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Correio

DA U N E S CO abril-junho 2019

Reinventar
as cidades

Alain Mabanckou
Jorge Majfud
Thomas B. Reverdy
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Russo: Marina Yartseva A UNESCO não garante a conformidade da representam necessariamente as opiniões da UNESCO e
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Editora digital: Malahat Ibrahimova idiomas oficiais da Organização.
Editorial
O ano de 2014 foi um divisor de águas
para a humanidade: pela primeira
biodiversidade e colocam a infraestrutura
e os recursos urbanos – da água ao
visto isso na UNESCO, que abriga nada
menos do que cinco redes de cidades,
vez na história, mais da metade da transporte até a eletricidade – sob cada uma delas trabalhando para
população mundial vive em cidades. enorme pressão, o que multiplica o aproveitar a extraordinária capacidade
Pelas estimativas atuais, essa quantidade impacto de desastres naturais e da de inovação e conexão que é uma
aumentará para 70% até 2050. As mudança climática. O desenvolvimento característica das cidades.
cidades de amanhã refletirão, em sem controle e o turismo de massa
Por exemplo, as cidades respondem por
muitos aspectos, suas antecessoras; colocam em risco sítios do patrimônio
70% da economia mundial, incluindo uma
desde as primeiras cidades-Estados cultural e as práticas do patrimônio vivo.
grande parte da economia criativa, que
da Mesopotâmia, passando pelas A desigualdade e a migração crescentes
gera receitas globais anuais de US$ 2.250
cidades italianas da Renascença, até as – muitas vezes motivadas por conflitos
bilhões e emprega mais jovens do que
“megacidades” atuais – historicamente, e desastres – tornam as cidades pontos
qualquer outro setor. É por isso que as 180
as cidades têm avançado o focais para novas clivagens sociais*, para
cidades que formam a Rede de Cidades
desenvolvimento humano, servindo a exclusão e a discriminação.
Criativas da UNESCO estão trabalhando
como centros para trocas e para o diálogo
Considerando a magnitude desses para alavancar a capacidade das cidades
entre pessoas de diferentes origens.
desafios, as cidades de todo o mundo de unir pessoas criativas para estimular
No entanto, as cidades de hoje, assim concluíram que novas formas de pensar, o crescimento econômico, promover
como as de amanhã, enfrentam desafios o engajamento dos cidadãos e, de forma um senso de comunidade e preservar as
novos e sem precedentes. Embora crucial, a cooperação entre as cidades, identidades urbanas. A Rede Mundial das
ocupem apenas 2% da superfície são os únicos caminhos a seguir. Temos Cidades de Aprendizagem da UNESCO
terrestre, elas consomem 60% da energia está trabalhando para tornar as cidades
mundial, liberam 75% das emissões sustentáveis, garantindo que todos os
de gases de efeito estufa e produzem * Em ciência sociais, clivagem social significa o moradores urbanos possam se beneficiar
processo de separação ou fragmentação de
70% do lixo mundial. À medida que as grupos sociais em subgrupos ou em novos grupos, da aprendizagem ao longo da vida. De
cidades se expandem, elas ameaçam a por variados motivos. aprender a andar de bicicleta para tornar o
ambiente urbano mais limpo, aprender a
fazer produtos locais com o uso de práticas
e conhecimento tradicionais, ou organizar
oficinas de teatro comunitárias em bairros
marginalizados, cada nova oportunidade
educacional traz consigo o potencial de
transformação e desenvolvimento social.
Como um dos principais laboratórios
de ideias do mundo, a UNESCO está
trabalhando para aproximar essas redes de
cidades, incentivando-as ao intercâmbio
e à colaboração em políticas e práticas
que podem responder às crescentes
necessidades dos moradores urbanos.
O jornalista vencedor do prêmio Pulitzer,
Herb Caen, disse certa vez: “Uma cidade
não é medida por sua extensão e largura,
mas pela amplitude de sua visão e pela
altura dos seus sonhos”. A UNESCO acredita
que, quando as cidades compartilham
esses sonhos e se inspiram na visão das
outras, elas são capazes de superar os
desafios da nossa nova era urbana.
Este número de O Correio da UNESCO está
repleto de histórias de criatividade, inovação
e resiliência. Espero que elas inspirem você,
leitor, e que talvez lhe deem motivação para
se envolver com essas questões em sua
própria cidade ou comunidade.
Audrey Azoulay,
diretora-geral da UNESCO

A probabilidade de uma cidade,


mapa urbano imaginário do artista
francês Fabrice Clapiès.
© Fabrice Clapiès

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 |3


Sumário
GRANDE ANGULAR7
7 Varsóvia, a cidade invencível
6-35
Joanna Lasserre
10 Recepção calorosa
versus hostilidade
Gabriela Neves de Lima
12 A rua inteligente de Kinshasa
Sylvie Ayimpam
14 Cidades da Rússia:
de monoindustriais a uma
economia diversificada
Ivan Nesterov
17 Havana:
onde todo mundo contribui
Jasmina Šopova
18 Eusebio Leal :
Havana de mis amores
Entrevista por Lucía Iglesias Kuntz
21 Quando a arte invade as ruas
Mehdi Ben Cheikh,
entrevistado por Anissa Barrak
24 A cidade, um circo sob uma
tenda iluminada pelas estrelas
Thomas B. Reverdy
28 Sob os auspícios da UNESCO…
cidades em redes

36-43 ZOOM
Iluminar o mundo!
Fotos: Rubén Salgado
Escudero
Texto: Katerina Markelova

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Neste número
As cidades sempre foram centros de poder,
atratividade e prosperidade. No entanto,
a urbanização frenética das últimas décadas
está colocando em risco sua função
histórica como centros que integram e
absorvem os recém-chegados. À medida
que se tornam mais povoadas, tornam-se
desumanizadas. A violência, a desigualdade,
a discriminação – quanto maiores as
cidades, mais estes males as dominam.
No entanto, mesmo quando são
desumanizadas, as cidades estão se
reinventando. Da esperteza de rua como
uma estratégia de sobrevivência em
Kinshasa (República Democrática do
Congo) aos maiores projetos nacionais
para a reabilitação das cidades de
indústria única na Rússia; da iniciativa

44-49 pessoal de um proprietário de galeria que


revitalizou a pequena cidade de Erriadh
(Tunísia) até a mobilização das massas
contra a apropriação autoritária dos
espaços públicos em Varsóvia (Polônia);
IDEIAS e de movimentos de solidariedade com
migrantes em Londres (Reino Unido);
45 as sinergias que revitalizam o coração
O racismo não precisa de racistas de Havana (Cuba) – forças criativas estão
Jorge Majfud
surgindo e se organizando para dar à
48
O outro lado da moeda vida urbana novos significados e novas
Katherine Levine Einstein perspectivas. Podemos acreditar que estas
são “pequenas resistências” – para usar a
expressão do escritor francês Thomas B.
Reverdy – mas elas fazem toda a diferença.
Dois outros escritores compartilham
suas opiniões com nossos leitores neste

50-53 número. Nosso convidado, o escritor


franco-congolês Alain Mabanckou, discorre
sobre as “Áfricas móveis” e a coragem de
escrever, enquanto destaca movimentos
contraditórios na história colonial.
O escritor uruguaio-norte-americano,
NOSSO Jorge Majfud, condena a atitude racista
contra os migrantes na seção Ideias, que
CONVIDADO também oferece uma análise das políticas
de migração nos Estados Unidos.

As Áfricas móveis de Alain Mabanckou Na seção Assuntos atuais – por ocasião


Entrevista por Ariane Poissonnier do Dia Mundial da África, em 25 de
maio – publicamos uma entrevista com

ASSUNTOS 54-61 Tshilidzi Marwala (África do Sul) sobre o


surgimento da inteligência artificial (IA) no
continente. Para marcar o Dia Internacional
ATUAIS da Diversidade Biológica, em 22 de maio,
visitamos a Gran Pajatén, no Peru, com
Roldán Rojas Paredes – o homem que
55 Livros abertos, mentes abertas iniciou sua inscrição na Rede de Reservas
Ghalia Khoja da Biosfera da UNESCO. Vamos também até
Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos, que
56 A inteligência artificial, na porta da África lança seu Programa de Capital Mundial do
Tshilidzi Marwala, entrevistado por Edwin Naidu Livro em abril de 2019.
58 O milagre de Ruanda Por fim, com o Zoom, viajamos até a Índia,
Alphonse Nkusi México, Mianmar e Uganda, para visitar
60 locais sem eletricidade. Uma luminosa
Gran Pajatén, “nossa fortaleza geográfica” pequena viagem ao redor mundo!
Roldán Rojas Paredes, entrevistado por William Navarrete

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 |5


© Selçuk Demirel
Grande angular
Varsóvia, a cidade invencível
Joanna Lasserre

Diante do crescente
conservadorismo, a sociedade
civil progressista de Varsóvia
demonstra forte capacidade
de protesto para defender
os valores democráticos. A
“rebelde” capital polonesa,
© Jaap Arriens / NurPhoto

tantas vezes ocupada,


maltratada e destruída, tem se
mantido firme em numerosos
episódios de sua história.
Ainda hoje, continua sendo
Marcha pela cidade velha de Varsóvia,
reconstruída, em uma busca
em novembro de 2018, para celebrar os
constante por realização plena. 100 anos do sufrágio feminino.

Cidade rebelde
Varsóvia não é o que se chamaria de Deve-se caminhar pelas ruas da cidade Geralmente, o confronto se cristaliza em
uma cidade bonita. Não se oferece ao para se deixar invadir pela energia que frente ao palácio presidencial. Até abril
visitante apressado com todo esplendor a conduz, e deixar-se atrair por seus de 2018, esse era o ponto de chegada
magnífico como faz a Cracóvia, a antiga muitos cantos inusitados, para encontrar da procissão religiosa que saía da cidade
capital polonesa. Uma cidade com um grupo aqui ou ali, marchando antiga a cada décimo dia do mês para
100 tons de cinza, foi invadida por ou parado, quando não é uma maré comemorar – com missa, orações, hinos e
gerações mais jovens após a queda humana protestando e carregando discursos – o desastre de Smolensk, de 10
do regime comunista em 1989. Eles bandeiras e placas. de abril de 2010. Data em que 96 pessoas
ocuparam as fábricas abandonadas e proeminentes, incluindo o presidente
Marchas silenciosas e manifestações
as transformaram em locais de criação Lech Kaczynski, morreram em um
barulhentas são cenas frequentes em
artística. Defenderam, a arquitetura do acidente de avião. Uma cerimônia mensal
Varsóvia. Flores brancas, roupas pretas,
período comunista frente às pressões de de caráter nacional, que deveria se repetir
velas, bombinhas – tudo isso se mistura
novos promotores imobiliários. O Palácio 96 vezes até abril de 2018, ocupava o
sob uma onda de bandeiras brancas e
da Cultura e da Ciência, por exemplo, um centro histórico de Varsóvia e atraía
vermelhas. No entanto, enquanto alguns
“presente” do camarada Stalin, concluído multidões de cidadãos que compareciam
também carregam a bandeira azul da
em 1955, ainda hoje domina o centro regularmente para protestar contra o
Europa com suas estrelas douradas,
da cidade – quer seus muitos críticos que consideravam ser uma apropriação
outros agitam as bandeiras pretas ou
gostem ou não. Tão imponente quanto autoritária e religiosa do espaço público.
verdes dos patriotas nacionalistas,
desprezado pelo povo de Varsóvia,
nostálgicos por uma “Grande Polônia de A oposição dos cidadãos à corrente
este imenso edifício de mais de 800 mil
mar a mar”. Enquanto alguns proclamam: nacionalista começou a se mobilizar
metros quadrados foi transformado em
“Não deixemos a democracia morrer em em 2015, por meio de uma organização
um verdadeiro centro multiplex cultural,
silêncio!”, outros exigem uma “Polônia cívica não governamental, o Comitê para
que abriga museus, salões de convenção,
pura”, uma “Polônia branca”. a Defesa da Democracia (KOD). Em 13 de
workshops, teatros e cinemas de arte.
dezembro, o aniversário do traumático
Isso é o paradoxo nacional que, nos últimos
Ao longo dos últimos 30 anos, uma dia em que a lei marcial foi imposta na
anos, se transformou em uma verdadeira
miríade de novos locais de encontro – Polônia pelo general Jaruzelski, em 1981,
ruptura entre duas Polônias, que desafiam
galerias, clubes, bares – floresceram aqui dezenas de milhares de pessoas vão para
ou ignoram uma a outra. E essa ruptura
e ali na Varsóvia pós-comunista, que as ruas em Varsóvia todos os anos. As
se manifesta em praça pública, tanto em
continua a atrair estudantes, executivos manifestações de rua nessa data em 2016
sentido literal como figurado.
de empresas internacionais, artistas e tiveram o maior público desde as primeiras
aventureiros de todo o mundo. eleições livres em 1989. Os cidadãos de

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Varsóvia, se juntaram aos manifestantes
de toda a Polônia e aproveitaram
a oportunidade para contestar a
manipulação estatal da constituição, das
instituições e dos direitos dos cidadãos,
particularmente as mulheres.
As mulheres estão na linha de frente
de todos os movimentos da sociedade
civil, reunindo uma grande parte da
sociedade. Em 2016, um projeto de lei
para proibir todos os abortos provocou
greves e protestos em massa por todo
o país. A lei proposta pretendia reduzir
mais drasticamente as já restritivas leis
vigentes sobre o direito ao aborto, que
permitem a interrupção da gravidez
apenas em casos de malformação fetal
grave, se houver grave perigo à saúde
da mãe, ou se a gravidez for resultado
de estupro ou incesto. Daquela vez, os
manifestantes venceram, e o governo foi
forçado a abandonar o plano.
© John Bob & Sophie Art

No entanto, em 11 de novembro
de 2017, quando as mulheres se
sentaram na Ponte Poniatowski para
bloquear o caminho dos nacionalistas
que marchavam durante o Dia da
Independência da Polônia, acabaram
sendo removidas à força, e depois levadas
à Justiça sob acusações de obstrução da
liberdade de protestar. dos Fundadores, em tradução livre) do para assumir o papel de capital de um
repertório do Teatro Nacional de Varsóvia. Estado soberano, o que finalmente
A mesma cena se repete a cada Dia da conseguiu ao final da guerra, em 1918.
Independência. Algumas mulheres, Da queda à reconquista, assim segue a
brandindo faixas de “Mulheres contra o vida dessa incrível cidade que extrai sua No decurso de 20 curtos anos após sua
fascismo” são empurradas por muitos paixão e energia de seus habitantes. independência, a cidade inteira se tornou
homens vestidos de preto, que gritam um canteiro de obras sob o comando do
grosserias sexistas, alternadas com slogans Cidade rebelde marechal Józef Piłsudski, um líder que
xenofóbicos, antissemitas e racistas. era tanto bajulado quanto controverso.
Essa onda de rebelião e liberdade não Consequentemente, em 1939, Varsóvia
A mesma multidão surge do lado de fora parecia com outras capitais europeias.
é novidade em Varsóvia. Viria ela de
dos teatros. Após cada apresentação Contava com um centro da cidade
seu rio, que não pode ser domado?
de uma peça polêmica que contradiz elegante e muitas áreas habitadas por
O Vístula, com seu vasto e íngreme vale
os códigos sagrados “polacos”, o Teatro trabalhadores, que compunham metade
que impede a aproximação das margens
Powszechny se prepara para enfrentar de sua população. Um grande bairro
direita e esquerda, permanece impetuoso
uma nova manifestação organizada por judeu, repleto de vida, distribuído por ao
e selvagem. Rodeado por areia e arbustos,
pequenos grupos da extrema-direita. O menos um terço da área, estendendo-se
o Vístula dá à cidade sua originalidade.
teatro – juntamente com o Novo Teatro do centro ao norte da cidade.
de Krzysztof Warlikowski e alguns outros Por muito tempo, Varsóvia manteve
teatros famosos do país – sempre foi um seu estilo rústico. Sua emancipação Nesse mesmo ano, as bombas da invasão
símbolo da luta pela liberdade artística, teve início em 1915, sob o reinado dos alemã atingiram Varsóvia, até o golpe de
que continua a ser “uma pedra no sapato” alemães, que a recapturaram da Rússia misericórdia em outubro de 1944. Hitler
dos poderes autoritários. durante a Primeira Guerra Mundial. queria fazer da cidade um exemplo de
Embora tenha sido severamente aniquilamento total, após a Revolta de
Isso poderia ser uma coincidência? A Varsóvia, de agosto a outubro de 1944,
explorada economicamente pelos
revolta estudantil polonesa de 1968 liderada pelo movimento de resistência
ocupantes, a cidade foi impulsionada por
– um marco na luta pela libertação da polonês clandestino. A margem direita
extraordinária determinação e esperança.
opressão soviética – começou com a da cidade foi quase completamente
Eleições municipais foram realizadas,
retirada de um clássico, o drama poético destruída, e a população sobrevivente
e a universidade e a politécnica foram
de Adam Mickiewicz, Dziady (Vigília deportada. Varsóvia nada mais era do
abertos. Varsóvia estava se preparando

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Da queda à
reconquista, assim
segue a vida desta
incrível cidade que
extrai sua paixão
e energia de seus
habitantes.
inscrita na Lista do Patrimônio Mundial da documentos únicos, coletados em total
UNESCO em 1980. O Arquivo do Escritório sigilo, foram inscritos no Registro da
de Reconstrução de Varsóvia (BOS Memória do Mundo logo após a queda
Archive), que acompanhou esse período do regime comunista, em 1989.
memorável, foi adicionado ao Registro da
Ringelblum e sua equipe construíram uma
Memória do Mundo em 2011.
ponte do nada rumo ao futuro. Desafiando
toda a proibição, eles nos deixaram
Cidade palimpsesto testemunhos sobre organizações
clandestinas, listas de deportados,
Outro capítulo fascinante na história crônicas, textos literários, obras de arte,
de Varsóvia é seu gueto. Muitos de nós diários, cartas particulares… Foi aqui, nos
já ouviram falar da Revolta do Gueto Arquivos Ringelblum, que descobrimos
de Varsóvia, que na primavera de as primeiras descrições detalhadas dos
1943, se opôs aos nazistas com uma campos de extermínio de Chełmno e
resistência tão determinada quanto sem Treblinka. Graças a esses arquivos, uma
Demonstração fora do Palácio Real em esperanças. No entanto, quantos sabem
Varsóvia, julho-agosto de 2017, para equipe de pesquisadores e escritores
a localização exata deste enorme lugar contemporâneos foram capazes de
protestar contra a homenagem mensal de clausura de judeus, o maior na Europa
ao acidente aéreo em Smolensk. reconstruir em detalhes – ao menos no
ocupada pelos nazistas? Construído papel – esse distrito da capital polonesa
em 1940, foi apagado do mapa em que desapareceu.
1943. Mesmo os moradores de Varsóvia
tinham apenas uma vaga noção a seu Uma cidade palimpsesto que escreve
que um vasto campo de ruínas, e a sua história nas páginas do passado,
respeito, já que o tema foi um tabu ao
possibilidade de sua reconstrução parecia sem nunca o ter realmente apagado,
longo das décadas do regime comunista.
duvidosa, dada a magnitude da tarefa. Varsóvia é um vasto mosaico que está
O arame farpado havia desaparecido e,
No entanto, tão cedo quanto janeiro de quando a cidade foi libertada, restaram constantemente se reinventando no
1945, os moradores de rua já estavam apenas fragmentos de sua parede de tempo e no espaço. Mais do que pedra
migrando para as margens do Rio Vístula 18 quilômetros, com vários metros de e concreto, ela é composta de fluxos
para levantar os escombros congelados. altura. Dizem que ficava em algum lugar de energia humana e as correntes
ao norte do Palácio da Cultura. que a atravessam – construindo e
Assim, eles começaram, por iniciativa desconstruindo sua identidade, feita de
própria, uma reconstrução que logo se Uma nova Varsóvia estava se levantando memória rebelde e esquecimento salutar.
tornaria uma conquista extraordinária sobre a cidade judaica enterrada,
para toda a nação. Felizmente, de maneira cuja memória teria desaparecido ao
clandestina, os escritórios de arquitetura mesmo tempo que seus 400 mil ou
e as escolas haviam compilado 500 mil habitantes, se não fosse por
inventários dos edifícios históricos um sobrevivente. Seu nome era Hersz
durante a ocupação nazista. Nem tudo Wasser. Ele foi assistente do historiador
estava perdido. A praça do mercado, as Emanuel Ringelblum que, com cerca de Arquiteta graduada pela Universidade
casas da cidade, o circuito das muralhas, 60 amigos, trabalhou arduamente para Politécnica, em Varsóvia, e pela Université
o castelo real e os importantes edifícios construir os arquivos clandestinos do Paris-Est de Marne-la-Vallée, na França,
religiosos da “cidade invencível”, como gueto de Varsóvia, que habitaram durante Joanna Lasserre (Polônia) está
era chamada, erguiam-se das cinzas a Segunda Guerra Mundial. Cerca de 25 envolvida em ações cívicas na Polônia
– impulsionados por um ímpeto nacional mil páginas, cuidadosamente arquivadas e na França, paralelamente aos seus
unificador encorajado pela propaganda em caixas de metal, foram extraídas dos projetos profissionais de arquitetura,
comunista. Isso levou Varsóvia a ser escombros, entre 1946 e 1950. Esses planejamento urbano e comunicação.

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Recepção versus
calorosa
 hostilidade
Gabriela Neves de Lima

Diante de uma política contra migrantes, os habitantes do bairro londrino


de Haringey lançaram uma campanha de boas-vindas que tem sacudido as
leis de imigração britânicas. Provando que encontrar uma base comum é
sempre possível, o bairro trabalha com as comunidades locais, e o governo
central financia alguns de seus projetos. A ideia de todos trabalharem
juntos para criar um bairro mais acolhedor está se consolidando.
acolher esta iniciativa, Nabijou expressou
Desde o surgimento da chamada Haringey um dos bairros mais abertos suas reservas quanto à opção de mantê-la
“crise migratória” na década de 2010, e diversificados do Reino Unido”, internamente, a viabilidade do projeto,
as autoridades locais na Europa têm observa um relatório do gabinete do caso esteja ligada ao atual fluxo de
estado na vanguarda para garantir a conselho municipal, datado em 15 de financiamento, e sua capacidade de alcançar
integração dos migrantes e refugiados novembro de 2016. Foi nesta época que grupos de migrantes mais vulneráveis.
em suas comunidades. Alguns atuam no os fundadores da Haringey Welcome
Outro destaque foi o apoio de
âmbito da estrutura das agendas políticas deram seus primeiros passos, exigindo
representantes eleitos por uma moção
definidas pelos governos, outros são mais que o bairro implementasse a medida
introduzida pela Haringey Welcome em
proativos. A campanha Haringey Welcome de reassentamento voluntário do
novembro de 2018. Isso, disse Nabijou,
(Boas-vindas de Haringey, em tradução governo central para refugiados sírios.
oferece uma grande oportunidade “de
livre), no norte de Londres, optou por Claire Kober, então líder do conselho de
colocar todos os problemas na mesa e
adotar uma abordagem colaborativa, Haringey e presidente do conselho de
reconstruir a gestão local”.
mantendo-se uma organização ativista e Londres, se comprometeu a realocar dez
independente que assume uma postura famílias sírias – dar-lhes “um local seguro”
mais antagônica quando necessário. e o apoio de que precisavam “para Relações sociais
começar a reconstruir as suas vidas”. ameaçadas
Obrigação moral contra No entanto, como aponta Nabijou, o
A necessidade de reconstruir a gestão
conselho sofre com a falta de recursos
a injustiça social financeiros, treinamento e diálogo com
local é essencial em um contexto de
agitação nas relações sociais. Isto ocorre
A Haringey Welcome baseia-se na noção moradores e grupos comunitários, o que
porque a chamada política de ambiente
de solidariedade política, definida pela compromete sua eficácia. É por isso que a
hostil, que tem em vista notadamente os
filósofa norte-americana Sally Scholz Haringey Welcome adotou uma abordagem
imigrantes indocumentados, e pretende
como uma obrigação moral positiva mais colaborativa em suas negociações
dissuadir os migrantes a cruzarem
que estimula a ação coletiva frente com o conselho local, enfatizando a
fronteiras territoriais, na verdade,
a uma situação de injustiça ou de necessidade de criar novos canais de
afeta toda a população. As políticas
vulnerabilidade social. Sua ideologia é comunicação e construir relacionamentos
de migração envolvem não apenas os
o extremo oposto de uma política de que se baseiam na confiança.
diferentes ministérios e representações
ambiente hostil, explica Lucy Nabijou, O objetivo do programa não é defender locais ligadas ao controle de fronteiras
coordenadora do grupo de moradores que conselheiros eleitos ou funcionários e à gestão da imigração, mas também
que iniciou a campanha. “Trata-se de do conselho local violem a lei nacional o setor privado e os cidadãos comuns.
solidariedade e justiça, lutar por valores, propriamente, insiste Nabijou, mas Na prática, isso significa que também
contestar leis ruins e realmente tentar sim que aumentem a transparência e a existem fronteiras dentro do país. Todos os
trabalhar juntamente ao governo local, responsabilização para navegar melhor aspectos da vida social são monitorados
buscando uma colaboração real com as pelos instrumentos disponíveis a fim e potencialmente reportados, com
autoridades locais a fim de melhorar os de oferecer serviços adequados para riscos elevados de deportação. Como
serviços”, acrescenta ela. migrantes e refugiados. resultado, os migrantes e os requerentes
de asilo são desencorajados a acessar
Com 45% de sua população nascida fora O conselho de Haringey já parece estar
serviços essenciais.
do Reino Unido e 5% tendo se mudado se movendo nessa direção. Em setembro
para lá nos últimos dois anos, Haringey de 2018, lançou o programa Connected Por exemplo, os proprietários privados
é um dos bairros mais cosmopolitas de Communities (Comunidades Conectadas, são obrigados a verificar se seus futuros
Londres. “Haringey tem uma história em tradução livre), com financiamento inquilinos têm o direito de residir no país
forte e orgulhosa de acolher aqueles que do governo central. Destina-se a melhorar e a manter prova disso, sob o risco de
buscam por asilo e os refugiados que o apoio local aos migrantes nas áreas de pagar uma multa ou ser preso por um
escolheram reinstalar-se em Londres. Há emprego, habitação, aprendizagem da período máximo de cinco anos. Com uma
gerações de pessoas de todo o mundo língua inglesa, assistência à infância e redefinição mais rigorosa da categoria
que se mudaram para cá e fizeram de capacitação da comunidade. Apesar de de “residência habitual”, o acesso à

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assistência médica gratuita foi reduzido, e criando medo, desconfiança e tensão nas Ministério da Habitação, Comunidades,
os imigrantes temporários não europeus comunidades, ameaçando a solidariedade e Governo Local. Estabelecer um grupo
foram forçados a pagar uma sobretaxa e o convívio local. Também é importante de trabalho de conselheiros locais,
anual durante sua permanência. Entre notar que determinadas categorias sociais organizações de migrantes e especialistas
2016 e 2018, as escolas foram obrigadas (como aquelas baseadas em raça, classe legais para desenvolver uma estratégia
a fornecer ao Estado informações sobre ou gênero) são desproporcionalmente para migrantes, especialmente os grupos
crianças de origem migrante. No entanto, impactadas por essas políticas, indicando a mais vulneráveis, também seria benéfico.
a coleta de dados foi interrompida como relativa fragilidade de seus direitos.
Além do aspecto político, Nabijou observa
resultado de uma campanha que está,
que a campanha Haringey Welcome
atualmente, lutando pela destruição das
informações coletadas.
Unindo forças tem outro efeito secundário que é
igualmente central à iniciativa. “Por meio
Escrevendo sobre a mudança de foco da Neste contexto, a Haringey Welcome da mobilização, conhece-se os vizinhos,
recente legislação de imigração do Reino contribui para melhorar as relações conhece-se novas pessoas, informa-se
Unido, os acadêmicos britânicos Nira sociais no local, ao construir redes melhor sobre o que está acontecendo,
Yuval-Davis, Georgie Wemyss e Kathryn de solidariedade dentro do bairro. e tudo isso se mistura para produzir um
Cassidy concluíram que isso equivale a O grupo tem trabalhado com escolas, senso de comunidade extremamente
um “controle fronteiriço diário em que se por exemplo, para aumentar a forte que transforma o lugar onde você
exige que os cidadãos comuns se tornem conscientização sobre as implicações do mora”, diz ela com entusiasmo.
ou guardas de fronteira ou suspeitos de ambiente hostil. Também atraiu apoio
colaborar com a imigração ilegal”. Um de outros grupos comunitários locais e
parente, um amigo, ou um vizinho pode de organizações de apoio a migrantes
se tornar um informante. Como sugere – todos trabalham juntos para criar um
o antropólogo letão Dace Dzenovsca, bairro mais acolhedor.
Cientista política brasileira, Gabriela Neves
os conflitos pessoais podem interferir Ao estabelecer esses links e trabalhar
de Lima é assistente de pesquisa no
na defesa das fronteiras. Essas práticas diretamente com representantes eleitos e
Departamento de Geografia e Meio Ambiente
atrapalham as relações sociais e políticas, do governo, a Haringey Welcome promove
da Escola de Economia e Ciência Política de
uma forma de colaboração com múltiplas
Londres, Reino Unido. É coautora de Cities
partes, envolvendo todos os interessados.
Colagem das crianças na pré-escola Welcoming Refugees and Migrants: Enhancing
Uma forma de alcançar este feito
de Sterrenbos, em Hamme, na Bélgica, Effective Urban Governance in an Age of
incluiriam licitações para financiamento
que recebeu uma menção especial Migration (Cidades que acolhem refugiados e
de iniciativas de integração do Controlling
no concurso mundial de arte da Rede migrantes: melhorando a governança urbana
Migration Fund (Fundo de Controle
de Escolas Associadas da UNESCO eficaz em uma era de migração, em tradução
Migratório, em tradução livre) do
“Abrindo os corações e as mentes livre), publicada pela UNESCO em 2016.
aos refugiados”, 2017.
© UNESCO / Pataphonique Productions

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 11


A rua inteligente
Sylvie Ayimpam
de Kinshasa
Como sobreviver quando se é pobre e está preso em uma
interminável série de crises sociais e econômicas? Você aprende a
sobreviver! Este é o lema dos habitantes de Kinshasa, na República
Democrática do Congo. Mostrando grande engenhosidade, eles
nunca perdem uma oportunidade de inventar um novo emprego.
Romains, chargeurs, e outros gaddafis lotam os mercados e as ruas da
megacidade, preenchendo as lacunas do sistema.

Estamos na República Democrática em que os habitantes da cidade dominam


do Congo (RDC). A cena acontece no com maestria. É a principal entre todas as
centro da cidade de Kinshasa, a capital. estratégias de subsistência, especialmente
Três jovens engraxates sentam-se em entre os jovens, que compõem mais da
pedras na entrada de uma escola, metade da população da cidade.
equipados com bancos, apoios de pés,
escovas e esponjas. Ao lado deles, um
jovem montou uma banca e cuida de
Criatividade nascida
um sistema de carregamento elétrico da necessidade
habilmente montado. Em um pequeno
Como os chargeurs, que preenchem
painel de madeira, ele montou várias
as lacunas do sistema de distribuição
tomadas elétricas conectadas de Kinshasa, cidade mercado.
elétrica doméstica, agora que os telefones
maneira ilícita aos fios elétricos que
celulares são amplamente utilizados,
emergem do chão, de onde são ligados
outros habitantes demonstram notável
à base de uma iluminação de rua com
engenhosidade ao inventar diferentes
defeito. Esse homem se autodenomina o
fontes de renda, tirando proveito de
chargeur (o carregador).
cada oportunidade para prestar serviços
Enquanto os engraxates há tempos úteis. Começando com quase nada, eles
são uma parte integrante da paisagem inventam novas atividades para atender a
urbana, carregadores de baterias diferentes necessidades.
surgiram ao mesmo tempo que os
Uma mesa, um banco, alguns utensílios
telefones celulares. Nos anos de 1970 e
de cozinha e carvão são suficientes para
1980, a cidade estava repleta de unidades
montar um malewa, ou restaurante
de microprodução – fábricas de calçados
de baixo custo, onde pode-se comer a
ou de tintas, carpinteiros ou joalheiros,
um valor dez vezes menor do que em
oficinas de tecelagem ou de tingimento
qualquer outro lugar – mesmo que a
surgiam por toda parte, principalmente
higiene, por vezes, seja comprometida.
nos quintais. Contudo, desde meados da
Os ônibus estão superlotados? Sem
década de 1990, os pequenos negócios e
problemas! Os wewa (moto táxis) estão
os serviços assumiram o controle.
lá para te transportar. As ruas estão
É preciso saber cuidar de si mesmo se inundadas após a chuva? Tudo bem,
você vive em Kinshasa, em meio a cerca transportadores carregarão os pedestres
de 11 milhões de habitantes. A crise nas costas até o outro lado. Outros,
econômica, os fracassos do Estado e como os vendedores de peças usadas
dos serviços públicos, e a escassez de de reposição, reparadores de telefones
empregos assalariados estão forçando celulares, ou vendedores de água
os habitantes da cidade a ganhar a vida engarrafada, também estão por perto
de maneira autônoma com pequenos para ajudá-lo a qualquer momento.
serviços e expedientes.
Uma terminologia coloquial está se
Em uma situação caracterizada pela desenvolvendo para acompanhar essas
ausência de leis e pela pobreza extrema, novas atividades, caracterizadas pela
la débrouille – a palavra francesa para intermediação. A lacuna deixada pela falta
desenvoltura, saber “se virar”, sobreviver ou de organização das infraestruturas públicas
improvisar – tornou-se um modo de vida e privadas é preenchida por todos os tipos

12 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


de agentes, corretores e subcontratantes diz: “se virem para sobreviver!”. Todos os também inclui valores sociais, como o
que oferecem seus serviços individualmente congoleses a conhecem e se referem a convívio, a solidariedade, o respeito e
ou por meio de redes. ela diariamente. Beta libanga significa a lealdade. No fim, contribui para uma
literalmente “quebrar pedra”. “Improvisar forma de auto regulação social.
Exercendo suas profissões nas ruas e
não é fácil”, Kallé nos adverte.
mercados, mas também em qualquer Reconhecidamente, em meio a uma
local de transação comercial, incluindo “Artigo 15, meus queridos, improvisem modernidade incompleta, as instituições
estacionamentos, grandes intersecções, para sobreviver”, canta ele em lingala. estão falidas, as administrações
estações de ônibus e portos fluviais, estão “Olhem para o porto fluvial: os estremecidas, a sociedade civil
os romains (negociantes de mercadorias estivadores carregam cargas pesadas. desestruturada e as tradições sem
contrabandeadas), bana kwatas Olhem para os condutores de ônibus: valor. No entanto, o que nunca deixa
(ambulantes que vendem roupas usadas), eles gritam da manhã até a noite. de surpreender em Kinshasa é a
chayeurs (agentes de atacadistas), Olhem, há barracas por toda a cidade. desenvoltura e a criatividade das
gaddafis (vendedores informais de Olhem para os motoristas de taxis e pessoas que lutam para sobreviver,
combustíveis), chargeurs (agenciadores de ônibus: eles dirigem da manhã até refletindo o espírito inventivo dos
de taxis e transporte público, não devem a noite. Olhem para nós, os músicos: indivíduos e da comunidade.
ser confundidos com os carregadores de cantamos para ganhar a vida. Olhem
bateria!), cambistes (cambistas de rua), para os estudantes: eles estudam para
e os mamas manoeuvre (intermediários prepararem-se para o futuro”.
que comercializam produtos alimentícios
No entanto, o futuro com que sonhamos
em portos fluviais).
muitas vezes permanece distante
e, enquanto isso, sobrevivemos em Cientista social congolesa afiliada ao
Artigo 15 Kinshasa, como em muitas outras Institut des mondes africains (IMAF)
cidades africanas. A desenvoltura e a em Aix-en-Provence, na França, o
Em meados da década de 1980, a música criatividade tornaram-se um modo de trabalho de Sylvie Ayimpam centra-
“Article 15, Beta Libanga” (Artigo 15, ser, um marcador da identidade urbana -se na questão da economia informal
Beta Libanga, em tradução livre), do que abrange todo o espaço social de em cidades africanas. Ela é autora de
músico congolês Pépé Kallé (1951- Kinshasa. A economia informal, que Économie de la débrouille à Kinshasa.
1998) era um grande sucesso em todo se prolifera principalmente devido Informalité commerce et réseaux sociaux
o continente, provavelmente porque à escassez crônica, a pobreza e a (A economia da desenvoltura em
muitos africanos podiam se identificar instabilidade política, está longe de se Kinshasa. Informalidade, comércio e
com ela. O artigo 15 é um artigo livrar de esquemas, vigarices, riscos, redes sociais, em tradução livre 2014).
imaginário na Constituição da RDC que conflito e violência. Ainda assim,

© Baudoin Bikoko

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 13


Cidades da Rússia:
de monoindustriais a uma economia diversificada
Ivan Nesterov

A crise em Detroit, cidade Foi necessário que o primeiro-ministro todas têm uma coisa em comum – sua
russo, Vladimir Putin, interviesse sobrevivência dependente inteiramente
conhecida nos Estados Unidos
pessoalmente para solucionar o conflito. de uma única empresa ou consórcio,
como Motor City, foi espalhada Em 4 de junho, ele chegou a Pikalyovo que emprega ao menos um quarto da
por toda a imprensa internacional e reuniu os proprietários das fábricas – população. Todas foram constituídas em
quando a cidade apresentou eles finalmente assinaram acordos para torno de fábricas, de grandes centros
fornecer matérias-primas e elaboraram florestais industriais e da disponibilidade
o maior pedido de falência vários contratos de longo prazo. O de fontes de matéria-prima (ouro, ferro,
municipal na história norte- dinheiro de que precisavam para resolver carvão, petróleo, gás, apatita etc.). No
-americana, em julho de 2013. as questões financeiras (incluindo os caso de Pikalyovo, a cidade e sua fábrica
As histórias sobre a queda e, salários dos funcionários, o dinheiro de cimento foram construídas em 1935,
devido aos fornecedores de matérias- nos arredores da estação ferroviária de
em seguida, o renascimento primas e transportadores) foi alocado mesmo nome, onde depósitos de calcário
desta outrora grande cidade, pelo banco estatal russo, o Grupo VTB, e a e argila de cimento foram descobertos
que apostou tudo na indústria produção nas fábricas foi retomada. cinco anos antes.
automobilística, não faltaram. No
Está claro, no entanto, que a As primeiras cidades industriais russas
entanto, não ouvimos falar tanto intervenção pessoal de um chefe de foram construídas no século XVIII, após
sobre as monogorodas, as cidades Estado não pode se tornar um modelo as reformas do czar Pedro, o Grande, que
industriais da Rússia há muito sustentável para a resolução de crises. fomentou a instalação de fábricas de
Especialmente porque, na maioria dos linho e forjas industriais. A segunda onda
esquecidas, que compartilham casos, os problemas não resultam de de rápido crescimento ocorreu no século
destino semelhante. Lá existem desentendimentos entre proprietários, XIX, com o surgimento de fábricas têxteis
319 cidades monoindustriais, mas de exigências do mercado. De fato, e o desenvolvimento da indústria leve.
onde uma única indústria ou a transição da Rússia para uma economia No entanto, a maioria dessas cidades foi
de mercado no início da década de 1990 criada na década de 1930, como parte
fábrica é responsável pela maior criou uma série de graves problemas para dos grandiosos planos de industrialização
parte da economia local. Como as cidades monoindustriais. de Joseph Stalin, que se concentravam
elas estão se saindo? principalmente na defesa.
No topo da lista está o desemprego – as
A data é 2 de junho de 2009, e o mundo taxas de desempregados nessas cidades Atualmente, essas cidades contam com
está no furor de uma de suas crises são duas vezes mais altas que a média mais de 400 grandes indústrias privadas
financeiras mais severas. No noroeste da nacional na Rússia. Além disso, essas – incluindo a maior produtora de carvão
Rússia, a rodovia federal que liga Novaya cidades foram projetadas para acomodar da Rússia, a Companhia Siberiana de
a indústria que as sustenta, e não para o Energia de Carvão (SUEK); as empresas de
Ladoga e Vologda está bloqueada.
bem-estar de seus moradores. Problemas metal e mineração, Severstal e Mechel;
Mais de 300 moradores de Pikalyovo,
de poluição e a falta de infraestrutura, e a líder mundial em mineração de
uma pequena cidade na província de
saúde e educação são recorrentes. diamantes, Alrosa. Esse número também
Leningrado (província cuja capital é São
Para piorar as coisas, essas cidades inclui empreendimentos estatais, como
Petersburgo), formaram um bloqueio na
muitas vezes estão situadas em regiões a Rostec, o conglomerado industrial que
estrada. Eles estão protestando porque
remotas do país, com passagens aéreas fabrica e exporta produtos industriais de
há meses não são pagos. As três fábricas
exorbitantes, potencializando ainda alta tecnologia para uso militar e civil, e a
estatais que sustentavam a cidade Corporação Estatal Rosatom de Energia
mudaram de mãos, assumidas por três mais o isolamento de seus habitantes. Se
finalmente conseguem chegar até um Atômica, a empresa de energia nuclear
proprietários privados: Basel Cement, russa, entre outras.
Eurocement e FosAgro. No entanto, estas avião, isso geralmente significa que estão
indo embora para sempre!
empresas, que formavam uma única
Existem cidades industriais por
linha de produção, não conseguiram
chegar a um acordo sobre uma série A origem das cidades toda a Rússia, no entanto, estão
majoritariamente concentradas nas
de questões, incluindo os preços das
matérias-primas, o volume de produção
monoindustriais regiões da Sibéria e Urais. Há 24 delas
no oblast (subdivisão administrativa)
e as perspectivas de desenvolvimento. Aproximadamente 13,2 milhões de Kemerovo, por exemplo, 15 no
De tal forma que nesta pequena cidade de habitantes – quase um em cada oblast de Sverdlovsk, e 14 no okrug
de 21 mil habitantes, 4 mil permaneciam dez russos – vivem e trabalham em (distrito) autônomo de Khantia-Mansia.
desempregados. uma dessas 319 cidades industriais. Algumas delas têm menos de 1 mil
Quaisquer que sejam suas diferenças,

14 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


© Kirill Kukhmar / TASS / ABACA

Uma oficina de fundição de cobre


na fábrica da Nornickel
habitantes, como o vilarejo de mineração Após a crise de Pikalyovo, o governo
em Norilsk, na Rússia.
Beringovsky, a cidade mais oriental estatal elaborou uma lista dessas cidades,
da Rússia. Outras têm populações na que os especialistas classificaram em três
casa das centenas de milhares, como categorias – cidades com as condições
financia projetos de grande escala para
Tolyatti, capital da indústria automotiva socioeconômicas mais complexas (zona
desenvolver a infraestrutura, a indústria, a
do país, com 712 mil habitantes, e vermelha, composta por 94 cidades);
atividade social, e o potencial tecnológico
Naberezhnye Chelny, onde são fabricados cidades em risco de deterioração de sua
do país. O banco foi instruído a criar
os caminhões de serviço pesado Kamaz, situação socioeconômica (zona amarela,
instrumentos financeiros, primariamente
com uma população de 517 mil. A com 154 cidades), e cidades com situação
para ajudar as cidades industriais da zona
maioria das cidades industriais, no socioeconômica estável (zona verde, com
vermelha a saírem de suas crises. Com
entanto – cerca de 216 delas – não tem 71 cidades).
este objetivo, o banco criou um fundo
mais de 50 mil habitantes.
específico para o desenvolvimento das
Em 2014, o governo adotou uma
cidades industriais.
Nova estratégia estratégia para o desenvolvimento
das cidades monoindustriais, baseada
Os problemas enfrentados pelas cidades principalmente na diversificação de suas Uma vez que a estratégia estava em vigor,
monoindustriais russas são uma das economias, investimento e a criação de equipes de representantes dessas cidades
principais ameaças à estabilidade social e novos empregos. Convocou o banco de receberam treinamento em investimento
política do país. desenvolvimento da Rússia, o VEB, que e empreendedorismo. Este treinamento

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 15


foi oferecido por uma importante escola porte, ou individuais, ligadas às novas em Nizhnekamsk, no Tartaristão, investiu
privada de negócios, em Skolkovo, a atividades, espera-se que o programa gere no desenvolvimento de um Projeto de
equivalente russa do Vale do Silício. cerca de 230 mil empregos. Para Pikalyovo, Emissão Máxima Admissível de Poluentes,
por exemplo, isso significaria que mais um sistema automatizado de monito-
O Estado contribui de 1,7 mil empregos diversos – produção
de vegetais em estufa, roupas esportivas,
ramento de poluição do ar que, desde
então, tem sido considerado um padrão
Atualmente, o Fundo de móveis etc. – devem ser criados até 2030. para o controle de emissões nocivas. Em
Desenvolvimento das Cidades O plano de desenvolvimento também 2016, a Nornickel desativou a mais antiga e
Monoindustriais trabalha com equipes prevê um investimento de 20 bilhões poluidora fábrica em Norilsk, reduzindo as
de empresários, administradores de rublos (303 milhões de dólares) na emissões nocivas em 30%.
municipais e regionais. A maior parte economia da cidade.
das cidades industriais desenvolveu e Em 2017, a Mechel instalou coletores que
aprovou programas de desenvolvimento Outro privilégio significativo é que capturam 98% da poeira e do gás em sua
que levam em consideração suas áreas de avançado desenvolvimento usina de enriquecimento de carvão em
particularidades territoriais, climáticas, socioeconômico foram criadas, onde as Neryungri. E a Kolmar construiu usinas de
socioeconômicas e de produção – empresas se beneficiam de vantagens enriquecimento de circuito fechado, que
estas são integradas aos planos de fiscais sem precedentes. Os incentivos recicla a água residual para reutilização
desenvolvimento regional estratégicos. incluem reduções nos impostos sobre no processo de produção.
rendimento empresarial, impostos sobre
O Fundo também oferece às regiões o propriedade e royalties de mineração, e Os resultados tangíveis de todas essas
montante necessário para os projetos, também sobre prêmios de seguro. Até medidas são esperados até 2025.
implementados por empresas locais o final de 2018, 63 dessas áreas haviam Enquanto isso, no primeiro semestre
e nacionais, em cooperação com as sido estabelecidas nas cidades industriais, de 2019, o Fundo já estará anunciando
autoridades municipais. Ele contribui com um total de mais de 200 empresas a lista de 18 cidades com economias
recursos e capacidades, monitora os registradas. sustentáveis que não mais se classificam
gastos, e compartilha as melhores como monoindustriais. A principal
práticas. Em 2016-2017, celebrou 29 candidata é Cherepovets, um antigo
acordos de cofinanciamento com As corporações ajudam centro de fabricação de aço, com uma
as regiões para atrair projetos de população de 318 mil habitantes. Em 2017,
Contudo, o Estado não pode resolver sozi-
investimentos no valor de 14,3 bilhões de uma importante unidade de produção
nho os problemas das cidades monoindus-
rublos (mais de 217 milhões de dólares), de fertilizante mineral foi estabelecida
triais russas. As grandes empresas também
para a reconstrução da infraestrutura. Em nela pela FosAgro. Vinte mil empresas
têm ajudado. Em 2017, a Nornickel, uma
longo prazo, espera-se investir mais de individuais também se estabeleceram na
empresa de mineração e fundição, instalou
106 bilhões de rublos (mais de 1,6 bilhão cidade, empregando um em cada quatro
um cabo de fibra ótica de internet no
de dólares) nas cidades industriais. da força de trabalho ativa.
valor de 2,5 bilhões de rublos (mais de
Um programa prioritário para o
38 milhões de dólares) em Norilsk, uma
Desenvolvimento Integrado das Cidades
cidade situada a 300 quilômetros ao norte
de Indústria Única entrou em vigor em
do Círculo Polar Ártico. Em 2018, a CC
âmbito federal em 2016. Com o objetivo
Kolmar LLC, uma empresa de mineração e
de criar empresas de pequeno e médio
processamento de carvão, comprometeu- Jornalista russo, Ivan Nesterov trabalhou
-se a desenvolver o turismo regional em na promoção do desenvolvimento
Neryungri, uma cidade em Yakutia, e fez integrado do Sul de Yakutia, um grande
O clima polar, a poluição e o isolamento. um investimento conjunto na reconstrução projeto de investimento, entre 2008
Em sua série, Days of Night – Nights of do aeroporto local. e 2018. Ele também esteve envolvido
Day (Dias de noite – noites de dia, em na mobilização de investimentos
tradução livre), a fotógrafa russa Elena Além disso, grandes empresas começaram para projetos de desenvolvimento
Chernyshova investiga a capacidade dos a promover a indústria verde. Em 2008, a socioeconômico no Extremo Oriente.
habitantes de Norilsk de se adaptarem a Taneko, empresa de petróleo e gás natural
condições extremas de vida.
© Elena Chernyshova

16 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


Havana:
onde todo mundo contribui
Jasmina Šopova

Havana atualmente está


finalizando os preparativos para
uma grande celebração dos
500 anos de sua fundação, em
novembro de 2019. Edifícios
emblemáticos no centro
histórico da capital cubana
estão sendo restaurados. Um
renascimento excepcional
está em curso pelas últimas
três décadas, impulsionado
pelo compromisso dos seus
habitantes, a determinação do
historiador da cidade e a forte
vontade dos poderes públicos.
© Sebastian Liste / NOOR

“O que o coração exige, a mão executa”.


Este provérbio, gravado em ideogramas
chineses em uma das mais magníficas
fachadas em Havana, expressa o amor que Uma cena da vida cotidiana em
seus habitantes têm por sua cidade. “Terra Havana, contra o pano de fundo do
de passagem por tantos anos, pessoas das Capitólio, em 2015.
mais diversas origens (africanos, europeus,
chineses, yucatecos...) se encontraram
aqui em uma amálgama, em um
caleidoscópio que produziu nossa única e sofreu uma intensa deterioração desde diferentes graus de especialização,
diversa identidade étnica, ética e estética”, o início do século XX. Cuba se uniu para foram criados pelo Escritório do
escreveu o autor cubano, Manuel Pereira, salvar sua cidade. “É impossível resgatar Historiador da Cidade para os residentes
em seu artigo Enchanted seashell: a portrait 465 anos de pedra da noite para o dia, mas da cidade antiga e das comunidades
of Old Havana (Concha do mar encantada: Havana Antiga será salva. Sua esplêndida próximas. Um sistema de educação foi
um retrato de Havana Antiga, em tradução face será restaurada e convertida, não criado especificamente para atender
livre), publicado em O Correio da UNESCO em um museu sem vida, mas em um às necessidades do plano. Engloba a
em julho de 1984. museu que é vivo e em que se pode viver”, Universidade de Havana, fundada em
escreveu Pereira, 35 anos atrás. O tempo 1728, e três escolas especializadas, para
Isso ocorreu dois anos após a inscrição provou que ele estava certo. oferecer treinamento a estudantes
do centro histórico da capital cubana na com idades entre 16 e 21 anos. Doze
Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO. Com base em uma estratégia de
disciplinas são lecionadas lá, durante um
Havana Antiga é composta por mais de autogestão e adotando uma abordagem
período de dois anos. Até agora, cerca
3 mil edifícios, atualmente abrigando que engloba o patrimônio, a sociedade,
de 1,5 mil jovens foram treinados em
50 mil pessoas. a educação e a cultura, o plano cubano
vocações relacionadas à restauração e
tornou-se um modelo para a restauração
Cerca de uma década depois, em 1993, reabilitação do patrimônio cultural.
e melhoria dos centros urbanos históricos,
o Estado cubano adotou um decreto, particularmente nos países da América O projeto Aulas-Museo (Museu em
tornando o centro da cidade uma área Latina. Reconhecido por especialistas Sala de Aula, em tradução livre) reúne
prioritária de preservação. Um Grande internacionais, o plano ganhou mais de 25 escolas primárias e museus para ensinar
Plano para a restauração da Havana prêmios nacionais e mundiais, e figura na as crianças sobre a história de Havana
Antiga foi rapidamente elaborado, lista da UNESCO de melhores práticas em Antiga. Esta iniciativa, criada e promovida
supervisionado pelo Escritório do gestão do patrimônio mundial. pelo Escritório do Historiador da Cidade,
Historiador da Cidade de Havana (veja é uma das várias maneiras de aumentar
nossa entrevista, na p. 18). Uma característica desse plano é ter
a conscientização das pessoas de várias
conseguido envolver a população local na
Os efeitos do clima e do crescimento idades sobre os valores do patrimônio.
reabilitação de seus bairros. Ao longo dos
urbano afetaram o antigo bairro, que Com isso, milhares de famílias se
anos, mais de 14 mil empregos, exigindo
beneficiaram de passeios culturais pela

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 17


Eusebio Leal:
cidade, assistiram os vídeos Andar La
Habana (Caminhadas por Havana, em
tradução livre) na televisão, ou leram
a série mensal Habana Nuestra (Nossa
Havana, em tradução livre), em versão
impressa e online.
Uma vez subsidiada pelo Estado,
a restauração do centro histórico
Havana de mis amores
agora se beneficia de um sistema
de autofinanciamento, com o Entrevista por Lucía Iglesias Kuntz,
desenvolvimento de uma economia UNESCO
local. Empresas e agências de turismo
foram abertas a fim de criar uma rede
gastronômica, comercial e hoteleira na Falar de Havana é falar de
área de proteção prioritária, compatíveis Eusebio Leal Spenglerde.
com os interesses culturais do bairro. Que outra cidade tem seu
Museus, galerias e teatros também
foram estabelecidos nos mais belos próprio historiador pessoal?
edifícios, atraindo um grande número Na véspera do 500° aniversário Inundações incomuns causadas
pela mudança climática ameaçam
de visitantes nacionais e estrangeiros da fundação da capital cubana,
– o turismo é uma das mais importantes El Malecón, a famosa avenida
o historiador da Cidade de litorânea de Havana.
fontes de financiamento para a
restauração de Havana Antiga. Havana – encarregado da
restauração do centro histórico
Como a qualidade de vida dos seus
habitantes é um dos principais critérios da cidade por mais de 30
do plano de restauração, uma parte anos – nos leva a uma jornada
significativa dos recursos que gera é usada por suas ruas e monumentos,
para financiar instituições sociais. Entre
elas, o hospital Maternidad Doña Leonor
nos mostrando sua força, sua
Pérez Cabrera, o centro geriátrico Santiago beleza... e seus males.
Ramón y Cajal, que oferece atendimento
especializado para cerca de 15 mil idosos,
Este ano, Havana celebra cinco séculos
e o antigo convento de Belém, que abriga
de existência. Como anda a saúde da
o Escritório de Assuntos Humanitários.
cidade?
Este escritório se concentra nos membros
mais vulneráveis da sociedade, incluindo Se eu fosse me colocar no lugar da
as vítimas de desastres naturais, como os cidade, acredito que os males sentidos
frequentes furacões. Aqui, eles têm acesso são aqueles quando se vive por muito
a uma farmácia, um centro de fisioterapia, tempo. Cinco séculos é pouco em
uma clínica oftalmológica, e também comparação com cidades antigas
uma loja de alimentos, cabeleireiros e como Atenas, na Grécia, ou Istambul,
barbeiros. Atividades socioculturais e na Turquia. No entanto, é muito para
reuniões para pessoas de todas as idades nós em nossas Américas – com exceção
são organizadas aqui, incluindo workshops das grandes cidades pré-hispânicas
sobre o meio ambiente, medicina como Cusco, a cidade inca do Peru,
tradicional e outros temas de interesse. a Tenochtitlán asteca, no México, ou
as cidades maias da América Central.
O desenvolvimento de praças, áreas
Havana foi parte da nova onda que
verdes, ruas de pedestres e espaços
começou com a conquista e colonização
recreativos, e serviços municipais como
espanhola no início do século XVI.
iluminação pública, fornecimento
As cidades cubanas foram fundadas
de gás, coleta de lixo e a limpeza dos
imediatamente depois das cidades de
espaços públicos são todos elementos
Santo Domingo, La Vega, San Pedro de
indissociáveis deste grande plano
Macorís e Santiago de los Caballeros, na
de reconstrução. Os aspectos mais
República Dominicana.
fundamentais – como garantir que as
pessoas que vivem nos edifícios em Acredito que essas cidades atingiram
reforma não fiquem desalojados – uma antiguidade nobre, e também
também não foram negligenciados. mostram as dores e as mazelas de
Por meio do plano, até agora, mais de todos os momentos históricos pelos
11 mil famílias se beneficiaram de uma quais passaram. Em nosso caso, é
habitação digna para morar. fundamentalmente a nova era que
teve início há 60 anos com a vitória
da Revolução – a resistência do povo
cubano, da qual Havana tem sido um
emblema e um símbolo.

18 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


O centro histórico, Havana Antiga, está A arquitetura mourisca, por exemplo, que
inscrito na Lista do Patrimônio Mundial foi influenciada pela tradição hispânico-
desde 1982 por seu “valor universal -islâmica, é muito característica do centro
excepcional”, que qualquer visitante histórico. Então, há também a arquitetura
pode apreciar. No entanto, qual é, em seu barroca, tímida, mas apaixonada da
ponto de vista, o valor de Havana? Catedral de Havana – que é mais como
A gama de valores é bastante ampla. Há
o valor simbólico – é a capital da nação,
um estado de espírito, um tipo de
sentimento ou atmosfera que o escritor
Havana é
o centro das decisões. Mas, ao mesmo
tempo, também é muito representativa
cubano, Alejo Carpentier, descreveu tão
vividamente em seu grande romance,
El siglo de las luces (Explosão em uma
uma cidade
de todos os valores culturais,
intelectuais, políticos, históricos e
sociais do povo cubano. É também um
Catedral, 1962).
Há também a cidade neoclássica, com o
viva, de
catálogo da mais bela e deslumbrante
arquitetura que a ilha já produziu, com
características que também podem ser
El Templete, o monumento à fundação
de Havana. Trata-se de um modelo em
pequena escala, que foi reproduzido com
sabedoria e
encontradas em Camagüey, Santiago de
Cuba, ou Trinidad.
grande originalidade em outras cidades
cubanas, como Matanzas e Cienfuegos.
de memória.

© Benjamin Norman

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 19


E então, há a cidade eclética em Centro Por outro lado, o fator humano é O sr. também fez um grande esforço
Habana, que é tão impressionante – igualmente importante. Gostaria de para a restauração de El Malecón, a
repleta de gárgulas, atlantes, figuras garantir que essas comemorações se emblemática avenida de Havana que se
extraordinárias, criaturas imaginárias. convertam em uma paixão popular. estende ao longo da orla. O sr. a definiu
Ali se encontram subversivamente Se não tocarem os corações das pessoas, como o “sorriso de Havana”.
introduzidos o art nouveau no Palácio tudo o que teremos feito são alguns
Devo confessar que quase perdi a
Cueto, na Praça Vieja e, também, o discursos oficiais, movido algumas pedras
batalha contra o mar, uma batalha que
considerável esplendor da art déco, como e publicado alguns artigos.
apenas podia ser travada por Netuno
observado no edifício Emilio Bacardí,
O sr. diria que o patrimônio cultural tem com seu tridente. Não posso esquecer
tornando o diálogo arquitetônico ainda
mais a ver com a vida cotidiana, e não se as imagens das ondas devastadoras se
mais intenso.
trata apenas de museus? chocando contra o Castillo del Morro,
Por fim, há a Havana da modernidade, que tem estado em frente ao mar por
É claro que acredito que os museus são
que atinge o ápice de seu esplendor com séculos. Estas são visões dantescas que se
essenciais para a história, a memória e
a obra do arquiteto vienense Richard repetem em cada fase de um ciclone.
a cultura. O Museo de la Ciudad [Museu
Neutra – a Casa de Schulthess, uma das
da Cidade] é de vital importância para O tornado que nos atingiu recentemente,
mais belas casas do bairro residencial
toda a nação, e não apenas para o povo durante a noite entre 27 e 28 de janeiro
onde a Quinta Avenida nos leva.
de Havana. No entanto, também lutei [2019], causando a morte de várias
Havana é uma cidade viva, de sabedoria contra a musealização e defendi a causa pessoas e ferindo cerca de duzentas, nos
e de memória. Nessa metrópole animada, de uma cidade viva. lembra que chegou a hora de entender
encontramos a acrópole do conhecimento que a mudança climática é uma ameaça
Um dos desafios que as cidades do
que é o belo campus universitário oculta à silhueta elegante da Malecón,
Patrimônio Mundial enfrentam é a
– e o grande cemitério monumental, que sempre será aquele sorriso lindo que
dificuldade de conciliar o turismo –
a necrópole, igualmente bela. Havana dá ao mar, e que temos o dever
algumas vezes em grande escala – e a
de proteger.
O sr. poderia nos dizer em que consistirão preservação dos valores patrimoniais.
as celebrações de novembro de 2019? Havana teve que enfrentar essas Perdemos a batalha contra o mar, mas
contradições? precisamos vencer nossa luta contra a
O governo da cidade desenvolveu um
mudança climática. Grandes desafios e
extenso projeto de comemoração. Precisamos garantir que Havana não
novas aventuras nos aguardam.
O plano que elaboramos no Escritório desapareça sob uma onda de turistas.
do Historiador da Cidade de Havana, Mas, ao mesmo tempo, acredito que o O sr. nunca se cansa de trabalhar por
que projetamos especificamente para a turismo – uma atividade necessária e Havana?
zona histórica, está harmoniosamente um importante fator econômico – não
É verdade que tudo sempre me levou à
incorporado a este projeto. Nossa tarefa é deve ser demonizado. No caso de Cuba,
Havana. Realmente foram muitos anos
promover a ideia de preservar a memória dado seu isolamento, é também uma
de trabalho, trabalho árduo. Eu não me
da cidade, não apenas quando se trata oportunidade para iniciar um diálogo
arrependo. Se houvesse outra vida além
de celebrar seu quinto centenário, mas direto com visitantes de todo o mundo.
da que conhecemos aqui na Terra, minha
também no cotidiano. Dediquei mais de Isso é algo maravilhoso.
alma vagaria eternamente por Havana.
três décadas a isso, e tenho que confessar
Uma vez terminada a reabilitação, são Tem sido o maior dos meus amores, a
que algumas vezes parecia que eu estava
muitos edifícios na Havana Antiga que melhor das minhas paixões, e o maior dos
pregando essa causa no deserto.
permanecem habitados. meus desafios. E realmente não sei porque
Atualmente, desenvolvemos uma sempre misteriosamente volto a ela, na luz
Em muitos casos, os edifícios que estavam
série de eventos, programas de rádio e no silêncio, na vida e nos sonhos.
em ruínas e que restauramos eram
e de televisão, e a publicação de várias
habitados por famílias muito pobres.
obras diferentes. Continuamos também
Este ainda é o caso para muitos deles.
a trabalhar simultaneamente na
A resposta foi oferecer abrigo seguro e
restauração dos símbolos monumentais
digno para milhares de pessoas, oferecer
da cidade – o principal exemplo disso
educação para os jovens e criar empregos
será a conclusão das grandes obras no El
seguros para os adultos. Tentamos Historiador, autor e pesquisador cubano,
Capitolio [edifício do capitólio nacional],
implementar o que a UNESCO definiu, Eusebio Leal Spengler é o historiador
o Castillo de Atarés e outros edifícios
na época, como “um projeto único”, algo da Cidade de Havana, e o diretor do
icônicos no coração de Havana. Nos
diferente. Único não significa melhor. Grande Plano para a reabilitação e
lembraremos e celebraremos não apenas
Não afirmamos ter feito melhor do que restauração de seu centro histórico.
a história do ato da fundação da cidade,
outras partes do mundo. Pelo contrário, Suas obras incluem Patria Amada (Pátria
mas também sua história e cultura.
foi feito de acordo com a nossa própria amada, em tradução livre), Regresar en
Gostaria de enfatizar que a cultura é a experiência. Em outras palavras, apesar el tempo (Voltar no tempo, em tradução
palavra chave em nosso grande plano dos contratempos e erros que sofremos livre), La luz sobre el espejo (A luz sobre
para a reabilitação e a restauração da na busca por um modelo de reabilitação o espelho, em tradução livre), Fundada
Havana Antiga. Qualquer projeto de nós finalmente o encontramos (ver p. XX). esperanza (Esperança fundada, em
desenvolvimento que ignora a cultura, tradução livre) e Poesía y palabra (Poesia
leva apenas à decadência. e palavra, em tradução livre).

20 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


Quando a arte invade as ruas

© Inkman & Nilko / Galerie Itinerrance / photo : Chrixcel


Um mural colaborativo do artista
tunisiano Inkman e do artista
Mehdi Ben Cheikh, entrevistado francês Nilko.
por Anissa Barrak

Por muito tempo considerada Como nasceu o projeto Djerbahood e por sua bela arquitetura tradicional, seu
insignificante, atualmente que o sr. escolheu Erriadh para abrigá-lo? desenvolvimento urbano estruturado
em torno de uma praça central, sua
a arte de rua representa Em 2013, eu havia concluído o projeto
história e a lendária hospitalidade de
uma grande tendência que Tour Paris 13, que recebeu excepcional
seus habitantes. Não podemos nos
cobertura da mídia. Este arranha-céu no
democratiza o acesso à arte e 13° arrondissement da capital francesa
esquecer que se Djerba é, de fato, como
acreditamos, a terra dos comedores de
impregna os espaços urbanos foi condenado à destruição e demolido
lótus da Odisseia de Homero, Ulisses foi
com uma nova dinâmica social em abril de 2014. No entanto, antes
seu visitante mais famoso!
da data limite, cerca de 100 artistas
e econômica. No coração na
de 18 nacionalidades se ofereceram Anteriormente conhecida como Hara
ilha de Djerba, na Tunísia, cerca para transformá-lo em uma obra de Essaghira, Erriadh está situada próxima
de 100 artistas iluminaram a arte coletiva. Fachadas, áreas comuns a famosa Sinagoga de la Ghriba, uma
pequena cidade de Erriadh e 36 apartamentos foram tomados das mais antigas do mundo. Um local de
pelos mestres da arte de rua. Estas peregrinação judaica até os dias de hoje,
– agora conhecida como obras, embora efêmeras, estão agora foi construída pelos exilados que fugiram
Djerbahood – com cerca de disponíveis na internet para um grande de Jerusalém depois que Nabucodo-
250 murais. Mehdi Ben Cheikh, público em todo o mundo. nosor II destruiu o templo de Salomão
proprietário de galeria franco- por volta de 586 a.C. Sua população era,
Esse sucesso me estimulou a
portanto, composta principalmente por
-tunisiano que deu início a este desenvolver outro projeto em que
judeus e muçulmanos, que viviam lá
vinha trabalhando há algum tempo –
projeto promissor, nos conta juntos, como evidenciado por suas cinco
organizar um evento de arte de rua na
como a ideia continua a crescer. sinagogas (duas das quais ainda estão em
Tunísia, que faria as pessoas falarem
funcionamento) e suas duas mesquitas.
sobre o país em termos positivos.
No entanto, após a partida massiva da
Erriadh, na ilha de Djerba, me pareceu
população judaica da ilha na década
o lugar ideal – com sua luminosidade,
de 1960, a pequena cidade caiu em um

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 21


A arte de
rua não foi
criada com
a intenção
de trazer
arte para as
pessoas, mas,
na realidade,
© Wissem el Abed / Galerie Itinerrance / photo : Aline Dechamps

é isso que
ela faz.
estado de letargia – permanecendo
às margens do turismo, a principal
atividade econômica da ilha. Apesar
de estar a apenas seis minutos de um
aeroporto internacional!
O sr. enfrentou alguma dificuldade para
que o projeto fosse aceito localmente?
Mural do artista tunisiano
Rapidamente obtive permissão das Wissem el Abed.
autoridades nacionais para começar Foi necessário respeitar a população,
a trabalhar no espaço público. O país sua cultura. Ademais disso, eles eram
estava em um período de transição após livres para fazer o que quisessem. Cada
e os preços das propriedades subiram
a revolução, as autoridades municipais artista interagiu com o espaço de acordo
acentuadamente. A vida dos habitantes
haviam sido dissolvidas em todo o país com sua própria inspiração.
mudou por completo. Isso é o que mais
e substituídas por comissões provisórias,
importa para mim. Desde essa experiência, o papel dos
no entanto, em Erriadh não havia
artistas ganhou mais respeito em Djerba.
sequer uma comissão provisória. Então, O sr. trouxe cerca de 100 artistas
Os habitantes entenderam não apenas
o projeto foi iniciado com doações renomados. O que os persuadiu a
os benefícios econômicos que essa arte
privadas. Com o apoio de alguns participar do projeto?
representa para eles, mas também a
proprietários de hotéis em Djerba,
O projeto faz sentido. O que interessa aos essência da abordagem artística. Eles
também consegui uma contribuição
artistas é criar e compartilhar suas obras conheceram os artistas, estabeleceram
financeira do Ministério do Turismo.
com o maior número de pessoas possível. laços próximos com eles. O artista não
Quanto aos habitantes, tivemos que Os contratos assinados com eles referiam- é mais tido como o louco do vilarejo,
inicialmente negociar com eles, é claro. -se apenas aos direitos de imagem. irrelevante, mas como alguém talentoso
Eles não sabiam o que faríamos com Nosso objetivo é promover a reputação – que cria um universo imaginário
os espaços de que eram proprietários. dos artistas, e não ganhar dinheiro estruturado e que, ao mesmo tempo,
Nós explicamos a ideia, o processo, e diretamente por meio desses eventos. pode contribuir de forma concreta para a
foram as mulheres que, especialmente, E todos ficam satisfeitos: os artistas, as melhoria da vida cotidiana.
persuadiram os homens a nos deixar cidades e o público.
Algumas pessoas tendem a pensar que
prosseguir. À medida que os primeiros
Os artistas representaram 34 diferentes a arte de rua só pode ser bem-sucedida
trabalhos foram concluídos, os
nacionalidades e produziram 250 em um país onde já exista uma dinâmica
habitantes começaram a nos pedir para
murais! Eles se revezaram trabalhando cultural e artística – em outras palavras, no
decorar as suas casas.
a cada semana, por um período de três Ocidente. Djerbahood provou o contrário.
De repente, Erriadh acordou. Tornou-se meses, e tinham liberdade em suas Mostra que nem tudo é feito em outros
um destino e um ponto de passagem abordagens criativas. Obviamente, lugares. Que qualquer lugar no mundo
para milhares de turistas (os taxistas estávamos todos cientes de que não pode se tornar, em dado momento,
ficaram entusiasmados!), várias deveríamos chocar os habitantes com a capital da arte de rua, mesmo que
galerias e restaurantes foram abertos, imagens de corpos nus, por exemplo. localizado no extremo de uma ilha.

22 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


física. Os artistas brincam com a por expor em galerias, o que liga a
infraestrutura urbana, com a arquitetura, arte de rua à arte em locais dedicados
com luz e sombras. O grafite pode medir especificamente à arte.
70 centímetros ou 70 metros de altura!
Portanto, é todo um sistema paralelo
Independentemente do meio utilizado,
à arte contemporânea que está sendo
o mais importante é ocupar as ruas.
estabelecido. Eu mencionei o projeto
Esse tipo de expressão artística sempre lançado em Paris em abril de 2019.
existiu – a caverna de Lascaux, que Fica no Boulevard Vincent Auriol, onde
remonta ao período paleolítico, é uma estamos criando um autêntico novo
prova. No entanto, a arte de rua agora tipo de museu. Tudo foi pensado – a
está em ascensão, particularmente na iluminação com projetores utilizando
América Latina, nos Estados Unidos, na energia solar, o sistema de som, a
Europa e no mundo árabe. Os artistas durabilidade das obras. A arte de rua não
de rua eL Seed, Shoof e KOOM – para procura por museus para ser exibida – ela
citar apenas alguns artistas de origem brinca com a cidade, é criada sob o olhar
tunisiana – adquiriram agora reputação do público, faz trocas com a população
internacional, e incorporam o dinamismo urbana, e é acessível a todos sem
excepcional desta forma de arte que quer qualquer custo.
construir pontes entre as pessoas.
E qualquer um pode se tornar um artista
O artista eL Seed, por exemplo, de rua! No entanto, na ausência de
transformou a face de Kairouan, um proprietários de galerias ou curadores
sítio do Patrimônio Mundial da Tunísia, de museus, não há risco de que esta arte
e pinta sua calligraffiti por todo o mundo altere os sítios de patrimônio cultural? Em
– África do Sul, Canadá, Coréia do Sul, Kairouan, por exemplo, as cúpulas foram
Dubai, Egito, Estados Unidos e França. pintadas recentemente.
Hosni Hertelli, cujo pseudônimo Shoof
Podemos, de fato, questionar o valor
significa “olhe” em árabe, também
estético de certas obras que surgem no
ressuscitou a caligrafia tradicional à
espaço público. Mas também podemos
sua maneira – por meio da pintura em
dizer que, em vez de cúpulas brancas,
antigas fachadas tunisianas, mas também
alguns de nossos mausoléus agora
por meio da música e da luz. Seu show,
têm cúpulas coloridas! Mesmo que seja
White Spirit (Espírito Branco, em tradução
mais ou menos bem feito, acredito que,
livre) atraiu milhares de expectadores
em alguns anos, teremos resultados
na Austrália e na França. O músico e
interessantes – a arte de rua é uma arte
calígrafo Mohamed Koumenji (KOOM)
que está sendo constantemente renovada.
combina essas duas artes em suas obras
plásticas e luminosas, ao mesmo tempo Não há necessidade de temer a arte.
Em que condições se encontram as obras
em que tira inspiração da tradição sufista Algumas vezes queremos creditar
que estão em Djerbahood desde 2014?
e incorpora tecnologias modernas. algumas criações como arte, quando
Restam poucas delas. A grande diferença Um exemplo que demonstra seu grande não merecem o nome, porque servem a
de temperatura entre o inverno e o talento é sua criação multidisciplinar, ideologias abomináveis. No entanto, estas
verão, a umidade, o calcário espalhado On the Roads of Arabia (Nas Estradas da são exceções extremamente raras. A arte
nas paredes – tudo isso afetou a Arábia, em tradução livre), coorganizada nunca foi ameaça para ninguém, muito
conservação das obras. pela parisiense Galerie Itinerrance [criada pelo contrário. Estou convencido de que
por Cheikh] no Louvre Abu Dhabi, em é a melhor arma contra o obscurantismo.
No novo projeto que estou lançando em
novembro de 2018.
Paris, em abril de 2019, usamos materiais
resistentes, como verniz marinho, e Trazer arte às pessoas em vez de
a restauração faz parte do plano nas confiná-la em locais reservados – é disso
especificações da cidade. É neste espírito que se trata a arte de rua?
que eu gostaria de perpetuar o projeto
A arte de rua não foi criada com a
Djerbahood, que entra em sua segunda Professor franco-tunisiano de artes
intenção de trazer arte para as pessoas,
fase este ano. Meu objetivo é fazer de visuais, Mehdi Ben Cheikh fundou a
mas, na realidade, é isso que ela faz.
Djerba um grande laboratório de arte de Galeria Itinerrance (http://itinerrance.fr/)
Por ser praticada em espaços públicos,
rua – como Ibiza, na Espanha, é a ilha da em Paris, em 2004. Ele organiza projetos
é oferecida às pessoas gratuitamente, em
criação musical e da música eletrônica. de arte de rua envolvendo artistas de
esquinas. É o movimento artístico mais
Como a arte de rua pode ser definida? democrático que existe, mas também todo o mundo, e publicou dois livros
o mais apropriado para seu tempo – com base nos dois maiores projetos
A arte de rua é uma apropriação do que montou em Paris e em Erriadh
transmitido na internet por meio de fotos
espaço urbano por meio de uma respectivamente: L’événement street
e vídeos geralmente feitos pelos próprios
abordagem artística, seja qual for sua art Tour Paris 13 (2013) e Djerbahood, le
artistas, sua reputação é baseada no
natureza. Inclui tantos estilos e mundos musée de street art à ciel ouvert (2014).
reconhecimento por meio dos números
quanto há artistas. Vai do grafite à
nas redes sociais. Uma vez que o artista
figuração gestual ou cromática, da
é reconhecido, ela ou ele podem optar
instalação de som e luz à performance

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 23


A cidade, um circo sob uma tenda
iluminada pelas estrelas
Thomas B. Reverdy

O escritor francês Thomas B. duas vezes: primeiro para Nova York, que
Reverdy quase sempre escolheu conhecia bem por visitar frequentemente,
mas onde não morava; e depois para
espaços urbanos como cenário
o Brooklyn, que não é a Nova York que
para seus romances. Obcecado imaginamos, da França. Esse afastamento
pela “intolerável presença da certamente foi fundamental para mim,
ausência” em nossas cidades gradualmente me levou ao romance –
antes disso, minha primeira história foi O mundo efêmero dos recintos de feiras
desumanizadas, ele imagina muito autobiográfica. populares, como visto pelo artista
o surgimento de pequenas francês Cyrille Weiner. Sem título n° 9,
No entanto, essa mudança teve um
resistências. efeito inesperado: impôs um espaço
da série Jour de Fêtes (Feriado), 2016.
em mim. Como intencionalmente me
“Estas são cidades!”. A célebre exclamação afastei de territórios mais familiares,
pertence a Rimbaud. Esta é a frase que subitamente tive que aumentar minha
abre uma das Iluminações, na qual o poeta documentação, verificar detalhes, os
descreve não uma cidade, mas uma tenda efeitos da realidade e imagens. Descobri,
de circo, suas máquinas e seus habitantes- no cerne da ficção, no cerne de sua
acrobatas, a miríade de espaços, atos, produção, um complexo entrelaçamento
rotas e barulhos que a povoam, caóticos, da realidade e palavras: eu precisava
cegos uns para os outros e, no entanto, do distanciamento que aquela cidade
regidos como uma partitura musical. Por estrangeira me oferecia, mas assim
volta de 1872, três anos após a publicação que a história era situada, eu precisava
póstuma de Pequenos poemas em prosa da realidade para alimentá-la. Não a
de Baudelaire, a cidade havia então se realidade bruta – caso contrário eu teria
tornado uma imagem. Poderia ser usada permanecido em Paris, em casa – mas
como uma metáfora, e essa metáfora não a realidade mediatizada, imagens,
dizia o que é uma cidade, mas o que ela símbolos, fragmentos e palavras. A
evoca. Não a produção, o comércio, mas partir de memórias, mas também de
já os deslocamentos, o anonimato, as testemunhos, fotos, histórias, romances
profissões sendo perdidas e a pobreza que e filmes, mapas, tive que recompor um
é subitamente perceptível nas fissuras da espaço, torná-lo real, devolver a esta
riqueza aparente. Desde a ilha de Thomas cidade sua vida circense.
Morus, a maioria das utopias é urbana.
Todas as distopias são. A cidade é um lugar
imaginário. Um espetáculo. Um circo.
Cegos uns aos outros
Tenho a maior das admirações por
Lugares de viagem escritores cuja imaginação se desdobra
nos grandes espaços naturais, como
Quase sempre ambientei o cenário das Cormac McCarthy, mas eu tinha outras
minhas tramas na cidade. Deveria dizer razões, para mim mesmo, para deslocar
que as transferi para a cidade. As cidades meus romances ao cenário urbano. Isso
tornam possível estar em todos os porque eu também tinha a ideia de que
lugares, tanto em casa quanto no exterior, a ficção moderna deve explicar nossas
e este deslocamento é fundamental. É o jornadas cegas e nosso anonimato.
passo de lado, a visão oblíqua, é a lacuna Atualmente em Paris, moro em um prédio
na realidade, o deslocamento que de onde as pessoas se cumprimentam
repente cria espaço para a implantação abaixando a cabeça quando se
da ficção. Quando, em meu segundo encontram no elevador. No metrô, a
romance, levei parte de minha trama para maioria das vezes, mal se atrevem a olhar
o Brooklyn, em frente a Manhattan, eu umas para as outras no rosto.
estava obedecendo a essa necessidade
do meu distanciamento. Afastei-me

24 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


É raro poder percorrer a cidade sem uns aos outros. Nossas existências
encontrar pelo menos uma pessoa temporizadas pelos horários dos trens
que esteja falando sozinha de modo
perturbador, um ou dois mendigos,
suburbanos, ainda resistem um pouco,
profundamente em nossos corações, a
As cidades
um indivíduo visivelmente sociopata e
talvez psicótico e, em algumas estações,
um viciado em drogas no final da
cidade-máquina, mas devemos admitir
que um simples encontro se tornou um
milagre. Hoje em dia, não podemos mais
tornam
plataforma, fumando crack. Por vezes,
alguém que você já viu antes. Uma
escrever as vidas de Julien Sorel, Frédéric
Moreau ou Bel-Ami1. possível estar
pessoa que podemos ter encontrado no
bairro ou na mesma hora no metrô. No
entanto, nunca saberemos seu nome, ou
Houve também os ataques terroristas.
Talvez seja por isso. O 11 de Setembro2.
Todos os nomes gravados desde então
em todos
o que faz para viver, ou porque parece
feliz naquele dia. Esse mendigo que
em pedra negra, para dar um nome aos
sem nome. Os heróis do nosso tempo
os lugares,
tanto em casa
fala alto e escolhe suas palavras, com são anônimos.
seu leve sotaque estrangeiro, de onde
ele vem e como chegou até aqui? Esses
jovens que parecem disfarçados, vão a
uma festa? Vão a um show? O que estão
estudando? Quem eles sonham em
1. Nomes dos protagonistas de romances franceses:
Julien Sorel em O vermelho e o negro (1830),
quanto no
exterior.
de Stendhal; Frédéric Moreau em A educação
se tornar, e conseguirão? Estas são as sentimental (1869), de Gustave Flaubert; Bel-Ami
é o apelido do personagem principal do romance
ficções modernas. de Guy de Maupassant, de mesmo nome (1885).
2. Referência aos ataques terroristas de 11 de setembro
Somos um povo anônimo, avançando de 2001, dirigidos a prédios simbólicos nos Estados
em nossas vidas minúsculas, cegos Unidos.

© Cyrille Weiner

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 25


Frágil, como uma Porque é isso que o luto é, como a espécie de Planeta dos macacos5 trágico.
memória humana memória, como ruína, e o material
amaldiçoado do escritor, ou de qualquer
O sonho angustiante e profético de um
planeta livre de nós.
Voltei a Nova York em 2008 para escrever artista, isso é o que é: a insuportável
Não fui à Detroit enquanto escrevia
L’Envers du monde (O inverso do mundo, presença da ausência.
o romance. Havia inúmeras fotos,
em tradução livre). A ação se passa na Comecei a rastreá-la. No Japão, após histórias de jornalistas como Charlie
cratera do Marco Zero, em 2003. Um
Fukushima3, onde morei para escrever LeDuff do Detroit Free Press, e outros.
assassinato racista é cometido, ao menos
Les evaporés (Os evaporados, em Obter informações, saber o que estava
presume-se que seja racista. Seguimos os
tradução livre), em que um homem acontecendo, onde colocar as coisas, não
personagens que giram em torno dessa
deliberadamente desaparece, atravessa o era um problema. Pelo contrário, Detroit
história como se em torno de um centro
caminho dos condenados desenraizados estava documentada à saturação. O
vazio, uma ausência incompreensível, e é
pelo desastre. A rastreei até Detroit, em problema era sair.
obviamente a sombra das torres gêmeas
Michigan, onde toda uma metrópole
que se aproxima. A cidade aqui oferece
outra de suas características, que poderia
estava mergulhando na falência, dois
terços de seus habitantes fugindo,
Resistir ao encanto
ser chamada de sua geologia: a cidade é
feita de estratos. São esquecidos em seu arrastados pela crise econômica e do flautista
uso, mas os lugares carregam os traços. financeira de 2008. Detroit, a cidade Uma das minhas ideias foi a analogia
máquina, a cidade da Ford e da General dessa crise automobilística com o
A cidade faz da história parte de nossas Motors (GM), a Metrópolis4 do sonho conto medieval alemão de O flautista
vidas cotidianas. Em 2003 os Estados norte-americano que devorou seus de Hamelin – um vilarejo na agonia da
Unidos estavam em transição da guerra filhos. Detroit que estava sufocando sem praga convoca um flautista mágico, que
punitiva no Afeganistão para a guerra habitantes, a primeira cidade desse porte afasta os ratos do vilarejo e os afoga
preventiva no Iraque. Também foi o ano a passar por isso, “como o canário na mina no rio. No entanto, quando retorna,
em que o magnífico projeto de Daniel de carvão”, alertava aqueles que acusavam eles se recusam a pagá-lo: eles não têm
Liebeskind foi aceito. A cratera Marco os bancos e a comunidade empresarial de dinheiro. O implacável flautista então
Zero, histórica e simbólica, onde as torres serem irresponsáveis. Detroit, cujas ruínas, lança um feitiço sobre todas as crianças
do World Trade Center haviam virado do como as de outra civilização distante, de do vilarejo e as leva embora com ele. Ele
avesso como uma luva no chão, este fábricas, supermercados, escolas e teatros, as afoga no rio. Na virada do século, o
lugar cheio de significado tornou-se um invadidos pela vegetação, parecia uma flautista do capitalismo industrial atraiu
local estranho e transitório – não era mais
todos os trabalhadores pobres do sul
a esplanada das Torres Gêmeas, e ainda
rural dos Estados Unidos, muitos deles
não era a Torre da Liberdade. Um lugar de
negros, para Detroit, com a promessa de
memória tão frágil quanto uma memória
um futuro promissor.
humana. Me pareceu ser a tarefa da
obra de arte hoje, estabelecer esse tipo 5. O planeta dos macacos é um romance de ficção
de lugar que também é um momento. científica (1963) do escritor francês Pierre Boulle,
3. Referência ao catastrófico acidente nuclear em que inspirou o filme homônimo do diretor norte-
A obra de Liebeskind, admirável em Fukushima, no Japão, em março de 2011. americano Tim Burton em 2001, e também uma
sua inteligência, também diz isso à sua 4. Metrópolis é um filme de ficção científica do série de filmes produzido pela Twentieth Century
maneira ao cavar, no local das torres diretor germano-norte-americano, nascido na Fox, um estúdio cinematográfico dos Estados
Áustria, Fritz Lang, produzido em 1927 e inscrito Unidos. A franquia de mídia norte-americana
desaparecidas, aqueles veios infinitos de no Registro da Memória do Mundo da UNESCO. também abrange séries de televisão, livros,
sombras que imprimem, no espaço, o Uma visão distópica da cidade do século XXI. quadrinhos e videogames.
lugar das torres ausentes.

26 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


Na virada do século [XX],
o flautista do capitalismo
industrial atraiu todos
os trabalhadores pobres
do sul rural dos Estados
Unidos, muitos deles
© Silvana Reggiardo
negros, para Detroit, com
a promessa de um futuro
promissor.
Santos, na Noite do Diabo8: elas estavam que não precisa ser cruel. As crianças,
Fotomontagem panorâmica da série incendiando uma casa abandonada. quem sabe, poderão sobreviver.
Les présences désagrégées (Presenças Alguns dias depois, elas fugiram. É início
Negligenciadas, em tradução livre), E a cidade volta a ser um circo, onde os
de novembro. Finalmente decido que elas
Paris 1998-2000, da artista italiana destinos dos acrobatas anônimos de
podem esperar até o Natal. É um máximo
Silvana Reggiardo. desdobram, sem uma rede, deslizando
razoável. Mas isso me força a distorcer
de trapézio em trapézio, tocando uns
toda a realidade.
aos outros sem enxergar uns aos outros,
No romance, a GM não é mais a GM, apanhando o outro em voo, na esperança
Na época, o flautista vendeu casas e torna-se “a empresa”. A cronologia de um descanso, de um encontro, como
carros a crédito. No entanto, quando é interrompida. Tenho toda minha um milagre em escala humana, sobre a
as pessoas não quiseram pagar o documentação em dois meses. E, tenda iluminada pelas estrelas.
preço, quando se rebelaram durante subitamente, tudo está claro. A lógica
as manifestações de 1967, o flautista da ficção se impõe sobre a realidade.
se ofendeu. Partiu para China com os Se minha história de distopia, falência
empregos e, em Detroit, as pessoas e selva urbana se estender até o Natal,
voltaram à pobreza pouco a pouco. entrarei no inverno. É frio em Detroit no
Apesar de sua crueldade, este conto O escritor francês Thomas B. Reverdy
inverno. E, de repente, esta cidade da
atraiu a imaginação infantil. Uma das recebeu muitos prêmios por seus romances,
qual eu tinha visto mil imagens torna-se
histórias do romance, portanto, é notavelmente por Les derniers feux (2008.
um pouco mais que um pano de fundo.
sobre um grupo de crianças fugitivas Os últimos incêndios, em tradução livre).
Torna-se viva de uma forma orgânica. Eu
que se aproveitam da desorganização L’envers du monde (2010. O inverso do mundo,
mentalmente observo a neve caindo nos
do transporte público e das escolas em tradução livre), Les évaporés (2013. Os
gramados, abafando o som de passos.
na cidade para viver uma espécie de evaporados, em tradução livre), Il était une ville
Vejo o vento correndo pelas janelas vazias
aventura, em um terreno baldio, em uma (2015. Houve uma cidade, em tradução livre)
de prédios desocupados, assobiando ao
escola abandonada. Algo que era um e L’hiver du mécontentement (2018. O inverno
girar em torno das casas abandonadas.
pouco como a A ilha do tesouro6. do descontentamento, em tradução livre).
Posso sentir o frio com seu sabor metálico
No entanto, eu tive um problema com a adentrando roupas úmidas que nada
realidade. Minha história se passou entre pode aquecer novamente. Vejo os Nomes mencionados
duas falências: a dos Lehman Brothers, halos da iluminação da rua apagados,
substituídos pelo misterioso brilho da • Baudelaire, Charles (1821-1867),
em 15 de setembro de 2008, e a da
neve sob a lua prateada. E essa Detroit poeta francês.
General Motors7, em 1º de junho de 2009.
Esses foram marcos históricos e objetivos. da fantasmagoria, da ficção, não é mais • LeDuff, Charlie (1966), jornalista
No entanto, as crianças não conseguiriam real que a real – na verdadeira Detroit norte-americano.
sobreviver por todo este tempo. Comecei naquela época, as pessoas estavam • Liebeskind, Daniel (1946), arquiteto
a segui-las na véspera do Dia de Todos os morrendo todos os dias. No entanto, se polonês-americano.
torna comunicável, representável. Na
• McCarthy, Cormac (1933), escritor
cidade máquina, podemos uma vez mais
norte-americano.
6. A ilha do tesouro (1883) é um romance de aventura imaginar os destinos humanos. Pequenas
do escritor escocês Robert Louis Stevenson. resistências. Se a história se alongar até o • Morus, Thomas (1478-1535),
7. A Lehman Brothers foi um banco de investimento
Natal, é porque trata-se de uma história, filósofo, teólogo, jurista e político
multinacional que veio a falir após 158 anos de
existência, em setembro de 2008, desencadeando inglês, autor da Utopia.
uma crise financeira mundial. A General Motors é • Rimbaud, Arthur (1854-1891), poeta
uma fabricante de automóveis dos Estados Unidos 8. A Noite do Diabo, 30 de outubro, é a noite anterior
que declarou falência em junho de 2009. ao Halloween. francês.

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 27


Sob os auspícios da UNESCO

Reviver o espírito de Mossul


Em fevereiro de 2018, a UNESCO lançou com seus vários milhares de textos patrimônio, a cultura e a educação. Ela está
a iniciativa Reviver o Espírito de Mossul antigos, foi deliberadamente incendiada. sendo implantada em colaboração com
na Conferência Internacional para a Antiguidades foram traficadas. o governo do Iraque e envolve múltiplos
Reconstrução do Iraque no Kuwait. atores – países vizinhos, organizações
A ocupação do EIIL devastou
Reuniu a comunidade internacional internacionais e a União Europeia (UE). A
completamente o sistema educacional
sob sua égide para participar da iniciativa visa a dar uma nova perspectiva,
do Iraque, do pré-primário ao ensino
reconstrução dessa cidade, que foi um novo ímpeto, à Mossul.
superior. Quando temas como a história
dizimada pela guerra, pilhagem e
ou as artes foram substituídos com Além da restauração de monumentos e
destruição. Essa reconstrução deve
conteúdo destinados a incitar o ódio, da reabilitação do tecido urbano histórico
fazer parte da história de Mossul – uma
a grande maioria das famílias decidiu de Mossul, um projeto para reconstruir
história plural, que se desenvolveu no
tirar seus filhos da escola. Aqueles que casas na cidade antiga (Mossul e
cruzamento de culturas e religiões do
permaneceram foram submetidos a Basra), e para treinar profissionais do
Oriente Médio.
doutrinação sistemática, principalmente patrimônio cultural será implementado
Mossul viu seu patrimônio ser saqueado, por professores que eram forçados a com o apoio da UE. Isto tem como
sua identidade ferida pelas mãos do transmitir a ideologia extremista do grupo. base um enfoque participativo que
Estado Islâmico do Iraque e do Levante se concentra no desenvolvimento de
Considerando essas observações, não é
(EIIL). A destruição foi dirigida aos locais capacidades e na criação de empregos
apenas o patrimônio cultural que precisa
de adoração (mesquitas e igrejas), o para promover a coesão social e a
ser restaurado, mas também a dignidade
santuário de Nabi Yunus e as estátuas reconciliação da comunidade.
e a memória. A UNESCO decidiu, então,
Assyrian e Parthian, e os afrescos do
mobilizar a comunidade internacional para Sob mesma perspectiva, o inventário
Museu de Mossul. A biblioteca da cidade,
propor uma iniciativa que combinasse o dos locais religiosos danificados pelo EIIL
© Zaid AL-OBEIDI / AFP

28 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


cidades em redes

resultou em uma publicação que servirá seguros onde os estudantes possam


como suporte para workshops de diálogo florescer, aprender e interagir com Cidades aprendizagem
inter-religioso, permitindo a recriação os outros com respeito, contribuindo
A Rede Global de Cidades Aprendizagem
de vínculos entre as comunidades. Um assim para a tolerância e a convivência
da UNESCO (GNLC – Global Network of
plano de emergência para a salvaguarda pacífica em longo prazo.
Learning Cities) é uma rede internacional
do patrimônio imaterial em perigo e a
Estes projetos, apoiados pelo Japão orientada para políticas que proporciona
criação de “espaços culturais móveis”
e pela Holanda, têm como base inspiração, know-how e melhores
para pessoas deslocadas e comunidades práticas. Baseada no compartilhamento
uma abordagem holística que
anfitriãs está sendo preparado. de ideias e de soluções entre cidades, a
envolve crianças, mas também
Ao mesmo tempo, o governo iraquiano professores, comunidades, pais e a rede tem um duplo objetivo – assegurar
solicitou que a UNESCO desenvolvesse equipe educacional na prevenção educação de qualidade que seja inclusiva
uma estratégia nacional de educação do extremismo. A modernização do e equitativa, com oportunidades de
para o período de 2020-2030, a fim de ensino superior também será uma aprendizagem ao longo da vida para
reconstruir as fundações de um sistema ação fundamental na reconstrução todos; e tornar as cidades abertas para
educacional que atenda às necessidades do país e de seu sistema produtivo. todos, seguras, resilientes e sustentáveis.
de sua população. Simultaneamente, Além de uma abordagem puramente Uma conferência internacional sobre
projetos educacionais estão sendo econômica, é uma questão de permitir Cidades Aprendizagem é realizada a cada
implementados com o propósito de que instituições, como a biblioteca dois anos, oferecendo uma plataforma
prevenir a ressurgência do extremismo e da Universidade de Mossul, voltem para o diálogo político e o intercâmbio
recriar as condições para a convivência. a se tornar os epicentros culturais e de melhores práticas. Os Prêmios
intelectuais que costumavam ser. Cidades Aprendizagem da UNESCO são
Dois projetos terão como objetivo apresentados nessa ocasião. A cidade
garantir que as escolas primárias na Esses diferentes projetos buscam os de Medelín, na Colômbia, um modelo
cidade antiga de Mossul sejam locais mesmos objetivos: proteger, reconstruir de integração social urbana, sediará
e educar. Porque a cultura e a educação a 4ª Conferência Internacional sobre
são as únicas repostas em longo Cidades Aprendizagem em 2019. As dez
prazo para se combater a violência do cidades a receberem prêmios (tradutores/
O violoncelista iraquiano Karim Wasfi extremismo e seu poder destrutivo. Essa editores, por favor usar tempo presente)
se apresenta com uma orquestra abordagem está alinhada com a visão pelo seu compromisso exemplar são:
na Cidade Antiga de Mossul, do governo do Iraque, uma vez que Assuão (Egito), Chengdu (China),
devastada pela guerra, em 10 de cabe às autoridades iraquianas conduzir Heraclião (Grécia), Ibadan (Nigéria),
novembro de 2018. essa iniciativa localmente, enquanto Medelín (Colômbia), Melitopol (Ucrânia),
a UNESCO continua seu papel de Petaling Jaya (Malásia), Santiago (México),
coordenação. Seodaemun-gu (Coréia do Sul), e
Sønderborg (Dinamarca).
Para destacar apenas alguns exemplos:
Chengdu realiza a aprendizagem
Stefania Giannini e Ernesto Ottone combinada com passeios temáticos pela
Ramírez, diretores-gerais adjuntos de cidade; Medelín reintegrou mais de
Educação e de Cultura, UNESCO. 4,5 mil alunos que haviam abandonado
o sistema educacional, concentrando-
-se em cada indivíduo; Petaling Jaya
oferece transporte gratuito de ônibus em
quatro rotas da cidade, os quais também
disseminam informação por meio de
monitores de TV durante os trajetos.

Cultura: o DNA das cidades


Artesanato e artes populares, artes digitais, design, cinema, gastronomia, literatura e
música. Estas são as chaves que abrem portas para as Cidades Criativas da UNESCO.
Ligadas por uma rede em constante expansão desde 2004, essas cidades
dependem da criatividade e das indústrias culturais, consideradas fatores
estratégicos para o desenvolvimento sustentável – seja econômico, social, cultural
ou ambiental. Atualmente, a rede inclui 180 cidades-membros em 72 países. Serve
como uma plataforma de ação para a implementação da Agenda 2030 das Nações
Unidas para o Desenvolvimento Sustentável no âmbito das cidades.
De fato, entre os 17 objetivos do Programa 2030, o décimo primeiro – “tornar
as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e
sustentáveis” – afirma o papel essencial da cultura em áreas urbanas. É por isso
que a UNESCO lançou uma iniciativa internacional em 2015, que resultou no
Relatório Mundial da UNESCO sobre Cultura para o Desenvolvimento Urbano
Sustentável (2016). Ele oferece um panorama global da salvaguarda, conservação
e gestão do patrimônio urbano, e a promoção das indústrias culturais e criativas.
Segundo o autor britânico Charles Landry, que popularizou o conceito de cidades
criativas desde os anos de 1980, a cultura é o DNA das cidades. “É quem somos,
onde estamos, de onde viemos, e para onde podemos ir”, diz ele.

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 29


Sob os auspícios da UNESCO

Alepo:  m primeiro
u
passo para a cura
© Hani Abbas (Palestine/Syrie) / Cartooning for peace

Desafio da massa, Alepo, na Síria, 2013,


da coleção da Cartooning for Peace, O conflito na Síria causou grande perda Este é o primeiro inventário abrangente
da rede internacional de cartunistas de vida e extensos danos às cidades do dano material e da perda de memória
editoriais, apoiada pela UNESCO. e infraestrutura, devastando a vida sofridos por esta cidade antiga entre os
econômica e social do povo sírio e seu anos de 2013 e 2017. A capital do reino
patrimônio cultural. Outrora considerada Amorita de Yamhad, Alepo vivenciou
um exemplo de boas práticas em expressivo crescimento no início do
conservação urbana, a Cidade Antiga século 2000 a.C. Foi considerada assento
de Alepo, inscrita na Lista do Patrimônio do deus da tempestade, Halab, segundo
Mundial da UNESCO em 1986, foi os autores do livro, Ruba Kasmo, um
adicionada à Lista do Patrimônio Mundial arquiteto sírio de Alepo, e Jean-Claude
em Perigo em 2013. Fortemente afetada David, um geógrafo francês.
pelo conflito, a cidade foi reduzida a
Vinte especialistas em patrimônio
ruínas em muitos locais.
cultural, historiadores, arqueólogos,
Mais de 500 propriedades danificadas arquitetos e analistas de imagens de
– desde a Cidadela de Alepo à satélite participaram deste projeto, que
mercados, museus, locais de culto, teve início assim que o bombardeio da
e outros prédios históricos – foram cidade cessou em dezembro de 2016.
recentemente identificados em um
Ilustrado com fotos da cidade e de seus
estudo* conduzido pela UNESCO e
prédios antes e depois que o conflito
pelo Instituto das Nações Unidas para
teve início, e fornecendo códigos QR
Treinamento e Pesquisa (UNITAR).

30 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


cidades em redes

No entanto, Cidades acolhedoras


não são apenas Treze de novembro de 2015. A capital francesa encontra-se tomada por uma série
de ataques suicidas, os mais mortais ocorridos no país em sua história recente –

as pedras gerando consternação em todo o mundo. Enquanto isso, longe da comoção em


Paris, seis câmaras acompanham de perto o cotidiano de um pai e sua filha em
Bolonha, na Itália; uma família em Sevilha, na Espanha; um casal apaixonado em

que foram Riga, na Letônia; um jovem solitário em Hamburgo, na Alemanha; um adolescente


determinado, em Toulouse, na França; um casal se encontrando em Loures, em

destruídas. A
Portugal. Espalhadas por toda a Europa, essas pessoas não têm nada em comum,
exceto que todas elas são migrantes. Um grupo que pagará o alto preço pelo
aumento da segurança e do controle na fronteira após os atentados de Paris.

alma da cidade Suas histórias são contadas na minissérie de TV 13.11, uma ficção de seis episódios
produzida em 2017 pela Elenfant Film, uma produtora de vídeos e filmes italiana.

foi estilhaçada. O objetivo da série é mostrar a face humana da migração, e nos levar a não esquecer que,
a cada minuto, 20 pessoas são deslocadas de suas casas em nosso mundo atualmente.
A cidade de Bolonha foi a força motriz por trás desse projeto. A cidade é a líder
da Coalizão Europeia de Cidades contra o Racismo (ECCAR. European Coalition of
Cities Against Racism), lançada no final da Quarta Conferência Europeia de Cidades
para acessar as imagens de satélite pelos Direitos Humanos em 2004.
e documentação em 3D, o estudo
No mesmo ano, a UNESCO criou uma vasta rede mundial de cidades unidas na
oferece uma sólida base técnica para
luta contra o racismo, a discriminação, a xenofobia e a exclusão em áreas urbanas.
o planejamento da restauração e
A Coalizão Internacional de Cidades Inclusivas e Sustentáveis (ICCAR) reúne as
reabilitação de Alepo. Revela que mais
coalizões regionais criadas na Europa (2004), na África (2006), na América Latina
de 10% dos prédios históricos de Alepo
e o Caribe (2006), na Ásia e Pacífico (2007), no Canadá (2007), nos Países Árabes
foram destruídos, e que mais da metade
(2008) e na América do Norte (2013).
dos prédios avaliados apresentaram
danos de moderados a severos. Mobilizar cidades para adotar uma cultura de solidariedade e cooperação só é
possível com o uso de diversos canais, incluindo reuniões regulares de prefeitos,
No entanto, não são apenas as pedras conferências internacionais e publicações. Em maio de 2016, por exemplo, a UNESCO
que foram destruídas. A alma da cidade e a fundação de sua Embaixadora da Boa Vontade, Mariana V. Vardinoyannis,
foi estilhaçada. A restauração da memória lançaram a iniciativa Welcoming Cities for Refugees: Promoting Inclusion and
é tão, se não mais, importante que a Protecting Rights (Cidades Acolhedoras para Refugiados: Promovendo a Inclusão e
reconstrução dos prédios. A Grande Protegendo os Direitos, em tradução livre). Conduzida em parceria com a ECCAR, a
Mesquita de Alepo, por exemplo, foi iniciativa resultou em uma publicação homônima, em 2016. Ela oferece o primeiro
uma joia da civilização Seljúcida. Era mapeamento internacional completo e analítico sobre questões envolvendo cidades
única não apenas por seu minarete e e migração, com foco na Europa. A publicação também revisa perspectivas das redes
decoração excepcional, mas também internacionais sobre cidades e migração, e identifica uma série de princípios comuns,
por seu papel social. Este local de culto orientações e ações a serem realizadas no campo da governança urbana.
tem sido um elemento fundamental da
cultura síria, com gerações de sírios se
reunindo aqui ao longo de 900 anos.
Sua devastação atinge a própria essência Cidades inteligentes
dessa comunidade. Segurança hídrica, saneamento, violência urbana, desigualdade, discriminação,
Os habitantes de Alepo são os guardiães poluição, desemprego. Em um mundo onde a urbanização está em crescimento,
da história e da memória de sua cidade. estes são alguns dos desafios críticos que as cidades terão que enfrentar. Lar para
Caberá a eles reviver sua vida cultural, metade das pessoas do mundo hoje, espera-se que as cidades abriguem dois
social e econômica. Os autores dedicaram terços da população mundial até 2050.
este livro a eles, para ajudá-los a superar o Criado no início dos anos 2000, o conceito de cidade inteligente pretende oferecer
trauma da guerra. respostas para esses desafios ao combinar novas tecnologias com ideais humanistas.
Por meio de sistemas urbanos inovadores, as cidades inteligentes promovem o
desenvolvimento socioeconômico enquanto melhoram a qualidade de vida.
Grandes oportunidades estão se abrindo com as cidades inteligentes. No entanto, para
Chantal Connaughton, escritora britânica, ser eficaz, essa “inteligência” deve adotar uma abordagem humanista, e não deixar
editora e especialista em comunicação. ninguém para trás. Esta é a principal mensagem da nova publicação Smart Cities:
Shaping Societies for 2030 (Cidades inteligentes: moldando sociedades para 2030, em
tradução livre), coeditada pela UNESCO e pelo Observatório Netexplo, e apresentada no
* “Cinco anos de conflito: o estado do patrimônio
cultural na Cidade Antiga de Alepo” foi publicado 12º Fórum Anual Netexplo, de 17 a 19 de abril de 2019, na sede da UNESCO em Paris.
pela UNESCO e pelo Instituto das Nações Unidas Para avaliar a contribuição das cidades inteligentes para o desenvolvimento
para Treinamento e Pesquisa (UNITAR). O estudo foi
conduzido em parceria com a Directorate-General for sustentável, a UNESCO e a World Technopolis Association (WTA, Associação Mundial
Antiquities and Museums (DGAM, Direção-Geral para Technopolis, em tradução livre), organizaram conjuntamente a 15ª Feira WTA
Antiguidades e Museus do governo sírio, em tradução H-Tech e o Global Innovation Forum (Fórum de Inovação Mundial, em tradução
livre) e a Endangered Archaeology in the Middle East
and North Africa (Eamena, Arqueologia sob Risco livre), em Nova Cidade Binh Duong, no Vietnã, em outubro de 2018. Sob o tema
no Oriente Médio e Norte da África, em tradução “Towards a better place to live: Smart City” (Rumo a um lugar melhor para se viver:
livre), sediada no Reino Unido. Foi financiada pelo cidade inteligente, em tradução livre), estratégias e políticas para aumentar a
Ministério de Relações Exteriores da Noruega e pelo
Fundo de Emergência para o Patrimônio da UNESCO. competitividade – que são essenciais para o desenvolvimento sustentável – foram
143 páginas. Dezembro de 2018. discutidas, e foram propostas soluções tecnológicas para vários problemas urbanos.

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 31


Sob os auspícios da UNESCO

Yazd:
vivendo em simbiose com o deserto
As cidades modernas e a tradição
cultural podem ser percebidas como
noções contraditórias. Sinônimo de
modernidade, novos modos de vida
e oportunidades múltiplas, sempre
imaginamos que as cidades olham
para o futuro. Enraizadas no passado,
as tradições, por outro lado, são
pensadas como entraves ao progresso.
A preservação do patrimônio é muitas
vezes vista como dispendiosa e
demorada para um retorno relativamente
baixo do investimento e, por essa
razão, recebe menor atenção do que o
desenvolvimento da infraestrutura.
Ainda assim, as tradições continuam
a ter vida própria. Esses costumes são
passados de geração em geração e estão
em constante evolução – permitindo
que as comunidades respondam às
novas necessidades e se adaptem às
mudanças em seu ambiente. Mais do
que podemos imaginar, são capazes
de oferecer soluções sob medida aos
problemas atuais.

Os qanats do Irã
CC BY-SA 4.0 photo: Bernard Gagnon

No coração do Irã, por exemplo, a antiga


cidade de Yazd se beneficiou muito da
engenhosidade de seus habitantes que,
ao longo dos séculos, desenvolveram
a arte e a tecnologia necessárias para
viver em simbiose com o deserto. Eles
souberam transformar a aspereza das
condições naturais em uma fonte de
criação artística. Isto é expresso por meio aquíferos, transferindo-a em declive de suas reservas – a distribuição entre
de sua arquitetura e, especialmente, por para o consumo e fins agrícolas. Uma fazendas com intensa demanda de
meio do planejamento urbano inovador. série de poços verticais são perfurados água e pomares de baixo consumo. O
em intervalos regulares ao longo da conceito principal dos qanats é que cabe
Deste modo, a elegante arquitetura de rota, comunicando com a superfície aos seres humanos adaptarem-se aos
barro de Yazd tem sido capaz de resistir do solo. Isso auxilia na construção e na recursos hídricos, e não o contrário.
às devastações do tempo e do clima manutenção do qanat, proporcionando
extremo, levando a cidade histórica a ser Os qanats não são apenas exemplos de
ventilação e acesso de trabalhadores,
inscrita na Lista do Patrimônio Mundial em infraestrutura antiga bem preservada. A
equipamentos e detritos. A tecnologia
2017. Apesar do clima árido, a agricultura busca e o controle da água são vitais para
destes aquedutos subterrâneos resistiu
emprega uma significativa parte dos a vida no deserto, e esforços consideráveis
ao teste do tempo e constitui, ainda hoje,
habitantes da cidade e da região no têm sido feitos pelas comunidades
um modelo para o uso sustentável da
entorno. Isto ocorre principalmente devido para manter e melhorar este know-how
água subterrânea.
à preservação de uma infraestrutura que essencial de geração em geração – e para
remonta a mil anos – os qanats. Atualmente, cerca de 37 mil qanats estão adaptá-lo às realidades atuais. O tecido
em operação no Irã, suprindo 11% da social foi trançado, em grande parte, em
O engenhoso sistema de qanats é água do país. Eles têm sido utilizados torno dos princípios de compartilhamento,
projetado para captar água subterrânea. principalmente para a irrigação desde propriedade e distribuição dos recursos
Concebido no Irã séculos atrás, foi 1961, quando foi instalada uma rede hídricos. Nos dias atuais, contudo, um
adotado em muitas partes do Oriente de distribuição de água. Os agricultores conselho qanat estabelecido por eleição
Médio e na bacia do Mediterrâneo. mantêm um equilíbrio sustentável substituiu as assembleias públicas
Canais subterrâneos levemente entre o fluxo da água e as áreas tradicionais, para facilitar os processos de
inclinados, ou túneis, coletam água dos cultivadas ajustando – dependendo tomada de decisão.

32 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


cidades em redes

Cidades e o patrimônio vivo


Toda primavera, a cidade de Recife, no extremo leste do Brasil, veste suas roupas
de carnaval. É tempo de música, dança, otimismo e euforia. No coração das
festividades está o frevo. Nesta frenética dança carnavalesca, reconhecemos
a cadência regular da marcha militar, as batidas marcadas do tango brasileiro,
O jardim histórico de Dolat Abad os padrões harmoniosos da quadrilha caribenha, o ritmo animado da polca e a
em Yazd, no Irã, com suas fontes e polirritmia do jazz – uma mistura de gêneros musicais de origens diversas, mas
piscinas ornamentais. todos tipicamente urbanos.
Você precisa de habilidades atléticas para dançar ao som do frevo! O passo,
a dança que o acompanha, tem mais de 100 movimentos rigorosamente
estruturados – seus pulos altos e outras acrobacias dão a ele um ar de alegria
extraordinária e de liberdade.
O carnaval dura apenas uma semana, mas seu espírito permanece na cidade
por todo o ano. Os residentes do Recife, de todas as classes sociais e gerações,
reúnem-se em seu tempo livre para prepararem-se para o próximo festival. Todos
contribuem com suas habilidades, talentos e conhecimento. Novas músicas são
compostas, novos passos de dança são inventados, novos trajes e fantasias são
confeccionados – todos competindo na imaginação.
Se os habitantes do Recife têm algo em comum, é o frevo – ele nutre seu senso
de pertencimento a uma mesma cultura, e fortalece os valores de comunidade
e a coesão social. São esses valores que levaram à inscrição do frevo na Lista do
Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO em 2012.
O patrimônio cultural imaterial é uma ponte entre os valores culturais tradicionais
e os contemporâneos. É a expressão viva das tradições orais, habilidades
artesanais, costumes sociais ou rituais, conhecimento e know-how que nos foi
transmitido pelas gerações anteriores.
Em áreas urbanas, este patrimônio vivo é uma força criativa que une e fortalece
as comunidades.

a faculdade Taft tem oferecido uma


formação de dois anos desde 2005. Os
Os antecedentes
estudantes são treinados por mestres culturais dos habitantes
tradicionais em teoria e prática, no deserto
Yazd é a prova viva de que o patrimônio
de Yazd. A profissão também recebeu
cultural imaterial pode oferecer soluções
reconhecimento adicional – o mestre
engenhosas e adaptadas às condições
moqanni agora pode ser licenciado pelo
locais. Ao basear suas estratégias
Ministério da Justiça para resolver disputas
em práticas locais e aproveitando ao
envolvendo os qanats.
máximo seus recursos culturais, as
Obviamente, a gestão hídrica em um cidades são mais propícias a mobilizar
país com muitas áreas de deserto, como suas populações a participar de seus
o Irã, é extremamente complexa. Nas projetos de desenvolvimento. Isto requer,
Perpetuando o know-how últimas décadas, novas tecnologias para obviamente, que o patrimônio vivo seja
a exploração e compartilhamento de valorizado por meio de medidas de
A profissão dos moqannis, os escavadores recursos hídricos foram desenvolvidas proteção apropriadas e da participação
de poços ou especialistas geo-hidrológicos para atender às necessidades de uma ativa dos detentores do conhecimento
que mantêm os qanats, também evoluiu. população em crescimento e imperativos tradicional.
No passado, a ampla gama de habilidades econômicos. Esta moderna infraestrutura
necessárias – para encontrar água As cidades vibram e prosperam ao ritmo
algumas vezes compete com os sistemas
subterrânea, decidir a melhor localização das atividades e interações de seus
tradicionais, levando à escassez de água
dos poços, dominar técnicas de escavação, habitantes. Quer tenham se estabelecido
em casos extremos.
limpeza e reparo dos poços e túneis, e há muito tempo, ou tenham chegado
a sabedoria da gestão da água – eram No entanto, os qanats e o know-how apenas recentemente, todos trazem
passadas de pai para filho. resultante permanecem um pilar do consigo seus próprios antecedentes
planejamento urbano de Yazd e uma parte culturais. Seus conhecimentos,
A fim de garantir que esta ocupação indissociável de seus projetos futuros. crenças, tradições, costumes e visões
ancestral seja desenvolvida, o Centro É por isso que a gestão institucional do mundo moldam suas identidades
Internacional de Qanats e Estrutura e os mecanismos de salvaguarda e relacionamentos com os outros – e,
Hidráulica Histórica (ICQHS, International foram adotados para complementar o consequentemente, suas cidades.
Centre on Qanats and Historic Hydraulic sistema consuetudinário. Três agências
Structure), afiliado da UNESCO, e a governamentais supervisionam a gestão
Faculdade de Qanat em Taft, oferecem do qanat, enquanto o ICQHS realiza
educação neste campo. Localizada a pesquisas e atividades de capacitação. Vanessa Achilles (França),
cerca de 20 quilômetros ao sul de Yazd, pesquisadora e escritora independente.

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 33


Sob os auspícios da UNESCO

Salvar as
paisagens urbanas: Ilha de
Moçambique
A Ilha de Moçambique, que dá nome ao fatia do paraíso é um caldeirão cultural
país, é uma ilha de coral em forma de de influências bantu, suaíli, árabe, persa,
meia-lua a quatro quilômetros da costa indiana e europeia. A rica arquitetura
norte de Moçambique continental, da ilha reflete sua história dramática
na entrada da Baía de Mossuril, no e colorida. Habitada por falantes de
Oceano Índico. línguas bantas no ano 200, e registrada
em rotas de navegação do Oceano
Além da decadência de seu patrimônio Com apenas três quilômetros de Índico desde o primeiro milênio, a Ilha de
construído, a cidade de Macuti enfrenta extensão e de 200 a 500 metros de Moçambique foi dominada pelo comércio
os desafios da superpopulação largura, com uma área urbana de cerca árabe entre os séculos VIII e XVI. Então,
e da pobreza. de 1 quilômetro quadrado, esta pequena por quatro séculos (1507 a 1898), esta
© Peter Hess

34 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


cidades em redes

cidade fortificada foi a capital e o posto


Água e megacidades
comercial da África Oriental Portuguesa, Mais da metade das pessoas do mundo vive em cidades e, até 2050, espera-se que
no centro das rotas marítimas portuguesas 68% da população mundial viva em áreas urbanas. Na América Latina, esta marca já foi
entre a Europa Ocidental e o subcontinente alcançada. A migração é uma importante força na urbanização, com mais de um terço
indiano e, mais tarde, a Ásia. das 68,5 milhões de pessoas deslocadas no mundo vivendo em cidades. Em 1970, três
cidades tinham mais de 10 milhões de habitantes e, 20 anos depois, já existiam dez
A incrível unidade arquitetônica da ilha dessas megacidades. Até 2014, já havia 28 e, segundo estimativas, haverá 41 até 2030.
é derivada do uso consistente – desde
o século XVI – das mesmas técnicas de Lançada em 2015, The Megacities Alliance for Water and Climate (MAWaC, Aliança de
construção com os mesmos materiais e Megacidades para a Água e o Clima, em tradução livre) é um fórum para diálogo e
princípios decorativos. Reconhecendo colaboração internacional com a finalidade de ajudar as megacidades a se adaptarem
sua importância histórica, seu tecido e a mitigarem os efeitos da mudança climática. Com um secretariado provido pela
urbano excepcional, fortificações e UNESCO, o fórum reúne todas as partes interessadas do setor hídrico, permitindo que
outros exemplos de arquitetura, a Ilha as megacidades aprendam com o intercâmbio de experiências, colaborem com as
de Moçambique foi inscrita na Lista do instituições técnicas, acadêmicas e financeiras apropriadas, e implementem respostas
Patrimônio Mundial da UNESCO em 1991. aos desafios da mudança climática e do crescimento urbano.
Em 2016, a UNESCO estudou 15 megacidades em colaboração com a organização
Dois diferentes tipos de moradias e
sem fins lucrativos francesa, ARCEAU IdF, lançando uma publicação conjunta, Water,
sistemas urbanos coexistem aqui – a
Megacities and Global Change: Portraits of 15 Emblematic Cities of the World (Água,
cidade de pedra e cal, e a cidade com
megacidades e mudança global: retratos de 15 cidades emblemáticas do mundo,
telhados de folha de palmeira.
em tradução livre). Particularmente, revela os desafios comuns enfrentados por
A Cidade de Pedra, com suas casas feitas estas cidades – desde seu tamanho gigantesco às suas disparidades sociais, acesso
de calcário e madeira, tem raízes suaíli, aos recursos hídricos e ao saneamento, e a gestão sustentável dos recursos naturais.
com influências árabes e portuguesas, De fato, esses assentamentos humanos densamente povoados enfrentam novas
e domina a parte norte da ilha. É um ameaças todos os dias devido ao crescimento populacional, à mudança climática
museu vivo, com edifícios religiosos, e à deterioração da infraestrutura urbana. Isto é especialmente verdadeiro
administrativos, comerciais e militares, nos países em desenvolvimento da Ásia, onde mais de 20% do PIB provém das
que testemunham o seu papel como megacidades. Gerir e fornecer água e serviços seguros, de preço acessível e
a primeira sede do governo colonial sustentáveis a essas cidades pode se mostrar desafiador.
português. Ocupando dois terços da ilha,
é habitada por uma parte relativamente Este foi o principal tema do seminário, Building Urban Resilience (Construindo
pequena da população. resiliência urbana, em tradução livre), organizado pela UNESCO em fevereiro
de 2018, durante o 9º Fórum Urbano Mundial em Kuala Lumpur, na Malásia.
A cidade de Macuti, nomeada em As discussões se concentraram em maneiras de adaptar a gestão da água aos
homenagem aos telhados de folhas de impactos da mudança climática em megacidades, e na necessidade de aumentar
palmeira originais (macuti) das casas, a conscientização pública e treinar pessoas nesta área. Várias iniciativas e práticas
abriga muitas variações da arquitetura de gestão também foram apresentadas, permitindo que as cidades melhorem os
vernácula suaíli, e fica ao sul. Organizada serviços básicos, incluindo o acesso a água potável e ao saneamento.
em sete bairros ou distritos, que são os
Planejar e gerir cidades, tornando-as resilientes e as equipando para oferecer
assentamentos mais populosos da ilha,
segurança hídrica aos residentes é a chave do sucesso de uma cidade. Esta é a missão
não é surpreendente que Macuti sofra de
do Urban Water Management Programme (UWMP, Programa de Gestão da Água
uma escassez aguda de água, da falta de
Urbana, em tradução livre), que ajuda os Estados-membros da UNESCO a solucionar
saneamento e de uma séria ameaça de
os problemas que enfrentam nesta área – por meio de apoio para treinamento,
inundações sazonais.
compartilhamento de conhecimento científico e diretrizes, e o intercâmbio de
O excepcional valor universal informações sobre diferentes abordagens, soluções e ferramentas de gestão.
da ilha suportou o peso de Por mais de dez anos, o Programa Hidrológico Internacional (PHI) da UNESCO
ameaças multifacetadas, como o publicou a Urban Water Series (Série Água urbana, em tradução livre), que divulga
desenvolvimento sem controle e os o trabalho de profissionais, formuladores de políticas e educadores em todo o
impactos de uma cultura globalizada. mundo, trabalhando no campo de gestão da água urbana.
A falta de recursos financeiros, a
infraestrutura inadequada, uma baixa
conscientização sobre conservação
entre a população local, e uma fraca e a degradação geral do patrimônio desenvolvimento socioeconômico. Essas
capacidade institucional para a gestão construído da Cidade de Pedra. novas estratégias ajudaram a fortalecer o
da conservação contribuíram para a mecanismo de governança para a gestão
degradação e a má conservação do Após a adoção da Recomendação da sustentável e o desenvolvimento da Ilha
patrimônio construído da ilha. Por UNESCO sobre a Paisagem Urbana de Moçambique.
exemplo, uma avaliação da condição dos Histórica (HUL, Historic Urban Landscape)
edifícios na Cidade de Pedra mostrou em 2011, foi decidido aplicar a
que eles se deterioraram em 15% entre abordagem HUL na ilha. Como parte
1983 e 2012. do Programa de Cidades do Patrimônio
Albino Jopela, administrador de
Mundial da UNESCO, a HUL oferece
programa, Fundo de Patrimônio Mundial
Isso levou as iniciativas conduzidas pela assistência técnica e ajuda cidades do
Africano (AWHF, African World Heritage
UNESCO na ilha a concentrarem-se em Patrimônio Mundial em todo o mundo
Fund) na África do Sul.
duas áreas principais: a condição de a melhor conciliar a conservação do
vida e habitação nos bairros de Macuti, patrimônio urbano com as estratégias de

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 35


Zoom
Zoom

Maria Magdalena Carmen


Mendoza, em sua casa no estado
de Guerrero, no México, faz panela,
o açúcar de cana não refinado
derivado da cozedura e evaporação
do caldo de cana. Um terço da
população mundial depende da
biomassa sólida para preparar suas
refeições (2017). Cerca de
1,4 horas são gastas por dia
na coleta de lenha – um fardo
suportado majoritariamente
por mulheres.

36 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


Iluminar o mundo!

Cavando uma latrina domiciliar no estado de


Fotos: Rubén Salgado Escudero Kayah, em Mianmar. No Sudeste asiático, 65
Texto: Katerina Markelova milhões de pessoas vivem sem eletricidade,
95% delas em quatro países – Camboja,
Este ensaio fotográfico é publicado para marcar o Indonésia, Mianmar e nas Filipinas.
Dia Internacional da Luz, celebrado em 16 de maio.

“Será que eu tenho o direito de estar população pode acender as luzes de dos Objetivos de Desenvolvimento
aqui? Em mais de uma ocasião, Rubén suas casas ao anoitecer. Sustentável (ODS) estabelecidos pelas
Salgado Escudero fez a si mesmo Nações Unidas em sua Agenda 2030 para
Uma vez concluída sua missão, Escudero
essa pergunta enquanto viajava pela o Desenvolvimento Sustentável, que
seguiu viagem como fotógrafo por
zona rural de Mianmar com seu caro inclui a erradicação da pobreza (ODS 1), o
conta própria, e decidiu que mereceria
equipamento fotográfico. O fotógrafo acesso universal à educação de qualidade
o direito de estar lá. Ele ainda não sabia
espanhol, que visitou este país em (ODS 4) e a igualdade de gênero (ODS 5).
2014 em nome de uma organização como, mas queria chamar atenção para A energia limpa e acessível para todos é,
humanitária, ficou impressionado com o problema. A ideia dos Retratos Solares em si, um desses Objetivos (ODS 7). Esta
a evidente falta de acesso à eletricidade. veio à mente quando ele conheceu é a primeira vez que o papel fundamental
“A maioria dos vilarejos onde estive, não vilarejos equipados com painéis solares. da energia foi reconhecido nessa escala,
tinha eletricidade”, explica ele. “A qualidade de vida daquelas pessoas de acordo com o relatório.
era tão diferente da de alguns de seus
Das mais de 53 milhões de pessoas em No entanto, “em muitos países, o acesso
vizinhos”, lembra ele.
Mianmar, 22 milhões são desprovidas à eletricidade ainda é um privilégio e
deste bem essencial, que até então era A energia é, de fato, “essencial para a não um direito”, diz o fotógrafo com
tão comum aos seus olhos. Enquanto humanidade se desenvolver e prosperar”, indignação. Em 2017, havia cerca de
79% dos moradores urbanos têm acesso conforme destacado no Relatório de 1 bilhão de pessoas no mundo sem
à energia, este número cai drasticamente 2017 da Agência Internacional de Energia eletricidade. Contudo, como podemos
nas áreas rurais, onde apenas 43% da (AIE). É essencial para se alcançar muitos atrair a atenção do público, cada vez

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 37


O Guru Deen Shukla bombeia água para seu neto do lado de fora de sua casa na
Índia, em 2015. Cumprindo um compromisso de alta prioridade, o governo indiano
finalizou a eletrificação de todos os vilarejos no início de 2018.

Faustina Flores Carranza e Juan Astudillo Jesús em sua casa em Guerrero, no México,
recentemente iluminada por energia solar. Esta é a primeira vez que o casal, casado
há 48 anos, foi capaz de olhar nos olhos um do outro depois do escurecer.

38 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


Cristóbal Céspedes Lorenzo e seu jovem sócio, Francisco Manzanares Cagua, carregam cocos recém-colhidos
pelo rio até Copala, no México, a serem vendidos à uma empresa que produz manteiga e óleo de coco.

mais cansado das notícias negativas arrecadados foram usados para equipar Em 2017, o fotógrafo viajou por todo o
que chega até ele todos os dias? três vilarejos com painéis solares, México. Em 2019, ele pretende visitar
“Encontrando novas maneiras criativas beneficiando 400 habitantes. os navajos no Novo México (Estados
de contar histórias, para chamar a Unidos), assim como a Guatemala, a
Desde então, o projeto continuou a
atenção das pessoas”, responde Escudero. Colômbia e as Filipinas.
crescer. O fotógrafo novato mereceu
Ele tira suas fotos apenas com a luz de atenção da revista norte-americana Atualmente, Escudero organiza
lâmpadas LED alimentadas por painéis National Geographic, que o enviou à workshops nas escolas de cada
solares. Essa luz, que as concede um Uganda, na África subsaariana, em comunidade onde faz o seu trabalho.
ar de quadros de Rembrandt e que, 2015, para completar a série. Estima-se Por meio de experiências práticas
sem dúvida, a energia positiva que que, até 2030, essa região abrigue 600 com lâmpadas solares*, os estudantes
delas emana tem despertado um milhões das 674 milhões de pessoas se familiarizam com o conceito de
interesse que o fotógrafo não esperava. vivendo sem eletricidade no mundo. energia renovável, que é, segundo a
Publicadas na revista semanal norte- AIE, a solução mais econômica para
No mesmo ano, Escudero visitou a Índia, três quartos das novas conexões
-americana Time, e na revista mensal que atualmente realiza um dos maiores
alemã GEO, suas fotos de Mianmar necessárias no mundo. “Quanto mais
feitos da história da eletrificação. cedo sensibilizarmos as crianças sobre a
inspiraram entusiasmo do público. Tanto Desde o ano 2000, meio bilhão de importância desta questão, maior será a
que o fotógrafo, com a ajuda de um indianos estão conectados à rede probabilidade de os futuros líderes não
leitor austríaco, lançou uma campanha elétrica, e espera-se que o país consiga se mostrarem indiferentes ao tema, e nos
para levantar fundos, Let there be light alcançar sua meta de acesso universal à levarem na direção certa”, explica ele.
Myanmar (“Que haja luz, Mianmar”, em eletricidade até o início dos anos 2020.
tradução livre). Em 2016, os recursos

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 39


Um filme fotovoltaico
inovador para ajudar
a educação no Togo
Em 21 de fevereiro de 2019, um
navio cargueiro deixou o porto de
Saint-Nazaire, na França. A bordo: 65
kits que continham lâmpadas LED
portáteis e recarregáveis, além de
carregadores solares em forma de
bolsas. Essas bolsas são equipadas
com um filme fotovoltaico flexível,
ultrafino e orgânico, de impacto
ambiental mínimo. O remetente:
a empresa francesa Armor, que
desenvolveu esta inovadora
tecnologia fotovoltaica em 2016.
Seu público-alvo: 212 estudantes
de Agou Akplolo, um vilarejo sem
energia elétrica ao norte de Lomé, no
Togo. Apenas 35% dos 7,7 milhões
de habitantes desse país subsaariano
têm acesso à eletricidade. O projeto
é o resultado de uma parceria que
a UNESCO firmou com a Armor em
dezembro de 2018. Seu objetivo é
fornecer luz às crianças, para que elas
possam estudar após o pôr do sol.

Estudantes fazem suas lições de casa pós-escola


em um centro comunitário alimentado por energia
solar em Yangon, Mianmar. Estudos mostram
o papel essencial da eletricidade na promoção
da alfabetização e na melhoria da qualidade da
educação. Em 2017, apenas 27% das escolas do
país tinham eletricidade.
No estado indiano de Odisha, os aldeões capturam peixes usando
cestos em forma de cone e iluminação solar. Segundo o governo,
9,6 milhões de residências no estado têm eletricidade.

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 41


Daw Mu Nan, uma agricultora Padaung no estado de Kayah, em Mianmar. Os painéis solares
tornaram-se mais baratos e mais eficientes, tornando-se uma fonte de energia viável e instantânea.

Depois de um dia de pesca no lago Victoria, o ugandês Lukwago Kaliste passa a noite quebrando pedras em pedaços menores,
que ele vende para uso na construção de fundações de edifícios. Ele leva 3 horas para encher um caminhão pequeno com
pedras, que rendem a ele 10 dólares. Apenas 19% da população de Uganda teve acesso à eletricidade em 2016.

42 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


Graças à energia solar, os mecânicos ugandenses Ibrahim Kalungo e Godfrey Metza
podem trabalhar mais horas e ganhar mais dinheiro. A taxa de eletrificação na África
Subsaariana atualmente é de 43%.

Too Lei, um oozie, ou manipulador de elefante, posa em seu elefante na região Bago de Mianmar.
Por 300 anos, os oozies trabalham com elefantes para garantir a exploração madeireira sustentável.

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 43


Ideias

Somos todos migrantes

Pôster da designer gráfica


norte-americana, Valerie Pettis,
parte da campanha Freedom
Movement (Movimento para
a Liberdade, em tradução
livre), realizada pela Poster for
Tomorrow em 2017.
© posterfortomorrow / Valerie Pettis
44 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019
O racismo não precisa de
racistas

Jorge Majfud Novo mapa do mundo, desenho de


Rafat Alkhateeb, Jordânia.
© Rafat Alkhateeb / Cartoon Movement
O debate sobre o que chamamos Em minhas aulas, eu sempre procuro
de “crise migratória” tem um esclarecer a diferença entre opiniões
Por alguma razão, os estudantes tendem
e fatos. É uma regra fundamental, um
componente racial. É um a se interessar mais por opiniões do
exercício intelectual muito simples que
padrão que se repete de forma que por fatos. Talvez por conta da ideia
devemos a nós mesmos realizar na era
supersticiosa de que uma opinião
consistente em diferentes leis, pós-iluminista. Comecei a me tornar
informada é derivada da síntese de
narrativas e práticas, como tem obcecado com estas questões óbvias
milhares de fatos. Essa é uma ideia
quando descobri, em 2005, que alguns
ocorrido ao longo de séculos, estudantes estavam discutindo que
perigosa, mas não podemos fugir da nossa
segundo o escritor uruguaio- responsabilidade de dar a nossa opinião
algo “é verdade porque eu acredito que
quando necessário. Tudo o que podemos e
-norte-americano Jorge Majfud. seja” – e eles não estavam brincando.
devemos fazer é observar que uma opinião
Ao nos levar por um desvio Desde então, tenho suspeitado que tal
informada continua a ser uma opinião, que
condicionamento intelectual, uma fusão
instrutivo pela história, ele de física com metafísica (esclarecida
deve ser testada ou questionada.
aponta a ausência total, neste por Averróis há quase mil anos) – que
mesmo debate acalorado, de ano após ano se torna cada vez mais Uma opinião
dominante (a fé como o critério supremo,
qualquer menção ao meio milhão Certo dia, os estudantes discutiam sobre a
independentemente de todas as
de imigrantes europeus que evidências em contrário) – tem suas caravana de 5 mil centro-americanos (dos
quais pelo menos mil eram crianças) que
vivem ilegalmente nos Estados origens nas majestosas igrejas do sul dos
Estados Unidos. fugiam da violência e seguiam em direção
Unidos, e do outro milhão de à fronteira do México com os Estados
norte-americanos que vivem No entanto, o pensamento crítico envolve Unidos. O presidente Donald Trump
ilegalmente no México. muito mais do que apenas distinguir fatos ordenou que a fronteira fosse fechada e
de opiniões. Tentar definir o que é um chamou aqueles em busca de refúgio de
fato seria suficiente. A própria ideia de “invasores”. Em 29 de outubro de 2018, ele
Por ocasião do Dia Mundial do objetividade se origina, paradoxalmente, escreveu no Twitter: “Esta é uma invasão
Refugiado, 20 de junho, esta de uma única perspectiva, de uma do nosso país e os nossos militares estão
seção Ideias é dedicada às pessoas lente. E qualquer um sabe que, com as esperando por vocês!”. O deslocamento
deslocadas de todo o mundo. De lentes de uma câmera fotográfica ou de militar até a fronteira, por si só, custou aos
acordo com os mais recentes dados vídeo, apenas uma parte da realidade é EUA cerca de 200 milhões de dólares.
publicados pelo Alto Comissariado das capturada, o que muitas vezes é subjetivo
Nações Unidas para os Refugiados, o ou usado para distorcer a realidade no Como um dos meus estudantes insistiu
número de pessoas deslocadas à força suposto interesse da objetividade. em saber a minha opinião, comecei com
em todo o mundo alcançou o recorde o lado mais controverso da questão.
de 68,5 milhões, em 2017.

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 45


Observei que este país, os EUA, foi ditaduras sangrentas – tudo em nome para apoiar uma cultura economicamente
fundado sobre o medo de invasões, da defesa e da segurança. E sempre com estratificada. Não é preciso ser sexista para
e apenas uns poucos escolhidos consequências trágicas. disseminar o tipo mais violento de sexismo.
sempre souberam como explorar essa De forma impensada, quase sempre
Portanto, a ideia de que alguns milhares
fraqueza, com consequências trágicas. basta participar de determinadas práticas
Talvez essa paranoia tenha surgido de pessoas pobres, a pé, irão invadir
culturais e expressar seu apoio a alguma lei.
com a invasão inglesa de 1812, mas o país mais poderoso do mundo é
simplesmente uma piada de mau gosto. Desenhei uma figura geométrica no
se a história nos diz alguma coisa,
E é igualmente de mau gosto que alguns quadro e perguntei aos alunos o que eles
é que os EUA praticamente nunca
mexicanos, do outro lado, adotem a viam ali. Todos disseram que viam um
sofreram uma invasão em seu território
mesma narrativa xenofóbica que tem cubo ou uma caixa. As variações mais
– se excluirmos os ataques de 11 de
sido dirigida a eles – infligindo aos outros criativas não se afastaram da ideia de
setembro de 2001; o de Pearl Harbor
que, na época, era uma base militar em o mesmo abuso que sofreram. tridimensionalidade, quando, na verdade,
território estrangeiro; e, antes disso, no o que eu havia desenhado nada mais era
do que três losangos que formavam um
início do século XX, a breve incursão Uma visão crítica hexágono. Algumas tribos na Austrália
de um mexicano chamado Pancho
Villa, montado em um cavalo. Contudo, No decorrer da conversa, mencionei por alto não enxergam a mesma imagem em três
os EUA de fato se especializaram em que, além da paranoia fundamental, havia dimensões, mas em apenas duas. Nós
invadir outros países desde os tempos um componente racial nesse argumento. enxergamos o que pensamos, e é isso
de sua fundação – tomaram territórios que chamamos de objetividade.
“Não é preciso ser racista para defender as
indígenas, depois a metade do México,
fronteiras”, disse um estudante. É verdade,
do Texas, para restabelecer a escravidão,
eu observei. Não é preciso ser racista
Dois pesos,
até a Califórnia; intervieram diretamente
em assuntos latino-americanos a fim de
para defender as fronteiras ou as leis. Em duas medidas
reprimir protestos populares e apoiar uma primeira análise, essa afirmação é
irrefutável. No entanto, se levarmos em Quando o presidente Abraham
consideração a história e o contexto atual Lincoln saiu vitorioso da Guerra Civil
mais amplo, um padrão abertamente Norte-americana (1861-1865), ele pôs
Missing home (Saudades de casa,
racista salta imediatamente sobre nós. fim a uma ditadura de 100 anos que,
em tradução livre), dos estudantes do
até os dias atuais, todos chamam de
Colégio Americano Anáhuac, em San
No final do século XIX, o romancista francês “democracia”. Por volta do século XVIII, os
Nicolás de los Garza, no México. Recebeu
Anatole France escreveu: “A lei, em sua escravos negros correspondiam a mais
o segundo prêmio na categoria Escola
majestosa igualdade, proíbe tanto os ricos de 50% da população de estados como
Primária no Concurso Mundial de Arte da
quanto os pobres de dormirem sob as a Carolina do Sul – contudo, eles sequer
Rede de Escolas Associadas da UNESCO
pontes, de mendigar nas ruas e de roubar eram cidadãos dos EUA, tampouco
“Opening Hearts and Minds to Refugees”
o seu pão”. Não é preciso ser um elitista gozavam de direitos humanos mínimos.
(Abrindo os Corações e as Mentes aos
Refugiados, em tradução livre).
© UNESCO / Pataphonique Productions

46 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


Não é preciso
ser racista para
disseminar e
sustentar um
paradigma antigo
e fundamentado
© Tomas / Cartoon Movement

em classe,
enquanto
Stop the racism (Pare o racismo, enchemos nossas
Muitos anos antes de Lincoln, racistas e em tradução livre), do cartunista
antirracistas propuseram uma solução
para o “problema dos negros”, enviando-
italiano Tomas. bocas com
-os “de volta” ao Haiti ou à África, onde
muitos deles acabaram fundando a social e racial dos EUA. O nervosismo platitudes sobre
nação da Libéria (uma de minhas alunas, atual a respeito de uma mudança nessa
Adja, é de uma família que veio daquele
país africano). Os ingleses fizeram o
composição nada mais é do que uma
continuação daquela antiga lógica. Não
compaixão e luta
mesmo, ao tentar “livrar” a Inglaterra de
seus negros. No entanto, sob Lincoln,
fosse esse o caso, o que poderia haver
de errado em fazer parte de um grupo pela liberdade e
os negros se tornaram cidadãos, e uma minoritário ou ser diferente dos outros?
forma de reduzi-los a uma minoria foi não pela dignidade
apenas dificultando que eles votassem
Não é preciso
(por exemplo, com a imposição de um
imposto sobre a votação), mas também ser racistas... humana.
abrindo as fronteiras do país à imigração.
Claramente, se você é uma boa pessoa
A Estátua da Liberdade, um presente do e se é a favor da aplicação correta das
povo francês ao povo norte-americano leis, isso não faz de você um racista.
para comemorar o centenário da Não é preciso ser racista quando a lei
desenvolvimento mútuo. As próprias leis
Declaração de Independência de 1776, e a cultura já o são. Nos EUA, ninguém
de imigração são repletas de pânico ao
ainda grita com lábios silenciosos: protesta contra imigrantes canadenses ou
menor sinal de trabalhadores pobres.
“Dê-me os teus cansados, os teus europeus. O mesmo acontece na Europa,
pobres, as tuas massas amontoadas que e até mesmo no Cone Sul da América do É verdade que não é preciso ser racista
desejam respirar livres...”. Dessa forma, Sul [a região mais meridional da América para apoiar leis e fronteiras mais seguras.
os EUA abriram seus braços a ondas de Latina, povoada majoritariamente por Também não é preciso ser racista para
imigrantes empobrecidos. Naturalmente, descendentes de europeus]. No entanto, disseminar e sustentar um paradigma
a grande maioria deles era formada por todos estão preocupados com os negros antigo e fundamentado em classe,
brancos pobres. Muitos se opunham e com os híbridos, as pessoas mestiças do enquanto enchemos nossas bocas com
aos italianos e aos irlandeses, por serem sul. Porque eles não são brancos e “bons”, platitudes sobre compaixão e luta pela
católicos ruivos. De todo modo, eles mas pobres e “maus”. Atualmente, quase liberdade e pela dignidade humana.
eram vistos como melhores do que os meio milhão de imigrantes europeus estão
negros. Os negros não conseguiram vivendo ilegalmente nos EUA. Ninguém
imigrar da África, não apenas porque fala sobre eles, assim como ninguém
estavam muito mais distantes do que fala sobre como 1 milhão de cidadãos
os europeus, mas também porque norte-americanos estão vivendo no
Professor de literatura latino-americana e
eram muito mais pobres, e dificilmente México, muitos deles, ilegalmente.
estudos internacionais da Universidade de
havia rotas marítimas para conectá-los
Com o comunismo descartado como Jacksonville, na Flórida, nos Estados Unidos,
a Nova York. Os chineses tinham mais
uma desculpa (nenhum desses Estados Jorge Majfud é um renomado escritor
oportunidades de chegar à Costa Oeste
cronicamente enfraquecidos de onde uruguaio-norte-americano, que contribui
e, talvez por essa razão, foi promulgada
vêm os migrantes é comunista) vamos, regularmente com a mídia internacional. Ele é
uma lei em 1882 que os proibia de entrar
mais uma vez, considerar as desculpas autor de muitos romances, incluindo La reina
no país, apenas por serem chineses.
raciais e culturais comuns ao século de América (A rainha da América), Crisis (Crise)
Compreendo que essa foi uma maneira anterior à Guerra Fria. Todo trabalhador de e Tequila, e de livros de ensaios, como La teoría
sutil e poderosa de reformular a pele escura é visto como um criminoso, de los campos semánticos (A teoria dos campos
demografia, ou seja, a composição política, não como uma oportunidade de semânticos; todos os títulos em tradução livre).

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 47


O outro lado
Katherine Levine Einstein da moeda
Uma pesquisa recente,
abrangendo mais de 100 devem receber serviços do governo local, Isso posto, ainda existem muitas políticas
prefeitos nos Estados Unidos, independentemente do seu status legal, locais à disposição dos prefeitos que
ilustra que muito depende apenas 29% dos prefeitos republicanos podem afetar de forma significativa
de se essas autoridades estão pensam da mesma forma. as condições de vida dos imigrantes –
talvez mais notavelmente no campo
dispostas a exigir direitos Ademais, mesmo aqueles prefeitos que
do policiamento. Em muitos estados,
iguais a seus recém-chegados apoiam a luta contra as políticas de
os governos locais podem optar por
imigração do governo Trump não estão
e provocar mudanças diante não aplicar alguns aspectos da lei de
muito seguros quanto à sua capacidade
imigração nacional – tornando-se
de uma política de imigração de fazê-lo. Apenas 31% dos prefeitos
“cidades-santuário”. Como a Conferência
federal mais rigorosa. acreditavam que poderiam fazer muito
de Prefeitos dos EUA observou em
para contrariar ou se opor à política
um comunicado divulgado em 25 de
de imigração federal. Em comparação,
janeiro de 2017, “os departamentos de
no que se refere às iniciativas federais
Em junho de 2018, uma delegação polícia locais trabalham arduamente
de policiamento, 74% sentiam que
bipartidária de prefeitos – incluindo o para construir e manter a confiança em
podiam fazer muito para se contrapor
presidente da Conferência de Prefeitos todas as comunidades a que servem,
a elas ou revogá-las. Essas disparidades
dos Estados Unidos, Steve Benjamin incluindo as comunidades de imigrantes.
fazem sentido. Enquanto muitas
– viajou a Tornillo, no Texas, para Os imigrantes que residem em nossas
políticas públicas norte-americanas
protestar contra a política de separação cidades devem poder confiar na polícia e
foram descentralizadas para os níveis
de famílias do governo do presidente em todo o governo municipal”.
estadual e local, a imigração permanece
Trump. Em abril de 2017, os prefeitos firmemente em mãos federais. As cidades também podem tornar
norte-americanos também atravessaram o próprio governo mais acolhedor.
linhas partidárias, para clamar por uma As leis estaduais podem limitar ainda
Podem criar escritórios de inclusão
reforma imigratória e para protestar mais a autonomia política das cidades
de imigrantes; oferecer serviços em
contra a proposta de expansão das regras nessa área. Vários estados estão
diversas línguas; prover assistência em
de gastos públicos, de outubro de 2018, considerando legislações que proíbem
comunidades de imigrantes; e contratar
que penalizava “famílias de imigrantes as cidades-santuário* apesar de alguns,
funcionários de origens diversas.
de mais baixa renda, ao negar-lhes de forma notável, buscarem políticas que
vistos e green cards, por terem recebido permitem explicitamente as jurisdições
benefícios não monetários essenciais aos de santuário. No Texas – um estado que Comunidades
quais eles têm direito legal”. Essa ação tem se transformado demograficamente
nas últimas décadas por causa da
totalmente separadas
bipartidária contrasta significativamente
com a polarização partidária rancorosa imigração –, o governador assinou Prefeitos e cidades também podem
que define os atuais debates políticos uma lei estadual que proíbe as cidades- promulgar políticas que promovam
nacionais em torno da imigração. santuário; a lei tornou os agentes policiais o acesso igualitário aos serviços
e os líderes locais suscetíveis a acusações governamentais locais de qualidade em
No entanto, apesar desse ativismo formais de contravenção se não comunidades de imigrantes e de não
público dos prefeitos, existem muitos cumprirem as solicitações de agentes de imigrantes. As cidades norte-americanas
obstáculos à reforma imigratória imigração para a detenção de prisioneiros são fortemente segregadas, com pessoas
conduzida localmente. De fato, essas não cidadãos sujeitos a deportação. brancas e pessoas de cor – descendentes
ações públicas desmentem as rígidas de africanos, asiáticos e hispânicos
divisões internas entre os prefeitos Além disso, mesmo naquelas cidades
– totalmente separadas em bairros
norte-americanos. No Menino Survey of norte-americanas em que os governos
diferentes. Em Boston, por exemplo, 60%
Mayors (Pesquisa de Prefeitos Menino) de estaduais são mais permissivos, as cidades
dos hispânicos precisariam se mudar do
2017 e 2018, nossa equipe na Initiative enfrentam limitações importantes. Muitas
seu atual bairro de residência para serem
on Cities (Iniciativa sobre Cidades) da vezes têm recursos retidos, e são limitados
espalhados de maneira uniforme por
Universidade de Boston perguntou em levantar recursos adicionais por meio
toda a área metropolitana.
a mais de 100 prefeitos de cidades – de impostos onerosos e limites de gastos
com população com mais de 75 mil determinados por seus governos estaduais. Essa segregação racial e étnica leva a
habitantes – a respeito de suas opiniões uma concentração da pobreza – em que
sobre imigração, raça e racismo, entre a privação socioeconômica é agrupada
outras questões. Em contraste à unidade * As cidades-santuário são aquelas comprometidas em um só lugar. A pobreza concentrada
bipartidária adotada pela Conferência de em proteger os direitos de todos os seus cidadãos, está associada a uma série de resultados
incluindo imigrantes sem documentos, e em
Prefeitos dos EUA, os prefeitos parecem oferecer a eles os serviços básicos. Nos EUA, essas
sociais e econômicos negativos, incluindo
estar fortemente divididos quanto a essas cidades também garantem que os imigrantes menos oportunidades de emprego e
ilegais que não estejam envolvidos em atividades maior criminalidade. Essas áreas, em
questões. Enquanto 86% dos prefeitos criminosas sejam impedidos de serem detidos ou
democratas acreditam que os imigrantes deportados pelas autoridades federais. média, também oferecem serviços
governamentais de qualidade mais baixa.

48 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


Esse abandono das comunidades para tomar ações políticas concretas que econômicos essenciais é desigual quando
desfavorecidas apresenta múltiplas abordem essas questões. se leva em conta o fator racial.
causas. Os moradores dessas
Isso não significa que todos os Desse modo, os imigrantes enfrentam
comunidades são menos propícios
prefeitos evitam reconhecer e abordar uma miscelânea desigual de serviços
a fazer exigências de seus governos.
a desigualdade racial. Aqui, mais uma pela qual devem navegar, à medida que
Também estão menos aptos a ter tempo
vez – como ocorre com as opiniões alguns governos locais (majoritariamente
de entrar em contato com seus governos
sobre imigrantes que recebem serviços democratas) divulgam de forma agressiva
ou confiar que o governo agirá se for
públicos –, a divisão política foi iniciativas para acolher os imigrantes e
solicitado. Ademais, os políticos são, em
substancial. Os prefeitos democratas corrigir as disparidades, enquanto outros
média, mais responsivos aos eleitores
se mostraram 20% mais propensos – devido às limitações ou aos preconceitos
abastados; então, mesmo quando
do que os republicanos a perceber a locais contra os recém-chegados – optam
solicitados a agir por essas comunidades,
discriminação contra imigrantes em por não fazê-lo.
eles são menos propícios a fazê-lo. O
efeito da histórica falta de investimentos suas cidades. Dependendo da área das
nessas comunidades é cumulativo, e sua políticas, os democratas se mostraram
superação é desafiadora. entre 20% e 50% mais aptos do que os
republicanos a acreditar que o acesso aos
Além disso, muitos prefeitos relutam
bens sociais e públicos, como emprego,
em reconhecer as discriminações e
saúde e tratamento justo nos tribunais Professora assistente de ciência política na
iniquidades locais nos serviços públicos.
era melhor para os brancos do que para Universidade de Boston, Katherine Levine
Apenas 19% dos prefeitos acreditavam
as pessoas de cor. Embora os prefeitos, de Einstein recebeu seu Ph.D. em governo e
que os imigrantes enfrentavam muita
forma transversal às divisões partidárias, política social da Universidade de Harvard.
discriminação em suas cidades. Mais
tenham realizado ações simbólicas Seu trabalho sobre política local e políticas
de 80% dos prefeitos de ambos os
contra as políticas de imigração de públicas, política racial e étnica, e políticas
partidos políticos viam a qualidade do
Trump, os prefeitos democratas são públicas norte-americanas foi publicado em
seu transporte público, a manutenção
substancialmente mais propensos a diversos periódicos acadêmicos.
das ruas e os parques como iguais
para pessoas brancas e pessoas de oferecer apoio ativo aos imigrantes
cor. Reconhecer a desigualdade e a ilegais, a reconhecer a discriminação
Piquenique gigante organizado na
discriminação são pré-requisitos básicos local contra imigrantes e a admitir que
fronteira dos Estados Unidos com o
o acesso aos bens públicos, sociais e
México, em 2017, do artista francês JR.
© JR-ART-NET

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 49


Nosso convidado

Alain Mabanckou, escritor


franco-congolês.
© Nico Therin
As Áfricas móveis de Alain
Entrevista por Ariane Poissonnier,
Mabanckou
jornalista francesa

Alain Mabanckou vasculha um


“celeiro tricontinental” repleto
de coisas do passado a fim de
esclarecer o presente. De que
forma deve ser lida a história
colonial? Que significado deve ser

© Collection privée A. Mabanckou


dado à restauração do patrimônio
cultural africano? E qual é o
papel do romancista em tudo
isso? O escritor franco-congolês
discute essas questões, com toda
simplicidade.
Com esta entrevista, O Correio O jovem Alain Mabanckou com sua
participa da celebração do Dia mãe, Pauline, e seu pai, Roger.
Mundial da África, em 25 de maio.

O sr. divide seu tempo entre três países Portanto, é uma espécie de celeiro ingressou na Académie Française. E quem
– o Congo, a França e os Estados Unidos. tricontinental em que eu entro, para questionaria a universalidade do Diário de
Como esse arranjo funciona para o sr.? resgatar tudo o que possa ajudar a um retorno ao país natal de Aimé Césaire,
explicar o mundo de amanhã. O mundo da Martinica? Quem duvida do poder
Como uma vantagem, claro! Essa cultura
de amanhã é a soma de diferentes de análise de outro martinicano, Frantz
tricontinental me permitiu encontrar a
culturas. Fanon, em Pele negra, máscaras brancas?
variedade do mundo e descobrir o que
Esses escritores atacaram o sistema
chamo de “Áfricas móveis”. Primeiramente, Há quem diga que, atualmente, o sistema
colonial e seus corolários de dentro – e
uma África móvel dentro do continente. neoliberal é uma hegemonia tamanha que
atacaram-no utilizando as ferramentas
Quando morava no Congo, eu me não temos mais palavras para criticá-lo...
que o sistema lhes forneceu.
deparei com africanos ocidentais, e isso
Francamente, não consigo me identificar
me fez compreender a diversidade da “Os belgas estão tentando recontar
com isso! Significaria que todas as
África. Quando cheguei à França, descobri sua história colonial”, o sr. comentou
ferramentas para a crítica foram
o mundo ocidental, mas também os recentemente no Instagram depois de
corrompidas pelo sistema neoliberal – e
africanos que haviam se estabelecido lá visitar o AfricaMuseum, na Bélgica.
eu não sou tão pessimista assim. Sempre
por meio da colonização e da migração Por que o sr. disse isso?
há maneiras de frustrar um sistema, e
– uma África móvel na Europa. E, quando
é por vezes entrando no vocabulário Um museu é como um indivíduo, que
estou nos Estados Unidos, eu percebo
daquele sistema, descontruindo-o e envia uma mensagem pela escolha de
meu continente através de uma lente
demonstrando o quão vazio ele é, que suas roupas, o que pode ser honesto
de aumento que me permite discernir
uma nova forma de pensar pode surgir. ou tendencioso. Alguns usam peruca.
as sombras flutuantes de outra África
Só porque o amendoim tem uma casca, Você pode se apaixonar por esse lindo
móvel, exilada pela escravidão e pelo
não significa que eu não vou quebrá-la cabelo e se decepcionar profundamente
tráfico de escravos. Conheci esse mundo
para ver o que está dentro e comê-lo! quando descobrir que ele é falso!
afro-americano em Nova York, por meio
De modo similar, quando você entra
de Richard Wright, Chester Himes e Veja o exemplo das civilizações africanas.
nesse museu, diz a si mesmo que é muito
James Baldwin, escritores da Renascença Elas utilizaram o pensamento ocidental
bonito e, finalmente... nada. Eu andei em
do Harlem – um movimento que eles para estabelecer o pensamento africano.
círculos, mas não vi os braços que foram
iniciaram na primeira metade do século O movimento Negritude nasceu na
cortados durante a época de Leopoldo II.
XX, que revolucionou o denominado Europa, na mente dos estudantes negros
pensamento negro. e caribenhos que vieram estudar na Reconhecidamente, esse [recentemente
França. Um deles, o senegalês [poeta renovado] museu deu a alguns
e político] Léopold Sédar Senghor, descendentes de africanos uma

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 51


oportunidade de contar as suas histórias
– é bom se pensar sobre isso. Esse não
é necessariamente o caso da França,
onde, sempre que há qualquer menção
à história colonial, todos se levantam
e se refugiam atrás de Jules Ferry, que
aparentemente nos trouxe o alfabeto!
No entanto, se você desse esse
mesmo museu para que os africanos o
construíssem – na verdade, da porta da
frente até a porta dos fundos, eles teriam
mostrado o homem branco chicoteando
o homem negro, colocando-o em porões,
saqueando o continente, construindo
uma ferrovia onde pessoas morrem. Saiba
que eu também teria escrito sobre eles no
Instagram, que “estão tentando escrever
sua história colonial”.
Os colonizados apresentarão a versão
apocalíptica da colonização, a ocidental,
sua versão supostamente civilizadora.
Tudo isso deve ser sintetizado. Por ora,
temos apenas interpretações subjetivas.
O sr. acredita ser importante que os
países comecem a devolver o patrimônio
cultural aos países africanos, como a
França está fazendo atualmente?
Eu gosto do relatório de Felwine Sarr e
Bénédicte Savoy sobre a restituição do
patrimônio cultural africano [apresentado
ao Palácio do Eliseu, a residência oficial do
presidente francês, em 23 de novembro
de 2018], mas vamos aguardar para ver o
que acontecerá na prática.
© Finbarr O’Reilly

A devolução suscita a mesma questão


– como nós iremos reler a nossa
história colonial? Por que esses objetos
saqueados nunca são mencionados nos
livros de história franceses e europeus?
O colonizador cometeu um grande
erro ao pensar que o que produzíamos do mundo e entra no grande diálogo Meus pais queriam que eu me tornasse
artisticamente era lixo. Atualmente, que está acontecendo aqui e lá sobre os juiz ou advogado. A Universidade de
esses são os elementos que faltam na atuais desafios sociais. Nantes me ofereceu uma vaga – estudei
explicação da imaginação mundial. direito privado por um ano e, então, vim
O sr. se sente algumas vezes como a voz
Os africanos simplesmente querem que a Paris para obter uma pós-graduação
da África?
nós reconheçamos que a imaginação do em direito empresarial e social na
mundo também inclui aqueles elementos Isso seria pretensioso. É verdade que Universidade Paris Dauphine.
da cultura africana que foram saqueados sempre me sinto lisonjeado em ver
No entanto, escrever tomou precedência
– e que não teria havido um movimento que cada vez mais africanos, incluindo
sobre o direito. É uma atividade ciumenta
surrealista, por exemplo, se esses pintores falantes da língua inglesa, leem o que
que não gosta de competição. E então,
não tivessem sido expostos à arte eu escrevo, identificam-se e empolgam-
quando meus pais faleceram, senti que
africana. Indo além da devolução, existe se com isso. Tudo o que faço é retribuir,
não havia mais ninguém a quem eu
a questão do reconhecimento da África por meio de histórias que falam do seu
precisasse fazer sentir orgulho de mim.
como uma potência artística. mundo. Eu gostaria que as pessoas não
pensassem em mim como um porta-voz Houve um dia em que o sr. disse a si
A literatura africana ocupa seu lugar de – esse seria um destino muito semelhante mesmo: “Eu quero escrever”?
direito na literatura mundial? ao de Cristo –, mas que, ao invés disso,
I Comecei a escrever poemas no ensino
A literatura africana em francês ainda é pensassem que estamos escrevendo os
médio e, basicamente, eu queria escrever
jovem, ainda não tem sequer 100 anos, e livros que escrevo, juntos.
apenas poesia. Não sabia que escrever
precisa de tempo para se estabelecer. O O sr. poderia ter se tornado advogado. Em poderia ser uma atividade principal.
que é interessante é que tem sido capaz 1989, o sr. recebeu uma bolsa de estudos Para mim, serviu para acalmar minhas
de seguir o caminho da globalização – e deixou sua família modesta em Ponta ansiedades, controlar minha solidão.
ela considera a dimensão fragmentada Negra para estudar direito na França. Tornou-se uma confissão para mim, como

52 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


que não era necessariamente sobre a
dor pessoal. No romance, o estado de
espírito não mais pertence ao romancista –
pertence ao personagem.
Seu amigo, o escritor haitiano Dany
Laferrière, diz que, quando se trata de
criação, “o talento é importante, mas o
mais importante é a coragem”. É preciso
ousar, para criar?
A coragem é tudo o que você não vê
em uma obra literária. Um romance ou
uma coleção de poemas é o produto
finalizado. Nós não enxergamos
nele todo o sofrimento do autor, sua
angústia, suas condições de vida, suas
falhas. Se você não tem coragem, se não
tem obstinação, se não tem obsessão,
então o talento não vale nada!
Escrever um romance significa polir cada
frase e voltar a ela quantas vezes for
necessário, para realmente expressar o
sentimento a que se destina. A coragem
de que fala Dany Laferrière é sinônimo de
obsessão e força. O escritor é obcecado
com o projeto estético que carrega, e usa
toda a sua força para defendê-lo em seu
universo imaginário.
Quando escreve, o sr. se expõe?
Sim! Há também a coragem política,
a imprudência de se expor. Escrever
não é um passeio no parque, é mais
propriamente um caminho íngreme,
com buracos, lama, água da chuva,
pedras. Aqueles que não têm coragem,
usam botas. O escritor, ele anda
descalço e chega ao fim da estrada,
mesmo que esteja coberto de feridas.
Ele realizou o projeto que estava dentro
O novo Museu das Civilizações Negras dele, a força do mundo a que ele queria
em Dakar, no Senegal, resgata as dar à luz. Ele conseguiu!
filho único – uma forma de recusar o contribuições culturais da África
mundo como era escrito, no presente, para em todo o mundo. Mostradas aqui,
que eu pudesse inventar a minha própria uma estátua Bamoun de Camarões,
versão do mundo. à esquerda, e uma pintura de 2018,
Redresseurs, do coletivo de arte
Talvez seja aí que a escrita começou, cubano The Merger. Romancista, jornalista, poeta e
mesmo que eu não seja capaz de colocar acadêmico, Alain Mabanckou está
uma data no momento em que tomei entre os mais reconhecidos escritores
consciência de que isso era o que eu tinha da literatura francesa contemporânea.
que fazer. Continuei a escrever, dizendo A poesia corresponde à alma romântica Nascido em 1966 em Ponta Negra,
a mim mesmo que eu trabalharia e, dos adolescentes – é o lugar dos primeiros a capital econômica do Congo,
paralelamente, de tempos em tempos, amores, o momento em que se descreve as atualmente leciona literatura e escrita
escreveria. Fazendo isso de forma decepções, ou se apaixona por Lamartine, criativa no Departamento de Francês e
periódica, eu estava juntando minhas Hugo, Vigny, ou algum outro poeta Estudos Francófonos na Universidade
forças para o que se tornaria minha romântico. Além disso, a poesia era muito da Califórnia, Los Angeles (UCLA).
principal atividade – e uma obsessão. respeitada em meu país, com grandes Mabanckou ocupou a cadeira de
autores nacionais como Tchicaya U Tam’si. criação artística no Collège de France
Antes de publicar o seu primeiro romance, Nós realmente só descobrimos o romance em 2015 e 2016, e recebeu vários
Bleu blanc rouge (Azul branco vermelho, em 1979, com a publicação de La vie et prêmios internacionais. Seu trabalho
em tradução livre) em 1998, o sr. havia demie (Vida e meia, em tradução livre), foi traduzido em 30 línguas. Seu 12°
publicado quatro coleções de poemas. de Sony Lab’ou Tansi, que eu considero o romance, Les cigognes sont immortelles
De que forma os romances e a poesia maior escritor do Congo. Ali, percebemos (As cegonhas são imortais, em tradução
trabalham juntos? que também poderíamos narrar algo livre), foi publicado na França em 2018.

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 53


Assuntos atuais

© Selçuk Demirel

54 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


Livros abertos,
mentes abertas
Ghalia Khoja

Em abril de 2019, a cidade de


Sharjah, nos Emirados Árabes
Unidos (EAU) tornou-se a Capital
Mundial do Livro para o ano. Ela
convida o público a embarcar na
ponte do conhecimento a fim
de descobrir a diversidade das
culturas e dos povos do mundo.

Com este artigo, O Correio da


UNESCO participa da celebração do

© Sharjah International Book Fair


Dia Mundial do Livro e dos Direitos
Autorais, em 23 de abril.

“O livro é, em todas as circunstâncias, a


melhor companhia”. Esta citação de
Al-Mutanabbi, o ilustre poeta árabe do
século X, tornou-se um adágio que os
amantes da literatura, da poesia e do A Feira Internacional do Livro de
conhecimento em geral têm prazer em superar-se e dialogar. É uma ponte
Sharjah, em 2018.
repetir – mesmo em nossa época em que entre todos os países do mundo”, disse
as redes sociais e a mídia audiovisual têm a xeica Bodour, ao assumir seu posto
móveis, prêmios nacionais, regionais e como presidente do escritório da Sharjah
ofuscado o papel dos livros de maneira
até internacionais, incluindo o Prêmio Capital Mundial do Livro de 2019.
considerável.
UNESCO-Sharjah de Cultura Árabe, o
O livro continua a ser um meio Prêmio Sharjah de Poesia Árabe, o Prêmio Em parceria com 20 representantes dos
privilegiado para a promoção dos Sharjah de Tradução e o Prêmio Sharjah setores público, privado e da sociedade
valores da tolerância, da coexistência para um Livro dos Emirados. civil, o secretariado está organizando uma
e da paz, para defender a liberdade de série de eventos culturais e artísticos ao
O Emirado também se orgulha da Sharjah longo do ano, não apenas nos Emirados,
expressão e a luta contra o extremismo
Publishing City (SPC, Cidade Editorial mas também em outros países da
e o obscurantismo – todos os
de Sharjah, em tradução livre), que a região. O evento visa a contribuir para
denominadores comuns dos eventos que
descreve como a primeira zona livre o desenvolvimento e o apoio editorial
começam em Sharjah em 23 de abril de
do mundo dedicada exclusivamente nos EAU e em todo o mundo árabe, e
2019, Dia Mundial do Livro e dos Direitos
à indústria editorial e gráfica mundial. a proporcionar o acesso aos livros para
Autorais, e continuará por 12 meses,
Distribuída por mais de 19 mil metros todos, especialmente para as crianças
como parte da designação de Capital
quadrados, a instalação oferece serviços e os adolescentes; apresentar autores
Mundial do Livro de 2019.
e infraestrutura de última geração para promissores; aumentar o número de
Sharjah é a primeira cidade no Golfo toda a cadeia de publicação de livros – leitores de livros impressos e digitais,
Pérsico e a terceira cidade do mundo desde a escrita e o design, até a impressão e incentivar sua tradução. Todos os gêneros
árabe a receber essa designação. e a distribuição dos exemplares – para de livros são representados – poesia, ficção,
uma variedade de orçamentos. não ficção, publicações sociais e científicas,
Foi em Sharjah que a primeira escola e
a primeira biblioteca foram abertas nos Por sua vez, a Associação de Editores e até mesmo histórias em quadrinhos.
EAU. E desde 1982, é nessa cidade que se dos Emirados, em tradução livre) ajuda Ao final do evento, Sharjah passará o
realiza a anual Feira Internacional do Livro a promover os livros e a leitura entre bastão à cidade de Kuala Lumpur, na
de Sharjah, que estimula o público com todos os setores da sociedade e diversas Malásia, que já foi designada pela UNESCO
seu slogan cativante: “Leia – você está em gerações de leitores. Isso tem rendido como a Capital Mundial do Livro de 2020.
Sharjah!”. Agora a terceira maior feira de à organização sem fins lucrativos o
livros do mundo, recebeu 2,7 milhões de reconhecimento de seus pares – sua
visitantes em 2018, e 1.874 expositores de presidente, a xeica Bodour Bint Sultan
77 países. Ofereceu mais de 1,6 milhão de Al Qasimi, foi eleita vice-presidente
títulos e um programa de 1,8 mil eventos. da International Publishers Association
Escritora e crítica literária, a síria Ghalia Khoja
(Associação Internacional de Editores, em
O emirado de Sharjah deu aos livros é autora de 25 livros, incluindo coleções de
tradução livre) em 2018.
um lugar especial em sua política poesias, romances e ensaios. Jornalista do
cultural, com projetos tais como “Uma “O livro é o meio pelo qual todas periódico árabe Al-Ittihad, ela reside nos
biblioteca em cada casa”, bibliotecas as sociedades podem progredir, Emirados Árabes Unidos desde 2004.
O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 55
A inteligência
artificial, na porta da África
Tshilidzi Marwala, entrevistado por Edwin Naidu, jornalista sul-africano

Os líderes africanos devem adotar a tecnologia e usar a Quarta


Revolução Industrial (4RI) para tirar o continente da pobreza e
conduzi-lo a um futuro melhor, diz o cientista e especialista em
inteligência artificial (IA) sul-africano, Tshilidzi Marwala. Um dos grandes problemas da 4RI é
que o vencedor leva tudo. Na África do
Esta entrevista é publicada por ocasião do Dia Mundial da Sul, tínhamos um mecanismo de busca
África, celebrado na UNESCO em 25 de maio. local chamado Anansi, que coletava
dados locais de forma ativa, mas não foi
páreo para o Google – por isso, deixou
No final dos anos de 1980, o governo um número menor de pessoas do que de existir desde 2011. Poucas pessoas
chinês começou a investir na economia antes. Haverá um aumento acentuado da saberiam dizer qual é o segundo maior
e, desde então, já tirou 800 milhões de desigualdade. Aqueles que dispuserem mecanismo de busca do mundo – a
pessoas da pobreza. O sr. vê o governo de capital adequado para comprar resposta é o Microsoft Bing, mas até
sul-africano sendo capaz de alcançar robôs industriais produzirão mais com eles estão com dificuldades. Não há
resultados semelhantes por meio de menos recursos e se tornarão muito ricos, espaço para um número dois nesta
investimentos na 4RI*, ainda que com enquanto os demais serão relegados à área – o fato de que o Google não está
uma população menor? margem da sociedade. disponível na China é uma grande
vantagem para as empresas chinesas.
Acredita-se que a China seja o último país A África do Sul, e o continente africano,
do mundo a conseguir ganhar dinheiro não têm escolha senão aderir à 4RI e No entanto, os gigantes da internet, assim
com mão de obra barata para tirar as utilizá-la para encontrar soluções para a como a maioria das empresas, não gastam
pessoas da pobreza. Se os robôs forem infinidade de problemas que enfrentam. muito tempo lidando com problemas
utilizados no processo de produção, locais. Por exemplo, o Google Maps não
Todos os governos africanos estão
provavelmente esse processo será ainda pronuncia bem os nomes de nossas rotas
investindo na 4RI?
mais barato do que tradicionalmente locais. Se produzíssemos nossos próprios
foi no passado. Portanto, receio que a Não creio que esse seja o caso, embora mapas nacionais, com as pronúncias
completa automação do processo de existam alguns bolsões de excelência corretas, teríamos uma vantagem sobre
produção anunciada pela 4RI possa encontrados em Moçambique, no Congo, o Google. A chave para a competição é
marcar o custo da mão de obra como um no Quênia, em Ruanda e, até certo ponto, abordar os desafios em escala local.
obstáculo aos olhos dos empregadores. na África do Sul. A mobilização em uma
Até que ponto os países africanos estão se
questão como a 4RI em um continente
Sem dúvidas, a 4RI transformará o mundo tornando produtores de tecnologia da 4RI?
com 54 países é muito mais complicado
do trabalho com máquinas artificialmente
do que em apenas um país, mesmo tão Para ser honesto, eu acho que
inteligentes desempenhando tarefas
grande quanto a China. Considerando produzimos muita tecnologia. Ouço
que eram tradicionalmente realizadas
que os países estão em diferentes muito sobre Elon Musk e seu carro Tesla,
por humanos. Como consequência, o
estágios de desenvolvimento, torna a mas a África do Sul tinha o Joule [um
mercado de trabalho já está encolhendo,
situação ainda mais complexa. carro elétrico para cinco passageiros],
dado que as fábricas têm empregado
que foi descontinuado porque teria
Na minha opinião, a 4RI será sobre
de vender 1 milhão de unidades para
dados – quer sejam dados pessoais,
que o projeto fosse viável. Registramos
* A Quarta Revolução Industrial (4RI) – sendo genéticos, ou produzidos pela própria
muitas patentes, mas nossos mercados
construída sobre a ampla disponibilidade de 4RI. A pergunta que devemos fazer é, os
tecnologias digitais trazidas à nós pela Terceira simplesmente não são grandes o
países africanos estão obtendo dados?
Revolução Industrial (ou digital) – é impulsionada suficiente, então nossos produtos estão
por tecnologias emergentes, baseadas na Receio que não. Os maiores captadores
morrendo nos laboratórios. A economia
combinação de inovações digitais, biológicas de dados da África são as multinacionais
e físicas. Essas tecnologias mais recentes, que dita que você precisa vender 1 milhão
estão mudando o modo como vivemos e
norte-americanas. Quando se trata
de unidades para ser viável. Não basta
trabalhamos, incluem a inteligência artificial (IA) da coleta ou da gestão de dados, a
criar a tecnologia, precisamos também
e a robótica, a internet das coisas (IDC), realidade pontuação da África seria três em uma
aumentada, computação quântica, impressão 3D, criar novos mercados e construir uma
blockchain, manufatura aditiva, neurotecnologias, escala de dez. Este número é alarmante.
estratégia de exportação eficaz.
geoengenharia, e edição de genoma.

56 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


As empresas deveriam desempenhar onde há uma política governamental Uma das primeiras coisas que a África
um papel mais importante nas parcerias para subsidiar as empresas precisa fazer é começar a ter líderes que
público-privadas (PPPs) e com os automobilísticas que produzem aqui. entendam de tecnologia. Em Ruanda,
governos na 4RI? Atualmente, não temos políticas a internet de alta velocidade torna óbvio
semelhantes para empresas envolvidas que o presidente Paul Kagame entende
Com certeza, as empresas devem

RTIFICIAL
na 4RI; e é isso que precisamos fazer de tecnologia. No Quênia, o número de
desempenhar um papel importante.
para avançarmos. A criação de zonas startups da 4RI e o lançamento de moedas
Tenho observado, e este é um ponto de
econômicas especiais para a 4RI digitais deixam claro que o presidente
vista controverso, que há uma cultura
seria uma boa ideia, com governos Uhuru Kenyatta entende de tecnologia.
que não considera a África como um local
oferecendo incentivos fiscais às
de produção. Por exemplo, não existe Na África do Sul, o presidente Cyril
empresas que promovam a produção,
fábrica da Apple na África. É muito mais Ramaphosa é o primeiro líder a colocar
a criação de empregos e ajudem o

INTELLIGENCE
fácil estabelecer parcerias com empresas a 4RI na vanguarda de sua estratégia, e
crescimento econômico.
que têm produção nos países em que ele é um grande defensor da ciência e
operam do que com aquelas que apenas Esses incentivos não deveriam ser apenas tecnologia. Em seu discurso de Estado
importam para o país seus produtos para empresas estrangeiras, as empresas da Nação, em fevereiro de 2018, ele falou
fabricados em outro lugar. locais também deveriam ser beneficiadas. sobre a revolução industrial digital e
se comprometeu a criar uma comissão
Que mecanismos precisamos Isso significa que os líderes políticos
de especialistas em 4RI para definir a
implementar para que as multinacionais precisam desempenhar um papel
estratégia. Precisamos de uma estratégia

Towards a Humanistic Approach


invistam em produção no continente? fundamental no processo de introdução
nacional parecida com a Estratégia
Na África do Sul, a indústria de novas tecnologias.
Nacional da Índia para IA ou com o
automobilística é um bom exemplo,
plano de fabricação estratégico Made in
China 2025 (Produzido na China 2025,
em tradução livre) para transformar-se
em uma força motriz inovadora de alta
tecnologia. Espero que a comissão liderada
pelo presidente Ramaphosa crie uma
estratégia que mobilize as forças políticas,
econômicas e sociais para conduzir a
economia por uma boa trajetória.
Atualmente, o continente africano conta
com 1,3 bilhão de habitantes e ainda
está crescendo – é o continente com
o maior crescimento demográfico do
mundo. Não seremos capazes de lidar
com questões de explosão populacional,
segurança alimentar ou urbanização sem
a tecnologia da 4RI.
© UNESCO / Olivier Marie

Nossos líderes devem entender


a tecnologia – devem ser
desenvolvimentistas em suas visões. E isto
significa necessariamente que, para seguir
adiante, devemos começar a identificar
novos líderes com essas qualidades.

Um dos mais importantes especialistas


sul-africanos sobre inteligência artificial,
Tshilidzi Marwala é vice-reitor da
Universidade de Johanesburgo. Sua
extensa pesquisa sobre IA foi publicada
em periódicos de todo o mundo, e ele
ganhou muitos prêmios, tanto no âmbito
nacional quanto no internacional.

The UNESCO Courier • April-June 2019 | 57


O milagre de Ruanda
Alphonse Nkusi

Um quarto de século após o A tradição ao resgate As prioridades


terrível genocídio de 1994, Foi dada prioridade à unidade e à Com uma taxa média de crescimento de
Ruanda está virando uma nova reconciliação. Para este fim, o gacaca, mais de 7% por ano desde 2000, Ruanda
o sistema tradicional de justiça, é agora um dos principais países africanos
página em sua história. Após foi reinstaurado, permitindo que a em crescimento econômico. Segundo
um longo período de unificação comunidade julgasse os criminosos dados oficiais, seus investimentos em
e reconciliação nacional, está e aceitasse seus pedidos de perdão. agricultura, energia, infraestrutura,
investindo no crescimento Por meio desses tribunais tradicionais, mineração e turismo tiraram mais de
os sobreviventes puderam aprender 1 milhão de pessoas da pobreza.
econômico e concentrando- mais sobre as mortes de seus parentes,
-se em novas tecnologias, Este desenvolvimento é acompanhado
mas também sobre os criminosos que
pela maior integração do país em
com a esperança de tornar-se confessaram suas ações e admitiram
estruturas econômicas regionais, mas
sua culpa. Sentenças diferentes foram
um centro de tecnologia da também sua maior participação na
proferidas, dependendo da gravidade
informação (TIC) na África. comunidade internacional. Com 6.550
dos crimes cometidos. Alguns foram
funcionários, Ruanda é agora o quarto
condenados a serviços comunitários,
maior contribuinte para as operações de
Com este artigo, O Correio participa do outros a penas de prisão. Em dez anos,
manutenção da paz das Nações Unidas.
Dia Internacional de Reflexão sobre o os tribunais gacaca julgaram 1,9 milhão
Genocídio de 1994 contra os Tutsis, em de casos, antes de serem oficialmente No entanto, primeiramente, o país
Ruanda, em 7 de abril. fechados em maio de 2012. quer investir nas pessoas para alcançar
o desenvolvimento inclusivo, e é por
Ao mesmo tempo, instituições
Há 25 anos, o capítulo mais sangrento essa razão que coloca as mulheres
judiciais públicas foram reabilitadas
na história contemporânea da África em primeiro plano da vida pública.
para julgar os casos mais graves. Em
foi escrito em Ruanda. Em 100 dias, um Elas pagaram um preço alto durante a
âmbito internacional, o Tribunal Penal
milhão de pessoas perderam a vida, primavera negra em Ruanda: entre 100
Internacional para Ruanda (ICTR, sigla
deixando para trás um milhão de órfãos, mil e 250 mil mulheres foram vítimas de
em inglês), estabelecido em 8 de
sem contar as viúvas e viúvos. estupro e agressão sexual, essas terríveis
novembro de 1994, reconheceu que
armas de guerra, reconhecidas pelo ICTR
Eu estava em Uganda quando esse drama “genocídio, crimes contra a humanidade
como atos de genocídio. Desde então,
aconteceu em meu país. O país vizinho ao e crimes de guerra foram perpetrados
muitas delas morreram de Aids, contraída
norte havia me acolhido como refugiado em uma escala assustadora”, atingindo
durante os ataques.
em 1962, quando eu era um jovem de “uma taxa de assassinatos quatro vezes
17 anos. Lá, eu estudei na Universidade maior do que o apogeu do Holocausto A fim de assegurar a proteção das
de Makerere, formei minha família e nazista”. Até o momento, o ICTR mulheres, uma Lei de Prevenção e
morei até 2008. No entanto, desde 1994, indiciou 93 indivíduos, considerados Punição à Violência com base em
tenho dividido meu tempo entre Uganda como planejadores e perpetradores do Gênero foi adotada em 2008. Outras
e Ruanda, para cuidar dos órfãos da genocídio. Oitenta deles foram julgados, leis garantem sua plena participação na
minha família e também contribuir para a dos quais 23 cumpriram suas sentenças. vida política e social: ao menos 30% dos
reconstrução de minha terra natal. cargos são reservados para mulheres
Após o genocídio, outro método
em todos os órgãos estatais de todos
Tudo tinha que ser refeito nesse país tradicional foi utilizado para permitir que
os níveis. Essa estratégia reduziu a
ferido. A primeira preocupação da Frente os cidadãos participassem dos assuntos
disparidade entre homens e mulheres
Patriótica Ruandesa, RPF-Inkotanyi, públicos. Consiste em um compromisso
em um ritmo mais rápido. Atualmente,
o partido político liderado na época com as atividades planejadas em um
62% dos parlamentares, 50% dos
pelo atual presidente ruandês, Paul sistema de gestão que prevê contratos
ministros e 40% dos funcionários do
Kagame, foi frear o genocídio e restaurar denominados imihigo. No passado,
judiciário são mulheres.
a paz e a segurança. “Temos aprendido eles eram orais e endossados por uma
lições que deveriam nos ensinar sobre cerimônia. Atualmente, são escritos e A educação e a saúde são outros dois
como construir nosso futuro”, disse ele assinados, mas sua função permanece setores prioritários, que têm absorvido
recentemente em um encontro de líderes a mesma: eles conduzem o indivíduo a 30% do orçamento nacional por vários
empresariais em Charlotte, na Carolina do realizar uma série de tarefas durante um anos. A taxa de frequência escolar nos
Norte, nos Estados Unidos. ano, ao final do qual, seu desempenho é 12 anos de educação compulsória é de
avaliado pela comunidade. 90%, e a cobertura de seguro de saúde
Para construir o futuro, começamos
é de 87%.
por reaprender a conjugar o verbo ser Este método já contribuiu de forma
no plural, e a dizer a nós mesmos que significativa para a melhoria dos serviços Os serviços de saúde melhoraram
somos todos banyarwanda. Esquecer públicos na Ruanda de hoje, que optou consideravelmente em áreas remotas
quem é tutsi, quem é hutu, quem é twa. por uma democracia consensual e pelo desde a chegada da Zipline Drones que,
Superar o ódio. compartilhamento de poder.

58 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


segundo o chefe executivo da startup
norte-americana, fez mais de 4 mil
entregas de sangue e medicamentos
entre outubro de 2016 e abril de 2018.
A educação, também tem mudando,
de forma lenta, mas segura, como
resultado do uso de novas tecnologias
de informação e comunicação (TIC),
particularmente desde o lançamento
da iniciativa “Um laptop por criança”,
em junho de 2008. Mais de 600 mil
laptops foram distribuídos e os alunos
adotaram o compartilhamento de
seu uso diariamente. O projeto,
contudo, enfrentou muitos desafios,
sobretudo pela falta de fornecimento
de eletricidade nas áreas rurais para o
carregamento dos laptops e a falta de
recursos para distribuí-los para mais
de 2,3 milhões de crianças em idade
escolar. Ainda assim, as TIC estão se
desenvolvendo a toda velocidade:
4 mil quilômetros de cabos de fibra ótica
já foram implantados no país, que tem
uma área de superfície de pouco mais de
26 mil quilômetros quadrados. Este ano,
espera-se que a internet sem fio e a fibra
© Marie Moroni

ótica abranjam 95% do país.


A grande maioria da população já
tem acesso a telefones celulares e,
dos aproximadamente 13 milhões de Celestial Eye (Olho celestial, em tradução
habitantes, mais de 4 milhões já podem livre), um bordado da série Ibaba da
comprar e pagar suas contas, impostos, designer francesa Céleste Mogador, criado
e até multas de polícia por meio de na oficina de bordados Ibaba Ruanda, na especialista senegalês Moustapha Cissé,
aplicativos móveis. O mesmo se aplica zona rural de Ruanda, onde as mulheres chefe do centro de pesquisa em IA do
aos procedimentos administrativos. finalmente voltaram ao trabalho após Google em Gana, e pelo Instituto Africano
Basta visitar o portal Irembo (a palavra uma interrupção de 19 anos. de Ciências Matemáticas (AIMS, sigla em
significa acesso na língua quiniaruanda) inglês), em Kigali.
para encontrar a maioria dos serviços
Um quarto de século após o genocídio
governamentais online. milhares de jovens gratuitamente,
contra os Tutsis em Ruanda, a nação
ajudando a lançar 60 empresas, quatro
dividida, devastada, em ruínas,
Olhando para o futuro das quais tornaram-se líderes em suas
áreas de atuação, e duas das quais se
necessitada de reconstrução e
reabilitação, está hoje resolutamente
Ruanda está se concentrando no expandiram internacionalmente. É um
olhando para o futuro e preparando o
desenvolvimento tecnológico para dos vários centros de inovação que
terreno para o que um dia poderá ser
garantir um futuro melhor. As transações se desenvolveram, particularmente
chamado de o milagre de Ruanda.
bancárias são facilitadas por meio de em Kigali, a capital, visando a
serviços móveis. Os líderes de negócios oferecer aos jovens ruandeses novas
têm acesso ao comércio eletrônico oportunidades profissionais.
por meio da Plataforma de Comércio
A Cidade da Inovação, que será
Eletrônico Mundial (eWRP, sigla em
construída no marco da África50, a
inglês), lançada em outubro de 2018 Nkusi Alphonse (Ruanda) foi analista
plataforma de desenvolvimento de
pela gigante de comércio eletrônico sênior de mídia no Conselho de
infraestruturas do Banco Africano
da China, Alibaba. O transporte urbano Governança de Ruanda, editor do New
de Desenvolvimento (AfDB, sigla em
é facilitado pelos serviços de carro e Vision, um dos dois jornais diários mais
inglês), também promete um futuro
motocicletas controlados por meio de importantes de Uganda, e professor de
tecnológico brilhante para Ruanda,
aplicativos móveis. Comunicação Social na Universidade
que está agora bem posicionada para
Makerere, em Uganda.
Entre esses últimos, a SafeMotos, se tornar uma plataforma regional de
apelidada “o Uber das moto-táxis” TIC. Especialmente desde setembro de
nasceu em kLab, um centro de inovação 2018, a inteligência artificial (IA) entrou
tecnológica considerado o mais dinâmico oficialmente no currículo universitário,
do país. Desde 2012, o centro tem treinado graças a um mestrado lançado pelo

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 59


Gran Pajatén,
“nossa fortaleza geográfica”
Roldán Rojas Paredes,
entrevistado por William Navarrete

Era uma região devastada pela


produção intensiva de borracha
no século XIX e ocupada por
cartéis de drogas e guerrilheiros,
transformada em uma zona sem
lei e tomada por plantas de coca
e pelo tráfico rotineiro da cocaína
nos anos de 1980. No entanto,
atualmente, milhares de pessoas
vivem da economia agroflorestal
mista nessa região, plantando
cacau e outras culturas. Nessa
área da Cordilheira Central do
Peru, a UNESCO designou a
Reserva da Biosfera Gran Pajatén
em 2016. Roldán Rojas Paredes
estava no cerne desse projeto.
Piscicultura no vilarejo de
Com esta entrevista, O Correio participa
Santa Rosa, no Peru.
da celebração do Dia Internacional da
© PUR Projet / Christian Lamontagne
Diversidade Biológica, em 22 de maio.

Como o sr. descreve a Reserva da Biosfera e proporciona ótimas oportunidades para a economia agroflorestal mista, que
Gran Pajatén para alguém que nunca as gerações futuras. é particularmente bem adequada à
ouviu falar dela? produção de cacau, porque os cacaueiros
Pessoalmente, sempre fui ligado ao
florescem à sombra de outras árvores.
É um lugar extraordinário, caracterizado trabalho na terra, às nossas florestas
por uma grande diversidade natural primárias, à sua impressionante A inscrição da nossa região na Rede
e cultural, pois reúne dois habitats vegetação e energia direta que se recebe Mundial de Reservas da Biosfera da
completamente diferentes – os Andes e delas quando se mora aqui. Minha vida UNESCO (WNBR), em 2016, nos deu
a Amazônia. Com cerca de 2,5 milhões de sempre esteve intimamente ligada à um tremendo impulso. Vimos isso
hectares, a reserva abriga 5 mil espécies riqueza cultural, às lendas, à imaginação, como um sinal de reconhecimento dos
de plantas e mais de 900 espécies de à música e à gastronomia desse lugar. Por esforços que temos feito para nos tornar
animais, das quais cerca de 30 são isso saí para estudar em Lima, a capital, a principal região produtora de cacau
endêmicas. Também abrange o Parque com toda a intenção de retornar para me orgânico do Peru.
Nacional Rio Abiseo, inscrito na Lista dedicar à promoção desse patrimônio
Este reconhecimento internacional
do Patrimônio Mundial da UNESCO em excepcional. E foi o que fiz.
abriu novas oportunidades para a
1990, que tem uma abundância de ruínas
O que a designação de Gran Pajatén Fundação Amazônia Viva (Fundavi), que
arqueológicas. Desde meados da década
como uma reserva da biosfera da trabalha para conservar o ecossistema
de 1980, 36 sítios pré-colombianos foram
UNESCO significa para os 170 mil de Gran Pajatén. Agora, empresas
descobertos aqui, em altitudes que
habitantes da região? que anteriormente eram céticas e nos
variam entre 2,5 mil e 4 mil metros.
desprezavam, estão se interessando por
A população local sofreu muito no
Para aqueles de nós que nasceram aqui, nós. Poderosa, a empresa de mineração
passado, atormentada por cartéis de
tudo isso constitui um legado único, pelo de metais preciosos, por exemplo, está
borracha e de drogas, e até mesmo por
qual nos sentimos responsáveis e que nos investindo em pesquisa arqueológica
guerrilheiros. No entanto, no início dos
obriga a pensar a longo prazo. (recentemente publicou um excelente
anos 2000, o renascimento da cultura do
manual), em pesquisa agrícola (lançou
Vejo esta reserva como nossa fortaleza cacau permitiu que milhares de pessoas
um estudo sobre batatas) e nos
geográfica, que nos oferece condições escapassem da pobreza e da exclusão.
forneceu materiais didáticos para as
ideais para uma melhor qualidade de vida Ao longo do tempo, desenvolvemos
escolas primárias.

60 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


Queremos
Também temos recebido ofertas de ou de fazendas de apicultura. Também
novos investidores estrangeiros, como a pretendemos fazer alianças com outras
Chanel, o estúdio de moda francês, que reservas da biosfera no Peru e em outras
assinou um acordo de colaboração com
nosso projeto Biocorridor Martín Sagrado
REDD +, para reduzir as emissões de
partes do mundo.
Não temos interesse em competição.
nos tornar
gases do efeito estufa.
O sr. poderia nos falar mais sobre
Queremos combinar estratégias,
apresentar e melhorar nossas atividades,
e nos tornar uma fonte de inspiração para
uma fonte
esse projeto?
Ele prevê a conservação e o
todos – em termos de excelência de nosso
trabalho e ensino. de inspiração
desenvolvimento de 300 mil hectares
de florestas primárias gerenciadas por
comunidades locais em Alto Huayabamba,
Também estamos interessados em
envolver mais universidades, empresas, a
sociedade civil, o Estado e lutar por uma
para todos,
que é adjacente ao Parque Nacional
Abiseo. Lançado em 2010 por um período
mais cooperação internacional, a fim de
aproveitarmos desse fabuloso “título” de
em termos de
de 80 anos, é financiado pelo Projeto
PUR, uma empresa de negócios sociais
francesa, e o projeto Jubilación Segura
reserva da biosfera – para garantir que o
agricultor, que trabalha em sua terra dia
após dia, sinta-se ligado ao mundo inteiro.
excelência de
(Aposentadoria Segura). Este último é
um projeto de 40 anos que implementa nosso trabalho
e ensino.
modelos agroflorestais projetados para
criar uma nova economia rural sustentável
por meio de um plano de reflorestamento
Nascido em Tarapoto, a 136 quilômetros
e sequestro de carbono, que ajuda a
de Jianjuí, a capital da província de
revalorizar a terra para interromper o ciclo
Mariscal Cáceres, no noroeste do
de pobreza dos agricultores que não têm
Peru, Roldán Rojas Paredes foi a
pensão de aposentadoria.
força motriz por trás da criação da
Quais são os próximos passos Reserva da Biosfera de Gran Pajatén.
planejados pela Fundavi? Atualmente, ele é diretor executivo da
Fundação Amazônia Viva (Fundavi), que
Estamos começando a compartilhar
trabalha para conservar o ecossistema Joel Díaz planta uma árvore
experiências entre os diferentes
da reserva, e em 2001, foi membro como parte do Projeto PUR de
membros em nossa reserva da biosfera,
do primeiro comitê gestor do Parque reflorestamento, na Reserva da
como a criação de jardins botânicos
Nacional Rio Abiseo. Biosfera Gran Pajatén, no Peru.
© PUR Projet / Christian Lamontagne

O Correio da UNESCO • abril-junho 2019 | 61


Edições UNESCO
United Nations
Educational, Scientific and
Cultural Organization
www.unesco.org/publishing
publishing.promotion@unesco.org

Estudo sobre as Professores do Brasil: Jornalismo, fake news e


concepções curriculares novos cenários de formação desinformação:
no Brasil Autoras: Bernardete A. Gatti; Elba Siqueira de manual para educação e
Autor: Maximiliano Moder Sá Barretto; Marli Eliza Dalmazo Afonso de treinamento em jornalismo
André; Patrícia Cristina Albieri de Almeida
Brasilia: UNESCO, 2019. 63 p. Título original: Journalism, 'Fake News' and
Brasília: UNESCO, 2019. 351 p.
Disinformation: A Handbook for Journalism
A publicação é uma análise sobre os Education and Training, publicado pela
diferentes projetos curriculares existentes Um dos elementos-chave para garantir a UNESCO em 2018.
no Brasil. Ele responde à necessidade de educação inclusiva e equitativa de Editores: Cherilyn Ireton e Julie Posetti
uma descrição abrangente sobre visões e qualidade e promover oportunidades de
Brasília: UNESCO, 2019. 128 p., il.
perspectivas distintas em torno do tema aprendizagem ao longo da vida para
de desenvolvimento de um currículo de todos é “aumentar substancialmente a
Esta é a versão em português da mais
qualidade. O estudo descreve uma visão oferta de professores qualificados”. Em
recente contribuição para fortalecer o
geral das principais características dos 2009, foi publicada a primeira edição
ensino de jornalismo. É parte da Iniciativa
27 currículos desenvolvidos em cada uma deste trabalho que ofereceu um balanço
Global pela Excelência na Educação em
das unidades federativas do Brasil. Não da situação em relação à formação de
Jornalismo do Programa Internacional
pretende se concentrar ou recomendar professores para a educação básica no
para o Desenvolvimento da Comunicação
qual é a melhor opção ou qual é o melhor Brasil com a intenção de mostrar o
(PIDC) da UNESCO, que procura envolver-
projeto de currículo. O objetivo da cenário de desenvolvimento de carreira
-se com o ensino, a prática e a pesquisa
pesquisa foi estabelecer um panorama do dos professores, bem como a educação
do jornalismo de acordo com o panorama
estado da arte da construção curricular nas ao longo da vida. Também abordou
global, incluindo o compartilhamento de
cinco regiões do país, mostrando como questões relacionadas à carreira e salário
boas práticas internacionais.
estados e municípios no Brasil pensam dos professores. Após oito anos, o livro
Consequentemente, o presente manual
e desenvolvem seus currículos. A partir continua sendo uma referência
procura servir como exemplo de currículo
da análise das matrizes curriculares dos importante para esse campo no Brasil.
internacionalmente relevante, aberto à
estados brasileiros, como são construídas Além disso, o contexto das questões de
adesão ou adaptação, como resposta ao
e seus conteúdos, encontrou-se, como qualificação dos professores brasileiros
problema decorrente da desinformação
poderão ver nos resultados da pesquisa, permanece basicamente o mesmo. Por
global que confronta as sociedades em
uma variedade de terminologias e esta razão, foi decidido publicar uma
geral, e o jornalismo em particular.
concepções curriculares que indicam edição atualizada e revisada de tal
as desigualdades educacionais que estudo importante.
distanciam as regiões do país.

62 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2019


Um mundo, muitas vozes
O Correio da UNESCO é publicado nas seis línguas oficiais da
Organização, e também em português, esperanto, siciliano e coreano.
Leia a revista e a compartilhe amplamente pelo mundo.

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© All rights reserved © Photo: UNESCO / J. C. Bernath

Prometheus Bringing Fire to Mankind (Prometeu trazendo fogo à humanidade,


em tradução livre), de Rufino Tamayo (1899-1991), México. Assinado e datado
“Tamayo 9-58” (500x450 cm), este afresco faz parte da coleção de arte da
UNESCO desde 1958.

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