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Dentro de um clima mágico que Ray Bradbury sempre soube transmitir,

este romance fala de um roteirista contratado para escrever um filme de


ficção científica, que se envolve com diretores tirânicos, atrizes
temperamentais, colegas de estúdio e, especialmente, um criador de
efeitos especiais na Hollywood dos anos 50. Mas seria “efeito especial” o
cadáver que ele encontra fora do lugar normal, no muro que divide o
cemitério do estúdio onde trabalha? Com mistério, suspense, um forte
encanto nostálgico e descrições ricas de sentimentos. Este é mais um
exercício de magia literária do mestre Bradbury, uma incursão sutil no
irreal, mas cheia de referências a pessoas reais do mundo do cinema.
- 1 -
Era uma vez duas cidades dentro de certa cidade. A primeira era a luz e a
segunda, a escuridão. Uma agitava-se ininterruptamente durante o dia enquanto a
outra nunca se movia. Uma era quente e cheia de luzes nômades. A outra era fria
e fixada com pedras no lugar. E ao entardecer, quando o sol se punha na
Companhia Cinematográfica Maximus, a cidade dos vivos, esta começava a se
parecer com o Cemitério Green Glades ali ao lado, a cidade dos mortos.
Ao apagar das luzes, cessavam todos os movimentos, tornava-se frio o
sopro do vento pelos prédios do estúdio. Uma melancolia inacreditável parecia
irradiar-se do portão de entrada dos vivos, propagando-se pela penumbra das
avenidas em direção ao muro alto de tijolos que separava as duas cidades no
interior de uma terceira. Subitamente as ruas se enchiam de algo que só poderia
ser definido como reminiscências. Pois, quando as pessoas iam embora, deixavam
atrás de si os prédios assombrados por fantasmas de acontecimentos insólitos.
Sem dúvida era a cidade mais extravagante do mundo, onde qualquer
coisa poderia acontecer, e geralmente acontecia. Dez mil mortes ocorriam ali, e,
depois que as mortes se consumavam, as pessoas levantavam-se rindo e
afastavam-se. Edifícios inteiros pegavam fogo e não queimavam. Sirenes
uivavam e os carros de polícia cantavam pneus pelas esquinas, para que depois os
guardas tirassem os uniformes, passassem creme na maquiagem pesada e fossem
para casa — pequenos bangalôs de subúrbio no imenso e quase sempre
monótono mundo exterior.
Dinossauros arrastavam-se pelo lugar, ora em tamanho miniatura ora com
quinze metros, ameaçando virgens em trajes sumários, que gritavam em tons
agudos e afinados. Dali partiam vários cruzados, para colocar as armaduras nos
cabides e guardar as lanças no Vestiário Oeste, ao final da rua. Dali, Henrique
VIII mandava decapitar diversas cabeças. Ali vagava Drácula em carne e osso
para em seguida retornar ao pó. Também ocorriam os Passos da Paixão, que
deixavam uma trilha inesgotável de sangue, enquanto os roteiristas percorriam seu
Calvário carregando sua quota enorme de revisões, perseguidos por diretores com
açoites e montadores com estiletes afiados. Era das torres ali existentes que partia
o chamado, conclamando os fiéis muçulmanos para as orações ao poente,
enquanto as limusines ronronavam, transportando poderes sem rosto por trás de
cada janela, e os camponeses baixavam os olhos, temendo cegar.
Tudo isso sendo verdadeiro, era mais uma razão para acreditar que,
quando o sol desaparecia, velhas assombrações se erguiam, a cidade quente
esfriava e começava a parecer com as alamedas ladeadas de mármore do outro
lado do muro. Por volta da meia-noite, naquela estranha paz provocada pela
temperatura, pelo vento e pelo dobrar do sino de alguma igreja distante, as duas
cidades tornavam-se finalmente uma só. Ao vigia noturno cabia o único
movimento, fazendo a ronda desde a índia até a França, das pradarias do Kansas
à Nova York de cimento, de Piccadilly Circus à escadaria da Piazza di Spagna
em Roma, cobrindo trinta mil quilômetros de território em escassos vinte minutos.
Ao mesmo tempo, seu companheiro do outro lado do muro batia os
relógios de ponto entre os monumentos, iluminava com sua lanterna dezenas de
querubins de pedra, lia nomes nas lápides como se fossem créditos, e sentava-se
para tomar o chá da meia-noite com os restos mortais de algum guarda de cinema
mudo. Às quatro da manhã, com os vigias adormecidos, as duas cidades,
confundindo-se, aguardavam que o sol nascesse sobre as flores murchas, os
túmulos erodidos e a índia dos elefantes pronta para a superpopulação, desde que
Deus — o diretor — ordenasse, e a Central de Elenco realizasse.
Assim foi na véspera de Todos os Santos, em 1954.
Dia das Bruxas.
Minha noite favorita do ano.
Se não fosse, talvez eu não tivesse corrido para começar esse novo Conto
de Duas Cidades.
Como poderia eu resistir, quando um cinzel frio esculpira um convite?
Como poderia eu deixar de ajoelhar, tomar fôlego, e soprar a poeira do
mármore?
- 2 -
O primeiro a chegar...
Eu chegara ao estúdio às sete horas naquela manhã do Dia das Bruxas.
O último a sair...
Eram quase dez horas, e eu estava dando o último passeio noturno,
saboreando o fato simples, mas estranho, de que finalmente eu trabalhava num
local onde tudo era claramente definido. Aqui existiam inícios perfeitamente
nítidos, e finais caprichados e irreversíveis. Do lado de fora, além dos estúdios, eu
não confiava muito na vida, com suas surpresas terríveis e tramas mal
alinhavadas. Aqui, andando entre as alamedas ao amanhecer ou à noitinha, eu
podia imaginar que abria ou fechava o estúdio. Pertencia a mim simplesmente
porque eu dizia que assim era.
Portanto, eu palmilhava um território que tinha oitocentos metros de
largura e mil e seiscentos de comprimento, entre catorze estúdios à prova de som
e dez cenários externos, como uma vítima de meu próprio romantismo e da
adoração fanática pelos filmes que controlavam a vida quando ela saía fora de
controle além dos portões espanhóis de ferro trabalhado.
Era tarde, mas muitos filmes tinham seus términos programados para o
Dia das Bruxas, e as festas de despedida coincidiam em vários palcos de
filmagem. Através de três das gigantescas portas deslizantes dos estúdios,
totalmente abertas, vinha a música de grandes orquestras, o som de gargalhadas,
cantoria e rolhas de champanhe espocando. No interior, equipes em roupas de
cena saudavam as multidões no exterior, em trajes do Dia das Bruxas.
Não entrei em nenhuma dessas festas, contentando-me em sorrir ou
gargalhar ao passar. Afinal de contas, desde que eu imaginava que o estúdio era
todo meu, podia ficar ou sair a meu bel-prazer.
Mas, ao mergulhar novamente nas sombras, senti que estremecia. Minha
paixão por cinema vinha de longa data. Era como ter um caso com King Kong,
que caíra sobre mim quando eu tinha treze anos; eu nunca conseguira escapar de
sob aquela carcaça enorme, cujo coração ainda batia.
O estúdio caía sobre mim da mesma forma todas as manhãs, quando eu
chegava. Demorava algumas horas para libertar-me daquele encantamento,
respirar normalmente, e começar a trabalhar. Ao crepúsculo o encantamento
retornava; minha respiração sofria. Eu sabia que algum dia eu teria de sair,
libertar-me, ir para não voltar, ou — como King Kong, sempre caindo e sempre
pousando — isso um dia iria me esmagar.
Passei pelo último cenário, onde um derradeiro alarido de risos e jazz
ritmado fazia as paredes vibrar. Um dos assistentes de câmera passou de bicicleta,
a cestinha cheia de rolos de filmes, a caminho da autópsia sob a lâmina de um
montador, o qual tinha o poder de salvar o filme ou enterrá-lo para sempre.
Depois iria para os cinemas, ou para as prateleiras onde ficam os filmes mortos,
que em vez de apodrecerem se enchem de poeira.
Um relógio de igreja nas colinas de Hollywood bateu dez horas. Dei
meia-volta e retornei ao meu cubículo, no prédio dos redatores.
O convite para fazer papel de bobo esperava por mim no escritório.
Não cinzelado num pedaço de mármore, mas cuidadosamente
datilografado em papel de boa qualidade.
Lendo-o, afundei em minha poltrona, o rosto frio, a mão tentada a
amassar o bilhete e atirá-lo no lixo. Dizia:

PARQUE GREEN GLADES. Dias das Bruxas.
Hoje à meia-noite.
Centro do muro dos fundos.
P.S. Uma grande revelação o aguarda. Material para um romance de primeira
linha, ou um roteiro magnífico. Não perca!

Na verdade, não sou um sujeito corajoso. Nunca aprendi a dirigir. Nunca
subi num avião. Tinha medo de mulheres até a idade de vinte e cinco anos.
Detesto lugares altos; o Empire State representa terror puro para mim. Elevadores
me deixam nervoso. Escadas rolantes parecem querer me morder. Sou exigente
em relação à comida. Só comi meu primeiro bife aos vinte e quatro, alimentando-
me durante a infância de hambúrgueres, sanduíches de presunto e picles, ovos e
sopa de tomate.
— Parque Green Glades! — exclamei em voz alta.
Meu Deus, pensei, meia-noite? Eu, o sujeito amedrontado pelos valentões
do bairro durante toda a adolescência? O menino que se escondeu sob o braço do
irmão na primeira vez em que assistiu a O Fantasma da Ópera?
Esse mesmo.
— Idiota! — gritei.
E fui para o cemitério.
À meia-noite.
- 3 –
Ao sair, fui em direção ao banheiro dos homens, que não ficava longe do
portão principal, depois desviei meu caminho. Era um lugar que eu aprendera a
evitar, um subterrâneo escuro com sons de águas ocultas a correr e um ruído
sorrateiro, como de lagostins furtivos escondendo-se quando a gente começava a
abrir a porta. Eu aprendera, longo tempo atrás, a hesitar, pigarrear e abrir
lentamente a porta. Então várias portas dos reservados fechavam suavemente ou
com estrondos abafados, quando as criaturas que habitavam o subterrâneo
durante o dia retiravam-se em pânico, e a gente entrava naquele silêncio frio de
porcelana branca e correntes ocultas, fazia logo o que tinha de fazer e saía o mais
rápido possível, sem ao menos lavar as mãos. Do lado de fora ouvia-se
novamente o dissimulado despertar dos lagostins, as portas abrindo-se num
sussurro, e a volta das criaturas, em vários estágios febris e de confusão.
Afastei-me, como disse, gritei para ver se havia alguém no interior, e
entrei no banheiro de mulheres ali ao lado, que era um local de cerâmica branca e
fria, mas não ficava embaixo da terra, nem apresentava ruídos furtivos. Fiquei lá
dentro só o minuto necessário, saindo a tempo de ver um regimento de soldados
prussianos passar em direção a uma festinha no Estúdio 10, liderado por seu
capitão. Um belo jovem com cabelos tipo nórdico e grandes olhos azuis e
inocentes encaminhou-se para o banheiro, sem saber de nada.
Nunca mais será visto, pensei, apressando-me pelas ruas noturnas rumo
ao táxi que me esperava.
O táxi era um luxo ao qual eu não podia me dar, mas diabos me
carregassem se eu ia me aventurar sozinho até o cemitério. Chegamos aos portões
sombrios três minutos antes da hora marcada.
Passei dois longos minutos contando aqueles túmulos e monumentos onde
o Parque Green Glades empregava cerca de nove mil pessoas mortas, em tempo
integral.
Há cinqüenta anos que eles vinham acumulando horas ali. Desde que os
construtores do loteamento, Sam Green e Ralph Glades, foram à falência,
nivelaram as ruas de cascalho e erigiram suas lápides.
Percebendo que seus nomes resultavam numa boa combinação, os
construtores falidos batizaram o local simplesmente de Parque Green Glades,
onde todos os esqueletos dos armários do estúdio foram enterrados.
Acredita-se que muita gente de cinema envolvida no empreendimento
imobiliário pressionou para que os dois cavalheiros se aposentassem. Muitos
mexericos, rumores, culpas e crimes periclitantes foram sepultados com a primeira
cerimônia de enterro.
Enquanto meus joelhos tremiam e meus dentes rilhavam, eu olhava para o
outro lado do muro, no qual podia divisar seis belos estúdios, seguros, quentes e
bonitos, onde as últimas comemorações do Dia das Bruxas terminavam, os
músicos paravam, e as pessoas direitas iam para casa com as pessoas erradas.
Observando as luzes dos faróis dos carros a passar pelas imensas paredes
dos estúdios, eu podia imaginar as despedidas, e subitamente desejei estar com
eles, certos ou errados, indo para lugar nenhum, que era certamente melhor do
que onde eu estava.
No interior, um relógio do cemitério começou a bater meia-noite.
— Então? — perguntou alguém.
Senti meus olhos desviarem-se da distante parede do estúdio e fixarem-se
na cabeça do motorista.
Ele olhava para os portões de ferro trabalhado, chupando os dentes
grandes como se fossem chicletes. Os portões rangiam ao vento, após a última
badalada.
— Quem vai abrir o portão? — perguntou o motorista.
— Eu? — arrisquei, consternado.
— Exatamente — concluiu o motorista.
Depois de mais um longo minuto, forcei-me a lidar com os portões, e qual
não foi minha surpresa ao encontrá-los sem trancar. Abri as duas folhas.
Andei à frente do táxi, como um velho que acompanhasse um cavalo
cansado e assustado. O automóvel balançava e resfolegava, o que não ajudava
em nada, assim como o motorista resmungando:
— Droga, se alguma coisa vier correndo na nossa direção, não espere que
eu fique por aqui.
— Não espere que eu fique, também — respondi. — Vamos lá!
Havia um bocado de formas esbranquiçadas em ambos os lados do
caminho de cascalho. Escutei um fantasma suspirar em algum lugar, mas tratava-
se apenas do resfolegar dos meus próprios pulmões, tentando amenizar um pouco
o fogo em meu peito.
Algumas gotas de chuva caíram sobre minha cabeça.
— Meu Deus — sussurrei. — E eu sem guarda-chuva! Que diabo estou
fazendo aqui?, pensei.
Em todas as vezes que eu assistira a velhos filmes de terror, rira do sujeito
que saía à noite, quando deveria ficar quieto. Ou da mocinha que fazia a mesma
coisa, piscando os grandes olhos inocentes e usando sapatos de salto fino para
tropeçar ao correr. Ainda assim eu estava naquele lugar, trazido por um estúpido
bilhete.
— Muito bem — declarou decididamente o motorista. — É por aqui que
eu fico...
— Covarde!
— Sou mesmo — admitiu ele. — Vou esperar bem aqui!
Estava a meio caminho do muro dos fundos, e a chuva caía em finas
lâminas, que encharcavam meu rosto e afogavam os palavrões em minha
garganta.
Os faróis do táxi forneciam luz suficiente para que eu pudesse divisar uma
escada apoiada no muro, levando ao quintal da Companhia Cinematográfica
Maximus.
Ao pé da escada levantei os olhos contra a garoa fria.
No alto, um homem parecia estar subindo para pular o muro.
Mas ele estava imóvel como se fotografado por um raio, gravando-o para
sempre numa emulsão em preto-e-branco. A cabeça projetava-se para a frente
lembrando um cometa em plena órbita, e seu corpo curvava-se como se ele
pretendesse atirar-se nos estúdios da Maximus.
Mesmo assim, como uma estátua grotesca, ele permanecia imóvel.
Comecei a chamar, com o rosto voltado para cima, quando descobri o
porquê do silêncio e da feita de movimentos.
O homem lá no alto ou morria ou já estava morto.
Viera até o local, perseguido pela escuridão, subira à escada e congelara-
se ao deparar-se com... com o quê? Alguma coisa do outro lado matara-o de
medo? Ou haveria algo pior ainda na escuridão do estúdio?
A chuva escorria pelas lápides brancas.
Balancei de leve a escada.
— Meu Deus! — gritei.
Pois o velho, no alto da escada, despencou.
Saltei para fora da trajetória.
Ele aterrissou como um meteoro de chumbo pesando dez toneladas, entre
as sepulturas. Levantei-me e inclinei-me sobre ele, sem conseguir ouvir nada por
causa da minha respiração e da chuva que nos encharcava.
Olhei para o rosto do homem morto.
Ele me encarou com olhos de ostra.
Por que está olhando para mim?, perguntou ele silenciosamente.
Porque conheço você!, pensei.
O rosto dele parecia feito de pedra branca.
James Charles Arbuthnot, ex-presidente da Companhia Cinematográfica
Maximus, concluí.
Isso mesmo, sibilou ele.
Mas... mas, balbuciei em silêncio. Da última vez que o vi eu tinha treze
anos de idade e andava de patins em frente ao estúdio. Bem na semana em que
você morreu, há vinte anos. Naquela época, por três dias foram publicadas dúzias
de fotos do acidente, aquele desastre terrível, com a calçada ensangüentada e os
corpos mutilados. Nos dois dias que se seguiram, vi as fotos dos milhares de
pessoas que compareceram ao funeral, levando milhões de flores. Os figurões da
companhia, vindos de Nova York, choravam lágrimas de verdade, e os artistas
usavam óculos escuros para esconder os olhos úmidos. Você perdeu o
espetáculo. Depois das últimas fotos dos carros destruídos no Bulevar Santa
Mônica, foram necessárias várias semanas para que os jornais esquecessem o
assunto e as estações de rádio parassem de louvar e perdoar o rei por ter morrido.
Tudo isso, James Charles Arbuthnot, foi você.
Não pode ser! É impossível, quase gritei. O que ele estava fazendo hoje,
aqui, no alto dessa escada? Quem o colocou aí? Não se pode morrer duas vezes,
certo?
Um raio caiu. Seguiu-se um trovão, como o estrondo de uma porta
gigantesca batendo. A chuva encharcava o rosto do homem morto, formando
lágrimas em seus olhos. A água se acumulava na boca aberta.
Girei nos calcanhares, gritei e fugi.
Quando cheguei ao táxi, percebi que havia deixado meu coração para
trás.
Ele estava correndo atrás de mim. A idéia me atingiu como um tiro, e
joguei-me contra o carro.
O motorista olhava para a trilha de cascalho atrás de mim, banhada pela
chuva que riscava o cone luminoso dos faróis.
— Tem alguém aí atrás? — gritei para o motorista, entrando no carro.
— Não!
— Graças a Deus! Saia já daqui! O motor morreu.
Nós dois xingamos, desesperados.
O motor pegou de novo, como se também estivesse com medo. Não é
fácil andar em marcha a ré a noventa quilômetros por hora. Mas nós
conseguimos.
- 4 –
Fiquei andando metade da noite em minha sala de estar comum, com
mobília comum, em meu pequeno chalé numa rua normal, numa parte sossegada
da cidade. Tomei três xícaras de chocolate quente, mas continuei frio enquanto
minha mente projetava imagens nas paredes.
Pessoas não morrem duas vezes!, pensei. Aquele na escada ao vento
noturno não podia ser James Charles Arbuthnot. Corpos apodrecem. Corpos
somem.
Lembrei-me de um dia de 1934, em que J.C. Arbuthnot descera de sua
limusine em frente ao estúdio quando eu passava de patins, tropecei e caí nos
braços dele. Rindo, ele me equilibrou, deu seu autógrafo, beliscou minha
bochecha e entrou.
E agora, meu bom Deus, aquele homem, há muito desaparecido no
tempo, caíra de uma escada embaixo de chuva na grama do cemitério.
Ouvi vozes e enxerguei as manchetes:
J.C. ARBUTHNOT, MORTO, ACABA DE RESSUSCITAR

— Não! — gritei para o teto. — Não era ele! É mentira!
- 5 -
A aurora não trouxe nenhum alívio.
O rádio e a televisão não noticiaram cadáver algum.
O jornal estava cheio de desastres de automóveis e comandos contra
drogas. Mas ninguém falava em J.C. Arbuthnot.
Saí de casa, fui até a garagem cheia de brinquedos, velhas revistas
científicas ou de invenções, e, em vez de carro, peguei minha bicicleta de
segunda mão.
Percorri com ela metade do trajeto até o estúdio antes que me desse conta
de não ter parado em nenhum cruzamento. Tremendo, caí da bicicleta.
Um carro esporte vermelho e conversível cantou pneus e parou a meu
lado.
O homem ao volante, usando um boné colocado ao contrário, apertou o
acelerador. Através do pára-brisas, um dos olhos azuis estava arregalado, e o
outro coberto por um monóculo que refletia o sol de forma ofuscante.
— Oi, seu idiota filho de uma puta — cumprimentou ele, pronunciando as
vogais com sotaque alemão.
Quase derrubei a bicicleta. Havia visto aquele perfil estampado em velhas
moedas quando tinha doze anos. O homem ou era a reencarnação de um César,
ou o alto pontífice alemão do Sacro Império Romano Germânico. Meu coração
expulsou todo o ar dos pulmões.
— O que foi? — gritou ele. — Fale de uma vez!
— Oi — ouvi minha voz responder —, seu idiota filho de uma puta. É
Fritz Wong, certo? Nascido em Xangai de pai chinês e mãe austríaca, criado em
Hong Kong, Bombaim, Londres e numa dúzia de cidades na Alemanha. Office-
boy, depois montador, roteirista e iluminador na UFA, a grande produtora alemã,
finalmente diretor pelo mundo todo. Fritz Wong, o realizador do soberbo filme
mudo O Encantamento de Cavalcanti. O sujeito que dominou Hollywood de
1925 a 1927, que foi expulso por causa de uma cena na qual dirigiu a si mesmo
fazendo um general prussiano que cheirava a roupa de baixo de Gerta Froelich. O
cineasta internacional que voltou para Berlim, depois fugiu de lá antes de Hitler
chegar, o diretor de Louco Amor, Delírio, Até a Lua e de Volta...
A cada afirmação, sua cabeça se voltava alguns centímetros, ao mesmo
tempo que a boca se abria num sorriso de marionete. O monóculo refletia um
brilho em código Morse.
Por trás dele repousava a leve sugestão de um olho oriental. Imaginei que
o olho esquerdo fosse de Pequim, e o direito de Berlim, mas não. Era
simplesmente o aumento provocado pela lente do monóculo que olhava para o
Oriente. Sua sobrancelha e os malares denotavam uma arrogância teutônica, que
duraria uns dois mil anos, ou até que seu contrato terminasse.
— Você me chamou do quê? — perguntou ele com educação.
— Da mesma coisa que chamou a mim — respondi, debilmente. — De
idiota filho de uma puta.
Ele concordou com um gesto. Sorriu. Bateu com a mão na lataria do
carro.
— Entre!
— Mas você não me...
— Não conheço você? Acha que eu ando por aí oferecendo caronas a
todos os ciclistas idiotas que encontro? Pensa que já não vi você se escondendo
pelas esquinas no estúdio, ou fingindo ser o Coelho Branco no refeitório? Você é
aquele... — ele estalou os dedos — aquele filho bastardo de Edgar Rice
Burroughs com O Guerreiro de Marte... o rebento ilegítimo de H. G. Wells, de
Júlio Verne. Ponha a bicicleta aqui dentro. Estamos atrasados!
Atirei minha bicicleta na traseira e entrei no carro pouco antes que
atingisse oitenta quilômetros por hora.
— Veja você — berrou ele, acima do roncar do escapamento. — Nós
dois somos loucos de trabalhar onde trabalhamos. Mas você tem sorte. Ainda
gosta.
— Você não? — perguntei.
— Que Deus me ajude — resmungou ele. — Gosto!
Eu não conseguia tirar meus olhos de Fritz Wong, que dirigia inclinado ao
volante, para permitir que o vento lhe fustigasse o rosto.
— Você é o sujeito mais idiota que já encontrei! Quer se matar? Qual o
problema, nunca aprendeu a dirigir? Que tipo de bicicleta é essa? É o seu
primeiro trabalho no cinema? Como consegue escrever aquela porcaria? Por que
não lê Thomas Mann, Goethe?
— Thomas Mann e Goethe — respondi calmamente — não conseguiriam
escrever um roteiro de cinema que prestasse. Morte em Veneza? Tudo bem.
Fausto? Certo. Mas num bom roteiro. Ou uma história curta como as minhas,
aterrissando na Lua e fazendo parecer verdadeiro? Que diabo, não? Como
consegue guiar com esse monóculo?
— Não é da sua conta! É melhor ser cego. Se olhar muito de perto para o
motorista da frente, a gente tem vontade de enfiar o carro em cima dele. Deixe ver
seu rosto. Você me aprova?
— Acho que você é engraçado.
— Meu Deus! Você deve encarar tudo o que Wong, o Magnífico diz
como a Palavra Divina. Por que não dirige?
Estávamos ambos gritando contra o vento que açoitava nossos olhos e
bocas.
— Escritores não têm dinheiro para comprar carros! Além disso, vi cinco
pessoas morrerem despedaçadas quando tinha quinze anos. O carro bateu num
poste.
Fritz perscrutou meu rosto, que estava pálido com a lembrança.
— Foi como uma guerra, não foi? Até que você não é tão burro assim.
Ouvi dizer que foi designado para um projeto com Roy Holdstrom. Efeitos
especiais? Brilhante. Detesto admitir.
— Somos amigos desde o colegial. Eu costumava ficar olhando enquanto
ele montava dinossauros na garagem. Prometemos crescer e trabalhar juntos com
monstros.
— Não é bem assim! — gritou Fritz Wong. — Vocês trabalham para os
monstros. Manny Leiber? Um lagarto monstruoso sonhando com uma aranha.
Cuidado! Aí está o circo!
Ele acenou para os caçadores de autógrafos na calçada em frente aos
portões do estúdio.
Olhei para lá. Imediatamente minha memória foi ativada e voltei no
tempo. Era 1934, e eu estava espremido pela multidão ululante, que erguia blocos
e canetas, acotovelando-se nas noites de pré-estréias sob os holofotes, ou
perseguindo Marlene Dietrich em seu cabeleireiro, ou correndo atrás de Cary
Grant nas lutas de boxe às sextas-feiras no Legion Stadium, ou em vigília às
portas dos restaurantes, esperando que Jean Harlow terminasse seu almoço de três
horas, ou que Claudette Colbert saísse rindo, à meia-noite.
Meus olhos focalizaram a multidão insensata, e enxerguei novamente os
rostos míopes de buldogues e pequineses, pertencentes a incontáveis amigos que
eu fizera no passado, esperando perante a fachada, estilo Museu do Prado dos
estúdios Maximus, onde os ferros intrincadamente entrelaçados com dez metros
de altura abriam-se e fechavam-se sobre os que eram incrivelmente famosos. Vi a
mim mesmo perdido naquele ninho de pássaros de bocas abertas, aguardando
para saciar a fome com breves encontros, fotografias, ou autógrafos. Enquanto o
sol se punha e a lua subia em minha memória, vi a mim mesmo patinando quinze
quilômetros de volta para casa pelas calçadas desertas, sonhando que algum dia
eu seria o autor mais famoso, ou um escrevinhador na Companhia
Cinematográfica Picareta.
— O circo? — repeti. — É assim que chama esse pessoal?
— E aqui é o zoológico deles! — declarou Fritz Wong. Passamos aos
solavancos pela entrada do estúdio, repleta de pessoas, figurantes e executivos.
Fritz Wong parou o carro sob uma tabuleta que apregoava: PROIBIDO
ESTACIONAR. Desci e perguntei:
— Qual a diferença entre os animais do circo e do zoológico?
— Aqui, no zoológico, somos mantidos atrás das grades pelo dinheiro. Lá
fora, no circo, aqueles palhaços estão presos em seus sonhos idiotas.
— Já fui um deles, e sonhei atravessar as portas do estúdio.
— Burro! Agora é que nunca mais vai escapar.
— Vou, sim. Terminei mais um livro de contos, e uma peça. Meu nome
será lembrado.
O monóculo de Fritz rebrilhou.
— Não devia ter me contado isto. Talvez eu perca meu ar superior.
— Se bem conheço Fritz Wong, vai voltar em aproximadamente trinta
segundos.
Fritz ficou observando enquanto eu tirava a bicicleta do carro.
— Acho que você é quase alemão.
— Considero-me insultado — respondi, montando na bicicleta.
— Fala com todas as pessoas desse jeito?
— Não, só com Frederico, o Grande, cuja educação é execrável, mas
cujos filmes eu adoro.
Fritz retirou o monóculo do olho e deixou-o cair no bolso da camisa.
Parecia uma moeda entrando em um caça-níqueis.
— Estou de olho em você há vários dias — declarou ele. — Em
momentos de insanidade, leio seus contos. Revelam um certo talento, que eu
poderia aperfeiçoar. Estou trabalhando, Deus me ajude, num filme sem esperança
sobre Cristo, Herodes Antipas, e todos aqueles santarrões. O filme começou nove
milhões de dólares atrás com um diretor alcoólatra incapaz de dirigir o tráfego
num jardim-de-infância. Fui escolhido para enterrar o cadáver. Que tipo de cristão
é você?
— Perdido.
— Ótimo! Não fique surpreso se for despedido de seu épico idiota sobre
dinossauros. Se pudesse me ajudar a embalsamar esse filme de terror sobre Cristo,
seria um progresso profissional. O princípio de Lázaro! Se trabalhar numa
galinha-morta e conseguir tirar o fume das prateleiras, ganha pontos. Deixe-me
ficar de olho em você por mais alguns dias. Apareça no refeitório à uma em ponto
hoje. Coma o que eu comer, e fale quando falarem com você, certo? Seu
cachorrinho talentoso.
— Sim, senhor capitão. Seu cachorrão.
Quando pedalei, ele me deu um empurrão. Não para machucar, mas um
empurrão filosófico, só para ajudar. Não olhei para trás. Tive medo que ele
também estivesse olhando.
- 6 -
— Meu bom Deus! — exclamei. — Ele me fez esquecer. A noite
passada. A chuva fria. O muro alto. O corpo. Estacionei minha bicicleta do lado
de fora do Estúdio 13.
Um segurança da empresa que passava interpelou-me:
— Você tem permissão para estacionar aqui? Essa é a vaga que pertence
a Sam Shoenbroder. Ligue para o escritório central.
— Permissão! — protestei, indignado. — Meu Bom Jesus dos
Navegantes! Para estacionar uma bicicleta?
Passei com a bicicleta pelas enormes portas duplas, mergulhando na
escuridão.
— Roy? — gritei, obtendo apenas o silêncio como resposta. Olhei ao
redor na penumbra, examinando o depósito de ferro-velho de Roy.
Eu tinha um exatamente como aquele, só que menor, em minha garagem.
Espalhados pelo Estúdio 13 estavam os brinquedos de Roy quando ele
tinha três anos, livros dos cinco anos, cenários mágicos que ele fizera com oito,
experiências eletrônicas e químicas dos nove e dez, coleções de quadrinhos dos
jornais dominicais dos onze, e réplicas de King Kong feitas aos treze anos, em
1933, quando viu o filme cinqüenta vezes em duas semanas. O ferro-velho dos
brinquedinhos de Roy.
Admirando tudo aquilo, senti coceira nas mãos. Havia ímãs, giroscópios,
trens elétricos e apetrechos de mágica que fariam um garoto rilhar os dentes para
não roubar. Meu próprio rosto estava ali, uma máscara que Roy produzira
colocando vaselina em minha cara e aplicando gesso a seguir. Por toda parte
estava espalhado o perfil aquilino de Roy, além de caveiras e esqueletos
completos, jogados nos cantos ou em cadeiras de balanço. Qualquer coisa que
servisse para que Roy se sentisse em casa poderia ser encontrada ali, só que numa
escala tão imensa que se poderia enfiar o Titanic pelas portas gigantescas, com
espaço sobrando para o Old Ironsides.
Ao longo de uma parede inteira, Roy colara cartazes e propagandas de O
Mundo Perdido, King Kong, O Filho de King Kong, Drácula e Frankenstein.
Sobre pedestais alaranjados ao centro desse verdadeiro mercado persa
repousavam esculturas de Boris Karloff e Bela Lugosi. Sobre a escrivaninha
estavam três esqueletos articulados dos dinossauros usados em O Mundo
Perdido, a borracha original, há muito derretida, expondo os ossos metálicos.
Portanto, o Estúdio 13 era uma loja de brinquedos, a mala de um mágico,
o baú de um feiticeiro, uma fábrica de truques e um hangar de sonhos, no centro
do qual Roy permanecia todos os dias, movendo seus dedos longos de pianista
em torno dos seres mitológicos, para dar-lhes vida, murmurando e despertando-os
de seu sono de dez bilhões de anos.
Foi nesse ferro-velho, nessa pilha de lixo mecânico, nesse tesouro de
brinquedos, nesse templo de enormes monstros vorazes, cabeças guilhotinadas e
corpos mumificados de Tutancâmon, que eu abri caminho.
Por toda parte havia grandes lonas cobrindo criações que Roy só revelaria
a seu devido tempo. Eu não ousava olhá-las.
No meio disso tudo um esqueleto segurava um bilhete, balançando no ar.
Dizia:
CARL DENHAM!
Esse era o nome do herói em King Kong.

AS CIDADES DO MUNDO, CRIADAS HÁ POUCO, JAZEM AQUI
EMBAIXO DAS LONAS, À ESPERA DE SUA DESCOBERTA. NÃO
TOQUE NELAS. VENHA ME ENCONTRAR.
THOMAS WOLFE ESTAVA ENGANADO. PODE-SE
PERFEITAMENTE VOLTAR PARA CASA OUTRA VEZ. VIRE À
ESQUERDA NO GALPÃO DE CARPINTARIA, DEPOIS NO SEGUNDO
CENÁRIO À DIREITA. A CASA DE SEUS AVÓS ESTÁ ESPERANDO!
VENHA VER! ROY.

Olhei ao redor das lonas. O desvendar dos segredos! Isso mesmo!
Saí correndo, a pensar: “O que ele quis dizer? Meus avós? Esperando? “
Diminuí o ritmo e comecei a respirar o ar puro, que recendia a carvalhos, olmos e
bordos.
Não é que Roy tinha razão?
Pode-se voltar para casa outra vez.
Uma placa à frente do cenário número 2 dizia: FOREST PLAINS, mas
na verdade era Green Town, onde eu nascera e fora criado com pão que
fermentava ao lado do fogão bojudo no inverno, e vinho que fermentava no
mesmo lugar ao fim do verão. Matéria fundida pingava do mesmo fogão, como
dentes incandescentes de ferro, bem antes da primavera.
Não caminhei pelas calçadas, e sim pelos gramados, contente por ter um
amigo como Roy, que conhecia meus velhos sonhos e me chamava para vivê-los.
Passei por três casas brancas onde meus amigos haviam morado em 1931,
virei uma esquina, e estaquei, paralisado pela surpresa.
O velho Buick 1929 de meu pai estava estacionado na rua poeirenta,
esperando para viajar para o Oeste em 1933. Permanecia ali, enferrujando em
silêncio, os faróis danificados, a cobertura do radiador descarnada, a colméia de
papelão decorada com asas de incautas mariposas e borboletas azuis e amarelas,
um mosaico capturado no ar quente de verões perdidos.
Inclinei-me para passar minha mão, tremendo, sobre o estofamento
traseiro, onde meu irmão e eu trocávamos cotoveladas e gritávamos um com o
outro enquanto atravessávamos os Estados do Missouri, Kansas, Oklahoma...
Não era o carro de meu pai. Mas de alguma forma, era.
Deixei meus olhos se desviarem para a nona maravilha do mundo.
A casa dos meus avós, com a cadeira de balanço na varanda, gerânios em
vasos cor-de-rosa ao longo da balaustrada, e samambaias por toda parte como
chafarizes. Um vasto gramado lembrava o pêlo de um enorme gato verde, com
trevos e dentes-de-leão em tamanha profusão que a gente tinha vontade de tirar os
sapatos e correr descalço por aquele tapete natural. E...
Uma grande janela em água-furtada, onde eu dormia, para acordar num
mundo de paisagem ainda verde.
Na cadeira de balanço, embalando-se suavemente para a frente e para trás,
com as mãos cruzadas no colo, estava meu melhor amigo...
Roy Holdstrom.
Ele balançava em silêncio, perdido como eu em alguma tarde de verão
esquecida no tempo.
Roy avistou-me e abriu os braços longos e magros, abrangendo o
gramado, as árvores, e nós dois.
— Meu Deus! — exclamou ele. — Nós não somos pessoas de sorte?
- 7 –
Roy Holdstrom construía dinossauros em sua garagem desde doze anos
de idade. Os dinossauros perseguiam o pai dele pelo quintal, terminando por
devorá-lo em filmes caseiros de 8 mm. Mais tarde, quando Roy completou vinte
anos, levou seus monstros para um pequeno estúdio vagabundo, e começou a
realizar filmes baratos sobre mundos perdidos, que o tornaram famoso. Os
dinossauros preenchiam tanto sua vida que os amigos ficaram preocupados e
tentaram arranjar uma bela garota que o fizesse esquecer os monstros. Ainda
estavam procurando.
Subi os degraus da varanda lembrando a noite em que Roy me levara para
uma apresentação da ópera Siegfried no Teatro Shrine. “Quem vai cantar?”,
perguntara eu naquela oportunidade. “A música que vá para o diabo!”, dissera
Roy. “Vamos para ver o dragão!” Pois bem, a música fora um sucesso. Mas o
dragão? Matem o tenor. Diminuam as luzes.
Nossos lugares eram tão distantes que eu só consegui ver a narina
esquerda do dragão Fafner! Roy não viu nada, a não ser as chamas enfumaçadas
que se lançaram da cabeça oculta em direção ao corpo de Siegfried.
— Droga! — comentara Roy.
E Fafner morrera, com a espada mágica enterrada no coração. Siegfried
gritou em triunfo. Roy levantou-se, amaldiçoando o palco e saiu do teatro.
Encontrei-o no saguão, resmungando:
— Que porcaria de dragão! Pelo amor de Deus! Viu só aquilo? Enquanto
saíamos, Siegfried ainda cantava coisas sobre a vida, o amor e batalhas
sangrentas.
— Pobres coitados na platéia — comentara ele. — Presos aí por mais
duas horas, sem Fafner!
E ali estava ele, balançando-se preguiçosamente na cadeira daquela
varanda perdida no passado e trazida de volta através dos anos.
— Venha cá! — chamou Roy, alegremente. — Eu não disse? Aqui está a
casa dos meus avós!
— Não! Dos meus!
— Dos nossos.
Roy soltou um riso sincero, segurando um exemplar de Você Não Pode
Voltar para Casa.
— Ele estava errado.
— Tem razão — concordei. — Afinal, estamos aqui.
Estaquei. Avistei sobre aquele cenário pacífico o muro alto que separava
os estúdios do cemitério. O fantasma na escada ainda não me saíra da cabeça,
mas eu ainda não estava pronto para falar sobre isso. Disse simplesmente:
— Ei, onde está o seu Monstro? Isso se repetia havia muitos dias.
Roy e eu fôramos chamados para projetar e construir monstros, fazer
meteoros se despencarem do espaço exterior e criaturas humanóides erguerem-se
de lagoas escuras, pingando alcatrão dos dentes baratos.
Contrataram Roy em primeiro lugar, porque ele estava tecnicamente
adiantado. Seus pterodátilos voavam de verdade por céus primitivos. Seus
brontossauros eram montanhas a caminho de Maomé.
Então alguém leu vinte ou trinta dos meus Contos Insólitos, que eu
escrevia desde os doze anos e vendia para revistas sensacionalistas desde os vinte
e um, e contratou-me para “escrever um enredo” para os monstros de Roy. Tudo
aquilo me animou muito, pois eu assistira cerca de nove mil filmes, e metade da
minha vida esperei que alguém desse o primeiro passo para assim me atirar de
cabeça ao mundo do cinema.
— Quero uma coisa nunca vista antes! — dissera Manny Leiber naquele
primeiro dia. — Em três dimensões disparamos alguma coisa para a Terra. Um
meteoro cai...
— Perto de Meteor Crater, no Arizona — completara eu. — Está ali há
um milhão de anos. Que lugar para um novo meteoro cair e...
— E dali vem nosso novo horror — finalizara Manny.
— Vamos ver essa coisa de verdade? — indaguei.
— O que quer dizer com isso? Temos de ver!
— Claro, mas tome por exemplo um filme como O Homem Leopardo! O
clima de medo vem das sombras noturnas, das coisas que não vemos. E que tal A
Ilha dos Mortos, quando a mulher morta, aquela catatônica, acorda dentro da
própria sepultura?
— Não passam de shows de rádio! — protestara Manny Leiber. — Que
diabos, as pessoas querem ver o que as assusta...
— Não quero discutir...
— Pois não discuta! — Escreva dez páginas para me deixar pálido de
medo! E você! — Ele apontara para Roy. — Seja o que for que ele inventar,
você vai montar com as sobras dos dinossauros! Agora saiam daqui. Vão fazer
caretas no espelho às três da manhã.
— Sim, senhor! — concordáramos em uníssono. E saímos.
Lá fora, à luz do sol, Roy e eu piscamos um para o outro.
— Mais uma encrenca em que você nos meteu, Stanley! Ainda rindo,
começamos a trabalhar.
Escrevi dez páginas, deixando espaço para monstros. Roy colocou oito
quilos de argila sobre uma mesa e dançou ao redor, batendo e dando forma à
massa, esperando que o horror se levantasse como uma bolha num lago pré-
histórico, estourando num silvo sulfúrico e libertando o horror.
Roy leu meu material.
— Onde está o seu Monstro? — quis saber ele.
Olhei para as mãos dele, vazias, mas sujas de argila rubra como sangue.
— Onde está o seu? — redargüi.
E ali estávamos nós, três semanas depois.
— Ei — disse Roy —, por que está parado aí olhando para mim? Venha
até aqui e coma uma rosquinha.
Subi os degraus, peguei a rosquinha e sentei na cadeira de balanço na
varanda, movendo-me alternadamente entre futuro e passado. Futuro — foguetes
e Marte. Passado — dinossauros e lagoas primitivas.
Além de monstros sem rosto por toda parte.
— Para alguém que geralmente fala a cem quilômetros por hora —
comentou Roy Holdstrom —, você está surpreendentemente quieto.
— Estou com medo — confessei finalmente.
— Pois então desembuche — pediu Roy, desligando nossa máquina do
tempo. — Fale, ó poderoso.
Falei.
Ergui o muro, carreguei a escada e suspendi o cadáver, depois descrevi o
raio no meio da chuva fina antes de fazer o corpo despencar. Quando terminei,
depois de enxugar a testa, entreguei a Roy o bilhete com o convite do Dia das
Bruxas.
Roy examinou-o, depois atirou-o ao chão e pisou sobre ele.
— Alguém deve estar brincando!
— Claro. Mas... eu tive de chegar em casa e queimar minha cueca.
Roy apanhou o papel e leu-o novamente, depois fixou o olhar no muro do
cemitério.
— Por que alguém mandaria uma coisa dessas?
— Pois é. Aliás, a maior parte do pessoal do estúdio nem sabe que eu
trabalho aqui.
— Mas que diabos! A noite passada foi o Dia das Bruxas. Mesmo assim,
suspender um corpo até o alto de uma escada seria uma brincadeira elaborada e
trabalhosa. Mas espere um pouco... e se eles disseram a você para vir à meia-
noite, mas a outras pessoas para irem às oito, às nove, às dez e às onze? Assustar
a todos um por um! Isso feria sentido!
— Só se você tivesse planejado tudo. Roy voltou-se para mim.
— Você não está pensando que...
— Não... Estou... Não.
— Resolva-se!
— Lembra-se daquele Dia das Bruxas quando tínhamos dez anos e fomos
ao Teatro Paramount para ver Bob Hope em O Gato e o Canário, e a menina que
estava a nossa frente deu um grito? Quando eu olhei para o lado, você estava com
aquelas máscara de fantasma no rosto?
— Claro! — Roy deu risada.
— Lembra-se daquela vez em que você telefonou e disse que nosso
melhor amigo, Ralph Courtney, tinha morrido? Você tinha pensado em pintar o
rosto dele de branco e pedir para ele deitar na sua cama, fingindo-se de morto,
depois levantar quando eu chegasse. Lembra?
— Claro.
— Só que eu o encontrei na rua e estraguei a brincadeira.
— É mesmo... — Roy balançava a cabeça ao lembrar as próprias
peripécias.
— Pois então. Não é de estranhar que eu pense que você seja capaz de
colocar o maldito corpo no alto da escada, e depois me mandar o bilhete.
— Só tem uma coisa errada com esse raciocínio — disse Roy. — Você
raramente mencionou Arbuthnot para mim. Se fui eu quem fez o corpo, como é
que iria saber se você reconheceria o pobre coitado? Teria de ser alguém que
soubesse com certeza que você encontrou Arbuthnot há muitos anos, certo?
— Bem...
— Não fez sentido, um corpo na chuva, se você não souber para quem
está olhando. Você me contou sobre muitas outras pessoas que encontrou quando
era criança, na porta dos estúdios. Se eu tivesse feito um boneco, seria Rodolfo
Valentino, ou Lon Charney, para ter certeza de que você o reconheceria. Certo?
— Certo — admiti, um pouco sem graça, olhando para o rosto dele,
depois desviando os olhos. — Desculpe. Mas, que diabo, era mesmo Arbuthnot.
Eu o encontrei duas dúzias de vezes durante os anos 30. Nas estréias. Bem
defronte ao estúdio, aqui. Ele aparecia com uma dúzia de carros esporte
diferentes, e três limusines. E as mulheres, então? Várias delas, sempre rindo.
Quando ele assinava meus autógrafos, enfiava um quarto de dólar no caderno
antes de devolver. Um quarto! Em 1934! Dava para comprar um leite maltado,
uma barra de chocolate e uma entrada para o cinema.
— Então ele era esse tipo de sujeito? Não é de estranhar que você se
lembre dele! Quanto chegou a receber dele?
— Num mês ele chegou a me dar um dólar e vinte e cinco. Fiquei rico!
Agora ele está enterrado perto do muro onde eu estive na noite passada. Por que
alguém iria querer me assustar, fazendo com que eu acreditasse que ele levantou
da sepultura e subiu numa escada? Por que toda essa preocupação? O corpo caiu
como um cofre pesado. Seria preciso pelo menos duas pessoas para levantar
aquilo Por quê?
Roy deu outra mordida em sua rosquinha.
— É mesmo... Por quê? A menos que alguém quisesse usar você para
divulgar isso. Você ia contar para mais alguém, não ia?
— Pode ser...
— Não faça isso. Você já parece bem assustado.
— Mas por que eu deveria ficar assustado? À exceção desse
pressentimento de que a coisa é mais do que uma piada, tem de existir um outro
significado.
Roy ficou olhando para a parede, mastigando em silêncio.
— Que diabos! — exclamou por fim. — Você já esteve no cemitério hoje
de manhã para ver se o corpo ainda está lá no chão?
— Não!
— Por que não vamos até lá dar uma olhada? Está com medo?
— Não, mas...
— Ei! — gritou uma voz indignada. — O que vocês dois estão fazendo
aí?
Roy e eu olhamos para a frente da varanda.
Manny Leiber estava em pé no meio do gramado. Seu Rolls-Royce estava
estacionado, o motor ronronando silenciosamente, sem uma única vibração no
capô.
— Então?
— Estamos fazendo uma reunião! — respondeu Roy com facilidade.
— Queremos nos mudar para cá.
— Vocês querem o quê? — Manny deu uma olhada na velha casa
vitoriana, como se a visse pela primeira vez.
— Um ótimo lugar para trabalhar — emendou Roy, rapidamente.
— Escritório na frente, uma varanda, só falta uma mesinha e uma
máquina de escrever.
— Mas vocês já têm um escritório!
— Só que escritórios não dão inspiração. Isto aqui... — fiz um gesto
abrangente, continuando o que Roy começara — inspira. Você devia transferir
todos os redatores daquele prédio. Coloque o Steve Longstreet naquela mansão
de Nova Orleans para escrever o final do filme sobre a Guerra Civil. E aquela
padaria francesa ali adiante? Um ótimo lugar para Mareei Dementhon terminar o
filme sobre a Revolução Francesa, certo? Em Piccadilly pode colocar os novos
redatores ingleses!
Manny veio andando lentamente em direção à varanda, o rosto
avermelhado e confuso. Olhou em volta, para o Rolls-Royce, e depois para nós
dois, com cara de quem tinha nos surpreendido nus, fumando atrás do celeiro.
— Meu Deus, não é o suficiente que tudo tenha dado errado na hora do
café, e agora vêm dois malucos que querem transformar a casa de Lydia Pinkham
num reduto de escritores.
— Exatamente! — disse Roy. — Nessa mesma varanda concebi o
cenário mais assustador da história.
— Chega de rodeios! — Manny recuou. — Me mostre o trabalho.
— Podemos usar o Rolls-Royce? — perguntou Roy. Usamos.
No caminho para o Estúdio 13, Manny Leiber, olhando para a frente,
reclamava:
— Estou tentando dirigir esse verdadeiro hospício, e vocês ficam pelas
varandas mastigando vento. Onde diabo está meu Monstro? Já esperei três
semanas...
— Calma — disse eu, com sensatez —, leva tempo para alguma coisa
realmente nova surgir de dentro da noite. Nos dê um pouco de espaço para
respirar, para que os velhos segredos se revelem. Não se preocupe. Roy aqui já
está trabalhando na argila, e as coisas vão surgir daí. Por enquanto, mantemos o
Monstro nas sombras, veja bem...
— Desculpas... — queixou-se Manny, sem deixar de olhar para a frente.
— Não vejo nada. Esse é o problema. Vou dar mais três dias a vocês! Depois
quero enxergar o Monstro.
— E se o Monstro enxergar a gente? — sugeri. — Se fizermos tudo do
ponto de vista do Monstro? Meu Deus! A câmera se move, ela ê o Monstro, e as
pessoas ficam assustadas com a Câmera, e...
Manny piscou, fechou um dos olhos e virou-se para mim.
— Nada mal... A Câmera, hein?
— Claro! A Câmera sai do meteoro. A Câmera, no papel do Monstro
anda pelo deserto, assustando os lagartos, cobras, abutres, levantando poeira...
— Incrível! — Manny olhava para o deserto imaginário.
— Incrível, mesmo! — concordou Roy, adorando aquilo.
— Podemos colocar uma lente com vaselina na Câmera — emendei. —
Adicionar um pouco de vapor, música assustadora, sombras, o herói olhando para
a Câmera, e...
— E o quê?
— Se eu falar, não vou poder escrever.
— Pois então escreva!
Paramos em frente ao Estúdio 13. Desci, falando sem parar.
— É isso, acho que vou fazer duas versões do roteiro. Uma para você,
uma para mim.
— Duas? — gritou Manny. — Por quê?
— No final da semana entrego as duas. Você pode escolher a que
preferir.
Manny me olhou desconfiado, meio dentro, meio fora do Rolls-Royce.
— Isso é besteira! Você vai trabalhar melhor na sua idéia!
— Não! Farei o melhor que puder para sua idéia. Mas também o melhor
para a minha! Certo?
— Dois monstros pelo preço de um? Pode fazer? Mãos à obra! Do lado
de fora da porta, Roy parou dramaticamente.
— Estão prontos para o que vão ver? Preparem as mentes e os corações.
— Ele levantara ambos os braços, como um sacerdote.
— Estou preparado, que diabos. Abra logo!
Roy afastou-se e abriu a porta exterior, depois a interior. Penetramos na
escuridão total.
— Acenda as luzes — pediu Manny.
— Um momento — sussurrou Roy.
Ouvimos Roy movendo-se no escuro, pisando com cautela sobre objetos
escondidos. Manny agitava-se nervosamente.
— Quase pronto — anunciou Roy com voz teatral pelo território noturno.
— Agora...
Roy ligou a máquina de vento. Primeiro ouvimos um uivo como o de uma
grande tempestade, que nos trouxe o clima dos Andes, as neves sussurrando pelo
Himalaia, a chuva sobre a Sumatra, um vento na selva aos pés do Kilimanjaro,
ventos marinhos nas escarpas dos Açores, repletos do lamento de numerosos
pássaros, do agitar de asas de morcegos; tudo isso se misturava de forma a
provocar arrepios na pele da gente, e abrir compartimentos escuros da
imaginação...
— Luzes! — anunciou Roy.
Agora a luz levantava-se sobre as paisagens alienígenas de Roy
Holdstrom, mostrando vistas tão belas e insólitas que faziam o coração parar e
despertavam terror. Ficamos abalados à medida que a sombra prosseguia pelas
dunas microscópicas como multidões de pequenos roedores suicidas, avançando
pelas colinas e montanhas miniaturas, na direção de um destino já prometido, mas
não atingido.
Olhei ao redor, maravilhado. Roy lera outra vez minha mente. As zonas
brilhantes e negras, que eu projetara na tela escura de meu íntimo, haviam sido
roubadas, copiadas e construídas sem que eu chegasse a mencionar o assunto.
Agora, com essa reviravolta, eu utilizaria aquelas realidades em miniatura para
escrever um roteiro dos mais insólitos. Meu herói mal podia esperar para sair
correndo por aquela terra estranha e reduzida.
Manny Leiber olhava aquilo tudo, aparvalhado.
A terra dos dinossauros de Roy era um país de fantasmas revelado por
uma aurora antiga e artificial.
Limitando esse mundo perdido, havia grandes placas de vidro, nas quais
Roy pintara selvas primitivas e pântanos de alcatrão, onde chafurdavam suas
criaturas, iluminadas por poentes escaldantes e hostis como se fossem marcianos,
formados por dezenas de tonalidades vermelhas.
Causou-me o mesmo impacto dos tempos de colégio, quando Roy me
levara até sua casa, provocando-me um choque após abrir as portas da garagem,
expondo, em vez de automóveis, criaturas com uma necessidade primitiva de
levantar-se, mover as patas, morder, voar, rugir e morrer pelas noites de nossa
infância.
Agora, ali no Estúdio 13, o rosto de Roy ardia sobre um continente inteiro
em miniatura, onde eu e Manny nos encontrávamos.
Andei na ponta dos pés sobre aquilo tudo, com medo de estragar alguma
coisa. Cheguei perto de uma mesinha de escultor coberta com uma lona e esperei.
Com certeza esse seria seu melhor Monstro, capaz de produzir o mesmo
impacto que o fizera recuar quando, nos anos 20, visitamos pela primeira vez o
Museu de História Natural. Certamente em algum lugar no planeta esse Monstro
se ocultava na poeira, perdido nas profundezas das minas de carvão, sob nossos
pés! Escutem! Escutem esse som subterrâneo, o bater do coração antediluviano, e
os pulmões vulcânicos sibilando para libertar-se! Será que Roy o libertara?
— Macacos me mordam! — Manny Leiber deu um passo em direção ao
Monstro escondido. — Podemos vê-lo agora?
— Esse é o Monstro — declarou Roy. Manny estendeu a mão na direção
da lona.
— Espere um pouco! — interrompeu Roy. — Preciso de mais um dia.
— Mentiroso! — gritou Manny. — Não acredito que você tenha alguma
coisa embaixo desse trapo!
Manny deu um passo. Roy avançou dois. Nesse instante, o telefone do
Estúdio 13 tocou. Antes que eu pudesse me mexer, Manny atendeu.
— Pode falar — rosnou ele.
Seu rosto mudou. Talvez tenha ficado pálido, talvez não, era difícil saber
naquela iluminação. Mas o rosto mudou.
— Sei disso — disse ele ao aparelho, inspirando profundamente. — Sei
disso, também. — Outra inspiração profunda, e o rosto foi ficando cada vez mais
vermelho. — Já sabia disso meia hora atrás! Que diabos, quem está falando?
Um zumbido ergueu-se do outro lado da linha. A outra pessoa desligara.
— Filho de uma puta!
Manny largou o telefone e eu o agarrei no ar.
— Alguém me coloque numa camisa-de-força, esse lugar é um hospício!
Onde é que eu estava, mesmo? Vocês!
Ele apontou para nós dois.
— Dois dias, e não três. Acho bom tirarem esse Monstro da caixinha de
surpresas, ou então...
Nesse ponto a porta externa abriu-se. Um sujeito baixinho de terno preto,
um dos motoristas do estúdio, ficou delineado pela luz exterior.
— O que foi desta vez? — perguntou Manny.
— Conseguimos trazer a coisa até aqui, mas o motor morreu. Acabamos
de consertar.
— Vamos com isso, então! Mexa-se, pelo amor de Deus.
Manny avançou na direção dele, levantando um dos punhos, e o
indivíduo saiu correndo; portanto, Manny voltou sua explosão de fúria em nossa
direção.
— Estou com os contratos finais de vocês sobre a minha mesa, prontos
para sexta-feira à tarde. Aprontem o serviço até lá, ou então vou providenciar
para que nunca mais trabalhem no ramo, nenhum dos dois.
— Podemos ficar com ela? — perguntou Roy, baixinho. — Nossa Green
Town, Illinois, como escritório? Agora que viu os resultados que nós, os
malucos, produzimos?
Manny fez uma pausa longa o suficiente para examinar outra vez o
mundo perdido, com cara de menino numa fábrica de fogos de artifício.
— Meu Deus — suspirou ele, por fim, esquecendo os problemas por um
instante. — Tenho de admitir que vocês conseguiram mesmo. — Parou, irritado
com a própria admiração, e mudou de tom. — Agora chega de papo e comecem a
trabalhar!
E... bom! A porta bateu quando ele saiu.
Em pé no meio de nossa paisagem pré-histórica, perdidos no tempo,
olhamos um para o outro.
— Ele está cada vez mais curioso — comentou Roy. — Você vai mesmo
fazer o que prometeu? Escrever duas versões do roteiro? Uma para ele e uma
para nós?
— Claro.
— Como consegue fazer uma coisa dessas?
— Que diabo, estive treinando por quinze anos, escrevi uma centena de
histórias baratas, uma por semana, durante cem semanas... dois esboços de roteiro
em dois dias? Os dois geniais? Confie em mim, cara.
— Eu confio, eu confio. — Roy fez uma boa pausa, depois perguntou: —
Como é, vamos lá ver?
— Ver o quê?
— Aquele funeral a que você assistiu. Ontem à noite. No muro do
cemitério. Espere um pouco...
Roy caminhou até as portas duplas. Fui atrás. Ele abriu a porta, e ambos
olhamos para fora.
Um carro funerário antigo, ornado, com grandes janelas de cristal estava
sumindo de vista pela rua do estúdio, o motor em péssimas condições, fazendo
um barulhão.
— Aposto que sei para onde ele está indo — afirmou Roy.
- 8 -
Fomos pela Rua Gower na velha baratinha 1927 de Roy.
Não vimos o carro funerário entrar no cemitério, mas, enquanto
estacionávamos em frente, ele vinha saindo pela alameda de cascalho.
Passou por nós, agora levando um caixão, em plena luz do dia.
Viramo-nos para observar a limusine negra saindo pelo portão, sem fazer
mais ruído do que um iceberg desprendendo-se da calota polar.
— Essa é a primeira vez que eu vejo um caixão saindo de um cemitério.
Chegamos atrasados!
Voltei-me a tempo de ver a traseira da limusine virando para oeste, na
direção dos estúdios.
— Atrasados para quê?
— Para examinar o cadáver que você viu, seu burro! Vamos! Estávamos
quase no muro dos fundos do cemitério, quando Roy parou.
— Olhe, ali está o túmulo dele!
Olhei para onde ele olhava, cerca de três metros acima de nós, as letras
cinzeladas no mármore: J.C. ARBUTHNOT, 1884-1934, R.I.P. Era um daqueles
jazigos em forma de templo grego no qual enterram gente rica, com um portão de
ferro trançado, que se fechava sobre uma pesada porta de bronze e madeira.
— Ele não poderia ter saído daí, certo?
— Não, mas alguma coisa estava naquela escada, e eu reconheci o rosto
dele. E mais alguém sabia que eu reconheceria esse rosto, por isso fui convidado
a vir aqui.
— Fique quieto. Vamos até lá. Continuamos pelo caminho de cascalho.
— Cuidado. Não queremos ser apanhados jogando esse jogo idiota.
Chegamos ao muro. Não havia nada ali, claro.
— Como eu disse, se esse corpo esteve aqui, chegamos tarde demais —
suspirou Roy, olhando ao redor.
— Não! Veja ali.
Apontei para o alto do muro.
Havia duas marcas, no musgo da parte superior, de algum objeto que fora
apoiado na borda.
— A escada?
— E ali embaixo também.
A grama na base do muro, cerca de um metro e vinte de distância, possuía
duas depressões.
— E aqui também, está vendo?
Mostrei a ele uma parte da grama onde as folhas estavam amassadas por
algum peso que caíra.
— Bem, bem — murmurou Roy. — Parece que o Dia das Bruxas está só
começando.
Roy ajoelhou-se na grama e passou os dedos longos no local para delinear
a impressão do peso que estivera apoiado ali, sob chuva fria, doze horas atrás.
Ajoelhei-me ao lado dele, examinando a depressão, e estremeci.
— Eu... — interrompi o que ia dizer, pois uma sombra colocou-se entre
nós.
— Bom dia!
O vigia diurno do cemitério estava em pé, a nosso lado. Olhei
rapidamente para Roy.
— É essa mesma a sepultura? Fazem tantos anos, eu...
A sepultura seguinte estava coberta de folhas. Limpei a lápide com a mão.
Havia um nome que ainda era possível ler: SMYTHE. NASCIDO EM 1875 -
MORTO EM 1928.
— Claro! Vovô! — gemeu Roy. — Coitadinho! Morreu de pneumonia.
— Roy me ajudou a limpar o túmulo. — Como eu gostava dele...
— Onde estão as flores? — indagou o vigia, numa voz hostil. Roy e eu
hesitamos.
— Mamãe está trazendo — respondeu Roy. — Viemos na frente, para
localizar a sepultura. — Ele olhou para trás por sobre o ombro. — Ela está vindo
ali.
O vigia, um sujeito idoso e desconfiado, cujo rosto lembrava um túmulo,
olhou na direção do portão.
Uma mulher, levando flores, vinha pela rua, ao longe, perto do Bulevar
Santa Mônica.
Graças a Deus, pensei.
O vigia resmungou algo, mastigou goma de mascar e retirou-se por entre
os túmulos. Bem a tempo, pois a mulher virou a seguir uma esquina, sumindo de
vista.
Levantamo-nos. Roy apanhou algumas flores de um jazigo próximo.
— Não faça isso!
— Claro que faço! — Roy arrumou as flores sobre o túmulo do vovô
Smythe. — Só para o caso de o sujeito voltar e reparar que não colocamos
nenhuma flor aqui.
Andamos cerca de cinqüenta metros e esperamos, fingindo conversar,
sem dizer muita coisa. Por fim, Roy me cutucou.
— Cuidado! Olhe para o chão. Ele voltou.
De fato, o vigia retornara ao local onde estavam as marcas na grama.
Olhou para nós. Rapidamente, passei o braço pelo ombro de Roy, para consolá-
lo.
O velho curvou-se. Com os dedos em garra, alisou a grama. Em pouco
tempo não havia mais vestígios de que nada pesado tivesse caído ali na noite
anterior.
— Acredita agora? — perguntei.
— Vamos procurar aquele carro fúnebre.
- 9 -
Enquanto entrávamos pelos portões do estúdio, o carro fúnebre saía.
Vazio. Como o ruído de um vento outonal, ele passou, retornando ao país da
Morte.
— Meu Deus! Exatamente como imaginei. — Roy dirigia olhando para
trás. — Estou começando a gostar disso!
Continuamos pela rua interna, na direção oposta à que o carro fúnebre
percorrera.
Fritz Wong vinha pela rua a nossa frente, liderando um esquadrão militar
invisível, resmungando e falando consigo mesmo, o perfil agudo cortando o ar
em duas metades. Usava uma boina, e provavelmente era o único em Hollywood
que usava uma boina e desafiava os outros a reparar!
— Fritz! — chamei. — Pare, Roy!
Fritz alterou o passo para apoiar-se contra o carro e brindou-nos com seu
já familiar cumprimento.
— Como vai, seu ciclista marciano idiota? Quem é esse motorista com
cara de macaco?
— Oi, Fritz, seu idiota... — hesitei e resolvi ser mais educado. — Roy
Holdstrom, o maior construtor do mundo, projetista e piloto de dinossauros!
O monóculo brilhou. Fixou Roy com seu olhar germânico-oriental, depois
assentiu.
— Qualquer amigo do Pithecanthropus erectus, é meu amigo também!
— Gostei muito do seu último filme — declarou Roy, correspondendo ao
aperto de mão.
— Gostou? — repetiu Fritz Wong.
— Adorei! — corrigiu-se Roy.
— Ótimo! — Fritz voltou-se para mim: — O que há de novo desde o café
da manhã?
— Alguma coisa estranha aconteceu por aqui agora há pouco?
— Passou uma corte romana de quarenta homens agora mesmo. Um
gorila, carregando sua cabeça, foi correndo para o Estúdio 10. Um diretor de arte
homossexual foi expulso do banheiro dos homens. Judas está em greve para
ganhar mais dinheiro na Galiléia. Enfim, não aconteceu nada de estranho que eu
tivesse visto.
— E quanto a funerais? — sugeriu Roy.
— Funerais? Acha que eu não iria reparar? Espere um pouco! — Ele
virou o monóculo em direção ao portão, depois voltou o olhar para nós. — Que
diabo! Passou mesmo um enterro. Tive esperança de que fosse o funeral de
DeMille, para poder comemorar. Foi naquela direção.
— Estava programada a filmagem de algum funeral para hoje?
— Em todos os estúdios: canastrões, atores catatônicos, diretores com
tanta falta de sensibilidade que matariam uma baleia no parto! Ontem foi Dia das
Bruxas, não foi? E hoje é o Dia de Finados no México,
1 ° de novembro. Por que seria diferente na Maximus? Onde arranjou um
calhambeque como esse, senhor Holdstrom?
— Este — respondeu Roy, falando devagar como se estivesse perdendo a
paciência numa comédia de Hal Roach — é o carro no qual Laurel e Hardy
venderam peixe naquele curta-metragem de 1930. Me custou cinqüenta dólares,
mais setenta pela pintura nova. Afaste-se, senhor!
Fritz Wong, adorando a atitude de Roy, deu um pulo para trás.
— À uma hora, marciano. No refeitório. Esteja lá!
Passamos pela multidão do meio-dia. Roy dobrou uma esquina e passou
por Springfield, Illinois, Manhattan e Picadilly.
— Sabe para onde está indo? — perguntei.
— Que diabos, um estúdio é lugar muito grande para esconder um
cadáver. Quem iria reparar? Num lugar cheio de abissínios, gregos e mafiosos de
Chigago, a gente pode andar com meia dúzia de turmas brigando, acompanhado
por quarenta bandas marciais, que ninguém iria reparar. Aquele corpo, parceiro,
deve estar bem aqui!
E dobramos a última esquina na direção de Tombstone, Arizona.
— Belo nome para uma cidade — comentou Roy.
- 10 -
Fazia um calor preguiçoso. Era meio-dia. Estávamos cercados por mil
pegadas na poeira das ruas do cenário. Algumas delas feitas por Tom Mix, Hoot
Gibson e Ken Maynard, há muito tempo. Deixei o vento agitar a memória,
levantando poeira quente. Obviamente as pegadas não haviam permanecido, mas
isso não conta. Mesmo as passadas enormes de John Wayne desapareceram,
assim como as marcas de sandálias de Mateus, Lucas, Marcos e João não estavam
mais impressas no mar da Galiléia, no cenário 12, a cem metros de distância.
Apesar disso, permanecia o cheiro de cavalos, e a diligência logo iria chegar com
uma nova carga de roteiros e um bando de vaqueiros ociosos. Eu apreciava a
sensação de ficar sentado no velho calhambeque do Gordo e o Magro, olhando
para a velha locomotiva da Guerra Civil, que duas vezes por ano se tornava o
expresso das nove e dez para Galveston, ou o trem da morte de Lincoln, levando-
o para casa. Meu Deus!
Finalmente, indaguei:
— Por que você tem tanta certeza de que o caixão está aqui?
— Com mil demônios! — Roy pisou no soalho do carro, da mesma forma
que Gary Cooper chutava bosta de vaca. — Dê uma boa olhada nessas
construções.
Eu olhei.
Por trás das fechadas falsas da pequena cidade do Oeste, encontravam-se
armazéns de peças metálicas, velhos museus de carros, celeiros, e...
— A carpitaria?
Roy assentiu e virou a esquina com o calhambeque, para deixá-lo fora de
vista.
— Eles fazem caixões aqui, portanto o corpo deve estar por perto. — Roy
saiu do carro, uma perna de cada vez. — O caixão voltou para cá porque foi feito
aqui. Vamos logo, antes que os índios cheguem!
Eu o alcancei numa cave escura onde a mobília imperial de Napoleão
estava pendurada em suportes e o trono de Júlio César esperava pelo traseiro
desaparecido há tanto tempo.
Olhei em volta.
Ninguém morre jamais, pensei. Sempre voltam. Se você quiser, claro.
E onde se espera pela ressurreição? Aqui, pensei. Aqui, claro.
Nas mentes dos homens com marmitas, que chegam parecendo
trabalhadores e vão embora como maridos ou amantes improváveis.
Mas, e entrementes?
Construir o Mississippi Belle, se a gente quiser que o vapor aporte em
Nova Orleans, ou apoiar as colunas de Bernini, ou reconstruir o Empire State, e
depois um macaco movido a vapor, suficientemente grande para escalá-lo.
Nossos sonhos na prancheta deles, que são os filhos de Michelangelo e de
Da Vinci, os pais de ontem terminando como filhos do amanhã.
Naquele momento meu amigo Roy penetrava na penumbra da carpintaria,
atrás da fachada de um saloon do Velho Oeste, entre os minaretes de Badgá e
Sandusky.
Silêncio. Todos haviam ido almoçar.
Roy farejou o ar e sorriu.
— Meu Deus! Sinta só esse cheiro! Serragem! Foi o que me levou à
marcenaria do colegial com você. E também os sons das serras circulares. Era o
barulho de pessoas fazendo coisas. Minhas mãos cocavam. — Roy parou ao lado
de uma grande caixa de vidro e olhou o belo objeto no interior.
Ali estava uma miniatura do Bounty, com cinqüenta centímetros de
comprimento, completamente aparelhado, singrando mares imaginários, dois
longos séculos atrás.
— Vá em frente — incentivou ele, baixinho. — Toque de leve. Foi o que
fiz, maravilhando-me e esquecendo-me completamente do motivo que me
trouxera até ali, com vontade de ficar para sempre. Roy foi obrigado a me arrastar
dali.
— Bem na mosca — sussurrou ele. — Escolha um. Estávamos em frente
a uma enorme prateleira de ataúdes, que se estendia por mais de quinze metros na
escuridão morna.
— Como é que eles têm tantos? — perguntei, enquanto avançávamos.
— Servem para enterrar todos os “perus” que o estúdio vai produzir até o
Dia de Ação de Graças.
Atingimos a linha de montagem dos caixões.
— São todos seus. Escolha.
— Não deve estar no alto. As pessoas são preguiçosas. Sendo assim...
este aqui.
Toquei com o sapato o caixão mais próximo.
— Vá em frente — incentivou Roy, rindo com a minha hesitação —
Abra!
— Abra você.
Roy curvou-se e tentou abri-lo.
— Droga.
O caixão estava pregado.
Uma sirene soou em algum lugar. Levantamos a cabeça.
Lá fora, na rua de Tombstone, um carro se aproximava.
— Rápido! — Roy correu até uma bancada, procurando freneticamente
uma ferramenta, acabando por encontrar um pé-de-cabra e um martelo.
— Pelo amor de Deus! — exclamei.
O Rolls-Royce de Manny Leiber parava ao lado do mourão onde se
amarravam os cavalos.
— Vamos embora!
— Só depois de... ah, consegui! O último prego saiu.
Roy agarrou a tampa, tomou fôlego e abriu o ataúde.
Ouvimos o som de vozes na cidade falsa, sob o sol do meio-dia.
— Por Deus, abra os olhos — pediu Roy. — Olhe!
Eu havia cerrado os olhos com força, para não sentir outra vez a chuva
em meu rosto. Olhei.
— Então?
O corpo estava ali, com os olhos arregalados, as narinas dilatadas e a boca
aberta. Mas a chuva não caía no interior, nem escorria pelas bochechas ou pelo
queixo.
— Arbuthnot — balbuciei.
— Isso mesmo — concordou Roy. — Agora me lembro das fotografias.
Por Deus, a semelhança é impressionante. Mas por que alguém construiria algo
assim, e o colocaria no alto de uma escada?
Ouvi uma porta batendo. A cem metros dali, na poeira quente, Manny
Leiber saía do Rolls-Royce e piscava para acostumar os olhos à sombra acima de
nós.
Encolhi-me.
— Espere um minuto... — disse Roy, inclinando-se para o caixão.
— Não faça isso!
— Agüente firme — pediu ele, e tocou o cadáver.
— Depressa, pelo amor de Deus!
— Veja isto aqui.
Ele segurou o corpo e levantou-o.
— Ah! — exclamei, paralisado.
Pois o corpo fora levantado com tanta facilidade que parecia um saquinho
de cereais.
— Não é possível!
— É, sim. — Roy sacudiu o corpo, que chacoalhou como um espantalho.
— Macacos me mordam! E veja aqui no fundo do caixão: peças de chumbo, para
fazer peso uma vez que o boneco esteja no alto da escada! E quando caísse, como
você disse, bateria com força no chão. Cuidado, lá vêm os tubarões!
Roy estreitou os olhos para enxergar na claridade as figuras descendo dos
carros e reunindo-se ao redor de Manny.
— Muito bem, vamos embora — disse Roy, fechando a tampa do caixão
e começando a correr.
Eu o segui na confusão de mobília, pilares e fachadas falsas.
De longe, depois de atravessar dúzias de portas, na metade de uma
escadaria renascentista, Roy e eu paramos, olhamos para trás e procuramos
escutar. A noventa ou cem metros de distância, Manny Leiber chegava ao lugar
onde estivéramos um minuto atrás. A voz dele sobressaía-se entre outros sons.
Imagino que ele deva ter dito aos outros para calarem a boca. Em seguida houve
silêncio. Estavam abrindo o caixão com o boneco.
Roy olhou para mim, as sobrancelhas levantadas. Devolvi o olhar, sem
coragem de respirar.
Logo depois chegou até nós uma espécie de agitação, um grito seguido de
algumas imprecações. Manny xingava mais alto do que os outros. Então elevou-
se um burburinho, mais discussões, Manny gritou outra vez, e finalmente a tampa
do caixão bateu com estrépito.
Foi esse último som que fez com que eu e Roy saíssemos correndo
daquele lugar. Atravessamos as escadas tão silenciosamente quanto possível,
corremos por dezenas de portas e saímos pela traseira da carpintaria.
— Está ouvindo alguma coisa? — perguntou Roy, sem fôlego, olhando
para trás.
— Não. E você?
— Nada. Mas com certeza eles ficaram loucos da vida. E não foi uma vez
só, foram três vezes. Manny estava possesso! Que diabos está acontecendo
afinal? Por que todo esse escândalo por causa de um boneco que eu podia ter
feito em meia hora com dois dólares de látex cera e gesso?
— Calma, Roy! — pedi. — Não queremos que ninguém nos veja
correndo.
Roy diminuiu o ritmo, mas continuou com suas passadas enormes.
— Puxa, Roy! E se eles descobrirem que estivemos lá?
— Eles não vão descobrir. Ei, isso até que é divertido.
Por que, pensei, tive a brilhante idéia de apresentar meu melhor amigo a
um cadáver?
Um minuto mais tarde chegávamos ao calhambeque de Roy, atrás da loja.
Roy acomodou-se em seu banco, sorrindo de forma desavergonhada e
olhando para o céu.
— Suba — pediu ele.
No interior das construções, as vozes se levantavam como em todas as
tardes. Uma pessoa praguejava. Alguém criticava o trabalho de outro. Alguém
concordava. Muitos discordavam enquanto a pequena multidão saía para o calor
da tarde, como um enxame de abelhas zangadas.
Um momento mais tarde, o Rolls-Royce de Manny Leiber passou como
um furacão.
No interior do veículo, consegui enxergar três rostos, pálidos como
cadáveres.
E o rosto de Manny Leiber, escarlate de raiva.
Ele nos avistou quando o carro passou por nós.
Roy acenou alegremente.
— Roy!
— O que será que me deu? — disse ele, rindo e acelerando. Olhei para
Roy, irritado. Sorvendo o vento, ele estalou a língua, com evidente prazer.
— Você é maluco! — explodi. — Será que tem sangue de barata?
— E por que eu deveria ficar assustado com um boneco feito de papel
machê? — raciocinou ele. — Que diabos, o mau humor de Manny me faz sentir
bem. Levei um bocado de broncas dele. Alguém jogou uma bomba dentro da
calça dele? Tanto melhor!
— Foi você? — perguntei, de chofre. Roy ficou surpreso.
— Você ainda está com essas idéias? Por que eu iria montar um
espantalho e subir em escadas à meia-noite?
— Pelo motivo que você acabou de mencionar. Quebrar a monotonia e
enfiar bombas nas calças das pessoas.
— Nada disso. Gostaria de ter o crédito por essas coisas. No momento,
mal posso esperar para almoçar. Quando Manny aparecer, o rosto dele vai estar
em frangalhos.
— Acha que alguém nos viu lá dentro?
— Por Deus, claro que não! Por isso eu o cumprimentei! Para mostrar
como somos burros e inocentes! Alguma «coisa está acontecendo por aqui.
Temos de agir normalmente.
— Quando foi a última vez em que fizemos isso? Roy riu.
Passamos ao redor dos locais de trabalho, depois por Madri, Roma e
Calcutá, parando à frente de um prédio em algum lugar do Bronx.
Roy consultou o relógio.
— Você tem um compromisso, com Fritz Wong. Vá. Nós dois devemos
ser vistos em todos os lugares nas próximas horas, menos lá. — Ele acenou na
direção de Tombstone, a duzentos metros.
— E quando você vai começar a ficar assustado? — perguntei.
— Ainda não — respondeu ele com ar ausente, alisando os nós dos
dedos.
Roy deixou-me em frente ao refeitório. Desci e fiquei olhando o rosto que
ora ficava sério ora assumia um ar divertido.
— Não vai entrar?
— Daqui a pouco. Tenho algumas coisas para fazer.
— Roy, não pretende fazer nenhuma besteira, pretende?
— E por que eu faria uma coisas dessas?
— Você está outra vez com aquele olhar maluco e distante.
— Estive pensando — admitiu ele.
— Pois não faça isso.
— Quando Arbuthnot morreu?
— Esta semana faz vinte anos. Foi um acidente de carro, bem feio. Três
pessoas morreram. Arbuthnot e Sloane, o contador do estúdio, mais a esposa de
Sloane. O assunto foi manchete durante vários dias. O funeral foi maior que o de
Valentino. Eu fiquei do lado de fora do cemitério com meus amigos. Tinha flores
suficientes para a Parada das Rosas no Ano-Novo. Mil pessoas assistiram ao
enterro, chorando por trás dos óculos escuros. Foi comovente. Arbuthnot foi
venerado a esse ponto.
— Acidente de carro, é?
— O carro bateu num poste. Sem testemunhas. Talvez um pneu tenha
estourado...
— Talvez. — Roy espichou o lábio inferior, estreitando os olhes. — Mas,
e se existir mais alguma coisa por trás disso? Talvez, depois de passado muito
tempo, alguém tenha descoberto alguma coisa sobre o acidente e esteja
ameaçando botar a boca no mundo. Se não fosse assim, por que o boneco teria
ido parar no alto da escada? Qual a causa do pânico? Por que a pressa se não há
nada a esconder? Escutou as vozes lá dentro? Por que um cadáver que não é um
cadáver, um corpo que não é um corpo, agitaria tanto os executivos?
— Provavelmente existiu mais de uma carta — sugeri. — A que recebi e
algumas outras. Mas fui o único estúpido o suficiente para ir até lá verificar.
Como não contei para ninguém, quem quer que tenha colocado o boneco na
escada precisou escrever ou telefonar hoje para despertar o pânico e fazer com
que mandassem o carro fúnebre. E o sujeito que provocou tudo está por aqui,
rindo de tudo isso. Mas por quê... por quê...?
— Vá andando — pediu Roy, baixinho, dando a partida no calhambeque.
— Depressa. Vamos resolver esse mistério durante o almoço. Coloque sua
expressão mais inocente, como num anúncio de creme dental. Preciso verificar
minha maquete. Tenho de colocar mais uma ruazinha no lugar. — Ele consultou
o relógio. — Em duas horas, meu país dos dinossauros estará pronto para filmar.
Depois, tudo o que precisamos é do nosso glorioso Monstro.
Olhei para o rosto animado de Roy.
— Você não pretende roubar o corpo e colocá-lo de volta no muro, certo?
— Isso nem passou pela minha cabeça — garantiu Roy, afastando-se.
– 11 -
No centro do canto esquerdo do refeitório havia uma pequena plataforma,
com uma altura de aproximadamente trinta centímetros, onde ficava uma mesa
com duas cadeiras. Sempre imaginei o feitor de uma trirreme romana sentado ali,
batendo no tambor para dar o ritmo aos escravos, suando e acorrentados aos
remos, tentando atingir algum distante corredor de cinema, perseguidos por
exibidores enlouquecidos, saudados ao aportar por multidões de espectadores
ultrajados.
Mas ali nunca houve um feitor de galés.
Era a mesa de Manny Leiber. Ele a freqüentava sozinho, remexendo sua
comida como se fosse as entranhas de pombos sacrificados pelos adivinhos de
César, separando as vísceras, ignorando o coração e predizendo o futuro. Em
alguns dias ele ficava ali com Doc — ou doutor — Phillips, testando novos filtros
e poções diluídas em água de torneira. Em outros dias, ele comia acompanhado
de diretores ou roteiristas, que o confrontavam constrangidos, concordando
submissos: sim, claro que o filme estava atrasado! Sim, com certeza eles iriam
trabalhar mais depressa!
Ninguém queria sentar naquela mesa. Não raro, um bilhete em papel cor-
de-rosa era entregue no lugar da nota.
Naquele dia, quando eu me esgueirei para o interior e vaguei por entre as
mesas, a plataforma de Manny estava vazia. Parei. Era a primeira vez que eu não
via ali pratos nem talheres nem ao menos o habitual vaso de flores. Manny ainda
estava fora, em algum lugar, praguejando contra o sol por tê-lo ofendido.
A essa altura, a maior mesa do refeitório aguardava; metade dos lugares
ocupados, ainda enchendo.
Nunca chegara perto daquela mesa nas três semanas em que eu trabalhava
no estúdio. Como a maioria dos neófitos, eu receava o contato com os que eram
demasiadamente famosos. Certa vez, quando eu era menino, H. G. Wells
pronunciara uma conferência em Los Angeles, e eu não fora pedir seu autógrafo.
A onda de êxtase provocada pela simples visão do escritor me paralisara. Era da
mesma forma que eu encarava aquela mesa do refeitório, onde se reuniam os
melhores diretores, montadores e roteiristas, num eterno banquete da Última Ceia,
esperando por um Cristo atrasado. Vendo-a novamente, perdi a coragem.
Alterei meu caminho, dirigindo-me ao canto escondido, onde eu e Roy
freqüentemente devorávamos nossa sopa e sanduíches.
— Não senhor! — disse uma voz.
Minha cabeça encolheu no pescoço, que baixou para o interior do
colarinho, como um periscópio lubrificado com suor.
— Seu compromisso é aqui! — informou Fritz Wong. — Ordinário,
marche!
Ricocheteei entre as mesas, olhando para baixo, para o lado de Fritz. Senti
a mão dele em meu ombro, pronta a arrancar-me as divisas.
— Este é nosso visitante, vindo diretamente de outro planeta para o
refeitório — apresentou ele. — Vou mostrar-lhe seu lugar.
Sua mão forçou-me suavemente para baixo. Finalmente levantei os olhos
e deparei com doze pessoas à mesa, examinando-me.
— E agora ele vai nos contar sobre à Procura do Monstro — anunciou
ele.
O Monstro.
Desde que fora anunciado que Roy e eu iríamos escrever, construir e dar
origem ao mais horrendo animal que Hollywood já produzira, milhares tentavam
auxiliar em nossa busca. Poder-se-ia pensar que estávamos procurando Scarlett
O'Hara, ou Anna Karenina. Mas não... era o Monstro, e um concurso para
encontrar o Monstro fora iniciado pelas revistas Variety e Hollywood Reporter.
Meu nome e o de Roy eram mencionados em todos os artigos, que eu recortara e
guardara cuidadosamente. Começaram a chegar fotografias de outros estúdios, de
agentes e do público em geral. Nos portões do estúdio apresentaram-se os
Quasímodos números Dois e Três, bem como quatro Fantasmas da Ópera. Vários
Lobisomens. Primos em primeiro e segundo graus de Bela Lugosi e Boris Karloff
foram expulsos por estarem tentando esconder-se no Estúdio 13.
Roy e eu começávamos a nos sentir como se estivéssemos julgando um
concurso de beleza em Atlantic City, de alguma forma transferido para a
Transilvânia. Seres metade homens, metade animais, aguardavam todas as noites
do lado de fora dos estúdios; as fotografias eram piores ainda. Por fim ateamos
fogo a todas elas e passamos a sair do estúdio por uma saída lateral.
Assim fora nossa busca pelo Monstro durante o mês inteiro.
Fritz Wong dizia novamente:
— Muito bem, pode revelar tudo sobre o Monstro.
– 12 -
Olhei para todos aqueles rostos e comecei a falar.
— Não. Preferia não fazer isso. Roy e eu vamos aprontá-lo em pouco
tempo, mas no momento... — tomei um gole rápido de água de torneira. —
Estive observando esta mesa por três semanas. Todos sempre sentam nos mesmos
lugares. Uma pessoa sempre aqui, outra pessoa sempre ali, e assim por diante. Por
que não trocar de lugares? Deixem espaços vazios, para que todos possam repetir
a brincadeira da cadeira a cada meia hora, para conhecer outras pessoas, não ficar
sempre em frente ao mesmo rosto. Desculpem.
— Como, desculpem? — Fritz agarrou meus ombros e sacudiu-me ao
ritmo da própria gargalhada. — Muito bem, rapazes, vamos fazer a brincadeira da
cadeira! Allez-cop!
Gritos e aplausos saudaram suas palavras.
E assim aumentou a hilaridade enquanto todos se cumprimentavam,
vibravam tapinhas nas costas uns dos outros e encontravam novos lugares. Isso
apenas me deixou ainda mais embaraçado e confuso, o que provocou novos risos.
Mais aplausos soaram.
— Acho bom convidarmos esse maestro aqui todos os dias para nos dar
noções de vida social — comentou Fritz. — Muito bem, colegas, agora as
apresentações: a sua esquerda, jovem maestro, está Maggie Botwin, a melhor
montadora de filmes na história do cinema!
— Papo-furado! — contestou Maggie, voltando sua atenção para a
omelete, que levara para o novo lugar.
Maggie Botwin.
Uma mulher empertigada e silenciosa, dando a impressão de ser maior do
que era na realidade pela maneira ereta como se sentava, como mantinha as mãos
no colo, e pelo penteado alto, lembrando a moda na época da Primeira Guerra
Mundial.
Certa vez eu ouvira o rádio referir-se a ela como uma encantadora de
serpentes.
Imaginei todos aqueles filmes passando por suas mãos, coleando pelos
dedos, rápidos e ondulantes.
Tanto tempo passando, apenas para voltar e repassar novamente.
Não era muito diferente da vida, dizia ela.
O futuro vem até nós. Temos um instante único, rápido como um
relâmpago, que imediatamente se transforma num passado amistoso, familiar e
decente. Segundo a segundo, o futuro pisca a nosso alcance. Se não tivermos
cuidado, dando forma sem destruir essa continuidade de momentos, nada será
deixado para trás. Nosso objetivo deve ser moldar e imprimir a nós mesmos
nesses pedacinhos minúsculos de futuro, para que com esse toque eles
envelheçam em pedacinhos de passado que se dissolvem.
Assim é o cinema.
Com a diferença que se podia viver tudo novamente, quantas vezes
quiséssemos. Alcançar o futuro, torná-lo presente, torná-lo passado, depois
recomeçar tudo no dia seguinte.
Que bela profissão, a de estar encarregado de três correntes de tempo: a
vastidão invisível do amanhã; o foco estreito do presente; o grande túmulo dos
segundos, minutos, horas, anos e milênios do passado, que germinava para
manter os outros dois.
E se você não gostasse de nenhum dos três rios que corriam?
Bastava apanhar a tesoura. Clique. Não ficou melhor?
E agora aqui estava ela, as mãos cruzadas no colo num instante, em
seguida empunhando uma pequena câmera de 8 mm para fazer uma tomada
panorâmica dos rostos à mesa, um por um, as mãos calmas e eficientes, até que a
câmera parou e fixou-se em mim.
Encarei as lentes e lembrei-me de um dia em 1934, quando eu a vira do
lado de fora dos estúdios filmando todos os malucos, os colecionadores de
autógrafos e os fanáticos, eu entre eles.
Tive vontade de perguntar se ela se lembrava disso. Mas como poderia
lembrar?
Virei a cabeça, e a câmera zuniu.
Nesse exato momento chegou Roy Holdstrom.
Ficou parado à porta do refeitório, procurando. Ao me avistar, não
acenou, mas balançou furiosamente a cabeça. Depois voltou-se e saiu. Levantei-
me e fui atrás dele, antes que Fritz Wong pudesse me impedir. Vi Roy entrando
no banheiro masculino, na parte externa do refeitório, e encontrei-o em pé,
urinando no vaso de porcelana. Fiquei a seu lado, sem a menor vontade de imitá-
lo.
— Veja o que acabei de achar no Estúdio 13. Roy me passou um bilhete
datilografado.

O Monstro encontrado afinal! No Brown Derby esta noite? Na Rua Vine.
Dez horas Esteja lá, ou perde tudo!

— Não acredita nisso, claro! — balbuciei.
— Tanto quanto você acreditou no seu bilhete, e foi até o cemitério. —
Roy olhava para a parede a sua frente. — Não é o mesmo papel e tipo da
máquina? Quer saber se pretendo ir ao Brown Derby essa noite? Que diabo, por
que não? Cadáveres no muro, escadas que desaparecem, marcas alisadas na
grama, corpos de papel machê, os gritos de Manny Leiber... Estive pensando,
agora há pouco: se Manny e os outros estavam tão preocupados com o boneco, o
que fariam se ele desaparecesse?
— Você não...
— Não?
Roy colocou o bilhete no bolso. Depois apanhou uma pequena caixa no
canto da pia e entregou-a a mim.
— Alguém está se aproveitando de nós. Resolvi me aproveitar dos outros
também. Pegue a caixa, entre no reservado e feche a porta. Depois veja o que tem
dentro.
Fiz o que ele pediu.
— Não fique parado aí dentro — disse Roy. Abra a caixa!
— Estou abrindo — respondi, levantando a tampa. — Meu Deus! —
exclamei, olhando pasmo para o conteúdo.
— O que está vendo? — perguntou Roy.
— Arbuthnot!
— Coube direitinho na caixa, hein? — comentou ele.
- 13 -
— Por que cargas-d'água você fez isso?
— Os gatos são curiosos. Sou como um gato — respondeu Roy,
caminhando despreocupadamente.
Voltávamos ao refeitório.
Roy levava a caixa embaixo do braço e exibia um sorriso travesso nos
lábios.
— Veja bem. Alguém manda um bilhete para você. Você vai até o
cemitério, encontra um corpo e não diz nada, estragando a brincadeira, qualquer
que fosse. Alguém telefona, o estúdio manda buscar o corpo, e entram em pânico
quando descobrem o que está dentro do caixão. Como quer que eu não sinta uma
curiosidade enorme? Que tipo de brincadeira é essa?, pergunto. Só posso
descobrir se responder ao lance, como num jogo de xadrez, certo? Vimos e
ouvimos a forma como Manny e seus amigos reagiram uma hora atrás. Como
reagiriam se depois de encontrar o corpo, eles o perdessem, e ficassem a imaginar
quem o teria roubado? Eu!
Paramos do lado de fora da porta do refeitório.
— Você não pretende entrar aí com isso, claro! — disse eu.
— É o lugar mais seguro do mundo. Ninguém iria desconfiar de uma
caixa que estou carregando na frente de todos. Mas tome cuidado, parceiro,
porque estamos sendo vigiados nesse exato momento.
— Onde? — perguntei, olhando para os lados.
— Se eu soubesse, teríamos resolvido tudo. Vamos lá.
— Não estou mais com fome.
— É estranho — comentou Roy. — Porque eu seria capaz de comer um
cavalo!
- 14 -
Quando entramos no refeitório, reparei que a mesa de Manny continuava
vazia. Parei, olhando para ela.
— Seu doido! — murmurei baixinho.
Roy balançou a caixa, a meu lado, produzindo um ruído de chocalho.
— Sou mesmo — admitiu ele, alegremente. — Ande! Voltei ao meu
lugar.
Roy colocou sua caixa no chão, deu-me uma piscadela, e sentou-se na
extremidade da mesa, sorrindo com inocência.
Fritz olhou para mim como se minha ausência tivesse sido um insulto
pessoal.
— Atenção! — Ele estalou os dedos. — As apresentações continuam. O
próximo é Stanislau Groc, o maquiador de Lênin, que preparou o próprio corpo
de Lênin. Maquiou o rosto e embalsamou o cadáver, para que permanecesse até
hoje exposto no muro do Kremlin em Moscou, na União Soviética.
— O maquiador de Lênin? — perguntei.
— Cosmetologista — corrigiu Stanislau Groc, acenando a pequena mão
sobre a cabeça.
Ele não era maior do que um dos Anões Cantores que fizeram o papel de
Munchkins, em O Mágico de Oz.
— Pode me testar — disse ele. — Você escreve os monstros, e Roy
Holdstrom os constrói. Mas eu maquiei, retoquei e embalsamei um grande
monstro vermelho, morto há muito tempo!
— É melhor ignorar esse bastardo russo — aconselhou Fritz. — Observe
a cadeira ao lado dele.
Era uma cadeira vazia.
— De quem é? — indaguei. Alguém tossiu. Cabeças se voltaram. Segurei
a respiração.
E a Revelação aconteceu.
- 15 –
O último a chegar era tão pálido que sua pele parecia brilhar com uma luz
interior. Era alto, talvez dois metros e dez, de cabelos longos e barba bem
aparada. Os olhos possuíam uma clareza tão desconcertante que a gente tinha a
impressão de que ele enxergava os ossos sob a pele, e a alma no interior dos
ossos. Ao percorrer mesa por mesa, os talheres hesitavam no caminho até as
bocas, que permaneciam entreabertas. Ao passar, deixando uma esteira de
silêncio, a vida recomeçava normalmente. Andava com um movimento
controlado, como se usasse túnica em vez de um paletó surrado e calça velha.
Desenhava no ar uma bênção para cada mesa, porém seus olhos estavam fixos à
frente, como se enxergasse um mundo além do nosso. Olhou para mim e eu me
encolhi, pois não conseguia imaginar nenhuma motivo para que ele me
escolhesse entre tantos talentos incontestáveis. Finalmente ficou em pé a minha
frente, o magnetismo de sua presença fazendo com que eu me levantasse.
Houve um longo silêncio quando o homem de belo rosto estendeu um
braço magro com um pulso fino, em cuja mão estavam os dedos mais longos e
finos que eu já vira.
Estendi minha mão, e a dele virou-se, expondo uma cicatriz no meio do
pulso. Ele realizou o mesmo gesto com a outra, para que eu pudesse ver a marca
idêntica no meio do pulso esquerdo. Sorriu, lendo minha mente, e explicou em
voz baixa:
— A maior parte das pessoas pensa que os cravos foram colocados na
palma das mãos. Mas, não. As palmas não são capazes de sustentar todo o peso
do corpo. Os pulsos, sim. Cravos nos pulsos — esclareceu ele, virando os
antebraços para que eu pudesse verificar as cicatrizes na parte superior.
— J.C. — apresentou Fritz Wong. — Esse é um visitante de outros
mundos, nosso jovem e brilhante escritor de ficção científica...
— Eu sei — disse o belo recém-chegado, gesticulando em direção a si
mesmo. — Sou Jesus Cristo.
Dei lugar para que ele sentasse, depois desabei em minha cadeira. Fritz
Wong passou-lhe uma cesta cheia de pão.
— Por favor, transforme isso em peixes. Eu engasguei.
Mas J.C., com o mais leve gesto dos dedos, retirou um peixe prateado do
meio dos pães, atirando-o para cima. Fritz, maravilhado, apanhou-o provocando
risos e aplausos.
A garçonete chegou com várias garrafas de bebida barata, produzindo
nova onda de risadas e palmas.
— Este vinho — informou J.C. — era água dez segundos atrás. Por
favor!
— Certamente... — comecei. Todos na mesa olharam para mim.
— O que ele quer saber — adiantou-se Fritz — é se o seu nome é esse
mesmo.
Com gestos sóbrios, o homem alto apanhou sua carteira de motorista,
exibindo-a para mim. Li:
“Jesus Cristo. Avenida Beachwood, 911. Hollywood”.
Ele colocou o documento de volta no bolso, esperou que fizessem silêncio
à mesa e começou a contar sua história:
— Cheguei a esse estúdio em 1927, quando rodaram Jesus, o Rei. Antes
disso eu trabalhava com madeira na carpintaria. Cortei e lixei as três cruzes no
Calvário, que ainda estão lá. Lançaram um concurso em todas as igrejas batistas e
católicas: encontrem Cristo! Pois acabaram me encontrando bem aqui. O diretor
perguntou onde eu trabalhava. Respondi que trabalhava na carpintaria do estúdio.
“Meu Deus”, ele disse: deixe-me ver esse rosto! Vá colocar uma barba!” “Me
deixe idêntico a Jesus”, eu pedi ao cara da maquiagem. Voltei, de túnica, coroa
de espinhos, e tudo o mais. O diretor ficou radiante e praticamente lavou meus
pés. Pouco depois os batistas estavam fazendo fila nos festivais de torta em Iowa,
e eu chegava com meu calhambeque, cheio de faixas dizendo: O REI ESTÁ
CHEGANDO.
J.C. fez uma pequena pausa, depois continuou:
— Tive uma grande temporada como Messias, correndo em caravana o
país inteiro, até que o vinho e o pecado arruinaram meu espetáculo. Ninguém
quer saber de um Jesus mulherengo. Até que não era tanto o fato de chutar a
bunda dos gatos e bolinar as mulheres alheias... é que eu simplesmente era Ele,
entende?
— Acho que entendo — concordei, educadamente.
J.C. estendeu os longos antebraços na mesa, à maneira dos gatos,
esperando que o mundo viesse adorá-lo.
— As mulheres achavam que era blasfêmia só o fato de respirarem o
mesmo ar que eu. Tocar-me era terrível. Beijar era um pecado mortal. O ato em
si? Achavam melhor pular num poço com o fogo dos infernos. Os católicos, não,
os Holy Rollers, eram os piores. Consegui dormir com uma ou duas, antes que
chegassem a me conhecer bem, na época em que eu viajava incógnito pelo país.
Depois de um mês sem acrobacias femininas, fiquei maluco. Simplesmente raspei
a barba e fui para o interior, bolinando mulheres a torto e a direito. Deflorei mais
garotas do que garimpeiro tarado. Corri o mais que pude, esperando que os
pastores não contassem os hímens de seus rebanhos e me enchessem de chumbo.
Rezei para que as mulheres não percebessem que tinham dormido com o
convidado principal da Última Ceia. Quando esfolei meu pênis e bebi até cair, o
estúdio veio recolher minha carcaça, pagou a fiança, aplacou os pastores de North
Sty, em Nebraska, com uma nova pia batismal para meus bastardos, e me
trouxeram para um quartinho aqui nos fundos. Ali fui mantido como João Batista,
ameaçado de perder ambas as cabeças, até que terminassem mais uma fritada de
peixes na Galiléia e mais uma viagem misteriosa ao Calvário. Só a idade
avançada e um pênis usado demais conseguiram me acalmar. Fui enviado para o
segundo time. Quando era mais jovem, sempre quis participar das divisões
menores de beisebol. Nunca existiu um pecador mais mulherengo do que essa
alma perdida que vos dirige a palavra. Eu não merecia fazer o papel de Jesus
Cristo, mas em milhares de teatros pelo país salvei almas e ainda pedi sobremesa.
Por muitos anos satisfiz meus apetites não com corpos, mas com garrafas. Tive a
sorte de Fritz me chamar para fazer esse novo filme com tomadas a distância e
muita maquiagem. É isso aí. Verso e prosa. Cena final, a imagem vai escurecendo
devagar.
Aplausos. A mesa inteira bateu palmas e elogiou. De olhos fechados, J.C.
curvou a cabeça em agradecimento, para um lado e para outro.
— É uma história e tanto — comentei.
— Pois não acredite numa só palavra. — aconselhou J.C. O aplauso
cessou. Havia chegado mais alguém.
— Deus do céu! — disse J.C. com voz clara e forte. — Aí vem Judas! Se
o médico do estúdio ouviu, não se sabe.
Doc Phillips estava em pé no extremo mais distante da mesa.
Permanecia ali, estudando a sala desaprovadoramente, receoso de algum
encontro. Parecia um daqueles lagartos que se vê à orla de florestas virgens, os
olhos semicerrados, apreensivos, farejando o ar, sentindo o vento com a língua,
sacudindo nervosamente a cauda, pressentindo perigo em todas as direções,
prontos para voltar-se e fugir correndo, um verdadeiro feixe de reflexos nervosos.
O olhar de Doc encontrou Roy, e por algum motivo fixou-se nele. Roy
endireitou-se, enrijeceu, e ensaiou um débil sorriso na direção do médico.
Droga!, pensei, alguém vira Roy retirar-se às escondidas com sua caixa.
Alguém...
— Quer fazer as preces? — perguntou Fritz. — Ó Poderoso Diretor da
Associação de Medicina, livrai-nos de todos os médicos.
Doc Phillips olhou para o outro lado, como se uma mosca tivesse tocado
em sua pele. Roy recostou-se na cadeira.
Além do refeitório, sob o sol brilhante do meio-dia, Manny e alguns
outros parasitas se retorciam de raiva e frustração. E o médico viera até o interior
para fugir deles ou procurar suspeitos, não se podia saber qual dos dois.
Mas ali estava ele, Doc Phillips, o fabuloso médico de todos os estúdios
desde a época das câmeras movidas a manivela e do advento dos gritos
estereofônicos, até aquela tarde em que a terra estremecia. Se Groc era a
marionete de riso eterno, então Doc Phillips era o mal-humorado curandeiro de
egos incuráveis, como uma sombra na parede, ou uma carranca na pré-estréia dos
cinemas, diagnosticando filmes doentios. Ele não falava em parágrafos ou
sentenças, mas telegraficamente, usando palavras secas como se retiradas de uma
bula. Entre essas lacônicas manifestações pairava o silêncio.
Ele estivera no décimo oitavo buraco do campo de golfe quando o chefe
dos Estúdios Skylark embocou sua última bola e caiu morto. Contava-se que ele
zarpara da costa da Califórnia quando um montador famoso atirou outro diretor
igualmente conhecido pela borda do barco, para que se afogasse
“acidentalmente”. Eu vira fotografias dele ao lado do ataúde de Valentino, no
quarto de hospital com Jeanne Eagel doente, numa corrida de iates em San
Diego, onde fora levado como proteção contra a insolação por uma dúzia de
figurões do cinema de Nova York. Comentava-se que ele drogava todas as
estrelas de um estúdio, e depois as levava para seu sanatório oculto no Arizona,
perto de Needles. A ironia do nome do vilarejo, “agulhas”, provocava mexericos.
Doc raramente comia no refeitório, pois seu olhar estragava o sabor da comida.
Os cachorros latiam quando ele passava, como se ele fosse um carteiro infernal.
Os bebês mordiam-lhe o cotovelo e depois tinham dores no estômago.
Todos se encolhiam e recuavam quando ele chegava.
Doc Phillips fixava seu olhar aqui e ali pelo grupo. Em poucos instantes,
alguns começaram a desenvolver tiques nervosos.
— O trabalho dele nunca termina — disse Fritz para mim. — Muitos
bebês nascem fora de hora atrás do Estúdio 5. Ataques cardíacos acontecem
freqüentemente entre os marajás de Nova York. Ou aquele ator de Mônaco é
apanhado com um cantor lírico, seu namorado. Ele...
O dispéptico médico colocou-se atrás de nossas cadeiras, cochichou algo
para Stanislau Groc, depois virou-se e saiu.
Fritz fez uma careta para a porta, depois voltou-se para mim, fixando-me
com o monóculo.
— Ó mestre futurista que tudo vê, pode nos dizer que diabo está
acontecendo aqui?
O sangue me afluiu ao rosto. Minha língua ficou presa com a sensação de
culpa que me dominava. Baixei a cabeça.
— Trocar de lugares — gritou alguém. Groc, os olhos postos em mim,
emendou:
— A brincadeira das cadeiras! Trocar de lugares.
Todos riram e agitaram-se para trocar de lugar, o que disfarçou minha
confusão.
Quando terminaram com a bagunça das trocas, descobri que Stanislau
Groc, o homem que embalsamara Lênin e preservara seu cavanhaque para a
eternidade, estava exatamente a minha frente, e Roy sentava-se a meu lado.
Groc sorria abertamente, como um amigo íntimo.
— Por que Doc estava com tanta pressa? O que está acontecendo?
— Não ligue — respondeu Groc, relanceando os olhos para a porta. —
Senti um arrepio às onze da manhã, como se a popa do estúdio tivesse batido
num iceberg. Desde então os malucos estão correndo por toda parte,
abandonando o navio. Fico feliz em ver tanta gente preocupada. Faz com que eu
esqueça meu melancólico trabalho de deixar os patos do Bronx com aparência de
cisnes do Brooklin. — Ele fez uma pausa para engolir uma garfada de sua salada
de frutas. — O que acha? Que iceberg nosso amado Titanic abalroou desta vez?
— Parece que aconteceu alguma calamidade na hélice e na oficina dos
carpinteiros — observou Roy.
Fiz uma careta na direção dele. Stanislau Groc enrijeceu-se no lugar.
— Ah, sim — disse ele. — Um probleminha com a figura de proa do
Bounty, esculpida em madeira.
Chutei Roy por baixo da mesa, mas ele inclinou-se para a frente,
interessado.
— Certamente não era esse o iceberg que você mencionou há pouco?
— Claro que não — concordou Groc, rindo. — Não foi bem como uma
colisão no Ártico, foi mais como uma corrida de balões movidos a ar quente.
Todos os produtores de gás foram chamados ao escritório de Manny. Alguém vai
ser despedido. E depois... — ele fez um gesto em direção ao teto, com suas mãos
pequeninas — cair para cima!
— O quê?
— Um sujeito é despedido da Warner e cai para a MGM. Outro, na
MGM é despedido e cai para a 20th Century Fox. Caindo para cima! O reverso
da lei de Newton! — Groc fez uma pausa para sorrir da própria piada. — Ah,
mas você, meu pobre escritor, nunca vai poder cair para cima, quando for
despedido. Só para baixo. Eu... — ele interrompeu-se.
Eu o estava olhando da mesma forma como examinara o rosto do meu
avô, já falecido, em seu quarto no andar de cima, há trinta anos. A barba
nascendo na pele pálida, as pálpebras que ameaçavam abrir-se libertando o olhar
zangado que sempre paralisara minha avó... as recordações da imagem que
assumiam uma nitidez tão grande como a imagem desse agente
funerário/maquiador de Lênin, sentado a minha frente como um boneco,
comendo pequenos bocados de sua salada de frutas.
— Você está procurando as marcas dos pontos sobre minhas orelhas? —
perguntou ele, educadamente.
— Não, não!
— Claro que está — retrucou ele, divertido com aquilo. — Todos fazem
isso! Veja! — Ele inclinou a cabeça para a frente, levantando os cabelos da testa
e das têmporas, virando a cabeça para que eu pudesse ver melhor.
— Mas que belo trabalho! — comentei.
— Belo, não. Perfeitol — corrigiu Groc.
Pois as linhas que se podia observar eram pouco mais do que sombras,
como se fossem cicatrizes antigas de mordidas de pulgas.
— Você... — comecei a perguntar.
— Se eu operei a mim mesmo? Como cortar o próprio apêndice? Talvez
eu seja como aquela mulher que fugiu de Shangrilá no Horizonte Perdido, e
depois virou uma ameixa mongol.
Groc riu, e eu fiquei fascinado com sua risada. Não se passava um minuto
sem que ele estivesse alegre. Era como se no momento em que ele parasse de rir,
fosse engasgar e morrer. Sempre aquele riso que parecia um latido, e o sorriso
fixo.
— O que foi? — quis saber ele, percebendo que eu olhava para seus
lábios.
— O que existe de tão engraçado — perguntei — o tempo todo?
— Tudo é engraçado! Assistiu a um filme com Conrad Veidt...
— O Homem que Ri?
Aquilo pegou Groc de surpresa.
— Não é possível! Você não conhece...
— Minha mãe era fanática por cinema. Depois da escola, quando eu
estava no primeiro, segundo, terceiro ano, ela ia me buscar para assistir a Mary
Pickford, Chaney, Chaplin e... Conrad Veidt! Os ciganos rasgaram a boca dele
para que ele nunca mais parasse de rir, e ele se apaixonou por uma moça cega,
incapaz de ver o sorriso horrível dele. Depois ele foi infiel a ela, e, quando é
desprezado por uma princesa, volta para a moça cega, a fim de ser consolado por
ela... E a gente no escuro do Cine Elite ficava chorando, chorando... Fim.
— Meus Deus! — espantou-se Groc, quase perdendo o sorriso. — Que
jovem surpreendente você é! Exatamente. Eu sou aquele personagem de Veidt,
só que meu sorriso não foi fabricado pelos ciganos. A causa foi muita
convivência com suicídios e assassinatos. Já estive enterrado numa vala comum
com dez mil cadáveres e precisei lutar para chegar à camada de cima, para poder
respirar e me livrar da náusea, ferido e dado como morto. Desde então, nunca
mais comi carne, pois o cheiro me lembrava a podridão dos cadáveres e o fedor
do massacre. Portanto, me alimento de frutas, saladas, pão, manteiga fresca e
bebo vinho. Com o tempo, desenvolvi esse sorriso. Luto contra o mundo real
com uma boca falsa. Frente a frente com a morte, porque não usar esses dentes, a
língua lasciva, e a risada? Bem, de qualquer forma, sou o responsável por você!
— Você?
— Fui eu quem disse a Manny Leiber para contratar Roy, seu amigo
tiranossauro. E disse que precisávamos de alguém que escrevesse tão bem quanto
Roy sonhava. Voilà! Você.
Groc parecia vaidoso à frente de seu prato, contente porque eu olhava seu
queixo, sua boca, sua sobrancelha...
— Você podia ganhar uma fortuna... — comecei.
— Eu já ganho. — Ele cortou uma fatia de abacaxi. — O estúdio me
paga muito dinheiro. As estrelas estão sempre estragando a pele do rosto com
bebida, ou arrebentando a cabeça nos pára-brisas dos carros. A Maximus vive
com medo que eu me despeça. Que besteira! Vou ficar e rejuvenescer fazendo
uma cirurgia plástica por ano, até minha pele ficar tão esticada que na hora de
sorrir meus olhos vão pular para fora! Assim — ele fez uma imitação do que
aconteceria. — Isso tudo porque não posso voltar. Lênin me expulsou da Rússia.
— Um homem morto perseguiu você?
Fritz Wong inclinou-se para a frente, gostando da conversa.
— Groc — disse ele, suavemente — explique. Lênin com as bochechas
cor-de-rosa. Lênin com dentes novos, um sorriso nos lábios. Com novos olhos,
de cristal, embaixo das sobrancelhas. Lênin sem manchas na pele e com o
cavanhaque aparado. Lênin. Lênin. Conte a ele.
— Muito simples — disse Groc. — Lênin precisava ser como um santo
milagroso, imortal em sua tumba de cristal.
— Mas quem era Groc? — continuou Fritz, incapaz de conter-se.
— Será que foi Groc quem passou ruge no rosto de Lênin, que igualou a
pele? Não! Lênin, mesmo na morte, melhorou a si mesmo. Portanto, matem
Groc!
— Então Groc fugiu — completou o soviético. — E onde está Groc
agora? Bem aqui, caindo para cima, junto com todos vocês...
No extremo da longa mesa surgiu Doc Phillips outra vez. Não se
aproximou mais do que isso e, com um gesto brusco de cabeça, indicou a Groc
que deveria acompanhá-lo.
Groc limpou calmamente o queixo com o guardanapo, tomou mais um
gole de leite gelado, cruzou os talheres e levantou-se. Começou a andar e hesitou.
Depois voltou-se e disse:
— Titanic, não. Parece mais com Ozymandias... — E saiu.
— Por que será que ele inventou essa história sobre figuras de proa? —
conjeturou Roy.
— Ele é bom — comentou Fritz Wong. — Um Conrad Veidt em
tamanho econômico. Vou aproveitar esse safado em meu próximo filme. — O
que ele quis dizer com Ozymandias? — perguntei.
- 16 -
Durante todo o resto da tarde Roy apareceu várias vezes em meu
escritório, mostrando os dedos sujos de argila.
— Nada! — reclamava ele. — Nenhum Monstro! Eu arrancava papéis da
máquina de escrever:
— Nada também!
Finalmente, às dez da noite, Roy passou de carro para irmos ao Brown
Derby. No caminho, li a primeira metade do poema Ozymandias, de Shelley:

Encontrei um viajante de uma terra antiga Que disse: Duas enormes
pernas pétreas sem tronco Erguem-se no deserto. Próximo, na areia contígua
Semi-enterrado jaz um rosto esfacelado, cujo cenho aberto Com o lábio encolhido
e o sorriso zombeteiro de comando e briga São testemunhas da visão apaixonada
do escultor incerto Que ainda sobrevive, impresso naquelas coisas sem vida A
mão que zombava, e o coração que as nutria.

As sombras moviam-se pelo rosto de Roy.
— Leia o resto — pediu ele. Eu li:

No pedestal, viam-se essas palavras: “Meu nome é Ozymandias, rei dos
reis, Ouvi minhas palavras, ó poderosos, e desespereis. Nada permanece ao lado.
Em volta da podridão Das ruínas colossais, livres e nuas.
As areias planas e solitárias estendem-se na vastidão.

Quando terminei, Roy passou por dois ou três quarteirões escuros.
— Faça a volta, vamos para casa — pedi.
— Por quê?
— Esse poema parece com o estúdio e o cemitério. Você já teve uma
daquelas esferas de cristal que a gente sacode e provoca lá dentro uma tempestade
de neve? É assim que estou me sentindo por dentro agora.
— Besteira — comentou Roy.
Observei o perfil aquilino que cortava o ar da noite, recendendo aquele
otimismo que somente os artistas parecem possuir, já que são capazes de construir
um mundo da maneira que desejam, sem importar as circunstâncias.
Lembrei-me de quando ambos tínhamos treze anos, e King Kong caiu do
Empire States, aterrissando sobre nós. Quando levantamos, nunca mais fomos os
mesmos. Prometemos um ao outro que um dia iríamos escrever e fazer um
monstro tão grande, bonito e impressionante quanto King Kong, ou morrer
tentando.
— Monstro, aqui estamos nós — anunciou Roy.
Paramos o carro próximo ao Brown Derby, um restaurante sem cartazes
escandalosos. A única maneira de saber que era um lugar importante eram as
caricaturas de freqüentadores famosos que cobriam as paredes internas. No
exterior havia uma sobriedade espartana. Entramos.
O maitre do Brown Derby levantou a sobrancelha esquerda quando
chegamos. Um ex-amante de cachorros, ele agora adorava gatos, gente
importante. Éramos esquisitos para ele.
— Com certeza não têm reservas? — indagou ele, languidamente.
— Reservas sobre esse lugar? — brincou Roy. — Temos algumas. A
piadinha arrepiou o indivíduo, mas ele nos deixou entrar assim mesmo.
O restaurante encontrava-se quase vazio. Algumas pessoas ocupavam
duas ou três mesas, terminando a sobremesa ou saboreando um conhaque. Os
garçons já haviam começado a arrumar as mesas.
Ouvimos uma gargalhada e vimos três mulheres em pé junto a uma das
mesas, inclinadas em direção a um homem, que ainda sentado recebia a conta.
Uma delas ria, dizendo que estariam lá fora olhando as vitrines enquanto ele
acertava a conta; em seguida, deixando um rastro perfumado, passaram por mim e
por Roy, que olhávamos estupefatos para o sujeito no reservado. Stanislau Groc.
— Você! — exclamou Roy, espantado.
— Eu?! — A fleuma de Groc pareceu extinguir-se. — O que estão
fazendo aqui?
— Fomos convidados.
— Estávamos procurando alguém — emendei.
— Encontraram a mim e ficaram abalados — concluiu Groc.
Roy recuava, sofrendo de sua síndrome de Siegfried. Prometeram-lhe um
dragão, e ele contemplava um mosquito. Não conseguia tirar os olhos de Groc.
— Por que está me olhando desse jeito? — indagou o homenzinho.
— Roy... — alertei.
Podia adivinhar o que ele estava pensando. Tudo não passara de uma
piada. Alguém, sabendo que Groc costumava freqüentar o local algumas noites,
nos mandara até lá para nos fazer de bobos. Para que ficássemos embaraçados e
Groc também. Roy continuava a olhar para as orelhas, o nariz e o queixo do
cosmetologista.
— Não — disse Roy, finalmente. — Você não serve.
— Não serve para quê? Espere um pouco! Já sei. É a Busca, não é? —
Um estremecer rápido começou a sacudir-lhe o peito, saindo finalmente pela boca
na forma de um riso interrompido. — Mas por que o Brown Derby? As pessoas
que vêm aqui não são do tipo que assustam os outros. Provocar pesadelos, sim.
Mas eu, com minhas costuras escondidas no rosto. A quem eu poderia assustar?
— Não se preocupe — disse Roy. — O susto vem mais tarde, quando eu
pensar em você depois das três da manhã.
Aquilo libertou completamente o riso de Groc, que deixou escapar uma
grande gargalhada e nos chamou para seu reservado.
— Desde que a noite de vocês foi arruinada, pelo menos bebam. Roy e eu
relanceamos os olhos pelo restaurante.
Nenhum Monstro.
Quando o champanhe foi servido, Groc levantou um brinde.
— Que possam jamais ter de curvar os cílios de um cadáver, ou limpar os
dentes de um morto, pentear-lhe a barba, ou maquiar lábios sifilíticos. — Bebeu e
olhou na direção da porta, por onde as mulheres haviam saído.
— Viram os rostos delas? — sorriu Groc. — São meus? Sabem por que
essas garotas estão apaixonadas por mim e nunca vão me deixar? Sou o lama do
vale da Lua Azul. Se elas partirem, minha porta vai fechar-se para elas, e os
rostos vão cair. Já avisei a elas que enfiei um finíssimo arame nos queixos e nos
olhos delas. Se elas se afastarem demais, esticam o arame... a carne delas vai se
desenrolar. Em vez de parecerem ter trinta anos, terão quarenta e dois!
— Fafner — resmungou Roy. Seus dedos apertavam a borda da mesa
como se ele fosse saltar a qualquer instante.
— O quê?
— Um amigo — expliquei. — Pensamos que iríamos encontrá-lo aqui
esta noite.
— A noite acabou — disse Groc. — Mas fiquem. Terminem meu
champanhe. Peçam mais, a minha custa. Querem uma salada antes que a cozinha
feche?
— Não estou com fome — recusou Roy, demonstrando a mesma
decepção de quando assistiu à opera Siegfried.
— Eu aceito! — respondi depressa.
— Duas saladas — pediu Groc ao garçom. — Com molho de queijo?
— Ótimo — aceitei, olhando para Roy, que estava com os olhos
fechados.
Groc voltou-se para o garçom e colocou-lhe na mão uma gorjeta
desnecessariamente vultosa.
— Trate bem meus amigos — ordenou ele, sorrindo. Depois, olhando
outra vez para a porta por onde as mulheres haviam saído, balançou a cabeça. —
Preciso ir, agora. Está chovendo. Toda essa água caindo no rosto das minhas
meninas. Elas podem derreter! Afinal, qual é o nome da pessoa que devia estar
aqui, mas não está?
— Fafner — disse Roy.
— Ah... — Groc assentiu vigorosamente com gestos de cabeça. — O
cãozinho de Wagner, claro! Até logo. Arrivederci!
E as portas se fecharam sobre ele.
— Vamos sair. Estou me sentindo um verdadeiro idiota! — queixou-se
Roy.
Ele começou a mover-se e derramou sua taça de champanhe. Praguejou e
limpou a toalha. Enchi novamente a taça e observei enquanto ele sorvia o
conteúdo para acalmar-se.
Cinco minutos depois, nos fundos do restaurante, a coisa aconteceu...
O chefe dos garçons colocava um biombo em volta da mesa mais distante.
Com um estalido, o biombo fechou-se parcialmente. O garçom resmungou algo
para si mesmo. A seguir houve um movimento na porta da cozinha, de onde
surgiram um homem e uma mulher. Enquanto o garçom ajeitava o biombo,
ambos passaram apressadamente pela luz, olhando apenas para a frente, em
direção à mesa com o biombo.
— Meu Deus! — exclamei, com a voz alterada. — Roy? Roy olhou para
a direção que eu fitava.
— Fafner — balbuciei.
— Não... — Roy ficou paralisado, depois recostou-se, observando o casal
que se movia rapidamente. — Não é possível!
Mas não era Fafner, ou pelo menos não se tratava do dragão mitológico
que caminhava da cozinha para a mesa, segurando a mão da companheira e
conduzindo-a atrás de si.
Era o que buscáramos por longas semanas e vários dias árduos. Era o que
eu deveria ter datilografado no papel, com um arrepio gelado subindo do braço
até a nuca.
Era o que Roy estivera procurando a cada vez que mergulhava os dedos
na argila. Era como uma bolha avermelhada que se levantasse do fundo de um
lago primitivo e assumisse a forma de um rosto.
E esse rosto se apresentava como uma mistura de todos os rostos
mutilados, feridos, mortos e enterrados em dez mil guerras desde que começaram
as guerras.
Era como a decrepitude de Quasímodo, agravada por câncer e um toque
de lepra.
Por trás daquele rosto havia uma alma que parecia condenada a viver para
sempre.
Para sempre!, pensei. Ele nunca vai conseguir libertar-se.
Era nosso Monstro.
A cena acabou num segundo.
Porém, tive uma visão terrivelmente nítida e duradoura da criatura, fechei
os olhos, e o rosto terrível permaneceu em minha retina; queimava tanto que as
lágrimas me assomaram aos olhos, e um som involuntário escapou de minha
garganta.
Era um rosto no qual afundavam dois olhos de aparência líquida. Um
rosto no qual tais olhos, flutuando no delírio, não conseguiam encontrar
ancoradouro, nem abrigo, nem salvação. Percebendo que não havia um lugar
para descansar, os olhos, brilhantes de desespero, sustentavam-se sem apoio na
superfície turbulenta de carne, recusando-se a afundar e desaparecer. Havia ali
uma centelha de esperança, como se, voltando-se para um lado e para outro,
pudessem divisar alguma salvação periférica, alguma pincelada de beleza interna,
alguma revelação que não fosse tão ruim quanto parecia. E assim os olhos
flutuavam, ancorados na lava da carne destruída, numa fusão genética na qual
nenhuma alma, por mais corajosa que fosse, poderia sobreviver. Enquanto isso,
as narinas inalavam a si mesmas, e o corte da boca gritava silenciosamente e
aspirava o ar.
Naquele instante reparei em Roy, que oscilou para a frente, depois para
trás, como se tivesse sido atingido por um tiro, a mão movendo-se
involuntariamente para o bolso.
Em seguida o homem deformado passou, o biombo recolocado no lugar,
e a mão de Roy saiu do bolso trazendo um pequeno bloco de rascunho e o lápis,
ainda olhando para o biombo como se tivesse visão de raios X. Sem olhar uma só
vez para a mão que desenhava, ele esboçou o terror, o pesadelo, e a expressão do
desespero na carne viva.
Como Doré, muito antes dele, Roy possuía o dom da exatidão. Sua mão
em movimento, ao esboçar contornos e delinear sombras, precisava apenas de um
vislumbre das multidões de Londres para fazer fluir a câmera escura da memória,
que ativava os longos dedos e brotava da ponta do lápis na forma de cada olho,
narina e boca; cada rosto surgia impresso como se tivesse sido fotografado. Em
quatro segundos a mão de Roy, movendo-se como uma aranha em água quente,
dançou e perdeu-se na epilepsia do esboço. Num momento, a folha do bloco
estava vazia. No momento seguinte, o Monstro, ainda não completo, mas a maior
parte dele, aparecia no papel.
— Que diabos! — resmungou Roy, largando o lápis. Olhei para o
biombo oriental, depois para o esboço.
O que ali se encontrava era um retrato, metade em positivo, metade em
negativo do horror que havíamos vislumbrado brevemente.
Não consegui tirar os olhos do desenho de Roy agora que o Monstro
estava escondido, e o maitre anotava o pedido que partia do interior do reservado.
— É quase isso — sussurrou Roy. — Mas não está completo. Nossa
busca terminou, companheiro.
— Não.
— Sim.
Por algum motivo, coloquei-me em pé.
— Boa-noite
— Onde vai? — Roy parecia surpreso.
— Para casa.
— E como pretende chegar lá? Vai ficar uma hora no ponto de ônibus?
— A mão de Roy movia-se sobre o papel. — Sente aí.
— Pare com isso — pedi.
Uma arma disparada no rosto dele provocaria o mesmo efeito.
— Depois de esperar semanas? De jeito nenhum. O que deu em você?
— Acho que vou vomitar.
— Eu também. Está achando que eu gosto disso? — Ele pensou um
pouco sobre o que dissera. — Pode ser. Também estou enjoado, mas primeiro
tenho de fazer isso. — Ele acrescentou mais Unhas que sublinharam o terror da
imagem. — O que acha?
— Agora estou assustado de verdade.
— Acha que ele vai sair de trás do biombo e pegar você?
— Acho!
— Sente e coma sua salada. Lembra o que Hitchcock disse: que quando
ele termina a arte final dos cenários, o filme está pronto? Nosso filme está pronto.
Isto termina tudo. É como se estivesse revelado e pronto para exibir.
— E por que estou com vergonha? — Sentei pesadamente, evitando olhar
para o bloco de Roy.
— Porque você não é ele, e ele não é você. Graças à piedade divina. E se
eu rasgar esse esboço e formos embora? Quantos meses mais teremos de procurar
para encontrar algo tão triste e tão terrível?
— Nunca encontraríamos — respondi, engolindo em seco.
— Exatamente. Esta noite não vai se repetir mais. Agora simplesmente
acalme-se, fique quietinho, coma sua salada, e vamos esperar.
— Posso esperar, mas não vou conseguir me acalmar. E vou continuar
sentindo essa tristeza enorme.
Roy encarou-me de frente.
— Está vendo meus olhos?
— Estou.
— O que está enxergando?
— Lágrimas.
— O que prova que eu sinto a mesma coisa que você, só que não consigo
me controlar. Esfrie a cabeça. Beba alguma coisa.
Ele serviu mais champanhe.
— Está com um gosto horrível — comentei, depois de ingerir meia taça.
Roy desenhara, e o rosto estava ali. Eram feições no último estágio de
decadência; como se a mente por trás da aparição tivesse nadado mil milhas, e
agora estivesse a ponto de afundar. Havia ossos por trás da carne, que se partiram
e solidificaram numa forma que lembrava um inseto, numa máscara alienígena.
Se havia mesmo uma mente atrás dos ossos, escondida nas cavernas da retina e
do tímpano, acenava loucamente através dos olhos.
Mesmo assim, depois que a comida deles chegou e o champanhe foi
servido, Roy e eu ficamos estarrecidos com as gargalhadas incríveis que vinham
de trás do biombo. A princípio a mulher não participava, mas à medida que o
tempo ia passando, o divertimento até então comedido que ela demonstrava
passou a parecer-se com o dele. Com a diferença que o riso dele lembrava o
dobrar de um sino, e o dela beirava a histeria.
Bebi o suficiente para poder permanecer ali. Quando a garrafa de
champanhe esvaziou-se, o maitre trouxe uma outra, dispensando com um aceno
quando fiz menção de colocar a mão no bolso.
— Groc pagou — explicou ele.
Roy não ouvira. Estava enchendo página após página de seu bloco; à
medida que o tempo passava e as gargalhadas aumentavam, os desenhos
tornavam-se cada vez mais grotescos, como se a diversão deles ativasse a
memória de Roy e enchesse cada página. Até que finalmente as risadas cessaram.
Ouvimos uma série de ruídos abafados por trás do biombo, indicando que os
ocupantes preparavam-se para sair, e o maitre veio até nossa mesa.
— Por favor, precisamos fechar. Importam-se? — perguntou ele,
acenando em direção à porta e afastando a mesa.
Roy levantou-se e olhou em direção ao biombo oriental.
— Não — disse o maitre. — A ordem correta é que vocês saiam
primeiro.
Eu já estava a meio caminho da porta, e tive de voltar-me.
— Roy?
Ele veio atrás de mim, olhando para trás como se estivesse deixando uma
peça ainda não terminada.
Quando chegamos à calçada, um táxi dobrava a esquina. A rua
encontrava-se vazia, a não ser por um homem relativamente alto, trajando um
sobretudo de pêlo de camelo, de costas para nós, próximo à esquina. O álbum
que levava embaixo do braço fez com que eu o reconhecesse. Eu vira aquele
álbum todos os dias durante minha infância e adolescência em frente aos estúdios
da Columbia, da Paramount, da MGM, e de todos os outros. Estava repleto de
fotografias de Greta Garbo, Ronald Colman, Clark Gable, Jean Harlow e
centenas de outros, todos assinados com tinta violeta. Tudo colecionado por um
fã devotado, que agora envelhecera. Hesitei, depois parei.
— Clarence? — chamei.
O homem encolheu-se, como se não quisesse ser reconhecido.
— É você mesmo, não é? — insisti, baixinho, tocando-lhe o cotovelo. —
É o Clarence, certo?
Por fim ele virou a cabeça. O rosto era o mesmo, só que enrugado além
de uma palidez extrema a envelhecê-lo.
— O que foi? — quis saber ele.
— Lembra de mim? — perguntei. — Claro que lembra. Eu costumava
andar por Hollywood com aquelas três irmãs malucas. Uma delas fazia aquelas
camisas havaianas que Bing Crosby usou nos primeiros filmes. Fiquei na frente
da Paramount exatamente ao meio-dia, todos os dias durante o verão de 1934.
Você também estava sempre lá. Como é que eu ia esquecer? Você tinha o único
retrato autografado de Greta Garbo que eu já vi...
Essa abordagem só serviu para piorar as coisas. A cada palavra, Clarence
encolhia mais para dentro do grande sobretudo.
Ele concordava nervosamente, como se quisesse acabar logo com aquilo.
Olhava preocupado para a saída do restaurante.
— O que está fazendo por aqui a uma hora dessas? — indaguei. —
Todos foram para casa.
— Nunca se sabe. Não tenho mais nada para fazer... — balbuciou
Clarence.
Nunca se sabe. Douglas Fairbanks, vivo novamente, podia passar outra
vez pela calçada, o que seria muito melhor do que ver Marlon Brando. Fred
Allen, Jack Benny e George Burns podiam dobrar a esquina, vindos do Legion
Stadium, onde as lutas de boxe terminavam, rememorando os velhos tempos, as
multidões alegres, mais agradáveis do que aquela noite e as que viriam a seguir.
Não tenho mais nada para fazer. Era isso.
— Claro — respondi. — Nunca se sabe. Estou vendo que não está
lembrado de mim... O maluco? O marciano maluco?
Os olhos de Clarence passavam por minhas feições, evitando os meus.
— N-não... — disse ele, hesitante.
— Boa noite — cumprimentei.
— Boa noite — respondeu Clarence.
Fomos até o calhambeque e entramos no carro, Roy suspirando
impacientemente. Logo apanhou seu bloco, o lápis, e aguardou.
Clarence ainda estava na esquina, ao lado do táxi, quando as portas do
Brown Derby se abriram e a Fera saiu com sua Bela.
Era uma daquelas raras noites quentes, ou então não teria acontecido o
que aconteceu a seguir.
O Monstro parou, sorvendo grandes golfadas de ar, obviamente repleto de
champanhe e esquecimento. Se ele estava consciente da aparência de seu rosto,
não dava sinais disso. Segurou as mãos de sua dama e conduziu-a até o táxi,
conversando e rindo. Foi então que eu entendi, pela maneira como ela andava e
não fixava o olhar em nenhum ponto...
— Ela é cega! — exclamei.
— O quê? — espantou-se Roy.
— Ele é cega. Não pode vê-lo. Não é de admirar que sejam amigos! Ele a
leva para jantar, e ela nem fica sabendo como ele é!
Roy inclinou-se e estudou a mulher.
— Meu Deus! Você tem razão. Ela é cega.
O homem ria e ela acompanhava sua gargalhada, como um papagaio
zonzo.
Nesse momento, Clarence, de costas para eles, tendo ouvido as risadas e a
conversa, voltou-se lentamente para os dois. Com os olhos semicerrados, passou
a escutar com atenção, e uma expressão de surpresa estampou-lhe no rosto. Uma
palavra surgiu em seus lábios!
Instantaneamente o Monstro parou de rir.
Clarence deu um passo para a frente e disse alguma coisa para o homem.
A mulher também parou de rir. Clarence perguntou algo. Então o Monstro cerrou
os punhos, gritou, e ergueu os braços, como se fosse atingir Clarence e derrubá-lo
na calçada.
Clarence caiu de joelhos, balbuciando.
O monstro ficou sobre ele, os punhos tremendo. Seu corpo balançava
para a frente e para trás, como se alternadamente perdesse e recuperasse o
controle.
Clarence choramingava, e a mulher cega, estendendo a mão, disse alguma
coisa. O Monstro fechou os olhos e deixou os braços caírem. Instantaneamente,
Clarence deu um salto e saiu correndo para a proteção da escuridão. Tive o
impulso inexplicável de ir atrás dele, embora não soubesse o motivo da fuga. No
momento seguinte, o Monstro ajudou sua amiga cega a entrar no táxi, que partiu
imediatamente.
Roy girou a chave na ignição, e saímos em perseguição a eles.
O táxi virou à direita no Bulevar Hollywood, e nós tivemos de parar num
sinal vermelho onde alguns pedestres atravessavam. Roy acelerava o motor,
xingando, como se fosse passar por sobre os escassos transeuntes, até que as
pessoas atravessaram e pudemos prosseguir, atravessando o sinal vermelho.
— Roy!
— Pare de dizer meu nome. Ninguém nos viu. Simplesmente não
podemos perdê-los de vista. Meu Deus, preciso dele! Tenho de ver onde ele vai.
Saber quem é. Lá estão eles!
À frente, o táxi virava na Rua Gower. Também à frente, Clarence ainda
corria, e não nos viu quando passamos. Suas mãos estavam vazias. Ele deixara
cair sua pasta do lado de fora do restaurante. Perguntei-me quanto tempo se
passaria antes que ele percebesse.
— Pobre Clarence...
— Por que, pobre? — quis saber Roy.
— Ele está metido nisso também. Por que você acha que ele estava em
frente ao Derby? Coincidência? Duvido muito. Alguém deve tê-lo chamado. E
agora ele perdeu aqueles belos retratos autografados. Roy, precisamos voltar e
apanhá-lo!
— Nós vamos continuar — afirmou Roy, decidido.
— Fico pensando... que tipo de bilhete será que Clarence recebeu? O que
será que dizia?
Roy passou por outro sinal vermelho na Rua Sunset para acompanhar o
táxi, que estava a meio caminho do Bulevar Santa Mônica.
— Eles estão indo ao estúdio! — afirmou Roy, corrigindo-se a seguir: —
Não, não estão.
Pois o táxi, ao entrar no Bulevar Santa Mônica, virará à esquerda logo
após o cemitério.
Chegávamos à Igreja de San Sebastian, um dos menos expressivos
templos católicos de Los Angeles. Subitamente o táxi entrou na travessa ao lado
da igreja.
Estacionou cem metros rua acima, e Roy parou o calhambeque. Vimos o
Monstro acompanhar a mulher até uma pequena construção branca. Demorou-se
ali apenas um instante. Ouvimos uma porta abrir e fechar em algum lugar, e o
Monstro voltou ao táxi, que avançou até a esquina seguinte, fez meia-volta e veio
em nossa direção. Felizmente, nossos faróis estavam apagados. O táxi passou, e
Roy xingou, ao mesmo tempo que realizava sua própria versão de conversão em
“U”, sob meus protestos. Logo estávamos de volta ao Bulevar Santa Mônica, a
tempo de avistar o táxi parando em frente à Igreja de San Sebastian, para que o
passageiro descesse. O monstro foi até a entrada iluminada da igreja sem olhar
para trás. O táxi partiu.
Roy encontrou um lugar escuro nas cercanias, sob uma árvore, onde
estacionou com as luzes apagadas.
— Roy, o que está...
— Silêncio — sibilou ele. — Um palpite. Tudo o que estou fazendo é
seguir um palpite. Se aquele sujeito freqüenta alguma igreja, principalmente a
uma hora dessas, quero ser uma corista de teatro rebolado...
Os minutos se passaram. As luzes da igreja não se apagaram.
— Vamos ver o que está havendo — sugeriu Roy.
— Vamos o quê?
— Tudo bem, eu vou.
Num instante ele desceu do carro e tirou os sapatos.
— Volte aqui! — gritei.
Mas ele já tinha ido, só de meias. Desci do carro, também tirei os sapatos
e corri atrás dele. Roy chegou à porta da igreja em dez segundos, comigo nos
calcanhares. Esprememo-nos contra a parede lateral e ficamos ouvindo.
Escutamos uma voz elevando-se e abaixando várias vezes.
A voz do Monstro! Descrevendo calamidades em tom de urgência,
desfiando erros terríveis, pecados mais negros que o céu marmóreo daquela noite.
A voz do sacerdote intervinha brevemente, respondendo e perdoando,
fazendo votos de uma vida melhor, onde o Monstro, se não renascesse belo,
poderia encontrar pequenas alegrias nas penitências.
Sussurros e mais sussurros na calada da noite.
Fechei meus olhos e concentrei-me o máximo que pude para escutar.
Sussurros infindáveis. Então... eu não queria acreditar em meus ouvidos.
Soluços. Um choro que parecia não ter mais fim.
O homem solitário no interior da igreja, com uma alma perdida no interior
de um rosto horrível, derramava sua tristeza sobre o confessionário, sobre a igreja
e sobre mim. Soluçando e suspirando, vertendo lágrimas que eu podia adivinhar.
Minhas sobrancelhas arderam sob o efeito daquele som. Depois silêncio...
uma agitação. Passos.
Começamos a correr.
Chegamos ao carro e entramos.
— Pelo amor de Deus — sibilou Roy.
Empurrando minha cabeça para baixo, ele agachou-se. O Monstro havia
saído e corria pela rua deserta.
Quando chegou ao portão do cemitério, ele parou e voltou-se. Um carro
que passava iluminou-o como um holofote no palco. Ele ficou imóvel, aguardou
e, a seguir, desapareceu no interior do cemitério.
A uma certa distância dali, no interior da igreja, uma sombra moveu-se, as
luzes se apagaram, e as portas foram fechadas.
Roy e eu olhamos um para o outro.
— Meu Deus! — exclamei. — Que pecados podem ser tão enormes que
alguém precisa confessá-los a essa hora da noite? E aqueles soluços! Ouviu só
aquilo? Acho que... ele vem aqui para perdoar Deus por ter lhe dado aquele rosto.
— O rosto... Aquele rosto. É isso mesmo — concordou Roy. — Eu
simplesmente preciso saber o que ele pretende. Não posso perdê-lo de vista!
E saiu novamente do carro.
— Roy!
— Não entende, seu burro? Ele é nosso filme, o nosso Monstro. Se ele
fugir... nem quero pensar.
E Roy atravessou a rua correndo.
Idiota!, pensei. O que ele acha que está fazendo?
Mas eu tinha medo de gritar a uma hora dessas. Roy passou pelo portão
do cemitério e mergulhou nas sombras como alguém que se estivesse afogando.
Levantei tão rápido que bati a cabeça no painel e caí no banco, xingando: maldito
Roy. Que droga!
E se um carro da polícia aparecesse agora?, pensei, imaginando o que iria
dizer. Que estava esperando por Roy? “Ele está lá no cemitério, vai sair daqui a
pouco. Não acreditam? Vamos esperar mais um pouco, e vocês vão ver”.
Esperei. Cinco minutos. Dez.
Então, surpreendentemente, lá veio Roy, do outro lado da rua. Nem ao
menos olhou para a própria mão acionando a maçaneta ao abrir a porta. Sentou-se
ao volante como um zumbi, ainda olhando para o cemitério.
— Roy?
Ele não ouviu.
— O que você viu lá dentro? Ele não respondeu.
— Ele vai, quer dizer, aquilo vai sair? Silêncio.
— Roy! — Eu o cutuquei com uma cotovelada. — Diga alguma coisa. O
que foi?
— Ele...
— O que aconteceu?
— É difícil de acreditar — disse Roy, finalmente.
— Pode falar, eu acredito.
— Não. Agora ele é meu. Meu Deus, que Monstro nós conseguimos,
parceiro! — Roy voltou-se para mim, os olhos como lanternas, a alma queimando
em suas bochechas e colorindo-lhe a boca. — Vamos fazer um grande filme...
— Vamos?
— Claro que vamos! — Seu rosto parecia iluminado. — Que coisa!
— É só isso que tem para dizer? Não vai contar nada sobre o que
aconteceu lá dentro do cemitério? Só, que coisa?
— Que coisa... — repetiu Roy, olhando na direção do cemitério. As luzes
externas no pátio de azulejos se apagaram. A igreja ficou às escuras. A rua estava
escura. As luzes no rosto de meu amigo haviam desaparecido. O cemitério
continuava imerso na noite, esperando o raiar do dia.
— Que coisa... — insistiu Roy, dando a partida e começando a rumar na
direção de casa.
— Mal posso esperar para colocar as mãos na argila — declarou ele,
depois de alguns quarteirões.
— Não!
Chocado, Roy voltou-se para mim. Rios de luz escorriam por seu rosto.
Parecia estar embaixo d'água, onde não podia ser alcançado, ou salvo.
— Está tentando me dizer que não podemos usar esse rosto para o nosso
filme?
— Não é só o rosto. Tenho essa sensação... que, se você fizer isso,
estamos mortos. Meu Deus, Roy, estou assustado de verdade. Não esqueça que
alguém escreveu a você para que viéssemos aqui hoje. Alguém quis que nós o
descobríssemos. Provavelmente a mesma pessoa também chamou Clarence! As
coisas estão andando depressa demais para o meu gosto. Vamos fingir que nunca
estivemos no Brown Derby.
— E como acha que eu conseguiria fazer uma coisa dessas? — indagou
ele.
Aumentou a velocidade.
O ar frio entrava pela janela, enregelando meus cabelos, minhas pálpebras
e meus lábios.
As sombras corriam pelo rosto de Roy e ressaltavam seu nariz adunco e a
boca triunfante. Lembrava a boca de Groc, ou Aquele Que Ri Por Último.
Roy percebeu que eu o estava encarando.
— Está com raiva de mim?
— Não. Estava só pensando que, apesar de conviver com você durante
tantos anos, eu o conheço tão pouco.
Roy levantou sua mão esquerda com os desenhos que fizera no
restaurante. Eles estalaram e agitaram-se quando expostos ao vento do lado de
fora da janela.
— Posso largar?
— Você e eu sabemos muito bem que existe uma câmera fotográfica na
sua cabeça. Se jogar fora esses desenhos, aí dentro tem muito mais esperando
para sair, à hora que você quiser.
— Tem razão. Os próximos serão muito melhores — disse Roy, soltando
os papéis ao vento. Os desenhos esvoaçaram pela noite atrás de nós.
— Não me sinto nem um pouco melhor — comentei.
— Pois eu sim. O Monstro agora é nosso. Nós o possuímos.
— Ah, é? E quem o deu para nós? Quem nos chamou para vê-lo? Quem
está nos seguindo enquanto seguimos o Monstro?
Roy estendeu o dedo para desenhar um rosto horrível no vidro embaçado.
— No momento, só minha Musa.
Nada mais foi dito. Corremos pela noite em silêncio durante todo o resto
do caminho.
- 17 -
O telefone tocou às duas da manhã.
Era Peg, ligando de Connecticut, pouco antes do amanhecer.
— Sabia que tem uma mulher chamada Peg — perguntou ela — que saiu
de casa dez dias atrás para uma conferência em Hartford? Por que não telefonou?
— Eu telefonei. Mas você não estava no quarto. Deixei recado. Puxa,
como eu queria que você estivesse em casa...
— Ah, meu querido — disse ela devagar. — É só eu sair da cidade, e
você fica deprimido. Quer que a mamãe volte para casa, quer?
— Quero. Quer dizer, não precisa — hesitei. — São só os mesmos
problemas no estúdio...
— Por que está contando até dez? — quis saber ela.
— Meu Deus...
— Tem se alimentado bem? Coloque uma moedinha naquelas máquinas
que imprimem um papelzinho com o peso, e mande para mim. Ei! — ela fez uma
pausa —, estou falando sério. Quer que eu volte para casa? Amanhã?
— Amo você, Peg. Pode voltar quando tinha planejado mesmo.
— Mas e se você não estiver em casa quando eu chegar? Ainda é o Dia
das Bruxas aí?
As mulheres e sua maldita intuição!
— Eles resolveram continuar por mais uma semana.
— Eu percebi pelo seu tom de voz. Fique longe dos cemitérios.
— Por que disse isso? Meu coração deu um salto.
— Colocou flores no túmulo de seus pais?
— Esqueci.
— Como pôde esquecer?
— De qualquer forma, o cemitério onde eles estão é um cemitério melhor.
— Como melhor?
— Melhor do que qualquer outro, porque eles estão lá!
— Ponha uma flor por mim — pediu ela. — Amo você. Até logo!
Ela desligou, provocando um ruído forte na linha.
Às cinco da manhã, sem sol, e com o céu cheio de nuvens vindas do
Pacífico, acordei. Olhei para o teto e, ainda sem óculos, fui até minha máquina de
escrever.
Sentei-me na luz difusa que antecede a aurora e escrevi: “A VOLTA DO
MONSTRO”.
Será que ele chegara a ir embora?
Ele não se antecipara a mim em todos os momentos da vida, chamando-
me com sussurros?
Datilografei: “CAPÍTULO UM”.

O que existe de tão belo sobre um Monstro perfeito? Por que meninos e
homens respondem ao chamado?
O que existe de tão atraente e excitante em Criaturas, Monstros, Feras e
Anormais?
O charme eterno do Monstro!
E, agora, os loucos querem perseguir e apanhar o rosto mais horrível do
mundo!
Parei de datilografar, inspirei profundamente e disquei o número de Roy.
Sua voz parecia distante, como se imersa num mundo longínquo.
— Tudo bem — respondi. — Qualquer coisa que queira, Roy. Está certo.
Desliguei e caí na cama.

Na manhã seguinte eu estava em frente ao Estúdio 13, lendo a tabuleta
que ele pintara e pendurara à entrada:

CUIDADO.
ROBÔS RADIOATIVOS.
CACHORROS LOUCOS.
DOENÇAS INFECCIOSAS.

Infantilidade? Mas nunca tínhamos vivido de outra forma. Fingíamos ser
superficiais para que as pessoas não soubessem o quanto gostávamos de caveiras
com formas estranhas, assustadoras, e da distorcida genética submarina, de
lugares acima das nuvens e do espaço exterior.
Coloquei o ouvido contra a porta e imaginei meu amigo trabalhando no
silêncio daquela catedral escura, moldando a argila como uma aranha presa na
teia do próprio amor, produzindo a forma resultante desse amor.
— Força, Roy — sussurrei. — Força, Monstro!
E, enquanto esperava, andei através dos países e das cidades desse
mundo.
- 18 -
Caminhando, eu pensava: “Meu Deus, Roy está trazendo à luz um
Monstro que me apavora. Como posso parar de tremer e aceitar um delírio
desses? E uma vez que tenha aceitado, como posso elaborar o roteiro para uma
história com a qual todos fiquem com medo? Feito tudo isso, onde coloco a ação?
Em que cidade, vilarejo, ou que lugar do mundo?”
Fiz uma caricatura do rosto terrível em minha mente, tentando juntar
elementos para ambientar a história; porém, o local, a cidade em si, recusou-se a
aparecer.
Meu Deus, pensei ainda caminhando, agora sei por que tão poucos contos
de mistério se passam em ambientes americanos. A Inglaterra, com seus
nevoeiros, chuvas, charnecas e mansões antigas, tinha os fantasmas ingleses, ou
Jack, o Estripador. Isso sim!
Mas os Estados Unidos? Não havia uma história convincente de
assombrações ou mastins ferozes. Talvez Nova Orleans tivesse nevoeiros e
chuvas suficientes, além de casarões nos pântanos, lugares onde se poderia
provocar arrepios e cavar algumas sepulturas, ao compasso da eterna marcha dos
Santos. E também San Francisco, onde os lamentos dos apitos de neblina ecoam
e morrem todas as noites.
Talvez também em Los Angeles, a terra de Chandler e Cain. Só que ali a
atmosfera era mais ligada à vida noturna da alma, um passeio pelos gramados
aparados dos cemitérios de Pasadena, e alguns becos escuros.
Só consegui pensar num lugar em todo o país no qual pudesse ambientar
um assassino, ou ceifar vidas.
Claro! A Companhia Cinematográfica Maximus.
Rindo, entrei num beco, fiz a volta e realizei uma busca final, à cata de
um local para escrever meu pesadelo. Caminhei através de uma dúzia de estúdios
menores, tomando notas.
A Inglaterra escondia-se aqui, além do longínquo País de Gales, a Escócia
e a chuvosa Irlanda, abrigando os fantasmas nos antigos castelos. Aqui
multiplicavam-se as sepulturas nas quais jaziam velhos filmes, e os fantasmas
passeavam pelas rachaduras das salas de projeção, tagarelando enquanto os vigias
passavam a cantarolar canções fúnebres, e assombrações andavam em velhas
bigas de Cecil B. DeMille, usando capacetes emplumados.
À noite, os espectros dos extras bateriam seu cartão de ponto, e o
nevoeiro brotaria dos regadores automáticos nos gramados, avançando e
depositando gotículas geladas sobre sepulturas ainda quentes. Em qualquer noite
ali poder-se-ia atravessar Londres para encontrar um manobreiro fantasma, cujas
luzes dirigiam a locomotiva apitando seu lamento e fazendo com que o Estúdio
12 se dissolvesse nas páginas da edição de outubro da revista cinematográfica
Silver Screen.
Portanto, eu passeava pelos becos, esperando que o sol se escondesse e
Roy saísse, as mãos cheias de argila vermelha, anunciando um nascimento.
Às quatro horas, escutei o disparo distante de um fuzil.
Tratava-se de Roy dando tacadas numa bola de críquete para a frente e
para trás num gramado atrás do Estúdio 7. Bateu na bola várias vezes, e só parou
quando percebeu minha presença. Levantou a cabeça e olhou para mim, não com
a expressão de um parteiro, e sim de um carnívoro que acabara de matar e
estivesse saciado. Acertou ruidosamente a bola uma última vez.
— Finalmente consegui! — exclamou ele. — Consegui capturar o
Monstro. Ele nunca mais vai conseguir escapar. Nosso Monstro, seu Monstro,
meu! Hoje, em argila, amanhã em filme! As pessoas vão perguntar: “Quem fez
isso?” Fomos nós, parceiro, nós! E essas duas mãos que não o deixaram escapar.
— Roy estendeu os dedos longos para o ar.
Avancei devagar, impressionado.
— Conseguiu capturá-lo? Roy, você ainda não me contou nada. O que
viu quando foi atrás dele na noite passada?
— Tudo a seu tempo, parceiro. Acabei meia hora atrás! Você vai adorar.
Aliás, é melhor adorar! Uma olhada só e vai começar a martelar aquela máquina
de escrever igual a um doido. Meu Deus, estou parecendo um maníaco. Telefonei
para Manny. Ele deve chegar em vinte minutos. Quase fiquei maluco, esperando
sozinho. Precisei sair e martelar um pouco essas bolas. Assim! — Ele vibrou mais
uma forte tacada, mandando longe a bola. — É melhor eu parar antes de matar
alguém!
Roy soltou uma gargalhada, levantando a cabeça para o céu, os olhos
fechados na direção do sol.
— Calma, Roy, calma.
— Acho que nunca mais vou me acalmar. Lembra-se de todos aqueles
papos na escola? Agora tudo aquilo é nosso, para sempre. Vamos fazer o melhor
filme de horror da história do cinema. Manny vai morder a língua e ficar cego!
Acho que...
— Ei, o que vocês dois estão fazendo aí? — gritou uma voz.
O Rolls-Royce de Manny, um verdadeiro monstro branco, passava
devagar, ronronando suavemente. O rosto de nosso patrão estava para fora de
uma das janelas.
— Afinal, temos um encontro marcado ou não temos?
— Vamos andando ou de carro? — perguntou Roy, calmamente.
— Andem! — O Rolls-Royce acelerou.
- 19 -
Andamos bem devagar até o Estúdio 13.
Fiquei observando Roy para ver se podia captar algum indício sobre o
que acontecera desde a noite em que estivéramos no Brown Derby. Ele olhava
apenas para a frente, com ar de gênio satisfeito. Mesmo quando éramos garotos,
ele raramente demonstrava os sentimentos. Abria de repente a porta da garagem
para me mostrar seu último modelo de dinossauro, terminado numa noite insone.
Somente quando meus olhos se arregalavam e minha boca se abria é que ele se
permitia um grito parecido com um latido. Se eu adorasse o que ele tinha feito,
não importava a opinião dos outros, mesmo de seus pais.
— Roy, você está bem? — perguntei enquanto caminhávamos.
Encontramos Manny Leiber possesso à porta do Estúdio 13.
— Onde diabos vocês se meteram?
Roy passou por Manny, abriu a porta, entrou e deixou que a pesada porta
se fechasse.
Manny olhou para mim. Adiantei-me e abri a porta para ele.
Entramos na escuridão.
A única luz acesa era uma lâmpada pendurada sobre a mesinha de
escultor de Roy, vinte metros além, depois de um deserto, uma paisagem semi-
marciana, e próxima à Meteor Crater.
Roy tirou os sapatos e passou rapidamente pela paisagem, com habilidade
suficiente para evitar danificar uma minúscula árvore, ou carrinhos em miniatura.
— Tirem os sapatos — gritou ele, de longe.
— Coisa nenhuma! — Manny avançou.
Roy levantou a mão, a palma voltada para cima como um sacerdote.
Manny praguejou, tirou os sapatos e andou na ponta dos pés sobre aqueles
mundos reduzidos. Muita coisa fora acrescentada desde a última vez; novas
montanhas, novas árvores, além, claro, da obra que jazia oculta embaixo do pano
molhado sob a lâmpada.
Ambos, só de meias, chegamos próximos ao pedestal.
— Estão prontos? — Roy perscrutou nossos rostos. — Claro que estão!
Manny estendeu a mão para o pano, mas Roy afastou-a.
— Não, senhor. Eu faço isso!
Manny deu um passo para trás, vermelho de raiva.
Roy levantou a toalha úmida, como se fosse uma cortina teatral que se
abrisse para o maior espetáculo da Terra. Eu podia até imaginar uma orquestra
executando acordes fortíssimos.
— Nem a Bela, nem a Fera — anunciou Roy. — E sim o Monstro que é
Belo.
E lá estava o Monstro.
Eu e Manny Leiber perdemos o fôlego.
Roy não mentira. Era o melhor trabalho que ele já realizara, uma obra
digna de viajar numa nave à velocidade da luz, um caçador da noite entre as
estrelas, um sonhador solitário por trás de sua máscara terrível, hedionda, de
aparência assustadora.
O Monstro.
Aquele homem solitário por trás do biombo oriental no restaurante, rindo,
numa noite que parecia ter passado há muito tempo.
A criatura que correra pelas ruas à meia-noite, para entrar num cemitério e
perder-se entre túmulos esbranquiçados.
— Meu Deus, Roy! — Meus olhos estavam cheios de lágrimas pelo
impacto recebido, tão vivido como quando o Monstro saíra do restaurante. —
Meu Deus...
Roy admirava sua criação, com ar de adoração. Virou-se lentamente para
Manny Leiber, e eu me lembrei de fazer o mesmo. Ambos ficamos totalmente
desconcertados com o que vimos.
O rosto de Manny estava branco como uma folha de papel. Os olhos
reviravam-se nas órbitas. Sua garganta emitia sons desconexos, como se ele
tivesse engasgado com um pedaço de arame. As mãos agarravam o peito, dando
a impressão de que o coração parará.
— O que você fez! — berrou ele. — Pelo amor de Deus! O que é isso? É
alguma piada? Uma brincadeira de mau gosto? Cubra isso, já! Está despedido!
Manny arrancou a toalha das mãos de Roy e jogou-a sobre o Monstro de
argila.
— Eu não pretendia... — balbuciou Roy, ajeitando o pano com
movimentos mecânicos.
— Claro que pretendia! Queria isso na tela? Pervertido! Pode arrumar
suas coisas. Saia daqui. — Manny fechou os olhos, tremendo. — Imediatamente!
— Mas você pediu isso — argumentou Roy.
— Pois agora estou mandando destruir essa coisa!
— Mas é meu melhor trabalho. O melhor que já fiz! Dê uma boa olhada.
É lindo. E fui eu que fiz. É meu!
— Não, senhor. É do estúdio. Pode arrebentar essa coisa. O filme acaba
por aqui! Os dois estão despedidos. Quero esse lugar vazio em uma hora.
— Posso saber por que está exagerando desse jeito? — indagou Roy,
com voz calma.
— Estou, é?
E Manny caminhou pelo estúdio, com os sapatos embaixo do braço,
esmagando casas minúsculas e chutando caminhões de brinquedo. Chegando à
porta ele parou, inspirou profundamente e olhou para mim.
— Você não está despedido. Vai ser indicado para outro trabalho. Mas
aquele filho da puta ali? Fora!
A porta abriu-se, deixando entrar uma lâmina de luz como numa catedral
gótica, e fechou-se em seguida, deixando-me atônito e sozinho com o espanto e a
derrota de Roy.
— O que aconteceu? O que fizemos de errado? — gritei para Roy, para
mim mesmo e para o Monstro de argila, agora coberto novamente. — O quê?
Roy estava tremendo.
— Trabalhei metade da minha vida para fazer algo que realmente
prestasse. Eu me preparei, esperei, só para enxergar de verdade, e finalmente
enxerguei! Quando a coisa finalmente tomou forma através dos meus dedos, tudo
fluiu de uma vez. E como veio fácil! O que é essa forma expressa na argila? Por
que quando finalmente ele nasce, eu tenho de morrer? Que diabos afinal é isso?
Por que essa coisa está me matando?
Roy descontrolou-se. Levantou os punhos, só que não havia ninguém
para atingir. Olhou seus animais pré-históricos e fez um gesto abrangente, como
se quisesse abraçar e proteger a todos.
— Vou voltar! — prometeu solenemente a eles. E partiu em direção à
porta.
— Roy!
Eu o segui até a claridade do dia. Lá fora, o sol da tarde estava quente, e
parecíamos ter entrado num rio de fogo.
— Onde vai?
— Só Deus sabe! Fique aqui. Não adianta se meter nisso! Esse é o
primeiro trabalho que faz aqui. Você bem que me avisou na noite passada. Agora
sei que tinha razão, mas por quê? Vou me esconder em algum lugar por aí, e de
noite volto para levar meus amigos. — Roy olhou para a porta fechada, atrás da
qual viviam seus queridos seres.
— Eu ajudo — ofereci.
— Não. É melhor que nem seja visto comigo. Eles são capazes de pensar
que você me levou a fazer isso.
— Roy, Manny parecia ser capaz de matar você! Vou telefonar para o
investigador Crumley. Talvez ele seja capaz de ajudar. Aqui está o telefone dele.
— Escrevi o número apressadamente num pedaço de papel amassado, que tirei
do bolso. — Esconda-se, e ligue para mim essa noite.
Roy Holdstrom saltou para o calhambeque, que pertencera a Laurel e
Hardy, e partiu a vinte quilômetros por hora.
— Meus parabéns — disse uma voz. — Seu idiota filho de uma puta!
Voltei-me. Deparei com Fritz Wong saindo da rua ao lado.
— Bati o pé e finalmente você foi escalado para reescrever o final do meu
filme Cristo na Galiléia. Manny acabou de passar por mim naquele Rolls-Royce
e gritou as novas ordens. Portanto...
— Existe algum monstro no roteiro? — Minha voz ainda estava trêmula.
— Só Herodes Antipas. Leiber quer ver você.
Ele tentou me conduzir na direção do escritório de Manny.
— Espere um pouco — disse eu.
Estava olhando por sobre o ombro, na direção dos portões, à frente dos
quais a multidão, o circo, estava reunido como sempre. Virei-me.
— Idiota! Onde pensa que vai?
— Acabei de presenciar Roy sendo despedido — respondi, caminhando.
— Agora preciso fazer com que o contratem de volta.
— Dummkopf. — Fritz veio atrás de mim. — Manny quer ver você
agora!
— Daqui a cinco minutos.
Depois de passar pelos portões, olhei para o outro lado da rua. Será que
você está aí, Clarence?, perguntei a mim mesmo.
- 20 -
E lá estavam eles.
Os malucos. Os fanáticos. Os idiotas.
A multidão de fãs que cultuava os portais dos estúdios.
Pareciam muito com aquela multidão que me arrastara para assombrar as
portas do Legion Stadium de Hollywood, onde Cary Grant assistia às lutas de
boxe, ou Mae West ondulava pela multidão como uma cobra sem ossos, ou
Groucho acompanhava Johnny Weissmuller, que sempre levava Lupe Velez a
tiracolo, como um casaco de leopardo.
Os malucos, entre os quais eu me incluía, levavam grandes álbuns de
fotografias, tinham mãos sujas de tinta de caneta e pequenos cartões nos bolsos.
Os fanáticos que alegremente ficavam ensopados na estréia de Damas e Música
enquanto a Depressão continuava, apesar de Roosevelt ter declarado que essa
fase não poderia durar para sempre, e dias melhores viriam logo.
As górgonas, os chacais, os demônios, os viciad6s, os tristes, os perdidos.
Certa vez eu fora um deles.
E eles continuavam ali. Minha família.
Reconheci ainda alguns rostos da época em que eu me escondia nas
sombras.
Vinte anos depois, lá estavam Charlotte e sua mãe. Elas haviam enterrado
o pai de Charlotte em 1930 e fixaram residência à frente de meia dúzia de
estúdios e dez restaurantes. Agora, uma vida inteira se passara, e lá estava Ma, na
casa dos oitenta anos, prática, firme e forte como um guarda-chuva, e Charlotte,
com cinqüenta, tão frágil quanto sempre aparentara. Ambas eram uma fraude.
Ambas escondiam uma caldeira sob os sorrisos de marfim.
Procurei por Clarence naquele estranho magote de pessoas. Ele fora o
mais fanático, carregando grandes álbuns que pesavam cinco quilos, de estúdio a
estúdio. Couro vermelho para a Paramount, preto para a RKO, verde para a
Warner Brothers.
Clarence, envolto em seu enorme sobretudo de pêlo de camelo, fosse
verão ou inverno, encontrava-se sempre repleto de canetas, blocos e miniaturas de
câmeras. Só nos dias mais escaldantes é que tirava o sobretudo. Nessas ocasiões,
ele parecia uma tartaruga arrancada da casca, em pânico com a vida no mundo
exterior.
Atravessei a rua e parei em frente à multidão.
— Oi, Charlotte — cumprimentei. — Oi, Ma!
As duas mulheres me observavam com ar estupefato.
— Sou eu, lembram? — insisti. — Faz vinte anos. Eu ficava aqui, com
vocês. Espaço. Foguetes. Tempo...
Charlotte me reconheceu e levou a mão à boca. Inclinou-se para a frente,
como se fosse cair.
— Ma — disse ela — é... puxa, é o Maluco.
— O Maluco — concordei, rindo. Um brilho assomou aos olhos da mãe.
— Cáspite! — exclamou ela, tocando meu cotovelo. — Pobrezinho.
O que está fazendo aqui? Ainda coleciona...
— Não — expliquei, com relutância. — Eu trabalho aqui.
— Onde?
Fiz um gesto sobre o ombro.
— Lá? — Charlotte apontava incrédula o portão do estúdio.
— No escritório? — indagou Ma.
— Não. — Senti que corava. — No Departamento de Redação.
— Você mimeografa roteiros?
— Pelo amor de Deus, Ma — o rosto de Charlotte iluminou-se. — Ele
escreve roteiros, não é isso? Roteiros de filmes?
A frase foi uma verdadeira revelação. Todos os rostos ao redor das duas
se voltaram.
— Meu Bom Jesus! — exclamou a mãe de Charlotte. — Não pode ser!
— Pois é — respondi, num fio de voz. — Estou fazendo um filme com
Fritz Wong. César e Cristo.
Houve um longo silêncio de surpresa. Um arrastar de pés. Começou o
falatório.
— Será que podemos... — disse alguém. — Pode nos dar... Mas foi
Charlotte quem terminou a frase.
— O seu autógrafo, por favor?
— Eu...
Todas as mãos se estendiam agora, com canetas e cartões. Sem nenhuma
vergonha, apanhei o de Charlotte e escrevi meu nome. Ma apertou os olhos para
ler o que eu havia escrito.
— Coloque o nome do filme em que está trabalhando — pediu ela. —
César e Cristo.
— Ponha também Maluco depois do seu nome — sugeriu Charlotte.
Escrevi: “o Maluco”.
Sentindo-me um idiota completo, fiquei ali na calçada, com todas as
cabeças voltadas para mim, gente estranha de olhar triste tentando adivinhar
minha identidade.
Para encobrir meu embaraço, perguntei:
— Onde está Clarence?
— Você se lembra dele? — espantou-se Charlotte.
— E como é que eu podia esquecer o Clarence, com os álbuns e o
casaco? — comentei, sem parar de escrever.
— Ele ainda não telefonou — disse Ma.
— Telefonou? — estranhei, levantando os olhos.
— Ele liga para aquele telefone público do outro lado da rua mais ou
menos a essa hora, para saber se alguém famoso chegou, ou saiu — informou
Charlotte. — Isso economiza tempo. Geralmente ele dorme tarde, porque fica até
altas horas na porta dos restaurantes.
— Eu sei — assenti, terminando a última assinatura, com uma alegria
descabida.
Eu ainda não conseguia olhar diretamente para meus novos admiradores,
que sorriam para mim como se eu tivesse acabado de atravessar a Galiléia numa
passada só.
Do outro lado da rua, o telefone tocou na cabine envidraçada.
— Deve ser o Clarence! — disse Ma.
— Com licença. — Charlotte começou a atravessar a rua.
— Por favor — pedi, segurando-lhe o cotovelo. — Faz muitos anos.
Queria fazer uma surpresa... — Olhei para Charlotte e depois para sua mãe. —
Posso?
— Tudo bem — resmungou Ma.
— Pode ir — concordou Charlotte.
O fone tocou novamente. Corri para atender.
— Clarence?
— Quem está falando? — indagou ele, desconfiado.
Pensei em entrar em detalhes, mas resolvi usar o velho apelido:
— O Maluco.
Aquilo não funcionou muito bem com Clarence.
— Quer chamar Charlotte, ou a Ma? Estou doente. Doente, pensei, ou
subitamente apavorado, como Roy.
— Clarence, onde você mora?
— Por que quer saber?
— Me dê pelo menos seu número de telefone...
— Ninguém tem o número do meu telefone. Minha casa seria assaltada.
Iriam roubar minhas fotos! Meus tesouros.
— Clarence, eu estava no Brown Derby ontem à noite... Silêncio...
— Clarence? Preciso da sua ajuda para identificar uma pessoa.
Juro que eu conseguia escutar um coração assustado batendo do outro
lado da linha. Podia até enxergar os olhos de coelho dele revirando nas órbitas.
— Clarence! Por favor! Anote meu nome e o número do meu telefone. —
Ditei ambos, sem muita esperança que ele estivesse mesmo anotando. —
Telefone ou escreva para o estúdio. Vi aquele homem que quase bateu em você
ontem à noite. Por quê? Quem...
Clique. Clarence, onde quer que estivesse, desligara.
Caminhei como um sonâmbulo até o outro lado da rua.
— Clarence não vem hoje — anunciei.
— Como assim? — quis saber Charlotte. — Ele sempre vem.
— O que você disse a ele? — indagou a mãe de Charlotte abrindo seu
olho esquerdo, o mau.
— Ele está doente.
Doente como Roy, pensei. Doente como eu.
— Alguém aqui sabe como posso encontrá-lo? Todos sacudiram a
cabeça, em vários gestos negativos.
— Acho que você poderia segui-lo e descobrir! — sugeriu Charlotte,
rindo. — Quero dizer...
— Eu avistei Clarence uma vez perto de Bronson — declarou alguém. —
Um daqueles chalés...
— Qual o sobrenome dele?
Ninguém sabia. Era como todos que estavam ali. Ninguém possuía
sobrenome.
— Droga! — resmunguei.
— Se eu souber de alguma coisa... — A mãe de Charlotte olhava para o
cartão que eu assinara. — Qual seu nome completo?
Soletrei para ela.
— Está trabalhando com filmes — comentou ela. — Devia ter um
pseudônimo.
— Pode me chamar de Maluco. — Comecei a afastar-me. — Charlotte,
Ma, até logo.
— Até logo, Maluco — disseram elas.
- 21 -
Fritz esperava por mim no segundo andar, do lado de fora do escritório de
Manny Leiber.
— Estão num verdadeiro frenesi lá dentro — comentou ele. — O que há
de errado com você?
— Estava falando com as gárgulas.
— O quê, elas desceram do alto de Notre-Dame outra vez? Entre aqui.
— Por quê? — Há uma hora, Roy e eu estávamos no monte Everest.
Agora ele desceu para o inferno, e eu estou encalacrado com você aqui na
Galiléia. Explique isso.
— Você e o seu código do vencedor. Quem sabe? A mãe de Manny
morreu. Ou a amante dele tomou alguns comprimidos a mais. Gripe. Resfriado. É
só escolher. Roy foi despedido. E talvez eu e você façamos comédias pelos
próximos dez anos. Que diferença faz? Vamos entrar.
Entramos no escritório de Manny Leiber.
Manny Leiber estava de costas, olhando para nós.
Encontrava-se em pé no meio da sala inteiramente branca, com paredes
brancas, tapetes brancos, mobília branca e uma grande escrivaninha branca sem
nada em cima, a não ser um telefone da mesma cor. Um surto súbito de
inspiração vindo de algum decorador do Departamento de Cenários, obcecado
por neve.
Atrás da escrivaninha ficava um grande espelho de maneira que, se
Manny olhasse por sobre o ombro, poderia ver a si mesmo trabalhando. Havia
uma única janela no aposento. Dali se descortinava o muro traseiro do estúdio, a
menos de dez metros, e tinha-se uma vista panorâmica do cemitério. Não
consegui tirar os olhos daquela cena.
Mas Manny Leiber pigarreou. Perguntou, ainda de costas:
— Ele já foi?
Assenti silenciosamente, observando-o pelo espelho.
— O nome dele não será mais mencionado aqui. Ele nunca existiu.
Aguardei, e Manny voltou-se e andou em volta de mim, curtindo um sentimento
que não podia externar. Seu rosto era um conjunto de tiques nervosos. Os olhos
não se moviam de acordo com as sobrancelhas, nem estas de acordo com a boca,
nem a cabeça em harmonia com o pescoço. Parecia perigosamente desequilibrado
à medida que caminhava, como se a qualquer momento fosse perder o controle.
Subitamente, pareceu dar-se conta da presença de Fritz Wong, que nos
observava, e foi para o lado dele, como se quisesse despertar-lhe um acesso de
raiva.
Fritz fez sabiamente o que sempre fazia quando o mundo ficava real
demais: retirou o monóculo e deixou-o cair no bolso do paletó. Era como uma
rejeição sutil, uma mudança do foco de atenção. Enfiara Manny no bolso com o
monóculo.
Manny Leiber falava andando. Interrompi com um sussurro.
— Certo, e o que fazemos com a Meteor Crater?
Fritz me alertou com um movimento de cabeça: Fique quieto.
— Então — disse Manny, ignorando minha pergunta. — Nosso problema
seguinte, aliás, nosso único problema... é que não temos um final para Cristo na
Galiléia.
— Como? — indagou Fritz, com polidez quase ofensiva.
— Não temos final! — exclamei. — Já experimentou consultar a Bíblia?
— Temos bíblias! Mas nosso roteirista não conseguia ler nem as letras
pequenas nos copinhos descartáveis. Li aquela sua história publicada no Esquire.
Parecia o Eclesiastes.
— Jó — corrigi em voz baixa.
— Cale a boca. O que precisamos é de...
— Mateus, Marcos, Lucas, e eu!
— Desde quando redatores novatos rejeitam o melhor trabalho do século?
Precisamos do texto para segunda-feira, quando Fritz começa a filmar outra vez.
Escreva direitinho, e algum dia vai herdar tudo isso!
Ele fez um gesto abrangente.
Olhei para o cemitério, do lado de fora. Era um dia claro, mas uma chuva
invisível caía sobre os túmulos.
— Meu Deus! — resmunguei. — Espero que não.
Aquilo o irritou. Manny Leiber ficou mais pálido. Era como se tivesse
voltado ao Estúdio 13, no escuro, comigo, Roy e o Monstro de argila.
Silenciosamente, ele foi até sua salinha de repouso. A porta fechou-se.
Fritz e eu nos entreolhamos. Manny devia estar enjoado por trás daquela
porta.
— Gott! — suspirou Fritz. — Eu devia ter escutado Goering!
Alguns instantes se passaram e Manny Leiber voltou, olhou ao redor,
como se estivesse surpreso com o fato de que o lugar ainda existisse, caminhou
até o telefone e discou.
— Venha até aqui! — ordenou ele, ao aparelho. Depois dirigiu-se para a
porta.
Eu o interpelei.
— Sobre o Estúdio 13...
Manny estava com a mão na boca, como se estivesse novamente enjoado.
Seus olhos se arregalaram.
— Sei que vai mandar tirar tudo de lá — emendei, mais que depressa, —
Mas eu tenho um bocado de coisas ali. Como pretendo passar o resto do dia
conversando com Fritz sobre a Galiléia e Herodes, não vou ter tempo para ir até
lá hoje. Poderia deixar as coisas lá até amanhã de manhã, quando pretendo pegar
minhas coisas? Mandar retirar as coisas só depois disso?
Os olhos de Manny giraram, indicando que estava a pensar. Então, ainda
com a mão na boca, balançou a cabeça por uma única vez, em assentimento. Um
sujeito pálido entrou nesse momento. Manny murmurou algo para ele e saiu sem
se despedir. O homem pálido era W.W. Hope, um dos produtores executivos.
O indivíduo olhou para mim e demonstrou algum embaraço antes de
dizer:
— Parece... bem, nosso problema é que não temos um final para o filme.
— Já experimentou consultar a Bíblia? — perguntamos Fritz e eu, em
uníssono.
- 22 -
O circo se fora, e a calçada estava vazia em frente ao estúdio. Charlotte,
Ma e todos os demais haviam partido para outros estúdios, outros restaurantes.
Devia haver mais de trinta espalhados por Hollywood.
Nunca saberia com certeza qual o sobrenome de Clarence. Mas no
momento... Fritz me levou para casa.
— Dê um olhada no porta-luvas — disse ele, durante o percurso. — Essa
caixa de vidro. Abra.
Abri a pequena caixa negra. Havia no interior seis monóculos brilhantes
de cristal, encaixados perfeitamente em seis orifícios no veludo vermelho.
— Essa é minha bagagem — explicou ele. — Tudo o que trouxe para os
Estados Unidos quando fugi da Europa, com minha virilha hiperativa e meu
talento.
— Que era enorme.
— Pare com isso. — Fritz passou a mão em minha cabeça. Prefiro que só
faça insultos, seu bastardo. Eu quis que visse isso... — ele acenou na direção dos
monóculos — para lhe mostrar que nem tudo está perdido. Todos os gatos,
inclusive Roy, caem de cabeça para cima. O que mais tem aí no porta-luvas?
Encontrei um maço de páginas mimeografadas.
— Leia esse material sem vomitar e... será um homem, meu filho. Falou
Rudyard Kipling. Agora vá. Volte depois de amanhã, às duas e meia. Vamos
mostrar a você o copião montado de Jesus Dando Esmolas, ou Pai, Por Que Me
Esqueceste?
Desci do carro, em frente a minha casa.
— Sieg Heil! — exclamei, fazendo a saudação nazista.
— Agora, sim! — aplaudiu Fritz, acelerando.
Minha casa parecia tão solitária que logo pensei: “Crumley”. Assim que o
sol se pôs, peguei minha bicicleta e fui até a casa de Crumley.
- 23 -
Detesto andar de bicicleta à noite, mas queria certificar-me de que
ninguém me seguiria. Tanto quanto eu soubesse, eu não passava de um redator
cujo melhor amigo fora despedido, e não pretendia voltar, a menos que eu
conseguisse descobrir como salvá-lo, colocá-lo de volta no emprego e resolver o
enigma do Monstro.
Além do mais, eu precisava de um pouco de tempo para decidir o que
diria a meu amigo investigador.
A certa altura, parei, e quase voltei para casa.
Podia imaginar Crumley falando, suspirando profundamente enquanto eu
contava minha história inverossímil, gesticulando com as mãos e dando grandes
goles em sua cerveja para esconder minha completa falta de fatos reais e precisos.
Estacionei a bicicleta à frente do chalé estilo safári, oculto por uma fileira
de espinheiros, a pouco mais de um quilômetro do mar, e caminhei por uma
alameda de terra, ladeada por lilases africanos, que deixava a impressão de ter
sido percorrida por antílopes no dia anterior.
Quando levantei a mão para bater, a porta se abriu.
Um punho saiu da escuridão segurando uma lata espumante de cerveja.
Não pude ver o rosto de quem estava fazendo isso, mas apanhei a lata. A mão
desapareceu. Escutei passos afastando-se para o interior da casa.
Tomei três goles antes de entrar.
A casa estava vazia.
O jardim, não.
Elmo Crumley estava sentado sob um espinheiro, usando seu chapéu de
plantador de bananas, olhando por baixo da aba para a lata de cerveja que tinha
na mão queimada de sol, e bebendo em silêncio.
Havia um aparelho telefônico sobre a mesa de cana-da-índia. Encarando-
me, Crumley discou um número.
— Mais uma enxaqueca — disse ele ao telefone. — Estou pedindo uma
licença médica. Vejo você em três dias? Obrigado. — Desligou.
— Suponho que a enxaqueca seja eu — disse.
— Sempre que você aparece... setenta e duas horas de licença.
Ele fez um gesto, e eu sentei na cadeira indicada. Estávamos no limiar da
selva particular dele, onde elefantes haviam bramido, e vôos invisíveis de
besouros gigantes, beija-flores e flamingos haviam cessado muito antes de os
ecologistas declararem os animais extintos.
— Onde diabos você andou? — quis saber Crumley.
— Casando — disse eu.
Crumley pensou um pouco, resmungou, colocou o braço sobre meu
ombro e estalou um beijo no alto de minha cabeça.
— Explicação aceita.
Rindo, ele foi buscar mais uma caixa de latas de cerveja. Sentamo-nos,
comendo cachorros-quentes no pequeno quiosque nos fundos do jardim.
— Muito bem, filho — declarou ele, finalmente. — Seu velho pai tem
sentido falta de você. Mas um jovem entre cobertores não tem orelhas, diz um
velho provérbio japonês. Eu sabia que algum dia você voltaria.
— Estou perdoado? — indaguei, curvando-me.
— Amigos não perdoam, simplesmente esquecem. Pode usar essa frase
como se fosse sua. Peg é uma boa mulher?
— Estou casado há um ano, e ainda estamos para ter nossa primeira briga
por causa de dinheiro. — Corei. — Ela ganha mais do que eu. Mas meu salário
no estúdio agora vai para... cento e cinqüenta por semana.
— Não diga! Está ganhando dez dólares a mais do que eu.
— Mas só durante seis semanas. Logo vou voltar a escrever histórias para
a Dime Mystery.
— E muito bem, diga-se de passagem. Eu me mantive atualizado apesar
da sua ausência...
— Recebeu o cartão do Dia dos Pais que eu mandei? — indaguei.
— Recebi! Gostei muito — respondeu ele, endireitando-se. — Mas você
não veio aqui movido apenas por sentimentos filiais, certo?
— Pessoas estão morrendo, Crumley.
— De novol
— Bem, quase morrendo... — corrigi. — Ou então voltando da sepultura
sem estarem vivas de verdade na forma de bonecos de papel machê...
— Calma aí, vamos mais devagar.
Crumley foi até a cozinha e trouxe uma garrafa de gim, que despejou
dentro da cerveja enquanto eu contava o caso desde o princípio. O sistema de
irrigação do jardim começou a funcionar, dando a impressão de que a qualquer
momento poderíamos escutar animais da savana e pássaros das matas tropicais.
Finalmente terminei de narrar os acontecimentos, desde o Dia das Bruxas até
aquele momento. Depois, fiquei em silêncio.
Crumley suspirou profundamente.
— E então Roy Holdstrom foi despedido por criar um busto de argila, é
isso? O tal Monstro era tão horrível assim?
— Era.
— Estética. Este velho não pode fazer nada quanto a isso.
— Mas precisa. Nesse momento Roy ainda está no estúdio, esperando
uma chance de voltar e retirar de lá todos os seus modelos de dinossauros. Valem
milhares de dólares. O problema é que Roy agora está lá ilegalmente. Não pode
me ajudar a deduzir o que significa tudo isso? Ajudar Roy a conseguir seu
emprego de volta?
— Meu Deus... — suspirou Crumley.
— Não quero nem pensar no que pode acontecer se apanharem Roy
tentando tirar suas coisas de lá.
— Mas que droga! Sabe quem é esse sujeito do Brown Derby? —
indagou ele, acrescentando mais gim a sua cerveja.
— Não.
— Tem alguma noção sobre quem pode saber?
— O padre da Igreja de San Sebastian.
Contei a Crumley a confissão que ouvíramos na igreja, as vozes, depois o
choro e as palavras breves do padre.
— Mas isso não vai adiantar. — Crumley balançou a cabeça numa
negativa. — Padres nunca dão informações, nem fornecem nomes. Se eu insistir
ele me põe para fora em menos de um minuto. Alguém mais?
— O maitre do Brown Derby talvez saiba. E o Monstro também foi
reconhecido por alguém do lado de fora do restaurante naquela noite. Alguém
que eu conheci quando ainda andava de patins. Clarence. Andei tentando
descobrir o sobrenome dele.
— Pois continue investigando. Se ele souber quem é o Monstro, teremos
por onde começar. Meu Deus, nada disso faz sentido: Roy despedido, você
transferido para outro filme, tudo por causa de um boneco de argila. Reações
exageradas e agitação. E por que alguém colocaria um boneco na escada?
— Mas foi o que aconteceu.
— E quando vi você na porta pensei que iria ser agradável tê-lo de volta
em minha vida... — comentou ele.
— E não é agradável?
— Não. — Ele suavizou a voz. — Droga, claro que é. Mas bem que eu
gostaria que tivesse deixado o estéreo do lado de fora. — Crumley estreitou os
olhos, fitando a Lua. — Puxa vida... você me deixou curioso. Essa história está
cheirando a chantagem.
— Chantagem?
— Por que alguém iria ter o trabalho de escrever bilhetes, provocando
inocentes como você e Roy, além de suspender bonecos, obrigar vocês a
reproduzirem uma criatura, se isso não conduzisse a algum lugar? Qual a
vantagem de produzir pânico se a pessoa não lucrar algum dinheiro com isso?
Eu não tinha a menor idéia.
— Você provavelmente era o agente que iria abrir a boca e começar a
agitar as coisas, mas fechou-se em copas. Outra pessoa teve de fazer isso. Aposto
que vai aparecer um bilhete em algum lugar, hoje à noite, dizendo: “Duzentos mil
em notas de cinqüenta vão garantir que mais nenhum corpo apareça no muro''.
Me fale sobre esse estúdio... — pediu Crumley.
— O Maximus? Foi o estúdio mais bem-sucedido da história. Ainda é. A
revista Variety publicou o lucro deles no ano passado. Nenhum outro estúdio
faturou tanto.
— Eram números honestos?
— Mesmo que se deduza cinco milhões, o total de lucro ainda é
astronômico.
— Tiveram recentemente algum problema, tumultos, revoltas? Sabe como
é, outros que tenham sido despedidos, ou algum filme cancelado?
— Tudo anda sossegado há vários meses.
— Então deve ser isso! Quero dizer, os lucros. Tudo está indo muito bem,
e de repente acontece alguma coisa, que não parece grave, mas assusta muito a
todos. Deve haver algo escondido embaixo de algum tapete, algo enterrado —
Crumley riu. — Enterrado talvez seja o termo certo. Arbuthnot? Acha que
alguém descobriu um escândalo bem sujo e antigo, e resolveu espalhar a sujeira
sem muita sutileza?
— Que tipo de escândalo, com vinte anos de idade, poderia assustar o
pessoal do estúdio a ponto de acharem que seriam destruídos se viesse a público?
— Se mergulharmos suficientemente fundo no esgoto, podemos
descobrir. O problema é que enfiar as mãos na sujeira nunca foi meu forte.
Arbuthnot, quando vivo, tinha uma ficha limpa?
— Comparado aos outros chefes de estúdio, ele era um anjo. Era solteiro
e tinha várias namoradas, mas isso é esperado de todos os solteiros ricos na idade
dele. Todas eram do tipo que freqüenta os clubes hípicos, lêem Town and
Country, bonitas e inteligentes, que tomavam dois banhos por dia. Tudo muito
limpo.
Crumley suspirou outra vez, como se alguém lhe tivesse dado as cartas
erradas, e ele estivesse a ponto de abandonar o jogo.
— E o desastre de carro que matou Arbuthnot? Foi mesmo um acidente?
— Vi as fotografias nos jornais.
— Isso não quer dizer nada. — Crumley olhava para sua selva particular,
examinando as sombras. — E se o acidente não fosse um verdadeiro acidente? E
se fosse assassinato? E se todos estivessem bêbados demais antes de morrer?
— Eles estavam voltando de uma festança onde serviram um bocado de
bebida, lá no estúdio. Isso vazou para os jornais.
— Vamos imaginar isto: “Figurão do estúdio, multimilionário, que
controla a Maximus, alterado pela bebida, provoca o carro de Sloane, e acaba
beijando o poste em alta velocidade.” Esse não é o tipo de publicidade que se
deseja para as primeiras páginas. As ações iriam cair. Os investidores hesitariam.
Alguns filmes seriam prejudicados. Figurões despencariam dos pedestais, etc.,
etc. ... Portanto, o que se faz é encobrir a história. Agora, depois de tanto tempo,
alguém que esteve lá, ou descobriu a verdade depois, resolve abalar o estúdio,
ameaçando apresentar fotografias ou provas. Ou então...
— Ou então... — repeti.
— Se não foi acidente, e se eles não estivessem bêbados, pode ser que
alguém tenha preparado tudo. De propósito!
— Assassinato?
— Por que não? Gente tão rica e poderosa geralmente faz muitos
inimigos. Todos os bajuladores em volta deles mais cedo ou mais tarde acabam
pensando em boas maneiras de prejudicá-los. Quem era o seguinte na sucessão
do estúdio naquela época?
— Manny Leiber? Esse sujeito não mataria uma mosca. Ele é só papo.
— Pois dê a ele o benefício da dúvida por um instante. Ele é o chefão do
estúdio agora, não é? Pois bem, um ou dois pneus furados, mais algumas porcas
soltas, e pronto! Ele teria conquistado o estúdio para sempre.
— Parece consistente...
— Mas, se pudéssemos encontrar o sujeito que fez a brincadeira, ele
poderia fornecer provas para nós. Muito bem, qual é o próximo passo?
— Acho que deveríamos procurar nos jornais de vinte anos atrás para
descobrir o que está faltando. E talvez você pudesse dar uma olhada no estúdio.
Discretamente, claro.
— Com meus pés chatos? Acho que conheço o guarda dos portões do
estúdio. Ele trabalhava na Metro há alguns anos. Poderia me deixar entrar e
ficaria de boca fechada. O que mais?
Dei uma lista a ele. A carpintaria. O muro do cemitério. A casa em Green
Town onde eu e Roy planejávamos trabalhar, e onde Roy talvez estivesse agora.
— Roy ainda está lá, esperando para pegar de volta seus dinossauros. E
Crum, se o que supôs for verdade, com relação a chantagem e assassinato,
devíamos tirá-lo de lá agora. Se o pessoal entrar no Estúdio 13 esta noite e
encontrar a caixa onde Roy escondeu o boneco de papel machê, o que não fariam
com ele?
— Está me pedindo não só para conseguir que Roy seja contratado
novamente, mas também para ajudá-lo a ficar vivo, certo?
— Não diga isso!
— Por que não? Vocês estão no meio do campo tentando apanhar uma
bola cega. Onde diabos posso encontrar Roy? Será que preciso andar ao redor do
estúdio com uma rede de caçar borboletas e uma lata de comida para gatos? Seus
amigos do estúdio conhecem Roy, e eu não. Eles podem encontrá-lo muito antes
do que eu. Só me dê um fato para começar.
— O Monstro. Se descobrir quem é ele, vamos saber por que Roy foi
despedido por fazer aquele busto. O maitre do Brown Derby não vai me dizer
nada. Você não podia tentar?
— Claro, claro. O que mais? Sobre o Monstro...
— Nós o vimos no cemitério. Roy foi atrás dele, mas não chegou a me
contar o que viu. Talvez tenha sido o Monstro quem colocou o boneco de
Arbuthnot no muro do cemitério... e mandou os bilhetes para as pessoas.
— Agora é você quem está exagerando! — Crumley passou as mãos pela
careca. — Identificar o Monstro, perguntar onde ele arrumou a escada
emprestada, e como fez o modelo de Arbuthnot! Certo...
Ele levantou-se e foi até a cozinha buscar mais cervejas. Bebemos e
Crumley olhou-me com afeição paternal.
— Estava pensando... é bom ter você por aqui outra vez.
— Que diabos, nem perguntei sobre o seu livro...
— A Sotavento da Morte?
— Ei, não foi esse o título que eu dei a você!
— O seu título era bom demais. Eu o devolvo. A Sotavento da Morte será
publicado na semana que vem.
Adiantei-me para cumprimentá-lo.
— Crumb! Puxa vida! Você conseguiu. Tem champanhe aí? Fomos os
dois investigar a geladeira.
— Acha que cerveja e gim bem misturados na coqueteleira podem passar
por champanhe?
— Podemos tentar. Tentamos.
- 24 -
O telefone tocou.
— É para você — anunciou Crumley.
— Graças a Deus! — Apanhei o telefone. — Roy, é você?
— Não quero mais viver — disse a voz de Roy ao aparelho. — É terrível
o que fizeram. Venha até aqui antes que eu fique louco! No Estúdio 13.
E desligou.
— Crumley! — gritei. Crumley me levou de carro.
Atravessamos a cidade, e eu não conseguia fazer meus dentes pararem de
tremer para falar. Segurava os joelhos com tanta força que a circulação ficou
difícil.
— Não espere — disse eu quando chegamos aos portões. — Daqui a uma
hora eu telefono e conto o que houve...
Entrei, e pouco depois estava numa cabine telefônica perto do Estúdio 13,
para chamar um táxi, a quem pedi que esperasse perto do Estúdio 9, a uns cem
metros de distância. Depois caminhei até as portas e entrei.
Penetrei na escuridão e no caos.
- 25 -
Deparei com um cenário que me devastou a alma.
À minha volta, as máscaras, caveiras, ossos, monstros e dinossauros
haviam sido arrebentados e espalhados pelo estúdio num frenesi de destruição.
À minha frente, uma aniquilação total abatera-se sobre as maquetes.
As diminutas cidades de Roy estavam por terra. Seus animais foram
estripados, decapitados, demolidos e enterrados na própria carne de plástico.
Avancei sobre as ruínas, onde parecia que um bombardeio tinha atingido
os telhados em miniatura, os torreões e figuras liliputianas. Roma fora esmagada
por um Átila monstruoso. A grande biblioteca de Alexandria não fora queimada,
mas os pequenos rolos de pergaminho, delicados como asas de borboletas,
estavam espalhados pelas dunas do deserto. Paris estava em brasas. Londres
destruída. Um Napoleão enorme pisoteara Moscou. Em resumo, cinco anos de
trabalho, catorze horas por dia, sete dias por semana, foram demolidos em...
quanto tempo? Talvez cinco minutos.
Roy!, pensei, você nunca deveria ver uma coisa dessas.
Mas ele tinha visto.
À medida que eu avançava pelos campos de batalha e vilarejos arrasados,
divisei uma sombra na parede mais distante.
Era um sombra idêntica a uma cena do filme O Fantasma da Ópera, a
que assisti quando tinha cinco anos. As bailarinas, atrás do palco, ficaram
paralisadas de medo, gritaram e fugiram. Pendurado ali, como um contrapeso de
saco de areia, elas avistaram o corpo do guarda noturno, balançando lentamente
no alto, próximo às bambolinas. A lembrança daquele filme, da cena com as
bailarinas e do cadáver pendurado nas sombras, nunca me abandonara. E agora,
do lado norte do estúdio, um objeto balançava num fio longo como uma teia de
aranha. Projetava uma sombra imensa, mais de seis metros de negrume sobre a
parede vazia, como a cena daquele filme antigo e assustador.
— Não — sussurrei. — Não pode ser!
Mas era.
Imaginei a chegada de Roy, o choque sofrido, o grito de desespero, em
seguida, a raiva surda, com novas decepções a cada olhar depois que telefonou
para mim. Então ele teria procurado freneticamente uma corda, um pedaço de
arame, um gancho, e finalmente atingira a paz, pendurado no ar. Ele não poderia
viver sem seus bonecos maravilhosos, seus mitos e amigos. Era muito velho para
reconstruir tudo aquilo.
— Roy — murmurei baixinho —, não pode ser você! Você sempre
gostou da vida.
Porém, o corpo de Roy balançava lentamente, projetando aquela sombra
enorme. Meus Monstros foram destruídos, parecia dizer. Mas eles nunca
estiveram vivos! Nesse caso, dizia ele, eu também nunca estive.
— Roy — disse eu em voz alta. — Você nunca me deixaria sozinho no
mundo, certo?
Talvez.
— Mas não ia deixar alguém enforcar você?
Pode ser.
E se fosse assim, como é que ainda está por aqui? Por que iriam deixar
você pendurado aí?
O que significava...
Que você morreu há pouco tempo. Ainda não foi encontrado. Fui o
primeiro a encontrar você!
Eu tinha ímpetos de tocar o pé, a perna que oscilava, para ter certeza de
que era Roy! A lembrança do cadáver de papel machê no ataúde atravessou
minha mente.
Estendi minha mão para tocar... mas nesse momento...
Em cima da escrivaninha estava a plataforma da escultura sobre a qual
repousava o último e melhor trabalho de Roy, o Monstro que encontráramos no
Brown Derby, a Criatura que entrava à meia-noite na igreja e no cemitério do
outro lado do muro.
Alguém usara um martelo e vibrara uma dúzia de golpes violentos. O
rosto, a cabeça, o crânio haviam sido esmagados até formar uma massa informe.
— Meu Deus...
Teria sido essa a gota d'água que levara Roy à autodestruição? Ou teria o
vândalo, aguardando nas sombras, atingido Roy entre os escombros, e depois
pendurado o corpo no ar? Estremeci. Parei. Pois escutei a porta do estúdio se
abrindo.
Tirei os sapatos e corri silenciosamente para me esconder.
- 26 -
Era o médico-cirurgião, o fazedor de abortos em plena luz do dia, o
mestre das agulhas, o renegado sumo-sacerdote.
Doc Phillips deslizou para a parte iluminada do estúdio, olhando ao redor,
estudando as ruínas, e, deparando com o corpo pendurado no alto, fez um leve
aceno de cabeça, como se aquilo fosse uma calamidade cotidiana. Adiantou-se,
chutando as cidades destroçadas como se fossem lixo ou dejetos irrelevantes.
Vendo isso, murmurei uma praga. Levei a mão à boca e encolhi-me na
escuridão.
Espiei por uma rachadura do cenário.
O médico parará. Como um cervo numa clareira da floresta, ele olhava ao
redor através dos óculos de aro de aço, usando tanto o nariz quanto os olhos. As
orelhas pareciam virar-se para os lados na cabeça raspada. Prosseguiu, pisando
em Paris, amassando Londres, e aproximando-se do enforcado suspenso no ar...
Um bisturi brilhou em sua mão. Puxou um baú grande, arrastando-o para
baixo do corpo, apanhou uma cadeira, subiu nela e cortou a corda sobre o
pescoço de Roy.
Um som abafado elevou-se quando o corpo de Roy atingiu o fundo do
baú.
Resmunguei, baixinho. Gelei, pensando que dessa vez ele me ouvira e
viria em minha direção, com o bisturi frio e brilhante na mão. Prendi a respiração.
Saltando da cadeira, Doc curvou-se para examinar o cadáver.
Mas não chegou a fazê-lo.
A porta exterior abriu-se completamente. Houve rebuliço de vozes e
arrastar de pés.
A turma da limpeza havia chegado, porém eu não saberia dizer se este era
seu horário habitual de trabalho, ou se haviam sido chamados.
Doc fechou com força a tampa do baú.
Mordi os nós dos dedos e coloquei a mão na boca para abafar os
murmúrios de desespero.
A fechadura do baú produziu um estalido. O médico fez um gesto.
Encolhi-me quando o grupo de trabalhadores entrou pelo estúdio com
suas vassouras e esfregões para apagar os vestígios de Atenas, das muralhas de
Alhambra, da biblioteca de Alexandria e dos santuários de Krishna em Bombaim.
Levou vinte minutos para limpar o trabalho da vida inteira de Roy
Holdstrom. Retiraram também o baú num carrinho, com o corpo invisível e
encolhido de meu melhor amigo.
Assim que a porta se fechou pela última vez, dei um grito agoniado de
pesar contra a noite, a morte, o maldito médico e os homens que haviam saído.
Soquei o ar com os punhos fechados, os olhos marejados de lágrimas. Só quando
parei de tremer e soluçar é que pude reparar num fato inusitado.
Havia uma fachada falsa apoiada contra a parede norte do estúdio,
parecida com aquelas entre as quais Roy e eu fugíramos no dia anterior, na
carpintaria.
No centro da primeira porta estava uma caixa de aparência familiar.
Parecia ter sido deixada ali por acidente. Mas eu sabia que era um presente.
Roy!
Avancei sofregamente até a prateleira e toquei a caixa. Ouvi um
chacoalhar no interior.
O que quer que houvesse no interior, fazia barulho.
Está aí dentro, o corpo que estava em cima do muro?
Frrr-tap-shhh.
Droga!, pensei. Será que nunca vou me livrar dessa coisa?
Agarrei a caixa e saí correndo dali.
Cheguei até a porta exterior e vomitei.
Com os olhos fechados, limpei a boca e abri vagarosamente a porta. A
distância, a turma da limpeza dobrava uma esquina, na direção da carpintaria,
próxima à qual ficava o grande incinerador do estúdio.
Doc Phillips, atrás deles, dava ordens que eu não conseguia escutar.
Estremeci. Se eu tivesse vindo cinco minutos mais tarde, poderia ter
chegado no momento exato em que o médico encontrava o corpo de Roy e as
cidades destruídas. Meu cadáver estaria no baú, junto com o de Roy!
Meu táxi aguardava próximo ao Estúdio 9.
Ao lado havia uma cabine telefônica. Entrei, coloquei uma moeda com
mãos trêmulas e liguei para a polícia. Uma voz respondeu:
— Alô! Aqui é a Central de Polícia. Posso ajudá-lo? Alô? Oscilei como
um bêbado no interior da cabine, olhando para o bocal como se fosse uma cobra
morta.
O que eu poderia dizer? Que um estúdio fora esvaziado e limpo? Que um
incinerador estava funcionando no momento, muito antes dos carros de polícia
chegarem?
E daí? Eu estava ali sozinho, sem nenhuma arma e nenhuma prova!
Seria despedido e talvez fosse morto se ficasse ali no cemitério ao lado.
Não!
Dei um grito. Alguém me batia com um martelo até que meu cérebro se
tornasse uma massa de argila vermelha, como a carne do Monstro. Lutando para
sair, fui reduzido pelo medo à condição de prisioneiro num caixão de vidro,
apesar de tentar sair de todas as maneiras.
A porta da cabine telefônica abriu-se.
— Você estava empurrando pelo lado errado! — disse o motorista do
táxi.
Dei uma gargalhada que deve ter soado um pouco histérica e deixei que
ele me conduzisse para fora.
— Esqueceu algo.
Ele trouxe a caixa, que caíra no chão da cabine. Frrr-tap-tap.
— Ah, é... — disse eu. — Ele.
Deitei no banco traseiro, até que passássemos os portões do estúdio.
Quando chegamos à primeira esquina, já fora dos portões, o motorista perguntou:
— Para que lado?
— Para a esquerda — disse eu, mordendo a parte de cima do punho. O
motorista me observava pelo espelhinho retrovisor.
— O senhor está com uma cara horrível. Está enjoado? Balancei
negativamente a cabeça.
— Alguém morreu? — adivinhou ele.
— Isso mesmo.
— Estamos na Avenida Western. Vou para o norte agora?
— Para o sul.
O apartamento de Roy ficava na Rua 54. Mas o que eu faria lá? Uma vez
no interior, será que eu não iria sentir o cheiro forte da loção do bom doutor no
saguão, como uma cortina invisível? E se os capangas dele, carregando coisas,
estivessem esperando para me levar como se fosse um móvel de segunda mão?
Estremeci, imaginando quando é que eu iria crescer. Prestei atenção a
meu íntimo e escutei:
O som de vidro quebrando.
Meus pais haviam morrido há muito tempo, e as mortes pareceram fáceis
de suportar.
Mas Roy? Eu nunca poderia ter imaginado tamanho sentimento de medo,
uma onda de pesar que quase me afogava.
Agora eu estava receoso de voltar ao estúdio. A arquitetura maluca de
todos aqueles países juntos dava a impressão de querer esmagar-me. Imaginei
cada plantação sulista, cada porão de Illinois cheio de parentes enlouquecidos e
espelhos quebrados, cada armário repleto de amigos ansiosos.
O presente noturno, a caixa de brinquedo com a carne de papel machê
modelada num rosto enlouquecido pela morte, estava no soalho do táxi.
Frrr-tap-tap.
Meu peito estremeceu.
— Não, motorista — pedi. — Vire aqui. Nessa esquina. Para o mar. Na
direção do mar.
Quando Crumley abriu a porta da frente, deu uma olhada em meu rosto e
dirigiu-se para o telefone.
— Aumente para cinco dias aquela licença de saúde — disse ele ao
aparelho.
Foi para o interior da casa e voltou com um copo cheio de vodca,
encontrando-me no jardim respirando profundamente a brisa marinha e tentando
enxergar as estrelas, por entre o nevoeiro espesso. Crumley olhou para a caixa em
meu colo, pegou minha mão, colocou nela o copo e guiou-o até minha boca.
— Beba isso — aconselhou ele, baixinho. — Depois vamos para a cama.
Conversamos de manhã. O que é isso?
— Esconda essa coisa — pedi. — Se alguém souber que isso está aqui,
podemos sumir os dois.
— Mas o que é?
— A morte, eu acho.
Crumley apanhou a caixa de papelão. Parecia sussurrar, produzindo
ruídos desagradáveis.
Ele levantou a tampa e olhou para o interior. Um objeto estranho de papel
machê encarou-o de volta.
— Então esse é o ex-chefe dos estúdios Maximus? — quis saber ele.
— É.
Crumley olhou por mais um instante para o interior e concordou comigo:
— Tem razão, deve ser a morte aqui dentro.
Fechou a tampa. O peso no interior deslocou-se e sussurrou algo parecido
com “sssono”, no interior. Não!, pensei. Não me obrigue!
- 27 -
Conversamos pela manhã.
- 28 -
Ao meio dia, Crumley deixou-me em frente ao prédio onde morava Roy,
na esquina da Western com a Rua 54. Examinou meu rosto cuidadosamente.
— Qual é seu nome?
— Recuso-me a fornecer essa informação.
— Quer que eu espere?
— Pode ir. Quanto antes você der uma espiada no estúdio para verificar
as coisas, melhor. De qualquer modo, é bom que ninguém nos veja juntos. Tem
minha lista dos pontos a verificar, e o mapa?
— Bem aqui. — Crumley indicou sua testa.
— Esteja lá dentro de uma hora. Na casa de minha avó. No andar de
cima.
— A boa e velha vovó.
— Crumley?
— O que é?
— Gosto de você.
— Isso não vai levar você para o céu.
— É verdade — admiti. — Mas fez com que eu sobrevivesse a esta noite.
— Boa sorte — desejou ele, afastando-se. Entrei.
Meu palpite da noite anterior estava certo. Se as miniaturas de Roy
haviam sido destruídas e seu Monstro amassado numa pasta vermelha de argila...
Senti o cheiro doce da colônia do médico no corredor... A porta do apartamento
de Roy estava aberta. O apartamento fora completamente despojado.
— Meu Deus — sussurrei, em pé no meio da sala vazia, olhando ao
redor. — Como na Rússia... A história reescrita.
Pois Roy tornara-se uma não-pessoa. Nas bibliotecas, esta noite, livros
seriam rasgados e recompostos, para que o nome de Roy Holdstrom
desaparecesse para sempre, como um rumor triste, um pedaço de imaginação.
Nada mais que isso.
Não havia ficado nenhum livro, nenhum quadro, nem escrivaninha, nem
papéis na cesta de lixo. Até mesmo o rolo de papel higiênico fora retirado. O
armarinho do banheiro estava vazio como um pastel de vento. Não havia nenhum
sapato sob a cama. Nem cama. Nem máquina de escrever. Os armários estavam
igualmente vazios. Nenhum dinossauro à vista. Nem desenhos de dinossauros.
Algumas horas antes, o apartamento fora varrido, aspirado, esfregado, e
depois encerado com cera de boa qualidade.
Uma onda de fúria despertada no estúdio arrasara sua Babilônia, sua
Assíria e sua Abu Simbel.
Um frenesi de limpeza apagara ali os últimos vestígios da memória dele, o
menor sopro de vida.
— É horrível, não é? — comentou uma voz atrás de mim.
Um jovem estava à soleira da porta. Trajava um guarda-pó de pintor, bem
surrado, e seus dedos estavam manchados com várias cores, assim como o lado
esquerdo de seu rosto. Os cabelos pareciam despenteados, e os olhos possuíam
certo ar de animal selvagem, como se fosse uma criatura que trabalha no escuro e
só saísse ocasionalmente, ao amanhecer.
— É melhor não ficar aqui. Eles podem voltar.
— Espere um pouco... — disse eu. — Acho que conheço você, não
conheço? É amigo de Roy. Tom...
— Shipway. É melhor sairmos. Eles pareciam doidos. Venha. Segui Tom
Shipway para fora do apartamento de Roy.
Ele abriu a porta do próprio apartamento com duas chaves diferentes.
— Está pronto? Preparar! Vamos! Saltei para o interior.
Ele bateu a porta e apoiou-se contra ela.
— A senhorita! Não posso deixar que ela veja.
— Que ela veja? — Olhei ao redor.
Estávamos nos aposentos submarinos do capitão Nemo, sua cabine e sua
sala de comando.
— Meu Deus!
Tom Shipway abriu um sorriso.
— Bonito, hein?
— Bonito? Isso é incrível!
— Eu tinha certeza de que você ia adorar. Roy me deu algumas histórias
suas para ler. Marte. A Atlântida. E aquele conto sobre Júlio Verne. Muito bom,
não acha?
Ele me incentivou com um aceno, e eu me adiantei, olhando e tocando os
objetos. As grandes poltronas vitorianas de veludo vermelho, com aplicações em
bronze, estavam presas ao assoalho. Um periscópio de bronze descia do teto. O
grande órgão ficava ao centro. Um pouco além, uma janela fora convertida numa
escotilha oval de submarino, além da qual nadavam peixes tropicais de várias
cores e tamanhos.
— Dê uma espiada! — disse Tom Shipway. — Pode olhar! Curvei-me
para olhar ao periscópio.
— Funciona! — exclamei, espantado. — Estamos embaixo d'água! Pelo
menos é o que parece. Foi você quem fez tudo isso? Você é um gênio.
— É...
— Será que... sua senhoria sabe o que fez no apartamento dela?
— Se ela soubesse, era capaz de me matar. Nunca permiti que ela entrasse
aqui.
Shipway acionou um interruptor na parede.
Apareceu a projeção de uma forma cheia de pernas, pairando sobre nós.
— A Lula gigante! O inimigo de Nemo. Estou impressionado!
— Fico contente. Sente. O que está acontecendo? Onde está Roy? Por
que aqueles caras vieram como chacais e saíram como hienas?
— Roy? É mesmo... — O peso dos acontecimentos me abateu outra vez.
Sentei pesadamente numa das poltronas. — Meu Deus, Roy! O que aconteceu
aqui na noite passada?
Shipway andou devagar pelo aposento, imitando o que vira.
— Viu Rick Orsatti andando como bandido por Los Angeles, há alguns
anos? No papel de chantagista?
— Ele andava com um bando...
— Isso mesmo. Uma vez, há alguns anos, no centro da cidade, ao pôr-do-
sol, vi seis caras vestidos de preto saindo de um beco, guiados por um outro que
parecia chefe; todos se moviam como ratos num funeral, vestidos de seda ou
couro, todos com brilhantina nos cabelos, a pele totalmente branca. Pareciam
lontras, ou melhor, doninhas negras. Vinham em silêncio, coleando como as
cobras, um ar hostil e perigoso, a gente tinha a impressão de ver fumaça preta
saindo de uma chaminé. Pois é, ontem à noite foi assim. Primeiro senti um
perfume tão forte que passou por baixo da porta.
Doc Phillips!
— Abri uma fresta da porta para poder espiar o corredor, e essas ratazanas
pretas de esgoto estavam passando com pastas, dinossauros, quadros, bustos,
estátuas e fotografias. Olharam para mim com o canto dos olhos de roedor.
Fechei a porta e fiquei espiando pelo olho mágico enquanto eles passavam com
aqueles sapatos pretos de sola de borracha. Escutei barulhos estranhos durante
meia hora. Depois os murmúrios pararam. Abri a porta, vi o corredor vazio e fui
atingido por um bafo forte do maldito perfume. Esses caras por acaso mataram
Roy?
Eu me remexi no lugar.
— Por que está perguntando isso?
— Porque eles pareciam coveiros, só por isso. E se deram um jeito no
apartamento de Roy... bem, por que não no próprio Roy?
— Morto? É. Quer dizer, não. Talvez. Alguém tão vivo quanto Roy
simplesmente não pode morrer!
Contei a ele sobre o Estúdio 13, as cidades destruídas e o corpo
pendurado.
— Roy não faria isso.
— Talvez alguém tivesse feito isso por ele.
— Roy não ficaria quieto para filho da puta nenhum. Que droga! — Uma
lágrima escorreu de um dos olhos de Tom Shipway. — Conheço Roy! Ele
ajudou a fazer meu primeiro submarino. Ali!
Na parede havia um Nautilus em miniatura, com aproximadamente oitenta
centímetros de comprimento, o verdadeiro sonho de um estudante na época do
colegial.
— Roy não pode estar morto, certo?
Um telefone tocou em algum lugar da cabine do capitão Nemo. Shipway
apanhou uma grande concha de molusco. A princípio ri, mas logo parei.
— Alô? — disse Tom ao telefone, e depois de um intervalo: — Quem
está falando?
Praticamente arranquei o telefone das mãos dele. Gritei; um grito para a
vida. Escutei a distância uma respiração acelerada.
— Roy!
Clique. Silêncio. Estática.
Balancei violentamente o receptor, atônito.
— Era Roy? — quis saber Tom.
— Era a respiração dele!
— Droga! Não se pode distinguir uma respiração da outra! De onde era a
chamada?
Bati o telefone e fechei os olhos. Depois apanhei-o novamente e tentei
discar na extremidade errada do molusco.
— Como é que essa coisa funciona? — gritei, exasperado.
— Para onde quer ligar?
— Quero chamar um táxi.
— Aonde vai? Eu posso levar você!
— Para Illinois, que diabos. Green Town.
— Mas isso fica a três mil quilômetros daqui!
— Nesse caso é melhor irmos andando — disse eu, colocando a concha
no lugar.
- 29 -
Tom Shipway me deixou no estúdio.
Eu estava correndo por Green Town pouco depois das duas. A cidade
inteira fora recém-pintada de branco, como que esperando que eu batesse às
portas ou espiasse pelas cortinas de lacinhos. O pólen das flores flutuava ao vento
quando entrei na calçada da casa de meus avós, há muito desaparecida. Pássaros
voaram do telhado quando subi ruidosamente os degraus da varanda.
As lágrimas inundavam-me os olhos quando bati na porta de vidro fosco.
Apenas o silêncio me respondeu. Compreendi que estava fazendo a coisa
errada. Os meninos, quando chamam os amigos para brincar, não batem nas
portas. Recuei para o quintal, encontrei uma pedra pequena e atirei-a com força
contra a janela do andar de cima.
Silêncio. A casa permanecia impávida sob o sol de novembro.
— Não pode ser! — gritei na direção da janela. — Morto mesmo? Então
a porta da frente se abriu. Uma sombra assomou à soleira, olhando para fora.
— Está morto de verdade! — gritei. Cambaleei pela varanda, enquanto a
porta interna de tela se abria. Gritei novamente, caindo nos braços de Elmo
Crumley. — Está?
— Estou aqui — disse ele, amparando-me. — Se é por mim que está
procurando.
Balbuciei alguns sons inarticulados enquanto ele me puxava para o
interior e fechava a porta.
— Ei, acalme-se — pediu ele, sacudindo-me pelos ombros. Eu mal
conseguia enxergar através dos óculos embaçados.
— O que está fazendo aqui?
— Você combinou comigo. Disse para eu dar uma olhada por aí, depois
encontrar com você nesse lugar, certo? Não, você não lembra, não é? Existe algo
decente para se comer, por aqui?
Crumley inspecionou a geladeira e me trouxe um biscoito de manteiga de
amendoim e um copo de leite. Fiquei sentado ali, mastigando, engolindo e
repetindo:
— Obrigado por ter vindo.
— Cale a boca — disse Crumley, suavemente. — Você está péssimo. O
que vamos fazer a seguir? Tem de fingir que está tudo bem. Ninguém sabe que
você viu o corpo de Roy, ou o que imaginou ser o corpo dele, certo? Qual é seu
programa de trabalho?
— Eu devia estar me apresentando para um novo projeto nesse momento.
Fui transferido. Não vai mais haver o filme do Monstro. Estou trabalhando com
Fritz e Jesus.
Crumley riu.
— Esse devia ser o título do filme. Quer que eu dê mais um passeio por
aí, como se fosse um turista?
— Encontre-o, Crumley. Se eu acreditar de verdade que Roy se foi, vou
ficar maluco! Qualquer que seja o caso, você tem de me ajudar.
— Qualquer que seja o caso?
— Se Roy não está morto, ele está escondido, e com medo. Você precisa
assustá-lo ainda mais, para que ele saia do esconderijo antes que seja assassinado.
Ou, ou... — hesitei. — Ou então ele está mesmo morto, o que significa que
alguém o matou, certo? Ele jamais se enforcaria. Isso significa que o assassino
também está aqui. Encontre o assassino. O sujeito que destruiu a marteladas a
cabeça do Monstro, e depois de esmagar a argila deparou com Roy e resolveu
enforcá-lo. O que quer que tenha acontecido, Crumley, encontre Roy antes que
ele seja morto. Ou, se ele estiver morto, encontre o maldito assassino.
— É uma escolha miserável.
— Pode dar uma espiada nas agências de autógrafos. Existem três em
Hollywood. Talvez uma delas conheça Clarence, saiba o sobrenome dele, ou o
endereço. Clarence. Depois tente o Brown Derby. O maitre não diz nada a caras
como eu. Ele deve saber quem é o Monstro. Com ele e Clarence podemos
resolver o mistério, ou o assassinato que pode acontecer a qualquer minuto!
— Pelo menos existem essas pistas — Crumley abaixou a voz, para que
eu também falasse mais baixo.
— Dê uma olhada em volta — apontei. — Alguém esteve neste lugar
desde ontem. Existe lixo que nem eu nem Roy jogamos aqui quando
trabalhamos. — Abri a porta da geladeira. — Chocolate. Quem mais colocaria
barras de chocolate na geladeira?
— Você! — resmungou Crumley.
Fui obrigado a rir. Fechei a porta do refrigerador.
— Certo, que diabos, bem que podia ter sido eu. Mas ele disse que se
esconderia. Talvez tenha feito exatamente isso. Que diz?
— Tudo bem. — Crumley foi até a porta. — O que devo procurar?
— Uma bengala grande, de mais de dois metros, com braços compridos e
um nariz de gavião, ficando careca antes da hora, usando gravatas que não
combinam com as camisas, camisas que não combinam com as calças, e...
— Desculpe ter perguntado — disse Crumley, passando-me um lenço. —
Assoe o nariz.
- 30 -
Um minuto mais tarde, saí da casa dos meus avós, para o campo de
Illinois.
No caminho, passei pelo Estúdio 13. Estava completamente trancado e
lacrado. Em pé ali, imaginei como deve ter sido para Roy descobrir que um
maníaco qualquer destruíra cada motivo que tinha para viver.
Pobres criaturas, pensei, olhando para a grande porta fechada. Roy,
pensei, algum dia você precisa construir monstros melhores, mais bonitos, e viver
para sempre.
Nesse instante, uma coorte de legionários romanos apareceu, marchando
em ritmo acelerado, marcando a cadência e rindo. Passaram rapidamente, como
um rio brilhante, vermelho e dourado, de capacetes emplumados. A guarda de
César nunca teve uma aparência melhor, nunca se movera tão rápido. Enquanto
eles corriam, meu olhar fixou-se no último legionário. Suas pernas compridas
eram desajeitadas. Os cotovelos realizavam movimentos laterais. E um nariz que
mais parecia um bico projetava-se para fora do capacete. Dei um grito abafado.
Os legionários dobraram uma esquina.
Corri até lá.
Roy?, pensei.
Mas não podia gritar e deixar que todos soubessem que um sujeito
teimoso marchava entre eles.
— Que estúpido — murmurei, debilmente, em vez de gritar. — Burro! —
resmunguei, entrando no refeitório.
— Idiota — disse eu a Fritz, que estava sentado, tomando xícaras e
xícaras de café, à mesa onde ele realizava reuniões.
— Chega de lisonjas! Sente aqui. Nosso primeiro problema é que Judas
Iscariotes vai ser cortado do filme — informou ele.
— Judas? Ele foi despedido?
— A última vez que soube dele, estava em La Jolla completamente
bêbado, surfando e planando, arrastado por uma lancha.
— Deus do céu!
Então realmente perdi o controle. Uma gargalhada monumental brotou de
meus pulmões.
Vi Judas flutuando nos ventos salgados, Roy correndo com os
legionários, eu mesmo encharcado pela chuva enquanto o corpo caía da escada,
depois Judas outra vez, voando alto em La Jolla, bêbado como uma cabra.
Minha gargalhada assustou Fritz. Pensando que eu havia engasgado, ele
bateu em minhas costas.
— O que aconteceu?
— Nada — engasguei novamente. — Tudo!
— Qual dos dois, afinal? — indagou uma voz suave. O último riso
morreu em minha garganta.
Cristo em pessoa havia chegado, a túnica farfalhando.
— Ó, Herodes Antipas — disse ele solenemente para Fritz. — Enviaste-
me para ser julgado?
O ator, tal como uma pintura de El Greco, parecia envolto num raio
sulfuroso e nuvens de tempestade que conferiam uma certa palidez ao rosto dele.
Sentou vagarosamente numa cadeira, sem olhar para saber se ela estava lá. Até
mesmo seu sentar era um ato de fé. Quando seu corpo invisível tocou a matéria,
ele sorriu, orgulhoso da precisão.
Uma garçonete imediatamente colocou a sua frente um pequeno prato de
salmão e um copo de vinho tinto.
— J.C., de olhos fechados, saboreou um bocado de salmão.
— Diretor velho, roteirista novo — disse ele, finalmente. — Me chamou
para conferir a Bíblia? Pode perguntar. Sei tudo de cor.
— Graças a Deus, alguém sabe — comentou Fritz. — A maior parte do
filme foi rodado no exterior por um diretor cheio de gases, que não conseguia
uma ereção nem com aparelhinhos especiais. Maggie Botwin está na Sala de
Projeção 4. Esteja lá dentro de uma hora para ver que quantidade de porcaria já
fizemos. — Ele sinalizou com o monóculo em minha direção. — Cristo andou
sobre água. Que tal se tivesse andado na merda grossa? J.C., pode aspergir um
pouco de óleo doce nesses ouvidos pagãos? — Fritz tocou em meu ombro. — E
você, minha criança, resolva o problema do Judas desaparecido e escreva um
final para o filme que impeça os espectadores de exigirem o dinheiro da entrada
de volta.
Uma porta bateu.
Fiquei sozinho, enfrentando o escrutínio daqueles olhos azuis que
pareciam enxergar além de Jerusalém.
Ele mastigava calmamente o peixe.
— Não há nada como ter uma educação cristã. Quanto a mim, sou como
um sapato velho: fico à vontade com Moisés, Maomé e todos os profetas. Não
penso sobre isso. Sou isso.
— Então sempre foi Cristo?
— J.C. sentiu que eu estava sendo sincero e mastigou mais um pouco.
— Se sou Cristo? Bem, é como vestir uma túnica confortável para o resto
da vida, sem ter de trocar de roupa, ficando sempre à vontade. Quando olho para
os meus estigmas, penso que sim. Quando deixo de fazer a barba pela manhã,
minha barba é uma auto-afirmação. Não posso conceber outro modo de viver.
Claro, há muitos anos, fiquei curioso. Tentei de tudo. Fui até o reverendo Violet
Greener no Bulevar Crenshaw. Conhece o Templo Agabeg?
— Claro, já estive lá.
— Belo show, hein? Sessões com espíritos, tambores. Nunca levei a
sério. Fui ao Norvell. Ele ainda anda por aí?
— Claro! Com aqueles olhos bovinos sempre piscando, e os
namoradinhos tocando tamborins.
— Você fala parecido comigo! Astrologia? Numerologia? Holly Rollers?
É tudo muito divertido.
— Também estive com os Holly Rollers — declarei sem demora.
— Gostou de vê-los rolando na lama e falando em outras línguas?
— Gostei! Mas, e quanto à Igreja Batista Negra, na Avenida Central? Os
pulos de Hall Johnson e os cânticos de domingo. Verdadeiros terremotos!
— Puxa, rapaz, parece que você seguiu meus passos! Como chegou a
freqüentar todos esses lugares?
— Queria algumas respostas.
— Leu o Talmud? O Corão? — indagou J.C.
— Chegaram meio tarde a minha vida.
— Pois deixe que eu lhe conte o que realmente chegou tarde...
— O livro dos Mórmons? — arrisquei.
— Com mil demônios, isso mesmo.
— Participei de um grupo teatral mórmon quando tinha vinte anos. O anjo
Moroni me deixou com sono.
— J.C. resmungou e deu um tapa em seus estigmas.
— Ele era mesmo maçante! E quanto a Aimeé Sample McPherson?
— Alguns amigos no Colegial me desafiaram a subir no palco e “ser
salvo”. Eu fui até lá e me ajoelhei. Ela colocou a mão em minha cabeça. “Senhor,
salve esse pecador”, ela disse. Glória, Aleluia! Desci e caí nos braços dos meus
amigos!
— Que coisa... — comentou J.C. — Aimeé me salvou duas vezes!
Depois ela morreu. Verão de 44? Eles a enterraram num enorme caixão de
bronze, lembra? Foram precisos dezesseis cavalos e um trator para baixar aquele
peso todo até a sepultura. Rapaz, Aimeé usava asinhas falsas, que pareciam de
verdade. Ainda visito o templo dela só para matar a saudade. Sinto falta dela. Ela
me tocou como Jesus, em Pentecostes. Que pândega!
— E agora você está aqui — disse eu. — Cristo em tempo integral nos
estúdios Maximus. Desde os dias dourados com Arbuthnot.
— Arbuthnot? — O rosto de J.C. tornou-se sombrio com a lembrança.
Afastou o prato. — Vamos, teste meus conhecimentos. Pergunte alguma coisa do
Velho Testamento. Ou do Novo.
— O Livro de Ruth.
Ele recitou durante dois minutos o Livro de Ruth.
— Eclesiastes?
— Vou dizer inteiro. Foi o que ele fez.
— João.
— Ótimo material! A Última Ceia depois da Última Ceia.
— O quê? — estranhei, sem entender aquilo.
— Seu cristão relapso! A Última Ceia não foi na verdade a Última Ceia.
Foi a Penúltima Ceia! Alguns dias depois da Crucificação, Simão Pedro, no mar
da Galiléia, passou pela experiência da multiplicação dos peixes. Na praia eles
testemunharam uma luz não muito brilhante. Aproximando-se, viram um homem
em pé ao lado de um braseiro com alguns peixes. Falaram ao homem e souberam
que era Cristo, que gesticulou e disse: “Tomem esses peixes e aumentem meus
irmãos. Levem minha mensagem e percorram as cidades do mundo e preguem a
absolvição dos pecados”.
— Puxa vida... — murmurei, abismado.
— História deliciosa, não? — disse J.C. — A Penúltima Ceia primeiro,
depois a Ceia de Da Vinci, e depois a Última Ceia, de peixes na brasa, nas areias
perto do lago de Tiberíades, depois do qual Cristo partiu para permanecer por
todo o sempre no sangue, nos corações, nas mentes e nas almas dos homens.
Finis.
J.C. baixou a cabeça, depois acrescentou:
— Vá reescrever o Evangelho de João. Não é meu para dar a você, basta
pegar! Agora vá, antes que eu retire minha bênção.
— Você me abençoou?
— O tempo todo em que conversamos, filho. O tempo todo. Agora vá.
- 31 -
Enfiei minha cabeça na fresta da porta da Sala de Projeção 4 e perguntei:
— Onde está Judas?
— Essa é a senha! — berrou Fritz Wong. — Aqui estão três martínis.
Beba!
— Detesto martíni. E, de qualquer maneira, primeiro preciso resolver esse
assunto. Maggie Botwin — cumprimentei.
— Maggie — disse ela, divertida, com a câmera no colo.
— Ouvi falar de você por muitos anos, e sempre a admirei. Só queria
dizer que estou contente com essa chance para trabalhar com...
— Claro, claro — interrompeu ela, com simpatia. — Só que você está
errado. Não sou nenhum gênio. Sou... como se chamam aqueles insetos que
andam na superfície dos lagos?
— Alfaiates?
— Isso, alfaiates! A gente pensa que os miseráveis bichinhos vão afundar,
mas eles se movem sobre uma película na superfície da água. Tensão superficial.
Eles distribuem o peso, esticam as perninhas de forma a não romper nunca esse
filme. Bem, se isso não é uma boa descrição minha, não sei qual seria. Eu
simplesmente distribuo meu peso, me estico toda, de forma a não quebrar o filme
no qual deslizo. Ainda não afundei. Mas não sou a melhor, e nada do que faço é
milagre, é pura sorte de principiante. Mas obrigada pelo elogio, meu jovem.
Agora erga o queixo e obedeça às ordens de Fritz. Os martínis. Como você vai
descobrir daqui a pouco, não fiz nenhum milagre no filme a que vai assistir. —
Ela virou o perfil esguio para a cabine de projeção. — Jimmy? Pode soltar.
As luzes diminuíram e as cortinas se abriram. A versão provisória do
filme iluminou a tela, ao som da trilha sonora parcialmente terminada, composta
por Miklos Rozsa. Dessa parte eu gostei.
À medida que o filme avançava, eu dirigia olhares para Fritz e Maggie.
Eles pareciam montar um cavalo selvagem. Fiz o mesmo, recostando-me na
poltrona para apreciar a profusão de imagens.
Minha mão surrupiou um dos martínis.
— Bom menino — aplaudiu Fritz.
Quando o filme terminou, ficamos sentados em silêncio até que as luzes
se acendessem.
— Por que roda a maior parte das cenas novas ao crepúsculo ou à noite?
— perguntei por fim.
— Não suporto a realidade. — O monóculo de Fritz emitia reflexos
quando ele olhava para a tela branca. — A metade das cenas marcadas daqui para
a frente é ao pôr-do-sol. A essa hora a espinha dorsal do dia se quebra. Ao
anoitecer, dou grandes suspiros de alívio: consegui sobreviver mais um dia!
Geralmente trabalho até as duas da manhã, sem ter de encontrar gente de verdade,
nem luz natural. Há dois anos, mandei fazer lentes de contato. Acabei atirando os
malditos vidrinhos pela janela! Por quê? Consegui enxergar os poros no rosto das
pessoas, e no meu rosto. Verdadeiras crateras lunares. Marcas e furos. Que diabo!
É só dar uma olhada para os últimos filmes que fiz. Não aparecem
pessoas iluminadas por luz solar. Dama da Meia-Noite, Escuridão Eterna,
Assassinato às Três da Madrugada, Morte ao Amanhecer... Agora, jovem, o que
acha sobre esse maldito abacaxi da Galiléia: Cristo no Jardim, César em cima da
Árvore?
Maggie Botwin espreguiçou-se cheia de desânimo e tirou a capa da sua
câmera portátil.
Pigarreei.
— Minha narrativa vai ter de cobrir todos os buracos do roteiro?
— Salvar a pele de César? Claro! — Fritz riu e serviu mais bebidas.
Maggie opinou pela primeira vez:
— Estamos mandando você para discutir Judas com Manny Leiber.
— Por quê?!
— O Leão Judeu — disse Fritz Wong — talvez aprecie o sabor de um
batista de Illinois. Talvez ele até escute o que você tem a dizer enquanto arranca
suas pernas.
Engoli meu segundo martíni.
— Não é tão ruim assim — opinei. Escutei um zumbido.
A câmera de Maggie Botwin estava apontada para mim, captando um
princípio de enlevo.
— Leva a câmera a todos os lugares?
— Levo. Não se passou um dia em quarenta anos sem que eu tivesse
capturado algum momento comprometedor entre os poderosos. Eles não ousariam
me despedir. Eu montaria um filme com nove horas de imbecis em desfile e o
exibiria numa grande première no Cine Chinese, de Grauman. Está curioso?
Venha dar uma olhada algum dia.
Fritz encheu meu copo.
— Estou pronto para um close — declarei. E bebi. A câmera zumbiu.
- 32 -
Manny Leiber estava sentado sobre a beira do tampo de sua escrivaninha,
guilhotinando um charuto com um daqueles cortadores Dunhill folheados a ouro,
que custam cem dólares. Franziu a sobrancelha quando eu entrei em seu escritório
e caminhei ao redor dos vários sofás baixos, examinando-os.
— O que houve?
— Esses sofás — disse eu. — São tão baixinhos que não se consegue
levantar depois.
Sentei-me. Fiquei a uns trinta centímetros do chão, olhando para Manny
Leiber acima, que ficou parecendo um César, a cavalo sobre o mundo.
Levantei-me e me pus a recolher almofadas. Empilhei três delas sobre o
meu lugar e sentei-me.
— Que diabos está fazendo? — Manny desceu da escrivaninha.
— Gosto de ver os olhos da pessoa quando falo com ela. Detesto ficar
entortando o pescoço aqui em baixo.
Manny Leiber irritou-se, mordeu seu charuto e acomodou-se novamente
na borda da escrivaninha.
— Então?
— Fritz acabou de me mostrar uma montagem provisória do filme. Está
faltando Judas Iscariotes. Quem o matou?
— O quê?
— Não se pode ter Cristo sem Judas. Por que Judas de repente se tornou
o apóstolo invisível?
Pela primeira vez vi o traseiro de Manny remexer-se sobre o tampo de
vidro. Ele sugou seu charuto ainda apagado, olhou para mim e declarou:
— Eu dei ordens para cortar Judas do filme? Não quero fazer um filme
anti-semita!
— O que?! — explodi, colocando-me em pé. — Esse filme vai ser
lançado na próxima Páscoa, certo? Na semana de lançamento, um milhão de
batistas vão assisti-lo. Dois milhões de protestantes?
— Com certeza.
— Dez milhões de católicos?
— Isso!
— Dois unitários?
— Dois...?
— E quando todos saírem no domingo de Páscoa e perguntarem: “Quem
cortou Judas Iscariotes do filme?” a resposta vai ser: Manny Leiber!
Houve um longo e incômodo silêncio. Manny colocou de lado o charuto
que ainda não acendera. Sem deixar de olhar para mim, esticou a mão para o
telefone branco.
Discou três números, esperou um pouco e disse:
— Bill? — suspirou profundamente antes de emitir a ordem. — Contrate
outra vez Judas Iscariotes.
Com cara de poucos amigos, ficou me observando enquanto eu
recolocava as almofadas nas cadeiras.
— Foi só por isso que veio até aqui?
— Por enquanto, sim — respondi, já com a mão na maçaneta.
— O que sabe sobre seu amigo Roy Holdstrom? — indagou ele, de
chofre.
Cuidado agora, pensei.
Manny aguardava, franzindo a sobrancelha.
— Aquele bobão simplesmente foi embora — disse eu, mais que
depressa. — Pegou todas as coisas no apartamento dele e saiu da cidade. Que
idiota. Agora não é mais meu amigo. Ele e aquele maldito Monstro de argila.
Manny Leiber me observava cuidadosamente.
— Boa opção. Você vai gostar mais de trabalhar com Wong.
— Claro. Fritz e Jesus.
— O quê?
— Jesus e Fritz. E saí.
- 33 -
— Tem certeza de que viu Roy correndo há uma hora atrás? — indagou
Crumley.
— Que diabo, não sei. Sim, não, talvez. Não me sinto coerente. São os
martínis, não estou acostumado a tomar martíni em pleno dia. E... — folheei o
roteiro — preciso tirar meio quilo disto e acrescentar uns duzentos gramas.
Socorro! — Dei uma olhada no bloco que Crumley segurava. — O que
conseguiu?
— Telefonei para aquelas agências de autógrafos. Todas conheciam
Clarence...
— Ótimo!
— Nem tanto. Todas disseram a mesma coisa. Ele é paranóico. Ninguém
tem o sobrenome dele, nem o número do telefone, nem o endereço. Ele disse a
todas que tem medo. Não de ser assaltado, mas de ser assassinado. E depois
roubado. Cinco mil fotografias, seis mil autógrafos, é o que ele guarda como um
tesouro. Imaginei que talvez ele não tivesse reconhecido o Monstro naquela noite,
e sim ficado com medo de que o Monstro o reconhecesse, ou soubesse onde ele
morava, e resolvesse ir atrás dele.
— Não, isso não encaixa com o resto.
— Clarence, qualquer que seja o sobrenome dele, disse a agência, sempre
recebia em dinheiro vivo e pagava em dinheiro. Não existem cheques que
possamos verificar, por aí não vamos conseguir nada. Ele nunca fez nada por
correspondência. Aparecia sempre para fazer negócio, depois desaparecia de cena
por meses. Ficamos num beco sem saída seguindo essa pista. E no Brown Derby
também. Entrei lá com toda a classe, mas o maitre não foi com a minha cara.
Sinto muito, filho, mas... Ei!
Nesse momento a coorte de legionários apareceu, a distância, em ritmo
acelerado. Com gritos joviais e imprecações, eles se aproximavam de onde
estávamos.
Inclinei-me para a frente, prendendo o fôlego.
— Esse é o grupo que mencionou, dizendo que Roy estava com eles?
— Isso mesmo.
— Está com eles agora?
— Não estou conseguindo ver... Crumley perdeu a paciência.
— Que Pôrra, o que esse idiota pode estar querendo correndo pelo
estúdio desse jeito? Por que ele não sai, não vai embora, que diabo? Por que fica
por aqui? Só para se matar? Ele teve chance de fugir, mas ficou, e está passando a
você e a mim pelo espremedor. Por quê?
— Vingança — respondi. — Por todos os assassinatos.
— Que assassinatos?
— De todas as criaturas dele, seus amigos mais chegados.
— Besteira!
— Escute aqui, Crum. Há quanto tempo está na sua casa em Venice?
Vinte, vinte e cinco anos. Plantou cada sebe, cada arbusto, semeou o gramado,
construiu o quiosque, instalou o equipamento de som, o equipamento para regar o
jardim, plantou os bambus e as orquídeas, os pessegueiros, os limoeiros, o pé de
abricó. Imagine que eu fosse lá numa noite e derrubasse tudo, cortasse as árvores,
pisasse nas roseiras, queimasse o quiosque e jogasse o aparelho de som na rua. O
que você faria?
Crumley começou a imaginar a cena e foi ficando vermelho.
— Exatamente — disse eu. — Não sei se Roy vai casar algum dia. No
momento, seus filhos e a vida inteira dele foram destruídos. Tudo o que ele
sempre amou foi assassinado. Talvez ele esteja lá agora, tentando resolver esses
crimes e, assim como nós, saber quem é o Monstro, para matá-lo. Talvez tenha
partido para sempre. Mas, se eu fosse Roy e estivesse vivo, iria ficar por aí,
escondido, e continuar até enterrar o assassino com os mortos.
— Meus limoeiros, é? — disse Crumley, olhando na direção do oceano.
— Minhas orquídeas, as florestas tropicais? Derrubados por alguém?
A coorte de legionários corria sob a luminosidade do sol matinal,
penetrando a seguir nas sombras azuladas.
Não havia nenhum soldado grande, magro e desajeitado entre eles. As
passadas e os gritos perderam-se a distância.
— Vamos para casa — disse Crumley.

À meia-noite, um vento súbito passou pelo jardim africano de Crumley.
Todas as árvores dobraram-se a sua força. Crumley estava me observando.
— Posso sentir que alguma coisa está para acontecer... Aconteceu.
— O Brown Derby — disse eu, surpreso. — Meu Deus, por que não
pensei nisso antes? Na noite em que Clarence entrou em pânico e saiu correndo,
deixou cair o álbum na calçada em frente ao restaurante! Alguém deve ter
apanhado esse álbum. É capaz de ainda estar lá, esperando que Clarence se
acalme e se aventure a sair para procurar por ele. O endereço dele tem de estar no
álbum. Crumley...?
— Boa pista — comentou Crumley —, vou atrás dela.
O vento noturno soprou forte novamente, uma rajada que parecia um
suspiro melancólico passando pelos limoeiros e laranjeiras.
— E...
— E?
— Estava pensando outra vez no Brown Derby. O maitre talvez não diga
nada para nós, mas eu conheço alguém que comia lá todos as semanas durante
muitos anos, quando eu era garoto...
— Oh, meu Deus... — suspirou Crumley. — Rattigan.
— Rattigan.
— Ela vai comer você vivo.
— Mas ainda não fez isso!
— Isso porque não você ainda era novo.
— Meu amor vai me proteger!
— Que diabos, podemos então colocar todo o seu amor em um saco e
fertilizarmos todo o vale de San Fernando.
— A amizade protege. Você não iria me fazer mal, iria? . — Não conte
com isso.
— Mas precisamos fazer alguma coisa. Roy está escondido. Se eles,
quem quer que sejam, o encontrarem, vão matá-lo.
— E a você também — lembrou Crumley — se continuar bancando o
detetive amador. Já é tarde. Meia-noite.
— A hora em que Constance acorda.
— No horário da Transilvânia? Droga! — Crumley inspirou
profundamente. — Quer que eu leve você até lá?
Um pêssego caiu do pessegueiro imerso nas sombras. Produziu um
barulho abafado ao atingir o solo.
— Quero! — respondi.
- 34 -
Ao amanhecer — disse Crumley — se estiver cantando como soprano,
não me telefone.
E foi embora.
A casa de Constance era, como nos velhos dias, uma perfeição, um
santuário branco e imaculado à beira da praia. Todas as portas e janelas estavam
abertas. A música soava no interior da enorme sala branca de estar; parecia ser
alguma canção antiga de Benny Goodman.
Caminhei pela praia, exatamente como tinha feito há mil noites atrás,
olhando o mar. Ela estava lá em algum lugar, perseguindo golfinhos e imitando
focas.
Procurei na sala de visitas, atulhada com quatro dúzias de almofadões
brilhantes, em cujas paredes brancas e nuas eram projetados, tarde da noite, seus
filmes antigos.
Voltei-me por causa do estrondo de um onda, maior do que as outras,
atingindo a praia. Para depositar, assim como o tapete desenrolado aos pés de
César... Constance Rattigan.
Ela saiu da onda como um foca saltando, com os cabelos castanho-
escuros penteados pela água, o corpo pequeno polvilhado de noz-moscada e
envolto em óleo de canela. Cada tonalidade do outono era refletida pelos
membros, pelos punhos e mãos. Seus olhos apresentavam um tom malicioso,
inteligente e alegre de castanho. A boca, sempre pronta a rir, parecia pintada com
extrato de nogueira. Ela inteira lembrava uma criatura das ondas de outubro,
lavada pelas águas do mar, mas quente ao toque.
— Seu maluco — gritou ela. — É você!
— Filha do Nilo! É você.
Ela atirou-se a mim como um cachorrinho que se enxugasse em alguém;
agarrou minhas orelhas, beijou minhas sobrancelhas, o nariz e a boca, depois de
uma voltinha para exibir todos os ângulos.
— Estou nua, como sempre.
— Eu reparei, Constance.
— Você não mudou nada; está olhando para meus olhos em vez de olhar
para meus peitos.
— E você não mudou nada. Os peitos estão firmes e bonitos.
— Nada mal para uma nadadora noturna de cinqüenta e seis anos, ex-
rainha do cinema mudo, hein? Vamos para dentro.
Ela correu pela areia. Quando cheguei à piscina próxima à casa,
Constance já trouxera queijo, bolachinhas e champanhe.
— Que coisa! — exclamou ela, abrindo a garrafa — Parece que faz um
século que a gente não se vê. Mas eu sabia que algum dia você iria voltar.
Conseguiu tirar o casamento da cabeça? Está pronto para ter uma amante?
— Não, obrigado. Bebemos.
— Viu Crumley nas últimas oito horas?
— Crumley?
— Está escrito em seu rosto. Quem morreu?
— Uma pessoa, vinte anos atrás, na Maximus.
— Arbuthnot! — gritou Constance, num lampejo de intuição. Uma
sombra atravessou seu rosto. Estendeu a mão para um roupão de banho e
envolveu-se nele, sentindo-se subitamente muito pequena, uma criança que
observa o mar, como se não fossem simplesmente a maré e a areia, mas os
próprios anos.
— Arbuthnot — murmurou ela, novamente. — Como ele era bonito! Que
criador... — Fez uma pausa e acrescentou: — Estou contente que esteja morto.
— Não exatamente morto.
Constance voltou-se de repente, como se tivesse recebido um tiro.
— Não é possível!
— Não ele, mas uma coisa que parece ele. Uma coisa no alto de um
muro, colocada lá para me assustar, e agora a você também.
Lágrimas de alívio escorreram dos olhos dela. Exalou o ar como se tivesse
recebido um soco no estômago.
— Maldito seja! Vá até lá dentro — disse ela. — Apanhe a garrafa de
vodca. Não diga nada. Vá.
Eu trouxe a garrafa e um copo. Observei enquanto ela bebia duas
talagadas. Repentinamente eu parecia sóbrio para sempre, cansado de tanto ver as
pessoas beberem, e cansado de ficar com medo cada vez que anoitecia.
Não consegui pensar em nada para dizer, portanto fui até a borda da
piscina, tirei os sapatos, as meias, enrolei as barras da calça e mergulhei os pés na
água. Fiquei de cabeça baixa, esperando. Finalmente Constance veio sentar a
meu lado. —— Você voltou — disse eu.
— Desculpe — declarou ela. — Algumas lembranças são difíceis de
morrer.
— Isso é bem verdade — concordei, olhando eu mesmo para a praia.
— O pânico atacou o estúdio essa semana. Por que diabo todo mundo
parece desmoronar quando digo que encontrei um boneco parecido com
Arbuthnot na chuva?
— Foi isso o que aconteceu?
Contei o resto a ela, como relatara a Crumley. Quando acabei, Constance,
mais pálida ainda, terminava outro copo de vodca.
— Gostaria de saber exatamente do que devo ter medo — reclamei.
— Quem escreveu o bilhete que me levou ao cemitério fez isso para que
eu apresentasse um Arbuthnot falso para o mundo. Mas eu não disse nada a
ninguém do estúdio, eles acabaram descobrindo e tentaram esconder tudo,
apavorados. Será que a lembrança de Arbuthnot é tão terrível assim, mesmo
passados tantos anos depois da morte dele?
— É. — Constance colocou sua mão, que tremia, em meu braço. — É,
sim.
— E agora, o que vai acontecer? Chantagem? Será que alguém agora vai
escrever a Manny Leiber e exigir dinheiro, ou então ameaçar mandar mais
bilhetes sobre o passado do estúdio, sobre a vida de Arbuthnot? Para revelar o
quê? Um rolo de filme perdido há talvez vinte anos, da noite em que ele morreu?
Talvez um filme realizado no local do acidente, que, se viesse à luz, incendiaria
Constantinopla, Tóquio, Berlim e todo o resto?
— Pode ser. — A voz de Constance soava como se ela estivesse vivendo
em outra época. — Pode ser isso. Saia agora. Corra!
— O quê?
— Escute bem. Desculpe ter gritado. Mas você já sonhou que um
buldogue negro de duas toneladas ataca você à noite e o devora? Um amigo meu
teve esse sonho. O buldogue negro o comeu. Nós o chamamos de Segunda
Guerra Mundial. Ele se foi para sempre. Não quero que você se vá.
— Constance, não posso desistir — expliquei. — Se Roy estiver vivo...
— Mas você não tem certeza disso.
— Preciso tirá-lo de lá e ajudá-lo a conseguir o emprego de volta, porque
é a única coisa certa a fazer. Tenho de conseguir. Foi tudo tão injusto...
— Pois então entre no mar e tente discutir com os tubarões, que vai ser
muito mais fácil. Quer mesmo voltar aos estúdios da Maximus depois de tudo o
que me contou?
— Mas primeiro vamos até o Brown Derby.
— E depois a Maximus.
— Isso.
— Está bem. Sabe quando foi a última vez que estive lá? Na tarde do
enterro de Arbuthnot.
Ela deixou que eu digerisse o fato. Depois jogou a âncora.
— Foi parecido com o fim do mundo. Nunca vi tanta gente junta
passando mal. Foi como ver a Estátua da Liberdade rachar e cair. Ele era como o
monte Rushmore depois da um terremoto. Quarenta vezes maior do que se Cohn,
Zanuck, Warner e Thalberg morressem de uma só vez. Quando fecharam a tampa
daquele caixão na tumba do outro lado do muro, a colina onde está o letreiro de
Hollywood começou a rachar e caiu. Era como se Roosevelt morresse bem
depois da sua morte.
Constance parou porque podia escutar minha respiração alterada.
— Acha que existe um cérebro em minha cabeça? — continuou ela. —
Veja! Sabia que Shakespeare e Cervantes morreram no mesmo dia? Pense! É
como se todas as sequóias do mundo fossem derrubadas de um jeito que o
estrondo não parasse nunca mais. A Antártida derreteu-se em lágrimas. Cristo
abriu seus estigmas. Deus reteve a respiração. As legiões de César, dez milhões
de fantasmas, levantam-se com amazonas sangrando no lugar de olhos. Sim,
escrevi isso quando tinha dezesseis anos e era inocente. Mas, quando descobri
que Julieta e Dom Quixote foram feitos no mesmo dia, chorei a noite inteira.
Você é o único que já ouviu esse texto bobo. Bem, foi assim quando Arbuthnot
morreu. Eu fiquei com dezesseis anos outra vez e não conseguia parar de chorar
nem de escrever essas porcarias. O que existia era a Lua, os planetas, Sancho
Pança, Rocinante e Ofélia. Metade das mulheres no enterro eram antigas amantes.
Um clube de fãs formado por companheiras de cama, além de sobrinhas, primas e
tias loucas. Quando abrimos os olhos naquele dia, foi como a segunda inundação
de Johnstown. Meu Deus, ainda continuou assim. Ouvi dizer que eles ainda
conservam a cadeira de Arbuthnot no velho escritório dele, é verdade? Qualquer
um que sente ali precisa ter um grande traseiro e miolos suficientes para isso.
Pensei no traseiro de Manny Leiber.
— Deus sabe como o estúdio conseguiu sobreviver. Talvez tenha sido
uma mesa ouija, com os mortos como conselheiros. Não ria. Esse é Hollywood,
nas previsões de Leo-Virgo-Taurus, sem vacilar entre as cenas filmadas.
— Muito bem, pare de falar, Constance. O que vem a seguir?
— O estúdio? Pode me encaixar no passeio tradicional. Deixe a vovó
sentir o perfume dos quatro ventos nas cinqüenta e cinco cidades, tomar a
temperatura dos maníacos funcionários e depois falar com o maitre do Brown
Derby. Dormi com ele uma vez, noventa anos atrás. Será que ele vai se lembrar
da velha bruxa da praia de Venice e nos deixar tomar um chá com o Monstro?
— O que vai dizer?
Uma grande onda estourou, e uma menor espraiou-se na areia.
— Vou dizer: — ela fechou os olhos — Pare de assustar meu filho
bastardo honorário, futuro-escritor-amante-de-dinossauros”.
— Isso — concordei. — Por favor.
- 35 -
No começo era o nevoeiro.
Como a grande Muralha da China, avançou pelo litoral, pela terra, e pelas
encostas das montanhas, às seis horas da manhã.
Minhas vozes matutinas começaram a falar.
Arrastei-me pelo quarto de Constance, tateando para achar meus óculos
em algum lugar entre a manada de enormes almofadões coloridos, mas acabei
desistindo e comecei a procurar uma máquina de escrever portátil. Sentei-me sem
enxergar muita coisa, pronto a escrever o final de Antipas e o Messias.
E realmente aconteceu o milagre dos peixes.
E Simão, chamado Pedro, chegou à praia, encontrando o Fantasma ao
lado do braseiro e os peixes assados, que seriam entregues como presentes, com a
palavra final para disseminar o bem. Os discípulos ali reunidos formavam uma
pequena multidão comportada, e só havia a última hora entre eles e a Ascensão,
cujas despedidas perdurariam dois mil anos e seriam lembradas em Marte e
enviadas para Alfa Centauro.
Quando as palavras saíram da máquina, não pude vê-las, e aproximei-as
dos meus olhos úmidos e embaçados enquanto Constance saía de uma onda
como um golfinho, como mais um milagre abrigado na carne delicada, para ler
por sobre meu ombro e dar um grito ao mesmo tempo alegre e triste, depois
sacudir-me como um cachorrinho, feliz com meu triunfo.
Telefonei para Fritz.
— Onde diabos você se meteu? — quis saber ele. — Preciso das cenas!
— Cale a boca — disse eu, com delicadeza. E li em voz alta.
E os peixes foram colocados a assar sobre o braseiro, que era soprado
pelo vento como vaga-lumes de fogo formando um riacho sobre as areias, e
Cristo falou, e os discípulos ouviram, e ao amanhecer as pegadas de Cristo, como
as fagulhas brilhantes, foram apagadas pelos movimentos das areias. Ele partiu, e
os apóstolos caminharam para todos as direções; as pegadas deles desapareceram,
e um Novo Dia realmente começa ao mesmo tempo que o filme acaba.
À distância, Fritz permanecia quieto.
Finalmente, sussurrou:
— Seu... filho... de... uma... puta... — A seguir: — Quando escreveu
isso?
— Há três horas.
— Pois chegue aqui em duas — gritou Fritz —, e vou dar um beijo em
suas quatro bochechas. Agora vou falar com Manny e Herodes!
Desliguei, e o telefone tocou. Era Crumley.
— Seu “Balzac” ainda é Honoré? — disse ele. — Ou você, como o
grande peixe de Hemingway, está morto no cais, os ossos sem nenhum
pedacinho de carne?
— Crum — suspirei.
— Muito bem, muito bem. Tenho boas e más notícias.
— Só as boas, por favor.
— Desculpe, jovem, mas vou dar as duas. Comecei a pensar sobre aquele
álbum que seu amigo Clarence deixou cair em frente ao Brown Derby. Liguei
para lá, disse que tinha perdido o álbum. É claro, senhor Sopwith, disse a mulher,
está aqui. Sopwith! Então era esse o sobrenome de Clarence. Sopwith!
— Estava com medo, disse eu, de que meu endereço não estivesse no
álbum.
— Está aqui, informou a mulher que atendeu, North Bronson, 1788, não
é? É isso mesmo, eu falei. Vou até aí para apanhá-lo.
— Crumley! Você é um gênio!
— Não exatamente. Estou falando agora da cabine telefônica em frente ao
Brown Derby.
— E... — Meu coração bateu mais forte.
— O álbum não está mais aqui. Alguém teve a mesma idéia brilhante e foi
mais rápido do que eu. A mulher me deu uma descrição da pessoa. Não foi
Clarence, pelo que você me contou.
— E...
— Quando a mulher pediu um documento, o sujeito simplesmente pegou
o álbum e foi embora. Ela ficou preocupada, mas sem maiores conseqüências.
— Meu Deus! — exclamei. — Isso significa que eles têm o endereço de
Clarence.
— Quer que eu vá até a casa dele e conte tudo para ele?
— Não! Ele é capaz de ter um ataque cardíaco. Clarence já fica bastante
assustado comigo, mas mesmo assim eu tenho de ir. Preciso avisar a ele para que
se esconda. Fazer alguma coisa pelo menos. Sabemos com certeza que ele corre
perigo agora. Que diabo, qualquer coisa pode acontecer com ele. North Bronson,
1788?
— Isso mesmo.
— Crum, Deus o abençoe. Você é meu anjo da guarda!
— Sempre fui — disse ele —, sempre fui. O estranho é que os caras na
delegacia esperavam que eu voltasse ao trabalho uma hora atrás. O coronel
telefonou para dizer que é urgente. Enquanto estou trabalhando, você pode fazer
o que é preciso. Quem mais no estúdio é capaz de ter a informação que
precisamos? Quero dizer, alguém em quem você possa confiar. Alguém que
tenha vivido a história do estúdio, e a história que não está nos arquivos do
Times.
— Botwin — respondi, sem hesitar. Pisquei, abismado com minha
resposta.
Maggie e sua câmera portátil, capturando o mundo dia após dia, ano após
ano, à medida que passava. Maggie.
— Botwin? — repetiu Crumley. — Por que não? Vá perguntar. Nesse
meio-tempo, jovem...
— O quê?
— Proteja seu traseiro.
— Está protegido.
Desliguei e disse, ainda olhando para a parede:
— Rattigan?
— Já dei a partida no carro — anunciou ela. — Está esperando na
calçada.
- 36 -
Fomos até o estúdio à tardinha. Com três garrafas de champanhe
guardadas no conversível, Constance praguejava alegremente a cada cruzamento,
inclinada sobre a direção, como aqueles cachorros que adoravam sentir o vento.
— Para o passadiço! — gritou ela.
Corríamos pelo centro do Bulevar Larchmont, beirando o meio da pista.
— O que está fazendo? — gritei.
— Antigamente, existiam trilhos de bonde dos dois lados da pista. No
meio havia uma fila de postes elétricos. Harold Lloyd dirigia ao redor deles,
fazendo zigue-zague nos postes, assim!
Constance fez uma curva para a esquerda.
— E assim, e assim e assim!
Passávamos ao redor de meia dúzia de postes invisíveis, há muito
derrubados, como se fôssemos perseguidos por um bonde fantasma.
— Rattigan...
Ela viu a preocupação em meu rosto e acalmou-se.
— Avenida Bronson? — indagou ela.
— Bronson — confirmei.
Eram quatro horas da tarde. A segunda entrega de correspondência do dia
estava sendo levada em direção norte. Fiz um sinal para Constance. Ela
estacionou bem à frente do carteiro, que andava sob o sol ainda quente. Ele me
cumprimentou como se eu fosse um turista de Iowa, e demonstrou uma ótima
disposição, considerando-se o tamanho da sacola de correspondência que
carregava.
Tudo o que eu queria era verificar o nome e o endereço de Clarence antes
de bater a sua porta. Mas o carteiro não conseguia parar de conversar. Contou
como Clarence andava e corria, como a área ao redor de sua boca estava sempre
tremendo, como suas orelhas pareciam sempre mover-se para cima e para baixo, e
como a maior parte dos olhos era branca.
O sujeito cutucou meu cotovelo com a correspondência, sempre rindo:
— Aquele cara? É seu amigo? Um biruta completo! Vem atender a porta
enrolado naquele sobretudo de pêlo de camelo, sabe qual é? Do tipo que Adolphe
Menjou usava em 1927, quando éramos rapazes e íamos ao banheiro nas cenas
mais “melosas” dos filmes, certo? Claro. O velho Clarence... Uma vez eu disse,
“Buud!”, e ele se assustou tanto que bateu a porta na minha cara. Coitado.
Aposto que toma banho com aquele casacão, com medo que alguém o veja nu,
ou então medo de ver o próprio corpo. Clarence, o Cagão? 1788. Não bata muito
forte na porta...
Mas eu já saíra. Entrei rapidamente no Conjunto Residencial Villa Vista e
fui até o número 1788.
Não bati à porta. Passei a unha nos pequenos vidros foscos. Havia nove
deles. As cortinas estavam fechadas, de forma que eu não podia ver o interior.
Não ouvi nenhum tipo de resposta, portanto bati com o dedo indicador, um pouco
mais alto. Depois passei a usar os nós dos dedos.
Imaginei escutar o coração de Clarence batendo como o de um coelho, do
outro lado da porta.
Toquei a campainha uma vez. Depois mais três vezes.
— Clarence! — chamei. Esperei um pouco. — Sei que está em casa! Foi
um erro. Falei alto demais.
— Clarence, abra a porta — pedi, com voz mais baixa.
Seria a última chance. Se eu tivesse de voltar mais tarde, talvez não o
encontrasse mais ali.
— Clarence!
Novamente, tive a impressão de ouvir o coração dele batendo mais forte.
— Atenda, que diabos! Antes que seja tarde! Você me conhece... lá do
estúdio!
Recuei um pouco e gritei. Não devia ter feito isso, mas fiz.
— Clarence! Saia daí! Se eu pude achar você, eles também podem! Eles?
O que eu queria dizer com “eles”?
Bati à porta com ambas as mãos. Um dos vidros rachou. Então, passei a
bater na madeira.
— Clarence! Seu álbum! Você deixou no Brown Derby!
Aquilo produziu resultado. Parei de bater pois escutei um ruído que
poderia ser um gemido abafado ou um balbuciar. A fechadura girou, com um
estalido. Mais uma fechadura foi acionada, depois uma terceira.
Finalmente uma fresta se abriu na porta, segura por uma corrente de
bronze.
O rosto amedrontado de Clarence olhou para mim através de um longo
túnel de tempo, próximo, mas ao mesmo tempo tão distante que sua voz produzia
uma espécie de eco.
— Onde está? — suplicou ele. — Onde está?
— No Brown Derby — disse eu, envergonhado. — Mas alguém o
roubou.
— Roubou? — Lágrimas assomaram aos seus olhos. — Meu álbum?
Provavelmente ele pensava também no endereço que constava no álbum.
— Deus do céu! — lamentou-se ele. — Você fez isso comigo.
— Não, espere um pouco, escute aqui...
— Se eles tentarem entrar aqui, eu me mato. Eles não podem ficar com
tudo, e você também não...
Clarence olhava apavorado por sobre o ombro, na direção dos arquivos
que eu consegui vislumbrar mais além, e uma série de estantes, além das paredes
cheias de fotografias. Eles não podem ficar com tudo.
Meus monstros, dissera Roy no próprio funeral, meus companheiros
queridos.
Minhas coisas adoradas, dizia Clarence, minha alma, minha vida!
— Não quero morrer — queixou-se Clarence, fechando a porta a seguir.
— Clarence! — insisti, uma última vez. — Conte para mim! Quem são
eles? Se eu souber, posso ajudar você. Clarence!
Uma sombra passou pelo pátio.
Uma porta abriu-se parcialmente num chalé vizinho.
Tudo o que pude dizer, exausto, saiu num murmúrio:
— Até logo...
Voltei ao carro. Constance estava sentada ao volante, olhando para as
colinas de Hollywood, tentando aproveitar o agradável final de tarde.
— O que houve? — quis saber ela.
— Um maluco, o Clarence. Com relação a outro maluco, Roy. — Pulei
no banco ao lado dela. — Muito bem, pode me levar para a fábrica de loucos.
Constance dirigiu em disparada até o portão do estúdio.
— Meu Deus, detesto hospitais — reclamou ela, ao chegar.
— Hospitais?
— Claro, isto aqui está repleto de casos não diagnosticados. Mil bebês
foram concebidos, ou nasceram nessa espelunca. É um sanatório para dementes,
loucos de cobiça. Aquele brasão sobre a entrada? Um leão com uma pata acima
da outra e as costas quebradas. A seguir: um bode cego sem testículos. Depois:
Salomão dividindo um bebê em dois pedaços. Bem-vindo ao necrotério de Green
Glades!
— Isso fica do outro lado do muro.
— Então você reparou! Aquilo gelou minha espinha.
Meu passe garantiu nossa passagem pelo portão principal. Ninguém jogou
confete. Nenhuma banda nos recebeu.
— Você devia ter dito quem era àquele segurança!
— Reparou nele? Nasceu no dia em que eu saí do estúdio para meu
convento. Diga “Rattigan”, e a trilha sonora se apaga. Veja! — Ela apontou para
onde ficavam os depósitos de filmes. — Minha tumba. Vinte latas num túmulo
só. Filmes que morreram em Pasadena, enviados de volta com etiquetas nos
dedões. É isso!
Paramos no meio de Green Town, Illinois.
Desci em frente aos degraus da varanda e estendi a mão.
— A casa de meus avós. Bem-vinda!
Constance aceitou minha mão, como uma menininha tímida, e deixou que
eu a conduzisse pelos degraus para sentar-se na cadeira de balanço da varanda,
que nos embalou.
— Meu Deus! — suspirou ela. — Não subo numa destas há muitos anos!
Seu filho da mãe! O que está tentando fazer com esta velhinha?
— Desculpe. Não sabia que crocodilos choravam. Ela me encarou.
— Você é mesmo um caso sério! Acredita mesmo nessas coisas que
escreve! Marte em 2001? Illinois em 1928?
— Sim, senhora.
— Puxa! Como você tem sorte por ainda estar dentro da sua pele,
ingênuo desse jeito. Não mude nunca. — Constance segurou minha mão. —
Nós, os estúpidos profetas do Apocalipse, os cínicos de riso solto, precisamos de
você. Merlin morre, ou um carpinteiro que está consertando a Távola Redonda
consegue serrá-la torta, ou o sujeito que lubrifica as armaduras coloca mijo de
gato. Mas você precisa viver para sempre. Promete?
No interior, o telefone tocou.
Constance e eu demos um pulo. Corri para atender.
— Alô — esperei um pouco. — Alô!
Mas só escutei um som que lembrava o do vento soprando, de uma
aparente colina. A pele da minha nuca arrepiou-se para cima e para baixo, como
se por ali estivesse passando uma lagarta, com suas perninhas frias.
— Roy?
No interior do telefone o vento ainda parecia soprar e, em algum lugar,
madeiras rangeram.
Meu olhar elevou-se, como que por instinto, para um lugar alto.
A cem metros de distância, Notre-Dame. Com suas torres gêmeas, seus
santos de pedra e suas gárgulas.
Havia vento no alto das torres da catedral. A poeira chegava até lá em
cima, e havia também a bandeira vermelha de um operário.
— Essa linha é interna? — indaguei. — Você está onde eu acho que
está?
Lá no alto, tive a impressão de ver uma das gárgulas... mover-se.
Oh, Roy, pensei, se é você mesmo, esqueça sua vingança. Fuja. Saia daí.
Mas o vento parou, a respiração parou e o telefone ficou mudo.
Larguei o aparelho e olhei para o alto das torres. Constance viu a direção
do meu olhar e examinou as mesmas torres, onde uma nova rajada de vento
arrastou os demônios da poeira para baixo e para longe.
— Muito bem, chega de besteiras!
Constance afastou-se da varanda e levantou os olhos para Notre-Dame.
— Que diabos está acontecendo aqui? — gritou ela.
— Psiu! — fiz eu.
- 37 -
Fritz estava no meio de uma tremenda confusão de figurantes gritando,
apontando e levantando poeira. Aliás, ele carregava um chicotinho de equitação
embaixo do braço, porém nunca o vi utilizar-se dele. As câmeras, três delas,
estavam prontas, e os assistentes de direção davam ordens para a distribuição dos
figurantes ao longo da estreita rua pela qual Cristo apareceria em algum horário
antes do amanhecer. No meio da confusão, Fritz avistou-me ao lado de
Constance e fez um sinal a seu secretário, que veio correndo. Eu lhe entreguei as
cinco páginas do roteiro, e o sujeito voltou, através da multidão.
Fiquei observando enquanto Fritz folheava o que eu havia escrito, de
costas para mim. Vi sua cabeça inclinar-se, e depois de um longo momento, ainda
sem olhar para mim, apanhou um megafone. Ele gritou e instantaneamente obteve
silêncio.
— Acomodem-se todos. Aqueles que puderem sentar, sentem-se. Os
outros fiquem em pé. A essa hora, amanhã, Cristo já terá ido. E essa é a maneira
como o verão depois que acabarmos e vocês forem para suas casas. Escutem.
E leu o roteiro da última cena, palavra por palavra, página por página,
numa voz baixa e clara. Nenhuma voz se fez ouvir, e nenhum músculo se moveu.
Eu não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Todas as minhas
palavras sobre o amanhecer no mar, o milagre dos peixes, o fantasma de Cristo ao
lado do braseiro na praia, os peixes assando em meio às fagulhas agitadas pelo
vento, os apóstolos ali em silêncio, ouvindo atentamente com os olhos fechados o
murmurar da despedida do Salvador, o sangue pingando dos ferimentos nos
pulsos sobre os carvões em brasa que preparavam a Ceia depois da Última Ceia.
E finalmente Fritz Wong leu minhas derradeiras palavras.
Houve um levíssimo murmúrio na multidão, e no meio deste silêncio Fritz
finalmente caminhou entre eles até chegar a meu lado; eu estava meio cego de
emoção.
Fritz olhou surpreso para Constance e cumprimentou-a com um gesto de
cabeça. Ficou parado por um instante e retirou o monóculo do olho com
movimentos lentos, segurou minha mão direita e depositou a lente na palma de
minha mão, como se fosse um prêmio ou uma medalha. Depois fechou meus
dedos sobre ela.
— Desta noite em diante — anunciou ele, em voz baixa — você vai
enxergar por mim.
Era como uma ordem, ou uma bênção.
Depois ele se afastou. Fiquei ali a observá-lo, com o monóculo apertado
entre meus dedos trêmulos. Quando Fritz atingiu o centro da multidão silenciosa,
apanhou o megafone e gritou:
— Muito bem, façam alguma coisa! Não olhou mais em minha direção.
Constance tomou meu braço e levou-me dali.
- 38 -
No caminho para o Brown Derby, Constance, que agora dirigia devagar,
olhou para as ruas escuras à frente e comentou:
— Meu Deus, você acredita em tudo, não é? Como consegue? Por quê?
— É fácil — respondi. — É só não fazer nada em que eu não acredite. Se
me oferecesse um trabalho para escrever, por exemplo, um filme sobre
prostituição ou alcoolismo, eu não aceitaria. Eu não seria capaz de pagar uma
prostituta, e não entendo os alcoólatras. Faço o que gosto. No momento, graças a
Deus, é sobre Cristo na Galiléia, num amanhecer de despedida, com suas pegadas
na areia. Sou um péssimo católico, mas, quando ouvi essa cena no Evangelho de
João, que aliás, J.C. descobriu para mim, fiquei como que perdido. Como poderia
deixar de escrevê-la?
— É... — concordou Constance, olhando para mim de tal maneira que
tive de apontar para a frente a fim de lembrá-la de que estava ao volante.
— Que diabos, Constance, não é de dinheiro que estou atrás. Se você me
oferecesse Guerra e Paz, por exemplo, eu recusaria. Tolstoi é ruim?
Não. Eu é que não entendo a forma como ele escreve. O defeito está em
mim. Mas pelo menos sei que não posso fazer um roteiro quando não gosto.
Perderia seu dinheiro se me contratasse. Fim do discurso. E acabamos de passar o
Brown Derby — lembrei, ao chegar à esquina.
Tivemos de fazer a volta.
O restaurante estava quase vazio. Não havia nenhum biombo oriental na
parede traseira.
— Droga! — murmurei.
Pois meus olhos haviam passado por um nicho à esquerda. Nesse nicho
havia um telefone, através do qual as reservas eram feitas. Havia também uma
lâmpada de leitura sobre uma pequena escrivaninha, na qual algumas horas atrás
provavelmente estivera o álbum de Clarence Sopwith.
Bem ali, esperando que alguém o roubasse, para descobrir o endereço de
Clarence, e...
Meu Deus, pensei, não!
Não? — repetiu Constance, lembrando-me de que falara em voz alta e
conduzindo-me ao salão principal.
— Meu jovem — disse ela. — Vamos arranjar uma bebida para você. O
maitre estava apresentando a conta a seus últimos clientes. O olho que ele parecia
ter na nuca nos avistou, e ele virou-se. Seu rosto irradiou felicidade ao deparar-se
com Constance. Quase imediatamente porém, ele percebeu minha presença, e a
expressão se desfez. Afinal de contas, eu representava más notícias. E mesmo que
eu não fosse o mensageiro do Apocalipse, eu estivera lá fora na noite em que o
Monstro fora abordado por Clarence.
O maitre sorriu novamente e atravessou a sala para nos encontrar pelo
outro lado, e beijou cada um dos dedos de Constance, com avidez. Constance
atirou a cabeça para trás e riu.
— Não adianta, Ricardo, vendi meus anéis há muitos anos.
— Lembra-se de mim? — perguntou ele, surpreso.
— Ricardo Lopez, também conhecido como Sam Kahn? Claro.
— Por outro lado, será que seu nome é mesmo Constance Rattigan?
— Queimei minha certidão de nascimento com minhas calcinhas —
respondeu Constance, apontando em seguida para mim. — Esse é...
— Já conheço... — cortou Lopez, ignorando-me. Constance riu
novamente, pois ele ainda segurava sua mão.
— Ricardo era o salva-vidas na piscina da MGM. Dúzias de garotas
fingiam se afogar todo dia para que ele as reanimasse. Ricardo, mostre o
caminho.
— A cozinha está fechada. Mas o vinho está à disposição da grande
Constance Rattigan! Eternamente.
— Até a meia-noite já está ótimo.
Sentamo-nos. Eu não conseguia tirar os olhos da parede dos fundos.
Lopez percebeu isso e girou com mais força o saca-rolhas no bocal da garrafa.
— Fui só um espectador — disse eu, baixinho.
— Claro, claro — resmungou ele, servindo o vinho para que Constance
experimentasse. — Foi aquele outro imbecil.
— O vinho está ótimo — sentenciou Constance, depois de saborear um
gole — como você.
Ricardo Lopez quase desmaiou. Deu risada.
— E quem era o outro imbecil? — perguntou Constance, aproveitando a
vantagem.
— Não era ninguém — respondeu Lopez, parecendo voltar ao costumeiro
mau humor. — Tivemos gritos aqui na porta, e quase chegavam às vias de fato.
Meu melhor cliente e um mendigo de rua.
Meu Deus, pensei. Pobre Clarence, esmolando luzes e fama a vida inteira.
— Seu melhor cliente, meu querido Ricardo? — indagou Constance,
piscando.
Ricardo deu uma olhada para o biombo oriental dobrado.
— Estou acabado. Não sou muito de chorar. Mas isso? Fui muito
cuidadoso... Durante vários anos. Ele sempre chegava tarde. Esperava na cozinha
até que eu verificasse se havia aqui alguém que o conhecia. Difícil, hein? Afinal,
eu não conhecia todos os que ele conhecia, certo? E agora, por causa de um
vagabundo estúpido, um simples mendigo que passava, meu Grande Senhor
provavelmente nunca mais vai voltar. Vai encontrar outro restaurante, mais vazio,
para ir mais tarde.
— Este Grande Senhor... — Constance empurrou uma taça para Ricardo
e fez um sinal para que ele se servisse de vinho — tem nome?
— Não. — Ricardo serviu a bebida, deixando meu copo ainda vazio. —
E eu nunca perguntei. Durante muitos anos ele veio pelo menos uma vez por
mês, pagando em dinheiro pelos melhores pratos e pelos melhores vinhos. Mas,
em todos esses anos, não chegamos a trocar mais de três dúzias de palavras por
noite. — Lopez fez uma pausa para sorver um pequeno gole de vinho. — Ele lia
o cardápio em silêncio, apontava o que queria, e nós recolocávamos o biombo no
lugar. Então ele e sua acompanhante conversavam, bebiam e riam. Quer dizer,
quando havia uma dama com ele. Mulheres estranhas. Solitárias...
— Ou cegas — sugeri, inocentemente. Lopes lançou um olhar em minha
direção.
— Talvez. Ou pior ainda.
— O que poderia ser pior?
Lopez olhou para sua taça de vinho, depois para a cadeira vazia.
— Sente-se — convidou Constance.
Ele puxou a cadeira, olhando para os lados, e continuou:
— Atormentadas seria um termo mais apropriado. Não sei dizer ao certo.
Estranhas, tristes. Uma forma ou outra de invisibilidade, pessoas feridas,
incapazes de rir. Ele as moldava. Era como se para curar sua vida terrivelmente
silenciosa ele precisasse deixar os outros num estado de euforia muito peculiar.
Ele provava que a vida era uma piada! Imagine só! Provar uma coisa dessas.
Depois ele e seu riso sumiam na noite com sua mulher sem olhos, ou sem boca,
ou sem mente... gosto de imaginar que eles se divertiam... partiam em táxis
algumas noites, ou limusines, sempre de uma companhia diferente. Ele pagava
tudo em dinheiro, sem cheques, sem nenhuma possibilidade de identificação, e
depois voltavam para o silêncio. Em nenhuma noite cheguei a ouvir a conversa.
Se ele olhasse e me visse a cinco metros do biombo, era um desastre. Minha
gorjeta? Uma única moeda de dez centavos! Que professor sutil! Na vez seguinte
em que ele apareceu, fiquei a dez metros de distância. A gorjeta? Duzentos
dólares. Bem, à saúde daquele triste senhor.
Uma súbita rajada de vento sacudiu as janelas. Gelamos. As folhas da
porta se abriram, voltaram e por fim pararam.
As costas de Ricardo se empertigaram, enquanto a boca se curvava.
Olhava alternadamente para a porta e para mim, como se eu fosse responsável
pelo vento noturno.
— Mas que droga, maldito seja — disse ele entre os dentes. — Ele
simplesmente sumiu.
— O Monstro? — escutei minha própria voz dizendo. Ricardo olhou
diretamente para mim.
— É assim que você o chama? Mas afinal... por que você está de volta?
— Lopez serviu mais vinho para Constance, que acenou em direção à minha
taça. Ele deu de ombros e serviu um dedo. — Por que ele é tão importante para
você, que se dá ao trabalho de vir até aqui destruir minha vida? Eu não podia
dizer.
— Até essa semana eu era um homem rico — queixou-se Lopez.
Constance imediatamente colocou a bolsa no colo. Sua mão, como um ratinho,
deslizou até a cadeira à direita e deixou alguma coisa ali. Ricardo percebeu e
sacudiu a cabeça.
— De você não, minha querida Constance. É bem verdade que ele me fez
rico, mas certa vez, anos atrás, você me fez o homem mais feliz do mundo.
A mão de Constance acariciou a dele, e os olhos dela brilharam. Lopez
levantou-se e dirigiu-se para a cozinha, permanecendo cerca de dois minutos
antes de retornar. Esperamos, bebericando o vinho e observando a porta da frente
mover-se ao sabor do vento noturno. Quando Lopez voltou, olhou ao redor, pelas
mesas e cadeiras vazias, como se pudessem criticá-lo por sua falta de
profissionalismo ao sentar conosco. Cuidadosamente depositou uma pequena
fotografia sobre a mesa. Enquanto a examinávamos, ele terminou sua taça de
vinho.
— Foi tirada com uma Polaroid, no ano passado. Um dos estúpidos
ajudantes de cozinha queria divertir os amigos dele, sabem como é? Tirou duas
fotografias em três segundos. Elas caíram no chão. O Monstro, como vocês o
chamam, destruiu a câmera, rasgou uma das fotografias, pensando que era a
única, e bateu no sujeito, que eu tive o prazer de despedir na mesma hora. Não
apresentamos a conta naquele dia, e ofereci a ele a última garrafa de nosso melhor
vinho. Tudo voltou aos eixos. Mais tarde, encontrei a segunda fotografia embaixo
de uma mesa, onde foi parar enquanto o homem esbravejava e batia no ajudante.
Não é uma coisa triste de se ver?
Constance chorava.
— É essa a aparência dele?
— É... — concordei, abatido.
— Como é que ele consegue viver dentro dele mesmo? — admirou-se
Constance. Colocou a mão sobre a foto.
— Sempre quis perguntar — confessou Ricardo — por que ele continua a
viver. Entende o que quero dizer? Os espelhos que ele tem de enfrentar... Será
que ele tem sonhos em que é bonito? Quem é a mulher dele? O que faz para
viver, e será que é viva? Mas nunca perguntei nada. Simplesmente olhava para as
mãos dele, servia o pão, o vinho... Em algumas ocasiões ele me forçava a olhar
para o rosto dele. Quando ele dava a gorjeta, esperava que eu levantasse os olhos.
Então ele dava aquele sorriso que parecia uma navalha. Já viram brigas em que
um homem corta o outro, e o corte fica parecido com uma boca vermelha? A
boca do pobre homem era assim, quando me agradecia pelo vinho e aumentava
tanto minha gorjeta que eu precisava ver os olhos dele, presos naquele rosto em
ruínas, afogando em desespero e querendo libertar-se.
Ricardo piscou e enfiou a fotografia no bolso.
Constance ficou olhando para a toalha, no lugar onde estivera a
fotografia.
— Vim para ver se conhecia o homem. Graças a Deus não conheço. E a
voz dele? Talvez de alguma outra época...
— Não, não — disse Ricardo. — Não adianta mais. Está tudo terminado.
Aquele fã idiota no outro dia. Foi a única vez, em tantos anos, que aconteceu um
encontro assim. Geralmente, àquela hora, a rua fica vazia. Por enquanto, tenho
certeza de que ele não vai voltar. E eu vou ter de voltar a morar num apartamento
menor. Desculpem esse egoísmo mesquinho, mas é difícil desistir de gorjetas de
duzentos dólares.
Constance assoou o nariz, levantou-se, apanhou a mão de Lopez e
depositou algo ali.
— Não discuta — declarou ela. — Foi um ótimo ano, o de 28. É hora de
pagar meu adorável gigolô. Fique com isso. — Ele tentou devolver o dinheiro. —
Coragem!
Ricardo balançou a cabeça, levantou-se e levou a mão de Constance até o
rosto.
— Foi La Jolla, o mar e o tempo bom?
— Pegando jacaré nas ondas o dia inteiro!
— Claro, e aqueles corpos bonitos, nas ondas quentes. Ricardo beijou
cada um dos dedos dela.
— O sabor começa no cotovelo — disse Constance.
Ricardo deu risada. Constance fez-lhe um carinho no rosto e saiu. Deixei
que ela fosse até a porta.
Depois voltei-me e olhei para o pequeno nicho, com o telefone, a pequena
lâmpada e o pequeno arquivo.
Lopez seguiu a direção do meu olhar, e fez o mesmo.
Acho que os dois reagimos no mesmo instante.
Ergui minha mão, num movimento que não chegou a se completar, como
se por meio de um passe de mágica pudesse trazer o objeto de volta. Lopez
levantou a sua, num movimento defensivo.
Mas o álbum de fotografias de Clarence fora-se para sempre, naquela
noite, com as pessoas erradas.
Quem vai proteger Clarence agora?, imaginei. Quem iria salvá-lo da
escuridão e tirá-lo vivo da noite em que vivia?
Eu? O garoto que corria cem metros em vinte e sete segundos? O
pobrezinho que era vencido pela prima na queda-de-braço?
Crumley? Será que eu ousaria pedir a ele que ficasse a noite inteira do
lado de fora da casinha de Clarence? E para quê? E se ninguém aparecesse, e
tudo não passasse de um exagero da minha parte? Cheguei a enxergar a boca de
Crumley a curvar-se e os olhos revirando nas órbitas. Adiantaria voltar e ficar
batendo na porta de Clarence? Você está em perigo, corra!
Não telefonei para Crumley. Nem fui gritar à porta de Clarence Sopwith.
Cumprimentei Ricardo Lopez e saí para a noite. Constance, do lado de fora,
estava chorando.
— Vamos sair daqui — disse ela.
Esfregou os olhos com um lenço de seda, não muito eficaz.
— Esse maldito Ricardo — soluçou ela. — Me fez me sentir velha. E
ainda mostrou a fotografia daquele pobre homem, sem nenhuma esperança.
Aquele rosto...
— Pois é, aquele rosto... — repeti, pensativo. — E Sopwith... Pois
Constance estava em pé exatamente no lugar onde Clarence estivera há quatro
noites incrivelmente distantes.
— Sopwith? — estranhou ela.
- 39 -
Dirigindo, Constance falou com voz aguda contra o vento: — A vida é
como as roupas de baixo, a gente deve trocar umas duas vezes por dia, senão...
— Const...
— Esta noite terminou, e eu prefiro esquecê-la.
Ela limpou as lágrimas dos olhos, virando o rosto para facilitar.
— Eu simplesmente esqueço, é só isso. Lá vão as lágrimas. Lá vão
minhas memórias. Vê como é fácil?
— Não.
— Lembra-se das mamacitas naquele apartamento em que você morava
dois anos atrás? Lembra-se de como nas noites de domingo elas jogavam os
vestidos novos pela janelas para mostrar como eram ricas, que não se importavam
e podiam comprar outros? Era uma grande mentira; atiravam pela janela os
vestidos e ficavam olhando do telhado às três horas da manhã, olhando aquele
verdadeiro jardim de vestidos, como pétalas de seda levadas pelo vento lá
embaixo nos becos. Não era assim?
— Era!
— Eu sou assim. Esta noite no Brown Derby e aquele pobre-diabo vão
embora junto com minhas lágrimas. Jogo tudo isso fora.
— Mas esta noite ainda não acabou. Você não pode esquecer aquele
rosto. Pelo menos, eu não consigo. Reconheceu o Monstro?
— Meu Deus! Estamos quase tendo nossa primeira briga de verdade. Eu
detestaria perder você. Esqueça esse assunto.
— Você reconheceu o cara?
— Ele estava irreconhecível.
— Mas tinha olhos. Olhos não se disfarçam.
— Esqueça esse assunto! — gritou ela.
— Tudo bem — disse eu. — Deixa para lá.
— Muito bem. — Ela sacudiu a cabeça. Mais lágrimas voaram como
pequenos cometas no vento noturno. — Amo você de novo.
O sorriso era varrido pelo vento, os cabelos esvoaçavam na corrente de ar
frio que nos fustigava por sobre o pára-brisa.
Todos os ossos de meu corpo pareceram derreter-se naquele sorriso. Meu
Deus, pensei, será que ela sempre vencia, todos os dias, a vida inteira, com aquela
boca, os dentes bonitos e os grandes olhos inocentes?
— Sempre! — riu Constance, lendo meus pensamentos. — E veja uma
coisa.
Ela parou em frente aos grandes portões do estúdio. Olhou para cima por
alguns instantes.
— Meu Deus! — exclamou ela, finalmente. — Isso não é um hospital. É
onde as idéias dos grandes elefantes vão morrer. Um cemitério de lunáticos.
— Mas isso é do lado de lá do muro, Constance.
— Não, não é. Você morre primeiro aqui, e depois morre lá. Enquanto
isso... — Ela levou ambas as mãos à cabeça, como se esta fosse explodir. — É
loucura. Não entre lá, criança!
— Por quê?
Constance levantou-se lentamente por sobre o volante e gritou em
desespero para o portão que ainda não estava aberto, as janelas cerradas e as
paredes vazias que não se importavam.
— Em primeiro lugar, eles deixam você maluco. Depois, quando você já
está louco, perseguem você por falar demais ao meio-dia, ser histérico ao pôr-do-
sol e ser um lobisomem sem dentes ao nascer da Lua. — Constance fez uma
pausa. — Quando você chega ao grau certo de loucura, eles despedem você,
espalhando que você não é razoável, nem cooperativo, e que não tem
imaginação. Papel higiênico, com seu nome impresso é despachado para todos os
estúdios, a fim de que os grandes possam entoar suas iniciais quando forem ao
trono papal.
“Quando você já está morto, eles sacodem você para matá-lo outra vez.
Então penduram sua carcaça em Bad Rock, OK Corral, ou Versailles, no
cenário 10, prendem você num vidro, como se fosse um embrião num filme de
terror de baixa categoria, compram uma tumba barata do outro lado do muro,
mandam imprimir seu nome, soletrado errado na lápide, e choram como
crocodilos. O que acontece? O final inglório: ninguém se lembra do seu nome
nos filmes que você fez em sua época boa. Quem conhece os roteiristas de
Rebecca? Quem lembra o autor de E o Vento Levou? Quem ajudou Orson
Welles a tornar-se o Cidadão Kane? Pergunte a qualquer um na rua. Que diabos,
eles não sabem nem quem era o presidente durante a administração Hoover!
É o que acontece. Esquecido no dia seguinte ao da estréia. Com medo de
ir para casa entre dois filmes. Quem já ouviu falar de um roteirista que conheça
Paris, Roma, ou Londres? Todos morrem de medo de viajar, porque os tubarões
podem esquecer o nome deles. Como esquecê-los, se não chegaram nem a
conhecê-los? Contrate fulano. Chame como-é-mesmo-o-nome-dele. O nome que
fica embaixo do título? O produtor? Com certeza. O diretor? Talvez.
Lembramos que Os Dez Mandamentos é o filme de DeMille, não de Moisés. Mas
O Grande Gatsby de Scott Fitzgerald? Foi pela descarga. Cheirado por um nariz
ulcerado.
Quer seu nome em letras grandes? Mate o amante de sua mulher e caia
com o cadáver pela escada. Como eu disse, a tela representa um simples
bruxulear. Lembre-se de que você é como os espaços brancos entre as
perfurações do filme no projetor. Já reparou naqueles postes no muro traseiro do
estúdio? São para ajudar os saltadores oportunistas que querem entrar na arena
de pedra. Dementes imbecis contratam-nos por dez centavos a dúzia. Eles podem
ser obtidos com facilidade porque adoram cinema, e nós não. Isso nos dá o
poder. Levá-los a beber, depois tirar a garrafa, contratar um carro fúnebre, e pedir
emprestada uma pá. A Maximus. Um cemitério, como eu. Ah, sim, e para
lunáticos.” Mesmo tendo terminado o discurso, Constance permaneceu em pé,
como se as paredes altas fossem uma onda enorme, pronta a nos tragar.
— Não entre aí — terminou ela, quase para si mesma. Ouviu-se um
aplauso baixinho.
O vigia noturno, por trás dos portões trabalhados, sorria e batia palmas.
— Só vou ficar lá por algum tempo, Constance — disse eu. — Mais ou
menos um mês, depois vou para o sul terminar meu livro.
— Posso ir com você? Podemos fazer uma viagem para Mexicali,
Calexico, sul de San Diego, até quase Hermosillo, tomando banhos de mar ao
luar pelo caminho, nus... Ah, nus não, você de calção.
— Eu gostaria. Mas agora somos eu e Peg, Constance, Peg e eu.
— Bem, eu tentei, que diabos... Me dê um beijo.
Hesitei, mas ela me deu um beijo capaz de aspirar o conteúdo de uma
caixa-d'água e depois fornecer água quente. Os portões estavam se abrindo. Dois
lunáticos à meia-noite, lá fomos nós.

Quando estacionamos na grande praça cheia de soldados e mercadores,
Fritz Wong veio ao nosso encontro em grandes passadas.
— Que droga! Estamos prontos para rodar sua cena, mas aquele batista
bêbado desapareceu. Sabe onde está aquele filho de uma puta?
— Já ligou para Aimeé Semple MacPherson?
— Ela já morreu!
— Ou então para os Holy Rollers. Ou para os universalistas de Manly P.
Hall. Ou...
— Mas que diabo! — protestou Fritz. — Já é meia-noite! Esses lugares
todos estão fechados. Vamos perder cinqüenta mil dólares se não filmarmos hoje
à noite!
— Já olhou no Calvário? — sugeri. — Às vezes ele vai lá.
— O Calvário? — berrou Fritz, afastando-se. — Dêem uma olhada no
Calvário.
— E o jardim de Getsêmani...
— Getsêmani! — Fritz já conversava com um grupo. — Meu Deus, por
que isso envenenou Manischewitz? Alguém corra para alugar dois milhões de
gafanhotos para a filmagem da praga, amanhã!
Os assistentes dispararam em todas as direções. Também comecei a
afastar-me, mas Constance segurou-me o cotovelo. Meus olhos passaram pela
fachada de Notre-Dame. Constance percebeu para onde eu estava olhando.
— Não suba lá — sussurrou ela.
— É um lugar perfeito para J.C.
— Mas é tudo fachada, não tem interior. Se tropeçar em alguma coisa, cai
como uma daquelas pedras que o corcunda atirava na multidão.
— Isso foi no filme, Constance!
— E você acha que isto aqui é real?
Ela estremeceu; eu ansiava por aquela Rattigan que vivia rindo. Fechou
os olhos e continuou a falar:
— É que eu vi um movimento agora há pouco; na torre do sino. Tem
alguma coisa ali.
— Talvez seja J.C. — sugeri. — Enquanto os outros estão dando uma
busca no Calvário, por que eu não vou até lá dar uma olhada?
— Ué, eu pensei que você tivesse medo de altura?
Fiquei observando as sombras que deslizavam pela fachada de Notre-
Dame à medida que os jipes passavam por perto.
— Idiota! Vá em frente. Traga Jesus para baixo — resmungou Constance.
— Antes que ele fique como uma gárgula. Salve Jesus. — Ela interrompeu-se e
riu. — Será que ele pode salvar você?
— Já salvou!
Depois de caminhar cem metros, olhei para trás. Constance aquecia as
mãos numa fogueira de legionários romanos.
- 40 -
Fiquei um pouco nas cercanias de Notre-Dame, com medo de duas
coisas: entrar e subir. Depois virei-me, surpreso, para sentir o cheiro que parecia
haver no ar. Inspirei profundamente e exalei.
— Meu Deus! Incenso! E cheiro de vela! Alguém por aqui andou... J.C.?
Claro!
Passei pela porta e estaquei, porque...
Em algum lugar, lá no alto das estruturas, um grande vulto moveu-se.
Apertei os olhos para olhar por entre as armações de lona, as tábuas de
compensado e as sombras das gárgulas, tentando divisar qualquer coisa que se
movesse na escuridão da catedral.
Quem acendeu o incenso?, pensei. Há quanto tempo o vento teria
apagado as velas?
Havia poeira fina suspensa no ar lá em cima.
J.C., se você cair, quem vai salvar o Salvador?, pensei.
Só o silêncio respondeu a meu silêncio.
Portanto...
O covarde número um entre os filhos de Deus teve de subir degrau por
degrau na escuridão, com medo de que a qualquer momento os sinos
começassem a repicar e provocar minha queda. Fechei os olhos com força e subi.
No alto de Notre-Dame fiquei imóvel por um momento, apertando minhas
mãos ao ritmo acelerado do coração, arrependido de ter subido, desejando estar
ao lado dos legionários romanos, bem iluminados e cheios de cerveja, que
sorriam para Rattigan, a rainha visitante.
Se eu morrer agora, pensei, ninguém vai escutar.
— J.C.? — chamei baixinho na escuridão. — J.C.? Silêncio.
Contornei uma folha comprida de compensado. Havia mais alguém ali
sob a luz das estrelas, uma forma sentada com as pernas pendendo para o lado de
fora da fachada da catedral, exatamente onde o sineiro deformado sentara-se, há
uma vida inteira.
O Monstro.
Ele olhava para a cidade, para os milhões de luzes que se espalhavam por
mil quilômetros quadrados.
Como teria ele chegado até ali?, imaginei. Como teria passado pelo
guarda no portão, ou... por onde? Claro, por sobre o muro. A escada apoiada no
muro do cemitério!
Escutei um martelo de carpinteiro golpeando. Um corpo sendo arrastado.
A tampa de uma arca sendo fechada. Um fósforo se inflamando. Um incinerador
sendo aceso.
Inspirei profundamente. O Monstro escutou. Voltou-se para me encarar.
Tropecei e quase caí pela borda da catedral. Agarrei uma das gárgulas.
Instantaneamente, o Monstro levantou-se.
A mão dele agarrou a minha.
Não caí.
Por um instante hesitamos no rebordo da catedral. Vi os olhos dele, com
medo de mim. Ele viu os meus, com medo dele.
Então ele retirou a mão, como se a tivesse queimado com a surpresa.
Recuou rapidamente e permanecemos meio agachados.
Encarei aquele rosto temível, os olhos eternamente aprisionados, em
pânico, sobre a boca que parecia uma ferida, e pensei:
“Por quê? Por que me segurou? Por quê não me empurrou? Foi você
quem usou o martelo, não foi? Quem veio destruir a hedionda cabeça de argila
que Roy esculpiu? Ninguém mais poderia ter sido tão violento! Por que, então,
me salvou? Por que estou vivo?”
Não havia nenhuma resposta. Um ruído se fez ouvir lá embaixo. Alguém
estava subindo a escada.
O Monstro deixou escapar um som sibilante:
— Não!
E fugiu pelo rebordo elevado. Seus pés pisaram sobre tábuas soltas. Uma
nuvem de poeira caiu através da escuridão da catedral.
Mais ruídos provocados por quem subia. Segui em direção ao caminho de
fuga do Monstro, na direção da outra escada. Ele voltou-se para trás ainda uma
vez. Os olhos! O que havia de peculiar sobre eles?
Eram ao mesmo tempo diferentes e iguais, aterradores e resignados, num
momento pareciam focalizados, e, no instante seguinte, confusos. A mão elevou-
se no ar escuro. Por um instante achei que ele iria chamar, gritar, ou dar um berro.
Mas seus lábios deixaram escapar um som rouco e engasgado. Em seguida
escutei os pés dele descendo os degraus e afastando-se do mundo irreal lá de
cima, em direção a um mundo mais irreal ainda abaixo de nós.
Continuei a perseguição. Meus pés deslocaram gesso e poeira, que
escorreram como areia numa enorme ampulheta, depositando-se lá embaixo,
próximo à pia batismal. As tábuas rangiam e oscilavam sob meu peso. Uma
rajada de vento balançou a estrutura de lona ao meu redor, produzindo um rumor
como o ruflar de asas imensas. Quando dei por mim, já estava descendo pela
escada que balançava, cada oscilação provocando um grito de alarme ou uma
imprecação entre os dentes. Meu Deus, eu e ele, aquela coisa na escada, pensei.
Fugindo do quê?
Olhei para o alto, distinguindo as gárgulas ao longe, e percebi que estava
descendo sozinho pela escada, a pensar: “E se ele estiver esperando por mim lá
embaixo?”
Gelei. Olhei para baixo. Minha outra metade, a covarde, bombeou mais
sangue para meus pulsos e joelhos.
Se eu cair, pensei, vai demorar um ano até chegar ao chão. Para essas
ocasiões, eu só conhecia um santo. O nome brotou de meus lábios:
— Crumley!
Segure-se bem, aconselhou Crumley, do fundo da minha cabeça. Respire
fundo seis vezes.
Inspirei, e o ar recusou-se a sair de minha cabeça. Mais calmo, relanceei o
olhar pelas luzes de Los Angeles, distribuídas pelas ruas iluminadas e pelo
trânsito, repletos de pessoas bonitas e cheias de vida, e eu aqui sem ninguém para
me ajudar a descer. E as luzes? Não iriam apagar-se uma a uma?
A distância, nos limites do mundo, pensei divisar uma grande maré negra
movendo-se em direção a um litoral inatingível.
Pegar jacaré, dissera Constance.
Aquilo pareceu injetar-me novas forças. Comecei novamente a descer, de
olhos fechados, sem olhar outra vez para o abismo, até chegar ao solo e
permanecer ali, esperando a qualquer momento ser apanhado e destruído pelo
Monstro, que teria as mãos estendidas para apanhar-me, e não para salvar-me.
Porém não havia nenhum Monstro. Apenas a pia batismal vazia,
abrigando uma boa quantidade de poeira da catedral, as velas apagadas e o
incenso queimado.
Olhei para cima ainda uma vez, admirando o lado traseiro da fechada de
Notre-Dame. Quem quer que estivesse subindo, já teria alcançado o topo.
A meio continente de distância, uma multidão descia a colina do Calvário,
lembrando o final de uma reunião esportiva num sábado à tarde. J.C., pensei, se
não está aí, onde está?
- 41 -
Quem quer que tivesse ido ao Calvário não procurara direito. As pessoas
já haviam partido, e no momento a colina parecia vazia sob a luz das estrelas. O
vento levantava uma nuvem de poeira por ali, em volta das bases da três cruzes,
que davam a impressão de estar naquele local muito antes que o estúdio fosse
construído ao redor delas.
Corri até o pé da cruz maior. Não conseguia enxergar nada lá em cima,
porque a noite estava escura de verdade. Distinguia-se apenas um brilho
ocasional do local onde Herodes Antipas reinava, Fritz Wong esbravejava, e os
romanos marchavam numa grande nuvem de cerveja desde o prédio da
Maquiagem até a praça do Tribunal.
Toquei a cruz, oscilei sobre os pés e chamei, olhando para o alto:
— J.C.! Silêncio.
Tentei novamente, com voz trêmula.
Um tufo de capim passou rolando, conduzido pelo vento, enveredando
por uma rua mais adiante.
— J.C.! — berrei.
Finalmente uma voz se fez ouvir da escuridão acima.
— Não tem ninguém com esse nome nessa rua, nessa colina, e muito
menos no alto dessa cruz — murmurou tristemente a voz.
— Quem quer que esteja aí, pode descer!
Estiquei a mão, tateando para procurar degraus, com medo da escuridão
ao meu redor.
— Como conseguiu subir aí em cima?
— Existe uma escada, e além do mais eu não estou pregado. Só estou
segurando na madeira e apoiado no descanso para os pés. É muito sossegado e
pacífico aqui em cima. Algumas vezes fico até nove horas, para expiar meus
pecados.
— J.C.! — exclamei com o rosto voltado para cima. — Não posso ficar
aqui. Tenho medo!
— Estou tão cheio da sujeira dos pecados da carne que jamais serei capaz
de me livrar de tudo. Não está vendo os pecados caindo como penas daqui de
cima? Além disso, eu me confesso todos os dias. Tenho dez mil mulheres para
descarregar. Forneço as medidas exatas dos traseiros, do seios, das virilhas, e digo
como gemiam, até que o padre fica suando frio no confessionário. Se não posso
mais escalar meias de seda, pelo menos aumento tanto a pulsação dos sacerdotes
que o colarinho deles dá a impressão de que vai arrebentar. De qualquer forma,
estou aqui no alto, fora do caminho do mal. Observando a noite que me observa.
— Também está me vendo, J.C.? Tenho medo do escuro nas ruas que
conduzem para cá, e de Notre-Dame também. Acabei de sair de lá.
— Fique longe daquele lugar — recomendou ele, com súbita veemência.
— Por quê? Andou observando as torres esta noite? Viu alguma coisa?
— Simplesmente não vá até lá, só isso. Não é seguro. Sei disso, pensei.
Olhei ao redor e perguntei:
— O que mais você enxerga daí, de noite ou de dia, J.C.? Ele voltou a
cabeça para as sombras e respondeu em voz baixa:
— O que você acha que haveria para ser visto num estúdio vazio, tarde da
noite?
— Muito!
— É verdade — concordou ele, abrangendo toda a área com um
movimento de cabeça. — Muito espaço vazio!
— Na noite do Dia das Bruxas, será que você não andou avistando uma
escada no alto daquele muro? — insisti, apontando uns cinqüenta metros para o
norte. — E um homem tentando passar para o lado de cá?
J.C. olhou para o muro.
— Estava chovendo naquela noite — afirmou ele, levantando o rosto para
o céu como se fosse sentir uma chuva imaginária. — Quem seria louco suficiente
para subir ali no meio de uma tempestade?
— Você.
— Não, senhor. Não estou aqui nem mesmo agora! — declarou J.C.
Ele estendeu os braços, agarrou as traves da cruz, inclinou a cabeça para a
frente e cerrou os olhos.
— J.C.! Estão esperando por você no Estúdio 7! — insisti, meio
desesperado. — Tenho medo de que o Fritz enlouqueça!
— Deixe que esperem.
— Cristo não se atrasou, que droga! O mundo chamou. E Ele veio.
— Você não acredita mesmo nessa baboseira, acredita?
— Claro que acredito! — Fui surpreendido pela minha própria
veemência, ao gritar a resposta para o alto, das pernas até a cabeça coroada de
espinhos.
— Bobo.
— Não sou, não! — Tentei imaginar o que Fritz diria se estivesse
presente, mas como estava sozinho, acabei dizendo: — Nós chegamos, J.C. Nós,
os pobres e estúpidos seres humanos. Se fomos nós ou Cristo, isso não tem a
mínima importância, é a mesma coisa. O mundo, ou Deus, precisava que
víssemos o mundo e o conhecêssemos. Por isso viemos! Mas logo nos
confundimos e nos esquecemos de como éramos maravilhosos, e não
conseguimos nos perdoar por produzir tanta confusão. Portanto, Cristo veio,
depois de nós, para dizer o que deveríamos saber: perdão. Continuem com seu
trabalho. Isso significa que a vinda de Cristo se confunde com nossa chegada. E
continuamos chegando por dois mil anos, um número cada vez maior de nós, a
maioria com necessidade de perdoar a si mesmos. Eu ficaria imóvel para sempre
se não fosse capaz e perdoar as besteiras que já fiz na vida. No momento você
está aí no alto, odiando a si mesmo, e permanece na cruz porque é uma mula de
teimoso, dramático e sem força de vontade. Agora desça daí antes que eu suba
para morder seus tornozelos sujos!
Houve um som como se um grupo de focas estivesse latindo dentro da
noite. J.C., atirando a cabeça para trás, sorvia o ar para recuperar o fôlego.
— Que belo discurso para um covarde!
— Não tenha medo de mim, moço! Cuidado com você, Jesus Cristo!
Senti uma gota de chuva atingindo minha bochecha.
Mas não era. Toquei a bochecha e provei a ponta do dedo. Sal.
J.C. inclinava-se para baixo.
— Que coisa! Você se importa mesmo. — Ele parecia realmente surpreso
com o fato.
— Pode apostar que sim. E, se eu sair daqui, Fritz Wong vai vir, de
chicotinho em punho.
— Não tenho medo da chegada dele. Só de sua partida.
— Ótimo, então pode descer. Por mim!
— Por você — repetiu ele baixinho.
— Você está aí no alto. O que está enxergando no Estúdio 7?
— Parece uma fogueira. É, sim.
— Aquilo é o braseiro, J.C. — Estendi a mão para tocar a base da cruz,
continuando a falar com suavidade para o vulto lá no alto. — Quando a noite
estiver acabando, e o barco chegando à margem depois do milagre dos peixes,
Simão Pedro vai caminhar pela areia com Tomás, Marcos, Lucas e todos os
outros para o braseiro de peixes assando. É a...
— Ceia depois da Última Ceia — completou J.C. do alto da cruz,
recortado contra as constelações de outono. Eu conseguia distinguir Órion por
sobre o ombro dele. — Você escreveu?
Ele agitou-se. Aproveitei para continuar baixinho.
— E digo mais! Tenho agora um final, para você, que nunca foi feito
antes. A Ascensão.
— Não pode ser feito — resmungou J.C.
— Escute só: Quando chega a hora da partida, Cristo toca cada um de
seus apóstolos e caminha ao longo da praia, afastando-se da câmera. A câmera
estará bem baixa, perto da areia, e vai dar a impressão de que Cristo está subindo
uma longa colina de encostas suaves. Ao nascer do sol, enquanto Cristo se move
em direção ao horizonte, a areia dá a ilusão de queimar. Como as estradas nos
desertos, quando o ar fica tremulando com as miragens, e as cidades imaginárias
se levantam e somem. Pois quando Cristo tiver quase atingido o alto da duna de
areia, o ar começa a vibrar de calor. A silhueta dele se dissolve em átomos. E
Cristo se vai. As pegadas que ele deixou na areia são desmanchadas pelo vento.
É a segunda Ascensão, logo depois da Ceia depois da Última Ceia. Os discípulos
choram e se movem para todas as cidades do mundo, para orar e perdoar os
pecados. E, enquanto começa o novo dia, as pegadas deles são varridas pelo
vento. FIM.
Aguardei, escutando as batidas de meu próprio coração. J.C. também
ficou imóvel durante algum tempo, depois declarou com suavidade:
— Estou descendo.
- 42 -
Havia um vasto halo de luminosidade vindo do cenário externo, onde os
figurantes, o braseiro com os peixes e Fritz, o Louco, esperavam.
Uma mulher estava no início da rua à medida que eu e J.C. nos
aproximávamos. O corpo era uma silhueta escura delineada pelos holofotes mais
adiante.
Avistando-nos, ela correu em nossa direção e estacou ao deparar-se com
J.C.
— Que coisa! — exclamou ele. — É Rattigan!
Os olhos de Constance iam da figura dele para a minha, depois
retornavam, desconcertados.
— O que faço agora? — perguntou ela.
— O que...
— Foi uma noite maluca. Chorei uma hora atrás por causa daquela foto
patética, e agora... — Os olhos dela fixaram-se em J.C. — Sempre quis encontrar
você, a vida inteira. E agora você está aqui. — O peso de tais palavras fez com
que ela caísse de joelhos. — Me abençoe, Jesus.
J.C. recuou como se estivesse diante de uma legião de mortos.
— Levante-se, mulher!
— Me abençoe, Jesus — murmurou ela novamente, quase para si mesma.
— Oh, Senhor, é como se eu tivesse sete anos outra vez, com meu vestido branco
de primeira comunhão. É domingo de Páscoa, e o mundo ainda é bom, antes de
tornar-se mau.
— Levante-se, mulher! — pediu ele, com voz mais suave. Porém, ela não
se moveu. Em vez disso cerrou os olhos, esperando. Os lábios formulavam o
pedido sem emitir som: me abençoe. Finalmente J.C. estendeu lentamente a mão,
forçado a aceitar, fazendo-o com delicadeza, e colocando a palma no alto da
cabeça dela. A suave pressão fez com que mais lágrimas escorressem pelo rosto
dela, e a boca tremesse. As mãos de Constance pousaram sobre a dele,
prolongando o toque por um instante mais.
— Criança, eu a abençôo — disse J.C., com suavidade.
E, vendo Constance Rattigan ajoelhada ali, pensei nas ironias deste
mundo perdido. Senso católico de culpa mais a dramaticidade do ator.
Constance levantou-se e, ainda com os olhos semicerrados, voltou-se e
caminhou na direção da esteira de brasas brilhantes que a aguardava.
Não podíamos fazer nada além de segui-la.
Uma multidão estava reunida. Todos os figurantes que haviam aparecido
em cenas filmadas mais cedo naquela noite, mais os executivos do estúdio, além
de simples curiosos. Ao nos aproximarmos, Constance moveu-se para o lado com
a graça de quem acabara de perder quarenta quilos. Imaginei quanto tempo ela
poderia permanecer como uma garotinha.
Ao atingirmos as luzes, divisei do outro lado do braseiro, Manny Leiber,
Doc Phillips, e Groc. Os olhares deles me fixavam tão intensamente que fiquei
para trás, temeroso de assumir o crédito por encontrar o Messias, salvando o
Salvador, e diminuir os custos daquela noite.
Os olhos de Manny estavam cheios de desconfiança, os de Doc
destilavam veneno, e os de Groc recendiam bons fluidos alcoólicos. Talvez eles
tivessem vindo para ver Cristo e eu assando no braseiro. De qualquer forma,
enquanto J.C. movia-se decidido para a luz, Fritz recobrava-se de seu mais
recente ataque, piscando com ar de míope na direção do ator.
— Já era tempo! Estávamos quase desmontando o churrasco. Monóculo!
Ninguém se moveu. Alguns olharam ao redor.
— Monóculo! — repetiu Fritz.
Só então me dei conta de que ele desejava a lente que tão
cerimoniosamente me entregara, horas atrás.
Avancei, coloquei o monóculo na palma da mão estendida e recuei
enquanto ele enfiava a lente no olho como se enfiasse uma bala no carregador.
Encarou J.C. e expeliu todo o ar dos pulmões.
— Chama a isso de Cristo! Parece mais Matusalém. Vá passar na pele um
pó tom número trinta e três e acertar a linha do maxilar. Que droga! Já é hora do
intervalo da meia-noite. Mais demoras, sempre mais demoras... Com ousa chegar
aqui atrasado desse jeito? Quem está pensando que é?
— Cristo — respondeu J.C., com o tom adequado de modéstia. — E não
se esqueça disso.
— Levem esse sujeito daqui! Maquiagem! Intervalo para jantar! Todos de
volta aqui em uma hora! — berrou Fritz, colocando seu monóculo, em minha
medalha, em minhas mãos. Permaneceu a observar o braseiro, como se
pretendesse pular lá dentro.
Enquanto essa cena se desenrolava, a alcatéia permanecia do outro lado
do braseiro, Manny contando os dólares perdidos, como se as notas caíssem aos
maços no braseiro, o bom Doc cocava seu bisturi com a mão enfiada no bolso, e
Groc sorria seu sorriso permanente de Conrad Veidt, que parecia esculpido sobre
o queixo, em sua pele de melão. No momento, todos esses olhares se deslocavam
para J.C., de forma terrível e condenadora.
Era como um pelotão de fuzilamento disparando sem cessar.
J.C. cambaleou como se tivesse sido atingido.
Os auxiliares de Groc estavam a ponto de levar J.C. dali, quando...
A coisa aconteceu.
Ouviu-se um silvo agudo, como se uma única gota de chuva tivesse caído
sobre os carvões.
Todos olhamos para baixo e depois para cima...
Para J.C., cujas mãos estavam estendidas sobre as brasas. Ele observava
com grande curiosidade os próprios pulsos.
Estavam sangrando.
— Meu Deus! Façam alguma coisa! — gritou Constance.
— O quê? — perguntou Fritz.
— Filmem a cena — sugeriu J.C., calmamente.
— Não, que diabo! — disse Fritz. — João Batista, sem a cabeça, tinha
uma aparência melhor do que a sua.
— Nesse caso... — J.C. olhou para onde estavam Stanislau Groc e Doc
Phillips, parecendo o alegre elfo Punch e o tenebroso Apocalipse. — Nesse caso,
deixem que eles me costurem até a hora de filmar a próxima cena.
— Como você é capaz de fazer uma coisa dessas? — indagou Constance,
olhando para os pulsos dele.
— Vem junto com o texto — respondeu ele, voltando-se a seguir para
mim: — Vá fazer algo de útil.
— E leve essa mulher com você — pediu Fritz. — Não a conheço!
— Conhece, sim — protestou Constance. — Laguna Beach, 4 de julho
de 1926.
— Isso foi em outro país, numa outra época. — Fritz deu a impressão de
fechar uma porta invisível.
— É verdade — admitiu ela, como um bolo que murchasse. — Foi
mesmo.
Doc Phillips chegou ao lado do pulso esquerdo de J.C. Groc alcançou o
direito.
J.C. nem se deu ao trabalho de olhar para eles; seus olhos estavam fixos
no céu.
A seguir estendeu os braços de forma a mostrar para todos seus estigmas
recentes.
— Cuidado — recomendou ele.
Saí de perto da luz. Uma garotinha me seguiu, tornando-se mulher no
caminho.
- 43 -
— Para onde estamos indo agora? — quis saber Constance.
— Eu? Pretendo voltar no tempo. E sei que quem lida com a Moviola
pode fazer isso acontecer. Quanto a você? Vai ficar aqui, tomando café e
comendo sonhos. Fique sentadinha. Volto daqui a pouco.
— Se eu não estiver aqui — disse Constance, sentando numa das mesas
externas dos figurantes, já com uma rosquinha na mão —, pode me procurar no
ginásio masculino.
Continuei sozinho, no escuro. Eu estava ficando sem lugares para ir, para
procurar. No momento, eu me dirigia para o único lugar na propriedade onde
nunca estivera. Lá, podia encontrar dias passados, ou o fantasma escondido de
Arbuthnot, ou eu mesmo, ainda menino, vagando em frente ao estúdio ao meio-
dia.
Caminhei.
Subitamente, desejei não ter deixado para trás o que restara da risada de
Constance Rattigan.
Tarde da noite, um estúdio cinematográfico fala consigo mesmo. Nas
salas de montagem dos andares superiores, ouvem-se zunidos, catracas, sons
ásperos e conversa nos intervalos até as duas ou três da manhã, e, quando se
caminha pelas ruas escuras, pode-se escutar as bigas correndo pelo ar, ou o
murmurar das areias no deserto assombrado de Beau Geste, ou o tráfego confuso
de Champs Elysées com suas buzinas e imprecações em francês, ou as cataratas
do Niágara derramando-se das caixas do estúdio diretamente nos reservatórios, ou
a última corrida de Barney Oldfield, disparando sua metralhadora ao som dos
gritos das multidões sem rosto em Indianápolis. Um pouco adiante, caminhando
na escuridão, alguém solta os cães de guerra e podem-se escutar os ferimentos de
César a surgir como botões de rosa em sua toga, ou Churchill atiçando as
esquadrilhas, enquanto o Sabujo uiva pelas charnecas; o pessoal da noite trabalha
nessas horas de pouca luz porque prefere a companhia das Moviolas, das telas
bruxuleantes de vidro despolido e dos close-ups às pessoas desamparadas sob o
sol do meio-dia, aparvalhadas pela realidade do lado de fora dos muros. É como
uma colisão de vozes enterradas e músicas perdidas, muito depois da meia-noite,
aprisionada numa nuvem do tempo entre os prédios, transitando pelas portas e
janelas abertas lá no alto, enquanto as sombras dos montadores se inclinam sobre
esses encantamentos nos sótãos imersos na penumbra. Só ao amanhecer as vozes
e a música cessam, enquanto os sorridentes cortadores voltam para casa tentando
evitar o trânsito dos que vivem no mundo real, e chegam para trabalhar às seis
horas da manhã. Somente às cinco da tarde as vozes e músicas novamente se
elevam, suaves ou tumultuadas, ao refletir do brilho suave da Moviola nos olhos
dos que a observam, sempre com lâminas prontas entre os dedos levantados.
Era numa rua entre esses prédios, perseguido pelos sons e músicas que
vinham do alto, que eu agora corria, com Hitler esbravejando num prédio à
direita, e soldados russos lançando a voz ao vento leste, alto e suave.
Parei e olhei para cima, em direção...
À sala de Maggie Botwin. A porta estava aberta.
— Maggie! — gritei.
Silêncio.
Subi as escadas em direção ao cintilar de luz e ao matraquear da Moviola
que acompanhavam o piscar das sombras no teto alto.
Fiquei por um longo momento ali na noite, admirando o único lugar do
mundo em que a vida era cortada, organizada, depois separada novamente. Onde
se continuava a refazer a vida até que se conseguisse a proporção correta.
Encarava-se a pequena tela da Moviola, como se fosse um motor de popa que
acelerasse com um clique para cada perfuração do filme, parando e prosseguindo
a nosso bel-prazer. Depois de observar a Moviola durante meio dia naquela
penumbra subterrânea, quase se chegava a acreditar que quando saíssemos a vida
real poderia ser montada da mesma forma, retirando as inconsistências debilóides,
com a promessa de que todos se comportassem melhor dali para a frente. Operar
a Moviola por algumas horas encoraja o otimismo, pois se podem rever as
besteiras cometidas, e podá-las. Contudo, depois de algum tempo, aparece a
tentação de não voltar mais à luz do dia.
Naquele momento, à porta de Maggie Botwin, com a noite às minhas
costas e a grota acolhedora à frente, eu observava aquela mulher extraordinária
curvada sobre o aparelho como uma costureira que remendasse padrões de luzes
e sombras, enquanto o filme passava por seus dedos finos.
Arranhei a porta de tela com os dedos.
Maggie levantou os olhos de seu brilhante poço dos desejos, franzindo o
cenho para poder enxergar através da tela, depois deu um grito alegre.
— Puxa vida! Essa é a primeira vez em quarenta anos que um roteirista
põe os pés aqui. Seria de imaginar que os bobalhões se sentiriam curiosos sobre
como eu aparo seus cabelos, ou encurto as costuras internas. Espere um pouco!
Ela abriu a porta e me fez entrar. Como um sonâmbulo, caminhei até a
Moviola e a examinei, piscando. Maggie me testou:
— Lembra-se dele?
— Erich Von Stroheim — respondi, surpreso. — Esse filme foi feito aqui,
em 1921. Foi perdido.
— Pois eu o encontrei!
— O estúdio sabe disso?
— Aqueles filhos da mãe? Não! Nunca deram valor ao que tinham!
— Tem o filme inteiro?
— Tenho! O Museu de Arte Moderna vai ficar com tudo, assim que eu
morrer. Dê uma olhada!
Maggie tocou um conjunto de lentes fixo à Moviola, que projetava as
imagens na parede. Von Stroheim caminhava com andar ereto e garboso ao longo
de Wainscot.
Maggie retirou Von Stroheim e preparou-se para colocar outro carretel.
Enquanto ela se movia, inclinei-me subitamente para a frente. Observei
uma pequena embalagem verde de filme, diferente das outras, no canto da
bancada, ao lado de duas dúzias de outras latas.
Não havia rótulo, simplesmente um desenho a tinta na tampa,
representando um dinossauro bem pequeno.
Maggie percebeu meu olhar.
— O que foi?
— Há quanto tempo você tem esse filme?
— Você o quer? Esse foi o teste que seu amigo Roy deixou aqui três dias
atrás para revelar.
— Chegou a dar uma olhada nele?
— Você não? O estúdio fez uma besteira ao despedi-lo. Qual era mesmo
o pretexto? Ninguém disse. Só tem trinta segundos de filme nesse rolo, mas foram
os melhores trinta segundos que já vi. Melhor que Drácula ou Frankenstein.
Puxa, o que eu entendo dessas coisas?
Minha pulsação se acelerou ao apanhar o filme e colocá-lo no bolso.
— Muito simpático, o Roy — comentou Maggie, colocando outro carretel
em sua Moviola. — Se me dessem uma escova, eu era capaz de polir os sapatos
dele. Agora mesmo.
— Quer ver a única cópia existente de Lírio Partido? As cenas que faltam
em O Circo? O rolo censurado de Perigo Bem-vindo, de Harold Lloyd? Puxa,
tem um bocado de coisas aqui. Eu podia...
Maggie parou, como se estivesse embriagada com seus filmes do passado
e com a atenção que eu lhe dedicava.
— É, acho que posso confiar em você. — Ela fez uma pausa. — Lá vou
eu de novo, falando sem parar. Você certamente não veio aqui para ver uma
velha galinha botar ovos de quarenta anos de idade. O que houve? O que tornou
você o único roteirista a subir essa escada?
Arbuthnot, Clarence e o Monstro, pensei. Só que não podia dizer isso.
— O gato comeu sua língua? Não faz mal, eu espero. Onde é que eu
estava? Ah, sim!
Maggie Botwin abriu uma grande porta de correr. Havia no interior do
arquivo pelo menos quarenta embalagens de filmes acondicionadas em cinco
prateleiras, ostentando os títulos nas laterais.
Ela depositou uma delas em minhas mãos. Examinei as letras grandes na
borda: Juventude Louca.
— Não. Dê uma olhada nas letras pequenas impressas na parte de trás —
instruiu ela.
— Intolerância!
— Na minha própria versão sem cortes — esclareceu Maggie, rindo. —
Eu ajudei Griffith. Um bocado de material ótimo foi cortado. Sozinha, eu incluí o
que estava faltando. Essa é a única versão completa de intolerância que existe! E
veja só isso aqui!
Rindo como uma menininha numa festa de aniversário, ela apanhou
Órfãos da Tempestade e Londres Depois da Meia-Noite.
— Trabalhei nesses filmes, ou fui chamada para remontá-los. De
madrugada, fiz cópias para mim! Está pronto? Aqui estão.
Ela colocou uma lata com a etiqueta Ouro e Maldição em minhas mãos.
— Nem mesmo Von Stroheim tem essa versão de vinte e quatro horas!
— Por que os outros montadores não pensam em fazer a mesma coisa?
— Porque eles são galinhas, e eu sou um cuco — explicou Maggie
Botwin. — No ano que vem, vou embarcar estes para o museu, com uma carta de
doação. Os estúdios vão entrar com uma ação, mas os filmes estarão a salvo
daqui a quarenta anos.
Sentei na penumbra e assombrei-me com cada carretel que examinava.
— Meu Deus! — exclamava eu, sem cessar. — Como é que conseguiu
enganar todos esses filhos da mãe?
— Foi fácil — declarou Maggie, com a franqueza de um general
examinando seus soldados. — Eles foderam os diretores, redatores, todo o
mundo. Mas precisavam de uma pessoa para fazer a limpeza depois de rejeitar
material de primeira. Assim, nunca colocaram um dedo em mim enquanto
pisavam nos sonhos de todo o mundo. Achavam que o amor era suficiente. E, por
Deus, como fizeram amor. Mayer, os Warner, Goldfish Goldwyn comiam e
dormiam cinema. Mas não foi o bastante. Eu discuti com eles, briguei, arrazoei,
bati portas. Eles corriam atrás, sabendo que eu amava mais do que eles podiam.
Perdi tantas batalhas quantas ganhei, então resolvi ganhar todas. Uma por uma,
salvei as cenas cortadas. Não tudo. A maioria dos filmes ganharia prêmios
entregues por marcas de sabão em pó. Mas, cinco ou seis vezes por ano, um
roteirista escrevia de verdade, ou um Lubitsch adicionava seu toque de gênio, e
esses eu escondia. Portanto, ao longo dos anos, eu...
— Salvou obras-primas! Maggie riu.
— Sem exagero! São só filmes decentes, alguns engraçados, alguns
sentimentais. E todos estão aqui hoje. Você está cercado por eles.
Deixei que aquelas presenças me invadissem, senti aqueles “fantasmas” e
respirei fundo.
— Ligue a Moviola — disse eu. — Nunca mais vou querer voltar para
casa.
— Certo — concordou Maggie, abrindo mais portas. — Está com fome?
Pois pode comer!
Olhei e li:
A Marcha do Tempo, 21 de junho, 1933. A Marcha do Tempo, 20 de
junho, 1930. A Marcha do Tempo, 4 de julho, 1930.
— Não — disse eu.
Maggie interrompeu seu gesto.
— Não existia A Marcha do Tempo em 1930 — afirmei.
— Muito bem! O rapaz é um perito!
— Não são carretéis de A Marcha do Tempo. É um disfarce. Para quê?
— Meus próprios filmes caseiros, que fiz com minha câmera de oito
milímetros e escondi sob esses títulos.
Tentei não reagir depressa demais.
— Isso quer dizer que você filmou toda a história do estúdio?
— Em 1927, 1928, 1930, é só escolher o ano! Tenho Scott Fitzgerald
bêbado na cantina, George Bernard Shaw no dia em que requisitou toda a área,
Lon Chaney na maquiagem, reconstruindo o dia que mostrou aos irmãos
Westmore como ele mudava de rosto! Morreu um mês depois disso. Um homem
incrivelmente caloroso. William Faulkner, um escritor bêbado, mas muito
educado, coitado... Velhos filmes, velhas histórias. É só escolher!
Meus olhos procuraram entre as datas e pararam. Escutei o ar sendo
expulso de minhas narinas.
Quinze de outubro de 1934. Duas semanas antes da morte de Arbuthnot,
o presidente do estúdio.
— Aquele.
Maggie hesitou, retirou o carretel, colocou o filme na Moviola e acionou o
aparelho.
Estávamos olhando para a entrada principal da Companhia
Cinematográfica Maximus, numa tarde de outubro de 1934. As portas estavam
fechadas, mas era possível distinguir-se vultos através do vidro. Então as portas se
abriram e duas ou três pessoas saíram. No meio estava um homem alto e
corpulento, rindo com os olhos fechados, a cabeça voltada para o céu e os
ombros sacudindo-se com a gargalhada. Os olhos eram apenas frestas, tão feliz
parecia o homem. Sorveu uma golfada de ar, uma das últimas de sua vida.
— Conhece esse homem? — indagou Maggie. Olhei para aquela tela
meio brilhante, meio escura.
— Arbuthnot.
Toquei o vidro despolido como quem tocasse uma bola de cristal que não
captasse o futuro, mas somente os traços desbotados do passado.
— Arbuthnot. Morto no mesmo mês em que você fez esse filme.
Maggie voltou um pouco o filme, e a ação recomeçou. Os três homens
saíram novamente, rindo, e Arbuthnot sorriu para a câmera naquela tarde distante
e surpreendentemente feliz.
Maggie percebeu algo em minha expressão.
— Bem... Desembuche.
— Eu o vi esta semana — declarei.
— Balela! Andou fumando aqueles cigarros esquisitos?
Maggie avançou três fotogramas. Arbuthnot levantou mais alto a cabeça
contra um céu encoberto. Agora ele acenava para alguém fora da imagem.
Arrisquei:
— No cemitério, na noite do Dia das Bruxas, havia um espantalho feito
de armação de arame, com uma máscara de papel machê com o rosto dele.
Agora o Duesenberg de Arbuthnot estacionava no meio-fio. Ele apertou
as mãos de Manny e Groc, prometendo-lhes anos melhores. Maggie não olhava
para mim, mas apenas para as imagens claro-escuras abaixo.
— Não acredite em nada na noite do Dia das Bruxas.
— Outras pessoas também viram. Alguns correram assustados. Manny e
alguns outros têm andado como se estivessem num campo minado desde esse dia.
— Balelas outra vez! — resmungou Maggie. — Que outras novidades
você tem? Deve ter reparado que eu fico na Sala de Projeção ou aqui, onde o ar é
tão rarefeito que eles têm medo de sangrar pelo nariz se subirem. É por isso que
eu gosto do maluco do Fritz. Ele filma até a meia-noite, eu monto até o dia raiar.
Depois nós dois hibernamos. Quando o longo inverno termina, às cinco horas,
levantamos, regulalados com o pôr-do-sol. Uma vez por semana, como você
também deve ter reparado, fazemos nossa peregrinação até o refeitório para
provar a Manny Leiber que ainda estamos vivos.
— Ele dirige mesmo o estúdio?
— Quem mais faria isso?
— Não sei. É que eu tenho uma sensação estranha cada vez que entro no
escritório dele. A escrivaninha está sempre limpa. Só fica ali um enorme telefone
branco, bem no meio da mesa, e uma cadeira que tem duas vezes o tamanho do
traseiro de Manny Leiber. Ele parece Charlie McCarthy sentado nela.
— Ele parece mesmo um sujeito contratado, não é? Acho que é o
telefone. Todos imaginam que os filmes são feitos em Hollywood. Mas, não. As
teias atravessam o país para apanhar moscas aqui. As aranhas nunca vêm para a
Costa Oeste. Tem medo de que a gente descubra que são pigmeus, do tamanho
de Adolph Zukor.
— O problema é que eu estava no pé de uma escada, embaixo de chuva,
no cemitério, com aquele espantalho, manequim, ou seja lá o que for — insisti.
A mão de Maggie Botwin hesitou na manivela. Arbuthnot acenou
rapidamente para o outro lado da rua. A câmera fez uma panorâmica para captar
criaturas de um outro mundo, a multidão desigual de caçadores de autógrafos. As
lentes aproximaram os rostos.
— Espere um pouco! Ali, ali!
Maggie avançou mais dois fotogramas para aproximar a imagem de um
menino de patins, de aproximadamente treze anos.
— Não é possível!
— É, sim — disse eu baixinho, tocando a imagem com uma afeição
estranhamente delicada.
— Não pode ser você!
— O bom, caseiro e inocente eu.
Maggie Botwin deixou que seus olhos repousassem em mim por um
instante, retornando em seguida a vinte anos atrás, até uma tarde de outubro em
que ameaçava chover.
Lá estava o palhaço dos palhaços, o louco dos loucos, o lunático dos
lunáticos, sempre desequilibrado em seus patins, condenado a cair em qualquer
tipo de obstáculo, inclusive mulheres que caminhavam pelas calçadas.
Ela voltou a película. Novamente Arbuthnot acenava para mim, ainda
fora da tela, naquele outono perdido.
— Arbuthnot e você... — disse ela, baixinho. — Quase juntos?
— O homem na escada embaixo de chuva? Sim, senhora. Maggie
suspirou e acionou a Moviola. Arbuthnot entrou em seu carro e partiu em direção
a um desastre, ainda alguns dias à frente.
Observei o carro saindo, da mesma forma que eu mesmo, mais jovem na
tela, devia ter observado.
— Repita — pediu Maggie Botwin, com voz controlada. — Não havia
nenhuma escada, nem chuva, e você nunca esteve lá.
— Nunca estive lá... — murmurei.
— Repita!
— Nunca estive lá.
Os olhos de Maggie estreitaram-se.
— Quem é aquela figura engraçada perto de você, com o sobretudo
grande demais, o álbum enorme e os cabelos desgrenhados?
— É Clarence — disse eu, acrescentando: — Imagino se neste
momento... ele estará vivo... Clarence.
Nesse instante tocou o telefone.
Era Fritz, nos estágios terminais da histeria.
— Venha já para cá. Os estigmas de J.C. ainda estão abertos. Precisamos
terminar a filmagem antes que ele sangre até morrer!
Fomos até o local da filmagem.
J.C. estava esperando à beira do grande braseiro. Quando me viu, fechou
os belos olhos, sorriu e mostrou-me os pulsos.
— Esse sangue parece quase real! — exclamou Maggie.
— Acho que quase podemos colocar assim — comentei.
Groc levara a sério seu trabalho de maquiar o rosto do Messias. J.C.
parecia trinta anos mais jovem quando Groc aplicou uma quantidade de pó facial
nas sobrancelhas cerradas e recuou para observar triunfalmente sua obra-prima.
Olhei para o rosto de J.C., de aparência serena ao lado da iluminação
difusa e quente das brasas, enquanto um líquido espesso escorria dos pulsos para
as palmas de suas mãos. Loucura!, pensei. Ele vai morrer durante a cena!
Mas para manter o filme dentro do orçamento? Por que não? A multidão
reunia-se novamente, e Doc Phillips adiantou-se para verificar a hemorragia
divina, acenando a seguir sua aprovação para Manny. Havia vida ainda nesses
membros sagrados, permanecia alguma seiva: Avante!
— Estão prontos? — gritou Fritz.
Groc recuou no vento quente do braseiro, assumindo seu lugar entre duas
vestais figurantes. Doc permaneceu como um lobo apoiado em suas patas
traseiras, a língua entre os dentes, os olhos movendo-se de um lado para outro.
Doc?, pensei. Ou Groc? Serão eles os verdadeiros comandantes do
estúdio? Será que são eles a sentar na cadeira de Manny?
Manny olhava como que mesmerizado para o fogo, talvez pensando em
andar sobre as brasas, e assim provar que era o Rei.
J.C.?
Ele era um solitário em nosso meio, distante dos outros e voltado para si
mesmo, com o rosto tão adoravelmente pálido que me apertava o coração. Seus
lábios finos moviam-se, decorando as belas palavras que João me emprestara para
oferecer-lhe a orar naquela noite.
Pouco antes de falar, J.C. levantou o olhar por sobre as cidades no mundo
do estúdio, na direção do cimo das torres de Notre-Dame. Segui o olhar dele,
depois relanceei rapidamente os olhos:
Groc parecia petrificado, os olhos postos na catedral. Doc Phillips, a
mesma coisa. E Manny entre eles, variando a atenção de um para outro, depois
para J.C., e finalmente para onde alguns de nós olhávamos, entre as gárgulas...
Onde nada se movia.
Ou teria J.C. visto algum sinal secreto?
J.C. avistara alguma coisa. Os outros haviam reparado. Vi apenas luzes e
sombras na fachada imitando mármore.
Estaria o Monstro ainda por lá? Conseguiria enxergar o braseiro?
Escutaria as palavras de Cristo e seria comovido a ponto de avançar, falar sobre
os acontecimentos da última semana, acalmando nossos corações?
— Silêncio! — berrou Fritz. Silêncio se fez.
— Ação — murmurou Fritz.
E finalmente, às cinco e meia da manhã, nos minutos que antecediam o
amanhecer, filmamos a Ceia depois da Última Ceia.
- 44 -
As brasas foram abanadas, os peixes colocados a assar, e enquanto as
primeiras luzes levantavam-se do Oriente sobre Los Angeles, J.C. abriu
lentamente os olhos, que brilharam com expressão de tanta compaixão que
paralisaria seus adoradores e traidores, e começou a caminhar ao longo de um
litoral que seria filmado, alguns dias depois, em outro local da Califórnia; o sol
levantou-se, a cena foi filmada sem falhas, e não ficou um só olho enxuto no
cenário da filmagem; o silêncio dominou o longo instante no qual J.C. finalmente
voltou-se, e com lágrimas nos olhos, gritou:
— Será que ninguém vai gritar “corta!”?
— Corta — disse Fritz Wong, baixinho.
— Você acabou de fazer um inimigo — comentou Maggie Botwin, a
meu lado.
Olhei através do cenário. Manny Leiber me encarava. Depois voltou-se e
afastou-se.
— Tenha cuidado — avisou Maggie. — Cometeu três erros em quarenta
e oito horas. Contratou novamente Judas. Resolveu o final do filme. Encontrou
J.C. e trouxe-o de volta para o estúdio. Imperdoável!
— Meu Deus — suspirei.
J.C. caminhou pela multidão de figurantes, sem esperar elogios. Alcancei-
o.
Onde vai?, perguntei em silêncio.
Descansar um pouco, respondeu ele, tão silenciosamente quanto eu.
Olhei para os pulsos dele. A hemorragia estancara.
Quando alcançamos o cruzamento de duas ruas internas, J.C. tomou
minhas mãos e olhou para algum lugar do estúdio.
— Criança...? — O quê?
— Aquele assunto sobre o qual falamos? A chuva? E o homem na
escada?
— O que tem?
— Eu o vi — declarou J.C.
— Você o viu! Meu Deus, J.C.! Como ele é? O que...
— Psiu... — pediu ele, levando o indicador aos lábios serenos. E voltou
ao Calvário.
Constance me levou para casa pouco depois do nascer do sol. Não havia
nenhum carro estranho com espiões de tocaia em minha rua. Constance fez uma
cena teatral na despedida, à frente da minha casa.
— Constance! Os vizinhos!
— Vizinhos uma ova! — Ela me deu um beijo tão escandaloso que meu
relógio parou. — Aposto que a sua mulher não é capaz de beijar desse jeito!
— Eu estaria morto há seis meses!
— Segure-se onde der, enquanto eu fecho a porta!
Foi o que fiz. Ela bateu a porta e partiu. Quase instantaneamente a solidão
se abateu sobre mim. Era como se o Natal tivesse sumido para sempre.
Na minha cama, pensei: Maldito seja, J.C.! Por que não contou mais?
Depois: Clarence! Espere por mim! Vou até aí!
Tentar uma última vez!
- 45 -
Ao meio-dia eu fui para a Avenida Bronson.
Clarence não tinha esperado.
Percebi isso quando abri uma fresta da porta da casinha dele. Montes de
papel rasgado, livros esmagados e fotografias amassadas estavam contra a porta;
o cenário geral com a mesma aparência do massacre no Estúdio 13, quando os
dinossauros de Roy foram destroçados.
— Clarence?
Abri mais a porta.
Era o pesadelo de um geólogo.
Havia uma camada de uns trinta centímetros de cartas, bilhetes assinados
por Robert Taylor, Bessie Love e Ann Harding, remontando a 1935 ou mesmo
anteriores. Essa era apenas a camada mais externa
Abaixo, como um cobertor brilhante, encontravam-se milhares de
fotografias que Clarence tirara de Al Jolson, John Garfield, Lowell Sherman e
Madame Schumann-Heink. Dez mil rostos olhavam para mim. A maioria deles,
mortos. Agora haviam sido enterrados.
Clarence.
Embaixo das primeiras camadas havia livretos de autógrafos, histórias de
filmes e pôsteres de mais de uma centena de estrelas, começando com Bronco
Billy Anderson e Charlie Chaplin, e continuando até a época em que o buquê de
flores conhecido como as irmãs Gish passou pelas telas, levando às lágrimas os
corações dos imigrantes. Finalmente, embaixo de King Kong, O Mundo Perdido,
Ri, Palhaço, Ri e, sob todos os reis das aranhas, bailarinos acrobáticos e cidades
perdidas, avistei:
Um sapato.
O sapato continha um pé. O pé, torcido, pertencia a um tornozelo. O
tornozelo a uma perna. E assim por diante, até chegar a um rosto com expressão
de histeria total. Clarence, dobrado e soterrado entre uma centena de caligrafias
diferentes, afogado sob ondas de antigas propagandas e ilustrações apaixonadas
que o teriam sufocado e esmagado, se ele já não estivesse morto.
Pela aparência, ele poderia ter morrido de ataque cardíaco, pelo simples
reconhecimento da morte. Seus olhos estavam saltados como se atingidos pelo
espocar de um flash, e a boca congelada num esgar: O que estão fazendo com
minha garganta, com meu coração? Quem são vocês?
Eu lera em algum lugar que, ao morrer, a retina da vítima fotografava a
imagem de seu assassino. Se a retina pudesse ser retirada e revelada como um
filme, o rosto do matador apareceria da escuridão.
Os olhos arregalados de Clarence pediam para que isso acontecesse. O
rosto de seu algoz estampava-se neles.
Fiquei ali, em meio à profusão de lixo, observando. Aquilo era demais!
Cada arquivo fora derrubado, centenas de fotografias amassadas, os pôsteres
todos arrancados das paredes, e as estantes pareciam ter explodido. Os bolsos de
Clarence estavam todos puxados para fora. Nenhum assaltante seria tão vândalo
àquele ponto.
Clarence tinha medo de morrer no trânsito e aguardava nos semáforos até
que todos os carros passassem, para só então atravessar em segurança com seus
amigos, os álbuns repletos de rostos bonitos.
Clarence.
Realizei uma volta completa, olhando em todas as direções, esperando
ardentemente encontrar qualquer coisa que servisse de pista para Crumley.
As gavetas da escrivaninha de Clarence haviam sido arrancadas, e o
conteúdo espalhado.
Poucas fotografias permaneciam nas paredes. Meu olhar fixou-se numa
delas.
Jesus Cristo no cenário do Calvário.
Estava assinada: “Para Clarence, PAZ, do primeiro e único J.C.”
Retirei a foto da moldura e enfiei-a no bolso.
Voltei-me para correr, quando avistei mais uma coisa. Apanhei-a.
Uma caixa de fósforos do Brown Derby.
Mais alguma coisa?
Eu, disse Clarence, gelado. Socorro.
Oh, Clarence, pensei, se eu pudesse...
Meu coração dava saltos. Com medo que alguém pudesse ouvir, empurrei
a porta.
Saí correndo dali.
Não faça isso! Pare!
Se alguém reparar em você correndo, quer dizer que foi você! Ande
devagar, com calma. Pense! Tentei, mas apenas serviu para suar frio e trazer
velhas lembranças.
Uma explosão. Mil novecentos e vinte e nove.
Próximo a minha casa, um homem saiu de seu carro destruído, gritando:
— Não quero morrer!
Eu estava na varanda, com minha tia, enfiando a cabeça no colo dela para
não ver nem ouvir.
Ou quando eu tinha quinze anos. Um carro espatifou-se contra um poste
telefônico, e as pessoas foram atiradas contra muros e hidrantes, num verdadeiro
quebra-cabeça de corpos mutilados e pedaços de carne não identificáveis.
Ou... ou...
Subitamente fui invadido por livros, fotografias e cartões assinados.
Ou...
Os restos de um carro queimado, com uma figura carbonizada sentada
grotescamente ereta à direção, imobilizada numa máscara calcinada, as mãos em
garra derretidas, e confundindo-se com o volante
Ou...
Meus olhos lacrimejavam com tanta intensidade que as lentes dos óculos
ficaram cobertas de gotículas salgadas.
Dei de encontro a uma parede e cambaleei por uma rua deserta,
agradecendo a Deus por estar vazia, até que encontrei o que me pareceu ser uma
cabine telefônica, e levei cerca de dois minutos procurando nos bolsos por uma
moeda que estava lá o tempo todo. Enfiei-a no orifício e disquei.
Foi quando estava fazendo direito as coisas e discando para Crumley que
apareceram os homens com as vassouras. Eram duas caminhonetes do estúdio e
um velho Lincoln que apontaram ao longe na Avenida Beachwood. Dobraram a
esquina, dirigindo-se à casa de Clarence. Só a visão dos veículos fez com que eu
me encolhesse como um acordeão para o fundo da cabine. O homem no Lincoln
podia ser Doc Phillips, mas eu estava tão preocupado em me esconder, que não
saberia dizer.
— Deixe-me adivinhar — disse a voz de Crumley ao aparelho. —
Alguém morreu de verdade?
— Como sabe disso?
— Existe respiração pesada, e respiração pesada.
— Pare com isso! — gritei, alarmado com a perspicácia dele.
— Acalme-se. Quando eu chegar aí provavelmente vai ser tarde demais, e
todas as provas vão estar destruídas, certo? Onde está? — Eu disse a ele. —
Existe um bar irlandês aí perto. Vá até lá e sente um pouco. Não quero que fique
exposto se as coisas estão tão mal quanto você acha. Está bem?
— Estou quase morrendo.
— Não faça isso! Sem você, como vou preencher meu tempo vago? Meia
hora depois Crumley me encontrou na porta do bar, metade dentro e metade fora.
Ele me encarou com um olhar desesperado, cheio de preocupação paternal, que
lhe passou pelo rosto como uma nuvem escura numa paisagem de verão.
— Muito bem — começou ele —, onde está o corpo?
Na rua com as casinhas encontramos a porta de Clarence encostada, como
se alguém a tivesse deixado aberta de propósito. Empurramos. E entramos na
casa de Clarence.
Não estava vazia, pelo menos não do jeito como haviam deixado o
apartamento de Roy.
Todos os livros encontravam-se nas estantes, o assoalho estava limpo,
sem cartas rasgadas. Mesmo as fotografias emolduradas, pelo menos a maioria
delas, estavam de volta às paredes.
— Certo — suspirou Crumley. — Onde está toda a baderna que você
viu?
— Espere um pouco.
Abri uma gaveta do arquivo. Havia fotografias amassadas e rasgadas,
enfiadas de qualquer jeito ali.
Abri seis arquivos para mostrar a Crumley que não estivera sonhando.
Em todos, as fotografias haviam sido amontoadas!
Só faltava uma coisa.
Clarence.
Crumley olhou para mim.
— Não! Ele estava bem aí onde você está.
Crumley pisou por sobre o corpo invisível. Olhou os outros arquivos,
como eu fizera, para verificar as cartas danificadas, as fotos rasgadas, fora de
vista. Deixou escapar um grande suspiro, como um fole e sacudiu a cabeça.
— Algum dia, você vai topar com algum coisa que faça sentido — disse
ele. — Não há nenhum corpo, portanto, o que posso fazer? Como podemos saber
se ele simplesmente não saiu de férias?
— Ele não vai voltar mais.
— Quem pode afirmar isso? Você quer ir até a delegacia mais próxima e
registrar uma queixa? Eles vão aparecer por aqui, dar uma olhada nos arquivos,
encolher os ombros, dizer que mais um maluco de Hollywood se foi, notificar o
senhorio e...
— O senhorio? — perguntou uma voz atrás de nós. — O que tem o
senhorio?
Um velho estava de pé à porta de entrada.
— Onde está Clarence? — perguntou ele.
Comecei a falar rapidamente. Matraqueei, contando tudo o que me
lembrava de 1934 e 1935, quando eu me desequilibrava nos patins, perseguido
por um W. C. Fields maníaco, beijado por Jean Harlow à frente do restaurante
Vendome. Com o beijo, os rolimãs saltaram de meus patins. Tive de mancar até
minha casa, sem ver o trânsito, surdo aos gritos de meus colegas.
— Certo, certo. Já entendi! — O velho deu uma olhada pelo aposento. —
Vocês não parecem bisbilhoteiros. Mas Clarence vive aqui como se uma multidão
de ladrões de fotografias pudesse assaltá-lo. Ele nunca dava seu endereço para
ninguém. Portanto...
Crumley entregou-lhe seu cartão. O velho pestanejou ao lê-lo e apertou as
dentaduras com as gengivas.
— Não quero encrenca por aqui! — disse ele.
— Não se preocupe. Clarence estava com medo e nos chamou. Por isso
viemos.
Crumley deu uma olhada ao redor.
O velho fez o mesmo. Felizmente não resolveu abrir nenhum arquivo,
onde poderia descobrir o vandalismo realizado.
— Vamos fazer o seguinte — concluiu Crumley. — Peça para Sopwith
telefonar para mim. Certo?
O velho consultou novamente o cartão e piscou.
— Polícia de Venice? Quando vão limpar isso tudo?
— Isso o quê? — perguntei, preocupado.
— Os canais! Lixo apodrecendo. Os canais! Crumley interveio.
— Vou dar uma olhada.
— Onde? — O velho já perdera o fio da meada.
— Nos canais — esclareceu Crumley. — No lixo.
— Ah, é bom mesmo — concordou o velho. — Aquilo é uma pouca
vergonha.
E saímos.
- 46 -
Ficamos na calçada observando a fileira de casinhas como se elas fossem
zarpar de um momento para outro, como um navio deslizando para o mar.
Crumley não olhava para mim.
— A mesma reação, só que invertida. Você está péssimo porque viu um
cadáver. Eu estou porque não vi. Diabo! Acho que podíamos esperar Clarence
voltar.
— Como ele pode fazer isso se está morto?
— Quer dar parte do desaparecimento dele? Você não é parente. Que
diabo, nem ao menos é amigo dele! O que temos para continuar?
— Duas coisas. Alguém destruiu os animais em miniatura de Roy e
destruiu o monstro de argila. Alguém mais limpou a bagunça. Alguém assustou
ou estrangulou Clarence até morrer. Mais alguém limpou tudo. Isso determina a
existência de dois grupos, ou dois indivíduos: o que destrói, e os que trazem baús,
vassouras e aspiradores. No momento acredito que o Monstro veio até o muro,
destruiu as coisas de Roy por sua própria conta e fugiu, deixando os objetos que
poderiam servir de pista para serem limpos ou escondidos. O mesmo aconteceu
aqui. O Monstro desceu de Notre-Dame, e...
— Como é que sabe que ele estava lá em cima?
— Eu o vi frente a frente.
Pela primeira vez Crumley ficou pálido.
— Pôrra, você vai acabar se matando! Fique longe de lugares altos. Aliás,
por que estamos aqui tagarelando na calçada em plena luz do dia? Alguém do
pessoal da limpeza pode perceber que você conhece Clarence mais do que devia
e resolver remover você.
— Tem razão. — Comecei a andar.
— Quer uma carona?
— É só um quarteirão até o estúdio.
— Pois eu vou até o arquivo morto do jornal. Deve existir alguma coisa
sobre Arbuthnot em 1934, que não sabemos. Quer que eu procure por Clarence,
no caminho?
— Crum, nós dois sabemos que a essa altura ele já virou cinzas e que até
elas já devem ter desaparecido.
— Isso é contra a lei.
— Claro que é. Mas quem vai passar o pente fino no incinerador do
estúdio?
— Você, não, com certeza! Aonde vai agora?
— Para o jardim de Getsêmani.
— É seguro?
— Mais seguro do que o Calvário.
— Me telefone.
— Você vai me escutar, do outro lado da cidade — disse eu. — Sem
precisar de telefone.
- 47 -
Mas primeiro...
Eu não sabia aonde ia até chegar lá.
O Calvário e as três cruzes, que estavam vazias.
— J.C. — sussurrei, tocando a fotografia dele, dobrada em meu bolso,
compreendendo de repente que uma presença marcante vinha me seguindo por
algum tempo.
Olhei ao redor enquanto perambulava, e lá estava Manny, cuja sombra
incorpórea, o Rolls-Royce de funeral chinês, deslizava atrás de mim. Escutei a
porta traseira abrindo-se com um silvo das borrachas de vedação, deixando
escapar uma rajada de ar frio vindo do interior refrigerado. Não muito maior do
que uma Torta Esquimó, Manny Leiber espiou para fora do interior de sua
geladeira ambulante.
— Ei! — chamou ele.
Era um dia quente. Debrucei-me para o interior do Rolls-Royce,
refrescando meu rosto enquanto acalmava minha mente.
— Tenho novidades para você. — Eu conseguia enxergar o hálito
condensado de Manny no ar de inverno artificial. — Estamos fechando o estúdio
por dois dias. Limpeza geral. Pintura relâmpago.
— Como pode fazer isso? As despesas...
— Todos vão receber pagamento integral. Devíamos ter feito isso anos
atrás. Portanto, vamos fechar...
Para quê, pensei. Para tirar todos da propriedade. Por que eles sabem ou
suspeitam que Roy ainda está vivo, e alguém mandou que o encontrassem e o
matassem?
— Essa foi a coisa mais estúpida que já ouvi — disse eu.
Achei que o insulto seria a melhor resposta. Ninguém suspeitaria de quem
parecesse ser suficientemente estúpido para insultar os outros.
— De quem foi essa “brilhante” idéia? — perguntei.
— Como assim? — reclamou Manny, recostando-se mais para o interior
de sua geladeira, as palavras envoltas em nuvens de vapor. — Foi minha!
— Você não é tão burro assim — insisti. — Não faria uma coisa dessas.
Liga muito para dinheiro. Alguém deve ter mandado você fazer isso. Alguém
acima de você?
— Não há ninguém acima de mim! — protestou ele, porém os olhos se
desviram dos meus.
— Vai assumir a responsabilidade total por uma ação que vai custar talvez
meio milhão de dólares numa semana?
— Bem...
— Deve ser o pessoal de Nova York — arrisquei, deixando uma saída
honrosa para ele. — Aqueles anões que telefonam de Manhattan. Malucos. Só
faltam dois dias para que você termine César e Cristo. O que acontece se J.C.
tiver uma recaída enquanto você pinta os cenários?...
— Aquela cena no braseiro era a última dele. Estamos retirando-o da
nossa Bíblia. Aliás, você está fazendo isso. E mais uma coisa, assim que o estúdio
reabrir, você está de volta em A Morte Vem a Galope.
Essas palavras provocaram um frio em meu rosto. Um arrepio percorreu-
me as costas.
— Não pode ser feito sem Roy Holdstrom — declarei, decidindo em
seguida bancar um tipo ainda mais ingênuo e tapado: — E Roy está morto.
— O quê? — Manny inclinou-se para a frente, tentando controlar-se,
depois estreitou os olhos. — Por que está dizendo isso?
— Ele cometeu suicídio — expliquei.
Manny ficou ainda mais desconfiado. Podia imaginá-lo a escutar o
relatório de Doc Philips: Roy pendurado no Estúdio 13, derrubado, escamoteado
e queimado.
Continuei com uma voz tão ingênua quanto possível:
— Os animais ainda estão trancados no Estúdio 13?
— Ahnn... estão — mentiu ele.
— Roy não consegue viver sem os monstrinhos dele. E fui ao
apartamento dele outro dia. Estava vazio. Alguém tinha roubado todas as suas
câmeras e miniaturas. Roy não conseguiria viver sem elas também. E ele não iria
simplesmente fugir. Pelo menos não sem me avisar, depois de vinte anos de
amizade. Portanto, concluí que Roy está morto.
Manny examinava meu rosto para decidir se acreditava ou não. Fiz minha
expressão mais contrita.
— Encontre-o — pediu Manny finalmente, sem piscar.
— Mas eu acabei de dizer que...
— Encontre-o ou você vai ser despedido, e nunca mais vai trabalhar em
outro estúdio pelo resto da vida. O imbecil não está morto. Ele foi visto no
estúdio outro dia, talvez tentando arrombar o Estúdio 13, para pegar aqueles
malditos monstros. Diga a ele que está perdoado. Pode voltar a trabalhar, com o
salário aumentado. É hora de admitirmos que estávamos errados e que precisamos
dele. Encontre aquele sujeito, e o seu salário também será aumentado. Certo?
— Isso significa que Roy pode usar aquele rosto, o busto que ele esculpiu
na argila?
A cor de Manny alterou-se.
— É claro que não! Haverá uma nova busca. Um concurso. Vamos fazer
uma grande publicidade.
— Não acho que Roy volte se não puder usar o Monstro dele.
— Ele volta, se souber o que é bom para ele.
Para ser morto uma hora depois que bater o relógio de ponto?, pensei.
— Não. Ele está realmente morto. Para sempre — consegui dizer.
Bati os últimos pregos no caixão de Roy, esperando que Manny
acreditasse e não fechasse o estúdio para fazer sua busca. Uma idéia tola. Mas os
loucos são sempre tolos.
— Encontre-o — finalizou Manny, gelando o ar com seu silêncio. Fechei
a porta da geladeira. O Rolls-Royce partiu com um murmúrio, como um sorriso
frio que se desfizesse.
Tremendo, fiz minha Peregrinação. Passei através de Green Town, Nova
York, pela Esfinge egípcia e pelo Fórum romano. Somente as moscas zumbiam à
frente da cama de meus avós. Somente a poeira se agitava entre as patas da
Esfinge.
Fiquei em pé em frente à grande pedra que cobria a entrada da tumba de
Cristo.
Fui até a rocha esconder meu rosto.
— Roy — sussurrei.
A pedra estremeceu ao meu toque.
E a rocha respondeu: Aqui não há esconderijo.
Meu Deus, Roy, pensei. Finalmente eles precisam de você, pelo menos
por uns dez minutos antes que alguém pise em você.
A pedra permanecia silenciosa. Um diabo passou num turbilhão de poeira
por uma fachada falsa em Nevada, adormecendo ao lado de um velho cocho de
cavalos.
Uma voz gritou:
— Aí é o lugar errado! Aqui!
Olhei para outra colina, a cem metros dali, que se recortava contra o céu,
uma encosta suave de grama artificial verde durante todas as estações.
Lá, com o vento agitando a túnica, havia um homem de barba.
— J.C.! — Subi a colina, ofegando.
— O que acha disso? — J.C. me puxou pelos últimos metros, ostentando
um sorriso sério e triste. — A montanha do Sermão. Quer ouvir?
— Não tenho tempo, J.C.
— E como é que as pessoas há dois mil anos escutaram e ficaram
quietinhas?
— Eles não tinham relógio, J.C.
— Não — concordou ele, estudando o céu. — Só o sol movendo-se no
céu, e todos os dias que quisessem para dizer as coisas necessárias.
Assenti. O nome de Clarence estava atravessado em minha garganta.
— Sente, filho. — Havia um grande rochedo ali perto, onde J.C. se
acomodou, e eu me coloquei a seus pés, como um pastor. Olhando para baixo,
com suavidade, ele declarou: — Não bebi nada hoje.
— Ótimo!
— Existem dias assim. Por Deus, estive aqui a maior parte do tempo,
apreciando as nuvens, com vontade de viver para sempre. Tudo por causa das
palavras de ontem à noite, e você...
Ele deve ter percebido que eu engoli em seco, pois olhou para baixo e
tocou minha cabeça.
— Oh, oh — disse ele. — Vai me contar alguma coisa que vai me fazer
beber?
— Espero que não, J.C. É sobre seu amigo Clarence. Ele retirou a mão
como se ela estivesse queimando.
Uma nuvem cobriu o sol e desaguou uma cortina de chuva
surpreendentemente reduzida, um verdadeiro choque em meio ao dia ensolarado.
Deixei que os pingos tocassem minha pele sem mover um músculo, como J.C.,
que levantou o rosto para refrescá-lo.
— Clarence... — murmurou ele. — Sempre o conheci. Ele andava por aí
na época em que tínhamos índios de verdade. Clarence estava sempre aí na
frente, um garoto de nove ou dez anos, com os óculos grossos, os cabelos loiros,
o rosto grande e brilhante, e aquele enorme livro de desenhos ou fotografias para
serem autografados. Ele estava aqui no amanhecer do dia em que cheguei pela
primeira vez, e à meia-noite, quando eu saí. Eu era um dos Quatro Cavaleiros do
Apocalipse!
— A Morte?
— Espertinho... — riu J.C. — A Morte. Montado em cima da minha
bunda magra, no meu cavalo-esqueleto.
J.C. e eu olhamos para o céu, como se a Morte ainda estivesse galopando
por lá. A chuva cessou. J.C. enxugou o rosto e continuou.
— Clarence. Pobre idiota. Um sujeito dependente, solitário, sem vida e
sem esposa. Nunca teve mulher, amante, amigos homens ou garotos, nem
fotografia de garotas, nem revistas de musculação. Zero! Ele nem mesmo chegou
a usar camisa de manga curta! Passava o verão inteiro de ceroulas! Que coisa!
Finalmente senti minha boca mover-se.
— Ouviu falar de Clarence... ultimamente?
— Ele telefonou ontem.
— A que horas?
— Quatro e meia. Por quê?
Logo depois que eu bati à porta dele, pensei.
— Ele estava descontrolado, quando telefonou. “Acabou tudo!”, disse
ele. “Eles estão vindo para me pegar. Não me venha com sermões!”, gritou ele,
alterado. Aquilo gelou meu sangue. Teve o mesmo efeito que uns dez mil
figurantes despedidos, quarenta produtores se suicidando e noventa e nove
Starlets estupradas. As últimas palavras dele foram: “Me ajude! Me salve!” E lá
fiquei eu , Jesus em fim de carreira, Cristo no fim da linha. Como é que eu podia
ajudar quando eu era a causa e não a cura? Disse a Clarence para tomar duas
aspirinas e me telefonar de manhã. Devia ter ido até lá. Você teria ido, se fosse
eu?
Lembrei-me de Clarence deitado naquele enorme bolo de camadas,
embaixo de livros, cartões, fotografias e suor histérico, tudo amontoado. J.C.
reparou que minha cabeça balançara.
— Ele se foi, não é? — Era mais uma afirmação do que uma pergunta. —
E você esteve lá, certo?
Assenti.
— Clarence!
Foi um grito tão alto que teria sobressaltado as bestas do campo e
acordado os pastores adormecidos. Era o começo do sermão da escuridão.
J.C. deu um salto, com a cabeça para trás. Lágrimas jorraram de seus
olhos.
— Clarence...
Ele começou a andar, de olhos fechados, pela encosta da colina, para
longe dos sermões perdidos, em direção à colina do Calvário, onde sua cruz
aguardava. Fui atrás dele.
— Tem alguma bebida com você? — perguntou ele, dando passadas
largas. — Álcool, qualquer coisa... Droga! Era para ser um dia tão agradável!
Clarence, seu idiota!
Chegamos à cruz, e J.C. procurou atrás da madeira, dando uma
gargalhada amarga de alívio ao retirar de lá um saquinho pardo de papel que
produzia som de líquidos.
— O sangue de Cristo dentro de uma garrafa sem rótulo num saquinho
pardo. No que transformei a cerimônia... — Ele tomou um gole, e mais outro. —
O que faço agora? Subo aí, prego a mim mesmo e espero por eles?
— Eles?
— Ouça, criança, é só uma questão de tempo! Então sou pregado pelos
pulsos e fico pendurado pela lei da gravidade! Clarence está morto! Como foi que
aconteceu?
— Ele morreu afogado embaixo das fotografias. J.C. enrijeceu.
— Quem disse isso?
— Eu vi, J.C., mas não disse a ninguém. Ele sabia de alguma coisa e foi
assassinado. O que você sabe?
— Nada! — J.C. sacudiu violentamente a cabeça. — Nada!
— Clarence, há duas noites, em frente ao Brown Derby, reconheceu um
homem. O homem levantou a mão para ele! Clarence correu! Por quê?
— Não tente descobrir! — disse J.C. — Deixe esse assunto em paz. Não
quero arrastar você comigo. Não há nada que eu possa fazer a não ser esperar...
— A voz interrompeu-se. — Com Clarence assassinado, não vai demorar muito
até que eles cheguem à conclusão que fui eu quem o mandou até o Brown
Derby...
— Foi você?
E a mim também?, pensei. Você escreveu para Roy, pedindo que também
fosse até lá?
— Quem foi, J.C.? Quem são eles? As pessoas estão morrendo por aí.
Talvez até meu amigo Roy!
— Roy? — J.C. fez uma pausa, pensativo. — Morto? Ele tem sorte.
Escondido? Não adianta. Eles vão apanhá-lo. Como eu. Eu sei coisas demais há
anos.
— Há quanto tempo?
— Por que quer saber?
— Eu podia estar morto, também. Topei com alguma coisa, mas quero ser
mico de circo se sei o que é. Roy descobriu alguma coisa, e está morto, ou
escondido agora. Meu Deus, alguém matou Clarence porque ele descobriu
alguma coisa. É uma questão de tempo até que eles saibam. Que diabo, talvez eu
conheça Clarence bem demais e eles venham me matar, só para ter certeza.
Droga, Manny vai fechar o estúdio por dois dias. Para limpeza e pintura. É por
causa de Roy! Pense um pouco! Dezenas de milhares de dólares vão pela janela
para achar um maluco cujo único crime foi viver há dez milhões de anos, que
ficou pirado com um monstro de argila e que a partir daí teve sua cabeça colocada
a prêmio. Por que Roy tornou-se tão importante? Por que, como Clarence, ele
tem de morrer? Você, por exemplo, naquela noite, disse que estava no Calvário.
Viu o muro, a escada, o corpo na escada. Conseguiu ver o rosto daquele corpo?
— Estava longe demais — desculpou-se J.C.
— Viu pelo menos o rosto do sujeito que colocou o corpo na escada?
— Estava escuro...
— Era o Monstro?
— O quê?
— O homem com o rosto em carne viva, o olho direito coberto de carne e
aquela boca horrível? Será que foi ele quem colocou o corpo de mentira no alto
da escada para assustar o pessoal do estúdio, e de algum jeito chantagear todo o
mundo por algum motivo? Se eu vou morrer, J.C., tenho o direito de saber por
quê. Diga o nome do Monstro, J.C.
— E fazer com que você seja morto de verdade? Não, senhor! Um
caminhão dobrou a esquina das ruas do estúdio. Passou em seguida pelo
Calvário, levantando poeira e buzinando.
— Cuidado, seu imbecil! — berrei.
O caminhão se foi, em meio a uma nuvem de poeira.
E J.C. foi com ele.
Um homem trinta anos mais velho do que eu, correndo. Era grotesco! J.C.
em disparada, a túnica drapeando ao vento empoeirado, como se estivesse a
ponto de decolar, gritando impropérios para o céu.
Não alcance o Clarence!, quase gritei.
Que idiotice, pensei. Clarence está muito adiantado. Você nunca iria
alcançá-lo.
- 48 -
Fritz estava esperando com Maggie na Sala de Projeção 10.
— Onde esteve? — perguntou ele. — Adivinhe o que aconteceu! Agora
ficamos sem o meio do filme!
Era bom ouvir essa conversa maluca e ridícula, uma loucura para curar
meu desequilíbrio, que progredia. Meu Deus, pensei, o cinema é como fazer amor
com uma gárgula. Você descobre que está agarrado a uma espinha de mármore e
pensa:
“O que estou fazendo aqui? Mentindo, fingindo. Para fazer... um filme a
que vinte milhões de pessoas correriam para assistir, ou fugiriam dele”.
Tudo isso feito por malucos na Sala de Projeção, discutindo sobre
personagens que nem ao menos viveram.
Por tudo isso, era bom para mim esconder-me ali, entre Fritz e Maggie,
gritando coisas sem nexo e bancando os bobos.
Mas nesse caso, as tolices não ajudaram.
Às quatro e meia, pedi licença e tive de correr para o banheiro. Ali, no
vomitório, perdi totalmente a cor do rosto. O vomitório, como os banheiros são
chamados por todos os roteiristas depois de ouvirem as idéias geniais dos
produtores.
Tentei recuperar o tom das faces, esfregando-as com água e sabão.
Curvei-me durante cinco minutos sobre a pia, deixando que a tristeza e o
medo escorressem pelo ralo. Depois de um último acesso de ânsia, lavei-me
novamente e retornei para enfrentar Maggie e Fritz, grato pela penumbra que
reinava na Sala de Projeção.
— Você! — gritou Fritz. — Muda uma cena e estraga o resto do filme.
Mostrei nossa Última Ceia para Manny ao meio-dia. Agora, por causa da maldita
qualidade do seu final, ele admite, o que é completamente contra a natureza dele,
que vamos precisar refilmar algumas cenas do meio, senão o filme vai parecer
uma cobra morta com o rabo vivo! Ele não teria coragem de dizer isso
pessoalmente, parecia que ele estava comendo as próprias entranhas no almoço,
ou um ensopado feito com as suas. Ele o chamou de nomes que prefiro não
repetir, mas mandou finalmente que o bastardo reescrevesse as cenas nove,
catorze, dezenove, vinte e cinco e trinta. É como uma amarelinha de cenas a
serem reescritas e refilmadas. Se melhorarmos algumas cenas, precisamos fazer
com que o público acredite que temos um filme metade bom.
Senti o velho rubor me subindo ao rosto.
— Isso sim, é um desafio para um novo escritor! — exclamei. — O
elemento temporal.
— E tudo nos próximos três dias! — Seguramos todo o elenco. Vou
mandar telefonar para os Alcoólicos Anônimos e pedir alguém para vigiar nosso
J.C. por setenta e duas horas, agora que sabemos onde ele se esconde...
Fiquei olhando para a frente, em silêncio. Não podia dizer-lhes que
assustara tanto J.C. que ele saíra da propriedade.
— Parece que fui responsável por um bocado de coisas ruins esta semana
— comentei, por fim.
— Fique, Sísifo! — pediu Fritz, estalando as palmas das mãos em meus
ombros. — Pelo menos até eu arranjar uma pedra maior para você empurrar
colina acima. Você não é judeu, não fique remoendo culpas. — Ele atirou o
roteiro para cima de mim. — Escreva, reescreva, e reescreva!
— Tem certeza de que Manny quer que eu trabalhe nisso?
— Na verdade, ele preferia mandar amarrar você em dois cavalos
selvagens e ficar atirando com um revólver, mas a vida é assim. Odeie um
pouquinho aqui... Depois odeie bastante acolá...
— E quanto ao outro filme? Ele quer que eu volte para A Morte Vem a
Galope!
— Desde quando? — Fritz levantou-se.
— Desde meia hora atrás.
— Mas ele não pode fazer isso sem...
— Sem Roy — completei. — Isso mesmo. Roy está desaparecido, e eu
preciso encontrá-lo. E o estúdio está fechado por quarenta e oito horas para
pintura e reforma que não são necessárias.
— Imbecis! Idiotas! — esbravejou Fritz. — Ninguém me participa nada!
Pois bem, não precisamos desse estúdio idiota. Podemos reescrever Jesus na
minha casa.
O telefone tocou. Fritz quase estrangulou o fone na mão antes de passá-lo
para mim. Era um chamado do Templo Angelus, de Aimeé Semple Mcpherson.
— Desculpe, senhor — começou uma voz feminina, controlada com
dificuldade —, mas por acaso conhece um homem que chama a si mesmo de
J.C.?
— J.C.?
Fritz agarrou o telefone. Eu peguei de volta. Finalmente, resolvemos ouvir
os dois, de pertinho.
— Ele diz que é o Fantasma de Cristo, renascido e recentemente
arrependido...
— Me dê aqui esse telefone! — disse uma voz masculina, do outro lado.
— Aqui fala o reverendo Kempo! Conhece esse desprezível anticristo? Teríamos
chamado a polícia, mas, se os jornais descobrissem que nosso templo expulsou
Jesus, bem... Eu lhe dou trinta minutos para salvar esse infiel da ira de Deus. E da
minha!
Deixei cair o aparelho.
— Meu Deus! — queixei-me a Fritz. — Ele ressuscitou.
- 49 -
Meu táxi chegou ao Templo Angelus na hora em que os últimos alunos
de catecismo estavam saindo por várias portas. O reverendo Kempo estava na
calçada, andando de um lado para o outro e esfregando as mãos como se
houvesse dinamite em seu traseiro.
— Graças ao bom Deus! — desabafou ele, avançando em nossa direção.
Repentinamente, parou. — Você é o jovem amigo daquela criatura lá dentro,
certo?
— J.C.?
— J.C., mas que heresia abominável! Ele mesmo, J.C.
— Sou o amigo dele.
— Azar seu. Vamos rápido para dentro!
Ele enganchou-me pelo cotovelo e arrastou-me para dentro, depois pela
nave principal. Estava deserto. Do alto vinha o som suave de penas, como num
vôo angelical. Alguém parecia estar testando o sistema de som com vários tipos
de murmúrios celestiais.
— Aonde ele...? — parei.
Pois no centro do palco, no trono brilhante feito de ouro de vinte e quatro
quilates, sentava-se J.C.
Permanecia rígido e imóvel, os olhos fitando algum ponto além da parede
da igreja, as mãos pousadas nos braços dourados, com as palmas para cima.
— J.C.? — Prossegui pela nave e parei novamente.
Pois havia sangue fresco, pingando de cada cicatriz nos pulsos expostos.
— Não é nojento, isso? Esse homem horrível... Fora! — berrou o
reverendo, atrás de mim.
— Essa é uma igreja cristã? — indaguei.
— Como ousa perguntar uma coisa dessas!
— Não acha que, num momento como este, o próprio Cristo teria
demonstrado um pouco mais de piedade? — sugeri, sem olhar para trás.
— Piedade? — gritou o reverendo. — Pois fique sabendo que ele invadiu
nosso serviço religioso berrando: “Eu sou o verdadeiro Cristo! Temo por minha
vida!” Correu para o palco, onde ficou exibindo aqueles ferimentos. Só faltou
mesmo tirar a roupa. Perdão? Ele chocou todo o mundo e quase provocou um
tumulto em nossa pacífica congregação. Alguns talvez não voltem mais. Se
falarem e os jornais ficarem sabendo... está entendendo? Ele nos transformou em
motivo de chacota. Seu amigo!
— Meu amigo — repeti, com voz fraca, escalando o pedestal para chegar
ao trono, ao lado do velho ator shakespeariano.
— J.C.? — chamei novamente, como por sobre um abismo.
Os olhos de J.C., fixos na eternidade, piscaram e voltaram a focalizar-se.
— Como vai, criança? — cumprimentou ele. — O que está acontecendo?
— Acontecendo? — gritei. — Você acabou de se meter numa bela
encrenca.
J.C. finalmente percebeu o local em que se encontrava e levantou as
mãos.
— Não! Não! — Tinha-se a impressão de que alguém atirara duas
tarântulas sobre ele. Me flagelaram outra vez? Me seguiram? Estou morto!
Proteja-me!
— Eu estou aqui. Vamos para casa, J.C.
— Trouxe bebida?
Bati em meus bolsos como quem sempre carregasse garrafas consigo e
balancei a cabeça. Lancei um olhar para o reverendo, que num ímpeto de
iniciativa retirou de trás do trono uma garrafa de vinho tinto, que entregou a mim.
J.C. esticou-se, porém eu fui mais rápido e segurei a garrafa como isca, à
frente dele.
— Venha por aqui. Só vou tirar a rolha lá fora.
— Como ousa falar com Cristo nesse tom?
— Como ousa passar por Cristo? — interpelou o reverendo.
— Não ouso, caro senhor — disse J.C., recuando. — Eu simplesmente
sou.
Fez uma tentativa para levantar e caiu pelos degraus.
O reverendo grunhiu, como se a idéia de assassinato movesse
involuntariamente seus punhos.
Levantei J.C., acenando a garrafa, pude conduzi-lo pela passagem entre
os bancos, e depois para fora.
O táxi ainda estava lá. Antes de entrar, J.C. voltou-se para olhar na
direção do reverendo, que aguardava no portal, o rosto contorcido pelo ódio.
J.C. ergueu as mãos ensangüentadas.
— Abrigo. Certo? Refúgio.
— O inferno não aceitaria o senhor — berrou o reverendo. Blam!
Imaginei no interior do templo um milhar de asas de anjos, libertas,
revoando pelo ar agora impuro.
J.C. entrou no táxi, agarrando a garrafa de vinho e inclinando-se para falar
ao motorista.
— Getsêmani!
Partimos. O motorista deu uma olhada de relance para seu mapa da
cidade.
— Getsêmani — resmungou ele. — Isso é o nome de uma rua? Avenida?
Ou um lugar?
- 50 -
— Nem mesmo a cruz é um lugar seguro agora — resmungou J.C.,
atravessando a cidade, os olhos fixos nos pulsos feridos, como se não pudesse
acreditar que estivessem grudados em seus braços. — Onde esse mundo vai
parar? — Ele olhou para fora pela janela. — Será que Cristo era maníaco-
depressivo? Como eu?
— Não, ele não era louco — respondi, sem muita convicção. — Mas você
está completamente pirado. Por que foi até o templo?
— Eu estava sendo perseguido. Eles estão atrás de mim. Eu sou a Luz do
Mundo. — Isso foi dito com bastante ironia. — Meu Deus, como eu gostaria de
não saber tanta coisa.
— Então me conte. Como uma confissão.
— Nesse caso eles iriam atrás de você também! — murmurou ele.
— Clarence não correu rápido o suficiente, correu?
— Eu também conhecia Clarence — declarei. — Há muitos anos... Isso
assustou ainda mais J.C.
— Não conte isso a ninguém! Eles não vão saber de nada por mim.
— Ele tomou metade da garrafa de uma só vez, depois piscou e disse:
— Fico com a boca fechada.
— Não senhor, J.C.! Você precisa falar, só para o caso de...
— De que eu não viva além desta noite? Acho que não vou mesmo viver.
Mas não quero que nós dois corramos perigo de vida. Você é um desajeitado
adorável. Vinde a mim as criancinhas, e me aparece você.
Ele bebeu e apagou o sorriso do rosto.
O táxi entrou no estúdio e aproximou-se da casa de meus pais.
— Por que será que esse lugar parece com a Igreja Batista Negra da
Avenida Central? Não posso entrar aí! Não sou negro, nem batista. Sou Cristo, e
judeu! Diga a ele para onde ir.
O táxi parou no Calvário ao pôr-do-sol. J.C. olhou para o lugar que lhe
era familiar.
— Essa é a cruz verdadeira? — Em seguida ele deu de ombros. — Bem,
deve ser tão verdadeira quanto eu...
Tomou o resto do vinho, depois começou a subir o monte.
— Graças a Deus, já terminei minhas cenas maiores. Tudo acabou, jovem
— declarou J.C., tomando minhas mãos entre as dele. Ele parecia bastante calmo
no momento, tendo passado das alturas para as profundezas. — Eu não devia ter
fugido. E você não deveria ser visto aqui falando comigo. Eles vão trazer mais
um martelo e pregos sobressalentes, e você vai acabar fazendo o papel de ladrão a
minha esquerda. Ou de Judas. Eles podem trazer uma corda e de repente você
vira Judas Iscariotes.
Ele voltou-se e colocou as mãos na cruz e um pé no degrau escavado ao
lado na madeira.
— Mais uma coisa — lembrei. — Você conhece o Monstro?
— Meu Deus, eu estava lá na noite em que ele nasceu!
— Nasceu?
— Nasceu.
— Explique, J.C. Eu preciso saber!
— E morrer por causa disso, espertinho? Por que tem vontade de morrer?
Não tente me salvar mais uma vez. Jesus é quem salva, certo? Mas se sou Jesus e
estou perdido, todos vocês estão perdidos. Veja o Clarence, pobre coitado. Os
sujeitos que o apanharam estão ficando assustados. E, quando ficam assustados,
entram em pânico. Quando entram em pânico começam a odiar. Sabe alguma
coisa sobre ódio de verdade, rapaz? Quer dizer, não há lugar para amadores, nem
para bom comportamento. Alguém manda matar, e ninguém pensa antes de
cometer assassinato. E você fica por aí experimentando suas idéias tolas e
ingênuas sobre as pessoas. Meu Deus, acho que não reconheceria uma puta de
verdade nem se ela mordesse você, ou um assassino de verdade se ele
esfaqueasse você. Você iria morrer, dizendo: “Ah, então é assim...”, só que aí
seria tarde demais. Escute ao velho Jesus, seu tolo.
— Um tolo conveniente, um imbecil útil. É o que Lênin dizia.
— Lênin! Está vendo? Numa hora como esta, enquanto estou gritando:
Lá estão as cataratas de Niágara! Onde está seu barril? Você me pula sem pára-
quedas. Lênin!? Bah... Qual é o caminho para o hospício?
J.C. tremia ao terminar o vinho.
— Imbecil útil — declarou ele, engolindo o que restava do vinho. —
Agora escute: não vou avisar outra vez. Se ficar comigo, está perdido. Se
soubesse o que sei, eles o enterrariam em dez sepulturas diferentes do outro lado
do muro. Cortariam seu corpo em pequenos pedaços e enterrariam cada um num
lugar diferente. Se sua mãe e seu pai estivessem vivos, eles os enterrariam. E sua
esposa...
Agarrei meus cotovelos. J.C. recuou.
— Desculpe. Mas só quis mostrar a você como é vulnerável. Meu Deus,
ainda estou sóbrio: não disse “invulnerável”... Quando sua esposa volta?
— Logo.
Foi como um gongo fúnebre soando ao meio-dia. Logo.
— Então preste atenção ao último Livro de Jó. Eles não vão parar até
matarem todos. As coisas saíram fora de controle esta semana. Aquele corpo que
viu em cima do muro. Foi colocado lá para...
— Chantagear o estúdio? — interrompi, citando Crumley. — Estão com
medo de Arbuthnot, a uma altura dessas?
— Estão apavorados! Às vezes, os caras que já estão na sepultura
possuem mais poder do que os vivos. Veja Napoleão, por exemplo, morto há
cento e cinqüenta anos e ainda vivo em mais de duzentos livros! Ruas e crianças
são batizadas com o nome dele! Perdeu tudo, mas ganhou com a perda! Hitler?
Será lembrado por dez mil anos. Mussolini? Vai continuar pendurado naquele
posto de gasolina pelo resto de nossas vidas! Mesmo Jesus... — Ele observou
fixamente seus estigmas. — Até que eu não fiz um mau trabalho. Só que agora
preciso morrer outra vez. Mas seria amaldiçoado muitas vezes se arrastasse
comigo um sujeito decente como você. Agora cale a boca. Alguém pode escutar!
Tem mais alguma bebida?
Mostrei a última garrafa de gim. Ele a apanhou.
— Agora me ajude a subir na cruz e suma daqui!
— Não posso deixar você aqui, J.C.
— Não existe mais nenhum lugar onde você possa me deixar. Ele bebeu
toda a garrafinha de gim.
— Isso vai matar você! — reclamei.
— É um anestésico, garoto. Quando vierem me pagar, eu nem estarei
mais aqui.
J.C. começou a subir na cruz.
Agarrei a madeira tosca com ambas as mãos e voltei o rosto para cima.
— Que diabo, J.C. Se esta é sua última noite na Terra... está purificado?
Aquilo o abalou. Ele diminuiu o ritmo de subida.
— O quê?
— Quando se confessou pela última vez? - Não consegui controlar
minhas palavras. — Quando, quando?
Funcionou. A cabeça dele voltou-se do sul para o norte, de forma que o
rosto ficasse virado na direção da parede do cemitério.
— Onde foi? Onde foi que você se confessou pela última vez? — Eu
mesmo estava surpreso com minha reação.
O rosto dele ficou rígido, voltado hipnoticamente para o norte, fato que
me incentivou a subir um pouco mais, utilizando os orifícios escavados para isso
com meus pés.
— O que está fazendo? — perguntou J.C.
— Subindo.
— Esse lugar é só meu — berrou ele.
— Pois não é mais. Aqui, aqui... e pronto! — completei a escalada,
colocando-me atrás dele.
Ele teve de virar para gritar comigo:
— Desça daqui!
— Onde você se confessou, J.C.?
Dessa vez a cabeça não se moveu. Estava virado para mim, mas o olhar
voltou-se para o norte. Procurei o ponto visado, seguindo um dos braços de
madeira.
— Mas, claro!
Pois alinhado com o braço da cruz, como uma alça de mira, além do
ponto do muro onde o boneco e a escada tinham sido colocados, o olhar dele
recaía sobre um campo de pedra onde se podia divisar a fachada e as portas da
Igreja de San Sebastian!
— Claro! — repeti. — Obrigado, J.C.
— Escute aqui...
— Tudo o que eu disse foi obrigado.
— Desça!
— Estou descendo.
Desviei os olhos do cemitério, mas não sem antes lançar mais um olhar à
torre da igreja além do campo santo. Desci.
— Aonde você vai? — indagou J.C.
— Aonde eu deveria ter ido dias atrás...
— Seu imbecil! Fique longe daquela igreja. Não é segura!
— Uma igreja que não é segura? — Parei de descer e olhei para cima.
— Aquela igreja, não é. É do outro lado do cemitério, e tarde da noite ela
abre para qualquer um que vá até lá.
— Ele vai lá, não vai?
— Ele?
— Antes de ir para o cemitério à noite — estremeci. — Ele vai até lá para
se confessar, certo?
— Maldito seja! Agora sim, está perdido. — berrou J.C., fechando os
olhos. Gemeu e ajeitou-se na cruz à luz do crepúsculo. — Pois vá em frente.
Quer encontrar o terror? Quer conhecer o medo? Vá escutar uma confissão de
verdade. Esconda-se, e quando ele entrar, tarde da noite, muito tarde, você pode
escutar, e sua alma vai tremer, queimar e morrer!
Essas palavras fizeram com que eu segurasse a madeira com tanta força
que algumas farpas machucaram minhas mãos.
— J.C.? Você sabe de tudo, não é? Conte, em seu nome, no nome de
Jesus Cristo, antes que seja tarde demais. Sabe por que o corpo foi colocado na
escada, e talvez tenha sido o Monstro, só para me assustar. Sabe também quem é
o Monstro, não é? Pois diga!
— Pobre garoto, que não passa de um filho da puta inocente. Meu Deus,
criança. — J.C. olhou para mim. — Você vai morrer, e nem ao menos sabe por
quê...
Ele estendeu as mãos, uma para o norte, outra para o sul, agarrando os
braços da cruz como se fosse voar. Em vez disso, a garrafa vazia caiu e quebrou-
se a meus pés.
— Pobre rapaz inocente — murmurou ele, o rosto voltado para o céu.
Larguei e saltei os últimos cinqüenta centímetros. Quando atingi o chão, olhei
uma última vez para cima, exausto.
— J.C.?
— Vá para o inferno — disse ele, triste. — Porque não tenho a menor
idéia de onde fica o céu.
Escutei carros e pessoas ali por perto.
— Corra — sugeriu a voz que vinha do alto.
Mas não pude correr. Simplesmente afastei-me dali, andando.
- 51 -
Encontrei Doc Phillips saindo de Notre-Dame. Ele carregava um saco
plástico, lembrando um daqueles homens que vagueiam pelas praças públicas
com uma varinha pontiaguda, espetando lixo para ser incinerado. Pareceu
surpreender-se, pois eu tinha um dos pés no degrau, como se fosse assistir à
missa.
— Ora vejam, aqui está o menino prodígio que ensina Cristo a andar
sobre a água e coloca Judas de volta à fila dos criminosos — comentou ele, assim
que me viu.
— Eu, não — protestei. — Os quatro apóstolos. Só segui a trilha que as
sandálias deles deixaram.
— O que está fazendo aqui? — perguntou ele, sem rodeios, os olhos
examinando-me de alto a baixo, e os dedos mexendo no saco plástico, que
recendia a incenso e ao forte perfume que ele usava.
Decidi desfiar todo o rosário.
— O pôr-do-sol. A melhor hora para andar por aí. Meu Deus, como eu
adoro este lugar. Tenho intenção de possuir tudo isto algum dia. Mas não se
preocupe, vou manter você aqui. Quando eu for o dono, pretendo botar abaixo
todos os escritórios e fazer com que todos vivam, de verdade, a História. Vou
deixar Manny trabalhando na Décima Avenida, em Nova York, ali adiante.
Colocar Fritz em Berlim, ali. Eu vou para Green Town. Roy? Se aquele maluco
chegar a voltar, vou construir para ele uma bela fazenda de dinossauros. Eu
ficaria pirado com isso tudo. Em vez de fazer quarenta filmes por ano, faria doze,
todos obras-primas! Tornaria Maggie Botwin vice-presidente do estúdio, porque
ela é simplesmente brilhante, e chamaria Louis B. Mayer de volta da
aposentadoria. E... — a inspiração acabou-se.
Doc Phillips ficou com a boca aberta como se eu tivesse colocado uma
grande granada armada nas mãos dele.
— Acha que sou louco? — indaguei.
— Não. Demente.
— Será que alguém se importaria se eu fosse a Notre-Dame? Gostaria de
subir e fingir que sou Quasímodo. É seguro?
— Não. — Doc começou a andar em volta de mim como um cachorro ao
redor de um hidrante. — Não é seguro. Estamos consertando tudo. Na verdade,
estamos pensando em demolir Notre-Dame.
Ele voltou-se para a entrada outra vez.
— Você é completamente doido — disse ele, desaparecendo no interior
da catedral.
Fiquei em pé na porta por aproximadamente dez segundos, depois gelei.
Do interior escuro chegou até meus ouvidos uma espécie de grunhido, e
depois um som como o de um cabo raspando nas paredes.
— Doc?
Dei um passo para o interior, mas não consegui enxergar nada.
— Doc?
Uma sombra delineou-se no alto da catedral. Parecia um grande saco de
areia sendo içado para o cimo. Lembrei-me do corpo de Roy balançando no
Estúdio 13.
— Doc? Ele se fora.
Olhei para o alto na escuridão, para um forma que parecia as solas dos
sapatos dele, subindo cada vez mais.
— Doc!
Então, aconteceu.
Algo atingiu o chão da catedral.
Era um mocassim negro.
— Meu Deus!
Recuei, e pude observar uma sombra alongada recortada contra o céu no
alto da catedral.
— Doc?
- 52 -
— Pegue!
Crumley jogara uma nota de dez dólares para o motorista do táxi, que
depois de apanhar o dinheiro foi embora.
— Exatamente como no cinema! — comentou Crumley. — O sujeito
joga dinheiro para o motorista e nunca pede o troco. Diga obrigado.
— Obrigado!
— Puxa vida! — Crumley examinou meu rosto, impressionado. —
Vamos entrar. Pegue isso.
Ele atirou-me uma lata de cerveja. Bebi e contei a ele o que acontecera na
catedral. Doc Phillips, o grito abafado, a sombra subindo e o pé de sapato caindo
no chão empoeirado.
— Eu vi tudo isso. Mas quem sabe? — concluí. — O estúdio está
fechado para reforma. Pensei que Doc Phillips fosse um vilão. Um dos outros
vilões deve tê-lo apanhado. Por enquanto não há nenhum corpo. Pobre Doc. Mas
o que estou dizendo? Eu nem ao menos gostava dele!
— Meu Deus, você me traz as palavras cruzadas do New York Times,
quando sabe que eu só consigo resolver as do Daily News — desabafou
Crumley. — Arrasta cadáveres para dentro da minha casa como se fosse um gato
orgulhoso do que acabou de matar, sem nenhum motivo especial e sem lógica.
Qualquer advogado atiraria você pela janela. Qualquer juiz iria acertar você com
o martelinho. Um psiquiatra recusaria a você o privilégio do eletrochoque.
Poderia passar cheio de arenques pelo Bulevar Hollywood e não ser preso por
poluição.
— Claro — concordei, mergulhando num estado depressivo. O telefone
tocou.
Crumley passou-o para mim.
— Eles o procuram aqui, eles o procuram acolá, eles procuram aquele
mandrião em todo lugar. Ele está no inferno, ele está no céu...
— Aquele miserável Pimpernel! — gritei, completando a quadrinha.
Deixei cair o telefone como se uma bomba tivesse estourado. Depois apanhei-o
novamente.
— Onde você está? — berrei. Brrr. Bzzz.
Crumley levou o aparelho à orelha e balançou negativamente a cabeça.
— Roy? — indagou ele. Fiz um aceno afirmativo.
Mordi os nós dos dedos, tentando me controlar para o que viria a seguir.
Crumley olhou para meu rosto. As lágrimas chegaram.
— Era Roy, mesmo — disse Crumley.
— Ele está vivo! Ele está vivo de verdade.
— Calma. — Crumley colocou outra cerveja em minha mão. — Abaixe a
cabeça.
Curvei a cabeça para baixo a fim de que ele pudesse massagear minha
nuca. As lágrimas escorreram pelo nariz.
— Eu sabia! Graças a Deus ele está vivo.
— Por que ele não ligou antes?
— Talvez estivesse com medo — sugeri, olhando para o chão. — É como
eu disse: estão fechando o estúdio. Talvez quisesse que eu acreditasse que ele
estava morto, para que ninguém me ameaçasse. Talvez ele saiba mais sobre o
Monstro do que nós.
Balancei a cabeça.
— Olhos fechados — recomendou Crumley, massageando minha nuca.
— Boca fechada.
— Meu Deus, ele está numa armadilha, não pode sair. Ou não quer. Está
escondido. Precisamos salvá-lo!
— Salvar uma ova! — disse Crumley. — Em que cidade ele está?
Boston? Uganda? O Teatro Ford? Nós podemos levar um tiro. Existem noventa e
nove lugares onde ele poderia estar escondido, mas não adianta ficarmos lá como
dois bobos, gritando para que ele saia e seja morto em seguida. Faça sozinho esse
passeio no estúdio!
— Crum, seu covarde...
— Não sou corajoso, nem burro.
— Está quebrando meu pescoço!
— Agora achei o lugar!
De cabeça baixada, deixei que ele transformasse meus tendões enrijecidos
numa geléia quente. Do interior da escuridão de minha mente, perguntei:
— Então?
— Deixe-me pensar, que diabo! — disse ele, massageando com força
meu pescoço. — Nada de pânico. Se Roy está lá, precisamos descascar a cebola
inteira, camada por camada, até encontrá-lo na hora e lugar certos. Sem gritos
nem avalanches prestes a cair sobre nós.
As mãos de Crumley agora estavam atrás de minhas orelhas, como as de
um pai.
— O problema todo deve estar relacionado com o pavor que sentiram de
Arbuthnot.
— Arbuthnot... — repetiu Crumley. — Você disse que ele está enterrado
do outro lado do muro, perto do estúdio? Tem certeza de que ele está enterrado
lá?
— Vi o nome dele escrito numa das tumbas.
— Você está falando de letras, e eu estou falando de cadáveres. Sentei e
encarei Crumley.
— Está querendo dizer: Quem está na tumba do general Grant?
— Isso, como a velha piada. Como sabemos se o general Grant ainda está
lá?
— Não sabemos! Ladrões profanaram o túmulo dele duas vezes. Setenta
anos atrás eles chegaram a carregá-lo para o cemitério quando foram apanhados.
— É mesmo?
— Talvez...
— Talvez? — gritou Crumley. — Meu Deus, acho que vou deixar
crescer mais cabelo para poder arrancar! Vamos verificar o túmulo de Arbuthnot?
— Bem...
— Não diga “bem”, que diabo! — Crumley esfregava furiosamente sua
careca. — Você vem afirmando que o homem na escada era Arbuthnot. Pode
ser! Alguém pode muito bem ter roubado o corpo verdadeiro para verificar se
encontrava veneno. Por que não? Talvez o desastre de carro não tenha acontecido
porque ele estivesse bêbado, e sim envenenado, morrendo ao volante. Quem quer
que tenha interesse em fazer uma autópsia vinte anos depois pode coletar provas
de assassinato para fazer chantagem, depois fabricar o boneco para assustar o
pessoal do estúdio, e pronto: dinheiro em caixa.
— Crum, isso é terrível.
— Não passa de adivinhação, teoria, papo. Só existe um jeito de ter
certeza. — Crumley consultou seu relógio. — Esta noite. Vamos bater à porta de
Arbuthnot. Ver se ele está em casa, ou se alguém veio apanhar as entranhas dele
para profetizar alguma coisa, e assustar as legiões de César a ponto de urinarem
sangue. Pensei no cemitério. Finalmente, disse:
— Não adianta ir até lá, a menos que levemos um detetive de verdade!
— Como, de verdade? — Crumley recuou.
— Um sabujo!
— Sabujo? — Crumley olhou para meu rosto. — Esse sabujo por acaso
mora na esquina da Rua Temple com Figueroa? No terceiro andar?
— Num cemitério à meia-noite, não interessa o que a gente veja, é preciso
um nariz. E isso ele tem.
— Henry? O maior cego do mundo?
— Sempre foi — respondi.
- 53 -
Eu ficara em frente à porta de Crumley e ela se abrira.
Eu fora à praia de Constance Rattigan, e ela saíra das ondas do mar.
Agora eu estava no soalho sem tapete do velho prédio de apartamentos
onde eu morara com sonhos futuros no teto, nada nos bolsos, e papel vazio
aguardando em minha máquina portátil Smith-Corona.
Parei à frente da porta de Henry e senti meu coração batendo
rapidamente, pois imediatamente abaixo ficava o aposento onde minha querida
Fannie morrera, e essa era a primeira vez que eu retornava desde aqueles dias
tristes em que bons amigos partiram para sempre.
Bati à porta.
Escutei o bater de uma bengala e o pigarrear de uma garganta. O assoalho
gemeu.
Escutei a testa escura de Henry tocar a parte interna da porta.
— Conheço essa batida — murmurou ele. Bati novamente.
— Não acredito. — A porta se abriu. Os olhos cegos de Henry fitaram o
nada.
— Deixe-me cheirar fundo.
Ele inalou, eu exalei. Uma combinação perfeita.
— Jesus! — A voz de Henry estremeceu como a chama de uma vela ao
vento marinho. — Chiclete de hortelã! Você!
— Eu mesmo, Henry — confirmei, suavemente. As mãos dele se
estenderam. Agarrei ambas.
— Por Deus, rapaz, seja bem-vindo.
— Que bom.
Ele me agarrou e me deu um abraço, depois percebeu o que havia feito e
recuou.
— Desculpe...
— Não Henry. Mais uma vez.
E ele me deu um segundo e longo abraço.
— Por onde tem andado, garoto, já faz tanto tempo... Henry continua aqui
neste maldito lugar enorme que eles vão botar abaixo.
Ele virou-se, caminhou de volta para a cadeira, e suas mãos encontraram e
inspecionaram dois copos.
— Estão limpos como eu acho que estão?
Dei uma olhada e assenti com a cabeça. Em seguida lembrei-me e disse:
— Sim, senhor.
— Não quero passar nenhum micróbio para você, filho. Vamos ver... aqui
está. — Ele apanhou na gaveta uma garrafa grande de uísque de ótima marca. —
Você bebe isto?
— Com você, sim.
— Isso é que é amizade! — Ele serviu duas doses generosas, e estendeu o
copo. De alguma forma, minha mão estava lá.
Acenamos com as bebidas e lágrimas escorreram pelas bochechas negras
dele.
— Acho que não sabia que negros cegos também choram, sabia?
— Agora sei, Henry.
— Deixe-me ver — disse ele, estendendo a mão na direção do meu rosto.
Depois levou o dedo à própria boca. — Salgado. Que coisa! Você é tão banana
quanto eu.
— Sempre fui.
— Nunca mude, garoto. Onde tem andado? A vida tem machucado você?
Por que veio até aqui... — ele se interrompeu. — Oh, oh! Problemas?
— Sim e não.
— Mais sim do que não, certo? Tudo bem. Não pensei, quando você saiu
por conta própria, que voltaria logo. Quero dizer, essa não é a parte da frente do
elefante, é?
— Também não é a parte traseira.
— Mas é mais perto de lá — Henry riu. — Como é bom ouvir sua voz,
garoto. Sempre achei que você cheirava bem. Quero dizer, se é que existe um
cheiro de inocência, é o seu, mascando dois chicletes de hortelã de cada vez. Mas
você não está sentado. Sente. Deixe que eu conte meus problemas, depois você
me conta os seus. Eles demoliram o ancoradouro de Venice, e também a estação
de trens... botaram tudo abaixo. Na semana que vem, vão demolir este prédio.
Para onde vão os ratos? Como poderemos abandonar o navio sem salva-vidas?
Diga.
— Tem certeza?
— Eles têm cupins trabalhando em tempo integral, lá embaixo.
Esquadrões de dinamitadores no telhado, marmotas e castores mastigando as
paredes, e um bando de trombeteiros aprendendo Jerico, Jerico, ensaiando aí no
beco para derrubar este lugar. Depois disso, para onde eu vou? Não sobraram
muitos de nós. Com Fannie morta, Sam bêbado até morrer, e Jimmy afogado na
banheira, era só uma questão de tempo antes que todos st sentissem bafejados,
cutucados, por assim dizer, pela velha Morte. Melancolia tétrica e depressiva é o
suficiente para limpar uma casa de cômodos em época de desespero. Deixe um só
rato contaminado entrar e pode ter certeza de que a praga toma conta de tudo.
— A coisa está tão ruim assim, Henry?
— De mal a pior, mas tudo bem. Era hora de mudar, de qualquer maneira.
A cada cinco anos, é bom apanhar a escova de dentes, comprar meias novas e
partir, é o que eu sempre digo. Você tem um lugar para me acomodar, garoto? Eu
sei, eu sei, que são todos brancos por lá. Mas, que diabo, eu não enxergo,
portanto que diferença faz?
— Tenho um quartinho na minha garagem, onde eu trabalho. É seu!
— A Providência Divina chega rápido... — Henry recostou-se em sua
cadeira, passando a mão na boca. — Será que isso é mesmo um sorriso? Não se
preocupe, é só por dois dias! — acrescentou, rapidamente. — O vagabundo do
marido da minha irmã vem de carro de New Orleans para me levar para casa.
Então eu deixo você em paz... - Ele parou de sorrir, e inclinou-se em minha
direção. — Cheiro de sovaco lá fora de novo? No mundo exterior?
— Não é bem cheiro de sovaco, Henry. Algo parecido.
— Não muito parecido, eu espero.
— É mais do que isso — completei, depois de um momento. — Pode vir
comigo, agora? Detesto apressar você, Henry. E sinto muito que tenha de sair à
noite.
— Não precisa se desculpar, garoto — Henry riu, suavemente. — Dia e
noite são apenas boatos que eu escutei uma vez, quando era criança.
Ele levantou-se, tateando em volta.
— Espere um pouquinho, até eu achar minha bengala — disse ele. —
Para que eu possa enxergar.
- 54 -
Crumley, o cego Henry e eu chegamos às imediações do cemitério à
meia-noite. Hesitei, olhando para o portão.
— Ele está lá — declarei, fazendo um gesto em direção aos portões. — O
Monstro correu por aí algumas noites atrás. O que fazemos se o encontrarmos
saindo?
— Não tenho a menor idéia — disse Crumley, passando pelo portão.
— Ora, por que não? — comentou Henry. E me deixou sozinho, na
calçada vazia. Alcancei os dois.
— Esperem um pouco. Deixe-me respirar fundo — pediu Henry,
inspirando e soltando o ar em seguida. — É isso aí. Um cemitério mesmo!
— Isso o incomoda, Henry?
— Não, as pessoas mortas não significam nada — disse Henry. — São os
vivos que me tiram o sono. Querem saber como sei que aqui não é simplesmente
mais um jardim? Os jardins são sempre repletos de cheiros de flores, vários tipos
misturados. Mas os cemitérios? A maior parte são angélicas. Dos funerais.
Sempre detestei enterros por causa desse cheiro. Como estou me saindo, detetive?
— Muito bem, mas... — Crumley nos conduziu para fora das luzes. — Se
ficarmos aqui muito tempo, alguém vai concluir que precisamos ser enterrados, e
é capaz de resolver fazer isso por nós. Vamos lá.
Passou a andar rapidamente entre as tumbas de um branco leitoso.
Monstro, pensei, onde está você?
Olhei de volta para o carro de Crumley e senti como se fosse um amigo
que ficava mil quilômetros para trás.
— Você ainda não me explicou por que quis trazer um cego a um
cemitério — lembrou Henry. — É do meu olfato que está precisando?
— Do seu e do sabujo dos Baskerville — disse Crumley. — Por aqui.
— Não me toque — pediu Henry. — Tenho o nariz de um cão de caça,
mas meu orgulho é de gato. Lá vamos nós, dona Morte.
E ele nos conduziu por entre os túmulos, tateando com a bengala para a
esquerda e a direita, como se fosse para desalojar grandes pedaços da noite, ou
produzir faíscas onde elas nunca existiram.
— Como estou me saindo?
Não acerte no Monstro, pensei, sem dizer nada.
— No país que não existe... — murmurou Elmo Crumley.
Ele contava as lápides, obeliscos e jazigos, e não conseguiu evitar
completar o poema, em sussurros:

No país que não existe Nada existe, que existisse Vinganças se tornam
poeira O que odeia perde a ira

Fez uma pausa, depois recitou o final:

Amantes, dois a dois deitados. Não perguntam quem dorme ao lado E o
noivo passa a noite inteira Sem se entregar à brincadeira.

— Balela — resmungou ao final.
Fiquei de pé ao lado de Henry, entre as pedras de mármore com nomes e
datas, a grama crescendo silenciosamente entre os espaços vazios.
Henry farejou o ar.
— Estou sentindo o cheiro de um grande pedaço de pedra. Vamos ver.
Que tipo de braile é esse?
Ele passou a bengala para a mão esquerda enquanto a direita tateava sobre
a lápide o nome cinzelado em cima da porta da tumba grega.
Os dedos tremeram sobre o “A” e imobilizaram-se no “T” final.
— Conheço esse nome. — Henry consultou um arquivo no escuro de sua
mente, por trás dos olhos brancos como bolas de bilhar. — Não seria ele o
famoso proprietário do estúdio do outro lado do muro, que morreu muito tempo
atrás?
— Exatamente.
— O homem que tinha lugar em todas as diretorias e não tinha sala? Que
preparava as próprias mamadeiras, trocava as próprias fraldas e comprou seu
quadrado com dois anos e meio? Aos três ele despediu a professora do jardim-de-
infância, mandou dez meninos para a enfermaria aos sete, perseguia as meninas
aos oito e conseguia apanhá-las aos nove. Com dez anos possuía um
estacionamento, e aos doze ganhou o estúdio, quando o pai morreu e deixou para
ele Londres, Roma e Bombaim. É esse?
— Henry — suspirei. — Você é maravilhoso.
— Isso dificulta as coisas para as pessoas que convivem comigo —
admitiu Henry, baixinho.
Estendeu a mão para tocar novamente o nome gravado no mármore e a
data abaixo dele.
— Trinta e um de outubro, 1934. Dia das Bruxas! Vinte anos atrás.
Imagino como deve ser, estar morto há tanto tempo. Vamos lá perguntar.
Alguém lembrou de trazer ferramentas?
— Trouxe um pé-de-cabra, do carro — informou Crumley.
— Ótimo. — Henry estendeu a mão. Seus dedos tocaram a porta do
jazigo. — Com mil demônios!
A porta deslizou nas dobradiças lubrificadas. Sem o mínimo ruído!
Nenhum guincho! Perfeitamente lubrificada!
— Pelo amor de Deus! Está aberto! — Henry deu um passo para trás. —
Desde que vocês têm mais sentidos do que eu... vão na frente.
Encostei na porta. Ela deslizou suavemente para as sombras.
— Aqui.
Crumley passou por mim, acendeu sua lanterna e penetrou na escuridão.
Fui atrás dele.
— Não me deixem aqui sozinho — disse Henry.
— Fechem a porta — lembrou Crumley. — Não queremos que ninguém
veja a luz da lanterna...
Hesitei. Já assistira a muitos filmes onde as portas pesadas se fechavam e
as pessoas ficavam presas, gritando, para sempre. E se o Monstro estivesse
rondando por ali?
— Vamos logo! — Crumley adiantou-se e fechou a porta, deixando
apenas uma fresta para que o ar penetrasse. — Pronto!
O aposento estava vazio, à exceção de um grande sarcófago de pedra ao
centro. Mas não havia tampa. No interior do sarcófago deveria haver um caixão.
— Pôrra! — exclamou Crumley.
Olhamos para baixo. Não havia nenhum caixão.
— Não digam nada! — pediu Henry. — Deixe-me colocar os óculos
escuros para me ajudar a sentir melhor os cheiros! Pronto!
Enquanto olhávamos para baixo, Henry curvou-se, respirou fundo,
assumiu um ar pensativo por trás dos óculos escuros, exalou, balançou a cabeça e
repetiu tudo outra vez. Depois seu rosto iluminou-se.
— Não há nada aí! Estou certo?
— Certo.
— J.C. Arbuthnot, onde está você? — perguntou Crumley.
— Aqui não está — respondi.
— E nunca esteve — acrescentou Henry.
Olhamos rapidamente para ele. Ele assentiu, parecendo contente consigo
mesmo.
— Ninguém com esse nome, ou com outro nome qualquer esteve aqui.
Nunca. Se tivesse havido alguém, eu sentiria algum cheiro, entende? Bastaria um
floco de caspa, uma unha, um pelinho do nariz. Não sinto nem mesmo cheiro de
flores ou incenso. Este lugar, meus amigos, nunca foi usado, nem mesmo por
uma hora. Se estou errado, corto fora meu nariz!
Foi como se água gelada escorresse pela minha espinha e para fora dos
sapatos.
— Meu Deus! — exclamou Crumley. — Por que eles construiriam um
jazigo para não colocar ninguém dentro, e fingir que sim?
— Talvez nunca tenha existido um corpo — sugeriu Henry.
— Mas existiu — argumentei. — Eu estava lá, há vinte anos. Vi o carro
fúnebre.
— Só porque você viu um carro fúnebre não quer dizer que existiu um
enterro.
— Foi um enterro de caixão aberto? — perguntou subitamente Crumley.
Dirigi minhas lembranças para as fotografias dos jornais naquela época.
— O funeral foi com o caixão fechado — disse eu.
— Certo! Cinco mil pessoas, sem nenhum cadáver, e ninguém sabia
disso. Pelo amor de Deus!
— Eu...
A porta do jazigo fechou-se de repente.
Henry, Crumley e eu gritamos assustados. Agarrei Henry, e Crumley
agarrou a nós dois. A lanterna caiu. Xingando, abaixamo-nos e batemos nossas
cabeças; com as respirações alteradas, esperamos e escutamos a porta trancar-se
sobre nós. Agitamo-nos desajeitadamente, conseguindo achar a lanterna e
agitando o cone de luz em direção à porta, desejando a vida, a luz e o ar noturno
que havia do lado de fora.
Chegamos juntos até a porta.
Por Deus, estava mesmo trancada!
— Como vamos sair deste lugar?
— Não é possível — eu repetia sem parar.
— Calem a boca — pediu Crumley. — Deixem-me pensar.
— Então pense rápido — disse Henry. — Quem quer que tenha trancado
a gente deve ter ido buscar ajuda.
— Talvez tenha sido só o zelador — sugeri, sem muita convicção. Não,
pensei a seguir, foi o Monstro.
— Me dê a lanterna. Isso. — Crumley dirigiu o facho de luz para cima e
ao redor de nós. — As dobradiças ficam do lado de fora, não podemos chegar até
elas.
— Bem, suponho que não haja nenhuma outra porta neste lugar — disse
Henry.
Crumley dirigiu a luz para o rosto de Henry.
— O que foi que eu disse? — indagou o cego.
Crumley desviou a lanterna, passando além de Henry e iluminando o
sarcófago. Examinou o teto e o chão, pelos cantos e até a pequena janela na parte
de trás, tão pequena que nem mesmo um gato passaria por ali.
— Acham que podemos gritar por ali?
— Quem quer que viesse atender, seria indesejável — lembrou Henry.
Crumley continuou movimentando o facho em círculos.
— Outra porta — repetia ele. — Tem de haver outra porta!
— Tem de haver! — ecoei.
Senti os olhos lacrimejando abundantemente e uma forte secura na
garganta. Imaginei escutar fortes pisadas entre os túmulos, amassando as sombras,
chamando-me de Clarence e desejando que eu estivesse morto. Imaginei a porta
se abrindo e uma tonelada de livros, fotos assinadas e autógrafos entravam para
nos sufocar.
— Crumley? — Agarrei a lanterna. — Me dê isso aqui!
Só havia mais um lugar para procurar. Dei uma olhada no interior do
sarcófago. Aproximei o rosto e respirei fundo pela descoberta feita.
— Vejam! Essas coisas aí dentro — disse eu, apontando. — Não sei o
que são... parecem marcas, frestas, ou algo parecido. Nunca vi estas coisas numa
tumba antes. E vejam aqui, na junta, parece que a luz passa lá para baixo. Ei,
esperem um pouco!
Saltei para a borda do sarcófago, equilibrei-me e olhei para as formas
regulares no fundo.
— Cuidado! — avisou Crumley. Pulei no interior do sarcófago.
Ouviu-se um ruído de mecanismos bem lubrificados. O jazigo inteiro
pareceu vibrar quando algum contrapeso de deslocou.
Afundei juntamente com o piso do sarcófago. Meus pés dissolveram-se na
escuridão. Em seguida foram minhas pernas. Fiquei apoiado num plano inclinado
quando o fundo parou de mover-se.
— São degraus! — gritei. — É uma escada!
— O quê? — Henry inclinou-se sobre mim. — É isso aí!
O fundo do sarcófago, inclinado, parecia com uma série de meias
pirâmides. O desenho formava perfeitos degraus para um jazigo mais profundo.
Dei um passo para baixo.
— Venham!
— Como, venham? — disse Crumley. — O que diabos é isso aí
embaixo?
— E o que temos aqui? — retruquei, apontando a porta fechada.
— Droga! — Crumley saltou para alcançar Henry, que se movera como
um gato.
Dei um passo para baixo, tremendo e balançando a lanterna. Henry e
Crumley vieram atrás, xingando e bufando.
Mais um lance de degraus mesclava-se com os do fundo do sarcófago,
descendo os três metros adicionais até o fundo da catacumba. Quando Crumley,
finalmente, terminou de descer, o fundo fechou-se com estrépito. Dei uma olhada
para cima e vi um contrapeso suspenso na penumbra. Um grande anel de ferro
pendia do fundo falso. Do lado de baixo podia-se usá-lo para puxar a escada para
baixo.
Tudo aconteceu num átimo.
— Odeio este lugar — disse Henry.
— O que você sabe sobre isso? — quis saber Crumley.
— Não gosto daqui! Escute!
Lá em cima, o vento, ou alguma coisa, sacudia a porta externa. Crumley
moveu o facho da lanterna para cima.
— Agora sou eu que não gosto deste lugar.
Havia uma porta na parede, a três metros de distância. Crumley apoiou
seu peso nela. Acabou abrindo. Com Henry entre os dois, passamos por ela. A
porta bateu atrás de nós. Desatamos a correr.
Fugindo, ou indo ao encontro do Monstro?
— Não olhe! — gritou Crumley.
— Como assim, não olhe? — Henry agitava sua bengala no ar, batia no
chão de pedra com os sapatos, no meio de nós dois.
— É só não olhar, que diabo! — gritou Crumley, à frente.
Mas eu vira por onde corríamos, batendo nas paredes, dando de encontro
a pilhas de ossos, pirâmides de crânios, caixões quebrados e destroços funerários
em geral; era como um campo de batalha dos defuntos; urnas mortuárias em
pedaços, fragmentos de estátuas, ícones destruídos, como se uma longa procissão
fúnebre tivesse interrompido seu trajeto e largado tudo no meio da cerimônia para
fugir, como nós mesmos fazíamos usando um único cone de luz, que passava
pelo teto cheio de musgo, iluminando pequenos nichos quadrados, de onde nos
sorriam dentes sobre ossos descarnados.
Como não olhe!, pensei. Não pare, isso sim! Quase derrubei Henry,
bêbado de medo. Ele vibrou sua bengala como se fosse me acertar, e moveu as
pernas como um demônio míope.
Passamos de um território para outro, de uma fileira de ossos para uma
fileira de latas de filmes, de sepulcros de mármore para sepulcros de concreto, e
subitamente nos vimos no velho território em preto-e-branco. Os nomes
desfilaram nos rótulos das embalagens de filmes.
— Onde diabo nós estamos? — indagou Crumley.
— Rattigan! — ouvi minha própria voz exclamar. — Botwin! Meu Deus!
Estamos no depósito da Maximus! Além, embaixo do outro lado do muro!
De fato, estávamos no depósito subterrâneo de filmes que Botwin e
Rattigan haviam mencionado, em paisagens de penumbra que haviam regurgitado
de vida nos anos 20, 22 e 25. Não eram túmulos de ossos, e sim de velhas tiras de
celulóide, que Constance mencionara quando passáramos de carro. Olhei em
volta na escuridão para ver assombrações reais dando lugar aos fantasmas dos
filmes. Os títulos passavam por mim: O Traiçoeiro Dr. Eu Manchu. O Pirata
Negro. Não apenas títulos da Companhia Cinematográfica Maximus, mas
também de outros estúdios, emprestados ou roubados.
Fiquei dividido. Metade de mim evitando olhar a caverna suja, outra
metade querendo ver, tocar esses antigos fantasmas do passado que haviam
assombrado a parte da infância que eu passara escondido nas matinês.
Gritei sem emitir nenhum som. Não podia sair dali! Chaney! Fair-banks!
O homem na maldita máscara de ferro! Nemo sob o mar! D'Artagnan! Esperem
por mim! Eu voltarei! Se conseguir sobreviver, claro! Logo.
Tudo tornou-se uma algaravia de medo e frustração, uma onda de súbita
adoração e medo instantâneo fomentando meus pensamentos.
Não olhe muito para esses tesouros, pensei. Lembre-se do escuro. Corra!
E por Deus, não pare!
Nossos ecos nos alcançaram, transformando-se em uma onda acústica de
pânico. Todos gritamos e corremos os últimos trinta metros, Crumley balançando
a lanterna como um macaco enlouquecido; eu e o cego Henry colidimos com ele,
quando parou ao atingir uma porta.
— Meu Deus, se estiver trancada...
Gelei, lembrando-me de velhos filmes. A porta se abre: um dilúvio inunda
Nova York e suga a gente para os poços escuros de água salgada. A porta se abre
e os fogos do inferno explodem a gente em pequenos pedaços mumificados. A
porta se abre e monstros do tempo agarram a gente com garras nucleares e nos
arrastam para uma sepultura sem fim. A gente cai para sempre, gritando.
Minha mão suava ao tocar a maçaneta. Guanajuato parecia estar atrás da
madeira. Pensei no longo túnel no México onde eu tivera certa feita uma
experiência horrível, vendo cento e dez homens, mulheres e crianças,
mumificados, com a pele cor de tabaco, arrancados de suas sepulturas para ficar
enfileirados à espera dos turistas e do dia do julgamento.
Guanajuato aqui?, pensei. Não!
Empurrei a porta, que deslizou silenciosamente sobre dobradiças
perfeitamente lubrificadas.
Houve um momento de choque.
Entramos, assustados, e fechamos a porta.
Voltamo-nos.
Havia uma grande cadeira bem próxima.
E uma escrivaninha vazia.
Com um telefone branco no centro do tampo.
— Onde estamos? — perguntou Crumley.
— Pela maneira como está respirando, o garoto sabe — disse Henry. A
lanterna de Crumley passeou pela sala.
— Santa Mãe de Deus... — suspirei. Eu estava olhando para...
A poltrona de Manny Leiber.
A escrivaninha de Manny Leiber.
O telefone de Manny Leiber.
O escritório de Manny Leiber.
Voltei-me para ver o espelho que ocultava a porta agora invisível.
Meio tonto de exaustão, olhei para minha própria imagem naquele
espelho frio.
E subitamente...
Mil novecentos e vinte e seis. A cantora de ópera em seu camarim, e uma
voz atrás do espelho guiando-a, ensinando-a, desejando que ela desse um passo
para atravessar o espelho, uma Alice de terror... diluída em imagens, dissolvendo-
se nas sombras do subterrâneo, conduzida pelo homem de capa escura e máscara
branca para uma gôndola que flutuava nas águas sujas do canal para um palácio
oculto sob a terra e uma cama em formato de ataúde.
O espelho do fantasma!
A passagem secreta do fantasma para a terra dos mortos.
E agora...
A cadeira, a escrivaninha, o escritório.
Mas não do fantasma. Do Monstro.
Afastei a cadeira.
O Monstro... vindo visitar Manny Leiber?
Tropecei e recuei.
Manny, pensei. Aquele que nunca dava ordens de verdade, mas
simplesmente as recebia. Uma sombra, sem substância. Um coadjuvante, não o
ator principal. Dirigir um estúdio? Não. Ser uma linha telefônica para transmitir
outras vozes? Sim. Um mensageiro. Um office-boy servindo cigarros e
champanhe, claro! Mas sentar-se naquela cadeira? Ele nunca sentara ali.
Porque...?
Era a cadeira do Monstro.
Crumley apressava Henry.
— Vamos indo!
— O quê? — indaguei, ainda tonto.
— Alguém vai passar por aquele espelho a qualquer minuto!
— Espelho? — perguntei. Estendi a mão.
— Não! — gritou Crumley.
— O que ele quer fazer? — quis saber Henry.
— Estou olhando para trás — expliquei. Abri a porta escondida pelo
espelho.
Olhei pelo longo túnel, impressionado com a extensão que corrêramos, de
país a país, de mistério em mistério, ao longo de vinte anos, de um Dia das
Bruxas para outro. O túnel passava dos arquivos de filmes mortos para os
relicários inomináveis. Será que eu teria corrido aquilo tudo sem Crumley e
Henry para afastar as sombras enquanto meu coração batia contra as paredes?
Ouvi atentamente.
A distância, será que as portas batiam? Seria um exército a nos perseguir,
ou simplesmente o Monstro? Será que em pouco tempo uma arma mortal lançaria
crânios, explodiria o túnel e me lançaria para trás? Será...
— Que diabo! — exclamou Crumley. — Seu idiota! Saia daí! Ele puxou
minha mão. O espelho fechou.
Agarrei o fone e disquei.
— Constance! — gritei. — Green Town. Constance respondeu.
— O que ela disse? — Crumley perscrutava meu rosto. — Deixe para
lá... Pois o espelho tremia. Fugimos correndo.
- 55 -
O estúdio estava tão vazio e desolado quanto o cemitério do outro lado do
muro.
As duas cidades encaravam uma à outra através do ar noturno e
simulavam mortes parecidas. Éramos os únicos seres quentes a mover-se pelas
ruas. Talvez em algum lugar Fritz estivesse filmando cenas noturnas da Galiléia,
com braseiros, Cristos e pegadas desmanchadas pelo vento da aurora. Em algum
lugar, Maggie Botwin curvava-se sobre seu telescópio, examinando as vísceras
da China. Em algum lugar, o Monstro enraivecido pretendia nos seguir, ou
permanecer oculto.
— Calminha! — pediu Crumley.
— Não estamos sendo seguidos — garantiu Henry. — Podem confiar no
que o cego diz. Para onde vamos?
— Para a casa de meus avós.
— Isso sim é que é uma boa sugestão — aplaudiu Henry. Conversamos
enquanto caminhávamos.
— Meu Deus, será que alguém no estúdio sabe da existência daquela
passagem?
— Se alguém sabe, nunca ouvi nada sobre isso.
— Pense só. Se ninguém soubesse, e o Monstro de fato fosse lá toda noite
ou todo dia e ficasse escutando, depois de algum tempo ele ia saber de tudo.
Todos os negócios, entradas e saídas, tudo o que envolve ações, os escândalos
das mulheres... Bastava juntar informações suficientes para entrar em ação. Jogar
o Guy sobre eles, apanhar o dinheiro e fugir.
— Guy?
— O boneco de Guy Fawkes, um espantalho com fogos de artifício
dentro, que os ingleses jogam na fogueira no dia de Guy Fawkes, 5 de novembro,
na Inglaterra. É como a malhação do Judas e o Dia das Bruxas, só que possui um
cunho político-religioso. Esse sujeito, Fawkes quase acabou com o Parlamento.
Quando conseguiram apanhá-lo, ele foi enforcado. Temos algo parecido aqui no
estúdio. O Monstro quer minar a Maximus. Não literalmente, mas dividindo as
pessoas com suspeitas. Assustando a todos. Agitando um boneco na direção
deles. Talvez os esteja aterrorizando há anos. Ninguém é mais esperto do que ele.
É como alguém de dentro usando todas as informações secretas.
— Calma aí! — disse Crumley. — Está certinha demais essa história. Está
querendo insinuar que ninguém sabe que o Monstro fica atrás do espelho da
parede.
— Exato.
— Então por que o estúdio, ou seu patrão, que faz parte dele, tem um
ataque de apoplexia quando vê o busto de argila do Monstro?
— Bem...
— Será que Manny sabe que o Monstro está lá e tem medo dele? Será
que o Monstro entrou no estúdio à noite, viu o trabalho de Roy e destruiu-o num
acesso de raiva? E agora Manny tem medo que Roy faça chantagem com ele
porque sabe que o Monstro existe e ninguém mais sabe? O quê, o quê, o quê?
Responda rápido!
— Por Deus, Crumley! Silêncio!
— Como, silêncio? Que tipo de conversa é essa?
— Fique quieto, estou pensando.
— Claro, estou ouvindo as engrenagens funcionarem. Pode escolher.
Qual das teorias? Ou todos ignoram quem se esconde para escutar por trás do
espelho e temem o desconhecido, ou eles sabem e têm duas vezes mais medo
porque o Monstro deve ter reunido tanta sujeira nesses anos todos, que pode ir
aonde bem entenda, apanhar seu dinheiro e voltar correndo por baixo do muro.
Eles não ousam enfrentá-lo. Ele provavelmente tem algumas cartas com algum
advogado, com ordens de enviá-las no dia em que algo aconteça a ele. Já
imaginou o pânico de Manny, mandando lavar as cuecas dez vezes por dia? Pois
bem, qual delas vai ser? Ou você tem uma terceira versão?
— Não me deixe nervoso. Se você forçar demais, vou entrar em parafuso.
— Que diabos, garoto, é a última coisa que eu quero que aconteça —
disse Crumley, curvando a boca como se estivesse chupando limão.
— Desculpe ter deixado você com medo, mas tenho de ficar
acompanhando suas hipóteses pela metade. Acabei de correr por um túnel
perseguido por uma colméia de criminosos que você despertou. Será que topamos
com um bando da Máfia ou um só franco-atirador maníaco? Promessas,
promessas... Onde está Roy? Onde está Clarence, onde está o Monstro? Me dê
um cadáver, um só. Pois bem?
— Espere um pouco. — Parei, fiz meia-volta e afastei-me.
— Aonde vai? — perguntou Crumley.
Ele me seguiu pela encosta do pequeno monte.
— Onde estamos?
Ele olhava para todos os lados pela noite escura.
— No Calvário.
— E o que tem ali diante?
— Uma cruz. Três cruzes, na verdade.
— E...?
— Você não estava se queixando da falta de cadáveres?
— E daí?
— Estou com um pressentimento terrível.
Estendi minha mão e toquei a base da cruz. Ela ficou pegajosa e exalou
um odor acre como a vida.
Crumley fez o mesmo. Cheirou as pontas dos dedos e balançou a cabeça,
identificando a substância.
Olhamos para cima, ao longo da cruz contra o céu negro.
Depois de alguns instantes nossos olhos se acostumaram à escuridão.
— Não há nenhum corpo aí — observou Crumley.
— Eu sei, mas...
— É o que eu imaginava — disse Crumley, saindo na direção de Green
Town.
— J.C.? — sussurrei. — J.C.?
— Não fique simplesmente parado aí — gritou Crumley, do sopé da
colina.
— Não estou só parado aqui!
Contei até dez, devagar, limpei meus olhos com as mangas, assoei o nariz
e desci.
Conduzi Henry e Crumley pelo caminho para a casa de meus avós.
— Estou sentindo cheiro de gerânios e lilases — afirmou Henry,
levantando o rosto.
— Isso mesmo.
— Grama cortada, mobília polida e muitos gatos.
— O estúdio precisa acabar com os ratos. Temos de subir oito degraus
agora, Henry.
Paramos na varanda, ofegantes.
— Meu Deus! — exclamei, olhando para as colinas de Jerusalém além de
Green Town, do mar da Galiléia e do Brooklin. — Eu devia ter percebido antes.
O Monstro não foi para o cemitério, ele estava entrando no estúdio! Que
sistema... Usando um túnel do qual ninguém suspeita, para espionar as vítimas de
sua chantagem. Veja como ele conseguiu assustá-los com aquele corpo no muro,
pegar o dinheiro, assustá-los novamente e voltar para pegar mais!
— Se é que era isso mesmo o que ele fazia — lembrou Crumley. Respirei
entrecortadamente, prendi o fôlego e finalmente exalei.
— Existe mais um corpo que eu deixei de entregar a você.
— Prefiro não ouvir — disse Crumley.
— O de Arbuthnot.
— Tem razão!
— Alguém o roubou.
— Não senhor! — protestou Henry. — Ele nunca esteve lá. O lugar
estava limpo, aquele mausoléu gelado.
— Então onde está o corpo? — perguntou Crumley.
— O detetive aqui é você.
— Que tal isto: uma festa do Dia das Bruxas com bebidas. Alguém
envenena um copo e serve a Arbuthnot pouco antes que ele saia. Arbuthnot,
dirigindo, morre ao volante e tira o outro carro da estrada. Ocorre uma operação
de cobertura. A autópsia mostra que existe veneno bastante no corpo para matar
um elefante. Antes do funeral, em vez de enterrar a prova, eles cremam o
cadáver. Arbuthnot desaparece pela chaminé. O ataúde vazio é colocado no
jazigo, onde o nosso Henry descobre tudo.
— Descobri mesmo, não foi? — disse Henry.
— O Monstro, sabendo que a tumba está vazia, e talvez o motivo para
isso, avista 9 boneco de Arbuthnot na escada e fica observando as formigas em
polvorosa no piquenique do outro lado do muro.
— Isso ainda não explica nada sobre Roy, Clarence, ou o Monstro —
lembrei.
— Deus me livre desse sujeito!
O pedido de Crumley foi atendido.
Ouvimos um ruído pavoroso nas ruas do estúdio, alguns disparos do cano
de escapamento, buzinadas e um grito.
— É Constance Rattigan — observou Henry.
Constance estacionou em frente à velha casa e desligou o motor.
— Mesmo quando ela desliga a ignição, ainda escuto o motor dela
funcionando — disse Henry.
Fomos encontrá-la na porta da frente.
— Constance! Como conseguiu passar pelo guarda? — indaguei.
— Foi fácil. Ele era um veterano. Lembrei a ele que uma vez eu o tinha
atacado no ginásio masculino. Enquanto ele ficava vermelho de vergonha, eu
entrei! Ora, vejam só... Se não é o cego mais famoso do mundo!
— Ainda está trabalhando naquele farol, orientando os navios? —
perguntou Henry.
— Me dê um abraço.
— Como você está macia...
— E também Elmo Crumley, seu velho filho da mãe!
— Ela nunca está errada — observou Crumley, enquanto suas costelas
eram amassadas por Constance.
— Pois vamos sair já daqui! — disse Constance. — Henry? Vá na frente.
— Já fui — respondeu Henry. Na saída, murmurei:
— O Calvário.
Constance diminuiu a velocidade ao passarmos pela colina.
A escuridão era completa. Não havia luar. Não havia estrelas. Era uma
daquelas noites em que o nevoeiro chega cedo pelos lados do mar e cobre Los
Angeles inteira, numa altura de aproximadamente duzentos metros. Os aeroportos
fecham.
Olhei firmemente para aquela colina esperando encontrar Cristo bêbado,
numa espécie de Ascensão.
— J.C.! — chamei.
Mas as nuvens se afastaram um pouco. Pude ver que as cruzes estavam
vazias.
Três desapareceram, pensei. Clarence afogado em papel, Doc Phillips
suspenso ao meio-dia na escuridão de Notre-Dame, deixando só um sapato. E
agora...
— Vê alguma coisa? — perguntou Crumley.
— Não. Talvez amanhã...
Quando o rock parar de rolar. Isto é, se eu tiver coragem.
Havia um silêncio de expectativa no carro que passava devagarinho.
— Vamos embora — sugeriu Crumley.
— Vamos embora — concordei num murmúrio.
No portão da frente Constance gritou uma obscenidade para o guarda,
que recuou para o interior da cabine. E partimos em direção ao mar e à casa de
Crumley.
- 56 -
Paramos em minha casa, e enquanto eu corria para apanhar meu projetor
de 8 mm, o telefone começou a tocar. Depois do décimo segundo toque, atendi.
— Então? — disse Peg. — Quer dizer que você fica com a mão no
telefone por doze toques seguidos?
— Meu Deus! Intuição feminina.
— O que aconteceu? Quem desapareceu? Quem está dormindo na cama
de Mamãe Ursa? Você não telefonou. Se eu estivesse aí, expulsaria você de casa.
É difícil fazer isso de longa distância, mas saia já daí!
— Está bem. Aquilo a impressionou.
— Espere — pediu ela, assustada.
— Mas você pediu para eu sair, não foi?
— É, mas...
— Crumley está esperando lá fora.
— Crumley! — gritou ela. — Pelo amor de Deus! Crumley!
— Ele está me protegendo, Peg.
— Contra uma crise de pânico? Será que ele precisa fazer respiração boca
a boca? Ele pode fazer com que você coma direito seu desjejum, almoço ou
jantar? Impedir você de chegar perto da geladeira? Ele por acaso muda sua roupa
de baixo?
— Peg!
Ambos rimos um pouquinho.
— Você ia mesmo sair? Mamãe estará em casa na sexta-feira, pelo vôo
sessenta e sete da Panam. Esteja lá, com todos os assassinatos resolvidos, corpos
enterrados e mulheres de rapina expulsas de casa! Se não conseguir chegar ao
aeroporto a tempo, esteja na cama quando mamãe chegar. Você não disse: eu te
amo.
— Peg, eu te amo.
— E mais uma coisa: quem morreu?
No carro estacionado no meio-fio, Henry, Crumley e Constance
aguardavam.
— Minha mulher não quer que eu seja visto com você — disse eu.
— Entre — suspirou Crumley.
- 57 -
No caminho para oeste por uma rua onde não havia nem mesmo
fantasmas, deixamos que Henry contasse o que havia acontecido no muro, abaixo
dele, e do outro lado. Era de certa forma interessante ouvir nossa história contada
por um cego que enfatizava a narrativa com movimentos de cabeça, enquanto o
grande nariz negro cheirava o vento e os dedos ágeis se agitavam, delineando
Crumley aqui, ele mesmo ali, eu abaixo e o Monstro perseguido. Ou algo que
estivera do lado de fora da porta do jazigo, parecido com um deslizamento de
neve que impedisse nossa fuga. Enquanto Henry relatava a história, ficamos com
frio e subimos as janelas do carro. Não adiantou nada. O carro não tinha capota.
— E foi por isso — finalizou Henry, tirando seus óculos escuros para
enfatizar o final — que a chamamos, ó dama maluca de Venice. Para que viesse
em nosso socorro.
Constance olhou nervosamente pelo espelho retrovisor.
— Que diabo! Estamos indo muito devagar.
Ela parou o carro com um solavanco. Nossa cabeças acompanharam.
Crumley destravou a porta da frente.
— Muito bem! Espalhem-se! — gritou Crumley. — Que horas são?
— É tarde — declarou Henry. — Os jasmins noturnos já estão se abrindo.
— Isso é verdade? — quis saber Crumley.
— Não, mas é uma frase muito bonita — disse Henry, curvando-se em
agradecimento perante uma platéia invisível. — Pode servir a cerveja.
Crumley passou a todos as latas de cerveja.
— É melhor que tenha gim aqui dentro — avisou Constance, dando um
gole em seguida. — Puxa, tem mesmo!
Liguei meu projetor, carreguei-o com o filme de Roy Holdstrom, e
apagamos as luzes.
— Tudo pronto? — Liguei o projetor. — Lá vai. O filme começou.
As imagens surgiram na parede da casa de Crumley. Havia
aproximadamente trinta segundos de filme bom, e bastante irregular, como se
Roy tivesse animado seu monstro de argila em apenas algumas horas, em vez de
gastar vários dias, o tempo geralmente necessário para posicionar uma criatura,
fotografar e recomeçar novamente alterando levemente a posição, uma imagem
de cada vez.
— Meu Deus! — sibilou Crumley.
Todos ficamos chocados com o ser que se movia pela parede. Era o
amigo da Bela, a coisa que tínhamos visto no Brown Derby.
— Não quero ver! — exclamou Constance. Apesar disso não tirou os
olhos da imagem.
Dei uma olhadela para Crumley e senti algo parecido com o que sentia
quando meu irmão, sentado a meu lado no escuro do cinema, assistia ao
Fantasma, ou ao Corcunda, ou ao Morcego mover-se na tela. A expressão de
Crumley era como a de meu irmão, trinta anos atrás, fascinado e apavorado ao
mesmo tempo, curioso e enojado, o tipo de olhar que as pessoas apresentam sem
querer quando observam um acidente de trânsito.
Pois a imagem, próxima e real, era o Homem Monstro. Cada contorção
do rosto, cada movimento das sobrancelhas, cada dilatar de narinas, cada
movimento labial estava reproduzido ali, tão perfeitos como os esboços que Doré
fazia quando voltava para casa depois de vagar pelas vielas escuras no meio do
nevoeiro de Londres, com todos os aspectos grotescos gravados nas pálpebras, e
os dedos ansiando para tocar a pena e o papel, e começar! Da mesma forma que
Doré captava, com memória total, os traços principais de todos os rostos, a mente
de Roy fotografara as feições contorcidas do Monstro, sendo capaz de recordar-se
do mais ínfimo movimento do pêlo nas narinas, dos cílios numa piscada, da
flexão das orelhas e da boca infernal salivando continuamente. E, quando o
Monstro olhou para nós da tela, Crumley e eu nos encolhemos. Ele nos vira! Nos
desafiava a gritar! Vinha para nos matar.
A parede escureceu.
Ouvi um sibilar que parecia ser emitido por meus lábios.
— Os olhos... — murmurei.
Tateei no escuro, rebobinei o carretel e recomecei a projeção.
— Vejam só isso!
A câmera captara uma imagem de aproximação do rosto. Os olhos de
aparência selvagem estavam fixos numa loucura inimaginável.
— Isso não é um modelo de argila!
— Não? — espantou-se Crumley.
— É Roy!
— Roy?
— Maquiado, fingindo ser o Monstro!
— Não pode ser!
O rosto inclinou-se, os olhos vivos rolaram nas órbitas.
— Roy...
E a parede escureceu novamente.
Lembrei que o Monstro tinha os mesmos olhos, quando o encontrei na
parte alta de Notre-Dame. Ele retirou-se e fugiu...
— Meu Deus! — Crumley continuava olhando para a parede. — Então
isto é que andou solto por aí no cemitério essas noites todas!
— Ou Roy, solto por aí — sugeri.
— Mas isso é loucura. Por que ele faria uma coisa dessas?
— O Monstro o deixou em má situação, fez com que ele fosse despedido,
quase o matou; quer coisa melhor para fazer do que imitá-lo, ser o próprio
Monstro, no caso de alguém avistá-lo? Roy Holdstrom simplesmente passa a não
existir se colocar essa maquiagem e se esconder.
— Mesmo assim é loucura!
— Ele sempre foi louco, isso é verdade — admiti. — Mas agora? A coisa
é de verdade!
— Mas o que ele ganha com isso?
— Vingança.
— Vingança?
— Um Monstro para matar o Monstro — disse eu.
— Não, não! — Crumley balançava a cabeça. — Não pode ser. Passe de
novo o filme.
Foi o que fiz. As imagens refletiam-se em nossos rostos.
— Esse não é Roy — disse Crumley. — É um modelo de argila,
animado.
— Não é, não. — Desliguei o projetor. Ficamos sentados na escuridão.
Constance produzia sons estranhos.
— Constance? — Voltamo-nos para ela.
— Não sabem o que é isso? — perguntou Henry. — Ela está chorando.
- 58 -
— Estou com medo de ir para casa — declarou Constance.
— Quem disse que você precisa ir? — ofereceu Crumley. — Pegue um
colchão, e escolha qualquer quarto, ou o quiosque no jardim.
— Não. Aquele lugar é dele — murmurou ela.
Todos olhamos para a parede vazia onde a imagem do Monstro ainda
permanecia na retina.
— Ele não nos seguiu — disse Crumley.
— Pode ter seguido. — Constance assoou o nariz. — Eu não ficaria
sozinha esta noite numa casa grande e vazia, ao lado de um oceano cheio de
monstros. Estou ficando velha. Só falta agora pedir a algum idiota que case
comigo, que Deus o ajude. — Ela olhou para a selva de Crumley, onde o vento
noturno agitava as folhas mais elevadas das palmeiras e a grama alta. — Ele está
lá.
— Pare com isso — ralhou Crumley. — Não sabemos nem se fomos
seguidos naquele túnel do cemitério até o escritório. Ou quem bateu a porta do
jazigo. Pode ter sido o vento.
— Sempre é o vento... — Constance tremia como alguém que tivesse
acabado de curar-se de uma longa doença de inverno. — E agora?
Ela afundou na cadeira, tremendo e agarrando os cotovelos.
— Vejam aqui. — Crumley dispôs uma série de fotocópias de artigos de
jornais sobre a mesa da cozinha. Três dúzias de recortes, entre grandes e
pequenos, dos últimos dias de outubro e da primeira semana de novembro de
1934.
A primeira manchete dizia:

ARBUTHNOT, O MAGNATA DO ESTÚDIO, MORTO EM
DESASTRE DE CARRO.
“C. Peck Sloane, produtor associado da Companhia Cinematográfica
Maximus, e sua esposa Emily, mortos no mesmo acidente.”

Crumley indicou o terceiro artigo:
“Os Sloane foram enterrados no mesmo dia ein que Arbuthnot. Os
funerais tiveram lugar na mesma igreja, ao lado do cemitério. Todos sepultados
no mesmo jazigo, no cemitério contíguo ao estúdio”.
— Onde aconteceu o acidente?
— Na esquina de Gower com Santa Mônica, às três da manhã.
— Mas isso fica na esquina do cemitério! Do outro lado do quarteirão em
que fica o estúdio!
— Conveniente demais, não acha?
— Economizou tempo. Morrer do lado de fora de um necrotério facilita
tudo.
Crumley franziu as sobrancelhas ao examinar outro artigo.
— Parece que tiveram uma festa de arromba naquele Dia das Bruxas.
— Sloane e Arbuthnot estiveram lá?
— Aqui diz que Doc Phillips se ofereceu para levar os dois para casa,
porque tinham bebido demais, porém eles recusaram. O médico foi com seu carro
à frente dos outros dois, para abrir caminho, e passou por um sinal amarelo.
Arbuthnot e Sloane passaram no vermelho. Um carro desconhecido quase bateu
neles. O único carro na rua às três da manhã! Os carros de Arbuthnot e Sloane
derraparam, perderam o controle e bateram de encontro a um poste telefônico.
Doc Phillips estava lá com seu equipamento de primeiros socorros. Não adiantou.
Todos morreram. Levaram os corpos para o necrotério a cem metros de distância.
— Meu Deus! Foi tudo certinho e conveniente demais... — comentei.
— É verdade — concordou Crumley. — Uma responsabilidade enorme
para o bom médico fornecedor de pílulas e drogas. Que coincidência, ele ali bem
à mão! Justo ele, que estava encarregado da parte médica do estúdio, e também
da política! Foi ele que levou os cadáveres para o necrotério. Também foi ele que
preparou os corpos para o enterro! Deve até ser acionista daquele cemitério.
Ajudou a cavar as primeiras sepulturas no começo dos anos 20. Acompanhava a
todos indo, e vindo e durante!
Senti que os pêlos dos meus braços se arrepiavam.
— Doc Phillips também assinou os atestados de óbito?
— Pensei que não fosse perguntar — comentou Crumley, confirmando
com um movimento de cabeça.
Constance, que até então permanecera imóvel, olhando os recortes, falou
finalmente, mantendo os lábios quase imóveis:
— Onde está a cama?
Eu a levei até o quarto e sentei-a na cama. Ela segurou minhas mãos
como se fossem uma Bíblia e inspirou profundamente.
— Jovem, já disseram que seu corpo cheira a flocos de milho e seu hábito
tem cheiro de mel?
— Esse foi H. G. Wells. Deixava as mulheres loucas.
— É muito tarde para essas loucuras. Puxa, como sua mulher tem sorte.
Vai para a cama todas as noites com comida sadia.
Ela esticou-se com um suspiro. Sentei-me no chão, esperando que ela
fechasse os olhos.
— Como é que você não envelheceu nem um pouco nesses últimos três
anos e eu envelheci uns mil anos? — perguntou ela, rindo baixinho. Uma lágrima
grande correu de seu olho direito e foi absorvida pela fronha do travesseiro.
— Merda — queixou-se ela.
— O que foi?
— Eu estava lá. Há vinte anos. No estúdio, na noite do Dia das Bruxas.
Prendi a respiração.
O olhar de Constance passou por mim para fitar uma outra noite, em outro
ano.
— Foi a festa mais promíscua que já vi. Todos usavam máscaras,
ninguém sabendo quem andava com quem, ou bebendo o quê. Havia bebida a
rodo em todos os estúdios de som, e uivos e gemidos nas ruas. Se Tara e Atlanta
tivessem existido, naquela noite teriam sido queimadas. Devia haver uns duzentos
figurantes vestidos e uns trezentos nus, com muita bebida passando pelo túnel do
cemitério, como se a Lei Seca estivesse em pleno vigor. Mesmo com a bebida
legal, acho que era difícil desistir do prazer de fazer as coisas escondidas.
Passagens secretas entre os jazigos e os convidados, com os filmes fracassados
apodrecendo nas prateleiras? O que ninguém suspeitava é que o túnel seria
fechado com tijolos uma semana mais tarde, depois do acidente daquela noite.
O acidente do ano, pensei. Arbuthnot morto, e os figurões do estúdio
caindo como uma manada de elefantes.
— Não foi acidente — sussurrou Constance, dando a impressão de ter
erguido uma barreira pessoal de escuridão por trás da palidez no rosto. — Foi
assassinato. Suicídio.
A pulsação dela aumentou sob minha mão. Ela continuou a segurá-la,
tensa.
— Isso mesmo — confirmou Constance. — Suicídio e assassinato. Nunca
descobrimos exatamente por que ou como. Você acabou de ver os jornais. Dois
carros batidos em Santa Mônica e ninguém estava lá para ver. Todas as pessoas
mascaradas fugiram, ainda de máscara. As ruas do estúdio ficaram como aqueles
canais de Veneza, ao amanhecer, com as gôndolas vazias, e os ancoradouros
atulhados de brincos e roupas íntimas. Também corri. Mais tarde, os rumores
afirmaram que Sloane encontrou Arbuthnot com sua esposa perto, ou do outro
lado do muro. Ou talvez Arbuthnot tenha encontrado Sloane com a própria
esposa. Se você ama a esposa de outro e ela faz amor com o próprio marido numa
festinha de embalo, isso iria enfurecê-lo, não? Aconteceu que um dos carros saiu
em perseguição ao outro em alta velocidade. Arbuthnot perseguiu os Sloane a
mais de cento e vinte quilômetros por hora. Acertou a traseira deles na Rua
Gower e os espatifou contra um poste. As notícias chegaram até a festa. Doc
Phillips, Manny e Groc saíram correndo. Carregaram as vítimas para uma igreja
católica ali perto. A igreja de Arbuthnot. Onde ele aplicava dinheiro como tábua
de salvação, para escapar do inferno, como ele dizia. Mas já era tarde. Haviam
morrido e foram levados para o necrotério do outro lado da rua.
Eu já tinha saído há muito tempo. No dia seguinte, no estúdio, Doc e
Groc pareciam coveiros no próprio funeral. Eu terminei a última cena do último
filme que fiz na vida por volta do meio-dia. O estúdio fechou por uma semana.
Penduraram sinais de luto em todos os cenários e espalharam nevoeiro artificial
por toda a propriedade, ou será que não foi bem isso? De qualquer forma, as
manchetes dos jornais diziam que os três estavam bêbados e felizes, indo para
casa. Não era verdade. Foi a vingança que agiu para matar o amor. Os pobres
machos e aquela putinha ninfomaníaca foram enterrados ao lado do muro por
onde a bebida tinha passado, dois dias antes. O túnel do cemitério foi fechado, e...
— Constance suspirou. — Bem, pensei que tudo tivesse terminado ali. Mas esta
noite, com o túnel aberto, o boneco de Arbuthnot sobre o muro e aquele homem
horrível com os olhos tristes e enlouquecidos no seu filme, parece que tudo
começou de novo. O que quer dizer tudo isso?
A energia dela se esgotou, a voz foi baixando, e o sono vinha chegando.
A boca retorceu-se. Alguns fantasmas de palavras saíam aos pedaços, como se
não dependessem da vontade dela.
— Pobre coitado homem de Deus...
— Que homem de Deus pobre coitado é esse? — indaguei. Senti uma
sombra aproximando-se. Crumley estava em pé à soleira da porta, escutando.
Constance, tonta de sono, respondeu:
— O padre. Coitado. O estúdio inteiro caiu em cima dele. Sangue na pia
de batismo. Corpos... meu Deus, corpos por toda parte. Coitado...
— O padre de San Sebastian? O pobre coitado é ele?
— Claro. Coitadinho. Coitados de todos... — sussurrou Constance. —
Coitado de Arbuthnot, um gênio triste que não conseguia enxergar as coisas. O
Sloane, a mulher dele. Coitada de Emily Sloane. O que foi que ela disse naquela
mesma noite? Que iria viver para sempre. Que surpresa deve ter tido acordando
no meio do nada. Coitada de Emily, coitada da Hollylock House. Coitada de
mim...
— Coitada de quem, por último?
— Holl... — a voz tornou-se um fio — lly... lock... House... Com isso, ela
adormeceu.
Hollylock House? O que queria dizer? Será que... Eu patinara por cada
rua de Hollywood em meus agradáveis anos de infância...
Isso!
Estendi a mão para o criado-mudo e apanhei a lista telefônica, começando
a procurar nas páginas. Coloquei o dedo sobre a informação encontrada e li em
voz alta:
— Sanatório Hollylock House. Constance, isso fica meio quarteirão
acima e um quarteirão ao norte da Igreja de San Sebastian, não é isso?
Inclinei-me para chegar bem próximo à orelha dela.
— Constance! Diga quem está lá? Quem está no Sanatório Hollylock
House?
Ela gemeu, cobriu os olhos e virou para o outro lado. Voltada para a
parede ela pronunciou as palavras finais sobre aquela noite, afundada tantos anos
no passado:
— Viver para sempre... ela não sabia de nada...
Fiquei sentado ali, repetindo várias vezes o que ela dissera.
— Coitado de Arbuthnot... um gênio triste que não conseguia enxergar as
coisas... coitado do padre...
Atrás de mim, à porta, Crumley disse:
— Hollylock House? Existe aqui em Hollywood há quarenta anos. Bem
pertinho de San Sebastian.
— Por que será que tenho um pressentimento de que você vai me levar
até lá? — perguntei.
- 59 -
— Você está parecendo um cadáver — afirmou Crumley, olhando para
mim, à mesa do café da manhã. Depois apontou para Constance. — E você
parece a Justiça sem a Clemência.
— E eu pareço o quê? — quis saber Henry.
— Não consigo ver você — disse Crumley.
— Foi o que pensei — comentou o cego.
— Vamos tirar as roupas — declarou Constance, com o olhar parado. —
É hora de nadar. Vamos para a minha casa!
Fomos de carro até lá. Fritz telefonou.
— Já escreveu o meio do meu filme? — berrou ele ao aparelho. — Ou
será que era o começo? Agora precisamos fazer de novo a cena do Sermão da
Montanha!
— Precisa ser refilmada? — perguntei, quase gritando.
— Você assistiu a essa cena? — Fritz fazia sua imitação de Crumley ao
telefone, como se estivesse puxando os últimos fios de cabelo. — Escreva!
Depois escreva uma narrativa para o maldito filme inteiro, para cobrir as centenas
de defeitos, buracos e falhas de nosso querido épico. Por acaso tem lido a Bíblia
inteirinha ultimamente?
— Não — confessei.
— Fritz deve ter arrancado mais alguns fios de cabelo do outro lado.
— Vá pular!
— Pular?
— Pular páginas, para poder ler tudo. Esteja no estúdio às cinco horas
com um sermão que me faça dar pulos de alegria, e uma narrativa para fazer
Orson Welles sapatear de gosto! Seu capitão está mandando! Mergulhe!
Ele submergiu e desligou.
— Todo mundo tire a roupa — disse Constance, ainda não totalmente
acordada. — Para a água!
Fomos nadar. Segui Constance na rebentação até um determinado ponto,
depois vieram as focas e nadaram com ela para longe.
— Meu Deus, o primeiro banho que tomo em muitos anos! — gritou
Henry, sentado no mar com água até a cintura.
Bebemos cinco garrafas de champanhe antes das duas da tarde e quase
ficamos todos felizes.
Depois eu me sentei e de alguma forma comecei a escrever o meu Sermão
da Montanha, que li em voz alta ao som das ondas quebrando na praia, assim que
terminei.
Quando acabei de ler, Constance disse baixinho:
— Onde faço inscrição para as aulas de catecismo?
— Jesus ficaria orgulhoso — comentou Henry.
— Eu te batizo... gênio — disse Crumley, derramando champanhe em
minha orelha.
— Que nada... — respondi, modestamente.
Voltei para dentro e por medida de precaução conduzi José e Maria até
Belém, coloquei em fila os Três Reis Magos, dei à luz o Bebê num monte de feno
enquanto os animais assistiam incrédulos. Entre caravanas à meia-noite, estrelas
esquisitas e nascimentos miraculosos, ouvi Crumley dizer atrás de mim:
— Pobre coitado homem de Deus.
— Ele discou para informações.
— Hollywood? — perguntou ele ao aparelho. — Qual o numero da
Igreja de San Sebastian?
- 60 -
Às três e trinta Crumley me deixou em frente à Igreja de San Sebastian.
Examinou meu rosto e enxergou também o que se revolvia no interior da
minha cabeça.
— Pare com isso! — ele mandou. — Você está com aquele olhar
presunçoso de trapezista de circo. Isso significa que você consegue se equilibrar,
e eu caio!
— Crumley!
— Pelo amor de Deus, lembre-se daquela corrida maluca no túnel do
cemitério ontem à noite, Roy escondido sem poder sair, o cego Henry agitando a
bengala no ar e Constance que pode ficar outra vez com medo esta noite e
aparecer para arrancar meus curativos. Foi minha idéia trazer você aqui, e agora
você fica aí com esse olhar de malabarista inteligente prestes a saltar de um
rochedo.
— Pobre coitado homem de Deus — respondi.
— Não, senhor! Não quero ouvir nada! E Crumley partiu.
- 61 -
Caminhei pela igreja, que era pequena em tamanho, mas pródiga em
decoração brilhante e cara. Fiquei admirando um altar que devia abrigar mais de
cinco milhões de dólares em ouro e prata. A imagem principal de Cristo, se fosse
derretida, poderia comprar metade do suprimento americano de chicletes.
Enquanto estava entretido ali, hipnotizado pela luz que se desprendia daquela
cruz, escutei o padre Kelly atrás de mim.
— Você é o roteirista que telefonou e disse que estava com problemas?
— retomou ele baixinho, do outro lado dos bancos.
— Deve ter alguns fiéis muito ricos, padre — comentei, ainda olhando
para o altar incrivelmente elevado.
Arbuthnot, pensei.
— Não, na verdade somos uma igreja vazia em tempos vazios —
respondeu o padre Kelly, fazendo uma genuflexão em frente ao altar e
estendendo sua manopla. Era alto, pouco mais de dois metros de altura, e possuía
a compleição física de um atleta. — Temos sorte em contar com muitos
paroquianos atormentados regularmente pela consciência. Eles insistem em fazer
sua doação em dinheiro para a igreja.
— Você parece dizer a verdade, padre.
— É bom mesmo que eu faça isso, senão Deus me castiga — riu ele. — É
doloroso tomar dinheiro de pecadores consumados, mas é melhor do que deixar
que eles o desperdicem em corridas de cavalos. Eles têm uma chance maior de
ganhar aqui, porque eu os assusto com as palavras de Jesus. Enquanto os
psiquiatras usam sua fala mansa, eu grito de verdade com eles, o que assusta
metade de meus paroquianos e faz com que o resto ponha as barbas de molho.
Venha sentar um pouco. Gosta de uísque escocês? Eu sempre me pergunto, se
Cristo vivesse em nossa época, será que ele serviria uísque, e será que nós nos
importaríamos? Isso é um pouco de lógica irlandesa. Venha.
Em seu escritório, ele serviu dois pequenos cálices.
— Posso ver em seus olhos que você detesta essa coisa — observou o
sacerdote. — Deixe aí. Veio falar comigo sobre aquele filme idiota que estão
acabando no estúdio ao lado? Fritz Wong é tão maluco quanto dizem?
— E tão bom também.
— É bom escutar alguém elogiando seu patrão. Eu raramente fazia isso.
— Você?
O padre Kelly deu risada.
— Quando era jovem eu escrevi nove roteiros, nenhum jamais filmado ao
amanhecer, como o seu. Até a idade de trinta e cinco anos fiz o que pude para
vender, liquidar, entregar, continuar. Depois acabei desistindo e entrando para o
seminário, bem tarde. Foi difícil. A igreja não aceita facilmente pessoas
mundanas. Mas consegui cumprir o seminário com brilhantismo, pois trabalhara
numa série de documentários sobre Cristo. E quanto a você?
Comecei a rir.
— O que é tão engraçado? — quis saber o padre Kelly.
— Acho que metade dos roteiristas do estúdio, se soubessem sobre essa
fase da sua vida, viria aqui não para confessar, mas para obter idéias! Como se
escreve o final dessa cena, como acabo aquela, como montar, como...
— E você balançou e afundou a tripulação! — O sacerdote tomou todo
seu uísque e encheu novamente o copo, deu uma risadinha.
Ficamos por algum tempo, dois veteranos falando sobre o mundo dos
roteiros de cinema. Eu lhe falei sobre o meu Messias, ele me contou sobre o
Cristo dele.
— Parece que você se saiu muito bem, remendando o roteiro —
comentou ele. — Mas na verdade os rapazes, há dois mil anos, também andaram
remendando um bocado os roteiros, se você reparar bem na diferença entre João e
Mateus.
Agitei-me na cadeira com uma enorme vontade de falar, mas não ousei
derramar óleo fervendo sobre o padre, enquanto ele aspergia água benta e
refrescante sobre mim.
Levantei-me.
— Bem, acho que já vou andando, padre. Obrigado. Ele olhou para a
mão que eu estendia.
— Você veio armado — afirmou ele, calmamente —, mas não disparou
nenhum tiro. Pode sentar novamente.
— Todos os padres falam desse jeito?
— Na Irlanda, sim. Como costumamos dizer, você dançou ao redor da
macieira, mas não sacudiu a árvore para derrubar as maçãs. Pode sacudir.
— Neste caso, acho que vou aceitar um pouco disto — declarei,
apanhando o cálice e bebendo. — Pois bem... vamos supor que eu seja católico...
— Estou supondo...
— Precisando confessar...
— Sempre estão precisando.
— E viesse aqui depois da meia-noite...
— Uma hora estranha... — Um brilho faiscou nos olhos do sacerdote.
— E batesse na porta...
— Você faria mesmo isso? — Ele se inclinou levemente em minha
direção. — Continue.
— Você me deixaria entrar? — perguntei.
Aquilo teve o mesmo efeito que se eu o atirasse de volta ao encosto da
cadeira.
— Não houve uma época em que as igrejas permaneciam abertas dia e
noite? — insisti.
— Há muito tempo — respondeu ele, rápido demais.
— Isso quer dizer, padre, que se eu chegasse muito necessitado numa
noite, você não atenderia?
— Por que não? — O brilho aumentou nos olhos dele, como se eu tivesse
atiçado uma chama.
— E para o pior pecador na história do mundo, então, padre?
— Não existe tal criatura. — A língua tentou controlar-se tarde demais ao
pronunciar a última palavra. Os olhos evitaram os meus por alguns segundos,
depois ele resolveu corrigir a frase: — Não existe tal pessoa.
— Mas e se o próprio Judas, condenado, viesse suplicar? — insisti, e fiz
uma pausa antes de acrescentar: — Bem tarde.
— Judas? Claro que eu acordaria para atendê-lo.
— E se esse homem perdido e necessitado não viesse uma só noite por
semana, mas a maior parte das noites? Acordaria, ou nem se importaria em
atender?
Aquilo obteve resultado. O padre Kelly deu um salto como se eu tivesse
libertado os demônios do inferno. A cor fugiu-lhe do rosto e da pele na base dos
cabelos.
— Você tem outro compromisso. Não quero tomar mais o seu tempo.
— Não, padre, você é que está querendo que eu vá embora. — Tomei
coragem e continuei: — Há vinte anos atrás, bem tarde da noite... Você já estava
dormindo, e escutou alguém esmurrando a porta...
— Chega de falar nisso! Saia!
Aquilo parecia, como sonhei mais tarde, com o terrível grito de Starbuck,
censurando a blasfêmia de Ahab e sua arrancada final para apanhar a grande
baleia branca.
— Rua!
— Rua? Você foi mesmo para a rua, naquela noite, padre. — Meu
coração saltava e me mantinha preso à cadeira. — E deixou entrar os acidentados,
a gritaria e o pânico. Talvez tenha ouvido os carros baterem, depois os passos, a
confusão e os gritos. Talvez o acidente tenha saído fora de controle, se é que foi
acidente. Talvez eles precisassem de uma testemunha noturna, alguém para ver, e
não contar nada. Deixou entrar a verdade e silenciou desde então.
Levantei-me e tive uma vertigem. Ao mesmo tempo, o padre sentou
novamente, como se o tivesse empurrado com contrapesos de volta a sua cadeira.
— Foi testemunha, ou não, padre? Estava a apenas alguns metros do
local. Na noite do Dia das Bruxas, trouxeram ou não as vítimas para cá?
— Deus me ajude — lamentou-se o padre. — Trouxeram.
Num momento feroz e decidido, o padre Kelly desistia agora de seu
fantasma agressivo e afundava na própria carne, em si mesmo.
— Estavam todos mortos quando a multidão os trouxe aqui para dentro?
— Todos, não — admitiu ele, imerso em lembranças dolorosas.
— Obrigado, padre.
— Por quê? — Ele cerrara os olhos com a triste recordação, que agora
voltava com dor redobrada. — Sabe com o que está se metendo?
— Tenho medo de perguntar.
— Nesse caso, volte para casa, lave o rosto e, se me permite um conselho
pecador, embebede-se!
— É muito tarde para isso. Padre Kelly, ministrou os últimos sacramentos
para alguns, ou todos?
— O padre Kelly balançou a cabeça, como se assim pudesse espantar os
fantasmas.
— Vamos dizer que sim?
— Para o homem chamado Sloane?
— Ele estava morto. Apesar disso, eu lhe dei a bênção.
— O outro?
— O grande, o famoso, o todo-poderoso...
— Arbuthnot — completei.
— Ele mesmo. Eu dei a extrema-unção, com água benta. Depois ele
morreu.
— Frio e duro, esticado, morto para sempre? De verdade?
— Pela Virgem Maria, essa maneira que você tem de dizer as coisas! —
O sacerdote inspirou profundamente e exalou. — A tudo isso, a resposta é: sim!
— E a mulher? — indaguei.
— Foi o pior! — gemeu ele, a palidez do rosto aumentando. — Em
estado de choque. Enlouquecida, e pior do que enlouquecida. Fora da mente e do
corpo, além de toda possibilidade de recuperação. Ficou presa entre os dois. Meu
Deus, isso me lembra as peças a que assisti quando era moço. A neve caindo.
Ofélia repentinamente muda e pálida ao entrar na água, sem exatamente se
afogar, mas afundando numa loucura final, um silêncio tão frio que se poderia
cortá-lo com uma faca sem fazer barulho. Nem mesmo a morte poderia abalar o
inverno onde aquela mulher acabava de penetrar. Escutou bem? Um psiquiatra
disse isso uma vez! O inverno eterno. O país da Neve, de onde raros viajantes
conseguem voltar. A esposa de Sloane, apanhada entre os cadáveres, aqui
mesmo, não sabia como escapar. Portanto, ela afundou em si mesma. Os corpos
foram levados pelo mesmo pessoal do estúdio que os trouxe.
Ele falara voltado para a parede. Agora virava-se para mim, alarmado e
amedrontado.
— Tudo aquilo durou... quanto tempo? Meia hora, talvez. Mesmo assim
me perseguiu durante esses anos todos.
— Emily Sloane, louca?
— Uma mulher a levou daqui. Uma atriz. Esqueci o nome. Emily Sloane
não tinha nem consciência de estar sendo levada. Morreu na semana seguinte, ou
na outra, ouvi dizer.
— Não — disse eu. — Houve um enterro triplo três dias depois.
Arbuthnot sozinho. Os Sloanes juntos, ou pelo menos assim afirmam os jornais.
— Isso não importa. O que interessa é que ela morreu — afirmou ele,
finalizando sua história.
— Importa, sim, e muito. — Inclinei-me para a frente. — Onde ela
morreu?
— Tudo o que sei é que ela não foi levada para o necrotério do outro lado
da rua.
— Para um hospital, então?
— Você já sabe tudo o que sei.
— Tudo, não, padre. Uma parte...
Fui até a janela da clausura para olhar o pátio de cascalho e a entrada.
— Se eu voltar outra vez, vai contar a mesma história?
— Eu não devia ter dito nada! Quebrei meus votos de sigilo de confissão!
— Não. Nada do que me contou lhe foi dito em confissão. Simplesmente
aconteceu. Você presenciou. Viu acontecer. E agora está lhe fazendo bem contar
pelo menos para mim.
— Vá embora — pediu o sacerdote, suspirando. Serviu mais uma dose e
tomou-a de uma só vez. O uísque não melhorou nem um pouco a cor de seu
rosto. Pareceu simplesmente afundar na própria dor. — Estou muito cansado.
Abri a porta e caminhei pelo saguão em direção ao altar repleto de ouro,
prata e jóias.
— Como uma igreja tão pequena tem um interior tão rico? — perguntei.
— Só a pia batismal poderia financiar um cardeal e eleger um papa.
— Há algum tempo atrás — disse o padre, atrás de mim, fitando seu
cálice vazio — eu seria capaz de lançar sobre você todos os fogos do inferno.
O cálice caiu dos dedos sem força. Ele não fez menção alguma de
apanhar os cacos.
— Adeus — eu me despedi. Saí para a luz do sol.
Depois de atravessar três terrenos baldios, andando em direção ao norte
dos fundos da igreja, havia capim alto e trevo silvestre, além de girassóis fora da
estação, agitando-se ao vento morno. Pouco além, pude divisar um sobrado
branco ostentando o nome em luzes de néon, agora apagadas: SANATÓRIO
HOLLYLOCK HOUSE.
Enxerguei dois fantasmas no pátio além do mato crescido. Uma mulher
conduzindo outra.
“Uma atriz”, dissera o padre Kelly. “Esqueci o nome.”
Um sussurro seco era produzido nas folhas altas e secas.
Uma mulher fantasma vinha chorando pelo caminho.
— Constance? — chamei, baixinho.
- 62 -
Caminhei pela rua Gower até chegar aos portões do estúdio.
Hitler, em sua casamata nos últimos dias do Terceiro Reich, pensei.
Roma queimando, e Nero procurando mais tochas.
Marco Aurélio na banheira, os pulsos sangrando, deixando que a vida se
esvaísse.
Só porque alguém, em algum lugar, berrava ordens, contratando pintores
com tinta demais, e homens com imensos aspiradores de pó para sugar a poeira
suspeita.
Apenas um dos portões do estúdio estava aberto, com três guardas de
prontidão para verificar as saídas e entradas, conferindo cuidadosamente os
rostos.
Nesse ponto, Stanislau Groc aproximou-se do portão, dirigindo seu
Morgan inglês vermelho brilhante, e gritou:
— Vou sair!
— Não, senhor — disse o guarda, em voz baixa. — Ordens superiores.
Ninguém sai do estúdio nas próximas duas horas.
— Mas sou um cidadão da cidade de Los Angeles! — protestou Groc.
— Isso quer dizer que se eu entrar, também não posso sair? — perguntei,
através das grades.
O guarda tocou a aba de seu quepe e pronunciou meu nome.
— O senhor pode sair e entrar. São as ordens.
— Estranho — comentei. — Por que eu?
— Merda! — praguejou Groc, saindo do carro.
Passei pela pequena entrada e abri a porta de passageiros do Morgan de
Groc.
— Pode me deixar na sala de montagem de Maggie Botwin? Quando
você voltar, provavelmente vão deixar você sair.
— Não. Estamos numa armadilha — afirmou Groc. — Este navio vem
afundando pouco a pouco a semana inteira, e não temos salva-vidas. Fuja, antes
que você também se afogue!
— Calma — disse o guarda. — Nada de paranóia.
— Escutem só! O grande guarda-psiquiatra do estúdio! — ironizou Groc.
— Você, entre aí. É seu último percurso.
Hesitei e olhei para um rosto que era uma verdadeira cornucópia de
emoções. Toda aquela fachada arrogante de Groc estava se desmantelando. Era
como a imagem-teste de um televisor, borrada, depois nítida, depois dissolvendo-
se. Assim que entrei e bati a porta, ele colocou o carro em movimento numa
velocidade suicida.
— Ei, qual é a pressa?
Passávamos a toda pelos estúdios à prova de som. Todos estavam
escancarados, para arejar. Os exteriores de pelo menos seis deles estavam
recebendo uma nova camada de pintura. Cenários antigos estavam sendo
desmontados e transportados sob a luz do sol.
— Em qualquer outro dia, seria uma cena adorável — comentou Groc. —
Eu teria adorado tudo isso. Adoro o caos. Quedas na Bolsa? São navios que
afundam. Maravilha! Voltei para Dresden em 1946 só para ver os prédios
destruídos e as pessoas apavoradas com as bombas.
— Não acredito!
— Você não gostaria de ter visto? Ou os incêndios em Londres de 1940?
Cada vez que o homem se comporta abominavelmente, eu fico feliz!
— E as coisas boas não deixam você feliz? Artistas, pessoas criativas?
— Não, não. — Groc acelerava. — Essas coisas me deprimem. Não
passam de um interlúdio entre os vários tipos de estupidez. Só porque existem
algumas pessoas ingênuas o bastante emporcalhando a paisagem com roseiras
aparadas e naturezas mortas, é que se percebe os trogloditas, vermes
subdesenvolvidos e víboras rastejantes que lubrificam as máquinas subterrâneas e
levam o mundo à ruína. Decidi, muitos anos atrás, desde que os continentes
formaram vastos lamaçais, que compraria botas altas e chafurdaria ali como um
tolo. Mas isto já é ridículo, nós aqui trancados numa fábrica de idiotas. Eu queria
rir dela, e não ser destruído por ela. Espere um pouco!
Passávamos pelo Calvário. Quase dei um grito. Pois o Calvário se fora.
Um pouco mais adiante, o incinerador soltava grandes rolos de fumaça
negra.
— Devem ser as três cruzes — comentei, apontando.
— Meu Deus! — exclamou Groc. — Será que... J.C. vai ter de dormir no
albergue esta noite?
Voltei a cabeça para encará-lo.
— Conhece bem J.C.?
— Aquele Messias alcoólico? Eu o fiz! Como fazia sobrancelhas e
traseiros dos outros, por que não as mãos de Cristo? Retirei carne suficiente para
fazer com que os dedos dele parecessem delicados: as mãos do Salvador. Por que
não? A religião não é uma piada? As pessoas imaginam que estão salvas. Mas o
toque da coroa de espinhos, os estigmas!
— Groc fechou os olhos de tal forma que quase abalroou um poste
telefônico, deu uma guinada e parou.
— Achei que tinha sido você o autor — comentei, ao recuperar a fala.
— Se você age como Cristo, é preciso ser Ele! Disse a J.C. que ia fazer
nele marcas para mostrar numa exibição da Renascença! Disse que ia produzir
nele os estigmas de Masaccio, Da Vinci, Michelangelo! Como na carne de
mármore da Pietá! E como você viu, em algumas noites especiais... os estigmas
sangram.
Abri a porta do carro, fazendo menção de sair.
— Acho que vou caminhar o resto do caminho.
— Não, não é necessário... — desculpou-se Groc, rindo sem graça.
— Eu preciso de você. Que ironia! Para me ajudar a passar pelo portão da
frente, mais tarde. Vá falar com Botwin, depois vamos embora correndo!
Mantive a porta meio aberta, indeciso. Groc parecia sentir um tipo de
pânico tão alegre, hilário e próximo à histeria. Fiz o que podia: fechar a porta.
Groc arrancou novamente.
— Pergunte, pode perguntar — incentivou ele.
— Muito bem... E quanto àqueles rostos que você deixou tão bonitos?
Groc acelerou.
— Eu disse que iam durar para sempre, e os bobos acreditaram. De
qualquer forma, estou me aposentando, quer dizer, se conseguir passar pelo
portão. Comprei uma passagem para uma viagem de volta ao mundo, que parte
amanhã. Depois de trinta anos, minhas risadas tornaram-se como cuspidas de
cobra. Manny Leiber? Vai morrer qualquer dia desses... Doc? Não sabia? Ele
sumiu.
— Onde?
— Quem sabe onde? — Mas os olhos de Groc moveram-se em direção
ao norte, para o muro do cemitério. — Excomungado, talvez?
Continuamos o percurso. Groc fez um gesto para a frente.
— Já de Maggie Botwin, eu gosto. Ela é uma cirurgia perfeccionista,
como eu.
— Ela não fala como você.
— Se fizer isso, ela morre. E você? Bem, é verdade que a desilusão leva
um certo tempo. Você vai ter uns setenta anos antes de descobrir que atravessou
um campo minado gritando para algum soldado imbecil: Por aqui! Seus filmes
serão esquecidos.
— Não — declarei.
Groc olhou para meu queixo cerrado e para meu lábio superior teimoso.
— Tem razão — admitiu ele. — Você tem a aparência de um tolo
verdadeiramente santo. Seus filmes, não.
Dobramos outra esquina e eu acenei em direção aos carpinteiros,
faxineiros e pintores.
— Quem deu ordens para fazer todo esse trabalho?
— Manny, claro.
— Mas quem deu ordens para Manny? Quem dá ordens por aqui, de
verdade?
Groc parou o carro e olhou para a frente. Pude perceber nitidamente as
marcas das suturas ao redor das orelhas, regulares e quase invisíveis.
— Isso não pode ser respondido.
— Não? Eu olho em volta, e o que vejo? Um estúdio no meio da
produção de oito filmes. Um deles é caro, nosso épico sobre Jesus, faltando só
dois dias para terminar a filmagem. De repente, sem nenhum motivo aparente,
alguém diz: “Fechem as portas”. E começa um verdadeiro frenesi de pintura e
limpeza. É loucura fechar o estúdio com um orçamento que atinge noventa a cem
mil dólares por dia. O que isso sugere?
— O quê? — perguntou Groc, baixinho.
— Bem, eu vejo Doc e enxergo uma água-viva, venenosa, mas sem
espinha. Olho para Manny e vejo o traseiro dele apoiado na mesa. Você? Existe
uma máscara por trás da sua máscara, e mais uma embaixo das outras. Nenhum
de vocês tem o equipamento nem a coragem necessários para mandar o estúdio
pelos ares. Mesmo assim é o que está acontecendo. Vejo o estúdio como uma
enorme baleia branca. Os arpões estão voando. Portanto, é preciso existir um
capitão verdadeiramente maníaco em tudo isso!
— Então me diga: Quem é Ahab?
— Um homem morto numa escada no cemitério, vigiando e dando as
ordens. E todos vocês correm para obedecer — declarei.
Groc piscou três vezes como um lagarto, com seus grandes olhos escuros.
— Não sou eu — afirmou ele, sorrindo.
— Não? Por que não?
— Pense um pouco... — Groc olhou para o céu. — Só existem duas
pessoas com o gênio e a habilidade suficientes para fazer aquele seu espantalho
embaixo de chuva sobre a escada no muro do cemitério, só para assustar os
outros! — Ele foi dominado por uma onda de riso incontrolável, que quase o
engasgou. — Quem seria capaz de moldar um rosto como aquele?
— Roy Holdstrom!
— Certo! E quem mais?
— O homem... — hesitei — que maquiou Lênin. Groc voltou para mim
seu sorriso mais radiante.
— Stanislau Groc... Você!
Ele inclinou modestamente a cabeça.
Você, pensei. Não o Monstro que se esconde nos túmulos subindo nas
escadas para usar o fantasma de Arbuthnot e paralisar o estúdio, mas Groc, o
homem que ria, o pequeno Conrad Veidt com o sorriso eterno pregado no rosto!
— Por quê! — indaguei.
— Por quê? — repetiu Groc. — Meu Deus, para agitar um pouco as
coisas por aqui! Há muitos anos que tudo ficou monótono nesse estúdio. Doc
doente com suas agulhas. Manny se dividindo em dois. Eu não conseguia dar
boas risadas nesse navio de insensatos. Portanto, resolvi ressuscitar os mortos!
Mas você estragou tudo, porque encontrou o corpo e não contou para ninguém.
Pensei que fosse sair correndo e gritando pelas ruas. Em vez disso, no dia
seguinte, virou ostra. Precisei fazer alguns telefonemas anônimos para que o
pessoal do estúdio fosse até o cemitério. Depois, finalmente a agitação! O
pandemônio.
— Você mandou o outro bilhete para que eu e Roy fôssemos até o Brown
Derby, e encontrássemos o Monstro?
— Mandei!
— E tudo por brincadeira? — indaguei, incrédulo.
— Não exatamente. O estúdio, como você deve ter reparado, está à beira
daquele enorme buraco chamado de Falha de San Andreas sujeito a terremotos.
Eu os senti alguns meses atrás. Portanto, coloquei a escada para levantar os
mortos. E aumentei meu ganho, por assim dizer.
Chantagem, sussurrou Crumley, no interior de minha mente. Groc estava
radiante.
— Assustei Manny, Doc, J.C. e todo mundo, inclusive o Monstro!
— O Monstro? Você pretendia assustá-lo, também?
— Por que não? O bando! A turma! Fazer com que todos pagassem,
desde que não descobrissem que eu estava por trás de tudo. Provocar um tumulto,
recolher os dividendos e dar o fora!
— O que significa que você deve saber tudo sobre o passado e a morte de
Arbuthnot! — deduzi. — Ele foi envenenado? Foi isso o que aconteceu?
— Ah... Teorias e especulações.
— Quantas pessoas sabem que você comprou essa passagem de volta ao
mundo?
— Só você, meu pobre rapaz condenado. Mas suponho que alguém mais
deve ter descoberto. Por que outro motivo teriam mandado fechar os portões para
me trancar aqui dentro?
— É verdade — concordei. — Acabaram de abrir a tumba de Cristo com
uma alavanca. Precisam de um corpo para colocar lá.
— Eu — disse Groc, subitamente desanimado.
Um carro de segurança do estúdio parou ao nosso lado. Um guarda
debruçou-se para fora.
— Manny Leiber está procurando você.
Groc afundou no banco, recolhendo-se para dentro da carne, daí para o
sangue, daí para sua alma e daí para o nada.
— É isso — murmurou ele.
Pensei no escritório de Manny, no espelho por trás da escrivaninha e nas
catacumbas no interior do túnel.
— Fuja! — aconselhei.
— Tolo. Até onde acha que poderia chegar? — respondeu Groc,
tomando minha mão entre as suas, que tremiam. — Você é meio burro, mas,
simpático. Daqui para a frente qualquer um que seja visto comigo pode ser
arrastado pelo redemoinho, quando eles puxarem a tampa do ralo. Tome!
Ele apanhou sua maleta no banco de trás, abriu e fechou a tampa. Pude
enxergar no interior vários maços de notas de cem dólares.
— Fique com isso — pediu Groc. — Para mim não tem mais nenhuma
utilidade. Esconda rápido esse dinheiro. É dinheiro suficiente para você sossegar
pelo resto da vida.
— Não, muito obrigado.
Ele empurrou novamente a valise de encontro a minha perna. Afastei-me
como se um punhal de gelo tivesse perfurado meu joelho.
— É burro — repetiu ele. — Mas um burro simpático. Saí.
O carro de segurança, à frente, com o motor ligado, buzinou uma vez.
Groc olhou para eles, depois para mim, estudando meu queixo, minhas orelhas,
minhas pálpebras.
— Sua pele não vai precisar do meu trabalho, digamos... por uns trinta
anos, um ano a mais, um a menos.
A garganta dele estava carregada de pigarro. Groc revirou os olhos,
agarrou o volante com os dedos curtos e grossos e afastou-se em seu Morgan
vermelho.
O carro de segurança virou a esquina, o de Groc seguindo-o, como um
cortejo fúnebre em proporção de miniatura, avançando para o muro do cemitério.
- 63 -
Subi as escadas do palácio de répteis de Maggie Botwin. Eu o chamava
assim por causa de todos os pedaços de filmes rejeitados que coleavam pelo chão,
ou nos cestos.
O pequeno aposento estava vazio. Os velhos fantasmas haviam partido.
As cobras foram para o chão de algum outro lugar.
Fiquei entre as prateleiras vazias, olhando ao redor até me deparar com
uma nota fixada ao alto da Moviola silenciosa.

CARO GÊNIO
TENTEI FALAR COM VOCÊ NAS ÚLTIMAS DUAS HORAS,
MAS VOCÊ ABANDONOU A BATALHA DE JERICÓ E FUGIU. VAMOS
ENFRENTAR A BATALHA FINAL EM MINHA CASAMATA NA
COLINA. TELEFONE. VENHA! SIEG HEIL, FRITZ E JACKIE, A
ESTRIPADORA.

Dobrei a nota para colocar em meu diário e ler quando fosse velhinho.
Caminhei pelos degraus e saí do estúdio. Não havia nenhum soldado à vista.
- 64 -
Encontrei Constance Rattigan na praia. Foi a primeira vez em que a vi
deitada na areia. Ela sempre estava dentro da piscina, ou no mar. Naquele
momento, encontrava-se entre os dois mundos, como se não tivesse forças para
entrar na água, nem voltar para casa. Parecia encalhada, tão pálida e exausta que
fiquei com pena.
Sentei-me na areia ao lado dela, esperando que pressentisse minha
presença ali, apesar dos olhos fechados.
— Você andou mentindo — declarei. Os olhos moveram-se sob as
pálpebras.
— A qual mentira está se referindo?
— Sobre fugir na metade daquela festa, vinte anos atrás. Sabe muito bem
que ficou até o final.
— O quê exatamente eu fiz? — indagou ela, voltando a cabeça para o
outro lado.
Não pude ver se ela estava olhando para o mar acinzentado, onde um
nevoeiro se formava mais cedo do que de costume.
— Eles trouxeram você até a cena do acidente. Uma amiga sua precisou
de ajuda.
— Nunca tive amigas.
— Que é isso, Constance? Eu tenho pesquisado os fatos. Os jornais
dizem que foram realizados três funerais no mesmo dia. O padre Kelly, da igreja
perto de onde o acidente realmente aconteceu, disse que Emily Sloane morreu
depois dos funerais. E se eu for até o túmulo dos Sloane? Vou encontrar um ou
dois corpos? Aposto que só encontro um. Para onde foi Emily? Quem a levou,
você? Quem mandou?
O corpo de Constance Rattigan estremeceu. Não pude dizer se foi por
causa de velhos temores subindo à tona com um choque, ou pelo frio do nevoeiro
que já nos envolvia.
— Para alguém ingênuo, você é bem espertinho — disse ela.
— Não, é que em alguns dias eu caio num ninho de ovos sem quebrar
nenhum. O padre Kelly disse que a mente de Emily se evaporou. Portanto, ela
tinha de ser levada. Foi você que fez isso?
— Deus me ajude — sussurrou Constance Rattigan. Uma onda grande
quebrou na praia. A parte mais espessa do nevoeiro atingiu a areia.
— É verdade...
— Deve ter sido uma farsa enorme e terrível, só Deus sabe. Alguém
colocou muito dinheiro na caixa de coleta dos pobres? Quero dizer, o estúdio
prometeu, sei lá, redecorar o altar, financiar novas janelas ou órfãos pela vida
inteira? Deram ao padre uma boa soma toda semana para que ele esquecesse que
Emily Sloane foi retirada dali?
— Isso foi uma parte do que aconteceu — declarou Constance, sentando-
se com os olhos arregalados e fixos no horizonte.
— E mais dinheiro para os pobres, e ainda mais, se o padre dissesse que o
acidente não ocorreu em frente à igreja, e sim uns cem metros adiante, portanto,
ele não viu o carro de Arbuthnot bater no outro carro, matando seu inimigo, nem
percebeu que a esposa do inimigo ficou louca com as mortes. Certo.
— Isso é quase tudo — disse Constance Rattigan, com ar ausente,
revivendo outro tempo.
— E você levou Emily Sloane, fora de si, saiu da igreja com ela uma hora
depois, passou pelo terreno baldio cheio de girassóis...
— Tudo era tão pertinho, tão conveniente, que dava vontade de rir —
lembrou Constance, séria, com o rosto acinzentado. — O cemitério, o necrotério,
a igreja para funerais rápidos, o terreno baldio, o caminho... E Emily? Que diabo!
A mente dela já não estava mais ali, de qualquer jeito. Tudo o que tive de fazer
foi guiá-la.
— Constance, Emily Sloane está viva hoje em dia?
Constance voltou o rosto um fotograma por vez, como uma imagem em
câmera lenta, levando dez segundos para fazer cada movimento até estar olhando
diretamente para mim, com os olhos focalizados em outro lugar.
— Quando foi a última vez em que levou flores para uma estátua de
mármore? — perguntei. — Para uma estátua que nunca viu as flores, nunca viu
você, mas vivia dentro desse mármore, com todo o silêncio... Quando foi a última
vez?
Uma única lágrima escorreu do olho direito de Constance Rattigan.
— Eu costumava ir até lá todas as semanas. Na verdade tinha esperança
de que ela saísse da água como um iceberg e derretesse. Até que finalmente não
pude agüentar aquele silêncio todo sem uma palavra de agradecimento. Ela me
fazia sentir morta e culpada.
A cabeça moveu-se quadro a quadro na direção oposta, para enxergar
uma lembrança do ano passado ou de algum ano anterior.
— Acho que é hora de levar mais algumas flores — disse eu, respirando
profundamente. — Não concorda?
— Não sei...
— Sabe, sim. Que tal... o Sanatório Hollylock House? Constance deu um
pulo, olhou para o mar, correu até a rebentação e mergulhou.
— Não faça isso! — gritei.
Fiquei subitamente com medo, porque o mar às vezes leva até mesmo os
melhores nadadores.
Corri até a orla da água e comecei a tirar os sapatos, quando Constance,
espirrando água como uma foca e espadanando-se como um cachorrinho, saltou
do meio das ondas e aproximou-se. Quando atingiu a areia molhada, parou e
vomitou. Um jorro saiu de sua boca como se uma rolha tivesse cedido. Ela
permaneceu em pé, as mãos nos quadris, olhando para o vômito, que a maré
levava.
— Puxa vida! Esse tufo devia estar aí dentro todos esses anos! Ela voltou-
se para examinar-me de cima a baixo, enquanto a cor retornava-lhe às bochechas.
Ela agitou os dedos na direção do meu rosto, borrifando-me água salgada, como
se quisesse me refrescar.
— Nadar sempre faz você se sentir bem? - perguntei, apontando o mar.
— O dia em que isso não acontecer, eu não saio mais da água — disse
ela, baixinho. — Um banho rápido sempre funciona. Não posso ajudar
Arbuthnot, ou Sloane, que estão mortos. Nem mesmo Emily Wickes... —
Constance interrompeu-se e corrigiu o sobrenome. — Emily Sloane.
— Então Wickes é o novo nome dela, nesses vinte anos, em Hollylock
House?
— Como meu tufo de cabelos finalmente saiu preciso tomar um pouco de
champanhe. Vamos!
Ela abriu uma garrafa ao lado da piscina de azulejos azuis e encheu duas
taças.
— Pretende ser tolo o bastante para tentar salvar Emily Wickes Sloane,
viva ou morta, a essa altura dos acontecimentos?
— Quem vai me impedir?
— O estúdio inteiro! Não, mas pelo menos as três pessoas que sabem que
ela está lá. Você vai precisar de apresentação. Ninguém entra em Hollylock
House sem Constance Rattigan. Não precisa me olhar desse jeito. Vou ajudá-lo.
— Mais uma coisa. — Dei um gole em minha taça de champanhe. —
Quem assumiu o controle naquela noite, vinte anos atrás? Deve ter sido terrível.
Quem...
— Dirigiu tudo? Com certeza tudo precisou ser dirigido. As pessoas
corriam para todos os lados, gritando. Foi como Crime e Castigo. Guerra e Paz.
Alguém precisava gritar: Não façam isso, façam aquilo. No meio daquela noite,
com todo o sangue e confusão, graças a Deus, ele salvou a noite, todos os atores,
o estúdio e o cenário, sem filme em sua câmera. O maior diretor alemão vivo.
— Fritz Wong? — gritei.
— Fritz Wong — confirmou Constance Rattigan.
- 65 -
A casa de Fritz, a meio caminho entre o Hotel Beverly Hills e
Mulholland, fornecia uma vista de mais de dez milhões de luzes em toda a
extensão de Los Angeles. Da espaçosa e sofisticada varanda de mármore à frente
da vila, podiam-se observar os aviões a vinte quilômetros de distância
preparando-se para aterrissar, como tochas brilhantes, vagarosos meteoros no céu,
chegando a cada minuto.
Fritz Wong abriu as portas de sua casa e piscou, fingindo não me ver.
Apanhei o monóculo no bolso e entreguei-o a ele. Fritz apanhou-o e
colocou-o no lugar.
— Seu filho da puta arrogante. — A lente brilhava em seu olho direito,
como uma lâmina de guilhotina. — Então, é você! O que vai subir chega para
incomodar os que logo vão desaparecer. O rei que vai assumir abate o antigo
príncipe. O escritor que determina aos leões que dizer para Daniel visita o
domador que diz o que eles devem fazer. O que está fazendo aqui? O filme está
Kaputt!
— Aqui está o texto — anunciei, entregando as folhas a ele. — Maggie?
Está bem?
Maggie, num canto distante da sala, confirmou com a cabeça. Parecia um
pouco pálida, mas muito bem, pelo que pude observar.
— Não ligue para o Fritz — disse ela. — Ele está cheio de bacalhau
cozido e salsicha de fígado.
— Vá sentar ao lado da estripadora e cale a boca — disse Fritz,
queimando minhas páginas com seu monóculo.
— Sim, senhor! — respondi, olhando para a fotografia de Hitler na
parede e batendo os calcanhares.
Fritz olhou para cima, zangado.
— Idiota! Essa fotografia desse pintor maníaco de paredes está aí para me
lembrar dos filhos da puta que me fizeram fugir para viver entre os pequenos.
Meu Deus, a fachada do estúdio Maximus é uma cópia dos Portões de
Brandemburgo! Sitzfleisch para baixo.
Abaixei meu Sitzfleisch e quase engasguei de surpresa.
Atrás de Maggie Botwin estava o mais incrível santuário religioso que eu
já vira. Era maior, mais brilhante e mais impressionante do que o altar de ouro e
prata da Igreja de San Sebastian.
— Fritz!
Pois esse santuário ofuscante estava forrado de cremes de menta,
conhaques, uísques, vinhos do porto, Burgundies e Bordeaux, enfileirados em
camadas de cristal e vidros polidos. Tudo apresentava a luminosidade de uma
gruta submarina, de onde os cardumes de garrafas brilhantes pareciam prestes a
sair nadando. Acima e ao redor disso tudo estava uma infinidade de peças de
cristal sueco, Lalique e Waterford. Era como um trono cerimonial, o berço de
Luís XIV, a tumba de um Deus-Sol egípcio, o dossel da coroação de Napoleão.
Lembrava também a vitrine de uma loja de brinquedos na época do Natal, à meia-
noite. Era...
— Como sabe — declarei. — Eu raramente bebo...
O monóculo de Fritz caiu. Ele apanhou-o e recolocou-o no lugar.
— O que vai tomar? — intimou ele, num tom que não admitia negativas.
Evitei a ira dele, lembrando-me de um vinho que ele mencionara
anteriormente.
— Corton 38 — pedi.
— Espera mesmo que eu abra meu melhor vinho para alguém como
você?
Engoli em seco e confirmei com um gesto de cabeça.
Ele levantou-se e estendeu a mão em direção ao teto, como se fosse
aplicar um soco no alto da cabeça. Em seguida a mão desceu, com delicadeza, e
abriu uma portinhola para extrair de lá uma garrafa.
Corton, 1938.
Ele enfiou o saca-rolha, cerrando os dentes e olhando para mim.
— Pretendo observar cada gole — resmungou Fritz. — Se você se trair,
pela menor expressão de desagrado...
A ameaça ficou no ar, enfatizada pelo gesto de puxar a rolha. Deixou a
garrafa aberta sobre o balcão, para que o vinho “respirasse”.
— Agora, embora o filme esteja morto e enterrado, vamos ver o que o
nosso menino prodígio escreveu! - Ele afundou em sua poltrona e folheou meu
roteiro. — Deixe que eu leia seu texto insuportável. Embora devamos fingir que
não retornaremos ao matadouro, quem sabe?
Fritz fechou seu olho esquerdo e deixou que o direito realizasse a leitura,
por trás da lente. Ao terminar, atirou as páginas ao chão, e acenou, irritado, para
que Maggie as apanhasse. Ficou observando o rosto dela, enquanto servia o
vinho.
— Então? — indagou, cheio de impaciência.
Maggie colocou o roteiro no colo e cruzou as mãos sobre o maço de
papel.
— Seria até capaz de chorar. Sabe do que mais? Estou mesmo chorando.
— Pare de representar! — Fritz engoliu de uma só vez seu vinho, olhando
em seguida para mim, zangado por eu ter feito com que ele bebesse tão depressa.
— Você simplesmente não pode ter escrito isso em algumas horas!
— Desculpe — disse eu, humildemente.
— Em algumas horas?
— Só os textos rápidos são bons — retruquei. — Se diminuir o ritmo, a
gente começa a pensar no que se está fazendo e acaba ficando ruim.
— Pensar é fatal então? Como é, você senta em cima do cérebro quando
escreve?
— Não sei — respondi. — Ei, esse vinho até que não é ruim!
— Até que não é ruim — Fritz olhou para o teto. — Um Corton, 1938 e
ele diz que não é ruim! Pois eu garanto que é bem melhor do que aqueles
malditos chocolates que você rumina lá no estúdio. Melhor que todas as mulheres
no mundo. Bem, quase...
— Este vinho — corrigi, rapidamente — é quase tão bom quanto seus
filmes.
— Ótimo — aplaudiu Fritz, como o ego massageado. — Você quase
poderia ser húngaro.
Ele encheu novamente minha taça e devolveu-me a medalha de honra, o
monóculo.
— Jovem perito em vinhos, por que mais veio até aqui? A hora parecia
apropriada.
— Fritz, em 31 de outubro de 1934, você dirigiu, fotografou e montou um
filme chamado Festa de Embalo?
Fritz encontrava-se recostado em sua poltrona, com as pernas esticadas e
o vinho na mão direita. Sua mão esquerda subiu até o bolso onde deveria estar o
monóculo.
Sua boca abriu-se lentamente, com frieza.
— Pode repetir?
— Na noite do Dias das Bruxas, em 1934...
— Mais vinho — pediu Fritz, de olhos fechados, segurando sua taça. Foi
o que fiz.
— Se derramar, vou atirá-lo escada abaixo.
O rosto de Fritz estava voltado em direção ao teto. Ao sentir o peso da
bebida no cristal, ele fez um gesto e eu parei, passando a encher minha própria
taça.
— Onde foi que ouviu falar de um filme tão imbecil, com um nome tão
imbecil? — perguntou Fritz, cuja boca dava a impressão de mover-se
separadamente do resto do rosto.
— Foi feito sem filme na câmera. Você dirigiu por apenas duas horas.
Devo dizer quem foram os atores naquela noite?
Fritz abriu um dos olhos e tentou focalizar o mundo sem o monóculo.
— Constance Rattigan, J.C., Doc Phillips, Manny Leiber, Stanislau Groc,
Arbuthnot, Sloane e a esposa, Emily Sloane.
— Pôrra, que belo elenco! — comentou ele.
— Quer me contar por quê?
Fritz acomodou-se devagar, praguejou, deu um gole em seu vinho, depois
inclinou-se para a frente, apreciando o tom vermelho da bebida por alguns
instantes. Piscou e disse:
— Então finalmente posso contar. Estive esperando muitos anos para
vomitar esse assunto. Bem... alguém precisa dirigir. Não havia roteiro. Foi uma
loucura total. Fui levado para lá à última hora.
— Quanto disso você improvisou? — indaguei.
— A maior parte... Não, tudo — corrigiu Fritz. — Havia corpos por toda
parte. Pessoas e muito sangue. Eu tinha levado minha câmera naquela noite, sabe
como é, uma festa como aquelas era uma ótima oportunidade de pegar as pessoas
desprevenidas, pelo menos foi isso o que fiz. Na primeira parte da noite correu
tudo bem. As pessoas gritavam, correndo de um lado para outro do estúdio
através do túnel, e também dançavam no cemitério ao som de uma banda de jazz.
Foi uma festa de embalo mesmo, estupenda. Até que as coisas saíram fora de
controle. Quero dizer, o acidente. A essa altura, você tem toda a razão, não havia
mais filme em minha câmera. Portanto, dei as ordens. Corra para lá. Não chame a
polícia. Vão buscar os carros. Ofereçam donativos à igreja.
— Até aí eu adivinhei.
— Fique quieto! O coitado do padre, como a mulher, parecia maluco. O
estúdio sempre mantinha um bom dinheiro em espécie para emergências.
Enchemos a pia batismal bem na frente do padre. Não cheguei a saber, naquela
noite, se ele viu o que fazíamos, tal o estado de choque em que estava. Mandei
que tirassem a esposa de Sloane dali. Uma figurante a levou.
— Não — corrigi. — Foi uma estrela.
— É mesmo? Bem, o que interessa é que ela foi embora. Quando a
multidão se reuniu, já tínhamos apanhado quase todos os pedaços e destruído as
pistas. Foi uma coisa fácil de fazer, naquela época. O estúdio, afinal de contas,
controlava a cidade. Tínhamos um cadáver, o de Sloane, para mostrar, Arbuthnot
no necrotério, nós dissemos, e Doc Phillips para assinar os atestados de óbito.
Ninguém jamais pediu para ver todos os corpos. Quando pediam, alegávamos
que não estavam em condições, que os caixões deveriam permanecer fechados.
Pagamos ao médico legista para que tirasse um ano de férias por motivos de
saúde. Foi assim que fizemos.
Fritz dobrou as pernas, colocou sua taça entre as pernas e procurou
focalizar meu rosto.
— Quem contou a você que eu dirigi essa brincadeira do Dia das Bruxas?
— Rattigan.
— Na batalha de Ardennes, com milhares de mortos, justo ela tinha que
dar com a língua nos dentes! — Fritz fez uma pausa para ordenar as lembranças.
— Bem, no meio do pânico, quem consegue raciocinar? Se eu deixasse a
multidão perceber tudo, todos os jornais, estações de rádio, ambulâncias e
notívagos teriam visto a cena. Felizmente, por causa da festa no estúdio, J.C.,
Doc Phillips, Groc, Manny e todos os que deviam tomar as decisões estavam
presentes. Você assistiu Ben Hur? Um bilhão de figurantes! Eu gritei: “Tragam
os guardas. Tragam os carros. Isolem o local”. As pessoas saíam de suas casas?
Eu mandava que entrassem de novo com um megafone. Na rua havia algumas
casas residenciais, e o posto de gasolina fechado. O resto? Escritórios de
advocacia, fechados. Quando uma multidão de verdade chegou de alguns
quarteirões de distância, de pijamas, eu já dividira o Mar Vermelho, enterrara
novamente Lázaro, arranjara novos empregos para as Dúvidas de Tomé, bem
longe! Foi delicioso, maravilhoso, soberbo! Quer beber mais um pouco?
— O que é isso?
— Conhaque Napoleão! Com cem anos de idade. Você vai detestar! —
Ele serviu. — Se fizer uma careta, mato você.
— E quanto aos corpos? — perguntei.
— No começo só havia um morto. Sloane. Arbuthnot estava estraçalhado,
meu Deus, parecia uma massa sangrenta, mas estava vivo. Fiz o que pude,
levando-o para o necrotério do outro lado da rua, depois saí. Arbuthnot morreu
pouco depois. Doc Philips e Groc ainda tentaram salvá-lo, transformando aquele
lugar onde os corpos são embalsamados em hospital de emergência. Irônico, não?
Dois dias mais tarde, dirigi o funeral! Outra vez foi tudo magnífico.
— E Emily Sloane? Foi para Hollylock House?
— A última vez em que a vi, ela estava sendo conduzida por aquele
terreno baldio cheio de flores, para aquele sanatório particular. Morreu no dia
seguinte. Isso é tudo o que sei. Fui simplesmente um diretor chamado para ser
salva-vidas do Hindenburg enquanto queimava, ou para ser o controlador de
trânsito no terremoto de San Francisco. Essas são minhas referências. Mas afinal,
por que, por que está perguntando tudo isso?
Inspirei profundamente, engoli um pouco de conhaque Napoleão, senti os
olhos lacrimejando como uma torneira de água quente, e declarei:
— Arbuthnot voltou.
— Está louco? — berrou Fritz, endireitando-se na poltrona.
— Ou então a imagem dele — expliquei, com voz desafinada. — Alguém
o está usando para assustar Manny e os outros, talvez usando os mesmos fatos
que você sabe e nunca contou.
Fritz Wong levantou-se e começou a andar em círculos, martelando o
tapete com os saltos das botas. Parou oscilante em frente a Maggie.
— Você sabia de alguma coisa sobre esse assunto?
— O rapaz aqui me contou alguma coisa...
— E por que não me disse nada?
— Porque quando você está dirigindo, Fritz, não quer saber de nenhuma
novidade, boa ou ruim, sobre ninguém! — respondeu ela.
— Então é isso o que vem acontecendo? — raciocinou Fritz. — Doc
Philips bêbado à hora do almoço três dias em seguida. A voz de Manny Leiber
parecendo um disco tocado ao dobro da velocidade. Meu Deus, pensei que eu
estivesse fazendo as coisas direito, o que sempre deixa aquele miserável irritado!
Não! Com um milhão de demônios! — Ele parou e fixou o olhar em mim. —
Mensageiros que trazem más notícias ao rei devem ser executados! Mas antes de
morrer, conte mais.
— O túmulo de Arbuthnot está vazio.
— O corpo dele... foi roubado?
— Ele nunca esteve naquele túmulo.
— Quem disse isso? — perguntou ele, quase gritando.
— Um cego!
— Um cego! — repetiu Fritz, cerrando novamente os punhos. Perguntei a
mim mesmo se ao longo dos anos ele dirigia os atores ameaçando-os com aqueles
punhos. — Um cego!
Foi como se o dirigível Hindenburg afundasse nele numa terrível
explosão final. Depois disso, restaram apenas cinzas.
— Um cego... — repetiu ele lentamente, andando pelo aposento,
ignorando a nós dois e bebericando seu conhaque. — Conte tudo...
Eu contei tudo o que havia contado a Crumley. Quando terminei, Fritz
apanhou o telefone e, segurando o aparelho a cinco centímetros dos olhos, discou
um número.
— Alô, Grace? Fritz Wong. Providencie passagens para Nova York,
Paris e Berlim. Quando? Esta noite. Eu espero na linha!
Ele voltou-se para observar a vista da janela, na direção de Hollywood.
— Meu Deus, senti esse terremoto a semana inteira e pensei que fosse
Jesus morrendo por causa de um péssimo roteiro. Agora tudo está acabado.
Nunca mais voltaremos. Vão reciclar nosso filme e fabricar colarinhos de
celulóide para padres irlandeses. Diga a Constance para fugir. Depois compre
uma passagem para você.
— Para onde? — perguntei.
— Você deve ter algum lugar para ir! — gritou Fritz.
— Nunca viajei em toda a minha vida. Eu...
No meio dessa explosão, uma válvula estourou em algum lugar da cabeça
de Fritz. Não foi ar quente, mas frio, que escapou de seu corpo. Seu olho ruim
começou um tique que aumentou de proporção.
— Grace — disse ele ao telefone. — Não preste atenção ao que eu acabei
de dizer. Cancele Nova York. Consiga um lugar em Laguna... o quê? No litoral,
claro. Quero uma casa de frente para o Pacífico, para que eu possa tomar banho
de mar ao pôr-do-sol como Norman Maine, mesmo que ocorra o Juízo Final. O
quê? Para me esconder, Paris não adianta nada; os maníacos aqui iriam saber.
Mas eles não esperam que um comandante de submarino que detesta a luz do sol
vá para Sol City, em Laguna do Sul, com todos aqueles vagabundos nus tomando
banho de sol por lá. Consiga uma limusine e mande já para cá! Espero que tenha
uma casa esperando por mim quando eu chegar ao restaurante Victor Hugo, às
nove horas. Mãos à obra! — Fritz desligou o telefone e olhou para Maggie. —
Você vem?
Maggie Botwin lembrava um prato de sorvete de baunilha que não se
derretia.
— Meu caro Fritz — disse ela —, nasci em Glendale, em 1900. Poderia
voltar para lá e morrer de tédio, ou então me esconder em Laguna, mas todos
aqueles “vagabundos”, como você os chamou, deixam minha cintura arrepiada.
De qualquer forma, Fritz, e você também, meu jovem, eu estive aqui a noite
inteira, pedalando minha máquina de costura Singer às três da madrugada naquele
ano, costurando pesadelos para fazer com que eles tivessem uma aparência de
sonhos um pouquinho melhores, limpando o sorriso afetado das mocinhas sujas e
jogando-os nas latas de lixo atrás dos colchões usados no ginásio masculino.
Sempre detestei festas, sejam coquetéis no domingo à tarde, sejam as lutas de
sumô no sábado à noite. O que quer que tenha acontecido naquela noite do Dia
das Bruxas, eu estava esperando que alguém, qualquer um, trouxesse filme para
mim. Mas isso não aconteceu. Se houve um acidente de carros do outro lado do
muro, não escutei nada. Se fizeram um ou mil enterros na semana seguinte,
recusei todos os convites e contei as flores murchas, aqui. Não desci as escadas
para ver Arbuthnot enquanto ele estava vivo, por que deveria fazer isso depois
que ele morreu? Ele costumava subir e ficar por trás da porta de tela. Eu olhava
para ele, alto, em pé contra a luz do sol e dizia: “Você está precisando de uma
boa montagem!” Ele ria e nunca entrava, só dizia à costureira como queria o rosto
de não-sei-quem, perto ou longe, dentro ou fora, e ia embora. Como consegui
ficar sozinha no estúdio? Era um negócio novo na cidade, e só tinham uma
costureira na cidade: eu. O resto eram tintureiros, aventureiros, ciganos, redatores
adivinhos que não sabiam ler nem folhas de chá na xícara. Numa noite de Natal,
Arby mandou para mim uma roca com um fuso afiado, e uma placa de bronze no
pedal: GUARDE ISTO PARA QUE A BELA ADORMECIDA NÃO
ESPETE O DEDO, E NÃO ADORMEÇA, dizia. Gostaria de tê-lo conhecido,
mas ele não passava de outra sombra do lado de fora da minha porta de tela, e eu
já tinha sombras suficientes do lado de dentro. Só vi a multidão no enterro dele
saindo do estúdio e passando ao redor do quarteirão para o local do último
conforto. Como tudo o mais na vida, incluindo este discurso, precisava de alguns
cortes. — Ela olhou para o regaço, como se segurasse algumas contas invisíveis
nos dedos. Depois de um longo instante de silêncio, Fritz manifestou-se:
— Maggie Botwin vai ficar em silêncio por mais um ano, agora! — Não.
— Maggie fitou-me. — Tem algumas anotações sobre o que tem acontecido nos
últimos dias? Nunca se sabe, pode ser que amanhã todos sejamos contratados
novamente por um terço do nosso salário.
— Não tenho — respondi, constrangido.
— Para o diabo com tudo isso — desabafou Fritz. — Estou fazendo as
malas.
Meu táxi ainda esperava, registrando um total astronômico. Fritz olhou
para fora, desgostoso.
— Por que não aprende a dirigir, seu imbecil?
— E massacrar as pessoas nas ruas, como Fritz Wong? Isso é um adeus,
Rommel?
— Só até os aliados invadirem a Normandia.
Entrei no táxi, depois enfiei a mão no bolso do paletó.
— E esse monóculo?
— Mostre na próxima festa do Oscar. Vai conseguir um lugar nos
camarotes. O que está esperando, um abraço? Pronto! — Ele me abraçou,
zangado. — Tirre seu bunda daqui! Enquanto eu me afastava, Fritz gritou:
— Sempre me esqueço de dizer o quanto odeio você!
— Mentiroso! — respondi a distância.
— É verdade — Fritz levantou sua mão num cumprimento cansado. —
Eu sempre minto.
- 66 -
— Estive pensando sobre Hollylock House e sua amiga Emily Sloane —
disse Crumley.
— Não é minha amiga, mas pode continuar.
— As pessoas malucas me dão esperança.
— Como! — quase deixei cair minha lata de cerveja.
— Os loucos resolveram ficar — explicou Crumley. — Eles amam tanto
a vida, que em vez de destruí-la, eles se escondem atrás de uma parede que eles
mesmos constroem. Fingem não ouvir, mas na verdade ouvem. Fingem não
enxergar, mas na verdade enxergam. A loucura diz: “Odeio viver, mas amo a
vida”. Odeio as regras, mas amo a mim. Portanto, em vez de ir para as sepulturas,
eu me escondo. Não na bebida, nem embaixo dos lençóis, nem com uma agulha
de seringa ou cheirando algum pó branco, mas na loucura. Na minha própria
prateleira, em meus próprios esteios, sob um teto silencioso. Por esses motivos é
que os loucos me dão esperança. Coragem para continuar são e vivo, sempre com
a cura ao alcance da mão, se eu ficar cansado e precisar dela: a loucura.
— Me dê aqui essa cerveja! — Tirei dele a bebida. — Quantas dessas
você já tomou?
— Só oito.
— Meu Deus! — Devolvi a cerveja. — Tudo isso vai ser parte do seu
romance, quando sair?
— Pode ser — Crumley arrotou ruidosamente com satisfação. — Se você
tivesse a perspectiva de um bilhão de anos de escuridão, sem sol, não escolheria a
catatonia? Mesmo assim poderia aproveitar a grama verde e o ar com cheiro de
melancia recém-cortada. Ainda pode tocar seu joelho, quando ninguém estiver
olhando. O tempo todo fingindo que não se importa. Mas você se importa tanto
que construiu uma redoma de cristal e a selou sobre si mesmo.
— Meu Deus! Continue.
— Eu pergunto: por que escolher a loucura? Para não morrer. A resposta
é o amor. Todos os nossos sentidos são amores. Amamos a vida, mas temos
medo do que ela pode fazer com a gente. Então, por que não experimentar a
loucura?
Depois de um longo e silencioso intervalo, perguntei:
— Onde diabo essa conversa está nos levando?
— Para o hospício — respondeu Crumley.
— O hospício?
— Você me disse que Emily Sloane não morreu vinte anos atrás, mas foi
levada até um asilo, para esconder sua catatonia por alguns milhares de dias,
certo?
— Certo.
— Pois bem, agora quero fazer uma visita.
— Falar com uma catatônica?
— Funcionou uma vez, não foi? Há um par de anos atrás eu hipnotizei
você, e você conseguiu lembrar de um assassino.
— Certo, mas eu não estava maluco!
— Quem disse?
Fechei minha boca, e Crumley abriu a dele.
— Bem, que tal se levarmos Emily Sloane para a igreja?
— O quê!
— Não me venha com “o quê”. Todos nós sabemos das caridades que ela
fazia todo ano para Nossa Senhora em Sunset. Como ela doou duzentos
crucifixos de prata, por duas Páscoas seguidas. Uma vez católico, sempre
católico.
— Mesmo que se esteja louco?
— Mas ela estaria consciente. No interior, atrás do muro que ela
construiu, sentiria que estava numa missa, e... seria capaz de falar.
— Balbuciar, coisas desconexas, talvez...
— Talvez. Mas ela sabe de tudo. Foi por isso que ficou louca, para que
não pudesse pensar ou falar sobre isso. Ela foi a única que sobrou, os outros estão
mortos, ou escondidos bem na nossa frente, com as bocas fechadas.
— E você acha que, se ela se emocionar o suficiente passando por essa
experiência, pode lembrar de tudo? E se a deixarmos mais louca ainda?
— Por Deus, não sei. É a última pista que temos. Ninguém mais vai
ajudar. Você obteve metade da história através de Constance, mais um quarto de
Fritz, e um pouco mais do padre. Um quebra-cabeça, e Emily Sloane é a moldura
desse quebra-cabeça. Vamos acender as velas e queimar incenso. Tocar o sino do
altar. Talvez ela acorde e fale depois de sete mil dias de silêncio.
Crumley permaneceu sentado por mais meio minuto, bebendo bastante, e
vagarosamente. Então, inclinou a cabeça e disse:
— Vamos tirá-la de lá?
- 67 -
Não levamos Emily Sloane para a igreja.
Levamos a igreja para Emily Sloane.
Constance providenciou tudo.
Crumley e eu providenciamos velas, incenso e um sino de bronze
fabricado na índia. Arrumamos as velas e as acendemos numa sala escura do
Sanatório Hollylock House dos Campos Elísios. Eu preguei com alfinetes alguns
panos de algodão à altura dos joelhos.
— Para que diabo é isso? — quis saber Crumley.
— Efeitos sonoros. Faz o mesmo barulho que a batina de um padre.
— Meu Deus! — exclamou Crumley.
— Exatamente!
Então, com as velas acesas, Crumley e eu ficamos num canto da sala
imersa em penumbra, abanamos o incenso e testamos o sino. O som era puro e
claro.
— Constance? Agora — pediu Crumley, em voz baixa.
E Emily Sloane chegou.
Ela não se movia sozinha, não andava, nem virava a cabeça ou os olhos
no rosto marmóreo. O perfil saiu primeiro da escuridão, encimando um corpo
rígido com as mãos cruzadas no regaço virgem por tanto tempo. Ela era
empurrada, na cadeira de rodas, por uma figurante quase invisível, Constance
Rattigan, vestida de negro como num funeral antigo. Enquanto o rosto pálido e
assustadoramente imóvel de Emily Sloane emergia do saguão, houve um ruflar de
asas de passarinhos assustados; abanamos o incenso e tocamos o sino.
Limpei a garganta.
— Psiu! Ela está escutando! — sussurrou Crumley. E era verdade.
Quando Emily Sloane penetrou na iluminação suave, percebemos um
ínfimo movimento, um quase imperceptível mover de olhos sob as pálpebras,
enquanto o bruxulear das chamas das velas lançava sombras e impunha silêncio.
Abanei o ar.
— Toquei o sino.
Com isso, o próprio corpo de Emily Sloane... flutuou. Como um papagaio
sem peso, levado por um vento invisível, ela ergueu-se como se tivesse perdido
peso.
O sino dobrou novamente, e a fumaça aromática do incenso fez com que
as narinas dela se dilatassem levemente.
Constance recuou para as sombras.
A cabeça de Emily Sloane moveu-se para a luz.
— Meu Deus! — murmurei. É ela, pensei.
A mulher cega que fora ao Brown Derby, e saíra de lá com o Monstro
naquela noite, que parecia ter acontecido mil dias atrás.
Mas ela não era cega.
Apenas catatônica.
Porém não uma catatônica comum.
Emily Sloane.
Fora da sepultura, numa sala enevoada com a fumaça aromática do
incenso, e o som de um sino.
Emily permaneceu por dez minutos sem dizer nada, sorvendo a lembrança
de coisas ocorridas muito antes do desastre que a deixara daquele jeito.
Vi a boca agitar-se enquanto a língua se remexia por trás dos lábios. Ela
escrevia coisas por trás das pálpebras, depois expressou-as:
— Ninguém... en... tende... — murmurou, com dificuldade. Depois:
— Ninguém... nunca... en... tendeu... Silêncio.
— Ele era... — disse ela finalmente, parando a frase no meio. O incenso
queimava. O sino badalou de leve.
— ... o estúdio... ele... adorava...
Mordi as costas da mão, tenso com a expectativa.
— Lugar... de brincar... Cenários...
Tudo permanecia quieto. Os olhos dela giravam sob as pálpebras,
perdidos em recordações.
— Cenários... brin... quedos... trens elétricos... Crianças... Dez... — ela
respirou profundamente. — Onze... anos... de idade.
As chamas moviam as sombras. Senti gosto de sangue nos nós dos dedos
e parei de morder.
— Ele sempre... dizia... Natal... sempre... nunca... foi embora. Ele...
morreria se... se... não fosse... Natal... que bobo. Mas... doze anos... fez... os
pais... tirarem as... meias... gravatas... No Natal. Comprar... presentes... Ou ele...
não falaria...
A voz perdeu-se num fio inaudível.
Olhei para Crumley. Os olhos dele se arregalavam, querendo ouvir mais e
mais. O incenso continuava queimando. Toquei o sino.
— Então... — murmurou Crumley, pela primeira vez. — Então...
— Então... — repetiu ela, lendo o que as pupilas escreviam por trás das
pálpebras. — Era assim... que ele dirigia... o estúdio.
Os ossos pareciam ter voltado a sustentar o corpo dela. Emily estava se
erguendo na cadeira como se as memórias puxassem barbantes de sustentação,
velhas forças insuspeitadas traziam a vida perdida para que assumisse seu lugar.
Mesmo os ossos do rosto pareciam conferir um formato mais sólido às bochechas
e ao queixo. Ela agora falava mais rápido, sem hesitar. Finalmente, deixou que
tudo aflorasse à superfície.
— Ele brincava. Isso mesmo. Não trabalhava... brincava. No estúdio...
Quando o pai morreu...
Agora as palavras vinham em grupos maiores, e finalmente em jorros,
torrentes contidas há muito tempo. A cor assomou-lhe ao rosto, e uma chama
brilhou em seus olhos. Emily começou a subir. Como um elevador saindo de um
poço longo e escuro para a luz, a alma dela subiu, levando-a consigo, voltando ao
corpo.
Lembrei-me daquelas noites em 1925,1926, quando a música ou vozes
em lugares distantes tocavam ou cantavam no meio da estática, e a gente tentava
girar sete ou oito sintonizadores no rádio super-heteródino para escutar a distante
cidade de Schenectady, onde alguns imbecis tocavam música que não se queria
ouvir, embora se continuasse a tentar sintonizar até localizar o ponto certo em
cada um dos controles, então a estática se dissolvia, as vozes apareciam nos
grandes alto-falantes circulares, e a gente ria, vitorioso, embora o que
desejássemos fosse apenas o som, não a sensação. Essa era a noite e o lugar, com
o incenso queimando, as velas acesas, e o sino tocando, para trazer Emily Sloane
para cima, para a luz. Ela tornou-se apenas lembrança, e não carne, escutando o
sino, a voz, escutando a voz de Constance por trás da estátua branca, que dizia:
— O estúdio. Era novinho, como Natal. Todos os dias. Ele sempre dizia
isso. Aqui às sete. De manhã. Impaciente. Ansioso. Se visse pessoas. Com bocas
fechadas. Dizia: “Riam!” Nunca entendia. Qualquer um deprimido, quando havia
vida. Para se viver. Tanta coisa a fazer...
Ela derivou novamente, perdida, como se a torrente de palavras a tivesse
exaurido. Deixou que seu sangue circulasse por dez batidas do coração, encheu
os pulmões e continuou, como se alguém a estivesse perseguindo:
— Eu... no mesmo ano, com ele. Vinte e cinco anos, acabando de chegar
de Illinois. Louca por cinema. Ele percebeu que eu adorava. Me manteve... por
perto.
Silêncio.
— Foi maravilhoso. Os primeiros anos... o estúdio aumentou. Ele
construía. Projetos. Chamava a si mesmo de Explorador. Fazedor de mapas. Aos
trinta e cinco. Dizia que queria o mundo inteiro dentro... dos muros. Sem viajar.
Detestava trens. Carros. Um carro matou o pai dele. Muito amor. Explicava...
viva num mundo pequeno. Quanto menor, mais cidades. Mais países na
propriedade. A Gália. Era dele. O México. Ilhas da África. Depois... África! Ele
disse: “Não é preciso viajar. É só se trancar aqui dentro. Convidar as pessoas.
Nairóbi. Está aqui! Londres? Paris? Ali adiante”. Construiu cenários especiais.
Durante a noite: Nova York. Aos fins de semanas: a Margem Esquerda... as
ruínas romanas. Colocávamos flores. A tumba de Cleópatra.
Atrás de cada fachada: tapetes, camas, água corrente. As pessoas no
estúdio riam dele. Ele não ligava nem um pouco. Os jovens... bobos! Continuou
construindo. Em 1929, 1930! 31 e 32!
Do outro lado da sala, Crumley franziu as sobrancelhas para mim. Meu
Deus! Pensei que estivesse fazendo algo novo, vivendo e escrevendo naquela
sala em Green Town!
— Um lugar — continuou Emily Sloane. — Notre-Dame. Saco de
dormir. Bem no alto de Paris. Acordar bem cedinho com o sol. Loucura? Não.
Ele ria. Fazia a gente rir. Não era loucura... foi só mais tarde que...
Ela parou novamente.
Por um bom tempo pensamos que ela tivesse voltado de forma
permanente para o interior de si mesma.
Então toquei novamente o sino e ela reuniu a trama invisível sob seus
dedos, olhando para o padrão que tecia em seu peito.
— Mais tarde... louco de verdade... Casei com Sloane. Parei de ser
secretária. Ele nunca me perdoou. Continuou brincando com seus brinquedos
gigantes... dizia que ainda me amava. E naquela noite... acidente. Aconteceu
aquilo... Então... eu morri...
Crumley e eu aguardamos por um longo minuto. Uma das velas se
apagou.
— Ele vem me visitar, sabia? — disse ela finalmente, ao som das outras
velas que se apagavam.
— Ele? — ousei sussurrar.
— É. Duas... três vezes... por ano.
Será que você sabe quantos anos se passaram?, pensei.
— Me leva... me leva para sair — ela suspirou.
— Vocês conversam? — murmurei.
— Ele conversa. Eu só dou risada. Ele diz... ele diz... ele diz...
— O quê?
— Depois de todo esse tempo, ele diz que me ama...
— Você diz?
— Não. Nada dá certo. Só arranjo... encrenca.
— Você o enxerga direito?
— Não! Ele fica no escuro. Ou então atrás da minha cadeira. Diz que me
ama. Uma voz bonita. A mesma voz. Mesmo que ele tenha morrido e que eu
esteja morta.
— De quem é a voz, Emily?
— Ora... — ela hesitou. Depois seu rosto se iluminou. — De Arby, claro!
— Arby...?
— Arby — confirmou ela, olhando fixamente para a última vela ainda
acesa. — Arby conseguiu. Acho que sim. Tinha tanto por que viver... O estúdio.
Os brinquedos. Não se importou muito porque eu não estava mais lá. Ele viveu
para voltar ao único lugar que já amou. Conseguiu, mesmo depois do cemitério.
O martelo. O sangue. Virgem Maria! Estou morta. Eu! — Ela deu um grito e
pareceu desabar em sua cadeira de rodas.
Os olhos e os lábios se fecharam. Ela fizera um esforço, mas agora
voltava a ser para sempre uma estátua. Não havia sino, incenso, ou velas que
pudessem penetrar naquela máscara. Pronunciei suavemente o nome dela.
Mas dessa vez ela erigira um sarcófago de cristal e cerrara a tampa.
— Meu Deus! O que fizemos? — perguntou Crumley.
— Provamos dois assassinatos, talvez três — disse eu.
— Vamos para casa — chamou Crumley.
Emily não escutou. Ela preferia ficar do jeito que estava.
- 68 -
E finalmente as duas cidades tornaram-se iguais.
Se havia mais luz na cidade da escuridão, havia mais escuridão na cidade
da luz.
O nevoeiro e a neblina entravam pelos muros. Os túmulos assomavam
como plataformas continentais. Os túneis das catacumbas concentravam e
afunilavam ventos frios. A própria memória invadiu os depósitos de filmes. Os
vermes e cupins que haviam dominado apenas os pomares de pedra agora
infestavam os pomares de maçãs de Illinois, as cerejeiras de Washington e os
arbustos geometricamente podados dos castelos franceses. Um a um os grandes
palcos eram limpos e fechados. As casas de madeira, as cabanas de troncos e as
mansões da Louisiana perdiam as telhas, ficavam sem portas, estremeciam com as
pragas e caíam.
Dentro da noite, duzentos carros antigos no estacionamento roncaram
seus motores, exalaram fumaça pelos escapamentos e partiram espirrando
cascalho, para enveredar por caminhos desconhecidos até Detroit, sua terra natal.
Prédio a prédio, piso a piso, as luzes foram se extinguindo, os aparelhos
de ar-condicionado silenciando, as últimas togas foram levadas como fantasmas
romanos para o Vestiário Oeste, a um quarteirão da Via Ápia, enquanto os
capitães e os reis partiam com os últimos guardas do portão.
Estávamos sendo empurrados para o mar.
Os parâmetros, dia a dia, imagino, estavam se estreitando.
Mais coisas, segundo ouvimos, derreteram e sumiram. Depois da cidades
em miniatura e dos animais pré-históricos, foram as fachadas permanentes e
arranha-céus, e já que o Calvário desaparecera, a tumba do Messias seguiu o
mesmo caminho para o incinerador.
A qualquer momento o cemitério em si poderia ruir. Seus habitantes
desgrenhados, foragidos, sem lar à meia-noite, procurariam novos locais do outro
lado da cidade, em Forest Lawn, tomariam ônibus às duas da madrugada e
aterrorizariam os motoristas depois que os portões se fechassem para sempre. O
túnel-catacumba-depósito de uísque e filmes ficaria cheio até a borda de neve
derretida do Ártico, que iria se avermelhando, ao mesmo tempo em que a igreja
do outro lado da rua pregaria suas portas, e o padre bêbado fugiria para reunir-se
ao maitre do Brown Derby, perto do letreiro de Hollywood nas colinas escuras,
enquanto a guerra invisível e o exército oculto nos empurrariam mais e mais para
Oeste, para longe de minha casa, para longe da selva no jardim de Crumley.
Finalmente, aqui na tenda árabe, com pouca comida e excesso de champanhe,
faríamos nosso último bastião enquanto o Monstro e seu pequeno exército
uivariam pelas areias para nos atirar às focas de Constance Rattigan, e
chocaríamos o fantasma de Aimeé Semple McPherson atravessando a rebentação
e saindo do outro lado, surpresos, mas renascidos numa aurora cristã.
Era isso
Mais ou menos uma metáfora.
- 69 -
Crumley chegou ao meio-dia e me viu sentado ao lado do telefone.
— Estou telefonando para marcar um encontro no estúdio — expliquei.
— Com quem?
— Com qualquer um que estiver no escritório de Manny quando o
telefone branco naquela escrivaninha enorme tocar.
— E depois?
— Vou aparecer por lá.
Crumley olhou para as ondas frias do lado de fora.
— Mande examinar sua cabeça, primeiro — disse ele.
— O que vamos fazer, então? — gritei. — Sentar e esperar que eles
venham arrebentar a porta ou sair de dentro do mar? Não agüento ficar
esperando. Prefiro morrer.
— Você diz isso enquanto não está morto — argumentou Crumley. —
Me dê isso aqui!
Ele apanhou o telefone e discou.
Quando atenderam, ele teve de controlar-se para não gritar.
— Já estou bem. Cancele minha licença de saúde. Esta noite estarei aí.
— Justo quanto eu mais preciso — disse eu. — Covarde!
— Covarde uma ova! — Ele desligou o telefone. — Tratador de cavalos.
— Tratador do quê?
— É o que tenho sido esta semana inteira. Esperando que você seja
atirado de uma chaminé ou escada abaixo. Um tratador de cavalos. Como aquele
sujeito que segurou as rédeas quando o general Grant caiu do cavalo. Pesquisar
furtivamente atestados de óbito e velhos arquivos de jornais é como domar uma
sereia. Preciso me apresentar ao meu delegado.
— Sabia que delegado quer dizer “aquele que tem a seu cargo um serviço
público dependente de autoridade superior”? Um sujeito que faz coisas por outra
pessoa? Emissário. Enviado.
— Que diabo! Preciso telefonar. Me dê o telefone! O telefone tocou. Nós
dois levamos um susto.
— Não atenda — aconselhou Crumley.
Deixei que tocasse oito vezes, depois dez. Finalmente não agüentei.
Atendi.
A princípio escutei apenas ondas de estática, em algum outro lugar da
cidade onde chuvas invisíveis caíam implacavelmente sobre lápides. Depois...
Distingui uma respiração pesada. Era como uma grande fermentação, a
quilômetros de distância, sugando ar.
— Alô! Silêncio.
Finalmente uma voz espessa, pastosa, submersa em feições de pesadelo,
disse:
— Por que não está aqui? Engasguei.
— Ninguém me avisou nada — balbuciei, com voz hesitante.
A respiração pesada continuou, como alguém que se afogasse na própria
carne.
— Esta noite. Às sete horas. Sabe onde? Concordei. Que imbecil! Eu
concordei!
— Já faz muito tempo... — engrolou a voz profunda. — Um longo
caminho... até aqui... Precisamos conversar antes que eu parta para sempre,
precisamos... conversar...
A voz sugou penosamente o ar e desapareceu.
Sentei com os olhos fechados, apertando o telefone na mão.
— O que foi? — perguntou Crumley, ansioso, em pé a meu lado. —
Quem era?
— Não cheguei a ligar para ele — senti minha boca dizer. — Ele me
ligou primeiro.
— Me dê isso aqui!
Crumley discou.
— A respeito daquela licença... — disse ele ao aparelho.
- 70 -
O estúdio estava fechado e tinha a frieza das pedras, despojado, escuro e
morto.
Pela primeira vez em trinta e cinco anos, só havia um guarda ao portão.
Nenhum dos prédios estava iluminado. Só se viam algumas luzes solitárias nas
ruas que conduziam a Notre-Dame, se é que a fachada da catedral ainda estava lá,
além do Calvário, no caminho do muro do cemitério.
Meu Deus, pensei, minhas duas cidades. Agora ambas escuras, ambas
frias, sem diferenças. Lado a lado, cidades gêmeas, uma tomada pela grama e
pelo mármore, a outra, ali, dirigida por um homem tão sombrio e impiedoso
quanto a própria Morte. Dominando prefeitos e delegados, a polícia e seus cães
de guarda, além da rede telefônica para os bancos do Leste.
Eu seria a única coisa quente a mover-se, amedrontado, de uma cidade
dos mortos para a outra.
Toquei o portão.
— Pelo amor de Deus! — suplicou Crumley. — Não vá!
— Preciso ir — disse eu. — Agora o Monstro sabe onde todos estão. Ele
poderia trucidar você em sua casa, ou na de Constance, ou na de Henry. Mas não
acho que fará isso. Alguém traçou a linha final para ele. E não existe maneira de
fazer com que ele pare. Não há provas. Não há lei para prendê-lo. Não há
tribunal para julgá-lo. E não há cadeia para segurá-lo. Mas eu não pretendo ser
atacado na rua, ou morrer a marteladas na cama. Meu Deus, Crumley, odeio
esperar. E de qualquer jeito, você devia ter ouvido a voz dele. Não acho que vá a
lugar nenhum, exceto morto. Alguma coisa horrível aconteceu a ele, e ele precisa
falar.
— Falar! — gritou Crumley. — Por exemplo: Fique quieto enquanto eu
esmago você?
— Falar... conversar — insisti.
Fiquei do lado de dentro do portão, olhando para a longa rua à frente.
Os Passos da Paixão:
O muro de onde eu fugira no Dia das Bruxas.
Green Town, onde Roy e eu vivêramos de verdade.
O Estúdio 13, onde o Monstro fora modelado e destruído.
A sala de Maggie Botwin, onde a sombra de Arbuthnot tocara a parede.
O refeitório, onde os apóstolos do cinema partiram pão dormido e
beberam o vinho de J.C.
O Calvário desaparecido, as estrelas cintilando no alto, e Cristo, há muito
numa segunda sepultura, sem possibilidade de realizar o milagre dos peixes.
— Que se dane! — Crumley agitou-se atrás de mim. — Vou entrar com
você.
Balancei a cabeça, numa negativa.
— Não, senhor. Quer esperar durante semanas ou meses, até que o
Monstro apareça? Ele vai se esconder de você. Está disposto a conversar comigo
agora, talvez para falar sobre as pessoas que desapareceram. Tem permissão para
abrir mais de cem sepulturas do outro lado do muro? Acha que a cidade vai
emprestar uma pá para que você cave procurando J.C., Clarence, Groc e Doc
Phillips? Nunca vamos colocar os olhos em nenhum deles, a menos que o
Monstro nos mostre onde estão. Portanto, vá até o portão do cemitério. Dê umas
oito ou dez voltas no quarteirão. De qualquer jeito, provavelmente vou sair
gritando, ou então simplesmente andando.
— Muito bem. Pode se matar! — A voz de Crumley assumiu um tom
frio. Depois ele suspirou. — Diabo. Pegue!
— Uma arma? Mas eu tenho medo de armas.
— Pegue. Coloque o revólver num bolso, e as balas no outro.
— Não!
— Pegue aqui — Crumley estendeu a arma. Peguei.
— Volte inteiro!
— Sim, senhor — respondi.
Entrei. O estúdio tomou consciência da minha presença. Senti que
afundava na noite. A qualquer momento os prédios que restavam, abatidos como
elefantes, cairiam de joelhos, e os ossos serviriam para os cães, a carniça para os
pássaros da noite.
Caminhei rua abaixo, esperando que Crumley me chamasse de volta.
Silêncio.
Na terceira rua, parei. Queria olhar na direção de Green Town, Illinois.
Mas não o fiz. Se as máquinas a tivessem demolido e os cupins, comido as
cúpulas, janelas salientes, sótãos de brinquedos e adegas de vinho, eu me
recusava a ver.
No prédio da administração brilhava uma única luz externa.
A porta não estava trancada.
Respirei fundo e entrei.
Burro. Idiota. Cretino. Estúpido.
Fiquei repetindo essa cantilena enquanto subia as escadas.
Experimentei a maçaneta. A porta estava trancada.
— Graças a Deus!
Eu estava a ponto de correr quando...
A lingüeta produziu um ruído.
A porta do escritório abriu-se.
O revólver, pensei. Senti a arma num dos bolsos, a bala no outro.
Avancei meio passo para dentro.
O escritório estava iluminado apenas por uma arandela na parede mais
distante. Caminhei pelo assoalho, sem fazer barulho.
Distingui os sofás vazios, cadeiras vazias e a grande escrivaninha com o
telefone sobre o tampo.
E a grande poltrona, que não estava vazia.
Só pude ouvir-lhe a respiração, longa, vagarosa e pesada, como a de um
grande animal no escuro.
Aos poucos, distingui a forma maciça de um homem sentado na poltrona.
Tropecei numa cadeira. O choque quase paralisou meu coração.
Arrisquei um olhar para o forma no escuro, mas não percebi nenhum
detalhe. A cabeça baixada escondia o rosto, e os braços com as mãos enormes
apoiadas sobre o tampo da escrivaninha. A respiração parecia penosa.
A cabeça e o resto do Monstro ergueram-se para a luz.
Os olhos voltaram-se para mim.
Ele se recostou, fazendo com que a poltrona gemesse sob seu peso.
Estiquei a mão para o interruptor.
As bordas do ferimento-boca se abriram.
— Não. — A volumosa sombra moveu o braço comprido.
Ouvi o disco do telefone girar uma vez, duas. Um sussurro, um clique.
Acionei o interruptor. Não havia luz. A fechadura na porta retornou ao lugar.
Silêncio. Depois:
Ouvi uma grande sucção de ar, depois uma expiração.
— Veio para assumir... o emprego? Para quê?, pensei.
A grande sombra inclinou-se no escuro. Percebi que olhava para mim,
mas não distingui os olhos.
— Veio para dirigir o estúdio? — disse a voz. Eu? pensei. E a voz
pronunciou sílaba por sílaba:
— Agora não sobrou ninguém apto para o emprego. Um mundo para se
possuir. Tudo concentrado em alguns hectares. Antigamente havia aqui
laranjeiras, limoeiros e gado. O gado ainda está aqui. Mas não importa. É seu. Eu
dou a você...
Loucura.
— Venha ver o que vai possuir! — O longo braço gesticulou.
Ele acionou um botão oculto. O espelho por trás da escrivaninha deslizou
para a posição aberta, libertando o vento subterrâneo pela boca escura do túnel.
— Por aqui! — convidou a voz.
A forma alongada virou-se. A cadeira girou, guinchou e subitamente não
havia mais sombra sobre a cadeira ou atrás dela. A escrivaninha ficou tão vazia
quanto o convés de um grande navio. O inquietante espelho girou para a posição
fechada. Saltei para a frente, com medo que as luzes fossem apagar-se e eu me
afogasse na escuridão.
O mecanismo deslizou. Meu rosto, em pânico, brilhava refletido no
espelho.
— Não posso ir atrás de você — gritei. — Estou com medo! O espelho
imobilizou-se. Uma longa inspiração, depois:
— Na semana passada, você talvez sentisse medo — sussurrou ele. —
Esta noite? Escolha um túmulo, é o meu.
E a voz agora parecia a voz de meu pai, dissolvendo-se no leito,
desejando o benefício da morte, mas levando meses para morrer.
— Atravesse — ordenou a voz.
Meu Deus, pensei, conheço essa cena desde os seis anos de idade. O
fantasma acenando por trás do espelho. A cantora, com a curiosidade espicaçada
pela voz suave, ousando tocar o espelho, e a mão dele aparecendo para guiá-la
para o interior de labirintos escuros a uma gôndola fúnebre num canal negro com
a Morte ao leme. O espelho, o sussurro e a ópera vazia, com o canto terminando.
— Não consigo me mexer — afirmei, com sinceridade. — Estou com
medo.
A voz riu baixinho.
Minha língua mal podia mover-se. Minha boca encheu-se de poeira.
— Você morreu há muito tempo...
Por trás do vidro, a silhueta acenou afirmativamente.
— Não é fácil, ficar morto tanto tempo nos depósitos de filmes, além das
sepulturas. Mantive reduzido o número de pessoas que realmente sabia, pagando-
as bem e matando-as quando falhavam. Morte no meio da tarde no Estúdio 13.
Ou morte numa noite insone do outro lado do muro. Ou nesse escritório, onde eu
sempre dormia nessa poltrona. Agora...
O espelho estremeceu. Se por causa da respiração ou da mão que o
segurava, eu não saberia dizer. Minha pulsação latejava nas orelhas. Minha voz
ecoou no vidro, uma voz de menino:
— Não podemos conversar aqui?
— Não — disse novamente a voz melancólica, suspirando. — O grande
passeio. Você precisa conhecer tudo, se vai ficar no meu lugar.
— Eu não quero! Quem disse que eu quero?
— Eu estou dizendo. Escute, eu já estou morto.
Um vento úmido soprou, cheirando a nitrato, proveniente dos filmes
antigos, e terra mofada das catacumbas.
O espelho deslizou e abriu-se. Os passos afastaram-se silenciosamente.
Olhei para o interior do túnel, parcamente iluminado por pequenas luzes
que pendiam do teto, como vaga-lumes.
A sombra maciça do Monstro deslizava no declive suave.
Ele voltou-se e olhou para mim com aquele olhos incrivelmente selvagens
e tristes.
Depois acenou na direção da escuridão.
— Corra — pediu ele.
— Do quê?
A boca mastigou a si mesma na própria umidade, e finalmente falou:
— De mim! Corri minha vida inteira! Acha que não posso segui-lo? Pois
então finja! Finja que ainda sou forte, que ainda tenho poder. Que ainda posso
matá-lo. Finja que está com medo!
— Mas eu estou!
— Então corra. Vou logo atrás.
Ele levantou um punho para as sombras nas paredes. Corri à frente. Ele
foi atrás.
- 71 -
Foi uma perseguição tenebrosa, através dos corredores onde estavam os
carretéis de filmes, em direção às criptas de pedra onde se escondiam todos os
astros daqueles filmes; passamos sob o muro, e através do muro. Subitamente
fiquei cansado e cambaleei pelas catacumbas com o Monstro em meus
calcanhares, em direção ao túmulo onde J.C. Arbuthnot nunca jazera.
O tempo todo em que corri sabia que não havia volta possível, e que nos
dirigíamos para um destino determinado. Eu não estava sendo perseguido, mas
conduzido. Para onde? Para...
O fundo do cofre onde Crumley, o cego Henry e eu estivéramos mil anos
antes. Estaquei.
A plataforma do sarcófago aguardava, no lugar.
Atrás de mim senti que o túnel escuro enchia-se de sons de pisadas, os
gritos e arfares da perseguição.
Saltei para os degraus, procurando subir de qualquer jeito. Escorreguei,
murmurei preces insípidas e consegui chegar ao cimo. Com um suspiro de alívio
atirei-me para fora do sarcófago, caindo no chão.
Atingi a porta do jazigo. Ela se abriu. Caí no cemitério e olhei
desesperadamente em volta, além das lápides e do caminho de cascalho, para a
rua, vazia em todas as direções.
— Crumley! — gritei.
Não havia trânsito, nem carros estacionados.
— Meu Deus! — queixei-me. — Crumley! Onde está ele? Atrás de mim
soava o alarido de pés atingindo a entrada do túmulo.
Voltei-me. O Monstro estava em pé à porta, iluminado pelo luar. Ele
permanecia ali como uma estátua erigida para celebrar a própria morte, embaixo
do próprio nome gravado no mármore. Por um momento ele lembrou o espectro
de algum lorde inglês posando à porta de uma ermida distante, aguardando ter sua
imagem capturada em filme e imersa em soluções químicas no quarto escuro para
despertar como um fantasma à medida que o filme fosse revelado, mantendo uma
mão na maçaneta da porta, e a outra levantada como se para invocar o Destino
naquele gélido campo santo. Sob a porta de mármore, li mais uma vez:
ARBUTHNOT.
Devo ter pronunciado o nome em voz alta.
Aquilo fez com que ele impulsionasse o corpo para a frente, como se eu
tivesse dado o tiro de partida. Seu grito colocou-me em movimento na direção do
portão. Tropecei em uma dúzia de lápides, derrubei vários vasos de flores e corri
em velocidade dobrada, gritando o tempo todo. Metade de minha mente via a
perseguição como uma caçada humana, e a outra metade encarava aquilo como
uma comédia de cinema mudo. Uma imagem era a de comportas cedendo, a água
fora de controle envolvendo o fugitivo solitário. Outra era a de elefantes
pisoteando Charlie Chase. Sem escolha entre gargalhadas maníacas e desespero
autêntico, corri entre as trilhas de tijolos no meio das sepulturas, para achar:
Não Crumley, mas uma rua vazia.
Do outro lado da rua, a Igreja de San Sebastian estava aberta, as luzes
acesas, as portas escancaradas.
J.C., pensei, se você ao menos estivesse aqui!
Saltei. Com o gosto de sangue na boca, corri.
Escutei o ruído dos passos pesados e desajeitados atrás, e o resfolegar de
um terrível homem, meio cego.
Alcancei a porta.
Refúgio!
Mas a igreja estava vazia.
As velas estavam acesas no altar de ouro. Queimavam nos recônditos
onde Cristo se escondia para dar a Maria vislumbres de amor.
A porta do confessionário estava aberta.
Escutei uma torrente atabalhoada de passos.
Saltei para o interior do confessionário, fechei a porta e afundei tremendo
vergonhosamente no piso escuro.
O estrépito de passadas...
Diminuiu como uma tempestade. Como uma tempestade, tornaram-se
mais calmos e aproximaram-se, como uma mudança de tempo.
Senti a mão do Monstro na porta. Não estava trancada.
Mas eu era o sacerdote, não era?
Quem quer que estivesse trancado onde eu estava era reconhecidamente
sagrado, para se conversar e ficar... a salvo?
Escutei um gemido impuro de exaustão e auto-condenação. Estremeci.
Covardemente, rezei, suplicando pelas coisas mais corriqueiras. Mais uma hora
com Peggy. Um filho. Ninharias. Coisas maiores do que a meia-noite, ou tão
grandes quanto uma possível aurora...
O cheiro doce da vida deve ter escapado de minhas narinas. Avançou
com minhas orações.
Ouvi um último grunhido, e...
Deus!
O Monstro ajoelhou-se do outro lado do confessionário!
O resfolegar e a raiva contida me fizeram tremer ainda mais, como se eu
temesse que o terrível hálito pudesse me queimar através das treliças, e me deixar
cego. Mas o vulto enorme acomodou-se, como uma grande fornalha que
dissipasse sua pressão, silvando pelas válvulas.
Então eu soube que a estranha perseguição havia terminado, e uma fase
final se iniciava.
Escutei o Monstro sorver o ar uma vez, duas, depois três, como se
estivesse desafiando a si mesmo para falar, ou tivesse medo de fazê-lo, ainda
querendo matar, porém cansado, por Deus, finalmente cansado.
Então ele deixou escapar um silvo, como um suspiro enorme que passasse
por uma chaminé.
— Me abençoe, padre, porque pequei. Não!
— Padre... a bênção...
Meu Deus, pensei, o que os padres dizem? Em velhos filmes... o quê?
Dos recônditos da memória... o quê?
Senti o desejo maluco de sair correndo dali para o meio do nada, com o
Monstro atrás de mim em nova perseguição.
Assim que recuperei meu fôlego, a voz repetiu seu temível sussurro:
— Me abençoe, pai...
— Não sou seu pai — protestei.
— Não — murmurou o Monstro, acrescentando depois de um momento:
— Você é meu filho.
Tive um sobressalto e aquietei-me, prestando atenção às batidas do meu
coração através de um túnel frio e escuro. O Monstro agitou-se.
— Quem... — pausa — você acha... — pausa — que o contratou? Meu
Deus!
— Fui eu — disse o rosto escondido por trás das treliças. Não foi Groc,
pensei. Não foi Groc.
E o Monstro começou a desfiar seu terrível rosário de contas escuras. Não
pude fazer nada, a não ser afundar devagar, bem devagar no assento, até que
minha cabeça repousasse na madeira do confessionário. Perguntei:
— Por que não me matou?
— Esse nunca foi meu desejo. Seu amigo tropeçou no meu caminho. Ele
fez aquele busto. Foi loucura. Eu o teria matado, com certeza, mas ele matou-se
primeiro. Ou fez com que as coisas parecessem assim. Na verdade ele está vivo,
esperando por você...
— Onde? Tive vontade de gritar. Em vez disso, indaguei:
— Por que me salvou?
— Os motivos? Bem... um dia eu quero que minha história seja contada.
Você era o único — pausa — capaz de contá-la... contá-la direito. Não há nada
no estúdio ou no mundo exterior que eu não saiba. Leio a noite inteira, durmo em
cochilos e leio mais, depois falo através da parede. Oh, não se passaram tantas
noites assim desde que eu mencionei seu nome. Ele vai ser perfeito, eu disse.
Consiga que ele venha. Esse é meu biógrafo. E meu filho. E foi assim.
Meu Deus!
Seu sussurro, por trás de um espelho, me indicara. E o sussurro estava
aqui agora, a trinta centímetros de distância, com a respiração resfolegando nos
intervalos das palavras.
— Pelo muros brancos de Jerusalém — disse a voz roufenha. —
Contratei e despedi, todos eles, por mais de mil dias. Quem mais poderia fazer
isso? O que mais eu poderia fazer a não ser continuar deformado e desejar a
morte. Só o meu trabalho me mantinha vivo. Contratar você foi uma estranha
maneira de garantir minha vida.
Será que eu deveria agradecer-lhe?, pensei. A voz era agora um sussurro.
— Dirigi o estúdio como uma voz por trás do espelho. Chegava aos
tímpanos de Leiber orientando sobre vendas e cortes nos roteiros, planejados nas
catacumbas, e murmurados através da parede às duas da madrugada. Que
reuniões! Que gêmeos! Ego e superego. A buzina e o tocador de buzina. O
dançarino. Mas o coreógrafo era eu por trás do espelho. Meu Deus,
partilhávamos o escritório. Ele fazia as caras e fingia tomar grandes decisões, e eu
esperava cada noite para sair de trás do espelho e sentar na minha cadeira, na
minha escrivaninha vazia com o telefone, para ditar a Leiber, meu secretário.
— Eu sei — sussurrei.
— Como?
— Deduzi.
— Deduziu? Como? Toda essa história maluca? O Dia das Bruxas?
Vinte? Meu Deus, vinte anos atrás!
Ele respirou pesadamente, esperando.
— Exatamente — murmurei.
— Bem... A Lei Seca já terminara naquela época, mas trouxemos a
bebida de Santa Mônica através do túnel, por baixo do muro — lembrou o
Monstro. — Metade da festa nas sepulturas, metade nos depósitos de filmes, por
Deus! Cinco estúdios a prova de sons cheios de homens, garotas, estrelas e
figurantes gritando. Só lembro uma parte daquela noite. Consegue imaginar
quantas pessoas, enlouquecidas, faziam amor no cemitério? Todo aquele
silêncio... Imagine!
Esperei enquanto a memória dele se movia através dos anos. Ele disse:
— Ele nos apanhou lá. Meu Deus, entre os túmulos. Na casinha de
ferramentas do guarda do cemitério. Um martelo acertou minha cabeça, minhas
bochechas, meu olho! Ele bateu com força! Depois saiu correndo com ela. Eu
corri atrás, gritando. Eles entraram no carro. Eu fui atrás, no meu. Depois o
desastre, e... e...
Ele suspirou, tentando acalmar as batidas do coração.
— Lembro-me de Doc me levando para a igreja, primeiro! Depois o
padre, completamente apavorado, e depois para o necrotério. Melhorei entre os
túmulos. Me recuperei entre as sepulturas! Logo ali, ao lado, Sloane estava
morto! E Groc! Tentando salvar o que não podia ser salvo. Coitado do Groc.
Lênin teve mais sorte! Minha boca só se moveu para dizer: faça! Era tarde, e as
ruas estavam vazias. Minta! Diga que estou morto! Meu rosto! Não era possível
consertá-lo. Portanto, digam que estou morto! Emily? O quê? Louca? Escondam
Emily! Fabriquem uma história de cobertura. Ofereci dinheiro, claro. Muito
dinheiro! Façam com que tudo pareça real! Quem vai saber? Façam um enterro
de caixão fechado, comigo, e os outros mortos no necrotério. Doc cuidou de mim
durante várias semanas! Meu Deus, que loucura! Eu sentia dores no rosto e na
cabeça. Fui capaz de gritar “Fritz” quando o enxerguei. “Você! Assuma o
controle!” E foi o que ele fez. Um verdadeiro maníaco trabalhando. Sloane, que
estava morto: “Levem-no daqui!” A pobre Emily, completamente louca.
Constance! E Constance levou-a para os Campos Elíseos. Era como chamavam
aquele sanatório para bêbados, loucos e viciados, onde eles nunca saravam, e que
não era nada saudável, mas foi para lá que levaram Emily, o mesmo que para
lugar nenhum. Fritz mandou que calassem a boca, e todos choravam, olhando
para o meu rosto, como se fosse algo saído do moedor de carne. Pude avaliar o
meu horror pelos olhos deles. Os olhares diziam: “Ele está morrendo”, e eu
retrucava: “Uma ova!” E lá estavam Doc e Groc, o médico e o cosmetologista,
tentando consertar meu rosto. J.C. e Fritz disseram: “É isso! Fiz tudo o que pude.
Chamem um padre!” “Coisa nenhuma”, eu gritei. “Façam um funeral, mas eu
não vou estar lá!” E todos os rostos ficaram brancos! Sabiam que eu falava sério!
Com essa ferida, que é a minha boca: um plano maluco. E pensaram: “Se ele
morrer, nós morreremos”. Porque aquele foi o melhor ano na história do cinema.
No meio da Depressão, mas estávamos faturando duzentos milhões de dólares
por ano, depois trezentos, mais do que todos os outros estúdios juntos. Eles não
podiam deixar que eu morresse. Eu estava acertando, fabricando menos. Onde
iriam achar um substituto? Entre todos aqueles tolos, caipiras e parasitas? “Você o
cura, eu conserto” disse Groc àquele açougueiro, Doc Phillips. Eles cuidaram de
mim, me fizeram renascer para fora do sol, para sempre!
Meu Deus, pensei. Escutando aquilo, lembrei-me das palavras de J.C.: “O
Monstro? Eu estava lá, na noite em que ele nasceu”.
— Então Doc me salvou e Groc trabalhou duro para me remendar. Ele
tentou, meu Deus, só que quanto mais rápido ele costurava, mais rápido eu
estourava os pontos. Enquanto isso, todos pensavam: “Se ele morrer, vamos com
ele.” E pensar que agora eu desejo de todo o coração morrer. Mas deitado ali
embaixo de toda aquela mistura de molho de tomate, geléia de morango e ossos
quebrados, a velha comichão na virilha desejando o poder venceu. Depois de
algumas horas lutando pela vida, com medo de tocar novamente meu rosto, eu
disse: “Anunciem um nascimento. Digam que estou morto! Escondam-me aqui, e
me curem!. Abram o túnel, enterrem Sloane! Me enterrem também com ele,
inabsentia, com direito às manchetes de jornal. Na segunda-feira de manhã, vou
me apresentar para o trabalho. O quê? E todas as segundas-feiras de agora em
diante. E que ninguém saiba! Não quero ser visto. Um assassino com um rosto
esmagado? Coloquem em meu escritório uma escrivaninha e uma cadeira, e
devagar, muito devagar, eu vou me aproximar, enquanto alguém fica sentado lá
sozinho, e... onde está Manny? Escute aqui, Manny, vou falar pelo espelho,
sussurrar pelas rachaduras; você vai abrir sua boca e eu vou falar por ela.
Entendeu isso? Entendeu? Chame os jornais. Assinem os atestados de óbito.
Enterrem Sloane. Me coloquem na sala de embalsama-mento, preciso descansar
até me recuperar. Certo, Manny? Arrume o escritório. Compre uma cadeira!” O
Monstro fez uma pausa, recobrando o ritmo da respiração pesada.
— Nos dias que antecederam meu enterro, dei todas as ordens, e meu
pequeno grupo de colaboradores ouviu tudo em silêncio, concordou e foi
correndo cumprir tudo.
— E foi assim que Doc salvou minha vida, Groc remendou um rosto que
jamais poderia ser remendado, Manny foi dirigir o estúdio, mas sob minhas
ordens, e J.C. simplesmente estava lá naquela noite e foi o primeiro a me
encontrar sangrando, depois arrumou os carros para fazer com que o desastre
parecesse um acidente. Apenas quatro pessoas sabiam. Fritz? Constance?
Encarregaram-se da limpeza, mas nunca chegaram a saber que eu sobrevivi. Os
outros recebiam cinco mil por semana para sempre. Imagine! Cinco mil dólares
por semana, em 1934! O salário médio eram uns miseráveis quinze dólares.
Portanto Doc, Manny, J.C. e Groc ficaram ricos, certo? Por Deus, o dinheiro
compra tudo mesmo! Anos de silêncio! Assim o arranjo ficou perfeito, tudo deu
certo. Os filmes, o estúdio, dali em diante aumentaram os lucros, e eu fiquei
escondido, sem ninguém mais saber. O preço das ações subiu, e o pessoal de
Nova York ficou contente, até...
Ele fez uma pausa e deu um gemido de desespero.
— Alguém descobriu uma coisa. Silêncio.
— Quem? — ousei perguntar, no escuro.
— Doc. O bom e velho cirurgião Doc. Meu tempo estava se acabando.
— Mais uma pausa antes que ele continuasse: — Câncer.
Aguardei que ele recuperasse as forças e recomeçasse a falar.
— Câncer. A quem mais Doc contou não se pode saber. Um deles quis
fugir. Agarrar seu dinheiro e desaparecer. Foi assim que começaram os sustos.
Assustar a todos com a verdade. Depois... chantagem... depois então pedir
dinheiro.
Groc, pensei, sem falar em voz alta. Em vez disso, perguntei:
— Sabe quem foi? O mesmo que colocou o corpo na escada? Quem
escreveu a carta para que eu viesse até o cemitério? Quem disse a Clarence para
esperar do lado de fora do Brown Derby, e descobrisse você? Quem inspirou
Roy Holdstrom a fazer o busto de um monstro possível para um filme
impossível? Quem deu a J.C. uma overdose de uísque para que ele perdesse o
controle e contasse tudo? Quem?
A cada pergunta, a grande massa do outro lado do confessionário
remexia, estremecia, sorvia grandes haustos de ar e suspirava profundamente,
como se cada inspiração fosse uma esperança a mais de sobrevivência, e cada
expiração, própria culpa e desespero.
Depois de um instante de silêncio ele tornou a falar:
— Quando tudo começou, com o corpo no muro, suspeitei de todos.
Depois, as coisas pioraram. Fiquei descontrolado. Doc não podia ser. Ele era
covarde, e seria óbvio demais. Afinal de contas, ele mesmo tinha descoberto
minha doença e me contado. J C? Pior ainda do que covarde, ele se escondia
numa garrafa todas as noites. Não podia ser ele.
— Onde está J.C. esta noite?
— Enterrado em algum lugar. Eu mesmo o teria enterrado. Eu me
preparei para enterrar a todos um por um, e para me livrar de qualquer um que se
metesse no meu caminho. Teria parado J.C. como fiz com Clarence. Teria
matado Cristo assim como mataria Roy, que eu pensei que tivesse matado a si
mesmo. Mas Roy está vivo. Ele matou e enterrou J.C.
— Não! — gritei.
— Existem muitos túmulos por aí. Roy o enterrou em algum lugar.
Coitado de Jesus...
— Não foi Roy!
— Por que não? Todos nós matamos se tivermos oportunidade. O
assassinato é tudo o que a gente sonha, o que a gente gostaria de fazer, e nunca
faz. É tarde, deixe-me terminar. Por que Doc, Manny e J.C. tentariam me acertar
e fugir? Manny Leiber? Ele não. Não passava de uma gravação que eu podia
tocar quando quisesse, e escutar sempre as mesmas coisas. Bem, finalmente
restava... Groc! Ele contratara Roy, mas, eu que pensei em trazer você para a
busca final, como poderia saber que essa busca era por mim? Que eu poderia
terminar esculpido em argila? Fiquei bastante alterado. Mas agora... terminou.
“Correndo e gritando, enlouquecido, de repente eu pensei: É demais.
Fiquei cansado, muito cansado de passar tantos anos escondido, tanto sangue,
tantas mortes, tanta coisa que eu já suportei, e agora esse maldito câncer. Então
encontrei o outro Monstro perto das catacumbas”.
— O outro Monstro?
— É — suspirou ele, apoiando a cabeça na madeira do confessionário. —
Vá pegá-lo. Você não pensou que havia só eu pensou?
— Outro...
— Seu amigo. Aquele que fez a escultura que eu destruí quando percebi
que era o meu rosto. Aquele cujas cidades eu pisoteei. O dono dos dinossauros
que eu trucidei... É ele que está dirigindo o estúdio!
— Está dirigindo... não é possível!
— O imbecil! Ele nos enganou. Enganou você. Quando viu o que eu
tinha feito com os animais dele, com as cidades, ele é que ficou louco! Tornou-se
o horror ambulante. A máscara terrível...
— Máscara... — Minha boca torceu-se.
Eu adivinhara, mas recusava-me a reconhecer. Vi o rosto do Monstro no
filme projetado na parede da casa de Crumley. Não era um busto de argila
animado quadro a quadro, e sim... Roy, com a aparência do pai da destruição,
uma criança do caos, o verdadeiro filho da aniquilação.
Roy no filme, representando o Monstro.
— Seu amigo — balbuciou o homem atrás da grade do confessionário,
repetindo a fala. — Meu Deus, que representação. A voz ficou igual à minha.
Falava através da parede atrás da escrivaninha de Manny, e...
— Contratou-me de volta... — escutei minha voz dizendo. — Contratou a
si mesmo de volta, certo?
— Isso mesmo! Que bela interpretação. Precisava ser indicado para o
Oscar!
Minha cabeça parecia que ia explodir. Minha mão tocou a grade de
madeira.
— Como foi que ele...
— Assumiu? Onde está a linha divisória, a fronteira? Eu o encontrei
embaixo do muro, entre os filmes, frente a frente! Aquele filho da mãe inteligente.
Eu não olhava para um espelho há anos. De repente, eu estava ali, no meu
próprio reino! Sorrindo! Levantei a mão para quebrar o espelho. Pensei que fosse
imaginação. Um fantasma de luz num vidro. Gritei e tentei acertar a imagem,
desequilibrado. O espelho levantou a mão e me aceitou primeiro. Acordei nas
catacumbas, atrás das grades de alguma cripta, e dei com ele olhando para mim.
“Quem é você?”, eu gritei. Mas eu sabia. Era a doce vingança! Eu matara suas
criaturas, esmagara as cidades dele e tentara acabar com ele também. Agora, que
doce triunfo... Ele gritou para mim: “Escute bem. Estou saindo para me contratar
de novo! Ah, sim, e dar um aumento para mim!” Ele voltava duas vezes por dia
com chocolate para aumentar um moribundo. Até que percebeu que eu estava
morrendo de verdade e a brincadeira perdeu toda a graça para ele, assim como
para mim. Talvez ele tenha descoberto que o poder não permanece como poder,
bom, grandioso e divertido. Talvez tenha ficado assustado, ou então entediado.
Algumas horas atrás ele me soltou e me levou para telefonar. Deixou-me
esperando você. Não precisou me dizer o que fazer. Simplesmente apontou o
túnel na direção da igreja. “É hora da confissão”, ele disse. Brilhante. Agora ele
está esperando você no lugar final.
— Onde?
— Que diabo! Qual é o único lugar para alguém como eu, para alguém
como ele depois de transformado?
— Ah, sim — assenti, os olhos lacrimejando. — Já estive lá. O Monstro
afundou no confessionário.
— É isso — suspirou ele. — Esta semana eu machuquei muitas pessoas.
Matei algumas, e seu amigo matou o resto. Pergunte a ele. Ele ficou tão louco
quanto eu. Quando tudo isso acabar, e a polícia vier, diga que fui eu. Coloque a
culpa em mim. Não há necessidade de dois Monstros, quando um basta. Certo?
Fiquei em silêncio.
— Responda!
— Certo.
— Ótimo. Quando ele percebeu que eu estava morrendo, de verdade, no
subterrâneo, e que ele estava morrendo por causa do câncer que eu passara para
ele, e o jogo não valia nem uma vela, ele teve a decência de me soltar. O estúdio
que ele dirigira, eu dirigira, estava parando. Nós dois precisávamos colocá-lo
novamente para funcionar. Na semana que vem, tudo precisa andar novamente.
Recomece com A Morte Vem a Galope.
— Não.
— Que diabo! Com meu último fôlego vou esganar você. Posso fazer
isso! Concorde!
— Está bem — respondi por fim. — Será feito.
— E agora a última coisa. O que eu disse antes. Minha oferta. Ê seu se
você quiser. O estúdio.
— Não...
— Não existe mais ninguém! Não recuse tão rápido assim. A maior parte
dos homens morreria tentando conseguir...
— Morrer é a palavra certa. Eu estaria morto em um mês ou dois,
acabado, bêbado e morto.
— Você não está entendendo... É o único filho que tenho.
— Desculpe se isso é verdade. Mas por que eu?
— Porque você é um sincero, honesto e ingênuo sábio. Um tolo de
verdade, sem fingimento. Alguém que fala muito, mas, quando se presta atenção
às palavras, elas estão certas. Você não consegue evitar. As coisas boas saem de
você transformadas em palavras.
— Pode ser, mas eu nunca me encostei no espelho e fiquei escutando
você anos a fio, como Manny.
— Ele fala, mas as palavras não significam nada.
— Mas ele aprendeu. Ele deve saber, a essa altura, como dirigir as coisas.
Deixe que eu trabalhe para ele!
— Última chance? Última oferta? — A voz dele estava sumindo.
— E desistir da minha vida, da minha mulher e de escrever?
— Ah... certo — murmurou a voz. Depois acrescentou: — Agora chegou
o fim. Me abençoe, padre, pois pequei verdadeiramente.
— Não posso.
— Pode, sim. E perdoe. Esse é o trabalho do sacerdote. Me perdoe e me
abençoe. Daqui a pouco vai ser tarde demais. Não me mande para queimar
eternamente no inferno.
Fechei os olhos e disse:
— Eu te abençôo. Eu te perdôo. Mas, por Deus, não entendo você.
— Eu também não — balbuciou ele, com esforço. Sua cabeça bateu
contra a madeira. — Muito obrigado...
Os olhos dele se fecharam no espaço exterior onde não existe som.
Adicionei minha própria trilha sonora. O ruído de um enorme portão, fechando-se
no esquecimento, monumentais portas tumulares batendo com estrépito final.
— Eu te perdôo — gritei para a terrível máscara mortuária do homem a
minha frente.
— Eu te perdôo — voltou o eco de minha voz, reverberando pelo teto
alto do templo vazio.
A rua estava vazia.
Crumley, pensei, onde está você?
Corri.
- 72 -
Restava um último lugar para ir.
Subi pelo interior escuro de Notre-Dame.
Vi a forma imóvel perto da borda superior da torre esquerda, não muito
distante de uma das gárgulas, com o queixo animalesco repousando sobre uma
das patas, olhando uma Paris que nunca existiu.
Andei pela borda, tomei fôlego e gritei:
— Você aí... — Tive de parar.
A silhueta permanecia sentada, com o rosto na sombra, totalmente imóvel.
Respirei profundamente mais uma vez e disse:
— Aqui!
A figura aprumou-se. A cabeça, o rosto, moveram-se para o brilho suave
das luzes distantes da cidade. Inspirei fundo uma última vez e chamei baixinho:
— Roy?
O Monstro olhou para mim, uma perfeita duplicata do outro, que morrera
no confessionário alguns momentos atrás.
O terrível sorriso fixou-se em mim, e os olhos de aparência raivosa
gelaram meu sangue. O horrível ferimento que era a boca rasgada, engasgou,
sibilou e engrolou uma única palavra:
— Ssssiim.
— Acabou tudo — anunciei, com a voz entrecortada. — Meu Deus, Roy.
Desça daí.
O Monstro assentiu. Sua mão direita elevou-se até o rosto para retirar a
argila e a maquiagem que formavam a máscara assustadora e impressionante. Ele
puxava seu rosto de pesadelo para baixo, com os dedos em garra. Por trás dos
restos de material, meu velho companheiro de escola olhou de volta para mim.
— Eu estava parecido com ele? — indagou Roy.
— Meu Deus, Roy! — Eu mal podia enxergar através das lágrimas que
me subiram aos olhos. — Claro que estava!
— Achei mesmo que sim.
— Roy! — Tire tudo! Tenho essa horrível sensação de que se algum
pedaço ficar, não vai sair nunca mais!
A mão direita de Roy levantou-se num movimento involuntário para
limpar a bochecha repulsiva.
— Engraçado — comentou ele. — Eu tenho a mesma impressão.
— Como é que você chegou a deixar seu rosto assim?
— Quer duas confissões pelo preço de uma? Você já escutou uma. Quer
ouvir outra?
— Quero.
— Vai virar padre, então?
— Estou começando a me sentir como um. Quer ser excomungado?
— Excomungado?
— Da nossa amizade.
Os olhos moveram-se rapidamente para me encarar.
— Você não faria isso!
— Talvez.
— Amigos não fazem chantagem com a amizade.
— Mais um motivo para falar. Comece.
De dentro da máscara semidestruída, Roy disse:
— Foi o Monstro que provocou tudo. Ninguém nunca havia tocado em
meus adorados, meus filhos. Meu Deus, acho que ninguém nunca chegou a
pensar nisso! Eu dei vida a eles, criei e dei forma a eles. Eles eram perfeitos. Eu
era Deus. O que mais eu tinha? Você me conhecia. Alguma vez eu saí com a
ginasta da classe, ou com a chefe da torcida? Tive alguma mulher durante esses
anos todos? Coisa nenhuma. Eu ia para a cama com meus brontossauros. Voava
à noite com meus pterodátilos. Não é difícil imaginar como me senti quando
alguém assassinou meus filhos inocentes, destruiu meus mundos, matou meus
antigos companheiros de cama. Não fiquei só furioso. Fiquei completamente
lunático.
Roy fez uma pausa, ainda dentro de sua máscara hedionda. Depois
continuou:
— Que diabo! Foi tão simples. Tudo se encaixou desde o início, mas eu
não disse nada. Lembra-se da noite em que seguimos o Monstro, e eu fui atrás
dele no cemitério? Eu estava apaixonado pelo maldito Monstro. Tinha medo de
que você estragasse a diversão. Diversão? Pessoas estavam morrendo por causa
daquilo! Portanto, quando eu o vi entrar no próprio túmulo, e depois não sair
mais, fiquei quieto. Eu sabia que você ia tentar me convencer a deixar o assunto
de lado, e eu precisava daquele rosto, aquela máscara horrível para nossa obra-
prima! Calei a boca e fiz aquele busto de argila. Depois? Você quase foi
despedido, e eu fui mandado embora! Depois meus dinossauros foram destruídos,
minhas paisagens pisoteadas, e minha escultura do Monstro foi martelada até ficar
em pedacinhos. Fiquei fora de mim. Mas logo depois pensei: só havia uma
pessoa que poderia ter destruído o busto. Não podia ser Manny, nem ninguém
que nós dois conhecêssemos. Só o próprio Monstro! O sujeito do Brown Derby.
Mas como é que ele poderia saber sobre o monstro de argila? Alguém contou
para ele? Não. Pensei muito naquela noite em que o segui até o cemitério, perto
do estúdio. Meu Deus, tinha de ser aquilo! No interior da tumba, e de algum jeito
por baixo do muro, tarde da noite, foi até o estúdio, onde ele descobriu minha
réplica de argila do rosto dele e a destruiu.
“Imaginei um bocado de planos malucos, ali mesmo. Sabia que se o
Monstro me encontrasse, eu estaria morto. Portanto, resolvi me “matar”... Sair da
cena. Se eu estivesse supostamente morto, poderia procurar com calma, encontrar
o Monstro e me vingar. Então eles me encontraram e me queimaram, e naquela
noite eu fui até o outro lado do muro. Você sabe o que eu achei. Entrei no jazigo,
encontrei a porta sem trancar, desci e fiquei escutando atrás do espelho no
escritório de Manny! Fiquei abismado. Era tudo perfeito! O Monstro dirigia o
estúdio sem que ninguém o visse. Portanto, era melhor não matar o filho da mãe,
e sim esperar um pouco e agarrar o poder. Em vez de matar, ser o Monstro, viver
a vida do Monstro. Então viajar por vinte e sete ou vinte e oito países, o mundo
todo. Na hora certa, claro, apareceria, iria renascer, dizer que fiquei com amnésia
ou outra história qualquer, eu teria inventado alguma coisa. O Monstro estava
enfraquecendo, de qualquer modo. Percebi isso. Morrendo em pé. Me escondi e
fiquei observando e escutando, depois nocauteei o Monstro no depósito de filmes,
no meio do túnel. E aquela maquilagem? Quando ele me viu na escuridão do
túnel, ficou tão chocado que eu tive chance de bater nele e trancá-lo no depósito.
Depois subi para testar minha antiga capacidade, imitando a voz por trás do vidro.
Eu escutara o Monstro falando no restaurante, e depois no túnel, ao lado do
escritório. Fiquei ali sussurrando, murmurando, e pouco depois: A Morte Vem a
Galope estava na programação outra vez! Eu e você contratados de novo! Estava
me aprontando para tirar a maquiagem e ir ao seu encontro, quando aconteceu
uma coisa!”
— O quê?
— O poder. Eu gostei. O mercado da Bolsa, os homens das grandes
corporações, essas coisas. Fiquei bêbado de poder! Adorei ficar tomando
decisões, ainda por cima sem reuniões da diretoria... Tudo feito com espelhos,
ecos e sombras. Ter a chance de fazer todos os filmes que deveriam ter sido feitos
anos atrás, e não foram. Reconstruir a mim mesmo, meu universo. Reinventar,
recriar meus amigos, minhas criaturas. Fazer com que o estúdio pagasse em
dinheiro, além de carne e sangue- Saber quem mais foi responsável por estragar
minha vida. Então esmagar os tolos, colocar as corjas de ignorantes e bajuladores
no lugar deles. O estúdio me dirigiu; agora eu dirigia o estúdio. Meu Deus, não é
de estranhar que Louis B. Mayer fosse intolerável, que os irmãos Warner
injetassem filme em pó nas veias toda noite. Até que você tenha dirigido um
estúdio, parceiro, você não tem idéia do que seja o poder. Você dirige não apenas
uma cidade, um país, mas o mundo inteiro além desse mundo. Câmera lenta, a
gente diz, e todo mundo começa a se mexer devagarinho. Rápido, a gente manda;
as pessoas saltam o Himalaia e começam a se remexer nas sepulturas. Tudo
porque a gente cortou as cenas, dirigiu os atores, disse onde começar e adivinhou
os finais. Depois que comecei, eu ficava no alto de Notre-Dame rindo dos
camponeses toda noite, diminuindo os anões crescidos que haviam feito meus
amigos sofrerem e desmontado o giroscópio que sempre rodou em meu peito. Só
que agora o giroscópio roda novamente, enlouquecido, fora de eixo. Dê uma
olhada lá, no que fiz, quase tudo por terra. O Monstro começou, mas eu terminei.
Eu sabia que, se não parasse, iria acabar num hospício com paranóia. Isso, e o
Monstro morrendo, querendo ir uma última vez ao confessionário com direito ao
padre, velas, sinos e pedir: perdão. Tive de devolver o estúdio para ele, para que
ele o desse a você.
Roy diminuiu o ritmo, lambeu os lábios de aparência horrível e ficou em
silêncio.
— Existe uma coisa, aliás várias coisas, que não ficaram claras... — disse
eu.
— Pode falar.
— Quantas pessoas Arbuthnot matou nos últimos dias, e quantas
pessoas... — Tive de parar, pois não consegui completar a frase.
— E quantas Roy Holdstrom, o Monstro número dois, matou? Assenti
com um gesto de cabeça.
— Eu não matei Clarence, se é disso que tem medo.
— Graças a Deus.
Engoli em seco, e finalmente disse:
— Em que ponto... Meu Deus, quando foi...
— Quando foi o quê?
— Em que horas... em que dia... Arbuthnot parou... e você assumiu?
Agora foi a vez de Roy, por trás do que restava da máscara, engolir em seco.
— Foi por causa de Clarence, claro. De um jeito ou de outro, nas
catacumbas, escutei vozes pelo sistema de comunicação, a cada intersecção dos
túneis. Vozes dentro dos túneis. A cada lugar que eu apanhava os interfones, ou
me escondia, ou avançava atrás das sombras que se moviam para enterrar alguma
coisa. Soube que Clarence estava pronto para ser enterrado, cinco minutos depois
da visita do Monstro ao apartamento dele. Vi e ouvi tudo a distância, Doc
arrastando Clarence pelos túneis até uma maldita tumba desconhecida. Eu sabia
que eles logo iriam descobrir que eu estava vivo, se é que já não suspeitavam. Eu
imaginei se não iriam verificar o incinerador e encontrar o meu esqueleto falso em
vez do verdadeiro. E a seguir: você! Você conhecia Clarence. Eles podiam ter
visto você no apartamento dele, ou no meu apartamento. Se juntassem os fatos
teriam enterrado você vivo. Portanto, fui obrigado a assumir. Fui obrigado a me
transformar no Monstro.
“Mas não foi apenas isso. Tive também de fechar o estúdio para testar
meu poder, ver se eles fariam tudo o que minha voz mandasse. Com o estúdio
vazio, seria mais fácil matar os vilões, e cuidar de meus possíveis assassinos.”
— Groc... Foi ele que nos trouxe a este lugar. Me contratou primeiro,
porque eu poderia reavivar as criaturas, como ele havia feito com o velho Lênin.
Provavelmente sugeriu a Arbuthnot a sua contratação. Depois fez o boneco e o
colocou na escada no muro do cemitério para assustar o pessoal do estúdio e
Arbuthnot; então convidou a nós dois para ir ao Brown Derby, e ter uma
surpreendente revelação. E quando eu esculpi o monstro de argila e sem querer
assustei todo mundo, ele foi pedir dinheiro.
— Então você matou Groc?
— Não exatamente. Mandei que o prendessem no portão. Quando o
levaram até o escritório vazio de Manny e o deixaram sozinho em frente ao
espelho, eu abri a porta, e ele morreu de medo ao me ver de máscara. Como é,
não vai perguntar sobre Doc Phillips?
— E Doc Phillips?
— Afinal de contas, foi ele quem deu sumiço ao meu pseudocorpo, certo?
Ele e os eternos capangas. Me encontrei com ele em Notre-Dame. Ele nem tentou
correr. Puxei ele para cima com um sino.
Sei disso, pensei.
— J.C.? — perguntei, prendendo o fôlego.
— Não, ele não. Ele subiu naquela cruz há duas noites e os ferimentos
dele não fechavam. A vida dele saiu pelos pulsos. Morreu na cruz, coitado. Pobre
Jesus bêbado, que Deus o tenha. Encontrei o corpo na cruz e lhe dei uma
sepultura condigna.
— Onde estão todos? Groc, Phillips e J.C.?
— Em algum lugar. Em qualquer lugar. Isso importa? Todos aqueles
corpos lá, um milhão deles. Estou contente que nenhum deles seja... você.
— Eu?
— Foi o que finalmente me fez desistir! Há mais ou menos doze horas
atrás, encontrei você na minha lista.
— O quê?
— Vi a mim mesmo pensando: “Se ele se meter no caminho, morre”. Isso
colocou um ponto final em tudo.
— Por Deus, espero que sim!
— Eu pensei: Espere um pouco, ele não tem nada a ver com esse show
idiota. Não colocou nenhum cavalo maluco nesse carrossel. É seu amigo, seu
parceiro. Ele representa tudo o que sobrou da sua sanidade. Foi essa a linha
divisória. A estrada de volta do país da loucura é ter consciência de que se está
louco. A estrada de volta significa não andar mais pela via expressa, mas fazer
uma meia-volta. Eu gostava de você. Eu gosto de você. Portanto, voltei. Abri a
tumba e deixei que o Monstro saísse.
Roy voltou-se e olhou para mim. Seu olhar parecia perguntar: “Estou na
berlinda? Você vai me fazer sofrer pelo que eu o fiz passar? Ainda somos
amigos? O que me deu para fazer o que eu fiz? A polícia precisa saber? E quem
vai contar a eles? Preciso ser castigado? Os loucos precisam pagar? Tudo isso
não é uma loucura? Cenários malucos, roteiros malucos e atores malucos? Será
que a peça terminou? Ou acabou de começar? Agora vamos dar risada ou chorar?
Por que motivo?”
O rosto dele parecia dizer: Daqui a pouco o sol vai se levantar, as duas
cidades vão começar tudo outra vez, uma mais viva do que a outra. Os mortos
vão continuar mortos, certo, mas os vivos vão repetir as falas que disseram ontem.
Deixamos que eles falem? Ou vamos reescrever tudo juntos? Faço A Morte Vem
a Galope e, quando o Monstro abrir a boca, serão suas palavras a sair dali?
— O quê...? Roy esperou.
— Você vai mesmo voltar comigo? — perguntei. Depois tomei fôlego e
continuei: — Você vai voltar a ser Roy Holdstrom e permanecer assim, sem ser
outra coisa além de meu amigo de agora em diante? É isso, Roy?
A cabeça de Roy estava baixada. Finalmente ele estendeu a mão.
Estendi a minha como se eu fosse cair lá de cima a qualquer momento na
Paris do Monstro, lá embaixo.
Apertamos as mãos.
Com a mão livre, Roy retirou o que restava da máscara. Jogou o material,
a cera amorfa, a maquiagem e as cicatrizes de celadon para baixo. Não ouvimos
nenhum barulho da queda. Mas uma voz surpresa, chegou até nós.
— Que diabo! Ei! Olhamos para baixo.
Era Crumley, como um camponês simplório ao pórtico de Notre-Dame.
— O que está acontecendo aí em cima? — perguntou ele, protegendo os
olhos com a mão em pala.
- 73 -
Arbuthnot foi enterrado dois dias depois.
Ou melhor, reenterrado. Ou melhor, baixado ao túmulo, levado até lá
antes do amanhecer por alguns amigos que não sabiam o que carregavam, por
quê, ou para quê.
O padre Kelly oficiou a cerimônia fúnebre de uma criança natimorta, sem
nome, e não batizada.
Eu estava presente, com Crumley, Constance, Fritz e Maggie. Roy
permaneceu um pouco recuado.
— O que estou fazendo aqui? — resmunguei.
— Certificando-se de que ele será enterrado para sempre — sugeriu
Crumley.
— Perdoando o pobre coitado — disse Constance.
— Se as pessoas soubessem o que está acontecendo aqui hoje, imagine as
multidões que poderiam vir para dar o adeus final — comentei. — O adeus a
Napoleão.
— Ele não era como Napoleão — disse Constance.
— Não?
Olhei para o outro lado do muro, onde as cidades do mundo estavam
destruídas, sem nenhum lugar para King Kong subir e tentar agarrar os biplanos,
e sem sepulcro varrido pelo vento para a tumba perdida de Cristo, e sem cruz para
transmitir um pouco de fé no futuro, e...
Não, pensei, talvez ele não fosse Napoleão, mas Barnum, Gandhi e Jesus.
Herodes, Edison e Griffith. Mussolini, Gêngis Khan e Tom Mix. Bertrand
Russell, O Homem Que Fazia Milagres e O Homem Invisível. Frankenstein, O
Pequeno Polegar e Drac...
Devo ter dito alguma coisa em voz alta.
— Fique quieto — pediu Crumley, solto você.
E a porta do túmulo de Arbuthnot, com flores no interior, contendo o
corpo do Monstro, fechou-se.
- 74 -
Fui ver Manny Leiber.
Ele ainda estava sentado, como uma gárgula em miniatura, na borda da
escrivaninha. Olhei para ele e para a grande poltrona atrás.
— Bem, César e Cristo está pronto. Maggie está montando o copião. Ele
parecia desejar apertar-me a mão, mas não sabia como fazê-lo.
Portanto, eu dei uma volta pelo escritório, apanhei as almofadas dos sofás,
como nos velhos dias, empilhei-as e sentei-me sobre elas. Manny Leiber teve de
ir.
— Você nunca desiste?
— Se eu desistisse, você ia me comer vivo. — Olhei além dele, para a
parede. — A passagem está fechada?
Manny levantou-se da escrivaninha, caminhou até lá e retirou o espelho
do lugar. Por trás, onde existia a porta, agora se podia ver uma parede de massa
corrida, recém-pintada.
— É difícil acreditar que um monstro esteve nesse lugar todos os dias
durante vários anos — comentei.
— Ele não era um monstro — afirmou Manny. — Além disso, dirigia
esse lugar. Eu teria levado tudo à falência muitos anos atrás. Foi só no final que
ele enlouqueceu. O restante do tempo era como se fosse Deus por trás do
espelho.
— Ele nunca se acostumou com as pessoas olhando para ele?
— Você se acostumaria? Imagine! O que existe de tão incomum em vir
pelo túnel tarde da noite e sentar nessa cadeira? Não é mais burro ou inteligente
do que as idéias dos filmes projetados nos cinemas do mundo inteiro. Cada
maldita cidade da Europa está começando a parecer como nós, os americanos
loucos. Estão se vestindo, falando, andando e dançando como nós. Os filmes
fizeram com que conquistássemos o mundo, mas nós somos tapados demais para
enxergar isto. Sendo tudo isso verdade, eu pergunto: “O que há de tão estranho
sobre a criatividade de um homem perdido nesse labirinto?”
Eu o ajudei a pendurar de novo o espelho sobre a parede nova.
— Logo que as coisas se acalmem — disse Manny. — Vamos chamar
você e Roy de volta para construir Marte.
— Mas não os Monstros. Manny hesitou.
— Falamos sobre isso depois.
— Uh-hum. — Olhei na direção da poltrona. — Vai mandar tirá-la daí?
Manny considerou o assunto antes de responder:
— Acho que vou deixar crescer meu traseiro parar caber aí. Tenho adiado
isso há algum tempo. Acho que esse é o ano.
— Um traseiro grande o suficiente para segurar o escritório de Nova
York?
— Se usar o cérebro além do traseiro, sim. Com ele desaparecido eu
tenho muita coisa para cuidar. Quer tentar?
Olhei um instante para a cadeira.
— Não.
— Tem medo de que uma vez sentado aí não consiga mais levantar? É
melhor dar o fora, agora. Volte dentro de quatro semanas.
— Quando você precisar de um novo final para Jesus e Pilatos. ou Cristo
e Constantino, ou...
Antes que ele pudesse recuar, apertei a mão dele.
— Boa sorte!
— Acho que ele deseja isso mesmo — disse Manny, olhando para o teto.
— Diabos!
Ele voltou-se e foi sentar-se na poltrona.
— Que tal? — perguntei.
— Nada mal. — De olhos fechados, todo o seu corpo parecia afundar no
assento. — Um sujeito pode se acostumar com isso.
Ao chegar à porta, voltei-me para encarar a pequenez dele num espaço
tão grande.
— Ainda me odeia? — perguntou ele, com os olhos fechados.
— Claro — respondi. — E você?
— Claro — disse ele. Saí e fechei a porta.
- 75 -
Levei Crumley, Roy, Fritz, Maggie, Constance e o cego Henry para casa,
a fim de comemorar uma última vez antes que os parentes de Henry viessem
apanhá-lo para levá-lo a Nova Orleans.
A música estava alta, a cerveja abundante, o cego Henry narrava pela
décima quarta vez sua descoberta do túmulo vazio, e Constance, meio vestida,
meio despida, mordia minha orelha quando a porta de casa abriu-se
completamente.
Uma voz gritou:
— Peguei um avião mais cedo! O trânsito estava péssimo. Ah, você está
aí... Eu conheço você, e você, e você...
Peggy parou na porta, apontando.
— Mas quem é essa mulher seminua? — gritou ela.


FIM
Nota do editor
O autor mistura filmes que realmente existiram com outros que inventou
para dar suporte à narrativa. Os primeiros estão citados pelo título em português
adotado em sua exibição comercial entre nós. Os demais são simplesmente
traduzidos. Para facilitar a identificação, segue-se uma lista — com breve ficha
técnica — dos filmes verdadeiros que aparecem no livro.

O Mundo Perdido (The Lost World, 1925). Direção de Harry Hoyt. Com
Bessie Love, Wallace Beery, Lewis Stone.
King Kong (King Kong, 1933). Direção de Merian C. Cooper. Com
Ernest B. Schoedsack, Fay Wray, Bruce Cabot, Robert Armstrong.
O Filho de King Kong (Son of Kong, 1933). Direção de Ernest B.
Schoedsack. Com Robert Armstrong, Helen Mack, Victor Wong.
Drácula (Dracula, 1931). Direção de Tod Browning. Com Bela Lugosi,
David Manners, Helen Chandler, Dwight Frye.
Frankenstein (Frankenstein, 1931). Direção de James Whale. Com Colin
Clive, Mae Clarke, Boris Karloff, John Boles.
O Homem Leopardo (The Leopard Man, 1943). Direção de Jacques
Tourneur. Com Dennis O'Keefe, Margo, Jean Brooks, Isabel Jewell.
A Ilha dos Mortos (Isle ofthe Dead, 1945). Direção de Mark Robson.
Com Boris Karloff, Ellen Drew, Marc Cramer.
O Gato e o Canário (The Cat and the Canary, 1939). Direção de Elliott
Nugent. Com Bob Hope, Paulette Goddard, Gale Sondergaard, John Beal.
O Mágico de Oz (The Wizard ofOz, 1939). Direção de Victor Fleming.
Com Judy Garland, Ray Bolger, Bert Lahr, Jack Haley, Frank Morgan, Billie
Burke.
Horizonte Perdido (Lost Horizon, 1937). Direção de Frank Capra. Com
Ronald Colman, Jane Wyatt, John Howard, Margo, Sam Jaffe.
Damas e Música (Domes, 1934). Direção de Ray Enright. Com Joan
Blondell, Dick Powell, Ruby Keeler, ZaSu Pitts.
O Fantasma da Ópera (Phantom ofthe Opera, 1943). Direção de Arthur
Lubin. Com Claude Rains, Susanna Foster, Nelson Eddy.
Rebecca, a Mulher Inesquecível (Rebecca, 1940). Direção de Alfred
Hitchcock. Com Laurence Oliver. Joan Fontaine, George Sanders, Judith
Anderson.
Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). Direção de Orson Welles. Com
Orson Welles, Joseph Cotten, Everett Sloane, Agnes Moorehead, Dorothy
Comingore.
Os Dez Mandamentos (The Ten Commandments, 1923). Direção de
Cecil B. Demille. (l.a versão) Com Richard Dix, Rod Ia Rocque, Estelle Taylor.
O Lírio Partido (Broken Blossoms, 1919). Direção de D. W. Griffith.
Com Lillian Gish, Richard Barthelmess, Donald Crisp.
O Circo (The Circus, 1928). Direção de Charles Chaplin. Com Charles
Chaplin, Merna Kennedy, Allan Garcia.
Intolerância (Intolerance, 1916). Direção de D. W. Griffith. Com Lillian
Gish, Robert Harron, Mae Marsh, Constance Talmadge, Bessie Love.
Órfãs da Tempestade (Orphans ofthe Storm, 1922). Direção de D. W.
Griffith. Com Lillian Gish, Dorothy Gish, Joseph Schildkraut, Morgan Wallace.
Ouro e Maldição (Greed, 1923). Direção de Erich von Stronheim. Com
ZaSu Pitts, Gibson Gowland, Jean Hersholt.
O Pirata Negro (The Black Pirate, 1926). Direção de Albert Parker. Com
Douglas Fairbanks Jr., Billie Dove, Anders Randolf, Donald Crisp.

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