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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA E HISTÓRIA LITERÁRIA

PROJETO DE PESQUISA

SOBRE A FALA ORDINÁRIA: ESTUDO ESTILÍSTICO DE CASA-GRANDE &


SENZALA E SOBRADOS E MUCAMBOS

JOÃO GUILHERME LADEIA VIANA

ORIENTADOR: AFREDO CESAR MELO

NÍVEL: MESTRADO

CAMPINAS

2016
Resumo: O trabalho de mestrado a ser desenvolvido pretende realizar leitura cerrada

das duas obras principais do ensaísta Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala e

Sobrados e mucambos, com o objetivo de descrever aspectos de seu estilo de escrita até

o momento pouco aprofundados nos principais estudos sobre o autor. Visa-se descrever

com minúcia questões como: os modos de organização sintática do texto de Freyre; o

equilíbrio entre coloquialismos e linguagem acadêmica em sua prosa; os mecanismos

linguísticos pelos quais efetua certas generalizações; as figuras de linguagem, bem

como outros traços literários que permeiam suas descrições e suas ligações mais nítidas

com outros autores literários. Insere-se, assim, na polêmica discussão sobre a linguagem

do autor, já elogiada por sua modernidade e seu caráter literário, mas também criticada

por seu caráter manipulador de informações, uma descrição mais detalhada dessas

características observadas, o que deve atualizar o debate sobre o extremamente influente

pensador pernambucano.

Palavras-chave: Gilberto Freyre; estilo literário; ensaio brasileiro


Abstract: The research project to be conducted in this master’s program will perform a

close reading of two of Gilberto Freyre’s most notable works: Casa-grande & senzala

and Sobrados e mucambos. It aims to describe aspects of his style hitherto unexplored

in depth in the most accomplished critical readings of the author. It will describe in

detail such matters as: syntax, the balance between colloquialisms and academic

language in his prose, linguistic strategies used to effect certain generalizations,

figurative language – along with other literary features which characterize his

descriptions – and his closest links with other literary authors. A more detailed

description, therefore, of a language at once complimented for its modernity and literary

values and criticized for its manipulative character, should fill a gap in the heated debate

over the language of an extremely influential Brazilian writer.

Keywords: Gilberto Freyre; close-reading; Brazilian essayists


INTRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA E JUSTIFICATIVA

Os artigos e resenhas que representam a recepção crítica inicial ao livro Casa-

Grande & Senzala1 deixam a nítida impressão de que seus leitores tinham muito a dizer

sobre o estilo de Gilberto Freyre. Se, de um lado, seu texto era tido como “descentrado”,

sem organicidade, inconclusivo (GIUCCI, G.; LARRETA, E. R., 2002, pp. 935-6), de outro,

sua percepção como livro transgressor, de rompimento com a tradição, modernista, é

indubitável (idem, p. 931). Com esses adjetivos, poderíamos tencionar descrever uma

recepção negativa do livro: mas de fato acontece justamente o contrário. Há comicidade,

por exemplo, na conclusão da resenha de Agripino Grieco, que parece descrever dois ou

três livros diferentes, e por isso mesmo ilustra o caráter contraditório que marcará a

fortuna crítica sobre a obra principal de Freyre: "Está aqui uma espécie de história do

Brasil, contada inteligentemente, à moderna, com grande amenidade. Interpretação às

vezes demasiado materialista, com um pouco de rudeza e sequidão científicas, não

exclui, de modo algum, certos trechos de irresistível efusão poética." (GRIECO,

1934:1985, p. 74.) Sobre seu estilo, porém, há uma percepção geral de grande influência

da oralidade (FONSECA, 2002, p. 875), descritor que constituirá a ortodoxia dos

comentários futuros nesse tema.

É natural que se destaque esse aspecto da obra de Freyre, uma vez que o próprio

autor traz à tona algumas particularidades do português brasileiro em trecho célebre do

capítulo IV de Casa-grande & senzala (FREYRE, 2002, pp. 340-344, mas também no

capítulo II, pp. 170-171). É conhecido seu detalhamento dos sentidos da variada

colocação pronominal no português do Brasil, que, para ele, representa a persistência da

1Reunidos por Edson Nery da Fonseca em Casa-grande e senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944.
Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1985.
fala do senhor juntamente com a do escravo, do filho, da mulher, “antagonismos

equilibrados” na língua brasileira (idem, p. 343).2

Em pouco tempo, porém, a novidade do estilo do autor foi ofuscada pelo

impacto político tremendo que o conteúdo de suas ideias sobre o Brasil exerceu. E não

por acaso. Em 1935, Freyre já era convidado pelo Ministério da Educação para

inaugurar a pioneira cátedra de Sociologia na Faculdade de Direito do Recife e dirigia,

na Universidade do Distrito Federal (hoje UFRJ), o primeiro curso de Antropologia

Social e Cultural da América Latina (FONSECA, 2002, p. 669). Era só o início do

impacto institucional que sua figura e suas ideias exerceriam naquela década e nas

seguintes, quando seria emissário brasileiro oficial a vários países e ministraria aulas em

diversas universidades nos EUA e na Europa. Dez anos depois daqueles primeiros

convites oficiais, se envolveria na campanha à presidência da República do Brigadeiro

Eduardo Gomes, e no ano seguinte, 1946, seria eleito deputado federal, retomando uma

carreira política que duraria até a década de 1960 (idem, pp. 669-686).3

Assim, escapando ao âmbito, poderíamos esperar, mais despretensioso que o

ensaio sugere, o retrato do Brasil que o escritor pernambucano apresentou em sua obra

se tornou força institucional poderosa, atingindo o patamar de ser percebida como

discurso oficial do regime no fim da década de 60. É conhecida a declaração de Dante

Moreira Leite em 1968: “Freyre é hoje, pelo menos no Brasil, um intelectual de direita,

aceito pelos grupos no poder, mas não pelos jovens intelectuais.” (LEITE, 1968:2007, p.

271.) Nesse contexto, o que se podia perceber positivamente como “amenidade” ou

despojamento em seu estilo será alvo de duras críticas no campo acadêmico. Já havia

2Veja-se, por exemplo, trecho do estudo de Rugai Bastos (2003, pp. 161-167) em que a autora
contextualiza essa caracterização dos pronomes no âmbito das leituras do escritor basco Miguel de
Unamuno por parte de Freyre.

3Freyre tivera alguns cargos políticos de nível estadual antes de publicar Casa-grande & senzala,
(PALLARES-BURKE, 2005, pp.245-6) mas nada próximo à escala internacional de sua fama posterior.
Sérgio Buarque de Holanda criticado esse aspecto da escrita de Freyre na década de 50.

Para o colega ensaísta, segundo Monteiro (2015), “por meio de sua linguagem

gostosamente semeada, Freyre se aproxima demasiado de seu objeto, tornando-se uma

espécie de guardião dos valores patriarcais.” (p. 112.)4

Com efeito, essa tendência crítica se acentua na década de 60 e na seguinte, o

que se pode relacionar à expansão de novas metodologias e às mudanças no cenário

político do Brasil com o golpe militar de 1964. Freyre, como se sabe, tinha postura

favorável ao regime militar, à ditadura salazarista em Portugal e ao colonialismo

português na África no século XX. (LEITE, op. cit., p. 271 e outros.) É naquele

momento, então, que a interpretação ideológica de sua obra ganha relevância.

Nesse período, que coincide, além de tudo, com uma expansão do ambiente

acadêmico e da pesquisa universitária no país (de que faz parte a própria criação da

Unicamp), críticos e pensadores acadêmicos como Carlos Guilherme Mota, Luiz Costa

Lima e o já citado Dante Moreira Leite concentram o foco do que fazem para avaliar o

estilo de Freyre na imprecisão conceitual do autor, e na falta de cadeias demonstrativas

que confiram verificabilidade a suas teses. Há nítida evolução em relação ao

“demasiado materialista” de Agripino Grieco. Moreira Leite, por exemplo, afirma que

“a dificuldade de sua apreciação justa decorre da ausência de provas para as afirmações

fundamentais de sua obra.” (op. cit., p. 370) Por conseguinte, “sua obra é

profundamente reveladora – isto é, reveladora dos preconceitos mais conservadores e

mais arraigados na classe dominante brasileira.” (p. 371). Carlos Guilherme Mota chega

a caracterizar o estilo da geração de “explicadores do Brasil”, da qual Freyre faz parte,

como “estilo de manipulação de informações” (MOTA, 1980:1994, p. 54). Há pouca

4Note-se que Meira Monteiro cita dois estudos estilísticos, um deles dissertação de mestrado, da prosa
de Sérgio Buarque de Holanda. (op. cit., Parte I, Cap. 3, nota 102.)
generosidade a se destinar para o aspecto estético de seu texto. “O eruditismo e o bem

escrever constituem o revestimento do ensaísmo social característico dos filhos das

oligarquias regionais”, diz o historiador. (idem, p. 59). Luiz Costa Lima, por sua vez,

embora reconheça inequivocamente valor literário na linguagem do autor, insere-a no

contexto da sua crítica ao caráter auditivo do sistema intelectual brasileiro, que se

caracterizaria formalmente pela “ausência de elos, sabiamente manipulada.” (LIMA,

1981, pp. 17-18.)

Os problemas demonstrados por estas críticas são reconhecidos pelas suas

interpretações mais recentes. Elas também lhes contrapõem, porém, o papel que o autor

teve ao desbancar em larga medida o mito do determinismo racial, tão corrente nas

décadas anteriores ao livro de Freyre, e tão marcadamente patente em obras como as de

Euclides da Cunha e Paulo Prado, refutação essa que era trabalho intelectual

fundamental para a autolegitimação cultural do Brasil; e registram o elemento criativo

de sua linguagem imprecisa (GIUCCI et al., op. cit., pp. 943-4.). Em resposta à

condenação do ensaísta como reacionário, foi o crítico e pensador liberal José

Guilherme Merquior que, mesmo nas poucas páginas de seu estudo dos elementos

formadores do pensamento do escritor recifense, mais notavelmente demonstrou o

pioneirismo do trabalho por este executado, bem como apresentou alternativa

interpretativa ao foco nas incoerências de teoria e método. (MERQUIOR, 1981).

Segundo o crítico, “Gilberto Freyre era o nosso mais completo anti-Rui Barbosa.

Ciência social e literatura moderna contra o juridicismo parnasiano; ‘região e tradição’

contra o abstracionismo histórico e social do nosso progressismo republicano[...]”

(Idem, p. 271). Quanto ao estilo do autor, expressivamente caracterizado de sermo

humilis, em referência à variante de comunicação com o povo do latim eclesiástico,

Merquior mais tarde parece vê-lo no contexto de uma adequação entre forma e
conteúdo: “Adotando um estilo ostensivamente mesclado, totalmente adequado a seu

assunto, a mistura ét[n?]ica, dotou o ensaio de um sermo humilis, aberto ao cômico e ao

humor.”(1990, p. 348.)

Pode-se dizer, pois, que desde a morte do escritor, em 1987, estudos críticos de

Gilberto Freyre parecem ter reconhecido mais abertamente a ambiguidade constitutiva

de seu retrato do Brasil. Relativamente afastadas das polêmicas políticas que cercaram a

obra do pensador pernambucano por décadas, essas interpretações têm concentrado seu

foco em outros aspectos, como a sua orientação estética e simbólica e suas influências

intelectuais. É isto que se depreende dos estudos essenciais sobre o autor das últimas

décadas, a saber, o de Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke (2005), o de Ricardo

Benzaquen de Araújo (1994), os de Elide Rugai Bastos (2003; 2006) e os contidos na

edição crítica de Casa-Grande & Senzala, publicada pela UNESCO em 2002

(destacam-se dentre estes, para meus propósitos, o breve estudo estilístico do principal

antecedente neste tema, Edson Nery da Fonseca, e um artigo de Rugai Bastos).

A biografia intelectual Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos, por exemplo,

faz uma espécie de arqueologia do que o autor veria como uma tendência conciliatória

no pensamento dos ensaístas ingleses que lhe serviam de inspiração, inclusive estética;

trabalho que inclui ainda detalhada descrição de seu enfrentamento do racismo

científico (PALLARES-BURKE, 2005, pp. 329-411). Evidentemente, o livro também

trata de suas influências não-inglesas, detalhando sua relação com o professor Franz

Boas (idem, ibid., pp. 297-327), frequentemente lembrado como a principal base teórica

de Freyre, seus estudos de Roquette-Pinto e a contribuição das pesquisas de Rüdiger

Bilden para seu material de base.

Esse estudo nos é particularmente interessante por lembrar os princípios de

clareza e simplicidade de tom que Freyre admirava nos ensaístas ingleses.


(PALLARES-BURKE, 2005, p. 40.) Tendo tomado sua própria expressão “equilíbrio de

antagonismos” de Thomas Carlyle (idem, p.41), o escritor pernambucano vai encontrar

em Walter Pater, nos textos do periódico The Spectator e no crítico William Hazlitt um

modelo de ensaio avesso ao pedantismo e ao artificialismo, mais próximo à clareza, à

graça e à simplicidade coloquiais. (PALLARES-BURKE, 2002, pp. 826-828).

Sobre o estilo de Freyre, a autora cita em mais de uma ocasião o estudo de

Edson Nery da Fonseca (2002, pp. 870-876) mencionado acima. Um dos maiores

especialistas em Freyre, e seu amigo, Fonseca fez um resumido comentário capítulo a

capítulo de CG&S no intuito de demonstrar as qualidades literárias do estilo do autor.

Trata-se de uma raridade nos estudos freyreanos: uma pesquisa que procura demonstrar

especificamente cada uma das características de estilo do autor sem apenas descrevê-las

de maneira genérica ou tomá-las como pressuposto. Os traços gerais apontados são o

“imagismo” à Walt Whitman, por meio de enumerações, a sinestesia, a oralidade - às

vezes misturada a referências eruditas - e a pontuação rítmica. Sua descrição, no

entanto, é limitada, pois restrita a poucos exemplares e a apenas algumas de suas

características principais e mais perceptíveis. O que é natural, posto o objetivo do

estudo em questão: não realizar estudo exaustivo do estilo do autor, e sim apenas

demonstrar o seu caráter literário. Note-se, finalmente, que este estudo é feito em tom

elogioso ao escritor (idem, ibid., p. 873).

Ainda mais brevemente, Nery da Fonseca havia comentado algumas dessas

características estilísticas em escrito anterior (FONSECA, 1979). Há dois outros pontos

que é necessário mencionar nesse estudo antigo, ausentes no novo. O primeiro é a

comparação do estilo de Freyre com a prosa proustiana, também, por vezes,

enumerativa em longos períodos. Aparentemente, a característica fora observada já na

década de 1940 por alguns de seus resenhistas (op. cit., pp. 3-5). O segundo é a
adverbialização profusa, por vezes insólita, -- mas que, para Fonseca, “sempre se revela

adequada” (id., p. 4) -- em sua prosa. Diz o crítico: “A adverbialização em Gilberto

Freyre daria pano para as mangas, isto é – falando menos gilbertianamente – forneceria

material para toda uma dissertação de mestrado em língua portuguesa” (idem, ibid.).

O artigo de Bastos, por sua vez, descreve (em resumo de trabalho posterior da

mesma pesquisadora5) a influência de ensaístas ibéricos da geração de 98 no que chamei

"orientação estética" de Freyre (BASTOS, 2002, pp. 797-820.) Em Ángel Ganivet, o

escritor parece ter encontrado inspiração para seu impressionismo e sua nostalgia; em

outras palavras, seu propósito de reconstrução do passado através da narração baseada

em impressões presentes, da criação imaginativa de retratos e personagens. (BASTOS,

2002, p. 808.) Ortega y Gasset, por sua vez, define a ideia de que os povos

mediterrâneos são diversos dos germânicos no sentido de que são mais sensíveis do que

racionais: "O germânico tem como instrumento o conceito; o mediterrâneo, a

impressão; cada qual apresenta suas vantagens e desvantagens."[...]"Nesse cenário,

delineia a missão do intelectual: encontrar a medida exata entre o arcabouço do

pensamento e a sensibilidade."(pp. 812-3.) Tomando a civilização brasileira como uma

ramificação do mundo mediterrâneo, diz Bastos, Freyre verá a si mesmo em posição

semelhante à sugerida por Ortega (pp.813-5).

Por fim, o trabalho de Benzaquen, conforme a apresentação de Luiz Costa Lima,

“não nega a imprecisão ou mesma a ambiguidade conceitual que reveste [a interpretação

de Freyre], mas busca fazer com que não comprometa a importância de seu objeto.”

(LIMA, 1994, p. 9.) Com efeito, Benzaquen aponta justamente para a ambiguidade

5Gilberto Freyre e o pensamento hispânico: entre Dom Quixote e Afonso El Bueno. Bauru: EDUSC-
ANPOCS, 2003.
constitutiva da obra de Freyre, analisando-a no seu aspecto imaginativo e, nesse

processo, valorizando-a.

Trata-se do primeiro estudo de profundidade que possui uma interpretação mais

ampla do estilo de Freyre; aliás, sua interpretação desse estilo constitui a própria

conclusão de sua análise. Neste segmento, citando um dos primeiros intelectuais que se

impressionaram positivamente pela modernidade do estilo de Casa-Grande & Senzala

na época de sua publicação, o historiador Yan de Almeida Prado, Benzaquen enfatiza o

aspecto da oralidade de Freyre, com o objetivo, não de analisar o seu estilo por si

mesmo, mas de demonstrar o quanto o autor era atento à retórica e à linguagem,

rejeitando nelas o artificialismo dos mesmos positivistas a que se opunha como

representante da sociedade patriarcal (anti-Rui Barbosa):

“[...]escrevendo mais ou menos como um escravo falava, ele

explicita, um pouco como nos casos dos pronomes, a possibilidade de

uma convivência relativamente harmônica de diferentes tradições

dentro de si mesmo, acentuando a sua identidade como um intelectual

e um aristocrata nada ‘requintado’.” (op. cit., p. 188.)

Atento ao princípio da adequação de forma e conteúdo como Merquior,

Benzaquen afirma:

“Não acredito que seja descabido sugerir que a forma de Gilberto

argumentar, ‘usando a mesma língua que todos falam’ e

identificando-se tão fortemente com seus antepassados, acabe por

produzir a sensação de que os objetos que estuda permanecem vivos e

influentes através do seu relato, quer dizer, vivos porque influentes na

confecção do seu texto. CGS, então, deixa de ser apenas um livro

para transformar-se em uma espécie de casa-grande em miniatura,

em uma voz longínqua mas genuína, legítima e metonímica


representante daquela experiência que ele próprio analisava,

enquanto o nosso autor se converte, até certo ponto, em personagem

de si mesmo, como se escrevesse não só um ensaio histórico-

sociológico mas também as suas mais íntimas memórias.” (op., cit., p.

189.)

Ou seja, o estilo oralizado, o método de estudo duma amplitude de documentos

da história íntima e a perspectiva da casa-grande são vistos como mais um reflexo dos

antagonismos em equilíbrio na obra de Freyre. Ademais, a oralização também exerce

função argumentativa:

“O tom de conversa, de bate-papo que ela propicia, parece facilitar

sobremaneira que ele arme um raciocínio francamente paradoxal,

fazendo com que a cada avaliação positiva possa se suceder uma

crítica e vice-versa, em um ziguezague que acaba por dar um caráter

antinômico à sua argumentação.” (op. cit., p.208.)

OBJETIVOS

Na corrente do reconhecimento dessa ambiguidade constitutiva de Freyre,

portanto, penso que seja claramente reconhecível a necessidade de se realizar um estudo

cerrado e exaustivo de seu estilo, no intuito de explorar como exatamente se dá o

chamado equilíbrio de antagonismos em sua linguagem e atualizar a discussão

apresentada acima. Um estudo com esse objetivo, a meu ver, retomaria o aspecto das

obras de Freyre que primeiro impactou seus leitores e o exploraria com maior rigor e
proximidade.6 Por exemplo: costuma-se tratar, de maneira genérica, de um discurso

informal, coloquial, oralizado ou anti-retórico de Freyre, como visto acima. Mas essa

tendência não é completa, exceto se oposta ao bacharelismo com que a estética

modernista rompia no início do século (MERQUIOR, 1990). Numa primeira análise de

sua linguagem, podemos depreender, acredito, tanto uma tendência oralizante como

uma tendência escolarizada em seu estilo. Observe-se o primeiro parágrafo de Sobrados

e Mucambos.

“Com a chegada de D. João VI ao Rio de Janeiro, o patriciado rural

que se consolidara nas casas-grandes de engenho e de fazenda – as

mulheres gordas, fazendo doce, os homens muito anchos dos seus

títulos e privilégios de sargento-mor e capitão, de seus púcaros, de

suas esporas e dos seus punhais de prata, de alguma colcha da Índia

guardada na arca, dos muitos filhos legítimos e naturais espalhados

pela casa e pela senzala – começou a perder a majestade dos tempos

coloniais.” (FREYRE, 2004:1936, p. 105.)

Excluída a sequência de frases nominais intercalada com travessões, resta uma

descrição relativamente sintética de parte inicial do processo histórico que a obra

tematiza. Há muito mais que se dizer sobre essas frases nominais, entretanto. Há um

primeiro retrato de “mulheres gordas, fazendo doce” – um estereótipo curiosíssimo pela

sua especificidade, considerando-se que estamos olhando para o resumo das condições

sociais descritas extensivamente em trabalho anterior. A vírgula, desnecessária pela

norma, transforma o que já seria uma frase pouco predicativa em duas frases nominais,

6Registrem-se estas palavras de Luiz Costa Lima: “A marca basilar da linguagem de Gilberto Freire como
auditiva não deverá obscurecer o fato de se impor um estudo exaustivo de seu estilo, porquanto aquela
marca, negativa do ponto de vista de uma reflexão científica, não impede que existam ao lado
propriedades que merecem ser melhor conhecidas para a constituição de uma prosa alternativa.
Lamentavelmente, as posições do autor, não me refiro tanto a seu conservadorismo crescente, como a
atitudes e denúncias ditadas pelo oportunismo, pela vaidade e pelo revanchismo pessoal, parecem
tornar impossível, por muito tempo ainda, a isenção necessária para um tal tipo de estudo.” (LIMA,
1981, p. 27.)
com função de substantivo e adjetivo, conferindo ritmo à sequência. O que só se pode

explicar por imitação da oralidade. Assim temos um grupo social inteiro, já

profundamente explorado em Casa Grande & Senzala, retomado por essa imagem tão

cotidiana e tão reduzida. Mas se é de especificidade que estamos falando, que dizer da

descrição dos “homens muito anchos” que vem a seguir, também ritmada por vírgulas e

paralelismos sintáticos? Uma coleção de posses materiais, mas também agregada a um

traço de personalidade e a relações familiares, acaba por construir um personagem que,

no entanto, é também uma classe social densamente estudada.

Fora dos travessões, temos uma frase que expressa um argumento a ser

comprovado por meio de evidências, testemunhos e análises de documentos históricos.

Dentro deles, alongando seu período quase simples, uma descrição ligeiramente oral,

com alguma elaboração estética, de estereótipos. No primeiro período do texto de

Freyre já encontramos duas tendências metodológicas (em conflito ou em

complementaridade) claramente marcadas.

Para que não se creia que se trata apenas de uma introdução criativamente

elaborada, leia-se o segundo parágrafo do texto:

“A presença no Rio de Janeiro de um príncipe com poderes de rei;

príncipe aburguesado, porcalhão, os gestos moles, os dedos quase

sempre melados de molho de galinha, mas trazendo consigo a coroa;

trazendo a rainha, a corte, fidalgos para lhe beijarem a mão

gordurosa mas prudente, soldados para desfilarem em dia de festa

diante de seu palácio, ministros estrangeiros, físicos, maestros para

lhe tocarem música de igreja, palmeiras-imperiais a cuja sombra

cresceriam as primeiras escolas superiores, a primeira biblioteca, o

primeiro banco; a simples presença de um monarca em terra tão

republicanizada como o Brasil, com suas rochelas de insubordinação,


seus senhores de engenho, seus mineiros e seus paulistas que

desobedeciam o rei distante, que desrespeitavam, prendiam e até

expulsavam representantes de Sua Majestade (como os senhores de

Pernambuco com o Xumbergas); que já tinham tentado se estabelecer

em repúblicas; a simples presença de um monarca em terra tão

antimonárquica nas suas tendências para autonomias regionais e até

feudais, veio modificar a fisionomia da sociedade colonial; alterá-la

nos seus traços mais característicos.” (op. cit., pp. 105-106)

Note-se como há uma divisão clara de tom entre a frase repetidamente

interrompida “a (simples) presença de um monarca” (ou “príncipe com poderes de rei”)

“em terra tão antimonárquica” (ou “republicanizada”) “veio modificar a fisionomia da

sociedade colonial” – uma reiteração do processo histórico a ser descrito – e os demais

trechos, em que geralmente se observam justamente as características das descrições

entre travessões do primeiro parágrafo – frases nominais, paralelismos, adjetivações,

ritmo, estereótipo – à exceção, evidente, da reiteração final. Os retratos construídos nos

trechos intercalados não são apenas visuais. Há uma imagem tátil nos beijos na mão

engordurada de D. João VI, um misto de visual e tátil nos seus “gestos moles”, uma

sonora na música de igreja, uma gustativa no doce da citação anterior, e as olfativas

ainda aparecerão em outros trechos da obra7. Essa amplitude sensorial, aparentemente

despreocupada com a divisão entre significativo e irrelevante, que parece interessada

justamente no espaço privado de que uma análise mais pudica desviaria, está no centro

do que se chama a vividez sensorial (ou “imagismo”) dos retratos do autor.

MATERIAL E MÉTODO

Não se pretende, a princípio, fazer uma análise estilística dessa dimensão de

cada parágrafo do texto de Freyre. Assim como esses dois parágrafos foram
7Ver, por exemplo, FREYRE, op. cit., p. 320.
selecionados por sua posição inicial em Sobrados e Mucambos, representando a

primeira impressão que seu estilo desperta no leitor, uma seleção ampla, mas não

exaustiva, de trechos representativos de cada capítulo das duas obras principais de

Freyre será comentada em sequência ao longo do trabalho de mestrado a ser

desenvolvido.

Sobre um trabalho interpretativo em estudos freyreanos como este recai o peso

de uma tradição crítica já bastante desenvolvida, apenas resumida na introdução. A

novidade estaria, já dissemos, na leitura cerrada de viés estilístico, o que sugere um foco

no aspecto textual, em oposição ao contextual. É impossível desprezar, porém, o fato de

que qualquer texto não existe “num cosmos ideal de poemas idealmente iguais” (SAID,

1983, p. 53, tradução sempre minha), como teorias da crítica anteriores parecem propor

(FRYE, 2014, pp.138-142), em especial no caso da crítica estilística, que tem entre seus

notáveis praticantes nomes como Spitzer e Auerbach. Parafraseando Said, são

demasiado numerosas as circunstâncias (ideológicas, formais, históricas) que inserem o

texto no mundo, mesmo que ele possa ser considerado também um objeto silente com

suas próprias melodias não ouvidas (op. cit., pp. 49-50), o que é válido para o texto de

Freyre, não só, mas também para o trabalho de crítica estilística sobre o autor (idem, pp.

50-53), que dialoga de maneira dinâmica com leituras concorrentes do mesmo texto

desde o início.

Assim, o recorte e a análise do objeto fundam-se na consciência da abertura do

texto de Freyre ao mundo de dois lados, mas com foco direcionado a um deles. Em

primeiro lugar, como se viu, trata-se de interpretação do Brasil que seria fundamental na

construção de uma visão hegemônica da cultura brasileira. Ao mesmo tempo, em

segundo, o traço de oralidade na sua linguagem representa uma abertura do literário ao

cotidiano, na visão estética típica das vanguardas; a “modernidade” da linguagem


notada por tantos autores. Nos termos de Said, são dois movimentos na mesma direção,

mas em sentidos opostos, a que a leitura crítica deve estar atenta; mas aqui com ênfase,

dado o viés estilístico, no segundo: do texto para o mundo (o impacto da obra e da

pessoa de Freyre) e do mundo para o texto (sua representação da oralidade, das figuras

estereotípicas e de outros elementos da realidade cotidiana conforme Freyre a recorta,

listados ao final da seção).

Trato Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos como as duas obras

principais de Freyre com base no impacto da primeira obra, descrito na introdução

bibliográfica, e no reconhecimento da segunda como a mais bem executada obra de

Freyre (SOUZA, 2002, p. 1063; MERQUIOR, 1987, p. 347; LINS, 1943:1985, p. 254),

o que é pertinente ao nosso interesse estilístico. Outras obras do autor não receberam tal

tratamento. Portanto, para evitar uma abertura de foco que impeça a concentração no

detalhe necessária a uma leitura cerrada, não as pretendemos incluir neste estudo,

mesmo quando tematicamente próximas às estudadas, como é o caso de Ordem e

Progresso. Aspectos a serem analisados, conforme demonstrado acima, incluem a

sintaxe, figuras de linguagem, níveis de linguagem (de coloquial a formal), a

metalinguagem, a fundamentação específica de generalizações, a caracterização de

personagens por meio de estereótipos e arquétipos, a reiteração de temas e a estrutura

composicional do texto, mas podem não se limitar a estes.

FORMA DE ANÁLISE DOS RESULTADOS ESPERADOS

A imagem do Brasil patriarcal de Gilberto Freyre, por sua própria natureza

ambígua, já provocou fortes embates críticos entre seus admiradores e proponentes de

narrativas alternativas sobre o país, como se viu. Esses embates, por sua vez, legaram-
nos, com o desenrolar da história da academia brasileira, pesquisas aprofundadas sobre

e verificabilidade insuficiente de suas teses nas áreas da História e das Ciências Sociais.

Correspondem àqueles embates críticos, no campo da teoria literária, os comentários ao

estilo do autor feitos por seus primeiros resenhistas e outros, frequentemente não menos

genéricos, feitos por críticos posteriores. Mas no espaço em que deveriam estar as

pesquisas aprofundadas a que estes comentários levariam, permanece uma lacuna,

apenas parcialmente preenchida pelo estudo ocasional no escopo reduzido de um

capítulo ou artigo acadêmico. Isso chega a ser surpreendente, considerando-se a

insistência do autor em se tratar como escritor, e o uso do grandiloquente descritor

“estilista” ou até mesmo “poeta” para caracterizá-lo por parte de críticos de autoridade

nos estudos freyreanos (PALLARES-BURKE, 2005, p. 23; BENZAQUEN, 1994, p.

186; FONSECA, 2002, p. 876; BASTOS, 2006, p. 46.)

O que se espera é que o pretendido trabalho de mestrado venha começar a

preencher essa lacuna por meio da leitura cerrada de Casa-Grande & Senzala e

Sobrados e Mucambos. Um mergulho de tamanha profundidade no estilo de Freyre

deve encontrar tanto as linhas mestras que orientam a estética de sua escrita, para

cotejá-las com as observações aqui mencionadas na introdução bibliográfica; como

descobrir novas tendências, excepcionais ou não, que podem iluminar as interpretações

já consolidadas de sua obra sob uma nova perspectiva. Na ocorrência dessas

descobertas, será levantada bibliografia teórica de estudos estilísticos em língua

portuguesa. Semelhantemente, no caso de comparação do estilo de Freyre com o de

autor estrangeiro, prevê-se aprofundamento na do debate crítico da estilística desse

autor. Ressalte-se, portanto, que essa leitura da obra de Freyre será realizada lado a lado

com as observações anteriores e já consagradas sobre sua escrita, como cabe a um


estudo inicial de autor já tão estudado, sem qualquer obrigação de se alinhar a essas

observações.8

PLANO DE TRABALHO E CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO

Postos os objetivos e procedimentos nestes termos, preveem-se de princípio os

seguintes prazos para execução do projeto:

 Levantamento de bibliografia metodológica de estudos estilísticos em literatura

de língua portuguesa; leitura da bibliografia selecionada; cumprimento de

disciplinas da grade curricular: fim do primeiro semestre letivo de 2017

(julho).

 Leitura cerrada de Casa-Grande & Senzala e Sobrados e mucambos; anotações

iniciais sobre o estilo; levantamento de bibliografia considerados os temas

descobertos na leitura inicial; cumprimento de disciplinas da grade curricular:

fim do segundo semestre letivo de 2017.

 Leitura da bibliografia selecionada; redação inicial: fim do primeiro semestre

letivo de 2018.

 Qualificação da redação inicial; correções; defesa da dissertação: fim do

segundo semestre letivo de 2018.

BIBLIOGRAFIA:

FREYRE, G. Casa-grande & senzala. Edição crítica: GIUCCI, G.; LARRETA, E. R.;

FONSECA, E. N. da (coordenadores). Madri: ALLCA XX, 2002.

8É possível que nos sirvamos de obras de referência como a série Gramática do português falado, de
Ataliba Teixeira de Castilho, e a coleção Gramática do português culto falado no Brasil da Unicamp para
análise de resultados.
__________. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e

desenvolvimento do urbano. 15ª ed. rev. São Paulo: Global, 2004.

BASTOS, E. R. Gilberto Freyre: um escritor ibérico. In: Casa-grande & senzala.

Edição crítica: GIUCCI, G. et al. (coordenadores). Madri: ALLCA XX, 2002, pp. 797-

820.

____________. Gilberto Freyre e o pensamento hispânico: entre Dom Quixote e Afonso

El Bueno. Bauru: EDUSC-ANPOCS, 2003.

____________. As criaturas de Prometeu: Gilberto Freyre e a formação da sociedade

brasileira. São Paulo: Global, 2006.

BENZAQUEN de Araújo, R. A. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a Obra de

Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: ed. 34, 1994.

FONSECA, E. N. da. Casa-grande & senzala como obra literária In: Casa-grande &

senzala. Edição crítica: GIUCCI, G. et al. (coordenadores). Madri: ALLCA XX, 2002,

pp. 870-876.

FRYE, N. Anatomia da Crítica: quatro ensaios. São Paulo: Realizações, 2014.

GRIECO, A. Casa-grande & senzala. In: Casa-grande e senzala e a crítica brasileira

de 1933 a 1944. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1985, pp. 61-74. Obra

consultada no Acervo Alexandre Eulálio da Biblioteca Central Cesar Lattes, Unicamp.

LEITE, D. M. O caráter nacional brasileiro: História de uma ideologia. 7ª ed. rev.. São

Paulo: Editora UNESP, 2007. Edição Kindle.

LIMA, L. C. Da existência precária: o sistema intelectual no Brasil. In: Dispersa

demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981.


LINS, A. Casa-grande & senzala. In: Casa-grande e senzala e a crítica brasileira de

1933 a 1944. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1985, pp. 251-257.

MERQUIOR, J. G. Gilberto e depois. In: Crítica 1964-1989. Ensaios sobre Arte e

Literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

________. Na casa grande dos oitenta. In: As ideias e as formas, Rio de Janeiro, Nova

Fronteira, 1981, pp. 270-276.

MONTEIRO, P. M. Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do

Brasil. São Paulo: Hucitec, 2015. Edição Kindle.

MOTA, C. G. Cristalização de uma ideologia: a “Cultura Brasileira” – Segundo

Gilberto Freyre. In: Ideologia da cultura brasileira (1933-1974): pontos de partida

para uma revisão histórica. 9. ed. São Paulo, Ática, 1994.

PALLARES-BURKE, M. L. G. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo:

Editora da UNESP, 2005. Edição Kindle.

______________. O caminho para a casa-grande: Gilberto Freyre e suas leituras

inglesas. In: Casa-grande & senzala. Edição crítica: GIUCCI, G. et al. (coordenadores).

Madri: ALLCA XX, 2002, pp. 821-848.

SAID, E. The World, the Text and the Critic. Cambridge: Harvard University Press,

1983.

SOUZA, J. Gilberto Freyre e a singularidade da cultura brasileira. In: Casa-grande &

senzala. Edição crítica: GIUCCI, G. et al. (coordenadores). Madri: ALLCA XX, 2002,

pp. 1059-1073.

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