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A TEIA INESCAPÁVEL DO DISCURSO REGIONALISTA NORDESTINO:

“A INVENÇÃO DO NORDESTE E OUTRAS ARTES”


Flávio Lúcio R. Vieira*

Introdução

“A Invenção do Nordeste e outras artes” (Muniz Albuquerque Jr, 1999),

originalmente tese de doutoramento do professor da UFPB Durval Muniz, tem por objeto

as elaborações e reelaborações do discurso regionalista nordestino, fundado nas primeiras

décadas do século XX, tendo por base a idéia do que ele chama de “naturalização” do

espaço procedida por esses discursos e seu profundo anti-modernismo, fruto de uma

ardilosa articulação das “elites” produtoras “nordestinas” em crise, que construíram uma

“máquina discursiva” da qual ninguém, nem nas artes nem na academia, conseguiu

escapar, a não ser, pelo visto, o próprio Durval Muniz. Surpreendentemente, mesmo os

marxistas, até então reconhecidos como os mais vorazes críticos do regionalismo, estavam,

sem que tivessem percebido, eles também, envolvidos por essa malha discursiva

arrebatadora1.

O livro divide-se em três capítulos que tratam da formação do regionalismo a partir

da construção de um “ideário” da crise, que perpassava todas as esferas mas que se

“materializava” no espaço. O “Nordeste” nasce assim associado à idéia de crise, do

abandono de um “espaço” naturalizado que ganha vida própria, que institui a região como

forma de homogeneizar relações sociais e políticas, interesses particulares (chamemos de

*
Professor Substituto do Departamento de História da UFPB (Campus I) e doutorando em Sociologia
(UFPE)
1
Muniz afirma que autores como Rosa Godoy (O Regionalismo Nordestino) e Francisco de Oliveira (Elegia
para um Re(li)gião), ao trabalharem com a idéia de existência do “Nordeste” como uma região, acabam por
legitimar essa “dizibilidade” regionalista e, mais ainda, estão presos “à rede de poderes que sustenta a idéia
de região como referencial válido para instituir um saber, um discurso histórico”. (Muniz Albuquerque Jr.,
1999:28)

1
classe) e mascara um profundo sentimento anti-moderno, de resistência às mudanças, de

natureza

conservadora, portanto. Por isso, para Muniz só é possível falar em “Nordeste” a partir de

uma temporalidade específica, para opô-lo a um movimento mais amplo de mudança,

capitalista, que modifica profundamente a geografia da “região”, deixa nela suas marcas,

provoca instabilidade, crise, falta de perspectiva, põe em dúvida a continuidade de um

bloco de poder estabelecido. O “Nordeste” nasce, dessa maneira, como uma poderosa

“máquina discursiva” que institui uma idéia e que passa a ser, desde então, associada ao

atraso, à resistência à modernização, à seca, à violência, à miséria, a valores tradicionais, às

relações baseadas na “honra”, pessoais, ao rural, enfim. No lado oposto, está o “Sudeste”,

espaço da transformação, de modernização, de riqueza, urbano, racional, impessoal. A

referência na construção dessa “identidade” é o Sudeste, de onde também partem discursos

que ajudam a legitimar o regionalismo nordestino em formação.

No primeiro capítulo, Muniz trabalha essa oposição a partir de uma idéia central do

seu trabalho que é a de “naturazalização” do espaço. A partir daí toda produção artística e

intelectual que tenha como referência o “Nordeste” como recorte espacial “naturalizado” –

ou seja, como um conceito já dado, sem história, portanto – será tratada como peças de

uma mesma engrenagem, que não questiona, não põe em xeque, mas legitima, dá

continuidade, reforça um discurso que é o das elites regionais. Nos capítulos posteriores,

Muniz faz uma análise da produção cultural que institui a região, estabelecendo como

marco o Congresso Regionalista de 1926, um evento que demarca amplo significado

cultural e político. A partir daí, o regionalismo começa a se instituir e até o final da década

de 20 e durante as seguintes parece ter dado seus frutos: as obras José Américo de

Almeida, especialmente A Bagaceira, de José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge

Amado, Graciliano Ramos, Luiz Gonzaga, Ariano Suassuna, Portinari, Di Cavalcanti,

2
Caribe, João Cabral de Melo Neto, Glauber Rocha e outros não conseguem, apesar das

diferenças entre eles, que o autor não desconsidera, fugir das imagens do regional, das suas

fronteiras naturalizadas, seja com uma postura mais “conservadora” – como é o caso de

José Lins e José Américo, por exemplo – seja como postura crítica, mais à esquerda, que

tratam a “região”, segundo Muniz, como “espaço-vítima” das conseqüências da

modernização capitalista, como é o caso de Jorge Amado, Gracialiano Ramos, Glauber

Rocha etc.

O objetivo de Muniz é, a partir da crítica do discurso regionalista, refundar uma

nova idéia de Nordeste da qual ele não sabe muito bem qual seria, mas deixa indícios sutis

de que o tropicalismo poderia se constituir na base por onde se poderia começar essa

ruptura discursiva, algo que ele deixa mais claro no último capítulo de sua tese, que trata

do tropicalismo, infelizmente excluído do livro. Muniz constrói sua argumentação a partir

de duas oposições rígidas: tempo x espaço, modernismo x regionalismo.

Este trabalho é uma tentativa de diálogo crítico e sincero com essas idéias, hoje tão

em voga nas ciências humanas e sociais. É uma tentativa de responder ao desafio à

polêmica que o livro em tela chama, que representa, ao mesmo tempo, uma leitura bastante

original sobre a “questão regional nordestina” e uma negação, uma desconstrução da

mesma, objetivo que é perseguido, devemos aqui reconhecer, com brilhantismo. O estilo

de Muniz permite uma leitura fácil, quase literária, o que certamente ajuda na clareza da

exposição e das idéias que o texto expõe. E estas são muitas, e polêmicas. Por isso, este

trabalho que se originou de uma tentativa de resenha, acabou transformando-se em artigo.

Nele, procuraremos desenvolver uma crítica da concepção de espaço adotada por Muniz,

como já enfatizamos, central para sua argumentação e trabalho com as fontes, sua visão

quanto ao modernismo que é oposto radicalmente ao regionalismo e sem nenhum tipo de

mediação, e um diálogo com os autores que informam e influenciam o seu trabalho

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objetivando um debate teórico a respeito da concepção de poder e de história esboçada no

livro aqui analisado.

O espaço de uma história em ruínas


No que diz respeito à primeira questão, o discurso regionalista se estruturaria a

partir da atitude intelectual e política de “naturalizar” o espaço, desumanizando-o,

deshistoricizando-o, “geografificizando-o”. Muniz assume uma aberta postura de conceber

a geografia como detentora de um saber que “naturaliza” o espaço, portanto, tornando-o

empecilho às transformações e mudanças históricas, o que dessa maneira, acaba por opor

história e geografia. O tempo é o elemento dinâmico, o espaço é conservador, dificulta a

mudança. São recorrentes as referências nesse sentido: “O espaço perdia cada vez mais sua

dimensão natural, geográfica, para se tornar uma dimensão histórica, artificial, construída

pelo homem” (p. 47), como se o espaço antes da modernidade capitalista no Brasil não

tivesse sido objeto de mudança, continuasse “naturalizado”, continuasse “primeira

natureza?” Veja-se que o espaço é uma dimensão a priori, como em Kant, mero palco das

ações humanas, portanto, da história. O espaço é visto aqui como mero repositório das

obras humanas, que são artificiais, ou seja, não fazem parte do espaço, alteram-no,

modificam sua percepção. O espaço é separado do homem, não tem um conteúdo social, a

não ser como subjetividade, como percepção. O espaço é apenas exterioridade. Por isso,

para Foucault, a geografia é mero “suporte, condição de possibilidade”, de realização

metodológica do seu projeto de fazer interagir espaço (seria mais correto usar aqui “lugar”)

e poder. Como diz Foucault:

“Cada vez mais me parece que a formação dos discursos e a genealogia do saber
devem ser analisadas a partir não dos tipos de consciência, das modalidades de
percepção ou das formas de ideologia, mas das táticas e estratégias de poder. Táticas e
estratégias que se desdobram através das implantações, das distribuições, dos recortes,
dos controles de territórios, das organizações de domínios que poderiam constituir
uma espécie de geopolítica (...)” (Foucault, 1990:164)

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Devemos entender as referências geográficas acima como metáforas? O espaço,

relacionado ao poder, se fragmenta nos lugares, na sua irredutibilidade, que é o corpo,

“espaço” onde são exercidas “as forças de repressão, da socialização, da disciplina e da

punição”, mas onde se podem criar também as “heterotopias” – “espaços de resistência e

liberdade” (Harvey, 1995:195), porque, para Foucault, “o indivíduo não é o dado sobre o

qual se exerce e se abate o poder. O indivíduo, com suas características, sua identidade é,

fixado a si mesmo, o produto de uma relação de poder que se exerce sobre corpos,

mutiplicidades, movimentos, desejos, forças” (Foucault, 1990:161-162). Os recortes

espaciais têm um sentido apenas político-administrativo já que tem uma relação direta com

o poder, com o território. São recortes “históricos”, são elaborações umbilicalmente

gestadas e ligadas aos esquemas de reprodução do poder. Portanto, mero objeto de um

saber homogeneizador que faz uso de conceitos para “esconder” as especificidades, as

camadas discursivas construídas por esse saber que sua arqueologia procura desvendar.

As transformações operadas no espaço não interferem no social, não “interagem”

com o tempo, não produzem elas também o tempo. As mudanças espaciais são apenas

indícios da existência da dinâmica do tempo. Essa idéia tem um sentido ontológico e

metodológico: o espaço é visto como separado do sujeito cognoscente, entre este e o

“objeto” do seu conhecimento não há mediação possível. Porque, na realidade, o espaço é

um conceito “totalizante”, “homogeneizador”, arbitrário. Por isso, a profusão de metáforas

espaciais no trabalho.

“Tentar fazer com que este espaço [a região Nordeste] cristalizado estremeça, rache,
mostrando a mobilidade do seu solo, as forças tectônicas que habitam seu interior, que
não permitem que a vejamos como efeito da sedimentação lenta e permanente de
camadas naturais ou culturais, buscando apreender os terremotos no campo das
práticas e dos discursos, que recortam novas espacialidades, cartografam novas
topologias, que deixam vir à tona, pelas rachaduras que provocam, novos elementos,
novos magmas, que se cristalizam e dão origem a novos territórios.” (Muniz de
Albuquerque Jr, 1999:26 [grifos nossos])

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O espaço não tem assim existência “real”, é mera construção discursiva, por isso,

metaforicamente, ele é móvel, pantonoso, deformado, recortado, reconstruído e, assim,

poder ser escavado pela arqueologia de Muniz. A recusa do uso do conceito de espaço,

substituído por espacialidade – “percepções espaciais que habitam o campo da linguagem

e se relacionam diretamente com o campo de forças que a institui”, “acúmulos de camadas

discursivas” (idem:23), resultado do encontro da linguagem e do espaço, este “objeto

histórico”, obedece a essa estratégia que possibilitará, no decorrer do trabalho, o

tratamento das fontes, especialmente literárias, deslocada do seu espaço (social) de

produção. A espacialidade nordestina, sendo uma construção discursiva instituída pelas

“elites” proprietárias, só existe enquanto tal como percepção de uma realidade dada, de um

espaço dado. Portanto, a recorrência às metáforas não é meramente um recurso literário,

estilístico, tem um sentido metodológico, de aversão ao uso dos conceitos (Nordeste,

espaço, região) em história. As metáforas funcionam como mecanismos que não apenas

substituem os conceitos, mas diminuem sua importância, esvaziam-nos. Ao contrário do

que pensa Muniz, as metáforas não auxiliam o pensamento através das imagens, mas o

torna mais nebuloso, obscuro, inviabilizando-o devido às suas várias possibilidades de

realizar-se como científico porque cai num relativismo inesgotável.

Precisemos, agora, com a ajuda de Milton Santos, definir o que entendemos por

espaço em oposição a sua definição como mera percepção:

“(...) Estes [os indivíduos] podem ter dele [o espaço] diferentes percepções e isso é
próprio das relações entre sujeito e objeto. Mas, uma coisa é a percepção individual do
espaço, outra é a sua objetividade. O espaço não é nem a soma nem a síntese das
percepções individuais. Sendo um produto, isto é um resultado da produção, o espaço
é um objeto social como qualquer outro. Se, como para qualquer outro objeto social,
ele pode ser apreendido sob múltiplas pseudoconcreções, isto de nenhuma forma o
esvazia de sua realidade.” (Santos, 1990:128)

Chegamos a uma definição de espaço que com certeza escapa ao olhar de Muniz, o

espaço como uma produção social, não apenas cultural ou discursiva. O espaço compõe

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uma das estruturas da sociedade porque é produzido por ela e também a produz, assim

como outras instâncias do social. Portanto, o espaço não como exterior ao homem,

separação rígida entre sujeito e objeto, ou mera abstração conceitual, ou produto de uma

relação entre um determinado tipo de saber e um determinado bloco de poder, que o

“produz” arbitrariamente como “realidade objetiva”. O espaço não é meramente por onde a

história caminha, deixando nele seus rastros. O espaço não é apenas paisagem, não é

apenas a mudança ou a permanência visíveis. O espaço, como chama a atenção mais uma

vez Milton Santos, nas suas formas materiais, guardam uma certa “autonomia de

existência”, o que lhe possibilita uma relação com os outros “dados da vida social”. O

espaço ao mesmo tempo em si e é porque é para alguma coisa, ganha existência material

apenas no interior de sua relação com outros dados que lhes são exteriores.

David Harvey procura enfatizar o que ele chama de “qualidades objetivas do espaço

e do tempo” e o “papel das práticas humanas em sua construção” nas suas elaborações

conceituais, deixando claro que os seus “significados objetivos” só têm sentido se levados

em conta os “processos materiais” de sua construção.

“Dessa perspectiva materialista, podemos afirmar que concepções do tempo e do


espaço são criadas necessariamente através das práticas e processos materiais que
servem à reprodução da vida social. Os índios das planícies ou os nueres africanos
objetificam qualidades de tempo e de espaço tão distintas entre si quanto distantes das
arraigadas num modo capitalista de produção. A objetividade do tempo e do espaço
advém, em ambos os casos, de práticas materiais de reprodução social; e, na medida
em que estas podem variar geográfica e historicamente, verifica-se que o tempo e o
espaço social são construídos diferentemente. Em suma, cada modo distinto de
produção ou formação social incorpora um agregado particular de práticas e conceitos
do tempo e do espaço”. (Harvey, 1994:189)

A citação acima introduz nesse debate uma categoria fundamental e cara à tradição

marxista: formação social, e que pode designar o ponto central de ruptura com as

elaborações e questionamentos de Muniz, e toda a “tradição” pós-moderna que ele aqui

representa, acerca dos conceitos de espaço, região, História Regional. Para o historiador

campinense, qualquer consideração, por parte não apenas dos historiadores, do “Nordeste”

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como uma “proposição concreta”, um “referente fixo”, como já foi deixado claro

anteriormente, acaba por jogar água no moinho do discurso regionalista. Essa “teia

inescapável” apreenderá de José Lins do Rego a Jorge Amado, Rachel de Queiroz a

Graciliano Ramos, Luiz Gonzaga a João Cabral de Mello Neto, Portinare a Glauber Rocha,

Di Cavalcanti a Caribé. Enfim, todos que, apesar das diferentes abordagens e dos

diferentes “nordestes” vividos e descritos em suas obras, tinham-no como “referente”,

trabalharam o “Nordeste” como ponto de partida de suas obras, e, portanto, não

conseguiram escapar ao olhar onipresente dessa formação discursiva. É só nessa condição

que faz algum sentido o trabalho de Muniz.

Ao desconsiderar o espaço como produção social, como materialidade, como

conceito, e suas relações com as formações sociais distintas que foram gestadas como

vários “nordestes” – o de José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano

Ramos, só para citar alguns escritores com os quais Muniz trabalha –, ele acaba por negar a

importância de percebermos as especificidades históricas e sociais que ele diz tanto

procurar. As totalidades conceituais, como a de região, por exemplo, não objetivam negar o

particular, o específico, mas torná-lo visível, sem deslocá-lo de suas relações com

mudanças e transformações históricas mais amplas, de mais longo alcance. Quem pode

dizer que o Brasil não é uma formação social distinta na América Latina, por exemplo? E

que o Nordeste configura, também, uma formação social específica dentro do Brasil.

Assim, a História Regional, que parte de um recorte espacial antes de tudo

histórico, se justifica porque pretende perceber as distintas maneiras como se estruturou a

formação social brasileira. O Nordeste, sem aspas agora, guarda a sua especificidade

histórica. Obviamente, não poderíamos falar de “Nordeste” até antes do final do século

XIX e primeiras décadas do século XX, como demonstrou Rosa Godoy há mais de 20 anos

(Silveira, 1984), partindo da análise da base material em que as distintas “regiões” foram

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surgindo no Brasil. A “crise” da produção açucareira de que parte Muniz como elemento

decisivo para “criar” o Nordeste como uma mera formação discursiva, é originada a partir

do final do século XVII e se aprofunda nos séculos seguintes, mantendo-se até os nossos

dias. Não há sequer referência a isso no livro de Muniz. Apenas a referência à crise. Se

esse aspecto é fundamental, por que não analisar suas raízes, pelo menos remeter-nos a

obras que tratem dela? No entanto, isso é compreensível. Proceder assim seria considerar

os aspectos de continuidade, desfigurando o seu objeto de estudo: o regionalismo e a

região que ele “cria” tem um sentido antimoderno, nasce em oposição ao modernismo e à

modernidade capitalista no Brasil. Fazendo isso, ele reduz a importância do Estado e das

classes na construção do regionalismo, transformando-o numa mera elaboração de

intelectuais, mesmo que estes, não todos, tenham seus vínculos com as classes

proprietárias. E é neste sentido que podemos considera-lo deslocado do tempo, porque este

não é apenas o presente do acontecimento, não a conjuntura em que o objeto se constrói,

tem uma “carga histórica” que o acompanha.

A reorganização espacial no Brasil é obra do nascente capitalismo industrial e de

suas relações cada vez mais dinâmicas com o mercado externo, é obra da complexificação

da divisão social e regional do trabalho produzida pelo nascente mercado de consumo e de

trabalho. O “Nordeste” deixa de ser “Norte” a partir de distinções econômicas e sociais

“reais”: a diferenciação provocada pelo surgimento do complexo da borracha, a relação das

classes dominantes nesses espaços com o Estado Nacional que se consolidava e a ação

delas tendo em vista os seus interesses em suas respectivas “regiões”.

O espaço nada tem a ver com essas diferenças? A relação homem-natureza, o

trabalho social, marcará profundamente a história e a sociedade nesses espaços, produzirá

culturas distintas, modos especiais de conceber e organizar a vida e o mundo, discursos

também. Mas, esses são tão arbitrários assim? Impuseram-se de maneira tão avassaladora

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que ninguém a eles possa escapar? As ideologias, esses afastamentos entre ser e pensar,

essa “emancipação” da consciência sobre os atos que produzem nossa existência pelo

aprofundamento da divisão social do trabalho, que recria o mundo na forma de

pensamento, não partem do nada, não são produtos de relações sociais e históricas, e ao

lado disso, espaciais? Não por acaso, a primeira condição para se produzir a história, n’A

Ideologia Alemã (Marx e Engels, 1987:39), é a “produção material” da existência humana,

da qual a natureza não pode ser abstraída, é claro. O espaço, mesmo no capitalismo, impõe

obstáculos, cria limites. Para Edward Soja (1993), na crise da pós-modernidade verifica-se

uma revitalização do espaço, em vista das turbulências e instabilidades do tempo, mas de

um espaço redutível ao “lugar” – como em Giddens (1995) – ao corpo, espaço de interação

e realização do poder, dimensão da individualidade. O espaço, como exposto acima, é

negado na sua condição de existência real. Só na condição de ser uma “formação

discursiva” é que tornou possível, viabilizou o tratamento de uma empiria tão diferenciada

e pouco articulada, produto de espaços e tempos tão distintos, com recortes tão

heterogêneos, colocados num caldeirão em que cabem todos.

Perguntamos quais as condições em que Muniz consegue aplicar seu “modelo”

teórico sem prestar a atenção nessas “condições históricas”. Penso em duas hipóteses, que

passo a trabalhar a partir de agora.

O empirismo: o texto ao invés da obra

A primeira hipótese é de que essa opção metodológica viabiliza que o material

empírico, as fontes, a produção cultural e artística, sejam utilizados sem que seja necessária

uma abordagem que articule as representações do real e as esferas que o compõe.

Substitui-se, como muito bem chama a atenção François Dosse, o estudo de um “sistema

causal que torne a totalidade inteligível” – que Muniz acusa os que assim procedem, de

corroborar e permanecer no campo do discurso regionalista que institui o Nordeste –,

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buscando uma outra causalidade, esta sim, “mecânica e arbitrária”. Como reconhece

Margareth Rago no prefácio ao livro: “Longe da análise das ‘condições objetivas’, supõe-

se que a subjetividade é uma dimensão fundamental na construção das relações sociais e

que, nesse sentido, estas são tanto relações de poder quanto emanações de afetos, de

sentimentos, de vontade” (Rago, 1999:15). Ora, operada essa inversão, a subjetividade

seria apreendida no estreito limite da individualidade dos sujeitos históricos, fornecendo-

nos infindáveis possibilidades de leituras e uma empiria quase inesgotável. Deslocada do

tempo que a produz (não só conjuntural como permanentemente Muniz se socorre, para dar

ao seu trabalho o traço histórico), tais fontes empíricas possibilitariam a abertura dos

“buracos” no tempo, das descontinuidades, da aparente irracionalidade do

desenvolvimento histórico.

Assim, liberto de suas amarras, o empirismo correria solto, os textos falariam por si

e por todos, e emanaria o complô antimoderno, articulado pelas classes dominantes

açucareiras, a partir dos anos 20. Nesse ponto, Muniz segue ao pé da letra Foucalt a

respeito do método arqueológico, na sua Arquelogia do Saber: “ela [a arqueologia] se

dirige ao discurso em seu volume próprio [grifo meu], na qualidade de monumento”

(Foucalt:1995:159). Ou seja, o discurso permite-se trespassar e ser atingido no coração, ser

desvendado. Não são objetos os agentes que produzem os discursos, mas os próprios

discursos, assim transformados através de uma descrição sistemática do que eles

aparentemente significam. Se o paradigma arqueológico enfatiza a descrição, o

genealógico procurar reinterpretá-lo para tornar o inconsciente exposto nas práticas

discursivas.

Assim, os agentes que tornaram possível essa dizibilidade sobre o Nordeste –

tornaram-no objeto autônomo, homogêneo, com vida própria – permitem-se, através dos

seus textos, de suas obras, que suas “verdadeiras” intenções sejam apreendidas pela voraz

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método da desconstrução, à procura do não dito, do inconsciente não exposto pelas

palavras. Essa nova inversão casa-se bem com os objetivos empiristas dos foucaultianos: a

linguagem, esta sim, é densa, pode ser revelada, pode nos revelar o mundo através do dito

e do não dito. Mais uma vez Foucalt, agora em As Palavras e as Coisas:

“Tornada a realidade histórica espessa e consistente, a história constitui o lugar das tradições,
dos hábitos mudos do pensamento, do espírito obscuro dos povos; acumula uma memória fatal
que não se conhece nem mesmo como memória. Exprimindo seus pensamentos em palavras de
que não são senhores, alojando-se em formas verbais cujas dimensões históricas lhes escapam,
os homens, crendo que seus propósitos lhes obedecem, não sabem que são eles que se
submetem às suas exigências”. (Foucault, 1992:314 - Grifos nossos)

Podemos verificar neste ponto o que Ferry e Renaut (1998) chamam de

deslocamento, através do privilégio das determinações (a palavra é essa mesmo) do

consciente para o inconsciente – uma clara sobrevivência da formação estruturalista de

Foucault. A prática dos sujeitos históricos – a prática tornada racional pelos sujeitos do

conhecimento, estes agora tornados meros produtores e objetos de uma exegese sem fim –

nada mais diz. O que se passa a levar em consideração é apenas o que eles dizem, para se

chegar ao não dito, “quem” ele é e de “onde” ele fala. Como chama a atenção os filósofos

franceses, através da reificação da linguagem – esta tornada autônoma, transparente (para

usar uma expressão tão ao gosto dos foucaultianos) – a si mesma, revela do homem o que

nem mesmo ele sabe. Fica instaurado, assim, um tribunal sem juiz, só com advogados de

acusação: “(...) o sujeito consciente torna-se, desta forma, para a genealogia, um puro

objeto que não pode, absolutamente, se defender do processo instaurado contra si a priori e

sem recurso possível.” (Ferry e Ranaut, 1988:39)

Se as práticas sociais, as ações humanas efetivas e observadas produzem a história,

transformam o mundo, não têm mais significados – apenas aqueles revelados

inconscientemente pelos discursos – não são elas apenas que se desfiguram, mas a própria

história. Porque, se há algo objetivo nisso tudo, na história humana, é que estas

objetividades são determinadas pelas práticas humanas transformadoras, que nos dão

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indicativos de que a vida muda, se transforma. Se o inconsciente ganha esse estatuto

ontológico passamos ao reconhecimento do irracional como uma positividade.

Assim, em Muniz, a formação discursiva do Nordeste, desde a sua origem, padece

de um anacronismo insuperável. Por exemplo, é intrigante observar que é exatamente a

fração dominante ligada à produção açucareira, já então em franca decadência nesse

período, que coordena os discursos que começam a fundar o Nordeste, representado, desde

então, pelo olhar da seca. É ela que se torna a artífice principal de toda essa engenharia

cultural e discursiva que nos tornou habitantes de vastos espaços de miséria e de seca, pois,

em geral, é essa imagem que vem à cabeça de qualquer brasileiro sobre o Nordeste,

inclusive de nós, habitantes dos espaços atingidos pelas maresias do litoral.

Essa deshistoricização dos objetos – a busca pelas descontinuidades, pela dispersão

temporal – permite que se proceda também um deslocamento dos agentes históricos desse

processo. Se em Rosa Godoy, no seu O Regionalismo Nordestino, as classes agrárias do

“outro Nordeste” – algodoeiro-pecuário – se apresentam como construtoras de uma

ideologia regionalista, que tem por base a elaboração de uma identidade que era a sua

“imagem e semelhança”, expressando assim, na homogeneização espacial seus interesses

de classe, sua hegemonia econômica e política, em Muniz são os intelectuais e artistas que

operam a construção discursiva – e apenas ela – que dará a luz à região. O nascimento do

Nordeste – e é com um certo desconforto que se percebe que, mesmo antes dos anos 20,

são abundantes as referências ao “Nordeste” , como se a região já estivesse definida em sua

especificidade espacial e histórica – em Muniz, é obra dos discursos de uma

intelectualidade regionalista, que os elabora e os reelabora permanentemente.

Às vezes, procura-se estabelecer uma relação dessa produção discursiva com os

interesse de uma elite proprietária decadente, sem, no entanto, proceder-se uma análise das

suas condições econômicas que tornou isso possível – em síntese, uma abordagem que

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torne mais claro os vínculos dessa intelectualidade com os interesses dessas classes. Mas,

se assim ele procedesse, seria fatal para o seu projeto de desconstrução de uma história

total que ainda persiste teimosamente. Se o olhar se desloca para as descontinuidades, para

aquilo que aparentemente se apresenta como “obstáculos” a uma racionalização do tempo,

aspectos, traços que também aparentemente, parecem negar uma “totalidade” histórica, as

continuidades são completamente desprezadas. Reconhece-se, implicitamente, que elas

existem, mesmo como produto de recortes arbitrários, já que as descontinuidades se

formam fora desse fluxo de tempo que pode ser racionalizado, ou seja, elas pululam, nas

margens, espalhafatosamente, se apresentando como negação de um discurso que se quer

racional, que se quer total. Daí porque se passa a privilegiar essas descontinuidades do

“real”. Como em Foucalt:

“Para a história, em sua forma clássica, o descontínuo era, ao mesmo tempo, o dado e o
impensável; o que se apresentava sob a natureza dos acontecimentos dispersos – decisões,
acidentes, iniciativas, descobertas – e o que devia ser, pela análise, contornado, reduzido,
apagado, para que aparecesse a continuidade dos acontecimentos. A descontinuidade era o
estigma da dispersão temporal que o historiador se encarregava de suprimir da história. Ela se
tornou, agora, um dos elementos fundamentais [grifos nossos] da análise histórica (...).”
(Foucault, 1995:159)

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Foucalt prefere assim o saber fragmentário, “as instituições e as práticas

discursivas” estudadas de maneira isolada (Dosse, 1994:183). O descontínuo, em “A

invenção do Nordeste”, é o discurso regionalista, avesso ao modernismo nas suas pretensões

homogeneizadoras da cultura, do espaço e da economia, e rancorosamente antimudancista,

como deixa antever o texto de Muniz. E aqui chegamos à nossa segunda hipótese.

Uma crítica pós-moderna ou moderna do regionalismo?

Longe de aparecer como fenômeno enquadrado na trajetória de uma história

cultural brasileira do século XX, expressão artística regionalizada de um movimento de

mudança, principalmente no romance, que vivia o Brasil e, no caso, o Nordeste, o

regionalismo “pré-modernista” nordestino – ou a versão regionalizada do modernismo, no

dizer de Bosi – e seu discurso é, ao contrário, a resistência, o antimodernismo. E nesse

debate, tão bem reconstruído, Muniz parece assumir a defesa dos modernistas “paulistas”.

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Não façamos aqui uma genealogia da genealogia, mas apontemos essa dualidade no

discurso, às vezes rancoroso contra regionalistas e especialmente contra Gilberto Freire, e de

uma “simpatia” não explícita – inconsciente? – pelos modernistas. É a parte paulista de

Muniz (que tem mãe paulista) que se manifesta em oposição ao seu nordestinismo

incorporado? – mestiço, cangaceiro, conservador, cabeça-chata, pedinte – e tudo que o

discurso regionalista – mas não só ele – ajudou na construção desses estereótipos sobre os

nordestinos e que nós tão bem conhecemos. Se o regionalismo nordestino se forma em

oposição ao modernismo paulista, e é o primeiro o objeto principal de tal projeto de

desconstrução, o discurso modernista parece se construir tendo o Nordeste como uma de

suas referências para a crítica. O Sul moderno, capitalista, racional. O Nordeste,

antimoderno, pré-capitalista, irracional. É nessa oposição permanente que Muniz apresenta

tanto os “sulistas” quanto o “nordestino”. Uns e outros constróem discursos, mas são estes

últimos os adeptos de um complô que visava paralisar, senão fazer a história voltar atrás. No

decorrer da leitura do livro, vai-se tendo a impressão que só existem vilões nessa história,

mas uns – os intelectuais e artistas nordestinos – são mais vilões do que os outros. Se não,

como explicar determinadas passagens, como as que se seguem:

“O Nordeste surge como reação às estratégias de nacionalização que esse dispositivo


da nacionalidade e essa formação discursiva nacional-popular põem em
funcionamento; por isso não expressa mais os simples interesses particularistas dos
indivíduos, das famílias ou dos grupos oligárquicos estaduais (...) Descobrem-se a
região contra a nação”. (Muniz Albuquerque Jr, 1999:67)

E os discursos modernistas não expressam interesses de classe, da homogeneização

cultural de um determinado padrão de acumulação capitalista? Vejamos um discurso mais

contemporâneo, saído das palavras de Muniz:

“Essa idéia [de “Nordeste”] vai sendo lapidada até se constituir na mais bem acabada
produção regional do país, que serve de trincheira para reivindicações, conquistas de
benesses econômicas e cargos no aparelho de Estado, desproporcionais à importância
econômica e à força política que esta região possui.” (Grifos nossos)

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Não há dúvida quanto a isso. Mas, esse discurso, visto a partir dos debates políticos

atuais sobre a repartição do bolo federativo, é paulista, não? Se há uma reivindicação

reconhecidamente paulista no debate sobre o pacto federativo é esta, a proporcionalidade

na distribuição de poder no Estado nacional baseada na “importância econômica” e na

“força política”. Se qualquer pacto federativo entre as classes regionais se baseasse nesses

critérios ele se inviabilizaria por falta de acordo possível. Muniz cita um pouco mais à

frente a criação do IAA – ao lado do DNOCS – como uma instituição criada para drenar

recursos (“migalhas”) do Estado para os “bolsos” de grandes proprietários e empresários

nordestinos, “funcionando como incentivos [grifo nosso] à uma obsolescência tecnológica

e uma crescente falta de investimentos produtivos.” Aqui, são merecidos dois

esclarecimentos, para separarmos o joio do trigo e não jogarmos a bacia com água suja

com o bebê dentro: primeiro, o IAA nunca funcionou, como o DNOCS, como um órgão

sob controle dos nordestinos, apesar de serem “nordestinos” quem o dirigia. O IAA, ao

contrário, funcionou como instrumento que viabilizou o prolongamento da estagnação da

produção açucareira nordestina – através da política de quotas – e da transferência da

hegemonia da produção açucareira para os produtores do Centro-Sul do país. Lembremos

que o IAA foi criado nos primeiros anos do primeiro governo de Vargas e o DNOCS ainda

é fruto do pacto oligáquico da “Primeira República” (Ver a respeito, por exemplo, Oliveira,

1985 e Guimarães Neto,1989). Segundo, seria apenas isso – as práticas, agora não

discursivas da apropriação dos recursos do Estado – que resultou na “obsolescência

tecnológica” e na “falta de investimentos produtivos”, ao que parece, originados pela ação

meramente parasitária das oligarquias nordestinas? A “carga histórica” desse fenômeno é

mais significativa do que Muniz supõe ou talvez desejasse suprimir. Não entremos na

discussão da origem desta crise, que remonta o século XVIII, mas nos parece certamente

insuficiente qualquer tentativa que procure identificar nos produtores nordestinos uma

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“propensão” ao parasitismo, a não ser por parte do discurso “paulista” que ainda sobrevive.

Naturalista também?

Enveredaríamos por dezenas de passagens que denotam uma posição pouco

objetiva – apesar de Muniz se propor a escrever uma “história sentimental”, como chama a

atenção Rago, no início do prefácio ao livro intitulado “Sonhos de Brasil” –, e abertamente

tendenciosa contra o “discurso regionalista”, especialmente freyreano. Finalizemos esta

parte com essas duas emblemáticas passagens:

“Freyre acusa os modernistas de abandonarem a pesquisa histórica, sociológica e


antropológica, de não se preocuparem com a caracterização histórico-social do país.
Isso, evidentemente, não corresponde à verdade, porque, longe de terem ‘desprezado
as tradições brasileiras’ de ‘terem desprezo pelas coisas do passado brasileiro, como a
arte colonial’, como fala Freyre, os modernistas estiveram sempre preocupados com a
questão da tradição, mas percebendo-a de forma diversa, como uma tradição ainda a
ser sistematizada [por que não recriada?], uma tradição primitivista a ser elaborada
com o dado moderno e não apenas preservada como dado museológico e folclórico
como queria o sociólogo pernambucano” (Idem:88 – grifos nossos)

Ora, observemos que os modernistas merecem uma apreciação “histórica” da sua

produção, Freyre, que os acusa, não. Freyre não tem argumentos, tem discurso regionalista

conservador, sua percepção da tradição (afinal, o que é a tradição?) é “museológica”,

“folclórica”, a-histórica, os modernistas não, objetivavam “sistematizar” e introduzir a

combinação com o “dado moderno”, ou seja, percebê-la no tempo, enquanto que Freyre

procurava mumificá-la, tornar a tradição o que ela sempre foi: a repetição, o tempo que não

muda. Entre o discurso e outro, Muniz é abertamente modernista, o que para nós é

positivo, mas não deixa de ser contraditório para um intento pós-moderno de destruir e

reinventar o Nordeste. Mas, incoerência é coerência para a análise pós-moderna. Mesmo

quando Freyre passa a se identificar com o modernismo ele é “provinciano” (idem:90),

assim como seu debate com Joaquim Inojosa sobre a “peternidade” do modernismo

pernambucano.

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E quando alguns modernistas, como Oswald de Andrade, reconhecem no Nordeste

um “último reduto” da cultura brasileira, devido à mestiçagem e a quase ausência da

presença imigrante, Muniz parece decepcionado...

“Oswald, entrando em contradição com o seu cosmopolitismo cultural [!],


praticamente reproduz o enunciado dos tradicionalistas nordestinos de que o Nordeste
era a única área do país em que ‘a máquina capitalista ainda não picotou a renda, o
crivo, o pano de costão que tínhamos de sagrado em autenticidade e beleza’. [E, para
fechar com chave-de-ouro] Oswald parece ter deglutido Freyre e sofrido uma
indigestão[!].” (Idem:105)

Oswald é contraditório porque aparentemente Muniz não consegue pensar a partir

da contradição – ou se é modernista ou se é regionalista, não há meio termo. Aí está a

presença da materialidade histórica, visível, e que certamente não passou despercebida

pelo escritor paulista. No Nordeste sobrevivia, cultura e materialmente, traços pré-

capitalistas, daí porque a leitura freyriana era conservadora mas não era tão arbitrária

assim. A identidade “paulista” devia ser pensada em oposição, também, e dialeticamente, à

identidade nordestina. É nessa relação que elas se constróem. Mas, ela não é fruto

meramente de um “complô” das classes proprietárias, de intelectuais e artistas, ela tem

traços de existência material e histórica, portanto.

Muniz, na sua ânsia de desconstruir, chega a desconsiderar a sensibilidade do

escritor expressa na obra literária, transformando tudo em maquinação, em rancor à

mudança. A literatura vira uma arma para a consecução desse objetivo. A obra de José Lins

do Rego, por exemplo, pode ser resumida assim, sob o olhar de Muniz:

“Por isso, sua prosa é nitidamente judicativa. É uma forma de vingança contra aqueles
que levaram a dissolução das relações sociais tradicionais, por isso, espalha por seus
livros dor, doença, melancolia, aleijões, tristeza, loucuras. Só nesta paisagem social
seus personagens e ele próprio parecem se reconhecer” (Idem:131)

Toda a sensibilidade, toda a angústia de ver um mundo construído pelo olhar da

criança que ele foi – e veja-se que, em boa parte da obra de José Lins, esse é o contraponto

ao olhar das mudanças que, como adulto, ele percebe, ver, interpreta – está se

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desfigurando. José Lins representaria então o paradoxo de ser um conservador que tinha

como tema principal de sua obra as mudanças, as transformações do seu mundo, relatadas

com dor, saudade, angústia. Não seria por isso que ele é tão universal, colocado entre os

grandes escritores brasileiros do século XX? Sua obra não reflete uma visão muito pessoal

do seu mundo (material), não oferece ela uma narrativa dessa materialidade que

desmoronava? José Lins é anti-moderno, para Muniz, porque sua obra, além de referir a

um recorte espacial que ele ajudou a construir, uma “máquina discursiva” da qual ele é

peça chave, fala de saudade e de dor. Esse seria o traço que possibilitou a Muniz reunir

escritores, apesar de suas diferentes abordagens, estilos, espaços, formação política e

ideológica desde José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida a Jorge

Amado e Graciliano Ramos, todos eles originários de famílias de proprietários decadentes

ou de classe média “nordestinas”. Preso ao texto e não na obra o historiador campinense só

consegue ver saudade e desconforto nas obras desses escritores.

Haveríamos de perguntar se essa sensação de desconforto e instabilidade que a

aceleração dos ritmos do tempo provoca nas pessoas comuns e nos intelectuais, os faz

necessariamente antimodernistas. Aqui me lembro das reflexões de Max Weber a respeito

da racionalização e do “desencatamento” do mundo, quando, especialmente em Ciência

como Vocação, o sociólogo alemão assume um aberto ceticismo diante das transformações

aceleradas pelo capitalismo e seus reflexos sobre a vida humana. Parece assumir, por

vezes, uma posição de simpatia pela vida dominada pelos elementos mágicos, pelas

sociedades tradicionais baseadas em hierarquias rígidas, formais, quando as religiões

(politeístas) faziam realizar uma sociedade mais estável, sem problemáticos conflitos

éticos e existenciais. Vejamos essa passagem de Weber que expressa esse olhar voltado

para o passado em contraposição a angustiante vida desencantada moderna e sua

permanente busca para a solução dos problemas que teimam em persistir: “Abraão e os

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camponeses de outrora morreram velhos e ‘plenos de vida’, pois que estavam colocados

num círculo orgânico de vida, que lhes havia oferecido, ao fim dos seus dias todo o sentido

que poderia proporcionar-lhe e porque não subsistia enigma que eles teriam que resolver. “

(Weber, 1994:440)

A racionalização de todas as esferas da vida operada pela ética econômica

protestante produziu esse profundo desconforto que Weber expõe em outra parte:

“O ascetismo se propôs a tarefa de atuar no mundo e transformá-lo; com isso, os


bens exteriores deste mundo alcançaram um poder crescente e ao fim irresistível
sobre os homens, um poder que não houve semelhante na história. Hoje, seu
espírito deslizou para fora desse invólucro quem sabe definitivamente. O
capitalismo vitorioso, descansando como descansa em um fundamento
mecânico, já não necessita, em todo o caso, de seu apoio... Ninguém sabe,
todavia, quem habitará no futuro esse invólucro vazio, ninguém sabe se ao fim
desse prodigioso desenvolvimento ou renascerão com força antigas crenças e
idéias, ou se, à falta disso, não se perpetuará a petrificação mecanizada
guarnecida de um tipo de convulsivo sentir-se importante. Neste caso, os
‘últimos homens’ dessa cultura farão verdade aquela frase: ‘especialistas sem
espírito, hedonistas sem coração, essas nulidades se imaginam ter alcançado um
estágio da humanidade superior a todos os anteriores.” (Apud Haddad,
1998:125-126)

É bom chamar a atenção que a crítica de Weber à modernização e a modernidade

capitalista tem uma referência muito mais no passado do que no futuro. Aliás, o futuro é

sempre visto como sombrio, duvidoso. O passado é mais luminoso, mais humano, menos

mecanizado. Harvey ao analisar a crítica de Weber da racionalidade moderna, citando

Bernstein, faz referência às tendências da racionalidade instrumental da modernidade que

acabaram por transformar o projeto do iluminismo de realização da “liberdade universal”

numa “jaula de ferro” da “racionalidade burocrática”, estabelecendo, mais à frente, uma

relação de continuidade do pessimismo weberiano com as teses mais contemporâneas de

filósofos como Nietzsche e Foucault. As elaborações deste último a respeito dos projetos

revolucionários da sociedade no capitalismo presos à mesma racionalidade – “técnicas e

sistemas de conhecimentos” baseados em “sínteses objetivas” – não oferecem saída para o

homem, a não ser a ruptura individualista com o “fascismo que está em nossas cabeças”, o

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que, convenhamos, como o próprio Harvey também reconhece, não parece ter criado

nenhum tipo de empecilho à reprodução das “formas centrais de exploração e repressão

capitalista”. (Harvey, 1994:50-51)

Ora, por acaso a crítica da modernidade levada a cabo por esses filósofos

(Nietzsche, Heidegger, Foucault, Derrida, Lyotard) não expressaria esse profundo

sentimento de desconforto diante de um mundo que afunda numa pantanosa ausência de

bases mais sólidas para um projeto de ciência e de sociedade que se articulem. Por isso, o

lugar e não o espaço, o indivíduo e não o social, a metáfora e não a teoria permitem um

mínimo de estabilidade.

Concluirei este trabalho com uma longa citação de David Harvey sobre as

tendências pós-medernistas que expressam a raiz do pensamento inscrito neste texto:

“(...) o pós-modenismo, com sua ênfase na efemeridade da jouissance, sua


insistência na impenetrabilidade do outro, sua concentração antes no texto do
que na obra, sua inclinação pela desconstrução que beira o niilismo, sua
preferência pela estética, em vez da ética, leva as coisas longe demais. Ele as
conduz para além do ponto em que acaba a política coerente, enquanto a
corrente que busca uma acomodação pacífica com o mercado o envereda
firmemente pelo caminho de uma cultura empreendimentista que é o marco do
neoconservadorismo reacionário. Os filósofos pós-modernos nos dizem que não
apenas aceitemos mas até nos entreguemos às fragmentações e à cacofonia de
vozes por meio das quais os dilemas do mundo moderno são compreendidos.
Obcecados pela desconstrução e pela deslegitimação de toda espécie de
argumento que encontra, eles só podem terminar por condenar suas próprias
reivindicações de validade, chegando ao ponto de não restar mais nada
semelhante a uma base para ação racional. O pós-modernismo quer que
aceitemos as reificações e partições, celebrando a atividade de mascaramento
e de simulação, todos os fetichismos da localidade, de lugar ou de grupo social,
enquanto nega o tipo de metateoria capaz de apreender os processos político-
econômico (fluxos de dinheiro, divisões internacionais do trabalho, mercados
financeiros etc.) [grifos nossos], que estão se tornando cada vez mais
universalizantes em sua profundidade, intensidade, alcance e poder sobre a vida
cotidiana. (Harvey, 1994:111-112)

Por trás da radicalidade desconstrucionista dos pós-modernos e de seu profundo

iconoclastismo se esconde um descompromisso com a transformação do mundo, a partir da

crítica radical de suas estruturas, e uma recusa da análise dessa possibilidade; uma negação

da necessidade do conhecimento racional dos determinantes objetivos que recortam a

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nossa vida e a nossa prática, que nos impõem a sua aceitação voluntária ou senão a

desconsideração completa das opiniões que se querem críticas desses determinantes. E esta

não é uma questão qualquer, é uma questão de poder, não de um poder que age

fragmentado, mas que articula uma dominação que é moral, ética, estética e intelectual

sobre todos os indivíduos, e que é antes de tudo econômica, coercitiva, de classe.

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