Sei sulla pagina 1di 224

--

'

r
;

Por uma Arte Revolucionária


Independente

)
'
1

,
Coleção Pensamento Crítico
Vol. 60

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ.

Breton, André, 1896-1966.


B844p Por uma arte revolucionária independente / Breton-
Trotski ; Patrícia Galvão ... [et al.] ; tradução de Carmem
Sylvía Guedes, Rosa Maria Boaventura. - São Paulo : Paz
e Terra : CEMAP, 1985.

(Coleção Pensamento crítico).

1. Breton, André, 1896-1966. Por uma arte independen-


te. 2. Trotski, Leon, 1879-1940. 3. Socialismo e arte - Rússia.
I. Título. II. Série.
85-0839 CDD-335.4387

Editora Paz e Terra

Conselho Editorial
Antonio Candido
Celso Furtado
Fernando Gasparian
Fernando Henrique Cardoso
BRETON-TROTSKI

em colaboração com
CEMAP - Centro de Estudos Mário Pedrosa
Paz e Terra
Copyright by CEMAP

• Revisão: Sônia Maria de Amorim


Capa: Isabel
Composição: Linoart Ltda.
Fotos gentilmente cedidas por Edmundo Moniz

Direitos adquiridos pela


EDITORA PAZ E TERRA S.A.
Rua São José, 90 - 18.º andar
Centro - Rio de Janeiro/RJ
te!.: 221-3996
Rua do Triunfo, 177
Santa Ifigênia - São Paulo/SP
te!.: 223-6522

1985

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

tNDICE

1.ª PARTE

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . .. . .. .. . .. . . . 9
Introdução: Breton, Trotski e a F.I.A.R.I. . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Por uma arte revolucionária independente . . . . . . . . . . . . . . . . 35
Carta de Trotski dirigida a Breton . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
Carta de Trotski a Breton: "Pela liberdade da arte" . . . . . . . . . 48
Visita a Leon Trotski . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
Entrevista de André Breton a André Parinaud (I) . . . . . . . . 65
Entrevista de André Breton a André Parinaud (II) . . . . . . . . 71
Leon Trotski: Lênin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
"Planeta sem passaporte" ............ • . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
Declaração lida por Breton no meeting de 3 de setembro de 1936 80
Declaração de Breton no meeting do P.O.I. em dezembro de
1936 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
Discurso de André Breton a respeito do segundo processo de
Moscou . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
A arte e a revolução (17 de junho de 1938) . . . . . . . . . . . . . . 91
Sobre a F.I.A.R.I. ................................... 101
Longe de Orly . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112
Declaração da Liga pela Liberdade Cultural e pelo Socialismo . . 116

2.ª PARTE

Intelectual: democracia e cidadania . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123


Entrevista com Edmundo Moniz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
Surrealismo e a política . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 5
Poesia proletária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Intelectual _:_ I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140
Intelectual - II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 3

• O catinhoso biógrafo de Prestes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


A sementeira da revolução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Em defesa da pesquisa ...............................
146
150
153
Influência de uma revolução na literatura . . . . . . . . . . . . . . . . 156
Sérgio Milliet e o papel do intelectual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160
Um D.I.P internacional - Vem da Rússia a proposta contra
a liberdade de expressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
Patêntesis no descaminbamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
Os attistas plásticos e o Pattido Comunista . . . . . . . . . . . . . . 168
A revista de arte da ENBA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170
Assim falou Portinari . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . 172
Aspectos do surrealismo (extrato) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175
Arte e burocracia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176
A revolução nas artes - I ............................ 180
A revolução nas artes - II ............., , .. , . . . . . . . . . . . 190
Surrealismo e o manifesto sem adesão .. , .. : . , , . . . . . . . . . . . . 195
Glossário de nomes ............. , ..... , .... , .... , ..... 199
1.a parte
APRESENTAÇÃO

A publicação do texto-proposta de André Breton, no voL 18 das


Oeuvres, de Trotski, editadas pelo Instituto Leon Trotski, de Paris,
que, discutido longamente e reescrito originou o chamado manifesto
da F.LA.R.L, foi a oportunidade para esta edição, que procura colocar
ao alcance de um público brasileiro mais amplo a documentação e
estudos sobre aquele acontecimento. O projeto de Trotski, Breton e
Rivera foi bruscamente interrompido com a irrupção da II Guerra,
o brutal assassinato do primeiro, a dispersão política e geográfica das
figuras principais e pelas divergências políticas que apareceram. Ape-
sar da situação histórica do pós-guerra ser muito diferente daquela
em que surgiu o manifesto, os temas e problemas ali tratados perma-
necem com viva atualidade (ainda que seu exemplário seja em boa
parte, evidentemente anacrônico) até porque as questões centrais do
capitalismo e do stalinismo não foram resolvidas.
Afastada hoje a ameaça iminente do nazi-fascismo como se
manifestava então (nas décadas de 20-30), continua em perigo "a
civilização mundial na unidade de seu destino histórico" pela perma-
nência da ameaça que representa a "nova ordem" hoje imposta pela
conjugação de esforços do capitalismo e das burocracias. Deles parte
um imenso esforço conjunto para forjar uma imagem de estabilidade
do mundo, que implica encenar o coroamento da história humana
no seu atual estágio. Com isso, querem fazer passar a certeza de
que tudo continuará mais ou menos como está desde que algumas
reformas sejam viabilizadas, porque a revolução proletária teria saído
da ordem do dia.
Há muitos esforços para demonstrar o aburguesamento do prole•
tariado e a falência de seus instrumentos de luta, sindicatos e partidos,

9
no mais das vezes desmoralizados porque pervertidos por seu uso
contra os trabalhadores. Entretanto, sob a superfície pesada e opressi-
va as massas trabalhadoras se movem e lutam. Este rio subterrâneo
continua inquieto apesar das barrancas que o oprimem. As forças
produtivas certamente não poderão impunemente continuar a tendên-
cia de serem instrumentalizadas como seu contrário. A contradição é
antagônica, viva e explosiva.
No meio intelectual e artístico o ceticismo tem florescido como
subproduto da "crise" que se aprofunda, levando escritores e artistas
ao refúgio puro e simples do mercado, ou das tendências nacionalizan-
tes, como busca desesperada de identidaqe. Mas no individualismo
burguês ela se perde, tanto quanto no coletivismo totalitário. E a
identidade cultural e artística vive sua contradição insolúvel nesse
ambiente e por esses métodos, o que não tem podido impedir o surgi-
mento de obras. Apesar dos obstáculos e hostilidades. Se a capaci-
dade humana de resistir parece ilimitada, também o parece a das
forças conservadoras, a constringir as faculdades criativas dos verda-
deiros artistas e intelectuais.
Este volume, entretanto, não pretende apresentar como resultado
final algumas teses. Antes e sobretudo se propõe como trabalho de
investigação. No dizer de Engels, nos Anais franco-alemães, "os resul-
tados de nada servem sem o desenvolvimento que os produziu, e
os resultados são ainda piores que inúteis quando se estabelecem
para sempre e não se deixam retransformar em premissas". Trata-se,
pois de, na especificidade própria do terreno da cultura, oferecer a
pesquisa de um momento privilegiado de discussões sobre a função
do intelectual, se e como pioneiro e portador da rebelião contra toda
forma de opressão. Afinal, o livre direito à pesquisa e à expressão
nas artes, nas ciências, na produção intelectual em geral, em princípio
ninguém ousa questionar, mas os aparelhos censórios do Estado con-
tinuam vivos e ativos; e obstáculos de toda ordem continuam de pé.
Não se questiona o princípio mas se controla o direito de exercê-lo
sempre que seja contrário aos interesses maiores do poder. . . A
ativa colaboração entre Trotski e Breton consagrou alguns documen-
tos fundamentais sobre o tema.
Esta edição procura restabelecer o percurso político que levou
ao trabalho conjunto dos dois. O leitor poderá confrontar o texto-
proposta de Breton e o definitivo do manifesto, como argüir do
valor dessa experiência. Poderá acompanhar também episódios do
terremoto político da década de 30, com a derrota generalizada do
proletariado, a ascensão do nazi-fascismo, a degeneração da revolução

10
soviética, as formas variadas de reação contra a liberdade intelectual
e a luta que muitos travaram contra isso tudo.
O texto inicial de Gérard Roche, escrito especialmente para
esta edição, reconstitui e analisa os principais aspectos das condições
em que se deu o encontro Trotski-Breton, bem como as principais
conquistas do pensamento revolucionário em sua relação com a arte,
contidas no manifesto, em confronto com idéias anteriormente ex-
pressas pelos dois. Discute também as potencialidades da proposta
de criação da F .I.A.R.I. naquele momento e sua quase frustração. Mais
à frente estará à disposição do leitor um conjunto de documentos
que lhe permitirá a análise autônoma e a formação de opinião pró-
pria. Na segunda parte do volume há textos de intelectuais brasileiros
que se pronunciaram, em diferentes momentos, sobre tais questões.
Antecedendo (e integrando) esses textos há uma entrevista recente
de Edmundo Moniz, feita para este volume, onde se revelam as atitu-
des e projetos do grupo de intelectuais militantes da Vanguarda
Socialista e da luta que travaram no campo das idéias muito próxi-
mas daquelas do manifesto, especialmente essa figura fascinante de
Patrícia Galvão.
Valentim Facioli - setembro/85

11
INTRODUÇÃO
BRETON, TROTSKI E A F.I.A.R.I.

A 25 de julho de 1938 foi redigido na Cidade do México, após


longas discussões, por André Breton e Leon Trotski, o manifesto
"Por uma Arte Revolucionária Independente", cujo conteúdo man-
tém, ainda hoje, uma singular atualidade. O manifesto, publicado com
as assinaturas de Breton e do pintor Diego Rivera, foi traduzido em
inglês e em espanhol e divulgado aqui e acolá pelo mundo: em Nova
Iorque, em Londres, na Cidade do México, em vários países da Amé-
rica Latina. O Brasil só viu a publicação do manifesto em língua por-
tuguesa em 1946 na revista Vanguarda Socialista criada e dirigida
por Mário Pedrosa, num momento em que a situação política inter-
nacional, que havia presidido sua elaboração, estava profundamente
modificada. Agradecemos aos responsáveis por esta obra permitirem-
nos, destinando-se ao público brasileiro, esclarecer a gênese do en-
contro Trotski-Breton, analisar os fundamentos políticos e teóricos
sobre os quais repousa o manifesto e, enfim, na medida do possível,
retraçar em suas linhas gerais a efêmera hist6ria da Federação Inter-
nacional da Arte Revolucionária Independente (F.I.A.R.I.). Quere-
mos crer e esperar que essa introdução aos documentos muito im-
portantes que foram reunidos neste trabalho satisfará a curiosidade
da juventude e trará modesta contribuição ao apaixonante movimen-
to de busca de independência e democracia que anima esse vasto país.

* * *
Em abril de 1938, período que o escritor Victor Serge define
como sendo aquele em que é "meia-noite no século", quando Breton
chega ao México, as tensões em escala internacional estão acirradas
ao extremo; as últimas vagas revolucionárias que se espalharam na
França e depois na Espanha se extinguem, o fascismo e a burocracia

13
da U .R.S .S. golpeiam severamente o movimento de emancipação da
classe operária no mundo. Como o afirma o manifesto da Cidade do
México: "é toda a civilização mundial, na unidade de seu destino
histórico, que oscila sob a ameaça das forças reacionária• armadas
com toda a técnica moderna". Os sangrentos processos de Moscoll
que misturam a histeria e o assassinato em um nível jamais atingido
na história dizimaram os dirigentes do partido de Lênin-Trotski, to-
da a geração de Outubro. Dezenas de milhares de quadros e militan-
tes desse partido desapareceram na tormenta das prisões e das de-
portàções do terrível ano de 1937.
No início do mês de maio de 1938, no momento mesmo em
que Breton encontra Trotski, está terminando a liquidação dos últi-
mos sobreviventes da Oposição de esquerda russa. De março a maio,
na olaria de Vorkuta, centenas dos últimos valorosos companheiros
de luta e de idéias de Trotski caem ceifados a metralhadora 1 • Do-
ravante, Stálin lançará seus assassinos assalariados contra o prestigio-
so dirigente da revolução de Outubro que se tornara o homem a ser
eliminado. À sua volta, já caíram, vítimas da G.P.U.,* seu antigo se-
cretário Erwin Wolf, Ignace Reiss e logo depois Rudolf Klement,
secretário do movimento trotskista internacional, será por sua vez
raptado e assassinado. Seu corpo será pescado no Sena, aos pedaços.
No México, a G.P.U. utiliza uma variação, na seqüência de seus pro-
jetos assassinos, com a campanha de calúnias orquestradas por Lom-
bardo Toledano, secretário da C.T.M. (Confederação dos Trabalhado-
res Mexicanos), e Hernan Laborde, secretário-geral do Partido Comu-
nista Mexicano. Tomando como modelo as falsidades e as maquina-
ções policiais dos processos de Moscou, sem a menor preocupação
com a l6gica e a verossimilhança, acusam Trotski, um dia, de fomen-
tar uma greve geral contra o governo Cárdenas, noutro dia, de cons-
pirar com o general sedicioso Cedillo, ou então ainda de ter encon-
trado, no decurso de uma viagem, o fascista Dr. Atl, transformando,
para tanto, a pessoa física de Breton.2

* Administração política do Estado (polícia política) da U.R.S.S., criada após a


Revolução de 1917. Substituída em 1934 pela N.K.V.D. e em 1941 pela K.G.B.
1. Os Cahiers Léon Trotsky publicaram dois números especiais dedicados à
Oposição de esquerda russa. Sobre a história desta, leia-se o importantíssimo
artigo de Pierre Broué: "Les trotskystes en Union Soviétique (1929-1938)",
Cahiers Léon Trotsky, n.º 6, dezembro de 1980, pp. 5-65.
2. Dr. Atl era o pseudônimo de Gerardo Murillo (1875-1964), pintor e poeta,
professor de pintura de Diego Rivera, que tinha passado para a extrema-direita
e se reclamava do fascismo. André Breton relatou o epis6dio em seu discurso
de 11 de novembro de 1938, transcrito nesta obra.

14
Diante das ameaças de guerra mundial que se delineiam no ho-
rizonte, Trotski concentra seus esforços na preparação da conferência
internacional que deve lançar as bases da IV Internacional. Mul-
tiplica os contatos e as discussões, mantém uma enorme correspon-
dência com os militantes e os dirigentes das seções com o objetivo
de elaborar um programa de transição fixando as tarefas dos revolu-
cionários. Consciente de que a guerra é talvez apenas uma questão
de meses, esforça-se por preparar e armar os quadros dessa Interna-
cional, a fim de que seja capaz de enfrentar e superar os terríveis
acontecimentos que se encontram diante dela. É notável que Trotski
tenha podido achar, nessas horas dramáticas, no meio de uma inten-
sa atividade política, tempo para debruçar-se sobre os problemas da
arte e da criação intelectual.
O encontro de Trotski e Breton, por mais fascinante que seja,
não é o fruto de um puro acaso, mas, pelo contrário, a conseqüência
de uma necessidade histórica e o resultado de uma longa evolução
política. Breton e o grupo surrealista opuseram-se, já no início dos
anos trinta, várias vezes seguidas, à linha do Partido Comunista
Francês e da Internacional Comunista, sobre numeros'as questões.
Em 1931-32, polemizam contra a política pacifista do comitê Ams-
terdam-Pleyel, dirigido por Romain Rolland e Henri Barbusse e ins-
pirado nos bastidores pela Internacional Comunista. Pregam o retor-
no às posições de Lênin na luta contra a guerra e chegam assim às
críticas da Oposição de esquerda e de Trotski que conclamam a lu-
tar pela frente única. Na Associação dos Escritores e Artistas Revo-
lucionários (A.E.A.R.), Breton e seus amigos rejeitam a literatura
proletária imposta pelos "teóricos" da Associação Russa dos Escrito-
res Proletários (A.R.E.P.) com uma argumentação próxima das te-
ses desenvolvidas por Trotski em Literatura e revolução. Em abril
de 1934, tomam abertamente posição contra a expulsão de Trotski
da França e saúdam, no panfleto "Planeta sem passaporte", "o ve-
lho companheiro de Lênin, o signatário da paz de Brest-Litovsk, ...
o organizador do Exército Vermelho que permitiu ao proletariado
conservar o poder apesar do mundo capitalista coligado contra ele".
Rompem definitivamente com o P.C.F. em junho de 1935 no con-
gresso internacional dos escritores em defesa da cultura, durante o
qual sua voz foi sistematicamente abafada, os discursos de Breton e
Nezval sabotados pelos organizadores, entre os quais se distingue seu
ex-amigo Aragon, que renegou o surrealismo para tornar-se o panegi-
rista de Moscou. Em sua brochura, Du temps que les su"éalistes
avaient raison (No tempo em que os surrealistas tinham razão), fa-

15
zem o balanço desse período estigmatizando "o vento de cretinização
sistemática que sopra da U.R.S.S.". Concluem afirmando que o regi-
me da U.R.S.S. está se tornando a "negação do que foi": "esse regi-
me, esse chefe, só lhes podemos assinalar formalmente nossa descon-
fiança". No .fim do mesmo ano, em outubro de 1935, com outras
tendências revolucionárias, constituem o efêmero ''Contra-Ataque''
e denunciam a traição dos dirigentes e dos partidos da Frente Popu-
lar. Mas os processos de Moscou que se sucedem de agosto de 1936
a março de 1938 produzem uma cisão ainda mais profunda. O rio de
sangue que corre em Moscou, a litania das confissões aviltantes mer-
gulham Breton num horror e numa depressão dos quais sai com di-
ficuldade. Sobrepujando seu asco, engaja-se resolutamente ao lado
dos militantes de esquerda, sindicalistas e escritores como Jean Gio-
no, Marcel Martinet, Victor Margueritte no "comitê pelo inquérito
sobre o processo de Moscou e pela liberdade de expressão na revo-
lução" que se constituiu em outubro de 1936, em Paris. O comitê
parisiense luta para que se dêem esclarecimentos sobre os processos
fraudados e dá sua ajuda à constituição de uma comissão internacio-
nal de inquérito que ouvirá Trotski na Cidade do México, em abril
de 1937, e que será presidida pelo velho filósofo John Dewey. O
engajamento de Breton no comitê é total: executa tarefas práticas e
técnicas, participa das delegações junto à embaixada da U.R.S.S., fa-
la na porta de fábricas e em numerosas reuniões e meetings. A 17
de dezembro de 1936, declara, por ocasião de um meeting do Parti-
do Operário Internacionalista, a organização trotskista francesa, e é
muito aplaudido: "Camarada Trotski, você que foi o grande organi-
zador do Exército Vermelho, seu lugar não seria no México. Já que
quase todas as fronteiras se fecharam à sua frente, há ao menos uma
porta que deveria abrir-se totalmente para deixá-lo passar e é a de
Barcelona". Mas essa porta também ficará fechada ao grande revolu-
cionário. Pelo contrário, ficará amplamente aberta aos jornalistas,
conselheiros e especialistas militares soviéticos entre os quais pulu-
lam os agentes da G.P.U. que vão empreender a caça aos militantes
revolucionários: trotskistas, militantes da F.A.I. (Federação Anar-
quista Ibérica), da C.N.T. (Confederação Nacional do Trabalho) e
do P.O.U.M. (Partido Obrero de Unificação Marxista), e que conse-
guirão finalmente assassinar Andrés Nin, o antigo companheiro de
luta de Trotski. A revolução espanhola fez nascer em Breton e seus
amigos surrealistas uma imensa esperança; mas assistem a esses mas-
sacres e ao refluxo do movimento revolucionário sobre o qual Benja-
min Péret, que combate numa divisão de Durrutí, os mantém infor-

16
mados. A evolução da situação mundial leva Breton a interrogar-se
mais profundamente sobre as causas da degenerescência da U.R.S.S.
e aproxima-o de Trotski, que nunca deixou de admirar. Quando, no
começo do mês de maio de 1938, Trotski acolhe Breton na casa
azul, é informado da evolução política deste; Naville enviou a Coyo-
acan os textos dos discursos do escritor e, superando velhos rancores,
escreveu a Jean van Heijenoort, o secretário de Trotski: "podem uti-
lizá-lo totalmente a favor de L.D.* pois conduziu-se nessa matéria
com uma nitidez perfeita e não é um medroso" .3 Trotski tem plena
consciência do interesse capital que a simpatia política de Breton pe-
la IV Internacional representa para o combate que conduz. Chega-
mos a pensar, como nos sugere Jean van Heijenoort, que· no momen-
to em que recebe Breton, Trotski tem um plano na cabeça. Desde
1924, Trotski só se tinha voltado muito episódica e superficialmente
para os problemas referentes à criação artística e literária. Sua obra
Literatura e revolução parece-lhe pertencer, como confia a Breton, a
um período "pré-histórico". Mas várias circunstâncias o levaram, há
já alguns meses, a aprofundar, precisar e ao mesmo tempo modificar
suas antigas concepções das relações entre a arte e a revolução. Des-
de julho de 19 3 7, está em contato epistolar com Dwight Macdonald e
os fundadores de Partisan Review,** Philip Rahv e William Phillips,
que decidiram, após a sua ruptura com o stalinismo, fazer renascer
sua revista, cujo primeiro número sai em dezembro de 1937. Trotski,
que julga a linha política dos redatores de Partisan Review hesitan-
te e timorata, finalmente aceita colaborar na revista e compromete-se
a escrever um estudo crítico sobre a arte. 4 Assim que Breton chega,
convida os redatores da referida revista a estabelecerem relações com
o escritor que lhes apresenta em termos calorosos: "André Breton,
reconhecidamente o cabeça do surrealismo, encontra-se agora no Mé-
xico. Como sabem com certeza, no plano artístico como no plano
político, ele é não só independente do stalinismo, mas também hos-

* Liev Davidovitch Bronstein, ou Trotski.


** Revista literária e política norte-americana fundada
em 1934 em Nova Iorque
por um grupo de escritores de esquerda.
3. Pierre Naville e Jean van Heíjenoort, 12 de maio de 1938, Houghton Library,
(6953).
4. Sobre a história de Partisan Review e sua ruptura com o stalinismo, ver:
Alan Wald: "Revolutionary intellectuals: Partisan Review in the thirties" em
Literature at the Barricades, University of Alabama Press, 1982, pp. 187-224 e
Gérard Roche, "Partisan Review: revue partisane", Cahiers Léon Trotsky, n.º
19, setembto de 1984, pp. 17-40.

17
tiliza-o completamente. Demonstra sincera simpatia para com a IV
Internacional'' .5
O esforço de análise teórica da degenerescência burocrática, em-
preendido em A revolução traída, levou Trotski a fazer uma des-
crição terrível da condição da arte e da criação intelectual no mundo
totalitário em que se transformou a U.R.S.S. Trotski constata que o
comando da burocracia "se exerce do mesmo modo nos campos de
concentração, na agronomia e na música". O regime totalitário da
U.R.S.S. é igualmente funesto à literatura: a luta das tendências e
das escolas que floresciam após a revolução deu lugar à interpreta-
ção dos chefes e dos burocratas. Todos os agrupamentos pertencem
obrigatoriamente-a uma organização única, ''espécie de campo de con-
centração das letras". Todo pensamento livre e independente é siste-
maticamente abafado, marginalizado, todo criador que não se dobre
aos cânones do "realismo socialista" é impiedosamente eliminado. No
momento em que o escritor Isaac Bábel é condenado ao silêncio, a
poetisa Akhmátova é marginalizada, alguns meses antes do grande poe-
ta Iossip Mandelstan desaparecer em um campo de concentração no
silêncio gelado da Sibéria, Trotski escreve que a vida da arte sovié-
tica é um martirológio. Os contatos com Partisan Review, as lon-
gas e numerosas discussões com Rivera e Breton, levam Trotski, du-
rante o mês de junho de 1938, a escrever vários artigos nos quais se
manifesta novamente sobre a arte oficial soviética. Esta parece-lhe
ainda mais servil do que a arte cortesã da monarquia, pois apóia-se
em uma falsificação grosseira, destinada a enaltecer o chefe - isto
é, Stálin - . Não é "possível", escreve Trotski, "contemplar sem re-
pulsa física mesclada com horror, a reprodução de quadros e escultu-
ras soviéticas nos quais funcionários armados de pincel, sob a vigi-
lância de funcionários armados de máusers, glorificam os chefes 'gran-
des' e 'geniais', privados na realidade da menor centelha de gênio e
grandeza".6 Durante esse mesmo mês de junho, Trotski repete, vá-
rias vezes, este veredicto inapelável: "a arte da época stalinista en-
trará na história como a expressão mais espetacular do profundo de-
clínio da revolução proletária". Breton também está horrorizado dian-
te do aspecto profundamente reacionário da nova linha do "realismo
socialista", que na U.R.S.S., após o mês de abril de 1932, sucede à

5. Trotski a Philip Rahv, 12 de maio de 1939, Oeuvres, 17, publicação do


Instituto Leon Trotski, p. 230.
6. Trotski, "La bureaucratie totalitaire et l'art", 10 de junho de 1938, Oeuvres,
18, p. 66.

18
teoria da literatura e da arte proletárias. Repele o "realismo socialis-
ta" como repeliu a inanidade da literatura proletária. Em um texto
escrito em 1937, nega que 1 ' a arte de uma época possa consistir na
pura e simples imitação dos aspectos que essa época reveste", e re-
jeita como "errdnea a concepção do 'realismo socialista' que preten-
de impor ao artista, excluindo-se qualquer outra, a pintura da misé-
ria proletária" .7 Muito mais tarde, fustigará de novo, com a mesma
repulsão física que Trotski, a arte degenerada da U.R.S.S. dos anos
cinqüenta, que qualificará de impostura a ser debitada a um regime
que, ''alienando a liberdade humana'', ''corrompendo sistematicamen-
te as palavras", visa, no final das contas, "destruir a arte para sem-
pre".8 Pois para Breton, assim como para Trotski, há, no interior
da criação artística, a sinceridade e autenticidade,' isto é, a fidelidade
do artista a si próprio, à sua emoção e ao seu eu interior.
Mas, o que foi exatamente esse prestigioso e agora célebre en-
contro entre o poeta de L'Amour fou e o brilhante teórico da revo-
lução permanente? Se o contato foi muito caloroso, numerosas dis-
cussões que se travaram entre Trotski e Breton, durante os três me-
ses de estada deste, foram coloridas de pequenos incidentes e escara-
muças sobre as quais não nos alongaremos, se bem que sejam reve-
ladoras. O próprio Breton se explicou a respeito disso, por várias
vezes, como no seu discurso de 11 de novembro de 1938, que o lei-
tor encontrará nesta obra. Assim, Trotski compreendia mal a noção
de acaso objetivo, fundamental no surrealismo e cuja origem teórica
encontra-se em Engels. Nesse ponto, Trotski achava Breton suspeito
de misticismo. As sensibilidades e as formações diferentes de um e
de outro e uma "compleição artistica" da parte de Breton explicam
essas escaramuças e porque em determinados momentos Trotski po-
dia "impacientar-se" quando eram evocados Sade ou Lautréamont.
Jacqueline Lamba, então a companheira de Breton, acentua muito
justamente, nas suas lembranças desse período, que a formação do
espírito de Trotski e sua intensa atividade, posta exclusivamente a
serviço da ação politica, não lhe tinham permitido seguir a evolução da
criação intelectual: em poesia e na arte, "parara na mensagem dos sim-

7. André Breton, "Limites non frontiere8 du surréalisme", 1937, em La Clé des


Champs, Edições Jean-Jacques Pauvert, 1967, p. 21.
8. André Breton, "Du réalisme socialiste comme moyen d'extermination mo-
rale", ibidem, p. 237.
9. O grifo é nosso.

19
bolistas, impressionistas, manifestara claramente seu gosto marcado
pelos românticos, embora tenham sido pouco capazes de tendência
emancipadora, e pelos pré-revolucionários russos. Era portanto inca-
paz, tanto quanto Lênin, de compreender Maiakóvski. Mais ainda,
como poderia admitir o espírito de transmutação operada pelo sur-
realismo a partir de dados que já lhe eram estranhos?"" Com efeito,
sabe-se que Trotski tinha lido os simbolistas russos e mesmo os fran-
ceses, em particular Mallarmé, mas tudo leva a crer que não lera
nem conhecera a obra de Rimbaud e ,a de Lautréamont, ambos pre-
cursores do surrealismo. O gosto manifesto e pronunciado de Trotski
com relação ao romance, que considerava como '1uma grande arte",
sua admiração por Zola e mais ainda por Jules Romain, cujo grande
afresco dos Hommes de bonne volonté lera com entusiasmo, não po-
diam vencer a convicção de Breton, muito pelo contrário. Por ocasião
de uma das primeiras conversas, Trotski, com ardor, defendeu Zola,
procurando manifestamente opor o naturalismo ao surrealismo. Ten-
tando ser conciliador, Breton admitiu que havia poesia nos romances
de Zola, mas sabe-se que, na corrente naturalista, preferia Joris-Karl
Huys~ans, que tinha em alto conceito.
Sem dúvida, foi aproximadamente no começo do mês de junho
que Trotski pediu a Breton para redigir um projeto de manifesto que
servisse de base a um reagrupamento de escritores e artistas revolu-
cionários e contrabalançasse as organizações culturais de Stálin. Foi
então que aconteceu um fenômeno estranho: Breton, paralisado, com
a "respiração de Trotski na nuca", para retomar uma imagem de van
Heijenoort, não conseguia escrever o projeto pedido. A demora pro-
longada provocou, no mês de julho, entre Trotski e Breton, um bre-
ve e violento incidente, na estrada de Guadalajara, como relatou van
Heijenoort. Durante vários dias, houve um gelo, depois do que as
relações foram restabelecidas e novamente calorosas. Breton explicou
a Trotski as razões desse mal-estar e de sua inibição, em uma carta
escrita no navio que o levava de volta à França: "essa inibição de-
corre antes de tudo, fato que queria com todo empenho fazê-lo com-
preender, da admiração sem limites que lhe dedico; foi ela que me
tolheu, nesses últimos tempos. Assim, com muita freqüência, pergun-
tei-me o que aconteceria se, por absurdo, me encontrasse diante de
um desses homens, graças a quem fui levado a modular meu pensa-
mento e minha sensibilidade: por exemplo Rimbaud ou Lautréamont.

10. Entrevista de Arturo Schwartz com Jacqueline Lamba, em Breton-Trotsky,


U.G.E., 1977, pp. 209-210.

20
Eu me sentiria, de repente, estranhamente privado de meios, presa
de uma espécie de necessidade perversa de dissimular-me. É o que
para mim mesmo chamo, lembrando o Rei Lear, de meu complexo
de Cordélia". 11
O projeto que finalmente Breton apresentou a Trotski, escrito
com tinta verde, foi discutido e refundido durante várias reuniões.
Trotski recortava o manuscrito de Breton, colava os trechos, que fo-
ram conservados, sobre o seu próprio manuscrito datilografado, que
ele mesmo corrigia com caneta. O texto russo de Trotski era, em se-
guida, traduzido por Jean van Heijenoort. Os leitores poderão fazer
uma idéia precisa do texto original de Breton publicado paralelamen-
te à versão definitiva do manifesto e da contribuição respectiva de
cada um. Se ambas as versões não se afastam muito uma da outra,
apresentam, no entanto, diferenças sensíveis e bastante significativas.
Não pretendemos, nas linhas que se seguem, entregar-nos a um estu-
do exaustivo do manifesto - o que é aqui impossível - mas, atra-
vés de alguns exemplos, tentaremos mostrar a fusão notável de am-
bas as correntes de pensamento e concepções da criação artística, con-
cepções aliás muito antigas, mas enriquecidas, revivificadas e modifi-
cadas pela experiência e contato estimulante nascido do encontro en-
tre os dois homens. Convém assinalar que o primeiro parágrafo, re-
digido por Breton, não foi conservado na versão definitiva. Esse pa-
rágrafo é na realidade uma crítica de uma caricatura do marxismo
que quer que o conjunto das superestruturas ideológicas, das quais a
arte faz parte, seja o reflexo direto das condições econômicas e ma-
teriais da existência. Breton defende que a arte, a ciência, assim co-
mo "a busca do ideal social" são capazes, por sua vez, de reagir con-
tra a base material da sociedade e portanto modificá-la. A ausência
desse parágrafo, na versão definitiva do manifesto, não significa ne-
cessariamente que tenha havido sobre essa questão uma divergência
entre Trotski e Breton. Muito ao contrário, Trotski lembra que, co-
mo discípulo fiel de Marx, mas também de Labriola, sempre se in-
surgiu contra as interpretações estreitas e mecânicas das obras de ar-
te, unicamente por critérios de classes ou critérios puramente econô-
micos. Ridiculariza impiedosamente os "imbecis" que tentam inter-
pretar A Divina Comédia de Dante pelas "faturas que os mercadores
de tecidos florentinos enviavam a seus clientes". Certamente, Trotski
escreve em Literatura e revolução que a arte de uma época reflete
"direta ou indiretamente, a vida dos homens que fazem ou vivem os

11. Breton a Trotski, 9 de agosto de 1938, Houghton Library, (369).

21
acontecimentos", mas não é um reflexo mecânico. O espírito de uma
época, acrescenta Trotski, na maioria das vezes, trabalha a obra de
arte de forma subterrânea e invisível. Voltaremos a isso mais adian-
te. Na obra Em defesa do marxismo, Trotski denunciará, uma vez
mais, os que caricaturam o marxismo: "Na maneira pels. qual a base-
econômica determina a 'superestrutura' política e jurídica, filos6fica,
artística etc.... ; existe uma literatura marxista muito rica. A idéia
que a economia determina 'diretamente' e 'imediatamente' a criação de
um compositor e até mesmo o veredicto de um juiz representa uma
velha caricatura do marxismo, que os professores burgueses de todos
os países fizeram incansavelmente circular a fim de mascarar sua im-
potência intelectual".
No segundo parágrafo, quase integralmente conservado, o pro-
cesso da criação intelectual é descrito em termos muito próximos da-
queles com os quais Breton define o acaso objetivo, termos que são
tomados de Engels ( . . . fruto de um acaso· precioso . . . manifesta-
ção mais ou menos espontânea da necessidade). O processo da cria-
ção intelectual - artística e cientifica - geralmente subjetivo e in-
dividual realiza-se segundo leis especificas que não recebem nenhu-
ma pressão exterior, e mais ainda, nenhuma ordem nem controle.
Nesse ponto, Breton identifica-se com o que Trotski escreve em Lite-
ratura e revolução: "A arte deve, em primeiro lugar, ser julgada se-
gundo as suas próprias leis, isto é, as leis da arte".-
0 parágrafo 4, redigido por Trotski, resume as teses, desenvol-
vidas no seu grande artigo de 17 de junho de 1938, destinado a
Partisan Review. De modo geral, o homem exprime na arte, "a sua
exigência da harmonia e plenitude da existência". Mas a arte, na épo-
ca do "capitalismo decadente", choca-se com "a degradação da so-
ciedade burguesa" e encontra-se num impasse. A arte não pode ga-
rantir a sua salvação por si própria; é por essa razão que deve ligar-
se ao movimento de transformação revolucionária da sociedade: "Re-
conhecemos que só a revolução social pode abrir caminho para uma
nova cultura". Trotski retoma uma idéia ·.favorita quando escreve que
a reconstrução completa da sociedade pela revolução permitirá que a
humanidade desenvolva todas as suas potencialidades criadoras per-
mitindo-lhe erguer-se a "alturas que só os gênios isolados atingiram
no passado". Literatura e revolução acabava em um arrebatamento
lírico descrevendo, em termos que o grande utopista francês Charles
Fourier teria aprovado, a altura atingida pelo homem da futura socie-
dade socialista: "O homem tornar-se-á incomparavelmente mais for-
te, mais sábio e mais sutil. Seu corpo ficará mais harmonioso, seus

22
movimentos mais bem ritmados, sua voz mais melodiosa. As formas
de sua existência adquirirão uma qualidade marcadamente dramáti-
ca. O homem médio atingirá a estatura de um Aristóteles, de um
Goethe, de um Marx. E acima dessas alturas elevar-se-ão novos
cumes".
No parágrafo 7, Breton utiliza a linguagem da psicanálise. A
criação põe em jogo um mecanismo de "sublimação", no sentido em
que Freud utilizou esse termo. Breton não é o único a comparar a
criação artística à sublimação, como no-lo mostra a obra de Bache-
lard. Breton pensa, como veremos mais adiante, atrair os psicanalis-
tas para a causa do manifesto. Todavia, quando declara que a voca-
ção artística é o resultado de uma "colisão entre o homem e um cer-
to número de formas sociais que lhe são adversas", repete uma afir-
mação de Trotski para quem a criação artística é "sempre um ato
de protesto contra a realidade, consciente ou inconsciente". É sabida
a imensa contribuição ao conhecimento que a obra de Freud repre-
sentou e quanto o surrealismo a· utilizou. Quase não surpreende que
Freud e a psicanálise tenham sido o objeto de discussões entre Trots-
ki e Breton, ambos admiradores do mestre de Viena. Entretanto,
Trotski, apesar de sua admiração por Freud, admitia dificilmente os
laços entre a psicanálise e a arte, concebendo aquela quase exclusi-
vamente no plano terapêutico. Durante uma discussão, censurou Bre-
ton por utilizar a psicanálise em um sentido contrário a Freud:
"Freud faz surgir o subconsciente no consciente. O senhor não quer
abafar o consciente pelo inconsciente?" 12 , interroga Trotski, que sem
dúvida visa aqui à prática da escritura automática. Adivinham-se sem
dificuldade as denegações de Breton, para quem uma das palavras de
ordem constantes do surrealismo sempre foi "em direção a mais luz",
isto é, a possibilidade dada ao homem de, interrogando o seu incons-
ciente, aceder a uma realidade superior, mais ampla, abolindo as con-
tradições entre sonho e realidade, consciente e inconsciente.
O parágrafo 9, na nossa opinião, tem uma importância capital,
pois tenta definir com o maior rigor as relações entre a arte e a re-
volução. Em seu projeto inicial, Breton retomara, para encerrar esse
parágrafo, a fórmula utilizada por Trotski em Literatura e revolução:
"Toda licença em arte, exceto contra a revolução proletária". Sabe-se
que Tiotsk.i insistiu em que fosse suprimida a restrição "exceto con-
tra a revolução proletária". Um outro parágrafo do manuscrito de

12. Jean van Heijenoort, Sept ans aupres de Léon Trotsky. Les lettres nouvelles,
1978, p. 180.

23
Breton, que tem o mesmo sentido que a fórmula precedente, igual-
mente restritiva, não foi conservado: se a obra do escritor "apresen-
tar um sentido hostil à causa da emancipação humana, ou entrar em
contradição com o materialismo dialético que é a sua chave, somente
diante de seu próprio tribunal o escritor terá que responder pelas for-
mas de tentações variáveis que sofreu". Com efeito, nesse ponto, o
pensamento de Trotski passou por uma evolução muito importante.
Em A revolução tra!da, redigida dois anos antes, Trotski aderia ain-
da à sua antiga fórmula de 1924 e escrevia que o Estado operário
devia, com respeito às tendências artísticas, "deixar-lhes no seu pró-
prio campo uma liberdade completa", colocando "acima de tudo, o
critério: por ou contra a revolução". Trotski considerou, portanto,
que esse critério, que colocava anteriormente, "acima de tudo", era
no entanto uma restrição à liberdade de criação. Mas a degenerescên-
cia da arte oficial na U.R.S.S. leva-o também a temer o abuso que
se poderia fazer do critério "por ou contra a revolução proletária".
Não seria uma fórmula que um regime burocrático, que "perverte as
palavras" e "aliena a liberdade", para retomar as expressões de Bre•
ton, poderia utilizar e assim abafar a criação intelectual?
Essa revisão muito importante de sua concepção da independên-
cia da arte completa-se no parágrafo 10, integralmente redigido por
Trotski, cujo estilo se reconhece facilmente, pela seguinte precisão:
"se, para o desenvolvimento das forças produtivas materiais, cabe à
revolução erigir um regime socialista de plano centralizado, para a
criação intelectual ela deve, já desde o próprio começo, estabelecer
um regime anarquista de liberdade individual". Outra vez, mede-se
o passo dado por Trotski que escrevia em A revolução traída: "a
criação espiritual precisa de liberdade. . . a ciência, a arte não terão
que submeter-se a nenhum plano imposto, nenhuma sombra de obri-
gação". Convém constatar que, em contato com Breton, ele precisa
que a criação artística tem necessidade de um "regime anarquista"
de liberdade individual. Mas isso não quer dizer que a arte deve re-
fugiar.se em uma torre de marfim e separar-se do movimento vivo
da sociedade. Ao contrário, Breton como Trotski são adversários da
concepção da "arte pela arte". É o tema do parágrafo 11 que desen-
volve uma idéia cara a Trotski, para quem o artista, peÍ:-manecendo
independente e livre pa:ra realizar a sua criação, só pode servir à re-
volução se compenetrado subjetivamente do seu conteúdo social,
"quando faz passar por seus nervos o sentido e o drama dessa luta
e quando procura livremente dar uma encarnação artística a seu mun-
do interior". Breton e Trotski, seguindo Engels nesse aspecto, não

24
são adeptos incondicionais da "literatura de tendência", ou, se qui-
sermos, de uma "literatura de propaganda". Pensam de acordo com
o que Engels escrevia a Miss Harkness: "quanto mais as opiniões do
autor ficarem escondidas, tanto melhor para a obra de arte". Em
Literatura e revolução, Trotski escreve que a revolução deve percor-
rer subterraneamente a obra de arte: "o eixo invisível (o eixo da
Terra é também invisível) deveria ser a própria revolução, em torno
da qual deveria girar toda a vida agitada, caótica e em via de recons-
trução. Para que o leitor descubra esse eixo, o próprio autor deveria
ter-se preocupado com ele e, ao mesmo tempo, ter refletido seria-
mente sobre isso". Também Breton contesta "formalmente que se
possa fazer obra de arte, em última análise sequer obra útil, aplican-
do-se em exprimir somente o conteúdo manifesto de uma época. Ao
contrário, a proposta do surrealismo é a expressão do seu conteúdo
latente'' .13 Encontramos nessa opinião uma preocupação fundamental
do surrealismo e um de seus temas constantes, sem qualquer contra-
dição com o marxismo e em perfeita harmonia com o pensamento
de Trotski.
O manifesto termina num apelo dirigido aos artistas e escrito-
res, ou quaisquer que sejam as tendências estéticas, filosóficas ou po-
líticas a que pertençam, convidando-os a se reagruparem nas seções
nacionais de uma Federação Internacional da Arte Revolucionária
Independente.
No final das contas, a responsabilidade por essa Federação vai
recair quase exclusivamente sobre os ombros de Breton. De volta a
Paris, aproximadamente no fim do mês de julho, desenvolve uma
atividade febril, ajudado por seus amigos surrealistas, chegando mais
ou menos no fim de setembro a reunir umas sessenta adesões, con-
tando, na França, com Giono, Marcel Martinet, Henri Poulaille, Vic-
tor Serge e, no estrangeiro, com Ignazio Silone, Jef Last, Helge Krog,
Karel Teige, Herbert Read. Mas há também recusas. Gide, tendo si-
do visitado por Breton, recusa-se a aderir, mas não exclui a eventua-
lidade de colaborar na futura revista. Há outras defecções que Bre-
ton lamenta, como a do filósofo Gaston Bachelard, que se declara in-
competente. Decepcionante é a resposta de Paul Rivei, um dos fun-
dadores do Comitê de Vigilância dos Intelectuais Antifascistas
(C.V.I.A.), declarando-se incapaz de dar a sua "inteira adesão emo-
tiva" ao que considera um empreendimento surrealista. Por razões
diversas, Michel Leiris, Roger Martin du Gard, Jean Painlevé recu-

13. André Breton, uLlmites non frontiCres du surréalisme", op. cít., p. 21.

25
sam igualmente a adesão à F.I.A.R.I. 14 Do seu lado, Trotski procura
ativar o processo, primeiramente no México, em seguida nos Estados
Unidos. Mas desde o começo, choca-se contra a passividade de Rive-
ra que, doente e deprimido, evita os contatos e desaparece durante
várias semanas sem avisar. Trotski, que admira e estima profunda-
mente o pintor, evita melindrá-lo. Dificuldades e um conflito muito
mais grave surgirão nos próximos meses entre eles que farão descer
uma sombra mortal no destino da F.I.A.R.I. Os resultados são par-
cos; assinaram, no México, os pintores O'Gorman e Orozco e o sur-
realista Cesar Moro. Trotski escreve a Breton, que lastima o silêncio
de Rivera, e que, no entanto, "não faltaram as tentativas para pôr
o carro em marcha".15 Finalmente, em meados de dezembro, um es-
critório provisório da F.I.A.R.I. é constituído com Rivera, Adolfo
Zamora e José Ferrei, como secretário. Mas a cravelha-mestra da se-
ção é Jean van Heijenoort que, nesse terreno, estabelece contatos,
executa as tarefas materiais e mantém as ligações com Paris e Nova
Iorque. Nos Estados Unidos, as coisas parecem à primeira vista apre-
sentar-se com melhor aspecto. Imediatamente ap6s a redação do ma-
nifesto, Trotski dirigiu-se aos redatores de Partisan Review pedindo-
lhes que o traduzissem e o difundissem nos Estados Unidos e paí-
ses anglo-saxões. Trotski pensa que esse é um bom meio de dar um
passo à frente, pois julga a atividade de Partisan Review neutra e
contemplativa demais. A formação da F.I.A.R.I. "criará a possibili-
dade de uma colaboração mais sistemática entre nós sem ligar ne-
nhum dos campos por obrigações organizacionais, uns em relação aos
outros e sem limitar sua independência mútua" .16 Os redatores de
Partisan Review de início receberam bem o manifesto cujas gran-
des linhas declaram compartilhar. John ·Macdonald fica encarregado
de traduzir o manifesto. Mas as coisas começam a se arrastar; surgem
dificuldades entre Breton e Macdonald, que propõe suprimir, na sua
tradução, dois parágrafos que julga inadequados ao público america-
no. Escreve a Breton que o manifesto lhe parece "excelente em ge-
ral", entretanto, é "~emasiado detalhado, específico e interno" para
poder ser bem recebido nos Estados Unidos.17 Macdonald propõe
omitir o parágrafo 7, redigido em termos psicanalíticos, e o parágra-

14. André Breton; "Et vous?", Clé, janeiro 1939.


15. Trotski a Breton, 22 de dezembro de 1938, Oeuvres, 19, p. 231.
16. Trotski a P. Rahv, 30 de julho de 1938, Oeuvres, 18, p. 213.
17. Dwight Macdonald a Breton, 4 de setembro de 1938, Houghton Library,
(2842).

26
to 13. Breton recusa categoricamente os cortes propostos por Mac-
donald; na sua opinião, seriam de natureza a comprometer a coerên-
cia do manifesto, que forma um todo homogêneo. Mas, sobretudo,
não se compreenderia que a versão americana diferisse das versões
francesa, espanhola e inglesa. Há outras razões muito sérias: Breton
insiste em manter o parágrafo 7 que é uma abertura em direção ao
movimento psicanalítico. Pensa que as recentes perseguições, por par-
te do regime hitlerista de que Freud fora vítima, vão talvez levar o
movimento psicanalítico a "demonstrar um interesse maior e mais
consciente nos próximos tempos" pelo movimento social." Quanto
ao parágrafo 13, a frase suprimida por Macdonald parece-lhe de uma
importância "absolutamente capital", pois foi redigida por Trotski e
delimita exatamente o campo do recrut.amento da F.I.A.R.I. Em
conclusão, Breton precisa que as suas objeções só concernem à pu-
blicação do manifesto sob forma de panfleto. Quanto a sua publica-.
ção eventual em Partisan Review, declara-se inteiramente de acordo
que seja acompanhada das restrições, segundo Macdonald, exigidas
pela situação americana." Macdonald se submete, declarando ao mes'
mo tempo não estar convencido de que se possa atrair os discípulos
de Freud nos Estados Unidos dizendo algumas palavras s0bre a psi-
canálise. É também a opinião do poeta e militante trotskista Sherry
Mangan, colaborador de Partisan Review, que trabalha como jorna-
lista em Paris e participa das reuniões parisienses da F.I.A.R.I. Faz
ironia sobre a audiência da psicanálise nos Estados Unidos que, além
dos que a exercem, interessa somente a alguns _"professores de colé-
gio de moças" e alguns "vegetarianos". Trotski; por ·seu lado, defen-
de ·.a posição de Breton pois vê ''inconveniente~, consideráveis" nas
modificações propostas por Macdonald: dois textos diferentes do ma-
nifesto podem ser a origem de certos mal-entendidos.20 Insiste com
Macdonald para que publique o manifesto em Partisan Review ex-
primindo uma concordância geral com as suas idéias e o seu objetivo
e para que elabore, ao mesmo tempo, um manifesto especial para os
Estados Unidos. Preocupa-se com as dificuldades que surgiram e te-
me que a "discussão triangular Nova Iorque - Cidade do México
- Paris absorva muito tempo e atrase a ação": os acontecimentos
mundiais "vão num ritmo tão precipitado que cada dia conta".21 Fi-

18. Breton a Macdonald, 17 de setembro de 1938, Houghton Llbrary, (13805).


19. Ibidem.
20. Trotski a Macdonald, 21 de sêÍ:embro de 1938, Oeuvres, 18, p. 309.
21. Trotski a Macdonald, 22 de setembro de 1938, ibidem, p. 330.

27
nalmente, o manifesto é publicado em sua versão integral no número
de outono de Partisan Review. Todavia, as coisas não andam mais
depressa no que concerne à redação de um manifesto e à constitui-
ção de uma seção da F.I.A.R.I., nos Estados Unidos. Macdonald so-
licita de Breton detalhes sobre a lista dos que aderiram na Europa e
insiste em ter alguns nomes de prestígio que seriam, na sua opinião,
muito úteis para lançar a seção americana e queixa-se a Trotski por
não receber resposta. De seu lado, Breton queixa-se também por não
ter notícias de Macdonald, e sobretudo por não receber os poucos
nomes dos signatários americanos do manifesto, necessários para de-
signar o comitê internacional. Nesse vaivém, a inércia encontra-se na
realidade do lado dos americanos. Em 19 de dezembro, Macdonald
escreve a Trotski que não há nenhum progresso da F.I.A.R.I. nos
Estados Unidos e que recebeu somente três comunicações após a pu-
blicação do manifesto nos Estados Unidos, o que é desanimador. So-
mente em 2 de março de 1939, ou seja, quase oito meses após a re-
dação do manifesto, é que com o apelo de Partisan Review reúnem-
se uns trinta intelectuais americanos que redigem uma declaração-
manifesto e decidem constituir a League for Cultural Freedom and
Socialism (Liga pela Liberdade Cultural e pelo Socialismo). Como
precisa Macdonald a Trotski, a L.C.F.S. declara-se simpática às
idéias fundamentais do manifesto da Cidade do México e aos fundado-
res da F.I.A.R.I., mas não decidiu constituir-se formalmente como sua
seção americana. Entre os 34 signatários, contam-se seis trotskistas
(James Burnham, Georges Novack, John Macdonald, Sherry Mangan,
Harry Roskolenko e o poeta John Wheelwright). Os outros signatá-
rios em sua maioria são representativos da grande corrente dos in.
telectuais americanos que romperam, ultimamente, após os proces•
sos de Moscou, com o stalinismo. Alguns deles foram membros do
comitê de defesa de Trotski, apoiaram a comissão internacional de
inquérito e representaram um papel ativo, como o romancista James
T. Farrell. Faltam, no entanto, nesse reagrupamento certas persona•
lidades conhecidas, originárias da mesma corrente intelectual anti•
stalinista: o romancista John dos Passos, John Dewey, presidente
da célebre comissão que ouviu Trotski, e o filósofo e crítico Sidney
Hook, tendo os dois últimos fundado seu próprio comitê que passa
por rival da L.C.F.S. Concluindo, a constituição desta última é um
sucesso em si, embora o número de adesões permaneça inferior ao
da seção parisiense e sua atividade seja mais modesta.
Em Paris, o balanço é muito mais positivo. Desde a sua chega-
da, Breton desenvolveu intensa atividade. No grupo surrealista, con-

28
ta com apoio incondicional e com uma força militante apreciável;
entre os mais ativos do grupo, não surpreende encontrar no primeiro
plano: Adolphe Acker, Benjamin Péret e Léo Malet, militantes trots-
kistas e membros do P .O .I., como também Georges Henein, Nicolas
Calas e Henri Pastoureau, simpáticos à personalidade de Trotski. O
comitê diretor da seção parisiense reúne várias tendências revolucio-
nárias: o P.O.I. é representado por Gérard Rosenthal, o advogado
de Trotski, e Maurice Nadeau, nomeado secretário; Michel Collinet
representa o Partido Socialista Operário e Camponês (P.S.O.P.), or-
ganização nascida de uma cisão entre a maioria do partido socialista
e sua ala esquerda dirigida por Marceau Pivert. Diferentes correntes
artísticas e literárias são representadas: os surrealistas com Breton,
Maurice Heine, André Masson; uma corrente heteróclita próxima da
literatura popular e proletária (esta cobrindo na França uma realida-
de diferente de sua homóloga soviética) com Maurice Wullens, dire-
tor da revista de tendência anarquista Les Humbles (Os Humildes),
Henri Poulaille e Marcel Martinet. O comitê diretor conta com duas
personalidades: Jean Giono e Yves Allégret. O boletim da F.I.A.R.I.,
Clé (Chave), cujo primeiro número sai em janeiro de 1939, tem co-
mo gerente o surrealista Léo Malet, o futuro autor do romance po-
licial de terror francês, criador da personagem Nestor Burma.
Breton conseguiu arrastar a maioria dos- grupos surrealistas fran-
ceses e praguenses (de Praga), mas encontra oposição por parte de
certos membros do grupo surrealista inglês representados por Penro-
se; julgam eles que a ação da F.I.A.R.I., entrando em polêmica com
a U.R.S.S., poderia fazer o jogo do fascismo e depois do acordo de
Munique dar argumentos à ofensiva diplomática levada a efeito con-
tra ela. A "carta a nossos amigos de Londres", escrita em 21 de ou-
tubro de 1938 pelos surrealistas franceses, procura, apoiando-se em
uma argumentação política próxima daquela da IV Internacional,
vencer as reticências do grupo inglês: ''Estamos persuadidos ( ... )
de que o que subsiste das conquistas de outubro só poderá ser salvo,
consolidado e acrescido com o apoio do proletariado internacional.
A defesa da U.R.S.S., tal como vocês a consideram, vai de encontro
ao objetivo proposto. Recusamo-nos a identificar o proletariado so-
viético com os seus dirigentes atuais". Avalia-se até que ponto, para
Breton e seus amigos, era essencial conservar-se no espírito e orien-
tação do manifesto da Cidade do México, quando declaram, concluin-
do essa carta: "Trata-se para nós de continuar a conduzir um movi-
mento revolucionário em todos os planos e se preciso, apesar de um
partido comunista ou de um grupo surrealista. Contra eles próprios

29
se for necessário". Na realidade, Penrose, ligado por velha amizade
a Éluard, sofreu uma pressão idêntica à que conduziu este último a
colaborar com a revista Com mune (Comuna), órgão da "Casa da
Cultura" e porta-voz da política da Frente Popular no domínio cultu-
ral e que os ex-surrealistas Aragon e Tristan Tzara, entre outros, di-
rigem. A ruptura entre Breton e Éluard foi brutal e definitiva. Mas
muitos dos surrealistas decidem não acompanhar Breton nesse terre-
no e romper os laços de amizade com Éluard. É o caso em particu-
lar de Penrose, mas também na França de Max Ernst, Man Ray e
Georges Hugnet entre outros. A ruptura entre Breton e Éluard vai
provocar, dentro da F.I.A.R.I., uma crise e incidentes violentos que
vão abalar o comitê-diretor. Em fevereiro de 1939, aparece no nú-
mero 2 de Clé uma declaração curta intitulada "Halte" (Alto lá)
que denuncia uma "atividade hostil à F.I.A.R.I., susceptível de ma-
nifestar-se sob forma de agrupamento que, qualquer que seja a sua
qualificação, apolítica ou stalinizante, seria· o adversário dos nossos
objetivos revolucionários''. Os surrealistas que permaneceram indife-
rentes ao manifesto e conservaram ligações com Éluard são, certa-
mente, os primeiros visados nessa declaração. Hugnet, que é o te-
soureiro da seção parisiense da F.I.A.R.I. e figura entre os signatá-
rios de "Halte" é também visado. Pouco tempo depois, durante uma
reunião do comitê-diretor, no apartamento de Yves Allégret, Breton
incriminou violentamente Hugnet, reprovando-o por continuar a fre-
qüentar Éluard e por ser o agente dos stalinistas dentro da F.I.A.R.I.,
e pede sua exclusão. Hugnet não é excluído mas se vê obrigado a pe-
dir sua demissão. Os trotskistas não compreendem o significado des-
ses incidentes, interpretam-nos de preferência como a manifestação
de querelas literárias e intestinas do surrealismo, que afastam a
F.I.A.R.I. do seu objetivo. É claramente a opinião de Rosenthal e
Naville, assim como também a de Sherry Mangan. Este, militante
do Socialist Worker Party (S.W.P.}* e amigo pessoal de Hugnet, es-
creve ao seu camarada Macdonald que essas querelas de uma "frivo-
lidade extrema" ridicularizam e desacreditam a F.I.A.R.I. Sherry
Mangan assim como Naville pensam que Breton utiliza a F.I.A.R.I.
para o seu proveito e prestígio pessoal e o do surrealismo. Essas
acusações não nos parecem, de forma alguma, fundamentadas. Toda
a atividade de Breton mostra a sua preocupação permanente e since-
ra de chegar ao objetivo que se fixou, respeitando o compromisso
tomado na Cidade do México: unir todas as correntes possíveis em

* Seção norte-americana da IV Internacional.

30
uma verdadeira Federação Internacional. Mas, já o vimos, as tergi-
versações dos americanos, a passividade de Rivera, as reticências e os
desacordos de certos surrealistas, como os das outras correntes artís-
ticas e literárias, tudo isso ligado à degradação da situação interna-
cional freou constantemente os seus esforços e impediu a constitui-
ção de um comitê internacional. Poder-se-á fazer uma idéia precisa,
através dos documentos reunidos nesta obra, da importância da ati-
vidade da F.I.A.R.l., apesar das dificuldades e brevidade da sua exis-
tência. Essas intervenções são geralmente reações ao crescimento da
repressão, o cerceamento das liberdades e direitos democráticos pelo
governo francês, mas também ao crescimento da xenofobia e do chau-
vinismo em todos os domínios e em particular no da arte. Esse ba-
lanço, no final das contas muito positivo, apoiou-se, na realidade,
apenas nas forças do gtupo surrealista. Com amargura, Breton o
constata em uma carta a Trotski: as adesões em sua maioria perma-
neceram platônicas ou receosas. O conteúdo de Clé lhe parece insu-
ficiente e medíocre. Embora os surrealistas se tenham exprimido o
mais discretamente possível na revista, as colaborações foram pouco
numerosas. Mas principalmente, a revista vendeu mal e o dinheiro
necessário para a edição do número três não pôde ser reunido. Bre•
ton se queixa por não ter "contado com o apoio esperado", não só
no P.S.O.P., mas inclusive no P.0.1.22
Entretanto, o golpe mortal dado contra a F .I.A.R.I. resulta do
grave conflito que surge, no começo de janeiro de 1939, entre Ri-
vera e Trotski e que, ap6s a exclusão do pintor da IV Internacio-
nal, no mês de abril, acaba na ruptura definitiva. Essa ruptura é ex-
tremamente cruel e dolorosa para Trotski como para Breton que
guardara a lembrança de uma calorosa intimidade a três na casa azul.
Trotski tinha enorme estima e profunda admiração pelo pintor, cujo
mau humor e espírito extravagante suportava com infinita paciência.
Trotski tinha interferido, muitas vezes, para defendê-lo contra mui-
tos ataques, na situação complicada da seção trotskista mexicana. A
adesão de Rivera à IV Internacional revestia-se a seus olhos de
imensa importância. Gostava de lembrar que esta era muitíssimo mais
importante do que os laços do poeta Freiligrath com Marx e a I
Internacional e os de Gorki com Lênin e a III Internacional. Pa-
ra Trotski, Diego Rivera ultrapassava muito estes dois últimos pelo
seu compromisso revolucionário e talento artístico. De seu lado, Bre.
ton tinha aprovado calorosamente a Trotski quando este redigira, no

22. Breton a Trotski, 2 de junho de 1939, Houghton Library, (371).

31
seu artigo "Arte e revolução", o trecho dedicado ao pintor, e que
o próprio Breton repetira, no seu discurso de 11 de novembro, em
termos igualmente elogiosos.
É em fins de dezembro de 1938 que Rivera dita a van Heije-
noort uma carta destinada a Breton na qual critica a IV Interna-
cional, acusando-a de "procedimentos stalinístas" - "métodos mui-
to antigos no partido comunista - herdados do bolchevismo". Mas,
nessa carta, faz também duas graves acusações contra Trotski, culpa-
do dos mesmos "procedimentos". Segundo Rivera, Trotski teria da-
do um golpe de estado "amigável e terno" na questão da F.I.A.R.I.
permitindo que se designasse José Ferrei para o cargo de secretário
do comitê provisório. Sempre com os mesmos "procedimentos",
Trotski teria apresentado também um artigo de Rivera e O'Gorman
escrito como carta para Clave. Perante o constrangimento de van
Heijenoort, Rivera compromete-se a mostrar a carta a Trotski e dar-
lhe uma explicação, promessa que não cumprirá. Tendo tomado co-
nhecimento, por acaso, da carta de Rivera a Breton, Trotski pede ao
pintor que envie nova carta retificando comentários e acusações que
julga mentirosos. Esquivando-se Rivera e não o fazendo, é van Heije-
noort que, em 11 de janeiro, escreve a Breton uma explicação, re-
constituindo os fatos: ficou decidido em comum, em presença de Ri-
vera, publicar seu artigo na tribuna livre de Clave. O redator da re-
vista, com o desconhecimento de todos, no último instante, julgan-
do o artigo discutível do ponto de vista marxista e não querendo
assumir a responsabilidade dele, foi que decidiu publicá-lo como car-
ta. Assim também, quando o escritório provisório da F .I.A.R.I. foi
designado com José Ferrei como secretário, Rivera, estando presente,
não formulou nenhuma objeção. Mas, nas semanas seguintes, o con-
flito pessoal entre Trotski e Rivera desdobra-se num conflito políti-
co. Doravante, apesar dos esforços desesperados de Trotski para evi-
tá-la, a ruptura é inelutável. Esta perturba e afeta profundamente a
Breton, que está desamparado: nada lhe é mais penoso, escreve a
Trotski, do que ter sido a causa acidental de um conflito entre dois
homens que "mais admira", cuja amizade e bom entendimento eram
"do maior significado objetivo" e do "maior alcance" no domínio
em que concentrou seus esforços há mui tos anos, o da conciliação da
arte e da revolução. Profundamente dilacerado, julga, em todo caso,
afora as questões políticas cujo único juiz é Trotski, que lhe é im-
possível pronunciar-se a favor de um ou de outro.23 É incontestável

23. Ibidem.

32
que a ruptura entre Trotski e Rivera faz descer uma sombra sobre a
F.I.A.R.I. e agravar o peso de suas dificuldades internas ligadas às
da degeneração da situação internacional que se acelera. Breton escre-
ve a Trotski: "É desnecessário dizer-lhe que a atividade da F.I.A.R.I.
ficou gravemente prejudicada em conseqüência dessa ruptura entre
o senhor e Rivera. Na minha volta à França, naturalmente fui levado
a insistir muito no acordo perfeito de opiniões entre mim e ele. As
divergências que Clave endossava não podiam deixar de ser prejudi-
ciais à vida da nossa organização" .24 É nessa constatação de fracasso
e profundo sentimento de desânimo que cessam, para sempre, as re-
lações epistolares entre Breton e Trotski.
Certamente, o desaparecimento da F.I.A.R.I. não pode ser im-
putado à ruptura Trotski-Rivera. A ameaça da guerra pesara em to-
do o horizonte social e quando esta estoura, carrega, entre muitas ou-
tras organizações, a frágil Federação da Arte Revolucionária Indepen-
dente, que, entretanto, se saiu bem, agitando muito alto, contra ven-
tos e marés, a bandeira da arte independente.

Gérard Roche - 3 de julho de 1985

24. Ibidem.

33
POR UMA ARTE REVOLUCIONARIA
INDEPENDENTE

Texto definitivo Texto de André


Breton (Arquivos Trotski*)

1) Pode-se pretender sem exa- 1) A análise das superestrutu-


gero que nunca a civilização hu- ras ideológkas, que permite, em
mana esteve ameaçada por tantos última instância, ver em algumas
perigos quanto hoje. Os vânda- delas (a religião, a moral) apenas
los, com o auxílio de seus meios o reflexo puro e simples das con-
bárbaros, isto é, deveras precá- dições econômicas da vida, deixa
rios, destruíram a civilização an- subsistir como parcialmente irre-
tiga num canto limitado da Eu- dutíveis a este último dado três
ropa. Atualmente, é toda a civili- fatores que contribuem numa
zação mundial, na unidade de seu parte autônoma à modificação
destino histórico, que vacila sob progressiva da sociedade. Trata-
a ameaça das forças reacionárias se da arte, da ciência e da pro-
armadas com toda a técnica mo- cura do ideal social sob sua forma
derna. Não temos somente em a mais elevada. Certamente esses
vista a guerra que se aproxima. três domínios não podem de for-
Mesmo agora, em tempo de paz, ma alguma pretender subtrair-se
a situação da ciência e da arte se à dominação do poder preponde-
tornou absolutamente intolerável. rante que cabe, afinal de contas,
ao desenvolvimento econômico.
Mas é neles que encontram for-
mas de expressar-se aspirações

* Algumas passagens deste texto (indicadas por um asterisco) são obscuras ou


têm seu sentido truncado no original, o que o leitor perceberá no correr da
leitura. São pontos que, em geral, estão melhorados ou esclarecidos na redação
do texto definitivo do manifesto. (VF)

35
distintas, fundamentais, capazes
de reagir na base da necessidade
material e de fornecer certos ele-
mentos complementares de apre-
ciação. Qualquer outra concep-
ção hist6rica cairia inevitavelmen-
te no fatalismo.

2) Naquilo que ela conserva 2) Naquilo que ela conserva


de individualidade em sua gêne- de individualidade em sua gênese,
se, naquilo que aciona qualidades naquilo que aciona qualidades
SU.bjetivas para extrair um certo subjetivas para extrair um certo
fato que leva a um enriquecimen- fato que leva a um enriquecimen-
to objetivo, uma descoberta filo- to objetivo, uma descoberta filo-
sófica, sociológica, científica ou sófica, sociológica, científica ou
artística aparece como o fruto de artística aparece como o fruto de
um acaso precioso, quer dizer, um acaso precioso, quer dizer,
como uma manifestação mais ou como uma manifestação mais ou
menos espontânea da necessidade. menos espontânea da necessida-
Não se poderia desprezar uma tal de. Não se poderia desprezar
contribuição, tanto do ponto de uma tal contribuição, tanto do
vista do conhecimento geral (que ponto de vista do conhecimento
tende a que a interpretação do geral (que tende a que a inter-
mundo continue), quanto do pon- pretação do mundo continue).
to de vista revolucionário (que, quanto do ponto de vista revolu-
para chegar à transformação do cionário (que, para chegar à
mundo, exige que tenhamos uma transformação do mundo, exige
idéia exata das leis que regem que tenhamos uma idéia exata
seu movimento). Mais particular- das leis que regem seu movimen-
mente, não seria possível desinte- to). Mais particularmente, não
ressar-se das condições mentais seria possível desinteressar~se das
nas quais essa contribuição con- condições mentais nas quais essa
tinua a produzir-se e, para isso, contribuição é chamada a produ-
zelar para que seja garantido o zir-se. É vital, não somente para
respeito às leis específicas a que o artista, mas para a sociedade
está sujeita a criação intelectual. que queremos construir que essa
contribuição continue a produzir-
se e para isso que seja garantido
o respeito das leis específicas a
que está sujeita a criação inte-
lectual.

36
3) Ora, o mundo arual nos 3) Ora, o mundo atual nos
obriga a constatar a violação cada obriga a constatar a violação cada
vez mais geral dessas leis, viola- vez mais geral dessas leis, viola-
ção à qual corresponde necessa- ção à qual corresponde necessa-
riamente um aviltamento cada riamente um aviltamento cada
vez mais patente, não somente vez mais patente, não somente da
da obra de arte, mas também da obra de arte, mas também da
personalidade "artística". O fas- personalidade "artística". O fas-
cismo hitlerista, depois de ter eli- cismo hitlerista, depois de ter eli-
minado da Alemanha todos os minado da Alemanha todos os
artistas que expressaram em al- artistas que expressaram em algu-
guma medida o amor pela liber- ma medida 0 amor pela liberda-
dade, fosse ela apenas formal, de, fosse ela apenas formal, obri-
obrigou aqueles que ainda po- gou aqueles que ainda podiam
diam consentir em manejar uma consentir em manejar uma pena
pena ou um pincel a se tornarem ou um pincel a se tornarem os
os lacaios do regime e a celebrá- criados do regime e a celebrá-
lo de encomenda, nos limites ex- lo de encomenda, nos limites ex-
teriores do pior convencionalis- teriores do pior convencionalis-
mo. Exceto quanto à propaganda, mo. Exceto quanto à propaganda,
a mesma coisa aconteceu na a mesma coisa aconteceu na
U.R.S.S. durante o período de U.R.S.S. durante o período de
furiosa reação que agora atingiu furiosa reação que agora atingiu
seu apogeu. seu apogeu.

4) É evidente que não nos so-


lidarizamos por um instante se-
quer, seja qual for seu sucesso
atual, com a palavra de ordem:
''Nem fascismo nem comunismo'',
que corresponde à natureza do
filisteu conservador e atemoriza-
do, que se aferra aos vestígios do
passado "democrático". A arte
,verdadeira, a que não se contenta
com variações sobre modelos
prontos, mas se esforça por dar
uma expressão às necessidades in-
teriores do homem e da humani-
dade de hoje, tem que ser revolu-
cionária, tem que aspirar a uma

37
reconstrução completa e radical
da sociedade, mesmo que fosse
apenas para libertar a. criação in-
telectual das cadeias que a blo-
queiam e permitir a toda a hu-
manidade elevar-se a alturas que
só os gênios isolados atingiram
no passado. Ao mesmo tempo,
reconhecemos que só a revolução
social pode abrir a via para uma
nova cultura. Se, no entanto, re-
jeitamos qualquer solidariedade
com a casta arualmente dirigente
na U.R.S.S., é precisamente por-
que no nosso entender ela não
representa o comunismo, mas é o
seu inimigo mais pérfido e mais
perigoso.

5) Sob a influência do regime 5) Sob a influência da U.R.S.S.


totalitário da U.R.S.S. e por e por intermédio dos organismos
intermédio dos organismos ditos ditos "culturais" que ela controla
"culturais" que ela controla nos nos outros países, baixou no
outros países, baixou no mundo mundo todo um profundo cre-
todo um profundo .crepúsculo púsculo hostil à emergência de
hostil à emergência de qualquer qualquer espécie de valor espi-
espécie de valor espiritual. Cre- ritual. Crepúsculo de abjeção e
púsculo de abjeção e de sangue de sangue no qual, disfarçados de
no qual, disfarçados de intelec- intelectuais e de artistas, chafur-
tuais e de artistas, chafurdam dam homens que fizeram do ser-
homens que fizeram do servilis- vilismo um trampolim, da apos-
mo um trampolim, da apostasia tasia um jogo perverso, do falso
um jogo perverso, do falso teste- testemunho venal um hábito e
munho venal um hábito e da apo- da apologia do crime um prazer.
logia do crime um prazer. A arte A arte oficial da época stalinista
oficial da época stalinista reflete reflete com uma crueldade sem
com uma crueldade sem exemplo exemplo na história o verdadeiro
na história os esforços irrisórios papel mercenário desses homens.
desses homens para enganar e
mascarar seu verdadeiro papel
mercenário.

38
6) A surda · reprovação susci- 6) A surda reprovação suscita-
tada no mundo artístico por essa da no mundo artístico por essa
negação desavergonhada dos prin- negação desavergonhada dos prin-
cípios aos quais a arte sempre cípios aos quais a arte sempre
obedeceu, e que até Estados insti- obedeceu, e que até os Estados
tuídos sobre a escravidão não ti- instituídos sobre a escravidão não
veram a audácia de contestàr tão tiveram a audácia de contestar,
totalmente, deve dar lugar a uma deve dar lugar a uma condenação
condenação implacável. A oposi- implacável. A oposição artística
ção artística é hoje uma das for- é hoje uma das forças que podem
ças que podem com eficácia con- com eficácia contribuir para o
tribuir para o descrédito e ruína descrédito e ruína dos regimes
dos regimes que destroem, ao que destroem, ao mesmo tempo 1

mesmo tempo, o direito da classe o direito da classe explorada de


explorada de aspirar a um mun- aspirar a um mundo melhor e
do melhor e todo sentimento da todo sentimento da grandeza e
grandeza e mesmo da dignidade mesmo da dignidade humana.
humana.

7) A revolução comunista não 7) A revolução comunista não


teme a arte. Ela sabe que ao ca- teme a arte. Ela sabe que ao cabo
bo das pesquisas que se podem das pesquisas que se podem fazer
fazer sobre a formação da voca- sobre a formação da vocação ar-
ção artística na sociedade capi- tística na sociedade capitalista
talista que desmorona, a deter- que desmorona, a determinação
minação dessa vocação não pode desse homem e de um certo· nú-
ocorrer senão como o resultado mero de formas sociais que lhe
de uma colisão entre o homem e são adversas.* Essa única conjun-
um certo número de formas so- tura, a não ser pelo grau de cons-
ciais que lhe são adversas. Essa ciência que resta adquirir, con-
única conjuntura, a não ser pelo verte o artista em seu aliado po-
grau de ·consciência que resta tencial. O me-canismo de subli-
adquirir, converte o artista em mação, que intervém em tal caso,
seu aliado potencial. O mecanis- e que a psicanálise pôs em evi-
mo de sublimação, que intervém dência, tem por objeto restabele-
em tal caso, e que a psicanálise cer o equilíbrio rompido entre o
pôs em evidência, tem por objeto "ego" coerente e os elementos
restabelecer o equilíbrio rompido recalcados. Esse restabelecimento
entre o "ego" coerente e os ele- se opera em proveito do "ideal
mentos recalcados. Esse restabe- do ego" que ergue contra a rea-
lecimento se opera em proveito lidade presente, insuportável, os

39
do "ideal do ego" que ergue con- poderes do mundo interior, do
tra a realidade presente, insupor- "id", comuns a todos os homens
tável, os poderes do mundo inte• e incessantemente em via de de-
rior, do "id", comuns a todos os senvolvimento no futuro. A ne-
homens e constantemente em via cessidade de emancipação do es•
de desenvolvimento no futuro. A pírito só tem que seguir seu curso
necessidade de emancipação do natural para ser levada a fundir-
espírito só tem que seguir seu se e a revigorar-se nessa necessi-
curso natural para ser levada a dade primordial: a necessidade
fundir-se e a revigorar-se nessa de emancipação do homem.
necessidade primordial: a necessi-
dade de emancipação do homem.

8) Segue-se que a arte não 8) Segue-se que a arte não


pode consentir sem degradação pode consentir sem degradação
em curvar-se a qualquer diretiva (deixar de ser ela mesma) em
estrangeira e a vir docilmente curvar-se a qualquer diretiva es-
preencher as funções que alguns trangeira e a vir docilmente pre-
julgam poder atribuir-lhe, para encher as funções que alguns jul-
fins pragmáticos, extremamente gam poder atribuir-lhe, para fins
estreitos. Melhor será confiar no pragmáticos, extremamente es-
dom de prefiguração que é o apa- treitos. Melhor será confiar no
nágio de todo artista autêntico, dom de prefiguração que é o apa-
que implica um começo de reso- nágio de todo artista autêntico,
lução (virtual) das contradições que implica um começo de reso-
mais graves de sua época e orien- lução virtual de resolução* das
ta o pensamento de seus contem- contradições mais graves de seu
porâneos para a urgência do esta- tempo e orienta o pensamento de
belecimento de uma nova ordem. seus contemporâneos para a ur-
gência do estabelecimento de uma
nova ordem. Para a arte, diz
Marx, sabemos que determinados
períodos de florescência não es•
tão de forma alguma em relação
com o desenvolvimento geral da
sociedade, nem, por conseguinte,
com a base material, a ossatura,
de certa forma, de sua organi-
zação.

40
9) A idéia que o jovem Marx 9) A idéia que Marx teve do
tinha do papel do escritor exige, papel do escritor exige, em nos-
em nossos dias, uma retomada sos dias, uma retomada vigorosa.
vigorosa. É claro que essa idéia É claro que essa idéia deve abran-
deve abranger também, no plano ger também, no plano artístico e
artístico e científico, as diversas científico, as diversas categorias
categorias de produtores e pes- de produtores e pesquisadores.
quisadores. "O escritor, diz ele, "O escritor, diz ele, deve natu-
deve naturalmente ganhar dinhei- ralmente ganhar dinheiro para
ro para poder viver e escrever, poder viver e escrever, mas não
mas não deve em nenhum caso deve em nenhum caso viver e
viver e escrever para ganhar di- escrever para ganhar dinheiro ...
nheiro . .. O escritor não conside- O escritor não considera de for-
ra de forma alguma seus traba- ma alguma seus trabalhos como
lhos como um meio. Eles são um meio. Eles são obietivos em
objetivos em si, são tão pouco um si, são tão pouco um meio para
meio para si mesmo e para os si mesmo e para os outros que
outros que sacrifica, se necessário, sacrifica, se necessário, sua pró-
sua própria existência à existência pria existência à existência de
de seus trabalhos. . . A primeira seus trabalhos. . . A primeira
condição da liberdade de im pren- condição da liberdade de impren-
sa consiste em não ser um oficio. sa consiste em não ser um ofício.
Mais que nunca é oportuno ago- Mais do que nunca é oportuno
ra brandir essa declaração contra agora brandir essa declaração con-
aqueles que pretendem sujeitar tra aqueles que pretendem ·sujei-
a atividade intelectual a fins exte- tar a atividade intelectual a fins
riores a si mesma e, desprezando exteriores a si mesma e, despre-
todas as determinações hist6ricas zando todas as determinações his-
que lhe são próprias, dirigir, em tóricas que lhe são próprias, diri-
função de pretensas razões de gir, em função de pretensas ra-
Estado, os temas da arte. A livre zões de Estado, os temas da arte.
escolha desses temas e a não-res- A livre escolha desses temas e a
trição absoluta no que se refere não-restrição absoluta no que se
ao campo de sua exploração cons- refere ao campo de sua explora-
tituem para o artista um bem que ção constituem para o artista um
ele tem o direito de reivindicar bem que ele tem o direito de rei-
como inalienável. Em matéria de vindicar como inalienável. Exce-
criação artística, importa essen- tuando-se evidentemente o caso
cialmente que a imaginação esca- em que sua ( (?) obra tomaria
pe a qualquer coação, não se dei- um sentido hostil à causa da
xe sob nenhum pretexto impor emancipação humana, ou entraria

41
qualquer figurino. Àqueles que em contradição com o materialis-
nos pressionarem, hoje ou at11a- mo dialético que é sua chave) ele
nhã, para consentir que a arte só deve ter que responder diante
seja submetida a uma disciplina de seu próprio tribunal sobre
que consideramos radicalmente formas de tentação variáveis que
incompatível com seus meios, se lhe apresentam. Em matéria de
opomos uma recusa inapelável e criação artística, importa essen-
nossa vontade deliberada de nos cialmente que a imaginação es-
apegarmos à fórmula: toda licen- cape a qualquer coação, não se
ça em arte. deixe sob nenhum pretexto impor
qualquer figurino. Àqueles que
nos pressionarem . . . hoje ou
amanhã, para consentir que a
arte seja submetida a uma dis-
ciplina que consideramos radical-
mente. . . incompatível com seus
meios, opomos uma recusa . ..
inapelável. . . e nossa vontade
deliberada de nos apegarmos à
fórmula: TODA LICENÇA EM
ARTE, EXCETO CONTRA A
REVOLUÇÃO PROLETARIA.

10) Reconhecemos, é claro, ao


Estado revolucionário o direito
de defender-se contra a reação
burguesa agressiva, mesmo quan-
do se cobre com a bandeira da
ciência ou da arte. Mas entre
essas medidas impostas e tempo-
rárias de auto-defesa revolucioná-
ria e a pretensão de exercer um
comando sobre a criação intelec-
tual da sociedade, há um abismo.
Se, para o desenvolvimento das
forças produtivas materiais, cabe
à revolução erigir um regime so-
cialista de plano centralizado,
para a criação intelectual ela
deve, já desde o começo, estabe-
lecer e assegurar um regime anar-

42
quista de liberdade individual.
Nenhuma autoridade, nenhuma
coação, nem o menor traço de
comando! As diversas associa-
ções de cientistas e os grupos co-
letivos de artistas que trabalharão
para resolver tarefas nunca antes
tão grandiosas unicamente po-
dem surgir e desenvolver um tra-
balho fecundo na base de uma
livre amizade criadora, sem a me-
nor coação éxterna.

11) Do que ficou dito decorre


claramente que ao defender a
liberdade de criação, não preten-
demos absolutamente justificar o
indiferentismo político e longe
está de nosso pensamento querer
ressuscitar uma arte dita "pura"
que de ordinário serve aos objeti-
vos mais do que impuros da rea-
ção. Não, nós temos um concei-
to muito elevado da função da
arte para negar sua influência
sobre o destino da sociedade.
Consideramos que a tarefa supre-
ma da arte em nossa época é par-
ticipar consciente e ativamente
da preparação da revolução. No
entanto, o artista só pode servir
à luta emancipadora quando está
compenetrado subjetivamente de
seu conteúdo social e individual,
quando faz passar por seus ner-
vos o sentido e o drama dessa
luta e quando procura livremen-
te dar uma encarnação artística
a seu mundo interior.

43
12) Na época atual, caracteri- 12) Na época atual, caracteri-
zada pela agonia do capitalismo, zada pela agonia do capitalismo,
tanto democrático quanto fascis- o artista, sem dar sequer a sua
ta, o artista, sem ter sequer ne- dissidência social uma forma ma-
cessidade de dar a sua dissidên- nifesta, vê-se ameaçado da priva-
cia social uma forma manifesta, ção do direito de viver ((?)) e de
vê-se ameaçado da privação do continuar sua obra pelo bloqueio
direito de viver e de continuar de todos os seus meios de difu-
sua obra pelo bloqueio de todos são. É natural que se volte então
os meios de difusão. É natural para. . . as organizações stalinis•
que se volte então para as orga- tas que aí lbe oferecem a possi-
nizações stalinistas que lbe ofere- bilidade de escapar a seu isola-
cem a possibilidade de escapar a mento. . . mas a sua renúncia a
seu isolamento. Mas sua renún- tudo que pode constituir sua
cia a tudo o que pode constituir mensagem própria e as compla·
sua mensagem própria e as com- cências que essas organizações
placências terrivelmente degra- exigem dele em troca de algumas
dantes que essas organizações exi- possibilidades materiais lhe proí-
gem dele em troca de certas van- bem manter-se nelas, por menos
tagens materiais lhe proíbem que a desmoralização seja impo-
manter-se nelas, por menos que a tente para vencer seu caráter. É
desmoralização seja impotente necessário, desde este instante,
para vencer seu caráter. É ne- que ele compreenda que seu lugar
cessário, desde este instante, que está além, não entre aqueles que
ele compreenda que seu lugar está traem ( (? . . . ao mesmo tem-
além, não entre aqueles que po ... ) ) a causa da Revolução ao
traem a causa da revolução e ao mesmo tempo ((?)), a causa do
mesmo tempo, necessariamente, homem, mas entre aqueles que
a causa do homem, mas entre dão provas de sua fidelidade ina-
aqueles que dão provas de sua balável aos princípios dessa Re-
fidelidade inabalável aos princí- volução, entre aqueles que, por
pios dessa revolução, entre aque- isso, permanecem como os úni-
les que, por isso, permanecem cos ((?)) qualificados para ajudá-
como os únicos qualificados para la a realizar-se e para assegurar
ajudá-la a realizar-se e para asse- por ela . .. a livre expressão ulte-
gurar por ela a livre expressão rior de todas as manifestações do
ulterior de todas as manifesta- gênio humano.
ções do gênio humano. O que queremos:
a independência da arte -
para a revolução
a revolução - para a liberação
definitiva da arte.
44
13) O objetivo do presente
apelo é encontrar um terreno
para reunir todos os defensores
revolucionários da arte, para ser-
vir a revolução pelos métodos
da arte e defender a própria
liberdade da arte contra os usur-
padores da revolução. Estamos
profundamente convencidos de
que o encontro nesse terreno é
possível para os representantes
de tendências estéticas, filosóficas
e políticas razoavelmente diver-
gentes. Os marxistas podem ca-
minhar aqui de mãos dadas com
os anarquistas, com a condição
que uns e outros rompam impla-
cavelmente com o espírito poli-
cial reacionário, quer seja repre-
sentado por Josef Stálin ou por
seu vassalo Garcia Oliver.

14) Milhares e milhares de


pensadores e de artistas isolados,
cuja voz é coberta pelo tumulto
odioso dos falsificadores arregi-
mentados, estão atualmente dis-
persos no mundo. Numerosas pe-
quenas revistas locais tentam
agrupar a sua volta forças jovens,
que procuram vias novas e não
subvenções. Toda tendência pro-
gressiva na arte é difamada pelo
fascismo como uma degenerescên-
cia. Toda criação livre é declara-
da fascista pelos stalinistas. A
arte revolucionária independente
deve unir-se para a luta contra as
perseguições reacionárias e pro-
clamar bem alto seu direito à
existência. Uma tal união é o

45
objetivo da Federação Interna-
cional da Arte Revolucionária
Independente (F.I.A.R.I.) que
julgamos necessário criar.

15) Não temos absolutamente


a intenção de impôr cada uma
das idéias contidas neste apelo,
que nós mesmos consideramos
apenas um primeiro passo na
nova via. A todos os represen-
tantes da arte, a todos seus ami-
gos e defensores que não podem
deixar de compreender a necessi-
dade do presente apelo, pedimos
que ergam a voz imediatamente.
Endereçamos o mesmo apelo a
todas as publicações independen-
tes de esquerda que estão pron-
tas a tomar parte na criação da
Federação Internacional e no exa-
me de suas tarefas e métodos de
ação.
16) Quando uni primeiro con•
tato internacional tiver sido es-
tabelecido pela imprensa e pela
correspondência, procederemos à
organização de modestos congres-
sos locais e nacionais. Na etapa
seguinte deverá reunir-se um con-
gresso mundial que consagrará
oficialmente a fundação da Fede-
ração Internacional.
O que queremos:
a independência da arte -
para a revolução
a revolução - para a libera•
ção definitiva da arte.
André Breton e Diego Rivera
México, 25 de julho de 1938

46
CARTA DE TROTSKI DIRIGIDA A BRETON

Caro camarada Breton


Esta carta tem por finalidade esclarecer um ponto que poderia
dar margem a mal-entendidos deploráveis. Em uma de minhas cartas
a Partisan Review, aconselhava que se tenha para com as diferentes
tendências artísticas uma atitude crítica expectativa e . .. "eclética".
Isso poderia parecer-lhe estranho, pois geralmente quase não sou
adepto de ecletismo. Mas é preciso discernir bem o sentido desse
conselho. Partisan Review não é revista de uma escola artística. É
uma revista marxista consagrada aos problemas da arte. Não creio
que o marxismo possa identificar-se com uma escola de arte. Deve
ter para com as diferentes escolas artísticas uma atitude crítica e
amigável. Mas cada escola artística deve ser fiel a si mesma. Por isso
seria absurdo dar, por exemplo, aos surrealistas o conselho de se
tornarem ecléticos. Cada tendência artística tem o direito absoluto
de dispor de si própria. É aliás, camarada Breton, o sentido de seu
manífesto.

Cordiais saudações.

Leon Trotski
27 de outubro de 1938

47
CARTA DE TROTSKI A BRETON:
"PELA LIBERDADE DA ARTE"

Caro Breton,
Com o maior entusiasmo, saúdo a sua iniciativa e de Diego
Rivera para a criação da F.I.A.R.I., federação dos artistas verdadeira-
mente revolucionários e verdadeiramente independentes; por que não
acrescentar também: dos VERDADEIROS artistas? Está na hora,
está mais do que na hora! O globo terrestre se transforma em uma
caserna imperialista imunda e fétida. Os heróis da democracia, com
o inimitável Daladier à frente, esforçam-se ao máximo para asseme-
lhar-se aos heróis do fascismo (o que não impede os primeiros de
acabarem sendo recebidos pelos segundos em um campo de concen-
tração). Quanto mais o ditador é ignorante e obtuso, tanto mais
sente-se chamado a dirigir o desenvolvimento da ciência, da filosofia
e da arte. O servilismo macaqueador dos intelectuais é, por sua vez,
um sinal importante da podridão da sociedade contemporânea. A
França não constitui uma exceção.
Não falemos dos Aragon, Ehrenburg e outros canalhas insigni-
ficantes; não nomeemos os senhores que com o mesmo entusiasmo
escrevem a biografia de Jesus Cristo e a de Josef Stálin (a morte
não os absolveu); deixemos de lado o declínio lamentável, para não
dizer ignóbil, de Romain Rolland. . . Mas é impossível se conter o
bastante para não comentar o caso de Malraux. Segui não sem
interesse seus primeiros passos literários. Havia já nele, naquela
época, uma forte dose de presunção e afetação. Não poucas vezes,
n6s nos sentíamos pouco à vontade diante de suas pesquisas, pre-
tensiosamente frias, de heroísmo nos outros. Mas era impossível
negar-lhe talento. Com uma força incontestável, atingiu os cumes
dos sentimentos humanos, a luta heróica, o cúmulo da dor, o auto-

48
sacrifício. Podia-se esperar - pessoalmente eu queria esperar -
que o sentido do heroísmo entrasse mais profundamente no íntimo
do escritor, o purificasse da pretensão e fizesse de Malraux o poeta
importante de uma época de catástrofes. Que aconteceu de fato?
O artista tornou-se um repórter da G.P.U., um provedor de heroísmo
burocrático em fatias de comprimento e largura bem medidas (não
há terceira dimensão).
Durante a guerra civil, precisei dirigir uma luta renhida contra
os relatórios militares imprecisos ou mentirosos graças aos quais
os comandantes tentavam dissimular seus erros, insucessos ou derro-
tas numa torrente de frases gerais. As produções atuais de Malraux
são como esses relatórios mentirosos dos campos de batalha (Ale-
manha, Espanha, etc.). Entretanto, a mentira torna-se mais repugnan-
te quando se ornamenta com a forma artística. O destino de Malraux
é simbólico para toda uma gama de escritores, quase toda uma
geração: as pessoas mentem por pretensa "amizade" pela revolução
de outubro. Como se a revolução tivesse necessidade de mentira!
A infeliz imprensa soviética, evidentemente por ordem superior,
queixa-se com insistência nesses últimos dias do "empobrecimento" da
produção científica e artística na U.R.S.S. e reprova os escritores e
artistas soviéticos por falta de sinceridade, de ousadia e de enver-
gadura. É inacreditável: a jibóia dá ao coelho uma lição de moral
sobre a independência e a dignidade pessoal. Hediondo e ignóbil
quadro, bem digno, entretanto, de nossa época.
A luta pelas idéias da revolução na arte deve começar nova-
mente pela luta pela VERDADE artística, não no sentido de tal ou
tal escola, mas no sentido da FIDELIDADE INABALAVEL DO
ARTISTA A SEU EU INTERIOR. Sem isso não há arte. "Não
mentirás", essa é a fórmula da salvação.
A F.I.A.R.I., evidentemente, não é e não pode tornar-se uma
escola estética ou política. Mas a F.I.A.R.I pode arejar a atmosfera
em que os artistas têm que respirar e criar. A criação verdadeiramente
independente em nossa época de reação convulsiva, de declínio cultu-
ral e de retorno à selvageria não pode deixar de ser revolucionária
pelo seu próprio espírito, pois não pode procurar uma saída para uma
intolerável sufocação social. Mas que a arte, no seu conjunto, que
cada artista, em particular, procurem essa saída por seus próprios
meios, sem esperar alguma ordem do exterior, sem a tolerar e rejei-
tando-a e cobrindo de desprezo todos os que se submetem a ela.

49
Criar tal opinião pública entre a melhor parte dos artistas é a tarefa
da F.I.A.R.I. Creio firmemente que esse nome entrará na história.

Seu

Leon Trotski

Coyoacán, D,F., 22 de dezembro de 1938.

50
VISITA A LEON TROTSKI

Vocês não esperam de mim uma comunicação política. Cerca de


três meses se passaram desde minha volta do México, três meses
durante os quais a voz do camarada Trotski chegou por várias vezes
até nós, três meses durante os quais o pensamento do camarada
Trotski, maravilhosamente rápido em atacar cada novo aspecto do
problema político e social, maravilhosamente aperfeiçoado em tirar
partido imediato da atualidade, conseguiu transpor a grande distância
que o separa de nós para desempenhar, nos órgãos da IV Interna-
cional, seu papel de guia genial, de guia experimentado, mais que
todos, do movimento revolucionário. Os acontecimentos que se desen-
rolaram no decorrer destes três últimos meses foram de ordem bas-
tante emocionante para que a análise da situação internacional, a que
pude ouvi-lo proceder com autoridade única, exija uma adaptação
aos novos dados. Seria fácil provar que Trotski, nas suas previsões
de então, aproximava-se mais do que ninguém do que se tornou a
realidade concreta de hoje. Mas, vocês, camaradas, vocês cujas aspi-
rações se confundem com as dele, são capazes de fazer esta demonstra-
ção tão bem quanto eu. Deixarei, portanto, de lado tudo o que
correria o risco de repetir as exposições de nossos camaradas para
me restringir a um testemunho no plano puramente humano.
Do ponto de vista marxista, compreendemos facilmente que,
na nossa época, é impossível viver da profissão de escritor inde-
pendente e ainda mais se esse escritor pretende exprimir-se em sã
consciência sobre uma série de questões manifestando seu total
desacordo com a sociedade burguesa. As únicas saídas que se lhe
oferecem são, ou atenuar pouco a pouco suas críticas de maneira
a que a sociedade se prepare a festejá-lo um dia como um filho
pr6cligo, ou então' submeter-se a uma forma de oposição, pelo menos

51
provisoriamente, segura e ao mesmo tempo vantajosa financeiramente
para o intelectual: a oposição stalínista. O stalínismo mantém, com
efeito, à disposição do escritor, se ele consente em mascarar sua
medonha impostura histórica, um elenco quase ilimitado de funções
e de empregos cada um mais fartamente remunerado que o outro.
Por não ter concordado nem com a primeira, nem com a segunda
dessas abdicações, dessas traições, há dois anos, a extrema precarie-
dade de minha situação material me obrigou a solicitar um cargo
no ensino no exterior. Os serviços, ditos competentes, do Ministério
das Relações Exteriores aos quais tive necessariamente de dirigir
meu pedido, ap6s exame atento de minha posição ideológica como
se depreendia de minha atividade anterior, concluíram que era preciso
evitar enviar-me a um país que vivesse sob regime autoritário ou
fosse suscetível de passar a viver dentro de pouco tempo sob tal
regime. Nessas condições, as possibilidades se restringiam a ponto
- é mordaz notá-lo hoje - que só se poderia oferecer-me para
optar entre a Tchecoslováquia e o México. Optei pelo México e
aliás não ouvi falar mais nada durante muito tempo. Foi somente
no fim do ano passado, quando me decidi a indagar as razões desse
silêncio, que me foi proposto, a título de compensação, ir à Cidade
do México para pronunciar na Universidade uma série de confe-
rências sobre o estado da poesia e da pintura na Europa.
Vocês se perguntam, camaradas, por que sinto necessidade de
precisar diante de vocês as condições dessa viagem. Isso explica-se,
evidentemente, porque alguns de nossos inimigos se deram ao tra-
balho de desvirtuá-la e procuram ainda tirar vantagem disso da
maneira mais grosseira. Mesmo antes de minha partida, um membro
da "Casa da Cultura", bastante perigoso escrevinhador, chamado
Tristan Tzara, encontrava ouvidos interessados a quem confiar que
eu tinha sido encarregado pelas Relações Exteriores de uma missão
junto a Trotski! Ao mesmo tempo que eu, partiam por outro lado
de Paris, mas encaminhadas de Nova Iorque para a Cidade do
México, de avião, de maneira a me preceder, um certo número de
cartas dirigidas aos principais escritores e artistas mexicanos, cartas
que se entregavam à calúnia mais descarada. Vários dos destinatários
dessas cartas sabiam felizmente o que pensar não só de mim mesmo
mas também dos procedimentos abjetos a que se tem hábito de
recorrer nos meios stalinistas: é a um deles que eu devo poder ler-lhes
este documento:
"Caro camarada e amigo,
Desejamos informar-lhe, pedindo-lhe que leve ao conhecimento

52
de nossos amigos do México, a pos1çao do sr. André Breton que
deve ir a esse país para fazer conferências.
Enviado pelos serviços de propaganda do Ministério das Rela-
ções Exteriores cuja política reacionária é ainda hoje muito conhe-
cida, o· sr. André Breton sempre tomou posição contra a Frente
popular e nesse sentido aliou-se aos elementos políticos mais equívo-
cos. Sua ação contra a República Espanhola tomou as mais pérfidas
formas, embora afetando um vago revolucionarismo verbal.
Admirador declarado de Trotski, ergueu-se sempre contra todas
as ações da Associação Internacional dos Escritores e, a esse título,
a palavra lhe foi negada por ocasião do primeiro Congresso dos
Escritores.
Temendo que mal-entendidos possam ocorrer, fizemos questão de
colocá-lo a par da situação real do sr. André Breton que não repre-
senta de forma alguma o espírito revolucionário da literatura na
França.

Atenciosamente, etc .. ..
Pelo Secretário internacional
Assinado: René Blech"

Para aqueles de vocês que o ignorem quero lembrar, camaradas,


que minha atitude e a de meus amigos surrealistas com relação à
guerra da Espanha nunca se prestou ao menor equívoco. Desde a
declaração do conflito, estigmatizamos para sempre as forças de re-
gressão e de trevas que assumiram a responsabilidade de desenca-
deá-lo, proclamamos nossa esperança inabalável no salto inicial que
empurrou para a frente a Espanha operária e que tendia à realização
forjada no perigo de seu único bloco verdadeiramente invencível, que
tendia também à destruição primordial de todo aparelho religioso e
sobretudo à constituição de uma ideologia·revolucionária ativa, forma-
da à prova dos fatos, não se preocupando em reproduzir qualquer
ideologia existente ou corrompida, mas conciliando as aspirações fun-
damentais de nossos camaradas da F.A.I., da C.N.T., do P.O.U.M. e
acrescentemos do P.S.U.C. (Partido Socialista Unificado Catalão), na
medida em que estas últimas deixassem de ser atentat6rias às pre-
cedentes.
Está bastante claro? Levantamo-nos em toda oportunidade da
maneira mais irredutível contra a política de não-intervenção. De tudo
isso subsistem testemunhos impressos e datados, irrecusáveis. Mas,
não nos desculpam, não me perdoam pessoalmente, é por ter, no

53
decorrer dos acontecimentos, constatado que a U.R.S.S. atual consti-
tuía um dos principais obstáculos à vitória do proletariado espanhol,
é por ter dito, por exemplo, em janeiro de 1937: "Os processos de
Moscou são a conseqüência imediata da luta engajada na Espanha:
trata-se para Stálin de impedir a todo custo que uma nova vaga revolu-
cionária se espalhe sobre o mundo. Trata-se de fazer abortar a revo·
lução espanhola como se fez abortar a revolução alemã, a revolução
chinesa. Objetam-nos que a U.R.S.S. fornece armas, aviões? É ver-
dade, primeiro porque é indispensável salvar as aparências, em seguida
porque essas armas de dois gumes são requisitadas para quebrar tudo
o que trabalha na Espanha, não para a restauração da república bur-
guesa, mas para o estabelecimento de um mundo melhor; são requisi-
tadas para destruir tudo o que luta pela revolução proletária." Não
me perdoam é por ter dito: "Não nos enganemos, as balas da escada
de Moscou, em janeiro de 1937, foram dirigidas contra os camaradas
do P.O.U.M. Depois deles, será a vez de atacarem aos nossos cama-
radas anarquistas, com a esperança de acabar com tudo o que há de
vivo, com tudo o que comporta uma promessa de devenir na luta
antifascista espanhola." Agora, em novembr~ de 1938, não desanime-
mos, camaradas, o processo do P.O.U.M. foi perdido por Stálin:
diante dos testemunhos apresentados pela defesa, foi preciso renunciar
à acusação de espionagem lançada contra nossos camaradas, foi preciso
reduzir em alto grau a pretensão de desonrar os revolucionários da
Espanha, mesmo servindo-se das alegações e dos juramentos do imun-
do jesuíta Bergamin. A Espanha operária, a Espanha revolucionária
cuja realidade recusamo-nos a substituir pelo conceito da Espanha
republicana está sempre de pé. É ela, só ela que recebe nossa frater-
nidade ardente. A despeito de todas as tentativas de corrupção, nem
Stálin, assim como nem Franco, já é seu senhor: o veredicto de
outubro de 1938 nos ensina que ela não disse sua última palavra.
No que me concerne, como se a carta de introdução que lhes
comuniquei há pouco corresse o risco de não bastar, um bilhete mais
imperativo, que não conseguiu tampouco permanecer confidencial,
era endereçado ao secretário-geral da L.E.A.R. do México, entidade
correspondendo à antiga A.E.A.R., na França. Pedia-se nele em pala-
vras claras que se procurasse "sabotar sistematicamente todo trabalho
a que eu quisesse me dedicar no México." O signatário era justa~
mente um indivíduo a quem eu me ligara, com alguma reserva aliás,
por um longo período de atividade comum: trata~se de Aragon, que
acumula, na França, a direção da pretensa Casa da Cultura, da revista
Commune e do jornal Ce soir. Como tive oportunidade de dizê-lo no

54
México, considerando-se a evolução típica de Aragon no decorrer
destes últimos anos, o mais alto preço que ela atinge no domínio da
renegação sistemática, do servilismo mais venal, do falso testemunho
profissional e do dedodurismo hereditário - Aragon é filho do antigo
chefe de polícia Andrieux que se gabou nas suas Mémoires de ter
introduzido a provocação nos processos policiais - estou certo de
que essa atitude ultra-stalinista procede de contradições mortais. A
atitude de Aragon constitui uma das vergonhas deste tempo: só pode
inspirar a todo intelectual digno deste nome uma completa repugnân-
cia; deve ser consagrada expressamente ao ódio pelo proletariado
que saberá reconhecer, às primeiras circunstâncias históricas decisivas,
os que trabalharam para dividi-lo, desmoralizá-lo, traí-lo.
Embora essa tentativa de obstrução dirigida contra mim não
tenha sido totalmente inoperante, consegui fazer cinco conferências no
México.
No dia seguinte ao de minha chegada, tive a alegria de lá re-
encontrar o camarada Van que muitos de vocês conhecem. Todos os
que tiveram contato com ele conheceram os extraordinários recursos
de inteligência e de sensibilidade que lhe são próprias, puderam apre-
ciar a rapidez de seu discernimento, a lucidez de seu julgamento, mas
sem dúvida nem todos tiveram disponibilidade para medir a extensão
de sua curiosidade, nem de avaliar nele admiráveis dons do coração.
Sua modéstia se ofuscaria certamente com minhas palavras e entre~
tanto eu não quereria perder a oportunidade de dirigir-lhe minha sau-
dação verdadeiramente fraternal. Que ele me perdoe relevar aqui o
que sua existência apresenta de patético: a tantos intelectuais que
procuram na negação, na pilhagem de toda consciência moral o segredo
de uma vida confortável, é preciso, camaradas, opor este exemplo.
Com dezoito anos, o camarada Van, aprovado na Escola Normal
Superior de Ciências, não pôde suportar a idéia do isolamento do
camarada Trotski que se encontrava então em Prinkipo e desdenhando
assegurar seu próprio futuro, ofereceu-lhe espontaneamente seus prés-
timos. Seguiu-o por toda parte no exílio, passou pelas mãos de quase
todas as polícias da Europa. Atualmente, muito pobre, uma vez que
Trotski está em condições de garantir a seus secretários somente a
cama e a comida, continua a viver sem poder praticamente dispor
de si próprio, privado até mesmo do sorriso de seu filho.
É com a melhor boa vontade do mundo que assume uma tarefa
excessiva: de dez a doze horas de trabalho e, como precisa ser assegu-
rada sem cessar a vigilância da casa, quatro horas de guarda-noturno.
O camarada Van é um destes revolucionários da cabeça aos pés como

55
os quer Trotski. No momento de calma daquela noite no restaurante,
enquanto evoluíam a nossa volta as garçonetes de blusas ornadas de
bordados brilhantes à moda de Tehuantepec, submetia-se sem perder
seu belo sorriso claro à minha avalanche de questões. Para nos con-
solar por tantos outros, era verdadeiramente o homem, como o enten-
do, o amigo em toda a acepção da palavra.
No dia seguinte, encontrei Diego Rivera. Vocês sabem que é a
ele que o camarada Trotski deve seu asilo no México. Foi ele que,
no tempo do "planeta sem passaporte", desdobrou-se em negociações
para que Trotski lá fosse recebido e obteve que fossem tomadas,
enquanto ele lá permanecesse, todas as medidas necessárias à sua
proteção. Para ter sucesso tal empresa, era necessária a autoridade
única de que Rivera goza, não só no México, mas em toda a América,
autoridade conquistada pela reputação considerável que adquiriu como
pintor de afrescos e pela atitude irredutível que opôs sempre aos
poderosos do dinheiro. Diego Rivera é autor de uma "obra épica",
sem nenhum equivalente na Europa, que retrata a luta ininterrupta
do México, já há cem anos, pela sua independência e através dela a
aspiração incessante do homem por mais consciência e liberdade, que
se liga, além da época da conquista espanhola, com o que constitui
o mais precioso saldo das civilizações indígenas desaparecidas, que
antecipa amplamente também sobre o que deve ser a verdade humana
do amanhã. A força desta obra é tal que ultrapassou de há muito
seu limite original: o México. Encarregado, em Nova Iorque, de deco-
rar as paredes da fundação Rockefeller, Rivera, lá como em toda parte,
fez figurar em primeiro plano os retratos de Marx, Lênin e Trotski,
conclamando os operários do mundo inteiro à luta libertadora. Se
bem que ele seja mais célebre lá que em qualquer outro lugar, o
acesso aos Estados Unidos lhe foi desde então interdito. Quando,
apavorado, o grande capitalismo ordenou que se apagasse o afresco,
pouco faltou para que eclodisse um tumulto. Felizmente, os edifícios
do México, em cujo interior a inspiração de Rivera permitiu-se toda
liberdade, guardarão o testemunho desta fidelidade à causa da emanci-
pação humana, que, sob seu pincel, conseguiu exprimir-se na lingua-
gem mais concreta, mais exaltadora. Faço tanto mais questão de ates-
tá-lo por ter abordado a obra de Diego Rivera com a maior das
prevenções técnicas. As péssimas reproduções de seus afrescos que
circulam na França desmerecem-no e a ótica particular da Europa
deixava-me pouca oportunidade de apreciá-lo. Foi preciso que me sen-
tisse de repente penetrado por sua obra como o fui no interior da
capela dessagrada de Chapingo, onde ela me cercava de todo lado,

56
que, tomado de uma emoção desconhecida, de algum modo pr1m1-
tiva, e me sentisse penetrado por ela até as lágrimas, para saber até
que ponto é um convite à luta pela conquista da felicidade, até que
ponto, camaradas, foi feita para nós.
Vocês me compreendem, camaradas, se lhes confesso que foi
com alguma angústia que após alguns dias eu me dirigi para aquela
11
Casa azul" de que tanto se falou e que é, em Coyoacán, a residência
do camarada Trotski. Por mais que indagasse tanto quanto possível
de sua saúde moral, do que fazia e também de tudo pelo que
ele deixa de pertencer à história para se comportar como um homem
comum, uma tela continuava a interpor-se entre mim e ele. Sobre
esta tela desenrolava-se uma vida muito mais agitada e agitadora que
todas as outras, também incomparavelmente mais dramática. Repre·
sentava-me este homem que foi o cabeça da revobção de 1905, um
dos dois cabeças da revolução de 1917, não somente como o homem
que colocou seu gênio e todas as suas forças vivas a serviço da maior
causa que conheço, mas também o testemunho único, o historiador
profundo cujas obras fazem mais do que instruir, pois dão ao homem
vontade de erguer-se. Representava-o ao lado de Lênin e, mais tarde,
só, continuando a defender a sua tese, a tese da revolução no interior
dos congressos fraudulentos. Via-o s6, em pé, entre seus companheiros
ignominiosamente abatidos, só, preso à lembrança de seus quatro
filhos que foram mortos. Acusado do maior crime possível para um
revolucionário, com a vida ameaçada a todo momento, a mercê do
ódio cego daqueles mesmos por quem ele se dedicara integralmente.
Camaradas, como as trevas da opinião são fáceis de organizar!
Com o coração aos pulos, vi entreabrir-se a porta da Casa azul,
guiaram-me através do jardim, mal tive tempo de reconhecer de passa·
gem as primaveras cujas flores roxas e cor-de-rosa juncavam o chão,
os cactos eternos, os ídolos de pedra que Diego Rivera - que colocou
essa casa à disposição de Trotski - reuniu com amor ao longo das
alamedas. Encontrei-me em uma sala clara entre livros. Pois bem,
camaradas, no mesmo instante em que o camarada Trotski se levan-
tou do fundo dessa sala, em que, bem real, substituiu-se à imagem
que eu formara dele, não pude reprimir a necessidade de dizer-lhe a
que ponto estava surpreendido por achá-lo tão jovem. Que autodomÍ•
nio, que certeza de ter, contra tudo e· contra todos, conservado a sua
vida em perfeita harmonia com.seus princípios, que coragem excepcio-
nal superior a tais provações preservaram assim seus traços de toda
alteração! Os olhos de um azul profundo, a admirável testa, a abun•
dância dos cabelos apenas prateados, a pele jovem compõem uma más•

57
cara em que se sente que a paz interior prevaleceu e prevalecerá para
sempre sobre as mais cruéis formas de adversidade. Essa é somente
uma visão estática, pois assim que o rosto se anima, as mãos esboçam
com rara fineza esse ou aquele assunto, desprende-se de toda a sua
pessoa algo de eletrizante. Estejam certos, camaradas, que se os Esta-
dos capitalistas se mostraram tão resolutos, tão unânimes concluindo
pela proscrição do camarada Trotski e o governo de Stálin fez sempre
pressão sobre eles para obter essa proscrição, foi de sua parte uma
medida perfeitamente natural. Trotski livre, Trotski com possibilida-
de, por exemplo, hoje em Paris, de tomar a palavra em um meeting,
seria toda uma bandeira da revolução que reapareceria erguida; seria
a luz do soviete de Petersburgo, do congresso de Smolni * que inun-
daria a sala. Não se pode pedir justamente aos exploradores da classe
operária que consintam nisso. É da classe operária que é preciso espe-
rar isso, da classe operária que, chegada a hora, sacudirá o jugo que a
esmaga, varrerá de uma só vez a podridão termidoriana e reconhecerá
os seus.
Pude, mais tarde, manter freqüentes conversas com o camarada
Trotski. Da vida um pouco lendária que lhe atribuía, passou para
mim à existência mais real, mais palpável. Quase não há local mexi-
cano típico ao qual não permaneça associado na minha lembrança.
Revejo-o, de sobrancelhas cerradas, desdobrando os jornais de Paris
sob as sombras de um jardim de Cuernavaca, ardente e cheio dos
zumbidos de beija-flores, enquanto a camarada Natália Trotski, tão
comovedora, tão compreensiva e meiga, designava-me pelo nome as
flores surpreendentes; revejo-o subindo comigo à Pirâmide de Xochi-
calco; outro dia, almoçamos à margem de um lago gelado, em plena
cratera do Popocatepetl; ou encontramo-nos uma manhã em uma
ilha no lago de Pazcuaro - o professor que reconheceu Trotski e
Rivera fez as crianças da escola cantarem na velha língua tarasca;
ou então pescamos axolotles em um riacho rápido da floresta. Nin-
guém mais do que o camarada Trotski se interessa por tudo o que
se apresenta como novidade, ninguém, no decorrer de uma viagem, é
tão empreendedor, tão engenhoso quanto ele. Está claro que subsiste
nele um aspecto infantil de uma frescura inalterável. E no entanto,
notem, camaradas, não há concentração maior que a sua: não conheço
ninguém capaz de se entregar a um trabalho tão intenso e tão contí-
nuo. Mas desse trabalho já se reuniram tais testemunhos objetivos que
acho melhor ser breve quanto a isso para tentar de preferência des-

* Sede do Soviete de Petrogrado durante a Revolução de 1917.

58
vendar o segredo de sua sedução pessoal. Essa sedução é extraordiná-
ria. Uma noite que ele tinha aceitado receber em casa um grupo de
intelectuais composto de umas vinte pessoas vindas de Nova Iorque,
de lhes fazer uma rápida exposição, e depois responder às suas ques-
tões, observei como, à medida que falava, o clima da sala tornava-se-
lhe humanamente favorável, como esse auditório apreciava a vivaci-
dade e a segurança de sua réplica, sentia-se agradecido por sua jovia-
lidade, apreciava suas respostas brilhantes. Assisti, muito divertido,
aos esforços dessas pessoas para, antes de se retirarem, virem umas
após as outras agradecer e apertar sua mão. E, no entanto, havia,
entre os mais atenciosos, o Governador de um Estado americano bem
como uma mulher de cabeça de coruja que tinha sido Ministra do
Trabalho no Gabinete MacDonald. . . Parece-me que essa sedução
resulta não só do prazer de controlar de perto o funcionamento de
uma inteligência superior, mas também da surpresa de constatar que
a preocupação principal sobre a qual essa inteligência está centrada
tem o poder de dar o devido valor a todas as outras preocupações,
de fazê-las concorrerem para a sua justificação. Camaradas, explico-
me. Aconteceu-me passear, ou encontrar-me sentado em um banco
com o camarada Trotski, no centro de um desses mercados indígenas
que são um dos mais belos espetáculos que o México oferece. Quer
estivéssemos interessados na arquitetura das casas da praça, ou nas
bancas multicores, ou na passagem dos. camponeses vestidos com
sarapes reunindo o sol e a noite e na sua extraordinária nobreza de
porte, Trotski achava sempre meio de ligar este pequeno fato de
observação a um dado mais geral, transfigurando-o na esperança de
um reajuste dos valores deste mundo e extraindo dele um estimulo
para nossa luta.
Existe uma questão que, para o camarada Trotski, tem priorida-
de sobre todas as outras, uma questão para a qual não há digressão
possível, à qual sempre retorna. Esta questão é: "Que perspectivas?"
Ninguém melhor do que ele espreita o futuro, assim como ninguém
é mais autêntico· do que ele ao descrever certas caçadas ao lobo de
que participou no Cáucaso. O passado teria antes tendência a exas-
perá-lo. É extremamente sarcástico contra os que desfrutam de uma
reputação mesmo honrosa. É preciso ouvi-lo falar "daqueles que
vivem tranqüilamente das rendas da Revolução". ·
Procurou-se, lá como em toda parte, de toda maneira, atingir,
abater Trotski. Já que não tinha bastado condená-lo à morte em
Moscou, arrancar-lhe, na pessoa dos que lhe eram caros, uma a uma,
suas. melhores razões de ser e alimentar contra ele a campanha mais

59
louca e mais miserável de todos os tempos, a G.P.U. tentou inutil-
mente no ano passado fazer-lhe chegar às próprias mãos, dizendo-se
da parte de um amigo, um pacote contendo uma bomba. A G.P.U.
resignou-se, ao menos provisoriamente, a retomar contra ele seu jogo
de calúnias monstruosas, no caso tanto mais eficazes quanto os que
importa convencer desconhecem quase por completo a situação polí-
tica do México. Disseram, camaradas, e o semanário Marianne fez-se
o seu eco, que Trotski tinha inspirado ao Presidente Cárdenas a
medida de expropriação que tomou, no começo do ano, contra as
companhias de petróleo estrangeiras (inglesas e americanas) e isso a
fim de poder entregar o petróleo mexicano a Hitler, Mussolini e
Franco! Sustentaram - em contradição formal com essa primeira
alegação, mas pouco importa - que era Trotski quem tinha fomenta-
do contra o Presidente Cárdenas a rebelião do General Cedillo. Os
infames jornais a soldo da G.P.U. e a cujo destino preside o traidor
Lombarda Toledana, chegaram mesmo até a afirmar que o camarada
Trotski e o camarada Rivera, em uma viagem da Cidade do México
a Guadalajara, viagem de 800 km, durante os quais não os deixei,
tinham tido longas conversas. com um certo doutor Atl, conhecido
lá como agente da embaixada alemã. Era simplesmente eu que pro-
curavam fazer passar por esse fascista! Observem, camaradas, quando
necessário, a calúnia sabe tornar-se menos grosseira, pode tomar, quan-
do é o caso, um aspecto sutiL Assim, sugerem que o camarada Trotski
mantém excelentes relações com o governo mexicano, que está mais
preocupado em poupar o General Cárdenas por causa da hospitalidade
que dele recebe do que em sustentar os interesses da classe operária.
A essa insinuação, Trotski opôs uma vez por todas esta explicação:
"Entreguemos os palhaços e os intrigantes à sua própria sorte.
Não é deles que nos ocupamos, mas dos operários conscientes do
mundo inteiro. Sem ter ilusões e sem se assustar com as calúnias,
os operários de vanguarda darão apoio total ao povo mexicano na
sua luta contra os imperialistas. A expropriação do petróleo não é
nem o socialismo nem o comunismo. Mas, uma medida profunda-
mente progressiva de autodefesa nacional. Marx não considerava
evidentemente Abraão Lincoln um comunista. O que, no entanto,
nfo impediu que Marx tivesse profunda simpatia pela luta que Lincoln
dirigia. ii. I Internacional enviou ao presidente da Guerra Civil uma
carta de saudação e Lincoln, "na sua resposta, apreciou enormemente
esse apoio moral. O proletariado internacional não tem razão de
identificar seu programa com o programa mexicano. Não adianta
nada que os revolucionários dissimulem, falsifiquem ou mintam,

60
como o fazem os cortesãos da escola da G .P .U. que, no momento
do perigo, vendem e traem o lado mais fraco. Sem abandonar seu
caráter próprio, toda organização operária honesta do mundo inteiro
e antes de tudo da Grã-Bretanha deve atacar implacavelmente os
bandidos imperialistas, sua diplomacia, sua imprensa e seus lacaios
fascistas. A causa do México, como a causa da Espanha, como a
causa da China, é a causa de toda a classe operária."
É preciso ser justo com o governo Cárdenas e prestar-lhe home-
nagem, pois ele continua a fazer de tudo para garantir a segurança
do camarada Trotski. Os membros desse governo, tendo alguns deles
desempenhado os mais importantes papéis da revolução de 1910,
tendo combatido sob as ordens de Zapata ou tendo sido formados
na sua escola, admiram sem restrição um homem da têmpera de
Trotski. Não é absolutamente culpa deles, mas conseqüência inevi-
tável das medidas de proteção que precisam tomar para Trotski, se
ele sofre porque não pode movimentar-se como lhe apraz e se queixa
às vezes de ser tratado como um ob;eto.
Terminando, camaradas, embora o assunto não interesse a todos
igualmente, faço questão de tratar em algumas palavras de um pro-
blema que me é particularmente caro e que ansiava por submeter
a Trotski. Durante anos, em matéria de criação artística, defendi para
o escritor, para o pintor, o direito de dispor de si mesmo, de agir,
não obedecendo a palavras de ordem políticas, mas em função· de
determinações hist6ricas muito especiais que são somente da compe-
tência do artista. Sempre me mostrei irredutível nesse ponto. Em
1926, quando quis aderir ao partido comunista, por causa dessa
atitude tive de comparecer a várias comissões de controle onde me
pediam num tom ultrajante explicação para as reproduções de Picasso
e André Masson, publicadas na· revista que eu dirigia. Combati sem
descanso, no interior da A.E.A.R., a palavra de ordem inepta do
"realismo socialista". Se me apliquei co~tinuamente· a uma tarefa,
desprezando tudo o que podia advir, foi certamente para preservar a
integridade da pesquisa artística, para fazer com que a arte continue
a ser um fim, não se torne sob pretexto algum um meio. Esta
perseverança de minha parte não implica que não tenha sido levado a
desesperar às vezes do resultado da luta, a pensar que a incompreen-
são, a má vontade seriam mais fortes. Quantas vezes disseram a meus
amigos e a mim, que essa atitude, que a todo custo queríamos man-
ter, era incompatível com o marxismo! Apesar de minha convicção
contrária, precisava aceitar que havia ali um ponto nevrálgico, um

61
tema de inquietação, tão controvertido que nilo estivesse ansioso por
submetê-lo ao camarada Trotski.
Posso dizer, camaradas, que o achei o mais aberto possível à
minha preocupação. Oh! não vão pensar que conseguimos imediata-
mente entender-nos: não há quem dê ganho de causa tão facilmente.
Conhecendo bastante bem meus livros, in<dstiu .em tomar conheci-
mento de minhas conferências e ofereceu-se a discuti-las comigo. Aqui
e ali, nós nos empenháva111os em alguma luta: ao passar por um
nome como o de Sade ou o de Lautréamont impacientava-se ligeira-
mente. Como os descc:mhetja, exigi.a .que precisasse, na minha opinião,
qual o papel representado por eles, colocando-se no único ponto de
vista justo, no ponto de vist~ comum ao revolucjonário e ao artista,
isto é, o da libertação humana. Outras v~,es, ana~isava esse ou aquele
conceito porventura por mim apresentado e o submetia a uma crítica
cerrada. Foi assim que me disse um dia: "Camarada Breton, o inte-
resse que você dedica aos fenômenos de acaso objetivo não me parece
claro. Sei muito bem que Engels fez apelo a essa noção, mas pergun-
to-me se, no seu caso, não há outra coisa. Parece-me que você tem
alguma preocupação de guardar - suas mãos delimitavam no ar um
frágil espaço - uma janelinha aberta para o aUm". Nem bem acabava
de me justificar e ele retomava: "Não me convenci. E aliás, você
escreveu em algum lugar. . . ah, sim, que esses fenômenos apresen-
tavam para você um caráter inquietante. - Perdão, digo-lhe, escrevi:
inquietante no estado atual do conhecimento, quer que verifique-
mos?" Levantou-se bastante nervoso, deu algulls passos e voltou em
minha direção: "Se você disse ... no estado atual do conhecimento ...
não vejo mais nada a censurar, retiro minha objeção".
A extrema perspicácia, embora inclinada a mostrar~se um pouco
desconfiada, e a perfeita boa fé comprovada por mim em toda cir-
cunstância permitiram que ficássemos plenamente de acordo sobre
a oportunidade de publicar um manifesto regulamentando de maneira
definitiva o litígio persistente de que falei. Esse manifesto apareceu
sob a assinatura de Diego Rivera e a minha e intitula-se: Por
uma Arte Revolucionária Independente. Conclui pela fundação de
uma Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente
(F.I.A.R.I.), cujo boletim mensal aparecerá, pela primeira vez, no
fim de dezembro. Esclareço que se deve mais a Trotski do que a
Rivera e a mim a independência total ali reivindicada do ponto de
vista artístico. Com efeito, diante do projeto onde eu tinha formula-
do: "Toda licença em arte, exceto contra a revolução proletária", foi
o camarada Trotski que nos preveniu contra os novos abusos que se

62
poderiam cometer com este último membro de frase e o riscou sem
hesitação.
No período atual, Trotski repetiu-me muitas vezes que, para
facilitar o reagrupamento revolucionário, esperava muito da atividade
de uma organização como a F.I.A.R.I. Por duas vezes, aliás, no de-
correr destes últimos .meses, achou conveniente explicar-se sobre o
que considei-a pessoalmente a criação artística.
Ele o fez, de um lado, numa corta a camaradas americanos,
reproduzida em Quatrieme Internationqle, de outro lado, numa entre-
vista inédita em francês, da qual lim/to-me a citar esta passagem:
"A arte da época stalinista entrará na história como a expressão pa-
tente do profundo peclínio da revolução proletária. No entanto, o
cativeiro da Babilô-!).ia da arte revolucionária não pode durar e não
durará eternamenté. O partido revolucionário não pode certamente
propor-se como tareia dirigir a arte. Semelhante pretensão só pode
vir ao espírito dos d'esvairados pela onipotência, como a Burocracia
de Moscou. A arte, como a ciência, não só não pedem ordens, mas,
por sua própria essência, não as toleram."
Parece-me certo ·que todos os artistas autênticos acolhefão com
alívio e por menos revolucionários que sejam, com entusiasmo, tal
declaração.
Camaradas, estou consdénte de ter-me mostrado inferior à tarefa
ambiciosa que me tinha proposto: tornar um pouco mais presente
entre nós o camarada Trotski. Para tne consolar, lembro-me de uma
conversa que mantive há alguns anos com André Malraux por ocasião
da volta de uma viagem à U.R.S.S. Contou-me como, no decorrer
de um banquete de boas-vindas em que foi convidado a pronunciar
uma alocução, citou Leon Trotski e imediatamente percebeu que a
atmosfera ficou tensa, copos caíram, levantaram-se e movimentaram-
se alguns de seus vizinhos de mesa com a intenção manifesta de
cercá-lo: como temeu um instante por sua vida! Confiou-me mesmo
que pensava dever sua salvação somente a uma inspiração súbita,
como se tem às vezes diante do perigo e que lhe ditou uma frase
tal que surpreendeu e desconcertou os que estavam prestes a agredi-lo.
O que me deixóu e ainda me deixa assombrado não é tanto essa
cena que muitos acontecimentos trágicos desde então cortoboram
quanto a .conclusão a que ela induziu André Malraux. Conforme ele,
não se devia, sob pretexto aJgum, em nenhuma circunstância, articular
o nome de Leon Trotski. Articulá-lo equivalia, parece, a colocar-se
no desterro da atividade revolucionária como, nas abomináveis condi-
ções atuais, pode acontecer. Ora, já se viu, camaradas: será possível

63
que o instinto de conservação dite aos intelectuais semelhante renún-
cia a seu pensamento? Sei, creio no entanto saber que a André
Malraux não falta coragem! O nome de Trotski é por ele mesmo
representativo demais e glorioso demais para que se possa calá-lo ou
se contente em murmurá-lo. Não nos impedirão de brandi-lo e de
gritá-lo aos ouvidos de gente de toda laia. Tanto sobre os corpos
retalhados das crianças da Espanha e sobre os de todos os homens
que caem diariamente para que triunfe a Espanha operária, como
sobre os corpos dos revolucionários de outubro, como sobre o de
nosso camarada Sedov assassinado em uma clínica, como sobre o de
nosso camarada Klement que a polícia francesa não quer reconhecer
cortado em pedaços, é preciso que mantenhamos a divisa: Eles não
passarão!
Saúdo o camarada Trotski, soberbamente vivo e que verá de
novo soar a sua hora, saúdo o vencedor e o grande sobrevivente de
outubro, saúdo o teórico imortal da revolução permanente.

André Breton

64
ENTREVISTA DE ANDIU: BRETON
A ANDRÉ PARINAUD (1)

André Parinaud. - Gostaria, Sr. Breton, que o senhor precisasse


um pouco suas relações com Trotski, assunto que abordou durante
nossa última emissão, sublinhando certas dificuldades que foi ne-
cessário superar para encontrar o grande revolucionário. Poderia rela-
tar-nos as circunstâncias de sua entrevista, destacando a impressão
que teve?
André Breton. - Nem precisei solicitar essa_ entrevista. O pin-
tor Diego Rivera que, assim que cheguei à Cidade do México, me
oferecera a hospitalidade de sua casa, apressou-se em arranjar o en-
contro. Aliás Trotski sabia que por várias vezes eu erguera a voz
em sua defesa e desejava ver-me. Enquanto ele vagueava pelo mundo
sem passaporte foi Rivera quem conseguiu que o México lhe desse
asilo e que predispôs favoravelmente o presidente Cárdenas em relação
a Trotski. Desde então, era hóspede de Rivera, mas ocupava uma
outra casa, com sua mulher, seus secretários e os homens encarregados
de sua segurança. Um atentado era considerado como tão provável
que essa casa era flanqueada, de um e de outro lado, a uns cinqüenta
metros de distância, por dois pontos de guarda onde ficavam perma-
nentemente cinco ou seis homens armados cuja missão era. parar
todos os carros para inspecioná-los. Quando voltei, numa alocução
pronunciada durante um meeting do partido operário internacionalista
e que foi publicada na época pela revista Quatrii!me Internationale,
relatei as impressões que me ficaram de meu primeiro encontro com
Trotski, encontro que foi seguido por muitos outros. Não insisti o
suficiente sobre sua prodigiosa organização mental, que lhe permitia,
por exemplo, ditar três textos ao mesmo tempo. Mas, nesse dia, eu
falava a homens educados na sua crença e que não corriam o risco
de subestimar seus recursos. Parecia-me mais importante mostrar-lhes

65
em Trotski o que podia haver de humano no sentido mais elevado
do termo e, efetivamente, de valorizar essa faculdade - de Trotski
- como pudera apreciá-la no decurso de nossas caminhadas pelo
México, essa faculdade de ligar todo pequeno fato de observação a
um dado geral, de transformá-lo - sem que houvesse jamais nisso
nada de artificial ou de forçado - na esperança de um reajuste dos
valores deste mundo que fortalecesse ainda mais o sentimento da
necessidade da luta revolucionária.
Qual era o "clima" de seus encontros com Trotski?
Não chegarei a pretender que, nas relações diárias, as extremas
diferenças de formação e outras que pudessem existir entre Trotski
e seus interlocutores habituais - Rivera, stia mulher e eu - não
criassem vez por outra alguma discussão. Por maior que fosse nossa
deferência para com ele, a despeito de nossa preocupação em melin-
drá-lo o menos possível, tínhamos dificuldade e;n evitar de fazer-lhe
oposição em virtude de nosso temperamento de "artista" que lhe era
fundamentalmente ,estranho. O ter despertado a simpatia profunda
dos artistas, tendo ele próprio do problema artístico uma compreensão
apenas mediana, não será o fato menos singular no destino desse
homem. Sofria visivelmente quando ,um de nós se demorava acari-
ciando uma cerâmica pré-colombiana; vejo ainda o olhar de censura
que lançou a Rivera quando este sustentou (o que no entanto nada
tinha de extravagante) que o desenho yinha periclitando desde a
época das cavernas e como expÍodiu, uma noite em que fomos levados
a pensar em·voz alta diante dele que uma vez instaurada a sociedade
sem classes, novas causas de conflitos sangrentos, isto é, causas outras
que não as econômicas, surgiriam ·certamente. Mas eram divergências
de ordem fugidia que não chegavam a atingir a harmonia de nossas
relações.
O senhor poderia apresentar-nos Trotski por dentro, se assim
posso dizer, destacando os traços de caráter mais originais de sua
personalidade?
Por dentro, não pretendo, mas não conheci ninguém menos dis-
tante, mais atento à m~neira de pensar e sentir dos outros. Admirei-o,
a ele que foi na medida do possível o homem de um sistema e que
acima de tudo se propôs ser o instrumento de sua realização prática,
admirei-o por poder manter contato com a natureza, estivéssemos nós
pescando juntos, estivesse ele evocando com grande animação as peri-
pécias de uma de suas antigas caçadas ao lobo na Sibéria. Passo por
cima do que poderia constituir sua enorme atração pessoal: aí pesava

66
muito, nem é preciso dizer, o prestígio que adquirira graças a seu
papel em 1905, em 1917, mas também os dons intelectuais eminentes
que transparecem em obras como Minha vida ou História da Revolu-
ção Russa 1• Era naturalmente bem diverso poder assistir ao funcio-
namento desse pensamento que se expressava da forma mais vivaz,
sem nunca coisa alguma de exageradamente dogmático, e sabia des-
contrair-se· numa conversa sobre vários assuntos à qual dava um tom
jovial, muitas vezes arreliador, que era muito seu. Não creio que se
tenha mantido uma atitude mais imperturbável, que jamais se tenha
medido de alto a baixo, com um olhar mais altivo, a perseguição
que, já naquela época, " atingira na pessoa de seus filhos, de seus
companheiros de luta e ainda por cima consciente de que não para-
ria por aí. Limitava-se a troçar dela, quando era o caso ...
Ho;e, o que permanece, em seu ponto de vista, dessa importante
figura?
É inegável que a guerra de 1939 e suas conseqüências fizeram
descer um véu sobre ela. Sem dúvida, as novas gerações não sentem
mais o que havia de eletrizante nesse nome: Trotski, muito tempo
carregado do mais alto potencial revolucionário. Mas, para alguns
como eu, esse nome serve definitivamente de obstáculo a tudo que
poderia associar-me a um regime que não recuou diante de nenhum
meio para exterminá-lo. Parece-me que seu alcance ultrapassa de
longe o •!<tsassinato do duque de Enghien. . . Usou-se muito, no sur-
realismo, a frase de Lautréamont: "Nem toda a água do mar bastaria
para lavar um3: mancha de sangue intelectual"; mas não se trata mais
de tomá-la, agora, somente no sentido figurado ...
Qual foi o fruto de seus e~,·ontros com Trotski?
Foi conseguir chegar com ele a um acordo referente aos meios
que do ponto de vista revolucionário deviam ser dados à arte e à
poesia para que participassem da luta emancipadora, ficando ao mes-
mo tempo livres para seguir seus próprios caminhos. Esse acordo se
expressa num texto publicado com o título: "Por uma arte revolucio-
nária independente" e reproduzido em Documents Surréalistes. Con-
clui pela fundação de uma "Federação Internacional da Arte Revolu-
cionária Independente" que será designada mais abreviadamente pela
sigla F.I.A.R.I. Embora, por razões táticas, Trotski tenha querido que

1. Ambos editados pela Paz e Terra (N. do R.).

67
na impressão do panfleto seu nome fosse substituído pelo nome de
Diego Rivera, este não tomou parte alguma em sua redação.
Parece que nessa ocasião houve novamente algumas agitações
entre os surrealistas . ..
As reflexões às quais fora levado pela minha estada no México
deviam com efeito tornar essas agitações inevitáveis. A revista
Clé, órgão da F.I.A.R.I., vai permitir que se estabeleça uma discri-
minação muito precisa entre os que se alinham na posição do mani-
festo do México e os que, com fins o mais das vezes oportunistas,
procuram atravessar-se no seu caminho. Mas nada poderia, em pro-
fundidade, afetar tanto o surrealismo quanto a ruptura que acaba
então de produzir-se com Éluard.
Como se produziu essa ruptura?
Exatamente da maneira seguinte: tendo sabido, na Cidade do
México, que poemas de Éluard acabavam de ser publicados na revista
Commune, órgão da "Casa da Cultura", apressara-me, naturalmente,
em pô-lo a par dos inqualificáveis procedimentos que essa organização
usara contra mim e não duvidava que Éluard logo se afastasse dela.
Mas ele não me respondeu e, quando voltei para a França, fiquei
estupefato ao ouvi-lo alegar que uma tal colaboração não implicava,
de sua parte, nenhuma solidariedade especial, que acabara por per-
suadir-se que um poema seu se autodefendia em qualquer lugar,
por suas qualidades intrínsecas, de forma que no decurso dos últimos
meses não menos naturalmente do que em Commune, colaborara em
publicações fascistas - são os termos que emprrgm1 - na Alemanha
e na Itália. Limitei-me a observar-lhe que uma • 1 stitude implicava,
0

de sua 'parte, a ruptura de toda espécie de acordo passado entre


nós e tornava qualquer novo encontro inútil. Desde então, nunca
mais nos revimos. Bruscamente, assim, terminava uma amizade que,
durante anos, crescera ininterruptamente até estabelecer-se num plano
fraternal.
Não se pode considerar que a atividade da F.I.A.RI. terminou
num fracasso?
Sim, mas é preciso voltar às causas desse fracasso. Se a atividade
da F.I.A.R.I. não se mostrou logo à primeira vista mais empolgante,
é preciso atribuir a culpa à situação internacional cada vez mais
sombria a partir de Munique. No comitê nacional da organiiação
que formamos embora se tivessem agrupado em vão os represen-
tantes de diversas tendências revolucionárias não-stalinistas, faltou

68
muito para que pudesse ser realizada entre essas tendências a unidade
orgânica indispensável, de sorte que o jornal Clé parou no segundo
número. Tal fracasso, nesse momento, se confundiu com muitos ou·
tros. Tudo se passou como se a atividade intelectual, nas direções mais
diversas, marcasse um compasso de espera, como se o espírito já esti•
vesse alertado que nada mais era possível fazer para recuar o flagelo.
Como ~e manifesta a atividade surrealista durante os anos de
1937-38-39?
Durante os três anos que precedem a nova guerra, o surrealismo
reafirma sua vontade de não-composição com todo o sistema de valo-
res que a sociedade burguesa realça. Essa vontade se exprime com o
máximo de intransigência e de audácia na coletânea de Benjamin
Péret: Je ne mange pas de ce pain-là (Não como desse pão). Atinge
também sua plena expressão nos poemas de Jacques Prévert:
La Crosse en l'air (A Coronha no ar) e Le temps des noyaux (A Era
dos caroços), que se mostram totalmente fiéis ao espírito surrealista,
mesmo se seu autor escolheu um caminho diverso. Nesse sentido, a
trajetória de Prévert - poderíamos dizer também a de Queneau,
que encontra nesse momento sua via definitiva - tiram sua principal
força do humor. Esse humor, herdado de Swift, de Jarry, de Vaché
está mais do que nunca na ordem do dia. Vale como recurso, como
refúgio supremo e é o que me induz a querer isolá-lo (será a Antholo-
gie de l'humour noir) (Antologia do humor negro) a partir de um
certo número de obras que o contêm num grau variável. As outras
solicitações que, no surrealismo, se tornam mais imperiosas do que
nunca dizem respeito ao amor sob sua forma mais exaltada, como
se apresenta no Je sublime (Eu sublimo) de Péret, no L'Amour fou
(O amor louco), assim como no maravilhoso que Pierre Mabille
prospecta através das idades em Le Miroir du merveilleux (O espelho
do maravilhoso) e cuja busca Julien Gracq, totalmente impregnado
pelos romances do Graal, retoma em Au cMteau d'Argol (No Castelo
de Argol).
Qual foi a atitude surrealista no momento da gue"a? Em que
medida o su"ealismo se considera enga;ado nesse conflito?
A guerra, de um dia para outro, vai pôr de lado nossas aspira-
ções. A livre expressão, mais uma vez, é suprimida. Dias passarão
antes que se saiba o que aconteceu com uns e outros, antes que con-
tatos possam ser restabelecidos. Os surrealistas não têm, é claro,
nenhuma ilusão sobre a justificação em valor absoluto da causa
aliada e ainda se manifestam sobre isso, no fim de setembro de 1938,

69
num panfleto intitulado: "Nem sua guerra, nem sua paz". Mas é
óbvio, também, que não há adversários mais declarados do que eles
do racismo e do totalitarismo. A assinatura do pacto germano-sovié-
tico e as reações às quais dá lugar acentuam ainda o aspecto inextri-
cável de uma situação que, pela primeira vez, faz passar para a
realidade a atmosfera das ficções dé Kafka.
Que aconteceu com o senhor de 1939 a iunho de 1940?
Procurei transformar-me, ao-máximo, em cortiça para poder flu-
tuar. A guerra - esta ou outra - equivale ao eclipse de todas as
coisas do espírito. De uniforme, cada um é levado a uma existência
completamente individual mais ou menos precária. De minha parte,
assumo então da melhor forma possível (mas um pouco como em
sonhos) as funções de médico da escola de pilotos de Poitiers. Após
a evacuação da escola, a desmobilização me atinge em zona livre,
a dois ou três quilômetros da linha de demarcação.
De ;unho Je 1940 até sua partida para os Estados Unidos, qual
é sua atitude diante da derrota militar e a situação que dela resulta?
Tudo que então me parece incumbir aos intelectuais é não deixar
que essa derrota puramente militar, para a-qual não contribuíram de
forma alguma, tente arrastar com ela. a derrocada do espírito. Não
preciso dizer que, no fim de 1940, ~ ,.~ituação das idéias é extrema-
mellte sombria .. As nauseantes concepções que exigem a substituição
da Terçeira·República por um "Estado Francês", sob o acobertamento
de umâ autoridade dita patriarcal, são, evidentemente, do tipo que
mais fere o espírito surrealista. Certos bajuladores do novo regime
vão, aliás, na imprensa, até o ponto de designar o surrealismo como
um dos responsáveis pela derrota militar. As perspectivas imediatas
são das mais alarmantes. O garrote se estreita dia a dia. É entre-
mentes que chega a noticia, para mim dilacerante, do assassinato de
Trotski.

70
ENTREVISTA DE ANDU BRETON
A ANDU PARINAUD (D)

André Parinaud - Abordaremos ho;e a fase propriamente polí-


tica do surrealismo que é assinalada pela sua reaproximação do grupo
"Clarté" (Claridade), seguida de uma tentativa de adesão, sua e de
vários de seus amigos, ao partido comunista. A esse respeito, não
faltam documentos que nos retracem sua evolução. Apesar disso, gos-
taria o senhor de fixar o ponto de partida desse periodo político,
evocar seus acontecimentos de destaque e citar as personagens signi~
ficativas?
André Breton - O momento em que o surrealismo se volta para
a política pode situar-se com precisão próximo ao verão de 1925.
Com André Masson e alguns outros amigos, passamos as férias em
Thorenc, na Provença, onde, embora ocupados, na maior parte do
dia, na observação dos insetos e na pesca dos lagostins de água doce,
as discussões são intensas, do crepúsculo até tarde da noite. Em
matéria de surrealismo, a "autocrítica", embora essa palavra não
pertença ao nosso vocabulário, é levada longe. Os meses precedentes
foram os mais carregados de eletricidade, os mais dedicados também
a avanços muitas vezes contraditórios. No quadro-negro do surrealis-
mo, estamos longe de ter podido apagar a polêmica gerada pela
famosa brincadeira de mau gosto de Aragon sobre "Moscou, a gagá".
Essa brincadeira foi energicamente assinalada em Clarté, revista para-
comunista, que, em muitos aspectos, tem nossa simpatia, embora
dePloremos que um pseudo-intelectual como Henri Barbusse a con-
trole. Bernier provocou com isso uma réplica enraivecida de Aragon
que deu a vários de nós a impressão de que ele se comprometia cada
vez mais: "À Revolução Russa, insistia ele, vocês não me impedirão
de encolher os ombros. Na escala das idéias, é, quando muito, uma
vaga crise ministerial. . . Os problemas colocados pela existência hu-

71
mana escapam à miserável atividadezinha revolucionária que se pro-
duziu em nosso Oriente no decurso destes últimos anos. Acrescento
que só por um verdadeiro abuso de linguagem pode ser qualificada
como revolucionária". Entre nós, até os espíritos mais alheios à
política viam nisso um "trecho literário vibrante" indefensável.
De forma que um acerto lhe parecia necessário?
Pois bem, é preciso crer que isso me ficou atravessado na gar-
ganta porque, nessa época, torno a abrir amplamente o debate. A
oportunidade é-me fornecida por um resumo da obra de Trotski sobre
Lênin que publico no número 5 de La Révolution surréaliste. Esse
texto não está reproduzido em Documents surréalistes e é pena
porque é ele que incontestavelmente marca o primeiro passo, um
passo decisivo (embora se tenha dito muitas vezes, mais tarde, que
foi um passo em falso meu e do surrealismo) para uma melhor
compreensão das idéias e dos ideais dos quais a revolução russa tinha
sido a resultante. É verdade que eu próprio me abstive depois de
coletá-lo, devido a sua formulação pouco satisfatória, sobretudo à
distância, mas como poderia ter sido de outra forma? Eu avançava
então quase às apalpadelas; a reconsideração que eu pedia fosse dada
ao problema, se queria me fazer ouvir a minha volta, só podia ser
apoiada com argumentos sentimentais e aliás nenhum de nós tinha
ainda sentido necessidade de ultrapassar os rudimentos do marxismo.
Apressei-me também em deixar de ser solidário com "este ou aquele
amigo meu na medida em que ele [houvesse] julgado poder atacar
o comunismo em nome de um princípio qualquer que este fosse.
Entre nós; dizia eu, o espírito geral não deve ficar voltado para nada
mais do que para a realidade revolucionária, [ele] deve fazer-nos
alcançá-la por todos os meios e a qualquer preço", E, como se essa
alusão ao recente comportamento de Aragon me parecesse ainda insu-
ficiente, referia-me diretamente· a ele acrescentando: Louis Aragon
pode, se quiser, fazer Drieu la Rochelle saber, por carta aberta,
que ele jamais gritou: "Viva Lênin!", mas que o berrará amanhã
(sic), uma vez que lhe interditam esse grito. Também eu posso, se
quiser, ·... achar que é dar vantagem demais a nossos piores difa-
madores. . . deixá-los supor que s6 agimos assim por desafio: "Viva
Lênin! ao contrário, e somente porque é Lênin !"
Será pretensão dizer que eu dispunha então de ascendência sufi-
ciente para que de imediato essa posição fosse muito amplamente
adotada no surrealismo e que Aragon não visse o menor obstáculo
- o que estou dizendo? - que fosse o primeiro a adotá-la?

72
Como se explica que a leitura do Lênin de Trotski tenha tido
para o senhor um caráter de revelação tão especial?
Não se pode negar que, se a leitura de tal obra me tinha empol-
gado, foi sobretudo por seu lado sensível que fui conquistado. De
uma certa relação entre o humano, a própria pessoa de Lênin tal
como o autor o conhecera intimamente, e o sobre-humano (a tarefa
que realizara) se desprendia alguma coisa muito empolgante, que, ao
mesmo tempo, conferia às idéias que tinham sido suas o maior poder
de atração. . . O quanto a polícia intelectual na França foi vigilante
pará que essas idéias tenham demorado tanto - cerca de oito anos
- para chegar até nós! Até 1925 é surpreendente que a palavra
Revolução, no que pode ter de exaltante para nós, só evoque no
passado a Convenção e a Comuna. Pela maneira pela qual dela
falamos então, percebe-se que som9s mais sensíveis aos tons que
tomou na boca de Saint-Just ou de Robespierre do que a seu conteú-
do doutrinário. Isso não quer dizer que não façamos integralmente
nossa a causa que foi a dos revolucionários de (17)93 ou de (18)71. A
necessidade, a urgência de uma violenta transformação econômica e
social que ponha fim a um certo número de iniqüidades gritantes
nunca foi absorvida até se dissolver na reivindicação surrealista, por
mais absoluta que esta seja de início. Mas nesse momento ainda
apenas muito fracamente voltamos nossa atenção para os meios pelos
quais uma tal transformação pode operar-se. Insisto nisso porque
muitas vezes simularam não compreender o passo que bruscamente
nos inclinou para esse lado, induzidos, segundo alguns, a reduzir
deploravelmente nosso campo de ação.

73
LEON TROTSKI: Ll!:NIN

Com base em alusões que foram feitas aqui mesmo e em outros


lugares, pôde-se acreditar que de comum acordo formamos acerca da
Revolução Russa e do espírito dos homens que a dirigiram um con-
ceito muito pouco favorável e se nos abstínhamos a seu respeito de
críticas mais vivas, era menos por falta de vontade de manifestar
sobre eles a nossa severidade, do que para não tranqüilizar definitiva-
mente a opinião pública, feliz, de não precisar contar com uma forma
de liberalismo intelectual, igual aos tantos outros que conhecera e
tolerara. Primeiramente, tal liberalismo não traz conseqüências (pelo
menos conseqüências imediatas), em seguida pode ser considerado
rigorosamente, com relação à massa, como poder de desobstrução.
Também é verdade que, de minha parte, recuso absolutamente ser
considerado solidário com este ou aquele de meus amigos na medida
em que tenha pensado poder atacar o comunismo, por exemplo,
em nome de qualquer princípio - mesmo daquele, aparentemente
tão legítimo, da não aceitação do trabalho. Penso, com efeito, que
s6 o comunismo, existindo como sistema organizado, permitiu que
a maior transformação social se realizasse nas condições de duração
que eram as suas. Bom ou medíocre, em si defensável ou não do
ponto de vista moral, como esquecer não só que foi o instrumento
graças ao qual as muralhas do antigo edifício foram destruídas, mas
também que se revelou o agente mais maravilhoso e jamais igualado
de substituição de um mundo por outro? Para nós, revolucionários,
pouco importa saber se o último mundo é preferívd ao outro e,
aliás, não chegou o momento de julgá~lo. No máximo, estaria em
jogo saber se a Revolução Russa chegou ao fim, o que não creio.
Estaria acabada, uma revolução dessa amplitude, estaria tão depressa
acabada? Já seriam os novos valores tão duvidosos quanto os antigos?
74
Ora, não somos tão céticos para nos prendermos a essa idéia. Se
entre nós há homens, hesitantes em conseqüência de semelhante
temor, não é necessário dizer que me oponho a que compl',{>metam,
embora por pouco, o espírito geral que nos dirige, o qual deve con-
correr somente para a realidade revolucionária e levar-nos a alcançá-la
por todos os meios e a todo custo.
Nessas condições, como Louis Aragon teve liberdade de comu-
nicar a Drieu La Rochelle, por carta aberta, que jamais gritou: Viva
Lênin! mas que "o berrará amanhã uma vez que lhe interditam esse
grito", também eu e qualquer de nós temos liberdade de julgar que
não havia motivo suficiente para tal comportamento e que é dar
vantagem demais a nossos piores difamadores (os mesmos de Lênin),
deixá-los supor que só agimos assim por desafio. Viva Lênin! ao
contrário e somente porque é Unin! Julgamos exatamente que não
se trata de um grito efêmero, mas de uma afirmação duradoura e
clara do nosso pensamento.
Seria inoportuno, com efeito, que continuássemos em matéria
de exemplo humano a basear-nos nos Convencionais franceses e só
pudéssemos reviver com exaltação esses dois anos, aliás belíssimos,
depois dos quais tudo recomeça. Não convém abordar um período
mesmo distante de revolução com um sentimento poético, por mais
interessante que seja. E temo que os cachos de Robespierre, o banho
de Marat• confiram um prestigio inútil às idéias que, sem eles, não
nos apareceriam mais tão claramente. Violência à parte - pois é
exatamente essa violência que fala mais eloqüentemente por eles -
há todo um aspecto de seu caráter que nos escapa; por isso apelamos
para a lenda. Mas, se, como creio, estamos antes de tudo à procura
de meios insurrecionais, pergunto-me, fora da emoção que nos deram
uma vez por todas, pergunto-me na prática o que esperamos.
Não acontece o mesmo com os revolucionários russos; da forma
como finalmente chegamos a conhecê-los um pouco são aqueles ho-
mens que tanto ouvimos atacar e que nos apresentaram como os
inimigos do que ainda nos pode ser caro, como os provocadores de
não se sabe que maior desastre utilitário do que aquele ao qual
assistimos. Livres de segundas-intenções políticas, chegam até nós
com toda humanidade, dirigindo-se a nós, não mais como executores
impassíveis de uma vontade que nunca será ultrapassada, mas como

* Alusões. metafóricas de Breton à morte dos dois revolucionários franceses:


Robespierre, que usava cabelos longos, foi guilhotinado, e Marat assassinado
pela jovem Charlotte Corday enquanto tomava banho.

75
homens chegados ao cume de seu destino, do destino, e que se
avaliam de repente e que nos falam e que se interrogam. Renuncio
a descrever as nossas impressões.
Trotski lembra-se de Lênin. E tanta lucidez passa sobre tan-
tas confusões, como se esplêndida tempestade se acalmasse. Lênin,
Trotski, a simples enunciação desses dois nomes faz novamente oscilar
cabeças e mais cabeças. Compreendem? Não compreendem? Aquelas
que não compreendem se enriquecem assim mesmo. Trotski oferece-
lhes ironicamente pequenos acessórios de escritório: a lâmpada de
Lênin na velha Iskra*, os papéis não assinados que redigia na pri-
meira pessoa e mais tarde. . . enfim tudo o que pode fazer o balanço
cego da história. E afirmaria que nada falta aí, em perfeição e em
grandeza. Ah! é certo que não são os outros homens de Estado, que
os povos da Europa, por sua vez, conservam covardemente, que
poderiam ser vistos sob esse aspecto!
Pois a grande revelação deste livro e eu não poderia insistir
bastante nisso, é que muitas das idéias que nos são mais caras e
das quais habituamo-nos a fazer depender estreitamente o sentido
moral particular que podemos ter, não condicionam absolutamente
nossa atitude no que concerne à significação esser.dal que queremos
nos dar. No plano moral onde resolvemos nos colocar, está claro que
um homem como Lênin é absolutamente inatacável. E à objeção de
que, conforme este livro, Lênin é um tipo e "os tipos não são
homens", pergunto: Qual desses nossos bárbaros sofistas terá a
ousadia de sustentar que há algo a reprovar nas apreciações gerais
emitidas ocasionalmente por Trotski sobre os outros e sobre ele
mesmo? Qual deles continuará a detestar realmente esse homem, não
se deixando comover nem um pouco pelo seu perfeito tom de voz?
É preciso ler as brilhantes, as justas, as definitivas, as magníficas
páginas de refutação consagradas aos Linin de Gorki e de Wells.
É preciso meditar por muito tempo sobre o capítulo que trata dessa
antologia de textos de crianças versando sobre vida e morte de Lênin,
sob todos os aspectos dignos de comentário e sobre os quais o autor
estabelece uma crítica tão fina e tão desesperada:
"Lênin gostava de pescar. Em dias quentes pegava a sua linha,
sentava-se à beira d'água e pensava o tempo todo nos meios para
melhorar a vida dos operários e camponesesJJ.
Viva Lênin, portanto! Saúdo humildemente Leon Trotski, a ele

* Primeiro jornal marxista clandestino de toda a Rússia, surgido em dezembro


de 1900, em Leipzig, depois em Munique (Alemanha).

76
que pôde, sem o auxílio de muitas ilusões que nos restam e talvez
sem, como nós, crer na eternidade, manter para o nosso entusiasmo
esta inesquecível palavra de ordem: "E se o sino dobrar a finados
no Ocidente - e dobrará - , poderemos estar enterrados até o pes-
coço em nossos cálculos, em nossos balanços, na N.E.P.,* mas respon-
deremos à chamada sem hesitação e sem demora: somos revolucioná-
rios da cabeça aos pés, já o fomos e assim permaneceremos até o
fim".

André Breton
15 de outubro de 1925.

* Sigla da Nova Política Econômica, instituída após o chamado "Comunismo de


guerra", a partir de 1921. Dura até 1928, quando Stálin inicia a coletivização
forçada, redundando na morte e deportação de milhões de pessoas.

77
"PLANETA SEM PASSAPORTE"

Um bandido particularmente perigoso, autor de crimes incalculá-


veis, e mais, maníaco da reincidência, mais que todos os homens,
vagabundo desp;ezível e sem asilo, verdadeira chaga do gênero huma-
no, assim é que, de uns dias para cá a grande imprensa esforça-se
em pintar o retrato de Leon Trotski, autorizado há um ano a residir
na França e condenado bruscamente por uma sentença de expulsão.
Bastou que a presença de Trotski fosse assinalada nos arredores
de Paris, para que pudesse ser desviada para a sua pessoa exclusiva-
mente a excitação da opinião, preparada e decepcionada pelo imbr6-
glio cuidadosamente armado do "caso Prince" e a incriminação muito
hábil de uma "máfia".
O romance policial, tf''"'~f'l se tornado demasiadamente fraco
nesses últimos días, encont.. -. t-•.:.u seu crédito, no episódio da "casa
de Barbizon",* um derivativJ precioso. Os quatro "pastores ale-
mães", que, segundo os jornais, uivam sem cessar, apoiados na grade
do parque, fazem-nos pensar que todos os cães não estão no seu
interior; o proprietário, os jornalistas burgueses, os motoristas russos
brancos e as elegantes em seus carros poderiam considerar-se mais
fortes. As bagagens de Trotski são, ao que parece, volumosas. Sem
nenhuma dúvida é surpreendente também que seus secretários, seus
mensageiros não pareçam canalhas e se ele mesmo não aparece, não
vem expor-se amavelmente a uma bala, dão-nos a entender que é
porque tem consciência de seus crimes, está com medo.

* Referência, como ao "caso Prince", pouco antes, a incidentes vividos por


Trotski durante seu asilo na França, entre 1933/35. O leitor encontra o relato
minucioso desses e outros episódios no volume Trotski - O Profeta Banido,
Difd, São Paulo, 1985, de Isaac Deutscher, cap. 4 - "Inimigo do Povo".

78
Deploramos que nossos camaradas de L'Humanité * só queiram
ver na série angustiante dessas perseguições contra um homem "pu-
blicidade interessada" destinada a ser-lhe vantajosa. Sublinham, em
compensação com toda razão, que a expulsão de Trotski marca o
ponto de partida de medidas repressivas contra os emigrantes comu-
nistas e prepara caminho para colocar fora da lei as organizações
revolucionárias. Já se ressuscita uma lei que não foi aplicada desde
1848 para poder perseguir os jornais revolucionários.
O estranho "governo de trégua" imposto pelo golpe de 6 de
fevereiro declara-se inimigo resoluto da classe operária. No plano eco-
nômico os decretos-lei provocam um recrudescimento do desempre-
go; levam à prisão, à revocação centenas de militantes culpados por
terem protestado contra a redução brutal de seus meios de subsistên-
cia. No plano político esse governo mostra igualmente de que é
capaz expulsando Trotski, não sem organizar à volta dele a provoca-
ção; aceita romper dessa forma com as famosas tradições hospitaleiras
da França.
Nós que aqui estamos longe de compartilhar das concepções
atuais, s6 podemos nos sentir mais livres para nos associar a todos
os protestos já feitos contra a medida de que Trotski é objeto.
Acreditem que colocamos aqui toda a indignação de que somos capa-
zes. Saudamos, nessa nova etapa do seu caminho difícil, ao velho
companheiro de Lênin, signatário da paz de Brest-Litovsk, ato exem-
plar de ciência e intuição revolucionárias, organizador do Exército
Vermelho que permitiu ao proletariado conservar o poder apesar do
mundo capitalista coligado contra ele, autor - entre tantos outros
não menos lúcidos, não menos nobres e menos brilhantes - desta
fórmula que é para nós uma razão permanente de viver e de agir:
"O socialismo significará um salto do reino da necessidade para o
reino da liberdade, também no sentido de que o homem de hoje,
cheio de contradições e sem harmonia, abrirá o caminho para uma
nova raça mais feliz".
André Breton, Roger Cai/fois, René Char, René Crevel, Paul
Éluard, Maurice Reine, Maurice Henry, Georges Hugnet, V alen-
tine Hugo, Marcel Jean, Jean Lévy, Fernand Marc, ]. et M.-L.
Mayoux, J.~M. Monnerot, Henri Pastoureau, Ben;amin Péret,
Gui Rosey, Yves Tanguy, Robert Valançay, Pierre Yoyotte e
numerosos camaradas estrangeiros.
24 de abril de 1934

* Jornal oficial do Partido Comunista Francês (P.C.F.).

79
DECLARAÇÃO LIDA POR ANDRÉ BRETON EM
3 DE SETEMBRO DE 1936 NO MEETING:
"A VERDADE SOBRE O PROCESSO DE MOSCOU"

Camaradas,
Em nossa simples qualidade de intelectuais, declaramos que con-
sideramos o veredicto de Moscou e sua execução como abomináveis
e irreparáveis.
Negamos formalmente com vocês o fundamento da acusação,
que os antecedentes dos acusados dispensam até de examinar, apesar
das pretensas "confissões" da maioria deles. Consideramos a ence-
nação do processo de Moscou como vil expediente policial, que
ultrapassa de longe em envergadura e alcance aquele que levou ao
processo dito dos "incendiários do Reichstag". Pensamos que tais
expedientes desonram para sempre um regime.
Associamo-nos, senão ao conjunto de suas apreciações políticas,
pelo menos às conclusões lúcidas do artigo de Otto Bauer, formula-
das anteontem em Le Populaire: ''O que aconteceu em Moscou foi
mais que um erro, mais que um crime, foi uma desgraça terrível
que atinge o socialismo do mundo inteiro, sem distinção de espírito
e de tendência". É, em nossa opinião, uma desgraça terrível na
medida em que, pela primeira vez, para um grande número de
camaradas que se deixarão iludir, a consciência revolucionária é apre-
sentada globalmente como corruptível. É uma desgraça terrível no
sentido em que homens merecedores apesar de tudo de nosso respeito,
ainda que apenas por seu passado mais ou menos glorioso, são
considerados como homens que se condenam a si mesmos, se definem
como traidores e cães. Esses homens, quaisquer que sejam as graves
restrições que possamos fazer sobre a firmeza de alguns deles, consi-
deramo-los como totalmente incapazes, quer no desejo de continuar ã
lutar, quer mais ainda no desejo de escapar à morte, de se negar,

80
de se desonrar a si próprios nessa medida. Mas, isso deixa de ser
uma desgraça terrível a partir do momento em que nos esclarece
definitivamente sobre a personalidade de Stálin: o indivíduo que
chegou até esse ponto é o grande traidor e o principal inimigo da
revolução proletária. Devemos combatê-lo com todas as nossas forças,
devemos ver nele o principal falsário de hoje _:_ empreende não
somente falsear a significação dos homens, mas também falsear a
história - e o mais imperdoável dos assassinos.
Fazemos, nessas condições, todas as restrições sobre a manu-
tenção da palavra de ordem: "Defesa da U.R.S.S.". Pedimos que
seja substituída com toda urgência por "Defesa da Espanha revolu-
cionária", especificando que todas as nossas atenções se voltam hoje,
3 de setembro de 1936, para os magníficos elementos revolucionários
da C.N.T., da F.A.I. e do P.O.U.M. que lutam, indivisivelmente em
nossa opinião, na linha de combate de Irun e no resto da Espanha.
Percebemos que Stálin e seus acólitos, tendo feito um pacto de
assistência com os estados capitalistas, empenham-se tanto quanto
possível em desunir aqueles elementos. É, para nós, uma razão a
mais de esperar deles, de suas forças e de seus heroísmos conjugados,
o restabelecimento da verdade histórica pisoteada tão sistematica-
mente na U.R.S.S. quanto na Itália e na Alemanha.
De forma concreta, propomo-nos agir no interior do Comitê de
VigilJncia dos Intelectuais para que seja conduzido com toda severi-
dade o inquérito exigido pelo P.O.I.* sobre as condições em que
se desenrolou o processo de Moscou e, já o sabemos, sem a menor
consideração não só para com a personalidade dos acusados, mas
também para com a proteção da dignidade humana. Propomo-nos
igualmente continuar a exigir se houver - e haverá certamente -
reparação em nome da consciência internacional, único elemento de
progresso, da consciência internacional cujas prescrições, Camaradas,
são consideradas por um certo número de nós, aqui neste meeting,
como sagradas.
Saudamos de novo a personalidade, muito acima de qualquer
suspeita, de Leon Trotski. Reivinclicamos para ele o direito de viver
na Noruega e na França. Saudamos esse homem que foi para nós,
relevando-se as opiniões ocasionais não infalíveis que ele chegou a
formular, um guia intelectual e moral de primeira ordem e cuja

* Partido Operário Internacionalista, fundado na França em 1936 como seção


francesa da IV Internacional, até 1939.

81
vida, no momento em que é ameaçada, nos é tão preciosa quanto a
nossa pr6pria vida.

Adolphe Acker, André Breton, Georges Hénein, Maurice Henry,


Georges Hugnet, Marcel Jean, Léo Malet, Georges Mouton,
Henri Pastoureau, Beniamin Péret, Gui Rosey, Yves Tanguy.

82
DECLARAÇÃO DE ANDIU: BRETON NO MEETING
DO P.O.1. EM DEZEMBRO DE 1936

Camaradas,
Em uníssono, no fim desta reunião, desejo que possamos dirigir
a Leon Trotski uma carta na qual, parafraseando a de 9 de maio de
1851 de Engels a Marx, digamos-lhe: "Que as injúrias a você ende-
reçadas se mulripliquem na Rússia e por toda parte, já era de se es-
perar. Você se encontra agora na altiva situação de ser atacado por
dois mundos ao mesmo tempo" e não falamos mais do antigo e do
novo mundo, falamos do mundo capitalista e do pretenso mundo
socialista, como se teve a audácia de sustentar que poderia ser edi-
ficado em um só país.
"Quando passam às calúnias, quando o filisteu democrático, En-
gels acrescentava, não se limita mais à simples convicção de que so-
mos o mais negro monstro" (o filisteu democrático pode ser aqui
substituído pelo filisteu comunista), quando o acusam, a você, Trots-
ki, não somente de ter mandado assassinar Kírov, de ter querido as-
sassinar Stálin mas também de se ter colocado para isso às ordens
da Gestapo, "somente recusar-se a dar crédito a tais insanidades não
basta". É necessário responder imediatamente. Foi-se o tempo em
que se podia esperar por dúzias dessas elucubrações "para revidar
imediatamente e, sempre segundo a expressão de Engels, com uma
só pisada esmagar esses vermes". Quanto ao fato de lhe tornarem
impossível a permanência na U.R.S.S., na Turquia, na França, na
Noruega, e contam com isso, também no México e em toda parte,
"não vamos lhes dar mais esse prazer". Foi-se o tempo em que En-
gels podia dizer a Marx: "As únicas pessoas que poderiam, na Ale-
manha, tornar-se perigosas para nós são os assassinos, entretanto
ninguém mais tem coragem de lançar gente dessa espécie contra
nós".

83
Basta que hoje Stálin contrate os assassinos: camarada Trotski,
não o abandonaremos a seus ataques. Engels dizia ainda a Marx: "A
ralé vermelha democrática ou mesmo comunista nunca nos amará".
É essa própria ralé que aprova que se tenha instruído contra você,
contra seu filho, contra Smírnov, Kamenev e Zinoviev o vil proces-
so de Moscou do qual, na nossa opinião, você saiu intacto como a
Revolução de Outubro embora toda espezinhada, como a Revolução
mundial que você encarna, cada dia mais perseguido, cada dia maior.
Fizeram de você o símbolo das tradições imperecíveis de 1905
e 1917 achincalhadas hoje quase por completo, na U.R.S.S., mas re-
vigoradas pela luta do proletariado espanhol por sua liberação. De
um lado, o retrocesso continuamente acelerado: negação da ditadura
do proletariado em benefício da de um homem; restauração da famí-
lia, da pátria, prenunciando a da religião; restabelecimento da desi-
gualdade entre os homens sob todas as suas formas; destruição na
origem de toda veleidade crítica; expulsão de todos os objetivos re-
volucionários para aplicação da palavra de ordem: apoio incondicio-
nal à U.R.S.S. e, para isso, realização antecipada da "união sagra-
da" para a guerra (a imunda guerra apresentada como saída fatal e
mesmo desejável, a imunda guerra que, de um e outro lado, uma vez
mais, será - ou melhor, já é - transformada em última guerra, em
guerra do direito, da civilização e da liberdade!). De outro lado, o
formidável salto para frente da Espanha: realização instantânea du-
rante o perigo do bloco invencível da classe operária; ampliação das
perspectivas de luta à luta do proletariado internacional; destruição
considerada como primordial de todo o aparelho religioso e, espera-
mos, acima de tudo isso, constituição de uma ideologia revolucioná-
ria ativa, formada à prova dos fatos, que não se preocupe em repro-
duzir essa ou aquela ideologia já existente ou decadente, mas que
concilie as aspirações fundamentais tanto de nossos camaradas da
F.A.I., da C.N.T., do P.O.U.M., quanto do Partido Comunista Ibé-
rico na medida em que estas últimas deixarem de ser atentatórias
às precedentes. Com exceção do auxílio material concedido pela
U.R.S.S. ao governo espanhol e da bravura que os membros do P.C.,
alistados na coluna internaFional, demonstram, dizemos que reina no
interior da III Internacional a concepção do bem social mais alar-
mante possível, uma vez que fundamentada na depreciação, na de-
gradação das idéias de liberdade, justiça e dignidade humanas, úni-
cas geradoras e afiançadoras de progresso. É preciso acabar com essa
concepção desonrosa e bestial, que induz a acreditar nas confissões
delirantes dos dezesseis fuzilados de Moscou.

84
Camarada Trotski, você que foi o grande organizador do Exér-
cito Vermelho, seu lugar não será mais no México. Já que quase to--
das as fronteiras se fecharam para você, há pelo menos uma porta
que deveria escancarar-se para deixá-lo passar: é a de Barcelona. Mas
vemos a chantagem! Por isso, diante da impossibilidade em que es-
tamos de poder amanhã aclamar uma só causa, que seja ao mesmo
tempo a da Revolução Espanhola na pessoa indistinta de todos os
nossos camaradas anarqui~tas, comunistas ou socialistas_ e a da Re-
volução Russa encarnada na pessoa de Trotski assim conio na de to-
das as vítimas revolucionárias do Termidor stalinista, pelo menos im-
poremos o respeito pelo pensamento como pela vida de Trotski. Ve-
laremos para que nada venha interromper o testemunho insubstituí-
vel de todos eles.

85
DISCURSO DE ANDM BRETON A RESPEITO DO
SEGUNDO PROCESSO DE MOSCOU
PARIS, 16.DE JANEIRO DE 1937

CAMARADAS,
Mais luz! "Mehr Licht", esse foi o último grito de Goethe;
"mais consciência", esta foi a grande palavra de ordem de Marx.
Quanto à luz, com Stálin podemos contar com a dos processos de
feitiçaria da Idade Média: é preciso entrar no detalhe desses proces-
sos - e o proletariado não tem disponibilidade· para isso - para
achar um equivalente da atmosfera daquele que se desenrolou em
agosto último, daquele que se desenrola atualmente em Moscou. E
dão a entender muito bem que não acabou! Quanto à luz, a de uma
escada de prisão que se deverá descer às quatro horas da manhã, de
uma escada ladeada de canaletas como uma mesa de dissecção, onde,
em determinado degrau, você receberá uma bala na nuca. As canale-
tas são para os miolos, para a consciência, mas nada poderá impedir
que os velhos companheiros de Lênin deixem de representar um al-
to grau de consciência que as descargas-modelo das prisões da G .P .U.
serão incapazes de levar. Esses homens que deram provas e mais pro-
vas de sua lucidez, de seu desinteresse, de sua dedicação a uma cau-
sa, que é a- da humanidade inteira, a história se recusará a ver ne-
les "possessos" no velho sentido religioso da palavra, como, ainda
mais, ela se recusará a considerar Leon Trotski como uma encarna-
ção do diabo no século XX. A desgraça, ontem, de Smírnov, de Zi-
noviev, de Kamenev, hoje de Radek, de Piatakov, de Sokolnikov, de
Serebríakov, amanhã de Bukhárin, de Rakóvski, no entanto terá sido,
quanto a isso, confiar demais na hist6ria, crer que a enormidade, que
a própria inverossimilhança dos crimes que lhes pediam que reco-
nhecessem acarretaria necessariamente total descrédito, transformar-
se-ia em confusão de seu acusador. Talvez esperem que do próprio
excesso de vergonha de que se cobrem surja na opinião pública uma

86
dúvida radical a beneficiá-los. Kamenev exagerava continuamente as
apreciações do procurador geral a seu respeito. Contavam-nos ontem
que Radek ao mesmo tempo ern que se acusava de terrorismo, de
espionagem, de sabotagem - e não sei mais o quê! - achava ainda
meio de ser espirituoso. Pois bem, camaradas, será essa atitude a de
um homem que sabe que vai morrer amanhã desonrado? Não mes-
mo, os acusados do segundo processo, como os do primeiro, estão
persuadidos de que participam de uma encenação: basta para isso
que tenham sido mantidos incomunicáveis, no dia do primeiro vere-
dicto. Todo o mundo concorda em admitir - os pr6prios stalinistas
não o contestam - que eles não duvidam, como os precedentes, de
ter a vida salva, isto é, de estar em condições de se justificar um
dia. Não imaginam que serão abatidos um a um Da escada de ci-
mento. Um romancista francês imaginou precisamente, como com-
plemento aos da Inquisição, esse suplício mais cruel, mais odioso que
todos os outros; chamou-o de "tortura pela esperança".
E não se pode mesmo acreditar que essa ação rocambolesca, on-
de o pueril rivaliza com o atroz, tenha seu epilogo no recinto do tri-
bunal militar de Moscou. Constantemente, surgem, em abundância,
novas peripécias cujo desenvolvimento cada dia ultrapassa um pouco
mais os limites da U.R.S.S.: é o roubo da rua Michelet,* é o assas-
sinato de Navacbine. Evidentemente não se recua diante de nada pa•
ra fazer desaparecer tanto os documentos como os homens, e com
eles tudo o que puder contribuir para tornar manifesta a mais formi-
dável negação de justiça de todos os tempos, tudo o que puder des-
mascarar o terrorismo e o imperialismo de Stálin. Camaradas, esse
é um clima mortal para o próprio pensamento socialista, para toda
ação revolucionária no mundo. Devemos estar completamente preve-
nidos, até mesmo de sobreaviso diante do enigma terrível das pre-
tensas confissões. O pensamento socialista estará arrasado no mo-
mento em que aceitar que se despreze a dignidade humana, no mo-
mento em que for levado a convir que chegou a se trair e a se ne-
gar nos homens que o levantaram mais alto. Não esqueçamos que
Marat, que toda a vida foi tão pobre, foi acusado por muito tempo
de se ter vendido; que se tentou fazer com que Marx passasse por
agente de Bisnl1>.rck; que o vagão blindado de Lênin faz ainda com

* Assalto praticado por agentes da G.P.U. contra os arquivos do Instituto


Holandês de História Social, para os quais Trotski havia vendido parte de
sua documentação política. Este Instituto se localizava na rua Michelet. Ver
Isaac Deutscher, op. cit.

87
que os inimigos da grande Revolução de Outubro tomem ares enten-
didos. E Liebknecht e Rosa Luxemburgo! Não esqueçamos e não
injuriemos Leon Trotski defendendo-o, Leon Trotski, já que é es-
sencialmente ele, sempre ele que é visado e basta que ele seja de-
clarado inocente para que toda a acusação contra outros se volte con-
tra quem a formulou. Lembremo-nos, camaradas. Quem dizia: "Po-
de-se crer um só instante no fundamento da acusação segundo a qual
Trotski, ex-presidente do Soviete dos deputados de Petersburgo em
1905, revolucionário que serviu com desinteresse à revolução duran-
te dezenas de anos, tenha alguma relação com um plano financiado
pelo governo alemão? É uma calúnia manifesta, inaudita, desonesta
lançada coritra um revolucionário"? Foi Lênin quem assim falou em
1917. Quem disse: "Todo o trabalho prático da insurreição (de ou-
tubro) foi desenvolvido sob a direção imediata de Trotski, presiden-
te do Soviete de Petrogrado. Pode-se dizer com certeza que a rápida
passagem da guarnição ao Soviete e a hábil organização do trabalho
do Comitê militar revolucionário, o partido deve-o antes de tudo ao
camarada Trotski"? Quem concede, em 6 de novembro de 1918, a
Trotski, esse certificado hoje mais valioso do que qualquer outro?
Stálin.
Visto que, como escrevem os camaradas Louis de Brouckêre e
_Friedrich Adler, presidente e secretário da Internacional Operária
Socialista, o segredo da instrução prévia e a pressa com que se pas-
sou do término da instrução à abertura do processo tornam "mate-
rialmente impossível enviar em tempo hábil observadores a Mos-
cou", somos obrigados pela segunda vez a renunciar a saber sob o
peso de que violência monstruosa, devido a que trapaça horrorosa os
acusados sé comportam como loucos. Só a urgência deve, em seme-
lhante caso, ditar-nos nossa própria conduta. Para não perder tudo,
exige de nós que limitemos nossos objetivos. Devemos concentrar
nossos esforços só em obter que esses homens não sejam executados,
ao mesmo tempo exigindo que advogados independentes do governo
soviético desde iá sejam postos em contato com os acusados do ter-
ceiro processo, já que sabemos que haverá um terceiro. Tendo em
vista a conclusão muito próxima dos debates do segundo, devemos,
camaradas, pelo menos endossar a resolução do grupo de advogados
socialistas pedindo "à Rússia revolucionária, que não tem mais nada
a temer de seus inimigos, que renuncie à pena de morte por crime
político", mas devemos também intimá-la a renunciar a ela imedia-
tamente, sob pena de convencer o mundo de que não é mais a Rús-

88
sia revolucionária, de convencer disso o mundo revolucionário que,
infelizmente, Dão está ainda convencido.
Esta é a única tarefa concreta à qual podemos consagrar-nos,
com alguma possibilidade, embora mínima de resultado. Mas há ou-
tra coisa em relação à qual não devemos sob pretexto algum deixar-
nos ultrapassar pelos acontecimentos. Não nos hipnotizemos com o
mistério das "confissões". Concentremos nossa atenção não nos meios
pelos quais foram arrancadas, mas nos fins para os quais foram arran-
cadas. A solução não pode ser achada somente na U.R.S.S.; deve ser
procurada ao mesmo tempo na U.R.S.S. e na Espanha. Na U.R.S.S.,
é claro que, por menos que se pense estabelecer. uma analogia histó-
rica, Termidor ficou muito para trás. "O regime político atual da
U.R.S.S., disse Trotski - e ninguém melhor do que ele para saber
- é um regime de bonapartismo "soviético" (ou anti-soviético) mais
pr6ximo por seu tipo do Império do que do Consulado". Em 1805,
camaradas, lembrem-se de que a parte mais esclarecida da opinião ale-
mã, a· elite dos filósofos, Fitche à frente, iludiu-se a ponto de sau-
dar Napoleão como libertador, como enviado, e porta-voz da Revo-
lução Francesa. Chegamos ao mesmo ponto com Stálin. Os processos
atuais são, de um lado, o produto das contradições que existem en-
tre o regime político do bonapartismo e as exigências do desenvolvi-
mento de um país como a U.R.S.S. que, a despeito de Stálin e da
burocracia, permanece um Estado operário. Mas esses processos são,
por outro lado, a conseqüência imediata da luta tal como está enga-
;ada na Espanha: esforçam-se a todo custo por impedir que uma no-
va vaga revolucionária se espalhe pelo mundo; trata-se de fazer abor-
tar a revolução espanhola como se fez abortar a revolução alemã,
como se fez abortar a revolução chinesa. Fornecem armas, aviões?
Sim, primeiramente porque é indispensável salvar as aparências, em
seguida porque essas armas de dois gumes são destinadas a destruir
tudo o que trabalha, na Espanha, não para a restauração da repúbli-
ca burguesa, mas para o estabelecimento de um mundo melhor, de
tudo o que luta para o triunfo da revolução proletária. Não nos en-
ganemos: as balas da escada de Moscou, em janeiro de 1937, são
dirigidas também contra os nossos camaradas do P.O.U.M. Na pró-
pria medida em que negaram ser trotskistas, apela-se contra eles com
o horrível barbarismo jesuíta do "centro paralelo", a fim de atingi-
los por tabela, o que já não se esconde mais. Depois deles, será aos
nossos camaradas da C.N.T. e da F.A.I. que se tentará incriminar,
com a esperança de livrar-se de tudo o que há de vivo, de tudo o

89
que comporta uma promessa de devenir na luta antifascista espa-
nhola. ·
Camaradas, vocês dirão conosco que os homens irreconhecíveis
apresentados nos estrados pouco seguros dos tribunais de Moscou
conquistaram por seu passado o direito de continuar a viver e dirão
ainda que esperam que a vanguarda revolucionária catalã e espanho-
la não se rompa e salve, apesar de Stálin e apesar de Mussolini e Hi-
tler, a. honra e a esperança deste tempo,

André Breton

90
A ARTE E A REVOLUÇÃO
17 de juoho de 1938

A Partisan Review amavelmente propôs-me dar minha opinião


sobre o estado atual da arte. Não o faço sem hesitação. Desde meu
livro Literatura e revolução (1923), nunca voltei às questões da cria-
ção artística e só pude acompanhar sem continuidade as manifesta-
ções recentes nesse domínio. Longe de mim a pretensão de dar uma
resposta exaustiva. O objeto desta carta é colocar corretamente o
problema.
De modo geral, o homem expressa na arte a sua exigência da
harmonia e da plenitude da existência - quer dizer, do bem supre-
mo do qual é justamente a sociedade de classes que o priva. Por isso
a criação artística é sempre um ato de protesto contra a realidade,
consciente ou inconsciente, ativo ou passivo, otimista ou pessimista.
Toda nova corrente em arte começa pela revolta. A força da socie-
dade burguesa foi, durante longos períodos históricos, mostrar-se ca-
paz de disciplinar e assimilar todo movimento "subversivo" em arte
e levá-lo até o "reconhecimento" oficial, combinando pressões e exor-
tações, boicotes e adulações, Mas, tal reconhecimento significava no
fim das contas a chegada da agonia. Então, da ala esquerda da escola
legalizada ou da base, das fileiras da nova geração da boêmia artís-
tica, levantavam-se novas correntes subversivas que, após algum tem-
po, subiam por sua vez os degraus da academia.
Por tais etapas passaram o classicismo, o romantismo, o realis-
mo, o simbolismo, o expressionismo, o movimento decadente . ..
Mas o casamento entre a arte e a burguesia permaneceu, senão feliz,
pelo menos estável, somente enquanto durou a ascensão da socieda-
de burguesa, somente enquanto se mostrou capaz de manter política
e moralmente o regime da "democracia", não só soltando as rédeas
aos artistas, mimando-os de todos os modos possíveis, mas também

91
dando algumas esmolas às camadas superiores da classe operária, do-
mesticando os sindicatos e os partidos operários. Todos esses fenô-
menos devem ser colocados no mesmo plano,
O declínio atual da sociedade burguesa provoca uma exacerba-
ção insuportável das contradições sociais que se traduzem inevitavel-
mente em contradições individuais, dando origem a uma exigência
ainda mais exaltada de uma arte liberadora. Mas o capitalismo deca-
dente já é incapaz de oferecer ·condições mínimas de desenvolvimen-
to às correntes artísticas que respondam, por menos que seja, à exi-
gência da nossa época. Há um medo supersticioso de toda novidade,
pois, não se trata para ele de corrigir-se ou reformar-se, mas é uma
questão de vida ou morte. As massas oprimidas vivem sua pr6pria
vida e a boêm.ia é uma base demasiado estreita. Donde o caráter mais
ou menos convulsivo das novas correntes, indo sem cessar da espe-.
rança ao desespero.
As escolas artísticas das últimas décadas, o cubismo, o futuris-
mo, o dadaísmo, o surrealismo, sucedem-se sem atingir seu pleno de-
senvolvimento. A arte, elemento mais complexo, mais sensível e ao
mesmo tempo mais vulnerável da cultura, é a primeira a sofrer pela
decadência e degradação da sociedade burguesa.
É impossível achar uma saída para esse impasse com os meios
próprios à arte. Trata-se da crise de conjunto da cultura, dos seus
fundamentos econômicos até às mais altas esferas da ideologia. A ar-
te não pode escapar à crise, nem evoluir à parte. Não pode assegu-
rar por si mesma a sua salvação. Perecerá inevit8velmente, assim co-
mo a arte grega pereceu sob a ruínas <ia sociedade escravagista, se
a sociedade contemporinea não chegar a reconstruir-se. Essa tarefa
reveste-se de um caráter totalmente revolucionário. Por isso a função
da arte, em nossa época, define-se por sua relação com a revolução.
Mas sob esse. aspecto, justamente, a História armou aos artistas
uma grandiosa cilada. Toda uma geração de intelectuais "de esquer-
da", no decurso dos dez ou quinze últimos anos, voltou-se para o
Leste, e em graus diversos, ligou seu destino, senão ao do proletaria-
do revolucionário, pelo menos à revolução triunfante. Mas não é
a mesma coisa. Na revolução triunfante, não há somente a revolu-
ção, mas também a nova camada privilegiada que subiu .às suas
custas. Na realidade, os intelectuais "de esquerda" mudaram de se-
nhor. Ganharam muito com isso?
A Revolução de Outubro deu um impulso _magnífico à arte em
todos os domínios. A reação burocrática, muito pelo contrário, sufo-
cou a criação artística com sua mão totalitária. Era de se esperar! A

92
arte é fundamentalmente emoção, exige sinceridade total. Mesmo a
arte cortesã da monarquia absoluta fundamentava-se na idealização
e não na falsificação. Ao passo que a arte oficial na União Soviéti-
ca - e ali não existe outra - compartilha o destino da justiça to-
talitária, isto é, a mentira e a fraude. Ali, o objetivo da justiça, assim
como o da arte, é a exaltação do "chefe", a fabricação artificial de
um mito heróico. Na história humana nunca se viu algo de semelhan-
te, tanto no exagero quanto na impudência. Exemplifiquemos.
O escritor soviético muito conhecido Vsiévolod Ivánov rompeu
recentemente o seu silêncio para proclamar a sua ardente solidarie-
dade com a justiça de Vichinski. O extermínio maciço dos veteranos
bolchevistas, essas "emanações pútridas·do capitalismo'', suscita, nos
artistas, conforme os termos· de lvánov, um "6clio criador". Escritor
de um romantismo prudente, por natureza lírico e secreto, I vánov
parece-se em muitos aspectos com Gorki, mas tem menos fama. Não
sendo um cortesão nato, preferiu calar-se tanto quanto possível, mas
chegou um momento em que o silêncio podia significar a morte cí-
vica, até mesmo física. Não é o "ódio criador" mas um terror parali-
sante que guia a pena de tais escritores.
Alexis Tolstói, em quem o cortesão suplantou definitivamente
o artista, escreveu um romance especialmente destinado à exaltação
dos heróicos feitos militares de Stálin e Vorochílov em Tsaritsine.
Na realidade, como o testemunham documentos imparciais, o exér-
cito de Tsaritsine (havia mais de vinte exércitos da revolução) de-
sempenhou um papel bastante lamentável. Ambos os "heróis" perde-
ram os seus postos. Se a lembrança do extraordinário Tchapaiev, um
dos verdadeiros heróis da guerra civil, perpetuou-se em um filme, foi
unicamente porque não viveu até a época de Stálin, em que, com
certeza, teria sido fuzilado como agente fascista. O mesmo Ale:xis
Tolstói escreveu uma peça cujo tema é o ano de 1919: "A Campa-
nha das Quatorze Potências". Os heróis principais, segundo o autor,
são Lênin, Stálin e Vorochílov. "Suas figuras (trata-se de Stálin e Vo-
rochílov) cobertas de glória e heroísmo iluminam toda a peça". As-
sim, um escritor de talento, que tem o nome. do maior e mais sin-
cero dos realistas russos, tornou~se um fabricante de "mitos" sob en-
comenda!
Há pouco, em 27 de abril último, o órgão governamental ofi-
cioso, o Izvéstia, publicou um clichê de um novo quadro represen-
tando Stálin como o organizador da greve de Tíflis, em março de
1902. Mas, como se depreende de documentos publicados há mui-
to tempo, Stálin estava então preso, e, além disso, não em Tíflis mas

93
em Batum. Desta vez, a mentira era demasiado incontestável! O Iz-
véstia, no dia seguinte, teve que apresentar desculpas por esse qüi-
proquó lamentável. O que aconteceu com esse malfadado quadro, rea-
lizado às custas do Estado, ninguém sabe.
Dezenas, centenas, milhares de livros, filmes, telas, esculturas
reconstituem e exaltam semelhantes episódios "históricos". Assim,
em numerosos quadros referentes à Revolução de Outubro, é repre-
sentado, dirigido por Stálin, um "centro" revolucionário que nunca
existiu. A elaboração, por etapas, dessa falsificação, merece comen-
tário. Leonid Serebríakov, mais tarde fuzilado por ocasião do proces-
so Piatakov-Radek, chamou-me a atenção em 1924 para a publicação
no Pravda, sem nenhum comentário, de extratos do protocolo do co-
mitê central relativo ao fim do ano de 1917. Na qualidade de ex•
secretário do comitê central, Serebríakov tinha numerosas ligações,
nos bastidores, com o aparelho do partido e sabia muito bem com
que finalidade tinha sido feita essa publicação inesperada: era o pri-
meiro passo, ainda prudente, na via da criação do mito stalinista,
que ocupa hoje na arte soviética um lugar de escol.
Com o recuo da história, a Insurreição de Outubro aparece mui-
to mais planificada e monolítica do que o foi na realidade. Não se
deve ver, realmente, uma falha nas hesitações, na busca de vias pa-
ralelas, nem nas iniciativas fortuitas que não tiveram desenvolvimen-
to ulterior. Assim, na reunião improvisada do comitê central em 16
de outubro, tomou-se a decisão de substituir o conselho constitutivo
do estado-maior da insurreição pelo "centro" auxiliar do partido,
composto por Sverdlov, Stálin, Boubnov, Ourítski e Dzerjínski. Ao
mesmo tempo, na sessão do conselho de Petrogrado, foi criado o co-
mitê militar revolucionário; este desenvolveu, desde o início de sua
existência, uma atividade tão decisiva no preparo da insurreição que
o "centro" cujo projeto tinha sido formado na véspera foi comple-
tamente esquecido, inclusive por seus próprios membros. Numerosas
improvisações semelhantes desapareceram no turbilhão daquele tem-
po! Stálin jamais entrou no comitê militar revolucionário, não apa-
receu em Smolni, isto é, no estado-maior da revolução, não teve ne-
nhuma ligação com os preparativos da insurreição, mas ficou na re-
dação do Pravda, escrevendo artigos sem brilho, que poucos liam.
No decurso dos anos seguintes, ninguém evocou o "centro prático".
Nas memórias redigidas por atores da insurreição - e não há esque-
cimentos nesse gênero de textos - o nome de Stálin nunca é cita-
do. O próprio Stálin, em um artigo publicado no Pravda de 7 de
novembro de 1918, por ocasião do aniversário da Revolução de Ou-

94
tubro, enumerando todos os organismos e todas as pessoas que to-
maram parte na revolução, não fala uma palavra sobre o "centro prá-
tico". E, no entanto, uma velha ata de protocolo, descoberta por
acaso em 1924 e provida de um comentário mentiroso, serviu de ba-
se à lenda burocrática. Em todas as obras de referência, nas notícias
biográficas e mesmo na última edição dos manuais escolares, aparece
o "centro" revolucionário, Stálin à frente. Ninguém, nessa ocorrên-
cia, se preocupou, pelo menos por decência, em explicar~nos onde e
quando se encontrava esse centro, que ordens dava, e a quem, se es-
tabelecera protocolos, e onde se encontram. Com isso temos todos os
elementos dos processos de Moscou.
Com uma docilidade notável, o que se chama a arte soviética
fez desse mito um dos temas favoritos da representação artística.
Sverdlov, Dzerjinski, Ourítski e Boubnov são representados em cores
e em relevo, sentados ou em pé, rodeando Stálin e prestando muita
atenção às suas palavras. O local onde se realiza a reunião tem um
caráter intencionalmente mal definido, a fim de evitar toda questão
embaraçosa sobre o seu endereço. Que se pode esperar de artistas
obrigados a pintar a representação grosseira de uma falsificação his-
tórica evidente para eles mesmos?
O estilo atual da pintura oficial soviética leva o nome de "rea-
lismo socialista". Certamente, esse nome foi dado por algum chefe
de escritório dos neg6cios artísticos. O realismo consiste em imitar
os daguerreótipos feitos nas províncias durante o último quartel do
século XIX; o caráter "socialista", com certeza, na maneira de mos-
trar os acontecimentos, com os efeitos das fotografias afetadas - is-
to é, nunca se sabe onde acontecem. Não se pode deixar de sentir
uma repugnância física - é ao mesmo tempo cômico e terrível - à
leitura dos poemas e novelas, à vista das fotos de quadros ou de
esculturas nos quais funcionários armados com penas, pincéis ou bu-
ris sob a vigilância de outros funcionários armados com máusers,
louvam chefes "de prestígio" e "geniais" que na realidade não têm
a menor centelha de gênio ou grandeza. A arte da época stalinista
permanecerá como a expressão mais crua da profunda decadência da
revolução proletária.
Mas isso não se limita às fronteiras da U.R.S.S. A pretexto de
reconhecimento tardio da Revolução de Outubro, a ala esquerda dos
intelectuais ocidentais ajoelhou-se diante da burocracia soviética. Os
artistas dotados de caráter e talento são, em geral, marginalizados.
E foi assim que, com o maior descaramento, fracassados, carreiristas
e desprovidos de dons guindaram-se à primeira fila. Inaugurou-se a

95
era dos centros e escritórios de toda espécie, dos secretários de am-
bos os sexos, das inevitáveis cartas de Romain Rolland, das edições
subvencionadas, dos banquetes e dos congressos, em que é difícil des-
cobrir a linha divisória entre a arte e a G.P.U. Apesar de sua vasta
extensão, esse movimento militarizante não deu origem a nenhuma
obra que possa imortalizar o seu autor ou aqueles que, do Kremlin,
a inspiraram.
No domínio da pintura, a Revolução de Outubro achou o seu
melhor intérprete, não na U.R.S.S., mas no México longínquo, não
entre os "amigos" oficiais, mas na pessoa de um notório "inimigo
do povo" com quem a IV Internacional conta orgulhosamente. Im-
pregnado da cultura artística de todos os povos e todas as épocas,
Diego Rivera conseguiu permanecer mexicano nas fibras mais pro-
fundas de seu gênio. O que o inspirou nos seus afrescos grandiosos,
o que o transportou acima da tradição artística, acima da arte con-
temporânea e, de certo modo, acima dele próprio, foi a inspiração
poderosa da revolução proletária. Sem Outubro, a sua capacidade
cri~dora de compreender a epopéia do trabalho, a sua servidão e a
sua revolta nunca teriam podido atingir semelhante força e seme-
lhante profundidade. Querem ver com seus próprios olhos os mo-
tivos secretos da revolução social? Olhem os afrescos de Rivera!
Querem saber o que é uma arte revolucionária? Olhem os afrescos
de Rivera!
Aproximem-se um pouco desses afrescos e verão em alguns de-
les arranhões e manchas feitos por vândalos cheios de ódio, católicos
e outros teacionários entre os quais, evidentemente, stalinistas. Es-
sas agressões e essas feridas dão aos afrescos uma, vlda ainda mais
intensa. Não é somente um "quadro", objeto de consumo estético
passivo, que está diante dos nossos olhos, mas um fragmento vivo
da luta social. E, ao mesmo tempo, uma obra-prima da arte.
Só um país historicamente jovem, não tendo ainda ultrapassado
o estágio da luta pela independência nacional, permitiu que o pincel
socialista revolucionário de Rivera decorasse as paredes dos estabe-
lecimentos públicos do México.
Pior foi nos Estados Unidos, onde as coisas correram mal, che-
gando finalmente a se deteriorar. Assim como os monges da Idade
Média, por ignorância, apagavam os pergaminhos, as obras da cultu-
ra antiga, para recobri-los em seguida com seu delírio escolástico, as-
sim também os herdeiros de Rockefeller, agora por malevolência de-
liberada, recobriram os afrescos do grande mexicano com suas bana-

96
!idades decorativas. Esse novo palimpsesto só serve para imortalizar
o destino da arte humilhada na sociedade burguesa em plena decom•
posição.
A situação não é melhor no país da Revolução de Outubro.
Embora à primeira vista pareça incrível, não há lugar para a arte
de Diego Rivera em Moscou, em Leningrado, nem em qualquer lu-
gar da U.R.S.S. onde a burocracia constrói para si palácios e monu·
mentos grandiosos. Como a corja do Kremlin admitiria nos seus pa-
lácios um artista que não desenha ícones com a efígie do "chefe",
nem retratos em tamanho natural do cavalo de Vorochílov? O fe.
chamento das portas soviéticas diante de Diego Rivera marca com
estigma indelével a ditadura totalitária.
A ditadura totalitária vai ainda por muito tempo abafar, piso-
tear, encobrir tudo aquilo de que depende o futuro da humanidade?
fndices seguros dizem-nos que não. O vergonhoso, o lamentável des-
moronamento da política covarde e reacionária das frentes popula-
res na Espanha e na França, de um lado, as farsas judiciárias pro-
duzidas por Moscou, de outro lado, são o sinal de que uma grande
transformação se aproxima, não só no domínio político, mas também
no domínio mais vasto da ideologia revolucionária. Mesmo os "ami-
gos" mal inspirados ___: não com certeza as numerosas pessoas de
grande inteligência e moral elevada de New Republic e Nation -
começam a cansar-se do jugo e do cnute. A arte; a cultura, a polí-
tica precisam de novas perspectivas. Sem o que, a humanidade não
poderá ir para frente. Porém, nunca mais do que hoje, as perspecti-
vas foram tão ameaçadoras e catastróficas. Por isso o pânico é atual·
mente o sentido dominante dos intelectuais desorientados. Aqueles
que opõem ao jugo de Moscou um ceticismo irresponsável não pe-
sam muito na balança da História. O ceticismo é só uma outra for-
ma, e não melhor, da desmoralização. Por trás da atitude, hoje em
moda, que consiste em afastar-se ao mesmo tempo da burocracia sta-
lini~ta e dos seus adversários revolucionários, esconde-se, na maioria
das vezes, um triste estado de prostração diante das dificuldades e
perigos da História. No entanto, os subterfúgios verbais e os peque-
nos artifícios de nada servirão. Ninguém obterá sursis ou prêmio de
consolação. Diante da ameaça de um período de guerra e revolução,
é preciso dar uma resposta a todos: aos filósofos, aos poetas, aos ar-
tistas, assim como aos simples mortais.
Mergulhei na leitura de uma carta curiosa, publicada em um
número de Partisan Review, escrita por um redator, que não conhe-
ço, correspondente dessa revista em Chicago. Dando sua opinião so-

97
bre uma das publicações (em conseqüência, espero-o, de um mal-en-
tendido), escreve: "Não nutro, no entanto (?) nenhuma esperança
com relação aos "trotskistas", nem a outros resíduos anêmicos que
não têm uma base de massa". Esses termos arrogantes fazem conhe-
cer o próprio autor mais do que ele desejaria. Primeiramente mos-
tram que as leis da História só são para ele um livro de sucesso.
Nenhuma idéia progressista partiu de urna "base de massa". É no
fim das contas que uma idéia encontra as massas, se, evidentemente,
ela própria responde às exigências do movimento da História. To-
dÓs os grandes movimentos começaram como "resíduos" de movi-
mentos anteriores. O cristianismo foi primeiramente um "resíduo"
do judaísmo. O protestantismo um resíduo do catolicismo abastar-
dado. O grupo Marx-Engels constituiu-se como "resíduo" da esquerda
hegeliana. A Internacional Comunista formou-se durante a guerra a
partir dos "resíduos" da social-democracia internacional. Se esses
precursores revelaram-se aptos a para si uma base de
massa foi somente or ue
Sabiam e antemão que a qu a e e suas 1 éias trans armar-se-ia
em quantidade. Esses . resíduos" n_ão sofreram de anemia; ao con-
trário, assimilaram a quintessência dos grandes movimentos históricos
do passado.
De outro modo, assim como o disse, o movimento progressista
da arte não teria realizado muita coisa. Quando o movimento artís-
tico dominante esgota seus recursos criadores, desprendem-se dele
"resíduos" criadores, capazes de ver o mundo com novos olhos.
Quanto mais os iniciadores são audaciosos no seu pensamento -e nos
seus procedimentos, tanto mais sua oposição às autoridades estabele-
cidas, apoiadas no conservadorismo da "base de massa,,, é radi_cal e
tanto mais os rotineiros, os céticos e os esnobes têm tendência a ver
nos inovadores doidos impotentes ou "resíduos anêmicos''. Mas, f_i-
aelment:e, os rotineims 1 os céticos e os esnobes se desonram a vi-
À os leva de arrastão.
A burocracia do Termidor, à qual não se pode negar uma intui-
ção quase animal do perigo e um poderoso instinto de conservação,
certamente não será capaz de considerar os sells adversários revolu-
cionários com o desprezo arrogante que freqüentemente é acompa-
nhado de leviandade e inconsistência. Nos processos de Moscou, Stá-
lin, que não é adepto dos jogos de azar, joga, com a carta da luta
contra o "trotskismo", o destino da oligarquia do Kremlin e o seu
destino pessoal. Como explicar esse fato? A desvairada campanha in-
ternacional contra o "trotskismo", para a qual se procuraria em vão,

98

/
na Hist6ria, um paralelo, seria totalmente inex,Plicável se os "resí-
duos" não tivessem adquirido uma poderosa força vital. Os dias vin-
douros abrirão os olhos dos que ainda não vêem hoje.
E de alguma forma, para concluir seu auto-retrato com um tra-
ço brilhante, o correspondente de Chicago de Partisan Review pro-
mete - que coragem! - que irá com os senhores para um futuro
campo de concentração fascista ou "comunista". Que programa! Tre-
mer com a idéia do campo de concentração evidentemente não é
bom. Mas será melhor destinar de antemão, para si mesmo e suas
idéias, um refúgio tão pouco acolhedor? Com o amoralismo próprio
dos bolchevistas, estamos prontos a reconhecer que os gentlemen anê-
micos que capitulam antes do combate e sem combate só merecem
efetivamente o campo de concentração.
Seria completamente diferente se o correspondente de Partisan
Review tivesse dito apenas: em literatura e em arte, não queremos a
tutela dos "trotskistas", nem a dos stalinistas. Essa reivindicação é,
na sua essência, perfeitamente justa. Pode-se simplesmente Q),jetar
que, dirigi~la àqueles que chama de "trotskistas", seria abrir um ca-
minho já traçado. O fundamento ideológico da luta entre a IV In-
ternacional e a III consiste eIQ uma profunda contradição na con-
cepção, não só das tarefas do partido, mas de toda a vida em geral,
material e moral, da humanidade. A crise atual da cultura é antes
de tudo a crise da direção revolucionária. O stalinismo é, nessa cri-
se, a principal força reacionária. Sem uma nova bandeira e um novo
programa, é impossível criar uma base de massa revolucionária; é
impossível, portanto, fazer com que a sociedade saia do impasse. Mas
um Pattido autenticamente revolucionário não pode nem quer ter
como tarefa "dirigir" e ainda menos colocar a arte sob suas ordens,
nem antes nem depois da tomada do poder. Semelhante pretensão
só pode surgir na cabeça da burocracia ignara e impudente, ébria
com seu poder absoluto, e que se tornou a antítese da revolução pro-
letária. A arte, como a ciência, não só não precisam de ordens, mas
não poclemJ_R_qr sua própria natureza, suportá-las-:-A-criação-ârdstiêa-
ieffiSti;~e!sJ __!!!eyro_o· quantlo está conscientemente a serViço ·-ao·riió:
VIinet}_tO social. A criação inte1e-CtUã1e·1ncoropativel com -a ·meilt!~~;~ ~
falsifkãção e o QP<>rtunismo. A arte pode Se,-·iiina iíTaiiCle·anada__da
revolução, 59941ºto permanSSet-.~ a si mesma. Os poetas, os ar-
tistas, oS escultores, os músicos, % próprios acharão os seus cami-
nhos e métodos, se os movimentos liberadores das classes e povos
oprimidos dispersarem as nuvens do ceticismo e pessimismo que es-

99
curecem neste momento o horizonte da humanidade. A primeira con-
dição de tal renascimento é fazer cair a tutela sufocante da burocra-
cia do Kremlin.
Desejo que Partisan Review ocupe um lugar no exército vito-
rioso do socialismo e não em um campo de concentração.

Leon Trotski

100
SOBRE A F.I.A.R.I.
CARTA A NOSSOS AMIGOS DE LONDRES

Prezados camaradas,
Quando o que esperávamos era saber que tinha sido constituí-
da a seção inglesa da F.I.A.R.I., Penrose nos avisa que vocês não
conseguem chegar a um acordo para um plano de ação, A questão
que parece causar-lhes mais preocupações é qual a atitude a adotar
em relação à U.R.S.S.
Parece que vocês temem que uma polêmica - eventualmente
travada por nós contra a Rússia .,...... faça o jogo do fascismo, pois
coincidiria, dizem vocês, com a ofensiva diplomática geral que foi
desencadeada contra ela depois do acordo de Munique, É com efeito
extremamente lamentável que o fascismo possa aproveitar-se dos er-
ros do proletariado. Mas vocês esquecem, parece-nos, que se os diri-
gentes do proletariado não tivessem cometido erros, não haveria fas-
cismo nem na Itália, nem na Alemanha. No entanto, é evidente que
novos erros - cuja lista é cada dia mais longa - têm como único
resultado fazer aumentar a miséria do proletariado. Não reagir con-
tra os erros da III Internacional equivaleria a compartilhar a res-
ponsabilidade de seus erros e crimes.
É fazer jogo de palavras identificar, sob pretexto de coincidên-
cia no tempo, os uataques" de ordem crítica que dirigimos contra a
burocracia stalinista com a ofensiva diplomática ou com o ataque ar-
mado dos países capitalistas contra a U.R.S.S.
Reivindicar a liberdade de crítica contra o governo atual da
U.R.S.S. não implica necessariamente a escolha de uma tática de de-
fesa ou de não defesa da U.R.S.S., em caso de guerra, que cabe aos
partidos operários decidirem em momento oportuno.
Estamos persuadidos - e lamentamos precisar lembrá-lo a vo-
cês - de que o que subsiste das conquistas de Outubro só poderá

101
ser salvo, consolidado e acrescido com o apoio do proletariado inter-
nacional. A defesa da U.R.S.S. tal como vocês a consideram, vai de
encontro ao objetivo proposto. Recusamo-nos a identificar o proleta-
riado soviético com seus dirigentes atuais. E não somente em políti-
ca interna mas em política externa também recusamos considerar a
atividade da burocracia stalinista como conforme às perspectivas re-
volucionárias. Essa atividade não expressa os interesses da classe ope-
rária da U.R.S.S., à qual, será necessário dizê-lo?, o proletariado do
mundo inteiro permanece indissoluvelmente ligado. Muito pelo con-
trário, acusamos Stálin e Litvinov de romper os laços existentes en-
tre os operários russos e seus camaradas estrangeiros. Mais particu-
larmente, rompem esses laços pela prática da política de frente po-
pular que, como toda política reformista, entrega o proletariado a
seus inimigos de classe. Com efeito, sob o falso pretexto da paz so-
cial,- ·os democratas desarmaram a classe operária.
Toda vitória da burguesia, obtida por derrotas sangrentas ou
por capitulações vergonhosas, pouco importa, é uma vitória sobre o
proletariado sOviético, que vocês têm toda a razão de querer defen-
der. Seja porque reforça a burocracia stalinista cujo interesse é isolar
o proletariado ·russo para melhor dominá-lo, seja porque uma vitória
da burguesia internacional solapa o próprio regime burocrático, crian-
do no país condições mais favoráveis a uma intervenção armada.
Não nos é possível confiar na burocracia stalinista e nem mes-
mo os perigos 'da hora àtual mudarão sua atitude. Toda ação revolu-
cionária lhe é'nefasta na medida em que o proletariado internacional
dela tira proveito. A tática anti-revolucionária de Stálin já mostrou
do que é capaz na Alemanha, na China, na Espanha e na França.
Depois de cada derrota, a burocracia prossegue mais agressiva na sua
política de capitulação e separa-se mais de seu próprio proletariado.
Não se deve crer igualmente que o. stalinismo seja favorável a uma
revolução sucedendo a uma guerra. Stálin fará tudo para evitar que
a U.R.S.S. seja arrastada a uma conflagração mundial. Provou-o em
sua política em relação ao Japão, à Polônia, nas questões espanhola
e tchecoslovaca. Está disposto a mandar os comunistas de outros paí-
ses lutarem, mas evita mobilizar seu povo, pois seu poder, como todo
poder baseado numa burocracia, repoúsa sobre um eterno compromis-
so cujo equilíbrio será inevitavelmente rompido no decurso de uma
crise. Numa guerra à qual a U.R.S.S. fosse eventualmente arrastada,
o proveito seria da burguesia internacional ou do proletariado inter-
nacional. Certamente não da burocracia. Em caso de guerra, a bur-
guesia tentará tudo para forçar o exército russo, único detentor do

102
poder na U.R.S.S., a aliar-se a ela. O proletariado soviético não po-
deria impedir tal eventualidade a menos que operários impeçam suas
próprias burguesia, de continuar uma política de conquista. Isto pos-
to, é evidente que o proletariado tem interesse em adotar sem de-
mora uma estratégia revolucionária.
De outro lado, não se deve crer, com Dimítrov e a III Inter-
nacional, que a política de paz social que seguem nos países "demo-
cráticos" os salvará do fascismo. A Alemanha e a Itália não são as
únicas a terem interesse em espalhar o fascismo; sob certas condi-
ções, esse é o intéresse de todas as burguesias, sejam elas italiana. ou
francesa, alemã ou inglesa. O fascismo é a contrapartida inevitável
da contração do mercado, conclusão inelutável de uma industrializa-
ção de todas as partes do globo. A burguesia, pela diminuição da
margem de seus lucros, é obrigada a empregar métodos fascistas pa-
ra comprimir os salários, ·pois a competição internacional tornou to-
da nova expansão terrivelmente onerosa. A Itália está fazendo essa
experiência na Abissínia e na Espanha; o Japão, na China; a Alema-
nha, na Europa Central. Cego é quem crê que quando as democra-
cias ocidentais não tiverem mais interesse em ceder aos países fascis-
tas não serão obrigadas por sua vez a recorrer a medidas de com-
pressão econômica, medidas às quais uma guerra ou uma revolução
- na metrópole ou nas colônias - poderia servir de pretexto . As
crises no decurso do período atual se sucedem cada vez mais rapida-
mente.
Cego é quem não compreende que lutar pela democracia anti-
fascista significa lutar pela opressão imperialista: imperialismo britâ-
nico na fndia, imperialismo francês na Indochina e no Marrocos, as-
sassinato legal dos verdadeiros revolucionários na Espanha de Negrin,
assassinato puro e simples dos K.lément e dos Reiss, na Suíça e na
França. É o antifascista e não o crítico da U.R.S.S. que faz o' jogo
do fascismo quando oprime os Árabes em nome da democracia ou
quando apóia as ditaduras de Sirovi, Vargãs, Carol e Salazar. Os que
dissimulam as monstruosidades da política stalinista, os aliados de
Chiang Kai-Chek, de Negrin, eles mais do que todos os outros, tor-
nam possível esse bloqueio da U.R.S.S. com o qual .sonhavam Cle-
menceau e Lloyd George, esse bloqueio que fracassou graças à feroz
resistência do proletariado mundial (cf. Carta aos trabalhadores ame-
ricanos, de Lênin).
A solidariedade do proletariado internacional é a única garantia
contra o isolamento ao qual Penrose já nos vê condenados. No en-
tanto, não somos nós que corremos o risco de ficar isolados, mas,

103
ao contrário, são os outros: todos aqueles que amanhã deverão viver
nessa ilegalidade em que o fascismo os mergulhará; nesse vazio que
o proletariado desiludido criará em torno deles.
Quando Penrose diz com razão que está enojado com as reuniões
em que os antifascistas apresentam argumentos imperialistas para
defender a Tchecoslováquia, põe o dedo na ferida, pois é precisa-
mente do perigo do isolamento que esse nojo corre o risco de provir.
Para nos libertarmos desse sentimento, só temos dois meios:
um leva a uma catástrofe e nos conduz ao desespero; o outro -
que é revolucionário - nos conduz a uma crítica dos erros e não
à renúncia a toda atividade revolucionária.
Inútil dizer-lhes, prezados camaradas, que é na via revolucioná-
ria que esperamos vê-los engajados. Quando nos recusamos a asso-
ciar-nos à demagogia antifascista, não nos isolamos; exatamente ao
contrário, sabemos que nos pomos a serviço das verdadeiras forças
revolucionárias, pois nos solidarizamos com o que há de melhor na
humanidade. Parece-nos que se ligar a todas as forças criadoras do
homem, por todos os meios críticos e afetivos - e nós o fazemos
quando tomamos como ponto de partida a luta de classes - , é a
mais bela das tarefas às quais o artista e o intelectual, dignos de
usar o nome de revolucionários, possam aspirar.
Mas parece que alguns surrealistas de Londres hesitam. Espera'.
mos que esta carta os ajude a dissipar seus temores. Em caso con-
trário, é evidente que de surrealistas só lhes restaria o nome. Não
nos fiamos em palavras ou rótulos, não mais no rótulo "surrealista"
do que nos rótulos "comunista" ou "U.R.S.S.". ·
É claro que se trata tanto de não nos opormos às conquistas
revolucionárias do proletariado russo quanto de não nos opormos às
conquistas de nossos camaradas de Londres no domínio da Arte.
Trata-se para nós de continuar a conduzir um movimento revo-
lucionário em todos os planos e, se preciso, apesar de um partido co-
munista ou de um grupo surrealista.
Contra eles próprios se for necessário.
Lutamos pela independência da Arte pela Revolução, como 1;,.
tamos pela Revolução por todos os meios eficazes.
Paris, 21 de outubro de 1938.

O GRUPO SURREALISTA
(C/é, n.0 1, janeiro de 1939)

104
[FAVOR INSERIR PARA CLÉ]

Toda tendência progressiva em arte é difamada pelo


fascismo como uma degenerescência. Toda criação livre
é declarada fascista pelos stalinistas.

Intelectuais por demais numerosos, uns por comodismo, outros


por docilidade partidária, vêem e representam a revolução social ora
como terminada, ora como irrealizávd. Está na hora de insurgir-se
contra tal desconhecimento das realidades que nos cercam e do de-
terminismo que as governa.
A revolução está inscrita na ordem do século. Será feita, apesar
dos falsários e dos derrotistas que, ontem ainda, lhe juravam fideli-
dade. Mas importa, na medida mesma em que é inelutável, esclare-
cê-la, compreendê-la e pôr fim às confusões ideológicas existentes. Os
escritores e os artistas, ao mesmo tempo pela cultura que encarnam
e pelos motivos afetivos que comandam sua vocação, são chamado$
a desempenhar, em todo período pré-revolucionário, um papel espe-
cífico que não cabe a mais ninguém preencher, pois a revolução que
queremos, destinada a "mudar a vida", destinada a "transformar o
mundo", tem direito a uma contribuição não improvisada mas pelo
contrário longamente premeditada.
As grandes obras do passado acrescentando-se às obras do pre-
sente devem contribuir, por seu poder emotivo, a aumentar a ener-
gia revolucionária indispensável à ação libertadora.
É a essa tarefa precisa que a F .I .A.R.I. pretende consagrar-se.
É ela que constitui sua razão de ser e de agir. É nesse sentido igual-
mente que Clé, o boletim da F .I.A.R.I. - da mesma forma que suas
outras atividades - servirá as causas intimamente solidárias da arte,
da revolução, do homem.
Contra todas as forças de repressão e de corrupção, sejam elas
fascistas, stalinistas ou religiosas, o que queremos:

A Independência da arte - para a revolução,


a revolução - para a libertação definitiva da arte.
(Clé, n.0 1, janeiro de 1939)

SEM PÁTRIA!

As imundas campanhas dirigidas tanto pela palavra de ordem


"França, desperta" como "A França aos franceses" começam a dar

105
seus frutos envenenados. Com os decretos de maio baixados por Sar-
raut e alguns dispositivos anexos aos decretos-leis de novembro en-
-tra em vjgor, às custas dos estrangeiros residentes na França e espe-
cialmente dos imigrantes políticos, um processo pérfido que se inspi-
ra no dos países fascistas. As medidas de repressão já tomadas e os
preparativos de internação aos quais assistimos marcam o agravamen-
to de uma política de pânico e de violência que tende a estabelecer
na França um regime "autoritário" e em breve totalitário . .. Teste-
munham o contágio rápido que atinge os países "democráticos" le-
vados a partir de agora, desprezando as mais elementares considera-
ções humanas, a renegar o princípio do direito de asilo, por muito
tempo por eles reputado como SAGRADO. A F.I.A.R.I. considera
seu dever primordial estigmatizar este novo aviltamento da "cons-
ciência" burguesa, denunciar as manobras xenófobas como um dos
principais perigos do momento. Assim como confiamos integralmen-
te que a classe operária exigirá a revogação dos decretos-leis asses-
tados contra ela apenas, apoiamos com todas as nossas forças os pro-
testos e apelos à resistência lançados pelas organizações revolucioná-
rias da S.I.A., do P.S.O.P. e do P.O.I. contra as expulsões em mas-
sa e a criação de campos de concentração já em tempo de paz.
No campo mais específico de nossa atividade, estamos bem lon-
ge de esquecer que se Paris conseguiu manter-se por muito tempo
na vanguarda artística, isso se deve essencialmente à acolhida hospi-
taleira que aí encontraram os artistas vindos de todos os países; que
se nessa cidade nasceram algumas das grandes correntes espirituais
reconhecidas universalmente, isso se deve a ter ela constituído na
verdade um laboratório internacional de idéias. A arte, como os tra-
balhadores, não tem pátria. Preconizar hoje o retorno a uma arte
"francesa" como o fazem não só os fascistas mas também os stalinis-
tas é opor-se à manutenção dessa ligação estreita necessária à arte,
é trabalhar pela divisão e pela incompreensão dos povos, é agir pre-
meditadamente para a regressão hist6rica. Nossos camaradas artistas
estrangeiros estão hoje ameaçados no mesmo grau que nossos cama-
radas operários estrangeiros. Uns e outros são capaze_s de reconhecer
desde já aqueles que os apóiam, aqueles que os golpeiam, aqueles
que os entregam. Seja qual for a atual depressão das forças, alimen-
tada pelas traições sucessivas, não se dirá que se puseram em vão
sob a salvaguarda da classe operária.
Denunciamos nesses decretos-leis visando os estrangeiros - inde-
sejáveis para a burguesia reacionária - uma tentativa de aviltar na
França a pessoa humana criando UMA PRIMEIRA categoria de ho-

106
mens sem direito nem dignidade legal, destinados a perseguições per-
pétuas pelo simples fato de, tendo resistido à opressão ou fugido das
ditaduras desumanas, não terem mais "pátria" legal.

O COMITJ; NACIONAL DA F.I.A.R.I.


(Clé, n.º 1, 1.0 de janeiro de 1939)

PERSEGUIÇOES "DEMOCRATICAS"

Um dos primeiros e mais vergonhosos efeitos da onda de xe-


nofobia que se abate hoje sobre a França deve ser assinalado na ati-
tude do governo em relação aos feridos, doentes e antigos comba-
tentes da Espanha republicana. Esses homens rechaçados de uma
terra que haviam unido à causa de sua pr6pria libertação são conde-
nados à morte em seus países de origem (alemães, italianos, etc ... ) .
Os governantes franceses que ascenderam ao poder, vangloriando-se
diante de seus eleitores de defender as grandes idéias de liberdade,
de democracia, de honra, acham meios de expulsá-los. Esse gesto de
cumplicidade hip6crita e sorrateira com o fascismo internacional é
uma violação monstruosa do mais elementar comportamento huma-
no. Transformam-se homens valorosos em destroços acossados que
não têm mais nem papéis, nem possibilidade de trabalho, ao privá-
los de existência legal. Insistimos em que alguns deles ficam na im-
possibilidade de receber os cuidados urgentes que seu estado de saú-
de pode requerer.
Não menos abjetos são aqueles que por covardia ou ódio de
classe se tornam denunciantes e entregam à repressão vítimas inde-
fesas e delatadas por eles.

F.I.A.R.I.
(Clé, n.º 1, 1.0 de janeiro de 1939)

NÃO IMITEM HITLER!

A destruição das obras de arte era, até agora, o privilégio infa-


me do fascismo. Os mesmos reacionários que se exercitaram, na
França, há alguns anos, destruindo quadros surrealistas no Studio 28,
aplaudem as perseguições desencadeadas por Hitler contra os pinto-
res modernos. Suas obras são ao mesmo tempo postas no índex pela
sagrada congregação do mesmo nome. Não causa espécie a ninguém.

107
Todo artista verdadeiro sabe que tem um inimigo encarniçado em
Hitler, Mussolini e seus imitadores de todos os países, pois toda pes-
quisa independente, na medida em que visa acrescer os conhecimen-
tos humanos, tende a opor-se à regressão social e cultural para a
qual militam o fascismo e sua aliada, a religião. Um exemplo evi-
dente foi dado na Espanhá. Enquanto Franco, lacaio de Hitler e de
Mussolini, fuzilava Garcia Lorca, o governo republicano nomeava Pi-
casso diretor do Prado. Além disso, em Madri, Barcelona e Valença
as obras de arte foram protegidas, parece que eficazmente, contra os
obuses e as bombas, enquanto a multidão revoltada destruía as igre-
jas e fuzilava os padres, demonstrando dessa forma que havia senti-
do o caráter repressivo e opressor da religião; ao mesmo tempo sal-
vavam-se as obras de arte guardadas nos conventos e nas igrejas que
se iam queimar.
Ficamos tanto mais surpresos por saber, por nosso amigo Diego
Rivera, que o governo mexicano tinha ordenado a destruição de duas
pinturas de O'Gorman, quando até agora tudo nos levava a crer que
o governo do general Cárdenas lutava contra as forças imperialistas
opressoras de seu país e essa luta implicava uma orientação progres-
sista no plano cultural. A razão invocada para essa destruição é no
mínimo estranha. O subsecretário de Estado de Obras Públicas, Mo-
desto Rolland, que mandou apagar os afrescos de O'Gorman do ae-
roporto central da Cidade do México, justifica assim seu gesto:
"Dado que o senhor se permitiu representar figuras com inscri-
ções imorais sob todos os pontos de vista e pintar personagens pa-
recidos com chefes de Estado que não há nenhuma razão para insul-
tar como o senhor o fez, repetimos-lhe por escrito que se o senhor
não está disposto a apagar tudo o que suas pinturas têm de incon-
veniente, nós o faremos em seu lugar."
Os leitores de Clé verão, pelo detalhe de um dos afrescos in-
criminados e que reproduzimos aqui, que as inscrições visadas nada
têm de imoral mas são simplesmente revolucionárias. Trata-se com
efeito de uma frase do Manifesto Comunista e os rostos de homens
de Estado dos quais fala o subsecretário são os de Hitler e Mus-
solini.
Essa dupla constatação exige que nos unamos à centena de in-
telectuais - entre os mais representativos do México atual - que,
com Diego Rivera, pedem: - O senhor crê, sr. subsecretário de Es-
tado, que no México a arte deva estar sob a tutela desses chefes de
Estado que o senhor tanto aprecia?
E por outro lado:

108
- O senhor crê que não haja nenhuma razão para insultar aque-
le que fez queimar os livros de Schiller, Heine, Marx e Engels ...
o perseguidor do gênio da física moderna, Einstein, o perseguidor
dos grandes artistas Klee, Kandinsky e Grosz? ...
E quando denunciam o subsecretário de Estado, Modesto Rol-
land, como um inimigo dos trabalhadores que acaba de revelar-se por
esse ato, só podemos aprová~los e apoiar com todas as nossas forças
seu protesto.
"Toda licença em arte" está no manifesto constitutivo da
F.I.A.R.I. Segue-se que todo vexame infligido aos artistas nos leva
à repulsa de seus autores que se tornam ao mesmo tempo inimigos
da cultura e da revolução proletária destinada a liberar o homem de
todas as suas cadeias.

F.I.A.R.I.
(Clé, n.º 2, fevereiro de 1939)

ALTO LÁ!
Estamos informados de que uma atividade hostil a nossa orga-
nização, atividade surgida do fato de alguns surrealistas se recusarem
a assinar nossa carta orgânica, é susceptível de manifestar-se sob for-
ma de agrupamento que, seja qual for sua qualificação, apolítico ou
stalinizante, seria o adversário dos nossos objetivos revolucionários.
Representando tendências políticas diversas, aproveitamos esta opor~
tunidade para alertar nossos camaradas e a opinião pública contra
toda tentativa que, venha de onde vier, tenderia a dissociar nossos
esforços. Estamos aliás convencidos de que os ataques desta ordem
não poderiam de forma alguma comprometer os fins que nos fixa o
manifesto de 25 de julho de 1938.
Paris, 2 de janeiro de 1939.
A. Acker, N. Calas, M. Heine, G. Hugnet,
P. Mabille, L. Malet, H. Pastoureau.
(Clé, n.º 2, fevereiro de 1939)

109
Federação Internacional
da Arte Revolucionária Independente (F.I.A.R.I.)

ABAIXO.AS ORDENS DE PRISÃO!


ABAIXO O TERROR CINZA!

Talvez nunca a frase "em que tempos vivemos" tenha sido mais
oportuna. Os assuntos de causar indignação correm o risco de ultra-
passar a capacidade humana de indignação. Ontem, centenas de ho-
mens e mulheres, traídos em suas mais modestas esperanças, vaguea-
vam por um oceano cujos portos todos lhes eram hostis e deveram
sua salvação provisória somente a uma iniciativa de última hora. En-
quanto na Espanha se assassina cegamente todo aqude que não ma-
nifestar por Franco o entusiasmo de que _este se julga merecedor, na
França os refugiados republicanos são postos em currais como se fos-
sem touros furiosos. Os mesmos homens são destinados além dos Pi-
reneus a uma morte imediata, indispensável à manutenção da ordem
fascista; aquém dos Pireneus, aos sofrimentos e privações que lhes
são infligidos nos campos de asilados que conhecemos. Em toda par-
te, a pior violência se exerce em proveito da pior reação.
Até agora, na França, a liberdade individual desfrutava de uma
proteção relativa. Mas trata-se para o governo francês de lutar con-
tra os Estados totalitários com suas próprias armas. Entre as quais
figura em lugar de destaque a supressão da liberdade individual.
Três homens estão neste momento presos sem que a menor in-
criminação tenha podido ser formulada contra eles. S6 se poderia re-
criminá-los por sua luta bravia contra a ameaça de guerra absurda,
pelo advento de uma sociedade que estancará as próprias fontes da
guerra.
O estudante Schmidt já está na prisão há mais de três meses.
Steve, da Federação dos Técnicos, já vítima da repressão patronal na
greve de 30 de novembro, está na prisão desde 12 de abril. O pro-
fessor Rigal, com diploma universitário, licenciado em Filosofia, es-
tá encarcerado desde 7 de maio. Todos três foram presos em seus
domicílios em Paris e transferidos para a prisão de Metz. O proces-
so, tardiamente aberto contra eles, é absolutamente secreto. Esses
três homens estão, sem nenhuma razão pública, isolados do mundo
numa dessas Bastilhas de cuja destruição se comemora este ano, sem
ironia e sem muito pudor, o 150." aniversário.
Por que querem impedir a opinião pública de saber a causa de

110
sua prisão? Qual é. esse segredo que querem fazer pairar sobre o pro-·
cesso? Teriam a audáciaJ aproveitando a atmosfera de pré-guerra em
que vivemos, de transformar acusações políticas em incriminações in-
famantes?
Cuidado! A detenção desses três camaradas é apenas um ensaio.
Se der certo, vão-se as poucas liberdades que subsistem. A burocra-
cia policial e democrática terá todas as condições para refrear todo
pensamento livre, para fazer reinar esse terror cinza no qual começa
a deleitar-se sua tirânica mediocripade.
Convidamos todos aqueles que não foram ainda atingidos por
esse abjeto contágio chauvinista, todos aqueles que ousam pensar li-
vremente, a unir-se a nós para protestar contra os pérfidos decretos-
leis que autorizam o Estado Maior a exercer desde agora sua ditadu-
ra, fazendo passar por uatentado à Defesa nacional", até mesmo por
espionagem, a ação de homens corajosos, por cuja honestidade e lu-
cidez nos responsabilizamos.
Trata-se não da liberdade deles, mas da liberdade de todos.

Adolphe Acker, Yves Allégret, Denise Bellon, Gina Bénichou,


Paul Bénichou, Pierre Berger, Roger Blin, André Breton, Colet-
te Brunius, Jacques-B. Brunius, Claude Cahun, J.-F. Chabrun,
Michel Collinet, Frédéric Delanglade, Jean Delmas, J.-C. Dia-
mant-Berger, Maurice Dommanget, Marcel Fourrier, Jean Giono,
Mourice Heine, Mourice Henry, Georges Hugnet, Sylvain
Itkine, Marcel Jean, Simone Kahn, Gérard de Lacaze-Duthiers,
Hélene Laguerre, Michel Leiris, Mourice Lime, Pierre Mobilie,
Léo Malet, Marcel Martinet, André Masson, Gaston Modot,
Mourice Nadeau, Albert Paraz, Ben;amin Péret, Robert Rius,
Gérard de Sede, Yves Tanguy, Jean Vagne, Paul Vialatte, Fran-
cis V ian, Pierre V ilain.

(Folheto de maio ou junho, cuja primeira redação é de Benjamin


Péret e que constituiu a última declaração coletiva do Grupo
Surrealista antes do início da II Guerra Mundial - setembro
de 1939)

111
LONGE DE ORLY

No momento em que o "Senhor K" - como eles dizem - põe


o pé no solo deste país, irresistivelmente minha mão se dirige para
o Diário do Exilio de Leon Trotski, que acaba de ser publicado.
Nunca melhor, nunca em termos mais concretos do que neste
dia e nesta luz de começo de primavera em Paris, se colocou o pro-
blema da história e da contradição dramática que nela reside. Na
medida em qq.e ela se conhece como real e irreversível, tende a con-
ferir a si mesma um valor absoluto e extremo; na medida em que
veicula intenções manifestas que abortam ou cuja realização é sem
cessar recuada, só pode ser percebida como contingente. Por esse
duplo fato, fica debruçada sobre seu próprio abismo.
"Os rasgões de bandeiras meditantes" - vermelho e ouro por
alguns dias - nunca adquiriram, no frontão dos edifícios, um sen-
tido mais ambíguo do que hoje. Afetivamente, quanto a mim, não
me é possível abstraí-las daquilo de que foram o emblema e meu
"olhar participa do olhar que Trotski - apesar de tudo - lançou
sobre elas. E no entanto como fazer para que aí não fervilhe o
imundo Vichinski dos "processos,,, para que aí se lavem as mãos de
um "Mornard,,, para que a paz se faça em Budapest que clama por
justiça?
Para Marx como para Hegel, como para nós, toda a história
nada mais é do que a relação dos esforços da liberdade para nascer
e progredir lucidamente. Uma tal visão é, naturalmente, panorâmica:
abrange tudo o que podemos abarcar do desenvolvimento das socie-
dades. Bem menos serena e iluminada com uma luz muito mais forte
é a visão, parcelar, que temos dos acontecimentos que se desenrolam
no quadro de nossa vida·. Ainda mais se, pela primeira vCZ; no de-

112
curso dos séculos, o futuro da espécie se acha ameaçado e se, igual-
mente, as perspectivas de reparação diminuem.
Por mais que tenha. atingido o estado volátil, como todo o res-
to, a liberdade é aquilo por que mais ávidos, mais ansiosos continua-
mos. É verdade que a nova condição, desalentadora, atribuída ao
pensamento (privado da garantia de sua perpetuação), mais do que
nunca concentra a ·atençãO sobre ta.is indivíduos de primeiro plano,
"homens práticos e políticos" que Hegd considerava capazes de in-
fluenciar o curso da história. Ela dá também um destaque sem pre-
cedente às lutas desses indivíduos. Mas a despeito dos poderes fabu-
losos de que alguns dispõein, ainda uma vez toda a história contra-
diz a idéia de que os liberticidas serão vitoriosos.
Os ideais de 9 3 sobreviveram à borrasca do Termidor e à som-
bria opressão napoleônica, É com essa certeza apaziguadora que abro
o Diário do Exilio nessa passagem do testamento de Trotski (27 de
fevereiro de 1940):
"Durante_ quarenta e três anos de minha vida consciente fúi um
revolucionário; durante quarenta e dois desses anos lutei sob o es-
tandarte do marxismo. Se devesse recomeçar tudo, procuraria por
certo evitar este ou aqude erro; mas o curso geral de minha vida fi-
caria idêntico. Morrerei revolucionário do proletariado, marxista, ma-
terialista dialético e, por conseguinte, ateu incurável ...
Natacha acaba de ir à janda .do quintal e de abri-la mais para
que o ar possa entrar mais,.livre~ente em meu quarto. Posso ver a
larga faixa de grama verde ao longo do muro e o céu claro acima
do muro e a luz do sol sobre tudo. A vida é bela. Que as gerações
. futuras a limpem de todo mal, de toda opressão e de toda violência
e a desfrutem plenamente."
Neste 23 de março de 1960, saudações a Leon e Natália Trotski.

André Breton.

113
LOIN !J'Of<LY

A ..t·-4,.,~ • ~ ~ " " " ' - K"- ·- • , .u ..,_.:.,.,_,__ t--~ ~


4............., h ,1,0,l oL.. J !Lt:::!ft , - ~ - - . ~ 4-1.. ..l...i:-'..cr--

vvc, - --t.... J_,,~..L ,;._, ..,.,_4.. .Lt.. ·L.'.,,~ T~~ i'\""'. .,,,:......t d.A. r-"-'-~
J . ' '
. ~ ~ , - ~ t.M- ~ ~ .C..O~&Á,o ~ ........ e.(.,

Jd,,,_,._ ,<--l-.;.. ~-~ k t,"-~~.,,..,...,~ f'~


"'-'- ., ,.,t_ t--'- -4- r.U..:........ i4 K .i...:,.-4,,-,AA. ...t k. 4- ~4eA-,,.._
~.,.,,u.,.,...:, ~.L... - ..,U....,~ ~.....U'-V\L o..:.. .)J.,_ .....
~ r-= ~ <-t ~~. dt,._ .,(.,.,.,._.,(. ó.. ., • -'l><I'-
""""- ~ ~ <A.. ~ ; ~ ..t.,._ ""'-'-'4M.A,,. • .:;. .)J..._
-v-l-k.~ .L..,., ........~ . . . . . ~~ ,....... ...,,.,._t~ · - .1.,o-,.,..t
-'-- ~ ~ - - ,t..ok ~ u..,,. .._ /U.. ..........t..ú. ~ ....J.L_ """"- ~ +t- ~
't""'- ~"""""'-'- ~'tvvvt.,... n,__ e.-. ~ f.,,.:..t, .,u_,_ ,u,.,i,_ ~
,.....,._ ....- t,"-°tv'-'-· ~
' 1 LtA h,...,,,,~ ..Lt.. ~~ W~ir-A..o""'-~- vl,.,.,IL t-""'1A..A.
,~.,,,,,. .,:...,_,,_,. - ..._! _,\.. ~ t-""-4, ....... ~ - - .t...., .:.i..+='
~ Á<,A,<.A ~ .........u.,,..,, ,,.,-; ~ , k -1,,,.A. ~ w - , . . ... 'e,

1""~ ~ ~- :,J._ """ .....t. """"t"'... ,;,&,{,_ ..1. .. -tu ~ ,l,. <.e.
,.l..o...,._ ,.h ~ .u.:. ....t:
~ vl - - ~.... ~~
....,_ ,;.J.,..,,i. F T,.,,,.+,~ - ~ - -to-.vl - w-l '-"'- t"'.,.,,._ ....,,._
u ~.L..,.,.,vt. . _ . . . . , , , . r< 'f--"',v,.A. '1""-'- ...: "1- r.,,.;..l,(.,_ r-'
..() ,.:......,.....~ V...:.~-½ ,,1_,_,. • ~ ., ~ 't"""- • ',- -l...,.,...,,.,,t
. .l(.,.. ~- ~ ~1,K...o~ol JI 1 ,........... ..t.- ~ .....,_;A;__ .4.....v'\. 8~J..~
t""- ..,.,:..., ~t.L?
P,D'\A,f'\.- M.,,.oJvy,, u o ~ t--o....v\.
H ~ , ~ t-.-.A.A- - ~ ..
.J.:, .t,.,,,-1-,,,,;,,..,.., -4,o...,.,j., ~.:,..._ ,,_: .w,I. ~ ,...... ..to._ ; u . . , l ~ ,4,,
-<-ff<,AM ol.<., A.,._ ...fLb-<AM'., 1-°.,.,,_ ..,..,.,,,,;.,. ....,._ to~ tk Õ ~-<A
~~- u..,.__ ~ """"'--"- ~. ~&..tA,.A..l.4o1Â:., ,f,,o"\.A.ÂA.._

- ~ ~ ' ...u... ....~ u.. "t""'- - ,.,,.....,.,,.,.,. ~=


,lu.. ~ j t •... .,~k ,J.....,a ~ . 8 . . : . - . . .......... , ~ . , . _
....,~d.!<"""-...:~~..,.,.,., 4 ....t u - U . . . , ~ .
,...... """"""' 1----~ ""'-"- -4, ~ ,..... - o t . v - ~ ,;_..,.,_,.
-t... ~ - - ...._ ~ .,,,;,,;, A tA"" t,,v1... •o,.._, ..,.:. t-""'- -to..
fo"" .,,._ +~ . . .
~
4,..,-
.,,~.....,,,.,, -.....J_~..:.. ,<:
t,<>'W'<>

~
.,L..,.
.1.,,,,, .,....,...t"-~
....;.,,J..- ...t: ..,.,....,.,_

.
,l.._ .L'
J..,... ~

114
Po....,... ~ '!""-' ,.LI.(, .....,;l ,;.. J.: ..;(....._ ~ , ••• , +.-wl..
...t..... ~ • ..l... ~ ...... ~ ............ - ...............- -t... f-'-<,--
o.,v<..Lv,', .t... ~ ..-,,..:...... . ~ -'-- - ~ - ....,.........<..tJ...
~--e•.,,-t.., ,......_ .,.,._ ~ .._ -t,,... ~-..;.., ( ~ .L,.._"'-t· .......,_,..._~
k - . ~ ) ~ r ~ ~--e.·~-
f'A-....«.v- ~•• ~ - ~ ~
r
.,...,.._ Á<.,U ~ - .....

~,.A-<.,• '!"'-'- /j M......,.;k. ~ ,..__,_.,,V,.,-· ,,_. ~ .{.,_


...t: ~.......,"V",A,, . E.u.,_ ~ """"'-U...;.
C.0""'-"'-4 rL4_ ~~ .A.M..4,.. .............,

t-•'dJ ·~" .;:_ ~ - ~ - M,.,./4,, .,__ ¼""'- .,L._. ~


~ ,,,_..,.,,.,.__ ~ ~.,...,.. ...,,._, -~~ ~ -fo-v ""'-...U...
..t: - L ; , . ~ ~~ __,._. .:..<..:... i""" .,/,' ...,.,,.....,t."'-o/- ~ ........,.
~~ .
L- ~ ""'- ~ 3 o....._ _.......,_..:= .;.. .L... ~~ °'<-
T-1..,, ·-,1,.. ~ ~ -t:~ r~ ~.....:.-. C:..,_<kAA.-
':""'"'- ......MU-.,l,,,. ~ ],.,,_,_ i 'o-.o'C&.
.J..,..._..__.t, -t.,_ "'='-~
- -- 1 • '° t'- ,,1,.,,.. -4<-,,-1.w,-.....vt- ,l.L T.....+,¾ ( ~ 11 ~-): "1
·,, P.-..cit-.vL ,..,.-0.,-0,.,t.c._""-o.-Ld .... ,., .. .t- ..........,o.."""'- (;.O•-•·""... ~
~ ◄-...W , A . ~ " " " " " ' - ~ ; ~ ~ - ~ IM.A..
e.vi ~ }'....:. ...t.....v,t:,L <0-o-..A -t ..... ..&..o...---:V....... .t.c..... ~-u...S..:.
i ,~ ô... Â,o......vl,.. A . . , t . . . ~ , 1' '~c,/\.,0,.M ~ o,t.· ~ Ã:.t..-lt<.
.,......_ ~ ~ 1 ~ ..L.. ~ . , . . ~ ol.i.. .........,._ .,,...:_,,_ ~a..,c.'.,,t
_.,_Li ,::t < ,: • J._ --.....,~ , . _ ~ ~ t-"-'°-l-tA:.~~/~
~ " " - , w , , . . ( . ~ ~ ...... 1-"-" """"'"'4~v,,vl, ~
~ Á - •• ,

N o..-t...-....L...:,... ~~ ~~ olA... ---:.,,._ ..:. ..e...._ ~tA,,v.. ..e.... -t-'l<.. e.e,.-..


,,._ .,_,_ ~ ~ ~ ~ ............... t"'~.,....... .,_,.,,,,_ ~.._ ~
~ -U,(,,-,,..,t..,,,.,v...~ ~ ~ ~ . .J-L ~ V"r'IA J .... '~P-~-
~...... d e , ~ ,v-<AÁ<. ..,__ ~ ;.,.,__ - ' ....-t,_ ....:..._1. "'-"'-
---- - '""'-e.A~ oL-.... - . A . , o.Á ...t......' ~vu- ,J..,..,.... ..o.o~ 4,,...Vt----t.i. -A:.,a-A:,
L- ,,,:._ ....,._ .i,..,u,._, Q...,_ -'-._. ~ ~ . _ _ . -4. ~
"-'- ...,_...,,._ --.L, .J...... ~...vk ~ . . : . . - . .... .,_.._ -4,.........., ve.,-t......,,,_,
.c,..A:: ~ a---.............:. .. .t.M.J:.. ~ • n
E.,.._ (..O.. .i 3 ...........,_., 1~ "o, -<1-..,..t......vL .;_ L~....... J:.. N ~ n....,4-o~·

115
DECLARAÇÃO DA LIGA PELA LIBERDADE
CULTURAL E PELO SOCIALISMO

Dirigimos esta declaração a todos os artistas e escritores que_ se


preocupam com a presente tendência dos Estados Unidos para a
· reação e a guerra.
Não somente nos Estados Unidos mas em todo o mundo a
cultura está ameaçada por uma forte reação, Ao forçar o recrudes-
cimento das formas sociais tornadas obsoletas, o· fascismo alemão
e o italiano têm ao mesmo tempo forçado o restabelecimento de
manifestações obsoletas na arte e . na ciência. Por outro lado, na
União Soviética, onde o nacionalismo e a ditadura pessoal estão
substituindo os ideais revolucionários de liberdade e democracia, a
cultura sofre repressão e aviltamento não menoS severos.
Nem faltam sinais de profunda reação social nos Estados Unidos.
Cada vez mais a experimentação é des~nco:fajada nas artes criativas;
um prêmio é dado ao convencional e ao acadêmico. As ciências
sociais estão testemunhando o ressurgimento de várias formas de
obscurantismo, o crescimento de. uma ortodoxia intolerante. Educa-
dores estão sendo intimidados através de juramentos de fidelidade.
O serviço de censura do governo bloqueia o teatro W.P.A.,* a arte
e os projetos literários .. O terrorismo é praticado pela Igreja Católica
contra empreendimentos culturais, como o cinema. A sabotagem dis-
simulada impede a publicação de obras de autores revolucionários e
independentes. E na heresia com que se caçam pessoas como o faz
o "Dies Committee",** muitas dessas tendências ellcontram apoio
maciço e oficial.

* Works Progress Administration, entidade americana criada por Roosevelt na


época da Depressão.
** Comitê dirigido pelo deputado americano Martin Dies Jr. Dedicava-se a inves-
tigar pessoas acusadas de antiamericanismo.

116
Tais condições são um desafio para os intelectuais independen-
tes. Ainda sem existência, uma organização cultural estaria completa-
mente pronta para enfrentar esse desafio. Se a vida intelectual dos
estados totalitários é uma questão de polícia, na América ela está se
preparando, sob a pressão da histeria antifascista, para uma renúncia
voluntária. Círculos culturais, antes progressivos, estão agora capitu-
lando ao espírito do fascismo enquanto seus princípios são ostensiva-
mente combatidos. Combatem uma fraude com outra. À deificação
de Hitler e Mussolini contrapõem a deificação de Stálin, o apoio
inqualificável a Roosevelt. O misticismo da supremacia "Ariana"
eles fazem competir com um mito nacional-democrático, apelando
solenemente para a esgotada inf~cia histórica da América. À guerra
impulsionada pelos poderes fascistas eles respondem com a guerra
impulsionada por eles próprios.
Em conseqüência, as conquistas intelectuais de décadas recentes
têm sido rapidamente eliminadas. A última guerra desencadeou neste
país uma profunda tendência de ceticismo em relação aos valores
burgueses na arte e na vida. Responsável pelas melhores realizações
do período do pós-guerra, essa tendência culminou depois de 1929
com a radicalização de uma parte significativa da inteligentsia. Mas
agora, em nome de uma espúria unidade "antifascista", numerosos
intelectuais estão desertando da sua dura conquista de independência
crítica. Eles estão desistindo de sua oposição à exploração capitalista
e à opressão, à dominação imperialista dos países coloniais. Eles não
mais protestam contra a repressão e as maquinações neste país, na
União Soviética e em outras "democracias". Eles têm desertado da
luta pelo direito de asilo. Em nome de- uma "frente democrática"
contra a tirania exÍ"erna eles contribuem para o crescimento da tirania
em sua própria casa. Em suma, eles têm renunciado ao direito -
e ao dever - de protestar contra toda injustiça, de investigar todas
as doutrinas, de mudar todos os dogmas, de pensar assim todos os
problemas. E inspirados pela propaganda stalinista e social-reformista
eles defendem uma nova guerra "pela democracia". Mesmo que dessa
guerra possa nascer uma ditadura militar e formas extremas de re-
pressão intelectual ainda mais violentas do que aquelas desencadeadas
pela última guerra.
Entre os círculos intelectuais avançados nos Estados Unidos as
mais ativas forças da reação hoje são as assim chamadas organizações
culturais sob o controle do Partido Comunista. Alegando representar
a opinião progressista, esses grupos são de fato apenas apologistas
da ditadura do Kremlin. Eles declaram ilegítima qualquer opinião da

117
Esquerda dissidente. Eles envenenam a atmosfera intelectual com a
calúnia. E têm conseguido impor seus métodos e pontos de vista
sobre grupos antes independentes do Partido Comunista.
Contra essas forças nós, abaixo-assinados, acreditamos que artis-
tas e escritores devam se unir para defender sua independência como
profissionais, de fato, e seu legítimo direito de trabalhar. Continua-
mos a afirmar que nós não subscrevemos a palavra de ordem comu-
mente sedutora: "Nem comunismo nem fascismo". Ao contrário,
reconhecemos que a libertação da cultura é inseparável da libertação
das classes trabalhadoras e de toda a humanidade. Queriam que
abandonássemos os ideais do socialismo revolucionário porque um
grupo político, enquanto se apega ao seu nome, tem tão miseravel-
mente traído seus princípios? Queriam que revertêssemos para um
programa de democracia da classe média porque o governo do
Kremlin, em obediência a seus próprios interesses - que não são os
interesses do povo soviético ou das massas de qualquer lugar -
nos dirigiria para isso? Ao contrário, nós rejeitamos todas essas pre-
tensões. A Democracia sob o capitalismo industrial pode oferecer
apenas um refúgio provisório ao trabalhador intelectual e ao artista.
Na sua instabilidade ela se torna o terreno propício para a ditadura,
e os direitos que nos concede hoje ela os revogará violentamente
amanhã. A idéia de democracia deve desabrochar numa democracia
socialista. Na reconstrução revolucionária da sociedade repousa a
esperança do mundo, a promessa de uma humanidade livre, uma nova
arte, uma ciência ilimitada.
A defesa da liberdade intelectual exige, sobretudo, que rejeite-
mos todas as teorias e práticas que visam fazer da cultura instrumento
de política, mesmo de política revolucionária. Nós exigimos COM-
PLETA LIBERDADE PARA A ARTE E A CI1lNCIA. NENHUMA
IMPOSIÇÃO DE PARTIDO OU DE GOVERNO. A cultura não
somente não procura ordens mas por sua natureza não pode tolerá-las.
A criação verdadeiramente intelectual é incompatível com o espírito
de conformismo; e se a arte e a ciência devem ser verdadeiras para
a revolução elas devem primeiro. ser verdadeiras para si mesmas.
Não estamos sozinhos nestas convicções. Nossos princípios estão
em acordo geral com aqueles contidos num recente manifesto de
André Breton, o poeta francês, e Diego Rivera, o pintor mexicano.
Movimentos inspirados pelo seu manifesto já surgiram na França,
Inglaterra e em outras partes.
Apelamos, assim, a todos os escritores e artistas nos Estados
Unidos que estão em acordo substancial com o nosso ponto de vista

118
para se unir a nós na formação de uma liga revolucionária de escrito-
res e artistas. A função desta organização será a de difundir nossos
objetivos para estabelecer um fórum de discussão cultural e para
a luta contra todas as tendências reacionárias na vida intelectual
onde quer que elas surjam.

LIGA PELA LIBERDADE CULTURAL E PELO SOCIALISMO

LIONEL ABEL HELEN NEVILLE


JAMES BURNHAM GEORGE NOVACK
V.F. CALVERTON LYMAN PAINE
ELEANOR CLARK KENNETH PATCHEN
DAVID C. DEJONG WILLIAM PHILLIPS
F.W.DUPEE FAIRFIELD PORTER
JAMES T. FARRELL PHILIP RAHV
CLEMENT GREENBERG JAMES RORTY
WILLIAM GRUEN HAROLD ROSENBERG
MELVIN J. LASKY PAUL ROSENFELD
JAMES LAUGHLIN IV HARRY ROSKOLENKO
DWIGHT MACDONALD MEYER SCHAPIRO
JOHN MCDONALD DELMORE SCHWARTZ
CHARLES MALAMUTH WINFIELD T. SCOTT
SHERRY MANGAN PARKER TYLER
CLARK MILLS JOHN WHEELRIGHT
GEORGE L.K. MORRIS BERTRAM D. WOLFE

(Tradução de Maria Lázara O. Facioli e Valentim Facioli}

119
2.ª parte
Direitos para publicação gentilmente cedidos por:
Geraldo Galvão Ferraz, textos de Patrícia Galvão, in Vanguarda Socialista, Ano 1,
n. _1, 6, 9, 11, 15, 18 e 36, 1945; textos de Geraldo Ferraz, in Vanguarda
0

Socialista, Ano 1, n.º' 10, 11 e 33, 1945, e A Tribuna de Santos, dezembro


de 1964.
Editora Perspectiva, textos: "Arte e Burocracia", "A Revolução nas Artes 1" e
"A Revolução nas Artes II", de Mário Pedrosa, in Mundo, Homem, Arte em
Crise, São Paulo, Perspectiva, 1975.
Editora Duas Cidades, textos: "Poesia Prolet4fia", "Intelectual 1" e "Intelec-
tual II", de Mário de Andrade, in Táxi e Crónicas no Diário Nacional, São
Paulo, Duas Cidades, 1976.

122
INTELECTUAL: DEMOCRACIA E CIDADANIA

Na verdade, o essencial é a tensão do escritor com o


mundo que lhe é oferecido para realizar-se como criador
de cultura, como ser humano e como cidadão. Essa tensão
desloca uma grande massa de escritores para combates aná-
logos aos que são travados pelos de baixo. Eles também
precisam civilizar a sociedade civil para conquistar um
mínimo de autonomia relativa na atividade criadora. Por
este lado, os escritores podem ser (e efetivamente o são)
um fermento explosivo das comoções que sacodem a socie-
dade civil e que estão conduzindo à sua implosão inexorável.
Nada poderá evitá-la.
Florestan Fernandes

Escrevendo em 1932 sobre o que ele julgava ser o intelectual


brasileiro típico, Mário de Andrade faz defesa candente (e azeda)
da liberdade de pensamento, afirmando que "o intelectual verdadei-
ro ( ... ) sempre há de ser um homem revoltado e um revolucionário,
pessimista, cético e dnico: fora da lei". Por trás da reivindicação
do autor de Macunaíma parece haver 'um certo desespero impotente
na tentativa de superação da dicotomia intelectual X cidadão. Talvez
se possa dizer, sem equívoco, que tal sentimento é o mesmo que
atravessa a conferência que fez, em 1942, sobre o Movimento Moder-
nista. E a dist/incia entre intelectual e cidadão, que afligiu Mário
de Andrade de forma tão aguda, é uma contradição de base, não
superada também pelo "radicalismo subjetivo e psicológico, mesmo
quando ele continha um substrato político e um perfil socialista",
no dizer de Florestan Fernandes.
A dicotomia entre intelectual e cidadão se manifesta no Brasil de

123
maneira pungente, e às vezes agônica, exatamente a partir do Moder-
nismo, desde a década de 20, à exceção de um caso ou outro
anterior como Euclides da Cunha e Lima Barreto, para ficar com os
mais notórios. Evidentemente isso não se dá por acaso, senão em
virtude do aguçamento geral dos embates no período, no país e no
exterior, o que implicava despertar, aqui, para as amarras a que o
intelectual estivera manietado organicamente às elites oligárquicas
dominantes. Trata-se do surgimento lento mas progressivo de novas
condições de produção intelectual e necessariamente de novas exigên-
cias de direitos que não eram reconhecidos nem aos escritores e menos
ainda ao povo. Começava uma viragem de consciência social do inte-
lectual que o leva a perceber que suas reivindicações e necessidades
não são outras senão aquelas que se confundem com "os combates
análogos aos que são travados pelos de baixo". A luta pela liber-
dade de pesquisa e expressão para o artista e o intelectual não se
separa mais da luta pela democratização da sociedade como um todo.
O intelectual passava a perceber com mais clareza que aquilo que
lhe era permitido era também infenso ao poder estabelecido; ne-
cessário ir à frente, para além do horizonte do ornamental, numa
busca que, no plano da cultura, passava mais e mais a se identificar
com a luta geral do povo. Por isso que Mário de Andrade no
mesmo texto diz: "nas sociedades burguesas, o burguês inda paga o
intelectual e lhe mata a fome, porém com a condição deste se tornar
um condutício servil, pregador das gloriolas capitalistas, fomentador
das pequenas sensualidades burguesas, instrumento de prazer''.
E na seqüência desse último fragmento expressa o limite decisivo
que o marcava, certa incapacidade de pensar dialeticamente o contra-
ditório de suas condições pessoais e sociais de produção: "E por isso
(pelo mesmo mal da sociedade burguesa) também, inda com maior
razão, a tese comunista, as sociedades comunistas repudiam o inte•
lectual". Como se vê, em 1932, a "sociedade comunista" para Mário
era a U.R.S.S. em franco processo contra-revolucionário de stalini-
zação. Não compreender o processo era um obstáculo intransponível.
Daí ele não encontrar saída alguma, senão em reconhecer que apenas
alguns membros do grupo católico reacionário A Ordem haviam con-
quistado ''para si uma finalidade intelectual legitimamente moderna''.
O que se coloca a partir da década de 30, no Brasil (e alhures),
para a intelectualidade progressista, que se põe na luta pela superação
de suas condições, é o stalinismo, movido por seus próprios interes-
ses e bloqueando aos intelectuais o acesso ao movimento real dos
trabalhadores. Evidentemente, ao obstáculo do stalinismo se soma o

124
braço armado da burguesia cabocla, sempre a apelar para as ditaduras
militares, na defesa de seus fatéresses. Foram raros e curtos os
períodos de relativa liberdade'democrático-burguesa no pais de 1930
para cá. A soma desses obstáculos agravou. ·imensamente as condições
de impotência dos intelectuais e artistas e do povo em geral frente
aos opressores.
Oswald dé Andrade e Pagu, por exemplo, que procuram o ca-
minho revolucionário no PC, nos fins dos anos 20 e início dos anos
30, compreenderam logo que ali estava um obstáculo a desencorajar
e castrar e não uma trilha favorável. Oswald ainda manteve "longo
~amoro" com o partido durarite ~s anos seguintes, mas Pagu, massa~
crada pelo próprio partido, compreendeu claramente o que ocorria.
O leitor verá isso lendo séús textos. Oswald, depois de seu combate
no Homem do povo, junto com Pa:gu, deixou o prefácio-denúncia
do Serafim ponte grande (193)), mas, como diz ali, continuou corren-
do "numa pista inexistente" e não pôde se fazer, como queria,
"casaca de ferro da revolução proletária"; De resto, se Oswald viveu
muitas contradições, como é sabido, sua imagem política ainda hoje
é · fortemente mediada pela deformação com que o stalinismo a
desenha ...
Também Sérgio Milliet, no Testamento de uma geração, de 1944,
afirma: "Tomar partido a favor do quê? Há certamente homens
que merecem nosso apoio, mas háverá no momento ideais que o
justifiquem? E, no fundo, tomar partido é que é trair: trair a si
próprio, trocando a intranqüilidade e a posição incômoda do homem
só pelo apoio cego e estúpido de um grupo. Isto pode parecer-lhe
ceticismo de mau gosto. Não é. ~ quase desespero. Amargura pro-
funda. E no fundo esperança de um desmentido dos fatos".
Esse sentimCnto · amargo de· beco sem saída perpassa, ainda
uma vez, a conferência-balanço de Mário de Andrade, em 1942:
uE outra coisa se não o respeito que ·tenho pelo destino dos mais
novos se fazendo, não me levaria a esta Confissão bastante cruel,
de perceber em quase toda minha obra a insuficiência do abstencio-
nismo. Francos, dirigidos, ·muitos de nó_s demos· às nossas obras uma
caducidade de combate. Estava certo; em princípio. O engano é
que nos pusemos c:o111baténdo lençóis superficiais de fantasmas.
Deveriamos ter inundado a 'caducidade utilitária do nosso discurso,
de maior angústia do tempo, de maior· revolta, contra a vida como
está. Em vez foni~ quebrar vidrós de janelas, discutir modas de
passéio, ou cutucar ·os ·valOt_es eternos,. ou· saciar ·nossa curiosidade
na cultura. E se agora· petcôrró minha· obra 'já numerosa e que
representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pegar.~
máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muÍto
fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, hão me satisfaz. Não me
imagino político de ação. Mas nós estamos vivendo uma idade política
do homem, e a isso eu tinha que servir. Mas em síntese, eu só me
percebo feito um Amador Bueno qualquer, falando 'não quero' e
me isentando da atualidade por detrás das portas contemplativas de
um convento. Também não me desejaria escrevendo páginas explosi-
vas, brigando a pau por ideologias e ganhando os louros fáceis de um
xilindró. Tudo isso nãc;, sou eu nem é pra mim. Mas estou convencido
de que devíamos ter nos transformado de especulativos em especula-
dores. Há sempre jeito de escorregar num ângulo de visão, numa
escolha de valores, no embaçado duma lágrima que avolumem ainda
mais o insuportável das condições atuais do mundo. Não. Viramos
abstencionistas abstêmios e transcendentes."
Como se· vê por esses breves exemplos, a questão a se colocar
é ainda e sempre a da democracia. É ai que o "imbroglio" do inte-
lectual se resolverá ou não. Enquanto, no Brasil, a maioria do povo
não chegar à cidadania de fato, a distância entre intelectual e cidadão
não poderá ser superada. As artes e as ciências, como conquistas da
humanidade, continuarão privilégios. Já agora, entretanto, as "con-
quistas" da democracia burguesa parecem afastadas do horizonte dos
países dependentes e neocoloniais, onde os artistas, escritores, cien-
tistas, com seus meios próprios e contra aqueles que os atrelam
e oprimem, terão de decidir sua aliança de fato com o conjunto
dos trabalhadores para a emanéipação comum. Só assim teremos o
intelectual cidadão e o trabalhador cidadão. Todos, enfim, com o
estatuto humano verdadeiramente conquistado.
O material de autores brasileiros que aqui se publica contempla
privilegiadamente a Vanguarda Socialista e é generoso com Patrícia
Galvão, a Pagu - figura ímpar de intelectual militante, que só
recentemente mereceu uttl estudo de sua vida e ·obra - , mas apre•
senta também escritos de outros autores que tocam o tema central da
relação entre revolução e arte ou das· relações Trotski-Breton. O
centramento do material na Vanguarda Socialista se deve à posição
especial do grupo de intelectuais que nele colaboravam. Alinhados
com o que se poderia chamar a "oposição de esquerda" no Brasil,
eles dão continuidade a uma luta política e cultural que se tinha
aberto desde a década de 30 com as sucessivas crises e rupturas no
interior do Partido Comunista. Com o fim da II Guerra, o degrin-
golamento dn aparelho policial \lo Estado Novo, a Vanguarda Socia-

126
lista encontra um espaço de combate pela emancipação dos trabalha,
dores, situados numa posição independente da direita e do stalinismo.
A critica da cultura, a defesa da liberdade de pesquisa e expressão
do artista e do intelectual, a luta contra a instrumentalização da
arte e do artista a serviço da glorificação idiota do partido ou de
seus "lideres" (o culto da personalidade), a batalha pela desmistifi-
cação do_ '.'realismo socialista" tido como a "linha justa" da "arte
proletária" na imposição totalitária do zhdanovismo stalinista, a de-
fesa, portanto, dos direitos do intelectual como tal e como cidadão.
Trabalhos posteriores, já da década de 60, de Mário Pedrosa
mereceram. acolhida, apesar de conhecidos do público, pela atualização
com que os problemas centrais deste livro _são reteimados, a demons-
trar que sua solução não é. uma questão que afeta apenas os inte-
lectuais. Assim _como outros textos que. se referem diretamente ao
manifesto de Trotski-Breton.
Esta pesquisa apresenta aos leitores um quadro aqui brevemente
esboçado mas a permitir um balanço próprio .e autônomo. Sua atuali-
dade é evidente: "um grupo de artistas de renome mundial divulgou
(em 31 de julho de 1985) um manifesto pelo livre intercâmbio
cultural e artístico entre os países ocidentais e os do bloco soviético".
É quando, mais uma vez, no Brasil, os dC. cima, aqui e. agorà;
rearticulam suli dominação, devidamente auxiliados pelos "adeptos
da burguesia progressista" para impedir a democracia de que o
povo precisa: a dele próprio, que é também o que interessa de
fato aos artistàs e intelectuais verdadeiros.

Valentim Facioli
Setembro de 1985

127
ENTREVISTA COM EDMUNDO MONIZ

CEMAP - Que era a Vangurzrda Socialista?


E.M. - A Vanguarda Socialista foi imaginada por Mário Pedrosa
e por mim. Contamos logo com o apoio e a cooperação de numerosos
companheiros, na maioria Pertencentes à antiga _Liga_ Internacionalista
Comunista, da qual Mário foi um dos f~ndadores em São Paulo e
eu no Rio. A Vanguarda Socialista era uma sociedade por cotas, sendo
eu o presidente dela. Pirajá - pseudônimo de Nelson Veloso Borges
- era o maior catista. Ele era. nos'so mecenas, porque era um
industrial, tinha recursos. Quando tínhamos dificuldades financeiras
recorríamos a ele. E ele estava sempre pronto a nos socorrer. Escolhe-
mos de comum acordo Geraldo Ferraz para secretário. As decisões
políticas mais importantes do · jornal eram tomadas coletivamente.
Reuniam-se em sua sede - era uma ampla sala com numerosas
cadeiras - , todos os velhos militantes da Liga junto com os novos
militantes, Discutíamos então as nossas posições políticas. As maté-
rias do jornal muitas vezes eram escritas ou escolhidas no aparta-
mento de Geraldo Ferraz com a colaboração de Pagu e de Norma
· Moniz, minha irmã.
CEMAP - Então a Liga deu origem à Vanguarda Socialista?
EM. - Mas entre a Liga ê,..a Vanguarda houve de permeio a
União Socialista Popular - USP - , uma organização legal no
regime de transição e meia democracia entre o Estado Novo e a
República de 46. Mas a USP -perdeu sua razão de ser e nos reunimos
em torno da Vanguarda, que começa a ser publicada em agosto de
45 e dura, como tal, até agosto de 46. Nesse meio tempo Geraldo
Ferraz e Pagu tinham se mudado para São Paulo e Hílcar Leite foi
escolhido como secretário, depois substituído pela minha irmã Norma.

128
Com a formação do Partido Socialista Brasileiro verificou-se uma
tendência dentro da Vanguarda para aderir a esse partido. Eu me
coloquei contra essa tendência do pessoal. Mas ela ficou vitoriosa
numa demorada reunião. Norma afastou•se da secretaria, voltando a
ocupá-la Hílcar Leite. Mário Pedrosa, Hílcar e vários outros compa-
nheiros aderiram ao Partido Socialista. Eu me recusei e junto com
Norma, José Leal e Salvador, dois líderes sindicais, antigos membros
da Liga, que tinham tido importante papel no movimento comunista
brasileiro também, e outros militantes. A Vanguarda passou para o
<:ontrole do Partido Socialista e Mário entregou sua direção a Hermes
Lima. Eu renunciei à presidência da sociedade, desisti de minhas
cotas e tratei de recompor o grupo da Liga Internacionalista Comu-
nista. Algum tempo depois, Mário Pedrosa foi expulso do Partido
Socialista junto com outros companheiros e a_ maioria veio reunir~se
a nós. Mas a Vanguarda se transformara em outra coisa e estava
morta para n6s.
CEMAP - A Vanguarda tinha também colaboradores em São
Paulo?
E.M. - Claro. Eu creio que quase todo o grupo da antiga Liga
pertencia à Vanguarda. No Rio, eu citei poucos nomes, tinha ainda
Martins Gomide, Alípio Ferreira Adão, Cursino Raposo, Otaviano
de Pin e Almeida Galvão, o sobrinho dele, muito ativo e represen-
tante da Bahia, Ariston Rusciolelli. E muitos outros. Em São Paulo
muita gente colaborou. O Fúlvio Abramo, Lívio Abramo, Plínio
Mello, Lívio Xavier e Cláudio Abramo também, que naquele tempo
era ainda muito moço, estava começando a vida mas já dava suas
opiniões e tinha muita atuação porque era um rapaz muito inteli•
gente, muito vivo. Eles colaboravam de São Paulo mesmo, mas muitas
vezes eram convidados a vir aqui ao Rio de Janeiro para as decisões
gerais sobre a Vanguarda.
CEMAP - O que pretendia a Vanguarda?
E.M. - Depois do obscurantismo do Estado Novo, quando a
censura era rigorosíssima, de fato ainda antes que Getúlio Vargas
fosse deposto, pouco antes na verdade, a Vanguarda procurou abrir
um amplo debate doutrinário, tendo o marxismo · como base, no
campo _econômico, social, político, científico, filosófico, literário e
artístico. O principal objetivo era abrir um largo debate sobre o
socialismo. Procurava não ter nada de reformista ou revisionista,
como disse . um dicionário aí que foi publicado falando dela. Ao
contrário, a Vanguarda queria dir.cutir o marxismo sem a falsa orto-

129
doxia que vinha sendo imposta pelo Partido Comunista, pelo stali-
nismo. Queríamos até mostrar que o marxismo era uma doutrina que
podia ser desenvolvida, que era passível de novas aquisições. Às
vezes eu penso que a Vanguarda tinha qualquer coisa da Escola de
Frankfurt, mas longe do alheamento político que caracterizou a
maioria de lá. Nós queríamos ter e tínhamos uma interferência na
vida política brasileira. Nós éramos combativos, como eram os com-
panheiros de São Paulo, como o Fúlvio, o Sacchetta, Aristides Lobo
e tantos mais. Enfim, queríamos nos desprender das velhas fórmulas,
trocando a letra morta pela realidade viva. Citando Goethe, Lênin
dizia que "a teoria é seca, mas a árvore da vida é sempre verde".
Tínhamos necessidade de rediscutir tudo o que tínhamos discutido
antes, e especialmente durante a clandestinidade a que nos obrigou
o Estado Novo.
CEMAP - O embate se dava nesse momento contra a "domi-
nação" ideológica do Partido Comunista?
E.M. - Evidente; nós nos opúnhamos sobretudo ao Partido
Comunista, ao stalinismo. Nós discutíamos todos os problemas que
podíamos, nacionais e internacionais, contra o sectarismo do PC.
E é preciso lembrar que Stálin então ainda vivia e tinha sido ou era
considerado vitorioso na guerra. A divergência era tão profunda que
eles, os stalinistas, transformavam a coisa em ódio pessoal; o esta-
tuto do PC tinha o famigerado artigo 13, que proibia os seus
membros de manter amizade com os trotskistas. Então, n6s fazía-
mos as críticas mais severas porque era muito recente o assassinato
de Trotski, como os processos de Moscou. E a gente ainda não sabia
a verdadeira extensão dos expurgos stalinistas.
CEMAP - E o debate cultural, como era?
E.M. - Bom, a linha da arte oficial stalinista era o realismo
socialista, que nós tínhamos preferência em combater no campo
artístico. Combatíamos o realismo socialista pelo que ele tinha de
mecânico, adulador de pretensos líderes e anti-revolucionário. A expe-
riência na União Soviética bastava para nos mostrar o seu aspecto
funesto na obra dos escritores e artistas.
CEMAP - E como se manifestava no Brasil?
E.M. - Da mesma maneira que na União Soviética, criando
uma literatura e uma arte insuportáveis, porque rotineiras e falsas.
O caso típico no Brasil são alguns livros de Jorge Amado, como
Os subterrâneos da liberdade. Mas também São Jorge dos Ilhéus e

130
Terras do sem fim. Num deles ele mostra a luta dos pequenos
camponeses contra os latifundiários, os grandes plantadores, que lhes
roubavam as terra~ e a luta entre os próprios latifundiários. No
outro romance, Jorge Amado vem dizendo que todas as lutas dos
mais fracos tinham sido planejadas pelo Partido Comunista. Quer
dizer, ele introduz o partido em Ilhéus, "corrigindo" o romance
anterior, o que prejudica o livro, tornando sua arte evidentemente
falsa, pois não havia comunismo algum em Ilhéus e menos ainda
naquelas lutas. Outros autores também tentavam dar a seus livros
um caráter típico, socialista e realista, mas dum socialismo semelhan-
te ao que· eles liam nos livros russos.
CEMAP - Eles seguiam as ordens do PC e distorciam a
criação?
E,M. - Evidente. Tanto que a Rússia até hoje ainda não mudou
sua posição em relação ao realismo socialista. Aqui no Brasil as
coisas foram mais longe, por exemplo, com a condenação do abstra-
cionismo, porque o stalinismo achava que era uma arte da decadência
burguesa. Em defesa do abstracionismo saiu Mário Pedrosa, para
mostrar que essa corrente tinha um caráter revolucionário, renovador
e profundamente oposto ao realismo socialista, que só admitia a arte
figurativa e a figuração com sentido de propaganda, especialmente
do regime russo. Mário defendeu justamente que nas cores, no dese-
nho, nas formas novas enfim havia um sentido novo, um sentido
que se opunha à velha arte figurativista, embora sem deixar de levar
em conta que escolas anteriores, desde o impressionismo/expressio-
nismo, mesmo figurativas, também tinham seu valor e importância.
CEMAP - Nesse momento, 45/46, dentro da Vanguarda pa-
rece que quem leva mais longe a crítica e a resistência ao realismo
socialista é a Pagu?
E.M. - É a Pagu, sim. Ela teve um papel muito importante
porque enquanto nós estávamos preocupados com os problemas polí-
ticos e sociais, ela, no curto tempo de vida da Vanguarda pôde
atuar na crítica de arte e literatura. Pagu era uma personalidade
extraordinária. Era um espírito apaixonado, sensível, forte e comba-
tivo. Foi toda a vida. Uma espécie de surrealista não s6 nas idéias
como também na conduta pessoal.
CEMAP - Em que condições se deu a publicação do manifesto
de Trotski e Breton na Vanguarda em fevereiro de 1946?
E.M. - Foi o seguinte: nós tivemos conhecimento do mani-

131
festo porque mantínhamos Correspondência internacional, mas não
sei dizer agora porque meios o manifesto veio às nossas mãos.
Talvez através de um livro de Breton que ali -0 havia publicado.
Esse manifesto tinha saído em 38 e n6s ficamos sabendo da visita
de Breton a Trotski no México. Quer dizer, o manifesto não foi
descoberto de repente em 46. De fato, já tínhamos lido e conversado
sobre ele; estávamos de acordo com suas idéias. Em fins de 45 ou
início de 46 surgiu um problema qualquer sobre o realismo socia-
lista e aí resolvemos publicar o texto. Sabíamos muito bem que o
Diego Rivera assinou, mas que a autoria era de Trotski e Breton.
E sabíamos que Rivera tinha rompido com a IV Internacional e se
bandeado para o stalinismo. Mas a deserção de Rivera "'k• era obstá-
culo porque achávamos o manifesto muito atual e aquele fato não
anulava o valor da contribuição de Trotski e Breton.
CEMAP - E quem traduziu o manifesto? Foi Pagu? Como
ela encarava esse documento?
E.M. - Penso que não. Talvez tenha sido Mary Pedrosa, mas
não é impossível que tenha sido Pagu. Não tenho lembrança precisa
para confirmar. Agora, Pa8" era uma grande entusiasta do mani-
festo. Ela tinha tido uma experiência pessoal muito forte dentro
do modernismo, do movimento que veio de 1922, inclusive porque
ela foi casada com Oswald de Andrade. Tinha militado no Partido
Comunista e tinha se desiludido com ele, no Brasil e na França.
Tinha sido presa lá e aqui. De repente ela foi vendo que o Partido
Comunista defendia o realismo socialista e levava uma· política que
era a negação de tudo o que ela era e fazia. Do ponto de vista da
arte ela era suficientemente emancipada também e não podia jogar
fora todo o seu passado. Ela sabia que o conservadorismo na arte
era sua contraparte da reação política do PC sob o. stalinismo. Por
isso foi das pessoas que mais se bateu contra o realismo socialista,
escrevendo apaixonadamente muitas crônicas na Vanguarda, que eram
verdadeiros manifestos contra o stalinismo.
CEMAP - Você tem noticia sobre algum grupo de artistas
que tenha se unido em torno do manifesto?
E.M. - Não tenho nenhuma notícia disso. Houve certamente
simpatias, o texto foi recebido por alguns como tema para ser deba-
tido. Havia mesmo escritores ligados ao PC que não queriam seguir
o realismo socialista e aceitavam o manifesto, gente que às vezes
oscilava entre o stalinismo e o trotskismo. Mas não chegaram a aderir
ao manifesto, nem que eu saiba se pronunciar claramente por ele.

132
Havia alguns escritores e artistas que viviam num ecletismo, isso é
comum no meio artístico, e aceitavam umas coisas nossas e outras
do stalinismo. Deve ter havido mesmo muita covardia de alguns que
no fundo aceitavam integralmente o manifesto mas nunca vieram
a público para declarar isso.
CEMAP - Houve participação do grupo de vocês no Congresso
dos Escritores realizado em São Paulo no início de 45?
E.M. - Bem, ~esse tempo a Vanguarda Socialista ainda não
existia, nem podia porque a censura não permitia e nós estávamos
meio clandestinos. Mas companheiros nossos de São Paulo tentaram
participar, como por exemplo o Aristides Lobo, que contribuiu com
uma tese, depois publicada na Vanguarda. Mas ao que parece a tese
dele não foi acolhida nem publicada pelo Congresso, que editou um
livro de teses e debates. Na verdade o estigma contra o trotskismo
era terrível, pois o trotskismo foi também no Brasil esmagado pelo
stalinismo e pela imprensa burguesa. Quando podíamos, nós tínha-
mos que desmentir noticiários caluniosos.
CEMAP - O famoso episódio das eleições da ABDE (Associa-
ção Brasileira de Escritores) em 1949 constituiu uma forma de resis-
tência ao stalinismo?
E.M. - Creio que sim, embora o stalinismo estivesse cindido
por força de sua· própria composição, de frente oportunista, com
muita gente diferente no mesmo saco. A luta eleit9ral teve um
aspecto confuso, indefinido. O que mais contribuiu para o agrava-
mento do conflito foi a intransigência da direção do PC que procurava
apoderar-se inteiramente da ABDE. Ela perdeu a eleição, mas os
democratas que combatiam o stalinismo, representados ali por Afonso
Arinos de Melo Franco, fraquejaram e desistiram da vitória. Quem
resistiu mesmo foram os socialistas independentes. No final das
contas, houve um entendimento que contribuiu para liquidar a própria
ABDE.
CEMAP - Para terminar, aquelas cenas teatrais que há na
Vanguarda com personagens denominadas PECEBEJO, quem es-
crevia?
E.M. - Ah! era a Pagu, era ela quem escrevia aquilo. Mas não
era assinado?
CEMAP - Não. Só um com pseudônimo de Visconde de
Itararé.

133
EM. - Mas era ela, sim. Eu agora não posso ver, porque a
polícia levou a minha coleção do jornal há um tempo atrás. Era uma
espécie de cena teatral onde ela satirizava o apoio do PC, a Getúlio.
Agora, naquela época ela tinha escrito um romance junto com Geral-
do Ferraz, A famosa revista. O único romance que ela escreveu antes
foi Parque industrial. Uma notável mulher. Depois ela se dedicou
muito ao teatro em Santos.

Rio de Janeiro, julho/85

134
SURREALISMO E A POLÍTICA
Edmundo Moniz

O surrealismo, que abrange atualmente as artes plásticas e as


artes fonéticas, é mais do que uma escola literária e artística. É uma
concepção do mundo, uma atitude em face da vida, que procura
uma base científica e filosófica na psicanálise e no materialismo dia-
lético. Isto não quer dizer que haja uma dependência obrigatória
entre o surrealismo e o marxismo. O marxista pode ser ou não
surrealista como o surrealista pode ser ou não marxista. Sabemos
que, no seio do surrealismo, existem uma direita, um centro e uma
esquerda, mas seus principais intérpretes têm atuado, no mundo
político, de forma progressista, ao lado do movimento operário, da
democracia e da revolução social.
Apesar de "estender a mão - como disse Sartre - à Rússia
comunista, sendo a primeira vez, desde a Restauração, que uma
escola literária apela explicitamente para um movimento revolucio~
nário organizado", o surrealismo não se curvou perante o stalinismo,
mantendo firmemente a altivez e a dignidade do pensamento livre.
No famoso manifesto Planeta sem visto,* Breton, Paul Éluard, René
Char, René Crevel, Tanguy, Benjamin Péret e muitos outros protes-
taram contra a expulsão de Trotski da França, sustentando o direito
de asilo para os exilados políticos.
Trotski, por sua vez, compreendeu o sentido revolucionário do
surrealismo, como atesta a carta que escreveu a Breton:
"A criação verdadeiramente independente em nossa época de
reação convulsiva e de retorno à selvageria não pode deixar de ser
revoluciqp.ária pelo seu próprio espírito, já que não encontrará outra
saída ante a intolerável pressão social. Entretanto, a arte em seu

* Planeta sem passaporte, nesta tradução.

135
conjunto e cada artista em particular devem buscar esta saída por
seus próprios meios, sem esperar indicações alheias, sem tolerá-las,
rejeitando e cobrindo de desprezo todos aqueles que não preservam
a independência."
Em 1938, Trotski, de colaboração com Breton, que fora visitá-lo
no México, redigiu o manifesto em prol da Federação Internacional
de Arte Revolucionária Independente. Este documento assinado por
André Breton e Diego Rivera (Trotski não o subscreveu por motivo
de tática política) proclama "a independência da arte pela revolução,
e a revolução pela independência da arte".
O aprofundamento da luta entre o trotskismo e o stalinismo aca-
bou por determinar o rompimento entre Breton e Aragon. Aragon
submeteu-se à linha literária e artística do realismo socialista, produto
da contra-revolução stalinista que culminou com o culto à personali-
dade. Na União Soviética, Pilniak, Meyerhold, Eisenstein, Prokofiev
eram levados ao ostracismo com inúmeros escritores e artistas por
não estarem de acordo com a linha de Stálin. Historicamente, não
resta dúvida de que o Surrealismo, com todos os erros e todas as
deficiências que se possam encontrar neste movimento, é mais· pro-
gressista do que o realismo socialista, que tem sido, na União Sovié-
tica e em toda a parte do mundo, um grande entrave à criação
artística.

Extraído de D. João e o surrealismo (Zorri/la e Dali),


ed. de Campanha Nacional de Teatro (S.N.T./M.E.C., Rio
de Janeiro, 1960, pp. 53/55)

136
POESIA PROLETÁRIA

Mário de Andrade

Acabo de ler a antologia de Poemas de operários americanos,


editada por Les Révues e fico frio, fatigado, frio ... Não tem dúvida
que longe em longe encontrei um poema que me comoveu e princi-
palmente, frases, acentos, mais originais, mais novos que me puseram
naquele estado de bobice vital que é a verdadeira sensação artística.
Mas o conjunto me deixa enormemente insensível.
Poderão me dizer também que esses poemas não foram feitos
pra comover artisticamente, mas são como funções da vida, explodi-
dos sem querer. Não sei nada. Então pra que fizeram poemas?
Por que estão "escritos"? ... Me deixaram frio e fiquei triste. Jamais
essa evasão da vida vivida que é a arte, essa contradição mesmo
com a vida que é a arte, me pareceu tão inalterável. Pelo menos
na minha concepção de insolúvel "intelectual". É horrível; e a gente
fica desesperado por dentro, sem saber o que fazer, que partido tomar.
Todas essas palavras, todos esses sarcasmos contra as religiões,
todos esses insultos e acusações, tão fáceis, tão repetidos contra pa-
trões, capitalismo, religião sempre, alguns tãd verdadeiros, outros
tão falsos; todas essas confusões tão frágeis entre as doutrinas e
os homens que as pensam representar ou conscientemente as detur-
pam: jamais tudo isso não me pareceu tão falso como nesses versos
de revoltas pífias, de literatice incontestável.
E no entanto, isso que chamei "literatice", porque parece litera-
tice, são poemas sinceríssimos, eu creio. Saíram assim, ora essa!
porque não podiam sair de outro jeito, saíram de peitos sofridos,
pouco se amolando com problemas de arte, pouco flexíveis ainda no
cortume das coisas chamadas belas porque são desnecessárias e ao
mesmo tempo emocionantes; saíram assim porque esses operários

137
não tinham cultura pra mais. São poesias talvez, são certamente
sensações líriças, mas me fatigam a mim, pronto.
Porém toda essa lava de ódio e de revolta que o livrinho inteiro
joga, são coisas que eu já vivi, que já escutei de muitas bocas.
E nas bocas vivas eram, não digo que verdadeiras, porém sempre
muito impressionantes, muito comoventes. Dentro duma alma apaixo-
nada pelo sofrimento a gente não consegue destruir uma inverdade
por meio de raciocínios, não é possível. E por isso, confesso, já
me vi muitas vezes nesse falso jogo humano de dar razão pros que
não tinham razão. Concordei. Concordei com eles. Minhas verdades?
Minhas verdades andavam flanando inúteis e desprezíveis noutros
céus. Eu estava mas era boquiaberto de comoção apaixonada ante
essas confissões que sofriam. Não era uma diletante curiosidade que
me levava ali, mas um impulso recôndito, uma esperança de fragor,
uma aspiração por enormes catástrofes que melhorem esta porcaria
de mundo. E essas coisas não se encontra em Goethe nem nos
Lusiadas, nem em Moliere nem em Gonzaga.
Depois a gente abandona as conversas, vai andando consigo
muito a descoberto e humano, e eis que numa volta de esquina,
num anúncio de parede, num pregão de jornal, dá de encontro de
novo com .as suas verdades. Elas chegam e se instalam, familiares,
indiscutíveis por mais que a gente lhes examine os papéis de identi-
dade e roupas. São elas mesmas, são as nossas verdades. É horrível.
A única coisa que se pode fazer é recebê-las agressivamente, com
maus modos. Porém elas ficam apesar dos maus modos porque
afinal das contas são as nossas verdades.
Não pensemos mais nisto que já estou ficando com raiva de
mim. Continuo no primeiro assunto. Pois é: apesar de toda a boa
disposição que me fez encomendar imediatamente a antologia, apesar
do bom estado de amor em que a li, gostei pouco e fiquei frio.
O que está me preocupando esteticamente agora é o problema da
poesia de circunstância, Sua possibilidade, ou antes, sua verossil11ilhan-
ça. Esses poemas são incontestavelmente poesia de circunstância. E
da mais humanamente elevada pois que, embora me possam objetar
que cada um desses operários poetas se poetou foi pelo que pessoal-
mente sofria e não pelo que sofriam todos os companheiros, eles
fizeram poesia social.
E poemas desses ou dum Maiakovsky, e até mais bobos, como
os dum Vítor Hugo, arrastam multidões. Bom, mas nesse caso, até
béstias também arrastam e convencem. Ora a paridade é absoluta.
E por aí se percebe que o problema não é propriamente estético,

138
não deve sequer ofender os limites da pesquisa hedonística. Nem é
propriamente um problema moral porque nem de longe afeta o bem
e o mal. Tanto o bem como o mal, tanto a verdade como a mentira
arrastam da mesma forma, dependendo tudo de quem fala ou
escreve.
Na verdade é um problema exclusivamente fisiológico. Não é a
beleza da poesia ou do béstia, nem o bem nem a verdade possíveis
neles, que arrastam mas sim certos elementos fisiol6gicos de que
eles se utilizam: o ritmo, a sonoridade. Estes são elementos dos mais
universais, especificamente coletivantes, por assim dizer. A expressão
dos sentimentos, dos lirismos gerais, dos ideais e das idéias, valem
um mínimo ou não valem nada nesses gêneros de pseudo-arte, que
têm função coletiva. O que vale é o ritmo, o que vale é o som.
E estão aí como prova os hinos nacionais, os cânticos, cançonetas,
danças em voga, que no geral são profundamente idiotas. Se têm
arte, se têm beleza num caso desses não passa de mera coincidência;
e Concenius chegou a dizer que os cânticos luteranos tinham atraído
mais gente pra reforma que os escritos e sermões de Lutero. Pelo
menos por hoje, estou convencido que Duque Estrada escreveu uma
letra adequadissima ao Hino Nacional e que nada se deve modificar
nela.
O único elemento que afora os fisiológicos, tem valor na poesia
social de circunstância, são as palavras tradicionais. "Honra", "pátria",
11
nossos avós", "conspurcar", por exemplo, é tiro e queda. Não estou
depreciando ninguém não, e muito menos a coletividade que é o
que de mais importante possuímos nesta Terra. Estou mas é horrori-
zado.

Diário Nacional, domingo, 24 de agosto de 1930

139
INTELECTUAL - I
Mário de Andrade

Aqui neste paraíso da inconsciência que é o Brasil, no geral


os grandes fatos sociais passam sem grande repercussão, em branca
nuvem. Aquela imagem excelente de Olegário Mariano, do homem
brasileiro tendo por único incômodo da sua existência a saudade,
da qual ele se vinga "tocando viola de papo pro ar", não é apenas
o retrato do homem brasileiro comum, do burguês, do proletário,
ou do sertanejo: é u'a imagem que se dilata espantosamente, e vai
servir até como reprodução do homem culto brasileiro, do chamado
"intelectual".
Inda está na memória envergonhada dos poucos homens nacio-
nais um bocado convictos de humanidade, a repercussão nenhuma,
o nenhum soluço provocado no seio da intelectualidade brasileira
por fenômenos tamanhamente infamantes como a revolução comu-
nista da China ou o assassínio de Sacco e Vanzetti. Os intelectuais
brasileiros não protestaram contra nada, nada se inculpou, não se
acusou coisíssima nenhuma.
Com o "modernismo'' mudou-se de maneiras de versejal', se
espevitou mais um bocado o jeito de dizer, se enfeitou a nossa
escrita de brasileirismos vocabulares, grande mudança! Na verdade
o intelectual brasileiro continua tocandinho na viola o toque ras-
gado da sua pasmosa inércia humana. Alguns blasonam de socialistas,
de comunistas já, porque isso está na moda, e também porque é
uma fotma disfarçada de ambição. Mas tudo não passa dum desla-
vado namoro, dum medínho que o Comunismo venha e eles sofram.
É tudo apenas um toque de viola.
Nós estamos ainda exatamente naquele mesmo ponto desumano,
imbecilmente egoístico em que banzavam a sua inteligência vasta,
cultivada, saudosista, Machado de Assis, Joaquim Nabuco e todos

140
os outros fazedores de Academias celestiais. A correspondência desses
ilustres é a mostra do estado d_!! consciência ainda contemporâneo do
intelectual brasileiro. Que miudeza, puxa! O mais que a gente pode
falar é que a miudeza está bem escrita. Aqueles rendeiros, mexe-
mexendo os biiras sussurrantes dos seus estilinhos, viviam numa
praia deserta do norte, na frente do mar deserto. E se carteavam,
carteavam, num trocatroca suavíssimo de melodias. O que carteavam?-
Carteavam se elogiando com medida, mais por amor da mesura que
por felicidade do amigo, sem nenhuma paixão pela vida, sem nenhuma
generosidade intelectual. José Veríssimo pede empregos, Joaquim
Nabuco emperrou em fazer o J aceguai entrar prá Academia, Machado
de Assis no geral não tem tempo. Mário de Alencar discreteia sobre
doenças. E todos, todos vivem preocupadíssimos com quem é que
vai prá Academia e em mandar respeitos e homenagens às "esposas"
ou "senhoras" dos seus respectivos amigos, toque de viola, toque de
viola! São ainda sempre aqueles mesmos tenoristas palacianos, que
bordavam seus !ais e sonetos no Trovadorismo e no Renascimento.
E quando um ·Euclides da Cunha . . . socializa a sua criação
nos descrevendo a "literatura" do Nordeste, é prá converter o horror
da seca numa página de antologia. Toda a gente admira o esplendor
da obra criada e se esquece da seca. Mudou o toque mas a viola é
sempre a mesma porém.
E nisso nós estamos inda agora. Enternecimentos estéticos, cajua-
das de recolhimento reflexivo, torre-de-marfim, nos vingando da sau-
dade. O famoso Trahison des clercs * também fez alguma comoção
nos meios intelectuais "modernos" do Brasil: mas se no mundo ele
teve como esplêndido, inesperado e humano ofício tornar os traidores
mais conscientes e decididos da sua traição, parece que entre nós
serviu só pra que cada qual aceitasse a tese falada de Benda, e
ficasse inda mais gratuito, mais trovador da "arte pela arte", ou
do pensamento pelo pensamento.
Na realidade a situação pra quem queira se tornar um inte-
lectual legítimo, é terrível. Hoje mais que nunca o intelectual ideal
é o protótipo do fora-da-lei, fora de qualquer lei. O intelectual é
o ser livre em busca da verdade. A verdade é a paixão dele. E de
fato o ser humano socializado, as sociedades, as nações, nada tem
que ver com a Verdade. Elas se explicam, ou melhor, se justificam,
não pela Verdade, mas por um sem número de verdades locais,

* Traição dos sábios (1927), obra do escritor francês Julien Benda (1867-1956).

141
episódicas, temporárias, que, estas, são frutos de ideologias e ideali-
zações. O intelectual pode bem, e deverá sempre, se pôr a serviço
duma dessas ideologias, duma dessas verdades temporárias. Mas por
isso mesmo que é um cultivado, e um ser livre, por mais que minta
em proveito da verdade temporária que defende, nada no mundo o
impedirá de ver, de recolher e reconhecer a Verdade da miséria do
mundo. Da miséria dos homens. O intelectual verdadeiro, por tudo
isso, sempre há de ser um homem revoltado e um revolucionário,
pessimista, cético e cínico: fora da lei.
E por isso, nas sociedades burguesas, o burguês inda paga o
intelectual e lhe mata a fome, porém com a condição deste se tornar
um condutício servil, pregador das gloríolas capitalistas, fomentador
das pequenas sensualidades burguesas, instrumento de prazer. E por
isso também, inda com maior razão, a tese comunista, as sociedades
comunistas repudiam o intelectual.
Mas nada tem impedido, nem o repúdio, nem o assalariamento,
que o intelectual dos nossos dias, em todas as partes do mundo
menos no Brasil, esteja cada vez mais convicto da sua função dinâ•
mica. No Brasil, só o grupo católico da Ordem,• pela orientação de
Tristão de Athayde, conquistou para si, uma finalidade intelectual
legitimamente moderna. Isto é: nem todos! Só uns dois ou três lá
dentro. O resto é tocador de viola também.

Diário Nacional, domingo, 10 de abril de 1932

* Revista fundada em 1921 por Jackson Figueiredo.

142
INTELECTUAL - II
Mário de Andrade

A perseguição contra a liberdade de exposição do Verdadeiro,


que o intelectual -quer para si, vai se manifestando de maneiras ignó-
beis. Aqui no Brasil, mesmo com laudelinos e expulsão de nacionais,
as perseguições inda são nada, comparando com as ignomínias bur-
guesas, por exemplo, do Fascismo, e as "ignomínias" mais elevada-
mente humanas do Comunismo russo. O Brasil, inda nesse ponto-de-
vista continua sendo o paraíso da inconsciência, que os fugidos de
outras pátrias elogiam porque nele se desfruta tal liberdade inte-
lectual, Isto apenas deriva dum fenômeno de falta de progresso
social. É lógico que a perseguição contra a liberdade de exposição
do verdadeiro só se manifesta bem nas pátrias e sociedades mais
perfeitamente constituídas. Porque nestas é que a verdade pragmática
de unidade coletiva está bem consciente de si, se opõe e quer destruir
a verdade do intelectual.
A Alemanha, apesar de casos como o de Toller, é uma prova
típica de que quanto mais a ·sociedade nacional está decadente e
esgarçada, mais existe liberdade de consciência. A variegada liberdade
dos intelectuais alemães contemporâneos, não representa nenhum
progresso humano, nem nenhuma elevação social; ao passo que em
nações inda bastante firmes da sua burguesia, como a França, fenô-
menos como o de André Gide ou de Romain Rolland, são permanente-
mente elementos de escândalo. É na França, na Inglaterra, na América
do Norte que a perseguição contra o intelectual está revoltante.
Recentemente o caso de Joyce, não podendo explicar seu Ulisses
na Inglaterra, diz bem o que vai lá pela cabeçuda imperatriz dos
mares. Caso menos sabido, mas também edificante, foi a perseguição
sofrida por L'or de Blaise Cendrars nos Estados Unidos, só porque

143
(embora o fato seja hist6rico) o her6i não era casado! Aliás por
menos que isso, assassinaram lá Sacco e Vanzetti. ..
Dois fatos inda mais de agora, são mais clamorosamente indig-
nantes: condenação de Luís Aragon em França, e a perseguição que
estão sofrendo certos intelectuais ianques só porque quiseram conhe-
cer a verdade a respeito das greves de Harlan.
Nos últimos meses do ano passado, Luís Aragon, talvez o
poeta mais verdadeiramente poeta da França atual, publicava uma
poesia "Front rouge", numa revista de orientação comunista. Em
janeiro deste ano, o juiz de instrução Benon inculpava Luís Aragon
de "excitação dos militares à desobediência e provocação ao assassínio
com finalidade anarquista". Não vale a pena comentar a ignorância
larvar que confunde aí Comunismo com Anarquismo. O mais fabuloso
é que não encontrando na poesia, provas objetivas desses crimes
imputados, o juiz Benon achava que o que a gente devia ter em
vista era a pr6pria totalidade da poesia. E Luís Aragon se via conde-
nado a vários anos de prisão!
Quanto ao caso da greve de mineiros da região de Harlan,
no Kentucky, em que a polícia assassinou à vontade mineiros desar-
mados, em que os tribunais tiveram juízes com interesse direto nós
capitais empregados nas minas, etc.: um grupo de escritores ianques,
universalmente conhecidos alguns, como Teodoro Dreiser e John dos
Passos, resolveu fazer um inquérito in loco, e relatar a verdade
conseguida nesse inquérito. É certo que essa verdade veio denunciar
patranhas indecentes dos proprietários das minas; e justo por isso,
todos esses romancistas e poetas do inquérito estão sendo agora
perseguidos por culpados de sindicalismo criminoso!
São estes fatos edificantes dos nossos dias, que demonstram
muito bem que os excessos duma Rússia encontram sua identidade
nas pátrias mais ciosas do seu liberalismo burguês. Culpa-se um
poeta, cujas impulsões líricas independem do domínio do consciente,
dos afetos que o dominam. Culpa-se de sindicalismo criminoso uma
comissão de prosistas, que foi levada a constituir e a relatar o que
enxergou, pelo único amor da verdade.
E assim as nações burguesas solapam a sua própria razão-de-ser,
quando seria muito mais, não direi fácil, mas pelo menos mais
verdadeiro dentro da pr6pria ideologia delas, não dar razão a essas
paixões que as detestam, ou criar uma verdade mais legítima, que
não carecesse de se esconder. Em vez, preferem estirpar a dor que
sofrem, sem cuidar da cura das suas moléstias. Quando o Aleijadinho
sentia num dedo a dor causada pela moléstia sofrid~, pegava dos

144
utensílios de toreuta, cortava o dedo. Assim procedem agora esses
países na veloz derrocada do burguesismo que estamos presenciando.
Se amputam de seus valores que lhes doem, em vez de convertê-los
em v~lores eficazes para a perfeição delas. Prova pelo menos de
que não tem mais ouro no mundo que pague ao intelectual o seu
direito livre de ver. E, cortadas de seus dedos, braços e pernas,
essas nações não poderão mais, muito breve, lutar contra a verdade
nova que há-de vir.

Diário Nacional, domingo, 17 de abril de 1932

145
O CARINHOSO BIÓGRAFO DE PRESTES

Patrícia Galvão

Está se esgotando, nas livrarias, o volume de Jorge Amado, que


se apresenta sob o título Vida de Luis Carlos Prestes. Os transportes
com que o escritor fala do aparecimento da edição brasileira dessa
novela justificam-se no sucesso que ele mesmo conta, sobre o qual
se espoja, pela qualificação de best-sel/er que teve a edição argentina
na América Espanhola. . . Do ponto de vista sério, crítico, esta
biografia nada possue a não ser o aproveitamento de uma persona-
gem e de circunstâncias que a rodearam, no sentido novelesco, com
a mesma ligeireza com que Stefan Zweig construiu a sua "visão
novelesca da história". No goto dos que alimentam a "melhor venda"
do ano em livro brasileiro, saiu esta historieta com a mesma facili-
dade com que, há trinta anos atrás, o simplório leitor popular se
deliciava e se comovia com as façanhas do tenente Galinha e as
aventuras de João Brandão.
Sabemos que Jorge Amado ambiciona mais do que o nosso
julgamento literário, querendo ter escrito um livro "social, político,
interessado, revolucionário''. No melhor sentido, construtivo, preten-
demos, de nossa parte, estender-lhe um espelhinho para que, trope-
çando, na sua escalada gloriosa, o narcisismo desse Jorge que tanto
se ama, restrinja o seu derramamento e veja que está, ainda, menino
ignorante, patinhando numa poça d'água. . . É bem verdade que
Jorge Amado não teve estímulos que o guiassem, não recebeu instru-
ção suficiente para a sua ambição e as suas possibilidades. Ele não
sabe que a produção literária exige trabalho, pesquisa, esforço e até
autocrítica. Menino e moço, cresceu mimado pela complacência, até
certo ponto irresponsável, de quantos entre nós distribuem diplomas
de formação literária, desde as mesinhas dos cafés às portas das
livrarias e às tertúlias dos iniciados. Jorge Amado tornou-se, assim,

146
no _meio literário nacional e entre os seus leitores, um escritor de
categoria colocado na vanguarda, um literato tão importante, que ele
não se contém e a si mesmo se arroga representação bastante para
pagar as dívidas da "moderna literatura brasileira, na novelística e
na crítica".

Como explicar tamanho sucesso literário?


Jorge Amado escolheu os caminhos fáceis da literatura documen-
tária, aquela que se apropria do fabulário ingênuo com que o povo
borda as suas conversas, inventando imagens, acrescentando detalhes,
contando casos, intrigas, crimes, desde o anedotário menos importante
dos campos e das ruas, até os dramas do adultério e da prostituição.
Não é um escritor de imaginação: o que ele narra é o produto do
que recolheu e que aproveita num rosário entremeado de sentimen-
talismos melosos, num ecletismo de brique-a-braque, em que tudo
vale, porque falece ao ousado jovem qualquer discernimento seletivo.
Um tipo de senhora da aristocracia rural tem a mesma desfaçatez para
Jorge Amado, com que ele nos mostra as suas "mulheres-damas"
da rua da Lama. A falta de sensibilidade moral do observador de
prostíbulos fornia uma aura de poesia, triste auréola em torno das
decaídas, não se encontrando jamais uma delicadeza de figura femi-
nina quando ele tenta desenhar com a sua inabilidade um caráter,
um perfil, uma cena em que predomine a mulher . . . Seu sucesso
literário apóia-se, portanto, entre as muletas da exploração sentimen-
talesca e a perversão er6tica, disfarçada é verdade, entre o amor
físico em grosso modo, ou a brutalidade de um realismo caricatural-
mente primário. Os leitores de Jorge Amado encontram nessa espécie
de truculência literária uma evasão compreensível.
Surgindo nos idos da revolução de 30 a produção literária de
Jorge Amado embarcou na canoa da moda "socializante", que em
31, 32 e 33 por diante tinha a pitoresca denominação de "literatura
proletária". Estendeu-se assim, procurando atingir o precário modelo
de Michael Gold, a tentativa literária de Jorge Amado. Florescendo
agora no best-seller da novela em que biografa Luís Carlos Prestes,
Jorge Amado procura abarcar o Brasil com as pernas, apresentando-se
como legítimo representante da literatura moderna ao mesmo tempo
que da social, política, interessada e revolucionária. E anuncia que
está pagando com a referida novela a "dívida de toda uma geração
de escritores para com um líder do povo". Que dívida é essa?

147
A dívida - e espanta que os escritores brasileiros não tivessem
descobetto esse ovo até agora - é aquela que, segundo Jorge Amado,
foi contraída desde os movimentos de 1922, 24, 26, 30 e 35, para
com Luís Carlos Prestes. No texto está assim: "Como Luís Carlos
Prestes foi e é a figura máxima de todos esses movimentos, chefe,
condutor e general, a sua ligação com a moderna literatura brasileira
é indiscutível". Essa a dívida. Prestes inspirou toda a "moderna lite-
ratura brasileira, aquela que deu os grandes romances sociais, os
estudos de sociologia, a reabilitação do negro, os estudos hist6ri-
cos" ... Era de fato uma grande dívida e o romancista se apressou
em pagá-la, colocando em novela o personagem até agora à procura
de autor. Um parêntese para o reconhecimento da dívida, no único
cúmplice do literato pagante: o escritor Oswald de Andrade que,
agora, citando Astrojildo Pereira, transforma Luís Carlos Prestes
em guia espiritual da Semana de Atte Moderna, a qual, sem o
Cavaleiro, ficaria sem sentido. . . Oswald, entretanto, pode pelo
seu passado, dizer-se modernista. Jorge Amado, não.
A literatura de Jorge Amado é igual à má literatura acadêmica.
Não toma pé no tempo, não conhece uma técnica, uma renovação,
um processo de expressão adequado ou pessoal, em que transpareça
uma ressonancia da literatura moderna, nos modelos que temos à
mão em casa, como Alcantara Machado, Mário de Andrade, Sérgio
Milliet, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, João Miramar, Carlos
Drummond de Andrade etc. É uma pobre literatura que medra em
terreno inculto. E tão inconsciente e vago se revela em Jorge Amado
o seu pendor para as letras, que ele ama nas outras artes o que é
moderno de verdade, e coloca num· forno de incineração aquilo que
considera "literatura degenerada", ou seja, aquela que não se identi-
fica com a sua. Mesmo com a ruim novela a dívida deve ser consi-
derada paga, ainda mais se se imaginar que o Sr. Luís Carlos Prestes
deve ter dado sua assistência à revisão da edição brasileira, reajustada
aos azares do colaboracionismo realista que por aqui viceja. Não
estarrecerá que um tal guia espiritual de nossas belas letras, dentro
de algum tempo, com um maço de discursos sob o braço, vá bater à
porta do Petit Trianon, para conseguir uma cadeira de imortal, na
Casa de Machado de Assis, onde outros estadistas de alto coturno,*
também já foram ter.

* Referência irônica ao fato de que Getúlio Vargas ingressa na Academia Brasi-


leira de Letras durante o Estado Novo, certamente não por mérito próprio de
sua obra literária ou de pensamento . ..

148
Se não tem outro mérito, a novela do sr. Jorge Amado descobre
para a história literária do país essa preciosa gema, escondida durante
os nove anos em que esteve na sombra.

Vanguarda Socialista, Ano I, n.0 1, 31 de agosto de 1945

149
tlEG"(S""\ Ofl ffl-óDvcÃo 'f' l'-.E ff!.o'C>V fA-0
f"\A5 FAL",,:, ,;i LGO ,- T,::.,. N, 1~ iio l P1~00VSS'VM0

A SEMENTEIRA DA REVOLUÇÃO
Patrícia Galvão

Devido a uma certa legalidade, pensam alguns escritores - os


- intelectuais - que lhes cumpre participar dos trabalhos do Partido,
na escala em que os políticos do Partido devem dar o seu esforço
e o seu interesse pelo desdobramento prático da ideologia. Não cabe
aqui discutir a topografia da linha política, mas a misturada irrefreá-
vel em que se esterilizarão para sempre os que se subordinam à prá-
tica do cordão, das ladainhas e dos sacrifícios rituais. A importância
da legalidade, no plano em que ela agora foi oferecida e não con-
quistada, tem muito de relativo e de restrito para que dela precisem
os representantes das letras. Sem dúvida, nestas colunas, temos colo-
cado a independência e a liberdade do escritor acima de tudo. . . e
ao fazê-lo não limitamos aquelas duas condições à contingência
do servilismo que o Partido impõe aos seus militantes. É preciso
fundamentalmente distinguir entre o militante e o escritor revolucio-
nário, para se ter a noção mais alta do que é o clima de liberdade
e de independência deste último, em contraposição à deformação que
automatiza o militante, no enquadramento disciplinar em que jaz es-
quecida qualquer noção de vitalidade democratizadora atuante. A li-
berdade para~_escritor está adma e adiante do ~'l_u~h11
nas tarefas cotidlanas do Partido. Poderíamos fazer mais terra a
~~PiiCaçã~ -;e· ;d~-t~--;~;·-~;;7~;gem concreta do plano em que
se desenvolvem estas fases da história do progresso humano. Sobre
o chão de pedra, de areia, ou sob a neve, o trabalho do escritor re-
volucionário estendeu para o futuro a mão que semeia embora sá-
faro, inculto e hostil o terreno.
Povos, soldados, estadistas, poderosos homens do dia passam
por aquelas áreas e esmagam e espalham as tentativas da germina-
ção. Indiferente, ou interessado, conscientemente ou não, o pensa-

150
mento livre do escritor trabalha entretanto alimentando a sementei-
ra, prodigalizando com a eloqüência e a grandeza de suas insinuações
vitalizadoras, elementos novos, forças fertilizantes das sementes per-
didas, arrastadas pelas voragens das guerras, dos conflitos, da covar-
dia e do temor, da opressão e do ódio ... Os escritores revolucioná-
rios do passado e do presente não trabalham pefo imediatism~ ]<is_
resultados efêmeros e p-assageuos:-EieS-eStãõ-- niõítO -adiante do es-
~ s s i d a d e s são .-lill.üíO pro61n&IS-- e ·s,1â8-~:-
, _gens" estão esburacando o.s... batizantes. que.-cercam-a._.visão dos con-.,
temporâneos. Como fazer pois que eles voltem atrás e se misturem
-com· a turba para insuflar-lhe idéias por mais generosas que sejam
as que lhe fervilham dentro do cérebro?
Cabe fazer em tempo uma ressalva: o escritor que está sendo
objetc>de nosso _comentário n!o é_~ste.ot1~gt1ele trabalhador êlãs le: ~,/Wo>vr,
- - mas ocriaijor ~uma obr.,_HteráJ:ia, poética,çrítica ... Pocre- f~oov,,,R
se estender para os pr6prios "desinteressados" a marca fatal da inte- ')!
• ênc1a
l1g • cria . di retamente mesmo, uma f er- ,,,1Go S
• d ora: e1a sera, sempre, até ln
mentadora da revolução, pois qualquer posição reacionária não eleva
os homens, nada lhes ensina, e assim nega automl:lticamente o moti-
vo fundamental de toda a criação, que, essencialmente, destina-se a
arrancar do chão da realidade e do momento precário que acorrenta
a condição humana, os seres envolvidos na comunicabilidade das pá-
ginas vivas do livro ...
Procuremos examinar as origens dos dois revolucionários: o mi-
litante, o chamado "profissional da ação" em trabalho no Partido e
o escritor revolucionário. Aquele torna-se consciente de seu papel,
torna-se revolucionário e assim atua na luta que para a implantação
da sua ideologia é obrigado a travar no dia-a-dia das tarefas do Par-
tido - quando o Partido luta, é claro, quando não pensa em fazer
tudo no mole e deixar para as calendas as etapas da revolução - .
Aos que achem difícil compreender o que chamo luta vai aí exem-
plo: um militante diante de 1:1:m gpe.tátio t1.ão pelitiaaàe tem àc eoa
vertê lo as seH objeto àe lt:tta, tornar n1akável a sua mentalidad:ei
l'ermeahitzá-la cm "consciência" àe papel f:ll:te lhe cabe ft& engrena
gem sedai, e para isto o militante tem um trabalho que é o de des-
bravar o caminho e debater com a indiferença, o alheamento, a re- t> l:5Af\<,i
guiça moral, mental e até física o_____or. . . tem e lutar
para impor-lhe não só a consciência de classe--4ue ele não tem em
grau revolucionário mas para lhe oferecer uma saída adequada, em-
prestar-lhe métodos de conduta, segurá-lo na convicção, ganhar para
sempre a sua confiança, de tal maneira que possa deixá-lo a realizar

151
1 F,KT~ -f- CLA,tv,7!' o CúNC<::1To DE: T~s,slri:.ot,vssuM<l
sozinho os seus progressos, integrado na corrente ideológica, adqui-
rindo por sua vez a experiência, fazendo-se um revolucionário . ..
Mas, com o escritor acontece o contrário. Sua consciência de
trabalhador intelectual não mercadejando com o seu trabalho, sua res-
ponsabilidade de liderança mental, ao produzir a página autônoma,
transparente pela limpidez de sua verdade, está fazendo o papel do
semeador. . . Haja pedras no chão, haja areais ardentes ou venha a
neve siberiana fazer adormecer a sementeira, o escritor revolucioná-
rio vai longe, muito mais longe às vezes do que ele mesmo possa
pensar que está andando, pioneiro e solitário no mundo de sua cria-
ção. Entendem-no as vanguardas, os portadores da rebelião, a inteli-
, gência livre dos seus contemporâneos (como Jules Laforgue comenta-
: va Rimbaud), os líderes da atividade no plano da realidade política,
e são est~s ,?s elementos que f~e.m a
da uelas 1de1as com as massas militantes a ca o
lipcãcld!jsi:it imowrjvel
e
msurreiça lf-
bertadora e um a que vira. . . izer a verdade claramente, a ver-
dade pressentida, embora apenas no murmúrio que a legenda pôs na
' boca de Galileu, o "eppur si muove", ou no grito da Lettre du
Voyant, * ou no hermetismo dos poetas da Resistência da França, é
sempre usar revolucionariamente a expressão, e o escritor como peça
de Partido não é alguém que possa dizer toda a sua verdade, como
homem e como revolucionário. Que seja necessário declarar o respei-
to a determinados bigodes e esconder dos militantes um certo do-
cumento, a conformação disciplinar funciona. E assim tudo o mais,
nas pregas da conveniência com que se veste a "verdade" da ação
política do Partido. O tr~o_dQ.. escritor, à margem do tempo e
~~
i s tarefas imedi.ºatas .·.é.·º. de ai.iment.ar a se.men.te. ira. d. ª. r. e.v.ol.ução.:~- p.
que quando ela germine a emoção e a esperança atormentada do
o
militante encontrem que colher . . . âJjberdade .do ~critor -qu',;bra
táhuas...dos mandamentos partidários~ ---

Vanguarda Socialista, Ano I, n. 0 6, 5 de outubro de 1945


f PAl<A ô,_ +MJA
NO f"\Íwlf-'lo
e> M ÍÍX' 1/vl o

• Obra de Arthur Rimbaud de 1871.

152
EM DEFESA DA PESQUISA
Patrlcia Galvão

É verdade que se trata de dar um passo à frente no plano lite-


rário como em qualquer atividade intelectual e artística sempre se
pretendeu, pois que há em jogo novas circunstâncias aprisionando ou
libertando o homem . . . A pergunta é simples e sempre a mesma:
se tais ou quais coisas acontecem, que devemos fazer? Qual o papel
do intelectual? Qual o trabalho a que se devem entregar os artistas?
Como escrever literariamente? Eis quo se trau de dar um passo à
frente e é preciso muita vista de ver e muita força de vontade e
muita rs1s ar s aon-
de queremos chegar ~---1tª-º_~r . . . a crrcunstanci a e a obra
de atte, da boa obra de arte~ci,ire' segundo Rilke s6 é boa quando
nasce de uma necessidade, colocamos a esperança de que ela saia do
aranzel em que se meteram as coisas. Mas ao mesmo tempo é pre-
ciso meditar nestas condições, pois que acabaremos indo para a fren-
te, não há dúvida que iremos, mas é muito necessário, o mais possí-
vel limpar o caminho e desviarmo-nos das insinuações pueris que vi-
goram nos catecismos dogmáticos e dogmatizadores, com toda a for-
ça de mandamentos.
Não é viável, por exemplo, aconselhar o abandono da pesquisa,
porque muito se vasculhou neste século ... Os problemas de expres-
são são os mesmos para todos n6S: nesta hora em que se fala tanto
do mundo por nascer. Nasça ou não, mister é que nasçam as nossas
palavras, o nosso mundo. . . Por uma lição do passado, o presente
pode sem esforço·ser esclarecido, implicando porém em que se apro-
veitem profundamente as indicações. Aperfeiçoou-se a literatura, en-
riqueceram-se os gêneros pela contribuição "revolucionária" trazida
pelos grandes renovadores, os quais nunca imediatamente tiveram o
apreço unânime das grandes massas populares. É claro que ficamos
numa aplicação irônica do clichê, porquanto s6 agora estamos atingin-
do essa possibilidade de presença das grandes massas perante a obra

153
de arte, e olhem lá, não por aqui. Em literatura, um contemporâneo
de Ponson du Terrail como é o caso de Lautréamont, permanece na
sua singularidade para as elites, enquanto o outro foi devorado por
multidões ávidas. . . No fundo, na inconformidade com o cotidiano
que cerca os homens, e que felizmente nunca desaparecerá, tanto Ro-
cambole como Maldoror "realizam", para planos diferentes da ânsia
humana o mesmo tema da libertação a cada aventura. Em todo o ca-
so, é o tipo singular do renovador, é aquele ignorado e desadorado
pelas massas o que determina as etapas da evolução expressional. Os
outros são apenas folhetinista,.
Essencial se torna pois pensar e cuidar da pesquisa . . . Talvez
esse seja um lugar comum para muitos, mas na verdade um lugar in-
comum, fechado à perlustração dos que agora se prendem à literaru-
ra nos limites do social e do político, pensando gue ass1~ cuidaiiioa
literatura e da vida. Ora a yij9 dãij for,; Ji5erárias na. ermentação r,,,11:.to,Ms
do processo de rodu ão em que mterv m nada tem com a forma)rRc.D\J(,:.:;'b
po 'tica da militança e do parti o. ~__c:onte- a 111_as nao estará de 't, -
maneira alguma a ela subordinada. A literatura e- a vid,i dos dogiiiã- p/1,oo«w..i
tizadores não se enquadram pois, penso eu, nessa forçosa "planifica-
ção" totalitária que se traduz numa sombria ameaça sobre os deveres,
os costumes e a maneira de ser de cada qual, inclusive dos artistas,
que não são peças de uma engrenagem. Complexa engrenagem sim,
são eles ao desvendar pela capacidade de criação que os alimenta, os
horizontes que as multidões não atingem, quando passeiam pelo in-
ferno e pelo paraíso, ou de novo empreendem as viagens prodigiosas
de Ulisses, ou ainda mergulham no oceano da memória atrás do tem-
po perdido.
Ora, que há necessidade de pesquisa para o passo a dar me pa-
rece ser assunto sem discussão, pois não há necessidade, não, de se
escrever um romance como Machado de Assis escrevia os dele. Pas-
samos ou não por duas guerras mundiais depois disso? Que morta
~~~~~~~ª pmnjoçie rjo mnndo __!~i-~-~--~-~?~_!~--~-er -~~!~Eaí~?
Imagino a que código rigorosíssimo de dever ara consí o mes-
mo está preso um escritor como William Faulkner em cuJa o ra não
se repete, aparentemente, de livro para livro, jamais os mesmos ele-
mentos de expressão continuamente recriados não obstante muitas ve-
zes de um para outro romance seja transferido o mesmo tipo. Talvez
viva nele agora, dos vivos, o melhor exemplo de insatisfaÇão, de in-
transigência, de exigência mesmo. Por que e para quê? É fácil ima-
giná-lo: para fazer o inatingível, para se aproximar das fronteiras on-
de o indizível se esconde atrás de suas malhas intransponíveis. A is-

154
to chamarei a luta pela defesa da pesquisa. Estamos evidentemente
ainda num terreno desabitado, or onde passa pouca gente, onde não
Mgueiiieilta e negocios de oportunidL~, com--Uiülta~_ ÇQ.l!çes!_Q:Ç!,
ara falar como · ,...poiLná<>. interessa aos piopejros vender
em gros~ara um~d~_pftblicq,_.É que agora devemos de cuidar
muito mais da literatura e da via da libertação do homem, da sua
i valorização e da sua elevação. E são premissas revolucionárias no
i plano quase que absoluto . . . O público que se limite ao que é de
\ seu entendimento. Os jornaizinhos infantis do maravilhoso capitão
. América.

Vanguarda Socialista, Ano I, n.0 9, 26 de outubro de 1945


1 IMf'tl.íS"E No Pt'óDUH<!Mo

155
INFLU:tNCIA DE UMA REVOLUÇÃO
NA LITERATURA

Patrlcia Galvão

A revolução russa está fazendo 28 anos, e é uma idade já pro


vecta para que um tema emerja no campo literário, tema que pre-
tendo apenas oferecer aos mais capazes, noutro espaço também, pois
se presta a largas divagações. A influência da revolução de novem-
bro de 191 7 na literatura é um fato assinalável facilmente nos domí-
nios da língua russa, das letras ocidentais e neste nosso hemisfé-
rio ... Não podia ser doutro modo: a primeira transformação se ve-
rifica na Rússia, onde se operou· essa revolução com suas incisões
profundas na carne e na sensibilidade dos homens. É urna literatura
nascida de um traumatismo violento, entre uma idéia, a sua prop~:-_
ganda e a opoSlção-OeiiiiJ:O~os·11~nceitos ·e éostumes que visava.
mudar. Llteratura dirigida, não é menos verdade que de grande só
PrÕduziu o que estava vivo e atuante -nos primeiros tempos do "co-
munismo de guerra". Por quê? É difícil responder, desde que tudo
decorre mais ou menos dentro das me·smas linhas, desde o Cimento,
de Gladkov, até o Don silencioso,* aos quadros rígidos das reporta-
gens romanceadas da resistência ao invasor alemão. Literatura dirigi-
0

da, ela sofreu na sua marcha interna o descambamento imposto pela


degenerescência mesma que acompanhou a marcha para trás do "gran-
de organizador de derrotas".
A literatura soviética não produziu, depois do "comunismo de
guerra>', nem mais nem melhor. Ao contrário, a evidente decadência
de um escritor como Gladkov, demonstra muito ·nitidamente que os
próprios autores de algum mérito, surgidos do centro do processo re-
volucionário haveriam de minguar com o seu talento, a sua experiên-

• Romance de Mikhail Cbolokhov.

156
eia e a sua esperança em ser úteis ao povo. . . é que na decorrência
construtiva do socialismo stalinista, já não se tratava mais de liqui-
dar os remanescentes prejuízos supostos de classe, mas de cristalizar
em castas, sofregamente, os despojos da conquista do poder, por uma
ditadura em adaptação totalitária. No seu Panorama da prosa russa
contemporânea, Pozner revela-o francamente: "No plano literário,
não houve revolução alguma''. Efetivamente, quer se trate de um
I vanov ou de um Fourmanov, nada há de revolucionário mas apenas
relações sociais, costumes e temas "mudados", sem que a maneira
de tratá-los tenha saído da retorta da revolução porejante da palavra
nova que os mais ingênÚos esperavam. Boris Schloezer evocava a pro-
pósito os nomes de Gogol, de Dostoiévski, de Tolstói para declarar:
'
1
Não houve uma solução de continuidade".
A truculência, entretanto, da obra panfletária de Larissa Reis-
sner, essas "audácias" de pequeno repórter que não sei porque ele-
varam ao grau internacional a produção descosida de Ilia Ehrenburg,
o próprio vigor descritivo de Cimento (que agora se repete nas nar-
rativas-reportagens-romanceadas que a guerra defensiva ensejou), e
também Pilniak, o documentário mais pobre por que até tirado de
relatórios e das jornadas dos engenheiros e dos operários em O Vol-
ga desemboca no Mar Cáspio, segundo Radek, estes fatores vieram
afinal para fora da Rússia, re-criando uma diretriz no romance e na
novela realista, deformando-a para colocá-la não a serviço de um
ideal mas dentro de uma fórmula que chegou a ser a da literatura
proletária, passou pelo trauma da literatura social para acabar agora,
sim, estamos no seu declínio, a se encafuar numa "literatura socia-
lizante" que não deveria prejudicar ninguém não fossem os sucessos
mundiais mais recentes.
O atraso da literatura russa sobre as literaiuras dos países oci-
dentais, da Alemanha a Portugal - até Portugal com Fernando
Pessoa - , é quase inexplicável, se se quiser considerar a revolução
de 17 como válida. Mas o campo literário era por demais estreito
na Rússia e a forma, a imaginação e a liberdade de criar se foram
cada vez mais constringindo a uma repetição sem remédio. Na verda-
de, não se fazia grande caso da ideologia. Radek, por exemplo, que
começou a dar palpites literários com uma ingenuidade de estarrecer,
conta-nos maravilhado a fatura de O Volga desemboca no Mar Cás-
pio, dizendo que depois de recolher todo o material no local das
obras, convivendo com os trabalhadores e os engenheiros nas suas
jornadas no grande rio, Pilniak produziu um manuscrito chato e de-
sinteressante, que leu a ele, Radek. Faltava o "fermento" ideológico.

157
Foi feito então, pelo mesmo Radek e outros um vasto trabalho a fim
de injetar o vírus revolucionário na obra. E Pilniak reescreveu o ma-
nuscrito. Quando ficou pronto, Radek maravilhou-se: que demônios
são estes homens de letras, exclama de boca aberta. Não é que Pil-
niak nos deu afinal um livro revolucionário!
Enquanto isso, na Alemanha, na França, em Madri, em Londres,
uma plêiade trabalha no campo da revolução dentro da literatura in-
do até as fronteiras do automatismo psíquico e penetrando no in-
consciente ... A revolução das letras, de Joyce, Woolf, Malraux, nem
de longe podia ser acompanhada pelos russos . Eram linhas paralelas,
que não se misturavam, embora Malraux, por exemplo, estivesse me-
tido até o pescoço na revolução da China. É fácil observar o fluxo
para o Ocidente da literatura dos russos depois da revolução, como
o refluxo com que certos círculos do Ocidente responderam. . . Tra-
tava-se de ser popular e o fascismo aparecera. O grande romance
mundial do antifascismo surge do campo italiano, é Fontamara, de

~
Silone, que tanto stalinistas (Radek) como a oposição Trotski) exal-
tariam pela consonância com o que desejavam e as letras sas não
1
haviam dado. Não podiam dar. Talvez tivessem os russos além da
· degenerescência burocrática da revolução desprezado a condição hu-
mana na sbma dos elementos com que trabalhavam. É talvez, tam-
bém, por isso, que a obra máxima de Malraux levaria por tírulo a
sua inteligência do problema da literatura revolucionária: A condição
humana . .. Em todo caso Malraux, Silone, Bruno Traven, o próprio
Charles Plisnier de Fauxpasseports dão o seu testemunho literário
sem se perder na reportagem romanceada da literatura russa depois
: da revolução.
Não é à toa que Vaillant-Couturier citava a resposta de Four-
manov Dmitri Andreiévitch como grande prova de um homem "au
sens le plus humain du mot mais aussi d 'un combattant de classe à
la volonté de fer", à pergunta no inquérito sobre as condições de
trabalho e da vida dos escritores da Rússia:
- O trabalho literário é vossa principal preocupação ou não?
E Fourmanov, com a sua vontade de ferro:
- O Partido não saberia autorizar os seus membros a se con-
sagrar unicamente a esse trabalho.
1 A literatura provinda da revolu§~º traída bateu por este hemis-
fério, dissemos atrás. Aí pela curvae f956, depois das primeiras
traduções de Judeus sem dinheiro, Passageiros de 3." etc., a preocu-
pação social estremeceu os nossos jovens escritores que desandaram,

158
com Jorge Amado à frente, a tirar das reportagens da produção suas
pretendidas ficções.
O gênero já deu o que tinha de dar - outros rumos surgem e
deverão reabilitar esta precária literatura brasileira. Para isso traba-
lhamos. Do ponto de vista literário foi negativa para o mundo e
para nós a influência ou influências decorrentes da revolução de 17.
Uma literatura traída.

Vanguarda Socialista, Ano I, n. 11, 9 de novembro de 1945


0

159
SÉRGIO MILLIET E O PAPEL DO INTELECTUAL

Patrlcia Galvão

Neste domingo de eleições que é um luminoso domingo de de-


zembro, de uma claridade quase simbólica na variação atmosférica de
uma primavera que não teve ainda dias de sol, certamente vai passar
desapercebida a página de Sérgio Milliet, num dos nossos suplemen-
tos literários, em que, sob o título "Uma retificação", o ágil espírito
do Diário critico nos relembra um episódio dos idos de julho deste
ano, cuja atualidade permanece, senão aumenta, pela incidência de
circunstâncias que permaneceram e que aumentam . .. Esta crônica li-
terária tem tratado indiretamente muitas vezes do papel reservado ao
intelectual perante os partidos que se atribuem uma função revolu-
cionária e renovadora, no caso da retificação que Sérgio julgou ne-
cessária o Partido Comunista de Prestes. Trata-se do discurso com
que Sérgio Milliet devia saudar o poeta chileno Pablo Neruda, em
sua visita a São Paulo, num banquete que lhe ofereceram os líderes
comunistas-prestistas. Um conselheiro destes últimos, o sr. James
Amado, tendo conhecimento do discurso, ponderou a Sérgio que se-
ria inconveniente pronunciá-lo, no momento. Assim, "para que não
se criem lendas em torno nem sejam exploradas palavras que não
pensei", justifica Sérgio a publicação do discurso, agora, meses de-
pois do incidente. Acho muito justa e útil a publicação que fez.
Divirjo do discurso de Sérgio numa palavra, o adjetivo colocado
diante da "fala" de Prestes no Pacaembu. Não posso achar "belo"
esse discurso. Creio aliás que a palavra está colocada ali mais ou me-
nos à toa, sem o caráter de imprescindibilidade que se deverá em-
prestar a um acordo entre o qualificativo e o pensamento crítico de
Sérgio. Na verdade é ele mesmo que desmancha o conceito da beleza
do discurso, quando lhe aponta a deformidade, o sentido pejorativo
que Prestes emprestou ao esquerdismo, e que constitui na verdade o

160
ponto de partida para o discurso inconveniente de Sérgio Milliet. Não
estendo a unha para o pião da influência trotskista denunciada pelo
bravo líder, porque Sérgio também passa de largo o exame do caso.
Mas quanto a esquerdismo parece-me acertado o que consta do dis-
curso tanto tempo segregado na gaveta do escritor.
O problema da participação do intdectual, assim, enquadra-se
dentro da terceira hipótese de Sérgio Milliet: na crítica desassombra-
da e livre. Para o escritor, o verdadeiro intdectual, o problema seu,
íntimo, profundo, mental e artístico, para mdhor abranger todas as
fronteiras de sua personalidade, não consiste apenas em aderir, em
tornar-se uma peça no conjunto. Não é a educação burguesa culpada
disto, mas sua sensibilidade, seus desejos e aspirações, seu ideal de
libertação, que não ficam na delimitação partidária, e ainda menos
nas conveniências estritas do jogo político, que não é aqui examinado
na sua trama, mas- apenas mencionado como entrave que é ao fluir
das idéias e da atividade criadora do intelectual. Naturalmente, pela
própria contingência de fatos, brutais, o choque entre Gide e uma
realidade revolucionária, há de preferir o escritor, em muitos casos,
antes de isolar-se gozar a liberc¼cc!e q'!eJhe dá a ordem de coiSas
democrático-burguesa, onde __ele é_ considera~<l___pur_a e simplesinénte
"poeta" ou "i_êj~@~t.a.':.__e. __quando pioneiro incomPie.~SfVeT ·"um
sUjeito de gênio mas sem._nada.__de prático''_, _ou um excêntrlOO~---.
E·sse marginal então, goza .de liberdade, da )f§saj~~ AJ}S- lhe-- ·não
sªkiffi rnr,i;i: bewrnn de
e,
parti OS po tlCO.J_,
esauerda. . . nem tão esquetefa!a,s

O idealismo (no sentido sério do termo) com que Sérgio se in-


surge contra a falta de compreensão do problema fê-lo cometer a
"gafe" de anunciar que se fosse dirigente do Partido Comunista de
Prestes se congratularia com todos os que considerassem a participa-
ção dos intelectuais como necessária no papel da "crítica desassom-
brada e livre". E ainda ajunta: "Nada mais útil, nada mais benéfico
à ação política do que a certeza da existência de um controle impar-
cial e exercido çom honestidade". Pois sim.
Fica de tudo a ratificação da atitude de Sérgio Milliet, da imu-
tabilidade com que de preferiu antes desistir do discurso do que lhe
trocar as vírgulas inconvenientes. Nesse sentido "Uma retificação"
dá exemplo e faz época, mostrando-nos a participação do ilustre inte-
lectual na crise social e política mais imediata. Agradecemos sua de-
fesa da liberdade do intelectual, só lhe reprochando tanta demora ...
A família vai se reunindo, os que andavam transviados voltam aos

161
poemas, n6s temos um mundo inteiro que é nosso território e onde
não importam os chefes e a sua arrogante infalibilidade.
Nossa indisciplina não nos inibe de ver nitidamente, a olho nu,
os erros palmares em que tantas vezes incorre aquela infalibilidade
indiscutívd, e, no caso vertente, a colher sem parar os pecos resul•
tados de derrotas após derrotas.

Vanguarda Socialista, Ano I, n.º 15, 7 de dezembro de 1945

162
UM D.I.P. INTERNACIONAL
Vem da Rússia a proposta contra a liberdade de expressão

Patrlcia Galvão

A revista "Tempos novos", editada na Rússia, traz· um artigo


assinado por N. Baltiski, exigindo um tribunal internacional para os
"crimes jornalísticos".
Agora que está na ordem do dia a luta pelas liberdades demo-
cráticas, das quais a liberdade de expressão é essencial, parte da Rús-
sia uma original proposta sugerindo a criação desse tribunal excep-
cional, que deverá, não apenas como o nosso antigo D.I.P. cercear
a liberdade de imprensa, mas deverá punir rigorosamenté os jornalis-
tas que se atreverem a sair dos limites marcados pelo sr. N. Baltiski.
Entre os limites, o articulista russo sublinha a calúnia política
contra qualquer Estado "amante da paz", de conhecida terminolo-
gia ...
·Ora, como nenhum país do mundo se confessa corajosamente,
ou modestamente, amigo da guerra, seria de esperar que amanhã a
Espanha de Franco ou a Argentina de Per6n, exibindo as credenciais
de neutralidade como provas esmagadoras do amor à paz, viessem
processar centenas de jornalistas democráticos por calúnia política.
Não é impossível que arrebanhem como testemunhas a maioria da
população de seus respectivos países (lembremo-nos do Brasil), e con-
sigam. no final das contas botar muito jornalista na cadeia.
Mas não é propriamente essa a intenção do nosso colega de im-
prensa. O que ele deseja é impedir que a roupa suja saia de sua ca-
sa. Essa vontade já foi manifestada em protestos por diversas embai-
xadas da Pátria Russa, e bem recentemente no Uruguai, sempre que
alguém se lembra de assuntar a burocracia stalinista. Evidentemente
já estão percebendo que a ordem de coisas lá da casa deles está sen-
do cada vez mais conhecida e pretendem pôr um freio aos homens
que trabalham com a cabeça, que são os que não vão na fiúza do

163
"camarada" Stálin. E como toda a política russa no dizer lá deles,
mesmo a invasão da Polônia, a tomada da Lituânia, a perseguição
aos judeus, os saques na ocupação etc. . . etc. . . é desenvolvida no
sentido da "Paz", para assegurar a Paz, conclui-se que a Rússla é a
mais refinada das "maitresses" da Paz, donde. . . Cadeia para quem
desmentir ou deturpar essa política e um processozinho, como aque-
les de Moscou, não ficaria mal. Não há outra explicação para tão
original idéia, pois compreender-se-ia que alguém com ingenuidade
propusesse, por exemplo, uma censura na fabricrição de instrumentos
de morte (que existe aliás s6 para os derrotado,), mas nunca a liber-
dade de crítica a não ser um fascista, com medo de ser despido e
desmascarado.

Vanguarda Socialista, Ano I, n.º 18, 28 de dezembro de 1945

164
A No\JA, VIDA Niio { sÕ PAR/\
bEfo\5 oa 5<></AL•SMO
PAUNTESIS NO DESCAMINHAMENTO
Patrlcia Galvão

III

Seria possível uma crítica talvez dos aspectos pouco recomendá-


veis a que chegamos nós, do ponto de vista dos intelectuais, os que
rtabalham com a sensibilidade e a inteligência, denrto da engrena-
gem estraçalhante a que temos sido até agora trazidos per essa coisa
que se convencionou chamar a "participação" na luta política. Refle-
tindo acercá da ordem de idéias que vinha esboçando em crônicas
anteriores cheguei a me convenr.N .recentemente que o nosso proble-
ma de maior importância está ligado ao predomínio do social - po-
lítico, portanto, - sobre o humano. Seria possível e, mais do que
isso, rtão nos conviria inverter os dados cirr11.nstanciais da "partici-
pação", partindo do humano para ,;·social?-----···· · --· ·· - -
A este ponto das interrogações, penso ainda, embora sem mui-
ta nitidez, que é preciso ar tudo de novo robl d
~ e.' ão a
fumas tantas convicções que aparentam uma ··grande adesão às
idéias de liberdade. É livre quem luta pela liberdade dentro de uma
organização gu~ inidJ1.l!n.~~t~"~~_!ingui11 nos seus·,,c~~p~~D.~! _Q_~~~.
êleti?Tivre quem luta pela liberdãõé-dos ôutros, mas or anizato-
riamente se ac a preso a uma sc1p na de ferro? São perguntas que
devem se aêhar na platâforma deste ponto~artida sobre a parti-
cipação do homem intelectual na luta pela liberdade dos homens. E
são perguntas que não podem ser, estou certa, respondidas pela gran-
de maioria dos que se deixaram levar na corrente da adesão a umas
certas convicções, cuja única importância hoje reside no velho ouro
de sua passada legenda.
Quem quiser raciocinar nesta base deduzirá logo que .!'.".. com-
preendo que seda a liberdade individual o ponto de partida parai
tomadª de consciência de.Ullla. 'l'~rdadeita Juta ~ liberêlãde. Uma

165
ética decorre disto. Irrecusavelmente, estamos aqui pisando num ter-
reno firme. Conhecerá os caminhos de liberdade, será capaz de indi-
~á-l?s agenas quem estdalivre ~yi'@§ 1tUbi1
U~a coincidência, o~
inc1dene1a, hum âogma '.f;õ1iJCo,fiao aeve i1car acima da espontanei-
dade que puder guiar os passos do intelectual. Naturalmente, não se
-trata aqui de uma ignorância de que a democracia, em grosso modo,
é apenas um voto de maioria. O ue recisa ficar bem claro é que
'ber d não ode ficar subme · a a uma foci eira par-
µdária, capaz, j>el..Jegenda~ de uma ideologia - sofisma a ou traí a,
não se quer saber de estar no caminho certo da liberdade huma-
..Jl!.:. Os que se apresentam- acorrentados, marcados pelos "slogans"
aliás "palavras de ordem", são apenas uns pobres diabos, uns despre-
zíveis escravos, repetidores de discos, e causam espanto que venham
nos dizer que estão "participando'' da luta pela liberdade, com os
seus clichês e lugares comuns, Como pode um escravo lutar pela li-
berdade dos outros? -
Impõe-se o pnncípio de que antes da participação na luta pela
liberdade alheia, realize o intelectual a sua liberdade, um desborda-
mento de limites que desconheça "palavras de ordem" adequadas a
desígnios imediatos e ·negocistas dos que retêm em suas mãos os cor-
déis diretores das massas.
É preciso, naturalmente, penetrar o essencial neste ponto ético:
o trabalho do intelectual desdobra-se em duas fases principais, que
são a crítica e a descoberta. t>€,N,;:il'lo::: 1A -i, ANVr,1ç10

Há diferença entre uma participação consciente de sua profunda


natureza e um gesto determinado por acasos. Aqui na rua, por exem-
plo, há uma vibrante manifestação de homens organizados que pro-
testam. . . O intelectual passava, achou-se entre esses homens e par-
ticipa, voluntariamente, do seu movimento. Deu-se então a coinci-
dência. Mas ao intelectual é defeso participar de uma lu(a pela liber-
dade entrando numa organização em que a sua mentalidade ea sua fo\/ o
responsabilidade se d,ev_em deixar ''dissolver'' diante da maioria qu~_- x
~--Q.9~--4--aPmas seguir um chefe, e, vag~~nte1 NOVO
um detetroinadQ _f_iml embora nunca chegue a de. Sem dúv1ãa, o in-
telec~al pode e d~~Cficãrclentro do partido, -quando o partido não
discorda dde, em uma perfeita consonância com o seu ideal e o seu
conhecimento das coisas. As maiorias ocasionais, que nunca discor-
dam, porque não partem d~crftiCa, mas_ de uma su:eerstlça~ pollt1ca,
e&Sãs, nada têm a ver nem com a crítica, nem, ainda, coin a desco-
bertá-, Uma revelãÇâo a·-ê!ãr-se nas mãos livres que manejam o pen-_
~~menta e a.~crfa~o. . . Pode, sem dúvida, haver quem julgue de-

166
_mocrático entregar-se ao acaso das maiorias, de seu voto baseado num
critério de quantidade. (Aliás, dever-se-ia determinar se há democra-
cia mesmo quando um tipo bronco vota por alguém ou por alguma
coisa ao lado de quem conscientemente avalia e julga como está
dando, a quem e porque, seu voto consciente. Que espécie de demo-
cracia?)
Voltemos ao princípio. Que o humano sobreleve o social, para
o homem que trabalha com a inteligência e com a sensibilidade. Que
a sua ética seja determinada pelo livre exame das coisas, e que ele
dê ao seu vôo a amplitude nítida de quem eve a ordem de su s
ermina - es das

da luta pela liberdade.


Donde, portanto, entre a direita da opressão e a esquerda tota-
litária que emerge destes dias cinzentos, esboçar a palavra que re-
conduz à hierarquia dos valores perdidos, entre ditaduras e naciona-
lismos exacerbados, naturalizações não-escritas, em vigor somente pe-
los objetivos imediatos dos partidos, donde, pois, levantar-se a certe-
za de que é possível um "terceiro partido", nos caminhos da liber-
dade.

Vanguarda Socialista, Ano I, n.º 36, 3 de maio de 1946

167
OS ARTISTAS PLASTICOS E O PARTIDO
COMUNISTA

Geraldo Ferraz

É realmente difícil descobrir as origens desta exposição que no


catálogo se chama "Artistas plásticos do Partido Comunista do Bra-
sil", se se excluir delas a coceira dos mesmos artistas plásticos no an-
seio de manifestar sua identidade .com a ''ideologia avançada" desse
agrupamento polírico. É claro que uns pensaram assim, outros se afo-
baram para dar sua adesão e de uns e de outros saiu o golpe de
laço para apanhar os que se achavam mais distantes, os mais neutros
e mais indiferentes. Por outro lado, a seção intelectual e artística
se agitou toda para demonstrar também este aspecto da importância
de um Partido, que tem dentro de si os melhores artistas contempo-
râneos do Brasil -'- embora não se possa admitir que seja tão rotun-
da a afirmação realizada.
O que há, pórém, de novidade na exposição reunida na Casa do
Estudante é uma oportunidade, e única, que já mencionei noutro lu-
gar, de atração de gente que nunca se interessou por uma exposição
de pintura, para o recinto que a bandeira do Partido cobre e pres-
tigia. . . Os artistas modernos que;· pelos retoques da organização e
pela maiori~ qu~ constituem, conduziram esta mostra a sua concre-
tização, deveriam, se realmente cuidassem de arte, marcar com a sua
presença uma forte e iniludível linha divis6ria, para que a bandeira
do Partido se visse por sua vez prestigiada pela demonstração idônea
feita em seu benefício. E poderiam usufruir sozinhos do outro bene-
fício, de informação direta e legítima ao público que pelos belos
olhos do sr. Luís Carlos Prestes pela primeira vez se aventura a to-
mar conhecimento das artes plásticas.
Entretanto, a excelente oportunidade se perdeu e sob o signo
do Partido ocorreu por parte dos modernos, pela primeira vez na
história destas precárias artes plásticas brasileiras, que tais artistas

168
se dirigissem aos outros em termos de confraternização conciliatória
e simpática, a qual reconhece os mesmos direitos à pintura que até
na cabeça do sr. Capanema não deve ser posta no mesmo Salão, con-
forme o espírito da reforma adotada com a criação do Salão Nacio-
nal de Arte Moderna. O esvurmo deliqüescente do colaboracionismo
espraiou-se portanto para esta conciliação num terreno em- que se
travou outrora uma luta de intransigências, no mérito, na verdade,
na conseqüência revolucionária renovadora com que a arte deste sé-
culo se afirmou em sua grandeza de sacrif!cio e glória.
A solução unitária é pois a primeira nota falsa a soar na decan-
tada realização artística, aliás um certame de caráter beneficente, que
a manha dos espertos timbra em cobrir com a desculpa de que faz
arte, quando o que realiza é adesão ao Partido, pretendendo jogar
poeira nos olhos dos artistas, do público e dos crentes.
Há certo um bisonho ingenulsmo nos retratos de Luís Carlos
Prestes, sendo assinalável, por intencional, a sombra que cobre a fa.
ce esqÚerda do l!der e a luz que lhe ilumina a direita, no quadro
apressado de Q. Campofiorito. Em todo caso, compreende-se mais
essa obra do que as tentativas de um sr. Haroldo Barros, que ora
deu queixo demais ao herói, ora lhe alargou as mandíbulas, numa
troça danada em que não há o meio termo do retrato. Os quadros
e desenhos de caráter "social" no entendimento da turma pululam
por aqui e por ali, desde a paisagem convencional das fábricas da
"burguesia progressista", até os heróis da frente do trabalho, como
na truculência de Sigaud, dos estivadores, dos operários etc. Do con-
teúdo mesmo nada. . . se se quiser admitir como certa a discutível
teoria de Plekhânov.
A grande aquisição do Partido, que é Portinari, contribui com
uma "Roda", difusa, esboçada, em que ainda os reflexos do dinamis-
mo plástico podem reclamar seus direitos, e na qual há uma espécie
de fogo de cobertura ...
Vale a exposição para nos mostrar "Cabra", de Pancetti, a "Pai-
sagem", de Bonadei, "Natureza Morta", de Roberto Burle-Marx, e
"Natureza Morta", de Oswald de Andrade Filho, as quais nada têm
a ver com a solução unitária a que se chegou afinal. A sola grossa
que faz sua entrada nesta sala, ringindo sedenta de benefícios à so-
fismada vanguarda do proletariado é aqui admitida pelas confusões
da transição presente. Depois, tudo se esclarecerá.

Vanguarda Socialista, Ano I, n.º 10, 2 de novembro de 1945

169
A REVISTA DE ARTE DA ENBA *
Geraldo Ferraz

Não está ruim não a revistinha dos rapazes da ENBA, até que
vai trilhando um caminho de possibilidades que dá vontade de aplau-
dir. O que falta infelizmente é um espírito .mais endereçado ao que
os revisteiros da Escola se dispõem atingir, pois não é difícil apon-
tar os descambamentos das finalidades em vista aqui e ali. Os cola-
boradores, em parte, também não se acham escrevendo para uma
revista do tempo ... Anda um bolor pelos estilos, escapando feliz-
mente Lúcio Costa e Mindlin. As fotografias e ilustrações também
vagueiam pela falta de unidade de concepção e, assim outras coisas
para serem mais cuidadas pelos supervisores, que estão fazendo a
sua experiência sem grandes informações.
O que porém deveria merecer mais atenção dos revisteiro, da
ENBA é a misturada em. que vão publicando até esse bobo artigo
de J. S. Bartlet, sobre a "Gravura russa", em que a pretexto de
defender a mediocridade incrível de uma exposição de arte gráfica
dos russos em Londres, o articulista escreve que o futurismo "aca-
bou caindo em ridículo na Rússia, principalmente depois que o bom
senso de Stálin prevaleceu, definitivamente, sobre a camarilha de
Trotsky ... " E eis aqui a bobagem ganhando foros de cidade, alvis-
sareira e feliz, numa página em que a ilustração não deixa dúvidas
guanto à qualidade - se é que alguma qualidade há naquilo - da
gravura russa mais atual. Os retalhos de amostra da interpretação da
arte russa, no catálogo de A. A. Sidorov, que o sr. Bartlet prega no
seu artigo, demonstram o ronceirismo por onde plana ·o vôo de pato
dos russos, no que eles acreditam que estão fazendo arte com pou-
cos assuntos "cuja escolha se baseia em motivos racionais,,, ou seja,

* Escola Nacional de Belas Artes.

170
temos de pensar, escolhidos por uma repartiçãozinha da inspiração
artística. É de amargar perderem os rapazes da ENBA duas páginas
com semelhante inutilidade.

Vanguarda Socialista, Ano I, n.º 11, 9 de novembro de 1945

171
ASSIM FALOU PORTINARI

Geraldo Ferraz

Andam os jornais cheios de glorificação a Cândido Portinari,


porque o "Miguel Ângelo brasileiro", de acordo com os conceitos di-
plomáticos do sr. German Bazin, vai agora expor na Europa, em Pa-
ris, e o nosso máximo pintor só contava até hoje com o acaso da
boa-vizinhança, que elevou ao degree da fama os Archibald Me Leish
e os Portinari de lá e de cá, a tal ponto que, porque um pintor
norte-americano pintou na nossa Biblioteca Nacional, Candinho foi
convidado a pintar também na Biblioteca do Congresso de lá ...
·(Não há negar que Washington lucrou com a troca) . Não sei se
por causa dessa glorificação ou da sua candidatura a deputado pelo
Partido Comunista, o que esperamos que nunca aconteça a Picasso,
cuja única honraria oficial foi o convite que lhe fez a Espanha re-
publicana para dirigir o Museu dei Prado, não sei, dizia, porque anda
o sr. Cindido Portinari tão palavroso, a ponto de p.rnmover sabati-
nas de artistas como há duas semanas o fez, na A.B.I., liderando os
artistas plásticos à imitação do "filho querido do povo". Fê-lo para
marcar uma orientação artística, para que seus colegas fiquem saben-
do que "pintura que se desliga do povo não é arte", pois ele "não
conhece nenhuma grande arte, que não seja intimamente ligada ao
povo", e outra qualquer pintura não é mais senão "passatempo, um
jogo de cores cuja mensagem vai de epiderme em epiderme" . ..
É verdade que Portinari, nas primeiras frases de sua oração, d..,..
clarou que sofre de carência de expressão, ao contrário de Degas,
cujo martírio era escrever pois ";e n'aime pas écrire, mon cher ami,
ie ne sais que parler, même quand ie ne sais que dire . . '." Saberia
o que estava "parlando" Cândido Portinari em sua encíclica pitórica
da sabatina da A.B.I.? Parece-me que ele deveria melhor policiar os
termos que usou, porque não deixa de ser barbaridade um pintor

172
tão aristocrático, retratista de belas e cuidadas damas de nossa me-
lhor sociedade, vir nos dizer que s6 é arte aquilo que está ligado ao
povo, nesse complexo de nivelamento que envolveu as criaturas da
procissão prestista. Ou povo são também as senhoras embaixatrizes?
Desse ponto de vista amplo, não há dúvida que sim, pois o povo
não abarca apenas uma camada da população, mas toda a gente de
um país. É povo desde o rei até o deputado João Amazonas e o
eleitor do deputado B.P. Mas Portinari diferencia. Ele quer sofri-
mento e dor para encontrar o povo, e daqui por diante certamente
encontraremos só as figuras das tragédias "provocadas pelas injusti-
ças, pela desigualdade e pela fome", nos seus quadros de pintura-
arte, ou seja aquela "ligada" ao povo. P -
dário do assunto desgraçado a que chama de "coisas comovente~", o
que deita abaixo as ãltarnmãs que tocam a intuição e a sensibilida-
de do espectador, para rebaixar a um padrão grosseiro de documen-
tação dos acontecimentos sociais a escala da emoção a ser produzida
pelas artes plásticas. Ele não deixa de confessar que "tais aconteci-
mentos causam sensações diferentes em cada um, porque nada existe
exatamente igual, como não existe nenhum homem igual a outro,
nem mesmo. fisicamente, porém há um limite de Çiferenciação: não
há homem de cinco metros como não os há de dois centímetros. En-
tretanto os acontecimentos maiores afetam forçosamente a todos".
Essa teoria do assunto tomado aos acontecimentos maiores ain-
da não foi, é claro, descoberta por nenhuma estética. . . Quando
Portinari a enuncia está dizendo uma novidade tão grande como a
de que não existem homens de cinco metros nem de dois centíme-
tros, mas, pelo menos nesta última portentosa imagem pode-se apro-
veitar o sentido figurativo para contrariar Portinari, pois há pintores
de cinco metros de altura e os há de dois cendmetros . . . Pelo me-
nos a concepção unitária da arte que Portinari inclusivamente reco-
nhece em seu trêmulo discurso só pode transformar os artistas em
anõezinbos impotentes.
Está lá no discurso de Portinari esta coisa irreconhecível: "Há
também em pintura muita maneira de expressão. Uns pela naturalis-
ta, outros até mesmo por uma espécie de código, como acontece com
o grande pintor espanhol Miró". Juntar numa seqüência a maneira
"naturalista" e emparelhar Mirá com ela é de amargar, não é mes-
mo? Pelo menos nunca pensei que o chefe de escola de Brodóvski
depois de adquirir o halo de glória, quando ia já no amadurecimento
miguelangelesco para as alturas do Louvre, viesse nos mimosear com
semelhante disparate, o que talvez no fundo de sua psicologia se en-

173
contrasse recalcado,. como a convicção profunda que o comportamen-
to do grupo até agora não deixava tresandar. . . pelo menos em pa-
lavras, pois não faltam na portinariana autênticos exemplos da con-
cessão naturalista. Ou será esse um dos aspectos ela carência de ex-
pressão falada de que Portinari se queixou no princípio de seu pala-
vreado? E a percentagem de "natural" que ele diz que o artista usa
como meio de expressão? O que significa um por cento de natural,
"outras vezes dez por cento e assim por diante?" E quando usa cem
por cento não chega à fotografia colorida?
Vamos torcer por que a viagem à França não desgrace de vez
o grande artista que há em Portinari, principalmente quando ele se
lembra de que se fez sozinho, sem ter, como agora, às costas, o par-
tido prestista ...
O convite feito a Picasso, Fougeron e Pignon, para pintarem os
retratos de Thorez, Duelos e Cachin, mostra bem para onde se orien-
ta a pintura para o "povo", criadora da nova iconografia, de que
Stálin é o escarro completo.
O discurso de Portinari sobre artes plásticas na sabatina que ele
proporcionou a alguns dos "nossos mais notáveis artistas modernos",
como assinalou a Tribuna popular, querendo com isso fazer confu-
são, não é ao menos um discurso aproveitável. .. Merece a censura
e a repreensão que nossos críticos de arte e a imprensa não lhe de-
ram, para que se não deixe pelo silêncio inferir um consentimento à
extravagância militante da arte que o Partido Comunista quer que
seja indiscriminada, admitindo tudo, mas principalmente essa que sa-
tisfaz o gosto medíocre das massas deseducad_as e .incon~m
qÜe;: germinam as s_ementes ·aeUma _ideÜIÕg!à-•ttafdâ~·~riã-SOiuÇão -aco.:-
1EoJá-úCia a que obriga o novo ··imp.CIIâffsfilÕ nÍasCãfaâO ..corre o-s · an~
drajos da defunta pátria do proletariado.

Vanguarda Socialista, Ano T, n.º 33, 12 de abril de 1946

174
ASPECTOS DO SURREALISMO (EXTRATO)

Geraldo Ferraz

A fidelidade admirável de Breton tornou-o para o futuro desta


tendência, a maior figura do movimento, aquela em que uma irreduM
tibilidade estética penetrou profundamente e extensamente suas raí.
zes em todos os domínios do conhecimento, indo à arqueologia, à
magia. Seu manifesto de julho de 1938, assinado no México, ao lado
do nome de Diego Rivera - então afastado do movimento comu-
nista - e que preconiza "a independência da arte para a revolução
- a revolução para a libertação definitiva da arte'', não perdeu sua
atualidade, não obstante certas referências que se tornaram obsoletas
como designação de exemplos.

(Publicado em A Tribuna de Santos, domingo, 13/12/64)

175
ARTE E BUROCRACIA

Mário Pedrosa

Em geral, tenho por norma não discutir prêmios de recompensa


ou de reconhecimento distribuídos por todos esses salões coletivos
que se multiplicam, à medida que a proteção das artes é considerada
como alto signo de prestígio social e de progressivismo. É que prê-
mios como reconhecimento intrínseco do valor de um artista ou de
uma obra é para lá de relativo. A importância do prêmio é que, aqui
e acolá, menos freqüentemente do que se pensa, pode ajudar um ar-
tista autêntico do modo mais rasteiro .possível, isto é, materialmente.
É o caso dos prêmios ditos de "!viagem" do Salão Nacional. (Diga-se
de passagem que a premiação deste ano · foi exemplar.)
Mediante os 500 dólares mensais que um artista vai receber du-
rante dois anos,. ,o premiado pode ter a ilusão de que vive de sua
arte e para sua arte, sem a obrigação extenuante e geralmente mor-
tificante de ganhar o pão cotidiano com o suor do rosto. Mas essa po·
bre ilusão só a têm os que, galardoados, são mesmo artistas, não Sa-
bem viver de outra coisa, querem continuar artistas mesmo depois
de realizada a viagem, objeto do prêmio. O Salão Nacional não tem
outra finalidade, nem mérito. O difícil, porém, é acertar num artista,
em meio aos que só querem a viagem pela viagem, e de volta vão
tratar de outros negócios mais rendosos, sem nunca mais olhar um
quadro ou_ entrar numa exposição. Uma larga brecha, aberta a esses
pára-quedistas é o outro Salão, o chamado de "Arte Cláss' ", que
o Estado brasileiro, a falta ' · ou
permitiu continuar a uncionar, ao la o o r1v
O Brasil é, assim, o único país do mundo que reconhece, ofi-
cialmente, a existência de duas espécies de arte, .uma "acadêmica" ou
"clássica" e outra "nioderna", e salomonicamente protege as duas,
estimula as duas, não de cambulhada, o que seria mais natural, já

176
que não compete ao Estado distinguir artes e muito menos institucio-
nalizar diferenças, espécies, escolas. Temos, pois, todos os anos dois
-salões nacionais, oficiais, com os mesmos regulamentos e prêmios,
um a funcionar como o duplo do outro. O exercido do sistema já
criou mesmo a aberração de n~ prática ter feito desaparecer a dife-
rença (qualitativa ou estética) entre uma arte e a ,outra. Como? Per-
mitindo a um participante do salão acadêmico, já isento de júri, no
dia seguinte apresentar-se ao salão "moderno" e ganhar neste o gran-
de prêmio de viagem cobiçado. Assim, reconhece-se oficialmente a
possibilidade de um suíeito, já consagrado como artista "acadêmico"
ou "clássico" ser meses depois consagrado como artista "moderno"
no salão destinado à tal arte moderna.
O número dos que fazem esse atalho, e entram em busca de
isenção para seus "produtos'' à la Osvaldo Teixeira no salão "acadê-
mico" para aparecer no ano seguinte com os crachás modernistas é
cada vez maior. O Estado reconhece a identidade burocrática entre
os dois salões e não os distingue. Mais ainda, permite a promiscui-
dade entre os artistas participantes dos dois salões, e toma com esse
proceder evidente não haver mais nenhuma razão para a existência
dos dois salões. Faça-se então um salão só, e para que o Estado não
economize essa duplicação de despesas e de prêmios, .que não vêm
beneficiar ninguém, que duplique os prêmios, ou os aumente, em va-
lor, ou crie bolsas, melhore as instalações do salão anual, pague os
que têm a incumbência incômoda e difícil de prepará-lo, inclusive os
pobres membros do Júri, cujo trabalho é exaustivo, ingrato e deli-
cado. Tal como é, a existência de dois salões oficiais é um atentado
à dignidade cultural e estética do país e uma excrescência burocrática
desmoralizante, Mas por que não se chega a abolir essa duplicação
obsoleta? Porque há os interesses investidos no velho salão, e essa
invencivel · que as coisas do Estado criam, e se
tomam irremo veis.
O anacronismo da pr6pria instituição do Salão já é gritante, E
s6 se justifica pela mesquinhez do nosso mercado de arte e a inexis-
tência de uma opinião pública qualificada no domínio artístico, ou
sua completa incompetência e inoperância. Colunistas sociais aliados
à grã-finagem diletante fazem e desfazem valores, promovem "artis-
tas" de uma hora para outra com alguma publicidade e coquetéis
com bastante uísque, e, depois, passam adiante a tratar de outros ne-
g6cios. Nos meios oficiais, o processo é semelhante. O ltamarati é
useiro e vezeiro em organizar exposições e mostras na completa clan-
destinidade, a fim de promover a carreira de funcionários; o pior é

177
que sempre no exterior, onde por vezes - poucas vezes, é verdade
- são tais mostras visitadas por gente do país, além do pessoal obri-
gatório das embaixadas e consulados e, eventualmente, por brasileiros
de passagem. Acontece ainda que, uma vez realizada a mostra-pro-
moção do diplomata organizador, a despreocupação pelas obras dos
artistas é de tal ordem que estas se perdem pelo caminho de retorno
ou ficam nos armazéns do Cais do Porto, até, arruinados ou mutila-
dos, irem para os leilões de salvados e arrematados em hasta públi-
ca. Não faz muito tempo, os meios artísticos do Rio e sobretudo de
São Paulo foram convulsionados pelo escândalo de se ver obras de
certos artistas, tidas como desaparecidas desde que foram enviadas
pelo I tamarati para uma exposição de artistas brasileiros a correr
mundo, aparecer na posse de um leiloeiro privado e oferecidas clan-
destinamente nos mercados de arte de São Paulo e Rio de Janeiro.
É ainda de uma maneira clandestina que o operoso conselheiro
W. Murtinbo, encarregado das obras de transferência do seu minis-
tério para Brasília, contrata artistas, compra obras destinadas ao Pa-
lácio dos Arcos, de Oscar Niemeyer, em Brasília. Ao que se sabe, há
ali de tudo, obras de valor de artistas de valor e obras sem maior
valia de artistas inexpressivos, mas bem protegidos, em meio a gran-
de profusão de mármore, de luxo e de água. Manda o exclusivo e
particular critério do ilustre diplomata. Este critério, aliás, não se
limita, ao que parece, à escolha dos artistas ou de obras, mas recai
sobre o próprio destino destas, das quais dispõe como quer, inclusive
quanto à colocação no contexto do Palácio ou até desfigurando-as
para que ali se ajeitem. É perigoso entregar a um só homem, por
mais competente ou virtuose que seja, a tarefa de preparar, mobiliar,
ornamentar o palácio niemeyeresco para as suas funções diplomáticas
e representativas.
No Brasil de hoje, basta a um burocrata assegurar-se de algum
noticiário simpático da grande imprensa e seu empreendimento, ou
melhor ainda,· do apoio de algum general, para que plena liberdade
de ação lhe seja dada e ele passe a agir discricionariamente, no mais .
soberano desprezo pela_opinião pública, mesmo 9 sueliflsada. Se uma c.:v(i';:"1 1'
0 ~ €
°
. soberana pode ser da maior
burocrac1a · ef"1c1enc1a
·• · - no acerto ou no quALI DD ~
erro - em vastos domínios práticos, no campo das artes, tenderá
sempre tal eficiência a ser desastrosa. Não estou dizendo com isso
que a arrumação do Palácio dos Arcos, em Brasília, seja um desastre,
pois desconheço o que ali se fez e se está fazendo, mas que o olho
da opinião culta.
o olho da crítica se ponha sobre aquele trabalho. '1'-'~r_ D'<
Para aplaudir, ou para fazer os reparos necessários. Aliás, Brasília O "ll E ?
<' (V Í4. '',

178
inteira é no plano cultural uma clandestinidade. Ali não apenas se
espancam estudantes; no seu campus universitário o Exército tem
acampado, e a polícia não se retém de pegar estudantes pelo gasga-
nete dentro da biblioteca de sua Universidade e de seus auditórios e
arrastá-los para fora a bofetões; os professores também são expulsos
ou pegos como arruaceiros. Mas no plano urbanístico, por exemplo,
se faz o que quer, e a bela concepção de Lúcio Costa de dia para
dia é mais desvirtuada. No Congresso Internacional de Críticos de
Arte, em 1959, sobre "Brasília", cidade nova - "síntese das artes",
.a voz desabusada de Bruno Zevi vaticinava: O plano fechado de Bra-
sília não será mantido. Hoje, é o que se verifica, o plano fechado
de Brasília não foi respeitado. E o crescimento da cidade, se se fi.
zer, abrirá brechas cada vez maiores naquele plano. Se não se der,
porém, esse crescimento, a Capital vegetará como um aglomerado de
arranjos e improvisações, ao gosto do burocratismo cívico-militar que
a tem prisioneira e isolada no ecúmeno nacional. Para que o patri-
mônio cultural do país seja enriquecido de um verdadeiro acréscimo
que Brasília, ao ser concebida e criada, prometia, é necessário tor-
nar-se uma obra coletiva do corpo cultural do pais. Isso implica, P2:
rém, que em lugar de .ser .!'!º~ida pelo formulário democrático de
um hmõêrata irrespo_l!sáycl pQrque inatingível pela crluca, o seja pe-
' acra \iivii do espírito_ doJi~!,
exame, da critica indepeii.ife~:
!e, um controle permanente ela o llllao ública nacional.
A arte e nossos as ga a cada vez mais aS-iUãs~ as praças e
os jardins, as grandes aglomerações urbanas. Eminentemente urbanís-
tica, não quer ela ser confinada a coisa alguma; é extrovertida, ob-
jetiva e modernizadora da vida, onde quer que chegue. Brasília é
mantida, entretanto, em escand~loso anaéronismo, fora de seu hálito
irreverente, e por isso mesmo entre os palácios e mármores, lagos e
jardins de Brasília, limpos ou despovoados, nada existe que respire
o calor do drama cultural e artístico de hoje. Os artistas jovens (não
apenas de idade) e revolucionários de nossos dias estão marginaliza-
dos, conservados bem a distância dela, enquanto burocratas, confina-
dos no seu isolamento, tratam de montar ali uma arte oficial, a seu
gosto e pequena dimensão, fora do compasso da atualidade, indife-
rente ou estranho ao que se faz hoje no Brasil de mais arriscado, de
mais vivo e de inais . .. brasileiro.

Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 4 de junho de 1967


• qv,rnoNA o foDO, bo E'Sr,iuo .Í06RC:A ,<iRTE
E ,~DI<'\ UM, OE/v1oc~c1A DA Of1"11Ão f\/il(.IC/1
'(1Vf'-.(' 'SvérA' 'QvAUfte''\bA'. MA> O.Vê/vi ~,S(ER~€
179
A Of'INJ'l_0 sJVl<f. õA N uv""? Ã, Té:M J(11"0:
A ft1.oivs_1so/ii-~,PRoDu.?,I Tt/v\ C/ )Wi!. (IBêf<ADIL b QQ •
0PrN1Ão fÜ1St'../'CA -ETTATi'Jl ov 'iJ, t;' 11 R.Ef"~~t,V~ o CoNí/.¼.fVc
A REVOLUÇÃO NAS ARTES - I
Mário Pedrosa

Nesse cinqüentenário da Revolução Russa já podemos dizer, par-


ticipando de sua comemoração, que a arte que ela criou ou que a
simbolizou não foi o chamado "realismo socialista". Este foi uma
criação típica do regime de burocracia bonapartista, erigido ao poder
despótico, depois da derrota da "oposição de esquerda" no Partido
Comunista e seguido da derrota da "oposição da direita" quando a
vida interna do mesmo partido foi substituída pela vontade onipre-
sente de Stálin. O "culto da personalidade" e o "realismo socialis-
ta" são criações do mesmo regime e da mesma época, embora o pri-
meiro tenba de pouco precedido o segundo, como era lógico.
O episódio mesmo da pro/etcult, isto é, de uma cultura prole-
tária, foi passageiro, na base aliás de um fundamento teórico falso:
o de que o proletariado, classe última a chegar ao poder e instituir
a derradeira das ditaduras de classe, antes da entrada do socialismo
e do fenecimento do Estado, conforme a doutrina clássica do mar-
xismo, pudesse na época necessariamente transitória de sua doníina-
ção de classe criar uma cultura própria, em oposição à "cultura bur-
guesa". Lênin como Trotsky foram contrários a esta pretensão, des-
de os primeiros tempos. O destino do proletariado como classe é não
se preservar como tal, e Crtar um Estado ae -classe, -uma dítaaura de
êlasse e nessei-Eiiiclàmentos criar uma sociedade e uma cultura se-
gundo seus interesses, seus modos de ser, seu comportamento e
ideais, mas ,uolver-se na primeira sociedade sem classes da história.
A demanda e uma arte ou cultura proletária foi a mediação para
se passar da arte de vanguarda, da arte em si mesma revolucionária
que se fazia já nos primeiros momentos da Revolução, e foi supri-
mida aos poucos por motivos políticos e obscurantistas mas também
por motivos econômicos e da miséria generalizada que levou à insti-

180
tuição da Nova Política Econômica, criadora do mercado e da liber-
dade de comércio, imposta pela pressão do camponês, para a arte
da burocracia ulterior.
Um historiador liberal inglês nada simpático à Revolução, mas
observador por vezes arguto e competente, tratando das controvér-
sias da "frente cultural" soviética dos anos vinte, reconhecia haver
neles "homens de dons notáveis e de temperamento, e suas atitudes,
honestas ou oportunas, eram as de seres humanos excepcionais. Lu•
nacharski, Vorovski, Anerbach não eram, de modo algum, críticos
de primeira água, mas possuíam uma genuína eloqüência revolucio-
nária; Bukhárin, Trotski, Radek, eram como pensadores negligenciá-
veis (?), mas um deles era um homem de gênio, e os outros eram
no mínimo notáveis agitadores. E entre os escritores criativos e ar-
tistas havia ainda algumas figuras de primeiro plano que não emigra-
ram ou voltaram. Só isso fez os anos vinte memoráveis, não somen-
te na história russa mas na cultura russa. A tudo isso Stálin pôs um
fim brusco, e uma nova fase começou" (!saia Berlin, The Silence in
Russian Culture, 1957).
Depois da vitória de Stálin, o Partido interveio diretamente no
processo interno da criação artística para pedir aos escritores e artis-
tas um serviço cem por cento de propaganda em favor dos projetos
de investimento, de reformas administrativas e para prestígio dos
seus quadros dirigentes e o todo coroado pelo endeusamento do Lí-
der Supremo, cabeça coroada da burocracia. Esta, depois de venci-
das as primeiras fases da guerra civil, depois de abafadas as vozes
autorizadas dentro do Partido, suprimida qualquer veleidade de auto-
nomia e democracia nos sindicatos operários, nos Sovietes e por fim
dentro do próprio Partido, passou a ser o grupo dirigente único e
soberano, no Estado e no país. Era social, moral e politicamente in-
dispensável que, seus quadros fossem elevados acima de toda a socie-
dade e seu regime consagrado. Nessa consagração do regime, era ne-
cessário também que seu chefe fosse divinizado. Em lugar da lealda-
de impessoal à revolução e seu Estado, impôs-se pela· propaganda,
pelo terror, pelos fatos a adoração ao secretário-geral.
Em ex-comunista e escritor, de cuja integridade pessoal não se
pode duvidar, Bertram D. Wolfe, conta como um dia, em Moscou,
onde se encontrava há meses em 1929, todas as revistas e jornais da
URSS aparecem com o retrato de Stálin na primeira página. No pri-
meiro instante o fato lhe pareceu até "racional", tendo em conside-
ração que com a eliminação de Bukharin (de cujas opiniões era adep-
to nas fileiras do Partido Comunista americano) Stálin ficava como

181
o único do "velho bolchevismo" dentre os camaradas mais próximos
de Lênin. Mas logo depois compreendeu toda a profunda significa-
ção, social e política, do fato, que se tornou para ele a data do iní-
cio do culto de Stálin. Várias circunstâncias levaram-no a essa con-
clusão. Primeiramente, a fúria das purgas, com a prisão, execução ou
redução ao trabalho escravo de milhões, nos quais se incluíam não
somente os neutros, os indiferentes, os leais, e até camadas inteiras
de técnicos, militares e burocratas em si mesmos tão necessários ao
próprio reforçamento do poder mesmo do Estado. Mas, observa com
certa agudeza Wolfe, o caráter vago e abrangente do terror era uma
necessidade: "Se quiser fazer medo a seus inimigos, comece cortan-
do a cabeça de seus amigos".
Nesse mesmo ano, o aniversário de Stálin se tornou um dia
maior de sua primeira glorificação por todo o país. Ainda em 1929,
poucos dias antes daquele aniversário, Trotski, já no exílio forçado
em Constantinopla, num artigo em que celebrava o 12.º aniversário
de Outubro, mostrava como a República dos Sovietes se encontrava
numa situação em que "os maiores êxitos se combinam com as difi-
culdades mais consideráveis, e os êxitos como as dificuldades cres-
cem simultaneamente. É este o traço essencial da situação, é o gran-
de problema. A indústria fez e continua a fazer conquistas prodigio-
sas, a julgar pela escala capitalista. A agricultura, nesses últimos
anos, progrediu muito mais lentamente, embora seu reerguimento não
seja de duvidar. No entanto, constata-se esse fato paradoxal: há no
mercado uma carência muito séria de mercadorias que, apesMctÕs
progressos da economia geral, se mantém de ano para ano, e atinge
ertlCêttOS- períodos um grau de crise extrema. Os produtos fabrica-
_dos mais 1nd1spensáve1s faltam, apesar da procressão impetuosa da
!!J.dústria. ·E a insuficiência dos produtos agrícolas, embora esse país
tinha-··arooa um caráter agrícola preponderante, se faz sentir a um
ponto verdadeiramente intolerável. . . Essas contradições têm causas
de duas espécies: as causas essenciais residem na situação objetiva de
um país economicamente atrasado que foi o primeiro a ser forçado
a chegar à ditadura do proletariado e à edificação socialista. As cau-
sas de segunda ordem residem na falsa política da direção que sofre
as influências da pequena burguesia, incapaz de compreender no tem-
po certo a situação e de utilizar da maneira mais racional os recur-
sos econômicos e políticos da ditadura".
Trotski via claramente onde se encontrava o ponto nevrálgico
das tensões: no retardamento da agricultura em relação à industriali-
zação, na incapacidade desta de fornecer produtos industriais os mais

182
necessários e a preços acess1ve1s, em virtude do monopólio do co-
mércio exterior absolutamente indispensável ao progresso industrial,
que por sua vez excluía a Rússia dessa divisão internacional de tra-
balho na base da qual se realizou sua evolução capitalista, Tudo o
que a Rússia podia receber do exterior tem agora de ser produzido
em ritmos acelerados, e os recursos faltam para atender às necessida-
des da produção camponesa. A aldeia paga assim um pesado tributo
à indústria socialista. O balanço das duas revoluções, a democrática
(a agrária, a única válida para a massa campesina) e a proletária, uni-
das em Outubro, se estabelece para a classe camponesa, ainda agora
com um menos que se pode avaliar em várias centenas de milhões
de rublos. Aí está o fato incontestável e o mais importante para
quem quer apreciar não somente a situação econômica como a situa-
ção política do país. Esse fato deve ser encarado com nitidez. Acha-
se na base das relações tensas que existem entre a classe camponesa
e o governo dos Sovietes.
Tal estado de coisas ia revelar-se em toda a sua agudeza com a
greve do trigo instituída pelas camadas mais prósperas do campesi-
nato, resultando daí a fome nas cidades, e, por fim, a coletivização
forçada para acabar compulsoriamente, ·pelo terror e o massacre, ex-
trema dispersão das empresas agrícolas agravada pelo ritmo extrema-
mente lento da transformação socialista da economia aldeã e pelo
conseqüente reforço de suas próprias propensões consumidoras. E
por isso os produtos agrícolas faltavam.
A oposição sempre acusou a direção do Partido e do Estado de
imprevidência e ignorfuicia da necessidade de ritmos acelerados para
restabelecer a aliança do proletariado das cidades com os campone-
ses que não exploram ninguém. Desde 1923, 1924, 1925 que a opo-
sição era acusada de "superindustr1ãhzadora". Sua __redª-mação de um
pTaiiõ·gulnqüenaHoi darnnr.,--te1s_ifüosoEiJeto-de-,~;;,baria por parte
ãcis"~dfrig_entes. A esse_ estado de espírito de "fleq_ueno pattãô"qu--;
teme-·- grandes empreêíidiffi~ntos--TtOtski Chamou· d~ "menchevismo
~,;_~conomia'.'.., Em ibri1ael927, Stáhri-áffrmava ser ab~rragem d-;
Dniepostrol reivindicada pela oposição tão pouco necessária ao país
quanto um gramofone para um mujique. A conseqüência de tamanha
pequenez de visão foi fatal. Em pfuiico, Stálin decreta a coletivização
forçada, ou a "revolução por cima" em alguns dias. A propósito, um
eminente marxólogo, velho menchevista que conheceu de perto a
maior parte dos líderes bolcheviques, especialmente Bukhárin, Boris
L. Nicolaiévski, conta a entrevista que teve com Bukhárin em 1936,

183
quando este, em missão do Instituto Marx-Engels, esteve na Europa,
em circunstâncias dramáticas.
Bukharin já então sabia que iria ser preso ao voltar a Moscou
(sua mulher já o havia sido na sua ausência). Conversou longamente
com o ex-companheiro de pesquisas históricas sobre o marxismo. Ao
falarem dos horrores da coletivização, Bukhárin ainda trazia vívidas
as impressões dos que foram abalados até o fundo pelo que viram
durante a operação.
Vários foram os comunistas que se suicidaram, alguns acabaram
loucos e muitos fugiram ou desapareceram, simplesmente. Em 1919,
diz Bukharin, houve o terror, e vira coisas que não desejava que seus
inimigos vissem. Mas, o ano de 1919 não pode ser comparado aos
•k 1930 e 1932. Se então-executavam gente, arriscavam a vida no"
process_o, ~Mas no último período, eles estavam levando a efeito uniâ
ªniquilaçãC>_ ~,;;-,;;~ssi-éfeJ1omens completamente sem defesa, junta:
mente com -;t.i"a~-inulheres e crianças. Mas para Bukhárin o pior não
~\iya iiõi'liggores .ªª·· coJenv1zaçiio. U-p1or .."191. _aJ>rotunda müchw
ça_na psicofogiadaqueles comunistas que participaram nessa campa-
nha, e que, em lugar de enlouquecerem, se torna"râffi--bllrocratas pro-
fissioriais . ,-·- -- . "'iéló rioimal
fa,Winistrat, e ?be _ecer a qualquer or em _ e cima uma ta_ v_~_r-
._. ªNão são mais seres humanos", dizia deles. '1São realinéilte
uma peça numa terrível máquina". Houve uma verdadeira desuma-
nização na gente que trabalhava no aparelho do Estado, concluía Bu-
kharin, na sua patética confidência. A ironia tanto é maior quanto
foi ele mesmo o principal teórico do "humanismo" da "cultura pro-
letária".
Não se pode compreender a passagem ao famoso culto à perso-
nalidade e ao regime do chicote para obrigar os escritores e artistas
a fazerem a "arte" e a "literatura" ditadas pelo gosto do líder genial,
sem conhecer as circunstâncias históricas que avassalaram o país a
partir da crise de 1929. Em 1930, criava-se a famosa doutrina do
"realismo socialista", oficializada em 1931, num congresso de escri-
tores em Karkov, ao qual compareceu o poeta surrealista Louis Ara-
gon, que de lá voltou fazendo litanias (Graças a ti, Grande Chefe
Stálin etc.) a Stálin e rompendo com os seus amigos surrealistas,
Breton à frente. Uma verdadeira arte soviética não podia ter nada
com essas sinistras manipulações baixadas pelo supremo burocrata. A
teoria segundo a qual a Arte devia servir ao Estado e à sua política
e ser próxima do gosto do povo não responde nem à própria essên-

184
eia do marxismo nem à verdade das tradições culturais da Revo-
lução.
A verdadeira arte da Revolução foi a que surgiu naturalmente,
espontaneamente dos jovens artistas da época. Victor Serge, o revo-
lucionário exemplar, num livro de memórias admirável, testemunha
as peripécias da vida intelectual e arústica da heróica Petrogrado de
1919-1920. Em Moscou, havia vários cafés dos poetas na Rua Tvers-
kaia; "era o tempo em que Serge Essênin se revelava, escrevendo por
vezes a giz versos magníficos nos muros do mosteiro desocupado da
Paixão. Encontrei-o num café sombrio. , . Essenin, quando o vi pela
primeira vez, me desagradou. Tinha 24 anos, freqüentava as prosti-
tutas, os bandidos, os vagabundos dos maus cantos de Moscou. Be-
bia, tinha a voz cansada, as pálpebras caldas. . . Era u_ma verdadeira
glória, os velhos poetas simbolistas reconheciam nele um igual, a
intelligentsia arrebatava suas plaquetas e a rua cantava seus poemas.
Ele merecia tudo isso, De blusa branca subia no estrado e começava
a declamar". Apesar de indisposto contra ele, Serge confessava: "Co-
mo os outros eu cedia ao cabo de um momento ao encantamento real
dessa voz quebrada e de uma poesia que vinha do lundo do ser e
do fundo da época. Saido dali parava diante das vitrinas, algumas
fendidas de alto abaixo pelas balas do ano passado, onde Maiakóvski
pregava seus cartazes de agitação contra a Entente, o Piolho, os ge-
nerais brancos, Lloyd George, Clemenceau, o capitalismo encarnado
por um ser barrigudo, uma cartola à cabeça e fumando um bruto
charuto. Uma plaqueta de Ehrenburg (em fuga) circulava: era uma
Reza pela Rússia violada e crucificada pela Revolução. Lunatcharski,
comissário do povo da instrução pública, entregava aos pintores fu.
turistas (construtivistas etc.) Moscou para ser decorada, e eles trans-
formaram as lojas de um mercado em flores gigantescas. O grande
lirismo, até então confinado nos círculos literários, abria vias novas
nas praças públicas. Os poetas aprendiam a declamar ou a salmodiar
seus versos diante de grandes auditórios vindos-da rua; tinham um
acento novo, e os açucaramentos davam lugar à força e ao ardor".
Ehrenburg, conta, por sua vez, um fulgurante Primeiro de Maio em
que os futuristas e construtivistas engalanaram Moscou e fizeram
verdadeiros desfiles de arte em caminhões pelas ruas da cidade. Kan-
dinsky, russo e russo asiático até as raízes, o formidável destruidor
do objeto na pintura do Ocidente, onde criara na Alemanha o movi-
mento do Blau Reiter, que regressara à Rússia quando da declaração
de guerra, era então algo como um inspetor das artes na Rússia re-
volucionária. Suas qualidades de líder, de teórico e de mestre que se

185
iam revelar em toda a grandeza na Bauhaus de Walter Gropius, já
se faziam então sentir por toda a parte. Moscou e Petrogrado esta-
vam então na vanguarda da vanguarda das artes em todos os domí-
nios, desde o Teatro com Meyerhold; as Artes Plásticas com Kan-
dinsky, Chagall, E! Lissitski, Malevitch; na Pintura, Tatlin, Pevsner
e Gabo; na Escultura, sem falar na voz dominadora de Maiakóvski;
na Poesia e nas glórias nascentes do Cinema, com Eisenstein, Pudov-
kin etc. As condições econômicas e políticas cruéis que se agravaram
não permitiram um maior e mais prolongado desenvolvimento daque-
las experiências. Lênin, que não pretendia na sua proba modéstia en-
tender de Arte, e muito menos de vanguarda, permitia de fora os
experimentos, e, balançando sua cabeça socrática em conversações
com Clara Zetkin, declarava sua perplexidade e se confessava com
aquela serem passadistas, fora do tempo, em matéria de Arte. Mas
acima de sua vontade estava a miséria dos recursos que restavam ao
Estado para restaurar as forças produtivas do país, a zero. E havia
para ele, como tarefa preliminar intransferível, uma campanha ma-
ciça contra o analfabetismo generalizado. As possibilidades econômi-
cas e sociais foram por isso minguando na paupérrima e gloriosa
Rússia dos Sovietes.
Quando Stálin chegou ao ápice do poder, tudo mudou. O par-
tido oficial condenou in limine as atividades desses artistas, grandes
artistas que iam marcar para sempre a arte de nosso século, e se
dedicaram à causa da Revolução com ingenuidade se quiserem mas
com total devotamento e entusiasmo; eles sentiam a ptofamda iden-
tificação entre o que queriam no domínio da criação e ~ ·que ~ô,
governo soviético queria no domínio cli ·trarisformãÇâO SOdãifS-taOà
sociedade russa. No famoso Congresso de Karkov, em 1931, a buro-
cracia reúne intelectuais russos e ocidentais em vias de conversão
ou. . . de corrupção para condenar o futurismo como "decadência
burguesa". As "acrobacias língüísticas" já em pleno surto, juntamen-
te com umãVé.tdãdeTra!êvolução gráfica, quanto ao letrísmo-e-quãn-
-!9 . ~ novas estruturas de apresentaçao, fq,raip-coiid"en1:1cJis- cõiifêf-sem~
fundamentos ideológicos e sem Ai~nificação-_ s~~I". E todãS-- ·essas
objeções, muitas de puro obscurlSmJ e ignorância, eram estendi-
das à pintura abstrata e escultura. O construtivismo, o dadaísmo
(a cujas sessões Lênin assistiu no Café Voltaire, em Zurique, nos
anos de 1915 e 1916), o cubismo encontraram a mesma hostilidade.
Como disse Moholy-Nagy num formidável livro profético (Vision
in Motion, 1946), cada obra experimental que não mostrasse ime-
diatamente servir às tendências políticas, e não desse chaves inequí-

186
vacas à sua completa conformidade à "linha" do Partido, era re-
jeitada.
O que é espantoso é que as experiências em todos os domínios
da criação feitas na época eram como que predeterminadas por um
apelo antecipado do futuro. Todas elas não morreram nem desa-
pareceram com o banimento de seus experimentadores ou o seu ostra-
cismo, mas frutificaram fora da Rússia. O suprematismo, com Case-
mir Malevitch, que já em 1913 apresentava seu famoso quadro
do quadrado preto sobre quadrado branco e depois quadrado branco
sobre tela branca que ele definiu como a aquisição de uma realidade
nova - a da ausência do objeto - não desapareceu com a queda
do grande artista, mas prosseguiu na Europa Ocidental, sob a forma
de arte abstrata, do neoplasticismo e por fim da arte cinética. Também
o construtivismo com Antoine Pevsner e Gabo foi a corrente mais
·o .
. irredutfvelcletoda formidãve1 ·-aesenvolvimento da arte moderna·.
E ;gora renasce sob-dl;ersas mõdaíidades, ap~s-;r do ·iaéhlsmo·e dá
pop'art americana. No seu Manifesto Realista, Pevsner-Gabo afir-
mava serem "o espaço e o tempo as duas formas exclusivas da pleni-
tude da vida", devendo "a arte ser guiada por essas duas forças
básicas". O manifesto propugnava pela "incorporação de nossa expe-
riência do mundo nas formas do espaço e do tempo", como o único
fundamento da arte criativa. "Na escultura eliminamos a massa (física)
como elemento plástico. Todo engenheiro sabe que o poder estático
e o poder de resistência de um objeto não dependem da massa ...
Em Arte nos libertamos de um erro de mil anos, originário do
Egito, segundo o qual somente os ritmos estáticos podem ter seus
elementos. Proclamamos que para as percepções de nossos dias os
elementos mais importantes da Arte são os ritmos cinéticos". Na
mesma linha de Pevsner-Gabo, e o revolucionário húngaro Moholy-
Nagy lançava com Alfred Kemeny um manifesto construtivista (Ber-
lim, 1922) no qual, propugnando por um "sistema dinâmico-consttu-
tivo de forças", diziam: "Devemos colocar no lugar do princípio
estático da arte clássica o principio dinâmico da vida universal. Prati-
camente: em lugar da construção em material estático (relações de
material e forma) a construção dinâmica (construtivismo vital e rela-
ções de forças) deve ser desenvolvida, na qual o material é empregado
apenas como carregador de forças. Levando adiante a unidade de
construção, um sistema dinâmico construtivo de força é alcançado
quando o homem, até aqui meramente receptivo em suas observações
da obra de arte, experimenta uma elevação (intensificação) de suas

187
proprtas faculdades, e se torna ele mesmo um participante ativo
das forÇas que se manifestam".
Os primeiros projetos nesse seniido eram no fundo apenas
tentativas, visando à demonstração experimental no tratar a conexão
entre o homem, o material, forças e espaço. Depois, vaticinava
Moholy-Nagy, em 1922, virá a utilização dos resultados experimen-
tais para a criação de obras de arte de movimentos livres. De então
para cá, tivemos as primeiras experiências de Tatlin, o formidável
projeto da sede da Internacional Comunista, uma torre com um
cilindro de vidro móvel, apresentado em maquete e sobre o qual
Trotski escrevia em 1924, com compreensão, prudência e sabedoria,
no seu ensaio Arte Revolucionária e Socialista: "Por ora estamos
começando a consertar os calçamentos, a remendar os canos de esgoto,
acabar as casas inacabadas que nos foram deixadas por herança -
mas apenas estamos começando. Fizemos os edifícios da nossa Exposi-
ção Agrícola em madeira. Temos de pôr de lado construções em
grande escala. Assim damos, ainda que involuntariamente, aos inicia-
dores de projetos gigantescos, homens como Tatlin, tempo para mais
meditação, revisão e radical reexame. Mas não se deve pensar que
planejamos consertar calçamentos e casas pelas décadas a virem. Nesse
processo, como nos demais, há períodos de reparações, de lenta pre-
paração e acumulação de forças, e período de rápido desenvolvimento.
Assim que um excedente vier depois de as necessidades mais urgentes
e agudas da vida terem sido atendidas, o Estado soviético tomará
em mãos o problema de construções gigantescas, que hão de exprimir
convenientemente o espírito monumental de nossa épocã.. Tatlin está
indubitavelmente certo em descartar de seu projeto estilos nacionais,
esculturas alegóricas (tudo o que caracterizou a. época de dominação
staliniana), monogramas modelados, guirlandas e caudas, e tentar su-
bordinar o desenho total a um correto uso construtivo do material. É
por esse processo que as máquinas, as pontes e mercados cobertps
são construídos, desde muito tempo. Mas Tatlin tem ainda a provar
que está certo no que parece ser sua invenção pessoal, um cubo
rotativo, uma pirâmide e um cilindro, tudo em vidro. Para bem ou
para mal, as circunstâncias lhe estão dando tempo bastante para que
encontre os argumentos em favor de seu projeto".
Eis aí a linguagem nacional, honesta, de um dos grandes cons-
trutores do regime, em face dos projetos mais livres e audaciosos
dos seus artistas. Mas tudo mudou depois; a arte dos mais autênticos
artistas revolucionários russos é expulsa, jogada nos porões dos mu-
seus e muitos deles são obrigados a exilar-se ou esconder-se ou

188
capitular moral e esteticamente diante dos poderes cada vez mais dis-
tantes e amedrontadores do dia, no ano mesmo em que Trotski é
também expulso da própria Rússia soviética, em 1929, e transfor-
mado num herético tangido de país em país, até morrer assassinado
por um agente de Stálin, no México, em 1940, às vésperas da invasão
da Rússia dos Sovietes, sua terra e sua obra também, pelas hordas
de Hitler.

Correio da Manhíi, Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1967

189
A REVOLUÇÃO NAS ARTES - Il
Mário Pedrosa

Se a era de Zdânov foi uma tragédia, a campanha neozdanovista


encetada muito depois, em dezembro de 1962, não conseguiu chegar
à mesma intensidade .trágica para os artistas da primeira investida
da polícia das artes de Stálin. Ela foi provocada pela famosa exposi•
ção Manege de Moscou daqude mês. Nessa exposição, toda dedicada
aos artistas ·soviéticos em geral, desde os oficiais acadêmicos, com
Gerasinov à frente e Laktionov, o pintor da obra-prima de toda a
arte oficial, Carta da Frente, que cheguei a ver no Tetriakov, rodeada
ainda de uma multidão de bobocas a ouvir a explicação detalhada
do guia. Este, com efeito, explicava todos os detalhes da carta, que
lia à mulher e toda a família, enquanto soldado ferido à la Hollywood
era o herói limpo e esplêndido na frente, a lembrar-se de Stálin
na hora de morrer. Mas nessa mesma exposição figuravam os dissi-
dentes, isto é, pintores de algum talento como Elkonin, Sterenberg,
Konchalovsk, Tyshlar e outros nos quais se sentia a influência dos
grandes- mestres, modernos ocidentais, como Chagall, Gauguin, ou
Matisse. Muitos deles já não pintavam gente, porque interessados
na "alienação das naturezas mortas, (imaginem: uma "Natureza morta
·com bananas" de Kuznetzov, pintor consagrado já em 1912), além do
escândalo de um Nu, de outro pintor que sobrou da hecatombe,
Falk. A propósito deste último, o professor Etiemble, da Sorbonne,
então em Moscou dando curso de Literatura Comparada, escreveu
ali mesmo na exposição diante do quadro: "Nada de realismo socia-
lista no sentido ordinário. Perfeitamente verdadeiro. Belo da mesma
maneira que .os bois esquartejados de Sou tine. Se eles aceitam isso,
têm de aceitar tudo. Aceitaram-no há um mês, Vão então ter de
aceitar tudo, e a partir dé agora teremos que contar com a arte
soviética".

190
O otimista professor da Sorbonne ia ser desmentido bem cedo.
Ele mesmo conta como, na sua biblioteca no trabalho em Moscou,
ao abrir um dia L'Humanité, fresquinha de Paris, é informado pelo
correspondente em Moscou que naquela mostra de 2 000 telas, de-
senhos e esculturas, Nikita soube apreciar as obras que ofereciam
uma representação exata da vida. E que, segundo o mesmo corres-
pondente, se o Pravda notou os progressos feitos por. . . Laktionov
(com sua exatidão fotográfica) também notou, desapontado, alguns
trabalhos que provocaram sérias objeções. Em algumas bbras de
Falk . . . tendências formalistas são visíveis. E ademais suas figuras
"tomam formas monstruosas". Indignado o professor perguntá: Já
viu essa gente alguma vez uma mulher nua? Uma mulher real, dessas
que se podem ver num leito de hospital ou na casa mortuária?
Dessa realidade que é duro aceitar? Mas o correspóndente de
L'Humanité continua a dar conta da exposição e das relações de
Kruschev para seus leitores parisienses: "Alguns pintores desprezam
a opinião pública; mas se uma obra só pode ser compreendida pelo
seu autor, declara Kruschev, se o povo não a reconhece, não pode
ser considerada uma obra de arte".
Por essa ocasião é que um grupo de pintores abstratos conse-
guiu fazer também a sua exposição. Foi a gota que deu o basta ~o
"liberalismo".
Nikita com um séquito de personagens importantes do regime
não se conteve, diante da tolerância dos organizadores da grande
exposição que permitiram a apresentação ali de obras de um nível
intoleravelmente baixo e o desvio moral dos "informais" aos quais
acusou de produzir "pintura alheia ao nosso povo" e tão má que
não se podia deixar de perguntar se tinham sido "feitas por uma
mão humana ou lambuzada por um rabo de macaco". O Pravda e o
Izvestia publicaram essa opinião na primeira página, que foi glosada
depois em todos os tons. Foi o toque de reunir dos velhos do
11
''realismo socialista''. Os numerosos liberais'' ficaram alarmados e
o resultado foi a condenaÇão não somente de Falk, que viveu sempre
sob ameaça, mas praticamente de todos ou quase todos bons pintores
da Grande Exposição. Em conseqüência dessa dose demasiada de
liberalismo é que Kruschev reuniu seu comitê central a 8 de março
de 1963 para discutir sobre o estado cultural da sociedade soviética
e a necessidade de uma supervisão mais estrita.
Quando estive em Moscou mais de um ano antes, em abril de
1961, a mesma incompreensão encontrei da parte do Ministro da

191
Cultura, e a camarada K. Furstsova, que me negou de pés juntos
o envio, com a representação soviética à VI Bienal de São Paulo de
que era o secretário-geral e organizador, de uma coleção dos constru-
tivistas russos, então (e ainda hoje) guardada nos porões do Tetriakov
em Moscou e do Ermitage, em Leningrado. Em 1946 quando um
burocrata da cultura foi visitar Matisse, em Paris, e o convidou a
visitar o pais dos Sovietes, os quadros do mestre ainda estavam
também, como os outros da célebre coleção de impressionistas e pós-
impressionistas franceses do Ermitage, escondidos dos olhos do pú-
blico. Então, segundo a opinião abalizada de Gerassimov, o Meisson-
nier do Napoleão-Stálin, os impressionistas não eram mais do que
"um produto da decomposição capitalista". E ainda em fevereiro de
1947, o mesmo senhor assegurava a um colaborador do The New
Statesman and Nation (8 de fevereiro de 1947) que jamais a coleção
dos impressionistas franceses seria exposta novamente nas paredes
do Ermitage, pois aqueles quadros deveriam continuar guardados
nos porões do museu para evitar que alguém pudesse ser corrom-
pido por eles. Quando, porém, em abril de 1961, visitei o estupendo
museu, vi nas paredes excelentes telas impressionistas (Renoir, Degas)
e Matis ses extraordinários. E o Picasso da fase azul. O resto conti-
nuava nos porões. A profecia antiimpressionista de Gerassimov assim
não se realizou. Houve urna abertura liberal. Mas como os aconteci•
mentos de 1962-1963 mostraram, a velha prevenção nas altas esferas
burocráticas contra os impressionistas não amainara.
Com efeito, ainda por essa época dos círculos oficiais da União
dos Artistas, erguiam-se vozes contra os artistas figurativos russos
da escola impressionista ou pós-impressionista; bons pintores como
Falk, eram denunciados porque estranhos à arte soviética, partidários
da "arte reacionária da América e da França" e inimigos dos verda-
deiros artistas, que por seu trabalho ajudam o Partido a edificar o
comunismo. Indignado por ver todos esses "artistas eméritos" invo--
carem a autoridade de Wladimir Ilitch para quem todo artista "deve
ter completa liberdade para exercer sua iniciativa pessoal, liberdade
de pensamento e imaginação, de forma e conteúdo", o professor
Etiemble opôs àquela gente não a Lênio que freqüentava o Café
Voltaire, de Zurique, fraternizando com os dadaístas, em 1916, mas
um Lênin fascinado, parado diante de um quadro de um Vaso de
Flores, numa vitrina na Suíça, e a exclamar nessa ocasião: "Esta
é a época de pintura que exprime a felicidade que quero levar ao
povo da Rússia". O espantoso não era a fascinação de Lênin por
urna tela com flores (o símbolo mesmo da arte hedonista), mas o

192
fato de se tratar de pintura de um dos mais eminentes mestres da
"arte reacionária da França", isto é, de Monet.
Os vaivéns da política cultural ou da política das artes da
burocracia soviética revelam apenas a insegurança de suas próprias
posições na estrutura social do Estado dos Sovietes. Ela teme que o
desenvolvimento para o progresso e, digamos, para o socialismo escape
ao seu controle. O partido oficial ainda não conseguiu armar-se cultu-
ral, espiritual, política e moralmente para as novas tarefas de uma
marcha real, para uma nova cultura que terá de ser necessariamente
socialista. O plano em que se coloca as posições que toma, o elenco
de idéias de que dispõe mostram ser ela ainda, e sobretudo, uma
formação intermediária entre a primeira fase da edificação de um
sistema de produção tecnológ.ica numa base pré-socialista, ou melhor,
estatal, burguesa, capitalista e uma possível e desejável etapa ulterior
na qual todo o sistema de idéias, de necessidades culturais, de
conquistas artísticas já nada terá que ver com as preocupações bur-
guesas de acumulação em todos os campos, econômico, tecnológico,
estético, que caracterizou e caracteriza o papel inicial da burocracia
na sociedade soviética. Foi um pouco fundado nessas perspectivas
que pude num último encontro com a camarada Katarina Furstsova,
na porta de seu Ministério, fazer-lhe entre brincando e sério esse
desafio: Então não nos manda a São Paulo os construtivistas russos?
Não no-los quer dar? Não no-los quer vender? E diante de seu
abanar de cabeça, firmemente negativo, replicar: volto satisfeito por-
que teremos pela primeira vez na nossa Bienal Paulista a presença
da União Soviética. Quanto porém, à querela entre nós sobre os
construtivist3s, estou tranqüilo dos seus justos resultados, certo de
que, com o tempo, iria ganhar a partida, e ela mudar de opinião.
Os construtivistas sairiam do ostracismo.
Eis que agora começam a circular boatos de que esses mesmos
construtivistas vão reaparecer ao público soviético. Ainda no fim
do mês passado, meu confrade Frederico Morais, na sua coluna no
Diário de Noticias, informava que, segundo um jornal francês de
Arte, um grupo de vanguardistas foi afinal reconhecido oficialmente.
Trata-se dum grupo que se designa a si mesmo, muito caracteristica-
mente, de Movimento. Ele retoma as tradições da arte construtiva
de Tatlin, de Pevsner-Gabo. Para as comemorações do cinqüente-
nárío da revolução preparam uma gigantesca demonstração com telas
cinematográficas, esculturas-fogo, estruturas em movimento (o monu-
mento do cubo giratório de Tatlin para sede da Internacional Comu-
nista não vos vem aqui à memória?), homenagem à Revolução e à

193
Ciência Soviética. "A URSS é pelo cinetismo", anuncia-se como o
primeiro espetáculo. É mais do que evidente que o grupo reassume
as idéias de Tatlin e do Manifesto construtivista de Pevsner-Gabo.
Para os vanguardistas russos, segundo o jornal francês citado por
Morais, "a pop é a reação, o cinetismo, a revolução".
Será a$sim o fio histórico que se partira com o stalinismo
reatado em nome da Revolução, mas também desta vez em nome de
uma arte não ao nível do gosto e do consumo do burocrata, mas ao
nível de uma nova reaHdade que a pr6prfa Arte_...rem por missão
.ál;, de parceria com a Ciência, ou a realidade do socialismo.
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1967

194
SURREALISMO E O MANIFESTO SEM ADESÃO

Llvio Xavier

Questão de moda ou sinal dos tempos, o fato é que o surrealismo


tem nova projeção. Pelo menos nos lugares de origem. Talvez como
sintoma de madureza do movimento em si, antes como realidade da
história literária e artística dos anos 20, perde agora muito de sua
passada agressividade e é quase um dado histórico apenas, e futuro
pasto de pesquisa dos candidatos ao bacharelato em letras.
Magazine Littéraire (n.º 64) publica em lugar de honra -
"dossier" completo, retrato de capa e artigos de colaboração -
matéria sobre André Breton, o chefe, se não o primeiro em data dos
surrealistas, qualidade que certamente ele próprio negaria, mostrando
as origens do movimento no Primeiro manifesto do Surrealismo e
exemplificando abundantemente com vivos e mortos. Não importa.
Tão estreitamente está ligado o movimento surrealista à ,·ida de
André Breton, e mais do que isso, às suas reações estritamente
pessoais determinadas pelos acontecimentos que, pode-se dizer, mais
do que de escritor e poeta tinha ele o gosto acre do mando no domí-
nio espiritual. Os seus conteriiporâneos que lhe eram desafetos não
se enganavam de todo quando o apelidavam de Papa do surrealismo,
e os companheiros e discípulos de aventura literária o tratavam com
um sentimento misto de apego fraterno e veneração mas que reconhe-
cia as distâncias.

UMA QUESTÃO DE FIDELIDADE

O primeiro oficiante no culto de Breton no Magazine littéraire


é o sr. Philippe Audoin, surrealista da segunda ou terceira geração,
pois como se sabe, os da primeira, os companheiros de André Breton,

195
salvo a fidelidade admirável de Benjamin Péret e a obra pictórica
de Max Ernst, sumiram na voragem das defecções abertas ou escan-
dalosas. Não se fale das de Aragon e Éluard, do conhecimento comum.
Mas é preciso notar que os companheiros de Breton, do núcleo
inicial, a maioria deles, fazem parte do número dos eleitos da ulterior
fama literária parisiense pelo menos: Philippe Soupeau - autor com
Breton, do primeiro texto surrealista - Georges Bataille, Raymond
Queneau, Joseph Deitei!, Pierre Naville e Michel Louris que trocaram
as preocupações literárias pelas da sociologia e da etnografia.
Força é convir então que o surrealismo, desde a sua origem,
tem a sua grandeza, não como simples movimento de vanguarda
- sem falar da sua influência nas artes plásticas - mas como verda~
deiro chamamento às armas no campo ideológico, se à falta de melhor,
dermos um sentido mais largo e menos político à expressão. Breton
negou sempre, porém, que o surrealismo tivesse este caráter, ou antes
recusava submeter a atividade surrealista às ideologias políticas e
religiosas.
O sr. Gérard Légrand, fiel depositário do conjunto de idéias
e imagens que podem caracterizar o movimento desde o início, indica
que se deve entender, no caso, por ideologia: uo conjunto de idéias
que impregnam profundamente a cultura de uma época". Convenha-se
que o conceito é antes vago. Mas entende-se sem grande dificuldade
a importância do surrealismo não só como movimento literário e
artístico e também de ordem geral. E pnr ;,;s..r a sua influência dura
como fenômeno cultural. Légrand nota que a ideologia religiosa é
estranha a Breton - diria melhor: que ele lhe é violentamente hostil.
Poder-se-ia compor um manual de textos e definições do perfeito
ateu somente com trechos da obra de Breton.
Mesmo a influência de Freud, a qual marcou tão fortemente
a evolução do surrealismo, pelo menos seus seus começos, é antes
crítica que apologética. Sem falar no justo desprezo de Breton pelo
desenvolvimento ulterior de uma psicanálise reduzida, à americana,
ao charlatanismo curandeirista e publicitário.
Légrand cita um livro recente sobre Breton, de Xaviere Gau-
thier, o qual mostra que Breton se preocupava com a má sorte da
juventude atual entregue "à incompetência dos bufões" que ousam
falar aos jovens das coisas do sexo e do amor.
Quanto à ideologia propriamente política, a adesão de Breton à
idéia de comunismo, a qual o levou como ao primeiro grupo surrealis-
ta aos quadros do partido comunista, já enfeudado ao monolito
stalinista, foi, é claro, um episódio de curta duração.

196
"VIVA O FASCISTA HEGEL!"

Segundo o próprio Breton, o partido, naquela época, por descon-


fiança dos intelectuais, como ele, que tinham como bagagem literária
algo afim com preocupações extra-políticas, recomendava-lhes no tra-
balho porventura exigido nos quadros da organização: "pas d' ideo-
lo gie".
Não afastavam os comunistas as possibilidades de choques ideo-
lógicos, mesmo indiscerníveis para a maioria, com a ideologia
reinante na Terceira Internacional. Légrand pretende que o caso
Breton no partido comunista pode exemplificar "a condição sub-
conscientemente eventual de todo intelectual em relação a um enga-
jamento político ativo". E, por isso mesmo, acha natural que a
atividade surrealista, a rigor uma ideologia, tenha encontrado "a
posteriori" uma justificação por absurdo. Tanto mais quando o curso
dos acontecimentos mostrou que a ideologia política veio a desfigu-
rar-se "como tal" no caminho totalitário.
Como toda a sua geração, continua Légrand, Breton viu na
dialética hegeliana uma "Chave" separável do sistema. Onde Hegel
não passa, o pensamento não é possível. Uma anedota, referida por
Légrand, diz mais que qualquer comentário sobre o hegeliano que
se supôs Breton: numa discussão de café, alguém pretendeu que
o hegelianismo poderia ser utilizado pelo fascismo. Por toda res-
posta, Breton gritou: "Viva o fascista Hegel!"
Enfim, Légrand pretende que, mesmo na fase "marxista" - o
que é evidente exagero - o pensamento de Breton é sempre domi-
nado pela necessidade da libertação do homem e do pensamento,
na qual ele via uma meta indivisível.
Breton, de fato, julgava absurdo pensar que a liberdade seja
quantidade negociável ou adiável por efeito de injunções políticas ou
de partido, mesmo determinadas ''pela utilidade universal''.
Georges Henein, um dos que privavam com Breton, recorda
aqui a viagem ao México onde visitou Trotski. Era já o clima da
guerra: a invasão da Checoslováquia, os acordos de Munique, as
pretensas democracias indiferentes à sorte da Espanha.
Mesmo nessas condições tão pouco favoráveis, Breton e Trotski
redigiram um manifesto pela arte revolucionária independente. O
manifesto contou, desde logo, com a assinatura de Diego Rivera, não
o assinando Trotski "por motivos políticos". O fato, aliás do domínio
público - Breton narra circunstanciadamente em La clé des champs
- dá a medida da grandeza de ambos.

197
Henein refere que a Breton intimidou a intransigência de
Trotski. Em todo caso, nem o poeta nem o político arredava pé da
"sua" verdade uma vez conseguida. Traço comum bem característico.

Suplemento literário de O Estado de S. Paulo, seção


"Revista das Revistas", 6 de agosto de 1972

198
:Glossário de nomes

AKHMÃTOVA, Ana (1888-1966). Poetisa russa, fez de seus senti-


mentos e experiências pessoais a matéria principal de sua lírica inti-
mista e subjetiva. Participou do grupo ACMÉ (ápice, cume) com
seu marido, o poeta Gumiliov. Combatida pelo zhdanovismo (acu-
sada de histeria . .. poética) ficou décadas no ostracismo, mas é hoje
considerada poeta importante. Publicou: Rosário (1914), Versos
(1922), Réquiem (1962).

ARAGON, Louis (1897-1982), escritor e poeta francês, durante a


II Guerra Mundial participou da Resistência Francesa. Feu de Joie
foi seu primeiro poema surrealista. Em 1926 com o romance Le
Paysan de Paris inicia sua ruptura com o surrealismo. Adere em
1927 ao Partido Comunista, depois de muita hesitação política. Sua
ruptura definitiv~ com o surrealismo se dá com o poema Hourra
L'Oural (1934), marcando sua transição para a fase socialista, abor-
dando temas sociais.

BABEL, Isaac (1894-1941), escritor soviético, judeu de nascimento,


leva vida de província na Rússia pré-revolucionária. Seus primeiros
contos aparecem na revista de São Petesburgo Letopis (1913), pro-
vocando escAndalos pelo conteúdo erótico e agressivo. Autor de
Contos de Odessa, de fundo autobiográfico onde relata epis6clios e
lembranças de sua infância, e de Cavalaria Vermelha, contos sobre
suas experiências na guerra civil.

BARBUSE, Henri (1873-1935), escritor francês que inicia a carreira


como discípulo do Simbolismo. Engaja-se como soldado na I Guerra
de cuja experiência produz O Fogo, Diário de uma Esquadra (Prê-
mio Goncourt, 1917), romance realista de denúncia das misérias

199
da guerra. Mais tarde aproxima-se do comunismo e torna-se adepto
do realismo socialista, meio oficializado pelo stalinismo (Stálin, 1935),
visitando constantemente a União Soviética, onde vem a falecer.

BAUER (1882-1950), político austríaco que chegou a líder do mo-


derado Partido Social-Democrata de seu país. Condenou os expurgos
stalinistas e mais tarde passou a defender uma política que supunha
a possibilidade de uma evolução progressiva para a igualdade cons-
titucional como reforma do capitalismo.

BENDA, Julien (1867-1956), escritor francês autor de Traição dos


Sábios (1927) onde é denunciada a omissão dos intelectuais, traido-
res de sua missão de "oficiantes da justiça abstrata", e de defensores
do racionalismo democrático, que sucumbem à tentação do engaja-
mento que os submete aos poderes temporais ou espirituais.

BERGAMfN, José.(1894-1983), pensador espanhol jesuíta, fundador


em 1933 da revista Cruz y Raya, onde procurou expressar uma con-
ciliação entre catolicismo e liberalismo, tendo aderido à política de
Frente Popular da República espanhola, em 1936. Bergamín acabou
asilando-se no México e na América do Sul depois de 19 37.

BUKHARIN, Nicolai (1888-1938). Filho de professores, teve bri-


lhantes estudos superiores. Bolchevique desde 1906, emigrou em
1910 e reuniu-se a Lênin. Mais tarde nos Estados Unidos, durante a
I Guerra editou Novy Mir e colaborou com Trotski. Membro do
Comitê Central desde a Revolução de 17 até sua morte. O testamen-
10 de Lênin o considera o mais brilhante intelectual do partido.
Defendeu, com a NEP, um desenvolvimento gradual da economia
até tornar-se plenamente socialista. Aliado de Stálin contra a oposição
de esquerda, depois passou a ser porta-voz da "direita" do partido, em
disputa com aquele. Foi redator-chefe do Pravda e do Isvéstia - os
dois jornais oficiais e autor .da Constituição de 1933. Detido no
Segundo Processo foi condenado e executado. Autor de conhecidas
obras: ABC do comunismo, A economia mundial e o imperialismo,
Teoria do materialismo histórico.

CARDENAS, Lázaro (1895-1970), político e general mexicano, par-


ticipa da luta revolucionária em seu país no início do século; governa
o Estado de Micboacán e torna-se depois presidente da República
(1934-40). Nacionalista, efetua reformas sociais e estatiza os em-

200
preendimentos petrolíferos. Foi o único governante em todo o mundo
que concordou em conceder asilo político a Trotski.

CHOLOKOV, Mikhail (1905), escritor russo do romance Don Silen-


cioso que lhe valeu o Prêmio Nobel em 1965. E sua primeira obra de
sucesso na qual Cholokov tem como painel as terras por onde corre
o Rio Don, que serviu de pano de fundo para a I Guerra Mundial
e para a Guerra Civil. Obra pertencente ao estilo do realismo socia-
lista, que o autor defendeu e adotou. Chamado inicialmente o
"Tolstói comunista", tornou-se o romancista oficial da URSS.

COSTA, Lúcio, arquiteto brasileiro, criador do Salão Livre de Artes


Plásticas. Participou em 1937 da criação do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Em 38 venceu o concurso para o pro-
jeto do Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York; propôs,
porém, que Niemeyer, que obteve o 2.º lugar, fosse o escolhido por
julgá-lo melhor. Ambos em colaboração com o norteamericano Paul
L. Weiner projetaram o Pavilhão, sendo reconhecido como o melhor
exemplo arquitetônico na feira de 39. Em 1957 venceu o concurso
nacional com o Plano Piloto de Brasília. Em 1969 elaborou o plano
de urbanização da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

DALADIER, Edouard (1884-1970), político francês, diversas vezes


ministro e deputado pelo Partido Radical, figura de proa da política
de Frente Popular, que os trotskistas .e outras forças políticas com-
batiam. Ministro da Defesa, depois Ministro-Chefe do Conselho de
Governo, passou a perseguir os comunistas, seus aliados até então,
após a assinatura do pacto germano-soviético (1939).

DEGAS, Edgar (1834-1917), pintor francês do impressionismo.


A partir de 1871 se interessa cada vez mais pelas cenas do cotidiano
parisiense, em vez das paisagens rurais dos impressionistas. Inicia
em 1865 com a tela La femme aux chrysantemes uma maneira tipica-
mente sua de pintar a composição descentrada (a figura principal
num dos cantos do quadro e às vezes aparecendo só em parte), que
manterá durante toda sua vida. A referência do texto é a célebre
dificuldade que o pintor dizia ter para escrever, do que decorrem
outros episódios, nas relações que manteve com o poeta Mallarmé.

DMfTROV, Georg, foi dirigente da III Internacional no período


stalinista. Em 1937 defendia a política de Stálin afirmando que o

201
principal papel dos partidos comunistas no mundo não era a luta pela
revolução proletária mas a defesa da política externa da União
Soviética.

OUGASSE, Isidore (1846-1870), chamado Conde de Lautréamont,


uruguaio de nascimento. Transferiu-se para Paris em 1867 a fim de
frequentar a Escola Politécnica. Em 1869 publicou Cantos de Ma/-
doror, assinado com seu pseudônimo, obra na qual Ducasse faz apo-
logia das formas de violência. Poesias (1870) na mesma linha dos
Cantos, obra que aparece assinada com seu nome verdadeiro.
Foi celebrado pelos surrealistas como ídolo supremo, como "uma re-
velação total que parece exceder as possibilidades humanas" (André
Breton).

EHRENBURG, Ilia (1891-1967), escritor russo, típico da era stali-


nista, pôs a pena a serviço de uma arte oficial do realismo socialista,
como romancista e jornalista (Espanha e França). Depois de 1960,
passou a denunciar os horrores da era que cantara. Há edição bra-
sileira de suas mem6rias publicada pela Editora Civilização Brasileira,
Rio de Janeiro, na década de 1970, em vários volumes.

FIGUEIREDO, Jackson de, fundador da revista cat61ica A Ordem


em 1921, juntamente com o Centro Dom Vital. Expressão militante
de um catolicismo voltado para o apostolado, que expressa um pen-
samento reacionário. Na década de 30 era dirigida por Alceu Amo-
roso Lima, que depois se tornou liberal, alinhado com a chamada
Igreja progressista.

GORKI, Máximo (1868-1936), escritor russo cujo nome verdadeiro


é Aleksei Pechkov. Nascido em família pobre, foi autodidata. Traba-
lhou como ajudante de sapateiro, copeiro, pedreiro, estivador e guar-
da-noturno, profissões que serviram para dar-lhe um contato direto
com a vida e os problemas do proletariado russo. De 1899 a·1906
viveu em São Petesburgo e entrou para o Partido Social-Democrata
Russo. Em 1901 a revista marxista Jizn (Vida) publicou seu poema
revolucionário Canto do Pássaro da Tempestade. Os exemplares fo-
ram recolhidos e Gorki foi preso, mas logo libertado, diante dos
protestos surgidos do mundo inteiro. Em 1902 iniciou outro impor-
tante trabalho de sua vida: o de dramaturgo, com as peças Pequenos
Burgueses e O Submundo. Fundou a revista Znanie (O Conhecimen-
to). Tomou parte da revolução de 1905; foi novamente preso e

202
libertado diante da pressão internacional. Viveu na Itália de 1906 a
1913 e nesse período escreveu Mãe. Regressou à Rússia durante a re-
volução de 17 apoiando os bolcheviques. Tomou-se uma das figuras
literárias mais destacadas no novo Estado Soviético. Entre 1913 e
1923 escreveu sua autobiografia, composta da trilogia Infdncia, No
Meio do Povo, Minhas Universidades. Quanto ao artigo que Máximo
Gorki dedicou a Lênin na revista francesa Clarté n.º 71 (fev. de
1925), Trotski em seu livro Unin o refuta no capítulo "Verdade e
mentira sobre Lênin'' contra Gorki.

GROSZ, Georg (1893-1959), pintor, escritor e desenhista alemão,


mais conhecido como desenhista satírico. Trabalhou em Berlim e Pa-
ris, emigrando em 1933 para os Estados Unidos. Escreveu: A Vida
de um Socialista (1920) e Espelho do burguês (1925).

REINE, Heinrich (1797-1856), poeta e jornalista alemão da época


romântica. Em 1831 desgostoso com o quadro provinciano e anti-
semita do interior da Alemanha, emigrou para Paris, onde passou a
viver como correspondente de jornais alemães. Seu encontro com
Marx em 1844 instigou sua veia satírica. Suas obras foram reunidas
em Das Buch der Lieder, atingindo 13 edições ainda em vida do
autor. Ao lado do lirismo sentimental irônico das canções, deve ser
citada a poesia política (Novos Poemas, 1844) de agressividade
inédita na poesia de língua alemã.

HUYSMANS, Joris-Karl (1848-1907), pseudônimo de Georges Char-


les Huysmans, romancista francês que participou do movimento na-
turalista de Zola, afastando-se depois. Viveu durante anos em círculos
de ocultistas e satanístas, convertendo-se depois ao catolicismo. Seus
escritos são quase ~odos autobiográficos, retratando com fidelidade o
meio e a época em que viveu. O pessimismo do autor é extremo, e
é evidente a influência de Schopenhauer em suas obras. Escreveu
Saco às Costas, A Contrapelo, A Catedral, e As Multidões de
Lourdes.

IVANOV (1895-1963), romancista soviético, autor de romances


muito populares sobre a Guerra Civil que sucede a Revolução de
1917: Os Partisans (1921), O Trem Blindado 14:69 (1927). Cedeu
às pressões stalinistas e apoiou os expurgos de Moscou, que tiveram
em Andrei Vichinski o promotor dos três processos.

203
KAMENEV, Lev Rosenfelt (1883-1936), velho bolchevique, ativo
revolucionário, dirigente do partido já durante a Revolução de 17.
Membro proeminente do Comitê Central, posteriormente diplomata
do governo soviético e presidente do Conselho de Trabalho e De-
fesa. Foi preso no período de repressão stalinista e condenado à
morte e executado no Primeiro Processo de Moscoú.

KANDINSKY, Vassili (1866-1944), pintor russo ligado às correntes


da pintura moderna. Em 1912 preside uma associação de artistas
novos e edita O Cavaleiro Azul junto com Franz Marc e Paul Klee.
Entre 1914 e 1921, em Moscou, dirige a Academia de Artes da
URSS. De volta a Alemanha em 1921 torna-se membro importante
do Bauhaus, primeiro em Weimar e depois em Dessau. Fechado o
Bauhaus pelo regime nazista, em 1934 foge para Paris. Kandinski
foi um dos principais teóricos do ab~tracionismo na pintura. Dentro
do quadro das vanguardas artísticas sustentou uma posição quase
isolada de teórico do espiritualismo nas artes, em contraste flagrante
com as tendências materialistas, pragmáticas e funcionais, domínan~
tes no início do século. Até 1914 evoluiu passando por cinco fases:
naturalismo, impressionismo, fauvismo, expressionismo e abstracio~
nismo. A partir de então, sua arte será só de abstração. Passa pela
experiência do construtivismo russo, depois do funcionalismo do
Bauhaus.

KfROV, Serguei (1886-1934) operar10 especializado, ingressou no


Partido Bolchevique por volta de 1910. Foi um dos organizadores
do Exército Vermelho no Astrakã, integrando o Comitê Central do
partido a partir de 1923. Em 1934, quando foi assassinado pelo
jovem comunista Nikolaiev, era secretário geral do C. C. e inclina-
va-se por uma política de conciliaçã,o entre os partidários de Stálin
e a Oposição de Esquerda. Seu a"sSassinato, com a provável coni-
vência da G. P. U., abriu o período de grande terror stalinista na
década de 30.

KLEE, Paul (1879-1940), pintor suíço de origem alemã, ligado às


correntes da pintura modernista, cubista, surrealista. Participa do
grupo O Cavaleiro Azul, com Vassili Kandinsky. Tem o cubismo e
o Oriente como influências básicas em sua obra. Trabalha no Bauhaus
entre 1921 e 1926 como artista e professor. Em 1933 é denunciado
publicamente pelo governo nazista, e suas obras são confiscadas. Klee
deixa a Alemanha, regressando para Berna. Em Klee não existe pro-

204
priamente uma evolução, mas uma invenção descontínua em que
novas soluções são dadas a novos problemas plásticos.

LABRIOLA, Antônio (1843-1904), filósofo italiano hostil ao libe-


ralismo burguês, defende o materialismo dialético e histórico como
uma concepção global do mundo e uma teoria da história, como base
científica para uma prática política revolucionária. Escreveu A Con-
cepção Materialista da História.

LA ROCHELLE, Pierre I)rieu (1893-1945), escritor francês, ferido


na I Guerra, produziu obras de acordo com sua adesão arústica ou
política, tendo em sua formação sofrido influência de Rudyard Kipling
e Nietszche. Na década de 20 se aproxima do surrealismo e do socia-
lismo, para depois aderir ao fascismo e colaborar com os alemães que
invadiram a França. Com a libertação do país, veio a suicidar-se.

LIEBKNECHT, Karl (1871-1919), deputado alemão socialista do


Reicbstag, um dos poucos que mantiveram uma posição internacio-
nalista durante a guerra; aprisionado, depois líder da Liga Espártaco
em 1916. Fundou o Partido Comunista Alemão (1918-19) com Rosa
Luxemburgo. Preso quando da insurreição de janeiro de 1919; sob
ordens do dirigente social-democrata Noske, é assassinado.

LITVINOV, Máximo Wallach (1876-1951), colaborador da velha


Iskra, participou da Revolução Russa de 1905 e da de 1917. Era
íntimo colaborador de Stálin na década de 30, na qualidade de Co-
missário de Assuntos Externos. Depois foi embaixador russo em
Washington.

LORCA, Federico Garcia (1899-1936), poeta, teatrólogo e compo-


sitor espanhol, preso e fuzilado por elementos de direita, provavel-
mente a serviço das forçãs de Franco. Deixou inúmeras obras: Ro-
mancero Gitano. O Poeta em Nova York, Bodas de Sangue, etc.

LUXEMBURGO, Rosa (1870-1919), revolucionária alemã, de ori-


gem polonesa, ingressou no Partido Socialista Polonês, tendo que
fugir para o exterior em 1889. Estudando em Zurique, doutorou-se
em economia política. Junto a Leo Jogiches encabeçou o Partido Social
Democrático da Polônia e Lituânia, fundado em 1893. Em 1898
estabeleceu-se na Alemanha, naturalizando-se, disposta a trabalhar no
Partido Social-Democrata Alemão. Combateu a liderança revisionista

205
de Bernstein. Voltou à Polônia para liderar o movimento de apoio
à Revolução Russa de 1905; quando foi aprisionada, libertando-se sob
fiança. Com a I Guerra Mundial foi presa até 1918 por desaprovar
o partido em sua política de guerra e se empenhar na propaganda
pacifista. Junto com Karl Liebknetch fundou, mesmo estando apri-
sionada, a Liga Espártaco (1916). Entre 1918-19, novamente junto
com Liebknetch, fundou o Partido Comunista Alemão. Presa quando
da insurreição de janeiro de 1919, foi assassinada a coronhadas, sob
as ordens do dirigente social-democrata Noske.

MALLARMÉ, Stéphane (1842-1898), poeta francês, deixou a ima-


gem de dandi intelectual, quer por seu salão literário na Rue de
Rome onde reunia poetas simbolistas, pintores e jovens escritores,
entre eles Paul Valéry, presumível herdeiro de sua poética, quer pela
revista de modas que redigiu (A última Moda) e pelos versos casuais
para fotografias, livros, álbuns, etc. (reunidos postumamente em Vers
de Circonstance). Conduziu, porém, toda sua vida a escrever, reescre~
ver e corrigir uma dúzia de sonetos, duas dúzias de poemas curtos
e cerca de seis poemas longos, uma cena dramática e alguns fragmen-
tos teorizantes.

MANDELSTAN, Óssip (1892-1938). Poeta e prosador russo, parti-


cipou brevemente do grupo acmeísta com os poemas de A Pedra
(1912). Depois sua poesia expressou uma tonalidade clássica, com
imagens mitológicas e um estilo altamente refinado, próximo do
simbolismo francês (Tristia - 1922). O escritor desapareceu num
campo de concentração vitimado pelas perseguições do stalinismo.

OLIVER, Garcia, anarquista espanhol, nascido em 1897, foi diri-


gente da Federação Anarquista Ibérica (F.A.I.) e ministro da justiça
do governo republicano de Largo Caballero (1936-37). Depois do
levante da Catalunha (1936) foi acusado de omissão diante da política
stalinista de perseguição e extermínio dos militantes revolucionários
anarquistas e trotskistas.

PIATAKOV, Yuri (1890-1937). Filho de rico usineiro de açúcar, foi


anarquista e depois bolchevique (1910). Preso e deportado, instalou-
se no Japão de onde travou polêmicas com Lênin e Bukhárin. Em
1917 retornou à pátria e no ano seguinte presidiu o conselho de
comissários do povo de Kíev e da Ucrânia. Titular do Comitê Central
entre 1923-25, foi também presidente do Tribunal Supremo. Firmou

206
o documento de opos1çao dos 46 e acabou expulso e deportado.
Capitulando meses depois, foi readmitido no partido e tornou-se vice-
comissário para a indústria pesada, da qual é considerado o verda-
deiro organizador na URSS. Detido em 1936 foi condenado no Se-
gundo Processo e executado.

RADEK, Karl (1885-1945), revolucionário oriundo da Galícia polo-


nesa, ingressou no partido social democrata polonês e mais tarde
viveu na Alemanha. Na Suíça entrou em contato com Lênin, perma-
necendo na Suécia durante a revolução de 17, centralizando ali as
relações internacionais dos bolcheviques. Retornou à Alemanha em
missão secreta em 1918 onde foi preso, depois de ter participado da
delegação russa nas conversações de paz de Brest-Litovski. Membro
do Comitê Central bolchevique, participou da oposição dos 46 contra
a ala direita do partido e em 1924 saiu do Comitê Central tendo
sido expulso no XV Congresso. Condenado a 10 anos de prisão no
Segundo Processo, foi assassinado no campo de concentração de
Yakutsk, por um companheiro de cárcere.

RAKóVSKI, Christian (1873-1942?), filho de rico proprietário, aos


16 anos, por causa de um discurso revolucionário, ficou proibido de
frequentar escolas, tendo de cursar medicina em Montpellier (França).
Colaborou na Iskra de Lênin e no Pravda vienense de Trostski. Mem-
bro do Comitê Central bolchevique entre 1919-25, foi o único orador
a criticar abertamente Stálin (e sua política de russificação) no XIII
Congresso do partido. Organizador com Trostski da oposição de es-
querda, foi expulso e deportado. Em 1934 capitulou em nome do
perigo de uma guerra mundial iminente. Pouco depois foi detido e
condenado à prisão no Terceiro Processo de Moscou. Deixou obras
importantes: A Rússia no oriente, Metternich e sua época entre outras.

RILKE, Rainer Maria (1875-1926), escritor austríaco, levou vida


de viajante permanente, principalmente pela França entre 1905 e
1906, como secretário particular do escultor Rodin. Viveu sem
jamais exercer uma profissão. Novos Poemas que, segundo a opinião
de muitos críticos são as poesias mais perfeitas de Rilke, são de ex-
tração pós-simbolistas. Suas obras expressam, uma aspiração ardente
pela "iluminação", a profunda angústia face à miséria, ao sofrimento
e à morte. Seu trabalho mais conhecido: Elegias de Duíno (1912-15).
É indispensável para a compreensão da poesia de Rilke a leitura de
sua vasta correspondência.

207
RIMBAUD, Arthur (1854-1891). Em 1870 já escrevia poemas.
Foge várias vezes de casa, sendo recambiado pela polícia à pedido
da mãe. Foi uma síntese de poeta rebelde e aventureiro. Verlaine,
após conhecer seu Soneto de Vogais, custeia sua passagem à Paris
e o leva a abandonar mulher e filho atraído pelo jovem companheiro.
Em Londres, Rimbaud e Verlaine vivem miseravelmente. Quando
as relações se deterioram, em 1873, Rimbaud decidiu pelo rompi-
mento e Verlaine deu-lhe dois tiros de revólver ferindo-o no pulso.
Rimbaud concluíra Uma Temporada no Inferno, cuja edição abando-
nou com os impressores. Em 1874, quando terminou Iluminações,
desistiu, para sempre, da literatura. Sua Lettre du Voyant, escrita
em maio de 1871, expressa a ambição de viver, melhor que Baude-
laire, uma experiência prometéica de "ladrão do fogo", uma espécie
de busca, de descoberta do eu profundo e uma unidade cósmica.

ROLLAND, Romain (1866-1944), escritor francês, autor de Vidas


de Homens Ilustres, Teatro da Revolução - Danton e um vasto
ciclo romanesco denominado Jean-Christophe (1903 a 1912). Apro-
ximou-se do socialismo na década de 20, especialmente através de
sua amizade com Máximo G6rki, mantendo posição justificatória dos
grandes expurgos promovidos pelo stalinismo.

ROMAIN, Jules (1885-1972), pseudônimo de Louis Farisgoule, ro-


mancista neo-naturalista e poeta, autor, entre muitos outros, dos
romances que integram o ciclo Os Homens de Boa Vontade (vinte
e sete volumes).

SARRAUT, Albert (1872-1962), político francês, do Partido Radi-


cal, Chefe de Governo em 1936, integrando a Frente Popular.
No poder baixou os dispositivos legais a que o texto se refere.

SCHILLER, Friedrich von (1759°1805), dramaturgo e poeta alemão,


da época romântica. Fixou-se em 1787 em Weimar. Em 1794 co-
meça sua amizade com Goethe, que lhe representou em Weimar
suas peças. Seu traço comum com Heinriç:h Reine, em termos gerais,
foi de terem escrito algumas obras de caráter social, com fortes
denúncias ou sátira à sociedade conservadora de seus tempos.

SEREBRIAKOV, Leonid (1888-1937), filho de operário metalúrgico,


ingressou.no partido bolchevique em 1905. Membro do Comitê Cen-
tral em 1919, desempenhou várias funções importantes, entre as

208
quais a de comissário do povo para os transportes. Dirigente da
oposição de esquerda, tentou reconciliar Trotski com Zinovíev e
Kamenev, sem sucesso, tendo sido expulso e deportado em seguida.
Em 1929 foi reintegrado ao partido e mais tarde enviado em missão
oficial aos Estados Unidos. No retorno, acusado de sabotagem foi
condenado no Segundo Processo e fuzilado.

SOKOINIKOV, Grigor (1888-1939?). Filho de médico, bolchevique


desde 1905. Preso e deportado pelo regime csarista, retornou com
Lênin em 1917. Membro do Comitê Central entre 1917-27, foi co-
missário das finanças,. tendo dirigido a nacionalização dos bancos.
Membro indeciso da oposição de. esquerda, foi embaixador em Lon-
dres (entre 1927-33). Expulso do partido e detido, foi condenado
a dez anos de prisão no Segundo Processo, depois do que desaparece.

SMfRNOV, Ivan (1881-1936), velho bolchevique, ativo revolucio-


nário, dirigente do partido já em 17, sofreu prisão e condenação no
período de repressão stalinista, e foi provisoriamente reabilitado.
Como Kamenev e Zinoviev, foi condenado à morte e executado no
Primeiro Processo de Moscou.

TERRAIL, Pierre Alexis Ponson du (1829-1871), grande folheti-


nista francês conheceu em sua época extraordinário sucesso com o
herói misterioso Rocambole, que viveu em dezenas de romances todo
tipo de aventuras.

TOLSTóI, Alexis (1883-1945), conde, poeta e romancista soviético,


lançou no início do século um livro de poemas de traços simbolistas
(Além das Flores). Emigrou no pedodo de 1918-23 (quando teria
lutado ao lado dos brancos), regressando e passando a trabalhar na
obra cíclica O Caminho das Tormentas (três romances). Escreve
ainda uma autobiografia onde relata a decadência da nobreza rural
russa e um romance histórico: Pedro, O Grande, entre outras obras.
Foi escritor oficial (muito rico, inclusive) e iniciador do culto a Stálin
em literatura.

TRAVEN, Bruno (1890?-1969), ou Berick Traven Thorsvan, dito B.,


escritor provavelmente nascido nos Estados Unidos, mas de língua
alemã, teve uma vida cercada de mistério, permanecendo até hoje
desconhecidos seus principais aspectos biográficos. Seus temas prin-
cipais são as lutas dos trabalhadores nos países tropicais, a explora-

209
ção e miséria que os vitima. Escritor de tendência anarquizante e de
estilo neo-realista. Sua obra mais conhecida é O Tesouro de Sierra
Madre (1928), publicado no Brasil pela Editora Paz e Terra.

TZARA, TristaQ, pseudônimo de Samy Rosenstock (1896-1963),


escritor francês de origem romena, iniciador do movimento dadaísta
( 1916). Manteve relações pessoais com os surrealistas na década de
20 e na de 30 teve um recuo inclusive político de suas propostas
ini~iais, s.ubmetendo-se a certas pressões da corrente defensora do
realismo socialista, desentendendo-se com Breton. Escreveu, entre
outras, as .obras: Des nos Oiseaux (1929), L'Anti-Ttte (1933), Le
Couer à Gaz (1938).

VICHINSKI, Andrei (1883-1954). Ex-reitor da Universidade de


Moscou, teórico do "novo direito" stalinista que se fundava na tese
segundo a qual as confissões dos presos e acusados eram provas su-
ficientes de culpa. Essa é a "justiça Vichinski" a que se refere
Trotski.

VOROCHfLOV, Klementi (1881-1970). bolchevique desde 1903,


entrou no Exército Vermelho na guerra civil e chegou a suboficial.
Amigo íntimo de Stálin tornou-se homem de confiança da máquina
partidária, acumulando muitas funções. Participou do expurgo no
exército (1937-38) e chegou a ser presidente do Soviete Supremo e
Chefe de Estado (entre 1953-60).

WELLS, H. G. (1866-1946), escritor inglês. A referência ao texto


é sobre um artigo de Wells publicado em Londres, em 1920, intitu-
lado "O Sonhador do Krêmlin". Trotski refuta-o em um capítulo de
seu livro Lênin chamado "O Filisteu e o Revolucionário".

ZAPATA, Emiliano (1877?-1919), camponês de origem índia, sub-


levou os campoenses em 1910 durante a Revolução do General Ma-
dero. Depois rompeu com este, que não quis restituir a terra a seus
antigos possuidores, tornando-se líder da revolta agrária mexicana e
chegando a dominar boa parte do sul do país. Morreu assassinado por
ordem do presidente Carranza.

ZINOVIEV, Grigor Radomilski (1883-1936), veio da Suíça para a


Rússia com Lênin. Membro do Comitê Central do Partido Bolche-
vique, posteriormente primeiro presidente da III Internacional.

210
Sofreu prisão e condenação no período de repressão stalinista; con-
denado e executado no Primeiro Processo de Moscou.

ZOLA, Émile (1840-1902), autor de Thérese Raquin, Germinal,


entre dezenas de romances naturalistas que integram o conjunto de-
nominado Os Rougons-Macquarts, Hist6ria Natural e Social de uma
Família sob o II Império. Em 1898 tomou partido do Capitão
Dreyfus, escrevendo no jornal L'Aurore a carta aberta Eu Acuso ao
presidente da República, acusando os generais de falsificação de
documentos, em detrimento do injustamente condenado. Enfrentan-
do o ponto de vista enfurecido da opinião pública, Zola foi con-
denado pelo tribunal, mas fugiu logo após para a Inglaterra, de onde
só voltou depois do processo e da absolvição de Dreyfus.

ZWEIG, Stefan (1881-1942), escritor austríaco, autor de inúmeras


obras de pensamento e de biografias de escritores, estadistas e nobres
do passado. Tendo vindo para o Brasil, aqui publica Brasil, País do
Futuro, em 1942, ano em que se suicida juntamente com sua mulher,
traumatizado com a II Guerra.

211
Fontes:

POR UMA ARTE REVOLUCIONARIA INDEPENDENTE -


Descoberto pelos pesquisadores do Instituto Leon Trotski, nos arqui-
vos de Trotski em Harvard. Publicado pela primeira vez no vol. 18
das Oeuvres de Leon Trotsky, Publication de l'lnstitut Leon Trotsky,
Paris, 1984.

CARTA DE TROTSKI A BRETON (27 de outubro de 1938) -


Dies n.º 12, 15 de abril de 1960, Paris.

CARTA DE TROTSKI A ANDRÉ BRETON (22 de dezembro de


1938) - La Clé n.0 2, fev. de 1939, Paris.

VISITA A LEON TROTSKI - Discurso de Breton no ato do P.O.1.


que comemorou a Revolução Russa (11 de novembro de 1938). Pu-
blicado em La Clé des Champs, Paris, 1953.

ENTREVISTA DE ANDRÉ BRETON A ANDRÉ PARINAUD I


- Entretiens Radiophonique, Gallimard, Paris.

ENTREVISTA DE ANDRÉ BRETON A ANDRÉ PARINAUD II


- idem.

LEON TROTSKI: LílNIN - Publicado em La Révolution Sur-


réaliste, Paris, n.º 5, 15 de outubro de 1925.

PLANETA SEM PASSAPORTE - Panfleto de 24 de abril de 1934.


Seu titulo é referência ao último capítulo de Minha Vida de Trotski.

213
DECLARAÇÃO LIDA POR ANDRÉ BRETON no meeting de 3
de setembro de 1936 "A VERDADE SOBRE O PROCESSO DE
MOSCOU" - Panfleto. Paris, set. de 1936.

DECLARAÇÃO DE ANDRÉ BRETON NO MEETING DO P.O.1.


em dezembro de 1936 - Texto encontrado pelos pesquisadores do
Instituto Leon Trotsky nos arquivos de Trotski em Harvard, publi-
cado em Cahiers Leon Trotsky, n." 9, janeiro de 1982.

DISCURSO DE ANDRÉ BRETON A RESPEITO DO SEGUNDO


PROCESSO DE MOSCOU - Paris, 16 de janeiro de 1937 - Pan-
fleto. Paris, 26 de janeiro de 1937.

A ARTE E A REVOLUÇÃO - Publicada no Partisan Review, 17


de junho de 1938.

SOBRE A F.I.A.R.I. - as referências dos textos coletados encon-


tram-se ao final de cada um deles.

LONGE DE ORLY - Manuscrito de um artigo de André Breton


publicado a 15 de abril de 1960 no n." 12 da revista Bief, dirigida
por Gérard Legrand. Tirado de Perspective Cavaliére, pp. 174 a 176,
Gallimard, 1970.

DECLARAÇÃO DA LIGA PELA LIBERDADE CULTURAL E


PELO SOCIALISMO - Publicado em Partisan Review, em 1938.

O ORGANIZADOR AGRADECE A COLABORAÇÃO DO


NúCLEO DE PESQUISA DO CEMAP.

214
1938 - Primeira
entrevista de Breton com
Trotski no México em
presença de Diego Rivera
e Jacqueline L amba.

Breton e Trotski no
escritório deste último.
Na página ao lado.
Trotski e Natalia
Sedava.
,.
r,.Í:,(~• '
'4'\
1
Um passeio pelos bosques de Chapultepec em junho de 1938: Diego Ri vera, Frida Kahlo, Natal ia Sedava,
Reba Hansen, André Breton, Trotski, um mexicano não identificado, Jesús Casas (chefe do corpo policial que
protegia Trotski), Sixto (um dos motoristas de Diego Rivera) e Jean Heijenoort.
1

'--

Potrebbero piacerti anche