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Delia Dutra*
O presente artigo analisa como um grupo de mulheres peruanas, trabalhadoras domésticas, vivencia
sua experiência migratória em Brasília. A análise é desenvolvida em uma perspectiva interacionista
– com ênfase nas dimensões de gênero, étnica e de classe – facultando compreender os processos de
integração social dessas migrantes numa cidade com características históricas e urbanas particulares no
Brasil e na região. As entrevistas em profundidade possibilitam refletir sobre como elas explicam a sua
integração à cidade, o dia-a-dia no trabalho; ou seja, analisamos como produzem o seu espaço de vida
em migração. Podemos estabelecer, nessa condição de migração a trabalho, uma variedade de elementos
que concorrem para a produção desse espaço: a origem social e cultural, as relações sociais de gênero
dentro e fora do núcleo familiar, dentre outros. Identificamos um forte vazio de honra e a falta de estima
social associados pelas próprias migrantes à profissão de trabalhadora doméstica.
Palavras-chave: Mulheres peruanas. Brasília. Trabalho doméstico. Interações cotidianas.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792015000100012 181
MARCAS DE UMA ORIGEM E UMA PROFISSÃO...
daquela chance de trabalho que alguém lhes fluxo migratório e o contexto social e cultural
falou existir numa cidade como Brasília. da cidade, país e região em que se deslocam.
Nessa linha, propomos entender que a A cultura de origem das migrantes é analisada
cidade de Brasília, atualmente, opera como um na terceira parte, levando em conta a impor-
polo de atração ‘silencioso’ para esse tipo de tância do lugar de origem para compreender
mão de obra migrante, considerada ‘não-qua- as especificidades desse processo migratório.
lificada’ e, graças à qual, homens e mulheres Na quarta parte, levantamos uma discussão
‘altamente qualificados’ – seguindo a lógica teórica, em diálogo com as perspectivas das
do mercado global de trabalho – conseguem próprias migrantes, sobre a dimensão étnica
esquecer as tarefas do espaço doméstico para e suas implicações, não somente com o pre-
se concentrar nas suas profissões e manter o sente vivido, senão com aquilo que lembram,
seu padrão de vida. E isso, simplesmente, ‘gra- sonham e projetam. Na quinta e última parte,
ças’ a que existem mulheres que migram pelas levantamos uma discussão sobre o que con-
metrópoles do mundo ‘vendendo’ anos de suas sideramos que são marcas femininas, que as
vidas, para cuidar dos filhos e das casas dos próprias migrantes verbalizam na hora de ex-
outros e já não mais cuidar, no dia-a-dia, da plicar, por exemplo, de que modo começam
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suas histórias de cuidar dos outros, quais as guindo a Halbwachs (1990), estaria demarcada
condições de vida-trabalho atuais, quais as pelo tempo e o espaço – esses dois últimos en-
implicações da vida privada na profissão de tendidos como construções sociais, e, também,
trabalhadoras domésticas migrantes. Assuntos pelas memórias individuais.
esses que nos conduzem a discutir o conceito O exercício das migrantes de lembrar, de
de classe desde uma perspectiva weberiana, narrar e de projetar permite-nos analisar e pro-
pois isso nos permite problematizar sobre a blematizar a riqueza dos sentidos por elas pro-
honra e o status associado à profissão por elas duzidos a respeito da experiência migratória
desempenhada nesses anos de migrantes. em Brasília. Isso porque, seguindo a proposta
metodológica interacionista, entendemos que
indivíduos com uma origem cultural comum
SOBRE FALAS, LEMBRANÇAS E e que moram numa mesma cidade ou num
SENTIDOS mesmo bairro podem ter visões de mundos
diferenciadas, já que a natureza do meio em
Eu tenho uma história para te contar. Não sei se você que se vive é dada pelo significado que cada
quer que eu te fale agora, mas ontem não conseguia uma lhe confere (Blumer, 1998). Ou seja, os
dormir enquanto lembrava e pensei: isso devo contar significados que elas outorgam ao seu passado,
para ela, já que ela gosta de estudar as histórias das presente e futuro, nesse momento de vida de
mulheres (Amelia).43
trabalhadora doméstica em migração.
“Propor-se não lembrar é como se propor O universo de análise em profundidade
não perceber um cheiro, porque a lembrança, da pesquisa se constitui pelas narrativas de
assim como o cheiro, acomete, até mesmo dez mulheres migrantes – trabalhadoras do-
quando não é convocada” (Sarlo, 2007, p. 10). mésticas originárias do Peru – articuladas com
A capacidade de lembrar, muitas vezes, acon- elementos recolhidos em fases anteriores de
tece de forma quase automática, isso porque, observação livre e observação metódica.54 A
“Antes de ser atualizada pela consciência, toda [...] nossa reflexão sobre este fenômeno não ficou
lembrança ‘vive’ em estado latente, potencial” restrita às entrevistas, porque consideramos que a
(Bosi, 1994, p. 51). entrevista por si só, como única técnica de apro-
A lembrança é estimulada por elemen- ximação à realidade das migrantes, tem suas limi-
tações para captar, compreender e interpretar os
tos externos, às vezes, quase imperceptíveis. É
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Significa dizer que o foco da pesquisa nós antes pensado, e sim, possa nos ajudar na
está no âmbito do microssocial,65 sem esquecer pesquisa. Isto é, descobrir, junto com elas, seus
que a agregação das ações dessas dez mulhe- quadros de referências, que, em diálogo com o
res provoca outros e diversos acontecimentos, contexto social, político e econômico do país
cujos efeitos ou consequências chegam a se ma- de origem e as condições de vida em Brasília,
nifestar no nível do macrossocial e vice-versa. nos permitem desenvolver uma reflexão socio-
As entrevistas em profundidade, reali- lógica compreensiva deste fenômeno.
zadas junto às dez migrantes com mais de três Dito de outra forma, desenvolver uma
anos de residência na cidade, possibilitam re- reflexão sociológica e epistemológica que, nas
fletir sobre como explicam a sua integração à palavras de Michel Thiollent (1987, p. 81), cor-
cidade, o dia-a-dia no trabalho, o sentido de responderia a “[...] uma ‘sociologia’ da situação
estarem afetadas pelas suas histórias passadas de entrevista para uma avaliação da relevância
e pelos projetos futuros. Nesse sentido, anali- da informação captada e suas distorções”.
samos como produzem o seu espaço de vida Isso porque o relato, na instância da en-
em migração. Podemos estabelecer, nessa con- trevista, evidentemente, não é o ato “puro” da
dição de migração a trabalho, uma variedade interação vivida e que está sendo relatada pela
de elementos que concorrem para a produção migrante – porque, aliás, essa tal “pureza” do
desse espaço: as motivações individuais, as ato “original” inexiste como objeto científico.
relações familiares, a origem social e cultural, Mas é justamente aí que está nosso ponto de
o grupo de referência, o status da profissão, a interesse: acionar sua memória para que, as-
experiência urbana no presente e passado e as sim, ela relate suas vivências, reconstruindo
relações sociais de gênero dentro e fora do nú- suas experiências, dando ela própria sentido
cleo familiar. àquilo vivido. Considerando que, em conso-
Dessa forma, definimos alguns eixos nância com Woortmann (1997, p. 111), “[...]
fundamentais que serviram de guia para as não se deve esquecer que a memória é seletiva;
entrevistas: a origem (lembranças da infância ao dar presença ao passado, o faz nos termos
e juventude, família deixada na terra de ori- do presente. [...] A memória tanto opera pela
gem), a família hoje (relacionamento, questão recordação como pelo esquecimento, respon-
financeira, ressignificações dos afetos), o Bra- dendo às necessidades do presente”.
sil (destino escolhido ou não, pré-noções sobre Daí sustentarmos que os significados que
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o país) e Brasília (a cidade, as interações com todo ato de interação detém para um indivíduo
os locais, os espaços públicos e o acesso aos são resultado de processos de interação pré-
serviços), o trabalho (interações cotidianas, vios (o já vivido, memória) e da interpretação
perspectivas, remuneração, espaço e isolamen- própria (self interaction76), também formada no
to), ser mulher (na dinâmica do passado-pre- contexto de interação social (Blumer, 1998).
sente-futuro). Por isso, esses sentidos ou significados que
Esses eixos foram definidos no intuito aparecem nos relatos das migrantes, conforme
de, quando necessário, motivar a fala das mi- entendemos, são um produto social, ou seja,
grantes, sempre preservando o espaço para a um resultado de suas experiências de vida (de
espontaneidade. Isto é, motivar a migrante a interação), não só com os outros (indivíduos),
falar sobre tal tópico desde que possamos en- mas, também, com valores, crenças, hábitos
contrar um nexo com o que está sendo rela-
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Na proposta metodológica do interacionismo simbólico,
tado; o que também nos permite descobrir o desenvolvida por Blumer (1998, [1937]), o autor sustenta
que elas têm para nos dizer que não foi por que o ser humano, não só é um agente social que respon-
de, como, também, dá pistas aos outros nos processos de
interação e de auto-interação (self interaction), pois, como
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Trata-se de uma pesquisa que não objetiva a representa- ser social, o indivíduo é capaz de estabelecer interação
tividade estatística. consigo próprio.
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(self interaction) que vão sendo transformados com o Brasil (Sala, 2008, p. 75).
durante a vida da pessoa como consequência O início do fluxo migratório internacio-
do seu processo de individualização. nal de mulheres para Brasília, com este perfil
específico – migrantes de países da região, que
vêm à procura de emprego no setor de serviços
CONTEXTO E SINGULARIDADES domésticos – poderia estar associado aos pri-
DO FLUXO MIGRATÓRIO mórdios da cidade de Brasília, à medida que
foram se estabelecendo na cidade represen-
Fundada em 1960, Brasília recebeu sem- tantes do corpo diplomático dos mais diversos
pre importantes fluxos de migração e foi por países. Com alguns deles chegavam mulheres
isso considerada um “microcosmo da cultura empregadas no serviço doméstico da família.
brasileira”, mantendo sempre sua capacidade As próprias migrantes entrevistadas re-
de atração de fluxos migratórios de diferentes latam histórias de outras que as precederam
regiões do país. Ela já foi vista pelo resto do acompanhando tais famílias. Notadamente,
país como a “ilha da fantasia”, por deter um destacam-se os diplomatas originários dos pa-
padrão social menos injusto do que a média íses andinos como os que possuem mais o há-
nacional (Nunes, 2004, p. 14). Contudo, nesses bito de chegar com suas próprias empregadas.
últimos anos, o Distrito Federal87 apresentou Sem dúvida, isso passa por uma prática cultural
um aumento da distância entre ricos e pobres. de origem, onde a empregada é, em certa for-
Por seu lado, o Brasil, hoje a maior eco- ma, ‘propriedade’ da família e, junto com ela,
nomia da região, veio se tornando um destino se desloca. Tais práticas, entendemos, estão di-
cada vez mais atraente para migrantes dentro retamente afetadas pelos altos níveis de pobre-
do continente. Historicamente, o país ofereceu za, desigualdade e falta de oportunidades que
e continua oferecendo melhores condições de afetam países como o Peru e, particularmente, a
trabalho para profissionais e migrantes quali- mulher de origem indígena. Posto que
ficados da região. No entanto, de acordo com
[...] a pobreza é um fenômeno que se encontra dire-
Sala (2008), a partir da década de 1990, o Bra- tamente relacionado aos níveis e padrões de empre-
sil emerge com mais força como uma opção já go e às desigualdades existentes na sociedade. [...]
não só para migrantes qualificados de países O gênero e a raça/etnia são fatores que determinam,
do Cone Sul, mas, também para aqueles com em grande parte, as possibilidades de acesso ao
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rado de forma gradual. No início, umas poucas A cultura andina tem, nas suas origens,
que chegavam junto às famílias que as empre- o Império Inca (e período pré-incaico), assim
gavam, também originárias do mesmo país. como diversos grupos étnicos que existiram
Famílias que, por pertencerem ao corpo diplo- nos territórios hoje ocupados pelo Peru, Bo-
mático, se beneficiam da possibilidade de ou- lívia, Equador, sul da Colômbia, noroeste da
torgar o que se denomina de “visto cortesia”98 Argentina e norte do Chile entre aproximada-
tanto para integrantes da própria família quan- mente o ano 1200 e a invasão dos espanhóis
to para as pessoas que para elas trabalham (tra- no continente, século XVI (Lumbreras, 1990).
balhadoras domésticas, seguranças etc.). Nesse contexto pré-colombiano, muitos
À medida que foi passando o tempo, documentos da época evidenciam a alta posi-
aquelas migrantes, pioneiras no trabalho do- ção econômica e religiosa da mulher incaica,
méstico junto às famílias dos diplomatas, fo- ou seja, ela não era considerada um ser infe-
ram trazendo outras mulheres da família ou rior. Ao contrário, estudiosos falam da existên-
amigas e ajudando a colocá-las em famílias co- cia de um “paralelismo sexual” que outorgava
nhecidas dos seus empregadores. Dessa forma, tanta importância à mulher quanto ao homem.
surgem, também, os diplomatas de origem eu- Análises de representações gráficas, assim
ropeia, norte-americana, assim como famílias como de versos escritos e elaborados na época
brasileiras vinculadas à diplomacia ou a altos sobre ou, para, os deuses demonstram a cren-
cargos em empresas ou organismos internacio- ça em divindades bissexuais, e não, exclusi-
nais ou do próprio governo, que começam a se vamente, masculinas ou femininas (Harrison,
interessar pela possibilidade de empregar em 1985, p. 13).109
casa uma trabalhadora doméstica estrangeira Existia, também, o direito a herdar tanto
e já não mais uma brasileira. Isso porque para para homem quanto para a mulher, porém todo
alguns existem claras vantagens. esse sistema foi sendo modificado com a che-
gada dos colonizadores espanhóis. Rapidamen-
Nós preferimos as peruanas, pois elas são menos
sindicalizadas [do que as brasileiras], mais respon-
te, a potência colonizadora foi transformando e
sáveis e dedicadas. Estão determinadas a melhorar impondo sua lógica patriarcal de organização
de vida. Elas não querem para os seus filhos a vida social, dando como resultado situações como a
que os seus pais deram para elas. Isso resulta numa que descreve o sociólogo peruano Hildebrando
atitude de maior compromisso com o trabalho (Em- Castro Pozo (apud Harrison, 1985, p. 15):1110
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Resulta-nos interessante mencionar que essa leitura do
lugar da mulher na cultura indígena andina pré-colombiana
CULTURA ANDINA: origens e este- não é consenso e existem outras abordagens analíticas sobre
esse assunto. Por exemplo, Montaner (2001), ao fazer uma
reótipos análise geral do processo de colonização espanhol, susten-
ta que a sociedade patriarcal dos espanhóis encontrou na
América a sociedade patriarcal dos índios. Para esse autor,
Minha mãe sempre falava, a mulher tem que ser se- mesmo que a realidade dos astecas não fosse a mesma que a
mente, e também coluna da família. Se ela não lutar dos incas, isto é, reconhecendo que cada grupo étnico tinha
suas especificidades, a mulher ocupava um lugar inferior ao
pela construção da casa própria, o homem nunca do homem. No entanto, nós privilegiamos o ponto de vista
vai pensar nisso (Elena) de Harisson (1985), que baseia seu pensamento em estudos
específicos sobre a realidade de grupos indígenas habitan-
tes do território que hoje ocupa o Peru; assim como, tam-
bém, por levantar questões como a do paralelismo sexual
nesses grupos, que, raramente, costumam ser mencionadas
9
Visto que permite permanecer, temporalmente, no Brasil e se tornam muito significativas para nossa pesquisa.
sob a responsabilidade daquela pessoa que assina (diplo-
mata), assumindo a proteção e segurança do contratado. É 11
No seu livro “Nuestra comunidad indígena” publicado
concedido por um período curto, no qual deve ser renovado em 1924 e em 1979.
caso o responsável (empregador) deseje fazê-lo. Caso desista
de manter a concessão do visto, o empregador deve garantir 12
Do quéchua, significa terra alta e fria. Cf. http://www.ka-
os meios para o/a contratado/a retornar ao país de origem. tari.org/diccionario/diccionario.php. Acesso: 28 jan. 2014.
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para as feiras: os homens andando [a pé] ou monta- chua ou os aymara-falantes [...] (Lumbreras, 1990,
dos em burros, sem outra carga além de suas man- p. 58-59).1413
tas e petaca-carteras ou “chuspas” de lã não muito
cheias de coca; enquanto que as mulheres, carrega- Esses elementos mais recentes, tanto os
das como bestas, levam dentro do “quipe” todos os apontados por Castro Pozo e por Lumbreras,
produtos que vão vender [...]. Não tenho consegui- assim como os das próprias mulheres perua-
do constatar um só caso em que um burro ou um
nas que contribuíram com a pesquisa, conti-
homem desçam carregados e sua companheira tão
nuam evidenciando o dinamismo da confi-
somente com o fruto do carinho “quipichado”.1312
guração social, histórica, cultural do lugar da
Observe-se, também, que, no Peru, há mulher nessa cultura indígeno-andina, com
um ditado popular que diz o seguinte: el que forte tradição camponesa, mas que, hoje tam-
no tiene de inga tiene de mandinga, segundo bém, está perpassada – no grupo de migrantes
explica o antropólogo peruano Luis Lumbreras. aqui estudado – pela experiência da migração
Inga são os índios, e mandinga aqueles que têm interna e vivência de anos na grande cidade
sangue africano. O Peru, segundo o antropólo- (do interior para Lima, capital do Peru). Ob-
go, é quase um mostruário de todos os países do servemos que, do total de dez mulheres entre-
mundo, não só pela paisagem, mas, sobretudo, vistadas, oito nasceram no interior do Peru e
pelo povo (Lumbreras, 1990, p. 58). vivenciaram experiências de migração para a
cidade de Lima, a capital, quando crianças ou
No meu país não tem uma raça determinada. Não te-
mos ... como dizer “são brancos... são indígenas...”.
adolescentes.
Na minha família, na verdade, eu não sei. Não sei Isso tudo nos permite começar a avançar
exatamente... o que sim sei é que meu avó paterno na nossa compreensão dos relatos das migran-
era um homem alto com traços chineses. E o meu tes na hora de falar e explicar, por exemplo,
pai também tinha esses traços. Meus irmãos, alguns por que são elas que migram e não os maridos,
deles, também. Eu não, não puxei a ele. Na família
ou a família em conjunto; como foram tomadas
do meu pai... conheci uns primos... e eram assim...
não brancos exatamente... mas colorados, com o
as decisões e como continuam sendo tomadas
cabelo bem ‘rojizo’. A família da minha mãe... eu hoje, em relação ao dinheiro enviado ou à edu-
lembro do seu pai, um homem baixinho, fininho, cação dos filhos, dentre outros assuntos.
branco. Da mãe dela, não lembro, praticamente não
Para a mulher é muito mais fácil arrumar emprego
conheci (Elena).
onde for. Se você estiver numa situação difícil, sen-
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identificações que oscilam segundo os interes- mum e de unidade do grupo (Poutignat; Streff-
ses perseguidos e as condições em que partem Fenart, 2008).
os grupos implicados numa relação interétni- Com base nesses autores, entendemos
ca. (Terrén, 2002, p. 31-32). que a designação de “trabalhadoras domésti-
Cabe lembrar, também, de acordo com cas migrantes/peruanas” não estaria definida
Terrén (2002), que já Robert Merton defendia em termos absolutos, nem racial nem etnica-
que a etnicidade tinha se convertido numa mente, mas sim, poderia sê-lo em termos rela-
questão de definição técnica. Na época, houve tivos. Ou seja, tal categorização pode se tornar
um forte impulso no desenvolvimento empíri- racial ou étnica pela significação outorgada
co da sociologia da etnicidade, com pesquisas pelos atores sociais envolvidos nas instâncias
qualitativas de caráter etnográfico, alentadas cotidianas de interação, segundo um determi-
por uma reação antifuncionalista, que deixa- nado contexto.
ram em evidência a “grande complexidade de Algumas vezes são elas próprias que dão
um objeto que, raramente, pode ser observado essa conotação étnica à sua condição e à falta
no seu estado puro” e que acabou desencade- de oportunidades que eles sentem:
ando o que Yinger chamou de “alargamento do
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Eu não quero que minhas filhas trabalhem em casa bém dotado das dimensões migratória, étnica,
de família [a mais velha pedia para vir, pois também de classe e status, que mantém estas migrantes
queria juntar dinheiro], eu quero que elas estudem,
reféns à profissão de trabalhadora doméstica.
que sejam mais, e que não passem o que eu venho
sofrendo, porque nossos pais eram camponeses. Nos- A identidade de integrante de uma minoria é ou-
sos pais [fala em plural, pois inclui sua irmã Amelia] torgada ao indivíduo como uma categoria de per-
não falavam castelhano, só quéchua... Eu não queria tença estigmatizante, ligada visivelmente à pessoa
que minhas filhas trabalhassem agora, quero que es- pelos traços distintivos incorporados (a cor, a hexis
tudem, não quero que passem o que eu tenho sofrido corporal, o sotaque), ou marcas signaléticas (nome
por ter pais camponeses, analfabetos (Teresa). pessoal, lugar de moradia), naturalizados como atri-
Nós conhecemos as letras, mas os nossos filhos têm butos hereditários (dito de outra forma, uma “raça”)
que ser mais que isso, não só conhecer as letras…. e que engendram uma incapacidade de assumir as
Precisam chegar a ser mais! (Amelia). posições que todos os integrantes (majoritários e mi-
Fui fazer a documentação na Polícia Federal. Preci- noritários) consideram como de status chave na so-
sava fazer umas coisas pela Internet primeiro, para ciedade (Poutignat; Streff-Fenart, 2008, p. XVII).1514
depois ir pagar no banco. Mas a gente não tinha feito
isso. O policial perguntou “por quê?”. E eu disse: Significa dizer que consideramos que a
olha, a gente não sabe utilizar Internet, nós somos dimensão de gênero conforma uma base à qual
indígenas, olha aqui, eu uso tranças, por isso nós
se sobrepõem outras dimensões da estrutura
não sabemos... [risos!] Então, o policial nos disse,
de opressão e discriminação em que esse gru-
“tudo bem, eu faço para vocês, não se preocupem”
(Amelia). po de migrantes vive antes e durante a expe-
riência migratória; fenômeno que, no âmbito
Portanto, parafraseando Poutignat e dos estudos de gênero, se denomina de “in-
Streff-Fenart (2008), compreendemos que a tersecionalidade” (Crenshaw, 2004; Piscitelli,
nossa nomeação ao grupo estudado de “tra- 2008; de Sève, 2011) e que merece toda nossa
balhadoras domésticas migrantes/peruanas” atenção para esclarecermos que, a
não busca ‘decretar’ uma natureza étnica nem [...] visão tradicional afirma: a discriminação de gê-
lhes impor uma forma de identidade. Ao in- nero diz respeito às mulheres e a racial diz respeito à
vés, busca, através da perspectiva das próprias raça e à etnicidade. Assim como a discriminação de
mulheres, reconhecer processos de identifica- classe diz respeito apenas a pessoas pobres. Há tam-
bém outras categorias de discriminação [...] A inter-
ção e de alterização que permitem identificar
secionalidade sugere que, na verdade, nem sempre
fronteiras sociais entre: “elas” e os empregado- lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com
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definida pelas instâncias de autointeração, que muito diversa com níveis de renda, formas de
são muito dinâmicas, notadamente durante o consumo, e nós acrescentamos, também, status
processo de migração (Rivera, 1996). profissional e condição migratória. Por isso é
No meu país também tem outra língua oficial, o que podemos falar em “identidades múltiplas e
quéchua, mas a maioria da população da cidade não situacionais”; portanto, identidades dinâmicas,
sabe falar, nem aprende. Se você for para o interior, que vão se moldando e reinventando conforme
área rural, aí sim vai ouvir falar o quéchua e alguns as vivências durante esse percurso migratório.
também o Aymara. Mas eu nunca aprendi, pois nem
Em decorrência disso, entendemos que o
preciso disso...
processo de autorreconhecimento, ou processo
Aqui esta família com quem trabalho, eles comigo
falam espanhol, mas entre eles falam francês... Eu de individualização (Elias, 1994), sofre mudan-
gostaria muito de ir para França, e conhecer Paris! ças muito significativas quando se vive uma
Conhecer... como é que se chama?... aquela torre... experiência forte como a da migração de mu-
aquela famosa... não sei como pronunciar... mas lheres a trabalho doméstico. Esse grupo de mu-
tudo bem... por isso é quero ir...
lheres em Brasília possui uma história de mi-
Às vezes os escuto falar em francês e penso que
gração muito específica, de separação da famí-
seria bom eu tentar ouvir palavras e repetir para ir
aprendendo. Mas eles falam tão rápido que nem dá lia e de “afastamento” da cultura de origem.
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para identificar uma palavrinha sequer. Eles falam, Algumas hoje refizeram suas vidas na cidade,
riem muito, acho que falam muitas piadas... E eu casaram e tiveram filhos, porém não é possí-
penso, que pena não poder entender! Pois assim eu vel se despojar dessa experiência, mesmo que
também poderia rir, e acho chique essa língua.
o balanço não seja necessariamente negativo.
A senhora me diz, “aprende francês” para poder
Esse seria o caso de Elena, hoje com residência
vir com a gente para França... Mas, como? Onde?
Quando que eu vou fazer isso?!?! Sinto vontade de permanente na cidade, casada com um peru-
lhe dizer: “senhora, você está pedindo algo que é ano e com quatro filhos nascidos em Brasília.
impossível para mim”. No meu caso eu trabalho to- Já outras, ainda sofrem por se sentirem
dos os dias, o dia todo... Meu sonho seria ao menos detentoras de menos direitos que aqueles que
aprender o básico, para que, se me perdesse numa
possuíam no país de origem, devido à mudança
cidade como Paris, pudesse perguntar, onde fica tal
identitária ocupacional, mas, ao mesmo tempo,
rua?... essas coisas. Ou cumprimentar... o básico...
Mas falar francês fluente é impossível nas minhas pode-se identificar um sentimento de maior li-
condições, nunca vou conseguir. berdade, graças à distância geográfica do modelo
Eu penso que quando ela me diz isso é para eu ficar, familiar patriarcal, ou por serem as principais for-
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para eu não ir embora. Porque aqui acontece muito necedoras de sustento material para sua família.
de ter uma empregada e aí aparece um dia uma que
A Carmen, por exemplo, passou de ser microem-
está indo embora, que muda de emprego (Diana).
presária têxtil (confecção) em Lima para trabalha-
De acordo com a socióloga Silvia Rivera dora doméstica em Brasília. Ou seja, apesar de,
Cusicanqui (1996, p. 3), em um país como a Bo- por um lado, existir o sentimento de maior inde-
lívia – e como extensão analítica o Peru e ou- pendência ou de autonomia econômica, porque
tros da nossa região –, a etnicidade precisa ser já não precisam esperar o dinheiro do marido, do
relacionada com as prolongadas marcas do co- companheiro, por outro lado, muitas delas conti-
lonialismo interno.1615E isso vem conformando nuam subordinadas às decisões deles sobre como
“caleidoscópicas e múltiplas etnicidades”, sus- utilizar o dinheiro que elas ganham, situação jus-
tenta a autora, que vão se articulando de forma tificada por elas próprias, com base nas necessi-
16
O ‘colonialismo interno’ refere à reprodução da lógica dades dos filhos, ou, inclusive, nas necessidades
opressora do colonizador para com os autóctones, entre os
próprios colonizados. A cantautora e artista chilena Viole- de um namorado.
ta Parra, em Arauco tiene una pena, sintetiza essa ideia da
lógica colonizadora interna: “Arauco tiene una pena / más
negra que su chamal / ya no son los españoles / los que los 17
Entre aspas, pois, consideramos que, durante o processo
hacen llorar / hoy son los propios chilenos / los que les migratório, se ressignifica o sentido do que é próximo e
quitan su pan.” distante.
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Veja-se o relato de Maria, ao lembrar-se de cuidados não só se explica pelas decisões por
da família, do trabalho que desempenhava no elas tomadas (projeto migratório, diferenças no
Peru e do seu namorado antes e hoje: nível do salário com relação ao país de origem,
relações e contexto familiar), mas, também, re-
Já faz 16 anos que meu pai morreu. Eu já tinha ido
morar em Lima quando isso aconteceu. Na época
sulta dos processos de seleção e de discrimina-
minha mãe era muito nova, tinha 40 anos, e minha ção baseados na classe social, sexo, grupo étni-
irmã mais nova só 5 anos. Eu decidi deixar minha co, status profissional ou migratório, que, por
carreira, pois a que tinha escolhido era muito cara... sua vez, se sustentam numa naturalização das
[curso técnico]. Eu já vendia roupa na rua, era “am- diferenças (Comas D’Argemir, 2009, p. 184).
bulante” [camelô], e aconteceu que um dia a polícia
Para muitas, a tarefa de cuidar dos ou-
nos tirou da rua, nos mandou embora. Então come-
cei a alugar um pequeno espaço numa feira. Mas,
tros e da casa inicia-se desde criança, algo co-
como sempre, no início tudo era prejuízo. mum para as meninas nascidas em contextos
E o meu namorado me dizia: “eu te pago teus estu- como o do grupo aqui estudado.
dos...”, mas eu não quis, parei de estudar, e agora ele
me diz: “tá vendo, agora você é doméstica...” Quando meu padrasto saía para trabalhar eu cui-
Imagine... hoje eu teria meu próprio consultório par- dava dos meus irmãos, mas eu era uma criança e
ticular... estudava prótese dentária. E além disso o não sabia da responsabilidade que tinha... Cuidei
instituto onde eu estudava tinha um convênio com dos meus irmãos até os 14 anos junto com o meu
a San Martin [universidade em Lima] para quem padrasto (Lucía)
quisesse continuar fazendo odontologia depois.
Então, eu tenho que ficar hoje ouvindo meu namo- Ou seja, a origem social dessas mulheres
rado dizer: “olha só, você que queria ter seu próprio migrantes aparece como um marcador que as
consultório ou trabalhar numa clínica... olha só,
distingue e as condiciona para desenvolver de-
agora você que nunca pensou em ser doméstica...
terminadas tarefas, como a de cuidar dos ou-
e que mandava lavar sua roupa fora de casa... que
tinha quem lhe servir” (Maria). tros. Algo que o resto da sociedade, e até elas
próprias, podem chegar a assumir como sendo
Atualmente, Maria ainda mantém, como uma tarefa natural por serem mulheres e per-
quase todas as migrantes do grupo estudado, tencer a um determinado estrato social-étnico.
uma relação de “fornecedora” (financeira) com Na perspectiva weberiana as classes
o namorado, no sentido em que, hoje, é ela não são comunidades, mas bases possíveis e
quem envia dinheiro para ele, mesmo sem ter frequentes de ação comunal. Ou seja, existe
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MARCAS DE UMA ORIGEM E UMA PROFISSÃO...
grupo de migrantes e aquilo que Weber (1969) relação assimétrica, onde se põe de manifesto
denomina de “situação de classe”. Pois, mesmo o interesse de classe, um interesse que pode
que possa parecer um paradoxo, consideramos assumir diversas formas, já que se constitui
que essas condições pouco vantajosas, ou si- pela interação e discussão das experiências co-
tuação de classe, que as caracteriza, se tornam tidianas e as interpretações que delas se fazem
uma vantagem competitiva no mercado de tra- (Bottomore, 2001).
balho – a partir da perspectiva de certo tipo de Depois de um tempo com a família peruana, troquei
empregador – quando se as compara com as de emprego. Fui trabalhar para uma diplomata bra-
trabalhadoras domésticas nacionais. sileira durante vários anos. Tudo estava muito bem.
Note-se que o grupo aqui estudado mora Depois casei e fiquei grávida. Mesmo assim conti-
nuei trabalhando e cuidando da filha da diplomata,
ou já morou no lugar onde trabalha e tem pou-
uma criança um pouco malcriada, mas com o tempo
cas atividades fora desse espaço, fato que re-
eu consegui dar conta. Na hora do nascimento do
sulta num aumento da utilidade total sobre o meu filho, a senhora me propôs mudar para Suíça
serviço recebido pelo empregador em função junto com ela, para continuar cuidando da filha e
das horas extras diariamente trabalhadas pe- da casa. Viajamos, mas... a situação foi piorando já
las mulheres sem remuneração adicional. Ain- que a menina estava com ciúmes do meu bebê. Ela,
a senhora, começou a dizer que não estava dando
da que aconteça uma diminuição gradativa
certo, que não iria funcionar. Assim, pediu para eu
da utilidade marginal (i.e. a utilidade gerada
retornar para Brasília, e voltei a morar com meu ma-
pela qualidade do seu trabalho por cada hora a rido e cuidei do meu bebê (Mariana).
mais trabalhada), desde uma perspectiva uni-
camente economicista, resultará num maior Quando conhecemos Mariana, a senhora
benefício final para o empregador. diplomata estava prestes a retornar da Suíça.
Mariana mantém uma relação boa com a se-
O meu quarto, não é meu quarto... nele só durmo...
nhora, segundo nos explicou, por isso lhe pro-
só posso entrar às 9 e meia ou 10 da noite, para dei-
tar, acordo 6 da manhã... e só trabalho o dia todo.
pôs voltar a trabalhar para ela, mas em Brasí-
Faço o meu café da manhã em 10 minutos, e o meu lia. No entanto, Mariana esclarece:
almoço a mesma coisa... [Minha chefe] está o tempo Agora estou bem, claro que sinto muita falta de ter
todo me pressionando, pedindo coisas, acrescentan- meu salário, contudo, isso de não ser mais a empre-
do mais e mais. (Carmen) gada de alguém me faz sentir bem, pois faço lim-
Eu sinto asfixia de estar trancada. Preciso sair aos pezas [diarista] sempre que surgem, mas não fico
finais de semana. Às vezes a gente está a fim de dor-
Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 73, p. 181-197, Jan./Abr. 2015
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Delia Dutra
Neste momento eu sou uma a mais no grupo que estratificação baseada na usurpação.
aqui está (Carmen). Ou seja, no cotidiano do trabalho, es-
Eu já rejeitei um emprego porque a senhora queria
sas migrantes relatam momentos de orgulho
me obrigar a usar uniforme. Olha, as chefes peru-
anas [foi uma entrevista para trabalhar com uma
quando são elogiadas pelos convidados dos
família peruana] adoram isso, fazem questão que a chefes pela qualidade do jantar que elas pre-
gente esteja de uniforme. Sabe por quê? Porque elas param. Haveria certas tarefas associadas a
têm medo que as visitas da casa não percebam quem recompensas especiais pela possibilidade de
é a senhora e quem é a empregada (Carmen). interagir com convidados detentores de um
No cotidiano do trabalho, não só se dá altíssimo grau de honra e estima social (minis-
uma luta pela sobrevivência e pela realização tros, diplomatas, por exemplo). E, de acordo
de projetos e sonhos, mas, também, em algu- com elas, isso as torna especiais e diferentes
mas delas há uma angústia pela falta de igual- da trabalhadora doméstica brasileira. Assim,
dade de “estima social” (Weber, 1969, p. 65). cozinhar para jantares ou eventos importantes
No dia-a-dia sentem, sofrem e isso parece ali- lhes devolve certo status “usurpado” durante
mentar muito mais a motivação em recuperar a maior parte do seu tempo de trabalho e, às
certo prestígio social no país de origem para vezes, também no tempo de lazer.
elas próprias e para a família. É como se, em Significa dizer que, nem sempre, elas se
Brasília, já não houvesse chances enquanto sentem “desacreditadas” ou estigmatizadas; por
continuarem a trabalhar no serviço doméstico. momentos, algumas sentem que conseguem
E mudar de emprego parece algo impossível. passar à categoria das pessoas “desacreditá-
Trabalhar, lutar hoje para outorgar – e veis”, servindo-nos de conceitos goffmanianos.
em alguns casos devolver – essa honra e estima Ou seja, na hora da interação, seja no âmbito do
social aos filhos e filhas, assim como, também, trabalho ou de instâncias de lazer, as migran-
às vezes, ao marido/companheiro, através do tes, como qualquer pessoa, buscam manipular a
envio de dinheiro para que estudem, para que informação sobre aquilo que as “marca” social-
consumam e, assim, depois, no futuro (aquilo mente. Evidentemente que as possibilidades re-
com que elas sonham), voltar e ‘usufruir’ dessa ais de manipular tal informação muitas vezes
honra que não tinham ou não têm. Trabalhar são poucas, pois há as características daquilo
em Brasília torna-se o meio de obter ou recupe- que não pode ser escondido: os traços físicos, o
rar um status, independentemente de que isso jeito de falar ou vestir, por exemplo.
193
MARCAS DE UMA ORIGEM E UMA PROFISSÃO...
[...] A informação social transmitida por qualquer materiais que enfrenta. Isso porque, segundo
símbolo particular pode simplesmente confirmar as migrantes, para a mulher é mais fácil mi-
aquilo que outros signos nos dizem sobre o indiví-
grar, pois, devido a práticas culturais, há maio-
duo, completando a imagem que temos dele de for-
ma redundante e segura.
res chances de achar emprego no setor de tra-
balho doméstico nos lugares de destino.
Repare-se que, no exemplo dado por As mudanças esperadas na vida dessas
Teresa, não são “os brasileiros”, cidadãos do mulheres podem acontecer diretamente com
local, que olham para ela e pensam: “coitada elas, assim como indiretamente, através do po-
dessa indígena”. Essa é a leitura que a própria tencial de mudança de vida que possam deter
Teresa [sujeito da suposta estigmatização] faz outros integrantes da família (filhos, maridos,
do que os outros estariam interpretando. Para etc.) a quem elas enviam o dinheiro produzi-
além de estigmatizar-se, ela também estigma- do por seu trabalho. A contribuição monetária
tiza o outro que ela identifica como “os brasi- enviada à família na origem dá-lhes condições
leiros”. Pois, na sua leitura, eles, olhando para de acesso ao consumo de bens materiais (tan-
ela, estavam demonstrando sentir compaixão e gíveis) tais como a reforma da casa familiar e
ignorar que ela já sabe e domina essa informa- a compra de eletrodomésticos, produzindo-se
ção do local. uma forte expectativa de mudança do status
Retomando nossa reflexão sobre a usur- familiar no âmbito da comunidade de origem.
pação do status que afeta à profissão de traba- Ao mesmo tempo, pode contribuir, também,
lhadora doméstica, cabe salientar que as habi- para a aquisição de um capital cultural mais
lidades como a de ser boa cozinheira, que ca- sólido, através da possibilidade de acesso à
racteriza muitas migrantes peruanas que traba- educação formal de filhos que permanecem
lham neste setor, são valorizadas no mercado dependentes dessas mulheres migrantes.
de trabalho como sendo inatas a pessoas dessa O sonho de muitas delas é um dia ver
origem social e cultural. Ou seja, não seria, seus filhos sendo profissionais, pessoas “bem
neste caso, um reconhecimento a um tipo de de vida”, tendo um status social diferente ao
qualificação formal, mas um reconhecimento de suas mães e, consequentemente, que lhes
a algo esperado já delas, por serem mulheres, permita “usufruir” dessa vida “bem sucedida”.
trabalhadoras domésticas e peruanas, i.e. um A nossa pesquisa mostra que há distâncias en-
estigma que se justifica pela sua origem e con- tre o projeto de vida que sustenta a decisão de
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Delia Dutra
para obter a estima social tão desejada no tem- BOSI, ECLÉA. Memória e sociedade. Lembranças de
Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
po futuro, incluindo as que moram com suas
BOTTOMORE, Tom (ed.). Dicionário do pensamento
famílias em Brasília. Nenhuma delas conside- marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
ra que sua vida, no momento presente, seja do BLUMER, Herbert. The methodological position of
symbolic interactionism. In: Symbolic ineractionism:
jeito que elas esperavam, pois todas, ao falar perspective and method. USA: Prentice-Hall, 1998 [1937].
p. 1-60.
dos seus sonhos, o fazem através dos filhos (as
COMAS D’ARGEMIR, Dolors. Trabajo, economia
que são mães) ou projetando mudanças consi- sumergida y género. La atención a la dependencia. In:
deráveis de vida. TÉLLEZ INFANTES, A.; MARTÍNEZ GUIRAO, J.E. (eds.).
Economía informal y perspectiva de género en contextos de
Por outro lado, observamos que a vida trabajo. Barcelona: Icaria, 2009. p.169-195.
profissional desse grupo de mulheres – o sta- CRENSHAW, Kimberle W. A intersecionalidade na
discriminação de raça e gênero. 2004. Disponível
tus de trabalhadoras domésticas, diarista – não em: http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/
uploads/2012/09/Kimberle-Crenshaw.pdf. Acesso em: 30
dá conta do processo de autoidentificação por jan. 2014.
elas introjetado como sendo socialmente valo- DE SÈVE, Micheline. L’intersectionnalité: féminisme
rado e detentor de estima social. Tais valora- enrichi ou cheval de Troie? Labrys, études féministes,
juillet/décembre, 2011, n°20-21, Disponível em: http://
ções provocam um maior dinamismo no pro- www.tanianavarroswain.com.br/labrys/labrys20/franco/
micheline.htm. Acesso em: 07.01.2012.
cesso identitário que, nesse caso, se intensifica
DUTRA, Delia. Migração internacional e trabalho
pelo sentimento de vazio de honra com relação doméstico. Mulheres peruanas em Brasília. Brasília:
CSEM; Sorocaba, SP: OJM, 2013.
a sua identidade ocupacional, gerando o que a
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro:
socióloga Silvia Rivera (1996, p. 3) chama de Zahar, 1994.
“identidades múltiplas e situacionais”. FONTENLA, Marta Amanda. Patriarcado. In: Diccionario
de estudios de género y feminismos. Buenos Aires: Biblos,
Ou seja, não só identificamos uma mul- 2007, p. 256-258.
tiplicidade na autoidentificação – “campone- GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação
sa”, “indígena”, “peruana”, “excelente cozi- da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara,
1988.
nheira”, “mãe”, “estrangeira”, “mulher pobre”,
GRANAI, Georges. Técnicas de investigación sociológica.
“desempregada”, “namorada” – como, também, In: GURVITCH, G. (dir). Tratado de sociologia. Buenos
Aires: Kapelusz, 1962, p. 153-172.
observamos nisso os efeitos daquilo que, nos
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo:
estudos de gênero, se denomina de “intersecio- Vértice, 1990. [1950].
nalidade”. Isto é, a sobreposição de condições ______. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Albin
Michel, 1994. [1925]
de vida estigmatizantes e que referem a uma
HARRISON, Regina. La canción quechua: simbología
dimensão de gênero por cima da qual se sobre- e ideología de la mujer andina. Cuadernos
195
MARCAS DE UMA ORIGEM E UMA PROFISSÃO...
196
Delia Dutra
Keywords: Peruvian women. Brasilia. Domestic Mots-clés: Femmes péruviennes. Brasilia. Travail
work. Routine interactions. des employées de maison. Interactions quotidiennes.
Delia Dutra – Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília. Professora Colaboradora Plena
e Bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) no Programa de Pós-Graduação
em Estudos Comparados sobre as Américas (CEPPAC), Universidade de Brasília. Pesquisadora do
Observatório das Migrações Internacionais e do Laboratório de Estudos sobre Migrações Internacionais
(LAEMI). Coordenadora do Grupo de Estudos Interdisciplinares sobre Gênero(GRIEG/LAEMI/CEPPAC).
Desde 2007 colabora com o Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios, CSEM em Brasília. Suas
principais áreas de estudo são: sociologia das migrações e das relações sociais de gênero. Publicações
recentes: A dimensão comunicacional como recorte metodológico para o estudo das migrações, Revista
Latinoamericana de Comunicación Chasqui, 2014, em co-autoria (Russi, Pedro e Dutra, Delia); Mulheres,
migrantes, trabalhadoras: a segregação no mercado de trabalho, REMHU, 2013; Mulheres do sul também
migram para o sul, Anuario Americanista Europeo, 2013; Migrações Internacionais e Trabalho Doméstico.
Mulheres peruanas em Brasília, 2013.
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