Sei sulla pagina 1di 142

H I S T Ó R I A

E ANTOLOGIA
DA L I T E R AT U R A
P O RT U G U E S A
S é c u l o
XVII

N.º 35

FUNDAÇÃO
CALOUSTE
GULBENKIAN
1

Serviço de Educação e Bolsas


HALP N. 35

Professores/Investigadores

Ana Hatherly
Maria Lucília Gonçalves Pires
Nuno Júdice

Agradecimentos

Museu Calouste Gulbenkian


Imprensa Nacional Casa da Moeda
Livraria Sá da Costa Editora
Livros Horizonte
Porto Editora

Ilustração Capa:

Nicolas Lancret
Festa Galante
c.1730. Óleo sobre tela
A. 0,645 X L. 0,695 m. (N. Inv. 958)
Lisboa: Museu Calouste Gulbenkian 

Ficha Técnica

Edição da Fundação Calouste Gulbenkian


Serviço de Educação e Bolsas
Av. de Berna 45A - 1067-001 Lisboa
Autora: Isabel Allegro de Magalhães
Concepção Gráfica de António Paulo Gama
Composição, impressão e acabamento
G.C. Gráfica de Coimbra, Lda.
Tiragem de 11.000 exemplares
Distribuição gratuita
Depósito Legal n.° 206390/04
ISSN 1645-5169
Série HALP n.° 35 - Dezembro, 2005

2
NARRATIVA DE FICÇÃO
MEMORIALISMO E COSTUMES
PROSA MORALISTA E HUMORISTA
(MISCELÂNEA)

3
4
João Nunes Freire
Índice Os Campos Elísios ........................................... 76

Diogo Ferreira de Figueiroa

Nota Prévia ................................................... 7 Desmaios de Maio em Sombras do Mondego ........ 78

INTRODUÇÕES. ESTUDOS BREVES: Gerardo de Escobar


Novela III ....................................................... 80
“Gaspar Pires de Rebelo: um génio da Língua
e da Literatura” António Barbosa Bacelar
Nuno Júdice .................................................. 15 Desafio Venturoso ............................................. 84

“Os Campos Elísios de Nunes Freire” Frei Lucas de Santa Catarina


João Palma-Ferreira ....................................... 20
“Os Irmãos Penitentes” .................................. 87

“O Desafio Venturoso de António Barbosa


Tomé Pinheiro da Veiga
Bacelar”
Ana Hatherly ................................................. 21 Fastigímia ........................................................ 93

“Os Irmãos Penitentes de Frei Lucas de Santa Francisco Xavier de Menezes (4º Conde
Catarina” da Ericeira)
Maria Lucília G. Pires .................................... 22 Diário (1673-1743) ......................................... 105

“Prosa memorialista de seiscentos” Frei Alexandre da Paixão


António J. Saraiva e Óscar Lopes ................... 26 Monstruosidades do Tempo e da Fortuna
(1662-1680) ................................................... 107
“Fastigímia: contraste entre castelhanos e
portugueses” António de Sousa Macedo
Maria de Lourdes Belchior ............................ 28
Flores de España, Excelencias de Portugal ............ 111

“Os Diálogos de Mendes de Vasconcelos”


Luís Mendes de Vasconcelos
José da Felicidade Alves .................................. 33
Do Sítio de Lisboa: Diálogos ............................. 115
“O casamento perfeito”, segundo Paiva
Padre Manuel Conciência
de Andrada
Fidelino de Figueiredo ................................... 35 Mocidade Enganada e Desenganada .................... 122

Diogo de Paiva de Andrada


TEXTOS LITERÁRIOS: O Casamento Perfeito ....................................... 125

Gaspar Pires de Rebelo Jacome Carvalho do Canto


– Infortúnios Trágicos da Constante Florinda ........... 39 A Perfeita Religiosa .......................................... 128
– “O Desgraciado Amante Peralvilho” ........... 68

5
Frei Bartolomeu Ferreira
“Contra a leitura de livros profanos” ............. 129

Frei João dos Prazeres


“Novelas amorosas mas exemplares” .............. 130

Anónimo [?]
“Da utilidade das novelas” ............................. 131

Nuno Marques Pereira


“Livros espirituais e livros profanos” .............. 132

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA .................... 135

6
Nota Prévia
Vejamos então as obras e os autores presentes
nesta Miscelânea:

1. FICÇÃO NARRATIVA
– GASPAR PIRES DE REBELO é seguramente
A passos largos nos encaminhamos para o termo o autor que mais fortemente marca a narrativa
desta História e Antologia da Literatura Portuguesa, de ficção seiscentista portuguesa. Frade da Ordem
que encerrará com a apresentação do século Militar de Sant’Iago da Espada, no Convento de
XVII. E o espaço previsto para a literatura do Palmela, escreveu um romance (considerado,
século XVII está já quase esgotado: haverá ape- com razão, a sua obra-prima), com o título In-
nas mais dois volumes, centrados na Obra do fortúnios Trágicos da Constante Florinda, em
Padre António Vieira. dois volumes, publicados em 1625, o primeiro, e
Por essa razão, pensei dar a este volume o carác- em 1633, o segundo.
ter de uma Miscelânea de obras muito diversas, Como escreve Nuno Júdice no prefácio à sua
de modo a podermos completar um panorama recente edição da obra, Pires de Rebelo, “ainda
– sumário – da produção literária portuguesa contemporâneo e seguidor de Cervantes no tom
seiscentista. Mesmo assim – dado que o século picaresco das Novelas Exemplares, [...] traça-nos
XVII é literariamente muito vasto em Portugal um quadro amplo e imaginativo da sociedade
– há ilimitadas falhas, das quais estou consciente: do seu tempo, em que a demanda amorosa é
não só muitas outras obras do mesmo teor das acompanhada por episódios que nos levam de
que aqui são apresentadas estão ausentes (teve Braga e Lisboa à Índia, de Espanha a França e à
que se proceder, naturalmente, a uma drástica Grã-Bretanha, da Itália ao Norte de África,
selecção), como por exemplo obras da nossa numa sequência de aventuras que arrasta o lei-
historiografia seiscentista, entre outras, nem se- tor, com o talento narrativo que lhe é dado pela
quer são aqui nomeadas. sua imensa cultura. Moralista e libertino, Gaspar
Nestas páginas, encontramos pois excertos de Pires Rebelo desafia preconceitos e tabus, num
obras de natureza diversa: ficção narrativa (roman- constante apelo à imaginação que faz dele um
ce, novela, contos); escrita de memórias (diários digno herdeiro do génio cervantino.”
e narrativas de viagem, da vida da corte, da vida Além do romance, Pires de Rebelo escreveu
portuguesa e castelhana, por exemplo); narrativas cinco Novelas Exemplares, título que só por si
laudatórias à volta do ser e do estar português manifesta a sua linhagem. De entre elas, a quinta
(as cidades, a língua, traços de carácter, etc.) – desse conjunto, “O Desgraciado Amante
louvor este que se explicará pela situação de Peralvilho”, é aqui apresentada.
forçada convivência na Península durante a
– JOÃO NUNES FREIRE, Os Campos Elísios,
união a Castela e um consequente “sentimento
de 1626: uma novela pastoril, dividida em doze
de inferioridade”; textos moralistas, normativos,
jardins ou capítulos, em que os amores pastoris
sobre questões como estas: a vida dos casados e a
acontecem “em praias do caudaloso Douro” e
das freiras, comportamentos da mocidade e dos
na região do Lima, mostrando o trabalho da
políticos, etc.; declarações e “pareceres” de cariz
fantasia sobre a natureza, provavelmente indica-
reflexivo e teórico, por exemplo sobre questões de
dor da tendência barroca para uma fuga ao
retótica, utilidade das leituras, públicos-alvo, etc.
mundo.

7
– DIOGO FERREIRA DE FIGUEIROA, Des- Temos aqui excertos de três obras:
maios de Maio em Sombras do Mondego – uma
– TOMÉ PINHEIRO DA VEIGA, Fastigímia
narrativa em que a presença da paisagem – a
(1911): uma espécie de diário-reportagem de
Coimbra de Santa Cruz, Santa Clara – merece
viagem por terras castelhanas – Valladolid –, em
extraordinário pormenor (os seus “bosques de
que as formas de ser e de estar dos dois povos
alegria”, o “adormecido rio”).
peninsulares são descritas e comparadas, e é
– GERARDO DE ESCOBAR, a Novela III: também “uma crónica divertida e escandalosa
“Dos empenhos de uma fita”: narra a histó- sobre a vida da corte”. Encontramos aqui algo
ria de Constâncio e Floris bela e Ardénio, acon- raro no tempo: uma espécie de entusiasmo, iróni-
tecida num momento de guerras europeias que co, perante o modo de viver dos castelhanos – a
envolvem Castela e Portugal. É interessante essa sua alegria convivente, a sua esplêndida liberdade
forte presença de um contexto histórico mais de costumes –, contrastado com a melancolia e
amplo que o da Península. o pesadume, com a sujeição (das mulheres, por
exemplo) em Portugal.
– ANTÓNIO BARBOSA BACELAR, Desafio
Venturoso: uma “novela curta amatória”, próxima – FREI ALEXANDRE DA PAIXÃO, Monstruo-
das de Cervantes, em que o “clima de grande sidades do Tempo e da Fortuna (1631-1701): obra
tensão passional” atravessa todo o texto. hoje atribuída a este frade beneditino, embora o
problema da autoria tenha sido longamente
– FREI LUCAS DE SANTA CATARINA, “Os
questionado. Em registo diarístico, são aqui da-
Irmãos Penitentes”: uma novela integrada na
das infor mações sobre acontecimentos,
primeira das três “Noites”de Serão Político. Nessa
efemérides de ordem cultural, política e artística,
noite, em que é discutida como questão literária
significativas sobretudo para o estudo da história
a novela, é feito um encaixe desta narrativa que
das mentalidades e costumes da época.
Maria Lucília Pires considera uma novela
“exemplar”, “irrealista” e “ambígua” (ver estudo – D. FRANCISCO XAVIER DE MENEZES, 4º
nas páginas seguintes). CONDE DA ERICEIRA, Diário (1673-1743):
um texto com elementos que, para além do ela-
2. MEMORIALISMO. COSTUMES. borado tecido verbal, valem antes de mais em
HUMORISMO. termos de uma história das mentalidades e dos
costumes da época. Entre tantas outras informa-
Trata-se de um conjunto de textos organizados
ções, comentadas ou não, é por exemplo interes-
como “diários”, mas que, apesar de assim os po-
sante ficarmos a saber o momento exacto em
dermos reconhecer, estão a grande distância da-
que a Ópera lírica italiana entrou em Portugal,
quilo que hoje entendemos por tal designação.
através da referência que é feita às “Cantarinas”,
São textos que registam na sua estrutura o fluir
certamente as conhecidas “Paquetas” da Com-
do tempo (com datas e lugares precisos), mas
panhia italiana que esteve nesses anos em Lisboa.
que quase nada dizem do “eu” enunciador de
situações, opiniões, factos, comentados. Focam
3. OBRAS DE LOUVOR E DE ANÁLISE
costumes, maneiras de ser e de reagir, aconteci-
de PORTUGAL
mentos de relevo ou pequenos incidentes do
quotidiano na vida das sociedades, dos políticos, Num tempo de humilhação política, vemos
da vida privada, da corte, etc. crescer em alguns autores uma consciência for-

8
temente nacionalista, em que o elogio ou louvor cidade de Lisboa, sugerindo que a cidade tem
do que é português assume excessos que só a possibilidades para tornar-se não só pólo da
situação política pode explicar. (Como antes ficou união peninsular mas também “cabeça de um
dito, Fastigímia é uma excepção a esta vincada grande império”. Diz, por exemplo, o filósofo:
atitude mental.) “Deve esta cidade ser preferida a todas as outras
Nos dois textos a seguir indicados, ouvimos da Europa”, pois é uma cidade que se mantém
enaltecer Lisboa e Portugal: a situação geográfica grande, apesar mesmo dos “danos que recebe da
do país, tanto o clima de Lisboa como a genero- conquista da Índia”. Os fracassos relativos ao
sidade do povo e a língua. Para esta são inventa- modo da gestão da expansão são analisados tam-
das etimologias de extraordinária fantasia. Num bém, com uma crítica forte sobretudo no que
e noutro caso, presenciamos uma análise crítica toca ao caso da Índia.
da situação do país, em particular do modo
como se lidou com o chamado Império. 4. OBRAS de CARÁCTER MORALISTA 1
– ANTÓNIO DE SOUSA MACEDO, Flores de É notória na literatura portuguesa seiscentista (e
España y Excelencias de Portugal (1651): o autor, também na setecentista) a tendência moralizante,
natural do Porto, exibe as qualidades e “excelên- normalmente numa linha assaz conservadora
cias” de Portugal (rios, minas de outro, a língua, (salvo raras excepções) no que diz respeito a
etc.) Diz o autor que “España es la mejor parte comportamentos, atitudes políticas, sociais, rela-
de Europa” e que “Portugal está en la mejor cionais. Conforme o faz notar Jacinto do Prado
parte, y sitio de España”; “está como cabeça de Coelho, menos frequentemente se vê na nossa
España, [...] a la orilla de la mar”. literatura a observação gratuita do outro e do
No entanto, como vemos e para surpresa do que nos rodeia, movida apenas pela avidez de
leitor, a obra é escrita em castelhano. Uma decisão, conhecer gentes, lugares, hábitos e posições di-
aliás, expressamente assumida no texto, com o pro- ferentes. Por isso o tom de muitas destas obras é
pósito de assim poder ser lido por mais pessoas. parenético, isto é, atravessado por admonições e
Sousa Macedo escreveu ainda Eva e Ave ou Amira preceitos de natureza moral. Perante as sátiras
Triunfante, em 1676 e, em 1645, um texto em feitas, são apresentados preceitos para corrigir os
latim sobre a “Lusitânia libertada do injusto do- males, sempre num intuito claro de edificação
mínio castelhano”. Com esta intenção laudató- moral.
ria, muitos outros textos existem. Entre eles, por De entre tantas outras, são aqui trazidas estas três
exemplo, um de Diogo Ferreira de Figueiroa obras-tratado:
que, além de ficção narrativa, também escreveu,
em 1642, Theatro da Mayor Façanha e Gloria Por-
tuguesa.
– LUÍS MENDES DE VASCONCELOS, Do Sítio 1
Entre tantos outros títulos que assumem uma perspectiva
de Lisboa: Diálogos (1608): como está indicado pedagógico-moralista, lembro: do Padre João da Fonseca,
já no subtítulo da obra, trata-se de um texto em um texto-exemplum: Silva Moral e Histórica, de 1696; de Luís
forma de diálogo – forma essa que é contextua- Abreu e Mello, Avisos para o Paço, de 1659 – texto de
edificação moral; de Luís Mendes de Vasconcelos, Arte Mili-
lizada na sua tradição clássica. Trata-se de diálogos tar, de 1612; do Pe. Alexandre de Gusmão, um (quase) trata-
entre um filósofo, um soldado e um político, do de pedagogia, intitulado: Arte de Crear Bem os Filhos na
que debatem a grandeza, a diferentes níveis, da Idade da Puerícia . Etc.

9
– PADRE MANUEL CONCIÊNCIA, Mocidade por parte de uma freira: Gertrudes Margarida de
Enganada e Desenganada. Duello Espiritual Jesus, em Primeira Carta Apologética, em Favor, e
(1728-1738: 6 volumes): A obra – que podere- Defensa das Mulheres (cfr. aqui a “Bibliografia
mos considerar dentro do quadro de uma quase Geral”); o tema é ainda abordado por Cavaleiro
teologia moral – está dividida em quatro Diálo- de Oliveira, nas suas Cartas Familiares (1741-42).
gos, por sua vez divididos em vários capítulos. O
– JACOME CARVALHO DO CANTO: A Per-
diálogo aqui presente narra alguns exemplos de
feita Religiosa e Tesouro de Avisos [...] O texto,
moribundos desassossegados, devido à recusa
logo na “Taboada” (ou Índice), mostra o seu
que fazem de arrependimento dos seus pecados
foco central: as “virtudes” que uma religiosa
na hora do “passamento”.
“perfeita” deverá cultivar, os requisitos para essas
Também de carácter moralista, este padre da
virtudes serem adquiridas, o modo como uma
Congregação do Oratório publicou ainda, em
religiosa deve desenvencilhar-se de situações
1742, Novíssima Floresta (título que evoca outras
relacionais complicadas que acontecem em con-
florestas também textualizadas seja em seiscentos
ventos.
seja em séculos posteriores).
– DIOGO DE PAIVA DE ANDRADA, O Casa- 5. TEXTOS TEÓRICO-CRÍTICOS
mento Perfeito (1630): um tratado em que é feita
a apresentação moralista, conservadora, da “per- As matérias sobre as quais incide pensamento
feição” no casamento, revelando o discurso (mo- crítico-teórico são múltiplas: a literatura, seus
nótono) um quadro mental tridentino bem públicos-alvo, textos profanos e textos espiritu-
como um entendimento da questão discutida ais; a utilidade da ficção, etc.
algo devedor à chamada “psicologia tomista”. Na maior parte dos casos, deparamos com um
Os temas do casamento, do adultério, do compor- filtro moral que perpassa por todas as propostas
tamento das mulheres, são retomados por vários de reflexão, bem marcado pelo espírito da Con-
autores, sobretudo vozes masculinas, conserva- tra-Reforma, o que aliás os títulos-resumo dados
doras e até misóginas. Um dos modelos femini- aos excertos tornam claro.
nos textuais mais admirados no tempo era o da Os breves textos apresentados resultam de uma
“perfecta casada” – mulher modelar descrita na escolha já feita pelos autores do Vol. III de História
obra com o mesmo nome de Fray Luis de Léon Crítica da Literatura Portuguesa (cfr.: Bibliografia).
(curiosamente, obra dedicada a uma mulher: São estes os autores e as matérias tratadas:
“Doña María Varela Osorio”). – BARTOLOMEU FERREIRA: “Contra a lei-
(Entre nós o tema está presente desde o século tura de livros profanos” – texto retirado do Ca-
XVI, por exemplo, com o Dr. João de Barros, tálogo de Livros Proibidos de 1581 –, onde se
em Espelho de Casados (1540); no século XVII, desaconselha a leitura de livros que tratem de
sobretudo com D. Francisco Manuel de Melo e “amores profanos”.
a sua Carta de Guia de Casados (1651); depois
ainda, mas de outros pontos de vista por vezes – FREI JOÃO DOS PRAZERES: “Novelas
mais abertos, no século XVIII, com Inácio No- amorosas mas exemplares“ – um comentário
gueira Xisto, O Casamento Perfeito (1763); Frei que valoriza o propósito doutrinal dos textos de
Amador do Dezengano. Espelho Crítico no qual Serão Político de Frei Lucas. A presença de um
claramente se vem alguns defeitos das Mulheres – “comentário” dentro do livro faz prova dessa
texto que mereceu uma significativa resposta, tendência, frequente no Barroco, para apresentar

10
as obras, fazendo-as acompanhar por prefácios, Mais uma vez, um agradecimento a Maria
pareceres, dedicatórias, etc. Será isto um sinal Lucília Gonçalves Pires tanto pela paciência para
daquela espécie de incapacidade de “o olhar se comigo dialogar sobre autores e conteúdos
satisfazer com o próprio objecto”, como o nota como pelas suas indicações, sempre precisas e
Walter Benjamin, dado que na época a ocupação preciosas.
com as obras de arte “não era uma actividade
privada que dispensa[sse] justificação”, até por- Dezembro de 2005
que era comum pensar que “a beleza não tem
nada de próprio a oferecer aos que a ignoram” 2. ISABEL ALLEGRO DE MAGALHÃES
– AUTOR ANÓNIMO: “Da utilidade das nove-
las” – também um comentário, elogioso, a Serão
Político, em que é defendida a legitimidade do
“divertimento” como um dos propósitos de
uma obra literária.
– NUNO MARQUES PEREIRA: “Livros espiri-
tuais e livros profanos” – excerto escolhido da
obra Compêndio Narrativo do Peregrino da América,
escrita a partir do Brasil. Para além da matéria
narrativa, são tratadas questões da “retórica” e de
forma ou estilo. O estilo desta obra é descrito
como “em parte parabólico”, ressaltando-se a
importância da força pragmática de um texto, de
modo a ele poder tornar-se convincente. Justifi-
ca-se uma determinada escolha retória com este
argumento: para “convencer ao gosto dos tedio-
sos de lerem e ouvirem ler livros espirituais, são
necessários todos estes acepipes e viandas”. Isto
porque são espirituais e não profanos os livros
que se devem ler, já que “o leitor de livros espi-
rituais”, lemos, “paga o dízimo a Deus”, mas o
que lê os profanos [Gôngora, Quevedo, etc.]
“paga o terço ao Diabo”.

Como é habitual na estrutura destes volumes, a


primeira Parte contém Introduções e Estudos
Breves sobre autores, obras e seus contextos.
No final, há uma muito sumária Bibliografia,
geral e específica. Nota: Os textos em grafia antiga foram, como é já costume,
por mim actualizados, com a preocupação de manter as
2
Walter Benjamin, “Alegoria e drama trágico”. In Origem sonoridades e os ritmos dados pela pontuação. Em geral, as
do Drama Trágico Alemão. Trad. J. Barrento. [Berlim: 1928]; notas existentes nos textos foram retiradas, para facilidade de
Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 197. leitura e de impressão.

11
12
I N T RO D U Ç Õ E S
ESTUDOS BREVES

13
14
Gaspar Pires Houve uma edição das duas partes em 1684 por
Domingos Carneiro.
«Tesouro de pensamentos concionatórios sobre a
de Rebelo: um explicação dos Mistérios e Cerimónias do Santo
Sacrifício da Missa, das Vestiduras Sacerdotais em

génio da Língua forma de diálogo entre o Sacerdote e seu Minis-


tro», Lisboa, por António Álvares, 1635.
«Novelas Exemplares», Lisboa, por António Álva-

e da Literatura res, 1650 (reedições em 1670, António Craesbeck


de Melo; em 1684, Domingos Carneiro; em 1700
por Bernardo da Costa de Carvalho).
(excerto) Grande parte da sua vida, passou-a no Alentejo,
em Évora, onde tirou o curso de Teologia na
Universidade, e em Castro Verde, onde exerceu a
função de prior; mas podemos inferir do conhe-
NUNO JÚDICE * cimento que ele revela da Europa ter viajado
pelo menos por Espanha. Por outro lado, a refe-
São muito escassas as informações sobre Gaspar rência que faz a Braga revela uma ligação privi-
Pires Rebelo. De certo, sabe-se que nasceu cerca legiada a essa cidade, para lá, como é evidente,
de 1585, e viveu até 1640 durante o reinado dos do destaque concedido a Lisboa e a Aljustrel, de
Filipes, tendo falecido pouco antes de 1650, onde é natural.
quando saem as «Novelas exemplares» que, se- Se Rebelo tem uma formação eclesiástica, não é
gundo diz um amigo em prólogo ao leitor, terão menos certo que a faz coincidir com uma ex-
sido encontradas entre os papéis do Autor. Diz- tensa cultura profana, da Literatura à Filosofia, e
-nos a «Biblioteca lusitana» que foi «natural da estendendo-se para áreas como as Ciências Na-
Vila de Aljustrel no Campo de Ourique em a turais (cita os «Naturais», ou naturalistas), a Me-
Província Transtagana, freire professo da militar dicina, a História, a Geografia, a Astronomia.
Ordem de São Tiago em o Real Convento de Domina várias línguas: o Latim, o Castelhano, o
Palmela, prior de Castro Verde, pregador insigne francês (nele se encontram galicismos como
e não menor poeta vulgar». Conhecem-se dele assignar (assigner), bem que (bien que), etc., o que
quatro livros: vai em apoio da tese de Anne Marie Quint de
«Infortúnios trágicos da Constante Florinda, 1.ª uma possível influência de autores franceses.
parte», Lisboa por Giraldo da Vinha, 1625 (reedi- Também é provável que conheça o italiano. Na
ções em 1665, Coimbra, pela viúva de Manoel escrita, porém, opta pelo Português, numa época
de Carvalho; 1672, Lisboa, por João da Costa; e em que muitos outros escolhiam o castelhano,
1707, Lisboa, por Bernardo da Costa de Carvalho); língua dominante. Nesta opção, pesarão razões
«Segunda parte», Lisboa, por António Álvares, políticas: não são inocentes, em 1633, as referên-
1633 (segunda edição em 1671, Coimbra, pela cias feitas na «Segunda parte» ao prestígio de
viúva de Manoel Carvalho). Lisboa, e à importância de Portugal como Reino
– embora submetido a Ceres e não a Neptuno,
* In Infortúnios Trágicos da Constante Florinda. Ed. de N. Júdice. isto é, reduzido à dimensão continental, tendo
Lisboa: Teorema, 2005, p. 5-11. perdido o domínio do mar que, pressupõe-se,

15
está entregue a Espanha. É, além disso, um Ho- Lípsio e Séneca. Além disso, e como última pro-
mem entre duas Culturas: a nobre, ou erudita, va, os juízes do torneio deviam avaliar os seus
presente no seu conhecimento das regras do conhecimentos numa matéria tão específica
protocolo, das lides bélicas, da arte equestre, da quanto a Arquitectura por las reglas de Vitrubio e
arte da decoração, do vestuário (notáveis as suas Sebastiano Serlio, diante de uma planta e de um
descrições exaustivas dos fatos e vestidos dos alçado».
personagens); mas também a burguesa, que vem Reconhecemos, aqui, alguns dos episódios em
da sua preocupação com a Justiça e com o regu- que Rebelo descreve este tipo de certames,
lamento dos comportamentos sociais pela ma- pouco mais de trinta anos antes deste projecto
gistratura e tribunais, defendendo que não haja de torneio idealizado por um português e que
crime impune. É, no entanto, a presença do quase parece decalcado das palavras da «Cons-
mundo popular que também encontra um forte tante Florinda».
eco nesta obra, através de provérbios, rifões, sen- Não deixa também de ser surpreendente a liber-
tenças, de que faz um compêndio na admirável dade de costumes que Pires Rebelo nos descreve.
«Carta que escreveu um velho a um seu filho» Talvez nenhum outro autor, depois de Gil
em que se ensina ao servidor de um nobre Vicente, nos dê em tão viva pintura uma socieda-
como se deve comportar para subir na vida e de marcada pelo Amor que se sobrepõe a todos
ocupar o lugar do Senhor. Domina com segu- os obstáculos, sendo a Mulher muitas vezes quem
rança a arte poética, embora não se conheça toma a iniciativa da transgressão, violando interdi-
dele mais do que pequenos poemas dissemina- tos tão fortes como o adultério e o incesto (entre
dos pelo romance. irmãos, entre pai e filha, como no episódio em
Mas o que atesta o seu profundo conhecimento que se relata a história da jovem que, sem o saber,
das regras da nobreza seiscentista é o pormenor casa com o pai, após o que reata a ligação com o
com que descreve torneios e festas, bem como irmão, de quem tinha um filho, mesmo sabendo
os concursos literários: e o requinte com que, já o seu laço familiar), numa imaginação que toca
em Portugal, tais divertimentos eram concebidos todos os limites da ética. São frequentes, por ou-
terá um testemunho no pedido que Mariana de tro lado, fugas de casa, e desobediência aos supe-
Habsburgo, viúva de Filipe IV, faz ao cavaleiro riores, incluindo Religiosos.
português António Luís Ribeiro de Barros, em É este espectro social que faz da «Constante
1668, para idealizar um torneio comemorativo Florinda» uma obra que só terá o seu paralelo na
do seu aniversário: «Peregrinação» de Fernão Mendes Pinto, pelo
«Alguns dos exercícios de cavalaria propostos ao lugar que é dado à descrição realista do mundo.
cavaleiro não eram surpreendentes: esperava-se, A vida nas galés, nas prisões, os naufrágios, por-
assim, que soubesse cavalgar, tourear com rojões, menores dramáticos como esse de os prisionei-
atirar com arcabuz, bailar com uma dama e ros dos corsários serem objecto de uma selecção
compor um soneto ou glosar uma décima. O de nacionalidade entre os que podem ser objec-
cartel indicava, ainda, que o cavaleiro devia saber to de resgate, e serão poupados, e os que nada
falar três línguas (a latina, a materna e uma ou- valem, e são mortos, a vida de comerciantes es-
tra), defender conclusões de filosofia moral e trangeiros em Lisboa, o universo familiar (inces-
especulativa ante os padres jesuítas do Colégio tos, adultérios, lutas entre irmãos, etc.), constitu-
Imperial, e argumentar conclusões políticas so- em um quadro único da sociedade portuguesa e
bre aforismos de, entre outros, Tácito, Justo europeia do século XVII, dado que o romance

16
se situa em Portugal, Espanha, França, Itália, Mantém-se, é certo, a defesa da castidade dos
Grã-Bretanha, alargando-se também a outros dois heróis como o grande Leitmotiv dos episó-
continentes, com um quadro único da vida dos dios; mas isso não impede que, postos à prova,
escravos cristãos no Norte de África e na Tur- por várias vezes surjam situações limite em que
quia, com uma imagem por vezes positiva da só uma intervenção exterior salva Florinda ou
tolerância dos Mouros em relação aos cativos, tal Arnaldo de transgredirem a recíproca promessa
como também se encontra um interessante epi- de fidelidade até ao casamento. Trata-se de uma
sódio passado no extremo do Império, na Índia característica decorrente da ficção ibérica deste
governada pelos Portugueses. século XVII, cujo modelo é a novela helenística,
É vastíssimo o universo de referências culturais em que o amor desviado ou luxurioso (caracte-
de Rebelo. Um dos aspectos mais interessantes é rístico de tantos dos personagens da «Constante
verificar que, para além dos clássicos latinos, e de Florinda») serve de contraponto à virtude dos
Virgílio, em particular, que é a grande referência, amantes fiéis, realçando-a ao nível do heroísmo.
seguida por Ovídio, para o fundo mitológico da O fascínio por Itália também é uma constante
obra, são também referidos, de entre os seus deste Autor, e em particular por Veneza e Flo-
próximos, «Os Lusíadas» e o « Amadis». No en- rença. O que me parece interessante, contudo, é
tanto, através de possíveis fontes para as situações o facto de o modelo político italiano permitir a
narrativas, é imenso o fundo a que Rebelo re- defesa de um sistema de ascensão à nobreza, e
corre. Claro que temos o mundo picaresco pe- mesmo ao poder, por parte de fidalgos pobres,
ninsular, em que Cervantes não deixa de ser ou simples aventureiros. Claro que, para isso, é
um modelo; mas é também no universo da tra- necessário passar todas as provas a que Florinda
dição oral e da literatura de cordel que outro e Arnaldo são submetidos; mas a sua entroni-
motivo de inspiração se pode procurar, e se, para zação no Ducado de Florença (para mais sendo,
o caso do travesti, se pode referir o arquétipo da como são, estrangeiros, naturais de Saragoça) não
Donzela guerreira, extensamente desenvolvido deixa de constituir uma visão muito heterodoxa
no Romanceiro e no conto popular, talvez não da sucessão dinástica, o que não deixa de ser
seja preciso ir tão longe: bem perto dele, há o
significativo no período em que os volumes são
caso da «Monja alferes», que circulou por toda a
publicados (1625 e 1633), nos últimos quinze
Península, a partir de 1625, e em 1626 foi adap-
anos da regência castelhana da Coroa portugue-
tada para teatro pelo discípulo de Lope de Vega,
sa, sob Filipe III de Portugal, em que são notóri-
Juan Pérez de Montalván, lembrando a história
as as dificuldades e o espírito de resistência que
de Brites de Almeida, a «padeira de Aljubarrota»
terá o seu clímax em 1637-8 com as alterações
que, em folheto de cordel do séc. XVIII (pelo
de Évora, nesse Alentejo onde Pires Rebelo
que a lenda já devia circular desde muito antes)
exerce o ofício de prior, em Castro Verde: e não
é apresentada como tendo sido, ainda jovem,
é sem dúvida casual a referência à falta de papel
raptada por corsários mouros, tendo sobrevivido
graças ao disfarce masculino. Há também uma que, segundo ele, afectou a publicação da 2.ª
curiosíssima adaptação do topos medieval do parte, contrariando a ânsia dos leitores em co-
«coeur mangé», no episódio em que o marido nhecer a continuação da história, tal como o
enganado dá a comer à mulher adúltera o cora- modo laudatório como Portugal é referido
ção do amante, levando-a ao suicídio no instante (omitindo referências a Castela), colocando Re-
em que lhe revela a natureza do prato que ela belo do lado dos que mantêm a vontade separa-
acaba de saborear. tista, que se consumará em 1640.

17
A edição da 2.ª parte da «Constante Florinda», percurso do próprio Arnaldo, ausente desta 1.ª
em 1633, na oficina de António Álvares, é tam- parte. Temos, por isso, um projecto que está im-
bém significativa do sucesso da 1.ª parte. Este plícito já na edição de 1625, anunciando a con-
impressor, com uma larga actividade ao longo tinuação (e conclusão infeliz, no seu desfecho
do século, para lá de obras teológicas e tratados trágico) de 1633, no que Rebelo segue as leis do
técnicos ou textos filosóficos, dedica-se a uma género novelesco, do «Amadis» ao «Palmeirim»,
literatura de carácter romanesco em que as no- passando pela «Diana», todos eles livros que não
velas da Florinda cabem perfeitamente. Editor se esgotam, sendo prolongados ou pelo próprio
de João de Barros («Crónica do Imperador autor ou por continuadores desejosos de explo-
Clarimundo», 1601), de Vasco Mouzinho de rar este filão romanesco.
Quevedo («Afonso Africano», 1611), de Isidoro Mas vemos, ao mesmo tempo, que a escrita se
Barreira («História da vida e martírio da Gloriosa apura da 1.ª para a 2.ª parte; e onde, no primeiro
Virgem Santa Iria», 1618), de um relato da His- livro, há ainda um peso da retórica moralista e
tória Trágico-Marítima («Naufrágio que passou da formação religiosa, a 2.ª dá-nos uma abertura
Jorge de Albuquerque Coelho»), António Álva- para o mundo profano, usando o expediente
res é também o editor português das novelas de camoniano do paralelo com a mitologia. O seu
Miguel de Cervantes, publicadas no ano da sua interesse por Virgílio (que lê no original latino,
morte e seguinte: «Novelas exemplares», em como se vê pelas citações) reflecte um gosto
1617, e «La discreta Galatea», em 1618. Mas não comum a outros contemporâneos seus: João
fica por aqui este contacto do editor com auto- Franco Barreto, nascido em 1600, traduz a
res castelhanos: em 1625 (ano em que Gaspar «Eneida», publicada em duas partes em 1664 e
Pires publica a 1.ª parte da «Constante 1670. Barreto foi presbítero na vila do Redondo
Florinda») é publicada por Álvares a edição lis- até 1648, não sendo impossível que se tenham
boeta (em castelhano, tal como os livros de encontrado ou ao menos ouvido falar um do
Cervantes) de uma obra que terá sucessivas outro, dada a proximidade em que o Redondo
reedições por todo o século desde a 1.ª, em se encontrava de Castro Verde. Também na pin-
1615-17 (Madrid), até à última, em 1686 (Leon): tura os motivos da guerra de Tróia são ampla-
a novela pastoril «Poema tragico del español mente utilizados na época, como se pode ver
Gerardo e desengaño del amor lascivo», de Don nos quadros de um outro seu contemporâneo,
Gonzalo de Céspedes y Meneses. Rebelo en- Diogo Pereira (morto em 1658). Tudo isto resul-
contra-se, então, ao lado de alguns dos mais ilus- ta, assim, numa irrupção esplêndida da Antigui-
tres e lidos autores peninsulares, e a referência dade como fonte de inspiração para os episódios
feita aos pedidos para que publicasse a continua- que ganham em força trágica e em originalida-
ção dos «Infortúnios trágicos» dão bem conta do de. Este lado «antigo» é visível também no gosto
interesse suscitado pela obra. pelas ruínas. A ruína não é, porém, um simples
Perguntar-se-á, por outro lado, se não será esta cenário de destruição, mas um espelho de
referência no prólogo um artifício retórico. É ensinamento em que, no processo descritivo, é
que, lida a primeira parte, tornam-se visíveis as apresentada uma herança que se manifesta na
múltiplas deixas (no sentido teatral do termo) mensagem alegórica das figuras que se distribu-
para novas aventuras que completem o destino em pelo espaço arquitectónico. Há, por isso,
em suspenso de vários dos heróis da primeira uma recuperação do passado em todas as suas
parte - para não falar da lacuna constituída pelo vertentes, desde os Gentios aos pagãos, dando

18
uma abertura em que se manifesta o humanista, uma literatura da caducidade». Com efeito, é no
contrariando o peso censório da Igreja pós- «teatro da morte», que é o cadafalso erguido
tridentina. para a execução de Florinda e Arnaldo, que ter-
Todos estes aspectos fazem de Gaspar Pires Re- mina o esplendor da aventura amorosa; e é nesse
belo um dos grandes autores da Língua portu- instante, em que chegou ao fim a aventura trági-
guesa, em particular no brilho com que domina ca, que a «malencolia» atinge o seu auge na de-
a subtileza conceptual, equilibrando-a de forma sencantada constatação final de Arnaldo de que
articulada, num sábio jogo de luz e sombra, com «não tem fundamento a seguridade dos bens do
a arte de contar. Podemos, por isso, dizer sem mundo».
qualquer receio de exagero que ele é, no plano
da literatura de imaginação, o equivalente ao Pa-
dre António Vieira (e, tal como Vieira, Rebelo é
referido como um dos grandes pregadores reli-
giosos do seu tempo, o que se pode comprovar
pela prática que o Ermitão faz a Leandro no
capítulo XXVII da Primeira parte).
Perguntar-se-á por que motivo não consta o seu
nome, em geral, das nossas histórias literárias, a
não ser como quase minúscula referência de
rodapé? Duas razões se podem apontar, para lá
do nosso desleixo crónico em relação ao passa-
do: o facto de ter vivido sob o período filipino;
e sobretudo a sua inscrição na prosa de ficção
barroca, tão desconsiderada como simples jogo
formal. Vive, além disso, num período que Fran-
cisco Rodrigues Lobo caracterizou como sendo
de «corte na aldeia». A perda da independência,
e o facto de nenhum dos Filipes se ter instalado
em Lisboa, vai desenvolver esses núcleos regio-
nais de vida cultural em torno de famílias no-
bres - o marquês de Vila Real, em Leiria, onde
vive Rodrigues Lobo, o duque de Bragança em
Vila Viçosa, entre muitos outros - não sendo de
excluir que Pires Rebelo tivesse frequentado ou
fosse o centro de um desses círculos.
É ele, porém, um dos nossos autores em que de
modo mais claro e, poderemos dizê-lo, consciente,
se encontra a marca deste nosso (e sublinho esta
palavra) século barroco, vigente de 1580 a 1680
no mundo hispânico, segundo Fernando R. de la
Flor, com as suas duas características nucleares
que são a «determinação niilista» e «uma arte e

19
Os Campos mosteiro de Lordelo traz informações para a his-
tória genealógica dos Correas Atouguias e anota
o facto curioso de ter sido apenas quando D.
Elísios de Rodrigo da Cunha foi bispo da cidade que o
Porto passou a contar com uma oficina impres-

Nunes Freire sora.


A obra está dividida em doze jardins, ou capítu-
los, com escassa intriga e algumas descrições

(excerto) apreciáveis, particularmente das regiões do


Douro e do Lima.

JOÃO PALMA-FERREIRA *

Sabe-se que era natural do Porto onde teria nas-


cido na primeira metade de século XVII e que
uma vez ordenado, foi professor de Latim e ca-
pelão-mor da Misericórdia. Deve ter morrido
entre 1647 e 1655, dado que na primeira destas
datas ainda pedia privilégio de dez anos para a
publicação dos Catarpácios de sintaxe grande e de
géneros e pretéritos com suas regras e na segunda,
idêntica petição era já feita a Gonçalo Laiem,
herdeiro do padre João Nunes Freire.
Publicou as seguintes obras:
– Anotações aos géneros e pretéritos da arte nova,
Porto, 1635; – Anotações ad Rudimenta Grammatical,
etc., Porto, 1643; – Margens de sintaxe com a cons-
trução em português, Porto, 1644; – Os Campos
Elísios, Porto, 1626.
Na sua obra narrativa, Os Campos Elísios, ofere-
cidos ao senhor Luís Correia, abade da igreja e
mosteiro de Lordelo, impressa por João Rodrigues,
deixou-nos uma novela pastoril muito influen-
ciada por Francisco Rodrigues Lobo, isto é, se-
gundo o censor Frei Tomás de S. Domingos, no
género de fingidos amores pastoris dos mais honestos,
em prosa e verso. Na dedicatória ao abade do

* In Novelistas e Contistas Portugueses dos Séculos XVII e


XVIII. Sel. J. Palma-Ferreira. Lisboa: INCM, 1981, p. 173.

20
O Desafio Não sendo propriamente uma narrativa exem-
plar, o Desafio Venturoso está próximo das novelas
cervantinas, exibindo claramente, para lá de ves-
Venturoso tígios dessa poderosa tendência, aquilo que
Evangelina Rodriguez Cuadros definiu como

de António «la dolorosa escisión barroca entre lo intelectual


y lo sensible».
Considerando o seu argumento, veremos que

Barbosa Bacelar Felício, amante (que se julga) traído por Lizarda,


ao ter conhecimento da dimensão da sua desdita
através do relato de Carlos (que ele salva da
(excerto) morte e de quem se torna amigo), acaba por
ficar num impasse afectivo, dividido entre as leis
do amor e as da amizade, não conseguindo re-
solver satisfatoriamente o conflito que se gera
ANA HATHERLY * no seu íntimo.
A solução para o problema do triângulo amoro-
[...] O Desafio Venturoso insere-se no grande gru- so que se desenha entre Felício, Carlos e Lizarda,
po da novela curta amatória que, embora de é encontrada por um processo frequente em no-
origem italiana, no período barroco tinha já velas cervantinas, que já noutro local examiná-
uma arreigada tradição peninsular. Segundo mos, e que consiste na transformação do triân-
Menendez y Pelayo esse género remontaria a gulo conflitual em quadrângulo de equilíbrio,
meados do século XV, florescendo ao lado das pela adição de mais um elemento feminino
novelas de cavalaria mas diferindo destas consi- (neste caso, Ângela, irmã de Lizarda), terminando
deravelmente, pois na novela erótico-sentimen- a novela com o desejado desfecho feliz através
tal dá-se «mucha más importancia al amor que da formação de dois casais.
al esfuerzo, sin que por eso falten en ella lances No Desafio Venturoso é também muito evidente a
de armas, bizarrias y gentilezas caballerescas, su- presença do que Evangelina Rodriguez Cuadros
bordinadas aquella pasion que es alma y vida de classificou como a dupla articulação do aspecto
la obra, complaciendose los autores en seguir su individual/passional como aspecto de vinculação
desarollo ideal y hacer descripción de los afectos social, muito nítido no desenho das figuras: veja-
de sus personajes. Es, pues, una tentativa de no- -se que as acções nobres são praticadas pelos
vela intima y no meramente exterior como casi Senhores e as acções vis emanam da criada
todas las que hasta entonces se habian compuesto». Lucinda.
Esta descrição aplica-se com bastante acerto ao São ainda de destacar os aspectos de amor não-
Desafio Venturoso, novela curta amatória em que -platónico, não-petrarquista, em relação à perso-
não faltam rasgos cavalheirescos ao lado da ana- nagem principal feminina. Esta, por seu turno,
tomia dos sentimentos das personagens. fazendo eco dum costume frequente na época,
quer nas novelas exemplares quer nas pastoris
(em episódios intercalados), assume uma atitude
* In “Apresentação”. Desafio Venturoso. António Barbosa varonil e até de índole criminal, pois Lizarda (se
Bacelar. Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, p. 12-14. bem que para defender a sua honra) não só

21
apunhala barbaramente Carlos, deixando-o a es-
vair-se em sangue, como ainda, mais tarde,
disfarçada de cavaleiro, brande valorosamente a
Os Irmãos
espada num duelo em que de novo põe em
risco a vida do infeliz jovem. Penitentes de
O comportamento vil da criada, fulcro do enga-
no à volta do qual gira toda a acção da novela, é
eficazmente contrastado com o gesto impiedoso
Frei Lucas de
de D. Félix, pai de Lizarda, que ameaça matar
Lucinda, castigo justificado pelo ultraje feito à Santa Catarina
sua honra. Porém o autor, que obviamente ex-
plora a situação para intensificar o cunho melo-
dramático da narrativa, resolve a questão duma
(excerto)
maneira elegante e caridosa, fazendo com que
tanto os jovens amantes como o ofendido Pai,
concedam a Lucinda o seu perdão. MARIA LUCÍLIA GONÇALVES PIRES *
Dotada dum enredo que se deseja intenso e dra-
mático, mas que não exclui os acentos líricos, A mais conhecida obra de Fr. Lucas de Santa
esta novela em que os sentimentos e os actos Catarina, frade dominicano e prolífico escritor
estão em íntima consonância com o cenário na- do período barroco, é certamente a novela
tural – violento e dramático na serra da Estrela, intitulada Serão Político. A ficção básica desta no-
idílico na serra de Sintra – possui um acentuado vela remete o leitor para o mundo da burguesia
sabor romântico, embora datando de cerca de letrada do tempo e apresenta um grupo de jo-
um século antes do próprio pré-romantismo se vens que, para fugir à agitação e excessos do
ter afirmado. carnaval lisboeta, se reúne numa quinta em Vila
Por outro lado, se no Desafio Venturoso há um Franca e decide ocupar com questões literárias
clima de grande tensão passional, que só no fim as três noites de entrudo. Para cada uma das
da novela se resolve, a linguagem usada é bastante noites é designado um animador e um assunto.
comedida, encontrando-se o empolamento mais A primeira noite será dedicada à novela; a se-
na efabulação do que no discurso. De assinalar gunda noite consagrar-se-á à poesia, e a terceira
ainda é a presença de poemas intercalados, em ao teatro. Na concretização deste plano,
português e em castelhano, segundo o costume Feliciano narra uma história a que dará o título
da época, de que destacaremos pela sua particu- «Os irmãos Penitentes»; Roberto, construindo
lar qualidade o Soneto do fólio 142v. uma encenação narrativa de feição alegórica,
Dentro do restrito panorama da novela barroca formula uma crítica violenta, caricatural e joco-
portuguesa, que agora começa aos poucos a ser sa, contra a poesia do tempo. Mas Félix não
descoberta, o Desafio Venturoso surge como uma chega a fazer representar a farsa que preparava
narrativa bem urdida e bem trabalhada, que me- para a terceira noite: o plano equilibrado que
rece um lugar de destaque na ficção portuguesa
de todos os tempos. * In Acerca duma novela barroca “Os Irmãos Penitentes” de Fr.
Lucas de Santa Catarina. Separata Revista da Fac. de Letras,
Lisboa, 5.ª série (7), Abril 1987, p. 127-131.

22
fora previamente estabelecido é alternado, e a Ejemplares de Cervantes, autor que marcou em
narrativa invade o espaço que fora destinado ao diversos aspectos a produção novelesca portu-
teatro. Não podemos deixar de nos interrogar guesa do período barroco. Tal como o modelo
acerca dos motivos desta ausência do texto tea- cervantino, esta novela de Fr. Lucas de Santa
tral anunciado. Significará esta ausência a incapa- Catarina, tendo por função essencial deleitar e
cidade do autor para cumprir o plano previsto, distrair – «não escrevo a ensinar, escrevo a diver-
produzindo um texto dramático? Esta é uma tir», diz o autor no prólogo – explora a aventura
hipótese a não aceitar, entre outras razões pelo insólita e assume uma dimensão moralizadora,
facto de Fr. Lucas ter deixado, entre os seus embora, como escreve A. Valbuena Prat a propó-
numerosos inéditos, vários entremezes. Além sito das novelas de Cervantes, essa dimensão
disso, a estrutura heterogénea das obras, resultante nem sempre corresponda à moral consagrada do
da associação de texto teatral e narrativo, não é tempo. Note-se que as chamadas «novelas exem-
insólita na produção literária da época. Veja-se, plares», apresentadas sempre como passatempo
como exemplo Deleitar aprovechando, de Tirso de honesto e deleitoso, não estão geralmente, apesar
Molina. Mas o autor deste Serão Político, frus- da sua designação, vinculadas à função retórica
trando embora as expectativas criadas ao leitor, do exemplum, e o carácter edificante que parece
opta por uma estrutura unicamente narrativa anunciar-se com tal designação está com fre-
excluindo o discurso dramático por razões cuja quência ausente.
justificação fica apenas no plano da organização A novela de Fr. Lucas, no entanto, parece acen-
ficcional. tuar o pendor moralizante e propor normas de
A obra aparece-nos, pois, dividida em três partes: comportamento. Um dos pareceres em que se
as três noites. Desta divisão tripartida a crítica fundamenta a licença de impressão acentua pre-
reteve apenas a segunda parte, por isso o Serão cisamente este aspecto: «São amorosas todas as
Político é habitualmente recordado somente pelas novelas deste livro, mas exemplares, porque
censuras que nessa segunda parte são feitas à doutrinal o fim a que as determina seu autor,
poesia barroca. Todo o resto da obra tem sido mostrando na variedade dos enredos a incons-
considerado, implícita ou explicitamente, dispi- tância dos afectos humanos e persuadindo no
ciendo. engano dos amantes a falsidade do amor do
Contrariando esta posição da crítica, vou ocu- mundo». Mas, apesar desta aparência moraliza-
par-me neste artigo da novela «Os Irmãos Peni- dora, a história dos irmãos penitentes não deixa
tentes», narrada por Feliciano na primeira noite, de suscitar questões como estas: que moral a
destacando, dentro desta, a narrativa metadiegé- rege? que lição propõe? em que consiste, afinal,
tica em que o penitente Ricardo narra as aven- o seu carácter exemplar?
turas que o levaram à vida eremítica com sua A um primeiro contacto, o leitor desta novela
irmã Eustóquia. tem a sensação de mergulhar num labirinto: en-
laçam-se os fios narrativos, multiplicam-se as fal-
sas pistas, acumulam-se os disfarces.
Uma novela «exemplar» Mas esta aparente complexidade acaba por se
reduzir (como acontece geralmente nas narrati-
A narrativa «Os Irmãos Penitentes» é no texto vas ficcionais da época) a uma estrutura bastante
designada de «novela exemplar». Esta classifica- simples, organizada essencialmente com base
ção remete-nos inevitavelmente para as Novelas numa figura de repetição. Repetem-se os gestos

23
narrativos: dentro da narrativa de Feliciano pro- ocupação de representar a realidade, de imitar a
duzem-se as narrativas de Ricardo e de Carlos; vida. Por agora estamos em pleno domínio de
dentro destas outras personagens assumem tam- convenções literárias não pautadas pela realida-
bém funções narrativas. de. E a primeira e fundamental convenção é que
Narrativas encaixadas que, em cada nível narra- a novela crie um mundo ficcional marcado pelo
tivo, se ordenam por justaposição. Assim, no nível insólito, pelo assombroso; o conceito de verosi-
principal, à narrativa de Ricardo sucede-se a de milhança neste género está longe de se identifi-
Carlos. A função desta última surge inicialmente car com o usual, com o normal. O próprio texto
como problemática aos olhos do leitor: que faz se ocupa explicitamente desta questão em co-
ali esta narrativa, uma vez terminada a história mentário feito por Ricardo à sua narrativa
dos irmãos penitentes, Ricardo e Eustóquia, autodiegética:
narrada pelo próprio Ricardo? Mero gosto Quem há-de crer o dilatado labirinto da minha vida?
lúdico da acumulação nesta justaposição de his- Mas inda agora será madrugar a dúvida(...). Estranhar
tórias em que se repetem situações narrativas? a história por desusada é crassa ignorância; pois para
No plano da organização da história a narrativa que se cansara a escritura se a história não fora rara?
Do usual é cronista a experiência; no prodigioso é
de Carlos justifica-se como processo de apresen- que merece atenções o sucedido.
tação, de identificação de personagens que até
então permaneciam perante as outras persona- O insólito da história é, pois, norma fundamen-
gens (e perante o leitor) incógnitas, misteriosas. tal dum vénero que visa assombrar a imaginação
No plano da produção de sentido do texto, ve- do receptor, o que justifica a designação de «ma-
remos que esta história, aparentemente quase ravilha» dada às narrativas novelescas na obra de
supérflua, pode ser muito significativa. D. Maria de Zayas e Sotomayor, Novelas Amoro-
sas y Ejemplares (1637).
Outra convenção relevante é a que diz respeito
Uma novela «irrealista» à representação do espaço e do tempo.
O espaço em que decorre a história, quer seja
Tal como acontece com toda a produção nove- um cenário de natureza agreste ou de natureza
lesca do tempo, também este texto tem sido amena, é pintado segundo moldes literários, re-
menosprezado em nome dum realismo erigido correndo a tópicos que uma longa tradição lite-
em valor essencial da literatura e aqui pratica- rária consagrou neste tipo de descrições. É certo
mente inexistente. Daí que alguns dos críticos que nesta novela se verifica um esforço de
que se situam nesta linha verberem o artificioso enraizamento da história num espaço real, mas
e inverosímil das aventuras narradas e desta- esse esforço limita-se quase exclusivamente à
quem, como pormenor precioso, a inclusão nes- utilização de topónimos – a serra de Sintra, a
ta novela duma linguagem rústica posta na boca região de Colares, etc. – topónimos que surgem
de personagem do povo – o juiz da Batalha. apenas como nomes dados a posteriori a espaços
Mas o realismo não é critério pertinente de ava- descritos de forma convencional.
liação da literatura ficcional deste período. O Quanto ao factor tempo, a narrativa flui quase
objecto de imitação da novela não é a realidade, indiferente à sua presença determinante na his-
mas as convenções do género concretizadas em tória. As notações temporais são quase sempre
textos que se tomam por modelos. Só a partir vagas e, quando surgem indicações cronológicas
do romantismo o romance surgirá com essa pre- concretas, o narrador não se demora a compati-

24
bilizá-las entre si: as contradições daí decorren- todo o encadeamento da narrativa. Que seria
tes passam como insignificantes. Dir-se-ia que esta história dos «irmãos penitentes» sem o en-
estamos perante uma atitude narrativa que me- gano acerca da identidade da irmã de Ricardo
nospreza o factor temporal, por isso na histó- que afinal, e ao contrário do que diz o narrador
ria narrada não se sente o peso do tempo, o seu ao longo de grande parte do seu discurso, não é
efeito sobre as personagens. O tempo é apenas Felícia, mas sim Periandra, como acaba por ser
uma linha durativa em que, com ritmos diversos, revelado? A organização da história dos dois ir-
se inscrevem os eventos narrados. mãos é focalizada em Ricardo-personagem, vi-
vendo num mundo de aparências ilusórias e
sendo vítima delas; mas Ricardo-narrador, já de-
Uma novela ambígua tentor do conhecimento da realidade no mo-
mento de narrar a sua história, opta por uma
O universo diegético desta novela é saturado atitude narrativa que mergulha o destinatário no
por aparências ilusórias, disfarces, ambiguidades. mesmo mundo de ilusões em que ele viveu en-
Disfarce de personagens que mudam de nome - quanto personagem.
Periandra que passa a ser Eustóquia, Faustina A contraposição ilusão/realidade é reiterada no
que passa a ser Helena; que mudam também plano estilístico pela estrutura binária da frase
(aparentemente) de sexo - Faustina que aparece que estabelece uma relação antitética entre os
como Rodrigo, Periandra que se disfarça de ho- seus dois membros. [...]
mem para ir falar com Ricardo; que são dadas As personagens da história mergulham num
como mortas, quando afinal estão vivas, como mundo em que ilusão e realidade se confundem
acontece com Periandra. e as confundem. E o leitor é arrastado para um
Estes disfarces, ocultando a identidade das per- mundo idêntico em que o trabalho hermenêu-
sonagens permitem-lhes assumir formas de tico depara a cada passo com elementos ambí-
comportamento que de outro modo lhes estari- guos em que a autoridade interpretativa do
am vedadas. O disfarce é assim um processo de narrador Ricardo é posta em causa por outros
fuga a imposições de ordem social. É também, elementos textuais. Como fio a orientar-nos
no caso de Periandra/Eustóquia, indício de neste labirinto ponhamos a questão: qual o sen-
transformação mais profunda da personagem: a tido desta novela? que «exemplo» apresenta e
sua passagem da situação de pecadora (embora propõe como lição?
inconsciente) à situação de penitente, mudança Aparentemente trata-se duma história de desengano,
de nome a que corresponderia mudança de lexema e sentimento tão insistentemente recor-
vida. rentes na época barroca: Ricardo e Periandra,
Para além dos disfarces construídos pelas perso- depois da paixão que os uniu e os fez viver
nagens, o leitor é envolvido numa teia de ilusões desvairadas aventuras até obterem uma felicidade
e enganos, tecida pelo discurso de narradores serena pelo casamento, resolveram, ao terem
homodiegéticos, que não lhe permite aceder se- conhecimento de que são irmãos, fugir do
não tardiamente ao conhecimento da verdadeira mundo e refugiarem-se no ermo onde levam
identidade das personagens. Este jogo de agora, no presente da narração de Ricardo, uma
ocultação/revelação por parte do narrador é o vida de penitência. [...]
fundamento do efeito de surpresa que a narrati-
va pretende criar no narratário. Dele depende

25
Prosa catura; assim, D. Francisco Manuel de Melo é
caracterizado pelo título da comédia Lances de
Amor y Fortuna, o que parece confirmar a tradi-
memorialista ção linhagista segundo a qual a sua prisão tem
qualquer relação com aventuras amorosas.

de seiscentos Entre as obras de memórias da época filipina


salienta-se a Fastigímia ou Fastigínia do juriscon-
sulto Tomé Pinheiro da Veiga (c. 1570-1656),

(excerto) diário de uma estadia do autor em Valhadolid


em 1605, mas com inserção de comentários e
acrescentos indubitavelmente posteriores, obra
que correu em numerosas cópias manuscritas. O
autor dedica a maior parte do texto à descrição
ANTÓNIO J. SARAIVA E ÓSCAR LOPES * minuciosa de cerimónias e festejos áulicos e à
transcrição da picante esgrima de galanteios que
A principal fonte de informação sobre este perío- travou com damas espanholas, cuja desenvoltura
do é um diário particular referente aos aconteci- e liberdade o surpreenderam e deleitaram, em
mentos decorridos entre 1662 e 1680, intitu- contraste com a «tirania que em Portugal se usa
lado, Monstruosidades do Tempo e da Fortuna, de com as filhas e as mulheres». Bom observador
que ficaram vários manuscritos, um deles editado humorístico, Pinheiro da Veiga sabe insinuar,
em 1888, e que tem sido atribuído com verosi- com humor, uma visão crítica da espaventosa
milhança ao beneditino de Entre Douro e corte de Filipe II (III de Espanha), do rei, do
Minho, Frei Alexandre da Paixão. O ponto de duque de Lerma e outras personagens, de certos
vista deste diário é o de um moralista muito costumes castelhanos e portugueses, das exibi-
conservador, antijudaico, favorável a D. Pedro e à ções teatrais do culto religioso, como procissões
alta aristocracia. Mas a obra contém informações de tocheiros e milhares de disciplinantes, ser-
valiosas, graças a certo e novo gosto de registar mões «em que sucedem farsas solenes», etc.
efemérides, muito característico da época barroca Em certos pontos, como no gosto da reporta-
e ao qual se devem obras tão notáveis como as gem concreta, da minúcia significativa, no inte-
Memórias de Saint-Simon ou o Diário de Samuel resse com que em dado passo refere progressos
Pepys. A título de exemplo, e pelo seu extraordi- técnicos recentes, o autor ganha um ar moder-
nário interesse para a história do teatro em Por- no, apesar do seu lastro de citações clássicas e de
tugal, citemos as referências contidas em Mons- conceitos espirituosos. Um dos maiores interes-
truosidades às «cartas por títulos e comédias» e ses do livro reside no contraste que estabelece
uma lista, elaborada por acinte nitidamente entre a «melancolia e nublado português» e «a
antinobiliárquico, em que figuram 117 nomes da boa sombra e alegria castelhana»: «uns, noitibós
aristocracia, ou designações colectivas de grupos tristes, e outros, pintassilgos alegres, [...] andam
dirigentes do País, seguidos cada qual de um os Portugueses à caça de uma melancolia, e so-
título de comédia espanhola que lhe faz a cari- nham os Castelhanos de noite como poderão
levar um bom dia». Tomé Pinheiro da Veiga, cujo
* In História da Literatura Portuguesa. Cap.VII. 17.ª ed.; Porto: espírito autonomista se revelou no próprio
Porto Ed., s. d., p. 534-36. exercício da magistratura, resistindo à aplicação

26
de leis castelhanas, e que aderiu mais tarde à Francisco Manuel de Melo, Padre António
Restauração, reage de modo por vezes sarcástico Vieira e Frei António das Chagas, deixaram uma
contra a constante caricatura com que em significativa correspondência: D. Vicente No-
Valhadolid é alvejado o seu Portugalete, quer em gueira (1585-1654), clérigo muito culto, que,
piropos de castelhanas ou em alusões orais di- exilado em Roma, dá em numerosas cartas ao
versas, quer até em entremezes, denominados marquês de Nisa informações bibliográficas, pa-
portuguesadas, acerca de fanfarronices e senti- receres e observações dos costumes da grande
mentalismos ridículos de tipos fidalgos portu- cidade; e D. José da Cunha Brochado (1652-
gueses. No entanto, não se cansa de também 1735), a quem uma longa missão diplomática
criticar os preconceitos e pechas da aristocracia em Paris proporcionou curiosas reflexões e
nacional, à luz do que vê em Castela: a brutal comparações em numerosas cartas, além de dois
sujeição feminina (que vimos preconizada pela tomos de Memórias e anedotas da Corte de França.
Carta de Guia de Casados); a tola presunção pro-
vinciana de estirpe e o feitio brigão; a exibição
sentimentalona, a alternar com o gosto de falar
de um modo obsceno; a falta de limpeza; o bai-
xo nível de convivência. O mais curioso é que o
próprio autor se recorta, no livro, como um
obsessionado sentimental pelo belo sexo, rema-
tando mesmo a Segunda Parte por um longo
encarecimento das sublimidades do amor
freirático que é difícil de tomar apenas como
uma ironia, a não ser que funcione como auto-
-ironia.
Sob o ponto de vista literário, trata-se de uma
das obras mais notáveis do nosso século XVII,
graças a uma prosa cheia de vivacidade, a um
extraordinário sentido de humor, ao seu equilí-
brio entre a coloquialidade e a erudição no sen-
tido em que se orientavam já as obras de Jorge
Ferreira de Vasconcelos.
Outras obras seiscentistas de Memórias: o Diário
(1731-33) do 4.° conde de Ericeira, e o livro
que Eduardo Brasão publicou no Porto, 1940,
sob o título de D. Afonso VI, atribuindo-o a
António de Sousa de Macedo; o investigador
brasileiro Afonso de Pena Júnior reivindica a au-
toria desta última obra para Pedro Severim de
Noronha.
É ainda como memorialistas que aqui se devem
registar dois homens que, além de Rodrigues
Lobo, preceptista e antologista epistolográfico, D.

27
Fastigímia: entretecida com descrições de paisagens e de
personagens, com notícias sobre preços e modas,
com dados sobre religiosidade e festas, com sáti-
contraste entre ras e anedotas. Ao longo de todo o reconto da
viagem, Tomé Pinheiro da Veiga faz o confronto

castelhanos e entre Portugueses e Espanhóis. Dir-se-ia que,


opondo Portugueses e Espanhóis a propósito de
tudo e de quase nada, o autor de Fastigímia in-

portugueses tenta, ao fim e ao cabo, definir a identidade de


cada um destes povos.
À «exuberante satisfação do viver social espa-
(excerto) nhol» opõe Tomé Pinheiro da Veiga, segundo
Sampaio Bruno, «o soturno pesadume portu-
guês». O sentido do humor e a ironia, a finura e
a desenvoltura de certos comentários tornam a
MARIA DE LOURDES BELCHIOR * leitura da Fastigímia um prazer quase inesgotável.
Comece-se por explorar o filão dos confrontos
[...] entre Portugal e Espanha. Um primeiro exem-
O facto de serem em grande número as cópias plo. Na ocasião em que descreve os festejos ha-
da Fastigímia, e de desigual valor, obrigará a um vidos em Valhadolide, cita uma partida pregada
cotejo acurado que viabilize uma edição crítica. pelos Castelhanos aos Portugueses. «Não gostei
Por ora, a reprodução da edição de 1911 visa nada», diz o Autor, «de uma invenção com que
apenas o facultar a leitura de uma obra esgotada, fizeram sair aos portugueses, de muito gosto
que é indiscutivelmente um texto de capital para os castelhanos, e foi um tabernáculo que
interesse para um melhor conhecimento das estava no meio da praça, ao qual subiram um
mentalidades de Portugueses e Castelhanos nos mulato e mulata portugueses com adufe e pan-
primeiros anos de Seiscentos. Sampaio Bruno deiro e com eles também um doudo da corte, e
justificava a sua edição por Tomé Pinheiro da todos tangiam e bailavam com grande riso dos
Veiga ter sido «um dos nossos raros antigos que rapazes, que cuidavam que aquilo é Portugal e,
em prosa riu». Outras e várias razões justificam a na mesma semana em uma procissão votiva da
impressão da obra: o cabedal de informações so- cidade, entre as demais danças fingiram uma de
bre a época, os costumes de então, as referências portugueses com máscaras e pandeiros, com ca-
a autores em voga, a descrição de pessoas e de puzes e sombreiros muito grandes e com rótulos
lugares, os comentários judiciosos e com fre- todos que diziam: ... pelos Evangelhos, muito
quência jocosos de comportamentos significati- fidalgo, muito músico, muito português, muito
vos, as imagens de Espanha e de Portugal, ao namorado e quebrar um corno na cabeça a todo
tempo jungidos numa monarquia dual, etc. o castelão e toda a festa era como portuguesada;
Trata-se, em princípio, de um relato de viagem de maneira que os entremeses que nós fazemos
de Valhadolide para Lisboa. Mas a narrativa está com os ratinhos, fazem estes velhacos com os
portugueses» (p. 43). É evidente que os Caste-
lhanos troçam dos Portugueses, da mesma ma-
* In “Introdução”. Fastigímia. Lisboa: INCM, 1988, p. 8-19. neira que nós, Portugueses, ridicularizamos os

28
ratinhos (recordem-se, por exemplo, os ratinhos radas, em contraste com as liberdades das Caste-
da Beira, de Gil Vicente). lhanas, que sabemos azougadas e prazenteiras –
Do ponto de vista da riqueza da terra é flagrante tudo isto como retrato que amesquinha a soberba
a comparação, mostrando a diferença entre os portuguesa.
dois países: Portugal «só tem quatro palmos de A esta se refere, frequentemente, Tomé Pinheiro
terra, toda monte e pederneira, que parece da Veiga.
joeirou Deus Espanha e deixou cá o óleo e Ao situar-nos, geográfica e culturalmente, um
deitou lá o cascabulho» (p. 43). Note-se desde já outro embaixador teria dito que estávamos, nós,
que o «cá» dá ideia de o texto ser redigido em Portugueses, «neste canto culus mundi onde não
Espanha, o que o «lá» confirma. A comparação tínhamos comércio da gente» (p. 43).
que dá imagem da pobreza de Portugal (casca- Como o Autor aduzisse as «conquistas da Ásia e
bulho) em contraste com a riqueza de Espanha África feitas pelos Portugueses», a resposta cáusti-
(óleo) é prolongada no comentário atribuído ca é a seguinte: «tomòlos Dios [aos Portugueses,
por Tomé Pinheiro a um embaixador, segundo o entenda-se] como mosquitos contra el Campo
qual Portugal «bem parecia terra dada em dote a de Pharaon, y con sus botas y capa de baeta es
genro e não a filho» (p. 43). tanta su soberbia que perguntava el otro Portu-
Nesta linha de confronto, entre a pobreza de guês si en Italia y Francia habia tambien Fidal-
Portugal e a abundância de Castela, são frequen- gos, como en Portugal» (p. 43).
tes as alusões a tal estado de coisas. Dir-se-ia que É constante o contraste estabelecido por Tomé
o texto da Nau Catrineta: «Já vejo terras de Pinheiro da Veiga entre Espanha e Portugal.
Espanha/Areias de Portugal» é uma síntese de Desde as terras aos homens e mulheres, as dife-
todas as imagens do género óleo/cascabulho, etc. renças são marcadas. A largueza dos caminhos de
Numa sátira breve, mas galhofeira e contunden- Castela, por exemplo, é posta em contraste com
te, Tomé Pinheiro da Veiga parece querer retratar a estreiteza dos caminhos de Portugal. Assim, ao
(?) certo carácter mesquinho do viver português, descrever o caminho para Simancas, Tomé Pi-
em contraste com as larguezas castelhanas. Num nheiro da Veiga diz: «O caminho é muito igual
entremez, um tal Afonso Fernandes é interpela- de areia e no princípio tem mais de 50 passos de
do desta maneira: «com tuas barbinhas samicas largo que cabem por ele mais de 15 coches
mui tozadas, e amalrotadas, e a tua vinha gradua- emparelhados, e assim são os mais dos caminhos
da em quinta, mui cercada de silveiras, por que de Castela, porque os principais, a que chamam
te não tomem um cacho, e a tua espadinha calçadas, hão-de ter 12 varas de ancho, e as es-
caranguejeira mui refincada, e a tua mulherzinha tradas reais seis varas, e outros caminhos quatro,
mui faminta e com muito más perninhas, e isto em toda a Castela Nova e Velha, que diz
emparedada, e a tua filhinha com as suas sapatas bem com a fome dos nossos atalhos e silveiras,
mijadas e acalcanhadas, metida em um arqui- que é necessário andar de ilharga, e nem o
banco e sem ver sol, nem lua, vendo a Estrela na Bauptista sei como se poderia atinar a endireitar
hora do meio-dia?» (p. 44). Repare-se no manejo estes caminhos e carreiras» (p. 63).
irónico do diminutivo; atente-se na ironia da- A ironia da alusão a S. João Baptista que no
quele «vinha graduada em quinta», ou seja, pe- deserto exclamava: «Endireitai os caminhos do
quena propriedade por basófia designada como Senhor», e aqui seria incapaz de endireitar os
quinta; a avareza aludida na sebe de silveiras para caminhos de Portugal (tão tortos eles são), e a
impedir o roubo; e a mulher e a filha, enclausu- comparação entre os caminhos de Castela e os

29
nossos atalhos põem de manifesto a grandeza de A mulher portuguesa é mais recatada que a
um país e a pequenez do outro. castelhana e só na aparência menos engenhosa
As ocasiões não faltam para cotejar os compor- (pp. 152-153). Do confronto entre os comporta-
tamentos de uns e de outros, Castelhanos e Por- mentos de ambas resulta que é flagrante ser a
tugueses. Com frequência compara também as castelhana mais viva no diálogo, mais solta nos
mulheres de um e de outro país e de tais com- costumes, etc. No concernente aos homens, diz-
parações se deduz que há certa soltura de costu- -se dos Portugueses que «são tão fidalgos, que
mes entre as Castelhanas e sisudez, acaso exces- não tiram o chapéu da sua cabeça senão à cruz e
siva, entre as Portuguesas. Em síntese, declara, a ainda lhe fazem muita mercê» (p. 248). A soberba
certa altura: «... não quero eu dizer que a com- do fidalgo português é exemplarmente descrita
postura, modéstia e recolhimento das mulheres através de um diálogo em que um castelhano
portuguesas não seja o maior bem que Portugal pergunta a um criado: «Que caballero es este?»
tem, tanto que tudo o que perde na opinião das Respondeu o criado: «Oh Castelão, falai bem,
outras nações pela ignorância dos homens, ganha não é cavalheiro, que senhor es este? Não es
pela honestidade e virtude das mulheres» (p. senhor, que hombre es?» Respondeu: «Não é
146). E mais adiante rematava assim o seu co- homem, que é português fidalgo, parente do
mentário: «A experiência nos mostra que em Rei de Portugal, que traz as suas mesmas armas
Portugal nem tudo o que reluz é oiro, e em e as de N. Sr. Jesus Cristo no seu brazão» (p. 248).
Castela nem por não serem cautas deixam mui- Para tentar definir o carácter português, Tomé
tas vezes de ser castas; e assim nem aprovo em Pinheiro da Veiga faz menção da sua inclinação
Castela serem Biginas, nem em Portugal cartu- para a tristeza (cf. «Como eu andava neste tem-
xas» (p. 146). po receando a quaresma da melancolia de Por-
Tomé Pinheiro da Veiga, que descreve a sua via- tugal», p. 140). E, servindo-se de imagens con-
gem de Valhadolide a Lisboa, salpica de historie- trastantes, fala do Português como noitibó triste:
tas curiosas o seu reconto. Há informações de «há da melancolia e nublado português à boa
vária espécie neste relato de viagem sui generis: sombra e alegria castelhana [grande diferença]:
uns noitibós tristes e outros pintasilgos alegres;
tomamos conhecimento de modas, de fórmulas
uns monas peadas, outros ardillos contentes» (p.
de tratamento, de preços, de festejos e liturgias,
178). Em frases lapidares enunciam-se os con-
de autores em voga, etc.
trastes. Assim, por exemplo, esta: «Acà em
Entretanto, como Leitmotiv, o contínuo confron-
Castilla comemos e bevimos como picaros; allà
to, etc., entre Portugueses e Castelhanos, numa
en Portugal llorase e muerese como caballeros»
espécie de procura da respectiva identidade na-
(p. 178). Repare-se no «acà» e no «allà», que
cional.
parecem confirmar ter sido o texto escrito em
Entre o louvor da Idade Moderna e dos inventos
Castela. Ou ainda: «Andam os Portugueses à caça
que fazem a sua grandeza e as descrições de
de uma melancolia e sonham os Castelhanos de
touradas, há retratos de princesas reais (infanta noite como poderão levar um bom dia» (p. 179).
D. Ana Maurícia, p. 39), da rainha, que é alemã O viver acima das suas posses, que Eduardo
(p. 89), dos Ingleses e dos seus comportamentos, Lourenço considera no Labirinto da Saudade uma
etc. Dir-se-ia, porém, que avulta na Fastigímia o das coordenadas do viver português, é assinalado
cotejo entre os modos de ser e de agir de Portu- também por Tomé Pinheiro da Veiga (cf. a p. 175,
gueses e Castelhanos, resultando de tal uma por exemplo, o que diz sobre a ostentação dos
espécie de antropologia cultural dos dois povos. Portugueses).

30
Em contrapartida, assinala-se a firmeza de con- regresso à pátria é saudado com considerações
vicção dos Portugueses, em confronto com o mais ou menos filosóficas: «Cheguei, finalmente,
laxismo dos Castelhanos (cf. p. 249). São nume- a beijar a doce terra de minha amada pátria,
rosas as histórias e historietas em que se revelam livre do cativeiro de tanta liberdade, represen-
as inimizades, as quezílias e os confrontos entre tando-se-me aos olhos com tão fermosa vista
Portugueses e Castelhanos. Os Castelhanos con- que conheci que nos deu a natureza amor e
tam histórias de Portugueses, como os Portu- inclinação à própria terra, donde recebemos o
gueses contam de Galegos (cf. p. 252). ser e o mantimento, que se foi convertendo nes-
Uma galeria de fidalgos portugueses descritos tes corpos e os de nossos passados nela. Por isso
através de expedientes ou de certas característi- o amor da pátria é como o amor-próprio e
cas (cf. pp. 265-268) leva à seguinte conclusão: natural, pois queremos ao que fomos e havemos
«E, em geral, somos tidos e havidos em Castela de ser» (p. 317).
por loucos e soberbos, sem lastro nem funda- Quase no final da obra, Tomé Pinheiro da Veiga
mento» (p. 266). Mas a compensação vem a se- faz uma confissão muito curiosa: «He tão natural
guir: «Não deixarei de dizer que o que perde este vício em nós que até a mim me obriga a
Portugal na opinião pelos homens, ganha pela queixar-me e dizer mal dos meus naturaes,
fama das mulheres, que são tidas pelo exemplo como Português» (p. 359). Uma certa maledi-
da honestidade, recolhimento e modéstia, e que cência, um quase menosprezo, excessivo, pelas
nisto nenhuma nação se lhe iguala» (p. 268). nossas coisas será, segundo Tomé Pinheiro da
A língua portuguesa na boca das mulheres é Veiga, vício português. Queixar-se e dizer mal
mais agradável que a língua castelhana na das dos naturais do País é coisa corrente entre nós.
castelhanas porque «sua fala [a das portuguesas] Nas tentativas de caracterização do Português, é
dizem que tem mais brandura e meiguice que a raro que não se aluda a este vício, compensado,
castelhana e folgam muito de as ouvir falar» (p. de certa maneira, por frequentes encarecimentos
268). e bazófias, também tipicamente portuguesas.
E acrescenta: «O que eu tenho averiguado é que Ilustração destes extremos poderá ser talvez a
escrevem ordinariamente melhor as Portuguesas caracterização implícita no juízo do P.e António
que as Castelhanas» (p. 268). Vieira, que nos chamou «cafres da Europa», e,
No remate da viagem (tenha-se presente que se simultaneamente, nos destinou a «senhores do
trata, como já disse, do relato de uma viagem de Quinto Império». Nesta perspectiva de «vício
Valhadolide para Lisboa), o Autor alude ironica- português» se terão de ler as queixas, as sátiras e
mente a Portugal: «Em descobrindo o Portuga- as ironias de Tomé Pinheiro da Veiga? As suas
lete, se nos mostrou com uma cara de vilãozinho, lamentações, do género: «E por estas e outras
encarquilhada, muito treso, tudo penedos esca- taes, somos opróbio das gentes e desprezo dos
brosos e montes, sem nenhuma lhaneza, muita Castelhanos», hão-de interpretar-se à luz daquele
silveira e a terra partida aos palmos com suas vício português? As sondagens que se prosse-
paredinhas, como quem diz: isto é meu, não é guissem, neste âmbito da caracterização do ho-
teu, não me furtes as minhas uvas. Enfim, de mem português, provariam a riqueza do texto
longe parecem marinhas, tudo tão diferente da de Tomé Pinheiro da Veiga no respeitante à
largueza dos animos de Castela [...]» (p. 317). enunciação dos elementos fundamentais dos
No entanto, apesar da estreiteza da terra e de nossos comportamentos.
certa mesquinhez de alguma das suas gentes, o

31
A obra divide-se em três partes. Na primeira manuscritos que a Biblioteca Municipal do Porto
(pp. 29-175) descrevem-se as cerimónias da Se- conserva não trazem estas indicações de datas.
mana Santa de 1605 em Valhadolide e o nasci- «Manadas de homens e mulheres contando, tan-
mento do príncipe D. Filipe e as festas então gendo e bailando» (p. 179) alegram o mais for-
celebradas. Dá o Autor uma lista dos «Mosteiros, moso passeio que tem Valhadolide – e tudo des-
Paróquias e Hospitais que em si tem Valhadolid» creve com gosto Tomé Pinheiro da Veiga: foguetes,
(pp. 26-28). 0 baptismo do príncipe e, depois, o touros de corda, despiques, folguedos - tudo
acolhimento da embaixada de Inglaterra ocu- contado com muito espírito e colorido. Cenas
pam largamente o Autor da Fastigímia nesta pri- da vida quotidiana comentadas com graça, festas
meira parte da obra. dos santos populares (S. João, S. Pedro), alusões
Assinalem-se apenas alguns comentários ou epi- ao Quixote (o que é novidade de assinalar), his-
sódios, insertos nesta primeira parte. A propósito tórias pícaras ou apimentadas de «picardiar» (p.
da pregação dos Castelhanos diz que «pregam 215), louvores da cozinha portuguesa (p. 218),
como comediantes» (p. 25). E quando faz men- superstições (a do n.° 13 - cf. p. 219), provérbios,
ção de uma procissão realizada na manhã do dia entremezes, justiças e seus modos, histórias de
do baptismo do príncipe, escreve, irónico: «O portugueses e mofas sobre os seus comporta-
que mais folguei de ver foi o acudirem os prin- mentos e modos de ser, encontros freiráticos,
cipais ingleses todos à procissão» (p. 75). Os in- negócios no paço, paralelos entre portugueses e
gleses eram protestantes e Tomé Pinheiro da castelhanos (p. 263), paródias, etc., de tudo en-
Veiga ocupou-se demoradamente com estes contramos nestas páginas da segunda parte da
«hereges». A lista, longa (pp. 91-94), de príncipes Fastigímia. Até se encontra um largo discurso fi-
e embaixadores, duques, marqueses, condes e losófico-irónico sobre a mulher, o amor, onde se
outros senhores eclesiásticos presentes nas festas esboça, à guisa de tratado, uma espécie de
não é completa, pois segundo Tomé Pinheiro da teorização do amor freirático (cf. por exemplo,
Veiga declara: «[...] somente ponho os que vi e pp. 287 e seguintes).
me mostraram» (p. 91). A segunda parte trata, O tom jocoso de muitos passos, a consciência de
segundo o título, «Da Pratica do Prado e criticar certos géneros literários, designadamente
Baratilho Quotidiano» (pp. 177-323). Depois de o das novelas de cavalaria, fazem da Fastigímia
o rei e a rainha terem partido para Burgos, um curioso texto, com um estilo descosido e
Valhadolide ficou deserto; no dizer de Tomé Pi- oral, muito saboroso.
nheiro da Veiga, «ficou a Corte campo» (p. 177). Fixe-se, a propósito, que em alguns manuscritos
E para desfastio e lembrança de tempos de «tra- (e é o caso do que Sampaio Bruno seguiu) a
to das damas, sua conversação e desenvolturas», portada remata com a palavra «civalaria». Tratar-
propõe-se escrever umas «relações», que, ironi- -se-ia de um livro de civalaria (de cives), por
zando, caracteriza e define. Cita, jocoso, o Itine- oposição a cavalaria?
rário do padre Francisco Pantalião e alude a Nesta segunda parte temos o itinerário da via-
Fernão Mendes Pinto (p. 178), o que põe um gem, desde a partida a 26 de Julho – Medina del
problema de cronologia quanto à factura da Campo, Salamanca, onde esteve dois dias (cf. p.
Fastigímia. Aliás, em outros passos, as datas obri- 316), Ciudad Rodrigo – até descobrir aquele
gam a pensar que a obra foi escrita ao longo de Portugalete que descreve com cara de vilão-
alguns anos: 1607-1609 (p. 52) e 1620 (p. 53), zinho, etc. (p. 316).
citadas a propósito de inventos a que alude. Os

32
A terceira parte, intitulada de «Pincigrafia ou
Descrição e história natural e moral de Valha-
dolid» (pp. 325-363), é o retrato de Valhadolide
Os Diálogos
com pormenorizadas e variadas informações.
Ainda aqui se faz, de vez em quando, o confronto de Mendes
de Portugueses com Castelhanos. Assim, por
exemplo, nenhum castelhano nobre jura, só sol-
dados e pícaros o fazem, o que entre nós não
de Vasconcelos
acontece (p. 349). A graça, o espírito com que
conta, até aqui se insinuam e novamente surge o (excerto)
contraste entre Portugueses e Castelhanos, caus-
ticamente estabelecido (e ler o que diz do con-
ceito de honra em Portugal e em Castela – cf. p.
357). [...] JOSÉ DA FELICIDADE ALVES *
Insisto na valorização do cabedal de informa-
ções, de alusões, de citações, disseminadas nas [...] São interlocutores neste(s) diálogos(s) um
páginas da Fastigímia. Confrontá-lo com, por político, um filósofo e um soldado. [...]
exemplo, o do Memorial de Pero Roiz Soares, ou O tema central deste ensaio é a inventariação
de outros textos seiscentistas, de autores portu- exaustiva das excelentes qualidades do sítio da
gueses ou estrangeiros, contribuiria para um cidade de Lisboa; o interesse e o objectivo su-
melhor conhecimento da época. Só a título de premo desta inventariação é tornar evidente que
curiosidade citem-se alguns dos autores que Lisboa é digna e apta para ser capital do Império
Tomé Pinheiro da Veiga incorpora no seu texto: de toda a terra, e consequentemente convencer
Camões (o lírico), Tomás Moro, Castiglione e Filipe II a mudar de Madrid para Lisboa a capi-
Garcilaso, Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, tal do seu império, dotando os seus vastíssimos
Cervantes. domínios com uma capital oceânica.
[...] Esta prosa, de um autor que ri com gosto, De passagem são detidamente analisados outros
talvez nos compense da excessiva gravidade e da momentosos temas subsidiários. O mais sensacio-
pesada sisudez da prosa portuguesa de Seiscentos. nal é a crítica à conquista da Índia, cujos malefí-
cios são frontalmente apontados, contrapondo o
projecto da conquista ao plano do comércio
(este, sim, útil e de inspiração inicial).
Outros temas postos em relevo referem-se a
propostas conducentes a valorizar ainda mais o
sítio de Lisboa: um plano de regularização fluvial
e de irrigação para o Ribatejo; um audacioso
plano de fazer circundar Lisboa com um canal
que ligasse o rio de Sacavém à ribeira de Alcântara.

* In “Introdução”. Luís Mendes de Vasconcelos. Do Sítio de


Lisboa: Diálogos. Org. e notas de J. da Felicidade Alves. Lisboa:
Livros Horizonte, 1990, p. 9-16.

33
Vários conceitos éticos são rectificados, nomea- fazer grandíssimas conquistas (pp. 32, 33, 34).
damente o exacto conceito da verdadeira glória Quer comparada com as cidades consideradas
e do heroísmo. [...] imperiais, quer considerada em si mesma, Lisboa
Logo no prólogo, o autor explica que (para além ultrapassa todas as cidades imperiais, quer a res-
do natural amor da sua Pátria) se lhe ofereceram peito das partes do mundo, quer a respeito de si
razões muito mais forçosas para não consenti- mesma (pp. 35, 36). Se tem crescido tanto depois
rem que fiquem em silêncio as excelentes quali- que os nossos progenitores a ganharam aos
dades do sítio de Lisboa. Antes de mais, convém Mouros, isso é devido às qualidades do seu sítio
a esta Monarquia voltar Sua Majestade todo o (pp. 31, 32). Lisboa está para o mundo como os
seu entendimento às coisas do mar, subenten- olhos para o corpo (pp. 33, 34). As suas navegações
dendo que o Império dos mares deveria ser a para a África, Mediterrâneo, Norte da Europa,
preocupação central daqueles reinos; acresce que Ásia, Novo Mundo; quantidade da sua popula-
todas “as coisas do mar” se tratarão melhor com ção, bondade e capacidade do seu porto; facili-
a presença do Rei ali onde elas têm o seu dade de apoio estratégico... (p. 36). Vantagens
epicentro. Ora, a cidade de Lisboa receberia sobre Cartago, Roma, Cápua, Corinto, Constan-
com a presença do Rei grande utilidade, quanto tinopla, Jerusalém... (pp. 37 a 40), etc., etc.
mais não fosse porque o Rei veria o fidelíssimo Quando Luís Mendes de Vasconcelos redigia
ânimo da cidade em servir o seu Príncipe. Daí, esta obra, Portugal estava sob a coroa dos Reis
ter considerado o autor ser coisa utilíssima mos- de Castela, apesar de ele fingir que os Diálogos
trar como a cidade de Lisboa é mais apta que haviam decorrido nos tempos de D. João III. É
qualquer outra para as coisas do mar; e que nela curioso que não deixa transpirar qualquer reser-
a corte de Sua Majestade encontraria tudo va ou contestação ao domínio castelhano sobre
quanto é necessário para sustento comum, e as Portugal, quer quanto ao facto consumado, quer
mais preciosas coisas do mundo, e as melhores quanto ao direito de integração. Parece óbvio
recreações. Por todas estas razões se reconhecerá que, para ele e quanto ao assunto que versava,
que esta cidade é mais digna que todas da sua estava perante um facto consumado e arquivado!
residência habitual (vd. p. 23). O projecto da união ou da unidade ibérica –
É de prever que o autor fizesse chegar a sua sonho tantas vezes obsessivo, que acompanhou
obra às mãos do Rei. Ele finge esperar que estes D. Afonso V, teve um anúncio festivo com o
Diálogos impressos andando de mão em mão, casamento do filho de D. João II (logo tragica-
“pode ser que cheguem à [mão] de algum no- mente desfeito...), esteve quase consumado com
bre e generoso espírito que estime manifestar a o 1.° casamento de D. Manuel... – aí estava rea-
sua majestade o que de utilidade e justo deleite lizado.
lhe oferece o sítio de Lisboa”; e assim, movido Tratava-se apenas agora de reivindicar para Lis-
por razões de Estado e de comodidade pessoal, boa a função de cabeça do império mundial
quem sabe se não escolheria este sítio e cidade criado pelos povos ibéricos agora reunidos sob
para sua residência? Se é que Deus, por seus um único monarca. Lisboa, situada no maior es-
ocultos juízos, o não estorvar! (vd. p. 24). tuário da Europa e agora a maior cidade das
Este tema é repetido constantemente: veja-se Espanhas, ligação indiscutível das costas cantá-
índice analítico, sob o vocábulo Lisboa. Lisboa é bricas e levantivas, latinas e germânicas, coração
mais capaz que todas as demais cidades do mun- da Europa mercantil e princesa das rotas do mar
do para ser cabeça de um grande império e oceano: aguarda apenas que lhe seja oficialmente

34
reconhecido e proclamado o privilégio de capi-
tal, que por natureza já ocupa.
Talvez por isso é que o autor coloca os Diálogos
“O casamento
na varanda rasgada no extremo poente da gran-
de galeria ou alpendre que D. Manuel fizera perfeito”,
segundo Paiva
construir na continuidade da igreja do mosteiro.
[...]
No calor do debate, o autor faz intervir o Solda-
do, a exaltar a conquista da Índia como exemplo
de que nunca qualquer outra cidade fez coisa
maior nem mais gloriosa.
de Andrada
O Filósofo reforça o exemplo: a bondade do
sítio de Lisboa é tal que até resiste aos danos que
(excerto)
recebe do comércio da Índia.
Esta declaração provoca um enérgico protesto
do Soldado que não suporta ouvir tal coisa! Pelo FIDELINO DE FIGUEIREDO *
contrário, o Político manifesta frontalmente uma
opinião oposta à do Soldado: a conquista da Índia O Casamento Perfeito é uma obra de ordenação
é causa de muitos danos para este Reino e para metódica da vida conjugal, considerada ideal-
a cidade de Lisboa. [...] mente: um sereno equilíbrio entre os graus de
Termina a sua digressão com duas notas prag- nobreza dos cônjuges, entre os seus bens de for-
máticas. A primeira é que “largar a Índia no tuna, entre a força do amor de cada um pelo
estado presente não convém, nem podemos outro, uma tranquila mediania sem paixão, sem
como cristãos; e porque as razões são muito ciúme ou desconfiança, sem grande beleza e
sabidas de todos, as não darei: que todos sabe- sem entusiasmo por ela, sem os sinais externos
mos o muito cabedal que nela temos metido e o da ventura, como a alegria e a verbosidade ex-
muito que a fé naquelas partes se tem dilatado” pansiva, provavelmente só com um aborreci-
(p. 77). A segunda é um inteligente programa mento infinito. É assim «perfeito» para que seja
político para continuar na conservação do que lá tolerado de melhor vontade pela Igreja, que ao
temos, com algum proveito e menor dano: leia- estado de religião e celibato dava as suas prefe-
-se a interessante proposta (pp. 79-80). rências calorosas. Era um tipo de perfeição con-
Encerra com uma dramática profecia. A execu- jugal que amortecia tudo que no estado há de
ção do programa enunciado é muito dificultosa: poderoso e criador. O tratado de Paiva de Andrada
“que nas coisas desta qualidade, e onde outros é um esforço dialéctico para harmonizar a vida
têm voto, melhor se ordena de novo do que se viva e os dogmas ou os ideais da vida ascética.
emenda o errado”. E mais: “porque domina a Vale como demonstração lógica, mas está muito
este nosso Reino uma certa constelação, que faz longe da realidade. É muito para apreciar a dili-
os homens incapazes de receber o bom conse- gência dialéctica do autor, quando adapta à con-
lho, principalmente nas coisas públicas” (p. 80).
Isto parece válido para todos os tempos... “Assim
em lhe profetizo uma grande ruína, e será ditoso * In “Prefácio”. Diogo de Paiva de Andrada. Casamento
o que tiver um pé de oliveira a que se abraçar”! Perfeito. Pref. e notas do Prof. Fidelino de Figueiredo. Lisboa:
Liv. Sá da Costa, 1944, p. XXII-XXIV.
[...]

35
cepção tridentina do sacramento do matrimónio tura. O que de mais literário contém – não fa-
os casos e exemplos, que recolhera da história lando na mestria da composição intrínseca – é o
antiga e também os passos dos textos pagãos. sólido conhecimento das velhas letras gregas e
Estes são sempre seguidos da sua tradução por- romanas, trazido muito a propósito na sua expo-
tuguesa. E nessa tradução adivinha-se a diligên- sição apologética, e o domínio da língua portu-
cia de Paiva de Andrada para lhes extrair todo o guesa, que demonstra nas traduções dos lugares
conteúdo aplicável à sua demonstração, a tal selectos desses velhos textos. [...]
ponto que a língua portuguesa parece de uma A sua prosa, pouco variada na sua estrutura, tra-
surpreendente prolixidade, ao lado da concisão duz a monotonia do tipo do seu raciocínio.
epigráfica da latina. [...] Abusa das proposições paralelísticas na forma e
É um tratado precioso para nos instruir sobre a no sentido, da simetria nos complementos e dos
constituição mental de um português «cultiva- adjectivos em função adverbial. E cuida mais do
do» do século XVII, sobre os autores e as ane- rigor sintáxico, algèbricamente sintáxico do dis-
dotas históricas por que se guiava e sobre os curso do que do seu relevo expressivo e sua
valores de espírito em que cria. Esse mérito im- derivada beleza. Daqui resulta a aproximação
plícito é o maior da obrinha. desnorteadora de palavras divergentes na con-
Mas o que não ficamos sabendo é o carácter da cordância e a repetida substituição de nomes
vida matrimonial dos portugueses lisboetas, no por pronomes substantivos, com o que evita re-
terceiro decénio do século XVII, sob a opressão petições, mas obscurece o sentido, que só nos
castelhana e com a memória repleta de ufanias salta após análises detidas. O rigor na obscurida-
nacionalistas e esperanças sebastianistas. Isso te- de rebuscada era uma das peculiaridades do
mos que o procurar na Carta de Guia, de D. culteranismo.
Francisco Manuel de Melo, que não pretendeu Reduzir-se-á com isto o alcance do tratado de
ser uma obra histórica, decerto, mas que se ins- Paiva de Andrada? Devemos antes evitar dimi-
pirou da realidade coeva, em que decorreram as nuir a extensão e as conquistas da experiência
suas experiências. humana desde 1630. E já então havia mais estre-
O tratado de Paiva de Andrada, tão austero e tão las no céu do que cria a filosofia deste segundo
organicamente travado nos seus fundamentos fi- Diogo de Paiva de Andrada.
losóficos, fazia tábua rasa do muito que já então
se sabia do amor, dos encantamentos da beleza e
das relações entre os sexos.
Em 1630, a sondagem moral, que é sempre a
arte literária, havia já realizado nessas matérias
progressos consideráveis sobre os autores antigos.
Saía-se justamente de um período, em que o
amor fora analisado profundamente, até ser
quintessenciado em pura idea platónica. [...]
O tratado de Paiva de Andrada, instrumento nobre
de dignificação e cristianização do matrimónio,
à luz das doutrinas fixadas em Trento, pertence
mais à história das ideas morais e dos métodos
de acção da Contra-Reforma do que à da litera-

36
TEXTOS LITERÁRIOS

37
38
Gaspar Pires e outros bravos, uns medicinais e outros
peçonhentos.» E conclui dizendo que a cousa
perfeita consiste em muitas várias.
de Rebelo* E pois a perfeição não só consiste em as cousas
que de si têm bondade, mas também em as que
de sua natureza carecem dela, como temos dito,
fica claro que não merece menos em seu género
a que de si é vil, baixa, ruim e abatida do que
Infortúnios Trágicos aquela que de sua natureza é alta, fermosa, boa e
levantada.
da Constante Florinda Aplicando, pois, a meu intento, digo que se to-
dos os livros que saem a público fossem de
PARTE PRIMEIRA cousas espirituais e Divinas, e todos bons, levan-
tados por seu alto estilo, que nem o entendi-
Prólogo ao Leitor mento com a lição deles se deleitara, nem sua
perfeição e bondade se conhecera porque, como
É o nosso entendimento, curioso Leitor, de tal diz Séneca, ainda que a lição boa, certa e verda-
condição e natureza que ainda que a nossa pou- deira a nosso entendimento aproveita, contudo a
cas cousas dela a satisfaçam, só a ele a variedade que é vária, e de cousas humanas, o deleita. E
de muitas o deleitam. Nesta, pois, consiste a per- diz mais a Epístola oitenta e cinco, «De alterna-
feição, como a doutrina de Aristóteles o ensina, tione lectionis», que não cessava nunca de ter li-
e a experiência nos mostra; porque se todas as ções várias, afirmando serem todas proveitosas se
cousas do mundo foram ornadas de fermosura, e necessárias, e que de ler um livro só se não
não houvesse algumas que carecessem dela, nem contentava, porque de uns tirava o que havia
a sua se mostrara, nem a perfeição delas se co- mister, e de outros o do que havia de fugir,
nhecera. Porque, como diz o mesmo Filósofo, a dando com esta variedade pasto ao entendimen-
cousa mais mostra os quilates de sua perfeição e to quando com a iguaria de um só estava enfas-
fermosura tendo junto a si o contrário, pois este tiado porque, como ele mesmo afirma, a lição é
faz com que resplandeça mais o ser e valia dela. pasto do entendimento, e que cansado do estu-
Isto parece que quis mostrar Séneca em o quar- do sem outro se não satisfaz. As abelhas, como
to livro que fez «De Beneficiis» quando disse que diz Plínio, não só de uma flor fazem o favo, mas
se mostrara a natureza muito imperfeita quando de muitas e várias que colhem, dispostas pela
não criara as cousas várias, e não medidas pela ordem que a natureza lhes ensina, fazem e aper-
vara de uma perfeição; e acrescenta mais dizen- feiçoam seu doce mel, que confirma Virgílio
do: «Foram seus bens miseráveis, duvidosos e dizendo:
infecundos quando entre os homens não fizera «Liquentia mella stipant, et dulci destendunt nectare
uns fortes e outros fracos, uns perfeitos na esta- cellas.»
tura de seu corpo, outros com muitas faltas nele, E pois não só os livros e lições espirituais e
uns de mais claro engenho, outros de mais obs- divinas a nosso entendimento aproveitam, senão
curo e grosseiro; e entre os animais, uns mansos aquelas que em humanidades e lições várias se
fundam, e estes também mereçam ser estimados,
* Edição de Nuno Júdice. Lisboa: Teorema, 2005. pois em seu género ajudam a perfeição, ou ao

39
menos fazem com que a bondade dos outros tinha escritas em as portas da sua Universidade,
mais resplandeça para que de todos possa ser que diziam:
mais estimada, quis eu, como abelha fraca, por «Nemo hic ingrediatur expers geometriae.»
não ter de todo apurado as asas de meu enge- Pelo qual entendia que toda a bondade e virtu-
nho para poder voar a cousas mais altas e levan- de consistia em o meio dos extremos, porque
tadas, como o são as divinas, mostrar a fraqueza esta mostra a um como bom e verdadeiro, e
dele em estas humanas, porque me seria por outro como mau e vicioso; e, ficando neste lu-
crime mal contado querer do primeiro voo su- gar, nem eu lhe quero mais bondade nem ele
bir tão alto, ou ao menos receoso de outro casti- pode receber maior virtude. E como tenha esta,
go semelhante ao de Ícaro, o qual voando subiu fica no grau que lhe desejo, e desse tão contente
tanto que pelos raios do Sol foram suas asas e satisfeito como de ser, de todos os que o le-
derretidas, e ele prostrado em um rio como im- rem, nele posto confiado.
prudente e atrevido.
O que contém o presente volume são uns «In-
fortúnios Trágicos» que uma Donzela passou pelo CAPÍTULO I
mundo por cumprir a palavra e fé que a seu
amante tinha dado, e do que alcançou pela guar- Da Pátria e criação de Florinda
da dela. Vão mais algumas histórias extravagantes e princípio de seus amores.
metidas em o enredo da que contém o livro, do
que não dou mais larga conta porque, como são Em a mui nobre e populosa cidade de Saragoça,
histórias com que recebe deleitação o entendi- principal do Reino de Aragão, não só pelos ilus-
mento, nunca lhe causam tanta quando se dá tres Varões de que está povoada, altos edifícios e
miúda conta delas ao princípio, que as cousas outras grandezas que a fazem digna de muita
então são mais gostosas quando menos esperadas. estima, senão também porque fertilizada com as
E ainda que conheço não ser digno do grau que claras águas do rio Ebro que, com acelerado
os bons merecem, contudo como entendo ser curso, se vão desobrigar ao mar Oceano, houve
próprio de nobres ânimos favorecerem sempre a um cavalheiro chamado D. Floris, igual aos mais
cousa mais fraca, para que à vista dos que nela nobres em sangue e avantajado a todos em vários
empregaram a sua não fique também abatida, bens e riquezas da vida, possuindo muitos, não
estando no conhecimento de quanto o seja esta só em algumas terras que, como senhor, possuía,
que ofereço, estou certo dos que na lição dele se mas também gozando de ricas jóias, e curiosas
ocuparem, que nem será posta em o grau mais peças de outras estranhas, de que não era. E
levantado, nem de todos os lugares no mais aba- sobretudo de bons costumes e melhoradas vir-
tido; mas só me contentarei quando lho queiram tudes, que estas partes são as que fazem ao ho-
dar em estes dous extremos porque, como estes mem ter muitas para ser de todos estimado e
sempre sejam viciosos, nem já a mim me está querido, como na verdade era este cavalheiro
bem o desejá-los, nem esta obra pode ser colo- porque, como fosse conhecido por homem lim-
cada em alguns deles, porque a causa favorecida po em sangue, atentado no regimento, acautela-
de bons ânimos não pode deixar de receber suas do em sua vida, experimentado já na idade, livre
virtudes, e esta sempre em os meios consiste, nas palavras, virtuoso nas obras, em a paz pacífi-
como o mostrou Platão naquelas palavras que co, em a guerra esforçado, e liberal de seus bens
para com os pobres, e ajudava com eles a susten-

40
tar a fazenda dos mais ricos, não havia quem à cavalo, como quem se aparelhava para sair à pra-
sua pessoa sujeito não fosse, nem alguma que de ça do mundo a correr lanças com a fortuna,
sua amizade se isentasse. como adiante diremos no processo da história
A este, pois, deram os Céus por esposa a uma de sua vida.
mulher igual a ele em honra, virtudes e nobreza, E depois de passados oito anos, deixados os re-
a qual se chamava Aurélia, os quais estiveram galos e mimos com que de seus pais era criada,
casados por alguns anos sem poderem haver fi- crescendo com eles a fermosura, e aperfeiçoan-
lhos, pelo que viviam com assaz descontenta- do-se mais com o exercício assim das línguas,
mento e desconsolação, do qual davam claras como na destreza com que tangia e cantava a
mostras as contínuas lágrimas que corriam de seus instrumentos, sua pessoa, não só em a Cida-
seus olhos porque, como elas nasçam do íntimo de, mas por todo o Reino, já voava sua fama. E
do coração, onde toda a paixão e tristeza se como a fermosura, como diz Cícero, seja uma
recolhe, para que com a força dela não rebente, acomodada proporção dos membros do corpo,
dão-lhe lugar e saem-se a dá-las do que padece. ordenados com suavidade de cor, para que se
E como quer que lágrimas justas sempre são de entenda que com bem razão era Florinda tida
Deus ouvidas e apremiadas, apiedando-se destas, em tal conta, quis aqui dá-la de suas feições. E
lhes concedeu uma filha, em todo extremo bela como os que mais ornam o rosto sejam os olhos
e fermosa, e em todo ele deles estimada, à qual e a alvura deles, eram os de Florinda tão negros
puseram por nome Florinda, em cujo nascimento e fermosos que pareciam tochas que, com a cla-
se fizeram muitas e grandes festas em que se ridade que de si lançavam, ofendiam a vista de
acharam todos os amigos e parentes que seu pai, outros que, em a quererem empregar neles, mais
D. Floris, tinha, não só em a dita cidade, mas nas atrevidos se mostravam, para que agravados ti-
vilas mais circunvizinhas a ela. vessem mais razão de os apregoar por tiranos,
Passadas as festas, entenderam em a criação de cruéis e roubadores; e não teriam pouca porque,
sua única e querida filha, que mais que a seus como os mais isentos à vista deles ficavam ren-
olhos queriam, dando-lhe amas que com muito didos, bem era que mostrassem o perigo aos
cuidado a criassem, e criados que com todo ele mais fracos para que, desviados dele, não ficas-
a servissem. Depois que já tinha oito anos de sem também cativos. Seu rosto era tão claro e
idade, vendo-a o pai tão fermosa, alegre e com bem corado qual cristal, e fresca rosa na maior
mostras de bom engenho, deu-lhe Mestres ex- pureza de sua perfeição. Tinha os cabelos tão
perimentados em toda a virtude para que lhe fermosos que pareciam madeixas de fino ouro, e
não ensinassem cousa que a não fosse, preten- tão compridos que, estendidos, cobriam seu cor-
dendo também, com tão bons exercícios, desviá- po, mostrando-se ornado com eles como se o
-la de algum de amor, a que costumam dar-se, fora de algum vestido artificial, por mais custoso
levadas de vanglórias de tantas graças, como já se e rico que fosse, o qual era de tão bom talhe, e
mostravam em Florinda porque, como fosse de dotado de tanta perfeição, que parecia só em o
bom engenho, não se contentou só com saber as fabricar pureza todo seu cabedal a natureza; e
línguas Espanhola, Latina, Francesa, e alguns finalmente era tal que, havendo em o Reino
princípios da Italiana, mas deu-se a tanger alguns muitas damas dignas de serem estimadas por sua
instrumentos, cantar e dançar a eles, em que era fermosura, só na sua se falava como mais avanta-
muito destra, e algumas vezes em uma quinta jada de todas, de maneira que, pela verem, vi-
sua tomava lições de esgrima, e passeava em um nham muitos mancebos fiados em sua nobreza e

41
boas partes a pretenderem seus amores, e outros, podendo seu fraco coração com os duros golpes
que não tinham tantas, só por darem recreação a de amor, foi tão ferido dele que, banhado em
seus olhos, porque é tal a fermosura que ainda seu próprio sangue, o ofereceu em perpétuo sa-
àqueles que não têm esperanças de possuí-la crifício no altar de um propósito, que em meio
lhes aviva os sentidos para que mais se deleitem de sua vontade edificou, de ser seu cativo, de tal
com a vista dela. modo que lhe não ficasse algum de pretender o
Vendo-se, pois, Florinda moça, fermosa, rica, alcance de sua liberdade; e quando não mereces-
nobre e bem aparentada, ornada de dons da na- se o alcançá-la, morrer cativo e preso com os
tureza, que com ela havia sido tão liberal como desejos que levava de possuí-la. E porque co-
com outras avara, e destra em tantas artes adqui- mummente a batalha que há entre estes seja tão
sitas, tão estimada e querida de todos, alvo em arriscada, e semelhante a do amor com descon-
que o cego amor mais emprega suas setas, deu fiança, e este tome mais posse de um fraco peito,
lugar a que lhe tirasse algumas. E parecendo-lhe para que não possa ter entrada o amor (de quem
que coberta com tais armas a não ofenderiam, como de inimigo foge, buscando só os mais
não só lhes não fugia, mas antes a todas as que o confiados e atrevidos para os alentar com o re-
amor lançava se oferecia. E como seja costume galo de seus favores), sentindo o peito de
seu adonde acha mais resistência tirar uma Arnaldo com pouca resistência nascida de uma
ervada para que já que não pôde, pelo impedi- natural vergonha (certa companheira da pouca
mento das armas, chegar ao coração, ao menos, idade), se apoderou tanto dele que nem ousava
ferindo o corpo, tire sangue, e fique presa, até descobrir seu ânimo a Florinda, nem pedir-lhe
que, correndo, a malignidade da erva chegue a as mercês que, pelo sacrifício já feito, lhe devia.
ele e o mate, entre outras que tirou a Florinda Assim andou Arnaldo quatro anos, havendo-se o
foi uma destas; a qual, sentindo-se ferida, come- amor nele como fogo em tenros e verdes ramos,
çou com mais cuidados do que tinha de anos em os quais não se acende senão depois de dei-
(porque não eram a este tempo mais de tadas fora as disposições que lhe são impedi-
dezasseis) a buscar no princípio o remédio de mento, e resistem à sua forma; e como, para a
sua chaga, porque a que no princípio se não introdução desta, seja necessário serem em tem-
cura no fim é dificultoso o remédio dela, e ainda po dispostas, pareceu-lhe ao amor bastante o
que buscou muitos não achou algum para lho que dissemos para que com menos impedimen-
poder dar. to se apoderasse de seu lastimado coração. No
Foi, pois, o caso que havia em a mesma cidade cabo do qual, tendo Arnaldo já de idade dezoito
um mancebo não de menos nobreza e riquezas, anos, achando-o com pouca resistência nascida
a quem os pais tinham em seus olhos por ser o da muita fermosura que, com a idade, crescia
herdeiro de todos os seus bens, que eram mui- mais em Florinda, e de amorosos ciúmes que de
tos, o qual havia nome Arnaldo, e sobre todos os outros a pretenderem tinha, com tanta veemên-
deste tempo o tinha assim de gentil-homem, cia se apoderou dele que, abrasado em as chamas
bom cavaleiro, destro em as armas e esforçado, do fogo de amor, qual outra ave Fénix, tornou a
como agradável e liberal para seus amigos, e tido ficar mais puro para que de novo se entregasse
em muito respeito de todos eles. Este, sendo aos cuidados de que já andava tão preso que lhe
ainda de pouca idade, vendo a fermosura de não dava liberdade alguma mais que para cuidar
Florinda e notando as graças e perfeições assim no remédio dela. E como este se não achasse
naturais como adquisitas, de que era ornada, não fora do que de Florinda se esperava, porque só

42
de sua vontade dependia, começou Arnaldo de de si, teve lugar o amor de empregar sua erva da
buscar ocasião de lhe manifestar a sua para que, seta. E ainda que não pôde chegar a ferir o
conhecida dela, ou lhe aumentasse as esperanças coração, contudo, como este mal seja repentino
que tinha de alcançá-la ou lhe mostrasse o atre- e apressado, em pouco tempo se apoderou dele,
vimento da confiança que levava de merecê-lo. e ficou rendido e morto pela beleza de Arnaldo
E no cabo de algum tempo em que, buscando que mui contente estava sentindo os efeitos que
traça e ordem para lhe falar, como desejava, não causava em Florinda sua vista porque, como ele
tinha achado alguma, sucedeu fazerem-se umas seja a porta da afeição, cada um comunicou a
grandes festas em a cidade, em as quais se achou que tinha em seu coração por ela, que esta mais
Florinda com outras damas amigas suas. E pare- com os olhos que com a língua se declara. E
cendo a Arnaldo ser boa esta ocasião ao menos como era avisada, dissimulou por então em o
para ser visto dela, confiado com esta traça a dar rosto o que não podia em o coração; e em todo
bom princípio a seus amores, estribado na boa o tempo que Arnaldo corria ou fazia sorte em
postura e graça de seu corpo, e gentileza de seu seu cavalo, andavam seus olhos escondendo-se
rosto, em que, por ser em público, se não isenta- dos outros para que os não vissem empregados
ria Florinda de pôr seus olhos, entre outros ca- em quem já tanto queriam, próprio de quem
valeiros que saíram a correr canas e touros em a ama parecer-lhe que todos notam a causa de sua
praça onde Florinda estava, foi ele um; e como afeição, a qual se lhe aumentou mais quando viu
fosse conhecido de muitos pelas boas partes que que Arnaldo fazia extremos assim nas sortes
havemos dito, folgaram de o ver tão bem posto como nas canas, e que todos pregoavam a vanta-
e vestido em seu fermoso cavalo, de modo que gem que lhes levava e era bem conhecida a
não havia dama que se isentasse de louvar sua melhoria que lhes fazia.
postura, e poucas de cobiçar sua pessoa. Acabadas as festas se recolheram os cavaleiros, e
Até este tempo havia estado Florinda bem isen- Florinda com as damas, louvando entre si as
ta de amor, resistindo a todas as setas que lhe grandezas de Arnaldo, como quem entre todos
lançava, mui alegre de não ser de algumas delas merecia ser engrandecido, como quem só a seus
ferida. Porém, como era chegado o tempo em
olhos tinha sido venturoso. Só Florinda, por dis-
que queria já usar da destreza de seu ofício, che-
simular, as abatia, louvando mais as obras de ou-
gando Arnaldo em seu brioso cavalo por baixo
tros, ainda que bem sentia o contrário em seu
da janela onde Florinda estava com as damas, foi
coração, porque é propriedade da mulher que
chamada de alguma para que visse sua gentileza
ama nunca declarar com a boca aquilo que no
e boa postura, o que logo fez mais por zombar,
mais secreto dele se encerra.
como fazia de outros, do que com ânimo de o
ver avantajado a eles, como as damas lhe afirma-
vam. E com este pensamento, bem fora de ter
CAPÍTULO II
algum de que o amor a vencesse, chegou; e ven-
do-o tão gentil-homem, airoso, e bem ornado
com a riqueza de seu vestido, brincado de várias De como Arnaldo se fingiu estrangeiro
jóias e peças que mais graça lhe emprestavam, para dar uma carta a Florinda,
certificada de quem era, e certa no que dele já e da resposta dela.
ouvira, com tanta eficácia empregou seus olhos
em os de Arnaldo, que venturosos se achavam Passado, pois, este primeiro princípio e funda-
com a dita de tal encontro, que, esquecendo-se mento dos amores de Arnaldo, e agradecido ele

43
à sua ventura, como mais buscado do que acha- compadecido do acidente que com sua vista
do nela, como amor não consinta quietação em dera a Florinda, com a alegria da causa dele,
uma alma que o serve, não pôde mais Arnaldo começou de fazer-lhe em seu peito um tão ex-
ter alguma; antes, com mil inquietações e desas- cessivo abalo que bem foi sentido de seus cria-
sossegos, propriedades devidas a novo amor, co- dos, ainda que, temperando a força de seu juve-
meçou de buscar ocasião em que mostrasse a nil ânimo, não foi de todo conhecido deles. E
Florinda sua antiga liberdade estar posta em como o amor seja fogo, e tanto mais se aumenta
nova sujeição, no que gastou alguns meses, dan- quanto mais matéria tem em que se sustente,
do músicas de noite a Florinda e, de dia, passe- alentado com esta, se acendeu mais em os cora-
ando sua rua, ora só, esquecido de sua gravidade, ções destes tão queridos amantes, de tal maneira
ora acompanhado de amigos e criados; outras que nem Arnaldo podia quietar em sua casa,
vezes a cavalo, fazendo nele muitas galantarias, nem conversar amigos, como costumava, nem
em que era muito destro, sem em todo este Florinda suas criadas, de quem era mais querida.
tempo ter mais que poucas vistas de Florinda Recolhendo-se, pois, Arnaldo a sua casa, dispôs-se
porque, como estava acompanhada de suas cria- a fazer-lhe uma carta para que, manifestando-lhe
das, não lhe davam lugar a que pudesse ser vista seu ânimo, entendesse a verdade do seu amor,
as vezes que ele desejava. pois se via tão impossibilitado de o fazer de
Bem conhecia Florinda, pelos extremos que via palavra quão cuidadoso havia sido de procurar
em Arnaldo, ser grande o amor que lhe tinha. ocasião em que lho pudesse manifestar por ela.
Porém, como se sentisse impossibilitada de se E porque lhe parecia que, mandando-a por ter-
mostrar agradecida, declarando-lhe a força do ceira pessoa, seria descoberta, ou não fosse dada
que já tinha tomado posse de seu coração, para em sua mão própria, buscou ordem e traça para
que não caísse em tão grande falta como a da que se lhe desse sem ser de alguém sentida. E foi
ingratidão, o amor, como costumado a tirar de que, despojando-se de seus vestidos próprios, se
fraquezas forças, para não dar em algumas faltas, vestiu em outros alheios, fingindo-se estrangeiro.
deu tantas forças a Florinda que, ajudada delas, E, comprando algumas peças curiosas, se foi a
deu mostra do que tinha ser igual ao que uma quinta onde Florinda estava, com suas cria-
Arnaldo lhe mostrava. E foi que, passeando ele das e mais gente de casa, folgando, e mandou
como costumava um dia por sua rua, se deixou logo recado de como trazia jóias de estima de
ficar de propósito em sua janela, assim por estar outros reinos para vender, entre as quais tinha
só como porque não passava então gente por uma de grande novidade. E como as mulheres
ela. E pondo seus olhos em os que tanto ver comummente sejam amigas delas, logo o man-
desejava, foi tão sobressaltada com o demasiado daram subir e vieram receber à primeira sala,
gosto e contentamento que recebeu com sua ficando a que ele trazia no coração recolhida em
vista que, desamparada dos sentidos, se reclinou a sua. E começando cada uma a comprar o que
sobre seus braços ao umbral da janela, preocupa- mais lhe servia, dando-lhe as peças lhe roubava
da de um amoroso acidente de que ficou tão os corações, porque era em tanto extremo gen-
trespassada que mal soube fingir resposta que til-homem e bem disposto que ainda em trajes
dar a suas criadas, que lhe perguntavam a causa. tão vis o representava. Logo Florinda mandou a
Bem entendeu Arnaldo que tal excesso não po- sua aia lhe levasse à mostra a mais curiosa peça
dia nascer senão donde houvesse muito de que aquele estrangeiro trazia, e o preço dela.
amor; e, misturando o sentimento que recebera, Vendo ele o bom lanço e ocasião, tirou de uma

44
boceta um cofrezinho pequeno todo marcheta- Havendo, pois, Florinda dado fim à carta de seu
do de ouro, semeado de muitas e várias pedras, e amado e querido Arnaldo, e conhecido dela o
fechado lho mandou dizendo se lhe contentasse grande amor que lhe tinha, nascido do conten-
desse o preço que mais fosse servida. E com isto tamento que recebera, se tornou a encarnada
se foi logo, e Florinda ficou notando a curiosi- cor de seu fermoso rosto em várias e diversas, e
dade do cofre e perfeição dele, não determinando sem dúvida que, a não lhe atalhar os efeitos que
de lhe dar preço certo senão o que ele lhe pe- o amor lhe começava a causar uma criada sua,
disse. que da parte de seu pai a chamava, porventura
E chegando o seguinte dia, em que tinha ficado se manifestariam nela tanto que pudesse dar
de o vir receber, vendo Florinda que não cum- mostras de alguma suspeita. Porém, como avisa-
prira o que dissera, nem os dous seguintes vinha, da, deitando de si tudo o que lhe podia ser causa
como avisada que era, suspeitou ser alguma traça de algumas, dissimulou por então no rosto o que
de Arnaldo; e, recolhendo-se só à sua câmara, tanto sentia em seu coração. E como seja pro-
tomou o cofre, que fechado estava com certo priedade do amor quando tem tomado posse de
engenho que sem chave se abria. E depois que algum facilmente apartá-lo de todas as cousas
deu nele, viu dentro um papel dobrado sem que não vão dirigidas ao cumprimento de seus
mais alguma cousa, com o que ficou em extre- costumes, vendo-se Florinda em parte onde não
mo sobressaltada. E, abrindo-o, achou ser carta podia mostrar-se que não fosse isenta deles, se
de seu querido Arnaldo e, assim do que tinha fingiu doente, para que o pai tivesse mais razão
precedido como do que de presente conhecia, de a tornar a mandar para a cidade, o que logo
entendeu que ele fora o mesmo portador dela e, fez com toda a sua casa.
por se dar com mais segredo, estrangeiro se fin- E depois que Florinda se viu nela, começou
gira. E com grande alvoroço de seu coração a com novos cuidados a entregar-se ao amor de
começou a ler, a qual era da maneira seguinte: Arnaldo. E porque este, quando é grande, não
Carta de Arnaldo a Florinda. sofre dilação em quem o serve, mormente
Se com a ventura que me falta me faltasse agora, quando é em proveito da cousa amada, enten-
senhora minha, o atrevimento de descobrir-vos os se- dendo o que resultava a Arnaldo com a brevida-
cretos de meu coração, ficaria encerrada em o seio do de da resposta, devida em lei de primoroso e
perpétuo esquecimento a mais honesta vontade, e honrado termo, apartando-se de suas criadas,
pronta a vosso serviço, que há nascido nem pode nascer por não ser vista delas, lha fez logo, a qual para
em um namorado peito. Porém, por não fazer este lhe dar com mais cautela esperou que passasse
agravo a meu justo desejo, quero que entendais que uma noite, como fazia muitas, pela rua, e sem
não tenho outros mais que de servir-vos e amar-vos; e que a visse pessoa alguma lha deixou cair, a qual
este já tão entregue nas mãos de minha vontade que ele sentindo ergueu, e com ela os olhos à causa
não sou senhor dela para cousa que seja fora deste de tanto bem. Mas não foi possível daquela vez
intento. E por saber a resolução do vosso, tomei este falar-lhe porque, logo que despediu da mão a
meio, forçado do amor, que abrasa meu coração há carta, o fez ela da janela por não ser sentida.
quatro anos, sem em todo este tempo achar algum para Logo Arnaldo mui contente se foi a sua casa e,
vos poder manifestar o que padeço; e porque entendo abrindo a carta de sua amada Florinda, viu que
que de tão nobre sujeito como o vosso está bem certa a eram as regras dela da maneira seguinte:
paga que mereço por o estar tanto à vossa pessoa, cesso, Carta de Florinda a Arnaldo em resposta da sua.
e não de vos querer, como a minha própria, etc. Se o grande amor, que tem tomado já posse deste

45
coração para ser só vosso, não fora de tanta força que ele me achareis. E nisto não haja falta, porque em
lhe deixara alguma para lhe poder resistir, pudera, cumprir o que digo não haverá alguma.
como experimentada em alheios males, fazê-lo à vossa. Florinda
Porém como, fora dele, até’gora será impossível haver Tão alvoroçado ficou Arnaldo com estas poucas
para mim cousas que o não sejam, é-me forçoso dar regras que nem pôde mais quietar o restante da
crédito a esta, pois na abonação dela fico ganhando um noite, nem no dia seguinte cessar de lê-las, não
bem com tanta liberdade oferecido que nem a mim me se descuidando contudo da ordem que teria
seria bem com todo mostrar-me ingrata em não querê- para entrar em o jardim, porque a porta dele
-lo. A traça que buscastes vos agradeço, porque não estava sempre fechada, nem se iria só ou acom-
corria menos risco, sendo vossa carta descoberta, a mi- panhado. Porém, como avisado que era, não se
nha honra, do que perigo para com meu pai a minha quis fiar de seu parecer. Antes, falando com um
pessoa. E porque há muitas em esta casa que me são criado seu, de quem muito se fiava, lhe pediu
impedimento de poder deferir às vossas, como a primo- conselho no que faria, porque melhor é errar
rosa lei de amor pede, peço-vos cesseis com elas, e eu um seguindo conselhos alheios do que acertar
buscarei tempo em que vos possa manifestar de palavra fiado em seus pareceres próprios.
o que ele agora me não dá lugar a fazer por letra. E
em tanto vos guarde o Céu, etc.
Logo que Arnaldo acabou de ler a carta de sua CAPÍTULO III
querida Florinda ficou tão contente como cui-
dadoso do meio que teria para falar-lhe, pois o De como Arnaldo entrou em o jardim
proibia de escrever-lhe. Porém, estribado em sua e do que lhe aconteceu à porta dele,
palavra, dissimulou o mais que pôde, e não o depois de falar a Florinda.
continuar sua rua e dar músicas, como costuma-
va, no qual se gastou mais quatro meses sem em Depois que Arnaldo houve dado conta a seu
todo este tempo o achar Florinda acomodado criado, como temos dito, e recebido o conselho
para a cumprir, ainda que não estivesse ociosa que no caso lhe pedia, que era de não levar
em buscá-lo, levada do interesse de dar alívio a outrem consigo mais que ele, em o qual podia ir
seu coração, porque nenhum há mais certo aos confiado o ajudaria em tudo o que suas forças
que amam do que por elas descobrirem o que pudessem chegar, ficou tão contente e satisfeito
padecem. E no cabo deles, estando Arnaldo dan- que, levantando os braços, os deitou a seus om-
do uma noite a costumada música, perto das bros, dando-lhe muitos agradecimentos, e logo
casas de Florinda, atiraram de dentro com um se começou a aparelhar para o pôr por obra. E
limão, o qual, caindo junto dele, o ergueu, e chegando o tempo em que os dourados raios do
logo julgou o que podia ser pelo pouco peso Sol tinham deixado as terras, e a inimiga noite
que lhe sentiu. E, recolhido a sua casa, o abriu, com seu escuro manto cobertas, porém não de
que cerrado estava uma a metade com a outra, e modo que a pudesse guardar das calamidades do
achou dentro ambas vazias, e só com um pequeno Céu, se vestiu ele e seu criado (e como é pró-
papel, com duas regras e o nome de Florinda ao prio de amor e dos amantes as armas, pois seu
pé, as quais diziam assim: pai as faz) com algumas armas, de muitas que
Bem sentida estou, senhor, de não haver ocasião de tinha, para que melhor se pudessem defender
poder falar-vos mais cedo. Esta noite que vier, às dez e quando alguma cousa lhes sucedesse.
meia, entrai em o meu jardim, e na janela que cai para

46
E depois de dadas as dez se saíram de casa e, – Em verdade, amado e querido Arnaldo, que
chegando ao jardim, foi de parecer o criado que vos não posso encarecer o demasiado espanto
lhe desse Arnaldo ajuda para entrar, e que lhe que me tem causado ver o que pusestes às vossas
abriria a porta, e entraria por ela sem trabalho, o palavras; e já pode ser que o grande amor que
que logo fez; e buscando a mais baixa parte da abrasa este vosso coração, neste pouco tempo
cerca, e ajudado de Arnaldo, entrou dentro, e que há que vê seu corpo, de quem tão saudoso
logo, abrindo a porta, entrou Arnaldo sem impe- estava, me tenha feito revolver tantas cousas em
dimento algum, e ele se pôs da parte de fora em o pensamento, que em nenhuma acerto. Mas se
guarda dele. Despedindo-se, pois, de seu criado, já é, amado meu, o enganardes-vos com a minha
se foi direito à janela e, não achando ainda nela fermosura, parecendo-vos que era maior, e agora
o lume de seus olhos, ficou sem vista, porque só vos certifiqueis do contrário com minha presen-
da sua luz se sustentavam; e porque não fosse ça, lembre-vos que no meu pensamento não
sentido, se encobriu debaixo de um copado li- trato mais senão de como vos hei-de servir e
moeiro. Estando, pois, assim, não muito tempo, amar, cousa que à minha vontade se não deve,
sentiu que se abria a janela onde ele tinha, como mas só à vossa gentileza e graça, que ma roubou.
outra águia em o Sol, fitos e pregados seus cegos Lembre-vos, senhor, que em mim não achareis
olhos, esperando pela luz em que consistia a nunca menos segredo do que fé e conhecimen-
vista deles. E cobrando-a com a presença de sua to, partes que costumam satisfazer para com
amada e querida Florinda, ficou com tanto ex- amor quando há falta de algumas naturais, como
cesso de alegria qual costumam receber os cam- entendo em mim achareis. Lembre-vos a palavra
pos quando com os claros raios do Sol são alu- que me destes em a vossa carta, e que é de
miados, que como tais lhe representavam a homem, e não é bem que torne atrás, e a vossa
Arnaldo os que Florinda lançava de seus olhos. muito menos, pois é de um peito tão nobre.
E querendo ele romper o silêncio da noite para Lembre-vos o muito que arrisco em vir a tal
descobrir seu peito a quem tinha já por senhora hora falar-vos, e o perigo a que me ponho se for
dele, não pôde por um bom espaço pronunciar sentida. E se de nenhuma destas cousas vos lem-
palavra porque é propriedade do amor emude- brares, não vos esqueçais de me tirar a vida, que
cer a mais solta língua. E sentindo Florinda que a quem vós faltares ela sobeja. E se o hei sido
dele lhe nascia o impedimento dela, dissimulou em descobrir o que padeço, não sejais vós avaro
por um pouco, dando-lhe lugar a que lho desse em me dares o remédio.
aquele repentino sobressalto de amor para poder Com estas últimas palavras deu a fermosa
falar. E vendo, contudo, que ele o não fazia, Florinda fim às suas, e princípio a copiosas lágri-
pareceu-lhe que se enganara com o pensamento mas que, como pérolas, saíam de seus claros
que tivera, e que de Arnaldo ter outros (causa- olhos com tanto ímpeto que, alcançando umas a
dos de alguma desconfiança que dela tivesse) lhe outras em o meio de seu rosto que, qual a fresca
nascera. E como entre estas, e ciúmes, mais se rosa com o orvalho da manhã fermoso e corado
esforce o amor, acendeu tanto o coração de se mostrava, assim juntas desciam até fazer seu
Florinda, de quem já estava apoderado, que, não curso em outras naturais que a seu cristalino
podendo as palavras sofrer as chamas dele, com pescoço esmaltadas em fino ouro tinha. Não
muita pressa saíram pela boca de Florinda, ma- sem grande cópia delas, ainda que reprovadas a
nifestando o que sentiam nesta matéria: juvenil peito, posto que em tal ocasião tinha
desculpa, ouviu o galhardo Arnaldo as doces e

47
sentidas palavras da sua amada Florinda, o senti- neira, se consumaria com as chamas do fogo de
mento das quais lhe era causa das suas. E movido amor, cousa que sentiria mais por ser vosso do
dele, começou a romper nestas: que sem ele perder a vida, que só quero para
– Suposto que, amada Florinda, acertásseis a empregar em vosso serviço. E desde hoje me
causa que o fora do espanto de minhas palavras, ofereço à vossa vontade, protestando de não fazer
por onde fiquei mudo, vendo vossa fermosa pre- a minha cousa fora do lícito cumprimento dela.
sença, contudo não o fizestes no sentido que o Não se pode encarecer a alegria que com estas
foi de me tirar o meu, como de vossas que outro palavras recebeu Arnaldo, por serem tão cheias
maior me causaram entendi, por onde escusas de amor, das quais entendeu que estava Florinda
foram as lembranças que fizestes a quem nenhu- tão rendida como ele afeiçoado. E querendo-lhe
ma tem mais que de vós. Se tendes parecer que satisfazer com outras, lhe foi a fortuna contrária
ainda tinha de vossa fermosura ser outra da que (porque ainda o é àqueles a quem é favorável o
agora cobre esse soberano rosto, e arrependido costume de ser felicidade entre amantes a igual-
queria tornar atrás com minha palavra, prouvera dade em amor) ouvindo ruído de espadas à por-
a Deus que não fora ela tanta que, não o sendo, ta do jardim, por donde tinha entrado, e seu
nunca chegara a ser de vós tão julgada; e por fim criado guardando a entrada dela lhe esperava. E
me dizeis que o dê a vossa vida, se já é quereres julgando o que podia ser se despediu de Florin-
nisso dizer que o ponha à minha (que bem se da, não com pouca mágoa de seu coração, e ela
infere, pois só de vós a terdes depende), pois está não com menos sobressalto o fez dele porque já
em vossa mão, para que é mandar fazer por ou- os golpes se ouviam dentro em suas casas, e
trem o que por ela podeis livremente executar? algumas criadas acudiam às janelas a tempo que
O sentido, pois, que ignorastes na causa que ela se tirava da sua, sem ser vista nem sentida de
conhecestes é ser propriedade da fermosura ele- alguma.
var com tanta força os corações que nela se E deixando-a agora recolhida em seu aposento,
empregam que lhes não fica alguma para pode- ainda que no de seu corpo não cabia o coração,
rem proferir palavras; e como as que com a boca tornemos a Arnaldo o qual, empunhando a es-
se pronunciam nasçam de abundância dele, e o pada em uma mão e embraçando o broquel em
meu o esteja tanto na muita de que a natureza a outra, se foi direito donde os golpes soavam,
vos dotou, de necessidade havia de ficar mudo, ainda que tropeçando em alguns canteiros do
como bem vistes, ainda que o contrário de mim jardim, como o que vindo de ter os olhos aos
julgastes. E esta é a razão que podeis ter por tão claros raios do Sol fica como cego entrando
verdadeira como a que dissestes por falsa. aonde não há claridade, porque de luz lhe ser-
Com estas palavras cobrou novo alento a viam aos seus os de Florinda. E chegando à
fermosa Florinda e, retendo as lágrimas que ain- porta já com mais vista, viu a seu criado que
da derramava, já com mais alegria lhe tornou a valorosamente estava defendendo a entrada dela
falar nesta maneira: a três homens que, com muito esforço, intenta-
– É tão grande e excessivo o amor que vos vam entrar por força. E não podendo já o man-
tenho, querido Arnaldo, e com tanto ímpeto cebo menear a espada, por ter já uma estocada
abrasa minhas entranhas, que tenho por boa sor- em o braço dela, o valoroso Arnaldo supriu a
te o que de vós julguei para que, com o senti- falta, como valente que era, e tinha diante a
mento que recebi, matasse alguma parte do fogo causa que o afeiçoava, em cuja presença amor
que arde em meu coração porque, de outra ma- fez muitas vezes valoroso os mui cobardes, que

48
tais são suas forças, dando tal pressa em os deitar suspeita. E assim aconteceu achar esta, como de-
da porta que, a poucos passos, derrubou um, e sejava, vindo de propósito, como o fazia algumas
os outros deram as costas, não por cobardia, que noites, passear às ruas e porta do jardim até que,
eram mui esforçados, mas porque recresceu al- passando esta com um amigo seu e um criado,
guma gente, e não serem conhecidos. O que que foi o morto, achou a porta aberta, e queren-
Arnaldo vendo, se recolheu logo a sua casa com do entrar lhe sucedeu o já dito. E porque se
seu criado, passando a noite com várias imagina- certificou de sua suspeita ficou, assim com ela
ções e pensamentos sobre quem seria a quem como com a morte de seu criado, que muito
tinha dado a morte, e seus companheiros, e se queria, tão apaixonado que caiu em uma enfer-
teriam a mesma pretensão; ainda que a lembran- midade que lhe durou alguns dias, na qual o
ça das palavras de Florinda davam alguma força deixemos e acudamos a dar conta do que passou
a seu coração para resistir-lhes. a fermosa Florinda com o sobressalto passado.
Chegado o dia, mandou logo inquirir do morto Não se pode encarecer as muitas lágrimas que o
quem fosse, e a quem culpavam em sua morte, restante da noite derramou, os pensamentos que
não se esquecendo da cura de seu criado, o mais revolvia, os suspiros que detinha em seu peito
secreto que pôde porque o estimava muito, nem por não ser sentida, maldizendo a sua vida com
se deve ter em menos os que o são. Inquirindo, tanta lástima que não haveria quem, vendo-a em
pois, outro criado seu da morte (como lhe man- tal ocasião, a não tivesse dela porque onde o
dara) viu que levavam a enterrar um homem, amor é grande há comummente mil inquieta-
dizendo todos que morrera aquela noite de ções e desassossegos enquanto não tem presente
morte súbita. E, perguntando quem era, soube a cousa amada. E como Florinda não só carecia
ser criado de um nobre fidalgo daquela cidade da presença de seu querido Arnaldo, mas não
chamado D. Luís; e dando conta de tudo a estava certificada se existia a sua ainda em o
Arnaldo, ficou com a nova tão espantado como mundo, pelo sucesso passado, não podia deixar
pesaroso por ter nele um competidor e inimigo seu coração de estar mui aflito e angustiado, do
mui forte, e mais o ficou parecendo-lhe teria a que dava boas mostras seu fermoso rosto porque
mesma pretensão porque era este D. Luís filho nele se viam claramente os efeitos daquele que
dos mais nobres fidalgos de todo o Reino, o está com alguma pena lastimado.
qual possuía um morgado de muitas rendas, sem
outras muitas que, de terras de que era senhor,
lhe acudiam, o que tudo se fazia ser dos mais CAPÍTULO V
ricos e poderosos daquela cidade, e ainda de
todo o Reino, e sobre tudo mui esforçado. Dos efeitos que causou em Florinda
Este, pois, amava a Florinda com tanto extremo o parecer da morte de seu querido
que lhe não levava Arnaldo vantagem senão em Arnaldo, e se partiu em trajes de homem
ser mais favorecido dela, a qual bem entendia o pelo mundo, e do que lhe sucedeu
amor que lhe tinha. Porém, queria tanto a com D. Luís seu inimigo.
Arnaldo que, a todas as ocasiões em que D. Luís
lhe podia por alguns sinais mostrar o amor que Se pudera com meu fraco estilo encarecer a
lhe tinha, dava as costas, com o que ele andava grande dor e sentimento que a fermosa Florinda
tão cioso, entendendo que o teria a outro, que recebeu com o sucesso já contado, aumentando-
não cessava de buscar muitas para se tirar da -lho de novo, quando no fim dele o criado de

49
Arnaldo com mil lágrimas em seus olhos lhe cia que era impossível, estando em casa de seu
deu a triste nova de sua morte, que ela sempre pai, guardar-lhe a fé prometida, por ser muito
teve para si, manifestara a maior que jamais ocu- fermosa e requestada de muitos mancebos, e seu
pou o coração humano, e não com pouca razão pai a havia de constranger que tomasse por esposo
porque, como o amor quanto é maior tanto algum deles. E como ela fosse tão firme e cons-
maiores são seus efeitos, e o que tinha ligado os tante que antes esperaria a morte que quebrar
corações destes amantes fosse tão grande que sua palavra, não dando conta a pessoa alguma,
não há pena que o declare, nem língua que o determinou de se partir com ânimo de se vingar.
manifeste, de crer é que seus efeitos haviam de Passada que foi esta noite, a mais triste que nun-
ser excessivos e grandes, como no processo desta ca tivera, veio o claro dia; e ainda que costuma
história se verá. Quem poderá dizer as muitas ser alegre para todos os mortais, contudo para
lágrimas que, como fermosas pérolas, faziam de ela o foi mais triste, porque o coração lastimado
seus olhos outra Índia Oriental, donde corriam sempre costuma receber mais tristeza com aquilo
com tanta abundância de suspiros e ais, arran- com que os que estão mais alegres e contentes
cando seus dourados cabelos, maldizendo sua recebem mais prazer e alegria. Porém, ela, fin-
desgraciada vida, deitando por terra seus galantes gindo, dissimulava, mostrando-se alegre o mais
toucados, despojando-se de todos seus guarneci- que podia, em o qual não cuidou mais que no
dos vestidos e de todas suas jóias, maldizendo ao provimento necessário para o tal caminho. Logo
tredo e falso D. Luís, e ao cruel amor, pois fora mandou chamar secretamente certa mulher, que
causa de tais extremos; e sobretudo sempre dera vendia pela cidade toda a sorte de vestidos e,
fim a sua vida com crua morte se, levada do achando entre eles um que mais lhe contentou,
sentimento da do seu Arnaldo, não propusera fingindo ser para um primo seu que havia de vir
em seu peito de vingá-la, dando-a ao falso D. de fora, não reparando em o preço, com as mais
Luís por qualquer meio que fosse ainda que, alfaias que lhe pareceu eram necessárias, de que
como outro Sansão, tirando-lhe a vida perdesse adiante faremos menção, se passou o dia sem dar
a sua. conta a pessoa alguma do que intentava.
E recolhendo-se à sua câmara sem ser sentida de Havendo, pois, já Febo metido suas douradas
pessoa alguma, passou o restante da noite em rodas em as salgadas ondas do mar Oceano, e
imaginar o meio que teria para pôr em efeito seus raios não davam claridade às terras, come-
tão temerário intento, para o qual se não resol- çou Florinda de abrir os mais ricos escritórios
vera se não fora constrangida do grande amor de sua casa, e deles tirou assim dinheiro como
que a Arnaldo tinha, e dotada de um bravo âni- muitas jóias ricas, e peças de estima (que, como
mo, ainda que mulher e tão moça que não tinha no princípio dissemos, tinha o pai muitas) como
a este tempo mais que vinte anos. E no cabo de eram algumas cadeias e pedras que mais como-
mil imaginações que seu entendimento revol- damente e sem peso pudesse levar. Acabou, pois,
veu, tomando a resolução delas, se resolveu a a fermosa Florinda de se aviar de todo o neces-
vestir-se em trajes de homem e sair-se de casa sário, a tempo que a fermosa Lua espargia às
de seu pai em um cavalo pelo mundo, adonde a terras a emprestada luz que do claro Sol recebe,
ventura a guiasse, até lhe dar o fim que ela qui- não deixando apoderar tanto delas o escuro
sesse porque, como tinha dado palavra a seu manto da húmida noite, sentindo só os mortais
querido Arnaldo, e pusesse em sua vontade de a efeitos dela, assim os mais nobres que, privados
cumprir, ainda que ele fosse morto, bem conhe- dos seus externos sentidos, davam lugar a que a

50
fantasia operasse seu ofício empregando-se em dela senão tu? Se pretendias tirar-lhe a vida, por
vários sonhos, como os que por sua irracionali- que o não efeituavas logo, e não a deixaras mor-
dade o não são tanto, tomando o doce sono uns rer tantas vezes, como em o processo de sua vida
em tenros ramozinhos, outros em suas habita- se verá de seus trabalhos? Porque a vida que se
ções e escuras covas, tão isentos dos efeitos que passa com eles mais tem nome de morte que de
em nós causa a fantasia como livre das opera- vida; e quando isto não respeitaste, não te
ções dela. apiadaras de causar trabalhos a quem era digna
E, despojando-se dos seus vestidos, qual outro de se passarem muitos por seu serviço. Não tive-
Amadis de Gaula fez dos seus, tomando um há- ras compaixão de uns membros tão tenros e
bito de ermitão por uma falsa nova que de sua delicados, que mais pareciam de cristal que de
amada Oriana lhe haviam dado, e vestindo-se carne humana, para que não foras causa de se
com o outro de homem que comprado tinha, se exporem às rigoridades do tempo, às intempe-
desceu abaixo, abrindo as portas com muita cau- ranças do ar, ao açoute dos ventos, ao castigo das
tela. E tomando o mais ligeiro e fermoso cavalo águas, às tempestades do mar, aos perigos do
que seu pai tinha, lhe pôs uma rica sela e, por mundo, aos sucessos da fortuna, à ventura de sua
uma secreta porta do jardim, se saiu fora com honra e, finalmente, posta na mão da ventura ao
muitas lágrimas em seus olhos e dobradas lásti- que dela quisesse dispor e ordenar? Enfim, basta
mas em seu coração, ao despedir-se de sua casa, o nome que tens de cruel e tirano para que de
onde deixava seus pais que como a seus olhos tudo isto e de mais sejas causa. Bem te pintam
lhe queriam, deixando suas criadas, seus paren- cego, que se tu tiveras vista, vendo a beleza de
tes, sua pátria, donde era tão adorada e servida Florinda, tu mesmo te perderas por ela; e sendo
assim por sua fermosura como por sua liberali- tu o perdido ficara ela ganhada, e nunca te fora
dade e nobreza, tão rica, tão poderosa, tão cheia tão sujeita nem estivera a ti tão rendida. Mas o
de fama, que por todo o Reino se estendia, que mais espanta é que, não vendo tu a nin-
deixando seus pais sós, e a todos os seus bens, guém, nem alguém vendo-te a ti, te sentem sem
pois não tinham outra. saberem por onde entras nem por onde vens.
Mas ai, dor! Que aqui lança o cruel e tirano Donde veio dizer de ti aquele famoso poeta
amor suas âncoras, aqui emprega suas setas, aqui Ovídio, na Arte que fez de bem amar, que eras
lança suas raízes, aqui usa de seu poder, aqui de não sabia quem, vinhas não sabia por donde,
sua tirania, daqui toma matéria para seu sustento, mandava-te não sabia quem, geravas-te não sabia
daqui toma traça para melhor disfarçar seu en- como, contentavas-te não sabia com quê e eras
gano, daqui forças para melhor usar de seu po- sentido não sabia quando, matavas não sabia
der. Que agravos e ofensas te havia feito uma porquê, e finalmente que sem nos romper as
tenra donzela em a frol de sua idade para que a veias nos sangravas, e esgotavas todo o sangue.
não deixasses gozar de tantos bens assim da na- Enfim, és alma do mundo, e se como tal tens de
tureza como da fortuna? De sua muita fermosura, tua natureza ser comunicativo, não é muito que
graça, aviso e discrição? De tão boas artes e te achem entre cruéis, e que tu sejas um deles.
afável condição, dos mimos e regalos de seus És peçonha que logo te derramas pelas veias,
pais, que tanto lhe queriam? De fazendas e jóias erva que logo prende em as entranhas, pasmo
que possuíam? Servida de muitos, malquista de que faz adormecer os membros, e fim que o dás
nenhum, para que a tratasses tão sem dó que a todos. E por remate de tudo és tanto nosso
não haveria alguém que, vendo-a, o não tivesse contrário que, quando estamos acordados então

51
dormes, e quando dormimos então estás acorda- Ao que ele respondeu com grande arrogância:
do; ris quando choramos e choras quando rimos; – Sim, lembra, e a darei a ti, quem quer que
asseguras prendendo e prendes quando assegu- fores, se por injusta a defenderes.
ras; falas quando calamos, e calas quando fala- – Ora, pois, respondeu ela, para que tu não dês
mos; e finalmente és de tal condição que, por te outras semelhantes, bem é que ta dêem a ti, pois
darmos nosso querer, nos fazes sempre em con- dando a que deste ma causaste a mim.
tínua pena viver, como bem se viu nesta presente E acabadas estas razões lhe disparou o pistolete
donzela que, quando mais contente e satisfeita em os peitos e, passando-o de parte a parte, caiu
estava, lhe mostraste tudo ao contrário do que em terra, sem falar palavra, e ali acabou misera-
ela desejava. velmente a vida.
À qual tornando, que deixámos saindo-se pela Logo que Florinda efeituou o que desejava, lar-
porta do jardim a tempo que o relógio dava gando a rédea a seu ligeiro cavalo, não com
meia-noite, e deitando todo o temor de seu pei- pouco temor, que enfim era mulher, se partiu
to, que a tal costuma causar, se partiu direita a com muita pressa tomando um caminho que lhe
uma quinta que D. Luís tinha cousa de uma pareceu ser pouco continuado de gente, pelo
légua da cidade, parecendo-lhe o achasse nela qual andou alguns dias, desviando-se quanto po-
por causa do sucesso passado; e não lhe saiu dia de povoados grandes, para mais segurar sua
frustrado seu intento porque, chegando ela à pessoa, sem em todos eles lhe acontecer cousa
porta da quinta já a tempo que a fresca manhã de que se possa dar conta. No fim dos quais,
começava de alegrar as terras, achou um homem movida do grande calor com que o Sol tratava
e, informando-se dele, soube que D. Luís estava as terras, sentindo a falta das espaçosas sombras
em outra quinta perto com um seu amigo e que a resguardavam da rigoridade dele, coarctan-
que, conforme lhe ouvira, não tardaria muito, e do-se às que as árvores e plantas lhe faziam, de
que se lhe quisesse alguma cousa esperasse, ou- tal modo que mal se viam debaixo de seus ver-
sem dúvida no caminho o acharia. E despedin- des ramos e frondosas folhas, por estar o Sol em
do-se Florinda tomou logo o que o caseiro lhe o meio do hemisfério (tempo em que o dia
ensinara, esforçando seu coração; e trazendo à costumava ter seu meio), e constrangida do tra-
memória a morte de seu querido Arnaldo, se balho e descostume do caminho, e o cavalo não
deliberou em dá-la a D. Luís, ainda que se arris- pudesse já continuá-lo, parecendo-lhe que não
casse a perder a vida. podiam já alcançá-la se desceu dele para tomar
E a menos de um quarto de légua, a tempo que algum descanso, para o qual o convidava uma
o Sol com seus raios enriquecia os campos de caudalosa ribeira cujas cristalinas águas lhe cau-
sua claridade, se encontrou com ele, levando já saram tanta saudade, por ver em o acelerado
aparelhada uma pistola com dous pelouros de movimento delas o vivo retrato de suas já prin-
prata escondida onde a não pudesse ver; e, co- cipiadas desditas, que não pôde deixar de lhe
brindo bem o rosto com uns antolhos que leva- fazer companhia com algumas que, caindo na
va, por não ser dele conhecida, levantou a voz e corrente das claras águas, não misturando-se ne-
disse-lhe: las, por serem mais ténues e subtis, mas como
– Lembra-te, falso D. Luís, a injusta morte que brancas pérolas deixando-se levar à sua disposi-
há duas noites deste ao valoroso Arnaldo, e dian- ção pelo rio abaixo até que, sendo vistas das
te de quem. reais águias que nele se criavam, cada uma com
acelerado curso era levada, não sem grande

52
competência que entre elas havia sentindo bem E porque prometemos de dar conta do vestido
o de quanto valor e estima se mostravam pois, que levava e mais peças, me pareceu fazê-lo
não querendo com suas penetrantes unhas agora enquanto ela, ou para melhor dizer ele
ofendê-las, só em seus negros bicos com assaz (que já tinha posto a si mesmo nome, para passar
resguardo eram levadas. Porém, não com tanto portal até a fortuna dispor outra cousa, o qual
que se não desfizessem em ele em uma aguazi- era Leandro, que por este o trataremos daqui em
nha algum tanto salgada, da qual gostando como diante) cansado já de derramar lágrimas, se havia
que conheciam a causa delas, que eram ais e recostado sobre o coxim da sela a dar algum
suspiros, começaram a romper os ares com mui- descanso a seu corpo.
tos, acompanhando com eles os tristes que do Era, pois, o vestido de um pano muito fino, azul
íntimo do coração saíam a Florinda porque, e amarelo, todo golpeado, tomados os remates
quando são de amor, até os brutos animais parece dos miúdos golpes com uma mosca de fino
que os conhecem para se compadecerem deles. ouro, e um botão de prata que, às vezes, preso
Tirando, pois, Florinda o freio a seu cavalo, para em um alamar do mesmo o cerrava; e, quando
que gozasse dos frescos prados de que as praias aberto, descobria o forro, que era de cetim aleo-
do claro rio estavam alcatifadas, se assentou de- nado, que mais graça dava aos golpes de que
baixo de um fresco e copado freixo, por ser já a todo o vestido estava cheio. Debaixo do qual
calma muito grande, e dando refeição a seu can- vestia um jubão de corte verde com passamanes
sado corpo com alguma cousa de que se havia de prata entrefachada de ouro, e tão miúdos que
provido, não se esqueceu de a dar também a seu mal davam lugar a que o verde por entre eles se
lastimado coração com uma fermosa estampa divisasse. Um chapéu pardo, com plumas bran-
em uma lâmina, em a qual tinha retratado mui cas, verdes e negras, com um fermoso diamante
ao natural a seu querido Arnaldo, a qual sempre (peça que o pai tinha em dous mil cruzados).
consigo trouxe, servindo-lhe de espelho em que Levava mais uma cadeia de ouro com os fuzis
se via. E ali, entre muitas e mui tristes lástimas esmaltados de branco, sobraçada em os ombros,
nascidas do sentimento de seu coração, com que com sua espada e adaga com terços de prata
rompia os ares, fez nova protestação e prometi- dourada e brincada de esmaltes vários. E em
mento de se não deixar nunca possuir de outro, dinheiro levava, fora o que tinha já gastado, sete-
pois não merecera ser esposa do original dele centos cruzados em ouro e prata, e outras peças
porque entendia que semelhante na fermosura, miúdas, que ocupavam pouco e eram de valia.
gentileza, esforço e boas partes, não o teria o Faziam, pois, estas cousas ao novo Leandro tão
mundo, contentando-se só de sua imagem e re- galhardo e fermoso que causava espanto não só
trato enquanto o Céu dispunha de sua vida o às criaturas racionais, mas a muitas irracionais,
que cumpriu à risca como constante e firme, como mil diversidades de passarinhos que acaso
cousa que em poucas se acha porque o comum passando com seu brando voo, vendo-o estar
das mulheres é serem-no só em serem mudáveis. dormindo, se paravam em os brandos raminhos
E porque esta nunca o foi, é bem se diga dela e do verde freixo, e com suas melífluas gargantas
denuncie o mais generoso peito, e aonde o amor mostravam, a seu modo, dar a seu Criador as
mais puro e firme se achou que quantos ocupa- graças pelas muitas que em Leandro reconheci-
ram coração humano, como no processo da sua am. A cujas graciosas vozes acordando, já quase
história se verá. às cinco da tarde, elevado na harmonia delas lhe
cresceram novas saudades e tristezas, desejando

53
aquela solidão para a meditação delas, o que junto a umas altas e copadas árvores que em um
sempre fizera se a fortuna o não chamara a outras fresco vale entre dous altos montes estavam, co-
maiores, porque é costume de corações tristes e meçou Florinda, como mais experimentada em
lastimados desejarem partes solitárias para com semelhantes assaltos da fortuna, com amorosas e
mais liberdade se empregarem em a contempla- brandas palavras a confortá-la e dar-lhe ânimo
ção de suas tristezas. para que lhe contasse a causa que a trazia com
tanta pressa, instando que descobrisse seu rosto,
que até então o não tinha mostrado porque com
CAPÍTULO XXXIV um véu branco o trazia coberto, de modo que
só dele lhe pareciam os olhos por uns claros
De como Florinda encontrou uma vidros que, ao que mostravam, pareciam mui
peregrina, e trocou os vestidos com ela, e fermosos. E como boas palavras acabem muito,
do mais que em seu caminho lhe sucedeu. vencida a peregrina delas, descobriu seu rosto o
qual, sendo visto de Florinda, ficou tão admirada
Partida pois Florinda, andou inda algum pouco de sua muita fermosura qual nunca o fora tanto.
da noite; e depois que a clara manhã, deitando E na verdade que, a não ter outra que não tinha
da terra a escuridão dela, lhe causou mais ânimo igual diante de si, como era a de Florinda, fica-
para prosseguir seu caminho, continuou sua via- ram tão levantados os quilates dela que de ne-
gem, desviando-se sempre de estradas públicas, nhuma outra se igualara. E como a peregrina
tomando algumas mais escusas e de menos con- reconhecesse bem a vantagem que ela lhe fazia,
curso de gente. E no cabo de quatro dias, estando não admitiu nenhuns louvores que lhe devia,
ela encostada ao pé de uma árvore que junto do antes pediu lhe quisesse dar conta de sua vida, e
caminho estava, descansando do trabalho dele, a causa que a trazia àquelas partes tão remotas,
sentiu pegadas, como de alguma pessoa que pas- só, e com seus próprios trajes, e que ela lhe
sava. E esperando a ver o que fosse viu que era contaria na verdade a causa de sua peregrinação,
uma peregrina só, e ao que mostrava, na pressa e a pressa que trazia quando a encontrara, e isto
que punha em mover seus delicados pés, vir an- com brevidade porque lhe importava partir-se
gustiada e afligida. E vendo ela a Florinda do logo, e não fazer muita detença. O que, visto de
modo que estava, só, tão moça e fermosa, parou Florinda, em breves palavras lhe contou tudo o
toda estremecida e admirada, o que, visto de que havia passado depois que se descobrira por
Florinda, se foi a ela e, com palavras brandas, mulher e a causa, e o que passara em o conven-
intentou persuadi-la a que descansasse ali um to, e o porque a deitaram fora. Em todo este
pouco com ela, pois ia tão cansada. E como lhe tempo que Florinda gastou em lhe contar sua
falasse em sua língua própria, não a entendeu; e vida não cessava a peregrina de derramar muitas
tindo-lhe o mesmo em outra, menos; e falando- lágrimas porque via o retrato de seus infortúnios
-lhe em italiano (porque também desta língua e desgraças. E porque tinha já Florinda o fim às
sabia), logo a entendeu e, fazendo sua cortesia, suas, enxugando as lágrimas com que tinha ba-
satisfez ao que sua vontade desejava, ainda que nhado seu fermoso rosto, começou a dar princí-
muito sobressaltada. E rogando-lhe que se desvi- pio à sua história nesta maneira:
assem mais do caminho, porque lhe era assim – Em o Estado de Florença há uma nobre vila
necessário, como logo lhe diria, se apartaram povoada de grandes e ricos senhores cujo nome
dele o mais longe que puderam e, sentando-se calo porque não é bem que, desonrando um sua

54
pátria, manifeste o nome dela. Em esta nasci de entregar-me em suas mãos, esquecida da honra e
nobres pais e conhecidos de todos por sua muita não lembrada de minha nobreza, a ver se com
riqueza e fazenda, de que eram senhores. Deles isto, vendo minha formosura de mais perto, se
fui criada com tanto mimo e regalo que cuido rendia a meu amor. E como eu me fiava de
que dele me nasceu começar de pouca idade a minha aia em todos os meus segredos, não quis
dar entrada a vários pensamentos do mundo, encobrir-lhe o que intentava parecendo-me
parecendo-me que não havia outro bem maior que, pois me guardava fé em outros, a não que-
que ser namorada e servida de amantes que, assim braria neste. E como ela visse o perigo que eu
por minha fermosura como levados de muitas e corria, sendo descoberto meu depravado inten-
ricas galas com que ornava minha pessoa, se ofe- to, pareceu-lhe bom este lanço para tomar com
reciam a meu serviço; no que andei alguns dous ele o que a força do interesse lhe fazia desejar. E
anos, não tendo afeição a algum particular, no estando eu já deliberada para me sair uma noite,
cabo dos quais acertei de ver um dia (que nunca se veio a mim e disse se lhe não dava um colar
vira!) um mancebo estrangeiro, mercador, que de ouro que tinha de muito preço, todo
tratava naquelas terras, e comummente fazia esmaltado de várias e ricas pedras, que o havia
morada em a minha. E ainda que tinha informa- de dizer a meu pai e a um irmão meu, e que
ção de sua gentileza, que outras amigas me da- havia de ser logo se queria que favorecesse meu
vam, nunca me pareceu que era tal qual com sua intento. Vendo eu a traição que me fazia, tomei
vista experimentei. E como as mulheres co- o colar e dei-lho, dizendo-lhe que, depois que
mummente sejam da condição da praça, que tornasse, lhe daria outras peças, contanto que
sempre gostam mais do que vem de acarreto e não descobrisse nada e me tivesse certa janela
forasteiro, não obstante haver outros mancebos mais baixa de nosso aposento aberta, para que
de muita gentileza que me amavam, tanto me entrasse logo e não fosse sentida. E conhecendo
contentou e satisfez a deste que, desde aquela ela o grande desejo que eu tinha de efeituar
hora, desprezando todos os mais, só a ele me meu intento, tornou dizendo que lhas desse
determinei a amar e servir, o que fiz com mui- logo, nomeando outra que eu estimava muito
tos recados, ora por carta ora por palavra, não entre elas, senão que logo o havia de descobrir.
sabendo de meus amores ninguém mais que Vendo eu a sem-razão grande que comigo usa-
uma aia minha, a quem queria muito. E foi tão va, e que se lhe desse outras me pediria mais, foi
pouca minha ventura que, em todo o tempo tão grande a paixão que tomei que logo lhe dera
que o servi, não tive dele mais que disfavores, a morte, se me atrevera só com ela. E dissimu-
desprezando todo o amor que lhe tinha, que era lando o mais que pude fingi que as ia buscar
tão grande que nem de mim sabia parte mais donde estavam. E falando com uma criada em
que para imaginar cousas por onde o contentasse quem tinha mais confiança, e que me parecia
para que me quisesse bem. mais atrevida, lhe dei conta de tudo o que havia
«E depois de passados alguns seis meses de nossos passado, prometendo-lhe muitas jóias, e dando-
amores, como visse que era desejado de muitas -lhe logo algumas, que fosse comigo e ma aju-
damas, e todas pretendiam o que eu queria, que dasse a matar, o que ela logo fez, e com mais
era casar-me com ele por qualquer via que fosse, vontade depois de lhe prometer o colar que ela
foi tanta a paixão e tantos os ciúmes que tive de já tinha. E tornando ao aposento donde a tinha
me não querer bem, pois eu o amava tanto, que deixado, fingi que lhe dava as peças; e vindo a
determinei de me ir a sua casa, uma noite, e recebê-las me deitei a ela como uma leoa. E

55
acudindo-me a outra, lhe lancei uma toalha ao logo ali se veio, não se divertindo a outra parte.
pescoço, de modo que não pôde gritar, e ali lhe E vendo eu que meu irmão entrava já pela porta,
dei a morte em menos de um quarto de hora. E e o mancebo recorria acima a tomar armas,
deitando-a em sua cama a cobrirmos de modo acordei a pôr-me detrás dela; e como o escuro
que, pela manhã, entendessem que morrera de era grande, depois que entraram todos e me não
súbito, e assim o mostrava. viram, saí-me fora e com a mais pressa que pude,
E dizendo à outra esperasse ali por mim, e me como quem fugia da morte, me fui esconder daí
tivesse a janela aberta, que antes da manhã havia cousa de uma légua, entre uns altos arvoredos,
de vir, contente com as ricas peças que lhe tinha onde estive o restante da noite. E depois que a
dado disse que sim; e confiada eu no esforço fresca manhã começou a dar claridade às terras,
que então mostrara, me lancei pela janela, que como eu conhecia estas em que estava, fui-me a
era baixa, já a tempo que todos os de casa dor- uma quinta donde tinha uma tia dona, viúva, e
miam e me não podia ninguém sentir. E como dando-lhe conta do que me havia acontecido
fazia grande escuro, não fui vista de pessoa algu- me teve escondida alguns dias, porque me que-
ma, e assim fui e cheguei aonde desejava; e baten- ria muito. E no cabo destes lhe veio recado do
do à porta chegou logo o mancebo à janela. E que eu tinha feito, e de como me ausentara e
rogando-lhe eu com amorosas palavras me me andavam a buscar por todo o Estado de
abrisse depressa, que me importava a vida falar- Florença meu próprio irmão em pessoa e um
-lhe, importunado de meus rogos veio abaixo e, tio meu, com mais gente, determinados a não
abrindo a porta, lancei meus braços a seu pescoço descansar até me não matarem, ou levar presa
e com muitas lágrimas lhe manifestei o amor para me darem a morte juntamente com o man-
que lhe tinha e, não podendo sofrer mais tempo cebo, que prenderam e tinham posto em uma
a grandeza dele, me saíra de casa de meu pai a escura torre para confessar a verdade. E, vendo
entregar-me em suas mãos. Ficou o mancebo eu que não estava ali segura, mandei fazer este
tão espantado, sabendo quem eu era e o excesso traje de peregrina e me parti, com algum dinhei-
tão grande que fizera, que me não pôde respon- ro que minha tia me deu, pelo mundo, deixan-
der palavra, nem eu a ouvi da sua boca porque, a do-a com bem lágrimas e sentimento de minha
este tempo, senti ruído de gente que chegava à desgraça. E quis o Céu que há alguns meses que
porta e, abalroando-a com muita força, conheci, ando assim, e nem por mar nem por terra me
nos brados que davam, a meu irmão e outros hão achado. Só agora, haverá dous dias, me dis-
criados de casa que vinham a matar-me. seram em um lugar que daqui cousa de seis
E foi o caso que, logo que me saí de casa, fican- léguas está, que um mancebo acompanhado
do a criada só com a outra morta, vencida de com alguma gente estivera nele, e perguntara
medo, começou a dar gritos; e acudindo a gente, por uma peregrina dando-lhes os sinais de mi-
lhe deu conta de tudo o que havíamos passado, nha fermosura e mais feições assim da pessoa
e de como eu matara minha aia porque me não como do traje. E conforme as que dele ouvi,
queria deixar efeituar meu desordenado apetite. não era outro senão meu irmão, que já deve
E dando logo recado a meu irmão, saiu como trazer notícia de mim e anda em meu alcance. E
um fero tigre a matar-me, e com razão, que logo me parti com muita pressa, desejando-me
justamente merecia a morte quem tão pouco ir a algum reino mais remoto; e quis minha
atentou por sua honra como eu. E como havia ventura tomasse este caminho para vos encontrar
suspeita que aquele mancebo era meu amante, nele, para dar alívio a minhas penas e paixões,

56
que são tantas quais haveis ouvido, tirando os me achem, vendo meu rosto ficarei livre, pois se
mais trabalhos, que calei por não dobrar os vossos não iguala com a vossa. E quando me tirem a
com a moléstia deles que, como experimentada vida, eu a terei por bem empregada, contanto
em tantos, bem alcançais a grandeza de todos. que fiqueis vós com ela.
E esta é a verdade de minha história, e a causa – Obrigais-me tanto com vossas boas palavras,
porque vinha apressada e porque quis que nos respondeu Gemilícia, que me fazeis ter por ne-
desviássemos do caminho, é porque cuido an- cessário o que eu tinha por impossível de se
dam já perto de me alcançarem. Por isso me dai acabar comigo. E pois assim é, faça-se vossa von-
licença, porque me não posso deter mais tempo.» tade, ainda que seja constrangida a minha.
E com isto se começou a levantar e, lançando- E dizendo isto, se despiu cada uma e trocaram
-lhe Florinda os braços, a deteve, não com pala- os vestidos, não cessando de derramar lágrimas
vras mas com lágrimas que, nascidas do senti- de seus olhos, nascidas da consideração dos tra-
mento que tinha de ver uma donzela tão balhos em que se viam, da memória dos bens e
fermosa pelo mundo, tudo causado do amor, já regalos em que foram criadas, o que tudo junto
esquecendo-se dos seus por sentir os alheios, e com a despedida que com amorosos abraços
quietando-se a peregrina, começou a acom- cada uma fez lhe dobrava mais seus males por-
panhá-la com outras, e faziam entre si um tão que a saudosa memória do prazer dos bens pas-
lastimoso choro que por um pouco estiveram sados costuma acrescentar a tristeza dos males
em silêncio. E no cabo, rompendo-o, Florinda presentes.
falou assim, dizendo:
– Já que o tempo é tão pouco e a pressa que
tendes tanta que não dão lugar a que nos conso- CAPÍTULO XXXVI
lemos mais devagar de nossos trabalhos e infor-
túnios, peço-vos pelo que vos mereço já no De como Florinda foi levada ao
amor que vos tenho, que me concedais duas Grã-Duque de Florença, e do mais
cousas: a primeira, que me digais vosso nome, que lhe aconteceu.
que até’gora não haveis dito; e a outra, que quei-
rais aceitar este vestido meu, e dar-me esse vosso, Levada, pois, Florinda, e apresentada ao Grã-
porque assim ireis mais segura e não vos conhe- -Duque de Florença, que muito desejoso estava
cerão tanto, visto os sinais que de vós têm dado já de sua vinda, ficou tão admirado de sua estra-
para vos acharem, porque já agora correrá muito nha fermosura que claramente conheceu ser
perigo vossa vida sendo achada vossa pessoa. mais do que a fama pregoava. E mostrando-se
– O meu nome, sim, direi, respondeu a peregri- alegre com sua presença, lhe mandou logo dar
na, pois levais nisso gosto, que é Gemilícia. Po- seu aposento apartado com damas e donas que a
rém, não vos quero eu tão pouco que vos queira servissem como a filha sua. E lançando-se
fazer tão grande mal como era trocar o vestido Florinda a seus pés para lhos beijar por tão gran-
porque, se fordes achada, cuidando que sois de mercê, a levou em seus braços com muito
Gemilícia pelos sinais que de mim são dados, amor e cortesia, e a mandou recolher para que
pagareis o que eu injustamente estou devendo. descansasse do caminho. E depois de passados
– Não temais isso, tornou Florinda, que segura alguns dias a mandou vir ante si, e rogando-lhe
vou porque, como o principal sinal que de vós contasse inteiramente toda sua vida, e a causa de
têm dado seja vossa muita fermosura, ainda que sua peregrinação, e donde e como encontrara

57
aquelas donzelas Artémia e Gemilícia. Ao que dela se diziam, concorriam a Florença muitos
logo Florinda satisfez como pedia, e na verdade senhores e mancebos, que mais presumiam de
havia passado desde o princípio de seus amores suas pessoas, de mui remotas partes. E vencidos
até aquela hora em que estava, e como não qui- alguns de sua beleza, a pediam por esposa ao
sera receber por esposo ao Príncipe Aquilante Duque, com o que se via importunado porque
porque havia de cumprir a fé que a seu antigo sabia qual fosse a vontade de Florinda, tão alheia
Arnaldo tinha dado. E vendo o Duque os traba- do que pediam. E estimulado de seus rogos
lhos e infortúnios que havia passado, tudo por mandou um dia chamar a Florinda, estando ele
guardar firmeza, e notando a doçura de suas só com a Duquesa, e ali lhe propôs muitas ra-
palavras, a eloquência delas, e a capacidade de zões de como era necessário, visto o tê-la já
seu sujeito, ficou-lhe tão afeiçoado que logo em perfilhado e haver de ser herdeira de sua casa,
público, diante da Duquesa e de todas as mais que casasse, porque a pediam muitos senhores
damas e criadas de sua casa, a tomou por filha e de grandes Estados, e o seu era forçoso ter des-
a constituiu herdeira de todo seu Estado, con- cendentes que o sustentassem; que descesse de
sentindo a Duquesa com muita vontade porque seu propósito, que bastava o tempo em que o
lhe queria já muito, e pediu a todos os seus guardara, e outras razões com que constrangeu a
vassalos que como tal a conhecessem com bom Florinda – visto o bem que lhe tinha feito não
ânimo e melhorada vontade, o que todos fize- querer pagar-lhe tão mal, porque se mostrava
ram com muito gosto porque viam nela um desejoso do que lhe pedia – a dar-lhe palavra
sujeito merecedor de todos os bens do mundo; que sim, faria, e tudo o mais que fosse servido,
e assim não houve quem reprovasse estes tão como filha e cativa sua, ficando-lhe contudo o
grandes, que o Duque lhe fazia. contrário em o coração porque fazia conta que,
Vendo-se, pois, Florinda em tão alto estado, e quando se quisesse efeituar algum casamento, e
perto de ser senhora de todo o que o Duque não tivesse outro remédio, se ausentaria, porque
possuía porque, como eram de muita idade, assim em mais estimava a fé que tinha prometido, e
ele como a Duquesa não podiam viver muito, até então guardado, do que temia a morte, que
bem cuidou que a levantava ainda a fortuna tão ela mais queria que quebrá-la.
alto para lhe dar maior queda, como de outras Contente, pois o Duque com a palavra de
tinha experiência. Porém, como cansada já de a Florinda, e divulgada já por toda a cidade, co-
perseguir, deu lugar à ventura a favorecesse, de- meçaram de novo muitos senhores, que vinham
sistindo da pretensão que levava de a pôr no de seus Estados, a pedi-la por esposa, uns para si,
último de sua vida. Esforçada já Florinda com os outros para seus filhos. E como o Duque visse
novos favores da ventura, e apurada mais sua que agravava a muitos quando a desse a algum,
fermosura com o bom trato e regalo com que ordenou, com parecer da Duquesa e de alguns
de todos era tratada, começou de mostrar-se a nobres vassalos seus, que mandaria fazer umas
suas damas e mais criados mui alegre, fazendo- justas, mandando pregoá-las por todos os Estados
-lhes muitos bens, sendo para todos muito libe- e senhorios de Itália para que todos os preten-
ral, assim de boas palavras como de boas obras. E dentes viessem a elas, e o que melhor se houvesse,
como o tempo deu lugar a que sua fama voasse e mais esforçado se mostrasse, esse seria o esposo
por todos os estados e senhorios de Itália, assim de Florinda. E dando-lhe a ela conta do que
por ver sua fermosura como a pessoa por quem tinha determinado, que o não queria fazer sem
tantos infortúnios passaram, e tão notáveis cousas parecer seu, foi logo dela aprovado por bom, e

58
que lhe contentava muito, mas que havia de ser direita, outro à esquerda, ornados de veludo ver-
com uma condição: que, depois de conhecido já melho, bordados de prata, e em cada um duas
o que havia de ser seu esposo, ela o mandasse cadeiras em que se haviam de assentar os quatro
mais quatro dias fazer experiência de seu esfor- Juízes que haviam de dar a sentença por quem
ço, intentando neste tempo ausentar-se, ou dar melhor o fizesse. Mandou mais armar toda a
alguma ordem para que ficasse livre, guardando praça em roda de panos de terciopelo encarna-
sua fé e firmeza. do, semeados de leões de ouro e tigres de prata,
E prometendo-lhe o Duque que assim o faria, e tão ao vivo estavam que causavam espanto a
mandou logo pregoar por todo seu Estado e quem os via. E depois de tudo já posto em
mais senhorios de Itália, donde era já chegada a ordem, e o tempo fosse chegado, e da praça
fama de Florinda, que todo o que a pretendesse todas as janelas ordenadas, e concertado o lugar
por esposa se achasse em as justas que lhes orde- donde haviam de estar seus criados, e outro de
nava por três dias, assinando-lhes o em que se suas damas, e havia concorrido muita gente assim
haviam de começar; e o que melhor e mais da cidade como de fora dela, e os cavaleiros
esforçado se mostrasse nelas, esse seria seu espo- estavam já em o lugar determinado todos juntos,
so. E que se viessem a juntar todos em um certo mandou o Duque que, ao dia seguinte, que era
lugar, para dali entrarem juntos quando lhes fosse o primeiro das justas, na hora ao meio dia en-
recado. E divulgando-se por muitas partes, assim trassem pela praça todos de dous em dous, por-
do Reino como fora dele, começaram de se que já tudo estava aparelhado.
aparelhar muitos, principalmente os que mais Chegada já a manhã, o fermoso Sol com seus
confiavam de seu esforço, assim de armas como claros raios fazia resplandecer o muito ouro de
do ornato de suas pessoas, cavalos e bons jaezes, que toda a praça estava ornada, deitando de si
como quem havia de sair em um público tão outros, em os quais empregada a delicada vista
notável e donde se esperava tanta honra e tão mais curiosa em seu exercício se mostrava. Co-
estranho prémio. Os quais deixemos agora avian- meçou a concorrer tanta gente que não havia
do-se já para tão grande empresa, e tornemos ao quem a seu gosto pudesse ter lugar, que para ver
Duque que, em todo este meio tempo, se não tão grande novidade desejava. Pelas dez horas do
ocupou mais que mandar fazer novos vestidos dia saiu o Duque com a Duquesa, trazendo pela
com que Florinda havia de sair os três dias, e mão a Florinda, acompanhada de toda sua gente,
outros para seus desposórios, ricas tapeçarias tão lustrosa e bem vestida que a todos os que
para ornar a praça donde haviam de ser as justas, empregavam seus olhos em a variedade de seus
e o mais necessário para ela. vestidos e riqueza deles causava notável recrea-
E chegado já o tempo, oito dias antes, mandou ção e alegria. E porque evitemos prolixidades só
fazer a uma parte da praça um grande e sump- daremos conta dos que traziam as pessoas mais
tuoso teatro, e depois de feito, orná-lo de ricos notáveis e principais.
panos de brocado verde, semeados de miúdas Primeiramente, o Duque saiu vestido de tercio-
estrelas de ouro; e no mais alto dele mandou pôr pelo negro, com muitos e rasgados golpes pelos
três cadeiras de pau preto marchetado de mar- quais aparecia um forro de telinha de prata que,
fim, e o assento e descanso delas de brocado por ter junto de si o contrário, mais resplande-
branco bordado de ouro, em que se havia de cia. Em um bonete que na cabeça trazia tinha
assentar ele e a Duquesa, com Florinda. Mandou um trancelim de ricas pedras, e a seu pescoço
logo fazer outros dous mais baixos, um à parte uma grossa cadeia de ouro com esmalte de várias

59
cores, o que tudo ornava estranhamente sua pes- cheio. Estando, pois, já tudo nesta conformidade
soa. A Duquesa vinha conformada com ele em preparado, e a gente toda junta para ver a maior
tudo, assim na cor do vestido como no feitio festa e grandeza que nunca naquelas partes se
dele. Florinda saiu, neste primeiro dia, com um tinha visto, enquanto não vinham os cavaleiros
vestido tão rico e de tanto feitio que mostrava não tiravam seus olhos de Florinda que, como
um claro desengano aos olhos de todos, que não fermoso diamante entre outras pedras de menos
havia mais que ver. Era, pois, este de fio de ouro valia, se mostrava, realçando-se os quilates de sua
e prata, sem parecer seda alguma, e com tanto fermosura de tal modo que de muitas damas era
artifício tecido entre si que não dava lugar a que invejada, e de outras engrandecida, não deixando
se mostrasse a que debaixo tinham. O feitio ti- de notar a muita de que toda a praça estava
nha mais de custo do que de artifício, porque a ornada, nascida da diversidade de muitas riquezas
certos compassos tinha seus miúdos golpes, to- que em si tinha, porque a variedade das cousas
mados os remates com grãos de aljôfar, e no faz muito ao caso para a fermosura delas.
meio servia de botão a cada um sua pedra de
muita estima, cada uma de sua cor, presa em um
subtil alamarzinho de ouro. Em sua cabeça não PARTE SEGUNDA
levava cousa que a cobrisse mais que seus
fermosos cabelos, que pareciam madeixas de Prólogo ao Leitor
fino ouro, semeados de pérolas e apertados com
uma fita de prata, engastados nela muitos rubis, e Duas cousas julgo, prudente Leitor, que me fa-
no meio um diamante que lançava de si muita rão culpado em o tribunal do juízo humano,
claridade. Em seu pescoço, que parecia de fino ante o qual pretendo defender-me com a verda-
cristal, trazia um mantéu aberto com largas pon- de; e quando não seja recebida, nem por isso
tas de ouro e prata brincadas de esmeraldas e quero apelar da sentença. A primeira é uma que
grãos de aljôfar. Em o meio do peito uma pedra refere Salústio, o qual diz que, pois a vida é
de muita estima, engastada no remate de um limitada, bem é que deixemos nela alguma
grosso colar de ouro que de seu pescoço pendia. cousa cuja vista desperte a lembrança de nossa
E depois de subidos ao teatro foi assentada em a vida. A segunda é outra sentença de Horácio, o
cadeira do meio, ficando-lhe o Duque à mão qual refere que quem houver de compor algum
direita e a Duquesa à esquerda. E como o Sol livro deve cortar a matéria da peça da ciência
ferisse com seus raios as fermosas pedras de que que tem aprendido. E porque uma me condena
estava ornada, tornavam com outros tão deleito- por vanglorioso, e outra por atrevido, é necessá-
sos à vista quanto os seus ofensivos dela. Porém, rio que faça pública a verdade confessando meu
os que mais penetravam eram os que deitava intento.
Florinda de seu fermoso rosto, porque os do Sol Quanto ao que tive em fazer a primeira parte,
não podia a vista segurar-se neles. Os que lança- foi somente por curiosidade e por dar alívio ao
vam as pedras satisfaziam os olhos, e neles para- entendimento, que o molesta muito a lição con-
vam mas os de seu claro rosto passavam os olhos tínua de uma ciência. Não pôde ser com tanta
e feriam o coração. As damas vieram, este dia, cautela que não viesse à notícia de alguns ami-
vestidas de terciopelo encarnado, dando lugar a gos, e os mais deles letrados. Viram a obra ho-
que se mostrasse o forro dele, que era de cetim nesta e que assim de toda ela como das histórias
branco, pelos rasgados golpes de que estava particulares que continha se tiravam moralidades

60
proveitosas, e de seus enredos pasto para os en- E não quero negar que é pequena esta que apre-
tendimentos curiosos: quase por força a fizeram sento, que a falta que outrem lhe pode dar, con-
pública. E foi tão bem recebida que em dous fessando-a eu, fica mais leve. Porém, entendam
anos se gastou a impressão toda, e ao terceiro se que tanto melhor é o livro quanto mais tem do
tornara a imprimir se não fora a falta que havia entendimento, porque para os outros aproveita-
de papel. -se de outros, e para estes só se aproveita de si.
Esta segunda me foi pedida com muita instância. Não quisera eu que este encarecimento o abo-
Não me quis escusar, ainda que tinha razões nasse, senão que tivera alguma razão que lhe
para o fazer, porque quis imitar ao astuto caça- valesse, que mais vale razão própria que a abo-
dor quando pretende fazer doméstico ao ligeiro nação alheia, mormente quando é de parte inte-
cervo que, ainda metido em os amenos bosques ressada, porque pode ser havida por suspeitosa. E
e pastando em os mais altos montes, o qual toca ainda que não dou nesta causa a nenhum juiz
uma frauta e com sua harmonia vem a alcançar por suspeito, que todos podem julgar livremente
o que deseja. se tem a obra bondade que a acredite, não quero
Quando Ulisses desceu ao reino de Plutão a deixar de advertir aos que já escreveram que
tratar seus negócios com o sábio Tirésias, ouvindo vejam o que podem dizer de suas obras aos que
em o caminho por onde se recolhia as vozes das não têm escrito, e que façam algumas, e verão o
Sereias, de tal maneira ficou enlevado que ali se que dizem delas.
deixou ficar preso, e aonde cuidou que só teria Em esta se dá conta dos infortúnios que passou
regalo veio a achar proveito, pois ficou livre dos Arnaldo pelo mundo, buscando a sua amada
perigos a que o ia guiando seu ruim conselho. Florinda, e do fim que ambos tiveram e mais
Muitos cervos há no mundo que são servos do circunstâncias de sua morte, das quais se não
mundo, os quais só com eles tratam seus negócios, pôde tratar em a primeira parte. Também nas
metidos em os bosques de cuidados mundanos, histórias extravagantes se acabam de conhecer
sustentando-se em os montes de pensamentos algumas pessoas de quem já tratámos em os pri-
altivos, sem quererem tomar conselho com um meiros trágicos. E porque foram bem recebidos,
livro espiritual que lhes ensine o que devem quis pôr em estes mais estudo por mostrar agra-
fazer. Compadecido destes, quis disfarçar exem- decimento. Em uns e outros se acharão defeitos,
plos e moralidades com as roupas de histórias não o duvido. Porém, lembro que diz Aristóteles
humanas para que, vindo buscar recreação para que ainda que um homem tenha conhecimento
o entendimento em a elegância das palavras, em de todas as ciências nunca poderá alcançar todos
o enredo das histórias, em a curiosidade das sen- os lugares que há dignos de repreensão. E pois
tenças e em a lição das fábulas achem também o esta sentença dá ânimo para escrever, não é bem
proveito que estão oferecendo, que é um claro que dela se tome atrevimento para notar. Digo
desengano das cousas do mundo, e fiquem livres isto porque há entendimentos que notam dize-
dos perigos a que estão mui arriscados com seus rem pastores, ou mulheres, em o discurso de
ruins conselhos. Este intento, e o que já apresen- suas histórias, fábulas, ou sentenças, ou motes
tei acima, cuido que são bastantes para me livra- avisados, dizendo que eles são rústicos, e elas
rem de culpa. E quando não, digam o que quise- pouco lidas, para serem tão práticas; outros no-
rem, que já estou armado de paciência, que é tam cousas semelhantes a estas, os quais dão nota
mui necessária a quem faz pública alguma obra. de si em porem estas notas em as obras alheias,
porque mostram não ter lido Virgílio, nem outros

61
Autores antigos, nem ainda muitos modernos de Florinda, que era o alvo donde tirava a seta
que aprenderam deles, nem consideram que esse de sua esperança; e ainda que tinha pouca de a
é o cabedal dos Autores. Nem com estas razões possuir, ao menos achariam prémio seus trabalhos
pretendo fazer esta obra isenta das censuras que só com a ver. E no caminho lhe contou Flamiano
merecer. E pois, a fiz para te agradar, fico confia- outras cousas que soubera em Saragoça: de
do que não serás atrevido, e mais quando não como o pai de Arnaldo seria já morto porque, à
tenho faltado no agradecimento. partida, ficava acabando; e de como era já morto
o pai de Florinda porque, depois que se ausentara,
mandando-a buscar por algumas partes do mun-
CAPÍTULO XLIV do, fora achado o cavalo, e vendo-o em casa,
parecendo-lhe que era morta, combatido de
De como Arnaldo teve notícia tantos desgostos acabara a vida.
de sua amada Florinda. Com esta prática chegaram a um pequeno rio,
ainda que mais abundante que Xanto, o qual
Quando os serviços são bem empregados, bem é regava o pé de uma ermida situada entre muitas
que se estime a ocasião em que se podem fazer. árvores de Apolo, em a qual acharam a um
Vendo Arnaldo esta, que se lhe oferecia, de ser- ermitão já velho, de quem julgaram que não a
vir a Flamiano, teve-a em muito, porque sabia arte, senão a virtude, o fazia parecer Heleno,
que era amigo agradecido, pois não há serviço porque logo lhes disse algumas das causas que os
mais bem empregado que o que se faz a quem o trazia pelo mundo. E tomando Arnaldo daqui
gratifica com o conhecimento. E porque ele o motivo, perguntou-lhe se tinha notícia de um
podia dar em o caso pelo qual Flamiano estava convento de religiosas, que estava para a parte
no cárcere, tanto que entrou o dia seguinte foi de Florença, vindo de Nápoles. A quem respon-
logo requerer à justiça como aquele preso estava deu que sabia de um, que estava daí dez milhas,
sem culpa, assinando em sua defensa que vira aonde já fora algumas vezes pedir sua esmola.
morrer aquela mulher em cuja morte o culpa- – E sabeis porventura, tornou então Arnaldo, se
vam, à qual ouvira ser a causa o temor de não está aí recolhida uma donzela estrangeira com
ser achado, como Vénus de Vulcano, do poderoso quem teve amores o príncipe de Nápoles?
Deus, que por tão grande pecado a condenasse – Bem sei toda esta história, respondeu o ermi-
para sempre às cadeias do inferno, pela qual tão, porém dela vos darei mui ruim nova.
morte merecera com mais razão ser posta em o – É porventura moina, perguntou Arnaldo, já
Céu que Erígona. mudada a cor do rosto, ou sucedeu-lhe alguma
Não quis a justiça dar crédito ao que Arnaldo desgraça?
dizia, antes foi posto também em o cárcere até – Morta não, respondeu ele, porém já passa de
fazer certa aquela verdade. E requerendo ele que um ano que a deitaram fora por respeito de uma
mandasse à torre aonde morrera, logo o velho senhora de Veneza, que também aí estava reco-
mandou a informação verdadeira. E vendo ser lhida.
conforme ao que Arnaldo dizia, foram ambos Aqui cobrou Arnaldo mais ânimo, e com ele sua
postos em sua liberdade. esperança algum alívio, ainda que pouco, pois
E dando graças ao Senhor que os livrara, respei- era forçado deixar a notícia de Florinda à dispo-
tando sua inocência, partiram-se para Florença, sição da ventura. Porque Flamiano tinha experi-
determinando Arnaldo saber do convento, e nele mentado a pouca que tivera na vida, lembrado

62
da promessa que tinha feito no cárcere, e certo que conselhos de um pai que tivera o puseram
em que Arnaldo não queria desistir de seu in- naquele estado, o qual não alcançaram seus ante-
tento, vendo aquela ocasião acomodada para fa- passados, por lhe não ser devido a seus mereci-
zer penitência de seus erros passados, pediu ao mentos.
ermitão se o queria admitir a sua companhia, o – Se eu já tenho algum para convosco, disse
que ele fez de boa vontade porque conheceu a então Arnaldo, peço-vos me conteis o teor de
muita que Flamiano tinha de passar a vida em vossa vida, e relateis estes conselhos, se ainda
aquela solitária, a qual Arnaldo lhe não quis im- estais lembrado, que porventura ache neles al-
pedir porque sabia lhe era proveitosa para sua gum que me seja de proveito.
alma. E pedindo-lhe Flamiano que, se achasse – Sim, direi, disse ele, pois levais gosto.
Florinda, lhe mandasse aviso para que festejasse Então lhe disse como nascera em um lugar pe-
seu contentamento, não só prometeu que o faria, queno, em o qual seu pai vivera pobremente em
senão que lhe deu palavra, quando não pusesse uma fazenda sua. E sendo moço, o pusera em
termo a seu desejo, que com ele viria acabar a casa de um senhor de título que morava em a
vida naquele estado. cidade de Florença. E como era velho muito
E despedindo-se dele com grandes mostras de lido e experimentado em as cousas do mundo,
sentimento, próprio era quem perde a compa- lhe mandara uma carta em a qual o aconselhava
nhia de um bom amigo, e do ermitão, em cujas como havia de viver. E aproveitando-se de seus
orações se deixou encomendado, discorreu ain- conselhos, ainda que antigos, chegara a ter maior
da por algumas terras sem achar notícia de estado que seus antepassados. E porque alguns
Florinda. E sentido do pouco que aproveitava lhe faltavam já da memória, lhe queria ler a
sua diligência, chegando um dia à vista de um carta que ainda tinha guardada. E tirando-a em
lugar pequeno que estava três milhas de Lancisa público, leu-a nesta maneira:
e vinte de Florença, perguntou de quem eram
Carta que escreveu um velho a um seu filho, ainda
uns cavalos que uns homens andavam passeando,
moço, que estava por pajem de um senhor de título.
e se morava em aquele lugar algum cavaleiro.
Logo lhe disseram que ali morava o senhor do Já deves saber, filho Petrânio, que os velhos têm larga
mesmo lugar, o qual tinha muitos e bons cavalos, experiência das cousas do mundo, e sabem que é um
e estimava muito aos cavaleiros. E confiado mar de trabalhos, uma escola de vaidades, uma praça
Arnaldo nesta notícia, determinou de estar em de enganos, um labirinto de erros, cárcere de trevas,
sua casa, esperando que o tempo descobrisse o fonte de cuidados, um prado de lágrimas. E quem nele
que desejava de sua amada Florinda, da qual não tomar o conselho de um velho nunca irá errado, porque
perdia a esperança, porque a estribava em a des- «de los podridos vicios salen los sanos consejos». Eu,
graça que lhe sucedera no convento, pois não como pai que deseja de acertares em tudo, te peço que
fora tirada dele como Judita. aceites estes que aqui te escrevo, confiado em que não
Com este pensamento se foi a casa daquele se- dirás, como outro: «Dai-me dinheiro, não me deis con-
nhor, do qual foi bem recebido, e muito mais selhos». E ainda que estes vão descantados ao som da
depois que soube que era bom cavaleiro. E pas- têmpera velha, se os guardares eu te fico que tua vida
sados alguns dias, vendo Arnaldo que o tratava se cante em têmpera nova.
como particular amigo, tomou confiança para Primeiramente, se esse senhor for de má condição, mos-
lhe perguntar por sua vida, e de como chegara a tra-lhe a tua boa, porque «a condição má com a boa se
possuir tão grande casa. A quem ele respondeu emenda»; se for de coração rijo, responde-lhe brando,

63
que «a palavra branda quebranta coração duro». Não rompe». Dos mais bem dispostos e avisados, trata o
fales muito diante dele, porque «sempre há muito errar que te for de mais proveito porque, dizem os antigos:
aonde há muito falar», e desta maneira nunca alcança- «Do figo e do fermoso, o mais proveitoso».
rá o secreto de teu coração, porque «a língua descobre o Do amigo que tiveres tem particular cuidado porque
que o coração encobre». Quando se irar contra ti, então «mais se há-de curar do amigo que do corpo». Traba-
lhe faze melhores serviços, porque «até o mais fero lha que digam de ti: «É amigo de todos e inimigo de
ânimo se abranda com o benefício». Faze muito por te nenhum». Sê com os homens pacífico e com os vícios
não achar em alguma culpa, porque «não há maior guerreiro porque, dizem os sábios: «Tem paz com os
miséria que ser compreendido nela». E quando fores homens e guerra com os vícios». Sempre a peleja co-
tão desgraciado que te ache compreendido, mostra-te mece de outrem, e de ti a concórdia. Se te fizeram
vergonhoso, porque «nunca tem muita vergonha quem injúrias, trabalha por te não lembrarem, e ficarão reme-
não sente a infâmia». Não faças mal a alguém à conta diadas, que «o melhor remédio das injúrias é o esque-
de seres criado de senhor de título, porque dizem lá: cimento delas». Do amigo verdadeiro fia tudo, e do
«À conta do Conde não mates ao homem». Nunca o duvidoso pouco ou nada, que «ao amigo incerto um
ofendas porque, se lhe rogares por alguém, te conceda o olho cerrado e outro aberto». Do que for reconciliado
que pedires, porque «a quem hás-de rogar não deves foge de todo, porque não experimentes o que diz o
enojar». Nunca com ele te ponhas em pendências, adágio antigo: «Caldo requentado e amigo reconcilia-
porque te não digam: «Com teu amo não jogues às do, nunca dele bom bocado». Se fizeres bolsa com
pêras». Suas faltas, ainda que públicas, dissimula-as e algum, faze que se gaste a sua primeiro porque a tua
tem-nas em segredo para que sejas tido por discreto, não fique chorando, pois é certo que «dous amigos de
que em «a boca do avisado o público é secreto». Nunca uma bolsa um canta e outro chora». Não sejas vergo-
te mostres irado contra ele porque te não digam: «El nhoso, pois estás em casa de senhor de título, porque te
perro con rabia con el dueño trava». Se te queixares dirão: «Moço vergonçoso, el diablo lo llevó a palacio»,
dele, seja de tarde em tarde, porque «as queixas contí- quanto mais que «moço pobre e vergonhoso não pode
nuas são odiosas». Nunca te enojes, ainda que algum fugir de néscio». Não desprezes nunca ao teu parente
dia te mostre má vontade, porque te não diga: «Enoje pobre porque não digam por ti: «Al que pobre vemos,
el villano por su daño». Não apures muito o mal que por parente lo negamos, y de los ricos nos loamos ser
dele ouvires, ou de sua casa, que «quem as cousas parentes, sin lo ser». Sê amigo de todos porque te não
muito apura não tem a vida segura». Quando te der façam mal, que «boi na terra alheia vacas o escornam».
alguma cousa, ainda que pouca, aceita-a, porque Nunca mostres bem em teu rosto tendo mal no coração
«mejor es algo que nada». Não faças mal a alguém porque te não digam: «Contas na mão, o demo no
por seu respeito para que lhe granjeies mais a vontade, seio». Faze obras que digam por ti os que te conhece-
porque «os senhores amam a traição, mas ao traidor rem: «De um ruim ninho saiu um bom passarinho».
não». Ajunta o que puderes para teus descendentes; não
Mais te aconselho, se queres ser honrado, que trates digas, como o outro: «Despues de yo muerto, ni viña
com os honrados, porque dizem os antigos: «Chega-te ni huerto». A palavra que deres cumpre-a, sendo em
aos bons e serás um deles». Foge de ruins companhias, cousa lícita, porque não digam por ti: «Escuderos de
porque «antes com bons a furtar que com maus a Guadalajara, lo que dizem a la noche, no hay nada
orar». Não acompanhes os maiores que ti porque te de manhana». Quando te rogarem não te faças grave
não digam: «Cada qual com seu igual». Não consin- porque te não digam: «El ruin, mientras más le rogan
tas que algum te trate com desprezo porque os outros más se enciende». Quando te mandarem dançar obe-
não digam por ti: «Bem sabe o demo cujo frangalho dece logo, e não te detenhas muito, porque não digam

64
que és «como o gaiteiro de Argança, que lhe davam CAPÍTULO ÚLTIMO
um por que começasse e dez porque acabasse». Sê
limpo em o tratar e em o comer porque diz o adágio Em que se põe fim aos infortúnios
antigo: «Em paço e em mesa usa de toda a limpeza». destes dous amantes.
Não sejas demasiado em o riso porque te não digam:
«guarda la risa, para la llora». Não apontes o que Nunca as cousas da ventura estão menos seguras
julgaste senão o que viste para que possas dizer: «Lo que quando estão mais prósperas. Esta verdade
que con el ojo veo, com el dedo lo adevino». O que experimentaram Arnaldo e sua esposa Florinda
houveres de dar ao amigo, seja logo, que «o dar na porque, quando os tinha posto na altura da mai-
presteza se louva», e «mais vale um logo que dous or prosperidade, então caíram em o baixo da
depois». Nunca te apanhem em mentira porque te não morte. E porque esta havia de ser mais pública
digam: «Mais depressa se apanha um mentiroso que que a de Rainério e sua esposa, quis Arnaldo
um coxo». Nunca injuries a outrem com ruins pala- avisar a Florinda por letra para que estivesse apa-
vras porque te não digam outras piores, que diz o rifão relhada. E dando-lhe a carta, viu que dizia desta
antigo: «Manha é do açougue que quem mal fala mal maneira:
ouve». Não te queixes da pessoa a quem deres algum
Carta que mandou Arnaldo a sua esposa Florinda
trabalho porque te dirá: «Mais se queixa quem suja a
estando já ambos sentenciados à morte.
manta que quem a alimpa». Não porfies muito por te
mostrares sábio, porque «mais vale ser néscio que porfi- Já agora acabo de conhecer que são para recear os
ado». Não sejas invejoso dos bens alheios, nem de ver contrastes da fortuna, pois os fazem certos os desenga-
outros mais bem tratados, porque «nunca el envidioso nos da vida. Já de todo experimento seu rigoroso
medrò, ni quien junto a el biviò». Não presumas de costume, pois ao grande abate, ao vencedor despoja,
valer muito porque te não digam que sabes pouco, que revolve os reinos, destrui exércitos, dos fiéis faz suspei-
«resumir e pouco valer, ramo é de pouco saber». Não tosos, e aos mais levantados em a fama faz sujeitos à
te fies de nenhum ruim porque dizem lá: «Quem dos inveja. E, pois, o sofrimento em os males sem remédio
ruins se fia, de ruins se queixa». Não sejas tão pródi- é a melhor arma de que pode lançar mão um afligido,
go que dês tudo, porque diz o rifão antigo que «quem é tempo, querida esposa, de vos armardes de paciência
dá tudo o que tem, a pedir vem». Não sejas apressado e de darmos a conhecer agora a firmeza que sempre
em tuas determinações porque, dizem os antigos, sustentámos na vida, pois já nos foi notificada a sen-
«quem depressa se determina, de espaço se arrepende». tença de nossa morte. Não culpo o invejoso peito de
Sê mais liberal com os outros que contigo, porque Aquilante, pois acendeu a inveja em a luz de vossa
dizem os velhos: «O que comi não o vi, o que dei isso fermosura, bastante a dar forças aos humildes pensa-
achei». Nunca te louves em público por que te não mentos, quanto mais aos que de sua natureza são
digam:« Quien se alaba de ruin se muere». E faze altivos. E, pois, sendo tão poderosos, ficaram vencidos
obras que te granjeiem fama para que todos digam por de vossa firmeza antiga, que podíamos esperar senão
ti: «Em boa hora nasce quem boa fama cobra». esta nova desgraça?
A qual, por nascer de vossa constância, põe freio a
minhas queixas porque, se me causou a morte, primei-
ro me pôs na maior glória que podia ter na vida. Por
agora a falta desta é a que sinto, e não a perda de meu
Estado, pois nisto vêm parar os maiores do mundo.
Porém, estou confiado que nossa inocência nos dará

65
letra para a outra vida, em a qual se nos dê maior causa de lhe tirarem a vida. E pondo de parte
glória da que agora nos priva este inimigo, pois sem todas as cousas dela só tratou de fazer o que
culpa nos condena ao duro ferro. Esta confiança me dá Arnaldo lhe dizia.
ânimo para perder a vida. A vós pode servir de escudo Já a este tempo estava feito o teatro coberto de
para não temer a morte, que ainda que ponha temor panos negros em um lugar junto ao rio que,
ao mais generoso peito, contudo não se receia aquela a cortando por meio a Florença, vem ameaçar a
quem não granjeou a culpa. E, pois, nossa vida em o Pisa, cujas águas já corriam toldadas, porque a
juízo de alguns fica sentenciada por má, tratemos de gente circunvizinha as passava, não para celebrar
perdoar a quem nos condena, para que no Tribunal de as festas de Alfeu, senão para se achar presente a
Deus fique nossa morte julgada por boa, que o perdão uma tragédia das mais lastimosas que se tinham
das ofensas recebidas será em o Céu procurador de visto na vida. E chegando o dia em que
nossas almas. Só o que levo desta vida de maior Aquilante havia executar a injustiça, pela qual
sentimento é ver que a prenda de nosso amor fica merecia o castigo de Ladislau, mandou tirar das
perdendo o que a ventura lhe tinha granjeado, pois torres aos dous inocentes, não lhes consentindo
também se executa nele a tirania de Aquilante. Bem mais companhia que uma de seus soldados; e
quisera ter-vos presente a meus olhos, para que os desta maneira foram levados cada um por sua
vossos dessem claridade a este aposento triste e vissem parte ao teatro, aonde chegaram antes que a mãe
as lágrimas que derramo em secreto, pois me não é das Fúrias o cobrisse com seu escuro manto,
lícito chorar em público; mas que muito que tudo me ainda que já a irmã ameaçava o vizinho rio.
falte na vida quando me fugiu a ventura, muitas A este tempo entrou em o teatro um homem
cousas me ficam na alma, que não quis nesta tirar a bem apessoado, vestido em hábito de penitente,
público porque vos não dobrassem o sentimento, porque ao qual deram lugar os circunstantes porque jul-
receio que este nos não deixe despedir em o teatro garam vinha acompanhar Arnaldo em sua morte.
aonde havemos de representar a última tragédia dos E posto em sua presença, ainda que a inteireza
infortúnios que padecemos na vida, ornados com as de seu ânimo em o juízo de muitos o fazia não
vestiduras da morte. Recebei esta por última despedi- parecer quem era, contudo, como Arnaldo sabia
da, se acaso não partirmos ambos a um mesmo tempo ser próprio de um prudente não fazer em públi-
do miserável vale deste mundo. co extremos de sentimento, conheceu que era
Não fez o verdadeiro sonho da desgraça de Júlio seu amigo Flamiano, ao qual, havia tempo, tinha
maior operação em o peito de sua esposa do avisado de sua ventura, e do Estado que possuía;
que causou de sentimento esta carta ao coração e como homem que já desprezara o mundo, não
de Florinda. E ainda que não foi poderoso a lhe o quis ver em a bonança, e vinha acompanhá-lo
fazer usar da descompostura dos orientais anti- em o trabalho, lanço de um amigo verdadeiro. E
gos, sendo este o maior de seus infortúnios, con- enquanto o sentimento tirava de seu coração
tudo, ajudado da triste nova que lhe dava palavras que pudessem dar força a Arnaldo para
Arnaldo que também participava deles o ino- que, naquela hora, se armassem de paciência, su-
cente filho, cobrou tanta força que a fez sujeitar cedia o mesmo a Florinda, já em o teatro, com
as suas a um acidente tão grande que de todos uma peregrina, a qual, como não devia à natureza
foi julgada por morta. E ainda que alguns remé- peito tão animoso que desse lugar ao sofrimento,
dios a livraram dele, não foram bastantes a dar- com os braços lançados a seus ombros derramava
-lhe ânimo para responder a Arnaldo, ainda que tantas lágrimas e rompia os ares com tantos
lhe sobejava para sustentar na morte a principal suspiros, que julgaram todos a mandava a com-

66
padecida Deusa, em lugar da Cerva de Ifigénia, a seguridade dos bens do mundo, e como na
ou que a obrigava algum parentesco, como a maior força de seu descanso se deve viver com
Justurna. receio. Agora sabereis como todas suas alegrias
Bem é verdade que Flamiano era deste parecer são fingidas, suas esperanças vãs, suas desgraças
mais combatido, porque o ajudava a lembrança contínuas, e suas tristezas certas; e alcançareis de
do excessivo amor que sempre Arnaldo tivera a todo como dá as glórias a desejos e as penas sem
Florinda, o qual lhe causava a morte, e ainda que medida, pois as que agora padeço, além de ex-
não com a enfermidade de Orestes, julgava ser cessivas, são verdadeiras, e seu bem durou pouco
Rosaida que o vinha livrar, qual a irmã compa- porque era fingido. E porque eu o não fui para
decida. Porém, tudo eram juízos que em tal convosco, em razão de amigo, pois nestes pou-
tempo costumam causar os desejos dos que, em cos anos que a ventura me sustentou no Estado
vida, se prezaram de bons amigos, porque logo em que me tinha posto, sempre me achastes
se soube que era Artémia aquela particular amiga verdadeiro, agora vos peço que o sejais em a
de Florinda, casada com o irmão de Gemilícia, minha morte, para que ajudeis com vossa lem-
como se disse em a primeira parte, a qual, sa- brança minha inocência, e possa acudir por mi-
bendo de sua desgraça, em hábito de peregrina nha alma diante do Tribunal Divino, aonde se
viera acompanhá-la na morte e, sendo possível, toma conta do mínimo pecado. E porque tenho
oferecer a vida por salvar a sua. Pouco reconhe- cometido muitos, receio este rigoroso transe,
cimento mostrou Florinda a esta vontade, não pois é certo que sempre teme a morte quem
porque a sua estivesse longe do que devia, senão aproveitou pouco na vida. É verdade que me dá
porque estava divertida com a vista de Arnaldo, ânimo o ver que morro sem ser culpado, que é
de quem não tirava os olhos, se não era para grande alívio não temer culpa em adversidade, e
buscar com eles a Constâncio, que assim se cha- descanso a um triste o ser castigado sem o haver
mava seu querido filho, que não sabia como já a merecido. E, pois, os amigos me não podem já
este tempo estava posto em guarda, para cum- livrar desta morte a que estou oferecido, peço-
prir a sentença. E porque o não viam em o -lhes se não livrem de ter cuidado de um filho
teatro, pagavam com lágrimas o sentimento. E que deixo no mundo, pois lho mereço na boa
vendo Arnaldo o muito que todos mostravam vontade que sempre lhes tive, que não é possível
com o que viam, pois tinham alcançado que lhe em todo se execute nele a sentença de Aquilante.
tiravam a vida, como a Andrógeo, para que os Ficai-vos a Deus, que eu me parto desta vida
divertisse com a certeza do claro desengano do recebendo de vossos olhos o alívio de meus tra-
mundo, levantando a voz em alto, falou a todos balhos, que se é grande dor para o coração lasti-
em este modo: mado ver que muitos se alegram com suas dores,
– Amigos e vassalos meus, não merecidos por é grande alívio para o que padece penas ver que
natureza, mas granjeados de minha ventura: se tem amigos que se compadecem delas.
ainda não tendes experimentado a pouca firme- Aqui chegava Arnaldo com sua prática quando
za das glórias desta vida, agora vereis em nós veio recado de Aquilante, que estava em uma
quão sujeitas estão aos contrastes da fortuna, janela vizinha, vendo o que passava, que se exe-
pois hoje as põe por terra o tiro da inveja que se cutasse a sentença, antes que fosse noite. E por-
forjou em a frágua do abrasado peito de que o verdugo o tinha já dado a Arnaldo a cos-
Aquilante, por quem fomos condenados à dura tumada desculpa, sem poder despedir-se de sua
morte. Agora vereis como não tem fundamento amada Florinda mais que com os olhos e alguns

67
secretos suspiros, reclinado em o duro cepo, qual Flamiano se tornou a continuar sua vida peni-
outro Fábio, ofereceu a cabeça ao agudo ferro, o tente, não se esquecendo de ser amigo, ainda
qual por não estar untado com o licor no sacri- depois da morte, em a qual vida acabou com
fício antigo, senão forjado pelos homens de um muita fama de virtude. Artémia tornou para a
só olho, com brevidade fez órfãos aos frios terra donde vivia, não se esquecendo nunca da
membros, e causou novas lágrimas aos olhos de alma de sua amiga, que nesta lembrança se reco-
todos. nhece a amizade verdadeira.
Logo se levantou grande rumor em os circuns- Os grandes da cidade tomaram à sua conta o
tantes, e entre eles vozes que rompiam os ares, e cuidado que Evandro teve do inocente Argos,
se fizeram tantos extremos de sentimento que dando sepultura ao corpo de Arnaldo, junto da
tiveram força para mover o duro peito de qual puseram a sua esposa Florinda, pois havia
Aquilante, mormente quando ouviu que as tes- mais forçosas razões que entre Aquiles e
temunhas confessavam a grandes vozes que era Policena, em cujas sepulturas se não fizeram os
falso o que tinham jurado, e que estavam prestes aniversários que costumavam as aves sobre o se-
para receber a morte com o inocente Duque, pulcro do filho da Aurora, senão as cerimónias
ainda que, no juízo de alguns, fora isto traça de santas que tem a Igreja determinado para as almas.
Aquilante porque logo mandou se não executas- E este é o fim que tiveram estes dous amantes
se a sentença de Florinda. Porém, se assim foi, tão firmes. Estes foram seus trágicos infortúnios.
aproveitou-lhe pouco, porque depois que che- Nisto vieram a parar tantos dons da natureza.
gou o recado e lhe quiseram dar a nova, viram Este foi o prémio que teve o desordenado amor
que estava trespassada de um acidente em os da mocidade. E se eles foram firmes às glórias da
braços de sua amiga Artémia, o qual lhe serviu vida, não tiveram firmeza. Esta verdade nos está
de verdugo, e a ela de agudo ferro o grande ensinando que tragamos sempre em a memória
sentimento que recebeu quando viu morto a escritas estas palavras:
seu querido Arnaldo. E esquecida Proserpina de Para que são glórias nem honras da vida, se mais
compor seus dourados cabelos, teve cuidado perde quem mais alcança?
Láquesis de cortar o fio de sua vida, e sua alma
FINIS LAUS DEO
de partir do mar deste mundo, em a nau de sua
inocência, para a pátria da bem aventurança. E
porque nela está certo o prémio de toda a virtu-
de, de crer é que lhe seria bem paga a firmeza
O Desgraciado Amante Peralvilho
que mostrou em resistir sempre ao desordenado
NOVELA QUINTA
amor de Aquilante.
E deixado o grande sentimento que receberam
INTITULADA
estes dous particulares amigos, que se acharam
presentes à sua morte, e o grande pranto que se
O desgraciado amante
fez em toda a cidade, é de saber como Aquilante,
conhecido do mal que fizera, e mui sentido da
Não muito distante daquela antiga Cidade, cuja
morte de Florinda, se partiu logo com sua gente
conquista tanto custara ao valeroso Muça, no
para Nápoles, deixando primeiro toda a honra e
tempo que lhe dera entrada com grande exército
estado que Arnaldo possuíra a seu filho Cons-
Sarraceno um Conde vingativo, por haver sentido
tâncio, do qual tomou posse, sendo de mais idade.

68
muito a ofensa que o derradeiro Rei Godo fizera mantieiro DelRei Dom Manuel, ao qual man-
a cousa tanto sua (Mérida digo, a quem a contí- dando ele que em certo dia lhe desse a comer
nua assistência das armas engrandeceu tanto, que cousa que não tivesse sangue, lançou a mão à
por dilatados tempos fez com que fosse tida por espada de um fidalgo que estava presente, dizen-
universal cabeça de toda Lusitânia), estava certo do: «Desta pode vossa Alteza comer, que nem
lugar pequeno onde vivia um senhor grande já tem sangue nem o tirou nunca»; assi a deste
de muitos anos, e se bem os mais deles tinha soldado, ainda que velha, virgem parecia. E com
gastado nas guerras, os últimos que devia passar tudo isto não faltou nos pontos de cortesão, e
passando as contas, e fazendo consigo conta, en- quando o quis parecer não deixaram os circuns-
tretinha-os com recreações. Parecendo nisto tantes de atentar que em as meias eram os pontos
quasi semelhante ao Rei gentio a quem disse- muitos, e nos sapatos mui poucos, mas trazia-os
ram os oráculos que tinha só dez anos de vida, e calçados, que o sapato roto ou são melhor é no
pera os acrecentar, privou-se totalmente de dor- pé, que na mão. E ainda que no recebimento
mir, e pera fazer das noites dias, passava-as em que lhe fizeram não podia dizer: mangas comei
contínuas festas. As de que mais gostava este fi- aqui, que por vós honram a mim: pois as trazia
dalgo eram mandar em as tardes da primavera, tão perdidas que era impossível serem achadas,
por serem mais aprazíveis, chamar todas as nem por isso se podia entender por ele o velho
aldeanas, e seus amantes, e alguns homens rifão que diz: dai-lhe vestido, dar-vo-lo-ei garri-
antíguos, e despois que sabia de uns os sucessos do: porque o era na presença, ainda que não em
de seus amores, e de outros várias antiguidades, a pessoa, por ser pequeno de corpo e com algu~ as
com balhos e outros desenfados lhe faziam pare- costuras no rosto, mas não o afeavam muito. E
cer o dia mais pequeno, que as cousas que ser- logo se viu que gastava bom humor, porque di-
vem de lisonjear o gosto fazem não sentir o zendo-lhe o fidalgo se mandava algu~ a cousa de
tempo. seu serviço, respondeu:
Sucedeu pois que estando ele com a costumada – Pelos que hei feito me deram em satisfação
companhia à sombra de uns álemos em um lu- estes golpes que tenho na cara, e por mais que
gar fresco cercado de mansas murtas e ornado os mande a outrem são tão maus de desapegar,
com muitas flores cheirosas, chegar um mance- que não querem obedecer.
bo que no modo parecia soldado, o qual quando Muito gostou o fidalgo de o ouvir e logo tor-
quisesse negar o título que sempre traz anexo, nou dizendo:
lhe poria embargos o vestido, pois era tal, que – Não é isso o que eu pergunto, senão se vos
ainda que em seu princípio fosse negro, já podia posso fazer algum serviço.
ser forro. As mangas trazia tão perdidas, que em – Se eu tivera experiência – acudiu ele – do
as buscar eram as diligências escusadas. A gual- poderio de vossa senhoria, como a tenho de
teira, como se não costumavam as de dous bicos, minha desgraça, pudera responder em forma
que parece não havia ainda homens de dous que dera matéria pera esperar mercês e não per-
rostos, trazia um só, mas ficava, como muitos, mitir serviços; mas como só o efeito é o que
sem fundamento, pois estava descosido. A camisa pode dar a conhecer o que na causa não mereço
vinha-se rindo do verão e por muitos olhos alcançar, quero-me retrair que sei será meio pera
chorando o inverno. A espada não trazia morta- ser entendido.
~
lha nem sinal de ter morte algu a, antes cuido se – Não o pareceis vós pouco. – disse o fidalgo –
podia dizer dela o que de outra encareceu um Ora tudo terá remédio despois que nos contardes

69
os sucessos de vossa vida, já que temos agora o foge da sertã e dá em as brasas, porque lá foi ela,
tempo de nosso. pois lhe correu tal fortuna, que a obrigaram a
– São eles tantos e tão vários – respondeu o fazer u~ a viagem comprida e por muitos anos,
mancebo – que receio tomem muito dele pelo onde despois fizeram fim os que tinha; e antes
acharem perdido, porque não é este que vejo o que se partisse, deixou feitos uns apontamentos
mais bem gastado, e nem por isso mais proveitoso. pera descargo de sua consciência que lhe foram
Mas pois vossa senhoria manda e eu sempre de pouca importância, porque a tinha mui rela-
ouvi dizer: do fueres haz como vieres, e com xada. Tive duas irmãs mais velhas que eu, u~ a tão
qual te achares, tal te afaze, e não parece ser modesta, como outra atrevida. E contara eu o
discreto o que se quer muito rogado; quero que lhes sucedeu a ambas com brevidade antes
obedecer que talvez é disposição pera granjear. que desse princípio a meus sucessos, se entendera
E tomada licença assentou-se sobre a verde erva que não enfadaria.
e prestando todos atenção, começou desta ma- – Até nisso mostrais ser discreto, – disse então o
neira. fidalgo [...]
Em Córdova, Cidade bem conhecida no mundo – Dizei agora a vossa ama que vos cure ou man-
pelos singulares engenhos que lhe tem dado, de chamar o outro amante que vo-las tire, e que
naci. Meus pais eram de bom sangue, porque de Leôncio não trate nem lhe saiba o nome, que
em certa dissensão que houve entre eles um dia, não é amigo de se assentar na bandeira onde
remetendo o feito às unhas, houve algu~ a efusão, está outro alistado.
e vi que um e outro era vermelho. O meu, nome Fui-me eu retirando mais que de passo e lancei-
próprio é Peralvilho e o que me deu fortuna: O -me a casa de Urbino, a ver se o achava urbano
amante desgraciado. Meu pai se chamava e tomava à sua conta o pedi-la ao outro do mal
Janestrigado, e melhor fora Janestirado, porque que me fizera, encarecendo-lhe que polo ver a
como o seu ofício era ser aguadeiro, veio de ele mais valido com Anfrisa me sucedera aquela
saber a esgotar fontes, a querer vaziar bolsas, e desgraça, senão quando me achei em outra, de
naceo-lhe daqui o tirarem-lhe a alma do corpo, sorte que se me perguntaram: «Como te vai
por baraço, como caldeirão do poço, e deixa- Amador?», respondera: «Cada vez peor!»; porque
rem-no mais comprido; suposto que os minis- a reposta que deu foi mais conforme ao que eu
tros de justiça tiveram primeiro com ele seus merecia do que à vingança que eu desejava, pois
comprimentos, que enfim sabem tê-los e aceitá- se lançou a mim, dizendo:
-los, mandando-lhe correr os passos com certa – Já que me forrastes esse trabalho que vos an-
cerimónia sem ser quaresma e pôr um selo sem dava buscando, pôr-vos-ei outras sobre essas, e
ir à Alfândega. Minha mãe tinha por nome desta maneira ficarão mais reparadas & vós ensi-
Marianes, e melhor lhe estivera Mariaragnes, nado pera que não jogueis com outrem dados
pois era tecedeira, e tão piedosa, que de suas falsos que arriscam a grandes perigos.
entranhas tirava as meadas com que ordia, e E dizendo e fazendo deu-me logo u~ a e boa, da
ordindo u~ as e tecendo outras, veio a ter certas qual caí a seus pés, e assentando-mos em cima
contendas que lhe caíram nas costas, sem haver do corpo pisava de tal sorte, que disse eu:
respeito a ter-lhas meu pai bem corridas. E tão – Oh, fidaputa, que lagareiro se aqui perde!
corrida se sentiu que logo se ausentou pera a E vendo-me tão pisado lancei a lastimosa voz,
corte, cuidando que dava algum corte com esta dizendo:
ausência à sua desgraça; mas foi como o que – Senhor Urbino, já que se não lembrou de

70
mim naquele tempo por ser de figos, não terá casa, pus os pés em polvorosa, e daí a poucos
agora deste pobre algu~ a lástima, que segundo dias me achei em Carmona.
experimenta nestas pisadas parece que estamos E como a diligência é mãe da boa ventura, fiz
já em o das uvas. toda a que pude pera ver se dela me nacia algu~ a
– Não é previsto – respondeu ele – o que se que fosse melhor que a passada. E estando eu
lembra do remédio despois que tem recebido o uma manhã de festa à porta da Igreja maior
dano; agora haveis de levar estas, e não rogueis a embuçado com a minha baetinha, senão quando
Deus por outras, e dizei a Anfrisa que seja mais vi que se chegava a mim um escudeiro, o qual
cortesã outro dia do que se mostrou comigo não sei que viu em minha pessoa que logo me
aquela noite e que não espere ser querida quem perguntou se queria amo.
é tão pouco primorosa. – Se ele for – lhe respondi eu – tão autorizado
Levantei-me eu o melhor que pude, e cosendo a como sua mercê me parece, pode ser que o
boca por que me não granjeasse outra estafa, aceite, que entendo nunca me poderá ir mal
fui-me a casa, presentei-me aos olhos de minha com pessoa tão grave. Mas eu, senhor, ainda que
ama, dizendo: sou algum tanto leve, tenho uns contrapesos que
– Tal qual eu venho é o recado que trago. não sei se darão a vossa mercê algum pesar, e
Então lhe relatei assi o que os amantes haviam não quisera que despois dissesse por mim: mau
dito, como o que me tinham feito: sentiu ela o marido e mau criado, melhor é perdido que
primeiro e eu padeci o segundo, e ficou tão achado: ainda que não há peso que carregue
magoada de não ser já nem de um nem de muito, se por vontade é recebido.
outro querida, que me lançou toda a culpa, – Proponde tudo – disse ele – que a gente fa-
como eu fazia a Costança, ainda que com mais lando se entende.
razão do que eu costumava. – Pois assi é, – tornei eu – saberá vossa mercê
Veio meu amo e tornei a fazer o mesmo, porque que tenho u~ as fraquezas de estômago, e se não
perguntando-me quem me ferira, respondi que como a suas horas devidas aquele dia não ando
aquilo me nacera de certos brincos que tivera em mi, e por este respeito como de ordinário o
com Costança. E vendo ela que eu era mais pão torrado, porque me enxuga o estômago.
amigo de lançar culpas próprias do que aliviar Outra cousa tenho, que sou mais amigo de bar-
penas alheias, rematou em breve suas contas, e riga farta, que de barba untada, e de melhor
propôs ao Cura as ruins que eu dava das ofertas, mente me inclino a sabores que a olores. De
e outras cousas que sofria por não haver guerra outras habilidades não trato, que elas se irão al-
em casa. Acudiu a boa da sobrinha muito irada a cançando com o tempo; se desta maneira sirvo,
confirmar tudo, e vendo meu amo que duas aqui me tem vossa mercê vestido e calçado, que
testemunhas contestes me acusavam, sendo as não é tão pouco.
próprias que dantes me escusavam, rematou o – Si, filho, – disse ele então – eu fico de vos ter
feito e condenou-me a bordoadas. Eu como não muito mimoso, e se comer um ovo a metade
tinha costas pera levar tantas, retirei-me e disse será vosso, e comereis sempre às horas costumadas,
quanto pude, não me ficando no tinteiro o su- que são pelas onze do dia, e sereis preferido a
cesso da noite. Tanto que ele ouviu isto, começou outro que tenho em casa, que nela não há mais
de fazer em casa tão grande espalhafato, que tive pessoa algu~ a: mas também deveis saber que lhe
por bom acordo tomar um que ele me tinha não há-de faltar peso, conta e medida, que sem
dado com u~ a capinha de baeta, e safando-me de estas cousas não pode haver bom governo, & se

71
assi fordes servido, eu vos prometo que tenha de nova, que alguns há que trazem cinco e seis
vós grande cuidado e nenhu~ a cousa deiteis em apelidos todos arreata; mas haver em sua mercê
saco roto. este descuido me dá grande cuidado, porque
– Eu estou por tudo. – acudi eu então, e logo não sei se quer ser como o outro senhor a quem
sem procurar fiança, deu comigo em a pousada. um amigo pediu emprestado um pouco de di-
Entrei dentro, lancei os olhos a registrar a casa e nheiro, dando-lhe ele em um taleigo, e saindo-
achei que se meu novo amo dissera em lugar de -se logo, tornou-o a chamar dizendo: «Tornai-o
pessoa cousa, que fora a maior verdade que se a pôr aí, que quem o não quis contar não faz
podia dizer, porque nela não havia que olhar. E conta de o trazer». Assi digo eu, quem não per-
entendi que já tivera algu~ a ama, que por este gunta como me chamo parece que faz conta de
respeito a não admitira o amo passado, que parece me não ter muito tempo em sua casa.
queria antes a casa com menos limpeza. Mas em – Não naceo isso – respondeu ele – desse res-
poucos dias vim a saber que quem tinha mais peito, senão de meu descuido; mas agora me
letras que ama era a que de tudo lhe servia. dize que nome é o teu?
Calei-me eu e não me dei por achado do que Então soube de mim como me chamava Peral-
não achava; veio o outro moço de fora mais vilho.
pequeno que eu, pois já a este tempo corria aos Sucedeu mais que estando ele u~ a noite ceando
dezasseis, festejámo-nos como novos compa- um só ovo, que era homem parco e muito
nheiros. Daí a dous dias tendo já tomado fé na regrado, que não podia ser menos pera alcançar
confiança, disse a meu amo: ao mais, eis senão quando vi que o dito ovo ia já
– Senhor, tenho notado que não há nesta casa o em meio e que se descuidava, lancei mão do
que sua mercê disse da conta, peso e medida. restante, e tirando-lho das suas, tirei com ele às
Porque eu naquele cabide vejo pendurada a ilhargas e fiquei tão enxuto como pó em Agosto.
capa, chapéu, volta, espelho, espada, daga, esco- Levantou-se ele agastado desonrando-me de pa-
vas, e bigodeiras somente, e não vejo nenhu~ as lavra, e parecendo-me que queria vir à obra, lhe
contas. Na casa não vejo balanças, nem pesos, disse:
nem ainda cousa de peso. Nos cantos dela não – Tenha mão, senhor! Não está vossa mercê lem-
vejo nenhu~ a vara de medir, nem côvado, nem brado que no concerto que fez comigo me pro-
cousa pera que possam servir, se também o mais meteu que se comesse um ovo a metade seria
há-de faltar, isto queria saber. minha? Pois se eu acertei de não ser tão esque-
Pôs ele em mim os olhos, dizendo primeiro cido, em que me dá por culpado? De mais que
consigo: «Bom moço tenho que é simples»; e não são tantos os sobejos em esta casa que me
falando mais alto continuou: façam descuidar do que me pertencia.
– Tempo tens ainda pera ver tudo, que agora é Tomou ele isto por graça, e continuando a ceia,
cedo. disse:
Ao dia seguinte tornei outra vez e disse-lhe: – Sobejos! Não são tão poucos como os vós
– Senhor amo, que razão há pera que vossa mer- fazeis, mas como esse vosso estômago não quer
cê me não tenha perguntado como me chamo? senão pão torrado, tudo vos parece pouco.
Eu já fiz esta diligência e soube de meu compa- – Assi é, – respondi eu – porque pão torrado
nheiro, que de vossa mercê não era cortesia, não farta muchacho, e se o farta, mal pelo saco.
como o seu nome é Dom Diogo de Mendonça, Passada esta, daí a poucos dias mandou ele que
e não passar daqui sendo de Espanha é cousa lhe tivéssemos o jantar preparado a tempo devido;

72
fizemos o que nos ordenara com esse pouco ou mais me inclinava a sabores, que a olores. A olha
muito que havia. Deram nove e deram as dez, e cheirava bem, e como a tresladei à barriga, tenha
meu amo não vinha: estávamos em vigia à janela, paciência a barba.
e ele não chegava. Deram as onze, e vendo eu – E quem te moveu a tanto atrevimento? –
que eram as horas costumadas e não havia nova perguntou ele já indignado.
de sua mercea, em voz alta e inteligível como – Diga-me vossa mercê, – respondi eu – quanto
em audiência pública, disse: há que passaram a hora costumada ou as horas
– Meu amo, ou alguém por ele! devidas que entraram no concerto? Em verdade
E como não pareceu, nem cousa que o valesse, que nunca vi amo tão desmemoriado!
assi à revelia dei com o jantar na pança, porque – Pois pera que punhas a mesa se não havia que
o companheiro deu em escrupuloso. Compus a pôr nela? – tornou ele.
louça, consertei a casa e lavei as mãos, e não – Porque cuidei – disse eu – que esse senhor
daquele feito, porque se acaso em algum tempo trazia algu~ a cousa.
houvesse outro. Acabado isto soou o meio dia, Então se levantou ele de todo, dizendo:
senão quando sentimos que subia pela escada – Ora já que sois tão lembrado, também me a
trazendo consigo outra pessoa. Tiraram as capas mim lembra que vos disse eu que havíeis de ser
e disse que pusesse logo a mesa. Fiz eu o que preferido ao outro e será agora em o castigo.
mandava e parei-me quedo em pé. Tornou ele – Esse tanto não, – respondi eu – que eu terei
logo, dizendo: cuidado, mas será de me pôr em cobro.
– Ora traze o jantar, filho, e venha muito limpo, A este tempo começou o hóspede a queixar-se
que temos hóspede honrado que lhe fiz ofereci- dele, e disse que a um homem de sua calidade
mento. não se fazia agravo semelhante, e que era sem
– Quê? – respondi eu – e quem mandou vossa dúvida algu~ a tramóia que lhe tinha ordenada.
mercê oferecer o jantar limpo, quando eu já o Virou-se meu amo a dar-lhe satisfações, e tive
tenho alimpado? mais lugar pera me sair; e não soube o que mais
– Bem sei que estás zombando. – tornou ele, e passaram, mas eu vou contando o que passei.
falando com o hóspede, disse: – Este meu moço Desejava eu muito de entrar em casa da ama,
gasta bom humor e por isso não estranhe vossa por lhe não chamar amiga, aonde ainda me não
mercê. tinha mandado, e isto por certo respeito que me
– Se gastara o bom – acudi eu – ficara-me o trazia o pensamento inquieto. Pareceu-me boa
mau no corpo e fora sempre enfermo, cousa esta ocasião, e pelos sinais que me tinha dado o
que me não estava muito a conto. outro moço, num santiamém dou lá comigo.
– Ora acaba já, – disse ele – deixa o zombar Perguntou-me ela se era eu Peralvilho.
pera outro dia e traze cá essa pobreza! – Este sou, – respondi então – que nunca fora,
– Ainda a vossa mercê quer maior – tornei eu – pois tenho a fortuna por inimiga.
que essa que está experimentando e mais esse – Pesa-me muito – tornou a ama – de terdes
fidalgo? O que tenho dito é o certo e não estou contrária tão poderosa, mas tudo se vence com a
zombando. prudência. E sinto a primeira vez que entrais
– Se assi fora, não havias de mostrar algum sinal nesta casa ser com tão pouco gosto como estou
exterior? – tornou ele. notando.
– Não, – acudi eu – porque já disse que era mais – Que gosto quer vossa mercê que eu tenha –
amigo de barriga farta, que de barba untada, e disse eu – se nosso amo me trata como menino

73
e não quer estar pelos concertos que temos sofrido a sua. Agora viemo-nos a desavir em
feito? Sendo assi que ele não sabe ainda quem presença de um fidalgo seu amigo, e com cuida-
tem em sua casa, nem eu direi quem sou salvo a do, e veja vossa mercê sobre quê? Só por dizer
vossa mercê dando-me palavra de guardar segre- ele que o jantar fosse limpo e eu que estava
do, porque me vai nisto muito. alimpado, como se houvera grande diferença de
Tanto que se lhe representou cousa de novidade, u~ a cousa a outra, sendo assi que não há mais de
fez-me logo assentar com muitas carícias assegu- limpo a alimpado que duas sílabas, e só por elas
rando que tudo saberia guardar quanto eu lhe me queria dar pancadas. E mostrou-se ele tão
quisesse dizer. desarrezoado que até o hóspede lho estranhou
Pois assi é, – tornei eu – saberá vossa mercê muito e eu não o sentindo pouco me vim valer
como sou natural de Sevilha, filho de um ho- desta casa, até achar outra onde esteja ou me vá
mem muito nobre e muito rico, qual está nas a algum destes lugares mais vizinhos onde possa
Índias de Castela haverá quatro anos e espero viver encoberto, confiado que não sairá nunca
que venha daqui a menos de dous mui poderoso de vossa mercê este segredo.
em riquezas, porque além de sua agência teve lá Tanto que ela ouviu esta narração, de tal manei-
certa herança e está hoje possuindo muitos mil ra se lhe meteu nos cascos a mentira que lhe
cruzados? Não tem ele outro filho mais que a tinha proposto, como se fora a maior verdade do
mim, e porque já não tinha mãe com quem mundo. Logo me levou nos braços, dizendo:
pudesse ficar, deixou-me em casa de um meu – Isso não consentirei eu, porque quando o se-
tio irmão seu: e ainda que me tratava no exterior nhor Dom Diogo não tiver respeito ao que
como quem eu era e conforme meu pai man- estais merecendo, aqui está esta casa onde sereis
dava, contudo entendi sempre dele que lhe não tratado como filho.
pesaria com minha morte respeito deste negro Ouvindo eu isto não sei como pude dissimular
interesse, e porque este cega às vezes de modo a o gosto que recebi, por ver que já minha ordi-
um cobiçoso que lhe perturba o juízo, e o faz dura dava esperança de ser a teia como eu dese-
executar o que nem se devia presumir, não quis java, que era de me embaraçar com u~ a meada
eu viver à mercê da amarra, nem trazer minha sua, que pela outra ametade diziam ser Men-
vida tão duvidosa, e assi tratei de me pôr em donça. E falando mais claro, era meu intento ver
cobro e andar por aqui ao pairo. E deixando se podia conseguir um amor de u~ a filha que
meus vestidos, que os tinha muito ricos, saí-me tinha, a quem davam por pai o senhor meu amo,
disfarçado, tomando o nome de Peralvilho, que sem embargo que quando naceo era casada a
o meu próprio é Hiacinto, fazendo conta de boa da ama com um homem ordinário, e não
buscar algum amo com quem passasse até à vin- único, que tal vai o tempo, cuja fermosura era
da de meu pai aqui por algu~ a destas terras muito encarecida. E logo experimentei que des-
circunvizinhas. mentia a mesma fama, porque entre os regalos
E como esta de Carmona é tão nomeada pelos que a mãe me fez, que foram muitos, este tive
celebrados canos que levam tanta água ao real pelo maior; o mandá-la vir à minha presença,
tanque de Sevilha, a ela me lancei primeiro: e em a qual pondo com dissimulação os olhos, e
vendo-me meu amo um dia de festa, ele se veio com u~ a gravidade fingida, vi que tinha o rosto
a mim, que eu não o busquei a ele, viemos a tão fermoso e tão corado, que me pareceu ser
concerto, e houve de u~ a e outra parte algu~ as pouco o que diziam, e logo disse comigo: «To-
condições, e eu tenho-lhe guardado as suas e mara eu razer aqui meu tabernáculo»; e tinha ela

74
a quem sair, porque sempre ouvi dizer: de bom receio de ser conhecido, pois já havia mais de
madeiro, boa acha; e o Dom Diogo era gentil- seis anos que dela se ausentara; e porque lhe
homem e a mãe muito bem parecida. pareceu que a fortuna a quem tinha por inimiga
Festejou-me a fermosa Luísa, que assi se chamava não teria tanto império no mar, como tivera na
a moça, como Peralvilho verdadeiro e não como terra, e se nela havia sido amante desgraciado
Hiacinto fingido, porque ainda a mãe não poderia ser nele navegante venturoso, embar-
enfermara de vómito que havia pouco tempo cou-se pera as Índias de Castela; e como é certo
que concebera o segredo que lhe encomendara, que quem gasta mal o tempo, o mesmo tempo
mas despois que o não pôde sustentar por não lhe vem a servir de castigo, e a fortuna quando
dizer com sua natureza, que era o que eu mais persegue, em nenhuma parte desiste, como ele
desejava, logo a experimentei tanto outra, que tinha gastado tão mal os anos de sua vida, e a
dei por verdadeiro aquele dito: tanto tienes, tanto fortuna o havia tomado à sua conta, dizem que
vales; [...] despois de alguns dias de sua partida, lhe sobre-
Tudo isto confirmaram as aldeanas, e algu~ as lhe viera um temporal tão grande, que fora dar o
pediram que pois tinha tantas habilidades e fora navio à costa de u~ a Ilha, e não se sabe em certo
já comedeante, fizesse algu~ a pera que se acabasse se escapou com vida. Se neste naufrágio o favo-
o dia com maior festa. Disse o fidalgo que folga- receu a ventura, e não emendando a passada,
ria muito. Peralvilho, sem fazer mais detença, tornar a fazer das suas, publique-as o que for
pondo de parte a capa e a espadinha, tomando delas informado, se levar gosto, que eu me des-
um instrumento, saiu ao terreiro e fez tantas pido com estas que tenho dito do nosso travesso
cabriolas e tão várias mudanças, que arriscou a Peralvilho e Amante desgraciado.
muitas das aldeanas a fazerem-nas em seus amo-
res. Acabou-se a festa e ficou o fidalgo tão afei-
çoado ao nosso Peralvilho, que o levou pera casa
onde o teve alguns dias regalado, dando-lhe um
bom vestido e o mais que lhe era necessário. E
pera o obrigar a fazer a assistência em sua casa,
tratou de o casar com u~ a criada dela e de lhes
dar dote com que vivessem honradamente. Sen-
tiu isto Peralvilho e logo disse consigo: «Isto é,
despois de esmechado, untar-lhe o casco! Estão
ainda as feridas muito frescas, não me tem ido
tão bem com elas que me convenha aceitar este
partido, não quero dizer despois, como o outro:
de aqueste dale, dale, yo me merezco el mal;
quieres ver lo que será, vé lo que fué; pelo passa-
do se julga o futuro. Alto, Peralvilho, fazer à vela,
que de hora em hora Deus melhora, de mais
que quien algo debe, no reposa como quiere».
E despois que fez este discurso ajuntou isso que
pôde, e uma noite se saiu de casa, e passados
alguns dias se achou outra vez em Sevilha, sem

75
João Nunes com grande parte, basta tua formosura e graça
para abater a fama de todas.
– Costume é, – tornou ele – de pastores de
Freire * tanta cortesia, como mostras na que usas comi-
go, fazerem mercês às damas de as sustentar na
opinião que elas desejam ter, mas suposto que
tuas palavras nasçam mais de tua cortesia que de
meu merecimento, eu te agradeço muito o gabo
Os Campos Elísios que me deste em que mostraste bem teu enge-
nho, dando eu tão pouca matéria a mercês tão
Jardim quarto (excerto) grandes, como conheço de mim. E se me dá
licença tua cortesia para pedir mercês, a hei-de
Escondida esteve Floricena enquanto o pastor tomar para te perguntar quem te trouxe a esta
estrangeiro cantava estes versos às vagarosas cor- terra, que me pareces estrangeiro nela e pessoa
rentes do Lima e depois que viu que acabava de com quem se não devem dissimular estas per-
cantar, se ia recolhendo pela praia a tempo que guntas, porque se guarde o respeito devido a teu
já o pastor, depois de cantar, tirando a vista do merecimento, representado em tuas partes.
rio onde a tinha posta e espalhando-a pela areia, – Por me aproveitar dos favores que nisso me
com os olhos encontrou a galharda Floricena fazes – respondeu o estrangeiro – te enfadarei
que com os seus agravados das passadas lágrimas, com a história de minha vida, se me quiseres
ficava com tal suavidade neles que acrescenta- ouvir, ainda que larga.
vam muito a sua formosura e depois que a viu, E estimando a pastora querer ele dar-lhe conta
se alevantou donde estava e com a devida corte- de quem era, se assentou em uma pequena relva
sia a damas e respeito que pedia uma formosura que estava na praia e o pastor, assentado no pe-
tão grande, quando obriga à alma e aos olhos à nedo onde cantara, começou desta maneira.
sujeição de seu império, a começou de deter – Em as praias do caudaloso Douro, tão conhe-
com estas razões: cido pelas crescentes abundantíssimas de suas
– Até agora tive por fabulosos os poetas quando, águas, nasci de uma formosa pastora que no seu
encarecendo a excelência dos rios, nas praias de- tempo era a glória do campo e a recreação dos
les pintavam muitas ninfas, metendo todo o res- vales, a quem amor casou com um aldeano das
to em encarecer sua formosura. Porém, hoje não mesmas ribeiras, benquisto de todos pela afabili-
tenho por fábulas suas histórias neste particular, dade de sua condição. Alguns anos, ainda que
mas antes sigo sua opinião e sendo isto assim poucos, viveram ambos em amorosa conformi-
testemunharei do Lima que é senhor das mais dade, até que a morte arrecadou deles o seu
perfeitas e formosas Ninfas que se podem achar ordinário e devido tributo, ficando eu só com o
nas praias de todos os outros rios do mundo, se cuidado da cabana e do rebanho, de tão pouca
elas têm em si tanta gentileza como vejo no teu idade que o Amor se desprezava de sujeitar mi-
formoso rosto e quando as outras te não imitem nha fraqueza, poupando suas forças para tempo
em que pudessem fazer melhor seu emprego.
Porém, vendo-me nesta ocasião já muito forte,
* Edição de 1626. Excerto in João Palma-Ferreira. Novelistas,
e Contistas Portugueses dos Séculos XVII e XVIII. Sel. João receou de cometer o desafio só e chamou em
Palma Ferreira. Lisboa: INCM, 1981, p. 175-77. sua companhia a formosura da discreta Anália,

76
pastora das mesmas ribeiras, que nestas deve ser favores e meteu em cabeça a meus parentes que
também conhecida por a excelência de suas per- seria eu bem afortunado se me casassem com
feições, pois as coisas grandes e notáveis, em uma pastora das mesmas ribeiras e da mesma
toda a parte há notícias delas. Com a vantagem aldeia onde eu nasci, por nome Gracia. E certo
destas armas e desta companhia rendi as minhas que era pastora de tantas perfeições que corres-
no desafio, ficando minha liberdade por despo- pondia bem o nome à muita que ela tem, trata-
jos da vitória nas mãos da pastora e a alma em ram-me deste casamento como alvitre grande,
poder de Amor, porque assim repartiram ambos pelo muito que nele podia ganhar um pastor
tudo o que me levaram, depois que neste desafio mais desobrigado. Porém eu me escusei com a
o perdi. Elas, com a posse dos bens de que fiquei pouca idade. [...]
nesta guerra despojado, ficaram tão isentos que
nem Amor me quis largar nunca a parte que lhe
coube, nem Anália minha liberdade, por mais
valias que meti para o resgate e restituição dela.
Tantos dias andei neste meu requerimento, por
cobrar as perdas dos bens de que me sentia des-
pojado que daí a pouco tempo, afeiçoado já
com a continuação a quem me pusera neste
estado, lhe vim a meter valias, pedindo que nun-
ca me largassem os bens que tinham em seu
poder, pelo gosto que já neste tempo tinha de
estarem meus bens melhor empregados em
meus vencedores do que em mim. Escolhi com
esta determinação entregar-lhe tudo o mais que
ficava (se fica alguma coisa a quem falta liberda-
de) por me parecer que já roubava a Anália
quanto tinha de meu, se tudo com vontade lhe
não entregasse. Ela, no princípio de sua vitória,
dava má vida à minha liberdade, tratando-a sem-
pre como senhora isenta, não se querendo servir
dela para mais a mortificar, tendo-a porém na
força de todas estas isenções sempre em sua
companhia, donde a continuação e meu sofri-
mento fizeram tanto com ela que se deu por
bem servida de minhas coisas e estimava já serem
elas suas.
Neste tempo de maior felicidade, em que já
com os rebanhos juntos, Anália e eu cantávamos
pelos montes e praias do formoso Douro as can-
tigas que cada um entendia que caíam mais a
propósito da firmeza que nos tínhamos prometi-
do um ao outro, virou a ventura os costumados

77
Diogo a vezes aparecem nela. Desta, que como avarenta
do temeroso azul escuro que sempre assombra
suas águas, por não obrigar-se, parece a se
Ferreira despenhar pedaços de cristal, se enovela globos
que atropelados uns de outros, em temerosos

de Figueiroa * remoinhos, se estão continuamente sepultando


em suas mesmas entranhas, se deriva o caudaloso
rio Mondego, tão perdido amante da galharda
ninfa Estela, ninfa do mesmo rio; que ainda hoje
desentranhando-se nas lágrimas que transforma-
das prata sobre areias de ouro fazem célebre sua
Desmaios de Maio em Sombras vagarosa corrente; chora a desgraça que para
do Mondego imortizá-la serra, lha treslada sempre aos olhos
convertidos nos longos de uma piçarra, assim
Primeira parte vizinho das estrelas que se afigura entre elas,
tecendo assim mesma coroas das próprias. Su-
Desmaio primeiro (excerto) posto que parte desta prodigiosa lagoa, não têm
contudo dela princípio os precipícios do namo-
Sobre o mais levantado das floridas espessuras rado Mondego, porque de muito saudoso da sua
que bem variadas librés, ondeando voltas, sobem desejada Estela, de céu triste a esconder-se nas
por montes vários a ser como naturais colunas sombrias concavidades de uma parte do mesmo
ao monte Hermínio (assim lhe chama César monte, contra o Norte donde murmurando sus-
quando na difícil conquista de seus naturais o piros, em veios de cristal puro rompa suas urnas
eterniza aluno dos mais belicosos, que de todo de alabasto, por entre viçosos tapetes de musgo,
nunca vencidos, conquistaram as legiões roma- avenca, douradinha, juncos e espadanas, precipi-
nas), entre o vistoso e aprazível de uma espaçosa tando-se de pedra em pedra, se a longes arméus
veiga, vulgarmente chamada dos Cântaros, sítio de crespa neve, nos sossegados remanços, desen-
em que a lisongeira mulher de Favónio se mos- ganos para os olhos que os figuravam passatem-
tra mais senhora, divertindo-se ali mesmo em po para as semideusas do rio, centro para os
singularizar os furtos que para cobiça das invejo- peixes e espelhos para os arvoredos que no som-
sas filhas de Acheloo, Clóris lhe anda continua- brio dos intricados ramos arvoram ao sol prag-
mente fazendo no tesouro de suas flores, senhora máticas para que com seus raios se lhe não atre-
de outras para admiração dos olhos e prodígio va. Em curvas voltas, talvez inveja das estrelas
da natureza. Em tanta altura, nasce uma profun- que a ele parece traduzidas, lisonjeiam-se enga-
díssima lagoa, filha sem dúvida do Oceano, se- nos aos olhos pelo que se persuadem fugitivas
gundo o que a tradição afirma das revoluções, nos diáfanos cristais. Passa o rio por muitas lé-
roncos e o que é mais, de quebrados pedaços de guas à vista da mesma serra da Estrela, até que
embarcações marítimas, enxárcias de navios que oprimido entre o aperto de diversos montes,
começa a sentir novas saudades de ausência que
tardam pouco em comutar-lhe excessos de alvo-
* In Novelistas e Contistas Portugueses dos Séculos XVII e
XVIII. Selecção João Palma-Ferreira. Lisboa: INCM, 1981, roço, no que se jacta príncipe dos mais regalados
p. 189-193. [Texto conforme a edição de Vila Viçosa, 1635.] filhos de Anfitrite, pela sempre igual frescura e

78
graça de suas margens. É, antes de excessiva, es- em bizarras ninfas, em outra parte, muitas aba-
cassa a exageração, sem dúvida, para os que de lançando sobre as do rio ondas de flores e rosas,
experiência conhecem notabilidades suas. Co- em dourados bergantins, mais suspendem can-
meçam-se estas, deixando atrás outras muitas, tando, que a suavidade do músico de Calíope,
desde a foz do claro rio Ceira, armando nelas atraindo em seu alcance os delfins não menos
aos olhos tantos labirintos que ao primeiro passo namorados que desejosos de entre elas lhe cair a
suspira o desejo por se perder para não desenre- sorte de um Arion para seus ombros; com tan-
dar-se de entre eles. São de uma e outra parte tos, se mal encarecidos extremos, já temendo da
perfis que puderam fazer menos maravilha aos famosa ponte os talha-mares em que se encrespam
famosos da belígera filha das pombas, as sucessi- globos cristalinos, chega o rio a banhar as apra-
vas quintas industriando muros de admiração no zíveis sombras das quintas da alegria, sinalando
espesso dos bosques, vário das floridas plantas presságios de sua muita frescura nas pedradas
que alcançando boninas, umas a outras parece talhas e cântaros que aos olhos, antes ramalhetes
ameaçam invejas, quando à porfia chegam a de boninas, se levam cheios de água para a fa-
debuxar-se no adormecido rio, em vencidas mosíssima Coimbra, Atenas dos nossos tempos,
competências dos sempre frutíferos pomares de se antes leteu das glórias da tão celebrada Grécia,
Alcinos. Faz instâncias Pomona por desafiar o nas emulações em que sempre lhe vibra raios de
apetite desde os ramos que de longe a seu tem- excessos, nos raros sujeitos que fecunda. Coimbra,
po se mostram curvos, com o peso dos bem transferidas relíquias da antiga Conimbriga ou
sazoados pomos. Não há espaço ao longo do rio Condeixa-a-Velha, Tesouro das flores do Pindo,
em que os plátanos, choupos, freixos e salgueiros teatro das invejas de Apólo, das muitas, das mes-
não sejam dóceis a mil graciosas alcatifas de flo- mas filhas de Mnemósina, coroa das excelências,
res. Os montes são ladrões gigantes de cristalinas do que por ela, famoso rio Mondego, que pas-
águas, roubando-lhe sua própria cor com as ain- sando ufano a fertiliza os estendidos campos
da confusas, alegres sombras que graciosos, em hérculeos, lhe deixa como em tributo em suas
vária diferença, lançam sobre elas; aqui não sus- águas os tesouros de Aganipe. Nesta tão célebre
pira saudades Filomela, porque a si mesma canta cidade, seguindo as ousadas palestras de
requebros, alvoroçada de ver-se entre os alegres Minerva, assistia Nicomandro, mancebo entre as
ramos. Com os saudosos longes do melro, com- primeiras flores da idade viril, galhardo, nobre,
pete o pintassilgo e a chamariz. Não esconde o avisado, liberal e já suspirando pelos desejados
puro das transparentes águas a graça do centro, dias de voltar-se (como é em todos os anos cos-
em competência das flores, matizado de outras, tume) aos enobrecidos muros da ínclita Ulisseia,
de polidos seixinhos ainda mais graciosos nas donde era natural. Por abreviar tardes de Maio,
sombras com que os peixes voltando mal con- que ainda sendo muito menos compridas se afi-
certadas se vistosas escaramuças, parece os figu- guram séculos, pelo que costumam mortificar
ram sempre trémulos e sem sossego. Desprezam esperanças que parecendo já chegam, se dilatam.
as areias as do Hermo e Pactolo, porque se Saindo das portas do castelo, sítio que admira
eternizam mais que de ouro. Despovoa-se o invejas em sua vida, não só a todos os da cidade
Eridano com as ribeiras do Menandro dos mui- mas a quantos, por aprazíveis, podem exagerar-se
tos cisnes que se abatem núvens de neve sobre o muito, em vagaroso passeio, apascentando os
rio. Aqui desde os bosques, fugitivos aos lascivos olhos na famosíssima quinta de Santa Cruz, cercas
sátiros, se lançam às águas animados alabastros de São Jerónimo e Tomar, por entre os floridos

79
olivais, no quase escondido mosteiro de Celas,
atravessando os arcos, majestosa fábrica de el-
Rei Dom Sebastião, de lastimosa memória, o
Gerardo
campo de Santa Ana, deixando à mão esquerda
o seu sumptuosíssimo mosteiro e à direita os de de Escobar *
S. Bento e Carmelitas descalços, que campeando
sobre os montes em que estão edificados, vi-
brando-se, parece, um a outro mudas competên-
cias, são inveja do rio, na graça que lhe acumu- Novela III
lam lançando-se a ele em labirintos verdes, pelo
céu de um fresquíssimo vale que os divide; vin- Dos empenhos de uma fita
do no alcance de uma sombra ao longo do rio, (Excerto)
que por mais divertir-se buscava com tantos ro-
deios, já descendo para ele furtando-se passos Murmurava-se em Castela os vagares com que
com os olhos na sumptuosa fábrica do real mos- Dom João de Áustria tratava a guerra de Portu-
teiro de Santa Clara, na do insigne templo da gal. Diziam que começá-la com passos tão len-
nossa Senhora da Esperança, coroa do convento tos depois de vinte e três anos de nascida era
de S. Francisco, que lhe fica ao pé, na quase fazê-la eterna; que fazendo-se tão sentidos no
infinita multidão de quintas, bosques, vinhas, coração de Espanha os socorros das nações esti-
pomares, olivais, montes e lugares que da outra pendiárias não se viam os interesses, parecendo
parte do rio estão lisonjeando a Coimbra, real- chamados para destruição da Pátria, não para a
çados longes de vários países, já quando por en- invasão do inimigo. Que sendo tamanho o ruído
tre os arvoredos divisava a desejada estância de das lástimas e violência com que se amassava um
uns bosques da alegria, de improviso lhe deteve exército, as queixas os faziam grandes, não os
o passo e elevou os sentidos uma voz que não efeitos, pois a presa de Jurumenha e de Arron-
muito longe ao descante de queixosos ais e lasti- ches sem defesa, não desempenhava a expedição
mados suspiros (se canta quem suspira), cantava de um exército real governado por um príncipe
desta sorte. (...) criado nas armas e coroado de vitórias. Que os
lugares havidos eram mais ruído que realidades
de conquista; nem Castela os podia conservar,
nem Portugal defender; a sua sujeição era preci-
so tributo do poder mais vizinho. Que o gasto
de D. João era de Príncipe, não o desenho das
empresas, que ou desesperava de maiores pro-
gressos ou queria conservar o governo das armas
para os acidentes que fingiam as suas esperanças.
Que desembaraçada Espanha de todas as diver-
sões, estava atenta Europa ao que montavam to-
das as suas forças unidas. Não se aproveitando

* Uma novela incluída em Doze Novelas, 1674. In Novelistas


e Contistas, p. 235-42.

80
deste sossego, menos obrariam depois que as intrépido pelo valor, noticioso por experiências
núvens de tantas guerras previstas, chovessem próprias, mimoso na fortuna como o diziam os
em divertimentos a suas armas. Que sendo esta a triunfos com que havia coroado o seu nome nos
vantagem de um exército ofensivo ou defensivo, exércitos que governou. Retirou-se a seus quar-
que aquele ia com todo o poder unido e estou- téis com perda muito considerável, no número e
tro precisamente o havia de ter repartido pelas qualidade. De repente se pôs em retirada. Para
praças que podiam ser invadidas, das quais havia fugida era muito pesado aquele corpo e para
de tirar as forças depois de ver aonde se acostava vencedor era apressada a marcha. Antes que pu-
o inimigo, que nestes termos entrava Dom João desse recolher-se a suas praças o deteve o Gene-
em Portugal com os seguros de não achar um ral de cavalaria Dinis de Melo a cujo valor se
exército oposto e depois que o contrário o bus- devem as gloriosas revoluções daquele dia. Acu-
cava para a batalha, se retirava e assim se passa- diu o conde de Vila Flor com todo o resto e
vam as campanhas sem medir a espada com o sendo a vitória porfiadamente disputada em os
inimigo. Que Espanha não se armava para fazer campos do Ameixial, ganhou Portugal aquela
hostilidades a Portugal, porque essas chamavam glória que as fanfotrices castelhanas fizeram
ao desquite uma nação tão arrojada como o di- maior em as nações, devendo-se ao conde de
zia o estrago de tantos lugares que se julgavam Vila Flor o defender o reino no maior aperto
seguros na distância. Que procurava cobrar em que se tinha visto. Não pôde Dom João de
aquele reino, o que não podia ser sem primeiro Áustria impedir a fuga dos seus com a eficácia
vencer o valor português que o defendia. Que a no dizer e valor no pelejar, que em tudo desem-
guerra de Nápoles se havia feito em outros ter- penhou a fama da sua valentia, não faltando às
mos pelo favor que tinham de nobreza e que obrigações do General e de soldado, que não
estas esperanças dissuadia a união dos Portugueses. tira Portugal os créditos ao valor, nem os tim-
Que a guerra ofensiva se fazia aventurando-se bres do vencedor se coroam com a fraqueza do
como o ensinara o Duque de Alba, tão frouxo vencido. Em esta arriscada batalha, em esta in-
na guerra de Flandres defensiva, tão arrojado na signe vitória se achou um fidalgo português
de Campania e tão arriscado na de Portugal chamado Constâncio, que o era mais na fé que
ofensiva. no nome no alcance do castelhano. Caíu-lhe o
Por desmentir estas vozes, por melhorar de opi- chapéu, voltou atrás mas como era tanto noite,
nião e pelos impulsos do seu mesmo valor, com não o pôde achar. Passou o resto dela no mesmo
uma luzidíssima armada se acampou Dom João sítio mas com a luz do dia perdeu a esperança
de Áustria sobre Évora, cidade posto que grande, de cobrá-lo. Não era prenda para perdida porque
desapercebida por distante. Fez a defesa que se em uma rosa de diamantes tinha uma de fita,
não cuidou e fora maior se lhe não faltaram favor de Florisbela, a quem amava com todas as
bastimentos. Parlamentou a entrega sem traição verdades da alma. Empenhou-se em fazer dili-
ao trato, se visonheria no modo. Fora grande gências por quem o achara e certo em que não
glória das armas de Castela a presa da segunda havia passado para Castela, porque uns não fugiam
cidade do Reino se a conservação fora tão fácil tão desafogados, nem os outros seguiam com
como a conquista. Chegou o Conde de Vila tanta freima que pudessem reparar em um cha-
Flor à vingança. Se tardou ao socorro, viu o péu. Passou a Vila Viçosa e empenhou todos seus
castelhano no primeiro choque de Odigebe que amigos em esta diligência e achou notícias que
o havia com um General nascido entre as armas, o tinham visto a um soldado de pé, com dificuldade

81
descoberto. Disse que lho furtaram no mesmo mais finezas quem vos fugiu, que quem vos cha-
dia, com que tornou a ficar na mesma confusão. ma para nunca vos fugir. Deus vos guarde mui-
Escreveram-lhe de Estremoz que se sabia quem tos anos.
o furtara. Foi e achou que o tinha vendido a Florisbela.
quem logo o passou a outro e desta sorte foi
correndo muitos, até que encalhou no último Não bastavam estas ternezas para reduzir a
que era Ardénio, um fidalgo do Porto, que nas Constâncio, antes vendo nelas mui merecidas os
campanhas não param semelhantes prendas, se- extremos, fez a jornada, chegou ao Porto e es-
não no centro de seu valor. tando em uma janela da estalagem, tomando
Constando-lhe que se havia partido, tomou re- fresco, atendeu a uma suavíssima voz que cantava
solução de o seguir e antes disto escreveu este este Romance
papel a Florisbela:
[...]
Em esta batalha foi roto o castelhano e eu o
Parou a música, advertiu Constâncio que en-
perdido, pois me achei sem uma prenda vossa.
trando três embuçados na rua, o que cantara em
Não a perdeu o descuido, roubou-a o acaso, que
companhia de outro se havia empenhado em os
até os casos arma a fortuna contra as minhas
reconhecer e dando-se por satisfeito nos sinais
ditas; sem cobrá-la não me atrevo a presentar-
que achara, levantando a voz disse para os ou-
-me a vossos olhos; dando má conta deste favor,
tros: – Infame Polidolfo, amigo fementido, bár-
não terei confianças para solicitar outros, nem
baro sacrílego que profanaste o segredo da mais
vós querereis que sobre mal empregados vão
fiel amizade, aqui aonde fizestes a traição quer a
com riscos de perdidos. Vou ao Minho a buscá-
tua aleivosia que a pagues. Não há guardas que
-lo e como Teseu passara a Colcos, sendo o pri-
impeçam vingança tão honrada. Puxa da espada
meiro que rompera os mares, pois vale a menor
que não pode ter valor quem se serve de tão vis
prenda vossa mais que muitos velocinos. Deus
estratagemas.
me vos guarde como desejo
Não tinha articulado estas palavras quando, in-
Constâncio.
vestindo a um dos três, o lançou a seus pés,
pedindo confissão. Improvisamente acudiu a jus-
Respondeu Florisbela em estas razões:
tiça pela outra parte com que, sem poderem
Quando me pedistes uma prenda minha, vos escapar, foram todos presos. Informou-se
confesso um grande embaraço porque inculcan- Constâncio da ocasião de aquela morte que nas
do-se o coração, o desenganei, que vós pedieis razões do homicida pareciam justas e lhe disse-
uma prenda minha e ele era vosso. Para dar-vos ram que o morto era Polidolfo, filho de um
os sentidos havia de ser por despojos, não por desembargador poderoso; o matador era Ardé-
prenda. A alma seria por restituição. Não achando nio, um fidalgo de muito boas prendas; que am-
em mim coisa que fosse minha para dar-vo-la, bos eram grandes amigos e tão oculta a ocasião
de novo vos dei esta fita de meus cabelos não da quebra que se não dizia. Toda aquela cidade
por prenda, senão para dizer-vos que não havieis se admirou de que encontrando-se poucos dias
mister prisões para serdes senhor de meus pen- antes Ardénio em uma rua com Polidolfo, afron-
samentos. Restituí-vos a meus olhos que com a tando-o com palavras que indicavam uma gran-
vossa vista ficavam recompensadas todas as per- de ofensa, o ferira e matara um criado seu, por
das quando houveram sucedido: Não mereço cuja causa o Governador, à instância do pai de

82
Polidolfo, o mandara prender em uma torre, o Ardénio e se viu uma novidade grande: alegres
que não bastara para que ele não vingasse o os parentes e amigos e tristes os inimigos. Estes
agravo que se ignorava e que da prisão não sairia sentiam faltar-lhes aquela vida para a vingança e
com vida porque era a parte poderosa. aqueles festejavam que não podendo escapar a
Ficou Constâncio sobressaltado, temendo de haver vida, ao menos fugisse ao suplício. Divulgou-se
sucedido aquela desgraça na mesma noite em a sua morte sobre a tarde. Logo o amortalharam
que ele chegara, que fosse para ter novos emba- em forma que não perigasse. Havia disposto que
raços no que buscava. Começou a divulgar-se o o fôssem enterrar a um convento de que era
aperto em que estava a vida de Ardénio pela padroeiro, duas léguas distante da cidade. Mete-
ofensa de romper a prisão do Governador e ram-no em uma liteira muito bem acomodado
porque sendo bacharel o pai do morto e bacha- e, saindo da cidade, medrosos de que algum aci-
réis os que o haviam de sentenciar, sabido se dente malograsse tão bem sucesso, como os
estava que com menos causas seria condenado à liteireiros eram os parentes mais chegados, ves-
morte. Lamentou-se Constáncio de boa fama de tindo-se Ardénio e pondo-se em seu lugar um
Ardénio; persuadiu-se das razões que lhe ouvira caixão fechado com o peso dissimulasse o enga-
teria grande causa a sua resolução e por mere- no, caminhou a liteira para o convento, aonde
cer-lhe a restituição da prenda que buscava, se foi com toda a solenidade metido no carneiro
empenhou em solicitar-lhe a liberdade. Falou a de sua casa e ficando este segredo só no tio e
um tio seu a quem achou muito sem esperanças filhos de Ardénio e no médico, interessados to-
de que pudessem importar-lhe as traças. Pediu- dos em o guardar, Ardénio em companhia de
-lhe Constâncio que empenhasse um médico a Constâncio em dois ligeiros cavalos se puseram
assistir-lhe a todo o risco e facilitando-o o inte- em Viana.
resse, falando com ele Constâncio e praticando- Morava em aquela grande vila um primo de
-lhe o que intentava, tiveram ordem para avisar a Ardénio, um dos que haviam feito o papel de
Ardénio que se fingisse doente e mandasse cha- liteireiros, com que, sem fiarem de outrém o
mar aquele médico. Con tanta vigilância o guar- segredo, se asseguraram dele. Tinha sabido
davam que ainda para isto foi consultado o Go- Constâncio por via do médico, como havia
vernador; com ordem sua entrou o médico e dado o chapéu a um amigo de Viana e na certe-
dando ruins novas da qualidade da doença, mos- za de que logo daria à instância de seu primo,
trou poucas esperanças da sua vida. Como im- esperava a sua vinda para lograr o fruto de tanto
portava a pressa pela que davam ao julgarem, ao empenho. Uma tarde pediu Constâncio a
outro dia desconfiou do doente e tinha razão Ardénio lhe contasse a causa de que uma tama-
porque então lhe tinham dado sentença que nha amizade se tornasse em tão mortal ódio,
fôsse degolado. Era de si o aposento escuro, de que das razões que lhe ouvira inferira que havia
mais a mais estavam fechadas as pequenas sido grande a aleivosia de Polidolfo.
frechas por onde lhe entrava a claridade e à luz – Criei-me – respondeu Ardénio – com o trai-
de uma vela se mostrava Ardénio moribundo, dor Polidolfo com tão estreita familiaridade que
com a côr pálida por artifício de vários fumos. éramos vulgarmente chamados os dois amigos.
Isto, o tráfego do barbeiro, o estrondo que fazia Dava-me conta dos seus divertimentos, eu co-
o médico com a variedade dos remédios que municava-lhe os meus e só os pensamentos nos
aplicava, tirou os escrúpulos de poder ser fingi- comunicávamos, porque a tudo o mais assistia
mento a doença. Soou pela cidade que morria um ao outro. Acompanhava-me quando eu falava

83
a Armelinda, único empenho da alma; ouvia o
que nós dizíamos com tamanha confiança de
ambos que Armelinda lhe dizia a ele o que não
António
podia dizer-me a mim. Com os mesmos extre-
mos tratava Polidolfo a Clóris, mas vi que ía Barbosa
esfriando-se a fineza e divertindo-se o cuidado;
então errei em não conhecer, que quem é trai-
dor a uma dama não pode ser fiel a um amigo.
Bacelar *
Uma pontualidade nunca é falsa e uma falsidade
nunca é pontual. Via-o triste, fingia diversos mo-
tivos sem eu entender que se encaminhavam à
minha ofensa. Oh, valha-me Deus, de quem se Desafio Venturoso
há-de fiar um homem, senão de um íntimo
amigo! Quem é fiel, como há-de julgá-lo falso? Nestes retiros da Corte, não tenho outra ocupa-
Diz Séneca que há-de considerar-se que o mais ção mais que a de Saudades; mas são elas de
amigo pode ser inimigo. Isto é deixar de ser sorte que, levando-me todo o tempo (e não sei
amigo; como o posso eu ser de quem presumo se todo o cuidado), apenas me deram lugar para
que o não será? Seria pagar as pensões da amiza- escrever essa Novela, que ofereço a Vossa Mercê
de no empenho das próprias obrigações e não (se do que é tanto seu, se lhe pode fazer oferta).
colher o fruto dos alívios na consulta e no so- Fortunas são de dous Amantes (que agora no
corro fora o estar eu como grou, com um pé no amparo de Vossa Mercê começam a ser venturo-
ar. Viver seu amigo e não fiar-se dos amigos! Diz sos), que quem vive desterrado, de que havia de
o discreto cordovês que tudo se há-de consultar ser Cronista, senão de Disgraças? Às mãos de
com o amigo, mas primeiro se há-de consultar o Vossa Mercê não somente vão buscar honra, mas
amigo. Porém, não basta esta diligência, porque censura, e sobretudo a dar testemunho de u~ a
há corações labirintos, que não há Teseu que os Amizade, que apesar de todas as violências do
penetre. Há feitos com mais emboscadas que tempo, se não esquece de seu agradecimento.
Escanderbeg. Diga-o eu pois me vendeu o ami- Bem tem Vossa Mercê donde empregar a pena
go mais íntimo, mais experimentado e que eu em emendar os erros a esse Papel, porque sei
julgava meia alma minha. Oh, desengane-se o dele que não leva outro acerto mais que ser
mundo e em empenhos de amor e de ambição, oferecido a Vossa Mercê. O certo é que nem
não há amigo, que poucos nestas matérias guar- com Disgraças há engenho, nem se podem
dam fé. [...] aprender asseios de palavras entre Academias
Rústicas de um Monte. Neste me tem minha
Fortuna tão feito às armas de Aldeão, que o que
somente me dará de Corte são as lembranças de
Vossa Mercê. Se merecer que Vossa Mercê mas
pague, ainda me terei por Venturoso, como aos
meus Peregrinos por acertados em acabarem a

* 1644. Edição de Ana Hatherley. Lisboa: Assírio & Alvim,


1991.

84
sua Peregrinação aos pés de Vossa Mercê, a Soltaram-se as prisões aos Ventos, e cresceram
quem Deus guarde os anos de meu desejo, &c. assombros à noite, porque pelejando furiosos em
Entre os confusos penedos e espezas matas da amiudados assobios, davam bateria ao monte, até
maior Serra portuguesa, que por subir Gigante a que os meteram em paz as pardas nuvens, que
coroar-se de Estrelas toma o nome delas, afadigava não podendo sustentar-se, de carregadas, em
um brioso Murzelo ao destino de seu cuidado tempestades de água ameaçava a naufrágios ao
um galhardo Peregrino, rico de pensamentos amo- Peregrino, e inundações ao Zêzere, ao Alva e ao
rosos e de saudades namoradas, que no apressado Mondego.
do passo e no assustado do semblante parece Rendeu-se a paciência de Felício (que assim se
que ou ia em seguimento de algu~ a Fortuna que chamava o Peregrino, ou por desmentir em seu
lhe fugia ou fugia de sua própria Fortuna. nome sua sorte, ou por u~ a figura a que os
Prognóstico de chuva desemparava o Sol aos Retóricos chamam Antifrasi) e dando à deses-
Horizontes, porque enlutado entre espezas nu- peração título de ousadia, apressou a carreira vio-
vens, apenas privilegiava o menor raio. Caíam as lentamente, até que amparando-se de u~ a rama
sombras, alevantavam-se as nuvens, que unindo- que lhe emprestou uma árvore medonha, come-
-se cada vez mais carregadas, por impedir a ju- çou a queixar-se desta sorte:
risdição ao dia, anteciparam o Império à Noite, Se por vingar-te, oh cruel Fortuna, do pouco
antes do termo costumado. Não gozava o Céu caso que sempre fiz de teus ameaços, me deste
luz algu~ a, nem esperança de guia ao Forasteiro, hoje industriosamente todo o cabedal de teus
senão quanto de algum raio lhe supria esta falta rigores, em vão hão-de sair teus intentos, porque
medonhamente. no maior aperto deles me verás quebrado, si ao
Somente ao longe bramavam, com murmúrios castigo, mas não dobrado ao rendimento. Bem
roncos, confusas águas, que soando como despe- puderas acrescentar-me ao número de teus venci-
nhadas, deixavam sem acordo o juízo mais acer- dos, que ao rol de teus rendidos me não hei-de
tado e sem pulsos o coração mais animoso. alistar nunca. Título serei de tuas vitórias, mas
Não vacilava o do Peregrino em tão confuso não despojo de teus triunfos; ver-me-á o tempo
transe, que, como se criara com Fortuna, tinha tributar espíritos à morte, mas não rogos à For-
perdido o medo de seus golpes; que há também tuna. Arma-te, pois, em boa hora, muito a teu
uns Mitridates de Disgraças, que habituados a salvo e pede socorro às nuvens e aos ventos, que
elas dos primeiros anos, vivem da própria des- a mim me fica a glória de que já comigo te não
ventura. Mas por não confessar rendimentos a atreves. Lança todo o resto de teus rigores, que
sua Fortuna, aplicava as esporas ao bruto que, nisto entenderei eu que me tens por grã vitória.
atropelando resistências, pisava sombras e assom- Usa todo o contraponto de tuas indústrias, que
bros juntamente. eu folgo muito de ver as presunções que te custa
Já se via frente a frente com um Penedo que, meu rendimento. Menos cuidava eu que se ha-
armado de dureza nativa, lhe ameaçava sepultura via mister para um Disgraçado: busca todas as
entre abertas grutas, já nas costas de outro, que traças para meu despenho, que se por tua causa
pendurado a um vale o convidava a precipícios, choro as mudanças de Lizarda, já não podes fa-
já por fugir de ambos, registrava a cabeça no zer-me maior dano. Nega-me, pois, embora
tronco de u~ a árvore que tinha vestido gala mais todo o bem, que ao menos não podes tirar-me
de duzentas Primaveras, e já pela dureza, pela o tempo para queixar-me.
altura e pela idade, era um Monte vegetativo.

85
Enganou-se Felício, porque no último acento Continuava Felício em animá-lo, mas no meio
destas palavras lhe feriram as orelhas uns suspiros destas razões reparou em que se lhe ausentavam
brandos, que acompanhados de u~ as lastimadas pouco a pouco as vozes, e aplicando escrupulo-
queixas, intercedendo os ventos, convidavam a samente os ouvidos, percebeu u~ a que, distando
lástima os mesmos montes. O silêncio da noite cada vez mais, dizia desta sorte: Ainda aqui me
crescia horror às queixas, que com o vento que não deixas, ingrata fera? Ainda não sossegaram
daquela parte assoprava, as repetia fielmente aos teus rigores? Às mãos de teu falso trato acaba
ouvidos. O sítio fragoso e deserto testemunhava hoje minha vida, não me estorves piedosa este
a qualidade da causa; a hora, o lugar, a eleição da pequeno alívio: deixa-me um pouco agora, que
noite eram não vulgares argumento; a confusão antes de pouco tempo, caduca sombra, seguirei
dos ventos e das nuvens acrescentava espantos tuas pisadas, errante espírito, tomarei conta de
aos ouvidos. teu proceder infame!
Menos era necessário para o ânimo de Felício, Confuso Felício em tanto assombro, esteve um
que como nascera nobre, era força que se dispu- pouco furtado aos sentidos, ou admirado do su-
sesse a dar socorro àquelas vozes. Andava maltra- cesso ou invejoso de ver que ainda haviam
tado da sua Fortuna, e não era muito que o disgraças que queriam exceder as que ele pade-
lastimasse a alheia; pelo que, sem atender mais cia; mas resolvendo-se em seguir aquele vulto
que a seu intento, arrojadamente aplicou as es- desesperado, se deu tanta pressa que todas estas
poras ao cavalo, e dirigindo a carreira para a razões passaram das portas adentro de sua imagi-
parte onde soavam os suspiros pudera apostar nação, sem perder um instante de seu empenho;
ligeirezas o pensamento, e assim quanto mais mas como a confusão da noite desacertava o
blasonava contra sua Fortuna, que não lhe havia maior tino, e desanimava o maior acerto, quanto
[de] faltar tempo, para queixar-se, lhe faltou o mais cuidava que lhe ia em o alcance então se
tempo. desviava mais (que para um Disgraçado até [as]
A Serra era partida em muitas grutas, e como lástimas faltam, quando se buscam). Vendo, pois,
em todas elas respondiam os suspiros, em cada impossibilitado o fim do seu intento, parou em
eco mentiam u~ a esperança a Felício, que errando um sítio que, por ser menos combatido dos ven-
largo espaço, martirizava seus desejos e estragava tos, lhe pareceu estar amparado de algum monte,
as pontualidades ao socorro, té que depois de adonde gastou as demasias da noite, ora com
diversas voltas e resoluções, fez o despenho o seus cuidados, ora com os alheios, dando diversos
que não pôde o acerto, pois desesperado, topou sentidos ao sucesso daquele lastimado Fugitivo,
com o que buscava. té que com a nova alvorada da manhã começa-
As queixas soavam mais alentadas e u~ as razões ram a fugir as nuvens, a raiar os Montes, e os
mais distintas, já trocadas em suspiros, já afogadas pássaros pendurados entre os ramos a entoarem
em lágrimas. Levantou Felício a voz dizendo: as Músicas chansonetas, que sem as impertinên-
Quem és, oh lastimado triste, que agonizado no cias dos ensaios, saem tão suaves, como quem
meio desta Serra pudeste fazer companhia a tem por Mestra a mesma natureza. [...]
meu tormento e dar novas lições de rigor a
minha Fortuna? Quem és, que ocasionando lás-
tima aos mesmos Montes, tiras a lisonja aos enca-
recimentos?

86
Frei Lucas Esperava já o caprichoso auditório, quando lhe
pagou os desejos Feliciano, que saindo de entre
os sitiais, se sentou em a cadeira do primeiro
de Santa estrado, tão galharda, e airosamente vestido,
como se só viera a contentar os olhos. Saio ao

Catarina * outro estrado Isabel, superior planeta às mais


acreditadas fermosuras que naquele político Céu
brilharam esta noite estrelas: sentaram-se todas
em estrado, tomando os mais altos coxins, donde
estavam os instrumentos, a fermosa Isabel, a galhar-
da Feliciana, e a linda Inês, tão competidas em seu
PRIMEIRA NOITE. SERAM PRIMEIRO.
vistoso asseio a gala, e a beleza, que só esta vez se
conheceu que a sua se permitia a competências.
Passados os primeiros alvoroços da vista, seguio-se
Os Irmãos Penitentes o curioso silêncio da atenção; pegou Isabel na
harpa, Feliciana na viola, e Inês na cítara, e
Chegou em fim o prazo em a noite do primeiro
discantando com o mais subido primor da arte,
dia, que era ao Domingo; conduzira Alberto
fizeram um galhardo preâmbulo as harmonias
(como os mais) do mais luzido do Corte o mais
de Isabel q com tanta gala como sossego come-
chegado de seu parentesco, e entre galhardos
çou a cantar.
Cortesãos, e celebradas fermosuras, e se fez tão
fidalgo concurso, que podiam os palácios de Lis- Huid de Clori serranos,
boa envejar os retiros de Villa Franca. Cobria as Que, amor en ela aposto
paredes da espaçosa sala fina tapeçaria; finas alca- Tan bienquista la crueldad,
tifas o chão, em cujos lavores apostava finezas o Que se ha passado a favor.
pavimento com os caprichosos brutescos do En virtud de su beleza
tecto: dele pendiam quatro candeeiros de fino Cautiva su condicion;
cristal tão artificiosamente dispostos, que multi- Que se podrá aborrecer
plicava as luzes o reflexo, e cegava a vista o Donde es hermoso el rigor?
labirinto: alteavam-se na parede principal dous En su suberano echizo,
estrados, a que cobriam grandes doceis de visto- La libertad conseguio
so, e fino brocado; em um deles u~ a cadeira, e o Conocer la tirania,
outro sobre três almofadas alguns instrumentos; Ignorar la sinrazon,
o mais da sala rodeavam ricas cadeiras; no meio Apeticidos los riesgos,
ardiam dois grandes braseiros de bem lavrada Los méritos malogró;
prata, donde eram tantas as brasas, como tinham Que amorosa simonia,
sido as pastilhas; tudo tão considerada, e opulen- Peligra a la adoracion
tamente disposto, que se competiam (que muitas En sus echizeros ojos
vezes se não encontram) o rico, e o asseado. Aspid se disfarça amor,
Y animando una pestana,
* In Seram Politico, abuso emendado. Dividido em três Noytes Ocioso dexa un harpon.
para divertimento dos curiosos [...]. Por Félix da Castanheyra Azules son, y han quedado
Turacem. Lx. Occ.: Off. Bernardo da Costa, 1723, p. 15-33. En cielos, que en su primor,

87
Fueran para tantas luzes tente Eustóquia passava para o seu retiro, ven-
Corto espacio, ano ser dòs, cendo o trabalhoso caminho de u~ empinado ro-
Aunque Cielos han nacido chedo, rustica atalaia do vasto Oceano, cujas
Nubes, vibran vivo ardor, sempre alteradas ondas naquela costa, mais que
Que en albricias de hazer mal, tributo, parece bataria.
Disperdician el blazon. Suspendeu o passo no mais alto do rochedo,
Cielos el color les mienten, divisando (em u~ a pequena ilha, que se formava na
Peró que importa el color, deserta praia) que lançado sobre a área u~ huma-
Si assegurando la vista, no vulto, se os suspiros o não asseguraram vivo,
Abrazan el coraçon? o podiam as suspensões mentir penedo: bradou-
Huid serranos sus iras, lhe, que se determinava passar ali a noite, se
Peró merezcalas yo, arriscava a ser infausta presa das feras, quando
Que solo en su riesgo se hizo não dos piratas (que de u~ , e outro risco era
Embidia, la compassion. povoado aquele deserto.) Levantou o peregrino
Dulce rigor! o desmaiado rosto ao piedoso aviso, mas como
Que echizo del alma, se as forças o não ajudassem, tornou a inclinar-
Que arcano de amor, se amortecido. Não sofreu a piedade de
Quanto empieça rezelo, Eustóquia desampará-lo, baixou à praia, admi-
Acaba ambicion. rando u~ galhardo mancebo no que ia socorrer
pobre peregrino, estava inclinado sobre a areia, e
Sossegou-se o devido encarecimento, com que
nela divisou Eustóquia, que tinha escrito estes
o concurso celebrou em Isabel a destreza, e a
versos.
doçura, porque Feliciano fazendo u~ a airosa cor-
tesia, começou a falar em esta forma: Sendo mi- Hey de queixarme esta vez
nha a escolha, e vós os ouvintes, não terá este de A vós outras penhas duras;
desempenho mais que o nome, porque nem vós Se já meu mal não espera
podeis ignorar os erros, nem eu evitá-los; pouco Remédio de quem o escuta.
engenho, e muito assumpto nunca tiveram outra Se de incuráveis as queixas
saída, ao menos em duas cousas serei singular, Tem tanto, como de justas,
em que ninguém teve melhores ouvintes, e em Descubra a vossa justiça,
que ninguém os deixou mais descontentes, su- Negue embora a forte a cura,
pondo que vou com esta advertência, ouvi a Queixo-me de desgraçado
novela. Pondo à minha sorte a culpa
Fracos remédios deseja
Quem diz seu mal a ~ua muda,
“OS IRMÃOS PENITENTES” De que eterna me persiga
Sem se mudar é que accusa
Novela exemplar Meu coração, com quem só
Não é mulher a fortuna.
Espirava o Sol nas ondas, e renascia nas Estrelas, Depois que comigo trata,
ameaçado da vizinha noite desmaiava o dia em os Estudou firmezas dura,
braços da tarde, quando da embrenhada Ermida E agrava-se a natureza,
do peregrino Ricardo se apartava solitária a peni- Por eternizar-me a injúria.

88
Faça embora o que quiser, porta de Eustóquia; rezava a recolhida penitente
Que paciência em vão me apura, as horas matutinas, porém obrigada do impensa-
Que perde arriscada, vida do estrondo abriu a Ermida. Oh amada irmã
Que já não pode ser sua? minha, e verdadeiramente querida Eustóquia
Já de suas tiranias (articulou Ricardo com alegre alvoroço,) que
Nenhuma invenção me assusta, mal julgavam meus olhos que haviam de tornar
Que não mata a u~ disgraçado a verte, e que bem se apercebiam já a chorar-te!
Dor, que tão depressa o busca. porém graças ao Céu quieta te acho, quando
Venham dores, venham penas, arriscada te busco. Suspensa estava Eustóquia,
Sejam poucas sejam muitas, tanto da vinda, como da prática de Ricardo, e
Que eu já não hei-de morrer. disse rompendo o silêncio: E bem, amado, e senhor
Senão de alguma ventura, meu, que enigma é este, que a mim me custa u~ a
suspensão, e a vós u~ alvoroço? Baixemos (disse
Acabou Eustóquia de ler os versos, tão admirada
Ricardo) à viçosa margem deste pequeno rega-
de os achar ali, como a seu dono, e sabendo dele
to, & saberás o sucesso. Cerraram a Ermida, des-
que infortúnio ali o trouxera, donde intentava
ceram ao rio, sentaram-se em a fresca alameda,
com a vida pôr fim a todos, o animou com
donde madrugador o vento, sacudia os álamos,
amigáveis palavras, e bem apontadas esperanças,
cujo verde estrondo avisava as flores que chegava
pedindo-lhe que deixasse o perigoso daquele sítio,
o dia, e acordava os passarinhos para lhe celebra-
pois era a desesperação tão bárbaro remédio:
rem a chegada.
venceu-se das piedades de Eustóquia a obstinação
Ontem, (disse Ricardo) te ausentastes de mim, ó
de peregrino; embrenharam-se pelo mais fragoso
querida Eustóquia, cerrei a Ermida pagando ao
das serranias, e já quando sobre os sossegados
Céu aquelas horas que lhe ofereceu o voto, e lhe
ombros da terra estendia a noite o pavoroso
continua o gosto, queria dar ao corpo a pequena
manto, entraram nas rústicas cabanas de u~s pas-
porção do descanço, quando penetrando as pa-
tores, que recebendo ao estrangeiro com assom-
redes do meu retiro espiritualizado o eco de uns
bros, como a Eustóquia com agasalhos, queriam
suspiros, ouvi que uma mulher (se a voz não
saber o intento de u~ como a novidade de outra.
mentia) como entre violências se queixava; tur-
É tão tarde, disse Eustóquia, que me ausento eu
bou-me o sucesso, deixo o descanço, abro a
com o mesmo desejo, e com vos pedir seu bom
Ermida, e inquiro a causa, (oh com que susto o
trato, que o Céu que o trouxe ao vosso retiro,
refiro!) levavam três homens violentada nos bra-
fiou sem dúvida seu remédio em vosso cuidado:
ços a triste queixosa, que voltando atrás o rosto,
quando de manhã passar à Ermida de Ricardo,
com u~ entranhável suspiro articulou: (como
saberemos o sucesso, e no seu agasalho conhece-
querido irmã) o demais da palavra levou-o o
rei o q vos devo: veneravam os rústicos a
vento, e a ela os piratas, que voavam com o furto.
Eustóquia, como sabedores de quem era, e entre
Esfriou-se o sangue nas veas, desmaiou o cora-
verdadeiros, se mal concertados oferecimentos,
ção aos braços da ânsia, e mentiu-me o susto
deram por resposta a obediência. Ficou o pere-
que era o teu eco. Como é crédula a turbicão; e
grino, despediu-se, Eustóquia, e por entre o
como covarde o delito! Eu cuidei, que eras a
confuso arvoredo buscou o retirado de sua
roubada; os piratas fugiam, como se eu bastara
Ermida.
para a vingança; deixai-me (lhes bradava) a sim-
Assomava-se à janela do Oriente a escassa, e
ples ovelha, ó carniceiros lobos! Restitui-me a
duvidosa luz do dia, quando já Ricardo batia à

89
custosa joia, ó ladrões cubiçosos! Largai-me a faz-ma ditosa; se igual, dá-lhe companhia. Isto
doce vida, ó homicidas impiedados! Senão tirai- disse Ricardo, levantando nos braços a Eustó-
-me a alma, e não me fique para sentir, a que me quia, e caminhando tão ligeiros, como desejosos,
não serve para viver; embrenharam-se em fim chegaram às cabanas a tempo que os serranos
no mais inculto dessa montanha com tanta ligei- saiam (como lhe disseram) com tenção de bus-
reza, como se a minha queixa lhes calçara espo- ca-los. Se há piedade em vossos peitos (disse u~
ras, como se os meus suspiros lhes vestiram asas. dos serranos) o presente sucesso vos executa ge-
Dificultou-se-me o alcance naquele labirinto, nerosos; aquele estrangeiro que ontem (ó fermosa
que ou o formavam as árvores, ou mo mentiram Eustóquia) trouxeste à nossa cabana, desesperado
as suspensões; e ingrata a noite, não se conten- corre atrás de u~ impossível; esta noite nos tirou
tando com lhe dar capa ao insulto, me escureceu o sono o repetido de alguns suspiros, que nestas
o Norte ao caminho: vaguei perdido a melhor soledades pediam ao Céu socorro; assustou-se o
parte da noite, até que os primeiros assomos da estrangeiro, e dizendo-nos que naquele amparo
Aurora me levaram ao casal dos pastores, donde perderia a vida, saímos com ele à defensa quando
u~ me afirmou, que ontem te recolheras sossega- já nem os suspiros nos podiam ensinar o lugar
da à tua Ermida, incrédula sempre à minha des- do insulto. Sossegamos cansadamente o estran-
graça, como há-de duvidar novo pesar contra a geiro, que precipitado se arrojava ao inculto dessas
experiência! maior evidência ainda me deixara brenhas, mais a oferecer a miserável vida despo-
com dúvida, que para adivinhar u~ dano; basta jo das feras, que dos que diz lhe roubam u~ a irmã
nos tristes a natureza; e agasalhar u~ a dita, é levi- fugitivos piratas.
andade em quem padece, bati em fim duvidoso Esta madrugada saio a esta conquista, três dos
à tua porta, acho-te sossegada, festejo-te segura, nossos o acompanham, suspeitando que conhe-
e avultando mais este gosto à vista daquele susto, cem o ladrão de sua hora, mas não se oferece a
com os alvoroços de achada te acrecento as esti- pouco risco a tua vida, ou lhe suspendei o passo,
mações de perdida. ou o acompanhai no risco, que me parece não
Calou Ricardo, e pagando-lhe Eustóquia casta- são suas prendas para arriscadas a meu rústico
mente o susto com os braços, lhe disse: Ai ado- entender, e no nobre agradecimento que nele
rado irmão, que ainda parece que nos descobre a experimentamos: não deve de ir tão longe, que
sorte, donde nos disfarça o traje; que nos quer o não alcance vosso desejo, nem vossos corações
esta inimiga do descanso? não foi o melhor de costumam a regatear por dificuldades o amparo.
nossos anos indiscreto sacrifício de suas incons- Isto dizia o serrano, mostrando-lhe o caminho, a
tâncias? mas já em estado donde não há que que sem lhe dizer palavra se puseram Eustóquia,
arriscar, nem nós temos que teme-la, nem ela e Ricardo.
que buscar-nos; segura estou, graças ao Céu; e Levava-os o desejo, e trocou-lhes os passos em
distinto sucesso ao teu receio me ocupou o cui- voos até chegarem ao descoberto de u~ a campina;
dado, pedindo aos nossos serranos, que hospe- divisaram ao longe os pastores donde supunham
dassem um peregrino, cujo desamparo me exe- o estrangeiro; vozeou Ricardo, suspendeu-os o
cutou compassiva, e cujo sucesso não quero que respeito, e chegando a eles descobrio o intento
me traga mais cuidadosa; com a lisonja de acom- que trazia, para aportar do seu ao peregrino, que
panhar-te, me obriga o desejo de conhecê-lo; cheios os quebrados, olhos de vivas lágrimas, ra-
vamos a examinar suas desgraças, que dou em cional estátua esquecia o movimento; chegou-se
medir todas com a minha, que se a alhea é maior, a adverti-lo Ricardo, e como acordando de u~

90
pesado sono lhe respondeu: Que me quereis se- desinquietas o sossegado de tua casa, não é mais
nhor? Se a vida se não conserva sem sangue, barato o indignado de tua vista? se é que nela
suponde que minha irmã é o sangue desta vida; pode tirar-me o rigoroso, o de que tantas vezes
já vos diriam que o choro roubada, e que a triunfou o meigo, mas chama, chama quem me
pertendo restituída; riscos me propondes na tire a vida, que sem dúvida ma enjeitaste, pois
vida, quando fui eu tão pouco triste, que a te- sabes que ainda vivo; mas antes que me matem
messe arriscada? [...] os meus arrojos, façam-no os teus desprezos. Isto
Chegaram brevemente ao sítio, donde em um dizia eu com tão verdadeiros sentimentos, que o
espaçoso terreiro se dilatava em portadas, e principiava a língua, e acabavam-no os olhos.
galarias um grandioso palácio, sem impedimento Enterneceu-se; mulher em fim, disse-lho o na-
estavam as portas, entraram até a primeira qua- tural, e confinou-lho o amor: abrandam-se com
dra sem resistência, donde perguntando um dos sangue os diamantes; sangrava-se em lágrimas o
serranos a u~ a criada pelo senhor da quinta, lhe coração e trocou as durezas em ternuras; premia-
respondeu, ocupado em o campo se não reco- ram-me os braços melhor do que me queriam
lheria se não com o dia, que se o queriam espe- castigar as vozes, choramos ambos a ausência, e
rar, e passar a sesta, podiam entrar para aquela remediamo-la ambos, resolvi-me a segui-la a
varanda aceitando a oferta, abriu-lhe a porta, França, e mais de u~ mimo me granjeou o arrojo.
entrou a companhia. Era Alberta discreta, apontou-me a indústria
Chegava-se o Sol ao Zenit, não achou a necessi- para segui-la; deixei a cuidadosa, parti-me dissi-
dade desamparados os surrões dos serranos! foram mulado, cheguei a casa, tomei o dinheiro que
Ricardo, e Eustóquia convidados, porque o es- pude, descobri a resolução a um escudeiro meu,
trangeiro (sentado em u~ a das janelas que caíam para que me não faltasse com o dinheiro que
para um viçoso pomar) tinha mais que fazer em me fosse necessário, enganando a Ramiro, em
esconder as lágrimas, que em escutar-se às ofer- cuja casa estávamos, e a meu pai, com que eu
tas: foi breve a casa o sono; busquei a Alberta: me ausentara, por saber que uns cavalheiros Por-
quando foi cego o amor buscando o centro? tugueses me esperavam em vingança do caso de
Cheguei ao leito, rendida estava ao descanso, Salamanca; ou fosse amizade, ou parentesco: e
imagem tão de alabastro, que mais que natureza com a maior pressa que pude, ao soldado abor-
parecia a respiração artifício; provavam nela de dei em u~ a lancha à nau que Alberta me disse era
mais caprichosos os descuidos, que os alinhos; seu mesmo pai o Capitão, que já aquela noite
equivoca-se o cambrai, com o corpo e ficava de dormira a bordo, fazendo-se prestes para largar
melhor partido o cambrai tão ambicioso de em- de manhã as velas recolhida sua família. Subi a
beber em si o sino, e o branco, que só u~ a mão falar-lhe, e mentindo sustos, ou sentimentos
permitia aos olhos; correu o coração a tomar a (esta foi a indústria de Alberta) lhe contei como
neve nos beiços, acordou-a o tacto, desembuçou aquela noite dera morte a u~ competidor meu,
da nuvem dos parpados os Soes dos olhos, que o pessoa principal na Corte, pelejando corpo a
meu atrevimento não merecia menos que raios; corpo, e que ainda que o seu ficava só em o
levantou-se assustada, cobrou-se colérica, asseou campo, era de alguns suspeitado o desafio, que
a culpa, chamou traição à carícia, e dera vozes a me aceitasse em sua companhia até França, e que
castigá-la, a não lhe emudecer as vinganças a não tomava por avogada senão a sua nobreza.
enternicida humildade das minhas súplicas. Se Era Ladislao (que este era o nome do pai de
para castigar-me, adorada inimiga, (dizia eu) Alberta) como nobre compassivo, e donde o

91
obrigava a sua natureza, parece que ia de mais a de ser venturoso. Celebrou-se o desposório, ale-
minha súplica; franqueou-me a hospedagem, grou-se com faraós a casa, assistio aos banquetes
ofereceu-me sua casa, e sua pessoa com aqueles a nobreza, e fizeram-se festivas exequias à minha
cortejos que se devem a u~ a nobreza desampara- esperança; só Alberta calava, só se não divertia
da, pedi-lhe que me mandasse prover de alguma Alberta, e parecia modéstia, o que era mágoa;
matalotagem, sem que se reparasse, em dinheiro, fugia-lhe eu com olhos, porque a encontrava tão
o que ele não consentiu, dando-me u~ dos seus fermosa, que a não podia duvidar perdida; an-
camarotes, e mandando-me servir com seus dou a noite, e cercado de parentes seu venturoso
mesmos criados. Já neste tempo largavam as velas, esposo, me levou violentamente a melhor parte
já se recolhera a amara, já estava no seu camarote d’alma; não teve a minha mais desafogo, que ao
Alberta em companhia de u~ a tia, e algu~ as criadas, passar de u~ a fala apertar-lhe u~ a mão, injuriando-a
tão alegre de minha assistência, como Ladislao de infame, e de mulher; encheram-lhe os olhos
pago de minha cortesia, oferecendo-me a sua de água, e entendi-lhe a resposta.
mesa em companhia de Alberta, em fim sinceri- Amanheceu o outro dia, intentava eu pôr em
dade estrangeira. execução as resoluções que me gastaram a noite,
Contar-vos as finezas, as ternuras, os excessos, os que era tornar-me a Lisboa, ou passar a Madrid,
mimos, e os favores com que a liberal Francesa pois me faltavam notícias de u~ a e outra parte
me passava de favorecido a enfeitiçado nem eu havia anos, nem me corriam já os créditos em
o saberei encarecer, nem vós o podeis duvidar. França, a que eu não atendia, por servirem u~
Cheguei em fim tão venturoso, como se não cargo de Ladislao, com o maior lucro para meu
fora amante, venerando em Ladislao u~ a pai políti- gosto: ao sair para fora me esperava uma confi-
co, e como filho me deu sua casa, donde comecei dente de Alberta, que dando-me o pêsame aos
a luzir com aquela largueza que me pedia o sentimentos, me assegurava os da minha adora-
amor, e me favorecia o natural. O trato caseiro, cão perdida, confirmados em um papel seu, que
as ocasiões repetidas precipitavam em Alberta o aberto vi que dizia.
casto, e em mim o fiel; chorava ela desconfian- Já que se vingou de mim o poder, vingue-se do poder o
ças de eu não a pedir por esposa, temia eu que amor, ganhaste-me Ricardo pelo caminho de perder-
não havia seu pai de empregar em u~ estrangeiro me, que eu nem pude negar que era filha, mas também
mais poderosa nobreza, ou o mais rico talamo não me pode esquecer que sou tua; o que com outro
em que falava Paris. Eu culpava-lhe as desconfi- acabou a violência acaba para contigo a ternura; vê
anças, ela desfazia-me as dúvidas, até que me com quantas razões depois de perdida fortuna, que a
resolvi a pedi-la, e fui saber quando havia de razão foi a obediente. A natureza é a amante, não é
perdê-la. Esperanças namoradas andam fingindo pequeno perigo, mas por isso é grande a desculpa, que
u~ gosto, até tocarem no desengano. quando a uma mulher lhe estragam o gosto, parece que
Rompeu-se na Corte, que um potentado, mais lhe licenceiam o despenhar o crédito. Tua mais que
que rico, venturoso, e tanto como venturoso nunca,
necio, pedira a Aberta por esposa; pedia o poder, Esta negaça foi a mais poderosa remora, suspen-
apadrinhava a fama, e convidava a fazenda; deu di a jornada, aliviei a pena, satisfez-me ditoso,
Ladislao o fim, expirou minha esperança, enlou- esqueci o agravo, dei os ciúmes em alviçaras das
queceu Alberta: apressaram-se as bodas, que esperanças, e chamei venturosas as minhas des-
como eram algozes, haviam de ser ligeiras; che- graças, isto tem o amor de menino, fácil em
gou o dia tanto, como se para ninguém houvera sentir mas ligeiro em se contentar: a mesma mão

92
que lhe mostra as disciplinas, lhe enxuga com u~ a
maçã as lágrimas: escrevi a Alberta, tão satisfeito,
que me parecia pouco ser seu esposo, e para
Tomé
lisongear-lhe o génio, e encarecer-lhe o que já
sentira o seu estado, e o meu desengano, lhe Pinheiro
mandei este
da Veiga*
SONETO

Licença Amor me dá para culpar-te,


(Bem que não posso Alberta enternecer-te) Fastigímia
Se o motivo feliz de merecer-te
Agrava a fim razão de não largar-te. “Preludio das solemnidades
Não há pena disposta com mais arte, que precederam á Semana Sancta”
Pois que importa, na dor que o peito adverte,
Se a sorte teve acasos de perder-te, (1605)
Que tenha amor as sortes de ganhar-te
Mas negue-me este bem a sorte em vão, Por que os castelhanos este ano (por razão do
Que já não há comigo mal violento, nascimento do Príncipe em Sexta-feira da Se-
Depois que amor governa o coração: mana Santa) anteciparam a sua Páscoa de Flores,
A sorte logra o golpe, amor o intento: fazendo das Endoenças Natal, vos quero contar
Pois que mais me faria a possessão, algumas particularidades que notei, que usam na
Donde me tem contente o sentimento? administração e cerimónias dos ofícios desta Se-
[...] mana, diferentes do costume da Igreja em Por-
tugal.
Ao encerrar do Santíssimo Sacramento, não o
deixam em custódia descoberto, que se possa
ver, senão em umas arquinhas, que têm para este
efeito, onde, em presença de um secretário, ou
Escrivão, com testemunhas (que para isso cha-
mam) o encerraram; e, fechando a arca, entre-
gam a chave a um fidalgo dos mais principais da
freguesia, que lhe põe o selo com o seu sinete; e
de tudo faz o Escrivão um auto, e dá sua fé; e a
mesma se tem ao desencerrar, tudo aludindo à
forma que tiveram os soldados de Pilatos no
sepulcro de Cristo Nosso Senhor, conforme ao
que lemos nos Evangelhos: Signantes lapidem

* Thomé Pinheiro da Veiga. Fastigímia. Edição e Prefácio de


Maria de Lourdes Belchior. 1611; Lisboa: INCM, 1988.

93
monumenti, e largamente o prova Baronio nos ou genovês, como instrumentos prejudiciais à
seus Annaes, no ano 34. Estive ao encerrar no moeda e patacas de Espanha, seja açoutado, por-
Carmo, onde entregaram a chave ao Embaixa- que é gravemente suspeito aos Reais Castelhanos
dor de França, fazendo do Ladrão fiel, ainda que etc. E com muita razão, porque Flandres na
este mostra ser Cristianíssimo. guerra, e Génova na paz, têm destruído Castela;
As Igrejas se armam de brocados, telas e damas- por onde dizia o Pasquim que armas e letras
cos bordados, até a mais humilde ermida, que enriqueciam, e enobreciam os reinos; e as armas
me pareceu cousa de grande majestade; é uma de Flandres, e letras de câmbio de Génova tinham
das em que mais se deixa ver a riqueza e gran- destruído a Monarquia de Espanha; e, conside-
deza de Espanha; porque as Igrejas são tantas rando bem os milhões que vêm a El-Rei das
como logo direi, e armam o corpo de todas elas, Índias todos os anos, e que tem de renda em
e não é para isso necessário desarmar nenhum seus Reinos 34 milhões cada ano (que com
senhor as suas casas, porque são das de sobresse- muita parte lhe não chega o Grão Turco), dizem
lente. Em tudo o mais há pouco concerto; e que pudera ter calçados os caminhos de meia
aparato, e menos curiosidade; e os sepulcros de Castela, se não houvera estas duas sacas e bocas
Lisboa, e de outras partes, levam em tudo muita do Inferno; mas deixando as pragas, e tornando
vantagem, na invenção, curiosidade e devoção à devoção:
com que se fazem. As procissões das Endoenças são muitas, e com
O ordinário é correrem as Igrejas de dia, por- muito mais ordem que as nossas, de maneira que
que, como até as mais encerradas donzelas têm a inferior delas é mais notável que a melhor que
os dias todos por seus, não querem experimen- nunca se fez em Lisboa. Nestes dias de
tar o sereno da noite; e, como nas devotas é a Endoenças, a primeira sai da Trindade, vem di-
devoção pouca, e as que o não são não têm ante um guião de damasco negro com duas
necessidade de se aproveitar destas ocasiões para pontas de borlas, que levam dous Irmãos de ne-
sair de casa, tendo sempre a porta aberta, reco- gro; têm estes guiões, em lugar das nossas
lhem-se com tempo; e, assim, em anoitecendo, laranginhas das bandeiras, as imagens das confra-
achei as mais das Igrejas só com o sacristão, e rias douradas, mui perfeitas. Esta trazia Nossa
somente se acham pelas ruas alguns fidalgos Senhora ao pé da Cruz, coberta com um véu
doudos, que se andam disciplinando, com doze negro; [...] Seguiam-se 400 disciplinantes em
ou quatorze tochas negras diante, e eles com duas fieiras em ordem de procissão, 200 de cada
seus sapatos brancos, vestias de Olanda crua, e parte, sem desordem alguma, cada um no lugar
suas divisas, e caraminholas, como esta noite topei que tomou. Após eles 400 Irmãos da Confraria,
o Conde de Saldanha, filho menor do Duque de vestidos de bocaxim negro, com suas tochas de
Lerma, e adiante topamos uma quadrilha de 4 pavios, todos na mesma ordem; e no meio
genovezes com dez tochas negras, e eram os deles o 1.° passo, porque, em lugar das nossas
amos, e os que se açoutavam eram dous caixei- bandeiras pintadas, trazem passos de vulto, de
ros seus, que o deviam merecer, por tão bons estatura proporcionada, os mais belos e formosos
ladrões como seus amos, se é verdadeira a praga que se pode imaginar, porque estes de Valladolid
do outro travesso que, em umas pragmáticas que são os melhores que há em Castela, na propor-
fez sobre o bom governo da Corte, dizia uma ção dos corpos, formosura dos rostos e adereço
delas: Ordenamos, e mandamos, que todo o que das pessoas, que tudo é da mesma massa, de
for achado de noite com escada de corda, gazua, cartão e linho, de que são compostos; e, se entra

94
algum vestido, gorra ou capa de fora, é tudo de alegrando a gente. Mas a principal foi começa-
brocado ou tela, de sorte que parecem muito rem a vir todos os coches de damas da Corte
bem. Este passo era da Oração do Horto, com descobertos, elas vestidas todas riquissimamente;
os discípulos e Anjo. Seguiam-se outros 400 e após elas todos os fidalgos mancebos, e ainda
disciplinantes pela mesma ordem, e alguns deles os velhos, vestidos de noite, com vestidos de
com uma só roseta (a que chamam abrojo) que cores coalhados de ouro, e chapéus grandes com
lhes abre as costas, e afirmo que vi algum levar plumagens, trancelins, medalhas, e todos dous
postas de sangue coalhado de mais de arrátel, em carga, em machinhos, ou facas, porque, por
que me pareceu demasiada crueldade, e me es- maior festa, ou matraca, andavam dous e dous
candalizou permitir-se tanto excesso. Após eles (saem desta sorte); e outros muitos, marqueses e
se seguiam 150 irmãos, de tochas, e no meio condes, a pé disfarçados de sorte que todo o
outro passo, que era da Prisão. Na derradeira mundo os conhece. E sobretudo era para ver
parte da procissão, iam 600 disciplinantes, e 300 infinito número de Senhoras (de que conhece-
irmãos, de tochas e vestes negras; e o passo era mos algumas bem principais) a pé com chapéu e
de Nossa Senhora ao pé da Cruz, com Cristo mantilha, que elas chamam rebocilhos, que os
Nosso Senhor nos braços, e as Marias; detrás um piores são forrados em felpas, e por fora, ou com
corregedor, ou alcaide da Corte, porque não su- bordadura, ou coalhados de passamanes de ouro.
cedam desordens. De sorte que se compunha a E todas em faldelins da mesma sorte, com ir-
procisão de 1.400 disciplinantes, e 650 irmãos, mãos, maridos, ou vizinhos com seus doces na
porque não entra nelas pessoa alguma de fora. manga, dando vaias umas às outras, com muita.
Esta é a menor procissão; vai da Trindade a Palá- alegria, festa, e cortesia, sem desgosto nem des-
cio, e volta pela Plateria e Praça. Em passando compostura alguma. Em quanto a mim, nenhum
esta, sai outra Archiduque, Cardeaes, e Pai da género de festa nem invenção, por mais carros
Rainha Nossa Senhora, por seus correios. de cartas e figuras, de caratulas que tragam, se
À noite, se começaram a pôr luminárias por to- pode comparar com estas naturais, em que se vê
das as janelas, que são ou tochas de quatro pavi- bem a largueza dos corações da gente, e cortesia
os, ou candeios, ou lanternas de cores, a quatro e de todos, pois em tanta ocasião, tanto aperto, e
a seis em cada uma janela, em outras menos, e tanta liberdade, não há uma peleja, nem um
tão espessas que estava a noite tão clara, e mais matante ou picão de Lisboa, que, como dizia
alegre, e fermosa que o dia. E certo que ver a uma castelhana, faça um mimo de Portugal, que
Praça, e Plateria, e as demais ruas, que (depois é dar um beliscão, que leva meio braço, ou a
que se queimaram no ano de 1561) são feitas, barriga da perna, a uma pecadora, que vai man-
pela traça da cidade, de três sobrados com bal- quejando meia hora, e, como se deram lançada a
cões e janelas em igual proporção e semetria, mouro, se vão gabar disso.
sem haver um palmo mais entre uma que entre Indo esta noite em um coche com uns amigos,
outra, que fazia a mais formosa, e aprazível vista encalhamos com outro, aonde iam algumas senho-
que se pode imaginar, estando tudo tão claro ras moças, e no estribo da nossa parte ficava uma
que conhecíamos e falávamos às pessoas que es- velha. Disse-lhe um dos nossos: «Señora Abadesa,
tavam nas derradeiras janelas, e como se fora de quisiera recogerme a hacer penitencia en esse
dia. Juntava-se a isto o concurso de gente, a Monasterio, aun que me cueste a ser guardian».
diversidade de fogos, e todo o género de instru- Respondeu: «No haria oficio de buena Pastora
mentos, com que a Cidade andava pelas ruas en meter el lobo entre Ias Ovejas» – Replicou:

95
«No ay que temer, que hace muchos dias que gente que havia mister uma hora para atravessar
tengo perdido los memoriales (que no tiengo uma rua. Durou a festa até quase às doze, que se
colmillos para morder), y soy tiple». Respondeu: começaram a recolher. No Paço seriam obra de
«Tan poco haré buen Maestro de capilla, que cem tochas postas em fieira em tocheiras, altas
tantos tiples no pueden hacer buena consonan- como de duas braças no Terreiro.
cia». Ficávamos muito juntos a uma tenda de [...]
brincos, e adereços de mulher; disse uma das
moças: «Hay ahi algun portugué, que se enamora
de mi? que soy la más linda (del bando), y me 28 de Abril – Encamizada
dé (compre) unas tocas, que no ay en mi casa
blanca por aora?» Respondeu Jorge Castrioto, Para segunda-feira de Pascoela, que foram 28 de
que ia connosco: «Por impossible tengo yo que Abril, estava ordenada a encamizada, que faz a
donde V. Md. anduviere, falte ni blancas, ni cidade à sua custa para de noite, mas porque o
cornudos». E ela acudiu: «Y aun por esso ando Duque, que entrava nela como um dos Regedores
yo buscando un portugués, por enriquecerle en que é de Valhadolid, estava mal disposto, se fez
essa moneda». de dia pela maneira seguinte:
Na mesma noite topamos com outro; e, como Assim defronte do Palácio como na Praça se
eram tantos, não havia passar. Ouvindo-nos fal- fizeram tabernáculos nos quatro cantos, e no
tar, disse uma: «Hermanos sevozos, no me diran meio trombetas, charamelas e atabales e danças;
por que los llamam sevozos, siendo tan magros?» juntaram-se na Praça às quatro da tarde, saio
Respondeu um amigo (Marcos Salgado): «Señora logo a caminho de Palácio uma máquina de um
Hermana, por las muchas manchas que avemos carro triuntante com um globo do mundo no
echado en las mejores ropas de Castilla». Estava meio e uma figura de Valhadolid triumfando em
neste coche uma dama mui fermosa, desposada cima de tudo: era levado por oito mulas enco-
de pouco, chamada D. Juana Henriques, mui bertada de panos de cores pintados e em cima
conhecida por avisada e fermosa; e, por mais d’elas figuras com suas insígnias particulares e
que vinha rebuçada, se deixou conhecer. Disse- rótulos, que diziam: fama, tempo, água, terra,
lhe D. Pedro Cru, que ia connosco: «Quiere V. mar, dia e noite. Era o carro grande e fermoso,
Md., prestar-me uno de essos ojos, para traerle repartido em quadros, com as virtudes do Prín-
en una sortija para mal de corazon?» Ela, rindo, cipe a que eram dedicados e seus versos mui
lhe respondeu: « Llega V. Md. tarde, que ya los galantes. No topo vinham retratados ao natural
tengo engastados, y muy a mi gusto». Como El-Rei e a Rainha e o Príncipe entre eles; vi-
dissesse outros ditos mui galantes, lhe disse eu: nham ao redor do globo em seus degraus muito
«Porto menos, Señora, puede V. Md. vivir muy género de figuras, com todos os instrumentos,
confiada, que no avemos topado Dama mas avi- que passavam de trinta.
sada, ni cortesana que V. Md.». Respondeu: Sobre esta máquina se assentava o globo mui
«Doyle al Diablo; tan fea le hé parecido (que me bem dividido com todas as terras e reinos de
alaba de discreta)?». E raramente lhes dirão uma Rei em seus lugares: sobre esse um mancebo em
cousa que não respondam outra melhor; mas, pé, que ficava tão alto que igualava as janelas do
assim como têm bom pico, lhes falta a pena, terceiro sobrado, com seu guião na mão.
porque não escrevem tão bem como as Portu- Antes e após do carro iam os Alguazis da cidade
guesas; tudo pende do exercício. Era tanta a e corte fazendo caminho sobre mui fermosos

96
ginetes ricamente jaezados, e eles de capa e Sairam diante seis ou sete alguazis abrindo o
gorra, botoens de diamantes e cadeas de peças, campo; logo lançava um cavalo um velho, gran-
que o menos bem tratado vai mais galan que o de homem de cavalo, picador d’El-Rei e então
fidalgarrão português que mais loução saiu nas passavam a carreira primeiramente o Duque e o
vodas do onde Fernão Gonçalves. Corregedor, a que dava a mão direita por ser o
Eram os da encamizada 250 pessoas de libré, a cabeça do regimento; após deles o Duque de
saber: capas de escarlata, forradas de telilha de Alva e o Conde de Lenos, sobrinho do Duque;
prata com rendas de ouro de perto de quatro de seguiam-se os Duques de Céa e seu Filho e o de
dez de largo; as capas largas com capelo e com Pestrana, todos Grandes; despois os mais senhores
as mesmas rendas; as marlotas de quatro sortes [...]. Passaram quatro vezes as carreiras, que vem
para as quatro quadrilhas, de seda, Índia branca, a ser dezasseis: estava a Praça fermosíssima com
verde, amarela e azul, todas com seus passamanes toda a grandeza e fermosura da corte, que com a
de plata e ouro, como vaqueiros; nas cabeças facilidade que tem de fazer suas misuras das ja-
monteiras de veludo preto com garçotas brancas, nelas às pessoas, que eles falam, fazem parecer
tirando algum que em seu lugar levaram barre- tudo mais bem assombrado e sem os biocos e
tes mouriscos com estrelas de ouro, ou botoens carentonhas de Portugal, que não trata a gente
de diamantes e outras jóias, calças e brozeguins à com vizinhos e naturaes, senão, como cada um
vontade de cada um, mantéos abertos de rendas vivera entre inimigos, segundo os recatos, carran-
e os mais d’eles com moscas de seda, como cas e resguardos com que vive e reina a descon-
poem as Freiras nos cestinhos ou condessas, que fiança e hipocrisia.
parecem muito bem. Durou pois a festa até alta noite e em anoite-
A fermosura dos cavalos e a riqueza dos jaezes cendo entraram no concistório, que é na mesma
não se pode encarecer, senão com se dizer que Praça, a tomar tochas brancas e entretanto se
eram os melhores de Espanha e na corte e em encheram as janelas de laminárias, que foram
nascimento de príncipe, porque os mais dos jae- este dia lenternas todas com armas da cidade e
zes são bordados e de aljôfar em altura de dous são nuns fogos atravessados em campo amarelo;
dedos ou três ou mais que ficam as figuras como e destes papeis para as laminárias deu a cidade
de vulto e mais de relevo. Iam os cavalos com mais de 500 mil, que faziam as ruas claras e
seus xaireis, ou cobertas de telilha de libré sobre alegravam a gente, que era tanta que, temendo-se
encarnado, com suas borlas, que faziam lustrar já disto, tinham deitado pregão, que nenhum
muito: traziam muito número de lacaios de cal- coche entrasse nas ruas principais [...]; e assim
ças, couras e chapéos de tafetá verde, vermelho e esta noite se acharam quasi todas as damas a pé
amarelo em girões e 40 trombetas e atabales do embuçadas e com muita festa e alegria até perto
mesmo, e detrás infinito número de cavalos da meia noite. [...]
jaezados com a mesma riqueza e fermosura. Não gostei nada de uma invenção com que fi-
Chegaram a Palácio, onde correram diante de zeram sair aos Portugueses de muito gosto para
El-Rei e das Damas e d’aí voltaram à Praça os Castilhanos, e foi um tabernáculo, que estava
onde os vi passar a quatro carreiras, porque no meio da praça, ao qual subiram um mulato e
mandavam arear espaço de duas braças ao redor mulata português com adufe e pandeiro e com
das quatro faces da Praça altura de três ou quatro eles também um doudo da corte, e todos tangiam
dedos; passaram desta maneira: e bailavam com grande riso dos rapazes, que
cuidavam que aquilo é Portugal e, na mesma

97
semana em uma procissão votiva da cidade, entre cacho, e a tua espadinha caranguegeira mui
as demais danças fingiram uma de Portugueses refincada, e a tua mulherzinha mui faminta e
com máscaras e pandeiros, com capuzes e som- com muito más perninhas, emparedada, e a tua
breiros muito grandes e com rótulos todos que filhinha com as suas sapatas mijadas e acalcanha-
diziam: «Agt.° Frs.° Português», e, como pandei- das, metida em um archibanco e sem ver sol
ravam, diziam: pelos Evangelhos muito fidalgo, nem lua, vendo a Estrela na hora do meio dia?
muito músico, muito Português, muito namorado Ite, maledicti. «Mala vida en este mundo, y con
e quebrar um corno na cabeça a todo o Castelão; vuestros odios y enbidias peyor en el otro, y por
e toda a festa era como Portuguesada; de maneira lo que hé estado en esta tierra, pido a Dios:
que os entremezes que nós fazemos com os rati- llluminare eis, qui in tenebris etc.
nhos, fazem estes velhacos com os Portugueses:
e, dizendo eu a um castilhano, que esteve toda a
vida em Portugal e era nosso inimigo, que nos 28 de Abril
pagava mal a criação, respondeu: «juro a Dios
que ellos son los maiores inimigos que se tienen, Neste dia veio o correio como era morto o
comidos igualmente de lazeria y de inbidia unos Papa, que o foi somente 27 dias, 28 em pé e
de otros.» nove na cama que, para representar dito de co-
E que quer V. Md. que eu diga de gente que só média, eram poucos: contudo dizem que fez
tem quatro palmos de terra, toda monte e pe- dous cardeaes, por que ficar quem se lembrasse
derneira, que parece juerou Ds. Hespanha, e dele, que devia ser mais eleição de sangue, que
deixou cá o óleo e deitou lá o cascabulho? Pela de espírito: houve mais sentimento em sua morte
qual rezão dizia um embaixador que foi a Por- que alegria em sua eleição, pelas muitas demons-
tugal que bem parecia terra dada em dote a traçoens de amor que tinha feito em respeito de
genro e não a filho; e que dizia outro que esta- Sua Majestade.
vamos neste canto Culus mundi onde não tínhamos Dizem que lhe acharam algumas nódoas de má
comércio da gente, senão de quatro marinheiros feição, que não deviam ser de melancolia da
breados, sem guerras com nações estrangeiras; e, vigairaria, que é boa, e assim dizem (o que eu
replicando-lhe eu com as conquistas da Ásia e não creio) que morreu do achaque de peçonha,
África, respondia: «tomolos Dios como mosqui- enfermidade de que morrem os Papas, por que
tos contra el Campo de Faraon, y con sus botas ouvi dizer que os Médicos desejavam muita vida
y capa de baeta és tanta su soberbia que pergun- e pouca saúde aos enfermos; as molheres muita
tava el otro Portugués si en Italia y Francia habia saúde e pouca vida aos maridos; e os Cardeaes
tambien Fidalgos, como en Portugal, que empeçó pouca vida e pouca saúde aos Papas, por que nas
ha quatro años y lo bueno es que se burlan, y los vagantes vivem e reinam e lhes vai entrando a
hieden los Castillanos, la mas famosa nacion que sua vez.
ay en el orbe, de que temblan las naciones de Já de antes andava fama que havia de viver pouco
Europa y Asia.» tempo, e o que elegessem em seu lugar viviria
E, tomando cólera, representava um entremês e ainda menos e atrás dele seria eleito um frade
dizia que nos quererás, Aff.° Fernandes, com as negro e que seria Montelspero, Agostinho, e de
tuas barbinhas samicas mui tozadas, e amalro- Roma veio o mesmo aviso, mas eu creio em
tadas, e a tua vinha, graduada em quinta, mui Deus e creio que tudo isto é mentira, e advinha
cercada de silveiras, por que te não tomem um quem te deu; uns dizem que vivirá muito, e

98
vencerá, outros que vivirá pouco, e será vencido, rua dobrada de Álemos de um e outro acazão
e o que acerta fica afamado por grande oráculo do muro, que, crescendo, será o mais fermoso
e são todos uns echacuervos. passeio de Valhadolid e Espanha. [...]
Fica o jardim acompanhado de casas, galarias,
varandas, que vêm ao rio de uma ilharga e da
1 de Maio outra, com que fica mais fermoso e aprazível;
tem casas de passarinhos com árvores em que
En el mês era de Abril del de Maio antes um criam, e outras coriosidades: as casas, assim altas,
dia, quando me convidaram para ir à horta do como baixas, são todas cheas das mais fermosas
Duque da outra parte do Rio e que nos iria o pinturas, que há em Espanha e muitas delas
señor dela mostrar o engenho de água que tinha originaes de Urbino, Michael Angelo, Ticiano,
feito, por ser invenção tão famosa, fácil e nova [...]
em Espanha; fui com alvoroço ver a obra e o
Autor dela; e, por que quando vos fostes, não
estava ainda feita, ouvi a descripção histórica: diz 5 de Junho
o A. assim: Dia em que a Rainha comeo em público
Passa o Padre Pisuarga lavando fraldas e chocas
de Valhadolid duas léguas, antes de se meter no Ao Domingo, comeo a Rainha em público desta
Douro e, ainda que não é mui caudeloso, vai maneira: pôs-se a mesa em estrado alto debaixo
alcantilado e com alguns açúdes que o represam, de um doçel de brocado: sentou-se na cabecera
com que, ainda que não é gordo, se faz hidrópico, e tres Damas em pé nas três partes da mesa; as
fazendo umas táboas de rio mui fermosas e das ilhargas poem e descobrem os pratos, a outra
iguaes, com que corre com tanta raposia que trincha na mesma mesa¡ trazem os meninos da
«pudieran los ojos detreminar apenas el camino Rainha os platos desde a porta até los darem a
que llevava.» elas.
As areias que faltam a suas ribeiras para ser claro, As mais Damas estão encostadas à parede em pé
supre com o arvoredo que cria, com que, como entre outros Senhores, que têm lugar com elas,
Molher rica e fea, ainda que tem má cara, está os quais lugares pedem antes, ou elas, ou eles,
bem vestido e guarnecido de árvores frescas, havendo licença para estar com a Snr.ª etc.; e
que, como marquerótas grandes, lhe encobrem a ordinário é dous para cada uma.
maior parte de sua carranca, e fica mui fresco, Quando pede água, a traz uma Dama, que se
alegre e aprazível. põem de joelhos e beija a salva e dá o púcaro e
Atravessam a ponte maior, que não tem mais logo se torna a seu logar; de trás da Rainha está
fermosura que o tosco da antiguidade, com que um mordomo.
a edificou D. Pedro Ansures Conde; da outra Estiveram presentes muitos Ingleses, a quem
parte da cidade logo abaixo da ponte fez o Du- sempre poem diante; e com isso, como eles são,
que uma horta e jardim, a que de uma parte fica benza-os Deus, tão crescedinhos, não vi mais
servindo de muro o rio e da outra parte uma que trazer muitos pratos.
parede, que lhe vai fazendo um quarto de légoa A Rainha devia vir farta, porque comeo pouco;
pelo rio abaixo, ficando da parte da ponte o e assim ela como El-Rei, dizem que são de boa
Mosteiro e Campo da Victória e da outra o boca, porque almoça El-Rei um Capão de leite,
Mosteiro e prado de S. Hierónimo, com uma como quem tem boa vontade, janta como qual-

99
quer filho de vizinho, merenda como Rei e cea aquilo não advinhava ele e mal advinharia o
como um Papa, de maneira que pudera dizer alheo, que é o que em Ariosto disse ao velho
Platão sem se espantar de Dionisio: Vide hominem Atiante:
bis saturum in die. Ma se’l mal tuo, c’hai si vicin, non vedi;
Água era de canela, alguns diziam que o era na Peggio l’altrui, c’ha da venir, prevedi.
cor somente, e assim parecia vinho, mas, como é
Alemã, não se pôde crer senão que seria água. E, ainda que estes embustes do diabo saiam às
[...] vezes verdadeiros, permite-o Deus e ordena ele
os meios para acreditar suas mentiras e se fazer
adorar. [...]
21 de Junho

Partio-se El-Rei para Burgos aos 21, terça-feira, II PARTE


dia aziago na opinião da gente supersticiosa e
ignorante e para atalhar a isso os Príncepes de 1 de Julho
Espanha, como cristianíssimos, partem ordinaria-
mente nestes dias, que me pareceo muito bem A sexta-feira, estando em casa, ouvi uma cousa
por tirar e zombar destes agouros da gentilidade, nunca vista por mim em Valhadolid, que foi
que algumas famílias guardam com mais venera- peleijarem duas vezinhas, chamando-se nomes e
ção que o Evangelho. Como os Mendonças e gritando na rua, porque, de duas vezes que estive
Manrriques, se se lhe entornam o sal na mesa, e na corte, nem eu, nem amigos a que preguntei
vimos nunca peleijar como as nossas regateiras;
de D. Francisco de Almeida em se lhe romper o
quando muito, se deitam seus remoques e pala-
sapato, e as nossas velhas em lhe cantarem as
vras equívocas, ou de dous entenderes, como
galinhas como galo e uivarem os caens e verem
dizem as nossas velhas; porque ordinariamente
gato negro; no que são mais destras que os
tem um modo de falar metafórico e de transla-
agoureiros, aridos e haruspices dos gregos e ro-
ções, e não vulgar, nem ordinário; em lugar dos
manos, entre os quais ainda havia homens que
anexins e rifoens dos nossos sengos e velhos, ao
escarneciam, como fez aquele que, não querendo
modo da nossa Eufrózina, com que fazem alegre
comer os pintainhos, estando para dar a batalha,
e aprazível a conversação; e, como se criam nisto
disse que lhes dessem de beber e os deitou no rio:
de tamaninos, são muito entrevistos.
e o que melhor fala que todos é o antiquíssimo Indo eu um dia com outros amigos, passava uma
Homero, que finge que, persuadindo Polidomas senr.ª em uma carroça e levava 3 ou 4 meninas,
a Heitor, como outro Nuno saido aos Infantes que a maior não tinha sete anos, mui lindas:
de Lara, que não saissem a peleijar, porque as disse eu, passando: «bien se pudiera dar por una
aves não boliam bem as asas, respondeo: não niña destas los dos ojos»; acodio a maiorzinha: «y
quero melhor agouro que de obedecer a quem comprar barato»; disse-lhe eu: «aora digo que no
tudo governa e peleijar pela difenção da pátria tiene preço; por esso hagame V. Md., querida, un
honradamente até perder a vida. fabor de gracia»; a mai lhe disse: «y te doy licen-
E o mesmo intento teve Mazolanio quando, cia, Juanica.» «Fabor? el que Mariquita haze a mi
mandando um agoureiro estar quedo o exército padre; darle bofetones y meare la capa»; a mai
em que ia para ver como usava uma ave ao estimou muito o dito; nós lhes rogamos bons
levantar, ele lha tirou e a matou, dizendo que casamentos, e se foi mui alegre.

100
Estando nós, quinta-feira de Endoenças, no 22 de Julho
Carmo em um recebimento destes que tem
Igrejas as senhoras de dous degraos, estava um [...] Conforma com esta razão o ver que na
rapaz de 8 ou 10 anos e, vendo nós apertadas alegria, com a difusão dos espíritos, se abrem os
umas senhoras, lhe pedimos que subissem ao póros e na tristeza se apertam e contraem; na
estrado: o rapaz lhe ia dando a mão e apertava- alegria se suspendem os membros e nos assenta-
-lhas, e, entrando uma mais moça que tinha mos; no medo serramos os dentes e apertamos
advertido na travessura, pedindo-lha ele ao subir, as mãos; na alegria buscamos a companhia, na
disse-lhe ela que lhe daria uma bofetada; acodio tristeza a soledade; na alegria se derribam os
ele: «perdone V. Md., que pensé que, menor de muros, nos nojos se serram as janelas.
edad, me la podia V. Md., dar». Por isso, finalmente, dá graças David a Deus
Tornando dos rapazes às regateiras, digo que outra porque lhe dilatou o ânimo, e diz de Eneas
cousa, que não vi, é gritar, nem carpir-se mulher Virgílio que dissimula no rostro, mas que a dor
alguma descompostamente, de maneira que a lhe aperta o coração. Isto quanto à alegria in
ouvissem na rua, nem ainda por morte de pais e genere. Vindo a particular: assim como nem toda
maridos, quando lhos levam à cova. a tristeza é choro, nem toda a alegria é riso, um
Dirão alguns que tanto lhes querem, tanto os e outro não são totalmente efeitos, nem somente
sentem; mas eu falo das demonstraçoens exterio- espécies; mas são efeito e espécie de certo género
res, que elas puderam fingir se quiseram, como de alegria e tristeza.
fazem ainda muitos satrapas e senhores da nossa Antes, se bem atentamos, na grande tristeza fal-
pátria, e principalmente as que se casam, logo tam lágrimas, e não se satisfaz com riso a grande
que estas são as que renovam as carpideiras anti- deleitação ou contentamento. Não é grande a
gas de Portugal, e gritas e algazarras nas mortes força de deleite que causa o riso; uns com outros
dos parentes, como se estivera a dor em gritar são mais efeitos da remissão do sujeito, que efeito
muito, que parece que renovam o costume da intenção dele: a dor grande abafa e faz pasmar
gentílico, e ainda o judaico, que diz Jeremias: os sentidos e não cabe pelos olhos, e o grande
Contemplamini et vocate lamentatrices, ut veniant ad contentamento eleva o pensamento e suspende
eas que sapientes sunt, mittite et properent et assument a alma e não sofre riso: e, se bem atentarmos,
super nos lamentum: o que tudo, em efeito, é fingi- veremos que não sofre riso a prudência, pois
mento e ficção e contrário à modéstia cristã, de não pode caber o riso em nenhum homem pru-
quem crê que há ceo e glória e a virtude da dente, porque o riso não o causam de sustância
fortaleza e grandeza de ânimo, contra toda a nem que tenham ser, senão as de graça e
regra da filosofia, e magnanimidade, de cujos escárneo, como o apodar, o zombar e o escarnecer
exemplos estão cheios os livros, e nesta parte são o erro, ou a parvoíce de outrem errar a palavra.
assaz stoicos os espanhoes, que nada os perturba Enfim; riso causam as cousas redículas e não as
senão faltar-lhes dinheiro, antes têm por costume verdadeiras: rimos na comédia do Bobo e reco-
os viúvos acompanharem às molheres em seus lhemo-nos, sem falar, conosco, no dito do Rei
ofícios e enterros e os pais os filhos, que o sen- sábio: a travessura nos faz rir, o feito nobre olhar
tem e sabem sofrer e sem se descompor. [...] para o vizinho: e, vindo à autoridade dos Pinto-
res, de que vós, P.e, vos quereis aprobeitar: onde
vistes a Sócrates rindo, ou a néscios senão com
riso? os grandes Monarcas e ilustres varoens senão

101
com gravidade, modéstia e prudência e grandeza nervos miúdos, que causam a mostra do riso,
de ânimo; e os Momos e Zoilos senão escarne- contraindo-se e fazendo o riso na boca e face:
cendo uns dos outros? vereis nos Anjos a alegria, por onde, conta Plínio que muitos gladiadores
mas não riso; mostrarão a glória no semblante, morreram rindo, porque lhes chegava a espada
mas não o riso na voz e menos no rosto: vereis ao fígado e fímbrias dele: e o mesmo se diz da
os Bemaventurados com rostro risonho, e, final- peçonha de Serdenha que naturalmente mata
mente, ver-se-á sua Bemaventurança na alegria rindo, donde ficou o provérbio no riso forçado,
dos olhos mas não no riso da boca. que se chama – risus sardonicus.
Nenhuma cousa é mais contra a gravidade e Da sua origem vereis o pouco caso que a natu-
modéstia de um Religioso que o muito riso: reza fez dele; da sua causa, que são cócegas e
qual Rei vistes rir em público? qual varão emi- cousas ridículas, o pouco que se há-de estimar;
nente na Praça, que não fosse tido por chocarrei- de seus orgãos e menistros o pouco que vale,
ro? fazer rir é custume de ruhoens; e rir muito, porque a tristeza e gravidade está na fronte e
de loucos. Provérbio antigo é que no muito riso sobrancelha e a alegria na boca; todas as línguas
se conhece o néscio, porque o prudente deleita-se nos olhos como garantes do coração; por isso,
nas cousas graves, conforme a sua natureza, e o ficou a metáfora latina: triste supercilium; e a frase
louco nas redículas, que só entende: e ainda sem espanhola: com a boca chea de riso. Havemos de
a regra dos Estoicos, que negam que o varão trazer a gravidade sobre os olhos e cuspir o riso
prudente há-de estar sujeito a nenhuma paixão, que nos vem à boca; mas vós, Padre, quereis antes
entendemos que nem as lágrimas estão bem nos seguir o Carneiro de Marcial que o filho de
olhos do varão forte, nem o riso na boca do Cresso e entendereis um Epigrama seu que diz:
prudente; porque uma cousa e outra são exces-
Caepit, Maxime, Pana, quae solebat
sos, em que a paixão vence a rezão, a dor a
Nunc ostendere Canium, Terentos.
fortaleza, o gosto a modéstia e gravidade.
E, tornando ao discurso em que começámos, Que quer dizer que veio seu amigo a Tarento e
digo que a mesma natureza nos mostra a pouca que começa a cidade a o ter em lugar de Sátiro,
sustância do riso, conforme a qual nos deu no que se pintava rindo, porque sempre ria; e assim
rostro vozes a todos os sentidos e orgãos deles concluo que o homem que ri muito é sátiro e
para mostrar os efeitos da alma, com que tão meio homem; mostrai-me algum que se louve
bem sabe mostrar na tristeza a sua dor com mais do muito riso que de muitas lágrimas.
choro o menino de um dia como o velho de O riso no homem grave há-de ser mais agasa-
cem anos, e exprimir seu gosto com riso o cor- lhado que riso, acolhimento que descompostura,
tesão de Valhadolid como o rústico de Soyago, mais na modéstia e favor do rostro que no riso
porque é linguagem que igualmente deu a natu- da boca. Vistes vós já, meu Padre, galgo que,
reza ao branco Alemão e ao Etíope adusto, «del saindo-lhe uma lebre, lhe saio outra e perdeu a
Gange al Tago, del Yndo al Danubio». ambas? Ora ouvi e vereis que, ainda que um
Quem se deixa vencer destas paixoens, sem as homem queira ser grave, não quer este mundo,
moderar pela razão, é negro, ou é menino: o tenta-o o Diabo e faz-lhe cócegas à carne. Por
assento da tristeza ou alegria está no coração; o esta cruz, que, estando lendo isto na cama e
riso ou se causa das cócegas na superfície, com o rindo com um amigo, chegou um criado e deo-
proido a que chamam tintigo, ou propriamente -lhe uma carta, que trazia um escudeiro, aberta e
no fígado; dele vem ao rostro umas fímbrias e dizia assim: Ele, morto de riso, disse: ora vá o

102
Padre Thiedra prégar aos desertos da Líbia, se contentamentos que em todas as larguezas da
me quer tirar que não caia com riso. Lêde esta e terra; porque o amante que de todo pessue a
chamai-me cá esse e demos-lhe uma cossa. cousa amada pode viver mais farto, mas não
Entrou, com suas esporas douradas e chapeo de mais contente; porque não vive o homem só do
abalroar, com tanta confiança como se trouxera pão sobejo, que oprime as forças, mas da graça e
carta do Padre Ignácio. Dizei-me agora mal dos favores, que recream a alma.
castilhanos, ou pregai-me que me não afogue Aos Deuses maiores sacreficavam os Romanos
com riso; com esta Filosofia me atenho eu e não por libação, tomando com a boca a salva do
com as acendalhas que alega o Padre, para fazer sacrifício; aos infernais por protervia, comendo
a sua boca: já me ia convertendo mas aconte- tudo. É divino o homem que se satisfaz com a
ceu-me o que conta a fábula de Ezopete, que, libação do bem, que adora; e sacerdote infernal
em vendo a Dama que se converteo em Gata, o o glotão que se farta só de carne, como desco-
rato deixou a cama de graã e saltou após ele: nhecedor dos bens do amor.
quod natura dedit etc. Priva-se o que sempre viveo farto da melhor
salsa que tem a gula, que é o apetite da fome; e
priva-se o sensual da maior deleitação que tem
EPÍLOGO o amor, que são os mimos de uma carta, o favor
de uns olhos brandos e a suavidade de uma branca
E folgo que com este engaste desta fermosa pé- mão. A fome é a que faz saborosa a comida, a
rola da honestidade e pureza do amor verda- sede dá sabor à agua. Tântalo ditoso, se por tua
deiro dê remate ao discurso desta ociosidade, vontade privas de um gosto a gula, por lograr
que, como somente em Portugal se acham estes tantos com os olhos. Cresso sábio e avarento, se
finos diamantes, que os de Castela são de Canadá, poupas tal tesouro, porque, em quanto o fores,
só estando nele me atrevi a rematar. Porque, na como verdadeiro Midas, de tudo o em que pu-
verdade é que nem sem amor há gosto, nem seres a mão tirarás tesouro.
pode sem pureza haver amor: nesta fé vivirei Comete culpa contra a natureza quem perverte
sempre e nela acabo e espero de me salvar. a ordem dela: ceou a roseira para nos dar flores e
Enganam-se os mundanos que cuidam que per- as árvores para nos darem pomos, umas para
dem gostos os que os poupam. Nos gostos do cheirar, outras para comer; e criou a terra donzela
amor verdadeiramente importa mais ser avarento para se servir e amar e a mulher para procrear;
que pródigo; porque tanto tenho de contenta- cria no alegrete o curioso a branca assucena e a
mento quanto poupo, tanto me fica no tesouro encarnada rosa e o verde mangericão; entanto se
quanto deixei de tirar dele, porque não é rico deleita nele, em quanto conserva o orvalho e
quem despendeo muito senão quem tem muito frescura natural; como se enxovalha ou murcha,
que lograr. logo perde a graça e se lhe perde a afeição: em
Digam-no os casados, a que passou pela mão tanto se estima a planta mimosa, em quanto
todo o dote e jóias de sua Esposa: e digam-no os conserva a fermosura da flor e suavidade do
namorados, que em sete anos de serviço sempre cheiro; tanto que lhe cabe, se deita a um canto e
vão colhendo prémios de seus serviços sem en- fica para semente.
fastiar o desejo nem esgotar o tesouro: e digam-no Qual é o néscio que espera, do verde mange-
meus pensamentos, que, em fim de tantos anos, ricão, mais animá-lo com a mão e lograr os sobejos
acham mais liberalidade nos impossíveis de meus d’ele? Das hortas alheas se enchem as canastras

103
para mantimento do corpo, do jardim própio se A tenra donzela é rica jóia para se ter em tesouro
guarda o fruito para deleitação dos olhos. Da e guardar em gaveta, entre o âmbar, sem se enxo-
planta alheia só me dá gosto comer a fruita, do valhar com o uso. De outra maneira, se tirais ao
meu enxerto mimoso trazei-a na manga e anel o diamante, que preço fica no ouro? se se
chegai-a ao rostro. lhe perde a unha, que vertude fica ao assór? se
Se o ceo me concedera uma flor destas, tivera cai da arrecada o brinco, de que serve o aro?
por heregia comê-la e não poupá-la: se alcançara Em tanto me revejo no espelho em quanto está
um destes ramilhetes, deleitara-me em enfeitar o puro: entanto recrea o vidro cristalino os olhos
pé e gozar o cheiro, sem violar as flores: porque enquanto está inteiro. Para ornar a casa se cobre
destas Árvores do Paraíso há-se de cheirar o o retrato e para afermozentar a prateleira o
fruito sem danar a planta; e destes retratos divi- brinco de Estremoz. Bafeje-se somente o espe-
nos de Apeles, só se há-de contemplar o pé sem lho, por se ter mais puro: poupe-se o cristal para
sobir do sapato. Ah que isto é amor: quem assim deleitar à vista; não se tire o véo, mas ponha-se
o não sente no sabe que és amor, del bive ausente. vidraça à imagem fermosa que conserve sua pu-
Porque quem é tão pródigo que em um só ban- reza e descubra sua fermosura: e, finalmente, tra-
quete gaste pérola tão rica, senão uma desconhe- ga-se o brinco de Estremoz no beiço sequioso,
cedora de seu preço como Cleópatra? Quem mas não se faça dele mantimento para o baixo
deita no mar o vaso com que se serve tão sabo- corpo.
rosa iguaria, se sabe que se não pode recuperar, Quem, senhoras, pertende mais de vós mente, se
senão um oleiro baixo como Agatócles? Quem vos diz que vos ama; e, se cuida que ganha a si
come em um bocado todo o seu morgado senão mesmo, se engana. Quem, com tanta perda vos-
um reprobo como Ezahu? E quem gasta à volta sa, grangea um só gosto não vos quer bem; e
de uma dança toda a sua legítima senão um quem, com tanta perda sua, à conta de um de-
desasizado, como o Filho pródigo? leite, esperdiça tantos, por força se quer mal,
Faça o provido do bem que adora aparador e pois, com tanto dano vosso, procura privar-se de
não mesa, iguaria para os olhos e não para a tão precioso tesouro seu.
boca, recreação para o entendimento e não para
o estômago; desta maneira viverá rico sem gasto,
fará da tença juro e, tendo a receita sem despesa,
como em arquivo público, guardará o original,
donde tire traslado, que recree a alma. De outra
sorte, se despedes o teu cozinheiro de todos os
teus gostos, quem te há-de dar guisados de que
tenhas contentamento? se se acaba o sal, donde
há-de ficar sabor a tuas iguarias?
A rica jóia ou firmal é para ornar o cabelo de
ouro: o colar de diamantes para prender o colo
de marfim: os brincos ou Pelicanos das orelhas
para insensar ao divino rostro: o anel de prata
para se engastar em mão de cristal e o fino
Extremoz para servir água pura e recrear o
olfato e não para fartar o estômago.

104
Francisco este receio que a boa presença do ladrão, e bus-
cando-lhe o neto as algibeiras a primeira bolsa
que achou foi a do mesmo neto que não sabia
Xavier lhe faltava disse o doutor que tinha e concor-
dando a recolheu, e a achou logo a segunda e

de Menezes *
outra de u~ que não sabia lhe faltava por que
todos examinaram as algibeiras. Um clérigo se
recolhia pela Costa do Castelo, e viu fugindo um
homem nú que lhe disse se guardasse de quatro
ladrões que o tinham despido; desprezou a ad-
vertência e encontrando os ladrões o quiseram
Diário matar; mas ele deu u~ a tal ferida no primeiro, que
caiu pedindo confissão: fugiram os três, e reco-
[...] lhendo-se o Padre ouviu tanger ao Senhor fora,
foi a acompanhá-lo por devoção e curiosidade e
Diário de 27 de Fevereiro de 1731 achou um Tenente contando que os ladrões lhe
deram aquela ferida, e quando o Santíssimo se
Foi condenado à morte u~ Coveiro, porque rou- recolhia de Casa; chegou o Padre, e lhe disse não
bou u~ a Imagem em Moura, e não tendo voto de acuse V. M.ce falsamente pois está para morrer;
vida nos embargos lhe receberão dous artigos porque eu sei toda a história que foi pelo con-
para provar que a jóia não era de N. S.ª e que trário.
era falsa pois não chegando a marco de prata se Os que querem introduzir a Ópera têm ajusta-
não podia publicar a sentença sem ter dado con- das as Cantarinas por vinte mil Cruzados, e u~ a
ta a El Rei. planta para o Teatro no mesmo Pateo, e o Patri-
Dizem que os furtos continuam e de dia se tem arca os não embaraça, mas falta-lhe a licença del
entrado em várias casas, donde entendem que Rei.
não estão os donos, e entre u~ as pedras a S. O Senhor Infante D. Manoel teve em Viena u~ a
Nicolau se acharam ontem quantidade de cha- Conferência com Emperador, e está em uma
ves e gazuas. No assougue houve um furto gra- Casa de Campo do Barão de Fitim.
cioso; porque queixando-se um homem de que O Senhor Infante D. Carlos não teve repetição.
lhe tomaram a bolsa e suspeitando em outro que A Senhora Infanta Dona Francisca está sangrada.
estava junto a ele mal vestido, ele lhe declarou El Rei veio a Procissão de Jesus que não houve,
que a vira levar a um muito guapo de capa e e voltou para Mafra até 27 dando licença ao
cabeleira que já ia saindo, e gritando ao neto Marquês de Marialva para vir a Lisboa com a
que prendece aquele guapo este voltou dizendo sua casa por três dias.
que as cutiladas provaria que não devia nada ao A Senhora D. Maria de Noronha mulher de D.
neto o qual também repreendeu ao que tinha Gastão continua no último perigo. O Conde de
perdido a bolsa deste juizo temerário porém ele Assumar seu D. João está pouco melhor dos seus
lhe protestou que lhe havia de pagar a perda esquecimentos e com u~ olho enevoado. O Mar-
pois não examinava o delinquente e pode mais quês de Angeja caio da cama abaixo, e lhe cres-
ceram as faltas de respiração inchando nova-
* Apresentado e anotado por Eduardo Brazão. Coimbra: U. mente. A Senhora Condessa de Óbidos está livre
Coimbra, FL, 1943, p. 15-18; 44-46.
de duas quartans que se temeram sincopaes.

105
Ontem Bautizou o Conde da Ribeira, e ainda Filha de Felix Machado vai correndo e este está
que pelo nojo não convidou os parentes, e pa- moribundo.
rentas de ambas as famílias jantaram magnifica-
mente. A Senhora Condeça de Alvor sua Avó
que deu a sua filha u~ a bolsa de moedas, e foi Diario de 6 de Março de 1731
Padrinho D. Luis da Camara Irmão do Conde, e
a Senhora Condessa da Ribeira que também se [...]
achou na função deu em nome de seu filho a
sua nora u~ cofre de xarão com luvas e outros O Auto da Fé teve casos extraordinários, e es-
adereços, e um ramo de flores que tinha por tando quando se apregoou para queimar vinte, e
remate u~ prego de um Diamante brilhante de dous, e duas estátuas, se reduziram três antes das
grande preço. mãos atadas, três depois, e u~ ficou dentro reser-
No mais estreito da rua do Vigário ia Rodrigo vado, e Maria Mendes foi admitida já no Auto,
de Oliveira Zagalo, e Luis da França em u~ a Sege, com que foram queimados onze, e duas estátuas,
e encontrandose com u~ Paquebote com um fu- dizem que Álvaro Roiz se declarou ao pé da
lano de Navaes de Setúval, e porque os Desem- fogueira, principiando a queima às outo horas da
bargadores não podiam recuar se apeou com a menhaã, assistindo El Rey até o fim, e foi causa
espada na mão, e os envestio. Teve Rodrigo de da detença pedirem todos menza a algu~ s muitas
Oliveira a fortuna de lhe apanhar a espada e vezes levando o Conde da Ericeira u~ a diminuta
quebrando-a o moço se retirou recuando o até S. Domingos, El Rey lhe mandou em público
Paquebote pedindo os dous Desembargadores que trocasse com quem levava u~ a negativa para a
que o não castigassem o que dizem que El Rey persuadir a que confessasse o que nunca tinha
ainda fará. feito, e o fez ainda que mal, e tarde. A Beata,
O Duque de Cadaval acabou os seus últimos célebre da Casa do Conde de Val de Reis, e
três anos de Presidente da Mesa da Conciência a outros fidalgos, andava amancebada com o de-
27 de Fevereiro e ainda não foi reconduzido mónio, e o mesmo desde outo anos executava
dizem que espera o Desembargo do Paço. [...] Josefa Maria com outros crimes atrozes; o Cléri-
Dizem que a frota de Pernambuco apareceu na go esteve muitos anos por fitente em que era
Barra, e tornou a desviar-se com os ventos. Os Deos; António Moutinho Capelão da Miseri-
Navios q arribaram ainda não sairam, mas as córdia tido por Santo era igualmente horrível, e
Inglesas de João Godart, q se sopunham perdidas os quatro Caroxos casados com as quatro caro-
chegaram bem a Cadiz. [...] chas usavam com o diabo de tais torpesas, que
Dizem q está casada a Senhora Dona Luiza dous deles eram seus pacientes; os dous relapsos
Henriques filha de D. Jorge mas fala-se com confessaram sabendo que perdiam a vida mas
incerteza no noivo que alguns entendem que é com tão pouco arependimento, que não mere-
Jozé de Vasconcellos Trinchante, e de outros ca- ceram absolvição das culpas.
samentos se diz ainda sem a certeza que baste
para avisá-los, e se supõe que o da herdeira de
Pancas com D. Rodrigo de Noronha não está
seguro por que o apressam e ele não quer perder
os Benefícios que deseja por em cavaleirato
quando houver recurso a Roma. O Divórcio da

106
Frei Alexandre a Rainha mãe por seu Camarista, quando lhe
deo casa, e ao Infante D. Pedro. Sucedeo aquela
diligência maternal e cristã de querer ir à mão a
da Paixão* seu filho a algumas demasias indecorosas a um
Príncepe, e mal permitidas a um particular, até
aquele tempo desculpadas com a idade, e já es-
tão mal sofridas pelas consequências: sabia que
Monstruosidades do Tempo tudo eram efeitos de ilhargas que pervertiam a
obrigação, encaminhando seus particulares pelo
e da Fortuna desencaminhado do Príncepe, tanto em defraudo
da pessoa real como do Reino, que desgostado
(1662) esperava a emenda só por meio de uma pública
demonstração. Em a manhã de 16 de Junho de
Não são diferentes as edades, porque as alterem 1662 entrou em Palácio para o quarto del Rei
os tempos; são diferentes as edades, porque as D. Nuno Alvares Pereira Duque de Cadaval, Luis
deseguala a fortuna. Fado lhe chamou a antigui- de Mello Porteiro-mor, e seu filho Manoel de
dade cega. Providência divina a confessa a filo- Mello, e o Doctor Duarte Vaz de Orta, Corregedor
sofia ilustrada: pois é de fé, que tudo pela vontade da Corte; e como António de Conti trazia já
do Deos se governa; dela se aparta a malícia dos algumas sospeitas incertas, entrando para a se-
mortaes, livre para obrar pelas leis da vontade, gunda casa se fechou nela, e querendo o Duque
como rebelde aos dictames da rezão: devia esta abrir a porta com a chave que trazia, não pôde, e
ser senhora; e pervertida a ordem da natureza, a por mais que bateram, ele e Luis de Mello, lhes
fazem os homens escrava, seguindo o que que- não respondeo: e entendendo-se que o negócio
rem, e não o que devem; e vem a ser as obras se perderia, se Conti se passasse ao quarto da
dos mortaes monstruosas, como partos adultera- Rainha, foi Manoel de Mello pôr-se naquela
dos. Não falta àqueles a divina justiça com os casa, que forçosamente havia de demandar, e
castigos, fabricando os homens com suas mãos saindo o Duque ao eirado, que fica sobre a casa
suas próprias ruínas, e destas mesmas os mesmos da Índia, vio que ele tinha metido a cabeça pela
homens suas maiores fortunas; vendo-se ao mesmo grade da janela, e não a podendo recolher, lhe
tempo, uns caídos, outros levantados, servindo pegou pelas guedelhas, e perguntando que era o
igualmente ao suplício o infortúnio que derriba, que queiram, o Duque lhe respondeo, que el
e a ventura que levanta; e são estas as notas Rei o mandava prender; pedio então que o lar-
porque se conhece a diferença dos tempos, estas gassem, que abriria a porta: largando-o, mudou
as que em todo o tempo farão prodigiosa a pre- de parecer, dizendo que se não havia de matar
sente edade em este Reino de Portugal. por suas próprias mãos. Vendo o Duque, e Luis
Entrou Luis de Sousa, Conde de Castel Melhor, de Mello que toda a dilação era nociva para o
em o serviço de S. M. D. Afonso o 6.°, dando-lho que intentavam, disseram a André de Leiro,
Guarda da tapeceria do Paço, que fosse à Ribei-
* Monstruosidades do Tempo e da Fortuna. Diário de factos ra das naos, e trouxesse alguns machados. Vio
interessantes que sucederam no reino de 1662 a 1680, até Conti da janela em que estava, que chegavam os
hoje atribuido infundadamente ao benedictino Fr. Alexandre
machados, e dizendo-lhe o Duque que qualquer
da Paixão. Divulgado por J. A. da G. Barreto. Lisboa: Tipografia
da Viúva Sousa Neves, 1888. lasca das portas lhe havia de custar muitas feri-

107
das, que se abrisse lhe dariam a vida, se resolveo tornou S. A. a pedi-los em pessoa a el Rei, e lhe
a abrir a porta, e o prendeo o Corregedor, e a respondeo que pois era teimoso, ele o estava
Balthasar de Matos, e os mandou a um navio também. Pedio então licença S. A. para se sair da
que estava de verga de alto, para passar ao Estado Corte, pois lhe não davam ajuda do custo para
do Brasil. No mesmo tempo prenderam a João galas, e librés de seus criados, querendo luzir na
de Conti, João de Matos, e Fr. Bernardo Taveira, entrada da Rainha como convinha a sua pessoa;
expulso da Religião dos Eremitas de S. Agostinho: nem tinha com que publicar o afecto, e a rezão
porém destes cinco foram somente António de de mais empenhado em festejar o casamento de
Conti, e seu irmão João de Conti, e João de Suas Majestades; mas nada se lhe concedeo. [...]
Matos: Baltasar de Matos Rodrigues foi tirado Chegou-se o tempo de fazer a Cidade de Lisboa
do navio por menos culpado; Fr. Bernardo fu- festa a Sancto António com os costumados tou-
gindo à prisão, se maltratou de sorte em uns ros; e aos primeiros, que foram a 23 de Agosto
despenhadeiros, que não poderam passar à em- de 667, assistiram Suas Majestades e S. A. Acabado
barcação que ia já de largo. [...] o dia soube a Rainha que em uma janela do
Paço estivera vendo a festa uma mulher, conhe-
cida tanto pelo nome, como pela vida, celebrada
(1666) pelo alcunho de Calcanhares, sustentada para fei-
tiço de S. M. Sentio tanto a Rainha o desprezo,
[...] Outro papel saiu sobre as aposentadorias em que apaixonada se manifestou achacosa, sendo
que acomodavam os sujeitos de Lisboa, confor- seu desgosto a suspensão da festa. Sobre negócios
me ao nome das ruas, e becos da mesma Cidade, de sua casa, a que o Secretaário de Estado acu-
pelo estilo do que temos escrito; mas por passar dia, não só remisso, mas descuidado, o mandou
de sátira, se mandou recolher, com gravíssimas chamar a Rainha, e na prática andou o Secretá-
penas a quem fosse achado; fazendo-se todas as rio tão descomposto, que sem lhe falar com a
diligências por se saber o auctor de uma, e outra devida reverência, se atreveo a levantar as vozes,
obra, porém não se conseguio o desejo. e a pegar-lhe das roupas; acção tão censurada,
Chegou a Rainha que Deos guarde a tomar que dentro dos termos da limitação se lhe não
porto neste Reino a 2 de Agosto de 666. Quiz o achava desculpa. A Rainha como discreta, e Se-
Marquês de Ruvigni, General da Armada, beijar nhora, o deixou com as palavras na boca, e lhe
a mão a S. A. para o que lhe mandou pedir virou as costas, e logo escreveo a el Rei referindo
licença: achava-se a sua casa naquela ocasião só o desacato, e pedindo castigo para o atrevimento
com D. Rodrigo de Meneses, porque Cristovão com demonstração que a deixasse satisfeita, des-
de Almada estava em sua casa com certo impe- terrando da Corte a quem não sabia como se
dimento. Não deixou S. A. de ter muito senti- guardavam os respeitos dela: foi a queixa à mão
mento de ver a sua casa com tão pouca autoridade; do Conde, e respondeo-se à Rainha, que um
e tomando a falta em que se vira por ocasião Secretário se não desterrava por causa tão leve.
para tornar a pedir a el Rei Gentishomens que Segundou a Rainha a queixa, falsificou-se-lhe a
lhe negava, mandou por João de Roxas de Aze- proposta, e lida em Conselho de Estado se assen-
vedo seu Secretário dizer ao Valido, que signifi- tou ainda assim que por satisfazer à Rainha, se
casse a S. M. de lhe dar os Fidalgos que lhe fosse António de Sousa por alguns dias para a
proposera; deo o Secretário o recado ao Valido, e sua quinta, duas légoas da Cidade, o que se exe-
ele lhe trouxe uma resposta tão desabrida, que cutou com tanta zombaria, que o Secretário

108
estava em sua casa, e ia todas as noites ao Paço, mente em V. M. nesta ocasião aquele amor que
visitado de muitos, e visto de todos; a tanto sempre soube, e saberei merecer a. V. M. em toda
desprezo dos Ministros tinha chegado o respeito a parte, cuja Real Pessoa guarde Deos como
devido a uma pessoa real, e Rainha de Portugal, desejo, e hei mister. Escrita em Lisboa a 2 de
donde se veneram os Príncepes com adorações. Setembro de 667. O Infante.»
Faziam-se diligências com a Rainha que perdoasse Respondeo S. M. que aquela matéria era muito
ao Secretário: ela valerosa insistia no castigo grave, que a não podia resolver sem a propor a
muito longe de perdoar; o Paço inquieto e divi- seu Conselho de Estado; resposta que dictou o
dido em opiniões, umas que acusavam, outras Conde, persuadido que todo o Conselho teria
que absolviam, ferviam as sisanias, cargavam-se por si. Este foi o primeiro passo do despenho do
todas as culpas ao Valido, o qual acusado de sua Conde, porque se discorrera como entendido,
conciência, e informado do mal que havia to- vira que a oposição o perdia, que só o retiro o
mado o caso S. A., fez dobrar as guardas de salvava; mas a soberba a ninguém deixou nunca
archeiros, e dobrar as companhias de infantaria, discursar. Com negociação de votos se chamou
mandando as tropas, e terços pagos para se a Conselho de Estado, nele se deram taes cores à
aquartelarem no Terreiro do Paço, donde os pa- proposta do Infante, que quasi todos os votos
lanques lhe serviam de fortificação; dando por assentaram, que se não devia desterrar um valido
rezão a el Rei, que a ele o queriam matar, e a S. pôr uma culpa leve antes de provada; que se
M. tirar a Coroa: vendo S. A. tanta novidade, sem provasse, e que então se castigasse pelo mereci-
se lhe dar nenhuma conta, nem fazerem dele mento do delicto. Divulgou-se a queixa e o as-
caso, considerando-se no desprezo com que se sento: declarou-se a Corte contra o Conde (sendo
tratava a Rainha, sem S. M. acudir a nada, se- os primeiros os seus mais obrigados), seguida de
guindo as disposições do Privado, escreveo a el todo o povo, que inquieto se enfurecia de ver,
Rei esta carta na forma seguinte. que um vassalo se atrevia a fazer oposição com
«Com grande sentimento meu, prostrado aos S. A. [...]
pés de V. M. (a quem venero como meu Rei, e
Senhor, e respeito com o amor de Irmão) me (1667)
obriga a exorbitância do Conde de Castel Me- [...]
lhor, a dizer a V. M. que havendo ele esgotado Na entrada do mês de Novembro se pôs um
todos os meios que a sua malícia excogitou em pasquim em os lugares públicos da Corte, o qual
damno de minha vida, como me constou por dizia:
ministros de toda a auctoridade, e zelo, que a
minha cautela, e prevenção evitou, passou agora Tres ccc. contem o libelo,
a sua insolência a armar o próprio Paço de V. M. Cortes, Contas, e Cutelo.
com o persuadir que eu intentava violar o sagra- com o que movido o povo, ajudado de diligên-
do dele, podendo inferir-se bem dos anteceden- cias grandes, foi por seus misteres pedir a el Rei
tes, que o seu intento seria atrever-se-me: espero Cortes, levando um papel em o qual se repre-
eu da justiça de V. M. que por este atrevimento, sentava a necessidade delas; respondeo el Rei
execute um tal castigo, apartando de si este que veria o papel, então que deferiria. Foi dila-
vassalo, que me não ponha em necessidade de tando a resolução muitos dias, e o povo apertando
buscar Reinos extranhos, em que passe a vida, cada vez mais por elas, até que com outro papel,
como me será forçoso, em caso que não experi- que era o resumo do primeiro, instaram com el

109
Rei, ao que respondeo, que na segunda feira valecente, e que assi ficaria mais airosa, que
seguinte, que foram 7 de Novembro, daria res- deitá-la publicamente de seu serviço. É a Mar-
posta. Passou-se a segunda-feira sem el Rei re- quesa altiva, e soberba, e por consequência cega:
solver nada: na terça se juntou o Senado, e se respondeo que não havia de ir se a não mandasse
assentou nele por última conclusão que o Juiz el Rei, que era o que lhe dera o lugar; tão
do Povo com seus companheiros fossem dizer a indiscreta é a presumpção, que se atreve a medir
el Rei que haviam por levantados todos os tri- os braços com o mais poderoso, imaginando va-
butos até S. M. deferir às Cortes: fez-se o protesto ler-se das artes mais indecorosas. Foi a Marquesa
ao Marquês de Nisa, a quem el Rei mandou fazer queixa a el Rei, dizendo-lhe (como dizem)
tomar o recado (que duvidava dá-lo a el Rei, que a Rainha a queria fora de sua casa para ficar
mas à primeira palestra obedeceo, e lho deo), e à sua vontade, porque sabia quanto vigilante ela
logo foram intimar o mesmo à junta dos Três era no serviço de S. M. Respondeo-lhe el Rei
Estados. Forçado el Rei da necessidade, e obri- que se lhe não desse nada da Brichota, que fosse,
gado dos conselhos, concedeo Cortes para o e estivesse, e se ela falasse, que lhe cortaria tal
primeiro de Janeiro de 668. cousa com uma navalha. Estava a Rainha disposta
Com facilidade se foi esquecendo el Rei de (gastada a paciência com que creciam os agravos,
todo o passado, assistindo a alguns despachos vio- e desprezos) e pôs em execução o que havia
lento, e continuando em seus divertimentos, fa- muitos dias determinava, e se dizia pela Corte,
zendo tão pouco caso da Rainha, como se a não que era anular o casamento, inválido pela impo-
houvera em Portugal, entendendo-se que ainda tência del Rei.
havia quem o distraia. A um Agostinho Nunes, Segunda-feira 21 de Novembro saiu acompa-
que de surgião passou a ser alcoviteiro, e me- nhado dos oficiaes de sua casa, e de algumas
drou de sorte que tinha 600:000 reis de renda, damas, que eram D. Antónia da Silva, D. Antónia
se deo recado que dentro de doze horas saísse da Maurícia da Silva, e D. Isabel Francisca da Silva,
Corte, e se fosse para o Pombal, donde mandasse e vindo ao Mosteiro da Esperança, da Ordem de
certidão de como ficava lá, e obedeceo pontual- S. Francisco, tanto que entrou com elas para
mente. Ao Conde de Val de Reis se avisou que dentro, mandou fechar a portaria, e tomou as
fosse para o seu governo do Algarve, e ao Vis- chaves. Enviou seu Mordomo-mor a el Rei com
conde de Vila Nova de Cerveira que não falasse um recado por escrito, que dizia o seguinte:
mais, e a outra muita gente, com que se atalhou
a muitas inquietações do Rei. Em sexta-feira 18 «Deixei a pátria, a casa, os parentes, e vendi mi-
de novembro houve touros, porfiando el Rei nha fazenda por vir acompanhar a V. M. com
em que não se desfisessem os palanques para desejo de o fazer muito à sua satisfação, e tenho
este fim: estavam publicados para a segunda-feira sentido muito a desgraça de o não poder conse-
que se seguia, porém desviou-os a prudência guir, por mais que o procurei: e obrigada da
dos Senadores da Câmara com representarem minha conciência, me resolvi em tornar para
que não havia cavaleiros. França nos navios de guerra que aqui chegaram:
Sucedeo que havendo muitos dias que a Mar- peço a V. M. me faça mercê de dar-me licença
quesa de Castel Melhor obrigada de doente se para isso, e de me mandar entregar meu dote,
havia sangrado doze vezes, andando já convale- pois que V. M. sabe muito bem que não estou
cente, e não querendo a Rainha que entrasse na casada com ele: e espero da grandeza de V. M.
sua Câmara, lhe mandou dizer que pois andava me mande fazer, assi entrega de meu dote, como
achacada, se fosse para sua casa a título de con- em tudo o mais o favor que merece uma Prin-

110
cesa estrangeira, e desemparada nestes Reinos, e
que veio buscar a V. M. de tão longe.» António
Foi D. João Mascarenhas, Conde de S. Cruz,
Mordomo-mor da Rainha, com o recado a el-
-Rei; o qual enfurecido, e mal aconselhado se
de Sousa
veio ao Mosteiro às Ave-Marias, e mandou às
Religiosas que lhe abrissem as portas, senão que
as mandaria quebrar, ao que a Abadessa respon-
Macedo *
deo que não tinha chaves, que estavam em poder
da Rainha; estando nisto chegou S. A. a quem
haviam dado notícia do caso, e disse a el-Rei CAPÍTULO I
que seria cousa mui escandalosa profanar um
Mosteiro tão grave, e perder o respeito a Deos e EXCELENCIA I
à Rainha, com aquela violência; que se chamasse
o Provincial de S. Francisco, e que ele obrigaria Si Asia produsio fuertes varones; en Europa
as Religiosas com censuras para que entregassem nacieron el grande Alexandro, los Romanos,
a Rainha: sossegou-se o Rei com estas rezões, e Godos, Españoles, y otras naciones, que todo el
chamando o Provincial, obrou tanto com as mundo han vencido; si Asia es mayor que Euro-
censuras, como el-Rei com os ameaços, e desen- pa, la pequeñés de Europa se suple con sus ex-
ganado o levou S. A. a Palácio pelas dez da noite. celentes qualidades; finalmente si Asia se alaba
Na manhã de terça-feira mandou a Rainha uma de auer tenido grãdes monarchias, mire la Ro-
carta ao Cabido, em que dizia assi: mana, y Española de hoy, y verá como las suias
«Apartei-me da companhia de S. M., que Deos quedan pequeñas, y abatidas; y al fin bien se
guarde, por não haver tido efeito o matrimónio acha de ver quanto Europa en todo lo bueno
em que nos concertámos, e por não poder sofrer exceda a la Asia, pues como dice Hieronymo
mais tempo os escrúpulos de minha conciência, Cortes, e es Europa tierra muy templada, y
que o amor que tenho, e me merecem estes conueniente para la habitacion del género hu-
Reinos, me fez dissimular até agora: espero que mano, porque es abundante en todo género de
S. M. como melhor testemunha da minha rezão, mantenimientos, y cria los hombres templados,
a declare, para me recolher brevemente a França, de grandes entendimientos, y de mayor animo y
sem embargo a minha pessoa; e ao Cabido da esfuerço que ninguna otra parte del mundo, y
Santa Sé desta Cidade, a quem por seus minis- assi Plinio la llama sustentadora del pueblo, ven-
tros toca o ser Juiz desta causa, rogo muito a cedora de todas las gentes, y auentajadamente la
queiram mandar abreviar, quanto for possível, mas hermosa de todas las tierras del orbe; [...]
favorecendo em tudo o que for justo, a uma
extrangeira magoada da desgraça de não poder
viver na terra que veio de tão longe buscar com EXCELENCIA II
tanto gosto: e pode muito confiadamente enten-
der de mi o Cabido, que em toda a parte saberei Despues desto está Portugal en la mejor parte
reconhecer, e agradecer a cortesia com que me de Europa, que es España, vencedora del m˜udo
tratar. Lisboa, vinte e dous de Novembro de
667. Maria Francisca Isabel de Saboia.» [...] * Flores de España, Excelencias de Portugal, 1631.

111
en todas las prerrogatiuas, y excelencias de esto los Romanos, quando no temian tanto
bondad de cielo, fertilidad de tierra; virtudes de Cartago por su grandeza, y esfuerço de sus
hombres, riqueza de Reinos, conquistas, triunfos, ciudadanos, quanto por estar aquella ciudad junto
títulos gloriosos, por los quales es llamada cabeça de la mar, y por eso se resoluio en el senado de
de Europa por muchos Autores. Roma, que por todas las maneras se procurase
que Cartago fuese mudada para mas adentro de
la tierra, a porque (dize Lucio Flora) poco im-
EXCELENCIA III portava a los Romanos que viese Cartago en el
mundo, [...] Y otro si me escusa de alargarme
Aviendo prouado, que Europa es la mejor parte mas en prueba de lo dicho, el insigne testimonio
de las quatro del Mundo, y España la mejor de que dio el gran Emperador Carlos Quinto,
Europa, digo que Portugal está en la mejor par- quando viendo el socorro que le fue de Portugal
te, y sitio de España, lo que se prueua, porque para la toma de Tunes, y considerado el excelente
auiendo de considerar-se el principio, y cabeça puerto de la ciudad de Lisboa dixo: Si yo fuera Rei
del M˜udo dende esta p˜uta mas occidental del, de Lisboa, yo lo fuera en breue tiempo del mundo todo.
como luego diremos, sigue-se que el Reino de [...]
Portugal está como cabeça de España, y assi en
la mejor parte de toda ela. Demás de lo qual las
excelencias grandes que deste Reino prouaremos CAPÍTULO IIII
en el discurso deste tratado, le conceden facil- “De las riquezas”
mente el primer lugar entre todas las tierras.
Allega-se a esto, que solo Portugal entre todos EXCELENCIA II
los Reinos de España está puesto a la orilla de la
mar mas que los otros, parte mui principal, y En esto que de España en comum dicen, se
aun necesaria para hacer un Reino excelen- cõprehende tambien Portugal, pero de Portugal
tíssimo; como la experiencia lo ha mostrado con particularmente trata Iustino a diciendo que en
varios exemplos de poderosissimos Monarchas, la prouincia de entre Duero, y Miño no hay
que por esta falta perdieron mucho de sus esta- monte, que no esté lleno de venas de oro y el
dos, y fueron vencidos por Reies mas pequeños, antiguo Pofidonio referido por Strabon dize,
a quien bastó la vecindad de la mar para quedar que toda la Turdatania (que eran unos pueblos
mas auentajados, y sus Reinos mas enoblecidos; de Portugal en la tierra del Algarue) es una
como en Europa vemos, que por esta razon ex- lámina de plata.
cede en las fuerças de mar Inglaterra, Holanda, Los rios de Portugal siempre han tenido fama de
Venecia, Genoua, y el Turco a los demas Príncipes auríferos, como les llaman los poetas, entre ellos
que tienen su Corte por la tierra adentro; en el poeta Catulo, e tratando de una conquista que
Asia los Reies de la China, Mogor, el Nisamaluco, Julio Cesar hizo en España, nombra las arenas de
y el Hidalcan son los maiores señores q hay, y oro del rio Tajo, de que tambien trata Heyroni-
con todo por no tener sus Cortes en puertos mo Pablo, alegando a Juvenal, Staço, Ouidio, y
marítimos son menos poderosos que los Reies Papinio; y Plinio e dá a este rio el primer lugar
del Malabar, Dachem, Pan, y Iaos, y en África los en esta materia, entre los afamados del m˜udo, q
Reies de Argel puerto de mar vecieron los son el Ganges en la India, el Pactolo en Asia, el
Xerifes, con ser mas poderosos, porque estauan Hermo en Lidia, el Hebro en Francia, y el Pado,
estos metidos por la tierra. Bien entendieron

112
o Po en Italia, Julian de Castillo le llama rio de áspero: Respondio el Rey, que le hiziera merced
oro [...]. del dicho oficio en premio de que, aunque
Lo que los Autores dizen se ha visto por expe- fueste contra su gusto, le trataua siempre verdad,
riencia muchas vezes; primeramente es cierto, q que era el primero, y mayor seruicio que se
en tiempo q los Romanos eran señores de hazia a los Reyes. Deuia de acordarse el Rey del
España, auia en Portugal gran número de minas, Emperador Gordiano, que solia decir a Mesiteo
y de solo Portugal, Galicia, y Asturias se sacauan su suegro, que el Príncipe a quien se encobrian
en barras de oro cada un año veinte mil pesos, verdades, no se podia juzgar por venturoso,
que eran entonces treinta mil marcos, q reduzi- como refiere Capitolino.
do a moneda hazia soma de tres millones, segun
la cuenta de Fr. Bernardo de Brito, y de las
mismas minas salia el oro tan apurado, q escu- CAPÍTULO XXII
saua ir al fuego, y barra salia tan grande, que “De la bondad de la habla, o lengua Portuguesa”
pesaua diez libras, y esto demas de muchos
granos apurados, que en los rios se hallauan. Como quiera que la lengua (como notó
Y en los años no tan antiguos, el Rey Don Ciceron) sirua de intérprete del entendimiento
Dionisio mandó hazer una corona, y un ceptro del q habla: aquella es mejor que cõ mas pro-
de oro sacado del Tajo, tan fino, que ninguno se priedad haze este officio. Porque la ventaja de
le igualaua, como refiere Mendo Gomes en unas un entendimiento a otro no se conocerá bien, si
aduertencias que hizo de los Reies de Portugal; la habla con toda claridad, y perfecion no mos-
del Rey Don Juan el Tercero se lee, que mandó trar lo que hay en cada uno. Por ser esto cosa
hazer un ceptro de oro sacado del mismo rio, y tan principal, pretendieron siempre todas las
mas modernamete cuenta Fr. Bernardo de Brito, naciones engrandecer, y alabar su lengua, no
q el mismo vió cerca de la ciudad de Coimbra solamente persuadiendonos con razones, sino
hallarese en algunos arroyos granos de oro, entre tambien introduziéndola con fuerza, y menos-
los quales fue uno que tenia cerca de seys reales, cabãdo las otras. Los Romanos ordenaron con
que el dice que mandó hazer en obra, y que en rigurosas leyes, que todos los Magistrados uzasen
el fuego no llegó a diminuir un real, y que en las prouincias estrañas de la lengua Latina, y
quedó auentajado en muchos quilates al oro de no diesen en otra, respuesta alguna pública. Y no
la Mina [...]. solo a los Magistrados era esto prohibido, mas
aun en los particulares condenaua Marco Tulio,
que leyesen un libro Griego. Los Cartaginenses
CAPÍTULO XII mandaron, que ninguna persona aprendiese otra
“De la verdad en los portugueses” lengua, mas que la de la patria. Vlid Miramolin
de los Arabes hizo ley, que en todos sus Reynos
[...] no se escriuiese sino en la lengua Arabiga. Los
Por el contrario nada estiman en mas los Portu- Escoceses enseñan (segun se dice) las ciencias,
gueses, que un hombre que trata verdad. Prueba ciencias en la suya, y para eso tienen traduzidas
desto sea, que espantándose algunos Caualleros, en ella todas las artes, y muchos de sus exposito-
de que el Rei Don Juan el Segundo diese el res. El Rey de Inglaterra Duarte Quarto publicó
oficio de su Mayordomo mayor a Don Juan de edito, que las cosas públicas no se tratasen, ni
Meneses, porque le tenian por hombre libre, y escriuiesen sino en lengua Anglicana. El Rey

113
Don Juan primero de Castilla mandó, que las Musa, y quarta Gracia Doña Bernarda Ferreira
escrituras, y mas actos se hiziesen en Castellano. de la Cerda, como cosa tan buena no es tan
Y veniendo a Lisboa Raix Xarafo Guafil Ormus entendida como lo fuera siendo mala, conforme
teniendo mucha noticia de la lengua Portuguesa, a la costumbre del tiempo.
jamas quiso hablar, ni tratar al Rey Don Juan el
Tercero, sino por intérprete en la lengua de su Y veniendo a la materia de que nos apartamos,
patria. Los Príncipes Otomanos tienen tanta digo, que pues todos estiman tanto su lengua, no
reuerencia a la suya, que las promesas que no es bien que tratando yo de las excelencias de
han de cumplir, hazen en lengua estraña, y las Portugal, dexe una tan principal como esta. Por-
que han de guardar, en la propria: y al mismo que aunque Duarte Nuñes de León ha escrito
propósito cuenta Bobadilla muchas cosas de los de ella, y modernamente Manuel Seuerin de
Caldeos, Hebreos, Gitanos, Fenices, Griegos, La- Faria con tanta excelencia, que no tengo yo cosa
tinos, y Árabes. Finalmente por capítulos de Cor- que decir de nueuo, con todo por no faltar a
tes está asentado en Portugal, que las consultas ponto tan necesario, trasladaré lo que ellos
que de los dos Consejos van al Rey nuestro dixeron, con lo qual mi patria, los dichos Auto-
Señor vayan todas en Portugués, y se guarda res, el Lector, este mi tratado, y yo quedaremos
inuiolablemente: Su Magestad fuerza es que res- con ganancia: mi patria, escriuiendose muchas
ponda en Castellano, pues es su lengua, mas los vezes sus excelencias: los dichos Autores, impri-
decretos de lo que manda se hazen luego en miendose de nueuo lo que dixeron, para tener
lengua Portuguesa, porque si a Portugal veniese nueuas alabanças: el Lector, comunicándosele en
una prouision, o qualquiera mandado del Rey lengua Castellana, lo que quiça no entenderá en
en Castellano, no la darán cumplimiento, por asi la Portuguesa, en que está escrito: este mi trata-
lo querer su Magestad. do en y honrado con cosa tan subida: y para mi
Mucha culpa parece resultarme de aqui, pues quedará el loor, que el poeta Virgilio se tomaua,
amando todos tanto su lengua, yo la dexo, y quando le echauan en rostro, que hurtara los
escriuo esto en la Castellana, mas desculpome versos de Homero: Magnarum esse virium Herculi
con decir, que no dexo yo la Portuguesa por clauam extorque de manu, que es de grandes
parecerme inferior, antes asi por tenerla por tan fuerzas sacar la maça de la mano de Hércules, y
excelente, como por lo que a semejante propo- lo que yo dixere de nueuo será de agradecer
sito consideró bien Lope de Vega Carpio, que el hallarlo, pues está dicho tanto.
gigante Anteo mientras estava en la tierra su
madre, no podia ser vencido de Hercules, y tanto
que se apartó de ella, luego quedó rendido: EXCELENCIA I
estuve para escriuir en Português, temiendo que
con mas facilidad me perdiese yo dexando mi La lengua primera que en Portugal se habló, si
patria, pues tengo tanto menos fuerzas que el seguieramos a Marinco Siculo, diríamos q seria
gigante. Mas como el amor de mi patria me una de aquellas setenta y dos, que fueron dadas
incite a publicar sus excelencias por todo el por Dios a los edificadores de la torre de Babi-
mundo, dexados todos los respetos, me ha pare- lonia, traida acá por alguno de ellos; pero mas
cido mejor medio hazerlo en lengua Castellana, verdaderamente parece, que fue la Hebraica sin
que acertó ser mas conocida en Europa, y no en confusion alguna, porque esta asi como era
la Portuguesa, que segun lo que dixo la decima comun a todas las gentes antes de la confusion

114
de hablas que Dios hizo, asi lo fue despues de
ella a muchas familias, que en la confusion no
fueron compreendidas, entre las quales fue la de
Luís Mendes
Tubal el qual, y sus decendientes, y compañeros
fueron los primeros pobladores de Portugal, y de de Vasconcelos *
toda España, como arriba está dicho. Y que esta
lengua Hebraica sin confusion, y mezcla fuese la
mejor de todas, no tiene duda, pues fue inue~tada
por nuestro padre Adan que conociendo bien la Do Sítio de Lisboa: Diálogos
naturaleza de las cosas, les puso nombres
conuenientes, si bien después esta lengua (se ha Razão por que se optou pelo artifício do
cor rompido de suerte que quedó muy diálogo
imperfeta). Por el tiempo adelante mudaron los
Portugueses la lengua, corrompiendo la Hebrea E elegi para mostrar o sítio de Lisboa a compos-
antigua, y mezclandola con otras, como sucedió tura do Diálogo, por que a deleitação dela [i.é: o
a todas las naciones: mas es imposible saberse, prazer da compostura ou artifício literário do diálogo]
que lengua hablauan: [...]. faça receber a utilidade do conceito. E ser todo
uma narração não deve parecer novo modo de
escrever: porque o livro que Aquiles Estaço
compôs dos amores de Leucipo e Clitofonte,
obra muito engenhosa e estimada, todo é uma
narração; e do mesmo modo o Diálogo de
Platão intitulado Fédon, ou da Imortalidade da
Alma, é também uma narração que Fédon faz a
Equécrates, do que Sócrates falou depois que
lhe deram a nova que aquele dia havia de mor-
rer, disputando com os que o acompanhavam.
Os nomes das pessoas do Diálogo poderão fazer
alguma dúvida, parecendo que haviam de ser
nomes próprios e de homens conhecidos, como
fizeram todos os que mais doutamente escreve-
ram Diálogos: que Platão introduz a Sócrates,
Alcibíades, e aos mais doutos e nobres atenien-
ses do seu tempo; e Xenofonte, no Diálogo do
Príncipe a Híeron rei de Sicília, e a Simónides,
homem eruditíssimo; e Cícero a Cipião e a ou-
tros Romanos tão conhecidos como ele. Mas a
diferença dos tempos desculpa esta dos Diálogos:
porque quando estes homens escreveram eram

* Luís Mendes de Vasconcelos. Org. José da Felicidade Alves.


Lisboa: Livros Horizonte, 1990.

115
tão estimadas as boas artes, que se reputava por cidades onde as há não podem ser tão poderosas
honra ampará-las e favorecê-las; e agora, que são como as bem ordenadas; e a falta dos manti-
desfavorecidas e desprezadas, deve-se também mentos, que em maior povo é maior, sempre
mudar o estilo na introdução das pessoas que diminui grandemente o poder.
hão-de tratar delas; e assim, deixando os nomes Político – A presença dos superiores é um grande
próprios, em lugar deles me valho das profissões freio dos súbditos, e o exemplo das suas virtudes
necessárias para o que neste Diálogo se há-de uma agudíssima espora que as faz seguir, até dos
tratar, e no que trás ele se seguirá de matérias mais frouxos e negligentes; e porque na cidade
políticas. grande está a presença do Príncipe diante de
[...] todos, será muito melhor governada que se em
pequenas e apartadas povoações fora dividida,
não podendo ele residir em todas; donde tam-
Vantagens que há em uma cidade ser bém se segue o dano dos ministros que as outras
grande governarem, se não forem os que devem. E em
um mesmo terreno uns mesmos habitadores
Filósofo – Muita razão tendes de vos deleitar, melhor se sustentarão estando juntos em uma só
vendo a grandeza de Lisboa: porque (como povoação que separados em muitas, porque ne-
dizeis) mais poderosa é uma cidade grande que nhum povo tem todas as cousas que há mister
muitas pequenas, que a virtude unida tem maior sem lhe virem algumas de fora, as quais acodem
força; e assim se lê que as cidades que cresceram melhor a uma grande povoação que às peque-
em povo cresceram em senhorio, como Atenas e nas; e assim vemos que nas cidades grandes tudo
Roma. E por isso Plutarco louva tanto recolher sobeja, e nos pequenos povos as mais das cousas
Teseu na cidade de Atenas todas as gentes que à faltam. Pelo que (como disse) é mais poderoso o
roda dela habitavam em pequenas povoações, Príncipe senhor de uma grande cidade bem
aonde diz estas palavras muito a nosso propósito: bastecida; que se de pequenas fora todo o seu
Querendo ele acrescentar muito mais as forças Estado. E digo bem bastecida; porque se os que
da Cidade, reduziu todos os homens a uma mes- a governam forem negligentes em a prover das
ma igualdade de vida, para o que diz que foi cousas necessárias para a paz e para a guerra,
este o decreto: Todos os povos venham cá. E assim, diminuirá muito a força que se podia esperar da
ajuntando em um só corpo de cidade estes pe- sua grandeza.
quenos povos, que separados eram fracos, fez
aquela grande Cidade que depois teve tão gran-
de império, como se lê nas Histórias Gregas. As qualidades do sítio de Lisboa fazem-na
Roma se fez poderosa ajuntando a si outros po- capaz de ser cabeça de um grande império
vos, e os Cartaginenses, quando quiseram em-
preender maiores cousas, edificaram maior cida- Filósofo – Dizeis muito bem em ter por mais
de, ficando-lhe a antiga Birsa por fortaleza. poderosa uma cidade grande que muitas peque-
Soldado – Eu fora de contrária opinião, se não nas de igual número de habitadores (e ainda que
tivera contra mim as vossas; porque as cidades maior, como não exceda excessivamente); mas
grandes não podem ser bem governadas, que na não vos deveis maravilhar de Lisboa ter crescido
grande multidão ordinariamente há grande con- tanto: porque as qualidades do seu sítio natural-
fusão, e a grande confusão causa desordens, e as mente são causa não só do seu aumento, mas a

116
fazem mais capaz que todas as cidades do Mun- membros; e temos nela os olhos, que são guia de
do para ser cabeça de um grande Império e todas nossas acções, e assim, pelo benefício que
fazer grandíssimas conquistas. deles recebemos e pela sua particular virtude
Político – Muito estimo ouvir-vos isto; porque, (que parece mais espiritual potência que sentido
ainda que eu não considerava Lisboa com tanta corporal) têm uma certa excelência, com que
reputação, terde-la vós nesta me assegura que a ficam superiores às mais partes do corpo. E con-
merece. siderando os filósofos e geógrafos a esta seme-
Soldado – Grandes cidades teve o Mundo, e de lhança o Mundo, fazem do Oriente a mão direi-
boníssimos sítios, por razão dos quais foram ta, do Ocidente a esquerda, e do pólo árctico a
grandes e poderosas; e assim parece que vos cabeça; e a este respeito, Europa está na parte
obrigais a mais do possível em adiantar de todas, superior, presidindo às mais, como cabeça de
por razão do sítio, a de Lisboa. todas: pelo que os geógrafos dela começam a
Filósofo – Não digo cousa que não haja de pro- descrição deste corpo do mar e terra, como a
var com evidentíssimas razões. principal parte dele. E assim Estrabo dá princí-
Político – Cousa é essa que sumamente estimarei pio à descrição da sua Geografia dizendo que se
ouvir; porque, além de me obrigar a isso o con- deve começar de Europa, porque excede às mais
ceito em que todos têm as vossas opiniões, sem- partes do Mundo. E separando Europa delas, os
pre é deleitoso a todos os homens ouvir seme- que assim a consideram a fazem semelhante a
lhantes cousas da sua pátria. E tanto mais me um dragão, segundo a situação das suas partes,
deleitarão as que vós disserdes em prova de ser do qual Espanha é a cabeça; e nela está Lisboa
Lisboa anteposta, por razão do sítio, a todas as no lugar dos olhos, mostrando que ela deve ser
cidades do Mundo, quanto, sendo ditas por vós, guia e luz das mais partes da Europa, pois não só
ficarão mais qualificadas e assegurarão mais a na colocação tem o lugar dos olhos, mas tam-
opinião que quereis que tenhamos de Lisboa. bém no efeito se lhe deve a mesma semelhança;
Soldado – E eu, quanto mais dificultosa me pare- porque, assim como os olhos são como portas
ce de provar esta opinião, tanto mais desejo ver ou janelas da alma, por onde tem notícia das
os fundamentos que para isso tendes. cousas sensíveis, esta nobilíssima cidade está na
Filósofo – Em algumas das cousas criadas pôs foz do Tejo, e metendo ele as suas águas no mar
Deus certas disposições que as fazem aptas a oceano é a sua foz como porta a toda a Espanha
dominar e lhe dão um certo império sobre as e a toda Europa, por onde recebem as nações
outras da mesma espécie, como o Sol, que pela dela notícia de muitas cousas que neste
dignidade da sua luz, e pelo poder que tem de grandíssimo mar até nossos tempos estiveram
alumiar as outras estrelas, é como rei delas. E no escondidas: e assim por ela entrou a notícia e
homem, que é uma semelhança do Mundo, conhecimento de muitos portos, ilhas, promon-
como diz Platão no Timeu (pelo que os antigos tórios, reinos, províncias e nações, de que se não
lhe chamaram mundo pequeno [microcosmos]) sabia.
também há partes com tão particulares disposi- Pelo que, assim pela colocação do sítio como
ções que parece que as fez Deus para dominar as pelas mais disposições, deve esta cidade ser pre-
outras, – como a cabeça, aonde nos pôs a razão, ferida a todas as outras da Europa, e, pelo conse-
que domina as mais partes da alma, e a respeito guinte, a todas as do Mundo. E assim a ela mais
do corpo tem o mais eminente lugar, pelo que que a todas convém fazer grandes conquistas e
(como diz Platão) é príncipe de todos os outros ter o império de grandíssimas províncias. E é

117
cousa clara que os sítios da terra, a respeito das dade, a fazem capaz de ser cabeça do Império –
partes do Mundo e de si mesmos, são uns mais qual cidade teve ou tem o Mundo a que isto
aptos que outros para estar neles a cabeça do mais convenha que Lisboa? E considerando-a
Império; porque a disposição, que têm, de poder com as cidades referidas, que os antigos tinham
mandar com facilidade a diversas partes grandes por capazes do Império, se verá mais clara a
exércitos e poderosas armadas, a respeito do verdade desta minha opinião.
Mundo lhe dá esta preferência; e a respeito de si De dois modos se consideram (como disse) os
mesmo, a saúde do clima e dos ares, a fertilidade sítios capazes desta grandeza: ou a respeito do
dos campos, a segurança do sítio forte, a nature- Mundo, ou de si mesmos. A respeito do Mundo,
za dos homens, e a frequentação do comércio. consideremos se Lisboa tem mais comodidades
Porque a cidade que não estiver em sítio cómo- que as cidades referidas para ter o comércio de
do para mandar a diversas partes os seus exérci- mais nações e mais ricas, e para mandar as suas
tos e armadas, não pode senhorear estrangeiras armadas e exércitos a todas as partes do Mundo;
nações, como deve fazer a que for cabeça do e a respeito de si mesma, se é mais sã e habitada
Império; e como não pode uma cidade chegar a de homens de melhor natureza, mais provida das
esta grandeza sem lhe ser necessário sustentar cousas necessárias à vida, e mais apta a se defen-
copiosíssimo povo, também o sítio que não tiver der, sendo-lhe necessário, como foi muitas vezes
as comodidades para isso necessárias nunca será a todas estas cidades que tenho dito.
capaz dela; e ainda que tenha tudo isto, se lhe
faltar a natural disposição dos homens, apta a
vencer e governar, não poderá alcançar esta dig- Lisboa em relação às outras partes do
nidade; e se a alcançar, não a conservará muito mundo: privilegiada situação de Lisboa, na
tempo, para o que também lhe é necessário ser foz do Tejo, frente ao Oceano...
o sítio forte por natureza e arte, como em seu
lugar direi. Considerando a cidade de Lisboa a respeito das
Considerando todas estas cousas, julgaram os an- partes do Mundo, nenhuma das referidas [cida-
tigos Romanos que só três sítios, tirando o de des] lhe faz vantagem; e não errará quem afir-
Roma, havia no mundo capazes de poder sus- mar que a todas excede, porque ela está situada
tentar o Império, os quais eram (como se vê na no mais Ocidental da Europa, tendo diante de si
oração que Cícero faz ao povo contra Rulo sobre o grande Oceano, o qual, entrando pela terra,
a lei agrária) Cartago, Corinto e Cápua. E de- faz uma larga enseada, que termina no cabo de
pois, no tempo de Constantino, se entendeu o Finis Terrae pela parte do Norte, e, pela do
mesmo de Constantinopla, porque (como diz Meio-dia, no de S. Vicente, ficando estes dois
Zófimo) tendo Constantino determinado de promontórios como duas balizas da sua grande-
não viver em Roma, e buscando um sítio capaz za, mostrando, com a larga porta que abrem ao
do seu grande Império, deixando os fundamen- mar, que toda a abundância do Mundo deve
tos que tinha já lançado junto do antigo Ílion, entrar por ela. No meio desta enseada acaba o
veio edificar a grande e nobilíssima cidade de Tejo seu curso; e duas léguas da foz dele está
Constantinopla, que perdeu de ali por diante o Lisboa, da qual, saindo para o Meio-dia, se pode
antigo nome de Bizâncio. E se assim é, que a correr com muita facilidade toda a costa de
colocação do sítio, e as mais qualidades e dispo- África que banha o mar Atlântico; e, embocando
sições necessárias para sustentar uma grande ci- pelo estreito do Mediterrâneo, todo aquele mar;

118
e da parte do Norte, em brevíssimo tempo, se por ser toda a gente dos seus confins rústica e
navega toda a costa de França, Bretanha, Flan- pobre, vivendo os Númidas em tendas sem lugar
dres e Alemanha, e as mais ilhas deste mar; e certo; e assim podia ter pouco mais comércio
defronte dela está a terra novamente descoberta, que o dos seus naturais; nem podiam comerciar
[isto é: o Novo Mundo, ou América] tão rica, como nela as grandes nações do Oceano.
o Mundo todo sabe; e, alargando a navegação, -
que mar, que porto, que costa há em toda a ... ou com Roma....
África e Ásia que não naveguem os navios de
Lisboa, tendo aos mais deles chegado as nossas Roma está em Itália, no antigo Lácio, dezasseis
armadas com prósperos sucessos? E ajuntando a milhas da foz do Tibre. O seu porto tem pouca
esta facilidade de navegação o seguro e capa- mais comodidade que o de Cartago, porque não
císsimo porto, e a inumerável gente que nesta pode receber muitas nem grandes embarcações,
cidade habita, e a muita que concorre a ela de e por isto (como diz Plutarco) determinava
todas as partes, é tão frequentada dos mercadores César de meter o Aniene e o Tibre, depois que
que por seus cómodos e proveitos navegam de sai de Roma, em uma profunda cava, e levá-los
umas partes em outras, que não sei nenhuma de assim até Terracina, onde, entrando no mar, dari-
tanto comércio e trato. E se quiser mandar exér- am comodidade e segurança aos mercadores. O
cito por terra a alguma das províncias vizinhas, a seu território é pouco habitado; e assim como
qual delas o mandará onde com armada do mar deixou de ser assento dos imperadores diminuiu
o não possa seguir? Que é uma grande seguran- muito a sua grandeza; por onde se vê que do
ça, e a maior comodidade que pode ter um sítio lhe não podia vir; porque, se tivesse tão
exército de terra, ser favorecido das comodida- oportunas comodidades como Lisboa, quando
des do mar. como ela cresce não crescera, sustentara-se no
Vejamos agora se alguma das terras que os anti- estado em que os imperadores a deixaram, não
gos consideravam capazes de Império tem ou lho impedindo o dano que de algumas bárbaras
teve esta facilidade de navegar para todas as par- nações recebeu; e se agora não tivera a Corte do
tes do Mundo, e tanto comércio. Sumo Pontífice, reduzira-se a uma pequena po-
voação, e nem com ter em si esta Corte é hoje
muito grande; mas em Lisboa (como se verá
Compare-se com Cartago... continuando esta prática) só o sítio é causa de
crescer em fábricas e grandeza.
E começando por Cartago: estava esta cidade na [...]
província Zeugitana, que propriamente se cha-
ma África, segundo Plínio, assentada (como diz
Estrabo) no seio que o mar faz entre os pro- Vantagem de Lisboa, nomeadamente sobre
montórios de Apolo e Mercúrio; e o mesmo Jerusalém
sítio lhe dá Plínio. Podiam navegar as armadas
desta cidade o Mediterrâneo, mas não o Ocea- E assim na grandeza das navegações e comércio
no, porque não tinha porto capaz de grandes excede muito Lisboa às cidades referidas, pois
embarcações. E tirando a cidade de Cartago, não nem com tantas nem com tão ricas províncias
havia outra cousa naquela província que obri- podem comerciar.
gasse os estrangeiros ao tráfego da mercancia,

119
E do mesmo as suas [de Lisboa] armadas são de pessoas que o têm visto e atentamente conside-
muita mais importância do que podem ser as de rado que lhe não faltam estas cousas, sendo a
todas estas cidades, pois comodamente se pode terra fertilíssima e de boníssimos ares; de modo
servir de navios de alto bordo e de galés, segun- que, se tratarmos dele como pedem as suas qua-
do lhe for necessário, e de navios de maior porte lidades, pode-se fazer nele um grande reino, que
que outra alguma cidade, pela largueza e capaci- a este fora utilíssimo, estando em distância que
dade do mar em que navegam e pela comodida- se poderá um a outro dar a mão nas necessida-
de do porto, capacíssimo para recolher grandes des que ocorrerem.
navios, e inumerável cópia deles. E assim, – que cidade teve nunca o Mundo em
E considerando mais particularmente o comér- nenhum tempo, que pudesse como Lisboa sujei-
cio de Lisboa – que cidade teve o Mundo, em tar grandíssimas províncias e enriquecer-se com
nenhuma idade, que nisto se igualasse com ela? o comércio de riquíssimas nações, fazendo-se a
Uma das cidades que pelo comércio mais se mais poderosa de todas que foram e podem ser?
enriqueceu e subiu a maior grandeza foi Jerusa- Soldado – Disso temos clara prova na conquista
lém no tempo de Salomão: que diz a Escritura da Índia, pois nunca cidade fez outra maior nem
Sagrada que era em Jerusalém tanta a abundân- mais gloriosa.
cia de prata como de pedras, e de perfeitíssimo
cedro como dos sabugueiros que nascem pelos
seus campos. [...] Considere-se agora o que vem Lisboa até sobrevive aos danos que recebe
a esta cidade da Índia Oriental de drogas, âmbar, da conquista da Índia
pérolas e pedras preciosas, e outras cousas de
grande estima, e o ouro da nossa Mina, e ver-se- Filósofo – Assim é, que nela se mostra muito
-á que excede grandemente ao que podia impor- mais que em outra alguma cousa a bondade des-
tar a frota de Salomão; porque só os direitos de te sítio; pois esta cidade se não diminui e enfra-
cada nau, sem a pimenta, importam cada ano a quece com os danos que recebe da conquista da
El-Rei quarenta e cinco contos, e do que im- Índia. [...]
porta o ouro da nossa Mina temos boa prova na
Casa da Moeda, onde sempre se está batendo e
cunhando. DEBATE SOBRE OS DANOS QUE ADVIERAM
Mas isto é ainda cousa de nenhuma considera- DA CONQUISTA DA ÍNDIA
ção, respeitando o muito maior comércio que
pode ter, de que por nossa negligência nos não Protesto do Soldado: isso não sofrerei que
aproveitamos. se diga!
Que cousa há no Mundo que se possa comparar
com o comércio do Monomotapa, donde por Soldado – Isso não sofrerei que se diga: porque
muito pouco preço e por vilíssimas cousas se nem este Reino, nem outro algum do Mundo,
resgata grande quantidade de ouro, e donde não acabou nunca empresa de que tanta glória e
é necessário fazer conquistas nem aventurar reputação ganhasse, como Portugal, com a não
exércitos, para trazer a esta cidade frotas carrega- esperada conquista da Índia! Porque, quanto as
das de prata e ouro, porque para isso bastam as acções são de maior estimação, tanto maior gló-
cousas que entre nós são de menos estima? Pois ria se ganha com o bom sucesso delas; e assim
o Brasil não é estéril de prata e ouro; e eu sei de como esta conquista é de grande admiração para

120
todo o Mundo, assim ganharam os Portugueses que a vida breve se deve estimar a glória das
com ela o glorioso nome que merece o grande obras esforçadas: porque essa fica quase eterna
valor que nela mostraram, acabando com ele o na memória dos homens. E assim, quando o
que nenhuma nação da Europa em nenhum Reino aventurara alguma coisa na conquista da
tempo alcançou, ainda que o procurasse! Índia (o que não concedo), é de tanta estima a
glória que ganharam com ela os Portugueses,
que não deviam perdê-la por esse respeito. [...]
O Político declara a sua tese: a conquista
da Índia é causa de muitos danos...

Político – Não há muitos dias que dei a sua Alte-


za um papel sobre a conquista da Índia; e assim
eu vos quero responder, porque nele sigo con-
trária opinião da vossa, parecendo-me que esta
conquista é causa de muitos danos a este Reino
e cidade de Lisboa. E assim, respondendo à vossa
opinião, digo: que aos Estados importam muitas
cousas mais que a glória de animosos feitos; por-
que, como se há-de olhar mais o que convém à
sua conservação que todas as outras cousas (ti-
rando a Fé), quando este nome vão de glória
impedir o que para este fim convém, não se
deve fazer nenhuma estima dele; porque a honra
e glória que se não pode conservar fica em mai-
or desonra e abatimento quando se perde; que
quem de mais alto cai - dá maior queda. E por-
que eu temo que a Índia venha no decurso do
tempo a nos consumir os homens, e pode ser
que [a consumir] o dinheiro, sendo necessário
socorrê-la com grossas armadas; e sendo estas
duas cousas (homens e dinheiro) aquelas sem as
quais os Estados se podem mal sustentar - digo
que fora mais útil não se intentar a conquista da
Índia.
Soldado – O homem esforçado e heróico há-de
olhar mais a glória dos seus feitos que a conser-
vação da sua vida. E assim, é mais estimado o
que gloriosamente morre nos anos da mocidade,
que aquele que sem fazer acto nenhum de es-
forçado conserva a vida até a última velhice. E
se as coisas imortais são melhores que as mortais
(como são), quanto elas excedem, tanto mais

121
Padre Manuel assistia aos moribundos, lhe recomendou que se
sentisse alguma maior angústia, o mandasse cha-
mar pelo enfermeiro, porque logo lhe viria acu-
Conciência * dir com toda a presteza. Não passaram muitas
horas que não fosse chamado, e vindo achou ao
enfermo gritando em altas vozes, como se com-
batera com alguém. Dizia quasi totalmente deses-
perado, que para ele perversíssimo pecador esta-
Mocidade Enganada vam já cerradas as portas da piedade Divina, e
que muito melhor lhe fora não ter nascido nunca;
e Desenganada a cujas palavras ajuntava outras de não menor
desesperação. Procurou o Padre com a eficácia
“Diálogo I” mais fervorosa, que pode, animá-lo, e confortá-lo
em fatalidade tão arriscada, porém ele protesta-
CAPÍTULO IX va-lhe que não se cansasse de balde, porque via
ali ao Demónio, o qual pegando-lhe pelos pés o
Referem-se alguns exemplos raros, com que se queria levar de rastos consigo. Lançaram-lhe por
comprovam, e concluem os desenganos deste Diálogo. cima ágoa benta, rezando-se entre tanto algumas
santas, e devotas Orações: porém o Demónio
Bastantemente me tendes intimado estas persua- pondo-se na língua do enfermo, e formando com
sivas com razoens; mas como é tão eficaz a prova ela voz diferente dizia que nem as Oraçoens,
por exemplos, não deve haver muitos, ou na nem a ágoa benta tinha virtude a favor de quem
matéria, ou na vossa lembrança, pois mos não era já seu por tão enormes culpas; e ao mesmo
referis, nem vos valeis deles. J. R. J. Antes cuido ponto as foi referindo uma, e uma, com os dias,
eu que na vossa memória está só o defeito que tempos, e lugares, em que o miserável as cometera.
atribuis à minha, porque mostrais não vos lem- Notável foi o susto, e o pasmo, que causou tão
brar de tantos; que vos tenho referido. Porém infeliz lucesto, e atónito o Padre não cestava de
como estou resoluto a não deixar sem resposta, persuadir ao moribundo com toda a força as
escusa que me alegueis, eu vos aponto já alguns, grandezas da misericórdia de Deos. Porém a
e queira Deos supram, com a sua eficácia o pou- tudo respondeo o Demónio que era baldada a
co fructo de tantas exortações. Pelos anos 1624, diligência: Porque como quereis vós (dizia) que
e pelo fim da Quaresma se recolheo no Hospital este se valha da misericórdia Divina, se ele sen-
de S. João dos Florentinos em Roma certo Sa- do por ela convidado tantas vezes à penitência
cerdote para se curar, e ali recebeo os Sacramen- de seus pecados, nunca quis ouvi-la nomear,
tos, a que o obrigava o preceito anual da Igreja. quanto mais fazê-la? Depois destas, e semelhan-
Passados poucos dias se lhe agravou de modo a tes razoens, se lhe tirou da língua maligno tenta-
doença, que, desconfiando dele os Médicos, lhe dor, e vendo-se o enfermo livre de tão terrível
foi também administrada a Extrema-Unção. Em trabalho, e angústia, disse que vira mais de cem
uma noite, antes de se recolher o Padre que ali Demónios junto a si, e que o maior de todos
eles lhe pusera os pés sobre a garganta com reso-
* II Parte. Lisboa Ocidental: na Offic. Almeydiana, 1739, p. lução de o afogar, e levar logo consigo para o
82-88. inferno. Quando o Padre o vio com maior sossego

122
lhe instou que confessasse de novo todas as cul- por muitas noites alguns ferocíssimos cães, que
pas, que lhe lembrassem, e se acusasse de quantas estavam, como de guarda, assistindo ao desgraça-
o Demónio lhe individuara ali, e lançara em do corpo, cuja alma davam a entender tinham já
rosto: porém o miserável moribundo respondeo depositada nas eternas penas os cérberos infer-
que por então não podia fazê-lo pela grande nais. Reinando em Inglaterra Coenredo vivia,
fraqueza, e debilidade, com que se achava. Dito ali um Fidalgo, que nos Exércitos Militares
isto, e passado pouco tempo, expirou naquele obrava mui avantajadas proezas. Estimava-o o Rei
deplorável estado, sem sinaes alguns de penitên- tanto pelos seus serviços, quanto sentia vê-lo su-
cia, e só com aqueles quasi certos da sua eterna mamente descuidado da sua salvação. Admoesta-
condemnação. Em certo Convento de Perúgia va-o com frequência que emendasse tão maos
na Itália houve um Monge, cuja grande astúcia, procedimentos, e deixasse tantos vícios, antes
e ambição trazia aos outros Religiosos em contí- que alguma morte repentina lhe preocupasse o
nuas inquietaçoens. Para poder vingar-se à sua remédio da penitência. Todas as exortaçoens
vontade de alguns émulos, que tinha, arbitrou o desprezava o miserável, desculpando-se que nos
mais execrando meio, resolvendo-se a invocar seguintes tempos procuraria retractar as próprias
em sua ajuda o Demónio, e sobmeter-se ao seu culpas. Entre tanto lhe sobreveio uma gravíssima
império. Aceitou logo o infernal espírito a ofer- enfermidade, na qual visitando-o ElRei, pela
ta, e para mais o segurar na sua sogeição lhe muita afeição, que lhe tinha, o tornou a persua-
prometeo avisá-lo três dias antes da morte, para dir com maiores instâncias, se confessasse ao
que pudesse confessar as próprias culpas. Deo- menos então, e não disterisse mais negócio tão
lhe crédito o miserável Monge, e guardando importante. Respondeu iluso pelo demónio que,
nesta matéria sumo silêncio, assim viveo por al- como melhorasse, satisfaria a esta diligência, por-
guns tempos em tão diabólico engano. Caio em que lhe não atribuissem agora os seus compa-
fim em uma mortal doença, e chamando aos nheiros a medo o que até ali não fizera, em
Religiosos lhes referio miudamente quanto até quanto estava são. Como a doença malignou ele
ali obrava a sua horrenda malícia. Procuraram todo, entrou outra vez o Rei a visitá-lo, e a
eles com apertadas infâncias persuadi-lo a que se persuadir-lhe com novas instâncias se aparelhas-
confessasse, alegando-lhe que todo o tempo, se para a morte: porém apenas o enfermo o vio
aceitava Deos a nossa penitência, e que pela ter diante de si, começou a clamar com miserável
na morte o Bom Ladrão merecera passar da voz: Que quereis, Senhor, ou para que viestes aqui? Já
Cruz ao Paraíso. não posso obrar cousa alguma, que seja útil para a
Apenas os circunstantes lhe começavam a pro- minha salvação. Não vos pareça que estou fora de
por estas exortaçoens, (caso estupendo!) quando mim, porque com toda a clareza, e certeza vejo a
o enfermo adormecia logo com sono tão pro- péssima maldade da minha própria consciência.
fundo, que nada bastava para lhe despertarem o Instrou-lhe o Rei que declarasse quanto se lhe
letargo. Sucedia falarem os Religiosos em outra propusera naquela representação, e com
matéria, e no mesmo ponto acordava o enfermo, enfraquecidas vozes respondeo logo o enfermo:
e ouvia tudo com grande esperteza, e atenção. Pouco tempo há (disse), que nesta casa entraram dous
Desta sorte proseguio por algum espaço, até que fermosíssimos mancebos, sentando-se, o primeiro à mi-
ultimamente expirou sem dar a mais leve mostra nha cabeceira, e outro aos meus pés. Tiraram um livro
de arrependimento. Meteram o infeliz cadáver mui asseado, mas mui pequeno, e dando-me a ler, vi
na sepultura; mas foram depois vistos sobre ela nele as boas obras, que tinha feito, as quaes eram mui

123
poucas, e mui limitadas. Tornaram a receber o livro, e profundeza dele a Lúcifer com Caifas, e outros
não me disseram mais palavra. No mesmo ponto vi Judeus, que foram Deicidas de Cristo: junto des-
entrar um exército de horríveis, e infernaes espíritos, tes, ay de mim! (dizia) vejo o lugar, que me está
que me cercaram, ficando outros de fora, por não cabe- preparado para a minha eterna condemnação. Procu-
rem tantos dentro da casa. Então o que entre todos era raram os Religiosos com grande fervor exortá-
mais horrendo no semblante, e parecia superior na -lo a que se arrependesse, porque ainda lhe res-
maioria, tirando outro livro de medonha vista, enorme tavam esperanças, e oportunidade para se salvar,
grandeza, e peso insoportável, o deo a um dos seus se se quisesse deveras arrepender. Já não posso
ministros, ordenando-lhe mo entregasse para o ler. mudar de vida (respondeo desesperado) porque já
Nele vi escritos com letras negras, e feíssimas quantos está completo o meu juízo. Nestas palavras expirou,
pecados tinha cometido, não só por obra, e palavra, e lendo sepultado na parte mais remota do
mas até pelo mais ligeiro pensamento. Disse logo Convento, ninguém houve que te atrevesse a
aquele demónio superior aos dous mancebos (que orar por alma, que saio deste mundo com tantos
eram dous Anjos.) Para que estais aqui, se sabeis sinaes de prescíta. Na Povoação de Lambayeque
certamente que este homem é nosso? Assim é, respon- no Bispado de Trugillo das Índias Ocidentaes
deram eles, levai-o, e metei-o no número dos vossos nasceo, e vivia uma Índia chamada Isabel,
condemnados. E dizendo isto, desapareceram daqui os fermosa, e celebrada de muitos pela sua gentil
Anjélicos assistentes. Chegaram-se depois a mim dous disposição, e engraçado donaire. Trajava ao seu
ferocíssimos demónios, e com forquilhas, que traziam modo custosas galas, que afermoseavam a curio-
nas mãos, me começaram a golpear, e ferir por várias sidade, e o asseio, servia-se de sedas, holandas, e
partes do corpo; e agora sinto que me vão penetrando o outros regalos deste género, admitindo só
interior, até que eu chegue ao ponto de expirar, para Hespanhoes a seu impuro trato. Sobreveio-lhe
me levarem consigo às profundezas do inferno. Desta um achaque mortal, e persuadiram-na que se
sorte falou o desesperado moribundo, e passado preparasse para a morte, e recebesse como Cató-
breve espaço exalou a infelicíssima alma, indo a lica os Sacramentos. Confessou-se mais por
fazer no inferno sem fruto a penitência, que cumprimento, que por devoção; deram-lhe o
pudera fazer em vida com proveito. Em certo Sacrossanto Viático, e no mesmo ponto que o
Mosteiro ilustre vivia um Religioso tão esqueci- recebeu, com loucas ânsias, e inquietas fúrias
do das suas obrigaçoens, como entregue a clamava que lhe tirassem aquele demónio do
viciosíssimas liberdades. Admoestavam-no mui- peito, que a atormentava. Dava gritos desespe-
tas vezes os companheiros, e superiores, mas ele rados, e quantas pessoas lhe falavam de Deos, ou
incorregível fazia tão pouco caso dos conselhos, a pertendiam sossegar, com que se encomendas-
como dos castigos, e repreensoens. Como era se a ele, se retiravam de lhe ouvir tantas desespe-
insigne na sua arte, toleravam-no pelo préstimo, raçoens. Clamava em altas vozes que lhe não
que nela tinha, e assim viveo alguns anos, sem dissessem Missas, nem a enterrassem em sagrado;
assistir aos actos devotos, e obrigatórios da Reli- porque desde ali se ia direita ao inferno, pois
gião, entregue só às suas relaxaçoens, que alter- nunca tinha feito cousa boa, e quando ia aos
nava com os exercícios da sua oficina. Templos a não levava a sua obrigação, senão o
Caiu em fim mortalmente enfermo, e próximo desejo de ser vista de todos, e o gosto de ser
já à morte chamou aos Religiosos, aos quaes celebrada dos Espanhoes. Certo Eclesiástico de
com grande tristeza, e semelhanças de conde- quem se dizia a ensinara a ser má, e a tinha por
mnado disse que vira o inferno aberto, e na concubina, se chegou a ela, e lhe pedio que não

124
proferisse palavras tão bárbaras, e que se tornasse
a Deos, confiando na sua misericórdia. Porém a
desgraçada mulher com furiosa cólera lhe disse:
Diogo
Encomenda-te tu a Deos, que bem necessitas disso,
pois por amor de ti, que me ensinaste a pecar, devendo de Paiva
ensinar-me a ser boa, me vou ao inferno para padecer
ali eternamente. Não disse mais palavra, e no fim
destas exalou a vida.
de Andrada *
Nas mesmas Índias, e em vinte légoas da Cidade
de Cusco assistia um Sacerdote, em quem os
maos procedimentos da sua vida se opunham O Casamento Perfeito
muito às suas obrigaçoens de Pároco. Tinha vá-
rios modos de negociação, acupando-se em CAPÍTULO XIV
ajuntar dinheiro, e não aproveitar os Índios, dos
quaes se servia, para lhe trabalharem nas ganân- O parecer do rosto, que os homens
cias, e os escusava dos preceitos da Igreja, por- devem escolher nas mulheres,
que lhe manejassem os lucros. Por não largar as com que se casarem
ocupaçoens da ambição própria, nem acodia aos
doentes com os Sacramentos, nem ensinava aos Depois de considerada a idade conveniente, de-
fregueses a doutrina: em fim era tão vicioso nos vem os homens, que não tiverem tanto do Céu,
costumes, como indigno dos Eclesiásticos minis- que saibam amar as formosuras interiores, traba-
térios. Adoeceo gravemente, augmentou-se-lhe lhar, quanto lhes for possível, por buscar mulhe-
o mal; mas nem atendeo aos avisos da doença, res, que no exterior não passem as marcas nem
nem houve persuasoens que o movessem a con- de feias, nem de formosas, porque além de haver
fessar-se, ou desenganar-se que morria. Exor- sempre descomposição em quaisquer extremos,
tou-o um Religioso grave, desconfiavam da sua nos desta qualidade os vemos maiores, e os efei-
vida todas as pessoas; porém ele a ninguém dava tos deles mais arriscados. E começando pelas
crédito, tratando só da sua cobiça, e não da sua formosas, ninguém pode negar [posto que há
morte, e respondendo, que não estava ainda tão muitas, que resplandecem tanto na virtude,
mal para se aparelhar com as últimas disposi- como na formosura] que aqueles, a que elas
çoens. Em fim para se livrar das muitas instâncias, couberam por sorte, não devem ter a confiança
com que o perseguiam, fez uma confissão mui mui sossegada, se não tiverem, como cremos,
breve, frouxa, e nada afectuosa, e pouco depois que terão todos, larga experiência de sua capaci-
com um apressado arranco saiu deste mundo. [...] dade, e recolhimento: titubeando a confiança, eis
uma guerra muito travada entre as suspeitas, e a
razão, elas favorecidas dos ciúmes, ela dos bons
procedimentos; elas espertando sempre os olhos
para andar em vigias, e resguardos, ela reprimindo

* Diogo Paiva Andrada. O Casamento Perfeito. Pref. e notas


do Prof. Fidelino de Figueiredo. Lisboa: Lv. Sá da Costa,
1944, p. 80-85; 165-167.

125
o entendimento para estar por verdades, e de- lher formosa é coisa cheia de suspeitas. [...] Mais
senganos, e no fim se as suspeitas vencem, fica a depressa são honestas as feias, que as formosas. E
guerra de pior qualidade, e quando elas são posto que a conservação desta virtude depende
vencidas, custa a vitória muito trabalho, porque mais da cabeça, que do rosto, e temos visto mui-
estes vãos impulsos da honra nunca favorecem a tas formosas em extremo honestas, e algumas
melhor parte: e posto que a confiança esteja feias muito levianas; contudo os Autores mos-
como é razão, em todas suas forças, sempre os tram o perigo, sem diminuir no merecimento;
receios dão seus assaltos, como bem o explica porque em quaisquer pessoas, estados, e tempos
Ovídio na epístola de Helena a Paris, tratando tem seu lugar a honestidade, na qual, e em todas
de seu marido El-Rei Menelao. [...] as mais virtudes se esmeraram sempre tanto as
Quer dizer: Quando Menelao põe os olhos em mulheres deste Reino, que deram matéria para
minha formosura, tem receios; quando os põe se fazer delas um livro muito copioso, e ao dou-
em minha honestidade, tem confiança; e assim tor Fr. Luís dos Anjos, com quem atrás deixo
quanto o asseguro por honesta, tanto o inquieto alegado, coube a boa sorte de o escrever, como
por formosa. Por onde nas que não forem muito quem também a merecia por sua virtude, erudi-
esmeradas no recolhimento, tanto maior será o ção e doutrina: no qual não trata de outra coisa
perigo de titubearem na virtude, quantos mais senão de mulheres nossas naturais, e muitas pa-
forem os olhos que se puserem na pessoa; e rentas, e conhecidas, solteiras, casadas e viúvas,
quando forem muitos os que a virem, não po- cujas vidas foram raras, e prodigiosas: e com ra-
dem ser poucos os que a desejarem, pois são zão lhe deu por título Jardim de Portugal, porque
atributos iguais da formosura atrair olhos, render todas elas como flores ornaram a terra, dando ao
corações, afervorar desejos: e conforme disse Céu suavíssimos cheiros de santidade: umas com
Francisco Petrarca. Durum est custodire quod à efeitos admiráveis, outras com milagres eviden-
multis expetitur. Que é dificultoso de guardar o tes, e todas com merecimento para poder ser
que muitos cubiçam. Entende-se isto geralmen- julgadas por santas: e o número delas é tão copi-
te, e nós o dizemos por apontar tudo o que oso, que começa desde o tempo dos primeiros
importa para ser maior a perfeição, que persua- Reis deste mesmo Reino, e chega até esta era,
dimos, e não para tirar a virtude a quem a tem, em que hoje vivemos; coisa que por ventura se
nem o louvor a quem o merece: e obriga, e cega não achará era outro nenhum, por mais povoa-
tanto a formosura que Tibulo Poeta Gentio a do, e devoto que seja: [...]
põe no mesmo andar da feitiçaria, [...] Raramente se compadece honestidade com for-
Como se dissera: É tão eficaz por si própria a mosura, ainda que a casa seja austera, e se imi-
formosura que não há mister outros feitiços para tem nela as antigas Sabinas. Foram estas umas
procurar afeiçoados. E a verdade é (deixando donzelas do tempo antigo de muito honestos e
virtudes particulares, que se não entendem nas louváveis costumes, a quem tomaram por enga-
regras gerais) que é necessário para uma só for- no, e se casaram com elas os primeiros morado-
mosa maior cabedal de recolhimento, que para res de Roma, e destas procediam os Patrícios,
todas as outras, que o não forem: é esta a geral que eram os mais nobres daquela República. De
doutrina dos escritores, fundada em boa Filoso- maneira que achou este insigne Poeta, que posto
fia, e confirmada com certas experiências, e co- que uma mulher formosa seja mui resguardada
meçando por S. Crisóstomo, ele diz sobre este em seus aposentos, e mui respeitada por suas
particular as palavras seguintes. [...] Que a mu- virtudes, nem ainda assi a honestidade lhe fica

126
isenta de perigo; e por este respeito fingiram os CAPÍTULO XXIV
Poetas, (debaixo de cujas fábulas há sempre
moralidades proveitosas) que Júpiter se conver- Que sejam caladas e sofridas
teu em orvalho de ouro, para ir fazer desonesta a
Danae naquela torre inexpugnável, onde seu pai Esta moderação de toucados, e trajos há-de ser
a tinha encerrada; e que tomou a figura de Cis- sempre misturada com outra não menos impor-
ne, para que não valessem a Leda seus muitos tante, e substancial, que é a da língua; porque
resguardos, e clausuras, e a de Anfitrião, marido escusado seria mostrar-se uma mulher honesta
de Alcmena, para que ela tivesse tachas no meio em sua pessoa, se se mostrasse desenvolta em
da perfeição, e observância de suas cautelas, e suas palavras; antes nestas era o perigo ainda
lealdades; com as quais fábulas, e com outras mais certo, a perdição mais ordinária, e a restau-
muitas a este propósito nos dão a conhecer os ração mais trabalhosa; pois como pelas palavras
muitos perigos, a que anda sujeita a formosura se dá notícia clara dos intentos, todos os que
ainda nas mais escondidas, e recatadas; e acha- vêem a qualquer mulher desenvolta nelas, jul-
vam os antigos tanta contradição, e repugnância gam, que não pode ser registada neles; [...]
entre a formosura, e a honestidade, que quási o Qual é a tenção, tais são as palavras, porque o
vinham a reduzir a ordem, e disposição da natu- que a boca fala, é de abundância do coração.
reza. Ovídio o mostra claramente nestas palavras, Com estes indícios, que em matérias de tal qua-
que Paris escrevia a Helena, quando solicitava lidade nunca deixam de ser cridos, ficam sem
seus amores. [...] comparação mais arriscadas as que falam com
É necessário que, ou mudeis esse rosto, ou não soltura, que as que se enfeitam com demasia;
tenhais essa aspereza. E bem conheceram os porque com estas se atrevem os homens muito
mesmos antigos a probabilidade desta opinião, mais, por serem elas as que solicitam, que com
pois fizeram a Vénus juntamente deusa da for- as outras, que ainda hão mister solicitadas: da
mosura, e do amor profano: donde tiraram os certeza destes perigos se pode inferir quão ordi-
Gregos aquele despropósito, não só celebrado nária ficará sendo a perdição das que os procu-
pelos antigos, senão referido pelos modernos, o ram com falar muito, pois bem se declara na
qual o nosso idioma diz: Cabeça formosa não doutrina dos virtuosos, que quem ama os peri-
tem miolo. Com que queriam dar a entender, gos, não poderá escapar deles, e saibam as que se
que era necessário ser ele muito, para lhe não sentem tocadas deste vício, que não lhes basta
fazerem perturbar as lisonjas dos afeiçoados, ou serem honradas, e recolhidas, para deixarem de
as importunações dos pretensores. Presuposta parecer vãs, e escandalosas, ainda com mais ra-
esta doutrina fundada no bom discurso dos que zão, que as enfeitadas; porque essas podem ter
melhor a entenderam, e confirmada na ruim muito boa desculpa, se usarem dos enfeites, para
sorte dos que em si mesmo a experimentaram, contentar ao mais a seus maridos; antes se eles o
parece que por ordem de razão, e natureza, com mandarem, não farão elas o que devem, quando
mais quietação devem viver, os que tiverem em fizerem o contrário: e as que falam demasiada-
sua casa um parecer fora de extremos, que os mente não podem nunca ter razão, que as obri-
que guardarem uma jóia, por quem no mundo gue, nem ocasião, que as desculpe; e tanto não
se fazem tantos. [...] tem uma, nem outra, que diz a Divina Sabedoria
das que são desordenadas em suas palavras: [...]
Que não andam pelo caminho da salvação. Mas

127
deixando estes perigos, a que poucas, ou nenhu-
mas estarão sujeitas, ao menos daquelas, de
quem falamos, passemos a outras advertências,
Jacome
que servem mais para nosso intento. Não há
dúvida, que a toda a mulher, especialmente a Carvalho
que for casada, importa muito a moderação da
língua, assim fora de casa, como dentro nela,
assim com os homens estranhos, como com seus
do Canto*
próprios maridos; porque com falarem pouco,
não somente fogem de leviandades, que tão mal
estão em mulheres honradas, senão adquirem
respeito, e autoridade, que são os esmaltes da A Perfeita Religiosa
nobreza. [...] razão achou Demócrito, que não
havia para elas ornamento mais competente, que Cap. XXXXII (42), p. 106-108: “Como a Freira
a temperança nas palavras, quando disse: [...] A há-de ser geral, & não particular nas amizades
mulher casada há-de falar somente com seu ma- das mais Religiosas”
rido, ou por boca dele com todos os outros.
Pintavam os antigos a Deusa Vénus com os pés A Religiosa que deseja agradar a Deos, o que
em cima de um cágado, e a razão era, porque trata de adquirir virtudes, deve fugir (como de
como este animal, por não ter voz nenhuma, cousa mui perjudicial à consciência, e que de-
nem sair nunca, ou poucas vezes do lugar, em grada aos olhos do Senhor) de ser parcial, e parti-
que está posto, era símbolo do silêncio, e reco- cular nas amizades com algu~ as Religiosas, con-
lhimento, queriam que as mulheres significadas versando e tratando com u~ as, e desviando-se
pela imagem de Vénus, se lembrassem, que ti- com desafeição de outras mostrando esta esqui-
nham obrigação de andar pouco, e falar menos. vança, e mao termo, nas palabras, & nas ocasiões
E foi sempre tão estranhada, e mal recebida, par- que se oferecem, e que nestes bandos anda
ticularmente nas casadas, qualquer pequena sol- enfrascada, oh quam mal se entende, e quam
tura de língua, [...]. fora vai do caminho da perfeição religiosa, pois
se acomoda com um trato tão inútil, digno
(como é) de ser estranhado, que é mais pera
pessoas que professam devassidão de costumes,
que pera Religiosas, cujo ofício e profissão é
extinguir vícios, e abraçar virtudes. Oh quem
tivera licença pera estranhar, e dizer disto aqui
muito. Pelo que vós Religiosa que ledes este
capítulo, não busqueis, nem tenhais amizades
particulares, mas sêde com˜ua a todos, tratando as
mais Religiosas com sancta e boa conformidade
como o manda Deos, e o pede a rezão e virtude,

* A Perfeita Religiosia e Thesouro de Avisos e documentos


espirituais. Lisboa: 1615.

128
e com isso grangeareis u~ a paz dalma, forrareis
muitos desgostos, cerrareis a porta a inconveni-
entes, e sereis amada de todas. E quando chegar
Frei
o tempo de eleger a Prelada, tende aviso, que
não vos governeis nesta ocasião por obrigação Bartolomeu
ou afeição particular, pera [h]aver de votar con-
tra rezão e justiça: nem tão pouco vos deixeis
vencer de quem vos quiser persuadir com boas
Ferreira *
rezões a que voteis por fulana, ou fulana, ouvi a
preposta, e respondei com humilde liberdade di-
zendo: Irmã esta eleição é obra do Espírito “Contra a leitura de livros profanos”
Sancto, cujo ofício é alumiar, e mover os ânimos
pera bem aceitar, ele permita comunicar-nos a Encomendamos a todas as pessoas que se abste-
todas a graça e virtude, pera que nosso entendi- nham da lição dos livros em que há desonesti-
mento não seja pervertido, antes alumiado & dades ou amores profanos, porque, além do
sobgeito ao comprimento de sua sancta vontade. tempo que na lição deles se perde, fazem muito
E tende outrossi aviso, que nunca vos declareis, dano e prejuízo às consciências, e ensinam e
nem digais vossa tenção e parecer, sêde calada e movem a muitos vícios, e comummente há ne-
prudente, lembrando-vos o dito de São Bernardo: les louvores muito desordenados e excessivos das
O meu segredo pera criaturas, e encarecimentos e nomes blasfemos.
mim mes- E se as más palavras corrompem os bons costu-
mo. mes, como diz S. Paulo, que farão as escritas nos
livros, que são de mais dura, principalmente di-
zendo o Catálogo Tridentino, na Regra sétima,
falando dos tais livros, que não somente se há-de
ter conta com o que faz dano à Fé, mas também
com o que faz prejuízo aos bons costumes. E se
nos tais se acham porventura algumas poucas
cousas boas, ficam muito custosas, a troco de
outras muitas más que têm, que fazem dano; e
não é prudente quem se aventura a tomar uma
jóia, por preciosa que seja, das unhas de um fero
e bravo leão. El-rei David não quis beber a água
da cisterna de Belém por ser perigosa e arriscarem

* Frei Bartolomeu Ferreira, «Avisos e lembranças», no Catálogo


de livros proibidos de 1581. In Índices dos Livros Proibidos em
Portugal no Século XVI. Lisboa: INIC, 1983, p. 637-638. Apud,
História Crítica da Literatura Portuguesa. Vol. III. Lisboa: Verbo,
2001, p. 355. Os três curtos excertos que se seguem são
também recolhidos a partir desta antologia de textos
doutrinários. Figuram nas páginas 360 a 363.

129
a vida os cavaleiros que a foram buscar, posto
que primeiro a desejasse muito. Nem os homens
haviam de ler os livros prejudiciais pelo perigo e
Frei João
risco a que se põem lendo-os. E não há cousa
boa nos tais livros que se não ache melhor nos dos Prazeres *
bons.

“Novelas amorosas mas exemplares”

Senhor
Por ordem de Vossa Majestade revi este livro
intitulado Serão político, composto por Félix da
Castanheira Turacém. De três Serões se compõe
este volume, e muitas novelas exemplares for-
mam o político destes Serões.
Não foi ociosa a ideia de seu autor nem infrutí-
fera a curiosidade dos leitores. As novelas, da
mesma sorte que as fábulas, foram as aderências
de que se valeram muitos sábios para a introdução
de seus conselhos, fingindo os sucessos acomo-
dados ao génio dos ouvintes para os disporem
atentos e afeiçoados, e assim entre o saboroso da
ficção lhe introduziam o amargoso da verdade. A
importância da exortação entranhada no mesmo
divertimento é anzol que, escondido entre o
cibo, prende ao peixe mais liberto, e fogo que
consome ao mesmo pedernal donde saiu.
São amorosas todas as novelas deste livro, mas
exemplares, porque doutrinal o fim a que as
termina seu autor, mostrando na variedade dos
enredos a inconstância dos afectos humanos e
persuadindo no engano dos amantes a falsidade
do amor do mundo, com que, sendo empenho
deste autor matar ao inimigo com suas próprias
armas, destruir os vícios com as mesmas armas
de seus vícios, me parece digno da licença que
pede.Vossa Majestade mandará o que for servido.
São Bento da Saúde, 29 de junho de 1696.

* Fr. João dos Prazeres, “Parecer”. In Serão Político. Lisboa:


1704.

130
Anónimo * ção de um mosquito para fermosura do univer-
so e não deixarão estes senadores romanos passar
a discursada sevandija de uma novela para orna-
to deste mundo lusitano? Não digo por que
digamos aos estranhos «Temos cá isto», mas
“Da utilidade das novelas” «Também cá temos isto».
Abençoada seja a volta enrocada e o bigode até
[...] Que o argumento deste livro (Serão Político) à orelha que não se dedignou de lançar os olhos
sejam novelas, não sei que seja razão para des- aos Contos de Trancoso e achou ali em que gastar
merecer, porque nos contratos do entendimento o tempo e não perder ensino. Não há história
e gosto nem tudo hão-de ser diamantes, também tão seca que deixe de se lhe colher alguma dou-
hão-de entrar vidros; nem tudo tela, também trina, nem se achará nela acção menos concerta-
droga; fora de outra sorte pouca providência se, da que não entre como repreendida. Pois logo
trabalhando-se só para os opulentos, ficassem que se condena no estilo das novelas? Serem
sem emprego os menos sobrados. mestras do mesmo que condenam? E tão ino-
De muitas classes de gente consta o mundo; para cente está hoje o mundo que lhe é necessário
os racionais comércios são talentos os juízos, e o mestre para um desmancho?
que não tem cabedais para dar alcance à Teolo- [...] Escrevia Macróbio que «dois caminhos le-
gia contentar-se-á com o liso da história. Há vavam as ficções poéticas, umas de divertir, ou-
livros de estudar e livros de ler. Porque há-de tras de exortar», e nenhum destes deve conde-
ficar defraudado o oficial que não cursou as es- nar-se enquanto não passar a raia da modéstia.
colas daquela delícia em que naturalmente se Nestas novelas oferece Vossa Mercê aos génios
divertem as ideias? Não será mais sisudo ler uma estes dois caminhos: culpe a sua escolha quem
novela que jogar à bola? Se se inventaram os pisar o de menos valia, que eu o que entendo é
jogos para divertimento honesto, porque se não que o bom entendimento é o melhor químico e
estimarão as novelas por devertimento? Tudo que das mesmas fábulas pode tirar as quintas
por força hão-de ser máximas que trabalhem na essências das doutrinas.
direcção dos acertos? e talvez que não divirtam
tanto e aproveitem o mesmo... Que seria de
pagens e aprendizes, que seria destes confrades
do canhão grande, do chapéu amassado, dos fre-
gueses do cutó e do polvilho, se liberal o enten-
dimento não botara como a arrebatinhas estes
discursos de farta-velhacos?
Estou ouvindo a severidade dos críticos e a cir-
cunspecção dos maduros condenando por inútil
este género de escritura; e o Autor disse porven-
tura no prólogo que escrevia cânones ou novelas?
De sorte que permite a Providência a persegui-

* «Parecer de um amigo do Autor». In Serão Político. Lisboa:


1704.

131
Nuno E se me notardes a via recta de enfiar ou enxerir
todos os dez Mandamentos por modo de extre-
mos, como se vão seguindo, sem os interpolar,
Marques de sorte que mais parece suposta que verdadeira
a história, sabei que tenho estado em muitas

Pereira * partes, e com mui diferentes génios de pessoas


tratado e conversado, e nelas achei a maior parte
dos casos que vos refiro neste Compêndio, e de
outros de quem tenho ouvido contar. E porque
me pareceu defeito nomeá-las, nem ainda todos
“Livros espirituais e livros profanos” os lugares onde sucederam, por isso usei do pre-
sente meio, ainda que vos deixe nessa suposição;
Bem é verdade que me dirão muitos que escre- e juntamente por levar seguida e atada a com-
ver, e ainda em matérias espirituais, só incumbe posição desta doutrina. [...]
a seus professores, e que eu o não sou. A isto E se reparardes no estilo, por ser em parte para-
respondo com um exemplo bem vulgar. Que se bólico, tenho exemplo de muitos autores espiri-
diria de um homem que, estando em parte don- tuais que usaram desta frase e género de escre-
de visse atear um incêndio em uma casa ou ver; e o mesmo Cristo Senhor Nosso, tratando
cidade, se logo a vozes não gritasse que lhe acu- sólida doutrina com os homens, para melhor os
dissem com água ou instrumentos para se evitar persuadir o praticou; e ainda hoje, com maior
o dano? Sem dúvida se diria que, sobre ser razão nos tempos presentes, para convencer ao
ímpio, era digno de todo o castigo. E por isso gosto dos tediosos de lerem e ouvirem ler os
notou S. Pedro Crisólogo que não é atrevido em livros espirituais, são necessários todos estes ace-
falar quem o faz por zelo de Deus e do próxi- pipes e viandas. E se não, vede o que se estila e
mo. Demais que também do ocioso silêncio se pratica nos banquetes de agora, oferecendo-se
há-de dar conta a Deus como das ociosas pala- nas mesas aos convidados no primeiro prato vá-
vras: assim o advertiu santo Ambrósio. rias saladas para mais agrado e gosto do paladar.
Tal me considero eu no presente caso, levado do Isto que sucede nos banquetes do corpo vos
zelo e amor de Deus e da caridade do próximo, quis praticar neste banquete da alma. [...]
por ver e ouvir contar o como está introduzida Porém está hoje o mundo e os homens em tal
esta quase geral ruína de feitiçarias e calundus estado, por enfermos, flatulentos e tediosos de
nos escravos e gente vagabunda neste estado do ouvirem a palavra de Deus, que só gostam de
Brasil, além de outros muitos e grandes pecados ouvir as palavras ociosas a que chamam cultura,
e superstições de abusos tão dissimulados dos equívocos, fábulas e comédias. Com grande ra-
que têm obrigação de os castigar; motivo por zão nos há Deus de pedir conta das palavras
que o demónio, mestre da mentira e ciência ociosas, por serem causa de tantas almas se per-
mágica, se tem introduzido, com perda de tantas derem. E por isso discretamente disse um
almas remidas pelo precioso sangue de Nosso contemplativo que o que lê livros espirituais
Senhor Jesus Cristo. [...] paga o dízimo a Deus, e o que lê os profanos
paga o terço ao diabo. [...]
* Nuno Marques Pereira, «Ao leitor». In Compêndio Narrativo
A este propósito me lembra que, estando eu em
do Peregrino da América. Lisboa: 1728. casa de um amigo lendo o Báculo Pastoral, entrou

132
um destes loucos peripatéticos, desvanecido
com presunções de discreto; e sabendo do título
do livro, me disse que nenhum homem de juízo
se ocupava em ler livro tão vulgar. E ouvindo
eu, se não blasfêmia, proposição tão mal soante,
lhe perguntei: Pois que livro se há-de ler? E logo
me respondeu mui ufano: Góngora, Quevedo,
Criticón, Para todos de Montalbán, Retiro de cuida-
dos, Florinda, Cristais da Alma, novelas e comédi-
as, porque estes livros ensinam a falar. Pois eu
entendo, Senhor (lhe disse), que esses livros e
outros semelhantes ensinam a falar para pecar, e
este e outros espirituais ensinam a obrar para
salvar.

133
134
BIBLIOGRAFIA
S U M Á R I A

135
136
Bibliografia Diogo Ferreira de Figueiroa (1604-1674)
– Desmaios de Maio em Sombras do Mondego. Vila
Viçosa: Paço do Duque, por Manuel Carvalho,
1635. Excerto incluído em João Palma-Ferreira.
Novelistas e Contistas Portugueses dos Séculos XVII
TEXTOS LITERÁRIOS e XVIII. Lisboa: INCM, 1981, p. 189-193.

Frei Gaspar Pires de Rebelo (1585?-1648) Gerardo de Escobar – Frei António


Escobar (1618-1681)
– Infortúnios Trágicos da Constante Florinda.
I Parte, 1625; II Parte, 1633. Edição do texto, – Doze Novelas. [Lisboa]: Edição de João da
com grafia modernizada, por Nuno Júdice (a Costa, 1674. Excerto incluído em João Palma-
partir das edições de 1761, para a Parte I; e a de -Ferreira. Novelistas e Contistas Portugueses dos Sécu-
1722, para a Parte II). Lisboa: Teorema, 2005. los XVII e XVIII. Lisboa: INCM, 1981, p. 235-242.

Existia já uma transcrição recente do texto, que aliás N.


Júdice diz ter consultado, feita por Artur Henrique Ribeiro António Barbosa Bacelar (1610-1663)
Gonçalves a partir das 1as Edições (1625 e 1633 – I e II
Partes) e incluída na sua dissertação de doutoramento, com – “Novela intitulada Desafio Venturoso. / Dedicada
o título: “Infortúnios Trágicos da Constante Florinda de Frei a Luis Sanchez de Baena / Moço de Sua Majes-
Gaspar Pires Rebelo: uma novela de amor e de aventuras tade / o Cónego Prebendado na Sé de Lisboa”.
peregrinas”. O Vol. II da dissertação inclui: “Texto e notas”. Org. e pref. de Ana Hatherly [a partir do Códice
Diss. Doutoramento, FCSH-UNL, 2000.
51-VI-34, n.º 14 (fls. 131r a 146r) da B Ajuda].
– “O desgraciado amante”. Novela Quinta de 1644; Lisboa: Assírio & Alvim, 1991.
Novelas Exemplares, compostas pelo Autor das
duas Partes da Constante Florinda, o Licenciado Frei Lucas de Santa Catarina (1660-1740) –
Gaspar Pires de Rebelo. [...] 1649-50; Lisboa Pseudónimo anagramático: Feliz Castanheyra
Occidental: Na Off. de António Pedrozo Turacem
Galram, M.DCC.XXII [1722]. Transcrição por
Henr ique Artur Pereira Gonçalves. Diss. – “Os Irmãos Penitentes”. “Primeyra Noyte”. In
Mestrado. Orientação de Ana Hatherly. Lisboa, Seram Politico, dividido em três Noytes para diverti-
FCSH, UNL, 1994. mento dos curiosos [...] Por Feliz Castanheyra
Turacem. 1704; Lisboa: Na Off. de Bernardo da
Costa, 1723.
João Nunes Freire (? – 1647 ou 1655)
– Os Campos Elísios. Porto: 1626. Excerto incluído Tomé Pinheiro da Veiga (1570-1657).
em João Palma-Ferreira. Novelistas e Contistas
Portugueses dos Séculos XVII e XVIII. Lisboa: – Fastigímia. Edição de Maria de Lourdes
INCM, 1981, p. 175-177. Belchior. 1.ª edição: 1911. Lisboa: INCM, 1983.

Edição recente: de António Cirurgião. Lisboa: 1996.

137
Francisco Xavier de Menezes – 4º Conde Deos. Obra também muy útil para Pregadores, Con-
da Ericeira (1673-1743). fessores, e Missionários, a quem toca propor os
Catholicos desenganos. [...] [1728-1738]; Parte II:
– Diário (1731-1733). Apresentado e anotado
Lisboa Occidental: Na Offic. Almeydiana,
por Eduardo Brazão. Coimbra: Universidade de
MDCCXXXIX [1739]. Com as Licenças ne-
Coimbra, Faculdade de Letras, 1943.
cessárias, e Privilegio Real.
I Parte: Lisboa Occidental: Na Nova Officina de Mauricio
Frei Alexandre da Paixão (1631-1701) Vicente de Almeyda, 1737.
– Monstruosidades do Tempo e da Fortuna. Diário de
factos mais interessantes que sucederam no reino de Diogo de Paiva Andrada (1576-1660)
1662 a 1680, até hoje attribuidos infundadamente
ao beneditino Fr. Alexandre da Paixão. Divulgado – O Casamento Perfeito. Prefácio e notas do Prof.
por I.A. da G. Barreto. Lisboa: Typographia da Fidelino de Figueiredo. 1630; Lisboa: Livraria Sá
Viúva Sousa Neves, 1888. da Costa, 1944.
Edição de Damião Peres: Monstruosidades do Tempo e da For- 1ª edição: CASAMENTO PERFEITO EM QUE SE
tuna. Porto: F. Machado, 1938-1939. (4 Vols..1º: 1662-1669; CONTEM advertencias muito importantes pera viuerem os
2º: 1669-1671; 3º: 1671-1674; 4º: 1674-1680). casados em quietação; contentamento; muitas hystorias,
acontecimentos particulares dos tempos antigos, modernos:
diuersos custumes, leys, ceremonias que teverão algu~as
António de Sousa Macedo (1606-1682) naçoe~s do mundo: com varias sentenças, documentos de
Autores Gregos, Latinos, declarados em Portugues; tudo em
– Flores de España, Excelencias de Portugal. Em que ordem ao mesmo intento. Por Diogo de Payua d’Andrada.
brevemente se trata lo mejor de sus historias, y de Lisboa: Iorge Rodriguez, 1630.
todas las del mundo desde su principio hasta nuestros
tiempos y se descubren muchas cosas nuevas de Jacome Carvalho do Canto (15??- 1623)
probecho, y curiosidad. I Parte. En Lisboa, Impressas – A Perfeita Religiosa e Thesouro de Avisos, e docu-
por Iorge Rodriguez, 1631. mentos espirituais. Com um Tratado de Meditações de
notas sobre o Amor de Deus. Escrito, & cõpilado
Luís Mendes de Vasconcelos por Iacome Carualho do Canto, natural da Vila
de Guimaraes. Com as Licenças necessarias. Em
– Sítio de Lisboa: Diálogos. Org. e notas de José da
Lisboa: per Pedro Crasbeeck, 1615.
Felicidade Alves. 1608; Lisboa: Livros Horizonte,
1990.
Frei Bartolomeu Ferreira
Padre Manuel Conciência (1669-1739) – Avisos e Lembranças, do ‘Catálogo de Livros
Proibidos de 1581’. In Índice dos Livros Proibidos
– A Mocidade Enganada, Desenganada. Duello Es-
em Portugal no Século XVI. Lisboa: INIC, 1983, p.
piritual, Onde com gravíssimas Sentenças da Escritu-
637-638. Excerto em História Crítica da Literatura
ra, e Santos Padres, com sólidas ponderações, e exem-
Portuguesa. Vol. III: Maneirismo e Barroco. Lis-
plos muy singulares de erudição sagrada, e profana se
boa: Verbo, 2001, p. 355.
propõem, e convencem em forma de Dialogo todas as
escusas, que a Mocidade (e qualquer outro peccador)
allega, e com que se engana, para se naõ converter a

138
Frei João dos Prazeres Cohen, Hermann. Ästhetik des reinen Gefühls.
Band 2. Berlin: 1912
– “Parecer”. In Seram Politico. Lisboa: 1704.
Excerto em História Crítica da Literatura Portuguesa. Dezengano, Frei Amador do. Espelho Crítico no
Vol. III: Maneirismo e Barroco. Lisboa: Verbo, qual claramente se vem alguns defeitos das Mulheres,
2001, p. 360-61. fabricado na loja da verdade, pelo Irmaõ Ama-
dor do Dezengano, que pode servir de estimulo
para a reforma dos mesmos defeitos. Lisboa: Na
Anónimo
Offic. de António Vicente da Silva. Anno de
– “Parecer de um amigo do Autor”. In Seram M.DCCLXI.
Politico. Lisboa: 1704. Excerto em História Crítica
Dubois, Gilbert-Claude. Le Baroque: profondeurs
da Literatura Portuguesa. Vol. III: Maneirismo e
de l’apparence. Paris: Lib. Larousse, 1973.
Barroco. Lisboa: Verbo, 2001, p. 361-62.
Fernandes, Maria de Lourdes. “A prosa didácti-
co-moral”. In História da Literatura Portuguesa.
Nuno Marques Pereira
Vol. III: Da Época Barroca ao Pré-Romantismo. Lis-
– “Ao leitor”. In Compêndio Narrativo do Peregrino boa: Alfa, p.141-49.
da América. Lisboa: 1728. Excerto em História
Finazzi-Agrò, Ettore. A Novelística Portuguesa do
Crítica da Literatura Portuguesa. Vol. III: Maneirismo
Século XVI. Lisboa: ICALP, 1978.
e Barroco. Lisboa: Verbo, 2001, p. 362-63.
Horst, Carl. Barokprobleme. Münich: 1912.
Jesus, Gertrudes Margarida de. Primeira Carta
BIBLIOGRAFIA GERAL
Apologética, em Favor, e Defensa das Mulheres. Lis-
boa: Offic. de Francisco Borges de Sousa, 1761.
AAVV. Coord. Puissance du Baroque: les forces, les
Lemos, Ester de. “Humorismo”; “Casamento”.
formes, les rationalités. Christine Buci-Glucksmann.
In Dicionário de Literatura. Dir. Jacinto do Prado
Paris: Galilée, 1996.
Coelho. 3ª ed.; Porto: Liv. Figueirinhas, 1983.
Ares Montes, José. “Cervantes en la literatura
Palma-Ferreira, João. “Prefácio”. Novelistas e
portuguesa del siglo XVII”. In Anales
Contistas Portugueses dos Séculos XVII e XVIII.
Cervantinos. Tomo II, 1952, p. 195-230.
Lisboa: INCM, 1981.
Benjamin, Walter. “Alegoria e drama trágico”. In ——. Subsídios para uma Bibliografia do Memoria-
Origem do Drama Trágico Alemão. Ed., apresentação lismo Português. Lisboa: BN, 1981.
e tradução de João Barrento. [1928]; Lisboa:
Assírio & Alvim, 2004, 201-260. Maillard, Jean-François. Essai sur l’esprit du héros
baroque (1580-1640): le même et l’autre. Paris:
Castro, Aníbal Pinto de. “Da teorização à escrita A.G. Nizet, 1973.
literária”. In História da Literatura Portuguesa. Vol.
III: Da Época Barroca ao Pré-Romantismo. Lisboa: Martínez-Torrejón, José Miguel. “Diálogo y re-
Alfa, p. 37-46. tórica”. In “Prólogo”. Cristóbal de Villalón. El
Scholástico. Edición de J.M. Martínez-Torrejón.
Clements, R.J. & J. Gibaldi. Anatomy of the Barcelona: Crítica, 1997, p. XXXV-XLII.
Novella: the European Tale Collection from Boccaccio
and Chaucer to Cervantes. N.Y.: NYUP, 1997.

139
Mathieu-Castellani, Gisèle. Mythes de l’éros Transcrição por Henrique Gonçalves. Diss.
baroque. Paris: PUF, 1981. Mestrado, Orientação de A. Hatherly. Lisboa,
FCSH, UNL, 1994, p. CII-CXXXI.
Mercúrio Portuguez, com Novas da Guerra entre Por-
tugal e Castela. Lisboa: Editado pelo Dr. António Júdice, Nuno. “Gaspar Pires Rebelo: um Génio
de Sousa de Macedo, 1665. da Língua e da Literatura”. Gaspar Pires de Re-
belo. Os Infortúnios Trágicos da Constante Florinda.
Pabst, Walter. La novela corta en la teoría y en la
Lisboa: Teorema, 2005, p. 5-12.
creación literaria. Notas para la historia de su
antinomia en las literaturas románicas. Madrid: Muhana, Adma. A Epopeia em Prosa Seiscentista.
Gredos, 1972. São Paulo: Ed. UNESP, 1997.
Prado Coelho, Jacinto do. “Moralismo”. In Dicio- Palma-Ferreira, João. “Nota” sobre Gaspar Pires
nário de Literatura. Dir. Jacinto do Prado Coelho. Rebelo. In Novelistas e Contistas Portugueses dos
3ª ed.; Porto: Liv. Figueirinhas, 1983. Séculos XVII e XVIII. Lisboa: INCM, 1981, p.
107-111.
Saraiva, A.J. e Óscar Lopes. “Memorialistas”. In
História da Literatura Portuguesa, Época Barroca: Quint, Anne-Marie. «Gaspar Pires de Rebelo,
Cap. VII. 17ª ed.; Porto: Porto Editora, s.d., p. explorateur de nouvelles voies romanesques au
534-36. Portugal». In Mateo Alemán et les voies du roman
au tournant des XVIe et XVIIe siècles, Les Cahiers
Sequeira Costa, Carlos Couto de. “O que signi- FORELL: Université de Poitiers, 2001, p. 165-176.
fica pensar? Barroco e Filosofia”. In Claro/Escuro,
——. Édition et notes de Gaspar Pires de Rebe-
Nov. 1988, p. 33-39.
lo, O Desgraciado Amante. In Mateo Alemán et les
Simões, João Gaspar. História do Romance Portu- voies du roman au tournant des XVIe et XVIIe siècles,
guês. Lisboa: Estúdios Cor, 1967. Vol. I. Les Cahiers FORELL: Université de Poitiers, 2001,
p. 211-251.
Soveral, Carlos Eduardo. “Memorialismo”. In
Dicionário de Literatura. Dir. Jacinto do Prado ——. «Tragiques infortunes: Violence et trans-
Coelho. 3ª ed.; Porto: Liv. Figueirinhas, 1983. gression dans les romans de Gaspar Pires de Re-
belo». In Hommage au professeur Claude Maffre.
Montpellier: Université Paul Valéry-Montpellier
AUTORES, TEXTOS, CONTEXTOS III, 2003.

Frei Gaspar Pires de Rebelo João Nunes Freire

Gonçalves, Artur Henrique Ribeiro. Vol. I: “Es- Palma-Ferreira, João. “Nota” sobre João Nunes
tudo”. Os “Infortúnios Trágicos da Constante Freire. In Novelistas e Contistas Portugueses dos Sécu-
los XVII e XVIII. Lisboa: INCM, 1981, p. 173.
Florinda de Frei Gaspar Pires de Rebelo: uma
novela de amor e de aventuras peregrinas”. Diss.
Doutoramento. FCSH-UNL, 2000. Diogo Ferreira de Figueiroa
——. “Notas”. “O desgraciado amante”. Novela Palma-Ferreira, João. “Nota” sobre Diogo
Quinta das Novelas Exemplares. Compostas pelo Ferreira de Figueiroa. In Novelistas e Contistas
Autor das duas Partes da Constante Florinda, o Portugueses dos Séculos XVII e XVIII. Lisboa:
Licenciado Gaspar Pires de Rebelo. [...] 1649-50. INCM, 1981, p. 187-188.

140
Gerardo de Escobar (Frei António de Martins, Serafina Maria Grazina. “A descrição na
Escobar) Fastigímia de Tomé Pinheiro da Veiga”. Diss.
Mestrado. FLUL, 1990.
Palma-Ferreira, João. “Nota” sobre Gerardo de
Escobar. In Novelistas e Contistas Portugueses dos Perdigão, Leonor Ribeiro. A Mulher na Fastigímia
Séculos XVII e XVIII. Lisboa: INCM, 1981, p. de Tomé Pinheiro da Veiga. Lisboa: s.n., 1990.
233-234.
Redondo, Augustin. “De las Terceras al Alcahuete
del episodio de los galeotes en El Quijote (I, 22).
António Barbosa Bacelar
Algunos rasgos de la parodia cervantina” [Com
Hatherly, Ana. “Introdução”. António Barbosa referências a Fastigímia]. In http://cvc. cervantes. es
Bacelar. Desafio Venturoso (1644) Org. e pref. de
Rodrigues, Ernesto José. Estudo sobre Fastigímia
Ana Hatherly [a partir do Códice 51-VI-34, n.º
de Tomé Pinheiro da Veiga. Diss. Mestrado.
14 (fls. 131r a 146r) da B Ajuda]. Lisboa: Assírio
FLUL, 1991.
& Alvim, 1991.
Serra, Pedro. “Da figura histórica à voz anónima.
Aproximação aos exempla femininos do discurso
Frei Lucas de Santa Catarina
moralístico sobre o casamento (sécs. XVI e XVII)”.
Pires, Maria Lucília Gonçalves. Acerca duma No- In Humanista. Vol. I, 2001, p. 98-118 [1.ª versão
vela Barroca: Os Irmãos Penitentes de Frei Lucas em: Ciberkiosk (6), Julho 1999, www.ciberkiosk.pt].
de Santa Catarina.. [S.l.: s.n., 1987], p. 127-136.
Vals, Teresa Ferrer. “La fiesta en el Siglo de Oro:
Sep. Revista da Faculdade de Letras, Lisboa, 5ª sé-
en los márgenes de la ilusión teatral”. In Teatro y
rie, (7), Abril 1987.
fiesta del Siglo de Oro en tierras europeas de los
Rodrigues, Graça Almeida. Literatura e Sociedade Austrias”. Madrid: SEACEX, 2003, p. 27-37.
na Obra de Frei Lucas de Santa Catarina. (1660-
Wiessing, Benita Carballo. El complejo de
1740). Lisboa: INCM, 1983.
inferioridad del portugués en Fastigímia. Lisboa:
Soromenho, Caratão. “Fr. Lucas de Santa Catarina: FLUL, 1979. Sep. Revista da Faculdade de Letras,
crítico anti-gongórico e precursor do romance”. IV Série (2).
In Revista da Faculdade de Letras, tomo IV, 1937, p.
281-95.
Frei Alexandre Paixão
Matos, Gastão de Melo de. “Fr. Alexandre da
Tomé Pinheiro da Veiga
Paixão”. In Anais da Academia Portuguesa de
Alonso Cortés, Narciso. Fastigímia: vida cotidiana História: Ciclo da Restauração de Portugal. Vol. X,
en la carte de Valladolid. Traducción y notas de Lisboa, 1946, p. 187-202.
Narciso Alonso Cortés. Valladolid: Fundación
Municipal de Cultura, Ayuntamiento de Valladolid:
António de Sousa Macedo
Ambito, 1989.
Rebelo, Luís de Sousa. Refer. em: “Arte de Fur-
Belchior, Maria de Lourdes. “Prefácio”. Thomé
tar”. In Dicionário de Literatura. Dir. Jacinto do
Pinheiro da Veiga (Turpin) Fastigímia. [Lisboa]:
Prado Coelho. 3.ª ed.; Porto: Liv. Figueirinhas,
Impr. Nacional-Casa da Moeda, [1988].
1983.

141
Luís Mendes de Vasconcelos
Alves, José da Felicidade. “Introdução”. Luís
Mendes de Vasconcelos. Do Sítio de Lisboa: Diálo-
gos. Org. e notas de J. da Felicidade Alves. Lisboa:
Livros Horizonte, 1990.
Amora, António Soares. Refer. em: “Doutrina
política, económica e social na Literatura Portu-
guesa”. In Dicionário de Literatura. Dir. Jacinto do
Prado Coelho. 3.ª ed.; Porto: Liv. Figueirinhas,
1983.
Diogo de Paiva de Andrada
Figueiredo, Fidelino de. “Prefácio”. Diogo Paiva
de Andrada. Casamento Perfeito. Prefácio e notas
do Prof. F. de Figueiredo. Livraria Sá da Costa,
1944.
Palma-Ferreira, João. “Nota” sobre Diogo de
Paiva de Andrade. In Novelistas e Contistas Portu-
gueses dos Séculos XVII e XVIII. Lisboa: INCM,
1981, p. 179.
Rebelo, Luís de Sousa. “Andrade, Diogo de
Paiva de”. In Dicionário de Literatura. Dir. Jacinto
do Prado Coelho. 3ª ed.; Porto: Liv. Figueiri-
nhas, 1983.
Fernandes, Maria de Lurdes Correia. Espelhos,
Cartas e Guias: Casamento e Espiritualidade na Pe-
nínsula Ibérica (1450-1700). Porto: Instituto de
Cultura Portuguesa, FLUP, 1995.

Nuno Pereira Marques

Augusto, Sara. “Ufanismo, sátira e moralismo:


visões barrocas”. In http://www.crb.ucp.pt/
Biblioteca/rotas

142

Potrebbero piacerti anche