se nos dermos conta de q~e o
E o histrionismo é compatível com o mau gosto, mas não com p:mclpal pregad?r teat~al, até onde a memória alcança, no âm-
a monotonia. bito ~a nossa Vida, fOI BERNARD SHAW, talvez nos inclinemos
a aceitar que o sermão não é coisa tão desprezível quanto se
Ora, existem abundantes provas para a tese de que o meio pretende.
natural do drama é o verso; os dramaturgos em prosa parecem
necessitar, desesperadamente, de substitutos ret?ricos para a ;né-
f: verdade que a influência da igreja é difícil de isolar.
trica. Sejam quais forem suas .surpresas em ritrno e conteudo, Quan~o é p~o~a, }~omilética e quando não é? Seria difícil traçar
a métrica comporta um elemento de concretização .do que se es- u~a h~ha. dlvlson~. Po~emos ser muito mais específicos sobre
a mDuenc.la dos tribunais, pois a dramaturgia é abundante em
perava de ambos, e isso facilita a soli~ez. Conqua.nto o ho~em cenas de julgamento, boas e más. O motivo não é que os dra-
da rua pense da prosa como algo glor~os.ament: livre, o artl~ta maturgos si~am doc~lmente a pegada uns dos outros. f: que o
da prosa sabe que essa liberdade constitui, precls~mente, a difi- teatro e o tnbunal sao duas versões da mesma coisa _ a nossa
culdade que existe em tornar a prosa efi~az! especIalme?te como recusa_humana :m obedecer ao preceito: Não julgues aquilo por
diálogo e buscará recursos que fixem limites a essa liberdade. que nao fores julgado. As peças são, num sentido simbólico.
Por ex~mplo a forma de um catecismo, apesar de rudimentar "cenas de. julgamento"; e é inevitável que somem milhares de
- a mera seqüência de perguntas e respostas - é melhor do cenas de julgamento, num sentido literal. Sendo assim é inevi-
que nada - "nada", neste caso, sendo a pr?sa" "!ivre". ? cate- tá~el também que a linguagem do tribunal se insinue no teatro
cismo também introduz um elemento de cenmonia, de ritual; e J.UIZ, acusa?or, advogado, queixoso, réu - que peça não pode-
isso também ajuda. Os diálogos. de "rotina" da commedia deI'- na ser escrita com essas cinco personagens e uma testemunha ou
arte - tal como MOLIERE ainda usa em grandes peças como duas? A linguagem do tribunal é uma linguagem teatral pelo
I
! 90 ASPECTOS DE UMA PEÇA

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fato de se encontrar sob a compulsão dualista do teatro: manter
I
j
as coisas em movimento e ser, de momento a momento, esteti- temente, que um estilo de fala. Foi todo um estilo de cultura
camente impressionante. Está subordinada a um todo mais vas- que s~ transform~u. Para ~preciar o tom de voz de SCHlLLER,
to, mas precisa ter todos os méritos artísticos: eloqüência, gra- ter-se-Ja de ~preclar também os retratos de SIR J OSHUA REY-
ça, dignidade, espírito, vivacidade etc. NOLDS e as operas de HANDEL - e o Discurso de Posse de
WASHINGTON.
E~iste algo que os alemães designam pelo termo Pathos
VERSO RETÓRICO que fOI uma característica dominante e legítima do velho estilo
teatral e que hoje ~e considera um defeito. Pathos implica uma
Não é apenas o teatro em prosa que faz uso abundante da forma ;l~~~da de lmguagem e pronúncia, a que chamamos "de-
oratória homilética e forense. Dando mais um passo que nos cl,amatona '. A palavra Palhas significa não só isso, mas tarn-
distancie da fala cotidiana, chegamos ~o teatro em verso, que bem o sentImento de exultação que lhe é concomitante Para
não é poesia em sua plena acepção, mas, à parte a métrica, atua descreve~ e.ssa forma particular de exultação teríamos de 'recor-
segundo normas muito semelhantes à do teatro em prosa retóri- r~r a ad~etIvos como nobre, digno, grandioso, esplendoroso. E
ca. Natã, o Sábio é UITl. exemplo; o seu autor descende de uma há tamb ém um toque de tristeza. Não foi por acaso que BEE-
linha de ministros presbiterianos. A obra de SCHlLLER está nessa T!I0VEN escolheu um poema de SCHlLLER para a sua sinfonia
categoria, o que explica por que quaisquer comparações com v~s~o que BEETIIOVEN é, predominantemente, o compositor pa~
SH.AKESPEARE estão fadadas a prejudicá-lo. O seu uso da lingua- tético, tal como. S<;!IILLER .é o dramaturgo patético. E as peças
gem não podia ser menos shakespeariano. Pelo contrário, é ho- de SCHILLER senam de grande interesse mesmo que o seu pathos
milética e, ainda mais, forense, uma linguagem de esplêndidos fosse tudo o que .elas t~vessem a oferecer-nos. Gera um estilo es-
sermões, acusações formais, defesas majestosas. Semelhante diá- plendoro~o de aflr~.açao teatral; é caso para cogitar se qualquer
logo não pode oferecer-nos uma descrição tão plena do Homem outro estilo subsequente terá possibilidade de igualá-lo.
quanto o de SHAKESPEARE. MàS qual é o estilo que pode? SCHlL-
LER equipara-se não a SHAKESPEARE, m_~~..ao CÍCERO e ao BUR-
KE das grandes orações próprias de estadistas. ~~u gênero de POESIA
diálogo é completamente adequado a seus fins, que são a apre-
sentação dialética num tom de grandiosidade. Por ou,tro lado, é inferior ao estilo shakespeariano e a dife-
A grandiosidade está de há muito fora de moda . " fora rença poderia, em te~l11os gera}s: ser definida tal qual a que. existe
de algo mais que a moda, com efeito, visto que se deve imputar entr~ retonca e poesia. O retonco aproveita a linguagem tal co-
o seu desaparecimento a algo mais do que o pedantismo e o ca- mo e~ e. ordena sU?S palavras com todos os dotes profissionàis
pricho. A grandiosidade deixou de servir. SCHlLLER foi, talvez, do púlpito e do tribunal, ~m caso é equacionado, e se o for
não só o último dramaturgo que escreveu com magnificência, com tod~ a clareza e concísão então o que se adiciona poderá
mas também o último que podia ter feito. Já no seu mais jovem ser considerado um conjunto de floreados _ de hum '
contemporâneo, KLEIST. '!. grandiosidade parece apenas u~a 't "h' . or, espi-
n o, argucia, abílidade, ou seja o que for. Mas o poeta não en-
máscara aposta às coisas - uma forma .de hipocrisla. Um .quar- cara as p.alavras _de~sa maneira. como instrumentos já prontos
to de século mais tarde, em A Morte de Danton, de BÜCHNER, para serv.l~em. ~ao IOstrumentos que ele faz e refaz à medida
escutamos a nota grandiosa apenas como um eco dlsiãnte:l Hoje, q~e os utiliza. DIz-se corretamente que o retórico reveste os pen-
muito poucos se apercebem do que se perdeu. Para fálar ápenas samentos em palavras adequadas , o que quer dizer, implicita-
na grandiosidade retórica, que pena que se pense nela como mente, que os pensamentos já existiam com um desenvolvimento
algo necessariamente espúrio! Muito mais está em causa, eviden- bastante para podermo.s, aju.iz~r que não estavam adequadamen-
te revestidos. Ora, se ja exrstiam , existiam em palavras _ pre-
92 ASPECTOS DE UMA PEÇA DIÁLOGO
93
sumivelrnente, outras palavras e menos adequadas. Logo, o re- os :'ensin.amentos" são formulados . Não argumenta nem refuta
tórico é um aperfeiçoador de fraseologia, um "homem que re- (pnm~rdIalmente); habilita-nos a dissiparmos nossas próprias
escreve" profissionalmente. Sua finalidade é formular em termos asserçoes e refu,taçães - ar.ós o que podemos, se disso formos
definidos "o que freqüentemente se pensa, mas nunca foi bem capazes, :ef~ndI-Ias para nos próprios . Seu vigor espiritual é
expresso". O poeta, por outra parte, gosta - se me permitem urnco, pOIS e o mestre por trás dos mestres.
parafrasear o DR. W. HARDING -- de penetrar num pensamento ,A ca~acteríst~ca mai~ ~vidente do estilo e método shakes-
antes dele estar completamente pensado, antes de ser fixado em peananos e uma nca e original capacidade de invenção de ima-
palavras. No poeta, a busca de palavras e a meditação de pen- gen~.. Tud? o .9 ue se escreve contém imagens, mas as imagens da
samentos desenvolvem-se em conjunto e o resultado não é, ne- retonca sao, t~o-so~ente as da conversação apuradas através de
cessariamente, um novo vocabulário, mas uma nova fraseologia, u_m vo~abul~no rnars completo e um melhor ritmo. Quer dizer'
uma nova linguagem, novas combinações de vocábulos, novos sao antigas imagens que o retórico usa de novo, com um maio;
ritmos e novos significados. Não felicitamos um poeta "por ou ,menor conhecimento do fato. Até suas "novas" imagens são
ter dito bem uma coisa", mas por ter dito uma nova "coisa".
antigas. ~ ~puramo.s que foram usadas antes, ou que represen-
Para as pessoas de fala inglesa, o grande exemplo de plena tam um ligeiro desvio das antigas, de modo que não irnporão
dramatização poética é, irremediavelmente, SHAKESPEARE, As um no,v~ mé~~do para ver o objeto ou a questão. Os oradores,
tragédias de B EN JONSON são comparativame.nte "retóricas", as sem dU,vlda, pensam ,em" metáforas e analogias, mas quais são
tragédias da Restauração cruamente "retóricas". A própria pre- a~ met~foras e anal~~as em que pensam é uma questão de há-
tensão de Jonx WEBSTER de ter criado uma dramaturgia ple- bIt?, ajud.ado pela lógica. O seu gênero de imagens é meramen-
namente poética é, nesse sentido, duvidosa. Ele foi, antes, o cria- te ilus~ratIv.o, e todos podemos "~e?sar em" tais imagens, desde
dor do "drama poético" - na acepção moderna do drama em que nao sejamos pessoas de Intchgencia tacanha .
linguagem altamente colorida. A diferença entre SHAKESPEARE e SCHILLER é mais acen-
Falei do poeta como se compusesse a sua linguagem à me- tuada no respectivo uso de imagens do que em qualquer outro
dida que avança. Hoje em dia, semelhante afirmação sugere os aspecto. SCHILLER, nesse campo, faz tudo o que um bom orador
estratagemas de Finnegan s Wake, mas a experimentalidade sha- pode faz 7r. SHAKESPEARE pensa em imagens. :f: por meio da ima-
kespeariana foi diametralmente oposta. JOYCE terá sua graça - gem, ~alS ~o que por qualquer outro meio que se possa facil-
na base de erudição e memória, O seu livro é uma experiência mente IdentIfic~r, que ele chega à visão sin~larmente fresca c
para pôr fim às experiências e, quanto ao método, é inteiramen- sem pa~ das COlS~s, A nossa dificuldade é conseguir acompanhá-
te retrospectivo. SHAKESPEARE olhava para a frente e podia rea- lo..: As Inla~ens dizem tanto e mudam com tamanha rapidez que
lizar o Seu intento porque tinha a sorte de viver numa época nao é possível "receber tudo" na primeira audição. Mesmo pa-
em que o idioma em jovem e desordenado, Ele ajudou a moldar ra apreender o padrão principal, pondo de parte os detalhes te-
não só um inglês próprio, mas o inglês da cultura inglesa, Quase remos de ,avançar mais lentamente do que os atores poderiam
não é preciso recorrer ao Oxjord Dictionary para confirmar que fazer. Sera por que algumas das palavras são agora arcaicas?
tantas expressões se encontram, pela primeira vez, em SHAKES- Será por que so~os de compreensão mais lenta do que os nossos
PEARE; quando o lemos, tão vivo e espontâneo, temos a impres- antepassados~ ~eJa qual for a razão para o malogro, um resul-
são de estar presente ao nascimento de significados, Filosofica- tad? caractenstico é os encenadores de suas peças sentirem-se
mente, há nas obras de SHAKESPEARE uma reafirmação de con- o?ngados a simplificá-lo. E em vez de moderarem o ritmo do
cepções mais antigas; mas a experimentação dessas filosofias é diálogo at~ um ponto em que talvez fosse claro, mas, provavel-
sempre nova. Essa é uma das razões por que SHAKESPEARE mente, ~~na monótono, mantêm um ritmo apropriado, preferin-
significa mais para nós do que aquele.. que nos ensinariam mais, do sa,criflcar os detalhes. Ora, de uma fala declamada depressa
Ele leva-nos de volta a um ponto situado antes daqueles em que demais para que possa ser seguida em detalhe, o público retém

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ASPECTOS DE UMA PEÇA DIÁLOGO
95
apenas certas impressões gerais, certas idéias de conjunto. Do nheccrrnos o ~ulgar, mas para sermos arrebalados de reverên-
ponto de vista shakespeariano, isso não é suficiente. Não admira ~Ja pelo su~enor: Ora, a minha quarta categoria (o diálogo poé-
que uma comparação com um retórico como SCHILLER se tome tico ) pode, I?clUlr as outras três (Naturalismo, Prosa Retórica,
possível, visto que, em tais condições, SHAKESPEARE pode muito Verso Retonco). Em SHAKESPEARE há fragmentos naturalistas
bem ser um SCHILLER, tendo a sua poesia ficado reduzida fi e trechos " cornelianos" , mas o dramaturgo poético não se limita
retórica. a esses generos de recursos. Até dramaturgos da estatura de
E há os que parecem dizer: tanto melhor. Quando uma pe- CORNEILLE e SCHILLER parecem limitados, quando os compara-
ça de SHAKESPEARE é assim lida displicentemente, não só as suas mos com SHA~ES.PEARE. O ,drama retórico parece confiná-los
significações específicas se perdem, mas o caminho está aberto aos ~~p.ectos p úblicos e profíssionais da vida. Usando um tipo
para qualquer interpretação incorreta e descuidada que passe pe- homilétíco e forense de diálogo, apresentam um elenco d '_
la cabeça de alguém. Na edição de Noite de Reis que sonagens que, ~e não é inteiramente composto de preg:d~:~s
comemora a encenação de ORSON WELLES, dizem-nos que e advogados, VIve num mundo de pregadores e advogados o
a peça tem uma tese, que é a seguinte: "Pensais que, porque mundo ~as q~e~tões públicas, SHAKESPEARE não menospr~za
sois virtuosos, não haverá mais comida e bebida?" O que, pra- as questoes públicas, mas sua universalidade consiste em não
ticamente, é como se a peça tivesse sido escrita por SirToby menor grau, no seguinte: ele apresenta a vida interio~ do Ho-
BeIch. E parece que quando WELLES encenou Júlio César, con- m~m, nao em lugar de, mas ao mesmo tempo que sua vida ex-
verteu em fascistas e antiíascistas, respectivamente, os partidá- !,en?f. I N 7m ~ ~,ua apresentação da vida interior consiste numa
rios de César e os seus inimigos. Este gênero de interpreta- pSICO ogização , como espero ter demonstrado no meu capí-
ção parece produzir uma dramaturgia política de um tipo posi- tulo s~bre Personage~. Aquilo em que consiste, de fato, só em
tivamente inferior à de SCHILLER porque, como os fascistas são parte e. relevante aqui , Para não fugir ao tema do Diálogo ob-
maus e os antifascistas bons, ex o/lido, não pode ser assim tão servareí apenas que. a imagem shakespeariana do homen~ re-
interessante aprender a conhecê-los: tudo o que temos é um me- quer, e;ttre outras COIsas, o verso lírico para defini-Ia. Seria in-
lodrama primário com pretensões decorrentes da forçada alusão concebível que qualquer personagem entoasse uma canção de
a acontecimentos correntes. amor_ numa peça de CORNEILI. E. Seria mais do que uma trans-
Ao descrever quatro espécies de diálogo, não procurei for- gressao das sua~ Unidades ; seria um rompimento com o seu
necer um esquema que cubra toda a arte dramática. ~ poesia mun~o ..InfluencIado por SHAKESPEARE e os gregos, SCHILLER
dramática de RACrNE, por exemplo, não se ajusta realmente a desejou Imensamente introduzir elementos líricos em suas peças
qualquer das quatro categorias. Tudo o que estou fazendo é to- mas. o seu gênero de lirismo também é " retórico " e quand~
mar exemplos de diálogo que se afastam, em graus diferentes, Mana Stuart começ~... a declamar versos estróficos, após dois
da conversa vulgar e, ao mesmo tempo, assinalando que atraem atos de pentfimetros jârnbicos, a sensação de mudança é mínima.
os diferentes seres humanos ou os mesmos seres humanos de ~?1 SHAK~SPE~R~, por ?utra parte, a presença de pequenas can-
maneiras distintas. O diálogo naturalista é caseiro e diz: "Por çoes, aqui _e ali, e um sinal do lirismo onipresente que participa
favor, observem até que ponto o nosso dramaturgo está próxi- n~ formaç ão d.a textura do verso shakespeariano, da dramatur-
mo da conversação ordinária de pessoas comuns". Essa lógica gia shake.s~e~nana e ?té da Weltanschauung shakespeariana.
poderia chamar-se democrática: "Esse é o vosso teatro". O diá- A dIVIsa0 d~s generos dram ático, ép ico e lírico é ilusória
logo retórico, em prosa e verso, é aristocrático. ];; uma locução se pretende sugenr que qU,alquer dos três exclui, normalmente,
ideal e tenderá a consorciar-se com enredos e personagens acima os ,o~tros, O genero dramatico é formado por elementos épicos
do nível ordin ário. Escolho SCHILLER como meu principal exem- e Iíricos . O e~:edo é o elemento ép ico . O elemento lírico cn-
plo. Uma escolha mais simples seria CORNEILLE, o escritor co~tr~-se no diálogo ou em nenhuma parte. O fato de que na
"não-democrático" arquetípico, que nos pede não para reco- maroría da moderna dramaturgia não se encontrar em nenhuma
ASPECTOS DE UMA PEÇA DIÁLOGO 97
96

parte dificilmente constitui uma r~comen~~:~; e,;~~~ ~~~~~~ nos tenham sido classificados como naturalistas, foram unam-
tuei, a maioria do drama ~os seculos ed . d Idade memente hostis ao naturalismo. Todos rejeitaram a banalidade
' lírica Todo o penodo moderno - epois a e exigiram um mundo dramático mais vasto. O que nos con-
era antl . . l' - A ' ra é o nosso
Média - tende para as especia izaçoes . ope f funde é que, freqüentemente, foram quase naturalistas. Uma
a lírico se quisermos falar de realizações. Entrt; os 1 r~­ pessoa pode abrir um volume de IBSEN e concluir: "Bem,' isso
dram , " d drama que e exc USI-
cassos surge ocasionalmente um genero e d' Th é apenas conversa comum". Nada existe em cada frase ou, por
vamente lírico de' um modo exagerado. Nos nossos las, ; vezes, em cada uma das páginas, que lhe dê a idéia de mentira.
Lad 's Not F~r Burnins [de CHRlSTOPHER FRY] desper~ou nu- O diálogo de InsEN, STRINDBERG, CHECOV e PIRANDELLO co-
ha Yatenção como um drama desse gênero. Eu colocana, sem meça pela conversa comum e pelo gênero de diálogo que
~úvida na mesma categoria as peças de GABRIEL J?'~NUNZIO. lhes é mais afim. A unidade continua sendo a observação arti-
Muito; dos produtos dos vários surtos de drama poétíco acabam culada na realidade, mas, depois, as unidades são relacionadas
sendo inevitavelmente, superlíricos, embora me pare~a {ue ~. mutuamente com uma extrema sofistificação. Os atores que,
S E{IOT adotou o caminho inverso, deixando a poesia or~. a até então, tinham apenas notado a banalidade de cada frase
~aioria de suas peças poéti:as e desenvolvendo ~ma ret nc~ numa cena de CHECOV ficam subitamente surpreendidos por
em verso de uma força consIderavelmente expressiva e dramá verificar que a cena, em seu conjunto, é um poema. IBSEN devia
ser Creditado como o inventor da antipoesia. Transformou numa
tica. f: tentador observar a história da arte dramática, desde o bela arte a declaração incompleta, a evasão, a frase inacabada.
século XVII, como um constante declínio. YEATS escreveu: Num certo sentido, sua escrita minava a poesia - e a reduz à
trivialidade. Isso acontece com a frase poética de Hedda Ga-
bler, "folhas de videira em· seus cabelos", e com as "harpas
Shakespearean [isl: swam lhe se~, [ar away Iro~ land; aladas" de Hilda Wangel . Até que ponto os literatos do tempo
Romanlic [islt swam in nets coming to the hand; de IBSEN eram pouco sen síveis a essa retórica é revelado na
WIJat are alI those lish that lie gasping on the strand? recusa, por ARTHUR SYMON . de apenas essas frases, com "fun-
damento em sua inadequação como poesia .
[O peixe shakespeariano percorre os mares, longe da terra; NIETZSCHE fala-nos da calma realmente profunda ser
O peixe romântico entra nas rede~ e fica ao nossa alcance; como a do mar, sob o qual podem ser pressentidas a turbulência
O que são todos esses peixes que Jazem, sU.focando, sobre ?~ e a força; e a obra de IBSEN sug ere que a prosa realmente eficaz,
[areia das margens. I
no drama, é aquela sob a qual a poesia pode ser pressentida.
O naturalista vulgar consegue realizar mera ineloqüência e, por-
tanto, nilo-arte. InsEN forja a anticloqü ência e, a partir desta,
Os classicistas franceses, seguidos pelos dram~tur~os de cria outra espécie de arte . Não é sabedoria fácil, depois do
outros países, exc1ue~" o . lirismo . Os naturalistas, epois, ex- acontecimento, dizer que se pode sentir a presença do IBSEN
cluem a própria eloquencla. O que resta? dos primeiros tempos na obra do InSEN das fases posteriores.
No fim de contas, ele era o último dos escritores no mundo que
ANTIPOESIA seria capaz de se apresentar no teatro com um gravador ou o
seu equivalente mental. IBSEN prepara-se justamente no sentido
Teríamos de dizer "muito pouco", se tudo o que vimos ~o oposto. É discutível que Peer Gynt e Brand sejam as suas maio-
século passado fosse uma dra"!aturgia naturalista vulgar, escnta res obras e que ele tenha cometido um erro ao abandonar esse
à maneira de gravações selecIonadas na mesa de monta~. rumo. Errado ou não, IBSEN escreveu - e isso é história -
Na realidade, embora alguns dos grandes dramaturgos m er- outras grandes peças, mediante uma completa inversão do mé-
98 ASPECTOS DE UMA PEÇA DIÁLOCO
99

todo . Em Peer Gynt e Brand, ele foi o poeta eloqüente por mente aristotélica é a dos grandes d ramaturgos modernos , como
excelência, escrevendo em grandiosos versos retóricos que tinham um grupo. Se a escrita resultante carece, por sua natureza, de
suas raízes na literatura do século anterior ao seu. Lendo uma toda a riqueza luxuriante da poesia direta e at é de todo o pa-
conferência de GEORG BRANDES, em 1872, IBSEN decidiu que lhos da retórica declamatória, possui as vir tud es opostas de des-
o teatro moderno tinha de ser muito mais moderno em sua pojamento, austeridade, econ omi a, pr ecisão e uma sub estima
forma, a começar pelo diálogo. Encontramo-lo declarando a consistentemente irônica.
um correspondente, alguns anos depois, que o drama em verso
era obsoleto. O texto de suas peças, de Os Pilares da Sociedade
em diante, diz-nos que a prosa retórica fora abandonada simul- ANTIPEÇAS
taneamente com o verso retórico. Perfeito. Mas subentendido
na prosa não-retórica e disciplinada dessas peças, está o febril A melhor dramaturgia da era ibsenista foi anti lírica e antie-
temperamento poético do autor de Peer Gynt . A pressão do loqüerite, mas não foi antiteatral. A idéia de dramas anti teatrais,
seu temperamento faz-se sentir, realmente, com uma intensidade de . antipeças, pertence a outra escola que, até a data, tem
peculiar, sob as novas restrições. :E certo que o problême du muito menos a mostrar. A antipeça, como o seu nome sugere,
style equaciona-se de nova maneira. Num determinado sentido, s~rá O ponto em que o teatro se liquida a si próprio? Ou é,
não existe agora qualquer espécie de "texto". A idéia aristoté- SImplesmente, mais um passo na evolução dramática? A termi-
lica da primazia da Ação assume um novo significado. A Ação nologia presta-se à polêmica, pelo qu e não se pode supor, le-
ibsenista é tão envolvente que o público quase não consegue vianamente , que o que se chama antipeça não seja , de fato ,
captar uma palavra de relance. As palavras só são proferidas uma peça. As antipeças de EUGEN E IONEsco são muito mais
quando a situação consente que elas se intrometam - e a situa- convencionais do que sugere todo o arrazoado erntorno delas .
ção é de uma natureza que não deixará muitas palavras se insi- Esperando Godot, de SAMU EL BECKETT, firmou -se como
nuarem furtivamente. Quanto maior é a pressão, tanto menos a contribuição mais original para a literatura dramática, desde
as pessoas podem falar. Entretanto, uma centena de páginas de J 950. A distinção do texto é inegável. Uma porção de coisas
palavras --=- aproximadamente a quantidade usual de uma peça boas pode ser dita a respeito do diálogo . .. "mas será teatral"?
- surge no papel de escrever de IBSEN e é justo perguntar: Deixemos de lado o fato de que acontece muito pouco na peça;
Como foram escolhidas? Creio que PlRANDELLO encontrou a o mesmo se pode dizer de tantas boas peças. E muitas boas pe-
melhor frase para responder a essa pergunta, e como ele con- ças foram consideradas não-teatrais ( "não-peças") pelos seus
siderava IBSEN o segundo maior dramaturgo, só inferior a SHA- primeiros críticos. O primeiro crítico a salientar, repetidamente,
KESPEARE, está certo que a tivesse. Sua frase é: L'azione par- que o diálogo de BEcKETT não é teatral foi o próprio BECKETT.. .
lata, a ação falada, a ação em palavras. * Essa fórmula nitida- nesse diálogo. Pois essa "crítica" é inerente ú tão repetida ane-
• O contexto é o seguinte: "Mas, para que as personagens saltem, dota de deixar a conversa morrer, simplesmente, e fazer que
vivas e impulsionadas por seus pr6prios recursos, das páginas escrita.s, uma personagem peça à outra que diga alguma coisa . Neste
é necessário que o dramaturgo encontre a. palavra que se~a 9: própria sentido, BECKETT colocou numa peça o que " não pode ser
ação falada, a palavra viva que pode acionar, a expressao Imediata, colocado numa peça". Com efeito, não é concebível que numa
naturalmente associada ao ato, a única expressão que s6 pode ser o
que é, quer dizer, apropriada a uma da~a personagem, numa dada peça o diálogo se extinga . Uma peça é, por assim dizer, uma
situação' palavras expressões que não são Inventadas, mas que nascem porção muito mais longa de diálogo, reduzida ao número de
quando 'o autor ~stá verdadeiramente ~dentificado cO!J1 a sua criatura, linhas que se vêem no texto final, graças à perícia do trabalh o
ao ponto de senti-la como ele próprio sente, desejando-a como ela
própria deseja". Este trecho foi publicado originalmente no : ensai?
de compressão. As pausas só podem ocorrer quando são eq ui-
L'azione parlata (1899) e é usado novamente no ensaio lllustratori, valentes ao diálogo, quando os silêncios são mais eloqüentes e
A ttori e Traduttori (1908) . prenhes de significado do que poderiam ser as palavras. O dra-
100 ASI'F: r.ros DE U M A T'F:ÇA I lf \ L O C O
101

maturgo luta contra o tempo . Não pode "meter tudo na peça", para o p úblico , porquanto DE CK EIT as converteu em momentos
Seu ofício é preencher todas as frestas e escaninhos que cada de comicidade . De modo que Espcrandi: G odot não é, em últi-
segundo lhe possa oferecer, à medida que transcorre, tal como ma análise, "o fim da linha ". t unicamente uma das muitas
o ofício do pintor é preencher cada centímetro quadrado de o bras modernas a respeito do fim da linha . Ora, uma arte
tela . Que uma parte qualquer do precioso par de horas fique nunca é ameaçada de extinção por boas obras de arte sobre a
vazia e que exista qualquer dificuldade para preenchê-la é absur- extinção . Só é ameaçada pelas más obra s de arte. ainda que
do. Mas Esperando Godot é o "drama do absurdo". não gritem outra coisa senão : Vida Eterna!
Para não resolver a questão com um trocadilho, permito- Esperando Godot não é, creio eu, uma pedra turnular, mas
me acrescentar que, superficialmente, a obra de BECKETT é um marco divisório. Se a forma do diálogo é derivativa (do
excessivamente naturalista para o teatro. f: na vida, não no music hall e, portanto, diríamos, da commedia dell'arte tradi-
teatro, que talvez exista um problema sobre o preenchimento cional), h.i frescura e originalidade na aplicação do diálogo a
do tempo . É na vida que "matamos o tempo"; no teatro, o essas finalidades. Subentendida na frivolidade mordaz e irreve-
tempo é que nos mata. Um dramaturgo mostrará as areias es- rente dos vagabundos, podemos escutar outra voz, na distância:
correndo na ampulheta do Dr . Fausto e o inferno aproximando- talvez a do próprio BECKETT ou a das Lamentações de Jeremias,
se . Não mostrará o tempo alongando-se infinitamente, inorga- desolada e dolorosa, urna voz de fatalidade cósmica não-isenta
nicamente distante, e Godot sem chegar. E, quanto ao diálogo, de dignidade humana .
um dramaturgo não pode usar a verbosidade (fala, fala, fala)
salvo incidentalmente e enquadrada por não-verbosidade. (Se
um Mr . Jingle tem um rompante de mau humor, logo terá de
voltar a abafá-lo .) Esperando Godot parece antiteatral na me-
dida em que essa verbosidade é o princípio fundamental, ainda
que não declarado , de todo o seu diálogo . Os dois homens
falam para matar o tempo. falam por falar. f: o oposto da
atione parlata, que implica "um mínimo de palavras, porque
algo mais importante está acontecendo". Agora, parece haver
um máximo de palavras porque nada, absolutamente, está acon-
tecendo . " exceto esperar.
Mas isso é uma grande exceção, e salva a peça de BECKETT.
Não faz diferença alguma se a espera não tiver qualquer finali-
dade . Eis uma peça com uma Ação muito tênue, de movimen-
tação mínima de uma ponta à outra, e onde, apesar de tudo, há
uma ação, o que nos habilita a perceber a totalidade não como
algo não-dramático, mas como uma paródia ao dramático. No
fim de contas, o próprio BECKETT não teve dificuldade em en-
cher dua s horas com palavras. Sua peça está realmente conges -
tionada e, tal como qualquer outra boa peça, poderíamos facil-
mente concebê-la como uma compressão de algumas versão de
quinhentas páginas. BECKETT apresenta-nos pessoas que estão
apuradas para encher o tempo delas. No teatro, os momentos
em que Vladimir e Estragon ficam sem assunto não são lacunas
I" : ~~"'~I ";:"1 o 101

inexorá~eis etc . Uma frase como " O fato brutal da questão ..."
leva !ac~lmente ao pressuposto de quc tudo o que não for bru-
tal nao c um fato - o que, na verdade, é pretendido pela esco-
h.1. d~ pensamento. literário que se con sidera mais próxima da
cicncia : o naturalismo
Uma época que pode considerar o cientista desprovido de
4 sen.timent?s só porque algumas de suas descobertas têm uma
validade independente do sentir pode obviamente considerar o
Pensamento artista desprovido de pensamcnto. Quando a mentalidade po-
pular quer mostrar-se favorável para com o artista faz dele
um gênio et~reo que não desce à "mera" razão. Ouand .: deseja
ser de.sfavoravel, apresen~a-o como um louco varrido que jamais
PENSAM ENTO E SENTIMENTO p~defla eleva;-se às sublimes alturas da razão. Amizade e ini-
ml~ade tan:bem podem conjugar-se para criar a imagem mista,
hoje a. mais usual, do gênio louco, meio anjo, meio demônio,
ou me~o super-h~mc~ c rneio idiota. Os grandes artistas a quem
NENH UM ASSUNTO está mais toldado de preconceitos do essa formula esta mais perto de servir, ou aparentemente ajus-
que o do pensamento (intelecto, idéias) na arte dramática. O tada, são cuidadosamente separados do resto para corroborar a
problema decorre da tendência moderna para separar pensa- tese ., B óbvio que, por exemplo, forçando um pouco a nota, é
mento e sentimento, e querer um sem o outro . No fim de con- possivcl realizar um filme de HoJJywood sobre BEETHOVEN'
tas, na ciência é muitas vezes imperativo excluir o sentimento e seria . mais difícil fazê.-Io sobre BACH. E mesmo num plan~
atitude pessoais: o que se busca é a verdade em áreas estra- s~peflor ao h?lly\Voo~lan o , são muit os os professores que cita-
nhas àqueles . E viver numa idade da ciência significa viver fiam a Irase espontaneo transbordamento de poderosos senti-
numa idade em que os critérios científicos invadem domínios mentos" como definição de poesia, sem acrescentar que WORDS-
a que eles não pertencem . W<;>RTH, seu autor, foi uma das grandes m entes da literatura
cuja obra magna foi, especificamente, em torno da mente do
Mesmo dentro da área do trabalho científico, parece ne- poeta . No século XX, o estudante médio pensa, indubitavel-
cessário assinalar não só onde a emoção não necessita nem men.te, _que a arte é. um produto do sentimento puro, sem a
deve interferir, mas também onde deve fazê-lo e sempre o faz. mediação do conhec~mento ou do pcnsamento. E a criança,
Uma falácia popular afirma que a obra científica é tão "fria" como o nosso poeta intelectual disse , é o pai do homem .
e "distante" quanto as suas conclusões. A investigação de fatos . O erro está, evidentemente, em fazer do pensamento e do
"frios" nunca ocorreria se realmente não fosse uma busca de sentimento uma espécie de ferrovia funicular, na qual, quando
prazer "quente" ; e a perseguição de fatos frios é um prazer
quente, ou os seres humanos não a empreenderiam . Talvez
.o
um carro sobe _outro tem de descer . Quc a razão pode ser
expulsa pela paixao - Jogo, o pensamento peJo sentimento -
seja , sobretudo, porque a maior parte das pessoas não sente é um fato bastante conhecido . Se é função normal do sentimento
grande prazer nas ciências que nos esquecemos de notar que livrar-se do pensamento, isso é outra questão muito diferente.
os cientistas sentem. Alimentamos a suposição ignara e pro- Uma tragédia sobre a derrota da razão pela paixão, no seu
saica de que, na frase de BERNARD SHAW, um Casanova goza protago~ista , ~~o exernplifica em si o mesmo processo, ou seria
muito mais a vida que um Isaac Newton. Mas é uma tolice uma ma tragédia . B Fedra quem perde a razão, não RACINE.
pensar que a objetividade de uma ciência se imprime no pró- Ele escreveu uma peça que a julga de um ponto de vista racio-
prio cientista, e é arbitrário imaginar que os fatos são frios,

I:
lot ASl'l:CrOS IlE U!\IA I'r:ÇA 105

nal. Quer Fedra tenha ou não ocorrido a RACn-lE num espon- O erro mais profundo da po sição antiintelectual é ser injus-
tâneo transbordamento de poderosos sentimentos (e não sabe- ta não só para o pensamento, mas também para o sentimento.
mos se isso aconteceu), a obra criada não só está escrita do Os dramas que atingem a suprema intensidade de sentimento
ponto de vista da razão, mas é, em si m<:.sma, uma estrutura são, todos eles, como Fedra, estruturas comprovadamente ela-
racional. Os escritores que perderam a razao, tal como Fedra, boradas, para cuja feitura contribui uma notável capacidade
não logram alcançar seus fins, como também aconteceu a ela. mental. Para começar, a intensidade de sentimento não é ape-
Nem todos os artistas são prodígios de intelecto, nem de nas uma grande quantidade de sentimento. Numa peça, a in-
sentimento, para o caso; mas todas as artes se apóiam no inte- tensidade está presente, mas não foi obtida pela mera acumu-
lecto e nos sentimentos, e pressupõem que ambas as partes lação de "mais do mesmo". A maior intensidade pode resultar
trabalham não em desarmonia, mas em comunhão. Qualquer de um amálgama de sentimentos que são menos intensos. As
outra situação é perniciosa para os artistas e para o seu público. peças de maior intensidade, mesmo as de forma concentrada
Em arte, poderá ser muitas vezes legítim~ e~igir ~ais do in~~­ (dos gregos e classicistas franceses), apresentam sentimentos
lecto ou do sentimento, mas raramente se Justificara que se eXIJa de vários graus de intensidade. Seria difícil exagerar o âmbito
menos. Se alguma vez houvesse uma procura. ~eral p?~a a a~te e a sutileza dessas variações. Mas os atores dão-se conta de
de menos sentimento e mais intelecto, competiria à critica obje- ambos quando se esforçam, lutando contra grandes obstáculos,
lar a isso. No século XX, como existe uma procura muitíssimo por fazer suas vozes exprimirem as modulações de sentimento
ampla e freqüente para menos intelecto e mais sentimento, o em qualquer grande fala.
papel da crítica é objetar a isto. Na literatura, o sentimento precisa do pensamento. Na
vida, raramente isso acontece: podemos sofrer nossa ferroada
de dor e deixar que ela passe . Numa peça, nenhuma ferroada
O "P.<\THOS" 00 PENSAMENTO pode ser infligida ao público que não faça parte de um padrão
inteligente e inteligível, c tendo como tal uma significação.
A crítica teatral não está nesse caso. Com efeito, estando Por outro lado, pensar é impossível, mesmo na vida, sem
o teatro em contato muito mais estreito com o filisteísmo do sentir . f: impossível produzir qualquer pensamento sem que
que as outras artes, é mais suscetível às falácias em geral e ao também se sinta, c o conteúdo do pensamento estará também
antiintelectualismo em particular. Pode-se esperar dos comen- misturado com o sentimento, exceto quando o pensar está di-
taristas de peças, no teatro inglês ou americano, q.u: sejam an.ti- vorciado ela própria linguagem, como na Matemática . A pro-
intelectuais, dada a própria natureza de sua posiçao na socie- posição 2 X 2 = 4 poderá ter conotações emocionais, mas que
dade mas trata-se de um caso extremo, e a crítica acadêmica, não fazem parte da afirmação em si. E a proposição não tem,
se bem que mais austera em seu tom, pode estar igualment.e necessariamente, tais conotações. A proposição "Deus existe".
maculada de preconceitos antiintelectuais. Tal c?mo o anti- por outro lado, é muito menos clara, mas está carregada de um
semitismo, esse preconceito conhece todos os matízes, desde a pathos de uma certa espécie para quantos estiverem inteiramen-
moderada aversão até a mais frenética hostilidade. O que num te familiarizados com ambas as palavras. Por isso a filosofia,
crítico teatral poderá gerar uma racionalizaçã? elaborada~ ~m embora tenha o pensamento como seu principal ingrediente e
que o preconceito contra o intelecto é ostensivamente exibido o sentimento como parcela secundária, não pode passar sem o
como amor ao povo ou até como honesto amor ao prazer, !evar~ sentimento e, nos seus grandes mestres, não o tentou fazer. O
outro crítico a declarar, sem hesitações Ce tal declaraçao fOI alemão de HEGEL, por exemplo, se bem que não seja elegante
feita por um homem de brilhante intelecto), que o teatro, ,com.o e pode ser até condenado como estilo, contribui para o pathos
toda a bela arte, "cospe deliberadamente nos olhos da inteli- de HEGEL. cujos pronunciamentos teriam abalado o mundo
gência" . muito menos sem esse teor de excitação dos sentimentos . Muitos
100 PE NSAME NTO
ASPECTOS DE UIIIA PEÇA 107

outros filósofos, de PLATÃO a BERGSON, foram estilistas: à se- Cabana de Pai Tomás acima de Otclo (como muito boa gente
melhança dos poetas, seduzem com belas palavras - isto é, já fez), mas não seríamos, com certeza , devotos da literatura se
palavras em que o sentimento flui com delicadeza e vigor, simul- não déssemos importância - enorme importância - num certo
taneamente. A tonalidade de um filósofo pode ser, num certo sentido, ao pensamento consubstanciado naquela obra. Talvez
sentido, a sua realização suprema. A esplêndida melancolia a pergunta seja esta: que espé cie de pensamento? Por certo não
beethoveniana de SCHOPENHAUER continua refulgindo depois exigimos da literatura uma argumentação completa como, diga-
da metafísica kantiana de seu grande livro ter começado a per- mos , aquela pela qual o Bispo B ERKELEY prova que o mundo
der o brilho. O fato de SCHOPENHAUER sustentar opiniões pes- não existe senão na mente divina . O que queremos não é filo-
simistas poderá exercer menos efeito nos seus leitores do que .o sofia , mas (para usarmos uma distinção tradicional, se não cien-
fato dele ser triste - inteligentemente, sensivelmente triste, tífica) sabedoria. A expressão alemã L cbenswcisheit diz-nos
como Jeremias e como o seu amado BALTASAR GRACIÁN. um pouco mais: o que querem os é uma sabedoria que inspire
Ou BLAI5E PASCAL. 1:: um grande pensador, mas os seus e domine a nossa existência (e a morte mais ou menos próxima)
grandes pensamentos comunicam, como os de SCHOPENHAUER, como homens, um pensamento que se relacione com os nossos
uma imensa melancolia, um profundo sentido do mistério de prazeres, sofrimentos e mortalidade. Uma filosofia berkeleiana
ser e da grandeza desse mistério. Haverá menos sentimento converte-se em literatura quando está relacionada, como sucede,
nesse pensador que num dramaturgo? Teríamos de examinar ~u~ certo sentido, e:n PI~ANDELLO. com o tormento da experi-
deveras meticulosamente o sentimento de um dramaturgo para encia . Tal como a filosofia não pode, sem o auxílio de símbo-
responder afirmativamente a tal pergunta. I~s mat~mátic?s, despojar-se de seu elemento literário e ernpí-
O pensamento filosófico - pensar nas grandes questões, rico, assim a literatura não pode evitar também seu interesse filo-
os "problemas da vida e da morte" - tem seu próprio palhas, sófico e moral. Ler a Bíblia como "literatura" é uma proposta
e o poeta dramático goza de liberdade para explorar esse fato. ridícula , a menos que signifique a mesma coisa que ler a Bíblia
As peças de SHAKESPEARE estão cheias de comentários filosó- como não-literatura, isto é, a menos que seja permitid o incluir
ficos sobre essas questões de vida e morte . Por vezes, os crí- no termo " litera tura " o moralismo e a metafísica . As pessoas
ticos observam, com malícia ou sem ela, que SHAKESPEARE os que descobrem que a Bíblia é literatura, estão apenas desco-
surripiou de Sf.NECA ou PLUTARCO, ou de algum outro. Se o brindo que o pensamento tem o seu pr óprio palhas . (A des-
fez, deveríamos ficar felizes, pois concorreram com outras cores coberta é anunciada na imprensa popular com uma frase como
para a opulenta tela shakespeariana. "A espontaneidade é tudo." "leitura tão excitante quanto a de uma novela" , o que é alta-
"A qualidade de compaixão nunca é demais." "Como moscas mente lisonjeiro para as novelas . ) A "literatura de filosofia e
para rapazes travessos, assim somos para os deuses ... " "Somos teologia " é literatura e, inversamente , a literatura não est á apar-
a substância de que os sonhos são feitos ... " Os paladinos da tada, mas participa da filosofia e da teologia . SANTAYANA não
"poesia pura" teriam dificuldade em explicar o frêmito que nos é menos filósofo por ser um estilista; DANTE não é menos poeta
percorre quando deparamos com tais sentenças nas peças de por ser um estudioso de teologia . O caso é quase o inverso
SHAKESPEARE. disso: a filosofia de SANTAYANA converte-se naquilo que é, numa
Em seu profundamente sugestivo livro Feeling and Form, parte considerável , através da sua prosa; a poesia de DANTE
SUSANNE LANGER fez uma salutar advertência contra a avalia- torna-se o que é, em considerável parte , através do pensamento.
ção da arte em bases não-artísticas e. especialmente, contra a O palhas do pensamento acrescenta -se ao pathos total do poe-
avaliação da literatura como ética. 1:: muito certo que precisa- ma de DANTE . Em lugar de restringir a vida dos sentimentos,
mos de uma estética que nos habilite a evitar classificarmos A o pensamento , na arte, pode servir para intensificá-la.
108 ASPECTOS DE UMA PEÇA PF.:-:SA~IF:NTO IOQ

MÁs IDÉIAS tanto de boas como de más idéias , e também as más idéias têm
seu pathos: que livro ter á suscitado tanta emoção quanto o
Não será preciso dizer mais em justificação do pensamento, Mcin Kamp]? Mas tal como é um erro procurar arte onde nada
que por sinal anda necessitado disso. Uma vez estabelecida a mais existe senão emoção, assim é um erro, também, aceitar a
relevância do pensamento, podemos olhar em redor para obser- excitação emocional sem ter em conta a sua origem. Se tudo
var que o mero pensamento, o pensar per se, não é coisa sobre o que uma pessoa quer é elevar a sua temperatura emocional,
que possamos congratular-nos efusivamente. Tenho estado a poderá consegui-lo a qualquer momento, bastando para isso que
discorrer sobre o pensamento de certa distinção. A maioria do pratique uma ação abominável. De tão óbvio, haveria necessi-
pensamento, como a do sentimento, está num plano indistinto dade de dizer tal coisa? Quem assim pensar, dê uma olhada
e não tem por que ser respeitada. Só por descuido poder-se-á pelas críticas teatrais populares, em que a excitação - mera
falar alguma vez de idéias como algo uniformemente excelso e palpitação amoral - figura como o unum necessarium .
isento de emoção. A maior parte das idéias não é uma coisa
nem outra, como a história da religião e as ideologias atestam.
Nada existe de mais estranho na mentalidade dos críticos tea-
trais do que a maneira como supõem que somente a fria espécie PROPAG :\NDA

intelectual se interessa por idéias . Quase apeteceria dizer: Quem


dera que assim fosse! Na realidade, as idéias têm fornecido o Ao passar das boas para as más idéias em literatura, passei
mais inflamável de todos os combustíveis para todos os mais também de um modo de usar as idéias para outro: passei da
explosivos tumultos da história. Raramente a violência teve filosofia para a propaganda. E, usualmente, é só propaganda o
lugar, em grande escala, exceto por conta de idéias e, ainda que as pessoas têm em mente quando falam de idéias na litera-
hoje, nada é capaz de' perturbar tão rapidamente o equilíbrio tura, em especial quando falam delas depreciativamente. O
mental de um homem quanto uma teoria. terna, agora. é propriamente o didatismo, de que a propaganda
Talvez, no fim de contas, convenha abordar o problema é um caso ilustrativo. Embora toda a arte (segundo o velho
do pensamento nas artes por baixo e não por cima. Se assim slogan esquerdista) seja propaganda, no sentido de que todos
fizéssemos, encontrar-nos-íarnos afirmando que as idéias, antes os escritores desejam ser persuasivos, resta uma enorme dife-
de poderem interferir na arte, tinham de perder um pouco de rença entre uma apresentação meramente persuasiva e uma ten-
sua excitação natural, assim como submeter-se aos sentimentos tativa descarada de empurrar uma pessoa de uma opinião para
civilizados. Vistos por tal prisma, os sentimentos pareceriam outra e. logo. para uma ação imediata c, possivelmente, violen-
constituir o fenômeno mais moderado, as idéias o mais arreba- ta . Muitos dos que dizem objetar a uma "literatura de idéias"
tado. E não se trata de um modo arbitrário de equacionar a só objetam ao uso propagandístico de idéias.
questão. Um fanático não é vencido por uma idéia rival, que A propaganda é o exemplo extremo de didiuismo, mas,
somente o excita, mas poderá sê-lo pelo contato moderador com reconhecidamente, a fronteira entre o extremo e o não-extremo
sentimentos delicados. seria impossível de traçar, tal como, nesse caso , a fronteira en-
São os piores homens aqueles que se entregam às idéias tre o didático e o não-didático. De modo geral, pode-se afirmar
sem reservas de espécie alguma. Hitler é um caso flagrante. que a arte ensina alguma coisa. Quando é positivamente "didá-
O Mein Kampj poderá não conter qualquer boa idéia, nem . se- tica"? Não se pode evitar uma formulação algo imprecisa, como
quer contém muitas idéias claras, mas nada mais contém senão esta: "Quando é ostensiva a tendência para ensinar". E quanto
idéias e expressa a mentalidade de um indivíduo para quem as a decidir quando essa tendência é ostensiva, os juízes competen-
idéias eram tudo. Se quisermos falar de toda a literatura e não tes divergirão; com efeito , a verdade a respeito de uma obra pode
só da boa literatura, estaremos então falando de uma literatura ser muito diferente, a tal respeito, em ocasiões diversas. Pode-
110
A SI'E C\O S 11f: t'~IA P EÇA
I' E:-':S A MF.:-': \U 111

mos apenas dizer que, se alguns modernos se entregam avida- UMA PEÇA É UMA CO ISA I NT ELECTUAL
mente à idéia didática ("a arte é uma arma" ou "arte pela Fé")
outros, . em ~e~ç~~ a essa tendência, mostram-se propensos ~ Ora, se o intelecto (do qual promanam os pensamentos e
ser. mais antldldatlcos do que a maioria dos grandes críticos e idéias) desempenha um papel importante na literatura em geral,
artistas do passado . Não foi KARL MAR.'C, mas SAMUEL JOHN- é de pre sumir que o desempenhe também na literatura dramá-
SON quem disse: "f: sempre o dever de um escritor tornar o tica. Digo "é de presumir" porque no século XX tem havido
mundo melhor". Se a ânsia de propaganda, ou de defesa da críticos e dramaturgos que fazem da irracionalidade a única
propaganda, pode ser excessiva, o mesmo se dirá da hostilidade atração do teatro . A eles compete o encargo da prova, e eles
em relação à propaganda ou ao propósito didático, em geral. terão de indicar outras irracionalidades, além da que lhes é
própria, se quiserem apresentar uma argumentação convincente.
, A moderna separação entre pensamento e sentimento in- Da literatura pode-se dizer que os pensamentos e os sentimen-
ter~cm aqui. par,a criar ainda mais incompreensão. Os que se tos mais grandiosos se encontram nas mesmas obras; e, do tea-
0'p~em ao dlda~smo na arte o fazem freqüentemente na supo- tro, pode-se afirmar que é não só mais emocional do que a
siçao de que ~ao recorremos à arte "para sermos ensinados", noção corrente a seu respeito deixa entrever, mas também mais
e de que a razao por que não o fazemos é ser a arte emocional intelectual. A grande arte dramática só esporadicamente . tem
a~) passo que '~ aprendizagem é intelectual. A psicologia implí~ ocorrido na história, e os historiadores têm mostrado, com fre-
cita de aprendizagem é a de urna insípida rotina educativa em qüência, que uma nova onda dramática se segue a uma nova
que , realmente, muito pouco poderíamos aprender. Quando se onda de vitalidade. A vitalidade é tão intelectual quanto qual-
aprende, muito , h~ se~lpre muit~ emoção presente. A emoção quer outra qualidade que se queira imputar-lhe. A grande dra-
penos,a e a que prrmciro ocorre a mente; a expressão "aprender maturgia , em geral, inspira-se numa idéia; c a idéia é o pensa-
atraves. da dolorosa experiência" é freqüentemente invocada mento que informa um novo movimento da história , uma nova
nesta vida Mas a dor e o prazer andam juntos; só a anestesia imagem do homem. Nesses momentos do tempo , não sucede,
é uma e~ceção ;, e a apr~ndizagem é, em primeiro lugar, um simplesmente , as idéias serem selecionadas pelos dramaturgos
prazer . f: ~traves do deleite em descobrir alguma coisa que nos em busca de material interessante; o teatro é uma espécie de
apega"!os a d,escoberta e observamos suas implicações: na ver- leito de rio , no qual as idéias fluem. Num certo sentido, pois,
dade, e atra vés do prazer da descoberta que descobrimos. Ne- o dramaturgo que vive um desses momentos é totalmente não-
nhuma criança conseguirá ser "boa em Matemática" se não original. Ele não analisa suas próprias opiniões; portanto, não
tiver prazer em lidar com números e conseguir o seu domínio' precisará da proteção de uma declaração de direitos nem mes-
nem poderá descobrir por que doze vezes doze é classificado mo de um "clima de liberdade", tal como os autores atuais
com o um prazer menor do que os reconhecidos prazeres da proclamam ser uma condição sin e qua '1011 para a grande Arte;
pura recreação. , . Tudo isso foi dito num tratado clássico sobre ele gravit á no sentido do centro de significação histórica. Os
a ar:c dr. .ru á.ica, a Poética de ARrsTóTELES: dramaturgos secundários desses momentos são os que não con-
seguem encontrá-lo ou os que, não o encontrando por seus pró-
prios recursos, tornam-se epígonos, papagueadores.
Ar~-en ~er alguma co~sa é o maior dos prazeres não só para O antiintelectualisrno moderno inventou a doutrina de que
ü rrll sófo, mas tambem para o resto da humanidade, por me. o teatro é antiintelectual em sua origem. Não começou com os
I1Cf que seja a sua capacidade de aprendizagem; a razão do ritos dionisíacos? Observando como as teorias de NIETZSCHE,
prazer em contemplar uma pintura é que, ao mesmo tempo, GIl.RERT MURRAY, JANE HARRISON e F. M. CoRNFORD se
estamos aprendendo - concatenando o significado das infiltram no sistema educacional americano, tive ocasião de no-
coisas, .. tar a impressão causada quando se afirma que o teatro teve
112 ASPECTOS DE ~{A rEçA I'F.SSAMF.:-':TO
113

origem no culto da fertilidade. A imagem de uma Orgia ergue- progresso . Emocionalmente e intelectualmente , o nosso primei-
se diante dos olhos do espírito, fazendo cessar todo o pensa- ro dramaturgo realizou uma dramaturgia suprcmamcntc grande .
mento em seu rastro. Mas até que ponto estamos próximos de E intelectualmente: este o ponto que interessa agora. O grande
uma orgia, ou bacanal, mesmo nas mais antigas peças .q~e ~e teatro foi um "teatro de idéias" desde o seu início. E :f:SQUILO
conhecem, que são as de I::sQUILO? Estamos a uma distância
deve tcr sido quem primeiro ensinou ao homem ocidental que
enorme. Porquanto, supondo que a "teoria orgíaca" fosse ver-
o grande dramaturgo fornece lima imagem da sua época como
dadeira, tem de se postular um momento em que a horda fre-
um todo, retratando seus principais conflitos e triunfos (e seus
nética de orgiastas se dividiu em duas, e um dos grupos passou
fracassos, como podemos por experiência acrescentar). A tarefa
a ser então de espectadores. Tem de se pressupor também um
requer poderes intelectuais de uma ordem tal que o indivíduo
momento ulterior em que não havia já qualquer orgia, mesmo
comum do nosso tempo inclinar-se-ia a atribuir unicamente ao
no palco, mas apenas falas a respeito de orgias. Com ~feito,
estadista, ao historiador ou ao cientista; e, na verdade, algo
no momento mais remoto sobre o qual temos realmente infor-
existe de cada um na natureza de f:SQUILO .
mações, o público não está participando ativamente em coisa
alguma e apenas olhando, ao passo que os intérpretes estão "Nenhum exército pode resistir à força de uma idéia cuja
apenas falando - e não a respeito de orgias. hora chegou ." A afirmação de VICTOR HuGO sugere não só o
Fala-se . No princípio era o Verbo. Quando a horda se poder das idéias e a relação entre esse poder e a História, mas
divide em duas e os orgiastas ou comunicantes tornam-se assis- também a razão pela qual o teatro foi o tOClU classicus para
tentes ou espectadores, quando, também, como ARISTÓ:EL.ES nos tais idéias; idéias como essas têm antagonistas na forma de
recorda, o narrador singular se destaca de um coro indiferen- outras idéias, ou de batalhões , ou de ambos. A sentença tam-
ciado um novo evento está criado, cuja essência são homens bém implica um ponto em que as coisas se tornam críticas. A
falando a homens. :f: esse o acontecimento dramático arquetí- arte dramática, como todos sabem, tende a ocupar-se não só
pico. O teatro encontra-se a si próprio assim corno encontra sua de antagonismos , mas d e p ontos culminantes, não só de entre-
voz . choques, mas de colisões finais e decisivas . Portanto, é natural
De modo que o teatro, em sua origem, é uma coisa inte- que propenda também não para as id éias em geral, mas para
lectual. O intelecto ocidental é uma invenção grega, e os gre- as idéias que pertencem a situações extremas , "as primeiras e
gos utilizaram-no não só na fi.losofi?, mas tamb~m no te~tr?, últimas coisas". as "questões de vid a e de morte". Procura,
que então não estavam tão distanciados entre SI. A propna como STRINDBERG disse certa vez , os pontos em que as grandes
filosofia de SÓCRATES não era só dialética, era também diálogo batalhas são travadas .
falado: é como se ele nunca tivesse escrito urna palavra. Ao Disso é corolário o fato d e não haver lugar na dramaturgia
ensinar o Ocidente a falar, a Grécia convidou o Ocidente a para as elaborações que seriam exigid as tanto pela novela como
acreditar que a palavra falada é o veiculo apropriado para a pc/o ensaio histórico ou filos ófico Um filósofo teria o direito
mente e o ernfrito . de refutar o ·tra tamento de id éias por um dramaturgo como
A voz dramática fala poesia, e assim o fez desde o pri- insuficiente. Por outro lado, o que o drama pode perder numa
meiro momento. É igualmente notável que a poesia, mesmo área da realidade ganha na correlação que estabelece entre dife-
então fosse o veículo de idéias majestosas. Houve os que gos- rentes .ircas . Uma peça poderá não analisar completamente,
tariarn de fazer de f:SQUlLO um "primitivo" porque a técnica por exemplo, um encontro histórico mundial, mas, na medida
teatral se desenvolveu muito depois de sua morte, mas se ser
em que for uma boa peça, oferece -nos a interação de idéia e
primitivo é gaguejar em vez de falar, ou f~lar pue~ilment~ em. v~z acontecimento em sua concretização existencial . Pode, dessa
de profundamente, então o teatro de hoje ~ muito ~als. pr!ml-
maneira, fornecer uma concentração ímpar da realidade - como
tivo do que o de eSQUILO. Não, desenvolvimento nao Significa
efetivamente é atestado pelo fato dos críticos freudianos e mar-
114 ASPJ:CTOS DF: UMA PEÇA
PENSA!\fF. !':"TO
]]S
xistas, por exemplo, poderem encontrar o que buscam nessa
peça e todos eles terem razão. A prop ósito , a. ~dade .~~~dia ..dotou o teatro com o que
parece se~ o ~eu VIIao definitivo o Diabo . Todos os vilões,
Se o que estou dizendo está certo, segue-se que a vitali- desde então, tiveram algo de satânico, sempre que possuíram
dade de qualquer obra dramática que é vital seria, em parte, alguma ~nergia real. O melodrama popular, tal como o conhe-
intelectual; e que encontraríamos as idéias da época dando sua cemos. c. u!lJa rep~odução decadente e usualmente frágil do
contribuição para a vida de qualquer obra dramática, seja qual drama crrst ão da Vida, com o homem colocado. à maneira de
for o seu significado. Isso foi efetivamente demonstrado, inú- Fausto. entre o bem e o anjo do mal .
meras vezes, por críticos eruditos dos gregos, de SHAKESPEARE,
e de CORNEILLE, RACINE e MOLlERE. Se houve também vozes
dissonantes, argumentando que um ou outro desses dramaturgos
possuía uma filosofia má, ou mesmo um cérebro de segunda O DRAMA ESPANHOL
ordem, o que poderei dizer para refutá-los já foi dito neste
capítulo. Fica por examinar um certo número de escolas que,
Afir!ll.ou-se freqüentemente que a Espanha nunca saiu da
com freqüência, foram consideradas excessivamente intelectuais
Jc.la(~e Media. e ~ue a dramaturgia espanhola do Século de Ouro
("abstratas", "ideológicas", "doutrinárias"}. f: evidente que
se situa. e,m muitos aspectos, na tradição medieval . Nos leito-
pode haver sempre um excesso de qualquer coisa, mas parece-
r~s ~()S s éculos mais recentes é possível identificar uma ten-
me que essas escolas não teriam sido atacadas não fosse a exis-
dência, tal como em relação às obras medievais, para aceitar
tência de um preconceito contra as idéias no teatro. Desde unlcan~ente certos pormenores que se consideram inerentes à
que se veja o intelecto como algo potencialmente vitalizador, hum.anldadc em geral e para rejeitar a idéia particular de hu-
esse conjunto de obras dramáticas também será considerado manld~u.e. que foi consubstanciada na obra lida, visto refutarem
vital. Estou pensando no teatro medieval; na dramaturgia do a possibilidade de que uma idéia seja uma fonte de energia em
Século de Ouro, na Espanha; os clássicos alemães do século vez ?e ~m fator condicionante. Se bem que os espanhóis fo~sem
XVIII; e a "dramaturgia moderna, depois de IBSEN". medievais em sua total confiança na teologia católica. o teatro
Houve época em que os eruditos costumavam defender o p.or eles c~iad~1 é de uma dramaticidade muito superior à dos
teatro medieval com base nos laivos de realismo moderno. que cl:lo: medievais porque, não contentes por narrarem a história
parecia perceberem-se aqui e ali. ou nos toques de um sentimen- crrstã c cxnltnrcm Deu'>. insistirnn: em aprcscntnr o conflito
to democrático igualmente moderno. Sentiam-se intimidados pela entre ~ .idéia cristã e o impulso natural . Para eles . a idéia está
grande massa do material. tal como se apresentava, porque era c~:ponflcada na carne fraca e falível: e. desenvolvendo a dia-
doutrinário no conteúdo e didático na intenção. Todavia, o Ict~ca . de. s~melhant~ conflito. não temem submeter a provas a
drama medieval só revelará seus verdadeiros méritos através proprra idéia Por ISSO demonstraram ser escritores chocantes
desse conteúdo e dessa intenção, e quando o tiver feito o hu- Mns.o ,~rama é lima arte de choque. e constitui o grande mérit~
mor algo tênue do "Auto do Segundo Pastor" passará adequa- d~s Jd~las q~':. longe de cortduz irc m a arte dramática para o
damente para o segundo plano e teremos então consciência da dlSCurSlv~ pa"d~ e seco. geram seus choques característicos .
grandeza e extensão dos Ciclos, que refletem a grandeza e o Ouant~ a te~lo~la. embora algumas pessoas ainda acreditem que
âmbito de uma esplêndida visão da vida. A história é mostrada se dedica príncipalmcntc a disc~)tir o n úmero de anjos que po-
em termos de uma idéia condutora - o ideal condutor da vida ~em dançar na ponta de um alfinete, sua condição sim! qua nem
civilizada nessa época - e vista como um drama em vários e a J11e~ma do drama: o ~entimenfo humano de culpa. Sendo
atos, mas com um princípio (a Criação), um meio (a Queda a teologia. entre outras COIsas, uma dramatização do bem e do
e a Expiação) e um fim (o Juízo Final) definidos. mal: ~~1 drama teológico é um ramo muito legítimo do "teatro
de idéias".
116 ASPF:l.TOS DF: t'~{A PEÇA f 'I : :" ' .\ \ 11":" ")
117
Um par famoso de peças, ambas, provavelmente, de TIRSO
DE MOLlNA EI Burtador de Sevilla e Condenado por Descon-
ludi os~s do cal?licismo de hoje lia s con vcnçam de que foi tudo
um '~J<d -.c~lendldo . e de que se trata de peças de inatacável
fiado, une-;e para fornecer-nos um exemplo ilustrativo..A~lbas
:cspcllabJllllade: SII1I , TIRSO e C A I. D E RÓ N eram sacerdotes e
são sobre o mesmo tema, isto é, a mesma crença cn.sta de
Isentos .de qU~lsquer tend ências her ética s. Apesar disso, suas
"graças copiosas para o pior dos pecadores", a doutrina de
peças tem mais de um toque daquela atmosfera de escândalo
que a misericórdia de Deus é tamanha que se estende a todos
com que, J, F AN COCT EAU pentrantemente caracterizou todo o
os que se arrependem, por mais tard.iame~te que o façam e drama original .
por muito que tenham pecado . Ora, ISSO e como .se os ~s~a­
nhóis indagassem se se tratava apena~ de uma de.lJcada hipér- Um dramaturgo é, um f~omem que pode ter suas crenças,
mas ql~e, se as dramatíza-, c provável que dê num mau pro-
bole, que não se destinava a ser analisada de muito perto, ou
se poderia ser realmente algo a ser levado em conta. Na se- pagan~llsta. Um propagandista comporta-se como um advogado
gunda hipótese, o que é que significa, exis.tencialmente. falando? em tribunal, passando por alto todos os pontos fortes que a
Uma peça mostra-nos que é seguro aceitar a doutrina. Um aut.ra parte possa ter, a fim de fazer que a sua parte pareça a
sanguinário chefe de bandoleiros, que se arrep~nde a tempo. mais forte , Os propagandistas e advogados preocupam-se com
irá para o céu, diz-nos Condenado por Desconfiado, ao passo o que p~u:ce. Mas Um dramaturgo preocupa-se com o que é.
A suprcssao dos argumentos da parte contrária seria contra os
que um homem de vida devota que concluiu P?der, ness~ caso.
seus Intercss~s, porquanto ele vive subordinado não à vitória,
tornar-se também um implacável salteador, fOI para o inferno
mas ~o co,!fIJto. Um homem não é talhado para autor teatral
- não porque tenha cometido malfeitorias, mas por ~ua "falta
s,: na? csnvcr cxtraordinariamente atento ao "outro lado" e
de confiança" em Deus. Na outra peça, o Burlador e um ho -
c.onsclO da força de sua "defesa" . Um dramaturgo é um dialé-
mem que planeja com grande antecipação o seu arrependimento
tICO. f: mesmo U/11 cxtremista, não no sentido de que esposa
à hora da morte, enquanto se entrega deliberadamente a uma
um extrem o contra outro, mas. antes, de que está inclinado a
vida pecaminosa. O mundo lembra-se (e muito bernl ) de que
levar qualquer contraste até os seus dois limites. Se pode algu-
os pecados de Don Juan incluíam fornicação e adultério, mas
mas vez~~ ~er a~usado de "q uerer as co isas explicadas com todas
a personagem de TIRSO é menos um galanteador do que U~I
blasfemador e iconoclasta. Ofende não só as damas como pai ,
~s letras , Jamais pode ser acu sado de não notar que o branco
c branco e o preto ,é, preto. Portanto, se "cristianismo" não
tio e rei . Seus delitos sexuais contra as mulheres são, ainda
mais ofensas a Deus, cujas leis (por exemplo, o sacramento
fos~encla
,U/11 lerm o teol ógico para designar respeitabilidade, bene-
vol: c senso comum , mas significasse um convite para uma
do matrimônio) estão sendo violadas a torto e a direito. Don
perigosa a\ 'cntura entre as cristas e abismos da alegria e sofri-
Juan vai para o inferno, pois o arrependimento no leito de mor-
mento humanos, um dramaturgo poderia ser um cristão. Vi-
te deve ser espontâneo para que seja eficaz; planejado antecipa-
\:cndo peng()~amente, encontr.á-Io -í;]mos onde quer que os pe-
damente não tem qualquer espécie de efeito . Tmso diz-nos
figos para a alma fossem maiores, o que equivale a dizer que
ele ~u~ca se desvi?ria do que humanamente constitui os pontos
também, creio eu, que a espécie de homem capaz de planejar
antecipadamente dessa maneira é incapaz de arrepender-se, para senSIVCIS da doutrina cristã.
começar. A dureza do coração está de mãos dadas com a ar- Significará a parábola do filho pródigo que é melhor ser
rogância que Don Juan também reveJa abundantemente. r;; um
n!au, para que mais tarde possamos colher a safra de arrepen-
dirnento? ~ ~~ologética oficial, sobre este ponto, parece sim-
Fausto ignaro.
Com o decorrer dos anos, peças como Condenado por ~Iesmente lIlabJl., f: preciso um DoSTOIF.VSKY para explorar e
Desconfiado tDevocián a la Cruz, de CALDER6N, é outra) es- apresenta- a realidade humana , c, quando um DoSTOIP.VSKY o
candalizaram alguns crentes e trouxeram consolo a alguns des- f::z, p(~de-se notar que ele se aproxima muito mais da afirma-
crentes. E é muito tarde para que os sofisticados e doutos es- çao "Sim, é melhor ser mau" do que qualquer eclesiástico seria
118 ASI'I:CTO~; DF. t'!.1.\ I'F.ÇA
I I C)

capaz de fazer. Isso é um resultado da extre~na ,imparcialidade


e franqueza de um artista, bem como de sua fidelidade aos fatos sentiram infimidados . Se as peças espanholas não foram escritas
por incrédulos, só poderiam ter sido escritas, por hO~llens que
da experiência. O mesmo se pode dizer de TlRs? .OE MOLlNA
e de CALDERÓN. H<Í algo de assustador, sem dúvida, na ma- pensaram que suas mais sagradas crenças deviam caminhar sem
a proteção de agradáveis plausibilidadcs. Na nossa era de "re-
neira como eles penetram tão sinceramente. em tU?O ? 9~e é
pecaminoso e corrupto. Mas suas peças seriam muito insípidas lações públicas", isso será ainda inteligível? Deve-se fazer um
se o não fizessem. Não é possível ter tudo ao mesmo tempo. esforço para imaginar um estado de alma em que não se procure
Ou as peças teológicas são enfadonhas porque os seus autores ocultar dificuldades, evadir problemas, sugerir que os ajustamen-
se mantêm alheios às experiências sobre que escrevem, ou se tos são sempre possíveis ou que as deci sões nunca são necessá-
tornam fulgurantes porque os seus autores apresentam não só rias. mas em que, pelo contrário, haja prazer na exposição de
dificuldades. no destemido confronto do implacável, na escolha
a idéia. mas aquilo com que ela entra em conflito - e tudo
isso em termos de energia humana. especialmente o pecado. da menos impossível de duas impossibilidades . Realizando tal
esforço, imaginamos um estado de alma próximo da grande
Em todas as peças existe destrutividade de alguma espécie, mas
dramaturgia, em que grandes idéias, ainda que implausíveís,
a destrutividade vista como pecado tem sua própria dramatur-
desempenham um grande papel.
gia, como Macbetlt c Fctlra testemunham tão opulentamente:
Para o dramaturgo cristão, o pecado representa uma oportuní-
dade suprema. o DRAMA ALHIÃO
Se o cristianismo não é um -nétodo razoável de tratar o
mundo sensível, mas um modo arrojado, temerário, até irrefle- A dramaturgia medieval e a espanhola não provocaram
tido de tentar fazer frente a um mundo caprichoso, opaco e re- grande escândalo: foram ignoradas. O "drama de idéias", que
calcitrante, então justifica-se de certo rr odo que o dramaturgo despertou um ressentimento tão causticante que ainda é reaviva-
cristão examine as doutrinas extravagantes e os casos extremos. do toda vez que uma peça com idéias é produzida, é o drama
A doutrina da graça sig.iiíicará apenas que 'as boas obras são moderno, a partir de LESSING e SCHILLER.
insuficientes par; salv •. r-rios? E essa a maneira convencional de H<Í muitas razões para isso. Uma é que as idéias, daí em
pôr a questão - tão inexpressiva q~ão delicada. Humanamente diante, não gozam de privilégio eclesiático. São "idéias", como
falando, o que se entende por doutrina da gr~ç.a? A ~espropor­ tal expostas a nu e sem poderem continuar apresentando-se co-
ção entre a infinita misericórdia divina e as finitas aç?es huma- mo justas e sacrossantas razões. Mas esse fato faz parte de um
nas - urna der roporção de tal modo pasmosa que so urna len- contexto muito mais amplo . Ao passo que as idéias da drama-
da extravagante pode sugeri-Ia . Pensemos num homem que te- turgia dos séculos XVI e XVII favoreciam o regime vigente, as
nha cometido todos os pecados concebíveis. O poder da cruz se- iclé~ls dos grandes escritores do século XVIII, quando não posi-
rá suficiente para salvá-lo? Nenhuma lógica nos convencerá de tivamente revolucionárias. tendem para a dissidência, o descon-
que sim. Teríamos de A"ver para crer". Te~íamos, de ver a tentamento, a reforma. Hostis aos interesses dominantes, esses
sombra da cruz baixar sobre ele. Algo desse genero e o que eu escritores só podiam suscitar uma hostilidade correspondente
imaginaria no espírito de CALDERÓN quando escreveu La Devo- nas classes dominantes, seus parasitas, amigos e admiradores.
cián a ta Cruz. Até O livre-pensador GEORGE HENRY LEWES O que é muito simples de perceber, posto nesses termos. Só
ficou escandalizado ante o que ele podia apenas conceber como mais tarde, quando os "interesses dominantes" ficaram mais di-
um convite ao assassínio e ao incesto. Mas se essa peça fosse fusos e menos acessíveis à sua identificação como tal, é que a
um convite dessa natureza, então o mesmo poderia dizer-se da moderna situação teatral ficou menos fácil de reconhecer.
absolvição na confissão semanal. Não será o cristianis~o p!ausí- E urna situação problemática, visto que o dramaturgo está
vel? Eis o gênero de pergunta pelo qual os espanhóis nao se antecipadamente privado do que SIIAKESPEARE e MoLlERE tive-
ram: um público nacional. Um teatro que vê desfavoravelmente
120 ASPECTOS " " UMA l'eçA 121

o que a nação está fazendo dirige-se apenas, implicitamente, à sim é melhor guiarmo-nos pelos resultados : "por seus frutos as
parte insatisfeita dessa nação. Isso é equacionar a questão em conheceremos". A peça dirige-se a cristãos: diz-lhes que se com-
termos políticos. GEORG LUKACS definiu-a em termos estético- portam muito mal - pior do que os maometanos e judeus -
sociais, num longo ensaio que publicou em 19 I 4, no qual di- e que deviam corrigir-se. Considerando de que modo grosseiro
zia que até o século XVIII o drama se desenvolvia naturalmen- até os modernos dramaturgos têm subestimado a dinâmica do
te fora do teatro, ao passo que, daí em diante, ofereceu-se ao anti-semitismo, * é de surpreender com que discernimento infalí-
teatro como um meio pelo qual o teatro poderia ser melhorado. .vel LESStNG escolheu o tema da primeira peça de idéias moder-
Os modernos poetas dramáticos estão todos "acima do teatro". nas ... e alemã! Escrever em 1764 uma peça que pode logica-
Podem descer até ele e sondá-lo de dentro para fora. Ou podem mente ser proibida como subversiva em 1933 é uma proeza que
esperar que ele suba até o nível onde se encontram. Mas não os praticantes mais recentes poderiam olhar com inveja retros-
são homens de teatro, à maneira de MOLlERE, cuja obra teatral pectiva .
resultou ser grande literatura. Também SCHlLl.ER esteve em apuros , por diversas vezes,
LESSING e SCHILLER são os primeiros dramaturgos mun- com os nazistas, mas, por outra parte. pode-se dizer, de modo
diais dessa nova fase. Suas obras mostram o desgaste da nova si- geral, que foi acolhido maternalmente pela burguesia. As filhas
tuação que, por certo, não era das mais salutares. Quando têm dos lojistas alemães imaginam-se Joana dArc nos versos de
de optar entre literatura e teatro, escolhem a primeira. Por ou- A DOII::.c!a de' Orleães, de SCIIILLER. O verso do Marquês de
tro lado, suas obras são "dramas de idéias" na grande tradição Posa no Don Carlos, "Sire, dai-nos liberdade de opinião", pode-
e não se reduzem a grosseira propaganda ou simples monólogo. ria tornar-se subversivo no regime de Hitler; contudo. o Mar-
Natã, o Sábio converteu-se numa peça má e "adrnonitória" na quês era um "idealista" de um estro tão etéreo que qualquer co-
tradução inglesa porque se perdeu a qualidade da linguagem de munista pode "classificá-lo" e refutá -lo com um punhado de fra-
LESSING. No alemão, Natã não é apenas um porta-voz de sóli- ses contundentes e "realistas".
das noções. não apenas um simpático tio não-ariano. Sua voz O caso de Posa é crucial. Do que pensarmos a seu respeito
é a de um homem que sofreu. Suas afirmações provêm do ou- poderá justificadamente depender o que pensamos sobre SCHIL-
tro lado da tragédia. E o que, noutras circunstâncias, seria uma LER e o moderno "drama de idéias" em geral. Se DOl1 Carlos
enfatuada retidão se converte numa sabedoria duramente ganha; foi escrito. como supõem muitos admiradores e não-admiradores
o que é dramático. de SCIIILLER, para celebrar a retidão das idéias de Posa, então
Assim como o "drama de idéias" hispano-católico se sal- a peça perde o direito às suas pretensões de grandeza não tan-
va por um forte e positivo sentido de pecado, também o "drama to porque essas idéias são vulneráveis, mas porque a peça , as-
de idéias" alemão se salva por ser consideravelmente menos pie- sim concebida. não passa de um melodrama, tendo Posa por
gas e imparcial do que parece . LESSING talvez tivesse em mente herói e Filipe II por vilão . Realmente, Don Carlos só pode ser
afirmar, como se diz que foi sua intenção, que o cristianismo, lida dessa maneira por pessoas dispostas a serem arrebatadas pe-
o judaísmo e o islamismo são todos igualmente bons, mas, no la eloqüência das falas individuais, a tal ponto que desprezem
fim, esse filho rebelde de uma família de pastores faz o cristia- todos os fatores que se lhes contrapõem, particularmente os n50-
nismo menos bom do que as outras duas religiões. Chame-se a falados . Com efeito, é o maior erro que pode ser cometido na
Natã, o Sábio uma peça eivada de preconceitos e impulsiva, mas crítica dramática citar uma personagem na pressuposição de
não se lhe chame doutrinária e superabstrata. Mesmo a parábola que deve estar falando pelo autor; o segundo maior erro é supor
dos anéis, que é o centro da peça, não afirma o que se espera que a personagem se define unicamente por suas próprias falas
que ela afirme. A inferência não é que todas as três religiões são e não pelas falas de outros ou, ainda mais importante, por suas
igualmente boas e têm um pedigree igualmente válido, mas que
cada um dos pedigrees poderá ser permanentemente incerto. As- • Por exemplo, BRF.CIIT ern sua Ascensão Re sistive! de Arturo Ui .
122 ASPECTOS DE UMA PEÇA
12.1
:!
I
próprias ações. Se o hábito de citar trechos brilhantes não tivesse entre liberdade e necessidade . Todas as in ovações são impraticá-
colocado a crítica fora de combate, ter-se-ia visto que as pala- veis até o instante em qu e se concretizam. Filipe II não compar-
vras de Posa são contraditadas, de uma ponta à outra, por suas tilhava da absoluta certeza da crítica moderna de que as opi-
ações. Ele é um idealista que não vive de acordo com seus ideais, niões de Posa só muito mai s tarde se converteriam em política
um altruísta arruinado pelo egoísmo. E nisto, assim como no fa- prática : por conseguinte , não poderia rejeitá-las como absurd,?s
to dele ser muito melhor na declamação de sentimentos edifi- com (' ,ISC gênero de justificação. Mas, por outra parte, Posa nao
cantes sobre a sociedade do que na compreensão dos seres hu- o defronta a meio caminho. opondo razão contra razão. Age
manos, Posa constitui um retrato clássico de O Idealista. Den- como se o quisesse arrasar com urna retórica esplendorosa, o
tro desse quadro, a circunstância de Posa exprimir grandes que foi subestimar o seu adversário e fugir ao conflito imediato.
pensamentos que sentimos serem os do autor só ganha em caus- De acordo com o caráter da personagem, Posa não está tentan-
ticidade, Mas, quanto a isto, o que poderia ser mais pungente do, realmente, persuadir Filipe: está fazendo o que os idealistas
do que a participação de Filipe no grande encontro? O tato, o fazem - celebrar sua própria superioridade moral. Tivesse Po-
comedimento e o calor humano desse "vilão" estão em contras- sa conseguido mais do que causar uma impressão pessoal, en-
te acentuado com o entusiasmo meramente ideológico do "he- tão. SC:HILLER teria de deixar que Filipe fosse vencido, ou fá-
rói". "Entusiasmo" é de fato a palavra, com a sua conotação lo-ia um vilão de tal monta que de maneira alguma seria acessí-
scteccntista de fanatismo. A palavra alemã é Schwiirmcrei, c .Fi- vel à razão . De um modo ou de outro a cena sofreria . Tal como
lipe sabe com quem está falando, quando diz a Posa, cortesmen- SCHILLER a escreveu, é exatamente o que tal cena devia ser.
te: - Wundcrbarer Schwãrmcr! (Que extraordinário entusias-
ta! )
Não se trata de que Filipe seja o herói e Posa o vilão. Tal
disposição das coisas produziria um melodrama paradoxal, mas
um melodrama, em todo caso . O que torna o encontro entre Fi- Â cxprc ssâo "dram a de id éias" tem sido aplicada vagamcn-
lipe e Posa (Ato 111. Cena la) uma das maiores "cenas de te e. muitas vezes . com S:lrC:1S IIlO. ;1 ob ra de todos os grandes
idéias" de toda a literatura dramática é precisamente o fato do dramaturgos modernos, de 1850 em diante . Na acepção em que
autor estar dos dois lados . Em ambos os lados, não num ou se toma - a de que esse s autores foram, principalmente, propa-
noutro. Não estar num ou noutro lado é conseguir um despren- gandistas de alguma "causa" ef :mcra - não tem. usualmente,
dimento tão gélido que só poderia levar ao total divórcio entre qualquer aplicabilidade . Cosa d e' n 01/( ·Cil .1 nã o é uma peça de
o público e o drama. Estar em ambos os lados é investir os pró- propaganda em favor do sufrá gio feminino. Espectros não es-
prios sentimentos nas duas partes e, depois, ser torturado no tava ess encialmente preocupada com a sífilis. Mas, evidentemen-
entrechoque de dois conjuntos de sentimentos. As opiniões de te, as idéia s modernas participaram abundantemente das peças
Posa estão "certas". e SCHIL.LER "crê nelas", mas seriam viáveis de IIlSEN. por vezes para serem representadas como idéias no-
no tempo de Filipe? Filipe baseava sua opinião na "necessidade" bres. outras vezes como falsas. sempre coordenadas com o en-
e afinal não estaria também ele "certo", dado que não teria redo. personagens c tema, na maneira tradicional.
sido pos~ível passar do absolutismo do século XVI para o ilu- Tal como SCJlILLER tem sido considerado o representante
minismo do século XVIII por meditação? primitivo de um Iluminismo de que ele foi. de fato. um crítico,
Têm sido muito citados os anacronismos de SCHlLLER. assim InsFN também foi tomado como o paladino natural dos
Talvez ele não devesse, em primeiro lugar, atribuir idéias do sé- liberais vitorianos. a quem ele , de fato, sempre combateu . O
culo XVIII a um nobre do século XVI? Historicamente, a pro- que é original em IBS FN é o conjunto de idéias afirmadas por
posição é bastante absurda. Paradoxalmente, porém . a ficção meio do intelecto. mas não assimiladas na vida de quem as afir-
permite a SCHlLLER dramatizar a História e sua tensão perene ma. A Sr." Alving é a mulher esclarecida da sua época, e o que
12·1 ASPE CTOS DE l' ~ ' :\ PEÇA 1 'L ~ SA ~I J: ~T ü
125

IUSEN nos mostra é que as novas idéias estão somente na cabeça Esse fato constitui a chave para " Do n Juan no Inferno"
dela, enquanto os espectros das velhas idéias se arrastam no seu (Homem c Super-homem, Ato III) . A quantidade de idéias nes-
coração. As pessoas pensam que acreditam em novas idéias, mas sa cena e a densidade dessas idéias poderão muito bem dar a
são movidas, especialmente em momentos de crise , pelas antigas impressão de que nada existe nela senão idéias. Contudo, se tu-
idéias . Partindo dessa contradição, InSEN está em condições de do o que SIIA W pretendia era enunciar suas idéias , para muito
criar um novo teatro de idéias. Encontrara um estado de coisas pouco pr cci sn ria de Ana e seu pai. Bastaria escrever um deba-
tão rico em contradições quanto o confronto de Filipe e Posa te entre Don Juan e o Diabo. O Comandante tampouco é mero
no Don Carlos. desafogo. Ele e Ana preenchem o que, finalmente, reconhece-
O moderno teatro sério será superintelectual? Depois da ~J10S ser. uma concepção (melhor, uma visão) total da vida que
geração de IOSEN , três nomes têm sido citados com mais fre- impcranvamenn, os reclama.
qüência do que quaisquer outros como prova de que é: SHAW. E o diálogo entre o Diabo e DOB Juan será um debate? Não
PIRANDELLO e BRECHT. Todos os três usaram o pensamento in- será antes uma pa.ródia de um debate, em que SHAW' pôde cari-
A

convencionalmente numa forma de arte em que não é visto com caturar as elegâncias do decoro parlamentar com um humor re-
bons olhos, pelos críticos, o seu emprego mesmo convencional. finado? Tanto as palavras debate como discussão não lhe fazem
E possível que a origem de todo o rancor sobre as idéias justiça, porquanto o diálogo contém um elemento dinâmico que
na dramaturgia tenha sido I3ERNARD SHAW. Em suas peças, todo nenhuma das duas palavras sugere. SIIAW colocou o Diabo na
mundo observou que "as pessoas apenas falam". O que, por si defensiva - um feito notável e não dos menos brilhantes entre
só, já constitui uma definição popular do drama de idéias. Um as muitas e brilhantes inversões de suas peças. E um Diabo qua-
pouco mais elaborada, a opinião popular dirá ainda que SIIAW se implorativo, em face do seu homem . Don Juan, por seu lado,
criou um novo gênero : o teatro só de idéias c nada mais. E, para pode-se permitir ser audaciosamente peremptório, até acusador.
sermos justos, ele abordou esse "gênero" nalgumas peças, tais t sua a iniciativa em relação ao Diabo, tanto quanto é de Posa
como Mi saltiance e Gctting Morried . Essas peças, como SIIAW ao falar com Filipe 11, e também agora o desrespeito tcm urna
explicou, são "dissertativas": dão aos seus principais tópicos finalidade, embora diferente da de SCIIILLER. Em suma, em vez
uma irradiação intelectual. Jamais um dramaturgo decidira reu - de de,bate ou discussão, tem~s um drama: um conflito de opi-
nir uma porção de gente, sentá-Ia em cena e fazê-Ia falar sobre niao c. formado p,or.um conflito de caracteres que não pôde ser
a vida em geral. E, depois de SHAW, nunca mais um drarnutur- deduzido da s proprras opiniões . O Diabo é, de fato , urna das
go conseguiu repetir o método. As raras tentativas de outros mclho~,cs criaç õc,s d: SIl-:W: o arquétipo da "modern a pessoa
(como J . B . PRIESTLEV) para escreverem "teatro shawiano' o_cult a . Qu ant o a açao, gira em torno de um único eixo, a qucs-
fracassaram. Por quê? Citar apenas "menor talento" não serve tão de saber se Don Juan permanecerá ou não no Inferno. Mas
como explicação. Eram melhores as idéias de SIIAW? Mais pre- é quanto basta para o intento e é dramática, ainda que de um
mentes? Melhor tratadas? Deve existir alguma coisa de positivo modo sumamente rudimentar - à semelhança, diríamos da
na resposta a cada uma dessas perguntas, mas , certamente, a Ação de Esperando por Godot. '
principal resposta é que as peças de SHAW nunca foram tão in- A • BREC'!IT dis~e das personage~s de SIIA W que o seu patri-
teiramente dissertativas quanto ele próprio poderá ter pensado, morno mais prccroso era um conjunto de opiniões. Em defesa
O fato de estarem salpicadas de anedotas, que ninguém poderia de SIIAW dever-se-ia replicar não que isso seja falso, mas que
deixar escapar, não era apenas uma questão de desafogo cômi- era essa, freqüentemente, a intenção manifestada pelo próprio
co; era o sintoma externo de uma realidade interior: o fato de SIIAW. Tal como em InSEN, esse "drama de idéias" é, entre OIJ-
que SHA W, por mais intelectual ou sociológico que se mostrasse, tras coisas, um reconhecimento de que vivemos numa sociedade
nunca perdeu de vista o ritmo. o estilo, o ethos, o universo do de idéias, num grau jamais conhecido na história, uma socieda-
teatro cômico. dc fremind o el e teorias e explicações, uma sociedade criada para
12(1 A~T'r:\.TO S DE UM A J'r:ÇA I ~I

conhecer tôdas as teorias e explicações - ou, o que talvez pro- eUIl I tl C I ~~ I Il IL' ll tl l . 11 0 I\lu I. L' . dep o is, IL I qU L'Sl;lU de su as pr ó-
picie a melhor sátira, para scrniconhccê-las. InsEN, em momen- pr i ;l o.; rl'I :II," "L'S co m (1 IlI L·Sll lll . IlU [i n .rl tI ;1 j1 L' ~' a , () qu e e () l ll l' ~' a
to algum, foi mais verdadeiramente o autor de diagnósticos so- Cl1ll 11 l 11111 ;\ cx i bi ~':ill Lk brill uuui sm o. que tud u arra sta ;1 sua
ciais do que ao apontar um dedo para os livros da Sr." Alving, Ircur r . l' I in ulm cnt c cxpo-to CO I110 UIlJa s a~: il' i u a d e totnlmcntc
aquêles livros que tinham profundamente chocado o Pastor Man- i ll,: l!L';ll . , \ 0.; Illuil ;h i d~i:I :; I L' \ l1!IICill 11;'l r i:IS ele Jack Tanncr. CO ['-
dcrs e tinham esclarecido a Sr." Alving .. , em parte, Tôda a rCI1 lL'lIl l' 11 :l' ti d ;IS co u ro CI.I u lciu» tk UI11 d o s n ui is c él cbrc « c xc m -
época da educação moderna ali se encontra e tôdas as nossas pl L'S d e lL';lt ro d e id l' i ;l s. ~;ill r ,' ~ t1I I1L'lltc ex pos tas a urna luz nc-
bibliotecas de "livros de bôlso", subrninistrando-nos as melho- ,r:l ti \a .
res e mais brilhantes idéias em todos os domínios. Era um as, P C\ CI1 111S talllhl-Ill di s t il1 ~ u i r c n t r c as muitas i déias que ap a-
sunto que SHAW podia trabalhar melhor que IBSEN, visto que a rL'Ce111 1lIIIllCl p eça de SIJ\ \V e a i t h;i ;1 única. que 0 a id éia da p c-
meia-cultura e as modas intelectuais, o pedantismo, o sabe-tu- r a . l\1c Sl1lO esta I1ÜO é aq uilo qu e p.uc cc ser ~I prim eira vista. A
disrno, são ternas naturais da comédia. Quando SHAW retrata id c i.: de A rms (li /ti tlu : " /(1 1/ P:IIl' Cl' se r. 11 0 come ço . que 0 poss í-
o porta-voz da medicina científica em The DOClOr's Dilemma, \'L' I CI1L'L Ill ! r; l r em 11l11lll'I1S corno Hlunt schl]. qu e v êcru se mp re a
não está ' inventando tanto o seu próprio drama de idéias como rcali.lud c pro saica SUb j: l L' l' ll1l' . UIII ;l i1Ií dL1!ll p ;lr ;1 ;IS ilus ócs rLJ -
divertindo-se com o drama de idéias d êlcs, a representação que m ánt ic.r-; 1\bs a p L'l.; a. na r l' :il iLi;l d '-.' , estrutur a-se 11 0 se nt ido Lf..-
êles dão perante o mundo, E se IBSEN troçou impiedosamente uma iLki :\ mais int c rvssan tc. a suhcr: I1 1CSI1 1l1 aqul' ks qu e vêcn:
dos ibsenistas fan áticos, como Gregers Werle, SHAW ridiculari- p ;lr:1 :Iklll de cert as ilu Sl-les S;ll1 (;111111 ('111 ludibriado s por outros.
zaria implac àvclmcnte os "discípulos de BERNARD SIIAW". I\<""i 11 1. a \id ;1 11;1 U co nsiste L' III du is Sl11id us hl L1 COS, um chamad o
Essa categoria é muito mais vasta do que o exemplo de R cal id .id,'. U <'11 1m l lus.io. 1ll:\S vm rc nlid ad cs c ilus ões misturada s
Louis Ou bcdat (em Th e Doctor's Dilemma) poderia sugerir . ou . SL' prl'fnirn1l1s , "caixa s chin esa s uma d entro da outra -
Pois entre os discípulos de BERNARD SHAW estão todos aquêles uma ilu s;l u dentro til' outra ilu sii o . ;\ i dé i a d eMall and SII/I('I'-
ironistas melífluos c de língua afiada que perpassam em suas II /ClIl p.uc cc. 11 0 Cl 11111\ ' (1. se r a de qu e as n O,; L -'l' S uutiquadas d e
peças, expondo os impostores vazios e tagarelas , Superficialmen- UIll R ; I'I1 ~ L h:1l ou de uma Sr ." \\ 'hitdicld es tão send o csvaziadu s
te, pode parecer, apenas, que SHAW está identificado com os e (k struíd ;ls pelo radi cal ism o UC T nnn cr . Essa id éia pr odu ziria
ironistas e que, ao colocá-los no centro de suas peças, inverteu a esp éci e de peça esqu erdi sta de prop agand « que muitos dcsc-
a estrutura tradicional da comédia, a qual tinha um velhaco ou j.ui .un ver escr i ta For SIf..\\\' , lll as qu e êlc se re cu sou obstinnda-
um tonto como figura central. Mas, pelo menos, muitas das co- ment e :1 L ll L' r . Sub cutcndid a 11 ;1 pccu socia l cs t.i a peça biológi ca.
:\ ; l r ~ l'l( i ; \ Lk T ann c r j az 11 :1 supc rfi ci c . ;\ de A unc \\ 'hitcfi cld
médias de SHAW e, entre estas as melhores, resultaram tradicio-
nais no fim de contas, quando o ironista mostra ser um impos- L" a Li;\ PI"'11r i :\ \ id.i. ('(11 11 ~ l' lI S ;lnli s ma is pro fundos L' meno s
p ;iI ;\ \ r~ l s . . S,' f :iI ;1I111l10.; ti:! ilk i;1 d ,: 111 11:\ p ,' , ' ;1 d e SII .\\\' . teremos
tor. Bluntschli, em Arms and lhe Man, é disso um exemplo .
d e Ia l.u (;1 /111< 11 1 d :1 iLk ia subc ni cnd id u na id c iu. O p.nlrâo tot al
Durante a maior parte da noite, êle é um ironista em face de
rClTI ;II -<" l, - ;í c utâo em I l 1d;: a Sila dru m.ui cidad c .
dois impostores românticos, Raina e Saranoff, e o escárnio aba-
te-se sôbre êstes. Mas, no final. é êle quem provoca o riso. e
Bluntschli acaba revelando-se também um romântico e um im-
postor. Também Jack Tanncr, em Man and Superman (Homem PIIL\ ND F I .I ()
e Super-homem), faz todo o mundo parecer hipócrita e idiota,
graças a suas perspicazes e humilhantes observações sôbre os Se :1 palavr a qu e associam os a SII ,\\\' 0 " idcias ", li qu e ;1<: '
erros e pretensões da gente que o cerca, mas suas vitórias são so cia m os :t 1'1 1L\ !':1l1 1.1.0 L- "ce re b r a l" , p o i s o p n ' slígio do aut or
apenas verbais, e quando a realidade se impõe Tanner demons- italiano 11 ;10 r esultou ap enas d êlc ter uma 1l0 ÇÜO (essa apar ênci«
tra ser um tolo - primeiro, na questão das relações de Violet I ; rculidndc i . mas de a glosar em todos os tons. sendo incapaz
128 I'F:NSA1-l EJ','TO 129
ASPECTOS DE ~fA PEÇA

°
de a deixar sozinha. E isso, creio cu, que a palavra "cerebral" fornecidas as anarnne scs de uma perturbação mental que evolui
no sentido da psicose declarada. Uma história é a de um homem
pretende exprimir e, para tratar da questão, deve-se partir do
princípio de que a aparência não é realidade, visto que LUIGI de tal maneira incapaz de suportar a idéia de ser privado da
PIRANDELLO parece cerebral e tem-se vontade de indagar se ele companhia de sua esposa, que teve de acabar considerando que
realmente o foi. ela estava morta. A outra é a de uma mulher de tal maneira in-
Se ser cerebral é pensar sem sentir, não é possível aos se- capaz de suportar a morte de sua filha que teve de acreditar
res humanos serem inteiramente cerebrais e a pergunta deve ser que outra moça era sua filha, a qual não morrera, realmente.
reforrnulada assim: PIRANDELLO será indevidamente cerebral? Em ambos os casos, o tema é a ilusão provocada por um trauma
Haverá excessivamente pouco sentimento em sua obra? O fato de privação. Os traumas dessa espécie parecem estar no âmago
dêle ser incapaz de deixar sua idéia sozinha sugere o contrário, das coisas para PIRANDELLO, e essa é uma das razões por que
pois a obsessão não é um fator "friamente intelectual", mas um sua obra é dramática. O teatro é chocante porque a vida é cho-
candentemente neurológico. Serão as pessoas que conheceram cante.
PIRANDELLO em segunda mão, através de maus críticos ou más Como evoluiu PlRANDELLO desses traumas para um tipo de
traduções, que o julgam "cerebral"? A primeira coisa que qual- drama a que o mundo chamaria cerebral? f: uma questão da es-
quer leitor sensível notaria em sua obra não é a abstração de pécie de significado que ele extraía do material ao seu dispor.
pensamento, mas um fremir de nervos. E se seguirmos essa pis- Neste ponto, IBSEN não poderia dar-lhe a resposta. Para
ta, verificamos que PIRANDELLO, mais ibsenista do que SHAW IBSEN, o homem era neurótico. Isso foi surpreendente para
jamais foi, reteve a imagem ibseniana do homem moderno co- os seus primeiros públicos , mas não o impediu de escrever
mo sofredor neurótico, mas, ao revê-lo, aprofundou a sombra dramas que eram morais à antiga maneira. Para PIRAN-
da doença mental. O seu ponto de partida não é a filosofia, mas DELLO, só existe uma espécie muito especial de ética: a da
a perturbação emocional - e não a teoria da perturbação erno- compaixão em face da impossibilidade . A neurose do homem é
cionaI , como sucede em tantos autores pós-freudianos , mas o considerada limítrofe da psicose e, ocasionalmente, mergulhan-
fato concreto - em resumo, a emoção, a perturbação. do nela de cabeça. Embora o homem possa sentir compaixão,
Nas três peças de PIRANDELLO que ingressaram no reper- ele é, acima de tudo , não um ser moral , mas patológico. Con-
tório mundial. Seis Personagens em Busca de A utor, O Impera- tudo, a patologia não desperta em PIRAND ELLO qualquer
dor tEnrico IV) e A Cada Um Sua Verdade, as principais per- interesse clíni co. Pelo contrário , afunda -o em de sespero sobre a
sonagens estão perturbadas até o mais profundo de seu ser. Se. própria existência, em angústia metafísica
em todo caso, não reconhecemos isso de imediato, é porque Um esquizofrênico Hão se comunica conosco, nem nós com
nas peças atuais essas perturbações estão rotuladas para orien- ele . A sua realidade é não só complexa , mas , de algum modo,
tarem-nos, ao passo que em PIRANDELLO talvez jamais consi- fora dele, perdida : "I oi-sc" . Es sa irrcconh ccibilidadc e inacessi-
gamos descobrir qual é a dificuldade, com ou sem rótulo. Em bilidade constituem , para PIRANDELLO, a condição humana em
A Cada Um Sua Verdade. o fulcro da estória é que os proble- geral. O que nã o deixa de ser uma proposição filosófica; mas,
mas psíquicos estão por solucionar - os problemas psíquicos, ?ntes de o ser, é a "impressão" que a vida lhe causou, uma
não apenas as identidades legais. A natureza humana deve ser Impressão chocante. angustiosa. Os críticos biográficos falaram
vista, diz-nos o autor, não como um problema, mas como um da esposa psicótica de PIRANDELLO, mas nada do que pudesse
mistério; PIRANDELLO faria que olhássemos os problemas dos ser descoberto a respeito da senhora explicaria como o próprio
Ponzas e das Frolas com a reverente caridade da religião, em Mestre acabou pensando que a condição dela era, num sentido
vez do microscópio inquisitivo e inquisitorial da ciência médica. profundo, a da raça humana em geral; e muito menos como
Apesar disso, nos dois principais relatos do que aconteceu - poderia éle dar a semelhante "proposição infundada" uma vibra-
um, dado pela Signora Frola, outro, pelo Signor Ponza - são ção que encontrasse acolhimento no público mundial .
130 ASPECTOS DE UMA PEÇA PENS AME NTO 131

A situação existencial é aterradora. Como sondar o seu sig- Deus ou de um dos seus muitos e solícitos vice-gerentes. Visto
nificado? Para semelhante tarefa, tudo o que homem tem à sua que existe, correntemente, essa falta de sinceridade na discussão
disposição são palavras e pensamentos. Assim, o homem piran- deste assunto, toma-se necessário afirmar o que deveria ser
delliano, como outros homens, recorre às palavras e aos pensa- óbvio: que todos nós gostamos e aprovamos a propaganda (da-
mentos. Passam e repassam em seu cérebro para gerar outro do um mínimo de eloqüência) quando estamos de acordo com
terror, outra vertigem. O intelecto do homem, a única coisa a ela e , inversamente, nenhum de nós gosta da propaganda (por
que ele pode recorrer para a explicação das coisas, sejam quais mais eloqüente que seja) de uma causa que nos é antipática.
forem, bem como para a explicação de sua própria angústia,
A razão por que existe um problema já foi sugerida: é que
não o ajuda - e assim se converte em mais uma e mais deses-
o público moderno está dividido, e os escritores pertencem a
peradora fonte de sofrimento. O pensamento chamou a si a ta-
uma "intelligcntsla" que constitui uma entidade secional e dissi -
refa de descobrir a realidade oculta sob a aparência. Fracassou.
Só possuímos aparência, e devemos aclamá-Ia, zombeteiramente, dente . f: dcsorientador para os modernos afirmar "toda a arte
desesperadamente, como realidade. A "pequena lição filosófica" é propaganda", pois a maior parte dos exemplos que darão -
de PIRANDELLO ensina pouca filosofia. O que nos ensina é mais ESQUILO, DANTE, o teatro medie val, a dramaturgia espanhola,
e menos do que filosofia, simultaneamente: terror, miséria, de- as histórias de SIlAKESPEARE - constitui "propaganda" em no-
sespero. A visão de PIRANDELLO é a de MATTIlEW ARNOLD em me de todo um sistema social de que eles foram produtos e ao
"Dover Beach" - um espetáculo de exércitos ignorantes entre- qual se dirigem, ao passo que a palavra "propaganda" o que
chocando-se de noite. ARNOLD fala no poema sobre a maré que atualmente sugere é, precisamente, as opiniões de alguns de nós
traz a eterna nota de tristeza: e não de outros - tivéssemos "nós" vencido "os outros", a ne-
cessidade de propaganda do nosso grupo cessaria. A procura
de um teatro dirigido a um público hostil ou dividido é um fenô-
... Sófocles, há muito, tempo,
meno moderno.
Escutou-a no Egeu. E ao seu espírito levou
As túrbidas marés do sofrimento humano . .. Teoricamente, o escritor des se gênero de teatro de propa-
ganda teria uma opção. Poderia dirigir-se a uma parte ou outra
PIRANDELLO escutou o rumor dessas marés e, numa época do público di vidido: poderia pregar aos con vertidos ou procurar
chamada não-trágica, captou novamente a nota eterna de triste- atrair os pagã os . Na realidade, é diminuta a parcela de teatro
za , voltando a conferir-lhe a turbulência da antiga tragédia . propagandista dirigido diret amente aos " p agãos", mas uma gran-
de parte é end ereçada àqueles qu e se acred ita estarem indecisos
sobre o lado que devem escolher. No nosso tempo, o caso clás-
sico é o do liberal da clas se média . perguntando a si mesmo se
BRECHT pode abandonar seus antecedentes conservadores e aderir à es-
querda progressista . Uma peça sobre esse tema (Trial oi a Iudge.
A questão que o nome de BERTOLT BRECHT suscita é mais de STEPHEN SPENDER . é um exemplo) dirige-se em pri-
a de propaganda do que de pensamento como tal; mas dificil- meiro lugar aos outros liberais da classe média do público, mas
mente se pode analisar a propaganda isolando-a das idéias pro- também seria gra ta (pod er -se-á supor) às hastes esquerdistas a
pagadas. Para começar, as pe'ssoas que se declaram adversas à que o liberal está aderindo. Quer dizer, SPENDER podia esperar
propaganda na arte apenas se opõem, quase sempre, à propa- dirigir-se tanto aos convertidos como aos que estão prestes a
ganda "do outro lado", resultando que a "do nosso lado" não con verter-se . E embora n50 p ossa ter grandes esperanças de re-
é propaganda coisa nenhuma, mas toda a Verdade e nada mais ter os inconvertíveis em suas poltronas , o ruído que eles fazem
que a Verdade, jorrando, desinteressada e intacta, da boca de ao sair pode ser le vado em conta para criar um escândalo ; e o
132 ASPECTOS DE UMA PEÇA PF:NSAME NTO 133

escândalo é suscetível de interpretar-se como uma virtude, se Se tal não acontecesse, então seria falso, e para os verdadeiros
não como uma vitória. crentes isso seria o fim de tud o, c no "tudo" incluem-se as
Usei a palavra "conversão" deliberadamente, visto que, obras de BRECHT.
ante um público dividido, a peça de conversão é, inevitavel- Historicamente, BRECHT difere de f.SQUILO e dos outros
mente, o gênero principal de teatro propagandista. Na década num aspecto óbvio. Ele apostou no futuro, onde os seus pre-
de 1930, as peças de conversão eram produzidas em grande decessores edificavam sobre o passado. E o elemento especula-
número; até BRECHT escreveu um par delas. De modo geral, tivo introduz uma nota histérica .
BRECHT tinha mais altas finalidades. Observara o "didatismo" Convém recordar que autores péssimos podem ganhar
de épocas passadas, o de f.sQUlLO, da Idade Média, dos espa- proeminência aderindo a poderosos movimentos políticos. A
nhóis, as histórias de SHAXESPEARE, e tinha notado que nenhu- década de 1930 produziu dúzias de dramaturgos e críticos pro-
ma dessas categorias dramáticas pretendera convencer ninguém gressistas que jamais poderiam ter sido apenas dramaturgos e
a mudar de uma posição para outra. Pelo contrário, partiam críticos . Cavalgaram o que eles esperavam que fosse a onda
do princípio de que, para uma comunidade e uma época, seus do futuro e o que certamente era a onda daquele efêmero pre-
principais objetivos já estavam realizados, e eles celebravam sente. Se nenhum exército pode fazer frente à idéia, também
esse cometimento . Ora, supondo que o que aconteceu na Rússia nenhum público pode resistir à peça (poema, novela, artigo
em 1917 foi paralelo à consecução da democracia na antiga crítico) em que a idéia é celebrada. Era esse o cálculo. E
Atenas, do catolicismo na Idade Média, da monarquia Tudor BERTOLT BRECHT propôs-se ser não só um grande escritor, mas
na Inglaterra renascentista? Se o comunismo soviético fosse a O E~critor do Futuro .
"idéia cuja hora chegou", então nenhum exército poderia resis- Essa intenção só em parte é relevante para este capítulo
tir-lhe ... nem à sua dramaturgia. BRECHT apostou que assim sobre o pensamento, visto que o teatro propagandista contém
era, tal como o hipotético descrente de PASCAL apostou na exis- muito menos pensamento que a outra dramaturgia. A tendência
tência de Deus. E quanto se candidatava a ganhar! Se as reivin- de qualquer drama que celebre a avidez do dramaturgo em ca-
dicações elo marxismo fossem válidas, então não s6 o marxismo valgar a onda do futuro é para a aceitação irracional, na dispo-
seria a filosofia do nosso tempo, mas também ofereceria uma sição de ânimo de uma multidão manifestando-se em frenéticos
compreensão cientificamente garantida de todas as épocas ante- aplausos . Se é " tea tro de idéias" terminar uma peça com pro-
riores. Através de tal conhecimento, BRECHT seria o primeiro letários cantando "Ou Tudo ou Nada!" ao som de empolgante
dramaturgo de envergadura na hist6ria que compreendera a música, então o teatro de idéias é o teatro da demagogia . E,
história, o primeiro grande dramaturgo que, ao gênio individual, de fato, muito do que tem sid o classificado como teatro de
podia acrescentar um conhecimento certo e autenticado do ho- idéias - ou até como teatro épi co - não passa disso.
mem e da sua sociedade. Exprimi-me em termos vivos, não Mas as famosas teorias dramáticas de BRECIIT representa-
para escarnecer de BRECHT, mas para conceder que quem acei- ram uma tentativa não só de substituição do teatro comercial
tou BRECHT pelo seu valor nominal poderia muito bem pensar Oll capitalista, mas de fornecimento de um teatro propagandista
que ele tinha mais a oferecer que qualquer outro dramaturgo c anticapitalista de uma espécie mais intelectual . Em suas pri-
vivo ou morto. Quando vivi entre os íntimos e adeptos de meiras formulações, foi precisamente definido como um teatro
BRECHT, percebi ser exatamente isso o que eles pensavam. de pensamento, não de emoção, de instrução, não de prazer.
E BRECHT gostava de supor que o inverso também era Era como se BRECHT tivesse adotado o lema de seu colega mais
verdade. Certa vez, disse ele que, se o comunismo soviético velho, G EORG KAISER : "A cabeça é mais forte do que o
não vencesse, suas obras não teriam futuro. Talvez isso cons- coração".
titua uma tautologia, pois faz parte da doutrina do comunismo Os resultados não foram insignificantes, sob qualquer ponto
soviético que o comunismo soviético vencerá, inevitavelmente. de vista . Escrita no velho estilo, A Mãe teria sido uma peça
134 ASPECTOS DE UMA PEÇA

135
inteiramente diferente . Submetido ao "tratamento de BRECHT",
esse "enredo convencional" é cuidadosamente desvulgarizado o vinte e cin co minutos O .
Não há uma tentativa direta de captar a simpatia do espectador, prazeres situa- se mais ' do I~~~ ~e~~~~I .IC~~ ~~~c~~rCt.cer como
cruo ap enas A Mãe . ,. ivessc es-
para fazê-lo sentir que também está sendo convertido; nem o di , e as Peças Did áticas (Lchrstiicke) eu
desejo de " ensinar" é embaraçosa e hipocritamente camuflado. ma que sua obra não era superintelectual mas o cont á.
BRECHT está pronto a admitir, até este ponto, o didatismo e a e que qu ant os receiam o "teatro de id éi ,, ' d r no,
A

dele . I eras na a tem a temer


considerar ponto pacífico que ele tem liberdade para usar meios
de expressão muito mais completos (mais humor, mais sedução, abraç~~E~ 71 Coi um dr~IlIaturgo int electual, mas não porque
r
mais dignidade) o KEATS disse que odiamos um poeta que tenha I oso la marxistn O marxismo levou-o bem erto
"um desígnio palpável a nosso respeito" e, em A Mãe, pode- al~u?Jas vezes, de um jesuítico " sacrifício do intelecto'P ,
mos saudar, com alívio, um propagandista que não tem seme- ~~l'~l:a~~n~'~e~era~toe,~ a~t~ridade,uma rendição ao "in~vi~~
lhantes desígnios sobre n6s o rando BRECI!" essano . a como poderíamos dizer (cornpa-
Mas por que não tem? Se STEPHEN SPENDER precisou de GRAHAM GRE~ com um autor sec.undário) que o intelecto de
nós, e todos os dramaturgos esquerdistas da década de 1930 do que NE, ~e emprega mais em resistir ao catolicismo
precisaram de nós, a fim ' de que pudéssemos ser convertidos e I . r em esposa- o, também o intelecto de BRECHT é carac
apoiássemos a Frente Popular, por que BRECHT não precisou :f1SIcamen~e empregado no que os doutrinários d -
lados p od eriam chamar subterfúgi o e evasão . ed ambos os
de nós? Porque era muito mais profundamente marxista e via, celebra ção da verdadeira fé Seu heci ,maIS o que na
verdadeiramente, a Revolução como algo inevitável e, portanto,
assegurou qu e BRE~HT se c~nserva~~; :~i~eu~~ ~~~;a~~; ~a~~
não precisando desesperadamente de convertidos individuais
(com os quais, de qualquer modo, era duvidoso poder contar) o demonstraram
ue
um propagandIsta . Com efeito, os
ser uma tentação e um
"outros lados" g
d sempre
Pelo contrário, BRECHT pôde incutir a A Mãe um sentido da
força avassaladora da nova maré da hist6ria e, na realidade,
mente com o acontecera n SCHILL ER e a e~~~: : dele, exata-
menos talentoso poderia ter criado P .
t
a a
1 ramaturgo
da "força de uma idéia cuja hora chegara" o Se a est6ria é a SCHlLLER para criar o Felipe II U osa;d mas era precis o um
respeito da inevitabilidade da Revolução de 1917, bem, essa lcntoso poderia ter criado a Santa' Joa~a s~a:~~~~o menos ta-
revolução deve ter sido inevitável, porquanto já ocorrera quando um SHAW para criar t I I isid ' mas faltava
BRECHT escreveu fi peça. E se o dramaturgo não tem desígnios Icntoso poderia ter c~ad~q~~ ~~eiUJo~nsd:amaturgo menos ta-
a nosso respeito, individualmente, tampouco duvidamos de que Katt . . . UIÇO ou mesmo uma
rm; ma s era necessário um BRECIIT para criar M- C
ele vê a hist6ria passando caudalosamente sobre os nossos cadá- gern Na verd d tã '" ' ae ora-
veres, se não consentirmos em ser arrastados na corrente . multiformes as :u~' ,ao .va n avels, são os pontos de vista, tão
BR ECI'T q I" " s iroruas , que e por vezes difícil afirmar em
Fui testemunha visual, certa vez, de um "público dividido", 1 , ua e o outro lado" A D . - (Di . ,
quando A Mãe foi representada em Paris pelo Berliner Ensem- é cons!idcradcr aua a sua peça n . .d ' ectsao
. Dic Massnahme)
lid d iais ogm útica e como tal deve ser
ble, e metade do público aplaudiu de pé, enquanto a outra me- I a , sen o a defesa do realista contra o ideali st a _ Fi!' II
tade vaiou de pé o E era essa uma obra com o intuito de ser reencarnado como Partido de Stalin o Ma A d p I Ipe
fria e isenta de emoção! Obviamente, enquanto certos sentimen- ~:~tando sua derr~la definitiva ~omo' o Cam~~:J: "eexpu~s:d~~-
tos são esfriados pelo procedimento de BRECHT, outros são s~ SClIlLLER tinha uma simpatia latente por FT g .
aquecidos até o ponto de ebulição o Na verdade, os primeiros brcclulann mal esconde a sua pel J C I ipc, o texto
d I ' o overn amarada A id
são esfriados a fim de deixarem mais combustível para os últi- n~ s~~:;~m den~o~trn :xpressão não no sentimento ofi~ial, ~a:
mos. O conteúdo intelectual de A Mãe é escasso. Essa dose . o e 10 eraçao, no choque entre uma espécie de sim-
de marxismo poderia ser aprendida, calculo eu, em cerca de patia e ou~ra. Ou?ndo esse entrechoque é dramatizado _ como
na srrnpatia conflItante de BRECHT pel a cínica Mãe Coragem
136 ASPECTOS DE ~{A PEÇA I' F. :-': SA~I F. NT O
137

e por sua heróica filha Kattrin - o melhor teatro brechtiano das idéias (d o pcn~?mento, ~ o tema) defend eram freq üente-
está escrito. E é um melhor de proporções soberbas. men.te a <:.ausa do dialogo (estilo, palavras), tomando por lema
a afirmação de MALLARMÉ: "A poesia não é escrita com idéias'
é escrita COIIl palavras" . Pragmaticamente, é possível assinala;
A DIGNIDADE DA SIGNIFIcÂNCIA que ess.as p~10l11icas têm sido muitas vezes salutares. Os mo-
de!n?s in vestigadores, por exemplo, puderam reabilitar o drama
A defesa de BRECHT, PIRANDELLO e SHAW - e mesmo de cla~s.lco espanhol, em grande parte com a ajuda da defesa aris-
SCHlLLER e LESSI.NG - contra a falácia popular seria mais tot élica do enredo. Mesmo assim, defrontam-se com problemas
extensa do que eu me atreveria a sobrecarregar a paciência dos porquanto o tema é ainda mais importante nas peças espa-
meus leitores "impopulares", excetuando o fato de que me habi- nholas . ..
lita a argumentar que nenhum deles, em suas melhores criações, Um critério menos polêmico p oderia, nes sa época, tcr suas
escreveu meras piêces à thêse . A piêce à thêse - a peça que vantagens . Poder-se-ia perguntar, por exemplo, se os vários
prova uma tese - seria a mais pura forma de teatro de idéias, aspe~t?s de uma peça são concorrentes, de fato. O enredo é o
se pudesse honestamente ser chamada teatro, pois nela a idéia domínio do que é feito e do que acontece. A personagem é o
é a criança mimada e tudo gravita em tomo dela. "Provar" uma domínio de quem faz e a quem acontece. Devem duas metades
tese numa peça equivale a fazer batota: tudo o que o autor do mesm? proce~so ser pretendentes rivais à supremacia? E
tem a fazer é marcar as cartas. E concentrar tudo numa finali- perguntanamos ainda aos que nos dizem que o teatro é feito
dade dessa espécie é excluir toda a substância tradicional e im- de palavras, não de idéias: De que são feitas as palavras? A
perativa de uma peça. par dos fatos e sentimentos, não transmitem elas idéias? Receio
f: bom que a peça de tese exista, pelo menos como uma que se dissermos que o drama são palavras , o drama é poesia,
concepção, visto que pode servir ao mesmo tempo de ponto seremos nesse c~so forçados ~ s.ubdividir os gêneros de palavras
de referência e de terrível exemplo. Mostra o que acontece ao e (ou) de poesia em seus m últiplos "aspectos" , como fazíamos
teatro quando se sustenta que nada mais interessa senão afir- antes : não vemos nisso qualquer vantagem.
mar uma idéia e endossá-la, o que constitui uma versão heré- Se os nossos "aspectos da peça" não são concorrentes
tica da arte dramática e fatalmente estreita, mesquinha. Tentei t~mb~m .não são eq uiva len tes em tudo . Os hisp anistas que men~
mostrar que os grandes dramaturgos, mesmos os acusados de tal cionci ha pouco teriam uma saída possível se di sses sem : o cn -
mesquinhez, mesmo os por vezes culpados disso, não isolaram rcd ~ é apenas um principal recurso à di sposiçã o do autor dra-
em suas melhores obras, dessa maneira, as idéias da experiên- m ático; sua f~llalidade é o tema . E será apropri ado encerrar-
cia recalcitrante, mas, pelo contrário, encontraram o "drama", mos este capl~ul,~ s o~re o pensamento indagando se o pensa-
precisamente, na recalcitrância - isto é, na ação recíproca da ment o (tema , id éia) e deveras a verdadeira finalidad e dramática
idéia e não-idéia , da abstração c da concretização, da teoria Mais de uma esco la de prática críti ca lia s en sina que é .'
e da prática. O marxista M EY ERIfOLD escreveu :
Numa peça, o pensamento será o mais importante de seus
elementos? Enredo, personagem, diálogo, pensamento: cada um
desses aspectos de uma peça tem suas pretensões à primazia,
o pensamento vem em primeiro lugar .. . Urna peça notável
é. exce~io.n~l, principarn:en~e, em suas idéias profundas; quer
defendidas por escritores de nomeada. Em geral, o motivo pa-
dizer, e nitidamente polêmica, tenta " pe rsuadir" o público.
rece ser prejudicar as reivindicações de um dos demais aspectos.
A famosa promulgação aristotélica da primazia do enredo tinha
por alvo aqueles que colocavam a personagem primeiro. Nos Assim tão parcamente equacionada , a doutrina é muito
tempos modernos, os que desejaram prejudicar as pretensões pouco sugestiva e, corno o seu contexto deixa bem claro, está
1.18 A!'>f'F.CTO!'> DF. UMA PF.ÇA I' F.:-> SAM F.N TO
139

vinculada a outros pressupostos não-mencionados: MEYERHOLD respcito. Pelo mesmo princípio, contar a verdade não é toda
propõe converter cada uma das grandes peças escritas em qual- a finalidade da dramaturgia; nem a comunicação de uma ex-
quer época em propaganda para uma classe. No entanto, quem periência. Contar a verdade - a formulação de afirmações, a
acreditar que uma peça se destina, primordialmente, a formular exposição do terna, a declaração e desenvolvimento de idéias _
uma declaração de princípios, estará subordinado à noção da é apenas um aspecto, de fato; e existem outros de importância
primazia da idéia. Pois ninguém que sustente essa opinião será comparável. Por outra parte, o drama participa daquela Le-
indiferentc à espécie de declaração que foi feita. Pelo contrário, bensweisheit [sabedoria da vida] que, em geral, é hábito da
mostra-se grande ansiedade para que certas declarações sejam literatura comunicar. Só um cínico ou um filisteu poderá que-
feitas, e se encontra grande satisfação nas declarações Iormu- rer refutar como "experiência sem sentido" a impressão dada
ladas, ou que se supõe terem sido formuladas, nas obras-primas. por todas as grandes peças de um véu erguido, de venda arran-
Daí resulta que os crentes na primazia da idéia vão desde os cada de sobre os olhos, numa palavra, de algo momentosamente,
marxistas aos seus adversários do outro extremo - a escola seriamente exposto . . . e dito. Mas tal sabedoria é mais do que
de F. R. LF.A VIS, por exemplo, que procura "afirmações" de vulgarmente se entende por pensamento, ou idéia, ou tema, ou
outra cor e até noutro lugar: sutilmente incrustadas na poesia. exposição, e como tal não é uma parte da peça, mas um preci-
Mas uma declaração não-expressa é ainda uma declaração. pitado da peça como um todo .
Sc a finalidade dramática não é formular uma declaração, E eis , talvez, a mais razoá vel das conclusões : o pensamen-
o que é, então? Um recente livro que se mostra divergente da to, definido como um aspecto de uma peça, é unicamente um
escola de LEAVIS formula o seguinte contraprincípio: " ... se- aspecto de uma peça, mas existe uma definição mais ampla do
melhante obra [como uma peça de SHAKESPEARE] não é uma termo, de acordo com a qual poderá verdadeiramente fixar-se
declaração, ou um vislumbre, ou uma espécie particular de es- como a finalidade e o objeto da dramaturgia . HEDBEL deveria
c1arecimento ... mas uma experiência momentosa e revigorante". ter uma dessas mais amplas definições em mente quando disse :
E ainda : "Antes de ser uma fonte de percepções íntimas, a "No teatro, nenhuma personagem deveria jamais expressar um
grande literatura imaginativa é uma fonte de energia" . Assim pensamento ; do pensamento promana, numa peça, a fala de
se expressou JOHN HOLLOWAY em sua Story 01 the Night , todas as personagens". HENRY JAMES, embora T. S. EUOT
LoNGINUS dissera outro tanto há muito tempo. o elogiasse por ter um espírit o tão requintado que nenhuma
Muito provavelmente, são essas as duas principais opiniões id éia poderi a vio lá -lo, disse cert a vez qu e a " filoso fia " de um
sobre o assunto. Sem dúvida , ambas são constantes: mas será escrit or er a o que havia ne le el e m ais importante . Contudo,
realmente preciso escolher entre uma ou outra? Em meu en- tend o J AM ES eq uacionado , em seguid a , a filosofia como a maneira
tender, parece que cada uma dessas opiniões vai ficando cada como um homcm sen te a respeito da vida , torna-se evidente
vez menos verdadeira à medida que se aproxima do seu próprio que também ele procurou uma definiçã o m ais ampla do con-
pólo, cada vez mais verdadeira à medida que se acerca do pólo teúdo filos óf ico da literatura .
oposto . Assim, se a percepção interior está associada à sensibi- Já propus a palavra sabed oria em lugar ele pensamento.
lidade, como quer LEAVIS , estaremos então já longe do pólo em Mas também essa palavra pode d es orientar . Prende-se com
que tudo o que interessa é a afirmação concreta. E se a expe- muita facilidade a determinadas falas em que. como HE8BEL
riência, como quer HOLLOWAY, só é importante quando tem notou , seria perigoso que um dramaturgo a colocasse. "Liber-
significação, então as afirmações estão implícitas em sua impor- dade e Verdade - eis os pilares da Sociedade" . Talvez haja
tância , e encontrar-nos-ernos muito mais próximos do pólo da sabedoria ne ssa sentença; contudo, se a peça de IBSEN donde
idéia. foi tirada é uma peça sábia, a sua sabedoria encontrar-se -á
A dramaturgia tcm a ver, simultaneamente, com a veicula- numa Ação que suscita dúvidas sobre se a Liberdade e a Ver-
ção de uma experiência e com as verdades significativas a seu dade serão realmente os pilares da sociedade . A sabedoria de
140 ASPECTOS DE UMA PEÇA

uma peça pode conflitar não s6 com a sabedoria de cada uma


das personagens que nela falam como também a da recapitula-
ção sumária do autor. Visão é uma palavra melhor e, reunindo
todos os fios da meada, poderíamos dizer: uma peça apresenta
uma visão da vida, e à idéia de visão a idéia de sabedoria adere
naturalmente. Compartilhar dessa visão e dessa sabedoria -
com a mesma naturalidade - não é receber informação ou 5
conselho, mas, pelo contrário, ter "uma experiência momentosa
e séria". A seriedade será parcialmente definida em têrmos Representação
emocionais: segundo a peça em questão, assim resulta alegria,
exaltação, júbilo, êxtase ou o que for . Mas uma parcela essen-
cial da nossa convicção de que tal experiência é momentosa
deriva daquilo que considerarmos importante na peça. LITERATURA "VERS US" TEA T RO
Finalmente, se uma parte dessa convicção deriva do que a
peça significa, outra parte provém do simples fato de que sig-
nifica. A significação é já por si momentosa para os seres hu-
manos, como ao descobrirem, a contrario , sempre que a vida
não tem para eles qualquer sentido. Toda a arte serve como
U MA peça está completa sem representação? A pergunta tem
sido respondida com igual veemência tanto na afirmatlca como
um salva-vidas para livrar-nos do oceano da insignificância - na negativa. A opção depende da preferência temperamental:
um extraordinário serviço a desempenhar em qualquer época e as pessoas "literárias" acreditam no texto sem ajuda; as pessoas
hoje mais do que nunca, quando a religião e a filosofia se mos- "teatrais" acreditam na representação. Ambas estão certas .
tram cada vez menos aptas a desempenhá-lo. Assim, ser res- Uma boa peça leva uma dupla existência, e é um a "personali-
gatado é redescobrir a nossa dignidade pessoal, por cujo exclusi- dade" completa em ambas as suas vidas . Quando uma pessoa
vo intermédio poderemos descobrir dignidade nos outros, digni- teatral diz que uma peça foi mal interpretada na sua represen-
dade na vida humana como tal. E, concomitante ao nosso sen- tação, está certamente implicando que existe uma peça em toda
tido de dignidade humana, está o sentido daquilo que GoETItE a sua integridade, antes dos int érpretes a tocarem. Quanto às
primorosamente designou "a dignidade da signiflcância". pessoas literárias, sua concessão de que uma peça tem outra
vida , além daquela contida no livro, fundamenta-se, que mais
não seja, no repúdio a certas passagens de que não gostam por
serem "meramente teatrais". Por outras palavras. sua posição
não é realmente de que não existe a dimensã o teatral , mas de
que desejariam qu e ela não existisse.
Cada grupo esforça-se por fazer uma virtude de sua pró-
pria dé[ormation projessionnelle , As pes soas teatrais têm suas
limitações como intérpretes de literatura . As pessoas literárias
têm as suas, como intérpretes de teatro . Se pudermos evitar a
cegueira de ambas as partes, o único problema real residirá na
compreensão da diferença entre o texto-só e o texto-como-re-
presentado, pois qualquer trecho dado poderá ter uma impor-
tância diferente nos dois contextos . Finalmente, ninguém é for -
142 ASPECTOS DE U~IA PEÇA II EI'RF. SENTAÇÃ O 143

çado a optar entre literatura e teatro, e conhecer o Hamlet , ou dos muit os palácios encantad os que a humanidade infantil edi-
qualquer grande obra dramática, deve ser conhecer tanto atra- ficou . A distinção entre arte e vida começa aí .
vés do gabinete de leitura como do palco. Uma representação A interpretação de uma personagem é apen as metade desse
de categoria nunca deixará, pelo menos, de projetar luz sobre pequeno esquema . A outra metade é o bs ervar ou, do ponto de
um ou outro aspecto da peça, ao passo que mesmo a leitura vista de A. ser observado. Mesmo quando não existem real-
mais atenta ficará muito aquém de abranger todos os aspectos. mente espectadores, um intérprete imagina que os há, muitas
A questão de saber se se deve preferir a leitura ou ver a vezes dividindo-se em dois, o ator e o seu público. Esse objeto
representação da peça é melhor respondida pragmaticamente. histriônico que é o espelho habilita qualquer ator a observar-se
Se uma pessoa puder ler bem para si própria, será difícil que e, assim, a converter-se em C, o público . . E o espelho da parede
prefira assistir a uma representação medíocre. Mas, para quem é apenas um; os espelhos mentais são muitos.
for capaz de saborear o teatro - e aí se incluem mais pessoas O que significa querer ser observado? f: impossível formu-
do que as que o sabem - apesar do texto escrito ter sua pró- lar essa pergunta, hoje em dia, sem que venha à tona uma pa-
pria integridade, não há prazer superior ao de ver uma obra- lavra: exibicionismo. Querer ser observado é ser exibicionista.
prima dramática magistralmente representada. O que é acres- Quererá isso dizer, apenas: querer ser observado é querer ser
centado no palco significa imenso, graças a tal processo ime- observado? Claro que não . "Exibicionismo" é um fenômeno
diato, sensual. Se o enredo, personagens e diálogo consubs- clínico, e a palavra comporta uma conotação de socialmente
tanciam um tema, e transformam o pensamento em sabedoria, inadequado , bem como de mentalmente mórbido. O que, receio,
c uma opinião em visão, a representação adequada ajuda a que o torna ainda mais aplicável ao teatro . Desejar ser observado,
tudo isso se processe, mas, sobretudo, ao acrescentar aquela por vezes e de um modo restrito, é uma coisa; mas desejar ser
concretização final e conclusiva: o ator de carne e osso . ator é desejar ser visto o tempo todo e em grande escala. Tal
Historicamente, claro, a representação não era algo que se desejo levaria imenso tempo a justificar e ainda mais a explicar.
acrescentava; foi a partir dela que a arte dramática se desen- E. bizarro e traz à lembrança a noção de THaMAs MANN de
volveu. E , embora origem e essência não devam confundir-se, que existe uma afinidade natural entre a arte e a patologia.
é muitas vezes mais fácil enxergar uma essência se pudermos O Folies-Bergêre será a quintessência do teatro? Isso de-
ver os fenômenos tal como eram "no início" - sim, mesmo pende, penso eu, de como se tomar o Folies-Bergêre . SIR
que se trate de um princípio fictício como o "contrato social" KENNETH CLARK distinguiu entre o despido e o nu . Um corpo
de Roussnxu - ou mesmo se admitirmos que a ontogenia nu é aquele que não pede roupa; um corpo despido é um corpo
repete a filogenia e, quando falta o conhecimento da infância vestido que foi temporariamente despojado de suas roupas. O
da raça, substitui-se pelo que sabemos da infância dos indivíduos. interesse de SIR KENNETH na distinção reside no fato das artes
Como estou agora prestes a fazer. em que ele está profissionalmente interessado -:- pintura e es-
cultura - ocuparem-se não com o 'desp id o , mas com o nu , De
fato (no que diz respeito à Europa), foram elas que o inven-
INTERPRETAR, OBSERVAR E SER OBSERVADO taram. Não é esse, porém, o caso do teatro . Mesmo em lugares
e épocas que nada tinham contra o corpo, o método do teatro
A situação teatral, reduzida a um mínimo, é que A per- foi o de ocultação por máscara e traje. Certo. um dos atos
sonifica B enquanto C olha. Tal personificação é universal en- arquetípicos do teatro é retirar esses disfarces . Mas só se pode
tre as crianças, e essa representação de um papel não se dis- remover o que está posto. Ou, na expressão de SIR KENNETH,
tingue inteiramente de outros jogos infantis. Todo o jogo cria o teatro pode apresentar o despido, mas nunca o nu . Quando,
um mundo dentro de um mundo - um território com leis pró- portanto, as girls do Folies-Bergêre compõem um pretensioso
prias - e o teatro poderia ser considerado o mais duradouro quadro à semelhança das pinturas clássicas de nus, ao tentarem
144 ASPECTOS DE UMA PEÇA Il F:I'IlF:S F:NTA ç.:\O
14S

ser nuas conseguem apenas não ser teatrais. Quando, por outro braço? Não ." Os pensament os plat ôni cos p odem ser alimen-
lado, quando se despem diante do público ou desfilam quase tados no espírito, mas não vivemos deles do café ao jantar. E
sem roupa, tomam-se teatrais mediante o ato ou simulação de embora a grande nudez do teatro seja espiritual, a imediata
retirar a máscara. Em suma, se essas glrls estão nuas, são arte; realidade do teatro é agressivamente física, corpórea.
se estão despidas, são teatro. Setores do público francês acei- O mundo físico é real para todo artista, e é por seu inter-
tam-nas como nuas, ou esforçam-se por isso. Os turistas estran- médio que até um San Juan de la Cruz tem de comunicar sua
geiros acham-nas despidas. Isso é porque os turistas têm "idéias filosofia antifísica . Entretanto, a literatura mantém algumas res-
perversas". Mas os turistas têm razão. A nudez é espúria; o trições ao dirigir seus aspectos físicos aos olhos do espírito, ape-
desnudamento, genuíno. nas. A própria pintura e escultura mantêm certas coibições:
Por isso o teatro tem menos em comum com a tradição os tons de pele de uma não têm pele por baixo, e os volumes
do nu na pintura do que com a tradição do striptease no espe- da outra não têm carne ou osso. Somente o teatro lança ao
táculo "vulgar". O teatro é despudoradamente "baixo"; não seu público o objeto supremo dos pensamentos sensuais: o cor-
pode tratar com desprezo o corpo, porque é o corpo. Se que- po humano. E conquanto no teatro nunca possa haver nu, e
remos a alma, por que pagar para ver as coristas? E por que raramente haverá despido, suas roupagens são tanto mais eró-
pagar para ver moças que não são coristas? Para começar a ticas em sua dupla função de esconder e revelar, suprimir e
compreender e aceitar a arte teatral, devemos estar dispostos realçar, negar e afirmar.
a confessar: "Sim, é verdade, desejamos realmente ver e dese- Que as roupas podem ser usadas para intensificar o atra-
jamos ser estimulados !Jor ver corpos". Evitamos dizer "exci- tivo sexual dos corpos, em vez de reduzi-lo, é um fato por de-
tados" porque a palavra "excitar" pertence ao inimigo puritano mais conhecido. O exibicionismo do ator não é tão grosseira-
do teatro. Devemos estar ainda dispostos a declarar que os mente sexual. Poderá até tornar-se teatralmente mais interes-
corpos que desejamos ver não são "espiritualizados", como SIR sante sendo menos sexual: o que há de mais atraente que os
KENNETH CLARK diz que são os nus, que são "despidos", seus trajes negros e funéreos de Hamlet? Na pior das hipóteses, um
créditos espirituais são nulos e seu atrativo é de natureza las- ator ou atriz concentrar-se-á em características sexuais secundá-
civa. Espreitamos segredos obscenos: o departamento de polí- rias: uma boca sensual, um olhar expressivo, uma cabeleira
cia e os correios podem começar a ficar inquietos. opulenta, uma cintura fina, uma perna bem torneada. Ele ou
Como é indecente o teatro! Contudo, para a nossa paz de ela exibe o corpo, mas não pela sua beleza. Neste ponto, o
espírito, a indecência está em geral situada à distância: o des- ator aproxima-se mais do acrobata do que do modelo de artista,
nudamento é, usualmente, da alma e não do corpo - e vemos visto que exibe seu corpo, em grande parte, por aquilo que o
a nudez de Fedra, não a de Gypsy Rose Lee. Contra uma vez corpo pode fazer. E o que o corpo do ator pode fazer é mais
que vemos Salomé retirar os seus sete véus na peça de WILDE expressivo do que atraente , e pode ser expressivo, de fato, da
ou na ópera de STRAUSS, vemos os véus serem retirados milha- maneira menos atraente possível, como na comédia grotesca.
res de vezes, noutras óperas e peças, do espírito individual, da Um ator exibe-se ou não? Tem havido muitas discussões
sociedade, do universo. a tal respeito. Os educadores, usualmente, ensinam aos estu-
O problema é que mostrar o espírito despido é impossível. dantes de teatro que o ator não se exibe a si próprio: isso seria
S6 se pode mostrar o inv61ucro do espírito, e isso é o corpo: E uma atitude egoísta. Ele mergulha, afunda-se nos seus papéis :
embora um fil6sofo possa representar o corpo como uma sim- é um nobre exemplo de autodisciplina, quando não de auto-
ples sombra de urna realidade espiritual mais substancial, e um sacrifício. Lours JOUVET disse outro tanto quando afirmou que,
dramaturgo possa acompanhá-lo nesse conceito, a nossa .respos- para encarnar um papel, o ator desencarna-se a si mesmo.
ta inevitável será que a pr6pria sombra é agradavelmente subs- Todos percebemos o que ele quis dizer. Quando SIR LAURENCE
tancial. "Pode o espírito prender-se a uma perna? Não. A um OLIVIER representa o Juiz Shallow, o nobre rosto de OUVIER
].lO A" I'ITI ( " 11I: l '~I.'\ I 'I :Ç'
I\E I'III""I S T A Ç Ão
147
e seu corpo ereto desaparecem . Conlud~, o ~rópri.o falo de ;u
me explicar dessa maneira prova que nao vejo a interpretação Palavras tais como exibicionista e voycur - embora alguns
como a veria se o papel fosse representado por. un~ . alo~ ~ue as desprezem como jargão - acrescentam às palavras pura-
mente descritivas uma implicação de culpa.
não tivesse um rosto atraente e um porte ereto. Significara, IS~O
que sou um bisbilhoteiro. incapaz de eonee~llrar-me na proprIa
representação? Penso que não. O conh:.clll~e~lo de que um .
truque acrobático é difícil de executar n:l~ c Irrelevante par~ Ouvi dizer
a experiência de observá-lo. Pelo contr úrio . Sabemos que e Que criaturas culpadas, assistindo a uma peça de teatro,
fácil para muitas criaturas voar~m de. um lado pa~a outro a Foram de tal modo atingidas, no fundo da alma,
grande velocidade: o interesse reside 111l1C~1IlCII!C em :er homens Pelo próprio engenho da cena que, na realidade,
e mulheres voando, porque não lhes é Iacil faze-lo. \: cr OL~VI~R Proclamaram seus delitos e rnalfcitorias.
no papel de Shallow é ver supera~as dificuldades cornparavcis,
leis comparáveis da natureza desafiadas por uma proeza huma-
na . Logo, não estamos apreciando .:1pena~ o 'p~peI. mas tam- As pessoas de mentalidade pr osaica acharão as idéias de
bém o ator. E este, por seu lado. nao esta eXlblll~o som~n.te o Harnlct sobre a investigação e descoberta de crimes um tanto
papel; está apresentando também sua proeza, esta-se exibindo forçadas. mas o drama poético trata de essências e, aqui, SHA-
a si mesmo. A sua auto-exibição não se limita tampouco ao KESPEARE, Harnlet e todos os públicos de Hamlet aceitam que
talento com que retrata alguém que definimos como "tão dife- a essência do teatro é atingir as criaturas culposas em sua alma,
rente dele" . Apresentar urna carregada caracterização senil e ou, como diríamos em prosa batida, jogar com os sentimentos
encurvar os ombros não seria o suficiente se não houvesse um de culpa do público . Encarada dessa maneira. a lógica é boa .
Juiz Shallow em OUVIER, se Shallow não fosse algo em que ele
pudesse talvez converter-se ainda ou pudesse. ter-se conve~i~~.
Em tais papéis. o ator exibe as muitas e diferentes POSSibili- • , . É atr avés da peça que atingirei
dades de ser que descobre em si próprio. A consciência do rei.
Não é preciso falarmos daqueles atores que. com excessi:a
evid ência, nada mais exibem senão a si pr óprios Estou afir-
mando que mesmo o ator que parece estar situado no 'pólo , " porqu e as peç a s S(/O coisa s c m que as consciências são
opo sto a esse tamb ém se exibe , apesar de tud o , ,r:xc~pclOnal atingidas.
em SJR L A UREN CE OLI\'I ER é o talento , Comum e o impulso Isso d á a entender que o observar, o assistir. é deveras de-
ori uinal. primitivo , qu e di z : Vejam-me! sagradável, . , como realmente foi para o Rei Claudius . Harnlet
E quanto ao prazer de observar? Em alguns .~spectos .. nã~ maquinou um desafio à distinção entre a arte e a vida, uma
existe diferença entre o espectador de teatro c o consumidor exploração da possibilidade de saltar da arte para a vida. Quan-
de outras artes - o ouvinte musical. o leitor de romances. do isso acontece, já não estamos lidando mais com a arte dra-
Podia-se imaginar que a sua posição é idêntica à do observador mática, mas com a destruição de sua principal convenção. Se
de pintura, escultura e arquitetura: todos são especta~ores . Mas não formos o Rei Claudius nem tivermos literalmente assassina-
o fenômeno não é assim tão retilíneo . Se o teatro e uma arte do o nosso irmão, seremos também poupados a essa reação .
visual, como a pintura, também é uma arte temporal, como a Em vez de pedirmos luz e encaminharmo-nos para a saída, con-
música. O observador também é ouvinte - o espectador tam- servamo-nos no nosso lugar para "apreciar o espetáculo". Não
bém é um escutador . será, então, a nossa consciência atingida? B. As acusações não
nos atingem? Sim, atingem. Mas na arte , não na vida. Tal é
148 ASPECTOS DE UMA PEÇA
149
o paradoxo da dor no teatro: sofremos e não sofremos. Esta- vcntudc, concede-nos o pr azer de sermos um gigolô durante três
mos sofrendo e, ao mesmo tempo, divertimo-nos. Quando pres- quarto s ~ a peça e depois , na última par te, inflige-lhe o castigo
tamos atenção, embora não o façamos de maneira idêntica à de que ~ e ~Justa exatamente ao seu crime? Co ncede-nos o prazer,
quando observamos acontecimentos reais, também não nos move mas I~nlge -llze ~ castigo, quer dizer, consente-nos o prazer, mas
o espírito de "desprendimento científico", pois que existe sem- arranja ~uem sirva de bode expiat ório em nosso lugar. Isso
pre um certo grau de envolvimento emocional . Estou sugerindo poder-se -Ia chamar porn ografia, sem dú vida. Tem também
que esse envolvimento não é de natureza inocente. muita coisa em comum som a alta trag édia, que desde os seus
Seria impossível traçar a linha divisória entre o drama e a começo s tel~l apresentado o crime e seu castigo , sendo o prota-
bisbilhotice, o drama e o escândalo, o drama e as manchetes da gorusta castigado ~lIl b,ode expiatório em lugar do público. A
pior espécie de jornais - os quais, muito compreensivelmente, pornograíín e contígua a arte; e o prazer de observar é contíguo
pretendem ser dramáticos. Mesmo o que é apodado de porno- ao prazer de bisbilhotar.
grafia de maneira alguma se situa num domínio separado do
domínio dos poetas trágicos e cômicos. Todas essas coisas são
apreciadas com deleite pelos seres humanos, e a todas elas está SUBST IT UIÇÕES
associada uma certa medida de culpa. Talvez se afastássemos a
culpa, a chamada imagem sórdida perderia grande parte. de. seu é Tal, é, ~ b~lse infantil do teatro . Qu and o personifica B, A
atrativo; c, talvez se retirássemos do teatro a parte de bisbilho- , um exibicionista, e quan~ o ,C presta atenção ao que se passa,
tice, a ocasião perderia muito do seu atrativo . e um espectador e um bIsbIlhoteiro , Mas, evidentemente A
Sem dúvida, esse elemento sofreu um incremento cada vez não pre~i~a de B ,se ~ exibição é tudo o que deseja , visto 'que
maior nos tempos modernos, Os teatros grego, elisabetiano e pode exibir -se a SI pr opn o, e necessariament c isso é uma coisa
espanhol eram menos accessíveis ao bisbilhoteiro, porque as que ele de fato exibe
peças se situavam em plena luz do dia . Foi a idade moderna B , a pessoa repre sent ada, que m é? Originalmente, é o pai
que arquitetou a idéia de um auditório mergulhado na escuri - do pequ eno ator, o.u, a mãe, ou os irmãos . Qu aisquer outras
dão . Os eruditos comparam palco moderno com a exibição pessoas tem probabilidade de fazer part e do círculo doméstico
de pequenos quadrinhos através de uma lente encaixada no sendo intermut áveis com um dos pais ou dos irmã os . O interes-
orifício de um tubo . O corolário é que se trata de um teatro sante é que isso continua sendo verdadeiro no teatro ad ulto
para espreitar, um teatro de bisbilhoteiros, E é . A crítica clás- Aí, as pcsso~s re~r~sentadas são obra de um dramaturgo . Ma~
sica a esse teatro é que . do século XVIII até T ENN ESSEE WIL- ~ pre ocupaç:l~ cl ássica do dr amaturgo tem sido sempre a famí-
LIAMS, tem-no sido com excessiva crueza. E com excessiva fre-
lia . A comedia mostr a freqUentcmcnte uma família em forma-
qüência tem sido também um teatro de trivialidade doméstica . ção , Tant o a comédia como a tragédia têm assiduamentc mos-
O prazer de observar é, em si mesmo, uma coisa equívoca. trado a família em dissoluç ão c, desde A gam cn on a Esp ectros,
Inclui delícias tais como sentirmos que cometemos um crime e, de A Mandrágorn a Cândida . ocU par;lI11-SC do matrim ônio e as
entretanto, podermos fugir ao castigo porque o pano final cai e ameaça s que so bre ele impcnd cm ,
descobrimos "que foi tudo um sonho". .. Foi a Psican.ilisc que assinalou que a família ainda era fre-
O que é pornografia? Um elemento dela é vermos satis- quentement e o terna, mesmo quand o parecia não ser , Orro
feitos os desejos proibidos - fugindo ao castigo porque o ho- RANK , por exemplo, sustentou q ue Júli o César se desenvolve
mem na "cena suja" não somos nós próprios. A literatura cha- em torno do parricídio e que Brut o, Cássio e Marco Antônio
mada pornográfica apresenta freq üentemente outra característi- s~ o ~ simbolicamente faland o. filhos de Césa r, T rata-se de uma
ca : a seguir ao prazer proibido, a punição condigna. Não é 11lpotese que não pode ser dirctam cnte demonstrada, mas que
verdade que TENNEssEE WILUAMS , em Doce Pássaro da lu- acaba por antolhar-se possível se seguirmos uma certa linha de
150 ASPECTOS DE UMA PEÇA
nF:I'IU:SENTAÇÃO
151
raciocínio. n uma questão ligada àquelas outras pessoas no
g édia pode muito bem ser representada por nós próprios e pela
círculo familiar a quem, quando somos crianças, toma~os co~o
membros da família: a ama, que é uma especle de mae, o tio, nossa identificação com o Pai; e uma comédia terá por base os
que é uma espécie de pai, o primo, que é um irmão mais velho nossos sentimentos a respeito de um punhado de arquétipos, "os
outros" . Estão em jogo dois processos psicológicos: a substi-
ou mais novo. O fato é que continuamos ampliando a nossa
tuição, em que as poucas pessoas do nosso próprio ambiente
família .dessa maneira enquanto vivemos ou, exprimindo-nos de
original são substituídas por muita e variada gente; e a identi-
modo inverso atribuímos a todas as nossas relações um lugar
[icação de nós próprios com outrem. Para analisar qualquer
na família que conhecemos quando éramos crianças. A peça
situação "interpessoal", deveríamos indagar: quem foi substituí-
do teatro da vida, tal como cada um de nós a escreve, tem ~m do por quem? E: com quem estou eu identificado?
elenco muito pequeno - embora para cada papel possam eXIS-
tir inúmeros atores substitutos. Se sentirmos que o nosso pró- Nunca será exagerada a importância que dermos à influ-
prio pai era tirânico, o papel conhecido com.o Pai pod.e~á .ser ência das identificações que todos nós praticamos. Embora, por
desempenhado por qualquer um a quem consideremos tiram.co. certo, não passemos a ser as pessoas que nos servem de modelo,
Se tivemos uma mãe do gênero carinhoso, o papel conhecido aquilo que passamos a ser depende do gênero de pessoas que
como Mãe poderá ser interpretado por qualquer um, mesmo nos servem de modelo. E êsse um elemento de educação que
do sexo masculino, que nos trate com ~imo. E~ sum~,. elabo- a era vitoriana compreendeu melhor que a nossa. As identifica-
ramos para nós próprios uma lista de tipos mUlt.o def~ldos e, ções no lar e, mais tarde, na escola, são tudo. Centrais na
longe de serem imprecisos e nebulosos como os !IPOS te~ fama dinâmica da existência e do crescimento, também o são nessa
de ser, sugerem-nos uma emoção forte e uma atitude nítida. arte tão mtimamente humana: o teatro. Até a Broadway sabe
disso . Os seus comentaristas sabem como explicar o fracasso
de uma peç~' pela ausência de alguém no elenco com quem eles
possam identificar-se. Precisamente em sua crueza, a dramatur-
IDENTIFICAÇÕES gia da Broadway serve para exemplificar uma tese que só apre-
sentarei em traços gerais: um elenco de personagens broadwaia-
Existe uma peculiaridade a respeito desses pequenos siste- nas consiste na pessoa com que nos identificamos mais o resto
mas. As pessoas não se incluem a si própria~ no. elenco" de da própria família aí colocada na forma que for mais rapida-
personagens e, assim, é impossível que alguém Identifique tôda mente reconhecível, incluindo o velho Tio Tom Cobley e tudo.
uma categoria de gente com cada uma dessas p~ssoas. :e o Os empresários da Broadway pressupõem muito poucas
inverso. Incapaz de se ver a si mesma, a pessoa tatela ~o es~uro, ambições espirituais no seu público. Não esperam que as pes-
adivinha e decide que é tal qual outra pessoa. Não Identifica- soas se . identifiquem com alguém de certa envergadura. Os
mos os outros conosco, mas a nós próprios com os outros. f: velhos melodramas eram mais audaciosos porque neles, pelo
ainda a família quem desempenhará o papel or~entado~. Um prazo de duas horas, qualquer pessoa se sentia um DoUGLAS
menino identificar-se-á provavelmente com o par. E nisto se ~AIRnANKs. Na outra extremidade situa-se o tipo de protago-
encontra outra fonte de arte trágica: nós próprios como grande rnsta que, provavelmente, está fora do nosso alcance _ o
deus Papai. Eis a raiz da idéia de herói: a identificação com a Bcckct de T . S. EUOT, por exemplo . Em Assassínio na Ca-
força. tedral, EUOT colocou um coro de mulheres para que nos iden-
tifiquemos com elas . São um pouco melhores do .que semi-im-
O mundo como eu já disse, consiste em nós próprios e
becis. Dessa maneira, a peça "intelectual" chega a uma con-
nos outros. Formamos um elenco de personagens extraídas do
clusão não muito diferente da do teatro "vulgar"; e não há
conjunto, e uma peça a partir da própria existência. Uma tra-
dúvida de que essa peça alcançou uma certa popularidade.
A SPECTOS DE ~{A PEÇA I1F:PR F:SF:NTAÇ .:O; O
152

EMPATIA P. ALIENAÇÃO tru Épico se r ia um te atro co mp leta me nte adult o se sem elhante
coisa [osse possível . Como ele escreve no seu Prospecto da
Ao desafiar os princípios tradicionais da dramaturgia, Sociedade Diderot:
BERTOLT BRECHT pôs em dúvida, em nossos dias, o valor da
identificação. A palavra era EinfiVllung, traduzida como em-
patia. Tal como empregada no princípio do século atual, por Só em décadas recentes se desenvol veu um teatro que confere
VERNON LEE, por exemplo, a palavra empatia tinha relações maior valor à apresentação correta do mundo, por meio do
com o processo mental pelo qual dizemos que uma montanha qual, a fim de se ajustar a essa correção e objetividade, os
se ergue da planície. Desde então, passou a comportar um dos critérios não-individuais deveriam ser consentidos. O artista
significados que VERNON LEE disse que não deveria ter, mais deixou de sentir-se obrigado a criar "seu próprio mundo" e,
ou menos o sentido literal de sich einjiihlen, "sentirmo-nos em" aceitando o mundo real como conhecido e inalterável , a enri-
outrem. f: simpatia sem a implicação moral ou a tônica sen- quecer o catálogo de imagen s que , na realidade, são imagem
timental. f: identificação. dos fabricantes de imagens; pelo contrário, sentiu-se obrigado
BRECHT também tinha uma palavra para o que considerava a aceitar o mundo com o alterável e desconhecido, e a oferecer
a alternativa teatral da empatia . f: Veriremdung - Alienação imagens que prestam mai ores informações sobre o mundo
ou Distanciamento. BRECHl pede-nos que não nos identifiquemos do que sobre si mesmo . .. O "olho interior" não precisa
com as suas personagens, mas que nos distanciemos delas. O de microscópio nem de telescópio, o olho exterior precisa
objeto deve ser visto como objeto, com assombro. BRECHT de amb os. Para o visionário, as experiências de outras pes-
pretende ter derivado essa última cláusula da ciência . A maioria soas são dispensáveis. A experiência não faz parte do re-
das pessoas considera ponto pacífico que as maçãs caem; ISAAC pertório do vidente ou do profet a. Nã o , o arti sta que assume
NEWTON ficou assombrado . No teatro brechtiano, o texto será a nova tarefa deve, quando procura comunicar imagens. ne-
um ISAAC NEWTON e fará Isaacs Newton da sua assistência. gar a si próprio os mét odos de hipn ose e até a necessidade
Não havia realmente necessidade de sair do teatro para seme- da habitu al empati a ...
lhante propósito. CoRNEILLE tê-lo-ia entendido perfeitamente;
e algo desse estilo está implícito na maior parte da comédia.
BRECHT está excessivamente confiante, talvez, ao supor Pelo qu e se pre sume que um hom em "da era da ciência"
pode tornar-se independente d o as pec to p rimitivo da sua pró -
que, quando abandonamos a empatia, podemos ver "o objeto
pria nature za ao ac eitar o pensament o.
em si, tal como realmente é". Não conta com o processo de
substituição, tal como o descrevi. E não tendo notado a inevita- Tudo na teoria teatral de BRECHT - de sde a luz branca
bilidade das identificações, ele próprio s6 as faz inconsciente- à representação "prescntacionista" - está dedicado à me sma
mente. Com efeito, a sua identificação inconsciente com os seus finalidade : substituir um teatro mágico p or um científico, um
supostos inimigos passa a ser uma fonte de drama não-preme- teatro infantil por um adulto. Obviamente, há muito que dizer
ditado . em favor disso. O que não se poderá dizer. porém, em favor
desse teatro, é que seja possível. No que diz respeito ao cres-
cimento mental, a expressão "crescer" é apenas, na verdade,
O ADuLTo E O lNFA...NTIL um modo de dizer . A pessoa mais madura está eriçada de
imaturidad es; a menos neur6tica das pessoas é ainda uma neu-
Este comentário sobre BRECHT põe em destaque a minha rótica. A raça humana não pode ser racionalmente dividida em
apresentação do teatro Co~lO um siste~a i~f~ntil, porquanto a dois grupos, o infantil e o adulto, pois a criança não é apenas
objeção de BRECHT é, precisamente, à infantilidade . O seu Tea- pai do homem , é também o irmão siamês do homem.
154 ASPECTOS DE UMA PEÇA n E I' Jl r: S F.N T AÇ ÃO
155
A única coisa estranha é que um artista não o saiba, pois súbito desen cadear da maturidad e física . M as o que acontece
a criança persiste mais tempo e mcn?s envc.rgonhada no artist,a aos dezessete a no s? Num sentido cr asso, nada ; contudo, essa
que em qualquer outra cla~se, e .mUlto~ ~rhsta~ sentem-se Ieli- idade é uma da s mais interess antes e cruciais , pois nas suas
císsimos por isso . Se voltei à pSlcol?gIa mfantl~ para a'pres~~­ imediações se encontra o local d e encontro do rapaz com o
tar o tema deste capítulo, fi-lo nos interesses nao da slmph~l­
homem, da menin a com a mulher . f: a época em que, se fôsse-
dade, mas da relevância. Pois o teatro dos adultos está muito
mos p ás sar os, se ría m os postos fora d o ninho, mas em que, por
mais próximo do pequeno sistema que as crianças elaboram do
sermos humanos, podemos ser enviad os para uma escola de
que o observador casual poderia imaginar, sendo a razão disso, arte dramática
como RrcHARD STERBA explicou, que "o prazer de representar
e ser espectador de uma representação teatral é de origem nar-
t uma, ~poca em que ~ luta do ad o lescen te com os pais, o
lar e a família se torna muitas vezes consciente e acrimoniosa .
cisista, através da regressão ao estágio de criação do mundo
Ainda não se está realmente preparado para a independência
mágico da primeira infância". BRECHT, que celebrou_ o gol~e
para criar a própria família. para abrir caminho à própria custa
administrado no narcisismo do mundo por GALlLEU, nao estaria
no grande mundo e, entretanto, é o que se gostaria de fazer _
acima de admitir a existência de elementos regressivos, narcisis-
ou algo um tanto mais vago, mas ainda mais demolidor. Com
tas e mágicos em todo o \'erdad,eiro ~eatro,. inc1uin~o o St;U, evi-
o perene desejo humano de garantir as coisas de um lado e de
dentemente. Têm seu lado negativo (imaturidade é imaturidade) ~
mas "voltar a ser como uma criança" tem seu aspecto positivo, outro, gostaríamos de assumir uma atitude de rebelião sem ter
que enfrentar as conseqüências das rebeliões . Gostaríamos de
também, e é um requisito não só da ética superior como de um
ir para outro país e permanecer naquele em que estamos . O
teatro superior.
teatro é outro país que podemos visitar sem deixar o nosso .
Um mara vilhoso p aís! O que a Rússia é para um comunista
não-russo, assim é o teatro para um jo vem de slumbrado pelo
FINAL DA ADOLESC~ClA
teatro : o lugar onde as coisas estão certas, em contraste com
outro s lugares onde tudo está errado . N ele floresce aquela li-
As crianças pequenas adoram vestir-se e fingir que ~ão
berdade emocional por cuja falta nós, os que estamos de fora ,
outras pessoas. Apreciam bonecos, fantoches ~ teatros de bn~­
ma! podem os re spirar . O mundo d e fora é duro de tragar, a
quedo. Exultam quando as levam a certos generos de espeta-
maior parte do tempo, e aos dezessete an os fazem os o noss o
culos. Todavia, ninguém pensará em afirmar que u~a, criança
derradeiro esforço pa ra rechaçá-l o. refu gian d o- nos no paraíso
foi deslumbrada pelo palco . Há uma idade característica para do teatro .
esse fenôm en o: o final da adolescência . Em algumas das esco-
O que ha verá no teatro que possa e xe rce r um a tra tivo tão
las de arte de representar, em que os estudantes estão, em sua
poderoso, tão sobrepujan te? Com certeza o se u fator mai s notá-
maioria, por volta dos dezessete anos de idade, é possível apre-
vel é a violênc ia da reação --;- só comparável com a do amor ir-
ciarmos grupos com a cegueira ou o deslumbramento do palco.
resistível. Por que só o teatro deslumbra com a força d e 11m raio?
A palavra "deslumbrar", nessa acepção, é apenas ap~ca­
. Ta~vez as pess oas que falam da magia do palco tenham,
da correntemente a duas coisas : o relâmpago e o palco. Dize-
madvertldamente . achado uma pista , embora a concepção cor-
m~s ' "A verdade' dessa idéia deslumbrou-me" . Mas não dize- rente de tal magia_não nos levasse lon ge, por certo. Sim, o palco
mos; "Sou um deslumbrado pela verdade", A luz da verdade
é sedutor. mas nao somos deslumbrados p or seduções ; somos
assoma, como no despontar da aurora . ~ a luz do palco que
apenas seduzidos . FR EVD chamou a atenção para o aspecto da
deslumbra e cega, , _ . .
mágica que talvez po ssa fazer sentido neste ponto. E: a mágica
Se deslumbrasse na puberdade, uma explicação se Im~ona :
como exp ressão d a ilusão de onipotência. No grande mundo, as
o teatro é uma extensão do rito da puberdade, a expressao do
crianças sofrem muit as vezes fr acassos e desgostos porque su -

-" . - - ---- -._-_. __ . _ - -- -


..
]56 ASPECTOS DE \'t-fA PEÇA III :I 'I\ E S ENTA Ç Ã O
157

põem que os seus pensamentos se concretizam em fatos, que os Embora alguns a considerem um produto do M ét odo STANISLA-
pensamentos podem por si próprios remover os obstáculos ao VSKY, ou mesmo do cinema, é possível de fato localizar suas ori-
pensamento. O mundo , dizemos nós, acaba por levar a melhor gens muito antes. Há, por exemplo, um comentário do século
e metê-Ias nos eixos. Mas suponhamos que elas não querem ser XVIII sobre a atriz CLIVE , que diz o seguinte:
metidas nos eixos? Não será o teatro um refúgio apropriado?
Esse pequeno mundo em que a fantasia reina? Onde os pensa-
mentos são, de fato, onipotentes? GARRICK queixou-se de que el a o desconcertava não olhando

A novela e a peça teatral fornecem a liberdade e continui- para ele durante a ação e esquecendo-se de observar o movi-
dade emocionais que a vida real nos recusa, e a liberdade que mento do olhar; uma prática que ele tinha a certeza de obser-
existe na novelística é, num certo sentido, elevada a uma potên- var C'o~ outra~. Receio bem que essa acusação seja, em parte,
cia mais alta no palco. Pois que, enquanto numa novela os senti- verdadeira, pOIS a Sr a CUV E consentia que seus olhos diva-
gassem . . .
mentos de uma personagem só são imaginados à nossa maneira,
no teatro parece que o encontramos em carne e osso - visto
que existe o ator que interpreta o papel - e aceitamo-lo atra- Observe-se a representação de qualquer cena íntima entre
vés dos nossos sentidos. Enquanto permanecemos sentados no ~~1 homem e l~ma ~ulher - digamos , a última cena de Pigma-
escuro, "mortos para o mundo" (isto é, para os demais circuns- lUlO:. Podemos Imaginar que um gr ego antigo ou um mais recen-
tantes), mas penetrando. através da quarta parede (o proscênio l, te fa do teatro clássico chinês ou Kabuki encontraria na nossa
na vida dos atores, estamos apenas a um passo da alucinação. re~resentação de Pigm~liã? uma falta. de formalismo e de pa-
E, se não formos espectadores, mas atores, essa sensação será drão, sem darmos um significado especial ao movimento dos pés
ainda mais aguda. Talvez seja esse elemento alucinatório no tea- nem uma beleza particular à maneira como o corpo se movimen-
tro que exerce um atrativo irresistível - pelo menos para os ta ou permanece quieto. "M~~ eles não fazem nada!", diria qual-
at ôrcs que estão, literal ou figurativamente, no final da adoles- quer um desses VISItantes, apenas olham alternadamente um
cência. para o outro e para os lados". E isso é essencialmente verdadei-
ro. Representar, em tal caso, redundou em concentrar-se nos
olho~ . E os olhos estão. sujeitos a esse paradoxo fisiol ógico: pros-
O QUE o ATOR DÁ AO DRAMATURGO segu!r ~Ihando neutraliza um olhar. Para continuar olhando, é
pre~Iso I~terrofllper a olhada e depois olh ar de novo ; daí, nas su-
No caso de um novelista passar a dramaturgo, poderá sen- :essl~as I.nt;rr.upções , todas as olhadas para os lados . Um olhar
tir, talvez, que realizou certos sacrifícios, mesmo que não esteja e mars dinâmico quando está começando do que quando real -
inteiramente de acordo com HENRY JAMES, que via o novelista mente acon!ece; e, tendo acontecido, diminui para um fitar arre -
feito dramaturgo como um sujeito que lançava a carga ao mar galado e pctrco o u um contemplar sentimental. Entre pessoas,
para salvar o navio. Contudo, se as suas peças forem muito bem um olhar tem sua conclusão quando é retribuído. O encontro
representadas, esse escritor poderá concluir que as suas perdas de olhos constitui uma espécie de centro de comunicação hu-
foram ressarcidas. ~ana . O. contato estabelecido é mais pessoal que o tato . O que
O que é que a representação acrescenta a uma peça? Muitas e ,c~munJcado .po~e-se prestar. a dúvidas, mas o que não está em
coisas. Mencionarei, primeiro, uma das mais simples, mas não dúvida é a ~Iva~ldade das linhas de comunicação. No palco,
a menos interessante: os olhos dos atores encontram-se. Isso trat.a-se da vivacidade dos atores, que eles acrescentam à vida
provavelmente não é verdade a respeito de alguns dos teatros multo ~enos dir~t.amente fisica do texto . Os espectadores que
mais antigos e de alguns dos orientais, mais no moderno teatro talvez tivessem dificuldade com o texto escrito não têm nenhu-
ocidental é uma característica hem estabelecida, se não essencial. ma ao reagirem fisicamente, por empatia, aos olhares mútuos

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~ . . ' - _. ._.-
158 ASPECTOS DE t 'M A PEÇA
1I1:I' IlESE:" TAÇÃO
159
dos atores . O palco, que transmite as coisas fisicamente, neuro-
logicamente, sensualmente, é um grande instrumento de popula- c;lllica c nã o se se g ue f'
_ " ~ qu e, se a voz o r proj cr ad » tOU '1 a rcprc
rização legítima. Inversamente, o espectador superliterário que selltaçao tenha " p ro jeção" . T em os de nccit : ' " -
p . ' uar qu e, neste caso
apreendeu com a maior facilidade as idéias de BERNARD SHAW, IRAND ELLO oferece a parte pelo todo "Viver" I'"
r'.ca fazer ,aI ' , r no pa co srgni-
go mais do que viver fora do palco' significa emitir
talvez não tenha vivido plenamente o dramatismo de uma cena
shawiana enquanto a não tiver recebido também dos lábios dos v,lda, torna-Ia a~dí~el e v.isível, fazer dela um pr'ojétil ue é Ian-
atores, através dos corpos dos atores, especialmente, através d09 i;:uO ~().bre o, publico, atingindo até as últimas filas cio
balcão
olhos dos atores. Usualmente quando dizemos que vimos algu- isse I:AN COCTEAU: "O problema n ão é levar vida ara .
ma coisa pelos olhos de outra pessoa, estamos aludindo apenas co , mas fazer que o palco viva ". p: , o pal-
aos olhos do espírito. No teatro, os olhos dos atores guiam-nos "al uc~a~~~'? ~tor ~fte~sifi;1 quand on ós , na platéia, temos uma
através do labirinto das cenas; e tudo o que nos une aos olhos , ' e a I usao. c essa a maneira de rep t d
dos atores é o magnetismo do olhar. No teatro, talvez não se- trads,ção clássica, que no século atual encontrou u;esp~~t~~voza
jamos guiados pelo instinto; somos levados pelos olhos. em , rANISI i\ VSKY O q t A,.
'1:- . . _ue os a ores cormcos mtensificam não é
Se uma peça, no teatro, mostrar ser alucinatória em sua vi- a I usuo, mas a agressao . (A tradição cômica foi recentemente
vacidade, será o ator quem, finalmente, a levou até esse nível renov~da ~el? mais agressi~o dos dramaturgos _ BRECHT,) A
de intensidade, acrescentando à peça, poderíamos dizer, o seu agrcssao comrca pode adquirir a forma de s áti h
ali t f Ira e ser c amada
retoque final. Se um papel for esquelético - e sobre isso falarei rca IS a, ou a orrna bem humorada e encomiástica caso
mais adiante - também o ator poderá colocar alguma carne qu e merece a uescrição de fantástica Em I " esse em
contribuição fundamental do ator nã , qua, quer dos casos, a
sobre os ossos. Alguns atores passam a vida fazendo isso para Jidade. ' ao e a nurmca, mas a vita-
autores ineficientes. Se forem estrelas, ouvimos muitas vezes
fazerem-se-lhes alusões depreciativas como meras personalida- ;- O_que. é, na verd ad e, aquel a espécie limitada de re rcscn-
des . A depreciação está deslocada , porquanto "mera personali- taç ,lo ta o eflca zmcnte pnti cad'j P " . . P
" ' " (,r <1 m lgos n ossos em reuni-
a rnancrrn d e imitação maliciosa? O ~ d . oes,
dade", na acepção aqui sugerida, é exatamente o que as circuns- " , ' . grau e scmelhança com o
tâncias requerem . que Jm!t?m e uma questão secundária, comparada com o
E, como vimos no capítulo sobre "Personagem", uma boa de mal ícia que p õem na imitação U I" b _ grau
t " d d . . ma Igeua o servaçao bas-
peça também pode ter o que os leitores de rornancesconside- ara, es e que mU,lta fantasia e malícia sejam acresccntadas
ram personificações fracas . Se não precisam de substância, 6 Nestc caso, ~ f~ntasla e a malícia sã o os veículos da vitalidade '
E
porque a peça sobrevive pelo seu enredo ou por uma combinação rn ?:/Ill elr~) lugar, a representação é testemunh .
de enredo, estilo e tema. Aquilo com que o ator pode contribuir art e dram ãtíca. nao do seu ca ráter imitar d o , , na
para uma boa peça não é o preencher suas lacunas - poderá exa~era~ivo , O dramaturgo é um im od e~~~~ m~~st~ sJ: .carat:r
não haver nenhuma - mas intensificar os seus efeitos. STANIS- se us efe itos a té os limites extrcm os O t : U ' impelir
LAVSKY tem razão: é fundamentalmente uma questão de ser ca-
acrescentando p ólvora à bomba
grandes '
O· . idc : aju a-o e secunda -o,
gran e ator parece-se com as
paz de " viver " no palco. E STANISLAVSKY supôs corretamente . peças em que, por baixo da calma formal que deve ser
que o que a maioria das pessoas faz no palco não está vivo. Fal- o seu_ aspecto normal, faz sentir uma violência imensa A .
ta a projeção c, no palco, não projetar é não viver . pressão dada é ~ de viver a uma grandc velocidade E ;'~Ivez I~~­
PIRANDELLO assinala argutamente esse contraste em Seis ja ISS?, como disse HEBBEL, o que sucede ao ator ' - ~ive "e~
Personagens, quando duas das personagens falam sem projetar vcJ?~ldade, numa velocidade inimaginável " A idéia de H
suas vozes porque na vida real as pessoas não projetam a voz. é útil para a compreensão de toda a arte dramática Em EBBEl
O resultado é que essas personagens não estão vivas no teatro, descrevcr o t~atro como uma forma resumida, abre'viada vez de
Ora, a projeção da voz é uma questão comparativamente me- se alguma COIsa lhe estivesse faltando, deveríamos citá-I~ como
uma arte em que se percorre mais terreno em menos ternpo .
160 ASPECT OS DE UM A PEÇA
n F.pnES E~'TA ÇÃ O
161
o QUE O DRAMATURGO DÁ AO ATOR
GOElllE Só o conseguiu ocasi onalm ente - corno no caso do seu
Mcfist ófclcs, que salvou Fau sto para o teatro.
Se o ator ajuda o dramaturgo adicionand? sua pre~e~ça
e sua vitalidade (para não mencionar sua capacidade profissio- Há um momento em que todos poderíamos sentir, com
ETIENNE SOURIAU, que a proeza heróica do dramaturgo é dar
nal), o dramaturgo auxilia o ator escrevendo não apenas u~a
exi stência a personagen s. E o momento em que es sas persona-
personagem , mas um papel. Talvez seja esta a mais esquecida
gens entram no palco e demon stram sua existência _ é o mo-
de todas as tarefas do autor teatral, pelo menos, entre os estu-
dantes de literatura. Só é entendida na medida em que se com- m ento em que as personagens se revelam como papéis. E co-
preendem as diferenças entre dramaturgo e. novelista. Este usa mendo que se prova o pudim . E como se, no teatro, a existên-
artifícios mas num quadro natural (cenário natural, persona- cia física do ator fosse necessária para completar o sentido do
gens nat~rais); o dramaturgo usa artifícios num quad~o ~rtifi­ verbo existir . Essa impressionante, expressiva encarnação de
personagem que é um papel interpretado por um ator constitui
cial (papéis cênicos no meio de cenários de palco). T~I.s sao as
um instrumento de tão singular poder que, por algum tempo,
regras do jogo, as condições que controlam o exercicio des~a
pelo menos, deixamos de anelar as vantagens apregoadas de ou-
arte. Enquanto o novelista tem a ilusão de ver personag~ns r~als tras formas e artes.
em ambientes reais, o dramaturgo tem de aprender a vlsualiz~r
o ator da personagem e a visualizá-lo, para cúmulo, no mais O que vem primeiro, a personagem ou o papel ? Somos
inatural de todos os cenários: um teatro . propensos a imaginar que um escritor com eça co m um a pcrso-
nagem c, se o seu talento dram ático for bas ta n te, desenvolve-o
Uma personagem só é um papel, para começar, depois de de modo a assegurar-se de qu e também se rá um p apel. Isso
ter feito aceitar a sua atuação numas poucas cenas. Qualquer acontece porque vivemos numa id ad e liter ária . Numa idad e tea-
idéia de uma personagem que não possa ser transmitida com tral seria ao contrário. O ator aí cst a va, pr ecisando de papéis.
essa rapidez e por esse método é inadequada para a arte dram~­ dc falas, versos para diz er . I\lgUl~1J1 lhe e ntreg a va um papel. Só
tica. Inversamente, uma idéia para uma personagem, que sugi- por muita sorte conseguiu alguma co isn qu e mer ecesse o nome
ra oportunidades para muitos encontros violentos e fá~eis de en- de personagem . In vestig and o a inda m ai s lon ge na história, en-
tender em cena, poderá resultar comprovadamente eficaz, mes- contramos U/Il rep ert óri o de pcr sonagen s fixas, que os escritores-
mo que lhe falte complexidade e profundidade. Es~a segunda atore s reanim a vam com o personagen s autênticas. As sim era a
proposição começa a explicar o êxito de certos papéis, como o commedia de [fart e .
de Marguerite Gautier, que de maneira alguma se podem con-
siderar grandes personagens. Criar dramatis personae que se-
jam simultaneamente grandes como papéis e personagens é ser,
nesta esfera , pelo menos, um grande dramaturgo.
Alud i :1 o p ac ida de d o a to r pa ra p reen cher. d ar volume,
A questão é sutil e não tem sido suficientemente estudad..a,
às per sonagens d e peças med íocres . F o que os atores têm feito ,
em parte porque as possibilidades tot~is ~e um papel s6. sao
CO/ll Ircqii ôncia, é não só encher um papel , mas transformar
reveladas por uma representação de pnmeira categona e, ainda
uma peça . Essa afirm ação não está sujeita a prova do cumental,
em parte, porque os fenômenos histriônicos não têm sido. con-
visto qu e o fen ômeno é precisament e o .dc transformação de um
siderados, tradicionalmente, dignos de um estudo pormenonzado
documento num n ão-document o - um esp écim e de arte teatral.
que se debruça, de modo magnânimo, sobre outros assuntos de
O mais pr óximo qu e podem os ac e rcar -n os d e tal prova é num
menor interesse. Todos podem ver, por exemplo, que Goerns
exame cuidad oso d os rel atos sobre o acon tecim e n to teatral. Ape-
foi um gênio muito superior a SCHILLER. Este, porém, foi capaz
sar dos milhões de palavras destinadas às notícias teatrais c à
de escrever personagens que também foram grandes papéis.
chamada crítica na imprensa , há escassez de tais relatos. Mas
nEPnES E l"'TA ÇÃ O 103

aqui tern o s uma :ulIoslra .' extraída da 1110numental bio!!r:lfia de nar ia rnc ntc elaboradas de scns ih ilid ad c, vio le nta m e nte inter-
Sir l lcn ry lr viru; por La urcn cc Inin !!. t\ peça . L u is Xl . de n :1U- rompid as por espasmos de vig or, perde gradualmente cons-
C1CA lJI.T. é um nn-lodrnma hist órico com um di álogo insuport a- ciência. Nenhum detalhe físico é desprezado que possa aJu ,
vclrncntc bomh ástico e vaz io. Só quando apuramos o que acon - dar a realizar um afundamento de corpo e espírito na morte
teceu 110 palco é que podemos fazer uma idéia do que seria real- aniquilad or a . A voz e a articul açã o têm a espessura chocante,
meio ébria , da paralisia. Até o efe ito observável nos velhos e
mente essa pe ça .
doentes, de passar os lábios murchos sobre a dentadura afun-
. . . O Rei está na so lid âo de seu quarto d e dormir. Aí tem d ada . foi simulado de algum m odo . A dificuldade de realizar
lugar a sua extraordinária confissão a Francisco de Paula . semelhante concepção de dissolução, numa cena em cujo de-
pr o lc rid a com grande efeito em toda a sua arrepiante fran- curso tinham de ser tr atad os assunt os como a sentença final
que za e incorri~ível impen itência . E é quando . após o santo de Ncrn ours e a entrevista com C o itie r, o curandeiro que vem
pad re retirar -se. o m onarca é subi ta m e n te preso de um terror de uma masmorra com os restos de grilhetas nos pulsos, con-
abjeto . pelo aparecimento do vingativo Ncmours, Segue-se vocad o por um rei que ali o metera, deve ser extrema; ma"
uma cen a terrível - primeiro de dese sperada s úplica de rui- Irving supera-a brilhantemente e dá-nos um quadro de gra-
scr ic órdi a e. depois . quando N crnours concede a vida ao rei, duaI e pl ácida, mas horrenda morte , como acreditamos que
com de sd ém e repugnflncia, um medonho paroxismo de raiva nunc a foi representado antes . Talvez o maior êxito fosse a
e alucinação . quando o velho. repentinamente rejuvenescido quieta e silenciosa impassibilidade em que o lei mergulha tão
de excitação desesperada, precipita-se para o que supõe ser o absolutamente que os cortesãos e seu filho já o supõem mor-
Duque de Nemours e violentamente golpeia no ar . até cair to. A verdadeira morte não é tranqüila . O rei luta por erguer-
desfalecido nos braços dos que () cercam - uma situação de se e ca í sobre uma almofada. a cabeça voltada para o público,
grande Iorç a e interpretada da maneira mais espant osa . O enquanto o abafado murmúrio " o rei está mort o. vi va o rei "
gr a ndc Rei Luís entra de mant o e cet ro. a morte est ampada procl am a o desfecho da longa . long a bat alha de um espírito
em seu scrnblnntc . o físico reduzido ;\ expressão mais simples que parecia indomá vel com as fraqueza s e torturas de que a
de debilid ade . Longos cachos de cabelos grisalhos tombam humanid ade pode ser presa , e se m a consolação de nenhum
sobre os se us ombros em des alinho . A fisionomia denota uma d os leniti vo s com qu e os so fri me n tos se mitig am. Animada
es pé c ie d e d igllidaue . qu e não se via a n te s. e xtraíd a d essa ; n as pa ssagens inici ai s p o r lim a tra ns bord ant e comédia e ar-
m udan ç as. se hem que tal f igu rn nunc a pos<; a se r verdadeira - n sti cam c ntc elev ad a atr a vés de inúm er os ep isó dios trágicos
mente ve ne rá vel . . . e também da nature za nhs n rvc n lc do da mai or força . assim é essa tã o fam osa in te rp retaçã o.
confl ito qu e Luís sustenta com seus pode res em vivivcl d eclí-
nio. Nes sa hora de extrema ex austão mental. mergulhando
A po ssibilidade de uma bo a a t u a ção num a peça má é co-
m omentaneamente num verdadeiro cstupor. logo em coma
nhecida . Menos conhecido é o fato de que a atuação pode real-
e depo is na morte . . a cxtrordinária determinação e vontade
mente mudar o gênero de uma peça , convertendo, por exemplo,
do rei ainda re vela uma energia maravilhosa . Mas nunca se
vira um quadro tão impressiona nte de prostr açã o e decadên- um melodrama barato em alto melodrama , tornando até este, por
cia em vida . Perdeu por um m omento o apoio do espalda r vezes, numa espécie de tragédia . Um exemplo do último caso
de um canapé. e a forma vacilante tropeçou pa ra a frenle, é Os Sinos , de L EOPOLD LEWIS , tal como foi interpretado por
de um mod o que transmitiu um penoso sobress;llto a toda a lR\'rNG. De acordo com a concepção original, o protagonista
assistência . O cetro cai. depois de ser usado de cabeça para era um vilão. IRV1NG, em parte por alterações no original mas
baixo como um bordão. c é esquecido . Depois . convencem muito mais por sua encenaç ão da peça, converteu o protagonista
o re i a sentar-se num a poltrona e. com gradações cxtraordi- num bom homem com um ponto fraco .
16-1 ASPF.CTOS DE UMA PEÇA II Ef'IIE.~ E NTAÇÃ O
165
Mas importante, aqui, é o fato de que a representação pres-
Entendid o o caráter hipn ótico do teatro melodramático
ta-se a certos efeitos não atingidos por qualquer outra arte . O
vemos a uma nova luz o fato desse teatro apresentar freqüente~
fato das fantasias de um dramaturgo serem mediadas por seres mente, na verdade, casos de hipnose e estados mentais afins
Por desconcertante 9~e a cena de Ricardo Il l com Lady Anne
humanos reais altera a psicologia de toda a comunicação. Um
LEOPOLD LEWIS poderá ter infundido muito pouca vida em suas
possa ser para as vitimas do moderno naturalismo trata-se de
palavras, mas se as palavras nos chegarem através dos lábios U~1J esp écime caracteristicamente hipnótico de mel~drama . Os
S/!IOS, de LEWI~, tão rudimentar em vários aspectos, atinge seu
de um SIR H F..NRY IRvING, estamos perante uma vívida, palpitan-
te humanidade, de um modo mais direto do que em meras pala-
c1~m~x nU~la b.nlhante utilização de hipnotismo. O protagonista
vras, quaisquer que sejam. No teatro, o nosso contato c~m o ~tor
nao ,e ? hIpnotIzador, mas o hipnotizado. Enquanto hipnotizava
é a nossa experiência primária. Só uma pessoa que nao .estIver
o pubII:o , SlR HENRY IRVING era hipnotizado por um colega
familiarizada com o teatro poderá não levar em conta a Impor- ator. Nos , os espectadores hipnotizados, identificamo-nos com
tância do ator e proceder como se estivesse lendo, através dele, o ~r~tagonist a hipnotizado. Nesse exemplo, vemos não a contri-
as linhas escritas pelo autor. Não é suficiente dizer que o ator buição do ~ut or como tal, mas a sua contribuição para um mais
é uma espécie de co-autor. Ele tem certos meios à sua disp?si- vasto padrão. Obra despida de sutilezas, Os Sinos é extrema-
ção que nenhum autor pode con~r?~ar. Entre. ~s . ~e menor Im- mente sutil na relação que, graças a um grande ator, pode esta-
portância contam-se a mera audibilidade e visibilidade. O que belecer com a assistência. Há um pirandellismo primitivo no fa-
conta é a presença. to da relação co.m o público passar a fazer parte da peça em si,
O que uma pessoa diz numa carta é uma coisa; sua presen- por uma analogia com a ação apresentada em cena .
ça numa sala é outra. Uma presença não é apenas vista e ouvida;
é sentida. Nunca "nos sentimos os mesmos" quando sabemos
~.o teatro, fenômenos como Svengall e Drácula não são ex-
centncldades,., mas prot ótipos. Embora suceda que essas duas
que outra pessoa está presente. Daí,o choque, quand,o s~?itamen­
personag.ens ~a eram populares na ficçã o antes de chegarem ao
te descobrimos que não estamos sos. Ora, se ISSO e válido ~ara
p.alco, nao ha comparação, em am bos os casos , entre a pot ên-
qualquer presença, que dizer de presenças ~e um extraordiná-
era da novela e a da peça represent ada. A presença física no pal-
rio poderio? Pois, obviamente, as pessoas diferem no grau em
co pr?d~z nesse caso uma diferença essencial. Não é no silêncio
que suas presenças se impõem. Na crítica teatral, o. poder de
das ~lb!Iotecas, quartos de dormir o u cozinhas que os amantes
presença é o principal significado da palavra personalidade , ,
da . hipnose e do va mp irismo so ltam gritos estridentes e des-
O atuar começa efetivamente com esse poder, e atraves
mal~n~. f: no teatro, onde tais arrebatamentos constituem uma
do seu uso torna-se dinâmico . O caso extremo de tal uso seria tradiç ão que vem desde os gregos . E, conquanto IRVING se di -
um ator que literalmente hipnotizasse o seu público. Nunca ou-
vertisse acum~l~ndo Pelion e Ossa, ao adicionar o seu hipnotis-
vi que semelhante caso já se tivesse registrado alguma vez; con- mo, ao da est ória, de modo geral, personagens como Svengali e
tudo, existe um certo grau de hipnotismo em toda a represen!a- Dr ácula tornam -se cad~ v~z menos necessárias à medida que
ção. Eu não diria que uma atuação é boa a ponto de s~r hl~­ aumenta o poder do propno ator. EDMUND KEAN era capaz de
nótica, mas tão-só que é melodramática a ponto de ser hipnôti-
fazer loRDE BYRON desmaiar e as mulheres terem partos prema-
ca . A atuação hipnótica desempenha um papel no melodrama turos, sem precisar de tais ajud as do enredo.
não muito distinto ao do ambiente magicamente hostil e, enquan-
A prcposito, embora sua fama póstuma seja a de um ator
to o ambiente é a especialidade do romancista, a atuação é a
shakespeanano, no seu tempo KEAN tinha outro tanto de herói
especialidade da arte teatral. f: por seu intermédio que o públi-
de ~elodral~la popular..Não seria seu m étodo, precisamente,
co pode obter certas experiências _ .na pior das hip~teses, ce~­
de stlOad? a Illlpregnar e Inflamar o texto shakespeariano com o
tas sensações - que seriam impossíveis de reproduzir pela lei-
seu sentido pessoal do melodramático? O que, se nos libertar-
tura de um livro.
mos dos preconceitos vulgares contra o melodrama, não parece-
"~I'I:CT()S nt: t '~IA I'EÇA 1\1: "III :~ E:'\L\ Ç" .\ 1) 167
!(i(l

d ivc rsâo - - se, pur cxcm~lo, lhe contar est órias o ivertitlas, Ruser.
r;'t UIlI procedilllel1lo crr ónco ou dcsprczfvcl. Repetidamente
tcicmunhamos o fracasso da representação não-melouramútica
chapéus engraçados ou souber um truque ou dois de prestIdlgita~
de SIIAKE5I'EARE. Os ganhos obtidos pela gcração de GRAN\'IL- ção , O ator é, sobretudo, companhia, e nós lhe agradecemos o
I.E-B ..\ RKER CI1l gosto, bom senso e [idclidadc literária foram uma
prazer gue nos dá
perda em pura tcatrulidadc . Representou, portanto, um prejuízo Mas é companhia de uma espécie muito particular. Des-
para o teatro - tr úgico ou mclodrurnático. Ao rejeitar a má re- fruto a sua companhia, mas ele não desfruta a minha. Nem se-
prcscntação mc lodram áticn, o século XX caiu no erro de conde- quer s:lbe que estou ali. E isso me agrada e, em parte, explica
nar a reprcscntação mclodr amútica como tal e, hoje, a tarefa a totalidade do complexo. Na vida, estamos freqüentemente sós
dos atores é redescobrir e recriar a grandeza perdida. e, no entanto. quando surge companhia, sentimo-nos confusos,
embaraçados, "comprimidos no meio de muita gente". Conquan-
to a vida nunca nos consinta tcr ambas as coisas, é missão da
A OCORRf:NCIA TEATRAL arte fazê-lo. E descobrimos que o teatro mitiga a nossa solidão
sem nos impor a praga das companhias. O ator não pode esco-
lher uma pessoa na assistência e falar só para ela. Se isso algu-
ma vez ocorre - quando, por exemplo, um comediante impliea
com um espectador - isso constitui especificamente uma agres-
são à convenção, uma exceção que confirma a regra. Tendo a
companhia do ator, é um prazer não ter que fazer coisa alguma
a esse respeito, ser delicado, responder visivelmente etc . No tea-
tro, não temos que mostrar-nos agradecidos, porque a nossa
gratidão foi paga a dinheiro antecipadamente na bilheteria, co-
mo nas casas de reputação ainda pior.
As nossas relações com os demais componentes do públi-
co são igualmente ambíguas . Aí estamos, sentados ao lado de
estranhos, para compartilhar de experiências de uma considerá-
vel intimidade . t um tanto promíscuo. Ao que se disse sobre a
bisbilhotice dever-se-ia acrescentar que se trata de uma b.sbilho-
tice orgíaca, coletiva, à Fanny Hill . As "criaturas culpadas"
que se sentam "para ver uma peça" estão mancornunando em
suas culpas : h;í urna cumplicidade entre todas. Fazer tal coisa
acarreta sua Schndcnircudc [mal ícia ], COIlJO os especialistas no-
taram . HANN5 SACI/S. por exemplo. atribui todas as experiências
dessa natureza a um modo infantil de fazer que outra criança
participe em suas' divagações e compartilhe de sua culpa. O
título da ~lOnografia de SAC/i5 é já por si suficiente para sugerir
uma teoria do teatro: Gemeinsamc Tagtrdume - "Divagações
em Comum" .
. Depois. ternos ;~s relações com outros componentes do pró-
pno grupo , em particular. 1':: sociável convidar pessoas para o
teatro? O moti vo será provavelmente sociável, em parte, mas
168 ASPF.CTOS DF. L'MA PF.ÇA 1l 1 : 1 '1l ' : ~ I ::"L\\, ,'i()

com a mesma facilidade poderá ser anti-social, também em ~arte:


ccr. i t:mto challl;Jr-sc amor quant o aqui lo que (l ator sente. Mas,
Ficamos aliviados da responsabilidade, no fim de contas, nao so
de falar com os atores, mas também com os nossos amigos. apesar de tudo. quã o espectral ! Se os espectad ores individuais
niio :: iio os obj eto s desse amo r. qu em é então '! Em que part e da
Logo que a cortina sobe , em que sentido estamos ainda "com
pl :I !L:I:l L' SSL' ~lcrra l ll a llle n ro de am or vai reallllen !l' cai r'! Se o pa-
eles"?
pei do a!o r L' um espec tro . a assi<;fl'ncia é o espectro de um es -
Na verdade, em que sentido aí estamos, de fato? Quem,
pect ro. A mci:l-noile, qu and o (J a tor deixa tombar seu papel,
no teatro, está relacionado com quem e como? Durante um par
pnssa a mostr :lr-se como UIlI hom r rn, mas. quando o público
de horas, cornprazo-me na companhia de meus amigo~, t~m.bém :1!J:l1ldona o .\'( ' /1 pap el, d e ~ apare ce . Às pessoas que deixam o
me refestelo descontraidamente no prazer de sua ausencia Ima-
teatr o n.io s:\O " pú blico": s.io fu1:J nos e sicranos a quem o ator
ginada, enquanto dedico a minha atenção a um breve romance 11110 se dirigiu.
em que me deleito na companhia de . " eu. disse os atores? f:
Afirmar qu e a ocorrê nci;) lc:llr,d. o cspc t.iculo, assinala o
com as personagens que realmente me comunico, e os atores des-
~r()blcn~:l de ilusã o e . realid ad e, co nfundindo-nos sobre o que
pirão seus papéis por volta da meia-noite, passando a s.er perso-
(' que (' e onde IWS Situamos , no meio disso tudo , constituiria
nagens que não conheço, devolvendo-me os meus amigos que,
uma gro sseira 1I1i Slifi c:1S-iio . A ocorrcn cin teatr al é um exemplo
subitamente, ficam de novo "ao meu lado". Cuidado com as supremo de t al co nfus ão : e PIH A N n rL L o é o seu fil<ísofo .
confusões! Os cavalheiros que se precipitam para a saída dos
artistas, e insistem em travar conhecimento com a primeira
atriz talvez não sejam suficientemente fortes para enfrentar as f) r s F J\ ! l' r ~I I,\ R
cons~qüências. Poderão casar com ela (o que fre~üentemente
nr(r :-"'( · ·\I( . RI I'I ( I S F " r.vu .

sucede), mas se julgam estar desposando a protagonista da peça


- e estão exclusivamente interessados em casar com a protago- repetir o
nista da peça - então o divórcio vem em seguida e terão de
procurar seus fogos-fátuos noutra parte.
Uma pessoa começa a sentir-se como um espectr? quando
tenta imaginar seu próprio lugar nesse esquema de cOlsas._ Mas
quanto mais espectral é a experiência do ator! A sua tentaça~ de
amar a heroína é muito maior; para começar, suas oporturuda-
des são melhores, e ele sabe-o. Mas não é menos propenso do
que o espectador a confundi-Ia com ~s ~apéis q~e el~ represen-
ta. Essa é uma das razões por que o índice de d~v6rclOs na pr~ ­
fissão de artista dramático é tão elevado. DepOIS, há a relaçao
entre o ator e o seu público. Eu disse que ele não pode relacio-
nar-se com qualquer de nós, pessoalmente, mas tem, impessoal-
mente, uma relação (para ele) quase irresistível conosco. Po-
derá ter até ingressado lia profissão artística por causa da sua
necessidade dessas relações. "A necessidade de ser amado",
como explicam ele e o seu psiquiatra. Há diretores no teatro de
Nova York que convidam os atores a de~pejar "amor, . v~rd?­
deiro amor" sobre o público. A esperança e de que a assistência
retribua . E ela pode realmente reagir com um calor que rnere-
170 ASPECTOS DE UMA PEÇA IIEPJlES E NTAÇÃO
171
se rCf~ctem de novo. O ritual não seria ritual se não fosse cons- do e apreciado, poder-se -á dizer então que a criança não está
tantemente repetido . E assim , se a vida é ação, não deveria apenas representando, mas interpretando um papel.
sU!]Jrender g ue a representação tcatral - a rep'etição de nossas . Seria uma psicologia rudimentar, na verdade, aquela ue
açõe - seja uma a rte universal. vls.s e a representação como um recurso da infância, a ser ~s­
Pode-se confiantemente afirmar, sobre tal arte, que, se al- tenormente abandonada. "O mundo é um vasto palco, e todos
guma vez se extinguisse, seria reinventada pelas crianças de dois os ~omens e mulheres meros atores" ou, nas palavras escritas
e três anos. As crianças dessas idades, abandonando como ~a fachada do Globe Theatre: totus mundus [acit histrionem _
irrealizável a noção de serem pessoas crescidas, no tamanho todo mun~o faz o histrião". Até em nossas conversas cotidia-
adulto, tornam-se pequenas imitações do adulto e, como tal, nas se admite que as pessoas adultas estão freqüentemente "re-
atores da comédia humana. Isso pode ser considerado uma par- prese~tando, apenas ", "interpretando o seu papel" "dand
show '' e I - d'" , o um
te do processo educativo, como tem freqüentemente sido. Apren- os a cmaes izern: Machen Sie keine Oper!" ("N-
demos a ser adultos fingindo que somos adultos. Ao que alguns Iaça um~ ópera!." ~ A limitação dessa noção popular d'a histri:
psicólogos acrescentam que a representação nas crianças tam- rua na_vIda c?tldlana é o fato dela estar marcada' pela desa-
bém é experimental. Isso significa não só que adquirimos (por provaçao, aplicar-se unicamente a uma atividade hipócrita
exemplo) um vocabulário adulto mediante a repetição do vo- pressupor que _ a maior parte das nossas ações não é teatro
cabulário adulto, mas que o mundo dos jogos e brincadeiras é ou represe~taçao. A opinião mais sofisticada concede que a
uma oficina ou laboratório para experiências por tentativa-e- representaçao tende. a caracterizar o comportamento humano
erro. Sem dúvida existe também um aspecto defensivo nesse em _gera.l. ,Com efeito, fazer tal concessão, nos países angIo-
processo . Não tendo dominado o mundo "real", pela repre- sax~e~, Já, e ser sofisticado, visto que a nossa tradição nessas
sentação construímos um refúgio, um abrigo cuja inviolabilidade matenas. e puritana e retrógrada. f: para um irlandês como
protegemos ciosamente. S~{A w dlzer-~o~ que o ator é o menos hipócrita dos homens,
~lstO ser o UI1ICO que reconhece estar representando . É para
Brincar, representar, desempenhar: é difícil dizer, quando
lrla~dese.:c; C~J110 Wn.DE e YEATS explicarem-nos que a nossa
se observam crianças de três anos de idade, em que ponto acaba
o~çao na~ e entre máscara e rosto, mas entre boas máscaras e
a brincadeira e começa a representação . O puro desempenho mas. E c pa~a o espanhol SANTA YANA , estimulado por Boston
pareceria pertencer mais especialmente a uma idade ulterior, e I.Iarvard, afirmar. com altivez, que a m áscara é a única alter-
em que as regras são entendidas e aceitas. Os jogos são uma nati va p~r~ a fol.h~ de figueira , sendo esta , "apenas, uma más-
espécie de arte abstrata, toda geometria e números. O que uma cara mais rgnornlníosa " .
criança de três anos principalmente faz possui um elemento de
"fazer de conta" e, portanto, de representação: há um papel e
há uma ação teatral. Mas não é uma representação verdadeira N,esle ml~nd ~ r,diz SANTAYA NA, em Soliloquies in England],
porque não existe público : ela não está representando para ser de vemos m strt uir formas convencionais de expressão ou no
observada, notada, apreciada, suscitar prazer noutros. As crian- caso contrário, fingirmos que nada temos a expressar. •
ças, notoriamente, têm consciência de assistência, isto é, dese-
jam ser notadas, apreciadas, suscitar prazer, mas o que primeiro E ainda :
exibem ante o seu público não são as suas criações de "fazer
de conta", mas suas conquistas da "realidade". Se o adulto for
incluído na dramatização, sê-lo-á como um colega ator, não
o que .. . . poderia ser mais esplend oro samente sincero do
que o impul so para repre sentar na vida real , erguermo-nos
observando a fantasia, mas participando dela . Só quando o im-
com a o nda nascente de cada sentimento e deixá-Ia rebentar
pulso de representar se combina com o impulso de ser observa- à sua vontade, na espuma do exagero? A vida não é um meio',
172 ASPECTOS DE UMA PEÇA R EPRESENT AÇÃ O 171

a mente não é lima escrava nem um fotógrafo: tem o direito em nossos dias , dos médi cos . E os d out ores, espe cialmente os
de encenar urna pose, assumir uma atitude de panache, criar de certas escolas, observaram c aceitaram a tendência humana
quaisquer alegorias prodigiosas que queira por simples di- para considerar este mundo um teatro. Na Psicanálise freudia-
versão e pelo regozijo que daí lhe advém... Enfeitar a ex- na, são atribuídos ao terapeuta todos os pap éis de co-estrelato
periência não é prestar falso testemunho contra o próximo, pelo paciente, o qual ocupa , evidentemente , o papel de astro ou
mas depor a verdade para nós próprios. estrela principal; e tem lugar, então, a grande reapresentação
das cenas de infância, numa montagem de cinco atos por se-
mana, durante todo o tempo em que durar a neurose, o dinheiro
Semelhante filosofia, que poderia ter sua origem num trecho
ou o paciente.
de As Leis, de Platão, faz-nos ver o jogo, a representação, a
interpretação cênica, não só como naturais e infantis, mas tam- Um prestigioso terapeuta, J . L . MOR ENO, objeta contra
bém como uma realização humana e um objetivo adulto. Se, o método freudiano argumentand o (se me permitem paraíra-
como fenômenos da infância, parecem constituir apenas, para se á-lo) que está longe de ser sufici ent emente teatral. "A men-
os clínicos, a preparação para uma vida adulta "séria", o filó- te é um palco", dizia um relator do método de MORENO . Na
sofo poderá pôr em dúvida o valor da seriedade - a noção opinião de MORENO, o homem silencioso, invisível, que toma
puritana de maturidade - e colocar na meta da experiência notas atrás do divã, é muito pouco teatral, assim como o sujeito
uma infância renovada, uma segunda fase de brincar, uma ino- falador que está deitado no divã, olhos no teto, dizendo tudo o
cência recuperada . Tal idéia tem razões tão boas para reivindi- que não seria capaz de dizer olhando o rosto de alguém. A
car ortodoxia quanto a contrária, a noção puritana (ulterior- vida é uma peça de teatro bem sucedida , em que as pessoas se
mente, mais adotada, talvez, pela gente de ciência que pela reli- sentam e caminham à vontade, em que o diálogo é recíproco,
giosa), pois qual é, afinal, a concepção tradicional de bem-aven- em que as pessoas gesticulam umas para as outras e olham-se
turança celeste? Sua imagem, na forma que nos é familiar, se nos olhos, quer por motivos de interesse, afeição ou antipatia.
bem que vulgar, é a de anjos sentados sobre nuvens, tocando Viver é existir com todos esses mei os de comunicação pessoal
harpa - anjos tocando, anjos representando, anjos interpretan- direta, atuando espontaneamente . A neurose, ou o fracasso de
do. Condenados, como talvez nos vejamos, a comer o pão com viver, é existir sem ' tal espontaneidade, com medos e ódios que
o suor de nosso rosto, só o fazemos na esperança de um festival interferem de tal maneira que (num ca so extremo) fugimos de
celeste de canções ou uma divina vaia. outras pessoas ou as atacamos . Nesta conformidade, MORENa
argumenta que nenhuma cura pode ser tentada sem fazer com
que o paciente influa diretamente no drama que deseja viver .
PsrCODRAMA Como será isso possível? Um dr am a tem vá rias personagens.
Que acontece às outras, além do paciente? MORENO recorre
ao próprio princípio do teatro: substituição de uma pessoa por
outra, desempenho de um papel. Ao terapeuta são distribuídos
papéis, não só na imaginação do paciente, como no método
freudiano, mas fisicamente, num palco. Terapeutas auxiliares
entram em cena para encarregarem-se de outros papéis . O pa-
ciente tem de os defrontar, e não só em reconstruções do passa-
do, como na reconstituição de crimes pela polícia, mas em cenas
que surgem de novo, no instante presente . Tudo isso (para
completar o circuito teatral) com outros pacientes observando
174 ASPECTOS DE U~IA PFÇA nEl'n ESE :" TA Ç ÃO 175

-- iSIO é. a descoberto de "os outros", acontecendo em socie- pensamos que não estamos expressam ente impondo-nos, mas
dade, no mundo. sendo discretos e apagados , estamos de fato impondo-nos como
A reação instintiva de cada um de nós é: "Eu jamais seria pessoas discretas e apagadas. A taciturnidade é volubilidade
capaz de fazer isso. Preferia sumir no chão!" Mas apurou-se invertida. O silêncio, na companhia de pessoas, não é um nada,
que as pessoas, após um período de "aquecimento", animam-se mas algo - e um algo feito aos outros, quer por deferência ou
a "fazer isso", e não há grandes problemas para conseguir a por insolência. Um dos comentários de maior profundidade de
encenação dos dramas familiares das pessoas, de maneira es- FREUD foi a propósito de sua observação de que as pessoas
pontânea c vigorosa, no palco "psicodramático" do DR. Mo- se trairão, acabarão denunciando-se. Desejam fazer isso, embora
RENO. Qual o êxito terapêutico obtido pelo método não é as- pensem que não, de modo que facilmente deixam de realizar
sunto para ser tratado aqui , nem abordarei a preferência de suas aparentes e mundanas finalidades "objetivas", a fim de ...
MORENO pelos seus dramas "reais" aos que são escritos por "apresentarem-se tal como são" . Embora isso possa levar-nos
dramaturgos. Fiz esta descrição do que entendo por psicodrarna, ao cárcere , não negaremos a nós próprios o prazer de declarar,
porque oferece a prova mais evidente que se possa imaginar da antes do cair do pano: "Muito bem, inspetor. Sim, senhor, sou
relação íntima entre o teatro e a vida. Mesmo que os resultados o barbeiro diabólico da Fleet Street". Aqui temos um lampejo
terapêuticos sejam pequenos, seria difícil duvidar de que Mo- da associação que existe entre a teatralidade e o universal "im-
RENO tem um intuito definido. SCHOPENHAUER sempre susten- pulso de confissão".
tou que "o teatro é o reflexo mais perfeito da existência hu-
mana", e devo confessar que eu sempre lera essa frase como
uma manifestação de grandiloqüência, até que se tornou real "It, Gruoco D ELL E PARTI"
para mim, depois de uma leitura de MORENO.
Os leitores para quem MORENO é um excêntrico, especial- Na pr ópria literatura, o tr atamento clássico desse tema de
mente se forem de uma tendência sociológica, aproveitariam "drama da vida cotidiana" é o de PIRANDELLO . Ele foi muito
ainda mais com a leitura de The Presentation 01 Seil in Every- mais longe do que GoFFMAN, e falou não só da apresentação,
day Lije, de ERVING GOFFMAN. Nesse livro, um sociólogo inter- mas da construção que cada um faz de si próprio . f: esse o
preta a nossa conduta diária como uma tentativa de apresentar- lado positivo da filosofia pirandelliana : PIRANDELLO susten-
mo-nos sob uma luz determinada, para "causar certa impres- tou até a sua admiração por MUSSOLlNI com a sugestão de
são". A tendência desse critério é, inevitavelmente, para a que o Duce se avantajara a nós todos em " autoco nstru ção " .
observação de hipocrisias e a crítica daquilo a que DAVID RIEs- Mas a origem de toda a concepção reside menos no pcnsarncn-
MAN chama a personalidade "dirigida para fora". O livro de to do que na experiência - e dolorosa experiência. nesse caso
GoFFMAN é uma reação violenta aos manuais de relações pú- - razão por que o lado negativo da filosofia é que está ativo
blicas com títulos como The Magic Power 01 Emotional Appeal, na arte de PIRANDELLO. As grandes interrogações suscitadas em
num dos quais encontrei um capítulo me ensinando como tomar suas peças são: onde terminam os fatos e começa a ficção? O
meus sorrisos audíveis ao telefone. De maior valor, no presente que é verdade e o que é somente imaginado? O que é vida, o
contexto, é a concordância de GOFFMAN com SANTAYANA, a que é teatro? O que é real, o que é representação? Por vezes,
respeito de máscaras . Ao apresentarmos o nosso "eu" a outros, propõe-se um rasgado cepticismo (GABRIEL MARCEL chama-lhe
não dispomos da escolha agradável e fácil entre um Eu Real o cepticismo mais radical que alguma vez foi proposto), mas,
e um Eu Falso da Madison A venue. Há inúmeras possibilidades, forçosamente. se PIRANDELLO tencionava de fato criar enredos
e grande número de pessoas aproveita-se de uma quantidade e personagens, esse cepticismo teria de ser freqüentemente dei-
considerável, desempenhando diferentes papéis em diversas xa~o em suspenso, para que as distinções entre, digamos, lúcido
ocasiões e ante pessoas diferentes. Do mesmo modo, quando e msano, pudessem conservar alguma referência objetiva . Só
170 ASPECTOS DE UMA PEÇA
REPRESENT AÇÃO
177
porque as distinções ainda significam alguma coisa é que os
paradoxos têm algum sentido . ~esmo A Cada Um Sua .Ver- que ~r:cisamos de consolação, necessitamos de pretextos para
dade onde no final, somos convidados, pelo meDOS de brinca- a afeiçâo , Esses pretextos são os papéis que desempenhamos.
deira' a a;eitar uma rejeição mística da lógica elementar, de- A dama do véu diz: "Não sei o que as coisas são, ou quem é
pende completamente da distinção entre lúcido e insano man- qualquer um. Nem sei quem cu própria sou. Maior motivo
ter-se significativa e até nítida . , . para estarmos dispostos a ser quem quer que seja, a assumir
Entretanto o final de A Cada Um Sua Verdade e um ~1ll0 Cl.ualq~er papel que mitigue as penas daqueles que nos são que-
de louvor à re~resentação de um papel, à visão teat!al da ~Id_a, n~os. Dor, amor: dessas coisas não se duvida . Dai a legiti-
pois o que se diz é isto: seja o que for q~e a perdld~ ce~hdao midade de uma espécie de imperativo categórico: desempenhar
de nascimento da dama do véu possa registrar, sua IdentIda~e q.uaI9u~r papel que reduza a dor e amplie a área do amor. O
significati va é a de filha da velha senhora, esp~sa do sec~etáno lustnoll1smo de SANTAYANA é intelectual e confiante' o de PI_
RANDELLO, emocional e desesperado. '
de direção. Ela desempenha o pa~el que c~da um d~seJa qu.e
ela desempenhe. Todos concordanam que ISSO é mU1~o ferni- O teatro ~ a vida têm tanto em comum que podem facil-
nino da parte dela, e PlRANDELLO acresceDt~ que considera tal mente confundu-se. Em Esta Noite Improvisa-se, de PIRAN-
atitude muito humana e correta. O que ,e~U1vale a um prol~n­ DELLO, uma atriz sente-se perturbada ao desempenhar uma cena
garncnto ético da defesa meramente ~stetIca da representaçao, ?e morte: a arte invadiu a vida, uma pequena morte fictícia
por SANTAYANA , pois enquanto este diz que aSSUlTIlr u~ papel rrrornpeu na vida não-fictícia c causou um tremor, um desmaio
nos dá panache , PIRANDELLO diz que é moralmente digno de u~la premonição. _ Simple~! Mas não se!? profundas implica~
louvor'. O que passa para a nossa identidade "real" é aJg? a çocs . O tremor nao fOI criado (sabemos ISSO) na atriz que ve-
que a dama do véu só se apega por um fa~so .0r~lho. Cordélia, mos no. teatro . O pap:1 da atriz está sendo interpretado por
no Rei Lcar, agarra -se primeiro à sua pr.opna Imagem de .u m a uma atriz que, presumivelmente, não sentiu es se tremor . O
pes soa que não lisonjeia e que tem motIv? pa!a ser hostil ao paradoxo é formulado de um mod o ainda mais con vincente em
Pai . Mais tarde, Cordélia cede, perde sua .1~entlda?e_e toma-se Seis PersollageflS, em que as personagens são contrabalançadas
como "ele a desejaria", toda afeição e solicitude: nao há mo- por a~ores e explica-se que os at ores jamais conseguirão atingir
tivo , não há motivo" . A dama vela~a de, PI~AND_ELLO, t~a a reahdade das personagens. No espetáculo, porém, vemos que
am or e dever, pode afirmar : "Para mim propna, nao sou nin- as personagens também são interpretadas por atores. Portanto,
guém .. . a tese da peça é refutada pela interpretação cênica da peça
Se a disposição para aceitar o papel imposto por outrem sal vo se partirmos do princípio de que os at ores falharam na
representação das personagens, caso em que o espetáculo é um
pode ser uma virtude, a. determinayão de impo; um papel a .ou-
trem é um vício. Baseia-se tambem numa psicologia mórbida, fracasso. Como não podemos acreditar que PIRANDELLO pre-
e suas vítimas assim o dirão. A mais angustiada de todas é o tendesse que todas as apresentações de sua peça fossem fracas-
Pai de Seis Personagens em Busca de Auto" que sente ter ser- sos, ?e,~emos ater-nos à noção de uma contradição entre a peça
vido de pretexto para aquele momento ~~ico .em que perman<;- e ~ idéia da peça . Essa contradição é menos solucionada que
ceu exposto como Encarnação da Luxúria dlan~e de sua pro- v?l,dada pela concepção pirandelliana de vida : nós, homens,
pria enteada . Mas as críticas a PlRANDELLO salienta~am geral- so podemos representar papéis; não podemos ser, apenas . Po-
mente os aspectos psicológico e epistemológico, e ~)elxara~. de d:mos conceber a existência de criaturas que apenas são, mas
lado o aspecto moral. O cepticismo radical não atlO~~ a e.tlca. nao podemos ~ê-Ias, tão-s6 podemos representá-Ias . Daí o pa-
Pelo contrário, PIRANDELLO dispôs-se a derivar uma ética firme r~doxo das seis personagens que apenas são, mas cujo "ser"
da própria falta de firmeza em tudo à volta; J!uta!nent.e porque nao nos pod: ser co~unicado senão através da representação
tudo é tão incerto, incluindo as nossas propnas Identidades, é que se lhes de. P~ra nos, portanto, a representação, não a coisa
representada, contmua sendo o termo fundamental. A simula-
178 ASPECTOS DE UMA PEÇA

ção é a única coisa não simulada. O fingimento é a realidade


básica.
Num certo sentido, a possibilidade de um perfeito desem-
penho de Seis Personagens está excluída desde o princípio, pois
seria aquele em que perdêssemos o sentido de que os "Seis"
são papéis representados. Talvez em certos momentos possa-
mos perder esse sentido, mas cedo percebemos, assim que pas;
sam alguns instantes, que isso s6 pôde acontecer porque os seis
papéis são muitíssimo bem . " representados . Não conseguimos
esquecer por mais de um momento que os papéis são repre-
sentados, ou perderemos o juízo. À semelhança do homem que PART E 11
salta para o palco a fim de salvar Desdêmona das mãos de
Otelo, também nos levantaríamos para avisar a enteada que
"aquele homem ali" é o seu padastro . Contudo, supondo que Diferentes Gên eros de Peças
os "Seis" papéis são representados de um modo soberbo, não
nos apressaremos a afirmar que é como se as seis personagens
tivessem entrado no palco sem o apoio do Sindicato dos Atores?
Se o fizermos, as palavras básicas são: como se. Pois apenas
. I
essas duas pequenas palavras nos separam da alienação mental
e à peça de se dissolver num caos. Apreendemos a idéia de
PIRANDELLO porque não é encarnada. );:-nos dada a uma certa
distância . Por mais poderosa que seja a ilusão, vemo-Ia através
de óculos escuros. Poderíamos chamar a PlRANDELW o último
dos platônicos e dizer que ele nos está mostrando as sombras
na caverna de PLATÃO . Pois, tal corno em PLATÃO, são sombras
ou nada, assim em PIRANDELLO é o desempenho, a improvisa-
ção , o jogo cênico, ou nada. E quer nos convença ou não de
sua concepção geral das coisas, quer, na verdade, com o decor-
rer dos anos, sua filosofia conserve ou não algum interesse, ele
criou uma imagem viva que jamais pode morrer - a imagem
do homem como ator e da vida como o jogo da interpretação
de papéis, de representações de partes - i1 giuoco delle parti.
6

Melodrama

A MÁ FAMA 00 MELODRAMA

LI HÁ ALGUM TEMPO, numa revista, um artigo em que se


fazia o seguinte comentário sobre JOSEPH CONRAD:

Uma palavra acode, com insistência, à mente de qualquer


leitor assíduo das estórias de CONRAD: a palavra Melodrama.
Por que o faz? O que tem ele contra a vida? Qual é a finali-
dade de todas aquelas rixas, assassínios, conspirações, todos
aqueles desastres e traições terríveis? ..

Não muito depois, encontrei esse trecho de novo - citado


por um crítico que oferece esta resposta a suas interrogações:
achando difícil relatar ou inventar, CoNRAD teve de derivar suas
narrativas de outras narrativas. Escreve o nosso crítico: "Para
tal temperamento, 'drama' é uma alternativa para a vida dra-
mática" . E é dado um exemplo . Revelou-se recentemente ser
muitíssimo provável que o jovem CoNRAD tivesse tentado suici-
dar-se, e por razões que poderíamos considerar prosaicas: "de-
pressão, saúde precária e uma total anarquia financeira". Em
vez de relatar a triste seqüência de acontecimentos, CONRAD
extraiu deles um melodrama de amor e honra. A sua luta inte-
rior converteu-se, na ficção, num duelo entre duas pessoas dis-
ti ntas .
As perguntas sobre as razões por que CoNRAD "fez" e "o
que tinha contra a vida" necessitam muito mais de explicação,
182 DIFF.IIE:"TF.S ebn:nos DE PF.ÇAS
"1 F. L Ol)I\A ~IA
183
sem dú vida, do que o seu próprio comportamento . Só sob a
influência de um naturalismo estreito e filisteu podemos pergun- Urna razão pela qual o riso teve melh or divulgação parece-
tar por que um artista mostra a ~i9a à distância e ~e~ndo um nos óbvia : o riso é (ou sustenta-se que é) agradável , ao passo
gênero estabelecido. A transposição de uma luta íntima pa~a que o ch or o é (ou afirma-se que é ) desagradável. O riso é
um duelo ,entre pessoas não precisa, sequer, de uma con;ençao também algo que faz sermos apreciados. Qual o orador fatigado
que a concretize: tais mudanças são fei:as por todos nos, du- que não se espraia sobre os benefícios de um sentido de humor?
rante a noite em nossos sonhos. Se alguem e capaz de fazer de Chorar, por outro lado, é uma coisa que se ensina assiduamente
suas lutas, d~ duelo que trava com os desejos suicidas,. um dr~­ aos meninos pequenos a não fazerem . As mulheres são muito
ma de amor e honra, tem fatalmente de dar ao material p~rtI­ mais realistas: falam de ter desabafado com urna boa choradeira.
cula r e caótico uma forma pública e reconhecível. Realizou A frase assinala a que é, talvez, a função mais comum das lá-
arte, inspirado em sua fantasia e sua dor. Enco?trou elo .o grimas: um mecanismo para aliviar, para descarregar emoções
entre a emoção e os valores civilizados. Obteve universalidade. - usualmente, emoções muito superficiais. Mas há lágrimas e
Tudo isso claro teria sido aceito sem dificuldade pelos lágrimas . Soluçar sentidarnente é urna questão de profundas, lan-
nossos dois críticos c~m exceção do veículo (forma, convenção) cinantes emoções. Depois, temos as lágrimas de alegria. "O
que CONRAD escolheu: o melodrama. Goza de má reputação - excesso de mágoas ri", diz BLAKE, "o excesso de alegria chora".
que é a pior coisa que pode acontecer a uma palavra no mundo SHA w explicou dessa maneira:
literário, assim como é a pior coisa que pode acontecer a um
homem no mundo social. ,.~ s lágrimas na vida adulta são a expr essão nat ural de felici-
Donde veio essa má reputação? Creio que se trata, subs- aade. assim como o riso é, em todas as idades, o reconheci-
tancialmente, da má reputação do popular melodrama v.itoriano . mento nanlrnl de destruição , confusão e ruína ,
Ora , é injusto julgar qualquer coisa pelo seu elo mais fraco,
mas não é injusto perguntar: até que ponto é ~r~co o seu elo
mais fraco? O que é o mínimo que se pode exigir de um me- As lágrimas derramadas pela assistência de um melodrama
lodrama? Eis uma resposta tão capaz quanto qualquer out:a: vitoriano cabem na rubrica de "urna boa choradeira". Pode-
uma boa choradeira. A animosidade implícita em expressoes riam denominar-se a catarse dos pobres e como tal obter Um
melhor justificante para a pretensão de constituir o principal
como "negócio de carpideira" e "parafs~ dos chorões". não. é
mais interessante do que a atração generalizada da própria coisa objetivo do melodrama popular, em vez das suas notórias pre-
que se despreza. _. tensões morais. Além de referir-se a uma emoção superficial,
Uma análise de melodrama - a atraçao exercida pelo me- a fra se " fiz lima boa choradeira" implica o sentimento de comi-
lodrama pode legitimamente começar com uma meditação sobre seração, de pena da pessoa por si própria. Mas, apesar de
as lágrimas. todos os seus deméritos, a autocomiscração tcm sua utilidade .
E . M. FORSTER afirma até ser a única coisa que torna supor-
tável o sentimento de envelhecer - por outras palavras, que é
EM LOUVOR DA LAMÚRIA
urna arma na luta pela existência. A autocomiseração é uma
ajuda muito atuante em tempos de dificuldade, e todos os tem-
pos são tempos de dificuldade.
O que significa chorar? O riso prendeu a atenção de mui.tos
pensadores, entre os quais algun~ dos melh?r:s. Uma rápida Visto que o nosso moderno antagonismo à autocornisera-
busca nos índices de livros e cat vlogos de bibliotecas chama a ção e ao sentimentalismo vai muito além das objeções racionais
nossa atenção para uma extensa literatura a tal respeito. As que se lhes pudesse fazer, percebemos que as próprias objeções
lágrimas são um oceano relativamente inexplorado . racionais são, numa certa medida, meras racionalizações. Os
ataques às falsas emoções disfarçam , com freqüência, o medo
18·! IJIFEI\ENT ES CÊNEI10S DF. P EÇAS
MELOIlI1AMA
1135
de uma emoção propriamente dita. No fim de contas, a nossa
Se rechaçarmos as lágrimas e os lamentos em altos brados
cultura consiste em meias l2a la vras, meias atitudes . Observe-se
como, nos últimos cinqüenta anos, o prestígio da ironia seca
~la nossa vida cotidiana, poderem os verificar se se encontram
Igualmente ausentes ou não dos sonhos noturnos . Poderemos
subiu, enquanto o das emoções alterosas declinou. f: um clima
não ser mais sentimentais que o nosso vizinho e verificar con-
cultural em que um escritor secundário como JULES LAFORGUE
tudo, que temos muitos sonhos em que choramos profusa~ente
pode ser mais apreciado que um escritor da envergadura de
e, ao mesmo tempo, nos agitamos como um ator num velho
VICTOR HuGO. Ou atente-se na nossa mudança de atitude em
melodrama: caímos de joelhos, erguemos os braços aos céus,
face da morte. Alguma outra época, além da nossa, receberia
a morte de pessoas admiradas com "silenciosa reserva"? Pode-
1~?lento~amente etc . Nesse caso, a autocomiseração grandilo-
q~ente e um fato da vida. Como só pode ser reproduzida me-
remos pensar que AUDEN abre seu coração no bom poema que
escreveu sobre a morte de YEATS, mas compare-se o poema de
dl~~te o uso .d o estilo grandiloqüente , a grandiosidade melodra-
manca de veria parecer uma necessid ade.
AUDEN com o produto de uma cultura mais tradicional, diga-
mos, com o L1anto por Ignacio Sânchez Meiios, de GARCIA
LORCA! Seria possível em inglês até o próprio título do p~ema COMPAIXÃO E T EMOR
de LoRCA? .f: o pranto ou lamento algo que nos possamos Ima-
ginar fazendo? Pelo contrário, modernizamos as tragédias gregas
Dcfen.di o ~l1elo?rama em seu elo mais frágil, porquanto
eliminando todas as variantes de "ai de mim!" Se Cristo e Ale-
a autoconllseraçao so é valiosa na vida, sem dúvida, até um
xandre, o Grande, ressuscitassem, ensiná-los-íamos a reterem as
lágrimas . ~crto ~o~t~ e só} t~~7,rá,vel até um certo ponto no palco. A
cornparxão pelo herói c a metade . menos impressionante do
Vi, certa vez , fazer -se justiça à morte. Um ator italiano melodrama; a outra 'c mais impressionante IiJ ~tade é o medo
apresentou-se no palco para .anunciar a morte de ~m colega . o temor provocado pelo vilão. Compaixão e temor: foi ARIST~
Foi um lamento, de fato . Agitou-se, chorou, produziu um cau- T ELE~ quem, na Po ética, fez a conjugação e procurou explicar
dal de retórica veemente, até que a assistência se agitou, chorou o efeito total da tragédia nesses termos. Parece uma excessiva
e lamentou a morte com ele . Ora, trata-se de lamúria, de auto- esquematização . Na tragédia, é o que quase todos sentem atual-
comiseração, sem dúvida . IJ ma Ressoa não lamenta um ~a d á­ mente, algo mais está envolvido. Estará também no melodra-
ver ; lamenta-se a si próp ria, por ter sido êles,ap~ssada, pnvaoa n~a? At~ar sobre a capacidade de compaixão e temor do público
de ã1 gué m ; e, no fundo, está o medo da RroRna morte . Mas na,o s~ra o alfa , c ôrnega d.a tarefa do melodramaturgo? Na
tanto melhor para a autocomiseração. A experiência foi rece- ~t16nca, ARISTüTELES explica que a compaixão e o medo
bida, não recusada . tem uma rel~ção orgânica mútua. Um inimigo ou um objeto
Esse ponto tem certa importância para a saúde mental: A de t~rror est a pressup,osto ~m. ambos . Se somos os ameaçados,
Psiquiatria moderna começa com aqueles Estudos Sobre HIste- se~t~mos medo em nos propnos; se são outros, sentimos com-
ria em que FREUD e BREUER procuram explicar o que acontece pal~ao por eles . Seria desejável levar essa análise um pouco
quando às impressões emocionais não é permi~i~o que se. con- ~IaIS longe, ~ :uz do fato de que a maior parte da compaixão
sumam. O choque de dor anseia por ser mitigado e liberto e_autocoIllpalx~o. Estam~s _identificado:" com aqueles outros que
através de gritos, contorções, lágrimas. Os bons meninos que s~o an~ea~ados, a ' compaixão que sentimos por eles é pena de
se mantêm quietos e calados sob uma chuva de ~olpes tal~e~ nos propnos: e, pela mesma ordem de idéias. compartilhamos
venham a pagar por esse estoicismo vinte anos depois, num .dIva de seus temores . Lamentamos o herói de um melodrama por-
de psicoterapia. Seus ressentimentos, em vez de. se con~um1fem que ele se encontra numa situação terrível; compartilhamos de
por um processo natural, foram acumulados no inconscíente , seus temores; e, quando temos pena de nós próprios, pretextarnos
estar com pena dele . Enumerar esses fatos é resumir a situação
186 DIFERENTES GÊNEROS DE PEÇAS

IR7
dramática do melodrama popular característico: a bo.n~ade pe~­
seguida pela maldade, um herói perseguido por um vilão, heróis sar de su a reputação, não foram mon struosamcnte maus de mais.
e heroínas perseguidos por um mundo perverso. Se sua s imprecações pareceram cômicas, é p orque o mal era ape-
A compaixão representa o lado mais fraco do melodra~la, nas superficial. Um vilão não de via esf orçar-se tanto para co-
meter suas vilanias.
o temor o mais forte. Talvez o êxito de um autor .melodramál1c.o
dependa sempre, primordialmente, ?a s~a capaclda~e de sentir Visto que o teatro tende a concentrar sua visã o num punha -
<:
e projetar medo. Sentir deve ser fácil, pOIS medo ~ o. element?, do de pessoas, tenderá também a consubstanciar o mal em pou-
em que vivemos . "Nada temos a temer senao o propn~ t:mor cos vilões ou até num só, muitas vezes. Isso não quer dizer que
é um slogan nada consolador, vis!o que? medo .é o m?ls indes- não disponha de outros recursos . A visão melodramática é pa-
trutível de todos os obstáculos. NIsso reside a universalidade po- ranóica: estamos sendo perseguidos e afirmamos que as coisas,
tencial do melodrama. vivas e mortas, estão combinadas para nos perseguir. Ou, me-
Os temores humanos são de duas espécies. t.:ma p~r~ence lhor, nada está . morto. A própria paisagem se animou, ainda
ao mundo do senso comum: é razoável, na acepçao cotidiana, que seja apenas para nos agredir. Talvez possamos pressentir
temer uma queda desastrosa ou um acidente de av2ão. A. outra algo dessa visão subentendida na marcha da Floresta de Bir-
espécie de medo é a chamada irracional, ~alvez n~~ mU1t~ ra- nam sobre Dunsinane, em Macbeth , ainda que o dramaturgo
cionalmente. Superstições primitivas, fantasias n:u~otIcas e Ima- forneça soldados para transportá-Ia. Para ET\fILY BRONrt, de
gens infantis à mente, e igualmente fora dos limites do senso qualquer modo, as charnecas e o clima do Yorkshire são "o
comum está o temor a Deus. Superstição e religião, neurose e próprio demônio" - tanto quanto o vilão dela, Heathc1iffe. O
infantilidade, estão no mesmo barco. . ". . " melodrama popular vitoriano empregou amplamente o mau tem-
O melodrama emprega, por vezes, o tipo irracional de po e a paisagem hostil e perigosa. Mares encapel ados e pânta-
medo numa forma tão direta quanto a do m.onstro de Fran- nos profundos ameaçam tragar o nosso herói. O próprio fato de
kenstein ou Drácula. Mais freqüentemente, d:lxa que o medo que descrevo tais e ventos como " traga r" mostra que um pouco
irracional se mascare de racional: damos razoes par~ temer o de animism o se desprende, mesmo numa crítica.
vilão mas o medo realmente suscitado excede as razoes. dadas. B surpreendente o que o palco do século XIX podia reali-
O talento no texto melodramático, é mais facilmente VIStO no zar em matéria de apresentação de mares tempestuosos, monta-
poder do' escritor para fazer que o seu vilão ~~mano pareça nhas, glaciarcs, lagos gelados e coisas parecidas ; contudo, havia
sobre-humano, diabólico. Historicamente, os vilões da nossa sempre limitações muito mais severas do que num romance, e o
tradição promanam do arquivilão Lúcifer, e uma boa parte dos dramaturgq tinha de reforçar a hostilidade da paisagem com ou-
recentes estudos de SHAKESPEARE tem ilu~t~ado, e~ pormenor, tras hostilidades. Os artifícios "melodramáticos" do enredo es-
a possível derivação de Ricardo 111 do VICIO .medleval. B bom tão abrangidos neste capítulo e, particularmente, aquele recur-
ter essas ilustrações; o princípio estava ant:clpadamente c1~ro. so notório: a coincidência arbitrária . B muitas vezes em virtu-
Mas donde os vilões são oriundos é de relativamente pouca Im- de dessa característica que o melodrama se diferencia da tragé-
portância. O que interessa é se um dado es~ritor. ~de realmente dia, argumentando-se que o processo melodramático é excessi-
dotar o seu vilão com alguma da energia on~nal. Devemos vamente frívolo. Contudo, existem exemplos particularmente
captar um reflexo das chamas dó inferno, uma pitada de enxo- grosseiros nas tragédias supremas e, de modo geral, a coincidên-
fre Isso acontece até numa obra cômica, se o sentido de horror cia arbitrária, quando não é frivolamente usada. não tem qual-
tiver suficiente profundidade - como em O Cântaro Quebrado, quer efeito frívolo . Intensifica o efeito da paranóia. Inscreve cir-
de KLEIST. Entre os modernos escritores, deve-se reconhecer cunstâncias nas fileiras do inimigo - como STRINDBERG fez na
que os romancistas - MELVILLE ou EMILY ~~ONT~ --: foram vida real, quando vários incidentes menores conspiraram para
melhores satanistas que os dramaturgos . Os vilões teatrais, ape- privá-lo do seu absinto em diversas ocasiões sucessivas. Repre-
senta uma projeção do medo "irracional " .
188 DIFERENTES Ci:NEROS DE PEÇAS MELODI\AMA
189
EXAGERO
O que é um gigante? Um homem de seis metros de altura
~m exagero, não é? Alguém multiplicou por três. O que é un~
o longo braço da coincidência é uma coisa caprichosa. gigante? Um adulto visto por um bebê. O bebê tem sessenta
Mencionemo-lo e em menos de um minuto haverá alguém usan- c,:ntlmc..tros " um adulto, I ,80 metro. A proporção é de um para
do a palavra exagero. I sso leva-nos de volta ao preconceito con- tres. Não ha exagero algum.
tra o melodrama e à essência do próprio melodrama. Tal como Há um excelente filme francês, Zero em Comportamemo
a farsa, pode-se dizer desse gênero que não descamba p ara o em que os professores são vistos através dos olhos das crianças.
absurdo por acidente, mas deleita-se nele intencionalmente. Pôr Parecem-lhes enormes ~ deformados, por vezes, porque as câ-
em dúvida o absurdo que nele existe é desafiar não a conclusão, maras foram colocadas Juntas dos pés deles. As pessoas chamam
mas a premissa. Em ambos os gêneros, o autor goza de uma a ~s.s~ resultado estilização. A palavra sugere o sofisticado o
espécie de Narrenireiheit - a liberdade do idiota em relação artificial e o adulto. O que se fez foi ingênuo natural e infa~til
ao senso comum - e o que ele escreve deve ser abordado e A palavra "exagero" pode desorientar.' .
julgado de acordo.
" Algo semelhar:te pode-se d~er a respeito da "grandiosida-
Estamos habituados a reconhecer apenas um ligeiro grau de da representaçao melodramatica. O fato de todos nós ser-
de exagero na reprodução artística da vida - o suficiente, ape- mos atores afetad,?s e canastrões nos nossos sonhos significa
nas, dizemos a nós próprios, para definir um contorno. A ima- que a rep~es~nt~çao melodramática, com seus largos gestos e
gem em nossos espíritos é de retratos em que o pintor reproduz esgares Ilsíonômicos, seu estilo declamatório de fala , não é um
as aparências de um modo bastante idêntico àquele em que pen- exagero dos nosso,s sonhos, x;nas a sua duplicação . A tal respei-
samos vê-las, embora lhe consintamos um desvio de 10% por- to, o mel~~r~ma e o naturalismo da vida onirica. A civilização
que ele é um artista. Mas suponhamos que o desvio do senso COIl1~ eu ]a. dlsse~ pede-nos que ocultemos os nossos sentimento~
comum é muito maior? O retrato vai ficando cada vez pior? e ate _nos instruí na arte de escondê-los. Aqueles sentimentos
Não, mas para os exageros que já não são ligeiros, "las subs- que nao p~dermo~ o~ultar completamente são reduzidos a meras
tanciais, precisamos de outro critério. Uma diferença de grau sO?l.bras d êles propnos, Daí a adequação da câmara cinernato-
converte-se numa diferença de gênero. De um autor melodra- gr áfica: ela pode ver aqueles movimentos minuciosos da fisio-
mático a quem desaprovamos, não devemos dizer: "Você exa- noml~ que s~o tudo quanto resta no homem civilizado da ex-
gerou muito", mas : "Você exagerou de um modo pouco inspi- prcssao corr o rea . Quando os amplia nos grandes planos numa
rado, mecanicamente". Talvez tivéssemos de dizer até : "Você altura de tres m,e~ros ou mais, está realizando a velha gr~ndiosi­
exagerou muito pouco", pois numa era de naturalismo, a cora- dade melodramatlca à sua maneira e sem a assistência do ator.
gem de um escritor atraiçoa-o por vezes, e ele tenta fazer passar Uma das principais emoções é o Medo . Qual é o s _
pecto? eu as
um pato doméstico por uma fera na selva.
Os exageros só serão idiotas se estiverem vazios de senti -
mento. 'P\. intensidade de sentimento justifica o exagero formal o c or~ç ã~ b~te impetuosamente .. . há lima palidez mortal;
na arte, tal como a intensidade de sentimento cria as " fo rmas a rcsprr açü o .e ofegante; as narina s dilat am -se; há um movi-
exageradas" (J as fantaSIas infantis e aos sonnas aClultos. f: como mento arquepnte e convulsivo dos lábio s, um tremor nas
crianças e sonhadores (poderíamos acrescentar, melodramati- faces enco~ada:' uma contração da garganta ; os olhos arre-
camente: como neuróticos e selvagens, farnbém que ap'recia- galados estao fIXOS no objeto de terror; ou podem rolar in.
mos o meloârama. Exagêro de Quê? 8 0 S fatos , tal COmo são cessantemente de . um para outro lado
' . " A S pUpl'1as es tãao ...
:vistos pela mente adulta, sofisticaãa e cientifica. "A. mente pri- e?ormemente ,d~latadas. Todos os músculos do corpo podem
mitiva , neur ótica, mfantil , não exagera suas próprias imp'ressoe . ficar tenso s. rígidos. ou ser lançados em movimentos convuls í-
190 OIFEf\F.NTF.S Gt:NEnOS DE PEÇAS MELODHAMA
191
vos. As mãos abrem e fecham alternadamente, por vezc : tor- hipótese, como usualmente acontece, de que deveria ser empre-
cendo se. Os braços podem estar adiantados, como se qurscs- gado um inglês corrente, coloquial, e não uma forma elevada
sem esconjurar algum perigo horrível, ou ser levados 3 7.lbe~·a
de linguagem . Uma retórica elevada é uma exigência legítima e,
de fato, inexorável do melodrama. A conversação corrente se-
Qual é o aspecto do Odio? ria incongruente e anticlímax .
Em todo caso, a retórica vitoriana que nos faz sorrir não
. .. semblante intensamente sombrio; olhos bem abertos; den- era uma novidade criada pelos autores melodramáticos vitoria-
nos. Era o produto serôdio - os restos, se preferem _ de al-
tes arreganhados, fazendo-os ranger e contraindo os maxila-
res; boca aberta, com a língua adiantada; punhos cerrados; go que já fora esplêndido uma vez . Poucos chamariam ao diá-
ação ameaçadora dos braços; bater os pés; inspirar profun- logo das peças de VICTOR HuGO boa poesia trágica. Mas é boa
damente, ofegante; rosnar e soltar vários gritos; repetição retórica, tal como os diálogos do teatro alemão do Sturm und
automática de uma palavra ou sílaba; fraqueza súbita e tremor Drang, do qual deriva a dramaturgia romântica francesa. Na
da voz... lábios convulsos, pulsação dos músculos faciais, tre- Inglaterra, o teatro pós-medieval começa com o estabelecimento
mor dos membros e do tronco; atos de violência contra o da retórica melodramática no Tamburlaine, de MARLOWE, e a
próprio, como morder as mãos ou as unhas; riso sardônico; retórica melodramática contribuiu para a tragédia ou redundou
vermelhidão do rosto e súbita palidez; dilatação extrema das em extravagância~ bombásticas e banalidades ou, ainda, serviu
narinas; sensação de cabelos em pé na cabeça ... meramente à sua finalidade natural como estilo próprio do me-
lodrama, até cerca de 1850. .
Quase exatamente nessa data vemos a antiga ordem melo-
dramática defrontando a nova ordem naturalista no que seria
Ora talvez algum leitor suponha que estou transcrevendo
um exemplo clássico. TURGUENEV escreveu uma peça sobre uma
uma descrição do desempenho melodramático. Ninguém pensa-
mulher e sua enteada, ambas apaixonadas pelo mesmo homem.
ria hoje numa pessoa, excetuando um vilão de teatro, rangendAo
Essa peça - Um Mês no Campo - inaugura a era do diálogo
os dentes ou dando largas ao seu ódio numa gargalhada sa~do­
natural, não-melodramático. Acontece que essa obra foi talvez
nica. Na verdade, a primeira das transcrições acima é do livro
inspirada por uma peça de BALZAC sobre o mesmo tema, A Ma -
de CHARLES DARWIN sobre as emoções; e a segunda é de um
drasta, na qual alguns leitores ficariam surpreendidos ao verifi-
antigo manual italiano $obre o mesmo assunto . WILLlAM 'JA-
carem que o grande "realista" ainda usa o método melodramá-
:MES costumava ler ambos os trechos para as suas classes em
tico em geral e a retórica melodramática em particular. A obra
Harvard, e foram conservadas em seus Principles of Psycholo-
gy, onde JS encontrei. Se se trata de relatos fiéis de emoç~o, nes- de TURGUENEV termina com uma tranq üila separação e uma
se caso o melodrama não é tão exagerado quanto comedido. igualmente tranqüila partida em carruagem; a de BALZAC, com
envenenamentos, punições perpétuas , um apelo a Deus e um res-
quício de loucura:

LINGUAGEM
ENT EADA : - Contaram-me tudo . Esta mulher está inocente
o diálogo melodramático tem sido alvo de mais zombarias, do crime de que a acusam. A religião fez-me compre-
talvez do que os enredos, as personagens e o desempenho. Na- ender que o perdão não pode ser obtido nas alturas por
turalmente o melodrama vulgar apóia-se na retórica vulgar, mas aqueles que não o praticam na terra. Apanhei a chave
a troça contra essa retórica resulta muito pobre se se partir da da escrivaninha dela que esta va no chaveiro da Mada-
DIFERENTES ebaRos DE PEÇAS ~1F.I. O()I\ .\ ~I .\

192

me. Eu própria fui buscar o veneno. Rasguei este pedaço gens ficaram. em tod os os aspe ct os, co m TU RGU ENEV. Na arte,
de papel para o embrulhar. Sim, eu queria morrer ..• todas as vantagens também são des vantagens . A suavidade de
MADRASTA: - Oh! Pauline! Dou-lhe a minha vida . . . dou- U!1; ,solo de violino e a majestade de uma orquestra em sua
lhe tudo o que amo ... Oh! Doutor, salve-a! rnaxima força não podem apresentar-se concorrentemente,
ENTEADA: - Sabe por que vim arrancá-la ao abismo em que TURGUENEV e CHECOV obtiveram seus efeitos especiais adian-
se encontra? Porque Ferdinand acaba de me dizer algo tando-se a outros, As pessoas modernas inclinar-se-ão a atri-
que me fez voltar do túmulo. Ele sente tal horror a viver buir o fracasso de BALZAC ao absurdo dos incidentes: ele vai
convosco que me vai acompanhar.. . a mim... na se- acumulando angústias até um ponto em que sorrimos, Contudo
pultura, onde repousaremos juntos. . . casados na morte. esse diagnóstico não pod e estar corret o - SHAKESPEARE acurnu-
MADRASTA: - Ferdinandl . . . Oh, Deus! A que preço me la tanta ou mais angústia e nós nã o sorrimos. O malogro é
salvei? apenas de um retórica exausta que deixou de dar aos aconteci-
PAI: - Mas, infeliz criança, por que agonizais? Não fui eu, mentos e situações um apoio suficiente,
alguma vez deixei de ser, por um instante sequer, um
bom pai? Dizem que sou eu o culpado ...
JOVEM: - Sim, general. E só o senhor pode resolver esse ZoL A E D EPOI S
enigma, esclarecer para si próprio como sois culpado.
PAI: _ Vós, Ferdinand, também vós, a quem ofereci minha _ Assim , poder-se-ia dizer, o melodrama morreu com a gera-
filha! Vós, que a amastes ... çao de BALZAC, e o naturalismo ocupou o se u lugar na geração
JOVEM: - O meu nome é Ferdinand, Conde de Marcandal , d e Tl!RGL'F.N EV. Do modo corno se fazem tais generalizações,
filho do General Marcandal.. . Entendeis? est:l n;~o é d as piore s, mas também do mod o corno essas gene-
PAI: - Ah! Filho de um traidor, só poderíeis trazer à minha ralizaçõcs se fazem esta . é enganadora. O que realmente acon-
casa a morte e a traição! . .. Defendei-vos! teceu foi mais curioso e mais complexo . O naturalismo con-
JOVEM: - Lutaríeis, General, contra um homem morto? \erte~-se no credo da época, Sua aceitação estava deveras ge-
(Ele cai.) ncralizada , abrangendo a maioria dos povos cultos . f: uma dou-
MADRASTA (Corre para o jovem. com um grito.): - Obl trina que vejo estudantes americanos de hoje considerarem
(Recua diante do Pai, que avança para a Filha; agarra ainda a lei dos medos e persas, O cur ioso é que , enquanto a
então num vidrinho, mar logo o joga para longe .) Oh. no ~sa época está, de modo geral, dedicada aos princípios natu-
não! Condeno-me a viver por este pobre velho! (O Pai ralistas , os mai s not áveis escritores da época estão continua-
ajoelha-se ao lado da Filha morta.) Doutor, que está ele mente protestando contra eles . O fato de se protestar, e a sua
fazendo? .. , Terá perdido a razão? freqüência. provam suficientemente o predomínio desses prin-
PAI (A voz embargada, como um homem que não conseguis- cípios; mas, em retrospecto. é espantoso observar quantos es-
se encontrar ar palavras.): - Eu ... eu ... critores de quantas escolas diferentes protestaram até hoje. Será
DoUTOR: - General, que estais fazendo? até muito elucidativo saber o que alguns paladinos do natura-
GENERAL: - Eu... eu estou tentando rezar por minha fi- lismo realmente fizeram - e realmente disseram.
lha! ... (O pano cai.) EMILE ZoLA, por exemplo, que se supõe ter liquidado o
melodrama c dado origem à filosofia naturalista . Ouçamo-lo
atacar o melodrama:
Escolhi um trecho de um grande escritor para evitar que
Desafio os românticos a montarem um dram a de capa e es-
alguém seja tentado a atribuir as de~ciências de semelhante
pada ; o frag or medieval de ferr os, as port as secretas, os vi-
texto à falta de talento. Outro erro seria pensar que as vanta-
19·1 DIFERF.NTES CÊNEI10S DE PEÇAS
MELODnA.}.[A 195

nhos envenenados e tudo o resto não convenceriam ninguém. descriç ões do ambiente, por ZoLA, divergem das de MELVILLE
O melodrama, esse produto do teatro romântico gerado pela ou EMILY BRONTI:, Nelas se observa uma certa confusão - ou
classe média, está ainda mais morto e ninguém o quer. Seu ritual - sócio-biológica, mas chega aos mesmos resultados,
falso sentimentalismo, suas complicações de crianças rapta- ZoI..A é melodramático.
das, documentos recuperados, suas descaradas irnprobabilida- A mais contundente e prolongada polêmica jamais levada
des, acarretaram-lhe tal desprezo que a nossa tentativa de re- a efeito contra o melodrama encontra-se nas obras de BERNARD
vivê-lo seria acolhida com gargalhadas" , SHAW, tanto em seus prefácios como nas peças, O Discípulo
do Diabo é o exemplo cru e evidente, mas, no prefácio de
Santa Joana, quase trinta anos depois, SHAW ainda está mar-
Qualquer desejo que se tivesse de demonstrar o mérito de telando no mesmo ponto e afirmando que "o mérito da sua
enredos sobre crianças roubadas e documentos recuperados é nova peça reside em ter evitado o melodrama". De maneira
combatido pelo conhecimento de que ZOLA falou instigado por notável, alterou o caráter da personagem histórica, o Bispo de
UI11 milhar de más obras de arte. E notemos o que, nesse mes- Cauchon, de modo que deixe de recordar a quem quer que seja
mo prefácio a Teresa Raquin, ele propõe para substituir o mau um vilão em cena,
melodrama: Ora, o Cauchon de SHAW está certamente a alguma dis-
tância do ríspido, maligno, insolente vilão do melodrama vulgar,
mas, apesar de toda a propaganda de SHAW contra a idéia do
Fiz de 11m só quarto escuro o cenário para a peça, de modo vilão, não será Cauchon um vilão, no fim de contas, e até na
que nada possa roubar-lhe sua atmosfera e senso de fatalida- linha tradicional? Dificilmente se poderia considerar uma idéia
de. Escolhi personagens ordinárias, sem cor, subsidiárias, para nova fazer o diabo uma figura astuta, cordial c refinada. Os
mostrar a banalidade da vida cotidiana como fundo para as atores interessam-se pelo papel de Cauchon justamente porque,
angústias atrozes dos protagonistas principais ... se forem experientes, já c desempenharam muitas vezes antes.
f: possível sorrir repetidamente sem deixar de ser um vilão;
"Banalidade", "sem cor" , pertencem sem dúvida à con- acontece freqüentes vezes.
cepção naturalista , tal como é geralmente entendida. Mas um Se SHAW detestava a moral do melodrama - a projeção
"senso de fatalidade"? As "angústias atrozes"? Será a banali- no mundo das nossas irresponsáveis fantasias narcisistas - ado-
dade apenas um contraste para esses extremismos? Neste ponto, rava suas maneiras , Talvez as pessoas só parodiem aquilo de
recordemos qual foi o efeito da remoção de "banalidades" do que secretamente gostam muito; talvez invejem as façanhas
melodrama vitoriano. Foi reduzir a angústia do espectador, li- parodiadas do autor. Ou talvez pensem que podem suplantá-lo.
bertando-o do contato com sua própria vida. Por tal redução, Em qualquer caso, SIfAW não se contentou em parodiar . De-
o melodrama estava ficando cada vez mais enfadonho e ridículo. pois de bombardear o melodrama. passou a roubar-lhe as muni-
O que ZoLA estava realmente fazendo era carregar de novo a çõcs . Ao mesmo tempo que ilustra as limitações do melodrama,
bateria do medo que se deixara esgotar. A substituição de um O Discipulo do Diabo cxcrnplifica os seus méritos e, nos escri-
ambiente "romântico" (isto é, inaceitável) por um banal (isto tos críticos de SHAW, embora não vejamos o nome de melo-
é, reconhecível) tem o intuito de atingir as angústias do espec- drama em lugar de honra, encontramos o elemento melodramá-
tador. Certo, ZoLA considerava científica essa concepção do tico homenageado sob outros nomes, como o de ópera .
ambiente, mas, naquele tempo, a própria ciência constituía o Ao invés dos freqüentadores atuais da ópera, SHAW apre-
romance supremo, e aqui o surpreendemos exigindo um senso ciava-a como uma forma de teatro, não como uma espécie de
de fatalidade, que é o que a sua própria descrição do ambiente, conc êrto , e mergulhava com entusiasmo naqueles libretos que
como o de IBSEN e STRTNDBERG, aliás, atesta. Tecnicamente, as o século XX decidiu serem tão disparatados - como os libre-
196 197
DIFERESTES G~NEROS DE PEÇAS MEI.OIlHA~IA

tos do Rigoletto ou de O Trovador. Não se tratava de um en- seguiu realizar tragédia, freqüentemente, com a mesma freqüên-
tusiasmo extracurricular: as próprias peças de SIIAW pediam os cia conseguiu realizar melodrama.
impetuosos e violentos gestos do desempenho operático (isto O que o pai de O'NEILL fizera a maior parte de sua ~ida
é, melodramático) . Num dado momento, SHAW teve de salientar fora interpretar Edmond Dantes no melodra~a Mon.te Cristo,
e reiterar esse aspecto porque o seu encenador, GRANVILLE- O jovem O 'NEILL era um rebelde contra o Pa~ e conslder~va-se
BARKER. inclinava-se para o emprego naturalista da voz e do um rebelde contra Monte Cristo. Resta, porem, a questao de
corpo. Existe uma fotografia de SHAW mostrando a BARKER saber se as id éias modernas que ele captou em Greenwich Vil-
como representar um pequeno duelo à espada em Á ndrocles lage serão a linha mestra de sua obra ou se, como tantos re-
e ° Leão. No retrato, BARKER reflete apenas uma atitude ner- beldes contra o Pai, ele não estava realmente identificado com
vosa, "constrangida", ao passo que SHAW exibe urna pose os- o Pai. Que o filho de um ator fosse um autor já em si é in-
tensiva, os pés afastados e a espada bem erguida no ar. O seu teressante . f: como se o filho desejasse escrever os textos do
conselho a BARKER. a respeito da sua própria forma de teatro, pai e "manobrá-lo" como uma marionete. Seja como for, Mourn-
em geral - "Lembre-se que isso é ópera italiana" - pode-se ing Becomes Electra, tal como é vista por muitos de nós, fra-
traduzir por: "Represente a peça corno um melodrama". cassa onde é moderna e intelectual , triunfa onde é um melo-
O mais que o teatro de SHAW se afastou do melodrama drama vitoriano .
foi, creio eu, no "diálogo puro" da cena do "Don Juan no Foi o toque melodramático que O'NEILL levou para o
Inferno", em Homem e Super-homem. O elenco compõe-se teatro americano, já na década de 1920, o que LILLlAN HELL-
de um herói, uma heroína, um vilão e um bobo, um quarteto MAN e CUHORD ODETS lhe propiciaram também na década
dramático que se diz ter sido padronizado um século antes pelo de 1930, e o que TENNESSE E WILLIAMS e ARTHUR MILLER lhe
escritor francês PIXERtcoURT, citado nos compêndios como fun- deram no final da década de 1940. Na década seguinte, a de
dador do melodrama popular. 1950, uma das novas presenças mais impressionantes no teatro
mundial foi a de EUGEN E IONEsco: A sua peça A Lição é sobre
Depois de Homem e Super-homem (1903), tivemos várias um professor de aspecto suave que assassina quarenta alunos
escolas modernistas de teatro e vários desvios individuais, ou por dia . ION rsco emprega o Grand Gu~gn?l. como veícul? ~ara
escolas de um só autor. O resultado da ação e reação é apre- uma visão da vida moderna. O mesmo e válido para o principal
sentado como o de facções antagônicas de uma convicção con- dramaturgo mais jovem da área de língua alemã, FRIEDRICH
trastante; contudo, é impossível mencionar um só inovador do D ÜRRE.NMATT.
período que não tivcse tentado reintroduzir o elemento melo- Mas cu não gostaria de pr ejud icar a questão levando-a
dramático. O expressionismo alemão pode ser interpretado longe de mai s . A expressão " renascimento do melodrama" está
como a busca de urna nova roupagem para o melodrama, o distante ele abranger tudo o que é vivo no teatro moderno, nem
Teatro Épico de BRECHT como uma tentativa para usar o me- eu des ejaria chamar um melodrama a toda peça em que existam
lodrama como veículo para o pensamento marxista. COCTEAU. elementos melodramáticos . Pelo contrário, farei mais adiante
ANOUILH e GIRAUDOUX foram 'b uscar mitos gregos para uso a proposta no sentido de denon~i?ar trag~('omédia a . algumas
melodramático . Dos três, o mais concentradamente melodramá- peças cujas qualidades rnclodrarn áticas aqUi foram salicntadas .
tico é CocTEAlJ , talvez porque o medo de perseguição seja a E, evidentemente, não existe razão para que a mesma peça
sua emoção mais forte; no seu Orjeu , as bacantes são o mundo não seja vista, agora como um melodrama, logo como uma tra-
hostil de todo o melodrama. gicomédia, depois como qualque: o~tra coisa aind~, se assim
Que dizer de EUGENE O'NEILL? Muitos pensam que ele forem rev eladas suas qualidades íntrínsecas . A realidade, neste
reviveu a tragédia. Os que discordam referem-se-lhe, usual- como noutros domínios, é vária e variável, e cada uma de suas
mente, como um fracasso, apenas. Mas se O'NEILL não con- perspectivas encerra determinadas vantagens próprias .
198 DIF EnENTE 5 Ci: NEn OS DE PEÇAS
199
MELonRAMA

 OlJlNTESSÊNlIA DO DRAMA
palavras " narcisista" e "paran óico" e, neste resumo , tive de
inserir ressalvas como "até certo ponto" ou "num certo sentido" .
Como pessoas modernas, estamos, quer queiramos quer Em A Interpretação dos Sonh os, FREUD diz que os neu-
não, sob o fascínio do naturalismo . Por muito que digamos o róticos, como as crianças, "re velam numa escala ampliada os
contrário a nós próprios, reincidimos em acreditar que o nor- sentimentos de amor e ódio dos pais". O comentário requer
mal e correto é um tom moderado, minúsculos seres humanos, interpretação. O que é. por exemplo, uma escala não-ampliada
um meio reproduzido minuciosamente. Com efeito, uma tre- de sentimentos e quem a exibe ? SIGMUND FREUD, quando de-
menda soma de energia é consumida na manutenção dessa ilu- testou um pai que se humilhou perante os anti-semitas? ANNA
são de monótona mediocridade da vida cotidiana; se assim não FREUD, quando dedicou sua vida à continuação da obra de
fosse, como poderia a tradição bem-educada sobreviver às des- SIGMUND FREUD? Refiro o argumentum ad hominem com uma
cobertas da Física moderna e às atrocidades do moderno com- intenção favorável; e pode ser endereçado a qualquer. O que
portamento? Estou argumentando, pois, até um certo ponto, estou dizendo é que quaisquer sentimentos não-ampliados re-
que o melodrama é realmente mais naturál do gue o natur ális- presentam um padrão ideal , e o que todos nós temos são se~­
mo, correspon de à realid âde (e não menos à realidaâe moâer- timentos ampliados da criança, do neurótico, do selvagem. TaIS
na) mais fielmente a o que o naturalismo . Alguma coisa se ga- sentimentos formam, claro, a base do melodrama e são o meti-
nfiou quando uma pessoa que viu o mundo em monocromia e vo de suas múltiplas ampliações.
em miniatura sülíitanicnte o entrevê amea çador, trágico e gi- Embora a visão melodramática não seja a pior, também
gantesco Sua imaginação foi reanimada não é a melhor . É boa "até certo ponto". e o ponto é infância,
A visão melodramática é, num certo sentido, simple smente neurose. primitivismo . O melodrama é humano. mas não é
norma l. Co rresponcle a um imgortante aspecto da realidad e . maduro. E imaginativo , mas não é inteligente . Se, uma vez
E a maneira espontânea, desinimila, CJe ver as coisas. O natu - mais. por uma questão de clareza, tomarmos como ~xemplo .a
ralismo é mais so fística o, mas n50 é mais natural . O sentido mais rudim entar forma de melodrama , a popular variedade VI-
teatral é o sentido melodramático, tal como se pode observar toriana. que encontramos senão a mais crassa das fantasias ima-
nas representaç ões infantis . e melodrama não é um gênero turas? O prin cípio de realidade é desre speitaao a torto e a
especial e marginal de drama, muito menos exc êntrico e deca - õircito, cada um de nós é sua pr6[.lria realidade suprema, a
dente; é drama CI11 sua forma elementar. E a quintessência inocência de cada um el e nós é ax iom ática: qualquer intruso
dramática, O imp ulso para escreve r. drama é, sobretudo, o <5 uma ameaça e um monstn . o final será feliz porque assim

imp'ulso Qara escreve r melodrama e, inversamente, o jovem que achamos uc deve ser. Num cap'ítulo anterior, eu disse que o
não deseja escrever meloarama não escreve drama de espécie teatro corr csp ondia àquela fase da vida de uma criança em que
alguma e tenta um gênero não-d ram ático, lírico, épico, ou qual- t ia cria mundos mágicos . Quis CI izer que era daí que o teatro
quer outro . Deve estar esclare ciâo, p-ortanto, por que, ao tratar provinh a, não gue aí se conservasse, necessariamente . e melo-
â o tIrama, farsa, tragédia, com édia, colo quei o meloéframa em drama pertenc a essa fase mágica, a fase em que os pens a-
pr imeiro lugar- mentos parecem onipotentes, em gue a distinção entre o Eu
Quero e o Eu Posso não é nítiaa, enfim , guando à realidade
Neste capítulo, tentei destruir um preconceito contra o me- mais ampl a ainâ a não foi conferido o reconhecim ento dip lo-
lodrama, tal como nos capítulos anteriores tentei destruir os mát ico .
preconceitos contra o enredo e contra as personagens típicas - Estou falando agora de todo o melodrama ou só do melo-
e, mutatis mutandis, pelas mesmas razões. Simultaneamente, drama vulgar dos teatros populares vitorianos? f: difícil traçar
houve um lado negativo na argumentação deste capítulo. Em- essa linha divisória, tal como é difícil traçar uma linha entre o
preguei as palavras "infantil", "neurótico", "primitivo", até as melodrama e a tragédia. Em vez de blocos separados, a reali-
200 DIFEnENTF.S GÊNEROS DE PEÇAS

dade parece situar-se numa escala contínua com o melodrama


de características mais toscas numa extremidade e a tragédia
superior na outra. Na tragédia, o princípio de realidade não é
desprezado, não somos para nós próprios a única realidade a
ser respeitada, a culpa de cada um é axiomática, as outras pes- 7
soas podem ser ou não ameaças ou monstros, o final é usual-
mente infeliz.
Contudo, a idéia dessa escala é enganadora se sugerir que Farsa
a tragédia é profundamente distinta do melodrama. Há um me-
lodrama em cada tragédia, assim como há uma criança em cada
adulto. Não é a tragédia, mas o naturalismo, que tenta excluir
os elementos infantis e melodramáticos. WILLlAM ARCHER, um VI OLf. NCI A
naturalista , definiu o melodrama como "tragédia ilógica e por
Vezes irracional". A premissa é clara: a tragédia é lógica e ra-
cional. Procurando a lógica cotidiana e a racionalidade na tra-
gédia, ARCHER extraiu sem remorsos a conclusão de que a maio-
ria .d a tragédia do passado era inferior ao drama da sala-de- F ALEr SOBRE A v ro t. êx c t x no e do melodrama. A farsa é tal-
estar da classe média de Londres, por volta de 1910. Tivesse vez mais notória ainda no seu amor pelas imagens violentas.
ele sido coerente, teria até incluído SHAKESPEARE em sua acusa- E como a violência da farsa e do melodrama não está excluída
ção. da comédia e da tragédia, será conveniente perguntar: O que
Mas tragédia não é melodrama menos loucura. f: melodra- é a violência na arte? O que significa? Em que nos afeta? Eis
ma mais alguma coisa . Mais o quê? a exposição clássica sobre o assunto :
Essa pergunta terá continuidade adiante, seguindo-se ao
capítulo sobre a Farsa, essoutra forma "inferior" que está para Quando ouvimos algum herói [em HOMERO ou] no teatro trá-
a comédia como o melodrama para a tragédia. gico car pindo as suas desditas numa longa tirada, ou um côro
bat endo nos peitos enquanto entoa uma lamentação, sabemos
como o melhor de nós aprecia entregar-se ao desenrolar da
representação, com ávida simpatia . . . Creio serem poucos os
capazes de refletir que o penetrarmos nos sentimentos de ou -
trem deve ter um efeito sobre os nossos : as emoções de com-
paixão que a nOSSa simpatia fortaleceu não serão fáceis de
dominar quando nós próprios estamos sofrendo ... Não se
aplicará o mesmo princípio tanto ao humor quanto ao pathos?
Fazemos a mesma coisa se, ao escutarmos as representações
cômicas ou, na vida ordinária, as palhaçadas a que teríamos
vergonha de entregarmo-nos, as apreciamos com gosto, em
vez de sentirmo-nos enojados com suas irreverências grossei-
ras . Há em nós um impulso para representar coisas cômica'!
e ridículas, que refreamos pelo temor razoável de sermos to-
mados como palhaços ou bufões; mas agora damos-lhe rédea
202 llIFF:IIF:NTF:S GÊNEIIOS DF: PF:ÇAS
FAIISA 20.1

solta c, ao encorajarmos seus atrevimentos no teatro, pode-


doutor lamentando que a arte seja séria, pois se a arte não amea-
remos ser inconscientemente levados a fazer o papel de cê-
çasse violência não penetraria no âmago das coisas. Sem violên-
mico em nossa vida particular. Efeitos semelhantes são pro-
cia, nada mais haveria no mundo senão bondade, e a literatura
duzidos pela representação poética do amor e da ira, bem
não é principalmente sobre a bondade : seu principal tema é a
como de todos aqueles desejos e sentimentos de prazer e dor
maldade. Quando, noutra página, o DR. WERTIIAM queixa-se de
que acompanham todas as nossas ações. Rega o desabrochar
que a simpatia é concedida às personagens más, compreendemos
e o desenvolvimento de paixões que se devia deixar que muro
que ele se coloca francamente naquela tradição puritana hostil
chassem, e permite que elas dominem, embora a nossa bon-
à arte como tal e cujo pai foi PLATÃO - ou uma parte de PLA-
dade e felicidade dependam de serem elas mantidas em su-
TÃO, aquela que teria expulso os poetas da sua república ideal.
jeição.
Os platônicos, nessa argumentação, ignoraram a distinção
entre fato e fantasia. Suponhamos que vemos um homem forçar
Assim se explicou PLATÃO no Livro X de A República. a cabeça de outro homem li entrar na campânula de um cande-
~ questão foi reatada e debatida repetidamente, ao longo dos eiro de gás, para que seja asfixiado pela fumaça. Parece uma
seculos, e não menos em nossa própria época - a época da atrocidade nazista, e PLATÃO ficaria indignado, sem dúvida, pela
mais extensa e da mais atroz violência a que o mundo jamais noção de repetir o incidente numa obra de arte. Contudo, a ce-
assistira. Em semelhante época, constitui naturalmente um mo- na foi reproduzida no filme Easy Street, de CHARLIE CHAPLIN,
tivo de preocupação do homem que as matérias de leitura das e durante todos esses anos ninguém protestou. Todos nos diver-
massas humanas (e devemos agora incluir também as matérias timos imenso vendo Mack Swain asfixiado pelo gás e Carlitos
de "visualização") não tenham qualquer tendência para desligá- triunfante . E, de modo geral, embora o que recordamos consci-
Ias da violência, mas, pelo contrário, tendam a acostumá-Ias à entemente dos filmes de CIIAI'I.1N seja a incomparável delicade-
mesma . E uma das flagrantes contradições morais do nosso za de Carlitos, eles estão em sua maior parte repletos de perse-
panorama cultural é fazerem-se protestos contra a apresentação guições c lutas violentas, em que a fantasia multiplica os movi-
de uma sensualidade salutar na boa arte, os quais partem de mentos e os golpes por mil. O vilão é um gigante cuja força ex-
gente que silenciosamente aceita a crueldade imoderada e afron- cede os limites da natureza . Pode vergar candeeiros de rua só
tosa na má arte. Sendo assim, não surpreende vermos um mé- com as mãos . Como as desforra s do "homenzinho" têm de ser
dico generoso como o DR. FREDRrc WERTHAM manifestar-se, mais do que proporcionais à pr ovocação (como no caso da Pi-
em seu livro Seduction oi the Innocent , contra a violência das rata Jcnny, de BRECIIT), ele pode deixar cair um fogão de ferro
chamadas "estórias em quadrinhos". E eu era um dos que na cabeça do vilão c enfiá-Ia num candeeiro de rua, com o gás
ainda não percebera, até ler o texto do DR. WERTHAM e exa- de iluminação aberto.
minar as ilustrações, como são revoltantes e detestáveis esses Outro sintoma de crueldade l~ a abstração da violência. Os
livros . As estórias em quadrinhos são má arte e má humani- dentes de ' um ancinho no traseiro são recebidos como alfineta-
dade; portanto, um alimento pobre e possivelmente nocivo para das. As balas parecem atravessar as pessoas sem causar dano,
o espírito dos jovens. . . ou adultos. as marretadas produzem uma irritação apenas momentânea. A
aceleração dos movimentos contribui para o efeito abstrato.
Outro tanto poderia ser aceito, provavelmente, por qualquer Igual contribuição, ou maior ainda, foi dada pelo silêncio ca-
pessoa humanitária, mas o DR. WERTHAM não pára aí em sua racterístico dos filmes dessa época, tendo-se perdido muitos dos
argumentação. Numa página, pelo menos, indica que o mérito efeitos quando se lhes sobrepôs uma trilha sonora. Os polícias
artístico não serve de desculpa: as crueldades das estórias mara- atiravam, mas não havia ruído de tiroteio . Objetos pesados caíam
vilhosas dos GRrMM devem ser condenadas a par das "estórias sem estrondo. As terríveis lutas de corpo-a-corpo tinham o ar
em quadrinhos". Neste ponto, sem dúvida, surpreendemos o bom de combates contra inimigos imaginários . Tudo isso significa
204 DIFERENTES CÊNEnOS DE PEÇAS FARSA 205

que, na farsa, como no drama, as violências são permitidas, mas te inversa : a tragédia não é um excitante, mas uma descarga da
evitadas as conseqüências. A delicadeza de estilo de CUAPLIN excitação. A caldeira não explodirá por excesso de vapor por-
faz, realmente, parte do padrão: ostenta um ar de imperturbável que, justamente, essa é a válvula de segurança. f: o caráter exa-
despreocupação quando atua de um modo que, na vida real, tamente oposto da opinião de ARISTÓTELES à de PLATÃO o que
o despacharia para Bellevue ou Sing Sing. mais convincentemente sugere a possibilidade de uma réplica
deliberada . E é esse caráter que a torna de certo modo polêmica
Conquanto PLATÃO tenha demonstrado a importância do e de difícil aceitação incondicional, em toda a sua extensão. Sen-
pensamento e a Psicologia moderna tenha exposto o poder da te-se que a teoria da catarse exagera. Não é verdade que nem
fantasia, não nos podemos permitir sermos levados a considerar tudo isso acontece ao sistema emocional de cada um, durante
a distinção entre pensamento e ato, fantasia e fato, como uma uma representação do Hamlet? Mas a teoria dificilmente pode
espécie de pormenor secundário. A pessoa que confunde os dois ser rejeitada em substância, a menos que queiramos formar ao
grupos de categorias não é excêntrica, é louca. Inversamente, é lado de PLATÃO, BOSSUET, o DR. W ERTIfAM e o Código de Pro-
possível para um pensador e fantasista contar preponderante- dução Cinematográfica.
mente com a sanidade mental do seu público; é isso o que CHAR-
GILBERT MURRAY sugeriu que a idéia de catarse é mais
LIE Q-rAPLIN ou qualquer outro cômico enfaticamente faz.
fácil de aplicar à comédia que à tragédia - mais fácil no senti-
Sem dúvida, os professores e os pais têm de enfrentar o fa- do de que concordamos mais facilmente com a idéia. Já existe
to de que, nalgumas situações, as crianças não fazem uma distin- uma certa unanimidade de opinião em que uma parte da nossa
ção nítida entre fantasia e realidade. Mas têm de compreender violência psíquica - o que os nossos avós chamavam um exces-
que essas situações não abrangem toda a violência do drama 6 so de espíritos animais - pode ser descarregada através do riso.
outras ficções. Pense-se na tremenda violência dos contos de fa- Concorda-se, em geral, que uma boa gargalhada é salutar e nos
das e faça cada um a pergunta para si próprio sobre quantas faz bem como uma espécie de "descarga" emocional.
crianças tentaram, realmente, reproduzi-Ia na vida real. As es- A impropriedade é um fator essencial. Como MURRAY es-
tórias maravilhosas dos GRIMM não parecem justificar os re- creveu: "A comédia . .. não deve ser prejudicada por quaisquer
ceios do DR. WERTHAM. considerações fatigantes de comedimento ou prudência sobre o
Às pessoas capazes de distinguir entre fantasia e realidade; . dia seguinte" , E ainda : "O anarquista e o polígamo, aprisiona-
são possíveis certas indulgências na fantasia que não seriam dos e acorrentados na vida ordinária , desfrutam sua libertação na
permitidas na "vida real". Entre os casos mais notáveis, podem- comédia". MURRAY concebeu a comédia como uma continuação
se entregar a violências arrojadas. O extraordinário trecho de das orgias e ritos de fertilidade. Talvez a suo doutrina implique
A República, que transcrevemos no começo do capítulo, foi res- o mesmo erro dos platônicos: não levar em consideração a dife-
pondido por ARISTÓTELES, embora de um modo não intencional, rença entre fazer e imaginar. A imagem de uma orgia que possa-
talvez, e certamente com pouco desenvolvimento. Sua resposta mos formar ao ver uma obra de arte não deve ser igualada à
encontra-se na famosa frase sobre a tragédia, na Poética: "atra- rcalizaç lo de uma orgia na vida real; e a comédia dá apenas
vés da compaixão e do temor, efetua a catarse adequada dessas uma imagem esbatida de uma orgia como tal. Contudo, depois
emoções". Certo, registra-se um permanente debate sobre o sig- do aparecimento do cristianismo, até a imagem de uma orgia é
nificado da palavra "catarse", mas todos os participantes con- um pouco mais do que muita gente espera. E não faltaram guer-
cordariam, creio eu, naquela parte sólida do significado que é ras entre a comédia e a religião estabelecida, ao longo dos sé-
relevante para o nosso estudo, isto é, ARISTÓTELES rejeitou a culos . O Código de Produção Cinematográfica é apenas sua mais
noção de que a tragédia pudesse reduzir-nos a uma trêmula ge- recente consubstanciação. Não devemos rir dos padres, é o que
léia de compaixão e medo e formulou uma conclusão exatamen- se subentende, ou a religião está em perigo.
FAnSA
207
200 DlFEn ENTES C Ê N E n OS DF: PF:ÇAS

l l.i, sem d ú v ida. uma dose elc ve rdade em tudo isso. Iníe-
ZoMnAR 00 CASAMENTO
lizmc ntc, é verda dc numa prop osição prec isame nte oposta., '!'
famíli a unida , afetuosa. ~ tamb ém o berç o da neuros~ , do .VICIO
Sobretudo, não devemos rir da família e sua origem, a ins- e do c rime, Qu ase na mesma época em que esse artigo fOI pu-
tituição do matrimônio. Se as estórias detectivescas predominam hli cad o . uma foto d e jorn al chamo u a minh a atenção. Mostrava
entre os jovens subprivilegiados, igualmente triunfante entre os um sorrid ente dir etor de rclaç ôcs públ icas co m sua bonita es-
cidadãos de meia-idade superprivilegiados é a literatura que tem posa e três simpáticos filhos. Par ecia um mO,d elo d~ fan:í1ia ame-
Tartufo como santo padroeiro. Numa daquelas revistas de famí- ricana num modelo de lar am ericano e podí am os imagmar a fo-
lia que são tão moralistas quanto moralmente enjoativas, deparei to sendo passada de mão em mão , triunfalmente. no escritório d.e
com um artigo intitulado "Não Deixe que Zombem do Casamen- relaç ões públicas. Contudo. a legenda que a acompanhava noti-
to", no qual a crise moral do nosso tempo era confiantemente ciava que o mais cândid o e meigo dos rap azes acabara de matar
atribuída às piadas contra o matrimônio. "A injúria grosseira ao a mã e e a irmã , tend o declarad o à polícia que planejara matar
matrimônio é a noção de que a perseguição, a sedução, é a tamb ém o resto da família . Seria co nso lado r pen sar que um acon -
meta", escreveu o autor. " O casamento é visto como uma con - tecimen to tão choc ant e poder ia se r co nside rado irrele vante para
seqüência aborrecida." Como psicólogo, o autor saberia que as a exp eri ência da gente normal. Mas não era. p or~lue a gente or - r:
injúrias, ainda as mais grosseiras, não são feitas sem provoca- mal comp artilha dos mesmos desejos, emb ora nao os concí~tlze .
ção . Ou, se o são, não perduram eternamente nem atraem toda Uma arte como a far sa con sub stanci a tais desejos: o desejo de
a raça humana. Ob viamente, a raça humana acha mais interes- cau sar dan o à família , de pr ofanar os deuses do lar.
sante o que esse homem considera uma injúria grosseira do E a tragédia nã o é difer ent e. a esse respeit~). Os greg,o.s ,
que o que ele apr esenta como a verdade. qu e a in ventaram , não o fizeram antes de ter~m criado a famJ113
E certo , porém, que as piadas contra o casamento poderiam patri ar cal e uma ideo log ia ad equ ad a. Pareciam te.r enc ontrado
ser eliminadas se a família fosse a bênção imaculada que muitos a virtude supre ma na relação de vot a e leal do mand o e , n~ u l he ~ ,
dos nossos contemporâneos sup õem . O chefe da divisão de Me- de filhos e pa is. de ir mãos e irmãos . O tem a da trag.edJa f~:)J ,
dicina Social num importante hospital norte-americano escreve repet idament e. a violação dessas re laçõ~s . ?ra. qual serra a pIOr
violação co ncebível das relaç ões de Iidc lida dc e de votamento
o seguinte :
conju gal c filial? Claro, o dup lo crime de Ed ipo .
Um ver bete de T ire ().rford Com panio n l o tire Th eatre
A família é centr al para o desenvolvimento da humanidade assim reza :
não só no tocante à perpetuação da raça, mas porque o de-
senvolvimento psicológico apropriado do indivíduo só pode A p al a vr a farsa apl ic a -se a uma peça q ue tr at a de algu~ a
ocorre r dentro do círculo cálido da família nuclear. Estudos siruação a hsurda, girando hahi tualmente e m torn o d e rela ções
sociais e psicológicos indicam muito claramente que uma ex t raco~ j ll gais - da í a ex p ressão [ursa d e alco va . . .
forte estrutura de família ajuda a desenvolver e a manter uma
personalidade livre de características perigosas (para o eu
e a sociedade) . A frase " alguma situação abs urda. . . em torno de rei a-
çõcs ex traconjugais" sugere vár ios enredos tr ágicos, o de Ot elo ,
por exemp lo. Mas qu al a "si tuação . . . gira ndo . . . em torno de
E O autor conclui que os desvios sexuais e a delinqüência relações extraconjugais" que não está repleta de absurdos. e,
juvenil podem ser evitados por relação familiares mais Íntimas portant o, potencialme nte melodr am ática ou burl esca, trá?~ca
e afetuosas. "A família que reza unida mantém-se unida." "Onde ou côm ica, de aco rdo com o temp eram ent o, estado de esp írito
a vida da família cessa , a delinqüência começa."
208 DlFEm::-;TES GÊ:-;ET\OS DE PEÇAS FA T\.<;A 209

e concepção de vida da testemunha" Os atentados à devoção camuflagem em face de um determinado público. As peças que
familiar estão, certamente, no âmago da farsa, tal como a co- citei são melhor compreendidas hoje quando o público reco-
nhecemos - "daí a expressão farsa de alcova", como diz o ver- nhece imediatamente o tema edípico e assim toma as peças por
bete acima citado. aquilo que são : "sociais" e "psicológicas", ao mesmo tempo.
Foi FREuo, evidentemente, quem nos ensinou a encontrar
essas irreverências na tragédia. E um dos seus primeiros discí-
pulos, LUOWIG JEKELS, aplicou a idéia do complexo de Edipo
à comédia. Se a tragédia, diz ele, mostra o filho pagando por CATARSE CÔMICA
sua rebelião contra o pai, a comédia mostra o filho vitorioso, o
pai derrotado . Pai e filho competem pela posse da mãe, e o filho GII.BERT MURRAY falou so bre a "es treita semelhança entre
vence. O elemento de disfarce pelo qual essa fantasia reveste ARISTÓTELES e FREUO" c, na verdade, FREUO levou mais longe
sua nudez consiste, muitas vezes, no filho ser apresentado como do que qualquer comentador aristotélico jamais sonhara a idéia
um jovem qualquer que ocasionalmente apareceu. Mas muitos de Catarse. Na d écada de 1890, a nova terapêutica escapou por
dos disfarces para o tema são mais elaborados. Parece-me que um triz de chamar-se cat ártica em vez de psicanalítica. Para
o moderno "triângulo" amoroso pode ser considerado um deles: FREUO, os gracejos e piadas são fundamentalmente catárticos:
marido, mulher e amante sendo os disfarces de pai, mãe e filho. uma descarga, não um estimulante. Essa a razão por que FREVO,
Se assim for, então a resposta à pergunta "por que os modernos ao contrário dos nossos moralistas de revista, "deixava que zom-
autores teatrais têm estado obcecados com o adultério?" é que bassem do casamento". (Sabia também que nunca lograria im-
eles não estão obcecados com o adultério, mas com o incesto. pcdi-los .) f: uma espécie de segredo público, diz FREUO em seu
Na Cândida, de BERNARO SHAW, Morell, Cândida e Marchbanks livro sobre piadas, "que o casamento dificilmente constitui um
seriam as máscaras de pai, mãe e filho . (Não cito a prova arranjo satisfatório para as exigências sexuais do marido", e ainda
decorrente da vida de BERNARO SHAW de que as três persona- que esse segredo seja meio guardado, meio revelado, num milhão
gens eram, efetivamente, pai rou pai adotivo l, mãe e filho [ele de piadas masculinas contra o casamento. Eu acrescentaria que
próprio] para o autor. Essa é uma questão de origem. Mais re- a forma suprema da piada matrimonial precisa de algumas ho-
levante, no nosso caso, é a possibilidade de que Morell, Cândida ras para ser contada e tem um elenco de três personagens co-
e Marchbanks fossem ainda 11m pai, mãe e filho para o incons- nhecidas como le mari, la [emm e et l'amant - "daí a expressão
ciente dos espectadores, mesmo que nada soubéssemos da vida farsa de alcova", Assim como a Comédia da Restauração foi
de SHAW.) Tal foi a conversão da história de Édipo ao teatro provocada pelos puritanos e está dedicada para sempre à sua
de problema do final do século XIX. Noutra das primeiras peças memória, a farsa do adultério , <Ia longo de toda a época protes-
de SHAW, A Profissão da Senhora Warren, o tema de incesto é tante-burgucsa, foi provocada pelos maridos fiéis e só terminará
transparente, como já o fora em duas das mais famosas peças do quando eles se tornarem infiéis, em princípio.
dramaturgo-pai de SHAW, HENRIK InsEN, nomeadamente Es- A farsa, em geral , oferece uma oportunidade especial: pro-
pectros e Rosmersholm, Contudo. para os contemporâneos, essas tegidos por uma deliciosa escuridão c sentados numa cálida se-
três peças parecem versar exclusivamente problemas sociais cor- gurança , desfrutamos o privilégio de sermos totalmente passivos
rentes (escravatura branca, sífilis hereditária, idéias avançadas enquanto no palco os nossos mais caros desejos inexprimíveis
etc .). Para eles , o tema de incesto conservou-se velado e q\lan- são realiz ad os ante os nossos olhos pelos seres humanos mais
do alguém nota o que esse véu significa, começa a ver o realis- vio lentamen te ativos que alguma vez brotaram da imaginação
mo social a uma luz diferente. Não quero com isto significar humana. Nessa aplicação da fórmula que é a farsa de alcova, sa-
que o conteúdo "social" seja sempre uma simples camuflagem boreamos a aventura do adultério, engenhosamente exagerada
para os motivos psicológicos, mas, apenas, que pode servir de no mais ele vado grau , e tudo sem tomar a responsabilidade nem
210 PIFERF.NTF.S C~NF.ROS DF. PEÇAS
FARSA
211
sofrer a expiação da culpa. Nossas esposas podem estar conosco,
comandando o riso. nenhulll~ experiência poderia esta r mai s distanciada do que esse
Por que nos rimos das piadas? A intenção de uma piada m?lllcntan co regresso à infância e a experiência de ser uma
pode ser explicada, mas a explicação não é divertida . O con- criança. A. verdadeir.a inocê~cia da infância jamais é reconquis-
teúdo intelectual não é a essência. O que conta é a experiência a tada. mas , ~o que dIZ respc íto ao prazer, há um incremento na
que chamamos "entender a piada" ou "perceber a intenção". pura nostalgia Nenhuma memna pequena pode amar a meninice
Essa experiência é uma espécie de choque, mas, ao passo que a como LEWIS CARROLL o fez . Nenhuma criança compartilha do
maioria dos choques é desagradável, essa escancara algures gozo adulto n ~ regresso , ou no aparente retorno, à infância. O
uma represa e provoca um jorro ou um arrebatamento de pra- h umor tcm rríüíto a xer com a aistância entre a infância a que se
zer. O prazer de rir não é contínuo com o divertimento mode- retoma e o ponto a pa rt ir do qual a jornada de retomo foi en-
rado que o precede. Uma piada é uma corrente sussurrante na cetada. De fato , a p'rem issa de g ue as crianças não têm senso de
maior parte do percurso e então, subitamente, de uma de suas h U ~lOr:, ú.til n.? iní cio , precisa de uma ressalva, numa fase ulte rio
lagoas jorra um verdadeiro gêiser. da ~vestlgaçao. s crianças des en volvem um senso de humor à
O fenômeno parece ser menos misterioso se o virmos limi- mcalaa Rue se afastam da inocência p.rimordial. Basta que ouçam
tado aos seres humanos adultos, e os seres humanos repletos de algumas ã as "canções de experi ên cia ", que são canções de retro-
angústia e culpa. Os super-homens e as crianças de colo não cess?, desap Qn ~a m en to e desilusã o , e a alegria sincera de um
têm senso de liümo r. N ão precisam. Gs fiomens e mulheres pre- SO!fJSO de be bê p;ode ã ar lugar, no rosto de uma criançg tle

cisam porque rep,rimiram mu itos de seus mais fo nes âesejos . tres anos, ao sorriso agrcssi :v.amente a fetad o ou ao meio sorriso
Como atua o senso de Humor? Seu intuito é gratificar al- o l~~a rç ad.~ â ~ ,?er;ota. ~ ': inocência" é g obal e singular. Go m
guns desejos proibidos. Mas o que está reprimido está reprimi- a , expenencla :v.em a div isão e a a ualidade - sem o que não
do. Não podemos atingi-lo. A nossa inquietação e culpa se en- ha humor, graça, farsa o u cornédlâl
carregam disso. Só que existem estratagemas para burlar ambas
e o mais comum, o menos artificial, é o senso de humor. Os pre-
liminares moderamente divertidos de uma anedota aliviam nos- PIADAS E T EATRO
sos temores , diminuem a nossa resistência. A satisfação do dese-
jo proibido é insinuada então de surpresa. Antes de nossa culpa Umas das mai s profundas per cepçõe s básicas de BERGSON
e ansiedade terem tempo de entrar em ação. o prazer proibido e FR EUD foi a de qu e solt ar piada s é cri ar teatro . BERGSON diz
já foi experimentado. Uma fonte de prazer muito mais funda que qualquer demonstração de graça. se for articulada de Ia-
do que as diretamente acessíveis foi escancarada. As inibições ~o, .é. em cenas que se articula - o que equi vale a um comédia
são momentaneamente suspensas, e experimentamos aquele sen- I~clpler:te. FREUD as~inala que'Apara haver uma piada, são pre-
timento de poder e prazer geralmente designado por regozijo ou c~sos nao um ou dOIS. mas tr es componentes. São o autor da
exultação. Eis uma das poucas formas de alegria que se pode piada, o alvo da piada e o ouvinte. O trio é conhecido na forma
ter gratuitamente, por assim dizer. Daí a imensa contribuição do de comediante, homem sério e público. Esse trio de vaudeville
humor para a sobrevivência da espécie. sugere, por sua vez, o ironista , o impostor e o público do teatro
Daí resulta um paradoxo. Através do risível, do engraçado, cômico tradicional.
abrimos as fontes infantis de prazer, tomamo-nos crianças de . Dizer que ? piadista precisa de um alvo equivale apenas
colo novamente, encontrando a mais intensa satisfação nas coi- a dizer que precisa de uma piada. Precisará tanto de uma piada
sas ínfimas, o êxtase supremo nos mais baixos pensamentos. E, quanto de um ouvinte? Deixemos que cada um de nós lhe per-
no entanto, as próprias crianças de colo são despidas de humor. gunte por que, num dado mom.ento, ele deseja soltar uma pia-
Mas o paradoxo não é uma contradição, visto que, no fundo, da . Nao pode ser porque desejamos que ela nos divirta, visto
que as piadas não são divertidas a segunda vez que circulam, e
212 DIFERESTES CeS EnOS DE PEÇAS F AIISA 213

não se poli e soltar uma piada que não já tenha sido ouvida . o que se propõe como estud os de com édia c, freqüente-
(Excluo de consideração qualquer super-homem que possa in- mente , redunda apenas em estudos so bre o riso , deve ser lamen-
ventar sempre as suas piadas. Ele é irrelevante aqui porque o tado; co ntudo, a circunstância refl et e fielm ente a mentalidade do
tema que estou abordando é o comediante, que certamente não co med iante. O seu desejo é cativar c manter dominado o seu
escreve sempre o texto de seus gracejos.) De qualquer modo, se público , sabendo que tal desejo só está realizado quando o pú-
a nossa necessidade fosse ouvir a piada, a pessoa poderia contá- blico ri. Portanto, embora o riso possa não ser o emblema apro-
la a si própria. B indiscutível que a necessidade não é da piada, priado para a comédia, constitui a ratificação final das anedotas.
absolutamente: é de público para ouvi-la. Por esse motivo, pode-se perdoar aos comerciantes de diversões
Quem tiver conhecido comediantes fora do palco pode tes- públicas uma certa histeria a tal respeito, e deveríamos receber
temunhar, creio eu, que se trata freqüentemente de homens com mais com tristeza do que com ira as notícias de que o pessoal
uma necessidade de aplauso e admiração que excede até a de da televisão está medindo a duraçã o e o volume das gargalha-
outros atores. E há uma razão pela qual os homens com essa das com medidores de riso.
necessidade - quer se trate de talentos humoristas ou não - Se os filósofos podem reduzir a arte cômica ao riso, então
procurem a profissão de comediantes. Só a piada obtém do seu os empresários podem, certamente, reduzir o riso ao ruído que
público uma reação cujo conteúdo é inconfundível e entusiásti- provoca . Mas, em ambos os casos , o verdadeiro tópico é exces-
co: o riso . O ator trágico não recebe tal indicação, no final do sivamente delimitado. O estudioso do riso deveria estudar toda
seu solilóquio "Ser ou não ser ... ", de que o desempenhou a curva de que a explosão de riso é apenas a fração final. Antes
perfeitamente . Ficará satisfeito se houver silêncio na sala, mas, das pes soas estourarem em gargalhadas têm de ser preparadas
ainda assim , poderá ficar na dúvida se alguém não teria ador- para isso. A única preparação segura é um estado especial de
mecido . Duvidará se esse sentimento de que tudo correu bem expectativa e sensibilidade que corrcsponde a uma espécie de
não será talvez uma ilusão. Mas não existe, como RAMON FER- euforia . Pode ser mais importante que a própria anedota . Po-
NANDEZ assinala, uma ilusão de que uma platéia está gargalhan- de-se alcançar um estado de excitação em que as pessoas rirão
do . Assim , o riso é peculiarmente atraente para uma pessoa que de qualquer coisa. O ator poderá ter de averiguar para si próprio
precisa de uma reação do público , de minuto em minuto, e que aquilo que não deverá provocar riso , se quiser impedir o caos.
precisa ter a certeza de que é altamente favorável. Na noite em Tem de vigiar para que as moças não fiquem agitadas e as se-
que o público n50 ri , o palhaço sai e mata-se. Pelo menos, po- nhoras histéricas.
deria - visto que ,\ única coisa pela qual tem vivido não acon- Em tudo isso , o teatro manifesta-se como a arte de soltar
teceu. piadas, não a arte de escrever livros. Lemos sozinhos; e acha-
Sugeri que o comediante é o homem cuja necessidade de mos notável se. uma vez por outra , rim os em voz alta . Por isso
aplauso é a mais insistente e suspicaz. Uma interpretação alter- me sm o, é uma só explosão de riso, um único e tímido latido,
nativa é o comediante ser o mais dotado, o mais talentoso dos ainda que em voz alta . O resto da família tem a certeza de que
faladores compulsivos. Todos os cocktail parties recebem muitas essa gargalhada foi para chamar a atenção e pergunta o que
pessoas que não cessam de falar enquanto tiverem alguém quo foi que teve graça. E é muito provável que fosse essa a intenção.
as escute. Poder-se-ia considerar o piadista como um falador Mas quando o Primo Seamus nos conta suas piadas irlandesas,
compulsivo que obtém êxito porque sua conversa é divertida. podemos realmente deixar correr e, em dez minutos, estaremos
As gargalhadas que saúdam cada estória constituem um diploma tão "ébrios" quanto se tivéssemos tomad o uísque. Tal é a psico-
em que se declara que ele teve êxito em não maçar a sua audi- logia do comediante no teatro .
ência. Poderá ser tentado a contar suas estórias a grupos cada A esse respeito, como noutros aspectos , a arte da farsa
vez mais numerosos . Se acabar num palco falando para pessoas resume -se apenas a piadas transpostas para o teatro - pia-
com quem nunca se encontrou, é um comediante profissional. das inteiramente articuladas como personagens e cenas teatrais.
214 DJFEnE~TES G~SEnOS DE PEÇAS

~ correto dizer que sua finalidade é o riso, mas não é dizer uma IJI e<.:CJL'\n:1 UII1 di :'i1 11go t ~ ll vivo q ue qu alqu er Ia ln podia ser o
~ i J l:I lpara no vos acesso s de risos, ;\ int crr upçã o d o desempenho
coisa simples. O riso pode significar isto ou aquilo e, em qual-
quer dos casos, tem de ser preparado com o máximo cuidado. - mesm o e m surtos de co nte nta me nto - nã o é uma finalidade
E modulado, também. Os estudiosos futuros do tema fariam bem dc scj .ivcl . () qu e os a to res tinham :1 lazer era o in verso de "ex-
em abandonar a piada, individualmente considerada, e as ra- p l(ll:IIL'II1 " cnda Iala. par a obte re m o máx imo de di vertimento,
zões por que é divertida, voltando-se para a seguinte pergunta : Era. a ntes. de sp erdi çar em uma qu antidad e de divertimento em
até que ponto é divertida num determinado contexto? Verificar- ca da Iala . a fim de obt ere m um di vertim ent o mais importante .
se-á que, por vezes, não é absolutamente divertida e, noutras, O obj eti vo da estr at égia de G IF LG lJI) não era evitar apenas o
rnuitfssirno divertida . .f: uma questão de como o público foi le- tumult o , E ra o mai s co mp leto g()ZO d a re p rese n taç ão em geral.
vado ao ponto em que o riso deve eclodir e a graça ficar com- Os csp cctadores são com o bebes c não fazem ju éia daquilo d e
provada. q uc g(lsl :l r~o , Se os d oixa rc m, rir~ o tant o e com tamanha insis -
tt?n l:'ia que . dep ois . só pod em ter acessos d histeria ou mau
Estive falando de uma eclosão de riso, com uma prepara-
1HlIl1or. Te m de se evita r qu e prcjudiqu cm seus pr("prios siste-
ção, e mesmo num acontecimento tão pequeno há muito que ob-
ma s n l' F ~ ' sos , O riso II~ O pod e sc r regul ar e constante .
servar. Mas qualquer farsa que demore mais do que um minuto
N ão nD tJC co m ça fi piall i.lsilllo e c! cp'ois ficar cada vcz mais for -
ou dois tem de fazer o público gargalhar em voz alta um número
te ad ill flll if/lll/ , Nem Dou e mant er a mesma intens idade pcrrna -
considerável de vezes. Isso não pode ser conseguido enfileirando-
nent em cnt c. com o a sirena a e uma I ábr-i ea- Está associado ao
se apenas as piadas umas após outras. A exultação geral é de
nos . o sist ma rc spir:ltório e voc :11 muito limitado. n ar:l não cita r:
uma potência tão superior a qualquer dos vários momentos es-
a 1t , 'a psico log ia .
timulantes que é lícito indagar: o que é uma piada? Como eu já
disse, se uma pessoa tiver muito êxito com uma primeira piada, SL' u 111 mcd ido r de riso p udes se a va lia r o m é r i tn de um cs-
o público poderá ficar num estado de espírito em que qualquer pct .icul o. ent ão o es pe t áculo ideal ser ia aq uele qu e p rodu zisse
coisa parece divertida . Tudo o que se precisa é um novo rumo umn S('l c inint errupta g:lrg:dhada. qu e dura sse desde as nove e
para os acontecimentos e uma nova onda de riso acolherá a ma- m r in ;11 L: :1 meia-n oite . Co nsis tir ia, port a nto , numa peça qu e nã o
nobra. Mas esse estado de espírito não durará muito se não for SI ') n;io p(ldni a ava nça r, mas nem mesmo co meç a r . Na rcnlidad c,

ajudado , E talvez não seja aconselhável mantê-lo indefinidamen- n ~o ex iste um a prn p(l[' ção esta helecida entre o co ntenta me nto
te, para que o resultado não acarrete a pura exaustão. Aquele e :\ dlll':lL';io do riso a ud ível . M as riso a nu-no s L- melh or qu e riso
qu e organiza toda uma sessão de "divertimento" deve ser, de a rll:lis, Sl' nr nlunu a CO llll'di: l, p\1r m aior qu e Io ssc. pud esse fazer
fato, um organizador. Nada seria mais fatal do que jogar tudo o pl'Jhli co rir o tem po tod o. 11 :I\Tri :l, e ntre ta n to . uma zrand c co-
na preparação de um bom começo e, depois, deixar que os 111 L:d i:l q t1e 111111 l':1 Iuri n o publ ico rir . '
acontecimentos tomem seu curso, o que é algo que qualquer
bom produtor de vaudevilles sempre soube; e é algo que todo F. a p rop ósito , co m q ue frcq ü êncin escuta mos realm ente
autor de farsas deve ter em mente - ou , melhor, em seus ossos. o riso? t um so m bast ante feio. Q ua ntas vezes olhamos para
Um esclarecimento subsidiário é fornecido por uma afir- as pcsso:« enq ua nto riem ? Não é u m bonito pan or ama . E quão
mação de SIR JOHN GIELGUD a respeito da encenação de The pou co se ri no palc o, no bom teat ro! O lug ar para o riso é a
Importancc oi Being Earnest, de WIlDE. Era sobre a necessi- plat éia . Tal vez o mot ivo ~e j: l por qu e na pl:ltéia ningu ém rem de
dade do diretor aprender a evitar que o público ria em demasia- o ve r. A s pessoas vêem os ato res, qu e rara me nte riem e, quan-
das passagens da peça. Quem tenha visto a encenação de GIEL- do o f:1!L' n1. é prin cipalm ent e p:1r a ef eitos negativos. Só h á pou -
GUD perceberá o que ele queria dizer. A temperatura cômica foi
Ct1 S d ias abri uma revista e dep ar ei co m um rir sumament e ex-
levada tão alto, o entusiasmo do público era tão intenso, que a pr cssivo na face de um ator, i\ legend a inf orm ou -me que se
representação, nalguns pontos, quase não podia continuar. WIL- tr :I(;I\'a de GUS T .\\' GR Ü .'~ D(j r N s , " no pap el de Mcfist ófclcs .
216 DIFEnE~TF.S eb'Enos DE PEÇAS FAI1SA
217

DoCES E AMARGAS FONTES Eu queixara -me muitas \'l'ZC~ de que eles nos aborrecia
con-uantcrncnte com essa questão de adultério, que hoje em
FREUD distingue duas espécies de piadas, uma que é inocen- dia é o tema de três quartos das peças. Por que comprazer,
te e inofensiva, e outra que tem um intuito, uma tendência, um perguntei eu, na descrição de seus aspectos sombrios e t~is­
fim em vista. Distingue, por sua vez, duas espécies de intuitos: tcs, ampliando as terríveis conseqüências que arrasta consigo
destruir e expor, esmagar e despir. As piadas destrutivas abran- na realidade? Os nossos pais trataram as coisas mais despre-
gem intuitos tais como o sarcasmo, o escândalo e a sátira; as des- ocupadamente no teatro e até deram ao adultério um nome
nudadoras incluem a obscenidade, a pornografia, a licenciosi- que só despertava na mente idéias ridículas e uma despre-
dade. ocupação jovial. . . O caso fez que eu encontrasse LABICHE.
A única coisa surpreendente nesta classificação é que colo- "Fiquei muito impressionado", disse-me ele, "por suas obser-
ca a obscenidade a par da sátira. Se concordarmos, teremos de vações sobre o adultério e no que podia derivar daí .. , para
dar ainda outro passo, observando que existe força destrutiva na a farsa .. . Eu concordo . .. .. Já quase esquecera essa conversa
piada que expõe. f: hostil para a coisa exposta ou para o público quando vi o título do cartaz colocado à porta do PaIais
que assiste à exposição, ou para ambos. Modificando a formu- Royal . .. Era a minha peça: era adultério tratado jovial c
lação de FREuD, concluo que tanto o satírico como o obsceno despreocupadamente ...
cabem no capítulo da agressão.
Temos, portanto, piadas agressivas e não-agressivas. Todos A opinião anglo -saxã tcm sido contra a admissão de temas
nós part imos, de fato, desse princípio, pelo menos, e está mui- tais como o adultério no teatro não-sério; entretanto, houve um
to generalizada na nossa cultura de classe média uma preferên- crítico inglês que, antes de SARCEY, levara o argumento deste
cia pela piada não-agressiva. Não somos urna civilização cristã? último ainda mais longe . Trata -se de OIARLES LAMB, em seu
Eu próprio fui criado à sombra de um pequeno hino que dizia: outrora famoso ensaio sobre a Comédia da Restauração. Em
substância, embora não seja este o seu vocabulário, LAMB ar-
Teach uns deliglit in simple things gumenta que a temática da comédia da Restaur~ção se torna
A nd m irth that lias no bitter springs . aceitável se considerarmos o produto acabado mais como farsa
do que sátira. Na verdade, i ~to equi vale. a j~lgar tolerante~lcnte,
[Ensinai-nos o prazer das coisas simples numa peça . aquil o que na vida real seria VIsto com severidade.
E a alegria que não tem fontes amargas.]
Eu jamais associaria esses divertiment os de uma fant~sia es-
Parecia uma petição bastante razoável, especialmente se pirituosa, sob qualquer forma, com o resultado. seja qual
atendemos a que, nessa época, eu não sabia que a alegria nunca for a extrair deles para imitação na vida real. Formam em
tinha fontes amargas. E ignorava, sem dúvida, que o autor do si me sm os um mundo quase equivalente a um país lendá
próprio hino era um homem de invulgar combatividade. (f: de rio . . . Os Fainalls, Mirabells, Dorimants e Lady Touch-
KIPLING.) wood s, em sua própria esfera, não ofendem o meu senso
Algumas pessoas querem suas piadas agradáveis e inofen- moral. . . Eles não transgridem as leis nem as restrições da
sivas; outras pessoas querem suas farsas agradáveis e inofensi- consciência. Não conhecem nada disso. Saíram do cristia-
vas. De fato, é comum interpretar a farsa como, precisamente, nismo para ingressar no país - corno lhe chamarci? -
o tratamento agradável do que, caso contrário, seria um tema dos maridos ludibriad os. a Utopia ela vida galante . em que
desagradável. Eis como o grande crítico teatral da França do o prazer é dever e as maneir as perfeita liberdade. B uma
século XIX , SARCEY, analisou o maior autor de farsas do seu cena inteiramente especulativa das coisas. sem referência de
tempo: espécie alguma ao mundo real.

- , . f n
FAI1SA 219
218 IJIFEI1F::"T1 :S c:f::"I·:Jlos IlI : I'FÇAS

Ora, tanto SARCEY como LAMn disseram coisas que são receu m ais cavalheiresca que a sádica . Mas Carlitos, o Vaga-
inegavelmente verdadeiras. Se o adultério no drama está-se tor- bundo de CIIAPLlN, não é exclusivamente masoquista. f: tam-
nando uma solene maçada, então seria por certo divertido ten- bém um sádico. Muitos leitores recordarão o que sucede em
tar o critério da farsa. Se os pais estão ficando solenemente O Garot o, quando Carlitos se encontra liter.ilrnentc com o bebê
cacetes, ao sugerirem que uma comédia da Restauração podia nos braços . Sem dúvida, ele vai-se tornar um encantador e sen-
ter uma influência incomum e imoral em suas filhas, então seria timental pai adotivo, mas , ao sentar-se no meio-fio, com os pés
bom recordar-lhes a distinção entre arte e vida, entre ficção e na sarjeta, nota um bueiro destapado e quase se dispõe a lançar
fato. Mas a verdadeira questão é o significado da jovialidade o bebê pelo buraco abaixo, antes dos bons sentimentos impo-
de que nos fala SARCEY e a que LAMB chama os divertimentos rem-se de novo . f: por toques como esse - e nunca pelo sen-
de uma fantasia espirituosa, sua Utopia da vida galante, seu timento, apenas -- que CHAP LIN demonstrou ser um grande
país dos homens enganados. Ambos os críticos supõem que cômico .
encerraram a discussão, uma vez que apelaram para os espí-
ritos gêmeos da alegria e da fantasia. Contudo, é aí que come- Ensin ai-no s o pr azer das coisas simples
ça a verdadeira discussão da matéria e aí encetou FREVO o seu E a alegria que não tcm font es amargas .
estudo, na monografia sobre piadas . Aceitando a existência de
piadas que são "inocentes", FREVO prossegue dizendo que só
as tendenciosas, as piadas com um propósito, são capazes de A DlAI. ÉTI C'A DA FARSA
fazer as pessoas estourar de riso. As piadas inocentes não pro-
vocam esse impacto. Não as sentimos tão profundamente . O Para os sim ples, tod as as coisas sã o simples . Contudo, a
nosso aparelho receptor não é tão sensível a elas. Não sentimos farsa pode parecer uma coisa simpl es, não só para os espíritos
por elas uma necessidade tão grande. Ansiamos por carne mais simpli stas. mas também para os que reconhecem sua profundi-
suculenta. Queremos sátira . Queremos irreverência. Queremos dade. A farsa é simples, nes sa concepção , porque vai direta-
atacar e expor . mente às coi sas. Com um soco derruba-se a sogra, sem rodeios
Dizer que só a piada com um propósito pode realmente de espécie alguma. Uma pessoa poderá indagar, certamente, se
suscitar o riso equivale a dizer que só esse tipo de piada é de não será essa a visão absolutamente direta , imediata , sem aque-
muito uso no teatro de Farsa . E parece-me que, se examinar- la du alidade de máscara e rost o. sím bo lo e o bjeto . que cara cte-
mos as farsas, apuraremos que contêm muito poucas piadas riza o rest o U~ literatura dram ática.
"inofensivas" e grande quantidade das "tendenciosas". Sem Um segundo ângulo, através do qual a farsa pode parecer
agressão a farsa não funciona. Os efeitos a que chamamos "bur- simp les, é a sua aceitação das aparência s cotidianas e das inter-
lescos" dissolvem-se e desaparecem. pretações co tid ianas de ssas aparências. Não apresenta as ima-
O que acontece nas farsas? Numa de NOEL COWARO, um gens purpurcadas e ampliadas do melodrama . Não. a far sa pode
homem esbofeteia a sogra e esta desmaia. A farsa é a única usar o ambi ente ordinário, sem ampliações. e os vulgares ho-
forma de arte em que tal incidente podia normalmente ocorrer . mens da rua. A dificuldade est á em que a farsa é simples em
Ninguém negou ainda que os filmes de W. C. FIELOS ambos esses aspectos, simultaneamente, pelo que não consegue
fossem agressivos. O público tornou-se de tal modo consciente ser ab solutamente simples . A farsa reún e as fantasias diretas e
das agressões que começou a afastar-se dos filmes de FIELOS. as mais desenfreadas, as realidad es cotidiana s e as mais insípidas
No caso de CHARLlE OfAPLlN, o público afirmava gostar dele e monótonas . A interação el e ambas co ns titui a própria essên-
porque era menos violento. Parecia menos violento porque cia dessa art e - a dial ética da farsa.
punha a violência nas demais personagens . As violências eram Se por trás da alegria da far sa refulge uma certa gravidade,
praticadas nele, não por ele, e a farsa masoquista sempre pa- é igualmente verdade que , por trás da gra vidade, brilha uma
FAIISA
221
220 DlFEl\ENTES CÊ:"lEHOS DE PEÇAS

boa dose de alegria. A farsa pode certamente apresentar um é compen sada por algo de import ância igual para ?s seus pap~is:
aspecto grave. Outra vez esses atores sisudos! - ou, melhor, suas execuções perfeitamente sérias no mais delicado dos ins-
os papéis sisudos e maltrapilhos que a farsa lhes oferece. Aqui trumentos, a harpa .
está um ponto de importância decisiva no desempenho. O ator Um erro comum é pensar que os efeitos de CHAPLIN e
amador não o apreende e tenta representar a alegria . O pro- HARPO MARX são atenuados pela gentileza e delicadeza, como
fissional sabe que tem de representar a gravidade e confia em se a finalidade fosse chegar a um compromisso entre a violên-
que o autor injetou alegria no enredo e diálogo. cia e a sobriedade . Mas os compromissos são para a vida, não
Na realidade, forçando um pouco mais a análise, a super- para a arte . A finalidade des.sa gentil.ez~ e. dessa. delicadeza é
fície da farsa é simultaneamente grave e alegre. As alegres exacerbar não atenuar o efeito da violência e Vice versa. A
momices de Arlequim são conduzidas com uma gravidade re- arte dra~ática, em ger~l, é uma arte de extremos, e ,a. farsa é
fletida no rosto impassível. Tanto a jocosidade como a seriedade como se fosse um caso extremo do extremo. Caracteristicarnen-
são visíveis e fazem parte do estilo. Se continuarmos falando te, a farsa promove e explora os contrastes mais amplos possí-
de um contraste na farsa entre máscara e rosto, símbolo e coisa vcis entre tom e conteúdo, superfície e substância, e no minuto
simbolizada, aparência e realidade, isso não constituirá um con- em que um dos dois elementos na dialética não estiver presente
traste entre estilos, mas um contraste entre a seriedade ou a em sua extrema ou pura forma é provável que se registre um
alegria superficiais e seja o que for que se lhes subentenda. O enfraquecimento da ação dramática. Isto podia ser exemplifi-
que é que a gravidade e a jocosidade têm em comum? A cir- cado pela pequena peça de NOEL COWARD em ,~ue,_ embor~ se
cunspeção e a moderação. O que está sob a superfície, por verifique uma extrema leveza de tom, os cordéis sao mov.ldos
cutra parte, é desordenado e violento. B uma dupla dialética , (mais ou menos literalmente) de modo que uma esquerda direta
Na superfície, o contraste de alegre e sorumbático; depois, em aos queixos seja todo o necessário . Na farsa. ?iz~mos: "Matá-
segundo lugar, o contraste entre a superfície e o abaixo da lo-ei com as minhas próprias mãos" , num tom displicente ou com
superfície. O segundo é um mais amplo e até mais dinâmico aquela mistura de gravidade e jocosidade que define esse tom
contraste. corno burlesco, mas num grau que também empregamos para
De que modo a farsa usa esse mais amplo contraste pode- denotar a intenção' por alguns adcrnanes, pelo menos, nas pa-
se apreciar melhor através de uma comparação com a comédia. lavras ou gestos, deve ficar patente que os de~ejos homicidas
Esta aproveita muito as aparências; especializa-se, com efeito, existem no mundo - e nesse momento . Se existem em NOEL
em manter as aparências. O desmascarar, em comédia, é ca- CoWARD, ele foi demasiado gentil para deixar que o seu pú-
racteristicamente o desmascarar de uma única personagem numa blico o percebesse . No nosso teatro, os talentos como o dele
cena culminante - como o de Tartufo. Na farsa, o desmasca- afastaram-se da farsa sem encontrarem a verdadeira comédia,
rar ocorre continuamente . A ação favorita do ator burlesco é indo parar no pior dos dois mundos. a "comédia ligeira" senti-
espatifar as aparências; seu efeito favorito é o choque que isso mental do West End e da Broadway .
produz no público. Coloquem no palco um ator da estirpe de
1:: perigoso tentar um compromisso ent~e os dois opostos
HARPa MARX, e todas as aparências estarão em perigo. Para
conflitantes de uma dialética; é desastroso aceitar um e esquecer
ele, tudo o que é revestimento existe para ser arrancado, tudo
o outro. íX pura: agressão é apenas _opressi \'a , como m~ito.s de-
o que é quebradiço para ser quebrado. Seria um erro pô-lo
sen hos animaâos ~ i ne m a t ogr á fi cos ilustram i.X: pura frivolidade
numa comédia de sala-de-estar; ele desmantelaria a sala-de-estar.
, maçante , eo rno tantas coméaias "l.igeiras" il ~st['am . A r~lação
Se o que a farsa nos oferece é a interação de violência e
dialética é âe conflito e desenvolvimento ativos- m diálogo
alguma outra coisa, segue-se que a violência, por si só, não é
tem de ser estabelecido entre a: agressão e a fr' :v.oliâade, entre
a essência da farsa. A violência de CHAPLIN é dramatizada por
a nos iliãaãe e a volubilidade.
um contexto de grande delicadeza. A violência de HARPO MARX
222 11IF EIlI';:-;1 ES l:f::-;/ ·:1I0S nr: PEÇAS
FAI\SA 223
1\ TRAVESSURA COMO FATAI.IDADE
1\ que corrcspondcrn as coincidências da farsa? Não será,
Todas as formas dramáticas têm o seu encontro com a por certo, a um sentido de fatalidade; mas será, sem dúvida, a
loucura. Se o teatro mostra situações extremas, a situação ex- um sentido de algo que poderia chamar-se fatalidade, se a pa-
trema para os seres humanos - excetuando a morte - é aque- lavra tivesse menos conotações melancólicas . Na farsa, os
le ponto em que a sanidade mental cessa. Numa cena muito acasos deixam de parecer obra do acaso, e as travessuras têm
famosa, InsEN ilustrou no palco essa conjuntura; e Andrômaca, um método em sua loucura. Um efeito final da farsa é que a
de RACrNE, rematava de um modo muito semelhante ao de travessura , a brincadeira, a troça, a confusão, parecem um equi-
Espectros, de InsEN. valente de fatalidade, uma força que não depende de nós, quer
. O nos~o .u.so <: abuso coloquial das palavras está sempre para o bem ou para a catástrofe, mas para a agressão sem risco.
c~lelo de significação c o que pretendemos significar quando Talvez todos os tipos de ação dramática tenham de possuir
dizemos, a respeito de algum fenômeno não-teatral "Isso é uma sua inevitabilidade, incluindo aqueles tipos, como os tipos cômi-
fars~a" ou "t absolutamente burlesco", reflete-se p~r sua vez no cos, que parecem dedicados ao oposto. A acumulação de coin-
fenômeno teatral. Queremos dizer: a farsa é um absurdo' e cidências loucas ou disparatadas na farsa cria um mundo em
ainda mais, a farsa é uma verdadeira estrutura de absurdos . que o acaso feliz é inevitável. E, assim, numa peça de FEYDEAU,
Aqui , a palavra operante é estrutura, pois normalmente pensa- o cuidadoso plano para que o marido esteja ausente quando o
mos nos absurdos corno algo de natureza amorfa . Somente num amante chega é uma garantia cabal de que ele aparecerá.
síndromc como a para.nói~ encontramos razão na loucura; aque- O que usualmente se diz a respeito das surpresas nos en-
I~s abs~rdos que nos inclinarfarnos a considerar estúpidos estão
redos burlescos tem de ser qualificado . Superficialmente, sur-
ai relacionados de um modo que não podemos deixar de aceitar preendemo-nos; mas, algures no mais profundo do nosso espí-
con~o o inve~so da estupidez . Há um engenhoso e complexo
rito, sabemos tudo o que vai acontecer . A própria convenção
conjunto de rnter-relações. gera certas expectativas, sem as quais não teríamos comprado
No capítulo anterior, falei do longo braço da coincidência a entrada para o teatro. A expectativa poderá remontar, antes
no melodrama. f: um braço que não encurta de maneira alguma da primeira cena da peça. à rúbrica "Uma Farsa" no programa
ou , ainda antes disso , ao nome "FEYDEAU " nos anúncios.
na farsa. Em ambos os casos há um reconhecimento do absurdo
- c, em ambos ," uma reivindicação de uma certa espécie de Sugeri que as situações e enredos melodramáticos caracte-
senso. Um paranorco descobre urna estrutura nas coincidências rístic os derivam, diretamente , de fantasias mais ou menos pa-
o que significa que, para ele, não existem coincidências. O ranóicas - geralmente, a fantasia de inocência cercada de ma-
levolência. A compaixão e o medo são certamente suscitados
a.uto.r. dramático incorpora coincidências numa estrutura, o que
significa que não serão coincidências para o seu público. O e, possivelmente. descarregados por ab-r eação - isto é, revi vi-
autor melodramático cria um sentido de fatalidade e, 11 sua luz, dos e eliminados. Se existe um equivalente na farsa e na comédia
a a~~rcnte c<:.incid~ncia. revela-se como parte de um padrão para a compaixão e temor do melodrama e da tragédia, é a
maléfico. E nao se imagme que o autor trágico é diferente, como simpatia e hostilidade. ~ compaix ão é o lado mais fraco do
suced.eu a WI~LIAM ARCHER . Pense-se, pelo contrário, como me odrama, a sTmRatm o lado mais fraco da farsa. Correspon-
o Édipo de SOFOCLES passou a vida surgindo no lugar errado éJo, usualmente, a um pouco mais de mo erada adesão ou soli-
no momento errado, e aí encontrando a pessoa errada. A farsa darieCIadc com o herói ou a heroína. CHARLlE CHAPLIN, como
difere dos outros gêneros pelo fato do seu uso da coincidência exceção, conseguiu mais do que isso, pois não era um exemplo
se! acei~o. As pessoas têI:l, a farsa em tão baixo conceito que juvenil, mas um homem excêntrico. A personagem que ele es-
na? se Importam de admitir que ela emprega um recurso tão colheu - Carlitos, o Vagabundo - tinha tal força que levava
baixo. a simpatia do público a desempenhar um papel muito impor-
tante na sua evolução.
224 DIFERENTES GÊ:-n:nos DE PEÇAS FARSA 225

A inocência é provavelmente tão importante para a farsa que um andamento t ápido é sempre melhor do que lento . f: uma
quanto para o melodrama, Estamos identificados com ela com questão de aceleração do comportamento humano, a fim de que
a mesma firmeza. A diferença é que, enquanto no melodrama se torne menos do que humano . B ERGSON diria ser esse um dos
r~cuamos apavora~os ante o inimigo, na farsa ripostamos e par- processos pelo qual o comportamento humano se torna diver-
tirnos para a retaliação Se o melodrama, de modo geral, de- tido, ao assemelhar-se ao funcionamento de máquinas de alta
pende para o seu poder do grau de medo que suscita, a farsa velocidade. A aceleração do movimento nas farsas típicas do
depende do grau de agressão. Diz SIDNEY TARACHOW' "O cinema silencioso tinha um efeito psicológico e moral definido,
comediante é um atirador exímio que proclama em altas vozes isto é, fazer que as ações parecessem abstratas e automáticas
a sua própria inocência", A este respeito, o autor de farsas é quando. na vida, seriam concretas e sujeitas ao livre arbítrio .
um comediante, A hostilidade, tal como o terror dos melodra- f: uma concepção cheia de ameaças.
mas, é tão in,qualificável por qualquer senso de justiça ou ver- Inversamente. pensar num bom padrão burlesco de ação é
dade que erra formas semelhantes a mórbidas fantasias. A pensar num bom pretexto para movimentação rápida. A per-
estrutura compacta da Peça Bem Feita, tal como foi usada por seguição era o orgulho c glória dos Policiais da Keystone , O
GEORGES FEYDEAU, sugere um sistema mental fechado um enredo de Um Chapéu de Palha Italiano é um longo pretexto
mundo próprio iluminado por seu lívido sol artificial. S~ não para fugas e perseguições . O mesmo se pode dizer da imitação
estivéssemos rindo a bandeiras despregadas, acharíamos esses doméstica inglesa da farsa francesa, A Tia de Charley .
mundos aterradores. Suas manobras são tão perigosas quanto
as ~crobacias. Um toque, sentimos nós, e tudo rodopiará no
vazio Uma peça de FEYDEAU tem pontos em comum com uma
ilusão altamente elaborada, fraudulenta e louca, À IM<\GEM E SEMELHANÇA 00 MACACO
Os mestres da farsa francesa do século XIX usaram enre-
dos incrivelmente elaborados, e diz-se, freqüentemente, a res- o ator burlesco é um herético: não acredita que o homem
peito de suas peças, que são "unicamente enredo e nada mais". foi feito à imagem de Deus . Quais são as principais imagens
Aqui temos outro aspecto da loucura da farsa. A vida humana, dos homens na farsa e a que equivalem?
nessa forma de arte, está horrivelmente atenuada, A vida é uma Se contarmos a história de uma farsa, poderemos começar
espécie de rodopio universal, uma investida de quarto de dormir a falar de jovens amantes, mas se, em vez de contar a história,
em quarto de dormir, impulsionada por demônios que são mais observarmos o que restou na nossa memória de uma farsa, não
horríveis do que a sensualidade, A espécie de farsa que se diz encontraremos aí jovens amantes, mas duas outras personagens:
ser "unicamente enredo" é muitas vezes mais do que engenhosa o travesso e o tolo. Verificar-se-á, portanto, que o próprio en-
- é maníaca. Quando vimos os atores do Théâtre du Nou- redo depende menos do que os jovens amantes fazem do que
veau Monde, de Montreal, dando movimentos positivamente das ações do tratante. O travesso na farsa é o equivalente ao
espasmódicos às personagens burlescas de MOLlERE, dissemos vilão do melodrama. "As paixões tecem o enredo". Se a paixão
para nós próprios: no fim de contas, sempre existe algo de que tece o enredo melodramático é pura maldade, a que tece
espa~módico na farsa, em geral, DRYDEN escreveu: "As pessoas o enredo da farsa é o irmão mais novo da maldade : o espírito
e açoes de uma farsa são todas artificiais e suas maneiras falsas", de travessura . O Puck, de SHAKESPEARE , podia ser a persona-
Muito mais está em jogo na movimentação da est6ria do gem travessa de uma farsa. Não tem a profundidade nem a
que correntemente se percebe, Por que, por exemplo, os dire- intencionalidade suficientes para ser um vilão. f: um desordeiro
t?res e er:cenadores de farsas clamam sempre por ritmo, ritmo, por mero acidente e até por natureza, mas nem sempre por de-
ntmo?A Nao é apenas porque admiram a eficiência do negócio sígnio e nunca com a intenção de causar sérios danos. f: um
nem tem que ver com a crença comum da gente de teatro de travesso - como Arlequim.
227
226 lJIFEIlENTES CtNEIIOS DE PEÇAS FAJlSA

Se a travessura redunda numa espécie de equivalente estão se mp re demonstrand o qu e os es tratage m as e ardis do tra-
cômico da fatalidade, é usualmente através de Polichinelo Ar- vesso nã o o levam a parte algum a. A es pe rteza que parece ser
lequim, Brighella, Scapin, Fígaro, que tal acontece . Em' suas capacidade mental pr o va ser , no fim de co n tas, um floreado
mais simples formas, a idéia de uma personagem travessa é de- ret órico ou ginástica .
sesperadoramente primitiva e até em SHAlCESPEARE as travessu- O far sante não mostra o homem um pouco abaixo dos
ras roçam, periclitantes, a beira de um abismo de falta de graça.
anjos, mas quase nada acima d os macacos. Mostra-nos o ho-
(O que, por exemplo, haverá de fascinante na credulidade sim-
mem na massa, em bruto, tal como a natureza o deu, em qual-
plória de Malvolio, em Noite de Reis? Se não soubéssemos o
nome do autor, poríamos a peça de lado por fatigante e monó- quer coisa menos em delicada floração individual . Se dermos
tona.) Por outra parte, os nomes modernos e as idéias interes- razão a A UDEN quando diz "que a arte só pode ter um terna,
santes não nos devem ocultar o fato de que, por exemplo o o homem corno pessoa consciente e ímpar", então a farsa não
Signor Laudisi, em A Cada Um Sua Verdade. de PIRANDEL~O. é uma arte . O Oxford Com[Janíoll parece lamentar que as per-
é a mesma personagem travessa de antigamente, num disfarce sonagens da farsa sejam estúpidas . Mas são monumentos deli-
sofisticado. berados à estupidez, lembretes perturbadores de que Deus esban-
jou estupidez sobre a raça humana com a Sua prodigalidade
Se as personagens travessas são mais influentes os tolos
- mais. numerosos. Quantos tolos há para cada travesso
sao ' das sem par.
nossas relações pessoais? Ao que parece, os romanos pensaram Mencionei alguns pontos , e sã o inúmeros, em que a farsa e
que a proporção era de três para um. Suas Farsas Atelanas a tragédia se encontram , mas aqui as encontramos em pólos
tinham quatro tipos característicos: o Bronco, o Fanfarrão, o opostos. PAS CAL chamou ao hO!ll(:m 1II~1 caniço pensa~t.e . A
Velho Torso e o Velhaco . Só o último era urna personagem metáfora abrange duas car actcristicas: intelecto e fragilidade.
travessa . Os outros são três espécies distintas de tolos: o men- Se a farsa mostra o homem deficiente em intelecto, não o mostra
tecapto, derrotado ainda antes de começar a fazer alguma coisa; deficiente em vigor nem relut ant e no em p re go da força . ho-
o bazofiador, que a si próprio se derrota, emaranhando-se em mem üiz a farsa, pode ser ou não um dos mais inteligentes
suas próprias ações; e o homem que se tornou recentemente an imais ; mas é certamente um animal e não um dos menos vio-
tolo por senilidade e recorda os alegres tempos em que era
lentos . )od er á dedicar a p ouc a inteligên cia com que estiver do-
um travesso e andava na farra até altas horas da noite.
tado preci samente à vio lê ncia, a tramar violências ou a sonhar
Talvez seja um erro falar separadamente de travessos e to- com viol ências. (O sorriso de M ona Li sa poderá significar que
los, pois o que tem maior valor para a farsa e a comédia é a ela está tramando um as sas sinato , mas é mais provável ainda
sua inter-relação . F. M. CORNFORD mostrou-nos que uma das significar que ela estava sonhando com assassinatos que nunca
mais antigas relações no teatro cômico foi entre o homem irôni-
tramaria . )
co e o impostor . Estes são o comediante e o homem comum
um travesso e o outro tolo, resultando o burlesco da interação " U m Mundo Louco , Meus Senhores!" Uma peça com um
de ambos. Se dissermos que a imagem burlesca do homem é elenco de tolos diz-nos em que espécie de mundo louco vivemos.
a imagem de um par humano, esse par não será o de um ieune Se não for uma imagem trágica, não será, por outra parte,uma
premier e uma ingênue, mas o do travesso e do tolo o ironizador imagem que os poetas trágicos achem indigna deles. Trans-
e o impostor, Sir Toby Be1ch e Sir Andrew A~echeek, Jack crevo da que é tal vez a mai or das tragédias estas palavras:
Tanner e Octavius Robinson.
A essa polaridade acrescente-se um paradoxo . Em última Quando nascem os, ch or amos por ter cheg ado
análise, o travesso também é um tolo. A farsa e a comédia A este grande teatro de louc os.
228 DlFEnENTF:S eba:nos DE PEÇAS FAnSA 229

Que sabedoria poderia existir sem um pungente sentido do Os entretenimentos da co m m cd ia dcll'artc eram Farsas
seu upu sto, que é a insensatez? Atclanas elevadas a uma potência superior . Os tolos já não
estão limitados a três espécies, nem os travessos a uma . Há
A QUfNTESSÊNCIA DO TEATRO toda uma coleção de tipos humanos.
Os famosos tipos da commedia têm raízes mais profundas
Quando falamos de CIIARLlE OIAPLlN referimo-nos à re- do que as maneiras sociais ou do que a própria sociedade. Nas
presentação ou à coisa representada? Quase todos os estudos a Danças de CALLOT. a origem animal das personagens é clara.
seu respeito passam imperceptivelmente de um tópico para o Foi sugerido que talvez CALLOT não estivesse dando u~ retra-
outro, como devia ser. Disse MEYERHOLD: "A idéia de arte do to fiel da commedia, mas é provável que qualquer desvio pro-
ator, baseada no culto da máscara, gesto e movimento, está viesse do conhecimento e da intuição sobre o que a commedia
inseparavelmente ligada à idéia de farsa" .,_ - - - "__ era, em sua essência. "As ~es "de ARISTÓFANES representam um
Se o melodrama é a quintessência do drama, a farsa é a uso sofisticado da fábula animal, que não podia ser sofisticada
Huintessência do teatro. O melo arama é escrito. Uma impres- desde o princípio. As personagens da comédia surgiram em
sionante imagem do mundo é fornecida pelo escritor. . A farsa seu tempo para simbolizar o humano em sua mais estreita acep-
é representada. A contribuição do escri tor parece não só absor- ção, o humano desligado da Natureza . Mas, originalmente, re-
viüa corno tra auzi oa. O melo êlrama pertence às palavras e ao presentaram a natureza humana como parte da Natureza-em-
espet áculo ; o ator deve estar. aRto a fala r: e con verte a cen a geral, a vida humana como parte de toda a vida. Inv.ersame~te,
uma interpre ação atraente ou monstruosa . '"Â farsa concentra- a natureza externa não era externa : as forças gerais da vida
se no corpo do ator, e o a iálogo n farsa é, por assim dizer , encontrar-se-iam nas figuras humanas. Se. do lado trágico, os
a ati vidade ã as cordas voca is e do córtex cerebral . Observem- deuses fundem-se com heróis. do lado cômico. os travessos e
se as figuras das gravuras de JACQUES CALLOT, Danças de Ná- tolos fundem-se com as ordens inferiores de espíritos, como
poles (Bal/i di Sicssania) , Não podemos imaginá-Ias interpre- sucede ainda em Sonha de Uma Noite de Verão e A Tempes-
tando melodramas. Têm sido sempre consideradas a própria tade, de SHAKESPEARE .
encarnação da commedia del/'arte; e são, obviamente, a encar-
nação da farsa. Não se pode imaginar a improvisação do me- A commedia dcll'art e esgotou-se no século XVIII. O mais
lodrama. O teatro improvisado era farsa, por excelência. Em parecido que hoje se pode ver é um tipo de teatro que não está
seu orgulho. denominar-se-ia a si própria commedia. Mas nunca sob a sua influência: a chamada Opera de Pequim. Mas há um
ouvimos falar de uma tragedia del/'arte. De modo que inverto vestígio da comm edia no teatro de EDUARDO DE FILlPPO, em
a sentença de MEYERHOLD e digo: a idéia de farsa está insepa- Nápoles. e registraram-se tentativas convincentes de reconsti-
ravelmente ligada à idéia de arte do ator; a arte da commedia tuição dos divertimentos teatrais no estilo da commedia, a cargo
dcll'arte," O teatro ae farsa é o teatro a o corpo humano, mas do Piccolo Teatro di Milano .
de um co ~o num esta co tão oistante ao natural quanto a voz As comédias silenciosas de CHARLIE CHAPLlN não são,
de CHA I:Ii\PIN está longe aa minha voz ou (Ja a os leitores . 1:; meramente. veículos para o maior comediante do século XX;
um teatro em que, embora os fantocHes sejam Homens, os ho- são também obras-primas da farsa. E há dúzias delas. Nin-
mens são sup-erfantocnes . :e o teatro do corpo surrealista. guém, na época, compreendeu o seu verdadeiro valor. e só a
Cinematlieque Nationale, de Paris, produziu um esforço siste-
• Segundo AUARDYCE NlCOLL (em sua obra The World of Harle- rnático para conservá-Ias. Ainda hoje, se essas obras são cita-
quin, Carnbr idge University Press, 1963, pág. 26). suponho que a in- das como arte, é a arte fílmica que se tem em mente. A idéia
terpretação tradicional da palavra arte como "profissão de represen-
tar" é incorreta. Mas essa interpretação não acarreta qualquer perigo
de uma obra-prima da farsa parece uma inaceitável proposição,
para a minha tese sobre a farsa. talvez mesmo para o próprio CHAPLfN, que no período mais
FARSA 231
2.30 nIFEREr--rES GÊNEROS DE PF.ÇAS

que foi quase exatamente a época e m que CIIAPLlN começou a


recente de s~a vida teve en~ mira formas de maior prestígio -
abandonar a farsa.
sem conseguir resultados uniformemente felizes. Portanto, as farsas de CIIAI'LLN assinalam não o começo,
O fato da era da grande farsa no cinema ir de 1912 a mas o final de uma era . Os realizadores de filmes não f ~guiram
1927, aproximadamente, pareceu a muitos o resultado de um
o seu cxcrnplo . E, embora os fragmentos burlescos fossem o
acidente mecânico, A câmara de filmar acabara de ser inven-
melhor dos filmes mais recentes de OIAI'I.IN. não passavam de
tada, a trilha sonora ainda não fora sincronizada com o filme' fragmentos - de sátira , de tragicomédia. de drama de idéias.
a farsa adaptava-se maravilhosamente à tela silenciosa, E ver~ Há um lugar especial para os filmes que os IRMÃOS MARX
dade que certos aspectos da farsa podiam desenvolver-se na tela
fizeram na década de 1930, bem como para os que W, C .
muito além das possibilidades do palco. A tela podia evidente-
FIELDS interpretou nesse mesmo período e um pouco depois,
mente explorar ~u.ito mai~ a tradicional caçada e perseguição. Mas ao passo que os primeiros filmes de 01A! LIN tinham sido
Trucagens fotográficas abrirarn vastos horizontes para o com-
um puro triunfo, tanto os IRr-.IÃos MARX como W. C . FIELDs
portamento absurdo. A própria pantomima mudou, Os velhos tiveram de travar urna batalha contra o te rnpo . A era da falsa
mímicos deliciavam-se trabalhando com apetrechos imaginários.
seriedade começava a irnpor-sc . Havia demasiada agressivi-
Uma parte de ~ua arte consistia em atuar sem os objetos reais. dadc em CHAPLlN, FIELDS, nos IRMÃOS MARX , para a era de
Na tela, os objetos - desde o automóvel ao despertador - RODGERS e HAMMERSTEIN. de NORMAN VrNCENT PEALE e
passaram a ser um novo e vasto recurso para a farsa e deram-
DWIGIIT D. EISENJlOWER .
nos o que, em muitos aspectos, era uma nova espécie de farsa.
M~s .0 florescimento de uma forma artística jamais poderia \
ser, principalmente, o resultado de uma invenção mecânica.
Aconteceu que a invenção ocorreu no final de uma era de
"O SOPRO DE Lrn FRDA DE IMAGIN ,\RIA"
JV:
grande farsa, uma das poucas, Disse NIETZScHE em 1870: "No Embora definindo o melodrama como selvagem c pueril~\
nosso. tempo, só a farsa e o ballet prosperam, por assim dizer", procurei também defendê-lo corno urna emanação divertida e
Ele tmh,a razão, mas n,in~u.ém percebeu isso, ao que parece, excitante do eu natural, que faremos bem em não repudiar. E
~a me~lda .em que a história do teatro e da dramaturgia vito- sigo de preferência ARISTÓTEL ES, em vez de PLATÃO, a res-
nanas e ensinada nas escolas, a palavra' de ordem era que, antes peito da \ iolência em arte, con cluindo que o melodrama, longe
de SHAW e WILDE, havia apenas algumas sombrias e austeras de manifestar urna tendência para fazer Hitlcrs de cada um de
figuras como BULWER LYTTON e TOM ROBERTSON. Isso é um nós, permite-nos, na medida em qu e exerça de fato algum efeito,
equívoco, porquanto a verdadeira glória do teatro vitoriano uma descarga salutar. uma catarsc mode sta O mesmo pode ser
reside n~ farsa, na extravaganra e na ópera-cômica. Os grandes dito da farsa, excetuando que o principal motor da farsa não
nomes sao GILnERT c SULLIVAN, a par do jovem PINERO. é o impulso para a fuga (011 Mcdo ) , mas o impulso para o ata-
Quanto à França, verifica-se o mesmo contraste entre que (ou Hostilidade). Na música. diz NIETZSCIIE. as paixões
aquilo que se diz e a situação real. Falam-nos do sério teatro deleitam-se. Se no melodrama é o medo que se deleita, na
de tese de DUtt~AS FILHO e de AUGIER, cujos dramas parecem farsa é a hostilidade que se cornpraz .
estar datados de 1900, aproximadamente. Mas existe um tea- Há uma geração, as pessoas costumavam falar contra a
t~o francês de 1860 que ainda hoje se apresenta viçoso, espe- idéia de arte como evasão; tinham em mente a evasão dos pro-
cialmcnte as operetas de OFFENBACH e as farsas de LABICHE. blemas sociai~ . O melodrama e a farsa são artes de evasão, e
Na esteira desses dois gênios do teatro ligeiro surgiu GEORGES aqui!e a que se furtam não são apenas os problemas sociais,
FE,YDEAU, possivelme?te o maior escritor de farsas de qualquer mas toaas as outras Iorrnas d responsa5ilioade moral . Fogem
pais e em qualquer epoca. Não teve sucessores à sua altura. à consciência e a todas as suas criações. como nas orgias de
A era da farsa moderna terminou com a sua morte em 1921 -
232 DIFERENTES CÊNEROS DE PEÇAS

que os investigadores clássicos falaram, por vezes. OfARLES


LAMB chamou às Comédias da Restauração "aquelas satumais
de duas ou três breves horas" e, uma vez mais, podemos apli-
car as palavras de LAMD à farsa:

Fico contente por excursionar, durante um certo período,


8
além dos limites da diocese da austera consciência - não
viver sempre no âmbito dos tribunais de justiça - mas oca-
sionalmente, pelo espaço de um sonho ou pouco mais, a Tragédia
fim de imaginar um mundo sem restrições importunas ...
Uso minhas algemas com maior satisfação depois de ter
respirado o sopro de liberdade imaginária.
As F ORMAS Sur: E R ra REs
"Não viver sempre no âmbito dos tribunais de justiça".
Subtrair-se à alçada dos tribunais, fugir à tirania da sociedade
e da opinião pública, escapar também aos tribunais do espírito
e à tirania do juiz que existe dentro do peito de cada um de
As f ORMA S.lLP~BIQR · ag é-d ia_u:.illlléd i.a - distinguem-
se das inferiores - melodrama e farsa - Re ja maneira como
nós, a consciência íntima - tudo isso soa como uma admirável
!~p e i t a m a realidade. "Superior" , neste contexto, significa adul-
receita para a busca do prazer . Então, por que e como esses
tribunais e essas tiranias entram na literatura dramática? O pra-
-lQ, civilizado, salutar' inferi or s ig n i f i ~1 infantil, selvagem , pri-
zer não é a finalidade da literatura? Ou haverá outro prazer mitivo , mórbido. Por este rincíRio , as formas inferiores não
mais alto passível de encontrar-se "no âmbito dos tribunais de ---2l!9 excluida s Relas superi o res ; são po r q ta.ura nscend id as.
justiça", ambas as espécies de tribunais? Por ue d Cl 'C a realid ad e se r res Reitada ?, p'ergunta o Pe-
Formular essas perguntas equivale a perguntar : Por que ter Pan (o u me smo o Jam es Barri c ) que há em cada um de
tragédia? Por que comédia? nó s. ~f2 c rg ll n t a foi res Rondi d a por B ERNARO SIIAW na única
frase sua que foi citada por SI G/IIUND FR Eun : I<P~nLp-o<le Les­
colher a linha da maior vanta em, em vez de sucumbir na dire-
ão da men or r.esistência" , Escolh;ríam os ser Pcte-r Pan, sem
iliívida, se isso fosse p.0s~iV(~.J, -'lWS corno, pelo contrário, fica-
mos velhos, como, J2elo contrário, morremos, -(~ ~ a~ é o~
Também é outro do lado positivo : desejamos amar e ser ama-
dos de um modo mais que infantil. Ansiamos por uma gama
de experiên cias fora do alcance de Peter Pan ,
Por que queremos realidade na arte? A arte é, sem dúvida
o reino a c PetcrPan. Aí não nos encontramos, certamente, sob
a comf2ul sã o-º-e_ ÇIescer, de t ()rnarl1lo -n Q~ULd.uJt Q~. _O que há de
errado na op inião comum dc que o quercmos num romance ou
numa peça de teatro é d-ivertimento agradável, alg º--que nos dê
_ Rrazer?
TIIA C(:IlJA
IJIFEIIENTES Cj.: :--: EIIOS DE PEÇAS

de angústia , sem exageros . Se não suscita ssem nenhuma, não


A rcsQosta usual é gue sabemos gue a reaHdade tem de ser havia um motivo de emoç ão . Se suscita ssem demais . o público
enfrentada, , e tendemos a cong@tularmo-nQLP.Qr nossa coragem concluía que a obra não di vertia e abandonava o teatro. E
em enfrenta-la, c:)mo se estivéssemos assim sacrificando nobre- possível entender quais os element os qu e provocavam angústia :
men e os nossos ,Rrazeres. O ~ensamento provocou seus luga- os chocantes acontecimentos do enred o, os terríveis perigos, a
,res-comuns - taIs como o realismo "áspero" ou "inexorável" maldade do mundo e do vilão . Como se fazia (] controle des-
ou "d es t ermido" "
o , como se a rosa sombria tivesse de ser aceita sas coisas ? Por um distanci amento e exotismo geográfico e esti-
Qor sua falta de atrativos. lístico, que dissessem ao espectador: isso não é consigo . Era
. Que dizer do final do Rei Lear? Gostamos? O século XVII I essa qualidade "longínqua" do melodrama que servia de alvo
disse, desassombradamente : "Não, não gostamos, e poríamos às qu eixas de ZOlA. Ele est ava preparado para suscitar uma
no ,seu lugar, um final agradável". O leitor ou eu gostaríamos tremenda angústia. Embora se proclamasse paladino do Natu-
mais dess: final do que ~o shakespeariano? No caso negativo, ralism o. ZoLA levant ou a qu estã o do melodrama de maneira
por que nao? Por que teria de haver prazer onde há tanta dor? idêntica à de um poeta trágico : ele desejava debater a culpa,
Essa é uma das perguntas clássicas da teoria dramática, formu-
mesmo ü custa de suscitar an gústia.
~a~~ por HUME e SCHlllER no século XVII 11 . E a principal
Como poderá semelhante de sejo ser compartilhado por nós,
idéia da obra de FREuD. Iokes and their Relation to the Un- o público? O homem , por natureza , deseja prazer - ou, se
conscious, está relacionada com aquela. preferem. o prazer é aquilo qu e o hom em naturalmente deseja.
A realidade dói . Por isso removemos da nossa consciên- No caso de dese'armos dor. é (2orque nela encontramos ainda
cia tantas das nossas reações à realidade. Esta faz-nos sentir maior razer; é o fenômeno coniiêCido f2 elo nome de maso uis-
cul ados e a an ústia é assim suscitada. Quando se recorda
mo . Por outras ala\'fas, um (~ sej02 ó_pocle2e.! sUReraQ-º Ror
a realidade, os sentimentos de cul a e a angústia são renovados. um descjo mais fort e. Ora, a mor al popular. cscoteira, rotariana
Portanto, um lembrete direto na arte seria mal acolhido: não e paroquial prega que todos temos, simples e naturalmente, um
se encontraria razer na dor. desejo de enfrentar a Realidade maior do que de aceitar o fácil
. A teoria de FREUD é que podemos ser subornados para Prazer. Os discursos dos estadistas implicam que todos nós,
aceitar um lembrete dessa dor. O suborno consiste num certo seus compatriotas. somos por natureza defrontantes profissionais
mont~nte de prazer, do g~nero inofensivo - o gênero que não da Realidad e . Se alguma vez vacilarmos, um pouc o de retórica,
t?cara em qualque~ mola Interior, não suscitará qualquer angús- um pouco de chantagem moralista. rein stalar dentro de nós o
á

tia . Uma vez aceIto o suborno - FREvD designa-o por ante- espírito audacioso . Invoca-se a "força de vontade", que segre-
razer - tornamo-nos menos cautelosos. Estamos preparados da : " Se você deseja desejar. então você está realmente dese-
_Rara correr o risco de angústia, se pudermos gozar a realização jando" .
cabal de alguns dos nossos desejos proibidos , Tal gozo. quando Os estudiosos da natureza hum an a. por nutro lado . tendem
se IZ um,a pia a" rota, e um jato num certo ponto-:-};: o ponto a acreditar que o desejo natural de conhecer é geralmente desvir-
em gue nmos . DIzer piadas é uma arte e, excetuando que nem- tuado pela ausência de qualquer desejo correspondente de en-
todas as artes nos fazem rir, típica. Todas as artes desenca- frentar a realidade, sendo essa contradiçã o a origem de um dos
d:iam, normalmente, fontes inacessíveis de RfãZer e, tão fortes conflitos trágicos arquctípicos . classicamente apresentado por
sao as nossas defesas, todas enfrentam um Rroblema estratégico SÚr-OCl.ES no seu Édipo Rei. Só chegar em os a desejar enfren-
ao fazê-~ Essa doutrina, que apliquei à farsa, também pode tar a realidade se nos forem oferecidos incentivos especiais.
ser aplicada ao melodrama. FRELJD , como eu j á disse. especificou dois: o anteprazer que
A nossa admiração pelos escritores do rotineiro melodra- pro vém da beleza (os atrati vos da forma artística) c urna satis-
ma vit~riano, poderá ser limitada, mas suas obras exigiam finu- fação mui to mais profunda qu e pr omana da libertação de fontes
ra. Psicologicamente, tinham por objetivo suscitar um pouco
236 DIFERENTES GtNEROS DE PEÇAS TRACÉD1A 237

mais fundas. especialmente do alívio de angústias acumuladas, ~.-I.."-.L--1.....:I~..,..,...,-"


Também é pe rtinente a doutrin a cristã do pe -
do sentir o gosto do fruto proibido . cado original : " Peço para se r justificad o. mas j;'1 admiti que
.o..uJu caminho ar a verdade nesta matéria _p-oderia en- não sou".
.con1r.aI=Se-llfLde.s.e.J de se. justificado. ragédiª-e a comédia Reconhecer a es ontaneidade do artista tr á ico, ao apelar
estão reocu adas de um modo ue o melodrama e a farsa não veementem ente ara os sen timent os de cu IRa e assim susci -
. estão, com justiça . EsteJato tem um enorme interesse erno- tando uma profunda angústia, é aRred a r mais vivamente a fácil,
. nal ara o p-úblico visto gue um dos mais oderosos de todos penetrante e agradável "atração do não-trá ico. em articular,
dese'os é o desejo não de ser justo, mas de ser JustI icado. do melodramático . Na tragédia . o homem é um anjo, mas tam-
A insistência desse desejo deriva do nosso sentimento e que bém urna fcra i e os dois lutam. Que coisa terrível! Quanto me-
não estamos justificados . Diz JUVENAL: ":E: esta a primeira lhor seria identificarmo-nos com os anj os e culpar os demônios
punição, a de que, pelo veredicto do nosso próprio coração, de tud o o que estiver errad o! É isso, exatam ente , o que faz o
nenhum homem culpado é absolvido". Cada homem cul ado autor melodramático . E é para isso. exat amente , que serve o
- ou seja. cada homem - está re arado ara consumir seus melodrama. E é por isso, exatamente, que o melodrama, exceto
dias trabalhando ar uma absolvição que ele pr6prio recusar- para a gente desinteressada da s coisas deste mundo. como os
se-á sempre a.canceder , FRANZ KAFJCA fez dessa smgu ar con- poetas e os críticos, é imensamente mai s imp ortante que a tra-
tradição a sua obra principal . gédia. Um filósofo, em seus estudos , pode murmurar : "O mun-
do é minha idéia! " Mas o estadista, em sua tribuna. e o homem
A estratégia da comédia é deslocar a nossa culpa para as da rua, colocado diante dele, replicam em voz tronitroante:
personagens da peça. Nós desprendemo-nos . Eles estão, na "Não! O mundo é o nosso melodrama!" Daí a hist ória humana
palavra de BRECHT, "alienados", distanciados de nós . A tragé- - na qual , em cada geração, nós, os anj os, somos desafiados
dia, por outro lado, acarreta talvez a mais completa. coerente, pelos dem ônios de uma classe. raç a a li naçã o antagonista .
direta identificação com a culpa que nos é oferecida por qual- O poeta, o crítico e o filósofo cot ejam a realidade e exer-
quer arte . dinâmica do enredo trágico corresponde à urgên- cem sobre ela um efeito imediato muito redu zido . O estadista
cia da nossa busca_de inocência. A paixão ãe oqüencJa tr gi- e sua multidão dirigem a part e pública da realidade com a ajuda
ca corres onde à ur ência da nossa alegação, em prol-de um de fantasia s surrealistas em qu e, pr ovav elmente, são até capazes "
veredicto de "Inocente" . Mas tanto a ousca como a alegãÇãõ de acr editar : daí a sincerid ad e monolítica qu e lhes possibilita
são vãs . Só teriam êxito Ror um arremedo escarnece or da arengarem tolices com uma fision omia au stera e impassível.
justi a. O herói trá 'co é cul ado. A cul a é a sua raison d'être. Como se recorda todo aquel e que viveu através de uma das
Ao passo que no melodrama nos identificamos com a inocência guerras deles. suas reit erad as declarações de qu e o nosso lado.
(c como isso é irônico! ) e vivemos sob a constante ameaça da seja qual for o lado em qu e estamos. vence ria - porque está-
vilania de outras pessoas, na tra édia identificamo-nos com a \'am os com a raz ão! Na fantasia dos vilôcs e do s heróis - a
c e vive os em conflito com ... bom com uem? Estar fantasia do melodrama - a vitória dos her óis é um fato indis-
identificado com a culRa, ser o 'nado P-Qr senti ento 1 Q:; cutível .
_S_QS, é ter decidido já.....guem será o bode eJt iat6rio: a ria Como Marguerite Gautier teria complicado a vida de
essoa . DUMAS se, tendo sido o que ela foi, tivesse não só desempenha-
Podemos não estar inteiramente de acordo com a teoria do seu belo gesto, mas vivido feliz depois disso! De modo que ,
da tragédia de SCIIOPF.NIIAtJER (tal como formulada no ter- com o imperturbável aprumo vingativo dos autênticos virtuosos,
ceiro livro de sua obra O Mundo como Vontade e Representa- DUMAS trata de matá-Ia no último ato. Por onde se demonstra,
ção), mas há algo de profundo em sua crença de que o crime uma vez mais, que o salário do pecado é a morte e, inversa-
subentendido em todos os crimes do enredo trágtçJLé_ o-crime mente, que s6 a virtude compensa . A modernidade de tudo isso
238 DIFERENTES CÊNEnOS DE PEÇAS TI\Ar. F.1lI A 239

consiste, em grande parte, na substituição do patíbulo pela tu- que devo citar uma segunda vez, ridiculariza as personagens
bcrculose , meramente excêntricas ou insensatas, e explica :
Evidentemente, a verdadeira moralidade perde suas bases
quando é equacionada com egoísmo e - o que é mais relevante Como no caso de um homem possuir, de fato,
neste caso - o drama perde um de seus principais temas, que Uma tal e peculiar qualidade, que atraia
é o conflito entre a ética e o egoísmo, o interesse pessoal. Con- Todos os seus afetos, seus espíritos e seus poderes,
sideremos, por exemplo, o clássico e indispensável modelo desse Em suas confluências, todos correndo num sentido,
conflito: o Amor (egoísmo) contra a Honra (moral). Se o A isso poderá certamente chamar-se um humor.
amor for sempre olhado como honroso, e todos os sentimentos
desonrosos em relação a uma mulher forem considerados não Embora JONSON não apresentasse aquilo a que as pessoas
amor mas luxúria, a substância do drama de honra terá sido modernas chamariam seres humanos reais, ou "indivíduos, não
claramente removida, como uma noz de sua casca. Se, como tipos", ele pretendeu à sua maneira apresentar o homem inte-
expus, o melodrama for válido dentro dos seus limites, esses graI. Para JONsON, isso significa pôr em movimento os afetos,
limites serão estreitos; e caberá à tragédia transcendê-los. os espíritos e as capacidades ou poderes . Volpone é mais com-
plexo do que uma personagem burlesca, não em virtude de por-
menores biográficos ou análise de diagnóstico, mas pela sua
plenitude emocional. Sua cupidez não é um maneirismo ou um
A PERSONAGEM NA COMÉDIA E NA TRAGÉDIA
sintoma, mas uma paixão.
Os protagonistas de MOLlERE, como os de JONSON, não
A diferença entre as formas superiores e inferiores em par-
são apenas excêntricos: são loucos. São possessos. Têm uma
te nenhuma é tão evidente quanto nas suas personagens respec- idéia. mas essa idéia é uma idée fixe e uma febre no sangue.
tivas, suas imagens do homem. Se a farsa nos mostra travessos Essa febre imprime nas peças uma contextura emocional toda
e tolos, se o melodrama nos mostra vilões e heróis, o que é que
a comédia e a tragédia nos mostram? A melhor resposta sucinta, especial .
No Tortu!o, o ponto de partida é um par de tipos tradicio-
creio eu, é que nos mostram essas mesmas quatro personagens nais: travesso e tolo, velhaco e ingênuo, na forma de um hipó-
em mais complexas formas. crita religioso e de sua crédula yítirna . Esse padrão reveste-se
O que não quer dizer em formas mais naturalistas . Esta- de tamanha força que muitos nunca enxergaram para além dele,
mos habituados a pensar nas mais sérias formas como uma de modo que se pode interpretar que somente a hipocrisia é
atenuação ou abaixamento de tom das mais frívolas. Partimos atacada. não a religião, ou que ser um Tartufo é não ter res-
do princípio de que a tragédia e a comédia são aquilo a que peito algum pela religião, salvo como máscara para maquina-
chamamos "mais reais", com o que pretendemos dizer mais ções exclusivamente monetárias .
plausíveis, mais cotidianas, mais de acordo com o senso comum Na peça, a trama é complicada pela libertinagem real de
e os pressupostos comuns, mais respeitáveis. Mas não existem Tartufo. Elmire não constitui para ele um simples meio, a fim
bases para tais hipóteses. As personagens de BEN JONSON e de atingir uma finalidade pecuniária. Sente as tentações da car-
MOLlERE são tão extravagantes quanto os tipos tradicionais a ne, como suspeitamos desde o momento em que exagera a sua
que recorreram. Freqüentemente, têm mais algumas extrava- desaprovação da décoiletagc . f: um vilão menos bem logrado,
gâncias próprias. nesse aspecto, mas uma criação melhor realizada.
A mais famosa contribuição de BEN JONSON foi uma apli- f: realmente um hipócrita? Não acreditaria ele sinceramen-
cação precisa da teoria dos "humores" à personagem cômica. te na religião e, tal como outras pessoas religiosas, cairia cons-
O seu porta-voz em Everyman Out o/ Ris Humour, num trecho cientemente no pecado? Por certo, ele tem consciência da ma-
240 DIFERENTES G~NEROS DE PEÇAS THAcÉDIA 241

Beira como ludibria as pessoas. Não se enganará a si próprio dúvida, algo que os melhores cscr itorcs de melodramas sempre
de um modo de que não tem consciência? O Tartufo tem, no souberam . SHAKESI' EARE, por exemplo Se for razoável falar
fim de contas, um "palavreado" tão esplêndido quanto o de de Ricardo l l I como melodrama, o herói desta Ação - não o
qualquer personagem de DICKENS, e o principal objetivo de um protagonista, mas o homem que representa a virtude e acode
"palavreado" cômico é a auto-sugestão. As palavras fabricam em seu auxílio - é Richmond; e o seu papel é relativamente
um mundo. pequeno, destacado no final . Richmond é necessário para o
Os que consideram a peça Tartuio inofensiva para a religião quadro melodramático, mas apenas como se fosse uma pince-
também contam com Orgon. Este ilustra os perigos da cren- lada de cor contrastante num canto da composição.
ça. É um entusiasta de urna espiritualidade extraterrena que, Nas obras melodramáticas de OIARLES DICKENS, o "herói"
no tempo de MOLIERE, estava sendo pregada por todos os de- poderá ter um papel mais destacado, mas quase não damos por
votos. MOLIERE entra em certos detalhes, para que a ninguém isso, visto que ele ocupa, caracteristicamente, o centro passivo
escape esse aspecto. Embora Tartufo, numa dada altura, se da ação. Mr. Murdstone e sua irmã dominam qualquer cena
deixe levar pela luxúria, é normalmente um cliente frio. O fer- em que participem, ao passo que David Copperfield é toda e
mento da peça provém, em grande parte, de Orgon; o verdadeiro qualquer criança a quem essas coisas possam acontecer - é
alvo de MouERE não é a hipocrisia religiosa, mas o zelo reli- DICKENS, a quem (em certa medida) aconteceram, é o seu
gioso. Se fosse uma comédia de humores, teríamos de dizer leitor, é toda a gente. David não é um herói trágico; não é
que o "humor" era o fanatismo ou fé. Mas qual? Nessa ambi- sequer uma das personagens inolvidáveis de OtCKENS; mas é
güidade reside todo o escândalo dessa famosamente escandalosa exatamente o que o contexto requer . O mesmo se pode dizer
obra-prima. Nada do moderno. método naturalista concorre para dos jovens descoloridos de tantos melodramas teatrais.
a criação de Orgon. f: abandonado numa situação irremedia- Quanto aos vilões, os conhecidos versos de Modem Lave,
velmente . ridícula, absurda etc., como qualquer jornalista de de GEORGE MEREDITH, são citados em apoio da opinião de que
Nova York comentaria ao fazer da peça uma crítica má. Mas <1 tragédia pode dispensá-los :

Orgon não é um simples. As implicações do seu caráter podem


ser descobertas e examinadas infinitamente. Isso, pelo menos,
Orgon tem em comum com o "ser humano real": é um enigma. 'Tis morning: but no morning can restare
Com a complexidade começa a ambigüidade. O que é Wliat we liave [orf eited. I see no sin :
ainda mais evidente na tragédia. O que sucede na tragédia aos The wrong is mixed. In tragic li]e, God wot,
vilões e heróis do melodrama? O herói trágico é realmente he- No villain need bel Passions spin the plot:
róico ao asso ue o herói melodramático não o é, realmente. We are betray ed by wliat ir [alse within .
~QJ_OJllIº lado enqnanío o herói dp melodrama é um p-ilar de
virtude c ortanto faz sem re a coisa certa, o herói trá 'co! [É manhã. Mas não há manhã que possa reparar
num.detcrmlnada.ponío crucial faz a coisa errada sendo uma O que se perdeu. Não vejo pecado :
das conce ções do su'eito ue "é trardo elo ue existe de falso Os erros se confundem. Na vida trágica. sabe -o Deus,
dentro dele". Nenhum vilão precisa de o ser! As paixões tecem a intriga:
O interesse do melodrama, como já vimos, tende a foca- Somos traídos pelo que é falso dentro de nós.]
lizar-se no vilão. f: a presença de um vilão divertido ou assusta-
dor, nos melodramas vulgares, que provoca as ações enfadonhas Muito certo. Mas até este trecho - que não é oferecido,
e as ainda mais enfadonhas tiradas dos heróis e heroínas. em primeiro lugar, como teoria dramática - não estabelece
O vício sem misturas interessa aos seres humanos, ao passo nem subentende que a tragédia não possa usar os vilões ou que
que, de modo geral, a virtude pura não os atrai, O que é, sem não o deva fazer . Não é a tragédia, mas o naturalismo que se
242 DIFERENTES Cf:~EIIOS DE PEÇAS T II A(; ~: J) I A
2·1.1

manifesta completamente "antivilão" . A tragédia e o melodra- é inteirament e inocent e, inl c iram cn te íntegro . Daí a sua insubs-
ma estão mais próximos entre si que uma ou outro da literatura tancialidnd c . ateio n.io é coe rente c Olls ig o pr óprio . E um ho-
naturalista. mem de valor e um homem sed utor, mas sua paixão destrutiva
Nenhuma crítica dramática pode rejeitar os vilões, uma vez está dema siado próxima da superfície: é essa a noção de SJlA-
que estes não foram repudiados pelos dramaturgos. E se Ricar- KES/'EARE sobre o que é um homem negro. lago incentiva
do IH é um vilão do melodrama, lago é um vilão da tragédia. Otel~, e este descontrola-se de fúria . Tal como Harnlet, possui
Qual é a diferença? as Virtudes erradas para a situação particular, e as fraquezas
Certamente não é que lago possa considerar-se mais natural erradas. E difícil aceitar os defeit os de Otclo . Creio que passa-
e banal. A diferença, tal como a vejo, tem dois aspectos: uma mos com demasiada ligeireza pelas últimas cenas. Estamos nu-
diferença na nossa atitude em relação a eles e uma diferença em ma era de bárbaros ódios raciais , o que significa, também, uma
profundidade. Exultamos com Ricardo IH, embora ele seja ra- época .em que as pessoas delicada s se tornam requintadamente
ramente espirituoso. lago é usualmente espirituoso, mas se ri- defensivas - negando, por exemplo, que Otelo seja um bárbaro.
mos, "é com o lado ocu [to das nossas faces": apesar de toda a Mas é. Entre si, lago e Otclo combinam os vícios da civiliza-
caçoada, levamo-lo a série. ção com os do barbarismo.
Eis o que se pode dizer sobre a nossa diferente atitude em . O que desejamos negar é algo mais vasto do que isso . O
relação às duas personagens. A diferença em profundidade é efeito fundamental do natural ismo - e da vida moderna em
mais difícil de descrever. Comecemos pelo fato dos leitores de geral - é um esforço para "naturalizar" e moderar a trag édia
romances considerarem lago uma personagem prosaica, porque e a comédia, no seu conjunto . No nosso teatro. tivemos o sim-
não é medíocre e porque o bem e o mal não parecem misturados pático Orcl o de PAUL RODESON e o simpático Hnmlct de MAU-
em partes iguais nele, como supomos que acontece à maioria RICE E VANS . f: um dogma de muitos críticos de jornais que as
das pessoas de nossas relações. Não foi criado com aqueles personagens principais de uma peça devem ser não só "críveis"
toques de idiossincrasia que a novelística nos persuadiu de que bé ,
mas tarn em "agradáveis" . Isso torna difícil recorrer aos velhos
constituem os sintomas exclusivos de vida real e de humanidade mestres , cujas personagens são incríveis e, se não forçosamente
autêntica. Mas, pondo de lado o preconceito novelístico, pode- d~testáveis, p,elo menos são , sem dúvida alguma , deploráveis ,
mos chamar lago não de prosaico, mas de profundo . Para criar bizarras e m órbidas .
lago, SJlAKESPEARE teve de mergulhar fundo nos pântanos da Poder-se-ia objetar que o teat ro modern o tem tido sua
perversidade. A personagem foi moldada nessa lama pegajosa. parcela de morbidez, c qu e um mod ern o elenco de personagens
A maldade de Ricardo IH é sempre, até certo ponto, "para cada vez se parece mais com a lista de pa cientes de uma clínica.
troça"; a de lago é "para valer". E no século de Adolf Hitler, Mas tal réplica não é resposta que satisfaça . A tese que se
não somos tão propensos quanto nossos pais para supor que desenvolve nas peças da Broadway a respeito de neuróticos é
uma personagem extravagante, mesmo monstruosa, como essa que eles são, no fundo, boas pessoas. As neuroses aí estão, de
não tem qualquer correspondência no mundo exterior ao teatro. fato. para tornar "críveis" essas personagens, e o âmago da ques -
Na verdade, se compararmos lago com alguns dos principais tão é que elas são "suscetíveis de provocar simpatia". Em Vol-
nazistas, só poderemos concluir que ele é muito mais cativante. pone , por outro lado, não há ninguém de quem se goste, e todos
Observando a vileza desse vilão, alguns críticos atribuíram- são doentes. não até o ponto em que se tornem críveis mas
lhe a queda de Otelo , Assim interpretada, a peça estaria muito muito além - até o ponto em que somos tentados a dc.~crer.
mais próxima do melodrama. Há uma sutileza shakespeariana As personagens de BEN JONsON estão "di stantes" . O seu mun-
na divisão de responsabilidades entre os dois homens. lago ins- do é um manicômio.
tiga; mas Otelo é suscetível . Remova-se um ou outro fator, ~ Iss o é comédia, dirá o leitor, e comédia do gênero mais .
não haverá calamidade alguma. };: no melodrama que o herói desagradá vel e áspero. Certo . Mas a tragédia também explora
244 OI F E II E :-;T E S C Ê :-;EII OS DE PEÇAS T IIAC:F:/lL\
245

a morbidez. Uma história co mo a de Macb etli pode parecer, gr ande za. li 111 a nobre za de atitud es , qu ase inconcebíveis. Por
no princípio, a de um crime banal cometido por um motivo e:sa r:lz.ão, sua obra impre ssiona-nos , freqüentemente, como
banal e até razoável (o desejo de ser o amo e senhor) , mas não -tr ágica .
antes de SHAKESPEARE ter concluído ficamos ao corrente da Na realid~de, a obra de CORNEILLE não é tão simples.
profunda corrupção de dois seres humanos. Vemos um bravo E m bora p ossur sse um talento para imaginar ações de nobreza
soldado converter-se em poltrão, com a ação do medo . Vemos qua se sobre -humana - e de fato imaginou-as, não lhes deu
uma mulher aparentemente indestrutível desintegrar-se em pâni- meran~ente ênfase declamatória - era um artista dramático
co. O assassínio político com que a peça principia nada re - demasiad o bom para não envereda r p or onde uma Ação o le-
presenta em comparação com o assassínio dos filhos pequenos va va.: o _qu e. p or vezes, o fazia cair em apuros . Em Horatius,
de MacDuff, mais adiante. A peça é uma jornada ao fundo da um rrm ao desc obre qu e a irmã não está exultante com a sua
noite. Os autores modernos, desde os primeiros naturalistas até vit ória e de se u país , porque o noivo dela estava do lado con-
os beatn iks, tiveram justamente em mira essa morbidez tão efi- trário e .f~ra morto . O irmão arrasta-a para fora e mata-a.
ciente e raramente o conseguiram. ?ra: . d~cldrr se tal ação é, sejam quais forem os argumentos,
Sobre a morbidez do Hamlet e do Édipo Rei já ouvimos , Justlf~ca:'cI - ,0 . que , evidentemente, tem sido investigado _
talvez, no último meio século, tudo o que podíamos suportar . c~nstltul " n? rrurumo, uma questão problemática . E as explica-
Mas serão essas duas obras tão excepcionais? EDMUND WILSON çoes do ult!mo ato não são satisfatórias. Não nos podemos fur-
deu um cunho psicopatol ógico à ferida ulcerada de Filoctetes, tar _ao sentimento de 9ue esse ass assinato não foi cometido por
bem como ao excessivo amor de Antígona por seu irmão ... razoes, mas por um Impulso - basicamente, um impulso de
Mas quando digo "mórbido" , não estou pensando apenas nos CORNEI~L E . CORNEILLE, "o grande e bom " , CORNEILLE, o
sintomas e símbolos que os psicanalistas lhes agregaram . Quero sup.erlatl vamente rac ional - um homem cuja vida, a julgar por
dizer algo simultaneamente mais comum e mais sério. muit as de s uas obras , parece um longo romance com o seu
próprio superego - tinha seu s momentos de loucura. No fim
Um estudo li ciro das
de contas, havia nele um KLEIST . E onde o moralista se des-
dia revelará que ambos o~ êneros eXp'loram desvios extremos governa va. o dramaturgo mostra va suas cores .
o a norma numana, distúrbios extremos do equilíbrio humano.
De R ·\CINE quase não é preci so fal ar . .E certo que existia
A nin uém ocorreria, tal vez, chamar àtfãgéd ia e à comédia
nel e um ele me nto corneiJlian o. De sen vol veu a té à sua maneira
limitadas; contudo o seu interesse na natureza humana ' nuída-
o pro tago nista nobrem ent e a bn egad o . M as Be;enice e I\ndr~
mente es ecializado limitando-se a casos extremos. Basta pen-
maca são men os caracteri zada mente r acini an as do que Herrnío-
sarmos na Guerra e Paz, de TOLSTÓI, em que as personagens
não são distintamente clín icas, para compreender a questão por ne e Fcdra . T al com o os p rotagoni st as de SHAKESPEARE, os
contraste. Mas poucos foram os grandes escritores que não tive- de R A Cl N E são escr avos da paix ão - no seu caso, escravos de
um a ~ ó paix ão, a er ót ica . A luxú ria é mais degradante nas
ram esse interesse pelo mórbido e o extremo. No próprio TOLSTÓI
vemos como esse interesse cresce com os anos - desde o trá- peç~s de R ACINE do que nas de SHAK ESPEARE . Enquanto a sen-
su alidad e lo uc a de Ant ônio oferece , pelo menos , o refrigério de
gico estudo do adultério em Anna Karenina até os crimes ne-
fandos de O Pod er das Sombras e Ressurreição . um .s o~h ~ quase tão grande quanto o sonho de império, a con-
cupr sccnci a louca de H erm íone e Fedra é árida e desoladora
Na França do período clássico reinou uma idéia "mais sa- E xist e. sim p lesmente, e é irresistível . Enquanto Antônio consi~
lutar" de tragédia - uma tragédia que seria heróica na acepção d,era o in un do bem p erdid o. F cdra não tem essa consolação.
popular de feitos de valentia. Só que se tratava de feitos espiri- E nca ra co m horror seu s sentimentos por Hipólito. Mas nada
tuais . Era CORNEILLE quem gostava de mostrar sua galeria pode fazer contra isso . Instinto animal, doença mental, cha-
humana ascendendo, em todas as ocasiões concebíveis, com uma mem -lhe o que quiserem , mas há fatalidade nessa tragédia .
2·lG IJlFElIF:"TI:S (:l~::"I:I\()S DE I'EÇA';
TI\Ar.tI>lA 2·17
Fcdra ç um ser humano desastroso, e RACINE sabia -o .
Ela teria dado uma vilã muito boa para a espécie de tragédia ue ser algo que não foi exper irncntndo pelo autor nem pelo seu
ostensivamente m órbida que WEUSTER escreveu. Mas RACINE Rúblico. A morte e não-existência, e falar ae compreenaermõS
considerou sua missão tornar a morbidez atraente, assim a Ia- a não-existência é o mesmo ue falar em a oiarmo-Dos no vaziQ,_
zcndo ainda mais mórbida . De acordo com um relato da época: Quando dizemos, Rortanto 9.~'p'octa se ocu a da morte de-
vemos entender que ele trata de alguma outra coisa que não é
morte, mas ue, nãooDstante, eixa a imI:)[essão deque não é
... numa conversação, RACINE sustentou que um bom poe- outra coisa senão a morte. Se a morte em si é inescrutável;eslá
ta podia arranjar desculpas para os maiores crimes e inspirar cercada de fatos que não o são. Não conhecemos a morte, mas
até compaixão pelos criminosos. Como Os que o ouviam Cllli2.Licicias a seI! respeito,_fa_nta.s.iJl; sobre Ç).lte_ela se 'a
ncga svcrn ser isso possível e tentassem até ridicularizá-lo por f>ró ria inescrutabilidade enche o es írito de um conteúdo mui-
causa de tão cxtr aordinária opinião, a irritação que se apos- 'to concreto, na forma de temores e conjeturas.; nem será preci-
sou dele resolveu-o a tentar a tragédia de Fcdra, onde ele so citar o mais famoso solilóquio do Harnlet para demonstrar
conseguiu de maneira tão completa ganhar a compaixão esse fato .
para os infortúnios da heroína que o espectador se condoia Como faz parte da natureza humana supor que compreen-
mais da madrasta criminosa do que do virtuoso Hipólito. de o que não compreende, a morte como idéia e fantasia é uma
presença ativa no espírito do homem. Seria um erro pensar que
foi reservada apenas para funerais e recitais de poesia. E assim,
se dei tanto destaque ao elemento dramático na vida cotidiana,
proponho-me agora tecer alguns comentários sobre a morte na
vida cotidiana, não querendo com isso dizer, de maneira algu-
ma, que as pessoas morrem todos os dias, embora tal aconteça,
mas que, ainda que ninguém esteja morrendo no recinto, o pen-
samento de morte está presente, minuto a minuto, no espírito
dos vivos .
"Morro diariamente", disse SÃo PAULO. Vemo-nos a nós
A MORTE NA VIDA COTIDIANA próprios como seres que sofrem pequenas mortes o tempo todo.
Deitarmo-nos para dormir é uma pequena morte. Dizer adeus
A definição popular de lima palavra, tal corno a compreen- é uma pequena morte. Em ambos os casos é entregue um peda-
são popular de um assunto, irrita sempre o especialista, mas ço de vida, e abdicar de qualquer coisa é sempre morrer. A pes-
também é sempre de grande interesse intrínseco, fornecendo soa que é fumante inveterado morre intimamente quando aban-
usualmente um ponto de partida ideal para estudo. O entendi- dona o fumo . Diz EMERSON :
mento popular da tragédia e comédia é, simplesmente, que uma
tem um final infeliz e outra um final feliz; que uma acaba em
This losing is tru e dying
morte, a outra em casamento, que 1cvará ao nascimento; que,
This is lord/y man's downlying
por conseqüência, uma é representada por uma máscara funérea
Thls hls slow but sure reclining
e chorosa, a outra por uma máscara alegre e risonha. Todas
St ar by star his world resigning .
essas proposições estão repletas de viço e de substância.
A tra édia trata de morte. Eu uisse num ca ítulo anterior
[Esta perda é verdadeira morte;
.9l1 e a morte agresentava um Rroblcma na literatura p~lo~to
1:: a submissão do hornern orgulhoso
TIlACi:JllA
2lR DlFEI\ENTES (;f::-;EIlOS DE PEÇAS 219

Este lento , mas certo reclinar : tal de sa íd a d o outro lado da pon te . ;\ pa lavr.: cri sti.mismo in-
Estrêla por estrela, de seu mundo abdicando.] clui atu ~t1n)en[e tantas filosofia s que é irupossivcl afirmar, pc -
rcmptonurncntc , onde se situa o cri stianismo nesta e talvez em
qualquer outra mat éria, mas, seguramente, algumas formas de
Ora, normalmente, pensamos na imortalidade como uma cristiani smn seguem o p.idr âo ori ental de cspir itunlidadc e têm
fantasia edificada sobre o fato concreto e sólido da morte . Mas, a morte em pouca conta
na fantasia, a morte poderá muito bem ser uma dedução da idéia Uma coisa pode afirmar-se com segurança . A atitude trági-
anterior de imortalidade e ressurreição. "Nada se ergue," diz
SANTAYANA, "que não seja pela morte de . alguma outra coisa".
ca é oposta a essa . A opinião do homem da rlla está certa: '-a
.!.G!géd ia dÚ muita im ortfincia à morte, ataca-a frontalmente e ;
Por outras palavras, morrer é algo que temos de fazer para vi- ~o , implica um certo desprezo pelos sonegadores a morte e
ver; se a morte não existisse, teríamos de inventá-Ia. Podemos todas as cscolas de pensamento - desde a India até Forest
pensar nisso em relação aos problemas pessoais, neuróticos, de T a wn, .os n elCS:-O o osto â C"Tr'i1édi"ili1ão é Cõii1éd ia, mas
cada um . se resume num roblema: a recusa em abando- Ciência Cristã.
nar certos hábitos, a recusa em morrer. Idealmente, deveríamos E não se trata apenas de urna questão de fazer frente à
estar hnbilitados a re'eitar certos hábitos como uma obra se li- nossa própria morte, quando soar o dia, mas de viver com a
berta de sua ele. Devíamos ser virtuoses na arte de morrer. morte em mente, agora . Quando RrLKE falou de levar a morte
M.; h mem é um animal doente e uando dizemos ue ele dentro dele , não quis dizer com isso que estivesse doente . Anun-
não sabe viver queremos significar que ele não sabe morrer. Ele c~ou apenas que não era um sonegador da morte . Era capaz de
pre ere a VI a-em-mor e a neurose grave. viver com a morte .
/' Se tudo isso é analogia e metáfora, que dizer sobre a morte Assim como as pequen as mortes são prelúdios .p a ra o renas-
real do corpo? Se a coisa em si é misteriosa, até que ponto as cer. também o enfrentar a mort e -- enfrentar a grande morte de
conjeturas, medos e fantasias invadem a nossa existência? Disse cada um - é, finalmente, urna afirmação de vida. A questão é
TOLsTór: "Se um homem aprendeu a pensar, seja o que for so- a pessoa ser capaz de I 'Í\ 'C! com o pensamento de morte, não
bre o que ele pensa, está sempre pensando em sua própria mor- cometer suicídio e ser morto . O s u icíd io poderia ser um resul-
te". A nossa primeira reação a essa asserção é dizer: "Mas isso tado de se achar o pensamento de morte tão insuportável que se
não é verdade , absolutamente. O caso é justamente o inverso . procure na extinção do pen sament o , na m orte real, o único le-
As pessoas fogem a pensar na morte: é isso o que elas estão nitivo . RILK E escreveu uma compa ssi va, mas infleXIvelmente
sempre fazendo ." As duas afirmações definem a mesma situa- dcsaprovadnrn elegia sobre a morte de um poeta que se suicida-
ção . A morte paira o tempo todo, todos a pressentem, mas en- ra aos vinte anos de idade . Termina com o verso : " Wcr spriclu
quanto uns aceitam a morte, outros a repudiam. Repudiar não 1'011 Sil'/:<''' :) Ub crst clin ist alies": (Quem fala em vencer? Sair
é ignorar. Fugir a alguma coisa não é agir como se essa coisa ileso é tudo .)
não existisse. Tal como um movimento de envolvimento pelos
flancos na estratégia militar, uma evasão eonstitui apenas um
modo mais indireto de encontro, "L\ OS ClHA R Aí z DEL Gnrto"
Isso não significa que não faça diferença alguma se fugimos
ou não. Pelo contrário, as filosofias e religiões podem-se dividir Alguns viram a tragédia jorrando de uma ferida no herói,
entre as que levam a morte a sério c as que a não levam. :f: ma s. d epois de NIElZSCllr , tem sido mais comum encontrar a
hábito de algumas formas de misticismo oriental não dar impor- falha no próprio universo ; ou na relação do homem com o uni-
tância alguma à morte e, daí, muito pouca importância à vida, verso; ou na falta de relação do homem com o universo. Na fra-
A vida é somente uma ponte para a eternidade, a morte o por- se de P '\l'L Tn.t.rcn, que est á na tradição nictzschiana, "o ho-
250 DIFERENTES GÊNERO!! DE PEÇAS
'1 11.\( , ":1' 1 \
~ .il
mem está mal adaptado ao universo". A vida é "absurda", co-
mo querem os existencialistas. C"-MUS considera o esforço hu- CO Jl l\ 1 ;IS l w s sa s r c; I ~'(') l' S f ísi c ;I S ;llJ S IJl l' SJI)( )S l'S l í Jl Ill !(l S vari nm _ _

mano simbolizado no mito de Sísifo. o~ ca!Jl'los P ~-)L'IlI - Se de p é num hom em . outro cllIpa lidece _ t am-
bcn,l ti tonnlidad r; de sc ntimc ntn e () mom ent o escolhido podem
Até ' que ponto precisamos implicar o universo, não sei. van ar. Pro v;l\'c!llIent e. a tra géd ia nã o é outra coisa senão uma
1. A. RICHARDS parafraseou certa vez "Tudo está em ordem com Iorma i n d i\ i d u;~ 1 de sentiment o radicalmente negativo, seja ele
o universo", dizendo: "Tudo está em ordem com o sistema ner- qual for ; pod er á ser até uma falta de se ntimento. pois o que su-
voso". Se isso for válido, poderíamos parafrasear "Algo está ced e a muit os, ~uand() estã o per turbad os, é an este siarem-se, fur-
errado no universo" como "Algo está errado no sistema nervo- tarcrn -sc a se~tlr, Ma s isso. CIlI si IlI CSIllO, constitui um grande
so". No fundo, essas afirmações contrastantes não são tão dife- choque O fluir ele pen sam ent os e se ntime ntos cessa, e ocorre um
rentes quanto parecem. Se o homem e o universo não se ajus- vazi o ,~t cr: ad or. A t urdimcnto é um a das muita s pala vras que usa-
tam mutuamente, temos que escolher a quem imputar a culpa n,lOs dlspllCc,ntemente e qu e mer eciam se r empregadas com se-
disso. Quando nos queixamos de que o universo é tão grande, ricdadc i\rJalogo a Iicar vaz io é desfalecer , palavra que teve um
significa que não o podemos ajustar à medida das nossas cabe- grand e uso nos tempos da repr esent açã o tr ágica vitoriana . E uma
ças. Quando nos queixamos de que somos tão pequenos, quere- pessoa cs t.i a mei o caminh o do desfal ecim ent o quando fica ator-
mos dizer que não nos ajustamos ao esquema de coisas. doada , es to l1 ~ e ad a . De cert o mod o, verti gem par ece ser a reação
Num estudo como o presente, não me é obviamente exigi- n~al s expre~slva de tod o esse grupo . Essa r ápida reação corporal
do que compreenda ou mesmo que submeta a interrogatório o di z-nos III :IIS sobre choqu e e confu sã o do qu e as palavras pode-
universo, e a minha decisão já está tomada sobre o aspecto que riam u l n sl'~ lI i r, pr ova velm ent e ,
examinarei do complexo: o eu. No seu poema "Duas Máscaras", . No séc ulo, ::<X, tem- se .verificad o uma tend ência para de-
GEORGE MEREDITH falou sobre "distúrbios nas fontes do pa- sid ratar a tr:lgedla e convcrt ô-In num esq uema ideológico, ape-
lhos", e parece-me que o lado experimental ou psicológico dessa na s, urna "concepção tr ágic<\ da vida " . Corno tal tem seus advo-
idéia de deslocamento, desajustamento, incomensurabilidade, ga~/os, c ,o .~s CJ u e ma de pen sam ent o revela- se como simples pol ê-
consiste nesses "distúrbios" . O poeta trágico é perturbado até as ,,/lca :. a Ide' ~1 de trag édi,a.cst Lí se ndo usada como uma vara para
mais fundas raízes do seu ser e comunica-nos essa perturbação. agredi: algu ém. Na Ani éric» d o Nor te. esse algu ém é, usualmen -
Outro escritor, P. H. FRYE, usou a frase "a vertigem trá- te, o liber al, qu e se v ê acu sad o de ra cion alism o e otimism o in-
gica", a qual é útil, especialmente se retivermos o completo sig- cOl1\Tl1 iel1.t: s. e ~) polemi sta pod e se r qu alquer UIII de sde o pro-
nificado da palavra "vertigem": "um ataque súbito de doença, fessor de, I cologia ao edit or da revist a Li ]«. Na Europa , o inimi-
fraqueza , desmaio ou dor, especialmente tontura ou náusea", gt1• tamb l'lJl ~ t~dc se r o liberal, mas é pr ov.ivcl qu e o polemista
diz o Webster. Uma tragédia não funciona se não comunicar tais s:Ja o scc~~ t arJl~ local do Part ido Co m unista o u o professor mar-
acessos de vertigem. A transcendência trágica não terá sua for- xista de Fil osofia na Sorbonn e. ( RAC IN E foi estudado ;I luz da
ça total se não houver esse distúrbio a transcender. concepção trágica da vida, de PASCAL , pel o crítico marxista Lu-
CtEN. G()L!)f-L\NN ,) Corn o a noção de um a co nce pção tr ágica
Por vezes, a vertigem sobrepuja-nos no ponto baixo das d ~ :'Ida Ioi, em grande parte , criação de NIETZSC/lE, vem a pro -
aventuras do herói. Assim acontece, sem dúvida, quando SIR po srto recordar que ele nã o redu ziu a tr agédia a uma filosofia,
LAURENCE OUVIER, interpretando Édipo, grita a sua compreen- ma s foi capa z de observar o seg uinte:
são do crime duplo por ele praticado. Mas não está sempre as-
sociada a determinados momentos . Pode ser incutida em nós no
decorrer de muitas cenas, e teríamos dificuldade em dizer quan- A cstruturn das cenas e as imagens concretas tran smitem
do adquire plena consciência, se alguma vez isso ocorre. Assim lima sabedoria mais profun da do que aquela que o poeta
capaz de exprimir em palavras e conceitos.
f l' i
252 DIFERENTES GÊNEROS DE PEÇAS TI\A GF:DlA
253
NIETZSCIIE também disse: é, no fim de contas, puro cini smo . Ele vê os homens como seres
insignificantes e o universo como uma espécie de Frederico, o
o sentimento de trágico aumenta e diminui com a sensua- Grande, multiplicado por um bilhão. Quem se preocupa se o
lidade. soldado comum "aceita" Frederico, o Grande? O rei pode fuzi-
lar o soldado quando lhe apeteça. Ao raciocinar assim, CARLYLE
não se apercebe do algo que é tudo . O rei só pode matar o sol-
E sinto-me confortado por essas palavras neste estudo da dado; não pode ditar a sua atitude. MARGARET FULLER não teve
vida dramática em que, sem negar o significado que a grande de aceitar o universo. Prometeu não o aceitou . O próprio SCHo-
dramaturgia fundamentalmente possui, destaco da "baixa vida" PENHAUER não o aceitou - salvo na condição de tornar-se idéia
dramática os seus pontos de contato com a nossa existência sua .
mundana, onde esta se encontra mais distante da ideologia e dos O que é aceitar o universo? No máximo seria uma meta-
ideais. física (uma aceitação do universo através da suposta compreen-
GARCIA LoRCA conclui sua eça Bodas de Sangue com as são do mesmo) ou uma fé religiosa (uma aceitação do univer-
alavras : la oscura raíz dei grito - a escura rai Z'do itõ": A- so fazendo algumas suposições teológicas a seu respeito). Essa
-imagem su ere melhor do ue a linguagem abstrata aguilo gue aceitação máxima não é exigida ao poeta trágico. Uma aceitação
_0_ p_Qela-.t( á gic9~.e n t a_alca n ç a r . E onde: o mito começa onde as mínim~ se:~ suficiente - uma aceitação sem pressupostos quan-
.ealavras e a resistência terminam. O oeta trág!co leva-nos até to ao significado total ou quanto à existência ou não de tal sig-
aí e não refletimos que o mundo é absurdo: gritamos. Ond_e~tá nificado; aceitação, portanto, do mistério do que nos cerca e da
a r ãl Z escura do ito? O oeta cava com a á da arte dramá- nossa própria ignorância, aceitação do desconhecido.
tica: não é somente o seu ensaplento, mas o seu enredo, suas Se o. poeta t~ág}c.o não necessita de metafísica ou teologia
personagens, seu diálogo, que dão a resposta . O grito mais me- para. explicar o mrst ério, também não aceitará que o cientista o
mor ve no tea ro o gnto o ~rota onista no ue arece ter explJ9ue. Conquanto a atitude trágica não seja hostil à razão, de
sido com,Rrovadamente a mais me""iii"õ'rável de todas as tra édias: maneira alguma é hostil, porém, àquele racionalismo que per-
E:diRo Rei. O gue é a escura raiz do grito? Existem exp-lica ões; s~ade os ~omen~ no sent~d? de que não há mistério ou de que
e cada uma delas constitui uma teoria do teatrO._Pois a raiz do nao havera no fim da proxrrna semana , quando todas as nossas
- grit~-~ -d-~ er6 i?ria tragédia. medidas tiverem sido tomadas . Um a das personagens de SHAKES-
Particularmente nítida e pertinente para o século XX é a P EAR E descreveu e deplorou o ponto de vista da ciência redutiva:
espantosa explicação de FREUD, que vai muito além do que vul-
garmente se julga. Com efeito, a interpretação freudiana não é
limitativa, no sentido de que somente a neurose especial de al- Dizem que os milagres são coisa do passado; e temos as
guns está em jogo. Aquilo que em nós reage à história de Édipo pessoas filosóficas para tornarem modernas e familiares as
está em nós permanentemente e está presente em todos nós. O coisas sobrenaturais e sem causa. Daí resulta que cometemos
que maravilhosamente exemplificá a presença do passado no erros mesquinhos , abrigando-nos num aparente conhecimen.
presente, do trágico no meio do trivial, do fundamental no meio to, quando devíamos submeter-nos a um temor desconhe-
cido .
do cotidiano, da morte disseminada por toda a vida.
MARGARET FULLER disse, uma vez, que aceitava o universo,
e TIlOMAS CARLYLE comentou: "Por Deus, que não levou grande Aqui temos um audacioso confronto de duas atitudes
coisa!" Muitas pessoas parecem crer que CARLYLE ganhou com opostas , uma das quais é familiar e fácil de entender, a outra
a troca. Mas MARGARET FULLER poderia ter sublinhado que os um p~uco cstranh?1 a~é incompree~sível. Cometer erros mesqui-
poetas trágicos estavam do seu lado . O comentário de CARLYLE nhos e o que a ciencra faz, destruindo a crença em bichos-pa-
TRACÉDIA 255
DIFERENTES Ci:NEROS DE PEÇAS
251
pô-lo em paruco intelec~ual. Contudo, não temos poesia trági-
pães. Mas "submetermo-nos" ao temor do desconhecido? Por ca enquanto o elemento intelectual não for não diremos elimina-
quê? O medo não é uma coisa má? Não andamos exigindo "li- ?O, ~as, ?e fato, fundido com o elemento sensual. O poeta deve
berdade contra o medo"? A lógica certamente nos falaria assim. mserir o !ntele~to no sensual, corno Deus fez quando criou cada
Talvez a psico-lógica nos falasse de maneira diferente. Como um de nos. Ha um belo exemplo de terror trágico poeticamente
RILKE diz numa carta: ex~re~so na segunda parte do Fausto de GonHE. f: o terror do
pro~no Fauste: quando Me~istMeles lhe entregava a chave para
Aquele que não admite, num dado momento, com fria de- o remo das. Mae~. GOETIIE Imprime a esse trecho, para começar,
terminação, o terrível na vida ou que exult á até com ele, um certo simbolismo clamorosamente sensual. A chave dilata-se
jamais possui a inexprimível plenitude do poder de nossa quando Fa~st? se apodera dela, depois ilumina-se e despede cen-
existência, mas limita-se a caminhar pela margem; e, certo tel,has. Mcfistófcles rec?menda a Fausto que a leve consigo para
dia, quando chegar o momento do ajuste de contas, verifi- o inferno, onde uma tnpode lhe mostrará as Mães . Para sair de
cará que não esteve vivo nem morto. novo, ele deve tocar na trípodc com a chave.
_ Apesar de GOETHE ser célebre pelo abstracionismo, Fausto
nao f:la d_e terror. no abstrato . O que acontece é que, quando
Se o sofrimento, s6 or si, não faz um herói trá .co, Eois as Macs sao mencionadas pela primeira vez, ele treme. E treme
tem de haver resistência ao sofrimento assim em nos o u lico de no"? quando a chave cresce e despede centelhas . Tem medo
-1ambém_llá_o_ba_s.ta_csqu·vacmo-nos de terror em terror: temos ~e ouvir .as mães mencionadas, e Mcfistófeles sugere-lhe que de-
de a arrá-lo ela mão Paradoxalm.eJJ..tc..._q.uanto_UlaiL aceitarm o s sista d~ Jornada '. Fausto replica: Não, ele não fugirá do que é
o terror tanto menos aterrorizados seremos o ue constitui ou- aterrorizador. Seja ~ que for que o mundo lhe faça pela experi-
tro significado ossível I~ara a Ralavra catarse. Aí encontr-ª!!l~ ência, prefere experimentar o horror:
a for a ue reside na confissão de fragueza a cora em ue exis-
te no reconhecimento da covardia.
Doch im Erstarren such' ich nicht mein Hcil
Das Schaudcrn ist der Menschheit bcstes tt« ii·
TERROR Wie auch die Welt ih m das Gcfiihl verth e ur e .
Ergrij ien. [iihlt er tief das Ung eh eur c .
O medo não é meramente reduzido pelo fato de ser aceito;
também é transformado. Aquilo em que se transforma exprime- (C on.tuuo, no torpor, nã o YCJ'o a minha sa I vaçao:
-
se melhor pela palavra tenor. Ausente do melodrama, o terror é Sentir o terror é a melhor part e de se r homem
um modo característico do medo na grande tragédia . O terror En~bora o sentimento pague o tributo, pela lei' do mundo
é medo transfigurado. . COisas estupendas são mais profundamente sentidas no
"Le silence éternel de tOIH ces espaces ínfillis nJ'effrayelll". (terror.)
[O eterno silêncio de todos esses espaços infinitos me aterrori-
zam.] As palavras de PASCAL, reduzidas à prosa corrente, di-
zem: "Estou aterrorizado pelo silêncio e dimensão do universo". A velha edição Calvin Thornas em que muitos de nós cstu-
O fraseado, a dicção, o ritmo, são os indicativos do terror a que dam~s o Fa~lSIo suge,:c m~ito apropriadamente que Scliaudern
o medo ascendeu . Tal como MARGARET FULLU., também PAS- expfl?;c aqui Terr?r. S~ntlr o terror é a melhor parte de ser ho-
CAL aceita o universo. mem. I? uma afirmação deveras espantosa tão diferente da-
PASCAL (LUCIEN GoLDMANN tem razão) é o mais puro quela que os pais nos ensinam, ou os mestres, ou mesmo os sa-
e o maior dos pensadores trágicos: uma concepção intelectual
256 DIFERENTES GÊNEROS DE PEÇAS
TI L\Ll~:/)I.\
2,'> 7
ccrdotcs, mas na Alemanha é ainda mais absurda. "Tremer é a
melhor parte de ser homem". A palavra Schaudern já ocorrei siiu as que supo rta m do srs mai or es , Ncccss it.un de mai s educa-
duas vezes na mesma cena. Fausto tremeu ao ouvir as rnIes c ão. As ! ;igr imas, co mo o bse rvo u U\'í[)I O. sã o voluptuosas, e o
mencionadas e, desafiado por Mefistófeles, diz-lhe agora que d.rama na u compo rtu uma vo lup tuos id adc exce ssiva . As pessoas
tremer é ser homem . Dessa maneira, o terror torna-se concreto, t~'nl de parar de cho ra r para qu e a representa çã o ela peça con-
tinuc .
fisiológico.
"Das Schaudern ist der Menschheit bestes Theil." O verso A comp aixã o é necessária no melodr ama , e mantém-se den-
diz-nos algo que é essencial para a tragédia. Embora fique mui- tro de certos limites se for adequadamente compensada por emo-
to aquém da renovação ou da expiação, define uma atitude com ções mais " va ro nis". Na tragédia grega, há menos compaixão do
dois lados opostos: o ró rio tremer o trem r o frenesi._Q que a fan~ o~ a frase de ARISTÓTEL ES poderia sug erir. Quão pou-
~ n ico a confusão e or outro lado a aceita ão de tudo isso ca. cOlllpalxa.o é dedicada às vítimas em Agamcnon! De que ma-
o sentimento de u~ devemos demonstrar estar à sua altura de ncrra " mnravilhosa
.
ÉSQ UILü con segue apresentar o que , em siI,
gue não devemos es erar Cu 'r-lhes de ue a melhor es~ran a consutuí a mais deplorável da s situações - a de Prometeu _
de cada um de_I1Ó.~Lé_a ..a11.!Ld_e.-tal e..spe(ança. e. dep~)is. lhe pr odigaliza tão pouca compaixão! Mesmo em Edi-
po Rei, o medo, o icrr or, u se ntido de fatalidade, é muito mais
forte do qu ~ a .compaixão que se ntimos por um homem que ar-
CoMPAIXÃO ran ca os pr oprros o lhos !
. SII:\K.LSI'EARE. escreveu ap ós séculos de cri stiani smo, e lui
f: tudo o que temos a dizer quanto ao medo. E sobre a com- murr o m;.ll s cO I~ p a J x ã o em suas obras d o que nas dos gregos.
paixão? Embora o próprio ARISTÓTELES pretenda falar de ma- Ape sar dISSO, nao se o bse rva uma grande so ma de simples c su a-
neira muito neutra, a compaixão difere do medo por ser não s6 ve {:(~rh()s . Pc.'o con tnirio, dcp ar.uu os co m outro ícn ómcuo. uma
uma reação, mas uma reação pela qual somos respeitados, uma cspccic supe r ror de compai xão. a qual n ão é accssÍvel;ls acu-
reação virtuosa. Da virtude flui um vício. Porque sentimos que saçõcs dos _ psic ólogos. E. para serm os justos. ao analisarmos
a nossa compaixão é virtuosa, começamos a praticá-la com de- taIs , a.cusaçoe s, apl~ram os que certos psi cólog os distinguem duas
leite. Então, começamos a procurar objetos potenciais para a cspccics de compaixã o. um a boa e o utra m á, uma que é gcnui-
nossa compaixão. Esses objetos passam a ser as nossas vítimas. namenle ge ne rosa e o utra que é a be rta me nte o u secretamente
Assim é que a compaixão tem uma crônica curiosa na his- vo!uptu;íri .a e com odi sta . L u/) wIG J EK E I. S esc re veu um impor-
tória da civilização. De modo geral, não perdeu a sua reputação t ~lI1le en sai o em que p~o curou es ta be lecer ambos os tipos , a par-
de coisa boa. Contudo, é suspeita. E não poucos pensadores a 1,lr de porm en ores c lín ic os exa tos . N o idioma inglês, compaixão
denunciaram. As denúncias, em geral, acentuam que a maioria e a pal avrn para o tip o s uperior de pena o u condolência . Há um
da compaixão é lamúria, pena de n6s próprios. WILLIAM BLAXE exempl o sup re mo de co mpaixão no R ei l.rar ,
acrescenta que é debilitante: "A compaixão divide a alma e de-
sumaniza o homem". BLAKE também apreendeu o aspecto "mar-
xista" - a compaixão vitima. "A Compaixão já não existiria/ D o n ot Itlll ~/11 at 111e;
Se não fizéssemos os pobres." For l1J I am a man, I tliin k tliis lady
No que diz respeito à dramaturgia, não se pode exigir que 7'0 bc my ch ild , Cord d ia.
a compaixão seja radicalmente excluída. ARISTÓTELES tinha ra- A fiei JO I (/m , I am .
zão em conferir-lhe um lugar legítimo. Contudo, a compaixão
B c yo u r tea rs w et ? r es , [aith , I p ray w ec p II Ot ;
é inaceitável quando se mantém por demasiado tempo. Uma pes-
1I Y O/l h av e pois on [o r m e I w ill drink it.
soa s6 pode suportar uma certa dose; as pessoas sentimentais
I k no w Y O/l do not lo ve m e; [o r yo ur siste rs
258 mFEnF.:--;TF.S c;f;:-;F.nos OI': PEÇAS TI IA c:F.D1 A 259

1/11\ '1', as 1 cio rrmcmbcr, done me wrong: CORNLILI .E é um enorme dramaturgo, mas sem a riqueza
)' 01/ havc some cal/se, they liave noto tr.igicn til' RAClNE, por causa da sua falta de compaixão. f? cer-
No cause , no cause. to que também evita -o sentimentalismo da mera piedade, da con-
dolência.
IL.: -- Não ri ais de mim! Pois tão certo quanto eu ser ho-
[mem. No final do século XVIII, os alemães esforçaram-se por
Creio que esta dama é Cordélia. minha filha. criar urna tragédia que fosse nco-shakespcariana ou neo-helêni-
ca, ou ambas as coisas. A Maria Stuart , de SCHILLER, mostra as
c.: E na verdade sou, meu senhor, sou vossa filha.
limitações do padrão trágico de destruição e renovação quando
L.: Tendes de lágrimas úmidos Os olhos? Realmente .
a destruição não é suficientemente profunda, e autêntica, e igno-
Rogo-vos que não choreis.
miniosa. Cabe aqui uma advertência a todos os que desejam
Se tiverdes veneno para dar-me, hei de bebê-lo.
definir a tragédia como nobilitante: é fácil conseguir que uma
Sei que não me tendes amor; vossas irmãs,
Tanto quanto me lembro, foram más comigo:
história seja nobilitante e austera, sem lograr fazê-Ia trágica.
Mas tendes um motivo e elas não.
Maria Stuart é uma boa peça, mas não encontramos nela uma
c.: - Não, nenhum motivo... nenhum motivo.] experiência de caos. Que a Rainha Maria foi maldosa antes da
peça começar, é-nos contado. Certamente não vemos essa mal-
dade depois que o pano sobe. Onde está a profunda raiz do grito
Os versos de Lcar estão repletos de pena; são os de Cordé- de SCIIILLER? Eis uma pergunta que não se pode formular . ..
lia que revelam sua compaixão e, através dela, a de SHAKESPEA- porque SCIIILLER não gritou. Que Maria Stuart devia ir para o
RE. céu está teologicamente correto; mas, dramaturgicamente falan-
do, uma pessoa não deve escapar tão impunemente e com tanta
facilidade às conseqüências de matar.
DE SH"KESPEARE A KLEIST
No pólo oposto de SCHlLLER está o seu contemporâneo
A compaixão transcende a pena como, de algum modo, o mais jovem, KLElST. Aqui temos um poeta que não encontra
terror transcende o medo e, tal como o terror, parece que só a dificuldade em chegar aos "distúrbios nas fontes de palhas".
tragédia pode gerá-Ia, ao passo que a pena e o medo são sufici- Aqui temos um homem que estava não só amedrontado, mas po-
entes para o melodrama. Em todas as tragédias shakespcarianas, sitivamente aterrorizado. Ninguém melhor do que êle transmi-
o medo eleva-se a terror c a pena a compaixão. Dificilmente se te urna sensação da vertigem. O seu problema é convencer o pú-
poderia dizer o mesmo da obra de qualquer dos contemporâ- blico de que não é louco . Com efeito, o perigo é que digamos:
neos ingleses de SHAKESPEARE. MARLOWE é ocasionalmente ater- "Sim . mas isso é apenas um relato sobre uma experiência muito
rador, freqüentemente assustador, raramente penalizado c, tal- anormal. Aqui temos um psicótico a quem aconteceu ser es-
vez, jamais compassivo. critor." Por muito grande que tenha sido a tentação, KLETST
RACTNE ocupa no teatro trágico francês um lugar de proe- conseguiu evitar a autocomiscr ação , mas também há pouca ou
minência comparável ao de SHAKESPEARE no inglês. Embora nenhuma compaixão em sua obra . Deseja ARISTÓTELES que
sua piedade seja muito mais citada, devemos sublinhar que qua- compreendamos deverem a pena e o medo estar presentes em
se sempre se eleva a uma compaixão shakespcariana. Nenhuma
proporções iguais? A desproporção em KLEl5T é rebarbativa-
figura, em toda a tragédia, é exposta com mais compaixão do
mente enorme: tanto medo, ou mesmo terror, tão pouca com-
que a sua Andrôrnaca, e o "escândalo" da sua Fedra reside no
paixão, ou mesmo pena.
fato de se se sentir compaixão por uma vilã.
260 DlFEHENTES \.~::-;EHOS DE PEÇAS THA CÉIlIA 261

IRA de IBSEN . f. muito mais importante em BRECIIT, mas, em


BRECIIT. () drama social redunda novamente em comédia.
Mas do ponto de vista do presente capitulo, KLEIST parece Talvez a nossa conclusão devesse ser que, na dramaturgia,
o último dos antigos. O teatro moderno que principiou nas gera- a ira necessita ser disciplinada pela vivacidade de espírito e pe-
ções seguintes à sua morte consistia preponderantemente numa lo humor; a compaixão só a dilui e espalha.
dramaturgia de lamúrias, apenas. O protagonista "digno de pe-
na" ou "homenzinho" sucedeu ao herói trágico. A raridade da
compaixão, medo e terror é agudamente sentida por todos os A DIALÉTICA DA TRAGÉDIA
que conhecem os mestres da dramaturgia.
Os dramaturgos sociais tentaram um arranjo improvisado Estive falando da tragédia em termos de um distúrbio e de
de pena e ira . Poderiam a pena e a ira ser para o drama social uma transcendência desse distúrbio. O que é mais importante: a
o que a pena e o medo tinham sido para a tragédia? A fórmula transcendência ou o distúrbio? A transcendência não pode ocor-
não se mostrou muito fértil, embora se aplique à maioria das rer sem o distúrbio que transcende, ao passo que o distúrbio pode
peças americanas mais sérias. O autor mostra-se indignado e facilmente existir não-transcendido. Mas essa resposta não é su-
aponta-nos a sorte rniseranda da classe trabalhadora ou das mi- ficiente. E preciso perguntar : ual é o im ncto final da tra ' . ?
norias perseguidas. (O mesmo sucede com a dramaturgia britâ- E. M. W. TILLYARD sugeriu que existem, basicamente, três
nica. Look Back in A nger - Recordar em Fúria - também padrões de ação trágica. O rimeiro é o de sofrimento e resi a-
poderia in titular-se Look Back in Selj-Píty - Recordar em ão; o se undo, de destrui ão e renova ão' o terceiro de sacrifí-
Lamúria.) Nesse drama moderno, não é somente a pena, a co- cio e expiação. Um exemplo de cada chegará ~ara fixarmos os
miseração, que se denuncia e perde todo o interesse. A ira tam- Jr~ s padrões_e.un.rncntc O Prometeu de f:SQUILO é o exemplo
e,

bém não consegue fazer o que se esperava dela. A cólera nega- clássico de sofrimento resignado. Os Martírios de Sansão, de
se a bramir e, no melhor dos casos, produz réplicas mordazes. MILTON, é um exemplo clássico de destruição seguida de reno-
Tal como a compaixão, a ira também sofre de naturais vação. Édipo Rei de SÓFOCLES é o mais célebre exemplo de sa-
obstáculos. Na arte, só é viável em certos contextos. O Antigo crifício e expiação.
Testamento pode apresentar irados homens de Deus que vitu- Os três padrões têm isto em comum: consistem numa dua-
peram em opulenta poesia. Não bramem sua ira, contudo, em lidade, um pólo negativo e um positivo, sendo os elementos
grandioso teatro. Mesmo quando não seja farisaico, o homem negatIvos so [[mento, estrUlção e sacrifício; sendo os elementos
irado é obstinado, visto que para ele "o outro lado não tem defe- Põsilivos rcsignação, renovação c ex~iação. O Qrimeiro p'adrão
sa possível". Um dramaturgo pode ser tudo menos obstinado. _ sofrimento e resi nação - deve ser considerado o básico,
Seu espírito tem duas faces ou mais. Não teria necessidade de uma vcz ue está incluído nos outros dois. Não há destruição
suas muitas vozes se, como um profeta irado ou um satirista à ou sacrifício scm sofrimento . Não há renovação nem ex ia ão
JUVENAL, sentisse prazer em escutar sua própria e única voz. sem rcslgnaçao. e procurarmos esta6c1ecer qual é a exigência
Sua ira tem de fragmentar-se e distribuir-se entre diversas perso- --rTIírllma Rara azer urna tra caia veremos uc ap'rcsenta as ca-
nagens. E, caracteristicamente, chega até nós coada pelo filtro racterísticas do rimeiro adrão: sofrimento e resi na ão.
da comédia e farsa. Se o "teatro social" é mais uniformemente - - -O ra , conquanto a renovação ou a expiação representem
colérico, também é menos uniformemente teatral. Grande par- uma transcendência do sofrimento. a mera resignação não está
te dele poderia ser considerada comédia mal sucedida, comédia nesse caso . Se há transcendência na Ação do Prometeu esqui-
que não consegue despertar um sorriso. O teatro social de IBSEN liano, dever á ocorrer nas partes finais da trilogia, que se per-
torna-se verdadeiramente dramático ao deixar de ser, na deram . É de supor que os gregos, em suas trilogias - que,
acepção usual, social. A ira também não é a mola real das peças além disso, eram acompanhadas de uma peça cômica em forma
rH F EIIE :" T E S e f::"E IIC S OE I'EÇ ."S ·J Il .\ C (r ll .\ 20.1
262

satírica visavam geralmente às transcendências morais e as- pelos hU I ror cs da histc'jria q ue con cluím os : é cs-.c, obv iamente,
sim (com exceções, corno EURrI'ID ES) aceitavam a concep- o tern a da pc ça . T em sido Irc qü c n tc mc ntc citad o C0ll10 tal .
ção de tragédia moralmente afirmativa, a qual pa.rece ser ,atual- Q ua ndo, por ém , chegam os à uni versidad e, so mos defrontados
mente a concepção preferida. Não obstante, fOI a EURIPIDES por mestr es qu e derrub am a nossa interpret ação escolar a golpes
que ARISTÓTELES chamou o mais trágico dos dramaturgos, pre- de erudição . efici ência profi ssion al e um a certa dose de júbilo.
surrúvelrncntc porque as suas histórias são as mais horríveis e Comp letand o o fund o do pensament o elisabc tiano, preenchendo
não terminam em harmonia . O erro a evitar é o de basear-se os clar os e provando , além de qu alqu er dú vida , que a Inglaterra
uma explicação da tragédia numa só escola ou indivíduo . Isso era um paí s cri stã o, e at é pr ote stante, co ncluíram que o que
significa apenas tocar os íavoritos . Há tragédias que terrninarn temos aqui é uma peça cristã , mesm o p rotes tante, que justifica
em dissonância . os rum os de Deus per ant e os homen s .
GONZÁLES DE SALAS, um erudito do século X VII, escreveu Devem os ter cuidad o em não mer gulh ar os aut ore s tão
no seu comentário à Po ética. de ARISTÓTEL ES : . co mpletame nte em suas época s qu e aca be mos por afogá -los.
Ainda mais do qu e repre sentant e de o utras pessoas. um grande
poeta é sob retudo ele p r óprio Não q uero dizer com isso que
Dc ac ordo com o F il ósofo . as du as partes principais da
SII.\KESI'I:\RE fosse um homem de op iniões het erodoxas e um
trama composta são a Reversão c o Reconhec imcnto, acres-
temp er amento militant e . Creio qu e o R ei t eor pode ser lido
c cnt and o a inda . noutro lugar, um ter ceir o componente, a
co mo uma just ificaçã o dos deuses. Ma s aind a que SIIAK ESPEARE
sab er, o Di stúrbio ou Per turbaç ão [lIl1ba ci(),,] do espírito do
volta sse ;1 terra para endossa r essa an álise. há sempre uma atra-
espectador. ção da filosofia de uma peça pelo seu espírito, e há sempre
uma at ração das int enç ões de um auto r por suas obras .
Ignor o qual era o outro lugar. em ARlsr (r;F! :ES . a, q~e t muit o pro vável qu e SIIAK ESI'FARE co nside rasse es tar dan-
SALAS se referi a . A doutrin a mais parec e ser id éia proprra, do um a respos ta cris tã ao problem a do mal . Te nta r dar qu al-
calcul ada para acom odar as tragédias do que poderíamos cha - qu er outra res pos ta num teat ro pú blico - é esse o gênero do
mar o tip o negati vo - aqu ela s tr~gédias em que ,o. sofrimento, co isas q ue os histor iad or es se deliciam em apo nta r - teria sido
emb ora resignad o. n50 é tr an scendido . Corno a criuca moderna UJ1l proced imento fant ástico. A ques tão é esta : será qu e a peça,

tem assinalad o. a teori a podia ser aplic ada a lima peça como em co ntras te CP J1l o verso citado. supor ta essa interpretação?
O M éd ico de Su a H onra , de CAL DFRÓN . na qual. manife sta- Ac ho q ue a rcspostu deve ser enco nt ra da não neste ou naquele
ment e , o assassina to da esposa perturba o espírito do especta- verso. ma s !l O enre do e nas per son agen s. be m corno na inter-
dor em virtude do crime ser comet ido em nome da honra. Neste relação de in úme ros ver sos . A minh a im p ressão é que SHA-
caso, possivelmente, a vertigem trágica é tudo o que a tragédia KEsrEARF cst.i profundamente perturbad o por todos os sofri-
caldcroninna almeja produzir . mentos c per versid ad es do mund o e qu e a peça está longe do
Embora esse exemplo seja discutível, é relativamente sim- co nsubstanciar urna fé tranqiiil a na tent ati va cr istã de explicá-
ples , A dial ética de R ei L car é muito mais intrincada . Como los e justific.i -los . Se não me cnguno, sube ntendida na op osição
tese e antíte se principais, poderíamos tomar estas duas prop.o- dos ver sos citado s (uma oposi ção de con cepç ões rivai s) há outra
sições: "Tal como as moscas para os rapazes travessos, .assll:n oposição : a qu e se verifi ca entre ter e nã o ter o piniões . A vali-
nós somos para os deuses , / Eles matam-nos para seu, dl~ert~­ dade da co mpree ns ão hum ana , cristã ou outra , é posta em dú -
menta ." E: " Os deuses são justos e de nossos agrad áveis VI- vida . SII.·\K FSpr ARE viu tant o q ue vacila. Tud o o que ele realiza
cias / Fazem instrumentos para importunar-nos." A nossa pri- por meio de afirmação é "aga rra r o terror pela mã o" e recupe-
meira inclinação, como menin os de escola , é sermos de tal modo rar-se suficientemente da verti gem a fim de poder escrever uma
impressionados pela primeira pr oposição e tão desconcertados peça . r: um caso de vertigem record ad o co m tranqüilidade .
21).f nJFF:IIF:~TES C:.::-;F:II0S DE I'EÇAS
TIIAC ;ÉDlA 2GS

Ter-me-ia sido mais fácil, pois ninguém discordaria de mim, tranho paradoxo, porque o desespero não canta . Se um homem
ilustrar esse ponto com uma das peças de RACIN E. Exceto que, desesperado começa a cantar, jú está tran scendendo o seu de-
se o fizesse, não ilustraria o ponto. RACINE escreveu tragédias sespero . Sua canção é a transcendência .
em consciente rebelião perante a sua igreja. O fenômeno sha- Se for útil ver a tragédia, por urna questão de mudança de
kespcariano é mais complexo . Isto significa, creio eu, que -ª- perspectiva, como fenômeno psicológico em vez de filosófico,
J ragédia não pode ser contida dentro de gualguer filosofia: não estético em vez de moral, teremos de acrescentar que a trans-
_Ls..e.Q t!...eJ~xis t e o c i a l i$ t a - é existencial ._ O que a Restauração cendência estética do sofrimento, da desordem c da falta de
fez com SHAKESPEARE foi acomodá-lo a uma filosofia. O final significado tem um valor moral. Significa coragem, a que se
feliz do Rei Lear faz sentido. Sentido é, exatamente, o que tem. poderia chamar uma virtude trágica. E há um elemento de
A peça de SHAKESPEARE não faz sentido . Sentido é exatamente sabedoria na tragédia . Abdicar do universo como um enigma
o que ela não faz: é uma imagem da vida absurda, incongruente, insolúvel, tentar até alijá-lo dos nossos ombros , por algum tempo,
que vivemos, a morte absurda e incongruente que morremos. como um fardo insuportável - há nisso alguma sabedoria. E
há mais ainda na aceitação do mistério . Finalmente, se puder-
Somente SAMUEL JOIINSON, com sua prodigiosa franqueza, mos compreender através da tragédia que não estamos equipados
nos deixa perceber a verdadeira razão que o século XVIII tinha para aprender grande coisa a respeito de coisa nenhuma, por
em preferir um SHAKESPEARE adulterado. Com efeito, ele diz ela aprenderemos alguma coisa sobre os nossos eus desapare-
que SIIAKESPEARE é excessivamente constrangedor, intragável. lhados .
Dcprcende-se claramente dos comentários de JOHNSON que as As verdades da tragédia são verdades domésticas. Como
teorias ncoclássicas não são mais do que uma racionalização do SHELLEY disse no seu prefácio a Tire Cenci:
medo de angústia que SIIAKESPEARE suscita . Rei Lear é uma
peça para suscitar angústia : perfura a armadura de nossas idéias,
e das de SHAKESPEARE, e atinge com violência o coração . O A slIprema finalidade m oral visada na s m ais elevadas es '.
"distúrbio" está "nas origens do pathos" , cies dramátic as é cr isinar ao co ração hum ano, através de
suas sim p-atias e antiJ)atias, o conheciment o de si ró rio.
Devemos generalizar esse exemplo e afirmar que a grande
tragédia apenas perturba e que a perturbação não é transcendi-
da? Isso estaria mais próximo da verdade, em minha opinião, Não é reciso ficarmos excessivamente aterrorizados. Essa
do que a noção dominante em nossos dias, segundo a qual a final idade suprema está, no fim ue cont as, em continuidade
tragédia é diretamente "positiva" e "otimista" . Contudo, mes- corn os ro ósitos infantis de teatro gue tentei aqui definir .
mo no Rei Lear, mesmo no Rei Lear tal como o interpretei, há ARrendemos a existir elas identificaçocs da inf;lllcia . Apren -
uma transcendência : a transcendência implícita no poder re- ,demos a saber ÇJue existimos elas sim atias e antiQatias da
querido para escrever a peça. :B essa, creio eu, a única espécie idade adulta . O autoconhecimento situa -se no final da estrada
de transcendência que o poeta trágico pode prometer e é, por- que começa com a auto-idc niTfiCãÇão. As SIm atias e antip'atias
tanto, a espécie que pertence à nossa exigência mínima sobre e umap~ça trágica definem o eu do dramaturgo e podem aju-
os seus serviços . dar,_p'ortanto, à definição do eu de qualquer espe ctãCIorquc
J:~ e n e t r e nelas . - ---
A tragédia consubstanciá uma experiência de caos, e o
único cosmos que o poeta trágico pode garantir para compensá-
lo é o cosmos da sua tragédia, com a sua integração de enredo,
personagens, diálogo c idéia. PIERRE-AIMÉ TOUCHARD teve uma
esplêndida e simples frase para fenômeno da tragédia. Deoo-
.mína-a.um "canção_de_des~~lP-euL-, Tal pensamento é um es-
267

Esse riso, lon ge de estar con fina do às situações clínicas, é


co mum em tod as as rela ções socia is. Com efeito, dep aramos
aq ui CU III un ra das básicas Iun çôcs do riso, cru gera l, e de toda
a nlccria. Irivo lida dc, irreverê ncia etc , publ icam ente exibidas .
9 Ain d; mais co mum do q ue esse "Não está faland o sério! " é
" Mas cu estava ape nas brincando!" E uma intere ssa nte variante
Comédia da últim a oco rre quand o um nosso int erl ocutor se recusa a
ignorar o intu ito sé rio c retor quim os : "Você não é capaz de
aceitar um a brincadeira?" , ace ita ndo a derrota num tom ofen-
dido e an sioso.
"Eu ESTA VA Ar ENAS BRIN CANDO! " Vimos que se podem com eter agres sões sur preendentemente
rud es. ap ena s por esse motivo: " Mas nã o é sério" - ma n~n
ti una cosa seria, na fra se de PIRAND ELLO - o que a convençao
burle sca aca rreta em si. Mas . então , a farsa só é séria na me-
d ida em qu e a ho stilidade é sentida e não na medida de uma
QUANDO UMA PESSOA nega veem entemente alguma coisa que
con vicçã o de que a hostilid ad e es tá justific ad a. A co ~.édia
não foi afirmada, ficamos pensando por que ela se daria a tal tra- comport a juí zos tã o sé rios que , com exceção dos que malllfes-
balho, e concluímos que , expressamente, o que ela negou é ver- tam seu repudio, uma peça cônllc a con vI ana a escnçao como
dade . Não é de surpreender que essa form a de "não-quer-dizer- um a " po de rosa acusaçã o" ou urna " reve laç ão chocante". P ~r
sim" venha à baila, com freqüência , no divã psiquiátrico, em o utras pa laHas, isso significa o gue Já suge ri: g ue se um ~ co ~e­
d ia perd er o seu tom frí volo se convc rte cm drama SOCIal nao-
que todo o problema do paci ente se resume em sua relutância
côm ico .
em afirmar o que sabe ser assim. Mas neste corno noutros as-
;\ cPlIll-Jia recebe a man cira st')bria l alegre da farsa. O
pectos, o hom em deitado no divã está ap enas debatendo-se com
elemento OpOS!(l. n elemc nto su terra nco e er uptIVO, c qu e 1:-
um caso possi velmente agudo de uma queix a certamente uni -
versa l.
r-c: Na Iar s». o q ue e<;( :í subja cente é pu ra ag ress ão, qu e na?
""i'CI1l jll<; til ic \ç;I O mo ral nem a <olirita . A ae rcss Jo é comum a
Ora, em vez de usar a pala vra nã o. um paciente pode farsa e <'I coméd ia, mas, enquanto lia farsa é mera retaliação,
romp er em gargalh ad as . Se tivesse de traduzir também por pa - na cOIIl l-d ia es t:í oderosa men te am a rada )ela con vlc ao e
lavras o que o riso disse em csga rcs e ruíd o, o paciente excl a- sua lc uitimida dc . Na co média. ;1 fúria d a fa rsa está a
maria: "O que você acaba de dizer é fantástico! Não pode cp nsci0ncia ,
estar falando sério! Não posso consentir que me veja dessa ;\ difer en ça ética aca rre ta ton alid ad es e mocionais muito
maneira! Faça favor de observar que não só não estou intimi- distint as. A far sa oferece 11m só e simples prazer : o prazer de
dado coisa nenhuma como ainda estou intimidando-o com as esm urr ar o no sso inimi go nos qu ei xos se m recebermos a res -
posta . ;\ d c sapro vnç âo cxprcssn na co méd ia o ferece llm~ vasta
minhas gargalhadas, as quais, como você sabe pelas suas inves -
g;lma de po ssibilid ade s emoc iona is. co rresp ondendo aos difercn-
tigações psicológicas, significam vitória e desprezo! " Infelizmen-
te, se esse paciente, como a grande maioria dos pacientes ame-
tcs tem per am ent os dcsa pr ovadorcs . Um hom em PO?: desapro-
var qu ase se m desa pr o vação. delicadam ente , mallclOsam:nte,
ricanos, tem algumas leituras psicológicas de conta própria, ambiau arncnt c. co mo C:ONGR F \T : ou, co mo o cont emporâneo
saberá que as veementes manifestações de repúdio são inter- ele Ô )N ( ; R I:\'E, l ON A TIIAN SWI FT. po de desap rovar perniciosa-
pretadas como confissões de culpa . mente. ca usticamente, ele ma nei ra torturante c demolidora.
268 DIFERENTES Ci:NEIIOS DE PEÇAS 269
CO " , É Il IA

~uitos est~dos do cômico abrangem os Congreves da arte, das responsabilidades adullas. O seu caráter du lo (em múlti-
mas nao os Swifts . B certo que SWIFT não é um autor teatral ressu õc no artista cômico um e ui arnento
e os comediógrafos quase sempre se inclinaram mais para o Iado du lo: )or lima arte lima "sede de vida", um lia etite evolu-
de CoNGREVE do. que de SWIFT. Isso talvez acontecesse, porém, cionário", uma avidez e um entusiasmo de ser, pura e simples-
pelo fato da maior parte deles ser medíocre. Quando encara- mente; or outra arte, uma a uda e dolorosa consciência dos
mos a comédia em sua mais alta expressão reconhecida _ em obstáculos no caminho, as resistências e as recalcitrâncias, as
MAQUIAVEL, ou JONSON, ou SHAKESPEARE, ou MOLIERE _ sur- provações pelo fogo e pela água, os dragões, florestas e caver-
preen?cmos _a so~bria corrente oculta em seu maior ímpeto o nas ue nos arnca am e os mata ais e ânta
poderio. N ao existe uma terminologia exata para lidar com
A
[lerdemos e afundamos.
ess~s fe~o?Jenos, de ~odo que escolherei as palavras de uso
mais cotidiano para dizer que o que obtemos situa-se entre os A comédia tem isso de comum com a farsa: no fim. deci-
pólos de azedume e tristeza. O azedume conhecemos através de olhar para o outro lado. Mas há lima diferença. A comédia
da sátira não-dramática, de J UVENAL, de SWIFT. Entre os dra- viu; tomou nota; e não es ueceu . Na farsa. tudo acontece dês te
maturgos, ~AQUIAVEL e JONSON são amargos. MOLlERE e SHA- lado do desespero, estouvadamente, atrevidamente. imaturamen-
KESP,E~E t~m ~edume no~ respectivos repertórios, mas as suas tc. A comédia tcm lu ar do outro lado do deses ero. E um
come~las nao sao predommantemente amargas; têm uma me- gênero adulto. Aquilo a que JOSEPII CONRAD chamou a zona
Iancolia suave e, em certos momentos, irresistivelmente triste. ~J~e n u m b r a foi atravessado.

. Ora. como eu disse no capítulo sobre a farsa, toda a ale- Na farsa, revidarnos ao nosso opressor e, ao fazê-lo, apro-
gria tem fontes amargas e doces. O que sucede é que na farsa ximamo-nos das fontes primitivas e infantis de prazer . Nenhum
nunca se consente que a amargura venha à superfície. A água prazer pode ser mais puro e inequívoco do que esses longos
que bebemos numa farsa. é como se tivesse apenas um ligeiro sorvos da fonte primordial . A nossa experiência da comédia,
travo de a~1argura, sugerindo que há mais por baixo, sim, mas pelo fato de ser mais sutil, também é mais complexa. Para
sem destruir o sabor doce. A violência de \V. C. FIELDS, descrevê-Ia e apreciá-Ia, usamos forçosamente, para fins de com-
!"IA~P<: MARX e OfARLlE' OfAPLIN está presente, mas somos paração, não a farsa, mas a tragédia.
impedidos, por meios muito claros, de "levá-la a sério" e de
associá-la à violência de AI Capone ou Hitler. Também na
f~r.sa não é possível estarmos sempre dispostos a sentir pena das "N ão LEVEMOS AS COISA S P t\RA ESSE LAOO!"
viumas . Estamos passando um belo tempo a fazer de carrascos
Tant.o em relação ao agressor como ao agredido, a farsa é tão " A tragédia", disse SIR PIIILlP SIDNEY, "abriu as feridas
despida ?e e~oção como de reflexão. Precisamente aquela atí- mais fundas e ôs a descoberto as úlceras ~ue estão rec06ertas.
tude antlemoclo?al que. ~~RGSON atribui ao cômico, em geral, de tecido." A metáfora comunica a idéia de rela ão direta entre
pertence, em minha opinrao, à farsa, em particular. A farsa a tragédia e a dor. Ora, a noção do homcm comum, de Que a
não a comédia, é "insensível". Inversamente, o azedume e a comédia não tem semelhante relação direta com a dor, está
tristeza que tão facilmente sobem à superfície na comédia cons- certa. O homem comum só erra Quando supõc Que a comédia
tituem a nossa primeira, melhor prova de que na comédia o nada tem a ver, em absoluto, com a dor.
sentimento não só está presente, mas é abundante. A outra implicação de "Eu estava só brincando!" é: "Não
A farsa permite-nos uma fuga da existência, uma liberta- levemos as coisas para esse lado: isso é uma comédia!" Tal
ção . da~ p.ressões do ?ia-a-,?ia., um regresso à irresponsabilidade implicação pode ser localizada no tom cômico como tal. BYRON
da Infância. O sentido cormco, em contraste com o impulso expressa esse ponto perfeitamente quando diz: "E se eu rio de
burlesco, tenta ocupar-se da existência, das pressões cotidianas, Uí\1 uer coisa mortal é talvez or ue não ossa chorar". "Não
270 IlIFI :nl::"TES (JSI :1I0S DF. l'F:ç ...S cO~ l h )J A 271

levemos as coisas para esse lado" para esse lado " . t a seguinte : <Ir: melh or acahar uepressa esta
ver as coisas or esse lado", Temos a ui ortunto um comédia, ou acabará por não ser com édia". No final de Le
mismu ue é mais sombrio do ue a tra édia visto uc a tra é- Bourgcois Gcntilhomme, Jour dain j;í não é meramente excên-
dia ressu õe odermos enetrar em todas as coi as trico ou obstinado: é demente. O fim da peça evita-nos a tem-
. Penetrando e?l. tudo - mergulhando em todos os negros po as conseqüências dcsagrad ávcis , O final de Tartuiie só dife-
a.blsmos - a tragédia leva-nos ao ponto de vertigem, Reconhe- re muito ligeiramente, Seus alicerces são os seguintes : "Esta
cidamente, a comédia não o faz. A insinuação de dor existe comédia terá uma conclusão trá gica se o rei não intervier ime-
mas, nesta arte, as aparências devem ser mantidas, a trama não diatamente", Os historiadores gostam de nos lembrar que Mo-
deve perder sua levez~" Ou não devc_por muito tempo perdê-la. L1ERE foi um bom e fiel monarquista, Mas foi ainda um me-
Na grande comédia, a convençao de alegria corre perigo, lhor homem de teatro. Os finais felizes são sempre irônicos
de tempos em tempos. Alguns críticos ficam muito nervosos a (como tudo o que é feliz na comédia) e MOLlERE tornou a
esse respeito e começam a perguntar a si mesmos se ainda se ironia pungente. Mais um passo e estamos em The Beggar's
trata de comédia ou não, A COSI [an tutte , de MOZART, por Opera (A Óp era dos Mendigos v, onde o final feliz é francamen-
exemplo, Que uma das damas se apaixone seriamente e can- te trocista. Há um perigo para a comédia em tais zombarias os-
te_ com. autênti~a paixão, provocou incredulidade e espanto. tensiva s. Os defensores obstinados da rigorosa adesão às convcn-
Não fOI _uma. violação da. convenção cômica? Eu perguntaria çõcs têm esse ponto a seu favor: (uando a convcll 50 da comé-
antes : nao fOI uma das coisas que colocou COSI [an tutte muito ,d ia é desafiada ara além de um certo limite. a comédia dará
acima das inumeráveis obras em que a convenção não é viola- lugar a alguma outra coisa . Eu acrescentaria apenas que isso
da? No fim de contas. qualquer um pode impedir-se de violar não constitui necessariamente urn infortúnio, e no próximo ca-
a convenção, pítulo tentarei mostrar como Th e Bcggar's Opera deu um passo
Um exemplo no teatro inglês - um gênero diferente de mem or ável da comédia par a outro gênero igualmente válido :
exemplo - é a cena de Célia em Volpone . Ver Volpone bur- a tral:!icomédia .
lando os tratantes, ver um tratante burlando outros da sua laia
está dentro dos limites usuais da comédia . Vê-lo seduzir um;
esposa verdadeiramente virtuosa, com a ajuda de um marido TRAGÉnrÁ E COMÉDIA: A I.G u r- ,<\s G E N ERALIZ AÇÕ ES
tonto, já é outra coisa, Os respeitadores da estabilidade das
convenções, morais e estéticas, podem desaprovar, mas em mi- Convencionalm ente , cons ide ra mos a co méd ia uma alegre
nha opinião são precisamente esses retoques que fazem de JON- e frívola form a de arte; e qualqu er element o contr astante é tido
SO,N um grande escritor de comédias . f: até possí vel que o pró- em conta de secundário, um meio-tom, uma interrupção, uma
prro JONSON , orgulhando-se da correção da teoria, se tivesse exceçã o . Proponho, pelo contr ário. considerar a miséria como
retraído sob as críticas "convencionais" , O gênio cômico de ba se da comédia e a alegria como urna tran scendência constan-
JONSON não está, de maneira alguma, contido em suas teorias . te . Vista dessa maneira , a comédia, tal como a tragédia, é um
Há un~a tensão nas peças entre as idéias conscientes e sempre modo de tentar fazer frente ao desesp ero. ao sofrimento mental,
apropriadamente corretas do autor e o seu profundo sentido de à culpa e à angústia , Mas de maneira diferente. A injunção
~a~s, Semelhan~e tensão é muito mais produtiva do que as trágica , nas palavras de Stein em Lord fim é esta: "no elemento
idéias ou o sentido de caos , isoladamente considerados. A co- destrutivo, mergulhe!" f: também : Caminhe, como RILKE, com
média eleva-se, através dessas tensões, a um plano de digni- a morte dentro de si! Leve o terror pela mão! Em termos mais
dade e grandeza , prosaicos: aceite os obstáculos que a vida coloca à sua frente
Depois de MOZÁRT e de BEN JONSON, permitam-me citar e defronte-os! Ora, é evidente que a atitude cômica é compa-
MOLlERE . Ele possui sua pr ópria forma de "não levar as coisas rativamente oportunista, Sua estratégia resume-se em ludibriar
272 OIFEnENTES r.b.EnOS DE PEÇAS C O :- I É ll JA 273

e fugir ao inimigo, em vez de o enfrentar. Inevitavelmente, os que o Édipo de SóFOCLE5 faz, apesar das advertências de Jo-
moralistas dirão que onde a tragédia é heróica e sublime, a casta . Na tragédia , mas de maneira nenhuma na comédia, o
comédia é covarde e frívola - como Falstaff, o seu porta-cstan- instinto de conservação ~ dominado.
dartc . Servindo mais à sobrevivência que à moral e tradicio- No âmago de qualquer boa tragédia está uma profunda
nalmente hostil. aos moralistas profissionais, obterá melhores no- perturbação do equilíbrio humano . Este é transcendido, pelo
tas em Biologia que em Religião. Mas como as mercadorias menos esteticamente, no próprio poema trágico; e essa trans-
que apregoa são, definitivamente, prazeres, embora à comédia cendência estética revela uma espécie de coragem. Não é tão
possam faltar paladinos nurica lhe faltarão clientes. claro que cada comédia reflita uma determinada experiência
Os prazeres que vende são, em primeiro lugar, os da farsa, desse gênero. É impossível dizê-lo, pois mesmo que essa ex-
pois as formas superiores incluem as inferiores. Mas, assim como periência existisse, a comédia ocultá-Ia-ia da nossa vista, O
as satisfações da tragédia transcendem as do melodrama, tam- que se pode afirmar é que o autor cômico conhece todas essas
bém as da comédia transcendem as da- farsa. Descrevi, no capí- coisas até os ossos .
tulo anterior, como na tragédia o medo se converte em terror. O poeta trágico escreve a partir de um sentido de crise.
E o terror se'a ual for o seu conteúdo intelectual se orventura Nunca será difícil acreditar, a respeito de qualquer tragédia,
o tiver é um sentimento afirmativo s i t ~ que ela brotou de uma crise particular na vida do seu autor.
e numinoso. nas fronteiras do êxtase. A intensidade e beleza do O poeta cômico é menos capaz de escrever inspirado por uma
terror estão na razão direta da uantidade de horror su erado, crise particular do que pela constante dor de miséria que, na
Ora assa-se uase a mesma coisa com a uele razer ~'.:~-:ri'::'r vida humana, é ainda mais comum do que uma crise, portanto,
da comédia a ue chamamos 'úbilo ou ale 'a, Podemos recebê- um problema mais insistente . Quando nos levantarmos amanhã
lo apenas de um autor em quem sentimos o oposto da alegria, de manhã, poderemos perfeitamente passar sem a nossa cons-
O onto de artida do comedió afo é a miséria' a ale 'a no ciência trágica durante uma hora ou duas, mas necessitaremos
seu final é uma transcendência soberba e emocionante, Dada desesperadamente do nosso sentido do cômico.
a miséria da condição humana, em eral, ue oderia 1=~r me- A tragédia diz, corno ·no Livro das Orações Comuns: "No
lhor acolhido? seio da vida, estamos na morte": O paradoxo desse sentimento
A tra édia é um lon o lamento. Não restrin ido ou ele- reside no fato de que, à medida que afunda, o sentido de vida,
gíacõ:fTiãS langente e des arrado a lenos ulmõcs contando de existir, é renovado. E o homem que verdadeiramente sente
t a a ena da vida e todo o terror. O oeta cômico não conta que "a prontidão é tudo" atingc uma rara serenidade, não só
seus sentimentos de maneira direta, mas encobre-os, contradi- ao morrer, mas no viver . A comédia diz: "No seio da morte,
los com travessuras ou coisas aciosas, Não são os sentimentos estamos na vida". Sejam quais forem as probabilidades de aci-
que, necessariamente, diferem dos da tragédia, mas, outrossim, dente numa viagem aérea , continuamos a planejar o dia de
a maneira como são encobertos . A comédia é indireta, irônica, amanhã. Não é muito freqücnte encontrarmo-nos no estado de
Diz "divertido" uando si ifica "desventurado", E uando espírito do herói trágico antes do seu fim iminente, quando
deixa ue a miséria se , está em condições de transcendê. alcançou urna completa tranqüilidade volitiva. "A prontidão é
la em ale ia. tudo" constitui um nobre sentimento, mas o seu exato inverso
Muitas coisas foram ditas a respeito do flnal de Le Misan- também tem validade humana.
thrope, mas nenhuma das que ouvi sugeriu alguma vez que
Aqueci ambas as mãos na fogueira da vida,
Alceste se suicidará , Seria uma personagem mais coerente se
o fizesse, mas só as personagens trágicas são coerentes dessa (assim Williarn Phclps parodiou Landor) :
maneira. Diz a Antígona de JEAN ANOUIUI: "Somos pessoas que
fazemos perguntas até o último instante", ~ justamente isso o Escurece e não estou pronto para partir.
27-1 IlIFF.I\E~TES C f::-;E IIO S DF. PEÇAS
\.O!\ If:Il IA
275
o descio de viver não é meramente amor n vida t iam- uma razão técnica em ambos os C;\sos : é da natureza da arte
b0m avidez, cobi 'a . A comédia ocu a-se desse dese 'o in uieto
de ossuir o munJo material. Daí o seu interesse em lutües dram;ítica mostrar não estados de ser, mas o que as essoas
que absorvem arte deste mundo, e em avarentos, que amealham fazem ~\S pessoas. A morte é um est ad o, a posse é um estado,
outra parte. E de devorar e agarrar, a nature.za 1Um~na cu assas sínio e roubo são o que as pessoas fazem às pessoas. Mas
um salto rápido para apoderar-se, arrebatar, deltar a /1Iao . Em há uma razão não-técn ica r ara a razão tecnlca - como sempre
uantos eme os comlcos la rou o ou a inten ão de roubar! 1 acontece na arte. O teatro a arte dos extremos rocma o ato
Se os homens não desejassem violar o dé~imo mandament(~, ? s \ I\~ fundam ental ue CClrres ond e ao fato fundamental. No mundo
--.fnrcdos cômicos como sa?emos ~~nca te~~a 1 che ad .a e. t , ~. :)1q trá ico se a morte é o fato fundamental infli ir a morte é o
ato fundamental. No mundo cômico, se a osse é o fato fun-
E possível que na mmha ana!Jse da Morte na VIda COtl-../
diana" eu tenha dado da tra édia uma ima em dema ia - damentaI desa ossar é o ato fundamental. As for as motrizes
nigna. Seria agora o momento de acrescentar que, ~l~it,as ve:e~, são res ectivamente o ódio e a cobiça.
o tema da tragédia não é morrer, mas matar, As histórias tra.gl- Roubar é falsificar, pois é corno se fosse forjado um títu-
cas, de Agamenon a Macbcth, e de A Duquesa de Mal/l a lo falso de propriedade . A cobiça que observamos na comédia
Pcnthesilca, consubstanciam o impulso de matar . As pessoas é um produto do espírito de falsidade e embuste . O Evangelho
que exprimem surpresa pelas, ~i1has de c.adáveres nos ~alcos de S. João fala de Satã corno "o pai das mentiras" e "um as-
trágicos estão pedindo à tragédia que reflita as suas açoes, e sassino desde o princípio", e isto significa que a travessura, a
não cometeram assassínios; mas a tragédia reflete suas almas c, malfeitoria, tanto na comédia como na tragédia, é o próprio
em suas almas , essas pessoas cometeram assassínios. A Psico- Diabo e. inversamente. que Satã tem um grande estilo tradicio-
logia moderna, com o seu estudo intensivo da vida cotidiana, d.a nal para comunicar cada um de seus dois -passatempos favoritos .
imaginação cotidiana, não teve dificuldade em demonstrar a ubi- "E dessas duas manifestações diabólica s", acrescentou um re-
qüidade dos desejos assassinos:. Um ser hu!nano, de fato, pre- cente comentarista teológico. "é defensável que a falsidade seja
cisa de muito pouca provocaçao para desejar a morte do seu a mais essencialmente satânica ." f:: defen sável. como vimos, que
próximo. O engraçado no dito de uso c~loquial "Dro~ dcad!"" a comédia constitui uma arte mais sombria do que a tragédia .
é que a frase significa exa~amente aqu,llo que se ,dIz. Ta~l­ A outra face da cobiça na comédia é a tenacidade. pela
b érn se considera que as cnanças de três anos de Idade estão qual :1 homem sohrevivc . f:: difícil sobreviver O herói trágico.
gracejando quando dizem a um dos pais que des~javam que em última a n álise, pod e chegar ;) prontid ão e à maturação pro-
ele ou ela morresse. Quem vê a piada são os pais. havendo pícia que são tudo. O resto da humanid ade. do primeiro ao
nisso uma certa dose de humor negro . último de nós. agarra-se à existência e, em nossos leitos de
A comédia é com muita freqUência a respeito de r ~u ?o. morte, S(') lamentarem os. como aconteceu com FONTENELLE em
exatamente como a tral!édia é muitas vezes sobre aSSaSSIl1IO . 1757, ser tão "difícil ser" . "l i' ,<;(' /1,<; 1I1/e dijjic1I{rt! d' être", disse
Assim como os poetas trágicos apresentam poucas cenas de ele "Sinto a dificuldade de ser" . f: uma dificuldade , como a
própria morte , que impregna a vida toda .
agonia ou morte. mas mui~as (no pa!c? ou fora dele) de ma-
tança, de assassínio, tambem a comedia tem mel1?s cenas. de
posse que de exproprinção (ou o plano de expropnar) . EXiste Em Última análise [como disse J EAN CO CT EAUJ. podemo>
resolver ludo menos a d ificuldade de se r; não é possível
.. A expressão Drop dcadl, literalmente Caia /Il0,!o.',,, tr aduz -se cor- cuidar d;} dificuldade de se r.
renlemente por "Suma daqui" ou "Desapareça da vista . Contudo. no
presente contexto, o coloqu!alismo qu~ ~elhor .cor rcsp0 ndc. ~,o nos;o Em última análise, não se pode . A comédia sabe disso e
idioma, à citada expressão Ingle sa , sera Que di abos o levem e SU,I S
inúmeras variações . (N . de T .)
reconhece-o na tristeza ou cinismo. E, no entanto, não vivemos
apenas na última análise, mas em seqüência, na primeira, se-
1.70 DlFERENTE$ Cf:NEIIO$ DE PEÇAS CO;'. I i :J>IA
277

gunda e terceira análises, Embora na última análise nenhum cintilantem ente mantida. Consi derar o DO/l Giovanni uma obra
sacerdote e nenhum médico possam impedir-nos de morrer, po- trtigi ca não faz qualquer senti do . De maneira alguma somos
derá ser um consolo ter ambos à nossa cabeceira, até estarmos encorajados a identificarmo-no , com a culpa de Don Juan ,
finalmente mortos, O sentido cômico procura enfrentar a inevi- Tão distante essa atitude se encontra de MOZART que ele pode
tável dificuldade diária, horária, de ser. Pois se a vida cotidiana ' mostrar a morte do protagonista (tal como lONSON nos mostra
tem uma corrente oculta ou uma contracorrente de tragédia, a o castigo de Volpone) sem gra njear simpatias para Don Juan.
principal corrente é material para comédia. ~ obra só é considerada trágic a por aqueles que recusam con-
Entretanto, se a comédia principia na cozinha ou na alco- sidcrar a possibilidade de que ta l imensidade e terror possam
va, pode progredir sob as estrelas, Pode atingir grandeza, Se caber no âmbito da comédia .
isso não é geralmente admitido, o fato deve-se apenas a que Embora existam tantas diferenças entre a tragédia e a co-
qualquer comédia que possua grandeza é imediatamente rotu- média, não constitu~ novidade alguma desde PLATÃO que as
A

lada como Não é Comédia. (Alguém deveria dar-se ao traba- duas tem alguma coisa em comum. Os eruditos não estão de
lho de organizar uma. antologia das diversas grandes obras que ac ôrdo sobre a maneira como interpretar o trecho de O Ban-
foram classificadas Não é Comédia, Não é Tragédia e Não é quete. em que esse ponto é salientado, mas, pensando por nós
Teatro. Seria um dos Cem Grandes Livros,) Uma comédia pr óprios e com um patrimônio de obras dramáticas sobre que
que alcança grandeza diz-se também estar no rumo da tragédia, nos basearmos que PLATÃO não conhecia, podemos hoje per-
J:: quase impossível reconhecer qualquer plausibilidade nessa ceber que os dois gêneros se rmnt êrn juntos em múltiplos as-
asserção. Se qualquer dessas comédias fosse subintitulada Uma pectos. Por exemplo, situam-se em contraste com uma arte
Tragédia, dir-se-ia estar no rumo da Comédia. como a música, que se vangloria da expressão direta de senti-
O Don Iuan de MOLIERE é um exemplo. Há algo de ma- mentos ~fi:ma~ivos, como o, sentimento de triunfo. A tragédia
ravilhosamente sublime e misterioso que envolve essa obra. e a comedia sao artes ne atI vas na medida em ue caracteristi-
Ver-nas-Íamos em apuros para indicar qualquer tragédia com camente , che am a declara ões ·) s itivas or inferência de situa-
uma atmosfera desse tipo . O pesado mundo da tragédia é cria- ções ne ativas . "Nas histórias corno esta" diz
do de maneira direta: com solenes palavras a que, no palco, ,E1t!ctra de GIRAUDOUX , "as pesIDas não cessarão de matar-se
se junta uma solene interpretação. O mundo do Don Iuan de e morder-se uma às outras ara nos dizerem ue a finalidade
MOLlERE é criado pela tradicional dialética ' de farsa e comédia, da vida é o amor" .
isto é, indiretamente, sua importância apenas sugerida e o que Por surpreendente que possa ser, o ego é tão castigado na
realmente é dito e representado mantém-se num plano de frivo- com ~dia uanto na tra édia nem ue se trate a enas das p- _
lidade estudada, lensoes dos travessos e dos tontos serem eliminada e nã
Pensar no Don Iuan de MOLIERE é pensar no Don Gio- temeridade de um herói. A tragédia e a comédia demonstram,
vanni de MOZART . MOZART também usou a dialética cômica: com enredos e ersonaoens ue fDrnecem rovas horrivelmente
correspondia exatamente à sua própria mentalidade, como cor- concludentes. ue a vida é indi na de ser vivida; c, não obstante
respondera à de MOLlERE. MOZART cedo se incorporou à tradi- transmitem finalmente um sentidc tal da majestade dos nosso~
ção do grande teatro cômico: completara a encenação de uma ~ o fri me n to s ou da mordacidade d~ nossas loucuras que, vejam
peça de GOLOONI aos doze anos de idade, La iinta semplice é c contem lem!, arece tcr valido a ena fazer arte a aven-
uma farsa musical. A sua evolução, a partir dessa obra até Cosi tura . A tra édia e a comédia são a res peito da fra ilidade hu-
[an tutte e Don Giovanni, não é um progresso no sentido da n~~llla! mas ambas, no final, ate~-.ran a força humana. Na tragé-
tragédia. f: um progresso da farsa para a comédia. O que se dIa a raz-nos estarmos identificados com um herói se'a ual
desenvolveu foi a sua capacidade de sugerir a imensidade do for seu defeito ou seu destino. Na comédia ainda ue não-
que fica subentendido . Mas a superfície cômica é resoluta ie ossamos identificar-nos com nin ém no alco temos a esar
278 D1FE"E~TES c:ÊSEIIOS DE PEÇAS C O ~ I i: Il J A 279

de tudo um herói com quem nos identificarmos: o autor. Orgu- rinci aI travesso, e úblico O seu p-rincipal
lhamo-nos de que nos sejam cedidas ns lentes através das quais tolo. Â varinha má e dos travessos é ... a
JONSON ou M()L1i~RE viram o mundo. arle da comédia .
Tal como a tra édia a comédia ode conse uir uma trans-
cendência sobre as atribulações humanas, uma transcendência
estética (da arte sôbre a vida) e uma emoção transcendente Cor-IO GOSTAIS
(terror na tragédia, alegria na comédia). Tanto a tragédia como
a comédia equivalem a uma afirmação feita irracionalmente - Espero que as precet.lentes generalizaçõcs sejam claras,
isto é, um desafio aos fatos estabelecidos - como uma afirma- ~l~S! se o forem, ,d ~vem também ser demasiado simplistas, de-
ção religiosa. Contudo, ao invés da igreja, o teatro não reivin- fIllltlvas e es uematlcas ara ue corres andam a to a QS._
dica uma categoria metafísica para tais afirmações, As categ~rias como BERNARD BERENSON disse são aRenas um
Finalmente, a tragédia e a comédia têm o mesmo intuito compro/lllSSO com o caos . E , ao usá-las, é recomendável reno-
heurístico: o conhecimento de si mesmo. O que a tragéOia reali- var o contat com o caos e inda ar ue re'uÍzo um certo com-
za neste domínio por sua representação incrivelmente direta de y romisso acarretou.
simpatias e antipatias, a comédia consegue-o indiretamente, pela  história das artes está cheia t.le discrepâncias entre teoria
dualidade e a ironia. Corno NORlliROP FRYE diz, a comédia e rática nomenclatura e fato. Por excm~ alavra ' 'a
"tem como finalidade não condenar o mal, mas ridicularizar é eralmente em re ada - e não só elo amador - nu
uma fa ta de conhecimento de si mesmo", Condenar o mal seria ace 50 t.lemasiado estreita ara abran er todas as comédias.
direto, singular, não-irônico e, portanto, não-cômico . Passar a No seu ensaio sobre o riso, a proeza de HENRI BERGSON é de
vida condenando o mal tem sido com demasiada freqüência um nível capaz de manter qualquer leitor inteligente seduzido,
uma carência de conhecimento de si mesmo e da capacidade mas, quando se põe o livro de lado, percebemos que essa fas-
de o perceber, Os condenadores clássicos do mal são os Iari- cinante peça de teoria não deixa lugar, na literatura cômica,
seus. E os Iariseus, então como agora, são incapazes de fazer para SIIAKESPEARE.
uso da comédia; somente podem ser por ela usados. E isso não é devido a qualquer limitação peculiar do gran-
MOLlERE, diz FERNANDEZ, "ensina-nos a arte indizivelrnen- de filósofo francês . É devido ao fato de que a maneira como
te difícil de vermo-nos a des eito de nós ro rIOS. stamos todos analisamos a comédia resulta de uma tradição de comédia
equivocados sobre as nossas ró rias identidades: a comédia e só abrange os casos peculiares a essa tradição. Como se
faz da identidade errada um tema clássico. E se "estar e uivo- trata da tradição clássica ou latina, que vem desde a Nova
cado ares eito" é um fenômeno assivo ossui uma contra arte Com édia grega. através de PLA UTO e TERÊNCIO até MAQUIAVEL,
ativa. Estamos não só errados em nós ró rios mas somos a BEN JONSON e MOLIERE, tem uma certa aplicação aos autores
causa de que se'am erros noutros homens. Ludibriando-nos a cômicos de todas as escolas. O próprio SIlAKESPEARE fez uma
nós ró rios ludibriamos os nossos semelhantes. Ora, a arte adaptação de PLA l'TO . Cont udo, nessa época, talvez somente
de comédia é uma demolidora de imposturas e ludíbrios, uma um francês admitiria que nascera um gênero de comédia quase
emancipação do erro, um desmascarar, uma arte, se qUIserem, tão diferente da comédia latina quanto um ou outro tipo de
e esen ace ou es ec o. as um n nao po e ser esata o comédia diferia da tragédia . Sonho de uma Noite de Verão,
sem que primeiro tenha sido atado. Um desenlace só acon- por exemplo, difere tanto de O A lquimista quanto uma e outra
tece no Im: durante a maior arfe da eça fõiTiõSlüdíbriados, diferem do Hamlet .
de fato. Assim, por um paradoxo verdadeiramente cômico, o Escrevent.lo en blor sohre cada gênero, corno estou fazen-
autor ramátIco ue ex õe em úlJJico os nossos ardiSf:í=ro t.lo, eu ficaria satisfeito se pudesse continuar a falar sobre a
su erando-nos no recurso a ardis. A tal res dto, ele é o seu comédia en bloc exceto elo excessivo au de distar ão gue
280 DIFERF.NTF.S Cb'F.ROS DE PEÇAS 2Rl

acarreta. Não se trata de


281
282 ( 'O\IÉIJIA
DIFEI\E~ ·II :S (;;:~rll()S DE PEÇAS

rente; diferente, sobretudo, na medida em que os seritiment~s


esper~nças - isto ti as nossas esperanças de amor c felicidade. "românticos das personagens se tornaram completamente reais
Seu fmal feliz não é ir.ônico e, na verdade, está disperso por para os ouvintes tal como na comédia shakespeariana. Assim é
toda a eça' uando fmalmente sobrevém é uma culmina ão que as suaves n~tas com que MOZ,\RT acompanha o 'pedido de
perdão do Conde e a a~edên~ia da C:0n.d:s~a ao pedl.do po_den~
es erada e erfeitamente a 'ustada ao desenvolvimento da e a
"Eu estava a cnas brincando" e "Não levemos as coisas ar; soar como um verdadeiro clímax naO-lfOI1ICO. A Vida nao c
esse lado" dão lu ar a "Como ostaís". observada aqui através dos olhos do mundano, .zombeteiro,. gá-
O que significa esse final? Oferecerá uma verdade confor- lico I3EAUMARCHAIS , mas através de um espmtual e gracIoso
t~d.ora para neutralizar a verdade mais sombria da comédia es-
austríaco, Em As Bodas de Figaro, de M07..ART, como em Noite
pirituosa? Confo.rtá~cl, os críticos filisteus assim gostariam de de Reis, o amor e a felicidade têm sua realidade na arte, ao
pensar. A tendencIa dessa comédia "romântica" é criar uma passo que a questão de sua realidade na vida fica temporaria-
atmosfera "romântica" em que a possibilidade de felicidade e
mente suspensa, sem intuitos cínicos . . -
~mc:r sur'a - , mas ficará sem re or confirmar se sur 'rá como
Duas cspécies de comédia, uma que se move e~l direção
dusao ou realIdade. A assinatura dessa espécie de comédia é a uma discórdia não-rcsolvida e outra que se move, tao IrreSIS-
um encantamento ue ode ser "a ró ria realidade" ou um tivclmente quanto a primeira, no sentido da completa ~onc~r~ia.
"ve~ de ilusão" ~ como s.e ,quiser. Neste ponto, o shakespearia- Se dermos a lima ou outra uma ênfase um pouco mais tr ágica,
no ,C?fl10 gostaIs tem afil1ldades com os pirandellianos "como teremos a tragicomédia. Suponhamos, por exemplo, que de-
d~selals ue eu se'a" e "assim é se assim vos arece". O amor
pois da discórdia, na primeira. csp.écie de comédia. mai~ ce,nas
dIssolve -se no cósmico mistério de ilusão e realidade. foram adicionadas, e que as primeiras cenas foram depois ajus-
tadas às novas, ou seja, às cenas extras, Resultaria uma peça
Há muito, muito temQo. °
mundo come ou como A Ccf estina. Ou suponhamos que a espécie de comédia
Com um eh! oh!. °
vento c a chuva que termina em verdadeira concórdia fosse continuada por des-
Mas tudo vem dar no mesmo, nossa tonta venturas de um gênero mais maligno. C0l110 em Conto de 111-
. nos rs ar arr m os P.2:.l.r_b'rW;a~dl.t:ílu.::..l·v~~J.Ill..1J1JJ.IS<~"-- \'a li a.
Âmb ;\s estas coisas serão sup ostas no capítulo scguinte ,
E nos esforçaremos por agradar-vos. A nossa peça será
exa~amente CO~lO gostais. Quanto ao seu significado (jlusão?
c realIdade?), nos vos agradamos e vós ficareis contentes. O
mundo da nossa e a será como ostais' também o mundo fora
da nossa peça. " Assim, com um jogo de palavras em torno do
verbo gnstar. está "soluci(1I1ado" o problema básico da meta-
física,
• ~OZA~T inspirou-se muitas vezes em peças e libretos na
tradição la.tma, mas a sua própria contribuição era da espécie
shakespeanana. As Bodas de Figaro, de BEAUMARCHAIS, conclui
com o gênero de improbabilidade que temos de reconhecer
como tal e aceitar ironicamente, Na vida real, vamos para casa
di~endo: "as, coisas não podiam ser consertadas daquela ma-
~elfa: Alrnaviva era um conquistador e continuaria sendo". Na
opera de MOZART, o arranjo é precedido por um trabalho dife- !
T J\ ... r; JCO~ 1 Í;Il JA 285

não é feita só de obras-primas . Antiquad a em muitos aspectos,


mesmo em 173 I, a obra de LILLO fundou um novo gênero não-
trágico e n ão -c ôrnico . Lu . LO influenciou DID ERor c LESSING e.
através deste s, o teatro de todo o mundo ocidental.
Mas também as peças de DIDEROT foram medíocres ; e as
10 de LESSING tinham mais categoria quando eram menos inspira-
das pelo estilo de LrLLO . A mistura setecentista de tragédia e
comédia fez uma escolha do pior dos dois mundos. No novo
Tragicomédia "gênero intermédio" - com édie larmoyante ou tragédie bour-
geoise - a comédia perdeu o folego e a tragédia a profundidade .
A procura de uma base "intermédia" foi um modo de evitar
um terreno mais significativo. O nov o gênero seguiu a corrente
TRAGÉDIA EVITADA E TRANSCENDIDA mais débil do pensamento sctcccnti sta , no sentido de um oti-
mismo excessivo sobre a natureza humana . Se os homens são
"bons por natureza" - se são "homens de sentimento" -
então onde encontrar a tragédia e a comédia. que extraem seu
A PALAVRA tragicomédia pode ser originalmente encontrada dinamismo da "destrutividadc' humana? Se o "gênero intcrmé-
na Roma antiga, mas parece que só entrou no uso corrente de- dio' fosse todo o teatro do século XVIII, poderíamos dizer que
pois do Renascimento. Em suas primeiras formas, a melhor a literatura dramática se perdera numa falsa pista, e o "gênero
definição talvez seja a de SU5ANNE LANGER: tragicomédia é intermédio" poderia considerar-se o final do teatro como arte
"tragédia evitada". Os italianos do Renascimento falavam de capaz de tomar a medida do homem .
"tragédia com um final feliz", e também inventaram e aper- Mas a história é mais complexa do qu e os livros de história,
feiçoaram a tragicomédia pastoril , que é quase-tragédia com c o "drama moderno" de IBSEN não é um sim p les desenvolvi-
um final feliz implícito, como na comédia romântica, desde o mento da "tragédia burguesa" de Ln.r.o . Uma inversão de ru-
princípio . mo teve lugar algures. Um gênero intermédio que nasceu para
Ao que parece , na era do Renascimento e do barroco o refletir e adular a vida não-heróica do lojista provou ser mais
tragicômico não era tido em conta de um gênero inferior, bas- tarde uma arma usada contra ele. A fim de ser urna arma de
tardo. Uma rígida separação da tragédia e da comédia só foi qualquer espécie, tinha primeiro de ser " refeita . Uma comédia
efetuada mais tarde na Inglaterra e na Espanha; e até na Fran- com lágrimas, em vez de risos, era comédia sem comédia. Urna
ça, o país que defendia essa separação, s6 teve lugar já em tragédia em que o conflito inconcili ável está fora de hipótese
pleno século XVII . O normal, antes disso, era a tragicomédia é tragédia sem tragédia. Dizer que o resultado é tragic ômico não
e uma forma tão livre que foi mesmo denominada drame libre. tem, portanto , lógica nenhuma . Uma tragicom édia válida só re-
E não muito depois da rígida separação ter passado a ser a s ulta ria se os dramaturgos pudessem trazer de novo para esse
norma estabelecida em toda a Europa, a revolta começou onde gênero intermédio aquilo que, precisamente, fora mantido fora
a resistência à norma se desenrolara, em grande parte, a contra- dele. E IB S EN , com efeito, embora seja moderno, por uma parte,
gosto : a Inglaterra. Todas as histórias do teatro indicam o ano representa, por outra, um retorno a muito do que é tradicional-
de 1731 como um marco, em virtude de ter sido o ano da peça mente cômico e trágico. A sua própria concepção da natureza
de GEORGE Lu.LO, George Barnwell, The London Merchant, O humana equilibra perfeitamente o clássico e o moderno. E
apontamento é válido, apesar de George Barnwell ser uma obra moderno na medida em que tende a ver os elementos destru-
medíocre que gerou outras obras medíocres. A história artística tivos como produto específico de uma neurose. E clássico na
286 DlFEIIE:-', ES GÊSEIIOS DE PEÇAS T II .\ I ;1C()~ 1 h ) L\ 2R7

medida em que essa neurose não é un~a c.o}sa de somenos,. mcr~ liz" pod e ser levada em cont a de um desenvolvimento a partir
nomenclatura a que o fenômeno esta nitidamente reduzl~o; e das l'ul1l l:d i:ts molicr r scas. qu e tc r minarn , " incon vincc ntc mcntc" ,
algo tão grande quanto o próprio pecado e rode-se :~laclOnar com um deus ex niachina. Essa segunda espé cie de comédia é,
_ poeticamente, dramaticamente - ao. sentido tradicional de essencialm ente , o gênero de tragicomédia dos séculos XIX e
destino . O Pato Selvagem pode ser considerado um ponto c.ul- XX (embora existam exemplos anteriores, COl1l 0 A Celestina).
minantc sc observarmos como IBSEN recupera o terreno trágico O /'01 0 Sl'1I'(l.l.; cm de IBSEN é talvez o clássico do gênero. A con-
e cômico a fim de criar o seu próprio reino particular de tragi- cepção de peça "desagradável ", de B ERNARD SI/AW, está na
comédia. E se, nesse aspecto, a peça está voltada para os dois mesma linha, embora suas próprias peças , portadoras desse ró -
séculos que a antecederam, também provou ser a mais "avança- tulo, sejam muito mais cômicas do que trágicas . Santa Joana,
da" das suas peças, contendo as sementes da obra de PIRAN- não A Proiissão da Senhora WarrclI, é a grande tragicomédia de
DELLO e dc EUGENE O'NEILL. SI/A\\'; H enrique IV e Seis P ersonagen s em Busca de Autor são
Esse quadro de história literári~ é necessár~o, ~alve~, para as de PIH A!\'DELLO. As peça s mai ores ele CIIECOV são todas tragi-
introdução do tema do presente capitulo, que nao c, evidente- comédia s deste padrão, e eu interpretaria a insistência de CIJE-
mente, a história da tragicomédia, mas sua vida em nossos co- co v em qu e () Ccrc ial é uma comédia como uma direção cêni-
rações c em nossos espíritos. Proponho-me ignorar suas formas ca para SL\NISLA \,SKY e outros simplesmente advertindo-os para
(para nós) menos vivas e menos vigorosas, tais como a écloga que não menosprezem os elem ent os acentuadamente cômicos.
ou pastoral renascentista e o gênero intermédio sete~e~tista, .e f: com edia com um final infeliz . Um Hom em é 11m Homem e
concentrar a atenção no que parece serem as duas esp écies mais Muliag onny, de BRECHT , são obras tra gicômica s, dentro dessa
significati vas de tragicomédia. A primeira é uma espécie de ordem de idéias. E o mesmo direm os de Mon sicur Vcrdoux, * de
"tragédia com um final feliz" , a qual não é "tragé~ia evi.tada", ('I/"PU N. E spe rando por Godot , de B ECK ETT, e As Cadeiras,
mas tragédia "transcendida" . O tema, neste caso, e conflito re- de IO NFsc o.
solvido e o exemplo que usarei é a resolução da vingança atra-
vés do' perdão. Os mais belos exemplos dessa tragicomédia en-
contram-se talvez entre as chamadas "peças com tema" e "últi-
mos roma~ccs" d~ SHAKESPEARE . Mas não foi uma experiência VI N G A N ~' A , J USTI ÇA, P ERDt\O
pessoal de um só poeta. A l iigênia em Táuris, de GOE.T1JE, é
outra tentativa do mesmo gênero. O mesmo podemos dizer de Escrevi sobre o melodr ama , pred ominant e mente , em ter-
Príncipe de Hamburgo, de KLEIST, . a que ~ autor chamou u.m mos de medo. mas isso é esq uece r o qu e sucede ao vilão . Nós
Schauspiel (Drama Teatral) - como alternativa para Trauerspiel o punim os, isto é, descarregamos nele lim a vingança. E é impro-
(Tragédia) e Lustspicl (Comédia). O ~róprio Fausto d~ G~E­ v ávcl que resistamos a confess ar tanto . T odos admitem, pelo me-
THE pode ser considerado uma das ma~s poderosas. reahzaçoes nos, que o melodrama e a farsa estão repletos de vinganças.
neste domínio, e seu final esperançoso nao deve ser interpretado Mas alguns fixar ão a linha divisória na tr agédin e comédia.
como um otimismo superficial, muito menos como uma exp!~­ (Uma expressão como Tragédia de Vingança parece dizer que
ração fácil da ortodoxia religiosa. (O alvo correto dessas crítí-
cas seria o Dali Iuan Tenorio, de ZoRRILLA.) .
A outra espécie de tragicomédia que convida a uma análise o Gran de Dit ador se ria o ut ro e xemplo se C IfA I' I.lN lhe tive sse dado
é a "comédia com um final infeliz". Se a "tragédia com um final o fin al infeli z que ne ce ssit a (tant o hi st órica co mo arti sti cament e), em
lu gar do fin al feli z que realmente tem . Tamb ém esse Iin .rl feli z níio
feliz" pode ser considerada um dese~vo~v~mento a p~ir de tra- se reve ste da ironia do fin al de um Tart u]o, Jogo. n:IO é verd adeira -
gédias como Rei Lear, em que os prlnCIpI~s de perdao, e re,con- mente cômico . Representa a vitória da ideologia sobre a verdade e
ciliação se encontram sugeridos, a "comédia com um flnal íníe- a ficção e , corno tal, não é trag icômico nem cômi co .
THA \.J C O ~f F:llIA
288 DlFEHENTES eÊ:'a:IlOs DE PEÇAS 289

a maioria das tragédias não está preocupada com vingança .) E m o sapiens. At é aqu i, a que stão parece óbvia, Menos óbvia será
outros concebem a vingança como algo que pertence mais à li- ~ cir clIn st tlTlcia. de que a idéia de vingança não é. nem de longe,
teratura do que à vida . Nesta altura, faz falta à minha argumen- t ;~o bem recebida pela humanidad e quanto a realidade. Embora
tação o reconhecimento de que a própria vida está impregnada vi ngar m o-nos possa ser a coisa que mais fazemos é também a
pelo fato ou pela imaginação de vingança. Numa tentativa para que mais deploramos. Temos sempre de fingir que as nossas vin-
estabelecer esse ponto, pcrmitir-rne-ci uma digressão. gan~as nã? são .vinganças, mas justo castigo. Não que o próprio
Será incomum ver a vida. e viver a vida, como uma série castlg,o seja muito be~ conceituado, mas quase o é quando se
de vinganças e nada mais? Desde muito cedo, podemos adqui- acredita que a sua <tpllcaç?o é ~lerecida. Logo, a justiça" como
rir o sentimento de termos sido injustamente tratados; podemos a conhecemos, quer .na VIda privada ou nos tribunais, é pura
passar o resto do nosso tempo na terra procurando a desforra. fra~d~, ~era racionalização do espírito vingativo. Em seu Revo-
Podemos começar por castigar os nossos irmãos. Na adolescência, ~/lt~OlJlst s Handbook , BERNARD SHAW deixou esta mensagem aos
se não antes, podemos punir os nossos pais. Por volta dos vinte jUrrstas:
e poucos anos, podemos aceitar o casamento como um recurso
para a continuação do castigo, até que a morte nos separe. O Qu ando um homem qu er m atar um tigre, chama a isso es-
divórcio é evitado por algumas pessoas, sem dúvida, porque porre : qu ando um tigre quer trucidá-lo, o homem chama
permite uma interrupção do castigo, e acolhido calorosamente a i:<;so ferocidade. A di stinção entre Crime e Justiça não é
por outras porque permite novo casamento e o reinício da puni- rnaror .
ção com uma renovada inexorabilidadc, A educação, até há pou-
co tempo, permitia a punição dos alunos pelos professores; ago-
ra , consente na punição dos professores pelos alunos. Em am- Afirmar que a justiça, tal como a conhecemos é uma
bos os sistemas, as crianças mais novas são castigadas pelas mais fraudc: ('~.ui\'~le ~ diz:r que não é ju stiça, mas não sign'ifica que
velhas. Os produtos da educação compõem aquilo a que cha- a v~rd,ld elra justiça nao t cn~a des empenh ad o um papel no pro-
mamos sociedade humana . A sociedade humana está organizada c:dtrllcnt o ,humano. Estou di sp osto a postular não só uma pai-
para punição numa escala mais grandiosa, pela pobreza, greves, X ~\() pela vingança, mas também uma paixão pela justiça, resi-
tribunais, campos de concentração e prisões, pelo enforcamento, dJJld~ a d e s\'e~tura d ~ m,un? o no fat o de que a paixão pela justi-
guilhotina, câmara de gás ou cadeira elétrica, pela guerra. Isso é ça nao se manlf:sta tão JJlSl stcntemente nem tão poderosamente .
definir a posição em linhas gerais . Encontramo-Ia dia a dia em ~mbora a~ l1;c?ldas promotoras de ju stiça não sejam dcsconhc-
termos mais limitados. O tom de voz de um motorista de ônibus cidas na '.lls,t llrra, as soci ed ad es qu e co n hece mos sã o todas radi-
em Nova York anuncia uma vida solenemente dedicada à pro- ca}n.len.t c ~n!ustas. O mesmo poderíamos dizer a respeito do do-
posição de que cada um deve tirar a forra a todo custo, em ca- mun o m,dl\'~duaJ: com .a feliz diferença de que, neste campo, os
da hora de cada dia e em relação a todos os seres humanos com ?t~s (~e Justiça sao mai s numerosos. Muita s pessoas, indiferentes
que depara . Como um motorista de ônibus se encontra com a justlça,no grande mundo, dão-lhe importância em suas famílias
meia dúzia de pessoas por minuto, pode reunir um número de e seus círculos pessoais de relaçõ es .
vítimas superior às mais desabaladas esperanças de qualquer vi- A ,Tal\'ez isso seja também óbvio. mas exi ste outra circuns-
lão de melodrama. E superior, também , às esperanças do moto- tuncia ,que, requer atenção . Embora tenha havido sempre tão
rista de táxi de Nova York - o qual, nessa conformidade, dis- pouca ju:stlça no.s assuntos humanos e nada que se aproxime de
tribui mais punição por cliente , un,1a s~c le d a d e justa foi alguma vez conseguido sobre a terra ,
Tirar a forra, praticar vingança, infligir castigos por reais a IllIagma ção da humanidade tem sido capaz, não obstante de
ou, mais freqüentemente, imaginadas maldades - são atitudes c?ncebcr, e a consci ência da humanidade de aceitar, uma idéia
que merecem ser consideradas a atividade-base da espécie Ho- ainda mai s grandiosa . e a idéia do perdão .
290 DIFERENTES GÊNEROS DE PEÇAS '1 11 \ LI U J .\ I L/l I.\
~9 1

o mútuo perdão de cada vício quê ? Ação e reação . A esb ofeteia D, e B de volve a bofetada a
Eis a porta de acesso ao paraíso. A . A idciu radical do enredo nada mai s é UO que olho por
úJlJ o, dent e por dent e. Agr av o e retal iação . Na farsa. como vi-
BLAKE está-nos dizendo nesses preciosos versos aquilo cujo IIl O S . ess a idéia é deixada e m franc a liberdad e e é defen sáv el

conhecimento poderia ser mais valioso para os seres humanos. com h;\se ~' 1lI qu e . no m ínimo. é inofensiva, uma vez que tem
Mas , de fato, ás portas do paraíso conservam-se fechad~ por- lugar naqu ilo que qualquer pessoa, com exceção de um louco,
que somos incapazes de agir de acordo com esse co?heclmento. pod e rec onh e cer co mo pura fanta sia e, no máxim o, poderá ser
Como praticaríamos o perdão, se ainda não conseguimos sequer útil, uma \ C Z que efctua uma cararsc e expe le do nosso sistema
praticar a justiça? Contudo, a idéia de per~ão é instrutiva, que algumas de nossas agressões .
mais não seja para recordar-nos que a Justiça nunca será o su- Apuramos que o valor do melodrama reside na franca acei-
ficiente . tação de fant asias e sentimentos plenamente consubstanciados,
Melhor do que a vingança, a justiça. ta,?bém é b.?stant.e em especial as Ian.asias c sentimentos de medo. Chegou o mo-
primitiva. f: o princípio expres~o na lex. talionis, expressao la.tl: mento de seguir no encalço do enred o melouramútico até o fim.
na de que a melhor tradução inglesa fOI a de W. S. GIL?ER r. Fru todo o mclodrurna convencional. o vilão que tanto tememos
"to make the punishment fit the crime". [Fazer que o castigo se é finalmente castigado. O herói e a heroína imaculados desfor-
ajuste ao crime.] Um homem roubou cem dólares; ,quando for rum-se e, portant o, nós tamb ém, o público. As imagens de medo
capturado. terá uma multa ~e cem d~lares. Esse e o fa~oso são can cclada, por imagens de refinada vingança. Raramente is-
princípio do "olho por olho ' d.o Antigo Tcstamen.to., <?nado so é confessado T al como na vida. também no melodrama fin-
em escolas cristãs, sempre me disseram que esse pr!n~lpIO ~ra gim os que as no ssas vinganças sã o castigos merecid os . Descrevi
de pura vingança . Isso talvez fosse apenas uma caluma, a? JU- o mc lodrnm a co mo neurótico. f: um hábit o neur óti co colecionar
daísm o, mas dou aos meus professore~ o benefí~i~ d~ duvida e injust iças. partind o do princípi o incontrov erso d e que a injustiça
parto do princ ípio de que ,ele~ e~tr~vlram _a existência de al.go é algo qu e os outros me fazem , ao pa sso qu e o qu e cu infl ijo aos
duvidoso a respeito da propna Justiça. Nao ~aze,r outra. coisa o utros é a mer ecida punição . O melodram a reflete esse reduzido
que saldar crimes com puniçõ~s equivale~tes nao e bom sistema esq uema . Se os vingad ores do teatro melodram ático vitoria no pa-
para gastarmos o tempo, c muito menos e um ~om processo ~a­ recem distant es. no pr incípi o, en volt os com o es tão numa estra-
ra Deus gastar a eternidade. Um ser. verdadelra~entc _sup~nor nha retóri ca e num tipo ultrapa ssad o de narrati va, continuam
11 0 e nta nto sendo símbolos d o qu e aco ntece diariamente na vida
proferiria a palavra Perdão com um Imenso SUSpiro, ?ao so de
dc milhões.
amor como de alívio , tamanho o esforço que poupana em. vez
de continuar agarrado à máquina de somar. E Ele profer.tu a Pas sar para a trag édia e a com édi a. é passar das cruas c pri-
palavra logo no Livro do Lcvítico ~XVIlI,. 19~ : "~ao odiarás m;írias vinpanç as da Iar sn, e da justiç a falsificada do melodra-
teu irmão em teu coração .. . Nao praticaras vingança ... ma . para a justiça propri ament e dit a, a lrx talionis , Volpone e
Amarás o próximo como a ti mesmo." Mosca devem ser levados às barra s do tribunal, deciarados cu 1-
Quer eu esteja certo ou não em tudo isso, devo esper~r pados c sentenciados. P órcia, em O Mercador de Veneza , prega
que a minha digressão - aqui conc1uíd.a - ten}1a_ tornado .mals o perdão. mas não o pratica. Faz o Duque calcular exatamente
vivo, para o leitor, o fato de que, se a vmgança e tao proerninen- qual é o equivalente de uma libra de carne. medida no que é
te na literatura dramática , a própria vida se encarrega de demons- mais caro a Shylock . isto é. a propriedad e.
trar por quê. O Lcvítico ainda está mais adian!ado do q,ue a r~­
ça humana, a qual, no teatro como alhures, est~ sempre a, ~sprel­ Pois met ade de tua riquez a é de Antôn io;
ta de vinganças. No fim de contas , as peças sao a propósito de A o u t r a m etade ca be ao te sou ro d o Es ta do .
292 mFF:lII:::"TF:S (;j.::"EHOS OF. PF.ÇAS 11\AGICOMÉDIA 293

Ao que Shylock responde com perfeito bom senso: lho critério era conservador. Em Fuente Oveiuna, de LePE DE
VEGA, a justiça era imposta por Deus e pelo Rei. A peça foi mo-
dernizada na União Soviética, mediante a simples omissão do
Vós tom ais minha casa quando lhe tctir ais os alicerces final, e passou a significar então que a justiça seria feita quando
Que a sustentam; tornais minha vida o povo assumisse o poder. Entendida dessa maneira, a justiça
Quando me retirais os meios por que vivo. pode facilmente descambar em mera vingança e o drama em me-
lodrama . Os combatentes marxistas, como outros combatentes,
estão profundamente ansiosos por igualar as atrocidades do ini-
Assim é a comédia. o migo com as próprias, e quando os homens se comprazem em
E como são meticulosos, também, 'os poetas trágicos em executar a [ex talionis, algo foi acrescentado à justiça: a cruel-
seus pesos e medidas! "Vida por vida, olho por olho, dente por dade.
dente", diz o famoso trecho do livro do Exodo, e a idéia de Disse Jesus: "Pai, perdoai-lhes porque não ' sabem o que
"vida por vida" é aproveitada pelos dramaturgos como um prin- fazem". Com os opressores capitalistas em mente, BERTOLT
cípio simultaneamente ético c estético: ético porque expressa a BRECHT colocou uma vez no palco um cartaz que dizia: "Eles
idéia da lex talionis, estético porque corresponde à agressão e sabem o que fazem". Tinha um objetivo; mas é improvável que
desforra dramática. Uma vida é eliminada no começo da histó- alguém fosse capaz de concretizá-lo a não ser vingativamente.
ria; a restituição é feita no fim com outra vida. Como Duncan
é morto no Ato 11, a vida de Macbcth não só é, mas deve ser Os elisabetianos tentaram evitar esse perigo. Invocaram a
aniquilada no Ato V. Otelo representa apenas uma ligeira va- passagem da Epístola de São Paulo aos Romanos em que o
riação no modelo. A vida de Desdêmona só lhe é roubada perto apóstolo disse que não nos competia tirar vingança, mas deixá-
do final, mas estava ameaçada desde que a trama principiou e, la aos desígnios de Deus. "A vingança é minha, eu a retribui-
uma vez perpetrado o assassínio, tem de ser pago na mesma rei", disse o Senhor. Até aqui tudo certo. Mas neste mundo a
vingança de Deus tem de encontrar um instrumento humano. E
moeda: Otelo tem de morrer.
Só podemos compreender até que ponto os dramaturgos se como iremos saber se uma determinada vingança é um instru-
afastam do que acontece na "vida real", depois de notarmos seu mento de Deus? E <linda mais difícil dizer se um homem é ins-
t~umento de Deus do que se o seu motivo é uma paixão de jus-
extraordinário respeito pela lex taiionis. Consideremos, por
exemplo, a idéia de Justiça Poética. Representa uma ampliação tiça . E por que usou São Paulo a palavra vingança? Que tem
Deus a ver com as questões de vingança? Não haverá algo dúbio
da [ex talionis do terreno do crime até o terreno da virtude.
na atitude de São Paulo? Não haverá algo dúbio na atitude do
Não só os maus são punidos; os bons também são recompensa-
mundo? Ninguém professa a crença na vingança; todos concor-
dos, sendo as quantidades meticulosamente medidas de novo na
dam em que a justiça é preferível; e o ensinamento supremo
balança da justiça. Nada existe na Justiça Poética que impeça
convida-nos a transcender a justiça pelo perdão .
um homem de escrever uma grande peça de teatro, e um eminen-
te investigador argumentou recentemente que isso está pres- E fútil esperar que o teatro - ou qualquer arte - se si-
suposto em toda a grande dramaturgia espanhola. tue acima da cultura a que pertence. Se a cultura pratica a vin-
Os modernos dramaturgos, por outro lado, têm objetado gança, temperando-a ocasionalmente com um pouco de justiça,
à Justiça Poética e deliciam-se em deixar o malfeitor sair impu- é de esperar que seja exatamente isso o que o teatro também
ne. Contudo, isso não significa que eles se preocupem menos fará. Isso, por sua vez, explica por que um pensador realmente
com a justiça e tenham rejeitado a lex talionis. Ao mostrarem radical como TOLSTÓI pode acabar rejeitando a maior parte da
a justiça violentada, esperam violentar o público e insuflam a literatura com a maior parte da sociedade. Ele situava-se acima
paixão de justiça de modo a convertê-la numa labareda. O ve- de sua cultura. Do alto pináculo donde ele julgava, a literatura
rl\ .\ r.lco~d:lJJA 295
21)4 DIFEnE~TES G~SEnOS DE PEÇAS

(cresses humanos, reflete a vida Se a realidade fosse subita-


parecia-lhe bárbara, tal como os homens que a escreviam e os
mente trunsformada, da maneira que ele propõe, o resultado
homens para quem II escreviam. TOLSTÓI incluiu nessa condena-
ção geral as suas próprias obras-primas. E por que não? Elas seria que, de um modo igualmente súbito, a literatura também
mostram a dialética da vida, tal como é vivida, o dar e receber, seria toda ela perdão. 8 vingança atrai os dra maturgos po rque
d cs são mestr es til' real ioaue c não idê ólogosf
o ataque e a réplica, o lançamento c o ricochete, da ação c rea-
ção ordinárias. Os ideais estão presentes, como sempre estão, SIIELLEY aceita que o perdão e o amor são inerentemente
mas as pessoas não conseguem pô-los em prática, como sempre não -drarnáticos . Ele vê apenas o estado final de bcatitudc, al-
sucede. E. de qualquer modo, são apenas ideais de justiça; ficam cançado possivelmente por um santo clemente num momento
irrcrnct!' :' Imente aquém do infinito perdão de Cristo. supremo e esquece. portanto, o fato de que a clemência é uma
SIILLLEY assume uma posição muito menos defensável do realização difícil: e que existe um drama nessa dificuldade, no
que a de TOLSTÓI . Acredita que devíamos praticar o perdão na conflito através do qual é obtida O perdão é uma reação
vida, enquanto a justiça e vingança seriam conservadas na lite- alternada da vingança e pode ser entendido - funcionalmente
ratura. Citarei de novo o seu prefácio a Tire Cenci . Está fa- falando - como a vingança é entendida . Damos urna descrição
lando a 'respeito de Bcatricc, a sua heroína: da vingança . num excerto de Studics (}lI Hvstcria , de FREUD e
BR EUER:
. . . A réplica adequada a dar às ofensas mais monstruosas
é a gentileza e a indulgência, bem como a decisão de con- o instinto de vingança. que é tão podero so no homem na-
verter as sombrias paixões do ofensor pela paz e o amor . tural e se encontra mais disfarçado do que reprimido pela
Vingança. retaliação, expiação, constituem perigosos equí- civili znçâo, nada mais é senão a excitação de um reflexo que
vocos. Se Beatrice tivesse pensado dessa maneira, teria sido não foi libertado . Defendermo-nos de lesões físicas numa
mais prudente e melhor; mas jamais teria sido uma perso- luta ~. ao fazê-lo, ferirm os o nosso antagoni sta. é o adequa-
nagem trágica; Os poucos a quem tal exibição tivesse inte- do c prc íormado reflexo psíquico. Se não foi levado a efeito
ressado, nunca teriam estado suficientemente interessados ou s ó o foi suficientemente, é constantemente libertado de
para fins dramáticos. dada a necessidade de encontrar sim- novo por recordações, e o "instinto de vingança " ganha
patia pelo seu interesse entre as massas que os cercam . É
existência corno um impulso volitivo irracional . ..
a infatigável e analítica argumentação com que os homens
procuram a justificação de Beatríce e, entretanto, acham
Ao não nos vingarmos, contraímos o hábito e a mcntali-
que ela fez o que necessita justificação; é no supersticioso
dadc de vingança. FREUD e BREUER não previram uma terceira
horror com que eles contemplam. indistintamente, os erros
possibilidade, mas ela existe . reagir, usando a mesma energia
dela e a sua vingança, que consiste o caráter dramático do
É

no espírito de perdão. Isso também seria um "reflexo psíquico


que ela fez e sofreu .
adequado". Em vista do seu interesse pela resistência não-vio-
lenta, é curioso que SHELLEY não tivesse pensado nisso. O seu
Ora. é verdade que o drama se ocupa mais facilmente da
ponto de vista no trecho citado é muito parecido ao do atual
maldade do que da bondade, dos fracassos mais do que dos
Iilistcísrno juvenil, de acordo com o qual oferecer a outra face
sucessos. Assim sucede com a literatura em geral. O melhor
é "coisa de maricas". Tivemos GÂNDI e MARTIN LUHIER KING
caráter em Paraíso Perdido, de MILTON, é Satã. O lnierno
para demonstrar o contrário. A vingança é sobretudo urna pro-
constitui leitura mais atraente que o Paraíso, em DANTE. A
va de falta de confianca na capacid âde própria; a clemência,
literatura fica muito aquém deste lado do paraíso e ocupa-se
longe de ser uma espécie de emanação natura de simp'les bran-
do mundo, da carne, do mal ... Mas o que SHELLEY esqueceu,
(jura a Garáter, tem ã e ser aaquirida através de um árduo e
no trecho há pouco transcrito, é que a literatura reflete os in-
29(} DIFERENTES C~NEnnS DE PEÇAS '1n.\ r:I COM ~:J)IA 297

longo processo, ao lado do qual a zação que nunca se decidiu em definitivo e manteve sempre
de cr-ian&':l. um padrão duplo, ou mesmo triplo: pregar o perdão, enquanto
MAQUIAVEL tinha razão: na vida pública, coisas como a acredita na justiça e pratica a vingança.
clemência ou o perdão não existem . Imaginemos um candidato Na Oréstia, eSQUILO descreveu a transcendência da vin-
ao Senado dos Estados Unidos propondo-se perdoar todo o gança pela justiça, e reinterpretamos essa transcendência, tal
mundo, qualquer grupo ou nação, seja qual for! Contudo, o como vemos a sua trilogia. Embora SHAKESPEARE começasse
perdão interfere por vezes na vida privada . Por quê? Não será, com peças de vingança - as quais, de acordo com o uso que
em grande parte, porque cada um de nós, cansado das orgias tenho dado aos termos, deviam ser sobretudo denominadas peças
de vingança, anseia por ser perdoado? A nossa própria existên- de justiça - passou depois a mostrar-nos a transcendência da
cia parece exigir não só justificação, mas perdão, também. Se justiça pela miseric6rdia. A ninguém passou despercebido esse
o interesse humano no perdão não pode ser atribuído a uma motivo nos "últimos romances" . Próspero, em vez de ministrar
origem mais nobre , pode no entanto ser atribuído a essa neces- castigos aos seus inimigos, perdoa-os (exceto Caliban). Her-
sidade natural ou existencial. Desejamos (precisamos de) ser míone, em vez de tirar a desforra de Leonte, reconcilia-se com
perdoados. Por vezes, somos capazes de perdoar outros, caso ele . Até no Rei Lear o motivo está presente. A peça não é
não seja por melhores razões do que desejarmos e precisarmos uma demonstração de que os "deuses são justos", pois o que
de ser também perdoados. "E perdoai nossas ofensas, assim sucede não mereceu castigo . Os deuses talvez não nos matem
como perdoamos quem nos ofendeu." Não podemos chegar por diversão. Pode ser que nos matem sem sabê-lo sequer. Ou
diretamente à conclusão de BLAKE ("O mútuo perdão de cada talvez não sejam deuses. Se acaso existe um elemento moral-
vício / Eis a porta de acesso ao paraíso"), mas poderemos alcan- mente positivo na peça, e creio que há, a sua manifestação mais
çá-Ia indiretamente, ao compreendermos, como JUVENAL, que enternecedora (e eu acrescentaria, não menos dramática) é o
"pelo veredicto do seu próprio coração nenhum homem culpado perdão de Cordélia a seu pai. e o amor purificado desses dois
é absolvido". que dá ao final a sua beleza moral.
Um tema espinhoso! No Hamlet, não vemos o próprio A própria Cordélia estava necessitada de perdão. Na cena
SHAKESPEARE emaranhado nas ambigüidades da justiça e vin- de abertura, ela não tem apenas razão: está rígida. Insiste em
gança? A estória parece basicamente pagã, até na medida em sua razão e não está disposta a fazer uso de qualquer dos seus
que aceita a vingança como legítima; todavia, a cultura sugerida recursos. exceto a retidão. Quando regressa da França, vemos
pela poesia shakespeariana é inconfundivelmente a da Inglaterra uma mulher dif erente. O gelo derret eu . Sua atenção não está
elisabctiana, e há na obra muitas referências à crença cristã. mais concentrada em sua própria retidão. Sua clemência é tão
Recordo-me de cogitar, quando ainda era criança, como pode- profunda que se deixa absorver pelo seu amor e não exige de-
ria ser a vingança o dever de Hamlet, quando a Bíblia diz que claração :
a vingança é pecado . Mais tarde, ensinaram-me que São Paulo
escreveu aos romanos -;- "A vingança é minha, disse o Senhor" Sei que não me tendes am or; vo ssas irmãs.
- mas devo confessar que, para Hamlet, parecia fornecer um Tant o quando me lembro, foram más comigo :
alibi demasiado perfeito. Alguma vez Hamlet pareceu ser um Mas tendes um motivo e elas não.
instrumento do Deus de São Paulo, mesmo quando assassina
seu tio? Se era essa a idéia de SHAKESPEARE, exprimiu-a mal. Não, nenhum moti vo . . . nenhum motivo
(e curioso como tantos argumentos lógicos a respeito do Ham-
ler fazem dele uma má obra!) Há uma ambigilidade por solu- Tem os razão em falar da beleza desses versos em que não
cionar, que não pertence apenas à obra, nem mesmo ao seu há beleza separável de palavra ou frase. É a beleza de uma
autor: é a ambigüidade de toda uma civilização - uma civili- atitude moral que nos supera, fundada como está na persana-
298 DIFI:III:':T1 ":S c:f::-n: l\ o s DE PEÇAS

gem e na ação. Perdão e reconciliação nã~ constituem aqui . a


bondade estática, inerte, que SIIELLEY tcmia . Foram conqurs - [Ond e estarí eis
F/c. qu e é o ju i7. ' LJ r re:110 , \ ' o S julga <;<;e
tados, lutou-se e sofreu-se p;lra alcançá-los. _ Nunca justiça ;1. <'; e
"I ;10 "1 ') pelo que suis'! Oh , pl'll'ai nisso
ou a vingança conseguiram alguma vez ser tao drarnáticas .
F a mi scr ic órdin hrot ar.i de vo ssos I;íhios
Isso é apenas um dos aspectos do Rei tear, mas existe Co rn o se fôsseis um nôvo horncm .]
urna peça de SIIAKESPEARE - à parte os últin:os romance~ -
que é toda sobre o perdão . Trata-se de Medida par Medl1a.
A pena de talião é o tema proposto no tít~I1o da peça e repetIdo Aí cst.i o principal o bjetivo desta peça e o seu lugar na
no começo da última cena, quando será finalmente repudiada o Ação principal .
transcendida:
Mas a peça tem uma Ação dupla ou dialética, da qual a
segunda parte, a antitética, é muitas vezes esquecida . Na última
The l'cry mercy 01 lhe law cries out cena, Isabel é convidada a praticar tudo aquilo que prega : a
Most audible, ('!'eTl [rom hls pro per tongue, aceitar tão sinceramente :l mensagem cristâ que suplique perdão
"A 11 A ngclo for Claudio, dcath for death!" e miscricordin, não para o seu irmão , que ela julga morto, mas
Haste still pays haste, and leisure answers leisure, para o seu inimigo, que ela sup õe se r o assassino de seu irmão.
Likc d oth quit like , and Mcasure still for Measure , Todas as leis. excetuando a lei do p uro perdão, manifestam-se
contra se melha nte súplica:
[A pr ópria clemência da lei grita, clamorosamente,
Por sua própria boca : "Um Ângelo por Cláudio, morte por
[morte! SfIolI!tI sli c kn cel d own in m crcy of t hi s [act
A pressa exige pressa, e ao ócio responde o ócio; 1/('1' /l"olh er's gliost h is pa vê d bcd lI'olllci brcal:
O semelhante compensa o semelhante: A nd t ak c lier hcn ce in horror .
Medida por Medida, sempre em tudo.]
ISe ela ajo elhasse irn pl orn ndr . cl em ênc ia rara esse fato,
O espírito de se u irmão o leito p étr c o romperia
E a rr cbat á-Ia-in hor ror iznd n l ]
Cláudio não está morto. O Deus desta peça não é dos
que deixe Cláudio morrer, para que se lhe possa seguir a morto
de Ângelo. Quem defende aqui a lex talionis não é Deus, mas
Angelo. Já antes Isabel o aconselhara a perdoar, visto preci~ar COl1l0 pod er á e la fa zê -lo'! Isabel não é do gl'llern de ajoc -
de ser perdoado . Nenhum de nós é bastante bom para desejar lhar . Sua virtude é do tipo inquchr ant.ivr-I, como a de Cord élia.
que se lhe faça justiça: A resposta ú pergunta é dada na própria Ação da peça, como
um todo. No começo, ela não poderia fazê-lo ; no fim, pode .
Como sucedeu a Cord élia, o gelo derreteu. A virgem austera
converteu -se em mulher compassiva . Culpada de uma rigidez
1l01V would you be
que poderia ser tão fatal quanto a de Ângelo, ela, como ele,
lf Ile whicli is the top of [udgment should
aprende um a lição de clemência - lima lição. claro, não em
But [udge you as YOll are? Oh! think on that
And mercy then will breathe within your lips
teoria ética . ma s em prática humana, emocional . O fato existen-
Like a man nelV made. cial é o que se apresenta , E o que a arte dramática está aí
para apresentar.
300 DIFERENTES GÊNEROS DE PEÇAS TIIAf:ICOl\1 f:JJlA 301

DESESPERO, ESPERANÇA cidos . Certamente, é esplêndido viver no tempo de Luís XIV,


quando tantos abusos são corrigidos, mas ele não podia estar
A outra espécie mais significativa de peça tragicômica, em em toda parte, realmente, e mesmo que pudesse a comédia é
minha opinião, é a comédia com uma seqüência trágica. Ao universal c a maioria dos lugares e tempos não dispõe de um
escolher esta formulação, estou pensando no comentário de Rei ' Sol para refulgir sobre eles. Por conseqüência, a maior
SCHOPENHAUER sobre a comédia: "Tem de apressar-se a deixar parte dos Tartufos nada tem entre eles e o êxito, suas histórias
o pano no momento de alegria [im Zeitpunkt der Freude], para terminarão de modo infeliz, de uma vez para sempre, e a vilania
que não vejamos o que vem a seguir". A sentença cobre algumas sairá triunfante. Semelhante história dificilmente se prestaria
comédias mais satisfatoriamente do que outras, mas talvez seja à pura comédia e, entretanto, os materiais continuam sendo os
verdadeira em relação a todas, na medida em que há ironia nos cômicos. Tragicomédia seria o rótulo 'apropriado.
finais felizes. Compreendemos sempre que "não é necessaria- Chamar a esse gênero de peças comédia com uma seqüên-
mente assim"; em dadas ocasiões, que nem sequer seria possível cia trágica é uma descrição mais sugestiva do que realista, pois
ser assim . Mas, atendendo às circunstâncias, tudo o que não se um dramaturgo retirasse o desenlace de uma peça de Tartufo
fosse um final feliz seria indelicado, assim como seria grosseiro, e o substituísse por uma catástrofe, verificaria então que o co-
na vida real, mencionar a um par de noivos a situação real em mentário de SCHOPENHAUER só era válido em suas linhas gerais
que se encontram os casamentos hoje em dia . A idéia de "feliz c que, no tocante a uma centena de pormenores, teria de refazer
para sempre" é uma ficção legal, uma convenção civilizada, uma sua peça, introduzindo-lhe modificações sucessivas. No Tartuio
pretensão mentirosa, mas cortês. de MOLlERE, apesar de todas as suas trovoadas de verão, o tom
Na medida em que tuda uma comédia está envolta numa asse~ra-nos, de maneira suficientemente idônea, que uma so-
atmosfera de estória de fadas, o final feliz também pode ser lução será encontrada de alguma maneira, por mais inconvin-
apresentado com uma fé inocente e pueril. Nada há de cínico cente que pareça . O "novo" teatro requeria um novo tom. O
a respeito dos finais felizes das comédias românticas de SHA- que antes era apenas uma contracorrcnte, é agora uma inunda-
KESPEARE, mas o não-einismo é pueril. Não nos é pedido que ção : toda a peça, num certo grau , tomar-se-á macabra. Um
apliquemos a fórmula aos casamentos que se realizam fora do crítico poderia perfeitamente descrever essa comédia com um
mundo do teatro . Na comédia menos "romântica" encontram- final infeliz como uma tragédia feita com materiais cômicos.
se as implicações mais definidas de: "Mas isso é o que não (SU5ANNE LANGER assim procedeu.) f: natural que um equilí-
acontece na vida" . Quando lemos o último ato de Volpone, brio do trágico (A) com o cômico (B) seja definível, alterna-
sabemos que estamos vendo a vida não como é, .mas como devia tivamente, como A modificado por B, ou como B modificado
ser. A arte é normativa e leva BEN JONSON a esta forma de por A.
final feliz: a punição dos perversos. ' A comédia com uma seqüência trágica - ou a tragédia
f: a certas comédias de MOLIERE que se aplica, enfatica- com uma subestrutura cômica - não poderia talvez consolidar-
mente, a concepção de SCHOPENHAUER, pois é característico de se sem o advento do naturalismo, com sua insistência em que os
MOLIERE levar a situação dramática até a beira do desastre. As finais felizes não ocorrem na vida real . O naturalismo, em suas
reviravoltas que depois lhe propiciam seus fin~is'felizes são mais puras formas, gera uma espécie preponderantemente do-
apontadas como inconvincentes apenas por aqueles que não sen- cumentária de teatro, mas numa forma menos pura, se bem
tem o convencionalismo cômico em geral e a convenção do final que mais válida, presta-se à comédia - de uma nova espécie .
feliz em particular, ao passo que quantos defendem que a con- Por outras palavras, embora a objeção ao final feliz seja inváli-
clusão de, por exemplo, Tartuio, é convincente, I! o ' intuito de da como teoria, no entanto, efeitos especiais podem ser obtidos
saírem em auxilio de MOLIERE, estão-lhe tirando o'chão de sob ' com o final infeliz e não será esta a primeira vez em que a má
os pés . A questão, sem dúvida, é que não devemos 'ser conven- teoria instigou boas práticas . Os Abutres, de HENRY BEcQuE,
.~" I" . .
302 DIFERENTES GÊNEROS DE PEÇAS lltA GICOMÉIJlA 303

tcm sido frcqücntcmente considerada como uma das peças mais primeiro estar chocado. A temática, sendo em primeiro lugar
puramente documcntárias jamais escritas; contudo, é como se de natureza jornalística, concentrou-se no sexo e na exposição
BECQUE tivesse traçado uma linha Ilexível em torno de cada de tabus. f. por isso que levamos tempo a perceber que o sexo
um desses quadros do gênero naturalista. Tal linha faz um co- era, entre todos, o de menor importância, e que a defesa do
mcnt ário - e cômico. Percebe-mos que a peça não está escrita "liberalismo" na moral era descabida. A essência era uma visão
no espírito de desprendimento, mas de aversão. E, não obstan- do mundo como um horror absoluto. Certo, muitos dos escri-
te, a ação desenrola-se em decrescendo, de uma ponta à outra. tores em causa ter-se-iam apressado a explicar que apenas ten-
Não há final feliz : é comédia com uma seqüência trágica. cionavam dizer que tal e tal parte do mundo era um horror
GAY, em A Opera dos Mendigos, atingiu uma fase inter- absoluto. A questão é que essas foram as partes sobre as quais
mediária entre MOLIERE e BECQUE. Ainda usa o final feliz, eles escreveram. A visão atuante em 'suas obras é uma visão
mas já deixou de ser uma sorridente convenção em que a ironia de horror . A filosofia do movimento é a de SCHOPENHAUER e
brilha por baixo das flores. Não há flores. O que fora um re- dos primeiros tempos de NIETZSCHE : a contrariedade está no
conhecimento meramente implícito se converte num objetivo âmago do universo . A divisa do movimento é: O Inferno é uma
dramático explícito: esse gênero de final é absurdo e devia ser cidade muito parecida com Sevilha. Do JO/11I Bull's Otlier Lsland,
alvo do ridículo . BRECHT, na sua A Opera dos Três Vinténs, de SHAW, a Mahagonnv, de BRECIIT, é-nos dito - não, é-nos
acentua ainda mais esse objetivo quando leva Peachum a dizer: mostrado - que o inferno é o lugar onde já estamos.
"Mas na vida real o fim deles é miserável, e quando se dá um Ora, essa visão pode ser interpretada de várias maneiras e
pontapé num homem, ele responde com outro pont~pé". acolhida em todos os tons de aprovação e desaprovação, mas
GAY, BECQUE e BRECHT dão-nos "a nota moderna", aque- nem a sua existência nem a sua importância podem ser negadas,
la nota do inexoravelmente chocante e implacavelmente sórdido e até o mais indignado dos seus detratores terá de conceder ao
que, por tanto tempo, jovens honestos têm defendido contra os movimento que veiculou essa visão as suas realizações caracte-
mais velhos c sinceros que queriam sua arte nobre, gentil e sadia, rísticas . Se foi consentido que a Beleza, na acepção clássica,
quando não delicada e "simpática". O debate é tão antigo que, morresse, uma beleza terrível nascera. Se o Nobre e o Heróico
nesta altera , os papéis já são por vezes invertidos e as pessoas estavam excluídos ex ltypotlicsi , o não-heróico e o ignóbil reve-
de meia-idad e se encontram defcndendo HENRY MILLER e WIL- laram uma humanidade mais vasta e mai s profunda do que ja-
LIAM I3 URR OUGIIS contra os mais novos, que acham o heróico mais se pensaria serem capazes . Se foi imposto um limite à

e o sublime mais surpreendentes e mais impressionantes. Nesse definiç ão de Verd ade. e as antes reverenciada s Verdades Supre-
caso, é hora de explicar aos jovens até que ponto o "movimen- mas foram ignoradas ou at é escarnecidas. a dedicação às ver-
to moderno" significou muito mais no seu tempo do que a de- dades -" infe riores" era informada com inteligência e paixão;
fesa do debate público e sem rodeios dos problemas de sexo. se as fronteiras tinham sido reduzidas na extremidade su-
perior, foram extensamente ampliadas na inferior. Finalrncn-
Um editorial da revista Li/e talvez nos exorte a escrever te, aos paladinos da Trag édia (Beleza , Nobreza, Heroísmo e
tragédias, mas poderá ser difícil correspondermos... porque Verdade Suprema) devia ser dito que, nas palavras de KARL
vivemos na era da revista V/e. Antes de deplorarmos as obsce- JASI'ERS, "a tragédia não é suficiente" . A própria tragédia tem
nidades e grosserias de MILLER e BURROUGHS, seria aconselhá- limites; na verdade, exclui a maior parte da experiência da maio-
vel indagar em que consistem e por que existem. Faz agora ria dos homens . A transferência de atenção de um Wallenstein
um século que a literatura converteu em missão algo que tem para uma Mãe Coragem pode ser defendida não só em bases
sido rotulado como "franqueza brutal", "denúncia implacável", marxistas, mas também cristãs e, no mínimo sentido político,
"realismo inexorável". Um setor do público ficou chocado democráticas . Mas a defesa do "modernismo" como um ponto
(tantas e tão repetidas vezes!) e outro setor ficou radiante pelo de vista é fácil . Mais difícil é, e mais importante, compreender
304 DIFEI\ENTES ctNEnOS DE PEÇAS
T HAC ICOr- ,h llA 305

o que, essencialmente, quer dizer uma visão moderna e do que mos de A Op era dos Mendigos para A Opera do s Tr ês Vinténs,
ela foi capaz no domínio da arte . e de MOLlER E para BECQUE . Os franceses falam de comédie
1"0.1'.1'(', tend o em mente um determinado grupo de peças tragi-
E a visão informadora dos que continuaram a escrever o
que, provavelmente, devemos denominar tragédias, embora lhes cômicas, mas a verdade é que a comédia. quando séria, tende
falte Beleza, Nobreza, Heroísmo e Verdade Suprema; por outras agora para o tragicômico, de modo geral .
palavras, as peças na tradição de IBSEN e STRINDBERG. A linha A obra de LEÃo TOLsTól oferece-nos um excelente exem-
que vai de SCHOPENHAUER ao O'NEILL de A Longa Jornada plo de modernidade na tragicomédia, o que é e como se tornou
Para Dentro da Noite é contínua. As tragédias modernas são no que é. Esse exemplo é a sua obra-prima inacabada, A Luz
todas elas jornadas para dentro da noite. (O título de O'NEILL Que Brilha na Escuridão. (E talvez um sinal de que profundas
foi, aliás, ·sugerido pelo de uma novela de tendência sernelhan- incertezas minam o teatro moderno, o fato de que algumas das
te.) Uma tragédia moderna é tudo o que a Maria Stuart de maiores tentativas dramáticas ficaram incompletas: Robert
SCHILLER não é: seu movimento está simples e firmemente fa- Guiscard, de KLEIST, Empédocles, de HOLDERLlN, Woyzeck,
dado à derrota. A era de SCHILLER terminou, e a moderna de BÜClIN ER, Lu/u, de ALBAN BERG.) A subestrutura da peça
começou quando BücHNER escreveu Morte de Danton . Cem de TOLSTÓI é a tragédia de um grande homem idealista que
anos depois, o mesmo "movimento" ou "ritmo" será encontrado se vê incompreendido. "A luz brilhou na escuridão , e a escuri-
na moderna tragédia cinematográfica de EISENSTEIN, o filme dão não a compreendeu." Teria sido uma tragédia "moderna",
A Greve . (Este esplêndido filme foi proibido por Stalin preci- conjeturamos , correndo rapidamente para o desespero e a morte,
samente porque é uma tragédia, sendo a moderna tragédia "pes- mas TOLsTór virou para si pr6prio o foco da investigação crí-
simista" e "negativa".) tica; e a frase bíblica torna-se uma ironia cada vez maior: a
Talvez à luz de todos esses fatos possamos ver que a mo- luz não é luz . "Pelo menos , podíamos ter pena do protagonista
derna hostilidade aos Finais Felizes acarretava muito mais do de TOLsTór ", diria um dramaturgo fiel à tradição do antigo
que um fracasso em compreender que esses finais tinham sido teatro . Mas TOLsTór elimina essa escapatória. A moderna vi-
uma convenção . O Final Infeliz passou agora a ser o veículo são encontra-se na impiedade de um grande artista e moralista
programático de uma visão que era uma possessão apaixonada. em relação a si próprio. E o ret oque final não é para dizer que
ele seja mau ou injusto, mas que é repulsivo, irrisório , burlesco.
A, tragicomédia como "tragédia com um final feliz" seria , nessa
epoca, relegada para o teatro do melodrama vulgar. A tragédia Se essa obra tivesse sido concluída , seri a uma das maiores co-
com um final "intimamente feliz" (Maria Stuart s6 foi o caso médias com final infeliz de todos o s tempos .
extremo) pareceria também sentimental, feita à medida dos de- Nos últimos anos, as peças d esse padrão tragicômico têm
sejos . A nova visão não conhece meias medidas. Se não for sido escritas pelos dramaturgos " do Absurd o". Nesta fase, a
sombria, dura, implacável, não é nada . Se a antiga tragédia era palavra tragicomédia dá lugar, muitas vezes , à tragifarsa . A
uma canção de desespero, a nova parece aspirar à expressão do nova palavra * recorda-nos uma verdade certa vez expressa por
desespero sem cantoria. Somente as "harpas no ar" de Hilda STARK YOUNG : a tragédia tem mais em comum com a farsa
Wangcl - uma alucinação - continuam lembrando-nos a mú- do que com o drama ou as formas superiores de comédia. Já
sica heróica dos tempos idos. Se na antiga tragédia o desespêro, mencionei o teatro como uma arte de extremos e a farsa como
como sugeri, era transcendido pela beleza, na nova s6 pode um caso extremo do cxtrcrno . A tragédia é outro. No Grand
ser transcendido pela verdade. E se uma transcendência pela Guignol nem sempre tínhamos a certeza sobre a maneira como
beleza revela uma coragem inabalável , a transcendência pela encarar a peça representada : tanto podia ser horror trágico ja-
verdade denuncia uma coragem tão inabalável quanto aquela,
em face de um mundo ainda mais despido de conforto. E a • Nova co mo palavra. A expre ssão " fa rsa tr ágic a" i tragische For ce)
nova visão impregna tanto a comédia como a tragédia . Passa- encontr a -se em SCHOPENHAUER.
J()(J DIITIII ::-:I I:S (; i:~ n H )~ 1lF. PI ·.Ç'.' S
1I\AGI O )M i:Il I A J07

mcsiano C0l110 disparate burlesco: a diferença não estava nos dia tende a sublinhar e até aumentar essa violência. Onde a
materiais empregados. mas apenas na interpretação. Do mesmo comédia romântica diz : essas agressões podem 'ser transcendi-
modo. lui a distância de um pa sso entre uma farsa írívola d" das . e ;1 comédia realista diz : essas agressões serão punidas. a
CO U HI TLl N F. como F .\.I'i." Corniiclds, e uma Iábula de horror tragicom éd ia da escola que estamos agora considerando diz:
sério. COIIIO A Lição de Ioxr sco. essas agre ssões não podem ser transcendidas nem rechaçadas,
Visto que "o Absurdo" exigiu imensas explicações, pelo pois são a própria natureza humana, são a vida, governam o
menos para o público anglo-americano, acabou por ser identi- mundo . A peculiar e única crueldade do gênero sugere um
ficado com as explicações, e muitos pensam em IONESCO como combate de luta livre. Se o comediógrafo é "um atirador hostil
um dramaturgo filosófico. Suas peças são reportadas aos res- proclamando a sua inocência" , esse gênero de dramaturgia tra-
pectivos antecedentes, e credita-se-lhes todo o pensamento da gicômica é um prolongado tiroteio. Em sua implacável agressi-
linha existencialista de filósofos, desde KIERKEGAARD até hoje. vidadc. possui naturalmente uma atração especial para os que
Evidentemente . é correto, do ponto de vista histórico. derivar são implacavelmente agressivos.
o desespero, () pessimismo. a angústia modernos, em parte, de Ou para os que são implacavelmente hostis à agressão?
um sentimento de perda de fé - o "Deus está morto" de Estes. sem dúvida . compõem o público ostensivo. O atrativo
NIETZSCIIE . r: uma questão inteiramente distinta, porém. apurar é para a consciência. Eu não troçaria de semelhante atrativo;
se um dado autor dramático possui realmente o gênio necessário pelo contrário . Eu assinalaria apenas que a consciência não é
para meter tudo isso numa pequena peça, e é ainda outra ques- um órgão de divertimento; não possui corpúsculos, gustativos.
tão saber se as peças dependem de "tudo isso" para nos atraí- Por conseqüência , o que "atrai" a consciência deve também
rem . atrair mais alguma coisa. E não devemos ficar aflitos se esse
Qual é a atração da tragicomédia que estamos analisando? " mais alguma coisa" for algo que a consciência desaprova. Os
Mesmo antes da literatura ser despojada da Beleza , Nobreza, críticos de arte que apontam a veia sádica em FRANCISCO ('JQYt\
Heroísmo e Verdade Suprema. j.i se debatia a questão de saber não são. necessariamente , reacionários maliciosos. resolvidos a
por que os homens sentem prazer em objetos dolorosos. Uma desma scarar o crítico social G CWA. A pcrcunta. para urna psi-
resposta. dada então, dizia que a Beleza, o Heroísmo, a No- co logia imp ar cial, seria : teria sido possível a GOYA recriar tão
breza e a Verdade Suprema tornaram tais objetos apetecíveis vivamente a crueldade dos outros . se não fosse capaz de cn-
- mas qual é a respo sta, hoje em dia? A .tragicomédia moder- ce ntrar lima crueldade semelha nte em si pr óprio? Uma vez res-
na é usualm ente defendida com base na fidelidade ao fato - pondida negati vamente essa pergunt a, estarem os a um passo do
sua verdade inferior é ainda verdade . Mesmo assim, o atrativo reconhecimento de que o admirad or da pintura de GOYt\ se com-
da verdade per se é um tanto limitado. Embora tenhamos visto praz em sua parcela de crueldad e .
que a pura duplicação do fato está na base do drama, uma base O pr otesto de GOYi\ contra a cru eld ade será ab sorvido pelo
é tanto uma arte quando o alicerce é um edifício. A duplica- prazer da crueldade? A vida não tem essa simplicidade toda.
cão não chega. de modo geral. Se um dado conjunto de dupli- A pr oclamacâ o de inocên cia co ntinua sendo tão importante
cações produz um atrativo em relação aos seres humanos. a quant o () atirad or hostil . S mp're ue se eleva o grito de l.accuse!
questão será: por quê? O que há de especial a respeito desse - e. na ar.tc moaerna, ouvimo- o a toda hora - à sU[Josta ino-
conjunto de dupli cações? cênci â ao acusaaor tem ae se dar tanta importância Quanto .
Apuramos que a comédia chamou a si a extraordinária suposta culpa do acusatlo" AJ2csar. disso, se estivermos obser-
agrcssividadc da farsa . A tragicomédia recebe-a da comédia . vando Q mecanismo do razcr. em vez do que está cesto e erra-
Mas, ao passo que a seriedade da comédia tende freqüentemente do, tcmos de reGonhecer a imensa atral;ão orneci onal da inocêo-
a restringir a viol ência da agres são - dominando-a, interrom- ci tanto genuína como eSp'úria. Nem os prazeres da inocência
pendo-a, quando não atenuando-a - a seriedade da tragicorné- " Rassi\'a" são independentes dos da agressão ativa . Em pro-
308 DJFERE~~ GÊNER09 DE PEÇAS TRAGICOMéDIA
309

porção à veemência com que faço uma acusação, apóio-me em moderna é perturbadora - e por uma razão: pela dupla razão
minhas próprias reservas acumuladas de culpa e com elas salpico que acabo de mencionar. .
o acusado. Sinto-me então mais leve, mais livre e mais feliz . As pessoas gostam de ser abaladas e perturbadas? A per-
Penetrei na alegria do promotor de justiça, do polícia, do dela- gunta faz parte de urna de maior âmbito: há prazer na dor?
tor e do patriota profissional. Sendo esta a resposta: em certas condições, sim. Não que as
Os perigos morais inerentes à opção pela inocência são condições sejam necessariamente as do masoquismo. Ser aba-
óbvios . Qualquer autor pornográfico barato é capaz de persua- lado por uma tragicomédia de IBSEN ou CHECOV é um prazer,
dir-se, hoje em dia, de que se situa ao lado de FLAUBERT, BAU- porque é um abalo que nos faz penetrar na vida. f: certo que
DELAIRE e ZoLA, batendo-se nobremente contra a censura e a muito pode ser roubado à vida através do que esses escritores
mentalidade suja. Mas isso apenas significa que, tal como os mostram; quando GRAHAM WALLAS viu O Pato Selvagem, sen-
sentimentos de culpa não são uma prova de culpa real, também tiu que "o mundo se abrira sob os seus pés". Apesar disso, a
os sentimentos de inocência não provam uma inocência real. perda do universo foi um ganho para ele. A peça foi uma re-
Semelhantes fatos da vida moral não são realmente comprome- velação . Uma venda caiu-lhe dos olhos. Subitamente, pôde ver,
tedores para a moralidade . Se é um choque descobrir ingredi- pôde viver . Será preciso explorar o ponto de que tal experiência
entes sádicos num protesto contra o sadismo, é preciso não nos exerce uma atração?
deixarmos aturdir, porém, a ponto de confundirmos GoVA com Quanto ao elemento cormco, sua função é exatamente o
os pornográficos. Em GoVA, o gozo da crueldade é, finalmente, oposto do alívio cômico, visto que faz a escuridão trágica ficar
absorvido pelo protesto contra a crueldade, e não o inverso. ainda mais escura. O crítico polonês J AN KOTT escreveu a res-
Sendo essa a razão por que "o bom e o justo" podem sincera- peito do Rei Lear tratar-se de bufoneria grotesca à maneira do
mente negar que o gozo da crueldade esteja presente sequer . Endgame de BECKETT, e aquilo a que ele chama grotesco é, na
Eles subestimam GOVA, que é maior por ser "contraditório". minha terminologia, uma tragicomédia do tipo moderno - uma
A arte é feita de tais contradições e, inversamente, um GOVA "comédia com final trágico". Por outro lado, essa gigantesca
que estivesse livre dos impulsos sádicos que ele pintou teria e multímoda obra-prima comporta um elemento de reconcilia-
produzido uma arte muito menos apaixonada e convincente. ção - não através da fé, mas do perdão - o que a aproxima
A arte que é corretamente condenada como "mera propaganda" da outra espécie de tragicomédia, a "tragédia com um final
não passa, muitas vezes, de . uma virtuosa exibição de desapro- feliz". Ela própria uma tragédia, talvez a maior de todas as
vação moral: "superior", simplista, unilateral. mesquinha ... tragédias, Rei Lear contém as sementes de ambas as espécies de
Conquanto a consciência deva obter a vitória final, por todos tragicomédia. Para os exemplos nítidos de tragédia intensifica-
os meios, não a obterá com excessiva facilidade e, sobretudo, da, em vez de aligeirada, pela comédia, a moderna dramaturgia
não a conseguirá sem a derrota de um inimigo, porquanto o será o lugar apropriado de observação. O uso por IBSEN de
prazer que exigimos da arte só em pequeno grau deriva da Hjalmar Ekdal é o exemplo clássico; mas o seu uso do Pastor
própria consciência e muitíssimo mais do inimigo - e, eviden- Manders, em Espectros, não é diferente, em princípio . E, como
temente, da batalha. já vimos, é por um elemento de ridículo que o protagonista da
A virulência extrema da tragicomédia moderna - tal como tragicomédia de TOLSTÓI se torna fortemente terrível, em vez
a de GOYA na pintura - não é fácil de explicar. Contudo, a de fracamente patético .
maioria dos observadores admitiria que, nos tempos modernos, Qual é o atrativo desse humor em que o humor parece as-
uma peculiar veemência de ataque é exigida tanto pelas condi- sim desnaturado? Na medida em qu e adiciona agressão à agres-
ções que o provocam como pelo torpor do público a que se diri- são. tal humor reforça a já considerável atração qu~ a .tragico-
ge . A tragicomédia "negra" não só faz uma descrição sombria média moderna exerce sobre as pessoas extraordinariamente
do mundo como também provoca um abalo no público . A arte agressivas, e as tragicomédias, neste extremo brechtiano, Iorne-
310
DIFERENTES CÊNEI\OS DE PEÇAS TnA (;)C OM i :IJJA nu

cem realmente, entre outras coisas, um equivalente na imagina- imitando seus csgar cs . Tem de ser um menino ou então não
ção para a flagelação e espancamento sadomasoquista. çontu~o, . h á piada : essen cial é o contraste entre o poder real e o poder
as palavras "na imaginação" introduzem toda outra dlmensao: fingido. O poder é ridicularizad o, sem dú vida; e pode suportá-
porquanto a imaginação em 8t~vi~a.de .nessas obras de teatro e lo . Mas também é assinalada a impotência da mímica.
vasta, e as metas amplamente slgniíícativas. KIE~EGAAF.D, Deus Me smo que o apelo ao público não fosse deixado para o
e o universo estão implicados, quer uma determinada peça lhes final, a pr ópria tragicomédia não poderia integrar-se com a in-
faça justiça ou não. tenção reformadora. Semelhante tragicomédia não marcha no
Talvez não possuamos uma pista verdad:ira para ap~rar sentido de uma transformação do mundo. É em si mesma urna
o significado da agressividade especial desse genero de tragico- adaptação ao mundo, uma maneira de viver com Hitler. f: o
média, enquanto não surpreendermos nel~ uma nota de de~es­ humor dos homens pequenos que há milênios vêm negaceando
pero. Isso encontra-se inteiramente aSSOCIado ao humor, visto e arremedando os "grandes", assim exprimindo e esgotando seus
que o humor contém uma confissão de fracasso. "Nada afazer". ímpetos revolucionários . A expressão "sorria e agüente" diz
O humor é um encolher de ombros, uma acomodação às cois~s tudo. É o sorriso que nos habilita a agüentar. Uma vez mais,
como elas estão . O humor dos presidiários é uma acomodaçao o hum or de presidiários: semelhante humor não é um escape
ao presídio, a um mundo que está repleto de presídios. Será para a agressão sem finalidade. A finalidade é sobrevivência:
preciso voltar a SWIFT e a JU~ENAL p~ra lembrar que um fu- aliviar o fardo da existência a um ponto tal que possa ser su-
rioso desejo de acusar, denunciar, purur e reformar pode _con- portado . Evidentemente, existem muitos aspectos do fenômeno.
jugar-se com uma apaixonada conv2cção d~ que a acusaça~, a O humor num campo de concentração não ajudará ninguém a
denúncia, a punição e a reforma nao Iuncionarn? SWIFT e Ju- sair . Contribui apenas para fazer qu e se aceite o internamento.
VENAL são escritores tragicômicos. , Mas, ao fazê-lo , poderá ajudar a manter o corpo e a alma
O fato de podermos ver o protagonista da peça de TOL5TOI unidos contra o dia em que a saída será possí vel ...
como uma figura irrisória torna a "crítica da vi~a" mais ceva~ta­ Tal vez seja útil aplicar uma parte desse raciocínio a Espe-
dora sem sugerir que se possa fazer alguma c.OIsa a .tal r~spelto. rando por G odot . Todos concord arão em que essa obra pode,
Que a imagem risível é realmente levada a cair no divertido <.de num sentido genérico, ser denominada uma peça trágica. ao
um modo sombrio) e burlesco, corrobora que nada pode ser feito mesmo tempo que, em seu desenvolvimento. de linha em linha,
a esse rcspci to: "as coisas são como são" . ~ . de cena em cena, é cômica. Tem os a grand e trag édia do homem
Que acontece quando um artista é ao mesmo tempo corrnco num mundo desvalorizado , um mundo incompreensível e amea-
e reformador? Um exemplo - duplamente relevante porque çador, um mundo sem deu s ou com um Deus que deixa muito
sua intenção foi, obviamente, a tragicomédia - é O Grande a desejar: e temos a pequena comédia de um par de vagabundos
Ditador, de OIARLIE CHAPLlN . A "peça" ~ermina coI? um que se diverte e nos diverte com uma con versa fiada de music-
apelo ~l assistêncio para que faça. alguma. coisa a resp~lto de hall , Esperando por Godot tamb ém pode . sem muito esforço,
Hitler, mas esse apelo não está mais orgam.camente .relaclOnado ser chamada uma "comédia com um final infeliz". A sua su-
com a tragicomédia do que os apelos moralistas à lei e à ordem bcstrutura é a hist ória de doi s homens esperando um terceiro
que costumam ser adicionados a filme~ de gangster~ como Scar- que resolverá os seus problemas. No final da peça de BALZAC.
face. Talvez devêssemos encarar o final d~ tentahv~ de ~­ Mercadet , um certo Godeau chega com dinheiro para solucio-
PLTN de reintegrar na arte o deus ex machina - cujo equiva- nar os problemas de todo mundo; e, no final rla peça de BEC-
lente moderno é um apelo à vox populi. ~ filme, em .seu con- KETT. o Deus do Antigo ou do Novo Testamento chegaria para
junto, depende do humor. Existe uma piada. ~ eXI~te uma resolver os problemas de todos . Esse seria um final deveras fe-
tragicomédia - no próprio ato de .OlAPLIN ~mltar Hitler. l! Iiz. O fato de Godot não chegar é o que converte a peça numa
a piada do menino que se coloca diante da tribuna do orador parabóla da vida, tal como é vista pelo homem moderno.
312 DIFEIlF.N TES ct:NEJlOS DF. PEÇAS ., JlACI C U !-.' ~:(),.'\ 313

As pessoas falam muito do desespero de ' BEcKETT - e o pr óprio desespero . Todos os desesperos são reais c está certo,
como não o fariam? E o moderno "desespero" - um desespero quando oc orrem , que se faça soar o alarme; mas só há um de-
sem o alívio de um deus ex machina de último ato, um desespe- sespero que é "realmente real", fundamental e cem por cento:
ro angustiante que excede os desesperos familiares, convertido é o desespero que precipita o colapso numa psicose, numa gra-
em paralisia moral, um desespero que não precisa de uma ca- ve doença física ou no suicídio. Nessa fase, um homem não
tástrofe para o destacar nem de uma fala culminante para re- escreve um poema , um romance ou uma peça de teatro expri-
sumi-lo, porque ali está, de um modo insistente, obsessivo, mo- mindo de se spero .
nomaníaco. Paira no ar. Basta entrar num teatro onde Espe- Ele nã o escreve Esperando por Godot. Cai doente, ou cai
rando por Gado! esteja sendo representada, c um penoso abati- sob as rodas de um ônibus , ou cai num estado de "silencioso
mento nos penetra' como uma rajada de vento gelado. O fato das desesp ero tão completo que nem pode levar a caneta ao papel.
pessoas rejeitarem BEcKETT, desde que o não façam levianamen- f: muito provável que SAMUEL BECKETT caia, por vezes, nesse
te, pode ser uma atitude muito apropriada e uma homenagem estado (falo teoricamente, sem um conhecimento pessoal), mas
no poder de BECKETT como artista. GOETHE rejeitou KLEIST c, a existência de suas obras - várias novelas e peças de teatro
corno homem, se não como crítico, talvez tenha sido sensato - é uma prova de que, de tempos em tempos, liberta-se de
fazê-lo depressa , pois havia algo em KLEIST que possivelmente tais crises. A atividade artística é, em si mesma, uma trans-
GOETHE não teria sido capaz de suportar. Em BECKETT, o ele- cend ên ci a do de sespero e, para os artistas extraordinari am ente
mento de desesp ero é tão denso e opressivo que facilmente â esesRe rad os, é, sem a úv id a e princip almente, o que a arte sig-
pode tornar-se perigoso - para quem já está em perigo. nifica: uma terapêutica, uma fé. Uma obra d ê arte é organizada
Em perigo, quer dizer, em colapso total. Ealamos de de- e racional, uma vitória do humano, na mais alta acepção do
sespero com o se fosse uma coisa de finida e absol uta . Na quarta- termo: tem dignidarIe Embora possa estar imprcgqada õ e (le-
feira sentimo-nos desesperados, na quinta-feira não . a reali- sespcro ("Quem nunca desesQerou", disse GOEJ"lIE, "não gre-
dad e, é uma coi sa ind ecisa , flutuante. Está aqu i e está ali . cisava te r. N'i yiêlo") c ser facilmente a r.espeito ao desespero (o
Lem bra o f og londrino, visível em toda Rarte, mas ~ue não é liam/et começa com um jovem desejanCfo estar: morto), uma
visível na nossa vizinhança imediata , emoora atravesse nossas obr,a d arte é, em si, um sintoma de qu e o de sespero não é
roupas e nos neha a ga r.ga n ta . O desesRero é muitas vezes mais quem cOIuanda , mas um homem .
a tivo q ua nao est á mais oculto . Usa anestésicos : quando esta-
mos apáticos e nada sentimos, é quando talvez estejamos sob Se o desesp er o d e BECK ETT pode fazer que o desespero de
a sua influência mais acentuada . Podemos meditar sobre coisas outros escri tores pareça "l iterário" , então é porque ele libertou
que fizemos e dizer: "Eu de via estar desesperado". E há terror um de sespero mais profundo do que o deles ou expressou um
no pensamento de termos passado por tal estado de alma sem desespero igualmente profundo, mas de um modo muito mais
nos darmos conta. "Muitas pessoas vivem num silencioso deses- vivo e fulgurante. Em qualquer dos casos, viu-se livre do de-
pero", diz TlIOREAU. Que grande verdade é essa c que distante sespero, ainda que momentaneamente, ao dar-lhe expressão . E,
está do que nos ensinam na escola! Os nossos professores vivem assim , essa pessoa "mais desesperada" é na realidade uma pes-
num silencioso desespero (um dos mais silenciosos e simpáticos soa menos desesperada do que muitos sujeitos infelizes que nun-
que eu tive , saiu certo dia da escola e suicidou-sel ), mas ensi- ca exprimiram coisa alguma e caíram na idiotia ou no suicfdio.
nam-nos que isso não é verdade. O quartel-general de todos os E videntemente, o elemento não-desesperado de Esperando
sistemas educacionais do mundo está na Madison Avenue. r or Godot não deve ser atribuído exclusivamente à existência
O desespero ronda-nos o tempo todo, mas nunea podemos da obra como um todo ordenado. Até o humor do presídio é
estar seguros de que "desta vez é para valer", porque a reali- hum or; embora promane do desespero e comunique desespero,
dade é tão misteriosa, fluida , incerta e tem tantos níveis quanto tamb ém brota da alegria e comunicá alegria. Um espírito brin-
31·1 I>JFI ·;m::-;TFS (;j.;:-;EII()~ DE I'F.ÇA~ TItAGIr:O!\1 É I1I.-\
315

cnlhão é um espírito brincalhão , e em Esperando por Godot O último ideal que se perde é a esperança, pois nenhum
I3ECKETT brinca, por vezes. a ponto de ser palhaço e mordaz. dos outros pode viver sem o seu apoio. E assim , nesta época de
Registram-se nítidas interrupções no estado de espírito sombrio tabula rasa, ter esperança ou não ter esperança, eis a questão.
e fatídico. erupções de incstinuivcl Irlvolldadc . E tudo isso é Ternos sido ludibriados tantas vezes que a própria vida é agora
deixado em suspenso na conclusão. Pois a peça é tragicômica retratada, da maneira mais característica, como a Grande Im-
ainda noutro aspecto: se a conclusão n50 é a feliz, com a che- postora. A comédia, especialmente a tragicomédia moderna
gada Je Godot, também não é a mais infeliz que se poderia vê a ; 'ida ~omo tal, mas assim como há desespero e desespero:
imaginar - dcscobrindc que Godot não existe ou que nunca lambem h.i crença e crença. Grilamos que alguma coisa de
chegará . Godot talvez exista e talvez chegue. Urna porta fica ~errível está prestes .a acontecer, na esperança ~ de que todos
aberta . A árvore do suicídio não é usada . Não, Impeçam que essa coisa aconteça . Chamem-lhe ardil, chamem-
lhe superstição, é muito humano. .
nesta imensa confusão uma coisa ... é clara. Estamos espe- GOETHE disse, certa vez, que definir uma pessoa era peri-
rando pela chegada de Godol... ou que a noite caia ... goso: porque tende a prendê-Ia e a limitá-la a essa definição; até
Não somos santos, mas respeitamos o encontro marcado. que ISSO se faça, um homem é aquilo em que se está tornando e
Qua ntas pessoas poderão vangloriar-se do mesmo? não pode ser resumido como ser aquilo que é num dado mo-
mento transitório. Mas, por vezes. devemos replicar, a defini-
ção, em sua violência injusta e seu desprezo cômico, pode atuar
Uma peça poderia ser ainda mais sombria do que esta, como um tratamento de choque. Surpreenda-se um homem rou-
como BECKETT demonstrou nalgumas de suas obras subseqüen- ?~ndo e chame-se-lhe ~adrão. O rótulo é uma generalização
tes. mas a principal pergunta mantém-se (nas tragicomédias de injusta. Mas pode servir a uma finalidade . E a comédia, por
I3ECKETT e de outros autores): por que a implacável análise sua parte, nunca foi justa . Não é justo gritar : a casa está arden-
é levada tão longe, a incxorabilidade é tão inexorável, o pessi- do!, quando se vêem labaredas numa janela. f: pessimista gritar
mismo é tão profundo. o desespero é tão devastador e que sa- que a casa está em chamas quando só vemos fogo numa janela.
tisfações poderão ser obtidas de tanta insatisfação? Encontro ~as pode salvar vidas. E muito do celebrado pessimismo da
lima chave para a resposta na observação freqüentemente feita ht~ratura moderna é, freqüentemente, dessa espécie. Tal pessi-
pelos críticos medianos de que, em obras como esta de BECKETT, nusmo não se alimenta de si próprio: é alimentado pelo ardor
temos um contra-sentimentalismo. um contra-otimismo e uma de um desejo por algo de positivo.
contrafé de natureza perversa. A insinuação é de que os mo- Na raiz dos infinitos e pungentes desesperos da literatura
dernistas in vertem mecanicamente as atitudes prosaicas, ignaras, moderna - e, em particular, das obras tragicômicas que estou
da classe média . Haveria uma certa astúcia em não combater discutindo - está a esperança . E , nesta situação, a esperança
essa acusação e dizer apenas: "De acordo . E daí?" E de fato revela-se não como uma idéia em que " esta mos interessados"
lima "ideologia da classe média" que está fazendo falta. Mais ou um ideal pelo qual "estamos dispostos a morrer" , mas corno
do que isso, todos os ideais tornaram-se suspeitos, todos os va- um humilde, indispensável fato da existência - como, por
lôres completamente desvalorizados. No nosso tempo, se o ho- exemplo, o metabolismo. Se uma pessoa tivesse verdadei-
mem de letras (entenda-se , homem de espírito e consciência) ramente perdido a esperança. não estaria em lugar acessível
escuta-se a si próprio proferindo as grandes afirmações . terá de para poder dizê-lo. Por estranho que pareça, é o desespero
perguntar-se também se , ao buscar a sua salvação, não ficou de um escritor que precisa de prova, não a sua esperança.
verdadeira e definitivamente maldito. Ora, quando as afirmações E talvez essa prova tenha-se convertido mais num ponto de
são suspeitas, as negações podem ser mais honrosas . Nessas honra , nos tempos modernos, do que seria desejável. O moti-
circunstâncias , a negativa atinge a força do positivo. vo é por vivermos cercados de falsas esperanças suscitadas por
316 D1F[:nE~TES CÊNEnOS DE PEÇAS

charlatães e oportunistas, e por sentirmos a nece ssidade de nos


dissocia rmos deles.
e
::Fada a arte um oesafio ao eteses~ e ro e o tipo de tragi-
o

comédia que estou desc reveridô dirigiu-sé aos aesesperos pe -


culia rmente angustiantes e devastatlores da nossa cpoca. Seja
o que for que se diga a tal respeito, não se pode afirmar: que
não atinj a o fundo. A visão é tão negativa quanto a de mo-
dernas tragédias tais como O Anel dos Nibelungos, ou Ros- REFERtNCIAS
mcrsholm, ou O Pai, ou A Longa Viagem Para Dentro da
Noite. O humor que se canaliza para a tragicomédia só apro-
funda mais o horror e encaminha o sublime para o grotesco.
Também aprofunda o "derrotismo" com um sorriso de aceita-
ção. Talvez não se acreditasse antecipadamente em que uma
parte pudesse ser tão negativa. Mas justamente nisso ela é
reconfortante. Nada menos drástico nos teria dado qualquer
consolo, pois não teríamos acreditado nisso mais do que acre-
ditamos em bispos e políticos. A verdadeira esperança só se
D ELXEI IJELIDEI\ADAMENTE o texto dOeste livro aliviado do peso d e todo
o aparato erudito: em vez de convidar o me~ leilor, a. parar e ~ ler
pode encontrar através do verdadeiro desespero - a menos alguma outra coisa, quis induzi-lo a ler. as. ml~as pa~tnas sem inter-
que este seja tão "real", tão profundo, que nos trague e devo- rupções . Mas algumas das minhas referências sao relahvament~ recô?-
ditas, e alguns leitores poderão ac?llier com a~rado uma orientação
re. "Was mich nicht umbringt, macht micb stãrker", como disse mais bibliográfica do que a consentida no próprio texto.
NIETZSC1-IE: "o que não me destrói toma-me mais forte". O
atrativo daquela comédia que está impregnada de melancolia CAPITULO 1
e termina mal, daquela tragédia que está cravejaCJa e uma
Página 19 - BRASILLACII, ROBEnT: Pierre Comeille. Paris, Bayard, 1938.
coméôia gue só torna a perspectívã ainda ma is sombria, res ide 21 - MUlR, EDWlN: The Structure of the Novel. Londres, The
no fato dela manter p-ara nós a única especie de esperança
o
Hogarth Press, 1928.
que estamos em condições ete aceitar. E se não e a esperança 27 _ MOULTON, RICIlARD: Shakespeare as a Dramattc Artist.
de um Céu em que vivamos para sem pre, não e men o valiosa, Oxford, The Clarendon Press, 1885 . New York, Dover
Publ ícatíons, 1964 (reedição).
talvez, or ser a eSp'erança sem a gual não poCIerIamos "iyer 27 _ TOUCHARD, PIERRE-AIMÉ : Dionljso.s. Paris, Aubi~r, 193~.
o dia-a-dia. 28 _ COUIlIEn, HENIU : L c Thé ãtre et 1 Existence . Paris, Aubier,
1952. k li
32 - BARZuN, JACQUES: The Energies of Art . Nova Yor, ar-
pers, 1956. . Calli d
34 _ FERNANDEZ, RAMON: La Vie de Moliere. Paris, mar,
1929 . (Tmduzido como Moliêre, file Mou Scen T}lroug}'
the Plays. Nova York, mil & Wang, 1958.)

CAPITULO 2
Página 48 _ BULLOUCH, EDwAnD : A estbettcs. Camhrillge, Bowcs & Bo-
wes, 1957. . xf d U .
53 _ KNJGltT, C. WILSON: The Wheel of FITe. O or n~ver-
sity Press, 1930; Londres, Metbuen & Co., 1949; Uníver-
sity Paperbacks, 1960 (reedição).
318 A EXI'EIUÊNCIA \'I\' A DO TF.A TIl O ,1 19

57 FEI\NANDEZ, RAMON: op, clt. In 1 SnUI\IAIJ, ETlE:':Nl :: op , cil ,


61 GALSWOl\nrV, JOIlN: "Some Platitudes Concernlng Drama", 17:3 A Mente é um Palco. "The minrl is a slagf' ; adjllsting IIH'n-
Thc Inn of Tranquility, 1921, mas acessível em I'layu:rights tal probk-ms in a spontuncity tlu-atcr" L' o titulo de 11111
on I'layrvrlting, organizado por Tonr COLE. Londres, Mac- artigo da autoria de C: .·\HI ) ,~I .H \1l :llI '/IY . lia rr-vistn h" 1//11,
Gibbon & Kee, 1961. maio de HJ37.
65 FEl\ENCZr, SANDOR: Final Contributions to the Problems and I, ,') - ~IAHCEL, CAIIIIIEL: " U ne ocuvrc capit.rl« dll t1Ji"ltr(' :1
Methods of Psyc1lOanalysis. Londres, Hogarth Press, 1955. Strashourg", L'A[sllcr Frunçaisc, :1 de maio dI' lD2 '1.
66 CONSTANT, DENJA~UN: "Quelques refléxions sur la tra-
géJie de \Vallstein et sur le théâtre allemand" (um ensaio <:'\I'lTl'LO (J
originalmente publicado como prefácio à adaptação de
Wallcnsteiu, de D. CONSTANT). l':'gina IH1 - Sobre CO:"HAIl. Os dois artigos 1Ilf'IIl'ioll:ldos siio : "TIH~
67 - SOlUAU, ETIENNE: Les 200.000 Suuations Dramatioues. Pa- Short Stories", por TO~1 11(J1 :I'I:"Sü:'o:, rire Loudon Mllga-
ris, Flarnmnrion, 1950. ' (A minha citação do admirável Z.ilW, novembro ele ln57, (' "London Letter", por V , S .
volume de SQt TIUAU é "injusta", no sentido de fJue i~tJoro I'HITCIIE·IT. 7'111' 1\ ' 1'11' Ycn]: Tínu :s Bo o}: IltTil 'l C, 12 d e ja-
o seu contexto original para meus próprios fins.) nciro de 19:JS.
69 - MOI\ENO, J. L. As idéias deste autor foram Iormuladas 2()() - t\IICIIEH, \\'Il.l.IA:o.I : /slrou : IIIr 7'II1'(llr( ', Londres, Allcn &
numa série de volumes, em alemão e inglês, principiando Unwin, 1886.
por Einladung zu cincr Begegnung (1914) e chegando à
terceira edíçâo de Psychodrama, Vol. I, Bcncon House, C:\PlTt1LO 7
Beacon, Nova York, 1964.
l':'tgina 20,') - ~fVHHAY, Cn.IIEHT : 7'/IC Classical Tradition (lI l'nct n] , Lon-
CAPITULO 3 dres, Oxford Universitv I'rt-ss, ID27 : 1'\00'a York, \,illtagc
Books, I U,57 (recdi ç:io).
Página 78 - PEACOCK, RONALD: The Poet in the Theatre. Londres, Mac- 20G Revistas Familiares . Deito Il omcs atu! Cardcus, agosto rlc
Gibbon &. Kee, 1961. 1957. O autor l' 1I0\\'AIII> \\'IIITMAl':.
82 DRASlLLACU, RODEnT: op. cito 2()(j Chefe da Divisão . Cl :OI\C;E SIL\TH, do Montcliorc Hospital,
92 HARDrNG, D. W.: "Aspects of the Poetry of Isanc Rosen- c'Sef('\'l'IH!O ClIl T11t' Nntion , 25 dr' mnio ele 19:;7 .
berg", Scrutintj, VoI. 111, n.? 4. (Recentemente transcrito 20D 1\ lr 1111,\ Y, CJl.IIFHT: (lI' . rit .
em HARDING, D. W.: Experience into Words. Londres, 212 h :II:"A:"lll-:Z, ILnlO:-\ : op , c il .
Chatto ~ Windus, 19(3). 216 SAnCEY, FII:\l':C1SQL'E: <)llawlllc CIIIS de I/I, :dlrc, l' iu is, Bi ·
hliotlu-que eles Annalcs (Volume ·1) , 1901.
CAPITULO 4 ~~,I T,\I\ACIIOW, Sicluev : "R cmurks Oll thc COJlli C' I'IO ('f' ~S a liei
III 'alll~''', 1"~!ldIOG7;alylir Vuortcrlv , 19·Hl . _
Página 104 - "A Man of Brillíant InteUect: George Jean Nathan", num
~2(J COI\:'o:FUIII>, F. t\1 .: Tlic Originç 01 ,\llie Conu-dv. Lonrln-s,
ensaio originalmente publicado na revista AmcriccH1 Mcr-
Ld",ald Arnold, ID I I; :'\('\ ·a York . ])olll.l('<la)' ;\ o('hm,
cury,. dezembro de 1925, mas agora mais facilmente aces-
sível em The World of George Jean Nathan, ed. de Char- 1UGl (rcedição),
les Angoff. Nova York, Knopf, 1952. 22H - t\fEYF.1I110LI>, V .: em " F a rcc " , \\111 capítulo do sr-n livro
137 - MEYERHOLO, V.: "On Ideology and Teclmology in the The- Ou lhe Theatre (19n) . A cituçâo é da tradução de I'\UIH
atre", lntemational Theatre, n.? 2, Moscou, 1934. BU:SUN, dois capítulos cla qual foram puhlicados em Thc
Tulunc Drama l!rl"i( 'll'. Volmuc ,I, IlS . 1 e ·1,
CAPITULO 5
C:\I'lTl'LO 8
Página 143 - CLARJC, Sm KENNETIr: The Nude. Londres, John Murray,
1956. Penguin, 1960. P:'gio:t 210 - Descrição contcmpor úue-a. At ril u riclu a t\1.\nAME DE LA
152 - Lu, VERNON: The Beautiiul. Cambrídge, Cambrídge Uni- FAYETI'E, embora a sua primr -Ira iJlll'rC'ss:io S(' encontre ('lO
versity Press, 1913. Anccdotcs dranuüiqucs, J)('lo Anlli: DELA {'OIlTE, Paris,
154 - STEI\BA, fucHARD: "The Signifícance of Theatrical Perfor- 1775. A tradução illgJr..sa citada l' do SOlICr110 estudo de
mance", Psychoanalyttc Quarterly, 1939. EL'r;i;~E \'I~A \ ·F.It, l!1l('i7l(~ aud l'octic Traeedi], Manchester,
157 - Comentário sobre o Século XVlll.OAvIES, TnoMAS: Me- Inglaterra, Manchestor Universitv Prcss, 19,55; Nova York,
moirs of the Life of David Garrick Esq. Londres, 1780. lIill & "'ang, H):J9 (rccdiçiio).
320 A EXI'EII1ÊNCIA VIVA DO TEATRO

250 - RICHAROS, I. A.: Principies of L/terary Criticism, Londres,


Kegan Paul, 1924; ROlltlec!ge & Kegan Paul, 1960 (ree-
dição).
250 - FIIYE, 1'. 11.: nomance and Tragedy. Boston, Marshall Jo-
nes Co., 1922; Lin co In, Nebraska, Universíty of Nebraska
Press, 1961 (reedição).
251 - GOLDMANN, LUCIEN: Le Dleu Caché, Paris, Gallimard,
1956. Tradução, The Hidden God, Londres, ROlltledge &
Kegan Paul, 1964.
257 - IEKELS, LUDWIG: "The Psychology of Pity", Ensaios Se- AGRADECIMENTOS
ecionados. Nova York, Intemational Universities Press,
1952.
261 - TILLY ARD, E . M. W.: Shakespeare's Problem T'laus. Lon -
dres, Chatto & Windus, 1950.

CAPITULO 9

Página 264 - TOtiCHAHO, PIERRE-AIMÉ: op. cu ,


275 - Comentarista teológico. CHARLF..5 MOU.ER, na Introdução a
Safan (Nova York, Sheed & Ward, 1952, reeditado par-
cialmente como The Devil, da autoria de WALTER FARRELL ,
BERNARD LEEMING e outros, Nova York, Sheed & Ward ,
ESTE LIVRO nasceu das Charles Eliot Norton Lectures, con-
1957). ferên~ias essas que proferi na Universidade de Harvard no de-
278 - FRYE, NORTHROP: "The Argument of Cornedy", Englisll curso do ano letivo de 1960-61. Desejo agradecer a generosi-
lnstitute Essaqs. Nova York, Columbia University Press, dade do Comitê Norton ao convidar-me para Cambridge e, em
1948 . especial, de McGeorge Bundy, que enviou o convite, e do Sr.
278 - FERNANDEZ, RAMON: op. cito
e Sr.s Perry MilJcr, que daí em diante passaram a cuidar de
CAPITULO ~O todas as minhas necessidades.

Página 292 - Eminente Estudioso . PnOF. A, A. PARKER, em "The Agradecimentos especiais são também devidos à Harvard
Approach to the Spanish Drama of the Golden Age", Lon- University Press, que tinha direitos de propriedade para a pu-
dres, Hispano and Luso-Brazilian Councils, 1958. blicação das conferências, mas simpaticamente os cedeu a
309 - Korr, JAN: "King Lear or End Carne", Polislv I'erspectioes, pedido de Athcncurn e meu próprio .
março de 1961. Um capítulo do livro do PROL KOTT sobre
SIIAKESPEARE, publicado na tradução inglesa por Methuen Os meus agradecimentos à Fundação Guggcnheirn têm lai-
& Co., Londres, como Shokespeare, Our Contemporaru \ 'OSde embaraço, uma vez que me concedeu uma bolsa para
(1964 ).
escrever o presente livro, há cerca de quinze anos .
Se Harvard forneceu a ocasião para que eu escrevesse um
prime iro esboço do meu livro, a Columbia University é respon-
sável pelos muitos rascunhos que precederam o primeiro esboço
definitivo e mais um ou dois que se lhe seguiram; foi através da
Colurubia que estive trabalhando sobre e com o teatro, desde
1952.
Apoiando o livro encontra-se também a minha experiência
de crítico teatral profissional; desejaria expressar a minha gra-
tidão a The New Republic, a quem servi de 1952 a 1956.
322 A EXI'EIII;;~CJA VIVA J)() TF.ATI10 321
AGRADECI~{ENTOS

As minhas experiências algo variadas no mundo do espetá- Tod os no Athencum foram solícit os e amistosos , muito
culo profissic al colocam-me devedor, no sentido positivo, a além do que seria uma imposição do dev er ou o hábito dos edi-
um número excessivo de pesoas para que possa ser aqui citado; tores . Sinto naturalmente uma gratidão especial pelo meu ami-
e devedor, num sentido negativo, a um número igualmente gran- go HARRY FORD, que me tem ajudado em sua função editorial
de daqueles a quem sinto prazer em não citar aqui; contudo, as desde 1945.
lições sobre Como Não-Fazer também são lições, de qualquer A minha companhia mai s assídua durante os anos de tra-
modo. balho neste livro foi minha esp osa. JOANNE. E com isto quero
No meu capítulo sobre a farsa, utilizei frases e até pará- dizer que não poderia calcular a qualidade nem a quantidade
grafos de um ensaio meu que foi publicado por HiJl & Wang de sua influência sobre o que escrevi ou sobre mim. Só sei que
como introdução à antologia Let's Get a Divorcel Os meus agra- a sua presença, com a dos nosso s filhos, foi a maior das bênçãos
decimentos a Lawrcnce Hill e Arthur Wang. que recebi.
Quanto às minhas dívidas a autores, muitos deles são ex-
pressamente indicados no texto . Mas as citações não são feitas
como cartas de agradecimento e podemos citar menos o mais ERIC BENTLEY
admirado dos autores porque absorvemos o seu pensamento tão
bem que o consideramos já nosso: peço desculpas a qualquer
daqueles cuja amizade imaginária recompensei com tamanha in- Invern o de t 963-64
gratidão. Como reparação simbólica a todos os autores nessa
categoria, cu gostaria de citar quatro livros que li com especial
avidez enquanto este livro estava sendo escrito. mas que nunca
citei: lrrational Man , de WILU ;,...,j BARRETT, Essay Ort Man,
de ERN5T CASSIRER, Bcyond Laughter, de MARTTN GRCTJAlIN,
e Fiction and tlu: Unconscious, de SIMON LESSER .
O trecho que citei de GONúL EZ DE SALAS foi cspccialmcn-
lt: ll"l\dUi".idll pala mim por \\'11.1.1 ,\1\1 C. M eCHAHY . Fui or ie n -
lado para o original espanhol por EVER ETT W. H ESSE .
O DR . M ,\ NFR F D G EORGE corrigiu a minha idéia de lex
talion is .
O manuscrito dest e livro, como de outros de minha auto-
ria , foi datil ografado pela eficiente Sr.i" VWI.ET SERWIN e te-
nho de agradecer à Sr. ta ANNE STERN por ter sido efetiva-
mente tanto uma assistente de investigações e pesquisas como
uma secretária.
A Pacifica Foundation propiciou-me gra vações em fita
magn ética das Conferências, tal como foram transmitidas por
suas três estações de rádio , pela Emissora da Universidade de
Harvard e ainda pela s emiss oras WGB}-{-Boston e WFrM-Chica-
go. Escutando-as, recebi ainda outra lição sobre Como Não-
Fazer; decidi que o livro não seria apresentado sob a forma de

confer ências nem limitar-se ao que essas conferências disseram .

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