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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
EDUCAÇÃO

MARIA ROSALIA DE AZEVEDO CORREIA

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES EM
PSICOLOGIA

Salvador

2007
MARIA ROSALIA DE AZEVEDO CORREIA

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES EM
PSICOLOGIA

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação da Faculdade
de Educação da Universidade Federal da
Bahia, para obtenção do grau de Doutor
em Educação.

Orientadora: Profa. Dra. Elizete Silva Passos

Salvador

2007
C em Psicologia
7
255 fls.
MARIA ROSALIA DE AZEVEDO CORREIA

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES EM
PSICOLOGIA

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação da Faculdade
de Educação da Universidade Federal da
Bahia, para obtenção do grau de Doutor
em Educação.

Profa. Dra. Elizete Silva Passos


Orientadora - UFBA

Profa. Dra. Cecília Maria Bacellar Sardenberg


Universidade Federal da Bahia

Profa. Dra. Nívea Maria Fraga Rocha


Fundação Visconde de Cairu

Profa. Dra. Sonia Regina Pereira Fernandes


Universidade Federal da Bahia

Profa. Dra. Teresinha Fróes Burnham


Universidade Federal da Bahia
A Andrea e Frederico,
pelas aprendizagens da convivência diária.

A todas as pessoas que passaram pela minha


vida na condição de estudantes, pelas
aprendizagens de uma profissão.
AGRADECIMENTOS

A Profa. Dra. Elizete Silva Passos, pela parceria na orientação e pela


paciência de aguardar todos os momentos.

A Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências, na pessoa do Prof.


Dr. Humberto de Castro Lima, pela possibilidade de fazer parte da comunidade da
Bahiana e por permitir a realização desta pesquisa.

A todos os alunos e professores do Curso de Psicologia da Bahiana, em


especial aqueles que concordaram em serem sujeitos dessa pesquisa, participando
dos Grupos Focais.

A Romélia Santos, mestra e companheira de todas as jornadas.

Ao prof. Gaspare Saraceno, pelo incentivo e cumplicidade na leitura dos


manuscritos.

A Marina Araújo e a Nicoleta, pela leitura do material em momentos cruciais.

A Zé Mineiro e a Lucília, pelo afeto, respeito e pela força.

A vô Pedro e a Dolores, pelo suporte afetivo de todas as horas.

A Iraci Capinam e Michel Dantas, do CEEBA, pela compreensão em


momentos importantes da elaboração desta tese.

A Aline Campos e Joelma, pelo socorro no finalzinho desta caminhada.

A Zezé, por enfrentar a fase final deste trabalho, sem restrições.


“E tudo que os homens fazem,
sabem ou
experimentam
só tem sentido
na medida em que pode ser discutido.”

Hannah Arendt
RESUMO

A questão da identidade constitui-se hoje uma temática relevante nas


Ciências Humanas e Sociais, tendo em vista que o mundo contemporâneo diverso e
plural nega a existência de identidades fixas e hegemônicas e admite a coexistência
de identidades plurais forjadas nos processos sociais de identificação e diferença. O
propósito desta tese é estudar a construção de identidades profissionais em
Psicologia, com alunos de um curso de Psicologia singular, tomando como
referência a vivência curricular acadêmica e considerando a psicologia como
profissão feminina. Há o interesse de percorrer os caminhos pelos quais esses
estudantes assumem determinados discursos e posições de sujeito que os nomeiam
psicólogos e psicólogas. A pesquisa inicia-se com a condensação e análise de um
questionário respondido por alunos no momento em que ingressam no curso, sobre
o entendimento que esboçam sobre a Psicologia e o ser psicólogo. Mediante o
desenvolvimento de Grupos Focais e Análise Documental, tenta-se percorrer os
caminhos pelos quais os alunos e as alunas ressignificam as concepções sobre
Psicologia e o que os faz sentir-se psicólogos e psicólogas. Trabalha-se com aporte
teórico multirreferencial, ancorando-se em saberes oriundos da Psicologia Social,
Estudos de Gênero, Filosofia e Teorias de Currículo, dentre outros. Os dados da
pesquisa revelam que esses estudantes ingressam no Curso idealizando formar-se
em psicologia clínica, um ramo da Psicologia cujo mister deve ser exercido por meio
da clínica privada de atendimento em consultório, numa reprodução do modelo de
atendimento médico, o que não se modifica substantivamente durante a formação.
Há, porém, uma ressignificação do entendimento do profissional quando, ao final do
curso, entendem psicólogos e psicólogas como profissionais da escuta que,
mediante uma escuta cuidadosa, ética e teoricamente fundamentada, prestam ajuda
àqueles que os procuram. Entendem que a construção dessas identidades durante o
curso é processual, havendo práticas curriculares que contribuem de forma
marcante para isso, como é o caso dos Estágios e do Trabalho de Conclusão de
Curso, dentre outras práticas. Ressaltam também a importância da psicoterapia
pessoal como um importante e indispensável recurso para a formação profissional. A
despeito da introdução de práticas inovadoras, o currículo do curso ainda se revela
fragmentado, numa perspectiva tecnicista. Conclui-se que há necessidade de
reorientar esse currículo, além de desnaturalizar a Psicologia como profissão
feminina, porquanto verifica-se que há um atravessamento de Gênero no currículo
do curso, embora não haja uma intencionalidade para isso. Sendo Gênero uma lente
para compreender o mundo e em se tratando de uma profissão considerada
feminina, também se constitui numa lente para entender a profissão. Recomenda-se
a necessidade de desnaturalizar a Psicologia como profissão feminina,
desconstruindo a lógica que qualifica as mulheres com atributos como delicadeza,
sensibilidade e fragilidade que impregnam a profissão, impedindo uma renovação de
suas práticas para atender às demandas do mundo contemporâneo. Considera-se
que desnaturalizar a profissão como feminina, ultrapassar uma visão estereotipada e
reducionista da profissão e investir na reestruturação de um currículo menos
fragmentado são grandes desafios a serem enfrentados na formação de psicólogos
e de psicólogas.
ABSTRACT

The issue of identity constitutes today in a relevant theme for Social and
Human Sciences, considering that the diversified and plural contemporary world
denies the existence of fixed and hegemonic identities and admits the coexistence of
plural identities developed in the social processes of identification and difference.
The purpose of this thesis is to study the construction of professional identities in
Psychology, with students of a particular Psychology undergraduate course, taking
as reference the curricular academic experience and considering Psychology as a
feminine profession. There is an interest in following the tracks through which these
students adopt some discourses and subject positions which state them as
psychologists. The research begins with the summary and analysis of a
questionnaire answered by students at the moment when they enter the Course,
regarding the understanding they start to develop about Psychology and being a
psychologist, and through the process of focal groups and document analysis. An
attempt is made to follow the tracks through which the students ressignify their
concepts about Psychology, and that which makes them feel they are psychologists.
A multi-referenced theoretical approach is used, anchoring the research in
knowledge from Social Psychology, Gender Studies, Philosophy and the curricular
theories, among others. The research data reveal that these students enter the
Course idealizing pursuing Clinical Psychology, a field which is performed through
private practice, which is a reproduction of the medical model of clinical consultation,
and this does not change much throughout the Course. Thre is, however, a
ressignification in understanding of the professional, when, at the end of the Course,
students understand psychologists as listening professionals, whom, through a
careful, ethical and theorethically based listening approach, provide help to those
who seek them. They understand that the construction of these identities during the
course happens through a process, and that some of the curricular practices such as
the Internships and the undergraduate research project, among others, contribute a
lot to that. They also underline the importance of personal psychotherapy as an
essential tool for their professional education. Despite the introduction of innovative
practices, the course curriculum still reveals itself as fragmented and technicist. In
conclusion there is a need to restructure the curriculum, besides changing
Psychology from a feminine profession, as it is observed that there is an unintentional
gender issue in the curriculum. Since gender is a way of understanding the world,
and considering Psychology as a feminine professional, it is also a way to understand
the profession. A recomendation is made to change Psychology from a feminine
profession, desconstucting the view of women as delicate, sensitive and fragile which
impregnates the profession, blocking a renovation of practices to attend the demands
of the contemporary world. It is considered that the great challenges to be confronted
in the development of Psychologists are: to change the profession from its feminine
bias, to go beyond a stereotyped and reducionist view of the profession, and to invest
in the restructuring of the curriculum to make it less fragmented.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

GRÁFICOS

1 – Psicólogo - profissional de ajuda 140


2 – Psicólogo: um profissional da ajuda 143
3 – Psicologia – áreas de atuação 145
4 – Qualidades pessoais do Psicólogo 147
5 – Por que escolheu ser Psicólogo? 149
6 – Área que pretende trabalhar 150
7 – Opções de área de atuação a serem exercidas concomitante ao trabalho
clínico 152

QUADROS

1 – Transição do currículo nas turmas do Curso de Psicologia em 2003 116

TABELAS

1 – Faixa etária dos estudantes 135


2 – Renda familiar dos estudantes 136
3 – Número de TCC elaborados pelos alunos do curso de Psicologia por área
temática 184
4 – Opções de alunos para Estágios Específicos 196
5 – Escolha de alunos para Estágio Específico – Síntese 197
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ABEP - Associação Brasileira de Ensino de Psicologia


ABOP - Associação Brasileira de Orientadores Profissionais
ABP - Associação Brasileira de Psicólogos
ABPJ - Associação Brasileira de Psicologia Jurídica
ABRANEP - Associação Brasileira de Neuropsicologia
ABRAPEE - Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional
ABRAPSO - Associação Brasileira de Psicologia Social
ANPEPP - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia
ASBRo - Associação Brasileira de Rorschach
CBO - Catálogo Brasileiro de Ocupações
CFP - Conselho Federal de Psicologia
CONEP - Conselho Nacional de Entidades Estudantis de Psicologia
CRP - Conselho Regional de Psicologia
DCN - Diretrizes Curriculares Nacionais
EBMSP - Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública
FBDC - Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências
FENAPSI – Federação Nacional dos Psicólogos
FFCH - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
IBAP - Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica
IDORT - Instituto de Desenvolvimento Racional do Trabalho
IDOV - Instituto de Orientação Vocacional
INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais “Anísio Teixeira”
ISOP - Instituto de Seleção e Orientação Profissional
MEC - Ministério da Educação
NAPP - Núcleo de Atenção Psicopedagógica
PP - Projeto Pedagógico
SBPD - Sociedade Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento
SBPH - Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar
SBPOT - Sociedade Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho
SBPP - Sociedade Brasileira de Psicologia Política
SOBRAPA - Sociedade Brasileira de Psicologia e Acupuntura
TPFP - Taxa de Participação na Força de Trabalho
UFBA - Universidade Federal da Bahia
USP - Universidade de São Paulo
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 14

1 TECENDO AS IDENTIDADES 40
1.1 FALANDO DE IDENTIDADES 40
1.1.1 Entendendo as identidades pela historicidade 41
1.1.2 Algumas concepções contemporâneas de identidade 43
1.1.3 Identidades em movimento 46
1.1.4 Identidades simbólicas e discursivas 49
1.2 IDENTIDADES DE GÊNERO 52
1.2.1 Buscando compreender o conceito de Gênero 52
1.2.2 Vivência do feminino 54
1.2.3 Vivência do masculino 62
1.3 IDENTIDADES PROFISSIONAIS 67

2 FORMAÇÃO SUPERIOR EM PSICOLOGIA 78


2.1 UM POUCO DA HISTÓRIA 78
2.1.1 Antecedentes à criação dos primeiros cursos 82
2.2 UM CURRÍCULO PARA A PSICOLOGIA 87
2.2.1 Sobre algumas concepções de currículo 92
2.2.2 Currículo oculto 98
2.2.3 Implicações das teorizações críticas no Currículo da
Psicologia 102

3 ESTRUTURA E PROPOSTA DO CURSO DE PSICOLOGIA


– CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA 112
3.1 O CURSO DE PSICOLOGIA 112
3.1.1 Proposta Curricular do Curso 119
3.1.2 Construção de identidades neste Curso de Psicologia singular 124

4 A PSICOLOGIA E O SER PSICÓLOGO –


POSICIONAMENTOS PRÉVIOS 134
4.1 CARACTERIZANDO OS SUJEITOS 134
4.2 ANALISANDO DADOS DO QUESTIONÁRIO INICIAL 137
4.2.1 Visão da profissão 139
4.2.2 Aspectos relevantes do profissional 143
4.2.3 Investimento pessoal na profissão 148
4.3 TRAÇANDO UM PERFIL 153
13

5 VIVÊNCIA CURRICULAR – CONSTRUINDO AS IDENTIDADES 156


5.1 AS PSICOLOGIAS – UMA MULTIPLICIDADE DE ABORDAGENS 157
5.2 SENTIR-SE PSICÓLOGO, SENTIR-SE PSICÓLOGA 162
5.3 ESTÁGIOS - VIVÊNCIA TEÓRICO-PRÁTICA 167
5.4 PSICOTERAPIA – UMA APRENDIZAGEM DE SI 175
5.5 TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO: BUSCANDO O
PESQUISADOR 180
5.6 OUTRAS PRÁTICAS... A DIVERSIDADE NA FORMAÇÃO 185
5.7 PSICÓLOGOS E PSICÓLOGAS: PROFISSIONAIS DA ESCUTA 192

6 CONFIGURANDO GÊNERO 206


6.1 PSICOLOGIA – PROFISSÃO FEMININA 206
6.2 UMA VISÃO DE MASCULINIDADE 212
6.3 PROFISSÃO FEMININA... O QUE PENSAM OS HOMENS 216

REFLEXÕES 226

REFERÊNCIAS 232

APÊNDICES 247

ANEXOS 250
14

INTRODUÇÃO

A trajetória profissional de um ser humano é de natureza singular. Isso é


evidente não apenas pelo fato de cada ser humano ser único, mas também pela
singularidade de possibilidades e arranjos a que cada um submete suas escolhas,
inclusive as profissionais, amparados em suas competências teórico-conceituais,
vida pregressa, oportunidades e circunstâncias vivenciadas em determinado
momento histórico. A despeito do projeto de vida e do desenvolvimento da carreira
ser particular, os seres humanos agrupam-se em torno de profissões que têm seus
saberes específicos, ditos, ritos, mitos, enfim, configurações sociais, em que aqueles
que a abraçam, segredam e compartilham, numa construção coletiva.
A profissão é deflagrada, para cada um, com base na escolha profissional e
toma contornos concretos na experiência acadêmica universitária da formação. Os
caminhos percorridos pelas vivências objetivas e subjetivas da condição de aluno,
em situações de aprendizagem, mobilizam saberes e afetos na construção de um
projeto profissional.
Entre muitas profissões que coexistem na atualidade, mesmo quando se
consideram as profissões tradicionais e aquelas que emergem das novas
configurações da sociedade contemporânea, a psicologia se sobressai por sua
complexidade, visto que abriga uma diversidade de concepções teórico-
metodológicas que revelam distintas epistemologias e posicionamentos filosóficos e
se oferece para ser exercida em múltiplos espaços de inserção profissional com
peculiaridades específicas. Não existe uma proposta de convergência dessas
posições; elas coexistem sendo complementares, ambivalentes ou até contraditórias
entre si, explicitando a existência de múltiplas psicologias e não apenas de uma que
unifique ou sintetize seu vasto campo teórico e empírico.
Compreender os caminhos que levam à construção da profissão de psicólogo
ou de psicóloga é uma curiosidade que foi despertada no momento em que,
enquanto psicóloga e educadora, assumiu-se a implantação e coordenação do
Curso Superior de Psicologia na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública
(EBMSP), mantida pela Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências
(FBDC), na cidade do Salvador (BA), em 1999. A responsabilidade que esta tarefa
15

confere, aliada à necessidade de articular disciplinas, programas, conteúdos,


selecionar professores, formar um corpo docente e, além de tudo, construir
coletivamente o Projeto Pedagógico do Curso foi a mola propulsora do investimento
neste Doutorado.

Entende-se que reconhecer-se psicólogo ou psicóloga configura identidade.


Esta, porém, não se esgota em si mesma. Extrapola a questão profissional e abarca
identificações outras como as questões de geração, de raça, de gênero, dentre
outras e, enquanto carreira profissional, é construída durante toda a vida. Essa
construção, porém, é realizada, de forma significativa, durante a vivência sistemática
do curso superior, quando os alunos assumem posições de sujeito e se apropriam
de um discurso que lhes confere um sentimento de pertencer a uma profissão. Para
isso, apreendem conteúdos, assimilam valores, formas de se posicionar socialmente
e adquirem um arsenal teórico e técnico-metodológico necessário ao exercício de
determinado mister, além de um diploma que lhes confere socialmente a condição
profissional, neste caso, psicólogo ou psicóloga.

Só é possível compreender a construção de identidades em psicologia


quando se lança mão da historicidade da ciência, da profissão e do contexto social,
compreendendo que estes se constituem como referenciais de ordem política, social
e cultural que, por meio dos discursos, promovem sentidos que os sujeitos vão
interpretando e significando. É no confronto dessas múltiplas configurações e
possibilidades simbolicamente construídas que a pessoa posiciona-se e descobre
sua singularidade na historicidade social, cultural e profissional.

Neste processo estão envolvidos o mundo, os outros, a própria pessoa e a


natureza da profissão, articulando a história de vida, as aspirações futuras, a
aquisição de conhecimentos, o desenvolvimento de habilidades e atitudes. Estas
competências refletem posturas de vida e posicionamentos éticos diante de si e do
mundo. Há um jogo de constituição de si e do mundo proporcionado pelas
configurações histórico-sociais, que forjam as possibilidades e impossibilidades
pessoais e coletivas de inserção e atuação profissional nos diversos contextos
sociais.

Para compreender a construção de identidades profissionais em psicologia,


elaborou-se a seguinte pergunta para ser respondida por esta tese: Como os alunos
de um Curso de Psicologia singular constroem sua identidade profissional de
16

psicólogo ou psicóloga no processo curricular que vivenciam, tendo em vista que a


psicologia é considerada uma profissão feminina?
Com base nesta pergunta, há a pretensão de entender como os estudantes
constroem identidades profissionais em Psicologia na vivência acadêmica cotidiana,
mediante o processo curricular e as práticas pedagógicas que o curso proporciona,
sem a pretensão de buscar verdades que confiram uma identidade definitiva. Pelo
contrário, deseja-se compreender o movimento por meio do qual esses alunos vão
assumindo posições de sujeitos atravessadas pelas relações de poder, de classe, de
gênero, de geração, dentre outras e analisar a identidade como processo relacional
que produz sentidos, com base na linguagem e nos sistemas simbólicos que
afirmam os seres humanos como sujeitos.
Dos estudos realizados sobre a formação em psicologia desde os idos de
1960, quando a profissão foi reconhecida, definida a formação em ensino superior e
determinado o Currículo Mínimo Nacional pelos órgãos competentes da educação,
muitos trabalhos foram publicados sobre o assunto, utilizando uma diversidade de
abordagens no tratamento desta questão. Com relação a teses de mestrado e
doutorado, destacam-se os seguintes autores, dentre outros: Júlio Aquino (1990),
Mitsuko Antunes (1991), Luis Antonio Baptista (1987), Ana Merces Bock (1991,
1999), Ana Maria Jacó-Vilela (1996), Sérgio Ozella (1991), Manoelita Santos (1999).
A produção teórica relacionada à construção da identidade profissional e a questão
da profissão considerada feminina, entretanto, não tem tido visibilidade.
A proposta de elaboração desta tese apresenta um novo olhar sobre essa
problemática e acredita-se que se trata de um estudo relevante para a discussão
sobre a formação de psicólogos, tendo em vista que aborda aspectos importantes da
formação desses sujeitos/estudantes. Há um compromisso político com a práxis do
currículo enquanto prática concreta de ação diária da instituição escolar, dando
visibilidade a questões relacionadas aos conteúdos e práticas curriculares, ao
atravessamento de gênero no currículo, ao jogo de poder que institui a psicologia no
âmbito das profissões, dentre outros aspectos.
Pretende-se, com essa discussão, contribuir para uma maior criticidade na
formação de psicólogos e estimular maior aproximação da formação acadêmica com
a realidade histórico-cultural que a circunscreve. A relevância exprime-se não
apenas na atualidade do tema, mas na forma como elaborou-se a pergunta,
privilegiando o exame de processos já desenvolvidos, continuidades, lacunas,
17

transformações e apontando-se novas possibilidades sobre os saberes e poderes


que constituem a Psicologia e a formação desses profissionais.
Foi definido como objetivo geral da pesquisa: compreender como os alunos
de um Curso de Psicologia singular constroem identidades profissionais no processo
curricular que vivenciam, de forma que ao final do curso possam se autonomear
psicólogos. E, como objetivos específicos:

- verificar as concepções que os alunos têm da Psicologia e da profissão de


psicólogo, ao ingressarem no curso, e como estas se reestruturam ao
longo da vivência acadêmica;

- analisar como as práticas curriculares desenvolvidas pelo Curso


contribuem para a ressignificação da identidade de psicólogo e psicóloga
que os alunos esboçam ao ingressar no ensino superior;

- verificar como a questão de gênero atravessa as práticas curriculares do


curso e os impactos que produz na formação;

- analisar o entendimento que os alunos têm sobre a psicologia como


profissão feminina;

Era necessário, portanto, demarcar uma trama teórico-metodológica que


pudesse captar o percurso dos alunos/sujeitos na construção de identidades
profissionais em psicologia. Elegeu-se a Pesquisa Qualitativa com o formato de
Estudo de Caso, como aquele que atende aos objetivos, compreendendo o contexto
escolar como um lugar de cultura contraditória, onde as construções simbólicas
significativas são erigidas no duplo jogo do dito e não dito, ou seja, daquilo que se
declara e aquilo que subjaz enquanto valor, norma e acima de tudo disputa de
poder.
Há, neste trabalho, uma categoria básica de análise, qual seja, a Identidade,
em torno da qual se problematizam as questões relacionadas ao currículo e às
práticas curriculares de um Curso superior de formação em Psicologia, assim como
os aspectos relacionados à Psicologia como profissão feminina. Trata-se, portanto,
de identidades profissionais e de gênero.
A concepção de identidade que a tese partilha refere-se à identidade como
processo, como um movimento contínuo de diferentes e sucessivas identificações
18

que se interpõe entre as pessoas num jogo infinito de igualdade e diferença,


aproximação e distanciamento, permitindo, por meio do discurso, que as pessoas
reconheçam os iguais e os diferentes de si. Como ensina Stuart Hall (2000, p. 109):

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do


discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais
históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas
discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. Além disso,
elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e
são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que
o signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída, de uma
“identidade” em seu significado tradicional – isto é, uma mesmidade que
tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação
interna.

Ao adotar esta concepção de identidade não se pretende descrevê-la como


um alvo aprioristicamente traçado para ser atingido pelos alunos. Muito pelo
contrário, este posicionamento teórico instiga a compreensão das sutilezas e
minúcias dos caminhos pelos quais se constituem os sujeitos, no caso deste estudo,
como os estudantes se constituem psicólogos e psicólogas, mediante os processos
que dão sentido a suas experiências acadêmicas do cotidiano escolar. Isso implica
abdicar da idéia de identidade como idêntico e compreendê-la forjada na teia do
social, do mesmo modo e com igual intensidade que se produz a diferença, ambos
constituídos pelas relações de poder (BUTTLER, 2003; GUARESCHI; BRUSCHI;
MEDEIROS, 2003; HALL, 2000, 2001; SILVA, 2000; WOODWARTH, 2000 dentre
outros).
Esta formulação, ancorada no aporte dos Estudos Culturais, significa o
conceito de identidade, definindo-o em uma rede discursiva, como produto de um
discurso. Discurso como prática, conforme propõe Foucault (1999, 2001b), não é
visto do ponto de vista lingüístico ou como um significado de palavras, mas como um
conjunto de práticas que produzem efeitos no sujeito. Essas práticas discursivas,
historicamente produzidas, resultam de condições interativas concretas que geram
os processos de significação pelos quais os seres humanos assumem posições-de-
sujeito, pelas quais identificam-se com determinados discursos, tomando-os como
verdades, apropriando-se deles, sujeitando-se a determinadas significações que
fazem com que se tornem o que são.
Nesta mesma perspectiva, compreende-se a construção das identidades
femininas e das identidades profissionais. Gênero, enquanto categoria teórica,
19

considerada como suporte para compreensão e análise da pesquisa em foco, é


concebido, como afirmou Joan Scott (1993 p. 14)1: “[...] o gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e
o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder.”
Esse conceito seminal, entretanto, foi desdobrado em suas implicações
políticas e sociais, mediante a incorporação de novos e constantes estudos que
dialogam com autores contemporâneos.
Afirma Evelyn Keller (1996, p. 94):

[...] o feminismo contemporâneo propõe que o gênero é inerente às


estruturas sociais lingüísticas e discursivas e não uma diferença meramente
corporal. A teoria feminista é um empreendimento intelectual que surgiu de
um impulso político. O impulso político tinha como propósito questionar as
marcações do gênero e suas limitações, como um sistema no discurso. E
este impulso político conduziu a um programa intelectual cujo propósito ou
objetivo é compreender como opera gênero.

Além disso, para entender identidades construídas no discurso, recorre-se ao


conceito de performatividade proposto por Judith Butler (2001), o qual assegura que
o discurso não tem apenas uma função meramente narrativa de fatos ocorridos no
passado, mas formata acontecimentos e posições de sujeito, na medida em que,
mediante exercícios de repetição, proporciona a assunção de posições que falam de
si e reconhece aquelas pelas quais se é falado.
Nesta mesma linha de raciocínio, aborda-se as identidades profissionais
neste trabalho, entendendo-as como construções relacionadas às posições que o
sujeito assume, mediante as práticas discursivas às quais está exposto e que
expressam a forma como o curso dissemina conteúdos, valores e procedimentos
que configuram a profissão de psicólogo e psicóloga, de modo a proporcionar-lhes
uma percepção particular de mundo e determinados modos de agir diante dele.
Destarte, o currículo do curso assume uma posição relevante no âmbito de análise
desta experiência, porquanto produtor de identidades.
Compreende-se o currículo, neste trabalho, como uma construção social,
incorporando leituras advindas das teorias críticas e pós-críticas em detrimento de
visões tradicionais e tecnicistas, numa franca adesão à proposição de Gimeno

1
Publicado originalmente em inglês como: SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical
analysis. In: _____ Gender and the politics of history, New York: Columbia University Press, 1998.
p. 28-52. No Brasil, teve três versões publicadas em 1990, 1991 e 1995.
20

Sacristán (1995), que se refere a currículo multicultural, e de Teresinha Fróes


Burnham (1998), que advoga o currículo multirreferencial. Há, nessas proposições,
um direcionamento do currículo para além da prescrição de objetivos e rol de
conteúdos, privilegiando o próprio ambiente escolar, atravessado por diferentes
grupos sócio-culturais e uma diversidade de linguagens que medeiam as
experiências de aprendizagens. Está contemplada nestas propostas tanto a
dimensão explícita como a dimensão oculta do currículo.
Como construtor de identidade, o currículo refere-se ao processo de
produção, transmissão, assimilação e reelaboração do saber como assevera
Teresinha Fróes Burnham (1998, p. 37):

Na construção desse sujeito, o currículo significa um dos principais


processos, na medida em que aí interage um coletivo de sujeitos-alunos e
sujeitos-professores, além de outros que não estão diretamente ligados à
relação formal de ensinar-aprender. Nessa interação, mediada por uma
pluralidade de linguagens – verbais, imagéticas, míticas, rituais, mímicas,
gráficas, musicais, plásticas... – e de referenciais de leitura de mundo – o
conhecimento sistematizado, o saber popular, o senso comum... – os
sujeitos, intersubjetivamente, constroem e reconstroem a si mesmos, o
conhecimento já produzido e que produzem, as suas relações entre si e
com a sua realidade assim como, pela ação (tanto na dimensão do sujeito
individual quanto social), transformam essa realidade num processo
multiplamente cíclico que contém, em si próprio, tanto a face da
continuidade como a da construção do novo.

Em se tratando de educação formal, mesmo no curso superior, a sala de aula


emerge como o locus necessário para transmissão/assimilação do saber
historicamente elaborado, embora a sociedade contemporânea configure e
reconheça novos loci de aprendizagem e considere importantes outros saberes além
daqueles restritos à esfera científica e acadêmica. A sala de aula, espacialmente
delimitada ou deslocada para outros ambientes de aprendizagem, constitui-se em
espaço privilegiado para a vivência e compartilhamento dos desafios, dos conflitos,
dos sucessos e dos fracassos que a escola proporciona, assemelhando-se a uma
arena aonde se debatem, no sentido literal e metafórico, os conhecimentos, os
valores, as normas e a conduta culturalmente construída e por onde circula, além do
saber objetivo, a subjetividade daqueles que dela participam. Guacira Louro (1997,
p. 59) adverte:

Os sentidos precisam estar afiados para que sejamos capazes de ver, ouvir,
sentir as múltiplas formas de constituição dos sujeitos implicados na
21

concepção, na organização e no fazer cotidiano escolar. O olhar precisa


esquadrinhar as paredes, percorrer os corredores e salas, deter-se nas
pessoas, nos seus gestos, suas roupas; é preciso perceber os sons, as
falas, as sinetas e os silêncios; é necessário sentir os cheiros especiais; as
cadências e os ritmos marcando os movimentos [...]

A formação profissional não pode e não deve restringir-se ao ambiente formal


e acadêmico. Ao contrário, exige que se promova uma constante interação da teoria
com a prática, com base em uma interlocução com o mundo produtivo, para
significar o efetivo exercício de ação profissional, mediante a inserção em contextos
reais de trabalho. Deve proporcionar a construção e a socialização do conhecimento
em quaisquer espaços da vida social, transformando-os em loci de aprendizagem
que configuram os espaços multirreferenciais de aprendizagem (FRÓES BURNHAM,
2000). Afinal, a formação profissional constrói identidades.
Tendo em vista a natureza da pergunta que se formulou e sendo o conceito
de identidade o fio condutor desta pesquisa que, enquanto tema polissêmico
atravessa vários campos disciplinares distintos, necessário se fez lançar mão de
aportes teóricos distintos, oriundos do campo da Psicologia, da Educação, dos
Estudos de Gênero, da Filosofia e dos Estudos Culturais e, dessa forma, recorrer a
uma abordagem multirreferencial teórica e metodológica para o presente estudo.
A multirreferencialidade atende aos propósitos desta pesquisa, uma vez que
considera os fenômenos psicossociais como complexos, caracterizados pela
heterogeneidade e pluralidade, e compreende o conhecimento como produzido pela
intersubjetividade. Admite-se que há uma negociação entre as múltiplas referências
que compõem os sujeitos e os temas estudados com a intenção de não recortar, não
fragmentar, mas compreender a totalidade que os circunscreve e delineia. Como
assegura João Martins (1998, p. 24): “[...] compreender uma realidade, tomando-a
como complexa, significa entender a interdependência entre todos os fenômenos
nela implicados.”
Esta abordagem representa o rompimento com um modelo de pesquisa
positivista em sua forma racionalista e fragmentária de tratar o conhecimento e
busca uma composição teórica com saberes produzidos por campos disciplinares
distintos, de forma que possibilite uma ampliação do olhar em relação ao objeto
investigado. A multirreferencialidade propõe-se a fazer uma leitura plural dos
fenômenos que analisa, com base em pontos de vista distintos que articulam
sistemas de referência também distintos e não redutíveis um ao outro. Parte-se do
22

princípio de que um único ponto de vista é insuficiente para entender os fenômenos


em sua inteireza, ou seja, em sua complexidade. E a temática das Identidades
insere-se nesta possibilidade de leitura multirreferencial.

Jacques Ardoíno (1998, p. 37) argumenta: “[...] a abordagem multirreferencial


vai, portanto, se preocupar em tornar mais legíveis, a partir de uma certa qualidade
de leituras (plurais) tais fenômenos complexos (processos, situações, práticas
sociais etc.).” Enfatiza que esses múltiplos olhares podem focalizar os objetos não
apenas de ângulos diferentes, mas, inclusive, de posicionamentos diferentes, de
uma forma tal que possam até exibir possíveis rupturas epistemológicas. Afasta, por
conseguinte, qualquer possibilidade de conciliação e advoga um olhar hermenêutico
sobre o objeto de estudo, com uma intencionalidade de desvelar significados
possíveis.

Revela-se como uma posição epistemológica de crítica e criação científica


(MARTINS, 1998), na qual o fazer ciência configura-se como uma composição, uma
bricolagem metodológica (BORBA, 1998) definida no próprio desenrolar da
pesquisa. Sandra Corazza (1996, p. 121) adere aos princípios da
multirreferencialidade, ao discutir sobre a questão metodológica nos estudos da
contemporaneidade, quando propõe:

O processo metodológico é o de alquimia mesmo, resultando daí, uma


bricolagem diferenciada, estratégica e subvertedora das misturas típicas da
Modernidade. Alquimia que rompe com as orientações metodológicas
formalizadas na e pela academia (particularmente, nos cursos de pós-
graduação), cuja direção costuma ser a das abordagens classificatórias, tão
ao gosto de certas publicações sobre pesquisa educacional, em que cada
método vem apresentado em estado puro.

Pesquisadores da Psicologia Social, como Neuza Guareschi, Michel Bruschi e


Patrícia Medeiros (2003, p. 33), que também se inserem no campo temático dos
Estudos Culturais, partilham de uma compreensão multirreferencial para os
fenômenos psicossociais, quando sugerem: “[...] os Estudos Culturais utilizem-se de
todos os campos que forem necessários para produzir o conhecimento exigido por
um projeto particular.” Os autores citados apontam ainda três características
imprescindíveis, para que se realize um estudo neste campo, qual sejam: um “[...]
23

projeto teórico e político, a metodologia da bricolage2 e a interdisciplinaridade.”


(GUARESCHI; BRUSCHI; MEDEIROS, 2003, p. 33).
Não havendo hipóteses a serem comprovadas por caminhos metodológicos
determinados, mas perguntas a serem respondidas sobre realidades complexas, que
precisam ser analisadas em sua inteireza, e distintas possibilidades de leitura, a
bricolagem revela-se um caminho coerente para uma pesquisa que se pretende
multirreferencial. Nela é possível reunir diversas estratégias metodológicas em torno
de um mesmo objeto de estudo, no qual os procedimentos são construídos durante
o próprio desenrolar da pesquisa, o que a torna singular e permite que o
pesquisador possa criar e redirecionar seu processo, assumindo os riscos, dos quais
fala Georges Lapassade (1998, p. 127), necessários ao trabalho que desenvolve:
“[...] a dimensão de improvisação, de intuição e de astúcia.”
A multirreferencialidade, entretanto, não deve ser confundida com a
multidimensionalidade. Esta, numa perspectiva tradicional, remete a um modelo de
pesquisa que se vale de variáveis explicativas para abordar o objeto de
conhecimento, enquanto aquela promove uma articulação entre os saberes,
preservando-os da forma como são, buscando a comunicação entre eles. Analisar,
nessa perspectiva, tem o significado de compreender, interpretar e explicitar, em
contraposição à idéia positivista de classificação e decomposição.
É na perspectiva de buscar articulação entre os saberes e compreender e
explicitar a construção de identidades de um grupo de alunos que freqüentam um
Curso de Psicologia singular que se elabora esta tese.
A forma multirreferenciada de pensar é própria do pensamento complexo.
Este, como propõe Edgard Morin (1998, 2000, 2001), é sinônimo de todo (totalidade)
e se contrapõe àquele a que chama de pensamento simples que, tributário da
concepção moderna de ciência, apresenta-se fragmentado e reduzido e,
conseqüentemente, simplifica e superficializa os fenômenos físicos, biológicos e
humanos. Por meio do pensamento complexo, o autor propõe-se a estabelecer a
comunicação entre as várias dimensões desses fenômenos, quais sejam, físicas,
biológicas, espirituais, culturais, sociológicas, psicológicas, dentre outras, de forma

2
De acordo com Neuza Guareschi, Michel Bruschi e Patrícia Medeiros (2003, p. 35), a
interdisciplinaridade e o rompimento da fronteira das disciplinas faz com que a metodologia adotada
pelos Estudos Culturais possa ser diversificada e até ambígua: “Definida como uma bricolage, o
que influencia escolha das práticas de pesquisa são as questões que são feitas, e estas dependem
de seu contexto.”
24

tal que possam permitir-se coexistentes, reconhecendo-se mutuamente, sem


estabelecer um plano hierárquico entre si. Diz Edgard Morin (2001, p.14):

Existe complexidade, de fato, quando os componentes que constituem um


todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o
mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e
inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes.

Sob esse aspecto, a ordem linear da ciência clássica (moderna) prescritiva e


determinista é substituída por outra ordem, assimétrica, caótica e fractal (DOLL,
1997), na qual a realidade é vista como uma totalidade sem a redução a unidades
elementares, nem submissão a leis universais. As disciplinas fragmentadas, como
preconizado pela ciência moderna, no dizer de Morin (2000), serviram para isolar os
objetos de seu meio e separar as partes do todo. Com o advento da
hiperespecialização, provocaram o confinamento e o despedaçamento do saber.
Advoga Morin (2000) que a educação deveria romper com essa forma
inadequada de compreender os seres humanos e o universo para exibir as
correlações que existem entre os saberes, a complexidade inerente à vida e os
problemas que daí decorre, pois, segundo o autor: “[...] o conhecimento pertinente é
o que é capaz de situar qualquer informação em seu contexto, e, se possível, no
conjunto em que está inscrita.” (MORIN, 2000, p. 15). Sua progressão reside na
dependência da capacidade de contextualizar e englobar.
Conceber a instituição escolar como uma complexidade supõe que se pense
na multirreferencialidade como a forma de lidar com a diversidade que a compõe,
reconhecendo-a como um lugar de culturas contraditórias, onde transitam múltiplos
saberes e grupos sociais cujas peculiaridades precisam ser valorizadas, na
construção do conhecimento significativo e comprometido com as questões sociais,
locais e globais. Nisto estão implicados as concepções de currículo, as alternativas
metodológicas, a inclusão de uma perspectiva dialógica na construção do saber e o
reconhecimento das emoções como fator inerente ao processo de aprendizagem,
numa inclusão da subjetividade ao processo educacional.
É importante não perder de vista que estuda-se a construção de identidades
no âmbito de uma formação acadêmica de um Curso superior, na qual os alunos e
alunas, durante uma vivência cotidiana de cinco anos, constroem uma profissão,
definindo uma identidade profissional.
25

A multirreferencialidade pode ser praticada na escola, na sala de aula, na


convivência diária com as diferenças, na busca de fontes diversificadas para o
conhecimento, no reconhecimento de múltiplas culturas e diversos tipos de
conhecimento, na adoção de múltiplas linguagens, na inserção das dimensões
subjetivas dos sujeitos da aprendizagem, no ato de ensinar e aprender. Assim
sendo, é possível pensar na pesquisa acadêmica numa abordagem multirreferencial,
na qual a relação sujeito-objeto seja de cumplicidade, em que o pesquisador não se
dissocia do universo que pesquisa. Este é o caso desta tese.
Nega-se o posicionamento moderno, que separa o sujeito do objeto,
considerando que não é possível admitir como verdadeira a existência de um mundo
objetivo independente das pessoas, em que, mediante o princípio da neutralidade, o
cientista manipula e generaliza leis, utilizando-se de práticas científicas rigorosas e
corretas.
A esse respeito, Alfredo Veiga-Neto (1996, p. 32) pronuncia-se, enfatizando:

[...] a questão da impossibilidade do distanciamento e da assepcia


metodológica ao lançarmos nossos olhares sobre o mundo. Isso não
significa falta de rigor, mas significa que devemos ter sempre presente que
somos irremediavelmente parte daquilo que analisamos e que, tantas vezes,
querendo modificar.

Essa questão já havia sido abordada por Michel Foucault (1999), quando de
sua conversa com Gilles Deleuze, ao falarem a respeito da separação teoria-prática.
Em resposta a uma provocação de Foucault sobre a participação na política,
Deleuze responde:

Talvez seja porque estamos vivendo de maneira nova as relações teoria


prática. Às vezes se concebia a prática como uma aplicação da teoria, como
uma conseqüência; às vezes, ao contrário como devendo inspirar a teoria,
como sendo ela própria criadora com relação a uma forma futura de teoria.
De qualquer modo, se concebiam suas relações como um processo de
totalização, em um sentido ou em outro. Talvez para nós a questão se
coloque de outra maneira. (FOUCAULT, 1999, p. 69-70).

E Deleuze conclui, argumentando que a relação teoria prática se dá por meio


de um sistema de revezamento em uma multiplicidade de componentes teóricos e
práticos. Em concordância, Michel Foucault (1999, p.70) afirma: “[...] a teoria não
expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática.”
26

A indissociabilidade teoria prática também está presente nas pesquisas


feministas, quando se problematizam as questões do feminino na perspectiva
contemporânea. Não é sem razão que a pesquisadora Teresa de Lauretis (1994, p.
208) afirma sobre o sujeito dos estudos feministas:

[...] um sujeito constituído no gênero, sem dúvida, mas não apenas pela
diferença sexual, e sim por meio de códigos lingüísticos e representações
culturais; um sujeito “engendrado” não só nas experiências de relações de
sexo, mas também mas de raça e classe; um sujeito, portanto, múltiplo em
vez de único, e contraditório em vez de simplesmente dividido.

As pesquisas numa abordagem multirreferencial consentâneas a sujeitos e


contextos múltiplos e complexos, numa posição política de implicação do
pesquisador no estudo que realiza, podem contribuir não apenas para o
desenvolvimento de novas formas de consciência crítica, com novos
posicionamentos sociais e políticos, no que se refere ao reconhecimento das
diferenças individuais e coletivas, como também para novas formas de entender e
abordar a escola e a educação.
Construída com o intuito de compreender como alunos de um Curso de
Psicologia singular constroem suas identidades profissionais, esta pesquisa definiu
seu recorte metodológico em consonância com o quadro teórico que a subsidia,
optando por se organizar como uma Pesquisa Qualitativa, em forma de Estudo de
Caso.
A pesquisa qualitativa é entendida, neste trabalho, como um caminho pelo qual
é possível ao pesquisador compreender fenômenos complexos, nos quais está
envolvida a subjetividade dos sujeitos que deles fazem parte. Nela existe uma
interdependência entre sujeito e objeto de estudo, sendo o pesquisador também um
sujeito da pesquisa. Há uma intencionalidade de aprofundar a compreensão de um
dado fenômeno, mediante a observação e a escuta daqueles sujeitos que fazem
parte do universo da pesquisa.
Referindo-se à pesquisa qualitativa em Psicologia, Fernando Rey (2002, p.71) diz:

[...] a construção de conhecimento na pesquisa qualitativa é um processo


diferenciado que avança por rotas e níveis diferentes sobre o estudado, que
encontram seu ponto de convergência no pensamento do pesquisador. O
curso da pesquisa qualitativa pressupõe o estudo de caso não como via de
obtenção de informação complementar, mas como momento essencial na
produção de conhecimento.
27

A pesquisa qualitativa lida com os indivíduos em situações concretas. Há uma


evidente articulação com a vida dos sujeitos, sendo possível revelar, do ponto de
vista deles, emoções, desejos, projetos, visões de mundo, dentre outros que
configuram o fenômeno em estudo. O foco é nos seres humanos envolvidos, que
engendram o problema da pesquisa, com base na perspectiva teórica que o
pesquisador utiliza para fundamentar seu trabalho, como entende Sandra Corazza
(1996).
Como uma abordagem fenomenológica, a etnopesquisa, enquanto pesquisa
qualitativa preocupa-se com a análise de fenômenos do mundo, descrevendo-os,
analisando-os, olhando-os de dentro, até que o fenômeno possa revelar-se como a
culminância de um processo, em que se faz necessária a participação ativa dos
sujeitos e supõe a compreensão das múltiplas dimensões que o constituem; e isto se
refere a uma pessoa, um grupo, uma instituição, um processo... Ademais, apresenta
resultados provisórios, inacabados, pois fenômenos psicossociais constroem-se no
processo, como um vir-a-ser, que se faz e refaz constantemente.
Evidencia-se, portanto, como um poderoso caminho para as pesquisas na
área da Educação e revela, outrossim, uma dimensão política de implicação e
possibilidades de transformação da realidade. Trabalha com sujeitos reais que
vivenciam as vicissitudes do cotidiano, buscando uma construção conjunta, na qual
as vozes e os saberes de todos, inclusive aqueles considerados pouco relevantes ou
representativos, são valorizados. A pesquisa, desse ponto de vista, torna-se crítica e
pode exibir ambivalências, contradições, incertezas, opacidades próprias da
condição humana. Esta é também a ótica pela qual se realizam as pesquisas de
Gênero, como asseguram Sandra Harding (1998) e Eli Bartra (1998), quando
advogam que esta forma de pesquisar possibilita novos padrões de conhecimento
distintos daqueles tradicionais, pois, ao se dar voz aos sujeitos, no caso, as
mulheres, cria-se condições para a transformação da realidade, por meio das lutas
políticas.
Nesta pesquisa de doutorado, como se pretende fazer uma exploração
minuciosa das circunstâncias e acontecimentos que levam os alunos e as alunas,
pelo percurso acadêmico que vivenciam, a se autonomear psicólogos e psicólogas,
ao delimitar o Estudo de Caso, utilizou-se as técnicas de Questionário, Análise
Documental e Grupos Focais.
28

Revela-se uma escolha metodológica pertinente, quando se confronta com o


entendimento de Menga Lüdke e Marli André (1986) sobre o Estudo de Caso. Estas
autoras asseguram que este deve ser utilizado quando se quer estudar algo singular
em profundidade, posto que tem a possibilidade de analisar a realidade de forma
complexa, entendendo-se complexo na concepção moriniana do termo, exposta
anteriormente. Ademais permite novos direcionamentos durante o curso da
pesquisa, perseguindo os caminhos que surgem no próprio desenrolar do estudo,
não se atendo apenas a um roteiro pré-fixado.,Permite também que se utilize uma
grande variedade de fontes de informações, tanto aquelas que se escolhe na
confecção do projeto quanto outras que se fazem necessárias para examinar e
revelar o fenômeno estudado.

Teóricos da Psicologia, em seu viés sócio-histórico, corroboram a propriedade


do uso do Estudo de Caso em suas pesquisas, como é explicitado por Wanda Aguiar
(2001, p. 139): “[...] o conhecimento produzido, seja a partir de um sujeito, uma
escola, um grupo, constitui-se, pois, em uma instância deflagradora de apreensão e
do estudo de mediações que concentram a possibilidade de explicar a realidade
concreta.” Roberto Macedo (2002 p. 150) enfatiza que, nas pesquisas realizadas no
enfoque multirreferencial, o Estudo de Caso conduz à apreensão da ”[...] pertinência
do detalhe que o edifica e da singularidade que o marca, identifica-o e referencializa-
o, sem cair nos regularismos e formismos das perspectivas tecno-funcionalistas.”

Com relação à Análise dos Dados, enquanto uma etnopesquisa privilegia o


cultivo da flexibilidade e da sensibilidade, considera que esta análise se dá durante
todo o desenrolar da pesquisa, havendo, entretanto, um momento em que se
sistematiza o registro e a avaliação dos dados coletados em sua totalidade,
buscando o entendimento do fenômeno do ponto de vista dos sujeitos que
participaram da pesquisa. Em se tratando de uma Pesquisa Qualitativa, procedeu-se
à Análise de Conteúdo, buscando uma articulação com a Análise das Práticas
Discursivas que produzem sentidos no cotidiano, proposta por Mary Jane Spink
(2004).

A Análise de Conteúdo consolidou-se como o caminho mais adequado para os


propósitos da Pesquisa Qualitativa, tendo em vista que esta sempre busca
investigar, com base no discurso, o sentido que os seres humanos atribuem a
situações de seu cotidiano. Esta análise permite revelar o significado das
29

mensagens de uma determinada situação, e é nessa tarefa que a importância do


pesquisador se manifesta.
Incorporou-se uma Análise de Conteúdo “[...] aberta, processual e construtiva”
como refere Fernando Rey (2002, p. 146), que se orienta para a produção de
indicadores sobre o material que se analisa, buscando interpretar o universo
simbólico que o discurso enuncia em detrimento daquela que considera o texto dos
sujeitos externos ao pesquisador, cujo acesso objetivo fragmenta e distorce a
realidade que expressa. Ademais, admite-se, como Roberto Macedo (2002, p. 206),
que a voz dos sujeitos é um ponto norteador da análise das pesquisas, pois eles não
devem falar apenas “pela boca da teoria”, visto que é nessa fala que se revela a
realidade da qual fazem parte.
Mary Jane Spink (2004) distingue discurso de práticas discursivas, referindo-
se ao discurso como regularidades lingüísticas enquanto as práticas discursivas
dizem respeito aos momentos ativos do uso da linguagem, ou seja, da linguagem em
ação, em que convivem tanto a ordem e a regularidade como a diversidade. Esta
autora está interessada em compreender a dimensão performática do discurso, com
o intuito de verificar como os sujeitos atribuem sentidos a suas práticas cotidianas.
Sentido é assim definido pela autora:

[...] sentido é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais


precisamente, interativo, por meio do qual as pessoas — na dinâmica das
relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas —
constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as
situações e fenômenos a sua volta. (SPINK, 2004, p. 41).

Desse ponto de vista, a produção de sentidos é necessariamente


interdisciplinar, o que torna possível o diálogo entre vários campos de saber, e situa
o conhecimento no interior dos processos de interação social, tendo em vista que se
configura como uma prática social, dialógica e que se vale da linguagem utilizada
pelas pessoas em suas interlocuções do dia a dia. Fala-se, portanto, da linguagem
corriqueira, aquela dos falantes em situações concretas de interação.
É importante demarcar esse horizonte metodológico em que se inscreve esta
pesquisa, pois trata-se de um estudo sobre a construção de identidades de
psicólogos e psicólogas, de alunos e alunas de um Curso de Psicologia singular,
valorizando-se as vivências do cotidiano escolar. Emerge, pois, deste recorte, uma
30

visão multirreferencial dos fenômenos que constroem identidades. Ademais, tratar


este tema exige, além de uma cumplicidade com os sujeitos da pesquisa, uma
possibilidade concreta de perceber como operam as práticas que constituem os
sujeitos em seu processo de formação profissional. A vida escolar, enquanto uma
vivência cotidiana, configura um espaço de criação, recriação e construção diária
das relações que se estabelecem com as pessoas e com o saber que, num contexto
complexo, utilizam-se de práticas discursivas nas mediações entre os pares, para
que possam construir o mundo e os outros à medida que se constroem.

Assumindo a condição de pesquisadora envolvida com o objeto de pesquisa e


a metodologia como uma bricolagem que se faz e refaz de forma artesanal,
orientada pelos caminhos que a própria pesquisa empreende, optou-se por relatar
os procedimentos, que se cunhou de teórico-metodológicos pela impossibilidade de
separá-los, tomando como referência a ordem cronológica, ou seja, como os fatos
da pesquisa aconteceram. Houve, durante todo o processo, uma inter-relação
permanente entre a teoria e a prática, quando a produção dos dados empíricos
orientou os rumos que a pesquisa tomou. Dessa maneira, não se pode falar de
momentos distintos de produção teórica/revisão de literatura, coleta e análise dos
dados.

A curiosidade da pesquisadora pelo estudo da temática da Identidade foi


despertada desde o Curso de Mestrado no Programa de Pós-graduação em
Educação da UFBA, em 1999, quando, em dissertação intitulada Ser aluno para
continuar peão (DIAS, 1998, 1998), discutiu-se o impacto que a vivência do papel de
aluno, patrocinada pelo retorno compulsório à escola, advindo dos ditames da
reestruturação produtiva, provocava na identidade de trabalhador, tomando como
sujeitos operários do Pólo Petroquímico de Camaçari. Defendeu-se a identidade na
perspectiva da Psicologia Social como uma construção subjetiva sobre a realidade e
que se constitui nas representações simbólicas que o indivíduo desenvolve sobre si,
sobre o mundo e os outros, ancorando esses posicionamentos na Psicologia Social
31

latino-americana e em teóricos como Antonio Ciampa (1987, 1994)3, Sílvia Lane


(1981, 1994)4,e Jacob Levy Moreno (1978)5.
Estudar a construção de identidades de alunos de um Curso de Psicologia,
numa pesquisa de doutoramento, por sua vez, impôs-se pela necessidade de
compreender, de fato, o que é e como se dá essa formação profissional e tomou
corpo com a leitura de dois textos distintos. O primeiro deles foi publicado em
2001, na Revista Psicologia Ciência e Profissão, de autoria de Mauro Magalhães e
colaboradores, intitulado Eu quero ajudar as pessoas: a escolha vocacional da
Psicologia. Realizada no Rio Grande do Sul, esta pesquisa discute o que pensam
os alunos de um universo particular sobre a profissão de psicólogo, quando
ingressam num Curso Superior de Psicologia; e o segundo, a divulgação da
Pesquisa WHO (CFP, 2001), patrocinada pelo Conselho Federal de Psicologia, na
qual informava-se que a maioria dos profissionais de psicologia no Brasil (mais de
90%) são mulheres.
Nos caminhos e descaminhos percorridos na escolha do recorte teórico-
metodológico e a definição da questão a ser investigada, com o objetivo de analisar
a construção de identidades de psicólogos e psicólogas com alunos e alunas de um
curso de Psicologia singular, recorreu-se a um questionário (Anexo A) que o Curso
aplica a todos os seus alunos do primeiro semestre, presentes no primeiro dia de
aula. Construído com questões abertas, o questionário inquiria a respeito do que
pensavam os alunos sobre a Psicologia e a profissão, de uma forma linear e
aleatória, visto que hão havia uma intencionalidade definida a priori. Havia uma
exigência de que fosse aplicado, de fato, no primeiro dia de aula, quando se
supunha que não havia ainda nenhuma interferência do Curso para instrumentalizar
o aluno sobre o tema e acreditava-se que a compreensão que eles exibiam, nesse
momento, pertencia ao conhecimento do senso comum, e isso, de fato, era o que
interessava.

3
Ciampa defende a idéia de identidade como metamorfose, afirmando, numa perspectiva do
materialismo histórico-dialético, que há uma identidade pressuposta que é continuamente re-posta
por meio da consciência e da atividade (CIAMPA, 1987, 1994).
4
Psicóloga brasileira que, dentre outros, liderou o movimento de reestruturação da Psicologia
brasileira, aderindo às fundamentações marxistas para compreensão de fenômenos psicológicos.
(LANE,1994, 1981).
5
Jacob Levy Moreno, psiquiatra romeno, é autor das teorias que fundamentam o Psicodrama. Para
ele, o ser humano é de natureza social e constitui-se numa intersubjetividade partilhada por seus
pares nas múltiplas relações que vivencia, mediante os papéis que desempenha. Criou a Teoria
dos Papéis (MORENO, 1978).
32

Foi realizada, portanto, a condensação e análise das respostas destes


questionários, que somavam 151 e diziam respeito a alunos ingressos em oito
semestres, de 2000 a 2003. Paralelamente, investimentos foram feitos para atualizar
conhecimentos sobre as temáticas de Identidade e Gênero ancorado nas produções
contemporâneas que se situam numa perspectiva pós-moderna de compreensão de
ciência e de sujeito.

Teve-se, nesse momento, o ponto de partida teórico-metodológico,


porquanto a condensação e análise destes questionários compuseram o primeiro
momento da pesquisa, e foi considerado o marco zero, a partir do qual pretendia-
se investigar como os alunos ressignificavam a Psicologia, a profissão e
construíam suas identidades. Junto com uma revisão de literatura sobre Identidade
e Gênero, de acordo com as leituras anteriormente mencionadas, a condensação e
análise dos questionários compôs o texto que foi aprovado no Exame de
Qualificação.

Por orientação da Banca que participou do referido Exame, entretanto,


algumas providências foram tomadas com relação ao material apresentado. Em
primeiro lugar, o questionário inicial foi retrabalhado para desagregar respostas
masculinas e femininas, privilegiando o recorte de Gênero, o que deu outro rumo
para a pesquisa, visto que alunos e alunas, impregnados de suas construções de
Gênero, percebem e se relacionam com a Psicologia de forma diferente. Em
segundo lugar, investimentos foram realizados para incorporar de forma incisiva a
temática de Currículo no escopo do trabalho; e em terceiro, a pergunta da tese foi
reescrita, porque ficou evidente que o foco do trabalho deveria ser a trajetória dos
alunos na apropriação de um discurso que lhes nomeasse psicólogos e psicólogas,
entendendo que Gênero e Currículo fazem a mediação na assunção dessas
Identidades.

Estavam definidos, portanto, o Quadro Teórico e a pergunta para ser


respondida pela tese, escolhido o Grupo Focal como Instrumento de Coleta
privilegiado, e definido o universo da pesquisa, que se restringia às oito primeiras
turmas do curso. A idéia básica era compreender os caminhos que os alunos
trilhavam para assumir um discurso que os identificasse como profissionais da
Psicologia. Os Grupos Focais deveriam ser realizados com alunos e também com
33

professores, para verificar o posicionamento dos últimos a respeito da Psicologia e


da profissão. Estava definida também a adesão aos postulados teóricos dos Estudos
Culturais, da Psicologia Social Histórico-Crítica, dos Estudos de Gênero e das
Teorias Críticas e Pós-críticas do Currículo.
A escolha da técnica de Grupo Focal justifica-se por permitir que pessoas
reunidas possam discutir um determinado tema com base em suas experiências
pessoais. Bernadete Gatti (2005, p. 9) assegura que as trocas realizadas no grupo,
entre os participantes, permitem emergir “[...] conceitos, sentimentos, atitudes,
experiências e reações, de um modo que não seria possível com outros métodos,
como por exemplo, a observação, a entrevista ou questionários.” Como David
Morgan (1997), Bernadete Gatti (2005) concorda que, no grupo, é possível obter
informações que podem captar a perspectiva subjetiva dos sujeitos, sendo
necessário um entrevistador experiente em condução de grupos, a fim de que possa
dirigir os temas trabalhados nos grupo para os objetivos da pesquisa, não se
perdendo em divagações desnecessárias.
Os grupos foram formados por alunos que aderiram ao convite feito pela
pesquisadora, nas salas de aula, quando explicitou os objetivos da pesquisa e a
necessidade de coletar esses depoimentos em grupo, sendo voluntária a
participação de 27 alunos6 em cinco grupos. Foi utilizada uma sala ambiente, onde
os participantes dispuseram de espaço e equipamentos necessários a trabalhos
dessa natureza. Os cinco grupos realizados com os alunos foram conduzidos pela
pesquisadora, sendo gravados em fita k-7, posteriormente transcritas, assim como o
grupo realizado com os professores. Este, porém, foi coordenado pela psicóloga
Romélia Santos, como colaboradora da pesquisa, pelo fato de possuir uma vasta
experiência no trabalho com grupos de orientação sócio-psicodramática.
O primeiro Grupo Focal foi realizado em novembro de 2004. A despeito de ter
os depoimentos considerados para a análise de dados, funcionou como um piloto
para a realização dos demais, pois, quando avaliada sua execução, novos
redirecionamentos foram tomados para torná-lo mais objetivo, com a adoção de um

6
Sendo 4 alunas no primeiro grupo e 5 no segundo; um do sexo masculino e quatro do feminino; 7
estudantes no terceiro grupo, dentre eles um homem, 6 no quarto, contando com um do sexo
masculino; e 5 no quinto grupo, sendo todas mulheres.
34

roteiro para discussão, pré-estabelecido (Apêndice A), que contemplasse o


entendimento do que é a Psicologia, o que é ser psicólogo, a psicologia como
profissão feminina e as práticas do curso que privilegiam a assunção do sentir-se
psicólogo e psicóloga.
Com uma abordagem sócio-psicodramática7, o Grupo Focal foi realizado sob
a temática “Eu, o meu momento e a psicologia”, obedecendo às fases propostas por
esta metodologia grupal. Considerou-se como “Aquecimento Inespecífico” o
momento de acolhimento do grupo, quando a pesquisadora explicou a pesquisa, o
objetivo do grupo focal e solicitou que cada um preenchesse o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice B); como “Aquecimento Específico”,
realizou-se um relaxamento, quando os alunos foram induzidos a fazer mentalmente
uma retrospectiva de seu percurso no Curso de Psicologia, desde o dia em que
receberam o resultado de aprovação no vestibular até aquele momento. Ao
retornarem do aquecimento, abrindo os olhos, foram-lhes propostas duas tarefas, a
saber: fazer uma colagem, na qual ficasse evidente seu momento em relação à
psicologia — para isso, dispunham de uma grande diversidade de material para
colagem (tintas, lápis coloridos, revistas, tesouras, papéis coloridos variados etc.) —
e, paralelamente, foi iniciada a discussão com a pergunta “o que é, para vocês, ser
psicólogo?”. Este foi considerado o momento da dramatização proposto pela
abordagem sócio-psicodramática, porque os alunos eram os protagonistas do grupo,
apresentando suas idéias, conceitos, sentimentos, experiências, dentre outros. A
quarta e última fase do grupo, o sharing ou compartilhamento, foi realizada com a
apresentação, para o grupo, da colagem feita por cada um.
Quanto à coleta de dados junto aos professores, houve o mesmo
aquecimento inespecífico e a diretora do grupo optou por fazer um aquecimento
específico com um desenho coletivo, no qual os professores pudessem expressar
seu envolvimento na formação de alunos em psicologia. A discussão sobre a
psicologia e a profissão (fase da dramatização) foi realizada em dois sub-grupos,
sendo as respostas confrontadas no compartilhamento.

7
Método criado pelo psiquiatra Jacob Levy Moreno, utilizado nas ciências sociais e humanas em
pesquisa social e no diagnóstico. Permite o esclarecimento de relações intergrupais e seus valores
compartilhados a partir da participação ativa de seus componentes (MORENO, 1978).
35

Os demais grupos com alunos,(quatro) e o grupo com os professores foram


realizados entre junho e dezembro de 2005. Todos os encontros foram gravados em
fita k-7, que foram transcritas em sua totalidade e se constituiram no material para a
análise da pesquisa. As produções (colagens e desenho) tanto de alunos quanto de
professores, foi fotografada. Tendo em vista o volume de informações coletadas
nesses grupos, para realizar a análise dos dados, de início, tomou-se a decisão de
não considerar como dados de análise aqueles depoimentos relativos à colagem
sobre “eu, o meu momento e a psicologia”, sendo retomados posteriormente, para
as epígrafes. Também as colagens só foram utilizadas nas ilustrações das epígrafes,
pois em nenhum momento houve a intenção de interpretá-las sob qualquer
perspectiva psicológica.

A condensação dos dados passou por alguns momentos específicos que, por
força dos próprios achados na fala dos sujeitos, provocou constantemente uma nova
articulação com a teoria. É possível descrevê-la em momentos:

• no primeiro momento, fêz-se a transcrição de cada grupo separadamente,


o que resultou em um material específico para cada grupo; com este
material foi realizada a tentativa de agrupar as perguntas, com base nas
categorias que haviam sido definidas no questionário inicial (A profissão, o
profissional e o investimento pessoal), o que se tornou impossível, posto
que estas categorias revelaram-se indissociáveis entre si;

• decidiu-se então verificar o conteúdo das respostas e agrupar as falas em


grandes categorias — Gênero, Currículo, Psicologia —, numa perspectiva
transversal. Surgiram novos reagrupamentos em forma de subcategorias,
como: ser psicólogo e/ou ser psicóloga, sentir-se psicólogo e/ou sentir-se
psicóloga, ser mulher, ser homem, a psicoterapia, currículo como
processo, práticas relevantes do curso, a experiência do Juliano Moreira,
os Estágios, o TCC. Essas subcategorias, em um determinado momento,
foram tratadas de forma independente, não sendo articulados
necessariamente com os três temas acima colocados, sendo reagrupadas
no momento da elaboração do final do texto;
36

• num terceiro momento, desagregou-se a fala de alunos e alunas, ou seja,


respostas masculinas e respostas femininas. As falas sobre a
masculinidade, em particular, provocaram uma nova revisão de literatura
sobre o tema, visto que, ao estudar Gênero, não havia privilegiado esse
recorte, o que provocou uma nova rearticulação no Quadro Teórico da
pesquisa.

A análise temática constituiu-se em um momento particularmente rico,


delicado e difícil, de exame minucioso das respostas, na tentativa de construir
categorias que representassem unidades com sentido. Significou buscar, dentre
tantas falas dos discursos dos sujeitos, aquelas mais significativas para a proposição
que se estava analisando. É um momento muito complexo no trato com o material
da pesquisa, pois exige o cruzamento de informações de diferentes sujeitos de
diferentes grupos e, às vezes, sobre diferentes temas. Frequentemente, uma fala
pode ser colocada em mais de uma categoria, sem prejuízo de seu entendimento.
Ademais, incitou ao recurso de analisar registros e documentos do próprio Curso de
Psicologia, para enriquecer as constatações verificadas e buscar novas leituras que
tratassem de temas específicos que emergiram da fala dos sujeitos.
A intenção de apresentar a metodologia em forma de relato atende a dois
objetivos. Em primeiro lugar, explicitar a ineficiência de um plano (no sentido literal
de caminho prévio), para realizar uma pesquisa dessa natureza; e, em segundo,
evidenciar um pouco da emoção de realizar este trabalho. A necessidade de relatar
o percurso metodológico, depois da pesquisa concluída, possibilitou estar diante da
tarefa de fazer uma retrospectiva minuciosa do caminho percorrido e dos desafios
que a pesquisa colocou, mostrando que esta imprimiu um ritmo que, de fato, não foi
ditado de fora, mas dela própria.

Assim sendo, o texto poderia ser elaborado de várias formas, porém a


fundamentação teórica e os dados empíricos coletados entre os sujeitos deram
origem aos seis capítulos que compõem o texto da tese e estão esboçados a seguir:
O primeiro capítulo traz as concepções teóricas que fundamentam o estudo
da Identidade, considerada como a categoria básica para o desenvolvimento desta
tese, e em torno da qual desenvolve-se toda a construção teórico-metodológica.
Ancora a pesquisa num campo temático polissêmico, tendo em vista que identidade
37

é considerada um conceito emblemático tanto na concepção moderna como nos


estudos contemporâneos sobre a constituição dos sujeitos. Evidencia como, a
depender do aporte teórico de que se lance mão, pode-se compreender a identidade
de diversas formas e explicita a construção de múltiplas identidades em processo
permanente de construção e desconstrução, percorrendo caminhos que
fundamentam a construção de identidades de gênero e identidades profissionais.
O capítulo subseqüente, o segundo, trata da formação superior em Psicologia
e discorre sobre a criação dos cursos superiores de Psicologia no Brasil e a
legislação que orienta a implantação desses cursos. Além disso, discute concepções
de currículo e enfatiza aspectos relevantes do currículo oculto e do currículo como
discurso, que interessam sobremaneira ao estudo que se empreende.
O terceiro capítulo tem o objetivo de contextualizar a pesquisa, apresentando
o Curso e sua proposta pedagógica, além da instituição que o sedia, destacando
valores que balizam e orientam o trabalho que desenvolve, uma vez que apresenta
uma singularidade, qual seja, ser uma instituição de educação superior voltada para
a área da saúde.
Com relação ao quarto capítulo, este apresenta o perfil dos estudantes do
Curso de Psicologia em foco no momento em que ingressam no curso, explicitando
as concepções que demonstram ter sobre a psicologia e a profissão de psicólogo,
além de revelar o investimento pessoal que fazem nesta profissão. O perfil é traçado
com base na análise de um questionário respondido pelos alunos no primeiro dia de
aula, cujas respostas apontavam para a reprodução do senso comum sobre a
psicologia e a profissão de psicólogo. Com os dados desagregados em respostas
femininas e masculinas, privilegiando o recorte de gênero, faz-se uma confrontação
com estudos outros produzidos no Brasil e que discutem o sentido e o significado
que a profissão tem para seus adeptos e também os avanços e retrocessos
percebidos nos 45 anos de profissão no Brasil.
Sequenciando a análise dos dados da pesquisa, o quinto capítulo busca
compreender a formação do psicólogo e da psicóloga do ponto de vista dos alunos e
das alunas, tentando elucidar os caminhos pelos quais aproximam-se/distanciam-se
do que acreditam ser o profissional ou a profissional da psicologia, ressignificando as
concepções inicialmente apresentadas. Há interesse em entender as posições de
sujeitos que esses alunos assumem, ao se apropriar de um discurso que os legitima
38

como estudantes e profissionais da psicologia e em destacar como ressignificam o


entendimento do psicólogo como profissional de ajuda para profissional da escuta.
Além do mais, enfatiza o processo curricular, demarcando determinadas práticas
curriculares como nucleares na construção de posições de sujeito e assunção de
identidades. Faz, portanto, uma análise do currículo do curso, avaliando
determinadas práticas curriculares, e confronta posicionamentos dos alunos com
dados referentes à própria administração do curso.
O recorte de gênero é privilegiado no sexto e último capítulo desta tese,
quando se aborda o atravessamento de gênero no currículo do Curso de Psicologia,
verificando como este determinante social está presente no curso, mesmo que não
haja uma intencionalidade para isso, e analisa os posicionamentos dos sujeitos da
pesquisa quanto ao entendimento de masculino e feminino, desagregando os
depoimentos de alunos e alunas.
Por fim, esboçam-se as Reflexões Finais, apresentando-se, de forma
sintética, os aspectos relevantes que a pesquisa revelou, demarcando a contribuição
para a formação de novos profissionais da psicologia e para a análise dos currículos
destes cursos.
Fui me deixando levar pelo sentimento e surgiu isso.
O que é isso?
Como uma boa canceriana que fez, eu tô me sentindo em casa,me
sentindo confortável,
certa de que é isso!
Me sentindo aconchegada dentro da profissão!
40

1 TECENDO AS IDENTIDADES

O estudo da construção de identidades profissionais, especialmente quando


se recorre a um curso de formação profissional como campo empírico de pesquisa,
defronta-se com um projeto de autoconstrução que é inicialmente imaginado e
delineia-se e firma-se num movimento permanente de negociação de sentidos sobre
como se entende e sente-se uma profissão.
Nessa perspectiva, no presente capítulo, ao discorrer teoricamente sobre a
construção de identidades profissionais em psicologia, optou-se por abordar
algumas concepções de identidade, explicitando concepções de sujeito a elas
subjacentes e apresentar o entendimento que se tem sobre identidade profissional,
notadamente quando se estuda uma profissão que é considerada feminina, o que
significa fazer o recorte que privilegia esta identidade feminina.

1.1 FALANDO DE IDENTIDADES

As indagações pessoais acerca de quem são fazem parte dos


questionamentos humanos sobre o mundo, sobre a vida e sobre os seres humanos
desde que se tem notícia que os seres pensantes manifestam preocupações sobre
si. Ciampa (1987, p.14) diz: “[...] onde houver gente, haverá questão de identidade.”
Esse tema, passados alguns milênios das primeiras civilizações e mais de 2000
anos da era cristã, continua bastante atual.
A temática da Identidade problematiza e pretende responder questões sobre
“quem sou eu” e/ou “quem somos nós”, questionando cada ser humano em
particular e/ou cada grupo formado pelas mais diversas condições sociais, cada
nação, cada etnia, cada grupo religioso, cada profissão, cada família... As
experiências de vida adquirem significados com base no conhecimento e no
reconhecimento de si, de quem se quer ser, a que grupo pertence e também de
quem não se é, quem não se quer ser e a quais grupos não se pertence, em função
da apropriação de determinados discursos que produzem sentido.
41

Isto impõe que, ao falar de identidade, deve-se compreender os seres


humanos como inscritos em um contexto social, histórico, simbólico e lingüístico que
movimenta diferentes e complexas forças na constituição das dimensões individual e
coletiva. Por isso, como sugere o título, fala-se de identidades e não da identidade.

1.1.1 Entendendo as identidades pela historicidade

Identidade tem-se revelado um conceito complexo, estudado sob diferentes


olhares e fundamentado em teorias sociais e psicológicas.
De acordo com Stuart Hall (2001), antes do período iluminista, as pessoas
eram consideradas como “divinamente estabelecidas”, obedecendo à ordem secular
e divina das coisas. Esta visão não possibilitava a compreensão de mudanças
substanciais em sua existência, nem lhes conferia o direito de ser um indivíduo
independente, uma vez que, na concepção teocêntrica de mundo, os seres humanos
pertenciam a Deus.
Com o esgotamento do modelo de sociedade feudal e do obscurantismo da
Idade Média surgiu na Europa Ocidental o iluminismo, com grandes transformações
econômicas, políticas e sociais que proporcionaram o advento do capitalismo, hoje
configurado sob a denominação de modernidade. Esta apregoa uma concepção de
indivíduo livre e racional, autônomo, sujeito de si e do conhecimento.
Boaventura Souza Santos (1996, p. 136) assegura:

[...] a preocupação com a identidade não é, obviamente, nova. Podemos


dizer até que a modernidade nasce dela e com ela. O primeiro nome
moderno da identidade é a subjetividade. O colapso da cosmovisão
teocrática medieval trouxe consigo a questão da autoria do mundo e o
indivíduo constituiu a primeira resposta.

Tendo em vista as características próprias da época, essa subjetividade


moderna era individual e abstrata.
Stuart Hall (2001, p.10-11) defende que três concepções de identidade se
desenvolveram ao longo do tempo; a primeira delas está assentada na concepção
iluminista de sujeito, que compreende o ser humano como
42

[...] um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de


razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior,
que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se
desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo
ou “idêntico” a ele – ao longo da existência do indivíduo.

Nesse pressuposto, assim como naquele anteriormente citado por Boaventura


Souza Santos (1996), está implícito um entendimento de homem apriorístico, que
existe independente das condições objetivas e subjetivas de sua existência, que
condiciona a uma natureza humana que é universal e abstrata suas possibilidades
de se revelar, de crescer, de se realizar, dentre outras, ou não.
A idéia de natureza humana universal, que “naturaliza” os fenômenos
humanos, forjados na intrigante e complexa realidade social na qual os seres
humanos estão inseridos, sendo produtores e por ela produzidos, dentre eles a
construção de identidades, está impregnada das concepções positivista e idealista
de homem e de sociedade. Como afirma Stuart Hall (2001, p. 29-30):

[...] à medida em que as sociedades modernas se tornavam mais


complexas, elas adquiriram uma forma mais coletiva e social [...] o cidadão
individual tornou-se enredado nas maquinarias burocráticas e
administrativas do estado moderno.

No pensamento deste autor, este foi o pano de fundo para a emergência de


uma concepção mais social de sujeito, em que se reconhece como importante a
realidade que o cerca e que com ele estabelece trocas, relativizando o peso do
sujeito autônomo e auto-suficiente da posição iluminista. O sujeito passa a ser
entendido como social, formado na relação com as outras pessoas com as quais
partilha valores, sentidos e símbolos. A identidade desse sujeito sociológico,
considerada por Stuart Hall (2001) como a segunda concepção de identidade, está
vinculada à estrutura social de uma forma biunívoca, em que se faz uma conexão
entre pares como público x privado, interior x exterior, objetividade x subjetividade,
embora os considere como instâncias distintas. No entendimento de Stuart Hall
(2001, p.11): “O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’,
mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais
‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem.”
Questionamentos recentes sobre o pensar moderno, que ratifica a
objetividade do conhecimento e a adoção do método e do estatuto das ciências
43

naturais como legítimos e únicos para a construção do conhecimento, proporcionou


uma nova forma de conceber o mundo, o ser humano e as ciências. Como assegura
Jeni Vaitsman (1995, p.4):

[...] no nosso século tanto nas ciências sociais quanto nas ciências físicas e
naturais a valorização da autonomia, da subjetividade, emergirá como eixo
de um novo paradigma, integrando-se à imagem do objeto da ciência. Uma
nova forma de se representar a relação entre sujeito e objeto, bem como
entre indivíduo, natureza e sociedade, desenvolve-se como parte de
transformações históricas de uma nova condição pós-moderna que segundo
Lyotard, se delineia desde o final do séc. XIX.

Perderam legitimidade as práticas científicas “corretas”, as verdades


universais, os discursos em forma de metanarrativas, a dicotomia entre sujeito e
objeto, dando lugar ao reconhecimento da diferença e do singular que se expressa
por meio de discursos fragmentários. E nessa perspectiva, surge uma nova
concepção de sujeito, que leva Stuart Hall (2001) conforme indicamos anteriormente,
a falar da terceira concepção de identidade, àquela do sujeito pós-moderno.
Inês Hennigen (2003, p.185) afirma:

O sujeito pós-moderno não tem mais uma identidade essencial, mas várias
identidades, (trans)formadas continuamente em relação ao modo como é
representado ou interpelado pelos sistemas culturais ao redor, podendo ser
contraditórias ou não resolvidas.

Ao negar uma concepção totalizante de sujeito, portador de uma


essencialidade, a concepção pós-moderna fala de um sujeito multifacetado, plural,
atravessado por contextos e significados mutantes e circunstanciais.

1.1.2 Algumas concepções contemporâneas de identidade

Diante do exposto, há que se considerar, nas formulações que se situam sob


orientação identificada com pressupostos contemporâneos, a existência da
impossibilidade de compreender a identidade como fixa, imutável, completa,
coerente. Teorias sociais e ciências humanas, hoje, concebem a identidade como
44

um fenômeno relacional, múltiplo, historicamente construído e produto da interação


lingüística realizada pelas práticas discursivas.
Stuart Hall (2001, p. 12-13) afirma: “[...] a identidade torna-se uma ‘celebração
móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.”
Enfatiza o caráter histórico da identidade, cujos processos de identificação e
diferenciação são continuamente modificados em decorrência de condições espaço
temporais. Esta obra foi publicada originalmente com o título The question of cultural
identity (HALL, 1992). Em publicação posterior, intitulada Who needs “identify”,
aprofunda seu pensamento. Em publicação de 2000, Stuart Hall esclarece o
significado do termo:

Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de encontro, o ponto de


sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos
“interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares
como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os
processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos
dos quais se pode “falar.” (HALL, 2000, p. 111-112).

Entende-se, portanto, que Stuart Hall avança em suas proposições. para


situar a identidade no movimento de tornar-se, esculpida pelas práticas discursivas
que constroem posições de sujeito. Assim sendo, identidades e subjetividades não
podem ser confundidas nem consideradas fenômenos semelhantes. Como
esclarecem Anita Bernardes e Julio Hoenisch (2003), subjetividades e identidades,
embora indissociáveis, não podem se reduzir uma à outra, porquanto subjetividade
não é o ser, mas os modos de ser ou a constituição do sujeito forjado na rede
discursiva em tempo e espaço específicos, enquanto as identidades “móveis e
intercambiantes” são constituídas com base na diferença como produtos do discurso
e da cultura. Dizem os autores: ”Falamos de identidades enquanto posições-de-
sujeito, posição em uma rede discursiva, em uma teia social e cultural nunca
determinada, mas sempre por se fazer.” (BERNARDES; HOENISCH, 2003, p. 120).
As identidades, nesse ponto de vista, “[...] são um modo de inscrição em rede
discursiva.” (BERNARDES; HOENISCH, 2003, p.120) enquanto a subjetividade
ultrapassa esse momento, sendo “[...] uma maneira de constituição de um ’si’, de um
’dentro’, pelo qual o sujeito se observa e se reconhece como tal.” (BERNARDES;
HOENISCH, 2003, p.123).
45

E Katryn Woodward (2000, p. 55) esclarece que, embora os termos


identidade e subjetividade venham sendo usados por alguns com o mesmo sentido,
do ponto de vista dos Estudos Culturais o termo subjetividade “[...] sugere a
compreensão que temos do nosso eu.” Envolve aspectos conscientes e
inconscientes, enquanto as identidades referem-se às “[...] posições que assumimos
e com as quais nos identificamos.” (WOODWARD, 2000, p. 55). E sobre esse
assunto, conclui:

[...] o conceito de subjetividade permite uma exploração dos sentimentos


que estão envolvidos no processo de produção da identidade e do
investimento pessoal que fazemos em posições específicas de identidade.
Ele nos permite explicar as razões pelas quais nós nos apegamos a
identidades particulares. (WOODWARD, 2000, p.55).

Corroborando o entendimento de identidades como processualidade, Tomaz


Silva (2000) apresenta uma síntese do que acredita ser a identidade e também do
que supõe não ser. Em seus argumentos, descarta a essencialidade para a
identidade e nega as possibilidades de ser fixa, estável, unificada, permanente ou
definitiva, e assevera: “[...] a identidade é uma construção, um efeito, um processo
de produção, uma relação, um ato performativo [...] a identidade é instável,
contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada [...]” (SILVA, 2000, p. 96-97).
Com essa definição, o autor estabelece conexões entre as identidades, as estruturas
discursivas e narrativas, os sistemas de representação e as relações de poder.

O contexto social contemporâneo, mutante e instável, revela-se como


elemento propulsor da coexistência de múltiplas identidades. Isto leva Katryn
Woodward (2000, p. 31) a afirmar: “A complexidade da vida moderna exige que
assumamos diferentes identidades.” Ou seja, coexiste uma variada gama de
posições que se pode assumir ou não, consubstanciadas pelas transformações
advindas de um contexto de mudanças sociais e históricas que provocam tensões
entre o instituído e o instituinte que, por sua vez, interferem nas formas como as
pessoas representam o mundo e a si mesmas. Como afirma Neuza Guareschi,
Michel Bruschi e Patrícia Medeiros (2003, p. 43): “[...] as sociedades atuais não têm
um núcleo ou centro que produza identidades fixas, mas uma pluralidade de
centros.” Deste modo, os sujeitos defrontam-se continuadamente com múltiplas
possibilidades de conferir distintos significados a suas experiências.
46

Na perspectiva da processualidade e da transitoriedade na construção das


identificações e das diferenciações, Anita Bernardes e Júlia Hoenisch (2003, p. 119)
expõem posicionamentos afirmando: “[...] a identidade expressa-se na forma como
nos tornamos algo ou alguém em uma determinada composição de grupo, etnia,
raça, gênero, família ou profissão.”
O entendimento de identidades como construções inacabadas, plurais, como
postula este tese, pode ser sintetizada no dizer de Boaventura Souza Santos (1996,
p.135), que entende a identidade como “identificações em curso” e assim se
expressa:

Sabemos que as identidades culturais8 não são rígidas nem, muito menos
imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de
identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a
de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou país europeu,
escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de
temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis em
última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de
época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são,
pois, identificações em curso. (SANTOS, 1996, p. 135).

As proposições acima referidas refletem aspectos diversos do entendimento


que se tem, na contemporaneidade, sobre o construto teórico da identidade. Dentre
muitos pontos convergentes, surge um que parece tangenciar essas formulações
científicas, qual seja, o consenso de que as identidades são múltiplas, mutantes,
inacabadas e constituídas na intersubjetividade das relações do ser humano
consigo, com o outro e com o mundo.

1.1.3 Identidades em movimento

As circunstâncias que propiciam os processos identificatórios e de


diferenciação na construção das identidades permitem a existência de uma gama de
diversas identidades convivendo simultaneamente, inclusive em situações opostas,
podendo até serem contraditórias entre si. A unidade que se supõe ou pode-se

8
Entende-se que identidade cultural é o termo utilizado pelos teóricos que situam o estudo das
identidades na perspectiva contemporânea para marcar que as identidades são sempre construídas
no processo cultural.
47

esperar que a identidade confira é, portanto, ilusória, mais próxima de um mosaico


em movimento de que um todo estático unificado.
De acordo com Tomaz Tadeu Silva (2000, p. 86), as teorizações sociais
contemporâneas têm recorrido a metáforas que sugerem a idéia de movimento,
deslocamento e viagem para descrever a identidade, ao compará-la com “[...]
diáspora, cruzamento de fronteiras, nomadismo.” O autor assegura que “[...] as
metáforas que buscam enfatizar os processos que complicam ou subvertem a
identidade querem enfatizar – em contraste com o processo que tenta fixá-las – aquilo
que trabalha para contrapor-se à tendência de essencializá-las.” (SILVA, 2000, p.86).
A esse respeito, Antonio Ciampa9 (1987) já afirmava que a idéia de identidade
como algo dado ignora o contínuo processo de identificação que a constitui,
confundindo-a com um produto. Reafirmando a característica de movimento. O autor
assevera:

[...] re-atualizamos, através de rituais sociais, uma identidade pressuposta,


que assim é vista como algo dado (e não se dando continuamente através
da re-posição). Com isso retira-se o caráter de historicidade da mesma,
aproximando-a mais da noção de um mito que prescreve as condutas
corretas, reproduzindo o social. (CIAMPA, 1987, p. 163).

Em um texto marcado por uma orientação do materialismo histórico e


dialético, Ciampa (1987) critica posicionamentos que consideram a identidade como
algo que, ao ser conquistado, permanece no sujeito de uma forma fixa e imutável e
propõe a compreensão de identidade como metamorfose, tentando desvendar a
ideologia da não transformação do ser humano como condição para a não
transformação da sociedade. Nesse particular, compreende a Identidade também
como uma questão política e atrela ao estudo da identidade as categorias de
atividade e consciência10 como indispensáveis para a compreensão do ser humano
como produzido historicamente.

9
Antonio da Costa Ciampa, psicólogo brasileiro que, em 1987, publicou sua tese de doutoramento
defendida na PUC-SP sob o título A estória de Severino e a história da Severina, um ensaio em
Psicologia Social, na qual propõe a tese da Identidade como metamorfose, como morte-vida. Seu
estudo contribuiu de maneira decisiva para dar visibilidade a essa temática nas pesquisas na área
da Psicologia, influenciando uma geração subseqüente que, adepta da Psicologia Social Crítica,
estuda o tema.
10
Atividade e Consciência – dois conceitos propostos por Karl Marx e Friedrich Engels (1980). A
atividade é definida como o contínuo trabalho dos seres humanos para produzirem suas formas de
sobrevivência. Consciência é a capacidade de simbolizar e representar essas ações, num
movimento dialético que as torna interdependentes. Consoante os autores: “Não é a consciência
que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.” (MARX; ENGELS, 1980 p. 307).
48

Kathryn Woodward (2000) ressignifica o pensamento de Ciampa (1987) e fala


de uma perspectiva essencialista para definir a identidade, argumentando que isso
acontece quando se lança mão de atributos como “verdadeira”, “autêntica”, “fixa”,
dentre outros semelhantes para adjetivar a identidade. Este argumento também é
partilhado por Tomaz Tadeu Silva (2000) e Stuart Hall (2000) quando asseguram
que a identidade assim dita esgota-se em si própria. É, como afirma Tomaz Tadeu
Silva (2000, p. 74) “[...] auto-contida e auto-suficiente.” Juntos, os dois autores
concordam com a necessidade da existência de uma definição não essencialista
para identidade. Referem-se a um “conceito estratégico e posicional” que se baseia
na diferença, é constituído na teia relacional que forja os seres humanos com suas
características e determinantes materiais e simbólicos e está estruturado em forma
de linguagem. Este entendimento leva Stuart Hall (2000, p. 108) a afirmar:

Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas, que
elas são na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas;
que elas não são, nunca, singulares mas multiplamente construídas ao
longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser
antagônicas. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical,
estando constantemente em processo de mudança e transformação.

Neste caminho teórico, a pesquisadora Rosi Braidotti (2006, p. 1) concorda


com os posicionamentos de Stuart Hall (2000) e afirma que a identidade é “[...]
construída nos mesmos gestos que a colocam como ponto de ancoradouro de certas
práticas sociais e discursivas.” Propõe a formulação de “sujeito nômade”, em
oposição a qualquer compreensão de identidade como fixa e estável, entendendo
que este sujeito dinâmico e mutante está identificado com transições e passagem e
nunca com destinos pré-determinados ou retorno a lugares conhecidos. Enquanto
teórica feminista, Rosi Braidotti (2006) identifica o nomadismo como uma
consciência crítica de feministas ou de outros intelectuais que assumem posições de
resistência a modos de pensamento hegemônicos, compartilhando com o que
chama de rebelião de saberes subjugados.
É descartada a idéia de identidade como produto acabado, como traço inato
ou um atributo fixo dos sujeitos ou grupos. É importante percebê-la como um
processo, um vir-a-ser, ficando entendido, acredita-se, a impossibilidade de se
pensar a identidade como algo privado que pertence à interioridade de cada ser
humano, mesmo porque o mundo subjetivo, como uma apropriação simbólica do
49

real, impõe a subjetivação da realidade e a objetivação do mundo psíquico de cada


um (em forma de ações), num movimento tal que seja possível às pessoas se
reconhecerem e se denominarem no reconhecimento e denominação de seus pares
e dos não pares, numa constituição objetiva/subjetiva de si e do mundo. Como nos
ensina Fernando Rey (2003, p. 230): “A identidade não é uma formação
intrapsíquica, é um sentido que aparece de forma simultânea nas configurações
subjetivas do sujeito e nas emoções e significados produzidos pela delimitação
social de seu espaço de ações e relações.”
Em função da complexidade que enreda a construção teórica da Identidade,
pode-se perceber que esta não pode ser apropriada por uma única disciplina. O
impulso que a emergência do pensamento contemporâneo proporciona, como
sugere Stuart Hall (2001), com o conseqüente rompimento das fronteiras
disciplinares, provocou o surgimento de um outro tipo de conhecimento — o temático
—, que deu maior visibilidade a questões como a da identidade. Como expõe
Boaventura Sousa Santos (2001, p. 47): “[...] a fragmentação pós-moderna não é
disciplinar e sim temática. Os temas são galerias por onde os conhecimentos
progridem ao encontro uns dos outros.” Entendemos que o estudo das identidades
torna-se possível quando se percorre e reconstitui caminhos de indivíduos e grupos
na tentativa de compreender o movimento que os constitui. E é nessa direção a
proposta desta tese, de investigar, no cotidiano escolar de um Curso de Psicologia
singular, como os alunos e alunas constroem as identidades profissionais de
psicólogo e psicóloga, tomando como referência os Estudos Culturais que a
concebem como produto do discurso.

1.1.4 Identidades simbólicas e discursivas

O campo temático dos Estudos Culturais, ainda em construção, oferece-se


como alternativa possível para abrigar as teorizações mais recentes sobre a
identidade, uma vez que, conforme Ana Escoteguy (2003, p. 67/68), estes Estudos
“[...] estão profundamente envolvidos no debate sobre modos adequados de teorizar
e representar o ser humano, isto é, estão interessados na maneira pela qual a
cultura se conecta com a esfera da subjetividade.”
50

Nessa trajetória, os Estudos Culturais ressignificaram o conceito de


identidade, inscrevendo-o em um campo de intersecção de saberes em que a
identidade passa a ser definida em uma rede discursiva, constituindo-se como
produto do discurso, da cultura. Numa apropriação de conceitos pós-estruturalistas,
sustentam que as posições-de-sujeito são posições construídas, que os indivíduos
assumem quando se identificam com determinados discursos, tomando-os como
verdades, apropriando-se deles, sujeitando-se a determinadas significações que
fazem com que se tornem o que são. E nesse particular fica evidente a contribuição
de conceitos foucaultianos na compreensão da construção de identidades.
Nas formulações teóricas elaboradas para possibilitar a compreensão da
produção das identidades pelo viés dos Estudos Culturais, numa interlocução com a
Psicologia Social, há que se lançar mão ainda de conceitos oriundos das posturas
pós-modernistas, como propõem Anita Bernardes e Júlio Hoenisch (2003). Para
esses autores, no que concerne à pós-modernidade, rompe-se com formas
tradicionais de ver o mundo, próprias das teorizações modernas e adota-se como
verdadeiras a falência das metanarrativas e da crença na existência de uma
essência humana universal. Com relação à adoção de construtos pós-estruturalistas,
dizem os autores “[...] a linguagem é condição de possibilidade para compreensão
da produção do conhecimento, dos saberes e das disciplinas.” (BERNARDES;
HOENISCH, 2003, p. 97).
Assim sendo, identidade, como produção histórico-cultural, pode ser
considerada uma relação social simbólica e discursiva sujeita aos jogos de poder
que presidem as permanentes negociações dos seres humanos no contexto social.
Num movimento dialético coexistem, na constituição das identidades, as
identificações e as diferenciações como inseparáveis e interdependentes.
É importante demarcar a questão dos jogos de poder. Na concepção
foucaultiana, o poder é uma estratégia em que manobras, táticas e técnicas são
utilizadas pelos participantes para exercê-lo. Instauram-se como atos discursivos em
processos de negociação, em um cenário marcado por tensões, conflitos,
confrontos, avanços, recuos, tanto em posições de dominação como de resistência.
O poder, portanto, segundo Michel Foucault (2001a), caracteriza-se por
posicionamentos estratégicos e nunca como um ponto central que se verticaliza em
um movimento dominante. Foucault (2001a, p. 161) adverte:
51

Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos


negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”,
“esconde”. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz
campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que
dele se pode ter se originam nessa produção.

Se o poder produz, utiliza-se de estratégias de sedução, de convencimento,


estabelece limites, alarga horizonte, captura aliados e seguidores como uma força
que circula entre as pessoas num movimento de alternância entre aqueles que o
detém, os que o conquistam e os que o perdem, estabelecendo fronteiras simbólicas
entre eles. São jogos de negociação em que é vencedor, num determinado
momento, aquele que tem argumentos mais convincentes diante dos demais, mas
que não conquista esse status em definitivo, visto que os jogos de poder não se
esgotam (FOUCAULT, 2001 a).
Os discursos produzidos socialmente, sejam eles de qualquer ordem,
expressam um saber ou a verdade, como refere Foucault (2001b), e forjam posições
de grupos determinados como produtos dos jogos de poder que formatam as
posições de sujeito, às quais os indivíduos se identificam e pelas quais se apropriam
do discurso que fala deles e reconhecem os discursos pelo qual são falados.
Consoante com os jogos de poder que presidem os discursos, a identidade,
na perspectiva contemporânea, ou seja, centradas na rede discursiva, é sempre uma
identidade conquistada, disputada entre negociações de sentido e jogo de interesses
como defendem Boaventura Souza Santos (1996) e Stuart Hall (2001). As
permanentes classificações sociais às quais os indivíduos estão sujeitos, no
movimento contínuo de inclusão/exclusão, nivela-os, diferencia-os e dá-lhes o
sentimento de pertencer, conferindo posições sociais privilegiadas de ascensão
social ou não. Como afirma Bader Sawaia (2004, p. 123): “[...] a identidade é uma
categoria política disciplinadora das relações entre as pessoas, grupos, ou
sociedade, usada para transformar o outro em estranho, igual, inimigo ou exótico.”
Considera-se legítimo neste trabalho conceber identidades como construção,
em detrimento de formulações outras que as nivelam a traço inato ou atributo fixo do
sujeito ou de grupos. Admite-se, pois, como princípio, que a história é tecida no
cotidiano, lugar em que os seres humanos produzem sua existência por meio de
diferentes práticas sociais, estabelecendo relações que reconhecem e marcam
igualdades e diferenças. E nessa perspectiva, podem-se inscrever as identidades
femininas e masculinas.
52

1.2 IDENTIDADES DE GÊNERO

A posição teórica que esta tese sustenta nega que exista qualquer fator único
como determinante das identidades, inclusive a de gênero, contrapondo-se ao
determinismo biológico que considerava a diferença anatômica dos sexos como
força motriz legítima para as diferenças entre os homens e as mulheres.
Uma das primeiras questões assumidas pelos Estudos Feministas consistiu
exatamente em desconstruir essa concepção biologicista e remeter as questões
relacionadas à vivência do masculino e do feminino à esfera do simbólico, ao plano
das representações que configuraram a área temática de Gênero e levaram a
pesquisadora Joan Scott (1993, p.13) a afirmar que gênero “[...] é um elemento
constitutivo das relações sociais [...] e uma forma primeira de significar as relações
de poder.”

1.2.1 Buscando compreender o conceito de Gênero

Os estudos de gênero constituem uma área muito nova nas teorizações


sociais, tendo em vista que o entendimento de Gênero como construção histórico-
social é recente na história do pensamento ocidental. Maria Eunice Guedes (1995)
argumenta que a posição e o papel social das mulheres vêm sendo expressos, no
legado cultural construído em 2500 anos de civilização, desde o apogeu até os
nossos dias, por meio dos mitos inscritos no imaginário popular.
A temática da mulher como objeto de investigação científica vai florescer
como campo de estudos, segundo Guacira Louro (1997), a partir de 1969, quando
da efervescência dos movimentos sociais reivindicatórios na Europa, que
caracterizam o que Stuart Hall (2001) denomina o grande marco da modernidade
tardia. No dizer de Jeni Vaitsman (1995, p. 4):

[...] essa crise dos discursos universalizantes eclodiu como parte da


emergência da problemática do “outro”, ou seja, dos movimentos de
afirmação de identidades raciais, étnicas, sexuais, locais, etc., que
identificaram nos discursos derivados da concepção iluminista de razão
53

universal, a dominação empírica de uma razão branca, masculina, burguesa


e ocidental.

O feminismo como crítica teórica ou como movimento social tributário desse


momento histórico representa uma ruptura no pensamento hegemônico, uma vez
que proporcionou visibilidade às questões do universo feminino, até então
desconsiderado como tema relevante para estudos e pesquisas.
A despeito desse tempo, cronologicamente curto, os Estudos de Gênero
oferecem uma produção teórica complexa e disseminada em diversos campos
temáticos e disciplinares com interlocuções teóricas diversificadas.
Adentrar nos estudos de Gênero é uma tarefa difícil e delicada, tendo em
vista que, como um campo de estudos em construção, polissêmico e transversal,
proporciona uma grande quantidade de estudos, investigações e teorias que fazem
e re-fazem sua produção teórica que se propõe, mediante estudos e análises, a
desnaturalizar as relações humanas fundadas na diferença entre os sexos.
Referimo-nos, pois, a uma construção social que depõem sobre as relações
sociais empreendidas pelos seres humanos no cotidiano de suas vidas. Isto significa
dizer que se trata de um fenômeno concretizado nas ações e relações diárias dos
seres humanos em suas investidas para dar conta da sobrevivência e da construção
da sociedade. E, nesse intento, revela crenças e valores que, subjacentes,
direcionam o teor, a importância e a magnitude daquilo que é simbolizado,
assimilado e reproduzido nas relações sociais de determinada cultura, em
determinada sociedade, num determinado tempo.
Como assegura Marlene Neves Strey (1998, p.183):

As diferenças sexuais são encontradas em todos os mamíferos. Entretanto,


os humanos desde sua origem têm interpretado e dado uma nova dimensão
a seu ambiente físico e social através da simbolização. Humanos são
animais auto-reflexivos e criadores de cultura. O sexo biológico com o qual
se nasce não determina, em si mesmo, o desenvolvimento posterior em
relação a comportamentos, interesses, estilos de vida, tendências das mais
diversas índoles, responsabilidade de papéis a desempenhar, nem
tampouco determina o sentimento ou a consciência de si mesmos/a nem as
características da personalidade, do ponto de vista afetivo, intelectual ou
emocional, ou seja psicológico.

Partilha dessa idéia a pesquisadora Bila Sorj (1992, p.15), quando afirma:
54

[...] o equipamento biológico sexual inato não dá conta da explicação do


comportamento diferenciado masculino e feminino observado na sociedade
[...] diferentemente do sexo, o gênero é um produto social, aprendido,
representado, institucionalizado e transmitido ao longo das gerações.

Joan Scott (1993, p.26), reportando-se a Pierre Bourdieu, avança nessa


compreensão e afirma: “[...] estabelecido como um conjunto objetivo de referências,
o conceito de gênero estrutura a percepção e a organização concreta e simbólica de
toda a vida social.”
Assim sendo, gênero, como um corpo articulado de conhecimentos para a
compreensão do real, propõe-se a desvelar a relação que transforma um ser
humano do sexo masculino em homem assim como transforma um ser humano do
sexo feminino em mulher. E aí reside toda a complexidade da apreensão desse
construto. Variáveis e determinantes sociais, políticos, econômicos, geográficos,
jurídicos, dentre outros, no plano do coletivo e de determinantes individuais como
história de vida e características de personalidade no plano individual, interferem na
construção de gênero.

1.2.2 Vivência do feminino

As formulações contemporâneas de compreensão do real que negam as


desigualdades como resultado de determinações unívocas e universais,
compreendendo-as na perspectiva de múltiplos critérios historicamente construídos,
não podem assimilar a identidade feminina como construída na oposição binária
masculino/feminino.
O sexo biológico que marca todos os humanos indistintamente instala o dado
primeiro da identidade humana e se constitui em atributo inseparável da história de
cada um. Tornar-se homem ou mulher, entretanto, é uma aprendizagem realizada na
rede social, por meio dos significados simbólicos que produzem as subjetividades.
Aprende-se a ser homem ou a ser mulher, desde o momento em que se
nasce, havendo um contexto materno-familiar-social que engendra as formas de
lidar com o menino ou com a menina. E é o peso da cultura na qual está inserida a
55

família que determina os padrões de conduta adequados para as crianças do sexo


masculino e feminino.
Assim sendo, a identidade está sendo tecida desde o nascimento, no
momento em que se constata a formação anatômica dos genitais externos. No caso
da mulher, a identidade feminina é atualizada pelo ritual biológico da menstruação e,
posteriormente, pelo da maternidade.
Afirma Carmem Grisci (1995, p.15) que o ritual da maternidade “[...]
ideologicamente naturalizado, perpassa a vida das mulheres independentemente de
sua concretude no real ou permanência em nível do imaginário.” Dessa forma,
percebe-se como naturais fenômenos sociais e humanos construídos
historicamente, imputando um peso determinístico às condições de feminilidade e
masculinidade.
Na verdade, o ser homem ou o ser mulher são construídos na teia das
relações sociais que articulam modelos de conduta culturalmente determinados, por
meio de discursos que criam estereótipos reproduzidos de geração a geração.
Constituídos nos discursos, produzem padrões de desigualdade e discriminação
entre os sexos, que constituem o campo temático de gênero.
Marlene Strey (1998, p. 183) afirma: “[...] toda sociedade possui um sistema
de gênero: conjunto de arranjos através dos quais a sociedade transforma a biologia
sexual em produtos da atividade humana e nos quais essas necessidades
transformadas são satisfeitas.” Assim sendo, as instituições e práticas sociais são
constituídas e constituintes de gênero, ou seja, a justiça, a igreja, as práticas
educativas ou de governo, a política, dentre outros, produzem-se com base nas
relações de gênero e também nas relações de classe, etnia, nacionalidade,
religiosidade, geração, dentre outras. Como diz Jane Flax (1991, p. 220): “[...] as
relações de gênero entram em qualquer aspecto da experiência humana e são
elementos constituintes dela.”
Os estudos de gênero no Brasil, de acordo com Maria Eunice Guedes (1995),
iniciaram-se nos idos de 1970 e tiveram um peso maior quando a ONU decretou
como a “Década da Mulher” os anos de 1975 a 1985, que coincidiram com a
abertura do regime político brasileiro. O retorno de mulheres brasileiras exiladas
políticas possibilitou que pudessem trazer para os espaços acadêmicos e os
movimentos sociais brasileiros os avanços observados e vivenciados na Europa
sobre os estudos de gênero e as conquistas das mulheres. Foi, entretanto, a
56

publicação, no Brasil, do texto de Joan Scott (1993) Gênero: uma Categoria Útil para
Análise Histórica que provocou os avanços mais significativos nos estudos e
pesquisas. Essa autora assim define gênero:

Minha definição de gênero tem duas partes e várias subpartes. Elas são
ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo
essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas
proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma
primeira de significar as relações de poder. (SCOTT, 1993, p.14).

Antes de fazer essa proposição, Joan Scott (1993) tece uma crítica detalhada
a estudos de gênero empreendidos até então, afirmando que estes posicionavam-se
como reducionistas, a-críticos e a-históricos e, portanto, legitimadores do paradigma
hegemônico que preconiza a supremacia masculina fundada na diferença anatômica
dos sexos como causalidade única para explicar a hierarquia entre os seres
humanos. Esta pode parecer uma conclusão simplista para a complexidade do texto
de Scott (1993) que avalia, dentre outros, os esforços das teorias feministas de
estudarem a hierarquia de gênero, partindo da teoria do patriarcado, de articulações
com a teoria marxista e/ou com a psicanálise.
O texto de Joan Scott (1993, p.13), entretanto, representa um avanço na
explicação do papel e do lugar da mulher na sociedade, pois sua definição provoca a
possibilidade de considerar gênero como categoria analítica, ou seja, “[...] como
meio de falar de sistema de relações sociais ou entre os sexos.” Joan Scott (1993, p.
14) afirma:

A meu ver é significativo que o uso da palavra gênero tenha emergido num
momento de grande efervescência epistemológica entre pesquisadores em
ciências sociais, efervescência que em certos casos toma a forma de uma
evolução dos paradigmas científicos em direção a paradigmas literários (da
ênfase colocada sobre a causa em direção a para à ênfase colocada sobre
o sentido, misturando os gêneros da pesquisa segundo a formulação do
antropólogo Clifford Geertz). Em outros casos, essa evolução toma a forma
de debate teórico entre aqueles que afirmam a transparência dos fatos e
aqueles que insistem sobre a idéia de que qualquer realidade é interpretada
ou construída: entre aqueles que defendem e aqueles que colocam em
questão a idéia de que o “homem” é o senhor racional do seu próprio
destino.

As reflexões de Joan Scott (1993) levam-nos a acreditar que, no


direcionamento dos estudos de gênero, a pergunta empírica deva se deslocar de
57

“por que” para “como”. O “como” exclui a relação linear de causa e efeito e permite
uma articulação, de maior ou menor complexidade, de múltiplas causalidades
provisórias na busca de compreensão do sentido. Nessa perspectiva, é possível
problematizar questões do feminino com outras como raça, classe, etnia, sexo,
religião, geração, dentre outras, com aspectos micro-sociais que singularizam
grupos e definem identidades, desvendando a intrincada rede simbólica que modela
e configura as relações sócio-afetivo-econômicas entre os seres humanos.
Pesquisadoras interessadas em estudar Gênero introduzem questionamentos
outros, a exemplo de Teresa de Lauretis (1994, p. 208), cujo texto publicado
originalmente em 198711 e, portanto, contemporâneo ao de Joan Scott (1993), cuja
primeira publicação data de 1989, questiona o conceito de diferença sexual,
advogando que existe um “potencial epistemológico” nos escritos feministas da
década de 1980 que podem visualizar:

[...] um sujeito construído no gênero, sem dúvida, mas não apenas pela
diferença sexual, e sim por meio de códigos lingüísticos e representações
culturais; um sujeito “engendrado” não só na experiência de relações de
sexo, mas também nas de raça e classe: um sujeito, portanto, múltiplo em
vez de único, e contraditório em vez de simplesmente dividido.

Ancorando seu pensamento na formulação foucaultiana de “tecnologia


sexual”, Teresa de Lauretis (1994) propõe uma tecnologia de gênero que inclui uma
dimensão de processo à compreensão que se tem de gênero, quando fala da
construção, da desconstrução e da auto-representação de gênero; quando afirma
que a construção e a representação de gênero fazem-se no dia-a-dia, no cotidiano,
mediante ações e, principalmente, representações que se fazem das relações
vivenciadas nos mais diversificados espaços de convivência humana. Assegura que
esta é uma construção histórica que está presente na vida das pessoas,
consubstanciada pelos dados objetivos e subjetivos da realidade e que proporciona,
como produto, tanto as emoções e os sentimentos que povoam o universo simbólico
das pessoas quanto a produção artística, cultural e científica. Essa produção/produto
dá-se em um movimento que engloba não apenas as produções que se ocupam do

11
Este texto de Tereza de Lauretis foi publicado originalmente com o título The tecnology of gender,
na obra Tecnologies of gender, cujo editor é Indiana University Press, em 1987. No Brasil, foi
publicado no livro organizado por Heloísa Buarque de Hollanda (1994).
58

feminismo, mas, ao mesmo tempo e em igual intensidade, aquelas que também a


negam.
Teresa de Lauretis (1994, p. 237) assegura, ainda, que

[...] não existe nenhuma realidade social para uma dada sociedade, fora do
seu sistema particular de sexo-gênero [...] é um movimento a partir do
espaço representado por/em representação, por/em um discurso, por/em
um sistema de sexo-gênero, para o espaço não representado, mas implícito
(não visto) neles.

As identidades de gênero, enquanto simbólicas, são constantemente


reafirmadas pelos discursos que nomeiam homens e mulheres em suas ações
diárias, cotidianas e dizem respeito a todas as instâncias da esfera social.
No percurso histórico da construção de gênero, a teoria feminista, em
determinado momento, articulou seu discurso sobre a identidade feminina como
construída em oposição ao masculino, na pressuposição de que o outro, para a
mulher, é o homem. Tributária da lógica cartesiana, a teoria feminista construiu a
grande metanarrativa da Teoria do Patriarcado, que postulava uma forma de
hierarquia social em que os homens são os detentores do poder e as mulheres
estão a eles subordinadas. Nesta relação, a autoridade social é exercida mediante
os papéis de pai e de marido. Segundo Marlene Strey (1999, p.185), na sociedade
contemporânea, há uma evolução nessa forma de exercício do patriarcado, haja
vista que o poder social hoje “[...] é identificado com atributos que são considerados
masculinos.”
Como as posições de gênero são eixos determinantes na distribuição e
manutenção do poder na hierarquia social, a relação de subordinação a ela
subjacente sugere que o grupo subordinado não tem controle sobre as decisões que
afetam sua própria existência, mas, como Michel Foucault (1979, 1999 e 2001a) nos
ensinou, o grupo subordinado entra no jogo do poder, podendo assumir tanto
posições de resistência quanto de consentimento. A noção de poder implicada
nesse modelo falocrático de superioridade masculino assenta-se nos estudos
realizados por Foucault (1979, 1999 e 2001a). Este autor afirma que o poder não
existe e advoga que existem, sim, práticas e relações de poder, definindo o poder
como uma relação social.
Como construtores de identidades, “[...] os gêneros se produzem, portanto,
nas e pelas relações de poder [...]” afirma Guacira Louro (1997, p.41), por meio
59

dos jogos de poder e dos discursos forjados no âmbito do social. As ações


discursivas inerentes às interações humanas posicionam sujeitos que atribuem
sentido a suas ações, emoções, reações, sentimentos, medianteo confronto e
negociação de suas próprias posições, segundo o ponto de vista foucaultiano, não
necessariamente verticais, mas em oposição, significando e ressignificando seus
conteúdos.
Assim sendo, nos estudos sobre Gênero, hoje, são feitas outras
problematizações. Não se busca inverter a equação de dominação do homem
sobre a mulher para colocar a mulher em primeiro lugar, assim como não se
estimula a tradicional associação do sexo com o biológico e do gênero com o
simbólico, que estabelece uma dicotomia sexo-gênero. Em contrapartida, há uma
tendência a se direcionar os estudos para o entendimento de como são
construídas as identidades de gênero no contexto contemporâneo. Conquanto
relações sociais complexas, exigem que se pense os seres humanos enquanto
seres sujeitos a determinações bio-psico-sociais, nas quais o corpo também está
sujeito às marcas históricas, posto que também constroem subjetividades e
identidades (SARDENBERG, 2002).
A dicotomia sexo/gênero, na qual o sexo é entendido como o corpo e gênero
como o simbólico, vem sendo questionada, porquanto reduz a complexidade dos
seres humanos à dicotomia mente/corpo. No dizer de Elizabeth Grosz (2000, p. 48-
49), esta relação é associada a muitas outras dicotomias, tais como razão/paixão,
sensatez/sensibilidade, fora/dentro, realidade/aparência, dentre outras, considerando
como a mais relevante para os Estudos de Gênero a correlação e associação
mente/corpo com a oposição macho/fêmea. A autora justifica seus argumentos na
história da constituição do saber filosófico, assegurando que a filosofia excluiu a
feminilidade quando tratou a feminilidade, mesmo que de forma subreptícia, como
uma desrazão associada ao corpo. E prossegue, fazendo uma discussão sobre o
dualismo mente/corpo até os nossos dias.
Formulações filosóficas contemporâneas, todavia, tem atribuído ao corpo
significados importantes que promovem a conexão com a própria condição histórica
dos seres humanos. É o que nos ensina Susan Bordo (1997), quando se refere a
outros autores como Douglas, para quem o corpo é um agente de cultura, a Pierre
Bourdieu, que fala de corpo como controle social e a Michel Foucault, que se refere
a corpos dóceis e regulados.
60

Na verdade, quando se pensa em corpo como produtor de subjetividade e de


identidade, há que situá-lo nos espaços cotidianos que se constituem na arena das
disputas e estratégias de poder sendo lócus de negociações e confrontos
característicos dessas relações. Patrícia Medeiros (2003, p. 208) defende que “[...]
temos um corpo, mas o uso do corpo, o conceito do corpo, o status do corpo depende
do contexto social e histórico [...] não devemos considerar o corpo como algo
biologicamente dado de antemão, mas como algo que também tem uma história.”

Autoras interessadas em minar a dicotomia sexo/gênero que separa o


biológico e o cultural, naturalizando-os, advogam, como enfatiza Elizabeth Grosz
(2000, p. 76): “O corpo é visto como um objeto político, social e cultural por
excelência e não o produto de uma natureza crua, passiva, que é civilizada,
superada, polida pela cultura. O corpo é um tecido cultural e produção de natureza.”

Teórica e empiricamente, as formulações feministas fazem uma reviravolta


em suas posições, traçando um caminho de inclusão por superação. Na trajetória
das teorizações feministas há, em um primeiro momento, o reconhecimento do
corpo (biológico) como o lócus da diferença entre homens e mulheres que permite a
elaboração de Teorias como a do Patriarcado. Em seguida há uma supervalorização
dos desdobramentos simbólicos que a diferença corporal provoca na trama das
relações sociais e elaboram um conjunto de teorias que se ampara na relação sexo-
gênero. No momento atual, é possível retornar ao corpo para recuperá-lo como uma
instância diferenciada, para além do aparato biológico, porquanto realidade histórica
produtora de subjetividades.

Na perspectiva de entender os corpos como processos relacionais,


construídos simbolicamente por estratégias históricas que definem indivíduos e
grupos em determinado tempo-espaço, Cecília Sardenberg (2002, p. 65) propõe a
expressão “corpos gendrados”, na qual o corpo é considerado “[...] tanto como
objeto quanto produto de representações e práticas sociais diversas historicamente
específicas.” Desse modo, o corpo está sempre submetido a uma leitura particular
derivada de conteúdos sexuais, étnicos, geracionais, políticos, econômicos,
estéticos, dentre outros. Nesse caso, pode-se falar de corpos masculinos e
femininos. Desse ponto de vista, os “corpos gendrados” significam corpos
impregnados de gênero e de todos os outros processos que subjetivam os sujeitos e
constroem suas identidades.
61

Compreendendo, portanto, os seres humanos como seres complexos e


inteiros submetidos a determinações de ordem biológica, psicologia e social,
historicamente produzidas, pode-se retomar as proposições de Joan Scott (1993, p.
17) e compartilhar com a assertiva de que gênero é “[...] um meio de decodificar o
sentido e de compreender as relações complexas entre diversas formas de
interação humana.” E nas formulações de Gênero, pode-se incluir a leitura do corpo
como generificado.
Reportamo-nos aos ensinamentos de Stuart Hall (2001, p. 9), quando fala do
declínio da compreensão de identidades como fixas e advoga a existência de
múltiplas identidades:

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades


modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens
culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que,
no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos
sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades
pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos
integrados.

As palavras do autor conduzem à afirmação de que a condição feminina


visibiliza, além das diferenças entre a vivência do feminino e do masculino, a
existência de muitas mulheres diferentes, singularizadas por questões culturais,
econômicas, corporais, de localização geográfica, de período histórico, dentre
outras possibilidades. São, portanto, mulheres múltiplas, plurais, cuja identidade é
atravessada por questões de sexo, de gênero, de geração, de etnia, de profissão,
de classe social, dentre outras possibilidades. É o que afirma Sandra Harding
(1993), quando se refere à inexistência de um homem universal e,
conseqüentemente, também à inexistência de uma mulher universal, e Rosi Braidotti
(2002), quando se refere ao nomadismo feminista.
Inscrito na teia discursiva que produz os seres humanos, às identidades
femininas correspondem posições-de-sujeito que cada um assume e com as quais
se identifica, como o feminino — atravessado por uma gama de outros discursos
que, concomitantemente, situa-lhes em todas as outras dimensões do tecido social;
da mesma forma, pode-se pensar nas identidades masculinas.
62

1.2.3 Vivência do masculino

Os Estudos de Gênero constituíram-se, inicialmente, com o objetivo de dar


visibilidade às questões da mulher e de suas relações com o mundo, tendo em vista
sua invisibilidade social na estrutura das sociedades patriarcais. O desenvolvimento
e aprofundamento dessa temática, no entanto, permitiu que o foco dessas
discussões se centrasse na compreensão da rede dinâmica, simbólica e discursiva
que rege as relações entre homens e mulheres. Problematizar as questões
masculinas, portanto, tornou-se necessário, embora os Estudos de Gênero, ainda
hoje, mantenham o peso de suas investigações na esfera feminina.
Marku Monteiro (2006, p. 2) argumenta que, na década de 70 do séc. XX,
como exposto anteriormente por Guedes (1995), o contexto social urbano era
propício para questionamentos sociais, tendo em vista a redemocratização e
distensão política no país, que possibilitou a insurgência de debates sobre as
identidades e as sexualidades, ancoradas, sobretudo, no fortalecimento do
movimento feminista. E diz:

Tanto o movimento feminista quanto o homossexual questionaram


seriamente o papel do homem e as hierarquias entre os diferentes grupos.
Tanto o feminismo quanto o movimento homossexual vão questionar o
patriarcado, a superioridade do homem sobre outros grupos, a
obrigatoriedade do heterossexualismo e o modo como o homem
relacionava-se consigo, com outros homens e com as mulheres.

Uma certa masculinidade padrão (homem branco, heterossexual, bem


sucedido), historicamente inquestionada, adquiriu características universalizantes e
a-políticas e foi minada pelo discurso das minorias (mulheres, gays, negros), para
quem o ser homem não tem esse mesmo significado. Surgiram daí questões
referentes à identidade masculina, que precisavam responder o que é mesmo ser
homem. Era necessário verificar como os homens se viam, como se representavam,
como construíam suas identidades.
Nesse particular, reitera-se o posicionamento defendido nesta tese, sobre
identidade, a qual se constitui nas redes simbólicas e discursivas que formatam os
sujeitos e produzem subjetividades. Assim como as mulheres, os homens estão
imersos no social, sendo produtores e por eles produzidos, submetidos aos jogos de
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poder que circulam entre os grupos e que promovem relações de dominação,


subordinação e resistência, como propõe Michel Foucault (1979, 2001a).
Fala-se, portanto, de identidades, múltiplas, plurais, como referiram
Boaventura Souza Santos (1996) e Stuart Hall (2000, 2001), conquistadas e
negociadas no permanente embate cotidiano das relações sociais e lingüísticas, e
nega-se quaisquer concepções que defendam a identidade como substância,
atributo fixo ou herança genética.
Pedro Oliveira (1998) em um estudo intitulado Discursos sobre a
Masculinidade promove uma crítica a estudos que se sucederam aos
questionamentos sobre o ser homem e os distingue em dois grupos, quais sejam: os
discursos vitimários, entre os quais abrigam-se aqueles de cunho tradicional, que
legitimam o status quo da posição hierárquica masculina no contexto das relações
sociais; e os discursos críticos, que admitem, numa apropriação do legado feminista,
que as relações entre homens e mulheres são de cunho social, historicamente
construídas, permeadas pelas dimensões do poder, incorporando as formulações de
Joan Scott (1993) e também a leitura foucaultiana de relações de poder e discurso
na análise que efetuam.
Ao discurso vitimário, Pedro Oliveira (1998) atribui posicionamento de autores
que, fundamentados em teorias psicológicas ou na tradicional visão sociológica de
papéis sociais, consideram o homem vítima de sua condição masculina. Afirma que
demarcam uma visão de homem determinista e apriorística, concebido e explicado
por condições externas a ele, às quais não tem ingerência e nem controle. A
identidade concebida nessa formulação é, portanto, permanente, e uma vez
adquirida, permanece imutável pelo resto da vida.
Com relação à fundamentação psicológica para o discurso vitimário, o autor
evoca Nancy Chodorow (1978), cujo texto considera emblemático, e avalia que sua
contribuição a esse posicionamento resume-se a uma idéia muito simples:

As mulheres na posição de mães são as primeiras pessoas que, mantendo


contato freqüente com os filhos servem como base de referência para a
identificação de meninos e meninas. Com o posterior desenvolvimento das
crianças, existirá, de acordo com o sexo, diferentes conseqüências dessa
primeira identificação. Os meninos terão que lutar para se desfazer dela e
criar uma outra completamente diferente. A nova identidade será frágil e tal
fato acarretará uma personalidade com reduzida capacidade de
relacionamentos, inseguranças e barreiras em torno do ego masculino.
Como as meninas não terão que efetuar tal ruptura, o desenvolvimento da
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identidade feminina é mais natural e tranqüila, evitando maiores conflitos.


(OLIVEIRA, 1998, p. 99).

Os desdobramentos que adeptos desse pensamento elaboraram puderam ser


usados inclusive para justificar comportamentos de força e violência na postura do
homem diante do mundo, inclusive contra as mulheres. Consideramos que é um
posicionamento psicologista, oriundo de uma concepção de homem, de mundo e de
psicologia a-crítica, a-temporal e a-histórica, que remete ao próprio sujeito e a suas
micro-relações familiares a causa de sua conduta em quaisquer contextos.
Desconsidera, pois, as questões sociais na constituição do sujeito e apresenta o
sexo masculino como o sexo frágil que, prisioneiro dos ditames prescritos, não pode
se libertar da condição natural de sua existência.
A teoria sociológica clássica, por sua vez, prossegue Pedro Oliveira (1998)
argumentando, também fundamenta o discurso vitimário porquanto atribui aos
papéis sociais uma característica de prescrição absoluta, não havendo alternativas
divergentes para eles, conforme discutiu-se no início deste capítulo. Deste ponto de
vista, o homem também não tem implicação e nem responsabilidade sobre sua
conduta, pois, para cumprir seu papel social, precisa provar continuadamente sua
condição de macho, reproduzindo as prescrições socialmente impostas. Assim
sendo, é negada qualquer possibilidade de conflito. Pode-se atribuir ao sistema
capitalista, às relações de trabalho, ao sistema de ensino, à dinâmica familiar ou a
quaisquer outros problemas a responsabilidade pelo comportamento masculino,
sendo o homem vítima dessas orientações, às quais precisa cumprir e não lhe cabe
questionar e transformar.
O “novo homem” é uma proposição feita por Sócrates Nolasco (1993, p. 173),
o qual apresenta-se como uma resposta às inquietações que a teoria feminista
estaria provocando nos homens, levando-os a refletirem sobre sua condição
existencial. Diz o autor:

Seria conveniente situar o processo hoje vivido pelos homens para além do
que se passa entre eles e as mulheres, mas não necessariamente a partir
da relação entre ambos. A relação do homem com o trabalho é complexa,
como também o é com seus amigos e filhos.
[...] O projeto que se apresenta para um homem busca, em nível individual,
integrar o que ele pensa com o que sente e faz, e que, a partir de suas
vivências, possa encontrar formas mais suaves de individualizar-se.
Coletivamente, os homens têm procurado, mediante a organização de
grupos de discussão, avaliar questões referentes à sexualidade, violência,
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paternidade, identidade social e “doenças de fuga” (álcool, drogas, estresse


e suicídio) como indicadores de uma identidade que não os satisfaz.

Como se pode observar, proposições como esta pretendem, como argumenta


Pedro Oliveira (1998), apenas flexibilizar o fardo que os papéis sociais prescritos
imputam aos homens, mantendo-os na mesma posição hierarquicamente
privilegiada, sem questionar a arena de poderes que perpassa as relações entre
homens e mulheres, historicamente constituídas. Em se tratando de uma “solução”
individual, funciona para alguns indivíduos, notadamente aqueles de camadas
sociais mais favorecidas, que têm acesso a informações e formas alternativas de
lidar consigo oriundas de ensinamentos das ciências sociais e humanas, não
fazendo eco para populações menos favorecidas, que, via de regra, valorizam as
posições “machistas” dos homens nas relações com as mulheres.
O discurso crítico, por sua vez, apóia-se nos estudos de Robert Connell
(1995), que insere o conceito de masculinidade no âmbito dos estudos de Gênero.
Para ele, a masculinidade nada mais é do que uma posição nas relações de gênero,
na qual as práticas e seus resultados produzem efeitos nas experiências pessoais e
sociais de homens e mulheres. Nessa perspectiva, masculinidade não é uma
categoria estática, nem universal, mas uma forma histórica de exercer o masculino
sujeita a variações de tempo e espaço. Descarta, portanto, conceitos como homem
natural, universal e portador de essência pré-estabelecida.
Robert Connell (1995) distingue quatro tipos de masculinidade e assevera que
existe uma masculinidade hegemônica, em torno da qual três outras organizam-se: a
cúmplice, a marginalizada e a subordinada. Por masculinidade hegemônica, o autor
compreende aquela que representa um perfil estereotipado de homem, valorizado
socialmente, disseminado em determinada cultura em determinado tempo/espaço,
que representa posições nas relações de gênero e que cultua a força, a virilidade, a
competição, dentre outros atributos. Refere-se, pois, à hegemonia de um dado
padrão cultural relacionada à dominância cultural em dado momento.
A masculinidade cúmplice diz de um tipo de posição, na qual seu adepto
desfruta de todas as vantagens que a posição patriarcal confere-lhe, porém tenta
escamotear essa posição não declarando sua adesão a ela. A marginalizada refere-
se a posições de inferioridade em relação à hegemônica, porquanto refere-se a
indivíduos diferenciados por questões de raça ou de classe social. Como a
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masculinidade hegemônica exige um padrão hetero de preferência sexual, a


subordinada nomeia posições homossexuais que coloca seus adeptos em condição
de inferioridade, não apenas aos homens, mas também às mulheres.
Há que se considerar que sendo a masculinidade um exercício cotidiano das
relações dos homens consigo e com os outros e com as outras, existe entre esses
tipos de masculinidade um embate característico das relações de poder, como
propõe Michel Foucault (1979). O poder existe, acontece nas micro-relações entre
os sujeitos, produzindo um saber que constrói as relações, posto que engendra as
relações de dominação de uns sobre os outros. Conforme assegura Foucault (1979,
p. 141-142):

Não podemos nos contentar em dizer que o poder tem necessidade de tal
ou tal descoberta, desta ou daquela forma de saber, mas quem exerce o
poder cria objetos de saber, os faz emergir, acumula informações e as
utiliza [...] O exercício do poder cria perpetuamente saber e, inversamente, o
saber acarreta efeitos do poder [...] Não é possível que o poder se exerça
sem saber, não é possível que o saber não engendre o poder.

E é esse jogo que preside as relações sociais dentre elas às relações entre os
sexos. Ari José Sartori (2001), em pesquisa realizada sobre a participação feminina
no universo sindical, pôde perceber uma relativização dos tipos de masculinidade
acima citadas, na prática de operários. Conclui que elas podem coexistir em um
mesmo indivíduo em diferentes situações de sua vida. Mesmo que a masculinidade
hegemônica seja considerada um padrão idealizado para todos os homens, há
aqueles que criam alternativas em suas relações cotidianas. Existem homens que
não são homofóbicos ou que incorporaram os apelos que as novas posições sociais
das mulheres impõem e, por conseguinte, podem adotar comportamentos próximos
de masculinidades subalternas que convivem com seus posicionamentos de
masculinidade hegemônica numa apropriação particular.
O homem, categoria naturalizada através dos tempos, ou os homens, visto
que são múltiplos e plurais, assistem suas privilegiadas posições tradicionais sendo
questionadas. No dizer de Robert Connell (1995), isso ocorre em função das novas
configurações sociais proporcionadas pela oposição das mulheres aos referenciais
patriarcais, das relações de produção que reordenam novas formas de inserção das
mulheres no mundo do trabalho e da flexibilização da sexualidade representada
pelas alternativas lésbicas e gays.
67

Na construção das identidades femininas e masculinas há que se pensar


como se engendra gênero, considerando que.os sujeitos constroem suas
identidades como efeitos do discurso, assumindo posições que marcam suas opções
na esfera social. Frente à diversidade de discursos que estão postos na vivência
diária de cada um, homens e mulheres estão em permanente disputa para definir
suas posições de sujeito e com elas ir tecendo suas identidades (de mulher, de
homem, de psicólogo, de psicóloga, de profissional, de estudante, de mãe, de filha,
de consumidora, dentre tantas outras). Novamente, retorna-se ao pensamento de
Jane Flax (1991, p. 220), que assegura: “[...] as relações de gênero entram em
qualquer aspecto da experiência humana e são elementos constituintes dela.” E,
nesse particular, incluir a questão da escolha, da construção e do desempenho de
uma profissão.

1.3 IDENTIDADES PROFISSIONAIS

Pode-se considerar o trabalho como uma categoria básica na relação do ser


humano com o mundo, considerando-o como fator estruturante do modo social e
humano de existência, fruto das relações sociais, nas quais a humanidade produz
seus meios de vida. Como já haviam ensinado Marx e Engels (1982, p. 9): “[...] tal
como os indivíduos manifestam a sua vida, assim são eles. O que eles são coincide,
portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como
produzem.”
A despeito dos questionamentos sobre a importância do trabalho na
contemporaneidade e as problematizações que são elaboradas sobre a teoria
marxista, pode-se afirmar que o mundo do trabalho e as categorias profissionais são
contextos produtores de subjetividade de onde emergem configurações identitárias
tecidas no interjogo das identificações e diferenças que promovem sentidos, por
meio do discurso, conforme se discute ao longo desta tese. No caso do trabalho e
da formação profissional, pode-se falar em identidades profissionais,
compreendendo-as como as posições que o sujeito assume, com base nas práticas
discursivas às quais está exposto e que expressam a forma como determinada
profissão impregnou sua vida, de modo a lhe proporcionar uma percepção particular
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de mundo e determinados modos de agir diante do real. Está implicado nesse


processo um movimento de construção, desconstrução e re-construção de
significados que a profissão ou a formação profissional proporcionam; não apenas
aquisições teórico-conceituais e procedimentos técnicos e metodológicos, mas, além
disso, formas de compreender o mundo, os seres humanos e a profissão.
Quando se fala de profissão, é necessário que se delineie um tipo de trabalho
especializado, teoricamente fundamentado, com recursos técnicos e metodológicos
definidos, partilhado por um grupo de pessoas que se denomina e se reconhece
como “iguais”. Para Fernanda Pereira e André Pereira Neto (2003), o
reconhecimento de uma profissão exige um conhecimento estruturado e
institucionalizado, além da estruturação de seus interesses em consórcios
profissionais que regulam e controlam a atuação daqueles que partilham desse
mister. Para os autores citados, deve existir um controle interno da profissão,
exercido mediante a fiscalização das condutas profissionais, que devem se balizar
no código de ética de cada profissão. É necessário, portanto, um reconhecimento
oficial do Estado, por meio da regulamentação legal do exercício profissional.
Embora o estudo das profissões seja um campo específico da Sociologia, no
qual não é pretensão deste trabalho aprofundar-se, é importante demarcar o que
Maria da Glória Bonelli (1999) coloca como temáticas importantes desta área.
Refere-se, a autora, às relações entre a profissão, o Estado e a política, às
concepções de profissão e aos debates internos sobre seus conteúdos ideológicos,
além da força social da profissão, seu grau de enfraquecimento, a autonomia
profissional e a repercussão na sociedade.
Fica explícito que é no terreno das disputas, no atravessamento do saber-
poder que se forjam as identidades profissionais. Nestas, há um forte conteúdo
político, em particular, quando se fala no processo de inserção social nas
sociedades capitalistas, cujas relações são hierarquizadas e excludentes. Falar de
profissões remete à pirâmide social, na qual estão distribuídas as profissões.
Existem aquelas de maior prestígio social e melhor remuneração que se sobrepõem
a outras, cujo saber e prática são consideradas menos qualificadas socialmente.
Nessa configuração, existem profissões, subprofissões, emprego, subemprego,
concentração de renda, profissões masculinas, profissões femininas, profissões que
curam outras que cuidam, profissões que exigem o exercício do pensar outras que
são mecânicas, dentre outras possibilidades.
69

Em uma sociedade marcada por uma divisão sexista, tributária de uma lógica
de dominação patriarcal, as profissões consideradas femininas são aquelas nas
quais se deseja e espera que a mulher possa exercê-la, aproveitando seus “dotes
naturais femininos” derivados de suas funções maternas.
Assim como a identidade de gênero começa a se construir desde o
nascimento, quando se constata as características sexuais externas de meninos e
meninas, as identidades profissionais também têm sua raiz na infância, quando, de
acordo com os padrões de sociabilidade androcêntrico, as crianças recebem
tratamento diferenciado e aprendem as normas e valores da sociedade com relação
à vida coletiva de seu grupo e da sociedade da qual fazem parte.
É no cotidiano das relações familiares e, posteriormente, nos demais grupos
de socialização como escola, igreja, vizinhança, amigos, dentre outros, que as
crianças interagem e reproduzem a divisão sexual das relações sociais. Neles
aprendem desde as diferenças na distribuição das atribuições dos afazeres
domésticos até a forma como lidar com emoções e sentimentos por meio do uso de
brinquedos e modalidades diferentes de brincadeiras de meninos e meninas. Os
meninos podem desenvolver brincadeiras em que a violência, a agressividade, a
competitividade e até a transgressão são tolerados e até estimulados enquanto o
recato, a docilidade, a calma e a delicadeza são exigidos das meninas.
No decorrer do desenvolvimento, as mulheres são direcionadas pela vivência
social a cultivar os “dotes femininos”, que se direcionam para os cuidados com o lar,
o casamento e a criação de filhos.
Guacira Louro (1997, p. 96), ao falar do magistério como profissão feminina,
defende:

Já que se entende que o casamento e a maternidade, tarefas femininas


fundamentais, constituem a verdadeira carreira das mulheres, qualquer
atividade profissional será considerada como um desvio dessas funções
sociais, a menos que possa ser representada de forma a se ajustar a elas.

Nesse raciocínio, pode-se ampliar esse entendimento para outras profissões


que são exercidas predominantemente por mulheres, como é o caso da Psicologia.
Há que se considerar que a complexidade do mundo contemporâneo,
associada às conquistas das mulheres e ao cenário do mundo produtivo mutante e
polivalente, oferece as condições para que as mulheres estejam ressignificando a
70

questão das profissões e das carreiras profissionais. Entretanto pesquisas como a


de Elizete Passos (1997) sobre as presenças masculinas e femininas na
universidade apontam para uma predominância do quantitativo de mulheres em
profissões da área de ciências humanas, invertendo-se esta tendência quando se
trata de profissões da área de ciências exatas.
O cenário das profissões, em que se constroem permanentemente as
identidades profissionais, é marcado pela questão da disputa, do poder. Estão em
jogo, além das profissões masculinas e femininas, questões outras que derivam
dessa primeira separação, quando se atribui valor e prestígio a umas em detrimento
de outras, o que se revela na forma como são remuneradas ou prestigiadas pela
sociedade. Além disso, dentro de cada profissão há fronteiras simbólicas que
hierarquizam saberes e fazeres.
Como se pode perceber, uma idéia de harmonia entre grupos profissionais ou
mesmo dentro de um mesmo segmento é ilusória, porquanto a vivência profissional
dentro de um grupo ocupacional é marcada por tensões e conflitos que aderem a
valores determinados que os subdividem e instalam fronteiras para se preservar e
demarcar seus espaços internos e externos.
É neste terreno de forças, de disputa, de jogo de interesses que a dinâmica
saber-poder, no contexto social, forja a construção de sentidos. No entendimento de
Michel Foucault (1979, p. 75), em sua conversa com Giles Deleuze:

[...] seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de que
revezamentos e até que instâncias, freqüentemente ínfimas, de controle, de
vigilância, de proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce.
Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se
exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não
se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui.

A construção de identidades supõe sempre o reconhecimento da diferença.


No campo das profissões isso está presente de forma muito marcante nos sentidos,
valores e regras que tecem as relações inter e intra profissões e constroem saberes
e práticas inerentes aos discursos peculiares de cada segmento. Nessas situações,
saber e poder nivelam-se na construção de sentidos possíveis para as posições de
sujeito. O saber sempre é relativo, nunca absoluto e constitui-se em objeto de
barganha nas lutas políticas e correlações de força entre os diversos tipos de
discursos que circulam no “mercado profissional”. É no jogo do discurso que se
71

estabelece quem ocupará posições sociais de maior representatividade social e


também quais as profissões mais valorizadas, mais respeitadas e melhor
remuneradas.
Estudar identidades profissionais em psicologia é algo muito peculiar, pois
refere-se a uma profissão que desde sua constituição apresenta questões
ambivalentes quanto à definição de seu objeto de estudo, à diversidade de
abordagens teórico-metodológicas, aos campos de atuação profissional e à clientela
atendida. Além do mais é uma profissão exercida majoritariamente por mulheres.
Para se constituir como ciência, rompe com uma tradição filosófica e
incorpora uma racionalidade instrumental para desenvolver pesquisas
experimentais; enquanto profissão, promove uma formação nas ciências humanas e
uma prática profissional que tem a medicina como um parâmetro. Além disso,
oferece um vasto leque de possibilidades de atuação profissional caracterizado por
contextos diversificados. Pode ser exercida na área da saúde, na da educação, no
campo do trabalho, no jurídico, nos esportes, dentre outras possibilidades. Entre
muitas profissões da área das ciências humanas é a única cujo profissional pode
obter o status de profissional liberal, como assegura a Lei nº 4.119/62, que
regulamenta o exercício da profissão. Ao ser escolhida predominantemente por
mulheres, pode-se afirmar que se trata de uma profissão feminina.
O Catálogo Brasileiro de Ocupações (BRASIL, 2006e) considera os
psicólogos como um grupo base identificado com a numeração 0-74, e segue
classificando-os como (0-74.10) psicólogo, em geral, (0-74.15) psicólogo do trabalho,
(0-74.25) psicólogo educacional, (0-74.35) psicólogo clínico, (0-74.45) psicólogo do
trânsito, (0-74.50) psicólogo jurídico, (0-74.55) psicólogo do esporte, (0-74.60)
psicólogo social e (0-74.90) outros psicólogos. No que concerne à descrição de
psicólogo, diz:

Os trabalhadores deste grupo de base estudam a estrutura psíquica e os


mecanismos de comportamento dos seres humanos. Desempenham tarefas
relacionadas a problemas de pessoal, como processos de recrutamento,
seleção, orientação profissional e outros similares à problemática educacional
e a estudos clínicos individuais e coletivos. Suas funções consistem em:
elaborar e aplicar métodos e técnicas de pesquisa das características
psicológicas dos indivíduos; organizar e aplicar métodos e técnicas de
recrutamento, seleção e orientação profissional, proceder à aferição desses
processos, para controle de sua validade; realizar estudos e aplicações
práticas no campo da educação (creches e escolas); realizar trabalhos em
clínicas psicológicas , hospitalares, ambulatoriais, postos de saúde, núcleos e
centros de atenção psicossocial; realizar trabalhos nos casos de famílias,
72

crianças e adolescentes, sistemas penitenciários, associações esportivas,


comunidades e núcleos rurais. (CÓDIGO CBO, 2006, p. 1).

Observe-se que há uma definição geral para um saber que orienta a


profissão, qual seja o entendimento de como funcionam os seres humanos. A
seguir delineiam-se várias áreas de inserção do psicólogo na sociedade. As
transformações do contexto produtivo, enquanto uma dinâmica que envolve
questões econômico-sociais e tecnológicas, formatam novas possibilidades
ocupacionais, nas quais profissões caem em desuso, outras são inventadas e
ainda outras re-criadas. A Psicologia não está imune a essa trama do tempo e,
conseqüentemente, suas possibilidades profissionais também estão continuamente
se renovando e se recriando.
O Conselho Nacional de Saúde, por meio da Resolução nº 218, de 06 de
março de 1997 (BRASIL, 2006d), reconhece as profissões de nível superior que
compõem a área da saúde12 e nelas inclui a Psicologia. Tal resolução justifica-se,
dentre outros motivos, pelo fato de que:

• a 8ª Conferência Nacional de Saúde concebeu a saúde como "direito de


todos e dever do Estado" e ampliou a compreensão da relação
saúde/doença como decorrência das condições de vida e trabalho, bem
como do acesso igualitário de todos aos serviços de promoção, proteção
e recuperação da saúde, colocando como uma das questões
fundamentais a integralidade da atenção à saúde e a participação social
[...] (BRASIL, 2006d, p. 1, grifo do autor).

Está ainda relatada a necessidade de consolidar o Sistema Único de Saúde e


a importância da ação interdisciplinar nesta área.
Há uma tradição dos Cursos de Psicologia abrigarem-se em Faculdades da
área das Ciências Humanas, tendo em vista que o MEC incorporou essa profissão
nesta área, mesmo que o maior peso na formação e a atuação do psicólogo tenha
se constituído como o modelo clínico tradicional13, o que exigia, para o
funcionamento do Curso, a instalação de uma Clínica Escola, denominada “Serviço
de Psicologia”, que funciona nos moldes de atendimento médico de consultório.

12
Fazem parte deste grupo ocupacional, além dos Psicólogos, Assistentes Sociais, Biólogos,
profissionais de Educação Física, Enfermeiros, Farmacêuticos, Fisioterapeutas, Fonoaudiólogos,
Médicos, Médicos Veterinários, Nutricionistas, Odontólogos e Terapeutas Ocupacionais.
13
Consultório privado para atendimento psicoterapêutico individual para pessoas com problemas
pessoais.
73

O Curso estudado nesta tese, no entanto, está sediado em uma Faculdade de


Medicina que há 54 anos dedica-se a formar profissionais da área da saúde, sendo
um tradicional reduto de ensino superior nesta área, o que poderia suscitar questões
relacionadas à construção de identidades desses alunos e alunas. Há que se
considerar que uma instituição de Ciências Humanas tem todos os elementos para
formar uma cultura mais voltada para as artes e as humanidades, enquanto as
instituições de saúde trazem o peso da doença, porquanto, numa visão tradicional,
via de regra estão empenhadas em lidar com os enfermos, as doenças e a cura.

A construção das identidades profissionais, como a construção de quaisquer


outras identidades, de acordo com os posicionamentos que se defende neste texto,
constroem-se na interlocução do sujeito com o mundo, quer no plano individual, quer
no coletivo. E a Psicologia, de qualquer sorte, pela própria multiplicidade em que
convive desde sua constituição como ciência e como profissão, aprendeu a realizar
diversificados diálogos.

A psicologia, acredita-se, possibilitou desde sempre a coexistência de


múltiplas e mutantes identidades. Quando se fala do psicólogo organizacional, do
clínico, do hospitalar, do educacional, para citar alguns, não se está falando da
mesma coisa, embora se trate do mesmo profissional, que teve, em princípio, a
mesma formação, pelo menos a básica. Ao invés de psicólogo, fala-se de
psicólogos. Considerando que as identidades são históricas, fluidas e constituídas
na rede discursiva que produzem os sentidos, estes, produzidos em diferentes
momentos e contextos, dizem de movimentos de afirmação, resistência ou
transformação de determinadas práticas realizadas com base nas interpelações
discursivas. As identidades são forjadas na teia do social, do mesmo modo e com
igual intensidade com que se produzem as diferenças, ambas constituídas pelas
relações de poder (HALL, 2000; 2001; WOODWARTH, 2000; SILVA, 2000;
GUARESCHI; BRUSCHI; MEDEIROS, 2003; BUTTLER, 2003; SOUZA SANTOS.
1996 dentre outros).

As identidades definidas nas redes discursivas são consideradas como


produto do discurso. Discurso, nessa perspectiva, é entendido como prática,
conforme propõe Michel Foucault (1999), em sua Teoria do Discurso, que não
enfatiza discurso do ponto de vista lingüístico ou como um significado de palavras,
mas como um conjunto de práticas que produzem efeitos no sujeito.
74

Importa demarcar que o termo discurso neste trabalho refere-se a uma


apropriação das formulações foucaultianas que afirmam que o discurso produz o
sujeito, tal como o fazem as formulações teóricas que se abrigam sob os Estudos
Culturais. Nesse particular, os discursos ou práticas discursivas, como refere Michel
Foucault (1999), não são pensados como uma dimensão isolada, como se fossem
apenas atos lingüísticos, mas formam-se consorciados com todas as outras relações
dos seres humanos na arena social, estabelecendo conexões com os
acontecimentos de ordem técnica, política, econômica e social que circunscrevem as
experiências humanas.
Como afirma Michel Foucault (1999, p. 193):

[...] as formações discursivas não têm o mesmo modelo de historicidade que


o curso da consciência ou a linearidade da linguagem. O discurso [...] não é
uma consciência que vem alojar seu projeto na forma externa da linguagem;
não é uma língua, com um sujeito para falá-la. É uma prática que tem suas
formas próprias de encadeamento e de sucessão.

Assim sendo, não é possível separar os acontecimentos discursivos dos não-


discursivos, constituindo-se essa separação em uma questão apenas semântica. Os
acontecimentos de ordem técnica, política, econômica e social, comumente
pensados como externos aos saberes, do ponto de vista foucaultiano, devem ser
considerados como inseparáveis e interdependentes. Nessa perspectiva, podemos
inserir a questão da construção das identidades profissionais que se debatem na
arena social em vários aspectos da realidade, em nível individual e coletivo, nas
disputas pelo poder e por prestígio social.
Como se argumentou anteriormente, o poder tem um caráter produtivo. Nesse
momento, enfatiza-se o poder como produtor de saber, tendo em vista que existem
(poder e saber) numa relação de mutualidade, porquanto as relações de poder
constituem campos de saberes e estes, por sua vez, constituem-se em relações de
poder. E pode-se afirmar que o que nomeia uma profissão é um campo de práticas e
um conjunto de conhecimentos e capacidades profissionais advindos do saber que
caracteriza determinado mister.
Como as relações cotidianas dos sujeitos são atravessadas, em qualquer
instância, pelas relações de poder, o indivíduo é concebido tanto como efeito como
produtor de poder. Para Michel Foucault (1999), o sujeito produz-se nas relações de
poder como um efeito do discurso. O sujeito não tem autonomia sobre seu discurso,
75

porquanto este se materializa pelas posições de sujeito que definem os discursos


“[...] pela situação que lhe é possível ocupar em relação aos diversos domínios ou
grupos de objetos.” (FOUCAULT, 1999, p. 59). Sendo assim, o sujeito não faz o que
quer, mas aquilo que lhe é possível, condicionado às posições que ocupa em
determinado tempo-espaço, subordinado a uma ordem disciplinar determinada. É,
portanto, mediante as práticas discursivas forjadas nas práticas sociais que o ser
humano transforma-se em sujeito do discurso, assumindo posições discursivas
impregnadas das marcas do histórico e do social.
A fixação em determinadas posições de sujeito é possível pelo recurso da
performatividade, conceito proposto pela teórica feminista Judith Butler (2001). Para
esta autora, o discurso não narra fatos ocorridos no passado, mas formata
acontecimentos, na medida em que, por meio de exercícios de repetição, vai
proporcionando identificações sucessivas, que fazem com que o sujeito seja
interpelado pelo discurso, assumindo posições por meio das quais fala de si e
reconhece aquelas pelas quais é falado. Trata-se, portanto, de uma construção que
se efetiva pela repetição de práticas discursivas (falas e atos) que estabelecem
correspondência e reproduzem normas sociais vigentes, dentre elas aquelas
relacionadas às profissões..
Judith Butler (1993, p. 155) afirma que a performatividade deve ser
compreendida “[...] não como um ‘ato’ pelo qual o sujeito traz à existência aquilo que
ela ou ele nomeia, mas ao invés disso, como aquele poder reiterativo do discurso
para produzir os fenômenos que ele regula e constrange.” E considera que este é o
efeito mais produtivo do poder.
Compreendendo o trabalho como uma prática de significação que produz
modos de ser e sentir, numa relação social e de poder, as instituições de trabalho
produzem saberes, ditos, mitos, ritos que são segredados e compartilhados pelos
pares. Admitindo como verdadeira a assertiva de Boaventura Souza Santos (2001),
de que as identidades são identificações em curso, pode-se considerar a educação
superior como um lócus privilegiado para a construção de identidades profissionais.
Nela estão em jogo a função social da profissão, o compromisso com a coletividade
e as questões éticas.
Por meio dos discursos, os grupos constroem fronteiras simbólicas que
marcam as especificidades profissionais, diferenciam-se das demais profissões e
demarcam a atuação profissional no contexto social. O discurso profissional expõe a
76

disputa dos saberes e as ideologias subjacentes que estão inscritas nessas relações
de poder.

Em se tratando de um estudo sobre a construção de identidades profissionais


em psicologia, notadamente no âmbito de um curso de formação de uma profissão
feminina, há que se pensar não apenas nos aspectos formais das interações
próprias do ambiente escolar, mas nos aspectos ideológicos que direcionam o
processo curricular e produzem os discursos pelos quais os sujeitos se nomeiam
psicólogos. Disso se tratará nos capítulos subseqüentes.
Pra começar vou falar dos papéis, de como eu
coloquei os papéis.
Dois papéis em intersecção,
um me representando e o outro representando a
psicologia, que tem momentos que a gente se
encontra,momentos em comum
e tem momentos meus além da psicologia e da
psicologia além de mim,
claro!
78

2 FORMAÇÃO SUPERIOR EM PSICOLOGIA

No capítulo precedente, discorreu-se sobre a temática da Identidade considerando-a


como construída discursivamente, com base nas posições que determinados sujeitos
assumem na teia social na qual estão inseridos. Enfatizou-se os desdobramentos referentes
às identidades de gênero e identidades profissionais.
Neste capítulo, a discussão girará em torno da formação superior em Psicologia,
articulando-a com a construção de identidades profissionais e de gênero. Para tanto, optou-
se por discorrer sobre a criação dos cursos de Psicologia no Brasil, os pressupostos que
regem a implantação dos currículos desses cursos e apresentar algumas concepções,
enfatizando aspectos relevantes do currículo oculto que interessam ao estudo que se
empreende.
Importa, neste trabalho, realizar um olhar retrospectivo sobre a Psicologia para
atender a alguns objetivos. Em primeiro lugar, compreender como o percurso da psicologia
brasileira está atrelado aos movimentos científicos que se desenvolveram na Europa e nos
Estados Unidos, reproduzindo os padrões idealistas e positivistas de ciência em
determinado momento histórico; em segundo, situar este percurso na história social e
política do país, reconhecendo como a Psicologia se fez presente, acompanhando e
refletindo o modelo de sociedade vigente. Em terceiro lugar, identificar a multiplicidade de
campos de atuação que deram origem à profissão de psicólogo e como estes ampliaram-se
e diversificaram-se.
Esses dados são considerados importantes e funcionam como pano de fundo para
compreender-se como um Curso de Psicologia singular organiza-se e dispõe de uma
estrutura curricular para a formação de uma profissão considerada feminina, fornecendo
condições objetivas e subjetivas para a construção de identidades profissionais.

2.1 UM POUCO DA HISTÓRIA

A Psicologia, como profissão e formação acadêmica, no Brasil, foi formalizada


em 1962, pela Lei 4119, sancionada em 27 de agosto e publicada no Diário Oficial
da União, em 05 de setembro de 1962. Foi regulamentada pelo Decreto nº 53.464,
de 21 de janeiro de 1964, em atendimento à pressão que a organização social e
política dos profissionais da Psicologia fazia pelo reconhecimento de seu campo
79

profissional. A partir da vigência desta Lei, a Psicologia passou a existir como


profissão. A comissão que regulamentou a lei também elaborou o Currículo Mínimo
para implantação dos Cursos de Psicologia no país e estabeleceu sua duração, pelo
Parecer 403/1962 (CRP, 1994; ESCH; JACÓ-VILELA, 2001).
Há 44 anos, portanto, o sistema formal de ensino brasileiro empenha-se em
formar psicólogos, mediante cursos regulares do ensino superior. Nesse período,
essa formação transitou pelos caminhos e descaminhos do próprio processo
histórico, fazendo interlocuções com as conquistas da ciência, com os movimentos
políticos, com as crises econômicas, com os avanços tecnológicos, dentre outros.
A respeito da história da Psicologia no Brasil, Marina Massimi (2004) defende
que existe uma psicologia brasileira matizada com peculiaridades inerentes ao nosso
processo histórico e a condições sócio-econômico-culturais. A autora reflete sobre
as intersecções entre a História da Psicologia brasileira e a História da Psicologia
internacional dizendo:

[...] trata-se de um único processo possibilitado por uma rede de relações,


de comunicações, de intercâmbios, que estabeleceram-se fortaleceram-se –
em alguns momentos até em forças da ocorrência de circunstâncias históricas
específicas, como as guerras e os processos migratórios, mas que, de todo
modo, expressam um movimento característico e original da cultura
brasileira, a saber a capacidade de abertura às diversidades e às novidades
do mundo e o dinamismo de apropriação das mesmas através de suas
próprias específicas modalidades e necessidades. (MASSIMI, 2004, p. 13).

A despeito de reconhecer-se que o saber psicológico é tecido — desde os


primórdios, na filosofia clássica, com os gregos, quando se indagavam sobre a
natureza humana — para atender aos objetivos deste trabalho, reporta-se à
constituição da Psicologia como ciência no séc. XIX. Este saber é o resultado
daquele determinado momento histórico e dos avanços do conhecimento científico
até então.
O pensamento moderno provocou uma ruptura com as idéias antigas e
medievais, nas quais os homens pertenciam a Deus e cujo conhecimento produzido
sobre os seres humanos, inicialmente abrigado no campo da filosofia, aos poucos foi
sendo transferido para o domínio da religião, que teve um predomínio sobre as
idéias filosóficas. Em contrapartida, o pensamento iluminista concebeu o homem
como um indivíduo livre, racional e autônomo. Ademais, o advento das máquinas
favoreceu o nascimento de um novo mundo, o da precisão (BOCK, 1999).
80

Sob a influência cartesiana da separação mente-corpo e das idéias contianas


de ciência foi possível um grande progresso nos estudos da fisiologia e ciências
congêneres, possibilitando que os sentidos pudessem ser estudados e analisados. A
Psicologia, que acumulou um saber filosófico sobre o homem, nesse contexto,
desencadeou um movimento de adesão às ciências naturais, porque poderia
quantificar seus estudos. Sobre esse momento, Ana Bock (1999, p.57) comenta:

As condições materiais da sociedade estavam dadas: as revoluções


burguesas haviam colocado abaixo todos os dogmas da Igreja. O homem
era visto como livre e autônomo; o mundo como finito, em movimento, sem
hierarquia e que poderia ser transformado; a ciência estava colocada como
a grande saída para os impasses do pensamento filosófico e a razão, como
a construtora do conhecimento que partia daquilo que era experimentado. O
mundo material, com suas novas formas de produção, exigia as revoluções
no âmbito das idéias. Era preciso acreditar no movimento, na transformação,
no homem livre. Era preciso desestabilizar o mundo finito e hierarquizado do
cristianismo, para que as revoluções burguesas pudessem se consolidar.

Isso acontece em meados do séc. XIX, quando o meio científico destacava o


valor da ciência como o único caminho verdadeiro para legitimar o conhecimento.
Das ciências humanas era exigido rigor científico, o que se traduzia na adoção do
método das ciências naturais — a Física. E os estudos de fenômenos considerados
psicológicos foram avalizados pela ciência, quando passaram a ser estudados pela
Fisiologia, Neuroanatomia e Neurofisiologia e diziam respeito à base neuronal de
processos como as sensações, as percepções, a memória e o pensamento, dentre
outros, com o título amplo de consciência. Nesse momento, ocorreu uma mudança
no foco do trabalho; os fenômenos não eram mais estudados em sua essência, mas
em sua funcionalidade, por meio da quantificação.
Estava pronto o momento de a psicologia atingir o status de ciência e isso de
fato ocorreu em 1879, tendo como marco a criação do Laboratório de Psicologia na
Universidade de Leipzig, pelo cientista alemão Wilhelm Wundt (que também
intitulou-se primeiro psicólogo) juntamente com seus alunos e seguidores. A
Psicologia, então, rompeu com os laços originais que tinha com a Filosofia e foi se
abrigar no lastro das ciências naturais. Traçou então um novo caminho,
descortinando parcerias científicas que proporcionaram novos desdobramentos e
possibilidades de estudo e intervenção (FIGUEIREDO, 1991).
Essa reviravolta nos estudos daquilo que anteriormente convencionou-se
chamar de alma ou espírito, pertencente ao campo da filosofia e que se constituiu
81

nos elementos da dimensão subjetiva dos seres humanos, que passou a ser
estudado no plano biológico, valorizando-se o sistema nervoso e o cérebro,
provocou um conflito no seio da psicologia. Luis Figueiredo (1991, p. 22) assim se
refere a esse momento:

[...] a ciência psicológica tenta-se constituir, sendo obrigada a,


simultaneamente, reconhecer e desconhecer seu objeto. Se não o
reconhece não se legitima como ciência independente e, podendo ser
anexada à medicina, à pedagogia e à administração, ou seja, às técnicas ou
às suas bases teóricas, como a biologia e a micro-sociologia. Se não o
desconhece, não se legitima como ciência, já que não submete aos
requisitos da metodologia científica nem resulta na formulação de leis gerais
com caráter preditivo. Abre-se então um campo de divergências e oposições
que não tem nada de acidental [...]

Mas a não linearidade da história e a complexidade característica dos seres


humanos, que permite uma simultaneidade de interpretações, inquietações, estudos,
descobertas e posicionamentos, possibilitaram, que quase ao mesmo tempo, em
que as ciências sociais e humanas lutavam por conseguir foro de ciência (final do
séc. XIX), que o paradigma científico hegemônico até então vigente — que pregava
a existência de um mundo objetivo independente das pessoas, em que os
fenômenos da ciência deviam ser mensurados, quantificados e generalizados em
leis universais — fosse questionado. O mundo científico percebeu, então, que
existiam outras formas igualmente legítimas de fazer ciência. Nela, a diversidade e o
particular ganharam espaço e reconheceram-se as diferenças (HALL, 2001; MORIN,
2001; SOUZA SANTOS, 2001; SCHNITMAN, 1996; VAITSMAN, 1995)
A complexidade e a vastidão do campo em que se estudam os fenômenos
psicológicos e a diversidade de abordagens que se pode lançar mão para deles se
aproximar, possibilitaram descortinar-se a existência de múltiplas psicologias. Estas
se configuram como uma diversidade que abriga referenciais teóricos e abordagens
metodológicas distintas, com objetos de estudo e objetivos diferenciados que não
confluem para uma unicidade, visto que abriga não apenas formulações diferentes
entre si, mas pontos de vista inconciliáveis porque antagônicos (BOCK, 1999;
CARPIGIANI, 2000; LANE; CODO, 1984).
É importante lembrar que a diversidade que se instalou na psicologia desde
seu reconhecimento como ciência e nos 127 anos que a separam dos estudos da
psicofísica desenvolvidos por Wundt e seus contemporâneos, foi possível à
82

Psicologia consolidar-se como um campo científico de conhecimentos ao mesmo


tempo em que a aplicabilidade desse conhecimento propiciou que se reconhecesse
a profissão daqueles que trabalham com a Psicologia.

2.1.1 Antecedentes à criação dos primeiros cursos

Tomando como parâmetro os estudos de Isaías Pessotti (1988) sobre o


desenvolvimento da psicologia brasileira, pode-se considerar que houve quatro
grandes momentos de constituição e difusão das idéias psicológicas no Brasil, as
quais o autor intitula de período pré-institucional, institucional, universitário e
profissional.
Como período pré-institucional, Isaías Pessotti (1988) considera o período
que tem início no Brasil colônia até a criação dos primeiros cursos de educação
superior no país, em 1833. Nesta época, havia uma identificação da Psicologia com
a Filosofia; a produção científica que versava sobre a Psicologia era fragmentada e
oriunda de textos de diversos campos do conhecimento. Os temas abordados
situavam-se em torno de causas da loucura, do controle das emoções, da formação
da juventude, dentre outros congêneres e eram escritos por filósofos, juristas,
jornalistas ou profissionais de outras áreas do conhecimento, cujas obras eram
impressas na Europa, tendo em vista que ainda não havia imprensa no Brasil.
A esse respeito, Mitsuko Antunes (1998, p.18) revela:

Os autores são brasileiros, com exceção de alguns que, embora tenham


nascido em Portugal, aqui passaram a maior parte de suas vidas. Em geral,
tiveram formação jesuítica e cursaram universidades européias,
particularmente a Universidade de Coimbra. A maioria desses autores
exercia função religiosa – eram preponderantemente jesuítas – ou política,
tendo, vários deles, ocupado importantes cargos na colônia ou na
metrópole.

O segundo momento, qual seja, o institucional, inicia-se com a criação das


primeiras faculdades brasileiras, notadamente os dois cursos de Medicina (no Rio de
Janeiro e na Bahia), em 1833. Segundo Isaías Pessoti (1988, p. 21): “[...] é nessas
instituições e em escolas de magistério que se inicia a formação de um saber
psicológico brasileiro em moldes acadêmicos.” Os textos produzidos nessa época,
83

sob a forma de manuais para uso didático, eram elaborados pelos docentes ou
confeccionados como trabalhos de conclusão de curso denominados “teses de
doutorado” (BUETTNER, 1990). De acordo com esta autora, os textos oriundos da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro ocupavam-se das ligações da Psicologia
com a Neurologia e a Psiquiatria, enquanto as teses da Bahia orientavam-se para a
pesquisa da aplicação social da Psicologia, contemplando as áreas da Criminologia,
Psicologia Forense e Higiene Mental.
Observe-se que no próprio movimento de constituição do saber considerado
como saber psicológico havia uma variedade de discursos que coexistiam
simultaneamente e configuravam diferentes identidades, disputadas pelos poderes
oriundos de campos disciplinares distintos, produzidos em diferentes regiões
demográficas, embora abrigados em Cursos de Medicina.
Como este período tem uma duração aproximada de cem anos, nele ocorreu
uma série de acontecimentos que consolidaram a psicologia como uma prática
profissional no interior de três campos distintos: a medicina, que caracterizava a
clínica psicológica; a educação; e as instituições de trabalho.
Com relação à medicina, de acordo com Mitsuko Antunes (1997), além das
teses acima referidas, há a criação do Laboratório de Psicologia no Hospital
Nacional de Alienados, a criação da Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro,
ambos no Rio de Janeiro; o reconhecimento da Psicologia como ciência afim da
Psiquiatria pela Liga Brasileira de Higiene Mental; a realização de Jornadas
Brasileiras e Seminários Brasileiros de Psicologia; a edição de revistas; a criação de
gabinetes de Psicologia junto a clínicas psiquiátricas; além da formação de grupos
de estudos em Psicologia Aplicada, compostos por médicos, educadores e
engenheiros, dentre outras iniciativas não relacionadas. Projetos semelhantes não
se restringiram apenas ao Rio de Janeiro, mas estenderam-se a outros estados
brasileiros.
Mitsuko Antunes (1997, p. 35), ao analisar o contexto da produção dessas
idéias psicológicas no Brasil do séc. XIX, assegura que estas buscavam

[...] respostas às necessidades que se diversificaram e se impunham pelos


novos tempos. As transformações econômicas, com suas conseqüências
para o incremento do processo de urbanização, acabaram por trazer à tona
novos problemas ou a explicitação de problemas antigos, os quais o país
não se encontrava preparado para resolver. Nesse contexto, a Medicina e a
Educação foram chamadas a contribuir para a solução de problemas,
84

incluindo-se aí a preocupação com os fenômenos psicológicos em várias de


suas dimensões.

Em outra direção desenvolveram-se ações que também se revelaram de


cunho psicológico, no que diz respeito à associação da Psicologia com a Educação.
A primeira delas reporta-se à introdução das disciplinas psicológicas nos currículos
das Escolas Normais, por força da Reforma Benjamim Constant, em 1890. Existem
referências à introdução dos ensinamentos da Psicologia (Psicologia e Lógica) nos
cursos anexos à Faculdade de Direito e à criação da disciplina “Noções de
Antropologia, Psicologia e Lógica” na 6ª série dos ginásios do estado de São Paulo
(BUETTNER, 1990). No Rio de Janeiro, foi criado o Laboratório de Psicologia
Pedagógica no Pedagogium14. Existe ainda registro de outras medidas, referentes à
criação de Laboratórios Experimentais e Centro de Desenvolvimento de Testes e
Medidas Psicológicas no interior de São Paulo, da Escola de Aperfeiçoamento
Pedagógico de Belo Horizonte, em Minas Gerais, e outras iniciativas no Ceará e em
Pernambuco.
As Escolas Normais constituíram-se, de fato, o lócus onde foram gestadas
idéias e preparados os profissionais capacitados para trabalhar na área da
psicologia, inclusive com a publicação de compêndios15 e livros que disseminaram
essas influências em várias cidades brasileiras.
Sob a ótica de Mitsuko Antunes (1998), a associação do pensamento
psicológico com os empreendimentos educacionais representa o foco do
desenvolvimento das idéias psicológicas no Brasil. Segundo a autora, a educação foi:

[...] a principal base sobre a qual a psicologia emergiu da condição de ciência,


tendo sido por seu intermédio quando, em grande parte, os conhecimentos
produzidos na Europa e nos Estados Unidos chegaram ao Brasil e, por suas
características, foi no seu interior que mais claramente a psicologia revelou-se
na sua autonomia teórica e pratica. (ANTUNES, 1998, p. 89).

No campo do trabalho, é possível identificar, no dizer de Mitsuko Antunes


(1997), que as primeiras iniciativas foram localizadas no Liceu de Artes e Ofício de

14
Segundo Glória Buettner (1990) o Pedagogium era uma espécie de academia e museu pedagógico
com uma produção voltada para as aplicações psicológicas na educação sem o compromisso com
a prática médica.
15
Material produzido para subsidiar o ensino de determinada matéria.
85

São Paulo, nos idos de 1920, e no Instituto de Organização Racional do Trabalho


(IDORT), quando da utilização dos primeiros testes psicológicos no Brasil.
O terceiro momento marcante do desenvolvimento da Psicologia no Brasil, de
acordo com a classificação de Isaías Pessotti (1988) intitula-se “período
universitário” e teve início por volta de 1930, quando foram criadas universidades
brasileiras, dentre elas a Universidade de São Paulo (USP).
Carmem Taverna (1997, p. 12) refere-se a esse período dizendo:

Com o desenvolvimento da indústria e a ascensão de Getúlio Vargas ao


poder, a partir de 1930, uma nova etapa na vida nacional é marcada. Um
novo estilo de governo foi inaugurado, caracterizado pelo nascimento do
populismo no Brasil, identificado por buscar a mobilização controlada das
massas em proveito das classes dominantes. O nacionalismo, maior
expressão dessa ideologia, constituiu-se por meio de partidos políticos,
tecnocratas e militares engajados no projeto desenvolvimentista.

Em 1930, foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública. Com base em


uma reforma empreendida no sistema de ensino, foi criado o Conselho Nacional de
Educação, organizado o ensino superior e adotado o regime universitário. Foram
criadas cátedras de Psicologia equivalentes àquelas já consolidadas nas áreas da
Medicina e do Direito, permitindo à Psicologia um desenvolvimento desvinculado da
utilização médica e da aplicação escolar, já tomando lugar como ciência autônoma
(PESSOTTI, 1988; TAVERNA, 1997).
De acordo com Glória Buettner (1990), esse padrão federal possibilitou que,
em 1945, na USP, os cursos da disciplina Psicologia se tornassem obrigatórios nos
quatro anos do curso de Filosofia e nas várias licenciaturas. A formação de
psicólogos, como uma formação de nível superior, entretanto, continuava sendo
realizada em cursos como o de Medicina, Pedagogia, Filosofia e Ciências Sociais.
Havia, portanto, profissionais que exerciam funções próprias da psicologia e
como a profissão ainda não havia sido reconhecida, sua formação se dava em
contextos acadêmicos diferentes, o que proporcionava identificações diversificadas
com a profissão, sugerindo a existência de múltiplas identidades, considerando-se
identidade como discurso, como propõe Stuart Hall (2000 e 2001), conforme
abordado no capítulo anterior.
Esse momento, como se pode perceber, reafirma uma multiplicidade de
possibilidades para a apropriação do saber que a psicologia oferece, ao mesmo
tempo em que reproduz a cisão do saber da filosofia com aquele saber da ciência,
86

porquanto a formação dos profissionais poderia ser realizada tanto na área da


medicina quando das ciências humanas. E isso reafirma também a separação entre
formação e atuação, teoria e prática.
Reporta-se a esse período o movimento de organização dos “psicólogos”,
reunindo profissionais que trabalhavam com a Psicologia e que se consorciaram
para a criação da Sociedade de Psicologia de São Paulo, em 1945. Esta Sociedade,
de acordo com a publicação do Conselho Regional de Psicologia – 6ª. Região (CRP,
1994) Uma Profissão Chamada Psicologia, editou uma revista — Boletim de
Psicologia —, promoveu debates, reuniões científicas, cursos de extensão,
seminários e participou da organização de congressos tanto no Brasil como no
exterior. A atuação desta sociedade proporcionou que outros estados se
mobilizassem para fundar associações com finalidade similar e, em 1954, foi criada
a Associação Brasileira de Psicólogos (ABP), que passou a representar o Brasil
junto à Internacional Union of Scientific Psychology (CRP, 1994).
Informa Glória Buettner (1990) que, em 1953, ocorreram dois eventos
significativos para a Psicologia, quais sejam: a Associação Brasileira de Psicotécnica
do Rio de Janeiro encaminhou ao Ministro da Educação um memorial que versava
sobre a regulamentação da profissão de psicólogo e sobre a formação regular no
ensino superior; em São Paulo, foi proposta à congregação da Faculdade de
Filosofia Ciências e Letras da USP a criação de um curso de Psicologia. Este curso
foi aprovado em 1957 e começou a funcionar em 1958, mesmo ano em que um
projeto de lei sobre a criação dos cursos e regulamentação da profissão era
discutido na Câmara de Deputados, mas não foi aprovado.
Cristiane Esch e Ana Maria Jacó-Vilela (2001) relatam, ainda, os embates
travados entre alguns projetos elaborados pela Associação Brasileira de Psicologia e
o Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP) com a Comissão de
Educação e Cultura e a Comissão de Ensino Superior, notadamente no que
concerne à regulamentação do exercício da Psicologia Clínica. Esta, que até hoje é
socialmente considerada o exercício mais nobre da Psicologia, aquela que confere
ao psicólogo e à psicóloga o status de profissionais liberais, era exercida por
médicos, o que significa dizer que a psicologia era equiparada à medicina e permitia
aos profissionais identificações com o exercício da cura e da restauração da saúde
mental daqueles que procuravam os consultórios de psicologia. Esse fato colocou a
profissão na fronteira entre o cuidar e o curar, provocando embates entre os
87

profissionais da saúde, como discute Elizete Passos (1997). Além do mais,


profissionais liberais são considerados aqueles que exercem seu mister de uma
forma independente, em seu espaço profissional privado e personalizado, sem
quaisquer vínculos empregatícios com instituições públicas ou privadas.
Como os novos cursos em vias de aprovação conferiam aos psicólogos
egressos as prerrogativas para o exercício da clínica psicológica, retirava-se do
âmbito da medicina a exclusividade na realização desse tipo de atendimento, o que
provocou muita polêmica. Esta disputa remetia à hierarquia social das profissões,
em que a medicina ocupava lugar de destaque entre as de maior prestígio e
reconhecimento social. Naturalmente, esses profissionais não estavam dispostos a
abrir mão dos privilégios que este lugar lhes conferia.
Os pleitos acima, associados à pressão realizada pelas entidades
representativas dos psicólogos e da Psicologia junto à classe política, concorreram
para a regulamentação da profissão e a criação dos Cursos de Psicologia, em 1962.
Como fruto de uma trajetória irregular, composta pela permanente disputa de
distintos campos do saber, com uma prática disseminada por diferentes espaços
sociais e formada por profissionais oriundos de formações diversas, portadores,
cada qual, de seu discurso particular, é regulamentada a profissão de psicólogo. São
definidos os parâmetros para sua formação, em princípio, como um profissional
generalista, que pudesse atuar em quaisquer instâncias já definidas como campos
de atuação propícios para psicólogos e psicólogas, conforme já discutido.
Como diz Carmem Taverna (1997, p. 16): “[...] consolida-se a atuação
profissional já estabelecida nas modalidades educacional, clínica e aplicada ao
trabalho, assim como amplia-se e também consolida-se o ensino da psicologia nos
cursos superiores.” Este fato marca, segundo Isaías Pessotti (1988), o início do
Período profissional da Psicologia.

2.2 UM CURRÍCULO PARA A PSICOLOGIA

A Lei n. 4.119, de 27/08/1962, que regulamentou a profissão do psicólogo, e a


Resolução de 19/12/1962, conjuntamente com o Parecer 403/62 do CFE (2006),
88

instituiu o Currículo Mínimo16 para os Cursos de Psicologia apresentava algumas


peculiaridades, pois havia uma proposta para dois níveis de formação e a criação de
três cursos: o bacharelado, a licenciatura e a formação de psicólogo. Além disso, a
escolha do elenco das matérias tentava privilegiar conteúdos que, de alguma forma,
pudessem subsidiar as três áreas consolidadas da Psicologia, referidas
anteriormente (Clínica, Educação e Trabalho), na perspectiva da formação de um
profissional generalista.
O bacharelado consistia em um “núcleo comum” com matérias de caráter mais
geral, obrigatório para a profissionalização de todos os alunos. Agregado a esse
núcleo comum podia configurar-se a formação em licenciatura, desde que fossem
cumpridas as matérias pedagógicas obrigatórias para este fim, fixadas no Parecer
292/62 do Conselho Federal de Educação. À formação de psicólogo, além do núcleo
comum, era exigido um outro Currículo Mínimo, com a obrigatoriedade de um estágio
supervisionado, duas matérias comuns além de mais três outras a serem escolhidas,
dentre uma oferta de sete, selecionadas pela instituição promotora do curso.
Assim sendo, estabelecido pelo Parecer 403/92 (CFE, 2006), do Conselho
Federal de Educação, cujo relator foi o Prof. Valnir Chagas, o Currículo Mínimo para
os cursos de Psicologia, que vigorou a partir de 1963, orientava que ao Bacharelado
compreendiam sete matérias: Fisiologia, Estatística, Psicologia Geral e
Experimental, Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia da Personalidade,
Psicologia Social e Psicopatologia Geral. À Licenciatura acresciam-se, além
daquelas designadas para o bacharelado, as matérias pedagógicas. Para a
obtenção do diploma de Psicólogo, eram exigidas, além das citadas anteriormente e
pertencentes ao bacharelado, as matérias Técnicas de Exame e Aconselhamento
Psicológico, Ética Profissional e mais três matérias dentre as seguintes: Psicologia
do Excepcional, Dinâmica de Grupo e Relações Humanas, Pedagogia Terapêutica,
Psicologia do Escolar e Problemas de Aprendizagem, Teorias e Técnicas
Psicoterápicas, Seleção e Orientação Profissional e Psicologia da Indústria. Além
disso, era exigido um Estágio Supervisionado com 500 horas. A duração do Curso
era de quatro anos para Bacharelado e Licenciatura e cinco para a formação de

16
Considera-se Currículo Mínimo um elenco de matérias determinadas pelo MEC, as quais todos os
cursos superiores do país deveriam seguir. Significa o mínimo de matérias obrigatórias para o
funcionamento de determinado curso. A elas subordinadas, foram criadas as disciplinas de cada
curso.
89

psicólogo, estando incluído o estágio. O Parecer não prevê as ementas, os


conteúdos e nem a carga horária de cada uma dessas matérias (CFE, 2006).
Os Cursos de Psicologia tiveram, portanto, um tratamento diferenciado por
parte do MEC. Diferentemente de outras formações profissionais da área das
Ciências Humanas17, foi instituído mais um ano para a formação desse profissional,
cujas matérias exibem o peso da intervenção, porquanto voltadas para o campo de
atuação, o que evidencia, mais uma vez, a separação entre teoria e prática.
Observando-se o elenco de disciplinas proposto, percebe-se uma clara opção
por uma formação técnica, supervalorizando o conhecimento psicológico em si, em
detrimento da interlocução com outras áreas do conhecimento. A ausência da
Filosofia e da Sociologia é percebida e compreendida pela ênfase no viés científico
da Psicologia, como ciência recentemente reconhecida.
Na prática, embora a proposta do Currículo Mínimo pretendesse formar um
profissional generalista, que pudesse atuar nas diversas áreas já configuradas para
a psicologia (a escola, o campo das organizações de trabalho e a clínica), não havia
uma produção intelectual consistente na área, visto que se consolidara por meio do
fazer. O status de profissão liberal que a lei assegurava contribuiu sobremaneira
para uma ênfase na formação clínica. Esta, da forma como foi difundida,
caracterizava-se pelo atendimento psicoterapêutico realizado em consultórios
particulares, numa perspectiva resolutiva e de ajustamento para indivíduos com
problemas.
As identidades que estes cursos conferiam podem ser identificadas como
aquelas do psicólogo tradicional, conforme referido em capítulo precedente. Além do
mais, oferecia todas as condições para ser exercido por mulheres, como profissão
feminina, ou seja, uma profissão de ajuda, para acolher e cuidar do sofrimento do
outro, para ser exercitada no ambiente privado do consultório e que permite uma
flexibilidade de horário tal que tornava possível a conciliação dos afazeres
domésticos com os compromissos profissionais.
A década de 60 do séc. XX assistiu à edição da primeira Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961, e,
posteriormente, a Lei n.º 5.540, de 28 de novembro de 1968, que tratava
especificamente do Ensino Superior. Esta, que ficou conhecida como a lei da

17
Pedagogia, Sociologia, História, Letras e as Licenciaturas, cursos com quatro anos de duração.
90

“Reforma Universitária”, instituiu, dentre outras inovações, o vestibular unificado, o


ciclo básico, a matrícula por crédito, a criação de órgãos colegiados e a organização
em departamentos. Propunha a concentração em sistemas comuns disponibilizados
para todos, o que teve repercussões na própria formação acadêmica dos alunos de
todas as áreas, porquanto fragmentava cada vez mais o ensino, como fruto não
apenas de um ideário tecnicista, mas também fortemente marcado pelo momento
político nacional.

Nas sociedades ocidentais, a segunda metade do séc. XX, em especial a


década de 60 é particularmente fértil em acontecimentos que vão provocar
mudanças significativas nos modos de perceber, sentir e viver as sociedades. O
movimento da contracultura, enquanto movimento pacifista de cunho político,
caracterizado por uma espécie de desobediência civil, colocava em dúvida valores
centrais vigentes e instituídos da cultura ocidental e visava desmistificar as
contradições tanto do capitalismo quanto do socialismo da época.

O início dos anos 1960, no Brasil, foi efervescente no que se refere ao debate
político, ideológico e cultural. Intelectuais e políticos de diversos matizes, sejam
conservadores, liberais, nacionalistas, socialistas e comunistas, expunham seus
projetos e podiam defender suas idéias. Havia, porém, um movimento conservador
que pretendia elevar o país à categoria de moderno e desenvolvido, estabelecendo
parcerias externas de subalternidade e mantendo determinadas posições de
privilégio, ao qual as forças consideradas progressistas impunham-se como
empecilho. Os embates daí advindos, num contexto complexo, em que essas forças
se confrontavam historicamente, foram o pano de fundo para o golpe militar de 1964.

Mitsuko Antunes (1997, p. 45) analisa esse período dizendo:

Era, pois, uma nova sociedade que se queria construir, calcada no ideário
liberal, sendo necessário para esse empreendimento a construção de um
“homem novo”; é nesse contexto que novos conhecimentos e práticas se
faziam necessárias, tendo sido a Educação um de seus principais
instrumentos e a Psicologia uma das principais ciências de base para essa
realização.

Argumenta esta autora que a ideologia da modernização, que regia os


princípios políticos e econômicos para o país, incentivava as iniciativas tecnocratas
que pudessem promover o desenvolvimento, a eficiência e a produtividade, num
91

clima em que as medidas de exceção legitimavam uma política repressiva de cunho


ditatorial.
Observa-se, portanto, que a psicologia como uma profissão torna-se
reconhecida no Brasil e os primeiros cursos superiores são autorizados a funcionar
em um momento político em que forças conservadoras assumiram o comando do
país e da educação, impingindo uma concepção tecnicista ao processo ensino-
aprendizagem. É admitido, por princípio, que a educação é um processo apolítico,
para o qual não são necessárias muitas reflexões, impingindo um maior peso ao
fazer em detrimento do pensar. A respeito do ensino superior no Brasil e à reforma
Universitária de 68, Carmem Taverna (1997, p. 22) argumenta:

O ajuste da universidade ao padrão de desenvolvimento econômico, na


perspectiva técnico-administrativa, na qual a eficiência e a produtividade
eram sinônimos de modernização, obturou o esquema de dominação
política que acabou por produzir a real perda da autonomia da universidade.
Mais uma vez, na história da educação brasileira, as tradições conservadoras
ganham o controle e o poder.

A reforma Universitária empreendida, de fato, reafirmou o caráter


fragmentado dos currículos, assim como compartimentalizou a Universidade, criando
espaços de especialização estanques, que não mantinham interlocuções com áreas
afins, centralizou em uma elite dirigente as decisões sobre organização acadêmica e
criou, dessa forma, barreiras de acesso ao conhecimento e seus desdobramentos
político-sociais.
Houve incentivo à criação de cursos universitários na esfera privada. Estes,
sem contar com quadros docentes adequadamente preparados e sem a tradição da
pesquisa científica, centralizaram sua formação na aplicação técnica do
conhecimento, contribuindo para reforçar a separação entre o saber e o fazer; os
movimentos sociais progressistas arrefeceram; os posicionamentos políticos
contrários à maioria dirigente foram proibidos e reprimidos; supervalorizou-se o
saber técnico. Essas iniciativas, nefastas a um regime político democrático e que se
contrapõem a um espírito universitário concebido como a universalidade das idéias,
por certo tiveram interferências na formação de gerações de profissionais, dentre
eles, os psicólogos e as psicólogas.
É nessa direção que a psicologia era ensinada e aprendida, como um saber
independente que atribui ao homem e a sua história pessoal a responsabilidade por
92

seu “destino”, desconsiderando sua constituição social. Assim sendo, numa


perspectiva individualizante, caracterizava-se por uma prática profissional técnica e
sócio-politicamente neutra.
A marca identificatória da profissão era o exercício clínico, privado e realizado
em consultórios particulares. Esse modelo hegemônico para a profissão, inclusive,
contaminava as demais áreas de atuação em maior ou menor escala, que tentavam
reproduzir este padrão de atendimento, conforme discutem Rosemary Achcar e
Antonio Bastos (1994). Nesse período, já se verificava a predominância de mulheres
nesse exercício profissional (ROSEMBERG, 1984).

2.2.1 Sobre algumas concepções de currículo

A concepção de currículo que orientou a implantação dos primeiros cursos de


Psicologia, tal como se descreve, inclui-se naquele tipo que se chama de tradicional
tecnicista. Pode-se considerar o currículo, nessa perspectiva, como uma forma de
expressão do pensamento científico moderno aplicado à área da educação. Nele, há
um conjunto de diretrizes, definidas e fixadas a priori, que resultam em conteúdos
determinados e previamente selecionados e seqüências rígidas de atividades, às
quais os professores e os estudantes devem ser submetidos. Esta disposição
demonstra que está vinculado aos ideais da utilização do método experimental que
compartimentaliza o saber e o separa em pequenas porções para melhor ser
compreendido e assimilado (SILVA, 1999).
Além disso exibe a lógica taylorista18 de organização administrativa regida
pelos princípios da fragmentação que se impõe sobre o ambiente organizacional,
com a divisão estanque de tarefas e fragmentação de conteúdos que não se
conectam entre si. Obedece a uma epistemologia, na qual a relação do
conhecimento se dá pela ação do outro sobre o sujeito. Numa perspectiva idealista,
considera-se que o “sujeito” possui um conhecimento em sua própria essência e que
este precisa ser-lhe revelado ou, no viés empirista, supõe-se que inexiste no sujeito

18
Taylorista como aplicação dos conceitos da Administração Científica como preconizada por
Frederick Taylor em seu livro Primer of scientific management. New York: D. Van Nostrand, 1920.
93

qualquer conhecimento e este será impresso em sua vida pela ação externa daquele
que detém o conhecimento e tem a função de transmiti-lo.
Tomaz Silva (1999) esclarece que Franklin Bobbit, autor do livro The
curriculum19, publicado em 1918, propunha que as escolas funcionassem como as
empresas comerciais e industriais, especificando prévia e precisamente os
resultados desejados e estabelecendo formas de controle e mensuração para se
assegurar do atingimento desses resultados. O currículo, nessa perspectiva,
configurava-se como uma questão de organização. Este modelo de currículo, no
dizer de Tomaz Silva (1999), seria consolidado definitivamente com a publicação do
livro de Ralph Tyler20, em 1949, no qual os estudos sobre currículo centravam-se em
torno das idéias de organização e desenvolvimento, mantendo a ênfase na questão
técnica.
A esse respeito, Roberto Macedo (2002, p.69, grifos do autor) assim se
manifesta:

A questão, faz-se mister alertar não está no ato de planejar enquanto


necessidade de organizar ações educativas, a organização é vital; tão
pouco no desconhecimento do sujeito que se constitui também num
itinerário. O problema central está na política de redução da ação do
currículo em níveis apenas do traçado e do culto a um seguir solipsista.

É verdade que, embora a visão técnica tenha se tornado cada vez mais
hegemônica, na época, educadores outros como John Dewey, em 1902, defendiam
uma concepção de currículo diferente. Segundo Tomaz Silva (1999, p. 23), ele
considerava que “[...] a educação não era tanto uma preparação para a vida
ocupacional adulta, como um local de vivência e prática direta de princípios
democráticos”. Nesse entendimento, está implícita, na construção curricular, a
valorização das experiências e dos interesses dos educandos.
A despeito de John Dewey, em 1902, ou seja, muito antes de Bobbit, ter
publicado seu livro The Child and the curriculum com orientação divergente da citada
anteriormente, a concepção mecanicista conseguiu maior adesão e visibilidade
naquele momento, nos estudos sobre a educação.

19
“Livro considerado o marco no estabelecimento do currículo como um campo especializado de
estudos” (SILVA, 1999, p. 22).
20
O livro, na versão original americana, foi publicado com o título Basic Principles of Curriculum and
Instruction. No Brasil, há uma tradução publicada pela Globo Editora de Porto Alegre, em 1974,
sob o título Princípios Básicos de Currículo e Ensino (SILVA, 1999).
94

Enquanto o trabalho de Tomaz Silva (1999) discorre sobre a influência


americana no currículo, as pesquisas de Ivor Goodson (2002) ao recuperar as
origens do currículo, reportam-se ao séc. XVI e à educação praticada na Europa,
para assegurar que a vinculação que se estabelecia entre currículo e prescrição
estava assentada nas idéias de Calvino21, quando este falava do contexto que
produz o conhecimento social e a aplicação desse conhecimento às classes e às
salas de aula. Numa associação direta, esta é a origem da relação disciplina-
currículo. “Dentro desta perspectiva percebe-se uma relação homóloga entre
currículo e disciplina: o currículo era para a prática educacional calvinista o que era a
disciplina para a prática social calvinista.” (GOODSON, 2002, p.32).
Ivor Goodson (1995) esclarece que, etimologicamente, a palavra currículo
deriva da palavra latina scurrere, que significa correr, e refere-se a curso ou carro de
corrida, enquanto Tomaz Silva (1999) faz alusão a pista de corrida, permitindo
compreender-se as implicações daí advindas, que dão ao currículo o significado de
um curso que deve ser seguido. Nessa perspectiva, fica assegurada ao currículo,
uma função prescritiva, de antever o que uma pessoa vai se tornar.
Assim sendo, as concepções tradicionais do currículo, tributárias das idéias
de Bobbit e Tyller, centraram seus interesses em categorias tais como: objetivos,
planejamento, eficiência, organização. Nessas concepções, a relação ensino
aprendizagem dá-se numa direção única, na qual o professor transmite e assegura o
conhecimento do aluno; a metodologia expressa-se nas aulas do tipo conferência ou
na atitude bancária — para usar a terminologia de Paulo Freire (1983); e os
conteúdos abrangentes e universais devem ser treinados e memorizados para
serem avaliados pelas respostas corretas, numa supervalorização do certo e do
errado.
Uma breve análise desses pressupostos, à luz de formulações teóricas que
questionam o pensamento científico moderno, revela uma concepção de homem
como ser abstrato, a-histórico, a-temporal, com os desígnios de sua vida
previamente entregues ao comando de outrem. A escola, ao separar os conteúdos e
submetê-los a uma seriação de complexidade crescente, instituindo as disciplinas e
ordenando-as em uma grade curricular, privilegia uma relação de aprendizagem em
que o professor ensina, transmite seu saber, ou seja, transfere o saber para o outro.

21
John Calvin (1509-1564), um dos principais reformadores protestantes do século XVI (GOODSON,
1995).
95

Além de atender a um modelo de instituição moderna, trata o ser humano como


incapaz, submetido a possibilidades pessoais e intelectuais ditadas de fora dele.
Alfredo Veiga Neto (1996) assegura que a instituição do currículo não atendia
apenas às necessidades organizacionais de uma educação escolarizada, mas ia
muito além, para ser produzido e produzir uma forma de pensar caracterizada como
própria da modernidade, envolvendo vários aspectos da realidade como o
econômico, o social, o cultural, o geográfico, o político, o religioso, dentre outros.
No caso dos currículos de Psicologia, aderindo ao pensamento de Veiga-Neto
(1996), as questões dos seres humanos são pensadas mediante uma lógica simples,
no entendimento moriniano do termo, que significa fragmentada,
compartimentalizada, em uma relação linear de causa e efeito que não reconhece a
multiplicidade de fatores que constituem os fenômenos humanos e não problematiza
a constituição social dos fenômenos psicológicos, entendendo-os com base na
história pessoal de cada um, responsabilizando-os por eles. Configura, pois, uma
visão reducionista para a diversidade e complexidade da psicologia.
Esta concepção, tributária do ideário moderno de cunho positivista ou idealista
de homem e de sociedade, apoiava os profissionais da psicologia em seus
posicionamentos profissionais da clínica psicológica, porquanto partilhavam da idéia
de que, sendo o ser humano dotado de uma natureza humana, esta tornava-o um
sujeito autônomo e responsável por si. Cabia, pois, ao psicólogo clínico, reconduzi-lo
ao estado “natural”, que a natureza humana já havia predeterminado ao nascer, de
acordo com o exposto por Stuart Hall (2001), quando se refere às concepções de
identidade, conforme abordado no capítulo precedente.
No final da década de 1970 e nos anos 1980 houve, entretanto, um
movimento social e político que aos poucos provocou um retorno gradual do país ao
regime democrático. A isso não se pode atribuir uma causa única ou assentar em
decisões individuais. A abertura política concretizava-se na sociedade por meio de
uma multiplicidade de acontecimentos que se sucediam nas esferas social, política,
cultural e econômica. Manifestava-se de diversas formas, como no movimento das
“Diretas Já”; no retorno ao país das pessoas cassadas pelo regime militar, que
estavam exiladas em diversos lugares do mundo; no aparecimento de novas
temáticas abordadas pelo cinema e pelo teatro; no declínio do chamado “milagre
brasileiro” na esfera econômica; no surgimento do sindicalismo autônomo no ABC
paulista; nas reflexões sobre a condição social das mulheres, dentre muitos outros.
96

Aos poucos, saindo de um período de passividade, a sociedade foi pontuando


insatisfações e desejos, para os quais foi possível instalar novas lógicas nas leituras
da realidade social e cotidiana, em função, inclusive, da suspensão da censura, que
proporcionou o acesso a outras formas de conhecimento e a autores críticos da
realidade. Reportam-se também a este período a introdução dos estudos de Gênero,
no Brasil, conforme referido no capítulo precedente.

O trabalho de Paulo Freire que se iniciou na década de 40 do século XX e foi


interrompido em 1964, quando foi preso e exilado, representou um marco importante
e decisivo nas teorizações sobre educação e currículo com repercussão não apenas
no Brasil mais com reconhecimento fora do país, embora não fosse sua pretensão
ser teórico desta área. Em 1967, mesmo no exílio, publicou no Brasil o seu primeiro
livro Educação como prática de liberdade e posteriormente escreveu a Pedagogia do
Oprimido que só foi publicado no Brasil em 1974 embora já houvesse sido publicado
em outros idiomas. Esse trabalho reveste-se de uma importância tal que influenciou
a produção e as práticas educacionais subseqüentes. Assegura Freire que existem
dois tipos de pedagogia, a primeira, a pedagogia dos dominantes, constitui-se numa
prática educativa de dominação; a outra, a pedagogia do oprimido, precisa ser
incentivada e realizada, a fim de que a educação possa efetivar-se como prática da
liberdade. Trata-se de um trabalho de conscientização e politização, sendo uma
pedagogia construída com os sujeitos e não aplicada neles, a fim de que a
consciência crítica da opressão possibilite a luta pela transformação da realidade.

Um estudo realizado por Demerval Saviani (1987) sobre a marginalização de


crianças relativamente à escolarização (falta de acesso ou abandono), no qual
analisa diversas teorias sobre educação e defende que existem duas formas de
entender as relações educação-sociedade, agrupando-as em dois pontos de vista
distintos. O primeiro considera essas duas instâncias independentes, atribuindo à
escola uma função de equalizadora de questões sociais, delegando-lhe, poderes
para construir uma sociedade igualitária, evitando fatores desagregadores. No
segundo, advoga que existe uma interdependência entre educação e sociedade,
esta dividida em classes antagônicas que se enfrentam em um campo de forças
onde se produz a vida material. A educação, portanto, reproduz as condições
materiais da vida social. Num contraponto a essas posições, propõe uma teoria
97

crítica da educação, cuja função seria garantir condições de acesso e um ensino de


qualidade para todas as camadas da população brasileira.
Essa proposição reflete um movimento de reação, entre muitos educadores22,
do qual Saviani é apenas um deles, à visão tecnicista que impregnava todo o
sistema educacional brasileiro. Questionamentos ao modo tecnicista de conceber o
currículo dão lugar a problematizações a respeito dos pressupostos que regem a
ação educativa. A educação deixa de ser analisada como uma questão meramente
organizacional e passa a ser entendida como uma instituição que faz parte do
aparato das classes sociais dominantes, sendo utilizada para disseminar seus
interesses e objetivos. É, portanto, ideológica, considerada um efetivo instrumento
de controle social. Possui uma dimensão cultural que instrumentaliza as pessoas
para a vida social, mas esconde a dimensão política, por meio da qual os grupos ou
classes que a controlam dirigem suas práticas e seus efeitos no rumo desejado. Em
outras palavras, embora aparente ser uma ação neutra de transmissão de
conteúdos, a educação, ao priorizar determinados conteúdos, eleger determinadas
metodologias e definir formas para a relação ensino-aprendizagem, reproduz e faz
circular valores, normas e símbolos orientados à consecução de objetivos sociais
nem sempre declarados (SAVIANI, 1987).
Entram em cena as leituras marxistas da realidade e os conceitos subjacentes
como ideologia, classe social, relações sociais de produção, capitalismo, dentre
outros, numa clara adesão dos educadores brasileiros às formulações da Teoria
Crítica da Escola de Frankfurt.
Os posicionamentos dos brasileiros são, na verdade, fruto de reflexões sobre
as questões da Educação brasileira, porém refletem o que estava sendo discutido
nos meios educacionais da Europa e dos Estados Unidos. Tiveram um papel
decisivo nessa nova abordagem do processo educativo, alguns movimentos que
aconteceram quase simultaneamente em diferentes centros culturais, como o
“movimento de reconceptualização”, nos meios educacionais americanos, as
análises de Althusser, Bourdieu e Passeron e também as de Boudelot e Establet,
nas formulações da Sociologia francesa, as contribuições do inglês Michael Young
na Sociologia da Educação que se estudava na Inglaterra e a Pedagogia de Paulo
Freire no Brasil (SILVA, 1999).

22
Entre eles, Jamil Cury, Neidson Rodrigues, Moacir Gadotti, Bárbara Freitag, dentre outros.
98

No movimento acima descrito, há uma franca oposição ao modelo de


currículo tradicional, tecnicista, e provocou uma reviravolta no entendimento do
fenômeno educativo, que deixou de ser considerado uma questão organizacional e
passou a ser visto como uma questão política. Evidencia-se a interdependência da
educação com a sociedade, desmistificando-se a idéia de que a educação é uma
ação neutra e universal.
As teorias que se abrigam sob o rótulo amplo de “Teorias Críticas” inspirados
numa crítica a teoria marxista dos fenômenos educativos, numa adesão aos
princípios da Escola de Frankfurt, exibem um esforço de apropriação da Teoria
Social Crítica à área da educação.
Bruno Pucci (2003, p. 55) esclarece:

A Teoria Crítica não se propõe a desenvolver uma teoria educacional


específica. Pretende sim, a partir de suas análises sobre os problemas
sociais do mundo ocidental, especificamente dos problemas culturais, trazer
luzes e enfoques novos à concepção dialética da educação que vem sendo
construída, por muitas mãos e mentes, a partir de Marx.

Assim, a análise dos processos educativos, sob o crivo de uma crítica


marxista ao modelo capitalista de sociedade, visava analisar o momento histórico e
descortinar possibilidades de transformação, tanto da educação quanto da
sociedade, haja vista que a escola tradicional, enquanto instituição de natureza
ideológica e instrumental para reprodução dos interesses da classe dominante,
funcionava como um reforço aos interesses da preservação da sociedade
burguesa.
O legado deixado por esses estudiosos da educação, em especial os
trabalhos de Michael Apple (1989, 1982) e Henri Giroux (1986), dentre outros, foram
extremamente importantes porque instituíram, no seio do debate educativo,
categorias outras que passaram a povoar o universo teórico e influenciar a prática da
educação, tais como ideologia, capitalismo, emancipação, manipulação, reprodução
cultural, currículo oculto dentre outros.

2.2.2 Currículo oculto


99

Como se discute ao longo deste capítulo, os desdobramentos teóricos da


teoria marxista foram o pano de fundo para que diversos educadores
desenvolvessem suas teorizações com o propósito de desmistificar os
posicionamentos despolitizados do enfoque tecnicista do paradigma tradicional do
currículo. Há, nestas formulações, uma clara intenção de analisar e expor as
relações que existem entre a educação e a sociedade, especificamente no que diz
respeito à produção/reprodução da sociedade capitalista, apontando a escola como
espaço privilegiado de reprodução social.
Há um consenso dos educadores que compõem a Escola Crítica de que a
escola é um espaço de reprodução das desigualdades sociais, na medida em que
esforços são empreendidos para analisar e dar visibilidade à forma como isso
ocorre, mesmo porque, envolvendo as relações capitalistas, sempre contraditórias,
permite perceber que o mesmo espaço que proporciona a reprodução também
permite a resistência.
Michael Apple (1989, 1982) é um dos teóricos de peso que se debruça sobre
essa questão, tendo influenciado de forma decisiva o olhar sobre a escola, quando,
em seu livro “Ideologia e Currículo”, tornou clara a forma como a ideologia perpassa
o cotidiano escolar, por meio das ações explícitas do currículo e também daquelas
que subjazem e estão presentes na forma como se organiza o trabalho didático.
Neste são considerados os sistemas de avaliação com prêmios e castigos, a seleção
do conteúdo a ser trabalhado, o tipo de saber que se veicula, os textos
selecionados, os discursos, dentre outras estratégias. Em suas formulações, o autor
trouxe à baila a noção de Currículo Oculto.
Henry Giroux (1986, p.70) corrobora com as teses de Apple (1989, 1982) e
afirma que as escolas, ao funcionarem como uma instância mediadora entre a
sociedade e a consciência do indivíduo, processam “[...] não apenas o conhecimento
mais também as pessoas.” O autor ressalta a força do currículo oculto, descrevendo-
o como “[...] as normas, valores e crenças imbricadas e transmitidas aos alunos
através de regras subjacentes que estruturam as rotinas e relações sociais na escola
e na vida da sala de aula.” (GIROUX, 1986, p. 71).
Reportando-nos ao Currículo Mínimo proposto para os Cursos de Psicologia,
conforme analisou-se anteriormente, reconhece-se o peso instrumental que este
currículo propunha e verifica-se que isto resultava numa desvinculação do
100

profissional com seu contexto, assim como com aqueles aos quais prestava
serviços. Falando do Currículo Oculto, os valores que perpassavam a formação
colocavam os profissionais no modelo clínico de atendimento a pessoas com
problemas, supervalorizando o atendimento clínico, privado, dual, reparador. Era a
visão tradicional da Psicologia, em que os alunos eram instrumentalizados apenas
para esse mister, conforme discute-se ao longo deste trabalho. Era uma perspectiva
de reprodução de um modelo de forma a-crítica, em que a produção de novos
conhecimentos era minimizada, sendo isso comprovado pela inexistência de
atividades de pesquisa, que não eram estimuladas.

O currículo oculto demonstra a ideologia da escola, ou seja, de forma


silenciosa, exibe as normas e valores que norteiam todo o trabalho escolar e a
ideologia, do ponto de vista de Michel Apple (1989), não é apenas um conjunto de
crenças, mas um conjunto de significados internalizados, oriundos das práticas
proporcionadas pelas relações sociais, que, por sua vez, constroem o pensamento
hegemônico e propicia à classe dominante perpetuar-se nessa posição superior. O
discurso ideológico cumpre, portanto, o papel de ocultar a divisão, a diferença, a
contradição, na medida em que oferece aos educandos uma visão de sociedade
homogênea, sem divisões, sem antagonismos.

O currículo oculto tem a função de transmitir essa ideologia que naturaliza os


fenômenos sociais, enquanto o papel da escola crítica é desvendar a trama que
constrói essa sociedade desigual, configurando-se como um espaço de
desenvolvimento da consciência crítica e da luta pela igualdade social.

Ao estudar as concepções de fenômenos psicológicos entre psicólogos


brasileiros, Ana Bock (1999) argumenta que as práticas psicológicas dominantes têm
um caráter ideológico de escamotear a realidade quando, desde a formação, os
psicólogos e as psicólogas aprendem a naturalizar os fenômenos psicológicos,
considerando os seres humanos como a-históricos, responsáveis por seu próprio
desenvolvimento, e a considerar sua intervenção profissional como neutra. São
estimulados a acreditar que sua prática auxilia o indivíduo a encontrar seu próprio
caminho ou as verdades que lhes são próprias e particulares, que por algum motivo
se desvirtuaram do curso natural, sem vinculação a quaisquer interesses sociais ou
disputas políticas inerentes à constituição dos seres humanos e da sociedade.
101

O currículo oculto, entretanto, é um conceito controvertido para as discussões


atuais, que buscam uma análise complexa23, em detrimento de uma explicação
simplista e linear de causa e efeito, para os fenômenos psicossociais. Gestado no
seio das teorias críticas do currículo, o conceito de currículo oculto buscava entender
a ideologia dominante e desvendar as forças de opressão que compunham a escola.
Sabe-se, entretanto, que, hoje, novas teorizações sociais, dentre elas as releituras
marxistas, estão empenhadas em compreender os fenômenos sociais como
multiplamente determinados, reconhecendo tanto sua multiplicidade quanto sua
diversidade, ultrapassando a idéia de que a sociedade é regida apenas pela luta de
classes. Essa perspectiva singulariza os fenômenos, reconhecendo a existência de
sujeitos múltiplos e plurais.
Neste trabalho, particularmente, tem-se interesse de discutir a noção de
Currículo Oculto, por compreendê-lo como construtor de subjetividade e de
identidades, visto que formata atitudes e valores dos sujeitos da aprendizagem; e
isto está afinado com os propósitos desta tese de doutoramento. Para além de
desvendar ideologias, o currículo oculto também pode encobrir/revelar as dimensões
claras/obscuras de classe social, raça, gênero, etnia, religiosidade, geração, enfim,
dimensões outras que configuram as identificações/diferenciações que compõem os
seres humanos, os grupos, as instituições, as comunidades, as nações, forjando
identidades.
Roberto Macedo (2002, p. 35) afirma a força do currículo oculto quando diz:
“[...] precisamente nos âmbitos da formação não vista, não dita, que o currículo vai
se revelar mais potente na constituição das ordens sociais.” O autor advoga a
necessidade de se criar aparatos críticos “[...] capazes de desconstruir as grandes e
sutis reificações que o currículo traz embutido no modo que cultiva a concepção, a
organização, a implementação e a institucionalização de avaliação dos saberes e
competências.” (MACEDO, 2002, p. 35).
Como a questão de interesse nesta tese é entender como os alunos
constroem identidades profissionais na vivência curricular da formação de uma
profissão feminina, o currículo oculto apresenta-se como relevante, posto que está
presente nos discursos como prática, como propõe Michel Foucault (2001), e

23
Análise complexa no sentido que Edgar Morin (2001) atribui ao termo complexo, ou seja, de que é
possível entender os fenômenos humanos a partir dos diferentes elementos que o constituem,
considerando-os como inseparáveis e interdependentes. Morin (2001) entende que a complexidade
representa a união entre a unidade e a multiplicidade.
102

possibilita que os alunos assumam determinadas posições em detrimento de outras


nos jogos de poder que se forjam no âmbito da formação.

2.2.3 Implicações das teorizações críticas no Currículo da Psicologia

O Currículo Mínimo do Curso de Psicologia, conforme apresentado


anteriormente, alinhado com as concepções teórico-metodológicas tecnicistas,
constituiu-se em um conjunto de disciplinas que privilegiavam um fazer técnico para
atuação profissional, sem uma perspectiva crítica que pudesse recriar novas
possibilidades de inserção social da profissão.
O status de profissão liberal que a lei assegurava, como se discute, contribuiu
sobremaneira para uma ênfase na formação técnica e clínica que supervalorizava o
atendimento psicoterapêutico individual realizado em consultórios particulares e
reproduzia o modelo médico numa perspectiva curativa e de ajustamento de
indivíduos doentes ou com problemas.
A década de 80 do século XX — quando os Cursos de Psicologia já estavam
consolidados e regulamentados há 20 anos — constituiu-se no palco de um
momento efervescente da psicologia brasileira, que colocava na ordem do dia um
movimento de avaliação de sua caminhada até então. A formação tecnicista
praticada nos cursos de graduação foi alvo de muitos questionamentos dentro do
ambiente acadêmico que, por meio de professores e pesquisadores, esteve
empenhado em articular a formação de psicólogos com os novos rumos da
sociedade brasileira e com os avanços que o conhecimento científico proporcionava.
Já havia um contexto que favorecia essa reflexão, além das transformações sociais
em curso, qual seja, novas configurações para a atuação do psicólogo e a
necessidade de se discutir a produção de conhecimento e a ampliação de novas
práticas profissionais.
Data de 1979 a publicação do texto de Silvio Botomé, A quem nós Psicólogos
Servimos, de Fato, e em 1988 foi publicado o resultado da primeira grande pesquisa
nacional sobre o perfil do psicólogo brasileiro no livro Quem é o psicólogo brasileiro
patrocinado pelo Conselho Federal de Psicologia juntamente com os Conselhos
Regionais. Pode considerar-se estes dois textos como marcos importantes para as
103

reflexões dos psicólogos sobre si mesmos enquanto categoria profissional e


enfatizar que a temática em jogo nestas publicações reflete preocupações com
questões da identidade profissional.
Houve uma proliferação de estudos e pesquisas sobre essas indagações na
época. Apresentam-se alguns deles, veiculados pela revista Psicologia Ciência e
Profissão. Trata-se de veículo de informação patrocinado pelo Conselho Federal de
Psicologia, distribuído gratuitamente e postado a domicílio para todos os psicólogos
inscritos nos Conselhos Regionais de Psicologia do país que, na década de 1980,
dedicou três números ao tema em foco. No número 2/84 trouxe como destaque da
capa o seguinte texto: Em debate A formação do psicólogo e como subtópico indaga
o que é atuação psicológica. O número 2/85 oferece o tema para que serve a
pesquisa em psicologia e se reporta diretamente à formação, posto que questiona o
lugar da pesquisa nos cursos de Psicologia. Por fim, o número 1/89 dedica-se aos
dilemas da formação do psicólogo.
Ana Carvalho (1984), em artigo intitulado Atuação psicológica – alguns
elementos para uma reflexão sobre os rumos da profissão e da formação, numa
clara articulação entre formação e atuação profissional, analisa as dificuldades
demonstradas pelos psicólogos que participaram de sua pesquisa em incorporar
novas práticas, diferentes daquelas experimentadas durante o curso, como possíveis
de serem consideradas de caráter psicológico. A autora demonstra preocupação
com o que chama de formação técnica e esclarece que esta é “[...] entendida como o
treinamento do profissional no uso de instrumentos prontos, designados para cada
situação específica de trabalho.” (CARVALHO, 1984, p. 8). Desta forma, critica os
cursos de Psicologia que havia estudado, avaliando-os como instrumentais e a-
críticos, atribuindo à estrutura curricular, com a fragmentação de conteúdos
descontextualizados da realidade, a responsabilidade de não permitir que os alunos
recriem uma psicologia, mas limitem-se a repeti-la.
Neste mesmo número da revista — 2/84 — a Política Educacional e a
Formação Profissional do Psicólogo é discutida na transcrição de trechos de
entrevistas sobre aspectos relevantes da formação, realizadas com profissionais
reconhecidos no meio acadêmico paulista, entre professores e psicólogos24. Nesta

24
Demerval Saviani, Maria Helena Souza Pato, Maria do Carmo Guedes, Teresa Maria Pires de
Azevedo Serio, Isaías Pessotti, Paulo Roberto Martins Maldos, Ana Mercês Bahia Bock e Sigmar
Malvezzi.
104

matéria da revista, Paulo Maldós (1984, p.31) argumenta que, como resultado de
uma política educacional comprometida com os interesses “burgueses” da
sociedade, “[...] é limitado ao estudante de psicologia a possibilidade de experienciar
a realidade social brasileira, a cultura das grandes maiorias [...]” Isto restringe o
aprendizado ao debate teórico realizado em sala de aula. O autor prossegue,
afirmando que distanciados da realidade brasileira e mantendo-se da mesma forma
como foram criados em 1962, os currículos dos Cursos de Psicologia privilegiavam
uma formação para a área clínica, restrita ao atendimento em consultório individual
privado.
A psicóloga Tereza Sério refere-se às articulações que se fazem entre prática
social e prática educativa, defendendo que os currículos estanques e
compartimentalizados refletiam as práticas sociais dominantes na sociedade.
Sigmar Malvezzi (1984, p. 31) corrobora esse entendimento, quando diz: “[...] o
sintoma de que a escola está absolutamente alienada é o fato dela ter um currículo
rígido que não tenha espaço para cursos optativos.”
Fica evidente, nesses posicionamentos, o quanto os currículos dos Cursos de
Psicologia direcionaram a formação para a construção de identidades profissionais
identificadas com pressupostos tradicionais de ação reparadora a males atribuídos a
sujeitos individuais. Nessa perspectiva, atrela seus interesses àqueles que
trabalham para a manutenção do status quo da sociedade, sem compromisso com
sua transformação, posto que não questionam os determinantes sociais de
problemas psicológicos.
Dentre outros argumentos e análises, torna-se importante destacar o
posicionamento de Maria Helena Patto (1984, p. 33) neste debate, que vislumbra
uma possibilidade criativa para o psicólogo, quando afirma: “[...] queremos
transformar o psicólogo num cientista do humano e não um técnico em Psicologia.”
A autora destaca a emergência do potencial transformador do profissional da
psicologia, quando lhes for possível compreender as relações de força e poder que
regem as relações sociais e desenvolver métodos de intervenção por meio dos quais
possa lidar com essas dimensões. Isso significa, segundo a autora citada, incorporar
uma literatura crítica à formação que privilegie as dimensões sociais, políticas,
econômicas, ou seja, históricas da constituição dos seres humanos e da sociedade.
No ano seguinte, a mesma revista, mais uma vez discutindo a formação,
mediante o artigo de Silke Weber (1985), responsabiliza o Currículo Mínimo por
105

privilegiar o aspecto profissionalizante dos Cursos em detrimento de uma postura


investigativa de produção de novos conhecimentos.
Questões relativas à pesquisa em psicologia são aprofundadas neste número
da revista, na sessão Em debate, que transcreve uma Mesa Redonda realizada na
XV Reunião Anual de Psicologia, em Ribeirão Preto (SP). Este evento reuniu três
pesquisadores brasileiros25 e discutiu os fundamentos filosóficos da pesquisa e suas
relações com a pesquisa básica e aplicada, tecnológica ou científica, com a ação
política e os fins a que se destinava, dentre outros aspectos. Há uma visível adoção
de modelos de pesquisa experimental para o estudo de questões da psicologia, o
que denota o peso da formação tecnicista e os reflexos da adesão ao modelo
positivista de ciência na definição do foco do Currículo Mínimo, conforme
argumentou-se anteriormente.
Seguindo a linha de informar e discutir questões relacionadas à formação dos
psicólogos, a revista Ciência e Profissão, em 1989, editou um número temático,
intitulado Os dilemas da formação do Psicólogo. No Editorial, refere-se a um estudo
feito pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, que realizou uma
pesquisa em 16 Faculdades de Psicologia, encontrando os seguintes resultados
sobre currículo:

a) é um currículo fundamentalmente teórico, em que a formação prática


corresponde, em média, a cerca de 11% da carga horária total; b) os
conteúdos e práticas são dirigidos fundamentalmente para formação do
psicólogo clínico (25% da carga horária total); c) além da Clínica, apenas
duas outras áreas — Educação e Empresa — são contempladas (em média
7% da carga horária total para cada uma delas); d) os estágios geralmente
concentram-se no último ano, sendo que o pouco de organização existente
também se dá na área Clínica; e) na maioria dos cursos há um grande
descompasso entre as disciplinas teóricas e os estágios; f) nos cursos
particulares (a maioria) praticamente inexiste a atividade de pesquisa.
(EDITORIAL, 1989, p.4).

Observando os resultados desta pesquisa, pode-se perceber a evidente


contaminação dos princípios fragmentários do currículo tradicional tecnicista.
No mesmo número da revista, a matéria intitulada Currículo: quais mudanças
ocorreram desde 1962?, traz o depoimento de Sylvia Leser de Mello26 (1989), no

25
Isaías Pessotti, Jairo Eduardo Borges de Andrade e João Cláudio Todorov.
26
Essa pesquisadora, em 1975, realizou um estudo, pioneiro no Brasil, sobre a Psicologia como
profissão, o qual, provavelmente, inspirou outras iniciativas de peso que se sucederam, inclusive de
âmbito nacional.
106

qual a psicóloga esclarece que, embora muitos esforços tivessem sido feitos para
modificar o Currículo Mínimo, ao longo dos anos, ele mantinha-se como havia sido
originalmente concebido, mesmo porque as proposições pretendidas não
contribuíam para uma melhora qualitativa da proposta original. Posiciona-se
considerando como o maior problema da formação a realização dos estágios,
porquanto utilizam pacientes como instrumento de aprendizagem, e levanta
questões éticas relativas ao assunto. Questiona ainda a redução do atendimento
psicológico à clínica privada individualizada e às práticas tradicionais da psicologia,
propondo aproximações mais amplas com a esfera social, e critica o modelo de
pesquisa norte-americano transplantado para o Brasil no início da formação do
curso.
A despeito de José Medeiros (1989) argumentar sobre algumas propostas de
modificação curriculares esboçadas desde 1977, nas quais havia preocupações com
exclusão ou inclusão de disciplinas, alteração de nomenclatura, inclusão e exclusão
de pré-requisitos, remanejamento de disciplinas dentro do currículo, dentre outros
assuntos, percebe-se que a formação em psicologia esteve cristalizada, mantendo-
se praticamente inalterada desde então.
Os cursos de Psicologia, conforme se discute ao longo deste capítulo,
instalou currículos articulados a interesses políticos de classes dominantes, assim
como veiculou um saber ascético e despolitizado, trabalhando com uma concepção
de homem abstrato e de fenômenos psicológicos como intrapsíquicos e universais
(BOCK, 1999). Além do mais oferecem todas as condições para a estruturação de
uma profissão feminina, nos moldes estipulados por uma sociedade regida sob a
égide patriarcal, sem nenhum posicionamento crítico sobre a questão.
Nessa perspectiva, as teorias psicológicas tributárias do pensamento
iluminista que aderiram ao modelo de ciência natural para obter foro de ciência no
final do século XIX, foram apropriadas pelos psicólogos de uma forma psicologista,
qual seja a de que o mundo subjetivo dos seres humanos tem uma vida própria,
descolada de outras instâncias da vida, e explicam-se por si só.
A escola, como instância privilegiada na construção de identidades, tem uma
dupla função: construir valores e conhecimentos. No curso superior, na formação
profissional, esses objetivos escolares são supervalorizados, pois se referem à
construção de um projeto de vida no qual são construídos sentidos sobre os modos
de pensar, sentir e vivenciar uma profissão. E isso acontece mediante um jogo
107

complexo de processos de negociação de valores e sentidos que transitam pela


cultura profissional, pelos conteúdos específicos, pelas práticas profissionais, todos
imersos em jogos de poder, que resultam na adesão a um modo peculiar de
compreender o mundo em forma de discurso.
O conhecimento e a compreensão das singularidades imanentes a uma
profissão podem emergir de contextos diversos, escolares ou não. Na vivência
acadêmica, entretanto, estes permanecem subjacentes à política educacional, à
gestão do ambiente acadêmico, aos conteúdos escolhidos, às práticas pedagógicas,
à ideologia dos professores, aos papéis que lhes são atribuídos e exigidos, dentre
outros. E isso compõe o que anteriormente discutiu-se como Currículo Oculto.
É inegável que os currículos dos cursos de Psicologia, impregnados de uma
concepção tecnicista de currículo em seu viés mais conservador, a despeito de
iniciativas mais progressistas, foram responsáveis pela formação de várias gerações
de psicólogos. Suas atuações profissionais refletem a forma como foram formados e,
por conseguinte, como se situam profissionalmente na sociedade e como contribuem
com a divulgação de uma imagem social da profissão, considerada feminina.
A grande modificação proposta para os currículos do Curso de Psicologia vai
ocorrer de fato com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº
9394/96), que propõe reformulações no ensino superior e edita as Diretrizes
Curriculares Nacionais para todas as modalidades de cursos superiores do país.
A década de 90 do século XX, nos meios acadêmicos da Psicologia, assistiu
a algumas iniciativas que se traduziram em ações propositivas de mudança como
resultado da autocrítica produzida na década anterior.
O Conselho Federal de Psicologia, em 1992, convocou todos os
coordenadores de Cursos de Psicologia do país para discutir a formação. Dos 103
convocados, 98 compareceram ao evento intitulado Encontro Nacional com
Gestores de Cursos de Psicologia e Conselho Federal de Psicologia, que teve a
duração de três dias — 31/07 a 02/08 — e como produto redigiu um documento
conhecido como a Carta de Serra Negra. O objetivo do Encontro era identificar
diretrizes para o funcionamento dos cursos e promover encaminhamentos para
reformas curriculares, tanto que foram discutidos princípios norteadores para a
formação acadêmica do psicólogo, e a forma como esses princípios poderiam ser
contemplados nos currículos e nos estágios (CFP, 2006). Os sete princípios que
estão contidos na Carta de Serra Negra (CFP, 2006, p.1), são listados a seguir:
108

1) desenvolver a consciência política de cidadania, e o compromisso com a


realidade social e a qualidade de vida;
2) desenvolver atitude de construção de conhecimento, enfatizando uma
postura crítica, investigadora e criativa, fomentando a pesquisa num
contexto de ação-reflexão-ação, bem como viabilizando a produção
técnico-científica;
3) desenvolver o compromisso da ação profissional quotidiana baseada em
princípios éticos, estimulando a reflexão permanente destes
fundamentos;
4) desenvolver o sentido da universidade, contemplando a interdisciplinaridade
e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão;
5) desenvolver a formação básica pluralista, fundamentada na discussão
epistemológica, visando a consolidação de práticas profissionais,
conforme a realidade sócio-cultural, adequando o currículo pleno de cada
agência formadora ao contexto regional;
6) desenvolver uma concepção de homem, compreendido em sua
integralidade e na dinâmica de suas condições concretas de existência;
7) desenvolver práticas de interlocução entre os diversos segmentos
acadêmicos, para avaliação permanente do processo de formação;

Essas discussões em nível nacional prolongaram-se em um evento também


promovido pelo Conselho Federal de Psicologia consorciado com os Conselhos
Regionais, dois anos depois, em 1994, quando da realização do 1º Congresso
Nacional Constituinte da Psicologia em Campos do Jordão (SP), cujo propósito foi
instalar uma nova forma de gerenciamento das ações dos Conselhos com o
estabelecimento de metas trienais. Esse primeiro encontro incluiu discussões
complementares àquelas realizadas em Serra Negra.
A nova Lei da Educação foi aprovada sob o nº de 9394/96 (BRASIL, 2006a) e
em seu texto propõe modificações no funcionamento do ensino superior. Dentre
elas, institui Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para todos os cursos superiores
do país. Para redigi-las, foram convocadas Comissões de Especialistas que levaram
em consideração os princípios da Lei e os anseios de mudança de cada categoria
profissional.
Segundo o documento do MEC, as DCN foram instituídas com o objetivo de

Conferir maior autonomia às IES na definição dos currículos de seus cursos,


a partir da explicitação das competências e as habilidades que se deseja
desenvolver, através da organização de um modelo pedagógico capaz de
adaptar-se à dinâmica das demandas da sociedade, em que a graduação
passa a constituir-se numa etapa de formação inicial no processo contínuo
de educação permanente. (BRASIL, 2006b, p. 1).

No caso dos psicólogos, a comunidade acadêmica foi convidada a participar


por meio de uma consulta nacional sobre teses importantes a serem incorporadas à
109

formação. Em 1997, foram criadas comissões de especialistas em cada área, para


escreverem os respectivos documentos. Em maio de 1999, foi oferecida aos
psicólogos a primeira versão das Diretrizes Curriculares Nacionais, elaborada pela
Comissão de Especialistas nomeada pelo MEC, reformulada para uma 2ª versão em
dezembro do mesmo ano.
A aprovação, entretanto, demorou de acontecer, pois um movimento político
vigoroso, organizado pelo Sistema Conselhos, opôs-se ao texto das DCN e,
organizado em torno do Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia27, posicionou-
se contra, encaminhando carta ao Ministro da Educação, em 2001, e elaborando
uma nova versão, que foi encaminhada ao MEC como substitutiva à primeira, em
2002. Como resultado deste embate político foi feita uma negociação para um texto
final de consenso,finalmente aprovado pela Resolução n° 8 do Conselho Nacional
de Educação e da Câmara de Educação Superior, datada de 7 de maio de 2004 e
publicada no Diário Oficial da União de 18 de maio do mesmo ano (BRASIL, 2006c).
As DCN, como o próprio texto orienta no Art. 2° — “[...] constituem as
orientações sobre princípios, fundamentos, condições de oferecimento e
procedimentos para planejamento, a implementação e avaliação do curso.”
(BRASIL, 2006b, p.1) —, trazem muitas inovações ao currículo dos Cursos de
Psicologia, dentre elas: institui uma formação única a de psicólogo; não nomeia
matérias ou disciplinas, mas delimita conhecimentos, habilidades e competências a
serem adquiridos e desenvolvidos, agrupados em torno de eixos estruturantes28;
define que a identidade do curso é conferida por um núcleo comum; cria as ênfases
curriculares; define a formação do professor de psicologia como um projeto
pedagógico específico e diferenciado; sugere metodologias diversificadas para o

27
O Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia é formado pelas instituições listadas a seguir. À
época do encaminhamento da nova proposta de Diretrizes Curriculares, porém, nem todas já
faziam parte do Fórum. Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP); Associação
Brasileira de Orientadores Profissionais (ABOP); Associação Brasileira de Psicologia Jurídica
(ABPJ); Associação Brasileira de Neuropsicologia (ABRANEP); Associação Brasileira de Psicologia
Escolar e Educacional (ABRAPEE); Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO);
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP); Associação
Brasileira de Rorschach (ASBRo); Conselho Federal de Psicologia (CFP); Conselho Nacional de
Entidades Estudantis de Psicologia (CONEP); Federação Nacional dos Psicólogos (FENAPSI);
Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP); Sociedade Brasileira de Psicologia do
Desenvolvimento (SBPD); Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar (SBPH); Sociedade
Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (SBPOT); Sociedade Brasileira de Psicologia
Política (SBPP); Sociedade Brasileira de Psicologia e Acupuntura (SOBRAPA).
28
Fundamentos Epistemológicos e Históricos, Fundamentos teórico-metodológicos, Procedimentos
para a investigação científica e a prática profissional, Fenômenos e processos psicológicos,
Interfaces com campos afins do conhecimento e Práticas profissionais (BRASIL, 2006 c).
110

processo ensino-aprendizagem; desconcentra o estágio e os distribui ao longo do


curso em dois níveis — básico e específico; e mantém a exigência da implantação
do Serviço de Psicologia.

Nesta tese de doutoramento, em que se propõe o estudo da construção de


identidades profissionais em Psicologia, mediante a vivência acadêmica curricular
de estudantes de um Curso de Psicologia específico, esse olhar retrospectivo, na
perspectiva da historicidade da constituição da profissão no Brasil, revela-se
importante porque importa compreender os processos ou as lutas que os psicólogos
e as psicólogas brasileiras, enquanto coletivo, tiveram ao longo do tempo, para que
se pudesse configurar esta profissão nos moldes que se percebe nos dias de hoje. A
busca de novos caminhos só é possível quando se estabelece uma relação com as
dimensões sociais e políticas de passado, presente e futuro, considerando
importantes as relações sociais que se estabeleceram neste tempo-espaço.

Após este estudo retrospectivo, que se coloca como lastro para o


entendimento da Psicologia e da profissão neste momento histórico, no próximo
capítulo dar-se-á uma atenção especial ao Curso em estudo e à instituição que o
mantém e serão descritas sua proposta pedagógica e as condições que oferece
para a construção de identidades profissionais singulares.
Eu gosto muito desse lugar de educador.
Gosto muito de aprender com os alunos.
Gosto de embarcar com eles nesta viagem...
Eu sei que mais na frente alguns de vocês vão ajudá-
los a botar o pé no chão.
112

3 ESTRUTURA E PROPOSTA DO CURSO DE


PSICOLOGIA – CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA29

Após a análise do desenvolvimento da Psicologia enquanto ciência e a


constituição da formação e da profissão numa perspectiva da historicidade,
conforme elaborou-se no capítulo anterior, no presente capítulo apresenta-se o
Curso de Psicologia onde se realizou o presente estudo. Para tanto, descreve-se as
condições que a instituição oferece e proporciona para a construção das identidades
de seus estudantes, na qualidade de instituição de ensino com experiência e
tradição na área das ciências da saúde. Apresenta-se a proposta curricular do Curso
de Psicologia e as modificações introduzidas desde a implantação, em 2000, por
força das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), articulando-as com concepções
contemporâneas de currículo que o consideram como discurso e como artefato de
gênero.

3.1 O CURSO DE PSICOLOGIA

Trata-se de uma instituição que há 54 anos dedica-se à educação superior,


voltada para a área da saúde. Seu objetivo é assim definido:

[...] promover a formação, atualização e o aperfeiçoamento dos profissionais


da saúde e áreas afins ou emergentes, contribuindo para o desenvolvimento
social, econômico e cultural da região e do país, a elevação da qualidade de
vida do homem e a preservação do ecossistema. Dedica-se ao ensino e a
pesquisa como formas de inserção e contribuição com as ciências e com a
comunidade. Enquanto núcleo de Ensino Superior tem como objetivo
principal o ensino, a pesquisa e a extensão para o aperfeiçoamento da
Medicina, da Saúde Pública e Ambiental e das Ciências em geral. (FBDC,
2005, p. 10).

Criada em 1952, por um grupo de lideranças médicas formadas por docentes


com experiência e dedicação às ciências da saúde, com o propósito de organizar e

29
Na elaboração deste capítulo, foram consultados os seguintes documentos da FBDC/EBMSP:
Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) e o Projeto Pedagógico do Curso de Psicologia.
113

manter uma instituição destinada inicialmente à formação de médicos foi


gradualmente ampliando seu âmbito de ação, procurando oferecer oportunidades de
ensino, pesquisa e extensão em diferentes especialidades profissionais na área de
saúde. Fundada em 1952, foi autorizada pelo Decreto n. 32.495, de 31 de março de
1953, e reconhecida pelo Decreto n. 40.559, de 23 de abril de 1958, tendo como
mantenedora uma pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, de caráter
científico, educacional, assistencial e filantrópico.
No momento, oferece cinco cursos de nível superior, além da Psicologia, a
saber: Medicina, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Odontologia e Biomedicina.
pretende implantar, em 2006, o Curso de Enfermagem.
A Psicologia entrou nesta instituição não apenas como mais um curso de
graduação, mas, e acima de tudo, como uma nova forma de perceber o ser humano
e de lidar com educandos que deverão desenvolver-se profissionalmente, com a
responsabilidade de trabalhar pela promoção da saúde. Isso concretizou-se em duas
ações distintas. A primeira diz respeito à implantação do Núcleo de Atenção
Psicopedagógica (NAPP), atividade de extensão que oferece atenção
psicopedagógica a sua comunidade acadêmica e desenvolve projetos de pesquisa
com temas pertinentes à saúde mental e à psicopedagogia; e a segunda refere-se à
ampliação da disciplina Psicologia Médica, que fazia parte do currículo do 3º ano de
Medicina e hoje é uma disciplina que acompanha toda a formação do Médico do 1º
ao 5º ano, além da ampliação da carga horária da disciplina Psicologia, também, nos
demais cursos da Fundação,
Essas iniciativas expressam a compreensão que, hoje, essa instituição
demonstra ter de Saúde, superando a visão mecanicista de homem e apontando
para o reconhecimento dos aspectos sócio-emocionais que estão na gênese e
evolução das doenças. Isso significa rever concepções tradicionais da medicina, que
reduzem o ser humano a um corpo, cujo processo de adoecimento é apenas
biológico, e que tem como objeto de estudo o corpo, as lesões e as doenças e
reconhecer que a doença instala-se num corpo que é simbólico e determinado por
condições históricas. O adoecimento, nessa perspectiva, não se reduz à esfera do
pessoal, mas faz parte de um contexto mais amplo, complexo e multideterminado,
definido pelas dimensões pessoais e sociais do adoecer.
A saúde, nessa perspectiva, não é entendida como um fenômeno isolado,
individualizado, particularizado, mas o resultado da interação de diversas condições
114

e fatores nos quais está inserido o ser humano. Fala-se das condições materiais,
sociais, econômicas, biológicas, afetivas, psicológicas e, inclusive, das dimensões
política e jurídicas que regem a sociedade e circunscrevem a vida dos seres
humanos, delimitando a existência de condições objetivas e subjetivas nas questões
relacionadas à saúde e à doença.
A Resolução de n. 218, de 06 de março de 1997, do Conselho Nacional de
Saúde, órgão que integra o Ministério da Saúde, inclui a Psicologia no rol das
“profissões de saúde de nível superior”. Com este ato, legitima uma ambivalência no
trato dessa profissão pelos órgãos governamentais, haja vista que o Ministério da
Educação (MEC), por meio do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais “Anísio Teixeira” (INEP), inclui a Psicologia no elenco das ciências
humanas. Esses aspectos denunciam as contradições características da Psicologia
na delimitação de seu campo de estudos, tributárias da cisão entre os saberes das
humanidades, próprios da filosofia, e a adoção dos saber das ciências da saúde,
para obter fórum de ciência, em finais do século XIX.
O Curso de Psicologia sediado em uma instituição de saúde, rompe com o
lócus tradicional em que se dá essa formação no Brasil, ou seja, em Faculdades de
Filosofia ou de Ciências Humanas. Esse fato, por si só, confere singularidades a
este curso, no que tange à construção de sua identidade assim como de seus
estudantes.
O Curso teve seu funcionamento aprovado em 1998, porém foi implantado no
vestibular de dezembro de 1999 e iniciou sua primeira turma em março de 2000. A
admissão do aluno é feita mediante processo seletivo vestibular, com dois ingressos
anuais de 50 alunos por semestre, e, havendo vagas remanescentes, por meio de
processo seletivo de transferência seguindo calendário semestral da instituição.
A despeito da proliferação de novos cursos autorizados pelo Ministério da
Educação desde a Reforma Universitária, em 1968, este curso é o quarto a iniciar-se
na Bahia, que tinha, até então, nesta área, uma trajetória singular.
O primeiro Curso de Psicologia da Bahia30 foi criado em 1968 e integrou-se à
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia como
resultado de uma série de fatores que confluíram para seu funcionamento. O

30
Os dados referentes a este assunto foram retirados de um artigo de circulação interna produzido
por alunos do Curso de Psicologia da FBDC/EBMSP, intitulado A criação do primeiro curso de
Psicologia da Bahia que integra a pesquisa Educadores e educadoras de Psicologia da Bahia:
Gênero e moralidade em questão, realizada sob a coordenação da profa. Dra. Elizete Silva Passos.
115

primeiro deles, diz respeito à criação do Instituto de Orientação Vocacional (IDOV)


que, desde 1958, prestava atendimento à população em geral, no que concerne à
orientação psicológica e terapia de apoio, seguindo o modelo de funcionamento do
ISOP. O IDOV também desenvolvia atividades de pesquisas relacionadas com o
trabalho que desempenhava e, com a criação do Curso, passou a funcionar como o
Serviço de Psicologia do Curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas (FFCH) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

A par disso, em decorrência do desenvolvimento econômico baiano, na


época, proporcionado pela implantação de Pólo Industrial em Aratu e do Pólo
Petroquímico em Camaçari, que acelerou o processo de industrialização, ficou
evidente a necessidade de se formar profissionais qualificados para atuar no
processo de recrutamento e seleção de pessoal com as respectivas avaliações
psicológicas, além da necessidade de que a universidade pública assumisse o papel
de formador de profissionais da psicologia, no intuito de evitar a prática do
charlatanismo e qualificar o atendimento psicoterapêutico realizado por profissionais
outros que não dispunham de formação adequada, manifestada por um abaixo
assinado dirigido ao MEC.

Até 1998, o Curso da Universidade Federal da Bahia era o único Curso de


Psicologia funcionando em território baiano.

O Projeto Pedagógico do Curso de Psicologia onde se realizou a pesquisa foi


originalmente concebido entre os anos de 1997 e 1998, sob a inspiração do
Currículo Mínimo, quando obteve, em dezembro de 1998, autorização para
funcionar. Por decisão da instituição, o Curso só foi implantado no processo seletivo
de dezembro de 1999, iniciando, efetivamente, sua primeira turma em março de
2000.

Data desta mesma época as discussões, em âmbito nacional, da proposta de


Diretrizes Curriculares para os cursos de Psicologia, cujo processo de aprovação foi
relatado no capítulo precedente. O impasse advindo deste embate, que só foi
solucionado em fevereiro de 2004, com a aprovação de uma proposta de consenso,
provocou uma série de problemas para os cursos recém–implantados, tendo em
vista que foram autorizados a funcionar com um projeto baseado no Currículo
Mínimo, e deveriam ser reconhecidos, antes de concluir a primeira turma, de acordo
com critérios determinados pelas DCN, tendo em vista que os parâmetros utilizados
116

pela Comissão de Avaliadores do MEC já contemplavam aspectos pertinentes às


proposições das Diretrizes.
Foi necessário, então, empreender modificações na proposta original, na
implantação do currículo do curso, desde a primeira turma de 2000, de forma que as
orientações das DCN pudessem ser incorporadas, enquanto estava sendo discutido
e elaborado coletivamente, sob a orientação de consultores, um novo Projeto
Pedagógico para o Curso.
Quando da visita da Comissão Verificadora do MEC para reconhecimento do
Curso, em novembro de 2003, o Curso vivia uma situação singular de transição com
as oito turmas até então implementadas, como se pode observar no quadro a seguir:

Ingressos em 2000.1 e .2, Ingressos em 2001.1 e .2 Ingressos a partir de 2003

Proposta curricular original (C.M.) até Nova proposta curricular com Nova proposta curricular
o 8º semestre; adaptações, ou seja, com um conforme anexo C
Modificações na proposta de novo rearranjo curricular onde
Estágios (Est. Básicos I, II e III ao as disciplinas introduzidas
longo do curso e Est. Específico no foram incorporadas ao longo
9º e 10º semestres); dos semestres e
Introdução da disciplina “Diagnóstico integralizadas até o 5º
e Intervenções em Psicologia” no 8º semestre.
semestre;
Introdução das ênfases curriculares
com Estágios Específicos (9º e 10º);
Introdução de Trabalho de Conclusão
de Curso

Quadro 1 – Transição do currículo nas turmas do Curso de Psicologia em 2003

Havia, no grupo que assumiu a implantação do curso, o reconhecimento do


caráter eminentemente tecnicista do currículo original, o que incitou, desde o início,
ações que pudessem minimizar os efeitos da segmentação e compartimentalização
dos conteúdos. Esse tipo de currículo incita a formação de profissionais também
tecnicistas, pouco criativos e pouco críticos, porquanto assimilam conhecimentos
desconectados entre si e descontextualizados de seu tempo/espaço.
Com o intuito de formar profissionais com um perfil diferente daquele, ou
seja, comprometidos com as questões sociais de seu tempo e aptos a criarem
novas possibilidades para intervenções da Psicologia e dos psicólogos, numa
perspectiva crítica e criativa, foram introduzidas algumas modificações no currículo
e na forma de lidar com o conhecimento, haja vista que a estrutura curricular
117

aprovada não poderia ser, a priori, modificada. Foram introduzidas ações


interdisciplinares em cada semestre, a partir do 1º, com uma operacionalização
viabilizada pela adoção de reuniões mensais e sistemáticas com os professores de
cada semestre, individualmente, a fim de criar um diálogo dentro de cada período.
Em seguida, criou-se também um diálogo dentro de uma cadeia de disciplinas de
semestres diferentes (eixos estruturantes), a fim de tentar situar os conteúdos no
tempo-espaço e desenvolver atividades práticas contextualizadas. Além disso, a
obrigatoriedade no oferecimento de disciplinas optativas no 4º semestre
oportunizou que se pudesse assimilar a proposta das DCN de proporcionar ao
aluno experiência de estágio durante todo o curso, sendo possível implantar
Estágios Básicos.
Ademais um estudo mais detalhado da estrutura original do currículo permitiu
o reconhecimento da opção por uma concepção teórico-metodológica
comportamentalista para a formação dos psicólogos, e a análise do ementário
proporcionava a identificação de conteúdos clássicos sem uma interlocução com as
produções contemporâneas. Além do mais, não contemplava a diversidade teórico-
metodológica que a formação em psicologia exige.
Isso significa que esse currículo tecnicista, estruturado de uma maneira tão
tradicional, formaria profissionais a-críticos e reprodutores de um padrão profissional
tradicional já bastante questionado pelo coletivo da psicologia nacional, como
discutiu-se no capítulo precedente. Além disso cristalizava o olhar teórico em apenas
dois aportes teórico-metodológicos da Psicologia (psicanálise e behaviorismo),
privando o aluno de defrontar-se com a extensa gama de possibilidades que a
Psicologia oferece para ancorar suas leituras e suas práticas, com fundamentos
filosóficos e epistemológicos diferentes.
Como a instituição definiu como princípio formar profissionais generalistas,
que pudessem exercer seu mister em quaisquer campos de atuação, a reformulação
curricular impôs-se como necessária e pertinente.
Com relação à estrutura administrativa do currículo, as disciplinas e os
semestres estavam entrelaçados em um sistema de requisitos que não favorecia a
livre iniciativa do aluno em nenhuma circunstância, pois todas as disciplinas
possuíam pré-requisitos e transformavam-se em pré-requisitos para as
subseqüentes. No 3º e 7º semestres, havia duas barreiras — as disciplinas Temas
Integrados I e Temas Integrados II — que impediam a progressão dos alunos,
118

porquanto exigiam que, para cursá-las, o aluno houvesse sido aprovado em todas as
anteriores, e ato contínuo, transformava-se em pré-requisito para todas as
subseqüentes (ver Estrutura Curricular no Anexo B).
A respeito dos estágios supervisionados, realizados no último ano, a proposta
do Currículo Mínimo exigia que, em cada semestre (9º e 10º), o aluno freqüentasse
três estágios diferentes, o que significava que, em um ano, depois de uma formação
com peso teórico, fragmentada e descontextualizada, o aluno percorresse seis
campos de estágio distintos, numa adesão a concepção de prática como aplicação
da teoria e numa fragmentação que não permitia ao estudante sequer compreender
o que seria a atuação do psicólogo em contextos de prática, empobrecendo
sobremaneira a leitura da realidade e as articulações teoria-prática.
As discussões que se sucederam desde a implantação da primeira turma
sobre a viabilização do Curso numa perspectiva menos tradicional foram a base que
permitiu, num esforço coletivo, que modificações fossem introduzidas e
consideradas na elaboração de um novo Projeto Pedagógico para o Curso. A
despeito do reconhecimento de que o fato de estar sediado em uma instituição de
saúde determina aspectos da formação dos profissionais da psicologia na
construção de suas identidades, na perspectiva da formação do profissional
generalista, na reformulação do currículo, foram introduzidas modificações
referentes a:

9 reordenação do fluxograma de integralização das disciplinas com revisão


dos conteúdos curriculares e das bibliografias;

9 criação dos eixos temáticos;

9 redimensionamento de cargas horárias com eliminação, condensação ou


desdobramento de algumas disciplinas e inclusão de novas com
conteúdos mais atualizados;

9 introdução do trabalho monográfico de conclusão de curso;

9 criação das ênfases curriculares.

9 modificações na proposta do estágio curricular obrigatório, subdividindo-o


em Básico e Específico;
119

9 criação das Atividades Complementares com uma diversidade de


possibilidades para novas formas de estudo (Grupos de Estudos,
Disciplinas Optativas, Oficinas, Monitoria, incentivo a apresentação de
trabalhos científicos em eventos).

O questionamento de Gênero foi introduzido no Curso desde a primeira


turma, quando foi oferecida uma disciplina optativa no 4º semestre, sob o título de
Sexualidade e Gênero e permaneceu quando da introdução dos Seminários sobre
Sexualidade e Gênero, no 4º semestre, obrigatória para todos os alunos, após a
reformulação curricular. Além do mais, essa é considerada temática de peso na
disciplina Psicologia Social II no 3º semestre; aliás, os seminários têm a proposta
de aprofundar os temas já levantados no semestre anterior.

3.1.1 Proposta Curricular do Curso

Em se tratando de uma instituição que tradicionalmente lida com as questões


da saúde e considerando o peso que a formação em saúde dá a doença, foi
necessário, no âmbito do Curso de Psicologia, discutir uma concepção de saúde que
a compreendesse como o resultado da interação de diversas condições (materiais,
sociais, econômicas, biológicas, afetivas, psicológica, políticas, jurídicas, dentre
outras), nas quais está inserido o ser humano. Dessa forma, relativizou-se o peso do
viés curativo, em prol de uma perspectiva preventiva em saúde.
Esse recorte, inclusive, é privilegiado por uma corrente teórica da Psicologia
Social que compartilha desse entendimento de saúde (BOCK, 1999), considerando o
psicólogo como promotor da saúde e a Psicologia como promotora de saúde. Isto
significa apreender a saúde como um conjunto de condições criadas coletivamente,
que permitem a continuidade da própria vida em sociedade. Essas condições dizem
respeito a alimentação, moradia, saneamento, educação, lazer, dentre outras que
propiciam ao ser humano a saúde física e psicológica. Assim sendo, fala-se da
função social da Psicologia e dos psicólogos.
Com relação à função social dos psicólogos e da Psicologia, é necessário
demarcar a especificidade do psicólogo como o profissional que lida com a
120

subjetividade humana e que precisa incluir questões objetivas da existência humana


à subjetividade dos indivíduos, compreendendo seres humanos como concretos,
que possuem um lócus espaço-temporal, são regidos por normas sócio-econômicas
e culturais e produzem suas ações e relações, suas idéias e representações na
intersecção de seu mundo pessoal com o mundo coletivo.
O Projeto Pedagógico do Curso (FBDC, 2003, p. 4) destaca desafios que a
formação em psicologia precisa enfrentar para responder às demandas da
contemporaneidade, propondo que uma formação universitária deva “[...] nortear-se,
cada vez mais, pelas exigências de um profissional crítico, construtor de saber,
sujeito de um processo de aprendizagem contínuo e integrado com outros
conhecimentos e, eticamente preocupado com os novos compromissos sociais.”
Considera como desafios:

• Superar o modelo de formação dominante com ênfase tecnicista;

• Apresentar um saber teórico-prático organizado em torno de uma


formação generalista assegurando-lhe uma visão interdisciplinar;

• Articular formação científica e formação tecnológica em diferentes


contextos sociais;

• Estruturar uma prática pedagógica coerente com espaço de superação


dos desafios supramencionados. (FBDC, 2003, p.4).

Estão contemplados no Projeto Pedagógico do Curso alguns pressupostos da


ação educativa que o Curso propõe-se a praticar, pela indagação sobre qual
psicólogo pretende formar, para que tipo de sociedade e as contribuições que esses
profissionais poderão dar à coletividade. Nesse particular, refere-se à concepção de
homem que preconiza, ao entendimento da escola como o lugar privilegiado para
formação de profissionais para a democracia, considerando esta como uma forma
de vida e não apenas como governo político, e destaca a construção de valores
éticos e estéticos.
Estão contemplados no Projeto Pedagógico (FBDC, 2003, p. 5), objetivos
gerais:

• Formar psicólogos cidadãos que atuem como agentes transformadores


na construção de uma sociedade mais democrática e menos desigual,
intervindo com seres humanos nas dimensões psicossocial,
psicodinâmica, institucional e comunitária;
121

• Formar psicólogos comprometidos com a promoção da saúde e com a


dignidade da vida dos seres humanos.

E como objetivos específicos (FBDC, 2003, p. 5-6):

• Entender/incorporar uma prática pluralista, crítica e transformadora,


construtora de novas possibilidades profissionais, a partir de reflexões
sobre a realidade histórico-social;
• Compreender a função social da Psicologia e do Psicólogo nas ênfases
selecionadas;
• Apreender a multiplicidade de determinações dos fenômenos
psicológicos assim como a possibilidade de múltiplos níveis de
intervenção.

Com relação ao perfil profissional, o Projeto Pedagógico propõe “[...] a


formação de um profissional pluralista para uma atuação generalista, crítico e
sintonizado com as demandas da contemporaneidade.” (FBDC, 2003, p. 6). Define
competências gerais para a área da saúde, para a Psicologia e para as ênfases
curriculares que elege para seu Curso.
Como competências gerais para a Psicologia, relaciona:

• compreender as múltiplas determinações dos seres humanos;


• entender como estes constroem o seu universo simbólico;
• incluir as dimensões histórico-sociais no universo dos processos
psicológicos;
• compreender a sociedade como uma rede de significados simbólicos –
como produção e produto da atividade humana;
• identificar, na concepção de saúde e doença, a complexa rede de fatores
que promovem a saúde, reconhecendo as dimensões bio-psico-sociais
da produção da saúde e dos distúrbios psíquicos;
• identificar o psicólogo como profissional que tem compromisso social e
ético com a sociedade em que vive e atua. (FBDC, 2003, p. 7).

Como definiu duas ênfases, seguindo as orientações das DCN, quais sejam,
Práticas de Psicologia em Saúde e Práticas de Psicologia em Trabalho e
Organizações, considera, com relação à primeira, que “[...] o foco desta ênfase será
o ser humano e a saúde nas dimensões preventiva, curativa e reabilitadora, com
múltiplas possibilidades de configuração e intervenção.” (FBDC, 2003, p.7). E
agrupou em torno dessa ênfase tanto o trabalho do psicólogo junto a instituições de
saúde quanto ao trabalho clínico que se caracteriza pelo atendimento de consultório.
122

A definição por uma ênfase em saúde deve-se à própria vocação da


instituição para a área da saúde, que viabiliza não apenas uma diversidade de
campos de práticas em várias áreas da saúde tanto preventiva como curativa e
reabilitadora, mas, além disso, proporciona a interlocução com outros campos do
saber da saúde, como a medicina, a terapia ocupacional, a fisioterapia, a
odontologia e a biomedicina, o que efetivamente acontece.
Com relação a Práticas de Psicologia em Trabalho e Organizações, O Projeto
Pedagógico (FBDC, 2003, p. 8) delimita que o foco desta ênfase é “[.....] o ser
humano, as relações de trabalho, o processo produtivo e o contexto de trabalho” e
também se refere às múltiplas possibilidades de configuração e intervenção.
Com este entendimento, o Curso propõe-se a promover uma formação
(FBDC, 2003, p. 9-10):

→ generalista, consistente e abrangente;

→ ativa no sentido de compreender o aluno como construtor de seu


conhecimento, estimulando a postura do agir-refletir-agir;
→ centrada em atitude científica e criativa no sentido de estimular o olhar
curioso e investigativo, avaliando o que estuda e o que faz pensar,
criticar, analisar, reformular, inventar;
→ que permita compreender as determinações econômico-sociais dos
fenômenos psicológicos;
→ que proporcione interlocução (teoria e prática) com outros profissionais
de outras áreas de Saúde através de atuação em equipe
multiprofissional;
→ que amplie as ações profissionais do psicólogo de curativa/individual/
privada para preventiva/grupal/social;
→ que proporcione acesso à multiplicidade de aportes teóricos e de
metodologias investigativas e de intervenção inerentes ao mosaico
teórico-conceitual que propõe a Psicologia, de forma crítica e reflexiva;
→ com vivências de atividades curriculares que atendam a leituras
interdisciplinares dos processos e fenômenos psicológicos, além de
procedimentos de intervenção;
→ com situações supervisionadas de intervenção (práticas e estágios) onde
o aluno e usuários possam exercitar serviço ético adequado.

Para tanto, a proposta curricular contempla Eixos Estruturantes “básicos,


específicos, e práticos” que se desdobram nos eixos temáticos propostos pelas
DCN: “Fundamentos Epistemológicos e Históricos; Fenômenos e Processos
Psicológicos Básicos; Fundamentos Metodológicos; Procedimentos para
Investigação Científica e Práticas Profissionais; Práticas Profissionais e Áreas Afins
123

contempladas no Currículo” — a estrutura curricular agrupada em torno dos eixos


temáticos assim como por semestre encontra-se no Anexo B.
A proposta metodológica do Curso de Psicologia a fim de garantir uma
coerência entre concepção, princípios, fundamentos e características do PP se auto-
refere como favorecendo “[...] o exercício dos pressupostos éticos, democráticos, de
contextualizações, conectados interdisciplinarmente, articulando teoria e prática,
contemplando temas emergentes de forma transversal e multirreferencial.” (FBDC,
2003, p. 63). Para atingimento desses objetivos, propõe “[...] ações e atividades
metodológicas que ensejam ao aluno: participação efetiva, dinamismo, flexibilidade,
crítica, criticidade, compromisso e responsabilidade.” (FBDC, 2003, p. 63) que
possam proporcionar uma formação atualizada e humanizante, indicando o exercício
de:

• uma prática contextuada;


• a utilização de procedimentos metodológicos de caráter emancipativo,
indispensável ao exercício de tomada de decisões;
• interação precoce com a comunidade a partir do 1º semestre;
• abordagem por eixos temáticos em detrimento de conteúdos disciplinares
isolados;
• articulação teoria/prática, observando-se o caráter, natureza e
especificidade dos conteúdos da área/disciplina, sugerindo enfoques
mais sistêmicos;
• utilização de procedimentos metodológicos que favoreçam a reforma do
pensamento que detenham a fragmentação do conhecimento,
procurando educar/ensinar/aprender de forma mais sistêmica, que
favoreçam a conexão, a religação de conteúdos, disciplinas e áreas de
estudo; e
• a interdisciplinaridade como forma de organização do trabalho
acadêmico, ou seja, o estabelecimento de intercomunicação efetiva entre
as disciplinas. (FBDC, 2003, p. 63).

Com relação à sistemática de avaliação, o PP adverte a necessidade de se


rever posicionamentos autoritários que transformam a avaliação em mecanismo de
submissão e dependência, em prol de atividades avaliativas que favoreçam a
autonomia intelectual e a participação do estudante.
Fazendo uma análise comparativa entre o currículo original do Curso de
Psicologia elaborado à luz dos princípios do Currículo Mínimo, e o novo Projeto
Pedagógico, inspirado nas proposições das Diretrizes Curriculares, verifica-se que
houve um avanço significativo, no que se refere à compreensão do processo ensino-
124

aprendizagem com adoção de práticas inovadoras como o agrupamento de


disciplinas em Eixos temáticos (transversais), a introdução de Atividades
Interdisciplinares, Atividades Complementares, Estágios Básicos e Específicos,
Trabalho de Conclusão de Curso, articulação teoria-prática em diversas disciplinas,
dentre outros. Além do mais, esse currículo foi construído com o envolvimento de
toda a comunidade acadêmica da Psicologia da Bahiana, mediante reuniões
periódicas do grupo que formulou o Projeto com os consultores e o coletivo de
professores e alunos. Pode-se verificar, porém, que ainda há uma segmentação
muito grande no currículo, com fragmentação dos conteúdos e uma seriação
peculiar aos currículos tecnicistas.

3.1.2 Construção de identidades neste Curso de Psicologia singular

A proposta desta tese é compreender como os alunos deste Curso de


Psicologia singular constroem identidades profissionais em Psicologia, com base na
vivência curricular decorrente da formação superior. Importa identificar e analisar
quais são os conhecimentos e valores que os alunos constroem e com quais
posições de sujeito se identificam para se autonomear psicólogos ou psicólogas.
Como referido anteriormente, o discurso da Psicologia é plural e, por vezes,
possui posições inconciliáveis entre si. O campo das práticas é também
diversificado, abrindo-se múltiplas possibilidades de atuação. A própria constituição
da psicologia como ciência já provocou cisões na tradição com a filosofia para
assumir um discurso iluminista de ciência e hoje incorpora contribuições de
formulações críticas e pós-críticas em seus aportes teóricos. O mercado de trabalho
oferece possibilidades de prestígio e remuneração bastante diversificadas para os
profissionais. Entre estes há um exercício que se considera o mais “nobre” e que dá
ao psicólogo e à psicóloga o status de profissional liberal, outros que exigem uma
vinculação assalariada em instituições públicas e privadas, e ainda outros que
despontam atualmente no cenário social, no qual o profissional pode ser autônomo
em diversas áreas, embora sem exercer a clínica privada do consultório.
No plano teórico, há teorias consideradas mais profundas ou mais consistentes,
outras consideradas menos consistentes e, nesse particular, estão em jogo distintas
125

concepções de homem, de mundo e de psicologia. Diferentes epistemologias para


distintas formas de conceber a Psicologia. Eis um território de disputa, de
contestação, de questionamentos! De saberes, de poderes! Como nos ensinou
Michel Foucault (2001), o saber e o poder são mutuamente dependentes, pois não
há saber que não seja vontade de poder e nem poder que não se utilize do saber.
Politizar o currículo, hoje, significa problematizá-lo à luz de referenciais
teóricos que possam compreender as múltiplas determinações às quais está sujeito,
ultrapassando o aspecto econômico e político para incluir as dimensões étnicas,
raciais, religiosas, éticas, estéticas, lingüísticas, de gênero, geração, de tempo,
espaço, dentre outras. É, acima de tudo, abandonar as concepções naturalizantes
dos fenômenos sociais e humanos forjados na teia de relações sociais concretas e
simbólicas para exibir e compreender o interjogo de forças que configuram uma
sociedade contraditória e excludente. Como argumenta Katryn Woodward (2000,
p.20): “[...] não existe mais uma única força, determinante e totalizante, tal como a
classe no paradigma marxista, que molde todas as relações sociais, mas, em vez
disso, uma multiplicidade de centros.”
A universidade, como qualquer outra escola, constitui-se num espaço cultural
e educativo que produz uma cultura, no qual interagem os mecanismos de controle
da sociedade que inscrevem particularidades nos sujeitos. Por meio dela os agentes
sociais e políticos pensam a si mesmos, as instituições, as relações de poder, as
relações de dominação assim como a resistência e a transformação.
O currículo escolar não é neutro! Ele atende, sempre, a alguns interesses
particulares e está sempre imbricado com as relações de poder entre a sociedade e
a escola, o que lhe confere uma dimensão política. Na Escola Crítica, fala-se do
poder da ideologia, que produz os currículos e que reproduz as desigualdades
sociais e as assimétricas possibilidades de grupos distintos terem acesso a
oportunidades sócio-culturais de prestígio e sucesso.
Deste ponto em diante, deseja-se incluir uma outra dimensão das relações de
poder que perpassam a escola, considerando, além do poder da luta de classes,
aqueles poderes relacionados à cultura e à linguagem, analisando os micropoderes
que a povoam, à luz de formulações foucaultianas. Isso significa incluir manifestações
culturais dos diferentes grupos sociais que coexistem na escola, qual seja, os
étnicos, de gênero, de geração, de opção religiosa, dentre outros, que exibem a
diversidade e multiplicidade do ambiente escolar e transformam-no em uma arena
126

de disputa, em que estão em jogo interesses de grupos distintos e antagônicos. E


isso remete a uma concepção de Cultura, a qual Stuart Hall (1980) afirma como
constitutiva da vida social, como um território de lutas e contestações, no qual são
delimitados grupos que produzem sentidos e sujeitos.
Uma questão central no presente trabalho diz respeito à construção de
identidades profissionais em psicologia, com base no processo curricular de um
curso de Psicologia. Deste modo, pretende-se analisar os discursos produzidos por
alunos e professores sobre a vivência curricular, como construtora da identidade de
psicólogo ou psicóloga, analisando a Psicologia como profissão feminina. Parte-se
do princípio de que as práticas discursivas curriculares são produtoras de identidade,
impregnadas de significação que dão o sentido às posições de sujeito que modelam
práticas e as transformam, na incessante e inacabada construção da identidade
profissional.
A maioria das pessoas escolhe uma profissão ou define suas preferências por
determinadas profissões com base em sua história de vida e nas possibilidades que
o mundo real e concreto oferece-lhes em determinados momentos históricos.
Algumas profissões deixam de existir, outras são recriadas, algumas outras surgem
das demandas específicas do momento tecnológico de uma determinada sociedade;
algumas são apropriadas para serem exercidas por homens e outras por mulheres.
Este fato, muito particular, remete a uma série de justificações, como o tipo de saber
que veicula, o uso ou não da força física, o ambiente na qual precisa ser exercida,
ou quaisquer outros argumentos. Todos, no entanto, podem ser resumidos àquela
diferença que subdivide a humanidade em dois grupos: o masculino e o feminino.
Desde que nascem, as crianças são tratadas de forma diferente, a depender
de seu sexo biológico. A sociedade oferece diferentes formas de lidar, tanto física
quanto emocionalmente, com os meninos e as meninas que vão sendo introjetadas,
por cada um, de forma imperceptível.
Pode-se até dizer que o “treino” das profissões inicia-se quando da escolha
das brincadeiras, na tenra infância, quando as meninas ganham bonecas, berços,
fogões e panelinhas de presente e são estimuladas a ajudar suas mães nos
afazeres domésticos enquanto aos meninos são oferecidos presentes, brincadeiras
e jogos que estimulam a competitividade, a força física e a agressividade.
Embrionariamente aí estão, as professoras, as enfermeiras, as donas de casa, as
empregadas domésticas, as psicólogas e também os bombeiros, os pescadores, os
127

aviadores, os empresários, os executivos, os engenheiros, os físicos, dentre outras


profissões.
A escola, nesse intento, tem papel fundamental, não apenas nas séries
iniciais, mas durante todo o percurso escolar dos alunos e alunas. Os valores
relacionados à hierarquia de gênero, na escola, perpassam o cotidiano escolar
independente do nível da educação formal que se pratica. A educação tem se
revelado um campo fértil para a reprodução das desigualdades sociais e nela se
insere a desigualdade de gênero.
Guacira Louro (1997, p. 57) afirma:

Diferenças, distinções, desigualdades... A escola entende disso. Na


verdade, a escola produz isso. Desde seus inícios, a instituição escolar
exerceu uma ação distintiva. Ela se incumbiu de separar os sujeitos –
tornando aqueles que nela entravam distintos dos outros, os que a ela não
tinham acesso. Ela dividiu também, internamente, os que lá estavam,
através de múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento,
hierarquização. A escola que nos foi legada pela sociedade ocidental
moderna começou por separar adultos de crianças, católicos de
protestantes. Ela também se fez diferente para os ricos e para os pobres e
ela imediatamente separou os meninos das meninas.
Concebida inicialmente para acolher alguns – mas não todos – ela foi,
lentamente, sendo requisitada por aqueles/as aos/às quais havia sido
negada. Os novos grupos foram trazendo transformações à instituição. Ela
precisou ser diversa: organização, currículos, prédios, docentes,
regulamentos, avaliações iriam, explícita ou implicitamente “garantir” – e
também produzir – as diferenças entre os sujeitos.

Gabriela Castellanos (1994) refere que aqueles espaços onde os gêneros


parecem menos relevantes são, na verdade, aqueles em que ele é mais pertinente.
E isso vale para a escola. Tomaz Tadeu Silva (1999, p. 97) afirma: “[...] o currículo é,
entre outras coisas, um artefato de gênero: um artefato que, ao mesmo tempo,
corporifica e produz relações de gênero.” Ao discutir a relação entre gênero e
currículo, o autor esclarece que, enquanto reflete uma epistemologia dominante, o
currículo representa uma cosmovisão masculina. Sabe-se que onde existem
diferenças estão implicadas as relações de poder. Por isso, a questão do conteúdo
escolar é importante; a seleção deles pode indicar quais divisões sociais estão
sendo privilegiadas e legitimadas, assim como a das metodologias, as formas de
avaliação e a gestão das relações entre as pessoas. Se for mais conservadora, a
escola, vai reforçar, naturalmente, as discriminações sociais, sexuais e raciais, a divisão
entre o trabalho intelectual e o braçal, a importância da autoridade do professor. Se
128

for mais inovadora, abrem-se possibilidades para questionamentos e novas


perspectivas instalam-se. A escola, certamente, poderá estar mais voltada para a
incorporação das transformações sociais e mais atenta às necessidades do aluno.
A formação profissional, nas práticas cotidianas acadêmicas do Curso de
Psicologia que se estuda e também das não acadêmicas, aquelas de suas vidas
social e privada, possibilita aos estudantes apropriarem-se de determinados
discursos que produzem sentido frente à profissão.
O fato de estar situado em uma instituição de saúde, por si só, já produz uma
marca identitária nos estudantes, especialmente dentro de uma Faculdade de
Medicina, que, como é de domínio público, constitui-se na profissão mais valorizada
socialmente na área da saúde. Partilhar desse espaço físico e simbólico também
traz repercussões na forma como os alunos de Psicologia se percebem, porquanto a
instituição formadora com tradição e credibilidade social construída ao longo de sua
história no ensino superior provoca uma respeitabilidade e uma repercussão social
que conferem prestígio e destaque social a seus alunos.
Além do mais, o Campus onde o curso está situado abriga simultaneamente o
Pavilhão de Aulas, um Ambulatório Docente Assistencial com uma grande
diversidade de clínicas médicas, uma Clínica de Fisioterapia, outra de Terapia
Ocupacional, além do Serviço de Psicologia, todos em funcionamento com
atividades docentes e assistenciais, freqüentadas por pacientes, profissionais,
estudantes, professores e funcionários. As áreas de convivência comum, como
biblioteca, cantina, saguão e estacionamento, são compartilhadas por todos, numa
convivência marcada pelo “ambiente da saúde”. Os acessos às salas de aula são
prioritariamente utilizados por alunos e professores, porém, nas demais
dependências, o trânsito de pacientes ou usuários dos serviços é realizado
livremente, numa convivência entre todos. Neste cenário, pode-se perceber que
circulam e disputam-se discursos desses distintos saberes, demarcando suas
fronteiras simbólicas e até físicas de ocupação dos espaços que formam uma cultura
singular para um Curso de Psicologia.
Com esse vasto campo de práticas e outros proporcionados pela própria
instituição em suas dependências em outros campi, ou mediante convênios próprios
ou da instituição, é muito fácil para o Curso viabilizar e para os estudantes de
Psicologia transitar pela área da saúde e aprenderem a valorizar o exercício clínico
na perspectiva curativa, reparadora. Afinal, na relação saúde-doença, para os
129

profissionais com os quais convivem no espaço escolar diariamente, a doença


sempre tem o peso maior e é necessário enfrentá-la para remediar e curar.
Na estrutura curricular do Curso e na escolha do corpo docente foi levada em
consideração a multiplicidade e diversidade da psicologia, havendo profissionais
com orientações teóricas de diversos matizes do mosaico teórico-conceitual da
psicologia. E isso também constitui-se em elemento fundamental da cultura que se
constitui com o curso.
A diversidade de grupos que compõem a cultura do Curso de Psicologia em
estudo possibilita a reflexão sobre a questão da multiculturalidade, compreendendo-
a como as complexas e polêmicas articulações que se dão entre a cultura e o
currículo e representam as transformações culturais que estão se dando nessa
transição do século XX para o XXI nas sociedades ocidentais. O novo ambiente que
se cunhou de pós-modernidade, questiona não apenas a tradição iluminista do
currículo tecnicista, mas também os postulados da teoria crítica, por considerá-los
reducionistas.
Teresinha Fróes Burnham (1998) considera o currículo como processo social,
cujo papel principal é contribuir para o acesso dos alunos a diferentes referenciais
de leitura de mundo e de vivências que os constituam como sujeitos de sua história
pessoal e da sociedade, A autora entende a escola como uma complexidade, cuja
ótica multirreferencial permitirá uma abertura para a convivência da diversidade e da
multiplicidade, permitindo “[...] o olhar por diferentes óticas, a leitura através de
diferentes linguagens, enfim, a compreensão por diferentes sistemas de referência.”
(FRÓES BURNHAM, 1998, p. 44). Cultiva, portanto, o espaço para a convivência e a
valorização de vários tipos de linguagens, de valores, crenças, peculiaridades dos
diversos grupos sociais que convivem na escola, fazendo a interlocução com todos
esses tipos diferenciados de saberes.
Gimeno Sacristán (1995, p.83), por sua vez, advoga um currículo multicultural
que pretende “[...] fazer da escola um projeto aberto, no qual caiba uma cultura que
seja um espaço de diálogo e de comunicação entre grupos sociais diversos”, onde
os interesses dos vários grupos culturais sejam representados. Gimeno Sacristán
(1995, p. 88) adverte:

Quando entendemos a cultura não como os conteúdos-objetos a serem


assimilados, mas como o jogo de intercâmbios e interações que são
estabelecidos no diálogo da transmissão-assimilação, convém estarmos
130

conscientes de que em toda experiência de aquisição se entrecruzam


crenças, aptidões, valores, atitudes e comportamentos, porque são sujeitos
reais que lhes dão significados, a partir de suas vivências como pessoas.

Num exercício de aproximação, pode-se recorrer a essas formulações para


compreender a cultura e o currículo do curso de Psicologia que se discute, buscando
elucidar alguns embates entre os discursos que se estabelecem no âmbito da
instituição. Pode-se enumerar desde a disputa pelas posições de prestígio e poder
que as profissões de saúde têm entre si e também em relação a outras áreas
profissionais até aqueles que caracterizam os saberes próprios das correntes
teóricas da psicologia, sem esquecer o peso da presença feminina nessas
profissões, o que configura Gênero, e as questões de classe social, raça e opção
religiosa, dentre outras, presentes no dia-a-dia de todos.

O advento das formulações pós-estruturalistas e as teorizações dos Estudos


Culturais que tentam compreender a complexidade e as contradições inerentes a
formas culturais distintas de vivenciar a vida cotidiana, tentando entendê-las não
apenas como instrumentos de dominação, mas também de resistência e
transformação (ESCOTEGUY, 2003), possibilitaram a brecha para o entendimento
do currículo como discurso.

Nessa perspectiva, o currículo é entendido e problematizado como uma


narrativa que produz significados e pode legitimar o privilégio e o poder de grupos
dominantes, conter processos de luta e significado de grupos marginalizados ou
fomentar diversidades e reconhecimento de grupos que lutam para afirmar seus
posicionamentos. E isso estrutura identidades. Os significados produzidos pelos
currículos, portanto, não fixam necessariamente identidades hegemônicas, mas
diversificadas e plurais.

O discurso como prática social, como propõe Foucault (1999 e 2001b), não
pode ser entendido separadamente das práticas não discursivas. Interpela os
sujeitos a ocuparem determinadas posições sociais, com base na identificação com
determinados discursos que vão dizer exatamente o que se é e o que não se é ou
não quer ser, em dado momento. Por meio da análise desses discursos, é possível
compreender como determinadas identidades foram forjadas e abre-se a
possibilidade de construir novas identidades, mediante narrativas diferentes, plurais,
e contra hegemônicas.
131

Considerando o currículo como discurso atravessado por determinantes


culturais dentre eles gênero, em oposição à linearidade e compartimentalização do
currículo tecnicista como representante legítimo da concepção tecnicista de
educação, pode-se convocar o conceito de complexidade31 de Edgar Morin (2001)
como uma possibilidade para ultrapassar o descompasso que se interpôs entre as
agências formadoras, as concepções contemporâneas do conhecimento e as
modificações sociais, com vistas à formação de seres humanos mais críticos e
criativos, dotados de um aparato teórico-metodológico capaz de enfrentar os
desafios e as incertezas colocados pelo cotidiano. Foi nessa perspectiva que se
introduziram as modificações do curso em tela, conforme já discutido neste capítulo.
A complexidade, do ponto de vista moriniano, é vista como uma alternativa
para vencer a questão da fragmentação do conhecimento. Supõe que se faça uma
reforma do pensamento, conforme propõe em seu livro A cabeça bem feita (MORIN,
2000). Esta reforma, entretanto, passa necessariamente pela reforma da Universidade
e necessita aderir ao pensamento complexo que liga e enfrenta a incerteza.

O pensamento que une substituirá a causalidade linear e unidirecional por


uma causalidade em círculo e multirreferencial; corrigirá a rigidez da lógica
clássica pelo diálogo capaz de conceber noções ao mesmo tempo
complementares e antagonistas, e completará o conhecimento da
integração das partes em um todo, pelo reconhecimento da integração do
todo no interior das partes. (MORIN, 2001, p. 93).

O pensamento complexo, que se traduz em teorias, práticas, discursos,


atitudes, é aquele que distingue, relaciona, une, dialoga e reconhece a
multiplicidade. Não separa o sujeito do objeto e os inclui em um contexto sistêmico.
Para Morin (2001, p. 96), a reforma do pensamento é

[...] paradigmática, e não programática: é a questão fundamental da


educação, já que se refere à nossa aptidão para organizar o conhecimento
[...] é ela que permitiria a adequação à finalidade da cabeça bem-feira; isto
é, permitiria o pleno uso da inteligência. Precisamos compreender que
nossa lucidez depende da complexidade do modo de organização de
nossas idéias.

Considerando que a educação escolar, em qualquer nível de ensino, não


transmite apenas conhecimentos, mas fabrica sujeitos, produzindo identidades

31
Para Morin (2001, p. 89): “Complexo é o que é tecido junto.”
132

profissionais, étnicas, religiosas, raciais, de gênero, dentre outras, enquanto


produtora de sentidos proporciona uma multiplicidade de sentidos possíveis de
serem atribuídos aos sujeitos e a suas práticas escolares.

São esses sentidos, atribuídos pelos alunos do Curso de Psicologia em


questão à construção de suas identidades profissionais de psicólogos e psicólogos,
que se constituem no foco dos capítulos seguintes, nos quais serão descritos e
analisados os dados da pesquisa realizada.
Eu acho que se eu ficasse aqui a manhã toda
eu ia botar um monte de coisa nessa folha,
mas acho que também é legal ficar espaço em branco,
que é a possibilidade de construção, ainda.
E aí, eu sou essa interrogação,
esse momento,
como é para a gente se ver nesse momento...
134

4 A PSICOLOGIA E O SER PSICÓLOGO – POSICIONAMENTOS PRÉVIOS

O presente capítulo propõe-se a apresentar as concepções que os alunos do


Curso de Psicologia em foco têm da Psicologia e da profissão ao ingressar no
Curso, com base na análise de um questionário respondido no primeiro dia de aula
de cada semestre. Construído com questões abertas, este instrumento pretende
verificar o entendimento que os alunos demonstram ter sobre a Psicologia e a
profissão, da forma como é elaborada no senso comum. Era necessário aplicá-lo no
primeiro dia de aula porque se desejava que não houvesse, nesse momento,
nenhuma interferência do Curso para instrumentalizar o aluno sobre o tema.
A despeito de não ter sido construído com o propósito específico desta tese,
compunha um banco de dados sobre o curso e pôde ser utilizado como ponto de
partida para o desenvolvimento deste estudo, porquanto atendia aos requisitos para
ser considerado o marco zero da pesquisa. As respostas dos alunos foram um dado
decisivo na constituição da pesquisa, pois, com base nesse instrumento, verificou-
se, mediante a realização de Grupos Focais, como alguns alunos ressignificaram
essas concepções no decorrer do processo curricular que vivenciaram na formação
universitária.
Foi realizada, portanto, a condensação e análise das respostas destes
questionários, que somavam 151 e diziam respeito a alunos ingressos em oito
semestres de 2000 a 2003. Nele, os alunos puderam evidenciar suas concepções
sobre a psicologia e a profissão de psicólogo e psicóloga, além de referirem seu
investimento pessoal na profissão. A análise dessas respostas constitui-se no
conteúdo deste capítulo.

4.1 CARACTERIZANDO OS SUJEITOS

Como referido anteriormente, ao decidir fazer esta pesquisa, tomando como


campo empírico um Curso de Psicologia singular, fez-se necessário delimitar um
universo de turmas a ser estudado, tendo em vista que o Curso continua a funcionar
e que o ingresso de novos alunos ocorre semestralmente, de forma ininterrupta.
135

Como relatado na introdução, considera-se, para efeito do presente estudo, as oito


primeiras turmas do curso, desde sua implantação em 2000 até 2003. Convém
esclarecer que os alunos que responderam ao questionário fazem parte das
mesmas turmas que foram convidadas a participar dos Grupos Focais. O
preenchimento do questionário, anônimo, teve um caráter compulsório, pois foi
respondido por todos os alunos presentes no primeiro dia de aula. A participação
nos Grupos Focais, entretanto, foi uma adesão dos alunos ao convite da
pesquisadora. As turmas subseqüentes a 2003 não foram consideradas no universo
desta pesquisa porque ingressaram após a condensação e análise dos
questionários.
Entre 2000 e 2003, com oito entradas de vestibular, o Curso de Psicologia
matriculou 387 estudantes, sendo 332 (86,69%) do sexo feminino e 55 (13,31%) do
sexo masculino. Desse universo de alunos, havia 151 questionários respondidos, os
quais foram tabulados e são aqui analisados. Dentre estes 126 foram respondidos
por mulheres e 25 por homens, o que perfaz 80,16% e 19,84%, respectivamente, do
total da amostra de 151 sujeitos que responderam ao questionário.
De acordo com a Tabela 1, podemos verificar que se trata de um grupo de
estudantes muito jovens, com quase 70% deles na faixa etária entre 16 e 19 anos de
idade. Observe-se que, em se tratando de questionário inicial, este dado refere-se à
idade de ingresso no Curso.

Tabela 1 – Faixa etária dos estudantes

IDADE Masculino % Feminino %

16 a 19 anos 17 68,00% 88 69,84%


20 a 23 anos 6 24,00% 31 24,60%
mais de 24 anos 1 4,00% 7 5,56%
Não respondeu 1 4,00% 0 0,00%
Total 25 100,00% 126 100,00%

Com relação ao perfil sócio-econômico, pode-se verificar que a grande


maioria desses alunos pertence a famílias que possuem renda familiar acima de dez
salários mínimos, conforme Tabela 2. Um dado curioso é que, em torno de 50%
136

deles informam que os pais (44,3% pai e 45,6% mãe) possuem nível superior de
educação; 20% colocam a profissão do pai como empresário, sem especificar nível
de instrução, enquanto apenas 9,9% referem-se à mãe como dona de casa.

Tabela 2 – Renda familiar dos estudantes

RENDA FAMILIAR Masculino % Feminino %

02 salários mínimos 1 4,00% 1 0,79%

03 a 05 salários mínimos 2 8,00% 20 15,87%

05 a 10 salários mínimos 4 16,00% 21 16,67%

mais de 10 salários
18 72,00% 75 59,52%
mínimos

Não respondeu 0 0,00% 9 7,14%

Total 25 100,00% 126 100,00%

Considerando os dados da matrícula (86,69%) e a proporção de alunas que


responderam ao questionário (80,16%), pode-se afirmar que o afluxo de alunas a
este Curso de Psicologia corrobora estudos anteriores que configuram a Psicologia
como profissão feminina (ACHCAR; BASTOS, 1994; CASTRO; YAMAMOTO, 1998;
CFP, 1988, 1992; 2001, 2004; PASSOS, 1997; SANTOS, 1999).
A pesquisa de Elizete Passos (1997) sobre “Gênero e Universidade”,
realizada na UFBA, levantou dados de matrícula referentes ao período de 1974 a
1994, que permitiram afirmar a existência, de fato, de profissões com preferência
masculina ou feminina. Este fato define a existência de profissões marcadas pelas
diferenças de Gênero. Nos achados dessa pesquisa a autora pôde verificar, no
Curso de Pedagogia, que 95% dos alunos matriculados eram do sexo feminino,
enquanto apenas 5% pertenciam ao sexo masculino. Essas proporções repetiam-se
nos Cursos de Secretariado (98% e 2%), Enfermagem (96% e 4%), Nutrição (97% e
3%) e invertiam-se no Curso de Engenharia Mecânica. Neste, no mesmo período,
99% dos alunos matriculados pertenciam ao sexo masculino, enquanto apenas 1%
era do sexo feminino. Mantêm-se proporcionalidades semelhantes no Curso de
Engenharia de Minas (95% e 5%) e Engenharia Elétrica (93% e 7%). Situam-se
137

ainda como Cursos, cuja presença feminina constitui-se menos de 20% do total de
alunos, o Curso de Engenharia Civil (16%), Física (15%) e Agronomia (18%).
Esses dados apontam para a forma como as sociedades ocidentais têm
produzido desigualdades fundadas nas diferenças, em especial na de gênero,
oriundas do modelo de razão moderna que produz a separação entre sujeito e
objeto, público e privado, cultura e natureza, razão e emoção, objetivo e subjetivo,
dentre outras dicotomias, estabelecendo uma relação de hierarquia e submissão do
segundo elemento ao primeiro.
Seguindo esta lógica, numa sociedade regida por uma ordem patriarcal32, as
profissões ditas masculinas priorizam o desenvolvimento do raciocínio lógico, do
pensamento abstrato, guiadas pela razão e pela força que poderão dar ao homem
as possibilidades de realizar conquistas, de exercer posições de mando e poder, tal
como se espera do homem ocidental, enquanto para as mulheres estão destinadas
as profissões que se identificam com seus “dotes naturais”. São, portanto,
“apropriadas” para elas, aquelas profissões que proporcionam a continuidade do lar,
preferencialmente exercidas em ambiente fechado, onde são necessárias
qualidades “inerentes” à maternidade e ao cuidado com o lar e com os outros,
incluindo, como o outro de maior peso, os filhos.
No caso do Curso de Psicologia da UFBA, no período de 1974 a 1994, a
pesquisa de Elizete Passos (1997) revela que 18% dos alunos matriculados eram do
sexo masculino, enquanto 82% eram do sexo feminino. Esses dados permitem
afirmar que a Psicologia é uma profissão marcada pelo estigma de Gênero.
Considera-se que a Educação promovida por agências de formação,
quaisquer que sejam, não possuem, em si, atributos que possam qualificá-las como
masculino ou feminino, ou como veiculadoras de um saber superior ou inferior. As
profissões consideradas masculinas ou femininas estão impregnadas da construção
histórico-social do ser homem e do ser mulher em determinada sociedade, exibindo
a marca de Gênero.

4.2 ANALISANDO DADOS DO QUESTIONÁRIO INICIAL

32
Patriarcado – teoria social que postula uma forma de hierarquia social, em que os homens são os
detentores do poder e as mulheres estão a eles subordinadas, numa relação em que a autoridade
social é exercida por meio dos papéis de pai e de marido.
138

O Questionário (Anexo A), aplicado aos alunos, no primeiro dia de aula, não
foi intencionalmente elaborado para coletar dados para esta pesquisa singular.
Pretendia conhecer o entendimento demonstrado pelos alunos sobre a Psicologia e
a profissão, uma vez que estavam se candidatando à profissão de psicólogo e
ingressavam em um curso superior de Psicologia. Havia também o interesse inicial
de registrar os motivos referentes à escolha profissional e à expectativa futura de
atuação, dados que deveriam compor um banco de informações sobre o Curso, para
posterior análise.

Em se tratando de um questionário com perguntas abertas, procedeu-se a


uma primeira tabulação que, se considerada de forma de linear, apresenta respostas
soltas. A análise das respostas, entretanto, revelou-se mais consistente quando se
desconsiderou a seqüência das perguntas, da forma como haviam sido organizadas,
agrupando-as em três categorias, a saber:

• caracterização da profissão – perguntas: 1) O que é a Psicologia?; 3) O


que é para você ser psicólogo?; e 8) Quando você acha que deve procurar
um psicólogo?;

• caracterização do profissional – perguntas: 4) Para você o que faz um


psicólogo?; 9) Onde trabalha o psicólogo?; 6) O psicólogo trabalha com...;
7) Que qualidades pessoais você acha que um psicólogo deve ter?;

• investimento pessoal na profissão – perguntas: 10) Por que você escolheu


ser psicólogo?; 11) Em que área/atividade você pretende trabalhar como
psicólogo?

É importante esclarecer que a questão nº 2, sobre o fato de conhecer algum


psicólogo, não foi agregada à análise da caracterização da amostra dos estudantes,
enquanto a de nº 5 (Quando pensa em psicólogo, você lembra...) foi desconsiderada,
em função da multiplicidade de associações que suscitou nos alunos, o que
impossibilitou juntá-la a qualquer uma das três categorias definidas para análise.
139

Os dados estão desagregados em masculino e feminino, a fim de tornar mais


evidente o recorte de Gênero.

4.2.1 Visão da profissão

Ao caracterizar a Psicologia, os estudantes que ingressaram no Curso, em


sua grande maioria (89,6% para mulheres e 96% para os homens), consideraram a
Psicologia como ciência, mas entenderam diferentemente seu objeto de estudo. Os
alunos referiram-se ao estudo do comportamento, da mente, das relações humanas,
da psique, da alma, dentre outras respostas.
Fica evidente a existência de uma multiplicidade de possíveis objetos de
estudo para a Psicologia, o que traz, de alguma forma, a historicidade do
desenvolvimento desta ciência ou, pelo menos, a inexistência de uma compreensão
única para o que seja esta ciência. Considerando-se que o termo psicologia deriva
da junção de dois vocábulos gregos (psyché e logos), cujo significado é o estudo da
alma, o objeto da Psicologia evoluiu e diversificou-se, desde que o saber da filosofia,
passou pela adesão ao modelo positivista, para obter foro de ciência no século XIX,
até os dias de hoje. Neste período de civilização ocidental, a Psicologia vem
deslocando e incorporando outros objetos de estudo, ampliando seu leque de
interesses e evidenciando a complexidade que a constitui.
Com relação ao objeto de estudo, então, a Psicologia, historicamente, pode
ser definida de várias formas: como estudo da alma (na perspectiva da filosofia), da
consciência (para a psicofisiologia e a psicofísica), do comportamento (na
perspectiva da psicologia behaviorista), da subjetividade humana (nos estudos de
orientação psicanalítica), das relações humanas (do ponto de vista das teorias de
fundamentação humanista), dos fenômenos psicológicos (na perspectiva sócio-
histórica), dentre muitas outras possibilidades.
Sabe-se que esses objetos de estudo configuram, além de momentos
históricos diferentes para o desenvolvimento da ciência psicológica, correntes
teóricas distintas, que estabelecem uma tensão no seio da Psicologia, visto que,
inspirados num modelo de conhecimento positivista, travaram ou ainda travam
muitos embates, aspirando cada qual ser a “verdade” da psicologia.
140

E hoje, ancorados em um paradigma de ciência que advoga a existência de


“verdades” como fenômenos complexos, circunscritos a questões espaço temporais
e submetidos a múltiplas determinações, e o conseqüente reconhecimento da
multiplicidade e aceitação da diversidade, pode-se falar da Psicologia como uma
ciência cuja identidade é conferida por um mosaico teórico-conceitual em permanente
tensão e movimento (BOCK, 1999; CARPIGIANI, 2000; LANE; CODO, 1984).
A despeito desta complexidade e diversidade teórica que orienta a práxis do
psicólogo, e que extrapola os ambientes que congregam psicólogos para uma
visibilidade social, a Psicologia, enquanto profissão, é predominantemente
identificada com o exercício clínico realizado em consultório particular, na
perspectiva de um atendimento “curativo/resolutivo” para problemas de ordem
“psicológica/privada” de pessoas com dificuldades pessoais.Esta é uma posição que
pode ser considerada hegemônica para a representação social do trabalho do
psicólogo. E isso é verificado nas respostas dos questionários dos estudantes,
notadamente quando se analisam duas perguntas (o que é ser psicólogo e quando
se deve procurar um psicólogo) em conjunto.
No Gráfico 1, está caracterizado o psicólogo como profissional de ajuda, com
aproximadamente 70% do total de respostas de ambos os sexos, quando se utilizam
os verbos ajudar e entender.

Não respondeu

Outros

Cura

Ouve

Cuida

Resolve

Entende (compreende / connhece)

Ajuda e entende

Ajuda (ajuda / auxilia / orienta / esclarece)

0,00% 5,00% 10,00 15,00 20,00 25,00 30,00 35,00 40,00 45,00 50,00
% % % % % % % % %

Fem. Masc.

Gráfico 1 – Psicólogo - profissional de ajuda


141

Verifica-se, no entanto, na perspectiva masculina, que a ajuda está associada


ao cuidar, mas também a uma vertente resolutiva e até de cura, o que se diferencia
do entendimento das mulheres, para quem a ajuda está mais associada ao
compreender e ao ouvir. Essa concepção de ajuda fica mais evidente quando se
observa que a procura ao profissional da psicologia deve ocorrer, do ponto de vista
dos estudantes, quando surgem problemas de natureza subjetiva que as pessoas
(candidatos a atendimento psicológico) não conseguem resolver sozinhas e buscam
um profissional para auxiliá-las. Em suas respostas, dentre outros depoimentos
semelhantes, afirmam que se deve procurar um psicólogo:

[...] quando se está desestabilizado emocionalmente.

[...] quando o problema está além da compreensão de pessoas sem experiência no


assunto.

[...] quando se precisa de alguém para ajudar a se entender, a se encontrar.

Essas evidências apontam para uma concepção de profissional da psicologia


do ponto de vista tradicional, como o profissional da clínica, que atua numa área
curativa, visto que deverá ajudar a solucionar ou resolver problemas, tal como no
modelo médico. Nesse particular, os depoimentos apontam para um entendimento
da clínica como sinônimo de prática psicoterápica em consultório. A esse respeito,
Rosemary Achcar e Antonio Bastos (1994, p. 249) esclarecem:

Uma atuação centrada no indivíduo voltada para mensurar atributos


psicológicos e para solucionar ou amenizar problemas ou distúrbios
psicológicos tem dimensões básicas que definem o que se chama atuação
clínica em psicologia. A força que tal tipo de intervenção exerce na definição
da identidade do profissional de psicologia extrapola, largamente, o que se
convencionou chamar de área clínica e atravessa a atuação do psicólogo
em diversos outros contextos de trabalho.

E isto quer dizer que este modelo estereotipado, de fato, povoa o imaginário
social da profissão e é alimentado pelos posicionamentos dos próprios psicólogos.
Branco (1998) concorda com esse pensamento, acrescentando que a referência do
consultório é tão importante para a construção da identidade do psicólogo que,
quando não trabalha no consultório, ele tem dificuldade na construção de suas
identificações como profissional.
142

Este dado revela-se muito importante, porque demonstra como se dão às


relações entre os psicólogos e a sociedade. Aponta também para a maneira como
os cursos de formação têm trabalhado para manter uma posição quase hegemônica
da psicologia, privilegiando um modelo biomédico de prática psicoterápica, em que
estão em jogo, numa relação linear, a “cura” para a “doença” ou a “solução” para o
“problema”. E esta, enquanto visão reducionista para a clínica, o é também para a
diversidade de possibilidades de atuação do psicólogo, especialmente no cenário
social que se esboça na sociedade contemporânea, com novas configurações que
incitam a criatividade para desbravar novos campos de trabalho e criar práticas
inovadoras.
A referência do consultório como um dado muito importante para a construção
da identidade do psicólogo, referida por Rosemary Achcar e Antonio Bastos (1994) e
Maria Tereza Branco (1998), revela-se com igual peso para uma ocupação feminina,
porquanto a clínica atende aos ideais sociais do trabalho da mulher que, via de
regra, precisa dividir suas atribuições profissionais com as tarefas domésticas, entre
elas, a de cuidar dos filhos. É a atividade no consultório, porém, como profissional
autônomo, sujeito a todas as prerrogativas e encargos exigidos pela legislação
desse tipo de trabalho, que confere ao psicólogo e à psicóloga o status de
profissional liberal, assegurado pelo Parecer 403/62 (CFE, 2006).
O exercício clínico em consultório privado revela-se a prática preferida pelos
psicólogos e psicólogas, conforme pesquisas realizadas em âmbito nacional e
anteriormente referidas; este é também o projeto idealizado pelos alunos que
ingressam nessa formação no Curso de Psicologia em foco.
Em se tratando de trabalho autônomo, que pode ser realizado em qualquer
turno, inclusive à noite, permite uma grande flexibilidade de horário, favorecendo os
arranjos domésticos, mesmo que não proporcione proventos substantivos à
profissional e, nesse particular, propicia que a renda da mulher possa ser
considerada como renda complementar no orçamento doméstico, não sendo
decisiva ou determinante do padrão de vida familiar. Neste sentido, corrobora o que
diz Luiz Scorzafave (2005) sobre a participação da mulher no Mercado de Trabalho.
Via de regra, do ponto de vista da família tradicional, cabe ao homem, quando
presente na vida familiar e dividindo o mesmo domicílio, a função de provedor,
podendo a mulher ajudar na renda familiar, desde que não decline de cumprir suas
obrigações de esposa e mãe (SAFFIOTI, 1992).
143

Em 1989, em uma edição dedicada à discussão de questões relacionadas ao


ensino da Psicologia, intitulada Os Dilemas da Formação do Psicólogo, Antonio
Bastos e Paula Gomide (1989, p.7-8), a respeito da psicologia como profissão
feminina, defendem: “[...] esse dado é importante para a compreensão de vários
aspectos ligados ao exercício profissional, como por exemplo, o entendimento das
mulheres do que seja uma profissão complementar a sua atividade principal – o
casamento [...]”
Referindo-se a aspectos salariais das psicólogas, os autores citados afirmam
que, embora sendo profissionais liberais autônomas, a renda das psicólogas
brasileiras não se diferencia de outras profissões consideradas femininas, que numa
sociedade estruturada sob a égide masculina, são desvalorizadas no mercado de
trabalho. E sobre carga horária dedicada ao trabalho, Antonio Bastos e Paula
Gomide (1989) sustentam que a média de carga semanal trabalhada pelas
psicólogas é inferior à da média de outras profissões no Brasil.
Estudos realizados por Luiz Guilherme Scorzafave (2001), a respeito da
participação das mulheres no Mercado de Trabalho, utilizando-se da Taxa de
Participação na Força de Trabalho (TPFP), indicam que a decisão das mulheres em
entrar na força de trabalho está condicionada a fatores outros alheios a si própria e
que dizem respeito a suas condições familiares. Argumenta o autor: “[...] a renda de
outros membros do domicílio, o número de filhos pequenos, a presença de adultos
no domicílio, e a posição da mulher na família são fatores que influenciam tal
decisão.” (SCORZAFAVE, 2001, p. 5).
Essa assertiva, quando confrontada com os dados até agora analisados,
configura a psicologia como uma profissão feminina.

4.2.2 Aspectos relevantes do profissional

Das perguntas do questionário, quatro contemplam dados que se referem ao


profissional da psicologia. A análise conjunta permitirá caracterizar este profissional
do ponto de vista dos estudantes. Trata-se das perguntas: “o que faz o psicólogo”;
“onde trabalha o psicólogo”; “o psicólogo trabalha com...”; “quais são as qualidades
pessoais que o psicólogo precisa ter?”
144

Como referido anteriormente, para que um fazer profissional seja considerado


como uma profissão, é necessário que se delineie como um trabalho especializado e
seja teoricamente fundamentado, além de se balizar em proposições éticas e ser
regulamentado oficialmente pelo Estado, como propõem Fernanda Pereira e André
Pereira Neto (2003).
Os estudantes da pesquisa em foco, ao ingressarem no Curso de Psicologia,
em conformidade com o que anteriormente responderam sobre a profissão,
caracterizam o psicólogo como profissional de ajuda, conforme se pode verificar no
Gráfico 2:

Outros

Não respondeu

Pesquisa / estuda

Cura / recupera / soluciona

Cuida

Ajuda-se

Ajuda

0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00% 70,00% 80,00%

Fem. Masc.

Gráfico 2 – Psicólogo: um profissional da ajuda

Observe-se, porém, que a ajuda, do ponto de vista masculino, está associada


a uma perspectiva de cura, recuperação e resolução. Alguns depoimentos
masculinos enunciam:

O psicólogo, com bases empíricas, procura solucionar problemas individuais ou


sociais de aspecto psíquico, comportamental etc.

Orienta, ajuda, muitas vezes, reconstrói a vida.

A perspectiva clínica da Psicologia revela uma característica peculiar dessa


profissão que a coloca na fronteira entre o cuidar e o curar, como pode ser
constatado em levantamentos realizados em outras pesquisas. Essa proposição, a
princípio, coloca a profissão da psicologia num terreno de disputa, em que estão em
145

jogo os poderes de quem cura em oposição às tarefas de quem cuida, conforme


discute Elizete Passos (1997). De acordo com Joan Tronto (1997), as profissões que
assumem características de “cuidar de” referem-se a tarefas que não podem mais
ser realizadas no âmbito familiar, mas identificam-se com os atributos femininos.
Questionados sobre onde trabalha o psicólogo, as respostas dos estudantes
estão representadas no Gráfico 3:

Outras áreas

Ong´s

Escolas

Empresas / Organizações

Consultório

Clínicas

Hospitais

0,00% 5,00% 10,00% 15,00% 20,00% 25,00%

Fem. Masc.

*Nesse gráfico foram considerados os números de ocorrência

Gráfico 3 – Psicologia – áreas de atuação

É interessante observar que, neste aspecto, homens e mulheres possuem, de


fato, informações sobre as áreas tradicionais de atuação da psicologia, mas nenhum
homem referiu-se à possibilidade do psicólogo trabalhar em ONG. Essa resposta,
provavelmente, decorre da idéia popular que se tem desse tipo de instituição como
prestadora de serviços gratuitos a populações carentes, revestindo-se de uma nova
roupagem para instituições de caridade. E não faz parte do que se espera de um
homem nordestino, que ele realize profissionalmente trabalhos assistencialistas de
caridade. Isso é coisa de mulher!
Uma análise mais detalhada do gráfico, entretanto, revela que quase 50% das
respostas apontam para uma atuação clínica, seja em consultório, clínicas ou
hospitais, consolidando o posicionamento da psicologia no viés individualizado,
privado e também curativo e reparador, conforme discutido anteriormente. A clínica,
que mais uma vez aparece como a grande demanda dos estudantes que aspiram a
psicologia como profissão, demonstra o sonho do consultório privado, onde os
146

pacientes terão acolhida para seus segredos e sofrimentos mais intensos, com
possibilidade de resolutividade. Considere-se ainda que é o trabalho no consultório
que dá à Psicologia o status de profissão liberal e isto tem um impacto muito positivo
na sociedade, conferindo prestígio social aos profissionais.
As respostas dos alunos e alunas sobre o ser psicólogo evidenciam certa
fantasia sobre o suposto “psicólogo clínico”. Indica provavelmente que deve estar
sendo representado, tal como era exercido no início da profissão, nos idos de 1970,
conforme definem Rosemary Achcar e Antonio Bastos (1994), quando explicitam o
modelo hegemônico que caracteriza a atuação do psicólogo no Brasil. Segundo os
autores, há o predomínio das atividades clínicas, marcadas pela atuação em
consultório particular, com dedicação parcial de tempo, no exercício psicoterapêutico,
preferencialmente dirigido à clientela adulta e de classe média.
Ana Bock (1999), entretanto, ao discorrer sobre a história da Psicologia no
Brasil, assegura que a partir da década de 1980, nos meios psicológicos brasileiros,
já havia uma tentativa de reinventar o psicológico. Refere-se a um questionamento
deflagrado pelas entidades representativas da psicologia para discutir a função
social da psicologia e da profissão, redefinindo seu lugar na sociedade
contemporânea. Nesse particular, Eliane Moura (1999) adverte sobre a necessidade
de se redefinir o modelo de atuação de psicólogos, a fim de ultrapassar os limites
restritos do consultório. Isso também levou João Ferreira Neto (2004, p.163) a falar
sobre um modelo estereotipado de profissional ou seja: “[...] um modelo de prática
liberal autônoma, individual, voltada para as classes médias e altas em consultórios
particulares.” E assegura este mesmo autor que, nos dias de hoje, a clínica
psicológica vem sendo redefinida com base nas novas práticas profissionais e
propõe que ela seja pensada não mais como área de atuação, mas como uma
atitude, como ethos.
Quanto ao objeto de trabalho de psicólogos, os estudantes que responderam
ao questionário posicionaram-se, em torno de 50% para ambos os sexos,
explicitando que psicólogos trabalham com pessoas, incluindo pessoas que
necessitam de ajuda, seguindo-se, em ordem decrescente, trabalho com a mente
humana, com o comportamento, com as relações, dentre outras respostas.
É no item referente às qualidades pessoais que o psicólogo deve possuir,
entretanto, que se revela, com maior intensidade, o peso da profissão feminina. Nas
respostas dadas pelos estudantes, pode-se verificar que há diversos aspectos
147

avaliados. Algumas respostas referem-se às qualidades na ação profissional; outras


ao modo de ação profissional, aos aspectos éticos, à competência técnica e também
a aspectos pessoais. Na computação dessas respostas, foi considerado o número
de ocorrência de cada categoria citada pelos alunos e não há uma correspondência
de uma resposta para cada estudante.
Observa-se, no Gráfico 4, que a paciência aparece, nas respostas do grupo,
como a qualidade mais citada, porém, nas respostas masculinas, a paciência vem
acompanhada, em ordem decrescente, por saber ouvir/ ter atenção, equilíbrio, saber
falar e ter imparcialidade. Nas escolhas femininas, entretanto, sobressaem, junto
com a paciência, saber ouvir/ter atenção, compreensão, e sensibilidade; esta última
sequer foi citada pelo sexo masculino.

Ter amor ao trabalho

Simpatia

Ter senso crítico

Sinceridade

Responsabilidade

Vontade de ajudar

Inteligência

Saber falar

Ser ético

Competência

Ser observador

Calma

Equilíbrio

Imparcialidade

Sensibilidade

Compreensão

Saber ouvir / ter atenção

Paciência

0,00% 5,00% 10,00% 15,00% 20,00% 25,00% 30,00%

Fem. Masc.

Gráfico 4 – Qualidades pessoais do Psicólogo

Os alunos estão falando de atributos socialmente definidos como masculinos


e femininos, sem se darem conta disso, porém, evidenciam o peso de Gênero na
visão que atribuem ao profissional e à profissional. Historicamente, homens e
mulheres posicionam-se socialmente de forma assimetricamente diferente, em
decorrência dos significados simbólicos atribuídos à diferença sexual, e isso está
148

relacionado a Gênero. Esses Estudos asseguram que é no âmbito do social que se


constroem e se reproduzem as relações de desigualdade entre os sujeitos, levando-
se em conta as condições de acesso aos recursos da sociedade e às formas de
representá-los simbolicamente. Na sociedade capitalista ocidental, consoante Elizete
Passos (2001, p. 160), a desigualdade entre os sexos tem sua origem na sociedade
patriarcal

[...] que inculcou no sexo masculino a idéia de supremacia sobre o feminino,


sobre o mundo e seu destino. Eles são vistos como mais inteligentes,
capazes de formulações racionais ilimitadas, assim de uma liberdade que os
autoriza a conquistar o mundo e as pessoas, estabelecendo com elas uma
relação de mando e poder.

A noção de poder implicada nesse modelo falocrático de superioridade


masculino assenta-se nos estudos realizados por Michel Foucault (1999; 2001a).
Este autor define o poder como uma relação social e afirma que o poder não existe,
mas existem práticas e relações de poder.
Observe-se que nas respostas dos estudantes, características de sensibilidade,
simpatia e amor pelo trabalho são atributos citados apenas pelas mulheres, o que
leva à suposição de que estas estudantes estão referindo-se aos “dotes naturais” da
mulher e confirmando que a psicologia é uma profissão para mulheres.
Esses dados podem ser analisados do ponto de vista de Joan Tronto (1997,
p. 188), que estabelece a diferença entre o “cuidado com” e o “cuidado de”,
porquanto o “cuidado com” refere-se a uma perspectiva geral e, de maneira
habitual, é aquele a que os homens dedicam-se quando cuidam da profissão, da
natureza etc. O “cuidado de” exige, no entanto, uma abnegação, na qual o objeto
cuidado torna-se o centro, sendo aquele que é exercido pelas mulheres. Impõe que
a pessoa esteja disposta a trabalhar, a se sacrificar, a gastar tempo e energia e
mostrar envolvimento emocional.

4.2.3 Investimento pessoal na profissão

Questionados sobre os motivos pelos quais escolheram a profissão de


psicólogo e psicóloga, os alunos e alunas, sinteticamente, posicionaram-se da
seguinte forma:
149

Não respondeu

Outros

Está em dúvida

Descobrir o que se passa "dentro" do


outro
Interesse em estudar / entender (o
comportamento, as pessoas, a mente)

Desejo de ajudar-se

Desejo de ajudar pessoas

Vocação / identificação com a profissão

0,00% 5,00% 10,00% 15,00% 20,00% 25,00% 30,00% 35,00% 40,00% 45,00%

Fem. Masc.

Gráfico 5 – Por que escolheu ser Psicólogo?

Um contingente razoável de alunos, em torno de 40%, declarou-se


vocacionado para a Psicologia ou sente-se identificado com os atributos conferidos a
essa profissão. Observando-se as respostas dos estudantes do curso em foco,
porém, quando a maioria manifesta identificação com a profissão, as respostas
masculinas atribuem o maior peso, além da vocação, ao interesse em estudar e
entender o comportamento e a mente das pessoas, seguido do desejo de ajudá-las
Já no universo feminino, a preferência das alunas revela que a vocação é seguida
do desejo de ajudar o outro, de entender o comportamento e a mente e também do
desejo de realizar a auto-ajuda. Observe-se que os homens não se referem à
possibilidade da auto-ajuda.
Confrontando esses resultados com a pesquisa de Mauro Magalhães et al
(2001), realizada no Rio Grande do Sul, observa-se que há uma correspondência
entre as respostas que eles encontraram e as do nosso questionário, como é
possível verificar na declaração dos autores: “[...] os motivos apresentados para a
escolha da profissão foram: desejo de ajudar (75%), busca de crescimento pessoal
(20%), fascínio pelo conhecimento psicológico (62,5%) e busca de competência
interpessoal (22,5%).” (MAGALHÃES et al, 2001, p. 17). E esclarecem que esses
motivos não apareciam de forma estanque, mas estavam sempre entrelaçados.
Depreende-se da análise dos questionários dos alunos a vocação ou
identificação direcionada para a ajuda ao outro que se encontra em situação de
sofrimento. Este é, obviamente, um sofrimento psíquico, o que denota, mais uma
150

vez, a presença marcante do modelo clínico tradicional no imaginário dos alunos,


conforme discutido, e pode ser ilustrado com os seguintes depoimentos:

[...] sou encantada em relação ao ser humano, seu comportamento, seus problemas
da subjetividade e ajudar as pessoas em relação a isso, é o que eu quero.

[...] porque me identifico muito com a Psicologia e tenho verdadeira paixão e


admiração por tal.

[...] porque percebi que tinha vocação para ouvir pessoas, ajudar em seus
problemas, dividir suas alegrias e dúvidas e auxiliar no que puder para que as
pessoas as quais ouço tenham um bem-estar.

Os estudantes de psicologia, no momento de sua escolha profissional e


ingresso no curso, vislumbram uma futura atuação profissional de modo coerente
com aquela visão tradicional que demonstram ter da psicologia e do psicólogo, como
se pode observar no Gráfico 6, que demonstra a área em que gostariam de
trabalhar. Reconhece-se que esta questão, no momento inicial do curso, mostra uma
escolha prematura, apenas calcada no imaginário sobre a profissão, mas pode-se
constatar o fascínio da clínica, do atendimento individual na perspectiva
resolutiva/curativa, nas escolhas referentes às áreas clínica e hospitalar/saúde.

Não respondeu

Outros

Não sabe / não decidiu

Esportes

Jurídica

Área social

Pesquisa

Educação

Organizações

Hospital / Saúde

Clínica e * ....

Clínica

0,00% 5,00% 10,00% 15,00% 20,00% 25,00% 30,00% 35,00%

Fem. Masc.

Gráfico 6 – Área que pretende trabalhar


151

Somando-se as respostas referentes à Clínica, Clínica33 e Hospital/Saúde,


tem-se em torno de 80% das respostas masculinas e 40% das respostas femininas.
Tendo em vista que tanto a Psicologia Hospitalar quanto aquelas que se abrigam
sob o rótulo de Saúde Mental podem ser consideradas desdobramentos da
Psicologia Clínica, conforme Maria Tereza Carvalho e Jader Sampaio (1997), mais
uma vez aparece, de forma contundente, o peso de gênero.
Os alunos do sexo masculino escolheram apenas a área identificada com a
clínica e a pesquisa, coerente com as respostas do quadro anterior, quando afirmam
que desejam estudar a mente das pessoas e com o perfil social desejável para o
homem. Esta é considerada a área em que o psicólogo pode exercer domínio sobre
o outro que busca ajuda e, supostamente, o faz do mesmo modo que o médico.
Assim como o paciente entrega sua vida ao médico para curar seu corpo, o paciente
da psicologia entrega sua vida para o profissional “resolver”, “dar solução”, “aliviar o
sofrimento, os males, as dores da alma, do espírito” ou até curá-las. Além de ser o
campo de trabalho que confere maior prestígio social aos profissionais da psicologia,
aí reside um suposto poder que o saber peculiar da profissão confere, na
perspectiva do senso comum, ao psicólogo e às psicólogas. Os homens aspirantes a
psicólogos, portanto, admitem trabalhar em outras áreas de atuação, pois, conforme
visto anteriormente, há conhecimento, por parte deles, de diversas possibilidades
profissionais, porém, para eles, isso só será possível sem abrir mão do exercício
clínico.
As mulheres, por sua vez, indicam que poderão trabalhar em outras áreas
profissionais, dentre elas, as áreas emergentes da Psicologia, como jurídica, social,
esportes, o que demonstra coragem de criar, de investir no novo e de ousar, em
sintonia com o movimento das mulheres na sociedade atual, que busca superar os
limites dos posicionamentos tradicionais impostos pela sociedade patriarcal. Quando
da associação da atuação clínica com outras formas de atuação, porém, as
mulheres fazem a escolha de maior peso na atuação hospitalar, como pode ser
verificado no Gráfico 7:

33
Refere-se a dados dos alunos nos quais escolhem trabalhar em outro campo de atuação
juntamente com a Clínica e esse dado será melhor explorado no quadro seguinte
152

Clínica e Ensino

Clínica e Grupo

Clínica e PNEE

Clínica e Organização

Clínica e Hospital

0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00% 70,00% 80,00% 90,00%

Fem. Masc.

Gráfico 7 – Opções de área de atuação a serem exercidas concomitante ao


trabalho clínico

Como se sabe, o hospital é o espaço privilegiado do saber médico, onde este


exerce a liderança dos profissionais da saúde e conduz o tratamento dos enfermos
sob a prerrogativa de que, com seu saber, hierarquicamente superior aos demais,
proporciona a cura. O psicólogo, assim como os demais profissionais de saúde que
atuam nos hospitais, a despeito de possuir seu saber específico, diferenciado,
inclusive, do saber médico, exerce o cuidado necessário e complementar ao poder
da cura, exclusivo do médico.
Aparece, nesta questão, a fronteira do cuidar e do curar que caracteriza o
embate entre as profissões (PASSOS, 1997). Para Michel Foucault (1999), o poder
não tem um lócus específico para ser reconhecido, mas é disseminado pela
estrutura social. O poder é funcional, porque exercido por alguém em relação a seu
par complementar que, por sua vez, está respaldado em prerrogativas que as
normas sociais lhe conferem. O poder não se caracteriza por uma relação de força,
mas num jogo que circula entre as pessoas e os grupos, nos quais os
posicionamentos podem ser de cumplicidade ou de resistência. No campo
profissional, demarca fronteiras físicas e simbólicas, que delimitam profissões de
maior e menor prestígio e reconhecimento social.
153

4.3 TRAÇANDO UM PERFIL

Os dados analisados permitiram pensar em um perfil dos estudantes que


ingressam no Curso de Psicologia que estamos estudando. Trata-se de jovens da
classe média, média/alta da sociedade baiana, com idade predominante que varia
de 16 a 19 anos, que convivem com os pais, tiveram acesso ao ensino superior,
sentem-se vocacionados para a Psicologia e o fazem com o desejo de ajudar
pessoas com problemas, no exercício clínico da psicologia. Como identificam o
psicólogo como profissional de ajuda, acreditam que é necessário ser paciente e
desenvolver a escuta para atender o outro. A grande diferença é que este perfil
comum delineia psicologias diferentes para homens e para mulheres, determinadas
pelo viés de Gênero.
Os homens desejam ajudar as pessoas na condição de psicólogos clínicos ou
pesquisadores da psicologia. Nesse particular, poderão usar sua capacidade de
raciocinar, de decidir, de comandar, tendo equilíbrio, sabendo falar e sendo
imparciais. As mulheres, por sua vez, desejam ser psicólogas e também desejam
ajudar as pessoas, desenvolvendo habilidades “naturais” da mulher. No exercício
clínico ou em qualquer outra área de atuação, declaram que necessitam exercitar a
compreensão e a sensibilidade. E ambos sentem-se fascinados pela Psicologia!
Neste trabalho sobre a construção de identidades profissionais em Psicologia,
esses dados revelam o posicionamento dos alunos como uma identidade idealizada,
pressuposta, utilizando o termo de Antonio Ciampa (1987; 1994), como algo a ser
conquistado e adquirido como atributo.
Partilha-se, entretanto, de um entendimento de identidade como um processo,
como um movimento contínuo de diferentes e sucessivas identificações que se
interpõem entre as pessoas, num jogo infinito de igualdade e diferença, aproximação
e distanciamento, que permite, por meio do discurso, que se reconheçam os iguais e
os diferentes, como ensina Stuart Hall (2000). E é esta a proposta desta tese.
As identidades, portanto, são construídas mediante diferentes atravessamentos,
sendo históricas, fluidas e mutantes. Neste sentido, a vivência acadêmica
universitária constitui-se em espaço privilegiado para a construção das identidades
profissionais, tendo em vista que a escola utiliza-se de diversificadas estratégias
154

para produzir conhecimentos relacionados a um projeto particular, no caso deste


estudo, a construção de identidades em Psicologia.
Uma das funções da escola é possibilitar que o aluno possa produzir sentidos
para o mundo que habita, por meio dos discursos que viabiliza e favorece. Na
formação profissional, esses discursos, como refere Michel Foucault (2001a),
formatam não apenas aquilo que se é, mas aquilo que se torna.
De posse desse material, que sinaliza para o entendimento prévio dos alunos
sobre a Psicologia e a profissão, nos capítulos subseqüentes, verifica-se, do ponto
de vista dos estudantes e à luz dos aportes teóricos escolhidos para fundamentar o
trabalho, como essas concepções vão sendo ressignificadas durante o curso.
Eu fiz aqui uma borboleta, que é o símbolo da
transformação, eu te falei que eu tô me
transformando...
156

5 VIVÊNCIA CURRICULAR – CONSTRUINDO AS IDENTIDADES

Como se discute ao longo deste trabalho, a proposta desta tese é


compreender a construção de identidades em Psicologia de estudantes de um curso
singular, com base na vivência acadêmica do processo curricular, considerando,
nesta construção, a psicologia como uma profissão feminina. Trata-se de
compreender a formação de psicólogos e psicólogas, do ponto de vista dos alunos,
tentando elucidar os caminhos e descaminhos pelos quais aproximam-
se/distanciam-se do que acreditam ser o profissional ou a profissional da psicologia.
No capítulo precedente, analisou-se um questionário respondido pelos alunos
no primeiro dia de aula do Curso, com foco no entendimento que demonstravam ter
sobre a Psicologia e a profissão. Ficou evidente que seus posicionamentos diziam
respeito àqueles conhecimentos que se elabora no senso comum e que coincide
com a imagem social da profissão.
Neste capítulo, pretende-se discorrer sobre a forma como esses estudantes
ressignificam suas concepções, influenciados pela vivência acadêmica do Curso, e
como esta vivência permite-lhes construir suas identidades profissionais. Nessa
perspectiva, a ótica de análise situa-se nos estudos contemporâneos sobre
Identidade, Currículo e Gênero.
Como se trata da análise dos dados coletados durante a pesquisa, é
importante demarcar, com relação ao campo empírico, que esta pesquisa teve dois
momentos distintos: o primeiro, diz respeito à condensação e análise do questionário
respondido pelos alunos no primeiro dia de aula e que foi objeto de análise no
capítulo anterior; e o segundo, constitui-se na realização de Grupos Focais com
alunos e professores, além da Análise Documental.
Tomando como referência as oito turmas já referidas, consideradas como o
universo de alunos da pesquisa, foram realizados cinco Grupos Focais — os alunos
foram convidados nas salas de aula, por semestre, e aderiram espontaneamente —
constituídos da seguinte forma: o primeiro grupo, do 10º semestre, contou com 4
alunas; o segundo, também do 10º semestre, porém outra turma, com 5 estudantes,
sendo quatro do sexo feminino e um do sexo masculino; o terceiro grupo, do 9º
semestre, contou com 7 alunos, sendo 1 homem e 6 mulheres; o quarto grupo, com
157

estudantes do 7º semestre, contou com 6 estudantes, sendo apenas um do sexo


masculino; e o 5º grupo, também de concluintes (10º semestre — outra turma) com
5 alunas, foi constituído só de mulheres. Ou seja, dos 27 alunos que participaram
dos Grupos Focais, houve a participação de 3 estudantes do sexo masculino.
Com relação ao grupo formado por professores, convidados a participar e que
aderiram por sua livre vontade, contou-se com a participação de 9 professores,
sendo seis do sexo feminino e três do masculino.
A análise que se segue diz respeito aos posicionamentos dos alunos e
professores que participaram dos Grupos Focais e pretende explicitar como os
estudantes ressignificaram o entendimento que esboçaram sobre a Psicologia e a
profissão, assim como evidenciar as práticas curriculares que, durante o curso, do
ponto de vista deles, mais contribuíram para que pudessem sentir-se psicólogos e
psicólogas. As falas dos sujeitos serão identificadas por grupo; quando se refere a
um diálogo no grupo, os participantes serão distinguidos por um número
correspondente aos componentes daquele grupo.

5.1 AS PSICOLOGIAS – UMA MULTIPLICIDADE DE ABORDAGENS

A Psicologia, enquanto saber, parece exercer um fascínio sobre determinadas


pessoas. No entendimento do senso comum, identificam-na com a possibilidade de
compreender e explicar os problemas “existenciais” que afligem os seres humanos.
Segundo Ana Bock (1999b, p. 15): “[...] as pessoas, em geral, têm um domínio,
mesmo que pequeno e superficial, do conhecimento acumulado pela psicologia
científica, o que lhes permite usá-lo, na vida cotidiana, com vários sentidos.” Pôde-se
compreender, no capítulo precedente, como este saber direciona estudantes para a
escolha profissional da psicologia. Neste capítulo, procura-se constatar como este
saber, ao ser confrontado com o conhecimento científico acumulado, proporciona
novas sínteses que reorganizam tanto o pensamento quanto a assunção de
determinadas posições sociais.
Boaventura Souza Santos (2001), ao referir-se à ruptura do conhecimento
científico com o senso comum, quando aquele supervalorizou a mensuração, a
fragmentação dos saberes e a adoção de leis universais, advoga ser necessário, no
158

atual patamar do desenvolvimento científico, uma nova ruptura, desta vez com esse
conhecimento legitimado pela modernidade. Considera que, enquanto a primeira
ruptura foi imprescindível para a construção das ciências, a segunda incorpora o
senso comum como base para o desenvolvimento da própria ciência, criando uma
nova relação da ciência com o senso comum, na qual é possível pensar em novas
formas de conhecimento.
A escola, como espaço multicultural, no qual coexistem grupos distintos, com
múltiplos discursos e formas de expressão, não pode e não deve desconsiderar
essas novas possibilidades de conhecimento. Assim sendo, pode valorizar o senso
comum, entendido como aquele adquirido como herança social que permite a
organização da vida cotidiana, e cumprir sua função social, ao fazer a mediação
desse saber com aqueles considerados científicos em seus múltiplos
posicionamentos e leituras disciplinares, utilizando-se de diversificadas linguagens,
que proporcionem leituras multi, inter e transdisciplinares da realidade.
Os alunos do Curso de Psicologia que se estuda, como referido
anteriormente, ao ingressarem no curso, o faziam com base em uma imagem social
da profissão, coerente com aquela que é veiculada pelo senso comum, e
esboçavam entendimento sobre fenômenos psicológicos e atuação profissional
coerentes com esta imagem que, socialmente, a prática profissional do coletivo de
psicólogos oferece à comunidade.
Havia, nas respostas que esboçaram, quase um consenso de que a
Psicologia é uma ciência que estuda o comportamento humano, a psique, as
relações humanas, a alma ou a mente. De maneira geral, uma diversidade de
objetos de estudo apareceu nas respostas dos alunos ao questionário, porém, a
maioria deles definiu-se por apenas um aspecto.
Como já abordado, a Psicologia configura-se como um mosaico, constituído
de concepções filosóficas e epistemológicas distintas, que formata orientações
teóricas diversificadas e desdobra-se em possibilidades de atuação profissional
diversas, tanto no que se refere a campos de trabalho como ao tipo de intervenção
que produz.
A vivência curricular expõe o aluno a essa diversidade e multiplicidade que
desconhecia ao ingressar no curso. Isso provoca algumas reações peculiares, como
é o caso de uma estudante do 4º grupo, que assim se manifesta:
159

[...] quando eu iniciei, quando eu pretendi fazer psicologia, eu pensava a psicologia,


algo bem único, tinha idéia de uma mesma coisa, eu não pensava nessa diversidade
tão grande, de [...] porque nós somos diversos. Eu não tinha essa idéia dessa
tamanha possibilidade, de tanta coisa que a gente pode fazer. Eu acho que também
esse fato de ser tão característico do curso, deixa também a gente meio perdido.

Fica evidente, no depoimento da estudante, a complexidade que a psicologia


exibe quando se revela como multiplicidade. Acostumadas a raciocinar numa
perspectiva linear, a buscar causalidade única para os fatos, perseguindo a
“verdade”, como no ideário moderno de ciência, as pessoas desestabilizam-se
diante da multiplicidade, porque esta desconstrói um pensar sedimentado em
verdades únicas e práticas escolares e sociais tradicionais.
Não há como se pensar, hoje, que exista uma psicologia, ou ainda definir uma
orientação teórica única para a formação de alunos, privatizando um viés para a
aquisição do conhecimento. Há que se considerar que existem leituras para o
mundo, para os fenômenos psicossociais e a psicologia é apenas uma delas, dentre
tantas outras ciências, afins ou não. Além do mais, a Psicologia, por si só, não dá
conta de compreender esses fenômenos em sua complexidade. Há que se
consorciar com outros saberes, multirreferenciar o olhar para apreender os
fenômenos em suas várias dimensões.
Com a diversidade de possibilidades que a sociedade tem hoje, quando a
escola não é mais considerada o único transmissor do saber elaborado, e com a
diversidade teórico-metodológica que caracteriza a Psicologia, há que se cumprir a
função da escola, enquanto mediadora do saber, quando se proporciona ao aluno o
acesso às múltiplas possibilidades que a ciência oferece. Como recomenda Luiz
Cláudio Figueiredo (1991, p, 206), com relação à formação de psicólogos:

Uma história da psicologia (entendida como história dos conflitos, de suas


origens na vida da sociedade e da cultura, de suas implicações teóricas,
ideológicas e políticas) ainda por se fazer, teria função essencial na
formação do psicólogo e deveria ser contemplada em todos os currículos de
graduação.

Isso enseja que se reconheça a existência da multiplicidade, na qual


diferenças não remetem necessariamente à desigualdade, mas à constatação da
pluralidade em que podem coexistir, abrindo-se mão da busca de verdades
universais, múltiplos objetos de estudo e múltiplos discursos, determinados por
160

critérios distintos e plurais que precisam ser entendidos em seus significados


contextuais, históricos e culturais.
Além disso, os objetos de estudos e discursos constituem-se em campos de
força e luta, em que os saberes e os poderes, mediante estratégias dos sujeitos,
podem ser confrontados, negociados, significados e ressignificados, como ensina
Michel Foucault (1999, 2001b).
A diversidade da Psicologia e a imagem social do profissional liberal
representada pelo atendimento clínico em consultório privado produzem fantasias
que estão presentes no imaginário dos estudantes e interferem em sua escolha,
como se pode observar no diálogo, reproduzido a seguir, entre uma aluna do 3º
grupo e a orientadora do grupo focal:

Aluna: Eu, quando entrei na faculdade, eu vim muito por essa fantasia, não sabia o
que era a psicologia. Eu vim muito por essa questão de buscar, da fantasia da
profissão, sabe, da idealização [...]

Orientador: Como é essa idealização?

Aluna: [...] eu achava lindo ser psicóloga [...] eu achava, sabe, tanto que primeiro,
antes de entrar, tinha que ter uma pasta, tinha que me arrumar de tal forma, criava
tudo [muitos risos] foi no 1º semestre, antes de entrar na faculdade [...]

Orientador: Por que a pasta? Fazia parte da indumentária da psicóloga?

Aluna: Era [...] tinha que ter uma pastinha [...] só faltava um óculos.

Orientadora: Você achava que psicólogo fazia o quê?

Aluna: Não sei [...] tinha aquela da clínica [...] tinha aquela formalidade, sabe.

A escolha da profissão, realizada cada vez mais cedo na estrutura de ensino


atual, leva, cada vez mais, os alunos a escolherem carreiras para as quais não têm
sequer uma idéia consistente do que seja. O curso superior tem a função de formar
profissionais, construindo uma profissão em bases concretas, analisando
criticamente as potencialidades que esta oferece, além das possibilidades que a
sociedade esboça. Instrumentalizar o aluno teórica e tecnicamente para a
intervenção profissional, incentivando a criatividade e instigando desafios que
possam concretizar-se em novas formas de atuação, capazes de responder às
novas demandas sociais, econômicas e políticas que se desenham na sociedade
contemporânea.
161

Pôde-se verificar, entretanto, que o Curso de Psicologia em foco investiu em


descortinar para os alunos a diversidade que constitui essa ciência, como ilustra o
depoimento de uma aluna do 3º grupo:

[...] está se falando da dificuldade de estar se definindo o fazer da Psicologia, porque


ela é muito múltipla, tem múltiplas formas de estar agindo ali, em lugares diferentes,
múltiplas formas de fazer. Assim como ela tem múltiplas abordagens, então ela pode
ter olhares diferenciados sobre a mesma coisa, a Psicologia. A gente tá aqui e passa
pelos nossos olhos várias abordagens e que vêem o fenômeno de uma maneira
diferenciada ou às vezes de maneira complementar, então, por ela ser múltipla,
talvez essa dificuldade de dizer a Psicologia é isso. Não é só uma coisa, ela é várias
coisas. Até a forma como a Psicologia foi construída, ela vem lá da Filosofia, vem da
Fisiologia, vem da prática da Medicina, ela se originou de várias práticas, então ela
tem esse olhar muito múltiplo mesmo [...]

A complexidade e a vastidão do campo em que se estudam os fenômenos


psicológicos e a multiplicidade de abordagens de que se pode lançar mão para deles
se aproximar — que configuram a Psicologia como uma diversidade que abriga
referenciais teóricos e abordagens metodológicas distintas, com objetos de estudo e
objetivos diferenciados, como se discute ao longo deste trabalho — não confluem
para uma unicidade, visto que abriga não apenas formulações diferentes entre si,
mas pontos de vista inconciliáveis, porque antagônicos (BOCK, 1999; CARPIGIANI,
2000; FIGUEIREDO, 1991).
Considerando que a multiplicidade da Psicologia instala-se no próprio
momento em que se constituiu como ciência, quando teve que abrir mão de seus
fundamentos filosóficos e aliar-se a uma concepção moderna de ciência, Luis
Figueiredo (1991, p. 22) busca explicar historicamente essa questão, dizendo:

[...] a ciência psicológica tenta se constituir, sendo obrigada a,


simultaneamente, reconhecer e desconhecer seu objeto. Se não o
reconhece não se legitima como ciência independente e, podendo ser
anexada à medicina, à pedagogia e à administração, ou seja, às técnicas ou
às suas bases teóricas, como a biologia e a micro-sociologia. Se não o
desconhece, não se legitima como ciência, já que não submete aos
requisitos da metodologia científica nem resulta na formulação de leis gerais
com caráter preditivo. Abre-se então um campo de divergências e oposições
que não tem nada de acidental [...]

Desse embate surgiram muitas psicologias... e a despeito da diversidade que


a constituiu como ciência, consolidou-se como um campo sistematizado de
conhecimentos científicos. Ao mesmo tempo, a aplicabilidade desses conhecimentos
162

proporcionou que se reconhecesse como possuidores de uma profissão aqueles que


trabalham com a Psicologia.

5.2 SENTIR-SE PSICÓLOGO, SENTIR-SE PSICÓLOGA

Apropriar-se do discurso que enuncia o psicólogo ou a psicóloga é da esfera


da construção de identidades, porquanto dá, a cada estudante em particular, o
sentimento de pertencer a um coletivo compartilhado de representação de si e de
suas funções ocupacionais, de forma tal que impregna sua própria história de vida e
delimita possibilidades concretas de atuação.
Reitera-se o entendimento de identidades como construídas no discurso,
como processo que se movimenta num permanente ir e vir característicos das
construções inacabadas, conforme se discute ao longo deste trabalho.
Nos depoimentos coletados durante a realização dos Grupos Focais, os
estudantes do Curso de Psicologia em foco referem-se à construção dessas
identidades como uma questão processual, que vai sendo construída ao longo do
curso. Destacam que há momentos em que se reconhecem e outros nos quais não
se reconhecem psicólogos/psicólogas, e também momentos em que se reconhecem
porque são reconhecidos pelos outros. Dito de outra forma, em determinadas
situações, eles falam de si; em outras, eles são falados por outrem. Há, ainda, outros
relatos de modificações na própria forma de perceber a si, aos outros e ao mundo.
Os estudantes depõem que há uma distinção, para eles, entre o que se faz
dentro do ambiente escolar e o que se faz fora dele. Diz uma aluna do 3º grupo:

[...] quando a gente é estudante de psicologia, a gente só é psicólogo aqui dentro da


faculdade.

Outra, do 4º grupo, relata:

[...] tem momentos tipo sala de aula, eu me sinto bem aluna [...] tem alguns
momentos que eu me sinto nada [...] nada, mas tem momentos que já tem uma
posição mais clara das coisas.

Outra aluna do mesmo grupo declara:


163

[...] a cada semestre eu me sinto mais psicóloga [...] no segundo, eu sentia, quando
chegou no terceiro eu percebi que agora eu sou e no segundo eu não era, quando
cheguei no quarto, eu percebi que agora eu sou e no terceiro não era, sabe?

Pode-se perceber, nas falas desses alunos, que a superposição de papéis


(estudante/profissional em formação) proporciona a alternância de momentos de
identificações/diferenciações distintos. A construção das identidades se dá não
apenas com base na idéia do idêntico, mas, predominantemente, da diferença,
daquilo que não se é. Katryn Woodward (2000, p. 67) fala da diferença “[...] como um
elemento central dos sistemas classificatórios por meio dos quais os significados são
produzidos.” E prossegue, demarcando que os sistemas simbólicos produzem as
estruturas simbólicas que conferem sentido e dão ordem à vida social, marcando as
diferenças, tais como, nós/eles, fora/dentro, sagrado/profano, masculino/feminino, e
tantas outras dicotomias referidas ao longo deste trabalho, constituem-se no campo
de forças que estruturam as relações de poder, daqueles poderes capilares de que
fala Michel Foucault (2001a).
As identificações com a profissão extrapolam o ambiente e a vivência
acadêmica, envolvendo os alunos e as alunas em um processo de significação e
ressignificação de si próprios na construção de suas identidades. Expressam isto os
depoimentos que relatam como o reconhecimento de si como psicólogos produziu
alterações em situações de suas vidas, em geral, impregnando, inclusive, a forma de
perceberem a si, ao outro e ao mundo. Veja-se o que diz uma aluna do 3º grupo:

[...] eu acho que isso assim se estendeu pra outras áreas da minha vida. Assim, o
olhar passou a ser outro, a forma de atuar no mundo, ela se modifica, na medida em
que você não só assimila os conteúdos, mas você passa a viver, você não tem como
estudar os conteúdos da psicologia, fazer os estágios e não se identificar com isso.

Outra estudante do 1º grupo revela:

Desde o primeiro dia que eu entrei aqui que eu mudei. Mudei com relação ao papel
mesmo de psicólogo que vai sendo construído desde o primeiro dia que a gente
entra aqui!

E complementa a seguir, no próprio desenvolvimento das discussões no


Grupo Focal:
164

É o que eu disse, eu não sou a mesma pessoa, mesmo, ninguém é a mesma pessoa
depois de passar por um curso de Psicologia.

E esse posicionamento é compartilhado pelos demais membros desse grupo.


A assunção do discurso de psicólogo ou de psicóloga, entretanto, não é algo
que acontece de forma harmoniosa, pelo contrário, provoca embates da pessoa
consigo mesma para avaliar a pertinência ou não de sua adesão àqueles
enunciados, como pode ser observado no depoimento a seguir:

A questão que eu acho comigo, é que eu não me vejo ainda como psicóloga por
medo, medo do que eu vou falar... assim... será que o que eu estou falando [...]
porque primeiro, não sei se vocês percebem, todo mundo do nosso [...] tudo que a
gente fala, as palavras que a gente fala se modificaram, ou seja, a gente começa a
falar em processual. É isso! É assim: a nossa linguagem se modificou! A minha, no
caso, quando eu era do primeiro semestre pra agora. A forma como a gente fala! É
esse medo que eu tenho, entendeu? Esse medo de quando a gente acha normal
falar dessa forma! Porque a gente tá aqui na Faculdade, a gente ouve os professores
falando assim e, às vezes, qualquer coisa que a gente vê na rua, a gente, ah, deve
ser porque a pessoa tem isso ou isso. Eu tenho muito medo disso, por isso que eu
não me acho psicóloga [...]

Na inquietação desta estudante, sobre a qual fala com certa dificuldade, fica
evidente o discurso da Psicologia que lhe interpela e o quanto lhe dá medo assumi-
lo como seu. Quantos discursos estão concorrendo neste embate particular desta
aluna? Aqueles próprios da diversidade da Psicologia? Aqueles que diferenciam a
Psicologia de outras profissões? Aquele que fala da profissão feminina? Outros que
não temos, nesse momento, como identificar? É nesta arena que se debatem os
saberes-poderes aos quais se refere Michel Foucault (1999, 2001b).
De maneira geral, a vivência no Curso de Psicologia, mesmo do ponto de
vista da aquisição de conhecimentos, é impregnada por uma carga de afetividade,
tendo em vista que estuda fenômenos humanos que afetam a todos em maior ou
menor intensidade. O efeito dessa interferência em cada um, é verbalizado pelos
depoentes em momentos diferentes, como referem duas alunas do grupo 4, em
momentos distintos:

[...] eu acho que também não é um mar de rosas não [...] acho que o estudante de
psicologia é o acadêmico que mais passa pela crise acadêmica. Eu mesma, no 3º
semestre, passei uma crise terrível, crise de tudo, crise existencial, uma crise
profissional, eu não sabia se era isso mesmo que eu queria. Eu queria abandonar o
curso, porque ainda estava vendo muita teoria, não tava vendo nada do que eu
queria. Então, acho que o aluno que mais passa isso é o estudante de psicologia,
165

porque ele começa a se dar conta de várias coisas e começa a dar de cara com
várias questões dele mesmo e aí ele passa por isso. Acho que não é esse mar de
rosas todo que a gente tá falando não [...]

A psicologia mobiliza questões assim da sensibilidade, mas também da


tranqüilidade, da atenção, e também é uma coisa que mexe muito com o íntimo da
gente, estudar psicologia. É uma coisa que não só pra sua formação profissional
mas também na sua formação pessoal [...]

A questão da sensibilidade na profissão é um atributo que exacerba o viés


feminino da profissão, como discutido no capítulo anterior e aprofundado no
próximo, tendo em vista que é uma qualidade desejada e cultivada nas mulheres.
O discurso do psicólogo e da psicóloga, entretanto, pode evidenciar ganhos
na vida pessoal, a depender da forma como cada um se apropria dele e o utiliza a
seu favor no jogo das relações. É o que se pode depreender do diálogo apresentado
a seguir, travado entre alunas do 4º grupo:

Aluna 2: Isso fica bem claro nas discussões com os namorados [...] [risos] é muito
interessante diálogo com namorado, assim, tem horas que [...]

Aluna 3: [...] dá pra perceber coisas assim claras, meu Deus! Ele tá falando isso e
não percebe! [risos].

Aluna 2: Ontem foi engraçado porque eu estava discutindo com o meu noivo [...] e aí,
no meio do diálogo, no meio da minha fala, ele parou e me perguntou que palavra
era aquela que eu tinha dito! Mas foi uma coisa assim [...] foi hilário, porque a gente
tava naquele clima, chateada, falando, falando, e [...] chega a ser engraçado [...]

Aluna 4: Isso não vale! Isso é pergunta de analista! [risos] [A aluna refere-se ao fato
de que seu namorado também é estudante de psicologia].

Aluna 3: Aí já é perigo! Porque ele entende os termos que você fala [...]

Nessa perspectiva, a sensibilidade para perceber o outro, que a profissão


estimula, transforma-se em instrumento de poder. Carmem Grisci (1995) refere-se
ao poder do discurso das mulheres, aquele proferido dentro do lar, como semelhante
ao das benzedeiras, que não deve ser confiado aos ouvidos masculinos. Ficam
explícitos os jogos de negociação e poder que os sujeitos fazem entre si para
compartilhar, incluir ou excluir outrem. Isso é denunciado, quando a estudante fala
do perigo que há no fato de o namorado compreender os termos que ela usa em seu
discurso. Ora, se ele compreender tudo o que ela fala, o instrumento de poder que
esse saber confere perde o valor!
166

As identidades são produzidas nas relações, em que os saberes/poderes


disputam os significados. É o significado que dá sentido às experiências de seres
humanos singulares ou coletivos e que denominam as pessoas ou os grupos. Como
afirma Kathryn Woodward (2000, p.18): “[...] todas as práticas que produzem
significados envolvem relações de poder, inclusive o poder para definir quem é
incluído e quem é excluído.” Nas estratégias utilizadas na disputa pelo poder, que
ocorre nas relações amorosas, ao que tudo indica, no caso dessas alunas, o
discurso das psicólogas tem uma cotação alta.
Ao longo deste trabalho, discute-se a construção de identidades como um
fenômeno relacional, múltiplo, historicamente construído, produto da interação
lingüística realizada pelas práticas discursivas. Assim sendo, narrativas se
interseccionam na produção de sentidos que os sujeitos atribuem a suas práticas,
considerando, além das dimensões objetivas, aquelas subjetivas, que incluem as
emoções, os afetos, o desejo e a vontade.
Depreende-se do diálogo das estudantes acima a processualidade imanente
à construção de identidades, explicitada na forma como se referem às mudanças em
seus próprios posicionamentos diante de fatos cotidianos, à alusão que fazem a uma
aquisição que não se situa apenas na esfera do cognitivo, mas extrapola para
assimilação de normas e valores que orientam a conduta de determinados grupos
identitários. Cada grupo estabelece seus códigos, normas, ritos, mitos que são
segredados e partilhados pelos pares e adotam um determinado jargão34 que
delimita os iniciados, os que podem ser incluídos e os que devem ser excluídos.
Fala-se de um determinado tipo de discurso que identifica pessoas sem que elas
anunciem formalmente qual o grupo que as denomina, naquele momento. O jargão
funciona como um código; as mensagens podem ser entendidas apenas por aqueles
que o dominam, permitindo uma comunicação rápida e demarcando um vínculo
entre as pessoas que dele compartilham.
É o que sente uma aluna do 4º grupo, ao se avaliar “iniciada” na profissão
pelo compartilhamento de discursos que valorizam o saber que a profissão detém e
socializa:

34
Para a palavra jargão, o Michaelis (1998) apresenta cinco significados. O primeiro fala de
linguagem ininteligível, sem sentido; o segundo, de línguas ou dialetos exóticos que não se
entendem; o terceiro, língua ou dialeto híbrido, oriundo de uma mistura de línguas, tal como uma
língua franca; o quarto refere-se à fraseologia peculiar a qualquer classe, profissão; e a quinta a
calão, gíria. Neste trabalho, utiliza-se como sinônimo de linguagem peculiar a um grupo
profissional.
167

[...] eu me sinto psicóloga quando eu saio daqui da Bahiana, quando vou pra um
Fórum, um congresso, um Seminário [...] chego lá e fico à vontade. Chego até a
discutir algumas vezes [...] só tinha eu de aluna [...] eu fui bem recebida, eles me
trataram como outra psicóloga [...]

Ao ser acolhida por seus pares, esta aluna sente-se nomeada por seus
interlocutores, confirmando o que ensina Bader Sawaia (2001) quando afirma que a
Identidade é uma categoria que classifica os iguais, os diferentes, os estranhos e os
exóticos.

5.3 ESTÁGIOS - VIVÊNCIA TEÓRICO-PRÁTICA

Do ponto de vista dos estudantes, ao longo do curso, a prática nos estágios


revela-se como aquela que oferece maiores possibilidades de proporcionar o
reconhecimento de si, como psicólogos e psicólogas, especialmente na interlocução
com o outro, que é usuário dos serviços onde o estágio se realiza. Vejam-se alguns
exemplos:

No momento em que eu marco com o meu paciente, que eu atendo o meu paciente,
aí eu me sinto psicóloga. (Aluna do 3º grupo).

[...] é o contato com o paciente. (Aluna do 1º grupo).

Eu me tornei psicóloga quando eu fiz um estágio em Camaçari [...] eu comecei a


atender [...] tinha paciente [...] tinha responsabilidade com aquela pessoa [...] tinha
que ser ética [...] tinha que aplicar teste [...] (Aluna do 1º. Grupo).

Eu diria que talvez o passo diferencial que contribuiu para que hoje eu pudesse tá
aqui dizendo, sou psicólogo, foi do 8º semestre pra cá, quando a gente começa a
atender as pessoas. (Aluno do 5º. Grupo).

Conforme se discutiu no capítulo referente ao Curso de Psicologia, este se


estruturou tentando articular teoria-prática ao longo dos semestres. Nesse intento,
incorporou atividades práticas de estágio a partir do 5º semestre, sendo
desenvolvidos Estágios Básicos no 5º, 6º e 7º semestres, o Psicodiagnóstico no 8º e
os Estágios Específicos no 9º e 10º. A proposta dos Estágios Básicos é desenvolver
habilidades que possam constituir-se em competências na ação profissional. São
privilegiados, em cada um deles, a interlocução com usuários dos Serviços onde se
168

realiza o Estágio, seja escola, posto de saúde, clínica, hospital, comunidade ou


qualquer outro equipamento social, em situações de efetivo contato com o público. O
fio condutor desses estágios é a realização de entrevistas com públicos diversos, em
situações diversificadas, com objetivos diferentes (história de vida, anamnese,
entrevista de acolhimento, entrevista em grupo, grupo temático, grupo de apoio,
utilização de escala ou testes, dentre outros), em que o estudante possa exercitar a
escuta peculiar ao trabalho de psicólogo.
Há, nessa estruturação curricular, o entendimento de que habilidades podem
ser exercitadas até se incorporarem às competências, considerando-as como o agir
de forma coerente e criativa diante de uma determinada situação (PERRENOUD,
1999). Nesse caso, essas atividades funcionam como momentos privilegiados para
os alunos adquirirem habilidades em lidar com pessoas, entrevistando, participando
de grupos, manuseando testes ou escalas, ao tempo em que se instrumentalizam
teoricamente sobre esse arsenal técnico, o qual se refere ao uso adequado do
instrumento e às possibilidades de sua aplicabilidade em situações do exercício
profissional.
O ensino superior tem a tradição de ser muito teórico, descolado da realidade,
centrado em uma prática eminentemente verbal de transmissão de uma verdade ou
ponto de vista do professor. Pode-se associá-la ao que Paulo Freire (1983) chama
de educação bancária. Além do mais, os currículos,via de regra, são concebidos do
ponto de vista tradicional, com disciplinas estanques, que mantêm pouco diálogo
entre si, com conteúdos seqüenciados em forma de complexidade crescente, com o
objetivo de antever e predizer qual o aluno que se deseja no final desse processo.
No caso deste estudo, qual o psicólogo e qual a psicóloga que se quer formar. Os
estudantes em foco estão respondendo que o currículo direciona-se para a formação
de um psicólogo do ponto de vista tradicional, ainda centrado no modelo biomédico
de atuação num viés clínico, pois o que os identifica é a atuação junto a pacientes.
Como referido anteriormente, sobressai, nesse atendimento clínico, do ponto de
vista tradicional, individual, privado e reparador, o “cuidar de” que propõe Joan
Tronto (1997), numa supervalorização da generificação da profissão como feminina.
Nesse particular, é interessante o depoimento de uma aluna do 2º grupo, que
havia realizado Estágio Básico I no Complexo Comunitário Vida Plena, no bairro do
Pau da Lima, um Posto de Saúde onde funciona um Projeto Saúde da Família, ou
seja, numa instituição comunitária, cujo interesse é a atenção básica à saúde, com
169

forte matiz preventivo, cuja intervenção dos alunos de Psicologia é escrever a


história das famílias que participam do projeto, realizando uma coleta de história de
vida, no próprio domicílio. A aluna diz:

Acho que o meu primeiro paciente foi no Pau da Lima [...]

Observe-se que não se tratava de enfermo, pois não havia uma “queixa” a ser
investigada, nem existia nenhum tipo de intervenção conseqüente à própria
entrevista, mas a aluna referiu-se à pessoa que entrevistou para fazer a história de
vida como paciente.
Há que se considerar, porém, neste caso, a cultura médica que permeia a
instituição de ensino na qual o Curso está inserido, conforme discutiu-se em capítulo
precedente, e também a própria estruturação do Posto de Saúde onde este Projeto
de Saúde da Família é totalmente assumido por professores e alunos de todos os
Cursos da instituição, numa atividade conjunta. Além do mais, a história de vida
deve compor o prontuário das famílias dos pacientes no arquivo do Posto.
A introdução de Estágios Básicos e Estágios Específicos no Curso de
Psicologia, seguindo orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN),
rompe com esta dicotomia de prática como aplicação da teoria e partilha a idéia de
que a teoria e a prática só assumem significado quando relacionadas e quando
podem revelar-se uma na outra, instalando uma postura permanente de ação-
reflexão-ação, na construção de novas práticas geradoras de novos
posicionamentos teóricos e vice-versa.
O Projeto Pedagógico do Curso (FBDC, 2003, p. 20), no que concerne aos
Estágios, assim define esta atividade curricular: “[...] orientada, na qual o aluno
exercita habilidades na construção de competência para a prática profissional,
constitui-se em atividade privilegiada, dentre as outras, do currículo para a
construção do papel de psicólogo.” Nesse documento, enfatiza-se que o Estágio
Básico é estruturado para possibilitar ao aluno desenvolver competências básicas e
gerais do exercício profissional do psicólogo. Estas devem ser realizadas em
espaços diversificados, sob a supervisão presencial do professor orientador, em três
semestres consecutivos, do 5º ao 7º, com 54 horas/aula em cada um deles, o que
perfaz a carga horária total de 162 horas. Os alunos são subdivididos em grupos de
170

até oito participantes e desenvolvem atividades consideradas fundamentais para o


exercício da Psicologia, independente do local de atuação.
O Estágio Específico, por sua vez, é profissionalizante propriamente dito.
Ocorre na seqüência ascendente, depois dos Básicos e da disciplina de
Psicodiagnóstico (8º), nos 9º e o 10º semestres. Nestes, o aluno deverá ter uma
atuação profissional orientada e supervisionada por professor habilitado, sendo esta
supervisão dimensionada, de forma que o professor/supervisor possa encontrar-se
semanalmente com seu grupo de alunos para atividades de supervisão e grupo de
estudo, podendo realizar visitas ao local de estágio, quando este se realiza fora das
dependências do Serviço de Psicologia, e atendimentos individuais, se necessário.
O número de alunos por supervisor de estágio é limitado a oito por grupo. Do aluno
é exigido o registro de atividades, do tipo diário de campo e o relatório final de
atividades.
Há, nestas proposições de Estágio, a intencionalidade de promover uma
interfecundação da teoria e da prática, não apenas nos aspectos conceituais e
instrumentais, mas, sobretudo, na leitura contextualizada e concreta da experiência,
que possa gerar leituras críticas e criativas de novas realidades.
No dizer dos alunos, os Estágios proporcionam uma série de vivências que
instigam ao questionamento sobre a profissão e o profissional, a fazer escolhas, a
ressignificar conceitos, a assumir discursos, dentre outros, como se pode observar
nos relatos a seguir, que dizem respeito à construção de suas identidades
profissionais.
Com relação a sua participação no Estágio Básico, diz uma aluna do Grupo 4
que está freqüentando o Estágio Básico III:

Eu me sinto um pouco de psicóloga, dando, pelo menos, essa oportunidade, por


mais que eu não tenha essa habilidade de trabalhar ainda com essas questões. Eu
me sinto impotente. Às vezes, surgem algumas questões que a gente, ai meu Deus!
Tocou num ponto que me sinto impotente ainda, mas é um estímulo, a gente está se
aperfeiçoando, tá melhorando, tá buscando conhecimento [...]

E essa angústia é também sentida na hora de realizar o Psicodiagnóstico,


como relata uma estudante do 2º grupo:

Eu lembro que quando a gente fez o estágio – eu falei pra profa. X antes de começar
o estágio – eu ficava muito aflita..., será que eu já tenho condições, será que eu já
171

sei de teoria, alguma coisa, o suficiente para estar lá? Está atendendo uma pessoa!
Porque eu achava que eu ia ficar assim: a pessoa falando e eu: tá, porque isso!
Porque aquilo! Porque o Édipo! [...] E aí depois que eu fiz o estágio é que eu fui
perceber que eu já sabia, eu não tinha percebido que eu já sabia de algumas coisas,
o quanto a gente já tinha de bagagem de todas as matérias, todos os estágios, que
já estavam [...] não precisava ficar decorando, nem lembrando, já estava ali, na hora
[...]

A angústia e a insegurança também se fazem presentes durante a realização


do Estágio Específico, como relata uma aluna do 2º grupo:

Nunca esqueço quando eu fui para o hospital, meu estágio, já agora de conclusão.
Fui eu e X e a gente caiu de pára-quedas na UTI. No primeiro dia que a gente
chegou, morreu um paciente na frente da gente. E eu tava lá, eu e ela assim, as
duas grudadas, desesperadamente! E agora, o que é que a gente faz?

Considerando o currículo como construtor de identidades e entendendo que a


formação profissional no âmbito universitário pode promover momentos
diversificados de aprendizagem, em que os estudantes possam pensar a si mesmos,
as instituições e as relações sociais que permeiam essas instituições, o estágio
revela-se como a atividade que define contornos da experiência profissional,
proporciona o diálogo com a sociedade produtiva e configura os espaços
multirreferenciais de aprendizagem. Estes, no dizer de Teresinha Fróes Burnham
(2000), configuram-se como espaços para além dos limites geográficos da escola,
como uma rede na qual inter e intrasubjetivamente os estudantes podem conviver
com diferentes formas de organizar o conhecimento, assim como podem construir e
se reportar a diferentes referenciais para leitura da realidade. Diz a autora:

São necessários currículos que retirem os estudantes do confinado espaço


da escola – isolado do mundo concreto em que vivem – e lhes permitam
(vi)ver a riqueza e a multiplicidade de conhecimentos com que chegam à
escola. É preciso valorizar seus saberes, suas formas de ver o mundo;
construir pontes que favoreçam o diálogo entre o saber escolar e o
conhecimento cotidiano dos indivíduos sociais, de qualquer idade. (FRÓES
BURNHAM, 2000, p. 302).

O estágio convoca o aluno a conviver com a multiplicidade de culturas que


configuram o espaço social e oferece-se para a vivência multiprofissional e a leitura
interdisciplinar da realidade. Permite também que o aluno e a aluna vejam-se no
172

papel profissional, como se pode observar a seguir, na fala de uma aluna do 1º


grupo:

[...] a gente estava selecionando pessoal [...] aí teve um dia que a psicóloga não foi
[...] o pessoal da portaria [informava], você vai e fala com a psicóloga ali naquela
sala. Aí o pessoal abria a porta e, quem tava lá atrás da mesa? Eu! Eu era a
psicóloga, sabe?

Há um outro relato de uma aluna do 5º grupo que, no 9º semestre, vivenciou


dificuldades em seu Estágio Específico, pois teve que abrir mão do atendimento de
uma paciente com um quadro clínico difícil de ser manejado, mesmo com a
supervisão do professor. Fala de seu desapontamento e frustração diante da
impossibilidade de continuar com aquele atendimento específico e, na seqüência
seguinte, quando retoma a palavra, depõe:

[...] eu não me sinto psicóloga. Não me sinto, acho que tá faltando muito! Tô me
sentindo um pouco perdida. Não sei o que eu vou fazer depois que eu me formar,
não tenho nada garantido. Eu tenho a maior paixão por clínica, pela psicanálise, mas
não sei como vai ser de imediato [...] quando eu me formar, eu não sei o que vai
acontecer! Assim, a formação, a supervisão, precisa de análise, mas eu não me vejo
ainda trabalhando.

Pode-se perceber, mais uma vez, no depoimento acima relatado, como, o


outro dá o parâmetro para o reconhecimento de si no desempenho profissional. É o
discurso do outro que interpela as pessoas e produz efeitos na própria forma como
elas se percebem. Recorre-se mais uma vez a Stuart Hall (2000, p. 109), segundo o
qual as identidades falam não apenas do que as pessoas são ou identificam-se, mas
aquilo em que se tornam:

[...] é precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora


do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em
locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e
práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas

Dessa forma, é possível a referência às posições de sujeito, aquelas com as


quais as pessoas identificam-se e marcam posições numa rede discursiva, numa
teia social e cultural determinada, mas sempre se fazendo, sempre inacabada. Isso
é que dá a dimensão da identidade em movimento — um processo que se faz e
refaz sem a pretensão de conquistar uma posição definitiva e nem buscar a essência
173

— e permite o efeito performativo do discurso, de que fala Judith Buttler (2001), na


construção das identidades, porquanto o discurso produz os efeitos que nomeia.
O estágio, pela vivência prática em situações concretas, oferece ao aluno a
possibilidade de escolha, de assunção de discursos e de posições de sujeito,
quando o coloca diante de tarefas a serem realizadas e saberes a serem
partilhados. É o que nos revela o diálogo de duas alunas do 1º grupo:

Aluna 1: Eu acho que a minha mudança foi o estágio que eu fiz, que eu nem
conhecia tanto [...] eu tinha muito o diferencial em saúde, não é que eu odiasse, mas
eu sabia que eu não queria aquilo. O que aparecia mais era a clínica. Então eu já
gostava de clínica de carteirinha, entendeu, porque eu não gostava tanto de hospital
e de saúde e aí quando a gente foi fazer um trabalho com a profa. X, que a gente fez
aquela disciplina, e que a gente foi a campo [...] aí eu comecei a gostar; aí, eu disse:
Olha, legal esse negócio de empresa, de descobrir como é o RH. Aí eu comecei [...]
deixa a clínica um pouquinho, deixa eu ver como é isso [...] aí eu comecei, aos
poucos, a questão do contato mesmo, de você conhecer.

Aluna 2: Eu, pelo menos, estou muito feliz de ter conseguido passar, eu acho, pelos
estágios, porque tive oportunidade de estagiar em hospital aqui pela faculdade, em
clínica, agora, e educação e RH fora da faculdade. Então eu posso dizer que eu vi
muita coisa, passei por várias áreas, e foi mudando justamente na prática, o meu
pensamento de fazer clínica ou mudar para educação [...] eu fiquei um ano e dois
meses na escola, aí eu disse já deu aqui [...] surgiu à oportunidade de RH e eu falei,
não, eu vou conhecer, eu só vou poder saber se é isso, experimentando. Como eu já
tinha ido para o hospital e eu disse não. A única experiência realmente que valeu de
hospital foi pra eu dizer que não, eu não quero trabalhar em hospital! Mas precisou
eu ir para saber disso. Talvez se eu nunca tivesse, eu ia falar: ah, meu Deus, será
hospital? E ia ficar esse grilo. Então é muito diferente quando você estuda uma coisa
ou ouve falar de uma coisa e quando você vai experimentar.

Em se tratando de formação profissional, ao lidar com a profissão, o Curso


seleciona conteúdos, privilegia determinadas práticas, institui estratégias de
avaliação, define o tipo de intervenção que faz na comunidade, em suas atividades
de pesquisa e extensão, difunde uma determinada ética e, por isso mesmo, revela-
se como um ambiente acadêmico disseminador de normas e condutas, em seu
currículo explícito e oculto, permitindo ao aluno significar e ressignificar
ininterruptamente sua identidade profissional. O diálogo entre uma estudante do 3º
grupo e a coordenadora do Grupo Focal é ilustrativo:

Aluna: [...] quando eu entrei aqui, no primeiro dia de aula, me perguntaram: Porque
você acha que você veio fazer psicologia? [...] E eu, porque eu sou muito amiga [...]
alguma coisa do tipo, eu observo muito as pessoas, não sei o que, alguma coisa, eu
não lembro mais minha resposta, mas foi alguma coisa nesse sentido. E, hoje, eu
174

percebo assim [...] é um acolher, mas não é um acolher de [...] não é um acolher de
amigo, é um acolher totalmente diferente. Como X falou, você não se envolve, você
ajuda, você trabalha com aquela pessoa, mas você não se envolve. Isso eu tô
ganhando muito aqui na clínica. Eu lembro que no primeiro estágio, do Pau da Lima
[...] teve um problema que a mulher era toda triste [...] aí a gente queria ajudar a
mulher de qualquer forma. E aí eu me coloquei hoje! Se eu fosse para o mesmo
lugar, com a mesma mulher, eu seria completamente diferente. Seria outra reação,
entendeu? [...] Eu lembro que eu e X, a gente quase chora na hora! A gente
querendo botar a mulher no colo! E hoje, seria outra postura! E hoje, seria totalmente
diferente! Seria de acolher também, mas acolher de uma outra forma e de um outro
sentido [...]

Coordenadora: Sem tentar resolver?

Aluna: Sem tentar resolver. Ajudando para que ela resolvesse. No caso, se fosse um
problema de ordem emocional, e ela se implicasse pra resolver, mas não como a
gente estava querendo fazer antes.

É importante ressaltar a construção do aluno, durante o estágio, como uma


aprendizagem que se dá, de fato, na articulação da teoria com a prática, vistas como
interdependentes. Nos Estágios Básicos, há um deslocamento da sala de aula para
o local onde se realiza a intervenção, e esta é tematizada em cada encontro, à luz
dos referenciais teóricos que embasam aquela determinada ação profissional,
contextualizada no tempo e espaço, com a presença diária do professor. Os alunos
expressam que significam sua atuação nos espaços específicos onde ocorrem os
estágios. Suas transformações relativamente a amadurecimento são perceptíveis
para o grupo de professores, como depõe uma professora de Estágio Básico, em
seu Grupo Focal:

[vou] falar do Estágio Básico em Educação Especial, que eu acho uma das idéias
mais brilhantes da grade curricular [...] Lidar com o sujeito especial! Isso pra mim é
de uma riqueza imensa! Nesses 4 anos que eu dou a disciplina, a transformação do
aluno de psicologia, quando chega na instituição de Educação Especial, onde ele se
confronta [...] e poder perceber aquelas pessoas, que são pessoas que, apesar de
diferentes, têm habilidades, têm competências, que merecem [...] Então, eu fico
encantada, realmente, em ver os alunos, a reação dos alunos diante [...] no início
dos estágios eles dizem, professora eu vim porque não tinha mais estágio pra mim
no GACC, não tinha mais não sei aonde, e aí só tinha esse. E eu vim de qualquer
jeito, mas eu morro de medo, não suporto lidar com isso! E você vê a transformação
do discurso, a aproximação, um novo olhar para estas pessoas, entende, e isso pra
mim foi um ganho muito bom, porque é um lugar onde o psicólogo precisa estar, foi
relegado muito tempo, na história; o deficiente sempre esteve à margem,
completamente sem qualificação [...] E os alunos de psicologia eles também estão
entendendo que ali é um lugar de trabalho muito grande, muito promissor [...] a
minha contribuição é essa, o olhar do futuro psicólogo para a diferença [...]
175

Pode-se verificar o quão importante é a vivência concreta do estudante, na


interlocução com outros seres humanos em contextos da realidade social,
proporcionada pelos estágios. Estes, como espaços de aprendizagem, por sua
natureza prática, permitem não apenas a aquisição de conteúdos teóricos, mas de
valores, atitudes e compromissos que constroem identidades profissionais.

5.4 PSICOTERAPIA – UMA APRENDIZAGEM DE SI

Um fator interessante e peculiar ao Curso de Psicologia diz respeito à


exigência do aluno submeter-se a uma psicoterapia. Este foi um tema abordado em
todos os Grupos Focais como um recurso importante, indispensável até, para que os
alunos possam nomear-se psicólogos. Essa questão já havia sido referida no
Questionário Inicial, analisado no capítulo precedente, quando algumas alunas
expressaram que escolheram a profissão pelo desejo de ajudar a si mesmas.
Considera-se psicoterapia, neste trabalho, um recurso privilegiado para
qualquer pessoa entrar em contato com seus conteúdos pessoais, a fim de
compreender as formas como se vincula consigo, com a vida e com os outros.
Constitui-se, portanto, em um tempo/espaço de crescimento pessoal, que pode
proporcionar novas formas de se subjetivar diante do mundo. Por meio dela, a
pessoa tem a possibilidade de se conhecer de uma forma mais íntima e, com base
nos diálogos com sua história pessoal e suas possibilidades concretas, de
estabelecer formas diferenciadas e inovadoras de se comunicar consigo e com os
outros, além de redefinir padrões pessoais estereotipados de conduta.
Diz uma aluna do 2º grupo:

[...] o processo que o estudante de psicologia passa está totalmente ligado ao


desenvolvimento pessoal dele. Então, os vínculos que ele faz na faculdade, as
amizades, com quem você sai no final de semana pra falar de sua vida, chorar, isso
tudo faz parte do curso, porque são nessas rodinhas também, na mangueira, que
você também vai ampliando seu relacionamento, seu crescimento individual, suas
relações vão se ressignificando, em casa, na família, você começa assim [...] não é
só estudar! Você, o estudo, a sua vida é totalmente influenciada pela sua nova ótica!
176

Decerto que a psicoterapia adquire peso relevante em uma profissão na qual


o profissional está implicado emocionalmente naquilo que faz e sua ação está
baseada na relação com o outro, com o qual estabelece uma relação de ajuda, e em
um curso que tem uma evidente predominância no desempenho clínico de seus
estudantes.
É necessário ressaltar, outrossim, que é este também o posicionamento do
grupo de professores. Em sua maioria, os professores acreditam que a psicoterapia
é necessária ao desempenho de psicólogos, especialmente quando este deseja
enveredar pelo caminho da clínica. Explicitam essa posição na sala de aula e/ou nas
atividades práticas e de estágio, quer encaminhando os alunos, quer sugerindo
como uma prática necessária. Acreditam que este trabalho pessoal favorece a
prática do diferenciar o outro de si e a ouvir este outro, sem que haja um
envolvimento afetivo. A Psicoterapia constitui-se, portanto, em um fator de peso do
Currículo Oculto deste curso, que é constituído, como propõe Henry Giroux (1986, p.
71), de “[...] normas, valores e crenças imbricadas e transmitidas aos alunos através
de regras subjacentes que estruturam as rotinas e relações sociais na escola e na
vida da sala de aula.”
Como diz uma aluna do 3º grupo:

O fato de que a gente, a maioria acaba indo fazer terapia, apesar disso não ser uma
exigência legal, mas a gente faz porque precisa [...]

A psicoterapia permite que psicólogos consigam distanciar-se das situações


profissionais que se vê convocado a intervir, não as confundindo com suas próprias
situações e questões de ordem subjetiva. Não se trata de buscar a famosa
“neutralidade” do pesquisador ou do profissional, defendida pela ciência positivista.
O que importa, no desempenho do psicólogo e da psicóloga, é a história, os motivos,
os sentimentos, as emoções daquele que é atendido, sem que se faça nenhuma
comparação com a história, as emoções e os afetos de quem atende. Não se prega
uma postura neutra e nem indiferente, mas atenta, cuidadosa, teoricamente
fundamentada. Uma postura que não se confunda com o que se espera de um
amigo confidente, que toma partido das situações, mas de uma pessoa presente,
continente, que possa ajudar a pensar, refletir e decidir sem considerar a vida do
outro como sua, ou que aconselhe qual o melhor caminho, baseado em sua
experiência pessoal.
177

Psicólogos são profissionais e em seu mister necessitam de uma


fundamentação teórica consistente para desenvolver sua escuta e compreender a
fala do outro, além do domínio de técnicas para intervir com os sujeitos, seja na
perspectiva individual ou coletiva. Isto em relação a aportes teóricos e técnicas de
intervenções coerentes, subordinados a uma concepção de mundo, de homem e de
psicologia.
Nessa perspectiva, há que se relativizar a questão da sensibilidade sugerida
por alunos e alunas como uma qualidade indispensável ao desempenho profissional,
especialmente aquela sensibilidade considerada própria da condição feminina, para
associá-la a outras que exigem o uso do raciocínio lógico e do abstrato na
articulação e combinação de idéias, hipóteses e teorias. Por não ter, na maioria das
vezes, instrumentos que se interponham entre si e o outro (sujeito individual ou
coletivo), os psicólogos e as psicólogas precisam trabalhar com seu aparato
intelectual e afetivo.
Não é possível atuar, em psicologia, de forma “eclética”. Há que se perseguir
coerência na forma de abordar o outro, evitando-se o risco de manipular pessoas e
situações, pois, da mesma forma que existem múltiplas psicologias, existem tantas
psicoterapias quantas sejam as correntes teóricas que compõem o mosaico técnico-
conceitual da psicologia. Dentre elas, não há que se buscar a “correta”, mas
identificar os pressupostos teóricos e metodológicos com os quais cada uma se
identifica para compartilhar tanto os benefícios da psicoterapia quanto as
possibilidades de atuação.
Relata uma aluna do primeiro grupo:

Sabe, a primeira vez que eu entrei em contato comigo, com as minhas coisas, foi na
disciplina X, que a gente fez o Wartegg35 [...] tinha coisas que eu não queria ouvir
naquele momento [...] aí a professora [...] me falou uma coisa que eu fiquei assim,
isso não é verdade! isso não é verdade! E aí, foi quando começou a mobilizar as
coisas [...] fui fazer terapia no meio do curso [...] quando chegou na aula da profa. X
de Psicoterápicas [...]

É fato que o Curso de Psicologia possibilita muitas identificações e projeções


pessoais sobre o conteúdo estudado. Muitas disciplinas tratam de acontecimentos
do cotidiano. Parte de exemplos e atividades práticas reportam-se, muitas vezes, a
situações vividas por si ou por outras pessoas que os estudantes conhecem, ou

35
Teste psicológico de personalidade.
178

fazem parte de situações por eles imaginadas, temidas, desejadas. É importante não
perder de vista que o enquadre educacional, a sala de aula, é muito diferente do
contexto terapêutico e não é prudente e nem ético confundi-los. A forma como os
conteúdos teórico-práticos são significados pelos alunos, entretanto, é da esfera da
subjetividade de cada um. Está em jogo a história de vida, os projetos para futuro, a
estrutura de personalidade, as situações traumáticas vivenciadas, as crenças, os
valores, os contextos que o envolveram, enfim todo o arcabouço que permite ao
sujeito diferenciar-se e reconhecer-se como único.
Ressaltando a importância da psicoterapia no processo de construção da
identidade, uma aluna do 4º grupo expressa:

[...] o curso de Psicologia em si, pra mim, fez uma diferença, pra minha pessoa, pra
minha construção. Ele tem uma importância fantástica! Eu não sei até que ponto, às
vezes eu me pergunto: Pôxa, será que eu tô fazendo psicologia pros outros ou pra
mim mesma? Porque essa questão que X falou da terapia, como ajuda! Como ajuda
a você unir. Fazer a terapia com o curso de psicologia que a gente faz, tem me
completado assim, cada vez mais. Tem me ajudado a lidar com questões de uma
forma completamente diferente. Tem me ajudado muito, mas aí, ao mesmo tempo
que eu me pergunto isso, eu fico com medo. Será que eu estou preparada pra
atender o outro ou estou me preparando pra mim mesma? As vezes, eu fico meio
com medo dessa pergunta. Mas eu acho que, no fundo, no fundo, ser psicólogo
começa aí! É você se conhecer, é você se perceber, é você saber lidar primeiro com
os seus problemas. Eu acho que só aí a gente vai conseguir ser psicóloga! Quando
você souber lidar com os seus próprios problemas, aí é que você está preparada pra
lidar com os problemas dos outros.

Uma estudante do 2º grupo destaca a importância da psicoterapia como


requisito pessoal/ profissional junto com os demais contextos de aprendizagem, ao
expor:

Quando você tem contato com pessoas fora, instituição, contato com a dor do outro,
muito tempo, assim, respeitar de fato [...] numa posição de profissional, de
sensibilidade [...] vai te demandando uma terapia, um conhecimento maior sobre
você, um trabalho individual fora da faculdade. E aí eu acho que esse trabalho, a
terapia, esses estágios fora, até extracurricular mesmo, vai te dando uma postura
frente à vida e frente ao curso de maneira mais madura.

Depõe ainda uma estudante do 4º grupo:

Eu estou no momento de repensar muitas coisas e também de trabalho meu mesmo.


Estou começando a fazer psicoterapia, e tem uma coisa assim, se eu soubesse que
era tão bom assim eu já teria começado desde o primeiro semestre. [risos] É sério,
porque essa questão da prática com você, você fazendo [...] Veja, não é só pros
179

outros! Porque a gente fica [...] os outros é que são pra fazer psicoterapia, a gente
não! Mas com a gente, como é bom!

O viés clínico da Psicologia, restrito ao atendimento privado, de consultório


individual, é aquele campo de atuação eleito pelos alunos ingressantes no curso
como o mais adequado para o exercício profissional, conforme está registrado no
Questionário Inicial. Esta ação, com as prerrogativas de profissão liberal, reproduz o
modelo médico de atuação e tem-se revelado tanto na prática preferida pelos
alunos, na escolha de seus estágios, verificada anteriormente, como no viés
privilegiado que o curso adota para formar seus profissionais.
Importante, também, não esquecer que este curso de Psicologia, no qual
realizamos esta pesquisa, situa-se dentro de uma Faculdade de Medicina e que,
além disso, no campus no qual está localizado, coexistem no mesmo espaço um
Ambulatório Docente Assistencial, com várias clínicas médicas em funcionamento,
um Laboratório de Análises Clínicas, uma Clínica de Fisioterapia, uma Clínica de
Terapia Ocupacional, o Serviço de Psicologia e o Pavilhão de aulas. O clima que
permeia a instituição é sempre voltado para a assistência à saúde.
O peso da psicoterapia fica evidente na afirmação de uma professora que, em
seu Grupo Focal, quando se reporta a atuação do psicólogo como algo singular, na
qual o profissional é seu próprio instrumento de trabalho, diz: atuamos porque
existimos. Essa posição, portanto, reitera a psicoterapia como algo necessário e
indispensável, porquanto produz percepções de alunos, tal como expressa uma
aluna do 5º grupo:

É tudo muito sutil, é tudo que você não vê, é tudo que a você não pega, é tudo que
você não controla [...] A pessoa só tá ali com sua fala, com sua atitude, e você, de
alguma forma, age [...] há a ajuda [...]

Mesmo não sendo considerada uma estratégia formal de aprendizagem e


nem uma exigência do curso, os depoimentos dos alunos demonstram que, na
formação de psicólogos e de psicólogas, há um tipo peculiar de aprendizagem,
adquirido pela habilidade de lidar consigo, no que tange a suas potencialidades e
fraquezas, que deverá compor competências no trato profissional com o outro. Trata-
se de um conhecimento particular sobre si, de ordem subjetiva, que versa sobre os
sentimentos, traumas, frustrações, conflitos, encontros, desencontros, ou seja, da
forma como cada um se estrutura subjetivamente no universo que habita e convive.
180

Há uma suposição de que o trabalho psicoterapêutico proporcionará uma qualidade


na ação do psicólogo, que pode ser adquirida para além das aquisições técnico-
conceituais.
José Gimeno Sacristán (1989, p. 22) propõe que o currículo seja “[...] a ligação
entre a cultura e a sociedade exterior à escola e à educação, entre o conhecimento e
a cultura herdados e a aprendizagem dos alunos, entre a teoria (idéias suposições e
aspirações) e a prática possível, dadas determinadas condições.” Ao incorporar a
psicoterapia como aprendizagem necessária ao desempenho profissional, pode-se
imaginar que pode e devem estar dinamicamente entrelaçados os conhecimentos,
as avaliações, as experiências, as responsabilidades, compromissos que formatam
as práticas discursivas e subjetividade dos sujeitos, incluindo e dando peso
relevante à subjetividade de cada um que, inexoravelmente, se faz presente no
ambiente educacional.

5.5 TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO: BUSCANDO O PESQUISADOR

Outro tópico ventilado pelos alunos sobre os aspectos relevantes que os faz
sentir-se ou não psicólogos/psicólogas, refere-se à elaboração do trabalho
monográfico de conclusão de curso. Este trabalho é uma exigência recente, feita a
alunos de Psicologia em geral, com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais, pois
não havia a tradição, na Psicologia, da realização desse trabalho final e nem de sua
apresentação pública. Dos alunos, era exigido apenas que apresentassem o
relatório do estágio profissionalizante. Pode-se perceber, portanto que essa
dicotomia teoria-prática perpassa a formação de psicólogos.
Na perspectiva do Currículo Mínimo, as disciplinas teóricas eram trabalhadas
nos quatro primeiros anos e o último era dedicado ao estágio, atividade em que se
aplicariam os conhecimentos adquiridos. Os alunos que optassem por fazer apenas
o bacharelado, estavam inclusive liberados do 5º ano. A conclusão de sua formação
se daria quando da conclusão das disciplinas do 4º ano.
Silke Weber (1985), ao discutir o Currículo Mínimo definido para os cursos de
Psicologia, ressalta que nele não há nenhuma preocupação com a pesquisa nem em
nível de disciplinas, nem de estágios. E revela que havia, naquela época, um
181

equívoco com relação à realização de pesquisas em psicologia, como se essas


fossem possíveis, apenas, se realizadas em laboratórios e sujeitas a tratamento
estatístico. Afirma ainda que, naquela época — década de 1980 — a proliferação de
cursos em instituições privadas também concorreu para não valorização da
pesquisa, tendo em vista que estas ficaram praticamente restritas às instituições
públicas que formavam psicólogos e constituíram-se em centros de excelência.
Como a Psicologia tem uma tradição assentada no fazer, nas práticas
profissionais, os Cursos foram estruturando-se sem que houvesse uma preocupação
com a questão da pesquisa. Ademais, como os psicólogos, ao se decidirem por
aderir a uma determinada concepção teórica para orientar sua prática, prosseguem
seus estudos em grupos particulares de formação que não têm vinculação com a
Academia, não houve condições objetivas para que a pesquisa se tornasse um
investimento de peso nos cursos.
Silke Weber (1985) propõe que se pensem formas de estruturação do curso
que possibilitem ao estudante participar de um processo de construção de
conhecimentos, descobrindo que este advém de dúvidas ou questionamentos sobre
a realidade, cujo conhecimento existente não dá mais conta de compreendê-la.
Acredita a autora que só assim os estudantes poderão superar a condição de
consumidores de um conhecimento elaborado, para compreender o processo de sua
construção e, conseqüentemente, assumir posicionamentos mais críticos diante do
conhecimento.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Psicologia, aprovadas
pelo Parecer CNE/CES nº 62, de 19 de fevereiro de 2004, e homologado em 08 de
abril do mesmo ano, depois de uma longa disputa pelos aspectos que privilegiaria, e
como abordaria os princípios e os conteúdos inerentes a eles, dentre os quais, a
questão da pesquisa, propõem que esta seja incorporada à formação de psicólogos,
mediante uma prática sistematizada no curso. As DCN não destacam o pesquisador
em psicologia como um perfil independente. Definem que a meta central é a
formação de psicólogos voltados para a atuação profissional, para a pesquisa e para
o ensino da psicologia, declarando princípios e compromissos, dentre os quais,a
construção e o desenvolvimento do conhecimento científico em Psicologia é o
primeiro deles.
As DCN para os cursos de graduação em Psicologia, em seu Art. 4º, listam as
competências gerais que deverão ser operacionalizadas no currículo, por meio de
182

eixos estruturantes (Art.5º), dentre os quais, relacionados com a pesquisa, destaca-


se as alíneas b e c:

b) Fundamentos teórico-metodológicos que garantam a apropriação crítica


do conhecimento disponível, assegurando uma visão abrangente dos
diferentes métodos e estratégias de produção do conhecimento científico
em Psicologia.
c) Procedimentos para a investigação científica e a prática profissional, de
forma a garantir tanto o domínio de instrumentos e estratégias de avaliação
e de intervenção, quanto a competência para selecioná-los, avaliá-los e
adequá-los a problemas e contextos específicos de investigação e ação
profissional. (BRASIL, 2006e, p.2).

Definem ainda competências (art. 8º), habilidades (Art. 9º) e alternativas


metodológicas (art. 19), às quais o curso pode lançar mão para operacionalizar a
pesquisa.
No Curso de Psicologia em estudo, a pesquisa é obrigatória para os alunos,
independente dos projetos institucionais aos quais podem engajar-se, é realizada no
fluxograma curricular tendo a disciplina Introdução a Metodologia Científica no 1º
semestre, Estatística aplicada a Psicologia no 4º, Metodologia da Pesquisa no 5º,
quando os alunos devem escrever um anteprojeto de pesquisa e Pesquisa em
Psicologia I e II no 6º e 7º, sendo que no 6º o estudante revê o seu anteprojeto ou
constrói um novo projeto de pesquisa, e no 7º vai a campo, realiza a coleta de dados
e elabora o relatório. No 8º semestre, o estudante, sob orientação, escreve o
trabalho de conclusão de curso (um artigo científico, para publicação) que deverá
estar baseado, preferencialmente, nesta pesquisa realizada no 7º e no 9º faz a
apresentação pública do mesmo, sob o julgamento de banca examinadora.
Uma professora, que ministra a disciplina Introdução a Metodologia Científica
no 1º semestre, entende a importância dessa cadeia, como verbalizou em seu Grupo
Focal:

Introdução a Metodologia Científica, como o título diz, é uma introdução sobre os


tipos de conhecimento, sobre pesquisa, sobre regras, técnicas de documentação. Na
verdade, é um ponto de partida pra gente tentar pensar sobre essa a transição do
ensino médio para o ensino universitário. O que é que significa ser universitário? O
que significa esse importante peso que é ser pesquisador? Acadêmico? O clínico? O
que é que isso significa para quando chegar no TCC. No primeiro semestre desse
ano foi muito interessante, porque eu levei para a sala todas as ementas do eixo
metodológico e apresentei a ementa. Por que começar no primeiro? Porque é que a
gente fez, eu nunca tinha feito isso. A gente começar a trabalhar essa cadeia. Isso é
uma cadeia de pensamento, de lógica [...]
183

E o TCC é considerado pelos alunos como um investimento de peso na


construção de suas identidades que, junto com outras práticas, confirma-os como
psicólogos/psicólogas, o que pode ser percebido no diálogo de duas alunas do 1º
grupo, quando falam disso:

Aluna 1 - No estágio [...] aqui na Clínica, aqui no Serviço de Psicologia, cruzou com
o momento da monografia [...] tive a maior dedicação! [...] É agora, sabe, é hora de
concluir meu curso! De ser, tipo assim, documento atestando que eu sou psicóloga,
sabe? Então, concluir aquele trabalho, nossa, foi muito gostoso! E trouxe uma
responsabilidade muito grande [...] Então eu acho que foram duas coisas que me
fizeram ter um amadurecimento, uma responsabilidade, um compromisso com as
pessoas que eu tô atendendo. O tema que eu tava abordando ali, um bocado de
reflexões sobre aquilo. De todo o percurso da faculdade, escrever, eu acho que
retomou muita coisa no processo de ser psicóloga [...]

Aluna 2 - Essa coisa que X falou da monografia, o trabalho de conclusão, é


fundamental! [...] eu encarei o trabalho de conclusão como um trabalho mesmo, de
começo mesmo, porque foi, era o que eu queria, era aquilo que eu queria! Então,
terminar, concluir o trabalho foi fundamental para compor essa identidade de
psicóloga, esse momento [...] se cruza com o momento do psicodiagnóstico. Pra
mim, foi o momento!

Na verdade, a implantação deste trabalho, no curso, tem sido uma construção


do coletivo de professores junto com os alunos. Em sendo muito novo para todos, pois
apenas dois professores haviam realizado trabalho de conclusão de curso em suas
graduações, a forma como o curso entende como deve sê-lo está sendo definida
nessa própria ação. Além do mais, os professores, a maioria com titulação de
mestrado, não tinha experiência de orientação de trabalhos científicos. Nessa
perspectiva, diz um professor que orienta TCC:

[...] algumas coisas daqui, a gente ainda está em construção, espaço de pesquisa.
Espaço de TCC! É pesadíssimo de acontecer! Muito pesado! Muito puxado! A gente
ainda está em construção, em um semestre! Às vezes, você necessita trabalhar mais
com esse aluno, necessita ficar melhor. Quando se aproxima do TCC, a vida do
aluno, a gente precisa estar com ele, precisa de 3, 4 encontros por semana! Tem
coisas ainda e essas coisas são todas coisas árduas [...]

A despeito das dificuldades e de ser uma iniciativa muito nova para todos os
envolvidos, a avaliação que o coletivo — professores e alunos — faz desse processo
é de que a realização do trabalho de conclusão dá uma qualidade maior à formação.
Como são privilegiados temas de interesses dos alunos, em decorrência de seu
próprio projeto de pesquisa cursado anteriormente, acredita-se que estimule a
184

problematização sobre a prática e possa contribuir para aquilo que se deseja


incentivar como educação continuada.
Consentâneo às ênfases curriculares do Curso e a preferência dos alunos
pelas áreas profissionais da Clínica e da Saúde, os temas por eles escolhidos para a
elaboração do TCC recaem sobre a área da saúde e da clínica, como pode ser
observado na Tabela 3:

Tabela 3 – Número de TCC elaborados pelos alunos do curso de


Psicologia por área temática

Área Temática Semestres Total %

4.2 5.1 5.2 6.1 6.2

Educação 5 3 1 2 1 12 9,23%

Educação 2 1 1 2 2 8 6,15%
Especial

Trabalho e 3 2 1 7 3 16 12,31%
Organizações

Saúde 7 5 4 16 4 36 27,69%

Clínica 6 9 6 7 7 35 26,92%

Psicologia Social 2 4 6 6 5 23 17,69%

Total 25 24 19 40 22 130 100,00%

Considere-se que o TCC pode ser realizado tanto individualmente quanto em


dupla.e, em alguns casos, por até três alunos. Por isso não há uma correspondência
entre o número de alunos do curso e o TCC. Todos, porém, contam com um professor
orientador com carga horária semanal para acompanhá-los durante todo o semestre.
Pode-se verificar, na Tabela 3, que mais de 50% dos temas dos trabalhos
situam-se nas temáticas de Saúde e Clínica, como um reflexo da construção do curso
e da cultura acadêmica da instituição de saúde.
As temáticas específicas da área da saúde que têm a maior quantidade de
trabalhos referem-se à Psicologia Hospitalar, com 9 trabalhos, seguido pelo
atendimento a pacientes com câncer, com 6 ocorrências, e a temática da obesidade e
da saúde mental, com 4 TCCs cada uma delas.
185

A despeito do Curso ter definido como ênfase, além da Saúde/Clínica, as


Práticas de Psicologia em Trabalho e Organizações”, esta conta com apenas 12,31%
dos trabalhos, enquanto 17% situam-se em temáticas relacionadas à Psicologia
Social, o que revela, de certa forma, o investimento do curso em diversificar o olhar
dos estudantes para questões psicossociais contemporâneas, para além da clínica.
Desses, podemos destacar questões de Gênero, com 6 trabalhos, de envelhecimento,
com 4 trabalhos, e a temática de Drogas, com 3, dentre outros de interesse da
Psicologia Social.
De maneira geral, atendendo a uma orientação generalista do Curso, existem
Trabalhos de Conclusão de Curso em todas as áreas da Psicologia e do trabalho de
psicólogos, existindo, inclusive, algumas temáticas inovadoras e de um apelo social
mais contundente. Há também trabalhos que se inserem na agenda de temas da
Psicologia do Trabalho e das Organizações e outros da área da Educação. Não
ocorre, porém, uma correspondência entre a área que o estudante faz estágio e a
escolhida para escrever seu TCC. Há o pressuposto, por parte dos alunos, de que,
como a psicologia é múltipla e existem muitas possibilidades de atuação em áreas
diversificadas, é melhor, para sua formação, transitar pelo maior número possível de
alternativas. Do ponto de vista deles, esse trânsito, ao dar uma visão panorâmica da
profissão, pode ajudar a enfrentar os desafios do Mercado de Trabalho.
Esse posicionamento, entretanto, não encontra eco nem na autora desta tese,
nem no grupo de professores. Entende-se que esta fragmentação não contribui para
uma formação profissional consistente. A estruturação curricular de cunho tecnicista,
que está na base do currículo, decerto pode ser considerada a mola propulsora que
induz os alunos a essa percepção estanque das áreas de atuação.

5.6 OUTRAS PRÁTICAS... A DIVERSIDADE NA FORMAÇÃO

A despeito dos alunos e alunas perceberem e verbalizarem sobre o


reconhecer-se psicólogo/psicóloga como uma aquisição processual que se
desenvolve ao longo do curso, nos Grupos Focais, outras práticas ou situações
específicas da relação ensino aprendizagem foram destacadas como nucleares para
186

a formação profissional, como é o caso da importância da ética na profissão e o


contato com pacientes psicóticos na disciplina “Psicopatologia”.
Considerando o currículo como um espaço de poder, entendendo poder na
perspectiva foucaultiana de produzir desenvolvimento, de incitar ações proativas
diante da realidade, professores e alunos negociam conceitos, referências e práticas
necessárias à construção de uma profissão, esmiuçando aspectos significativos da
postura profissional que extrapolam o domínio de técnicas e conteúdos para se deter
em valores que orientam a atuação. Nessa perspectiva, emerge a ética na ação do
psicólogo como uma questão de peso, abordada por todos os grupos. O diálogo de
duas alunas no 2º grupo, quando discutem a ética na escuta do profissional, é
ilustrativo:

Aluna 1 – E a escuta é justamente diferente, porque você não ta só escutando a


pessoa, você ta procurando compreender o que aquela pessoa tá dizendo. Eu acho
que essa parte faz toda a diferença. Porque não é só a pessoa tá ali falando, falando
sobre os problemas [...] Mas você vai tentar compreender que sentimentos há por
trás daquela fala [...] Achei bonito foi o que Rogers36 disse. Rogers disse assim:
captar a tonalidade das palavras, da voz, captar as cores do sentimento... Então, às
vezes, a pessoa pode tá ali falando de uma determinada coisa [...] se você ouvir,
simplesmente por ouvir, tudo bem, passa, mas se você realmente ouvir, buscando
compreender aquela pessoa, você vai saber que tem muito mais coisas ali do que o
que aquela pessoa tá dizendo.

Aluna 2 – Eu acho importante essa questão da escuta, mas tem um outro aspecto
também que é fundamental quando se escuta que é a questão da ética. O que você
vai fazer com a escuta? [...] o que é que você vai fazer com isso? [...] você vai induzir
ele? você vai desconstruir? você vai abrir ou fechar portas? Eu acho que essa
questão da ética a gente tem que ter muito cuidado com o nosso olhar e o olhar do
paciente, pra gente não impregnar o paciente com a nossa visão [...] é uma coisa
que eu procuro sempre, quando eu coloco alguma coisa nos atendimentos clínicos.
Eu pergunto: eu acho que, eu percebo ou eu vejo ou eu acho que dá pra fazer assim.
você quer? você acha? você concorda? Não, se você não concordar tudo bem.
Então, deixar também o paciente livre para [...] ele tá ali diante de você, ele tá
pedindo ajuda por algum motivo. Isso aqui tem alguns aspectos que naquele
momento ele não quer mexer e você deve respeitar, eu acho isso fundamental!

O Curso de Psicologia em foco, a despeito de determinar uma disciplina como


obrigatória no 7º semestre, intitulada Ética e Práticas Profissionais, definiu, em seu
Projeto Pedagógico, que a ética na Psicologia é um tema que deve perpassar todo o
currículo, sendo responsabilidade de todos os professores incluí-la em seu plano de
ensino e articulá-la com seus conteúdos e práticas desenvolvidos em sala de aula.

36
Carl Rogers, psicólogo americano, é considerado um teórico de peso na perspectiva humanista da
psicologia, que desenvolve a abordagem centrada na pessoa.
187

Considera que a ética é algo construído no escopo de um projeto profissional,


levando em conta os valores que orientam não apenas a prática profissional, mas
extrapola para todas as relações e a própria conduta de cada psicólogo e psicóloga
durante sua vida. Nessa perspectiva, a ética deve ser exercitada nas relações que
se estabelecem no âmbito escolar, pela adesão a valores democráticos, e na
avaliação que se faz das práticas profissionais e sociais cotidianas, numa análise
das questões morais que permeiam a construção da sociedade.
Esclarece Elizete Passos (2000, p. 20, grifos da autora):

[...] a vida humana é constitutivamente moral, pois ela se estrutura em torno


de valores. Os projetos de vida, sejam eles individuais ou coletivos,
configuram-se a partir de ideais que outras coisas não são senão valores.
Nossas ações, das mais simples às mais complexas, pressupõem escolhas
que são feitas a partir do valor que elas tenham para nós.

Numa argumentação em que esclarece sobre a adoção do termo ética em


substituição a moral, a autora enuncia:

Os valores morais, diferentemente dos não morais, não possuem substrato


material e só existem nos atos e produtos humanos, tais como:
comportamentos, interações sociais, decisões tomadas, no produto e
aplicação desses atos. Deles podemos falar em justiça, honestidade ou
integridade, assim como em responsabilidade. Os valores morais são
exclusivos dos seres humanos, pelo fato de pressupor que esses sejam
responsáveis pelo que fazem e, para isso, que seus atos tenham se dado
de forma livre e consciente. (PASSOS, 2000, p. 20-21, grifos da auutora).

A esse respeito, há um diálogo no 1º Grupo Focal, no qual se envolvem todos


os participantes do grupo:

Aluna 1: Tem que ser ética. Tem que ser uma pessoa acima de tudo ética.
Engraçado que a gente deu Ética duas vezes37, na cabeça da gente: é pra quê dar
Ética? não sei o quê ..Tem que ter, tem que ter, isso daí é fundamental! A questão
da ética, uma pessoa que não tenha isso bem forte na sua personalidade [...] vai ser
difícil [...]

Aluna 2: Tem que ter respeito mesmo pelo que está fazendo, parece que é uma
coisa simples, né?

Aluna 3: E trabalhar sempre [...]

37
Como este grupo iniciou o curso no Projeto Pedagógico original, elaborado sob a orientação do
Currículo Mínimo, havia uma disciplina no 2º semestre intitulada Ética e outra no 6º nomeada Ética
Profissional.
188

Aluna 1: Uma coisa que eu acho também que o psicólogo tem que ter é
responsabilidade. Não pode ser de forma alguma uma pessoa assim irresponsável
quer dizer [...]

Aluna 4: Assumir compromissos [...]

Aluna 1: Assumir, exatamente! Não é que não possa ser irresponsável com outras
coisas, mas a partir daquele momento que está exercendo o papel de psicólogo tem
que ser uma pessoa responsável [...] Você perguntou se era ter paciente, no caso,
para ser psicólogo. Não é ter paciente não, porque como X e X disseram é ser
responsável pelo outro. Entendeu? Não é ter o paciente, que faz a seleção ou o
laudo, ou a orientação na escola, ou o que seja. É você ser responsável pelo outro, e
é isso que marca [...]

Essas colocações exibem, mais uma vez, o status e o peso que essas alunas
atribuem à psicologia como profissão feminina, embora não estejam se dando conta
disso, tendo em vista que esse aspecto tem sido uma questão pouco problematizada
no âmbito da Psicologia. Esse cuidado que assume o caráter de responsabilidade
pelo outro, dedicando-se a ele, tornando-o o centro do processo, é exatamente a
proposta de Joan Tronto (1997) sobre o “cuidar de”, que se contrapõe ao “cuidado
com”, que se realiza em uma ótica mais geral de cuidado com a sociedade e se
configura como um tipo de cuidado considerado masculino, que se preocupa com os
outros e com aspectos da realidade, mas o faz sem o envolvimento pessoal.
Essas colocações remetem ao que propõe João Ferreira Neto (2004), quando
sugere que a clínica na psicologia é um ethos, uma atitude diante das situações
profissionais. A Psicologia é uma profissão que lida com a subjetividade dos seres
humanos e em quaisquer lugares em que seja exercida, em maior ou menor escala,
depara-se e precisa manejar informações a respeito da intimidade de seus usuários.
Surge, portanto, uma questão fundamental a ser enfrentada: o sigilo profissional.
Este tema é abordado no Código de Ética Profissional dos Psicólogos (CFP,
2006b, p.13), em seu artigo 9º: “É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a
fim de proteger, por meio de confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou
organizações a que tenha acesso no exercício profissional.”
A questão da quebra do sigilo é tratada no artigo 10º, que autoriza essa
quebra em casos previstos em lei, devendo o psicólogo ou a psicóloga tomar esta
decisão na “busca de menor prejuízo”. O parágrafo único deste artigo orienta que
essa quebra deva se restringir a “[...] informações estritamente necessárias.” (CFP,
2006b, p. 13).
189

Questões como estas são normatizadas no Código de Ética Profissional, para


serem seguidas por todos os profissionais do país. O primeiro Código de Ética
Profissional dos psicólogos foi criado em 1975, pela Resolução nº 8, de 02 de
fevereiro, do Conselho Federal de Psicologia, sendo revisto em 1977. Um novo
Código de Ética dos Psicólogos entrou em vigor em 27 de agosto de 2005, pela
Resolução nº 010/05, de 21 de julho de 2005 e entrou em vigor a partir do dia 27 de
agosto do mesmo ano, como produto de uma construção coletiva, resultado de
amplo debate nacional. Foram consideradas as novas e crescentes demandas
sociais por psicólogos, que geraram novos campos de atuação e incitaram a criação
e adoção de novas práticas psicológicas, decorrentes das transformações histórico-
sociais da sociedade contemporânea.
Um código de ética, como um conjunto de princípios que baliza a atuação
profissional, tem o objetivo de assegurar, tanto à sociedade quanto aos profissionais,
padrões de atuação, nos quais estão em jogo as relações com os pares, com a
sociedade e com a ciência. O novo Código de Ética dos Psicólogos trata a profissão
como uma totalidade, sem particularizar áreas de atuação ou referenciais teóricos
específicos, porém consegue ser amplo o suficiente para contemplar a diversidade
de possibilidades de atuação, a crescente inserção de psicólogos em contextos
institucionais diversos e a atuação em equipes multiprofissionais.
Elizete Passos (2000) refere que a deontologia, enquanto ética profissional,
caracteriza-se por um conjunto de normas e princípios que orientam as relações de
determinados grupos ocupacionais. Via de regra, segundo a autora, é utilizada
equivocadamente, como se tivesse um fim em si mesma, por ser apenas
considerada como código de prescrições, regras e interditos. E ressalta a
necessidade de reafirmar o compromisso de profissionais com o projeto global da
sociedade pelo respeito à dignidade do ser humano. A autora propõe uma ética
emancipatória, da justiça social, que priorize o bem comum no reconhecimento e
enfrentamento das desigualdades sociais. Elizete Passos (2000, p.33) incita a um
“[...] compromisso inalienável com a transformação social, com a construção de uma
sociedade mais justa e mais igualitária, onde a prática moral seja embasada no
respeito mútuo, na honestidade, na igualdade, na solidariedade e no amor.”
A formação profissional, dentre elas a que está sendo analisada, tem buscado
contextualizar a formação e, nessa iniciativa, descobrir campos de prática
importantes e necessários, numa relação de mão dupla com o contexto social, em
190

que a ação dos alunos interfere nos espaços onde estão situados e gera nos alunos
reflexões sobre suas atribuições profissionais e embasamento teórico. A idéia é que
existem espaços que são quase “ambientes naturais” de se fazer psicologia, dada à
natureza da instituição e das práticas que lá se desenvolve. É o caso do
atendimento a pacientes psicóticos.
Os alunos das duas primeiras turmas38 do Curso de Psicologia tiveram a
experiência singular de freqüentar a disciplina de Psicopatologia no Hospital Juliano
Moreira, que funciona nos moldes de um Hospital Psiquiátrico tradicional. Sobre o
impacto de viver a experiência nesse hospital psiquiátrico, relata uma aluna do 2º
Grupo Focal:

[...] uma coisa que me marcou muito, assim, foi a disciplina de Saúde Mental [...]
você ter que ir até o Juliano [...] eu me senti muito pequena quando eu fui até lá e ele
[o professor] me fez refletir assim sobre essa prática [...]

Outra aluna do mesmo grupo concorda e depõe:

[...] aquela experiência me colocou assim em contato com uma realidade crua, sem
maquiagem [...] ali eu perdi medos [...] foi pra mim uma experiência muito marcante,
foi como seu eu tirasse vendas pra muitas coisas; eu perdi frescuras, ali, eu posso
dizer [...] foi muito forte! Eu não iria assim de livre e espontânea vontade pro Juliano,
mas, assim, pela proposta, eu aceitei e encarei [...] puxa vida, eu mudei a partir
daquilo [...] eu mudei [...]

Temas como esses — psicóticos — trazem questões muito sérias


relacionadas com a inclusão/exclusão na sociedade capitalista. Refere-se à
problemática de excluídos que não “devem” ter acesso aos bens sociais, posto que
estão “inadaptados” para a convivência social; e a melhor saída é segregá-los em
“hospitais”, depósitos onde não ficam visíveis aos olhos de todos, todos os dias.
Há, na pauta da Psicologia Social brasileira, hoje, o reconhecimento de uma
sociedade desigual e um engajamento de psicólogos em lutas em prol daqueles que
são excluídos — dentre eles os negros, as mulheres, os homossexuais, os doentes
mentais, os deficientes — e a conseqüente criação de espaços de atuação
profissional que privilegiem essas questões, até recentemente subvalorizadas na
agenda de temas importantes para a Psicologia.

38
Nas turmas subseqüentes, essa forma de trabalho foi repensada e modificada, sendo transferida
para um Centro de Atenção Psicossocial, com visitas ao Hospital Juliano Moreira e ao Hospital de
Custódia e Tratamento.
191

Partilha-se do entendimento de que a atuação de psicólogos, em seus


diversos contextos de atuação, caracteriza-se pela possibilidade de criar espaços
em que os sujeitos possam expressar os sentidos que atribuem a suas experiências,
de forma crítica e criativa, em que o direito a voz seja assegurado a todos, o que
não acontece na realidade dos hospitais psiquiátricos tradicionais. Estes apesar de
ainda manterem uma estrutura e dinâmica de séculos passados, numa perspectiva
excludente, podem ser revitalizados com base em modelos assistenciais
substitutivos que, pela lógica do cuidado, possam incluir e reinserir socialmente os
usuários de seus serviços.
O isolamento dos pacientes, levado às últimas conseqüências, que segrega e
cronifica o portador de transtornos mentais, é o que provoca o impacto maior na
experiência das alunas. Aquelas que participaram do 1º Grupo Focal verbalizam
aspectos interessantes, porquanto, em alguns momentos, ressaltam como uma boa
experiência, que gostaram muito, mas que provocara reações fortes e adversas, o
que demonstra o peso de uma experiência sofrida e contraditória. Uma aluna diz:

O Juliano, foi ótimo, foi o ouro [...] O Juliano foi o melhor de experiência mesmo, o
Juliano foi tudo! Eu acordava mal pra ir pra lá. Eu acordava muito mal. Eu disse: meu
Deus do céu, se eu surtasse agora [...] eu não surto nunca mais.

Enquanto outra, fala:

Eu gostava de ir pra lá, mas eu tinha medo, e hoje eu não tenho mais [...]

Outra diz:

Eu não tinha medo não, me perturbava! Foi uma coisa assim, de eu imaginar que o
limite entre a sanidade e a loucura é um limite tão estreito [...] é isso que ficou na
minha cabeça, é isso que eu pensava [...]

É importante para a formação profissional compreender como funciona a


sociedade em toda a sua dinamicidade sócio-historicamente constituída, a fim de
que os estudantes possam construir seus projetos profissionais comprometidos com
as questões sociais que envolvem sua profissão, numa confluência de saberes em
que o acadêmico dialoga com a sociedade num movimento de constituição mútua. É
nessa perspectiva, que o currículo pode ser visto como uma construção social do
192

conhecimento, multicultural e multirreferencial (FRÓES BURNHAM, 1998;


SACRISTAN, 1995).
Observando os depoimentos dos alunos expostos até aqui, que trazem relatos
sobre a vivência acadêmica que lhes possibilita nomear-se ou não psicólogos e
psicólogas, pode-se depreender que eles compreendem a construção dessa
identidade como processual, que está se fazendo, e que deverá continuar se fazendo
e refazendo no transcorrer do tempo. Sobre esta questão, apenas um aluno depõe:

Na minha opinião [...] o que faz a gente se sentir psicólogo é exatamente o diploma,
o título [...]

O discurso deste estudante leva à suposição de que a identidade, para ele, é


conquistada como um atributo, como algo que se cristaliza e pereniza como idêntico,
sem possibilidade de transformação. Fica evidente, portanto, uma concepção de
identidade tributária da concepção tradicional (moderna) de sujeito.
Tomaz Tadeu Silva (2000, p. 84) fala de dois movimentos que oscilam na
produção das identidades, a saber: o que tenta fixá-las; e o que tenta subvertê-las.
O autor argumenta a favor da impossibilidade de fixá-las, tendo em vista que é “[...]
uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato
performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente,
inacabada [...]” (SILVA, 2000, p. 96-97). Esse posicionamento é compartilhado por
Stuart Hall (2000, 2001).

5.7 PSICÓLOGOS E PSICÓLOGAS: PROFISSIONAIS DA ESCUTA

A concepção de identidade que se compartilha neste trabalho significa


identificações em curso, sucessivas e ilimitadas. Pressupõe uma contínua avaliação
do sujeito sobre si e sobre seus pares que, de uma forma viva e dinâmica, vai se
configurando de diversas formas, relacionadas ao momento e ao contexto que cada
pessoa vive no desenrolar de sua existência, nos discursos de que se apropria ao
falar de si e do mundo. Na verdade, são múltiplas identidades em processo
permanente de construção e desconstrução. Pode-se falar de identidade sexual, de
193

identidade profissional, de gênero, de raça, de etnia, de religião, de nacionalidade,


de geração, dentre uma infinidade de outras identidades que se intercambiam e
fazem sentido tanto para cada um em particular quanto para os grupos aos quais se
identifica e se afilia, dando a cada um o sentimento de pertencimento.
Ao entrar no curso, como foi constatado no Questionário Inicial, analisado em
capítulo precedente, os alunos e alunas definiam o psicólogo e a psicóloga como
profissionais de ajuda, especificando que sua atuação consistia em ajudar as
pessoas que estivessem com problemas ou vivenciando situações de sofrimento.
Fica muito evidente também que esta ajuda seria profissional e qualificada e que ela
deveria se dar, de preferência, em atendimentos clínicos realizados em consultório
privado, naquela que se considera uma perspectiva tradicional para o exercício da
profissão de psicólogo e psicóloga.
Reportando-se aos posicionamentos que interferiram na escolha da profissão,
alunas do 2º grupo referem-se a:

Aluna 1 – As pessoas falam [...] psicólogo ele conversa né? como se fosse um amigo
[...] [risos].

Aluna 2 – E amigo é aquele que dá conselho [...]

Aluna 3 – É tipo assim, quando você, antes de você entrar na faculdade, escuta
dizerem para você é, você devia fazer psicologia, você gosta de conversar, ouvir as
pessoas [...]

Aluna 2 – As pessoas gostam de falar dos problemas e eu gosto de escutar [...]

Aluna 1 – Inclusive, eu, quando me perguntavam: porque você escolheu psicologia?


eu respondia, todo mundo me procura pra ficar falando dos problemas e eu adoro
ficar ouvindo. Falava isso, eu tinha 17 anos [...]

Aluna 3 – Eu também, entrei na faculdade com 17 anos.

A análise desta questão do questionário inicial evidencia a relação que a


psicologia estabelece com a sociedade, para oferecer uma visão estereotipada de
atuação profissional, caracterizada pelo atendimento psicoterapêutico realizado em
consultório individual privado. Nele, as pessoas podem falar de seus problemas,
visto que o psicólogo ou a psicóloga é a pessoa privilegiada, que tem acesso a
conteúdos íntimos e privados daqueles que o procuram, buscando ajuda. Esse
exercício profissional é exatamente aquele que dá prestígio e poder ao profissional,
194

haja vista que lhe confere o estatuto de profissional liberal, como já discutido
anteriormente, ainda que se trate de uma profissão feminina.

Na arena social, é notória a hierarquia entre as profissões. Aquelas que têm


uma predominância masculina e priorizam a ação e o uso do raciocínio lógico são
mais valorizadas socialmente, em detrimento daquelas voltadas para os
conhecimentos das humanidades e referem-se ao cuidado com os outros.

Embora a Psicologia configure-se como uma profissão feminina de ajuda na


perspectiva do “cuidar de”, do qual fala Joan Tronto (1997), e que exige o
compromisso e a responsabilidade pelo outro, os profissionais da Psicologia não
necessariamente se colocam em posição de subalternidade a outros profissionais,
posto que podem exercer seu mister com independência, no espaço privado do
consultório. Dessa forma, diferenciam-se de outras profissões femininas como a
Enfermagem, o Magistério de séries iniciais, o Serviço Social. Nessa perspectiva,
fala-se da dinâmica das relações de poder, em que se produzem saberes que
estruturam as possibilidades de ação profissional dos seres humanos, numa
configuração conjunta de saber-poder, referida por Michel Foucault (1979, 2001b).

É importante demarcar que a Psicologia, ao nascer como profissão no Brasil,


tinha bem delimitado seu viés clínico, assegurado inclusive pelo parecer do MEC nº
403/62, que regulamentou a profissão e instituiu o Currículo Mínimo para os cursos
superiores de Psicologia, ao “[...] assegurar à Psicologia a posição de relevo no
conceito das chamadas profissões liberais.” (CFE, 2006, p.1). Todavia era marcante
sua presença, desde a primeira metade do século XX, na área da educação, assim
como nas indústrias, mediante a utilização de testes psicológicos nas instituições
educacionais, nos serviços de seleção de pessoal, nos exames psicotécnicos de
motoristas e no sistema judiciário (CFP, 2005), conforme visto no Capítulo 2.

Durante o Curso, ao entrar em contato com a diversidade teórico-


metodológica da Psicologia e adentrar pelos caminhos da atuação profissional, os
alunos têm a possibilidade de ressignificar alguns conceitos e perceber a profissão
de um modo diferente. O que se verifica, no entanto, nos depoimentos coletados nos
Grupos Focais, é que, como o curso trabalha aportes teóricos diversificados, é
possível a alunos e alunas compreenderem o mosaico teórico-conceitual da
Psicologia e até transitar por alguns deles com desenvoltura. Eles têm conhecimento
também das múltiplas possibilidades de ação e inserção profissional, tanto no que se
195

refere a campos tradicionais de trabalho de psicólogos quanto àquelas áreas


consideradas emergentes.
Com relação à escolha profissional, entretanto, o segmento que atrai o maior
número de alunos para o Estágio Específico é o da área clínica, com atendimento
individualizado em consultório privado, realizado no Serviço de Psicologia (a Clínica-
escola patrocinada pelo próprio Curso), mantendo aquele posicionamento
explicitado no início do curso e idealizado, como visto no Questionário Inicial.
A despeito do currículo do Curso privilegiar disciplinas que descortinam áreas
distintas de interesse de ação de psicólogos como a Psicologia Social, Psicologia do
Desenvolvimento Humano (bebês, crianças, adolescentes, adultos e idosos),
Psicologia e Educação, Psicologia e Saúde, Psicologia e Comunidade, além de
patrocinar Estágios Básicos em distintos espaços de atuação como em Projeto
Saúde da Família, Centro de Educação Especial, Grupo de Apoio a Criança com
Câncer, ambulatórios diversos, trabalhos em comunidade, hospitais, dentre outros, a
área clínica é aquela que se oferece como a mais atrativa para os estudantes
realizarem o estágio profissionalizante.
Acreditam os alunos que esse estágio, em particular, poderá possibilitar-lhes
o exercício de uma escuta que lhe será necessária e fundamental em quaisquer
espaços em que possam vir a atuar. E os estudantes, em adesão ao que lhes
ensinam seus mestres, consideram o psicólogo e a psicóloga como os profissionais
da escuta, que possibilitam a promoção da ajuda. Há, portanto, uma ressignificação
do entendimento do psicólogo e da psicóloga como profissionais de ajuda para
profissionais da escuta, embora a profissão continue sendo considerada como
profissão de ajuda.
Em atendimento à demanda dos alunos e como uma decisão do próprio curso
com relação aos Estágios Específicos, desde a primeira turma de alunos, a maior
oferta de vagas para os estágios recai na área clínica, privilegiando orientações
teórico-metodológicas diferentes, como é o caso de Psicanálise, Terapia Cognitivo
Comportamental, Gestalt Terapia, Psicoterapia Analítica Junguiana e Psicanálise
Infantil Winnicotiana. Como o Curso definiu duas ênfases curriculares, seguindo
orientação das Diretrizes Curriculares (Práticas de Psicologia em Saúde e Práticas
de Psicologia em Trabalho e Organizações), oferece ainda vagas para Estágio em
Hospitais/instituições de saúde e na área de Psicologia Organizacional e do
Trabalho. Para as quatro primeiras turmas, matriculadas com orientações do
196

Currículo Mínimo, foram oferecidas vagas para Estágio na área da Educação, pois
aquele projeto assegurava Estágio nas três áreas tradicionais da Psicologia e
revelou-se como pouco atrativa para os alunos, em virtude, inclusive, do pouco
investimento que o Curso fez nesta área.
Com a reformulação do Curso, à luz das DCN, isso foi modificado, ficando
apenas as duas ênfases citadas: “Saúde” e “Trabalho e Organizações” O PPC,
entretanto, considera que a ênfase de saúde corresponde às áreas de clínica,
hospitalar e ambulatório.
Na Tabela 4 pode-se verificar a oferta e a escolha de vagas em Estágio
Específico nas seis turmas que até o momento da pesquisa chegaram ao 9º
semestre e, portanto, fizeram sua opção pelo citado estágio.

Tabela 4 – Opções de alunos para Estágios Específicos

ESTÁGIO
Área Temática Semestres Total %
4.1 4.2 5.1 5.2 6.1 6.2
Psicanálise 6 3 7 5 4 2 27 11,20%
Terapia Cognitiva 7 7 5 8 4 4 35 14,52%
Comportamental
Psicologia Analítica 2 2 5 4 7 4 24 9,96%
Gestalt Terapia 7 3 4 7 4 5 30 12,45%
Psicanálise Infantil 7 7 4 3 3 24 9,96%
Saúde 2 5 4 10 2 15 38 15,77%
Trabalho e 10 8 5 11 11 9 54 22,41%
Organizações
Educação 5 4 9 3,73%
Total 39 39 37 49 35 42 241 100,00%

Considerando-se que os cinco primeiros itens da Tabela referem-se ao


trabalho clínico realizado no Serviço de Psicologia, pode-se constatar que 58,09%
dos estudantes do Curso de Psicologia em foco realizaram as disciplinas Estágio
Específico I e Estágio Específico II na Clínica de consultório, enquanto 15,77%
escolheram a área de Saúde (hospitalar e ambulatório), perfazendo um total de
73,86% de alunos na ênfase de saúde, consoante a formação tradicional da
psicologia e a cultura acadêmica da instituição de saúde. Veja-se a Tabela 5, que
apresenta uma síntese:
197

Tabela 5 – Escolha de alunos para Estágio Específico - Síntese

Estágio / Área Total %


Clínica 140 58,09%
Saúde 38 15,77%
Trabalho e Organizações 54 22,41%
Educação 9 3,73%
Total 241 100,00%

Observando o Fluxograma Curricular (Anexo C), verifica-se que a área da


Educação não foi considerada de peso na construção do currículo, ficando as
disciplinas a ela relacionadas no início do curso, ou seja, 3º e 4º semestres, distante,
portanto, do momento da escolha do estágio, 8º semestre. As disciplinas das áreas
de Saúde e Trabalho e Organizações, entretanto, fazem-se presentes e
acompanham o aluno em semestres subseqüentes.
É importante esclarecer que no 8º semestre existe uma disciplina obrigatória,
intitulada Diagnóstico e Intervenções em Psicologia, na qual todos os alunos devem
ter uma experiência com o psicodiagnóstico, realizado com criança, adolescente ou
adulto, numa abordagem eminentemente clínica. Isto significa que, neste momento
do curso, todos os alunos lidam com um paciente/cliente no ambiente do Serviço de
Psicologia. Ademais, os Estágios Básicos são desenvolvidos em locais
predominantemente da área da saúde, desde quando pode aproveitar-se a estrutura
privilegiada da instituição. O Estágio Básico I realiza-se no Projeto Saúde da Família
do Complexo Comunitário Vida Plena e é obrigatório para todos os alunos. Os
demais são realizados em espaços diversificados, mas com peso na saúde, como é
o caso do Ambulatório Docente Assistencial de Brotas (gestantes, idosos e
cardiologia), Clínica de Fisioterapia e Serviço de Psicologia, Disciplina Saúde Mental
do Curso de Medicina e Serviço de Psicologia, Projeto Saúde da Família no
Candeal, Grupo de apoio a Criança com Câncer, Hospital Juliano Moreira, Centro de
Educação Especial da Bahia, Centro de Apoio Psicopedagógico, Escola
Especializada Wilson Lins, Secretaria de Desenvolvimento Social da Prefeitura,
Cedeca, dentre outros.
198

Além do mais, dos 32 professores do Curso que são psicólogos,


independente de qual disciplina ministrem, 21 realizam atividades clínicas em seus
consultórios particulares o que, provavelmente, é do conhecimento dos alunos e cuja
experiência clínica, em algum momento, deve fazer-se presente na sala de aula.
Considere-se também o ambiente acadêmico impregnado dos valores e propostas
da saúde que a instituição escolar, por sua própria natureza, oferece. Decerto que
esses dados do currículo oculto interferem sub-repticiamente no direcionamento que
o curso dá à escolha da área de atuação do aluno.

Com relação à escuta, enquanto ferramenta profissional do psicólogo e da


psicóloga, convém ressaltar que não se esgota na perspectiva clínica individual de
sanar problemas, mas refere-se à possibilidade de ouvir quaisquer sujeitos, seja
individual ou coletivamente, em quaisquer contextos em que estejam inseridos. Essa
escuta permite que sejam consideradas expressões, tanto de idéias quanto de
desejos, dificuldades ou quaisquer outras e permite a percepção das limitações e
potencialidades de determinados grupos ou pessoas, reconhecendo habilidades,
saberes, competências, estimulando sempre o estabelecimento de vínculos entre as
pessoas e os grupos e a possibilidade de construção entre elas, para elas e de seu
entorno, inclusive, na promoção da qualidade de vida e na participação cidadã para
as transformações sociais. Há que se considerar, portanto, a especificidade do saber
do psicólogo que lida com a subjetividade dos seres humanos quer do ponto de vista
individual, quer coletivo (EIDELWEIN, 2006; ZANELLA, 2003).

A escuta, por si só, porém, não define a atuação do psicólogo. Some-se à


capacidade de compreender o dito e o não dito que subjaz aos discursos dos
sujeitos uma outra capacidade, a de observar de forma minuciosa os
acontecimentos e os contextos e problematizá-los à luz de referenciais teóricos que
permitam a compreensão da realidade. Considerem-se ainda fenômenos humanos e
sociais como multidimensionais, complexos, transversais, como ensina Edgar Morin
(1998, 2000, 2001). Para este autor, é necessário perceber as relações complexas
que se estabelecem entre texto e contexto e os múltiplos diálogos multi, inter e
transdisciplinares, cabendo à Psicologia desenvolver uma leitura complexa da
realidade, contribuindo para a re-ligação dos saberes.

A escuta do profissional da psicologia é considerado um tema tão importante


para os alunos e alunas que se fez presente em todos os Grupos Focais realizados.
199

Uma participante do primeiro grupo referindo-se à habilidade de escutar como uma


aquisição processual no Curso, assim se expressa:

Aos poucos, mesmo sem a gente perceber, a gente vai aprendendo durante o curso,
assim, a olhar o humano, a olhar o ser humano [...] até a se interessar por isso! Eu
acho que é o principal! Então essa coisa de observar, de ouvir, eu acho que é
principalmente estar interessado, de ter curiosidade, de ter interesse em ouvir, de ter
paciência em ouvir. E isso vai surgindo sem que a gente perceba, dentro das
matérias que a gente deu na faculdade, dentro dos livros de filosofia, dentro de
qualquer coisa. Assim, quem não captou isso, não conseguiu apreender isso na
faculdade, acho que não é um bom psicólogo.

Outra estudante, participante do segundo grupo, problematiza o que de fato


significa essa escuta do psicólogo:

[...] eu acho que a escuta é diferente. Que diferença é essa, ainda eu não tenho
certeza, mas eu acho que é uma questão de não ter o julgamento, de não ter o não
julgamento; não necessariamente significa que você tá lá apático, neutro, ele não tá
falando pra uma parede, mas é uma disponibilidade pra escutar a pessoa [...]

A escuta psicológica, enquanto uma habilidade, não se limita ao exercício


profissional; ao ser incorporada ao cotidiano, extrapola o mister e perpassa as
próprias posições do sujeito em sua relação com o mundo. Pode-se destacar que as
ferramentas de trabalho do psicólogo envolvem, além da escuta e da observação,
sua capacidade de perceber e de relacionar fatos e teorias. Quando internalizadas,
não se dissociam dos sujeitos/profissionais psicólogos. É o que constata uma aluna
do 3º grupo, quando revela um fato de sua vida social:

Nós fomos visitar uma amiga em comum que tava doente. Essa amiga tava falando
de questões da vida dela, pessoais e tudo e depois [...] a colocação que ela fez:
pôxa, você tá, já tá tão diferente, você tá psicóloga! As suas colocações, até a sua
forma de se reservar, você tá diferente!

O grupo de professores também faz alusão a essa escuta característica do


psicólogo, referindo-se a questões de relacionamento pessoal com companheiros,
filhos e outros, e também a momentos profissionais. Com relação à convivência
diária, muitas vezes, a superposição de papéis (mãe/psicóloga, namorado/psicólogo,
professora/psicóloga, amiga/psicóloga, dentre tantos outros) interfere nos discursos
e permite ao psicólogo ou psicóloga ter um entendimento diferenciado do diálogo
200

que trava, mesmo sem haver uma intencionalidade previamente definida, como diz
um professor:

Você pode até ficar calado, mas já ouviu [...]

O objetivo da escuta psicológica, entretanto, enquanto ferramenta de trabalho,


é observar, escutar, compreender e interagir; é realizada de forma privilegiada nos
momentos de entrevistas. Os psicólogos, em suas mais diversas atuações
profissionais, utilizam a entrevista com as mais distintas finalidades. Esta técnica
permite o acesso aos dados dos clientes/pacientes, individuais ou grupais. Na
entrevista, é possível investigar a história pessoal, os conflitos, as representações,
aspirações, crenças, fantasias, mediante os mais diversos relatos sobre
acontecimentos vividos no real ou no imaginário. Significa que só o sujeito pode falar
de sua própria história e cabe ao profissional escutá-la para identificar necessidades,
inteirar-se das possibilidades/impossibilidades de seu momento existencial, a fim de
proceder orientações ou contribuir para amenizar situações de sofrimento ou
quaisquer outras.
A escuta psicológica, portanto, pode ser realizada nos mais diversos espaços
públicos, privados ou ONG, em quaisquer ramos de atividade produtiva ou
assistencial, sem a intenção de se configurar como um atendimento psicoterapêutico
ou uma terapia. Pode ser realizada de forma individual ou coletiva, quando sujeitos
que compartilham contextos sócioculturais podem confrontar razões singulares,
significar e ressignificar fatos e sentimentos pela socialização de experiências.
Caracteriza-se pela aceitação e pelo não julgamento, permitindo que a pessoa
atendida possa expressar seus mais diversificados sentimentos e situações de vida.
Não é necessariamente um atendimento psicoterapêutico, mas pode provocar
efeitos terapêuticos.
René Barbier (1998) fala da escuta sensível como uma possibilidade de
escuta necessária àqueles que lidam com fenômenos humanos. O autor esclarece
que este tipo de escuta segue a lógica da abordagem transversal por ele criada,
como uma teoria psicossociológica existencial e multirreferencial. Diz ainda:

A abordagem transversal procura esclarecer clinicamente e de acordo com


um processo de pesquisa-ação existencial, ligada ao sentido da criação
poética e da meditação espiritual, aquela transversalidade plural, a partir do
201

imaginário e nos níveis concretos da pessoa, do grupo e da organização,


pela expressão de seus produtos, de suas práticas e de seus discursos.
(BARBIER, 1998, p. 172).

O autor caracteriza a escuta sensível, portanto, como aquela que não julga,
que é empática, que se assemelha mais a uma arte que a uma ciência e oferece
uma abertura holística para conectar-se com a totalidade do outro. Do ponto de vista
de René Barbier (1998), é uma escuta que deve ser usada por pesquisadores, por
educadores, psicólogos, terapeutas, por todos aqueles que desejam entender o
outro do ponto de vista que este outro coloca e revela, tentando compreender seu
universo afetivo e cognitivo, que se faz presente pelas idéias, valores, símbolos,
atitudes e comportamentos.
A aprendizagem da escuta diferenciada e qualificada, como ferramenta de
trabalho no Curso de Psicologia, entretanto, está condicionada ao aporte teórico que
cada linha de pensamento preconiza. Apóia-se em uma determinada concepção de
sujeito, de mundo e de Psicologia, com seus posicionamentos filosóficos e
epistemológicos peculiares.
Uma experiência com a aprendizagem da escuta em uma situação de Estágio
Básico é relatada por uma aluna do grupo 4, considerando uma pontuação da
professora:

[...] estou adorando este momento! é muito bom conversar! porque eu acho que é
também um pouco o que a professora falou; a gente está proporcionando pra eles o
que alguns profissionais da área da saúde não têm condições de proporcionar que é
essa escuta [...]

Referindo-se à forma como é possível ir se apropriando desse escutar, diz


uma aluna do 1º grupo:

É tão engraçado! Eu lembro que quando a gente sentava antes para conversar, em
barzinho, com os amigos, antes de fazer psicologia, eu ouvia já, porque sempre eu
gostei de ouvir, tal, e ficava criando minhas hipóteses. Mas era uma coisa... eu
achava minhas coisas e ficava pra mim. Quando eu comecei a estudar, comecei a
ver assim, Freud principalmente, a gente começou a ter conhecimento aqui. Primeiro
que a gente estudou foi Freud, depois foi Skinner também, né? Quando eu comecei
a me dar conta, eu digo: oh rapaz, eu ouvi isso em algum lugar que eu li. Aí começou
[...] Ah, ó pra isso! Chiii! Eu vi [nome da profa.] falando aquilo naquele dia. Olha,
[nome da profa.] falou também de uma coisa assim! Aí eu comecei a ver que tinha
um instrumento, que tinha a teoria que poderia servir pra eu tá [...] Aquilo dali me deu
um poder que eu disse, pôxa vida, o poder do psicólogo! Aquela, a fantasia assim
202

que todo mundo tem, psicólogo vai ficar observando, analisando. Mas tem um pouco
disso mesmo, a gente nunca olha de uma forma [...]

A aluna refere-se ao poder do saber. É um determinado tipo de saber que vai


dar uma posição diferenciada ao psicólogo e à psicóloga, sobretudo permitir que ele
vá além no entendimento do que as pessoas falam, ou seja, permite entender o dito
e também o não dito dos discursos. É provavelmente por este aspecto que, no senso
comum, fala-se que o psicólogo analisa as pessoas ou sabe das pessoas como um
adivinho, um mágico etc.
Como se discute ao longo deste trabalho, do ponto de vista foucaultiano, o
saber, como estratégia de poder, delimita fronteiras simbólicas entre os seres
humanos e o conhecimento científico. Numa sociedade que se estrutura sob a
ordem patriarcal, é identificado como um símbolo do poder masculino. Resta
perguntar sobre o saber da Psicologia e das psicólogas.
Carmem Grisci (1995) considera que as mulheres detêm um saber que se
diferencia daquele próprio da condição masculina e assegura que este é tecido no
interior do espaço doméstico, numa espécie de resistência a sua condição de
excluída. Afirma que é no próprio lar que as mulheres tecem os fios da resistência e
declara: “[...] criam saberes populares que são passados de mulher para mulher.
São saberes envoltos em um discurso peculiar, carregado de metáforas,
personificado pelas benzedeiras, que dificilmente são confiados aos ouvidos
masculinos.” (GRISCI, 1995, p. 17).
Está embutida nesse saber a capacidade de escutar. Em se tratando de uma
profissão feminina, num esforço de aproximação, pode-se associar o saber da
psicologia a este saber feminino, ao qual se refere Carmem Grisci (1995). Ademais,
entende-se que a escuta diferencia os psicólogos de quaisquer outros profissionais.
A escuta, porém, é o instrumento privilegiado da clínica e não se pode
esquecer que os alunos do Curso de Psicologia em estudo fazem sua opção
profissional por esta área de atuação e a escola oferece as condições para
atendimento a essa demanda dos alunos. Apesar disso os elementos que definem
as profissões são criados e recriados ao longo do tempo no permanente movimento
de constituição dos seres humanos e da sociedade e a Psicologia também insere-se
nesse movimento de transformações do mundo contemporâneo, e seus contextos e
práticas vêm passando por significativas modificações.
203

Analisando as transformações pelas quais vem passando a concepção de


clínica em Psicologia, Teresinha Feres-Carneiro e Ana Carolina Lo Bianco (2003, p.
100), no texto que produziram para o III Congresso Norte-Nordeste de Psicologia,
realizado em João Pessoa (PB), em 2003, firmam a seguinte posição:

Acompanhamos, então, as várias etapas porque passa a configuração da


clínica em Psicologia e podemos tipificá-la através da passagem de uma
prática dirigida ao atendimento diádico, exercido no âmbito privado, para um
amplo espectro em que o psicólogo clínico está presente, não mais apenas
nos consultórios, mas participando, nas instituições, nas comunidades, nas
inúmeras frentes de trabalho em que se vislumbra a possibilidade de
exercício e aplicação do conhecimento psicológico.

Prosseguem as autoras, argumentando que há uma mudança na concepção


de sujeito que, considerado natural e universal, era compreendido em uma realidade
intrapessoal e intrapsíquica, enquanto as novas configurações contemporâneas
concebem-no sócio-históricamente determinado pelas circunstâncias sociais,
históricas, políticas, econômicas e culturais, o que possibilita expandir suas
fronteiras da atuação para múltiplas direções, criando e recriando, cada vez mais,
novas possibilidades. Esse novo posicionamento levou João Ferreira Neto (2004) a
propor que a prática clínica em psicologia não seja mais pensada como área de
atuação, mas como uma atitude, como ethos.
É importante demarcar esses questionamentos como constitutivos da própria
profissão e dos profissionais que dela partilham e que elegem os discursos
produzidos para assumirem como seus e para serem por eles falados. Michel
Foucault (2001b) fala do discurso que forja os objetos, das posições de sujeito que
formatam identidades. Logo, a apropriação do discurso da psicologia situa-se nas
permanentes disputas entre os poderes e saberes, ancorados em concepções
teóricas e práticas que descortinam para os alunos possibilidades de prestígio e
poder, seja pelo domínio de determinado campo teórico, seja pelas possibilidades de
reconhecimento social pelo exercício da profissão, seja pela remuneração no
Mercado de Trabalho ou por quaisquer outros parâmetros valorizados pela
sociedade.
O espaço escolar constitui-se, portanto, em uma rede de relações, na qual
práticas discursivas formatam sujeitos singulares. É um campo de disputa de
poderes e de saberes, em que alunos e alunas constroem identidades profissionais,
204

elaborando concepções sobre si, sobre os outros, sobre o mundo e sobre a


profissão. Ao longo deste capítulo foi possível verificar como os alunos que
vivenciam práticas curriculares compartilhadas em um currículo prescrito podem se
subjetivar de formas diferenciadas, exibindo novos posicionamentos diante do real.
Percebeu-se também quais práticas curriculares favorecem, do ponto de vista deles,
a construção de suas identidades profissionais. Identidades em construção
permanente, como sintetiza Boaventura Souza Santos (1996, p. 135), quando, ao
ensinar a olhar as identidades como “identificações em curso” assim se expressa:

Sabemos que as identidades culturais39 não são rígidas nem, muito menos
imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de
identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a
de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou país europeu,
escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de
temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis em
última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de
época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são,
pois, identificações em curso.

Com esse mesmo entendimento de Identidade, no próximo capítulo serão


aprofundados aspectos específicos do processo curricular que se referem ao
atravessamento de Gênero no Currículo e na construção dessas identidades
profissionais, demarcando depoimentos considerados relevantes para a
compreensão do tema.

39
Este terno é utilizado pelos teóricos que situam o estudo das identidades na perspectiva
contemporânea, para marcar que as identidades são sempre construídas no processo cultural.
Cada um fez desse curso o seu curso.
206

6 CONFIGURANDO GÊNERO

Com relação à análise dos dados empíricos coletados durante a pesquisa,


nos capítulos precedentes, abordou-se a construção de identidades profissionais em
Psicologia, privilegiando o entendimento que os alunos e as alunas têm da ciência e
da profissão e também a importância que atribuem a determinados aspectos do
currículo do Curso.
Neste capítulo, privilegia-se Gênero, analisando o atravessamento deste
determinante social no curso e avaliando como direciona a construção das
identidades profissionais, mesmo não havendo uma intencionalidade para isso. Com
relatos diferenciados, realizados por homens e mulheres, analisam-se os
posicionamentos que estes sujeitos demonstram ter quanto ao entendimento de
masculino e feminino.
Além do mais, como evidencia a Psicologia como uma profissão feminina,
exibe as peculiaridades que a distinguem de outras profissões femininas e de outras
também consideradas como profissões de ajuda.

6.1 PSICOLOGIA – PROFISSÃO FEMININA

A psicologia é considerada uma profissão feminina, tendo em vista o grande


contingente de mulheres que compõem este universo profissional no Brasil.
Pesquisas diversas, dentre elas aquelas patrocinadas pelo Conselho Federal de
Psicologia, que realizou o primeiro levantamento nacional entre 1985/87,
constataram que o número de psicólogas brasileiras chegava a 85% do total de
profissionais inscritos no Sistema Conselhos40 à época. Esses dados foram
ratificados posteriormente, em pesquisas realizadas pelo CRP/06 (1994), Rosemary
Achcar (1994), CFP (2001) e IBOPE/MQI (2004), também patrocinadas pelo CFP.
Esta última, realizada recentemente, em 2004, afirma que a maioria absoluta dos

40
Sistema que congrega todos os Conselhos Regionais de Psicologia (CRP) do Brasil, delimitados
por critério geográfico.
207

profissionais da psicologia brasileira são psicólogas, ou seja, 91% do total é


constituído de mulheres, enquanto os 9% restantes são do sexo masculino.

Com relação ao quantitativo de mulheres como profissionais de psicologia na


Bahia, Manoelita Santos (1999), em Pesquisa para Mestrado na UFBA, realizou
levantamento de inscritos no Conselho Regional de Psicologia (3ª Região – Bahia e
Sergipe) e verificou que dos 2.109 inscritos no Conselho, até o ano de 1998, as
mulheres eram maioria, constituindo-se em 89,1% dos inscritos. A pesquisa de
Elizete Passos (1997), igualmente, identificou, em dados de matrícula no Curso de
Psicologia da UFBA, no período de 1974 a 1994, 82% de mulheres matriculadas.
Este resultado levou a autora a indicar a generificação de profissões no âmbito do
ensino superior.

A Psicologia como profissão feminina foi abordada pela primeira vez, no


Brasil, por Fúlvia Rosemberg (1984), que identificou a grande maioria de mulheres
psicólogas. A autora relacionou esse fato às possibilidades que a Psicologia,
enquanto atividade ocupacional, oferecia para adaptação no mercado de trabalho,
posto que as mulheres poderiam conciliar o trabalho profissional com os afazeres
domésticos e a maternidade. A psicologia funcionaria, nesse sentido, como uma
profissão complementar àquela principal, o casamento. A pesquisadora vincula esse
fato ao desenvolvimento da Psicologia no Brasil, considerando-a socialmente
acomodada, como reflexo da incipiente luta das mulheres naquele momento
histórico.

Não obstante a história não ser uma linearidade sucessiva de fatos, mas
acontecimentos que se precipitam em função de diferentes configurações de forças
em determinado tempo/espaço, dentre elas econômicas, sociais, culturais,
familiares, geográficas, Mitsuko Antunes (1998) considera que a difusão das práticas
da psicologia na educação, especialmente nas Escolas Normais, pode ter sido uma
das raízes da Psicologia como profissão feminina. Segundo a autora:

É possível dizer que essas escolas foram uma das principais portas para a
penetração da Psicologia científica no país e para a definição do perfil dos
profissionais que se tornariam especialistas em Psicologia, além de, no caso
da Escola Normal de São Paulo, ter sido ela uma das mais importantes
bases para que a psicologia se tornasse mais tarde disciplina universitária.
(ANTUNES, 1998, p. 86).
208

Outros fatores também podem ser evocados como mobilizadores, para que as
mulheres sintam-se atraídas pela Psicologia. Um deles, conforme se discutiu
anteriormente, situa a profissão na fronteira entre o cuidar e o curar, como se pode
constatar em levantamento realizado por pesquisas, a exemplo das realizadas por
Mauro Magalhães et al (2001) e Waldir Bettoi e Lívia Simão (2000), cujas
proposições colocam a profissão de Psicólogo num terreno de disputa, em que estão
em jogo os poderes de quem cura em oposição às tarefas de quem cuida, conforme
também discute Elizete Passos (1997). Ademais se revela de uma forma
contraditória, pois, como profissão feminina, tem as atribuições de cuidar dos outros,
tal como propõe o ideário patriarcal; e como profissão liberal, dá uma relativa
independência às mulheres, de poderem exercer seu trabalho com autonomia e
independência, sem submeter-se a outros profissionais e/ou a regimes de trabalho
que não lhes sejam convenientes.
Os estudantes e as estudantes deste curso que estudamos e que
participaram dos Grupos Focais, indagados sobre a presença maciça de mulheres
no curso e na profissão, apontam que a Psicologia é uma profissão feminina por
questões culturais, como se pode verificar no depoimento de uma estudante do 3º
grupo:

Eu acho que tem uma construção histórica e social a respeito disso, de que o
homem, na sociedade patriarcal, ela cria a mulher pra ser esse, ser mais acolhedora,
essa pessoa de que é ela que ouve, é ela que acolhe, ela é que é sensível [...]

Um diálogo entre duas alunas do 2º grupo, a seguir, ilustra este mesmo


posicionamento:

Aluna1: [...] a gente viu que essa coisa do cuidar é uma coisa muito materna mesmo.
Feminina! Terapeuta quer dizer aquele que cuida e isso remete muito ao feminino.
As mulheres geralmente são aquelas que cuidam dos filhos, dos pais idosos [...]

Aluna 2: Isso vai de cultura! No oriente, o masculino, o homem, ele tem o saber e
cuida! Tanto que quando as pessoas têm doença eles procuram os chamados
xamãs. É um homem que conhece a natureza e sabe entre aspas o problema e a
cura. Então eles têm isso! Aqui no ocidente já é mais essa questão mesmo [...]

Aluna 1: [...] mas aqui no ocidente, na Psicologia, na enfermagem, é, até a


fisioterapia, nutrição, pedagogia, a maioria são as mulheres.
209

Está implícita nos discursos dessas alunas a idéia de cuidado na perspectiva


exposta por Joan Tronto (1997, p. 189):

[...] cuidar é uma atividade regida pelas mulheres tanto no âmbito do


mercado quanto da vida privada. As ocupações das mulheres são
geralmente aquelas que envolvem cuidados, e elas realizam um montante
desproporcional de atividades de cuidado no ambiente doméstico privado.

Isso supõe “cuidar de” outros, no ambiente profissional e doméstico. Neste,


entretanto, essas tarefas são de sua competência exclusiva.
As profissões, quando consideradas masculinas ou femininas, estão
impregnadas da construção histórico-social do ser homem e do ser mulher em
determinado tempo-espaço. O entendimento de Gênero que se defende ao longo
deste trabalho, enquanto teoria social que articula conhecimentos para compreensão
do real, propõe-se a desvelar e desnaturalizar as relações que se estabelecem entre
homens e mulheres na sociedade ocidental, singularizando tanto os homens quanto
as mulheres em seus grupos de referência. A esse respeito, Sandra Harding (1993,
p. 9) esclarece:

O feminismo tem tido um importante papel na demonstração de que não há


e nunca houve “homens” genéricos – existem apenas homens e mulheres
classificados em gêneros. Uma vez que se tenha dissolvido a idéia de um
homem essencial e universal, também desaparece a idéia de sua
companheira oculta, a mulher. Ao invés disso, temos uma infinidade de
mulheres que vivem em intrincados complexos históricos de classe, raça e
cultura.

Nessa perspectiva, as relações de gênero podem ser compreendidas como


um dos eixos pelo qual se articulam as relações sociais, embora cada período
histórico, cada cultura, cada grupo, cada comunidade eleja suas formas particulares
de simbolizar as diferenças entre homens e mulheres. Ademais cada pessoa tem
seu jeito próprio de vivenciar sua experiência de gênero, embora submetida às
determinações sociais nas quais está imersa. Há tantas possibilidades que é
possível pensar que existem tantas formas de vivenciar o ser homem e o ser mulher
quantas sejam as pessoas, embora, ao falar de relações de gênero, esteja-se
falando das características atribuídas a cada sexo pela sociedade e pela cultura.
Fala-se, pois, de diferenças que se transformam em desigualdades na arena
em que se estabelecem hierarquias e disputas de poder do macho e da fêmea,
210

admitindo-se, por princípio, que o cotidiano é o espaço significativo das relações


sociais. Enquanto relações, são perpassadas pelas instâncias de poder e
possibilitam a aquiescência, a resistência e a luta.
Um estudante do 5º grupo refere-se à psicologia como profissão feminina da
seguinte forma:

[...] porque as profissões, elas tem isso, estão associadas a estereótipos. Por
exemplo, caminhoneiro só era homem! Então, agora, você encontra mulher dirigindo
ônibus e você se assusta, ainda se choca quando vê uma mulher dirigindo ônibus. E
X [refere-se à colega] falou um pouco: a psicologia tem essa coisa de cuidar, de
ouvir pacientemente. Dentro dessa proposta da coisa clínica, o estereótipo do
psicólogo é a psicologia clínica mesmo! Eu acho que essa coisa do cuidado, do
ouvir, do acolher... Isso, historicamente, são funções que foram atribuídas às
mulheres. As mulheres que foram preparadas pra cuidar das crianças, dos doentes,
dos idosos, dos malucos, pra ouvir, pra acolher, pra ser paciente. Isso já tá que meio
no inconsciente coletivo da cultura, do mundo. E as mulheres vão, e fazem, se
identificam com isso também [...]

O discurso deste aluno passa a idéia de que tudo é natural. É assim mesmo,
sempre foi assim. Neste sentido, reproduzem-se as determinações sociais de uma
forma pré-estabelecida e a-crítica. Acontece que se estuda a construção de
identidades profissionais de um grupo de alunos e alunas singular, de uma profissão
feminina e sabe-se que o currículo é um espaço de poder. Como tal, engendra uma
disputa entre os conteúdos e discursos disseminados pela escola. Verifica-se,
portanto, nesse grupo em particular, que os discursos naturalizam a hierarquia de
gênero ou esse aspecto sequer é problematizado.
Trata-se de um curso que conta com 33 professoras/psicólogas que lidam
com os saberes-poderes que esta profissão confere no rol das profissões femininas
e liberais, reproduzindo a-criticamente a condição social desigual de gênero.
Entende-se, portanto, que se o currículo constrói identidades por meio do discurso,
também desconstrói e refaz identidades, demarcando fronteiras simbólicas, dentre
elas as de gênero.
É importante registrar, inclusive, que este tema até recentemente não era
valorizado entre os pares da Psicologia, sendo uma perspectiva, de fato,
naturalizada entre esses profissionais. Recentemente, o Jornal do Federal41. em sua
edição de maio deste ano de 2006, publicou uma breve matéria intitulada Psicologia

41
Jornal de publicação trimestral do Conselho Federal de Psicologia, postado a domicílio para
psicólogos brasileiros e disponível on-line.
211

usa batom (CFP, 2005), numa clara referência à generificação da profissão. Esta
Instituição também patrocinou uma Mesa Redonda, o II Congresso Brasileiro
Psicologia, Ciência e Profissão, realizado em São Paulo, entre 5 e 9 de setembro de
2006, cujo tema foi a Psicologia como profissão feminina. Este assunto, até então,
não vinha sendo abordado pela Psicologia, sendo tratado por iniciativas isoladas,
sem uma repercussão nacional que imprimisse mais vigor às discussões.
No mundo do trabalho, existem profissões que são preferencialmente
escolhidas por mulheres e outras por homens. Essas escolhas encobrem a
assimetria de gênero, posto que apresentam as habilidades e conhecimentos
necessários ao desempenho profissional como qualidades ou fraquezas inerentes a
cada sexo. Reproduzem a hierarquia de gênero, veiculando valores, status e direitos
que têm como objetivo perpetuar uma posição de dominação, porquanto sabe-se
que qualquer um ou uma, homem ou mulher, pode desempenhar, a priori, os
mesmos trabalhos. Os critérios de escolha/seleção/eliminação podem ser
condicionados às oportunidades e preferências das mais diversas ordens.
Ana Castro e Oswaldo Yamamoto (1998), ao comentarem sobre a psicologia
como profissão feminina, recorrem a Martins (1981), para esclarecer que diversas
carreiras consideradas femininas concentram-se nas áreas das Ciências Humanas e
das Letras, em virtude do pouco investimento que requerem e da grande expansão
na oferta desses cursos superiores na rede privada. Insinuam que esse fato
oportuniza maior facilidade para o acesso das mulheres ou que esta artimanha
facilita-lhes esse acesso. Os autores baseiam-se em Celso Ferretti (1976), para
afirmar que as carreiras masculinas oferecem maior prestígio e remuneração em
relação às carreiras femininas. Além disso, ancorados neste último autor, expõem,
com relação às expectativas dos aspirantes às mais diversas carreiras, em uma
avaliação sobre suas próprias possibilidades, que as mulheres demonstram
expectativas mais baixas que os homens, o que, do ponto de vista deles, concorrem
para a configuração de carreiras femininas.
Observa-se que o texto acima carece de uma argumentação mais elaborada
sobre gênero, já que não lança mão de argumentos que abordem a questão
relacional de gênero, posto que, enquanto categoria analítica, deve dar conta de
compreender a trama das relações sociais subjacentes a um determinado grupo em
um tempo/espaço específico. Há, no texto, uma visão estereotipada da existência de
certa feminilidade na mulher, que teme a aproximação dos desafios intelectuais,
212

refugiando-se em seus dotes “naturais” ligados provavelmente à emotividade e à


maternagem. Como uma das poucas iniciativas de analisar a Psicologia como
profissão feminina, o texto citado o faz de um ponto de vista conservador e até
preconceituoso, porquanto desqualifica as mulheres em suas capacidades
profissionais.
O conceito de gênero entende as noções de "masculino" e "feminino" como
construções sociais, abdicando da idéia de que a natureza é a responsável pela
grande diferença que existe entre os comportamentos e lugares ocupados por
homens e mulheres na sociedade. A assimetria de gênero, na esfera social, tem
privilegiado os homens, por não oferecer as mesmas oportunidades de inserção e de
exercício de cidadania para homens e mulheres. Historicamente, é dessa forma que
as sociedades se posicionaram, como afirma Michele Rosaldo (1995, p. 18): “Todo
sistema social usa fatos do sexo biológico para organizar e explicar os papéis e
oportunidades dos quais homens e mulheres podem desfrutar [...]”

6.2 UMA VISÃO DE MASCULINIDADE

Quando se fala de estereótipos, alude-se a idéias e comportamentos que se


repetem de forma automática, reproduzindo desigualdades sociais e legitimando
relações sociais assimétricas. Pode-se falar de estereótipos de gênero, de raça, de
etnia, de religião, enfim, de uma diversidade de circunstâncias que formam uma
sociedade plural, e que buscam eliminar essas diferenças na conquista de uma
hegemonia racial, sexual, de gênero, entre outras. Os estereótipos dizem de
conceitos aprendidos de forma unilateral e escamoteiam a realidade, trazendo
embutidos posicionamentos preconceituosos.
Estereótipos de gênero aparecem nos discursos dos alunos e alunas, sujeitos
da pesquisa, não apenas quando se referem às posições das mulheres, mas
também quando fazem alusão às expectativas sociais do desempenho masculino. É
o que está explícito em um diálogo de alunos do 5º grupo:

Aluna 1: Os homens... é difícil optarem por profissões que tem menos poder [...] Por
isso eu acho o número de mulheres é maior... [na psicologia]
213

Aluna 2: Homem é provedor da família e mulher é um complemento ao dinheiro da


família [...] homem não pode ser sensível homem tem de ser insensível, tem que ser
durão [...]

Aluno: Tem que ser médico, tem de ser engenheiro, advogado, administrador [...]

Pode-se observar que os estereótipos são verbalizados tanto por alunos


quanto por alunas. E isso é fruto da perspectiva naturalizante de gênero.
Ari José Sartori (2001), que estuda sobre masculinidades, reporta-se a Robert
Connell (1995), para discorrer sobre o conceito de masculinidade, visto que este
autor postula a existência de quatro tipos de masculinidade nas sociedades
ocidentais: a cúmplice, a marginalizada, a subordinada, e a hegemônica.
O conceito de masculinidade hegemônica, no qual Ari José Sartori (2001)
ancora-se, refere-se a um perfil estereotipado que preconiza e revela os homens
como produtivos, ativos, fortes, competitivos, pragmáticos e capazes de realizar
trabalho físico e pesado de toda ordem. Apoiado em Vale de Almeida (1995),
Sartore (2001, p.196) diz que se trata de “[...] um modelo ideal, que, não sendo
atingido por nenhum homem, exerce poder controlador sobre homens e mulheres.”
Numa referência a seu próprio pai e a sua mãe, uma estudante do 4º grupo
fala de masculinidade quando diz:

[...] aí ele dizia assim: nesse momento eu não posso ser fraco. O fraco que ele queria
dizer é: eu não posso demonstrar que eu estou sentindo dor, eu não posso
demonstrar que estou fazendo isso, não posso demonstrar dessa forma, dessa e
dessa. E isso me marcava muito, ele falava isso e demonstrava força e
demonstrava... e aí minha mãe era completamente o oposto, era aquela pessoa que
você podia ver ela sofrendo, quer dizer, eu pude ver [...]

O padrão educacional, tal como conhecemos, estimula essa diferenciação, na


qual, tanto as mulheres quanto os homens precisam ressignificar, em seu cotidiano,
os atributos que são considerados “próprios” não apenas da condição feminina como
da masculina. Espera-se, nos mais diferentes grupos sociais, que os homens
possam responder com desenvoltura às exigências que lhes são feitas neste modelo
de homem idealizado.
De qualquer sorte, essa expectativa de fortaleza e sucesso atribuída aos
homens, que é compactuada por homens e mulheres, tem presidido aquilo que se
denomina de relações desiguais e assimétricas de gênero, que subverte valores
214

relacionados à ética, solidariedade, respeito, dentre outros que perpassam as


relações cotidianas entre os sexos.
Como ensina Sandra Harding (1993, p. 21):

[...] nenhum indivíduo do sexo masculino consegue renunciar aos privilégios


sexistas da mesma forma como nenhum indivíduo de cor branca consegue
abster-se dos privilégios racistas — as vantagens de gênero e raça advêm a
despeito da vontade dos indivíduos que delas usufruem.

Assim como não se pode falar de uma mulher única também não se deve
pensar na existência de um homem universal, mas de homens múltiplos e plurais,
singularizados pelas circunstâncias que são determinantes de sua constituição como
sujeitos. Nessa perspectiva, pode-se falar de identidades masculinas. Tal como as
identidades femininas, as masculinas estão inscritas nas teias discursivas que
produzem os seres humanos e correspondem às posições-de-sujeito que cada um
assume e se identifica interpelado pela gama de discursos que circulam o tecido
social. Além do mais, submetido à performatividade, como proposto por Judith Butler
(2001, 2003), o discurso forja o sujeito, operando para estabelecer as formas de
pensar, sentir e agir adequadas para homens e mulheres. E o discurso dos homens
diz que não é permitido chorar, ser fraco, ter dúvidas etc., porque essas são
expressões femininas e o homem é diferente e superior, portanto, não pode sentir
como a mulher.
A psicologia, enquanto profissão, entretanto, é identificada como profissão
feminina, para a qual os atributos considerados femininos são indispensáveis no
desempenho profissional, como é o caso da sensibilidade. A respeito dos atributos
de um psicólogo/psicóloga no exercício profissional, diz uma aluna do 2º grupo:

É a sensibilidade; perceber o outro.

Enquanto outra aluna do 4º grupo afirma:

Acho que a palavra chave é a sensibilidade.

A sensibilidade diz de uma capacidade de perceber o outro, de colocar-se no


lugar dele, de não ter juízos pré-estabelecidos, como enunciam essas alunas. Faz
uma conexão entre o ouvir e o observar e evoca a escuta, referida anteriormente, como
215

a ferramenta, por excelência, do trabalho do psicólogo. A atitude, a postura e a


aceitação são fatores que propiciam a condição para que o outro se revele, desde
um primeiro contato, seja esse outro individual ou coletivo. Há, na interlocução, um
interjogo de subjetividades que estão postas, além do dito e do visto.
Na escuta psicológica, como referido no capítulo precedente, há a
possibilidade de ouvir e acolher quaisquer sujeitos, em suas histórias pessoais ou
coletivas, idéias, desejos, aspirações, dificuldades, realizações, dentre outras. É pela
escuta que se estabelecem os vínculos. Nela estão embutidos, além do escutar, o
observar, o compreender e o interagir com o outro na perspectiva de compreender
seu universo afetivo e cognitivo, que se presentifica pelas idéias, valores, atitudes e
comportamentos com os quais se vincula com a realidade.
A escuta, entretanto, enquanto ferramenta privilegiada do exercício clínico e
sendo este o foco curricular deste curso singular, embora não o faça de forma
explícita, depreende a existência de uma exacerbação das ditas características
naturais femininas na formação profissional. Observa-se que não há uma
intencionalidade pré-definida para isso, porém a naturalização da profissão feminina
proporciona uma omissão em problematizar a generificação do currículo.
A sensibilidade, que os estudantes e as estudantes enfaticamente
apresentaram como necessária ao exercício profissional, não é privativa das
mulheres, porquanto uma possibilidade e disponibilidade que independe de sexo
para aceitar o outro ou a outra como ele ou ela é, como se apresenta e como se
revela. Como as mulheres são sempre vistas como intuitivas, compreensivas e
conciliadoras, a sensibilidade cabe-lhes como natural. Os homens, no entanto,
considerados como pragmáticos, além de fortes e agressivos, não podem se deixar
enredar pela sensibilidade diante da vida prática, do cotidiano e também do
exercício profissional. Uma depoente do 2º grupo revela:

[...] quando você vê um homem com essas características [...] um homem intuitivo, é
considerado um homem com a característica feminina de intuição como se a intuição
fosse somente de mulher [...]

E prossegue com o mesmo argumento a respeito da sensibilidade nos homens.


Por considerarem a sensibilidade como uma qualidade imanente ao exercício
profissional da psicologia, os alunos reivindicam que os homens têm de desenvolvê-
la, embora a sociedade cobre-lhes um preço por isso, o que se verá mais adiante.
216

No 2º grupo, há o depoimento de uma aluna que se refere às questões relacionadas


à sensibilidade do homem, da seguinte forma:

[...] é uma atrofia mesmo, na educação dos homens, a sensibilidade. O homem não
pode nem chorar, quanto mais permitir que o outro chore na frente dele! Então,
assim, é muito delicado um homem se colocar no lugar de ouvir, não julgar, não ser
o homem o que vai comandar, entendeu? Permitir que o outro se expresse. A pessoa
tem que quebrar muitas verdades dentro dele [...]

Colocada desta forma, a sensibilidade adquire características de maternagem


e sobrepõe-se e desqualifica características outras que os psicólogos e as
psicólogas precisam desenvolver para exercer com qualidade seu mister em
quaisquer espaços profissionais. Fala-se da capacidade de relacionar fatos e teorias
que exigem um treino da capacidade de análise e síntese próprias do raciocínio
abstrato, necessária ao atendimento de sujeitos individuais e coletivos.
Surge uma questão: se não se aprende a lidar com a multirreferencialidade,
como será possível lidar com a imprevisibilidade de eventos e com a complexidade
de fenômenos? É importante relembrar Edgar Morin (2000), quando fala da “cabeça
bem feita”. Reconhece-se a sensibilidade como necessária ao exercício profissional
de psicólogos e de psicólogas, porém, diante das possibilidades que a profissão
oportuniza e da complexidade do mundo contemporâneo, a sensibilidade reduz a
função social do psicólogo, porquanto sensibilidade e bom senso são necessários a
qualquer pessoa amadurecida em suas relações sociais. Não é necessário ser
psicólogo para ser sensível.

6.3 PROFISSÃO FEMININA... O QUE PENSAM OS HOMENS

Homens que concordam em adquirir características consideradas femininas


estão, na verdade, questionando e ressignificando o modelo hegemônico de
masculinidade referido anteriormente. Embora a grande maioria seja cúmplice em
sustentar um modelo de masculinidade hegemônica, Ari José Sartori (2001) adverte
que esta posição não se refere apenas ao comportamento dos homens, mas que
qualquer pessoa, homem ou mulher, pode adotá-la. E lança mão das palavras de
Vale de Almeida (1995) para afirmar: “[...] as masculinidades e feminilidades não são
217

sobreponíveis respectivamente a homens e mulheres, mas são metáforas de poder


e de capacidade de ação e, como tais, acessíveis a homens e mulheres.”
(SARTORI, 1998, p. 221).
Dos três homens que fizeram parte de três dos cinco grupos focais (um em
cada grupo) é possível verificar seus posicionamentos sobre a inserção e
participação masculina numa profissão feminina. Com relação ao grande contingente
feminino na profissão, diz o estudante do 3º grupo:

Eu quero me colocar exatamente começando a fazer a pergunta inversa: Por que é


que há menos homens que mulheres no curso de Psicologia?

Há, em seu discurso inicial, uma perplexidade, uma indagação sobre a


ausência de homens na profissão. Isto leva a levantar-se hipóteses sobre as
características desta profissão situadas para além do cuidar e do ajudar. Como seu
depoimento foi interpelado por uma colega do grupo, quando retomou a palavra,
complementou :

E eu comecei a pensar e eu acho que a própria Psicologia começou me dando


respostas a isso. A própria história da Psicologia, aquilo que eu aprendi aqui, que eu
aprendi fora daqui, estão me dando respostas. Me dizendo que isso é uma
construção mesmo, uma construção social, uma construção da história social da
mulher, da história social do homem, da história da humanidade e que, papéis foram
assim previamente definidos e esse percurso foi traçado. As pessoas me parece têm
assim quase que repetido, uma repetição daqueles que são os cuidadores, sempre,
as enfermeiras, as psicólogas, há sempre alguém para cuidar.

No complemento de seu discurso, entretanto, o aluno naturaliza, como o faz a


sociedade em geral e os demais estudantes, as prescrições para o desempenho
masculino e feminino, lançando mão da visão estereotipada de gênero que
naturaliza a psicologia como profissão feminina, conforme dicutiu-se na seção
precedente. É esse o procedimento que o Curso que se discute absorve quando não
problematiza a questão da profissão feminina junto com os alunos de uma forma
mais incisiva.
Aliás, no currículo do Curso, há uma disciplina intitulada Sexualidade e
Gênero, oferecida em formato de Seminários, para alunos de 4º semestre, com
carga horária de 36 horas, que trabalha com a fundamentação crítica de Gênero.
Ademais, na agenda de temas propostos pelas disciplinas Psicologia Social I e
Psicologia Social II, oferecidas no 2º e 3º semestres, são discutidas questões
218

alusivas à inclusão e exclusão social. Nelas são expostos assuntos relacionados ao


compromisso social da Psicologia e incluídos temas da atualidade, como o
preconceito racial, sexual, gênero, luta antimanicomial, dentre outros. Os discursos
dos alunos, porém, estão sinalizando que essas iniciativas são desconsideradas
quando, na progressão do Curso, acontecem interferências teórico-práticas que
supervalorizam os procedimentos clínicos, em detrimento de uma leitura mais crítica
da realidade.
As condutas sociais prescritas pela sociedade para cada gênero, assim como
as funções que devem ser cumpridas por homens e mulheres são construções
sociais e podem ser estudadas para desconstruir as normatizações que asseguram
aos homens as prerrogativas da atividade e da independência, enquanto reservam
para as mulheres aquelas pertinentes à passividade e à dependência.
Jane Flax (1991, p. 230) ensina e orienta: “Como uma relação social prática, o
gênero pode ser entendido somente através de um exame detalhado dos significados
de ‘masculino’ e ‘feminino’ e das conseqüências de ser atribuído a um ou outro
gênero dentro de práticas sociais concretas.” O estudo sobre as relações de gênero,
nesse particular, assume a conotação política de desnaturalizar posições
cristalizadas de homens e mulheres.
Os homens que ingressam no universo profissional da Psicologia, a despeito
de sua condição masculina, são vistos por suas colegas como homens diferenciados
daqueles que se enquadram no padrão de masculinidade hegemônica. Um diálogo
entre alunos do 2º grupo refere-se a isso:

Aluna 1: É como se diz: são os alternativos. São os caras alternativos! A gente vê até
pelos professores da gente que são psicólogos. A gente vê que não são homens
comuns! Por exemplo [...] [cita nome de alguns professores].

Aluna 2: Um homem como aquele cara machão! X não é comum [...] Um homem
machão geralmente vai pra área de exatas, ele fala muito em pegar mulher, sabe,
em casar, carro, acho que é uma coisa bem machista mesmo. Já os homens [...] os
psicólogos, e eu falo do meu terapeuta porque é homem, são realmente alternativos,
como disse X são diferentes.

Aluna 3: É isso! são diferentes!

Aluno: Talvez sejam mais críticos, mais observadores [...]

Aluna 1: Até os colegas da gente são diferentes!

E na continuidade do diálogo do grupo, o aluno esclarece:


219

Os homens são mais críticos, alternativos, estão buscando soluções novas para os
problemas que a sociedade oferece quanto a questão das relações humanas. Estão
tentando não seguir o padrão, não ser machão. Acredito também que o próprio
desenvolvimento do feminismo mesmo tá contribuindo pra isso! As mulheres também
não estão mais aceitando esses homens machões, não colaboradores [...].

Este aluno fala de si, fala da forma como subjetivou sua masculinidade. É
importante não perder de vista que empreendende-se um estudo sobre construção
de identidades profissionais e que esta, do ponto de vista que se defende, efetiva-se
na forma como se assumem determinados discursos que falam de cada um, assim
como daqueles pelos quais se é falado.
Além da masculinidade hegemônica, Ari José Sartori (2001) fala de uma
masculinidade subordinada, considerando-a aquela que está relacionada aos
homens sensíveis, tal como aqueles descritos pelos alunos e alunas que participam
desta pesquisa.

De certo modo, esse “homem sensível” é identificado como o contraponto


da masculinidade hegemônica por sua postura diferenciada quanto à
sexualidade, pela expressão de afetos e sentimentos, opondo-se no
imaginário àquele homem durão, seguro. (SARTORI, 2001, p. 223).

Nesse particular, reafirma-se que as práticas do feminino ou do masculino


não são privativas, de forma estanque, de homens e mulheres genéricos, universais,
mas práticas singulares resultantes das posições de sujeito que cada um assume
nas práticas discursivas que constrói para interagir com o mundo. Fala-se aqui da
construção de identidades que se faz na intersecção da perspectiva individual com a
coletiva. O reconhecimento de si, por meio do discurso, da forma como cada um se
autonomeia e se posiciona diante dos outros, não se restringe à esfera do individual,
embora singular, posto que se faz na esfera do coletivo, do grupo que dá a
referência. E isso é válido para a construção de identidades profissionais.
Ao ingressarem no curso, os alunos são interpelados pela cultura e pelo
discurso que formata o psicólogo e a psicóloga, que se refere a um modo de ver o
mundo e a um modo de trabalho que institui significados para as práticas humanas e
para as práticas profissionais da Psicologia. O processo curricular, considerando não
apenas os conteúdos veiculados e vivenciados, mas as práticas que se instalam e a
relação que se estabelece no processo ensino-aprendizagem, é crucial na
apropriação dos valores, das normas, do ideal da profissão assim como daquilo que
220

é rechaçado como prática inapropriada para o exercício profissional. À psicologia,


portanto, são atribuídos valores, posturas e atitudes femininas. Afinal, trata-se de
uma profissão exercida majoritariamente por mulheres.
Tal como refere Sandra Harding (1993), nenhum homem deseja abrir mão de
seus privilégios sexistas pelas vantagens que lhe proporcionam. Adverte, porém,
Pedro Oliveira (1998), que esses privilégios, em muitas situações, são sustentados
pelos posicionamentos das mulheres, que também desfrutam de situações de
privilégio quando apóiam os homens em suas manifestações de poder. Há que se
entender que as relações de gênero dão-se na cotidianidade, numa arena de disputa
regida pelo poder que circula de forma simbólica, como propõe Michel Foucault
(1979, 2001a). Na perspectiva foucaultiana, não se pode pensar no poder de uma
forma única, mas como prática social que funciona como se fosse uma rede, em que
aquele que detém o poder, o comando e exerce a dominação não é
necessariamente o mesmo em todas as circunstâncias de um mesmo grupo. O
poder é uma força que circula e pode ser exercida por todos os envolvidos, com
múltiplas roupagens e linguagens. Há sempre uma alternância entre quem domina e
quem se submete e estes assumem posicionamentos de resistência ou de
aquiescência.
As relações de cumplicidade e resistência sobre os posicionamentos de
psicólogos e psicólogas em suas vinculações com o saber e o exercício profissional
por certo permeiam todas as práticas curriculares do curso, compondo aspecto
relevante do Currículo Oculto. Some-se a essa questão a própria disputa interna que
as diferentes correntes teóricas da psicologia travam na perspectiva de considerar
seu discurso legítimo e mais valorizado socialmente.
O “novo homem” é uma proposição de Pedro Oliveira (1998), explicitando que
este vem surgindo, na contemporaneidade, em resposta a questionamentos do
feminismo, enquanto teoria e movimento social, que exibem a inadequação e
ineficácia de um modelo tradicional de masculinidade. O autor considera que o
modelo antigo serve de pano de fundo para que se projetem dois tipos básicos de
masculinidade: “[...] um emergente, que é considerado próprio do ‘novo homem’ e
baseia-se na capacidade de expressividade emocional, e o do homem tradicional,
inexpressivo e hipermasculino.” (OLIVEIRA, 1998, p. 108).
O “novo homem” emergente desponta neste trabalho como aquele alternativo,
referido anteriormente pelas alunas e aluno em depoimento citado. O psicólogo,
221

nessa perspectiva, atende às formulações do tipo emergente, como pode ser


verificado nos depoimentos a seguir, colhidos em um diálogo no 5º grupo:

Aluna: [...] acho que tem uma coisa de uma vontade de ajudar o outro, de querer
fazer algo pra que o outro consiga melhorar. Eu não sei, não sei se a palavra é bem
essa — ajudar — mas tem um sentimento de que eu gostaria de fazer algo para
ajudar aquela pessoa que está sofrendo [...]

Aluno: Essa vontade é o que me leva a estudar psicologia! Isso que leva muita gente!
No primeiro dia de aula, quando pergunta: por que psicologia? Ah, porque tenho
vontade de ajudar as pessoas, porque eu gosto de cuidar das pessoas, porque gosto
de ouvir. Acho que isso são características pessoais que encaixa um pouco nos
requisitos necessários a profissão [...]

O estudante do 3º grupo, por sua vez, diz:

[...] então, eu posso falar por mim, enquanto homem, da seguinte questão: eu
acredito, por exemplo, que eu vim fazer esse curso pelo desejo, pelo interesse,
principalmente, pra conhecer mais essa possibilidade do ser humano, pra avançar
mais nessa questão, nessa condição de aprender mais sobre o ser humano, saber
mais quem é ele. Passava uma coisa de ser a respeito dele [...]

Conforme discute-se e na perspectiva de Pedro Oliveira (1998), o “novo


homem emergente”, aquele que pode valer-se de sua expressividade emocional,
nada mais é do que aquele que se permite chorar, sentir medo, admitir inseguranças
e problemas, exibir seus sentimentos e até pedir ajuda para suas dificuldades. Como
lhe é possível aprender com as mulheres, aprende a lidar com seus sentimentos e a
prestar atenção ao que lhe acontece na esfera subjetiva.
A posição masculina tradicional/patriarcal, ao negar ao homem o direito de
admitir suas fraquezas, priva-o do direito do humano de dialogar consigo na busca
de se conhecer e se reconhecer na dimensão da alteridade. Quando a hegemonia
masculina é interpelada pela força da resistência feminina, entretanto, captura
alguns homens para seu lado e interfere nos padrões das relações interpessoais.
A Psicologia, enquanto profissão, ajuda a promover modificações na forma de
vivenciar a masculinidade, como se pôde observar em depoimentos anteriores de
alunos. Isto, porém, também é percebido no depoimento de dois professores. Afirma
o primeiro:

Ser psicólogo, pra mim, primeiro me envolve e vai me envolver o tempo todo em
transformação. Já mudei tanto por causa da Psicologia, que eu digo: meu Deus do
céu! [...] tanta melhoria, não é? [...] tão mais bacana [...] me sinto tão mais maluco,
222

me sinto tão mais legal. A Psicologia pra mim é isso, sabe? A Psicologia, quando ela
chega, ela chega batendo na porta e querendo passar [...]

Enquanto outro declara:

Hoje eu digo, meu Deus, eu poderia ter feito outra coisa, eu podia estar com minha
vida mais estruturada, eu podia ter um emprego num escritório que eu entrasse,
trabalhasse 8 horas, tudo certinho, tudo sem questionamento. E a psicologia já
mexeu tanto na minha vida e continua mexendo de uma maneira tão maluca por que
já é sem controle. Eu acho que hoje, mesmo que eu parasse de atuar como
psicólogo, ela não sairia da minha vida. [...] Eu já não me permito mais determinadas
coisas sem uma reflexão muito profunda. E isso é muito cruel, às vezes, com a gente
mesmo! Porque tudo o que a gente quer, às vezes, é agir como um humano
qualquer, no sentido de que, uma pessoa que simplesmente age e não reflete, não
pensa no que está fazendo, e toca a vida. Mas isso, nunca acontece assim. A gente
está sempre se perguntando, se colocando questões, não é?

Admitindo-se que o homem é um ser sócio-histórico, sujeito a múltiplas


determinações, as transformações pelas quais passam as concepções de
masculinidade derivam das próprias transformações históricas que se vivencia na
contemporaneidade. Dentre elas, pode-se citar a emergência do discurso feminista e
das lutas das mulheres que, como conseqüência, exige novos posicionamentos dos
homens, além da emergência de novos paradigmas sociais que abdicam de uma
visão iluminista de mundo e de ciência.
Entende-se que a compreensão de gênero como construção histórica permite
apreender que o ser homem e o ser mulher estão condicionados às transformações
culturais em dado tempo-espaço. Em cada sociedade e em cada época existem
modelos distintos do ser homem e ser mulher, com atribuições de funções sociais
diferenciadas, submetidas a valores, a regras, e a comportamentos deles
decorrentes. As identidades construídas na confrontação da igualdade com a
diferença permitem um jogo de inclusão-exclusão proporcionado pelas posições de
sujeito que cada um assume no discurso que o nomeia. Assim como existem
profissões masculinas que estão sendo buscadas por mulheres, como é o caso das
profissões da área de saúde, as profissões consideradas femininas também estão
sendo procuradas pelos homens. E a psicologia, como uma profissão recente, com o
saber que lhe é característico, captura tanto mulheres como homens, como diz o
aluno do 5º grupo:

Eu achava que era a profissão mais sedutora que existia na face da terra. Só gênio
deve ser psicólogo! Que coisa maravilhosa é a natureza humana! Estudar isso!
223

O conceito de gênero teoriza sobre as diferenças e permite pensar nelas sem


necessariamente transformá-las em desigualdades. E mais importante, sem que as
diferenças constituam-se em motivos para a discriminação. Os estudos mediados
por Gênero deixam explícitas a construção dos saberes e as relações de poder com
o intuito de desnaturalizar essas relações, tendo em vista que o poder, como
conjunto de forças que circula nas relações, move-se entre, contra, sobre ou com os
sujeitos sociais. Nessa perspectiva, é possível perguntar sobre cada parcela de
poder que cabe a cada grupo e como é vivenciada por eles.
No caso dos Psicólogos, exercer essa profissão num segmento profissional
dominado pelas mulheres revela um aspecto interessante da dinâmica de gênero,
posto que detentores de um saber compartilhado pelas mulheres, os homens
exercem seu mister profissional com base em sua posição de macho, socialmente
privilegiada. Diz uma aluna do 2º grupo:

Estudantes de Psicologia? Não sei se são mais valorizados, mas são valorizados.
Bastante. Por que são raros.

Há, na fala da aluna, uma alusão à pequena quantidade de homens


exercendo a profissão de psicólogo e nenhuma conotação de valor sobre o saber da
psicologia como masculino ou feminino.
Heleieth Saffioti (1992),analisa as relações de gênero, advogando a favor de
uma lógica dialética que preside essas relações. A autora afirma que os
posicionamentos machistas não são privativos apenas dos homens, mas
compartilhado pelas mulheres, como se afirmou anteriormente. Defende que, em
ambos os pólos da relação existe poder, embora assimetricamente desigual entre
mulheres e homens.
Nesse contexto, o saber é por excelência um instrumento de poder, como
ensinam os textos foucaultianos.
Decerto o poder que o saber da psicologia proporciona àqueles que dele
compartilham pode ser supervalorizado pelos homens. Como discutido anteriormente,
aos homens não interessa contestar o modelo hegemônico de masculinidade,
porquanto confere-lhes privilégios sociais sobre as mulheres e também sobre os
portadores de condições discriminadas socialmente por sua origem étnica, condição
financeira ou por uma opção sexual contrária aos padrões dominantes.
224

Quando os homens têm sua masculinidade sob suspeição, resta-lhes serem


reconhecidos como homossexuais ou como mulheres. E isso pode acontecer com
aqueles que flexibilizam as exigências da masculinidade hegemônica e aderem à
masculinidade subordinada de que fala Ari Sartori (2001). Os psicólogos, como
homens sensíveis, também vêem sua masculinidade questionada e equiparada à
homossexualidade. Em um diálogo no 3º grupo, essa questão aparece de forma
muito explícita:

Aluna 1: Eu acho que é uma coisa que as pessoas discriminam [...] o homem vir a
fazer a psicologia [...]

Aluna 2 : O homem acolhendo a questão do ouvir, do ser mais sensível etc., é boiola!
Homem que vai mais pra essa linha do pensar, a sociedade coloca [...]

Aluna 1: Todos são gays, as pessoas geralmente falam isso!

Este assunto também é ventilado no grupo 4, quando uma aluna verbaliza:

Essa coisa da gente ter essa idéia de que na psicologia é necessário ter essa
sensibilidade e que pro homem isso não está posto ainda, bem, então ele vai. Vamos
dizer que ele é muito sensível e que tá fazendo psicologia porque é uma pessoa
altamente sensível. Então isso já dá margem a pensar dele outras coisas. Então eu
acho que tem uma reserva por parte dos homens, talvez também em fazer
psicologia, entendeu?

As formas como os homens devem relacionar-se consigo, com os outros


homens e com as mulheres, subordinadas ao ideário patriarcal, vêm sendo
problematizadas tanto pelos Estudos de Gênero como pelo movimento homossexual,
que questionam a suposta superioridade masculina sobre outros grupos.
Quando a conduta masculina é naturalizada com base em sua posição
historicamente construída, é atribuída ao homem uma posição de prestígio, poder e
mando que contribui sobremaneira para revitalizar e perpetuar os estereótipos
sexistas nas relações sociais, em quaisquer espaços que se operem, seja no âmbito
pessoal, social, profissional, e assim por diante.
Pedro Oliveira (1998, p. 110) refere-se a homens sensíveis, como são
identificados os psicólogos, da seguinte forma:

São homens que freqüentam divãs de psicanalistas (e fazem a festa dos


vitimários apoiados na psicologização), que se dispõem a dividir as tarefas
domésticas com suas esposas, principalmente quando estas também
trabalham, que dividem também o cuidado com as crianças, enfim, que
225

aceitam uma atitude mais igualitarista, já que não deixarão de ser


valorizadas por “igualarem-se” às mulheres.

Não existe uma essência própria do homem que o coloque na posição de


superioridade, e nem da mulher que a conduza a uma posição subalterna, mas
“esquemas de verdade” historicamente construídos, como propõe Michel Foucault
(2001b), que estruturam as práticas cotidianas atravessadas pelas relações de poder
próprias da sociedade.
Pôde-se perceber ao longo deste capítulo que a masculinidade, assim como a
feminilidade, é criada e demonstrada com base na oposição com o "outro", posto
que fala-se de identidades que são formatadas na dialética que se estabelece entre
o igual e o diferente, na qual o diferente tem um grande peso. Como se fala de
construção de identidades em uma profissão considerada feminina, a compreensão
do conceito de gênero permitiu identificar valores atribuídos a homens e mulheres
que formatam discursos e orientam comportamentos decorrentes dessa construção.
Ficam claras as interferências desses valores no interior de um curso de formação
profissional, nas formas como os alunos e as alunas autonomeiam-se e percebem-
se entre si, assim como os direcionamentos que o curso toma ao naturalizar a
generificação da profissão e como isso pode interferir na vida cotidiana tanto de
estudantes como nas demais relações individuais e coletivas que estabelecem.
A identidade profissional amalgamada com a identidade de gênero produz
identidades em psicologia mediante os processos de subjetivação aos quais cada um
submete-se individual e coletivamente, ao adotar e assumir determinadas posições de
sujeito no discurso pelo qual é falado, assim como daquele que fala da profissão e das
circunstâncias que envolvem o fazer profissional na permanente disputa que as
situações do cotidiano lhe interpelam e sobre as quais tem que fazer escolhas.
Acredita-se que as análises procedidas neste trabalho tenham sido reveladoras
da questão proposta por esta tese, qual seja compreender como alunos de um curso
de Psicologia singular constroem suas identidades profissionais em Psicologia,
considerando-a como uma profissão feminina. Na seqüência, pretende-se fazer um
fechamento do trabalho, mediante algumas reflexões que emergem da análise dos
dados da pesquisa como relevantes e conclusivas da experiência em foco.
226

REFLEXÕES

Ao elaborar esta tese, viu-se que este é um exercício constante de por em


ordem as próprias idéias, muito mais que ordenar e analisar dados. A redação do
texto final, assim como todos os outros momentos da pesquisa, exigiu tomadas de
decisão sobre o rumo que seria definido para o trabalho e esta direção estava sendo
apontada pelo próprio material sobre o qual trabalhava-se.
A natureza da pesquisa e a forma como foi conduzida apontava para o
rompimento da dicotomia teoria-prática, no que se refere à perspectiva positivista de
previsão e controle, em que se constrói a teoria para aplicá-la na prática,
entendendo-se que em todos os momentos da pesquisa trata-se da teoria e de
prática, que se interfecundam mutuamente.
Escrever esta parte final do trabalho, portanto, demandou uma enorme
reflexão sobre a forma de fazê-lo. Assim como aconteceu durante todo o desenrolar
da pesquisa, quando alternativas ofereciam-se como possibilidades para o rumo a
seguir, o que exigiu uma constante avaliação do percurso, agora também era
necessário o exercício de ponderar e decidir, dentre as possibilidades, um caminho
para finalizar. Afinal, escrever uma tese de doutorado não representa apenas uma
experiência intelectual, de construção de um objeto que se pretende apreender, mas
acima de tudo um investimento afetivo de implicação com este objeto e as
conseqüências de tê-lo escolhido para estudar.
Optou-se, portanto, por intitular esta parte da tese de Reflexões, em
detrimento de terminologias outras como Conclusões ou similares, na intenção de
considerá-lo, não como idéias que se fecham, que encerram uma pesquisa, mas
como um momento de abertura ou uma chave que abre novas proposições e novos
desafios a serem seguidos na caminhada da pesquisadora, como psicóloga e
educadora.
Estudar a construção de identidades em alunos de um curso superior de
Psicologia, o qual coordena-se, significou transitar o tempo todo pelas posições de
pesquisadora e de sujeito da pesquisa. Possível enquanto pesquisadora implicada
com a formação de novos psicólogos e psicólogas na perspectiva de uma contínua
transformação tanto no que se refere a avanços teóricos e técnicos quanto a
políticos da formação e da profissão.
227

Este momento é, portanto, de avaliação de uma experiência intensa, no qual


optou-se por relatar o que de mais significativo revelou-se como experiência de
aprendizagem.
Em primeiro lugar é necessário demarcar a impossibilidade, já relatada, de
estabelecer um roteiro prévio para uma pesquisa desta natureza, posto que, quando
se dá voz aos sujeitos, seus depoimentos não são passíveis de controle prévio. A
pesquisa estruturou-se no constante diálogo entre o que os sujeitos colocaram e a
teoria. Deste modo, teoria e prática mantiveram-se indissociáveis.
Em segundo lugar, é importante escutar a voz desses sujeitos, compreendê-
las e posicionar-se diante delas numa perspectiva de transformação de uma
realidade que se faz explicitada. E a voz dos sujeitos desta pesquisa revelou
algumas questões particulares que se expõe a seguir.
Os alunos e as alunas do Curso de Psicologia identificaram a Psicologia como
uma profissão de ajuda, cujos profissionais, mediante uma escuta cuidadosa, ética e
teoricamente fundamentada, prestam ajuda àqueles que os procuram.
No momento em que ingressaram no Curso, esses estudantes idealizavam
formar-se em psicólogos e psicólogas clínicas, cujo mister deve ser exercido na
clínica privada de atendimento em consultório, numa reprodução do modelo de
atendimento médico, o que não se modificou substantivamente durante o curso.
Como verificou-se ao longo do trabalho, nos depoimentos dos estudantes e
nos dados relacionados à escolha de Estágios Específicos e às temáticas teóricas
para a realização do Trabalho de Conclusão de Curso, há uma cristalização dessa
posição, reproduzindo um modelo tradicional e considerado hegemônico para a
atuação de psicólogos.
Pode-se afirmar que se trata de um estereótipo reducionista de profissão
liberal que pratica atendimento clínico dual em consultório privado e, de forma
acrítica, corrobora os atributos de uma profissão feminina.
Pôde-se verificar o quanto gênero, de fato, configura-se como uma lente para
entender esta profissão. Desconstruir a lógica que a coloca em seu viés clínico,
implica em desconstruir a lógica que diferencia as mulheres com atributos de
delicadeza, sensibilidade e fragilidade, considerando-os pertencentes a uma certa
“natureza feminina”.
Quando se exacerba a sensibilidade como a atitude mestra que direciona
uma profissão, como foi colocado pelos sujeitos do sexo feminino desta pesquisa,
228

corre-se o risco de reduzir a capacidade de simbolização ou de subestimar o uso do


raciocínio abstrato, empobrecendo a capacidade de estabelecer relações entre fatos
e idéias e de promover raciocínios articulados de forma complexa. Entende-se que
isto representa aquela capacidade maior, necessária e indispensável na atuação de
psicólogos e psicólogas em quaisquer contextos de trabalho, em especial na própria
clínica.

Considerando que os sujeitos se fazem pela rede discursiva, a generificação


da profissão, mediante o discurso da escola, na formação profissional, constrói
identidades, na medida em que, ao partilhar de determinados discursos, os sujeitos
vão construindo concepções sobre si, sobre os outros e sobre o mundo que os
orienta e define posições nas relações sociais e profissionais.

O que nomeia uma profissão é um campo de práticas e um conjunto de


conhecimentos e capacidades profissionais advindos do saber que caracteriza tal ou
qual mister. Sem dúvida uma psicologia atravessada por um viés clínico e
cristalizada em atributos conservadoramente considerados femininos não atende às
demandas do mundo contemporâneo.

Admitindo-se a escola como um lócus privilegiado de construção de identidades,


pode-se compreendê-la como uma rede de relações, na qual os sujeitos da
aprendizagem possuem saberes e referências que são utilizados para estruturar as
experiências educativas e o currículo, por meio de práticas discursivas que constroem
posições de sujeito na produção, elaboração, criação e recriação desses saberes.

A escola e o currículo são, portanto, espaços de poder. Entende-se poder


pela ótica foulcautiana, como aquele que impulsiona e gera novas práticas e circula
entre todas as pessoas, propiciando que alguns conhecimentos sejam considerados
importantes e válidos em detrimento de outros. Nessa perspectiva, o espaço escolar
é aquele em que o conhecimento formal é repassado e as relações de poder têm se
reproduzido.

A despeito de iniciativas inovadoras que impulsionam o diálogo com o mundo


produtivo e a interdisciplinaridade de ações e multirreferencialidade de saberes, o
currículo do curso estudado ainda apresenta uma fragmentação muito grande,
evidenciando a dificuldade de superar o conflito entre aprofundar níveis de
especialização e a formação generalista. Isso leva a uma visão cristalizada da
profissão, que não se renova ou se renova timidamente, a despeito das novas
229

possibilidades que a sociedade contemporânea esboça e oferece em seu ritmo


dinâmico e contraditório.
Os alunos e alunas evidenciaram momentos e situações, nos quais puderam
perceber-se e sentir-se psicólogos e psicólogas, demonstrando o processo de
construção de suas identidades, revelando-a como uma aquisição processual que se
dá preferencialmente e de forma mais marcante nas situações de estágio (Básico,
Específico e Extracurricular), quando podem interagir com situações concretas da
vida social e profissional.
Outras práticas também se revelaram como nucleares na construção dessas
identidades com a confecção do Trabalho de Conclusão de Curso, que confere a
idéia da formalidade do título conquistado, e da psicoterapia pessoal, que habilita
subjetivamente ao exercício da escuta do outro. Afinal, o modelo de atuação
idealizado ainda é o da clínica tradicional.
Concorda-se que o psicólogo e a psicóloga são profissionais da escuta. Essa
escuta, porém, não pode ser entendida apenas como uma escuta clínica, de
consultório fechado, mas como uma atitude, um ethos que fundamenta a ação
profissional, como propõe João Ferreira Neto (2004). Dessa forma, há que se
repensar os espaços em que se exercita essa habilidade, extrapolando-se a
formação clínica tradicional. Necessário se faz ousar e criar nas novas demandas de
práticas, nas quais sejam inseridos os alunos, as estratégias de reflexão sobre a
escuta e seu exercício. Isto, porém, requer posicionamentos críticos dos formadores
e não apenas dos estudantes. É uma dimensão que passa fundamentalmente pela
cumplicidade e criticidade dos professores.
A identidade que a Psicologia possui, conforme discutiu-se ao longo desta
tese, é mutante, fluída, ora identificada com as ciências humanas, ora com as
ciências da saúde, consoante suas transformações históricas, como analisou-se no
corpo deste trabalho. Os aportes teóricos são filosófica e epistemologicamente
diversos e até divergentes, o que, de certa forma, deveria representar um avanço na
adesão ao pensar múltiplo e complexo. O que se verifica é que essa diversidade
teórica, mesmo não ignorada, movimenta-se em prol de uma unicidade na ação, o
que empobrece sobremodo as possibilidades reais de atuação e de criação de
novas estratégias de ação desses profissionais.
Ademais, a Psicologia, enquanto instituição, mantém-se dividida entre o fazer
e o pensar, porquanto ainda enfatiza duas psicologias, como ciência e como
230

profissão, haja vista iniciativas do coletivo de psicólogos na promoção de encontros


científicos e edição de revista de circulação nacional, conforme referido
anteriormente. Acredita-se que essa dicotomia precisa ser enfrentada na perspectiva
de entendê-la enquanto mutuamente constitutiva, relativizando o peso do saber
acadêmico como saber superior, num rompimento com a posição iluminista de
ciência que fragmenta, hierarquiza e isola os saberes. Nessa perspectiva, trata-se de
multirreferenciar o olhar no diálogo com outros campos do conhecimento.
Partilha-se, neste momento, com a proposta de Edgar Morin (2000), no
sentido de reformar o pensamento para enfrentar os desafios do mundo
contemporâneo, posto que a formação profissional superior acontece ao mesmo
tempo em que se dão as transformações sociais, sendo necessário intensificar o
diálogo com a sociedade e com os saberes produzidos em todas as esferas do
social e não apenas com o saber acadêmico.
Necessário se faz desnaturalizar a Psicologia como profissão feminina.
Enquanto os psicólogos e as psicólogas, em especial a formação profissional, não
enfrentarem o viés de gênero na formação, desnaturalizando esta profissão como
feminina, o atendimento às crescentes e diversificadas demandas do mundo
contemporâneo no que concerne a posicionamentos políticos e criação/invenção de
novas formas de atuação e desbravamento de novos horizontes/campos de atuação
para o exercício da profissão, corre o risco de se fazer, como se percebe hoje, ainda
insuficiente.
Além disso, o mundo do trabalho na sociedade da informação exige
profissionais polivalentes, criativos e competentes na interação com o cenário social
que se revela instável e contraditório. Lidar com a complexidade — do ponto de vista
moriniano — faz-se exigência, em razão da quantidade de informações, das
diversificadas tramas que as relações de poder configuram na organização social, da
multiplicidade de discursos e da necessidade de dialogar com saberes distintos.
Como se viu ao longo desta tese, os discursos dos indivíduos e dos grupos
estabelecem fronteiras entre si, reconhecendo tanto os iguais quanto os diferentes.
Com base nesse entendimento, constrói-se o arcabouço para compreender como se
constroem Identidades. Reafirma-se o termo no plural, identidades, entendendo-as
múltiplas, versáteis, mutantes.
Investigar a construção de identidades profissionais em Psicologia, com base
na vivência acadêmica de um curso singular, tal como proposto nesta tese, conduziu
231

a uma construção social impregnada de múltiplos fatores que interagem entre si e


negociam afetos e saberes que envolvem histórias e projetos singulares, na
construção coletiva de uma profissão. Em vista da variedade de condições que a
formação promove no universo escolar e das trocas que estabelece com o contexto
social, forjando múltiplos discursos, as possibilidades de investigação são infinitas.

Compreender a necessidade de ultrapassar uma visão estereotipada e


reducionista da profissão e reconhecer a necessidade de desnaturalizá-la como
feminina, além de superar um currículo fragmentado, parecem ser os grandes
ganhos de aprendizagem que este trabalho proporcionou. Estes são alguns dos
desafios que a formação em Psicologia precisa enfrentar!
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247

APÊNDICES
248

APÊNDICE A

ROTEIRO DO GRUPO FOCAL

ƒ Você se sente psicóloga?

ƒ O que lhe permite dizer isto?

ƒ O seu momento neste curso (a prática em foco) ajuda ao ser psicóloga?

ƒ Quais os momentos do curso que contribuiram para afirmar isso (que é psicóloga)?

ƒ Por que você acha que a Psicologia é uma profissão que atrai tanto as mulheres?

ƒ Vocês acham que o currículo se direciona para as questões femininas? Como?

ƒ Quais são as qualidades pessoais e profissionais que o psicólogo precisa ter para

exercer a profissão?

ƒ O que é mesmo o trabalho do psicólogo?


249

APÊNDICE B

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E PRÉ-ESCLARECIDO

Eu, ____________________________________________, carteira de identidade nº


______________, docente do Curso de Psicologia da FBDC/EBMSP, fui esclarecido
(a) de que estou participando de uma atividade grupal (grupo focal) para coleta de
dados para pesquisa científica intitulada” A construção de identidades profissionais
em Psicologia”, sob a condução da psicóloga e professora Maria Rosália Correia
Dias.

Declaro que a minha participação é voluntária e concordo que estarei contribuindo


para a pesquisa supra citada e também para o provável aprimoramento do Curso de
Psicologia em questão.

Para esta coleta de dados da pesquisa, o pesquisador e os docentes não serão


remunerados.

Data:

Assinatura do docente

Assinatura da pesquisadora
250

ANEXOS
251

ANEXO A – QUESTIONÁRIO INICIAL


Salvador, 02 de Agosto de 2004.
Caro aluno:

Este questionário faz parte de uma pesquisa que pretende levantar aspectos relacionados com a
representação social da Psicologia e do psicólogo do ponto de vista dos alunos que estão ingressando
no curso da FDC Pretende também investigar motivos referentes à escolha profissional e a expectativa
de atuação futura.

A sua contribuição é de extrema importância para o nosso curso.

Esperamos que você se sinta inteiramente à vontade para expressar suas opiniões, pois essas
respostas fazem parte de um banco de dados sobre o curso, serão registradas em computador e
analisadas em conjunto.

NÃO É NECESSÁRIO QUE VOCÊ SE IDENTIFIQUE

QUESTIONÁRIO
Dados demográficos
1. Sexo M _________ F _______ Idade ________ anos
2. Possui outra graduação em nível de 3º grau? Sim ________ Não __________
3. Renda familiar: até 2 SM _____ de 2 a 5 SM _____ de 5 a 10 SM acima de 10 SM _____
4. Profissão do pai ___________________ Profissão da mãe____________________
5. Há psicólogo na sua família? Sim _________ Não_____________

Questões:
1. O que é Psicologia?

2. Você conhece algum psicólogo?

3. O que é, para você, ser psicólogo?

4. Para você, o que faz um psicólogo?

5. Quando pensa em psicólogo, você lembra ...

6. O psicólogo trabalha com ...

7. Que qualidades pessoais você acha que um psicólogo deve ter?

8. Quando você acha que se deve procurar um psicólogo?

9. Onde trabalha o psicólogo?

10. Por que você escolheu ser psicólogo?

11. Em que área/atividade você pretende trabalhar como psicólogo?


252

ANEXO B - VISÃO DA ESTRUTURA CURRICULAR POR EIXO


SEMESTRES
EIXOS
ESTRUTURANTES 1º 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º 10º
Introdução à
Psicologia
História
Bases Filosóficas Contemporânea da - H. Psic. Br
FUNDAMENTOS
Psicologia
EPISTEMOLÓGICOS E
HISTÓRICOS P. D H I -P. DH II -P. DH III
P Social I - P. Social I
- Ética e Pratica
-T. Psicanal. - T. Hum/Fen. - I.Pens. Jung
Profissional
AECI A E C II
FENÔMENOS E
Personalidade T. Aprend.
PROCESSOS
PSICOLÓGICOS P.P.B
BÁSICOS -Alteraç. F. e E. - Alteraç. F. e E.
Psic. I Psic. II
- Introd. a Met. Metodologia da Pesquisa em Pesquisa em
FUNDAMENTOS TFO
Científica Pesquisa Psicologia I Psicologia II
METODOLÓGICOS
- Informática e
Estatística
Psicologia
Medidas
Aval. Psic. II e III
Aval. Psic. I
Teo. Tec. Psicot. II
PROCEDIMENTOS PARA Teo. Tec. Psicot. I
e III
A INVESTIGAÇÃO
CIENTÍFICA E PRÁTICA Grupos e F
PROFISSIONAL Grupais
Estágio Básico I Estágio Básico II Estágio Básico III
Aval. Func. Do
Comport.
Psic. Ciência e Psicologia. e
Psic. e Com. Psic. Trab. e Org. I Psic. Trab. e Org. I
Profissão Educação
Psic. e Saúde
INTERFACES COM
CAMPOS AFINS DE Diag. e Interv. em
Interv. cont Saúde
CONHECIMENTO Psic.
Interv. cont. Trab. Interv. cont. T
e Org. I e Org. II
Tóp. Esp. em P
Filosofia Neurociências Sexo e Gênero Saúde Coletiva Neuropsicolog
PRÁTICAS
PROFISSIONAIS Genética Etologia Psicofarmac.
Sociologia Antropologia
Matriz Curricular para Formação de Psicólogo

ANEXO C - FLUXOGRAMA INGRESSOS A PARTIR DE 2003.1


SEMESTRES
1º 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º 10º
EBP 101 EBP 201 EBP 301 EBP 401 EBP 501 EBP 601 EBP 702 EBP 802 EBP 901 EBP 001
Bases Filosóficas da Antropologia Análise Experimental Alt. das Fun. e Estr. Alt. das Fun. e Estr. Estágio Básico II Estágio Básico III Diagnósticos e Interv. Estágio Específico I Estágio Específico II
Psicologia do Comportamento II Psicológicas I Psicológicas II 54h - 02 em Psicologia
54h - 03 54h - 02 252h - 07 252h - 07
54h - 03 72h - 03 72h - 03 72h - 03 90h - 03

EBP 102 EBP 202 EBP 302 EBP 402 EBP 502 EBP 602 EBP 703 EBP 803 EBP 903 EBP 002
Fisiologia Básica Psico. do Desenv. Psicologia Social II Estatística Aplicada à Estágio Básico I Pesquisa em Psico. do Trab. e das Teorias e Técnicas Saúde Coletiva Tópicos Especiais em
72h - 03 Humano I 54h - 03 Psicologia 54h - 02 Psicologia I Organizações II Psicoterápicas II Psicologia
72h - 04
54h - 03 72h - 03 72h - 03 72h - 03 72h - 04 72h - 04

EBP 103 EBP 204 EBP 303 EBP 403 EBP 503 EBP 603 EBP 707 EBP 804 EBP 904 EBP 003
Fundamentos de Neurociências e Psico. do Desenv. Grupos e Fenômenos Avaliação Psicológica I Avaliação Psicológica II Teorias e Técnicas Teorias e Técnicas Interv. em Contextos de Neuropsicolgia
Sociologia Comportamento Humano II Grupais Psicoterápicas I Psicoterápicas III Trabalho e Organizações I
72h - 03 72h - 03 72h - 03
54h - 03 72h - 04 72h - 03 72h - 03 72h - 04 72h - 04 72h - 03

EBP 104 EBP 205 EBP 304 EBP 404 EBP 504 EBP 604 EBP 711 EBP 805 EBP 905 EBP 005
Genética Aplicada à História Cont. da Processos Psico. do Desenv. Medidas em Avaliação Psicológica III Pesquisa em Trabalho Final Intervenções em Interv. em Contextos de
Psicologia Psicologia Psicológicos Básicos Humano III Psicologia Psicologia II Orientado Trabalho e Organizações II
72h - 03 Contextos de Saúde
54h - 03 54h - 03 72h - 03 54h - 03 72h - 03 72h - 03 36h - 02 72h - 03 72h - 03

EBP 105 EBP 206 EBP 305 EBP 405 EBP 505 EBP 605 EBP 712
Informática e Seminários “Etologia” Seminários -“História da Psicologia e Metodologia da Psico. do Trab. e das Sem-“Avaliação Func.
Psicologia Psicologia no Brasil” Educação Pesquisa Organizações I do Comportamento”
36h - 02
72h - 03 36h - 02 72h - 03 72h - 03 72h - 03 36h - 02

EBP 106 EBP 207 EBP 306 EBP 406 EBP 506 EBP 606 EBP 713
Introd. à Met. Psicologia Social I Teorias da Seminários -“Sexualidade Seminários Psicologia e Saúde Ética e Práticas
Científica Aprendizagem e Gênero” “Psicofarmacologia” Profissionais
72h - 04 72h - 03
54h - 02 72h - 03 36h - 02 36h - 02 72h - 03

EBP 107 EBP 212 EBP 307 EBP 407 EBP 507 EBP 607
Introdução à Análise Experimental Teoria Psicanalítica Teorias Humanistas e Psicologia e Seminários “Introd. ao
Psicologia do Comportamento I Fenomenológicas Comunidade Pensamento de Jung”
72h - 04
72h - 04 54h - 03 54h - 03 72h - 03 36h - 02

EBP 108 EBP 213


Seminários-“Psicologia, Personalidade
Ciência e Profissão”
54h - 03
36h - 02
Matriz Curricular para Formação de Psicólogo

1º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos 2º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos 3º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos


Bases Filosóficas da Psicologia EBP 101 Sem Pré-Requisitos Antropologia EBP 201 Sem Pré-Requisitos Análise Experimental do Comportamento II EBP 301 EBP 212

Fisiologia Básica EBP 102 Sem Pré-Requisitos Psicologia do Desenvolvimento Humano I EBP 202 EBP 107 Psicologia Social II EBP 302 EBP 207

Fundamentos de Sociologia EBP 103 Sem Pré-Requisitos Neurociências e Comportamento EBP 204 Sem Pré-Requisitos Psicologia do Desenvolvimento Humano II EBP 303 EBP 202

Genética Aplicada à Psicologia EBP 104 Sem Pré-Requisitos História Contemporânea da Psicologia EBP 205 EBP 101 Processos Psicológicos Básicos EBP 304 EBP 107

Informática e Psicologia EBP 105 Sem Pré-Requisitos Seminários – “Etologia” EBP 206 EBP 107 Seminários – “História da Psicologia no Brasil” EBP 305 EBP 205

Introdução à Metodologia Científica EBP 106 Sem Pré-Requisitos Psicologia Social I EBP 207 EBP 107 Teorias da Aprendizagem EBP 306 EBP 107

Introdução à Psicologia EBP 107 Sem Pré-Requisitos Análise Experimental do Comportamento I EBP 212 EBP 107 Teoria Psicanalítica EBP 307 EBP 107

Seminários-“Psicologia, Ciência e Profissão” EBP 108 Sem Pré-Requisitos Personalidade EBP 213 EBP 107

4º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos 5º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos 6º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos


Alterações das Funções e Estruturas Psicológicas I EBP 401 Sem Pré-Requisitos Alterações das Funções e Estruturas Psicológicas II EBP 501 EBP 401 Estágio Básico II EBP 601 Sem Pré-Requisitos
Co-Requisito
Estatística Aplicada à Psicologia EBP 402 Sem Pré-Requisitos Estágio Básico I EBP 502 EBP 503 / EBP 504 Pesquisa em Psicologia I EBP 602 EBP 505

Grupos e Fenômenos Grupais EBP 403 EBP 302 Avaliação Psicológica I EBP 503 Sem Pré-Requisitos Avaliação Psicológica II EBP 603 EBP 503 / EBP 504

Psicologia do Desenvolvimento Humano III EBP 404 EBP 303 Medidas em Psicologia EBP 504 Sem Pré-Requisitos Avaliação Psicológica III EBP 604 EBP 503 / EBP 504

Psicologia e Educação EBP 405 Sem Pré-Requisitos Metodologia da Pesquisa EBP 505 EBP 106 Psicologia do Trabalho e das Organizações I EBP 605 Sem Pré-Requisitos

Seminários-“Sexualidade e Gênero” EBP 406 Sem Pré-Requisitos Seminários-“Psicofarmacologia” EBP 506 Co-Requisito EBP 501 Psicologia e Saúde EBP 606 Sem Pré-Requisitos

Teorias Humanistas e Fenomenológicas EBP 407 EBP 107 Psicologia e Comunidade EBP 507 EBP 302 Seminários – “Introdução ao Pensamento de Jung” EBP 607 Sem Pré-Requisitos

7º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos 8º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos 9º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos


Estágio Básico III EBP 702 Sem Pré-Requisitos Diagnóstico e Intervenções em Psicologia EBP 802 EBP 503, EBP 603, EBP 604 Estágio Específico I EBP 901 EBP 502, EBP 601, EBP 702

Psicologia do Trabalho e das Organizações II EBP 703 EBP 605 Teorias e Técnicas Psicoterápicas II EBP 803 Sem Pré-Requisitos Saúde Coletiva EBP 903 Sem Pré-Requisitos

Teorias e Técnicas Psicoterápicas I EBP 707 Co-Requisito EBP 713 Teorias e Técnicas Psicoterápicas III EBP 804 EBP 407 DISCIPLINAS POR ENFÂSE:
Pesquisa em Psicologia II EBP 711 EBP 602 Trabalho Final Orientado EBP 805 Sem Pré-Requisitos Intervenções em Contextos de Trabalho e Organizações I EBP 904 OPTATIVA

Seminários-“Avaliação Funcional do Comportamento” EBP 712 Sem Pré-Requisitos Intervenções em Contextos de Saúde EBP 905 OPTATIVA

Ética e Práticas Profissionais EBP 713 Sem Pré-Requisitos

10º SEMESTRE Cód Pré-Requisitos


Estágio Específico II EBP 001 EBP 901

Tópicos Especiais em Psicologia EBP 002 Sem Pré-Requisitos

DISCIPLINAS POR ENFÂSE:


Neuropsicologia EBP 003 OPTATIVA

Intervenções em Contextos de Trabalho e Organizações II EBP 005 EBP 904 (OPTATIVA)

Total Carga Horária: 4.140


Total de Créditos: 185

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