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Vintila Horia
Nota do Tradutor
Deus nasceu no exílio, de Vintila Horia apresenta para o
tradutor uma dificuldade, por vezes quase inultrapassável: a
onomástica e toponímia, em latim, grego e em termos
"bárbaros". No caso dos nomes latinos e gregos, tentámos, na
medida do possível, seguir as actuais regras de
uniformização de tradução; quanto aos nomes bárbaros, para
alguns não conseguimos encontrar correspondente e mantivemo-
los portanto com a grafia usada pelo autor. Acresce que
Vintila Horia por vezes traduz os nomes, outras vezes usa as
formas originais e outras vezes ainda dá-lhes uma
ressonância francesa que contribui para complicar ainda mais
o problema. A opção de traduzir os nomes das personagens e
locais históricos, e manter os de ficção, também não se
revelou viável, sobretudo devido a alguns topónimos, cujo
correspondente actual em português não conseguimos
encontrar.
No que se refere aos nomes de peixes referidos na página 87,
seguimos as orientações do Dicionário Lexicon Latino-
Portuguez, de F.P.Brou - 2.-edição, 1901; aliás, estes
termos não são sequer mencionados noutros dicionários mais
modernos.
Não queremos deixar de agradecer aqui a generosa ajuda que
nos foi prestada pelo Prof. Arnaldo Espírito Santo, do
Departamento de Língua e Literaturas Clássicas da Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa.
© L'Âge d'Homme
Título original: Dieu est né en exil
Direitos para a língua portuguesa cedidos a i 2002, ÂMBAR -
COMPLEXO INDUSTRIAL GRÁFICO, S.A.
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E-mail: area.editorial@ambar.pt
Depósito Legal Nº 178127/02
AMBARS
Págs.
Descoberta de um
romancista........................................... 9
Primeiro
Ano.........................................................
......... 15
Segundo
Ano.........................................................
.......... 45
Terceiro
Ano.........................................................
............ 75
Quarto
Ano.........................................................
............ 109
Quinto
Ano.........................................................
............ 161
Sexto
Ano.........................................................
............ 205
Sétimo
Ano.........................................................
..........237
Oitavo
Ano.........................................................
..........265
Nota
final.......................................................
...........279
GunaJalomitei Jiscul-Ousanifor
MAPA DA DACIA MARÍTIMA E DANUBIANA E ITINERÁRIO DE OVÍDIO
Descoberta de um romancista por DANIEL-ROPS da Academia
Francesa É sempre uma alegria e uma emoção reconhecer a
marca do talento, ver surgir diante de nós um autêntico
escritor. Abrir a cópia dactilografada: mais uma entre
tantas que se amontoam num canto da secretária. E,
subitamente, há algo que surpreende e retém a atenção, um
não sei quê tão imperioso quanto indefinível, que obriga a
continuar a leitura, a conhecer o destino das personagens, a
ir até não haver mais. Está-se perante a qualidade, essa
misteriosa realidade que é o dom, feito de inspiração e de
estilo, de pensamento e de forma. Então sim, é a alegria.
Maior ainda, talvez, quando esse escritor se revela como
sendo um dos que, mais numerosos do que se imagina,
continuam por todo o mundo a usar o Francês como forma
privilegiada de expressão. É sensibilizadorpensar que esta
"universalidade da língua francesa", outrora comentada por
Rivarol em termos eloquentes, agora ameaçada por
concorrências, seja hoje testemunhada por escritores que não
pertencem à nação francesa, quer estejam em Paris, na
América do Sul ou no Japão. O exemplo de umjulien Green, é
bastante para demonstrar que alguns de entre eles conseguem
ser mestres nessa língua que não é a da sua pátria. Vintila
Horia não será um desses?
Vintila Horia
Nasceu na Roménia, filho de um engenheiro agrónomo. Uma
velha senhora quase cega que citava de cor Baudelaire e
Rimbaud, Anatole France e Rémy Gourmont, ensinou-o a
exprimir-se num Francês com estilo, aprendido nessa escola
de bons modelos. Adido de imprensa em Roma, em 1940,
destituído pouco depois pelo governo da guarda de ferro,
nomeado de novo para Viena em 1942, mas quase logo preso
pelos Alemães, começou em 1945 - recusando voltar ao seu
país, agora submetido a outro domínio - a viver a
experiência trágica de tantos homens da nossa época, a mesma
que um seu compatriota viria a evocar nessa terrível
Vigésima Quinta Hora. Em Itália, onde se ligou com Papini,
em Buenos Aires, na América do Sul, onde ganhou a vida como
escriturário num banco enquanto a sua mulher se esgotava num
trabalho penoso, por fim em Espanha, onde igualmente se
desgastou, dividido entre o trabalho de empregado de hotel e
o de repórter e correspondente literário, foi sucessivamente
conhecendo as impiedosas agruras do exílio. E esta
experiência vital constitui a fonte do que há de mais puro,
de mais essencial na sua inspiração.
O tema do exílio situa-se assim no centro da sua obra; e
existem poucos temas com os quais os homens da nossa época
melhor se identifiquem. O exílio, com os sofrimentos, os
dilaceramentos, as nostalgias trágicas, mas também o exílio
com a sua terrível capacidade de purificação. "Escolhi o
exílio para poder dizer a verdade", afirmava Nietsche. O
exilado, o homem que perdeu tudo, não será o predestinado
para julgar um mundo de homens instalados, para denunciar
hipocrisia e injustiça? E não será também o que está melhor
preparado para viver as grandes experiências espirituais?
Não é de ontem o ensinamento do Evangelho de que é mais
fácil ser o "viajante sobre a terra" a encontrar Deus, do
que o instalado e o satisfeito.
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PRIMEIRO ANO
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(2) Não é uma só beleza que desperta o meu amor Tenho sempre
cem motivos para amar
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(6) Taberneiros.
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Roma esta terra, até para lá do Danúbio, para lhe dar paz e
prosperidade." E para ensinar estes bárbaros a aparelhar os
bois... Roma paga-lhe uma boa soldada e ele sabe que dentro
de um ano ou dois será transferido para a Grécia ou para
Itália, conforme os seus méritos. Pode pois falar desta
forma. Quanto a mim, nunca quereria que estes homens livres
fossem um dia obrigados a construir templos à glória de
Augusto.
Tenho muito tempo diante de mim. Muito, se o contar por
horas e por dias. Mas pouco, se pensar nos anos que me
restam de vida. Pitágoras dizia que a vida se divide em
quatro períodos: "A infância, até aos vinte anos; a
adolescência, dos vinte aos quarenta; a juventude, dos
quarenta aos sessenta; e a velhice, dos sessenta aos
oitenta." Segundo este cálculo, estarei pois em plena
juventude. Mas é mais provável que o sábio de Crotona tenha
querido dizer maturidade em vez de juventude. E, se me
tivesse conhecido, ter-me-ia sem dúvida incluído entre os
velhos, sobretudo se lhe tivesse falado das minhas relações
com as mulheres. Ele dizia: "Só se deve fazer uso de Vénus
no Inverno, nunca no Verão; de vez em quando, no Outono e na
Primavera; mas é sempre uma coisa desgastante e muito má
para a saúde." Quando um dos seus discípulos um dia lhe
perguntou qual era o melhor tempo para consagrar ao amor,
respondeu: "Quando quiseres debilitar-te a ti próprio."
Conhecia os ensinamentos de Pitágoras desde a primeira
juventude. Nas Metamorfoses dediquei-lhe uma parte do livro
XV. Mas alguma vez me guiei pela sua sabedoria? Falei
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nenhum nome.
"É um Geta como tu?" Ela murmurou um "Sim" que punha fim às
minhas perguntas. Então não me tinha enganado. Havia um
homem e uma criança na vida de Dokia, e também um segredo
que não me queria revelar, pelo menos por enquanto.
- Não tens medo dos Getas? Estás ao serviço de um Romano;
eles um dia podem matar-te. Porque é que não vens morar na
cidade?
Abanou a cabeça. "Não. O meu pai tem a sua horta, a menina
brinca entre as árvores e à beira-mar. Sou feliz assim."
- És feliz, Dokia?
Fez que sim com a cabeça.
"Sem marido, tão nova e tão bonita, como é que podes ser
feliz?"
- Para se ser feliz, não precisamos de ter tudo o que
desejamos. Eu sei que a tua opinião não é esta, mas as
coisas são assim." Teria talvez razão, mas a nossa situação
não era a mesma.
- Sabes, Dokia, que eu tinha tudo o que um homem pode
desejar e mesmo assim não era feliz? Ela disse "Sim" e fez
sinal à criança para ir brincar no jardim. "Ninguém é senhor
do seu destino, nem da sua felicidade", acrescentou.
- Então quem é senhor de nós?"
Respondeu sem hesitar: "Zalmoxis."
Este nome encheu a tarde. Era como se o céu, o jardim e o
mar o tivessem também pronunciado, de tal modo era grave e
sonoro, simultaneamente triste e poderoso, como esta
paisagem modelada de acordo com a sua maneira de ser e de
pensar. Senti-me como que invadido pela sua força, obrigado
a obedecer-lhe e a crer nele. Ter-se-ia tornado, antes mesmo
de o conhecer, no senhor do meu destino? Esta mulher,
sentada na minha frente, tinha pronunciado o seu nome e era
a primeira vez que eu o ouvia, proferido pela boca de um ser
vivo.
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SEGUNDO ANO
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- Era nisso que tinha pensado. Mas esse escrito devia ser um
poema. Como compor um poema sem cair na banalidade de todos
os dias, dos milhares de dias prosaicos que são a minha
vida?
- Compreendes latim?
- Bastante bem. Aprendi com os marinheiros.
- Então ouve:
Sit tibi credibilis sermo consuetaque verba, Blanda tamen,
praesens ut videare loqui.
- Compreendo. Que a minha carta seja como a minha própria
voz, como se, lendo-me, ela me visse em sua frente. Não é
fácil. Em mim, a vida matou a poesia. Se lhe escrevesse como
falo ou como penso, ela assustava-se. Diria a si própria:
"Que bruto nojento!"
- Segundo o que me dizes, não se trata de uma menina
inocente. Os teus pensamentos não poderiam assustá-la porque
já sabe o que é a vida. Mas, ao certo, o que queres dela?
- Um pouco de amor. Preciso de amor para esquecer a velhice
que se aproxima, a morte, o meu aspecto, o meu presente e o
meu passado, a estupidez da vida que criei para mim próprio,
dia após dia. Para esquecer tudo, preciso de amor. É a
última coisa que peço aos deuses antes de morrer. Será pedir
de mais?
Devia ter respondido: "Sim, meu pobre amigo, é de mais. Esse
amor tão puro, ou essa aparência de amor que desejas com
toda a alma, para esquecer tudo, não existe, não é possível.
Assim a tua felicidade seria completa e, nunca devemos
esquecê-lo, a vida não acaba entre louros e rosas. Eu
contento-me com Ártemis nos momentos em que também tenho
vontade de esquecer tudo. E é triste." Mas, como dizer-lhe
semelhantes coisas, sobretudo nesta noite que
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TERCEIRO ANO
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Amar? E quem amei desde então? O amor não era senão uma
palavra, vazia de todo o sentido, ninguém amava ninguém
nesta cidade imensa, prestes a iluminar-se com os fogos da
noite e do prazer. Estávamos sós e tentávamos esquecer,
enfeitiçados pelo vinho e pelas carícias. As orgias são
feitas para isso, tal como a fadiga o é para o pobre e para
o escravo. Voltámos para Roma, de mãos dadas, sem dizer uma
palavra, assustados ambos pelo que Corina acabara de dizer,
tranquilizados ambos por esta verdade que até agora nenhum
de nós tinha tido coragem de exprimir, e ao mesmo tempo
desejosos de perder esta clarividência que nos oprimia.
Corina confessou-me, semanas mais tarde, que era adoradora
de ísis e que, todos os meses, se fechava no templo para
rezar e cumprir rituais sobre os quais nunca me deu
pormenores. Nesses dias, eu ficava só, verdadeiramente só, e
procurava também eu um templo, um culto, não importa qual,
para acreditar em qualquer coisa e preencher a solidão. Mas
não encontrava nada. Escrevia muito. Mas os versos não me
traziam mais do que glória.
Cerca-me um grande silêncio, deve ser muito tarde, mas,
apesar do cansaço, o sono não vem, e escrevo. Estou em
Istria há dois dias, hóspede de Dionisodoro e da mulher.
Sempre gostei de viagens, sinto-me bem, e aborrecia-me em
Tomos. Hérimon apresentou-me um amigo armador, Pausanias,
que vinha de barco da Grécia e ia fazer escala em Istria.
Convidou-me logo para o acompanhar e eu aceitei. Honório não
se opôs a esta viagem, pois bem sabe que não tenciono fugir.
A viagem durou menos de meio dia. A cidade é bonita e muito
rica. Maior que Tomos, construída sobre
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mentou-se num certo número de pequenos reinos, independentes
uns dos outros - pode dizer-se que isto sempre constituiu a
verdadeira doença política da região, directamente
influenciada pelos costumes gregos -, que desapareceram
pouco a pouco sob pressão de outros Citas vindos do Leste e
do Norte e dos Sármatas, sendo que estes últimos ainda se
encontram misturados com os Getas dos dois lados do Danúbio.
Há um século atrás, foi a vez de Mitrídates rei dos Partos,
ou do Ponto, vir submeter estas cidades obrigando-as a
celebrar uma aliança para as voltar em seguida contra Roma.
Mas, quando Mitrídates foi batido pelas nossas legiões em
681 A.U.C., elas ficaram de novo sob a nossa protecção. A
paz foi mais uma vez perturbada pelos Bastarnes, contra os
quais Roma enviou as suas legiões comandadas pelo general
Gaio António, antigo companheiro de consulado de Cícero.
Este foi vencido pelos bárbaros junto de Istria, e na
confusão da batalha perdeu as insígnias da sua legião. Em
724, Augusto enviou Marco Licínio Crasso que atravessou o
Danúbio, e avançando até ao coração da Cítia, muito mais a
leste da embocadura do grande rio restabeleceu a ordem.
Crasso foi recebido em triunfo em Roma lembro-me
perfeitamente, a 4 de Julho de 726. Todavia, após a partida
de Licínio, a anarquia voltou a reinar.
Ao contar a história da sua cidade, Dionisodoro deixou de
lado um episódio que o perturbava, mas que também não é
lisonjeiro para os Romanos: a batalha de Istria entre Gaio
António e os Bastarnas teve lugar em 692, e os aliados dos
bárbaros foram os gregos das cidades livres do Ponto Euxino
que, exasperados com o excesso de impostos e com os abusos
de C. António Híbrida, procônsul da Macedónia e cuja
autoridade se estendia até Istria, chamaram os Bastarnas em
sua ajuda, e, juntos, esmagaram as forças romanas. Foi
Burebista, rei dos Dácios, ou dos Getas, quem aproveitou
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QUARTO ANO
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(17) Cótis viria a ser morto, cinco anos mais tarde, por
Raiscuporis que pretendia reunir toda a Trácia sob o seu
ceptro, o que provocou a severa reacção de Tibério, sucessor
de Augusto.
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únicas habitantes actuais da casa, impediram-nos de deslocar
as pedras, para verificar se os sacerdotes teriam ficado
sepultados sob os escombros, talvez ainda vivos, uma vez que
a catástrofe se deve ter produzido recentemente, ou seja, há
dois ou três dias. Chamámos de alto, precorremos a ilha em
comprimento e largura, os homens de Pausanias ainda andam
pelas margens, ouço daqui os gritos assustados misturando-se
com os gemidos do mar. Têm medo das sombras dos defuntos,
das serpentes, mesmo as não venenosas, mas repugnantes pela
cor negra e luzidia, da solidão solene que os rodeia. O sol
já vai alto no céu sem nuvens e sopra uma brisa fresca,
assobiando através dos rochedos. O aspecto da ilha, com as
ruínas ao centro, não é hospitaleiro. Poderíamos chamar-lhe
a Ilha dos Mortos ou a Ilha das Serpentes. Eu não tenho
medo. Pelo contrário, uma curiosa paz encheu-me a alma logo
que vi o espectáculo do templo em ruínas. Em presença do
desastre, tive imediatamente a certeza de que o deus também
tinha fugido, ao mesmo tempo que os sacerdotes. Tinha-se
retirado do mundo. E se os sacerdotes estivessem mortos sob
os escombros da casa, o deus, porque não, teria talvez
sofrido o mesmo destino. Será possível que um deus morra?
Porque é que um deus, entre tantos outros, não quereria
retirar-se, fugindo da adoração fatigada dos homens? Os
deuses morrem com os seus últimos fiéis. Provavelmente
nascem novos deuses no meio de nós, sem nos apercebermos
disso. Só esperam por um nome para poderem ser adorados.
Parti de Tomos em busca dos sacerdotes de Zalmoxis. Dokia e
o pai ensinaram-me onde encontrá-los. Dirijo-me para a
montanha sagrada, porque quero conhecer a fundo a doutrina
do deus geta. Será ele o deus sem nome, cuja presença
invisível paira sobre o império, fazendo desertar os
legionários e aliciando as mulheres para outros templos e
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(18) Deniestre - N. T.
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Estava cansado. Parávamos de tempos a tempos à beira do
caminho, à sombra dos abetos negros. Escóris acompanhava-me.
Com a mesma idade que eu, é muito mais vigoroso e a montanha
é a sua pátria. Subia sem esforço o carreiro abrupto e
pedregoso, enquanto que eu perdia o fôlego a cada passo,
parava, retomava forças. Felizmente é falador e as perguntas
que lhe fazia não ficavam sem resposta. No fim do nosso
caminho elevava-se a morada dos sacerdotes dácios, ou melhor
dizendo, o seu templo, um dos mais importantes, e onde o
segredo de Zalmoxis me iria ser revelado. O povo chama a
estes sacerdotes distes ou polys-tis, que quer dizer
fundadores de cidades, o que é significativo, pois o termo
dá claramente a entender que foram os sacerdotes os
verdadeiros fundadores da sociedade dos Getas e que lhe
deram, pelo menos, as primeiras leis. Habitam geralmente nas
montanhas mais altas do país, nunca comem carne, de acordo
com as regras, tanto de Zalmoxis, como de Pitágoras, e os
seus alimentos são o leite, o queijo e o mel. O povo também
lhes chama "os que viajam nas nuvens", o que é um belo nome.
Os bens são postos em comum, a vida que levam é austera, têm
como um dos deveres socorrer os pobres e os infelizes, e a
sua actividade quotidiana, nas horas em que não estão em
oração, é o trabalho da terra. Lembro-me de ter lido, há
muitos anos, um livro grego sobre uma seita da Palestina
chamada os Essénios - é possível que me engane e que o nome
não seja exactamente este - que praticavam uma forma de vida
e de virtude com uma certa semelhança com o que Escóris me
dizia sobre os sacerdotes dácios. O meu hospedeiro e guia
evitou responder-me a uma pergunta essencial: onde se
encontravam exactamente o Grande Sacerdote e a montanha
sagrada, Cogainon? Era a
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sua própria obra, que é por ele esculpida a cada dia, com as
boas acções, e que só a alma é eterna.
Olhou-me de novo, com os olhos cheios de uma doçura severa e
perguntou: "Qual é o pior dos erros que cometeste na vida?"
Reflecti. Diante de Augusto teria respondido, troçando: "A
Arte de Amar", mas diante deste velho que me falava de Deus,
um belo livro não podia constituir uma má acção. Disse: "O
orgulho. Fui um orgulhoso." Mas não tinha a certeza de ter
dito a verdade, uma verdade incerta mesmo para mim próprio,
que não sabia exactamente o que queria de mim este Deus. A
fronteira entre o bem e o mal não era clara na minha
consciência.
- Queres ir a Cogainon!? - disse o sacerdote.
O coração batia-me com força, sentia o seu movimento regular
enchendo-me o peito, sentia-o até à ponta dos dedos. Olhei
para o sacerdote, e compreendi. Os meus olhos encheram-se de
lágrimas e uma felicidade desconhecida invadiu-me. Disse:
- Não.
O sacerdote sorriu, levantou-se, pousou-me a mão na cabeça e
murmurou uma oração de que não consegui distinguir as
palavras. Fez-me sinal para o seguir e saímos da gruta para
a claridade ofuscante. Um caminho sombreado levou-nos até ao
cimo da montanha, onde o olhar alcançava uma vasta extensão.
Via de um lado as colinas na beira do Ribeiro Salgado, do
outro lado, outra cadeia de montanhas para lá da qual
começava, segundo o sacerdote, um planalto rodeado por altas
montanhas, como se fossem uma fortaleza. Era o berço dos
Dácios, o núcleo central da sua pátria, morada dos reis
lendários, e sede da antiga capital de Dromichet e de
Burebista, Sarmisegetuza. A elevação em que nos
encontrávamos era coberta por uma erva curta e
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QUINTO ANO
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Não quero pensar nisto, mas basta uma alusão para que eu
reviva um trágico quadro. Aconteceu noutras paragens. Tinha
embarcado em Troesmis num barco de velas que iria deixar-me
em Novioduno, de onde uma galera me conduziria a Tomos.
Tinha-me despedido de Comozous e sentia-me mais só do que no
meio da floresta dácia. A barca flutuava para o mar,
empurrada pela corrente, como uma folha morta. Navegávamos
junto da margem esquerda, onde a corrente era mais rápida.
Uma coluna de fumo assinalava na planície a passagem dos
Sármatas. A certa altura o fumo desapareceu, escondido pelos
altos choupos que faziam tilintar a prata da folhagem ao
sabor de um vento ligeiro. Fechei os olhos quando avistei o
primeiro cadáver, que balançava levemente, na ponta de uma
corda. Abri os olhos. Diante de mim, havia outro cadáver,
com a cara ensanguentada. E ao todo eram mais de cinquenta,
com os olhos e as carnes bicados pelos corvos e pelas
gaivotas. Eram os Sármatas vencidos, enforcados pelos Dácios
que assim se vingavam das pilhagens, dos incêndios e dos
massacres. Trazia ainda gravadas em mim as palavras que o
sacerdote me transmitira na montanha quente e lisa como o
dorso de um cavalo. Tinha ainda nas narinas o cheiro da erva
perfumada onde tinha mergulhado a cara, e nos olhos a paz
inumana das colinas que se seguiam umas às outras, até ao
infinito, como as notas de uma canção. No entanto, era
preciso ser forte para acreditar, mesmo assim, na realidade
destas memórias, na promessa do sacerdote. A realidade, a de
todos os dias, estava ali, diante de mim, nesses ramos que
tinham florido ao sol de Maio e de onde agora pendiam
frutos. Verdadeiros frutos de vida. Como esquecer? Como
mudar?
Por vezes, chego a interrogar-me: "Fomos nós que inventámos
os tormentos, a crueldade? Homens que se
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tudo não tenhas medo de encarar a verdade das coisas: Lídia
não é mais do que uma ilusão."
Olhou-me por instantes, aturdido, depois afastou-se, com o
seu passo pesado e indeciso, sem me responder. Vi os ombros
largos, curvados com o peso da dor e o desespero,
desaparecer na luz cinzenta do fim de tarde. Um homem que
carregava um fardo de que não conseguia desembaraçar-se.
Tive pena dele. De que serve um conselho, se não consegue
confirmar-nos as esperanças, absolver-nos dos pecados,
perdoar desde logo os futuros erros? Gritei "Hérimon!" Mas
já ia longe de mais. O perfume da macieira impediu-me de o
seguir.
Não pensar em símbolos, não tentar encontrar um significado
para tudo o que vejo acontecer, não transformar em imagens
do que será, os sinais, sem reflexos, do que é, não misturar
os deuses e a sua vida inventada com os acontecimentos reais
do dia a dia. Mas como impedir-me? Toda a nossa educação
converge para esse simbolismo no qual, com a doentia
inclinação que temos para o inevitável e o trágico, nos
esforçamos por encontrar a face do nosso próprio futuro.
Somos todos pequenas Sibilas impotentes, prontos para
traduzir o que é no que poderia ser. Opõem-se em nós duas
linguagens sem correspondência possível, e procuramos
angustiadamente pontos de contacto inexistentes. Conhecer o
futuro significa destruirmo-nos, pois o conhecimento não
evita a morte.
Passeava esta tarde na praia com a pequena Dokia e com
"Augusto". Estes longos dias de Verão são sufocantes, só à
beira-mar se encontra um pouco de frescura. A Dokia mais
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24 Capri - N. T.
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Augusto não teria mais de cem dias para viver (25), mas,
após a morte, iria fazer parte do Olimpo, sendo AESAR o
termo etrusco para DEUS.
Também os presságios habituais não deixavam de se manifestar
aos olhos de todos: eclipse de sol, uma parte do céu que se
incendeia, cometas que atravessam o firmamento deixando cair
sobre a terra fragmentos ensanguentados, um mocho debruçado
sobre a Cúria no dia em que os senadores decidiram pedir aos
deuses, em conjunto, pela saúde de Augusto, etc.
Finalmente, pretende-se saber que Lívia teria dado um milhão
de sestércios a Numérico Ático, senador e pretoriano, para
ele fornecer um testemunho da divindade de Augusto: Ático
teria visto o imperador subir ao céu, como outrora Próculo
tinha visto Rómulo.
Um documento curioso é o testamento de Augusto, redigido
dezasseis meses antes do seu passamento: Bem entendido,
nomeava Tibério e Lívia como seus sucessores, Tibério com
dois terços da fortuna, Lívia com o outro terço. Além disso,
concedia a Lívia a pertença à família dos Júlios, por
adopção, uma vez que ninguém lhe pertencia por sangue, e o
título de Augusta. Os bens deste homem que foi senhor do
mundo e cujo nome ressoava até aos confins da Terra, não
ultrapassavam os cento e cinquenta milhões de sestércios.
Deles, deixou quarenta ao povo romano, três milhões cento e
cinquenta mil às tribos, mil a cada guarda pretoriano,
trezentos a cada soldado das legiões ou das formações
urbanas, enquanto os outros legados não ultrapassavam
quatrocentos sestércios. Entre os conselhos a Tibério, que
se encontravam no quarto dos libelos que acompanhavam o
testamento, pôde ler-se o seguinte: não alargar mais os
limi-
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apesar das guerras, dos crimes, dos abusos, das castas e das
falsas hierarquias que nos separam enquanto somos carne.
Consegues compreender? Diz-se que o vosso Augusto tinha
tomado medidas para impedir a difusão desta doutrina em Roma
e no resto do império. É evidente. Esta doutrina, pelo
simples facto de anular as distâncias entre a força dos
ricos e a impotência dos pobres, entre os direitos dos todo-
poderosos e os deveres dos escravos, viria abalar o
império."
Teodoro estava longe da taberna e do copo que Hérimon sempre
se apressava a encher. O seu cérebro ficava assim cada vez
mais lúcido e exprimia os raciocínios num grego normal e
inteligente. Era um prazer ouvi-lo.
"Deixei-me levar por estes princípios que achava justos,
nobres e actuais. Vivíamos num mundo sufocante. Qualquer
coisa tinha de acontecer para preencher a minha expectativa,
qualquer coisa que os homens esperavam desde há séculos,
desde sempre, desde o momento em que conheciam o sofrimento
e a morte. Comecei, portanto, a frequentar os templos, a
cumprir os rituais de purificação, a tomar parte nas
procissões, esperando o milagre, pois os sacerdotes deste
culto operam milagres. Um dia, um dos meus melhores amigos
adoeceu. Era um médico egípcio, casado, pai de seis filhos.
Morreu nos meus braços. A medicina foi incapaz de o salvar.
Chamei então o sacerdote do templo que frequentávamos todos
os dias, um santo homem. Veio, aplicou por três vezes uma
certa erva na boca do defunto, pôs-lhe uma outra sobre o
peito, e em seguida, voltando-se para oriente, dirigiu
baixinho uma oração ao Sol, irmão de ísis. E o morto
ressuscitou, ali, diante dos meus olhos, os mesmos olhos que
tinham visto e confirmado a morte. Consegues entender? O meu
amigo vivia, a fé restituíra-o aos seus. Eu estava
maravilhado. Passados uns dias, voltei a visitá-lo. Estava
ainda de cama, mas comportava-se normalmente,
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SEXTO ANO
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verdadeiro responsável desta morte? Lídia, que com a sua
beleza e juventude ateou no coração do amante uma paixão
cega e culposa? Eu, com os versos que permitiram aos dois
amantes revelarem-se e possuírem-se? Hérimon, com o gesto de
empurrar a mulher para o vazio da escada? Neste momento
assalta-me outra dúvida: quantas outras pessoas serão ainda,
ou terão já sido, pervertidas pelos meus versos? Quantos
homens a beleza de Lídia acabará ainda por destruir? Nesta
perspectiva, o gesto de Hérimon perde toda a gravidade
criminosa e ele torna-se o mais inocente dos três cúmplices.
E quem pode julgar a nossa falta e repartir o justo peso do
castigo, aqui e na eternidade?
Nova carta de Teodoro. Cheia de esperança, desta vez. "Estou
de novo no rasto d'Ele, escreve. As minhas buscas
conduziram-me até um velho judeu que não se espantou com a
minha notícia. De há muito que esperam a vinda do Messias.
Leu-me algumas passagens, que vou transcrever de memória, de
um dos seus livros sagrados a que chamam o Génesis e o Livro
dos Profetas: O Messias nascerá da tribo de Judá, da família
de Jesse e a mãe será uma virgem. A Sua pátria será Belém de
Efrata (lembras-te com certeza do nome desta aldeia, onde O
vi, mal acabara de nascer). Será o Filho de Deus, do Deus
Todo Poderoso, e será o Príncipe da Paz e o espírito do
Senhor acompanhá-lo-á sempre. Será taumaturgo, doutor e
profeta, legislador e rei do novo reino. Será
simultaneamente o sacerdote e a vítima. Segundo o profeta
Zacarias, será vendido por trinta dinheiros de prata. Será
flagelado e torturado, vão cuspir-Lhe na cara, as mãos e os
pés serão trespassados, e quando pedir de beber vão
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quer coisa que sempre amei nela e que era como a previsão
deste momento. E as Metamorfoses, onde acumulei todos os
erros de um mundo a caminhar para a morte? Pensava que os
deuses tinham o poder de nos transformar em animais, em
plantas e em rochedos. Nada disso é possível agora. Porque o
verdadeiro Deus tomou a nossa forma, metamorfoseou-se em
homem, não para desfrutar os prazeres dos mortais, mas para
sofrer, para nos fazer compreender que somos semelhantes a
Ele, na dor. A matéria e os animais eram de certa forma
semelhantes aos outros deuses, aos falsos deuses do passado,
com todos os defeitos que, se forem ainda possíveis no
futuro, servirão para nos envergonhar e para definir melhor
faltas e crimes, face à perfeição que nos será pedida. E os
Fastos, onde cantei as glórias de Roma, a sua eternidade, em
breve só terão o valor de pobres prodígios, assinalando no
decorrer de um ano, a marca quase invisível de uma sombra
esgotada e solitária. Quanto aos Tristia e às Epístolas do
Ponto, que dor irrisória, que humilhação inútil diante de um
deus, cuja carne apodrecida não vale mais do que a de todos
os tiranos, mais ou menos iluminados! A história da
derrocada desta podridão engendrando nova podridão. As
minhas obras só sobreviverão na medida em que os homens do
futuro conservem, no meio do verdadeiro conhecimento que
lhes será concedido, o vício agradável e inútil da
curiosidade. No entanto, se alguém descobrir este diário,
poderá tomar parte nos tormentos e nas esperanças do tempo
único que vivemos: o tempo da espera e da certeza. Sei que
não é senão um momento, mas um dos mais belos da história
dos homens, porque Deus está entre nós e ainda não revelou a
Sua presença. O momento passará e ficar-nos-á a certeza.
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SÉTIMO ANO
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Honório tinha renunciado à farda militar e, na noite da
partida, vestira-se de Dácio. Tomámos a última refeição
juntos, na casa de Dokia, de onde partiram para não serem
obrigados a atravessar a cidade que fica fechada de noite, e
também para evitar serem vistos. Passei a noite sozinho na
casa de Dokia, vazia e fria, cheia ainda do som das suas
vozes, o ar ainda agitado pelas suas presenças invisíveis.
Cerca da meia-noite, torturado pelos fantasmas destes vivos
que acabara de apertar nos braços, saí e fui passear ao
longo da praia, à luz da lua. As ondas quebravam na areia
com um ruído quase imperceptível, tal era a calma do mar.
Quantos factos importantes da minha vida tiveram lugar neste
sítio: aqui, Dokia velara um dia pelo meu sono, deixando-me
adivinhar assim a sua simpatia; aqui tinha visto partir a
galera que deveria ter-me levado para as terras dos Partos,
no dia em que quis escapar a Augusto; fora ali que o meu
"Augusto" encontrara a morte, com os olhos furados pela
águia e que a pequena Dokia tinha manifestado a sua força e
coragem, e foi nesta praia que Teodoro me contou a sua
estranha aventura, trazendo-me a boa nova. Já não pensava em
Medeia. Estas paragens tinham perdido todo o aspecto
selvagem e pouco hospitaleiro. Os anos tinham-nas amansado.
Faziam agora parte da minha vida e a realidade separara-as
do mito e de todas as sombras nefastas.
Estrelas cadentes tombavam sobre o mar, porque estamos em
Agosto, o mês em que o Céu fala à Terra através destes
longos sinais indecifráveis. Este céu imenso é-me hoje mais
familiar do que o de Roma. A Ursa Maior, sobre a casa de
Dokia, já não é um símbolo de exílio, mas o de uma nova
pátria, a pátria da minha velhice. A minha última pátria
provisória.
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corpo como um peso que não me pertencesse. As cigarras,
entontecidas de calor, faziam vibrar o ar elástico.
Falávamos de mulheres, de política, de poesia, eu
deslumbrava o meu irmão com os meus conhecimentos. Ele
fazia-me chorar de riso, imitando as pessoas crescidas, a
voz do meu pai, o andar cocho da governante grega, a tosse
do nosso tio. Eu encontrava rimas para tudo e inventava
histórias.
Aquelas duas horas, escoando-se lentamente, pareciam
infindáveis, como é sempre o tempo da infância. Saltávamos a
paliçada do fundo do pomar e íamos dar a uma praça, pouco
frequentada, deserta àquela hora, onde a erva crescia entre
as pedras do chão. No meio, erguiam-se as colunas do templo
de Diana, brancas e brilhantes, na claridade ofuscante.
Sulmona dormia num grande silêncio, embalada pelo canto das
cigarras. No quadrante solar, a sombra da agulha nem se
movia. Éramos os únicos seres vivos numa cidade que nos
pertencia. Era a nossa hora. Dirigíamo-nos para o ribeiro
que corria à entrada da cidade, onde nos esperava o nosso
espectáculo quotidiano. Na hora do calor, algumas mulheres
do bairro pobre aventuravam-se, por vezes, a ir tomar banho
no ribeiro. Escondidos atrás de uma fila de choupos,
deitados na erva, contemplávamos os corpos nus, que
revelavam, sem pudor, os seus mistérios. Elas gritavam e
riam atirando água umas às outras, com uma mão a tentar
esconder os seios ou o sexo, brancas e invulneráveis, como
deusas. Se nos deixávamos ver, gritavam injúrias obscenas, e
nós respondíamos da mesma maneira, mas ninguém abandonava o
seu sítio. A água não chegava a cobrir-lhes os joelhos.
Regressávamos excitados, as faces vermelhas, o coração
desordenado, como faunos tímidos e desencorajados. A
infância pesava-nos como uma coisa vergonhosa. O tempo que
ainda nos separava da idade de sermos homens parecia
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Carta de Fábia:
"De momento, não há esperança. Tibério recusa receber-me. De
há meses para cá proibiram-me o acesso ao palácio. Não quero
desencorajar-te..." Recome-cerá as suas diligências logo que
a situação actual se altere. Para quê ter ilusões? Ainda
preciso delas? Fábia está mais longe nos meus pensamentos do
que a minha mãe nos meus sonhos.
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OITAVO ANO
As mãos tornaram-se maiores, cabelos grisalhos começam a
aparecer aqui e ali. Como antes, cheira a cavalo e a queijo
fresco. Comozous está diante de mim e ainda não consigo
acreditar. Percorreu de carroça a distância entre Troesmis e
Istria, passando ao longo do Danúbio, por Arrubium e
Carsium, e a pé, entre Istria e Tomos. E não está cansado.
Entrou na cidade com um grupo de compatriotas, camponeses
dos arredores que iam para a feira e apresentou-se em minha
casa ao cair da noite, para não despertar suspeitas.Traz
mensagens de Flávio Capitão, o Romano de Istria para quem eu
tinha escrito há quatro anos. Sédida mandou construir uma
bela casa, ao lado da de Escóris; uma das filhas deste, a
mais nova, foi viver com ela para lhe fazer companhia.
Envia-me saudações. Sim, envelheceu muito, a vida dela já
não faz muito sentido, pede a Zalmoxis que a chame para
junto dos seus. Diz-me que os dois velhos - os que me tinham
feito evocar a história de Filémon e Baucis - tinham sido
efectivamente mortos pelos Sármatas e que o filho,
regressando da guerra, encontrara os cadáveres sepultados
sob as cinzas e os tinha enterrado na floresta. Tinha
reconstruído a casa, casado com uma rapariga de Zousidava e
já tinha dois filhos. Ah, claro, deves ter passado uma noite
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meu irmão está na minha frente, tal como era em Roma há
trinta anos. Fala comigo, compreendo-o sem dificuldade, mas
não me é possível transcrever as suas palavras. É como se
fossem dirigidas a uma parte profunda e secreta de mim
mesmo, onde as palavras, uma vez chegadas, não voltam a
sair. Não, não é uma alucinação e esta não é a sua primeira
visita. Desaparece quando alguém entra no quarto, e
reaparece quando estou só. Sorri-me. Evoco em voz alta cenas
da nossa infância, de que me recordo nos mais
insignificantes pormenores, com uma nitidez surpreendente.
Ele também não esqueceu nada e deixa-me falar sem nunca me
interromper, como se todas estas memórias, reavivadas pelas
minhas palavras, lhe dessem um imenso prazer. As tardes no
pomar de Sulmona, as uvas e os figos, as mulheres que se
banhavam no ribeiro, a crise de lágrimas e a fuga
desesperada no dia em que lhe revelei a morte dos deuses, o
seu primeiro amor, em Roma, na época em que era estudante,
os nossos encontros nocturnos nas tabernas do Transtévere, a
primeira viagem juntos à ilha da Planasia, a sua doença e
morte inesperada, em plena juventude, tudo isto, sinto-o
nitidamente, diverte-o imenso. Tem saudades do tempo passado
entre os vivos, ou sorri para me dar prazer? Tem o mesmo
aspecto, mas uma linguagem diferente. Faz parte de um outro
mundo onde nada, nada do que para nós, aqui, é compreensível
e familiar, tem valor ou faz sentido. Apercebo-me bem disso.
Faço-o falar. Responde-me. O que me diz, faz-me sorrir de
alegria e de esperança, mas como reproduzi-lo com palavras
escritas? O contacto entre nós é possível graças ao seu
aspecto exterior, de outra forma não se me poderia revelar,
mas esse aspecto pertence ao passado, à morte, e aquilo que
ele hoje verdadeiramente é, não consegue impressionar os
meus sentidos de mortal. O contacto entre nós
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Nota final
Os versos de Ovídio citados no meu romance foram
reproduzidos seguindo as traduções de Emile Ripert (Les
Tristes, Les Pontiques, Les Amours) e de Jacques Chamonard
(Les Métamorphoses).
As passagens citadas nas págs. 157-161 pertencem à Odyssée,
canto XI, intitulado "Au pays des morts", traduzidos por
Victor Bérard.
Não quero deixar de prestar aqui a minha calorosa homenagem
à memória do escritor e arqueólogo romeno V. Parvan (morto
em 1927), cuja Gética de há muito me familiarizara com a
história, a religião e a vida quotidiana dos Dácios.
V.H.