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Por ocasião de minha estadia entre os quilombolas de São José da Serra, ouvi muitas
histórias dos griôs locais sobre tradições, ancestralidade e medo. Griô é um termo
aportuguesado, diaspórico, variante do original africano griot. Os griôs nas comunidades
tradicionais são pessoas respeitadas nos grupos, que possuem um arcabouço de conhecimentos
(religiosos, etnobotânicos, históricos) e assim são detentores das tradições orais e das memórias,
sendo também responsáveis pela difusão das tradições de seus grupos.
Durante a primeira semana que passei initerrupta no quilombo, que fica na zona rural
distante 12 km do centro urbano mais próximo, eu chegava na escola do quilombo via
transporte escolar às 06:00h da manhã e retornava para onde estava alojado (depois da primeira
semana passei a pernoitar no quilombo) por volta das 19:00h as vezes caminhando a pé ou de
carona.
Numa das primeiras vezes que retornei a pé, antes de ir, um griô veio a mim e disse que
eu devia tomar cuidado ao retornar, já que estava entre um grupo não muito “querido” no local.
Me falou que eles lá tinham 3 medos na vida e eu devia tomar cuidado com os 3 caso fosse
mesmo permanecer junto a eles o tempo que fosse.
O primeiro medo e o principal era a emboscada. Por ser um grupo em disputa por terras
há mais de 150 anos, e por serem negros contra pessoas brancas cuja origem familiar eram as
fazendas escravagistas, as emboscadas aconteciam. Por eu estar “apoiando” em meus estudos
uma causa fundiária em favor de um grupo de “negros”, não era prudente ficar pelas estradas
sozinho a noite, mesmo as emboscadas não acontecendo há mais de uma década.
O segundo medo era uma coisa natural das regiões serranas e dos grupos que viviam em
zonas rurais: as cascavéis. Como haviam muitas cobras nos pastos e matas, os ataques e
acidentes eram demasiadamente comuns. Assim, o socorro poderia demorar, pois o hospital se
encontra no centro urbano a 12 km do quilombo.
O terceiro medo era o saci. Pode parecer besteira a primeira vista para pessoas
acostumadas aos centros urbanos e à cultura citadina. Mas a tradição rural africana contempla
algumas crenças que não são tomadas como verdades ou inverdades, mas como característica
cultural de um grupo específico. Assim, de acordo com os relatos transmitidos pelo griô de
casos de baderna nas colheitas e nas matas, faz sentido levar seus receios como fidedignos e
com respeito.
O mito do saci deve ser tomado na cultura popular como símbolo de uma construção
social específica ligada ao período de formação dos segmentos sociais brasileiros. Sua origem
remete ao modo de vida dos filhos de escravos e sua relativa “liberdade” em algumas fazendas
(em parte devido as relações de compadrio de escravos e senhores, sobretudo após a Lei do
Ventre Livre em 1871). Enquanto sem educação formal, podiam circular pelos cafezais e matas,
entre brincadeiras e formas de conseguir benefícios maiores com pequenos furtos e trocas. Esta
relação não era bem vista aos olhos dos proprietários, pois podiam exercer influência sobre as
crianças da casa grande em um paradoxo onde o filho do cativo teria mais “liberdade” que o
filho do senhor. Esta é uma das perspectivas para a criação do mito do Saci Pererê, objetivando
hostilizar a ausência de “modos civilizados” nas crianças negras em comparação à educação
aplicada às brancas.
Quis contar este relato para apenas demonstrar que algumas crenças e mitos da cultura
brasileira possuem suas raízes em fundamentos enraizados sociologicamente e com objetivos
específicos para os grupos que os utilizam. Diferente do Halloween tão comemorado como parte
de uma nova cultura brasileira distraída pela televisão.