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Algumas Virtudes, Valores e Finalidades nos Desafios do Ser Médico

Article · August 2016

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Ayres José
University of São Paulo
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Versão em português de Ayres JRCM. Some virtues, values and purposes in the challenges faced by physicians. Rev
Med (São Paulo). 2016 July-Aug, 95 (Special Issue 1): 1-73.

Algumas Virtudes, Valores e Finalidades nos Desafios do Ser Médico.


1
José Ricardo de C. M. Ayres

Cem desafios.

Fiquei muito feliz e honrado quando fui convidado pela Revista de Medicina para participar
da comemoração da significativa data de seu centenário com a elaboração de um artigo. É um fato
extraordinário um aniversário de 100 anos de uma revista completamente gerida por alunos de
graduação, ainda mais se considerarmos a qualidade que vem sendo mantida desde os primeiros
números. A alegria inicial, contudo, logo cedeu lugar à preocupação: a encomenda era discorrer
sobre cem desafios do ser médico!
Não que a profissão torne difícil encontrar uma centena de desafios para seu exercício.
Muito ao contrário! Se eu lançasse um olhar retrospectivo à minha própria experiência como
médico, desde a escolha da carreira, o ingresso no vestibular, os estudos e experiências ao longo
dos seis anos de formação, a residência, a prática profissional, o desempenho dos papéis de que
nós, médicos, somos socialmente investidos, na família e na vida pública de modo geral, poderia
identificar não cem, mas centenas de desafios.
Ocorre que escolher e discorrer sobre cem entre esses desafios carregava para mim duas
dificuldades. De um lado, eu certamente não teria dom literário para reter a atenção do leitor e da
leitora por tão extensa enunciação (será que conseguiram chegar até aqui?). De outro lado, não
seria esse caminho demasiado singular? Poderia a minha experiência refletir a experiência dos
demais? Não seria um traço da medicina – uma de suas inúmeras e fascinantes características – o

1
Professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Endereço de correspondência: Av. Dr. Arnaldo 455 – 20. Andar. São Paulo, SP, Brasil. CEP: 01246-903. E-mail:
jrcayres@usp.br.
fato de que ela se constitui em um campo de atuação muito amplo, diverso e em rápida e intensa
transformação, sempre?
Cônscio da dificuldade, achei prudente não me aventurar por esse caminho... prudente.
Prudência, uma das virtudes que os antigos consideravam fundamentais para lidar com as
vicissitudes da vida prática. Eureca! Mais que enumerar desafios, por que não falar das virtudes
para enfrenta-los?! Talvez por esse caminho seja possível contornar as duas dificuldades acima
expostas: não vou cansar, você, leitor ou leitora, com meu escasso talento para discorrer de modo
atraente sobre tantos desafios, ao mesmo tempo em que evito o risco de generalizar experiências
desafiantes que podem não ser exatamente aquelas que cada um que faz medicina há de encontrar
no seu próprio caminho.
As virtudes pretendem, por definição, um caráter universal, mas, conforme nos ensinou o
eterno mestre Aristóteles, tais virtudes só vão poder mostrar-se enquanto tal nas situações
concretas a que se aplicarem.1 Por isso, para achar a justa distância entre um plano universal muito
abstrato e situações de prática muito particulares, vou propor aqui uma matemática mais modesta:
ao invés de cem desafios, proponho discorrer sobre quatro virtudes, cinco valores e três finalidades
que me parecem preciosas para enfrentar os desafios de ser médico. Penso, assim, não fugir ao
espírito da proposta de reflexão e talvez melhor contribuir com ela, dentro de meus limites, para
que possamos estar mais aptos a distinguir e, quem sabe, enfrentar com sabedoria os desafios
cotidianamente encontrados ao longo de nossa vida profissional.

Quatro virtudes.

Embora definir virtude seja uma tarefa difícil, dados os diferentes sentidos que o termo (e
o conceito) foi experimentando ao longo da história, ficarei satisfeito se a entendermos aqui
simplesmente (simplesmente?!) como uma disposição para querer e o hábito de fazer o bem.2 Ou
seja, independente das nuances que possa ter, tanto em termos de compreender como é gerada,
exercitada e implicada no cotidiano, quanto em termos de quais são as virtudes fundamentais (se
é que se as pode definir), importa aqui reter a ideia de virtude como esse movimento de nosso
pensar/sentir/fazer que se dirige fundamentalmente àquilo que consideramos adequado para
alcançar a Vida Boa, aquela que podemos considerar Vida em sua mais plena e compartilhada
tradução e, por extensão, também a boa medicina.
Desde que Platão definiu quatro virtudes fundamentais, que posteriormente Santo
Ambrósio chamaria de cardeais (prudência, coragem, temperança e justiça), e que Aristóteles
tornou a discussão da ética parte fundamental do filosofar1, nós, seus herdeiros culturais no
Ocidente, não deixamos de nos perguntar sobre o que é a Vida Boa e como alcança-la, ou melhor,
como sabermos se estamos ou não nos dirigindo a ela. Nós médicos, por força do caráter mesmo
de nosso ofício cotidiano, seja qual for o ramo em que atuemos, não podemos de modo algum
passar ao largo dessas indagações e, certamente, quando falamos de desafios, não será nunca
apenas às tarefas científicas e técnicas que estaremos nos referindo, mas também éticas e morais.3
Nós todos sabemos, por experiência, que dizer que um médico é cientificamente instruído e/ou
tecnicamente habilidoso não é automaticamente dizer que seja um profissional virtuoso. Que
poderia fazer de nós, então, um profissional virtuoso?
Sinceramente não juraria que são quatro as virtudes das quais se desdobra toda a dimensão
ética da vida humana. Ou se são três, ou sete, ou se elas variam em número conforme vão se
modificando as situações práticas que, concretamente, ao longo da história da humanidade ou da
vida de cada um de nós, vão nos interpelando e nos fazendo pensar no melhor a fazer, em qual
decisão pode ser a mais sábia em cada situação e como agir nesse sentido. A castidade, por
exemplo, já foi considerada uma virtude para as mulheres e o cavalheirismo uma virtude
masculina. Hoje certamente já não temos unanimidade quanto à importância de ambas, em si
mesmas, para o alcance da Vida Boa, muito menos do carimbo de gênero que as acompanham.
Porém, dado que não me foi encomendado um artigo especializado em ética, mas apenas um ensaio
de reflexão, vou me aventurar, não sem os devidos tributos à responsabilidade intelectual, a
discorrer sobre virtudes que me parecem fundamentais para o exercício da boa medicina.
Certamente elas devem muito, na quantidade e na qualidade, aos exercícios filosóficos de grandes
mestres no assunto, como Platão, Aristóteles, Espinosa, Kant, Nietzsche, entre outros. Contudo,
apoiar na autoridade desses pensadores a legitimação do que trarei aqui seria tão injusto quanto
pretender qualquer originalidade em relação a tudo o que eles desenvolveram.
Isso posto, vou eleger quatro virtudes como ponto de apoio para a busca da Vida Boa e,
em consequência, da boa medicina. São virtudes inter-relacionadas, e eu diria até interdependentes,
pois uma não se realiza como tal sem a concomitância mediadora da outra.
Coragem
A coragem pode ser entendida aqui no sentido geral de uma atitude ou disposição de
abertura para enfrentar situações difíceis. É lutar as lutas que, mesmo sem garantias a priori de
sucesso, sentimos que valem ser lutadas; aquelas que transcendem a busca imediata do nosso
prazer, bem-estar, conforto, e que, ao contrário, podem significar até ocasionalmente abrir mão
deles, como fez Sócrates, em uma situação limite, mas que julgamos imprescindíveis, ou
incontornáveis, para alcançar os valores da Vida Boa. Coragem é enfrentar os desafios que dão
sentido à nossa existência.

Humildade
A coragem será cega e, pior, violenta ou suicida, se não se fizer acompanhar da atitude de
reconhecimento da nossa situação de limitação, incompletude e de dependência do outro nas
diversas situações de prática. Isso é humildade, que nada tem a ver com auto depreciação, autêntica
ou simulada, ou com sentimentos diminutivos, de si ou das situações. Ao contrário, a humildade
implica uma perseverante consciência da importância de, ao fazer-se presente junto ao outro, não
o fazer em detrimento do outro ou de si para que um valor seja efetivamente compreendido e
realizado. Não é preciso ser católico para ver, por exemplo, na história de um Francisco de Assis
que a virtude da humildade não é conflitante com a corajosa afirmação de uma posição, mas ao
contrário, que a união de ambas foi fundamental, no seu caso, para que se configurassem e
realizassem os valores que guiavam sua busca religiosa.

Força.
Ser forte é usar de nossos recursos físicos, mentais e morais a favor da persecução de nossos
valores. Trata-se de uma espécie de perseverança, de vigor, de intensidade que preserva nossa
potência para sentir, pensar e agir na direção da Vida Boa, mesmo em situação desfavorável.
Talvez possamos entender essa virtude como o sustento que dá resistência à coragem, uma
disposição que alimenta de energia o enfrentamento dos desafios, mesmo quando o agir está
limitado. Não é esta virtude a que ressalta, por exemplo, da história dos longos anos de prisão de
um Nelson Mandela?
Serenidade.
A humildade está para a coragem assim como a serenidade está para a força. Força sem
serenidade é tensão, energia que se consome sem direção. Precisamos estar serenos para termos a
sabedoria de identificar o momento e a forma de (corajosa e humildemente) perseguir nossos
valores. Precisamos de serenidade para não deixar que o esperar se reduza ao resignar-se, ao
desistir. Talvez seja essa a virtude que vai à frente na conduta daqueles que costumamos chamar
de sobreviventes das diversas mazelas humanas – guerras, ódio, preconceito, acidentes, exclusão,
abandono. Sem ela, a coragem, a humildade e a força não teriam sido potencializados para leva-
los à vitória que nos permite conhece-los e aprender com eles.

Cinco valores.

Deve ter ficado mais ou menos claro, apesar do caráter muito sintético da exposição acima,
que as virtudes sempre estão colocadas em relação a um certo horizonte que nos dá a medida para
o julgamento de valer a pena agir ou não agir, nesta ou naquela direção, uma atenção cuidadosa a
si mesmo e ao outro que constitui algo como um valor. Definir valor também não é exatamente
fácil, mas, em termos simples, podemos dizer que se refere a uma condição que um sujeito, ou
conjunto de sujeitos, estimam, isto é, buscam alcançar ou preservar2. Essa estima, como vimos
acima, será sempre avaliada a partir da referência a algum fim. Podemos falar em valor do ponto
de vista matemático, musical, econômico, cultural, valor de uso, valor de troca, etc. Aqui estamos
nos referindo a valor na perspectiva da ética, portanto a referência é a Vida Boa, e nossa área de
ação específica é a medicina. Nesse sentido, farei um exercício para elencar ao menos cinco valores
entre aqueles que julgo deverem dirigir nossas virtudes para a prática da boa medicina.

Felicidade
Dependendo do modo como nos aproximamos dela, a felicidade pode ser considerada
desde uma condição passageira de satisfação de uma inclinação até um estado de consciência,
chamada na antiguidade de eudaimonia, ou beatitude (ou o Nirvana, no sentido hinduísta), que
caracteriza menos a satisfação em si do que um estado de ânimo positivo frente às diferentes
inclinações e suas formas de satisfação.4 Em nosso caso, tomo-a como um valor no sentido
particular de nos colocar como horizonte do afazer profissional a busca de uma satisfação que,
passando pela prevenção, tratamento ou reabilitação de doenças, aspira ir, com isso, para além
disso. Devemos estar prontos a entender e manejar as necessidades de saúde das pessoas e suas
demandas por cuidados como estando enraizadas, social e individualmente, em aspirações por uma
experiência mais profunda de bem-estar, ainda que a convivência com problemas de saúde não
possa ser de todo minimizada – e especialmente nessas condições! É, ao fim e ao cabo, a
preocupação com este horizonte de bem-estar, ou o que alguns temos chamado de “projeto de
felicidade”, que nos permite otimizar o bem e minimizar o mal que podemos fazer às pessoas e
comunidades de quem cuidamos ao desenvolver, aplicar e ensinar as ciências e técnicas que
utilizamos em nosso ofício.5

Justiça
Como vimos acima ao discutir a humildade, a relação eu-outro é fundamental para a
condução virtuosa de nossas ações rumo à Vida Boa. Ser justo é um valor também na medicina.
Sabemos que somos desiguais, que somos seres singulares, mas que essa desigualdade não pode
criar desvantagens de uns em relação aos outros no alcance do bem-estar. Por isso a equidade é
tão cara às boas práticas de atenção à saúde, a ponto de ter se tornado indissociável da
universalidade e integralidade como princípio doutrinário do SUS, o sistema de saúde brasileiro.
Socorrendo-nos na inspirada máxima elaborada pelo cientista social e filósofo português
Boaventura de Souza Santos – “temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza;
temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”6 – e adaptando-a ao
nosso caso, podemos sintetizar o valor da justiça na saúde afirmando que o cuidado deve ser
praticado de forma igual para todos sempre que uma desigualdade no modo de fazê-lo desrespeite
ou exclua alguém ou alguns, e que, ao contrário, deve ser praticado de formas diferenciadas sempre
que a igualdade do cuidado esconda ou negligencie as necessidades de cada um. Por isso, da
consulta individual à formulação de políticas, é tão importante o diálogo entre saúde e direitos.

Verdade
Mesmo correndo o risco de ser tomado por repetitivo, não posso deixar de lembrar que,
também aqui, estamos em terreno onde são difíceis as definições cabais. Para nossos propósitos,
vamos entender aqui a verdade, em termos sintéticos, como a expressão de um juízo sobre o real
que pode ser racionalmente sustentado e comunicativamente validado7. No caso da medicina,
prática que implica tomada de decisões de alto valor para a vida das pessoas, tanto no sentido físico
como prático-moral, a construção e compartilhamento de juízos solidamente aceitos como
verdadeiros é fundamental. Por isso nossa expertise tecnocientífica é tão importante, obrigando-
nos a uma vida de estudo e aperfeiçoamento técnico. Mas é igualmente importante também lembrar
das verdades que não se referem ao plano estritamente tecnocientífico – como aquelas de que
estamos tratando aqui. Então é também importante uma ativa busca de formação humanística para
os estudantes e praticantes da medicina. E mais, e ainda mais fundamental: é preciso estar muito
atento à verdade que as pessoas e comunidades acumulam e trazem para as práticas de saúde em
seu saber cotidiano, o mais profundo saber acerca da realidade que só elas vivem, a sua sabedoria
prática – assim como aquela sabedoria prática que nós próprios acumulamos em nossa vida
profissional, e que não nos ensinaram nas aulas e nos livros.

Compaixão
Noção vizinha às de simpatia e empatia, esta última bem mais frequente na literatura
médica, a compaixão, no modo como a destaco aqui como valor, quer se referir ao movimento de
participar do pathos vivido pelo outro.8 Isto é, quem, por ofício, se dispõe a ajudar as pessoas a
encontrarem seu bem-estar não pode ser indiferente ao sofrimento e à alegria do outro. Mas a
compaixão diferencia-se de piedade, comiseração ou qualquer outro sentimento de tristeza ou
diminuição da aposta na força ou na coragem do outro, que roube desse outro a sua autonomia e
suas próprias virtudes – postura presente em certas atitudes e ações de compaixão piedosa.9
Entende-se compaixão aqui como um deixar-se afetar pelo outro, não apenas pela razão, mas
também pelo sentimento, que é uma forma de compreender o outro. Compreender para agir junto
ao outro, com o outro, não pelo outro. É, nesse sentido, a antítese da máxima, muito frequente no
meio médico, de que o bom profissional não se deixa envolver emocionalmente. Penso que o bom
médico não se deixa paralisar emocionalmente, o que é bem diferente.

Responsabilidade
Trata-se aqui de tornar-nos caução de nossas ações, isto é, garantir que elas estejam
baseadas em boas razões e permanecer interessados e compromissados com suas consequências.
Ou seja, todos os valores acima listados não podem ser tomados por base das ações do médico sem
que este entenda a especificidade da aplicação de seu saber nas situações concretas das pessoas de
quem cuida e, naturalmente, de seus desdobramentos clínicos e não clínicos na vida dessas pessoas.
Infelizmente nossa cultura das especialidades e a fragmentação institucional do trabalho médico
são, frequentemente, um obstáculo a que percebamos e exerçamos essa responsabilidade mais
ampla, levando-nos a tomar a estrita aplicação de protocolos e algoritmos como nossa única tarefa,
como se ela nos isentasse da responsabilidade intrínseca ao cuidar. De modo paralelo ao que vimos
entre compaixão e autonomia, a aposta aqui não é subtrair ao outro a sua própria responsabilidade
e, especialmente, sua liberdade na tomada de decisões, mas apoiar ativamente aqueles de quem
cuidamos nesse processo tantas vezes tão difícil, especialmente quando se está fragilizado por um
adoecimento ou sofrimento.

Três finalidades.

Como vimos acima, virtudes e valores sempre visam situações concretas de prática.
Portanto, acho necessário, para concluir, identificar os compromissos inerentes ao lugar
socialmente ocupado em nossos dias pelo trabalho médico, e de saúde de modo geral, para que os
valores e virtudes acima se aproximem um pouco mais de seu horizonte de aplicação. Claro que o
peso de cada uma das finalidades a serem listadas variará em função das diversas áreas de atuação
profissional. Vou agrupá-las em três modalidades. De novo, não há qualquer razão “esotérica”
para fixa-los em três. Poderia resumi-los em apenas um, na ideia bem ampla e radical do Cuidar5
(com maiúscula mesmo). Ou poderia desdobrá-los à exaustão, ao modo de um check list de tarefas
de um “profissional universal”. Mas me parece que com essas três que apontarei podemos nos
aproximar suficientemente, nos limites deste texto, do sentido do Cuidar na prática do médico e
das equipes de saúde de modo geral.

Acolher
Em todos os ramos da medicina, mas especialmente naqueles que implicam lidar
diretamente com as pessoas nos serviços de saúde, é preciso reconhecer que o trabalho em saúde
começa com a necessidade de entrar em efetivo contato com o outro, encontro de que temos falado
desde as primeiras linhas deste texto. Acolher significa estar ativamente pronto a ser interpelado
pelo outro, ouvir e sentir o que ele demanda de nós como cuidadores (não apenas individualmente,
no momento das interações interpessoais, mas como trabalhador coletivo e como sistema de saúde
também).10 A importância do acolhimento é, em geral, mais claramente percebida nos espaços de
recepção das pessoas nos serviços – consultórios, ambulatórios, unidades básicas, hospitais
(embora, infelizmente, nem sempre de modo satisfatório). Mas o acolhimento pode acontecer, e
frequentemente reclama acontecer, em qualquer momento do trabalho em saúde. É a demanda por
escuta de uma dificuldade na esfera sexual que surge, inesperada e indiretamente, em um exame
ginecológico de rotina; é a demanda por uma avaliação da “normalidade” de seu desenvolvimento
trazido pelo adolescente que vem ao serviço com queixas pouco claras e clinicamente desconexas;
é a busca de socorro pela vítima de violência que vem ao serviço tratar de uma dor crônica; é o
gestor que percebe a insuficiência ou inadequação de um serviço por trás de uma queixa
aparentemente pessoal de um usuário; ou o formulador de política que lê, para além dos
indicadores de saúde tradicionais, uma condição de vulnerabilidade que reclama respostas
públicas.

Dialogar
Ora, para que possamos acolher, é preciso valorizar um dispositivo central para que a
relação eu-outro ocorra: o diálogo. Diálogo é sinônimo de linguagem em ato, de palavra que circula
entre dois ou mais sujeitos, permitindo que os horizontes pelos quais enxergam o mundo se fundam
e a compreensão mútua aconteça (mesmo quando haja discordância de posições ou conclusões)11.
Para o diálogo acontecer precisamos estar preparados a deixar que o outro construa suas próprias
narrativas sobre fatos, juízos, sentimentos que expressem sua experiência de saúde ou doença e os
projetos de felicidade que norteiam sua busca por cuidado. Isto significa que as pessoas de quem
cuidamos não devem apenas responder às perguntas que nossa expertise tecnocientífica mostram
ser relevantes, mas também devem poder nos orientar sobre quais respostas será relevante obter.
Então é fundamental a abertura ao outro, ao ouvir, à suspensão de todo juízo moralista – o que não
significa abandonar as preocupações morais que nos regem, mas evitar enquadrar em sistemas e
julgamentos pré-moldados aquilo que ouvimos e as decisões que devemos tomar. A a criação de
espaços e mecanismos capazes de efetivamente fazer ouvir a voz do outro é indispensável para a
boa medicina. Há um trecho de “A morte de Ivan Ilitch”, célebre novela de Tolstói, que ilumina
com a força sintética e expressiva da arte isto a que quero me referir: “O Doutor dizia: isto e mais
aquilo indicam que o senhor tem no seu interior isto e mais aquilo; mas se isto não se confirmar
pela pesquisa disto e de mais aquilo, teremos que supor no senhor isto e mais aquilo, então... etc.
Somente uma questão tinha importância para Ivan Ilitch: a sua condição apresentava perigo? Mas
o doutor não dava importância a esta questão inconveniente”.12

Responder
A medicina deve sempre responder de alguma forma ao que se lhe demanda ativa ou
potencialmente como necessidade de cuidado. Como vimos, devemos responder sempre da melhor
forma segundo os projetos de felicidade das pessoas, buscando conhecimentos sólidos e ações
adequadas à realidade e às experiências de cada um, tornando-nos corresponsáveis por unir êxito
técnico e sucesso prático5 no desenrolar do cuidado. Como vimos acima, ainda que sem respostas
conclusivas, ainda que a pergunta fosse “inconveniente”, o cuidado efetivo de Ivan Ilitch passava
por uma pergunta não respondida, nem sequer ouvida. Como nos ensinou a enfermeira, assistente
social, médica e escritora inglesa Dame Cecily Saunders: “O sofrimento somente é intolerável
quando ninguém cuida”.13 E poderíamos acrescentar que também a saúde só se constrói com a
resposta cuidadora, concordando com o teólogo Leonardo Boff quando afirma: “O cuidado é o
suporte real da criatividade, da liberdade e da inteligência. No cuidado se encontra o ethos
fundamental do ser humano”.13 Portanto, é essencial nunca deixar sem resposta uma demanda por
cuidar. Ainda que ela seja dura de ouvir, ou que o caminho para soluções seja longo ou difícil, é
preciso dar respostas às necessidades de cuidar. Cuidar é sempre possível e necessário. E isso é
valido para o profissional, tanto quanto para o gestor ou o formulador de políticas de saúde.

Uma última palavra.

Chegamos ao fim deste breve ensaio, revisitando e, em certa medida, reconstruindo


conceitos e debates que, como apontado, vêm de séculos, e de diferentes áreas e autores. Não deve
ser entendido como o enunciar de um conjunto de regras a serem seguidos como receita, ou
proposições a serem testadas e aceitas ou refutadas. Como tudo na filosofia, ainda que nesta
interface com a medicina, trata-se, antes de tudo, de um convite à reflexão, de um compartilhar de
formas de ver e lidar com a experiência humana que pode, eventualmente, nos tornar mais sábios
e felizes em nossas próprias trajetórias. Mas, como nos ensinou Aristóteles, tudo que diz respeito
às práticas humanas está condenado ao imprevisível, à abertura de desfechos, destinado à não
repetição1, o que torna nossos julgamentos e decisões ainda mais fascinantemente desafiadores, na
medicina como na vida. Então, por que não aceitar na radicalidade essa condição e exercitá-la
corajosa e humildemente, como nos propõe a poetisa?

Exercício

Ciência, amor, sabedoria,


tudo jaz muito longe, sempre
– imensamente fora de nosso alcance.

– Desmancha-se o átomo,
domina-se a lágrima,
já se podem vencer abismos
– cai-se, porém, logo de bruços e de olhos fechados,
e é-se um pequeno segredo
sobre um grande segredo.

Tristes ainda seremos por muito tempo,


Embora de uma nobre tristeza,
Nós, os que o sol e a lua
Todos os dias encontram
No espelho do silêncio refletidos,
Neste longo exercício de alma.

(Cecília Meireles)14

Referências:
1. Aubenque P. A Prudência em Aristóteles. São Paulo: Discurso Editorial; 2002.
2. Lalande A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes; 1993.
3. Schraiber LB. No encontro da técnica com a ética: o exercício de julgar e decidir no
cotidiano do trabalho em medicina. Interface (Botucatu). 1997, 1(1):123-40.
4. Silva FL. Felicidade: dos filósofos pré-socráticos aos contemporâneos. São Paulo:
Editora Claridade; 2007.
5. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro:
CEPESC: UERJ/IMS: ABRASCO; 2009.
6. Santos BS. A construção multicultural da igualdade e da diferença. Coimbra: Centro
de Estudos Sociais, 1999. (Oficina do CES, publicação no. 135). Disponível em:
http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/135/135.pdf.
7. Habermas J. Verdade e justificação ensaios filosóficos. São Paulo: Edições Loyola;
2004.
8. Goldim JR. Compaixão, simpatia e empatia. 2006. Disponível em:
http://www.bioetica.ufrgs.br/compaix.htm.
9. Caponi S. A lógica da compaixão. Trans/Form/Ação. 1999, 21: 91-117. Disponível em:
http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/transformacao/article/view/803.
10. Teixeira RR. O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de
conversações. In: Pinheiro R, Mattos RA (Orgs.). Construção da Integralidade:
cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: IMS-UERJ / ABRASCO; 2003.
p. 89-111. Disponível em: http://www.corposem.org/rizoma/acolhiconversa.htm.
11. Gadamer HG. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. 6ª. ed. Petrópolis: Vozes; 1997.
12. Tolstói L. A morte de Ivan Ilitch. 2ª. ed. São Paulo: Editora 34; 2009.
13. François A. Cuidar: um documentário sobre a medicina humanizada no Brasil. São
Paulo: Ed. do Autor; 2006.
14. Meireles C. Obra poética. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar; 1987.

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