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Uma mulher e uma obra – Astrid Cabral

Carlos Antônio Magalhães Guedelha1

Astrid Cabral

Sua viagem pelos bosques da poesia


inicia na alameda iluminada.
É o torna-viagem da ironia
da mulher que se fez rês desgarrada.

Prossegue em estações e antessalas


nos desvãos e intramuros da memória.
Há mergulhos nos abismos e nas jaulas
para Alice recontar a sua história.

E nos pontos de cruz vão se tecendo


alinhavos de amor, paixão e mágoa
da terra que de terna se fez visgo.

As dores sem remédio nem remendo


deixaram os seus olhos rasos d’água:
não se faz essa viagem sem perigos.

(Carlos Guedelha, Poesia das fontes)

1 O veio que não secou...

O primeiro contato que tive com os escritos de Astrid Cabral ocorreu


quando eu fazia graduação em Letras, na Universidade Federal do
Amazonas. Foi mais que isso: os meus primeiros contatos com o universo
poético amazonense e amazônico fizeram-se através da lírica de Astrid. E a
imersão em sua obra foi tão intensa que resultou daí minha dissertação de
Mestrado, com o título “Manaus de águas passadas – a recriação poética de
Manaus em Visgo da terra, de Astrid Cabral”, no ano de 2001.
Quando tive a oportunidade de conhecê-la pessoalmente, ela
autografou para mim o livro-reunião De déu em déu (1998) e afirmou em tom
professoral, com visível convicção: “Se você quer me conhecer melhor, leia o
meu trabalho. Ele diz mais do que eu possa dizer”. E acrescentou em
seguida: “A poesia é o encontro comigo mesma, a restauração da identidade
do meu ser”. Compreendi que ali estava sendo verbalizado um traço

1
Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia – Literatura; professor da Universidade Federal
do Amazonas.
fundamental do universo literário: o artista confunde-se com a sua obra.
Afirmo isto a despeito das conhecidas disposições em contrário,
sustentadas por Heidegger, Blanchot e Barthes, por exemplo. Apoiando-se
na natureza ambígua do texto literário e na possibilidade de interpretações
múltiplas, eles excluíam da obra qualquer vestígio de intenção do autor. Eu
também quero passar ao largo do inócuo biografismo, tão cultivado no século
XIX e tão execrado pelas correntes textualistas do século XX. Mas acho
pertinente não desprezar os liames entre o autor e sua obra, pois tentar
separá-los, o autor e a obra, tem se revelado também uma tentativa inócua.
A trajetória lírica de Astrid é a trajetória de uma vida que se reproduz
em muitas outras pela mediação da arte – uma mulher que se poetizou nos
muitos “eus” que criou em uma dúzia de livros, sendo um de contos, um de
literatura infantil e dez de poemas.
Alameda foi seu primeiro livro, de contos, publicado em 1963.
Composto de 20 contos, lavrados todos numa linguagem densamente
poética, já é, na verdade, o início do trajeto lírico que Astrid viria a percorrer
na linha do tempo. Nesse livro, as fronteiras entre prosa e poesia são
inteiramente suspensas, e a ilusão da “pureza dos gêneros” (lírico x
narrativo, conto x crônica, poesia x prosa) sofre uma implosão irreversível,
pois para ela “classificações são gavetas estreitas”2. Tanto individualmente
quanto no seu conjunto, os contos metaforizam o destino humano sutilmente
disfarçado no destino das plantas, que são as personagens das narrativas.
Em Alameda a morte em potencial, o cerceamento da liberdade, a
iminência da destruição, a fragilidade da matéria transformam-se em
imagens recorrentes, renitentes. Isso gera um forte sentimento de angústia,
abandono e solidão. Leio Alameda como quem contempla um grande quadro
cuja moldura é o existencialismo de matriz sartriana, como bem observou
Paulo Graça na apresentação do livro. Carregada de epifanias, a obra tece
diálogos sutis com Joyce, Borges e Clarice. Todos os protagonistas
pertencem ao reino vegetal e animal. São flores, arbustos, árvores, frutos,
sementes, pássaros etc. todos fadados à cinza mas nutrindo sonhos de vida
e perpetuação. Ou seja, a quase ausência humana nos textos é, na verdade,
2
Em entrevista a Álvaro Alves de Faria, para o jornal Rascunho, nº 45, Curitiba, janeiro de 2004.
uma forma alegórica de presença. Ocultada pelas sutilezas da metáfora e da
metonímia, é a própria humanidade que – paradoxalmente – ama e mata,
vive e morre, sonha e destrói na contística de Astrid.
Ponto de Cruz (1979) e Lição de Alice (1986) são dois livros em que o
mundo é visto pela ótica feminina, num permanente olhar da mulher ora para
dentro de si mesma ora para os detalhes do mundo exterior, mesmo aqueles
fatos diários e objetos considerados prosaicos e insignificantes. Ela lança as
luzes da metáfora sobre os episódios domésticos, sempre numa atitude crítica
com vistas a reorganizar um mundo que se encontra de ponta-cabeça. Daí se
falar em forte dicção lírica feminina nas duas obras.
Ponto de Cruz subdivide-se em três seções: a primeira, não titulada,
celebra o amor e o erotismo, focalizando o exercício do ofício amoroso; a
segunda parte, intitulada “Carrossel dos dias”, metaforiza a angustiante
realidade da fugacidade do tempo e da efemeridade da vida; a terceira,
denominada “Pequeno Mundo”, tematiza a pequenez do ser humano e seu
cotidiano tacanho. Esse cotidiano é apresentado ao leitor através de
fragmentos, recortes, como metonímias do todo.
Lição de Alice contém duas partes: a primeira, sem título, apresenta a
vida como uma eterna aprendizagem; na segunda, “Rio do Tempo”, o rio é
tomado como metáfora do tempo que flui inexoravelmente, deixando apenas as
marcas da sua passagem. É um livro em que a Alice de Lewis Carroll,
habitante do país das maravilhas, cede lugar a uma outra Alice, que habita este
“mundo cão” em que pisamos e nos movemos.
Assim, nas duas obras, presentifica-se a mulher com um olhar
revisionista sobre o mundo que a cerca. Mostra que é preciso reinventar o
mundo. Como lembra Cecília Meireles, “a vida só é possível reinventada”, e só
a arte pode operar essa reinvenção. É isso que Astrid faz através de sua arte:
reinventa o mundo. Um bom exemplo desse olhar revisionista é o poema
“Cardápio”, do livro Lição de Alice:

Nosso cardápio diário


inclui carnes assadas
e angústias bem passadas.
Inclui sangrentos nacos
cobertos de molhos pardos
que sabem a desgosto.
Inclui mil hipocrisias
devidamente empanadas
e servidas à francesa
bem antes da sobremesa
de frutas esquartejadas.
Inclui entre as iguarias
amizades congeladas
sonhos em banho-maria
deleites de amor requentado
em rançosos azeites.
Ódios com pó de pimenta
e as trêmulas gelatinas
de dúvidas coloridas.
Inclui o tédio guarnecido
de exóticos temperos.
Inclui o medo camuflado
em camadas de batatas.
Inclui a morte servida
sem o menor escrúpulo.

Torna-viagem (1981) e Rês desgarrada (1994) promovem viagens


líricas em outras geografias, diferentes da brasileira. O eu-lírico assim se
pronuncia: “Solto meus cavalos de sonhos no hipódromo deserto e vago... e lá
vão eles a perder de vista galopando eras”.
Em Torna-viagem, o eu-lírico, movido pelos ventos da poesia e pelas
correntezas da imaginação, empreende uma viagem de retorno ao Oriente
próximo, onde Astrid vivera, e à Grécia. O resultado dessa aventura são os
poemas-postais que oferecem ao leitor cenas flagrantes da vida oriental.
Paisagens, escombros, ruínas, guerra, mar, deserto, rebanhos, clima,
vegetação, comércio, religião, relações sociais. E como não poderia deixar de
ser, essa cultura e tradição diferentes aparecem temperadas com o
contraponto do sentimento amazônico. O absurdo e a estupidez da guerra são
retratados, por exemplo, no poema XX (todos os poemas desse livro são
numerados com algarismos romanos e não possuem títulos):

Em que beirais se refugiam


agora os pássaros de Beirute
quando cegas balas atravessam
tardes a arremedar-lhes os voos?
E as pessoas? Onde se escondem elas
ao esmorecerem do calor da guerra
a sede de viver vencendo o ódio?
Antes, o caldo inocente das laranjas
sanguíneas espremidas nas esquinas.
Hoje, o sumo de crianças e homens
o que nas ruas ferozmente se imola.
Haverá quem ainda diga massalame
invocando a suprema dádiva da paz?
Ou tomados de sagrado espanto
condenam-se todos ao silêncio
ante a impotência das palavras
corações vazados de dor recusando
as cinzas da assassinada harmonia?

Em Rês desgarrada, livro que foi dedicado aos amigos de Chicago,


opera-se um giro turístico pelas paisagens urbanas e naturais daquela cidade
norte-americana. Mas o tom é de exílio, e isto justifica o título do livro: uma rês
dos pastos amazônicos perdida em pastos alheios, como bem confessa o eu-
lírico ao se identificar como vaca na balsa, rês desgarrada, sofrendo com
saudade dos “pastos brasis”. No poema “Velha América” há, inclusive, o grito
ecológico ante a constatação de um mundo postiço em que vive o “novo”
continente:

Desembarquei na América
com atraso de séculos.
Os búfalos já nos livros
árvores na ciranda do papel
rios rolando turvos
sob o dossel das fumaças.
A América de perto
foram manadas metálicas
fluindo no canyon
de montanhas quadradas.
Homens parafusos de máquinas
a paz das nuvens rompidas
por revoadas de alumínio.

Onde está aquela América


réplica selvagem do Éden?
Onde se refugiam os
centauros dos anos quarenta?
cowboys e peles-vermelhas
galopando pasto afora
em telas preto-e-branco...

Em 1986, veio à luz o livro Visgo da Terra, caso único de um livro


inteirinho voltado para a cidade de Manaus, não a Manaus de hoje, mas a da
primeira metade do século XX – a cidade que serviu de chão e cenário para a
infância e adolescência da poeta. Aqui opera-se o inusitado encontro da
mulher de hoje com a adolescente de então, numa densa viagem pelos
meandros da memória por uma cidade que não mais existe, uma vez que o
tempo a tornou pardieira. A menina serve de cicerone à mulher, e assim
ambas revisitam os seres, casas, ruas, instituições, crenças, relações sociais
e valores daquela “Manaus de águas passadas”.
A metáfora do título do livro faz ver ao leitor que, mesmo tendo Astrid
Cabral morado tantos anos fora do Amazonas (Rio de Janeiro e Brasília,
especialmente) e fora do Brasil (Estados Unidos e Líbano), Manaus ficou
colada à sua alma, exatamente como um visgo. Cada poema, cada verso,
cada imagem do livro apontam nessa direção.
O que ocorre em Visgo da terra é a construção da cidade nos moldes
apresentados por Raquel Rolnick, no livro O Que é cidade: superpõe-se uma
natureza segunda (obra humana) sobre uma natureza primeira (obra divina).
Fabricada pelo homem, essa natureza segunda tende a ser reconstruída de
diferentes maneiras na linha do tempo. A escrita é uma dessas formas de
recriação, e se utiliza de uma arquitetura menos material e mais espiritual,
baseada nos signos verbais. Complementando essa ideia, a escritora Sandra
Pesavento, em O Imaginário da cidade, explica que o artista, munido de
sensibilidade, exercita o olhar literário e cria uma cidade do pensamento sobre
a cidade de pedra. Essa segunda cidade (do pensamento), concretizada em
palavras e imagens literárias, é o dizer do poeta sobre o espaço urbano que o
inspirou. É o caso de Visgo da terra.
Em 1998, Astrid brindou o público leitor de poesia com um livro-reunião,
no qual foram agrupados todos os seus livros de poemas escritos até ali.
Intitulado De déu em déu, esse livro representou a síntese de sua trajetória
poética na linha do tempo (1979 – 1986), o que correspondia a cinco livros em
um.
O ano de 1998 viu nascer também o livro Intramuros. Astrid o dedicou a
todas as mulheres que, à sua semelhança, põem a mão na massa do pão e
da palavra, a quem ela chama de companheiras. Mulheres que, para realizar
o ofício da palavra, não abdicaram do ofício do pão – ambos igualmente
necessários à manutenção da vida, pois se o pão alimenta o corpo, a literatura
alimenta o espírito. Em Intramuros a mulher transita entre esses dois ofícios e
vai dando encantamento aos elementos das lides domésticas. É que a mulher,
libertando-se dos muros que a cercam cotidianamente, multiplica-se em feras
indomáveis, gozando até a exaustão a liberdade conquistada por meio da
poesia e de sua expressão. Dessa forma, os muros cotidianos não são
suficientes para prendê-la, para retê-la em seus ímpetos de gozo, tormento ou
fúria.
No livro Rasos D’água (2003), o amargor que Astrid sempre contrapõe
à ternura se acentua sensivelmente. A mulher sofre os estigmas do
envelhecimento, da chamada terceira idade. Agora os olhos se voltam mais
para trás do que para a frente. O ímpeto e o fogo da infância e da
adolescência cedem lugar à reflexão assentada e quieta, embora
contestadora, da mulher que passa a vida em revista. A água, em suas
multifacetadas formas, é ao mesmo tempo testemunha e agente dessa
condição humana de caminhar inexoravelmente rumo à decrepitude. A chuva,
o rio, o mar e outras fontes de água metaforizam a instabilidade da vida, a
inconsistência do mundo, a fluidez da existência. Mas a síntese das sínteses
no que se refere à água concretiza-se através das lágrimas. Estas são
expressivas das perdas e ganhos ao longo da vida, inclusive a perda do
amado, cuja morte semeia-se por quase toda a obra.3
O livro divide-se em duas partes. Na primeira, ancorado em Jorge de
Lima, o leitor fica sabendo que o ser humano, cercado pelos limites que o
envelhecimento lhe impõe, não pode mais singrar os grandes mares, mas tem
sempre à sua disposição um “copo de mar” para navegar. A navegação,
então, opera-se unicamente por meio do sonho e da fantasia; na segunda
parte, o leitor pode aprender, em diálogo com Guimarães Rosa, que os
barquinhos de papel podem navegar em qualquer oceano. E se barquinho de
papel é o que resta, navegar é preciso. É o contraponto às subtrações e
castrações que o tempo forja no corpo e na alma do ser humano.
Os dois poemas a seguir, “Saudade” e “Acimabaixo”, são expressivos
da impotência humana ante a inexorabilidade do tempo, com suas
desconcertantes antíteses entre o ontem e o hoje:

3
O seu esposo, o também poeta Afonso Felix de Sousa, morreu no dia 7 de setembro de
2002, no Rio de Janeiro, um ano antes da publicação do livro Rasos d’água.
Saudade
Já disse e repito:
aos dezoito, saudade
era trissílabo, paroxítono
e nada mais.
Hoje, saudade é sangue
sangria desatada
correnteza no mangue
de mim mesma.

Acimabaixo

Longe fica a fonte.


alcançá-la
é cruzar águas contrárias.

Perto fica a foz.


atingi-la
é deixar-se
à deriva veloz.

No livro Jaula, publicado em 2006, Astrid “solta os bichos” de sua jaula


poética. Apresenta ao leitor uma movimentadíssima fauna em que as
fronteiras entre o humano e o animal são praticamente diluídas, uma vez que
a poeta enfatiza a animalidade do homem ao mesmo tempo em que sugere a
humanidade do animal. Fala de animais como pretexto para falar de gente, ao
inconfundível sabor da metáfora. É o que se pode ler, por exemplo nos
expressivos versos do poema “Cave canem”: “Dentro de mim há cachorros /
que uivam em horas de raiva / contra as jaulas da cortesia /
e as coleiras do bom senso.” Aqui as jaulas e coleiras são as amarras das
convenções sociais criadas para domar a fereza bruta do ser, e contra isso o
eu-lírico se revolta, evocando o cachorro uivante que carrega consigo.
Como observa Igor Fagundes, no prefácio do livro, os poemas de certa
forma contradizem o título da obra, pois os bichos estão soltos, as feras estão
libertas, não há grades nem cadeados. Assim, Astrid inaugura, pela palavra
poética, um tipo especial de jaula, a jaula-poesia – esta aberta a múltiplas
leituras – e ali aprisiona os seus bichos na metáfora, para em seguida soltá-
los. Trata-se de uma intensa expressão de humanidade.
Em 2007, Astrid publicou o livro Ante-sala. Nele, a poeta parece dar
eco a dois versos do também poeta amazonense Alencar e Silva, autor de
Lunamarga: “Tudo traz sob a pele a sua morte” e “tudo caminha para um
presumível fim”. Todos os humanos e todos os seres vivos em geral estão
fadados à morte, e os poemas nos convidam a refletir sobre este estigma
humano de finitude. Mas entre a vida e o momento final (e fatal), decorre o
tempo, que nos obriga a pairar numa sala de espera, que é a antessala da
morte. E se tudo traz sob a pele a sua morte, essa sala de espera se abre
para nos receber a partir do momento em que nascemos, ou seja, nascemos
para morrer. No entanto, a constatação irrefutável desse estado de antessala
ganha maior visibilidade com a velhice, que faz avultar a expectativa e a
iminência da partida. Nesse sentido, o livro dialoga com os seus irmãos Rasos
d’água e Alameda, por mostrar que a morte espreita a vida, como realidade
inelutável. De certa forma, os poemas obrigam-nos a um flagrante cara-a-cara
com a morte. Morte e vida se entrelaçam e se complementam. Esta é a
constatação do eu-lírico em “Morte adiada”: “Chamo à vida sobremorte / e à
morte sobrevida”. Todos na antessala, alguns se desesperam, outros se
resignam e apenas esperam, e assim a humanidade segue a sua marcha
neste planeta “tisnado de morte”.
Quando Astrid publicou Intramuros, em 1998, teve a generosidade de
me presentear com um exemplar autografado, onde ela registrou, entre outras,
a seguinte frase, que já peço absolvição pela total indiscrição de publicá-las:
“[...] Como você pode ver, o veio ainda não secou”. Intramuros era, naquele
instante, a mais nova pérola de Astrid, o seu oitavo livro, e depois viriam ainda
mais três, cada um com os seus traços peculiares de genialidade.
Enfim, mais de uma dezena de livros de poesia (incluindo Alameda, que
são contos grande poeticidade) constituem o legado com que Astrid Cabral até
o momento nos brindou. Creio que ainda nos brindará com outros livros da
mesma qualidade. Em cada título, uma expressiva metáfora. Se nos
debruçássemos apenas sobre os títulos de seus livros, já teríamos matéria
suficiente para grandes voos interpretativos. Todavia, navegar em seus
poemas nos permite imergir nas contingências da humanidade e voltarmos à
tona mais humanos.
Sua obra promove um entrelaçamento vivo e exuberante entre poesia e
filosofia, traço que marca toda a sua escritura poética, aliado à dicção feminina.
A mulher, com um olhar crítico e revisionista sobre o mundo, tenta reinventar a
vida. Em suas obras tomamos contato com uma mulher que revolve o passado
com os olhos da memória. E nessas multifacetadas viagens poéticas, o já
vivido esparrama-se em direção ao presente, encharcando-o e permeando-o
irreversivelmente; em outras ocasiões, exercita o olhar expectante em direção
ao futuro, perscrutando o porvir.
Enfim, pela qualidade de sua obra Astrid Cabral é um dos nomes mais
significativos da poesia amazonense e também da literatura brasileira
contemporânea. Ainda bem que o veio não secou. Para o regozijo de todos os
amantes da boa poesia, espero que nunca seque.

2 Narciso faz strip-tease...

Em entrevista, ao receber o prêmio nacional Troféu “A Enxada”, em


1981, Astrid lançou mão de uma estonteante metáfora para falar sobre a sua
poesia: esclareceu que a mesma tem “uma vinculação existencial profunda.
Jorra mais de experiências pessoais que de leituras. É uma espécie de strip-
tease espiritual”, porque ela se apresenta em seus poemas “sem o pudor das
máscaras, com uma franqueza quase brutal.”4
Assim sendo, sinto-me autorizado a ver este “Olhar de Narciso”, sobre
o qual tenho o privilégio de me pronunciar, como strip-tease espiritual
despudorado (desculpem-me o contrassenso) diante de um sem-número de
“voyeurs espirituais” famintos: entrevistadores na primeira fila e leitores na
retaguarda, entre os quais me situo. O conjunto é formado, na sua quase
totalidade, por textos de entrevistas que a poeta concedeu no período de 1963
a 2006. Os entrevistadores, competentíssimos, foram felizes no atiçamento do
“espírito narcísico” de Astrid, estimulando-a a mostrar o que eles desejavam
ver.
A inteligência grega nos ensinou que o que caracteriza o Narciso é o
olhar. Ou o desejo forjado pelo olhar. A sina de Narciso é olhar sempre para
sua própria imagem, ao ponto de ser devorado pelo encanto avassalador da
autocontemplação. No decurso do tempo, aquela fonte mítica sobre a qual
Narciso se debruçara foi cedendo espaço a outros elementos simbólicos

4
Todas as citações textuais de Astrid Cabral, a partir daqui, foram extraídas dos textos que
compõem este “Olhar de Narciso”.
ligados à imagem, como o espelho.
O psicólogo britânico Havelock Ellis, em 1898, possivelmente foi o
primeiro a utilizar o mito grego para se referir à postura feminina diante do
espelho. Mas de qualquer forma, o Narciso grego amou a sua imagem foi
mesmo através do “espelho” da fonte em que se mirava. Assim, os narcisos
modernos olham-se no espelho para se admirarem de sua própria beleza
espelhada. E o que são os poetas, senão verdadeiros narcisos? Suas obras e
as estruturas poéticas que criam carregam muito do seu ser e constituem o
espelho no qual se miram.
Da estrutura do mito grego de Narciso, a civilização ocidental recupera
alguns motivos que, sob multifacetadas formas, são recontados na arte e,
especialmente, na poesia. Entre essas formas de recuperação do mito,
destaco a técnica do autorretrato, as estruturas especulares e a necessidade
de ser reconhecido pelo olhar do outro, além da construção do duplo, é claro.
Freud, considerado o pai da Psicanálise, ocupou-se bastante das expressões
narcísicas.
Mas aqui, diante desta seção de escritos, vi-me às voltas com uma
questão que tinha de resolver: como conciliar o espírito narcísico (que tem
prazer na autocontemplação) com o espírito stripper (cujo prazer consiste em
se mostrar)? A saída que encontrei foi imaginar a fusão desses dois
elementos em um só: um narciso que se despe e se mostra de corpo inteiro. E
na verdade é isso que acontece nesta seleção, pela poeta, de falas sobre
seus escritos pessoais. Um convite ao voyeurismo intelectual, através das
frestas disponibilizadas. Assim sendo, sigamos em frente. Aceitei o papel de
voyeur lírico e quero compartilhar com quem me lê as cinco frestas que mais
me atraíram o olhar.
A primeira fresta proporcionou-me o êxtase da estimulante fala de
Astrid sobre a elaboração de Alameda, quando ela afirma que o seu maior
pecado foi ter feito concessões de cunho realista, por não ter se restringido à
ficção pura naquele livro. Mas eu entendo que esse “pecado”, se é que ele
realmente existe, em nada prejudica a qualidade do livro. E ainda bem que
Deus perdoa os pecados, e os esquece. Pelo menos é isso que garantem as
Sagradas Escrituras, por meio de um dos seus mais represtativos porta-
vozes: o também poeta e salmista Davi. No Salmo 103: 3, afirma que “Ele
perdoa todas as tuas iniquidades e sara todas as tuas enfermidades”. O
profeta Isaías (43: 25) ratifica essa garantia, ao dizer que Ele se esquece dos
pecados do homem. Se é assim, quem somos nós, simples mortais-leitores,
para não esquecê-los e absolver Astrid?
Mas na verdade, só vejo genialidade onde a autora vê “pecado”. Ela
não conseguiria fugir à sua tendência de pôr o dedo sobre os cruciais
problemas do mundo, embora se sinta impotente para resolvê-los. Seria uma
tentativa inócua para quem elabora uma poesia feita não de acalantos,
embalos, mas de “soluços, gritos, perguntas e protestos.” E essa atitude
protestante já está plenamente desenhada em Alameda.
Dizendo assim, pode parecer, a quem ainda não teve a oportunidade
de ler o livro, que ali se encontram textos panfletários, daqueles que muitas
vezes se comete o equívoco de chamar de “literatura engajada”. Não se trata
disso. Astrid passa longe – e muito longe – dessa doença do panfletarismo.
Refletindo sobre as lides poéticas, ela ensina que “se o poeta faz concessões
visando à comunicabilidade, compromete a qualidade do poema. O poema
programaticamente engajado é arma inadequada para o alvo político. Com
isto não quero dizer que a preocupação com a justiça social não seja um dos
grandes temas da poesia. [...] O verdadeiro papel do poeta é construir seu
texto. Não precisa de militância político-partidária para estar engajado com a
realidade social que o cerca. Essa é uma dimensão do humano que se não
estiver explícita estará latente em sua obra. Enquanto poeta cabe-lhe
subverter a linguagem e a sua dívida é com a revolução da linguagem.”
Essas palavras tão lúcidas de Astrid harmonizam-se com o pensamento
do teórico Aguiar e Silva, que tem a preocupação de estabelecer um marco
diferencial entre literatura comprometida (engajada) e literatura planificada ou
dirigida. Ele entende que

Na literatura comprometida, a defesa de determinados valores morais,


políticos e sociais nasce de uma decisão livre do escritor; na literatura
planificada, os valores a defender e a exaltar e os objetivos a atingir
são impostos coativamente por um poder alheio ao escritor, quase
sempre um poder político, com o consequente cerceamento, ou até
aniquilação, da liberdade do artista. (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 127)
Em geral, o foco das discussões, na atualidade, não está tanto no fato
de o artista ser engajado ou não, mas no fato de a obra que ele produz ser ou
não engajada ou planificada. Evidentemente, o escritor é um homem como
qualquer ser humano comum, com direitos e obrigações, sujeito às
contingências da condição humana. Tem direito à
militância política, assim como a outros canais do exercício da cidadania.
Ninguém pode negar ao homem o direito à alteridade. Mas a literatura não
pode ser reduzida a um mural de panfletos com vistas à veiculação de
propaganda política, pois isso a empobrece, subtrai-lhe a força expressiva, e a
obra que se constrói com esse mister, além de não se fazer convincente,
apresenta-se como uma moeda falsa.
A literatura deve estar engajada com a realidade, sem estar atada ao
dirigismo ideológico, sob pena de cair na prática da panfletagem. Ao leitor não
apraz sentir-se como um menino puxado pelo braço e levado à catequese que
não pediu nem deseja. Se o escritor força a barra, o leitor fica ressabiado e
depois, confirmadas suas suspeitas, desqualifica a obra.
A esse respeito, Rachel de Queiroz deu um depoimento esclarecedor:
“Não acredito em Literatura engajada. Literatura engajada é um sermão, não é
Literatura. Mas é possível fazer um esforço e expressar seus sentimentos
políticos, apenas com talento, sem pregar nada”5
Há ainda o caso de João Cabral de Melo Neto (1969), cujo auto Morte e
vida severina faz parte do que melhor já se produziu no Brasil em termos de
literatura comprometida com a realidade. “Eu nunca pensei em fazer literatura
engajada ou não engajada”, disse ele, “eu fazia o poema pensando em fazer
bem o poema. O que se pode chamar de literatura engajada, na minha poesia,
são os temas da seca, da miséria do Nordeste”6
Detentor do único Prêmio Nobel de Literatura em língua portuguesa, o
romancista português José Saramago também mantém uma posição
equilibrada a respeito da cansativa controvérsia:

O que significa uma literatura engajada? Uma literatura a serviço de


uma determinada ideologia? Se é assim, sou contra. Se é uma
literatura na qual a ideologia do autor não está ausente, sou a favor.

5
Entrevista ao site www.ufmg.org.br.
6
Depoimento ao site AloEscola, da Tv Cultura.
Pois, se quando escrevo, tenho minha ideologia na gaveta, é o caso de
se perguntar: com o que eu iria escrever? Todos temos idéias,
opiniões, sentimentos, aspirações, ilusões, enganos. Tudo isso
compõe a vida humana. E não podemos ser separados disso. É
possível que haja autores muito cuidadosos quando escrevem e que
digam: “Não, eu não quero que na minha literatura haja contaminação
política”. Não é o meu caso. Repito: não faço da literatura um panfleto
e qualquer leitor pode verificar isto em cada página que escrevi. Toda
literatura é engajada. Não há literatura inocente. E ser engajado não
significa sair à rua com uma bandeira ou manifesto, mas ter uma
7
presença na vida, na sociedade .

Como se vê, Rachel, João Cabral, Saramago – e eles não estão


sozinhos nisto – são exemplos de escritores que, à parte a militância política ou
não do indivíduo, preferiram a obra de qualidade ao panfleto maniqueísta,
embora às vezes tivessem que pagar caro por isso. Parece haver entre eles
um certo consenso de que a experiência da obra pode possibilitar mudança
interior, que pode, por sua vez, produzir mudança social, sem que o escritor
necessite de armas catequéticas para melhorar o mundo. Portanto, Astrid
perfila-se e faz coro com eles. Em Alameda, “a realidade imediata funciona
como ponto de partida para outra realidade mais sutil, gerada pela
imaginação”, diz a autora. E acrescenta, quanto aos seus poemas, que são
impuros, carimbados por vivências concretas, “tão sujos de mundo”, fugindo da
poesia orvalho e se aproximando da poesia nódoa no brim de que fala Manuel
Bandeira em “Nova Poética”. Ou seja, a poesia que traz em si “a marca suja
da vida”.
Astrid entende que a poesia deve operar uma reflexão sobre a vida,
mostrando as suas fraturas, “no entanto a grande maioria prefere a anestesia
ao lúdico enfrentamento da condição humana”. Diplomaticamente, ela
condena a “poesia xilocaína” que não toma para si a função precípua de
incomodar e prefere acomodar, anestesiando. Assim sendo, tenho que
considerar que ela não cometeu pecado algum em Alameda.
Pela segunda fresta, pude fruir o contraponto entre razão e emoção na
poesia. Diz Astrid: “Ponho brida nos cavalos do ímpeto. Há todo um lado
racional responsável pela ironia, pela crueza com que encaro os fatos e o
mundo. A doçura sempre vai quebrada pelo ácido e pelo amargo.” Astrid diz
isso após afirmar que a emoção é principal característica de sua poesia. Mas

7
(Entrevista ao site www.ufmg.org.br).
a razão não é esvaziada, ela está ali, presente, cumprindo o seu papel de
fornecer chão ao cavalo alado.
Astrid não desconhece que, “na poesia brasileira de vertente
construtivista, herdeira do concretismo, a emoção virou pecado mortal,
doença infecciosa a ser evitada com assepsia. A tribo dos cerebrais, ao gerar
poemas rigorosamente abstratos, persegue a façanha artificial do desumano,
através de conceitos frios e versos sem sangue.” Mas a sua visão sobre o
trabalho do poeta é bem outra: “Talvez a ciência possa, ou mesmo deva, banir
a emoção de seu trabalho, mas a poesia estaria se empobrecendo ao abrir
mão de veio tão valioso. O descarte do fator emotivo serve para aprofundar o
fosso entre o mundo do autor e o do leitor, inviabilizando a comunicação.”
Nesse sentido, ela se posiciona “ao lado dos poetas que priorizam a realidade
objetiva sem amordaçar as emoções, aqueles para quem a poesia não está
acima da vida como algo sagrado, mas se imbrica no terra-a-terra, fiel às
contingências do dia-a-dia.”
É comum os poetas andarem às voltas com o velho dilema perturbador
entre ser apolíneo ou dionisíaco, buscando como âncora a razão ou a
emoção. O filósofo Nietzsche já assinalava que a soma dos dois modelos
herdados da sabedoria grega é um caminho bastante favorável para a arte,
como acontece na tragédia ática. Mas a corrente em prol do quase monopólio
da razão como meio de interpretação da realidade sempre foi muito forte,
desde que plantada por Platão e Aristóteles. No entanto, Nietzsche –
seguindo trilhas abertas por Kant e Schopenhauer – apresenta a arte como
um meio mais seguro de interpretação da realidade, já que considera a
linguagem racional ineficaz para abarcá-la. Para ele, só se pode chegar a um
conhecimento pleno da realidade através dos símbolos, dos quais a arte se
alimenta.
O poeta Fernando Pessoa demonstra, em seu “Autopsicografia”, que
vale por um curso de teoria da literatura, que na poesia quem manda é o
coração, a emoção sempre sobrepujando a razão e entretendo-a. Portanto,
uma não exclui a outra: ambas podem habitar na poesia, como metodologias
que se complementam. Mas o comando do espetáculo da poesia cabe à
emoção e não à razão. Todavia, a razão é imprescindível, pois ela é
responsável pelo “fazer sentido” necessário ao que se diz. Parece ser este o
pensamento de Astrid.
A terceira fresta possibilitou-me o prazer de ver a relação entre a
mulher e a escrita. Sobre a questão, Astrid comenta que depois de tanto
tempo de exclusão e silêncio a que a mulher foi obrigada, percebe que há
uma crescente curiosidade para ouvir o que a mulher tem a dizer. E as
mulheres que ousam falar em voz alta têm por trás de si todo um contexto de
lutas e reivindicações. Ou seja, têm muita história para contar.
Em sua terra natal, o Amazonas, Astrid foi uma das vozes femininas
pioneiras no campo da literatura, antecedida por uma outra poeta, a Violeta
Branca, que nos idos de 1935 ensaiou os primeiros passos da poesia
modernista no Estado. Causou impacto, na época, a publicação do livro de
poemas de Violeta, Ritmos de inquieta alegria, pela ousadia de uma mulher
em irromper num mundo povoado quase exclusivamente por homens, e ainda
com versos carregados de insinuações eróticas. Depois viria Astrid, já em
meados do século XX, para circular também num universo eminentemente
masculino, participando do Clube da Madrugada, como ficou conhecido o
movimento que surgiu em 1954 com o propósito de arejar as empoeiradas
artes locais. Fato incomum na região, uma mulher (e ainda adolescente)
associar-se a um grupo homens para discutir os rumos da literatura e escrever
contos e poemas. E o que acontecia no Amazonas era simples reflexo do que
ocorria em todo o Brasil: a presença da mulher no cenário das letras era uma
raridade. E não só nas letras, mas também em muitos outros setores da vida
social, cujas portas encontravam-se fechadas para as mulheres.
Dessa forma, Astrid, assim como fora o caso de Violeta Branca, não
podia se dar o luxo de apenas produzir sua arte. Cabia a ela ainda o difícil
trabalho de abrir as portas fortemente travadas para poder entrar em cena. E
ao entrar, tomou o ofício literário como missão: Quando escreveu seu primeiro
livro de poemas, sua voz “juntou-se à de muitas outras poetas que assumiam
o erotismo e a denúncia da condição social da mulher.” Tomou-se de surpresa
quem esperava sentimentalismo da poeta: “quando apareci como poeta houve
quem dissesse ser minha poesia muito forte, parecendo de homem.”
Astrid destaca dois enfoques temáticos, em seus textos, que a inserem
na grande corrente das poetas mulheres que vêm contribuindo decisivamente
na configuração atual da poesia brasileira. O primeiro é “a celebração do
cotidiano, bem terra-a-terra do mundo feminino entre quatro paredes”, e o
segundo diz respeito à “confissão do erótico, assunto tabu em que Gilka
Machado aplicou a primeira cajadada e que constitui na produção de hoje
traço marcante de poetas como Leila Miccolis e Adélia Prado, entre outras.”
Mas ela entende que a poesia prescinde da categorização de gêneros.
Assinala que “os poemas, além de serem ambíguos e polissêmicos, parecem
elidir a consideração masculino/feminino ao se desenvolverem em torno de
assuntos universais, relevantes a qualquer ser humano”. E complementa:
“Sem descartar a possibilidade de dicções diferenciadas, creio ser imensa a
dificuldade de identificá-las corretamente, sobretudo em casos fronteiriços.
Como definir, na pós-modernidade unissex, os conceitos de masculino e
feminino fora de estereótipos superados e generalizações grosseiras?”
Quando se refere à situação da mulher que se divide na busca do pão
e da palavra ao mesmo tempo, Astrid não titubeia: “Lar e literatura, embora
me proporcionem fortes motivações existenciais, estão sempre a me cobrar,
cada qual, seu grave tributo. Trata-se de um equilíbrio instável, e lá no fundo
de mim, a incômoda lembrança da condenação bíblica de que não se pode
servir a dois senhores. Mais a culpa de não ser capaz de abandonar nenhum
deles e pior, a ambição de permanecer fiel a ambos!”
Na quarta fresta, deliciei-me observando a crítica à critica. Astrid diz:
“Nas últimas décadas a crítica tem se deslocado para o âmbito universitário, e
focalizado, de preferência, escritores consagrados pelo cânon, em sua maioria
mortos. Dessa maneira fugiu, a meu ver, à sua função primordial, uma vez que
deixou de prestar orientação a autores em processo criativo, e a leitores em
busca de opinião abalizada sobre os textos recém-lançados.” Além disso, no
seu entendimento, “alguns críticos da linhagem acadêmica usam linguagem tão
hermética e exageram tanto em alusões e digressões eruditas, que acabam por
construir uma espécie de muralha em torno da obra.”
Por outro lado, existe também “a crítica dos que a exercitam de modo
leviano, em apressadas resenhas de jornal. Alguns de seus autores se
arvoram a opinar sobre o que entendem pela rama, e ao expor o despreparo
prestam o desserviço da má informação perigosa.” Talvez essa seja uma das
causas de um fenômeno bastante corriqueiro quando se pensa em mercado
editorial: “Bons livros, se lançados por pequenas editoras, desaparecem no
anonimato, enquanto baboseiras viram best-sellers sob os holofotes do
marketing.”
Astrid diz que valoriza “a crítica exercida pelos autores que são também
artistas da criação. A visão deles é bastante antenada e expressa com
elegância e estilo. Dá gosto ler as apreciações que fazem.” Essa preferência da
poeta afina-se com aquela visão de Oscar Wilde em seu ensaio intitulado O
crítico como artista, no qual estabelece, pelo diálogo entre as personagens
Gilberto e Ernesto, seu posicionamento a respeito da atividade crítica como
uma atividade de criação do mais alto nível. Wilde chega inclusive a colocar a
“crítica elevada” em uma posição superior à obra de arte no sentido do trabalho
criativo. Enquanto a crítica é autossuficiente, a obra de arte não pode prescindir
de modelos exógenos para se realizar. Essas considerações de Wilde são
convergentes com as de Tadié, quando este metaforiza a crítica como o “farol
de Alexandria” que joga luzes sobre as obras, sem as ter criado. No entanto, se
a crítica não é “elevada”, para usar o termo ao gosto de Wilde, cai no criticismo
vazio e inócuo que provoca ojeriza em Astrid.
Por fim, chego à quinta fresta, onde me agasalhei para saborear as
metáforas metalinguísticas da autora. Toda vez que exercitamos a
metalinguagem, conscientes de que o estamos fazendo, prestamos um tributo
ao linguista russo Roman Jakobson, já que coube a ele a descoberta da
realidade do fenômeno metalinguístico, ao definir as diferentes funções da
linguagem, em seu clássico ensaio Linguística e poética.
E tudo neste volume de textos que li é metalinguagem. Astrid fala sobre
a sua escrita como crítica de si mesma. E se mostra, de corpo inteiro, de corpo
e alma, uma crítica aos moldes da sua própria exigência, em consonância com
as diretrizes de Wilde: quando responde aos entrevistadores, e quando teoriza
sobre literatura, revela-se, até aí, uma grande poeta. Isso porque à função
metalinguística associa quase sempre uma outra função da linguagem, a
poética, pelo uso fluente da metáfora em sua fala. Falando a interlocutores,
parece que faz poesia o tempo todo.
Por isso, não me pude furtar em pinçar dos textos as metáforas
metalinguísticas que ela produziu nessas respostas dadas aos entrevistadores.
Chamo de metáforas metalinguísticas porque são metáforas de grande força
expressiva utilizadas para exercitar o dizer sobre a sua produção poética. Tony
Berber Sardinha, no livro Metáfora, comprova que as metáforas são recursos
poderosíssimos que os poetas (e outros profissionais também) utilizam para
dar mais “cor” e “força” ao que falam ou escrevem. Ele vê as metáforas
também como meios econômicos de expressar uma grande quantidade de
informação. Possibilitam um modo simples de externar um rico conteúdo de
ideias. E Aristóteles, o primeiro a refletir sobre a metáfora, realça nela o poder
de conferir “graça” e “urbanidade”, de chamar atenção por sua força expressiva
e elegância. Vejamos, a título de exemplos, cinco dessas metáforas da lavra de
Astrid nos textos de “Olhar de Narciso”:
a) “Livros são filhos de papel.” Astrid criou essa metáfora para falar
sobre seus escritos. Revela com isso ter o mesmo entendimento que tinha
Euclides da Cunha a respeito de seus livros. Por exemplo, em carta para o
pai, ele fez referência ao “seu grande neto Os Sertões”. Depois, escreveria a
D. Agustín de Vedi nos seguintes termos: “Os Sertões [...] é o primogênito do
meu espírito”8. Se entendermos a metáfora como a verbalização de uma
forma de pensar, como queriam Lakoff e Johnson em Metáforas da vida
cotidiana, podemos inferir que a família literária de Astrid já pode ser
considerada relativamente numerosa, por contar com mais de uma dezena de
livros-filhos, e isso não é nenhum problema, pelo contrário, os amantes da
boa poesia torcem para que a poeta continue profícua na missão de cumprir o
mandado bíblico de ser fecunda, multiplicar-se e encher a terra.
b) “[..] Os versos no papel eram o cofre perfeito para os segredos do
coração.” Refere-se à sua forma de pensar no início da carreira como poeta.
Ela comenta que possivelmente o que a levou a se tornar poeta e escrever foi
a timidez. E até hoje, quando se encontra só, em colóquio com o papel,
consegue expandir o coração e com ele as emoções, o que é muito difícil de
acontecer no burburinho e nas turbulências das relações sociais. “Devo
confessar”, diz ela, “que me sinto muito mais à vontade à sombra do que à luz
de holofotes”.
c) “A poesia me visita a qualquer hora, em qualquer lugar”. Esta é uma
metáfora personificadora, conforme a tipologia apresentada Walter de Castro

8
GALVÃO, Valnice Nogueira; GALOTTI, Oswaldo. Correspondência de Euclides da Cunha.
São Paulo: EDUSP, 1997, p. 249 e 384).
em Metáforas machadianas. A poesia é apresentada como uma pessoa,
ocupada em visitar a poeta, para ofertar-lhe o poema que precisa ser escrito.
Falando sobre a poesia, Astrid oferece-nos um verdadeiro torneio de
metáforas: “Poesia para mim é o colete salva-vidas que me permite, após
naufrágios, retornar à tona. Ponte pênsil que, volta e meia, lanço entre a luz
da consciência e as trevas da inconsciência. Em meio à algazarra de tantas
vozes alheias e contraditórias, a voz interior que procuro ouvir e externar.
Conversa íntima que mantenho comigo mesma desde a puberdade, e que
atravessa fases de silêncio, mas acaba por se reatar em dinamismo
espontâneo.”
E tem mais: “A poesia lírica liberta o mundo do óbvio, graças à boa
vizinhança que mantém com o onírico e a natureza do olhar abrangente,
capaz de percepções extraordinárias e ousadas. É, portanto, prática salutar,
processo de enriquecimento espiritual. Através dela, o homem educa os
sentimentos e alarga o universo sem precisar embarcar em nave sideral.”
Astrid, ao dizer isso, conscientemente ou não está dialogando em Aristóteles
e seu conceito de catarse: o poder que tem a arte de purificar as emoções, de
purgar os males, de pôr o indivíduo frente a frente com a sua dor para que,
refletindo sobre ela, e até rindo dela, liberte-se da pressão dessa dor. É isso
que Astrid reconta ao dizer: “se a vida me faz penar e já me feriu muitas
vezes, a literatura sempre me proporcionou prazer. Através dela posso
dialogar com a dor e transfigurá-la.” E “quem amordaça sentimentos
compactua com a falsidade e constrói a doença.” É preciso entender que “a
arte tem um lado terapêutico”.
Aristóteles apresentava também a fantasia como uma necessidade. Na
Poética, ele ressalta que a necessidade congênita que o ser humano tem para
fantasiar é uma das causas do surgimento da poesia. E o tempo iria
comprovar a assertiva do filósofo e torná-la ainda mais completa, no sentido
de que o homem não tem apenas “necessidade” de fantasiar. Ele tem,
também, “capacidade” de fantasiar. E a poesia é o lugar por excelência para o
homem exercitar a fantasia da sua dor. Astrid revela-se plenamente
consciente disso: “Assim como temos necessidade de pão, temos
necessidade de ficção, de contemplar e de desenvolver a sensibilidade. A
fantasia é indispensável à vida.”
d) “Os que chegam procuram espaço, e ao encontrá-lo ocupado, tratam
de esvaziá-lo através da demolição impaciente, a marretadas.” Aqui ela reflete
sobre o inevitável choque entre o novo e o velho na literatura, o conhecido
confronto de gerações. Em tudo na vida parece haver um eterno recomeço. A
dinâmica dos chamados estilos de época revela isso à exaustão: todo estilo
que se inicia apresenta-se como “o novo” em oposição ao “velho” que ainda
ocupa o cenário. Mas o que é velho não quer morrer, pois o homem, mesmo
sabendo que é feito de matéria perecível, tem ânsias de eternidade. O velho
tem anseios de perpetuidade, daí os inevitáveis choques, nos quais o novo
acaba vencendo, sobrepujando o velho, e se estabelecendo. Ocupa o cenário
por algum tempo, mas aos poucos começa a saturar, pois nada que é novo
permanece novo para sempre... e em novos confrontos, aquele que era novo
já envelheceu...
e) “Classificações são gavetas estreitas”. Uma metáfora muitíssimo
interessante, que verbaliza o pensamento de quem é avesso às taxonomias.
E como há pessoas que se deleitam com a estreiteza das gavetas! Que se
comprazem com o apoucamento dos rótulos! Sobre a questão, ao ponto de
vista de Astrid é claro: “há na minha natureza uma espécie de rebeldia a
balizas e portas fechadas”, porque “a poesia sendo, por princípio, território de
liberdade, não abriga proibições.”
E quando os aficcionados por balizas e rótulos lhe exigem
demarcações, ela força a natureza e engendra esta explicação: “considero
minha poesia equidistante do formalismo e do antidiscursivismo. Pertenço
cronologicamente à geração de 60, uma geração marcada pela diversidade
estética, e compartilho das vertentes mítico-regionalista, lírica de configuração
epigramática, erótica ou de protesto social.” A “geração de 60”, segundo
Pedro Lyra, tem essa tendência, encontrada em Astrid, de inserir o lírico na
prosa e o prosaico na poesia, deflagrando tensões que põem em xeque os
tratados convencionais da teoria literária.
Em outros momentos, livre da camisa de força das taxonomias, define-
se com mais sobriedade: “examinando minha produção, vejo que ora sou
centrípeta (Alameda, Visgo da terra), ora centrífuga (Torna-viagem, Rês
desgarrada). Posso também ser universal, desvencilhando-me da sombra de
geografias (Ponto de cruz, Lição de Alice, Intramuros)”. E com mais precisão:
“toda uma trajetória de vida pode ser rastreada nos meus textos: os arroubos
da juventude, as indagações existências que me perturbam, os momentos
cruciais, os espaços por onde andei e que me causaram deslumbramentos ou
decepções, os encontros transformadores. É um itinerário emocional.”
Enfim, fora das frestas, parece que estou ouvindo Heráclito quando
ouço Astrid dizer: “Depois que publico um poema, é como se ele não fosse
mais meu. Porque aquela Astrid que escreveu já é outra.” O filósofo de Éfeso,
para quem nada é imutável e tudo se move, dizia que uma pessoa jamais
pode entrar duas vezes no mesmo rio, porque numa segunda vez o rio já não
é mais o mesmo, e a pessoa também já não é mais a mesma. Tudo se
modificou. Para Heráclito, a dialética rege o confronto dos opostos, gera a
alternância das coisas e provoca a mudança (o devir). É desse embate dos
contrários que nasce a harmonia, o equilíbrio. Portanto, o equilíbrio que se vê
na escrita astridiana nasceu e continua nascendo dos muitos embates, dos
inúmeros confrontos em que ela se envolveu, da infância à maturidade,
passando pelas quadras difíceis da adolescência e da juventude. A harmonia
e o equilíbrio inserem-se no longo aprendizado que só cessa quando a fatal
fiandeira, na sua faina de tecer fatalidades, estica o fio e o corta. Faz parte
desse aprendizado a tranquila aceitação, por parte da poeta, de que “o reino
da literatura não é monopólio de gênios”. Mas Astrid diz uma coisa com a qual
não posso concordar em hipótese alguma: “se algum dia fui guerreira, acho
que já aposentei as armas”. Pelo que vi nas frestas, só posso dizer que não é
verdade!
E como o veio ainda não secou, narciso pode continuar se mirando no
espelho dessas águas...

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