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Abstract: The study of the political-legal phenomenon involves the reading and re-
reading of numerous texts considered as “classics”. This phenomenon, however,
should go beyond the study in the classroom. It is in this perspective that movies
become an important element in the explanation and elucidation of concepts: there are
many films dealing with academic subjects, representing them on the screen and
allowing a better understanding of legal-political theory. It is in this context of movies
as a pedagogical tool for the explanation of concepts fundamental to contemporary
Political Science and the modern State that comes the problematic of this article: to
explain the main aspects presented by Niccolò Machiavelli in his best-known book –
“The Prince” – based on one of the greatest phenomena of today’s pop culture – the
so-called “Marvel Cinematic Universe”, emphasizing its most recent film entitled
“Avengers: Infinity War”. The main objective is to show how the actions performed by
the villain of the film can be analyzed from a Machiavellian perspective, with emphasis
on the characteristics presented by the Florentine author referring to his model of a
“good ruler”. To achieve such goal the article initially brings the central plot of the film
and then presents, in an interconnected way, the main arguments developed by the
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Florentine author and the actions of the villain in the movie. The conclusion is that
Machiavelli’s work remains relevant for the analysis of the contemporary political-
juridical phenomenon. The article is based on the inductive method and uses
bibliographic research as a technique.
Keywords: Movie theater; Marvel; Political-legal studies; Machiavelli; The Prince.
Introdução
4 “O Estado moderno é definido como tendo o monopólio da força (ou do poder de decidir em última instância),
atuando em três níveis: jurídico, político e sociológico. No nível jurídico, atua mediante a afirmação do conceito da
soberania, confiando ao Estado o monopólio da produção das normas jurídicas, de forma a não existir direito algum
acima do Estado que possa limitar sua vontade: o Estado adquire, pois, O poder para determinar, mediante leis, o
comportamento dos súditos. Os próprios direitos individuais se apresentam, muitas vezes, apenas como benignas
concessões ou como expressão de autolimitação do poder por parte do Estado. Além disso, a soberania é definida,
em muitos casos, em termos de poder e não de direito: é soberano quem possui a força necessária para ser
obedecido, e não quem recebe este poder de uma lei superior. No nível político, o Estado moderno representa a
destruição do pluralismo orgânico próprio da sociedade corporativista: pela sua atuação constante, desaparecem
todos os centros de autoridade reivindicadores de funções políticas autônomas, tais como as cidades, os Estados,
as corporações, de tal forma que venha a desaparecer toda mediação (política) entre o príncipe, portador de uma
vontade superior, e os indivíduos, reduzidos a uma vida inteiramente particular e tornados todos iguais enquanto
súditos. No nível sociológico, o Estado moderno se apresenta como Estado administrativo, na medida em que existe,
à disposição do príncipe, um novo instrumento operacional, a moderna burocracia, uma máquina que atua de
maneira racional e eficiente com vista a um determinado fim” (BOBBIO, 1998, p. 698).
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Maquiavel seja tão impactante não tanto pelo que ele diz, mas pelo como ele diz”
(McCLELLAND, 2005, p. 152).
Desta forma tem-se que seu livro O Príncipe é uma tentativa de buscar acabar
com a instabilidade política que marcava a Itália de seu tempo – e, para isso, se tornou
o primeiro texto de Ciência Política realista. Para tanto Maquiavel se afastou
intelectualmente daqueles que eram vistos como ícones do pensamento político em
seu tempo: Sócrates, Platão e Aristóteles. Ainda que os filósofos gregos antigos
tenham sido os precursores da filosofia política, Maquiavel buscou analisar a realidade
como ela era, e não como ele gostaria que fosse. É esta diferença de perspectiva no
momento de se analisar a política que fez com que Maquiavel fosse alçado à História
como, talvez, o primeiro dos realistas modernos. É também esta característica que faz
com que ele inicie seu livro falando não apenas a respeito do que deve ser feito para
se conquistar Estados, mas mais importante, como mantê-los, tornando-os estáveis –
e tudo isso por meio da eficácia nas ações humanas, sem abstrações filosóficas e/ou
especulativas sobre tais ações.
Maquiavel nos pergunta: quais características tem – ou deve ter – o bom
governante? Se respondermos a esta pergunta com base em Platão, por exemplo,
teremos que o bom governante é um homem com “alma de ouro”, cuja principal
característica é a sabedoria, e que seja suficientemente virtuoso a ponto de
administrar o Estado buscando sempre o bem para todos (ainda que não se defina
claramente o que significa este bem para todos). Se a pergunta for respondida com
base em São Tomás de Aquino, teremos que o bom governante é aquele que
consegue fazer com que todos caminhem em direção à “Cidade de Deus”. Já para
Maquiavel, o que é o bom governante? Para ele, bom governante é aquele homem –
e não a “natureza”, como seria para os antigos, ou Deus, ou alguém vinculado a Ele,
como seria para os medievais – que mantém a ordem dentro do território, utilizando-
se dos meios disponíveis para tanto.
Ou seja: Maquiavel busca sair do campo do dever ser e entrar no campo do
ser, sem suposições, sem idealizações, sem expectativas de que algo “superior” ao
homem possa solucionar seus problemas. Cabe ao próprio ser humano definir seu
futuro – e é neste sentido que sua visão de Estado pressupõe a centralização do poder
nas mãos do príncipe5: cabe a ele, mais do que a qualquer outro, fazer o necessário
para manter a ordem.
Destaca-se aqui a influência do contexto histórico no pensamento de
Maquiavel. Por que tem ele preocupação com a ordem? Como dito anteriormente, a
Itália estava despedaçada em pequenas cidades-estados; ao contrário, a França e a
Espanha demonstravam uma força que Maquiavel não via na Itália. As próprias
cidades-estados italianas eram instáveis – que o diga sua própria cidade natal,
Florença. Neste contexto o que mantém a ordem não será o respeito a alguma “lei
natural”, como defendiam os antigos; o que mantém a ordem não será o medo de ir
para o inferno em caso de alguma transgressão à lei divina, como defendiam os
medievais; o que mantém a ordem é o uso da força física. Do ponto de vista de
Maquiavel o triunfo do mais forte é o fato essencial da história humana. Os egípcios
foram vencidos pelos romanos por meio da força física; os romanos foram vencidos
pelos “bárbaros” por meio da força física; e na própria época em que vive, o que define
o equilíbrio entre os inúmeros Estados italianos, a França e a Espanha são alianças
5A palavra príncipe deve ser entendida não no sentido do “filho do rei”, mas sim no sentido de governante – mais
ainda, no sentido de Estado propriamente dito.
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que, em última instância, se fundamentam na força física. Assim, tudo se resume em
ter forças suficientes para conquistar e para manter o poder.
A razão primeira e última do príncipe, portanto, é o uso correto dessas forças
porque apenas assim se garante a estabilidade necessária à existência de qualquer
sociedade. Desta forma, a base de todos os Estados são duas: boas leis e boas
armas. Maquiavel afirma que “não se podem ter boas leis onde não existem boas
armas” (MAQUIAVEL, 1996, p. 57), já que de nada adianta a existência de uma boa
lei se não houver capacidade, por parte do Estado, de colocá-la em prática, se
necessário por meio do uso da força física. Fica a pergunta: o que são estas “boas
armas”? Boas armas não são tropas mercenárias (“desunidas, ambiciosas,
indisciplinadas, infiéis, valentes entre amigos e covardes entre inimigos”). Boas armas
são tropas nacionais, ou seja, aquilo que na atualidade chamamos de Forças
Armadas. É necessário relembrar que à época de Maquiavel os exércitos eram
compostos por mercenários, ou seja, soldados que lutavam por aquele que pagasse
mais.
Imagine-se a situação: a República de Florença entraria em guerra com o
Ducado de Modena, e para tanto contrataria mercenários pagando-lhes cem moedas
por dia. O Ducado de Modena, que em um primeiro momento estava perdendo a
guerra, ofereceria cento e cinquenta moedas para aqueles que lutassem a seu lado.
Aqueles mercenários de Florença passariam, agora, a lutar por Modena. Neste
contexto, qual a segurança que Florença teria, a não ser pagar mais? E se Florença
não pudesse cobrir a oferta de Modena? Perderia a guerra. Assim, buscando evitar
tal situação é que Maquiavel propõe as tropas nacionais, ou seja, soldados vinculados
não a um contrato, mas sim ao Estado.
E é aqui que temos um dos primeiros elementos fundamentais do Estado
moderno: a transferência das forças armadas do âmbito pessoal – ou seja, o fim dos
mercenários – para o âmbito institucional com a profissionalização destas forças
armadas. Esta profissionalização, por sua vez, só poderia ocorrer quando houvesse
a centralização do poder político nas mãos do príncipe – ou seja, nas mãos do Estado.
Seriam estes dois elementos – a centralização do poder e o surgimento de tropas
nacionais – os fundamentos da estabilidade em toda e qualquer sociedade. “Se o que
busca é a estabilidade, não se pode adotar a política das boas ações e da moralidade.
[...] Maquiavel inaugura a era do realismo político, desprovido dos mandamentos
religiosos e voltado fortemente para os resultados das ações humanas”
(GUANABARA, 2009, p. 30).
6 Nas histórias da Marvel tanto Thor quanto Loki são príncipes no planeta Asgard. Vale destacar que a mitologia
referente a Asgard se fundamenta fortemente na mitologia viking, para a qual tais deuses – Thor, Loki e o “Pai de
Todos”, Odin, dentre inúmeros outros, realmente existem.
7 No contexto de Maquiavel, assim como a palavra príncipe não deve ser entendida como “filho do rei”, a palavra
súdito não deve ser entendida como alguém que vive em uma monarquia: por súdito entende-se aquele que se
submete ao Estado; em termos atuais, é a mesma coisa que cidadão (ainda que esta palavra traga mais direitos
ao indivíduo que à época de Maquiavel).
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Aqui se destaca o caráter da virtù na concretização das crueldades: o príncipe
deve ter o feeling necessário para saber quando fazer o mal de uma única vez. Por
outro lado, os benefícios advindos do governo do príncipe devem ser mostrados aos
súditos gradativamente, para serem mais bem aproveitados pelo governante. Mate
rapidamente, mas recompense gradualmente: este é, sem dúvida, o pensamento de
Maquiavel.
Ainda no campo da virtù, e também no âmbito das crueldades bem praticadas,
deve o príncipe ofender apenas os impotentes, que não têm condições de ameaçá-lo;
caso seja necessário ofender um “grande”, a ofensa deve ser a maior possível, para
impor temor: “a ofensa que se fizer a um homem deverá ser de tal ordem que não se
tema a vingança” (MAQUIAVEL, 1996, p. 10).
Regressando ao filme, não apenas as cenas já citadas demonstram a
concretização de uma “crueldade bem feita” – quando da morte de Loki ou Gamora
para atingir determinados objetivos. Em outras oportunidades Thanos também faz
uma “crueldade bem feita” – especialmente, e aqui avançando ao fim do filme, quando,
de posse da “Manopla do Infinito” com todas as seis “Joias do Infinito”, Thanos estala
os dedos e elimina metade dos seres vivos do Universo. Na perspectiva do
personagem realiza-se claramente uma crueldade “de uma só vez” objetivando-se um
bem maior – a eliminação da superpopulação com o objetivo de garantir uma vida de
ótima qualidade para aqueles que sobreviverem.
Por outro lado, pode-se afirmar que a tortura de Nebulosa indicada
anteriormente é uma “crueldade mal feita”. Sob a perspectiva de Maquiavel a tortura
é aceitável desde que necessária à consecução de um objetivo. Em um primeiro
momento pode-se imaginar que a ação de Thanos é bem-sucedida; entretanto, vale
destacar que Nebulosa permanece viva ao fim do filme. Significa dizer que a crueldade
foi mal feita, posto que ela poderá, em uma próxima oportunidade, juntar-se a outros
heróis em busca de vingança8.
Maquiavel fala também das relações entre o príncipe e os súditos: estas devem
ser as melhores possíveis. Seria ótimo se o príncipe pudesse ser amado e temido; se
isso for impossível, então o príncipe deve escolher ser temido, já que o amor se esvai,
mas o temor permanece. “Enquanto lhes [aos homens] fizeres bem, pertencem
inteiramente a ti, te oferecem o sangue, o patrimônio, a vida e os filhos, como disse
acima, desde que o perigo esteja distante; mas, quando precisas deles, revoltam-se”
(MAQUIAVEL, 1996, p. 80).
É claro que isto não significa dizer que o príncipe não deva tentar ser amado:
ao contrário, o amor que um povo sente por seu governante faz parte da base de
sustentação que permitirá ao príncipe governar. Não deve, contudo, o príncipe se
fundamentar apenas no amor que seu povo tem por si, pois relacionamentos
fundamentados em amor não são previsíveis (McCLELLAND, 2005, p. 155).
Além disso, os homens receiam muito menos ofender aquele que se faz amar
do que aquele que se faz temer. O temor sustenta-se por medo do castigo, que jamais
abandona o homem; o amor pode se desfazer de acordo com o próprio interesse.
Cabe, portanto, ao príncipe se utilizar de sua virtù para tentar se amado; caso isso
não ocorra, deve utilizá-la para saber a dose certa de temor a impor aos seus súditos.
8 O leitor deve ter em mente a ideia de continuidade que perpassa o Universo Cinematográfico Marvel, conforme
indicado no início do texto. Nesta perspectiva vale destacar que a história atual terminará apenas no próximo filme
“Vingadores 4”, cuja estreia ocorrerá em maio de 2019.
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Contudo, ser temido não significa ser odiado; o ódio é sempre prejudicial ao príncipe,
já que aquele que odeia o outro não se submete ao mesmo por não ter nada a perder.
Deve contudo o príncipe fazer-se temer de modo que, se não
conquistar o amor, pelo menos evitará o ódio; pois é perfeitamente
possível ser temido e não ser odiado ao mesmo tempo, o que
conseguirá sempre que se abstenha de se apoderar do patrimônio e
das mulheres de seus cidadãos e súditos. [...] Sobretudo, deverá
respeitar o patrimônio alheio, porque os homens esquecem mais
rapidamente a morte do pai do que a perda do patrimônio
(MAQUIAVEL, 1996, p. 80-1).
Neste aspecto é possível dizer que Thanos errou em suas ações na busca
pelas “Joias do Infinito”. Não que ele devesse buscar o amor da Humanidade – e
mesmo que buscasse, provavelmente não conseguiria. Mas como diz Maquiavel:
deve-se buscar ser temido, não odiado. Ao agir de maneira prepotente, acreditando
ser invencível, Thanos despertou o ódio dos heróis por ele. Se no início do filme existe
uma espécie de “temor respeitoso” por parte dos heróis9, o mesmo não pode ser dito
na segunda metade do filme – quando os heróis preferem lutar até à morte contra o
vilão devido ao ódio por este instigado.
Por fim, mas ainda no campo da virtù, destaca-se a analogia feita por Maquiavel
entre o príncipe e os animais. O príncipe perfeito deve possuir as naturezas de homem
e de animal: como homem, combate pelas leis, regularmente, com lealdade e
fidelidade; como animal, combate pela força (leão) e pela astúcia (raposa). Deve agir
pela força física, ou seja, como um leão, quando esta for necessária, especialmente
no que diz respeito à supressão do dissenso – e isto não porque o príncipe seja
necessariamente mau, mas porque é necessário ser mau para manter o poder. Por
outro lado, em matéria de promessas e de compromissos, o príncipe deve ser raposa,
isto é, não observar a palavra quando observá-la vier a ser-lhe inconveniente e
quando desaparecerem as razões que o fizeram prometer. Tal comportamento,
contudo, deve sempre ser oculto dos demais: o príncipe deve possuir a virtude do
parecer, do fazer crer, da hipocrisia, da dissimulação, sempre tendo em mente o
resultado concreto, que é a manutenção do poder e do Estado.
A um príncipe, portanto, não é necessário ter de fato todas as
qualidades supracitadas, mas é indispensável parecer tê-las. Aliás,
ousarei dizer que, se as tiver e utilizar sempre, serão danosas,
enquanto, se parecer tê-las, serão úteis. Assim, deves parecer
clemente, fiel, humano, íntegro, religioso – e sê-lo, mas com a
condição de estares com o ânimo disposto a, quando necessário, não
o seres, de modo que possas e saibas como tornar-te o contrário. É
preciso entender que um príncipe, sobretudo um príncipe novo, não
pode observar todas aquelas coisas pelas quais os homens são
considerados bons, sendo-lhe frequentemente necessário, para
manter o poder, agir contra a fé, contra a caridade, contra a
humanidade e contra a religião. Precisa, portanto, ter o espírito
preparado para voltar-se para onde lhe ordenarem os ventos da
fortuna e as variações das coisas e, como disse acima, não se afastar
do bem, mas saber entrar no mal, se necessário.
9Um dos heróis mais importantes do UCM, o Homem de Ferro, que geralmente é visto como inteligente, destemido
e capaz de solucionar todos os problemas, afirma em determinada parte do filme que “não sabe o que fazer para
derrotar Thanos”.
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Logo, deve um príncipe cuidar para que jamais lhe escape da boca
qualquer coisa que não contenha as cinco qualidades citadas. Deve
parecer, para os que o virem e ouvirem, todo piedade, todo fé, todo
integridade, todo humanidade e todo religião. Não há nada mais
necessário do que parecer ter esta última qualidade. Os homens, em
geral, julgam as coisas mais pelos olhos que com as mãos, porque
todos podem ver, mas poucos podem sentir (MAQUIAVEL, 1996, p.
84-5).
Agir desta forma é necessário porque o que se considera é o resultado; é aquilo
que, na atualidade, se chama de razão de Estado. Faz-se o que é necessário, mesmo
que o necessário seja voltar atrás nas promessas – aqui, relembre-se o leitor das
“crueldades bem praticadas”: se o governante voltar atrás hoje a respeito de
determinada promessa, haverá revoltas e insatisfações, que entretanto se esvaem
com o tempo. Segundo este ponto de vista, um erro, categoria da técnica, é mais
grave que um crime, categoria da moral: “observemos esse ponto de vista puramente
técnico [...] além do bem e do mal. Bem e mal não são negados, mas isolados em seu
domínio próprio, expulsos do domínio político” (CHEVALLIER, 1998, p. 32).
Cuide pois o príncipe de vencer e manter o estado: os meios serão
sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo está
sempre voltado para as aparências e para o resultado das coisas, e
não há no mundo senão o vulgo; a minoria não tem vez quando a
maioria tem onde se apoiar (MAQUIAVEL, 1996, p. 85-6).
Daí a atribuição a Maquiavel e ao seu O Príncipe da frase “os fins justificam os
meios” – frase esta ausente do livro e de qualquer outro escrito deste autor, mas que
pode ser interpretada de seus escritos. Destaca-se, contudo, que esta interpretação
é errônea.
Maquiavel não era defensor da ideia de que os fins justificam os meios. Ele não
era um defensor de uma monarquia absolutista nem defensor do absolutismo em si,
como era Thomas Hobbes. Maquiavel era um republicano – talvez nos dias de hoje
pudéssemos chamá-lo de democrata, de defensor da democracia. O leitor deve
sempre ter em mente que Maquiavel veio de uma família florentina com credenciais
republicanas impecáveis e que ele próprio ocupou alto cargo em Florença antes dos
Médici chegarem ao poder – tanto que foi torturado, no período dos Médici, por
possível participação em um complô para que fosse retornado o regime político
anterior, que era republicano. Outro de seus textos, tão famoso quando O Príncipe
mas bem menos lido do que este – os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio
– transborda a defesa ao republicanismo.
Portanto, quando fala em usar a força conforme a necessidade para a
manutenção do Estado, Maquiavel deixa claro que o uso da força não pode ser
arbitrário, não pode ser em excesso – característica esta típica de um sistema
absolutista. Sim, ele defende que o príncipe seja impiedoso e desonesto, mas isto não
significa que o deva ser sempre. O uso da força, ou ainda o uso da máquina estatal,
apenas para benefício próprio – outra característica do absolutismo – não é ideia
sancionada por Maquiavel em seus escritos.
A escolha de uma ou de outra forma institucional [principado ou
república] não depende de um mero ato de vontade ou de
considerações abstratas e idealistas sobre o regime, mas da situação
concreta. Assim, quando a nação encontra-se ameaçada de
deterioração, quando a corrupção alastrou-se, é necessário um
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governo forte, que crie e coloque seus instrumentos de poder para
inibir a vitalidade das forças desagregadoras e centrífugas. O príncipe
não é um ditador; é, mais propriamente, um fundador do Estado, um
agente da transição numa fase em que a nação se acha ameaçada de
decomposição. Quando, ao contrário, a sociedade já encontrou
formas de equilíbrio, o poder político cumpriu sua função regeneradora
e “educadora”, ela está preparada para a República. Neste regime,
que por vezes o pensador florentino chama de liberdade, o povo é
virtuoso, as instituições são estáveis e contemplam a dinâmica das
relações sociais. Os conflitos são fonte de vigor, sinal de uma
cidadania ativa, e portanto são desejáveis (SADEK, 1998, p. 20-21).
Se Maquiavel defende a centralização do poder político nas mãos de um único
líder, não é porque seja a favor de uma ditadura, mas sim porque, em momentos de
crise institucional, de desorganização político-jurídica, de falta de uma figura estatal
central, em momentos de fragilidade – como o era o momento em que viveu –, a
democracia – diríamos nós – não funciona: nestas situações para Maquiavel torna-se
necessário o surgimento de um poder político-jurídico forte, capaz de instituir a ordem
e garantir a estabilidade necessária para que a sociedade se desenvolva. É por este
motivo que, no início do livro O Príncipe, Maquiavel defenda o principado – que
chamaríamos hoje de monarquia –, e não a república: não por ser ele próprio um
monarquista, um defensor de um Estado – e de um líder – absoluto, mas sim por esta
forma de governo ser necessária nas condições ali presentes. O tipo de governo
defendido por Maquiavel em O Príncipe deve ser apenas um episódio, uma etapa
necessária em determinado Estado, saindo de uma situação de ruptura para uma
situação de estabilidade.
Considerações finais
Referências