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NEIDE JALLAGEAS

Estratégias de construção
no cinema de Andriêi Tarkóvski
a perspectiva inversa como procedimento

Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,


como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Comunicação e Semiótica, na
área de concentração Signo e Significação nas Mídias, na Linha de Pesquisa Processos de
criação nas mídias, sob a orientação do Prof. Dr. Silvio Ferraz.

São Paulo
2007

I
BANCA EXAMINADORA

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II
Para aquele que viu o anjo*.

*
“À celui qui a vu l´ange.” Epitáfio colocado sobre o túmulo de Andriêi Arsiénievitch
Tarkóvski, no Cemitério de Sainte-Geneviève-des-Bois, em Paris.

III
Ao Centro Nacional de Apoio à Pesquisa (CNPq) pela bolsa concedida.

Aos professores orientadores, Prof. Dr. Silvio Ferraz (dezembro 2005 até a data
da defesa) e Profa. Dra. Irene Machado (primeiro semestre de 2003 até
dezembro de 2005).

Aos professores, funcionários e colegas do Programa de Pós-Graduação de


Comunicação e Semiótica da PUC/SP.

À Profa. Dra. Cecilia Almeida Salles e à Profa. Dra. Helena Freddi que
trouxeram contribuições, quando da qualificação dessa pesquisa.

Aos integrantes do Grupo de Pesquisa Oktiabr - Semiosfera: Espaços


Semióticos Compartilhados, com quem convivi de 2002 a 2005, pelas
estimulantes discussões, companheirismo e sério espírito de pesquisa.

Aos colegas e professores da escola de russo União Cultural pela Amizade dos
Povos, em especial a Rafael Tramm e Flora Vezza.

Aos amigos, pelo apoio e estímulo em diversos momentos desse percurso. Em


particular a Andréa Costakazawa, Antonio Mengs, Carlos Gonçalinho, Clarice
Vasconcellos, Daniela Lorenzi, Helena Freddi, Lauren Couto Fernandes,
Mariana Chaves, Néle Azevedo, Patrícia Gerber, Patrick Jallageas, Pedro
Humberto, Regina Jasa e Sérgio Andreucci.

Aos meus familiares cujo apoio e afeto sustentam meu caminho. Especialmente
aos meus pais, Diva e Nelson de Lima; meus sogros, Beatriz e Jacyntho
Angerami; minha tia Nair Gomes e meu sobrinho Daniel Jallageas.

Ao Xereta e Bigode, cujos negros pelos e ronronar trouxeram-me alento nos dias
mais obscuros.

Às minhas máquinas recheadas de chips que me auxiliam com suas abarcantes


memórias: Condessa, Serguiêi, Andriucha, Anna, Mária e Dmítri.

A todos os pesquisadores e artistas em diálogo com meu trabalho, dos quais


pensamento e obra nutrem e instigam a continuidade.

Ao Paulo, Francine e Flamínio, pelo apoio e participação intensa em todas as


horas, lendo, revisando, problematizando e discutindo idéias; fazendo
comidinhas; compartilhando a produção artística, leituras, filmes, exposições e
viagens; sempre com muito, muito carinho.

Muito obrigada!

IV
Nota sobre transliteração do russo para o português

Sendo este um trabalho no âmbito da cultura russa faz-se pertinente esse


pequeno esclarecimento sobre transliteração. Transliterar do alfabeto cirílico
para o latino tem-se demonstrado uma tarefa bastante árdua para os ocidentais
que pesquisam a cultura russa. O mais comum, em terras brasileiras, até
recentemente, foi utilizar a transliteração do russo para o inglês. No entanto, as
traduções mais recentes, realizadas principalmente pelos professores do
Departamento de Línguas Orientais da Faculdade de Letras da Universidade de
São Paulo (FFLCH), têm tomado um caminho que se distingue do percorrido
pelos tradutores de língua inglesa. Assim não se translitera mais o primeiro
nome de Lênin, como Vladimir e sim Vladímir. Da mesma forma o Rublev da
transliteração inglesa, quando em português é Rublióv.
Quando da qualificação, boa parte da transliteração contou com a
orientação do Prof. Dr. Paulo Bezerra (UFF/Niterói), a quem agradecemos.
Nota-se no entanto, que até o presente momento, a inexistência de uma
normatização no Brasil implica na diversidade. Mesmo entre os tradutores de
maior experiência não há unanimidade. Optamos por adotar a tabela de
transliteração publicada pelo departamento de russo1 da FFLCH. .
Quanto às referências bibliográficas e filmográficas, optou-se por
respeitar a grafia original do texto consultado, buscando minimizar possíveis
confusões para pesquisadores futuros que consultem o presente estudo. Por
exemplo, na Bibliografia ao final desse encontramos o nome Tarkóvski grafado
conforme a origem do livro consultado: Tarkovskij nas publicações italianas;
Tarkovski, nas francesas, espanholas e algumas brasileiras; Tarkovsky nas
inglesas e assim por diante. Assim, embora na tese a grafia correta em português
do Brasil seja Tarkóvski, quando no corpo do texto houver referência a
determinada obra estrangeira, será respeitada a grafia do nome do autor
conforme se encontra na mesma. O mesmo se aplica aos demais nomes russos.

Nota sobre tradução de língua estrangeira para o português

Como a maior parte de nossa bibliografia é escrita em língua estrangeira


optou-se por incluir na tese as citações já traduzidas para o português e não
incluir a citação na língua original para não sobrecarregar o texto já bastante
volumoso. Todas as citações trazem suas respectivas referências, possibilitando
a conferência com o original.
As traduções no corpo do texto são de inteira responsabilidade da autora.
O Abstract, versão em inglês do Resumo, foi traduzido por Lauren Couto
Fernandes, a quem agradecemos.

1
CADERNO DE LITERATURA E CULTURA RUSSA. Curso de Língua e Literatura Russa do
DLO/FFLCH da Universidade de São Paulo. São Paulo: Ateliê Editorial, nº 1, mar. 2004, p. 323.

V
RESUMO

Essa tese propõe estudar estratégias de construção no cinema do cineasta russo


(soviético) Andriêi Arsiénievitch Tarkóvski, estabelecendo o campo de análise nos sete
longas-metragens realizados por ele entre 1962 e 1986. A hipótese central é que a obra
cinematográfica tarkóvskiana se fez, a partir da articulação de procedimentos inerentes
ao modelo de visão de mundo organizado pela perspectiva inversa, articulação essa que
abriu possibilidades para experimentações estéticas associativas ao modelo
predominante, organizado pela perspectiva linear. A hipótese subjacente é que as
estratégias de construção do cinema de Tarkóvski configuram-se como resistência aos
cânones da arte e da comunicação soviéticas. Objetiva-se compreender, primeiramente,
como esses modelos de visão de mundo se conectam com o mundo visível para
produzirem mensagens visuais e de que forma tais modelos problematizam o conceito
de realismo nas artes e seus derivados, o Realismo Socialista. Em seguida, pretende-se
identificar e discutir os procedimentos que se intersectam no tempo e no espaço nas
seguintes construções distintas: Vanguardas Russas, pintura de ícones medieval e
cinema de Andriêi Tarkóvski. Finalmente, demonstrar como modelos associativos
dinamizaram a construção desse cinema através do uso da perspectiva inversa como
procedimento, contrapondo-se aos cânones estabelecidos pelo Realismo Socialista.
Elege-se como campo teórico, o conjunto de estudos dos processos dialógicos na arte
realizados pelo teórico russo Mikhail Bakhtin, principalmente os conceitos de Pequeno
e Grande Tempo, Cronotopia e Compreensão Ativa, em diálogo com os manifestos e
escritos das Vanguardas Russas, privilegiando-se o campo conceitual trabalhado pelo
pensador russo Pável Floriênski acerca da Perspectiva Inversa e ainda com o
pensamento de Gilles Deleuze sobre o Ritornelo. Metodologicamente são selecionadas
seqüências dos sete longas-metragens à luz dos conceitos que embasam esse trabalho.
Dessas seqüências destacam-se os paradigmas que desencadeiam a associação entre os
modelos de visão de mundo: as linhas potenciais conectivas de espaços; formação de
centros múltiplos e o adensamento dos centros ou extratos cronotópicos. Por fim esse
estudo distingue-se por contribuir para a problematização de modelos norteadores da
criação artística e comunicacional da estética totalitária e outros, que norteiam
estratégias que buscam resistir ao totalitarismo artístico e comunicacional na
contemporaneidade.

Palavras-chave: Andriêi Tarkóvski, Cinema russo, Comunicação, Arte, Realismo


Socialista (Soviético), Cronotopia, Perspectiva Inversa, Grande Tempo.

VI
Abstract

This thesis proposes to study the strategies of construction of the Russian (Soviet)
filmmaker Andriêi Arsiénievitch Tarkóvski, establishing as the scope of the analysis the
seven full-length features he made between 1962 and 1986. The central hypothesis is
that the Tarkovskian cinematic works were made through the articulation of procedures
inherent to the world view model organized through an reverse perspective, an
articulation which opened possibilities for aesthetic experimentations associated to the
predominant model, organized by the linear perspective. The underlying hypothesis is
that the construction strategies in Tarkóvsky’s cinema present themselves as a form o
resistance to the Soviet cannons of arts and communication. The primary objective is to
understand how these world view models connect with the visible world to produce
visual messages and in which way such models problematize the concept of realism in
the Arts and one of its derivatives, the Socialist Realism. The secondary objective is to
discuss the procedures that intersect in time and space in distinct constructions: the
Russian Avant-Gardes, medieval painting and Andriêi Tarkóvski’s cinema. The final
objective is to demonstrate how associative models dynamized the construction of this
cinema through the use of the reverse perspective as a procedure, counterposing itself to
the cannons established by the Socialist Realism. The theoretical basis of this research
lies on the studies of the dialogical processes realized by the Russian theorist Mikhail
Bakhtin, especially regarding his concepts of Small and Great Time, Chronotopy and
Active Comprehension, in dialog with the manifests and writings of the Russian Avant-
Gardes, taking mainly into perspective the conceptual field worked by the Russian
thinker Pável Floriênski concerning the Reverse Perspective, and with the thoughts of
Gilles Deleuze about the Ritornello. Methodologically, sequences of the seven full-
length features are selected in light of the concepts in which this work is based on.
From these sequences the paradigms that trigger the association between the world
view models have been highlighted: the potential lines that connect spaces; the
formation of multiple centers and the densening of the centres or chronotopical extracts.
Finally, this study stands out as it contributes to the problematization of guiding
models of the totalitarian aesthetics that direct artistic and communicational creation
and others, that direct strategies that aim at resisting artistic and communicational
totalitarianism nowadays.

Key words: Andrei Tarkovsky, Russian Cinema, Communication, Arts, Socialist


(Soviet) Realism, Chronotopy, Reverse Perspective, Great Time.

VII
Uma flauta de madeira milenar organiza o caos,
mas o caos ali está como a Rainha da Noite.
Gilles Deleuze

VIII
Sumário

Apresentação da pesquisa.............................................................................................................. 1
1. O OLHAR MEDIADO: CONEXÕES SÍGNICAS COM O MUNDO VISÍVEL .................. 13
1.1. Articulações dos sentidos das imagens no grande tempo ..................................................... 14
1.1.1. O grande tempo ................................................................................................................. 15
1.1.2. Compreensão ativa e exotopia no processo dialógico ....................................................... 16
1.1.3. Arquitetônica cronotópica ................................................................................................. 18
1.2. Problemas com o conceito de realismo ................................................................................ 21
1.2.1. O realismo como questão teórica ...................................................................................... 22
1.2.2. O Realismo Socialista ....................................................................................................... 24
1.2.3. A estética totalitária........................................................................................................... 26
1.2.4. O “empacotamento da realidade”...................................................................................... 28
1.2.5. Estética e estesia................................................................................................................ 29
1.3. A perspectivização do olhar ................................................................................................. 34
1.3.1. Os signos do realismo através de visões de mundo.......................................................... 35
1.3.2. A ação criadora como resposta ao mundo visível ............................................................. 36
1.3.3. A informação gravada na matéria, a carne do sentido....................................................... 39
1.3.4. O ponto de vista único....................................................................................................... 41
1.3.5. O olhar mediado (ou aparelhos mediadores de realidade)................................................. 44
1.4. A trajetória desestabilizadora do olhar ................................................................................. 48
1.4.1. A cronofotografia como desestabilização do olhar ........................................................... 49
1.4.2. A visão de mundo em transformação ............................................................................... 52
1.4.3. A visão de mundo remodelada pelo tempo ....................................................................... 57
2. OS SIGNOS (NÃO) DOMESTICADOS: A PERSPECTIVA INVERSA COMO
PROCEDIMENTO............................................................................................................... 60
2.1. Deslocamento, condensação e centros múltiplos ................................................................. 61
2.1.1 Entre a “realidade estática” e a “realidade movimentada” ................................................. 62
2.1.2. Deslocamento das linhas como trajetória no espaço ......................................................... 63
2.1.3. A condensação do espaço.................................................................................................. 66
2.1.4. Centros múltiplos: Espaços coexistentes........................................................................... 73
2.1.5. A visão de mundo remodelada com o espectador ............................................................ 77
2.2. Vanguardas e Medievo: o excentrismo do olhar .................................................................. 79
2.2.1. A perspectiva inversa ........................................................................................................ 80
2.2.2. Espaços potencializados e adensamento de planos ........................................................... 84
2.2.3. Espaços coexistentes: centros múltiplos............................................................................ 88
2.2.4. Sistema de linhas potenciais.............................................................................................. 93
2.3. Os signos domesticados (ou não) ......................................................................................... 95
2.3.1. A encenação da realidade .................................................................................................. 95
2.3.2. A realidade encenada na União Soviética segundo Chostakóvitch ................................... 96
2.3.3. A realidade encenada na União Soviética segundo Eisenstein.......................................... 99
2.3.4. Realismo por intervenção e realismo por domesticação.................................................. 100
2.3.5. A perspectiva inversa como intervenção ......................................................................... 104
3. A PRODUÇÃO DE UM CINEMA: OS SETE LONGAS-METRAGENS DE
ANDRIÊI TARKÓVSKI.................................................................................................... 111
3.1. Um cineasta na União Soviética......................................................................................... 112
3.1.2. Os sete filmes de Andriêi Tarkóvski ............................................................................... 113
3.1.2.1. A Infância de Ivan (ИВАНОВО ДЕТСТВО), Mosfilm, 1962 ...................................... 114
3.1.2.1.1. Produção de A Infância de Ivan................................................................................. 115
3.1.2.2. Andriêi Rublióv, ou A Paixão segundo Andriêi (СТРАСТИ ПО АНДРЕЮ),
Mosfilm, 1966. ................................................................................................................... 119
3.1.2.2.1. Produção de Andriêi Rublióv..................................................................................... 122
3.1.2.3. Solaris (СОЛЯРИС), Mosfilm, 1972........................................................................... 127
3.1.2.3.1. Produção de Solaris................................................................................................... 130
3.1.2.4. O Espelho (ЗЕРКАЛО), Mosfilm, 1974 ....................................................................... 133
3.1.2.4.1. Produção de O Espelho ............................................................................................. 134
3.1.2.5. Stalker (СТАЛКЕР), Mosfilm, 1978 ............................................................................ 138
3.1.2.5.1. Produção de Stalker................................................................................................... 140

IX
3.1.2.6. Nostalgia (Nostalghia), RAI/Sovinfilm, 1983 .............................................................. 142
3.1.2.6.1. Produção de Nostalgia............................................................................................... 144
3.1.2.7. O Sacrifício (Offret), Svensfilm, 1986.......................................................................... 146
3.1.2.7.1. Produção de O Sacrifício........................................................................................... 148
3.2. Entre a política do Degelo e a Estagnação ......................................................................... 151
3.2.1. O heroísmo das crianças soviéticas ................................................................................. 155
3.2.2. O heroísmo das figuras históricas e o nacionalismo nos filmes épicos ........................... 157
4. A CONSTRUÇÃO DO REALISMO SEGUNDO ANDRIÊI TARKÓVSKI....................... 162
4.1. Estratégia de construção por refração e cronotopia............................................................ 162
4.1. Estratégia de construção por refração e cronotopia............................................................ 163
4.1.1 A constituição do signo refrativo ..................................................................................... 167
4.1.1.1. Refração e reflexão na construção estética................................................................... 168
4.1.1.2. O Sol negro como signo refrativo e inaugural.............................................................. 170
4.1.1.3. O Sol negro refigurado ................................................................................................. 174
4.1.1.4. O Sol negro como ritornelo .......................................................................................... 178
4.1.2. A cronotopia como conector do trabalho estético ao mundo visível ............................... 183
4.2. Linhas potenciais conectivas de espaços............................................................................ 187
4.2.1. O vôo dos gansos ............................................................................................................ 187
4.2.2. A entrada na Zona ........................................................................................................... 189
4.2.3. Desenho da Família......................................................................................................... 192
4.2.4. Os pequenos pássaros da Cripta de São Pedro ................................................................ 193
4.2.5. O vôo do pássaro ao espaço da vida................................................................................ 195
4.3. Formação de centros múltiplos: espaços-tempo coexistentes ............................................ 197
4.3.1. Seqüência Akhmátova..................................................................................................... 198
4.3.2. Entorno de Teófanes e Rublióv, o Gólgota ..................................................................... 204
4.4. Extratos cronotópicos: o adensamento de cada centro ....................................................... 211
4.4.1. A Infância de Ivan: ícone medieval e documentários de guerra ...................................... 211
4.4.2. O Espelho: atravessamentos da paz na guerra................................................................. 212
4.4.3. O Sacrifício: a documentação de um futuro .................................................................... 216
4.4.4. O Cantus firmus .............................................................................................................. 220
4.4.5. Na Biblioteca de Solaris: a tela expandida de Brueghel e Chagall ................................. 222
4.4.6. O sonho de Stalker: cronótopos afluentes ....................................................................... 233
Bibliografia ............................................................................................................................... 252
Documentos Eletrônicos ........................................................................................................... 261
Filmografia (Fichas Técnicas)................................................................................................... 264

X
Ilustrações

Utilização de vidro com posicionador de olho para fazer um retrato, Entalhe de Albrecht
Dürer, Nuremberg, 1525 (Kemp 1990: 172). ...................................................................... 43
Camera obscura do século XIX, "The Museum of Science and Art", Dionysis Larder,
1855...................................................................................................................................... 45
EADWARD MUYBRIDGE, The Horse in Motion, card with 12 positions, 1878
Morse´s Gallery, 417 Montgomery St., San Francisco........................................................ 49
ETIENNE-JULES MAREY, Fuzil Fotográfico, 1882, acervo permanente do College de
France ................................................................................................................................... 50
Placa de vidro octogonal positiva do fuzil fotográfico de Marey, Cinemateca Francesa,
coleção de aparelhos............................................................................................................. 50
Homem utilizando o fuzil fotográfico, gravura publicada em La Nature ................................... 50
Câmera Cronofotográfica para negativos 13 x 9 cm, 1887 ......................................................... 51
ÉTIENNE-JULES MAREY, estudo de movimento, Station Physiologique, 1822..................... 51
ETIENNE-JULES MAREY,....................................................................................................... 51
série de onze estatuetas representando o vôo de um pássaro....................................................... 51
Cinematógrafo dos Lumière, 1895 / Fechado (esquerda) Aberto (direita), Ao centro
fotograma do filme Operários saindo da fábrica dos Lumière ............................................ 52
THÉODORE GERICAULT, Course de chevaux, oleo sobre tela, 1821, 123 x 92 cm,
Musée du Louvre, Paris........................................................................................................ 54
EADWARD MUYBRIDGE, Horses and Other animals in motion, “Bouquet”
galloping, saddled, 1878....................................................................................................... 54
DAUMIER, Photographie. Novo procedimento, 1856, litografia (SCHARF 1994: 43)............. 55
Adolphe Braun, Lê Pont dês Arts, 1867 (detalhe de uma fotografia panorâmica de
Paris), (SCHARF 1994: 182). .............................................................................................. 55
RENÉ MAGRITTE, La trahison des images ou Ceci n'est pas une pipe, óleo sobre tela,
60 x 80 cm, 1929 Los Angeles County Museum of Art (LACMA) ..................................... 58
MAREY: Cronofotografia de um esgrimista. 1880-90.
Archives de Cinemathèque Française, Paris. (Scharf 1994: 287)........................................ 61
ANTON GIULIO BRAGAGLIA, Cambiando de postura, fotodinâmica, 1911, 12,8 x
17,9 cm, Gilman Paper Company, Nova Yorque, (Lista 2001: 136).................................... 62
ARTURO e ANTON GIULIO BRAGAGLIA, Lo schiaffo – 1921............................................ 64
ANTOINE PEVSNER, Mulher, desenho, 1924.......................................................................... 66
MALIÊVITCH, Cruz negra, cerca de 1923................................................................................ 71
Portão da Anunciação e Dois santos. Final do século XV e início do XVI................................. 71
MALIÊVITCH, Quadrado negro. Cerca de 1923 ...................................................................... 71
São Nicolau Século XVI ............................................................................................................. 71
Aleksandr Rodtchenko, 1929 ...................................................................................................... 72
Arkadii Shaikket, 1931................................................................................................................ 72
VLADIMIR TÁTLIN, Relevo, 1908, metal, madeira, couro e pregos........................................ 75
ALEKSANDR RODTCHENKO Maquete para ilustração de poema de
Vladímir Maiakovski, Pro eto, 1923. Colagem, papel, fotografia preto e branco e
guache sobre cartão. ............................................................................................................. 76
Perspectiva inversa.................................................................................................................... 81
Perspectiva linear ...................................................................................................................... 81
Portão dos Tsares (detalhe) Séc. XVI. Têmpera sobre painel.
Galeria Tretiákov, Moscou, (KRENS, 2005, p. 53) ............................................................. 85
Salvador Todo Poderoso, séc. XVI Têmpera sobre madeira, prata, 30.4 x 22,8x 2,5................. 86
ANDRIÊI RUBLIÓV, O Arcanjo Miguel Catedral da Anunciação, Kremlin, Moscou.............. 87
Santos Boris e Gleb Primeira metade do Séc. XIV, Pskov Galeria Tretiakov, Moscou.............. 88
Representação iconográfica do século XIV de Ohrid, Grécia..................................................... 89
FRA ANGELICO, Anunciação, 1450, Convento de São Marcos, Florença............................... 90
Frontal de Soriguerola (detalhe), c. final XIII Museu de Arte de Catalúnia, Barcelona ............. 91
Desenho ilustrando a vista aérea. ................................................................................................ 91
Desenho ilustrando a vista frontal. .............................................................................................. 91
Miniatura del Llibre dels Feus, 1162-1199 Arquivo de la Corona de Aragón ............................ 92
A Transfiguração, c. 1400 Museu Russo do Estado, São Petersburgo........................................ 94

XI
ANDRIÊI RUBLIÓV, A Trindade, c. 1411 a 1422 Tretiákov, Moscou ..................................... 94
CHOSTAKÓVITCH, Dmítri. Rayok, 1948 A personagem Stálin .............................................. 98
CHOSTAKÓVITCH, Dmítri. Rayok, 1948 A personagem Jdánov ............................................ 98
CHIAURELI, A Queda de Berlim 01:04:36 a 01:06:57 h......................................................... 102
EISENSTEIN, Ivan, o Terrível, Parte II 00:12:43 a 00:20:41 h ............................................... 102
ALBERT DURER, Os quatro apóstolos, 1526 Alte Pinakothek, Munique.............................. 105
LEONARDO DA VINCI, A última ceia 1495-1498 Convento de Santa Maria delle
Grazie, Milão. 460 x 880cm ............................................................................................... 106
LEONARDO DA VINCI, A última ceia detalhe, 1495-1498 Convento de Santa Maria
delle Grazie, Milão. 460 x 880cm ...................................................................................... 107
LEONARDO DA VINCI, Adoração dos Magos, estudo 1481-1482 Galeria degli
Uffizi, Florença .................................................................................................................. 108
LEONARDO DA VINCI, Adoração dos Magos, 1481-1482 246 x 243 cm Galeria degli
Uffizi, Florença .................................................................................................................. 108
PETER PAUL RUBENS, Paisagem, 1632-1634 Galeria Palatina, Palazzo Pitti,
Florença.............................................................................................................................. 109
MICHELANGELO BUONARROTI, A conversão de São Paulo, 1542-1245. Capela
Paulina, Vaticano, Roma. ................................................................................................... 110
Cartazes soviéticos do período de Iósef Stálin .......................................................................... 155
Selos comemorativos, da esquerda para a direita: a primeira viagem ao espaço (o
soviético Iuri Gagárin foi o primeiro cosmonauta a fazê-lo em 12 de abril de 1961),
4 copeques, 1961; aniversário de quarenta anos dos Pioneiros, 2 copeques, 1962;
aniversário de cinquenta anos dos Pioneiros, 4 copeques, 1972........................................ 156
RODTCHENKO, Fotografias de Pioneiros c. 1930.................................................................. 156
VIÉRTOV, frames de Pioneiros em Kino-Pravda (1922-1925). .............................................. 157
BONDARCHUK, War and Peace, Part II 00:18:33 h .............................................................. 159
BONDARCHUK, War and Peace, Part III 00:33:08 h............................................................. 159
Aleksandra Exter Figurino desenhado para Aelita, 1924 Galerie Stolz Berlin Inventory......... 161
Izrail Bograd, Cartaz do filme Aelita, 1924 72 x 108 cm. University of Pittsburgh ................. 161
PROTAZONOV, Aelita, a Rainha de Marte, 1924................................................................... 161
TARKOVSKI, A Infância de Ivan, 1961. 00:02:43 h ............................................................... 167
TARKOVSKI, A Infância de Ivan, 1961. 00:02:12 h ............................................................... 172
TARKOVSKI, A Infância de Ivan, 1961. 00:00:00 a 00:04:22 h ............................................ 173
TARKOVSKI, Le Sacrifice, 1986. 02:13:02 h.......................................................................... 176
TARKOVSKI, A Infância de Ivan, 1961. 00:16:57 a 00:17:29 h ............................................. 182
TARKOVSKI, O Espelho, seqüência no interior da datcha, 00:12:00 a 00:14:21 h ................ 185
TARKOVSKI, Andrei Rublev, 1966. 00:02:33 a 00:02:49....................................................... 188
TARKOVSKI, Stalker, 1979. 00:33:15 a 00:35:30 h................................................................ 190
TARKOVSKI, Stalker, 1979. 00:34:00 a 00:35:40 h................................................................ 191
TARKOVSKI, Stalker, 1979, Parte I. Montagem do percurso do travelling do “Desenho
da Família” 00:05:00 a 00:06:31 h ..................................................................................... 192
ANDRIÊI RUBLIÓV, Trindade, detalhe, c. 1410-1420. Treviákov Galeria, Moscou,
142 x 114............................................................................................................................ 193
LEONARDO DA VINCI, A última ceia, detalhe, 1495-1498.
Convento de Santa Maria delle Grazie, Milão. 460 x 880cm............................................. 193
TARKOVSKI, Nostalgia, 1983. 00:11:19 a 00:11:38 h ........................................................... 194
TARKOVSKI, Nostalgia, 1983. 00:10:47 h ............................................................................. 194
TARKOVSKI, O Espelho, 1974. 00:36:04 a 01:36:41 h .......................................................... 195
Tarkóvski em Paris, 1986. Álbum da família............................................................................ 196
Anna Akhmátova em diversos períodos de sua vida................................................................. 199
TARKOVSKI, O Espelho, 1973. 00:40:52 a 00:49:07 h .......................................................... 202
TARKOVSKI, Andrei Rublev, 1966 00:48:43 a 00:56:10 h..................................................... 205
TARKOVSKI, Andrei Rublev, 1966. 00:50:26 h, Diálogo entre Teófanes e Rublióv no
campo. ................................................................................................................................ 206
TARKOVSKI , Andrei Rublev, 1966. 02:06:12 h, Diálogo entre Rublióv e Teófanes no
Interior da Catedral da Anunciação. ................................................................................... 206
Biblioteca Nacional da França. Gravura. (ícone pendurado no canto, bem no alto das
paredes, à esquerda) ........................................................................................................... 207

XII
TÁTLIN: Contra-Relevo de Canto (angular), 1925-1926. Ferro, cobre e madeira, 71 cm
x 118. (destruído; reconstrução feita por B.P. Toporkova, a partir de fotografia da
exposição de 1915). Museu Russo, Moscou....................................................................... 208
Petrogrado, 19’5, “0.10. ùltima mostra futurista”, a sala com as pinturas de Maliêvich.
(“Quadrado negro” exposto no alto, no canto, como um ícone nas casas russas) .............. 208
TARKOVSKI, A Infância de Ivan, 1961. 00:19:23, 00:54:51 e 00:58:41 h ............................ 211
TARKOVSKI, A Infância de Ivan, 1961. 00:23:10 a 00:24:56 h ............................................. 212
TARKOVSKI, O Espelho, 1974. 00:36:09 a 00:40:21 ............................................................. 214
TARKOVSKI, O Espelho, 1974. 00:56:23 a 01:03:11 h .......................................................... 215
TARKOVSKI, Le Sacrifice, 1986. 00:21:30 a 00:22:32 h........................................................ 218
TARKOVSKI, Le Sacrifice, 1986. 01:50:17 a 01:51:16 h........................................................ 219
TARKOVSKI, Le Sacrifice, 1986. 01:51: 04 h......................................................................... 220
PIETR BRUEGHEL, Os caçadores na neve, 1565, óleo sobre tela, 117 x 162 cm
Kunsthistorisches Museum, Viena ..................................................................................... 224
TARKOVSKI, Solaris, 1972. 02:08:29 h ................................................................................. 225
TARKOVSKI, Solaris, 1972. 02:08:27 a 02:11:02 h................................................................ 225
TARKOVSKI, Solaris, 1972. 01:39:17 a 01:39:25 h................................................................ 226
TARKOVSKI, Solaris, 1972. 02:12:00 e 02:17:00 h................................................................ 227
ROMADIN, Solaris, desenho de cena. ..................................................................................... 228
TARKOVSKI, Solaris, 1972. 02:08:29 h ................................................................................. 229
MARC CHAGALL, Aniversário, 1915. Óleo sobre cartão, 80.6 x 99.7 cm,............................ 229
Olga Barnet no papel da mãe de Kris Kelvin. Fotografia de cena não creditada. ..................... 230
TARKOVSKI, Solaris, 1972. 02:30:07 a 02:30:37 h................................................................ 230
DA VINCI, Dama com Arminho, 1485-1490. Óleo sobre madeira, 54 x 39 cm....................... 231
TARKOVSKI, Solaris, 1972. 01:40:02 h ................................................................................. 231
REEMBRANDT VAN RIJN, O retorno do filho pródigo óleo sobre tela, 1668,
262 x 205 cm ...................................................................................................................... 232
TARKOVSKI, Solaris, 1972. 02:44:17 a 02:44:36 h................................................................ 232
TARKOVSKI, Stalker, Parte II, 1979. 00:12:38 e 00:13:57 h.................................................. 233
TARKOVSKI, Stalker, Parte II, 1979. 00:17:36 e 00:17:52 h.................................................. 234
TARKOVSKI, Solaris, Parte II, 1979. 00:18:09 h................................................................... 234
HUBERT e JAN VAN EICK, 1432 Catedral de St. Bavo, Ghent, Bélgica,
Web Gallery of Art (http://www.wga.hu)........................................................................... 237
BUGAEV, Stalker 3, 1996, 2002, video DVD, 53 min/ Cortesia I-20 Gallery, New York ...... 245
stalkerlab.i,t documentação de intervenção urbana, c. 2002..................................................... 246
Frames capturados do game S.T.A.L.K.E.R. Shadow of Chernobyl .......................................... 246
MURESAN, 3D Rubliov, frames do videoanimação, 2004 ...................................................... 247

XIII
Apresentação da pesquisa

Sou um realista, mas no sentido superior desta palavra.


Dostoiévski2

A epígrafe acima, do escritor russo Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski


(1821-1881), lança para as teorias das artes e da comunicação, que lhe serão
posteriores, o desafio de buscar arduamente esclarecer qual o conceito de
“realismo” e, consequentemente, perscrutar suas categorias, já que o escritor
russo, de chofre, adianta-nos a existência de ao menos uma delas: a de um
realismo “no sentido superior desta palavra”.
Palavra ambígua – realismo – sua etimologia tanto remonta ao étimo
reg(i), na acepção de rei, chefe soberano de um sistema político investido de
realeza, quanto ao étimo res, realis, no sentido de coisa concreta, corpo, o que
não é ilusório ou artificial. Curiosamente da mesma raiz, “real”, temos “realeza”
e “realidade”3.
O conceito de “realismo”, a partir do século XIX, período em que viveu
Dostoiévski, ganha um acento político, ideológico, em todo o ocidente (e
também na Rússia). Surge como escola literária e também pictórica, em
oposição às vertentes românticas que imperavam nesse século no campo
artístico, firmando-se pelo seu caráter cientificista, almejando retratar fielmente
a sociedade.
Meio século após a declaração de Dostoiévski ser proferida, seria
inaugurado na Rússia e nos países que compunham a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas4, um aparato publicitário de incalculável repercussão
futura: as gerações de escritores e toda a sorte de artistas que sucederam
Dostoiévski em território russo tiveram que curvar-se a um realismo outro, que
já trazia em si o complemento nominal: Realismo Socialista.

2
apud TOLEDO, 1973, p. 125.
3
Cf. HOUAISS, 2006.
4
Respeitaremos a denominação histórica e geopolítica União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS), de forma abreviada, União Soviética, quando nos referirmos ao território
e/ou período em que essa existiu oficialmente (1922 a 1991) e abarcou diversos países, que não
apenas a Rússia, tais como a Armênia, a Geórgia, a Ucrânia, o Uzubequistão e a Estônia.

1
Dentre tais gerações encontraremos um outro artista, que teria em
Dostoiévski um modelo a ser seguido. Dessa vez não um artífice das palavras e
sim um compositor de imagens e sons, um “escultor do tempo”, o cineasta
russo, moscovita, Andriêi Arsiénievitch Tarkóvski (1932-1986)5.

A atriz russa Natália Bondartchuk (1950-), que trabalhou com Andriêi


Tarkóvski em Solaris, afirma que enquanto o seu pai, o cineasta e ator
soviético/ucraniano Serguiêi Bondartchuk (1920-1994), “filmava grandes cenas
de ação como ninguém no mundo, ninguém poderia mostrar ‘atmosfera’ como
Andriêi [Tarkóvski]”6.
A percepção sensível e distanciada da atriz (a entrevista foi realizada
quase trinta anos depois de sua participação em Solaris) aponta para os
diferentes posicionamentos estéticos7 diante do mundo, exercitados enquanto
realização cinematográfica, pelos dois cineastas. Serguiêi Bondartchuk e
Tarkóvski realizaram suas obras por meio de diferentes visões de mundo8.
Observo que as implicações dessa divergência no fazer artístico, que
evidenciam-se na obra já pronta, realizada, dá-se não apenas entre
procedimentos utilizados por Tarkóvski e aqueles explicitados por Serguiêi
Bondartchuk, mas também entre os procedimentos de Tarkóvski e os
empregados pelos diretores soviéticos de seu tempo.
Essa divergência ou afastamento de concepções estéticas em um período
quando a arte em seu país, sob o regime soviético, devia se subordinar aos
cânones do Realismo Socialista, torna o conjunto dos sete longas-mentragens
realizados por Andriêi Tarkóvski um todo único de sua espécie.
Daí origina-se o seguinte pressuposto: sendo filho legítimo do Realismo
Socialista, Tarkóvski teria desenvolvido, em sua práxis, um realismo
diferenciado, digamos, no sentido superior da palavra realismo, a exemplo de
Dostoiévski.

5
Embora seus pais morassem em Moscou, Tarkóvski nasceu em Zavrájie, cidade russa próxima
ao rio Volga, onde morava sua avó e o marido que era médico. A mãe de Tarkóvski decidira ter
o seu primeiro bebê sob os cuidados do padrasto e junto à sua própria mãe. Após o seu
nascimento seus pais retornaram à Moscou, onde Tarkóvski viveria a maior parte de sua vida.
6
Entrevista de Natália Bondartchuk, DOSSIÊ Tarkovski (Solaris). Volume II.
7
Estético compreendido enquanto qualidade artística e formal das obras.
8
Entendamos visão de mundo nesse estudo, preliminarmente, como aquela que modela e é
modelada pelo mundo visível.

2
Um exame aos escritos do cineasta, principalmente os diários, que
manteve a partir de 1970 a 1986, e o único livro publicado durante sua vida9
podem apoiar um caminho responsivo. Observa-se nas reflexões teóricas de
Tarkóvski uma articulação vigorosa com o seu cinema, mas não
obrigatoriamente um correspondência. Ao mesmo tempo, das páginas de seus
escritos ecoará a tensão permanente entre as exigências do tempo e do espaço
geográfico em que viveu com seus anseios artísticos. E aí, muitas e muitas
vezes, inclusive, o autor recorre a Dostoiévski:

Lembremo-nos do final do O Idiota, de Dostoiévski. Que esmagadora verdade


encontramos nos personagens e nas circunstâncias! Quando Rogozhin e Myshkin, os
joelhos se tocando, estão sentados nas cadeiras daquela enorme sala, ficamos atônitos
com a combinação do absurdo e da insensatez exteriores da mise en scène e da absoluta
veracidade do estado interior dos personagens. O que torna a cena tão irresistível
quanto a própria vida é a recusa em sobrecarregar a cena com idéias óbvias. E, no
entanto, quantas vezes uma mise en scène construída sem nenhuma idéia óbvia é
considerada formalista (TARKÓVSKI, 1990, p. 25, grifo nosso).

Vejamos com atenção esse trecho: Tarkóvski, referindo-se a


Dostoiévski, denota duas marcas expressivas10 de seu próprio cinema que são: a
“absoluta veracidade do estado interior dos personagens” e “a recusa em
sobrecarregar a cena com idéias óbvias”. Tais marcas parecem anunciar,
preliminarmente, o tipo de realismo com o qual sua produção se afina: seria
aquele em que repercute o estado interior das personagens que, por sua vez, se
constrói com um mínimo de idéias óbvias. Esse realismo, advindo de uma
realidade a princípio endógena, originar-se-ia do interior da vida e não do
factum, de ações produzidas por causas exteriores, ou da realidade exógena. A
cena aproxima-se da vida (e daí a “veracidade” da cena, assim qualificada por
Tarkóvski); não porque a ilustra, segundo ele, mas porque é a própria vida
(muitas vezes o cineasta utilizará a palavra verdade ou veracidade como
sinônimo de vida ou de realidade), vida que reverbera do interior das
personagens.
9
Esculpir o Tempo, tradução para o português a partir do inglês, Sculpting in time, que por sua
vez é tradução da tradução alemã, Die Versiegelte Zeit. A primeira publicação deu-se em 1986
pela editora alemã Verlag Ullstein GmbH (ANDREI TARKOVSKI. Rafael Llano. Texto
aparecido parcialmente en Nueva Revista (Madrid) nº 61, febrero 1999.
http://www.andreitarkovski.org/biografia.html) A tradução brasileira foi editada pela primeira
vez pela Martins Fontes, em 1990.
10
Conceito deleuzeano, expresso em “Acerca do Ritornelo” (DELEUZE; GUATTARI, 2005)
como primeira ação para a demarcação de território, da qual origina-se a assinatura e depois o
estilo.

3
Em complementação a essa idéia, Tarkóvski fala ainda no trecho citado
de mise en scène, por ele mesmo definida como “‘composição dramática’, a
maneira de conjugar, de declinar as figuras no espaço para atingir a
expressividade máxima”11 (TARKOVSKI, 1990, p. 23).
Observamos que o cineasta refere-se à forma pela qual o seu cinema se
organiza para apresentar determinada realidade, ou a “verdade” nos personagens
e circunstâncias. Insiste o autor que neste caso se anuncia como “expressão da
vida” e não sua “ilustração” (TARKOVSKI, 1990, p. 23).
Tarkóvski objetiva esclarecer os procedimentos de seu cinema,
centrando-o em sua organização espacial e remetendo a exemplaridade de tal
centro organizativo a Dostoiévski. Dessa maneira o cineasta reivindica que um
dos procedimentos por ele adotado, o de não fazer uso de “idéias óbvias”, não
deve ser considerado formalismo.
Com essa argumentação, Tarkóvski defende-se (e à sua obra), de ser
taxado de formalista “anti-revolucionário”. A crítica ao formalismo, desde o
final dos anos 1920, consolidara-se, dentro da censura soviética, desde a
instauração do Realismo Socialista como arte oficial12.
Note-se que no momento em que escreve esse texto de onde retiramos o
trecho acima, Tarkóvski havia sido acusado publicamente, não pelos soviéticos,
mas pelos comunistas italianos, de fazer um cinema ao gosto burguês13. O
cineasta acabara de receber o primeiro Leão de Ouro da história do cinema

11
“Quase tudo no cinema depende, potencialmente, da arte da mise en scène”, conclui o teórico
francês de cinema Jacques Aumont (1942-), dando continuidade à citação acima (AUMONT,
2004, p. 162).
12
É historicamente conhecida a hostilidade de Iósef Stálin (1879-1953) a todos os artistas que
não obedecessem a suas ordens e não abjurassem o “formalismo”, nome que passou, na URSS (a
partir de 1932) a ser sinônimo não apenas de arte vanguardista, burguesa, anti-revolucionária,
mas de condenação à segregação, aos campos de trabalhos forçados (conhecidos mundialmente
pelo nome russo de gulags) ou à morte. Teremos oportunidade de verificar, em nosso estudo,
como ao período de Tarkóvski essas ações repressivas ainda estavam fortemente arraigadas tanto
à cultura soviética quanto aos dispositivos censores.
13
Quando do lançamento no circuito de cinema europeu e da premiação do primeiro longa
metragem de Tarkóvski, A Infância de Ivan, na XIII Mostra Cinematográfica de Veneza (1962),
alguns intelectuais da esquerda italiana, dentre os quais Alberto Moravia, publicaram no jornal
l´Unitá uma crítica contundente, o que fez com que o filósofo francês, Jean Paul Sartre (1905-
1980), saísse em defesa do jovem cineasta. Tarkóvski, por sua vez, não fica satisfeito com a
defesa de Sartre pois, em seu ponto de vista, o filósofo não empreendera a defesa de seu filme
pelo crivo da arte e sim pelo ponto de vista ideológico. Então, ele mesmo escreve e publica um
texto cujo título é Depois de filmar (Iskusstva, Moscou, 1967) onde explicita e defende,
teoricamente, os procedimentos artísticos de seu cinema. Mais tarde esse texto passaria a se
constituir no primeiro capítulo de seu livro Esculpir o Tempo (1990). Retomaremos essa questão
no terceiro capítulo, quando da apresentação do filme A Infância de Ivan.

4
soviético e sabia do valor de seu trabalho inaugural, pelo qual fora laureado.
Empenha-se então em responder criticamente às acusações, fazendo valer
teoricamente sua construção fílmica que já ganhara, inclusive, reconhecimento
internacional. Teoricamente porque não é à ideologia que Tarkóvski apela e sim
à teoria da arte (onde ele inclui, livre de relações hierárquicas, a literatura e o
cinema).
Portanto, partindo do pressuposto que Tarkóvski teria desenvolvido em
sua práxis um determinado tipo de realismo, diferenciado do Realismo
Socialista, coloca-se a seguinte questão: Qual foi o conjunto de procedimentos
artísticos dos quais o cineasta lançou mão para construir o seu cinema? Partir em
busca de tal resposta pressupõe aclarar inicialmente algumas definições:
primeiramente do que seja realismo e, ainda: o Realismo Socialista e o realismo
segundo Andriêi Tarkóvski.
No caso de Tarkóvski, nomeá-lo como “filho legítimo do ‘realismo
socialista’”, tal como o fizemos, inicialmente, parece contradizer não apenas a
idéia de que seu cinema se distingue singularmente da produção soviética de seu
tempo, mas parece também contradizer as informações, principalmente
biográficas, que chegam ao conhecimento comum. Assim, por exemplo, as
mídias, impressa e televisiva, do mundo inteiro, no período em que viveu,
tornaram conhecidas de maneira enfática, as repressões que o cineasta sofreu
por parte da censura soviética para conseguir levar adiante seus projetos, ou para
realizar seus filmes, ou mesmo para levá-los a público. E ainda que a mídia nada
houvesse veiculado, o próprio cineasta deixou relatos minuciosos em seus
diários iniciados em 1970, aos quais se dedicou até poucos dias antes de sua
morte, ocorrida em 29 de dezembro de 1986; e mais, os seus cadernos de
trabalho, finalmente liberados aos pesquisadores pela Mosfilm14, descrevem os
pormenores das infindas reuniões entre o diretor e sua equipe com a burocracia
soviética, esta última emperrando incansavelmente todas as fases dos projetos
do cineasta, desde a aprovação do plano de trabalho inicial (que antecedia o

14
A produtora Mosfilm, unidade diretamente vinculada ao Goskino (Comitê Estatal para a
Cinematografia), foi criada em 1923, em Moscou, e foi uma das maiores unidades de produção
cinematográfica soviética. A partir da dissolução da URSS a Mosfilm deixou de ser controlada
integralmente pelo estado, passando a ser gerida, também por capital privado. Informações sobre
sua atuação na Rússia, desde então, podem ser consultadas em http://www.mosfilm.ru/.

5
roteiro) pelo Goskino15, até a exibição dos filmes, os quais invariavelmente se
destinavam às piores salas16.
Com procrastinação ou impedimentos, Tarkóvski - essa espécie de Sísifo
do cinema russo - conseguiu fazer cinco longas-metragens em seu país, todos
com recursos do Estado, e outros dois fora da União Soviética, sendo que o
primeiro desses (Nostalgia, 1982) foi parcialmente financiado pela Rússia e
outra parte por empresas italianas. O conjunto dos sete filmes, realizados entre
1962 e 198617, constitui o seu trabalho principal18.
Ter conseguido realizar tão poucos filmes em vinte e cinco anos, sempre
enfrentando inúmeras dificuldades, demonstrou-se um processo bastante
constrangedor e abateu o ânimo do cineasta. Nas páginas de seu diário
(TARKOVSKIJ, 2002) Tarkóvski transcreve algumas das cartas que enviava,
por vezes suplicando uma decisão, senão esclarecimentos ao chefe do Goskino,
que o deixava longos períodos sem resposta e sem trabalho. Os cineastas
soviéticos, como de resto todos os demais artistas soviéticos, eram funcionários
do Estado e só podiam trabalhar com a permissão desse19. Tarkóvski amargou
grandes dificuldades materiais e esteve continuamente enfermo. Com pouco
mais de quarenta anos encontrava-se a ponto de desistir de seu trabalho. Sua
desesperança e sua força ficaram grafadas em suas memórias. Escreve ele em 20
de outubro de 1973:

Um de meus pensamentos negativos: ninguém necessita de você. Você é


completamente estranho à sua própria cultura, não tem feito nada por ela, é uma
nulidade. E no entanto, se alguém, na Europa ou em qualquer outra parte pergunta

15
Goskino ou Comitê Estatal para a Cinematografia era o órgão máximo controlador da
produção, distribuição e exibição dos filmes na URSS. Seu presidente detinha os poderes de um
ministro de estado (TARKOVSKIJ, 2002, p. 64).
16
Todos os filmes soviéticos eram classificados, pelo Goskino, em A, B e C. Tal classificação
determinava o nível das salas onde seriam exibidos e o período da exibição (TARKOVSKIJ,
2002).
17
Cronologicamente esses filmes são: A Infância de Ivan (1962), Andriêi Rublióv (1966),
Solaris (1972), O Espelho (1974), Stalker (1979), Nostalgia (1983) e O Sacrifício (1986). No
capítulo terceiro dessa e nas fichas técnicas, em anexo, constam os nomes originais das
películas.
18
Contam ainda em seu currículo, três curtas-metragens que realizou quando ainda era
estudante, nos anos 1950; Tempo de Viaggio, um filme experimental, em 16 mm, rodado na
Itália em 1983; a direção teatral de Hamlet, em 1977, no Teatro Lenkom (Lênin Komsomol), em
Moscou; e a direção artística da ópera russa Boris Godunov, em 1983, a convite do maestro
italiano Cláudio Abbado (1933-), no Convent Garden, em Londres.
19
No terceiro capítulo desta consta o item “Um cineasta na União Soviética”, onde as relações
entre diretores de cinema e Estado merecerá maior atenção.

6
quem é o melhor diretor da União Soviética, a resposta é Tarkóvski. Mas aqui se faz
uma cortina de silêncio. Não existo, não sou nada. (TARKOVSKIJ 2003, p. 122).

A biografia de Tarkóvski tem exercido um grande fascínio entre os


pesquisadores. Parte desse fascínio parece partir dos amigos e colaboradores que
com ele conviveram e, após sua morte, relataram através de entrevistas,
depoimentos e mesmo autobiografias, aspectos dessa convivência e do trabalho
em equipe20. Aos poucos, principalmente com a abertura dos arquivos russos aos
pesquisadores, essa investigação biográfica se aprofunda e estudos sérios com
dados fundados nesses documentos começam a vir à luz, a exemplo do mais
recente, realizado pela investigadora grega Natasha Synessios (s.d.) que vem
pesquisando diretamente nos arquivos de Moscou e publicou em 2001 um
estudo relevante sobre o terceiro filme do diretor, O Espelho (SYNESSIOS,
2001) e traduziu e comentou a versão inglesa dos roteiros escritos por Tarkóvski
(TARKOVSKY, 1999).
Nossa investigação sobre a biografia de Tarkóvski tem privilegiado os
dados primários oferecidos pelo diretor em seus próprios diários. Todavia, os
dados bibliográficos entram em nossos estudos com parcimônia, à medida que
possam enriquecer a análise e ofereçam clara contextualização. Mesmo
Tarkóvski em seus diários, primou muito mais pelas questões teóricas, no
âmbito da estética e da ética sobre o seu trabalho, do que pelo relato de seu
cotidiano. É o suficiente para os propósitos dessa pesquisa, que busca tentar
compreender sua obra priorizando as estratégias de construção de seu cinema e
não a biografia do autor.
É nesse sentido - da construção de sua obra cinematográfica - que
afirmamos que Tarkóvski é “filho legítimo do Realismo Socialista´” porque se
não o fosse jamais teria produzido o cinema que produziu. Apenas sendo-o pode
subvertê-lo. Apenas estando sob a autoridade da censura soviética é que pode
insubordinar-se a ela. Aqui nos referimos a uma autoridade no sentido legal,
jurídico do termo: aquela que tinha o poder, o domínio em suas mãos mediante a
legalidade e a legitimidade jurídicas; a autoridade de um estado totalitário e, o
20
Sua irmã, Marina Tarkóvskaia (1934-) organizou, logo após a sua morte, um livro contendo
depoimentos de seus principais colaboradores, dentre eles atores, produtores, diretores e
músicos. Em nossa bibliografia consta a versão espanhola: Acerca de Andrei Tarkovski (2001),
traduzida do original russo. Outros relevantes depoimentos, artigos e entrevistas sobre o diretor
encontram-se no mais importante banco de dados eletrônico sobre o cineasta e sua obra:
http://www.nostalghia.com (bibliografia anexa).

7
que é mais importante nesse caso: autoridade que tinha poder de legislar, fazer
leis que determinavam o que era arte; autoridade que detinha o poder para julgar
(decidir e sentenciar) o que era arte; autoridade que tinha poder para executar,
premiar os artistas obedientes e penalizar os infratores. E por que levantar esse
aspecto jurídico em uma tese sobre teoria da arte e da comunicação? Porque era
o Estado quem detinha a palavra final sobre o que era arte, e somente era arte
aquilo que fosse “realista”. Em que consistia esse realismo? Ah, mas esse
assunto, dirão, é pertinente à teoria da arte. Seria então o Estado o grande teórico
da arte? A princípio vamos considerar que a teoria da arte estava sub judice21 e
daí a importância de levantarmos esse aspecto jurídico e ideológico da arte nesse
momento histórico, quando Tarkóvski compôs sua obra.
O Estado impunha um modelo e Tarkóvski responderia com o seu, que
se desviaria daquele. Recusar-se em sobrecarregar a cena com idéias óbvias,
determinara o cineasta para tornar a cena tão irresistível quanto a própria vida.
Mas, como vimos um pouco acima, defendia-se: que esse procedimento não seja
considerado formalista (TARKOVSKI, 1990, p. 25).
Ora, mas não sobrecarregar a cena com idéias óbvias, assim como
esquivar-se do convencionalismo e estabelecer outros paradigmas para o que,
até o início do século XX fora chamado de realismo, havia sido uma espécie de
refrão, de credo, de embate do movimento vanguardista, décadas depois de
Dostoiévski.
Tal embate das Vanguardas Históricas22 e particularmente as Russas,
dera-se contra as convenções da arte realista proveniente do século XIX, mais
do que contra a tradição, propriamente dita. Os artistas vanguardistas russos
movimentavam-se no sentido de retomar a tradição, atualizando-a23.; recorriam

21
Que se encontra em mãos de um juiz ou de um tribunal (HOUAISS), que no caso, era
encarnada pela mesma pessoa jurídica no exercício uno de um poder tríplice: o que legisla, o que
executa e o que julga, isto é, o Estado Totalitário.
22
As Vanguardas aqui são os movimentos artísticos históricos, europeus, delimitados nas duas
primeiras décadas do século XX dentre as quais destacam-se as russas (suprematismo,
construtivismo e abstracionismo), o cubismo, o futurismo italiano, o surrealismo e o dadaísmo.
23
As investigações tanto no campo pictórico, escultórico quanto teórico do ucraniano/soviético
Kazimir Maliêvitch (1878-1935) são bastante esclarecedoras sobre esse posicionamento de parte
das Vanguardas Russas, nesse sentido. Referimo-nos particularmente aos três textos que
sustentam o Suprematismo como realismo, coletados na década de 1970 e reunidos por Jean-
Claude Marcadé; foram traduzidos para o francês sob o título De Cézanne au Suprématisme (na
bibliografia). Tal direcionamento também pode ser encontrado nos escritos do russo Vassíli
Kandinski (1866-1944) e os também russos Naum Gabo (1890-1977) e Antoine Pevsner (1884-
1972).

8
tanto ao Renascimento quanto à Idade Média, tendo como ponto de partida,
principalmente, as investigações pictóricas espaciais do pintor francês Paul
Cèzanne (1839-1906), ainda no século XIX Com esse movimento, revisitaram
os dois principais modelos de organização espacial nas artes visuais: aquele
norteado pela perspectiva linear, responsável por toda a visualidade instaurada a
partir do Renascimento e outro, norteado pela perspectiva inversa, que orientou
toda a pintura do medievo.
No período em que Tarkóvski realizou o seu cinema, as Vanguardas
Russas há muito já haviam sido caladas pelos dirigentes soviéticos. A maior
parte dos artistas vanguardistas já estava morta e os poucos ainda vivos,
encontravam-se no exílio24.

A hipótese central de nosso trabalho é que a obra cinematográfica


tarkóvskiana se fez, enquanto construção artística, articulando procedimentos
inerentes ao modelo de visão de mundo organizado pela perspectiva inversa,
articulação essa que abriu possibilidades para experimentações estéticas e
associativas ao modelo predominante, organizado pela perspectiva linear. A
hipótese subjacente é que, as estratégias de construção de seu cinema
configuram-se como resistência aos cânones da arte e da comunicação
soviéticas.
Perspectiva inversa nesse estudo não é empregado como metáfora. Trata-
se de um conceito que se contrapõe ao de perspectiva linear. Ambos os
conceitos equivalem a modelos de representação de espaços tridimensionais em
superfícies planas.
Propomos inicialmente estudar como esses modelos de representação
vêm justamente modelando o conceito de realismo e sendo modelado por esse
mesmo conceito, para então estender esse estudo para a construção do cinema de
Tarkóvski. O cineasta tanto discutiu a questão sobre o tempo e o espaço fazendo
cinema, como posicionou-se, clara e teoricamente em artigos, entrevistas, em

24
Vale conferir o trabalho exemplar da pesquisadora inglesa Camilla Gray (s.d.), The Russian
Experiment in Art, 1863-1922 (GRAY, 1976), pesquisa diligente e inaugural realizada na
Europa na virada dos anos 1950. A pesquisadora coletou dados diretamente com os artistas
vanguardistas russos ainda vivos, amigos dos mesmos, familiares, acervos públicos e
particulares, abrindo caminho para outros pesquisadores. Seu trabalho foi duramente criticado na
União Soviética (http://www.sirin.co.uk/docs/prokofie.htm. Acesso: 02 jan. 2007).

9
seu livro e, ainda de forma menos organizada, nos diários que manteve de 1970
até sua morte, em 1986.
Por outro lado, explicitamente revelou nessas publicações o seu interesse
em criar um mundo como memória, um mundo através do qual pudéssemos ver
o tempo de tal forma que lhe captássemos a materialidade.
Para alcançar os seus propósitos, movimentou forças criadoras que
remontam às estruturas organizativas do espaço, no campo da arte, que
vigoraram durante os quinze séculos que antecederam imediatamente ao
Renascimento25. Refiro-me a pintura de ícones26 cuja composição pictórica
espacial se realiza através do uso da perspectiva inversa, gerada por uma
concepção estética que se faz violando as leis da perspectiva linear.
Estudamos em sua obra tanto as marcas do experimentalismo
vanguardista, quanto o caminho através do qual esse cineasta realiza um giro
temporal em constante trânsito entre os procedimentos das artes que lhe
antecederam: das Vanguardas, passando à pintura medieval e à renascentista e,
inclusive, utilizando procedimentos que lhe foram contemporâneos.
A presente investigação se pauta por observar como, na segunda metade
do século XX esse artista singular mergulhou no caldeirão cultural do mundo,
recolhendo dele procedimentos artísticos de diversos períodos, renovando-lhes o
sentido do gesto e assim, em uma dança cósmica, apropriando-se do passado e
revestindo-o do presente, projetou-o ao futuro, no “grande tempo”27, onde todos
os significados se refazem.

25
Aqui entendido em seu sentido estrito, datado com um certo consenso pela História da Arte,
como tendo ocorrido entre os séculos XIV e XV, e também em sua acepção ampla, como
movimento intelectual que, durante o século XV, preconizou a recuperação dos valores e
modelos da Antigüidade greco-romana, contrapondo-os à tradição medieval ou adaptando-os a
ela, e que renovou não apenas as artes visuais, a arquitetura e as letras, mas também a
organização política e econômica da sociedade (sobre o sentido estrito e abrangente do
Renascimento conferir Ernst Gombrich: The Renaissance - Period or Movement? In TRAPP, J.
B. Background to the English Renaissance, Introductory Lectures, London: Gray-Mills, p. 9-
30).
26
Para o estudioso suíço de iconologia, Michel Quenot, o ícone, na acepção que estudamos aqui,
é a imagem sacra das igrejas do Oriente e, especificamente da Ortodoxia Russa. Tal forma
pictórica surgiu com os artistas cristãos primitivos, ainda no primeiro século da era cristã, no
interior das catacumbas, consolidou-se durante o império bizantino (395-1453) e encontrou o
seu apogeu na Idade Média, exprimindo a experiência espiritual do cristianismo (QUENOT,
2001).
27
O “grande tempo” é um conceito formulado pelo teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975)
ao qual retornaremos insistentemente no percurso de nossas reflexões teóricas, nessa tese. De
enunciado simples o seu alcance é bastante complexo e buscaremos abordar algumas de suas
implicações para o estudo da obra de Andriêi Tarkóvski.

10
Essa constatação nos remete novamente às palavras de Natália
Bondartchuk, em seguimento à sua afirmação que citamos inicialmente: “Os
filmes dele [Tarkóvski] são dirigidos a uma audiência universal. Em terra
soviética, naquela época, esses filmes não fizeram sentido. Eles eram todos para
a eternidade. E em nossa terra a eternidade não era reconhecida”28.
Instaura-se aí a tensão teórica sobre a qual se constrói essa tese: entre o
artista, prisioneiro de seu tempo e a obra liberta para a “eternidade”, projetada
no “grande tempo”.
A alteridade do uso de modelos organizativos de visão de mundo acima
referida, que marca intensa e indelevelmente um território29, torna-se ainda, no
presente estudo, componente metodológico do qual lançarei mão para afinar o
entendimento sobre as particularidades do cinema tarkóvskiano.

Nosso trabalho se organiza objetivando responder investigar as hipóteses


lançadas. Relembrando, a hipótese central é que a obra cinematográfica de
Tarkóvski se fez, enquanto construção artística, articulando procedimentos
inerentes ao modelo de visão de mundo organizado pela perspectiva inversa,
articulação essa que abriu possibilidades para experimentações estéticas e
associativas ao modelo predominante, organizado pela perspectiva linear. A
hipótese subjacente é que as estratégias de construção de seu cinema
configuram-se como resistência aos cânones da arte e da comunicação
soviéticas.
Dessa maneira, buscaremos compreender, primeiramente, como esses
modelos de visão de mundo se conectam com o mundo visível para produzirem
mensagens visuais e de que forma eles problematizam o conceito de realismo e
seu derivado, o Realismo Socialista. A seguir passaremos a discutir três
conjuntos de paradigmas formativos que intersectam em construções distintas,
no tempo e no espaço, procedimentos comuns: nas Vanguardas Russas, na
pintura medieval e no cinema de Andriêi Tarkóvski. Para tanto, os capítulos
obedecem a seguinte organização:

28
A atriz refere-se ao período soviético dentro do qual se deu toda a produção cinematográfica
de Andriêi Tarkóvski.
29
Território, conceito deleuzeano (DELEUZE; GUATTARI, 2005).

11
Primeiro capítulo: O olhar mediado: conexões sígnicas com o mundo
visível.
Segundo capítulo: Os signos (não) domesticados: a perspectiva inversa
como procedimento.
Terceiro capítulo: A produção de um cinema: os sete longas-metragens
de Andriêi Tarkóvski.
Quarto capítulo: A construção do realismo segundo Tarkóvski.

Como método busca-se analisar esse cinema dentro de um contexto


dialógico30, por um lado à luz da cultura na qual emergiu (pequeno tempo) e por
outro compreendendo-o como fruto de um diálogo em trânsito permanente com
uma pluralidade de modelos organizativos do mundo visível (Vanguardas e
antes ainda, o Medievo e o Renascimento). Busca-se assim como o cineasta
desviou de seu trabalho os elementos mortos, já saturados e, lançando mão de
um aparato tecnológico de sua época - o cinema - foi buscar potencialidades de
sentido em elementos imersos na história da cultura (pictóricos, literários,
sonoros, cinemáticos) para a construção de seu cinema.
Na matriz conceitual de Bakhtin, a arte é compreendida como instância
de renovação de sentidos, ilocalizável, em permanente trânsito no tempo e no
espaço (daí o seu conceito de cronótopo, que adiante estaremos examinando)
possível apenas quando em contato com a vida, a cada resposta que o humano
oferece às matérias expressivas. Nesse sentido, antes de concordarmos que o
cinema de Tarkóvski foi “criado livre de condicionamentos”31 optamos por
compreender como sua obra respondeu, pela resistência, a esses
condicionamentos, instaurando um novo território artístico.

30
O método aqui proposto para o estudo do cinema de Andriêi Tarkóvski é advindo das
recomendações de Mikhail Bakhtin para se estudar a literatura inseparavelmente da história da
cultura. O teórico considera que uma obra não deve ser estudada apenas tendo em vista a época
de sua criação e de seu passado imediato; a obra deve ser estudada como continuidade do
passado que se estende ao futuro. A criação artística tem o seu momento, seu tempo de produção
imediata, sua atualidade, por ele nomeado pequeno tempo, mas apenas viverá nos séculos
futuros, ingressando no grande tempo, se reunir em si, de certo modo, os séculos passados
(BAKHTIN, 2005, p. 362-363).
31
Tese defendida pelo pesquisador argentino Pablo Capanna em El icone e la pantalla
(CAPANNA, 2003).

12
1. O OLHAR MEDIADO:
CONEXÕES SÍGNICAS COM O MUNDO VISÍVEL

13
1.1. Articulações dos sentidos das imagens no grande tempo

Porque as obras de arte não só reproduzem com vivacidade o que é visto


mas também tornam visível o que é vislumbrado em segredo.
Klee32

Se as marcas expressivas desenham um território, ensaiam um percurso


que já de início possui um centro33, Tarkóvski inscreveria esse centro em seu
cinema, transgredindo os cânones da arte, em seu país, no período em que viveu.
O pesquisador argentino Pablo Capanna (1939) observa as contradições,
aparentemente temporais, vividas pelo cineasta em um ambiente adverso da
seguinte maneira:

Durante os vinte anos de sua carreira na União Soviética, Tarkóvski perseverou como
um Sísifo para filmar apenas cinco películas. Sempre sob o risco de ser proscrito,
conseguiu preservar milagrosamente seu espaço de liberdade para consagrar-se a criar
sem condicionamento. Ocorria que sua obra, ainda que não fosse essa sua intenção,
subvertia de fato os valores do sistema. (...) Duas gerações de comunistas vinham
anunciando ao mundo que desde a Revolução de 1917 na Rússia se estava formando o
“homem novo”, liberado da alienação e da superstição. (...) Tarkóvski descendia de
revolucionários, era filho de um herói de guerra e havia sido educado pelo Estado, mas
sua obra ignorava não apenas o Realismo Socialista senão qualquer dos temas
marxistas. Sua estética era de vanguarda, mas seu discurso era metafísico e
tradicionalista. Era como se o “homem novo” ao fazer-se adulto se pusesse a pintar
ícones e a discorrer como um Dostoiévski... (CAPANNA, 2003, p. 50).

Ao buscar aquilo que vai distanciar Tarkóvski da produção corrente na


União Soviética e, ao mesmo tempo, lançá-lo como autor de uma obra singular,
serão trazidas à discussão as marcas expressivas de outros territórios espaço-
temporais, que o cineasta irá conectar e tornar contemporâneas na construção de
sua obra.
Para poder introduzir esse giro que o cineasta faz pelo tempo e que o
conecta com procedimentos utilizados por outros autores de períodos diferentes
lançaremos mão dos conceitos de pequeno tempo e grande tempo de Mikhail
Bakhtin, à luz de sua teoria sobre o dialogismo onde se tecem os conceitos de
cronotopia e compreensão responsiva.

32
2001, p. 66.
33
Conforme Deleuze e Guattari, em “1837 – Acerca do Ritornelo” (2005, p. 115-170).

14
1.1.1. O grande tempo

O tempo e espaço nas artes visuais (e não apenas na literatura34)


formaram para Bakhtin um extenso celeiro que nutriu uma fecunda rede de
conceitos que ele passou a elaborar a partir de 1920 (conhecidos como seus
manuscritos filosóficos) e levaria adiante até o final de seus dias, na segunda
metade da década de setenta.
O grande tempo é um conceito de Mikhail Bakhtin que problematiza o
deslocamento da obra de arte (grande obra), principalmente a literária35, no
tempo. Ao cumprir esse percurso a obra deixa de ser uma criação da cultura do
tempo (khrónos) em que foi criada e do lugar (tópos) onde foi gerada para
tornar-se criação da cultura planetária.
Ao grande tempo interpõe-se o pequeno tempo. Este corresponde ao
tempo durante o qual a obra é produzida, o seu passado recente e o seu futuro
imediato. O artista e seus contemporâneos vivem no pequeno tempo e dele são
prisioneiros, mas a grande obra ultrapassa o pequeno tempo. Mergulhada no
grande tempo ela se multiplicará nos sentidos que lhe darão a posteridade
alcançando uma compreensão plural e mutante, amealhada nos séculos que
sucedem a sua criação (BAKHTIN, 1997, p. 361-368).
Busca-se aqui estender esse conceito bakhtiniano para compreender a
potência que possuiria a obra de arte (visual), em ultrapassar o tempo e espaço
em que foi criada (pequeno tempo), do ponto de vista dos procedimentos
artísticos que a geraram, através das marcas expressivas em sua construção. Para
tanto, torna-se fundamental propor a tendência que tem Andriêi Tarkóvski em se
apropriar dessas articulações para marcar e fundar o seu cinema, considerando-
se que essa apropriação se faz através da força atualizadora da memória cultural,
em movimento no grande tempo, fundando ele mesmo, enquanto cineasta e
criador, uma grande obra.

34
Nessa pesquisa, devido aos seus objetivos específicos, sem perder a visão de conjunto da obra
bakhtiniana e sem o intuito de reduzir a importância da teoria do romance por ele formulada,
atenho-me ao Bakhtin teórico da linguagem, abarcante de outras áreas, não restrita ao verbal.
35
Bakhtin, filólogo de formação, apesar de ser considerado um filósofo por muitos estudiosos,
privilegiou a literatura como campo de observação para traçar sua teoria sobre estética e
linguagem.

15
1.1.2. Compreensão ativa e exotopia no processo dialógico

Para Bakhtin, portanto, há um tempo histórico no mundo, quando a obra


de arte é forjada e outro, quando a obra de arte é tornada histórica. Ao tempo
histórico quando a obra de arte é forjada, Bakhtin nomeia pequeno tempo, ou
temporalidade e ao outro, quando a obra de arte é tornada histórica, grande
tempo ou grande temporalidade36. No pequeno tempo a obra é criada, no grande
tempo essa obra redimensiona-se e alcança múltiplos e renovados sentidos.
A qualidade de Bakhtin de pensar as relações que a obra estabelece com
e no mundo, instaurando no processo de compreensão - ou seja, no ato, na ação -
os seus significados advém principalmente de sua concepção da obra como
acontecimento, como processo e como tal, atravessando o grande tempo, sempre
inconclusa37. O trabalho artístico estaria assim em constante processo de
criação, completando-se a cada novo encontro com o que o teórico denomina
compreendente ativo, um ser humano, ou uma cultura toda que, ao se deparar
com a obra responde-lhe, renovando-lhe o sentido, completando-a, dando-lhe
acabamento:

Chamo sentido ao que é resposta a uma pergunta. O que não responde a nenhuma
pergunta carece de sentido.

(...)

O sentido é potencialmente infinito, mas só se atualiza no contato com outro sentido (o


sentido do outro), mesmo que seja apenas no contato com uma pergunta no discurso
interior do compreendente. Ele deve sempre entrar em contato com outro sentido para
revelar os novos momentos de sua infinidade (assim como a palavra revela suas
significações somente num contexto). O sentido não se atualiza sozinho, procede de
dois sentidos que se encontram e entram em contato. Não há um “sentido em si”. O
sentido existe só para outro sentido, com o qual existe conjuntamente. O sentido não
existe sozinho (solitário). Por isso não pode haver um sentido primeiro ou último, pois
o sentido se situa sempre entre os sentidos, elo na cadeia do sentido que é a única
suscetível, em seu todo, de ser uma realidade. Na vida histórica, essa cadeia cresce
infinitamente; é por essa razão que cada um dos seus elos se renova sempre; a bem
dizer, renasce outra vez. (BAKHTIN, 1997, p. 386) .

36
Há algumas diferenças nas várias traduções da obra de Bakhtin. Dessa forma, alguns
tradutores das obras bakhtinianas utilizam para o mesmo conceito grafado em russo, palavras ou
locuções em português distintas ou aproximadas. Grande tempo e grande temporalidade é uma
dessas variações; o mesmo se dá com pequeno tempo e temporalidade. No presente estudo serão
utilizados grande tempo e pequeno tempo.
37
Inconclusa ou inacabada, dependendo da tradução.

16
A atualização desses sentidos pressupõe a inclusão do compreendente
ativo no sistema da obra. Ou seja, o sentido só se dá em duas mãos: onde há uma
obra de arte que propõe uma possibilidade de responder e uma vida pulsante
que, ao entrar em contato com a obra esteja ativa e responda à proposta com sua
compreensão, por ele chamada compreensão responsiva (BAKHTIN, 2005, p.
333) ou ativa que pode ser imediata ou posterior.
Trata-se de um processo dialogante. Bakhtin imagina a obra proposta à
espera de um entendedor, compreendente ativo, do diálogo, enfim, que possa vê-
la, ouvi-la, lê-la, interagir com ela, dando-lhe um sentido. Sequiosa de um
“povo”, diria o pintor suíço/alemão Paul Klee38 (1879-1940), contemporâneo do
pensador russo e ainda mais tarde, em um tom mais provocador e político,
Deleuze e Guattari39.
O autor nunca deixa sua obra à mercê plena e definitiva dos destinatários
presentes ou próximos (porque, segundo Bakhtin, até os descendentes mais
próximos podem equivocar-se), e sempre pressupõe (com maior ou menor
consciência) alguma instância superior de compreensão responsiva que possa
deslocar-se em diferentes sentidos. Cada diálogo ocorre como que no fundo de
uma compreensão responsiva de um terceiro, invisivelmente presente, situado
acima de todos os participantes do diálogo no pequeno tempo (BAKHTIN,
2005, p. 333). E esclarece, para que não restem dúvidas sobre a definição desse
terceiro que

... não é algo místico ou metafísico (ainda que em determinada concepção de mundo
possa adquirir semelhante expressão); é o elemento constitutivo do enunciado total, que
numa análise mais profunda pode ser nele descoberto. Isso decorre da natureza da
palavra [da obra de arte N.A.] que sempre quer ser ouvida [vista N.A.], sempre procura
uma compreensão responsiva e não se detém na compreensão imediata mas abre
caminho sempre mais e mais à frente (de forma ilimitada) (BAKHTIN, 2005, p. 333).

O processo de compreensão dá-se na diferença, na alteridade. Bakhtin


vai pensar em uma palavra para nominar esse lugar onde o outro se distingue e,

38
Ciente de que não haveria mais a fazer além dos esforços que já empreendera para compor sua
obra, escreve Paul Klee:
“Ainda nos falta essa última força, pois o povo não está conosco.
Mas procuramos um povo; começamos com isso lá, na Bauhaus.
Começamos lá com uma comunidade em que demos tudo o que tínhamos.
Mais do que isso não podemos fazer” (KLEE, 2001, p. 68).
39
“O poeta [...] é aquele que solta as populações moleculares na esperança que elas semeiem ou
mesmo engendrem o povo por vir, que passem para um povo por vir, que abram um cosmo”
(DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 163).

17
sendo um outro e não o mesmo, encontra-se fora desse mesmo, ocupa um lugar
diverso. Essa palavra é exotopia, ou extraposição40. Diz o teórico que

[...] a exotopia é o instrumento mais poderoso da compreensão. [...] Um sentido revela-


se em sua profundidade ao encontrar e tocar outro sentido, um sentido alheio;
estabelece-se entre eles como que um diálogo que supera o caráter fechado e unívoco,
inerente ao sentido e a cultura considerada isoladamente. Formulamos a uma cultura
alheia novas perguntas que ela mesma não se formulava. Buscamos nela uma resposta a
perguntas nossas, e a cultura alheia nos responde, revelando-nos seus aspectos novos,
suas profundidades novas de sentido. Se não formulamos nossas próprias perguntas,
não participamos de uma compreensão ativa de tudo quanto é outro e alheio (trata-se,
claro, de perguntas sérias, autênticas) (BAKHTIN, 1997, p. 368).

1.1.3. Arquitetônica cronotópica

Vê-se que tanto os destinatários presentes ou próximos quanto o terceiro


definem-se pela sua postura pró-ativa e sua capacidade de resposta, mas
principalmente pelo tempo, o grande tempo.
Bakhtin vai encontrar em Johan Wolfgang Goethe (1749-1832), mais
propriamente em Viagem à Itália, como o escritor alemão percebe, “de um
modo agudíssimo essa impressionante densidade do tempo histórico e sua
aderência ao espaço terrestre” (BAKHTIN, 1988, p. 260). Escreve Bakhtin:

A essência do tempo histórico em um pequeno trecho da terra em Roma, a coexistência


visível de diferentes épocas nesse espaço tornam o contemplador uma espécie de
participante do grande conselho dos destinos universais. Roma é o grande cronótopo da
história humana: “Quando contemplamos uma tal existência de mais de dois mil anos,
modificada em tantos aspectos e tão profundamente pela mudança dos tempos – e, não
obstante, ainda o mesmo solo, a mesma colina, ou até, com freqüência, a mesma coluna

40
Exotopia (exotopie, em francês) é tradução realizada pelo filósofo búlgaro radicado na França,
Tzvetan Todorov, de um neologismo russo criado por Bakhtin, vnenakhodimost, cuja grafia é
вненаходи-мость. Extraposição é tradução do mesmo termo bakhtiniano da versão brasileira
Estética da Criação Verbal de Bakhtin, realizada por Maria Ermantina Galvão Pereira, tradução
a qual eu utilizava unicamente quando da primeira versão desse capítulo (setembro de 2004).
Essa diferença foi apontada por Irene Machado na revisão desse texto (ainda em 2004) que
observou que a tradução correta para o português seria extraposição. Em nova tradução para o
português da Estética da Criação Verbal, realizada por Paulo Bezerra, primeira edição de 2005,
referido conceito de Bakhtin foi traduzido como distanciamento. Dada a divergência entre os
tradutores, preferi manter exotopia por estar mais próximo da dimensão conceitual de Bakhtin,
conforme minha interpretação: exo, corresponde ao adv. prepositivo grego éksó 'fora, de fora,
por fora, afora' e topo, pospositivo, do grego tópos,ou 'lugar' (Cf. HOUAISS); tal interpretação
alinha-se com a interpretação (e tradução) realizada por Todorov que caminha no sentido da
alteridade e criação artística. Transcrevemos a seguir as suas palavras, traduzidas do francês: “A
este segundo aspecto da atividade criadora, Bakhtin reserva uma denominação que é, em russo,
um neologismo: ‘vnenakhodimost’, literalmente ‘o fato de encontrar-se fora’, e que traduzirei,
literalmente novamente, mas através de uma raiz grega, por exotopia” (TODOROV, 1981, p.
153).

18
e as mesmas paredes, e, no povo, os vestígios do antigo caráter -, fazemo-nos
companheiros dos grandes desígnios do destino, de modo que, desde o início, se torna
difícil para o observador acompanhar uma Roma seguindo-se à outra, e não apenas a
nova à antiga, mas as diversas épocas de uma e outra sucedendo-se”∗ (BAKHTIN,
2005, p. 243).

A aptidão para ver o tempo no espaço, atribuída por Bakhtin a Goethe


vai ser pensada por Bakhtin como um poder “eficaz-criador”, que o faz
diferenciar a idéia de contexto de um simples pano de fundo imóvel, paisagem
ou cenário dos acontecimentos, constitui-se no próprio espaço e traz em si as
marcas do tempo, ou seja, um espaço que é preenchido pelo tempo. E é nesse
todo espacial do mundo que conseguimos ver o tempo (ibidem, p. 225).

[o tempo] é intensivo no mundo de Goethe: nele não há lugares mortos, imóveis,


paralisados, não existe fundo imutável, não existe decoração nem ambiente que não
participe da ação e da formação (nos acontecimentos). Por outro lado, em todos os seus
momentos essenciais esse tempo está localizado em um espaço concreto, marcado nele;
no mundo de Goethe não há acontecimentos, enredos, motivos temporais que sejam
indiferentes a um determinado lugar no espaço da realização, que possam realizar-se
em toda a parte e em lugar algum (os “eternos” enredos e motivos). Tudo nesse mundo
é tempo-espaço, cronótopo autêntico. (BAKHTIN, 2005, p. 245).

Por outro lado, Bakhtin alerta para a necessidade de se entender e avaliar


cada imagem “no nível do grande tempo. A análise costuma desenvolver-se no
espaço estreito do pequeno tempo, isto é, da atualidade do passado imediato e do
futuro representável – desejado ou assustador” (BAKHTIN, 2005, p. 407).
Nesse sentido é possível observar a obra de arte, ela mesma enquanto
dimensão espacial onde o tempo imprimiu sua marca carregando, quando de sua
composição, as marcas que o próprio autor escolhe, entre tantas outras, por
fazer-lhe. Porque também o autor encontra-se em diálogo com o tempo, com a
memória cultural quando engendra a parte que lhe cabe do ato criador, nesse
momento ele mesmo um compreendente ativo responsivo da cultura que lhe
precedeu. Não é apenas ao futuro que a obra se projeta. Em sua composição
podemos encontrar as camadas que atravessam o tempo marcando técnicas,
gestos, materiais.
O espaço concreto marcado pelo tempo, no presente estudo, é a obra
cinematográfica de Andriêi Tarkóvski. Buscaremos observar o trânsito dessa


Goethe, J. W. Viagem à Italia 1786-1788, pp. 154 (N. da ed. russa.).

19
obra, desse conjunto de sete filmes (todos e cada um deles) no grande tempo,
projetando-se para o futuro, mas dialogando com obras tornadas históricas no
tempo. Esses diálogos entre textos culturais são organizados na obra de forma
cronotópica.
Bakhtin denomina cronótopo

(literalmente: tempo-espaço) a conexão intrínseca das relações temporais e espaciais


que se expressa artisticamente no romance. Este termo é empregado na matemática e
foi introduzido como parte da Teoria da Relatividade de Einstein. [...] O que nos
importa é o fato de que expressa a inseparabilidade do tempo e do espaço (o tempo
como quarta dimensão do espaço) (BAKHTIN, 1988, 84-85).

O cinema de Tarkóvski se articula em cronótopos bastante singulares que


se conectam, veremos, por meio de amplos e diversos modelos de visão do
mundo, que, associados organizam-se em construções artísticas. À atividade de
formar conexões entre materiais díspares Bakhtin dá o nome de arquitetônica
(HOLQUIST; CLARK, 1998, p. 107).
Segundo esse entendimento o cinema de Andriêi Tarkóvski será
estudado pelo ponto de vista de sua arquitetônica cronotópica.

20
1.2. Problemas com o conceito de realismo

O que é o realismo para o teórico da arte?


Jakobson41

Para buscar o entendimento do movimento dialógico no grande tempo


partindo da compreensão do trânsito de sentidos, penso na memória cultural não
como meramente depositária, mas como organismo vivo, agitado por um
trânsito contínuo e inestancável dos sentidos. Os sentidos se renovam no tempo,
mas é no embate, sob a ação de instâncias dialogantes que essa renovação se dá.
Observemos as duas primeiras décadas do século XX que são de grande
efervescência do pensamento ocidental. Durante esses anos eclodem as
principais Vanguardas Históricas no campo das artes visuais no Ocidente e o
espírito de renovação nas artes e consequentemente nas teorias que se
esforçavam por sistematizá-las. Em parte esse período revolucionário encontra
suas raízes mais próximas nas grandes mudanças mundialmente ocorridas a
partir da denominada Revolução Industrial, no século XVIII.
Embora na Rússia o processo de industrialização tenha se dado
tardiamente, na virada do século XIX para o XX, se comparada à Europa
Ocidental, a efervescência artística e cultural não deixou nada a desejar.
Diversas correntes de pensamento e de produção artística se opunham e suas
manifestações eram públicas: tratava-se tanto de obras que eram mostradas
(pinturas, esculturas, projetos arquitetônicos, peças dramatúrgicas, filmes)
quanto editadas em jornais, livros e revistas (poemas, contos, romances, ensaios,
manifestos). Esse movimento constituía-se em um exercício tão dialético em
seus princípios filosóficos quanto combativo pelo caráter impositivo de que se
revestiam; tão construtivo para o desenvolvimento de novos corpos teóricos
quanto destrutivo pois implicaria - dentro do espírito em que transcorria tal
conflito - uma glória final de uma das parte imbricadas e, em contrapartida, uma
perda fatal: a negação do próprio exercício dialético que alimentara o espírito

41
1973, p. 120.

21
revolucionário russo até então com a ascensão de uma diretriz única denominada
Realismo Socialista.

1.2.1. O realismo como questão teórica

A pergunta do teórico russo Roman Jakobson (1896-1982), “O que é o


realismo para o teórico da arte?”, colocada como epígrafe, explicita um
momento do pensamento efervescente russo, quando vários segmentos da arte
russa empreendiam esforços para a formação de um consistente corpo teórico
porque a História da Arte, segundo Jakobson,

não era uma ciência mas uma causerie42. Passava alegremente de um tema a outro e o
fluxo lírico das palavras sobre a elegância das formas tomava o lugar das anedotas
provocadas pela vida do artista; os truísmos psicológicos alteravam-se com os
problemas relativos ao fundo filosófico da obra e àqueles do meio social em questão.
[...] A causerie não conhece uma terminologia preciosa. Pelo contrário, a variedade dos
termos, as palavras equívocas que são um pretexto para jogos de palavras, são essas as
qualidades que trazem charme à conversa. Assim, a história da arte não conhecia uma
terminologia científica, utilizava as palavras da linguagem corrente sem as fazer passar
pelo crivo da crítica, sem limitá-lascom precisão, sem levar em consideração sua
polissemia (JAKOBSON, 1973, p. 119 - 120).

Conseqüentemente, para Jakobson, o termo ‘realismo’ era


particularmente infeliz. Afirmava então: “o emprego desordenado desta palavra
de conteúdo extremamente vago suscitou fatais conseqüências” (JAKOBSON,
1973, p.121).
O rigor proclamado por Jakobson demonstrava ainda a necessidade de se
constituir na Rússia uma Filosofia da Linguagem (que se manifestaria
consistentemente também nos escritos de Bakhtin, como em Marxismo e
Filosofia da Linguagem) e consolidar uma Teoria da Arte, com textos de grande
complexidade como os do matemático, filósofo e historiador russo Pável
Floriênski (1882-1937). Talvez esse rigor consistisse ainda um esforço
visionário (e premeditado) para buscar compreender o locus da arte. Visionário
porque antecipatório da função que ditadores futuros haveriam de submeter as
criações artísticas.
Para responder à questão proposta, Jakobson observou o programa
estético dos artistas russos do início do século XX, que intentavam reproduzir a

42
Conforme tradução que conservou o termo em francês, utilizado por Jakobson.

22
realidade “o mais fielmente possível” e cuja aspiração era “o máximo de
verossimilhança”. Tais artistas eram os pintores “realistas” Ambulantes"43 cujo
cânone se impunha “tornando-se um fato social” (JAKOBSON, 1973, p.124).
Ao mesmo tempo que se impunha era contestado, por vários movimentos das
Vanguardas Russas então emergentes.
Jakobson indicava a ambigüidade no programa estético dos Ambulantes,
que se evidenciava entre o significado da obra proposto pelos artistas e o
significado provindo da avaliação subjetiva do público.
Primeiro, segue Jakobson, porque “trata-se de uma aspiração, uma
tendência, isto é, chama-se realista à obra cujo autor em causa propõe como
verossímil (significação A)”; segundo porque “chama-se realista a obra que é
percebida por quem a julga como verossímil (significação B)” (JAKOBSON,
1973, p.121).
O problema que se estabeleceria entre um significado imanente e um
outro, submetido ao critério da impressão constituía-se, para Jakobson, no fato
de querer atribuir “a um ponto de vista individual um valor objetivo e
absolutamente autêntico”, reduzindo “sub-repticiamente o problema da minha
relação com ela. Substitui-se imperceptivelmente a significação B pela
significação A” (JAKOBSON, 1973, p.121).
Tal equívoco se exacerbava quando surgia uma terceira significação,
apontada por Jakobson como “significação C”, que ocorria quando se
comparava a obra produzida, pretensamente realista, às obras produzidas no
século XIX pela corrente artística “realista”, surgida na França, que buscava
substituir o belo e o ideal pelo real e objetivo na arte. Assim sendo, a
“significação C” surgia do processo de identificação da obra produzida no
século XX com as obras produzidas pela escola realista do século XIX.
Para Jakobson o realismo seria resultante de um conjunto de convenções
e não uma verossimilhança “natural”, como apregoavam os epígonos de tal
corrente artística. Sua visão estendia-se à organização espacial da construção
artística que, segundo as regras dos pintores Ambulantes, era convencional:

43
“Os Ambulantes, sociedade de pintores da Rússia, nos séculos XIX e XX (N. do Trad. para a
edição francesa.)” (JAKOBSON, 1973, p. 124).

23
Mesmo em pintura, o realismo é convencional, isto é, figurativo. Os métodos de
projeção do espaço em três dimensões numa superfície, a cor, a abstração, a
simplificação do objeto reproduzido, a escolha dos traços representados são
convencionais (JAKOBSON, 1973, p.121).

Tratando-se de convenções, haveria a necessidade de “aprendermos a


linguagem pictórica convencional para vermos o quadro, assim como não
podemos compreender as palavras sem conhecermos a língua.” (JAKOBSON,
1973, p.121).
Vê-se, seguindo o pensamento de Jakobson, que uma arte que se
propunha objetiva, para sê-lo fechava as possibilidades da percepção livre do
público, obrigando-o a ver segundo convenções, adestrando a sua percepção
visual.
Quando esse texto foi escrito, com o claro propósito de discussão em seu
título (“Do Realismo Artístico”), dez anos separavam o esforço teórico de seu
autor, Jakobson - e de incontáveis outros pensadores, artistas e poetas russos -,
da instauração oficial do “mal” combatido, mas dessa vez claramente definido: o
Realismo Socialista.

1.2.2. O Realismo Socialista

Formulada em 1921 (e colocada no contexto do que viria a se chamar


formalismo russo44), a pergunta lançada por Jakobson não se limitaria ao
período em que foi enunciada. O texto teórico que abriga essa questão (e sua
possibilidade de resposta), ao lado da prática artística e escritos dos próprios
artistas, é um dos mais relevantes para a compreensão das contraposições e
tensões que sondavam a alma russa (e depois soviética), nas duas primeiras
décadas do século XX, tensões que alcançariam o grau máximo com o
fulminante decreto stalinista de 1932, que canonizava o Realismo Socialista

44
O Formalismo Russo foi uma influente escola de crítica literária da Rússia nas duas primeiras
décadas do século XX da qual fizeram parte acadêmicos Russos e Soviéticos de grande
influência, dentre eles Viktor Chklóvski, Iúri Tiniánov, Boris Eichenbaum e Roman Jakobson
que propuseram e defenderam um método científico para estudar a linguagem poética, até então
fundada em tradicionais abordagens psicológicas e histórico-culturais. Tais esforços embasariam
toda a crítica literária contemporânea. A partir dos anos 1930, sob o domínio de Stálin
formalismo tornou-se termo pejorativo para arte elitista. Seus preceitos foram disseminados
tanto no Oriente quanto no Ocidente (Boris Schnaiderman, In TOLEDO, 1973, p. IX – XXII).

24
como única diretriz para a produção de todas as expressões artísticas no
território soviético.
Sob tal decreto, o realismo tornava-se Realismo Socialista. A criação
artística ficava sob a guarda e severo controle de um Estado que se constitui
totalitário. Sobre essas conexões discutiremos adiante, mas, inicialmente, nos
ocuparemos de lançar algumas premissas sobre o Realismo Socialista enquanto
conceito dentro da História e da Teoria da Arte e da Comunicação,
especialmente dentro do campo da visualidade. Teremos sempre em vista o
Realismo Socialista como um organizador do estatuto de uma visibilidade que
se queria pública e total.
O Realismo Socialista não pode ser compreendido em sua completa
acepção sem o seu qualificativo ideológico, ou seja, a compreensão de que não
se trata de um realismo qualquer, mas sim o realismo do regime socialista. Da
mesma maneira, sua compreensão se alarga quando buscamos um prévio
entendimento do que seja realismo na arte.
Antes de ter sua definição reduzida pelo ponto de vista político (como
dispositivo publicitário), ou jurídico (como decreto, regra obrigatória a ser
cumprida por todos os artistas de todas as áreas na União Soviética a partir de
Stálin), o realismo (antes também de ser qualificado como “socialista”) necessita
(como clamou Jakobson) ser compreendido em algumas de suas tendências e
significações dentro da teoria da arte e da comunicação.
É a partir dessa compreensão mínima que poderemos entrever a sua
amplitude e força como recurso de dominação política e ideológica dentro de
um regime totalitário ao qual alguns artistas ousariam resistir, transgredindo-o,
como é o caso do cineasta Andriêi Tarkóvski.
O Realismo Socialista é, conforme dito acima, um modus operandi
dentro da História e um fenômeno inserido na Teoria da Arte (aqui
compreendida em todos os seus campos de expressão).e da Comunicação Torna-
se Realismo Socialista sob diversos condicionamentos de um regime que se
constitui totalitário e sobre essas conexões discutiremos adiante, mas,
inicialmente, nos ocuparemos de compreender como o Realismo Socialista pode
ser encaminhado enquanto conceito dentro da História e da Teoria da Arte e da
Comunicação (especialmente dentro do campo da visualidade) e encaminha a
um corpo reacionário maior: a estética totalitária soviética.

25
Inicialmente, o Realismo Socialista constituía-se em uma fórmula
narrativa cuja teoria tivera a paternidade do escritor Maksin Gorki (1868-1936),
amplamente “corrigida” por Vladímir Lênin (1870-1824), à luz dos estudos
pessoais que realizara sobre a filosofia do alemão Georg Friedrich Hegel (1770-
1831).
Tal fórmula prescrevia em linhas gerais: a exemplaridade da história, ou
seja, a história deveria servir ao espectador como modelo a ser imitado; heróis
positivos, sem ambigüidades; repulsa ao individualismo e ao sentimentalismo
burguês; e, por fim, absoluta clareza expositiva, realizada sem devaneios
formalistas que afetassem a compreensão da mensagem (ESPAÑA, 1996;
KENEZ, 2001, p. 143).
Após a morte de Lênin, nas mãos de seu sucessor, Iósef Stálin (1879-
1953), esses princípios ganharam força de lei: foram transformados em decreto
que, uma vez burocratizado pelo sistema soviético recebeu o nome “Da
Reconstrução das Organizações da Literatura e da Arte”, implantado em 193245.
Essa era a base sobre a qual foram formuladas as regras para todas as atividades
que se relacionassem com a cultura e com a comunicação e as artes, nomeadas
“revolucionárias”. No caso específico do cinema, elas eram aplicadas pelo
Goskino. Organizaram-se em torno desse ideário legislativo com ambições
estéticas determinadas punições a quem o infringisse, cuja amplitude ia desde a
proibição do exercício da profissão, passando pelo exílio e a prisão em gulags,
até a morte.

1.2.3. A estética totalitária

Mais que um estilo, integrando a política oficial, o Realismo Socialista


pretendia adequar a produção cultural soviética (e dos demais artistas militantes
comunistas do mundo) à interpretação “marxista-leninista” da realidade.
O Realismo Socialista constituía-se na manifestação de poder supremo
do Estado sobre a criação de obras de arte. Esse entendimento pode ser visto de

45
Conferir a obra crítica da pesquisadora francesa Régine Robin, Le Réalisme Socialiste – une
esthétique impossible (1986) principalmente o segundo capítulo, sobre as origens do Realismo
Socialista na Rússia e sua instituição legal, como Decreto.

26
duas formas: de um lado o Estado legisla (pois se incorporam ao estado de
direito) rígidas regras que determinam uma função à produção artística (e
produção aqui está colocada com a finalidade específica de situar a arte como
trabalho dentro de uma cadeia produtiva, instrumental e funcional, no sentido de
cumprir determinada função, de ser útil aos objetivos do estado em questão); de
outro lado o Estado expressa temor, senão pânico, ao exercício da arte. Legislar
sobre o exercício da arte e sancionar os artistas infratores com penas tão graves
como a prisão e a morte é o reconhecimento de que a arte subverte o sistema.
Enquanto instituição do Estado, órgão autocrático do Governo
Soviético, esse mecanismo censor da arte conheceu o seu apogeu sob o comando
de Andriêi Jdánov (1896-1948) no período stalinista, embora tenha perdurado,
variando em intensidade, até os últimos anos da década de oitenta do século XX.
O que é relevante ao nosso estudo é que Tarkóvski viveu sob o controle das
forças dessa estética totalitária, essa assombrosa legislação à qual nos referimos,
legalmente constituída para ditar os rumos da “arte” enquanto estética realista e
progressista a serviço da Revolução.
Alguns teóricos da arte, preocupados com tal contexto, investigam,
estudam e formulam o conceito da Estética Totalitária ou Arte Totalitária,
buscando pensar as implicações éticas dos artistas na produção estética em
regimes totalitários. Dentre os teóricos contemporâneos destacam-se Igor
Golomstock (s.d.) e Boris Groys (1947-). O primeiro busca os fundamentos da
“formação” da Estética Totalitária em regimes totalitários e o segundo questiona
os princípios éticos fundantes da estética stalinista distinguindo-a de outros
regimes totalitários como o hitlerista. As atuais investigações de autores como
Golomstock e Groys são importantes tanto para a teoria da comunicação como
para a teoria da Arte Contemporânea.
Tais estudos sinalizam a necessidade de se pensar a Arte Totalitária
como um fenômeno do Século XX, atualizando a complexidade do fenômeno.
Este pode abarcar tanto os regimes que institucionalizaram o terror como forma
de manutenção e expansão de um poder único - sustentado por uma ideologia
centralizadora e identificável -, quanto os regimes que se revestem da capa de
uma suposta democracia, mas que se sustentam por uma também única e
centralizadora ideologia que, no entanto, é dificilmente identificável.

27
1.2.4. O “empacotamento da realidade”

A visão de mundo exigida pelo Realismo Socialista, equipara-se à


unificação das representações do mundo de maneira que esse seja entendido
como uma rede unitária, uniforme, indivisível, linear, progressiva e
impenetrável, desconsiderando a diversidade, a porosidade e os movimentos
próprios à vida. Um mundo que se concebe absolutamente imóvel e
completamente imutável e inquestionável.
Essa visão apriorística poupa ao seu público (ao povo) a necessidade de
pensar e portanto, de construir a sua própria visão: o olho do espectador recebe
através da unidade retilínea uma ordem de comando: segui-la, acreditar nela,
não questioná-la e permanecer imóvel (ou imutável) em seu lugar (o lugar onde
o Estado deseja que o espectador se fixe obedientemente, ou se acredite fixo, ao
menos). O espectador perde assim o direito mínimo de se movimentar. No
entanto, a mobilidade é uma das condições básicas da vida... mas o espectador
está impedido de reconstruir ativamente a realidade na visão como atividade
própria.
Contra esse princípio, instaurado já pela perspectiva linear e exacerbado
com a canonização do realismo e sua qualificação “socialista”, como um profeta
do tempo perdido, Pável Floriênski já havia alertado, em um tratado teórico que
se faz relevante hoje, para a compreensão do que o pesquisador russo/norte-
americano Lev Manovich (s.d.) denominou “a engenharia do olhar”
(MANOVICH, 1993). Diz Floriênski:

Para ver e examinar com atenção um objeto, e não apenas mirá-lo, é preciso transladar
gradualmente aquilo que se apresenta na superfície sensível da retina em manchas
separadas. O qual significa que a imagem óptica não é, em absoluto, algo que se dê à
consciência de forma clara, sem trabalho nem esforço, senão que é construída, formada
a partir de fragmentos que são costurados uns aos outros, ademais que cada um deles é
percebido, mais ou menos, desde o seu ponto de vista. Em conseqüência, uma aresta se
soma sinteticamente a outra aresta através de um ato psíquico particular e, em geral, a
imagem visual se forma progressivamente, mas não vem dada já concluída. Na
percepção a imagem visual não se contempla a partir de um ponto de vista senão que,
por causa da própria essência da visão, trata-se de uma imagem perspectiva
policêntrica. Somando depois as superfícies adicionais que se formam ao acoplar sua
imagem do olho esquerdo com a do olho direito, deveremos reconhecer a aparência de
qualquer imagem visual com as dos edifícios representados nos ícones e, em
conseqüência, poder-se-ia discutir acerca da medida e o grau desejado de
multifocalidade, mas não de sua aceitação genérica. Aqui surge a exigência de uma
mobilidade ocular inclusive maior, ao objeto de permitir uma visão intensamente
sintética, ou ao menos a exigência, na medida do possível, de manter imóvel o olho

28
quando o que se pretende é uma visão fracionada. Neste último caso a perspectiva se
encontra no caminho desta análise visual. Mas o ser humano, enquanto vivo, não pode
entrar por completo no esquema perspectivo, e o próprio ato da visão com um olho fixo
e imóvel (esquecendo-se do olho esquerdo) é psicologicamente impossível
(FLORENSKI, 2005, p.104).

O cinema de Tarkóvski surge quando, passados trinta anos da


implantação obrigatória das regras do Realismo Socialista soviético, as
mensagens por ele geradas já haviam se desgastado, ocasionando uma
“automatização do futuro”, ou “empacotamento da realidade”.
Essa idéia sobre o desgaste da percepção das mensagens fora em parte
lançada em 1917, pelo russo, Víctor Chklóvski46 (1893-1983), para quem as
ações, uma vez tornadas habituais, tornam-se também automáticas e previsíveis.
Essa automatização poderia ser verificada pelo nosso discurso prosaico,
usualmente composto de frases não acabadas, cortadas ao meio e, assim mesmo
(sub)entendidas, o que formularia um “método algébrico de pensar”. Por esse
método, um número x de objetos seria reconhecido pelo volume, seus primeiros
traços e não seriam vistos de fato. Então, passaríamos pelos objetos como se
estivessem empacotados. Deles reconheceríamos apenas a superfície, teríamos
apenas o “reconhecimento” de algo portanto já conhecido, que de tanto ser
reproduzido exigiria de nós apenas um mínimo das nossas forças perceptivas.
Assim, por essa fórmula, teríamos uma algebrização, um automatismo do
reconhecimento do objeto (CHKLOVSKI, 1973, p. 43-44).

1.2.5. Estética e estesia

O cineasta espanhol Luis Buñuel (1900-1983), ao levantar a vocação do


cinema “para fazer explodir o universo”47, considerava o redimensionamento

46
Victor Chklóvski foi um dos fundadores do OPOIAZ (em russo: Óbchchestvo po izutchéniu
poetítcheskovo iaziká, ou seja, Associação para o Estudo da Linguagem Poética), um centro de
pesquisas “formalistas” fundado em 1914 por jovens investigadores da linguagem. Roman
Jakobson foi um dos fundadores do Círculo Linguístico de Moscou, fundado na mesma época
que o OPOIAZ com o qual manteve estreita, porém breve interlocução e colaboração; em 1920
imigra para a Checoslováquia onde funda o Círculo Lingüístico de Praga e no início de 1940
passa a residir nos Estados Unidos onde funda o Círculo Lingüístico de Nova Iorque. Chklóvski
permanecerá na Rússia toda a sua vida (Joaquín Jordá In SKLOVSKI, 1971, p. 7-22).
47
Bastaria à branca pupila da tela de cinema poder refletir a luz que lhe é própria para fazer
explodir o universo. Mas, por ora, podemos dormir em paz, porque a luz cinematográfica
encontra-se convenientemente dosada e aprisionada (BUÑUEL, 1983, p. 334).

29
tecnocultural que o uso das novas tecnologias de imagem e som poderiam
provocar, uma arte “revolucionária” de fato, fomentadora de novos sujeitos
sociais. Certamente Buñuel apontava para o poder de representação do real, mas
um real em que as produções fossem revestidas de poesia, mistério, do que
pudesse completar e ampliar a realidade tangível e, encaminhando esse
pensamento, cita o surrealista francês André Breton (1896-1966): “O mais
admirável no fantástico é que o fantástico não existe; tudo é real”. Mas esse real,
esclarece o cineasta espanhol, é um real como a realidade de um

[...] mesmo copo, [que] visto por seres diferentes, pode ser milhares de coisas, pois
cada um transmite ao que vê uma carga de afetividade; ninguém o vê tal como é, mas
como seus desejos e seu estado de espírito o determinam. Luto por um cinema que me
faça ver este tipo de copo, porque este cinema me dará uma visão integral da realidade,
ampliará meu conhecimento das coisas e dos seres e me abrirá o mundo maravilhoso do
desconhecido, de tudo o que não encontro nem no jornal nem na rua (BUÑUEL, 1983,
p. 337).

Existem bases materiais sobre as quais essa realidade se constrói mas a


força ativadora dessa transformação individual e social, desejada por Buñuel, só
se distende quando o cinema se constitui em “expressão artística”, o que
equivaleria dizer constituir-se em “instrumento de poesia, com todas as
possíveis implicações desta palavra no sentido libertador, de subversão da
realidade, de limiar do mundo maravilhoso do subconsciente, de inconformismo
com a estreita sociedade que nos cerca” (BUÑUEL, 1983, p. 334).
O aprisionamento ao qual se refere Buñuel é também criticado
veementemente por Tarkóvski. A exemplo do cineasta espanhol, nosso autor
debate-se com a libertação do cinema enquanto linguagem única ao mesmo
tempo em que tece contundente crítica à arte soviética. Afirma ele:

Em uma sociedade socialista, um operário de fábrica, ou um homem que trabalha no


campo, ambos responsáveis pela produção de coisas materialmente valiosas,
consideram-se senhores da vida. E estas pessoas pagam para receber sua pequena cota
de “diversão”, que lhe é propiciada por artistas ansiosos por agradar. Tal ansiedade,
porém, fundamenta-se na indiferença, pois os artistas aproveitam-se cinicamente do
tempo livre de pessoas honestas, de trabalhadores, tirando vantagem da sua credulidade
e de sua ignorância, da sua carência de educação estética, com a finalidade de destruir
as suas defesas espirituais e ganhar dinheiro com isso. As atividades de um “artista”
como esse são repugnantes. O trabalho de um artista só se justifica quando é crucial
para a sua vida: quando não é uma ocupação passageira, mas sim a única forma de
existência para o seu “eu reprodutor” (TARKOVSKI, 1990, p. 230).

30
Tal posicionamento, por outro lado, encontra eco nas críticas que faz
Walter Benjamin quando contrapõe revolução social a revolução espiritual,
alinhando-se ao nosso cineasta em relação ao vazio, senão vácuo, onde recaíra
todo o discurso de uma pretensa “arte revolucionária”, com o seu tremendo
engodo otimista (sobre esse assunto retornaremos adiante). Diz Benjamin: “O
socialista vê ‘o futuro mais belo dos nossos filhos e netos’ no fato de que todos
agem ‘como se fossem anjos’, todos possuem tanto ‘como se fossem ricos’ e
todos vivem ‘como se fossem livres’. Não há nenhum vestígio real, bem
entendido, de anjos, de riqueza e de liberdade. Apenas imagens” (BENJAMIN,
1986, p. 33).
O grande problema (logo resolvido pelos dirigentes soviéticos, veremos)
seria definir o que seria o real. Tratando-se de cinema, o espaço representado na
tela deveria equivaler ao espaço dito “real”. Os critérios de julgamento dessa
tessitura imitadora deveriam passar pelos procedimentos tradutores, pois esses é
que traduziam o real em representado. No entanto, paradoxalmente, para o
Realismo Socialista, o real deveria ser produzido pelo representado, não
restando qualquer sombra de dúvida ao público, sobre sua “realidade”. Excluir-
se-ia, assim, do espectro social, qualquer incerteza ou dúvida sobre a identidade
do mundo original, ou real.
Bastante úteis para a compreensão dessa modelação da realidade são os
conceitos de iluminação e estesia articulados pelo sociólogo brasileiro Muniz
Sodré (1942-) para justificar a possibilidade de se “ocultar mostrando” (SODRÉ,
2002, p. 58).
Na sociedade contemporânea hegemonicamente capitalista, Muniz Sodré
aponta o conceito de estesia48 (“capacidade de perceber o sentimento da
beleza”), para conceituar essa estética enganadora que se assemelha à arte mas
não é arte e sim, puramente, um fenômeno estético. Encontramos já nas
máquinas totalitárias a ocorrência desse evento. O que é o otimismo preconizado
pelo Realismo Socialista senão um fenômeno estésico?
Tratando-se de Tarkóvski, frente a estesia, é como se tivesse
empreendido uma fuga, com todas as suas forças, da violência asséptica que

48
Estesia é um conceito concebido pelo lingüista tcheco Jan Mukařovský (1891-1975). Sua
formulação encontra-se em MUKAROVSKY, Jan. (1981) Escritos sobre Estética e Semiótica
da Arte. Lisboa: Estampa, 1993.

31
recobrira toda a arte russa por mais de trinta anos onde não havia crise, apenas
otimismo. Tarkóvski inclui, reveste, empasta, mergulha o seu cinema em uma
força crítica e delirante do espírito. Espírito pelo qual clamara Walter Benjamin
em inúmeros textos e sem o qual a arte é uma matéria tecnicamente perfeita mas
absolutamente morta (seria então arte?). Isenta da vertigem, a arte torna-se não
mais arte, mas uma função do sistema, domesticada, mera tramitação
burocrática.
Por isso os laços tão pungentes e fecundos que atravessam toda a obra do
cineasta ligando-o inexoravelmente a uma figura tão igualmente crítica na arte
russa (e planetária): Dostoiévski.
No final dos anos setenta Tarkóvski escreve:

Para mim, são de grande significação as tradições da cultura russa que se iniciaram na
obra de Dostoievski. Na Rússia moderna, seu desenvolvimento é claramente
incompleto; na verdade, elas tendem a ser desprezadas, ou mesmo ignoradas por
inteiro. Existem muitas razões para que isso ocorra: em primeiro lugar, sua total
incompatibilidade com o materialismo, e, depois, o fato de que a crise espiritual
vivenciada por todos os personagens de Dostoievski (que foi a inspiração para a sua
obra e a dos seus seguidores) também é encarada com desconfiança. Por que será que
esta situação de “crise espiritual” é tão temida na Rússia contemporânea?
(TARKOVSKI, 1990, p. 233-234).

Talvez, arriscamos responder, porque a “máquina infernal” de


Dostoiévski (BENJAMIN, 1986, p. 30) colocasse a humanidade sob o signo da
desconfiança. Sobre essa desconfiança ilimitada Benjamin dava seu veredicto
meio século antes de Tarkóvski. Para Benjamin, o problema maior estava no
conformismo que congela a tradição em um tempo, não libertando-a ao tempo
presente. Clama o filósofo alemão: “Em cada época, é preciso arrancar a
tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela” (BENJAMIN, 1986, p.
224). A tradição está ali, o tempo todo e não se há de fugir dela pois ela se
estende à nossa frente, às nossas costas, nos circunda como um parangolé
demoníaco cobrando os juros do tempo. Ao artista ela diz: quarenta mil anos de
arte vos contemplam; como poderá você fugir dessa herança cultural, mutante
porém irreversível? Arrancá-la ao conformismo, é o que afirma Benjamin,
libertar a tradição ao tempo presente, insiste o filósofo.
É revigorante para a arte em geral e para o cinema, a liberdade com a
qual Tarkóvski se dispõe a dialogar, não apenas com a História da Arte, mas
com a História Planetária, propondo, a cada filme, questões cada vez mais

32
perturbadoras, proposições possíveis de serem arquitetadas apenas no universo
da arte. Diálogo fragmentário, trama de fios que se desfiam, recusa da linha reta.
Ele resiste, não apenas ao totalitarismo em seu país. A pluridimensionalidade
intrincada e refeita em um ritmo de fragmentação e justaposição quer resistir à
monologia, à imposição de um discurso hegemônico, à lógica das certezas
positivistas. Ele resiste. Seu cinema esgarça esse monologismo e enfatiza a
multiplicidade de vozes. Às imagens já desgastadas da mídia cinematográfica,
imagens imobilizadas pela estereotipia imanente ao nosso tempo (e ao dele),
previsíveis e duras, Tarkóvski contrapõe essa tela trêmula, em transe, alucinante,
que nos devora a paciência, nos exige um tempo que já não temos, reverberando
novas possibilidades de ver, de ouvir, de sentir, de sonhar de viver, de responder
ao mundo.

33
1.3. A perspectivização do olhar

O artista é o avião furtivo da cultura:


imperceptível ao radar do espetáculo, porém extremamente eficaz
por sempre apontar para os lugares afiados,
para as situações mais críticas.
Nicolas Bourriaud49

O Renascimento nas artes visuais (e arquitetura) funda-se conjugando


arte e ciência, teoria, filosofia e prática. Um de seus fundadores foi o genovês
Leon Battista Alberti (1404-1472), homem rico, de formação clássica que
combinava com desenvoltura as competências de intelectual, cientista e artista.
Foi na qualidade de filósofo, matemático e pintor que escreveu uma das mais
importantes obras inaugurais da teoria da arte; De Pictura, tratado sobre a
pintura com o uso dos princípios da perspectiva linear. Nessa obra, Alberti
afirma que “um quadro é uma janela através da qual observamos uma secção do
mundo visível”50.
Grifemos por ora que Alberti refere-se a “uma secção do mundo visível”
e não a todo o mundo visível. E sigamos em frente.
Em meados do século XX, portanto quinhentos anos depois de Alberti, o
francês André Bazin (1915-1958), um dos mais influentes pensadores da arte
cinematográfica e também fundador da revista francesa Cahiers du Cinéma, vai
retomar o pensamento albertiano para elaborar a sua “estética da realidade”.
Interessava a Bazin investigar a ilusão criada pelos sistemas científicos que
articulavam a perspectiva linear (a partir do Renascimento) como procedimento
de representação do mundo, determinando a natureza da fotografia, a sua
ontologia e, depois dela, e com mais precisão (por envolver além da imagem
realista estática, o movimento), a ontologia do cinema (BAZIN, 1983, p. 121-
123). Por esse caminho Bazin requalifica a “janela através da qual observamos
uma secção do mundo visível” definindo o cinema, e não mais a pintura, como
esse quadro objetivo e preciso que recorta com luz a realidade e a coloca diante
de nós, em movimento, projetada.

49
2003, p. 77.
50
http://www.pelagus.org/it/libri/DE_PICTURA,_di_Leon_Battista_Alberti_1.html
Acesso em: 20 jan. 2007.

34
1.3.1. Os signos do realismo através de visões de mundo

Tanto Alberti (pensando a pintura) quanto Bazin (pensando a fotografia e


o cinema) referem-se, em seus estudos, a secções, frações, recortes e não ao todo
do mundo.
O eixo em ambas as discussões, a renascentista e a moderna, é o realismo
das formas, o afã de “substituir o mundo exterior pelo seu duplo”, a
“necessidade de ilusão” cujo objetivo, nas palavras de Bazin é “salvar o ser pela
aparência” (BAZIN, 1983, p. 121-123)51. Ou seja, a arte, para o teórico, surge
como uma defesa humana contra o tempo. Daí todo o seu esforço para
perscrutar o sentido abrangente e as propriedades da fotografia, sua “ontologia”,
reportando-se inclusive, a título de exemplo dessa substituição do ser pela
aparência, ao processo humano ancestral de conservar os corpos, sua
materialidade, através da mumificação, das técnicas de embalsamento.
Tal vinculação da arte com o realismo, segundo Bazin, teria por objetivo
a preservação da memória fidedigna da vida efêmera, transiente, diante da
inexorabilidade do tempo, ou ainda, diante da morte.
Por outro lado, o crítico francês credita o desenvolvimento dessa sua
reflexão a André Malraux que teria afirmado antes dele que “o cinema não é
senão a instância mais evoluída do realismo plástico, que principiou com o
Renascimento e alcançou a sua expressão limite na pintura barroca” (Malraux
apud BAZIN, 1983, p. 122, grifo nosso).
Torna-se manifesto nessa citação, como no desenvolvimento posterior do
pensamento de Bazin, que o seu entendimento do realismo na arte ultrapassa as
fronteiras delimitadas pela História da Arte, ou seja, realismo não é pura e
simplesmente a denominação de uma escola ou movimento artístico no curso da
história, mas sim uma forma específica de organizar o mundo em imagens.
Tal fuga do historicismo em benefício de uma compreensão ampliada de
uma teoria sobre o realismo na arte desestabiliza a diacronia. Nesse sentido, o
“realismo” não seria um conceito de época, datado, mas uma espécie de
incidência irrefutável entre a vida e a arte, algo que tenha se interposto diante da

51
Essa obsessão, diga-se de passagem, continua, mais do que nunca presente, reforçada não
apenas no campo da manipulação de imagens (os softwares que “salvam o ser” dos top models
“pela aparência”, mas também através das técnicas cirúrgicas de “rejuvenescimento”, de
intervenção direta nos corpos, com o implante de silicones, botox e tantas outras).

35
vida e a favor da arte, ou de modelos, de visões de mundo, de ideologias
enquanto sistemas de idéias.
Por mais árdua que seja a revisão do conceito de “realismo” relacionado
à visualidade nas artes, ela se faz necessária para uma aproximação dos
procedimentos artísticos que operam sua geração e organização. Discuti-lo,
como assinalado acima, tendo por norte não apenas um movimento inserido nas
convenções da História da Arte52, mas as possíveis visões de mundo, modelos
artísticos agenciadores de novos discursos e linguagens no esteio de poderes,
vontades, posicionamentos, ideologias, em sua dimensão ética. Esse “modelo
artístico” ao qual me refiro se encontra no eixo que fundamenta as teorias, de
Alberti a Bazin, ou seja, toda a cultura visual ocidental a partir do
Renascimento. Podemos também identificá-lo em modelos de organização
espacial diversos que se manifestaram tanto nos movimentos vanguardistas do
século XX como na pintura medieval, assim como se encontram plenos e
presentes na Arte Contemporânea.

1.3.2. A ação criadora como resposta ao mundo visível

Voltemos ao “mundo visível” de Alberti. Consideremos esse mundo


visível como o mundo das coisas. Coisa aqui na acepção dicionarizada: “tudo
quanto existe ou possa existir (no mundo físico), de natureza corpórea ou
incorpórea” (Cf. HOUAISS, acréscimo nosso), embora estejamos bem cientes
de que o “mundo visível” de Alberti não se compõe do “incorpóreo”, mas da
matéria bastante objetiva do mundo que pode ser visto pelos olhos, desde que
estritamente traduzido pelas leis matemáticas. Esse desvio do conceito original
de Alberti, permite que alarguemos nossa compreensão da arte no mundo
contemporâneo onde as questões do fazer artístico ultrapassam o puramente
visível53.

52
Referimos ao “movimento realista”, assim denominado pelos historiadores da arte, surgido na
França no século XIX.
53
Fazemos referência a todas as outras manifestações artísticas que se estendem além das que
tradicionalmente ocuparam-se da reprodução do “visível”, a saber: pintura, escultura e gravura.
Partem, desde a virada do século XIX para o XX, para outros sentidos: audíveis, táteis, olfativos,
como o audiovisual, a performance, a bodyart, os espaços instalacionais e o cyberespaço, por
exemplo.

36
Na arte temos um processo que articula um fazer cuja passagem se dá a
partir do mundo visível, percebido pelo artista, para o mundo dos signos, ou
seja, para a cultura humana. A forma como essa passagem se dá desde a
primeira inscrição realizada nas paredes de uma caverna vem sofrendo cruciais
modificações tecnológicas.
As conexões da arte com o mundo visível54 se estabelecem em
movimentos nada uniformes. Do que é mundo visível ao que é transformado em
visão de mundo há um entremeio variável que se constitui justamente no que foi
percebido como mundo visível pelo artista e sua própria ação em transformar
esse mundo visível em visão de mundo. Essa percepção e a forma pela qual será
convertida em arte e comunicada ao mundo é única, de cada artista. Contudo, a
visão de mundo obedece a modelos estabelecidos no tempo, desde o primeiro
exercício em se gravar qualquer informação visual em qualquer superfície, ainda
que com variações particulares. E aqui retomo uma afirmação do semioticista
russo Iúri Lótman (1922-1993) segundo o qual “uma comunicação artística cria
um modelo artístico de um fenômeno concreto” (1978, p. 50).
Essa afirmação de Lótman nesse estudo é compreendida à luz da teoria
sobre as relações entre a arte e o mundo visível elaborada por Leonardo da Vinci
(1452-1519), segundo a qual a arte organiza-se em artifício para extrair do
contínuo a sua descontinuidade, portanto, no entender do mestre florentino, a
arte corporifica, materializa um discurso mental (discorso mentale)55. Nesse
sentido o modelo artístico ao qual se refere Lótman é um discurso mental
(realizado ou não através de aparatos maquínicos tais como máquinas
perspécticas, desde as renascentistas até as mais sofisticadas - fotográficas ou
cinematográficas - de captura digital). Esse discurso mental cria, segundo
Mikhail Bakhtin, “uma visão do mundo absolutamente nova” e não a sua
reprodução meramente ou presumidamente fiel:

Encontrar um meio de aproximar-se da vida pelo lado de fora, é esta a tarefa do artista.
É assim que o artista e a arte em geral criam uma visão do mundo absolutamente nova,
uma imagem do mundo, uma realidade da carne mortal do mundo que nenhuma outra
atividade criadora poderia produzir (BAKHTIN, 1997, p. 205).

54
Tratamos justamente dessas conexões em texto homônimo: Conexões da arte com o mundo
visível (JALLAGEAS, no prelo).
55
Utilizo comparativamente duas versões dos estudos de da Vinci, a italiana, disponível em
http://www.pelagus.org/it/libri/TRATTATO_DELLA_PITTURA,_di_Leonardo_da_Vinci_5.ht
ml#libro e a espanhola, Tratado de Pintura, impressa pela Editora Nacional, de Madri, em 1982.
Ambas constam da bibliografia dessa.

37
Há uma tensão entre a forma expressiva e a irredutibilidade do mundo
visível. A arte busca criar essa visão de mundo sem, ao mesmo tempo, reduzi-lo.
No entanto, toda e qualquer forma através das quais intentamos descrever,
traduzir o que percebemos do mundo visível são limitados. Nesse sentido, as
noções de tempo e espaço geradas por esses discursos mentais não consistem na
realidade propriamente dita e sim em modelos de realidade. Ou seja, essa visão
do mundo absolutamente nova de que trata Bakhtin, institui modelos de
percepção e tradução do mundo, comunicado através da arte, com
procedimentos da arte que modelam esse fenômeno concreto em visões, frise-se,
parciais e fragmentárias (lembremo-nos das “secções” do mundo visível para as
quais focamos a atenção anteriormente).
Acresçamos a essa secção espacial do “mundo visível” a sua dimensão
temporal. Teremos o fato de que o artista, ao deparar-se com o “fenômeno
concreto” só o faz vivenciando o seu próprio tempo, ou seja, o ambiente no qual
ele vive e durante o período de sua vida. Essa constatação levou Mikhail
Bakhtin a afirmar que “o artista é prisioneiro de sua época, de sua
contemporaneidade” BAKHTIN, 1997, p. 366), ou seja, das condições e
disponibilidades do tempo e espaço percorridos pela sua vida humana mas que a
sua obra, no entanto, atravessa o “grande tempo”. Se o artista é prisioneiro, sua
obra é livre. E é livre que essa obra se renovará em sentidos, no tempo e no
espaço. O conceito de “grande tempo”, pois, implica um diálogo incessante da
obra com o tempo que lhe é posterior, diálogo do qual o autor só participa
através das marcas que deixou impressas na matéria, a “carne do sentido”.
A “matéria”, quanto mais próxima do conceito de Arte Contemporânea,
a partir da segunda metade do século XX, torna-se cada vez mais fluída e as
ações dos artistas cada vez mais próximas do que define o escritor e crítico de
arte francês Nicolas Bourriaud, na epígrafe que abre esse capítulo. Compreende-
se o papel desenvolvido pelo artista contemporâneo, sendo forjado nas camadas
sígnicas do tempo, percorrido entre o primeiro gesto artístico no escuro dos
tempos até a mais obscura performance virtual desse início de século (XXI),
quando a figura do artista passa a se identificar com a de um explorador de
campos de signos, como conclui o próprio Bourriaud: “uma espécie de
`semionauta´: um inventor de trajetórias entre os signos” (2003: 77).

38
De uma forma mais poética o cineasta francês Jean-Luc Godard (1930-),
em seu último filme, Nossa Música (2005), delegou essa trajetória sígnica com
uma abrangência cósmica ao cinema contemporâneo: “O princípio do cinema: ir
até a luz e apontá-la para a nossa noite. Nossa música”56.

1.3.3. A informação gravada na matéria, a carne do sentido

Para tornar essa afirmação sobre a arte e o artista ainda mais incisiva,
colocamos em questão a afirmação do teórico da comunicação canadense
Marshall McLuhan (1911-1980), feita há três décadas atrás, segundo a qual “[...]
a arte não será mais uma forma de auto-expressão na era da eletricidade. Na
verdade, se converterá num tipo necessário de pesquisa e aprofundamento”
(McLUHAN, 1975, p. XXIV). Parece-me, de fato, um esforço totalmente inútil
pensar a arte apenas como auto-expressão – em qualquer período da história
humana -, assim reduzida ela estaria completamente desvinculada do ambiente57
que propiciou sua produção, o que implica um alijamento de sua dimensão ética,
inclusive. Pensemos que, desde quando o ser humano ensaiava as suas primeiras
formas de comunicação através da gravação de informações nas paredes de uma
caverna, ele iniciava um ato que se repetiria em quarenta séculos de arte: estava
fazendo uso de signos como forma de realizar suas idéias segundo determinada
visão de mundo. A afirmação de McLuhan, nesse sentido, careceria de um
reexame, pois o fenômeno artístico observado apenas como “forma de auto-
expressão” redunda no mesmo vazio que nos tem remetido as interpretações que
tentam alcançar a arte na “era da eletricidade” ou mais contemporaneamente, na
“era digital”, ora sob o signo do (ainda) belo, ora sob o signo (ainda e apenas)
do formal.
O texto artístico, uma vez constituído, estará disponível ao mundo, ele
mesmo como um conjunto de possibilidades de informações a serem extraídas
pelo espectador no exercício da compreensão responsiva.

56
GODARD, Nossa Música, 2005, 00:48:26 a 00:48:36).
57
Segundo a “abordagem ecológica” do psicólogo americano, estudioso da percepção visual,
James Gibson (1904-1979) é no ambiente que estão as disponibilidades à interação e as
informações em deslocamento. O acesso às informações que daí podem ser extraídas se dá pelo
processo direto entre o sujeito e o ambiente, por interação. Gibson utiliza o conceito de
affordances ou disponibilidades como possibilidades de percepção que existem no ambiente
(GIBSON, 1986).

39
O artista é um observador e, nesse sentido, um percebedor e um
propositor. Ele interage com as informações do mundo, do ambiente. A ação
criadora do artista se dá em resposta ao mundo e é no exercício de modelar essa
realidade percebida, elaborando sua obra, que opera uma linguagem para a
compreensão da vida.
Ora, para perceber o mundo que o cerca, o seu entorno, o artista interage
com as disponibilidades de seu tempo. Sua percepção se dá na interação com as
disponibilidades do ambiente que lhe é contemporâneo, muito embora a obra de
arte não se encerre na época em que foi concebida pois “a plenitude de seu
sentido se revela tão-somente no grande tempo” (BAKHTIN, 1997, p. 366).
Mas enquanto propositor, o artista lida tanto com as limitações quanto
com as potencialidades do tempo em que sua obra é produzida. Assim,
pensemos nos desafios da caça e na precariedade técnica como disponibilidades
para o artista primitivo realizar os primeiros ensaios pictóricos rupestres. Da
mesma maneira, a grandiosidade das esculturas gregas não se levantaria do
mármore não fosse a abundância desse material nas regiões helênicas e a
tecnologia alcançada para extraí-lo e dar-lhe forma. Em ambos os casos, no
mesmo sentido ecológico que norteia a teoria da percepção de James Gibson, o
processo artístico se dá na relação do artista com o meio ambiente, no qual, sem
dúvida alguma, se inserem não apenas a matéria da qual será constituída a obra,
onde será gravada a informação, mas também a tecnologia necessária para
gravá-la (o conhecimento já adquirido – ou em processo de aquisição - para a
sua fatura), seja ela instrumentalizada por uma lâmina, um lápis, um pincel, uma
câmera ou um computador.
Não importa, talvez, o instrumento ou ferramenta utilizada. Se feria mais
ou menos a matéria ou mesmo que essa gravação passe ou transpasse em nossos
dias, camadas de virtualidade pela conquista dos meios digitais: os artistas da
visualidade sempre foram, tanto ontem como hoje “negociadores”,
agenciadores, gravadores de informações, propositores de sentidos. Cada ação
artística instaura conceitos e propõe novos significados.
Pensemos com o filósofo tcheco e brasileiro Vilém Flusser (1920-1991),
na arte como informação:

40
... artefatos criados de forma temporária ou para existir apenas na mente -, ela (a arte) é
sempre produção e preservação de informação. Um objeto de arte é informação
armazenada em algum tipo de material – pedra, bronze, pintura – que a livra de ser
esquecida... (FLUSSER, 2002, p. 28).

Coube sempre aos artistas, nesse gesto de gravar, traduzir a vida em toda
a sua extensão e manifestação, e deixar essa tradução gravada como imagem em
um suporte, em uma superfície, matéria. Ainda que, como argumenta Lótman, a
arte “não represente uma parte da produção e a sua existência não seja
condicionada pela exigência do homem de renovar incessantemente os meios de
satisfazer as suas necessidades materiais (LOTMAN, 1978: 25)”, há quarenta
mil anos os artistas seguem tatuando a pele do tempo: o texto da cultura.
Eis um ponto de onde parto após essa breve exposição: o esforço de
modelação realizado pela arte se faz em processo, no caldo da experiência
artística humana que sempre se renova em um movimento ininterrupto de
ebulição da memória individual e coletiva, em programas de ação. Retomando
Lótman:

Não é por acaso que a arte, ao longo do seu desenvolvimento, se liberta das mensagens
envelhecidas, mas conserva na memória, com uma extraordinária constância,
linguagens artísticas das épocas passadas. A história da arte transborda de
“renascimentos” – renascimentos das linguagens artísticas do passado recebidos como
inovadores (LOTMAN, 1978, p. 47).

1.3.4. O ponto de vista único

É dessa compreensão da arte como linguagem em constante movimento,


ação e renovação, que proponho pensar, nesse primeiro capítulo, a
transformação do mundo visível em visão de mundo, através da tensa trajetória
de signos que ora nutrem a “perspectivização da cultura”, ora transgridem essa
perspectivização, invertendo-a. Essa trajetória não é de todo uniforme, mas
caracteriza-se pela inconstância com que se estruturam e se desestruturam
modelos espaciais desde as suas primeiras modelações inscritas em aparelhos
semióticos (tradutores de signos) até o período maior de ruptura ou de
recodificação. Esse percurso se dará na conexão da linguagem da arte com a
linguagem da ciência – um fenômeno a ser observado na marcha da história da
ciência e da arte – até o momento em que as bases culturais que suportaram essa

41
trajetória passam a ser drasticamente abaladas por movimentos transgressores de
sua tradicional codificação.
Sob o ângulo da constituição histórica dos sistemas da ciência e da arte, é
a partir do Renascimento que a visão de mundo passa a ser mediada por
máquinas perspécticas. A expressão “máquinas perspécticas” é minha opção de
tradução do conceito do historiador da arte britânico Martin Kemp (s.d.),
“perspective machines”, em seu estudo The Science of Art – Optical themes in
western art from Brunelleschi to Seurat (1990). Nessa obra, Kemp, ao introduzir
o capítulo onde detalhará a invenção de máquinas ou aparelhos, contextualiza o
momento em que a perspectiva passa a ser desenhada com o auxílio de
máquinas de tal forma que nos é impossível não estabelecer uma relação da
construção dessa visualidade renascentista com o seu tempo:

Eu não penso que seja mera coincidência que também tenha sido este o período em que
as tecnologias de aparelhos científicos e utilitários vieram ocupar um lugar central dos
esforços dos europeus para o progresso intelectual e material. Certamente, a noção
geral do progresso nesta etapa do pensamento ocidental é compartilhada profundamente
pela ciência, pela tecnologia e pela arte naturalista (KEMP, 1990, p. 167).

Da mesma forma, os pesquisadores franceses René Taton (1915-2004) e


Albert Flocon (1909-1994), relacionam a cultura visual do Renascimento com a
aceleração dos processos de comunicação possibilitados pelo surgimento da
imprensa:

Multiplicadas pela imprensa as imagens criadas pelos artistas do século XVI


revolucionam os antigos hábitos visuais. A partir de então o mundo será visto de outra
maneira. Regida por uma teoria matemática, a visão proposta iria fixar para os séculos
vindouros a natureza dos espetáculos do Theatrum Mundi, Weltanschavung, visão do
mundo – no sentido mais estrito do termo – e sua qualidade mais apreciada estava,
precisamente, na exatidão de sua ‘imitação da Natureza’ (TATON; FLOCON, 1967, p.
56).

E se aqui nos reportamos ao Renascimento, estamos falando do esforço


empreendido pelos artistas visuais de seu tempo em levar para a superfície plana
uma “tradução” estática de um mundo que seus olhos registravam como sendo
de fenômenos contínuos e móveis (TATON; FLOCON, 1967, p. 13). A partir
daí ocorre uma perspectivização da cultura visual, ou seja, há uma modificação
radical na forma pela qual a informação visual passa a ser codificada.

42
A era da perspectiva linear é iniciada com a criação do código
perspéctico, e sistematizada pela invenção da câmera escura, da câmera lúcida e
outros aparelhos organizadores de sinais luminosos. “Ordenar é selecionar e
codificar. Codificar é transformar em signo – é significar, é tornar inteligível.
Portanto, é comunicar” (PIGNATARI, 1985, p. 113). Pela primeira vez, os
artistas começam a fazer uso de uma programação, ou seja, da capacidade de
produção sígnica inscrita na própria materialidade dos aparelhos
(SANTAELLA; NÖTH, 1997, p. 120)58.
Com o código perspéctico, o ponto de vista único comanda o olhar e a
gestualidade do próprio artista. Conseqüentemente a própria forma rígida e
retilínea através da qual o ser humano representa a si mesmo e ao mundo que o
cerca também se retesa. Na ilustração abaixo, podemos visualizar o modo pelo
qual um pintor renascentista se coloca, erecto, rígido, diante do aparelho através
do qual ele pode “ver” e reproduzir, desenhando, o seu objeto. Note-se que para
que a operação seja eficaz ambos, o pintor e seu modelo, devem manter-se
imóveis enquanto durar o período do trabalho, ou seja, na mesma posição.

Utilização de vidro com posicionador de olho para fazer um retrato,


Entalhe de Albrecht Dürer, Nuremberg, 1525 (Kemp 1990: 172).

Sendo a ação artística mediada por um aparelho é esse que disponibiliza


ao ser humano a medida “exata” da intervenção na realidade. Trata-se ainda de

58
Flusser assinala que esse processo de programação apenas é inaugurado com a câmera
fotográfica (Flusser, 1998, p. 41), em desconsideração a todos os aparelhos que a antecedem.

43
observar que através desse uso, desse meio, o corpo humano é duplamente
enrijecido para a obtenção de determinado modelo de mundo que será
justamente o modelo dessa rígida realidade: à frente e atrás do aparelho – tanto o
corpo que vê quanto o corpo que é visto devem mover-se o mínimo possível
para que a perfeição da observação e da modelação sejam atingidas. O aparelho
assim o exige, pois a pessoa que posa para o artista não pode se mover para ser
fielmente percebido, ao mesmo tempo em que o artista não deve mudar de
posição pois o seu olho (seu olho porque é apenas um dos olhos que é utilizado
nessa operação, portanto o desenho se dá através da visão monocular), deve
permanecer em um único ponto do espaço (o do ponto de vista ditado pelo
aparelho) para perceber sempre a mesma pessoa que posa, de tal forma que o
retrato seja a cópia mais fiel possível do real. O mundo, o ritmo do mundo,
transparece estático, inabalável.
Os gestos da pessoa que posa e do pintor são contidos, tal método exige
quietude, precisão e disciplina. Para a economia ecológica desse ambiente
contemplativo, a gestualidade encerrada na contenção física dos corpos não
permite a distração do olhar, nem de quem olha, nem de quem é olhado. Os
corpos assim refreados não nos atestam, contudo, se nessa cadência sofriam ou
sentiam prazer. Tudo o que sabemos é que nessa atmosfera envolta em silêncio a
velocidade ainda não existe. O tempo que transcorria, tenso ou tranqüilo, doce
ou com amargura, entre um olhar e outro, não conhecia outro compasso senão a
lentidão, ritmo favorável à reflexão e à contemplação.

1.3.5. O olhar mediado (ou aparelhos mediadores de realidade)

A partir do Renascimento - pois é justamente nesse período que os


artistas da imagem começam a olhar “através de” -, a utilização de aparelhos
intermediários fará toda a diferença não apenas no processo, mas provocará
alterações na codificação realizada na fatura da obra. Como conseqüência, tais
aparelhos intervirão daí em diante em toda a forma de perceber o mundo através
de imagens, portanto, na interpretação do próprio mundo por parte do
leitor/espectador ou, como bem nomeia Bakhtin, do compreendente ativo ou
responsivo (BAKHTIN, 1987, p. 368, 382, 386, 408).

44
Camera obscura do século XIX,
"The Museum of Science and Art", Dionysis Larder, 185559.

Consciente ou inconscientemente, o olhar assume-se matemático, porque


é a matemática que passa a organizar as formas que serão traduzidas em
linguagem. Porque é através desse aparelhamento matemático, perspéctico, que
os artistas passarão a modelar o sistema das artes visuais. É dada a largada para
a perspectivização da cultura cuja radicalização é alcançada com a fotografia
propriamente dita: a imagem perspectivizada de corpos e paisagens gravada em
em prata a partir da primeira metade do século XIX; o recorte mínimo dessa
visualidade: o fotográfico.
Esclareçamos, antes de continuarmos: o fotográfico ultrapassa as noções
de predicado, de mera adjetivação; também não se trata de um paradigma.
Realiza-se em linguagem, um sistema codificado pela perspectiva. Abarca
inclusive o conceito de fotografia, mas não se restringe a ela. Fotográfico aqui é
substantivo em cuja totalidade abrange tanto a perspectiva arficialis como a
perspectiva naturalis. Esta distinção entre os conceitos de perspectiva e sua
concomitante conjugação é importante se queremos avançar pesquisando como
caminham os modelos de posteriores sistemas visuais na cultura. Para dotar de
clareza essa distinção vejamos a definição de Taton e Flocon:

A palavra prospectiva ou perspectiva designava, no latim da Idade Média, a ciência


óptica que os gregos chamavam de [...] optikê, ciência que trata dos fenômenos
luminosos. A perspectiva geométrica, elaborada pelos artistas, chamar-se-á então
perspectiva artificialis, enquanto a ótica, receberá o nome de perspectiva communis ou
naturalis (1967, p. 47).

59
Museum Victoria, (http://www.museum.vic.gov.au/scidiscovery/light/pinhole.asp).

45
Observe-se que, ainda na aurora do Renascimento, o modelo perspéctico
geométrico é sabidamente um artifício que codificará o sistema fotográfico. O
que se demonstra intrigante é que essa artificialidade, com o tempo, tenha sido
assumida não apenas pelo senso comum, mas por historiadores e teóricos da
arte, como “cópia fiel da realidade”, quando não sua “fiel reprodução”.
O fotográfico como sistema da cultura se constituiu a partir do uso de
máquinas perspécticas, no Renascimento; a cultura visual a qual foi se formando
por meio da representação de um modelo geométrico. Dessa maneira, o olhar
humano conformou-se ao fotográfico muito tempo antes do advento da própria
fotografia.
Ter em mente que os pontos que são intersectados para formar a imagem
efetivam a sua codificação, com o objetivo de construir uma imagem “perfeita”
do real, é imprescindível para a compreensão da recodificação posterior dessas
imagens.
Até o “momento futurista”60, no princípio do século XX, a fotografia e
outros tantos gêneros em todas as artes, não eram colocados em dúvida quanto à
sua origem e estabilidade, ainda que houvesse discussões infindas sobre o seu
estatuto artístico. Desenho era desenho, gravura era gravura, pintura era pintura,
escultura era escultura, fotografia era fotografia e assim o mundo pictórico
estava organizado segundo “as medidas que configuram ‘a proporção divina’ ”
(Taton; Flocon, 1967, p. 46).
Embora formulada de uma maneira ainda bastante geral na Antigüidade
clássica, a geometria euclidiana estruturou-se no Renascimento. Os cálculos
numéricos necessários para alcançar a “Divina Proportione”, que eram os
codificadores da visualidade (“discurso mentale”, segundo Da Vinci), passam a
ser finalmente traduzidos espacialmente em desenhos através de máquinas

60
Destaco que Momento Futurista é o título de um estudo da crítica literária norte-americana
Marjorie Perloff (s.d.), publicado em 1993. A autora conta que retirou esse título de Renato
Poggiolli (The Theory of the Avant-Garde) e cita o trecho onde o autor sugere: “o momento
futurista pertence a todas as Vanguardas e não só àquela que teve esse nome [...] o movimento
assim denominado foi apenas um sintoma significativo de um estado mental mais amplo e
profundo. O futurismo italiano teve o grande mérito de, ao fixá-lo e expressá-lo, cunhar o termo
mais feliz como sendo o seu próprio rótulo [...] as manifestações futuristas representam, por
assim dizer, uma fase profética e utópica, a arena de agitação e preparação para a anunciada
revolução, se não para a revolução em si mesma” (Poggiolli apud PERLOFF, 1993: 19).

46
perspécticas criadas no Renascença cujo conhecimento nos chega através de
vasta documentação deixada pelos artistas pesquisadores ou artistas geômetras
como o próprio Alberti e da Vinci, Filippo Brunelleschi (1377-1446) e Albrecht
Dürer (1471-1528), dentre os primeiros a ocupar-se desses estudos e produção
de trabalhos artísticos através de máquinas). Assim, desde o Quattrocento as
máquinas “portais” de Dürer, os perspectógrafos de Cigoli (1559-1613),
passando pela câmera obscura, a câmera lúcida, até a chegada da câmera
fotográfica, no Novecento, as máquinas perspécticas vêm desenhando com
maior ou menor interferência humana, a comunicação por imagens. Nesse
sentido podem ser consideradas máquinas de desenhar (designar), codificadoras
de informações visuais.

47
1.4. A trajetória desestabilizadora do olhar

Estabeleçamos, primeiramente, um ponto de contato entre a Renascença


e as Vanguardas Históricas, trabalhando com a idéia de cultura como unidade
aberta, vivendo um grande tempo, esse conceito formulado por Bakhtin, para
quem as transformações culturais resultam de encontros dialógicos entre
culturas. Assim sendo, a cultura visual que se prolonga do Renascimento até o
século XIX só poderia mesmo ser questionada por uma outra cultura, que não
ela mesma. E esse questionamento e transgressão de seus códigos só serão
possíveis porque a cultura pós-Revolução Industrial assumirá um caráter
dialógico, exotópico, em relação ao Quattrocento.
Na virada do século XIX para o XX o tempo atomiza-se e a qualidade
“durabilidade” deixa de fazer sentido. As Vanguardas Históricas,
principalmente, relacionam, vêem, sentem, percebem a fragilidade e fugacidade
da matéria em trânsito. A conformação desse meio urbano agregou um ritmo de
vida cuja velocidade frenética fora desconhecida até então, implicando,
conforme aponta o teórico de cinema Jacques Aumont (1942-), na constituição
“de um novo espaço-tempo, fundado na destruição física do espaço-tempo
tradicional, mas também na substituição da moral antiga ligada à natureza por
valores novos, o desejo de aceleração, a perda das raízes” (AUMONT, 2004, p.
53).
A arte traduziria avidamente essa visão em transformação em um modelo
de mundo em transformação e para isso também foi necessário o exercício de
novas apropriações ambientais. Retomemos Bakhtin e sua precoce visão
ecológica com a qual relaciona insistentemente a arte à vida, onde o “autor” se
constitui no processo colaborativo, em diálogo constante com o “outro”, onde o
texto artístico não é uma representação mimética do ambiente, mas resultado de
uma ou mais interações dinâmicas em um contínuo processo de vir a ser. Novos
meios haviam sucedido as fascinantes máquinas perspécticas do Renascimento.
Esses meios estavam disponíveis na abundância industrial do início do século
XIX. Mais do que a câmera lúcida, dos instrumentos ópticos, podemos citar a
título de exemplo o telescópio gráfico, o diágrafo, o agatógrafo, o hialógrafo, o

48
espelho gráfico e a câmera periscópica, o megascópio solar e tantos outros
instrumentos. Todos eles eclipsados pela invenção da fotografia (SHARF, 1994,
p. 26) e, finalmente, pela invenção da câmera fotográfica propriamente dita.

1.4.1. A cronofotografia como desestabilização do olhar

E mais além da câmera fotográfica, é fundamental convocar para esse


inestancável fluxo de reprodutibilidade técnica, os equipamentos desenvolvidos
por cientistas que se ocupavam do estudo dos movimentos dos seres vivos e que
irão inevitavelmente colocar em marcha toda a complexa estrutura técnica do
cinema. Refiro-me principalmente às imagens seqüenciais do fotógrafo inglês
Eadward Muybridge (1830-1904) e à cronofotografia do fisiólogo francês
Étienne-Jules Marey (1830-1904).
As imagens de Muybridge eram obtidas com a utilização de uma série de
até vinte e quatro câmeras e sensores que disparavam cada uma conforme o
corpo em movimento se aproximava. A seqüência de ilustrações abaixo mostra
alguns dos trabalhos que o fotógrafo realizou em Palo Alto, para registrar o
movimento de trote do cavalo Occident, do governador da Califórnia, Leland
Stanford (1824-1893), a partir de 1872.

EADWARD MUYBRIDGE, The Horse in Motion, card with 12 positions, 1878


Morse´s Gallery, 417 Montgomery St., San Francisco61.

Muybridge realizava suas produções na fazenda de Stanford, tendo


montado uma estrutura especial para dispor suas câmeras ao longo do caminho
que seria percorrido pelo cavalo. Durante anos foi buscando melhores resultados
técnicos, com o auxílio da engenharia óptica através da qual conseguiu
aperfeiçoar suas câmeras que passaram a alcançar tempos mais curtos de
exposição.

61
http://web.inter.nl.net/users/anima/chronoph/muybridge/index.htm. Acesso em: 16 jan. 2007.

49
Já a pesquisa de Marey, desenvolveu-se através da construção de
diversos aparelhos em função das necessidades crescentes de sua pesquisa sobre
o deslocamento dos corpos no espaço. Dentre eles destacamos o fuzil
fotográfico que possibilitava gravar uma seqüência de imagens de um mesmo
corpo em movimento em uma mesma chapa, conforme podemos observar
através das ilustrações a seguir.

ETIENNE-JULES MAREY, Fuzil Fotográfico, 1882,


acervo permanente do College de France62

Placa de vidro octogonal positiva


do fuzil fotográfico de Marey,
Cinemateca Francesa, coleção de aparelhos.

Homem utilizando o fuzil fotográfico,


gravura publicada em La Nature

Marey dedicaria toda sua vida ao estudo dos corpos em movimento,


sendo, ao lado de Muybridge, o cientista que mais contribuiria para as
experiências com a análise e a síntese do movimento de animais e seres
humanos, através de máquinas desenvolvidas sempre com o auxílio da
engenharia.

62
Esse conjunto de imagens encontram-se em http://www.expo-marey.com/home.html. Acesso
em: 10 jan. 2007.

50
Sua câmera cronofotográfica foi
responsável por uma pesquisa científica
consistente que se conectaria com toda uma
geração de artistas de seu tempo e
posteriores; apenas para citar os
declaradamente afins: Marcel Duchamp
(1889-1968), os irmãos Bragaglia (Anton
Giulio, 1890-1960; Arturo, 1893- 1962; e
Carlo Ludovico, 1894-1998) e Francis
Bacon (1909-1992) e, junto às
experimentações de outros pesquisadores,
contribuiria para o surgimento do Câmera Cronofotográfica
para negativos 13 x 9 cm, 188763
cinematógrafo.

Ao lado de outros cientistas, Marey realizou inclusive alguns filmes


(imagens em movimento, cinema) até hoje preservados em coleções públicas e
privadas como a Cinemathèque Française e o Photograph Humanities Research
Center, da University of Texas (MANNONI, 2003, p. 319–358).
Além das cronofotografias e filmes, Marey, sempre atuando no campo da
fisiologia, realizou também uma série de esculturas em bronze de pássaros em
pleno vôo (SCHARF, 1994, p. 277).

ÉTIENNE-JULES MAREY, estudo de movimento, ETIENNE-JULES MAREY,


Station Physiologique, 182264 série de onze estatuetas representando
o vôo de um pássaro65

63
http://web.inter.nl.net/users/anima/chronoph/index.htm. Acesso em: 14 jan. 2007.
64
http://www.ctie.monash.edu.au/hargrave/marey.html. Acesso em: 14 jan. 2007.

51
Em texto curatorial da exposição Étienne-Jules Marey le mouvement en
lumière66, o historiador francês Laurent Mannoni (s.d.) acrescenta que ao fim da
vida de Marey, seus objetos de pesquisa foram se tornando cada vez mais
abstratos, através de formas em movimento jamais estudadas, assim como o
movimento da água. Seus esforços de pesquisador são dirigidos para “ver o
invisível”, assim como o ar, utilizando corantes em fumaça. Nesse mesmo
período o fisiologista começara a participar juntamente com o filósofo francês
Henri-Louis Bergson (1859-1941), de estudos sobre os fenômenos psíquicos67.
Quando o “cinematógrafo” é patenteado pelos irmãos Lumière, Auguste
(1862-1954) e Louis (1864-1948) em 1895, data oficial do nascimento do
cinema, não é com esse nome (cinematógrafo) que se dá o seu registro e sim
como aparelho capaz de “captar e exibir imagens cronofotográficas”
(MANNONI, 2003, p. 412), ficando assim documentado a sua direta filiação
com as pesquisas de Marey.

Cinematógrafo dos Lumière, 1895 / Fechado (esquerda) Aberto (direita),


Ao centro fotograma do filme Operários saindo da fábrica dos Lumière68

1.4.2. A visão de mundo em transformação

Embora a cultura visual nesse período vincule-se a uma série ininterrupta


de pesquisas em torno das mais diversas máquinas perspécticas, será em meio a
essa profusão do fotográfico que se desencadeará um processo de

65
http://www.expo-marey.com/home.html. Acesso: 15 jan. 2007.
66
Exposição promovida pela Cinémathèque Française e pela Fondation Electricité de France, no
Espace Electra, Paris, de 13 de janeiro a 19 de março de 2000.
67
http://www.expo-marey.com/home.html. Acesso em: 15 jan. 2007.
68
http://www.precinemahistory.net/1895.htm. Acesso em: 15 jan. 2007.

52
desestabilização dessa visualidade. No momento em que o desenvolvimento
tecnológico avança e o conceito de progresso se impõe, a arte hesita e questiona.
O rigor da percepção mecânica alcançado pelos equipamentos
fotográficos e cronofotográficos lança aos artistas (principalmente pintores, mas
também aos escultores) o desafio de buscar novas formas de apreensão do
mundo visível. Por outro lado, as deficiências técnicas iniciais produziam
imagens que ofereciam ou apontavam para questões perceptivas até então
inalcançáveis aos olhos humanos, mas tornadas possíveis pelo sistema óptico
das câmeras fotográficas.
Vejamos dois bons exemplos. O primeiro refere-se a como a
cronofotografia alcançou os pintores da corrente realista francesa do século
XIX. O assistente de Marey, George Demeni (1850-1917), narra as reações do
pintor acadêmico, francês, Jean-Louis-Ernest Meissonier (1815-1891) quando,
em 1881 viu as primeiras fotos do galope realizadas por Muybridge:

O grande pintor Meissonier […] veio ao nosso laboratório preocupado com a andadura
do cavalo, que ele tratava de reproduzir exatamente. Quando viu as primeiras análises
fotográficas que lhe mostramos, deu um grito de assombro e acusou nossa câmera
fotográfica de ver as coisas falsamente. “Quando os senhores me mostrarem um cavalo
galopando como galopa este”, e mostrou um de seus próprios esboços, “me sentirei
satisfeito com vosso invento”. Mas a fotografia tem demonstrado que são os pintores os
que se equivocam, e são eles os que tem que modificar a andadura de seus cavalos, de
modo que Meissonier, como os demais, não tem tido mais remédio que acabar por
obedecer à fotografia” (Demeni apud SCHARF, 1994, p. 227).

As posturas hípicas, antes de serem retratadas pelas poderosas câmeras


de Muybridge, eram apenas imaginadas, pois o olho humano não consegue
perceber as posturas exatas de um cavalo a galope. Assim que as fotos de
movimento produzidas pelo fotógrafo inglês começaram a circular pela Europa
contradiziam as anotações pictóricas que os mais respeitáveis artistas faziam do
movimento e mais, revelavam fases da locomoção que não estavam ao alcance
do olho humano (SCHARF, 1994, p. 218-225). Era a percepção de novas formas
visuais até então impensadas para o olho humano. A seguir podemos ver uma
reprodução da pintura do artista realista, francês, Theodóre Gericault (1791-
1824) e uma placa de autoria de Muybridge. A comparação das imagens do
galope em uma e outra onde evidencia o equívoco cometido por Gericault.

53
THÉODORE GERICAULT, Course de chevaux, oleo sobre tela, 1821,
123 x 92 cm, Musée du Louvre, Paris.

EADWARD MUYBRIDGE, Horses and Other animals in motion,


“Bouquet” galloping, saddled, 1878.

Os experimentos de Muybridge e Marey localizam-se no final do século


XIX, quando a fotografia já contava oficialmente com mais de meio século de
existência e os equipamentos aperfeiçoavam-se, alcançando uma velocidade
maior de obturação, conseguindo assim imagens bem definidas de corpos em
velocidade mais acelerada, como é o caso do cavalo a galope.
Em seus primórdios, a técnica fotográfica exigia longos tempos de
exposição, motivo pelo qual os fotógrafos retratistas faziam uso de suportes para
apoiar pescoço e cabeça de seus retratados (próxima ilustração), para conseguir
uma imagem bem definida, pois com o longo tempo de exposição o corpo que
deve permanecer imóvel, tende a mudar de postura e caso isso ocorra no
momento em que a fotografia está sendo impressa na película fílmica, o mais
leve movimento também será impresso com a aparência de um “borrão”,

54
fazendo com que a imagem fotográfica deixe de ser uma “cópia fiel da
realidade”. Notemos aqui o mesmo procedimento de rigidez de corpos que já
analisamos quando estudamos o uso das máquinas perspécticas a partir do
Renascimento.

DAUMIER, Photographie. Novo procedimento, 1856, litografia (SCHARF 1994: 43)

Adolphe Braun, Lê Pont dês Arts, 1867


(detalhe de uma fotografia panorâmica de Paris), (SCHARF 1994: 182).

55
Pouco a pouco a câmera fotográfica foi deixando de se restringir a gravar
apenas os objetos inanimados e estáticos. A ilustração acima, que reproduz uma
fotografia panorâmica de Paris, realizada no final do século XIX, nos dá uma
pequena mostra: dos pedestres que transitam sobre a ponte são gravados apenas
alguns vestígios; aqueles que se movem mais lentamente ou não se movem
imprimem um “borrão” bem mais definido na imagem. Semelhante resultado
causava estranheza ao público pois os olhos humanos, acostumados aos padrões
do mundo visível oferecido pela arte, desde o Renascimento, não conseguiam
assimilar essas “imperfeições” resultantes da precariedade técnica fotográfica
recém nascida.
Temos aí uma possível explicação, por mais paradoxal que pareça, para
as inúmeras pesquisas realizadas para o desenvolvimento da técnica fotográfica.
Essa vai se desenvolver para que a fotografia possa se tornar “estável”,
verdadeiramente “instantânea”, passível de registrar tudo com muita definição,
foco, ou seja: “perfeitamente”, assim como os retratos eram pintados, com
modelos imóveis. Era o que se esperava que esse meio mecânico realizasse. E
tornando-se perfeita como uma pintura a fotografia poderia então ser
considerada verdadeiramente “artística”, “cópia fiel da realidade” tal e qual a
pintura vinha sendo desde o Renascimento.
Meio a essa densidade crescente de novas tecnologias, no século XIX, já
em ebulição pela persistência do impressionismo em se firmar como linguagem
de seu tempo, através de seus “borrões”, questionando já o conceito de realismo.
Frente às ameaças infindas da fotografia aos meios tradicionais de reprodução,
os artistas inquietam-se, acalorados, e a era dos “ismos” inicia seu curso de
provocações ao que até então tinha-se como imagem do mundo visível, imagem
do real.
Ainda ao calor da hora, o filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937)
teve a vertiginosa lucidez de captar as relações que esse movimento estabelece
em seu tempo, afirmando em 1921: “[Os futuristas] perceberam aguda e
claramente que a nossa era, a era da grande indústria, da grande cidade
proletária e de vida intensa e tumultuosa, precisava de novas formas de arte,
filosofia, comportamento e linguagem” (Gramsci apud PERLOFF, 1993:30).

56
1.4.3. A visão de mundo remodelada pelo tempo

Para o pensamento bakhtiniano, a arte (ou texto artístico), é


compreendida como instância de renovação de sentidos, ilocalizável, em
permanente trânsito no tempo e no espaço (daí o seu conceito de cronótopo)
possível apenas quando em contato com a vida, a cada resposta que o humano
oferece às matérias expressivas. Ou seja, há uma incessante recombinação de
espaço e tempo para nos oferecer a visão de mundo.
Esse processo se dá como uma experiência dialógica que para Bakhtin é
uma forma de enriquecimento mútuo e sua identidade vai se reorganizar a partir
do olhar do outro, o que se constitui na exotopia: “O encontro dialógico de duas
culturas não lhes acarreta fusão, a confusão; cada uma delas conserva sua
própria unidade e sua totalidade aberta, mas se enriquecem mutuamente”
(BAKHTIN, 1987, p. 368).
A ação dialogante das Vanguardas com seu tempo, ou seja, as forças que
delas emergiram como resposta estética ao mundo visível que lhe foi
contemporâneo, são múltiplas e dinâmicas. Dessa íntima relação com a
paisagem de uma indústria emergente que implicava novas organizações sociais
(a urbanização crescente e o esvaziamento cada vez maior dos campos) e
movimentos físicos e políticos internos (com ou sem revolução) como externos
(imigração) e ainda a eclosão da Primeira Grande Guerra, seleciono não os
movimentos propriamente ditos, mas as forças tradutoras exotópicas que
dialogam com a cultura visual até então instalada, questionando-a, ou
colocando-a em cheque.
A transgressão que as Vanguardas vão proceder não se faz sem o
conhecimento amplo e profundo dos códigos perspécticos. Tanto que a
transgressão, muitas vezes, a um primeiro olhar ingênuo, aparenta realimentar a
velha ordem estabelecida, como é o caso do surrealismo.
A obra do pintor belga, surrealista, René Magritte (1898-1967),
reproduzida a seguir, é um bom exemplo desse paradoxo que se instaura na arte
das Vanguardas. Em 1929, Magritte pintou um cachimbo sobre uma superfície
plana, seguindo as regras da perspectiva linear; abaixo da figura pintada

57
escreveu “isso não é um cachimbo”. À “obra” deu um nome ainda mais
sugestivo: A traição das imagens. Tanto o título quanto a inscrição caligráfica
integrando a pintura, formam um conjunto metalingüístico que provoca
ironicamente o espectador a estabelecer pontes entre a pintura “cópia fiel da
realidade” e a realidade.
Mais do que nunca é exigida a ação do espectador. Não basta a
contemplação (passiva). Com sua afirmação, ou melhor, negação, Magritte
instaura novas instâncias de percepção e de cognição do espectador. A
“visualidade” não se basta mais por si mesma, ainda que ela seja “cópia fiel do
real”, a ambigüidade espaço-temporal está manifesta. Retire-se a frase da
pintura e teremos uma “cópia fiel do real”; acrescente-se a frase e teremos um
convite ao mergulho na realidade, múltipla, instável, errática. A negação de
Magritte aponta um outro espaço, onde estaria o cachimbo que seguramente não
é esse, o da tela pintada. Apesar da figura ser meticulosamente realizada pelas
leis da perspectiva linear, que remetem o espectador para dentro do quadro, com
o seu ponto de vista central, essa tela de Magritte devolve a visão para o
espectador, inverte o sentido da informação, colocando-a em dúvida.

RENÉ MAGRITTE, La trahison des images ou Ceci n'est pas une pipe,
óleo sobre tela, 60 x 80 cm, 1929
Los Angeles County Museum of Art (LACMA)69

69
http://www.lacma.org/art/MagritteIndex.aspx. Acesso em: 11 jan. 2007

58
A partir das Vanguardas, os quinhentos anos de cultura do fotográfico
nunca mais serão os mesmos. Não morta, mas transtornada, é nas duas primeiras
décadas do século XX que essa ordem canônica é de uma vez por todas abalada.
A inclusão do tempo, como discussão dos problemas da percepção da
realidade, na arte, que até então privilegiara o espaço, não se dá a partir das
Vanguardas, propriamente. No entanto, é apenas na virada do século XIX para o
XX, com as pesquisas em torno das imagens técnicas geradas pelos próprios
artistas, através da fotografia e do cinema, que se torna possível repensar, rever
e fazer novas propostas dentro da Teoria da Arte e da Comunicação, as inter-
relações do tempo e espaço enquanto modelação do mundo visível.
Para o pintor russo Vladímir Favórski (1886-1964), como para outros
tantos artistas e teóricos russos, o eixo do problema da arte realista precisava ser
discutido tendo em vista a percepção, e a percepção, para eles, se fazia no
espaço e tempo; jamais em um ou outro. Podemos ler em Favórski: “Nós
percebemos a realidade em tempo e espaço. A realidade que nós percebemos
existe no espaço quadridimensional, sendo o tempo a quarta dimensão”
(FAVORSKY, 1995, p. 52).
Favórski vai pensar nas diferenças entre composição e construção nas
artes visuais a partir dos paradigmas do tempo e do espaço, ou melhor, do tempo
e espaço, da quadridimensionalidade. Para ele a pintura e os desenhos
acadêmicos70 realizados através da perspectiva linear - com um único ponto de
vista - tem como pressuposto a visão monocular e é modelada mecanicamente
pelo uso de lentes. Em outras palavras, exclui a percepção temporal (1995, p.
52), substituindo o espaço percebido pelo espaço convencionado. Portanto tal
trabalho, ou melhor, composição, não refletiria a realidade desde que a
percepção dessa inclui o espaço e tempo e essas pinturas restringiam-se a
inclusão única do espaço (1995, p. 52).

70
Aqueles realizados fazendo uso da perspectiva linear; na Rússia especificamente esse conceito
aplicava-se aos pintores “Ambulantes” ou “de Cavalete”, assim designados os remanescentes do
movimento realista do século XIX.

59
2. OS SIGNOS (NÃO) DOMESTICADOS:
A PERSPECTIVA INVERSA COMO PROCEDIMENTO

60
2.1. Deslocamento, condensação e centros múltiplos

As experiências cinemáticas do século XIX abrem instâncias até então


inesperadas para a arte fundada na perspectiva linear. As cronofotografias de
Marey, embora apenas possíveis através de máquinas perspécticas instigam
novas construções estéticas e chamam à fatura da obra novas competências
artísticas.e comunicacionais Não apenas a tecnologia é conclamada. Uma
atenção até então não dada ao deslocamento dos corpos é fomentada através de
seus inúmeros experimentos e mais, a exploração dos espaços até então não
visíveis é totalmente descortinada pelas formas aparentes que suas experiências
cronofotográficas em torno da trajetória espacial dos corpos vivos, em
movimento, possibilitam.

MAREY: Cronofotografia de um esgrimista. 1880-90.


Archives de Cinemathèque Française, Paris. (Scharf 1994: 287)

Para a arte, enquanto sistema de comunicação por imagens, essas


pesquisas científicas trariam um novo conjunto de códigos visuais, um sistema
que se lançou em ponte entre os velhos modelos artísticos e a necessidade de
tornar visível novos fenômenos concretos, para os quais os velhos modelos
artísticos, por si só, demonstravam-se insuficientes. Marey é o arquiteto dessa
ponte, como bem assinala o pesquisador italiano Giovanni Lista (1943-): “A
poética do dinamismo conduzia naturalmente Boccioni, Carrà, Russolo, Balla,

61
Severini71 a considerar a fotografia científica como uma possível matriz,
instrumento formal da arte futurista” (Lista, 2001: 133).

2.1.1 Entre a “realidade estática” e a “realidade movimentada”

Os primeiros artistas a agirem para dar visibilidade a movimentos até


então invisíveis foram justamente os futuristas italianos, na primeira década do
século XX. Dentre eles, diretamente conectados com as experiências
cronofotográficas quanto cinematográficas, destaco os fotodinamistas: Anton
Giulio, Arturo e Carlo Ludovico Bragaglia, mais conhecidos na história da arte
como irmãos Bragaglia.

ANTON GIULIO BRAGAGLIA, Cambiando de postura, fotodinâmica, 1911, 12,8 x


17,9 cm, Gilman Paper Company, Nova Yorque, (Lista 2001: 136).

A trajetória do gesto, do corpo em movimento, pode ser observada em


ambas as imagens acima, através das linhas que tensionam o movimento do
gesto, o deslocamento dos corpos.
Marey buscava justamente o percurso do movimento, portanto a forma
pela qual esse trânsito poderia ser inscrito em seu dinamismo, no espaço. No
entanto, as duas experimentações partiam de campos de observação e
71
Todos pintores futuristas, sendo Russolo, inclusive um dos precursores da música concreta.

62
dispositivos distintos: Marey da ciência e Bragaglia da arte; Marey com
equipamentos especialmente fabricados para conseguir o seu intento e Bragaglia
simplesmente intervindo no aparelho, incorporando os potenciais ruídos das
informações visuais - os borrões - radicalizando-os ao máximo, utilizando
longos tempos de exposição, maiores do que o programado para que o retrato
saísse como “cópia fiel da realidade”; Marey em seu método científico colhendo
a trajetória de movimentos lineares e Bragaglia ávido por inscrever o
movimento da impetuosidade, da velocidade voraz que consumia o tempo como
nunca antes imaginado. E, quanto a Bragaglia, embora utilize a maior parte do
manifesto para argumentar sobre as diferenças entre a representação mecânica
do movimento pela cronofotografia e a fotografia transcendental do movimento,
que seria a fotodinâmica, subverte o determinismo mecânico da câmera
fotográfica, pois, resvalando na fronteira da ciência, demonstra ter
conhecimento dos procedimentos pelos quais o equipamento fotográfico
codifica as imagens que produz: conhecimento do meio.
Quando surgem nesse território eletrizado, as fotodinâmicas incorporam
o potencial tecnológico de romper com o estatismo, a rigidez da pose e
cronotopicamente passam a ser fruto de performances72. As informações são
recodificadas e instauram um novo gênero em trânsito dentro da fotografia,
como subversão do fotográfico, cujo princípio calcado no modelo estritamente
geométrico exigia corpos estáticos, jamais performáticos.
Anton Giulio Bragaglia torna público, em 1911, em tom defensivo, o que
ficaria sendo conhecido como Manifesto do Fotodinamismo Futurista. Quando
de sua primeira publicação o texto não surge como manifesto propriamente dito
e sim como texto teórico, conforme estudos de Giovanni Lista (1979, p. 61).

2.1.2. Deslocamento das linhas como trajetória no espaço

Comecemos atentando para o fato de que foi renegando a validade da


instantaneidade (eu prefiro a palavra estatismo) que essa vanguarda passou a

72
Parte dessas questões foram inicialmente levantadas na pesquisa que resultou em nossa
dissertação de mestrado (JALLAGEAS, 2002), retomadas em comunicações apresentadas em
congressos e posteriormente publicadas. Tais inquietações estimularam ainda a produção de
séries de trabalhos artísticos em fotografia e vídeo, ambos participantes em diversas mostras
nacionais e internacionais. Em 2003 o aprofundamento desses estudos começou a dar corpo à
presente tese.

63
investigar a possibilidade de processar novas informações fotográficas e de
articular novas construções artísticas, tornando visíveis na imagem fotográfica
as linhas que se formam com os deslocamentos dos corpos.
O eixo do vocabulário fotodinâmico encontra-se, ressalte-se, na relação
das possibilidades técnicas em devassar espaços inexplorados, que pudessem
modelar a vida caótica e movimentada do mundo, em seu tempo, de captar-lhe a
“atmosfera”. Essa idéia, inclusive, sistematiza expressamente todos os
manifestos futuristas, sem exceção. Em outras palavras: o que orienta as
pesquisas dos fotodinamistas é a possibilidade de capturar, com o uso de uma
câmera fotográfica, imagens formadas em intervalos de tempo que a mente não
consegue registrar, mas a câmera sim. Ou seja, inscrever o tempo em um único
fotograma. Tal “inscrição do tempo” pode também ser compreendida como a
“duração” do gesto encenado ou performatizado - em determinado espaço ou,
em outras palavras: o espaço ocupado pelo tempo.

ARTURO e ANTON GIULIO BRAGAGLIA, Lo schiaffo – 192173

73
http://www.photographers.it/articoli/cinemaefotografiafuturista.htm.
Acesso em: 17 jan. 2007.

64
Em seu manifesto, Bragaglia busca demonstrar que seja a imagem obtida
através da fotografia, da cronofotografia ou do cinema, o fato é que não dá conta
do que, seria o objetivo fundamental do Fotodinamismo: tornar visível a
trajetória contínua do movimento em um mesmo fotograma.
Os esforços das experiências fotodinâmicas demonstram querer alcançar
uma linguagem que possa modelar o que Bragaglia chama de “realidade
movimentada”, pois a fotografia e “todos os meios de representação” seriam
modelos de “realidade estática”, por isso ele recorre a um vocabulário que
vincula a anatomia à representação estática (corpos imóveis, mortos, sem vida) e
a anatomia do gesto que se constitui, essa sim, no que ele denomina
“representação movimentista” (Bragaglia, 1980: 64-67). E aponta a sua
inequívoca conexão com a então contemporânea filosofia bergsoniana para
ultrapassar o humano:

Na mobilidade vivente das coisas, o intelecto preocupa-se em assinalar umas estações


reais, virtuais; ou seja, marca algumas partidas e algumas chegadas. É tudo aquilo que
importa ao pensamento do homem enquanto simplesmente humano. Captar aquilo que
sucede no intervalo é mais do que humano (Bragaglia, 1980: 69-70).

Para a representação da “realidade movimentada” os meios até então


utilizados para representar uma “realidade estática” demonstram-se, aos olhos
das Vanguardas, ineptos.
A inclusão de elementos cinéticos, objetivando a inclusão do tempo,
dentro dos modelos de comunicação por imagens passa, a partir de então, a ser
um dos principais elementos construtivos dos trabalhos artísticos vanguardistas,
sejam eles bi ou tridimensionais.
Dez anos depois do primeiro manifesto futurista italiano, o “Manifesto
Realista” de Naum Gabo (1890-1977) e Antoine Pevsner (1884-1972), artistas,
russos, irmãos, proclamam em 1920 o que seria o seu credo “construtivista”.
Para eles, o valor gráfico da linha é explicitamente rejeitado.

65
A linha é elevada ao status de
“direção das forças estáticas escondidas
nos objetos, e de seus ritmos” e restituem
à escultura “a linha como direção, coisa
que um preconceito secular tinha
ocultado” e afirmam nela “a
profundidade, única forma de espaço”.
Estabelecem algo bastante novo,
tratando-se de escultura, portanto forma
tridimensional: “os ritmos cinéticos,
formas essenciais de nossa percepção do
tempo real” (AMARAL, 1977, p. 35)74,
objetivando demonstrar o movimento, o
ANTOINE PEVSNER, Mulher, desenho,
trajeto, o tempo. 192475

A linha começa a desprender-se de seu sentido geométrico, funcional


enquanto geradora de formas e cumpridora de um papel representacional. As
linhas nas mãos das Vanguardas se alargam, fluidas. Redimensionam-se em
outros sentidos: tornam-se linhas de forças capaz de fazer com que a percepção
humana alcance espaços até invisíveis. As linhas agora apontam a tensão entre
dois pontos e não apenas descreve-lhes o percurso. Deixam de ser linhas de
desenho para serem ondas de luz que se não são vistas é porque encobre-lhes a
escuridão. Deixam de ser apenas grafadas para serem percebidas quando de uma
trajetória de um corpo. Os olhos humanos passam a considerá-las de outra
forma, ou ao menos, ganham competência para tanto. Aprendem que a linha
descreve uma trajetória no tempo, tensiona forças, tem peso e densidade.

2.1.3. A condensação do espaço

As linhas exploradoras de dimensões até então não vistas se


redimensionarão nas experiências das Vanguardas Russas. O ponto de partida

74
As citações entre aspas foram retiradas do Manifesto Realista de Gabo e Pevsner, publicado
no volume citado.
75
http://www.artnet.de/artwork/42358/antoine-pevsner-woman-34.html.
Acesso em: 10 jan. 2007.

66
desse conjunto de experimentações se dá pela observação das convenções
utilizadas nas artes que, pela repetição gerariam um automatismo à percepção. A
arte então deveria ser um procedimento através do qual a percepção seria
deslocada para o lugar do estranho.
Ao sentido da visão os artistas abrem-se à exploração de outros sentidos:
“Coloque os olhos sob o controle do toque” será o slogan do artista russo
Vladímir Tátlin (1885-1953) (apud BOWLT, 1995, p. 36), ecoando os anseios
também manifestos pelos futuristas italianos.
Na mesma direção seguiam, conforme vimos, as pesquisas de Víctor
Chklóvski acompanhado muito de perto por Roman Jakobson. Ambos teriam
papéis preponderantes nos movimentos intelectuais e artísticos pré-
76
revolucionários e revolucionários na Rússia . O “realismo” encontrava-se no
centro de suas iniciais pesquisas, como de resto perpassa as investigações dos
artistas europeus, no geral, a partir do advento da fotografia, conforme
assinalamos no capítulo anterior.
As investigações teóricas davam-se em contrapartida e fomentadas por
uma rica efervescência do universo artístico que tendia a romper com os
modelos convencionais, realizados segundo as leis da perspectiva linear,
dominantes na arte russa dos primeiros anos do século XX.
A produção artística das Vanguardas Russas organiza-se pela primeira
vez em Moscou, em 1907 e desde o início demonstra sua rejeição ao “realismo
engajado” dos Ambulantes russos cuja pintura pautava-se pelas convenções
(MARCADÉ, 1995, p. 23). A discussão dos artistas russos sobre o realismo na
arte dos pintores de cavalete tinha origem, conforme assinala o pesquisador
norte-americano John Bowlt (s.d.), na cópia mecânica da realidade77 através da

76
Boris Schnaiderman ressalta a importância futura que teriam os estudos de Chklóvski,
conforme citado por Umberto Eco em Obra Aberta (In TOLEDO, 1973, p. XXI). O texto de Eco
na edição que consultamos expressa o seguinte: “É espantoso pensar que o artigo de Chklovsky,
Iskusstvo kak priëm (A arte como artifício) – que é de 1917 – antecipasse todas [sic] as possíveis
aplicações estéticas de uma teoria da informação, que ainda não existia” (ECO, 1991, p. 123).
77
Essa prática não era exclusiva dos “pintores de cavalete” russos e muito menos dos pintores da
corrente histórica denominada realista. Confira-se três estudos fundamentais sobre as conexões
da fotografia com a pintura, cuja relação, na prática artística, foi recorrente tanto nos pintores
realistas, em sentido amplo (onde estão incluídos os pintores a partir do Renascimento), quanto
aos artistas vinculados à modernidade como Edgard Degas (1834-1917) As obras são The
Science of Art, de Martin Kemp; Art and Photography, de Aaron Scharf e O conhecimento
secreto, de David Hockney.

67
fotografia, cujas imagens eram transferidas para a pintura (BOWLT, 1995, p.
37).
No ambiente russo essa discussão alcança um consistente
aprofundamento teórico. Na Itália os manifestos futuristas precediam ou
acompanhavam as produções artísticas vanguardistas, caracterizando-se mais
como instrumentos militância, imprescindíveis para que qualquer manifestação
artística fosse legitimada pelo grupo como futurista. Essa postura foi seguida
posteriormente por outras correntes de Vanguarda com maior ou menor rigor,
tais como o surrealismo e o dadaísmo. Porém é na Rússia que a discussão sobre
a conseqüente e articulada “visão de mundo” alcançará diferentes esferas por
conta dos tensos movimentos revolucionários, pautados em repensar uma nova
organização social para o país. Por outro lado, assim que as Vanguardas Russas
emergiram encontraram ferozes oponentes da corrente realista, o que fomentou
o aprofundamento do pensamento sobre a produção artística.
Nesse sentido, artistas e teóricos das Vanguardas Russas embateram-se
com o “realismo” ou a “arte como representação”, observando (e nesse sentido
alinhando-se aos futuristas italianos) que os modelos de visão de mundo
propostos pela arte realista colocavam-se a parte da percepção que lhes era
contemporânea do mundo visível.
Apesar desse foco comum as experimentações e as linhas de pensamento
das Vanguardas Russas caracterizavam-se por rica heterogeneidade de
produção, heterogeneidade essa que rebate incessantemente em todos os
projetos de criação posteriores às Vanguardas, inclusive os que caracterizam a
produção de todo o século XX.
A busca de um rompimento radical das convenções levaria às posturas
altamente radicais de Vassíli Kandínski (1866-1944) e Kasimir Maliêvich
(1878-1935) em duas grandes manifestações artísticas sobre as quais
discutiriam, de diferentes formas, as instâncias conceituais do realismo,
traduzindo essas discussões em suas obras: o abstracionismo em Kandínski e o
suprematismo em Maliêvich. Ambos, apesar de suas especificidades,
mergulharam na cultura eslava, na arte folclórica ricamente ornamentada, mas
também na organização espacial dos ícones sagrados; e saíram desse mergulho
sincronizando o resultado de suas percepções da riqueza tradicional eslava com
o tempo e o espaço de suas próprias vidas.

68
As Vanguardas Russas insurgiam-se algumas vezes em conjunto e,
publicamente, contra as tendências realistas. Um bom exemplo desse esforço foi
a ópera Vitória sobre o Sol, que estreiou em São Petersburgo em 1913 com
música de Mikhaíl Matiúchin (1861-1934), texto do poeta Velimir Khliébnikov
(1885-1922) e figurinos e cenografia segundo os esboços de Kazímir
Maliêvitch. Segundo Ievgénia Petrova (s.d.), “o nome Vitória sobre o Sol dizia
respeito a vitória da nova arte sobre a ‘estética esgotada’. O sol, como símbolo
típico da beleza iluminista, tornava-se para os autores um sinônimo da velha
estética, arcaica” (PETROVA, 2002, p. 71)”. Nessa cenografia aparece pela
primeira vez o “Quadrado negro” de Maliêvitch, como antítese ao círculo
vermelho, o Sol (PETROVA, 2002, p. 71).
Uma carta do pintor francês Robert Delaunay (1885-1941) dirigida a
Kandínski demonstra, por outro lado, que o rompimento dos hábitos perceptivos
do público, buscado pelas Vanguardas, vinculava-se a pesquisas do século XIX
que seguiam em ritmo crescente, ou seja, a consciência das Vanguardas de que o
processo ao qual chegavam no início do século XX era um desdobramento de
inquietações que já haviam assombrado os impressionistas e de forma mais
isolada, mas com grande intensidade, os trabalhos de Cézanne (1839-1906) e
Georges-Pierre Seurat (1859-1891):

Acho muito útil o que você enviou este ano. No que concerne às obras,
acredito que o público é obrigado a acostumar-se com elas. O esforço que ele precisa
fazer vem lentamente, pois está afogado nos hábitos. Por outro lado, o artista tem muito
a fazer no domínio tão pouco explorado e obscuro da construção da cor, que mal
remonta ao começo do impressionismo. Seurat, que investigou as primeiras leis;
Cézanne, que demoliu toda a pintura desde suas origens, isto é, o claro-escuro adaptado
a uma construção linear e que predomina em todas as escolas conhecidas… Essa busca
da pintura pura é o problema do nosso tempo. Não conheço, em Paris, pintores que
estejam realmente à procura desse mundo ideal. O grupo cubista de que você fala
experimenta apenas na linha, reservando à cor um lugar secundário e não-construtivo
(In CHIPP, 1993, p. 321).

Em semelhante caminho, o de transtornar a percepção do espectador e


retirá-lo dos hábitos ao qual se acostumara e que o automatizara, segue
Maliêvitch expondo suas idéias sobre o suprematismo, movimento que também
partiu tanto das experiências cubistas como das futuristas e que encontrou solo
fértil nas questões sobre a arte então discutidas pelos artistas russos, ao mesmo

69
tempo em que também ele critica, não apenas a arte realista que lhe é
contemporânea como as pinturas realizadas sob o estatuto da perspectiva linear
que lhe antecedeu:

O suprematismo é a redescoberta da arte pura que, no curso dos tempos, tornou-se


invisível devido ao amontoamento dos objetos.
Parece-me que a pintura de Rafael, Rubens, Rembrandt, etc., não é, para a crítica e a
sociedade contemporâneas, senão uma concretização de inumeráveis objetos que
tornam invisível o verdadeiro valor, isto é, a sensibilidade causal. Só se admira nessas
obras a realização figurativa. Se fosse possível extrair da obra dos grandes mestres a
sensibilidade que ali se exprime – isto é o verdadeiro valor artístico – e escondê-la, a
sociedade, inclusive os críticos e filósofos da arte, não daria por isso (In AMARAL,
1977, p. 34).

Essa postura crítica e de confronto entre o facilmente reconhecido e


continuamente representado figurativo (como Maliêvitch nomeia) e o até então
invisível, que se dá através do sensível (ou como o pintor nomeia, abstração)
leva-o ao encontro das mais caras tradições da arte russa: a pintura de ícones,
não para retomar a Sagrada Escritura, mas para reinterpretar as formas antes
inseridas em um enredo, uma narrativa figurativa, agora em formas puras. Um
complexo sistema dialógico se instaura, através do qual o artista conecta a
tradição medieval com, segundo ele mesmo, “a arte do meio industrial, tenso”
(Maliêvitch In CHIPP, 1983, p. 342). Como se desse um grande zoom78 na cena
e retirasse dela não um fragmento, propriamente dito, mas a condensação do
que, segundo o artista, constitui-se na “sensibilidade que ali se exprime”
(Maliêvitch In CHIPP, 1983, p. 342). Assim realiza o seu Quadrado negro, a
Cruz negra e outras formas suprematistas, na segunda década do século XX
conforme podemos observar a seguir:

78
Termo emprestado da linguagem técnica fotográfica que quer dizer movimento óptico de
aproximação do objeto fotografado, que pode variar conforme a distância focal da lente.

70
Portão da Anunciação e Dois santos.
MALIÊVITCH, Cruz negra, cerca de 1923
Final do século XV e início do XVI.

MALIÊVITCH, Quadrado negro. São Nicolau


Cerca de 1923 Século XVI

Esse zoom instaura em si uma articulação entre a fragmentação da imagem


anterior e um adensamento da figura, remetendo à potência de um espaço até então
integrante de um “espaço maior”, no caso o ícone medieval. A particularização desse

71
espaço lhe confere o adensamento e ainda o desloca temporalmente do “espaço
maior” de onde foi retirado e ao qual, no entanto, continua sutilmente conectado.
Levado para a prática fotográfica, mais especificamente do
fotojornalismo praticado, principalmente pelo artista russo Aleksandr
Rodtchenko (1891-1956), a pesquisadora russa-norte-americana Margarita
Tupitsyn (s.d.) aponta essa fragmentação na produção fotográfica de um
determinado período. A pesquisadora se reporta à distinção que Rodtchenko e
Ossíp Brik (1888-1945) fazem entre foto-kadr (фото-кадр) e foto-kartina
(фото-картина) (TUPITSYN, 1992, p. 483). A primeira, segundo Brik, seria
uma foto-quadro (quadro no sentido de fotograma, unidade de uma série contida
em uma película fílmica) e a segunda uma foto-pintura (uma fotografia que
trouxesse em si as características construtivas da pintura tais como ponto de
vista e enquadramento); ou seja, a fotografia deveria carregar em sua construção
as características do seu meio e não reproduzir mecanicamente o que a pintura já
vinha realizando: uma cópia da realidade (TUPITSYN, 1992, p. 485).
A idéia de foto-quadro aproxima o conceito de fotografia do cinema; surge
como uma possibilidade de pensamento a partir do cinema: retirar um fotograma de
uma série do todo que constitui uma seqüência fílmica. Aproxima-se ainda da idéia
suprematista de retirar do todo, como vimos anteriormente em Maliêvitch, um
fragmento e extrair dele a potência do espaço. As imagens abaixo ilustram os
conceitos do que seria foto-quadro (à esquerda) e foto-pintura (à direita).

Aleksandr Rodtchenko, 192979 Arkadii Shaikket, 1931

79
Ambas as fotos são da coleção Margarita Tupitsyn (TUPITSYN, 1992, p. 484-485).

72
2.1.4. Centros múltiplos: Espaços coexistentes

Vejamos agora como foi buscado, pelas Vanguardas Russas, o


deslocamento do ponto de vista alcançando relações não apenas espaciais, mas
ainda temporais, anteriormente lançadas pelas experimentações cubistas de
Pablo Picasso (1881-1973) e Georges Braque (1883-1963). Nesse sentido não se
trata exclusivamente de captar a trajetória dos corpos, como no fotodinamismo
futurista, mas redimensionar centros do olhar, à percepção de sobreposições e
interações espaciais e temporais em uma mesma obra.
Pouco tempo depois do manifesto de Gabo e Pevsner que declaravam-se
construtivistas, surge um outro, de outros artistas soviéticos reivindicando a si a
nomenclatura de construtivista. Tratava-se de um grupo com interesses
ideológicos bem definidos que se contrapunha não apenas aos Ambulantes, mas
se declarava a “favor de uma guerra sem tréguas contra a arte em geral80”
qualificando a arte por eles realizada como “arte comunista”. O texto do grupo
apresenta um programa de trabalho fechado cuja pauta tinha como objetivo
inicial (e principal) “a expressão comunista de uma obra materialista
construtiva”. Tal proposta estava calcada em “hipóteses científicas” justificada
plenamente pelo “comunismo científico fundado sobre a teoria do materialismo
histórico”.
Esses artistas tinham a pretensão, pelo ponto de vista ideológico, de
“provar pela palavra e pela ação a incompatibilidade existente entre atividade
artística e produção intelectual, como elementos equivalentes” e prometiam, do
ponto de vista prático, ser o braço direito, senão o corpo todo da mídia
publicitária soviética com as seguintes ações:

a) campanhas de imprensa; b) concepção de planos; c) organização de exposições; d)


tomar contato com todos os centros de produção e os principais organismos do aparato
soviético unificado que têm como finalidade realizar na prática as formas de vida
comunista.

E durante um curto período de tempo, de fato, o seu potencial criativo


expandiu-se em cartazes, design industrial, vestuário, cenários, peças gráficas,

80
Todas as citações desse item, a seguir entre aspas, onde não constem referências, foram
retirados do “Programa do Grupo Produtivista” In AMARAL, 1977, p. 38 e 39.

73
figurinos para filmes e teatro, capas de livro, esculturas e projetos
arquitetônicos.
Historicamente o grupo construtivista fazia uma proposta tão radical que,
além de decretar em seu programa a dita “guerra sem tréguas contra a arte em
geral”, declarava como palavras finais que “a evolução da arte e a cultura do
passado em direção a formas comunistas de edificação construtiva não pode ser
levada a cabo de forma progressiva”. Stálin levaria essas palavras finais do
programa ao pé da letra e instituiria o que ele entendia que fosse a arte mais
conveniente aos interesses “da revolução”, não de forma progressiva, mas por
decreto, a imposição do Realismo Socialista e a concomitante proibição de toda
e qualquer ambição que tivesse o mínimo traço de vanguardista, formalista ou
mesmo construtivista.
Mas antes que isso ocorresse houve tempo suficiente para que o grupo
produtivista, ou construtivista, concretizasse parte daquilo que prometiam
enquanto idéia. Assinavam esse programa os artistas Aleksandr Rodtchenko e
sua esposa Várvara Stepánova (1894-1958).
Para começar, as atividades dos construtivistas estavam longe de se
constituir em mera propaganda enquanto panfletagem partidária. A iniciativa
para capacitar as pessoas comuns, para desvencilharem-se do automatismo das
convenções visuais das imagens “realistas”, tinha por objetivo fornecer-lhes
competências para construírem um novo mundo, através de uma nova visão de
mundo, conforme os anseios revolucionários desses artistas.
Esse é um ponto fundamental dentro do seio de todas as Vanguardas,
conforme mencionado acima: a inclusão do espectador enquanto interagente da
obra, aquele que dará sentido à proposta realizada pelo artista em uma ação
semiótica81 cujo exercício consciente, teorizado e proposto enquanto
experimentação artística é completamente inusitada dentro da História da Arte.
A plataforma estética dos construtivistas era revestida de uma
aproximação da matéria gerada pela indústria que os distinguia das outras
correntes vigentes, como os suprematistas e não figurativistas. Ou seja, suas
relações com a indústria ultrapassavam o design inovador de objetos utilitários

81
Sobre essa ação semiótica no âmbito da fotografia realizada por Aleksandr Rodtchenko
remetemos à dissertação de mestrado O ponto de vista semiótico na fotografia de Alexander
Rodchenko, de Jorge Viana Santos defendida na PUCSP, pelo Programa de Comunicação e
Semiótica, em 2002.

74
para terem como ponto de partida o reaproveitamento do material da indústria
emergente como estética.
Se a velocidade percebida pelos futuristas deveria integrar no corpo da
obra os espaços até então não visíveis; pelos suprematistas podia ser sintetizada
em uma forma pura dentro do espaço cósmico; já a realidade da vida urbana
industrial, para os construtivistas, era um estímulo para que se apropriassem da
matéria enquanto dispositivo da realidade a fim de utilizá-la como a própria
matéria de suas criações artísticas. Esse pensamento faria com que esses artistas
associassem ao seu processo construtivo um conjunto de procedimentos que, se
não era propriamente novo, foi redimensionado na construção de centros
múltiplos através dos quais o espectador poderia formular e reformular múltiplas
vezes o sentido de seu olhar e estender a sua compreensão (enquanto
compreensão responsiva).

Os relevos de Vladímir
Tátlin (1885-1953), anteriores em
pelo menos uma década ao
manifesto citado, demonstram o
princípio de sua construção:
materiais colhidos do mundo e
justapostos, fixados (colados)
através de pregos.
Do material retirado do
“real” e justaposto para a ação de
selecionar e colar material gráfico
VLADIMIR TÁTLIN, Relevo, 1908,
já existente foi apenas um pequeno metal, madeira, couro e pregos82

passo.

São esforços por aproximar a arte da vida buscando linguagens que


traduzissem tanto o seu dinamismo quanto a sua convulsa materialidade.
Rodtchenko, por sua vez, transportaria a experiência da colagem para o
universo fotográfico multiplicando ao máximo as possibilidades de pontos de

82
http://www.culture.pl/pl/culture/artykuly/wy_wy_warszawa_moskwa_zacheta. Acesso em 01
jan. 2007.

75
vista sobre uma imagem. Surgem as fotocolagens. Todo o tipo de material é
utilizado: recortes de jornais, revistas, embalagens, cartazes, páginas de livro,
fotografias, cartões postais, mesclando imagens figurativas com palavras
também recortadas, prática que já vinha sendo realizada pelos dadaístas
alemães.
Técnica da associação de diversas imagens aparentemente díspares, em
uma superfície plana, vai ao encontro de duas possibilidades: demonstrar a
concomitância e a associação dos eventos, cada qual particularizado em um
determinado recorte e oferecer ao espectador múltiplos pontos de associação,
propondo uma visão perceptiva livre e não linear, possibilitando inclusive a
circularidade.

O espectador pode deslizar os


olhos pela pluralidade de figuras e
estabelecer relações diferentes entre
elas, a partir da associação proposta
pelo artista.
Nesse gesto criador, cada uma
das figuras, a exemplo das unidades
suprematistas, são retiradas de um
outro universo (revista, jornal, livro,
etc), assim também são fragmentos de
um todo, mas há um passo além pois
são retiradas desse todo para se
associarem a outros fragmentos,
refazendo um novo todo que propicia
novas conexões, diferentes do todo ALEKSANDR RODTCHENKO
Maquete para ilustração de poema de
anterior. Destacam-se ainda pela sua Vladímir Maiakovski, Pro eto, 1923.
Colagem, papel, fotografia preto e branco e
materialidade pré-existente. guache sobre cartão83.

83
http://www.moma.org/exhibitions/1998/rodchenko/texts/photocollage_jpg.html. Acesso em:
20 jan. 2007.

76
2.1.5. A visão de mundo remodelada com o espectador

A percepção de que a obra é completada pelo público se faz dominante


ao conjunto de manifestos de todas as Vanguardas, e não apenas ao Futurismo.
A preocupação com a participação do público nos remete à necessidade
inaugural das Vanguardas de articular significados através do olhar do outro, em
um processo escancaradamente dialógico que perdurará até os dias de hoje.
Aliás, entre 1920 e 1930, Mikhail Bakhtin, décadas antes de Umberto Eco lançar
a Obra Aberta, foi o grande teórico a investigar e a desenvolver as implicações
epistemológicas da afirmação inicial de que “O acontecimento estético, para
realizar-se, necessita de dois participantes, pressupõe duas consciências que não
coincidem” (BAKHTIN, 1987, p. 42).
O desenvolvimento dessa teoria conecta-se diretamente com a postura
das Vanguardas que, com suas propostas artísticas deslocam o papel do receptor
passivo para o sujeito ativo, que se coloca em atividade, em resposta à
provocação da obra; e ainda demonstra que tais intervenções não poderiam ter
avançado se não fosse quase um século de experimentações na área da
fotografia, até quebrar-se a seção do mundo visível do renascentista Leo
Baptista Albert.
O empenho dos fotodinamistas em distinguir a fotografia, a
cronofotografia e o cinema da força de intervenção da fotodinâmica nos parece
bastante estratégico para marcar o nascimento de uma nova linguagem cujos
códigos, embora gerados por uma máquina perspéctica de última geração (a
câmera fotográfica assim poderia ser considerada, se pensamos que se tratava
dos primeiros anos do século XX), sofriam uma intervenção, justamente no
momento em que eram gerados, por conta da luz que dinâmica e continuamente
gravava a imagem na película enquanto o obturador permanecia aberto e o
movimento durava.
É assim que o “tempo vem traduzido em espaço” (BRAGAGLIA, 1980,
p. 68), ou seja, o tempo se inscreve, através da luz, na película fotográfica. O
tempo se espacializa, isso era o que Bragaglia afirmava e esse fato podia ser
comprovado observando-se o próprio espaço ocupado pela imagem, gravada
dentro dos limites da moldura impressa: imagem do tempo do movimento.

77
Desse modo, pode-se entender o movimento da Fotodinâmica como
visão exotópica ao Fotográfico. Seu embate é uma luta de fronteira, se dá no
limiar, não entre a Fotografia (chamada até hoje imagem estática) e o Cinema e
a Cronofotografia, mas na Fotografia. E como já dissemos, pelas suas
características de intervenção no aparelho, subverte o Fotográfico, que fundou e
monopolizou a modelagem do mundo visível nos cinco séculos seguidos de
perspectivização da cultura.
Ao examinar o retrato pictórico e o retrato fotográfico, dentro dos
estudos da Semiótica da Cultura e sob a luz do conceito de semiosfera, Iúri
Lótman aponta para a liminaridade:

...pode parecer que a diferença entre a fotografia e o retrato está desaparecendo


gradualmente. Tal processo, de fato, está ocorrendo, mas se reduzirmos a esse fato a
essência da questão, corremos o risco de perder a fronteira entre essas duas espécies de
arte profundamente diferentes (LOTMAN, 2000, p. 23).

E aqui retomo os estudos de Bakhtin que analisa o fenômeno da


fronteira, da liminaridade, como o encontro dialógico entre duas totalidades
abertas. Observo assim que com a Fotodinâmica e o Fotográfico, a compreensão
de um sistema em relação ao outro se dá justamente por serem um e outro e
apenas esse outro pode, por exotopia, compreender esse um, que é o sentido
alheio. Conforme Bakhtin:

Um sentido revela-se em sua profundidade ao encontrar e tocar outro sentido, um


sentido alheio; estabelece-se entre eles como que um diálogo que supera o caráter
fechado e unívoco, inerente ao sentido e à cultura considerada isoladamente”
(BAKHTIN, 1987, p. 368).

Seguindo por esse raciocínio, o Fotodinamismo, como sistema cultural,


formulou perguntas nunca antes formuladas ao Fotográfico, outro sistema da
cultura. E apenas olhando para o Fotográfico como um sistema alheio, externo
ao Fotodinamismo é que esse pode compreender-se a si mesmo e ao outro
sistema com peculiares diferenças, aproximações e autonomia. Esse é um
grande mérito dos artistas que formularam a teoria da fotodinâmica.

78
2.2. Vanguardas e Medievo: o excentrismo do olhar

O excentrismo e a luta contra a rotina da vida,


o rechaço da percepção e da reprodução tradicional da vida.
Sklovski84

A epígrafe acima foi retirada de um texto publicado por Víctor


Chklóvski em 1928. O excentrismo ao qual o autor se refere não diz respeito
apenas ao FEKS (Fábrica do Ator Excêntrico)85 que é objeto desse texto de
Chklóvski, mas sim ao posicionamento anticonvencional das Vanguardas como
um todo. Nesse sentido, Tarkóvski seguiu o pensamento de Chklóvski:

(… ) quando falo de tradição literária, não tenho em mente o que um autor toma
emprestado do outro. Vejo a tradição de um escritor como sua dependência em relação
a um conjunto de normas literárias preexistentes, assim como a tradição de um inventor
é a soma total dos recursos técnicos disponíveis em dado momento (CHKLÓVSKI,
2005, p. 277).

Ao estudarmos as conexões da arte com o mundo visível direcionamos


nossa compreensão ao processo interativo entre a percepção da realidade e o
domínio dos signos, possível de gerar não apenas uma, mas infinitas
significações. Esse processo se dá em confluências desdobradas: a do artista
com o seu tempo e a da obra criada no grande tempo, instâncias dialogantes.
O elemento fundamental dessas instâncias dialogantes, dentro do
pensamento bakhtiniano, como já vimos no primeiro capítulo, é a compreensão.
E compreensão, tratando-se de um trabalho estético, abarca um conceito cujo
nome é composto: compreensão ativa ou responsiva.
O compreendente responde ao mundo visível criando significados. O
fenômeno natural por si só, diz Bakhtin, não traz em si uma “significação”
(1997, p. 341). A constatação de que o mundo visível, enquanto “fenômeno
natural”, não comporta uma significação exclui a possibilidade de existência de

84
1971, p.168.
85
Conjunto de experimentações teatrais e cinematográficas russas/soviéticas realizadas
principalmente por Grígori Kózintziev (1905-1973) e Leonid Tráuberg (1902-1990) entre 1921
e 1929).

79
uma realidade a priori, seja ela seccionada ou inteira. Em outras palavras, a
realidade se faz à medida em que lhe atribuímos um significado. Mesmo
fazendo uso da perspectiva linear, essa é uma opção para dar determinado
significado e há um posicionamento nessa maneira de responder à realidade. Ou
seja, segundo o próprio Bakhtin: o dado se transfigura no criado (1997, p. 348).
Todo o movimento suscitado a partir do século XIX e que culminaria nas
Vanguardas vai investigar, discutir e buscar formas de desencadear de maneira
mais inclusiva e abrangente esse diálogo entre obra e espectador. Fica claro.
desde o início. que o ponto de partida é a criação da própria obra, ou seja, desde
a sua constituição é proposta a troca, propõe-se questões para que se responda.
Dizer que o processo de significação se dá no tempo, se renova e
depende da aptidão e competência de resposta do espectador é livrar o processo
de semiose de qualquer possibilidade de arbitrariedade e instaurar um
desdobramento da polissemia dos objetos artísticos, reconhecendo a autonomia
do espectador, o que, por outro lado solicita-lhe a responsabilidade e
respondibilidade. A obra de arte, segundo esse entendimento, não está dada.
Exige que a compreensão seja ativada e exige disponibilidade do espectador
para essa ativação.
Cabe ao espectador prosseguir o ato criador, ou seja, colocar-se como
compreendente ativo ou responsivo. Por esse ponto de vista o processo
semiótico se dá em trânsito, no processo inconcluso da comunicação onde a
mensagem está sempre por se completar pois o diálogo é dinâmico. Esse é o
núcleo da diferença que Bakhtin estabelece entre diálogo e dialética. O primeiro
se dá na vida, no mundo, na ação, ou como ele enfatiza: no ato. Já a dialética,
para o teórico, se dá “numa consciência abstrata” (1988, p. 389).

2.2.1. A perspectiva inversa

O processo dialógico proposto por Bakhtin, onde a compreensão ativa é


ação preponderante para que o sentido se faça chama a si, no campo visual, a
organização espacial da perspectiva inversa. Em tal perspectiva, o “interesse”,
isto é o ponto de fuga, deve partir do espectador, ao contrário da perspectiva
linear, através da qual o “interesse”, isto é o ponto de fuga, assenta-se como um
dado no interior da obra:

80
Perspectiva inversa: o ponto de fuga é situado “no
espectador”, no exterior do quadro.

Perspectiva linear: o ponto de fuga é situado em


profundidade, dentro do quadro86.

Notemos que ambas as perspectivas são formas artificiais de organização


do espaço plano como representação do espaço tridimensional. O artista faz uso
delas como modelos para representação do mundo visível, como conexão entre a
criação de seu trabalho artístico e o mundo que o rodeia.
Dentro da História e Teoria da Arte no Ocidente, apesar dos intensos
movimentos dos artistas para experimentar novas representações do espaço a
partir das Vanguardas (para não dizer a partir de Cèzanne), o caminho teórico
sobre a organização espacial continua se pautando, salvo algumas exceções,
pelos princípios geométricos da perspectiva linear. É o que também afirma Lev
Manovich, ao citar os fundadores da História da Arte no século XX, o austríaco
Alois Riegl (1858-1905), o suíço Heinrich Wšlfflin (1864-1945) e o alemão
Erwin Panofsky (1892-1968), cuja visão da arte se dá segundo a representação
do espaço sob o ponto de vista evolutivo. E mais, Panofsky estabelece um
paralelo entre a história da representação e a evolução do pensamento abstrato:

86
Ambos os desenhos foram copiados de:
http://www.atelier-st-andre.net/es/paginas/estetica/perspectiva.html. Acesso em: 10 jan. 2007.

81
O ensaio de Panofsky, escrito entre 1924 e 1925, tem sido reconhecido como o
primeiro de uma crescente série de interpretações da perspectiva. Essas interpretações
relacionam a perspectiva a todo conhecimento característico do período moderno:
econômico, social e filosófico. Algumas dessas interpretações adquiriram o caráter de
dogmas, verdades irrefutáveis por si mesmas. Assim, a correlação entre idéias
cartesianas da subjetividade racional na filosofia e perspectiva renascentistas nas artes
visuais têm sido apresentadas como uma das metáforas para interpretar a cultura
ocidental moderna (MANOVICH, 1993, p. 102).

Em um período próximo, sete anos antes da publicação do trabalho de


Panofsky no Ocidente, uma outra teoria foi elaborada e publicada, na Rússia,
com o nome de “Obratnaya Perspektiva” (A perspectiva Inversa), pelo Padre
Pável Floriênski que cuidou de interpretar o sistema da perspectiva linear em
oposição à perspectiva medieval ou perspectiva inversa.
O pensamento de Floriênski chega ao Ocidente tardiamente e, ainda
hoje, com raríssimas traduções do russo87. Mesmo na Rússia, suas obras
estiveram vedadas ao público até os anos sessenta do século passado
(FLORENSKI, 2005, 10)88. Suas pesquisas e teoria mantêm um diálogo intenso
e consistente com a de outros artistas e teóricos russos do período e, inclusive
vamos encontrar pensamentos que parecem se repetir, transitando do texto de
um autor a outro, como por exemplo, entre Chklóvski, Jakobson, Flavórski,
Rodtchenko e o próprio Floriênski.
Sua crítica à perspectiva linear e, portanto, às convenções herdadas do
Renascimento e tidas como parâmetros irrefutáveis na História da Arte
encontrava eco tanto nas investigações sobre a construção poética que
realizavam os teóricos russos, como nas experimentações das Vanguardas.

87
Apenas em 2002 surge a primeira versão ocidental de A perspectiva Inversa (Обратная
Лерспектива, Obratnaya Perspektiva), integrando uma compilação de textos de Floriênski,
realizada por Nicoletta Misler, em Londres e traduzida para o inglês por Wendy Salmon
(FLORENSKY, 2002). Em 2005 o texto é traduzido do russo para o espanhol e publicada na
Espanha (FLORENSKI, 2005). Lev Manovich observa, em 1993, que até então a obra de
Floriênski continuava desconhecida para os não alfabetizados na língua russa. O texto utilizado
por Manovich integra o volume STRUVE, N. A. Sobranie Sochineniy (Textos escolhidos), Paris:
YMCA-PRESS, 1985, em russo.
88
Em 1920 foram criados, em Moscou, os “Ateliês Superiores Artísticos e Técnicos do Estado”
(VKhUTEMAS, Высшие художественно-технические мастерские Vysshie
khudozhestvenno-tekhnicheskie masterskie), projeto apoiado pelo ministro Anatoli Lunácharski
(1975-1933), com o objetivo de substituir o velho sistema “acadêmico” de ensino artístico por
um novo modelo pedagógico. Dentre os estudos mais radicais, imperava a grande
heterogeneidade de pensamento sobre a pedagogia da arte. Pável Floriênski encontrava-se entre
os que buscavam articular a vanguarda e os valores tradicionais da cultura russa. Mantinha
estreitos vínculos e colaborou com os artistas russos do período (Rodtchenko, Liubov Popova,
Tátlin, dentre outros), em defesa radical da liberdade criativa. Foi condenado e morto em 1938,
depois de passar vários anos em campos de trabalhos forçados (FLORENSKI, 2005, p. 9-15).

82
O centro de interesses de Floriênski, no campo da arte era a análise do
espaço. Sua crítica segue em duas direções, primeiro discutindo a hegemonia da
perspectiva linear, enquanto único sistema de representação que deteria a
verdadeira experiência psicofísica da realidade. Em segundo lugar, questiona um
a um os fundamentos do modelo euclidiano, que se quer absoluto na
representação da visão a partir de duas hipóteses altamente inverossímeis: a
existência de um único olho ciclópico, completamente estático, com sua pupila
reduzida a um ponto infinitamente pequeno, e a projeção de sua imagem em
uma superfície perfeitamente plana; quer dizer, a pretensão de que um modelo
geométrico sofisticado possa representar, pos si só, a realidade espaço-temporal
da experiência visual (FLORENSKI, 2005, p. 13).
Floriênski defende o rompimento das correntes da perspectiva que o
Renascimento havia fundado na geometria euclidiana. Demonstrando, em sua
tese, ser falsa a possibilidade de que um único sistema geométrico possa
objetivar a experiência da realidade. Abre, ao mesmo tempo, a possibilidade de
estudos de outra perspectiva, de uma perspectiva capaz de penetrar na realidade
intangível das coisas, baseada na estrutura invisível de sua realidade metafísica:
a perspectiva inversa dos ícones russos (FLORENSKI, 2005, p. 14).
Contra a corrente que desconsiderava a inteligência medieval em um
período ao qual o senso comum denomina “idade das trevas”, e também contra
uma teoria da arte calcada na progressão histórica na arte, Floriênski mergulhou
para questionar a possível complexidade das estruturas icônicas forjadas pelo
olhar do medievo e enfatiza:

É interessante observar que os ícones cuja violação das leis da perspectiva atinge
incisivamente, foram realizados precisamente pelos maiores mestres e que os pintores
que mais se esforçaram por caminhar pelo respeito a essas mesmas regras sejam os
menos significativos, o que nos faz suspeitar que “a ingenuidade não será, na realidade,
de quem a atribui”. Por outro lado tais violações de leis são tão persistentes e comuns
que se tornam sistemáticas, o que pode indicar que talvez não sejam casuais e que,
talvez, os ícones reflitam a realidade de acordo com um sistema “especial” de
representação e percepção que lhes é próprio. […] No momento em que nasce no
espectador essa idéia também surge, e começa a fortalecer-se progressivamente, a firme
convicção de que essas infrações de leis da perspectiva linear respondem à aplicação de
um procedimento ‘consciente’ da arte de pintar ícones e que, bons ou maus, são atos
premeditados e reflexivos (FLORENSKI, 2005,. p. 23, grifo nosso).

Suas agudas observações estabelecem procedimentos “conscientes” que


caracterizam a pintura dos ícones russos, segundo a perspectiva inversa. Esses

83
procedimentos, longe de serem fortuitos ou ingênuos, norteavam-se pela
aproximação, ou melhor, interação que propunha ao espectador, inclusive
cálculos formais para alcançar maior plasticidade artística. A leitura dessas
reflexões de Floriênski nos convoca a reorganizar a sua escrita fluida em alguns
procedimentos que possam encaminhar as relações que estabeleceremos a
seguir, com o cinema e, mais especificamente com o cinema de Andriêi
Tarkóvski. Tais procedimentos, em sua forma básica são: simultaneidade de
planos, a representação de centros múltiplos e sistema de linhas potenciais.
Geralmente, todos os três concorrem em uma mesma imagem, a divisão aqui se
faz enquanto método que encaminhará identificar no cinema essas categorias
perspécticas inversas.

2.2.2. Espaços potencializados e adensamento de planos

Se observarmos os ícones russos (bem como todos os outros de tradição


bizantina, onde se inclui o grego) dos séculos do Medievo (e até o século XVI,
quando então as tradições dessa pintura eram ainda preservadas), pelo ponto de
vista da perspectiva linear, as “leis do desenho” parecem ser completamente
ignoradas: os rostos demonstram-se planificados, as arestas retilíneas (edifícios,
mesas, livros), os corpos são limitados por superfícies curvas, em ângulos que
excluem as leis da perspectiva e muitas vezes apresentam-se tortos, com
pronunciadas corcundas, as mãos por vezes exageradamente compridas.
Essa utilização de uma outra organização espacial representativa é
totalmente estranha aos ocidentais de cultura visual européia ítalocentrada.
Acostumados a terem como “certas” e “corretas” apenas as representações
realizadas através do ilusionismo da perspectiva linear, onde o ponto de vista
único central hierarquiza o todo, a observação da pintura icônica demonstra-se à
cultura ocidental, ser incorreta, ingênua e sobremaneira ignorante, senão
desdenhosa do progresso civilizatório europeu.
Os planos, no entanto, obedecem a outra ordem de organização. A ilusão
do espaço é renunciada em benefício da multiplicidade de um mundo vivente
onde o divino emana a sua luz criadora e tudo se movimenta e vibra e se mostra
de “dentro para fora”. Busca-se os estados interiores da matéria e a sua
ordenação em movimento no mundo à luz de um poder criador.

84
Os teóricos norte-americanos Michael Holquist (s.d.) e Katherine Clark
(s.d.) observam em Bakhtin, uma espécie de “teologia materialista” que pode
nos auxiliar à compreender a construção dessas figuras:

A teologia de Bakhtin também se baseia numa tradição cristã que honra o presente, o
humano, a riqueza e a complexidade da vida cotidiana. É uma tradição que não pode
compreender o desdém Paulino pelo aqui e agora, a revulsão do corpo. Na verdade, ambos os
fatores – a imediatidade da existência histórica e o respeito pela matéria – de há muito
chamavam a atenção da imaginação religiosa russa. Como observou Nicolau Zernov: ‘A
convicção fundamental da mente religiosa russa é o reconhecimento da potencial santidade da
matéria’ (HOLQUIST, CLARK, 1998, p. 107).

Da mesma maneira, na construção dos ícones o mundo terreno é


restabelecido em sua ordem primordial pela transfiguração pelo universo divino
que está vivo na matéria, nela mais presentificado, encarnado, que,
propriamente, representado.

Sejam construídos em
superfícies curvas como em
planos, via de regra, “os ícones
mostram simultaneamente
partes e superfícies impossíveis
de se ver ao mesmo tempo”
(FLORENSKI, 2005, 21).
Tratando-se de
arquitetura ou paisagem,
surgem à nossa visão diversos
ângulos, ao mesmo tempo: de
frente, de cima para baixo, de
um lado a outro. É o que
podemos notar na ilustração ao
lado.
Portão dos Tsares (detalhe) Séc. XVI. Têmpera sobre painel.
Galeria Tretiákov, Moscou, (KRENS, 2005, p. 53)

Em relação aos retratos, à representação de Cristo, da Virgem ou dos


Santos, quando observamos as partes superiores, correspondentes às têmporas,
teremos a impressão de que as orelhas desdobram-se para frente, como se

85
estivessem estendidas sobre a superfície plana do ícone, em nossa direção
(direção do espectador) e as outras partes do rosto: olhos, nariz, boca, queixo,
que normalmente estão adiante, retrocedem, são afastadas de nós (espectadores)
(FLORENSKI, 2005, 22).

Salvador Todo Poderoso, séc. XVI


Têmpera sobre madeira, prata, 30.4 x 22,8x 2,589

Também são características as corcundas ou corcovas aparentes nas


figuras inclinadas da Virgem e de São João Batista, outros Santos e Anjos que,
longe de serem “erros”, buscam mostrar simultaneamente a espádua e o peito
de um São Procópio escrevendo sob o ditado de São João Evangelista, tanto
quanto outros encontros similares de perfis e frentes, de planos frontais e
dorsais, etc. (FLORENSKI, 2005, p.22). Tais “deformidades” buscam insinuar o

89
AGUILAR, 2002, p. 213.

86
movimento, um corpo de passagem de um estado a outro em relação ao
movimento, mas nunca totalmente inerte, como que “posando” para um retrato.

ANDRIÊI RUBLIÓV, O Arcanjo Miguel


Catedral da Anunciação, Kremlin, Moscou90

No que respeita aos planos complementares, quer dizer, às linhas


paralelas que não pertencem ao plano do ícone, as quais estariam obrigadas, de
acordo com as leis da perspectiva, a convergir até a linha do horizonte, no ícone
observamos precisamente o contrário, podendo ser representadas como linhas
divergentes (FLORENSKI, 2005, 22).
Para o teólogo russo “tal arte transgressora das regras da perspectiva
linear, isentas da gramática pictórica renascentista, parecem mais cheia de vida
do que aqueles outros, que melhor satisfazem as regras dos manuais de
perspectiva, que parecem inanimados, frios” (FLORENSKI, 2005, 23).

90
http://www.wco.ru/icons/VirCat/Alt11-16/A1-L02Z0.htm. Acesso em: 12 jan. 2007

87
Santos Boris e Gleb
Primeira metade do Séc. XIV, Pskov
Galeria Tretiakov, Moscou91

2.2.3. Espaços coexistentes: centros múltiplos

Na organização espacial da pintura de ícones, fazendo uso da perspectiva


invertida, a representação de centros múltiplos faculta ao espectador a
observação da perspectiva própria de cada elemento do todo da pintura. Essa
renúncia à ilusão do espaço geométrico privilegiando-se a pluralidade de pontos
de vista permite que os olhos do espectador vagueiem libertos e elejam
diferentes centros através dos quais possam observar distintas partes de um
mesmo objeto. Algumas partes dos edifícios são desenhadas respeitando as leis
da perspectiva linear, mas cada uma pode ser contemplada a partir de seu
particular ponto de vista, ou seja, com seu particular ‘ponto de fuga’. Trata-se de

91
http://www.russianartgallery.org/oldicons/icboris.htm. Acesso em: 20 jan. 2007.

88
uma complexa construção dos ângulos de representação que se dá nas mais
diversas instâncias, inclusive nas imagens de santos, ainda que nesse caso não
não se verifique a mesma insistência que encontramos nas paisagens. Pode-se
observar, em vários casos a incidência desses desvios e pluralidade na assimetria
dos lados de um mesmo rosto, ou apenas entre os olhos, entre as duas orelhas ou
até mesmo de um canto a outro dos lábios. Esses desvios fazem com que se
considere como ‘falhas’, ‘defeitos’ ou ‘imperfeições’ do desenho o que são, na
interpretação de Floriênski, intencionalidades expressivas.
Em outras ocasiões,

as regras escolares da perspectiva são desfiadas com tanta força e valentia, se destaca
de tal modo a transgressão perpetuada, que o ícone revela à intuição do gosto artístico
tanto sobre sua natureza e seus valores pictóricos que não deixa nenhuma dúvida:
aqueles detalhes do desenho ‘incorretos’, e contraditórios entre si, representam na
realidade um complexo cálculo artístico, ao que talvez poderia nomear-se de ousado,
mas não certamente de ingênuo. (FLORENSKI, 2005, p.25).

Representação iconográfica do século XIV de Ohrid, Grécia92

Notamos nas ilustrações acima que o que está à frente aparenta ser maior
do que aquilo que está ao fundo.

92
http://www.atelier-st-andre.net/es/paginas/estetica/perspectiva.html. Acesso em: 10 jan. 2007.

89
Essa multiplicação dos centros possibilita ao espectador um deslizar dos
olhos pelos elementos visualizados perscrutando suas diferentes faces, o dentro,
o fora, ambos os lados, acima e abaixo. No entanto, aos olhos acostumados à
organização espacial segundo a perspectiva linear, tais estruturas parecem
completamente estranhas.
Podemos observar o contrário no exemplo abaixo. Trata-se de um
rigoroso exemplar da obediência à perspectiva linear central: uma pintura
renascentista na qual o ponto de fuga, centrado na pequena janela “ao fundo”,
dispondo as figuras em um espaço fechado. Tal ponto chama insistentemente a
atenção do espectador, guiando o seu olhar, para que esse “entre” no quadro
para impregnar-se da beleza do acontecimento.

FRA ANGELICO, Anunciação, 1450, Convento de São Marcos, Florença93

Observemos agora alguns detalhes. A pintura Frontal de Seriguerola,


demonstrada na ilustração seguinte, não está realizada segundo as convenções
da perspectiva linear. Dois desenhos diagramáticos apresentam duas possíveis
“correções” da perspectiva inversa para a linear. O objetivo é entendermos o
desdobramento espacial por onde os olhos deslizam para alcançar no mínimo
dois pontos de vista diversos. Demonstram também a flexibilidade desses pontos
diferentes para condensar em um mesmo plano, mais de uma possibilidade de
olhar. A pluralidade dos pontos de vista sugere, inclusive, a movimentação do
corpo do autor, ou seja, teria havido um movimento em diversos sentidos para
que fossem observados os objetos, de cima para baixo (visão aérea) e de frente
(visão frontal).

93
http://www.atelier-st-andre.net/es/paginas/estetica/perspectiva.html. Acesso em: 10 jan. 2007.

90
Frontal de Soriguerola (detalhe), c. final XIII
Museu de Arte de Catalúnia, Barcelona94

Desenho ilustrando a vista aérea.

Desenho ilustrando a vista frontal.

E não era apenas à arte russa que a perspectiva inversa se aplicava no


medievo, mas em toda a Europa ocidental. O trabalho representado abaixo é de
origem espanhola. Trata-se também de uma pintura icônica. Nela podemos

94
Essa e as duas ilustrações a seguir foram retiradas de VILASALÓ, 1991, p. 12

91
observar uma cena cotidiana onde, no interior de uma cidade vemos várias
partes do desenho que formam o todo: sabemos tratar-se de uma cidade, pelo
conjunto arquitetônico que observamos na parte superior da pintura. A maior
parte da pintura ocupa-se por apresentar o interior de um palácio onde o rei
resolve com um nobre as petições que lhe chegam por escrito. Uma jovem tece
no canto direito; algumas damas da corte, juntas, à esquerda, olham para o alto.
As mensagens escritas estão todas viradas para o espectador. O interior, onde se
dão os acontecimentos, é trazido à frente, como que destacados de um daqueles
prédios externos no alto, “ao fundo”.

Miniatura del Llibre dels Feus, 1162-1199


Arquivo de la Corona de Aragón95

95
VILASALÓ, 1991, p. 13.

92
2.2.4. Sistema de linhas potenciais

O sistema de linhas, na pintura de ícones possui uma importância que


ultrapassa o grafismo. Inscrevem-se como sistemas que tensionam forças não
visíveis no espaço. Floriênski descreve os vários tipos através dos quais são
inscritas na pintura medieval. Dentre elas, destaca a rasdelka96 que são linhas
realizadas em outra cor, diferente da do ícone no qual aplicam, na maioria dos
casos, os reflexos metálicos e brilhantes que se realizam com assistka97 de ouro
ou, menos freqüentemente, de prata.
Explica o teólogo que ao sublinhar a cor das linhas da razdelka, o pintor
de ícones objetiva chamar a atenção sobre elas, ainda que não estabeleçam
correspondência com nenhum objeto fisicamente visível, ou seja, com nenhum
sistema de linhas, como o das roupas ou dos assentos. Constituem

apenas um sistema de linhas potenciais, linhas estruturais análogas às linhas de força de


um campo elétrico ou magnético, aos sistemas de curvas equipotenciais ou isotérmicas
ou outras curvas similares. As linhas de rasdelka revelam, com maior força que suas
linhas visíveis, o esquema metafísico do objeto em questão, sua dinâmica. No entanto,
por si só são completamente invisíveis e ao traçar-se sobre o ícone, estabelecem, de
acordo com a idéia do pintor, um conjunto de objetivos que se apresentam ao olho
como aquelas linhas que este deveria seguir em sua contemplação. Essas linhas
oferecem à consciência um esquema para a reconstrução do objeto contemplado, e se
buscarmos suas bases físicas veremos que se tratam de linhas de força, em outras
palavras, de linhas de tensão: não são dobras criadas pela pressão, pois não se trata de
dobras, senão apenas de dobras possíveis ou em potência, como aquelas linhas pelas
quais passariam as dobras de haver-se formado. Traçadas sobre um plano secundário,
as linhas de separação revelam à consciência o caráter construtivo dos planos e, em
conseqüência, ao não limitarmos à contemplação passiva esses planos, contribuem para
compreender sua relação funcional com o todo, provendo-nos do necessário para
advertir com clareza que semelhantes ângulos de representação não se submetem às
exigências da perspectiva linear. (FLORENSKI, 2005, p. 28).

Por fim, Floriênski explica o contorneado do desenho, que, segundo ele,


insiste de forma extraordinária em suas particularidades, a ozivka98, o dvizok99, a

96
Rasdelka é um método de iluminação de determinadas partes do desenho para criar formas
com volume (FLORENSKI, 2005, p. 108).
97
Um preparado de seiva de alho ou de cerveja preta espessada, mesclado com pigmento
vermelho até formar uma espessa substância aderente que serve para fixar as folhas de ouro ou
de prata (FLORENSKI, 2005, p. 108).
98
“O termo poderia ser traduzido como ‘dar a vida’. Trata-se dos últimos toques de luz
aplicados preferencialmente sobre os rostos.” (FLORENSKI, 2005, p. 108).
99
“Outra técnica de claro-escuro quando os curtos traços de cores claras se aplicam sobre as
partes salientes do rosto ou partes desnudas do corpo e as que se quer dar volume”
(FLORENSKI, 2005, p. 108).

93
probelka100 e a otmetka101, com as quais se ressaltam os volumes, acentuando
com elas todas aquelas irregularidades que deveriam passar despercebidas.
Sobre essas “irregularidades” ou possíveis “defeitos”, assim julgados quando os
paradigmas são os da perspectiva linear, afirma Floriênski:

Suponhamos, no entanto, que o fato é suficiente para recordar a quem tenha


contemplado alguma vez um ícone todo um conjunto de impressões que demonstram
que estas divergências de leis da perspectiva não são casuais e, o que é mais
importante, o esteticamente frutífero de semelhantes violações” (FLORENSKI, 2005,
p. 28).

A Transfiguração, c. 1400 ANDRIÊI RUBLIÓV, A Trindade, c. 1411 a 1422


Museu Russo do Estado, São Petersburgo102 Tretiákov, Moscou103

100
“Técnica de claro-escuro que, para clarear uma superfície colorida, emprega sobre ela a
mesma cor mesclada com branco. Realiza-se em várias etapas aumentando a proporção de
branco na medida em que se reduz a superfície que se vai iluminando.” (FLORENSKI, 2005, p.
108).
101
“O último golpe de luz sobre uma superfície já iluminada que se realiza com um branco
puro” (FLORENSKI, 2005, p. 108).
102
http://www.russianartgallery.org/oldicons/ictransf.htm. Acesso: 10 jan. 2007.
103
http://www.russianartgallery.org/oldicons/ictrinity.htm. Acesso: 11 jan. 2007.

94
2.3. Os signos domesticados (ou não)

Da realidade ao quadro, no sentido de similitude, não se estende ponte alguma,


apenas uma abertura através da qual cruza primeiro a mente criadora do artista e,
logo, a mente de quem reproduz criativamente em si o quadro.
Florenski104

2.3.1. A encenação da realidade

Para pensar a perspectiva linear Floriênski foi buscar as suas raízes


históricas. Seu esforço por descortinar outros modelos de visão de mundo o faz
retroceder no tempo, até o quinto século antes de Cristo. Esse é um século que
lhe esclarece sobre os princípios que teriam norteado a criação (e a utilidade) da
perspectiva linear; o lugar onde se dá é a cena, ou seja, o teatro grego.
Consideramos relevante a transcrição, apesar de longa, do trecho no qual o
filósofo descreve e interpreta as origens da perspectiva linear. Esse trecho é
bastante elucidativo para a compreensão de sua argumentação posterior105.

Notemos que foi precisamente Anaxágoras – o mesmo Anaxágoras que tentara


converter em pedras incandescentes aquelas deidades por excelência vivas, o Sol e a
Lua, para substituir a divina criação do mundo pelo vórtice do qual surgiram os astros –
a quem atribui Vitrúvio a invenção da perspectiva quando fala do que se constituía,
para os antigos, a scaenografia, quer dizer, a pintura dos cenários teatrais. Segundo
relato de Vitrúvio, Anaxágoras e Demócrito decidiram estudar cientificamente a pintura
dos cenários, cerca do ano 470 a.C., quando Ésquilo já encenava em Atenas suas
tragédias e o famoso Agafarco fazia para ele os cenários, sobre os quais havia escrito,
inclusive, um tratado, o Commentarius.
[…] A questão que se colocavam era como deviam ser traçadas as linhas sobre um
plano para que, adotando um ponto central determinado, os raios que se dirigem até ele,
correspondam com os raios provindos do olho de alguém que ocupe o mesmo lugar dos
pontos correspondentes de um edifício, de tal modo que a imagem que projete o objeto
sobre a retina, falando em nossos termos, coincida plenamente com a imagem do
cenário que representa dito objeto.
[…] O objetivo da pintura não é duplicar a realidade, senão oferecer uma compreensão
mais profunda de sua arquitetura, de seu material e de seu sentido; e a concepção desse
sentido, desse material da realidade, de sua arquitetura, apenas se faz possível com a
contemplação do pintor através do contato vivo com a realidade, compenetrando-se
com ela, sentindo-a. Já o cenário teatral não há essa preocupação e sim a pretensão, na
medida do possível, de substituir a realidade pela sua aparência.
[…] O cenário é um engano, ainda que seja belo. A pintura pura, por sua vez é, ou
pretende ser, em primeiro lugar, a verdade da vida, sem substituí-la, buscando nela a

104
2005, p. 91.
105
Também pesou em nossa decisão por inserir tão longa citação o fato de sua obra ser de difícil
acesso em função da escassez de traduções e publicações e, assim ter sido pouco divulgada e
discutida no Ocidente.

95
sua realidade mais profunda [e não aparente]... Para as mentes racionais de Anaxágoras
e Demócrito, as artes plásticas não podiam ser símbolo da realidade, mas tampouco era
necessário: como para qualquer ´peredviznichestvo’106 do pensamento – se nos permite
converter em categoria histórica esse pequeno fenômeno da vida russa -, ao qual se
pedia conhecer não a verdade da vida, que permite o acesso ao conhecimento profundo,
senão o pragmatismo do parecido externo, útil para desenvolver-se nas ações vitais
mais imediatas; não as bases criativas da vida, senão as imitações da superfície vital.
Anteriormente o cenário grego apenas se decorava com ‘pinturas e telas’, mas agora
começava a sentir a necessidade da ilusão. Desse modo, suponhamos que o espectador
ou o pintor de cenários se encontrasse fechado no teatro como o cativo da caverna
platônica, impossibilitado de ter acesso direto e imediato à realidade, como se uma
barreira de cristal o separasse da cena, existindo apenas um olho imóvel e observador,
incapaz portanto de penetrar na essência da vida e, o que é mais importante, com a
vontade paralisada, já que na essência do teatro está a exigência de olhar o cenário sem
vontade, como se faz com algo que ‘não é verdade’, que ‘não é realidade’, como um
engano vazio. Esses primeiros teóricos da perspectiva nos oferecem então as normas do
perpétuo engano do espectador teatral. Anaxágoras e Demócrito substituem o homem
vivo pelo espectador envenenado com curare, aclarando assim as regras do engano que
sofre esse tipo de espectador. Não é necessário impugná-lo; para o momento,
aceitaremos que para a ilusão óptica de nosso enfermo, privado da vida comum com os
demais seres humanos, semelhante prática de representação perspectiva tem um sentido
(FLORENSKI, 2005, p. 31-35).

Certo é que desde o século V a.C. era conhecida a perspectiva.


Acrescenta o filósofo:

A raiz da perspectiva se encontra no teatro não apenas por razão histórico-técnica de


que foi o teatro o primeiro a necessitar da perspectiva, senão também por um impulso
mais profundo: a teatralidade mesma da representação perspéctica do mundo
(FLORENSKI, 2005, p. 35).

A substituição da realidade por sua aparência se estenderia século afora,


não apenas no teatro, não apenas na arte, mas nos meios de comunicação em
geral, até o século XXI. Para esse estudo é importante delimitar essa realidade
encenada, como prática adotada pelo Realismo Socialista.

2.3.2. A realidade encenada na União Soviética segundo Chostakóvitch

Em seu apogeu essa encenação exacerbou-se, na União Soviética, no


período pós-guerra. Stálin, então chefe soberano e seguro de sua vitória sobre
Adolph Hitler (1889-1945), passara, com grande entusiasmo, a valorizar o
cinema como a maior das mídias publicitárias a favor de si mesmo. Tratava-se
de dar seguimento ao processo de culto à personalidade, que já se desenvolvia

106
Literalmente “os que se movem de um lado a outro, os itinerantes. [...] Nome próprio do
movimento do realismo russo nascido na década de 1870.” (FLORENSKI, 2005, P. 109).

96
desde Lênin, mas que encontrou em Stálin o seu ápice. E é nesse período, até o
final dos anos 1960, que o cinema russo passaria também por uma espécie de
obscurantismo, quando todas as experimentações de linguagem e liberdade
criativa seriam esmagadas. Datam dessa fase as grandes retratações públicas
exigidas do compositor Dmítri Chostakóvitch (1906-1975) e do cineasta
Serguiêi Eisenstein (1898-1948).
O episódio de retratação relativo a Chostakóvitch ocorreu da seguinte
forma: Stálin havia lhe encomendado uma sinfonia para comemorar a vitória
sobre Hitler. O músico, cuja sétima sinfonia (Leningrado), feita em 1941,
tornara-se o hino popular russo durante a guerra, compôs a nona sinfonia, porém
em total desalinho às convenções que se esperavam fossem cumpridas, tratando-
se de uma sinfonia em comemoração a uma grande vitória. Sobre essa
composição Chostakóvitch assumiu previamente o risco, segundo sua
afirmação: “Stálin estava furioso porque a minha sinfonia [a nona] não tinha
qualquer ode, qualquer apoteose, sequer uma mísera dedicatória e minha
impertinência me custaria caro107.”
E assim foi. Junto aos músicos Nicolai Miaskóvski (1881-1950),
Serguiêi Prokofiev (1891-1953), Vissarion Shebalin (1902-1963), Gavriil Popov
(1904-1972) e Aram Katchaturian (1903-1978), Chostakóvitch foi acusado de
“formalismo”. Os artistas tinham um único dever a cumprir:

A Resolução do Comitê Central do Partido108 nos obriga a obedecer as demandas do


povo soviético sobre a atividade criativa musical. Nosso dever consiste em mobilizar as
nossas forças criativas, e responder ao chamado de nosso grande líder, o camarada
Stálin109.

Esse foi o Pronunciamento do músico Thikon Khriennikov (1913-),


então secretário da União dos Compositores, ao repreender os músicos
penalizados em sessão pública.
Chostakóvitch foi afastado do Conservatório de Moscou, onde lecionava
há mais de dez anos. Logo após, ainda em 1948, compôs uma ópera onde o seu
sarcasmo deu lugar à sátira Rayok. Nela satiriza Suliko, canção popular preferida
de Stálin, levando ao ridículo a postura da censura diante de qualquer realização

107
WEINSTEIN, Shostakovich against Stalin, 2005, 00:54:26 a 00:54:39 h.
108
Khriennikov refere-se ao Decreto Jdánov, emitido em fevereiro de 1948 desqualificando e
condenando muitos compositores soviéticos. Cabia à União dos Compositores a exortar
publicamente os músicos a formularem arrependimentos públicos.
109
WEINSTEIN, Shostakovich against Stalin, 2005, 00:55:53 a 00:56:04 h.

97
que não estivesse de acordo com as normas impostas. Em Rayok, as personagens
de Stálin, Jdánov110 e um burocrata cantam:

Stálin:
Camaradas, os compositores do povo
Sempre escrevem música realista
Enquanto os compositores
Contrários ao povo
Sempre escrevem música formalista.
Devemos proibir
Estes duvidosos experimentos
No campo da música formalista.

Jdánov:
Nas óperas caucásicas111,
Lezghinka deve ser veemente,
Popular e genuinamente caucásico.
Deve ser autêntico, sempre autêntico,
E apenas autêntico. Sim, sim, sim, autêntico.

Burocrata:
Isso é o que eu chamo
Um discurso científico,
Repleto de idéias profundas!112

As ilustrações a seguir reproduzem dois frames da ópera Rayok,


destacando as duas principais personagens. A montagem data de 2005.

CHOSTAKÓVITCH, Dmítri. Rayok, 1948113 CHOSTAKÓVITCH, Dmítri. Rayok, 1948


A personagem Stálin A personagem Jdánov

Embora satíricas, as palavras proferidas em “cena”, no curso da ópera,


criticavam a também “encenação” que o Estado determinava para a realização
das artes e o conteúdo “científico”, ou seja, na visão de Chostakóvitch o
“cientificismo” e a “objetividade” exigidos dos artistas encobriam um discurso

110
Andriêi Jdánov (1896-1948) era então Secretário do Comitê Central do Partido Comunista na
União Soviética.
111
Chostakóvitch referia-se à origem de Stálin, natural da Geórgia, um dos países que ficam na
cordilheira do Cáucaso. Suliko é uma canção folclórica georgiana.
112
In WEINSTEIN, Shostakovich against Stalin, 2005, 01:00:57 a 01:03:10 h.
113
In WEINSTEIN, Shostakovich against Stalin, 2005, 01:01:25 e 01:03:02 h. Kirov Orchestra,
dirigida por Valeri Gergiev.

98
altamente subjetivo que exaltava os gostos particulares do líder máximo do
Partido e seus acólitos.

2.3.3. A realidade encenada na União Soviética segundo Eisenstein

Examinemos agora, de forma breve, como se deu a censura a


Eisenstein114. Em meados da década de 1940, o governo stalinista iniciara um
período de exaltação dos feitos dos grandes heróis russos, dentre eles o tsar
russo, Ivan IV, o Terrível (1533 – 1584), responsável pela unificação da Rússia
e expulsão sumária de todo e qualquer inimigo da terra russa. Aí se incluíam
tanto os mongóis, os alemães, os poloneses, como russos descontentes com o regime
e os boiardos, nobreza russa corrupta que, segundo a história, loteava a terra russa aos
estrangeiros que mais pagassem. Ivan dizimara a todos em nome da pátria mãe e da
manutenção de sua coroa. Exemplo bastante adequado para integrar um conjunto de
iniciativas de Stálin para fortalecer o seu governo e construir a sua imagem de líder
soviético máximo, prática que ficou conhecida como culto à personalidade. O próprio
Stálin freqüentemente mencionava a figura do primeiro tsar em seus discursos, como
exemplo a ser seguido para manutenção do poder.
Nesse período (início dos anos 1940) Eisenstein era um dos cineastas
mais respeitados mundialmente. Em plena maturidade, seu excepcional
currículo somava produções revolucionárias como cineasta, teórico e professor.
Trabalhando em um estúdio isolado na Ásia Central, exclusivamente
montado pela Mosfilm, no período em que os nazistas invadiam Moscou,
Eisenstein realizou a primeira parte de Ivan, o Terrível, pelo qual, em 1946
recebeu o Prêmio Stálin. O mesmo sucesso, porém, não alcançaria a segunda
parte de Ivan, cuja exibição o cineasta não pode ver pois deu-se apenas no
governo de Nikita Khruchióv (1894-1971), em 1958, dez anos após a morte de
Eisenstein, em Moscou (SETON, 1986, p. 388-456).
Em setembro de 1946, a resolução do Comitê Central do Partido Comunista
censurava a película de Eisenstein e mais três: A grande vida, de Leonid Lúkov
(1909-1963), Gente Simples de Grígori Kózintziev (1905-1973) e Ilia Tráuberg

114
Para maiores detalhes sugerimos a consulta a Sergei M. Eisenstein, una biografia de Mary
Seton, que consta em nossa bibliografia. Trata-se de uma das mais bem cuidadas biografias do
cineasta.

99
(1905-1948) e Almirante Najimov, de Vsievolód Pudóvkin (1893-1953). Para cada
um o órgão censor soviético deixará anotado o seu parecer. Em relação a Eisenstein:

O produtor S. Eisenstein, na segunda parte do filme Ivan, o Terrível, deixou entrever


sua ignorância dos fatos históricos ao mostrar os guardas progressistas de Ivan como
um bando de degenerados, similares à Ku Klux Klan, e ao próprio Ivan, homem de
forte vontade e caráter, como débil e indeciso, um pouco como Hamlet115... (SETON,
1986, p. 438).

Eisenstein, por sua vez, ainda restabelecendo-se de um colapso cardíaco


que sofrera no início do mesmo ano, publicou uma longa retratação onde
reafirmava sua fidelidade ao aos dirigentes soviéticos. São suas as palavras:
“Devemos subordinar plenamente nossas criações ao interesse da educação do
povo soviético, especialmente a juventude, e não nos apartarmos um instante de
tal objetivo” (SETON, 1986, p. 439). E continuava:

Devemos dominar o método Lênin-Stálin para a percepção da verdadeira vida e a


história, até um grau tão completo e profundo que nos permita superar todos os
resíduos e restos de antigas idéias, que ainda que tenham sido proscritas de nossas
consciências durante largo tempo, intentam obstinada e maliciosamente infiltrar-se em
nossas obras, tão logo nossa vigilância criativa se debilite um só momento.
Esta é uma garantia de que nosso cinema será capaz de eliminar todos os fracassos e
erros, ideológicos e artísticos, que são uma pesada carga sobre nossa arte no primeiro
ano do pós-guerra. É uma garantia de que no futuro próximo haveremos de criar
novamente filmes artísticos e sumamente ideológicos, dignos da época de Stálin
(SETON, 1986, p. 439).

2.3.4. Realismo por intervenção e realismo por domesticação

Não é difícil entendermos a repreensão sofrida por Eisenstein se


observarmos a produção ovacionada por Stálin no mesmo período. Vejamos
algumas características de um outro filme do mesmo período. Trata-se de A
Queda de Berlim, realizado em 1949 pelo diretor de cinema Mikhail Chiaureli
(1894-1974) para comemorar a vitória dos russos sobre os alemães. Esse filme
glorificava direta e inquestionavelmente a Stálin através de quem o povo russo
alcançara, segundo ele próprio, a vitória. Esse, de todos, era o principal ponto: a
reflexão do líder na personagem. Em A Queda de Berlim é o próprio Stálin o

115
O crítico russo Aleksei Bartochiévitch afirma que por mais de vinte anos (de 1932 a 1954)
Hamlet não foi apresentada na União Soviética (http://archive.1september.ru/eng/2001/16/2.htm.
Acesso em: 10 jan 2007). Lembremos da primeira advertência sofrida por Chostakóvitch, em
1938. O objeto da advertência fora uma ópera que ele realizara segundo texto homônimo do
escritor russo Nikolái Liéskov (1831-1895), Lady Macbeth de la provincia de Mtsensk (1865),
também conhecida como Katierina Ismailova, de inspiração nitidamente shakespeareana. O que
mais enfurecera Stálin, nessa peça, teria sido justamente a morte do tirano por Lady Macbeth
(WEINSTEIN, Shostakovich against Stalin).

100
retratado; sua figura caracterizada como altiva e soberana está diante do povo
disposto a morrer por ele. Esperava-se que em Ivan, o Terrível, o retrato
cinematográfico do tsar russo Ivan, cantado pela história como o mais temível e
o mais adorado pelo povo russo, refletisse o poder e a glória de Stálin.
Enquanto no primeiro filme a figura gloriosa aparece invariavelmente em
primeiro plano, diante de um povo inquestionavelmente fanatizado por sua
presença e de grandes cartazes reproduzindo o seu retrato, elevando ao
pleonasmo o espelhamento de sua figura idolatrada, um deus; Eisenstein opta
pela humanidade do tsar, retratando-o como uma figura conturbada pelas dores
humanas, um anti-herói que sofre diante de objetivos que se auto-impôs e das
questões de sua própria existência.
Chiaureli enfatiza a veneração do povo russo quando da chegada de Stálin a
Berlim. É uma verdadeira apoteose. Stálin chega do céu (este é mostrado
anteriormente, com alguns aviões deslizando no espaço aéreo onde está o chefe
supremo), como um enviado divino, a música também é retumbante e gloriosa116, o
povo aguarda-o ansioso, agitando bandeiras e retratos gigantes de Stálin117. Enquanto
a postura do líder é altiva e complacente para com o seu povo, as expressões desse
são de absoluta devoção e gratidão. Sua força, coragem, bravura, a supremacia,
através das imagens e dos sons é inquestionável.
O mesmo não se pode dizer de Ivan, que a História imortalizou como o
Terrível. Eisenstein confere ao tsar a mais odiada característica da qual uma
personagem poderia se revestir: o anti-heroísmo. Tal se evidencia principalmente no
episódio no qual Ivan encontra o seu velho amigo e príncipe, agora primaz da Igreja,
diante de quem se humilha implorando amizade, compreensão e afeto. Ivan chegou
ao ápice do poder terreno, como “Tsar de todas as Rússias”, mas encontra-se
absolutamente só. É a figura soberana do Rei diante da Igreja, um anátema que Stálin
não poderia suportar. Um espelho que refletisse a sua outra face? Imperdoável. Stálin
não poderia admitir um tsar retratado como um humano hesitante e fragilizado e
mais, sentado no chão aos pés de um padre, arrastando-se no nível do solo terreno?
Eisenstein ousara demais. O conjunto de frames abaixo impresso refere-se às
seqüências discutidas, em ambos os filmes, de Chiaureli e Eisenstein.

116
Após a humilhação pública de Chostakóvitch, Stálin ordenou-lhe a composição dessa
apoteose.
117
Entre os retratos há um de Lênin. Até o final de seu governo Stálin, astuciosamente, sempre
associará a sua imagem à imagem de Lênin.

101
CHIAURELI, A Queda de Berlim118 EISENSTEIN, Ivan, o Terrível, Parte II
01:04:36 a 01:06:57 h 00:12:43 a 00:20:41 h

118
Fragmento retirado de 118 WEINSTEIN, Shostakovich against Stalin, 2005.

102
Seguindo o raciocínio de Floriênski, traçado anteriormente, a realidade
proposta pelo Realismo Socialista e observada através da análise de A Queda de
Berlim encontrava no cinema a mídia perfeita para sua teatralização. Mas
aparentemente existem cenários e encenações mais adequados que outros, ou
melhor, que se adequam melhor que outros ao Realismo Socialista e daí
retomamos a primeira epígrafe dessa tese, de Dostoiévski: “Sou um realista, no
sentido superior”. Se superior, ou inferior, estamos vendo que depende do ponto
de vista. Primeiramente existem “realismos” diversos, dependendo dos modelos
que se formulam para conectar a arte ao mundo visível, para organizar uma
visão de mundo. Conforme anotado por Floriênski e, sintetizando em parte, o
exposto de seu pensamento até aqui:

A representação é um signo, qualquer representação sempre o é, tanto se é perspectiva


como se não é, e as imagens artísticas diferem entre si não porque umas são simbólicas
e outras supostamente naturalistas, senão porque, sendo tanto umas como outras não-
naturalistas, são, por sua essência, signos de distintos aspectos da coisa, de distintas
percepções do mundo de distintos graus de sínteses (FLORENSKI, 2005, p. 82).

Em segundo lugar, o Realismo Socialista direcionava-se por


determinadas ambigüidades: dizia-se objetivo quando na verdade era orientado
pela vontade altamente subjetiva do líder que se torna “objetiva” por força de
decretos e terror. Revela-se nesse caso, um ponto de vista único, um centro,
através do qual toda a realização artística deve convergir. Em terceiro lugar cria-
se uma aparência e dá-se a ela o nome de realidade e ordena-se, sob pena de
morte, que todos acreditem. Por fim, passado um tempo, as pessoas perdem a
consciência de que a realidade não é a realidade e sim aparência e passam a crer
que a aparência é que é de fato realidade.
Fenômeno estésico, como já observado no início dessa, o Realismo
Socialista, a partir da visão de Floriênski, seria uma espécie de síndrome da
caverna platônica através do obscurecimento do mundo visível. Por uma visão
complementar, Vilém Flusser, ao pensar uma filosofia da técnica, afirma: “As
imagens são códigos que traduzem eventos em situações, processos em cenas
[…] elas substituem eventos por cenas” (FLUSSER, 1998, p. 29). E acrescenta:

O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver o


mundo em função de imagens. Cessa de decifrar as cenas da imagem como significados
do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como um conjunto de cenas
(FLUSSER, 1998, p. 29).

103
Por outro lado, a visão de mundo obtida através da “organização espacial
inversa” tende a oferecer significados originalmente mutantes disponibilizados à
compreensão ativa e responsiva do espectador. Originalmente, pois foram
previamente construídos pelo artista. Assim como citado na epígrafe que abre
esse: “Da realidade ao quadro, no sentido de similitude, não se estende ponte
alguma, apenas uma abertura através da qual cruza primeiro a mente criadora do
artista e, logo, a mente de quem reproduz criativamente em si o quadro”
(FLORENSKI, 2005, p. 91).
Não sendo matéria acabada, estática, a grande obra (no sentido
bakhtiniano) em seu dinamismo, instaura novas e mutáveis possibilidades de
sentido. As mensagens estão continuamente em aberto, em busca da autonomia
do espectador, de seu potencial criativo, de sua atividade, ou, recorrendo
novamente a Bakhtin, à sua respondibilidade.

2.3.5. A perspectiva inversa como intervenção

Como o cinema poderia apropriar-se do conceito de perspectiva inversa


sendo ele mesmo uma arte óptica, inscrita desde o início no universo da
perspectiva linear, do fotográfico?
Ao pensar o espaço cinematográfico, afirma Chklóvski: “o espaço
cinematográfico é convencional, ainda que o percebamos como espaço real”
(SKLOVSKI, 1971, p. 87). Porém, foi seguindo as primeiras experimentações
que levariam a imagem fotográfica para a imagem cinematográfica que as
Vanguardas romperam com a perspectiva convencional em seus trabalhos,
desestabilizando o olhar do espectador e a noção de espaço linear.
Tracemos brevemente um caminho, também inverso, para introduzir o
uso da perspectiva inversa como procedimento no cinema e, mais
especificamente, no cinema de Andriêi Tarkóvski. Caminho inverso porque será
novamente através de Pável Floriênski, que buscaremos algumas das
construções pictóricas do Renascimento para verificar a associação entre uma e
outra perspectiva que são, conforme vimos, modelos, construções possíveis de
visões de mundo e não sistemas fechados em si mesmos.
Partindo do princípio que a arte é transgressora, Floriênski vai considerar que
artistas como Leonardo da Vinci e Albert Dürer, ainda que teorizassem sobre “os

104
segredos da perspectiva”, muitas vezes abandonaram-se à intuição artística e,
relevando a representação rigorosamente perspéctica do mundo, passaram a cometer
toda a sorte de “erros” ou “faltas”, transgredindo as regras impostas pela geometria
projetiva, ou seja, conhecedores de que a geometria era a descrição de um espaço
puramente mental, intelectual, transgrediram-na (FLORENSKI, 2005, p. 55).
O filósofo russo analisa as transgressões de Dürer ao pintar o díptico Os
quatro apóstolos, apontando para o desvio de proporções que o pintor provoca na
cabeça das figuras dos apóstolos, o que pode ser visto na próxima ilustração. Diz ele:

Neste díptico as cabeças das duas figuras que se encontram atrás são maiores que as
que estão à frente, com o que conserva o mesmo caráter plano de um relevo grego. De
acordo com a justificada observação do historiador de arte [Franz Kügler] “é óbvio que
nos encontramos diante da perspectiva invertida, segundo a qual os objetos que estão
atrás se representam maiores que os que estão em primeiro plano” (FLORENSKI,
2005, p. 72).

ALBERT DURER, Os quatro apóstolos, 1526


Alte Pinakothek, Munique119

119
http://www.pinakothek.de/alte-
pinakothek/sammlung/kuenstler/kuenstler_inc.php?inc=bild&which=7614. Acesso em: 20 jan.
2007.

105
Sigamos agora algumas anotações de Floriênski sobre A Santa Ceia de
Leonardo da Vinci (ilustração abaixo), um dos pintores ocidentais mais
apreciados por Andriêi Tarkóvski.

LEONARDO DA VINCI, A última ceia 1495-1498 Convento de


120
Santa Maria delle Grazie, Milão. 460 x 880cm

Em relação ao uso da perspectiva linear Floriênski faz as seguintes


observações:

não é mais que o prolongamento do espaço do lugar onde nos encontramos; nosso
olhar, e junto a ele todo o nosso ser, é absorvido por essa perspectiva que marca a
profundidade e que conduz até o olho do personagem principal; o que vemos não é uma
realidade, nos encontramos diante de um fenômeno visual; espiamos como que através
de uma fresta, com fria curiosidade, sem experimentar veneração nem pena, nem muito
menos o pathos da distância e, por fim, nesse cenário reinam as leis do espaço kantiano
e da mecânica newtoniana (FLORENSKI, 2005, p. 56 – 57).

No entanto, adverte, “se fosse apenas isso não estaríamos diante de A


Última Ceia, de Leonardo da Vinci”. Pois, da Vinci demonstra o valor do que
acontece através de sua transgressão à escala, violando assim as regras da
perspectiva:

Uma simples conferência nas medidas mostraria que o local tem de altura apenas o
dobro da estatura de um corpo humano e o triplo de largura, de modo que o lugar em
absoluto corresponde nem ao número de pessoas que o ocupam, nem à magnitude do
acontecimento. No entanto, não parece que o espaço estreito confere à representação
uma intensidade dramática e uma sensação de plenitude. Imperceptível, mas
acertadamente, o mestre recorreu à violação da perspectiva, bem conhecida desde os

120
http://milano.arounder.com/da_vinci_last_supper/fullscreen.html. Acesso em: 20 jan. 2007.

106
tempos egípcios: o emprego de distintas unidades de medida para os personagens e para
o entrono da cena e, havendo reduzido sua escala de maneira distinta segundo diversas
direções, magnifica-se as personagens, dotando o que era uma cena modesta de
despedida, de valor de um acontecimento histórico universal; mais que isso: o centro da
história (FLORENSKI, p. 57-58).

Notemos, no detalhe que realizamos na ilustração abaixo, a linha


invisivelmente traçada e o posicionamento de cada um dos doze apóstolos
sentados à mesa. A tensão se explicita claramente nessa organização horizontal
das figuras; tensão que é sublinhada pela linha que, com grande sutileza inscreve
o movimento atento de cada uma das figuras, dirigindo o foco de interesse para
a figura central do Cristo.

LEONARDO DA VINCI, A última ceia detalhe, 1495-1498


Convento de Santa Maria delle Grazie, Milão. 460 x 880cm121

Conforme observa o pesquisador espanhol Vilasaló (s.d.), da Vinci era


da opinião que o artista devia trabalhar mais com os olhos, com sua mente e
com suas mãos do que com a geometria (VILASALÓ, 1991, p. 24). E era um
praticante convicto dessa sua teoria. Observemos o estudo que o mestre realizou
para a Adoração dos Magos e a pintura final. As alterações que da Vinci
provoca na passagem entre os estudos e a pintura final (inacabada) são várias.
O estudo refere-se ao fundo da pintura final. Podemos notar que
Leonardo realizou um estudo minucioso da perspectiva para a hora de pintar,
fazer correções “mentais” para alcançar, inclusive, o que ele denominava
“atmosfera”, referindo-se não ao estado de espírito das personagens pintadas,
mas ao “espaço que existe e circula entre os objetos, as personagens, as
paisagens” (VILASALÓ, 1991, p. 24). Eram cuidados que o pintor tomava, para
não se perder pelos caminhos da geometria.

121
http://milano.arounder.com/da_vinci_last_supper/fullscreen.html. Acesso em: 20 jan. 2007.

107
LEONARDO DA VINCI, Adoração dos Magos, estudo 1481-1482
122
Galeria degli Uffizi, Florença

LEONARDO DA VINCI, Adoração dos Magos, 1481-1482


123
246 x 243 cm Galeria degli Uffizi, Florença

122
http://www.loc.gov/today/pr/images/davinci_drawing.jpg Acesso em: 12 jan. 2007
123

http://www.italianstay.com/italyinformation/cities/florence/uffizi/leonardo_adorationmagi.htm
Acesso em: 12 jan. 2007.

108
Floriênski destaca que não são apenas os temas sacros que requerem na
arte a transgressão da perspectiva linear. Toma como exemplo Paisagem
flamenga (1632-1634) do pintor flamengo Peter Paul Rubens, sobre o qual faz o
seguinte comentário:

[…]a zona intermediária está construída de forma aproximadamente perspectiva, e seu


espaço nos absorve até o interior, no entanto as laterais são inversamente perspectivas,
expulsando seu espaço do olhar do espectador. O resultado é que emergem dois
potentes redemoinhos visuais que ocupam maravilhosamente um tema profano”
(FLORENSKI, 2005, p. 64).

PETER PAUL RUBENS, Paisagem, 1632-1634


124
Galeria Palatina, Palazzo Pitti, Florença

Porém é no pintor italiano renascentista Michelangelo Buonarroti (1475-


1564), que Floriênski vai encontrar uma organização espacial largamente
conectada com a visão de mundo oferecida pela perspectiva invertida. E isso se
dá, justamente quando o filósofo russo analisa o tratamento espacial em A
conversão do apóstolo Paulo, cuja ilustração pode ser vista a seguir. Diz
Floriênski:

124
http://www.abcgallery.com/R/rubens/rubens77.html. Acesso em: 13 jan. 2007

109
[...] o fresco mostra uma espécie de superfície inclinada: quanto mais alto se encontra o
ponto na composição, tanto mais longo do espectador está a imagem representada nele. Em
conseqüência, dada a diminuição perspectiva, à medida que elevamos a vista, o olho deveria
encontrar-se com figuras cada vez menores, o que se comprova à medida que as figuras
inferiores se interpõem às superiores. No entanto por suas dimensões, o tamanho das figuras
aumenta à medida que ascendem na composição, quer dizer, à medida que se distanciam do
espectador. Tal é a característica daquele espaço espiritual: quanto mais longe maior é, e quanto
mais próximo, menor resulta. Esta é uma característica básica da perspectiva invertida. Uma
vez reconhecida, e consequentemente traçada, começamos a sentir nossa plena
incomensurabilidade com o espaço do fresco. Não nos introduzimos neste espaço; ao contrário,
este nos expulsa como um mar de mercúrio expulsaria nosso corpo. Ainda que vivendo na época
do barroco, Michelangelo foi, em relação com o passado, ou mesmo com o futuro, um homem
da Idade Média, contemporâneo e, ao mesmo tempo, não contemporâneo de Leonardo
(FLORENSKI, 2005, p. 64).

MICHELANGELO BUONARROTI, A conversão de São Paulo, 1542-1245.


125
Capela Paulina, Vaticano, Roma .

Floriênski aponta para o uso simultâneo dos dois espaços na pintura, do


perspectivo linear e do perspectivo inverso - e não para a exclusão de um ou de
outro. Seguindo esse raciocínio passaremos a encaminhar a discussão do cinema
de Andriêi Arsiénievitch Tarkóvski a seguir.

125
http://www.christusrex.org/www1/citta/P-Saul.jpg. Acesso em: 20 jan. 2007.

110
3. A PRODUÇÃO DE UM CINEMA:
OS SETE LONGAS-METRAGENS DE ANDRIÊI TARKÓVSKI

111
3.1. Um cineasta na União Soviética126

Para dirigir um filme na União Soviética, no período em que Tarkóvski


realizou o seu cinema, o cineasta soviético deveria necessariamente ser
diplomado pela escola de cinema (a mais célebre delas é a VGIK de Moscou, na
qual lecionaram professores como Serguiêi Eisenstein e Mikhail Romm, sendo
que esse último foi o professor orientador de Andriêi Tarkóvski). O filme teria
obrigatoriamente que ser aprovado por um Estúdio de Produção. Cada república
da União Soviética tinha o seu próprio estúdio. A Rússia possuía três, em
cidades diferentes: em Moscou, em Leningrado e outro em Gorki. Cada um
desses estúdios poderia conter várias Unidades de Produção. O estúdio de
Moscou, nomeado Mosfilm, que foi onde Tarkóvski realizou os seus curtas-
metragens enquanto estudante e os cinco longas russos (A Infância de Ivan,
Andriêi Rublióv, Solaris, Espelho e Stalker) possuía seis Unidades de Produção.
Uma vez diplomado, o estudante recebia o título de “diretor de cinema” e
passaria a pertencer à sua comunidade de classe, a dos “diretores de cinema”. O
trabalho do diretor de cinema começava pelo envio da proposta sinóptica do
filme pretendido a uma das Unidades de Produção. Uma vez aceita a sinopse
pela comissão competente, o diretor poderia redigir o roteiro. Quando esse
estivesse pronto seria remetido à Unidade de Produção novamente. Essa, por sua
vez, encaminhava o roteiro para o diretor do Estúdio e o seu diretor artístico,
bem como ao Goskino. O Goskino era o comitê do Estado para o cinema. Seu
presidente tinha a equivalência de ministro de Estado. Desde a famosa frase de
Lênin, pronunciada em 1922: “De todas as artes, o cinema é a mais importante”
(KENEZ, 1998, p. 27), o cinema não estava mais vinculado ao Ministério da
Cultura, mas dispunha de uma estrutura independente e com equivalência
política ao ministério. O Goskino administrava todas as atividades ligadas à
indústria do cinema (da concepção artística, passando pelos programas de ensino
nas escolas de cinema, até a distribuição do filme acabado, o que incluía a
classificação para a melhor ou pior sala destinada à exibição e a permissão para
o filme ser exibido no exterior) e todas as suas decisões eram controladas pela

126
As informações dessa pequena introdução, cuja referência bibliográfica não esteja assinalada,
foram extraídas do avant-propos de Charles de Brants de Ouevres cinématographiques complete
(bibliografia anexa).

112
KGB (Comitê Central de Segurança)127 e pelo Departamento de Cultura do
Comitê Central do Partido Comunista. O Goskino foi fundado em 1922 e
suprimido em 2000, quando então o cinema passou a reportar-se ao Ministério
da Cultura da Rússia.
Uma vez aprovado o roteiro pelo Estúdio de Produção e pelo Goskino, o
cineasta poderia iniciar a realização de seu filme. Todas as etapas eram ainda
acompanhadas pelo diretor artístico do Estúdio. Quando o filme estivesse
concluído, o Estúdio o enviava ao Goskino para a deliberação classificatória que
decidia quais os circuitos de distribuição.
O procedimento padrão que definia o número de cópias que seriam feitas
do filme e as salas de cinema onde seriam projetadas, consistia em levar aos
membros do Mosfilm para votação e conseqüente classificação do filme em
primeira ou segunda categoria (SYNESSIOS, 2001, p. 114).
Os cineastas ganhavam por metros de filme e nada mais.
O Mosfilm detinha os direitos mundiais sobre todas as realizações dos
cineastas soviéticos (TARKOVSKI, L., 1998, p. 102). No caso de Tarkóvski,
dos seus sete filmes ele teria os direitos apenas sobre o último, O Sacrifício.

3.1.2. Os sete filmes de Andriêi Tarkóvski

Conta Natália Bondartchuk:

Tarkóvski era genial para as profecias. Uma vez disse que havia participado de uma
sessão de espiritismo na qual havia se comunicado com o espírito de Pasternak128, a
quem perguntou: “Quantos filmes farei?” 129.

127
Nome da principal agência de informação e segurança (serviços secretos) da antiga União
Soviética, entre 13 de Março de 1954 e 6 de Novembro de 1991.
128
Borís Pasternak (1890-1960), poeta russo.
129
Essa curiosidade biográfica a respeito da predição feita por Pasternak em uma sessão espírita
é evocada por Tarkóvski em seu diário. Em 21 de dezembro de 1985, após concluir as filmagens
de O Sacrifício na Suécia enquanto preparava-se para voltar para a Itália e já sabendo que estava
com câncer, escreve ele: “Partirei dia 23 para a Itália. Parto com todas as minhas coisas. Quero
explicar a Michael [Leszczylowski] como finalizar o filme caso eu não possa mais voltar a
Estocolmo para isso. Sinto que não poderei. Pioro dia a dia. Teria razão Borís Leonidovic
[Pasternak], Lara? Quando me disse que não me restavam mais do que quatro filmes para fazer.
Você se recorda daquela seção espírita em Revik? Eu havia feito mal as contas. Pensava que eu
tivesse feito sete filmes, mas antes eu contava O rolo compressor e o violino, que ele não havia
contado. Ao final das contas ele não estava enganado. Como reagirá Lárisa a tudo isso? Como
farão no futuro Andrucha e a mamãe? Espero continuem a lutar por obter suas expatriações.
Andrucha necessita viver livre, não deve viver em uma prisão. Visto que começamos com esse
caminho, necessitará ir até o fim” (TARKOVSKIJ, 2002, p. 653). Andrucha é o diminutivo
russo de Andriêi. Tarkóvski refere-se ao seu filho com Lárisa: Andriêi Andrêievitch Tarkóvski.

113
“Sete” foi sua resposta. “Tão poucos?” perguntou Tarkóvski. “Sete, mas todos bons”
respondeu-lhe o espírito do grande poeta.
Em 1970 Tarkóvski estava trabalhando em seu terceiro filme, Solaris. Ao final fez sete
filmes, depois de formado: A Infância de Ivan, Andriêi Rublióv, Solaris, O Espelho,
Stalker, Nostalgia e Sacrifício (TARKÓVSKAYA, 2001, p. 105).

A seguir são apresentados cada um de seus sete longas-metragens. As


fichas técnicas e as fontes eletrônicas dos respectivos filmes encontram-se em
anexo.

3.1.2.1. A Infância de Ivan (ИВАНОВО ДЕТСТВО), Mosfilm, 1962

A busca por uma nova estrutura formal é sempre determinada


por idéias que demandam novos meios de expressão.
Andriêi Tarkóvski130

Ivan Bondariev é a criança através da qual somos levados ao universo da


Segunda Guerra Mundial em território soviético, pouco antes da vitória dos
russos sobre os nazistas, em abril de 1945.
Órfão, aos doze anos, sem casa e sem família, Ivan passa a trabalhar para
o Exército Vermelho131 como espião, atravessando o território inimigo onde
coleta informações sem ser visto. A história se dá em um intervalo entre duas
missões do garoto. No acampamento militar ele convive com os oficiais russos
uma relação que orbita entre a subordinação e a amizade. Os oficiais o tratam
com respeito e amabilidade. Diante da perda de seu lar, do sofrimento imposto
pela catástrofe da guerra e da necessidade de combater o inimigo, Ivan busca
reencontrar no afeto dos oficiais os laços familiares que a guerra lhe roubara.
Seus amigos são o capitão Kholin, o tenente Galsiev, o sargento Katasonov e o
coronel Griaznov.
Durante esse curto intervalo Ivan demonstra sua determinação em servir
bravamente no combate ao inimigo. Enquanto o exército se prepara para a
próxima ação Ivan convive com seus amigos militares. O capitão, por sua vez,
ensaia um caso de amor com a médica do acampamento; o sargento Katasonov

130
Entrevista concedida pelo cineasta a Gideon Bachmann em 1962 (GIANVITO 2006 p. 6).
131
Exército Vermelho é a forma simplificada e comumente utilizada para se referir ao “Exército
Vermelho dos Trabalhadores e dos Camponeses”. Foi o exército dos Bolcheviques, na União
Soviética, criado por Leon Trotsky em 1918, para defender o país durante a guerra civil russa.
Foi dissolvido em 1991.

114
ocupa-se em consertar uma velha rádio vitrola e o jovem tenente observa o fluxo
do movimento, também ele interessado em Masha, a médica. Até que o embate
recomeça e Ivan deve partir em nova missão. E o fará, levando consigo a
infância irrecuperável, sua dor e seu ódio incontido pelos nazistas. Parte sem
saber que o seu amigo Katazonov havia morrido no último bombardeio.
Ficaremos sabendo por Galsiev - pouco antes do filme terminar, quando o
tenente surge com o rosto marcado por cicatrizes - que o capitão morrera.
É também através dos olhos do jovem tenente que chegaremos a Berlim,
ao final do filme e da guerra. Sobrevivente dessa trama, Galsiev nos oferece a
sua percepção da vitória russa sobre os alemães: adentrando o “coração da
Gestapo”132, ou o que restou do bunker nazista, tendo ao redor de si apenas os
escombros do que fora o quartel general dos alemães, o tenente encontra, entre
milhares de dossiês dos prisioneiros de guerra, o único que conta, a ele e ao
espectador: o que restou da infância de Ivan.
A narrativa sobre o pequeno espião é entremeada por quatro seqüências
de “sonhos” através das quais a infância alegre e luminosa de Ivan se contrapõe
à atmosfera desoladora da guerra.

3.1.2.1.1. Produção de A Infância de Ivan

Ivan, o conto russo, foi escrito em 1957 pelo soviético Vladímir


Bogomolov (1924-2003).
O roteiro inicial, de autoria de Mikhail Papava (1906-1975), começara a
ser filmado pelo cineasta Eduard Abalov (s.d.). A Mosfilm, porém, não ficou
satisfeita com os primeiros resultados e interrompeu as filmagens em outubro de
1960. O trabalho então foi proposto a Tarkóvski, que recém formara-se na
VGIK (TARKOVSKI,1 2001 p.75).
A filmagem segundo o roteiro de Papava iria se chamar A Segunda Vida.
O roteirista havia previsto um final feliz no qual o tenente Galsiev, muitos anos
depois, reencontraria Ivan, cuja esposa esperava um filho. Bogomolov não ficara

132
Dessa forma expresso no roteiro de Infância de Ivan, na tradução do russo para o francês,
“lLa cour de la Gestapo” (TARKOVSKI, 2001a, p. 147). Gestapo é a sigla em alemão de
Geheime Staatspolizei, significando « Polícia secreta do Estado », criada em 1933 para garantir
o domínio do Partido Nazista, sob o comando de Adolph Hitler.

115
satisfeito com essa substituição final à sua história na qual Ivan morre
(TARKOVSKY 1999 p.57).
Tarkóvski tampouco aprova essa alteração. A sua condição de recém
formado não o faz recuar diante do trabalho já iniciado e tampouco o intimida a
decidir por descartá-lo completamente.
Para o novo filme, Tarkóvski propôs um novo título, A Infância de Ivan,
um roteiro escrito por ele mesmo e uma nova equipe. Sua proposta foi aceita,
não sem resistência e protestos por parte de Bogomolov, que não concordava
com as mudanças. Para essa empreitada, o jovem diretor recebeu todo o apoio
de seu mestre Mikhail Romm, com quem discutiu suas idéias de acrescentar os
sonhos, através dos quais introduziria a infância que fora roubada de Ivan
(TARKOVSKY, 1999, p. 57-58; TARKOVSKI L., 1998, p. 47-49;
TUROVSKAYA, 1989, p.1).
O filme tinha um orçamento que não foi ampliado para cobrir os custos
de uma nova produção. Mesmo assim Tarkóvski realizou um novo filme com
atores e a equipe que ele escolheu. Dentre eles, o diretor de fotografia, Vadim
Iusov (1929), o músico, Viatchieslav Ovtchínnikov (1936) e o diretor de arte
Ievguiêni Tchernaiev (1921), que também se iniciavam em suas respectivas
profissões e já haviam trabalhado com Tarkóvski em seu média-metragem de
conclusão de curso, O violinista e o rolo compressor (1960). A atriz que
realizou o papel de mãe de Ivan, Irma Raush (1938) era, nesse período, esposa
de Tarkóvski; havia sido sua colega de turma, formando-se também em Direção
de Cinema na VGIK, aluna de Mikhail Romm133. Outro colega seu, com quem
já escrevera o roteiro de seu filme de formatura, Andriêi Kontchalóvski (1937)
também participará como co-roteirista em Ivan e fará uma pequena participação
como um soldado. Os demais atores foram escolhidos pelo diretor.
O roteiro foi reescrito em três semanas, em junho de 1961. Os créditos
do novo roteiro nunca constaram no filme onde foi mantida a autoria de
Papava134. As filmagens tiveram início em janeiro de 1962 e sua montagem em
março (TARKOVSKI L., 2001, p. 76). No entanto, “não menos que treze
reuniões foram necessárias para convencer os roteiristas mais velhos, a direção

133
http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/TheTopics/Raush.html. Acesso: 05 nov.
2006.
134
O roteiro de A Infância de Ivan, escrito por Tarkóvski e Andriêi Kontchalóvski, traduzido
tanto para o inglês quanto para o francês constam em nossa bibliografia.

116
artística da Mosfilm e do Goskino do valor do trabalho” (TARKOVSKI L.,
2001, p. 76). Em setembro de 1962, por fim, A Infância de Ivan foi levado a
público.
Quando do lançamento no circuito de cinema europeu o primeiro longa-
metragem de Tarkóvski participou da XIII Mostra Cinematográfica de Veneza e
obteve a premiação máxima: o Leão de Ouro. Foi o primeiro cineasta russo a
recebê-lo e mais, A Infância de Ivan foi o primeiro filme a participar do Festival
de Veneza (TUROVSKAYA, 1989, p. 34).
A repercussão entre os comunistas do ocidente não foi das melhores. A
esquerda italiana, liderada pelo escritor romano Alberto Moravia (1907-1990)
não poupou críticas, tachando o filme de “burguês e estetizante”, focando suas
acusações nas seqüências oníricas introduzidas por Tarkóvski. Os jornais de
esquerda, (L´Unitá, Il Paese e Paese Sera) qualificaram o filme de
“tradicionalista, expressionista, surrealista e simbolista” (CAPANNA, 2003, p.
54). Intelectuais da esquerda italiana publicaram no jornal l´Unitá uma dura
crítica. Nela afirmavam que Tarkóvski havia assimilado apressadamente os
procedimentos superados no ocidente para aplicá-los sem discernimento ao
filme premiado. Nessa ocasião o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980)
encontrava-se na Itália, em Roma, e enviou uma carta à redação do diário. Sartre
argumentava que os críticos da esquerda italiana não haviam feito justiça ao que,
segundo ele, se constituía no admirável filme de Tarkóvski. O editor desse
jornal, Mario Alicata (1918-1966), decidiu tornar pública a carta de Sartre e o
fez na edição do l´Unitá de 9 de outubro de 1963 (CAPANNA 2003 p. 56).
Dentre outros elogios são essas as últimas palavras da carta do filósofo: “Não é
o Leão de Ouro o que deveria ser a verdadeira recompensa de Tarkóvski, senão
o interesse, ainda que seja polêmico, suscitado por seu filme entre os que lutam
juntos pela libertação do ser humano e contra a guerra” (SARTRE, 1986).
Tarkóvski não deixou de responder a essas manifestações, fosse em
artigos, entrevistas, e mesmo em seu diário. Mas não ficara satisfeito com a
defesa de Sartre. E em seu ponto de vista o filósofo não empreendera a defesa de
seu filme pelo crivo da arte e sim pelo ideológico. Então, ele mesmo escreve e
publica um texto posteriormente reunido em uma coletânea de ensaios, nomeado

117
Miezhdu dvumya filmami, ou Depois de filmar135, onde explicita e defende,
teoricamente, os procedimentos artísticos de seu cinema. Mais tarde esse texto
passaria a se constituir o primeiro capítulo de seu livro Esculpir o Tempo.
Ainda em 1986, pouco antes de sua morte, posicionava-se tal e qual o
fizera em 1962. Desde o início classificou as críticas (e as defesas) de
superficiais. Inclusive em relação às manifestações de Sartre afirmou:

Sartre defendeu ardentemente o filme contra a crítica da Esquerda Italiana, mas o fez
pelo ponto de vista estritamente filosófico. (…) Eu não sou um filósofo, sou um artista.
Em meu ponto de vista, sua defesa foi totalmente inútil. Ele estava tentando avaliar o
filme utilizando seus próprios valores filosóficos e eu, Andriêi Tarkóvski, artista fui
deixado de lado. Falou-se apenas sobre Sartre e muito pouco sobre o artista
(GIANVITO 2006 p. 164).

Se, por um lado Tarkóvski tinha consciência das críticas, por outro
focava a atenção no valor de seu próprio trabalho. Em entrevista ao italiano
Gideon Bachmann (s.d.), em 1962, concedida ainda em Veneza, durante o calor
do Festival, o cineasta critica as opiniões, segundo ele, superficiais (em seu país
ou fora dele) sobre a A Infância de Ivan:

Este filme foi um grande esforço íntimo para minha equipe e para mim, e nós não
ficamos felizes vendo que as pessoas estavam falando sobre nosso trabalho
levianamente e sem fundamentação teórica. Nós queremos ser tratados seriamente e
com respeito (GIANVITO 2006 p. 9).

Respeito esse que ele admitiu ter na crítica dura realizada por Alberto
Moravia. Chegou a dizer que o respeito foi recíproco pois a crítica de Moravia,
para ele foi realizada com profissionalismo e sentiu-se grato ao lê-la; ele,
Tarkóvski que já estava acostumado apenas a críticas triviais percebeu em
Moravia um nível mais elevado de crítica. Portanto, não era o fato de ser
criticado com dureza que o incomodava e sim o fato das críticas não levarem a
sério o seu trabalho artístico.
Ainda nesse período, antes mesmo da premiação, o Cahiers du Cinéma
nº 136, realizou uma matéria, de autoria do francês Jean Douchet (s.d.), sobre os
concorrentes ao prêmio no Festival de Venesa de 1962. Douchet comenta que o

135
O original em russo, digitalizado, encontra-se em:
http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/TheBibliography/Journals_Russian.html.
Anos mais tarde, em 1986, esse texto foi integrado ao livro Esculpir o Tempo. O texto sobre A
Infância de Ivan constitui o primeiro capítulo.

118
“preciosismo barroco” do jovem cineasta já trazia em si a acusação de
formalismo (p. 47).
E antes que o filme fosse levado a público, em seu próprio país, o filme
já enfrentava problemas. Segundo a esposa de Tarkóvski, Lárisa Tarkóvskaia
(s.d.n.-1998), quando A Infância de Ivan foi concluído e levado à discussão,
“certos procedimentos foram julgados incompreensíveis: que são essas gravuras
terrificantes que Ivan olha? Quem são essas crianças que correm perto de um rio
cintilante? Por que os cavalos comem todas essas maçãs?” (TARKOVSKI, L.
1998 p.46).
Dois textos teóricos escritos nesse período são particularmente
relevantes. O primeiro é de autoria do próprio Tarkóvski, conforme citado
acima, Depois de filmar, publicado na revista Iskusstvo Kino, nº 11, em Moscou,
ainda no ano de 1962. O segundo, de natureza crítica, foi de Maia Turóvskaia,
“O mundo partido em dois”, do mesmo ano, publicado parcialmente no
periódico oficial da União dos Escritores Soviéticos, Literaturnaia gazeta
(Jornal de Literatura)136.

3.1.2.2. Andriêi Rublióv, ou A Paixão segundo Andriêi (СТРАСТИ ПО


АНДРЕЮ), Mosfilm, 1966.

Eu inventei um Rublióv, Mas aceitaria outras versões.


Andriêi Tarkóvski137

Andriêi Rublióv é dividido em duas grandes partes que são subdivididas


em capítulos, conforme se segue138:

136
Em 1981 esse texto, junto a outros, da autora, foi publicado originalmente na Alemanha
Oriental, com o título Andrei Tarkovsky: Film als Poesie, Poesie als Film, constituindo-se no
primeiro livro de conteúdo crítico publicado sobre o cineasta. Uma outra tradução (e até o
momento, última) realizada na Inglaterra, foi publicada em 1989 e reeditada em 1990, com o
título Cinema as Poetry, pela Faber and Faber (TUROVSKAYA, 1989).
137
Entrevista concedida pelo cineasta a Laurence Cossé, originalmente publicada em Les mardis
du cinéma, de 7 de janeiro de 1986. Servimo-nos de sua republicação em BAECQUE (1989, p.
107).
138
As principais publicações sobre o cinema de Andriêi Tarkóvski, anteriores a 1988 (referimo-
nos, pela ordem cronológica das publicações a Turóvskaia, Baecque, Kovàcz e Szilagyi,
Gauthier, e Johnson e Petrie, todos elencados em nossa bibliografia) informam que Andriêi
Andriêi Rublióv é dividido em oito capítulos, acrescidos do prólogo e do epílogo. A história da
exibição desse filme é complexa pois ele foi várias vezes censurado, e não apenas na União
Soviética. Portanto existem várias versões. Segundo a norte-americana The Criterion Collection,

119
Cap. Partes e capítulos Tempo
inicial
(créditos) 00:00:01
A Paixão segundo Andriêi – Parte I 00:02:30
Prólogo
1º O bobo da corte – verão de 1400 00:08:00
2º Teófanes o Grego – verão, inverno, primavera, verão – 1405 – 1406 00:21:27
3º Dia Santo – primavera – 1408 00:56:50
4º O julgamento final – verão – 1408 01:12:19
5º A Paixão Segundo Andriêi, Parte II 01:36:25
A Caçada, 1408
6º A Caridade, Inverno de 1412 02:13:46
7º O Sino – Primavera, Verão, Outono, Inverno, Primavera – 1423 – 02:31:48
1424
Epílogo 03:17:14 a
03:25:40

Cada parte cobre um período da vida de Andriêi Rublióv, monge, pintor


russo que viveu no século XV. A primeira parte é datada como sendo 1400 e o
término, 1424, totalizando vinte e quatro anos da vida do pintor. Os capítulos
seguem a ordem cronológica. A primeira parte cria a atmosfera dos locais e
períodos por onde ele passou ou viveu, oferecendo uma dimensão espaço-
temporal onde as relações estão em constante tensão: o anseio por novas
conquistas tecnológicas, como o vôo em um balão; a pobreza e a fé da
população russa; as invasões mongóis; a crueldade e a rivalidade dos príncipes
irmãos; a fragilidade e a força moral dos artistas e demais criadores, inventores,
diante da supremacia dos governantes e da barbárie; a fé e a busca da
compreensão e da beleza meio às forças em confronto. Apesar da aparente

reconhecida pela restauração e zelo na reedição de filmes dos mestres do cinema, a versão por
ela produzida resgatou em DVD os originais 205 min., tal e qual montou Tarkóvski em 1966. A
Criterion informa que essa versão “foi primeiramente mostrada em 1988, no ‘Dom Kino’ (São
Petersburgo), em homenagem à morte de Tarkóvski” (CRITERION COLLECTION, 1998). As
outras versões disponíveis no mercado europeu, inclusive Rússia, segundo nossas pesquisas, são
de 185 min. Essas versões se originaram da Ruscico, empresa russa que realiza os transfers dos
filmes para DVD e os comercializa para outros selos. Em nossos estudos utilizamos a versão da
The Criterion Collection. Nesta constam sete capítulos (e não oito). O filme, no entanto, está
dividido em duas partes (outras versões não trazem essa divisão). O terceiro capítulo
anteriormente estava dividido em dois (Teófanes o Grego e A Paixão Segundo Andriêi); nessa
versão os dois capítulos foram reunidos e portanto há sete capítulos no lugar de oito.

120
linearidade da narrativa, que se pode concluir em um primeiro momento quando
se observa a metódica separação em partes e capítulos, os episódios são
fragmentários, mas individualmente intensos e auto-suficientes.
Na primeira parte Andriêi e dois outros monges, Kiriil e Daniil saem do
monastério onde vivem, caminhando até a Moscou. Quando retornam Rublióv
recebe uma ordem do Príncipe para pintar a Catedral da Anunciação com
Teófanes o grego, um dos mais importantes pintores de ícones da Rússia. O
monge parte, sozinho, sob o despeito de Daniil e a inveja incontida de Kiriil que
resolve ingressar na vida secular.
Se, por um lado Rublióv nunca será mostrado junto ao mestre, pintando,
é com Teófanes (e ainda com Daniil) que trocará suas mais caras reflexões sobre
a existência humana em longos e inquietantes diálogos. Ao final da segunda
parte ele terá experienciado e observado diversos fatos que o tornam cada vez
mais reflexivo.
Convidado a pintar a Catedral de Vladímir passa por uma longa crise de
criação. Nesse período Daniil junta-se a ele e seus jovens assistentes. Uma
jovem muda entrará um dia pela porta da catedral e passará a integrar o grupo.
A segunda parte inicia-se com a invasão mongol a Vladímir, onde
Rublióv ainda se encontrava. O Khan mongol (neto de Gengis Khan) é apoiado
pelo irmão do Grande Príncipe. A cidade é saqueada, incendiada, seus
habitantes, pegos de surpresa são mortos, a catedral violada. Rublióv, para
defender a jovem muda mata um soldado do príncipe russo. O monge e sua
protegida são os únicos sobreviventes da chacina da qual sequer os animais são
poupados. A partir daí faz voto de se manter em silêncio e retorna ao
monastério.
Quatro anos depois, a jovem muda preferirá, livremente, seguir com um
grupo de mongóis quando esses fazem uma breve parada no monastério. Onze
anos se passarão. É quando um garoto, Boriska, para atender ao Grande
Príncipe, inicia a construção de um imenso sino nos arredores do monastério.
Rublióv acompanha a saga do jovem até quando, tempos depois, exaurido pelo
esforço desmedido de construir o sino e fazê-lo finalmente soar, Boriska tomba
ao chão chorando copiosamente. O monge o acolhe em seu regaço e rompe com
seu longo voto de silêncio. Fala-lhe com extrema doçura, incentivando-o a

121
seguir construindo sinos enquanto ele, Rublióv irá acompanhá-lo, pintando
ícones.
A primeira parte é precedida do prólogo através no qual um homem do
século XV, inventivo, habilidoso e audaz empreende um vôo em um precário
balão. O seu vôo se dá entre aldeões que o perseguem, desde a travessia de um
rio até o alto da torre de uma igreja, onde ele alcança o balão e, com a ajuda de
alguns amigos, lança-se no espaço, sobrevoa largas estepes e rios até que seu
engenhoso aparato perde altura e provoca uma queda fatal, arremetendo o
aprendiz de tripulante ao chão.
A segunda parte é seguida do epílogo, onde os tons cinzas do filme são
substituídos por planos coloridos e a câmera passeia, lenta e detalhadamente por
superfícies de madeira onde um dia Andriêi Rublióv compôs, em cores
luminosas, os preciosos ícones que se encontram hoje na Galeria Trietiákov, em
Moscou, dentre eles A Virgem de Vladímir, O Arcanjo Miguel, Natividade,
Transfiguração e A Trindade.

3.1.2.2.1. Produção de Andriêi Rublióv

Conta Tarkóvski que a idéia de filmar Andriêi Rublióv surgiu em uma


conversa entre ele, o também cineasta e então amigo Kontchalóvski e um outro
amigo ator, à mesa, certa noite. Nas palavras do próprio Tarkóvski, foi esse ator
quem lançou a idéia,139: “ Por que não fazer um filme sobre Rublióv? Eu sou
ator, poderia muito bem desempenhar o papel de Rublióv… A Rússia antiga, os
ícones, daria um bom argumento…” (In BAECQUE 1989 p. 197). O amigo não
ganhou o papel, mas Tarkóvski, que a princípio achou a idéia irrealizável, ou
mesmo detestável, muito longe de seu universo, juntou-se a Kontchalóvski para
pensar melhor sobre o assunto. Ambos passaram dois anos pesquisando sobre a
pouco conhecida vida do monge e a dar corpo, a partir da documentação sobre a
época, ao que se tornaria o mais longo filme da carreira do diretor (In
BAECQUE 1989 p. 197)..

139
Entrevista concedida pelo cineasta a Laurence Coccé em 1986 (BAECQUE, 1989).

122
Andriêi Rublióv, portanto, foi escrito a quatro mãos, por Tarkóvski e
Andriêi Kontchalóvski. Segundo Charles Brantes140, a sinopse foi aprovada em
1962. Tanto a sinopse quanto o roteiro aprovado pela Mosfilm em dezembro de
1963, tinham o título de A Paixão segundo Andriêi141. Em abril e maio de 1964
o roteiro foi publicado na revista Iskousstvo Kino (A arte cinematográfica). A
filmagem se deu entre abril e novembro de 1965 e abril e maio de 1966
(TARKOVSKI 2001 p. 154-155).
Grande parte da equipe que já trabalhara com Tarkóvski, tanto em O
violinista e o rolo compressor quanto em A Infância de Ivan o acompanhou. Dos
velhos conhecidos estavam, além de Kontchalóvski, o diretor de fotografia
Vadim Iússov, o músico Viatchieslav Ovtchínnikov e o diretor de arte Ievguiêni
Tchernaiev; os atores Nikolái Grinko (que fora o Coronel Griaznov), Irma
Raush (que fizera a mãe de Ivan), Stiépan Krilov (que desempenhara o Sargento
Katazonov) e Kolia Burlaiev (que interpretara Ivan). Alguns membros que
integraram Andriêi Rublióv acompanhariam Tarkóvski nos próximos três filmes
que ele faria na União Soviética: dentre os principais, os atores Anatoli
Solonitsiene e Nikolái Grinko e a montadora Ludmila Feiguinova.
Iniciada a filmagem, Tarkóvski não se manteve fiel ao roteiro. Essa
infelidade foi responsável por muitos dos problemas gerados, inclusive com seu
amigo Kontchalóvski142, com quem partilhara a escritura do roteiro. Por outro
lado, essa infidelidade, de acordo com os pesquisadores norte-americanos Vida

140
Charles H. de Brantes é diretor do Institut International Andreï Tarkovski, com sede em
Paris. É de sua autoria a apresentação dos roteiros publicados em Œuvres cinématographiques
complètes (TARKOVSKI, Andreï 2001).
141
Este é o título que consta da versão da Criterion Collection: Страсти по Андрею (Strasti pa
Andrieiu), Paixão segundo Andriêi.
142
A pedido de Marina Tarkóvskaia, que reunia depoimentos de amigos e membros da equipe
para serem publicados, logo após a morte de Andriêi Tarkóvski, o ator e diretor Andriêi
Kontchalóvski passa a limpo as memórias de seu relacionamento com Tarkóvski, relatando que
ambos se desentenderam de maneira irreconciliável por ocasião das filmagens de Andriêi
Rublióv. Afrontaram-se através da imprensa, escrevendo uma série de artigos onde deixavam
claro suas divergências teóricas. Cada artigo de um deles exigia uma réplica e o distanciamento
entre os dois acabou por demonstrar o quanto seus pontos de vista sobre a criação artística
diferiam. Kontchalóvski insistia na direção de atores segundo o ator, diretor e teórico do teatro, o
russo Konstantin Stanislávski (1863-1938), idéia insuportável a Tarkóvski que discordava
totalmente dos métodos de preparação de ator sistematizados por Stanislávski. Kontchalóvski
ainda defendia o cinema como espetáculo ou entretenimento, enquanto para Tarkóvski, “o
cinema era uma experiência espiritual que servia para tornar melhor uma pessoa”
(TARKOVSKAIA 2001 p.151, 153, 156). A infidelidade ao roteiro, por parte de Tarkóvski,
também teria criado, segundo Kontchalóvski, a “marca Tarkóvski”, segundo a qual o diretor
“apenas era capaz de plasmar sua visão pessoal quando rodava seus próprios roteiros e criava
seu próprio mundo” (TARKOVSKAIA 2001 p.156).

123
Johnson (s.d.) e Graham Petrie (s.d.), não se deu apenas por uma opção do
cineasta em seguir mais a sua intuição do que uma estrutura prévia. Johnson e
Petrie oferecem uma explicação pelo ponto de vista econômico financeiro para
esses desvios no roteiro. Segundo eles os custos das ações planejadas estavam
aquém do orçamento. Explicam que enquanto Tarkóvski, laureado com o mais
importante prêmio trazido até então para o cinema soviético recebia, junto à sua
equipe, repreensões oficiais para aquele que seria um dos mais importantes
filmes russos, feito às custas de um orçamento do qual fora subtraído mais de
um terço (anteriormente aprovado em 1,6 milhões de rublos o orçamento foi
reduzido a 1 milhão) (JOHNSON; PETRIE, 1994, p.80), seu colega de
profissão, o ucraniano/soviético, Serguiêi Bondartchuk143 (1920-1994)
administrava 8 milhões de rublos, recebidos para filmar o que se converteria nas
sete horas do filme Guerra e Paz (JOHNSON; PETRIE, 1994, p.80).
A montagem de Andriêi Rublióv estava concluída em julho de 1966.
Numerosas críticas recaíram sobre o cineasta, feitas pela direção artística da
Mosfilm, tais como: o filme tinha seqüências muito longas, mostrava demasiada
crueldade, era religioso, etc. Andriêi Tarkóvski aceitou realizar alguns poucos
cortes e o filme foi mostrado pela primeira vez em Moscou em dezembro de
1966. No entanto sua distribuição para exibição, tanto nacional quanto
internacional ocorreria apenas em 1971.
Ironicamente Andriêi Rublióv, ainda que realizado em um período pós-
stalinista, quando, morto há muito Andriêi Jdánov, as regras do Realismo
Socialista estariam teoricamente afrouxada, teve o mesmo destino de Ivan o
Terrível, de Eisenstein. A grande diferença é que, não sendo as regras claras a

143
Um estudo comparativo dos cinemas de Sergei Bondartchuk, Andriêi Kontchalóvski e
Andriêi Tarkóvski poderia trazer algumas luzes para a compreensão desse momento de transição
no cinema russo. Bondartchuk e Kontchalóvski entraram em confronto público com Tarkóvski e
são tidos por vários críticos e pelo próprio cineasta como direta ou indiretamente responsáveis
por muitas das intrigas que o envolveram enquanto estava na Rússia e fora dela. Tarkóvski
chegou a publicamente acusar e responsabilizar Bondartchuk por ter conspirado contra ele no
festival de Cannes, quando da premiação de Nostalgia, em 1985. A rivalidade entre os dois ficou
conhecida dentro e fora da União Soviética. Quando Irena Brezna o entrevista em Londres, em
1984, sobre a sua condição de artista privilegiado na URSS ele chega a ser taxativo, afirmando:
“Eu não sou privilegiado lá. O diretor Bondartchuk, por exemplo, é privilegiado, mas não eu”
(GIANVITO 2006 P. 105). À parte os dados biográficos, são três estilos distintos, três
linguagens ricas e também distintas de três cineastas proeminentes na União Soviética, que
viveram no mesmo período e defendiam acaloradamente seus posicionamentos meio às normas
já desgastadas do Realismo Socialista, tentando conviver e produzir em seu próprio país (e
muitas vezes não conseguindo, caso não fizessem concessões à censura).

124
sua repressão foi mais insidiosa e cruel. Durante seis anos o filme, depois de
concluído, ficou à espera de aprovação para ser exibido em território soviético.
E, no entanto, já em 1966, quando Andriêi Rublióv estava sendo
concluído, recebera o convite de Robert Favre Le Bret (1905-1987),
administrador geral do Festival de Cannes (de 1952 a 1977), para representar
oficialmente a União Soviética na mostra competitiva. Inicia-se aí o embate do
artista com a censura; multiplicam-se os entraves opostos pelo Goskino para a
exibição do filme como o cineasta o concebera e realizara. Primeiramente, as
autoridades consentem com a participação de Andriêi Rublióv na competição do
Festival e enviam a Cannes as latas contendo a película (LLANO) 144. Logo após
pediram as latas de volta, alegando inexatidão histórica no filme. Apesar disso
os diretores do festival insistiam e os soviéticos argumentavam, dessa vez, que
não podiam permitir as cenas de violência e que, tão logo Tarkóvski corrigisse
os dados históricos e retirasse tais e tais cenas o filme estaria liberado para o
festival (LLANO) 145.
Sobre a obediência às determinações dos censores, até onde temos
conhecimento, há uma certa contradição sobre o fato. O francês Mark Le Fanu
(s.d.) afirma que os autores, apesar da censura, eram protegidos pelos direitos
autorais e podiam recusar-se a fazer alterações em seus trabalhos:

Cortes eram necessários, particularmente nas cenas “de nus” (episódio II) e violência (a
invasão de Vladímir). Tarkóvski, com sua característica obstinação, recusou-se. Seu
contrato, como todos os contratos de filmes soviéticos, estipulava que cortes só
poderiam ser feitos com a permissão do diretor (LE FANU, 1987, p. 34).

E ainda:

... o filme foi oficialmente condenado pelos jornais e revistas por crueldade,
naturalismo, anti-patriotismo e “religiosidade”. Determinaram que fossem realizados
severos cortes, aos quais Tarkóvski (protegido legalmente em seus direitos de autor)
obstinadamente se recusou (LE FANU, 1987, p. 144).

Marina Tarkóvskaia, por sua vez, declara, em entrevista, que


Feiguinova146 teria cortado aproximadamente dez minutos do filme147. O fato é

144
Entrevista a Rafael Llano para el programa de mano del festival de cine de Guadarrama [20
-7-2003]. http://www.andreitarkovski.org/biografia.html. Acesso: 20 jan. 2007.
145
Entrevista a Rafael Llano para el programa de mano del festival de cine de Guadarrama [20
-7-2003]. http://www.andreitarkovski.org/biografia.html. Acesso: 20 jan. 2007.
146
Ludmila Feiguinova foi a montadora que trabalhou em Solaris, Espelho e Stalker.
147
http://www.andreitarkovski.org/articulos.html. Acesso: 20 jan. 2007.

125
que, motivado pela polêmica em torno de sua produção e movido pela
necessidade de posicionar-se publicamente, Tarkóvski escreve um ensaio teórico
sobre a arte cinematográfica e sua concepção artística para realizar Andriêi
Rublióv. A publicação desse texto se dá em forma de artigo com o título “O
Tempo Impresso” na Alemanha, França, Suécia e Iugoslávia. Na URSS seria
publicado na conceituada revista de cinema (onde já fora publicado previamente
o roteiro do filme), Isskustvo kino, número de abril de 1967148.
A publicação desse artigo no país, a proibição de sua exibição por parte
das autoridades ao mesmo tempo em que Andriêi Rublióv, clandestinamente, era
exibido tanto para os intelectuais e cineastas russos, parece ter funcionado como
divisor de águas na carreira do cineasta que se verá duramente combatido por
grande parte da crítica e de seus pares russos. Prova disso é a postura já
discutida anteriormente, de Andriêi Mikhalkóv-Kontchalóvski que, além de
discordar pessoal e terminantemente da forma pela qual o diretor conduziria a
filmagem (principalmente porque seu colega, em suas próprias palavras,
pretensioso, não seguia à risca o roteiro), rebaterá publicamente o artigo de
Tarkóvski, na mesma revista de cinema (TARKOVSKAYA, 2001, p.148-158).
A postura pública agressiva de Kontchalóvski, então um jovem cineasta que não
contava em sua carreira com prêmios tão importantes tais como os que
Tarkóvski obtivera no exterior, parece ter provocado uma tomada de posição
entre os diretores russos da época.
Esse confronto, segundo alguns pesquisadores como Pablo Capanna
(2003) parece ter sido tão relevante que passou a definir alguns padrões das
relações que se seguiriam durante toda a vida de Tarkóvski com as autoridades,
críticos ou com os cineastas russos de seu tempo. Essas relações belicosas
seriam, ainda segundo Capanna, agravadas pela postura da comunidade
cinematográfica ocidental que não poupava elogios, prêmios e convites a
Tarkóvski.
Em relação a esse segundo trabalho do cineasta, como já vimos, durante
seis anos as autoridades soviéticas postergariam a autorização para que fosse
exibido em território soviético. Mesmo internacionalmente, apenas em 1969,
depois de prolongada insistência dos dirigentes de Cannes, Andriêi Rublióv seria

148
‘O Tempo Impresso’ integra o livro Esculpir o Tempo.

126
exibido no Festival, mas dessa vez, fora da competição. Apesar dessas
dificuldades, a película ainda foi contemplada, em Cannes, com o “Prêmio da
Crítica Internacional”. A França, por sua vez, tentava negociar a exibição oficial
do filme na Europa, mas a União Soviética não cedia.
E mesmo quando Andriêi Rublióv estréia na URSS, tal exibição é
aprovada com a ressalva de que o filme não poderia ser exibido nas melhores
salas de cinema de Moscou, às quais estava reservada a exibição dos filmes
considerados como melhores pelo Goskino.
Os trabalhos seguintes enfrentarão dificuldades semelhantes, desde a
aprovação do argumento até a exibição no país e a liberação para concorrer nos
festivais internacionais.

3.1.2.3. Solaris (СОЛЯРИС), Mosfilm, 1972

Que estranha fórmula era essa, capaz de amalgamar a épica espacial com o mistério gótico,
os brilhantes cromados e as luzes intermitentes com a penumbra e a desordem,
reproduzindo os corredores de uma estação espacial o clima de um castelo encantado?
Capanna149

Kris Kelvin é um psicólogo que parte da Terra rumo à estação espacial


que gira em torno do planeta Solaris. Sua missão é verificar a viabilidade de se
continuar mantendo a estação e encaminhar soluções em relação a Solaris. Na
Terra deixa a datcha150 de seu pai, onde vivera toda a sua vida.
Antes de partir, Kris discute com Berton, um astronauta, velho amigo de
seu pai que fora visitá-los. Berton pede para que Kris veja o vídeo de um
polêmico caso com o qual estivera envolvido há anos, quando sobrevoava o
Oceano. O Oceano de Solaris é uma espécie de cérebro, o que levara à hipótese
de que o planeta seria uma substância pensante. A Solarística tornara-se,
inclusive, uma ciência que buscava comprovar essa hipótese. Para isso, há
algum tempo, fora enviada uma missão espacial até o planeta. Inicialmente eram
oitenta e cinco os tripulantes, número que foi se reduzindo com o passar do
tempo, restando por fim apenas três.

149
(2003, p. 95).
150
Datcha é o nome russo para casa de campo.

127
Kris, seu pai, sua tia e Berton assistem ao vídeo que esse levara. Trata-se
de uma reunião científica da qual participa Berton, ainda jovem. Este relata à
comissão científica sua aproximação do Oceano quando ele teria uma gigantesca
cabeça de bebê surgindo à sua frente, no lado externo da espaçonave, vinda do
Oceano. Mas tarde, o astronauta iria descobrir que tal cabeça era idêntica a do
filhinho de um dos tripulantes mortos em missão, sendo que o , nessa época,
ainda não era nascido.
Junto ao seu relato Berton levara à comissão científica, um audiovisual
que, ao contrário do que ele pensava, não registrara o que ele alegava ter visto.
O que as imagens mostravam, no lugar do corpo do bebê, era um conjunto de
nuvens. Os cientistas ficam desapontados por não terem visto a comprovação do
relato de Berton e concluem que a hipótese do astronauta - que o cérebro de
Solaris é uma substância capaz de pensar - é absurda e fruto de alucinações
causadas pela atmosfera do estranho planeta.
Berton sente-se sozinho e desacreditado pois não tem como provar
cientificamente suas afirmações. Tenta alertar Kris sobre os perigos de se
interferir com a vida do Oceano que é pouco conhecido e deve ser respeitado. O
pai de Kris coloca-se ao lado de Berton, seu amigo de longa data, e pede
prudência a Kris, em defesa do equilíbrio do espaço cósmico. Sentindo-se
desvalorizado por Kris, Berton discute com ele e parte, desolado.
Na madrugada que antecede a partida, Kris queima documentos e
pertences que considera não fazerem mais parte de sua vida. Conserva apenas o
indispensável que coloca em sua bagagem: alguns livros, vídeos, objetos como
uma caixinha de metal com algumas sementes e o retrato de sua mulher, Hari,
morta há dez anos, por suicídio.
Ao chegar em Solaris, Kris encontra a estação espacial em completo
abandono. Segundo informações que recebera, nela restariam apenas três
cientistas: o cibernético Snaut, o fisiólogo Guibárian e o astrônomo Sartórius.
Mas Kris não tarda a descobrir que Guibárian havia se suicidado,
deixando a Kris um vídeo onde lhe falava de suas angústias e de misteriosos
corpos “visitantes” e estranhos, gerados pelo Oceano que surgiam na estação. O
fisiólogo, bastante perturbado, propunha a Kris que bombardeasse o planeta com
fortes radiações.

128
Kris encontra Snaut e Sartórios perambulando em seus laboratórios,
vestindo roupas velhas, despenteados e descuidados. Demonstram um
comportamento arredio e desconfiado que Kris tentará compreender e com o
qual terá dificuldade de lidar.
Enfileiradas pelos claros e abandonados corredores da estação, redondas
janelas emolduram a imagem do Oceano pensante, turbulento, instável.
A Kris também surgirá um desses corpos “visitantes” e estranhos,
plasmados dos desejos e recordações de cada humano ali presente. É assim que
Hari, sua mulher que já morrera, corporifica-se diante dele. Perplexo, a
princípio, Kris tenta tratar o caso como um fenômeno puramente científico e
despacha essa estranha materialização de seus pensamentos em um foguete para
o espaço. Mas uma segunda Hari, surge e dessa Kris não tentará se livrar, mas
buscará compreender a complexidade do fenômeno.
Sartórius, o mais cético dos cientistas, sugere que seja feito um exame de
sangue em Hari. Kris acata e comprova que o sangue se regenera rapidamente.
Snaut e Sartórios explicam a um desnorteado Kris que esses corpos são feitos de
neutrinos, razão pela qual são indestrutíveis. Snaut ironiza: “Regeneração? Vida
eterna? O sonho de Fausto!” E é Hari, essa criatura faustiana que colocará em
cheque as certezas científicas dos humanos da estação espacial.
Kris entrega-se por fim aos seus sentimentos, tomado pelo remorso que
aflora pelo suicídio de sua mulher e ainda possuído por uma imensa nostalgia.
Torna-se mais afetuoso com Hari que acredita estar tornando-se humana.
Mas Hari não suporta pensar que Kris é infeliz. Tenta matar-se ingerindo
oxigênio líquido, mas ao contato de Kris, ressuscita. Kris promete que viverá
com ela, ainda que longe da Terra, ainda que seja em Solaris. Mas em seguida
ele cai doente, inconsciente. Quando recobra a consciência, depois de um tempo
em delírio, Snaut está cuidando dele e conta-lhe que Hari dera cabo de sua vida
cada vez mais humana, dissolvendo-se em uma descarga de pura energia.
Kris decide retornar à casa paterna e aparentemente o faz. Diante da
datcha reencontra o seu pai e o abraça, ajoelhado, meio à chuva. É quando a
câmera em um zoom que parece infinito nos redimensiona o espaço da casa
sobre uma ilha, meio a um oceano. Solaris? A mente de Kris?

129
3.1.2.3.1. Produção de Solaris

Tarkóvski concluiu Andriêi Rublióv em 1966. Apenas em outubro de


1968 recebe aprovação à proposta que fizera para filmar Solaris, romance de ficção
científica de grande repercussão tanto na União Soviética quanto no exterior, de
autoria do polonês Stanislav Lem (1921-2006) (TUROVSKAYA, 1989, p. 51). Uma
primeira adaptação foi escrita por Tarkóvski, em 1969, com a colaboração do escritor
ucraniano Friedrich Gorenstein (1932-2002). Iniciam-se aí as alterações ao romance
original e, em consequência os desentendimentos entre o cineasta e Lem.
Conta o amigo de Tarkóvski e diretor de arte, o russo Mikhail Romadin
(1940-) que “o Goskino rechaçou todas as propostas de Tarkóvski, uma depois
da outra e apenas mudou de atitude quando se tratou de ficção científica.
Considerada como um gênero suave e irrelevante, dirigido apenas aos jovens,
poderia então ser realizado por Tarkóvski” (TARKÓVSKAYA, 2001, p. 120).
Mas não era o gênero de ficção científica que interessava a Tarkóvski. Ainda
segundo Romadin, de todo o trabalho de Tarkóvski e de sua equipe, o grande desafio,
foi justamente lutar contra o gênero ficção científica, o que por si só justificaria as
alterações iniciais na adaptação (TARKÓVSKAYA, 2001, p. 120). Tarkóvski pensou
em alterar os locais das ações que, no livro, aconteciam inteiramente fora do espaço
terrestre. Em seu roteiro dois terços das ações aconteceriam na Terra e não na estação
espacial. Outra alteração seria incluir, além da esposa morta do protagonista, que
ressurgia em Solaris, uma segunda esposa, com quem ele teria se casado após o
suicídio da primeira e a qual encontraria, retornando do espaço interestelar. Às duas
alterações Stanislav Lem se opôs energicamente (TUROVSKAYA, 1989, p. 53-54).
Restaram ao cineasta e sua equipe duas opções: ou seguir o roteiro básico do romance
ou abdicar de Solaris, pois Lem ameaçava não autorizar a exibição do filme,
caso houvesse tamanha interferência por parte de Tarkóvski.
A estratégia então, ainda segundo Romadin, foi transferir ao espaço as
condições terrenas. O ápice da transferência dessas condições encontra-se na
Biblioteca, onde o diretor de arte buscou preservar a atmosfera do interior de um
aposento moscovita. Essa estratégia inclusive, reforçou, no ponto de vista de
Romadin, o interesse de Tarkóvski pelo tema da nostalgia, presente não apenas
em Solaris mas em toda a obra do cineasta. Saudade do lar, seja ele a casa
terrestre ou a pátria, ou ainda, como nesse filme, da civilização terrestre em

130
geral (TARKÓVSKAYA, 2001, 120). O cineasta abdicou da inclusão da
segunda esposa. Mas não abriu mão do prólogo do filme, realizado em uma bela
paisagem terrestre. Mesmo assim Lem não ficou satisfeito, embora não tenha
deixado de autorizar a exibição do filme.
Tarkóvski conta que também ele não ficou de todo satisfeito:

Solaris é meu filme menos bem sucedido porque não tive êxito em eliminar todas as
relações com o gênero ficção científica. Lem, que havia lido o roteiro, tinha
identificado a minha tentativa de eliminar estes elementos de ficção científica e ficou
contrariado. Ele ameaçou retirar sua autorização (TARKOVSKI, 2001 a, p. 383).

Natália Bondartchuk descreve o “espírito” que norteou a criação artística


da estação Solaris:

Os aposentos dos eremitas cósmicos, que estavam realizando experimentos sobre suas
próprias almas, tinham que conter objetos próximos de seu coração. Para tanto, de
acordo com os desejos de Tarkóvski, se colocou um antigo tapete armênio feito a mão
no aposento de Gibarian.
A biblioteca era o centro da vida social, a vida do espírito humano. A aparência
paradóxica do espaço de móveis “passados de moda”, velas em candelabros de bronze,
janelas iluminadas com cristais coloridos e as pinturas de Brueghel sublinhavam o
desejo profano das pessoas (TARKÓVSKAIA, 2001, p. 106).

Romadin estabelece as opções artísticas que relacionavam pintura e


cinema em conexões remotas. Afirma que Tarkóvski sugeriu criar uma
atmosfera que fosse similar à que se contempla nos primeiros trabalhos do
pintor renascentista italiano Vittore Carpaccio151. Exemplifica com a criação do
que ele denomina “alheamento” ou “alienação” que era observado no trabalho
de Carpaccio não no que pertine às cores, traços, luzes mas na relação às figuras
humanas, entre elas, e a paisagem. Romadin se refere à atmosfera de alheamento
151
Tarkóvski tinha grande admiração por Carpaccio. Em Esculpir o Tempo o cineasta realiza
uma crítica à pintura renascentista sob o ponto de vista do literário e do pictórico que nos
auxiliam inclusive a compreender a sua postura inflexível em afirmar que o cinema não deve ser,
em hipótese alguma, literário. Realiza um contraponto entre Rafael (1483-1520) e Carpaccio
(1450-1525). Para ele Rafael oferece sua obra à leitura tornando tudo inequívoco e definido, cuja
alegoria ofuscaria as qualidades puramente pictóricas do quadro. Ao descrever Carpaccio parece
descrever o seu próprio cinema: “Em sua [de Carpaccio] pintura, ele resolve os problemas
morais que assediavam o homem do Renascimento, fascinado por uma realidade repleta de
objetos, pessoas e matéria. Ele os resolve através de meios verdadeiramente pictóricos”. E logo
após cita um trecho de uma carta de Nikolái Gógol (escritor russo, 1809-1852) a Vassíli
Zhukovsky (poeta russo, 1783-1852), de janeiro de 1848: “… não me compete fazer nenhum
sermão. De qualquer modo, a arte é uma homilia. A minha tarefa é falar através de imagens
vivas, e não de argumentos. Tenho de exibir a vida de rosto inteiro, não discutir a vida.”,
(TARKOVSKI, 1990, p. 54-55). As imagens, segundo Tarkóvski não devem ser
“exageradamente afirmadas como num cartaz”, o que seria o caso de Rafael. E conclui o
parágrafo: “Até mesmo Marx afirmou que, na arte, a tendência deve estar oculta, para que não
fique à mostra como molas que saltam de um sofá” (TARKOVSKI, 1990, p. 56).

131
em Carpaccio onde as pessoas parecem estar “ensimesmadas consigo mesmas.
Não se olham e nem à paisagem; de nenhuma maneira interagem com o
ambiente. Cria-se uma atmosfera “metafísica” de falta de comunicação”
(TARKÓVSKAIA, 2001, p. 120) e exemplifica a maneira pela qual essa
atmosfera foi transposta para o filme com a seqüência onde Kris está no terraço
de sua casa, ao lado de uma mesa com xícaras cheias de chá, uma jarra, talher e
frutas e começa a chover. É uma seqüência onde, em situações “reais” ou
“normais”, a personagem procuraria abrigar-se da chuva, recolheria os objetos
para protegê-los da chuva. Mas a chuva não interfere nesse mundo: as grossas
gotas caem insistentes sobre a mesa onde estão xícaras cheias de chá e sobre
Kris sem que esse demonstre qualquer reação. O objetivo, segundo Romadin,
era criar uma atmosfera de irrealidade, como se estivessem em outra dimensão
(TARKÓVSKAIA, 2001, p. 120). No entanto, acresce o artista, antes de
converter-se em imagem fotográfica, essa imagem, essa atmosfera, passava por
uma grande metamorfose. Não era a exatidão, transpor a pintura de um artista ou
outro para a tela do cinema, o objetivo de Tarkóvski e sim captar essa atmosfera,
elementos puramente imagéticos que pudessem suscitar determinada
recordação, determinado estado psicológico, diante dos quais (e aqui repetimos
o que o próprio cineasta disse a respeito das imagens de Carpaccio) “tem-se a
perturbadora sensação de que o inexplicável está prestes a ser explicado”
(TARKOVSKI, 1990, p.56).
A filmagem e montagem de Solaris ocorreram apenas em 1971. No
início de 1972, o Goskino demanda ao diretor uma lista de modificações a serem
realizadas. Tarkóvski recusa todas (TARKOVSKI, 2001 a, p. 384).
Segundo Natalia Bondartchuk, Solaris foi criticado pelo Goskino em
“trinta e dois pontos diferentes. Só estreou seis meses depois de concluído, em
março de 1972. E durante esse tempo não se permitiu que fosse visto por
ninguém”. Quando estreou, foi em pequenas salas da Mosfilm e mais tarde no
grande teatro do Clube dos Profissionais de Cinematografia (TARKÓVSKAYA,
2001, p. 110-111). No ano seguinte participaria do festival de Cannes onde
obteve o Prêmio Especial do Júri, o que aborreceu Tarkóvski que esperava o
prêmio principal (TARKÓVSKAYA, 2001, p. 112).

132
3.1.2.4. O Espelho (ЗЕРКАЛО), Mosfilm, 1974

O Espelho [foi] um logro cívico e artístico de Tarkóvski que comoveu a nossa memória,
esqudrinhou nossas feridas e nossas ineludíveis e ignoradas culpas.
Olieg Iankóvski152

O filme é definido pelo próprio diretor como autobiográfico.


No prólogo é mostrado um programa de televisão ao qual assiste Ignat,
filho de Aleksiéi. É mostrada uma sessão de hipnose onde uma médica cura um
adolescente gago que, ao final da sessão, fala sem gaguejar.
Aleksiéi acabara de divorciar-se, assim como Tarkóvski quando realizou
o filme. Ignat (assim como Arsiêni, filho de Tarkóvski com Irma Raush) tem a
mesma idade que o cineasta tinha quando o seu próprio pai separou-se de sua
mãe. O tempo do filme se faz em um jogo entre a vida de Ignat filho de Aleksiéi
e Aliosha (Aleksiéi quando criança). Apesar da voz do narrador ser a de
Aleksiéi, o núcleo argumentativo está centrado em parte da vida da mãe do
cineasta, Maria Ivánovna Tarkóvskaia, cuja imagem é ora refletida e ora
refratada pela de Natália, a jovem mãe de Ignat e ex-mulher de Aleksiéi, que
guarda com Maria Ivánovna uma semelhança assombrosa.
Neste filme é retomado um procedimento utilizado em A Infância de
Ivan. Fragmentos de documentários são inseridos em diversos momentos do
filme: espanhóis partindo para o exílio, fugindo da ditadura franquista153;
crianças órfãs, refugiadas da guerra civil espanhola chegando ao porto de
Odessa; balões soviéticos que sobrevoam a Rússia; o Exército Vermelho na
passagem do lago Sivash, em 1943; a libertação de Varsóvia pelos russos; a
bomba atômica em Hiroshima; a Revolução Cultural chinesa; e a cruel batalha
de 1969, entre as fronteiras dos rios Amur e Usuri, na ilha Domanski onde
russos tentaram conter chineses invasores.
As memórias do Aleksiéi menino se fundem à infância de seu filho. A
separação de seus pais se entrelaça à sua própria separação e ao distanciamento
152
Olieg Iankóvski (1944), ator russo, trabalhou em O Espelho (pai de Alexei) e Nostalgia
(Andriêi Gortchakóv). Epígrafe retirada de depoimento que o ator fez sobre Tarkóvski in
TARKÓVSKAYA, 2001, p. 177.
153
Franquismo foi o regime político vigente na Espanha entre 1939 e 1975, sob a ditadura do
General Francisco Franco Bahamonde (1892-1975).

133
do filho. As seqüências de uma e de outra criança, de uma e de outra mulher
muitas vezes se mesclam e se confundem, sendo discerníveis apenas pela
localização espacial: a infância de Aleksiéi se passa no campo e a de Ignat na
cidade.
A memória de Aleksiéi busca trazer para o velho apartamento na Moscou
dos anos setenta o vínculo com a datcha onde passara a infância, em companhia
da mãe e da irmã e os raros encontros com o pai. É a vida de Maria Ivánovna
que circula entre os fragmentos narrativos: cuida dos filhos enfrentando sérias
dificuldades do período stalinista e durante a guerra, enfrentando a fome, o
medo, o abandono, a solidão; trabalhando para manter a si mesma e aos seus
dois filhos, dignamente. Esses cuidados estendem-se, aos olhos de Tarkóvski,
aos seus descendentes diretos, ao neto e à nora. Ela própria despida de sua
individualidade, fundida nos fatos da guerra, das catástrofes históricas.
As cenas finais do filme parecem remeter ao início, ou seja, o filme tem
uma construção circular e justaposta: como um jogo que poderia ter seus
episódios mostrados em looping e perderíamos a noção do que fosse o início e
do que fosse o seu fim.

3.1.2.4.1. Produção de O Espelho

Aleksandr Misharin (1939-), escritor russo, amigo de Tarkóvski desde


1964, conta que, após concluir as filmagens de Andriêi Rublióv, Tarkóvski e ele
pensavam sobre como fazer um filme sobre a Rússia do período em que viviam,
sobre os problemas que lhe eram contemporâneos. Iniciaram um roteiro a quatro
mãos em 1968 e em poucas semanas Tarkóvski levava o resultado, com o título
Um dia branco154 para aprovação do Goskino. O roteiro não foi aceito.
Tarkóvski passou um bom tempo sem trabalho e, por fim deu início a Solaris,
adiando a realização de O Espelho (TARKOVSKAYA, 2001).
Synessios relata que Andriêi Kontchalóvski conta em suas memórias que
em 1964, ainda quando escrevia estava sendo elaborado o roteiro de Andriêi
Rublióv, Tarkóvski escrevera algumas lembranças de sua infância, das quais
destacava-se o episódio sobre o instrutor militar de sua escola, no período da

154
Assim se chamava inicialmente O Espelho.

134
Segunda Guerra. Essas lembranças de Tarkóvski, que no ponto de vista de
Kontchalóvski caracterizavam-se mais como literatura do que como roteiro,
seriam desenvolvidas mais tarde em O Espelho.
Durante um longo período, até quando o filme já começara a ser
realizado, O Espelho chamou-se Um dia branco, título retirado de um poema de
Arsiêni Tarkóvski, escrito em 1942, também nomeado Um dia branco, cujo
tema é a nostalgia da infância (SYNESSIOS, 2001, p. 12-13).
Um dia branco foi publicado como um conto, em 1970. Em 1972, o
Goskino aprova o roteiro e as filmagens iniciam-se em 1973. O filme fica pronto
um ano depois, mas só será liberado para exibição em 1975.
O roteiro inicial de O Espelho (Um dia branco) era um questionário, ou
melhor, uma entrevista realizada com a mãe de Tarkóvski. A idéia inicial era de
que a própria mãe de Tarkóvski, Maria Ivánovna protagonizasse o papel dela
mesma (Misharin In TARKÓVSKAYA, 2001, p. 48).
Finalmente, quando começaram as filmagens, Tarkóvski escolheu a sua
equipe, formada por colaboradores de todos os períodos (a montadora, Liúba
Feiguinova e o ator Nicolau Grinko que o acompanhavam desde A Infância de
Ivan; Eduard Artiémiev, músico que iniciara sua colaboração em Solaris;
Tâmara Ogorodnikova, que trabalhara como produtora e atriz em Andriêi
Rublióv) e mais outros tantos com quem ainda não trabalhara, inclusive o diretor
de fotografia, Georgi Rerberg, pois Iússov recusara-se a trabalhar com ele nesse
filme155.
O trabalho seguiu o esmero das produções anteriores. Nenhum detalhe
era deixado ao acaso. Misharin exemplifica esse desvelo que assegurava a
densidade em todo o filme, relatando o cuidado para pensar cada cena, cada
seqüência, como a introdução de um verdadeiro campo de batatas em flor com a
finalidade de conseguir a cor e luz violeta que inundou o jardim atrás da janela
da datcha em cujo interior as crianças pequenas (Aliocha e sua irmã Marina)

155
O motivo central dessa discordância, segundo Synessios foi o fato de que, incialmente,
Tarkóvski queria colocar uma câmera escondida para capturar imagens de sua mãe enquanto
essa era entrevistada por uma psiquiatra, o que Iússov não achou ser correto.
(TARKOVSKY,1999, p. 253). Iússov, em depoimento sobre o fato diz que não concordava com
o tom trágico que Tarkóvski buscava em sua própria história (TARKÓVSKAYA, 2001, p. 58).
Tarkóvski, em seu diário (23 dezembro de 1972) tanto lamenta (“Ele não me ama mais”) como
tenta entender pelo lado mais emocional e afetivo (“Romadin e Larisa dizem que
freqüentemente ele [Iússov] tenta humilhar-me, mas eu na verdade não me recordo”)
(TARKOVSKIJ, 2003, p. 101).

135
bebiam leite junto a pequenos animaizinhos, um gato e um cachorro, ambos
filhotes. As flores da batata são violeta e o campo foi providenciado para
alcançar o resultado pictórico pretendido (TARKÓVSKAYA, 2001, p. 50).
Também o cenário, o figurino e mesmo o trabalho com os atores
seguiram-se de extremo detalhamento. A datcha e todo o seu entorno foram
reconstruídos segundo as fotografias tiradas por Liév Gornung, fotógrafo amigo
dos pais de Andriêi Tarkóvski, que freqüentara a casa dos Tarkóvski quando as
crianças eram pequenas. Também foi fundamental a memória familiar, à qual o
cineasta recorreu, cuja reconstituição foi possível graças à colaboração de sua
irmã Marina Tarkóvskaia, de sua mãe e de seu pai. Os familiares estiveram
presentes muitas vezes na locação, durante a pré-produção. Os gestos e as
posturas de sua mãe, a serem representados por Margarida Terékova, foram
minucioasamente estudados.
O Espelho foi realizado em um período, conhecido como “Estagnação”,
em que a censura retomava a sua postura enérgica. Alguns outros filmes
produzidos nesse mesmo período foram considerados pelo Partido, como
“inadequados”, “difíceis”, “falhos”.
Junto a O Espelho, outros três filmes do mesmo ano (Romans o
vliublennykh, de Andriêi Kontchalóvski, Samyi zharkii mesiats, de Iuli Karasik e
Ozen, de Andriêi Smirnov) foram discutidos, em reunião aberta, pelos chefes da
União dos Cinematógrafos e a direção do Goskino, de forma que essas
produções com “temas contemporâneos” fossem analisadas segundo a última
diretiva para o cinema, elaborada pelo Comitê Central do Partido Comunista,
que se intitulava: “Medidas para o futuro desenvolvimento do cinema
soviético”. Segundo Synessios O Espelho e Ozen foram levados “ao sacrifício”,
como exemplos de filmes considerados inacessíveis, carregados de monólogos,
fracassados por não encaminhar conclusões e não apresentar idéias claras
(SYNESSIOS, 2001, p. 115), ou seja, exemplificavam os procedimentos a serem
evitados pelos diretores de cinema soviético.
A carta expedida pelo Partido Comunista, declarando o fracasso de
ambos os filmes e, em especial de O Espelho, assemelha-se, no tom repreensivo
e regulamentador da advertência, à censura pública feita duas décadas antes aos
filmes de Eisenstein e Pudóvkin, por Stálin e Jdánov. Fica evidente que, depois
das iniciativas de abertura do Degelo soviético, realizado por Nikita Khruchióv,

136
o governo de Leonid Briéjniev buscava retomar os métodos stalinistas de estrita
regulamentação e severo julgamento. Um pequeno fragmento da carta
exemplifica o tom da mesma, conforme abaixo:

Todos os oradores notaram o fracasso criativo de Andriêi Tarkóvski em O Espelho. O


roteiro original tinha nos conduzido à expectativa de um filme poético e patriótico
sobre heróis da infância e juventude, o qual coincidiram com os anos da “Grande
Guerra Patriótica”156 e sobre a formação do artista. A intenção original, por outro lado,
foi apenas parcialmente realizada. Sobretudo, o diretor criou um trabalho totalmente
subjetivo em concepção e espírito, fraco e artificial em sua linguagem cinemática, e
altamente incompreensível. O descuido do cineasta para com sua audiência, expressado
por complicado simbolismo e idéias vagas, que transgredia completamente as
melhores tendência realistas do cinema soviético, foi especialmente criticado […]
Levando em conta que O Espelho e Ozen constituem exemplos de óbvios fracassos
artísticos, o Goskino decidiu liberar esses filmes em cópias limitadas157 (SYNESSIOS,
2001, p. 116, grifo nosso).

Antes do filme ser levado ao Goskino para aprovação, Tarkóvski


mostrou-o para amigos, intelectuais e artistas, dentre eles o escritor e crítico
Víctor Chklóvski, o Nobel em física russo/soviético Piotr Kápitsa (1894-1984) e
o compositor Dmítri Chostakóvitch. Todos esses elogiaram o filme. Diferente
foi a reação da direção do Goskino, que determinou o destino do filme, então em
votação. Após vê-lo o presidente do Comitê teria dito: “É certo que temos
liberdade artística, mas não até esse limite”. (TARKÓVSKAYA, 2001, 50-51).
Ao final da votação, foram doze votos para classificar o filme na segunda
categoria contra onze que o indicaram para a primeira. Assim sendo, o filme foi
exibido em poucas salas e, assim mesmo, as piores de Moscou, destinadas às
produções de segunda categoria.
A União Soviética não permitiu que O Espelho fosse enviado ao Festival
de Cannes; sequer que participasse do Festival de Moscou. No ponto de vista de
Natasha Synessios, o presidente do Goskino temia que o filme fosse vencedor,
caso enviado aos festivais (2001, p. 117). Fatos posteriores indicam que tal
temor procedia. Tarkóvski relata em seu diário, em 5 de fevereiro de 1977 que O
Espelho tinha sido vendido à Europa por 500.000 francos e declara “Nenhum de
nossos filmes foi anteriormente vendido por um valor desses” (TARKOVSKIJ,

156
Referência à Segunda Guerra Mundial.
157
Synessios retira esse excerto de um artigo sobre os filmes criticados, O Espelho e Ozen,
publicado com o título “Obra prima de segunda categoria” (Shedevr vtoroi kategorii), de autoria
do escritor e diretor de arte russo Valiéri Fomin (1939-), no periódico russo Literaturnaia
gazeta, 13, 25 Março de 1992, p. 8.

137
2003, p. 213). Cabe lembrar que o dinheiro da venda era todo convertido ao
Estado, não cabendo ao cineasta nenhuma parte.

3.1.2.5. Stalker (СТАЛКЕР), Mosfilm, 1978

Para mim, o mundo inteiro é uma prisão…


Stalker

A história funda-se em dois espaços distintos: um deles constitui-se em


uma cidade industrial decadente na qual é destacado o que há de mais
destrutivo, como marcas de urbanização tais como fumaça, lama, sujeira, casas
maltratadas, semi-abandonadas; o outro espaço, figura o inabitável, proibido,
com resquícios da passagem civilizada que fora repentinamente suspensa; vê-se
a vegetação ganhando espaço, recobrindo tanques de guerra e velhos carros
enferrujados, destroços, metais que já fizeram parte de engrenagens, postes
inclinados sobre o solo, fios soltos, estruturas que já sustentaram paredes de
casas, semi-destruídas, abandonadas.
Esse espaço tornou-se proibido depois de ser atingido por um suposto
meteorito que nunca foi encontrado e as pessoas que, curiosas o adentraram,
desapareceram. Deu-se a esse lugar o nome de Zona. Essa informação nos chega
através do prólogo do filme.
Para ingressar na Zona os aventureiros enfrentam grandes dificuldades.
O local é cercado por altas e extensas redes de arame farpado e fortemente
vigiado por tropas do exército. Quem ousa ultrapassar a fronteira é recebido a
tiros de metralhadoras. Mas existem algumas pessoas que conduzem outras
nessa travessia. A esses condutores dá-se o nome de stalkers.
Na Zona há uma sala onde os desejos se realizam. Apenas os stalkers
conhecem a forma, ainda que arriscada, de ludibriar os vigilantes e chegar até o
local proibido. Sabem também como se desviar das armadilhas, todas mortais, e
contam que quando aparecem pessoas (na Zona), todas as coisas começam a se
mexer. As armadilhas somem, surgem novas. Os lugares seguros tornam-se
intransitáveis. E o caminho é ora fácil, ora infinitamente emaranhado. Nunca em
linha reta. Algumas pessoas tiveram que voltar da metade. Outras morreram

138
mesmo na entrada do lugar. Tudo que se passa nesse espaço dependeria do
“espírito” das pessoas que o visita.
O stalker que dá nome ao filme não tem outro nome que não seja esse,
Stalker. Maltrapilho e descuidado ele recebe algum dinheiro para conduzir
curiosos até o local proibido. É casado e tem uma filhinha mutante (supõe-se
que ela tenha sofrido algum efeito de irradiação), que possui dons especiais e
problemas os quais não se esclarecem em qualquer seqüência.
A história toda trata da condução do Escritor e do Professor, pelo
Stalker, com o objetivo de alcançar a Sala proibida no interior da Zona onde o
visitante deve expressar o seu desejo. Qual o desejo que cada um deles gostaria
de ter satisfeito ao ingressar na sala? Esse parece ser o assunto de menor
interesse durante todo o filme, embora cada uma das personagens revele pouco a
pouco o seu caráter e a sua motivação, conforme avança pelos caminhos
tortuosos e os muitos obstáculos na travessia.
O trajeto se faz aparentemente em círculos, sob os protestos do Escritor,
que não vê sentido nesse caminhar labiríntico quando, segundo seu raciocínio,
poderiam perfeitamente seguir em linha reta. Stalker sempre enfatiza que não há
linha reta na Zona, também não há uma lógica que não seja a lógica interna do
próprio espaço, aparentemente caprichoso e inconstante.
Quando param para descansar, Stalker terá uma espécie de sonho, ou
podemos imaginar que o tempo se suspendeu para que o espaço do repouso se
preenchesse da história de uma civilização que existiu, ou do futuro da
civilização que teima por existir. Desfilam na tela, sob a água que recobre o que
teria sido um dia o piso de uma casa, ou uma calçada: uma imagem de um santo,
moedas, uma seringa, uma arma, um relógio e outros fragmentos de
instrumentos, equipamentos, maquinaria. Uma voz feminina sussurra uma
passagem bíblica, do Apocalipse.
Quando despertam chegam finalmente diante da Sala e a tensão que se
fez durante todo o filme chega ao seu ápice. O Professor traz consigo uma
bomba. Planejava destruir a Sala para que não se possa fazer mal uso da mesma;
para que não caia em mãos de líderes insanos. Stalker se desespera ao perceber
que querem “destruir a esperança”. Aflito, ele tenta tirar a bomba do Professor e
é agredido pelo Escritor que já se irritara com ele seguidas vezes durante todo o
trajeto. Por fim, a luta, tanto verbal quanto física termina. Os três sentam-se à

139
entrada da Sala. Chove. O professor desarma a bomba e joga parte por parte na
água.
Retornam. Junto à esposa, em sua casa, Stalker está combalido,
inconsolável com a carência de fé e de generosidade do ser humano. Quando
adormece, a câmera se detém em sua esposa que lhe declara seu amor e seu
companheirismo. Depois a câmera enquadra o rosto sereno da pequena filha.
Stalker, enfim, pode ser um pária, aos olhos da comunidade onde vive (é
o que a esposa deixa explícito em sua última fala), mas é amado por sua pobre
família. As últimas tomadas mostram sua filhinha lendo, tranqüila, na sala ao
lado. A luz invade a sala, pela janela ao lado dela. A existência dessa criança, a
sua paz, por si só, já é um milagre da Zona.

3.1.2.5.1. Produção de Stalker

Em 1973, Tarkóvski leu Piquenique à beira do caminho, um livro


lançado um ano antes pelos mais destacados escritores de ficção científica
soviética do período, os irmãos Arkadi e Borís Strugátski. O cineasta anota em
seu diário que a história daria um bom roteiro, mas não pode ocupar-se da idéia
porque então estava envolvido com a realização de O Espelho (TARKOVSKY,
1999, p. 375).
Apenas em meados de 1975, após ter recusadas duas de suas propostas158
pelo Goskino, Tarkóvski entra em contato com os autores. Daí surgirá a
proposta inicial ao Mosfilm do que deveria chamar-se, inicialmente, A Esfera de
Ouro ou A Máquina do desejo. A partir da aprovação da proposta, em julho de
1976, deu início a uma série de alterações, intercaladas por incidentes, que
tornariam a produção bastante tumultuada (TARKOVSKY, 1999, p. 376).
O filme foi realizado através de duas filmagens. A primeira, de 1976 a
1977. Inicialmente a locação era próxima a Isfara, em um deserto no
Tadjiquistão, país que integrava a União Soviética, na Ásia Central. Mudanças
no roteiro acabaram por encaminhar uma nova locação e decidiu-se por uma
usina hidroelétrica abandonada, localizada em Tallin, cidade portuária, banhada
pelo Báltico, capital da Estônia, outro país (soviético nesse período), a noroeste

158
Tarkóvski havia proposto O Idiota, um filme sobre Dostoiévski, embora tenha estado em seus
planos adaptar o romance homônimo de Dostoiévski e ainda A morte de Ivan Ilich, de Liev
Tólstoi.

140
da Rússia. Concluída a filmagem o material foi levado para ser processado em
laboratório onde toda a película fílmica foi danificada; tornada assim
irrecuperável (TARKÓVSKAYA, 2001, p. 180).
O trabalho de toda a equipe havia sido perdido. Após diversos
contratempos, Tarkóvski sofre um ataque cardíaco. Quando se recupera reinicia
as negociações com a Mosfilm159 sobre a perda do material e trabalho e obtém
aprovação para refazer o trabalho perdido. Para tanto decide trocar boa parte da
equipe: substituiu o diretor de fotografia e dois diretores de arte, assumindo ele
próprio a direção de arte. Por fim, pede aos irmãos Strugátski que reiniciem
outro roteiro (TARKOVSKY, 1999, p. 376-377; TARKOVSKI, 2001 b, p. 220).
Um dos pontos que chamara a atenção de Tarkóvski para a história havia
sido o fato da história, originalmente trazer uma unidade de tempo, espaço e
ação dos quais a idéia central poderia se desenvolver continuamente um estado
de tensão. Tarkóvski desejava realizar um longo e talvez único plano-seqüência
(TARKOVSKY, 1999, p. 376). Os longos planos já haviam tornado uma marca
tipicamente tarkóvskiana que vinha ganhando força filme a filme, porém as
narrativas fragmentárias dos filmes anteriores impediam a continuidade
desejada160.
O cineasta pede aos Strugátski que essa característica que lhe é tão cara,
seja preservada:

Trata-se de uma importância primordial para mim que o roteiro observe uma unidade
de tempo, de espaço e de ação… O tempo, e seu fluxo, devem se revelar e existir no
interior do plano, e a montagem dos planos marcam o progresso da ação, sem o desvio
do tempo… Eu tenho desenhado o roteiro para não ter mais do que o mínimo de efeitos
exteriores… Eu quero mostrar ao espectador a capacidade do cinema de observar a
vida, sem ingerências grosseiras sobre o seu fluxo… porque aqui reside, segundo a
minha visão, sua verdadeira essência poética (TARKOVSKI, 2001 b, p. 220).

Para atender ao diretor os Strugátski reescrevem o roteiro em dez dias,


modificando-o radicalmente. Para começar, optam pela eliminação do conteúdo
de “ficção científica”, conforme relata Arkadi Strugátski. Antes de reiniciar a
escritura do novo roteiro com seu irmão, ele pergunta a Tarkóvski: “Escuta,
Andriêi, há necessidade da ficção científica no filme? Vamos eliminá-la!”. Ao

159
Tanto os diários de Tarkóvski quanto os depoimentos de sua equipe são ricos em detalhes
sobre essa passagem.
160
Andriêi Tarkóvski não chegaria a concretizar a idéia de fazer um filme em um único plano-
seqüência, tarefa que caberá a seu amigo próximo, o cineasta russo Aleksandr Sokúrov que, em
2003 realiza o primeiro, e até agora único filme do gênero, Arca Russa.

141
que o cineasta respondeu: “Sim, por fim você disse! Tenho desejado ouvir isso
de você há muito tempo, mas tinha medo de fazer a sugestão, para não aborrecê-
lo” (Strugátski In TARKÓVSKAYA, 2001, p. 182). O resultado, ainda segundo
Arkadi Strugátski foi uma parábola:

“Não escrevemos um roteiro de ficção científica, mas sim uma parábola (se
interpretamos uma parábola como uma narrativa qualquer cujas personagens possuem
uma idade típica e são portadores de idéias e comportamentos típicos). Um Escritor de
moda e um Cientista proeminente entram na Zona, onde os sonhos mais cobiçados
podem converter-se em realidade, e os dois são conduzidos por um Apóstolo da nova
fé, uma espécie de ideólogo” (Strugátski In TARKÓVSKAYA, 2001, p. 182).

Tarkóvski demonstrou-se satisfeito com o novo roteiro, chegando a


afirmar a Strugátski “A primeira vez em minha vida que tenho ‘meu próprio’
roteiro” (Strugátski In TARKÓVSKAYA, 2001, p. 183).
O “Apóstolo” citado por Arkadi Strugátski é Stalker, como o
conhecemos no filme homônimo. A segunda filmagem ocorre entre 1978 e o
início de 1979 quando o filme é montado. Embora satisfeito com o roteiro final,
Tarkóvski, durante a filmagem introduziu ao filme seqüências não previstas,
como ao final, quando Stalker e sua esposa retornam à casa. Há um longo
monólogo dessa sobre o seu amor pelo marido, quando ela encara diretamente a
câmera (TARKOVSKY, 1999, p. 379).
“Os distribuidores de filme tiraram 196 cópias do filme de Andriêi para
um quarto de bilhão de espectadores soviéticos. Três delas foram destinadas a
Moscou. Dois milhões de pessoas viram Stalker em Moscou durante os
primeiros meses” (Strugátski in TARKÓVSKAYA, 2001, 183).

3.1.2.6. Nostalgia (Nostalghia), RAI/Sovinfilm, 1983

Ser russo não é uma linha em um mapa político, são muitos quilômetros de dúvidas e fé.
Shavkat Abdusalamov161

Andriêi Gortchakóv é um escritor soviético que se encontra na Itália para


colher dados sobre Pável Sosnóvski, um compositor russo que de fato viveu e

161
Shavkat Abdusalamov (1936). Amigo de Tarkóvski e pintor uzbequi que viveu a maior parte
de sua vida na Rússia. Fez parte da direção de arte (não creditada) de Stalker. A epígrafe é parte
de seu depoimento sobre Andriêi Tarkóvski In TARKÓVSKAYA, 2001.

142
esteve na Itália durante o século XVIII, com o nome verdadeiro de Berezóvski,
sob o império de Catarina a Grande.
Quando o filme se inicia, Gortchakóv está chegando ao final de sua
pesquisa, pronto para regressar à União Soviética. Acompanhado de uma
intérprete italiana, Eugênia, Andriêi hospeda-se em um hotel na região da
Toscana, próximo às termas conhecidas como Bagno Vignoni.
É nesse local, próximo às piscinas, que o escritor, passeando em
companhia de Eugênia, conhece Domênico, um homem de maneiras peculiares,
considerado louco pelos moradores e turistas. Andriêi sente-se atraído pela
figura de Domênico e vai até sua casa. Eugênia tenta uma aproximação mas
Domênico não lhe dá muita atenção. A intérprete zanga-se com Andriêi e deixa-
o sozinho diante da casa do estranho considerado louco.
Andriêi segue Domênico ao interior de sua casa, um local onírico onde a
estrutura, teto e paredes em ruínas, degradados pelo tempo, deixam passar
rastros de luz. A chuva cai incessante formando poças d´água entre musgos e
folhagens. Garrafas de vidro recolhem gotas da chuva abundante. Domênico
pede que Andriêi o ajude a cumprir uma missão que ele mesmo não consegue.
Trata-se, explica ao russo, de atravessar as piscinas carregando uma vela acesa.
Entrega a Andriêi uma vela já queimada até a metade.
De volta ao hotel o escritor encontra Eugênia que o insulta, despeitada
por ele não tê-la tomado como sua amante. Desconsolada e irritada parte para
Roma, abandonando Andriêi que, de qualquer maneira, está prestes a retornar ao
seu país.
“Sonhos” ou “lembranças” justapõe-se às seqüências diurnas, dessa curta
temporada Bagno Vignoni. Nessas imagens onde podemos contatar o imaginário
de Andriêi, estão sempre a terra distante, a esposa, a família, o cão, outros
animais e a datcha. Andriêi não encontra paz nessa terra estranha, longe dos
seus.
Algum tempo após a partida de Eugênia, Gortchacóv também arruma sua
bagagem e está prestes a seguir viagem quando recebe uma ligação telefônica. É
a intérprete que telefona para dar-lhe notícias de Domênico que também
encontra-se em Roma – conta ela - há três dias em uma praça, discursando e
perguntara-lhe se Andriêi cumprira a missão que ele lhe confiara.

143
Andriêi suspende seus planos e pede que o taxista que o aguardava para
levá-lo ao Aeroporto, leve-o até as termas. Duas seqüências se mesclarão até o
final. Em uma delas, Andriêi tenta, a todo custo, manter a vela acesa enquanto
atravessa a piscina quase seca, meio à lama; na outra seqüência, Domênico,
discursa sobre a estátua de Marco Aurélio, na Praça do Capitólio, em Roma.
A vela que Andriêi carrega e protege contra seu próprio corpo,
abrigando-a ora com as mãos, ora com o casaco, apaga-se várias vezes e ele
demonstra-se cada vez mais cansado. A travessia é longa, o ritmo lento. A cada
vez que a vela apaga, Andriêi retorna ao ponto inicial e recomeça, andando
lentamente. A câmera segue o ritmo desse andar.
Enquanto isso, Domênico atinge o ápice do seu discurso ateando fogo ao
seu próprio corpo sob o som da Nona Sinfonia de Beethoven. Seu corpo em
chamas cai do alto da estátua de Marco Aurélio e ele agoniza diante de uma
platéia apática e passiva.
A seguir vemos Andriêi que finalmente consegue atravessar a piscina
toda e depositar a vela do outro lado. Ao terminar tal percurso suas mãos se
afastam da vela e ele cai, morto. A fraqueza de seu coração fora mencionada
anteriormente por Eugênia. A vela mantém-se acesa.
As imagens finais mostram Andriêi ao lado de seu cão frente a uma poça
d´água, sentado sobre a terra. Atrás dele a imagem da datcha que o
acompanhara as lembranças e os sonhos durante todo o filme. Mais atrás e
acima se sobrepõe a imagem das ruínas da basílica de São Galgano. As luzes
que atravessam as janelas da abadia refletem-se na água à frente de Andriêi.
Flocos de neve caem lentamente sobre tudo.

3.1.2.6.1. Produção de Nostalgia

Primeiro filme no qual, assim que inicia, não se vê a vinheta introdutória


do Mosfilm. Nostalgia foi realizado além das fronteiras da União Soviética,
financiado conjuntamente pela RAI, Radiotelevisione Italiana e pelo estúdio
soviético Sovinfilm. Projeto acalentado junto a Tonino Guerra (1920-), escritor
e poeta italiano, desde quando esse, em 1975, estivera em Moscou
acompanhando Michelangelo Antonioni (TARKOVSKI, 2001 b, p. 321;
TARKOVSKY, 1999, p. 465).

144
Em 1976 Tarkóvski e Guerra iniciam a escritura de um roteiro para um
filme destinado à televisão italiana (RAI) que se chamaria Viagem à Itália. Um
convite formal da RAI foi enviado à União Soviética, para que Tarkóvski
viajasse à Roma para realizar o filme (TARKOVSKI, 2001 b, p. 321;
TARKOVSKY, 1999, p. 465).
Porém, até 1979, o cineasta estaria ocupado com outros projetos, tanto
dirigindo Hamlet que montara no teatro, quanto com a realização de Stalker.
Nesse mesmo ano Tarkóvski consegue permissão para ir até a Itália para
concluir o roteiro iniciado com Tonino Guerra. Mudam o título, de Viagem a
Itália para Nostalgia. Ao mesmo tempo, enquanto buscam locação para
Nostalgia, viajando pela Itália, trabalham com 16 mm documentando a viagem,
material que se constituirá no documentário Tempo di Viaggio (TARKOVSKY,
1999, p. 466).
A partir de então vários percalços seguem-se até que Nostalgia seja
enfim aprovado: após apenas três semanas na Itália, o cineasta retorna
rapidamente à Moscou pois sua mãe morrera.
Em Moscou, Solonitsin fica gravemente enfermo, com câncer do qual
não consegue se curar. Solonitsin era seu ator preferido (fizera os papéis de
Rublióv, no filme de mesmo nome; Sartórius, em Solaris; o Médico, em O
Espelho; e o Escritor, em Stalker). Tarkóvski havia escrito o roteiro de
Nostalgia já pensando no ator que iria representar o protagonista, Andriêi
Gortchakóv, e esse ator era Andriêi Solonitsin. Ao saber da impossibilidade de
Solonitsin, Tarkóvski convida outro ator de seu agrado, Aleksandr Kaidanóvski,
que fizera o Stalker no filme anterior. Kaidanóvski aceita, mas a União
Soviética não lhe permite sair do país. Sua opção então recai sobre Olieg
Iankóvski que trabalhara em O Espelho. Iankóvski aceita e obtém permissão,
indo encontrar-se com o cineasta, na Itália (TARKOVSKI, 2001 b, p. 322).
Mas todo o processo é longo. Apenas no início de 1982 o contrato é
assinado entre União Soviética e Itália. Tarkóvski parte, deixando a esposa e o
filho, então com doze anos. Lárisa Tarkóvskaia logo iria ao seu encontro162, mas

162
A esposa de Tarkóvski, Larisa Tarkóvskaia, trabalhava como assistente de direção desde
Solaris.

145
o filho não recebe autorização para acompanhar os pais163 (TARKOVSKY,
1999, p. 468; TARKOVSKI, L., 1998, p. 102). A RAI, por sua vez não aceitou a
participação do músico russo Eduard Artiémiev, que trabalhava com Tarkóvski
desde Solaris, obrigando-o a escolher um compositor italiano
(TARKÓVSKAYA, 2001, p. 167).
Por fim, antes que o ano de 1982 findasse o filme estava concluído e
editado. Em meados desse mesmo ano morria Solonitsin.

3.1.2.7. O Sacrifício (Offret), Svensfilm, 1986

Toda a história concentra-se no dia do aniversário da personagem


central, Alexander, crítico de arte, escritor que há algum tempo deixara os
palcos onde atuava com sucesso. Alexander preferira mudar-se com a família (o
seu pequeno filhinho, sua esposa Adelaide e Marta, adolescente filha do
primeiro casamento de Adelaide) em um local tranqüilo, próximo ao mar.
Após os créditos iniciais, tem início uma seqüência na qual Alexander,
pela manhã, em companhia do filhinho, encontra-se à beira do mar onde planta
uma árvore seca e, aparentemente sem vida. Conta ao filho a lenda de um
stáriets164 russo de nome Pamva que pediu a um homem chamado Iván Kólov
que regasse uma árvore seca todos os dias, durante anos. Um dia a árvore
floresceu. Alexander fala continuamente e a criança não responde pois não pode
falar porque sofrera uma cirurgia na garganta. Alexander então monologa.
Otto, o carteiro, vem ao seu encontro, em uma bicicleta e lhe entrega um
telegrama onde amigos de Alexander o cumprimentam pelo aniversário. A
mensagem vem assinada por Ricardinos e Idiotistas. Os amigos fazem menção a
dois dos principais papéis que Alexander havia desempenhado no teatro:
Ricardo III de William Shakespeare e o príncipe Mishkin em O Idiota de Fiódor
Dostoiévski.
Alexander e Otto conversam por um tempo, enquanto andam pelo campo
junto ao menininho, próximos ao mar.

163
Desde 1980, Tarkóviski tentava obter o visto para levar Andrucha consigo para a Itália, mas
não era prática na União Soviética que a família inteira deixasse o país. Alguém sempre deveria
ficar (TARKOVSKY, 1999, p. 166).
164
Um padre sábio, geralmente mais velho.

146
Após a partida do carteiro, pai e filho continuam seu caminho até serem
encontrados por Adelaide que chega em companhia de Vítor, seu amante e
médico, amigo da família. Os três conversam cordialmente e logo após Adelaide
e Vítor retornam à casa no carro de Vítor. Alexander preferira continuar
caminhando com seu filho pelo bosque.
É ainda nessa primeira parte que se iniciam os “sonhos”, “delírios” ou
“premonições” de Alexander que percorrerão o filme todo, intercalando as
seqüências do que seria o quotidiano.
O almoço de aniversário está sendo preparado por Júlia, a governanta e
por Maria, a estranha criada islandesa. Vítor presenteia Alexander com um
grosso livro com reproduções grandes e coloridas de antigos ícones russos que o
aniversariante folheia, encantado. Otto chega com um presente: um grande mapa
da Europa do Século XVII, emoldurado, sob um vidro. Junto a eles está Marta.
Os preparativos para o almoço são interrompidos por um estranho
fenômeno que leva ao chão diversos utensílios e põe a tremer toda a estrutura da
casa. Após o tremor, a família e convidados assistem ao Primeiro Ministro que,
através da televisão, tenta tranqüilizar a população em pânico. Ao que tudo
indica trata-se do início de uma guerra nuclear. Todos estão atônitos. Adelaide
tem um crise nervosa e Vítor aplica-lhe um sedativo. A televisão sai fora do ar,
as luzes se apagam pois a eletricidade foi bruscamente cortada, o telefone não
funciona.
Alexander sobe até o piso superior da casa e recorre a Deus para que
salve sua família, seus amigos da catástrofe. Ajoelhado promete sacrificar-se,
afastando-se de seu filho e desfazendo-se de sua casa. Mas o que fará? É Otto
quem lhe indica o caminho: ele deve ir à casa de Maria. Sugere que Maria é uma
espécie de bruxa e que apenas junto a ela, Alexander conseguirá a salvação dos
seus. Ainda hesitante, Alexander vai ao encontro de Maria. Toda essa longa
seqüência é permeada de sonhos ou visões premonitórias.
Quando Alexander acorda, constata que o mundo voltara ao normal: o
rádio volta a funcionar, as luzes podem ser acesas e o telefone o coloca em
contato com seu editor. Alexander está certo de que conseguiu salvar a sua
família e seus amigos. Se de fato encontrara-se com Maria ou se sonhara, ou
imaginara, ou delirara, parece que ele não tem muita certeza, inicialmente. Mas
logo depois alguns indícios apontam para a possibilidade do encontro ter

147
ocorrido de fato, tal como a dor em seu joelho que batera, quando caíra da
bicicleta a caminho da casa de Maria.
Após a refeição matinal todos saem para passear. Alexander então,
cuidadosamente afasta o carro de Vítor que estava próximo da casa, junta as
cadeiras sobre a mesa da varanda, cobre tudo com uma toalha, espalha gasolina
sobre essa toalha e ateia fogo. As labaredas já vão altas quando Adelaide, Júlia,
Marta e Vítor retornam correndo. Alexander é levado por uma ambulância.
Maria segue-o em uma bicicleta. A família e os amigos observam o telhado em
chamas ruir sobre as paredes de madeira já em queda, também. E um pouco
distante, junto ao mar, o filhinho de Alexander esforça-se para levar dois
grandes baldes de água até a árvore seca que plantara com o pai. A ambulância
passa por ele, Maria também passa, pedalando, mas a criança continua entregue
à sua atividade. Cansada, por fim, deita seu pequeno corpinho sob a árvore com
os olhos no céu e pronuncia as únicas palavras do filme todo: “No início era o
Verbo. Por quê, papai?”.

3.1.2.7.1. Produção de O Sacrifício

Após o término de Nostalgia, em 1983, Tarkóvski seguiu para Londres, à


convite do maestro italiano Claudio Abado (1933-), para dirigir a ópera russa
Borís Godunov, do compositor russo Modest Mússorgski (1839-1891) no
Convent Garden, na capital inglesa. No mesmo ano assinava contrato com o
Instituto de Filme Sueco para a produção, na Suécia, de um filme que, a
princípio se chamaria A Bruxa. Uma vez e em Roma escreve o roteiro que fica
pronto no início de 1984, já com o título O Sacrifício (TARKOVSKI, 2001 b, p.
369, 370, 428; TARKOVSKY, 1999, 509).
Poucos meses depois, em 10 de julho, Tarkóvski, junto a Lárisa,
participam de uma entrevista coletiva. É quando anuncia publicamente que não
retornaria à União Soviética e expõe seus motivos: seu visto havia expirado, os
dirigentes soviéticos haviam cortado a comunicação com ele, ou seja, apesar de
seus insistentes pedidos não respondiam a ele. Portanto nada mais havia a fazer

148
a não ser pedir asilo ao exterior, ainda que seu filho e a mãe de Lárisa não
tivessem permissão de sair da União Soviética165.
Logo mais parte para Estocolmo e, na companhia do diretor de
fotografia, o sueco Sven Nykvist (1922-2006), segue em busca de locações para
a realização de Sacrifício na Suécia. O local escolhido foi a ilha de Gotland,
conhecido cenário do cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-). A construção da
casa cenográfica foi cuidadosa e detalhadamente acompanhada pelo cineasta,
desde os primeiros desenhos e maquetes. A versão final acabou por configurar-
se uma datcha.
Em 1985 as filmagens têm início. A equipe não contava com um único
russo, além de Tarkóvski que trabalhou o tempo todo com uma intérprete. De
todos os seus antigos companheiros de equipe, apenas um conhecido estaria
presente nesse filme. Trata-se do ator sueco, Erland Josephson (1923-), que
trabalhara em Nostalgia como o louco Domênico, e agora desempenharia o
papel de Alexander166.
O grande incidente do filme marcaria a história do cinema. É Tarkóvski
quem relata:

Não tivemos problemas técnicos ou de qualquer outro tipo durante a filmagem, até um
momento, perto do final, quando todos os nossos esforços pareciam prestes a resultar
em nada. De repente, na cena em que Alexander coloca fogo em sua própria casa - uma
tomada única com seis minutos e meio de duração – a câmera quebrou. Só fomos
perceber isso quando a construção já estava totalmente em chamas, ardendo até o fim
diante dos nossos olhos. Não pudemos apagar o fogo, nem pudemos fazer uma única
tomada; quatro meses de trabalho árduo e dispendioso por nada (TARKOVSKI, 1990,
p. 271).

O cineasta consegue negociar com a produção a construção de uma nova


casa, idêntica à primeira. A cena é rodada novamente, agora com duas câmeras.
Dessa vez tudo deu certo.
Em dezembro de 1985 O Sacrifício começa a ser montado. Nesse mesmo
período Tarkóvski descobriu que estava com câncer nos pulmões. Inicia-se o
tratamento do cineasta em diversas cidades da Europa, em busca do melhor
165
A pesquisadora Natasha Synessios tem a seguinte opinião sobre o exílio de Tarkóvski: “As
circunstâncias que levaram Tarkóvski a tomar essa decisão não eram livres de ambigüidade. A
despeito de suas constantes batalhas com o Goskino, e o fluxo infindo de rejeições às suas
idéias, ele estava profundamente preso ao seu país e sua cultura. Parece que uma extrema
pressão foi exercida sobre ele por sua família mais próxima [sua esposa, no caso] para tomar
essa decisão, com a qual ele nunca se conformou” (TARKOVSKY, 1999, 509).
166
Tanto Josephson quanto Nykvst eram antigos integrantes da equipe de Bergman.

149
tratamento. No hospital Tarkóvski acompanha a montagem de O Sacrifício e
escreve o seu próximo projeto: Hamlet, que já encenara no teatro, em Moscou e
agora queria levar ao cinema. Mas a doença não cede e se agrava.
Nesse período François Miterrand167 (1916-1996) escreve pessoalmente
a Mikhail Gorbatchióv168 (1931), pedindo para que o filho mais novo de
Tarkóvski, então com dezesseis anos, tivesse permissão de ir a Paris despedir-se
de seu pai, a quem não via há quatro anos. Tanto Andrucha quanto sua avó
finalmente partem de Moscou em janeiro de 1986 (Tarkovski, L., 1998, p. 151).
O filme é concluído e inicia-se sua exibição. Andrucha, ainda adaptando-
se à cultura parisiense, é encarregado de ir ao Festival de Cannes, representando
o pai, impossibilitado de comparecer, e lá recebe o Premio Especial do Júri,
conferido a O Sacrifício.
Tarkóvski não teria tempo de encaminhar seus novos projetos.
Conseguiria apenas finalizar o último capítulo de Esculpir o Tempo. Apesar de
toda a disposição por levar adiante uma grande quantidade de criações que
planejava, conforme deixou registrado em seus diários, a cada dia estava mais
debilitado.
Em 15 de dezembro de 1986 escreve em seu diário: “Estou
tremendamente debilitado. Estou para morrer? [...] E Hamlet?” (TARKOSVKIJ,
2001, p. 689).
No dia seguinte já não escreveria. Na noite entre 28 e 29 de dezembro do
mesmo ano a morte arrematou169 a vida de Andriêi Arsiénievitch Tarkóvski.

167
Presidente da França, de 1981-1995.
168
Secretário Geral do Partido Comunista na União Soviética, de 1985 a 1991.
169
Referência à compreensão sartreana segundo a qual ninguém é qualquer coisa antes que sua
vida esteja concluída, ou seja, arrematada pela morte.

150
3.2. Entre a política do Degelo e a Estagnação

Segundo a classificação do Departamento de Linguagem e Literatura


Eslavas da University of Pittsburgh 170 e a bibliografia consultada sobre cinema
russo171, dentro da linha do tempo histórico, com algumas pequenas variações
entre os autores, a produção cinematográfica russa obedece à seguinte
classificação geral por períodos:
Cinema Revolucionário: 1917-1929
Cinema Stalinista: 1930-1953
Cinema do Degelo (anti-stalinista): 1953-1967
Cinema da Estagnação (neo-stalinista): 1967-1985
Cinema da Pierestróika: 1986 – 1991
Cinema Pós-Soviético: 1991 em diante.

É relevante observar essas classificações pois elas pautam-se pelos


movimentos da censura ideológica partidária sobre a criação artística, em todas
as áreas, estabelecendo senão cânones, ao menos tendências a serem seguidas.
No período de Degelo a censura abriu a guarda (mas não deixou de existir),
principalmente por conta da política anti-stalinista adotada por Nikita Khruchióv
a partir de 1953. Já no período, conhecido como Estagnação, o papel da censura
tornou a ser exercido duramente. Um caso exemplar (mas não único) é o do
diretor russo Aleksandr Sokúrov (1951)172, cujos filmes apenas foram liberados
para exibição em território soviético no período da Pierestróika173.
A obra cinematográfica de Tarkóvski foi realizada entre dois períodos:
Degelo e a Estagnação. Sua carreira iniciou-se em 1961, período de
características mais amenas, em relação à censura, se comparado à totalidade
dos anos do governo soviético.
Era o “degelo” soviético, que tivera início quando Nikita Khruchióv
assumiu o poder - após denunciar em reunião secreta do Partido os expurgos

170
http://www.pitt.edu/~slavic/video/cinema_biblio.html Acesso: 09 dez. 2006.
171
SHLAPENTOKH, GILLESPIE, e KENEZ.
172
TUCHINSKAYA, http://www.sokurov.spb.ru/island_en/bio.html. Acesso: 10 jan. 2007.
173
Pierestróika (Перестройка) é palavra russa cuja acepção é reconstrução, reorganização
(VOINOVA; STARETS). Historicamente refere-se à reconstrução política proposta pelo líder
russo Mikhail Gorbatchov, a partir de 1985, na União Soviética. TUCHINSKAYA,
http://www.sokurov.spb.ru/island_en/bio.html. Acesso: 10 jan. 2007.

151
étnicos, as prisões e as milhares de mortes promovidos por Stálin em nome da
unificação das Repúblicas Soviéticas. Khruchióv dera início a um processo de
reabilitação de artistas, intelectuais e cientistas que haviam sido banidos
anteriormente, promovendo uma abertura no âmbito artístico e cultural, o que
incluía trazer à luz as obras censuradas e perdidas nos arquivos dos censores de
Stálin174.
Aleksandr Gordon, cineasta também russo, colega de Tarkóvski nos
estudos universitários na VGIK e mais tarde seu cunhado (casou-se com a única
irmã do cineasta, Marina Tarkóvskaia), contextualiza os primeiros anos da
trajetória de Tarkóvski no cinema soviético, que coincidiram com os últimos
anos em que Khruchióv era o Secretário Geral do Partido. Gordon nomina esses
tempos de abertura política, econômica e cultural, de “mini Pierestróika”:

Em conseqüência da atmosfera de um maior contato com o Ocidente, nessa época,


chegaram a Moscou diversas companhias teatrais procedentes de Paris, de Roma, a
companhia Brecht de Berlim, etc. Nas salas de cinema se projetavam filmes italianos,
franceses e poloneses... Uma abertura cultural que revigorou bastante a vida espiritual
da União Soviética, sobretudo depois da vida tão severa, tão sóbria da época stalinista,
quando a cultura havia sido controlada de modo tão extraordinariamente rigoroso.
Esse período ficou conhecido como degelo, em referência a esse fenômeno que ocorre
na Rússia no começo da primavera, quando começa a derreter as primeiras neves e a
terra começa a ficar em condições de ser cultivada. Também aqueles anos eram tempo
de grandes esperanças, nos quais, por exemplo, foram rodados os filmes tão
importantes como Quando voam as cegonhas, de Kalatozav, com um diretor de
fotografia muito importante – Urusevski -; ou os filmes de Tchukrai, como Céu
Transparente, etc. Filmes esses amplamente distribuídos por todo o território russo,
tanto quanto na Europa e na América, onde obtiveram prestigiosos prêmios
internacionais. (GORDON)175.

No entanto, recorda mais adiante o próprio Gordon, no mesmo


depoimento: “Ao avançar a onda de liberdade na Rússia, os dirigentes do Estado
e do Partido se deram conta de que aquelas criações livres eram perigosas para o
sistema”.
De fato, para o jovem cineasta Andriêi Tarkóvski a liberdade durou
pouco. Justamente ao finalizar o seu segundo longa, Andriêi Rublióv, Kruschióv
havia sido deposto e não governava mais a União Soviética. Findo o degelo, a

174
É desse período também a publicação inaugural na União Soviética das poesias de Arsiêni
Tarkóvski, pai de Andriêi Tarkóvski, antes também sob censura.
175
ANDREI TARKOVSKI. Sobre la formación artística de AT. Depoimento de Alexander
Gordon. In: http://www.andreitarkovski.org/articulos.html.

152
água voltara ao estado sólido. Iniciava-se a era de Leonid Briéjniev (1964 –
1982), cópia duvidosa de Stálin. Os conservadores soviéticos reassumiram
oficialmente o poder e a rígida censura retomava seu lugar. Em seus diários (de
1970 a 1986) Tarkóvski conta seus embates pessoais com os presidentes do
Goskino. Tais funcionários estatais, cujo cargo equivalia ao de um ministro, se
constituíam nos principais responsáveis por todas as exibições (e as não
exibições) de seus filmes e pela aprovação (e a não aprovação) das dezenas de
roteiros e projetos que o cineasta pretendeu realizar (e não realizou), embora
tenha escrito dezenas de roteiros e projetos encaminhados para a aprovação.
Marina Tarkóvskaia é bastante incisiva ao avaliar o papel exercido pela
censura nesse período, contrapondo-se às declarações de Tonino Guerra176,
também feitas à imprensa177:

[...] naquela época, na qual o sistema soviético se tornou especialmente severo porque
se dava conta da própria fragilidade, cada roteiro e cada filme realizados por Tarkóvski
passavam por um crivo ideológico muito sério. E nesse sentido, não estou de acordo
com Tonino Guerra, que em uma entrevista recente publicada em uma revista
moscovita disse: “A censura do dinheiro é a mais terrível, muito pior que a política. Por
isso não é de se estranhar que nos tempos soviéticos mais duros puderam trabalhar em
vosso país artistas da estatura de Tarkóvski. A censura totalitária deixava passar
momentos puramente estéticos, poéticos, porque normalmente nem sequer se dava
conta deles”. Os ideólogos soviéticos desde os chefes da Mosfilm até a Seção
Ideológica do Comitê Central do Partido Comunista se davam conta muito bem da
força da arte cinematográfica. E compreendiam perfeitamente que os filmes de
Tarkóvski eram subversivos, para começar porque faziam pensar, formulando
perguntas que não coincidiam em absoluto com as fórmulas comunistas: “O que é o ser
humano? Para que vive? Em que consistem os valores principais da vida humana?”
Porque uma pessoa que pensa livremente é capaz de refletir, torna-se o principal
inimigo da demagogia comunista. Por isso, cada filme que Tarkóvski concluía na
URSS lhe custava vários anos de uma luta intensíssima, que absorvia suas forças e
fazia minguar a sua saúde. Inclusive, obtido o financiamento e a permissão para
projetar seus filmes ao público, das obras de Tarkóvski eram feitas pouquíssimas
cópias178 que se podiam ver apenas nos pequenos cinemas da periferia de Moscou179.

176
Antonio (Tonino) Guerra, escritor e poeta italiano, nascido em 1920. Colaborador e roteirista
de Michelangelo Antonioni (A Aventura, Profissão Repórter e Blow-Up), Federico Fellini
(Amarcord) e Theo Angelopoulos (A eternidade e um dia), dentre outros. Colaborador e amigo
pessoal de Tarkóvski, com quem trabalhou diretamente no documentário Tempo de Viaggio e
Nostalgia.
177
ANDREI TARKOVSKI. Entrevista en el ABC Madrid 01.07.2002.pp-42-43. La revolución
pendiente, según Tarkovski. In: http://www.andreitarkovski.org/articulos.html
178
Os cineastas soviéticos ganhavam um salário fixo sobre os filmes que realizavam e o cálculo
era feito sobre os metros de filme e as cópias desses, independente do tempo que se levava para
realizar o filme ou para exibi-los (TARKOVSKIJ 2002).
179
Sobre o privilégio de exibição de filmes na URSS, Tarkóvski cita: “Em 5 de fevereiro (1973)
Solaris estreará em uma sala de Moscou. A estréia será na sala Mir. Não na Oktiabr ou na
Rússia, mas na Mir. As autoridades não consideram o meu filme digno das melhores salas. Pior
para eles. Vão à Rússia para ver a porcaria daquele Gerasimov” (TARKOVSKIJ, 2003, p. 106).

153
Tanto em um período, como em outro, houve tendências estéticas e
comunicacionais a serem seguidas, dentro da normatização do Realismo
Socialista. Essas tendências foram mais ou menos seguidas pelos cineastas
soviéticos. Apresentaremos a seguir aquelas que relacionam-se diretamente com
os filmes de Tarkóvski: o heroísmo das crianças; o heroísmo das figuras
históricas e o nacionalismo nos filmes épicos; e a expansão da ideologia
soviética nos filmes de ficção científica.
Observamos que dois grandes eixos temáticos nortearam a produção dos
filmes, desde o período revolucionário, canonizados pelas regras do Realismo
Socialista: o heroísmo e o nacionalismo. Revestindo-se de algumas pequenas
variações, esses eixos perpassam toda a produção soviética, até a Pierestróika
(inclusive no Degelo, embora com um pouco mais de tolerância). O heroísmo
consiste principalmente na glorificação de grandes heróis russos do passado
longínquo, recente e mesmo do presente, principalmente reproduzindo os feitos
de heróis da literatura russa, quando no passado longínquo, ou os governantes a
partir da revolução, centrando as lentes nas figuras principais de Lênin e Stálin;
e ainda do povo, na figura de soldados, mulheres, crianças que sacrificaram suas
vidas particulares pelos valores ditos “da Revolução”. O nacionalismo pauta-se
principalmente pelo enaltecimento das qualidades do povo russo diante das
adversidades, como lutar contra o regime tzarista, unir-se e colaborar ativamente
no processo de coletivização e reeducação do proletariado, lutar bravamente e
resistir em toda e qualquer guerra, contra aquelas que colocam em risco os
valores “da Revolução”.
As fronteiras entre as tendências nos filmes identificadas como heroísmo
e nacionalismo são sutis e uma, a rigor, acaba por implicar a outra. Ambas
encontraram forte apelo através dos filmes de guerra, nos épicos e nas biografias
de personalidades russas ilustres. O propósito, nas seções a seguir, não é discutir
o gênero no cinema soviético e tampouco um panorama dessa tendência,
trabalho que por si só geraria uma outra tese, mas apenas sinalizar as tendências
contidas no grosso da produção soviética que se conectam com a filmografia
estudada, com alguns exemplos significativos.

154
3.2.1. O heroísmo das crianças soviéticas

O pequeno Ivan Bondarev deveria ter sido um herói de guerra, aos olhos
do Partido Soviético, seguindo a tradição dos filmes de guerra produzidos até
então (TUROVSKAYA 1989 p.2). Por esse caminho A Infância de Ivan seria
mais uma personificação da criança a celebrar a coragem e o heroísmo do povo
russo em tempos difíceis. Lembremos que a bravura das crianças russas vinha
sendo exaltada pelo Partido desde o período de Lênin, com a Organização dos
Jovens Pioneiros Soviéticos, uma espécie de escotismo que nasceu como apoio
ao Exército Vermelho, em resposta ao escotismo já existente, que apoiava o
Exército Branco180. Essa organização, criada em 1922, com o incentivo e
proteção da esposa de Lênin, Nadiejda Krúpskaia (1869-1939), atuaria até 1990
quando foi dissolvida.
Uma grande ênfase publicitária (educativa) era dada ao valor dessa
atuação. Os cartazes com imagens de crianças e adolescentes saudáveis e felizes
trabalhando pelo bem estar e engrandecimento da pátria eram freqüentes desde
os primeiros dias da revolução russa.

Cartazes soviéticos do período de Iósef Stálin181

180
O Movimento Branco, cujo braço militar ficou conhecido como Exército Branco, ou Guarda
Branca compreendia algumas das forças russas, tanto políticas como militares, que se opuseram
aos Bolcheviques após a Revolução de Outubro e lutaram contra o Exército Vermelho.
181
http://eng.davno.ru/posters/propaganda1/poster-91.html e
http://eng.davno.ru/posters/propaganda1/poster-04.html, respectivamente. Acesso: 21 jan. 2007.

155
Selos também foram criados, em diversas oportunidades, para enaltecer
ou homenagear as crianças.

Selos comemorativos, da esquerda para a direita: a primeira viagem ao espaço (o soviético Iuri Gagárin foi
o primeiro cosmonauta a fazê-lo em 12 de abril de 1961), 4 copeques, 1961; aniversário de quarenta anos
dos Pioneiros, 2 copeques, 1962; aniversário de cinquenta anos dos Pioneiros, 4 copeques, 1972182.

Aleksandr Rodtchenko, cinqüenta anos antes de Tarkóvski realizar A


Infância de Ivan, criou a série fotográfica Pioneiros, dando visibilidade às
crianças que contribuíam para a construção da Rússia Revolucionária.

RODTCHENKO, Fotografias de Pioneiros c. 1930183.

Da mesma maneira o cineasta soviético de origem polonesa Dziga


Viértov (1896-1954), em seus documentários, destaca a atuação dos
“Pioneiros”.

182
http://www.stamprussia.com. Acesso: 21 jan. 2007.
183
http://www.moma.org/exhibitions/1998/rodchenko/texts/photography_jpg_2.html;
http://news.bbc.co.uk/1/hi/magazine/in_pictures/3485215.stm. Acesso: 20 dez. 2007.

156
VIÉRTOV, frames de Pioneiros em Kino-Pravda (1922-1925).

Alguns anos mais tarde, já na década de 1940, no auge do Realismo


Socialista, o diretor soviético Vassíli Pronin (1905-1966), logo após o término
da Segunda Guerra, realizara O filho do regimento (1946), adaptação da novela
homônima de Valentin Kataiev (1897-1986). Como nos filmes de guerra, já
convencionais na União Soviética, as inquietações humanas, as incertezas, o
medo, a perda, a fraqueza, a dúvida, a dor, o sofrimento, eram reduzidos, senão
invalidados e substituídos pela felicidade de estar servindo ao engrandecimento
da Pátria, ainda que o preço fosse a própria vida ou a vida de entes queridos. O
filho do regimento possuía argumento bastante semelhante ao conto Ivan, de
Bogomolov. A personagem de Pronin, Vânia (diminutivo russo de Ivan), é a
criança órfã, que é também adotada pelos oficiais do regimento, mais
propriamente pelo capitão Enakiev, que perdera seu próprio filho, com idade
aproximada à de Vânia. Os atos e posturas heróicos são patentes: capitão é
assassinado na guerra e tal evento é engrandecido quando da passagem de Vânia
a oficial cadete, com grande orgulho por estar seguindo os passos de seu
falecido herói, embora duas vezes órfão. Na seqüência final do filme o garoto,
agora um glorioso cadete, fará parte das comemorações de vitória na Praça
Vermelha.

3.2.2. O heroísmo das figuras históricas e o nacionalismo nos filmes épicos

O Realismo Socialista há muito tinha como procedimento de propaganda


educacional, a realização de épicos. Eisenstein notabilizara-se por vários deles:
Alexander Niévski e Ivan, o Terrível, principalmente. Mas nem sempre os
cineastas (bem como artistas de outras áreas, poetas, músicos, escritores)
conseguiram corresponder às expectativas do Partido. Eisenstein, como vimos

157
no segundo capítulo, morreu em 1948, sem ver exibida a segunda parte de Ivan,
o Terrível, que fora censurado duramente pelo próprio Iósef Stálin, e seria
exibido apenas em 1958, cinco anos após a morte de Stálin.
À época de Tarkóvski diversos cineastas ainda pautavam-se pela
produção de épicos, iniciativa amplamente reforçada pelo governo de Leonid
Briéjniev. O mais notável de todos eles é Guerra e Paz (1968), de Serguiêi
Bondartchuk, realizado no mesmo período em que Tarkóvski filmava Andriêi
Rublióv, segunda metade dos anos 1960. O filme de Bondartchuk não era apenas
um épico, mas uma adaptação de um dos mais importantes romances russos que
Liev Tólstoi publicara em 1865.
Como se não bastasse, havia um grande desafio na produção desse filme
que seria superar a produção de Guerra e Paz norte-americana. Dez anos antes
de Bondartchuk estrear a sua visão de Guerra e Paz, o texano King Vidor
(1894-1982) havia mobilizado o star system que envolvia Audrey Hepburn,
Henry Fonda e Mel Ferrer para protagonizarem a sua visão hollywoodiana do
romance de Tolstói. O filme soviético, por sua vez, com sete hora e meia de
duração, projetaria Serguiêi Bondartchuk no cenário soviético e também
agradou aos norte-americanos que concederam-lhe dois de seus melhores
prêmios para filme estrangeiro em 1969: um Oscar e um Globo de Ouro. Foi
realizado ainda para concorrer com os melhores épicos de Hollywood e, nesse
sentido conseguiu seus objetivos.
Guerra e Paz se destacou pela exuberância e busca de fidelidade ao texto
literário e à época que retratou. A valorização estética das personagens,
figurinos e cenários são dificilmente equiparáveis. Tanto as cenas internas, nos
palácios, nas datchas, como a seqüência do grande baile do Tzar quando
Natasha e Andriêi dançam (ilustração abaixo, à esquerda), quanto as externas,
principalmente os episódios de guerra em campo aberto e sua preparação
(ilustração abaixo, à direita), mas também as caçadas, as corridas no gelo,
buscavam ressaltar, com grande requinte e preciosismo, as melhores qualidades
da terra russa e do povo russo.

158
BONDARCHUK, War and Peace, Part II BONDARCHUK, War and Peace, Part III
00:18:33 h 00:33:08 h

A valorização das qualidades do povo russo era uma regra implícita a ser
seguida nas produções cinematográficas, tanto quanto suas carências morais não
deveriam ser evidenciadas na narrativa. Conta Roland Bíkov (1929-1998) sobre
o rancor de sua personagem em Andriêi Rublióv, guardado durante os vinte anos
em que o bufão, papel desempenhado por Bíkov, ficara preso imaginando
equivocadamente que fora o monge que o delatara à guarda do Grande Príncipe
e portanto culpado de sua prisão. O bufão, vinte anos depois, ao encontrar-se
com Rublióv ainda guardava uma profunda mágoa e queria vingar-se dele.
Sabendo que esse procedimento, por parte de uma personagem (guardar raiva e
querer vingar-se de um “camarada” russo) não deveria ser explicitado em cena,
Bíkov conta que lembrou a Tarkóvski dizendo: “Andriêi, o que você fez? Isso
não é muito russo – incubar a vingança durante vinte anos”. Ao que Tarkóvski
não cedeu e a cena foi rodada (TARKÓVSKAYA, 2001, p. 126).

3.2.3. A expansão da ideologia soviética nos filmes de ficção científica

A década de sessenta é marcada principalmente pela corrida espacial


onde Estados Unidos e União Soviética competiam pelo domínio tecnológico184,
dentro do qual estava a “conquista do espaço”. Um dos nomes que tentam
184
Após o término da Segunda Grande Guerra, em 1946 inicia-se um confronto ideológico entre
dois blocos, um do Ocidente e o outro Oriente, mais propriamente entre Estados Unidos e União
Soviética, defendendo seus diferentes pontos de vista sobre a organização humana, ou seja,
econômica, social, cultural, científica. Historicamente essa cisão é marcada com um
pronunciamento de Winston Churchill, recém-saído do cargo de primeiro ministro britânico, em
um discurso em Fulton, Estados Unidos onde ele afirmou: "Desceu uma cortina de ferro que
corta o nosso continente". Churchill atacava o comunismo em resposta a outro discurso, o de
Stalin, que por sua vez considerava o capitalismo uma ameaça à paz mundial. Estava deflagrada
uma guerra jamais declarada oficialmente mas que, durante quase cinqüenta anos, dividiria o
mundo em dois blocos conflituosos e que em vários momentos ameaçou exterminar o planeta,
senão todos os seres vivos: a Guerra Fria.

159
abarcar os significados dessa fase é Era Espacial que estimulará, inclusive, boa
parte das produções culturais e mais propriamente o gênero ficção científica.
O lançamento da nave espacial soviética Sputnik ao espaço, em 1957 e o
envio do primeiro ser humano ao espaço em 1961, o astronauta soviético Iúri
Gagárin (1934-1968) marcaram o período. No entanto a ficção científica,
enquanto gênero literário, antecede os feitos soviéticos e norte-americanos da
década de 1960.
No cinema, já em seu início, Georges Mélies (1861-1938) realizara
Viagem à Lua (1902), inspirado em Da Terra à Lua, de Júlio Verne (1828-
1905), considerado o principal iniciador do gênero literário. Na década de vinte,
Metrópolis (1927) e A mulher na Lua (1929), do austríaco Fritz Lang (1890-
1976) são importantes criações.
Na década de sessenta, alguns dos principais trabalhos cinematográficos
do gênero seriam Alphaville (1965) de Jean-Luc Godard (1930), Fahrenheit 451
(1966) de François Truffaut (1932-1984) e 2001: Uma Odisséia no espaço
(1968) de Stanley Kubrick (1928-1999).
A União Soviética, por sua vez, tem em Aelita (1924), de Iakov
Protazanov (1881-1941), um dos primeiros filmes mais importantes do gênero.
O espaço terrestre e o marciano, em Aelita, são marcados por uma estética
contrastante através dos cenários construtivistas desenhados por Aleksandr
Rodtchenko e os figurinos por Aleksandra Exter (1882-1949), especialmente
para a caracterização do planeta Marte e seus habitantes (GILLESPIE, 2003, p.
185). Há um forte teor educacional publicitário no filme. Apesar do sofisticado
desenho de cenários e figurinos, Aelita trazia uma argumentação bastante
simples e direta: um jovem cientista soviético apaixona-se por Aelita e, indo até
Marte, tentará liderar uma revolução proletária. Em outras palavras: o espaço
extraterrestre é afligido pela mesma ideologia capitalista da terra e o filme evoca
a necessidade de uma revolução do proletariado em Marte, a ser liderada por um
soviético.
As ilustrações abaixo exibem reproduções de um dos desenhos de
Aleksandra Exter para o figurino de Aelita; um cartaz de 1924 e um frame do
filme onde é possível distinguir a estética construtivista desde a concepção
inicial da peça, através do figurino.

160
Izrail Bograd, Cartaz do filme Aelita, 1924
72 x 108 cm. University of Pittsburgh186

Aleksandra Exter
Figurino desenhado para Aelita, 1924
Galerie Stolz Berlin Inventory185
PROTAZONOV, Aelita, a Rainha de Marte, 1924

185
http://www.artnet.com/galleries/. Acesso: 23 jan. 2007.
186
http://www.pitt.edu/~slavic/courses/russ1771/posters/film.html;
http://www.russianposter.ru/index.php?rid=00000000000004. Acesso: 23 jan. 2007.

161
4. A CONSTRUÇÃO DO REALISMO
SEGUNDO ANDRIÊI TARKÓVSKI

162
4.1. Estratégia de construção por refração e cronotopia

Articular historicamente o passado


não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”.
Significa apropriar-se de uma reminiscência,
tal como ela relampeja no momento de um perigo.
(BENJAMIN, 1986, p. 224).

Na construção do cinema de Tarkóvski observamos o fluxo de um


movimento dialógico que ora acolhe os modelos de seu tempo, em seu país, ora
impulsiona essa ação criadora para os valores que foram caros às Vanguardas e
ora ainda a remetem aos princípios mais cultivados pelo Renascimento e Idade
Média.
Por ser fruto de múltiplas instâncias dialogantes, de diferentes visões de
mundo, ao cinema de Tarkóvski caberiam as palavras de Engels sobre Dante: “A
primeira nação capitalista foi a Itália. O acaso do medievo feudal, a aurora da
era capitalista moderna, estão assinalados por uma figura colossal. É um
italiano, Dante, o último poeta do medievo e o primeiro poeta da nova era”
(SKLOVSKI, 1973, p. 127-128). Na obra de Tarkóvski, como na de Dante,
combatem a Vanguarda e a Tradição, apontando para um futuro incerto e,
tratando-se das imagens tarkóvskianas, um futuro transtornado e apocalíptico.
Vindo de um artista do século XX, russo, soviético, o movimento criador
do cineasta dá sinais de querer romper as barreiras impostas pelo tempo
histórico e o espaço geográfico. Tarkóvski mergulha nesse espaço e tempo.
Colhendo materiais díspares, o cineasta aproxima a iconografia russa à
renascentista, tornadas opções iconográficas distintas desde a cisão da Igreja em
oriente e ocidente, acontecimento esse que foi precursor da renascença
ocidental. A esse caldo cultural Tarkóvski atualiza as marcas do espaço-tempo
comuns a todos os tempos: a tecnologia, as guerras, a violência, o amor, o medo,
o perdão, o sacrifício e a potencial destruição total do planeta. E ele o faz com a
sensibilidade de um poeta e com o apuro de um arqueólogo.
Conforme tivemos oportunidade de anotar nos capítulos precedentes,
enquanto modelo de visão de mundo, ou estratégia de organização espacial, a
perspectiva inversa contrapõe-se à perspectiva linear. Mas também como

163
tivemos oportunidade de ver, quando da pequena análise da obra de
Michelangelo Buonarroti, ao final do segundo capítulo, é possível uma
associação de ambos os modelos organizativos, linear e inverso.
Sobre o uso da perspectiva linear e também a inversa, em determinado
trecho de Esculpir o Tempo (1990), Tarkóvski afirma que Rublióv não utilizou a
perspectiva linear porque as questões que o monge pintor tinha a discutir eram
outras. Segundo o cineasta, Rublióv só fez uso da perspectiva inversa para

[...] dar expressão a uma esfera específica da vida, cujo significado ainda não
encontrara expressão em nenhuma das formas de arte existentes. Tudo que há de novo
na arte surgiu em resposta a uma necessidade espiritual, e sua função é fazer aquelas
indagações que são de suprema importância para nossa época (Tarkóvski, 1990, p. 95;
grifo nosso).

E continua:

Lembro-me, a esse respeito, de uma curiosa observação feita pelo padre Pavel
Florensky187, em seu livro A iconóstase (sic). Ele diz que a perspectiva invertida (sic)
das obras daquele período não decorria do fato de os pintores russos de ícones
desconhecerem as leis da ótica188 que haviam sido assimiladas pelo Renascimento
italiano depois de terem sido elaboradas, na Itália, por Leon Batista Alberti. Florensky
argumenta, de modo convincente, que não era possível observar a natureza sem vir a
descobrir a perspectiva, estando esta, portanto, destinada a ser descoberta. No
momento, porém, ela podia não ser necessária – podia-se ignorá-la. Assim, a
perspectiva invertida (sic) na antiga pintura russa, a rejeição da perspectiva
renascentista, expressa a necessidade de lançar luz sobre certos problemas espirituais
que os pintores russos se colocavam, ao contrário dos artistas do Quattrocento (sic)
italiano (TARKOVSKI, 1990, p. 95).

Por essa citação, Tarkóvski demonstra ter conhecimento das discussões


teóricas acerca da perspectiva inversa, levantadas por Floriênski no início do
século XX, discussão essa que fora abafada logo no início do governo
stalisnista.
Lembremos que o padre Pável Floriênski, além de teólogo também era
cientista. Seu pensamento sobre ciência, religião e estética, influenciou
diretamente os trabalhos dos construtivistas russos do início do século cujas
pesquisas, criações e teorias foram drasticamente reprimidas por Stálin e

187
Reproduzimos aqui o nome citado assim como aparece na tradução brasileira Esculpir o
Tempo. Aparentemente o tradutor seguiu ou a tradução alemã ou a transliteração do russo para o
inglês. No entanto, a forma correta da transliteração do russo para o português é Pável
Floriênski.
188
Aqui o autor deve ter se referido a óptica (ciência que trata dos fenômenos da visão) embora
na edição que consultamos esteja grafada como ótica (que se refere também ao ouvido).

164
substituídas pelo Realismo Socialista. Em 1933, Floriênski, a exemplo de muitos
outros artistas e intelectuais soviéticos, foi acusado de conspiração contra-
revolucionária. Toda sua biblioteca, incluindo os seus manuscritos, frutos de
longos anos de estudo, foi confiscada pela polícia secreta soviética.
Em 1934, Floriênski foi enviado a um gulag de onde foi retirado apenas
em 1937 para ser condenado à morte. No mesmo ano foi morto com um tiro na
nuca (FLORENSKI 2005, p. 14-15; FLORENSKY, 2002, p. 25-26). Parte de
seus escritos foi corajosamente escondida e preservada por sua família durante o
período stalinista. Alguns desses textos começaram a aparecer, publicados na
Rússia, no final dos anos 1960 (FLORENSKY, 2002, p. 13), mesmo período em
que Tarkóvski filmava Andriêi Rublióv. Dentre essas publicações destaca-se,
Iconóstas, à qual o cineasta se refere no trecho que citamos acima.
Em relação ao material e às técnicas necessárias à elaboração do trabalho
artístico, aos quais Tarkóvski se refere na mesma citação, temos a considerar
que o embate de todo artista com a matéria e as opções tecnológicas que realiza,
têm-se mostrado ser conseqüência de um problema ao qual os artistas em geral -
no transcurso dos séculos - buscam continuamente responder, seja na pintura, no
cinema, na escultura ou em qualquer outra arte. Sobre o exercício da escultura
propriamente dita, a artista francesa/norte-americana Louise Bourgeois (1911)
corrobora com o pensamento de Tarkóvski quando afirma:

O material em si, pedra ou madeira, não me interessa como tal. É um meio, não um fim.
Você não faz escultura porque gosta de madeira. Isso é absurdo. Você faz escultura
porque a madeira lhe permite expressar algo que outro material não permite
(BOURGEOIS, 2000, p. 161).

Por outro lado, sabemos que o modelo organizativo da perspectiva linear


no cinema é dado pelo aparelho de que se faz uso, a câmera cinematográfica,
cujo mecanismo óptico gera imagens cunhadas pelo fotográfico, conforme
demonstramos no primeiro capítulo; e como tal constitui-se em máquina
perspéctica, ou seja, traz nela a codificação para produzir imagens segundo o
modelo organizativo da perspectiva linear.
No capítulo dois, vimos que, a partir das pesquisas cronofotográficas que
demandavam máquinas perspécticas cada vez mais sofisticadas, as Vanguardas
passaram a intervir nesse modelo apriorístico da imagem fotográfica. Através de

165
uma série de intervenções, os artistas vanguardistas acabaram por desenvolver
em seus trabalhos (fotográficos, pictóricos e tridimensionais) procedimentos
comuns à pintura medieval de ícones, objeto de nossos estudos também no
segundo capítulo, a saber: linhas potenciais conectivas de espaços; a formação
de centros múltiplos assegurando espaços-tempo coexistentes e a condensação
espacial.
No presente capítulo, discutiremos como esses três procedimentos,
característicos dos modelos organizativos da perspectiva inversa, se
manifestarão no cinema de Tarkóvski. Ao observar como esses procedimentos
se instauram, estaremos ainda atentos para a articulação dos modelos de
organização do espaço, ou seja, não perderemos de vista que esses três
procedimentos estão sempre associados ao modelo linear, dado por uma
máquina perspéctica, geradora das imagens fílmicas que é a câmera
cinematográfica.
Estaremos, portanto, trabalhando com a hipótese inicial, explicitada na
apresentação dessa tese que, ao instaurar a associação entre modelos –linear e
inverso-, Tarkóvski irá mantê-los em vivo diálogo criativo, atualizando-lhes o
sentido.
Antes de estudarmos cada um desses três procedimentos, em seu cinema,
veremos como, através da constituição do signo refrativo, o cineasta estabelece
um movimento desestabilizador da noção espaço-temporal em seus filmes.
Espaço-temporal porque tal signo refrativo leva à quebra da cronologia e da
continuidade topológica, abarcando nessa ruptura, elementos plásticos e
dramáticos.
Além dessa estratégia de construção do signo refrativo, veremos ainda
como a intensidade cronotópica e a multiplicidade de cronótopos constroem um
cinema no qual a colagem dos centros múltiplos, a trajetória das linhas e a
condensação espacial multiplicam o potencial do tempo em instâncias plurais,
em justaposição. Tempo esse que também é espaço, ou como temos visto,
através de Bakhtin, cronótopo. Cronótopos que se articulam, que se conectam e
nesse movimento organizam a construção cinematográfica tarkóvskiana. E é
buscando esse entendimento que estudamos o seu cinema pelo ponto de vista de
sua arquitetônica cronotópica.

166
4.1.1 A constituição do signo refrativo

Com seu primeiro longa-metragem, A Infância de Ivan (1961), Andriêi


Tarkóvski fez sua iniciação fáustica, passagem entre luz e trevas. O céu tanto é
cegado, já no prólogo, pelo esplendor solar, quanto velado pela densa fumaça do
fogo que ainda não assentou e transita instável e nervosa, bloqueando
pesadamente o brilho do Sol, tornando-o negro. Mudança de um meio189 a outro.

TARKOVSKI, A Infância de Ivan, 1961.


00:02:43 h

Na passagem, o Sol não reflete, mas refrata. Prólogo que, se considerado


frente ao conjunto de sua obra, constitui-se em instância continuamente
refrativa, cuja estratégia de construção da obra se articulará repetidas vezes,
tanto nesse filme quanto nos seis filmes que se seguiriam.
O Sol negro, nesses primeiros minutos e em muitos outros, em que as
passagens de um meio a outro se darão, reveste-se de uma qualidade poética
irrefutável. O Sol negro tem-se constituído em um signo refrativo nos textos
culturais russos, sejam esses poemas, pinturas, filmes. Esse constante trânsito de
um estado a outro nas artes eslavas parece ter chegado ao seu ápice nas
Vanguardas, manteve-se nos porões da censura durante o império do Realismo
Socialista do período stalinista e foi abrindo fendas no campo artístico a partir
189
Meio enquanto elemento material, substância ou ambiente.

167
da década de 1960, forçando a percepção da instabilidade e da multiplicidade de
olhares sobre um mesmo fenômeno.
Maia Turóvskaia, a primeira dentre os críticos de arte russos a escrever
sobre o cinema de Tarkóvski, é quem associa essa passagem de A Infância de
Ivan à tradição literária e pictórica russa:

A realidade é a escuridão ameaçadora de um abrigo do qual Ivan deve sair rastejando-


se, sem ser percebido. Lá fora estende-se a terra vazia, esmagada. O esqueleto de um
moinho de vento levanta seus braços ósseos para o céu, e acima dos campos
abandonados um sinistro sintoma da Guerra, a imagem de uma queimada associada a
uma ceifeira, preta e terrível na conflagração do pôr do sol.
Essa conflagração do pôr do sol é também uma metáfora – firmemente fincada na
tradição cultural [russa] que inclui o “sol do mal” de Urusévski, o “sol negro” de
Sholókov e o eclipse o qual “barrou a passagem” das tropas em The Lay of Igor´s
Campaign, como também nos versos de Blok

Sobre o gelo, essa esfera é áspera e vermelha


Como a raiva, a vingança e como o sangue.
(TUROSKAYA, 1989, p. 3)

Um Sol que se faz negro, em refração. Presentifica-se meio à escuridão,


o céu é negro, a terra devastada, o sentido trágico dessa presença solar
bloqueada pelas trevas orienta-se na pluralidade de nossos olhares. Tratando-se
de signo refrativo, marca sua presença pela refração, ou seja, exige a atenção do
espectador e sua resposta diante da instabilidade que propõe; trânsito entre dois
mundos, duas instâncias, ao menos duas possibilidades. De qualquer maneira,
sua recorrência é o múltiplo, o plural.

4.1.1.1. Refração e reflexão na construção estética

A refração é um fenômeno físico, uma mudança da direção de uma onda


quando passa obliquamente de um meio a outro e, por isso, ocorre uma mudança
em sua velocidade de propagação. Embora o fenômeno seja melhor observável
em ondas luminosas, ocorre em diferentes tipos de onda.
Interessa-nos, como ponto de partida, o fenômeno óptico. Um bom
exemplo é observar um objeto comprido, como uma colher ou um lápis, em um
copo com água pela metade. A parte da colher, ou do lápis, que está na água
parecerá estar deslocada da parte que está no ar devido a refração das ondas
luminosas. Trata-se de

168
uma propriedade de todos os tipos de energia que se movem em ondas, inclusive a luz.
As ondas luminosas em geral se propagam em linha reta, mas quando passam de um
material transparente para outro, elas refratam, ou se desviam. A refração ocorre por
que a luz se move a velocidades diferentes em materiais de diferentes massas
específicas ópticas. Quando a luz que se propaga no ar passa para água, sua velocidade
se reduz; assim, a não ser que penetrem perpendicularmente na superfície da água, os
raios luminosos vão se curvar190.

A reflexão também é um fenômeno físico, porém não de passagem de


um meio ao outro e sim do retorno total ou parcial de um feixe de partículas ou
de ondas, que se propagam em um determinado meio, após a incidência sobre a
superfície que separa um meio do outro. Melhor explicando:

Raios luminosos, como todas as formas de energia que se movem em ondas, podem ser
refletidos. Raios de luz são refletidos quando atingem uma superfície brilhante ou
espelhada, como uma poça de água ou um espelho. A reflexão envolve dois raios
luminosos – o incidente, que parte de um objeto, e o refletido, emitido pela superfície
refletora. Os dois raios formam ângulos idênticos em relação à superfície refletora, cada
um em um dos lados de uma linha imaginária191.

A imagem que Tarkóvski constrói não é meramente especular, reflexiva.


Reveste-se, também, do caráter refrativo. Há uma persistência de passagens de
um meio ao outro na qual o signo - enquanto instância de construção de sentido,
articulada pelo artista como elemento de sua obra - antes de apenas refletir,
refrata.
De acordo com o que foi visto, nos capítulos precedentes, sobre a
produção dos textos culturais soviéticos que foram contemporâneos a Tarkóvski,
sob a censura do Estado, as principais exigências para a produção de mensagens
eram explicitar: heróis positivos, sem ambigüidades; repulsa ao individualismo e
ao sentimentalismo burguês; e, por fim, absoluta clareza expositiva, realizada
sem devaneios formalistas que afetassem a compreensão narrativa linear e
objetiva, heroísmo das personagens, concreção histórica (ESPAÑA, 1996;
KENEZ, 2001, p. 143). Ou seja, a exemplo do que vimos ocorrer anteriormente
com Chostakóvitch e Eisenstein, a produção soviética que não auto-refletisse os
signos canonizados em todas as mídias soviéticas, era desaprovada
publicamente com uma palavra emblemática: formalismo.

190
http://omnis.if.ufrj.br/~coelho/DI/texto.html. Acesso: 29 jan. 2007.
191
http://omnis.if.ufrj.br/~coelho/DI/texto.html. Acesso: 29 jan. 2007.

169
E no entanto, estamos verificando, por tudo o que estamos trazendo à luz
até o momento, que o caráter refrativo das passagens que articulam elementos
díspares na obra tarkóvskiana desviava o seu cinema das exigências dos
censores. Agora veremos como essas estratégias de construção, de agregar
elementos díspares em seu cinema, se formam por meio do signo refrativo.
Primeiramente propomos examinar como esse caráter refrativo é inaugurado em
seu cinema, e como se estende a todo o percurso da construção posterior a esse
primeiro longa-metragem até a película final.

4.1.1.2. O Sol negro como signo refrativo e inaugural

Em A Infância de Ivan o Sol negro aparece logo após a primeira


seqüência com a qual o filme tem início. Trata-se de um sonho (ou uma
lembrança da criança), construído sob o efeito de intensa luz, céu aberto,
exuberante, em um bosque idílico e na companhia da jovem mãe. Um estrondo
terrível é ouvido; a seqüência onírica é bruscamente cortada e seguida pela
paisagem completamente transtornada, negra, dificilmente distinguida em sua
precariedade luminosa e pela abrupta mudança de meio, agora arruinado
enquanto nossa percepção ainda estava embebida pela leveza da infância. Foi
uma opção inicial bastante audaciosa para um cineasta em início de carreira. No
entanto essa opção, com o passar dos anos e amadurecimento de sua obra, se
demonstrará como um marca expressiva que inscreverá o seu estilo. Quando
realizada no início dos anos 1960, um período de abertura maior por parte da
censura, já se demonstrava excêntrica. Em termos de adaptação literária,
segundo anotamos no capítulo anterior (quando descrevemos alguns aspectos da
produção de A Infância de Ivan), Tarkóvski começara por contrariar a forma
pela qual o conto Ivan se inicia, o que não era pouco. Ocorre que ele
reivindicava para si, um cineasta estreante, a autoria de um roteiro, ou melhor, o
direito de ser autor de um roteiro, em um período em que era a literatura,
hierarquicamente, que dominava no cinema soviético (TUROVSAKAYA, p.
30).
Expliquemos um pouco mais essa questão. Conforme foi visto, Ivan é
um conto de Bogomolov que, segundo Tarkóvski, mais se aproximava de um

170
relatório (TARKOVSKI, 1990). Para o cineasta tornar essa linguagem direta e
objetiva em linguagem cinematográfica (segundo o seu particular
entendimento), deveria enfrentar, em primeiro lugar, uma ordem já constituída
para fazer valer a sua própria concepção de cinema e para ter direito de realizar
alterações no roteiro, antes e durante as filmagens. E ele o fez, apesar das
opiniões contrárias às alterações que ele propôs. A segunda grande mudança foi
a introdução de cinco sonhos que se intercalavam com a “realidade”. Esse lado
“onírico” da história não existia no conto de Bogomolov; essa foi uma
interferência bastante acentuada, tratando-se de uma adaptação de texto literário.
Vejamos: no início do conto de Bogomolov se dá a chegada do garoto ao
acampamento militar. Dessa forma direta o leitor fica sabendo que há uma
guerra e um garoto órfão que trabalha para os militares soviéticos.
Tarkóvski opta por introduzir a catástrofe da guerra por um outro ponto
de vista. E o faz justamente pela transição, pela passagem de meios, de um
estado a outro; e é nesse momento que define o seu cinema. A inversão inicial à
qual nos referimos se dá justamente nesse prólogo do filme (cuja duração soma
apenas quatro minutos e vinte e dois segundos) e que se constitui, justamente, na
passagem descrita acima, que ocorre quando da seqüência onírica bruscamente
interrompida no final por um estampido seco. Não bastasse o som atordoante do
estampido, ocorre uma torção da imagem em primeiro plano do rosto da mãe,
que a desfigura por completo. Mas essa passagem obedece a uma necessidade de
refração que se dá literalmente pelo desvio, a imagem sofre uma torção e uma
inversão. Notemos o efeito óptico conseguido com o movimento de câmera,
com um objetivo poético. Essa figura que parece ser borrada (assim como vimos
no segundo capítulo as fotodinâmicas futuristas em linhas, marcando a trajetória
do movimento), como se estivesse se desfigurando pela luz no curso de seu
próprio movimento de rotação, e nesse giro marcando a película fílmica. Há
uma integração dos ritmos sonoros que reverberam, com a figura em rotação: o
estertor de uma metralhadora e o grito doloroso e desesperado da criança
parecem girar com o corpo em queda e rompem a cadência lírica de um espaço,
remetendo-o a outro, conduzindo ao desvio, à refração.

171
TARKOVSKI, A Infância de Ivan, 1961.
00:02:12 h

Retomemos o início do filme, após a vinheta prateada da Mosfilm


(podemos acompanhar pelo conjunto de frames que ilustram essa seqüência e se
encontram logo abaixo). Antes dessa ruptura, desse desvio, em primeiro lugar, o
cineasta propõe ao espectador a ativação da memória infantil: tranqüila, doce,
permeada por uma luz cuja suavidade banha a leveza dos corpos que se
movimentam na tela: a teia de aranha, a árvore, a criança, a cabra, a borboleta, o
poço, o balde de água, a mãe; tudo sob o lirismo da banda sonora orquestrada
por Katchaturiam e composta por Viatchieslav Ovtchínnikov (1936). E a
suavidade do corpo luminoso da criança, embevecida diante da visão idílica, a
sensação do vôo: ela mesma uma borboleta, um pássaro, um anjo que está
ganhando o espaço aéreo. Ao se aproximar da mãe que caminha com leveza
pelo campo, carregando um balde cheio de água, o menino, com o olhar
luminoso, conta à mãe que ouvira o canto de um pássaro, um cuco. Sua voz é
terna, os movimentos delicados, a mãe lhe sorri docemente, retribui o calor do
olhar da criança.
E é justamente durante esse encontro afetuoso e leve que se dá a
mudança de meios, a ruptura, o desvio. O espectador choca-se repentinamente
com a catástrofe que se abate sobre a criança: a cena idílica é abruptamente
atravessada pelo som de um tiro, seguido do giro perverso da imagem da mãe,

172
um corpo agônico, transfigurado, convulso, em queda e o grito desesperado da
criança, fora do quadro, quando já não é possível que a mãe o escute e nós,
espectadores, completamos mentalmente o quadro, o desespero da criança, o
corpo morto da mãe.

TARKOVSKI, A Infância de Ivan, 1961.


00:00:00 a 00:04:22 h

A infância perfeita e tranqüila é interrompida, irrevogável e


inexoravelmente, pela força da guerra. Justamente essa “infância perfeita” é
refratada por outra, a “infância legada pela guerra”. Mesmo o título que
Tarkóvski escolhe para nomear o seu filme anuncia o seu princípio refrativo: “A

173
infância de Ivan”. A qual infância o autor se refere? Àquela que Ivan teria?
Àquela com a qual a criança sonha? Àquela dos tempos de paz? Àquela forjada
na guerra? A qual delas?
Muito argutamente sua crítica de primeira hora, a russa Maia Turóvskaia,
observa essa estratégia desviante do cineasta. A guerra, segundo sua observação,

entra no filme não por sua usual cenografia: não através do rádio, não com barulhos de
bombas e os vestígios de bombardeios deixados pelos aviões, não com a morte e
destruição [...] Não como a guerra tem sido descrita em tantos filmes soviéticos antes
de A Infância de Ivan. A guerra entra no filme enquanto o coração está se lembrando,
como um súbito e doloroso abalo brutal para a imaginação, quando a face da mãe é
arremessada de cabeça para baixo de repente… (TUROVSKAYA, 1989, p. 3).

Imagem e som engenhosamente preparados para o público. Tarkóvski se


utiliza da imagem e do som para provocar lembranças, não de uma forma
descritiva, mas propondo ao espectador uma imersão no tempo através de
percepções, através do que teorizaria de forma abrangente como sendo
“associações poéticas” (TARKOVSKI, 1990).
Nos primeiros quatro minutos e vinte e dois segundos do filme ele
constrói minuciosamente a refração, a passagem entre um meio e outro para a
percepção do desvio: entre a paz e a guerra; a infância na paz, roubada pela
guerra e o eclipse de sua ausência. Nada é feito ao acaso, as gradações de luz, o
movimento das personagens no quadro, o som, os elementos gráficos, desde a
vinheta da Mosfilm até a entrada do título e créditos do filme. O prólogo, antes
da entrada dos créditos diz a que o filme veio e define, ao mesmo tempo, o
caminho que será percorrido não apenas por Ivan, mas por Andriêi Arsiénievitch
Tarkóvski.

4.1.1.3. O Sol negro refigurado

A Infância de Ivan deveria ter sido apenas mais um filme de guerra, em


meio a tantos produzidos em todos os cantos do mundo e na Rússia, até a
exaustão. Não foi. Iniciou-se controvertendo a ordem dos códigos de construção
de um filme desse gênero. Seria então um filme circunscrito a um período (o da
guerra) e a um país (a Rússia no contexto da União Soviética)? Se não, o que
mantém esse filme constantemente atualizado, fazendo-o chegar aos nossos dias,

174
longe da Segunda Guerra e distante mesmo da União Soviética que nem mais
existe enquanto configuração geopolítica? O que o faz atualizado e ao mesmo
tempo deslocado e desenraizado - porque esse prólogo poderia ser de qualquer
outra guerra do terceiro milênio - e, ao mesmo tempo, tão entranhado em seu
próprio tempo e cultura?
Retomando e seguindo a análise de Turóvskaia, mas estendendo-a,
observo que Tarkóvski, nessa primeira seqüência, alinha-se e renova a poética
exercitada pelas Vanguardas Russas. Ou seja, Tarkóvski se aproxima das
Vanguardas não para imitá-las. Sua aproximação se dá no exercício de
construção da obra, no ato de se apropriar de determinados procedimentos
vanguardistas e deslocá-los para o tempo futuro, atualizando-os, estendendo-os a
novas possibilidades de sentidos.
Vejamos esse breve trecho do poema de Ossíp Mandelstam (1991-1938),
justamente nomeado Sol negro:

A voz dos hebreus tinia


sobre minha mãe e, imerso
no fulgor do negro sol
eu despertei no meu berço.
(SLAVUTZKY, 1998)

O Sol negro das Vanguardas de Blok, de Mandelstam, em Tarkóvski se


estende no tempo, amplia sua complexidade estética e comunicativa à medida
que questiona a todo instante a qualidade da luz, a vertigem da imagem que
pode tanto ser arrebatadora quanto completamente ruinosa. Sol negro que refrata
inclusive a História, luminosa e plena dos vencedores que, na definição de
Walter Benjamin (1892-1940), constitui-se em “um monumento da barbárie”
(BENJAMIN, 1986, p. 225). Essa História, que seria a história da guerra dos
vencedores, do heróis de guerra (afinal os russos venceram dura e corajosamente
os nazistas, depois de uma longa luta), é refratada pelas trevas históricas, aquele
pedaço de dor terrena que nunca é iluminado. Tarkóvski ilumina inicialmente a
infância de Ivan, aquela que poderia ter sido luminosa e plena, apenas para
depois refratar com essa figura perversa, esse Sol negro; aprofundando na alma
as dores da tragédia humana, às quais as luzes da História se evadem.
O Sol negro pode ser considerado um signo refrativo expandido,
atravessador de fronteiras, mergulhado no tempo. Tanto é combustão como

175
memória, ou coloca em combustão a memória. E aqui sua acepção tem o sentido
expandido de conceito à figura, de figura à opção artística que vai refigurar esse
Sol negro em outras seqüências, em outros filmes, até a combustão final que é o
incêndio em seu último filme, O Sacrifício (1985). Em todas essas figuras,
refiguras e desfiguras a beleza pungente e trágica das imagens em movimento se
não salvam o mundo, evocam sua lembrança, suplicando-lhe a não esquecer,
não esquecer, não esquecer.

TARKOVSKI, Le Sacrifice, 1986.


02:13:02 h

Como opção artística o seu lirismo é ácido, o seu classicismo corrosivo e


sua beleza terrível. A esperança se faz em paradoxo, nas asas de um anjo caído,
submerso em águas lamacentas (Infância de Ivan, Nostalgia, Stalker); no frescor
da infância quando essa já está irremediavelmente perdida (A Infância de Ivan);
na vastidão de um céu (A Infância de Ivan, Rublióv, Solaris, Stalker, O
Sacrifício) inalcançável e inconcebível em sua grandeza, diante dos pequenos
corpos terrenos, dando a proporção da dimensão humana e limitada, finita.
Então nos recolhemos atemorizados pois nessa vastidão inconcebível se
dispersam todos os nossos desejos, um a um, sem que consigamos alcançá-los,
por mais que corramos e tentemos retê-los (final de A Infância de Ivan). Não há
possibilidade de exorcismo, ainda que nos mantenhamos como Rublióv, no mais

176
profundo silêncio. Temos que nos encontrar cara a cara com esse Sol negro que
nos persegue, nos habita e nos coloca diante de um terrível abismo, pronto para
acolher nosso salto mortal, mas dificilmente nos arriscamos a saltar.
Demonstrar ainda que seja uma mínima possibilidade de libertação é um
ato excêntrico dentro das sociedades humanas regidas pelos princípios
totalitários, de qualquer tipo que seja esse totalitarismo. E Tarkóvski o fez não
pela abstração: o seu cinema é físico, terreno, cósmico, mineral, matérico e por
isso mesmo nos alcança, incomoda, fascina e, ao mesmo tempo, apavora.
Porque a liberdade não está restrita a heróis, a glórias à magnificência. Então
que liberdade é essa que já nos afasta da doxologia e em um golpe nos
demonstra, em primeiro plano, uma luz refratada pela escuridão? Luz que
inscreve rigorosa, com um zelo obsessivo, cena a cena, em uma dança fáustica
que nos atinge como um ferro em brasa. Tanto esmero para nos mostrar com
esse Sol negro o lado oculto da ordem, o que está por trás desse cadinho de
realismo das aparências (seja socialista, nazista, fascista, capitalista, etc.) que se
dissemina anestesiante e se transmuta sedutor em meios tons, meias verdades,
meias vidas.
Onde e quando se exigia civismo, Olieg Iankóvski (1944), ator russo que
trabalhou com Tarkóvski em O Espelho e Nostalgia, define com perspicácia a
obra do cineasta como sendo: “o logro cívico e artístico de Tarkóvski que
comoveu nossa memória, esquadrinhou nossas feridas e nossas iniludíveis e
ignoradas culpas” (TARKOVSKAYA, 2001, p. 177).
O Sol negro se reconfigura também em Nostalgia, nas seqüências finais,
quando já não há mais nada que se possa fazer. A Rússia, para Andriêi
(Gortchacóv) está tragicamente perdida, uma luz cheia e plena que a distância
encobriu. A Rússia da qual Andriêi se afasta, permanecendo na Itália, é um
tempo cravado em um espaço físico, cujos sentidos se convulsionam na
memória e se perdem em nostalgia. O retorno físico é inconcebível porque suas
possibilidades são ceifadas pela morte. Contra o retorno físico do escritor à sua
terra natal Tarkóvski interpõe o inevitável: Andriêi Gortchacóv morre no mesmo
instante em que seu amigo Domenico; após tentar e, por fim, conseguir a
façanha de atravessar uma piscina seca levando uma pequena vela acesa na mão,
evitando que o fogo se apagasse. Domênico, por sua vez, oferecera-se em
sacrifício, à combustão da matéria e dos sentidos. É o seu corpo, de casaco e

177
gorro negros que rola, em chamas, do alto da escultura de Michelangelo na
Praça São Marcos, em Roma. O Sol negro reconfigurado em incêndio, em
sacrifício humano, para quê? Para nada. O estigma da reconfiguração está na
força da memória reativada pela arte. Aí o artista inscreve sua missão de Sísifo:
lembrar ao humano do que ele eternamente se esquece. E aí o galope dialogante
com os tempos, com a cultura planetária.
Tarkóvski aumenta o índice de refração adensando o meio. A
significação se dá no desvio, na assimetria. E o sacrifício final se encobre de
presságios: no campo escuro, eclipsadas, as mulheres russas sob a face oculta da
Lua estão aparentemente imóveis, mas recolhidas e apreensivas como os
animais. Novamente em Nostalgia, como fora em A Infância de Ivan, a
passagem entre um meio e outro. O mundo diurno, o mundo noturno. O campo
da realidade, o campo do sonho, do delírio, da loucura. Em Nostalgia, mais do
que em A Infância de Ivan, porém, essa passagem é dolorosíssima. Ela já não se
dá mais no campo da guerra. Ela se dá em uma praça pública, em um dos
centros que já fora o centro do mundo civilizado, o Capitólio192. Por que, para
que e para nada são tanto perguntas como respostas, uma refrata a outra,
combustão total. Em Nostalgia, ao contrário de O Sacrifício, a salvação é por
um mundo que não quer ser salvo. Tanta quietude sob essa estranha esfera
estelar. Prepara-se o desvio e é certo, sob esse escuro céu sobre o campo russo,
que Andriêi jamais retornará.

4.1.1.4. O Sol negro como ritornelo

Retomemos então o fio inicial. A clareza de Tarkóvski sobre suas


concepções estéticas e procedimentos formais no cinema funda-se em A
Infância de Ivan. Embora sua obra tenha amadurecido durante os vinte anos de
carreira, o seu primeiro longa-metragem contém em si conceitos e
procedimentos que a norteariam até o final. Ou seja, Tarkóvski funda o seu
centro e a partir daí desenvolve o seu estilo norteado pela passagem de um meio
a outro, refratando, estabelecendo um ritmo próprio. Ao longo desse

192
“Templo romano dedicado a Júpiter Capitolino, edificado no cume de uma das colinas da
cidade; em sentido mais amplo, a própria colina, incluídos o templo e a fortaleza” (Cf.
HOUAISS).

178
movimento, contrapõe-se, objetivamente, aos alicerces que sustentaram a
estética do Realismo Socialista, auto-reflexivo, no período stalinista e
contrapõem-se também, aos menos claros mas ainda assim dogmáticos,
princípios dos períodos do Degelo e da Estagnação, igualmente subsidiados
pelas convenções do Realismo Socialista.
O Sol negro de Tarkóvski se anuncia como o primeiro giro através do
qual se faz um centro. Giro e centro que habitam o conceito de ritornelo de
Deleuze e Guattari Esse centro é ampliado através de um segundo giro e funda
um lugar, um território do qual origina-se a assinatura e depois o estilo
(DELEUZE; GUATTARI, 2005).
Por esse caminho de múltiplos giros que acabam por fundar um
território, observamos que o Sol negro é um componente da arquitetônica
Tarkóvskiana cuja força expressiva acaba por conferir-lhe autonomia dentro da
ação dramática, no sentido conferido por Deleuze e Guattari quando citam o
pintor francês Jean-François Millet (1814-1875), um dos principais precursores
do realismo francês. Teria dito Millet: “o que conta na pintura não é aquilo que
o camponês carrega, objeto sagrado ou saco de batatas por exemplo, mas o peso
exato daquilo que ele carrega” (MILLET apud DELEUZE; GUATTARI, 2005,
p. 159).
Podemos, por um momento, seguir as palavras de Millet, e o que talvez
pudesse ser interpretado como ação simbólica seria substituído por uma espécie
de ação evocadora de forças, densidades e intensidades. De que maneira?
Associemos esse fragmento de pensamento deleuzeano à segunda seqüência
onírica de A Infância de Ivan (00:16:00 a 00:17:36 h). Nela vemos a criança ao
lado da mãe; os dois olham o fundo de um poço onde a mãe lhe conta que há
uma estrela (outro Sol?). Ivan diz que consegue vê-la e tentará alcançá-la e
quando está prestes a fazê-lo, dentro do poço, e sua mãe está suspendendo o
balde carregado de água, meio à suavidade e lirismo (ainda que tenso) de
Ovshinikov, ouvimos vozes masculinas, distantes. Ivan olha para cima e então
novamente o tiro e o mesmo grito; a criança desesperada chamando pela mãe, o
balde caindo seguido do lenço de tecido leve, quase transparente (que até então
recobria os ombros da mãe) cai levemente, seguindo o balde e, antes que o balde

179
caia sobre Ivan, que se afasta, a cena é cortada. A câmera em plongée193 nos
mostra, em primeiro plano, o balde à beira do poço, de onde sai uma golfada de
água que recai sobre o corpo morto da mãe, de bruços sobre a terra, ao lado do
poço, na diagonal. O som desse jorro de água que cai é como onda do mar
quebrando na pedra.
Para a água que jorra poderíamos fazer uma leitura simbólica, como se o
Espírito Santo purificasse essa ação violenta da guerra, santificando essa heroína
da guerra. É um caminho. Mas retomemos a citação de Millet, o fragmento de
pensamento deleuzeano e teremos não mais a água sagrada beatificando o
caminho por onde passa, mas o peso do balde que cai e a água golfando do poço
sobre o corpo da mãe como forças que se destinam a tornar visível o invisível,
como dizem Deleuze e Guattari, recorrendo a Klee: “[...] o material visual deve
capturar forças não visíveis. Tornar visível, dizia Klee, e não trazer ou
reproduzir o visível” (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 159).
Podemos nos perguntar: como tornar visível o espanto da criança, o
trauma irrecuperável de ver o corpo da mãe tombar morto à sua frente?
Tarkóvski não busca descrever para nós essa dor. Construindo suas imagens e
sons, oferece-nos uma fresta através da qual essa dor possa penetrar em nossas
vidas não pela descrição, mas pela evocação do que existe de substancial no
cinema e que não é literário: articulação de imagem e de som. Com isso ele
evoca a criança que em nós habita e que se vê diante da mãe morta. Na cena,
nós, espectadores, não vemos a criança vendo o corpo da mãe morta. Nós a
vemos afastando-se do balde que está prestes a cair sobre a sua cabeça, ouvimos
o tiro e o seu agudo grito e então, depois, nós é quem vemos o balde, o poço e a
água derramada em jorro sobre o corpo da mãe morta. Não vemos a mãe ser
morta. Mas sentimos, sabemos que ela está morta.
Tal estratégia é definida pelo cineasta como “prerrogativa” do cinema,
como a oportunidade de vivenciar o que está ocorrendo na tela e relacionar o
que está sendo projetado com sua própria vida (TARKOVSKI, 1990, p. 220,
grifo nosso). Através dessa estratégia, mais do que mostrar algo, o cineasta
busca abrir frestas para possíveis vivências, conexões com a vida.

193
A câmera se posiciona de cima para baixo.

180
O corpo da mãe, no chão estendido assemelha-se a uma “natureza morta”
do cineasta japonês Yasujiro Ozu (1903-1963), no dizer de Deleuze: “O que há
de cinematográfico nas célebres naturezas mortas de Ozu é que expressam o
tempo como forma imutável em um mundo que já perdeu suas referências
sensório-motoras” (DELEUZE, 1996, p. 21).
O que há de imutável no mundo e que ainda precisa ser refratado para
que se torne visível? Algo como a morte da mãe de uma criança pequena que
resta órfã e desconsolada. Algo que não deve ser esquecido. Algo que deve ser
sempre lembrado.
Aleksandr Sokúrov, cineasta russo, uma geração depois de Tarkóvski,
com quem manteve laços de profunda amizade, diz: “O propósito da arte é
repetir as idéias mais fundamentais, ano após ano, década após década, século
após século. Porque as pessoas esquecem”194. O ritornelo que se esteia em uma
espécie de imaginação histórica, aquela que sobrevém do caldeirão cultural do
planeta, de todos os tempos: cronótopos puros.
Aleksandr Misharin afirma que o cineasta “sempre dizia:

Posso fazer algo bom baseado apenas em três coisas: o sangue, a cultura e a história’.
Sangue, cultura e história, os três foram violados durante os tempos do Proletkult195,
quando uma intelligentsia desaparecia para dar lugar a outra nova, quando foi criada
uma nova indústria cinematográfica com critérios diferentes. Andriêi [Tarkóvski] foi o
primeiro que tentou fazer algo contra essa ruptura, conseguiu construir uma ponte entre
as culturas [...] Seu outro grande serviço foi que restabeleceu o elo entre o passado e o
presente e inoculou na cultura cinematográfica a qualidade do eterno
(TARKÓVSKAYA, 2001, p. 52-53).

Ponte entre culturas diversas, em espaços e tempos distintos, seu cinema


pede também a refração de nosso olhar, senão, como seria possível que, antes
que esses quatro curtíssimos minutos terminem, recolhamos da tela apenas a
visão da inocência e da beleza e não vislumbremos essa inversão impiedosa e
cruel, que se dá em todas as instâncias, nessa passagem? Como compreender
todos os ícones russos (e pinturas européias renascentistas) da Virgem que se
seguirão, um a um até o fim, por todos os seus filmes, sem reconhecer-lhes a
assimetria com esse primeiro ícone cinematográfico, pintado em luz,

194
http://www.findarticles.com/p/articles/mi_m0268/is_3_40/ai_81258061 Acesso: 27 out.
2007.
195
Abreviação de Proletarskaya Kultura ou Cultura Proletária, organização surgida na União
Soviética em 1917 objetivando fundar uma arte verdadeiramente proletária, livre das influências
da arte burguesa (DITL, http://www.ditl.info/ Acesso: 29 jan. 2007).

181
sonorizado? O pequeno Ivan ajoelhado aos pés da mãe, logo depois morta.
Trata-se de um Stabat mater invertido. Como se sabe, a cena descrita no
Evangelho segundo João (19, 25- 28), à qual se nomeia Stabat mater refere-se à
Mãe aos pés da cruz de Seu Filho. E no entanto, nesse prólogo de filme, eis a
inversão: aqui é o filho, pequeno, frágil aos pés de sua mãe; criança que logo
após despertará “imerso no fulgor do negro sol”.
Essa visão não fica de todo resolvida nos primeiros quatro minutos e
vinte e dois segundos de A Infância de Ivan. Tarkóvski irá completando-a a cada
nova refração, a cada nova “realidade” refratada por cada novo “sonho” dentro
do filme. Assim como acabamos de descrever acima e ilustramos abaixo: a
morte da mãe dá-se quando, o Sol (ou estrela), dessa vez mergulhado em
profundas águas negras, torna-se visualmente um balde de água também negro,
violentamente jogado para o fundo de um poço. A força desse arremesso é tão
grande que a água jorra de dentro do poço sobre o corpo da mãe adensando o
peso do corpo já sem vida.

TARKOVSKI, A Infância de Ivan, 1961.


00:16:57 a 00:17:29 h

182
4.1.2. A cronotopia como conector do trabalho estético ao mundo visível

Todos os sete longa-metragens de Tarkóvski, constituem um cinema


absolutamente terreno e inquietante, instável e desestabilizante. Andriêi
Tarkóvski teorizou e fez um cinema conectado com a vida enquanto instância
acessada pela arte. Nunca admitiu o cinema como entretenimento e para
respaldar o seu pensamento citava Dostoiévski: “Sempre afirmam que a arte
precisa refletir a vida e tudo o mais. Mas é um absurdo: o próprio escritor (o
poeta) cria a vida de uma maneira tal que nunca havia existido inteiramente
antes dele...” (TARKOVSKI, 1990, p. 226).
Tudo que reverbera do cinema tarkóvskiano remete a corpos vivendo,
pulsando, em movimento. Espaço-tempo, cronótopo em constante trânsito,
fulgurante, inquieto, multiplicado, instável: a duração através do qual esses
corpos vivem, pulsam, movimentam-se, parece querer afirmar que o tempo é
desses corpos e não o tempo das imagens. As imagens, nesse sentido, dilaceram-
se em função da premência dos corpos em demonstrar o tempo que lhes é
inerente e que se espacializa; redimensionam-se a cada quadro, deslocando e
reconfigurando formas já estagnadas de ver o mundo, marcadas pela
automatização da percepção do público.
Nada em seu cinema está morto porque mesmo os seus mortos nas
guerras mais malditas, como em Andriêi Rublióv, recendem a vida. Cinema
matérico. Materialidade tão pungente e fecunda que remete seu público a um
tempo e espaço nos quais o público, muitas vezes não quer ou mesmo se recusa
adentrar. Esse cinema não se faz sem o comprometimento do espectador com a
experiência estética. Não há concessão. É um cinema que se arrisca voluntária e
incessantemente; que deflagra em nossa memória acontecimentos circulares,
rodopiantes e perdemos completamente a noção de onde estamos, para onde
vamos ou porque estamos, ou porque vamos. Trata-se de um cinema que quer
estabelecer relações com outros sentidos, sem apelos ao lugar-comum. Para
tanto exige um público ativo, disposto a um exercício de deslocamento do olhar
e percepção atenta.
As lentes do cineasta estão focadas na memória entendida como tempo
cravado na matéria - cronótopo - o que abrange tanto o “tempo impresso” em
uma película de acetato quanto o tempo impresso na materialidade da vida

183
terrena em elementos “naturais”: a terra, a água, o ar, a madeira, os metais, o
fogo, a luz, e ainda em elementos culturais, de grande extensão: as guerras, a
literatura, a música, as artes visuais, a tecnologia, a arquitetura, a religião, o
próprio cinema, o amor. Da dinâmica, do jogo tenso entre esses elementos, o
cineasta instaura uma obra que localiza o ser humano enquanto um conjunto de
personagens de seus filmes, no espaço-tempo em que viveram e em trânsito pela
história humana em um desassossego sem fim. Esse trânsito impresso por
Tarkóvski na construção de seu cinema, desestabiliza as noções de tempo
fundadas na cronologia e na noção de espaço, por sua vez, fundada na
linearidade euclidiana.
A intensidade cronotópica é tão premente que todas as personagens
interagem vivamente com os componentes da imagem, sem que se estabeleça
entre eles uma relação hierárquica. Todos são componentes da imagem,
inclusive o som, entendendo-se como som também as vozes das personagens
que não se restringem à funcionalidade, ao “dizer algo”, mas inserem-se como
elemento sonoro, rítmico, musical. O cineasta trabalhava a musicalidade das
falas para que essa musicalidade integrasse a imagem. O mesmo vale para os
demais componentes da imagem: cor, luz, objetos de cena, figurino, etc.
Anotaremos, a seguir, algumas das articulações entre elementos plásticos
que, na passagem de um meio a outro são marcados por intensa cronotopia.
Vejamos a primeira delas. Aleksandr Misharin relata o cuidado para
pensar cada cena, cada seqüência de O Espelho. O interior da casa no campo, a
datcha onde moram a mãe e seus filhos pequenos, como vemos, é sempre
inundada por uma luz dourada e, por vezes azulada. Trata-se de uma luz muito
bem trabalhada. Há um momento em que a personagem aproxima-se da janela e
senta-se, com o olhar perdido em divagações. A luz que vem da janela se faz
azulada, difusa; parece envolver as personagens em uma atmosfera de sonho ou
de recordações de uma infância distante. O que ocorrera para alcançar essa luz,
essa atmosfera? Nada muito simples: para conseguir tal efeito foi plantado
anteriormente um verdadeiro campo de batatas aguardando o momento da
floração com a única finalidade de conseguir a luz azul-violeta que inundou o
jardim atrás da janela da datcha, em cujo interior as crianças pequenas, Aliocha
e sua irmã Marina, bebiam leite junto a delicados animaizinhos, um gato e um
cachorro, ambos filhotes. O campo florido foi providenciado para, sob

184
determinada luz, alcançar o resultado pictórico pretendido, com a finalidade de
proporcionar visualmente determinada atmosfera (TARKÓVSKAYA, 2001, p.
50), onírica e suave.

TARKOVSKI, O Espelho, seqüência no interior da datcha,


00:12:00 a 00:14:21 h

Outra articulação está em Stalker e relaciona-se com a dublagem. Ao


gravar o som dos diálogos em estúdio, Tarkóvski fazia os atores repetirem a fala
tantas e quantas vezes fossem necessárias, até alcançar a expressividade plena
quando, via de regra, os atores estavam exaustos. Sua explicação era a seguinte:
“não necessito de sua psicologia [dos atores] nem de sua expressividade... o ator
é parte da composição, como a árvore ou a água...” (CAPANNA, 2003, p. 180).
É através de construções como essas que Tarkóvski recolhe o tempo
buscando a vida material, a substância viva das coisas, dos corpos, trabalhando-
os artisticamente. A conexão entre construção artística e vida é estabelecida
pelos cronótopos, “índices de tempo que transparecem no espaço, dando sentido
a esse”: a cadência da voz, o movimento da personagem no quadro, os objetos
sob um facho de luz, o vôo de um pássaro, o canto de um cuco, e mesmo o
silêncio. Assim como enunciado por Bakhtin:

No cronótopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num


todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se
artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo,
do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço
reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e fusão de
sinais caracterizam o cronótopo artístico. (BAKHTIN, 1988, p. 211, grifo meu).

Há então um trânsito cronotópico quando o filme é criado (pequeno


tempo). O trânsito desses cronótopos é organizativo, intenso e atravessa (e é
atravessado) em todas as seqüências pelo ritmo do tempo impresso. Intenso no
sentido que lhe dá Bakhtin: porque “penetra no movimento do tempo”. Esse
tempo impresso no filme, ao se movimentar em sentidos torna-se flexível, tanto

185
se alarga como se sobrepõe a outras instâncias temporais, manifestando-se
espacialmente.
Examinaremos a seguir alguns desses trânsitos cronotópicos em relação
às conexões com o mundo visível, segundo os procedimentos utilizados pelo
cineasta, as opções que ele realiza e que, como procedimentos artísticos, vão
associando os diversos modelos de visão de mundo, tanto anteriores quanto os
contemporâneos, num ato de remodelação, criando o seu próprio.
Nos ocuparemos dos três procedimentos anteriormente observados,
comuns tanto às Vanguardas quanto ao medievo e que identificamos na
construção de Tarkóvski como sendo inerentes dos procedimentos de
organização espacial pela perspectiva inversa: linhas potenciais conectivas de
espaços; a formação de centros múltiplos assegurando espaços-tempos
coexistentes e a condensação espacial.

186
4.2. Linhas potenciais conectivas de espaços

As linhas impulsionam a percepção, tensionam os planos que se


justapõem no espaço e esse deixa de ser um espaço meramente contemplativo
para vir a ser um espaço de evocação, de estímulos perceptivos para a
compreensão ativa.
Vimos anteriormente a descrição feita por Floriênski sobre a dinâmica
das linhas na pintura de ícones, o fato delas se constituírem em linhas de força:

Essas linhas oferecem à consciência um esquema para a reconstrução do objeto


contemplado, e se buscarmos suas bases físicas veremos que tratam-se de linhas de
força, em outras palavras, de linhas de tensão: não são dobras criadas pela pressão, pois
não se trata de dobras, senão apenas de dobras possíveis ou em potência, como aquelas
linhas pelas quais passariam as dobras de haver-se formado (FLORENSKI, 2005, p.28).

Vimos ainda em capítulos anteriores, que diversos artistas vanguardistas,


dentre eles os fotodinamistas futuristas italianos e os russos Gabo e Pevsner
faziam uso da linha em seus trabalhos com objetivos diferentes do meramente
gráfico. Os primeiros tinham por objetivo captar a “trajetória do gesto” e os
segundos conceituavam e faziam uso das linhas enquanto ritmo, direção,
profundidade e cinematicismo.
Em Tarkóvski as linhas assumem aquelas dimensões buscadas pelas
Vanguardas, mas também um movimento poético, de traduzir o invisível para o
visível, embora esse visível não se dê no cinema como uma fotodinâmica
futurista. As linhas intensificam para o espectador a trajetória do olhar dentro do
plano e de um plano a outro, e no movimento, ainda, buscam o ritmo e a
profundidade espacial.

4.2.1. O vôo dos gansos

Vejamos como Vadim Iusov descreve uma dessas construções com


linhas que potencializam o espaço, quando da filmagem de Andriêi Rublióv:

… Andriêi sempre me apresentava algo novo, sem falar sobre isto. Em Andriêi Rublióv
há uma cena. Filmamos isto em Pskov, próximo das paredes de um monastério […].
Queríamos criar a imagem de uma cratera. Os tártaros estão atacando, as pessoas estão
lutando, e parecia como se estivessem sendo arrastados para baixo. A topografia do
local nos permitiu fazer isso. Então, coreografamos a multidão para criar a ilusão que

187
eles estavam sendo sugados para baixo num funil, desaparecendo no vazio. Filmamos
em alta velocidade para parecer câmera lenta na tela. De repente, Andriêi caminha para
lá levando dois gansos nos braços. Imagine o diretor indo para a cena, todo excitado,
carregando esses gansos. Ele disse “vou lançá-los na cena”. Eu protestei, “Por que os
gansos?” Eu estava muito tenso. Tinha trabalhado moldando esta cena por muito
tempo. Ele insistiu, “Sim, eles deveriam estar voando lá.” Eu me rendi. “Sim, lance-os
na cena se quiser.” E ele o fez. Só depois, quando vi na tela, percebi que efeito incrível
estes pássaros pesados, voando baixo criaram. Eram gansos domesticados, então não
podiam voar longe. Eles estavam mais caindo na cratera do que voando, agitando
pouco as suas asas. Filmamos em alta velocidade, então na tela fica bem lento. Foi um
efeito notável, que só entendi quando vi na tela. Tenho que admitir que não vi ou
entendi tudo o que ele queria fazer. Como para o conceito de autenticidade, Tarkóvski
entendeu e todos concordamos, aquela autenticidade na tela era imperativa196.

A linha diagonal descendente


que se forma no vôo dos gansos,
encaminha o olhar do espectador do
mais alto até o chão. Como descreve
Iússov, o vôo pesado dos pássaros
conjugado ao efeito final na tela, que
chega até o espectador, apresenta-se
mais lento. Tão ilusão é conseqüência
de um recurso técnico para alcançar
um efeito poético. O recurso em si
difere totalmente de deixar a câmera
funcionando para capturar “a secção
do mundo visível”. A sensação de
realidade é reforçada no interior da
cena, não do que o espectador vê
como real, mas sim do que ele é
estimulado a sentir como real: a
opressão do povo em luta,
combatendo pela sua cidade e sendo
morto. A visão aérea ganha um
sentido tátil, físico mesmo, de peso, de
queda.
TARKOVSKI, Andrei Rublev, 1966.
00:02:33 a 00:02:49

196
DVD DOSSIÊ Tarkovski (Solaris). Volume II. Entrevista com o diretor de fotografia Vadim
Yúsov, 00:20:22 a 00:22:20 h.

188
4.2.2. A entrada na Zona

Da mesma maneira, os sons, aparentemente ambientes ou eletroacústicos


que redimensionam o cinema de Tarkóvski, enfatizam o peso e a duração de
determinadas seqüências, ou seja, a espacialização e repercussão da imagem,
através do som, no tempo.
Esse atributo da imagem, outorgado pelo som em que ambos se
articulam em linhas potenciais, está presente na seqüência que denomino “A
entrada na Zona” em Stalker.
Trata-se de uma grande passagem de um meio a outro, de um cronótopo
que poderia ser o cronótopo da travessia, aquele realizado pelos iniciados.
Stalker é uma espécie de iniciado para atravessar o limiar entre o espaço da
cidade onde vive com sua pequena família para um outro espaço, proibido, onde
os mais insondáveis desejos podem ser realizados: a Zona. Quem ousa
ultrapassar essa estranha fronteira para alcançar a região misteriosa, é recebido a
tiros pela polícia que vigia a fronteira. Pois é justamente nesse umbral que
Stalker, o Professor e o Escritor farão a entrada na Zona. Tal percurso dura três
minutos e trinta e sete segundos, de 00:33:15 a 00:36:52 h.
O deslocamento das três personagens, da cidade até o interior da Zona é
bastante longo, dando ao espectador a sensação de que não vai acabar jamais.
Essa sensação angustiante, que nos impacienta, é produzida principalmente pelo
longo travelling em enquadramento fechado em primeiro plano, que acompanha
as personagens que seguem sobre um carrinho, deslizando pelos trilhos da
estrada de ferro abandonada. A linha que o autor nos sugere traçar na tela de
nosso imaginário, com esse travelling, se estende quase ao infinito, descrevendo
uma longa trajetória, semelhante a um desenho expandido, que possa ultrapassar
a folha de papel, onde é traçado e cujo traço ganha ritmo pelo som marcado,
monótono, contínuo e sonolento de um trem em movimento. O início dessa
viagem para o interior da Zona está representado nas três reproduções abaixo.

189
TARKOVSKI, Stalker, 1979.
00:33:15 a 00:35:30 h

O poeta espanhol Antonio Mengs qualifica essa passagem de “viagem


hipnótica”, através da qual

nossos sentidos entram no compasso da cena seguindo o lento e rítmico sacolejar e uma
suave tensão que provém do fundo difuso da paisagem e a irrupção de rompantes
sonoros atuam como sedativo sobre os sentidos. Os olhares das personagens se
entrelaçam com o nosso; às suas silenciosas perguntas correspondemos com outras não
menos temerosas, incapazes de averiguar o seu estado de ânimo salvo pela linha não
declarada de uma incerteza comum. A ansiedade e inquietude de cada um aparece
retratada exclusivamente em primeiro plano, dando a impressão de que vemos três
facetas do mesmo (MENGS, 2004, p. 50).

O propósito de Tarkóvski é potencializar a atenção do espectador. Isso se


dá através da dilatação do tempo que rege as seqüências. O movimento (contido)
das personagens no quadro se relaciona não apenas com os movimentos de
câmera e os enquadramentos, mas diretamente com a atuação das personagens
dentro do quadro, com o trabalho dos atores em interagir com esse tempo
intensificado.
Erland Josephson explica em breves palavras o seu inicial estranhamento
quando viu Stalker pela primeira vez:

Stalker pareceu-me um filme bastante difícil, porque empregava um idioma que


resultava em um novo meio cinematográfico, com uns planos muito longos, pouco
comuns. Diante deles eu ficava esperando que se desse um corte e dizia para mim
mesmo: “Agora, agora é hora de cortar”; eu estava acostumado à linguagem conforme
as categorias por mim conhecidas. [...]
Vi também naquela ocasião que era pedido algo aos atores de Stalker que era também
pouco comum. Não sabia exatamente de que se tratava; não era apenas algo técnico, a
capacidade, por exemplo, de atuar nessas tão seqüências longas. Não sabia o que era,
mas quando vi o filme pela segunda vez, compreendi que era uma das obras mais
importantes do cinema contemporâneo197.

197
http://www.andreitarkovski.org/articulos.html. Acesso 15 jan. 2007.

190
Josephson aponta a necessidade de sair das “categorias conhecidas”,
“automatizadas”, segundo Chklóvski, para adentrar o espaço-tempo
tarkóvskiano.
Logo mais, o ator sueco trabalharia com Tarkóvski, desempenhando o
papel de Domênico, em Nostalgia. E sobre essa experiência o ator faz um
comentário que complementa o seu estranhamento anterior, sobre o desempenho
dos atores em Stalker:

Algo disso era o que eu já havia visto em Stalker, pois nessas tão longas seqüências, o
objetivo não estava junto aos atores, não se interessava por eles individualmente senão
enquanto partes da paisagem, da imagem, como se fossem um elemento integrante dela
e existissem para ela, de uma maneira muito real, muito positiva198.

TARKOVSKI, Stalker, 1979.


00:34:00 a 00:35:40 h

Essa seqüência acima, bem como a anterior, é parte da estratégia de


construção de Tarkóvski, através da qual a atenção do espectador é conclamada
no desvio. Sobre esse tempo alargado, o próprio cineasta, segundo relato de
Kontchalóvski, afirmara:

se a duração normal de uma seqüência é estendida, em um primeiro momento você se


aborrece, mas se a estende um pouco mais, cresce o interesse, e se, inclusive, estende-a
mais ainda, surge uma nova qualidade e intensidade (TARKÓVSKAYA, 2005, p. 56).

Esse entendimento de Tarkóvski é totalmente afinado com o conceito de


estranhamento de Chklóvski, através do qual se desautomatiza a percepção,
segundo pudemos ver no primeiro capítulo.
O uso da linha, como vimos, tensiona o espaço-tempo e o estende ao
indeterminado, fazendo o espectador perder a noção do percurso, da velocidade
e do tempo decorrido.

198
http://www.andreitarkovski.org/articulos.html. Acesso 15 jan. 2007.

191
4.2.3. Desenho da Família

Um outro travelling marca Stalker com a potencialidade das linhas no


espaço: trata-se da seqüência inicial que denomino “Desenho da Família”. Essa
seqüência também envolve uma passagem, mas é a passagem da quietude do
sono para o dia, para o despertar. Ao contrário da “Entrada na Zona”, essa linha
não apenas estende o espaço, mas o circunda e, nesse sentido, delimita-o. A
família ainda descansa: a esposa de Stalker, sua filhinha e ele próprio. Os três
estão em uma mesma cama, de ferro. O travelling têm início pela mesinha de
cabeceira, onde estão alguns objetos: um copo, algodão, comprimidos; a câmera
continua deslizando pelo rosto da esposa, da filhinha e alcança Stalker, depois
retorna, sem pressa, pelo mesmo caminho, em primeiro plano (00:05:00 a
00:06:31 h). A aproximação da câmera dos elementos cênicos e das personagens
confere também aos espectadores o potencial de fatalidade. “Sabemos” que há
um relevo, um volume dos corpos sobre a cama, mas a posição de cada figura,
principalmente a da mesinha, inverte nosso adestrado senso perspéctico do que
seja “profundidade”.

TARKOVSKI, Stalker, 1979, Parte I. Montagem do percurso do travelling do “Desenho da Família”


00:05:00 a 00:06:31 h

Embora estejam todos deitados, a câmera, perpendicular aos corpos,


provoca um achatamento na imagem, como que sugerindo uma atenção maior
ao deslocamento dos corpos sobre a superfície onde se encontram: sobre a cama,
um pouco acima do chão. E, de fato, logo depois, Stalker acorda e se levanta.
O posicionamento das figuras humanas aproxima-se das figuras em
meio-perfil dos ícones russos, mas também remete ao movimento das figuras da
Santa Ceia, de Leonardo da Vinci, já analisada anteriormente, sugerindo a
possibilidade de movimento, de um momento a outro.

192
A esposa de Stalker, principalmente, demonstra, da forma pela qual sua
figura é construída na cena, a “corcunda aparente”, tal como observamos
anteriormente, nas figuras inclinadas da Virgem, característica dos ícones russos
à qual nos detivemos no segundo capítulo. Podemos observar essa mesma
construção de perfil em “corcunda”, insinuando um movimento nos detalhes que
apresentamos abaixo, das obras de Rublióv e também de da Vinci.

ANDRIÊI RUBLIÓV, Trindade, detalhe, c. 1410-1420.


Treviákov Galeria, Moscou, 142 x 114 cm

LEONARDO DA VINCI, A última ceia, detalhe, 1495-1498.


Convento de Santa Maria delle Grazie, Milão. 460 x 880cm

4.2.4. Os pequenos pássaros da Cripta de São Pedro

Já no interior da Cripta de São Pedro, região da Toscana, Itália, em


Nostalgia, após a procissão, uma devota orando frente à imagem esculpida de
Nossa Senhora do Parto, desabotoa-lhe o manto na altura do ventre e recua.
Vemos (e ouvimos), surpreendidos, uma revoada de pequenos pássaros que
piam e batem fortemente as asas, liberando-se do interior do corpo da Nossa
Senhora. Esse corpo, frente às mulheres humanas ali presentes, apresenta-se
muito maior e mais pesado. O que ouvimos é de grande vigor e temos a
sensação, junto às mulheres devotas que integram a cena, de que a Santa é

193
imensa: seu ventre generoso não se restringe ao corpo diante das devotas; o vôo
das aves projeta linhas libertas que riscam o ar passando pelas mulheres,
roçando-lhes as vestes, os cabelos, a pele, para depois alcançar todo o interior da
igreja, como fios invisíveis que vão emaranhando-se por todos os cantos.
Funcionam como fios extensores do corpo da Santa que, através deles, se projeta
por todo o espaço do templo. E ainda que não mais vejamos essas vidas
voadoras e tenhamos à nossa frente apenas o corpo esculpido e imóvel da Nossa
Senhora, ela se manifesta plena e ouvimos o seu clamor.

TARKOVSKI, Nostalgia, 1983.


00:11:19 a 00:11:38 h

TARKOVSKI, Nostalgia, 1983.


00:10:47 h

194
Ainda nessa seqüência, ao fundo encontra-se o fresco de 206 x 203 cm, a
Madonna Del Parto, pintado por Piero Della Francesca em 1467 na Cripta de
São Pedro. Sua presença majestática e serena, ao longe, em profundidade de
campo, estabelece um diálogo espaço-temporal entre o ritual religioso e a
sensualidade da qual fora investida o ventre da santa esculpida, ventre esse
transbordando sua fertilidade, diante da devota ajoelhada.

4.2.5. O vôo do pássaro ao espaço da vida

O vôo dos pássaros tensionando linhas e potencializando espaços pelos


filmes de Tarkóvski é uma marca expressiva que se repete e, apesar de sua
absoluta singeleza, o pássaro solitário e minúsculo que ele próprio lança ao final
de O Espelho é um dos mais pungentes. O desenho dessa linha inicia sua
trajetória a partir do leito da personagem Aleksiéi, que se encontra doente
(protagonizada, sem que vejamos o rosto, pelo próprio Andriêi Tarkóvski).
Aleksiéi apanha com uma das mãos, delicadamente, um pequeno pássaro;
levanta a mão e solta a ave no ar. O passarinho, impulsionado voa, e alcança o
céu. Há um corte nessa seqüência e o céu que vemos a seguir já não pertence
mais à cena de Aleksiéi doente. Vemos então o céu sobre o campo onde fica a
datcha da infância de Aleksiéi. O vôo, de uma seqüência a outra, ou seja, a linha
por insinuada pelo, descreve um percurso entre tempos-espaço diversos. É como
se a linha do vôo do pássaro lançado por Aleksiéi tivesse alcançado não apenas
um outro espaço, mas também um outro tempo. Dois cronótopos se fundem: o
do leito de Aleksiéi adulto e doente com o do campo onde Aleksiéi ainda pulsa
no ventre de sua mãe.

TARKOVSKI, O Espelho, 1974.


00:36:04 a 01:36:41 h

195
Hoje, vinte anos após essa
seqüência de O Espelho ter sido
filmada, essas linhas de um cronótopo
a outro podem ser associadas com
uma das últimas fotografias tirada do
cineasta quando de seus últimos dias
de vida. Em um gesto semelhante ao
que realizara treze anos antes em O
Espelho, Tarkóvski, junto à janela
para a Rua Puvis de Chavannes, em
Paris, apóia com sua mão um pássaro.
Tarkóvski em Paris, 1986.
Álbum da família199

No cinema tarkóvskiano encontramos vários outros elementos de


adensamento espacial que carregam, em seus movimentos e deslocamentos, as
forças das linhas, assim como os pássaros. São, dentre eles: plumas, tecidos
leves e semi-transparentes, papéis, rendas, gansos e outras aves, fumaça, flocos
de neve, água, borboleta, luz, cinzas, poeira e balões.

199
TARKOVSKI, L., 1998, p. 145.

196
4.3. Formação de centros múltiplos: espaços-tempo coexistentes

A descontinuidade entre diferentes fragmentos de mundo é ocorrência na


pintura de ícones da Idade Média, retomada pelas correntes da Vanguarda do
início do século XX, conforme demonstramos no segundo capítulo..
O que por vezes pode ser entendido como “narrativa fragmentária” no
cinema de Tarkóvski, principalmente em Andriêi Rublióv e O Espelho, mas não
apenas, é um procedimento adotado pelo cineasta para abrir fendas na realidade
contínua do espaço do espectador. Procedimento no sentido de ser um método
de se estruturar determinado discurso mental200. Nesse sentido Tarkóvski retoma
procedimentos discursivos da arte medieval que, conforme demonstrado
anteriormente, foram reapropriados pelas Vanguardas Históricas. Na construção
de seu trabalho instauram-se elementos que ocupam, integram e se organizam
no espaço e nele se deslocam, permutando posições. São elementos
transformadores da visualidade. Não há hierarquia entre esses elementos, sequer
estabilidade. A imagem é mutante na tela não apenas porque obedece ao
movimento de câmera, iluminação, enquadramento ou ritmo da montagem. Sua
fluidez advém dos mais inesperados recursos, como por exemplo do som, da luz,
do vento, da fumaça, da água, do fogo e das cores.
Conforme vimos, as experimentações estéticas que rompiam com o
convencionalismo da perspectiva linear, como as colagens (justaposições), no
início do século XX, haviam sido, na Rússia, bruscamente interrompidas pela
imposição do Realismo Socialista. O que a obra de Tarkóvski demonstra é que o
cineasta retomou vários desses procedimentos, associando-o ao seu cinema.
Quando Tarkóvski traz obras de artistas consagrados para seus filmes,
assim como Leonardo da Vinci, Albert Durer, ou Brueghel, é o tempo como
matéria que ele está colando, modelando, esculpindo, ou em suas palavras, o
“´material´ em que deve ser modelada a imagem cinematográfica”
(TARKÓVSKI, 1990, p. 71, 72). Tais colagens, quando se dão, objetivam
evocar algum tipo de memória recôndita ou familiar. O tipo de lembranças que
Tarkóvski busca evocar encontra-se, segundo ele, em “uma verdade que já
200
Retomamos aqui o pensamento de Leonardo da Vinci de que a arte é discurso mental: La
pittura è di maggior discorso mentale che la scultura, e di maggiore artificio.
(http://www.pelagus.org/it/libri/TRATTATO_DELLA_PITTURA,_di_Leonardo_da_Vinci_7.ht
ml)

197
intuímos, que nos faz lembrar de situações pelas quais já passamos ou que
secretamente imaginamos. Segundo a teoria aristotélica, identificamos como
algo familiar aquilo que foi expressado por um gênio. O caráter profundo e
multidimensional dessa identificação dependerá da psique do leitor”
(TARKÓVSKI, 1990, p. 126-127).
O tempo colado se espacializa como uma escultura, como uma onda em
arrebentação: em um momento invade o continente, preenche-o com sua matéria
líquida e rapidamente o abandona. O que vemos logo após? As pedras e a areia
molhada; vestígios de umo grande volume de água que já se foi.
Tarkóvski trabalha febrilmente com essa inconstância do tempo, com
essa colagem rápida e ilusória que marca a inconstância da vida, a fugacidade, o
efêmero e a descontinuidade da própria vida, a fragilidade humana. Para cada
certeza e inflexibilidade, o cineasta descortina um amanhã no qual já não somos
mais do que passagem, memória. Algumas de suas seqüências colam-se tão
rapidamente quanto se descolam e quando nos damos conta de que já passaram
ficamos boquiabertos, sem entender muito bem o que de fato passou. Isso se dá
quando já se foram e não resta mais nada que um... vapor.

4.3.1. Seqüência Akhmátova

A seqüência que muito bem traduz a colagem dessa espécie de


cronótopo, que denominamos aqui cronótopo gasoso, essa passagem colada a
outras, sem que no entanto se perca a integridade do todo, é a introdução de
Anna Akhmátova em O Espelho.
A introdução dessa inquietante e enigmática personagem surge aos
quarenta e oito minutos e quarenta, para desaparecer quatro minutos depois da
mesma forma que surgira: do nada, ou da imaginação de Aliocha. O autor, no
entanto, aponta para a fisicalidade da mesma, como veremos na análise a seguir.
Akhmátova (1889-1966), historicamente, foi uma das mais significativas
poetas da primeira metade do século XX. Não apenas a sua produção é de
grande importância no corpo da poesia russa quanto a sua trajetória grava e
arrasta para o período em que Tarkóvski viveu as ambigüidades da Revolução,
todo o período de fome, morte e desolação durante o qual a Rússia foi invadida

198
pelos nazistas na Segunda Guerra e o terror imposto pelo regime ditatorial
soviético. Uma das poucas sobreviventes, em território russo, da mais
importante geração de poetas russos do século XX viu desaparecerem, ou por
suicídio, ou por assassinato, ou de fome e doença nas prisões, um a um, os seus
amigos. Ela mesma, sempre na iminência de ser presa ou morta, foi poupada,
destino que não tiveram dois de seus maridos, mortos por Stálin; e o filho, preso
político durante muitos anos. Akhmátova se recusou, terminantemente, a deixar
o solo russo, embora tenha tido diversas oportunidade de fazê-lo.
Em nenhum momento Tarkóvski deixa claro que essa estranha
personagem caracteriza Anna Akhmátova. Apenas os seus compatriotas ou o
público que tenha conhecimento da cultura russa poderiam reconhecer na figura
esguia que aparece misteriosamente em seu filme a poeta da língua russa do
início do século XX.
Poder-se-ia dizer que o cineasta introduziu essa cena para prestar uma
“homenagem” à poeta russa, o que seria por si só uma belíssima homenagem.
Mas, pelo ponto de vista da estratégia da construção de seu cinema, ao inserir,
colar a seqüência que nomearemos aqui “Seqüência Akhmátova” em O Espelho
(e a forma pela qual essa inserção se dá), Tarkóvski sobrepõe, justapõe, cola
camadas de diferentes tempos, fazendo com que sejam simultâneos conferindo a
eles fisicalidade, materialidade. Ele oferece ao espectador uma multiplicidade de
“centros” através dos quais é possível focar e desenvolver uma visão distinta de
um mesmo fato.

Anna Akhmátova em diversos períodos de sua vida201

201
http://www.akhmatova.org/foto/ahm/foto_ahm2.htm. Acesso: 20 jan. 2007.

199
A seqüência Akhmátova em O Espelho é assim preparada. O pequeno
Ignat, filho de Aleksiéi, folheia um grosso livro (00:40:52 h). A câmera
enquadra o livro aberto em primeiro plano. Não é qualquer livro. Trata-se de um
livro com reproduções de desenhos e pinturas de Leonardo da Vinci. Ouve-se
Bach e o som das páginas sendo viradas calmamente. A cada virada de página
faz-se uma pausa para que o espectador tenha tempo de ver as reproduções das
obras de da Vinci, uma a uma, separadas por uma página de papel de seda. Ignat
está em um dos cômodos do amplo apartamento onde mora com a mãe, Natália.
Fecha o livro. A câmera enquadra o seu rosto de perfil. Corta para a mãe que se
prepara para sair e o chama (00:42:45 h). Inicia-se um período de intermitência
luminosa que acompanhará toda a seqüência. A luz varia entre um brilho intenso
e dourado e a passagem às sombras. O canto barroco cessa. Ignat vai até a ante-
sala onde está a mãe e a ajuda a recolher o conteúdo da bolsa dela que caíra ao
chão. Ouve-se apenas a voz de mãe e filho conversando e o som dos objetos
sendo recolhidos entre pausas de silêncio. Ignat espeta o dedo em algo no chão
(00:43:10 h). Inicia-se um som contínuo, semelhante ao de um serra de madeira,
um som eletroacústico cuidadosamente preparado pelo compositor Eduard
Artiémiev. Ignat diz: “Tenho a sensação de ter vivido isso antes”. A mãe pede-
lhe que deixe de fantasias, levanta-se, pega o casaco e dirige-se para a porta
(00:44:03 h). A câmera acompanha os seus movimentos, rápidos. No momento
em que ela abre a porta para sair há um corte para o interior da sala, onde estava
anteriormente Ignat. O som intensifica-se. A câmera passa por Ignat que
encontra-se ao lado da porta desse mesmo cômodo (00:44:12 h) e alcança a
outra porta, por onde sua mãe saíra. Essa reaparece pela porta entreaberta e diz
“Se Maria Nikoláievna [avó de Ignat] chegar, peça para ela me esperar” e sai,
fechando a porta. Ignat vira-se, passa por uma estante e chega novamente até a
porta da sala onde estivera (00:44:35 h). É quando se ouve o som de uma sineta.
Surpreendido, o garoto vira-se de novo, rapidamente e vê uma mulher (Anna
Akhmátova) sentada à mesa e uma camareira que serve a ela uma xícara de chá
(00:44:38 h). A câmera acompanha esses movimentos e se fixa na entrada da
saleta de onde vê-se a mulher sentada, com um figurino dos anos 1920 e a
camareira, de costas. Ela diz: “Entre. Como você está?”. O som eletroacústico
continua, ininterrupto, longo, instável, vibrante. A camareira sai. A câmera,

200
mantendo Ignat em primeiro plano, acompanha a camareira e volta a Ignat que
observa da porta a mulher, assim como a câmera. A estranha pede a Ignat que
apanhe um caderno que está na terceira estante (00:45:12 h). O garoto obedece.
Ela então lhe pede que leia determinada carta que estaria em uma das páginas,
marcada com uma fita. O som que cessara, recomeça, mas agora acompanhado
de um coro. Quando Ignat começa a ler, na porta, a câmera mantém o mesmo
enquadramento: o garoto em pé, lendo e a mulher, na sala, tomando chá e
ouvindo atentamente. A profundidade de campo varia. A luz continua a oscilar
como se uma sombra encobrisse o céu atravessando a janela, obscurecendo a
sala e tudo o que há nela.
Ignat lê um trecho de uma carta que escrevera o poeta russo Aleksandr
Púchkin (1799-1837) ao filósofo também russo Piotr Tchaadaiev em 19 de
outubro 1836 (00:45:35 h). Nessa carta o poeta, sintética, porém
contundentemente comenta a posição especial e isolada da Rússia dentro da
Europa, desde a cisão das igrejas (Ortodoxa e Católica), a invasão dos tártaros
que tentaram alcançar o ocidente e o papel da Rússia em contê-los, preservando
o mundo cristão de ser invadido; e conclui, discordando do filósofo que afirmara
anteriormente a insignificância da História Russa. Púchkin defende a sua
posição afirmando que “nunca, juro, me passou pela cabeça trocar a minha
Pátria, trocar a minha história, abdicar da história dos nossos antepassados, tal
como nos foi dada por Deus” (00:47:47 h). Enquanto lê, Ignat está próximo à
porta, no interior da sala, sob uma fotografia de sua avó, pendurada na parede.
Concluída a leitura vira-se como se tivesse ouvido algo ao seu lado. A estranha
pede que vá atender. A câmera acompanha Ignat que abre a porta. É uma mulher
idêntica à do retrato (sua avó). Mas ela diz que se enganou de endereço e vai
embora. Ignat fecha a porta e se volta. Ao chegar na porta da sala, ainda com o
caderno na mão, constata, atônito, que a cadeira e a mesa estão vazias (00:48:26
h). Aproxima-se da mesa e vê, no lugar onde ficara a xícara, um círculo de
vapor que rapidamente desaparece (00:48:35 h). Ignat emite um som diante da
porta, mas o que vemos não é mais a mesma sala; os objetos são outros. O
telefone toca e Ignat vai atender, ainda carregando o caderno na mão: é seu pai,
Aleksiéi, quem o chama ao telefone (00:49:07 h).

201
TARKOVSKI, O Espelho, 1973.
00:40:52 a 00:49:07 h

Diversas instâncias espaços-temporais se sobrepõem nesses dez minutos


de filme. Primeiramente temos o início da década de 1970. A seqüência toda se
dá no apartamento de Ignat, do qual sai sua mãe e para onde o pai (já separado
da mãe) ligará ao final da seqüência. Trata-se, porém do mesmo apartamento no

202
qual a personagem que seria sua avó - cuja visita já havia sido anunciada pela
mãe - não entra pois não o reconhece, o que abre as possibilidades de um
espaço-tempo diverso por onde adentrara a estranha figura, Anna Akhmátova.
Essa, da forma como se apresenta, caracteriza-se como sendo das primeiras
décadas do século XX. Akhmátova, por sua vez, sabe de um caderno que estaria
na estante do apartamento de Ignat; caderno esse que conteria um rascunho (ou
uma cópia manuscrita) da carta de Púchkin que, por sua vez, vivera na primeira
metade do século XIX. Outros cronótopos. O caderno, de capa bastante antiga,
como se vê quando Ignat retira-o da estante, poderia ser do próprio poeta, mas
também de Akhmátova que dedicara toda sua vida a estudar Púchkin. E quando
a poeta desaparece, ela o faz deixando vestígios: o vapor na mesa e o caderno
nas mãos de Ignat.
Vestígios de matéria onde estava contido um determinado cronótopo,
que colou-se a outros, associando-se, redimensionado sentidos, pluralizando as
percepções. Podemos identificar nessa seqüência: a poeta vanguardista russa do
início do século XX (Akhmátova); mãe e filho, russos, na segunda metade do
século XX (Natália e o filho, Ignat); o poeta e dramaturgo russo da primeira
metade do século XIX (Púchkin). E ainda temos o pintor italiano do
Renascimento (Leonardo da Vinci). Colagens de espaço-tempo multiplicados,
justapostos e depois tornados novamente invisíveis, vaporizados.
Como se a poeta, Akhmátova, testemunha dos expurgos avassaladores,
da guerra e da fome, deixasse nesse vapor indelével o sussurro de seus
pungentes versos de gosto mortuário:

Nosso tempo já não está acabando?...


Esqueci as suas lições,
demagogos e falsos profetas!
mas vocês não se esqueceram de mim.
Assim como o futuro amadurece no passado,
o passado apodrece no futuro –
terrível festival de folhas mortas202.

202
“Poema sem Herói – Um tríptico 1940 – 1962”. Trecho retirado de AKHMÁTOVA, 1991, p.
171.

203
4.3.2. Entorno de Teófanes e Rublióv, o Gólgota

A construção da cena da
crucificação em campo russo que
Tarkóvski faz, transportando a
estética de Brueghel para o seu
cinema é comovente. A eloqüência
contida que podemos apreender de
seqüências completas como essa nos
aproxima da astúcia criadora do
cineasta. Em um diálogo existencial
entre o jovem monge Andriêi
Rublióv e seu velho mestre, o pintor
grego Teófanes, sob uma luz
aparentemente primaveril, de brilhos
sutis e contrastes suaves, Tarkóvski
cola nada menos que a “Paixão de
Cristo”, a subida ao Gólgota. A
colagem é delicada. Inicia-se com a
queda de um tecido leve na água,
provavelmente jogado pelo homem
que logo aparece frente à câmera, o
Cristo. Os pintores continuam seu
diálogo e inicia-se um coro, suave,
triste. A Crucificação, deslocada do
solo hebreu, se dá sobre a brancura
excessivamente fria da neve russa. O
Cristo calçando pesadas botas de
pelo sulca com sua cruz grossas
camadas de gelo. O som é pungente.
O ritmo do diálogo dos pintores
continua, fora do quadro. A suave

204
cadência de suas vozes cola-se à
dramaticidade da banda som do
calvário. E, atravessando essa
dramaticidade, o espectador ouve
um cuco (o mesmo que já cantara
em A Infância de Ivan), outra
colagem. O tempo secular dessa
primavera russa, quando Rublióv
inicia seu trabalho ao lado do mais
importante pintor do período, é
colado ao inverno durante o qual se
desenvolve o eixo sagrado da
história cristã. As figuras tarkóvski-
brughelianas não se fundem ao gelo.
Antes, destacam-se dele em
silhuetas escuras que, meio à
paisagem rural e pobre, ecoam,
como uma caminhada temporal que
se faz presente não apenas
atravessando esse diálogo, mas todo
o filme e a vida de ambos os
pintores, já que Maria, o Cristo,
Madalena, a Cruz, serão encarnadas
pelos pincéis de Rublióv e Teófanes.
A seqüência se encerra com o olhar
de Serguiêi, o assistente de Rublióv
lavando justamente os pincéis e
vemos a água levando a tinta,
renovando o sentido da caminhada
sacrificial.

TARKOVSKI, Andrei Rublev, 1966


00:48:43 a 00:56:10 h

205
O movimento de Rublióv e Teófanes dentro do quadro é pouco usual
quando se trata de dar visualidade a um diálogo. Nessa sequência ambos ficam
de costas, um para o outro. Essa disposição das personagens no quadro se
repetirá mais tarde, no derradeiro encontro dos dois, sob os escombros de
Vladímir. As personagens não olham um para o outro, olhar que via de regra
transporta a atenção do espectador a um centro, característica da perspectiva
linear. Não. De costas um para o outro, e de meio perfil para o espectador, seus
olhos se lançam para fora do quadro, para o exterior, como um contra-relevo de
Tátlin.

TARKOVSKI, Andrei Rublev, 1966.


00:50:26 h, Diálogo entre Teófanes e Rublióv no campo.

TARKOVSKI , Andrei Rublev, 1966.


02:06:12 h, Diálogo entre Rublióv e Teófanes no Interior da Catedral da Anunciação.

A pesquisadora norte-americana Rosalind Krauss aponta para a


qualidade radical do conjunto dos relevos de canto de Tátlin que “nasce do
modo como rejeitam esse espaço transcendental em dois sentidos diferentes: em

206
primeiro lugar, no antiilusionismo de sua situação e, em segundo, na atitude que
manifestam para com os materiais de que são feitos.” (KRAUSS, 2001, p.67).
Como se sabe os contra-relevos de canto de Tátlin eram realizados e se
singularizam por se organizarem utilizando (e integrando) dois planos de parede
que se encontram, em um canto, como suporte físico da obra. Ora, lembramos
que Tátlin, assim como seu contemporâneo Kazimir Maliêvitch, retomava, com
suas ações artísticas experimentais, a tradição da cultura eslava e, nesse caso, o
contra-relevo de Tátlin reporta-se à disposição dos ícones nos cantos internos
das paredes das casas, ação empreendida também por Maliêvitch.
A ilustração abaixo reproduz uma antiga gravura eslava onde
identificamos o interior de uma casa russa. No canto esquerdo superior há um
ícone, colocado de canto, entre duas paredes.

Biblioteca Nacional da França. Gravura.


(ícone pendurado no canto, bem no alto das paredes, à esquerda)

A seguir podemos verificar a mesma disposição “icônica” de um dos


contra-relevos de Vladímir Tátlin.

207
TÁTLIN: Contra-Relevo de Canto (angular), 1925-1926. Ferro, cobre e madeira, 71 cm x 118.
(destruído; reconstrução feita por B.P. Toporkova, a partir de fotografia da exposição de 1915).
Museu Russo, Moscou203.

O mesmo se dá quando Maliêvitch expõe o seu quadrado negro,


suprematismo das cruzes icônicas da pintura medieval, no canto, entre duas
paredes, plenamente integrado, inclusive, com suas outras pinturas.

Petrogrado, 19’5, “0.10. ùltima mostra futurista”, a sala com as pinturas de Maliêvich.
(“Quadrado negro” exposto no alto, no canto, como um ícone nas casas russas)204

203
PAULO ANGERAMI, fotografia de montagem dessa obra de Tátlin no Brasil; exposição
“500 anos de arte russa” em 2002. Arquivo do fotógrafo.
204
MARCADÉ, 1995, p. 143.

208
A análise de Krauss, pelo ponto de vista da arte, traz à discussão a
“inteireza arquitetônica” do canto, que “faz parte do espaço real do ambiente em
que os contra-relevos devem ser vistos”. A função do canto de Tátlin é “a de
insistir em que o relevo que ele contém apresenta uma continuidade em relação
ao espaço do mundo e depende deste para ter um significado” (KRAUSS, 2001,
p.67).
Tratando-se de cinema e não, material e formalmente falando, de
escultura propriamente dita ou pintura, tampouco de um ambiente instalacional
de uma galeria de arte, o que vemos no cinema de Tarkóvski, é um plano-
seqüência205 no qual Teófanes e Rublióv encontram-se em um campo206. Sendo
o filme formado por uma imagem plana, delimitada por um quadro, o campo é
uma porção de espaço imaginário (onde se inclui a impressão, ou ilusão, de
profundidade, de tridimensionalidade, portanto). Os olhares divergentes dos
pintores remetem o espectador para o fora de campo207, onde pode-se perceber o
prolongamento do visível. No entanto, o cineasta não nos oferece o
encaminhamento desses olhares, não há o contra-campo através do qual o olhar
fora de campo se complementaria: não há o raccord sobre esses olhares.
Jacques Aumont situa o raccord como a figura mais representativa do
“cinema clássico”. Tal figura garante a “impressão de continuidade e de
homogeneidade” e situa-se no plano formal do filme (AUMONT, 1995, p. 77).
Como esse conceito se aplicaria no caso em estudo? É Aumont quem
exemplifica o raccord sobre um olhar: “um primeiro plano mostra-nos um
personagem que olha algo (em geral fora de campo); o plano seguinte mostra o
objeto desse olhar (que pode, por sua vez, ser um outra personagem olhando o
primeiro: tem-se então o que se chama um ‘campo/contracampo’).” (AUMONT,
1995, p. 77).

205
“Plano bastante longo e articulado para representar o equivalente de uma sequência”
(AUMONT, 2003, p.230). A noção de plano adotada aqui é a designação de “uma unidade de
filme durante a qual o enquadramento permanece fixo em relação à cena filmada (é o
“contrário” de “movimento de câmera”).
206
Campo “é a porção de espaço tridimensional que é percebida a cada instante na imagem
fílmica” (AUMONT, 2003, p. 42). Diferencia-se do quadro pois no campo está a “porção de
espaço imaginário que está contida dentro do quadro” (AUMONT, 1995, p. 21).
207
“O fora de campo está [...] vinculado essencialmente ao campo, pois só existe em função do
último; poderia ser definido como o conjunto de elementos (personagens, cenário etc) que, não
estando incluídos no campo, são contudo vinculados a ele imaginariamente para o espectador,
por um meio qualquer” (AUMONT, 1995, p. 24).

209
Na seqüência de Andriêi Rublióv que analisamos, não há
“campo/contracampo”. Cada um dos pintores olha para um lado (oposto). Como
o contra-relevo de Tátlin, esse olhar se prolonga para o espaço do espectador.
Esse fora de campo, transversal, que se esvai tanto para a borda esquerda
quando para a borda direita do quadro estende o espaço fílmico da mesma forma
que a perspectiva não linear ou inversa, pois devolve o ponto de fuga ao
espectador.
Perspectiva inversa, materialidade, simultaneidade e equilíbrio são
elementos explorados em toda essa seqüência, inclusive no diálogo entre os dois
pintores, cujo ponto de vista (de Rublióv e de Teófanes) mantém-se instável
todo o tempo, assim como o movimento das figuras no quadro.
Como nos contra-relevos de Tátlin, uma grande tensão coloca em cheque
esse equilíbrio em que todas as certezas se esvaem. Cada parte se sustenta na
diferença. O equilíbrio situa-se na alteridade.
A perspectiva inversa leva para fora os olhares contraditórios de ambos
os pintores como se deixassem em aberto suas visões de mundo (múltiplos
centros) e suas dúvidas sobre essas mesmas visões, que não são trazidas ao
diálogo de forma absoluta, ou seja, como verdade final. A percepção e as
dúvidas sobre essas visões dos pintores é aberta para o espectador que a recebe
e poderá completá-la, reformulá-la. Essa multiplicidade de pontos de vista, no
posicionamento das figuras e seus movimentos, no ritmo sonoro e na colagem,
tanto do cuco (já utilizado em Ivan) quanto da Crucificação e da estética
bruegheliana é um procedimento presente em toda a obra de Tarkóvski.

210
4.4. Extratos cronotópicos: o adensamento de cada centro

4.4.1. A Infância de Ivan: ícone medieval e documentários de guerra

Se o processo de colagem revigora a visão de centros múltiplos, também


acena ao espectador com o potencial que ele mesmo possui de estabelecer novas
e múltiplas conexões, desde que atue para responder. Cada um desses centros
múltiplos, por outro lado, é deslocado de um espaço-tempo diverso, ou seja,
cada um de seus centros múltiplos são cronótopos em suas especificidades e se
processam em diversas instâncias espaços-temporais, articulando elementos
plurais da linguagem.
Assim, em A Infância de Ivan temos desde o mais complexo e inaugural
cronótopo que é o Sol negro, que, de acordo com o que já discutimos
anteriormente, entrará como elemento construtivo em outros momentos desse
mesmo filme - e dos próximos filmes- até o mais singelo e comovente que é o
ícone da Madona de Vladímir. A textura dessa imagem da Madona sugere sua
resistência calada a tudo, a todos. Ela surge incólume, segurando seu pequeno
filho, sobrevivente meio às ruínas do que já fora um templo. Durante todo o
filme será uma imagem que ressurgirá no alto, ancorada nos escombros dos
bombardeios nazistas, contrapondo-se à crueza e à violência da guerra.

TARKOVSKI, A Infância de Ivan, 1961.


00:19:23, 00:54:51 e 00:58:41 h

Ainda em A Infância de Ivan, outro importante extrato cronotópico


encaminhará o drama final. Trata-se da colagem de trechos de documentários de
guerra encaminhadas pelo olhar do tenente Galsiev, em busca de notícias de
Ivan. Seguimos o seu olhar e a sua expectativa em movimentos lentos e pesados
de silêncio, desde a comemoração da vitória russa em Berlim, até a assinatura

211
dos acordos de paz e rendição. As figuras evocam algumas visões da guerra:
corpos torturados, presos, carbonizados, tanto da família de Joseph Goebbels
(1897-1945) quanto de prisioneiros, até a tomada derradeira, a da execução de
Ivan. Cenas capturadas pelas câmeras no calor do final da guerra e as cenas
cuidadosamente elaboradas por Tarkóvski são potencializadas nessa colagem
dantesca.

TARKOVSKI, A Infância de Ivan, 1961.


00:23:10 a 00:24:56 h

4.4.2. O Espelho: atravessamentos da paz na guerra

Procedimento semelhante será realizado, com maior complexidade doze


anos depois, em O Espelho. São duas longas, delicadas, agudas e complexas
seqüências.
A primeira é atravessada por diversos cronótopos: passa-se na década de
1970 quando uma família de espanhóis, imigrantes que buscaram na Rússia um
refúgio das guerras civis espanholas ocorridas na década de 1930. A família
encontra-se no apartamento onde moram Ignat e sua mãe. O deslocamento
cultural, a necessidade de acolhimento e a saudade da pátria agitam um
imaginário visual e sonoro nervoso, tenso: a lembrança da tourada nos campos
espanhóis e a encenação de uma tourada na sala gelada de um apartamento
russo; a dança voluptuosa que a filha ensaia e pela qual é punida pelo pai que
não pode mais tourear; a angústia de Luiza, a espanhola que se casara com um
russo, tivera filhos russos e sabia que esses jamais teriam acesso à sua terra natal
que ela tivera que deixar, uma terra sacudida pela guerra civil da qual fugiram às

212
pressas, chorando e assustados. Toda a seqüência é documental, realizada em
Preto & Branco. Na contraposição entre os cronótopos que desenham o drama
dos espanhóis inclui-se, um terceiro, em território soviético, do mesmo período.
Trata-se da chegada do aviador Valiéri Tchkálov (1904-1938), que realizara o
primeiro vôo sobre o Pólo Norte.
Mas não há uma simples contraposição; são de fato atravessamentos,
cronótopos que se tocam sem contudo se fundirem. Assim, da passagem da
tourada em preto e branco, em um tempo longínquo, na Espanha para o toureiro
que encena, por mímica, uma tourada sem touros na sala do apartamento,
décadas depois, as imagens são outras, mas o som da tourada permanece quando
o toureiro faz a mímica da tourada. Ouvimos o público vibrando no campo
espanhol. Suas vozes são trazidas a essa cena em Moscou. O espanhol relata a
despedida da Espanha e sua voz permanece quando vemos a documentação
novamente em Preto & Branco. Sua filha coloca na vitrola uma música em ritmo
tipicamente espanhol, vibrante, e começa a dançar. Seu pai a esbofeteia. Luíza
diz: “Estive na Espanha e não compreendi nada”. Os tempos irreconciliados. A
Espanha da infância de Luiza cedeu lugar à nostalgia. A Espanha “real” com a
qual ela se deparara, quarenta anos depois, já não lhe dizia nada. Luíza sai
correndo da sala e a música acompanha até a porta. Novamente o documentário,
os espanhóis correndo, bombas estourando, famílias se despedindo, crianças
correndo. A música cessa e só ouvimos vozes angustiadas, nervosas,
despedindo-se e imagens de despedidas, uma após a outra, agitadas, até que as
vozes vão desaparecendo aos poucos e ouvimos a sirene de um navio que
seguramente vai partir. Uma menina tranqüilamente vira-se e olha para o céu,
câmera lenta. Corte para a cena de um gordo balão no céu soviético, estufado,
preenchendo toda a tela, em câmera lenta e a entrada um tanto triste do som de
Pergolesi. O ritmo, a textura e o som, fleumáticos, dessa curta seqüência
soviética, contrapõe-se agudamente à vibração anterior da exasperação
espanhola.
Podemos nos lembrar da seqüência toda com alguns frames que a
ilustram, na próxima página.

213
TARKOVSKI, O Espelho, 1974.
00:36:09 a 00:40:21

A segunda seqüência envolve ainda a situação da guerra. O período é a


infância de Aleksiéi. As crianças, inclusive ele, estão em treinamento militar.
Tarkóvski traz do seu álbum de recordações da Segunda Guerra o imaginário da
infância desse período.
A seqüência se abre com a visão lírica da garota ruiva por quem Aleksiéi
fora apaixonado ao som de Pergolesi. Câmera lenta. Esse idílio é cortado, dando
lugar à seqüência que documentou a passagem do Exército Vermelho pelo lago
Sivash, na Criméia, no período da Segunda Guerra (1943). A seqüência é de
uma beleza plástica e dramática dolorosa. Um som percussivo acompanha o
trajeto, marcando o compasso, sugerindo a catástrofe fatal. O som das botas dos
soldados mergulhando nas águas, caminhando, carregando pesados
equipamentos, munições, canhões. A seqüência é longa; a linguagem carrega
características do cinema de Tarkóvski, identificável pelo longo travelling em

214
um ritmo lento, respeitando o tempo do movimento dos soldados, dando ao
espectador a dimensão da longa e penosa travessia. Diríamos que o
documentário foi realizado por Tarkóvski. Mas não; trata-se de um raríssimo
documento de guerra que o cineasta pessoalmente pinçou dos arquivos russos
(TARKOVSKI, 1990), meio a quilômetros de filmes que pesquisou. A lentidão
é pungente, densa. Sabe-se historicamente que a maior parte desses homens,
depois de tantos sacrifícios e privações não retornará. Ouvimos então a voz de
Arsiêni Tarkóvski recitando um de seus próprios poemas. Antes que ele termine,
a cena do lago Sivash é cortada.

TARKOVSKI, O Espelho, 1974.


00:56:23 a 01:03:11 h

215
Depois da travessia do lago Sivash vemos, em cores, um menino
pequeno, ruivo, vindo em nossa direção, carregando uma bolsa de escola. A
criança escorrega e cai na neve. A paisagem é esteticamente bruegheliana. Ele
se levanta e continua caminhando. A câmera fixa. Ele se aproxima, em primeiro
plano. Vemos seu rosto coberto de lágrimas, os olhos baixos, o nariz vermelho.
Ele assovia tristemente. Vira-se de lado e somos sacudidos pela visão de uma
explosão repentina, em preto e branco, novamente. Tanques de guerra. Fogos
em comemoração à vitória. Um corpo que supostamente seria de Hitler. A
seguir vemos o grande e destrutivo cogumelo atômico: Hiroshima. Após essa
última visão, sob sons eletroacústicos, a criança está olhando para a câmera,
para nós. Pequeno, triste, lento, parece concentrar em si todos os horrores da
guerra, todas as dores dos vencidos e também dos vencedores, órfãos, viúvas,
feridos.
Então vira-se, e retorna ao mesmo caminho. É quando para diante de
uma árvore. Em pé, de perfil, parece hesitante. Um pássaro descreve um vôo
ascendente e pousa sobre sua cabeça. Ele estende seu braço e apanha o pássaro.
O som fica mais forte e a cena é cortada, cedendo lugar a uma multidão de
chineses que se agita. A revolução cultural, Mao Tse-Tung, a batalha entre
russos e chineses, em 1969 e, por fim, a grande massa de bandeiras se agitando
na China.
São todos cronótopos de guerra: russos, espanhóis, alemães, chineses,
japoneses, mas não se fundem. Ao contrário, cada um desses centros nutre em si
mesmo a volúpia de se fazer diverso, de espessar sua própria identidade aos
olhos do outro. Miram-se, atravessados, em fecundo processo de revelação.
Centros que se mantém como culturas específicas; que, segundo Bakhtin, não se
confundem, não se fundem, cada uma mantém sua própria unidade e sua
totalidade aberta, mas se enriquecem mutuamente (BAKHTIN, 1997, p. 268) e
se oferecem assim plurais, ao nosso olhar, aos nossos sentidos, à nossa memória.
Na tela do cinema estão diante de nós: corpo a corpo.

4.4.3. O Sacrifício: a documentação de um futuro

Em O Sacrifício Tarkóvski lança mão de um documentário às avessas, o


que já vinha se prenunciando com Stalker (veremos isso ao final desse capítulo).

216
É o filme em que o cineasta daria início (se não tivesse sido seu último filme) à
uma espécie de audiovisual de premonitório. Não em termos de ficção científica,
gênero que ele tentara quebrar com Solaris e Stalker, mas um esforço em lançar
ao futuro, através de sua arte, as angústias presentes (no início da década de
1980), a iminência de uma Terceira Guerra Mundial que exterminasse ao
Planeta.
Tarkóvski criará em O Sacrifício - em preto e branco – através de
sonhos, delírios ou pesadelos da personagem Alexander, sua visão ensaística do
apocalipse terreno. E o faz com delicadeza. Se em A Infância de Ivan o recurso
da memória é ativado para dar conta de uma guerra já ocorrida, cuja extensão
marcara tragicamente o imaginário do planeta, em O Sacrifício o recurso do
temor ao risco iminente de uma terceira guerra mundial é que formula esse
cronótopo, que se conforma a um futuro de proporções já imaginadas pelo
cineasta. Porém não se trata de um ensaio sobre o que pode ter sido, mas um
ensaio sobre o que poderá vir a ser. O ensaio baseia-se em um potencial de
futuro contido no presente, identificado no presente.
A primeira dessas visões ensaísticas se dá nos vinte minutos iniciais do
filme. A locação foi escolhida pessoalmente por Tarkóvski e, segundo
depoimento de Erland Josephson, que desempenhou o papel de Alexander nesse
filme, o cineasta demorou a encontrar o local, que inicialmente deveria ser uma
ponte e acabou por ser a passagem de um túnel no centro de Estocolmo208. A
câmera, estrategicamente posicionada no alto, em frente à boca do túnel em
torno da qual, em paralelo estão duas longas e estreitas escadarias, inicia o seu
percurso deslizando suavemente do alto das escadas, alcança a rua e atravessa-a,
lentamente, como que vindo ao nosso encontro. O que vemos são vestígios de
algum evento violento, catastrófico: pedaços que parecem ser restos de roupas,
papéis, objetos amontoando-se desde as escadas, espalhados pela rua e calçadas;
um carro amassado e tombado e uma cadeira próxima, caída; pedaços de caixas,
de roupas; líquidos escuros pelo chão; água correndo como que escapando de
uma torneira que alguém deixara aberta; e por fim, o reflexo dos prédios em
uma superfície transparente onde escorrera um líquido negro que se pronuncia e
se funde à tela que escurece gradativamente. Os sons longínquos de vozes

208
http://www.andreitarkovski.org/articulos.html. Acesso: 15 jan. 2007.

217
entoando estranhos chamados de pastores suecos e uma flauta japonesa209 são
inseridos para reforçar a idéia de que algo de terrível acontecera e o que vemos
são apenas os vestígios. Não há vida alguma por ali.

TARKOVSKI, Le Sacrifice, 1986.


00:21:30 a 00:22:32 h

Uma hora e meia depois dessa seqüência veremos novamente a boca de


túnel, a mesma escadaria e a visão ainda é oferecida do mesmo ponto de vista.
Trata-se da segunda visão ensaística à qual nos referimos acima. Repete-se o
mesmo movimento de câmera em ritmo lento mas dessa vez, uma grande
multidão corre, desarvorada em nossa direção, preenchendo todo o espaço do
quadro. A velocidade dos movimentos dentro do quadro é sutilmente retardada.
Sobre a superfície transparente vemos, agora, a cabeça da criança deitada, como
se pairasse em um outro espaço ainda a salvo, enquanto a tragédia abaixo dela se
desenrola.

209
O desenho do som de O Sacrifício foi realizado pelo sound-designer sueco Owe Svensson
(s.d.). Em entrevista, ele oferece interessantes informações sobre a sonorização desse filme, a
forma pela qual Tarkóvski selecionou o que queria do som, a vasta pesquisa sonora realizada e
os recursos utilizados. http://www.filmsound.org/articles/sacrifice.htm#interwiev#interwiev

218
Trata-se de um procedimento evidente do uso da perspectiva inversa tal e
qual analisamos, junto a Floriênski, quando da observação da divisão em dois
espaços distintos, em A Conversão de São Paulo, de Michelangelo Buonarroti.

TARKOVSKI, Le Sacrifice, 1986.


01:50:17 a 01:51:16 h

Na construção final da seqüência, inclusive, a imagem reflete-se em uma


superfície transparente, um vidro, por onde outra vez escorre um líquido escuro.
Vemos os prédios inversamente refletidos, como que mergulhados de cabeça
para baixo e então surge a cabeça da criança, deitada. O movimento de câmera
que realiza um trajeto da terra aos céus, sugere um giro de 360 graus. Embora
esse giro não se dê tecnicamente (não chega a ser realizado pela câmera), temos
a impressão de que ele se dá pelo artifício da imagem dos prédios e do céu
refletida no vidro, desestabilizando por completo a noção de espaço.
Consideremos ainda que a primeira das duas seqüências é separada da
segunda por um intervalo aproximado de uma hora e meia. A ordem de ambas,
ou seja, como elas se sucedem no filme causa estranhamento. A primeira é
mostrada a vinte minutos do início, como uma visão (ou delírio, ou pensamento)
de Alexander. Mas o que vemos nela pode ser traduzido como vestígios de algo,
uma catástrofe que já aconteceu. A segunda seqüência, por seu turno, ocorre

219
uma hora e meia depois da primeira. E o que vemos nos dá uma certa noção da
catástrofe acontecendo.

TARKOVSKI, Le Sacrifice, 1986.


01:51: 04 h

Essas visões ensaísticas são organizadas por essas duas seqüências que
sinalizam do futuro. A intensidade com a qual nos deparamos, em ambas, se faz
presente como um pressentimento. Afirma Tarkóvski sobre esses
pressentimenso em O Sacrifício: “[Alexander] é capaz de pressentir o perigo, a
força destrutiva que impele o mecanismo da sociedade moderna rumo ao
abismo” (TARKOVSKI, 1990, p. 273).

4.4.4. O Cantus firmus

As conexões estabelecidas por essas camadas cronotópicas são efetuadas


pelo cineasta - nunca é demais repetir -, como estratégia de construção. O
procedimento se estendia cuidadosamente a todos os seus colaboradores,
diretores de arte, de fotografia, compositores, atores e à equipe de produção.
O compositor russo Eduard Artiémiev trabalhou com Tarkóvski em
Solaris, O Espelho e Stalker. Em depoimento conta como procurou

220
compreender o pensamento do cineasta, o que, se foi difícil, levou-o a uma
sintonia sutil no desenho sonoro que realizou com extremada competência.
Inicialmente, o compositor chocou-se com a predileção de Tarkóvski por
Bach e de sua privilegiada educação musical.

[Tarkóvski] acreditava que Bach foi o maior compositor, sem comparação. Ele dizia
‘existem os compositores e existe Bach’. Ele tinha uma coleção completa de Bach.
Mesmo na era soviética todos sabiam de sua paixão por Bach. Qualquer um que fosse
ao exterior, trazia os discos de Bach para ele. Ele tinha uma grande coleção de Bach.
[Em Solaris] nós criamos um tema. E foi o tema para a Terra. Ele decidiu que
usaríamos a música de Bach como tema para a Terra. E também só quis ter um tema
central, para evitar confusão. A música de Bach e os sons circundantes para apoiar.
Essa foi uma boa decisão210.

Artiémiev persistiu no objetivo de afinar os seus procedimentos tentando


compreender o que de fato Tarkóvski queria. Parte dessa afinação veio da
compreensão da estratégia conectiva entre tempos e espaços diferentes, a qual o
cineasta já havia adotado. Conta o músico:

Perguntei-lhe uma vez: ‘Você não confia em mim? Claro que não sou Bach, mas posso
escrever o tipo específico de música que quer para o filme’. Então ele disse algo que
me pasmou. Ele disse: ‘Preciso dos velhos mestres por um motivo. Cinema é uma arte
muito jovem’ (na época desta conversa, o cinema não tinha nem cem anos). Ele disse:
‘Preciso, para criar no subconsciente dos espectadores uma perspectiva histórica da
profundidade dos séculos, através da música e da pintura dos velhos mestres, e que eles
pensem no cinema como uma velha arte com trezentos ou quatrocentos anos mais
velha, não com noventa’. Este foi um conceito surpreendente. era um propósito, e ele
levou isso até o fim com consistência211.

Foi assim que Artiémiev criou uma instrumentação diferente de Bach,


mas utilizando-se de Bach segundo um conceito que ele explica desta maneira:

Bach usou uma técnica de música litúrgica da Idade Média chamada cantus firmus. É
uma técnica usada em música religiosa. Música católica e protestante que faz uso do
coral gregoriano como base. Cada um dos prelúdios de órgão de Bach tem esse cantus
firmus, um tema de coral gregoriano, e em cima, ele escreveu a sua música. O tema
servia como para ancorar o novo sentimento somado a ele. O que fiz, foi usar a música
de Bach como cantus firmus e em cima disto, escrevi a minha música. Só não usei a
mesma ténica de Bach, mas também a mesma ‘tecnologia’. [...] Como resultado disso
nasceu uma linguagem musical que só foi usada por Andriêi Tarkóvski. Os três filmes
dele [Solaris, O Espelho e Stalker] foram feitos desta maneira e isto nunca mais foi

210
DVD DOSSIÊ Tarkovski (Solaris). Volume II. Entrevista com o compositor Eduard
Artiémiev, 00:04:38 a 00:05:02 h.
211
DVD DOSSIÊ Tarkovski (Solaris). Volume II. Entrevista com o compositor Eduard
Artiémiev, 00:06:46 a 00:07:35 h.

221
usado. Foi como se eu criasse essa linguagem musical especial só para Andriêi, para o
seu método, as suas imagens, a visão dele do papel da música no cinema212.

O cantus firmus, enquanto procedimento artístico utilizado por Artiémiev


para a sonorização dos filmes de Tarkóvski, associa-se ao sentido cronotópico
da obra tarkóvskiana. Podemos observar o mesmo procedimento em relação aos
poemas declamados de (e por) seu pai, Arsiêni Tarkóvski.
Antes de ser uma homenagem ao seu pai, os poemas de Arsiêni
Tarkóvski podem ser entendidos como um indicador da compreensão do
cineasta da função e do sentido profundo que cada um desses textos possuem,
em seu predominante potencial associativo e integrativo, em sua própria
cinematografia. Mais do que palavras verbalizadas, os poemas, assim como os
sons bastante singulares como os do cuco e da chuva, do vento, da água, de
passos; estalidos, ou os estranhos gritos da pastora sueca que perpassam grandes
seqüências de O Sacrifício, são ações de construir vislumbres, visões –
indecifráveis para além dos olhos – do conteúdo da imagem. São verdadeiros
componentes da imagem213 e instigam o espectador a explorar esse potencial
associativo.

4.4.5. Na Biblioteca de Solaris: a tela expandida de Brueghel e Chagall

Solaris pode ser considerado uma grande metáfora das estratégias


cronotópicas que se sustentam no procedimento da perspectiva inversa no
cinema de Andriêi Tarkóvski. O Oceano do qual se constitui o estranho planeta
nada mais faz do que materializar corpos que estão no campo da memória ou do
desejo das personagens, cronótopos vivos.
Solaris constituiu-se em um grande desafio para Tarkóvski pelo fato de
pertencer ao gênero ficção científica. O cineasta tentaria de todas as formas

212
DVD DOSSIÊ Tarkovski (Solaris). Volume II. Entrevista com o compositor Eduard
Artiémiev, 00:07:58 a 00:11:44 h.
213
Componente da imagem no sentido deleuzeano, do som como redimensionador da imagem
visual (DELEUZE, 1990, p. 267 a 309). Tal conceito adequa-se perfeitamente à maneira pela
qual Tarkóvski entende a música (e o papel do músico) em seu cinema. Segundo Artiémiev [...]
ele buscava no compositor não apenas o autor da música, senão o organizador do espaço
audiovisual do filme. E mais, necessitava de um compositor para que este pusesse a música nos
momentos em que Andriêi não sabia como agilizar a linguagem intrínseca de seu filme, e assim
conectar emocionalmente sem dificuldades, com os espectadores.” (TARKÓVSKAYA, 2001, p.
162).

222
descaracterizar o filme do gênero. Buscando soluções para tanto, Tarkóvski
inicia modificações no roteiro, sob os protestos do autor do romance, Stanislav
Lem. O cineasta decide estender as potencialidades do Oceano tornando-o
capaz de materializar também os objetos, além dos corpos à semelhança do
humano. Dessa maneira, o cineasta transfere para o espaço extra-terrestre os
elementos conectores à terra, elementos carregados de espaçotempo que ativam
as instâncias psíquicas dos cosmonautas, colocando-os em contato com o
planeta do qual estão distantes. Essa decisão implica em alterar todo o desenho
da estação espacial de cuja projeção futurística Andriêi Tarkóvski busca se
livrar. Sobre essa potencialidade estendida do Oceano conta Natália
Bondartchuk:

A novela de Stanislav Lem e o filme de Tarkóvski possuem uma diferença essencial:


Lem escreveu uma história sobre o possível contato com a razão cósmica: Tarkóvski
fez um filme sobre a terra, sobre as coisas terrenas.
Na construção de seu “futuro”, os problemas principais permanecem inevitavelmente
como os problemas da consciência humana [...].
Na arte dos criadores terráqueos entrando na consciência do molde cósmico de um ser
vivo, que é o que era minha heroína, da forma à alma do ser humano condenado a
sofrer e amar. A máscara da morte de Púchkin, os volumes de livros velhos e o dragão
de porcelana, são detalhes que Tarkóvski idealizou com grande cuidado e que
infundiram na heroína cósmica uma calidez humana, com a luz da Cultura Terrena
(TARKÓVSKAYA, 2001, p. 106).

Ou seja, se no romance escrito por Lem, o Oceano, um enorme ser


líquido vivente, tornava matéria corpos de pessoas trazidas dos sonhos, dos
desejos, dos pesadelos dos cosmonautas, no filme de Tarkóvski concebeu a idéia
de materializar também objetos da terra. Assim os tapetes, as esculturas, os
candelabros são ativados, tanto pelo universo fantasmático de cada cosmonauta,
quanto ativam, eles mesmos, objetos, a memória e a saudade.
A Biblioteca se constituirá no coração pulsante da estação espacial. O
contraste desse espaço acolhedor, totalmente revestido de madeira com os
brilhos metálico e frios do restante dos cenários, estabelece uma inquietante
provocação aos espectadores. Esses são convocados a conectar passado e futuro
que se configuram em um jogo intermitente. Evoca-se a percepção de um
passado do qual não conseguimos nos libertar e de um futuro do qual não
podemos nos furtar. O signo do tempo presente parece estar fundido nesse
trânsito contínuo, inevitável e mutante.

223
No espaço aconchegante da Biblioteca, esse microcosmo terráqueo, há
um objeto que parece ter luz própria. Trata-se da pintura de Pietr Brueghel
(1525-1569), Os caçadores de neve, na parede de madeira da Biblioteca,
possuidora de uma força encantatória para os cientistas daquela estação,
ativadora das lembranças mais caras do planeta, dos campos cobertos de gelo na
Rússia natal.

PIETR BRUEGHEL, Os caçadores na neve, 1565, óleo sobre tela, 117 x 162 cm
Kunsthistorisches Museum, Viena214

A tela de Brueghel, em sua singularidade, parece funcionar como o


Quadrado Negro de Maliêvitch, assim como vimos no segundo capítulo, uma
espécie de zoom cronotópico que concentra em si um universo em potência,
arrastando nessa energia concentrada toda a espécie de céus, montes, campos e
geleiras imemoriais.
A esse espaço pictórico se conectarão os sonhos e as lembranças de Kris,
de sua infância, seu pai, sua mãe, o fogo, ao mesmo tempo em que promove
conexões entre o filme Solaris com os filmes Andriêi Rublióv e O Espelho. A
tela de Brueghel dialoga em duas instâncias: através de sua especificidade

214
http://gallery.euroweb.hu/html/b/bruegel/pieter_e/painting/landscap/huntsnow.html. Acessp:
18 jan. 2007.

224
depictórica, e redimensionada à linguagem cinematográfica de Tarkóvski. Dessa
maneira faz-se presente enquanto pintura; como elemento ativador da totalidade
do filme; e também em trânsito pela obra toda de Tarkóvski.

TARKOVSKI, Solaris, 1972.


02:08:29 h

TARKOVSKI, Solaris, 1972.


02:08:27 a 02:11:02 h

225
A seqüência ilustrada acima evidencia uma grande articulação entre os
cronótopos. Nessa seqüência da Biblioteca, a pintura de Brueghel está presente
enquanto objeto pictórico. Essa é uma primeira constatação: a pintura como tal
integra o cenário. Ocorre que todo o seu potencial estético condensado nesse
espaço circunscrito à pequena tela da pintura alarga-se e contamina toda a
atmosfera do filme. Há uma transferência para a linguagem cinematográfica,
como se a tela pictórica de Brueghel se expandisse na tela cinematográfica de
Tarkóvski.
A memória é ativada pela conexão com a pintura. Aparentemente tudo
começa quando Kris entra na Biblioteca e vê Hari sentada sobre a mesa, olhando
a tela de Brueghel que está à sua frente. Sabemos que o olhar dela está
mergulhado na tela porque a câmera, em zoom, inicia um passeio pelo quadro de
Brueghel. A câmera então movimenta-se lentamente, como que tateando com os
olhos de Hari que se emprestam aos nossos, demorando-se por vezes em algum
detalhe. Nossos olhos são levados por essa câmera como se fossem os olhos de
Hari. Há então uma sutil passagem da tela de Brueghel para um outro quadro da
infância de Kris. Ele, então criança, nessa paisagem bruegheliana construída
pelo cineasta, vira-se e olha para Hari, para nós, espectadores. E vemos de novo
o rosto de Hari, como que hipnotizada pela pintura de Brueghel.
A seqüência de imagens de Kris, ainda criança, entremeada nessa
seqüência, pode ter sido ativada pela tela de Brueghel, ou pode ter ativado a
materialização da própria tela no interior da Biblioteca. Isso porque as imagens
da infância de Kris na neve haviam sido projetadas diante de Hari e Kris, antes
deles irem para a Biblioteca. Foi quando ambos assistiram a um um videocassete
sobre a infância de Kris que ele trouxera em sua bagagem, da Terra.

TARKOVSKI, Solaris, 1972.


01:39:17 a 01:39:25 h

226
Logo após essa espécie de transe pelo qual passa Hari, na Biblioteca
ocorre a perda da gravidade dentro da estação e os corpos flutuam. Hari e Kris,
abraçados um ao outro vagueiam suspensos no ar, enquanto um livro que Kris
estivera folheando anteriormente, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-
1616) passa flutuando, lenta e docemente, entre eles. Artiémiev, nessa última
seqüência, desenha o som com o cantus firmus. O músico descreve em poucas
palavras a construção dessa seqüência:

Uma vez estávamos falando sobre a pintura de Brueghel. Ele disse que ia filmá-la usando só sons
ambientes. Ele disse ‘Mas se puder pensar em alguma coisa, me avise’. Ele plantou essa idéia em
mim, e levei a sério.[...] Ele não quis música na cena, só sons de pássaros ao fundo, cachorros
latindo, vozes indistintas. Acrescentei algum fundo nisso, todos os tipos de coisas que geralmente
ouvimos ao nosso redor, e também, e especialmente, o som de sinos distantes, bem baixinho, ao
fundo. Também incluí o canto bem longe de um coro do povo russo, só uma linha, registrando
vagamente em nossa consciência. Nada concreto. Vem e desaparece. E o trinado súbito de um
pássaro. A isso somei alguns ruídos eletrônicos. Andriêi ajustou isso um pouco, fez sugestões
aqui e ali, e então disse ‘Certo, vai funcionar’215.

TARKOVSKI, Solaris, 1972.


02:12:00 e 02:17:00 h

Um fragmento retirado pelo cineasta da memória humana, na qual se


inscrevem imagens e sons, potencializa o espaço e o tempo em seu cinema.
A cena, ritmada pela suspensão da gravidade, é de uma leveza
arrebatadora. É explícita a construção cinematográfica, nesses poucos segundos,
associada a outra, pictórica. Falamos do pintor bielo-russo/francês Marc Chagall
(1887-1985). Kris e Hari flutuam abraçados, leves, fruindo de seu amor. Na
instabilidade gravitacional da estação, os seus corpos são atraídos um ao outro.
Os objetos também flutuam, levemente. Não há sofreguidão, apenas

215
DVD DOSSIÊ Tarkovski (Solaris). Volume II. Entrevista com o compositor Eduard
Artiémiev, 00:13:27 a 00:16:28 h.

227
embevecimento. Essa é a atmosfera que exala das pinturas de Chagall que se
notabilizou pintando a si mesmo e a Bella Chagall (1895-1944), sua amada,
flutuando no mundo, acima do bem e do mal, das dúvidas, das guerras, da
morte, amorosamente. É possível estabelecer várias conexões nessa construção,
inclusive, pelo ponto de vista da construção da obra, comparando-a com os
desenhos do cenário da biblioteca, preparados pelo diretor de arte do filme,
Mikhail Romadin, segundo podemos observar a seguir:

ROMADIN, Solaris, desenho de cena216.

Nota-se no projeto de Romadin a fidelidade do desenho cenográfico à


produção final, vista no filme já realizado. Inclusive a tela de Brueghel, na
parede à direita e logo abaixo o volume de Cervantes, no ar. No entanto, a
personagem e os objetos, como os vemos no desenho, não correspondem ao
idílio do casal, Kris e Hari, na seqüência acima descrita. Romadim parece ter
planejado um poderoso vendaval, ou mesmo um furacão, que carregasse consigo
corpos e objetos, transtornando completamente o ambiente. A personagem
parece assustada, como que arrancada do chão, desconfortável e transtornada. E
o figurino tampouco corresponde ao traje social bastante terreno, envergado por
Kris nessa cena. Lembremos que era aniversário de Snout. Este convidara a
Sartórius, Kris e a Hari para festejarem na Biblioteca; e tanto Snout quanto Kris

216
http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/TheGraphics/Production_Designs.html.
Acesso: 31 jan. 2007.

228
vestiram ternos com gravata. Sartórios preferiu um suéter azul de gola alta,
Nada de uniformes futuristas e botas espaciais, pesadas. Tudo muito terreno.

TARKOVSKI, Solaris, 1972.


02:08:29 h

MARC CHAGALL, Aniversário, 1915.


Óleo sobre cartão, 80.6 x 99.7 cm,217

217
http://www.moma.org/collection/. Acesso: 31 jan. 2007.

229
Embora o cenário da Biblioteca não tenha equivalência com o “cenário”
que podemos observar acima, na pintura de Chagall, a conexão se dá pela
atmosfera, pela leveza da flutuação dos corpos que, libertos da atração do
planeta, por alguns instantes orbitam em torno deles mesmos, abraçados.
Vemos assim como Tarkóvski transforma o espaço interno da biblioteca
em uma espécie de espaço condensador das energias terrenas dentro da estação
espacial, evocando a imaginação histórica de seu público.
Retomando a tela de Brueghel, veremos Os caçadores de neve
seqüências depois. Isso ocorre quando Kris adoece e, inconsciente, sonha ou
delira. É quando ele se encontra com a mãe, em sua casa, a mesma datcha
mostrada no início do filme. A mãe, que morrera quando ele era criança, anda
pelo interior da sala onde, ao fundo, destaca-se justamente a mesma tela de
Brueghel.

Olga Barnet no papel da mãe de Kris Kelvin. TARKOVSKI, Solaris, 1972.


Fotografia de cena não creditada218. 02:30:07 a 02:30:37 h

Notamos que nem sempre os extratos cronotópicos emergem com seu


potencial ativador de forma tão explícita, aparente e persistente como a tela de

218
http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/ThePhotos/misc_gallery.html

230
Brueghel, ou o prelúdio de Bach. Assim como temos as conexões espaço-
temporais diretas entre Brueghel e Bach, uma observação mais acurada nos
levou a Chagall cuja pintura não é explicitada no filme, porém sua presença se
dá pela gestualidade e atmosfera. Vejamos duas outras conexões, bastante
engenhosas, construídas nesse mesmo filme, que, apesar da sutileza, possuem
grande força potencializadora.

Na primeira delas
vemos a mãe de Kris, durante a
projeção do vídeo que Hari e
Kris viram, antes da seqüência
da Biblioteca. Observemos que
a postura, os gestos, o olhar da
personagem caracterizada como
a mãe de Kris, remetem ao
retrato pintado por Leonardo da
Vinci, Dama com Arminho,
ilustrado ao lado; e o frame
correspondente à cena do filme,
reproduzido abaixo.

DA VINCI, Dama com Arminho, 1485-1490.


Óleo sobre madeira, 54 x 39 cm219

TARKOVSKI, Solaris, 1972.


01:40:02 h

219
Czartorski Museum, Cracóvia (BUCHHOLZ, 1999, p. 29).

231
A segunda conexão se dá na cena final. De volta à Terra, ou à Terra que
o Oceano, por sua vez materializou (essa é uma possibilidade poética para o
final), Kris reencontra o pai. Novamente, a ação é retirada do caldo cultural, da
cultura cristã e da História da Arte. Trata-se da Parábola do Filho Pródigo220,
cuja celebração da misericórdia e da reconciliação foi retratada na pintura O
Retorno do filho pródigo, do holandês Rembrandt van Rijn (1606-1669). Essa é
uma obra que encontra-se em território russo; integra a coleção do Museu
Hermitage, em São Petersburgo. Conforme Artiémiev:

A música durante o final do filme é uma peça puramente orquestral. A cena mostra o retorno de
um filho pródigo. Escrevi esta peça em quatro partes. Escrevi no mesmo momento que o final
estava sendo filmado. Isto é ‘agrupamento musical’, marcas musicais, isso não entra em nenhum
padrão particular. Só várias massas de som. Depois escrevi um concerto baseado nisto, chamado
‘Oceano Solaris’221.

REEMBRANDT VAN RIJN, O retorno do filho pródigo TARKOVSKI, Solaris, 1972.


óleo sobre tela, 1668, 262 x 205 cm222 02:44:17 a 02:44:36 h

220
Evangelho segundo Lucas, 15, 11-31, http://www.ecclesia.com.br/sinaxe/filho_prodigo.htm.
Acesso 15 jan. 2007.
221
DVD DOSSIÊ Tarkovski (Solaris). Volume II. Entrevista com o compositor Eduard
Artiémiev, 00:17:29 a 00:17:35 h.
222
State Hermitage Museum, http://www.hermitagemuseum.org/html_En/03/hm3_3_1_4d.html

232
4.4.6. O sonho de Stalker: cronótopos afluentes

O Sonho de Stalker, ou Sonho do Apocalipse, como denominaremos a


seqüência a seguir, acontece quando nossos três viajantes o Professor, o Escritor
e o próprio Stalker, já se encontram na Zona, estão cansados e tensos com o
grande percurso, voltas e perigos que enfrentaram e se deitam para descansar,
um em cada canto sob o céu e adormecem.
O sono é introduzido por um longo diálogo com características
filosóficas entre o Professor e o Escritor, cuja entonação malemolente, as
palavras quase cochichadas, levam à sonolência.
Antes do “sonho”, Stalker está deitado sobre o chão. A terra recoberta
por montículos de curta folhagem verde, musgosa, acolhe seu corpo como parte
integrante de sua úmida e complexa geologia.
Logo após as cores terrenas são substituídas pelo sépia que atinge um
dourado intenso, luminoso, conforme ilustramos abaixo. A imagem até então
vivamente colorida, intensamente verde, é contrastada pela monocromática, que
anuncia o ingresso em outro espaço-tempo. A água toma uma aparência
metálica, aparentando uma instabilidade e uma densidade mercurial.

TARKOVSKI, Stalker, Parte II, 1979.


00:12:38 e 00:13:57 h

No entorno toda a superfície da terra se torna instável, mexe-se como se


fosse líquida. O espaço se densifica por grossas partículas que se elevam do solo
ao céu, movidas por um estranho e sonoro vento.

233
TARKOVSKI, Stalker, Parte II, 1979.
00:17:36 e 00:17:52 h

Vemos o rosto de Stalker sobre a relva, a pele das mãos marcadas por
grãos de terra, a expressão de seu rosto alterada, estática, como se estivesse
morto, ou em transe.

TARKOVSKI, Solaris, Parte II, 1979.


00:18:09 h

O sonho é introduzido por um sussurro, uma voz feminina em off. As


palavras reproduzem um trecho bíblico. Trata-se de um fragmento de o
Apocalipse de João, quando da abertura do Sexto Selo. O anjo descreve o
escurecimento do céu: o Sol negro. Diz a voz, repetindo as palavras bíblicas:

234
E sobreveio então um grande terremoto
O sol escureceu como um tecido de crina,
a lua tornou-se vermelha como sangue,
e as estrelas do céu caíram na Terra,
como fruta verde que cai da figueira
agitada por forte ventania.
O céu desapareceu
como um pedaço de papiro que se enrola
e todos os montes e ilhas foram tirados dos seus lugares.
Então, os tzares, os grandes, os ricos, os poderosos,
os fortes e todos os homens livres,
esconderam-se nas cavernas e grutas das montanhas.
E diziam às montanhas e aos rochedos: ‘Caiam sobre nós’,
escondei-nos da face D´Aquele que está no trono,
e da ira do Cordeiro.
Porque chegou o grande dia da sua ira,
e quem irá sobreviver? (00:18:09 a 00:19:39223)

Através desse “sonho” podemos observar a potencialização do que


denominamos acima, quando analisamos as passagens de O Sacrifício, de
“documentação às avessas”, criada dessa vez não em preto e branco, mas em
sépia, tonalização fotográfica que remete ao passado, à memória, ao
“amarelecido do tempo”. Éomo se esse sonho fosse um álbum de retratos, ou um
baú que contivesse a memória de um mundo ancestral, do qual precisássemos
ser lembrados. Stalker nos faz ver o conteúdo desse baú aquático, como se fosse
um afluente do imenso oceano que estudamos acima, em Solaris. Traz nele
vestígios do que poderia ter existido na Terra. O território da Zona, todo ele, é
depositário fiel das inutilidades terrenas.
A Zona é um espaço em suspensão. Ela mesma já se localiza dentro do
conceito da perspectiva inversa. Como vimos páginas atrás, em Stalker, há a
Terra, ou seja um espaço terreno, em um período qualquer, onde e quando as
produções humanas parecem ter adquirido seu grau mais elevado de
superfluidade. E há esse estranho território, um outro espaço-tempo, que parece
pertencer e, ao mesmo tempo, não pertencer a Terra. O estado de suspensão da
Zona parece deter todo o segredo humano que gravita entre a suprema beleza e a
miséria absoluta.

223
O texto do filme confere com a consulta ao trecho bíblico do Apocalipse de São João,
capítulo VI, versículo 12 a 17, http://www.bibliacatolica.com.br/01/73/6.php. Acesso: 11 dez.
2006.

235
A Zona é um possível receptáculo que se
adensa em memória e se retrai quando afrontada
por desejos superficiais. Ela permite que seja
cumprido unicamente o desejo mais ardente. E,
para espanto e desgraça de alguns visitantes, esse
desejo pode estar no mais recôndito de seu ser e,
pior, pode ser o mais maldito, o que o levará a
uma terrível desgraça, pois será realizado.
Dentro da construção do Sonho de Stalker,
observemos a maneira pela qual, mais uma vez,
Tarkovski se utiliza do travelling não apenas
como técnica - movimento de câmera - mas como
procedimento poético através do qual trabalha
com o deslocamento, o trânsito, a instabilidade, o
tempo. Observemos como nesse travelling o
cineasta faz por introduzir o espectador em um
espaço-tempo diverso, desloca o tempo vivido por
seus personagens em um determinado espaço,
para um espaço redimensionado por outro tempo.
Espaço onde se depositam objetos carregados de
memória, literalmente encharcados de tempo,
esses cronótopos úmidos - a começar pela mão
de Stalker, através da qual desde o início do
travelling seguimos até surgirem, um a um, os
objetos, adensados pela força aquática que os
afunda no tempo imemorial.
Notamos esse procedimento nas imagens
dos objetos que o cineasta seleciona e dispõe
cuidadosamente, estabelecendo novas e
silenciosas relações entre elas, tecendo uma trama
audiovisual cujos elementos encaminham os mais
inusitados sentidos. Assim também ocorre com o
fragmento do altar pintado pelos flamengos
Hubert e Jan Van Eick, no ano de 1432. Saído do

236
passado remoto, do altar cristão da Catedral de St.
Bavo, na cidade de Ghent, na Bélgica, esse
fragmento de São João vai instalar-se no interior
desse silencioso inventário aquático, rodeado de
moedas de ouro.
E ainda há o ressoar das palavras
proféticas do anjo do apocalipse que ouvimos.
Essas palavras deslocadass das páginas da Bíblia,
sussurradas em nossos ouvidos como uma benção
ou uma maldição. Tratando-se de Tarkóvski essa
certeza (entre o bem e o mal) jamais é dada. Sob
o acúmulo dourado de gotas de água que se
avolumam gradativamente, os bens materiais
criados pelo humano jazem finalmente, diante de
um mundo para o qual já não se prestam: na Zona
esses bens produzem um outro sentido, ou
melhor, o seu sentido de riqueza e poder - tanto
das conquistas científicas quanto das produções
na arte imemorial, provindas da religião
institucionalizada - apontam para um jazigo
aquático onde transparecem sua apocalíptica
inutilidade.

HUBERT e JAN VAN EICK, 1432


Catedral de St. Bavo, Ghent, Bélgica,
Web Gallery of Art (http://www.wga.hu)

237
Retomemos o conceito de Bakhin, com o
qual trabalhamos, sobre os trânsitos de sentido no
tempo. O grande tempo, “o diálogo infinito e
inacabável em que nenhum sentido morre” e o
pequeno tempo, aquele da “contemporaneidade, o
passado imediato e o futuro previsível –
desejado” (BAKHTIN, 1997, p. 412-413). Nessa
interação dialógica, os extratos cronotópicos
sustentam-se na força atualizadora de seus
sentidos em trânsito.
O ícone de São João Batista, mas também
a velha seringa, a arma de fogo já enferrujada e os
pedaços de engrenagem do que já fora um motor,
não se constituem unicamente em objetos
deslocados de um contexto quotidiano e mundano
para a esfera da construção poética e, portanto,
para a esfera da arte; não são apenas citações,
adornos em homenagem a outros artistas. A
opção da utilização desses elementos por Andriêi
Tarkovski, nesse caso, é uma opção arquitetada. É
constitutiva de toda uma poética que se faz
atualizando formas, cores, sons, visões,
paisagens, cenários e retratos, para que o
espectador recolha desse tempo o seu próprio
passado esquecido ou um provável futuro, e mais,
que se localize no presente.
A água, nesse “sonho”, nos chega como
receptáculo da memória, vestígios da passagem
do humano pelo planeta, alerta para o futuro,
localização para o presente. Esse pequeno córrego
memorial se faz presente como matéria
transformadora, de paciente corrosão. A água que
corrói o metal, a madeira, a pedra e a carne é a
mesma água que carrega consigo a vida.

238
Ainda que não vejamos no Sonho de
Stalker qualquer pintura de Leonardo da Vinci,
associamos esse afluente de memórias aquáticas à
dedicação com a qual o investigador florentino
estudou as propriedade da água e a sua presença
primordial no planeta.
A historiadora Elke Buchholz assinala
que:

Na mente de Leonardo a água era para a Terra o


que é o sangue para o corpo humano: flui em uma
corrente ininterrupta por cima e por baixo da terra.
Emana da superfície em forma de fontes desde as
artérias subterrâneas, discorre por arroios e rios, se
remansa em lagos e se derrama no mar. Evapora-se
e volta a cair em forma de chuva desde as nuvens.
Alguns de seus mapas, como o do Vale da Chiana
visto por um pássaro (1502) são como diagramas
anatômicos. O conceito de analogia entre o
microcosmo do corpo humano e o macrocosmo da
Terra se remonta à Antiguidade. [...] O tema da
água impregna toda a obra de Leonardo, tanto os
trabalhos artísticos como suas investigações
científicas (BUCHHOLZ, 1999, P. 86).

A água flui em todos os filmes de


Tarkóvski e mais, parece fluir de um filme a
outro, como um fio inestancável de cronótopos
que se alternam e se renovam em sentidos
múltiplos.
Em Stalker a água se faz novamente
presente em diversos momentos, adensando
espaços, tornando-os mais brilhantes e sedutores,
atemorizando os caminhantes, espelhando os
corpos, refletindo a luz solar. Mas nesse filme ela
traz um potencial redimensionador do espaço-
tempo pelo seu vigor. Agindo como condutora de
restos do que já foi vivo, de “sinais de vida” aos
quais acrescenta um gosto de morte, de fatalidade,
é que ela se faz plena e transparente. Por que?

239
“Porque as pessoas esquecem” diria Sokúrov224.
Talvez Tarkóvski tenha legado esses paradigmas basilares a Sokúrov,
seu amigo mais jovem. Talvez esse tivesse afinidade com Tarkóvski por
comungar com ele uma visão de mundo, “um certo realismo”. Afinal, tanto
quanto seu amigo mais velho, Sokúrov afirma, pleno de segurança: “Eu sou
resolutamente realista”225. O que nos remete à afirmação de um outro russo, cuja
epígrafe inaugurou essa tese: “Sou um realista, mas no sentido superior do
termo”226.

Obs. As imagens das páginas anteriores foram extraídas da seqüência de Stalker, aqui denominada O sonho
de Stalker. Foram remontadas pela autora na mesma ordem estabelecida pelo travelling realizado por
Tarkóvski nesse filme. Como as demais imagens que ilustram trechos dos filmes nessa tese, não bastam por
si mesmas, ou seja, não dispensam a observação atenta do trecho do filme mencionado.

224
A citação completa foi: “O propósito da arte é repetir as idéias mais fundamentais, ano após
ano, década após década, século após século. Porque as pessoas esquecem”
(http://www.findarticles.com/p/articles/mi_m0268/is_3_40/ai_81258061 Acesso: 27 out. 2007).
225
http://www.findarticles.com/p/articles/mi_m0268/is_3_40/ai_81258061 Acesso: 27 out.
2007.
226
Dostoiévski apud TOLEDO, 1973, p. 125.

240
Considerações finais

Cada um dos sete filmes de Tarkóvski articula-se com discursos


artísticos ancestrais. A partir desse trânsito temporal sua obra permite que os
espectadores recuperem o tempo e a memória histórica. Sua proposta é que através
dessa memória quadridimensionalizada nos embebamos de poesia, ativemos nossos
sentidos. O que exige de nós, seus espectadores, é a mesma moeda de troca, ou seja:
tempo. Mas é necessário encontrar uma sintonia adequada para conseguirmos captar
essa ressonância, para que a compreensão ativa se faça, para que consigamos, enfim,
responder ao seu chamado.
Tarkóvski é arrebatado por procedimentos e afinidades que são inerentes à sua
visão de mundo e que vão aproximá-lo tanto da arte medieval quanto das Vanguardas
históricas, em laços que se estreitam e se alargam. Esse movimento restaurador e
criativo do cineasta é contínuo e circular.
O seu cinema não se restringe ao pictórico, como se fosse um quadro estático,
retrato ou paisagem que se colocasse em movimento. Ainda que a complexidade de
seus procedimentos inclua a colagem de obras consagradas da História da Arte, vimos
que essa é uma ação elaborada, rigorosamente efetivada como potencial ativador da
memória humana, como extrato cronotópico.
E ainda que Tarkóvski se reporte às artes pictóricas, observamos que mesmo na
pintura, os grandes mestres jamais se limitaram ao estudo da superfície, como se a
pintura fosse mero depósito de tintas sobre um suporte plano ou a planificação da
realidade. Sempre houve - no que conceituamos como grande obra, através do conceito
de grande tempo, no primeiro capítulo -, uma visão de mundo que se conforma em
matéria impregnada de tempo. Vimos na primeira parte desse trabalho, que é na
conformação da matéria que os planos são definidos, que os mundos são criados e se
formam à nossa frente e nos atravessam com realidades possíveis, múltiplas,
divergentes, ao encontro de nossas fragmentárias realidades. Afastamos do realismo
tarkóvskiano, por esse caminho, a reprodução de uma dada realidade fixa e imutável,
ou a realidade encenada, como tivemos oportunidade de estudar e exemplificar
no segundo capítulo. E demonstramos, no capítulo quarto, como as linhas
potenciais, a formação de centros múltiplos, os extratos cronotópicos e a
construção pelo signo refrativo, asseguram uma fibrilação incessante de
possíveis mundos.

241
Conforme anotamos anteriormente o giro temporal que o cineasta
propicia com sua obra, construindo-a com modelos associados de visão de
mundo, não se constitui em conformismo que congela a tradição em seu tempo.
Não se trata, tampouco de um retorno gratuito ao tradicional, sequer de um
movimento arqueológico, mas sim de uma aguda percepção e sofisticada
sensibilidade para estabelecer conexões com processos e temporalidades
diferentes, que ensejam ao espectador visões de mundo plurais e dinâmicas.
Assim, Tarkóvski se posicionou, reivindicando para si a autonomia do
gesto criador, durante um período em que o artista deveria pautar-se por
fórmulas, inclusive já desgastadas, do Realismo Socialista. O seu
227
posicionamento, junto ao de outros artistas soviéticos do período que se
desviaram e se opuseram ao Realismo Socialista, vêm sendo estudado hoje
como ações propulsoras da arte contemporânea russa. Em recente mostra
ocorrida no Guggenhein de Nova Iorque, no ano de 2005, a historiadora de arte
russa Ekaterina Degot (1958-), afirmou que ainda na década de 1980 o Estado
realizava severo controle da produção midiática e artística na União Soviética.
Degot deixou registrada interessante observação que corrobora com nossas
conclusões:

Imagens em superfícies verticais - planejadas para consumo de massa- originavam-se


de uma única fonte, oculta do consumidor - a fonte da autoridade artística e ideológica
que durou todo o período soviético. Ainda nos anos oitenta, o Estado mostrava controle
total sobre tudo o que era mostrado em superfícies verticais: controlava filmes,
outdoors, cartazes, painéis, anúncios, jornais de parede. Isso sem contar que o Estado
também continuava controlando a pintura tradicional que era exibida em museus, ainda
que as pinturas tenham se tornado nesse momento, pouco mais que outdoors
ideológicos (DEGOT, 2005, p. 366).

Tarkóvski deixou a Rússia no início dos anos 1980, cansado de se


confrontar com a arrogância dos burocratas soviéticos, enclausurados no
Realismo Socialista. Este, já observamos, necessitava de narrativas: lineares,
objetivas, indubitáveis. Andriêi Tarkóvski oferecia pontes para experimentações
sensíveis e por isso se desviou do Realismo Socialista e produziria um realismo
diferenciado; tornando-se incompreensível aos olhos dos burocratas.

227
Esses artistas são nomeados pelos pesquisadores contemporâneos de arte russa e soviética
underground (cf. KRENZ, 2005 e AGUILAR, 2002).

242
E, lembremos, Tarkóvski não foi o único artista soviético a resistir, a
desviar-se e a persistir, mas talvez no Ocidente seja o mais conhecido. Dentro do
campo do cinema temos a exemplificar, Aleksandr Sokúrov, cuja produção
bastante intensa só pôde ser vista pelos russos após a Pierestróika, de acordo
com o que vimos no terceiro capítulo. Outros trabalhos que se pautaram pelo
desvio dos cânones soviéticos foram os de Otar Ioseliani (1934-) e Serguiêi
Paradjanov (1924-1990), ambos cineastas soviéticos/georgeanos. Sokúrov,
Ioseliani e Paradjanov foram amigos próximos de Tarkóvski.
Entretanto, Tarkóvski talvez tenha sido um dos poucos de sua geração
que, além de não se manter alinhado à demanda das convenções do Estado e de
não fazer concessões, tenha persistido toda a sua vida profissional oferecendo
explicações, participando das reuniões com os diretores de cinema soviéticos e
com os censores; publicando o seu ponto de vista teórico (e muitas vezes
político e filosófico), sobre a criação artística e o seu conceito de realismo, como
exemplificamos no trecho abaixo:

Quando falo do realismo do cinema, entendo isso: fixando a realidade, o cinema deve
fazer surgir o fantástico do argumento, a profundidade de análise das personagens e das
questões colocadas, e ao mesmo tempo sublinhar essa concepção tão individual da
criação, característica de Dostoiévski (TARKOVSKI, 1994, p..87).

Tarkóvski recusou-se até o fim a ser agente publicitário do Partido,


mantendo-se fiel à linhagem de Tolstói, Dostoiévski e Púchkin, e dos artistas
que antecederam a sua geração, e seu próprio pai, o poeta Arsiêni Tarkóvski.
Esse foi o seu grande desafio, de A Infância de Ivan ao O Sacrifício: recusou-se
a permitir que a arte, na parte que lhe coube no exercício dela, fosse
domesticada. E o fez afirmando a maior qualidade de um trabalho estético: a de
atravessar o grande tempo.
O realismo de Tarkóvski é o realismo em potência, registrado em
celulóide, contido, conservado em caixas metálicas. Realismo que se espacializa
quando em contato com o público. É a intimidade de Tarkóvski com o tempo
que o faz percebê-lo em sua materialidade e espacialidade:

A força do cinema (...) reside no fato de ele se apropriar do tempo, junto com aquela
realidade material à qual ele está indissoluvelmente ligado, e que nos cerca dia após dia
e hora após hora” (TARKOVSKI, 1990, p. 71, 72).

243
Tarkóvski leu Proust, afirma o teórico francês Jacques Aumont
(AUMONT, 2004, p. 33). Sim, o próprio cineasta o afirmara (TARKOVSKI,
1990, p. 65–67). Assim como lera James Joyce, Thomas Mann, Willian
Shakespeare. Mas sua “escola de arte”, desde a infância, segundo suas próprias
palavras, foi Liev Tolstói. E ao mesmo tempo em que considera inevitável
lembrar de Proust, vai conciliar essa lembrança com o conceito japonês de
“saba”, que seria o “desgaste natural da matéria, o fascínio da antiguidade, a
marca do tempo, ou pátina” (TARKOVSKI, 1990, 66-67), reputando aos
japoneses o esforço por “dominar e assimilar o tempo como a matéria que é
formada a arte” (TARKOVSKI, 1990, 67, grifo meu). Cronótopo puro.
A materialidade no cinema de Tarkóvski, aliás, não tem sido
convenientemente vista. As menções sobre o uso que o cineasta realiza da água
e da terra, por exemplo, beira ao senso comum, levando o seu cinema para o
caminho reducionista da leitura simbólica e mística. A esse respeito o cineasta
francês Chris Marker (1921-), que acompanhou e documentou não apenas a
produção de Andriêi Tarkóvski, mas também de Aleksandr Medvedkine (1900-
1982) e Akira Kurosawa (1910-1998) e de boa parte do movimento político,
cultural e artístico da União Soviética a partir dos anos 1950, faz uma
observação que oferece mais consistência a essa discussão. Diz ele: “Os
ortodoxos respeitam a matéria. Revelam o criador através da criação. Em
contraponto aos personagens o seu cinema se ilumina com os quatro elementos”
(MARKER, 2000). Essa é uma observação que sinaliza um posicionamento
saudável de onde o olhar investigativo poderia partir ao deparar-se com a
diversidade da cultura do leste europeu. Assim como Marker ao se referir a
Tarkóvski, Michael Holquist faz o seguinte comentário sobre a materialidade em
Mikhail Bakhtin:

A teologia de Bakhtin também se baseia numa tradição cristã que honra o presente, o
humano, a riqueza e a complexidade da vida cotidiana. É uma tradição que não pode
compreender o desdém Paulino pelo aqui e agora, a revulsão do corpo. Na verdade,
ambos os fatores – a imediatidade da existência histórica e o respeito pela matéria – de
há muito chamavam a atenção da imaginação religiosa russa. Como observou Nicolau
Zernov: ‘A convicção fundamental da mente religiosa russa é o reconhecimento da
potencial santidade da matéria’ (HOLQUIST; CLARK, 1998, p. 107).
Essa visada no conceito de materialidade em realizadores e pensadores
russos nos ajuda igualmente a compreender porque um estudo sobre a
perspectiva inversa partiu do campo eslavo - através de Floriênski, Favorski e

244
Chklóvski, por exemplo - e não do ocidente; e ainda indica as possibilidades de
leituras plurais entre modelos aparentemente divergentes de visões de mundo.
Porém há mais. O giro da obra tarkóvskiana não se dá apenas ao passado
e tampouco ficou restrita ao período e aos limites geopolíticos onde o cineasta
viveu e trabalhou a maior parte de sua vida. Artistas mais jovens conectam-se
com suas estratégias construtivas, com sua poética, instaurando novas esferas
dialogantes.
Vejamos dois desses movimentos atualizadores. Não foram citados
anteriormente no percurso dessa pesquisa, pois resultam de observações
excedentes que realizamos nesse percurso, e cuja inserção não seria pertinente
no corpo da investigação proposta. São trazidos agora por constituírem-se em
movimentos que encaminham desdobramentos de nosso estudo, através dos
quais o cinema de Tarkóvski estende-se em novas instâncias criativas,
demonstrando que sua poética ressoa intensamente na produção artística
contemporânea.
As obras cujas repercussões são mais diretas têm utilizado, até mesmo, o
nome de um de seus filmes: Stalker. Veja-se, por exemplo, as videoinstalações
de Serguiêi Bugaev (Afrika)228; e, ainda as ações de STALKER – Laboratorio
d´Arte Urbana, proposto por um coletivo de artistas italianos.

BUGAEV, Stalker 3, 1996, 2002, video DVD, 53 min/ Cortesia I-20 Gallery, New York229

228
Alguns dos trabalhos de Afrika Bugaev podem ser vistos em www.ruarts.ru, www.e-flux.com
e http://www.i-20.com; e do Latoratorio d´Arte Urbana: www.stalkerlab.it/. Acesso: 29 jan.
2007.
229
http://www.channel-0.org/afrika.php. Acesso: 29 jan. 2007.

245
230
stalkerlab.i,t documentação de intervenção urbana, c. 2002

Ainda a partir de Stalker, foi criado o videogame russo S.T.A.L.K.E.R,


Shadows of Chernobyl231, cuja visualidade é fortemente marcada pelo filme de
Tarkóvski, conforme ilustrações abaixo.

Frames capturados do game S.T.A.L.K.E.R. Shadow of Chernobyl232

Não apenas Stalker tem derivado trabalhos contemporâneos que colocam


em questionamento o espaço urbano, a degradação do planeta, a violência e o
perigo nuclear. Por outras vias e motivos, Andriêi Rublióv suscitou a realização
de um videoanimação pelo artista romeno Ciprian Muresan (s.d.), ilustrado a

230
www.stalkerlab.it. Acesso: 30 jan. 2007.
231
O game S.T.A.L.K.E.R. pode ser acessado em http://www.stalker-game.com/. Acesso: 02
fev. 2007.
232
http://games.tiscali.cz/clanek/screen_detail.asp?id=2458&img=a9gf.jpg;
http://stalker.vokr.com/game.stalker.php. Acesso: 30 jan. 2007.

246
seguir. Sobre esse trabalho o artista e curador romeno de arte eletrônica Mihnea
Mircan (1976-) faz o seguinte comentário:

[Rublióv] transfere para a animação 3D certas cenas do filme Andriêi Rublióv, de


Tarkóvski. Inserir as possibilidades ilimitadas da animação 3D no filme original (que
explorava ícones inflexivelmente bidimensionais) sem o destruir – pelo contrário,
reproduzindo-o meticulosamente – surge aqui como uma ação infinitamente delicada,
que combina preservação com tradução. Não é tanto a lógica mimética, a relação entre
original e cópia, que estes trabalhos procuram examinar ou desgastar: trata-se antes de
uma tentativa de fazer da distância temporal entre as duas versões o próprio espaço de
representação (Mircan In MOLDER; FARIA, p. 105).

MURESAN, 3D Rubliov, frames do videoanimação, 2004233

Notamos assim que o cinema de Tarkóvski, além de estabelecer um


fluxo dialógico intermitente e vigoroso com a História da Arte, também se
desdobra ao nosso contemporâneo, não apenas ao cinema contemporâneo mas
rebatendo nas artes visuais, principalmente na videoarte e ambientes
instalacionais.

As ações que Tarkóvski empreende para construir seu cinema, objetivam


claramente liberar o que o cineasta denominou imagens interiores, ativar a
memória através de associações cronotópicas, em um processo criativo de
recepção, aquele que de acordo com o que vimos, Bakhtin conceituou como
compreensão responsiva.
O realismo existente no cinema tarkóvskiano, não se refere à reprodução
estritamente mecânica do mundo visível segundo leis geométricas ou
convenções totalitárias. Sua construção estética, mais do que (re)produzir o
mundo visível, está interessada em propor uma ação responsiva para cada

233
MOLDER; FARIA, 2005, p. 104.

247
espectador no que ele tem de mais sensível e profundo e, portanto, na sua
capacidade de se comunicar com a vida e de responder ao chamado do artista.

Por fim, restam algumas considerações a serem feitas sobre possíveis


encaminhamentos a esse estudo.
Quando da apresentação inicial, anunciamos que a investigação partia da
hipótese segundo a qual a obra cinematográfica tarkóvskiana se fez enquanto
construção artística, articulando procedimentos inerentes ao modelo de visão de
mundo organizado pela perspectiva inversa, articulação essa que abriu
possibilidades para experimentações estéticas e associativas ao modelo
predominante, organizado pela perspectiva linear. A hipótese subjacente foi que
as estratégias de construção de seu cinema configurar-se-iam como resistência
aos cânones da arte e da comunicação soviéticas.
Tendo iniciado a realização do que fora planejado inicialmente, alguns
dos percursos possíveis que havia sido estabelecido expandiram-se, apontando
novos caminhos de pesquisa. Tal renovação, alargada dia a dia por acréscimos
bibliográficos; através da multiplicidade dos dados encontrados; e do frescor de
pesquisas internacionais recentes sobre a produção artística e midiática
soviética, indicava dia a dia novas possíveis direções.
Optei por manter o limite do recorte inicial e deslocar para estudos
futuros as conexões que fui estabelecendo e anotando a partir do material
teórico, midiático e informativo que me chegou, inclusive quando do
fechamento do presente trabalho. Assim, por exemplo, ocorreu com o
videoensaio do pesquisador norte-americano Vlada Petric (s.d.) sobre Andriêi
Rublióv, com o qual tive contato no último mês do doutorado; ou ainda com
tesouros da filmografia soviética, cujo acesso se deu apenas na reta final, como
o filme O filho do Regimento (1946), de Vassíli Pronin, o qual foi analisado e
incluído, quando discutimos a produção de A Infância de Ivan, no terceiro
capítulo. O mesmo se deu com dois relevantes documentários, o primeiro de
Aleksandr Sokúrov, Moskovskaya elegiya (1987) e depois, de Chris Marker,
Une journée d'Andrei Arsenevitch (2000), ambos sobre Andriêi Tarkóvski.
Igualmente alguns outros caminhos que resultariam esclarecedores se
evidenciaram. Um deles seria a análise crítica das objeções de Tarkóvski à teoria
da montagem de Serguiêi Eisenstein. Na mesma direção de retomar os estudos

248
do cinema soviético revolucionário, seria elucidativo estudar a proximidade de
Tarkóvski com as experimentações da FEKS, ou Fábrica do Ator Excêntrico
(1921-1929), realizadas principalmente por Grígori Kózintziev (1905-1973) e
Leonid Tráuberg (1902-1990) e às quais Tarkóvski nunca se referiu, mas com as
quais o seu cinema demonstra ter bastante afinidade, principalmente o filme
Nova Babilônia (FEKS, 1929); e as criações individuais de Kózintziev, que
datam do período em que Tarkóvski já estava trabalhando com cinema: Don
Quixote (1957), Hamlet (1964) e Rei Lear (1969).
Segundo explicitamos no corpo da tese, um estudo comparativo entre o
trabalho de Tarkóvski e dois de seus contemporâneos com os quais ele mais se
indispôs, Andriêi Kontchalóvski e Serguiêi Bondartchuk poderia auxiliar na
compreensão dos caminhos que o cinema russo vem tomando no período pós-
soviético e mesmo a possível diversidade no período do Degelo. Buscar em que
medida a filmografia de Kontchalóvski e de Bondartchuck se conectam com a
estética hollywoodiana pode também sinalizar os diálogos entre dois sistemas de
ideologias antagônicas e contudo convencionais.
Em relação ao cinema russo contemporâneo, é patente a influência de
Tarkóvski na nova geração. Veja-se por exemplo O Retorno (2003), de Andriêi
Zviangtsiev (1964-), ainda que alguns dos recursos utilizados por esse diretor
caracterizem-se mais como citações rápidas de algumas marcas do cinema de
Tarkóvski do que conexões com suas estratégias construtivas.
O mesmo já não se pode falar em relação a Aleksandr Sokúrov. Os seus
trabalhos, tanto no campo da documentação como da ficção fazem consistentes
conexões com o cinema de Tarkóvski. Falamos de conexão e não de influência.
Trata-se mais de um diálogo com a criação tarkóvskiana, que lhe é afim. E são
muitas, desde o uso das lentes (cujo procedimento remete também à FEKS e a
Kózintziev), os planos largos, a sonorização, até as mais sofisticadas conexões,
como a construção de centros múltiplos. As instâncias criativas de Sokúrov
possuem uma complexidade e um desenvolvimento particulares, merecedores de
um estudo criterioso.
Como vemos, as vertentes de pesquisa se multiplicam. No que concerne
ao presente trabalho, diante da abrangência do cinema tarkóvskiano, a opção foi
pela concentração investigativa nas conexões sígnicas do mundo visível,
realizadas através dos modelos perspéctico linear e perspéctico inverso,

249
privilegiando a dinâmica construtiva de Tarkóvski, em seu pleno diálogo com a
História da Arte e da Cultura.
Para tanto, o estudo das estratégias, identificadas inicialmente como
procedimentos construtivos do cinema de Tarkóvski, obedeceu a um recorte que
objetivou atender às demandas da pesquisa proposta e também ao tempo
limitado ao doutorado. Mesmo sob essa restrição, o escopo eleito demonstrou-se
relevante e adequado às hipóteses levantadas, o que foi reafirmado quando a
presente pesquisa chegou ao término.
Ao buscar aclarar algumas estratégias construtivas que potencialmente
fazem a arte circular no tempo e não obrigatoriamente fazem-na progredir,
espero ter oferecido uma pequena contribuição para os estudos do cinema, da
arte e da comunicação. Nutro igual expectativa ao apontar possibilidades de uma
dinâmica construtiva alargada por formulações ainda pouco discutidas, ao
menos no ocidente, tais como as de Floriênski, Favórski e Chklóvski, cujas
obras mereceriam traduções para o português.
Por fim recorro a Chris Marker, a uma epígrafe do crítico literário
francês George Steiner (1929-), que o cineasta incluiu em seu filme Le Tombeau
d'Alexandre (1992) que diz o seguinte: “Não é o passado que nos domina. São
as imagens do passado”. O emprego dessa epígrafe quando encerramos esse
longo percurso não é gratuito. Afinal, o mergulho nessa tese deu-se em busca da
compreensão de modelos que constroem imagens, constroem visões de mundo.
O empreendimento criativo de Tarkóvski se distingue nesse processo de
construção por realizar um diálogo intermitente, lúcido e dinâmico no interior da
diversidade. E entendemos que quanto maior a habilidade do artista para
associar modelos díspares, ou de realizar (nas palavras de Bakhtin), a sua
arquitetônica, maior a nossa oportunidade, enquanto conpreendentes ativos de
sua obra, de nos afastarmos da visão hegemônica do passado e, portanto, de
abrir frestas na hegemonia do presente.
Sabemos que tal empreendimento arquitetônico requer coragem e que a
espécie de pagamento exigido é a vida. Por termos essa compreensão, nosso
esforço caracterizou-se ainda como uma modesta forma de retribuição a essa
vida, a Andriêi Arsiénievitch Tarkóvski.

250
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260
Documentos Eletrônicos

ANDREI TARKOVSKI.ORG - Página web dedicada ao cineasta russo, mantida e


organizada por um conselho formado por colaboradores que trabalharam diretamente
com Tarkóvski e por pesquisadores da área, incluindo Marina Tarkóvskaia, irmã do
diretor. Versão espanhola (versões na língua russa e inglesa estão sendo desenvolvidas).
<http://www.andreitarkovski.org>. Acesso: 31 mar. 2005.

ARTINFO DATA BANK – 1000 leading contemporary Russian artists. Banco de


dados de artistas contemporâneos russos, inclusive os trabalhos de Mikhail Romadin.
Em russo e inglês.http://www.artinfo.ru/. Acesso: 01 jan. 2007.

CATÁLOGO VIRTUAL DE ÍCONES. - Виртуальный каталог икон. Completo


catálogo de ícones russos entre os século XI e XVI, das diferentes escolas. Em russo.
http://www.wco.ru/icons/ Acesso: 10 jan. 2007.

DAVNO.RU (ДАВНО.РУ) - Trata-se de uma grande coleção online de imagens


digitalizadas de cartazes e cartões soviéticos do período do realismo socialista. Seu
autor, o designer russo Andrey Balashov, desenhou e mantém esse site pelo qual
recebeu o prêmio "Golden Site" da Webby Award for Russia na categoria “Propriedade
Nacional”. <http://eng.davno.ru/about.html>. Acesso: 04 nov. 2006.

ECCLESIA – Website mantido pela Comunidade Monástica São João Apóstolo, da


Santa Igreja Católica Apostólica Ortodoxa que contém, dentre outros arquivos, uma
biblioteca específica sobre arte sacra na Igreja Ortodoxa e iconografia, com textos de
teólogos e pequisadores e reproduções de ícones de diversos períodos históricos e
diferentes países. <http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/iconografia/index.htm>.
Acesso: 05 mai. 2005.

ELETROSHOCK.RU - Website de Edward Artemiev, considerado o primeiro


compositor russo a utilizar música eletroacústica no cinema (1962); trabalhou com
Tarkóvski em Stalker, Nostalgia, O Espelho e Sollaris.
<http://www.electroshock.ru/eng/welcome/index.html>. Acesso: 20 mai 2005.

eSAMIZDAT - Laboratório de eslavística criativa. Revista eletrônica italiana,


quadrimestral, dedicada aos estudos eslavos. http://www.esamizdat.it/. Acesso: 14 nov.
2006.

FESTIVAL DE CANNES - Página oficial onde consta as apresentações e premiações


históricas dos sessenta anos de sua criação, em 1946. <http://www.festival-cannes.fr >.
Acesso: 02 jul. 2006.

I-20 GALLERY - Website da Galeria de arte contemporânea novaiorquina. Contém


informações sobre os trabalhos do artista contemporâneo russo Serguiêi Bugaev Afrika,
com destaque para a vídeo instalação Stalker 3, realizado em 2001, declaradamente
uma referência ao filme Stalker, de Andrei Tarkóvski, realizado em 1979.
<http://www.i-20.com/exhibition.php?exhibition_id=45>. Acesso: 02 jul. 2006.

LA BIENNALE DI VENEZIA - Página oficial de um dos mais importantes festivais


internacionais de cinema.Informações pobres e pouco organizadas, embora propicie
uma visão cronológica da mostra, a partir de 1932.
http://www.labiennale.org/en/cinema/history/. Acesso: 06 nov 2006.

261
LES COURS DE GILLES DELEUZE - Página web mantida por Richard Pinhas,
com apoio dos familiares de Gilles Deleuze, onde estão publicados documentos escritos
e sonoros, incluindo cursos, conferências e textos escritos, transcritos ou falados pelo
filósofo. Em francês. <http://www.webdeleuze.com>. Acesso: 01 abr. 2005.

LETTERATURA PELAGUS - Instituição cultural italiana que disponibiliza na rede


textos de literature clássica italiana, informações relacionadas a sites de literature
italiana. Textos em italiano na íntegra. Nele está contido o TRATTATO DELLA
PITTURA, di Leonardo da Vinci.
http://www.pelagus.org/it/libri/TRATTATO_DELLA_PITTURA,_di_Leonardo_da_Vi
nci_5.html#libro. Acesso: 05 dez. 2006.

MARXIST`S INTERNET ARCHIVE - Arquivo internacional de documentos


online de pensadores marxistas de todos os tempos. < http://www.marx.org> Acesso:
25 dez. 2006.

NOSTALGHIA.COM -ANDREI TARKOVSKY INFORMATION SITE - A


mais completa base de dados sobre Andriêi Tarkóvski. Eletrônica, é sediada na
Universidade de Calgary, Canadá. Tem como webmasters, o matemático Jan Bielawski
e o geofísico Trond S. Trondsen, ambos pesquisadores e professores da Universidade
de Calgary. Nostalghia é dedicada a “pesquisar, preservar e disseminar informações
relacionadas à carreira de Andriêi Tarkóvski”. O acervo documental é rico em imagens
e textos das mais diferentes origens e línguas, constituindo-se em artigos, entrevistas,
trechos de livros, livros eletrônicos, tanto do cineasta como de membros de sua equipe
de trabalho, familiares e críticos de cinema, das mais diversas procedências. Boa parte
está sendo traduzida para o inglês. A bibliografia bem cuidada informa as edições
traduzidas em diversas línguas e datas. Documentos originais em russo, inclusive o
diploma de graduação de Tarkóvski expedido pela VGIK e um bom número de artigos
que ele publicou em periódicos russos, foram digitalizados e encontram-se na íntegra. A
classificação de links externos, além de extensa, obedece a uma organização que
possibilita acesso rápido e eficiente.
<http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/index.html>. Acesso: 06 jun.
2005.

OPEN SOCIETY ARCHIVES AT CENTRAL EUROPEAN UNIVERSITY


(OSA) - Versão online dos arquivos físicos localizados em Budapeste, Hungria. Suas
coleções de documentos escritos e audiovisuais e atividades resultam de estudos e
pesquisas relacionados ao período posterior à Segunda Guerra Mundial, principalmente
a Guerra Fria, Comunismo, Direitos Humanos, e Crimes de Guerra, particularmente na
Europa Central e do Leste. <http://www.osa.ceu.hu/>. Em nosso trabalho foi
pesquisado especialmente os documentos sobre os gulags (campos de trabalhos
forçados) soviéticos (1921 – 1953). Acesso: 02 fev. 2006.

PALLAZZO FORTI VERONA – LE MOSTRE VIRTUALE - Página web da


Galleria di Arte Moderna e Contemporanea Palazzo Forti, em Verona, na Itália.
Arquivos de mostras virtuais com textos de pesquisadores na íntegra sobre os artistas,
obras e contexto. <http://www.palazzoforti.it/virtual.html>. Em nosso trabalho foram
pesquisadas as seguintes exposições: Kazimir Malevich e le sacre icone russe
Avanguardia e tradizioni; L'arte vietata in U.R.S.S, Non-conformisti dalla collezione
Bar-Gera- 1955-1988; Kandinsky e l´anima russa. Acesso: 03 jun. 2005.

262
SOUND IN TARKÓVSKI`S SACRIFICE - Interview with Owe Svensson,
Swedish Sound Mixer. Página do website FilmSound.org – Learning space dedicated to
he Art and Analyses of Film Sound Design.
<http://www.filmsound.org/articles/sacrifice.htm#interwiev>. Acesso: 08 mai. 2005.

STALKER LABORATORIO D`ARTE URBANA - Página de grupo de artistas


contemporâneos italianos, ativo desde 1995. Apresentam manifestos, documentação
diversa, escrita e audiovisual de trabalhos produzidos a partir do conceito de sujeito
coletivo denominado “Stalker”, originário do personagem de filme homônimo de
Andriêi Tarkóvski e estudos sobre alguns conceitos do filósofo francês Gilles Deleuze
tais como território e nomadismo. < www.stalkerlab.it>. Acesso: 03 jul. 2006.

THE ISLAND OF SOKUROV - Versão em inglês do site russo sobre Alexander


Sokurov contendo biografia, sinopses de alguns de seus filmes, entrevistas e links. Sua
websiter é Alexandra Tuchinskaya, crítica de arte russa, curadora chefe do
Departamento de Teatro Russo do Museu do Teatro e Música de São Petersburgo.
Contém informações sobre o diretor russo tais como biografia e filmografia, dados
sobre seus colaboradores e alguns textos críticos.
< http://www.sokurov.spb.ru/island_en/mnp.html >. Acesso: 31 mar. 2005.

THE STATE TRETYAKOV GALLERY (ТРЕТЬЯКОВСКАЯ ГАЛЕРЕЯ/


TRET'IAKOVSKAIA GALEREIA) - A Galeria Tretiákov, em Moscou, reúne mais
de 130.000 obras de sucessivas gerações de artistas russos, do século XI até o XX
incluindo as vanguardas russas, obras do realismo socialista e das gerações da Glasnost.
O museu foi fundado pelo industrial e colecionador Pável Mikhailovitch Tretiákov
(1832-1898), em 1856 e, com o tempo o seu acervo foi ampliado. Dentre as obras
encontram-se os ícones pintados por Andriêi Rublióv. < www.tretyakov.ru/> Acesso:
06 nov. 2006.

UNIVERSITY OF PITTSBURGH RUSSIAN AND SOVIET CINEMA:


BIBLIOGRAPHY - Listagem da bibliografia do cinema russo (em russo, inglês,
francês, alemão e italiano) a partir de 1896 até 2005 mantida por Vladimir Padunov, do
“Department of Slavic Languages and Literatures” e do “Film Studies Program”.
<http://www.pitt.edu/~slavic/video/cinema_biblio.html>. Acesso: 03 jul. 2006.

263
Filmografia (Fichas Técnicas)

ANDRIÊI TARKÓVSKI (direção, cinema)

LONGAS-M ETRAGENS (em ordem cronológica)

A INFÂNCIA DE IVAN (1961). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Mikjail Papava e


Vladimir Bogomolov. Intérpretes: Kolia Burlaiev, Valentin Zubkov, Evgueni Zharikov,
Andrei M. Konchalovski. Direção de arte: Yevgueni Tcherniaiev. Fotografia: Vadim
Yusov. Música: Vitcheslav Ovitchinnikov. Continental. Edição: G. Natanson.
Produção: Mosfilm. Continental Home Video. DVD (90 min.), 4:3, cor/pb, NTSC,
dolby digital 2.0 e 5.1, em russo. Legendas: português, inglês e espanhol. Original em
russo: Ivanovo Destvo.

ANDREI RUBLEV, “THE PASSION ACCORDING TO ANDREI” (1966). Direção:


Andrei Tarkovsky. Roteiro: Andrei Tarkovsky; Andrei Mikhalkov-Konchalovsky.
Direção de arte: E. Chernyaev, E. Novoderezhkin, S. Voronkov. Intérpretes: Anatoly
Solonitsin, Ivan Lapikov, Nikolai Grinko, Nikolai Sergeyev, Irma Raush Tarkovskaya,
Nikolai [Kolya} Burlaev. Fotografia: Vadim Yusov. Música: Viacheslav Ovchinnikov.
Edição: Ludmila Feignova. Produção: Mosfilm. The Critherion Collection. DVD (205
min.), 2.35:1, cor/pb, NTSC, dolby digital; mono, em russo. Legendas: inglês. Original
em russo: Strasti pa Andrieiu.

SOLARIS (1972). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Andrei Tarkovski, Friedrich


Gorenstein. Direção de Arte: Mikhail Romadin. Intérpretes: Natalia Bondartchuk,
Donatas Banionis, Anatoli Solonitsyn. Fotografia: Vadim Yusov. Música: Eduard
Artemiev, J. S. Bach. Edição: Ludmila Feignova. Produção: Mosfilm. Continental
Home Video. DVD (166 min.) dual layer, 16:9 widescreen anamórfico, cor/pb, NTSC,
dolby digital 2.0, em russo. Legendas: português, inglês e espanhol. Original em russo:
Saliaris.

O ESPELHO (1974). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Andrei Tarkovski, Aleksandr


Misharin. Direção de Arte: Nikolai Dvigubski. Intérpretes: Margarita Terékhova, Filip
Yankovski, Ignat Daniltsev, Oleg Yankovski, Yuri Nazarov. Fotografia: Gueorgi
Rerberg. Música: Eduard Artemiev, J. S. Bach, H. Purcell, G. B. Pergolesi. Edição:
Ludmila Feignova. Produção: Mosfilm. Continental Home Video. DVD (101 min.) dual
layer, 4:3 fullscreen, cor/pb, NTSC, dolby digital 2.0, em russo. Legendas: português,
inglês e espanhol. Original em russo: Zierkalo.

STALKER (1979). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Andrei Tarkovski, Arkadi e


Boris Strugatski. Direção de Arte: A Merkúlov. Intérpretes: Anatoli Solonitsyn,
Alexandr Kaidanovski, Nicolái Grinko, Alissa Freindikh, Natasha Abramova.
Fotografia: Aleksandr Kniajinski. Música: Eduard Artemiev, Ravel, Beethoven. Edição:
Ludmila Feignova. Produção: Mosfilm. Continental Home Video. DVD (134 min.) dual
layer, 4:3 fullscreen, cor/pb, NTSC, dolby digital 2.0, em russo. Legendas: português,
inglês e espanhol. Original em russo: Stalker.

NOSTALGIA (1983). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Andrei Tarkovski, Tonino


Guerra. Direção de Arte: Andrea Crisanti. Intérpretes: Oleg Yankovski, Erland
Josephson, Domiziana Giordano, Patrizia Terreno. Fotografia: Giuseppe Lanci. Música:
Beethoven, Debussy, Verdi, Wagner. Edição: Erminia Marani, Amadeo Salfa, Roberto

264
Puglisi. Produção: Sov Film (União Soviética); Rai 2 TV (Itália). Continental Home
Video. DVD (121 min.) dual layer, 4:3 letterbox, cor/pb, NTSC, dolby digital 2.0, em
russo e italiano. Legendas: português, inglês e espanhol. Original em italiano:
Nostalghia.

LE SACRIFICE (1986). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Andrei Tarkovski.


Direção de Arte: Anna Asp. Intérpretes: Erland Josephson, Susan Fleetwood, Valérie
Mairesse, Allan Edwall, Gudrun S. Gisladottir, Sven Woller, Filippa Franzén, Tommy
Kjllqwist. Fotografia: Sven Nykvist. Música: Jean-Sébastien Bach, Watazumido-Shuso,
Chants de bergers de Dalécarlie et de Härjedalen. Edição: Andrei Tarkovski; Michal
Leszczylowski. Produção: Argos Films (Paris) Svenka Filminstitutet (Stockholm).
Argos Films. DVD (142 min.), 14:3, cor/pb, mono orig., em sueco. Legendas: francês.
Original em sueco: Offret.

DOCUM ENTÁRIO (para a TV)

VOYAGE in time (1983). Direção e roteiro: Andrei Tarkovski e Tonino Guerra.


Fotografia: Luciano Tovolli. Montagem: Franco Letti. Produção de RAI-
Radiotelevisione Italiana. Itália Facets Multi-Media. DVD (63 min.), fullscreen, sonoro,
colorido, em italiano e russo. Legendas em inglês. Original em italiano: Tempo di
viaggio.

CURTAS-M ETRAGENS DURANTE OS ESTUDOS NA VGIK

THE KILLERS (1956). Direção: Andrei Tarkovsky, Aleksandr Gordon e Marika


Beiku. Roteiro: Andrei Tarkovsky, Aleksandr Gordon e Ernest Hemingway.
Intérpretes: Andrei Tarkovsky, Vasili Shukshin, Yuri Fait, Aleksandr Gordon, Valentin
Vinogradov, Fotografia: Alfredo Alvarez e Aleksandr Rybin. DVD The Criterion
Collection (19 min.), pb, em russo. Original em russo: Ubiitsi.

SEGODNYA UVOLNENIYA NE BUDET (1959). Direção: Andrei Tarkovsky,


Aleksandr Gordon. Roteiro: Andrei Tarkovsky, Aleksandr Gordon e I. Makhov.
Direção de Arte: S. Peterson. Intérpretes: Pyotr Lyubeshkin, Oleg Mokshantsev,
Aleksei Sminov. Música: Fotografia: Lev Bunin, Ernst Yakovlev. Yuri Matskevich. (45
min.), em russo.

O ROLO COMPRESSOR E O VIOLINISTA (1960). Direção: Andrei Tarkovsky.


Roteiro: Andrei Tarkovsky, Andrei Konchalovsky, S. Bakhmetyeva. Direção de Arte:
S. Agoyan. Intérpretes: Igor Fontchenko, Vladimir Zamansky, Natalya Arkhangelskaya.
Fotografia: Vadim Yusov. Música Vyacheslav Ovchinnikov. Produção: Mosfilm
Childrens´s Film Unit. Continental Home Video. DVD (44 min.) dual layer, 4:3
fullscreen, cor, NTSC, dolby digital 2.0, em russo. Legendas: português, inglês e
espanhol. Original em russo: Katok i skhipka.

ANDRIÊI TARKÓVSKI (documentários sobre o diretor)

CHRIS MARKER

UNNE JOURNÉE D´ANDREI ARSENEVITCH (1999), Collection “Cinéma, de notre


temps”. Direção: Chris Marker. Roteiro: Chris Marker. Narração: Alexandra Stewart,

265
Eva Mattes, Marina Vlady. Fotografia: Chris Marker. Som: Florent Lavallée. Música:
Johann Sebastian Bach, Georges Delerue, Henry Purcell. Edição: Chris Marker.
Produção: Thierry Garrel, Claude Guisard, Jean-Jacques Henry, Liane Willemont.
Argos Films. DVD (55 min.), cor/pb, em francês. In LE SACRIFICE.

ALEKSANDR SOKÚROV

MOSCOW ELEGY/ÉLÉGIE DE MOSCOU (1986-1987). Direção Alexander Sokurov.


Câmera: Alexander Sokurov. Narrador: Alexander Sokurov. Produção: Leningrad
Documentary Film Studio (União Soviética). Ideale Audience International. DVD (90
min.) cor/pb, em russo e italiano. Legendas: inglês, francês, espanhol, italiano. Original
em russo: Moskovskaia elegia.

COLEÇÃO DOSSIÊ TARKOVSKI (Continental Home Vídeo, Brasil)

DOSSIÊ Tarkovski (A Infância de Ivan + Andrei Rublev). Volume I. Entrevistas com o


compositor Vyachelslav Ovchinikov; o diretor de fotografia Vadim Yúsov; o ator
Ievguieni Zharikov. Depoimento de Andrei Tarkovski. Documentário Crianças da
Guerra. Biografias dos atores e equipe técnica. Galeria de Pôsteres. Arquivo de Fotos.
Trailler original de Andrei Rublev. Continental Home Video. DVD (115 min.), 4:3,
letterbox, colorido/pb, NTSC, dolby digital 2.0, em russo. Legendas em português,
inglês e espanhol.

DOSSIÊ Tarkovski (Solaris). Volume II. Entrevistas com a irmã de Tarkovski, Marina
Tarkovskaya; atriz Natalia Bondarchuk; o diretor de fotografia Vadim Yúsov; o diretor
de arte Mikhail Romadin; o compositor Eduard Artemiev. Documentário sobre o ator
Donatas Banionis. Documentário sobre o roteirista e autor do romance homônimo
Solaris, Stanislaw Lem. Trecho do filme Investigation of Pilot Pirks, baseado na estória
Investigation de Stanislaw Lem. Biografias dos atores e equipe técnica. Galeria de
Pôsteres. Arquivo de Fotos. Trailler original de Andrei Rublev. Continental Home
Video. DVD (130 min.), 4:3, letterbox, colorido, NTSC, dolby digital 2.0, em russo.
Legendas em português, inglês e espanhol.

DOSSIÊ Tarkovski (Solaris + O Espelho). Volume III. Entrevistas com o roteirista


Alexander Misarin; o economista Grigory Yavlinsky; o compositor Eduard Artemiev.
Documentário sobre o ator Anatoli Solonitsyn. Documentário sobre o ator Innokenti
Smorkunovski; Tributo a Andrei Tarkovski por Eduard Artemiev. Nove cenas excluídas
de Solaris. Akira Kurosawa fala sobre Andrei Tarkovski e Solaris. Trailler de O
Espelho. Biografias dos atores e equipe técnica. Galeria de Pôsteres. Arquivo de Fotos.
Trailler original de Andrei Rublev. Continental Home Video. DVD (125 min.), 4:3,
letterbox, colorido, NTSC, dolby digital 2.0, em russo. Legendas em português, inglês e
espanhol.

DOSSIÊ Tarkovski (Stalker + Nostalgia + Sacrifício). Volume IV. Entrevistas com o


diretor de fotografia de Stalker Alexander Kniazhinski; o designer de produção de
Stalker Rashit Safiullin. Cenas inéditas da casa de Tarkovski. Trailler de Nostalgia.
Documentário (making of de Sacrifício) Dirigido por Andrei Tarkovski, de Michal
Leszczilowski. Biografias dos atores e equipe técnica. Galeria de Pôsteres. Arquivo de
Fotos. Trailler original de Andrei Rublev. Continental Home Video. DVD (123 min.),
4:3, letterbox, colorido, NTSC, dolby digital 2.0, em russo. Legendas em português,
inglês e espanhol.

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PRINCIPAIS FILMES CITADOS NESSE TRABALHO (de outros
diretores)

SERGUIÊI BONDARTCHUK

WAR AND PEACE (1968). Direção: Sergei Bondarchuk. Roteiro: Sergei Bondarchuk,
Vasili Solobyob, Leo Tosltoy. Intérpretes: Sergei Bondarchuk, Lyudmila Savelyeva,
Vyacheslav Tkhonov, Viktor Stanitsyn. Fotografia: Anatoli Petritsky, Aleksandr
Shelenkov. Música: Vyacheslav Ovchinnikov. Edição: Tatyana Likhachyova.
Produção: Mosfilm (União Soviética). Kultur International Film DVD (405 min.) cor,
dolby digital, em russo. Legendas: inglês. Original em russo: Voina i Mir.

SERGUIÊI EISENSTEIN

IVAN, O TERRÍVEL- Parte II (1945-1948). Direção: Sergei Eisenstein. Roteiro: Sergei


Eisenstein. Direção de Arte: Iosif Shpinel (Isaak Shpinel). Intérpretes: Nikolai
Cherkasov, Serafina Birman, Pavel Kadochnikov, Mikhail Zharov. Fotografia: Andrei
Moskvin, Eduard Tisse. Música: Sergei Prokofiev. Edição: Esfir Tobak. Alma Ata
Studio (União Soviética). Continental Homme Vídeo. DVD (85 min.), cor/pb, em russo.
Legendas: português, inglês e espanhol. Original em russo: Ivan Grozni, Boiarski
Zagovor.

FEKS (Fábrica do Ator Excêntrico)

NOVYY VAVILON (1929). Direção: Grigori Kozintsev e Leonid Trauberg. Roteiro:


Grigori Kozintsev e Leonid Trauberg. Direção de Arte: Yevgeni Yenej. Intérpretes:
David Gutman, Yelena Kuzmina, Andrei Kostrichkin, Lyudmila Semyonova.
Fotografia: Andrei Moskvin. Música: Dmitri Shostakovich. Produção: Sovkino (União
Soviética). (120 min.), pb, em russo.

JEAN-LUC GODARD

NOSSA MÚSICA (2004). Direção: Jean- Luc Godard. Roteiro: Jean-Luc Godard.
Direção de Arte: Anne-Marie Miéville. Intérpretes: Sarah Adler, Nade Dieu, Jean-Luc
Godard, Ronny Kramer, Georges Aguilar, Letícia Gutierrez, Relyn Brass. Fotografia:
Julien Hirsch. Som: Pierre André, Gabriel Hafner e François Musy. Edição: Jean-Luc
Godard. Imovision, DVD (76 min.) Dolby Digital 2.0, 4:3, cor, em francês, árabe,
inglês, hebreu, servo-croata e espanhol. Legendas: português e inglês. Original em
francês: Notre Musique.

GRIGORI KOZINTSEV

KOROL LIR (1969). Direção: Grigori Kozintsev. Roteiro: Grigori Kozintsev, Boris
Pasternak e William Shakespeare. Intérpretes: Jüri Järvet, Regimantas Adomaitis,
Donatas Banionis, Valentina Shendrikova. Fotografia: Jonas Gritsius. Música: Dmitri
Shostakovich. Produção: Lenfilm (União Soviética). (139 min.), pb, em russo.

GAMLET (1964). Direção: Grigori Kozintsev. Roteiro: Grigori Kozintsev, Boris


Pasternak e William Shakespeare. Direção de Arte: Yevgeni Yenej. Intérpretes:
Innokenti Smoktunovsky, Mikhail Nazvanov, Elze Radzinya, Yuri Tolubeyev,
Anastasiya Vertinskaya. Fotografia: Jonas Gritsius. Música: Dmitri Shostakovich.
Produção: Lenfilm (União Soviética). (148 min.), pb, em russo.

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DON KIKHOTE (1957). Direção: Grigori Kozintsev. Roteiro: Yevgeni Shvarts, Miguel
de Cervantes y Saavedra. Direção de Arte: Natan Altman. Intérpretes: Nikolai
Cherkasov, Yuri Tolubeyev, Serafina Birman, Lyudmila Kasyanova. Fotografia:
Apollinari Dudko, Andrei Moskvin. Música: Kara Karayev. Edição Ye. Makhankova.
Produção: Produção: Lenfilm (União Soviética). (110 min.), pb, em russo.

CHRIS MARKER

LE TOMBEAU D´ALEXANDRE (1992). Direção: Chris Marker. Roteiro: Chris


Marker. Direção de Arte: Andrea Crisanti. Narrador: Michael Pennington. Fotografia:
Giuseppe Lanci. Música: Alfred shnitke. Edição: Chris Marker. Produção: Michael
Kustow. (120 min.) em russo e francês.

VASSÍLI PRONIN

O FILHO DO REGIMENTO (1946). Direção Vasíli Pronin. Roteiro: Valentin Katayev.


Direção de Arte: Pyotr Beitner. Intérpretes: Yuri Yankin. Aleksandr Morozov, Nikolai
Parfyonov, Grigori Pluzhnik. Fotografia: Grigori Garibyan. Produção: Syuzdetfilm
(União Soviética). Artkhino (Арткино), DVD (73 min), pb, em russo. Original em
russo: Syn Polka.

IÁKOV PROTAZANOV

AELITA, A RAINHA DE MARTE (1924). Direção: Yakov Protazanov. Roteiro:


Nathan Zarkhi. Direção de Arte: Sergei Koslovsky; Alexandra Ester. Intérpretes:
Yuliya Solntseva, Igor Illyinsky, Nikolai Tsereteli, Nikolai Batalov, Vera Orlova.
Fotografia: Yuri Ahelyabuzhsky. Música: Alexander Rannie. Produção: Mezhrabpom
(União Soviética). Continental Home Vídeo. DVD (111 min.) pb, dolby digital, em
russo. Legendas: português, inglês e espanhol. Original em russo: Aelita.

DZIGA VIÉRTOV

CÂMERA OLHO – RÉQUIEM A LENIN, Episódio “Com os Jovens Pioneiros da


aldeia”/ “Young Pioneers” (1924). Dziga Vertov. Organização: Dziga Vertov. Operador
de Câmera: Mikhail Kaufman. Produção: Film Office of Goskino (União Soviética).
Continental Home Video. DVD (78 min.), pb, dolby digital, em russo. Legendas:
português, inglês e espanhol. Original em russo: Kino-Glaz.

LARRY WEINSTEIN

SHOSTAKOVICH AGAINST STALIN, THE WAR SYMPHONIES (2005). Direção:


Larry Weinstein. Direção musical: Valery Gergiev. Com: Netherlands Radio
Philharmonic; Kirov Orchestra. Produção: Rhombus Media/ZDF German Television
Network/ARTE; IDTV Cultuur. Phillips Classics. DVD (76 min.), 16:9 anamorphic,
cor/pb, NTSC, LPCM Stereo e DTS 5.1, em inglês e russo. Legendas: Inglês, francês,
alemão, italiano, espanhol e chinês.

ANDRIÊI ZVIAGUINTSIEV

THE RETURN (2003). Direção: Andrey Zvyagintsev. Roteiro: Vladimir Moiseyenko,


Aleksandr Novototsky. Direção de Arte: Andrea Crisanti. Intérpretes: Vladimir Garin,
Ivan Dobronravov, Konstantin Lavronenko, Natalya Vdovina. Fotografia: Mikhail
Krichman. Música: Andrei Dergachyov. Edição: Vladimir Mogilevsky. Efeitos visuais:
Kirill Bobrov. Produção: Ren Film (Rússia). Kino Video. DVD (106 min.) 1:1.85, cor,
NTSC, em russo. Legendas: inglês. Original em russo: Vozvrashchenie.

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