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Estado do Mundo 2005

SEGURANÇA REDEFINIDA

ESTADO DO MUNDO
2005

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Estado do Mundo 2005
SEGURANÇA REDEFINIDA

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Estado do Mundo 2005
SEGURANÇA REDEFINIDA
CAPÍTULO 1

Segurança Redefinida

Michael Renner

Pouco mais de uma década após o término ambientais e políticas – forças que, conjun-
da guerra fria ter prenunciado uma nova era tamente, criam um mundo tumultuado e
de paz, temores quanto à segurança estão de instável. Dentre elas, destacam-se pobreza
volta ao topo da agenda mundial. É palpável endêmica, transições econômicas convulsivas
uma sensação mais aguda de insegurança, que causam desigualdade crescente e alto
refletida tanto nas manchetes como em desemprego, crime internacional, disse-
pesquisas de opinião em todo o mundo. Os minação de armamentos mortais, movi-
ataques terroristas de 11 de setembro nos mentos populacionais em grande escala,
Estados Unidos foram, sem dúvida, um desastres naturais recorrentes, colapso de
evento pivotal. Ataques subseqüentes em ecossistemas, doenças contagiosas novas e
outros países, da Espanha ao Quênia, da ressurgentes, e o incremento de disputas sobre
Arábia Saudita à Rússia e do Paquistão à terras e outros recursos naturais, particu-
Indonésia reforçaram a sensação generalizada larmente o petróleo. Estes “problemas sem
de vulnerabilidade. E o caos crescente no passaporte” deverão se agravar nos anos
Iraque após a ocupação liderada pelos Estados futuros. Entretanto, diferentemente de ameaças
Unidos nutre a inquietação sobre as reper- tradicionais de algum adversário, são melhor
cussões de um Oriente Médio desestabilizado. entendidas como riscos e vulnerabilidades
Mas o terrorismo é apenas sintomático de compartilhadas. Não podem ser resolvidas
um conjunto muito mais amplo de temores através de aumentos em gastos militares ou
que geraram uma nova era de ansiedade. Atos mobilização de tropas. Também não podem
de terror e as conseqüentes reações são como ser contidas com fechamento de fronteiras ou
pontos de exclamação num mesclado nocivo manutenção do status quo num mundo
de profundas pressões socioeconômicas, extremamente desigual.1
Unidades de medidas utilizadas neste livro são métricas, salvo quando a prática comum recomende em contrário.

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Numa pesquisa da Gallup International, aumento de redes internacionais de crime e


realizada em 2003, que consultou cerca de terror. Todavia, algumas velhas ameaças ainda
43.000 pessoas em 51 nações, os que persistem. Por exemplo, o avanço em direção
classificaram a segurança internacional como ao desarmamento nuclear estancou, enquanto
“fraca” somaram o dobro daqueles que assoma o perigo de armas nucleares e outras
responderam “boa”. Quase a metade dos altamente letais se disseminarem entre um
entrevistados considerou que a próxima número crescente de nações – ou caírem em
geração viverá num mundo menos seguro, mãos de grupos extremistas.
enquanto apenas 25% demonstraram Os desafios que o mundo enfrenta são
expectativa de melhoria. Igualmente, uma exacerbados por instituições públicas fracas e
pesquisa de 2.600 “líderes de opinião”, corruptas, há falta de recurso à justiça e meios
realizada em 2003 em 48 países, constatou um inconstitucionais ou irregulares de mudanças
amplo sentimento de pessimismo, com pelo políticas, como golpes de Estado e insur-
menos dois terços em cada região mundial se reições. E são acentuados por um processo
autodeclarando “insatisfeitos” com a situação desigual de globalização que reúne nações e
global atual. E numa série de consultas comunidades de formas freqüentemente
patrocinadas pelo Banco Mundial, envolvendo imprevisíveis, implicando riscos efetivos para
cerca do 20.000 pessoas pobres em 23 países muitos e permitindo que grupos extremistas
em desenvolvimento, uma grande parcela atuem com maior facilidade do que no
declarou estar em situação pior do que antes, passado.3
dispor de menores oportunidades econômicas O confronto Leste-Oeste, que obstaculizou
e viver sob maior insegurança do que no o incremento de cooperação, cedeu lugar a
passado.2 uma relação Norte-Sul mais vexatória, mar-
cada por enormes desequilíbrios de meios de
A necessidade de cooperação internacional vida, riqueza e poder. A única superpotência
aumentou neste novo século, mesmo após remanescente mantém uma relação cada vez
mais inquietante e contenciosa com o resto
o surgimento de novas cisões e divisões.
do mundo. E as mudanças estruturais e
inovações cruciais necessárias para gerarem
Num contraste gritante com o equilíbrio uma governança global efetiva – propostas
bipolar de forças durante a guerra fria, de reforma do Conselho de Segurança da
envolvendo arsenais nucleares e ideologias ONU ou criação de um órgão ambiental mais
fundamentais concorrentes, os desafios atuais forte na ONU – sucumbiram à paralisia
de segurança tendem a ser mais difusos, política.
menos previsíveis e mais multidimensionais. A necessidade de cooperação internacional
Temores de um confronto violento entre duas se tornou mais forte neste novo século, mesmo
superpotências cederam lugar a receios quanto após o surgimento de novas cisões e divisões,
a guerras locais e regionais travadas provocadas em parte pela crise do Iraque.
predominantemente com armas pequenas, Entretanto, Fred Halliday, Professor de Rela-
volatilidade pós-conflitos, instabilidade ções Internacionais da Escola de Economia e
emanada de governos fracos e fracassados e Ciências Políticas de Londres, alerta que “o

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mundo parece cada vez mais distante da segurança. Isto é verdade para nações adver-
solução das questões fundamentais que sárias possuidoras de armas de tamanho poder
enfrenta, e cada vez mais profundamente de destruição que nenhuma defesa é possível.
imerso numa fase de confrontamento, É verdade em guerras civis, onde a franca
violência e disparidades culturais exageradas”4. disponibilidade de ar mas fortalece os
Políticas que buscam segurança priori- implacáveis mas não proporciona defesa aos
tariamente por meios militares e não lidam civis. E foi verdade no dia 11 de setembro,
com fatores subjacentes de instabilidade, irão quando um grupo obstinado de terroristas
provavelmente provocar uma espiral de atacou com impunidade o país mais militar-
violência e instabilidade, e possivelmente causar mente poderoso do mundo.
o colapso de regras e normas internacionais. A segurança efetiva num mundo glo-
Políticas derivadas de uma nova conscien- balizante não poderá ser proporcionada em
tização de segurança global podem evitar esses bases puramente nacionais. Será necessário
perigos e promover alternativas construtivas. uma abordagem multilateral e até mesmo glo-
Uma abordagem firme e abrangente à criação bal para lidar eficazmente com a profusão de
de um mundo mais estável implica medidas desafios transfronteiras.
destinadas a impedir o declínio ambiental, O foco tradicional na segurança do
romper os grilhões da pobreza e reverter a Estado (ou regime) é inadequado e precisa
tendência à desigualdade e insegurança social abranger a segurança e bem-estar de seus
crescentes que geram desespero e extremismo. habitantes. Se indivíduos e comunidades estão
Uma mudança fundamental de prioridades é inseguros, a própria segurança nacional pode
essencial para a realização dessas tarefas. Em se tornar extremamente frágil. A governança
última análise, a segurança tem que ser democrática e uma sociedade civil vibrante
universal. poderão vir a se tornar mais imperativas para
a segurança do que um exército.
As Raízes da Insegurança Dimensões não-militares têm grande
influência sobre segurança e estabilidade.
A conscientização das ameaças e desafios Nações em todo o mundo, mas particular-
que não podem ser resolvidos dentro do mente as nações e comunidades mais fracas,
arcabouço tradicional de segurança nacional, confrontam uma profusão de pressões.
levou uma vasta gama de organizações não Enfrentam uma combinação debilitante de
governamentais (ONGs), acadêmicos e outros competição crescente por recursos, colapso
a apurarem e redefinirem nosso conceito de ambiental agudo, ressurgimento de doenças
segurança, ao longo das últimas duas décadas. infecciosas, pobreza e crescente disparidade
Qual o objeto de segurança? Qual a natureza de renda, pressões demográficas, desemprego
das ameaças? Quem proporcionará segu- e incerteza de meios de vida.5
rança? E por que meios? Estas questões e As pressões diante de sociedades e povos
discussões ganharam ímpeto após o fim da de todo o mundo não geram, automatica-
guerra fria. E, hoje, as conclusões fundamentais mente, ou necessariamente, violência. Podem,
a que levaram são mais relevantes ainda: porém, se traduzir numa dinâmica política que
Armas não proporcionam necessariamente leva a uma crescente polarização e radica-

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lização. As piores conseqüências são mais pro- combinações capazes de causar resultados
váveis, onde insatisfações se agravam, onde desestabilizadores.7
populações sofrem com desemprego em Os recursos naturais estão no centro de
massa ou pobreza crônica, onde instituições muitos conflitos. Através da história da
são fracas ou corruptas, onde armas estão humanidade, grandes potências têm
livremente disponibilizadas e onde humilhação repetidamente intervindo em países ricos em
ou desespero político frente à desesperança recursos, seja militarmente ou por outros
por um futuro melhor pode direcionar as meios, a fim de controlarem suas riquezas na-
pessoas para movimentos extremistas. turais. Freqüentemente, o resultado tem sido
A insegurança pode se manifestar em for- instabilidade política duradoura. Contra o
mas não necessariamente violentas. A “prova pano de fundo da demanda cada vez mais
dos nove” é se o bem-estar e integridade da intensa de petróleo, voltam a se intensificar
sociedade estão tão comprometidos a ponto competições geopolíticas por acesso
de levarem, possivelmente, a períodos preferencial entre os grandes importadores.
prolongados de instabilidade e sofrimento em (Ver Capítulo 6)
massa. Medidas pelo número de vítimas e As vantagens e desvantagens de projetos
deslocamento em massa causados, as de exploração petrolífera, mineração e extra-
repercussões da pobreza intensa e outros ção de madeira freqüentemente se distribuem
fracassos sociais tendem a surgir de forma desigualmente, provocando disputas com
mais ampla do que as irrupções de conflito povos indígenas por todo o planeta. Riquezas
armado. Enquanto cerca de 300.000 pessoas naturais também têm fomentado uma série
morreram em conflitos armados em 2000, de guerras civis, com governos, rebeldes e
por exemplo, outros tantos morrem a cada déspotas na América Latina, África e Ásia,
mês, devido à água contaminada ou à ausência disputando recursos como petróleo, metais e
de saneamento básico.6 minerais, pedras preciosas e madeira. A receita
Em termos abstratos, questões como proveniente destes bens ajuda a pagar pelas
doenças infecciosas, desemprego ou mudança armas e sustentar guerras de conseqüências
climática poderão ou não representar desafios devastadoras para os civis presos no fogo
à segurança. Será, porém, que cruzam limiares cruzado; lutas e saques rompem infra-
de grandeza ou provocam uma dinâmica que estruturas civis, destroem safras e impedem a
os transformam em algo mais poderoso? Por prestação de serviços vitais.8
si, ou combinados a outros fatores, podem Disputas também surgem sobre acesso a
facilmente criar condições que põem em recursos naturais renováveis como água, terras
dúvida o tecido básico de comunidades e cultiváveis, florestas e pesqueiros. Isto ocorre
nações. Como pergunta Alyson Bailes, Diretor particularmente entre grupos – como lavra-
do Stockholm International Peace Research Institute: dores, pastores nômades, pecuaristas e extra-
“De que ‘choques’ pode uma sociedade se tivistas – que dependem diretamente da saúde
recuperar facilmente, e quais os que ameaçam e produtividade da base de recursos, mas cujas
minar toda sua viabilidade?” O esforço, então, necessidades são incompatíveis. Essas tensões
será incrementar nossa conscientização das se intensificam com a crescente exaustão dos
interações e dinâmica entre esses fatores e as recursos naturais e aumento da demanda

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gerado por pressões populacionais, e um prevenção de conflito e pacificação. (Ver


crescente consumo per capita. A violência Capítulo 8)
regional em países como Brasil, Costa do Uma oferta confiável de alimentos é um
Marfim, Haiti, México, Nigéria, Paquistão, dos determinantes mais fundamentais do quão
Filipinas e Ruanda é, em parte, devida a esses seguro ou inseguro está um povo. A segu-
fatores.9 rança alimentar está na convergência da
A água é o recurso mais precioso. Tanto pobreza, distribuição de terras, disponibilidade
sua qualidade quanto quantidade são cruciais hídrica e degradação ambiental. Porém, a
para as necessidades fundamentais humanas guerra e colapso social também desempenham
de alimentação e saúde. Dado o crescimento um papel importante em alguns casos. E a
populacional, quase 3 bilhões de pessoas – proliferação da agricultura industrial e pro-
40% da população mundial projetada – moção de monoculturas vêm gerando preo-
estarão vivendo em países sob estresse hídrico cupação crescente quanto à segurança e quali-
até 2015. Embora não haja guerras entre dade da oferta alimentar. (Ver Capítulo 4)
nações pela água, como alguns previram, dis- Cerca de 1,4 bilhão de pessoas, a grande
putas e choques locais deverão proliferar. (Ver maioria em países em desenvolvimento, se
Capítulo 5)10 vêem diante da fragilidade ambiental. Destas,
A mudança climática certamente aguçará mais de 500 milhões de pessoas vivem em
uma vasta gama de desafios ambientais, regiões áridas, mais de 400 milhões, a muito
intensificando, assim, muitas dessas disputas. custo, extraem um parco sustento de solos de
Secas, enchentes e tempestades mais freqüentes má qualidade, cerca de 200 milhões de
e intensas destruirão lavouras, solaparão a pequenos produtores e sem-terras são
habitabilidade de algumas regiões, aumentarão forçados a cultivarem solos extremamente
movimentos populacionais involuntários e íngremes e 130 milhões vivem em áreas des-
testarão seriamente instituições nacionais e matadas de florestas tropicais e outros ecos-
internacionais. sistemas florestais frágeis. A produtividade do
Diferentes grupos sociais e comunidades solo nessas áreas tende a se exaurir com relativa
experienciam de forma desigual os efeitos da rapidez, forçando as pessoas a se deslocarem
exaustão de recursos e degradação ambiental. em busca de oportunidades em outros lugares,
Estas divergências podem reforçar os dese- às vezes em cidades distantes ou competindo
quilíbrios sociais e econômicos ou aprofundar com outras populações rurais.11
as divisões étnicas e políticas. Não está A Organização das Nações Unidas para
implícito que a competição por recursos escas- Alimento e Agricultura constatou que a fome
sos ou as repercussões da degradação ambiental – após ter caído gradativamente durante a pri-
levam a conflito armado. Porém, freqüen- meira metade dos anos 90 – cresceu no final
temente, agravam privações e dificuldades, da última década, afligindo hoje cerca de 800
acentuam o desespero daqueles mais afetados milhões de pessoas em todo o mundo. A
e reforçam a percepção que disputas têm oferta inadequada de alimentos torna as
“soma-zero”. O desafio é evitar esta pessoas mais suscetíveis a doenças. Mas há,
polarização e, ao invés, transformar os também, um efeito inverso. A epidemia de
problemas ambientais em oportunidades de AIDS causa um impacto devastador na pro-

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dução agrícola e segurança alimentar, pois tornando órfãs um número alarmante de


incapacita e mata jovens adultos na sua idade crianças. Professores em Zâmbia, por exem-
mais produtiva. Projeções indicam que a AIDS plo, estão morrendo num ritmo maior do que
dizimará um quinto, ou mais, da mão-de-obra o país pode treinar substitutos. A doença
agrícola na maioria dos países da África incapacita as sociedades em todos os níveis,
meridional até 2020, acentuando o risco da minando a resiliência geral de uma nação e
fome.12 sua capacidade de governar e prover as
A carga das doenças pode, em certos casos, necessidades humanas básicas. Não é difícil
ser suficientemente pesada, podendo solapar concluir que o impacto sobre a estabilidade
economias e ameaçar a estabilidade social. política será profundo nos anos futuros.14
Embora os pobres sejam os mais vulneráveis, Uma combinação de exaustão de recursos,
as sociedades em todo o planeta se vêem hoje destruição de ecossistemas, crescimento
frente ao ressurgimento de doenças infecciosas. populacional e marginalização econômica das
(Ver Capítulo 3). Patogenias cruzam fronteiras populações pobres abre caminho para
com uma facilidade cada vez maior, devido desastres “desnaturais” mais freqüentes e
ao aumento crescente de viagens e negócios devastadores – distúrbios naturais agravados
internacionais, migração e o tumulto social pela ação humana. Três vezes mais pessoas –
inerente a guerras e movimentos de refugiados. 250 milhões – foram afetadas por tais eventos,
em 2003, do que em 1990. O desmatamento
A atividade madeireira, construção de estradas
deixou o Haiti extremamente vulnerável a
e barragens, e a mudança climática facilitam a
furacões devastadores que, no final de 2004,
disseminação de doenças como malária,
causaram deslizamentos maciços e inundações
dengue e esquistossomose em áreas outrora
repentinas. O ritmo deverá acelerar, na medida
imunes, ou expõem as pessoas a novos vetores
em que a mudança climática se traduza em
de doenças.13
tempestades, enchentes, ondas de calor e
estiagens mais intensas. Além de desastres
Através da história, as grandes potências
repentinos, há também os “primeiros
têm, repetidamente, intervindo em países sintomas” da degradação de ecossistemas que,
ricos em recursos, a fim de controlarem em alguns casos, é extrema o suficiente para
suas riquezas naturais. solapar a habitabilidade de uma determinada
região. Isto é mais calamitoso para os pobres,
Nos países em desenvolvimento mais uma vez que tendem a estar mais diretamente
pobres, as doenças infecciosas estão debi- expostos, têm proteção inadequada e muito
litando e empobrecendo famílias e comu- pouco em termos de recursos e meios para
nidades, aprofundando a pobreza e aumen- lidarem com as conseqüências.15
tando as desigualdades, reduzindo drasti-
camente a expectativa de vida e onerando O mais preocupante é o imenso caudal
gravemente a saúde econômica em geral. A de jovens desempregados em muitos
AIDS não só dizima agricultores, mas atinge países em desenvolvimento.
muitos outros no auge da idade produtiva –
incluindo militares, professores, profissionais A opção não é outra senão buscar um novo
da saúde e outros profissionais – e está lar. Embora não existam dados confiáveis para

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o número desses “refugiados ambientais”, é Quando um grande número de jovens se


evidente que muitos milhões são afetados e sente frustrado em sua busca por status e
que suas fileiras deverão aumentar drasti- meios de vida, pode se tornar uma força deses-
camente nos anos futuros. A desertificação, tabilizadora. Suas perspectivas incertas podem
por exemplo, coloca cerca de 135 milhões de causar um comportamento criminoso, nutrir
pessoas, mundialmente, sob ameaça de serem descontentamento que pode irromper em
expulsos de suas terras. Em fevereiro de 2004, violência urbana ou fomentar extremismo
o Ministro do Meio Ambiente do Canadá, político. Para isto ocorrer, dependerá de uma
David Anderson, declarou que o “aque- variedade de fatores – dentre outros, a ex-
cimento global representa uma ameaça de tensão em que os sistemas políticos estejam
longo prazo à humanidade maior do que o abertos à dissensão e aptos a mudanças, o
terrorismo, por forçar centenas de milhões de senso de identidade das pessoas e engajamento
pessoas a abandonarem seus lares e provocar cívico, e o papel da educação. A Diretora Exe-
catástrofe econômica”. Os deslocados podem cutiva do programa Habitat das Nações Uni-
não ser bem-recebidos em outras áreas, pro- das, Anna Tibaijuka, alertou que os cortiços
vocando tensões no acesso à terra, empregos urbanos podem ser incubadores de extremis-
e serviços sociais.16 mo, caso os governos não saibam lidar com a
A falta de emprego, perspectivas econô- pobreza e o desespero que os envolvem.18
Particularmente, caso perdurem insatis-
micas incertas e o acelerado crescimento
fações políticas, os descontentes podem ser
populacional representam uma mistura poten-
facilmente recrutados por grupos de
cialmente volátil, até mesmo na ausência de
insurgentes, milícias ou pelo crime organizado
populações deslocadas (ver Capítulo 2). Um
– como a experiência em países como Ruanda,
relatório de 2004, da Organização Inter-
Kosovo e Timor Leste demonstrou nos últi-
nacional do Trabalho, constatou que três quar- mos anos. Entre os palestinos, o apoio à violên-
tos dos trabalhadores mundiais vivem sob cia política floresceu numa combinação de
insegurança econômica. O mais preocupante ocupação cruel, colapso de liderança política
é o imenso caudal de jovens desempregados e o desemprego, que ocorreu numa média de
em muitos países em desenvolvimento, 35% em 2003. Uma sociedade culta e outrora
particularmente onde os jovens entre 15 e 29 relativamente afluente viu sua taxa de pobreza
anos representam 40%, ou mais, da população disparar de 20 para 50%, entre 1999 e 2003.
total. As Nações Unidas projetam que, até Uma dinâmica semelhante ocorre hoje no Ira-
2005, cerca de 138 nações confrontarão esta que, onde a taxa oficial de desemprego é de 28%
“inchaço jovem”. O desemprego na juventude e o subemprego registra 22%, embora algumas
está disparando para níveis recordes, com as estimativas citem números bem maiores.19
taxas mais altas no Oriente Médio e África do
Norte (26%) e na África subsaariana (21%). Bairros Ruins e
caudal Pelo menos 60 milhões de pessoas entre 15 e
uitos 24 anos não encontram emprego, e o dobro Vulnerabilidades
– aproximadamente 130 milhões – está entre Compartilhadas
os 550 milhões de pobres mundiais que não
podem retirar suas famílias da faixa de Problemas sociais, econômicos e ambientais
pobreza.17 graves – particularmente se mesclados a

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insatisfações políticas crescentes – podem desviados para redes paralelas que beneficiam
radicalizar sociedades e até mesmo causar apenas uma pequena elite. Divisões étnicas,
colapso de governos. Disfuncionais, frágeis e tribais e de classe são exploradas por líderes
propensos à violência, os assim chamados oportunistas. E persistem as pressões popu-
governos fracassados fomentam instabilidade lacionais e sobre recursos naturais.21
e desespero crônico, onde déspotas, redes Esses fracassos dão alento a forças
criminosas ou grupos extremistas têm condi- extremistas. No Iraque, por exemplo, a
ções de explorar um vácuo de governança e continuação de um estado de guerra e severas
legitimidade. sanções internacionais, entre 1990 e 2003,
Antes de 11 de setembro, a pobreza, insta- causaram o virtual desaparecimento da classe
bilidade e guerras nos países pobres eram média e o colapso de um sistema educacional
amplamente consideradas como marginais aos secular, resultando em desesperança e
interesses e bem-estar dos ricos. Mas, após os analfabetismo generalizado, o que facilitou o
ataques, ficou claro que as condições de desenvolvimento de forças religiosas funda-
perturbação política e miséria social não mentalistas.22
podem ficar eternamente restritas à periferia. Porém, o ter mo “nação fracassada”
“Se é que aprendemos alguma coisa com 11 esconde uma verdade inconveniente: fatores
de setembro,” escreveu o colunista do New externos são igualmente importantes. Thomas
York Times, Thomas Friedman, “é que, se não Friedman poderia ter escrito mais apropria-
formos a um bairro ruim, ele virá até nós.” O damente: “Se você ajudar a criar um bairro
Afeganistão, desmantelado por lutas ruim, ele acabará por atemorizá-lo.” O regime
geopolíticas pelo poder e depois esquecido atual de comércio e investimentos globais
após o término da guerra fria, tornou-se um atende, principalmente, aos interesses de cerca
santuário ideal para a al Qaeda, abrigada pelo de 20% da humanidade que reivindica 80%
regime Talibã. Há também evidência de que dos recursos do planeta. Tende a marginalizar
agentes da al Qaeda puderam utilizar a Libéria os pobres, aguçar as desigualdades sociais e
como santuário, entre 1998 e 2002; juntamente econômicas e debilitar a capacidade do Estado
com o déspota-tornado-presidente Charles de prover serviços necessários e enfrentar os
Taylor, a organização esteve aparentemente desafios.23
envolvida no tráfico de diamantes da vizinha Outro fator crucial é a intervenção externa
Serra Leoa.20 que semeia desordem. No Afeganistão, por
Por que nações fracassam? Há, claramente, exemplo, os Estados Unidos, Paquistão e
muitas razões internas para isto, e ocorre em Arábia Saudita recrutaram combatentes
muitas partes do mundo, do Haiti à Libéria e mujahedins nos anos 80, para forçar a retirada
de Ruanda ao Afeganistão. Corrupção e das forças soviéticas de ocupação. Esta luta e
clientelismo abundam. Golpes de Estado e a feroz guerra civil que se seguiu entre os
regimes ditatoriais eclipsam regimes grupos vitoriosos da resistência devastaram o
democráticos e provocam ciclos de repressão país. O desfazimento da sociedade afegã
e distúrbios. Estruturas de “Estado fantasma” per mitiu que elementos cruéis fossem
deliberadamente enfraquecem instituições vitoriosos. O Talibã foi o produto desta longa
públicas, enquanto receitas e serviços são decaída na impunidade e colapso social, e a

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rede al Qaeda de Osama bin Laden nasceu do haviam falhado perante seu próprio povo. Ou
movimento de recrutamento anti-soviético. O seja, mesmo que nações fracassadas específicas
apoio aos mujahedins, composto de alguns dos nunca consigam fazer parte da agenda do
líderes mais violentos e extremistas, dentro de norte – se nunca forem taxadas como tal –,
um grande “jogo” de poder, parecia fazer ainda assim frustram seu próprio povo. O Pa-
sentido nos anos 80 sob uma ótica geopolítica quistão, por exemplo, pode se encaixar nesta
estreita. Porém, os ataques de 11 de setembro descrição, considerando sua pobreza enraizada,
causaram um fatídico efeito bumerangue à corrupção endêmica, escolas religiosas que
guerra por procuração afegã.24 mais doutrinam do que capacitam, e escassos
A Somália, freqüentemente citada como recursos orçamentários desviados para fins
uma nação fracassada, desintegrou-se, em militares e desenvolvimento de armas nu-
parte porque a militarização patrocinada, cleares, ao invés de atendimento às
primeiramente, pelos soviéticos e depois pelos necessidades básicas. A miséria que acompanha
Estados Unidos levou, no final dos anos 70, a colapsos nacionais precisa ser tratada em seu
uma guerra desastrosa com a Etiópia que próprio mérito – e não só porque os ricos e
deixou o país abarrotado de armas. O imenso poderosos identificaram essa condição como
descaso das necessidades civis abriu caminho ameaça a eles mesmos.
para uma revolta popular, a derrubada da O Norte e o Sul, ricos e pobres, tendem a
ditadura de Siad Barre e para a guerra civil. considerar os desafios à segurança de formas
Cerca de 500.000 armas caíram em mãos de bem diversas. Mas o Secretário Geral da ONU,
déspotas rivais que devastaram o país.25 Kofi Annan, alertou: “Vemos hoje, com uma
Alguns comentaristas insistiram em novas clareza perturbadora, que um mundo onde
intervenções militares, a fim de afastar vários milhões de pessoas sofrem opressão
problemas emanando de “sociedades brutal e miséria extrema nunca estará ple-
desordeiras.” Max Boot, do Conselho de namente seguro, mesmo para seus habitantes
Relações Exteriores dos Estados Unidos, mais privilegiados.” Annan instou o mundo
escreveu que “o Afeganistão e outras regiões em março de 2004 a afastar a idéia de que
atribuladas clamam pelo tipo de administração algumas ameaças, como o terrorismo e armas
externa esclarecida outrora conduzida por de destruição em massa, interessam apenas aos
ingleses autoconfiantes, vestidos em calças estilo países do hemisfério norte, enquanto ameaças
montaria e chapéu de explorador.” Mas, a como pobreza e esforços para assegurar as
infeliz história de “blowback” – as conse- necessidades básicas da existência humana só
qüências imprevistas de ações empreendidas dizem respeito ao sul. “Acho que necessitamos
por potências interventoras – indica que o de um entendimento global claro das ameaças
resultado provável será ciclos de violência ao e desafios que todos teremos que enfrentar,
invés de qualquer estabilidade duradoura.26 pois negligenciar qualquer um deles poderá
A descoberta de que nações fracassadas minar fatalmente nossos esforços no con-
podem representar uma ameaça maior à fronto de outros.”27
segurança não corresponde a uma realidade Superar as divisões que cada vez mais
complexa. Muito antes de esses casos surgirem separam comunidades, culturas e nações
nas telas de radar do hemisfério norte, já díspares e melhorar dramaticamente a coope-

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ração internacional é claramente uma tarefa Capítulo 7.) Avanços consideráveis foram
hercúlea. Países individuais têm poderes obtidos contra um tipo de ar ma dessa
imensamente divergentes, capacidades variadas categoria, as minas terrestres antipessoais. Essas
de enfrentar desafios e diferentes perspectivas armas indiscriminadas impõem ônus debi-
sobre as ações adequadas a serem adotadas. litantes nos sistemas de saúde pública,
Uma concepção compartilhada de segurança transformam terras férteis em áreas inúteis,
só poderá ser desenvolvida se as ligações entre paralisam a atividade econômica e obstruem
desafios diferentes forem reconhecidas e se os esforços de reconstrução pós-conflito. Um
houver uma melhor compreensão de que tratado pioneiro em 1997, proibindo minas
muitos deles são, efetivamente, riscos e terrestres antipessoais, levou à redução do uso
apresentam vulnerabilidades compartilhadas de minas, a uma queda dramática na produção
que requerem soluções conjuntas. e à quase paralisação de exportações, à
destruição de mais de 50 milhões de minas
Controle de Armas, estocadas e à redução significativa no número
Desativação de Conflitos de vítimas.29
Numa outra importante conquista regu-
ladora, muitas nações aderiram a um novo
A obtenção de segurança compartilhada
Tribunal Criminal Internacional, criado com
dependerá, em parte, do enfrentamento ao
o objetivo de servir como instrumento para
desafio tradicional de segurança de limitar a
trazer à justiça os perpetradores de genocídio,
disseminação de armas e resolver conflitos
crimes de guerra e outros atos de impunidade.
antes de se tornarem violentos. Infelizmente,
Os estatutos do Tribunal foram aprovados
o histórico recente não é animador. O acervo
em 1998, entrando em vigor a partir de 2002;
mundial de tanques, artilharia, jatos de
em outubro de 2004, 139 países haviam
combate, navios de guerra e outras armas
assinado e 97 outros ratificado os estatutos.30
convencionais pesadas foi reduzido em um
quarto, entre 1985 e
2002. Os estoques de
ogivas nucleares caíram
68%, gastos militares fo-
ram reduzidos em 30%
e as exportações de
armas diminuíram 58%.
O número de soldados
encolheu 27% e as fileiras
de trabalhadores nas
indústrias bélicas 54%.
(Ver Figura 1-1)28
O controle de armas
leves tornou-se um item
aceitável da agenda
internacional (ver Figura 1-1. Progresso no Desarmamento Global, 1985-2002

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SEGURANÇA REDEFINIDA

Essas realizações teriam sido impensáveis excessivos. Enquanto isso, há também o perigo
sem o surgimento daquilo que alguns de material físsil do setor civil de energia
denominaram “segunda superpotência” – a nuclear ser perdido ou desviado para fins
opinião pública mundial. Os anos 90 armamentistas. As quantidades de plutônio e
testemunharam o “poder suave” – uma urânio altamente enriquecido, oriundo de
combinação de diplomacia, persuasão e reatores militares e civis, continuam a crescer.
organização da opinião pública – exercido por Estimados em mais de 3.700 toneladas no
ONGs, freqüentemente agindo em concerto final de 2003, em cerca de 60 países, isto é
com “governos afins.” O envolvimento de suficiente para produzir centenas de milhares
ONGs ajudou a ampliar o alcance das de armas nucleares.33
discussões sobre segurança e promoveu novos Enquanto a África do Sul e mais recen-
conceitos de segurança. Questões não-militares temente a Líbia renunciaram às armas
também foram levantadas numa série de nucleares, disputas políticas e rivalidades regio-
conferências das Nações Unidas sobre o meio nais incitaram Índia, Israel, Coréia do Norte e
ambiente, desenvolvimento social, populações Paquistão a adquirirem capacidade nuclear, o
e mulheres.31 que pode persuadir outras nações, como o
Todavia, os anos 90 foram uma década de Irã, por exemplo, a seguirem seu exemplo. As
resultados altamente contraditórios – uma era potências nucleares existentes não deram
tanto de oportunidades perdidas quanto de indicação alguma de que irão cumprir seus
realizações notáveis. O desarmamento teve compromissos de desarmamento, nos termos
seus limites. Embora os países-membros da do Tratado de Não-proliferação. Pelo con-
OTAN e do Pacto de Varsóvia reduzissem trário, os Estados Unidos estão desenvolvendo
substancialmente seus arsenais, uma parcela projetos mais aplicáveis de ogivas e armas
significativa do excesso não foi destruída e sim nucleares de baixa potência, tendo sua Nuclear
transferida para países em desenvolvimento Posture Review [Revisão de Postura Nuclear], de
– que, hoje, pela primeira vez, possuem mais 2001, declarado que armas nucleares “propor-
armamentos pesados do
que os países indus-
trializados do hemisfério
norte.32
O número de armas
nucleares posicionadas
diminuiu, porém, desde
1995, o ritmo do desar-
mamento desacelerou
significativamente. A
Rússia, particularmente,
precisa de muita ajuda
para salvaguardar suas
ogivas contra roubo e
desmontar seus estoques Figura 1-2. Conflitos Armados, 1955-2002

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Estado do Mundo 2005
SEGURANÇA REDEFINIDA

cionam opções militares confiáveis de 1990 e o final de 2004 – uma média anual
dissuasão de uma vasta gama de ameaças” e bem menor do que os 199 vetos entre 1946
ajudam a “atingir objetivos estratégicos e e 1989. Mesmo assim, os membros perma-
políticos.”34 nentes vêm recorrendo cada vez mais a um
O número global de guerras declinou veto “oculto” – ameaçando utilizar o veto a
durante os anos 90. (Ver Figura 1-2.) Embora fim de manter itens indesejados fora da
seja obviamente uma boa notícia, permanecem agenda do Conselho, que nunca age em
algumas questões sobre se as estatísticas dispo- conflitos em que os membros permanentes
níveis captam a extensão plena da violência considerem como sua própria área de
ar mada no mundo. Além de limitações influência, como na Chechênia, Tibete ou
metodológicas, a distinção entre guerra e paz Irlanda do Norte. Tanto os vetos efetivos
se tornou nebulosa sob vários aspectos. A quanto os ocultos, pelos Estados Unidos,
violência é freqüentemente mais esporádica do impediram a ação do Conselho no conflito
que contínua, e a instabilidade continua a israelense-palestino.37
contaminar muitas sociedades, mesmo após Outrossim, o desinteresse das grandes
o término formal do conflito. Exércitos potências impede repetidamente o envol-
regulares diminuíram seus efetivos, todavia vimento do Conselho onde desastres bélicos
déspotas, redes de crime e companhias e humanitários exigiriam ação. O resultado é
militares privadas apontam para uma crescente uma escolha desagradável entre paralisia (como
privatização da violência e formas de inse- ocorreu durante o genocídio em Ruanda, em
gurança que ainda não foram necessariamente 1994) e intervenção por nações que se auto-
compiladas pelas estatísticas bélicas.35 declaram “interessadas” (como em Kosovo,
Devido à instabilidade crônica, fluxos de em 1999, quando a Rússia bloqueou a ação
refugiados e outros efeitos colaterais, o do Conselho e a OTAN iniciou uma guerra
mundo tem interesse óbvio em evitar a aérea contra a Sér via). Sem dúvida, a
irrupção de conflitos violentos e terminar as autoridade do Conselho ficou tremendamente
guerras em andamento o mais rápido possível. abalada.38
O número de missões de paz cresceu consi- Em retrospecto, os anos 90 propor-
deravelmente a partir do início dos anos 90. cionaram uma breve janela de oportunidade
Entretanto, a maioria dos esforços é após a guerra fria, para criar instituições e
prejudicada pela inadequação de recursos, mecanismos que pudessem lidar com novos
apoio político errático e falta de uma estrutura desafios e agir para uma conscientização mais
permanente que assegure o posicionamento abrangente de segurança. A oportunidade foi
de forças de paz bem treinadas, de maneira em grande parte desperdiçada: no todo, o
oportuna e em número suficiente.36 investimento da comunidade internacional na
O fim da guerra fria efetivamente criou prevenção de conflitos, manutenção da paz e
oportunidades, outrora indisponíveis, de reconstrução pós-conflito foi inadequado. O
manutenção da paz, per mitindo que o fracasso em avançar mais decididamente
Conselho de Segurança trabalhasse com maior durante a “lua-de-mel” pós-guerra fria volta
produtividade. Os cinco membros perma- agora a nos atormentar na era pós-11 de
nentes apresentaram apenas 18 vetos entre setembro.39

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Estado do Mundo 2005
SEGURANÇA REDEFINIDA

O Impacto da camente sem hesitação, a Europa tem sido


Guerra ao Terrorismo muito mais ambígua. Em dezembro de 2003,
o Conselho da Europa aprovou uma
declaração sobre a Estratégia de Segurança
Os temores criados pelos ataques de 11 de
Européia. Argumentando que, “numa era de
setembro provocaram uma reação perigosa:
globalização, ameaças distantes podem ser tão
uma guerra ao terrorismo de alcance e duração
preocupantes quanto as próximas,” o
essencialmente ilimitados que forçou políticas
governamentais e a cobertura da mídia, em documento conclui que “a primeira linha de
muitos países, a novamente enfocarem os defesa freqüentemente estará no exterior.”
desafios à segurança de uma forma exces- Reconhece que “nenhuma das novas ameaças
sivamente estreita e a retornarem a uma é puramente militar; como também nenhuma
dependência mais forte de instrumentos poderá ser tratada puramente através de meios
militares. Se o terrorismo pode ser “der- militares.” Mas, então, o documento endossa
rotado” por meios militares é questionável, mais recursos para defesa e a transformação
uma vez que grupos extremistas não são alvos dos exércitos europeus em “forças mais
facilmente identificáveis. O terrorismo é um flexíveis e móveis.” Em última análise, prioriza
caminho escolhido por protagonistas que a intervenção militar e dá pouca atenção a
tendem a ser politicamente desesperados e meios não militares de lidar com os desafios
militarmente fracos. Atos de terror não irão de segurança.41
desaparecer enquanto as raízes da violência
extremada não forem tratadas.40 A guerra ao terror ameaça marginalizar
Várias medidas vêm sendo adotadas em a luta contra a pobreza, epidemias e
nome do antiterrorismo que poderão degradação ambiental.
perpetuar um ciclo de violência. Essas ações
solapam a cooperação internacional, enfra-
quecem as leis de direitos humanos e outras Vários países – China, Colômbia, Filipinas,
normas internacionais e fazem o jogo de Índia, Indonésia, Israel e Rússia dentre eles –
extremistas que vicejam no “choque de viram a guerra ao terrorismo como uma
civilizações.” E esta resposta militarizada está oportunidade para agir contra insurgentes,
desviando recursos e atenção política de separatistas e outros opositores políticos com
questões socioeconômicas e ambientais maior impunidade, taxando-os de terroristas.
subjacentes, gerando tensão e instabilidade Campanhas militares vêm acompanhadas de
crescentes. uma abordagem autoritária da lei e ordem,
Seguramente, governos têm estado longe erodindo direitos humanos, restringindo
da unanimidade em suas reações ao 11 de liberdades civis, intimidando dissensões
setembro e outros atos terroristas. Na políticas internas e adotando medidas punitivas
realidade, as divisões transatlânticas e inter- contra refugiados e pessoas em busca de asilo.
européias sobre o Iraque revelaram diferenças E, em nome de combate ao terrorismo, nações
políticas profundas e causaram grandes cisões fornecedoras não têm relutado em pro-
na aliança ocidental. Enquanto os Estados porcionar armas e ajuda militar a nações que
Unidos abraçaram o uso da força prati- cometem violações graves de direitos huma-

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Estado do Mundo 2005
SEGURANÇA REDEFINIDA

nos. A Anistia Internacional está preocupada já freqüentemente violado, seja debilitado


com o fato de os “direitos humanos e leis ainda mais.44
humanitárias estarem mundialmente sob uma De acordo com o governo Bush, o Iraque
ameaça maior do que jamais estiveram desde é “o front central na guerra ao terror.” Mas
a fundação das Nações Unidas, há mais de Jeffrey Record, um analista da Escola de
meio-século.”42 Guerra do Exercito dos Estados Unidos,
A onda sem precedentes de empatia global argumenta que a administração federal fundiu
com os Estados Unidos, após os eventos de “Estados delinqüentes,” proliferadores de
11 de setembro, lançou a esperança de que a armas de destruição em massa e organizações
humanidade se uniria em torno de um terroristas numa ameaça monolítica e, “em
propósito comum. Todavia, o governo Bush assim fazendo...pode estar conduzindo os
rejeitou uma abordagem multilateral. Anulou Estados Unidos em direção a um conflito
apoio anterior ou fortaleceu sua oposição a gratuito e irrestrito contra entidades ou Estados
vários tratados, como ao estatuto do Tribunal que não representam ameaça grave aos
Criminal Internacional, o tratado que proíbe Estados Unidos.”45
testes nucleares, uma proposta de um sistema De fato, a ocupação do Iraque abriu uma
de verificação para o Tratado e de Armas caixa de Pandora de violência e caos. Diante
Biológicas e Tóxicas, e as disposições de inspe- de uma violência crescente, medidas de
ção e verificação para um tratado ainda a ser “segurança” absorvem muitos dos recursos
negociado proibindo a produção de material ostensivamente alocados à reconstrução.
físsil para armas nucleares.43 Embora muito pouco tenha sido gasto em
Mais gravemente, o governo arrogou-se um reconstrução efetiva, os Estados Unidos
direito abrangente de realizar guerras decidiram desviar cerca de 3,5 bilhões de
preemptivas em contravenção à Carta das dólares de projetos hídricos, esgotamento e
Nações Unidas. A Estratégia de Segurança eletricidade para uma gama de medidas de
Nacional, de setembro de 2002, alerta que, “a segurança. Uma estimativa da US National
fim de se antecipar ou impedir...ações hostis Intelligence pinta um quadro tenebroso, inclusive
por nossos adversários, os Estados Unidos com a possibilidade de o país descambar para
irão, caso necessário, agir preemptivamente.” a guerra civil. Separatistas curdos, animosidades
Este é um precedente perigoso que outros entre sunis e xiitas, e a luta pelo poder que
países podem ficar inclinados a seguir. A joga forças islâmicas e seculares umas contra
Rússia, enredada numa luta brutal com os as outras, estão entre os fatores que poderão
separatistas chechenos, se valerá de ataques fragmentar o país. Se isto ocorrer, a insta-
preemptivos. Tem havido também espe- bilidade poderá se alastrar para os países
culações de que Israel poderá lançar um ataque vizinhos também.46
contra instalações iranianas suspeitas de estarem Ao invés de atingir o terrorismo, a ocupação
produzindo armas nucleares. O resultado, do Iraque acelerou a radicalização de um
porém, poderá ser um futuro anárquico de mundo islâmico já fervilhando com os eventos
ataques e guerras preemptivas. Mesmo que dos territórios palestinos ocupados, da
este cenário lúgubre não se realize, existe o Cashemira e Chechênia. O Iraque tornou-se
perigo de que o regime jurídico internacional, um possante campo de recrutamento de

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SEGURANÇA REDEFINIDA

novos extremistas. O Instituto de Estudos de pobreza, e quebrar os círculos viciosos que


Segurança Internacional, sediado em Londres, estão desestabilizando grandes áreas do nosso
divulgou em maio de 2004 que a al Qaeda planeta. Estimativas indicam que programas
galvanizou-se pela guerra do Iraque; acredita de abastecimento de água potável e sistemas
que a organização esteja presente em mais de de esgotos custariam cerca de US$ 37 bilhões
60 países, com uma disponibilidade de anuais; para reduzir a fome mundial à metade,
“18.000 terroristas em potencial.” De fato, um US$ 24 bilhões; impedir erosão do solo, outros
relatório do Departamento de Estado dos US$ 24 bilhões; prestar assistência à saúde
Estados Unidos revela um aumento no reprodutiva de todas as mulheres, US$ 12
número “significativo” de incidentes e vítimas bilhões; erradicar o analfabetismo, US$ 5
do terrorismo em 2003, comparado com bilhões; e vacinar todas as crianças no mundo
2002.47 em desenvolvimento US$ 3 bilhões.
A guerra do Iraque drenou recursos muito Gastando-se apenas US$ 10 bilhões anual-
necessários para a gigantesca tarefa de mente num programa global de HIV/AIDS,
desarmamento, desmobilização e reconstrução e cerca de US$ 3 bilhões no combate à malária
no Afeganistão – o país anfitrião da al Qaeda e na África subsaariana, salvar-se-iam milhões
que está hoje novamente em perigo de cair de vidas. Tudo isto perfaz um pouco mais da
vítima de déspotas e de um incipiente tráfico metade dos US$ 211 bilhões que foram
de drogas. De acordo com A. Yusuf Nuristani, aportados para a guerra no Iraque, até o final
Ministro da Irrigação, Recursos Hídricos e de 2004.50
Meio Ambiente, o Afeganistão recebe apenas Ao mesmo tempo, o fluxo de ajuda ao
1 de cada 30 dólares destinado ao Iraque. A mundo em desenvolvimento caiu durante os
nação recebeu muito menos apoio de anos 90, de cerca de US$ 73 bilhões, em 1992,
doadores internacionais que outros países em para US$ 57 bilhões, em 2002. Computando
processo de reconstrução pós-conflito: apenas todos os fluxos financeiros, as Nações Unidas
US$ 67 anuais, per capita, comparado com US$ divulgaram que, em 1994-2002, os países em
74 para o Haiti, US$ 114 para Ruanda, US$ desenvolvimento sofreram um fluxo
249 para Bósnia e US$ 814 para Kosovo.48 cumulativo de saída de US$ 560 bilhões. E os
Sob a perspectiva de um conceito mais aportes orçamentários de muitos países pobres
amplo de segurança, a guerra ao terror ameaça favorecem, eles mesmos, as suas forças
marginalizar a luta contra a pobreza, epidemias armadas. Para alguns – Burundi, Eritréa e
e degradação ambiental, desviando recursos Paquistão, dentre eles – os gastos militares
financeiros e capital político já escassos de equivalem ou excedem os dispêndios públicos
causas fundamentais da insegurança. Movidos combinados de saúde e educação.51
principalmente pelo intenso dispêndio Há um nítido perigo de que os ganhos
americano, os gastos militares mundiais já se cruciais em saúde, educação e contra a pobreza,
aproximam de US$ 1 trilhão anuais.49 previstos nas Metas Desenvolvimentistas do
Surpreendentemente, investimentos mo- Milênio das Nações Unidas, aprovadas pela
destos em saúde, educação e proteção comunidade mundial em setembro de 2000,
ambiental poderiam explorar um imenso não serão alcançados, devido à atenção e os
potencial humano hoje agrilhoado pela recursos internacionais terem sido desviados

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Estado do Mundo 2005
SEGURANÇA REDEFINIDA

para orçamentos militares e a guerra contra o Princípios para um


terror. (Ver Capítulo 9.) Todavia, são Mundo Mais Seguro
precisamente esses fatores subjacentes – e a
forma como se traduzem em dinâmica e O esforço para reconceituar a segurança
tensão política – que estão entre os principais não é um exercício acadêmico. A questão é
impulsionadores de grande parte da persuadir legisladores a adotarem uma visão
instabilidade global.52 diferente do mundo – interpretar tendências,
É o esvaecimento da esperança de um acontecimentos e notícias sob um novo
futuro melhor que ajuda a fomentar o extre- prisma e, fundamentalmente, promover
mismo e facilitar o recrutamento de agi- agendas e políticas diferenciadas. Pelo menos
tadores. A pobreza está efetivamente três princípios básicos derivam de uma
aumentando em partes do mundo, inclusive redefinição de segurança.
na África subsaariana, onde cresceu de 42 para Primeiro, uma nova política de segurança
47% da população, entre 1981 e 2001. “Um precisa ser de natureza transformadora,
mundo que não avançar em direção às Metas fortalecendo as instituições civis que possam
Desenvolvimentistas do Milênio,” alertou Kofi lidar com as raízes da insegurança. Ao ligar
Annan, em setembro de 2004, “não ficará em meio ambiente, saúde, pobreza, migração e
paz. E um mundo enredado em violência e outras questões à segurança, há um risco
definido de “securitizar” essas questões – ou
conflito poucas chances terá de atingir essas
seja, aplicar a linguagem e racionalidade de
Metas.”53
instituições tradicionais de segurança e assim
Devido ao papel preponderante dos
promover um pensamento mais antagonista
Estados Unidos no mundo, as direções
do que cooperativo. A mera re-rotulagem de
futuras de sua política serão cruciais para alguns desafios como ameaças à segurança
determinar o caminho que a humanidade pode dar-lhes maior destaque na agenda
escolherá. Escrevendo antes das eleições política, porém conseguiria pouco mais do que
americanas de novembro de 2004, Anatol a ampliação do alcance e poder de instituições
Lieven, da Carnegie Endowment for International tradicionais de segurança. A fim de evitar a
Peace, antecipou que “a guerra dos Estados militarização de políticas, é importante aplicar
Unidos ao terrorismo será conduzida de a linguagem dos direitos humanos, equidade
forma muito mais cautelosa de agora em e meio de vida a esta nova visão de mundo.
diante, seja Bush ou Kerry o vencedor em Na realidade, significa recuperar a expressão
novembro. Uma política cautelosa, entretanto, segurança.
não é a mesma coisa que uma política nova.” O segundo princípio flui diretamente desta
Uma rededicação ao multilateralismo e ao percepção: uma nova política de segurança
encontro de abordagens comuns aos desafios deverá, acima de tudo, ser de natureza
globais será crucial. Todavia, a invasão do preventiva. A prevenção de conflitos é muito
Iraque não pode ser desfeita e suas comumente vista como um esforço tímido,
conseqüências desestabilizadoras também não de último recurso, onde a irrupção da violência
podem ser apagadas. Não há forma de pareça iminente. Mas, entender as causas
colocar este gênio de volta na lâmpada.54 básicas de conflito e insegurança implica uma

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Estado do Mundo 2005
SEGURANÇA REDEFINIDA

aplicabilidade prévia muito mais abrangente Uma nova política de segurança


e não um simples esforço de tratar dos deverá, acima de tudo, ser de
sintomas. Países doadores tendem a ser natureza preventiva.
relativamente generosos quando se trata de
medidas do tipo “band-aid.” Muito (embora
ao mesmo tempo, ironicamente, não o As conferências internacionais da última
bastante) está sendo gasto em medidas década reconheceram a necessidade de ligação
humanitárias, tais como alívio a desastres e de meio ambiente, desenvolvimento e
outras ajudas emergenciais em apoio ao segurança. O desenvolvimento e a paz são
reassentamento de refugiados, e até mesmo inter-relacionados e simbióticos; sua ausência
em parcos e tardios esforços de manutenção é o que freqüentemente causa o fracasso de
de paz.55 nações. Embora a pobreza não leve
Robert Picciotto, ex-executivo do Banco necessariamente à violência, não há dúvida de
Mundial e hoje Diretor do Global Policy Project, que a ausência de desenvolvimento benéfico
de Londres, argumenta que “a ciência gera insegurança e permite, na melhor das
econômica de segurança internacional se hipóteses, uma paz frágil. Para que o
assemelha à economia de saúde pública. Da desenvolvimento ocorra, é necessário paz e
mesma forma que as políticas de saúde estabilidade política. E o desenvolvimento
precisa ser infundido com sustentabilidade e
pública vão além de medidas curativas, a
eqüidade; a simplória maximização de
política de segurança se estende à prevenção
crescimento econômico pode acabar por
de conflitos.” A prevenção de conflitos
ameaçar a integridade ambiental, destruindo
precisa ser incluída numa ampla gama de
meios de vida de comunidades pobres e
políticas sociais e econômicas. Na realidade,
produzindo resultados altamente desiguais.57
há necessidade de realizar avaliações de
Entretanto, transformar este último prin-
impacto à segurança semelhante às avaliações
cípio numa política efetiva continua sendo um
de impactos ambientais implementadas em desafio. Exigirá transcender barreiras
alguns países.56 acadêmicas e burocráticas e superar os
O terceiro princípio é que uma nova entraves de uma baixa qualificação num
política de segurança precisa ser intersecional mundo especializado – seja em nível de
e integradora. O entendimento dos governos, organizações internacionais,
complexos desafios à segurança, permitindo universidades ou ONGs. E requererá fundir
uma avaliação sofisticada da dinâmica que essas fontes de especializações através de uma
leva à instabilidade, e a realização de um conscientização inter e transdisciplinar, e
diagnóstico mais eficaz das políticas encorajar o desenvolvimento de uma
necessárias à prevenção de conflitos e à “linguagem” compartilhada. Dadas as atuais
obtenção de uma segurança significativa, culturas, agendas e horizontes de tempo
exigirá reunir percepções de uma vasta gama conflitantes, isto será extremamente penoso.58
de disciplinas – ciências políticas, economia, Há também desequilíbrios importantes
sociologia, geografia, história, saúde pública entre diferentes instituições governamentais. A
e muitas outras. resistência política e os recursos à disposição

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Estado do Mundo 2005
SEGURANÇA REDEFINIDA

dos órgãos de defesa são vastos em questões como ‘Quem tem direito a intervir?’
comparação a ministérios de desenvolvimento ‘Sob que condições?’ e ‘Através de que meios?’
e meio ambiente. Legisladores estrangeiros e A Comissão Internacional sobre Intervenção
de segurança são capazes de assegurar a e Soberania dos Estados (ICISS, na sigla em
atenção política e a força burocrática, mas inglês), patrocinada pelo governo canadense,
podem simplesmente varrer as questões de focou cuidadosamente essas questões em seu
segurança humana para baixo do tapete da relatório The Responsibility to Protect [A
agenda tradicional de segurança. Na realidade, Responsabilidade de Proteger], de dezembro
a ajuda externa há muito está subordinada a de 2001. A Comissão esclarece que tais
questões convencionais de “segurança intervenções devem ser um último recurso,
nacional.” As instituições encarregadas de necessita de amplo apoio internacional,
proteção ambiental ou ajuda desenvol- devendo cumprir rigorosamente a legislação
vimentista têm capacidade especializada, internacional. A escala, duração e intensidade
todavia pouca influência política e parcos das operações devem estar voltadas não à
meios financeiros. derrubada de um governo, e sim à proteção
da população. Por extensão, o uso de certos
Existe o perigo de uma forma global de tipos de armas é inaceitável.60
apartheid – relações de poder altamente São bons princípios e idealmente deveriam
desiguais – ser ainda mais consolidada estar inseridos numa convenção internacional.
e ratificada. Críticos, porém, argumentam que inter-
venções humanitárias invariavelmente serão
Esses princípios estão sendo testados no executadas pelo forte contra o fraco, e as
crescente debate sobre a noção de nações capazes de intervir só o fazem se for
“inter venção humanitária” em Estados de seu interesse. O humanitarismo pode
fracassados, onde governos são incapazes de facilmente servir como desculpa conveniente
proteger seus próprios cidadãos contra para outros propósitos, abrindo a porta, nas
assassinatos em massa ou expulsões, ou que palavras do jornalista britânico George
tenham ao menos os objetivado. Os horrores Monbiot, “a um sem-número de ações de
na Bósnia, Ruanda, Kosovo, Timor Leste e conquista mascarado em ação humanitária.”61
mais recentemente Darfur, no Sudão, dão voz De fato, existe o perigo de uma forma
a um coro crescente clamando por novos global de apartheid – relações de poder
instrumentos que evitem desastres huma- altamente desiguais – ser ainda mais
nitários em larga escala. O argumento que a consolidada e ratificada. Já há propostas de
soberania de uma nação envolve responsa- novas for mas de inter vencionismo.
bilidades para com seus cidadãos foi adotado Escrevendo em Foreign Affairs, Lee Feinstein e
pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, Anne-Marie Slaughter sugerem “um princípio
entre outros.59 corolário no campo da segurança global: um
Mas provocou uma intensa discussão compromisso coletivo, o chamado “dever de
normativa sobre como equilibrar os valores impedir” nações comandadas por governantes
concorrentes de soberania (e não-intervenção) sem controles internos sobre seus poderes de
e direitos humanos. Não há consenso em adquirirem ou utilizarem armas de destruição

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Estado do Mundo 2005
SEGURANÇA REDEFINIDA

em massa.” A natureza seletiva desta proposta jamais ser uma cura para violência e suas
é bastante clara. Os autores escrevem: “Para condições subjacentes. Talvez o problema
ser prático, o dever tem que ser limitado e mais crucial da intervenção humanitária seja
aplicado a casos que podem gerar resultados o de fracassar no teste da prevenção. Ela trata
benéficos. Aplicar-se-ia à Coréia do Norte de dos sintomas e não das razões subjacentes
Kim Jong Il, mas não à China de Hu Jintao das calamidades humanitárias. É movida por
(ou até mesmo a de Mao).” Presumivelmente, uma paixão de acabar com a violência que
aqueles que fariam a intervenção seriam as faz manchetes, mas ignora a morte e miséria
mesmas nações que possuem armas nucleares causadas pela pobreza e colapso ambiental.64
e interesse paroquial em negar tais arsenais a Caso a prevenção de conflitos enfocando
outros governos.62 a dinâmica básica e razões estruturais da
Ao invés de perseguir medidas obrigatórias insegurança não seja promovida, o mundo
de desarmamento universal, os países então sempre se verá diante de uma dura
ocidentais hoje estão mais concentrados em escolha entre intervenção militar e inação. Em
não-proliferação – em outras palavras, no tal situação, qualquer ação adotada enfatiza
desarmamento dos outros. Os instrumentos o papel militar e acaba por consolidar o
escolhidos são controle de exportações, poder da noção conservadora de segurança
sanções e medidas como a Proliferation Security e das instituições tradicionais.
Porém, não precisamos nos limitar a
Initiative, que prevê a criação de um regime
opções sem saída. Como este livro
informal na área da “contra-proliferação,”
demonstra, há muitas políticas sociais,
através do qual os Estados Unidos e seus
econômicas e ambientais que podem ajudar
principais aliados interceptam carregamentos
a criar um mundo mais justo e sustentável, e
marítimos, terrestres e aéreos que supos-
que podem transformar vulnerabilidades
tamente contenham ar mas químicas,
compartilhadas em oportunidades para uma
biológicas ou nucleares, ou componentes de
ação conjunta. Essas políticas fazem seu
mísseis.63 próprio sentido, e oferecem o bônus extra
Em nível mais fundamental, existe a de criar segurança real de uma maneira que a
questão se a intervenção militar poderia força das armas jamais poderá.

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Estado do Mundo 2005
CRIME TRANSNACIONAL

LIGAÇÃO DE SEGURANÇA

Crime Transnacional
Com um mundo globalizado, vem uma lixo perigoso e produtos químicos
movimentação maior de pessoas, produtos proibidos. Anualmente, os traficantes destes
e dinheiro, bem como um aumento da produtos rendem para as organizações do
demanda por produtos – inclusive ilícitos crime transacional entre US$22 e US$31
como drogas, armas, recursos bilhões. O lixo perigoso é muitas vezes
ambientalmente sensíveis e até mesmo seres transportado secretamente junto com o lixo
humanos. Sindicatos criminosos e recicláveis exportados, rendendo, por
transnacionais, os maiores transportadores exemplo, de US$10 a US$12 bilhões,
destes produtos, representam uma ameaça criando ao mesmo tempo depósitos de lixo
considerável à segurança global. Eles tóxico pelo mundo.3
distribuem materiais perigosos, armas, e A venda de produtos químicos proibidos
drogas, exploram comunidades locais, também representa uma importante ameaça
perturbam ecossistemas frágeis e controlam ambiental. Por exemplo, o tráfico anual de
recursos importantes da economia. Em 20.000 a 30.000 toneladas de substâncias que
2003, os sindicatos do crime transnacional diminuem o ozônio enfraqueceu a
tiveram um lucro bruto de US$2 trilhões – capacidade do Protocolo de Montreal de
mais do que todas as economias, com proteger efetivamente a camada de ozônio.
exceção dos Estados Unidos, Japão e À medida que o contrabando destes
Alemanha.1 produtos químicos diminui nos países
O lucro total dos sindicatos do crime industriais, novos mercados surgem nos
advém do tráfico de drogas. Vendas de países em desenvolvimento, onde a
drogas ilegais renderam, em 2001, de proibição dos clorofluorocarbonos (CFCs)
US$300 a US$500 bilhões. Não somente está se tornando agora mais rígida.4
contribuem diretamente para mais de O contrabando de espécies ameaçadas
200.000 mortes anualmente, como a injeta de US$6 a US$10 bilhões
dependência das drogas desorganiza 10 provenientes da venda de mais de 350
milhões de vidas e o uso de drogas milhões de espécies sob proteção. Ao
intravenosas pode disseminar doenças como mesmo tempo em que ameaça a
HIV e hepatite. A venda de drogas ilícitas é, sobrevivência destas espécies, o tráfico
também, uma fonte importante de recursos destas plantas e animais pode comprometer
para grupos insurgentes e organizações a segurança global, disseminando doenças e
terroristas. 2 espécies não nativas em novos habitats
Outra importante fonte de recursos para sensíveis.
os sindicatos do crime transnacional são os Felizmente, a Convenção de 1973 sobre
produtos ambientais – tudo, desde planta e Comércio Internacional de Espécies da
animais e recursos naturais sob proteção, até Fauna e Flora Selvagem Ameaçadas

22
Estado do Mundo 2005
CRIME TRANSNACIONAL

(CITES) ajudou a rifles, pistolas e mísseis


reduzir o tráfico, portáteis, são utilizadas
proibindo o comércio regularmente em conflitos
de 900 espécies em civis e por grupos
perigo e restringindo o criminosos regionais.
comércio de outras Armas de pequeno calibre
32.000 espécies contribuíram para meio-
ameaçadas.5 milhão de mortes em
Talvez um dos mais 2002 – 300.000 em
trágicos comércios que conflitos violentos e
as organizações outras 200.000 em
criminosas transnacionais homicídios (40% de todos
estão envolvidas seja o Oficial da Alfândega dos EUA retirando as mortes violentas).
tráfico de pessoas. drogas de uma van na fronteira do México Embora as autoridades
Embora seja difícil saber estejam constantemente
o número exato, o Departamento de combatendo os traficantes de armas,
Estado dos Estados Unidos estima que pelo existem poucas leis internacionais regulando
menos de 600.000 a 800.000 pessoas são o tráfico de armas, e os embargos de armas
vendidas internacionalmente, por ano – pelas Nações Unidas muitas vezes não são
exploradas como escravas, serviços sexuais executados – desde os meados dos anos 90,
ou mesmo para remoção dos seus rins ou nenhum resultou numa prisão. Como
outros órgãos para transplante. Este negócio resultado da falta de compromisso político,
lucrativo rende em torno de US$10 bilhões, os traficantes de armas continuam a ser uma
anualmente, às custas de milhões de ameaça significante.7
indivíduos, suas famílias e suas comunidades. Realmente, somente com um
Ao mesmo tempo em que desbarata um compromisso global para combater o
número incalculável de vidas, o tráfico crime transnacional poderá ter sucesso para
humano alimenta a indústria ilícita do sexo – ajudar a reduzir esta ameaça à segurança – e
outro veículo importante de transmissão do pela primeira vez tal compromisso pode
HIV/AIDS e outras doenças.6 estar em vias de surgir. Em setembro de
O contrabando de armas rende 2003, a Convenção das Nações Unidas
comparativamente pouco – estima-se em contra o Crime Transnacional Organizado
quase US$1 bilhão anual –, mas representa foi ratificada. Ela requer que os países
uma carga tremenda na segurança e bem- participantes adotem novas medidas legais
estar humanos. Armas contrabandeadas, abrangentes que reforçarão a cooperação
principalmente de pequeno calibre como internacional na investigação, julgamento e

23
Estado do Mundo 2005
CRIME TRANSNACIONAL

sentença de crimes cometidos por grupos desempenho. Por exemplo, os


internacionais, que por sua vez ajudarão a departamentos da CITES teve, em 2002,
evitar que os criminosos tirem vantagem das um orçamento anual de apenas US$5
discrepâncias nas leis nacionais.8 milhões – menos de um milésimo do que
O novo tratado ajudará também a criar os traficantes de animais e plantas ganham
um conjunto de leis mais atuantes na cada ano.10
lavagem de dinheiro, aumentando a É também importante reduzir a demanda
dificuldade e risco para as organizações de mercadorias ilícitas. Até que a demanda
criminosas transnacionais em novos diminua – seja de ópio ou marfim –, haverá
projetos. Vários protocolos reforçarão esta sempre grupos dispostos a correr riscos
convenção. Dois, ratificados em dezembro para fazerem grandes lucros. Conscientes
de 2003 e janeiro de 2004, ajudarão a disto, alguns países estão aplicando uma
coordenar leis no tráfico e migração de parcela maior de recursos em programas,
pessoas. Um terceiro, se ratificado, ajudará a objetivando a redução da demanda. Suécia
suprir a falta de legislação nacional no por exemplo, destina agora dois terços de
tráfico de armas. 9 seu apoio para o Departamento de
Entretanto, sem maior ajuda financeira, as Controle de Drogas das Nações Unidas, na
conquistas da CITES, a convenção das redução da demanda por drogas. A longo
Nações Unidas sobre o crime ou outros prazo, a diminuição da demanda e o
tratados sobre operações criminosas aumento dos riscos para conseguir
transnacionais, permanecerão limitadas. A suprimento ajudarão a diminuir a
maioria dos órgãos constituídos para rentabilidade do crime transnacional e, no
examinar as leis ambientais sofre de falta de processo, construir um mundo mais
recursos e de pessoal suficiente, seguro.11
comprometendo significativamente seu - Erik Assadourian

24
Estado do Mundo 2005
CRIME TRANSNACIONAL

CAPÍTULO 2

Analisando Ligações
entre População e Segurança
Lisa Mastny e Richard P. Cincotta

No início dos anos 90, a Agência Central de Uma constatação particularmente forte e
Inteligência dos Estados Unidos reuniu uma surpreendente se destacou: a alta taxa de
equipe de destacados pesquisadores, mortalidade infantil – a proporção de recém-
acadêmicos e analistas para examinar uma nascidos morrendo antes de atingir o primeiro
questão vexatória e sempre presente: por que aniversário – foi o melhor indicador individual
alguns países são mais propensos à violência e de instabilidade mundial. Foi ainda um melhor
conflitos armados do que outros? O grupo, indicador do que fatores como baixos níveis
denominado “Força-tarefa para Fracasso de de democracia ou ausência de abertura ao
Estados” [State Failure Task Force], analisou comércio. A mortalidade infantil, conforme
minuciosamente centenas de variáveis sociais, verificado, serve como substituto para uma
políticas, econômicas e ambientais, desde os vasta gama de outros indicadores – incluindo
anos 50 até a década de 90, buscando fatores desempenho econômico, níveis educacionais,
que pudessem prever o “fracasso de um saúde, qualidade do meio ambiente e até a
Estado” – um colapso da ordem nacional presença de instituições democráticas –,
causado por genocídios políticos ou étnicos, proporcionando, assim, uma indicação segura
golpes de Estado ou guerras civis. da qualidade geral de vida de uma nação.2
Objetivavam chegar às raízes das instabilidades Não é surpresa que fatores demográficos
generalizadas que continuam a atrasar o tenham ligações estatísticas fortes com a
desenvolvimento econômico e humano em instabilidade. A dinâmica da população
regiões desde a África subsaariana até o Sul humana – particularmente as taxas flutuantes
da Ásia.1 de nascimentos e mortes – pode ser uma força
Richard P. Cincotta é Pesquisador Associado Sênior da Population Action International, de Washington, D.C. Este
capítulo baseia-se, em grande parte, num relatório de 2003 que ele escreveu com seus colegas Robert Engelman
e Danielle Anastasion intitulado The Security Demographic: Population and Civil Conflict After the Cold War.

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Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

poderosa. Não apenas influencia a taxa global de 41 anos, no início dos anos 50, para 63
de crescimento, porte e configuração de uma anos hoje, em grande parte devido ao aumento
população, mas também molda sua estrutura da sobrevivência infantil.4
etária – a proporção de pessoas em cada grupo Todavia, essas estatísticas proporcionam
etário em relação à população como um todo. uma visão incompleta, mascarando tendências
Isto, por sua vez, determina variáveis diversas, tanto intra quanto inter países e
econômicas importantes, como o número de regiões. A população humana continua
pessoas que entram e deixam a força de expressiva, com 6,4 bilhões de pessoas, e
trabalho e a relação entre dependentes jovens continua crescendo em mais de 70 milhões
ou idosos e trabalhadores. O fluxo e refluxo anualmente, a maioria nos países em
das pessoas influencia tendências importantes desenvolvimento. Enquanto isso, a transição
como urbanização e também a demanda e demográfica global – a mudança de
oferta de recursos cruciais como alimento, populações nacionais de vidas breves e famílias
água e energia. Todas essas forças podem grandes para famílias menores de vida mais
exercer fortes pressões políticas, sociais, longa, principalmente no mundo indus-
econômicas ou ambientais sobre uma socie- trializado – continua lamentavelmente
dade e suas instituições, e ter fortes implicações incompleta. Cerca de um terço de todos os
na estabilidade interna e até mesmo na segurança países, incluindo muitos na África subsaariana,
internacional. Neste caso, segurança não é Oriente Médio e Sul e Centro da Ásia, ainda
apenas a ausência de conflito, mas uma se encontra nos estágios iniciais da transição,
confiança razoável entre as pessoas da não- com taxas de fertilidade acima de quatro filhos
iminência ou probabilidade de conflito.3 por mulher.5
O mundo está passando por uma época Estudos recentes indicam que esses países
demográfica interessante. Países de muita correm maiores riscos de se enredarem em
história política e religiosa e praticamente todas conflitos civis armados – guerras internas, que
as regiões do mundo têm sofrido mudanças vão de insurgência política e étnica à violência
relevantes no número e estrutura de suas sancionada pelo Estado, e ao terrorismo do-
populações, ao longo das últimas décadas. méstico. A maioria está atolada numa situação
Devido, em parte, a esforços internacionais, o demográfica debilitante. Abriga altas e
tamanho médio da família é hoje pouco mais crescentes proporções de jovens, muitos dos
da metade do que era no início dos anos 60 – quais inflando as fileiras dos desempregados
em torno de três filhos por casal – e a ou subempregados. Muitos desses países
mortalidade infantil declinou em dois terços. também sofrem não só um acelerado
O crescimento populacional global está crescimento populacional urbano –
desacelerando mais dramaticamente do que freqüentemente além do que podem
se esperava mesmo há uma década, estando acomodar – como também níveis extre-
hoje crescendo a uma taxa de 1,2%, quase a mamente baixos, per capita, de terras
metade do que era 35 anos atrás. E, mesmo cultiváveis ou água doce. Enquanto isso, a
com o retorno alarmante da malária e crescente pandemia do HIV/AIDS está
surgimento do HIV/AIDS, a expectativa de atingindo mortalmente os serviços básicos e
vida no mundo em desenvolvimento subiu atividades governamentais de vários países.

26
Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

Essas condições atuam como “fatores de risco pessoas entre 15 e 29 anos representam mais
demográficos” que podem contribuir em de 40% de todos os adultos. Todos esses países
muito ao ciclo de conflitos recorrentes e extremamente jovens estão no mundo em
deterioração política que inibe o progresso desenvolvimento, onde as taxas de fertilidade
econômico e social nos países mais fracos e são as mais altas, e a maioria está na África
instáveis do mundo.6 subsaariana e Oriente Médio. (Na América do
Norte e Europa, por outro lado, jovens
O Choque das Idades adultos representam apenas 20-25% de todos
os adultos.) (Ver Tabela 2-1).9
Pouco antes da aurora do dia 28 de abril Na maioria dos casos, um inchaço jovem é
de 2004, um grupo brandindo facas e facões o resultado de várias décadas de crescimento
lançou um ataque surpresa a um posto policial populacional acelerado. Ocorre caracteris-
na província de Pattani, no sul da Tailândia. ticamente em países nos primeiros estágios da
Não conseguindo tomar o prédio, os militantes transição demográfica: embora as taxas de
fugiram para a mesquita Krue Se, próxima ao natalidade continuem altas, a mortalidade
local, onde logo se viram cercados por forças infantil começou a cair, devido aos avanços
de segurança governamentais fortemente no tratamento da saúde e nutrição, resultando
ar madas. Durante três horas as tropas numa maior sobrevivência infantil em geral.
mantiveram fogo cerrado com granadas e As taxas de natalidade tendem a declinar
armas automáticas contra esta edificação do menos do que as de mortalidade, não só de-
século XVI, abatendo mais de 30 agressores.7 vido a preferências culturais por maior nú-
À medida que as notícias do massacre se mero de filhos e vida mais longa, mas também
espalharam, os analistas atribuíram as tensões porque as novas técnicas de controle de
à crescente inquietação étnica entre a população natalidade tendem a ser mais complicadas,
do sul, basicamente muçulmana, que há muito menos diversificadas e mais polêmicas do que
reclama da repressão cultural, religiosa e aquelas disponíveis para prolongamento da
econômica por parte do governo de vida. Populações jovens desproporcionalmente
Bancoque. Mas, num pronunciamento à nação altas podem também estar presentes em países
logo após os ataques, o Primeiro-ministro onde ocorre uma “explosão de bebês”, onde
Thaksin Shinawatra apontou para uma outra um grande número de adultos emigra, ou
variável: a idade e perspectiva dos comba- onde a AIDS é uma das causas principais de
tentes, cuja maioria era formada de jovens de morte prematura de adultos. 10
idade inferior a 20 anos. “São pobres, com Uma abundância de jovens não é,
pouca educação e desempregados,” observou necessariamente, ruim. Nos Estados Unidos
ele. “Dispõem de pouca renda e muito ócio, e outros países industrializados, onde a maioria
criando uma lacuna... a ser preenchida.”8 dos jovens adultos tem bom nível educacional
A Tailândia não é o único país a sentir os ou técnico, os empregadores vêem os jovens
efeitos do desequilíbrio demográfico. De como um bem e as empresas buscam intensa-
acordo com as Nações Unidas, mais de 100 mente sua energia e engenhosidade. Os
países em todo o mundo sofriam de “inchaços economistas há muito reconhecem que uma
jovens” em 2000 – uma situação onde as grande proporção de jovens trabalhadores

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Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

Tabela 2-1. Parcela de Jovens em


Parcela entre 15 e 24 anos estavam desempregados
Países Selecionados, Projeções para em 2003, representando quase a metade dos
2005
desempregados globais. No mundo em
País Parcela da Taxa desenvolvimento – o lar de 85% de todos os
População Adulta Total de
com Idade Entre Fertilidade
jovens mundiais –, o desemprego deste grupo
15-29 anos é particularmente expressivo, com taxas 3,8
(percentual) vezes superiores às dos adultos em geral.12
(filhos por mulher)
Leif Ohlsson, pesquisador da Universidade
Zimbábue 59 3,9 de Gotenburgo, na Suécia, observa que jovens
Zâmbia 57 5,6 em áreas rurais sem condições de herdarem
Burundi 56 6,8
Uganda 55 7,1 terras são, freqüentemente, os mais afetados.
Máli 55 7,0 Em alguns casos, seus pais e avós há muito
Ruanda 54 5,7 dividiram a propriedade em minúsculos lotes
Índia 40 3,0
China 30 1,8 que seriam inviáveis caso fossem novamente
Estados Unidos 27 2,1 divididos. Em outros casos, a terra degenerou
Noruega 23 1,8 como conseqüência de práticas insustentáveis,
Japão 21 1,3
Itália 19 1,2 ou então grandes empresas agrícolas
FONTE: Vide nota final 9.
absorveram todas as terras cultiváveis restantes.
Na ausência de meios seguros de vida, esses
pode proporcionar um “bônus demográfico” jovens podem se tornar incapazes de casar ou
ao crescimento econômico quando a produ- ganhar o respeito de seus pares. O pesquisador
tividade, poupança e impostos de jovens britânico Chris Dolan cunhou a expressão “a
sustentam populações menores de crianças e proliferação de pequenos homens” para
idosos. Nas regiões mais prósperas da descrever o número crescente de jovens
Tailândia, por exemplo, jovens trabalhadores destituídos de cidadania no norte de Uganda,
de bom nível educacional e diligentes – que não podem atingir as expectativas de se
inclusive uma grande proporção de mulheres tornarem “homens plenos” dentro da cultura
jovens que trabalham nos setores manu- de seu país. Dolan constatou que esses homens
fatureiros e financeiros – contribuem se tornam alcoólatras, violentos, suicidas – ou
significativamente para o crescimento juntam-se a alguma milícia.13
dinâmico do país.11 Em países economicamente oprimidos e
Entretanto, onde oportunidades econô- politicamente repressivos, organizações
micas são escassas, a predominância de jovens insurgentes podem oferecer aos jovens
adultos pode representar um desafio social e mobilidade social e auto-estima. Durante a
risco político. Ao longo da última década, as recente guerra civil em Serra Leoa, os jovens
taxas de desemprego entre os jovens em todo representaram cerca de 95% dos efetivos de
o mundo deram um salto de 11,7% para um combate devido, em parte, às suas poucas
nível recorde de 14,4% em 2003, mais do opções de vida. Em 2003, Serra foi classificada
dobro da taxa total de desemprego global. como o país menos desenvolvido do mundo
De acordo com a Organização Internacional pelo Programa das Nações Unidas para o
do Trabalho, cerca de 88 milhões de jovens Desenvolvimento, e o produto interno bruto

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Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

per capita em 2002 totalizou apenas US$ 150 técnica devido a restrições do partido na sua
(em comparação a US$ 36.006 nos Estados ascensão às elites. E Samuel P Huntington,
Unidos). Uma autoridade do Fundo Cristão Professor de Harvard e autor do tratado
para Crianças, na capital Freetown, declarou, polêmico sobre o “choque das civilizações”,
a respeito do grande número de jovens assinalou as ligações entre as expectativas
soldados, o seguinte: “São uma coorte há insatisfeitas de jovens capacitados e as tensões
muito negligenciada; carecem de emprego e contínuas no Oriente Médio, onde 65% da
treinamento, e é muito fácil convencê-los a se população têm idade inferior a 25 anos. Muitos
juntarem à luta.”14 países islâmicos, argumenta ele, aplicaram suas
receitas petrolíferas no treinamento e educação
De acordo com as Nações Unidas, de um grande contingente de jovens. Porém,
mais de 100 países em todo o mundo com baixo crescimento econômico, poucos
sofriam de “inchaço jovem” em 2000. desta força de trabalho em crescimento
acelerado têm a oportunidade de utilizar seus
Mas não são apenas os pobres ou os sem conhecimentos. Jovens com boa formação
instrução que estão descontentes. “Temos um educacional nessa região, conclui Huntington,
grande número de jovens entre 18 e 35 anos freqüentemente se vêem diante de três
que possuem instrução adequada, mas que não caminhos: migrarem para o Ocidente,
têm nada a fazer,” lamentou William Ochieng, juntarem-se a organizações fundamentalistas
ex-autoridade governamental, escrevendo para e partidos políticos, ou alistarem-se em grupos
o jornal The Daily Nation, de Quênia, em janeiro guerrilheiros e redes terroristas.16
de 2002. Estudos revelam que os riscos de
instabilidade entre jovens podem aumentar As taxas de mortalidade reverteram
quando membros capacitados das elites são seu declínio em mais de 30 países,
marginalizados por falta de oportunidade. O mundialmente
sociólogo Jack Goldstone observou que as
rebeliões e movimentos religiosos dos séculos Elites descontentes podem, por sua vez,
XVI e XVII foram liderados por jovens das mobilizar grupos menos instruídos para sua
classes dominantes que, quando atingiam a causa. Investigações do recente incremento da
idade adulta dentro de um grupo excessi- violência na Tailândia apontam para o possível
vamente grande da mesma idade, viam que o envolvimento de grupos extremistas muçul-
apadrinhamento do Estado não podia manos, que podem estar recrutando
recompensá-los com o salário, terras ou ativamente jovens fervorosos e com pouca
posições burocráticas que correspondessem instr ução for mal para promover seus
a seu status e conquistas educacionais.15 objetivos islâmicos. Na cidade de Suso, que
Não é difícil encontrar paralelos contem- perdeu 18 homens com menos de 30 anos de
porâneos. Goldstone atribui o colapso do idade no levante de abril de 2004, a maioria
regime comunista da União Soviética no início dos mortos havia se formado em escolas
dos anos 90, em parte, à mobilização de particulares islâmicas do país, freqüentemente
grande número de jovens descontentes um recurso extremo das famílias que não
impossibilitados de exercerem sua capacidade podem pagar por uma educação formal

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Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

superior. Enquanto isso, no Paquistão, estudos países provavelmente continuarão a repre-


estimam que até 10-15% das 45.000 escolas sentar um desafio ao desenvolvimento
religiosas do país possuem laços estreitos com regional e segurança internacional.19
grupos militantes.17 Em geral, a conclusão da transição
Qual a força da ligação entre os jovens e os demográfica é vista como uma realização
conflitos? Os cientistas políticos Christian auspiciosa. As crianças em famílias menores,
Mesquida e Neil Wiener, da Universidade de caracteristicamente, crescem com melhor
York, no Canadá, analisaram conflitos ao saúde e instrução do que outras na mesma
longo da segunda metade do século XX e faixa de renda. Mas a consecução da transição
constataram que em regiões assoladas por traz consigo seus próprios desafios. Em alguns
conflitos, como os Bálcãs e a Ásia Central, países pós-transição, como Rússia e Japão, e
países com populações mais jovens sofreram na maior parte da Europa, o que foi antes um
maior índice de mortes por mil pessoas, inchaço jovem do pós-guerra desenvolveu-se
relacionadas a combates, do que outros países. hoje num alarmante inchaço idoso. Embora
Mais recentemente, pesquisadores da Population o envelhecimento e o declínio populacional
Action Inter national [PAI], sediada em sustentado não deverão ser tão ameaçadores
Washington, divulgaram que os países com à segurança global como o é o grande
maior inchaço jovem – onde jovens adultos número de jovens desempregados, legisla-
representam mais de 40% de todos os adultos dores e economistas estão cada vez mais
– tinham aproximadamente duas vezes e meia preocupados com as implicações disto no
mais chances de sofrer irrupção de conflitos crescimento econômico e prontidão militar.
civis durante os anos 90 do que os países (Vide Quadro 2-1.)20
abaixo desse referencial.18
A boa notícia é que grandes inchaços jovens A Ameaça Emergente
acabarão por se dissipar, caso as taxas de
do HIV/AIDS
fertilidade continuem seu declínio mundial
projetado. Já durante os anos 90, o número
Em 2003, quase 3 milhões de pessoas
de países onde jovens adultos representam
morreram de infecções relacionadas ao HIV,
40% ou mais de todos os adultos declinou
elevando a mais de 20 milhões o número total
em cerca de um sexto, devido principalmente
de mortes causadas pela AIDS, a partir dos
à queda das taxas de natalidade no Leste da
primeiros casos identificados em 1981.21
Ásia, Caribe e América Latina. Ao mesmo
Basicamente em função desta crescente
tempo, contudo, um subconjunto menor de pandemia, as taxas de mortalidade
países nos primeiros estágios de suas transições efetivamente reverteram seu declínio em mais
demográficas – a maioria na África sub- de 30 países, mundialmente. A disseminação
saariana e Oriente Médio - sofre um global do HIV/AIDS ameaça criar uma
crescimento acelerado em suas populações de estrutura etária mortalmente desequilibrada –
jovens entre 15 e 29 anos, que às vezes de uma forma jamais vista na história.
representa mais da metade de todos os adultos. Nenhuma doença na experiência humana
Até que essas populações jovens declinem e debilita e mata como a AIDS, derrubando às
as perspectivas de emprego melhorem, esses dezenas de milhões não apenas jovens e velhos,

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Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

QUADRO 2-1. ENVELHECIMENTO E POPULAÇÕES DECLINANTES SÃO UM PROBLEMA?


Nos últimos anos, analistas populacionais e de salariais em muitos setores poderão, por sua vez,
segurança começaram a questionar as implicações afetar as taxas de alistamento militar nesses países,
da mudança demográfica nos países que concluíram levando à escassez de soldados de carreira.
suas transições demográficas, onde as populações Enquanto isso, os custos de tratamento de
são cada vez mais idosas. No Japão, Estados saúde para idosos estão crescendo a taxas de dois
Unidos e muitos países europeus, as taxas de dígitos. Até 2040, os custos da saúde e outros
natalidade estão hoje caindo ao ponto onde a benefícios públicos para os idosos estão projetados
parcela de adultos em idade produtiva encolheu, e a ultrapassarem 27% do produto interno bruto na
as populações idosas representam um quinto ou até Itália, Espanha, Japão e França. E, nos Estados
mesmo um terço do total. Rússia, Itália, grande Unidos, a alocação de recursos para aposentadoria
parte da Europa Oriental e uma dezena de outros já não acompanha a promessa do governo: o
países sofreram tamanha baixa fertilidade nos déficit entre o orçado e o alocado hoje excede US$
últimos anos que a população está efetivamente em 44 trilhões.
declínio – uma situação que só poderá ser revertida Entretanto, contrariamente a muitas nações em
no curto prazo por níveis muito elevados de desenvolvimento em confronto com as
imigração. Com uma taxa total de fertilidade de conseqüências do crescimento populacional
pouco mais de um filho por mulher, a população acelerado, a maioria dos países industrializados
russa hoje está encolhendo 0,7% anuais – cerca de dispõe de capacidade significativa para se ajustar
um milhão de pessoas a cada ano. aos desafios do envelhecimento populacional.
Até agora, nenhum país deu sinais flagrantes de Vários governos europeus, por exemplo, aceitaram
instabilidade econômica ou política devido ao imigrantes adicionais, estenderam a idade de
envelhecimento da população. (Na realidade, tanto aposentadoria e atraíram mais mulheres à força de
Japão e Rússia mostraram recentemente avanços trabalho, incrementando, ao mesmo tempo, a
econômicos.) Economistas, todavia, estão assistência infantil. E o Japão está devolvendo a
alarmados com projeções demográficas indicando responsabilidade dos cuidados com idosos às
que a relação trabalhadores/aposentados na famílias, e se valendo mais da tecnologia e
Europa irá provavelmente cair pela metade, de terceirização para cargos de baixa qualificação ou
quatro para apenas dois – estressando sistemas de mão-de-obra intensiva.
previdenciários e aumentando a pressão sobre os ___________________________________________________________________________________________
salários. Carência de mão-de-obra e aumentos fonte: Vide nota final 20

mas também pessoas nos anos mais prevê que, na ausência de tratamento, cerca
produtivos de suas vidas. Quase 90% das de 74 milhões de trabalhadores em todo o
fatalidades associadas à doença ocorrem entre mundo poderão morrer de causas relacionadas
pessoas em idade produtiva. Nove países da com a AIDS, até 2015 – o equivalente à perda
África subsaariana hoje perdem mais de 10% de um país inteiro do tamanho da África do
de suas populações em idade produtiva a cada Sul ou Tailândia. Como observou Peter Piot,
cinco anos, principalmente pela alta prevalência Diretor Executivo da UNAIDS, “a AIDS está
do HIV. (Vide Tabela 2-2.) (Compara- devastando as fileiras dos membros mais
tivamente, os países industrializados perdem produtivos da sociedade com uma eficácia
cerca de 1% desse grupo etário a cada cinco [que] a história reserva para grandes conflitos
anos, enquanto até mesmo em países assolados armados”.23
por guerras com relativamente baixa preva- Ao invés de provocar confrontos diretos
lência do HIV, como Afeganistão e Sudão, este com, digamos, acesso a medicamentos ou
número foi de 4 – 6% no final dos anos 90.)22 tratamentos contra AIDS, o HIV/AIDS
A Organização Internacional do Trabalho provavelmente se destacará de forma mais

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Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

Tabela 2-2. Países com Maiores T


Países axas
Taxas relatório conjunto recente do UNICEF,
de Mortalidade Adulta, 2000-05 UNAIDS e Agência de Desenvolvimento
Taxa de Mortalidade Adulta na
Internacional dos Estados Unidos, entre 2001
País
Faixa Etária de 15-64 anos, e 2003, o número de órfãos da AIDS em
2000-05 todo o mundo aumentou de 11,5 milhões
(percentual morrendo)
para 15 milhões – a grande maioria na África.
Zimbábue 18,1 Na ausência de apoio governamental para
Suazilândia 15,9 colocar órfãos desabrigados em famílias e
Zâmbia 15,2
Lesoto 14,7 escolas, essas crianças poderão se tornar uma
Botsuana 14,0 fonte de futuro descontentamento urbano,
Malawi 11,2 atividade criminosa e recrutas para
Namíbia 10,7
República Central 10,5 insurgências.25
Africana Por enquanto não há sinal aparente de
Moçambique 10,2
violência em massa ou rebelião inspirada pela
FONTE: Vide nota final 22
AIDS. Isto porém pode mudar à medida que
a pandemia continua em disseminação global.
insidiosa – afetando o desenvolvimento Em 2003, o número de pessoas convivendo
industrial, reduzindo a produção agrícola, com o HIV aumentou em quase 5 milhões,
enfraquecendo a integridade militar e política para um total de 38 milhões – o maior
e erodindo a capacidade de resposta ao aumento num único ano desde o início da
descontentamento interno crônico e crises epidemia. Enquanto os nascimentos mais do
repentinas nos países mais fracos do mundo. que compensem as mortes pela AIDS na
Onde a epidemia está mais desenvolvida, maioria dos 53 países hoje considerados
como na África sub-saariana, a doença está afetados por ela, esta situação pode reverter,
significativamente disseminada, conturbando dentro dos próximos anos, em um punhado
as atividades governamentais, escolas, fábricas, de nações, causando declínios populacionais.
fazendas, instalações de saúde e forças A República Central Africana, Lesoto, Malawi,
armadas. O impacto da AIDS sobre as forças Moçambique, Suazilândia, Zâmbia e
armadas em cerca de 20 países em todo o Zimbábue têm hoje expectativas de vida
mundo é particular mente alarmante, abaixo de 40 anos, enquanto pelo menos 13
constituindo-se numa ameaça à prontidão países sofreram reversões mensuráveis em
operacional e a compromissos de manutenção desenvolvimento humano, desde 1990.
da paz – e representando um perigoso Tragicamente, alguns dos desaceleramentos
reservatório para maior disseminação da mais dramáticos do crescimento populacional
doença. (Ver também Capítulo 3.)24 em todo o mundo ocorrem hoje em países
Os países afetados pela AIDS também sofrendo tanto altas taxas de prevalência do
podem ficar vulneráveis à instabilidade política, HIV quanto declínios significativos de
à medida que o número crescente de crianças fertilidade. Mas, contrariamente à desa-
orfanadas pela doença aumenta a proporção celeração provocada pela taxa de natalidade
de pessoas dependentes, agrava a pobreza e que se mostrou economicamente benéfica para
aumenta as desigualdades. Conforme um muitos países ao longo do último meio-século,

32
Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

o crescimento populacional mais lento devido Porém, como muitos países em desen-
à AIDS, provavelmente, dificultará o volvimento crescendo aceleradamente, esta
crescimento econômico.26 nação pobre está despreparada para lidar com
Em geral, a epidemia da AIDS está criando os efeitos colaterais desse ataque urbano,
uma combinação perniciosa de aprofun- incluindo desabrigo, crime e desemprego.28
damento da pobreza e perda de confiança em Desde 1950, a população urbana mundial
governos que se mostram cada vez mais mais que quadruplicou, indo de 733 milhões
incapazes de prestar serviços básicos, sem falar até um pouco mais de 3 bilhões, e hoje cresce
na promoção de desenvolvimento econô- mais rapidamente do que a população mundial
mico. O Secretário de Estado dos Estados como um todo. Cerca de 60% deste
Unidos Colin Powell descreveu a doença crescimento é resultado de aumentos naturais
como um iminente “destruidor de na- – nascimentos menos mortes urbanas. Porém,
ções...[com] o potencial de desestabilizar uma onda incessante de migração representa
regiões, talvez até continentes inteiros.” E o quase todo o resto, com as pessoas simulta-
Ex-presidente dos Estados Unidos Bill neamente “empurradas” para as cidades
Clinton denominou a pandemia como um deixando as áreas rurais, devido à estagnação
prelúdio a “mais terror, mais mercenários, ou devastação de guerras, e “puxadas” pelo
mais guerras...e colapso de democracias encanto de empregos mais promissores,
frágeis.” Sem a capacidade de planejar e educação e os atrativos da modernização. À
resolver problemas de longo prazo e medida que esta tendência continua, a
responder a crises agudas, os países mais humanidade se aproxima de um marco
afetados pela AIDS correm o risco de estancar histórico: até 2007, pela primeira vez no
em seu caminho para a industrialização, mundo, mais pessoas viverão nas cidades do
democracia e as fases finais da transição que em áreas rurais.29
demográfica.27 A urbanização é, em geral, uma tendência
demográfica positiva. Tradicionalmente, o
Crescimento Urbano deslocamento para as cidades contribuiu para
Acelerado o crescimento econômico e integração global,
à medida que mais pessoas encontram
Já há muitos anos, ciclos intensos de seca e residências próximas a escolas, clínicas, locais
enchentes causaram caos na minúscula Malawi, de trabalho e redes de comunicações. Como
no coração da África meridional. Em 2002 e as cidades são centros de indústria e educação,
2003, chuvas torrenciais provocaram seus habitantes estão quase sempre à frente
deslizamentos maciços, destruindo pontes e das populações rurais no acesso a novas
residências e devastando lavouras de milho, o tecnologias, informação e bens. Populações
principal alimento básico. Impossibilitados de urbanas também são geralmente as primeiras
extrair algum sustento da terra devastada, a a experienciarem declínios em mortalidade
população rural se deslocou maciçamente para infantil e fertilidade, à medida que os governos
as florescentes cidades do país – concedendo priorizam clínicas urbanas que podem prestar
a Malawi a distinção dúbia de ser a nação de serviços de saúde mais eficientes em termos
maior desenvolvimento urbano do mundo. de custo/benefício. Na África, por exemplo,

33
Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

as recentes mudanças de comportamento na íntima interação entre grupos díspares pode


gravidez e declínios de fertilidade são, ter implicações sociais positivas. “As cidades
basicamente, fenômenos urbanos.30 forçam as pessoas a se misturarem e se
familiarizarem com membros de grupos cujos
caminhos podem nunca se cruzar em áreas
Países com taxas aceleradas de crescimento rurais,” observa Marc Sommers, da CARE
populacional urbano tiveram International. Porém, quando interesses grupais
aproximadamente duas vezes mais chances se conflitam, as cidades podem manter uma
do que outros países de se envolverem em competição econômica e política intensa,
conflitos civis nos anos 90. particularmente se os mercados imobiliários
e de trabalho realçam disparidades no acesso
Mas a urbanização é uma faca de dois à educação, capital e poder político.32
gumes. Os próprios aspectos que fizeram as Quando ressentimentos históricos e desen-
cidades do mundo industrializado prósperas tendimentos culturais afloram, as cidades
– população jovem, diversidade étnica e podem se tornar um lócus para conflitos étnicos
religiosa, classe média e proximidade ao poder e religiosos. Em 1992, nos arredores da cidade
político – são fontes potenciais de volatilidade normalmente tranqüila e rural de Ayodhya, no
para muitas cidades emergentes e econo- norte da Índia, cerca de 150.000 militantes
micamente deprimidas no mundo em hindus irromperam numa mesquita do século
desenvolvimento. As extraordinárias taxas de XVI praticamente abandonada, atacando
crescimento que muitas cidades do mundo em forças de segurança e destruindo o prédio. Ao
desenvolvimento sustentaram durante os anos invés de se espalhar pela vizinhança, onde
70 e 80 – Jacarta e Déli, por exemplo, quase comunidades muçulmanas e hindus coexistiam
que duplicaram de tamanho durante este pacificamente, o ódio explodiu a centenas de
período – não puderam sustar a exaustão dos quilômetros de distância, em Mumbai, Calcutá,
orçamentos urbanos, abarrotar os mercados Ahmedabad e Déli. Três dias de violência
de trabalho e desafiar a adequação dos intensa em Ahmedabad e na vizinha Vadodara
serviços e infra-estrutura existentes. Mesmo deixaram mais de 850 mortos e milhares
hoje, menos da metade dos habitantes da desabrigados. No total, quase 95% das 1.500
maioria dos centros urbanos na África, Ásia e pessoas mortas nos tumultos comunais que
América Latina possui água encanada, e menos se desenvolveram eram moradores urbanos.
de um terço dispõe de saneamento básico. As Os incidentes, alguns dos quais foram
prefeituras nos países mais pobres são as ignorados ostensivamente por líderes locais,
menos capazes de reunir recursos humanos e não só frustraram esforços de moderados que
financeiros para lidar com esses problemas, mediavam cooperação entre políticos
especialmente quando o segmento mais pobre muçulmanos e hindus, mas também agra-
e não-contribuinte da população continua a varam as relações já tensas entre a Índia e o
crescer aceleradamente.31 vizinho Paquistão.33
Quando as prefeituras e líderes comunitários Em geral, de acordo com a Population Action
têm vontade política e recursos para superar International, os países com taxas aceleradas de
diferenças étnicas, religiosas e regionais, uma crescimento populacional urbano – 4% ao ano,

34
Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

ou mais – tiveram aproximadamente duas maioria dos países – particularmente aqueles


vezes mais chances do que outros países de se nos estágios iniciais da transição demográfica
envolverem em conflitos civis durante os anos – oferece a esperança que as cidades, também,
90. Jovens urbanos desiludidos – sejam cresçam a um ritmo mais controlável e
estudantes politizados ou desempregados estável.36
irados – são freqüentemente os primeiros
recrutas. Já há décadas, os filhos sem-terra de Competindo por Água
agricultores paquistaneses se amontoam em e Terras Cultiváveis
cortiços urbanos em torno de Carachi e
Islamabad, onde muitos encontraram uma
Na região seca e contenciosa outrora
saída para suas frustrações, através do
descontentamento político e violência conhecida como o Crescente Fértil, três países
sectária.34 – Iraque, Síria e Turquia – há muito estudam
A inquietação urbana provavelmente planos para extrair mais água dos rios Tigre e
aumentará se as grandes cidades no mundo Eufrates. Há, porém, um problema. Em 2002,
em desenvolvimento se estenderem mais para a população conjunta dos três países cresceu
o campo e os entroncamentos e cidades- em mais de 2 milhões, para 110 milhões de
mercado se transformarem rapidamente em pessoas. Nem o Eufrates, que flui do centro
centros populosos. Hoje, 16 das 20 “mega- da Turquia, através da Síria e do Iraque, nem
cidades” mundiais – com mais de 10 milhões o Tigre ao leste, podem proporcionar água
de habitantes – estão em países em suficiente para satisfazer as demandas anuais
desenvolvimento, e a parcela urbana da popu- crescentes destes consumidores, particular-
lação do mundo em desenvolvimento está mente durante os anos mais secos. “Os países
projetada para atingir 60% até 2030, reconheceram a impossibilidade de unir seus
comparado com 42% em 2003 e apenas 18% planos,” escreveu Douglas Jehl no New York
em 1950. A Ásia já tem mais pessoas vivendo Times, em 2002. “Mas nenhum demonstrou
em cidades do que os habitantes de todos os qualquer disposição de abandoná-los.”37
países industrializados juntos, e cerca de metade Muitas regiões do mundo estão sofrendo
do seu crescimento urbano ainda está por vir.35 declínios acelerados, tanto na qualidade quanto
À medida que as associações entre na disponibilidade de recursos naturais críticos.
crescimento urbano e conflitos se tornam mais Mais de 30 países – a maioria na África e
evidentes, os analistas precisarão dar maior Oriente Médio – já caíram abaixo até mesmo
atenção ao papel da urbanização em suas do referencial mais conservador de escassez,
avaliações. No curto prazo, os legisladores seja de terras cultiváveis (0,07 hectares por
deverão considerar programas que apri- pessoa), seja de água doce renovável (1.000
morem a qualidade e capacidade da gover- metros cúbicos por pessoa). (Vide Tabela 2-
nança municipal, estimulem a criação de 3.) Alguns países chegaram a esta situação
emprego e fortaleçam as relações étnico- devido a uma combinação de clima e solo
comunitárias nas regiões em rápida urba- adversos e uma população em rápido
nização. No longo prazo, entretanto, só a crescimento; outros, todavia, estão sofrendo
desaceleração do crescimento populacional na essa escassez quase que exclusivamente como

35
Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

conseqüência do crescimento populacional. com as taxas de crescimento populacional


(Quatro países – Egito, Israel, Kuwait e Omã acima da média do mundo em desen-
– atingiram níveis críticos em ambas as áreas, volvimento, de 1,5%.)38

Tabela 2-3. Principais países enfrentando escassez per capita de terras


cultiváveis e água doce, 2005

Terras cultiváveis Taxa de crescimento Água doce renovável Taxa de


disponíveis populacional disponível crescimento
per capita 2000-05 per capita populacional
País País 2000-05

(hectares (percentual) (metros cúbicos (percentual)


por pessoa) por pessoa)

Kuwait <0,01 3,46 Kuwait 7 3,46


Cingapura <0,01 1,69 Arábia Saudita 78 2,92
Maldivas 0,01 2,98 Líbia 173 1,93
Bahrein 0,01 2,17 Jordânia 174 2,66
Brunei 0,02 2,27 Iêmen 186 3,52
Islândia 0,02 0,79 Israel 299 2,02
Malta 0,02 0,42 Omã 331 2,98
Bahamas 0,03 1,13 Argelia 426 1,67
Omã 0,03 2,98 Tunísia 498 1,07
Catar 0,03 1,54 Burundi 547 3,10
Egito 0,04 1,99 Ruanda 581 2,16
Japão 0,04 0,14 Egito 775 1,99
FONTE: Vide nota final 38.

Diante dessa realidade, os analistas precipitação sazonal.39


manifestaram grande preocupação quanto à Até agora, todavia, a história demonstrou
inevitabilidade de “guerras por recursos” nas que as nações que “procuram briga” em
próximas décadas, particularmente por água função da água – e outros recursos naturais
doce. Quase metade das terras do planeta renováveis – têm brandido mais palavras do
encontra-se dentro de cerca de 263 bacias que armas. As hostilidades internacionais
hidrográficas internacionais que se estendem relacionadas aos recursos têm, caracte-
pelas fronteiras de dois ou mais países – risticamente, ter minado de forma não-
representando 60% do manancial mundial. violenta, como acordos negociados ou
(Vide Capítulo 5.) Os 71 milhões de habitantes formação de instituições reguladoras para
do Egito, por exemplo, dependem do Nilo resolução de disputas. No futuro próximo,
para mais de 97% de suas necessidades, mas pelo menos, o maior risco provavelmente será
precisam compartilhá-lo com a Etiópia e disputas por recursos, influenciadas por
outros oito países a montante, todos questões populacionais não entre, mas intra,
militarmente mais fracos e empenhados em países. Embora teóricos ainda mantenham
incrementar a produção agrícola e serviços debates acirrados quanto a tais disputas
urbanos frente ao crescimento populacional chegarem mesmo a provocar conflitos civis
acelerado, estiagens longas e cíclicas, e em grande escala ou colapso de algum país,

36
Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

há um consenso geral de que a escassez de restringindo árabes da Margem Ocidental


água, terras cultiváveis e outros recursos pode ocupada de perfurarem novos poços para
aumentar os riscos de fricções menores agricultura, enquanto os colonos israelenses
localizadas e esporádicas. Estas disputas só continuam a perfurar mais fundo – em alguns
tendem a escalar para conflitos armados mais casos fazendo com que os lençóis freáticos
graves quando as instituições que devem ajudar caiam bem abaixo do alcance dos poços
a gerir os recursos de um país e solucionar palestinos. Desde 1967, o percentual das terras
carências são muito frágeis, mal financiadas cultivadas que os agricultores palestinos irrigam
ou corr uptas para fazê-lo. No futuro, caiu de 27% para cerca de 5%, contribuindo
entretanto, o crescimento populacional para o desemprego e perda de produtividade,
acelerado e continuado no mundo em como também para o aumento do descon-
desenvolvimento – e as demandas sem tentamento contra o governo israelense.42
precedentes sobre a oferta que isto trará – Apesar da importância da água doce para
desafiará até mesmo as instituições mais o desenvolvimento econômico e humano de
capacitadas.40 uma nação, estudos indicam que disputas civis
Uma fonte de tensão crescente é a alocação sobre a água tendem a ser menos voláteis do
de água doce entre usuários locais que sobre terras cultiváveis. Isto pode refletir
diversificados – particular mente entre diferenças em como os dois recursos são
agricultores e o conjunto mais politicamente controlados e apreçados, como também o
influente e cada vez maior de usuários urbanos acesso que as pessoas têm a eles. A água é
e industriais. O Instituto Internacional de tradicionalmente considerada como um
Pesquisa de Política Alimentar estima que às recurso comunitário, e as disputas sobre
taxas atuais de crescimento populacional e uso direitos são freqüentemente dirimidas por
da água, o consumo residencial global de água autoridades hídricas ou tribunais provincianos.
aumentará mais da metade, até 2025. Pelo A terra, por outro lado, é mais propensa a ser
menos parte deste aumento ocorrerá às custas propriedade privada, e quase sempre desigual.
dos agricultores – particularmente no mundo Quando as terras cultiváveis se tornam escassas,
em desenvolvimento, onde as lavouras disputas sobre sua distribuição podem surgir
dependem mais de irrigação do que na entre camponeses que reconhecem direitos
América do Norte ou Europa. Isto não só comunitários étnicos e de usucapião e latifun-
colocará cada vez mais a integridade diários ou proprietários, de etnias diferentes,
econômica de comunidades rurais em que asseguraram sua posse através de escrituras
confronto com o crescimento de centros ou conquistas ancestrais.43
urbanos e industriais, mas também poderá Em alguns casos, disputas locais por terras
representar ameaças à segurança alimentar se estenderam a ameaças maiores. A rebelião
nacional ou regional ao prejudicar os esforços zapatista no Estado de Chiapas, ao sul do
de produção de alimentos.41 México, por exemplo, desenvolveu-se ao
Reivindicações concorrentes por água doce longo de tensões seculares entre poderosos
poderão complicar os esforços para solução latifundiários e peões maias sem-terra
dos infindáveis conflitos no Oriente Médio. pressionados por outros assentados pobres e
Por mais de três décadas, Israel vem excluídos das reservas florestais protegidas

37
Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

pelo governo. A escala e organização da política agrária nacional que, caso seja efeti-
rebelião inquietaram investidores estrangeiros vamente implementada, poderá resolver
e, de acordo com alguns analistas, pode ter questões renitentes sobre distribuição de terras.
contribuído para a crise monetária nacional (Vide Quadro 2-2.) E muitos países europeus
que acabou por solapar o poder do regime com escassez de recursos, como também
em vigor.44 nações asiáticas industrializadas como Coréia
do Sul, Taiwan e Japão, incrementaram suas
Reivindicações concorrentes por importações de alimentos e ração animal, a
água doce poderão complicar os fim de aliviar as crescentes demandas agrícolas
esforços para solução dos infindáveis sobre terras e água doce. Outros, começaram
a importar água doce através de adutoras e
conflitos no Oriente Médio.
outros meios diretos, tornaram-se mais
eficientes no uso da água ou se voltaram para
Independentemente dos vários exemplos a dessalinização, a fim de suplementar a
históricos de violência relacionada a recursos carência de água potável.46
naturais, pesquisas indicam que as ligações entre
escassez de recursos e conflitos podem não Para a maioria dos países em
ser tão fortes quanto aquelas entre conflitos e desenvolvimento enfrentando diminuição
outros fatores demográficos, como
de recursos e populações em constante
urbanização ou inchaço jovem. A maioria dos
aumento, há pouca esperança imediata
teóricos concorda que mudanças ambientais
de atrair o capital necessário para
– sejam terras cultiváveis ou escassez hídrica
ou aumento de desmatamento e erosão do uma rápida industrialização.
solo – são apenas uma pequena parte de um
misto complexo de estresses que promovem Naturalmente, a maioria dos países
instabilidade social maciça. O sociólogo Jack industrializados ricos tem condições de investir
Goldstone, por exemplo, argumenta que o em tecnologia eficiente no uso da água e
descontentamento entre as elites é um possuem amplos recursos financeiros para
elemento mais agudo na evolução de conflito importar grãos – tornando-os muito menos
civil. Escassez ambiental e “marginalização vulneráveis a um conflito envolvendo recursos
ecológica,” assegura Goldstone, não são naturais. Para a maioria dos países em
determinantes poderosos de vulnerabilidade, desenvolvimento enfrentando diminuição de
uma vez que estes fatores raramente afetam recursos e populações em constante aumento,
os meios de vida ou poder da elite de forma há pouca esperança imediata de atrair o capital
adversa.45 necessário para uma rápida industrialização, ou
Ademais, existe uma vasta gama de para transformar radicalmente seus usos do
oportunidades para mediar escassezes solo e da água. Seja qual for o registro histórico,
potencialmente explosivas, através de as conseqüências da competição cada vez
legislação e políticas econômicas seguras, do maior por esses recursos cruciais são incertas
comércio e cooperação técnica. Ruanda, por e pouco animadoras. Por este motivo, a
exemplo, está em vias de finalizar uma nova necessidade de focar as forças demográficas

38
Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

subjacentes que movem a escassez de recursos países conseguiram compensar esses riscos
– e investir em programas que ajudem a através de governança forte, resolução de
desacelerar o crescimento populacional nessas conflitos, mediação étnica ou políticas
regiões afetadas – é cada vez mais urgente. econômicas bem-sucedidas – incluindo a
criação de emprego urbano, importação de
Minimizando Riscos recursos críticos, distribuição de terras e
encorajamento à imigração. Cabo Verde, na
e Avançando
África Ocidental, pode ter compensado sua
vulnerabilidade durante os anos 80 e 90,
Em muitos casos, os quatro “fatores
facilitando a migração de seus cidadãos para
demográficos de risco” – aumento crescente
Europa em busca de emprego, e encorajando-
de jovens, crise do HIV/AIDS, urbanização
acelerada e disponibilidade reduzida de terras os a remeterem uma parcela de suas rendas
cultiváveis ou água doce – não ocorrem de volta ao país.48
isoladamente. Pelo contrário, interagem uns Enquanto isso, países do Leste e Sudeste
com os outros e com variáveis não- da Ásia, como a Coréia do Sul e a Malásia,
demográficas, incluindo tensões étnico- transformaram um inchaço jovem crescente
históricas, governança insensível e instituições nos anos 60 e início dos anos 70 numa força
fracas, produzindo um estresse que desafia econômica positiva, através de investimentos
lideranças governamentais e a capacidade dos críticos em educação e treinamento pro-
países funcionarem eficazmente. Embora seja fissional. E muitos países ricos em petróleo
improvável que levem diretamente ao caos criaram empregos urbanos, grandes exércitos
político ou à guerra, podem agravar em muito e burocracias excessivas para absorver suas
a vulnerabilidade de um país a conflitos. De crescentes populações – além de reprimir
acordo com a Population Action International, impiedosamente qualquer dissensão que
países que revelaram dois ou mais fatores, seja pudesse levar a conflito. Na Coréia do Norte,
alta proporção de jovens, altas taxas de cres- China e Turcomenistão, a expansão das forças
cimento urbano ou carências de dispo- militares e de segurança interna provavelmente
nibilidade per capita de terras cultiváveis ou água ajudou os regimes repressivos a manterem
doce, representaram 23 dos 36 países que estabilidade política durante a era pós-guerra
sofreram novas eclosões de conflitos civis fria, apesar da grande proporção de jovens
durante os anos 90.47 adultos.49
Felizmente, demografia não é destino. Mas No longo prazo, todavia, a única forma de
a probabilidade de conflito futuro poderá vir aliviar as pressões demográficas potencial-
a refletir a forma que as sociedades escolhem mente voláteis será através do enfrentamento
de como enfrentar seus desafios demo- direto ao crescimento populacional. A queda
gráficos. Por exemplo, a PAI constatou que, significativa de fertilidade que ocorreu em cerca
cerca da metade dos países que deveriam estar de 20 países em desenvolvimento no Leste
correndo riscos demográficos muito altos da Ásia, Caribe e América Latina, nas últimas
durante os anos 90, na realidade navegaram décadas, é uma tendência encorajadora.
pacificamente o período pós-guerra fria. Por Grande parte do crédito para esta trans-
quê? Em pelo menos alguns desses casos, os formação deve-se aos países que investiram

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Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

em serviços vitais de saúde reprodutiva, in- conseguiram entrar rapidamente no último


cluindo melhoria de acesso a planejamento estágio da transição demográfica através de
familiar e tratamento de saúde materna e políticas sociais proativas, eficiência de custo,
infantil. Tunísia e Tailândia, por exemplo, programas de saúde reprodutiva de largo

QUADRO 2-2. REFORMA AGRÁRIA EM RUANDA.


O acesso à terra é uma questão crítica em Ruanda, técnica e responsabilidade das novas comissões da
que sofre aguda escassez de terra. Ao longo dos terra encarregadas da implementação de
últimos 40 anos, a densidade demográfica em terras reassentamentos serão muito importante.
agrícolas aumentou de 121 pessoas para cerca de Enquanto isso, o cadastramento dos lotes de
321 por quilômetro quadrado. Cerca de 60% das terra em Ruanda exigirá recursos financeiros e
famílias possuem menos de meio-hectare de terra. técnicos maciços. A nova política requer que os
A distribuição também é altamente desigual: o proprietários assumam os custos do cadastramento
quarto da população que possui mais de um hectare – levando a temores que os ricos terão condições
por família representa quase 60% das propriedades de se cadastrarem às custas dos pobres, embora
do país. Devido à pressão populacional, os períodos pareça que um sistema de duas classes poderá ser
de alqueive são mínimos, levando à queda da implantado, com um sistema subsidiado para a
fertilidade do solo, com muitas famílias cultivando maioria. A política requer a criação de uma reserva
solos inadequados. a fim de alocar terras para aqueles que não a
Nos últimos anos, ondas sucessivas de possuam, porém sua definição muito estreita de
deslocamento populacional e reassentamentos quem é sem-terra exclui uma alta proporção desta
causaram impactos profundos no assentamento e população.
propriedade de terras. Ruanda foi afetada por A implantação de comissões distritais da terra
conflitos internos desde sua independência, poderá proporcionar meios eficazes de resolução de
culminando no genocídio de 1994, que resultou na disputas locais sobre acesso à terra – muitas das
morte de cerca de 800.000 pessoas. Discussões quais surgiram do “compartilhamento” ocorrido
sobre terra são hoje mais numerosas sendo também após 1994, com o fim de acomodar reivindicações
as disputas legais mais intratáveis do país. Embora a concorrentes de refugiados. Para ter sucesso,
governança pós-conflito tenha sido, em geral, mais entretanto, as novas comissões da terra deverão
inclusiva, Ruanda tem tido pouca experiência com prestar contas às comunidades locais ao invés de
governança participativa, e a capacidade da escalões superiores do governo.
sociedade civil influenciar políticas continua duvidosa. Em geral, a nova política e legislação da terra
Em resposta a esses desafios, o governo de proporcionam várias oportunidades potencialmente
Ruanda está finalizando uma nova Política Agrária positivas para melhoria da gestão agrária e
Nacional e uma Lei Nacional da Terra. A política governança ambiental. Mas precisarão ser
objetiva implantar diretrizes e programas implementadas com cautela e transparência. Já surge
apropriados para alocação e uso da terra, confusão em nível comunitário sobre as possíveis
promover consolidação da terra, formar comissões implicações da propriedade familiar. O envolvimento
locais da terra e realizar o cadastramento de todos e coordenação de todos os setores do governo
os lotes. Pretende também encorajar a participação precisarão melhorar, e as organizações comunitárias
comunitária e assegurar que as mulheres se e grupos não-governamentais terão que
beneficiem da terra através de heranças. desempenhar um papel-chave no apoio às novas
A consolidação da terra é uma das questões mais comissões da terra e monitoração da
complexas. O processo de incorporar lotes menores implementação.
em propriedades mais produtivas e
economicamente viáveis envolverá, provavelmente, Chris Huggins e Hermon Musahara,
algum grau de compulsão, aumentando o perigo de Centro Africano para Estudos Tecnológicos
lavradores mais pobres perderem o controle de seus
meios agrários de vida. A composição, capacidade Fonte: Vide nota final 46.

40
Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

alcance e assistência técnica do exterior. Muitos duplicar dentro da próxima década, de US$
países também promoveram políticas que 239 milhões em 2000 para US$ 557 milhões
ajudaram a permanência escolar de meninas e em 2015.51
aumentaram as oportunidades de emprego Infelizmente, justamente quando há mais
fora de casa para mulheres – incrementando urgência, o apoio internacional para o
o status e a renda das mulheres, melhorando planejamento familiar e serviços afins continua
a nutrição e a sobrevivência infantis e amplian- a diminuir. Em 2000, chegava apenas a metade
do a demanda por contracepção moderna.50 da meta de US$ 17 bilhões estabelecida pelas
Infelizmente, a maioria dos países que Nações Unidas, em 1994, na Conferência
correm altos riscos demográficos hoje não Internacional sobre População e Desen-
dispõe de capacidade institucional para volvimento, no Cairo. A parcela dos Estados
responder a esses desafios. Precisam dos Unidos se traduziu em US$ 1,9 bilhão, porém
sistemas financeiros e mercados estáveis, em 2000, os recursos dos EUA para saúde
aplicação adequada de leis, direitos de reprodutiva – que inclui programas de
propriedade claramente delineados, e sistemas planejamento familiar, HIV/AIDS e saúde
educacionais e de saúde eficientes, que são os materna e infantil, e uma contribuição ao
alicerces de nações fortes. E, na maioria dos Fundo de População das Nações Unidas
casos, o nível e qualidade dos serviços que (FNUAP) – totalizaram apenas um terço da-
poderiam evitar o agravamento da situação quele compromisso. Em 2004, pelo terceiro
demográfica desses países – inclusive ano consecutivo, o governo dos Estados
planejamento familiar, educação feminina, Unidos reteve os US$ 34 milhões que deve
saúde materna e infantil e prevenção do HIV/ ao FNUAP – cerca de 10% do orçamento
AIDS – são lamentavelmente inadequados. chave da organização. O fracasso contínuo de
A extensão desses serviços aos países mais cumprimento dos compromissos inter-
fracos e pobres do particularmente mundo nacionais prejudicará significativamente o
exigirá muito mais colaboração e assistência avanço da transição demográfica, dificultando
internacional do que existe hoje. Países mais ainda mais a contenção da disseminação do
ricos precisarão tomar a iniciativa de contribuir HIV.52
com capacitação técnica, recursos financeiros Embora políticas e programas que
e suprimentos. O mundo hoje enfrenta influenciam as tendências populacionais
carências críticas de suprimentos necessários tenham estado tradicionalmente na esfera de
para contracepção, prevenção de HIV/AIDS doadores e prestadores de serviços sociais e
e outros serviços de tratamento e cuidados de saúde internacionais, a comunidade
sexuais e de saúde reprodutiva. Conforme um internacional de segurança, também, começa
estudo recente, em 1999, menos de cinco a se apresentar. Em abril de 2002, numa
preser vativos por homem em idade resposta por escrito ao questionamento do
reprodutiva foram disponibilizados por Congresso, a Agência Central de Inteligência
doadores internacionais e governos para toda dos Estados Unidos observou que “várias
a África subsaariana. E o custo anual de suprir tendências globais graves – especialmente o
preservativos grátis e acessíveis suficientes em crescente inchaço demográfico jovem nas
todo o mundo está projetado a mais que nações em desenvolvimento, cujos sistemas

41
Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

econômicos e ideologias políticas encontram- política. Analistas de segurança e defesa


se sob uma gigantesca pressão – incentivarão nacional, como também autoridades militares,
o aumento de grupos mais rebeldes, dispostos freqüentemente exercem influência que
a utilizar violência para resolver suas transcende mudanças em liderança gover-
insatisfações.” A agência alertou que, caso as namental e no clima político – tornando-os
operações antiterroristas dos Estados Unidos aliados importantes no movimento para mu-
não enfoquem muitas das causas subjacentes dança demográfica. Ao incluir dados popula-
que movem os terroristas – inclusive a cionais e projeções em estudos de área,
demografia –, poderão a vir a fracassar na previsões operacionais ambientais e outras
eliminação da ameaça de futuros ataques.53 avaliações de segurança e ameaças, eles podem
Apesar desses avisos, estrategistas e proporcionar informações e orientações
legisladores de segurança têm sido lentos em precisas a legisladores, mídia e líderes de
agir. Na maioria, optam por focar suas opinião sobre os benefícios globais que
atenções na promoção da democracia e podem advir da conclusão de uma transição
reformas de mercado que, na ausência de demográfica completa. Esse apoio pode
mudanças paralelas na esfera social, poderá ajudar na obtenção de fundos para programas
vir, ironicamente, a desestabilizar nações. Ajuda de planejamento familiar, educação feminina,
aos países para se aproximarem da fase final saúde materna e infantil, e prevenção e
da transição demográfica – uma fase na qual tratamento do HIV/AIDS.55
as pessoas têm vidas mais longas e as famílias A comunidade de segurança pode agir de
são menores, sadias e instruídas, e onde a forma mais direta também, ajudando a
população quase parou de crescer – promete facilitar o acesso a serviços de saúde repro-
ajudar a reduzir a freqüência dos conflitos e dutiva para refugiados, civis em situações pós-
criar um mundo mais pacífico. Já há amplas conflito e todo o efetivo militar através de
evidências de que, ao enfrentar os fatores chave operações de manutenção de paz e outras.
relacionados à mudança demográfica, os Oficiais militares graduados e diplomatas são
governos poderão fortalecer a segurança de freqüentemente os únicos com autoridade
países estratégicos, regiões pivotais e do direta em áreas restritas, encontrando-se assim
mundo como um todo.54 singularmente posicionados para ajudar a
aumentar a disponibilidade de serviços de
saúde reprodutiva a essas pessoas. Comandos
Justamente quando há mais urgência,
militares podem também prestar apoio
o apoio internacional para o
logístico e organizacional a grupos externos
planejamento familiar e serviços afins encarregados de prestar serviços de saúde
continua a diminuir. reprodutiva em ambientes pós-conflito –
inclusive a FNUAP, o Alto Comissariado das
Sem o apoio da comunidade nacional de Nações para Refugiados, órgãos oficiais de
segurança, os programas internacionais de saúde e várias organizações não-gover-
saúde reprodutiva correm o risco de serem namentais.56
ignorados – ou, o que é pior, serem sacri- Autoridades militares e diplomáticas e
ficados entre disputas internas por vantagem organizações internacionais de ajuda podem

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Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

contribuir para assegurar que particularmente poderão ajudar as forças armadas na África e
as mulheres tenham oportunidade de Ásia a reduzirem suas altas taxas de transmissão
representar seus próprios interesses e dos seus de HIV, que hoje ameaça os militares, suas
filhos – não só em situação de refugiadas, mas famílias e comunidades vizinhas.
também durante o processo de paz e Claramente, o incentivo à mudança demo-
reconstrução de países afetados por conflitos. gráfica poderá criar grandes oportunidades.
O Departamento de Desenvolvimento Não é, porém, uma fórmula milagrosa para
Internacional do Reino Unido, por exemplo, a segurança. Obviamente, o avanço demo-
fortaleceu sua inclusão de mulheres em pro- gráfico por si só não pode garantir que um
cessos de mediação e de paz, como também país derrube uma liderança opressiva, junte-
em assuntos legais e políticos em ambientes se à família global de nações democráticas ou
pós-conflito. Ao apoiar mudanças sociais e resista a conluio com insurgentes e terroristas.
políticas que encorajam moças a perma- Não se pode depender de mudanças demo-
necerem na escola e oferecem às mulheres gráficas para reduzir riscos onde conflitos
maiores oportunidades, esses grupos podem armados sejam persistentes ou recorrentes,
ajudar a melhorar o status das mulheres, redu- onde uma cultura de violência e retribuição
zir taxas de fertilidade e possivelmente até esteja firmemente enraizada, ou onde pro-
mesmo desviar as prioridades nacionais de blemas se alastrem de países instáveis vizinhos.
conflitos para o desenvolvimento humano. “A Colômbia, Irlanda do Norte e Sri Lanka são
questão de participação igualitária das mulheres regiões onde avanços demográficos nos anos
não é simplesmente uma questão de igualdade 90 deveriam ter ajudado a aliviar riscos.
de gênero e direitos humanos, mas sim uma Entretanto, em cada um dos casos, conflitos
que representa um fator decisivo para a civis onerosos que tiveram início em anos
manutenção de desenvolvimento pacífico anteriores, persistiram por toda a década.58
numa região conturbada,” observou Lul Da mesma forma, a mudança para os
Seyoum, uma ativista de direitos femininos da últimos estágios da transição demográfica não
Eritréa, numa conferência em 1999 sobre é a única forma de um país reduzir sua
mulheres e conflitos.57 vulnerabilidade à instabilidade ou conflito.
Na área de prevenção e tratamento do Processos demográficos raramente – ou
HIV/AIDS, governos com programas exem- nunca – agem sozinhos aumentando ou
plares em suas próprias forças armadas podem reduzindo a chance de instabilidade política.
compartilhar essas ações de uma forma mais Conflitos civis, particularmente, são processos
ampla com populações militares e civis em complexos, de múltiplos estágios, que se
outros países. Governos doadores, enquanto alimentam das vulnerabilidades históricas e
isso, podem ampliar seus programas de saúde modernas de um país e são movidos ao longo
reprodutiva para assegurar que tratamentos de do tempo por eventos basicamente
alta qualidade incluindo informações e serviços específicos e imprevisíveis. Os esforços inter-
contraceptivos abrangentes, prevenção de nacionais de resolução de conflitos e manu-
doenças sexualmente transmissíveis e saúde tenção da paz fizeram muito para reduzir a
materna e infantil – estejam disponibilizados freqüência de conflitos menores e incipientes.
para militares e suas famílias. Essas iniciativas E há fortes evidências que os países podem

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Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

reduzir sua vulnerabilidade a conflitos através enorme influência não só nas perspectivas
da disseminação de instituições democráticas, demográficas, mas também no futuro da
desenvolvimento econômico e alívio da segurança global. Para países nos primeiros
pobreza, e ampliação das relações comerciais estágios de suas transições demográficas,
internacionais.59 poderá levar quase duas décadas após a
Todavia, a demografia precisa formar parte fertilidade começar a cair para se observar uma
da análise. Se as relações entre transição demo- redução significativa no crescimento
gráfica e conflitos for mantida nas próximas populacional. Os vários riscos da demora dessa
décadas, as decisões tomadas hoje que afetam transição sublinham a necessidade de os
essa importante transição poderão ter uma governos implementarem políticas de apoio
o mais cedo possível.

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Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA

LIGAÇÃO DE SEGURANÇA

Refugiados Ambientais
Em 2003, aproximadamente, uma em cada existem, atualmente, 30 milhões de
370 pessoas na Terra – 17,1 milhões no total refugiados ambientais em todo mundo.2
- foi classificada como “pessoa vulnerável”, Em 2002, a Cruz Vermelha informou
pelo Alto Comissariado das Nações Unidas que o número de pessoas mortas por
para Refugiados (ACNUR), a agência das desastres naturais, incluindo enchentes, secas,
Nações Unidas dedicada à proteção de e terremotos, caiu 40% entre as décadas de
refugiados e outras populações desalojadas. 1970 e 1990 (devido principalmente à
Esta cifra inclui 9,7 refugiados (pessoas melhor prontidão para desastres), enquanto
fugindo de perseguição ou temendo o número de vidas afetadas adversamente
perseguição), 1,1 milhão de refugiados por estes acontecimentos aumentou 65%.
repatriados , 4,2 milhões de pessoas Prevê-se o aumento desta cifra, à medida
desalojadas internamente (PDIs), 233.000 que se intensificam os impactos previstos
pessoas desalojadas repatriadas e realojadas, pela mudança climática: de acordo com o
995.000 em busca de asilo e 912.000 em Painel Intergovernamental sobre Mudança
outras categorias, incluindo “apátridas”.1 Climática, poderá haver perto de 150
Esta estimativa não inclui o número milhões de refugiados ambientais até 2050.3
crescente de refugiados ambientais – Adicionalmente, o deslocamento de
pessoas “forçadas a abandonar seu habitat massas populacionais desalojadas pode
tradicional, provisória ou permanentemente, deflagrar instabilidade ou conflito no país de
em decorrência de uma perturbação origem, nos países hospedeiros ou dentro
ambiental marcante... que coloque em da região. Recursos escassos podem ser
perigo sua existência e/ou afete ainda mais degradados ou exauridos e gerar
profundamente sua qualidade de vida.” competição pelo acesso a eles; infra-
Entre os fatores ambientais naturais ou estrutura insuficiente ou distribuição injusta
causados pelo homem que forçam as pode reforçar divisões sociais e tensões.
pessoas a mudar, estão a escassez de Condições de superpopulação ou insalubres
recursos e distribuição injusta de recursos e falta de água potável podem causar
naturais; desmatamento e outras epidemias mortais. Se acontecerem os
degradações ambientais; desastres naturais movimentos globais populacionais
ou industriais; mudança climática; destruição previstos, estes e outros impactos poderão
sistemática do meio ambiente como ter implicações graves na segurança global.
instrumento de guerra e remanescentes de A despeito da seriedade destas tendências,
guerra; superpopulação e projetos de o tema “refugiados ambientais” tem
desenvolvimento. Em 2004, Essam El- recebido pouca atenção nos níveis mais
Hinnawi, do Instituto Ambiental e de altos. O foco tem sido mais o impacto que
Recursos Naturais do Cairo, estimou que o desalojamento de massas tem no

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Estado do Mundo 2005
REFUGIADOS AMBIENTAIS

ambiente do que que, embora a


o papel que o movimentação
próprio ambiente forçada seja um
exerce na criação tema comum,
de refugiados. É pessoas
necessário maior emigrando por
análise para ajudar Meninas aprendendo a escrever no Campo de Refugiados razões ambientais
de Kakuma, Quênia
a definir o podem ainda
conceito de refugiados ambientais, procurar proteção de seus próprios
identificar as causas subjacentes do governos, enquanto aquelas fugindo, devido
problema, explorar as conseqüências às categorias tradicionais de perseguição, não
imediatas e de longo prazo e chegar a podem. Além disso, O ACNUR já está se
respostas eficazes. esforçando para direcionar seus recursos
Duas abordagens distintas se apresentam limitados à grande variedade de crises
como respostas possíveis às conseqüências humanas cobertas pelo seu mandato atual.
do desalojamento ambiental: um reexame Críticos argumentam que a exclusão dos
do esforço internacional para tratar da crise ambientalmente desalojados é mesquinha e,
do refugiado e análise da relação homem- especialmente, injusta com países pobres
ambiente, no que diz respeito às operações cuja condição ambiental pode ser a
in loco. . conseqüência do comportamento de outros
Sob a legislação internacional, é poluidores. 4
concedido aos refugiados um status especial Dadas as limitações atuais de proteção
que garante a eles certos direitos e os torna legal sob a convenção dos refugiados, a falta
elegíveis à assistência legal e material. Todos de consenso para mudá-la e o déficit de
os países participantes da Convenção recursos da UNHCR, muitos observadores
Relacionada à Situação dos Refugiados, de continuam afirmando que a saga dos
1951, ou do seu protocolo de 1967, são refugiados ambientais necessita de uma
obrigados a prover um mínimo de recursos resposta mais acolhedora do sistema das
básicos e proteção aos refugiados. Nações Unidas e da comunidade
O ACNUR implementa a convenção e o internacional. Enquanto continuam as
protocolo, provê proteção legal, coordena discussões sobre a reforma da convenção ou
auxílio de emergência e ajuda a encontrar a criação de uma nova, a ausência de uma
soluções de longo prazo. organização específica direcionada para os
O ACNUR foi contra a ampliação da refugiados ambientais vem trazendo repostas
convenção para incluir o meio ambiente inconsistentes e, muitas vezes, incompletas
como uma fonte de perseguição - alegando para as crises de desalojamento.5

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Estado do Mundo 2005
REFUGIADOS AMBIENTAIS

Além de resposta institucional e legal, mitigação pode poupar $7 nos custos de


organizações que dão assistência em crises recuperação.” Embora uma série de
podem adotar ações adicionais. Entretanto, agências de ajuda já tenha estabelecido
incorporar preocupações ambientais aos programas e diretrizes voltadas para a
esforços existentes de assistência às crises mitigação ambiental, pesquisas adicionais são
pode ser um assunto delicado. necessárias no modo como terceiros podem
Diferentemente das conseqüências de muitas gerenciar estes bens ambientais mais
crises convencionais, o prejuízo ambiental é eficientemente e por que necessitam assim
muitas vezes menos óbvio, não melhora fazê-lo, dentro de uma resposta humanitária
com o tempo, nem permanece dentro das generalizada. 6
fronteiras nacionais. A comunidade de ajuda, O aumento previsto de refugiados
ainda que muitas vezes consciente da ambientais ameaça minar a estabilidade
dimensão ambiental, vem tendendo a local, segurança ambiental e a qualidade de
protelar ações, a menos que esteja vida de milhões de pessoas. Isto aumenta a
claramente relacionada a um assunto pressão na comunidade internacional – tanto
humanitário ou de segurança. nas instituições quando naqueles grupos que
Embora afirmando que a vida humana é dão assistência quando necessário – para
a preocupação principal numa emergência desenvolver um esforço conjunto, visando
humanitária, a mitigação ambiental precisa melhor definir o problema dos refugiados
ser vista, não como um luxo ou uma carga, ambientais, encontrar uma solução que
mas como um instrumento outro que as atenda às necessidades humanas básicas e
agências de ajuda possam usar para ajudar a preservar a qualidade do meio
melhorar sua resposta aos desalojados. Um ambiente.
estudo sugere que “$1 investido na - Rhoda Margesson,
U.S. Congressional Research Service

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Estado do Mundo 2005
CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

CAPÍTULO 3

Contendo Doenças
Infecciosas
Dennis Pirages

Movendo-se lentamente para o oeste com os em 29 países, matando quase 800 pessoas e
mercadores e outros viajantes, ao longo das fazendo adoecer mais de 8.000. Felizmente, a
rotas comerciais da China, a Morte Negra extensão do surto foi limitada pelo fato de o
chegou a Kaffa, na Criméia, em 1346. Levada vírus ser transmitido por gotículas respiratórias,
de região a região pelo rato negro (Rattus rattus) tornando a doença susceptível a medidas
e suas pulgas, a doença seguiu lenta e preventivas simples, como máscaras cirúrgicas.
inexoravelmente pelo continente europeu, Caso fosse de mais fácil transmissão, a
chegando à França, Itália e Espanha, em 1348. pandemia (epidemia global) resultante teria
A peste seguiu, alcançando a costa leste do matado milhões em todo o mundo.2
Mar do Norte e Mar Báltico, em 1350. Em Medida em número de mortes prematuras
quase toda Europa Ocidental, cerca de 40% e sofrimento físico associado, a maior fonte
da população morreu durante esta epidemia.1 de insegurança humana, no passado e presente,
Numa região remota do sul da China, no é a temida doença infecciosa, o Quarto
final de 2002, uma nova doença respiratória, Cavaleiro do Apocalipse. Em 2002, por
que ficou conhecida como SRAG (síndrome exemplo, as guerras foram responsáveis por
respiratória aguda grave), saltou de animais 0,3% de todas as mortes mundiais. Doenças
para humanos e se alastrou rapidamente para contagiosas representaram 26%. A aceleração
outras partes do país. Em questão de poucas de viagens internacionais e o crescimento do
semanas, a doença avançou célere, levada por comércio global estão transformando a
viajantes em trens e aviões por toda a Ásia, e disseminação rápida de doenças infecciosas
daí para grande parte do mundo. Dentro de num desafio extremamente urgente à
apenas seis meses, surgiram relatos da SRAG segurança.3

Dennis Pirages é Professor de Política Ambiental Internacional da Harrison, no Departamento de Governo e


Política da Universidade de Maryland.

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Estado do Mundo 2005
CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

Ao longo dos séculos, o número de mortos declararam que os países industrializados não
e feridos em combates militares diminuiu, em mais precisavam se preocupar com a praga
comparação ao número correspondente a das doenças contagiosas. Trinta e cinco anos
doenças. Estima-se que todas as guerras do atrás, o Ministro da Saúde W.H. Steward
século XX mataram 111 milhões de declarou ao Congresso dos Estados Unidos
combatentes e civis, uma média de cerca de que havia chegado a hora de “fechar o livro”
1,1 milhão por ano. Doenças contagiosas, hoje, das doenças infecciosas. E, 30 anos atrás, o
matam 14 vezes mais, anualmente. Mesmo famoso biólogo John Cairnes escreveu que o
durante o período em que o mundo estava mundo ocidental havia, praticamente,
envolvido pelos horrores militares da I Guerra eliminado a morte por doença infecciosa.5
Mundial, um vírus da influenza disseminava- Infelizmente, o otimismo deles foi mal-
se por todo o mundo. Estimativas do número fundado. Não só a campanha de erradicação
de mortes desta pandemia variam, porém, de doenças infecciosas continua, como
calcula-se que o vírus ceifou a vida de 20 a 40 também as patogenias têm revelado notável
milhões de soldados e civis, muitas vezes mais resiliência e flexibilidade. Antigas moléstias
do que o número de mortes diretamente como tuberculose, malária e cólera persistem
atribuíveis à guerra.4 e se disseminam geograficamente. E doenças
Considerando o legado extremamente anteriormente desconhecidas, como Ebola,
visível de conflitos violentos entre os povos, hepatite C, hantavírus e HIV, emergiram como
compreende-se por que a segurança veio a novas ameaças. Por que, após repetidas
ser definida principalmente como questão declarações de que a luta contra doenças
militar. Guerras são vívidas, violentas e infecciosas havia terminado, os especialistas
destrutivas. Porém, mais importante, as agora estão muito mais cautelosos sobre os
pessoas historicamente têm sido capazes de desafios apresentados pelos microorganismos
perceber a natureza das ameaças militares e patogênicos?
conceber estratégias para lidar com elas.
Contrariamente, embora as patogenias tenham A redução da mortandade mundial
causado números maiores de perdas humanas,
causada por doenças infecciosas
relativamente, poucos recursos dos tesouros
deveria ter prioridade máxima.
públicos têm sido alocados para lidar com
elas, uma vez que as causas e reparações têm
sido muito pouco entendidas. Pesquisa e vigilância hoje geram um
Outra razão pela qual as doenças não têm entendimento muito maior da dinâmica dos
sido consideradas como grave ameaça à surtos de doenças, e novos medicamentos
segurança é porque, durante a maior parte do estão cada vez mais disponíveis para lidar com
último século, a campanha contra doenças elas. A redução da mortandade mundial
infecciosas esteve, presumivelmente, no limiar causada por doenças infecciosas deveria ter
da vitória. Encorajadas pelas melhorias das prioridade máxima. Se mesmo uma pequena
condições sanitárias, avanços em pesquisas porcentagem do dinheiro que os Estados
médicas, novas vacinas e melhores antibióticos, Unidos e outras potências militares aplicam
as autoridades de saúde, nos anos 70, na defesa fosse desviado para a promoção

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Estado do Mundo 2005
CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

da melhoria da saúde pública mundial, o bem- vítimas. Os sistemas imunológicos humanos


estar humano teria um avanço dramático, coevoluíram com uma variedade de
aumentando imensamente o sentimento de patogenias e desenvolveram defesas ao longo
segurança pessoal. Conforme dizem os do tempo para lidar com a maioria delas.
especialistas, se os gastos com tratamento de Entretanto, surtos significativos de doenças
saúde nos 60 países mais pobres do mundo podem ocorrer quando as pessoas enfrentam
pudessem ser aumentados gradativamente dos novas patogenias ou novos serótipos de
atuais US$ 13 per capita, para US$ 38, até 2015, doenças antigas. Contudo, mesmo a maioria
poder-se-ia salvar uma média de 8 milhões dessas patogenias estranhas causa relativamente
de vidas, a cada ano. Isto exigiria uma pouco dano às vítimas, e os sintomas
contribuição total dos países industrializados desaparecem após alguns dias. Ocasio-
de cerca de US$ 38 bilhões – uma fração do nalmente, todavia, surgem patogenias
que os Estados Unidos gastou recentemente virulentas e debilitantes - para as quais os
para depor Saddam Hussein no Iraque.6 sistemas imunológicos têm pouca defesa -,
Há boas indicações de que o pensamento e podendo fazer, então, com que doenças fatais
as prioridades sobre a segurança estão se disseminem mais rapidamente pela
começando a mudar. Devido a seu impacto população humana.
em questões econômicas e militares, as Surtos de doenças em larga escala,
doenças infecciosas estão cada vez mais sendo epidemias e até pandemias ocorrem quando
tratadas como uma ameaça convencional à acontece algo que perturba o equilíbrio
segurança. Forças militares estão sendo evolutivo, normalmente, existente entre pessoas
debilitadas significativamente e economias e patogenias. O desequilíbrio pode resultar de
devastadas em regiões do mundo seriamente mudanças no comportamento humano ou
afetadas pelo HIV/AIDS. Em abril de 2000, circunstâncias, mutações ou movimentações
a percepção de que governos poderiam ser de patogenias, ou alterações em ambientes
derrubados devido à doença levou o Ex- compartilhados. Quando as pessoas viajam
presidente dos Estados Unidos Bill Clinton a para novos ambientes, arriscam encontros
declarar o HIV/AIDS como uma ameaça à com patogenias para as quais têm pouca
segurança nacional do país. Assim, a imunidade. Viajantes internacionais, por
consciência dos desafios de doenças novas e exemplo, freqüentemente adoecem durante
ressurgentes está mudando, a compreensão de suas viagens ou logo após seu retorno. Na
suas causas e conseqüências está aumentando maior parte do tempo, essas doenças causam
e a determinação de fazer algo quanto a este pouco dano permanente e são, simplesmente,
aspecto crucial da segurança está crescendo.7 um estorvo. Porém, como o surto da SRAG,
em 2003, ilustrou, as viagens às vezes têm
A Dinâmica dos conseqüências trágicas.
Da mesma for ma, vírus e bactérias
Surtos de Doenças
razoavelmente benignas podem sofrer
mutações para serótipos mais destrutivos. E
Cair doente é uma experiência comum, e a
patogenias anteriormente desconhecidas
maioria dos confrontos com doenças causa
podem saltar de animais para humanos. A atual
relativamente pouco dano duradouro às

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Estado do Mundo 2005
CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

disseminação global da gripe aviária é se originavam na periferia.10


particularmente grave, uma vez que esta Uma terceira onda de proporções
doença, até agora detectada principalmente significativas ganhou ímpeto durante a era de
em aves, pode aparentemente se transformar exploração transoceânica e expansão
e ser transmitida de pessoa para pessoa. comercial, que começou nos séculos XIV e
Finalmente, a mudança ambiental pode XV. A peste bubônica chegou à Europa vinda
perturbar equilíbrios já estabelecidos entre da Ásia no início deste período, e os
pessoas e patogenias, facilitando novos surtos exploradores e colonos europeus chegados ao
de doenças. A mudança climática, por hemisfério ocidental trouxeram varíola,
exemplo, deverá alterar padrões de preci- sarampo, influenza e outras doenças que
pitação e temperatura, permitindo assim que dizimaram populações indígenas.11
doenças tropicais vicejem em regiões Há evidências consideráveis de que uma
anteriormente mais frias, onde não podiam quarta onda está se formando hoje, devido à
antes sobreviver.8 dinâmica da industrialização, globalização,
Em pelo menos três períodos da história crescimento populacional e urbanização. As
mundial recente, mudanças significativas nas pandemias de gripe asiática de 1957 e da gripe
relações entre pessoas e micróbios facilitaram de Hong Kong de 1968 que, conjuntamente,
surtos de doenças ou mesmo epidemias. A mataram mais de 4 milhões de pessoas em
primeira onda de mudança começou a ganhar todo o mundo, podem bem ser precursoras
impulso há cerca de 10.000 anos, quando a de algo muito pior. E a lenta pandemia do
domesticação de animais selvagens durante os HIV/AIDS já matou mais de 20 milhões de
primórdios da Revolução Agrícola aproximou pessoas e deixou enfermos de 34 a 46 milhões.
o homem dos animais, proporcionando, Por que, diante de todos os avanços recentes
assim, maior oportunidade para circulação de no tratamento da saúde, a “microssegurança”
organismos de doenças entre eles. Assen- – proteção contra vários efeitos adversos à
tamentos em comunidades agrárias e, saúde de agentes em escala microbiana –
posteriormente, nas cidades, também colo- parece novamente estar diminuindo? Há várias
caram as pessoas em contato mais próximo mudanças significativas em curso em pessoas,
ao lixo acumulado, que freqüentemente patogenias e seus ambientes compartilhados
continha organismos nocivos.9 que estão hoje facilitando a disseminação de
A segunda onda teve início há cerca de 2.500 doenças infecciosas.12
anos, quando o aumento de contato entre Mais evidentes entre esses fatores deses-
centros de civilização acelerou a disseminação tabilizadores são as mudanças nas
de doenças às quais as pessoas não tinham sido circunstâncias e comportamento humanos.
ainda expostas. O Império Romano no Mudanças demográficas, incluindo aumento
Ocidente e a Dinastia Han no Oriente populacional, urbanização acelerada e
aproximaram-se, à medida que o comércio migração crescente, são hoje grandes
se expandiu, e ger mes foram trocados contribuintes da insegurança (ver Capítulo 2.).
mutuamente. Assim, a expansão do Império A população mundial atual de 6,4 bilhões
Romano foi repetidamente afligida por deverá crescer para mais de 7,9 bilhões, ao
moléstias desconhecidas que, aparentemente, longo dos próximos 20 anos. Quase todo esse

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Estado do Mundo 2005
CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

aumento populacional deverá ocorrer nos mente em todo o mundo, devido a vários tipos
países em desenvolvimento. Em 1965, 36% de emergências humanitárias. Campos de
da população mundial era urbana. Este refugiados abarrotados são incubadoras ideais
número hoje já se aproxima de 50%. O de doenças, e as pessoas que conseguem sair
número de pessoas que vivem em cortiços deles, freqüentemente, levam doenças para
abarrotados nos países pobres está seus novos destinos. Na região conturbada de
explodindo. Na Ásia, a população empilhada Darfur, no Sudão, por exemplo, do final de
nas cidades aumentará do atual 1,5 bilhão para maio até o final de agosto de 2004, houve
2,6 bilhões, até 2030. Na África, a quantidade 3.573 casos confirmados de hepatite E, que
de citadinos crescerá de 297 milhões para 766 causaram 55 mortes.14
milhões, durante o mesmo período. A persistência da pobreza diante do
Obviamente, à medida que maior número de crescimento populacional acelerado do
pessoas vivem sob condições anti-higiênicas mundo em desenvolvimento em urbanização
em cidades mais densamente habitadas, torna- é outro fator que está aumentando o potencial
se fácil a disseminação de patogenias de surtos de doenças. Apesar do crescimento
rapidamente.13 da economia global ao longo das últimas
décadas, o fosso entre ricos e pobres, tanto
dentro como entre países, está efetivamente
A mudança ambiental pode perturbar aumentando. Entre 1970 e 1995, a renda real
equilíbrios já estabelecidos entre per capita para o terço mais rico de todos os
pessoas e patogenias, facilitando países aumentou 1,9% anualmente, o terço
novos surtos de doenças. intermediário teve um aumento anual de
apenas 0,7%, enquanto o terço inferior não
Não apenas esse crescimento populacional, registrou aumento algum. Esses números
como também a violência étnica periódica nos mudaram pouco ao longo da última década.
países em desenvolvimento, está forçando dois Cerca de 2,8 bilhões de pessoas vivem hoje
tipos de migração que também contribuem com menos de US$ 2 por dia. As desigual-
para a disseminação de doenças. O cres- dades atuais de renda estão refletidas nos
cimento populacional na maioria desses países gastos comparativos com a saúde. Nos
está pressionando as pessoas a se assentarem Estados Unidos, o total de gastos per capita
em terras anterior mente desocupadas, com saúde foi de US$ 4.887, em 2001. Em
freqüentemente florestas desmatadas. Este Niger, este número, à taxa média de câmbio,
novo tipo de assentamento é freqüentemente foi de US$ 6, em Serra Leoa US$ 7, e na
compartilhado com inúmeras patogenias Nigéria US$ 15. As pessoas vivendo sob
potencialmente perigosas. Esses micróbios condições de tamanha pobreza têm pouco
permaneceram em animais hospedeiros em acesso a tratamento de saúde.15
áreas rurais, até que pessoas se intrometeram, Dessa forma, vivemos hoje num mundo
proporcionando assim novas rotas fora da epidemiologicamente dividido. Muitas pessoas
floresta para populações humanas. Igualmente, sofrem das doenças infecciosas dos
há aproximadamente 17 milhões de subnutridos, ao mesmo tempo em que um
refugiados e populações deslocadas interna- número cada vez maior é afligido pelas

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Estado do Mundo 2005
CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

doenças crônicas dos superalimentados. enormemente a disseminação da hepatite,


Embora a fome persistente seja a condição HIV/AIDS e outras doenças.
de pelo menos 1,2 bilhão de pessoas, um Embora a inovação tecnológica seja
número semelhante come muito mais do que comumente considerada como uma forte
precisa. Na África, doenças infecciosas e aliada na contenção de doenças infecciosas,
parasitárias são responsáveis por cerca da há aspectos na tecnologia que têm efeito
metade de todas as fatalidades, enquanto na exatamente oposto. No lado positivo,
Europa representam apenas 2%. A cada ano, inovações em tecnologias biomédicas criam
mais de 2,3 milhões de pessoas, novos instrumentos de controle de doenças.
principalmente nos países pobres, morrem de O lado negativo, entretanto, é que a tecnologia
oito doenças que poderiam facilmente ser está transformando a natureza do ambiente
evitadas através da vacinação.16 onde as pessoas e as patogenias interagem. A
Países de renda baixa e média suportam velocidade cada vez maior e a difusibilidade
mais de 90% da carga mundial de doenças, das viagens internacionais significa que mais
mas representam apenas 11% dos gastos em pessoas, produtos e patogenias se
saúde. As doenças que afetam mais comu- movimentam rapidamente através de
mente os pobres atraem pouca pesquisa e fronteiras. O número de passageiros/quilô-
parcos gastos desenvolvimentistas. A indústria metros voados internacionalmente aumentou
farmacêutica vê pouca lucratividade no de 28 bilhões, em 1950, para 2,6 trilhões, em
desenvolvimento de medicamentos para 1998. O volume de carga aérea que se
doenças endêmicas para países pobres. Entre deslocou internacionalmente cresceu de 730
1975 e 1997, apenas 13 dos 1.233 medica- milhões para 99 bilhões de toneladas/
mentos que chegaram ao mercado mundial quilômetros durante o mesmo período. Mais
se aplicavam a doenças tropicais, responsáveis de 2 milhões de pessoas hoje cruzam uma
pelo maior número de mortes por doenças fronteira internacional, diariamente.18
infecciosas.17 Todos esses viajantes, mercadorias e
Mudanças de comportamento (positivo ou produtos agrícolas podem levar patogenias de
negativo) também estão entre os fatores um lugar no mundo para outros distantes, em
perturbadores do equilíbrio entre pessoas e questão de horas. Surtos limitados de doenças,
patogenias. Práticas ecologicamente nocivas, devido ao aumento das viagens e comércio
como moer partes de animais mortos para internacionais, ocorrem regular mente.
alimentar os vivos, só podem incrementar as Ocasionalmente, surgem surtos mais graves.
patogenias. Mudanças de padrão de compor- O vírus da SRAG deslocou-se do sul da China
tamento sexual, incluindo sexo desprotegido para outros países da Ásia e, então, para grande
com múltiplos parceiros, aumentaram parte do hemisfério norte, em questão de
dramaticamente a incidência de doenças semanas. E, uma vez que quantidades cada vez
sexualmente transmissíveis como herpes, sífilis maiores de frutas e legumes consumidos nos
e gonorréia. E é difícil se conceber uma forma Estados Unidos hoje vêm de outros países,
mais eficaz de disseminar doença do que o autoridades de saúde pública começaram a
uso intravenoso de drogas acompanhado pelo divulgar aumentos agudos de surtos de
compartilhamento de seringas, que acelerou doenças ligadas a produtos agrícolas

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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

importados e aos micróbios que, freqüen- eliminados, num esforço para prevenir maior
temente, contêm.19 disseminação da doença. A gripe aviária
Da mesma forma que a era das explorações reapareceu na Europa, em 2003, e 30 milhões
trouxe varíola e várias outras doenças européias de frangos foram mortos como medida
para o hemisfério ocidental, com efeitos preventiva. Em 2004, a gripe aviária varreu
devastadores para os americanos nativos, as oito países asiáticos, matando mais de duas
viagens de animais domesticados e outros dúzias de pessoas e levando ao matadouro
disseminaram suas próprias patogenias. mais de 100 milhões de aves. A doença
Provavelmente, os 300 suínos que Hernando também apareceu no Canadá e Estados
de Soto trouxe consigo para a Flórida, em Unidos. (Vide também o Capítulo 4.)21
1539, foram mais responsáveis pela A forma atual do vírus da gripe aviária
transmissão de mais enfermidades aos (H5NI) demonstrou uma capacidade de saltar
americanos nativos, alces e perus do que seus das aves para apenas um número limitado de
soldados. No mundo contemporâneo, pessoas. Mas, no final de setembro de 2004, a
inúmeras doenças infecciosas estão se OMS divulgou o primeiro caso provável de
disseminando entre populações animais. Na transmissão pessoa-a-pessoa, quando uma
África central, surtos de Ebola mataram mulher na Tailândia morreu. O temor é que a
milhares de primatas. O vírus do Nilo, que gripe possa continuar a mudar de tal forma
matou 241 pessoas nos Estados Unidos, em que possa vir a ser transmitida facilmente entre
2002, também adoeceu 14.000 cavalos naquele as pessoas, possivelmente abrindo caminho
ano e disseminou-se para quase 200 espécies para uma pandemia mortal. Especialistas
de aves, répteis e mamíferos, causando um continuam a monitorar a doença, atentos a
número desconhecido de mortes. O aumento mudanças que possam indicar o aparecimento
das viagens e do comércio também está de variantes mais letais. Há temores também
disseminando patogenias virais, bacterianas e quanto a recentes mudanças genéticas em vírus
fúngicas a vegetais em todo o mundo.20 da gripe suína que poderiam desenvolver uma
variante letal aos seres humanos.22
A cada ano, mais de 2,3 milhões de
pessoas, principalmente nos países O uso generalizado e quase sempre
pobres, morrem de oito doenças que indiscriminado de antibióticos e outros
poderiam facilmente ser evitadas por agentes antibacterianos está criando
vacinação. famílias de micróbios resistentes a drogas.

A gripe aviária é um vírus animal que, A inovação tecnológica também está ligada
periodicamente, ameaça disseminar-se às muitas mudanças ambientais que estão
amplamente para populações humanas. Em ajudando o surgimento de novas doenças e o
1997, 18 pessoas adoeceram em Hong Kong ressurgimento e disseminação de antigas
e 6 morreram quando a gripe saltou moléstias. Mudanças na qualidade da água, por
diretamente dos frangos para as pessoas. exemplo, são freqüentemente o resultado da
Como resultado, 1,4 milhão de frangos foram urbanização intensa e industrialização da

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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

agricultura. Doenças veiculadas pela água são de antibióticos e outros agentes antibacterianos
responsáveis por cerca de 90% das conta- está criando famílias de micróbios resistentes
minações nos países em desenvolvimento, a drogas. Isto é acelerado por pacientes que
onde quase 95% do esgoto urbano é não completam os tratamentos prescritos, e
despejado, sem tratamento, em rios e lagos. pelo uso em larga escala de agentes antibac-
Na Índia, 114 cidades despejam esgoto sem terianos em sabonetes, loções e detergentes.25
tratamento e corpos parcialmente cremados A resistência antimicrobiana é um problema
no Ganges. E o escoamento agrícola, grave e crescente. Cerca de 14.000 pessoas
incluindo dejetos animais e resíduos químicos morrem anualmente nos Estados Unidos pela
ameaçam ecossistemas aquáticos em países ação de micróbios resistentes a drogas, através
tanto industrializados quando em desen- de infecções hospitalares. Metade das pessoas
volvimento.23 contaminadas com HIV hospeda uma
Mudanças atmosféricas, devidas principal- linhagem que é hoje resistente a pelo menos
mente à atividade industrial, também estão um dos medicamentos utilizados para
aumentando a exposição das pessoas a combater esta doença. A pneumonia continua
doenças. O acúmulo de gases de estufa está sendo uma ameaça grave, matando de 3 a 4
aumentando o potencial de maior incidência milhões de pessoas por ano. Em algumas
de doenças, pois a mudança climática deverá regiões do mundo, até 70% das infecções
aumentar o alcance geográfico das doenças peitorais são resistentes aos antimicrobianos
que vicejam em climas quentes. Doenças graves disponíveis. A bactéria que causa o cólera
também está se tornando resistente aos
como cólera, malária e febre amarela – hoje
principais antibióticos utilizados para seu
praticamente restrita aos trópicos – poderão
combate. Em Ruanda, por exemplo, existe
se disseminar para áreas atualmente
uma resistência de quase 100% à tetraciclina e
temperadas, à medida que o aquecimento ao cloranfenicol, dois dos principais anti-
ocorre. E o vírus do Nilo, transmitido pelo bióticos usados no combate ao cólera.26
mosquito sensível à temperatura Culex pipiens, A tuberculose também está se tornando
chegou a Nova York no verão de 1999 e, desde resistente a muitos medicamentos. Um simples
então, tem atacado animais e pessoas por toda período de tratamento de seis meses para a
a América do Norte. Poderá bem ser o tuberculose não resistente a drogas pode custar
pressagiador do que está por vir.24 apenas US$ 20. Porém, o tratamento com
Finalmente, a tecnologia também está antibióticos de segunda e terceira linha pode
desempenhando um papel não-intencional na custar entre US$7.000 e US$8.500. Em alguns
transfor mação do mundo microbiano. casos mais graves, o tratamento da tuberculose
Paradoxalmente, os antibióticos e outros resistente a múltiplos medicamentos pode
medicamentos destinados a controlar custar US$250.000 e levar até dois anos.27
patogenias freqüentemente têm efeitos
danosos. Cerca de 23 milhões de quilos de O Estado Atual
antibióticos são produzidos anualmente nos da “Microssegurança”
Estados Unidos. Mais de um terço deste total
é administrado a animais agrícolas. O uso
Considerando esses e muitos outros fatores
generalizado e quase sempre indiscriminado
que estão alterando significativamente as

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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

relações entre pessoas e patogenias, fica claro não-infecciosas e 2 milhões de doenças


por que a campanha contra doenças infecciosas digestivas. Embora haja avanços constantes no
está longe de terminar. Na realidade, 20 tratamento dessas doenças não-contagiosas,
doenças outrora muito conhecidas ressur- muitas dessas vítimas eram idosas, enquanto
giram ou se disseminaram geograficamente, e outras morreram devido, pelo menos em
pelo menos 30 delas ainda não conhecidas parte, a escolhas em seus estilos de vida.29
como infecciosas foram identificadas ao longo As 18,3 milhões de mortes restantes foram
das três últimas décadas. Entretanto, avaliar causadas por condições maternas e perinatais,
precisamente o estado atual da biossegurança deficiências nutricionais e doenças contagiosas.
em várias regiões do mundo é uma tarefa A maioria era evitável, tornando-se assim
complicada. A coleta e agregação de dados questões apropriadas de segurança. Doenças
de forma oportuna é difícil, uma vez que contagiosas foram responsáveis por 14,9
muitas das doenças infecciosas mais graves são milhões de mortes nesta categoria (vide Tabela
endêmicas nos países pobres, onde médicos 3-1). Infecções respiratórias – principalmente
são escassos e o registro de dados é esporádico. influenza e pneumonia – foram os grandes
Apenas cerca de um terço de todas as mortes algozes. Causaram 4 milhões de mortes,
que ocorrem no mundo a cada ano é praticamente o mesmo número de dois anos
efetivamente captada por sistemas nacionais antes. O HIV/AIDS vem em segundo lugar,
de registros vitais; o resto é estimado.28 com 2,8 milhões de mortes. (Embora seja um
Tendo em mente essas ressalvas sobre ligeiro declínio do número de 2000, a
dados, cerca de 57 milhões de pessoas quantidade de pessoas contaminadas com HIV
morreram de causas variadas, mundialmente, cresceu rapidamente, e os últimos relatórios
em 2002; 5,2 milhões dessas mortes foram indicam que as fatalidades aumentaram em
causadas por diferentes tipos de acidentes e 2003.) Mortes por diarréia e tuberculose
lesões, assim, teoricamente, a maioria poderia caíram ligeiramente, enquanto a malária ceifou
ter sido evitada. O maior número de mortes 200.000 vidas mais do que em 2000. Além
mundiais, 33,5 milhões, foi devido a doenças desses grandes assassinos, o sarampo foi
não-contagiosas e crônicas. Destas, 16,7 responsável por 611.000 mortes, princi-
milhões de pessoas morreram de doenças palmente entre crianças.30
cardiovasculares, 7,3 milhões de várias formas A expectativa de vida no nascimento é um
de câncer, 3,7 milhões de doenças respiratórias bom indicador sumário do estado atual da
Tabela 3–1. Mortes Causadas por Doenças Contagiosas, 2000 e 2002

Parcela de todas as
Doença 2000 2002 Mortes em 2002

(em milhões) (em milhões) (percentual)


Infeções respiratórias 3,9 4,0 6,9
HIV/AIDS 2,9 2,8 4,9
Diarréia 2,1 1,8 3,2
Tuberculose 1,7 1,6 2,7
Malária 1,1 1,3 2,2
FONTE: Vide nota final 30

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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

saúde de um país. O Japão hoje possui o maior Suécia e Suíça podem contar com, no mínimo,
índice de expectativa de vida. Uma criança 73 anos de vida saudável. Os Estados Unidos,
nascida lá, hoje, viverá teoricamente 81,9 anos. apesar de ter, de longe, o maior gasto médico
Um indicador de saúde mais matizado, per capita do mundo, estão classificados apenas
entretanto, é a expectativa de vida saudável, em 28o lugar, com uma expectativa de vida
chamada HALE, na sigla em inglês. Esta é uma saudável de 69,3 anos. No extremo inferior
medida do número de anos saudáveis que um da distribuição estão sete países da África
recém-nascido pode hoje esperar viver, com subsaariana, com HALEs de menos de 35
base nas taxas atuais de má saúde e anos, resultante de uma conjugação de pobreza
mortalidade. No Japão, a HALE hoje é 75, e da devastação do HIV/AIDS.32
ou seja, a criança média japonesa nascida hoje Olhando para o futuro próximo, a questão
pode esperar ter 75 anos de saúde e 6,9 anos mais urgente continuará sendo o HIV/AIDS.
de incapacitação, devido a doenças infecciosas Presume-se que o HIV saltou dos chimpanzés
ou crônicas. Em Serra Leoa, num contraste para os seres humanos, tendo sido origi-
gritante, uma criança nascida hoje tem uma nalmente identificado no início dos anos 80.
expectativa de vida sadia de apenas 28,6 anos.31 O vírus é particularmente perigoso devido a
seu longo período de incubação, ataque direto
ao sistema imunológico e mutação freqüente,
A ameaça mais preocupante de curto como também por não haver, ainda, vacina
prazo de doenças tradicionais é a da nem cura para ele. O longo período de
influenza. incubação significa que podem passar anos
antes que as vítimas exibam sintomas. Assim,
Há uma diferença enorme nas expectativas elas podem involuntariamente contaminar
de vida saudável nos países ricos e pobres outras pessoas ao longo de um extenso
(vide Tabela 3-2). As populações do Japão, período de tempo.

Tabela 3–2. Expectativa de Vida Saudável em P aíses Selecionados, 2002


Países

Maior Expectativa de Vida Menor Expectativa de Vida

País Anos de Vida Saudável País Anos de Vida Saudável

Japão 75,0 Serra Leoa 28,6


Suécia 73,3 Lesoto 31,4
Suíça 73,2 Angola 33,4
Itália 72,7 Zimbábue 33,6
Austrália 72,6 Suazilândia 34,2
Espanha 72,6 Malawi 34,9
Canadá 72,0 Zâmbia 34,9
França 72.0 Burundi 35,1
Noruega 72,0 Libéria 35,3
Alemanha 71,8 Afeganistão 35,5
FONTE: Vide nota final 32.

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As últimas estimativas indicam que entre 34 a pessoa. Como observado anteriormente, as


milhões e 46 milhões de pessoas vivem hoje pandemias de gripe em 1957 e 1968 mataram,
com HIV/AIDS, em todo o mundo. Em 2003, em conjunto, mais de 4 milhões de pessoas.
havia de 4,2 a 5,8 milhões de novas Viagens internacionais mais rápidas e
contaminações, e de 2,5 a 3,5 milhões de pessoas freqüentes, e também o agrupamento urbano,
– principalmente na África subsaariana – indicam que uma pandemia futura poderá
morreram da doença. Até hoje, já houve mais se alastrar muito mais rapidamente e ser
de 20 milhões de fatalidades do HIV/AIDS. muito mais mortal. A Organização Mundial
Desde que o vírus foi originalmente de Saúde (OMS) estima que, mesmo sob as
identificado, 4 milhões de crianças contraíram condições atuais, um surto desta ordem
HIV de suas mães durante a gravidez, parto ou poderá matar 650.000 e hospitalizar 2,3
amamentação. A doença é tão predominante milhões de pessoas apenas nos países
na África subsaariana, porque a maior parte das industrializados.35
vítimas tem pouco acesso a tratamento médico, Muitos dos fatores responsáveis pelas novas
vive em penúria e possui pouco conhecimento e reemergentes doenças entre as pessoas estão
de como a doença é transmitida.33 causando impactos adversos semelhantes nos
O número de vítimas de HIV/AIDS animais. Isto é preocupante, não só pelos
deverá aumentar significativamente, à medida efeitos no reino animal, mas também porque
que a doença se alastra para outros países. Índia, as doenças freqüentemente saltam dos animais
China, Nigéria, Etiópia e Rússia provavelmente para as pessoas. Assim, o vírus Nilo é
verão um crescimento acelerado do HIV/ transmitido das aves para as pessoas através
AIDS nos próximos anos. O número de dos mosquitos, a doença de Lyme dos ratos
pessoas infectadas nesses cinco países está para as pessoas através de carrapatos de alces
projetado a aumentar dos 14 a 23 milhões de e o Hantavírus diretamente para as pessoas
hoje, para de 50 a 75 milhões até 2010. A Índia de ratos do campo (ver também Capítulo 4.)
deverá ter de 20 a 25 milhões de casos e uma Presume-se que o vírus da SRAG foi
taxa de predominância entre os adultos de 3 a transmitido para as pessoas da civeta, ou gato-
4%. A China deverá ter de 10 a 15 milhões de de-algália (Paguma larvata) – um animal arbóreo
vítimas, com uma taxa de predominância de corpo semelhante ao gato. Ao mesmo
adulta abaixo de 2%.34 tempo, doenças humanas são freqüentemente
A ameaça mais preocupante de curto prazo transmitidas para animais. Há evidência de que
de doenças tradicionais é a da influenza. Uma doenças humanas infectaram primatas quando
doença comum, a influenza (gripe) é as pessoas tiveram maior contato com eles
considerada mais como uma inconveniência em habitat florestal. Alguns gorilas monteses
do que uma ameaça grave. Surtos anuais ameaçados de extinção em Ruanda morreram
ocorrem, à medida que o vírus sofre mudanças de moléstias humanas como sarampo,
contínuas que o ajudam a se safar de algumas freqüentemente transmitidas por turistas e
das imunidades de exposições ou vacinas cientistas. Estudos também documentam
anteriores. Periodicamente, todavia, o vírus anticorpos para doenças humanas como
assume formas novas e mais mortais que influenza, sarampo e tuberculose em macacos
podem se disseminar rapidamente de pessoa e orangotangos selvagens.36

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Conseqüências Econômicas vertiginosamente. No sul da China e Hong


Kong, alguns hotéis operaram com uma taxa
das Doenças Infecciosas
de ocupação de apenas 10%. Naquele ano, a
Feira de Comércio de Cantão, que fatura
É óbvio que as grandes epidemias e
normalmente US$ 17 bilhões em negócios,
pandemias da história causaram impactos
foi um desastre econômico. Poucos
tremendos no desempenho econômico. A
compradores potenciais se dispuseram a
peste bubônica no século XIV na Europa, por
comparecer.38
exemplo, devastou tamanha parcela da
população que criou as condições para as
inovações de economia de mão-de-obra que As fileiras de pessoas mais produtivas
determinaram a Revolução Industrial. Surtos em alguns dos países mais pobres do
contemporâneos de doenças também tiveram mundo estão sendo sistematicamente
conseqüências econômicas significativas, razão esvaziadas pelo HIV/AIDS.
pela qual os governos freqüentemente tentam
abafá-los. Um surto do que se julgou ser a
Na China, a indústria turística perdeu cerca
peste pneumônica na Índia, em 1994, resultou
de US$ 7,6 bilhões e 2,8 milhões de empregos.
numa perda de US$ 1,7 bilhão em exportações
A perda geral da economia de viagens da
e turismo, e um surto de cólera na Tanzânia,
China, em 2003, situou-se em torno de US$
em 1998, significou um prejuízo econômico
20,4 bilhões. A indústria turística de Cingapura
de US$ 36 milhões, ambos choques
sofreu um choque de aproximadamente US$
expressivos em economias em desen-
1,1 bilhão e 17.500 empregos. Na realidade,
volvimento. Mas estes empalidecem, frente ao
os economistas eliminaram cerca de 1,5 ponto
dano econômico causado à Ásia pelo surto
percentual das estimativas de crescimento das
recente da SRAG, e na África, pela continuada
economias de Hong Kong, Cingapura e
pandemia de HIV/AIDS.37
O surto da SRAG, de 2003, causou um Malásia, em 2003. É extremamente difícil
impacto devastador no leste da Ásia, uma calcular os custos econômicos mundiais diretos
região densamente habitada e econo- e indiretos do surto da SRAG, porém,
micamente dinâmica. Levou apenas poucas superaram, sem dúvida, a marca dos US$ 100
semanas para que a primeira morte relacionada bilhões.39
à SRAG levasse as economias da China, A pandemia de HIV/AIDS impôs custos
Taiwan e Cingapura a entrar em parafuso. gigantescos, diretos e indiretos, desde que
Comércio e turismo são essenciais para o iniciou seu lento alastramento mundial, há um
sucesso destas economias e a SRAG foi um quarto de século. É difícil chegar a um número
grande fator restritivo para viagens e exato uma vez que o impacto mais
exportações. O tráfego aéreo ficou prati- contundente da pandemia foi sentido em
camente paralisado na região, com as principais alguns dos países menos desenvolvidos do
companhias aéreas retendo até 40% de seus mundo, onde grande parte da atividade
vôos. O aeroporto de Cingapura, onde econômica ocorre no setor informal. Nos
geralmente circulam 29 milhões de passageiros países economicamente desenvolvidos, onde
anualmente, viu seus números caírem a predominância do HIV entre adultos é

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Estado do Mundo 2005
CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

geralmente muito inferior a 1%, o principal Produto Interno Bruto (PIB) das 33 nações
impacto econômico da doença tem sido no africanas que revelam um impacto econômico
aumento das despesas de saúde. O custo mensurável do HIV/AIDS caiu em média
econômico indireto em perda de 1,1% ao ano, entre 1992 e 2002; até 2020, isto
produtividade foi insignificante. Mas, em significará uma perda coletiva de crescimento
muitos dos países menos desenvolvidos econômico da ordem de 18% - ou aproxi-
economicamente que estão mais afetados pela madamente US$ 144 bilhões. Em torno de 9
doença, a predominância do HIV entre adultos a 18% dos adultos em idade produtiva
em idade produtiva situa-se acima de 20% morrem prematuramente a cada cinco anos
(vide Tabela 3-3). Gastos de saúde per capita nos países subsaarianos mais afetados. Desta
nesses países são geralmente muito baixos, e é forma, as fileiras de pessoas mais produtivas
o custo econômico indireto causado pelo em alguns dos países mais pobres do mundo
impacto da doença sobre a força de trabalho estão sendo sistematicamente esvaziadas pelo
que tem sido mais devastador.40 HIV/AIDS. A doença está retardando o
A África subsaariana é a região mais atingida desenvolvimento industrial, reduzindo a
pelo HIV/AIDS. Em 2003, cerca de 26,6 produção agrícola, devastando a educação,
milhões de pessoas na região eram debilitando as forças armadas (vide Quadro
soropositivas, e cerca de 2,3 milhões morre- 3-1.), podendo vir a solapar a estabilidade
ram da doença. Em geral, o crescimento do política.41

Tabela 3–3. P aíses mais afetados pelo HIV/AIDS


Países

País Predominância do HIV Taxa de Mortalidade,Adultos População


Adultos entre 15-49 anos em entre 15-64 anos Soropositiva
2001
(percentual das fatalidades (em milhares)
(percentual) em 2000-05)

Botsuana 39 14 330
Zimbábue 34 18 2.300
Suazilândia 33 16 170
Lesoto 31 15 360
Namíbia 23 11 230
Zâmbia 22 15 1.200
África do Sul 20 10 5.000
Quênia 15 9 2.500
Malawi 15 11 850
Moçambique 13 10 1.100
FONTE: Vide nota final 40

Com mais de 5 milhões de pessoas A maior parte dessas mortes ocorrerá entre a
soropositivas, a África do Sul possui hoje o população adulta jovem. Entre 1992 e 2002,
maior número de vítimas do mundo. Mais de a África do Sul perdeu cerca de US$ 7 bilhões
500.000 pessoas já morreram e o número de anuais, devido ao declínio de sua força de
soropositivos deverá atingir 6 milhões até 2010. trabalho. Os esforços para criar um sistema

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Estado do Mundo 2005
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educacional numa era pós-apartheid estão bioterrorismo (vide Quadro 3-2) têm
sendo dificultados pela perda de pessoal fomentado uma nova conscientização quanto
causada pela doença, e prevê-se uma grave à necessidade de maior fiscalização em escala
escassez de professores secundários e global. Foram criadas duas redes na internet
universitários ao longo da próxima década. para pesquisar e monitorar surtos de doenças.
O capital humano está sendo exaurido O ProMED-mail (Programa de Monitoração
significativamente por doenças, e os de Doenças Infecciosas) foi implantado em
investidores estrangeiros hesitam em investir 1994. Este sistema de alerta na internet é
mais no país. Como conseqüência do destinado a reunir e disseminar rapidamente
esvaziamento da força de trabalho e queda todas as informações sobre surtos de doenças
nos investimentos, o PIB da África do Sul para mundialmente. Possui hoje links com mais de
o período 2006-10 está projetado para 3,1% 30.000 assinantes em 150 países. A qualquer
abaixo do que seria sem o HIV/AIDS.42 hora, correspondentes de todo o mundo
registram informações sobre surtos que
Lidando com Futuros afetem pessoas, plantas ou animais. A OMS
Surtos de Doenças também participa, utilizando a internet para
fazer as ligações entre especialistas em doenças
e laboratórios, quando necessário.44
Há uma corrida em curso entre, de um lado,
Devido à rapidez com que as doenças
o ritmo acelerado da globalização, mudanças
podem surgir e se alastrar por todo o mundo,
associadas na condição humana e novos
as autoridades de saúde hoje precisam agir de
desafios afins do mundo microbiano e, do
forma previdente. Um novo vírus de influenza
outro lado, a crescente capacitação de cientistas,
pode facilmente se disseminar mundialmente,
médicos e autoridades de saúde para localizar,
bem antes de uma vacina eficaz ser preparada.
diagnosticar e conter os surtos. O enfren-
Assim, a OMS implantou uma rede de
tamento aos desafios de doenças novas e
monitoração de alcance global encarregada de
velhas num mundo mais densamente habitado
investigar mutações virais que possam não só
exige que a comunidade internacional adote
causar uma nova pandemia de influenza, como
várias medidas importantes: aumentar
também ajudar a determinar a composição
rapidamente a fiscalização para detectar novos
da vacina a cada ano. Nos Estados Unidos,
surtos; antecipar planos e ação para se preparar
todo mês de fevereiro, a FDA (órgão que
e evitar possíveis pandemias futuras; iniciar uma
controla os alimentos e medicamentos nos
campanha de erradicação de doenças graves
Estados Unidos) utiliza um painel de técnicos
entre os pobres do mundo; encorajar maior
para selecionar linhagens virais como
transparência nos países onde surtos de
candidatas a vacinas que serão distribuídas no
doenças podem ocorrer; e desviar gastos de
segundo semestre. Em fevereiro de 2003, a
segurança de fins militares para a criação de
OMS identificou uma nova linhagem da gripe
sistemas eficazes de saúde pública.43
(A/Fujian) que os assessores da FDA
A experiência recente com a rápida
desejavam incluir em sua vacina anual. Porém,
disseminação da SRAG, a ameaça de uma
um meio de cultura aprovado, necessário para
nova pandemia de influenza, a disseminação
a produção da vacina, não pôde ser
continuada do HIV/AIDS e o espectro do

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QUADRO 3-1. HIV/AIDS ENTRE OS MILITARES


As doenças contagiosas têm causado um impacto gradativamente reconhecido. O fato de muitos
desproporcionalmente alto em soldados e países receberem gordos pagamentos pela
combatentes através da história. Nos tempos contribuição de efetivos à força de paz pode estar
antigos, o tifo e cólera eram os algozes. Hoje o agindo como desincentivo para a coleta de dados
problema é a AIDS. que poderiam prejudicar a participação de suas
A incidência de HIV/AIDS é consideravelmente tropas. Outro aspecto da alta incidência de HIV/
maior em muitas forças armadas hoje do que entre a AIDS entre as forças armadas diz respeito à
população civil. O problema é mais pronunciado desmobilização após o fim de conflitos: ao “reinserir”
entre soldados nos países em desenvolvimento. Em ex-combatentes infectados em comunidades menos
Zimbábue e Malawi, por exemplo, algumas afetadas, os programas que ignoram o HIV/AIDS
estimativas revelam taxas de infecção de 70 e 75%, podem agravar ainda mais a situação. Na ausência de
respectivamente. Na realidade, em Zimbábue, cerca educação de prevenção ao HIV/AIDS e preservativos
de três quartos de todos os soldados que dão baixa acessíveis, a desmobilização e reintegração de
morrerão de AIDS dentro de um ano. combatentes pode criar uma crise de saúde pública
As razões para essas taxas por regiões inteiras, como ocorreu na África
desproporcionalmente altas são várias. O etos subsaariana.
institucional nas forças armadas tende a encorajar a Uma alta taxa de predominância do HIV/AIDS
tomada de risco, o que pode se estender para as entre os militares tem inúmeras implicações para a
relações sexuais do soldado, influenciando decisões segurança nacional de um país. A doença diminui a
cruciais, como usar ou não preservativo. E como eficiência operacional das forças armadas de uma país
uma pessoa infectada com HIV pode não de várias formas. Com um grande número de
demonstrar sintomas durante anos, soldados pessoas doentes ou morrendo, a desmoralização
soropositivos continuam na ativa sem saber que entre as tropas é um problema; disciplina e eficiência
estão doentes. Isto permite a disseminação muito ficam ameaçadas. Presteza e prontidão para
maior do HIV/AIDS. Também faz com que governos combate também podem deteriorar, pois substitutos
e autoridades militares ignorem a gravidade da precisam ser recrutados e treinados, envolvendo
situação. gastos humanos e financeiros. O tratamento médico
O próprio conflito militar pode freqüentemente das tropas doentes é outro item de custo. O HIV/
ajudar a disseminar o HIV, principalmente devido à AIDS tem o efeito de exaurir as fileiras especializadas:
alta incidência da doença entre combatentes e à a capacidade militar global é debilitada devido à
violência sexual durante as guerras. Em alguns países perda da capacidade de liderança e padrões
em conflito, como a República Democrática do profissionais, que não são facilmente substituídos. Em
Congo e Angola, de 40 a 60% dos combatentes são alguns países com taxas de predominância
soropositivos. O HIV/AIDS é a causa principal de extremamente altas, alguns comandantes temem não
incapacitação e morte entre várias forças policiais e ter condições de preencher seus contingentes nos
militares africanas. anos futuros.
O perigo de alastramento do HIV/AIDS entre as - Peter Croll
forças de manutenção de paz – que vem sendo Centro Internacional de Conversão de Bonn
ignorado há muito tempo – está hoje também sendo ___________________________________________________________________________________________
fonte: Vide nota final 41

disponibilizado a tempo: conseqüentemente, Técnicas também estão sendo desen-


faltou à vacina um antígeno A/Fujian, tendo volvidas para o uso de satélites na identificação
uma eficácia bem menor do que poderia ter. de locais de alto risco de doenças mortais,
E, em outubro de 2004, as instalações de antes que os surtos ocorram. Os satélites
produção de um dos dois únicos fornecedores podem monitorar condições ambientais como
da vacina dos Estados Unidos foram temperatura, precipitação e vegetação ligadas
interditadas pelas autoridades britânicas devido a aumentos populacionais entre animais
a problemas de contaminação de bactérias. portadores de doenças. Por exemplo, os
Isto deixou os Estados Unidos com apenas mosquitos transmissores da malária requerem
metade das vacinas de que necessitava.45 poças de água estagnada para depositar seus

62
Estado do Mundo 2005
CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

A campanha contra a varíola é um dos


QUADRO 3-2. BIOGUERRA
sucessos mais visíveis. Em 1967, a Organização
Armas biológicas ligam questões militares tradicionais
à biossegurança. Não requerem necessariamente um
Mundial de Saúde lançou um programa
grande nível de especialização e recursos para serem mundial de erradicação da doença. Naquela
produzidas. Na realidade, armas biológicas toscas ocasião ocorriam de 10 a 15 milhões de casos
foram utilizadas quando Kaffa foi sitiada em 1346, e
as vítimas Tatar da peste foram arremessadas de de varíola, anualmente, resultando em cerca
catapulta sobre as muralhas, para dentro da cidade. de 2 milhões de mortes anuais. A campanha
No mundo contemporâneo, o conhecimento e conseguiu eliminar a doença dentro de 10
equipamento necessários para fabricação de armas
biológicas mais sofisticadas estão amplamente anos; o último caso de varíola ocorreu na
disponíveis. Porém, as grandes potências, embora Somália, em 1977. Mais de US$ 300 milhões
tenham programas para tais armas, hesitam em foram gastos para atingir este objetivo, e mais
utilizá-las em guerras. Isto se deve, em parte, a
proibições morais quanto ao seu uso, mas também de 200.000 trabalhadores locais foram
ao fato de não serem particularmente eficazes no envolvidos nos países mais afetados.47
campo de batalha e de armas melhores estarem
A erradicação da varíola se desenvolveu tão
disponíveis.
Para os pequenos países e organizações tranqüilamente por vários motivos. A varíola
terroristas, todavia, armas biológicas podem ser o é uma doença grave, facilmente identificável.
equivalente à bomba atômica dos pobres. As cartas
contendo antrax que mataram cinco pessoas nos
Os cientistas conseguiram criar uma vacina
Estados Unidos, em 2001, foram uma pequena barata que proporcionava imunidade a longo
demonstração de como os terroristas podem utilizar prazo. Campanhas de vacinação em larga
armas biológicas para criar caos nos países
industrializados. Grupos terroristas podem utilizar
escala foram acompanhadas por uma rígida
patogenias para atacar pessoas, animais ou lavouras. monitoração e infor mação de casos.
Nos Estados Unidos, a fim de ajudar a se preparar Finalmente, um esclarecimento público sobre
para esta possibilidade sombria, a Lei que criou o
“Projeto Bioescudo” autoriza o Departamento de a doença foi desenvolvido para ajudar a
Segurança Interna a gastar até US$ 5,6 bilhões, ao descobrir casos ocultos. Ironicamente, uma das
longo de 10 anos, para armazenar vacinas e conseqüências menos fortuitas da erradicação
medicamentos contra o terrorismo.
_______________________________________________________ da varíola foi o fato de os países pararem suas
fonte: Vide nota final 44 campanhas de vacinação. Nos Estados
Unidos, as vacinações terminaram em 1972,
ovos, e umidade entre 55 e 75%, para que e não se sabe até que ponto os americanos
possam sobreviver. O parasita levado pelo mais idosos, hoje, têm imunidade residual à
mosquito, a causa efetiva da doença, requer doença. Uma vez que tanto Estados Unidos
temperaturas superiores a 18ºC. Informações quanto Rússia retêm amostras congeladas do
pertinentes são reunidas por satélites e vírus, teme-se que terroristas possam se
alimentadas a computadores que calculam os apossar de parte delas e introduzi-las nessas
riscos de surtos para várias áreas geográficas. populações extremamente vulneráveis.48
A Índia já está considerando a implantação Uma campanha semelhante para erra-
de um sistema de pré-alarme de malária via dicação da poliomielite, lançada em 1988,
satélite para todo o país.46 ainda está em curso. Mais de US$ 3 bilhões já
As campanhas de erradicação completa de foram gastos. O Esforço Global da
algumas doenças infecciosas são outra Erradicação da Poliomielite está sendo
abordagem para incrementar a biossegurança. atualmente liderado pela OMS, pelos Centros

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Estado do Mundo 2005
CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

de Controle e Prevenção de Doenças dos A crise política na região de Kano foi


Estados Unidos, Rotary International e aparentemente resolvida, quando uma
UNICEF. Como conseqüência da campanha, delegação de nigerianos do norte foi à
que objetivou eliminar a poliomielite até 2000, Indonésia, um país islâmico, para testar a vacina
as Américas, o Pacífico Ocidental e a Europa e inspecionar as instalações onde é fabricada.
foram certificados como livres da doença. O A vacina da poliomielite de origem
número de países onde a pólio é endêmica exclusivamente indonésia será utilizada no
caiu de 125 para apenas 6 – Afeganistão, Egito, norte da Nigéria no futuro.51
Índia, Niger, Nigéria e Paquistão. A doença Uma campanha para erradicar outras
tem se mostrado difícil de ser erradicada doenças importantes também está em curso.
porque, diferentemente da varíola, apenas Em 2001, o Secretário-geral da ONU, Kofi
cerca de um caso em 200 resulta em fraqueza Annan, solicitou a criação do Fundo Global
ou paralisia de membros que permite o de Combate a AIDS, Tuberculose e Malária
diagnóstico da doença. Assim, é necessário se – três das doenças mais devastadoras do
proceder à vacinação generalizada (80%) para mundo. O fundo é uma parceria entre
quebrar o ciclo de transmissão do vírus, uma governos, sociedade civil e setor privado. Seu
meta difícil de ser alcançada em muitos países objetivo é atrair, gerir e distribuir recursos para
de baixa renda.49 combater a AIDS, tuberculose e malária, mas
A política tem desempenhado um papel não para implementar diretamente os
feio, frustrando os esforços de eliminação da programas. Até hoje, as contribuições
poliomielite, particularmente na Nigéria. O totalizaram cerca de US$ 1,6 bilhão ao ano –
estado nortista de Kano, predominantemente muito aquém dos US$ 8 bilhões que o
islâmico, suspendeu a vacinação no final de Secretário-geral declarou serem necessários.
2003, temeroso que a vacina estivesse Embora o Presidente George W. Bush tenha
deliberadamente contaminada pelos “países prometido em seu discurso presidencial de
ocidentais” para causar infertilidade ou HIV/ 2003 doar US$ 15 bilhões ao longo de cinco
AIDS. Subseqüentemente, centenas de novos anos para o combate a AIDS na África e
casos de pólio foram confirmados na Nigéria, Caribe, sua alocação em 2004 foi de apenas
muitos na região de Kano, e o vírus alastrou- US$ 200 milhões.52
se rapidamente para 10 outros países africanos. O Grupo Global de Prevenção ao HIV –
Uma das regiões afetadas foi Darfur, no 50 especialistas de saúde de 15 países, reunidos
Sudão, onde quase 1,5 milhão de pessoas ficou pela Bill and Melinda Gates Foundation e a Henry
desabrigada pela guerra civil prolongada. A J. Kaiser Family Foundation – está também ativo
maioria assentou-se em campos de no combate à disseminação do HIV/AIDS.
refugiados, onde a falta de água limpa e Em 2004, a fundação Gates lançou um
instalações sanitárias adequadas criaram as programa de prevenção ao HIV de US$ 200
condições ideais para a disseminação da pólio. milhões na Índia que, em número de pessoas
Dada a natureza transitória da população, tem infectadas pela doença, só fica atrás da África
sido difícil manter as crianças num local para do Sul. O programa objetiva conter a
receber o número necessário de doses da disseminação do HIV/AIDS na Índia, através
vacina.50 de um programa agressivo de educação e

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Estado do Mundo 2005
CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

esforços de distribuição de preservativos entre torarem a condição dos pacientes, um


prostitutas e caminhoneiros, nos seis estados problema agravado pelo fato de os próprios
mais afetados.53 trabalhadores estarem morrendo de AIDS em
Uma das questões mais importantes na números consideráveis, ou emigrando. Como
campanha permanente para conter o HIV/ resultado, a meta da OMS de fazer com que
AIDS, e outras doenças infecciosas nos países 3 milhões de pessoas soropositivas nos países
pobres, é a necessidade de desenvolver pobres tenham acesso a medicamentos anti-
mecanismos melhores para distribuição de retrovirais, até 2005, provavelmente não será
medicamentos anti-retrovirais e outros atingida.55
produtos farmacêuticos às vítimas mais O surto recente do vírus da SRAG ilustra
pobres. Os defensores das vítimas que não tanto os sucessos dos esforços atuais de
têm condições de pagar pelos tratamentos prevenção de doenças quanto um dos desafios
desenvolvidos e apreçados nos países ainda a ser enfrentado – maior transparência
industrializados discordam das questões de ou abertura. Esta tragédia limitada poderia ter
lucro e propriedade intelectual levantadas pelas sido muito pior, caso os recém-estabelecidos
indústrias farmacêuticas. Ao mesmo tempo, esforços de monitoração não tivessem sido
o forte setor farmacêutico dos Estados implantados. A Rede Global de Alerta e
Unidos tem utilizado seu poder para Resposta a Surtos, da OMS, que inclui uma
obstaculizar os esforços de produção de equipe em Genebra e 120 organizações de
versões genéricas mais baratas para o combate saúde colaboradoras, rastreou rapidamente o
a doenças nos países pobres. Seus repre- avanço do vírus. Os pesquisadores conse-
sentantes argumentam que os direitos de guiram localizar sua provável fonte no sul da
propriedade intelectual (e preços altos) devem China. Á medida que o vírus se alastrou para
ser protegidos caso novos medicamentos outros países, as vítimas foram isoladas e
sejam desenvolvidos. Outros adotam a colocadas em quarentena. Como resultado,
posição de que uma crise humanitária existe e um quinto das vítimas da SRAG eram
que genéricos mais acessíveis devem ser trabalhadores da saúde. O surto pôde ser
disponibilizados.54 contido com pouco menos de 800
fatalidades.56
O número de países onde a poliomielite
é endêmica caiu de 125 para apenas 6 –
Há uma necessidade premente para
Afeganistão, Egito, Índia, Niger, Nigéria e
se criar mecanismos inovadores que
Paquistão.
proporcionem medicamentos acessíveis
Os avanços em fazer chegar medicamentos para as vítimas de doenças nos países
anti-retrovirais às vítimas do HIV/AIDS na pobres.
África subsaariana têm sido prejudicados por
essa disputa de propriedade intelectual. E há Ao mesmo tempo, entretanto, consi-
o problema associado de treinamento de derações políticas e econômicas impediram o
trabalhadores da saúde suficientes para avanço inicial na identificação da nova doença,
administrarem esses medicamentos e moni- e a falta de abertura foi um problema

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Estado do Mundo 2005
CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

constante. Nos primeiros dias do surto, a econômicas que devem ser consideradas, em
burocracia chinesa bloqueou o fluxo oportuno função da necessidade de rápido desen-
de infor mações para os médicos. Na volvimento de vacinas no caso de doenças de
Província de Guangdong, o departamento de movimentação acelerada. Finalmente, há uma
saúde inicialmente recebeu informação sobre necessidade premente para criar não apenas
a doença em documento “altamente confi- mecanismos inovadores que proporcionem
dencial” de um comitê de saúde do governo medicamentos acessíveis às vítimas de doenças
central. Infelizmente, o documento ficou numa nos países pobres, como também incentivos
carteira durante três dias, porque ninguém na para o desenvolvimento de novas vacinas e
ocasião tinha autoridade para abri-lo. medicamentos aplicáveis às doenças graves que
Inicialmente, o Partido Comunista tentou ainda são endêmicas nessas nações.
abafar o surto, a fim de proteger o comércio, Assim, a corrida continua entre a capacidade
especialmente turístico. Mas o temor e a ira crescente de doenças novas e ressurgentes se
dos cidadãos forçou o Presidente Hu Jin-tao disseminarem com maior velocidade e a
a voltar atrás e liberar a comunicação sobre a capacidade de uma rede cada vez mais
SRAG. Vários membros responsáveis do sofisticada de autoridades de saúde e
partido foram expulsos e antigos comitês de laboratórios em todo o mundo de respon-
“vigilância local” voltaram à ativa e derem rapidamente a novas ameaças. A boa
começaram a monitorar cuidadosamente a notícia é que o HIV/AIDS, a SRAG e a
saúde da população. No final, o Presidente ameaça do bioterrorismo alertaram os
Hu provavelmente obteve um ganho legisladores quanto às questões graves de
considerável de popularidade pelos seus segurança humana representadas pelas doenças
esforços.57 infecciosas. O primeiro passo na resposta à
O estágio seguinte da contenção de doenças ameaça crescente das doenças foi o uso da
infecciosas exige um confrontamento de capacidade tecnológica na criação de redes de
questões políticas e econômicas difíceis. A monitoração mais eficazes e na aplicação de
principal delas é a redefinição das prioridades novas especializações e tecnologias médicas,
de financiamento da segurança, que reflita a na tarefa de identificação rápida de doenças
natureza grave dos desafios das novas e potencialmente fatais. Porém, resta muito ainda
ressurgentes doenças numa era de globa- a fazer. A infra-estrutura da saúde pública
lização. E, como os recentes surtos de doenças deverá ser aprimorada substancialmente em
vieram acompanhados de uma relutância por quase todos os países, ricos e pobres. O mais
parte de autoridades governamentais de importante, todavia, é que as prioridades e
fornecerem informações oportunas, uma gastos da segurança deverão ser drasticamente
maior transparência é claramente essencial para revistos para refletirem a gravidade das
lidar com a ameaça de vírus de alastramento ameaças que as doenças infecciosas repre-
acelerado. Há também questões de obrigações sentam num mundo cada vez mais interligado.

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Estado do Mundo 2005
CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS

LIGAÇÃO DE SEGURANÇA

Bioinvasões
Aumentos consideráveis no comércio e pelos recursos locais com as nativas. Elas
turismos mundiais estão desorganizando os sobrecarregam os pastos, perturbam
ecossistemas em todo globo. O valor das sistemas hídricos e levam outras espécies à
mercadorias e serviços exportados extinção. No México, 167 dos 500 peixes
mundialmente aumentou seis vezes nas três nativos de água doce estão atualmente
últimas décadas – de US$ 1,5 trilhão, em ameaçados de extinção – e 76 destes casos
1970, para US$ 9,1 trilhão, em 2003. estão relacionados com a disseminação de
Somente entre 1990 e 2003, as chegadas invasoras.2
turísticas internacionais aumentaram 50%, Espécies invasivas também causam
alcançando um pico de 702,6 milhões de prejuízos econômicos. Na China, perdas
chegadas em 2002. Do mesmo modo que decorrentes de espécies invasivas atingem
as pessoas se movimentam pelo mundo, hoje US$ 14,5 bilhões anuais, ou 1,36% do
especialmente por navio ou avião, outras Produto Interno Bruto do país. Nos
espécies também o fazem. E, como Estados Unidos, estas perdas ultrapassam
espécies invasivas – organismos US$ 138 bilhões a cada ano. Espécies
introduzidos com potencial de diminuir a invasivas também causam impactos
biodiversidade e prejudicar economias e o econômicos locais. No Benin, as mulheres,
meio ambiente – espalhadas por todo tradicionalmente, se dedicam ao transporte e
mundo, é mais provável que elas colonizem ao comércio, enquanto os homens pescam e
ecossistemas degradados pelo uso aram. Após um dos rios do país ter sido
insustentável de recursos ou simplificados infestado por uma planta aquática chamada
pela agricultura intensificada. 1 jacinto, eles sofreram uma queda de 70% na
Embora em torno de 50.000 espécies sua renda anual, de US$ 1.984 para US$
tenham entrado nos Estados Unidos nos 607, em sete anos. E as mulheres que
últimos 200 anos, somente uma em cada ganhavam anualmente US$ 519
sete é considerada invasora. Na realidade, comercializando ao longo do rio, antes que
espécies introduzidas deliberadamente – seus roteiros fossem invadidos pelos
incluindo milho, trigo, arroz, gado e aves – jacintos, ganharam somente US$ 137
foram responsáveis por 98% do sistema anuais, durante a infestação.3
alimentar dos Estados Unidos, em 1998. Devido aos potentes efeitos ecológicos e
Mas muitos outros tipos de organismos, econômicos dos agentes biológicos e a
especialmente invertebrados e micróbios, facilidade com que terroristas podem obtê-
são introduzidos intencionalmente. Estas los, a bioinvasão é atualmente considerada
novas espécies vegetais e animais muitas como uma possível ameaça terrorista.
vezes invadem os ecossistemas, se Robert Pratt, escrevendo no US Army War
espalhando rapidamente e competindo College Quarterly, sugere que os terroristas

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Estado do Mundo 2005
BIOINVASÕES

podem introduzir membros da


espécies invasivas OMI, todos os
nos Estados navios serão
Unidos para obrigados a
“confundir, possuir
desorganizar e equipamentos
Mexilhões zebra cobrindo um mexilhão nativo
desmoralizar o para tratamento
governo e os cidadãos dos Estados Unidos, de sua água de lastro, até 2016. Se
ao longo do tempo, tradicionalmente. implementado adequadamente, o tratado
Embora não seja tão dramática como uma pode evitar a disseminação maior de
epidemia de catapora, a introdução espécies invasivas, como a do mexilhão
despercebida de espécies exóticas em lagos zebra europeu. Estes animais infestaram
e rios, por exemplo, “pode não ser corpos de água doce em quase 40% dos
detectada durante anos, até que as espécies Estados Unidos, desalojando outras
estejam bem implantadas e impossíveis de espécies marinhas e a um custo para o país
serem combatidas.” Isto poderia causar em torno de US$ 1 bilhão na erradicação,
efeitos ambientais e econômicos a longo somente nos anos 90. 5
prazo, com enfraquecimento dos sistemas Vários acordos ambientais internacionais,
naturais e exaustão dos recursos financeiros incluindo a Convenção sobre Diversidade
nos esforços de eliminação das invasoras.4 Biológica (CDB) e a Convenção Ramsar
Todas estas preocupações apontam para de Áreas Úmidas, destacam as ameaças
a necessidade urgente de retardar novas representadas pelas espécies invasivas à
bioinvasões e minimizar o prejuízo biodiversidade e propõem ações para
causado por espécies que já invadiram restringir sua introdução e disseminação. A
outros ecossistemas. No início de 2004, a CDB conclama outras organizações
Organização Marítima Internacional (OMI) intergovernamentais, tais como a
adotou uma convenção para combater a Organização Internacional do Comércio
disseminação de espécies aquáticas na água (OIT) e a Organização para Alimentação e
de lastro dos navios – água retida para Agricultura, a criarem políticas para lidar
estabilizar navios vazios cruzando com o problema criado pelas espécies
hidrovias. Esta água é então sempre invasivas. Particularmente, ha necessidade
depositada longe dos portos de destinação. de maior comunicação entre as secretarias
Quantidades de até 4.000 espécies do tratado para que possam harmonizar
invertebradas são transportadas em água suas políticas referentes a espécies invasivas.
de lastro, diariamente. Logo que a Como ponto de partida, a Secretaria da
convenção seja ratificada pelos 30 países- CDB se ofereceu como observadora junto

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Estado do Mundo 2005
BIOINVASÕES

à Comissão de Medidas Sanitárias e suficientes e não for empanado por outras


Fitossanitárias da OIT. 6 preocupações com segurança. 7
Adicionalmente, governos devem A União Européia, através de seu
trabalhar para sincronizar os esforços Instrumento Financeiro para o Meio
domésticos no combate à disseminação Ambiente, alocou € 27 milhões para 102
das espécies invasivas. Nos Estados, projetos voltados para o controle e
agentes alfandegários e de fronteira erradicação de espécies invasivas nos países-
assumiram agora a responsabilidade de membros. No entanto, muitos outros países
fazer vistorias à procura de espécies não dispõem de fundos suficientes,
invasivas nos portos de entrada, como tecnologias de monitoramento e
parte de uma decisão de transferir para o treinamento para tratar adequadamente
novo Departamento de Segurança Interna deste novo problema. Para preencher esta
(DSI) as secções da Guarda Costeira dos lacuna, a CDB está convocando países
Estados Unidos e do Serviço de Inspeção doadores a ajudarem a capacitar ilhas-
Agrícola e de Saúde Vegetal da Flora. nações e outros países vulneráveis, na
Recentemente, o DSI também aderiu ao minimização da disseminação e impacto das
Conselho Nacional de Espécies Invasivas, espécies invasivas. 8
um painel interagência formado em 1999 Sem sistemas de monitoramento e
para tratar deste problema nos Estados erradicação nacionais cuidadosamente
Unidos. Este esforço para consolidar a implantados, a cada dia, aviões e navios
segurança doméstica e controlar espécies continuarão a transportar espécies invasivas
invasivas pode trazer avanços importantes, pelo planeta, ameaçando a segurança
porém somente se o DSI receber fundos econômica e ambiental no seu destino final.
- Zoë Chafe

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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

CAPÍTULO 4

Cultivando a Segurança
Alimentar
Danielle Nierenberg e Brian Halweil

Na Conferência Internacional sobre a AIDS, cerca de 60% das pessoas que convivem com
em Julho de 2004, participantes de todo o a AIDS na África subsaariana e muitas foram
mundo reuniram-se em Bancoque para forçadas a abandonar a lavoura para cuidar
discutir as perspectivas cada vez mais terríveis de seus maridos e parentes. A região também
de milhões de pessoas que sofrem desta está perdendo grande parte do seu
doença. A cobertura da mídia divulgou conhecimento de agricultura, pois os pais estão
dezenas de artigos sobre como as mulheres morrendo antes de passarem suas noções e
são o segmento de maior crescimento da experiências à geração seguinte. Assim,
população aidética, sobre a explosão da AIDS crianças órfãs com o encargo de cuidar das
na Ásia e sobre a falta de medicamentos plantações estão, em alguns casos, substituindo
adequados no mundo em desenvolvimento. cultivos alimentares tradicionais como feijão,
Uma reportagem onde a maioria falhou, de alto teor protéico e nutricional, por
entretanto, foi como a AIDS se tornou tubérculos que são muito mais fáceis de
cúmplice da insegurança alimentar. Na cultivar, porém menos nutritivo.1
realidade, a doença está gradativamente O impacto da AIDS sobre a produção
desfazendo a base agrícola de muitos países agrícola pode ser novo, mas não é, de forma
em desenvolvimento. alguma, a única ameaça à segurança alimentar.
Na África, 7 milhões de trabalhadores Onde as pessoas não têm condições financeiras
morreram entre 1985 e 2000, nos 25 países para adquirirem alimento suficiente, problemas
mais afetados. No Quênia, um estudo eternos como a falta d’água continuam a
constatou que o consumo de alimentos caíra representar o fator principal da fome.
40% nos lares onde havia pessoas Mundialmente, 434 milhões de pessoas se
contaminadas. As mulheres, que perfazem 80% vêem diante da escassez hídrica e, até 2025,
da mão-de-obra agrícola, representam hoje de 2,6 a 3,1 bilhões de pessoas estarão vivendo

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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

sob condições de estresse ou escassez hídrica. determinantes mais importantes da segurança


À medida que a água para agricultura se torna alimentar no futuro poderão ser muito
menos disponível, as nações se tornam mais diferentes daqueles do passado.3
dependentes de importações caras de Dentre as principais ameaças à segurança
alimentos. Além disso, mais de 80% das terras alimentar que surgem no horizonte estão: a
cultiváveis em todo o mundo perderam perda da diversidade de espécies vegetais e
produtividade, devido à degradação do solo. animais; o surgimento de novas moléstias e
Embora as colheitas globais tenham doenças veiculadas pelos alimentos; e o
aumentado durante a segunda metade do bioterror alimentar. Fotos perturbadoras de
século XX, especialistas calculam que as avicultores asiáticos que foram forçados a
colheitas teriam crescido mais 10%, caso não enterrar ou incinerar milhões de frangos,
houvesse esse problema. Conflitos, também, devido à gripe aviária, podem ser o prenúncio
ameaçam a capacidade de milhões de pessoas de maiores epidemias no horizonte. Ao
obterem o suficiente para comer. Em 2002, mesmo tempo, a uniformidade de nossos
no Afeganistão, os lavradores não podiam rebanhos e as condições amontoadas e sujas
cultivar suas terras; muitos foram forçados a em que são criados não só facilitam novas
matar seu gado para sobreviver e, de acordo doenças, mas também deixam nossas fazendas
com a FAO (Organização das Nações Unidas escancaradas e vulneráveis à disseminação de
para Alimento e Agricultura), a violência na patogenias alimentares e ataques biológicos
Grande Darfur, no Sudão, em 2004, forçou malignos. (Ver também Capítulo 3.)
1,2 milhão de pessoas a abandonarem seus Possivelmente, a nova ameaça mais
lares e plantações.2 importante seja a interação entre agricultura e
As conseqüências de toda essa insegurança mudança climática. O cultivo da terra pode ser
alimentar são bem conhecidas e fáceis de a atividade humana mais dependente de um
perceber. Nos acostumamos com imagens de clima estável. As ameaças mais graves não serão
mulheres sudanesas tão magras que nem a grande estiagem ou onda de calor ocasional,
conseguem carregar seus filhos, homens etíopes e sim mudanças sutis de temperatura durante
tão subnutridos que não mais conseguem andar períodos-chave no ciclo de vida de uma lavoura,
e – talvez o mais trágico de tudo – crianças pois elas são mais disruptivas para plantas de
de barriga inchada, chorando por comida. Na cultivo sob condições climáticas ótimas.
realidade, o número de famélicos nos países Cientistas agrícolas da Ásia constataram que a
em desenvolvimento aumentou em 18 temperatura em elevação pode reduzir a
milhões, na segunda metade dos anos 90, produção de grãos nos trópicos em até 30%,
atingindo hoje cerca de 800 milhões. ao longo dos próximos 50 anos.4
Mundialmente, quase 2 bilhões de pessoas
passam fome e sofrem de deficiência A uniformidade de nossos rebanhos e as
nutricional crônica. Por trás das fotografias condições amontoadas e sujas em que
trágicas dessas pessoas desesperadas, são criados deixam nossas fazendas
entretanto, estão os problemas menos visíveis escancaradas e vulneráveis à
que ameaçam a oferta global de alimentos. disseminação de patogenias alimentares
Tanto em nível local quanto nacional, os e ataques biológicos malignos.

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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

Ironicamente, as tecnologias desenvolvidas solucionar. O culpado era a imidacloprida, um


a partir dos anos 60 para revolucionar a ingrediente inseticida de amplo espectro, do
agricultura podem estar, na realidade, produto Gaúcho. Este produto da Bayer é
aumentando a vulnerabilidade de nossas aplicado diretamente nas sementes de milho e
fazendas. Por exemplo, inicialmente pesticidas girassol e absorvido por toda a planta. As
e inseticidas químicos fizeram com que os abelhas polinizadoras pegam o inseticida
produtores reduzissem seus prejuízos com juntamente com o pólen que retiram para fazer
doenças e pragas. Mas, começaram a falhar o mel, carregando-o de volta à colméia, onde
quando as pragas desenvolveram resistência e envenena as outras abelhas. Embora o Gaúcho
os produtos químicos passaram a deixar tenha sido proibido na França, em 1999, seu
resíduos tóxicos em nossa água, solo e substituto, o Fipronil – um inseticida fabricado
alimentos. A criação de milhares de animais por outra multinacional do agronegócio, BASF
em fábricas-fazendas baixou o preço da carne, – é igualmente mortal.5
permitindo que mais pessoas comessem De acordo com a União Nacional de
hambúrgueres, filés e peitos de frango, Apicultores da França, a imidacloprida matou
diariamente. Mas, a sociedade está pagando o centenas de milhares de abelhas, levando à
preço da carne mais barata, sob a forma de falência um grande número de apicultores
perda de diversidade de animais domésticos franceses. O fipronil também foi proibido na
e de doenças que saltam a barreira das espécies França, porém o governo está permitindo o
e contaminam pessoas. uso de estoques remanescentes, para
Todavia, da mesma forma que as ameaças exasperação de muitas pessoas. Em fevereiro
– tanto novas quanto velhas – à segurança de 2004, centenas de agricultores, liderados
alimentar são inúmeras, também o são as pelo ativista José Bove, ocuparam os escritórios
soluções. Nossa ferramenta mais importante do órgão nacional de alimentação da França,
não é um novo produto químico ou exigindo a proibição do uso do inseticida, não
fertilizante, ou sementes transgênicas, e sim uma só por aniquilar as abelhas, mas também por
nova abordagem à agricultura que dependa destruir a diversidade agrícola da região e
do conhecimento dos produtores e um uso ameaçar a segurança econômica.6
sofisticado do meio ambiente que os O declínio de polinizadores não é um fato
circundam. isolado na França. Apesar do seu valor
econômico – são responsáveis pela polinização
A Perda da Diversidade de lavouras que valem US$ 10 bilhões anuais
Agrícola –, as abelhas estão desaparecendo em todo o
mundo. Abelhas domésticas perderam um
terço de suas colméias, mundialmente, e
No final dos anos 90, os agricultores
espécies silvestres também estão em declínio
franceses começaram a sentir que algo estava
devido ao uso de pesticidas e inseticidas,
faltando em seus campos – o zumbido de
expansão imobiliária e espécies invasivas.7
abelhas. De maçãs a haricot verts, centenas de
As abelhas não são as únicas espécies
lavouras na França dependem das abelhas para
agrícolas importantes “desaparecidas em
polinização. O mistério do desaparecimento
combate.” Perdem-se milhares de espécies
das abelhas, entretanto, não foi difícil de

72
Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

vegetais e animais a cada ano, devido a guerras, décadas. De acordo com a FAO, a demanda
pragas e doenças, mudança climática, crescente de carne, ovos, leite e outros
urbanização, comércio global de material produtos animais forçou os produtores a
exótico de criação e a agricultura industrial em abandonarem raças locais e a se concentrarem
larga escala. Grandes fazendas mecanizadas num número cada vez mais limitado de gado
não podem lidar com uma variedade de de alta produtividade.9
culturas e gigantescos fabricantes de alimentos Durante o último século, 1.000 raças – cerca
exigem produtos de uniformidade e tamanho de 15% das raças pecuárias e avícolas –
padronizados. À medida que as fazendas se desapareceram e cerca de 300 dessas perdas
tornam mais e mais tecnologicamente ocorreram nos últimos 15 anos. O problema
sofisticadas, também se tornam mais e mais tem sido mais grave nos países industrializados,
ecologicamente frágeis. onde a atividade de fábricas-fazenda é mais
Desde o início do século passado, intensa. Na Europa, mais da metade de todas
perderam-se 75% da diversidade genética da as raças de animais domésticos se tornaram
agricultura. Na China, 10.000 variedades de extintas desde a virada do último século, e 43%
trigo estavam sob cultivo em 1949; já nos anos das remanescentes estão sob ameaça de
70, só 1.000 estavam em produção. Apenas extinção. Porém, à medida que os países em
20% - um quinto – das variedades existentes desenvolvimento ascendem na escala protéica,
no México, em 1930, são conhecidas hoje. E o estoque genético de raças pecuárias também
os agricultores nas Filipinas, que outrora está se erodindo, pois raças indígenas estão
cultivaram milhares de variedades de arroz, sendo substituídas por raças industriais de
nos anos 80 possuíam apenas duas variedades maior produtividade. Esta homogeneidade
cobrindo 98% de toda a área produtora. gradativa debilita a capacidade de reação dos
Variedades da Revolução Verde, introduzidas criadores contra pragas, doenças e mudanças
apenas quatro décadas antes, hoje cobrem mais climáticas.10
da metade de todos os arrozais nos países em A importância da diversidade agrícola, ou
desenvolvimento. De acordo com Patrick sua falta, tornou-se assustadoramente clara nos
Mulvany, da Intermediate Technology Development Estados Unidos, algumas décadas atrás. Em
Group, o mundo dispõe de 7.000 – 10.000 1970, mais de 80% da lavoura de milho
espécies vegetais comestíveis; cerca de 100 possuía um gene que tornava a planta
destas são importantes para a segurança susceptível à Helmintosporiose, um fungo que
alimentar da maioria dos países, todavia produz lesões roxas nas folhas ou manchas
apenas 4 – milho, arroz, trigo e batata – pretas nas espigas. Este fungo reduziu a
fornecem 60% da energia dietética mundial.8 produção em até 50%, causando um prejuízo
Recursos genéticos pecuários são causa de aos produtores de quase US$ 1 bilhão, apenas
preocupação hoje. (Ver Tabela 4-1.) Embora em 1970. Surpreendentemente, a cura não veio
ações de conservação dos recursos vegetais de um laboratório, mas dos campos do sul
mundiais tenham se desenvolvendo há mais do México, onde pequenos produtores
de um século – os primeiros bancos de conservam a diversidade genética do milho,
sementes foram criados em 1894 –, a pecuária cultivando centenas de raças de polinização
tem sido foco de atenção apenas nas últimas aberta – genitores genéticos do milho

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CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

Tabela 4-1. Raças de Animais de Corte sob Ameaça de Extinção

Raça Importância Situação

Gado Lulu O gado Lulu do Nepal está bem Este gado está ameaçado devido ao
adaptado à vida em ambientes extremos cruzamento descontrolado, uma vez que
e é altamente resistente a doenças. as raças indígenas são consideradas
Requer poucos insumos e é inferiores a raças exóticas.
extremamente produtivo, produzindo até
dois litros de leite por dia.

Suíno do Sul da China O suíno do Sul da China é uma raça Devido à intensificação das fábricas-
forte, adaptada à pouca alimentação e fazenda na Malásia, restam apenas cerca
altamente resistente ao calor e radiação de 400 destas espécies.
solar direta. É também imune à verme do
rim e fascíola hepática, contrariamente às
raças estrangeiras.

Galinha Mukhatat Nativa do Iraque, a galinha Mukhatat Restam menos de 600 aves.
pode ser criada em ambientes hostis com
pouca exigência nutricional.

Ovino Criolla Mora Criolla Mora é uma raça de ovinos Cientistas não dispõem de números
colombianos que datam de 1548. exatos, estimando restarem cerca de
Utilizados pela carne e lã, são resistentes 100 a 1.000 nos planaltos colombianos.
à infestação endoparasitária.

Cherne Este peixe do sudoeste do Atlântico é Por nunca sair de seu habitat imediato, é
popular pela sua carne branca e fácil de ser pescado. De acordo com
escamosa, podendo atingir peso superior cientistas, corre “extremo alto risco” de
a 660 quilos. extinção nos próximos 10 anos.

FONTE: Vide nota final 9.

moderno. Os cientistas conseguiram identificar nativas e representando uma ameaça à


uma variedade resistente ao fungo e cruzá-la segurança alimentar, tanto local quanto
com a variedade americana.11 global.12
Durante séculos, agricultores maia e outros Da mesma for ma que as florestas e
indígenas, onde é hoje o sul do México e pastagens dependem de uma vasta gama de
América Central, utilizaram raças plantas e animais para serem produtivas,
geneticamente ricas e diversificadas para ecossistemas agrícolas também dependeram,
incrementar suas safras. Em contraste, a durante milênios, de uma imensa, rica e
maioria dos produtores americanos cultiva um diversificada reserva de sementes e raças
pequeno grupo de híbridos de milho quase animais silvestres e domesticadas para
geneticamente idêntico, que requer um coquetel impulsionar a produtividade agrícola.
químico de fertilizantes e inseticidas para Agricultores, pastores e pescadores em todo
sobreviver até a colheita. Infelizmente, essas o mundo dependem da agrobiodiversidade
tecnologias da Revolução Verde se tornaram – a variedade e variabilidade de animais, plantas
nor ma comum, substituindo variedades e microorganismos utilizados direta e

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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

indiretamente para alimento e agricultura – para implantou bancos de sementes, lojas de


alimentarem a si mesmos e suas comunidades. fornecimento agrícola e instalações de
Através de uma criação seletiva e poupança armazenagem locais, e ajudou a estabelecer
de sementes, os agricultores conseguiram “Zonas de Liberdade” – aldeias que se
adaptar culturas e animais a diferentes climas comprometem a rejeitar fertilizantes e
e condições de cultivo.13 pesticidas químicos, sementes transgênicas e
De acordo com Jose Esquinas-Alcazar, patentes sobre a vida. A diversidade agrícola
Secretário da Comissão de Recursos Genéticos reduz a dependência de agroquímicos caros e
para Alimento e Agricultura, “recursos outros insumos, proporcionando resiliência
genéticos são a base da segurança alimentar.” contra grandes surtos de pragas ou mudanças
Ele compara as milhares de raças diferentes climáticas. E, quando os agricultores
de lavouras e gado aos blocos de LEGO: “Da produzem para mercados locais e não para
mesma forma que as crianças utilizam uma exportação, sua base de clientes se diversifica
variedade de blocos coloridos de tamanho e consideravelmente, encorajando-os a
cor diferentes para construir um prédio ou plantarem uma maior variedade de culturas.
castelo, nós também precisamos de todas as Desta forma, a diversidade agrícola reforça a
pequenas peças da diversidade genética da auto-suficiência.16
agricultura para construir a segurança Nesta época de “alertas de terror”, as
alimentar.”14 fazendas que renegam a diversidade genética
Mesmo nas nações ricas, os agricultores se despem efetivamente de sua armadura de
dependem de um fluxo contínuo de batalha. Apesar de sua gigantesca capacitação
ger moplasma para desenvolver novas tecnológica, imensos armazéns abarrotados de
variedades resistentes a pragas e doenças. As aves ou suínos são mais vulneráveis do que as
mais recentes tecnologias de cultivo agrícola, fazendas menores e mais diversificadas à
inclusive engenharia genética, ainda dependem introdução maligna de doenças (ver Quadro
dos genes e variedades existentes. E campos 4-1). De acordo com Chuck Bassett, da
agrícolas espalhados preservam melhor a American Livestock Breeds Conservancy, “a perda
diversidade, uma vez que bancos de sementes, de recursos genéticos faz com que o gado
livrarias de germoplasma e outros repositórios tenha mais dificuldade de sobreviver a um
mortos de diversidade, são susceptíveis à desastre, seja de causa natural, humana ou
deterioração, falhas mecânicas e até mesmo terrorista. Um vetor bem introduzido poderá
sabotagem.15 destruir 90% de um rebanho confinado – sem
Porém, a diversidade genética agrícola não problemas. Num rebanho de variação genética
é importante apenas para a agricultura mais ampla, isto é mais difícil.”17
industrial. Na Índia, membros do Movimento
Navdanya estão reagindo à perda de Alerta Alimentar
biodiversidade – e à ameaça de propriedade
corporativa de sementes através de patentes Da brucelose e aftosa para micotoxinas e
–, protegendo variedades locais de trigo, arroz requeima da batata, durante séculos os
e outras culturas, catalogando-as e declarando- agricultores têm sido afligidos por doenças
as propriedade comum. Navdanya também que atacam seus animais e lavouras. No século

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CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

QUADRO 4-1. PODERÁ O ALIMENTO SE TORNAR UMA ARMA DE DESTRUIÇÃO EM MASSA?

Desde 11 de setembro de 2001, a segurança fazendas às plantas processadoras e, daí, ao


alimentar adquiriu um novo significado. A escala consumidor. Na indústria de laticínios, por exemplo,
imensa da agricultura, particularmente nos países há uma tendência para contratação de criação de
industrializados, e sua importância econômica a novilhos, o que pode envolver operações com mais de
tornam um alvo fácil para atos terroristas. De 30.000 animais de até 80 fazendas diferentes. Estes
acordo com Peter Chalk, especialista em animais viajam de e para fazendas diariamente. “Se
“agroterrorismo” da RAND Corporation, fábricas- uma doença for introduzida sem ser percebida, já
fazenda são alvos particularmente atraentes por viajou milhares de quilômetros”, declara Chalk.
inúmeras razões. “Terroristas”, diz Chalk, “escolhem O Departamento de Agricultura dos Estados
o caminho de menor resistência. Atacar a agricultura Unidos (USDA, na sigla em inglês) observa que, caso a
é muito mais simples do que utilizarem bombas, aftosa fosse introduzida nos Estados Unidos, poderia
devido às vulnerabilidades inerentes ao sistema.” se alastrar por 25 estados em apenas cinco dias. E,
Uma das maiores vulnerabilidades é o setor uma vez que alimentos processados podem ser
pecuário dos Estados Unidos. A pecuária, conforme disseminados em centenas de mercados dentro de
Chalk, tornou-se cada vez mais propensa a doenças poucas horas, um único caso de adulteração química
nos últimos anos, devido às condições industriais ou biológica poderia se alastrar extensamente.
intensivas nas fazendas. E, uma vez que cada fazenda No mundo em desenvolvimento, a ausência de
contém dezenas de milhares de animais, os regulamentos de segurança alimentar ou veterinários
operadores não têm condições de monitorar treinados para identificar doenças animais também
regularmente todo o gado, só percebendo uma tornam a agricultura vulnerável a ataques. E, à medida
irrupção de doença quando já está disseminada por que o comércio global se expande, os terroristas
todo o rebanho. podem ter maiores oportunidades de utilizar o
Outra vulnerabilidade da agricultura industrial é o alimento como uma arma de destruição em massa.
movimento acelerado de produtos agrícolas das ___________________________________________________________________________________________
fonte: Vide nota final 17

passado, todavia, com a agricultura se tornando e China. Só no leste e sudeste da Ásia, cerca
maior e mais intensificada, expandindo-se de 6 bilhões de aves são criadas para corte,
para outras áreas, a natureza dessas doenças com a maioria delas criadas nas megacidades
também mudou. Imensas fábricas-fazenda da região, em rápido crescimento. Esta
abarrotadas de animais e inchadas com esterco, intensidade cada vez maior na produção de
monoculturas substituindo sistemas de cultivo frangos e outros animais em centros urbanos
múltiplo, reciclagem de animais e lixo para e áreas rurais, juntamente com sua proxi-
ração animal, concentração da indústria de midade a residências, começa a ter conse-
abate e processamento, uso indevido de qüências que podem ameaçar a saúde humana.
antibióticos – todos esses referenciais da Desde 1997, a gripe aviária se disseminou de
agricultura industrial dão às patogenias maiores aves para humanos, pelo menos em três
oportunidades de infeccionarem cada camada ocasiões. E, em outubro de 2004, o primeiro
da cadeia alimentar e, por fim, afetar a saúde caso provável de transmissão pessoa-a-pessoa
humana. (Ver Tabela 4-2.)18 foi constatado na Tailândia.19
Tomemos a gripe aviária, por exemplo. De O último surto apareceu no final de 2003 e
acordo com a FAO, a disseminação da gripe 2004, disseminando-se pela Ásia e
do Paquistão para China pode ter sido contaminando milhares de aves. Pelo menos
facilitada pelo aumento acelerado das 100 milhões foram “despopuladas” – em
operações avícolas e suínas e a concentração outras palavras, sacrificadas – quando a doença
geográfica maciça de gado na Tailândia, Vietnã saltou a barreira das espécies e a maioria das

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CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

Tabela 4-2. Doenças animais selecionadas que podem se disseminar para


humanos

Doença Descrição

Influenza Aviária A gripe aviária saltou a barreira das espécies pela primeira vez
em 1997, matando seis pessoas em Hong Kong. Em 2003 e
2004, o virulento vírus H2N51 matou pelo menos 30 pessoas.

Vírus Nipah Em 1997, Nipah foi descoberto na Malásia, onde se


disseminou de suínos para humanos, provocando um grande
surto de encefalite; 93% das pessoas contaminadas tinham
exposição ocupacional a suínos e 105 morreram.

Encefalopatia Espongiforme A EEB é transmitida através de ração para bovinos contendo


Bovina farelo de carcaças de outros ruminantes. Desde sua
(EEB, ou doença da vaca louca) descoberta, no Reino Unido, em 1986, mais de 30 outros
países divulgaram casos desta doença e da variante
Creutzfeldt-Jakob (vCJD) – a forma humana da doença – que
matou mais de 150 pessoas mundialmente.

Patogenias veiculadas por Doenças veiculadas pelos alimentos são um dos problemas de
alimentos saúde mais comuns em todo o mundo. Campylobactéria,
E.coli patogênica e salmonela são as patogenias mais
freqüentemente associadas à carne contaminada e produtos
animais.
FONTE: Vide nota final 18

pessoas que se contaminou morreu. Um das únicas formas eficazes de controle da


estudo recente na China também demonstrou doença. Embora os especialistas suspeitem
que, com cada novo surto, o vírus se torna que a difusão de fábricas-fazenda por toda a
mais e mais mortal. Autoridades internacionais Ásia, condições insalubres, concentração de
de saúde temem hoje que esta linhagem mortal animais e a uniformidade genética dos animais
da gripe aviária não possa ser eliminada nas ajudaram a facilitar o surgimento e
aves asiáticas, podendo um dia precipitar uma disseminação da gripe aviária, são os pequenos
pandemia global da gripe humana. Uma vez produtores os mais devastados econo-
que pode se mover rápida e facilmente de micamente pela doença. A Tailândia, por
pessoa a pessoa, os especialistas temem que exemplo, é o quarto maior exportador de aves
poderá ser ainda mais mortal do que a AIDS. do mundo, e muitos fazendeiros perderão seu
(Ver também Capítulo 3.)20 negócio. De acordo com Emmanuelle
Os efeitos da gripe nas populações aviárias Guerne-Bleich, da FAO, estes fazendeiros que
e humanas, igualmente, podem ser possuem, caracteristicamente, cerca de 50
devastadores. A FAO, a Organização Mundial frangos, os utilizam como uma “apólice de
de Saúde e a Organização Mundial de Saúde seguro” para momentos de crise – vendendo-
Animal informam que o abate de todas as os para abate, setor médico ou outras
aves nas fazendas próximas a um surto é uma necessidades – e estão “entre os mais afetados

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CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

e menos capazes de se recuperarem” do surto vítimas humanas. Os cientistas prevêem que, à


da gripe aviária.21 medida que a agricultura industrial continua a
O vírus Nipah é uma das mais novas se expandir para ambientes tropicais, aumenta
zoonoses – doenças que podem saltar de o risco do vírus Nipah e de outras doenças
animais para humanos. É um exemplo que podem saltar a barreira das espécies.23
perfeito, embora complicado, do que pode Contrariamente ao Nipah e à gripe aviária,
acontecer quando a grande agricultura é a doença da vaca louca (encefalopatia
combinada à destruição de ecossistemas espongiforme bovina) não teve origem
frágeis. O Nipah foi originalmente descoberto silvestre e sim, conforme alguns especialistas
em 1997, num pequeno vilarejo da Malásia, especulam, nas indústrias processadoras de
local de um dos maiores criatórios de suínos ração do Reino Unido. Uma das formas que
do país. Moradores vizinhos começaram a os fazendeiros conseguem que seus animais
adoecer apresentando sintomas de gripe e ganhem peso rapidamente, e a custo baixo, é
mais de 100 deles morreram. Epide- alimentando-os com os pedaços não
miologistas finalmente constataram que a comestíveis de outros animais. Esta reciclagem
doença originava-se em morcegos, que de ovinos e outros ruminantes de volta à cadeia
contaminaram suínos e depois humanos. Mas, alimentar, em instalações que utilizam baixas
como?22 temperaturas por economia, provavelmente
Os cientistas especulam que, em 1997, causou a for mação de certas proteínas
incêndios florestais no Bornéu e em Sumatra, chamadas prions. Elas destroem as proteínas
provocados pelo El Niño, forçaram milhares normais nos cérebros do gado, fazendo-os
de morcegos frugíveros a buscarem alimento tropeçarem, serem agressivos e, finalmente,
na Malásia. Muitos deles ficaram em árvores morrerem. A doença pode se disseminar para
frutíferas em torno de grandes criatórios de humanos que comem a carne infectada. Desde
suínos. Lá comiam as frutas, pingando sua 1986, quando foi detectada, mais de 150
saliva e largando frutas semiconsumidas nas pessoas morreram da doença variante
manjedouras, onde eram comidas pelos Creutzfeldt-Jakob, a forma humana da vaca
suínos. Embora o Nipah não afetasse os louca.24
morcegos, em suínos causava uma doença Embora a prática de utilizar carne e farelo
com fortes acessos de tosse, permitindo a de osso de outros ruminantes na alimentação
disseminação fácil para humanos. De acordo do gado bovino tenha sido proibida no Reino
com Peter Daszak, Diretor Executivo do Unido, é impossível prever quantas pessoas
Consortium for Conservation Medicine da Wildlife podem ter consumido a carne infectada com
Trust, “o dano causado ao habitat do morcego EEB, ou quantas pessoas poderão vir a
frugívero e o crescimento maciço dos contrair a vCJD. Ademais, os cientistas não
criatórios suínos, provavelmente levaram ao sabem o período de incubação e se o risco de
surgimento do vírus Nipah. Sem esses desenvolver vCJD depende da quantidade de
criatórios intensivos na Malásia, seria muito carne consumida ou da freqüência do
difícil que este vírus surgisse.” Em abril de consumo. Antes de 1996, carne e farelo de
2004, o Nipah atacou novamente, desta vez osso foram embarcados do Reino Unido para
em Bangladesh, matando cerca de 74% de suas todo o mundo. Pelo menos 12 nações da

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CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

África importaram o farelo, como também de saúde mais comuns, mundialmente. De


os Estados Unidos e a maioria das nações da acordo com a Organização Mundial de Saúde,
Europa, Oriente Médio e Ásia.25 os episódios destas doenças podem ser de 300
Um estudo recente do Instituto de Saúde e a 350 vezes mais freqüentes do que tem sido
Pesquisa Médica da França divulgou que uma divulgado. Condições amontoadas, insalubres
epidemia da doença da vaca louca na França e tratamento inadequado de resíduos nas
ficou sem ser detectada durante anos, fazendo fábricas-fazenda agravam o movimento
com que 50.000 animais gravemente acelerado de doenças animais e infecções
infectados entrassem na cadeia alimentar. Nos alimentares. Por exemplo, a patogenia mortal
Estados Unidos, após garantias repetidas do E.coli 0157:H7 dissemina-se de animais para
Departamento de Agricultura de que o risco humanos, quando as pessoas consomem
da EEB era praticamente inexistente, o alimentos contaminados por esterco. O
primeiro caso da doença da vaca louca nos transporte de animais vivos também pode
Estados Unidos foi descoberto no final de aumentar a incidência de doenças animais e
2003.26 alimentares. Conforme a FAO, 44 milhões de
Recentemente, uma nova forma da doença bovinos, ovinos e suínos são comercializados
foi descoberta no gado italiano. Diferen- mundialmente a cada ano. Um estudo de
temente da EEB, esta nova linhagem, chamada 2002, no Journal of Food Protection, constatou
encefalopatia espongiforme amiloidótica que o transporte de gado de corte das fazendas
bovina (EEAB), apareceu em vacas que não para abatedouros e frigoríficos aumenta a
apresentavam sintoma algum. Pesquisadores predominância de salmonela nos couros e
não sabem se a EEAB pode se disseminar fezes, que posteriormente pode acabar no
para humanos, porém suspeitam que pode ser alimento.28
responsável por alguns casos da doença As fábricas-fazenda dependem de altas
Creutzfeldt-Jakob que ocorreram aparen- doses de antibióticos. Mas, drogar animais
temente de forma espontânea. Até que tenham pode ter conseqüências desastrosas.
certeza, os cientistas estão solicitando testes Antibióticos são freqüentemente adminis-
mais rigorosos nas vacas para ambos, EEB e trados ao gado subterapeuticamente – ou seja,
EEAB.27 na ausência de doenças –, como parte da
fórmula diária de ração. Os resíduos dos anti-
Agricultores, desde a região celeira bióticos acabam em nosso alimento e podem
transitar no meio ambiente através dos dejetos
americana até a Planície Norte da China,
do gado, poluindo tanto a água superficial
estão constatando que padrões de
quanto subterrânea. Este uso constante, ou
precipitação e temperatura, dos quais mau uso, de drogas – algumas das quais são
dependeram por gerações, estão mudando importantes classes de antibióticos na medicina
humana – está causando resistências e
A agricultura industrializada também causa dificultando o combate de doenças, tanto
problemas de saúde que não ganham tanto entre humanos quanto entre animais.29
destaque, incluindo o aumento de doenças Além das doenças, novas tecnologias
veiculadas por alimentos, um dos problemas também podem contaminar rebanhos e

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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

lavouras, alterando sua composição genética que “permitir, negligentemente, a conta-


e enfraquecendo sua capacidade de minação de variedades vegetais tradicionais
sobrevivência. Vejamos organismos com seqüências transgênicas, é uma aposta
geneticamente modificados (OGMs). gigantesca na nossa capacidade de entender
Enquanto seus proponentes alegam que a uma tecnologia complicada que manipula a
tecnologia alimentará o mundo, os que vida em seu nível mais fundamental.”31
defendem a agricultura sustentável temem que O problema é que, após as sementes nativas
os OGMs eliminem populações nativas e serem contaminadas com OGMs, não há
silvestres de milho, arroz, trigo, peixes e outras possibilidade de reversão do processo. Ele
fontes de alimento. Conforme um relatório altera para sempre a própria natureza das
recente de autoria do biólogo Richard sementes. Em breve, a contaminação poderá
Howard, da Universidade Purdue, peixes incluir traços nunca intencionados para
transgênicos têm o potencial de substituir consumo alimentar: “culturas farmacêuticas,”
algumas populações de peixes silvestres. por exemplo, são engendradas para produzir
Howard e seus colegas introduziram genes de vacinas e medicamentos. Ademais, a
crescimento do salmão no medaka, uma espécie contaminação da oferta de sementes retira
japonesa de peixe pequeno de água doce que qualquer rede de segurança que o mundo
se reproduz rapidamente. Constataram que o poderia ter, caso se verifique que os
macho transgênico cresceu mais do que suas proponentes de OGMs estão errados. De
contrapartidas silvestres, afugentando os peixes acordo com o relatório da UCS, “as sementes
menores de seus machos durante a época da serão nosso único recurso caso a crença
procriação. Conseqüentemente, os peixes predominante na segurança da engenharia
maiores tinham melhor condição de genética seja infundada... Nossa capacidade de
disseminar seu DNA. Mas, numa virada voltar atrás, caso a engenharia genética
irônica, os filhotes de peixes transgênicos desapareça, será seriamente prejudicada.”32
tinham menos probabilidade de sobrevivência.
Os pesquisadores chamaram isto de “efeito Variações Climáticas
genes de Tróia.” Caso peixes transgênicos se
libertem e substituam os nativos, poderão vir Nos altiplanos dos Andes peruanos, a cinco
a levar espécies inteiras à extinção.30 horas de carro de Cuzco e seis horas a cavalo,
Nos Estados Unidos, mais de dois terços uma nova doença invadiu os campos de batata
das lavouras convencionais estão da cidade de Chacllabamba. O tempo mais
contaminadas com material geneticamente quente e úmido associado à mudança climática
modificado, conforme um relatório recente permitiu que a requeima – o mesmo fungo
da Câmara dos Comuns britânica, sobre a que provocou a fome na Irlanda – penetrasse
disseminação de culturas transgênicas na 4.000 metros montanha acima, pela primeira
América do Norte. Citando dados da Union vez, desde que foi iniciado o plantio de
of Concerned Scientists – a União de Cientistas tubérculos nesta região, há milhares de anos.
Preocupados – (UCS, na sigla em inglês), o Em 2003, os produtores locais assistiram à
relatório declara que “a contaminação (de quase destruição de suas lavouras. Cultivadores
OGMs)... é endêmica no sistema.” E mais, se apressam a desenvolver batatas que

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CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

conservem o paladar, textura e qualidade o meio ambiente da Terra,” observou o


preferida pela população local e que resistam relatório. Em outras palavras, a súbita
à “nova” doença.33 mudança nas condições climáticas 8.200 anos
Da mesma forma que os produtores de atrás, que causou o colapso generalizado da
Chacllabamba, agricultores desde a região agricultura, fome, doenças e migrações em
celeira americana passando pela Planície Norte massa, poderá se repetir em breve.35
da China e até os campos do sul da África, No mesmo mês que o relatório do
estão constatando que os padrões de Pentágono foi divulgado, o Ministro do Meio
precipitação e temperatura dos quais Ambiente do Canadá, David Anderson –
dependeram por gerações estão mudando. numa declaração rara, senão singular, para um
Como a agricultura depende tanto de um clima líder governamental –, considerou a mudança
estável, este setor se empenhará mais que os climática uma ameaça maior que o terrorismo,
outros para lidar com um clima mais errático, sugerindo que as planícies cultivadas com trigo
tempestades fortes e mudanças na extensão no Canadá e na região das Grandes Planícies
das estações de cultivo. (Ironicamente, os dos Estados Unidos acabariam por não
arqueólogos hoje acreditam que a mudança produzir alimento suficiente para sustentar suas
para um clima mais quente, úmido e estável, populações, caso nada fosse feito para
no final da última Era do Gelo, foi vital para combater a mudança climática. Em suma,
a incursão bem-sucedida da humanidade na segundo Doug Randall: “Não fomos
produção de alimentos.)34 atingidos por um evento climático dramático,
A possibilidade de essas mudanças desde a aurora da civilização moderna.” De
dilapidarem a oferta mundial de alimentos não um lado, as tecnologias do mundo moderno
passou despercebida pela comunidade de permitirão que países como a América o
defesa. Em fevereiro de 2004, o Pentágono enfrente. Por outro lado, um planeta mais
divulgou um relatório considerando que a populoso e edificado terá mais a perder.36
mudança climática pode trazer o mundo à À medida que os cientistas vegetais apuram
beira da anarquia, quando nações desenvolvem seu conhecimento da mudança climática – e
uma ameaça nuclear para defender e assegurar as formas sutis de reação das plantas –,
recursos decrescentes de alimentos, água e começam a pensar que as ameaças mais graves
energia. Os autores, Doug Randall e Peter à agricultura não serão as mais dramáticas: uma
Schwartz, da Global Business Network, empresa onda mortal de calor, estiagem aguda ou
de consultoria futura sediada na Califórnia, dilúvio sem fim. Ao invés, para as plantas que
analisaram a possibilidade do aquecimento o homem desenvolveu para condições
global e degelo polar conturbarem a climáticas ótimas, as mudanças sutis de
transferência de calor oceânico e lançar a temperatura durante períodos-chave de seu
América do Norte e Europa numa mini Era cultivo serão mais perturbadoras.
do Gelo – um cenário freqüentemente Cientistas vegetais do Instituto Internacional
discutido, substanciado por evidências no de Pesquisa do Arroz, nas Filipinas, já estão
registro climático. “Com preparação detectando danos regulares provocados pelo
inadequada, o resultado poderá ser uma queda calor no Camboja, Índia e em seus próprios
significativa da capacidade humana de manter cultivos experimentais em Manila, onde a

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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

temperatura média hoje está 2,5oC acima do no sistema climático, o que significa mais
que era, 50 anos atrás. “No arroz, trigo e milho, mudanças extremas – seco para úmido, quente
a produção deverá cair 10% por cada grau para frio. (É por esta razão que ainda pode
de aumento da temperatura acima de 30oC,” haver invernos rigorosos num planeta em
diz o pesquisador John Sheehy. “Estamos aquecimento e por que março de 2004 foi o
perto ou já neste limiar.” Sheehy estima que a mês mais quente da história, após um dos
produção de grãos nos trópicos pode cair em invernos mais frios.) Vários desses impactos
até 30%, ao longo dos próximos 50 anos – projetados já estão sendo observados por
um período quando a população já má climatólogos, na maioria das regiões:
nutrida da região aumentará 44%.37 temperaturas máximas mais altas e dias mais
Hartwell Allen, cientista vegetal do USDA quentes; temperaturas mínimas mais altas e dias
e da Universidade da Flórida-Gainsville, menos frios; eventos de chuva mais variáveis
constatou que, enquanto uma duplicação de e extremos; maior seca no verão e risco
dióxido de carbono e uma temperatura associado de estiagem nos interiores conti-
ligeiramente mais alta estimulam a germinação nentais. Todas essas condições provavelmente
de sementes e fazem as plantas crescerem mais irão se acelerando até o próximo século.39
e com maior exuberância, temperaturas mais Talvez o local em que a previsibilidade é
altas serão mortais quando a planta começar mais crucial para a agricultura seja nos arrozais
a produzir pólen. Por exemplo, a uma não irrigados e campos de trigo da Ásia, onde
temperatura acima de 36 o C durante a as monções anuais fazem o sucesso ou ruína
polinização, a produção de amendoim cai de milhões de vidas. “Se tivermos um
cerca de 6% por grau de aumento. Allen está aquecimento global significativo, não tenho
particularmente preocupado com as dúvida que haverá mudanças profundas na
implicações para locais como Índia e África monção,” disse David Rhind, pesquisador
Ocidental, onde o amendoim é um alimento climático sênior do Instituto Goddard de
básico e as temperaturas durante a estação de Estudos Espaciais da NASA, na Universidade
cultivo já se movem para a faixa alta dos 30oC. de Colúmbia. Por exemplo, eventos do El
“Nestas regiões, as lavouras são alimentadas Niño freqüentemente correspondem a
pela chuva,” observa ele. “Se o aquecimento monções mais fracas, e os El Niños
global também levar à seca nestas áreas, a provavelmente aumentarão com o
produção poderá ser até menor.”38 aquecimento global. O que não está claro, disse
Os principais vegetais do mundo podem Rhind, é a direção dessas mudanças. “Meu
lidar, até certo ponto, com mudanças de palpite é que as respostas serão muito mais
temperatura, porém, desde a aurora da intensas em todas as direções.”40
agricultura os produtores têm selecionado Cynthia Rosenzweig, cientista pesquisadora
plantas que vicejam sob condições estáveis. sênior do Instituto Goddard, argumenta que,
Entretanto, quando os climatólogos consultam embora modelos climáticos estarão sempre
modelos climáticos globais, vêem tudo com sendo aprimorados, há certas mudanças que
menos estabilidade. À medida que os gases já podemos prever com algum grau de
de estufa concentram mais calor do sol na certeza. Primeiro, a maioria dos estudos
atmosfera da Terra, há também mais energia indicam “intensificação do ciclo hidrológico”

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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

– palavras grandes que significam “Os cientistas precisarão realmente de


essencialmente mais secas e mais enchentes, décadas antes de estar seguros que a mudança
chuvas mais variáveis e mais extremas. Segundo, climática está ocorrendo,” diz Patrick Luganda,
Rosenzweig observa que “todos os estudos Presidente da Rede de Jornalistas Climáticos
demonstraram, basicamente, que haverá maior da Região do Chifre da África. “Mas, aqui e
incidência de pragas agrícolas.” Estações de agora, os agricultores não têm escolha senão
cultivo mais longas significarão maior geração lidar com a realidade diária da melhor maneira
de pragas durante o verão. Invernos mais possível.” Vários anos atrás, as comunidades
curtos e quentes significam que um menor agrícolas locais em Uganda podiam
número de adultos, larvas e ovos morrerão.41 determinar a época das chuvas anuais com
Terceiro, a maioria dos climatólogos boa precisão. “Hoje, não há garantia de que
concorda que a mudança climática atingirá as chuvas irão iniciar, ou parar, na época
mais duramente os agricultores no mundo em costumeira,” diz Luganda. O povo Ateso, no
desenvolvimento. Isto, em parte, é o resultado centro-norte de Uganda, infor ma o
da geografia. Os agricultores nos trópicos já desaparecimento da asisinit, uma gramínea de
estão próximos aos limites de temperatura da charco ideal para cobertura das casas por sua
maioria das culturas. Assim, qualquer beleza e durabilidade. Esta gramínea rareia
aquecimento destruirá suas lavouras. “Todos cada vez mais devido ao plantio de arroz e
os aumentos de temperatura, mesmo milheto em áreas pantanosas, em resposta a
pequenos, causarão declínio de produção,” secas mais freqüentes. (Produtores de arroz
declarou Robert Watson, cientista chefe do na Indonésia, lidando com secas, fizeram o
Banco Mundial e Ex-presidente do Painel mesmo.) Produtores em Uganda também
Intergovernamental sobre Mudança Climática. iniciaram a semear uma maior diversidade de
(Até o final da década de 2080, acrescenta lavouras e escalonar o plantio para se
Watson, as projeções indicam que até mesmo precaverem contra mudanças climáticas
as latitudes temperadas começarão a se súbitas. Luganda acrescenta que quedas
aproximar deste limiar.) “Estudos vêm repetidas de colheita forçaram muitos
mostrando consistentemente que as regiões agricultores para as cidades: o mecanismo de
agrícolas no mundo em desenvolvimento são manejo final.43
mais vulneráveis, mesmo sem considerar sua
capacidade de manejo,” observa Cynthia Novas Abordagens
Rosenzweig. Possuem menos recursos,
para Novas Ameaças
tecnologia de irrigação mais limitada e
praticamente nenhum sistema de rastreamento
Embora as ameaças à segurança alimentar
climático. “Se olharmos para a estratégia de
pareçam se multiplicar – do HIV/AIDS e
manejo, então é nocaute.” Na África
mudança climática até a perda da diversidade
subsaariana – centro focal da fome mundial,
agrícola e doenças animais emergentes –, não
onde o número de famélicos duplicou nos
há falta de soluções para assegurar uma oferta
últimos 20 anos –, os problemas atuais irão,
segura de alimentos. E, embora muitas
sem dúvida, ser agravados ainda mais pela
autoridades agrícolas, cientistas e executivos
mudança climática.42
do agronegócio continuem a defender ajustes

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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

tecnológicos, é improvável que esta mesma conservação, e pesquisa e desenvolvimento


ênfase, que gerou muitos dos atuais nessa área.45
problemas, seja a solução. Ao invés, legisla- Os agricultores estão agora reivindicando
dores e produtores estão desenvolvendo um tratado semelhante para a proteção de
mudanças conceituais e políticas na base. raças de animais domésticos. Em outubro de
Por exemplo, após mais de duas décadas 2003, líderes de comunidades pastorais
de negociações quase sempre ásperas, o tradicionais, ONGs e representantes gover-
Tratado Internacional sobre Recursos namentais reuniram-se em Karen, no Quênia,
Genéticos Vegetais para Alimentação e e minutaram o Compromisso de Karen,
Agricultura entrou em vigor em 29 de junho exigindo a proteção dos recursos genéticos
de 2004. Seu objetivo é proteger a animais contra patentes e que os pastores sejam
biodiversidade agrícola e assegurar a divisão reconhecidos por seus esforços na
justa e eqüitativa de seus benefícios – e conservação e proteção das raças de animais
finalmente proteger a base da segurança domésticos.46
agrícola e alimentar. Embora esta conquista Porém, será necessário muito mais do que
seja significativa, algumas organizações não- tratados para criar segurança alimentar e
governamentais (ONGs) estão preocupadas proteger a diversidade agrícola. Enquanto a
com algumas ambigüidades no tratado que comunidade científica e governos se ocupam
podem permitir que nações economicamente em disputas burocráticas sobre o estado dos
poderosas extraiam e privatizem recursos recursos agrícolas mundiais, os fazendeiros vêm
genéticos, minimizando sua contribuição à calmamente cultivando suas próprias lavouras
proteção desses recursos para os agricultores e animais geneticamente diversificados. De
em todo o mundo. O que falta ao tratado, acordo com Pat Mooney, do Grupo de Ação
alegam algumas ONGs, é uma declaração para Erosão, Tecnologia e Concentração,
clara de direitos dos agricultores que proteja “embora os números oficiais mostrem
sua capacidade de guardar e trocar sementes, grandes perdas de diversidade vegetal e
sem as restrições impostas por direitos de animal, muito ainda continua desconhecido
propriedade intelectual.44 pela comunidade científica. O que é
De acordo com Cary Fowler, Diretor de desconhecido para cientistas nem sempre é
Pesquisa do Centro Internacional de Estudos desconhecido para agricultores.” Na realidade,
Ambientais e Desenvolvimentistas, da através da armazenagem de sementes e criação
Universidade Agrícola da Noruega, o tratado seletiva, os fazendeiros estão conservando
também não define uma função clara para os recursos genéticos na base e compartilhando
governos na proteção de recursos genéticos o fruto do seu trabalho com outros
vegetais e não estabelece compromissos. fazendeiros em feiras e mercados de
Apesar dessas falhas, diz Fowler, “o tratado sementes.47
oferece normas internacionais positivas para Os fazendeiros, obviamente, sabem melhor
conservação e manejo de recursos genéticos do que ninguém como “cultivar” diversidade
vegetais para alimentação e agricultura.” Pode e proteger lavouras e animais de doenças e
também reduzir as tensões políticas que há do clima na fazenda. No Nordeste brasileiro,
muito vêm prejudicando a cooperação, por exemplo, bancos de sementes

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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

comunitários (BSCs) estão sendo implantados comidas americanas nativas.49


para proporcionar aos agricultores acesso a Além do valor de mercado, há outras
sementes e treiná-los para conserva a razões para preservar raças raras de gado. A
biodiversidade agrícola. A Assessoria e conservação da diversidade genética animal é
Serviços a Projetos Agrícolas Alternativos e uma forma barata de proteger a segurança
outras organizações locais, treinaram alimentar nos países em desenvolvimento.
agricultores que, em 2000, organizaram 220 Animais de fazenda não são apenas fonte de
BSCs, estocando mais de 80 toneladas de alimento. O esterco é um recurso valioso,
sementes das principais variedades agrícolas, mantendo o solo fértil e produtivo. A força
inclusive 67 variedades de três tipos diferentes animal é utilizada na fazenda para cultivo,
de feijão. E, no Quênia, feiras de semente se irrigação e transporte das lavouras na época
tornaram uma forma eficaz e poderosa de da colheita. A carne, couro, lã e penas
fazer as mulheres agricultoras comercializarem proporcionam fontes importantes de renda
sementes, compartilharem conhecimentos e para comunidades rurais. De acordo com Dr.
incrementarem a diversidade genética e Jacob Wanyama, do Intermediate Technology
segurança alimentar em nível local.48 Development Group, “é importante conservar não
A conservação ex-situ – manter só os recursos genéticos animais atuais em uso,
animais em zoológicos, embriões de gado ou de uso provável no futuro na alimentação
congelados em bancos de genes ou sementes e agricultura, mas também assegurar que as
em bancos de sementes – tem sido uma pessoas que os têm conservado para seu
abordagem eficaz, embora custosa. Mas não sustento continuem a fazê-lo.” Para muitos dos
é muito útil para pessoas que dependem da pobres que vivem em regiões áridas e semi-
agricultura para seu sustento. Uma forma bem áridas, o gado é o único meio eficiente de
mais eficaz e produtiva dos fazendeiros produção de alimento.50
preservarem as raças de gado e plantas é na
fazenda, especialmente se os fazendeiros criam Enquanto governos se ocupam em
raças de alto valor monetário. Por exemplo, disputas burocráticas sobre recursos
os couros multicoloridos do gado N’guni da agrícolas, os fazendeiros vêm calmamente
África do Sul estão “em voga” para estofados. cultivando suas próprias lavouras e
O porco da África do Sul (chamado hut pig)
animais geneticamente diversificados
também está se tornando popular, devido a
grande quantidade de gordura que produzem,
para torresmo ou pele de porco frita, para o Manter o gado sadio e livre de doenças
mercado local. Estes porcos chegam a custar também fortalece a segurança alimentar. Em
1.000 rands (US$ 150), muito superior ao 2004, a Organização Mundial de Saúde
valor dos porcos comerciais. Nos Estados Animal e a FAO concordaram em cooperar
Unidos, a Heritage Foods USA está restaurando para a monitoração e controle de doenças
tradições culinárias – e salvando da extinção animais altamente contagiosas. Elas vêm
raças de gado norte-americanos – exigindo não só mais pesquisas sobre a
desenvolvendo um mercado para raças raras transmissão da gripe aviária de aves para suínos
de perus, gansos e porcos, como também para e outras doenças zoonóticas, como também

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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

grandes investimentos no fortalecimento de O Projeto Sunshine Farm do Land


ser viços veterinários para a detecção e Institute desenvolve cultivos sem
divulgação da doença. Na fazenda, muitos combustíveis fósseis, fertilizantes ou
fazendeiros estão protegendo tanto a saúde pesticidas, como forma de reduzir sua
humana quanto a animal, através da rein- contribuição à mudança climática.
trodução de raças indígenas de gado que
tendem a ser mais resistentes a doenças do
que as não-nativas. Governos nacionais Plantar uma maior variedade de lavouras,
podem reforçar este trabalho colaborando por exemplo, é talvez a maior garantia que os
com fazendeiros e associações de criadores, agricultores podem ter contra um clima
como a American Livestock Breeds Conservancy, errático. Em partes da África, o plantio de
ajudando-os a se responsabilizarem por uma árvores junto às lavouras – um sistema
parcela maior de manadas e rebanhos em chamado agroflorestamento, que pode incluir
todo o mundo.51 café e cacau cultivados à sombra, ou árvores
As muitas variáveis associadas à mudança leguminosas com milho – pode ser parte da
climática fazem o manejo difícil, mas não resposta. “Há bons motivos para acreditar que
inútil. Em suma, os fazendeiros resistirão esses sistemas serão mais resilientes do que uma
melhor a uma variedade de choques, ao se monocultura de milho,” declara Lou Verchot,
tornarem mais diversificados e menos cientista-chefe, sobre mudança climática do
dependentes de insumos externos. Quando Centro Agroflorestal Mundial de Nairobi. As
a temperatura muda dramaticamente, um árvores se enraízam mais profundamente do
agricultor que cultive uma única variedade de que as culturas, permitindo a sobrevivência a
trigo terá mais probabilidade de perder toda uma estiagem de três a quatro semanas que
a safra do que um agricultor cultivando várias pode danificar uma cultura de grãos. Além
variedades, ou até outras variedades além do dessa proteção, as raízes das árvores
trigo. As culturas adicionais ajudam a formar bombearão água para as camadas superiores
um tipo de barreira ecológica contra os do solo, onde as culturas podem se servir dela.
golpes climáticos. Fazendas mais Árvores também melhoram o solo: suas raízes
diversificadas lidarão melhor com estiagens, criam espaços para a água fluir; suas folhas se
mais pragas e uma variedade de outros decompõem e formam composto. Em outras
choques relacionados ao clima. E tenderão a palavras, um agricultor com árvores não
se tornar menos dependentes de perderá tudo.52
combustíveis fósseis para fertilizantes e Agricultores no centro do Quênia estão
pesticidas. A mudança climática poderá utilizando um mix de café, macadâmia e cereal
também ser o melhor argumento para que resulta em até três safras comerciais num
preservação de variedades de lavouras locais bom ano. “Naturalmente, em qualquer ano, a
em todo o mundo, possibilitando aos monocultura renderá mais,” admite Verchot,
cultivadores maior variedade possível de “porém, os agricultores precisam trabalhar
opções, ao tentarem desenvolver plantas que muitos anos.” Esses mixes mais diversificados
possam lidar com secas mais freqüentes ou são ainda mais relevantes, uma vez que as
novas pragas. temperaturas em elevação eliminarão grande

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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

parte das áreas tradicionais de café e chá no quartos da ração – aveia, sorgo em grão e
Caribe, América Latina e África. Em Uganda, alfafa – que necessita para seus cavalos de
onde café e chá representam quase toda a tração, gado de corte e aves. Esterco e
exportação agrícola, um aumento médio da leguminosas na rotação do cultivo substituem
temperatura de 2oC reduziria dramaticamente os fertilizantes de nitrogênio devoradores de
a colheita, pois todas as áreas, com exceção energia. Um sistema fotovoltaico de 4,5
das maiores altitudes, se tornarão muito quilowatts opera a oficina, cercas elétricas,
quentes para o cultivo do café.53 bombeamento de água e as chocadeiras. No
Fazendas com árvores estrategicamente todo, a fazenda eliminou a energia utilizada
plantadas entre as lavouras não só resistirão para fabricar e transportar 90% dos seus
melhor a chuvas torrenciais e estiagens suprimentos. Incluindo a energia necessária
escaldantes, como também reterão mais para fabricar os equipamentos da fazenda, o
carbono. Verchot observa que os alqueives percentual cai para 50%, mas mesmo assim é
melhorados utilizados na África podem reter um ganho imenso comparado com uma
até de 10 a 20 vezes o carbono da vizinha fazenda americana comum.55
monocultura cerealista e 30% do carbono de Marty Bender, Diretor de Pesquisa da
uma floresta intacta. E o acúmulo do estoque Sunshine Farm, observa que “o cultivo de
de matéria orgânica no solo – o material carbono é uma solução temporária.” Ele
escuro, esponjoso que dá aos solos um cheiro assinala um trabalho recente na revista Science,
forte e é a for ma pela qual os solos demonstrando que, mesmo se todos os solos
armazenam dióxido de carbono – não só nos Estados Unidos retornassem a seu teor
aumenta o volume de água que o solo pode de carbono pré-lavra – um nível máximo
reter (bom para resistir às secas), como teórico de quanto carbono poderiam reter –,
também ajuda a aglutinar mais nutrientes (bom isto equivaleria apenas a duas décadas das
para o desenvolvimento da lavoura).54 emissões americanas. “Isto mostra quão pouco
No Land Institute de Salina, Kansas, onde tempo estaríamos comprando,” diz Bender,
climatólogos locais suspeitam que a mudança “apesar do fato que poderá levar cem anos
climática poderá transformar os campos de de cultivo de carbono e florestamento
trigo do estado num deserto, os agricultores agressivo para restaurar o carbono perdido.”
não estão ouvindo isto passivamente. O Cynthia Rosenzweig, do Goddard Institute,
Projeto Sunshine Farm [Fazenda Ensolarada] também observa que o potencial de retenção
do Instituto desenvolve cultivos sem de carbono é limitado e que um planeta mais
combustíveis fósseis, fertilizantes ou pesticidas, quente reduzirá a quantidade de carbono que
como forma de reduzir sua contribuição à os solos podem reter: à medida que a terra se
mudança climática e encontrar uma solução aquece, micróbios revigorados do solo
essencialmente local para um problema global. produzem mais dióxido de carbono.56
Como seu nome indica, a fazenda basicamente “Deveríamos na realidade estar enfocando
funciona à luz solar. Sementes de girassol eficiência energética e conservação de energia,
cultivado localmente e grãos de soja se a fim de reduzir as emissões de carbono da
transformam em biodiesel, que move tratores nossa economia nacional,” conclui Marty
e caminhões. A fazenda produz quase três Bender. Nos Estados Unidos, como em

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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

outras nações, embora a agricultura venha em legumes –, utilizando ingredientes importados,


segundo lugar entre os setores econômicos que pode facilmente gerar quatro vezes as emissões
contribuem para o efeito estufa, sua de gás que a mesma refeição com ingredientes
contribuição é menos de um décimo daquele locais. E, mesmo que os fazendeiros decidam
da produção de energia. Para a agricultura diversificar mais seu gado e culturas, a
desempenhar um papel significativo na mudança ainda dependerá da preferência dos
minimização da mudança climática, as práticas consumidores por esses alimentos nos
agrícolas deverão ser modificadas em larga supermercados.58
escala por todas as regiões da Índia, Brasil, Em suma, os fazendeiros não são os únicos
China e o Centro-Oeste americano.57 interessados num sistema alimentar mais
É do melhor interesse dos agricultores seguro, mas não podem proteger nossas
realizarem reduções óbvias em seu próprio plantações e criatórios por si só. Precisarão
consumo de energia, simplesmente para da ajuda de uma população comprometida
economizar dinheiro. Porém, a solução com um campo que possa suportar mudanças
duradoura para as emissões de gás de estufa e climáticas e novas doenças e que produza
mudança climática dependerá principalmente alimentos seguros para o consumo. Isto é algo
das escolhas que todos façam. Por exemplo, que, afortunadamente, não seria difícil de ser
uma refeição básica – carne, grãos, frutas e alcançado.

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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

LIGAÇÃO DE SEGURANÇA

Produtos Químicos Tóxicos


Em 1984, um defeito numa fábrica de Mais traiçoeiro do que estes perigos
pesticida em Bhopal, na Índia, originou o imediatos é o fato de que muitos produtos
pior desastre químico da história. Mais de químicos podem ameaçar, a longo prazo, a
27 toneladas do gás isocianado de metilo segurança de pessoas e do meio ambiente.
vazou, formando uma nuvem mortal que Poucos dos 70.000 ou mais produtos
matou milhares de pessoas e prejudicou químicos no mercado europeu foram
outras centenas de milhares. Porém, este foi adequadamente avaliados em termos de
somente um dos 10 milhões de vazamentos segurança. Porém, muitos dos que foram
químicos acidentais que ocorrem a cada ano. testados aumentam a incidência do câncer,
Somente nos Estados, ocorreram mais de alteram os sistemas hormonais e retardam o
32.000 em 2003. Os produtos químicos são desenvolvimento infantil. Mesmo pessoas
essenciais para as economias modernas e que tiveram pouca exposição a produtos
servem a inúmeros usos. Entretanto, químicos são afetadas: 200 produtos
quando mal-administrados, eles representam químicos tóxicos foram detectados nos
uma ameaça considerável à segurança corpos dos Inuit, na Groelândia – algumas
mundial, não somente pelos vazamentos vezes em concentrações tão altas que certos
acidentais, mas devido ao possível uso por tecidos e leite materno de alguns deles
terroristas, bem como por seus efeitos no podem ser classificados como resíduo
meio ambiente e na saúde humana. 1 tóxico. Juntamente aos aumentos dos
Os produtos químicos – armazenados e índices de doenças e óbitos, estas toxinas
processados em milhões de instalações podem aumentar significativamente os
industriais e transportados em inúmeros custos sociais e de assistência médica, o que
caminhões, trens e navios – representam representa um problema a mais em países
alvos importantes para os terroristas. De que estão enfrentando dificuldades com
acordo com o Departamento Médico do outros pesados encargos de saúde pública. 3
Exército dos Estados Unidos, num cenário Talvez o maior risco para a segurança
bem pessimista, um ataque numa fábrica de seja o fato de que a solução para os
produtos químicos pode matar mais do problemas que os produtos químicos
que 2 milhões de pessoas. Em 2004, em podem causar talvez não surja até que seja
Ashdod, Israel, homens-bomba se mataram tarde demais para resolvê-los. Em 1962, a
perto de uma fábrica de embalagem de cientista americana Rachel Carson alertou o
frutas cítricas que usam o pesticida brometo público para os efeitos desastrosos que o
de metila. Se eles tivessem rachado os DDT estava causando no meio ambiente –
reservatórios de brometo, a liberação deste inclusive pondo em risco a viabilidade das
produto químico venenoso poderia ter populações de pássaros e causando
matado milhares de pessoas. 2 problemas à saúde humana. Isto aconteceu

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Estado do Mundo 2005
PRODUTOS QUÍMICOS TÓXICOS

depois de descargas anuais de


quase 20 anos produtos químicos
de uso pode ajudar a
generalizado. reduzir o uso e a
Mas foram emissão de
precisos outros produtos químicos
10 anos para Lixão químico, Espanha tóxicos. Nos
que o Estados Unidos, o
composto fosse banido nos Estados Toxics Release Inventory informa uso e
Unidos. 4 descargas. Em 2002, as descargas de 300
Produtos químicos perturbadores do produtos químicos detectados desde 1988
sistema endócrino podem ser o próximo caíram pela metade. Este sistema
perigo oculto. Eles perturbam os ciclos transparente tem permitido à sociedade civil
hormonais não só humanos, mas de muitas pressionar a indústria a usar produtos
espécies. Isto fica claramente patente no químicos com mais eficiência e maior
declínio de mariscos e moluscos, após uso segurança. 6
extensivo de tributyltin para evitar que Em outubro de 2003, a Comissão
organismos grudem nos cascos dos navios. Européia adotou a proposta REACH –
Devido ao longo espaço de tempo entre a Registro, Avaliação e Autorização para
exposição e os efeitos, a alteração endócrina Produtos Químicos. Se aprovada, ela exigirá
pode ter impactos humanos e sociais que os fabricantes registrem todos os
significativos, se providências não forem produtos químicos mais usados (cerca de
tomadas para tirar de circulação os 30.000). Os fabricantes necessitarão avaliar a
produtos químicos responsáveis. Nos segurança dos que representem
Estados Unidos e Europa, a contagem de preocupação e estar atentos, a fim de que os
esperma humano já caiu significativamente, mais tóxicos obtenham autorização para
enquanto em muitos países industrializados continuarem a ser usados – após seja
o câncer da próstata aumentou – dois provado que não existe alternativa mais
acontecimentos possivelmente relacionados segura. Os benefícios ambientais e para a
com aumento das quantidades de produtos saúde desta legislação prometem ser
químicos disruptores do sistema endócrino.5 significativos. Na Suécia, por exemplo,
Entretanto, se administrados quando se reduziu a exposição a três tipos
adequadamente, os produtos químicos não de produtos químicos relacionados com o
precisam representar uma ameaça à linfoma non-Hodgkin, a incidência deste
segurança. A exigência de que as instalações câncer também diminuiu. 7
industriais informem ao público sobre suas Quando fica claro que certos produtos

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Estado do Mundo 2005
PRODUTOS QUÍMICOS TÓXICOS

químicos precisam ser banidos, governos de produção e pelos investimentos


devem agir com firmeza. Neste sentido, um necessários em novas tecnologias. Os
sucesso recente vem da Convenção de governos terão de acelerar as transições,
Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos tornando as alternativas menos tóxicas mais
Persistentes, que passou a vigorar em maio accessíveis – ou diretamente através de
de 2004. Este tratado, ratificado por mais subsídios ou colocando preços mais
de 70 países, proibiu ou restringiu compatíveis (como através de impostos
rigorosamente a produção e uso de 12 dos químicos mais altos para compensar os
mais perigosos produtos químicos, inclusive altos custos ambientais e da saúde).9
DDT e dioxina, e mobilizará centenas de Processos industriais mais eficientes
milhões de dólares pra garantir que eles ajudarão a reduzir a demanda por
desaparecerão gradualmente. 8 determinados produtos químicos,
Mesmo quando os produtos químicos diminuindo o risco de descargas acidentais
não são banidos, é necessário que sejam ou intencionais permitindo, ao mesmo
adotadas, prontamente, alternativas mais tempo, maior reuso e reciclagem de
seguras. O dióxido de carbono (CO2) , por quaisquer produtos químicos usados.
exemplo, possui muitas das propriedades Enquanto os produtos químicos
dos solventes orgânicos – produtos continuarão indubitavelmente abundantes,
químicos que são muitas vezes altamente seu uso e toxicidade podem ser diminuídos,
perigosos. O CO2 substitui o cloreto de deixando de ser uma ameaça imediata ou de
metileno na descafeinização do café e, em longo prazo. Entretanto, isto somente
alguns casos, esta substituindo o ocorrerá com líderes políticos, industriais e
percloroetileno nas operações de lavagem a comunitários compromissados com
seco (ambos são cancerígenos). Entretanto, a segurança, eficiência, transparência e
passagem para produtos químicos mais cautela.10
seguros tem sido limitada pelos altos custos - Erik Assadourian

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Estado do Mundo 2005
DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

CAPÍTULO 5

Gerindo Disputas
e Cooperação Hídricas
Aaron T. Wolf, Annika Kramer,
Alexander Carius e Geoffrey D. Dabelko

Stanley Crawford, um ex mayordomo (gerente Paquistão contra a Índia, e Egito contra a


de vala) de uma acequia (vala de irrigação) no Etiópia.1
Novo México, escreve sobre dois vizinhos que Independente da escala geográfica ou nível
“nunca se davam bem... o vizinho a jusante relativo de desenvolvimento econômico entre
acusando o outro, a montante, de nunca a água os ripários, os conflitos que enfrentam são
correr para sua propriedade ou de despejar eminentemente semelhantes. Sandra Postel,
lixo nela nas raras ocasiões que deixava.” Diretora da Global Water Policy Project, descreve
Rivalidades como esta sobre a água têm sido o problema em Pillars of Sand [Pilares de
motivo de disputas desde a revolução Areia]: a água, contrariamente a outros
Neolítica, quando a humanidade começou a recursos consumíveis escassos, é utilizada para
cultivar alimentos, entre 8000 e 6000 A.C. alimentar todas as facetas da sociedade, desde
Nossa língua reflete essas raízes antigas: a biológica e economica até a estética e prática
“rivalidade” vem do Latim rivalis, ou “aquele espiritual. A água faz parte integral dos
que usa o mesmo rio que outrem.” Ripários ecossistemas, entrelaçada com o solo, ar, flora
– países ou províncias limítrofes ao mesmo e fauna. Uma vez que flui, o uso de um rio ou
rio – são freqüentemente rivais pela água aqüífero em um local afetará (e será afetado
compartilhada. Hoje, a reclamação de um por) seu uso em outro local, possivelmente
vizinho a jusante contra o outro a montante é distante. No âmbito de bacias hidrográficas,
ecoado é ressoado pela Síria contra à Turquia, tudo está interligado: água superficial e

Aaron T. Wolf é Professor Adjunto de Geografia do Departamento de Geociências da Universidade do Estado de


Oregon e Diretor da Transboundary Freshwater Dispute Database. Annika Kramer é Fellow de pesquisa e Alexander
Carius é Diretor da Adelply Research de Berlim. Geoffrey D. Dabelko é Diretor do Projeto de Mudança e Segurança
Ambiental do Woodrow Wilson International Center for Scholars, em Washington, D.C.

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Estado do Mundo 2005
DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

subterrânea, qualidade e quantidade. A água ciona um dos poucos caminhos de diálogo


flutua livremente no tempo e no espaço, em sérios conflitos bilaterais. Em regiões
complicando ainda mais sua gestão que é, politicamente instáveis, a água é parte essencial
geralmente, fragmentada e sujeita a princípios das negociações desenvolvimentistas regionais,
legais arcanos ou contraditórios.2 que servem como estratégias de facto de
A água não pode ser manejada para uma prevenção de conflito.3
única finalidade: toda gestão hídrica atende
objetivos múltiplos e navega entre interesses Questões Chave
competitivos. Dentro de uma nação, estes
interesses – usuários domésticos, fazendeiros, Embora as razões subjacentes de
geração hidrelétrica, usuários recreativos, controvérsias relacionadas à água possam ser
ecossistemas – são freqüentemente conflitantes, numerosas, como disputas pelo poder e
e a probabilidade de uma solução mutuamente interesses desenvolvimentistas competitivos,
satisfatória cai exponencialmente em todas as disputas hídricas podem ser atribuídas
proporção ao número de interessados. a uma ou mais de três questões: quantidade,
Acrescentem-se fronteiras internacionais e as qualidade e oportunidade. (Ver Tabela 5-1.)4
chances caem ainda mais. Sem uma solução Reivindicações competitivas por uma
mútua, as partes acabam em disputa, ou até quantidade limitada de água são os motivos
mesmo conflito violento entre si ou com mais óbvios de conflito relacionado com a
autoridades governamentais. Mesmo assim, água. O potencial para tensões sobre
disputas relacionadas com a água devem ser alocações aumenta quando o recurso é escasso.
consideradas dentro de um contexto político, Mas, mesmo quando a pressão sobre o recur-
étnico e religioso mais amplo. Água nunca é a so é limitada, sua alocação para usos e usuários
única – e quase nunca a maior – causa de diversos pode ser altamente disputada. À
conflito. Porém, pode agravar tensões medida que as pessoas se conscientizam das
existentes e assim deverá ser considerada questões ambientais e do valor econômico de
dentro de um contexto mais amplo de ecossistemas, também reivindicam a água
conflito e paz. como esteio para o meio ambiente e os meios
Do Oriente Médio ao Novo México, os de vida que sustenta.
problemas são os mesmos. Como, por outro Outra questão litigiosa é a qualidade da água.
lado, são muitas das soluções. A engenho- A baixa qualidade – seja causada por poluição
sidade humana desenvolveu meios de lidar de esgotos e pesticidas ou níveis excessivos
com escassez hídrica e cooperar na gestão dos de sal, nutrientes ou sólidos em suspensão –
recursos hídricos. Na realidade, eventos torna a água inadequada para consumo,
cooperativos entre nações ripárias superaram indústria e, às vezes, até mesmo para
os conflitos numa relação de dois para um, agricultura. A água suja representa ameaças
entre 1945 e 1999. Além disso, a água tem graves para a saúde humana e dos ecossistemas.
sido um caminho produtivo para criar A degradação da qualidade pode, assim se
confiança, desenvolve cooperação e evitar tornar uma fonte de disputa entre os que a
conflito, mesmo em bacias particularmente causam e os que são afetados por ela. Ademais,
contenciosas. Em alguns casos, a água propor- questões de qualidade da água podem levar a

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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

Tabela 5-1. Exemplos Selecionados de Disputas Hídricas

Local Questão Central Observação

Rio Cauvery Quantidade A disputa do Rio Cauvery, na Índia, surgiu da alocação de


água entre o estado a jusante de Tamil Nadu, que vinha
utilizando a água para irrigação, e o estado a montante de
Karnataka, que desejava incrementar a agricultura irrigada. As
partes não aceitaram adjudicação judicial da disputa, levando
à violência e mortes ao longo do rio.

Rio Okavango Quantidade Na bacia do Okavango, as reivindicações hídricas de Botsuana


para sustentar o delta e seu lucrativo setor ecoturístico
contribuíram para alimentar uma disputa com a Namíbia, a
montante, que deseja fazer a transmissão de água, através da
Faixa Caprivi para abastecer a capital.

Bacia do Mekong Quantidade Após a construção da Barragem Pak Mun, na Tailândia, mais
de 25.000 pessoas foram afetadas pelas reduções drásticas
dos pesqueiros a montante e outros problemas de meios de
vida. As comunidades afetadas vêm lutando por indenizações
desde a conclusão da barragem, em 1994.

Rio Incomati Qualidade e Barragens na região sul-africana da bacia do Incomati reduziram


Quantidade a vazão e aumentaram a salinidade do estuário do Incomati em
Moçambique. Isto alterou o ecossistema do estuário e causou o
desaparecimento de plantas e animais intolerantes ao sal,
importantes para o sustento da população local.

Rio Reno Qualidade O porto de Rotterdam teve que ser dragado


constantemente para remoção do lodo contaminado
depositado pelo Reno. O custo foi gigantesco levando,
conseqüentemente, à controvérsia sobre compensação e
responsabilidade entre os usuários do rio. Embora, neste
caso, as negociações resultaram em solução pacífica, nas
áreas que ficaram de fora da resolução, problemas de
assoreamento podem levar a disputas montante/jusante,
como ocorreu na bacia do Rio Lempa, na América Central.

Syr Darya Oportunidade As relações entre o Casaquistão, Quirjistão e Uzbequistão –


todos ripários do Syr Darya, principal tributário do
moribundo Mar de Aral – exemplificam os problemas
causados pela ocasião da vazão. Sob a gestão central da
União Soviética, a irrigação de primavera e verão no
Uzbequistão e Casaquistão, a jusante, equilibrava o uso da
hidroenergia do Quirjistão, a montante, para gerar
aquecimento no inverno. Porém as partes quase não
cumprem mais os acordos recentes de troca de vazões a
montante de fontes alternativas de aquecimento (gás natural,
carvão e óleo combustível), por irrigação a jusante,
rompendo esporadicamente os acordos.
FONTE: Vide nota final 4.

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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

manifestações públicos se afetarem meios de entender – e prevenir – conflitos relacionados


vida e o meio ambiente. A qualidade da água à água pode ser encontrada em instituições
está intimamente ligada à quantidade: estabelecidas para gerir recuros hídricos.
quantidade decrescente concentra poluição,
enquanto quantidade excessiva, como Bacias Internacionais
enchentes, pode levar à contaminação pelo
extravasamento de esgotos.
Bacias internacionais que incluem fronteiras
Terceiro, a ocasião da vazão de água é
políticas de dois ou mais países, cobrem 45,3%
importante sob vários aspectos. Assim, os
da superfície da Terra, abrigam cerca de 40%
padrões operacionais das barragens são
da população mundial e representam
freqüentemente contestados. Usuários a
aproximadamente 60% da vazão fluvial global.
montante, por exemplo, podem liberar água
E o número está crescendo: em 1978, as
de reservatórios no inverno para produção
Nações Unidas listaram 214 bacias interna-
de hidroenergia, enquanto usuários a jusante
cionais (última contagem oficial). Hoje, existem
podem necessitá-la para irrigação no verão.
263, devido à “internacionalização” de bacias
Além disso, os padrões de vazão são cruciais
através de mudanças políticas, como o
para a manutenção de ecossistemas de água
colapso da União Soviética e nações Balcãs,
doce que dependem das enchentes sazonais.
como também o acesso à melhor tecnologia
Interesses conflitantes referentes à qualidade,
de mapeamento.5
quantidade e oportunidade podem ocorrer
Extraordinariamente, 145 nações possuem
em muitas escalas geográficas, porém a
áreas dentro de bacias internacionais e 33
dinâmica do conflito age diferencialmente em
países estão quase que inteiramente localizados
nível internacional, nacional e local. (Ver Tabela
dentro dessas bacias. O alto nível de
5-2.) Seja a disputa sobre qualidade, quan-
interdependência é ilustrado pelo número de
tidade e oportunidade, ou em nível inter-
países que compartilham bacias internacionais
nacional, nacional ou local, a chave para

Tabela 5-2. Dinâmica de Conflito em Níveis Diferentes Níveis Espaciais

Escala Geográfica Características

Internacional Disputas podem surgir entre países ripários sobre águas transfronteiriçasBaixa violência,
mas tensões existentes entre as partes são arraigadas e difíceis de superar, resultando em
más relações políticas, gestão hídrica ineficiente e ecossistemas negligenciadosRegistro
longo e pleno de resolução de conflitos e desenvolvimento de instituições flexíveis

Nacional Disputas podem surgir entre unidades políticas subnacionais, incluindo províncias, grupos
étnicos ou religiosos ou setores econômicosMaior potencial de violência do que no nível
internacionalFundamentos para envolvimento internacional são mais difíceis, dadas as
questões de soberania nacional

Local (indireta) Perda de meios hídricos de vida (devido à perda de água de irrigação ou ecossistemas de
água doce) pode levar a migrações politicamente desestabilizadoras para cidades ou países
vizinhosInstabilidade local pode desestabilizar regiõesAlívio da pobreza está implicitamente
ligado à melhoria das questões de segurança

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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

(ver Tabela 5-3); os dilemas representados por conflitos em andamento entre árabes e
bacias como a do Danúbio (compartilhada israelenses.7
por 17 países) ou do Nilo (10 países) podem O único problema com este cenário é a
ser fáceis de imaginar.6 ausência de corroboração. Em 1951-53, e
O alto número de rios compartilhados, novamente em 1964-66, Israel e Síria trocaram
combinado com uma escassez hídrica cada fogo em função do projeto sírio de desviar o
vez maior para populações crescentes, leva Rio Jordão, porém o confronto final –
muitos políticos e manchetes a trombetearem destacando-se ataques de tanques e aviões –
um porvir de “guerras hídricas.” Em 1995, paralisou a construção e acabou de fato com
por exemplo, o Vice Presidente do Banco as hostilidades relacionadas à água entre os dois
Mundial, Ismail Serageldin, adiantou que “as países. Não obstante, a guerra de 1967 eclodiu
guerras do próximo século serão pela água.” quase um ano depois. A água teve pouco – ou
Estes alertas apontam, invariavelmente, para nenhum – impacto sobre a estratégia militar na
o árido e hostil Oriente Médio, onde exércitos violência subseqüente entre árabes e israelenses
se mobilizam e se chocam por este recurso (inclusive as guerras de 1967, 1973 e 1982).
precioso e escasso. Teorias complexas, se bem Todavia, a água foi o motivo subjacente de
que mal-denominadas como de “imperativo estresse político e um dos tópicos mais difíceis
hídrico,” citam a água como a motivação nas negociações posteriores. Em outras palavras,
fundamental de estratégias militares e embora as guerras não houvessem sido travadas
conquistas territoriais,particularmente nos pela água, desacordos sobre alocação foram

Tabela 5-3. Número de Países Compartilhando uma Bacia


Países

Número Bacias
de Países Internacionais

3 Asi (Orontes), Awash, Cavally, Cestos, Chiloango, Dnieper, Dniester, Drin, Ebro, Essequibo,
Gâmbia, Garonne, Gash, Geba, Har Us Nur, Hari (Harirud), Helmand, Hondo, Ili (Kunes He),
Incomati, Irrawaddy, Juba-Shibeli, Kemi, Lago Prespa, Sistema Lago Titicaca-Poopo, Lempa,
Maputo, Maritsa, Maroni, Moa, Neretva, Ntem, Ob, Oueme, Pasvik, Vermelho (Song Hong),
Rhone, Ruvuma, Salween, Schelde, Sena, St. John, Sulak, Torne (Tornealven), Tumen, Umbeluzi,
Vardar, Volga e Zapaleri
4 Amur, Daugava, Elba, Indus, Komoe, Lago Turkana, Limpopo, Pantanal Lotagipi, Narva,
Oder (Odra), Ogooue, Okavango, Orange, Pó, Pu-Lun-T’o, Senegal e Struma
5 La Plata, Neman e Vistula (Wista)
6 Mar de Aral, Ganges-Brahmaputra-Meghna, Jordão, Kura-Araks, Mekong, Tarim, Tigre e
Eufrates (Shatt al Arab) e Volta
8 Amazonas e Lago Chad
9 Reno e Zambezi
10 Nilo
11 Congo e Niger
17 Danúbio
FONTE: Vide nota final 6.

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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

um impedimento para a paz.8 implicando que a violência relacionada com a


Embora mananciais e infra-estrutura água não é estrategicamente racional,
tenham ser vido frequentemente como hidrologicamente eficaz, nem economicamente
instrumentos ou alvos militares, nenhuma viável.11
nação foi à guerra especificamente por recursos Segundo, apesar da retórica veemente dos
hídricos desde que as cidades-nações de Lagash políticos – dirigida mais para seus eleitores do
e Umma se defrontaram na bacia do Tigre- que seus inimigos – a maioria das ações
Eufrates em 2.500 A.C. Ao invés, de acordo adotadas sobre a água são brandas. Entre
com a Organização das Nações Unidas para todos os eventos, cerca de 43% se enquadram
Alimentação e Agricultura, mais de 3.600 entre leve apoio verbal e leve hostilidade
tratados hídricos foram assinados, entre 805 verbal. Se adicionarmos o nível seguinte –
A.D e 1984. Embora a maioria fosse apoio verbal oficial e hostilidade verbal oficial
relacionada à navegação, um número crescente – os eventos verbais representam 62% do
ao longo do tempo focou gestão hídrica, total. Ou seja, quase dois terços de todos os
incluindo controle de enchentes, projetos eventos são apenas verbais e mais de dois
hidrelétricos ou alocações em bacias terços destes não tinham sanção oficial.12
internacionais. Desde 1820, mais de 400 Terceiro, há mais exemplos de cooperação
tratados hídricos e outros acordos foram do que de conflito. A distribuição de eventos
assinados, com mais da metade destes cooperativos cobre um amplo espectro,
concluídos nos últimos 50 anos.9 incluindo quantidade, qualidade e desenvol-
Pesquisadores da Universidade do Estado vimento hídricos, hidroenergia e gestão
de Oregon compilaram um conjunto de conjunta. Em contraste, quase 90% dos
dados de todas as interações registradas – eventos relacionados a conflito referem-se à
conflituosas ou cooperativas – entre duas ou quantidade e infra-estrutura. Ademais, quase
mais nações provocadas pela água. Sua análise todas as ações militares extensas (casos mais
destacou quatro importantes constatações.10 extremos de conflito) se encaixam nestas duas
Primeiro, apesar do potencial de disputas categorias.13
em bacias internacionais, a incidência de Quarto, apesar da ausência de violência, a
conflitos graves por recursos hídricos água atua tanto como irritante quanto como
internacionais é superada pelo nível de unificante. Como irritante, a água pode azedar
cooperação. Os últimos 50 anos teste- boas relações e exacerbar más relações. Apesar
munharam apenas 37 disputas graves da complexidade, entretanto, águas interna-
(envolvendo violência), com 30 destas cionais podem agir como unificadoras em
ocorrendo entre Israel e um dos seus vizinhos. bacias com instituições relativamente fortes.
Fora do Oriente Médio ocorreram apenas 5 O registro histórico comprova que disputas
eventos graves, enquanto, durante o mesmo de águas internacionais são resolvidas, mesmo
período, 157 tratados foram negociados e entre inimigos, e mesmo quando surgem
assinados. O número total de eventos entre outros conflitos. Alguns dos inimigos mais
nações relacionados com a água também turbulentos negociaram acordos hídricos ou
pende mais para a cooperação: 507 eventos estão negociando, e as instituições que criaram
conflituosos contra 1.228 cooperativos, freqüentemente demonstraram flexibilidade,

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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

mesmo quando as relações são tensas. ração na região. De fato, o Protocolo sobre
A Comissão do Mekong, por exemplo, Sistemas de Cursos de Água Partilhados, de
estabelecida pelos governos do Camboja, 1995, foi o primeiro protocolo assinado no
Laos, Tailândia e Vietnã, como uma agência âmbito da Comunidade Desenvolvimentista
intergovernamental em 1957, trocaram dados da África do Sul. Ripários se sujeitam a
e informações sobre o desenvolvimento de negociações duras e demoradas a fim de obter
recursos hídricos durante toda a Guerra do benefícios do desenvolvimento conjunto de
Vietnã. Israel e Jordânia mantiveram encontros recursos hídricos. Assim, alguns pesquisadores
secretos na confluência dos rios Jordão e identificaram cooperação em recursos hídricos
Yarmuk (que ficaram conhecidos como como um ponto de acesso particularmente
“conversações à mesa de piquenique”) sobre proveitoso para construção da paz. (Ver
a gestão do Rio Jordão, a partir do fracasso Capítulo 8.)15
das negociações Johnston de 1953-55, mesmo Então, se a água compartilhada não conduz
estando em guerra desde a independência de à violência entre nações, qual é o problema?
Israel em 1948, até o tratado de 1994. (Ver Na realidade, complicadores como o lapso
Quadro 5-1.) A Comissão do Rio Indus de tempo entre o início das disputas e acordos
sobreviveu a duas grandes guerras entre Índia finais, podem fazer com que questões hídricas
e Paquistão. E todos os 10 países ripários da agravem tensões. Ripários freqüentemente
Bacia do Nilo estão atualmente envolvidos em desenvolvem projetos unilateralmente em seus
negociações em nível ministerial para o próprios territórios, numa tentativa de evitar
desenvolvimento cooperativo da bacia, apesar as complexidades políticas das partilhas de
da ferrenha retórica de “guerras hídricas” entre recursos. A certa altura, um dos ripários (geral-
nações a montante e a jusante.14 mente o mais poderoso) iniciará um projeto
que afetará pelo menos um dos vizinhos.
O registro histórico comprova que Sem relações ou instituições conducentes à
disputas de águas internacionais são resolução de conflitos, ação unilateral pode
resolvidas, mesmo entre inimigos, e agravar tensões e instabilidade regional,
necessitando de anos ou décadas para serem
mesmo quando surgem outros conflitos.
solucionadas: o tratado do Indus levou 10 anos
de negociações; do Ganges, 30; e do Jordão,
No sul da África, foram assinados vários 40. A água foi a última – e mais contenciosa –
acordos de bacias hidrográficas quando a questão negociada num tratado de paz de
região esteve envolvida numa série de guerras 1994, entre Israel e Jordânia, sendo relegada à
locais nos anos 70 e 80 (incluindo a “guerra categoria de “situação final” entre Israel e os
do povo” na África do Sul e guerras civis em palestinos, juntamente com questões comple-
Moçambique e Angola). Embora as nego- xas como refugiado e o status de Jerusalém.
ciações fossem complexas, os acordos pro- Durante este longo processo, a qualidade e
porcionaram raros momentos de cooperação quantidade da água pode degradar até que a
pacífica entre muitos dos países. Hoje, quando saúde das populações e ecossistemas
a maioria das guerras e a era do apartheid dependentes seja prejudicada ou destruída. O
acabaram, a água é um dos alicerces de coope- problema se agrava à medida que a disputa se

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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

QUADRO 5-1.
QUADRO PARTILHA DE
5-1. PARTILHA DE ÁGUA
ÁGUA ENTRE
ENTRE ISRAEL,
ISRAEL, JORDÂNIA
JORDÂNIA EE OS
OSPALESTINOS
PALESTINOS

A escassez hídrica mais grave do mundo é a do da violência, não deverão ser concluídas tão cedo.
Oriente Médio. O déficit é particularmente alarmante Não obstante, israelenses e palestinos concordam
na bacia do Rio Jordão e aqüíferos adjacentes da que é indispensável manter a cooperação sobre sua
Margem Ocidental, onde se cruzam os interesses água partilhada.
hídricos israelenses, palestinos e jordanianos. Em Duas importantes recomendações programáticas
Gaza e na Margem Ocidental, a disponibilidade anual podem ser estabelecidas deste caso. Primeiro, a
de água é bem abaixo de 100 metros cúbicos de cooperação hídrica está intimamente ligada à política
água renovável por pessoa, enquanto Israel tem – um processo altamente complexo influenciado por
menos de 300 e Jordânia em torno de 100 metros considerações tanto domésticas quanto
cúbicos. Um país é geralmente considerado carente internacionais. Se os doadores não realizarem uma
de água quando a disponibilidade é inferior a 1.000 análise completa do contexto político,
metros cúbicos. provavelmente não irão entender como a água está,
Crescimento populacional, resultante tanto de às vezes, subordinada a prioridades políticas mais
altas taxas de natalidade entre palestinos e importantes e é utilizada como instrumento político.
jordanianos quanto da imigração para Israel, Segundo, agências doadoras e organizações
pressiona cada vez mais os já escassos recursos e internacionais podem desempenhar um papel
aumenta o risco de conflitos relacionados à água. importante se estiverem dispostas a oferecer apoio
Colonos israelenses na Margem Ocidental e em Gaza de longo prazo para o estabelecimento de
recebem uma parcela maior da água disponível do cooperação para água compartilhada. Os doadores
que os palestinos, complicando ainda mais a situação. caracteristicamente desejam ver resultados tangíveis
Apesar dos temores de violência relacionada à dentro de uma curta escala de tempo. Todavia, é
água, Israel tem mantido um clima de cooperação essencial entender que há riscos envolvidos,
com Jordânia e os palestinos sobre suas águas obstáculos ocasionais ocorrerão e benefícios não irão
partilhadas, mesmo após o início da segunda intifada, se materializar rapidamente. Os doadores precisarão
em setembro de 2000. Esta cooperação básica entre se engajar num “financiamento de processo” de apoio
Israel e Jordânia – sob os auspícios da ONU – se não a um projeto comum de desenvolvimento com
estende desde o início dos anos 50, apesar destes um ciclo de 2-4 anos, e sim a um processo que pode
países estarem formalmente em guerra. Esta cobrir 10-25 anos. No caso Israel-Jordânia, a
interação ajudou a criar confiança e um conjunto Organização de Supervisão da Trégua da ONU, que
compartilhado de normas e regulamentos, agiu como uma organização “guarda-chuva” para
posteriormente formalizados no âmbito do acordo discussões sobre coordenação hídrica apesar da
de paz entre os dois países, em 1994. Conforme ausência de um acordo de paz, desempenhou um
estipulado neste acordo, foi implantada uma papel crucial.
Comissão Hídrica Conjunta de coordenação e Embora exista a possibilidade de surgirem mais
resolução de problemas que ajudou a solucionar os conflitos de interesse no futuro sobre as águas da
desacordos sobre alocações. bacia do Rio Jordão, a gestão hídrica – com suporte
Um acordo provisório de 1995 regula questões adequado – proporciona uma janela de oportunidade
hídricas israelenses-palestinas, como a proteção dos para uma cooperação mais ampla nesta região
sistemas de água e esgoto. A Comissão Hídrica conturbada do mundo.
Conjunta e suas subcomissões continuaram a se - Anders Jägerskog
encontrar, apesar da violência dos últimos anos. Para Grupo de Especialistas sobre Questões
os palestinos, o acordo atual é insatisfatório sob a Desenvolvimentistas Ministério de Relações Exteriores,
perspectiva de direitos e disponibilidade. Suécia
Conversações para se chegar a um acordo final ___________________________________________________________________________________________
formam parte de um processo global de negociação fonte: Vide nota final 14. As opiniões expressas são do
mas, considerando o impasse político e a continuação autor e não do Ministério de Relações Exteriores da
Suécia.

intensifica; os ecossistemas do Baixo Nilo, Baixo Quando iniciativas unilaterais produzem


Jordão e tributários do Mar de Aral já foram tensões internacionais, fica mais difícil sustentar
considerados por alguns como “perda total,” um comportamento cooperativo. À medida
produto infeliz da intratabilidade humana.16 que aumenta a desconfiança entre ripários,

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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

irrompem ameaças e disputas através de a seu estilo de vida, cada vez mais ameaçado
fronteiras, como se viu na Índia e Paquistão, por novas demandas para cidades e
ou Canadá e Estados Unidos. Desconfiança e hidroenergia.18
tensões (mesmo que não levem a conflitos
abertos) podem prejudicar desenvolvimentos
Ação unilateral pode agravar tensões e
regionais ao impedir projetos conjuntos e
instabilidade regional, necessitando de
infra-estrutura mutuamente benéfica. Uma das
fontes mais importantes de água tanto para anos ou décadas para serem solucionadas
israelenses quanto para palestinos, o Aqüífero
da Montanha, está ameaçada pela poluição de Conflitos hídricos internos levaram a
esgotos não tratados. O conflito existente confrontos entre usuários a montante e a
impediu iniciativas de doadores para a jusante, ao longo do Rio Cauvery, na Índia, e
construção de estações de tratamento de entre americanos nativos e colonos europeus.
esgotos na Palestina, iniciando um círculo Em 1934, o estado interiorano do Arizona
vicioso à medida que a poluição da água constituiu uma força naval (um ferryboat) e
subterrânea aumenta a escassez da água enviou a milícia estadual para impedir um
regional e, por sua vez, agrava o conflito entre projeto de barragem e desvio no Rio
israelenses e palestinos.17 Colorado. Disputas relacionadas à água podem
também engendrar também desobediência
Disputas intra Nações civil, atos de sabotagem e manifestações
violentas. Na província chinesa de Shandong,
A literatura sobre águas transfronteiriças milhares de agricultores entraram em choque
freqüentemente trata as entidades políticas com a polícia em julho de 2000, devido ao
como monólitos homogêneos: “Canadá projeto do governo de desviar a água de
sente...” ou “Jordânia deseja...” Recentemente, irrigação da agricultura para as cidades e
analistas identificaram os perigos desta indústrias. Várias pessoas morreram nas
abordagem, mostrando como subgrupos de manifestações. E de 1907 a 1913, no Vale
atores nacionais possuem valores e prioridades Owens, na Califórnia, os agricultores
diferentes para a gestão hídrica. Na realidade, bombardearam repetidamente uma adutora
a história da violência relacionada à água inclui que desviava água para Los Angeles.19
incidentes entre tribos, setores de uso da água, A instabilidade nacional também pode ser
populações rurais e urbanas e estados ou provocada por uma gestão falha ou injusta
províncias. Algumas pesquisas até sugerem que de serviços hídricos. As disputas surgem sobre
à medida que a escala geográfica cai, a conexões em subúrbios ou zonas rurais,
probabilidade e intensidade de violência responsabilidade pelo serviço e especialmente
aumentam. Em todo o mundo, questões tarifas. Na maioria dos países, o estado é
hídricas locais giram em torno de valores responsável pelo fornecimento de água
básicos que, freqüentemente, remontam a potável; mesmo quando concessões são
várias gerações. Irrigadores, populações outorgadas a empresas privadas, o estado
indígenas e ambientalistas, por exemplo, geralmente continua responsável pelo serviço.
podem, todos, considerar a água como ligada As disputas sobre a gestão do abastecimento,

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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

portanto, surgem geralmente entre Durante os 30 anos que Israel ocupou a Faixa
comunidades e autoridades estaduais. (Ver de Gaza, por exemplo, a qualidade da água
Quadro 5-2.) Protestos ocorrem quando deteriorou constantemente, a água salgada
usuários suspeitam que os ser viços são infiltrou-se nos poços locais e doenças
geridos de forma corrupta ou que recursos relacionadas à água causaram perdas entre
públicos estão sendo desviados em proveito os habitantes. Em 1987, a segunda intifada
próprio.20 começou no Faixa de Gaza, e o levante logo
se alastrou pela Margem Ocidental. Embora
Impactos Locais seja simplista alegar que a perda de qualidade
da água tenha causado a violência, ela sem
Quando a qualidade da água se degrada dúvida exacerbou uma situação já sensível ao
ou a quantidade diminui, afeta a saúde das causar danos à saúde e meios de vida..22
pessoas e destrói meios de vida que Um exame das relações entre Índia e
dependem dela. A agricultura consome dois Bangladesh demonstra que as instabilidades
terços da água mundial e é a maior fonte de locais podem surgir de disputas hídricas
sustento, especialmente nos países em internacionais, vindo a agravar tensões
desenvolvimento, onde uma grande parcela internacionais. Nos anos 60, a Índia construiu
da população depende da agricultura de uma barragem em Farakka, desviando uma
subsistência. A lista de Sandra Postel de países parte do Ganges de Bangladesh para remover
que dependem da água de irrigação cada vez a sedimentação do porto de Calcutá, 160
mais escassa, inclui oito que atualmente quilômetros ao sul. Em Bangladesh, a vazão
preocupam a comunidade de segurança: menor drenou a água superficial e
Bangladesh, China, Egito, Índia, Irã, Iraque, subterrânea, impediu a navegação, aumentou
Paquistão e Uzbequistão. Quando o acesso à a salinidade, degradou pesqueiros e colocou
água de irrigação é interrompido, grupos de em risco o abastecimento de água e a saúde
homens desempregados e insatisfeitos pública, forçando alguns habitantes a
podem ser forçados a deixar o campo e se migrarem – muitos, ironicamente, para a
deslocar para as cidades – um notório Índia.23
contribuidor para instabilidade política. A Assim, embora não tenha ocorrido
migração pode provocar tensões entre nenhuma “guerra hídrica,” a ausência de água
comunidades, especialmente quando aumenta doce pura ou a competição pelo acesso a
a pressão sobre recursos já escassos, e a recursos hídricos causou, ocasionalmente,
migração transfronteiriça pode contribuir instabilidade política intensa que resultou em
para tensões inter-nações. (Ver Capítulo 2.)21 violência aguda, embora em pequena escala.
Assim, problemas com a água podem Acesso insuficiente à água é uma das causas
contribuir para causar instabilidade local, o principais de perda de meios de vida,
que, por sua vez, pode desestabilizar uma alimentando assim conflitos relacionados a
nação ou toda uma região. Desta forma meios de sustento. Proteção ambiental, paz e
indireta, a água contribui para disputas estabilidade são difíceis de serem
internacionais e nacionais, embora as partes conquistadas num mundo onde tantos
não entrem em luta explicitamente pela água. sofrem de pobreza.24

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QUADRO 5-2. CONFLITOS SOBRE GESTÃO DE SERVIÇOS HÍDRICOS: O CASO DE COCHABAMBA


Questões de gestão de abastecimento de água em Cochabamba, como também quaisquer fontes
podem levar a conflitos violentos, conforme foi futuras necessárias para abastecer a cidade. Também
demonstrado pelas confrontações que irromperam possuía direitos exclusivos para prestar serviços e
em 2000 em Cochabamba, terceira maior cidade da exigir de consumidores potenciais ligação ao seu
Bolívia, após a privatização da empresa estatal de sistema. A população rural temia perder seus direitos
água. Cochabamba há muito vinha sofrendo escassez tradicionais e que a AdT viesse a cobrar pela água de
de água e um fornecimento insuficiente e irregular. Na seus próprios poços.
expectativa de melhoria dos serviços e ampliação das Agricultores de municípios vizinhos juntaram-se à
ligações domiciliares, o Governo da Bolívia assinou, manifestação em Cochabamba, que se alastrou para
em setembro de 1999, um contrato de concessão outras regiões da Bolívia. Meses de distúrbios civis
de 40 anos com o consórcio internacional privado culminaram em abril de 2000, quando o governo
Águas Del Tunari (AdT). declarou estado de sítio em todo o país, enviando
Em janeiro de 2000, a tarifa sofreu um aumento tropas para Cochabamba. Vários dias de violência
drástico; alguns domicílios tiveram que pagar uma resultaram em mais de cem pessoas feridas uma
parcela significativa de renda familiar mensal para seu pessoa morta. A calma só foi restabelecida depois
abastecimento. Os consumidores, sentindo que que o governo concordou em revogar a concessão
estavam simplesmente pagando mais para o mesmo da AdT e devolver a gestão dos serviços de água ao
serviço ruim, reagiram com greves, bloqueio de ruas município.
e outras formas de manifestação que paralisaram a Todavia, o serviço continua insatisfatório. Muitos
cidade durante quatro dias em fevereiro de 2000. bairros recebem água ocasionalmente e o lençol
Embora o aumento da conta de água tenha freático do vale continua caindo. Embora muitos
provocado as manifestações, algumas pessoas tenham considerado o cancelamento da concessão
também se opuseram a uma lei que ameaçava o como uma vitória para o povo, não solucionou seus
controle público dos sistemas rurais. A prolongada problemas de água. Enquanto isso, a AdT entrou
escassez havia encorajado o desenvolvimento de com uma ação contra o governo boliviano no tribunal
fontes alternativas já bem estabelecidas. Nos comercial do Banco Mundial, o Centro Internacional
municípios rurais na periferia de Cochabamba, para Resolução de Disputas, em Washington, D.C.
cooperativas agrícolas perfuraram seus próprios De acordo com o San Francisco Chronicle, o
poços e utilizaram um mercado informal para a água consórcio pede US$ 25 milhões de indenização pelo
com base num sistema antigo de direitos de cancelamento do contrato. O caso continua sub
propriedade. Nos termos do contrato de concessão, judice.
a AdT detinha o uso exclusivo dos recursos hídricos ___________________________________________________________________________________________
fonte: Vide nota final 20.

Capacidade Institucional: disputem. Pesquisas recentes sobre os


O Cerne das Disputas e indicadores de conflitos hídricos trans-
fronteiriços, todavia, não constataram quaisquer
Cooperação Hídricas parâmetros físicos estatisticamente significativos
– climas áridos não eram mais propensos a
Muitos analistas que escrevem sobre política conflitos do que climas úmidos e, na realidade,
hídrica, especialmente aqueles que enfocam a cooperação internacional aumentava durante
explicitamente a questão de conflitos hídricos, estiagens. Na verdade, nenhuma variável se
partem da premissa que a escassez deste recurso mostrou causal: democracias eram tão
crucial conduz as pessoas a conflitos. Parece susceptíveis a conflitos quanto autocracias,
intuitivo: quanto menos água houver, quando países ricos quanto pobres, países de alta
mais preciosa for considerada, maior densidade populacional quanto outros menos
probabilidade haverá de que as pessoas a populosos e países grandes quanto pequenos.25

102
Estado do Mundo 2005
DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

Quando pesquisadores da Universidade do vimento, as instituições de gestão hídrica


Estado de Oregon verificaram mais freqüentemente carecem de recursos humanos,
atentamente as práticas de gestão hídrica nos técnicos e financeiros para desenvolver pro-
países áridos, constataram que a capacidade gramas de gestão abrangente e assegurar sua
institucional era a chave para o sucesso. Países implementação.
naturalmente áridos cooperam sobre a água: Ademais, em muitos países a tomada de
para viver em ambiente de escassez hídrica, as decisão é distribuída entre diferentes
pessoas desenvolvem estratégias institucionais instituições responsáveis pela agricultura, pesca,
– tratados formais, grupos informais de abastecimento de água, desenvolvimento
trabalho ou, em geral, boas relações – para se regional, turismo, transportes ou conservação
adaptarem à situação. Os pesquisadores e meio ambiente, e assim diferentes
também constataram que a probabilidade de abordagens de gestão atendem objetivos
conflito aumenta significativamente caso dois contraditórios. Práticas formais e usuais de
fatores entrem em jogo. Primeiro, o conflito gestão também podem ser contraditórias,
é mais provável se o cenário físico ou político como demonstrado em Cochabamba, onde
da bacia sofre uma mudança grande ou súbita, as disposições formais da Lei sobre Serviços
como a construção de uma barragem, Hídricos da Bolívia, de 1999, conflitavam com
esquema de irrigação ou realinhamento o uso costumeiro da água subterrânea por
territorial. Segundo, o conflito é mais provável parte das associações de fazendeiros.28
caso as instituições existentes não sejam capazes Em países sem um sistema formal de
de absorver e gerir efetivamente aquela licenças de uso de água ou aplicação e
mudança.26 monitoramento adequados, usuários mais
Instituições de gestão de recursos hídricos poderosos podem neutralizar os direitos
precisam ser fortes para equilibrar interesses costumeiros de comunidades locais. Se
competitivos e gerir a escassez hídrica (que é instituições alocam a água de forma desigual
freqüentemente o resultado de má gestão entre grupos sociais, o risco de protestos e
anterior), e elas próprias podem até se tornar conflitos aumenta. Na África do Sul, o regime
um pomo de discórdia. Em bacias hidro- do apartheid alocou água para favorecer a
gráficas internacionais, as instituições de gestão minoria branca. Esta “marginalização ecológica”
hídrica tipicamente falham na gestão de acentuou o descontentamento da população
conflitos quando não existe um tratado que negra e contribuiu para a instabilidade social,
estabeleça os direitos e responsabilidades de culminando com o fim do regime.29
cada nação, nem acordos ou esquemas As instituições também podem distribuir
cooperativo implícitos.27 custos e benefícios de modo desigual: as
Igualmente, em nível nacional e municipal, receitas de grandes projetos de infra-estrutura,
não é a falta de água que conduz a conflitos, e como barragens ou esquemas de irrigação,
sim a forma pela qual é regida e manejada. geralmente beneficiam apenas uma pequena
Muitos países precisam de políticas mais fortes elite, relegando às comunidades locais a
para regulamentar o uso da água e propor- administração dos impactos ambientais e
cionar uma gestão eqüitativa e sustentável. sociais resultantes, quase sempre com pouca
Especialmente nos países em desenvol- compensação, (Ver Quadro 5-3.)30

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Estado do Mundo 2005
DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

As várias partes envolvidas em conflitos inerentes à gestão hídrica, a maioria das


hídricos freqüentemente têm percepções disputas são resolvidas de forma pacífica e
diferentes quanto a direitos legais, natureza cooperativa, mesmo quando o processo de
técnica do problema, custo da solução e negociação é longo. Os mecanismos de uma
alocação de custos entre os interessados. Fontes gestão hídrica cooperativa – provavelmente a
confiáveis de informação, aceitáveis para todos abordagem mais avançada – podem antecipar
os interessados, são portanto essenciais para conflitos e resolver disputas latentes, contanto
qualquer esforço conjunto. Isto não só permite que todos os interessados estejam incluídos
que as partes que compartilham a água tomem no processo decisório com meios (infor-
decisões lastreadas num entendimento mação, pessoal capacitado e apoio financeiro)
partilhado, como também ajuda a criar para agirem como parceiros iguais. Os
confiança.31 mecanismos de gestão cooperativa podem
Um banco de dados confiável, incluindo reduzir o potencial de conflito ao:
dados meteorológicos, hidrológicos e Proporcionar um fórum para nego-
socioeconômicos, é um instrumento ciações conjuntas e, desta forma, assegurar que
fundamental para uma gestão hídrica abalizada todos os interesses existentes e potencialmente
e perceptiva. Dados hidrológicos e meteo- conflitantes sejam levados em conta durante a
rológicos coletados a montante são cruciais tomada de decisão;
para a tomada de decisão a jusante. E em Considerar diferentes perspectivas e
emergências, como enchentes, esta informação interesses a fim de identificar novas opções
é necessária para proteção da saúde humana e de gestão e oferecer soluções ganha-ganha;
ambiental. Tensões entre diferentes usuários Criar confiança através da colaboração e
podem surgir quando não há troca de investigação conjunta; e
informação. Disparidades na capacidade dos Tomar decisões com maior probabilidade
interessados gerarem, interpretarem e de aceitação por todos os interessados,
legitimizarem dados, podem levar à mesmo que não se chegue a um consenso.33
desconfiança daqueles mais bem informados
e com melhores sistemas de apoio. Nas bacias Em bacias hidrográficas internacionais, as
dos rios Incomati e Maputo, o monopólio da instituições de gestão hídrica tipicamente
África do Sul sobre a geração de dados criou
falham na gestão de conflitos quando não
tamanho desconforto em Moçambique, a
existe um tratado que estabeleça os e
jusante, que levou ao colapso do Acordo de
direitos responsabilidades de cada nação,
Pigs’ Peak, e Moçambique utilizou este impasse
nas negociações para começar a desenvolver nem acordos implícitos.
seus próprios dados.32
Em nível local, mecanismos comunitários
Avançando em Direção à tradicionais já estão ajustados às condições
específicas locais e, assim, são mais facilmente
Gestão Hídrica Cooperativa
adotados pela comunidade. Exemplos incluem
o comitê chaffa, uma instituição de gestão
Embora haja muitas ligações entre água e
hídrica tradicional do povo Boran no Chifre
conflito, e interesses competitivos sejam

104
Estado do Mundo 2005
DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

da África, ou o Parlamento Arvari, um órgão concordou em facilitar o processo de nego-


informal de tomada de decisão e resolução ciação da Iniciativa da Bacia do Nilo por 20
de conflitos, baseado nos costumes tradi- anos.34
cionais do pequeno Rio Arvari, em Rajastan, A capacitação – para gerar e analisar dados,
na Índia. Em nível internacional, comissões de desenvolver projetos sustentáveis de gestão
bacias hidrográficas com representantes de hídrica, utilizar técnicas de resolução de
todas as nações ripárias têm se envolvido com conflitos ou encorajar a participação dos
sucesso na gestão conjunta de recursos hídricos interessados – deverá visar instituições de
ripários. Especialmente em bacias trans- gestão hídrica, organizações não-gover-
fronteiriças, a conquista de cooperação tem namentais locais, associações de usuários ou
sido um processo prolongado e custoso. grupos religiosos. Em nível internacional, o
Reconhecendo isto, o Banco Mundial fortalecimento de técnicas de negociação de

QUADRO 5-3. CONTROLANDO RIOS SELVAGENS: QUEM PAGA O PREÇO?

Desde a II Guerra Mundial, cerca de 45.000 grandes recusaram a sair e tentaram negociar condições mais
barragens foram construídas, gerando justas. As tensões aumentaram quando o governo
aproximadamente 20% da eletricidade mundial e declarou os habitantes restantes subversivos,
proporcionando irrigação a campos que produzem apreendeu registros das promessas de
cerca de 10% do alimento mundial. reassentamento e escrituras da terra, e matou líderes
Todavia, para as 40-80 milhões de pessoas cujas comunitários. Em seguida a um segundo golpe militar
vidas e sustento estavam enraizadas nas margens e em março de 1982, o General Rios Montt iniciou uma
vales de rios selvagens, a construção de barragens política de “terra arrasada” contra a população Maia.
alterou profundamente a saúde, economia e cultura Quando a construção da barragem foi concluída e as
de comunidades e nações inteiras. Uma vez que as águas começaram a subir, os habitantes foram
barragens geralmente são localizadas próximas a expulsos sob a mira de fuzis e as casas e campos
nações indígenas, no final são as minorias rurais e queimados. Massacres se seguiram, inclusive nos
étnicas, distantes dos corredores centrais do poder, vilarejos que deram refúgio aos sobreviventes. No
que são forçadas a arcar com o ônus. Planos de vilarejo de Rio Negro, por exemplo, 487 pessoas –
desenvolvimento insensatos, despejos forçados e metade da população – foi assassinada em setembro
reassentamentos com indenizações inadequadas de 1982.
geram condições para conflitos que ameaçam a Após os Acordos de Paz de Oslo, em 1994 e o
segurança de direitos individuais e grupais à cultura, término da guerra civil da Guatemala, uma série de
auto-determinação, meios de vida e à própria vida. investigações rompeu o silêncio sobre os massacres.
Esta dinâmica está ilustrada no caso da Barragem Em 1999, uma comissão patrocinada pelas Nações
Chixoy, na Guatemala, que gera 80% da eletricidade Unidas concluiu que mais de 200.000 civis Maias
deste país. Foi projetada e desenvolvida pelo INDE haviam sido mortos, que atos de genocídio foram
(Instituto Nacional de Eletrificação) e financiada em cometidos contra comunidades Maias específicas, e
grande parte pelo Banco Inter-Americano de que o Governo da Guatemala era responsável por
Desenvolvimento e Banco Mundial. O projeto foi 93% das violações de direitos humanos e atos de
aprovado e a construção iniciada sem aviso à violência contra civis.
população local, realização de um levantamento Hoje, esta questão está longe de estar resolvida.
abrangente dos vilarejos afetados ou consideração O fracasso em proporcionar terra cultivável e
quanto a indenizações e reassentamentos para os moradia de tamanho e qualidade equivalente para os
3.400 habitantes, quase todos Maias. A ditadura reassentados gerou uma pobreza aguda, fome
militar de Lucas Garcia declarou a Barragem Chixoy e generalizada e altas taxas de má-nutrição. As
seu entorno como zona militarizada em 1978. comunidades que foram excluídas do programa de
Alguns habitantes aceitaram as ofertas de reassentamento também enfrentam uma gama de
reassentamento mas receberam habitação de pior problemas. Abertura das comportas ocorrem sem
qualidade, área menor e terra infértil. Outros se aviso prévio, e as enchentes decorrentes destroem

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Estado do Mundo 2005
DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

lavouras, afogam o gado e, às vezes, matam pessoas. decisão de operar a barragem em base sazonal.
A maioria dos habitantes de antigas vilas pesqueiras, Numa segunda barragem no Rio Mun, a Rasi Salai,
com seus meios de vida destruídos, se voltou para o populações deslocadas implantaram um vilarejo de
trabalho migrante. Comunidades a montante viram protesto em 1999, recusando-se a sair enquanto as
parte de suas terras agrícolas serem submersas e o águas do reservatório cobriam seu acampamento. Seu
acesso à terras, estradas e mercados regionais protesto não violento e disposição de enfrentar a
bloqueado. Não há mecanismos para as pessoas iminência de afogamento sacudiram a nação. Em julho
afetadas reclamarem ou negociarem ajuda. de 2000, as comportas da Rasi Salai foram abertas
As comunidades afetadas pela Barragem Chixoy se para permitir a recuperação do meio ambiente e
reuniram para discutir problemas e estratégias avaliação de impactos, e continuam abertas até hoje.
comuns, testemunharam perante comissões da Na documentação dos muitos fracassos na
verdade e, com ajuda de advogados nacionais e observação adequada de direitos e recursos, as
internacionais, estão se empenhando em documentar comunidades afetadas por barragens assumiram a
o impacto da barragem. Em setembro de 2004, liderança no desafio às premissas que orientam
cerca de 500 agricultores Maias ocuparam a tomadas de decisão desenvolvimentistas e na
barragem e ameaçaram cortar a energia caso não exigência de responsabilidades institucionais. Suas
fossem indenizados pela perda das terras e vidas.Num exigências por “reparações” são muito mais do que
número cada vez maior de casos, os esforços de clamores por indenização. São exigências para
populações afetadas por barragens para remediação significativa, o que significa que o
documentarem experiências e reclamarem por danos consentimento livre, prévio e informado dos
e perdas, obtiveram sucesso em produzir alguma habitantes seja obtido antes da aprovação do
remediação. Na Tailândia, onde a Barragem Pak Mun financiamento e início da construção da barragem,
destruiu pesqueiros e meios de vida de dezenas de que avaliações científicas e projetos sejam
milhares de pessoas, uma década de protestos forçou desenvolvidos com a participação igualitária dos
o governo a desativar temporariamente a barragem. membros das comunidades afetadas, que governos e
Os aldeões prejudicados realizaram um financiadores respeitem os direitos dos povos
levantamento do impacto da barragem sobre suas indígenas à auto-determinação – inclusive o direito de
vidas e o ecossistema do Rio Mun, documentando o dizer não, e que novos projetos não sejam financiados
retorno de 156 espécies de peixe para o rio após a até que todos os problemas pendentes de projetos
abertura das comportas e subseqüente revitalização anteriores tenham sido resolvidos.
da economia pesqueira e da comunidade. Estas - Barbara Rose JohnstonCenter for Political Ecology,
avaliações desempenharam um papel chave na Santa Cruz, Califórnia.

Fonte: Vide nota final 30.


ripários menos poderosos poderá ajudar a jusante, antes da tomada de decisão gestora.
evitar conflitos. Em nível local, o O processo de identificação de todos os
fortalecimento da capacidade de grupos interessados pertinentes e suas posições é
excluídos, marginalizados ou fracos para a crucial para estimar, e conseqüentemente
articulação enegociação de seus interesses, administrar, os riscos de conflito. Sem uma
ajudará a envolvê-los numa gestão hídrica participação pública extensa e regular, a
cooperativa. O Projeto “Cada Rio Tem Seu população em geral poderá rejeitar propostas
Povo,” na bacia do Okavango, por exemplo, de projetos de infra-estrutura. Por exemplo, a
tem a finalidade de aumentar a participação decisão de construir a Barragem Hainburg, no
das comunidades e outros interessados locais Danúbio, foi anunciada em 1983, após uma
na tomada de decisão e gestão da bacia, participação pública limitada. Grupos
através de atividades educacionais e de ambientais e outras organizações da sociedade
treinamento.35 civil, apoiados pela população, ocuparam o
A prevenção de conflitos graves requer a canteiro da obra e conseguiram paralisar a
comunicação ou consulta explícita a todos os construção. Subseqüentemente, o local foi
interessados, como nações ou sociedades a transformado num parque nacional.36

106
Estado do Mundo 2005
DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

O cerne das disputas hídricas ainda diz conflito. Com toda a parafernália do Século
respeito a pouco mais do que a XXI – modelação dinâmica, sensoriamento
abertura de uma comporta de desvio remoto, sistemas de informação geográfica,
ou lixo flutuando rio abaixo. dessalinização, biotecnologia ou gestão de
demanda – e a recém-descoberta preo-
A gestão hídrica cooperativa é uma questão cupação com globalização e privatização, o
desafiadora que requer tempo e compromisso. cerne das disputas hídricas ainda diz respeito
A participação extensa de interessados nem a pouco mais do que a abertura de comportas
sempre é viável; em alguns casos, pode até de desvio ou lixo flutuando rio abaixo.
nem ser recomendável. Em qualquer escala Entretanto, qualquer um que tentar gerir
de gestão hídrica, se o nível de disputa for conflitos relacionados com a água deverá ter
muito alto e as disparidades muito grandes, em mente que, ao invés de ser simplesmente
as partes conflitantes provavelmente não outro insumo ambiental, a água é comumente
chegarão a um consenso e podem até recusar tratada como questão de segurança, dádiva
a participar em atividades de gestão da natureza ou ponto focal da sociedade local.
cooperativa. Nestes casos, a confiança e me- As disputas, portanto, são mais do que
didas de obtenção de consenso, como “simples” lutas por uma quantidade de um
treinamento conjunto ou investigação conjunta, recurso; são argumentos sobre atitudes,
ajudarão na tomada de decisão cooperativa. significados e contextos conflitantes.
Medidas anticonflito envolvendo terceiros, Obviamente, não há garantia que o futuro
tais como mediação, facilitação ou arbitragem, será como o passado; os mundos da água e
ajudam nos casos de disputas abertas sobre dos conflitos estão passando por mudanças
gestão de recursos hídricos. Partes relacionadas, lentas porém constantes. Um número sem
como conselheiros, mulheres ou especialistas precedentes de pessoas não tem acesso a um
hídricos, obtiveram sucesso em iniciar a suprimento seguro e estável de água. Á medida
cooperação quando os grupos em conflito que cresce a exploração dos mananciais mun-
não puderam se reunir. A Iniciativa de Paz diais, a qualidade se torna um problema mais
Wajir, liderado por mulheres, por exemplo, grave do que a quantidade, e o consumo da
ajudou a reduzir o conflito violento entre água está sendo desviado para fontes menos
pastores no Quênia, onde o acesso à água es- tradicionais como aqüíferos fósseis pro-
tava em disputa. Em alguns casos altamente fundos, recuperação de água servida e trans-
contenciosos, como da Bacia do Nilo, um ferências inter-bacias. Os conflitos, também,
“modelo de elite” que busca consenso entre estão se tornando menos tradicionais, movidos
representantes de alto nível antes de encorajar cada vez mais por pressões internas ou locais
uma participação mais ampla, obteve algum ou, mais sutilmente, pela pobreza e insta-
sucesso no desenvolvimento de uma visão bilidade. Estas mudanças indicam que as
compartilhada para gestão da bacia. A inte- disputas hídricas do futuro poderão ser bem
gração efetiva da participação pública é hoje diferentes das de hoje.
o desafio básico para implementação a longo Por outro lado, a água é um caminho
prazo de esforços de negociação da elite.37 produtivo para criação de confiança, coope-
A gestão hídrica é, por definição, gestão de ração e também para prevenção de conflito,

107
Estado do Mundo 2005
DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

mesmo em bacias particularmente conten- sustentável mostram alguns sinais promissores,


ciosas. Em alguns casos, a água proporciona mas ainda não foram amplamente discutidas
um dos poucos caminhos para o diálogo ou praticadas. Mais pesquisa poderá elucidar
navegar por conflitos bilaterais ásperos. Em como a água – sendo internacional, indis-
regiões politicamente instáveis, a água é pensável e emocional – poderá servir como
freqüentemente essencial para negociações de uma pedra angular para criação de confiança
desenvolvimento regional que servem como e ponto potencial de acesso à paz. Uma vez
estratégias de facto para prevenção de conflito. que as condições que determinam se a água
A cooperação ambiental – especialmente na
contribui para conflito ou para cooperação
gestão de recursos hídricos – foi identificada
forem melhor entendidas, a integração e
como um catalizador potencial para
cooperação mutuamente benéficas em torno
pacificação. (Ver Capítulo 8.)38
Até hoje, as tentativas de traduzir as de recursos hídricos poderão ser utilizadas
conclusões dos debates sobre meio ambiente mais eficazmente para obstar conflitos e apoiar
e conflitos num arcabouço positivo e prático uma paz sustentável entre nações e grupos
de políticas para cooperação ambiental e paz dentro das sociedades.

108
Estado do Mundo 2005
DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS

LIGAÇÃO DE SEGURANÇA

Riqueza Natural e Conflito


Recursos naturais abundantes – como da exploração de recursos substituiu o
petróleo, minerais, metais, diamantes, suporte dado a governantes e grupos
madeira e produtos agrícolas, inclusive rebeldes por patronos superpotentes que
cultivo de drogas – fomentaram um grande desapareceram completamente com o fim
número de conflitos violentos. A exploração da guerra fria. Em lugares como Serra Leoa
de recursos desempenhou um papel em ou República Democrática do Congo,
praticamente um quarto das cerca de 50 grupos predatórios iniciaram violência não
guerras e conflitos armados dos últimos necessariamente para assumir o controle do
anos. Mais de 5 milhões de pessoas governo, mas como um modo de controlar
morreram em conflitos relacionados aos um recurso desejado.3
recursos naturais durante os anos 90. Perto Onde o governo é autoritário e corrupto,
de 6 milhões fugiram para países vizinhos, e a extração de um recurso comercial pode
algo em torno de 11 a 15 milhões de também se tornar uma fonte de conflito. Os
pessoas ficaram desalojadas dentro de seus benefícios econômicos enriquecem somente
próprios países.1 uma pequena elite doméstica e as
A receita obtida pela exploração, companhias multinacionais, enquanto a
freqüentemente ilícita, de recursos naturais população local é sobrecarregada com uma
em zonas de guerra, financiou um amplo série de problemas sociais, de saúde e
suprimento de armas para várias facções ambientais. Por todo globo, comunidades
armadas e enriqueceu um punhado de locais confrontam companhias de petróleo,
pessoas – déspotas, autoridades mineradoras e madeireiras. Conflitos
governamentais corruptas e empresários violentos já ocorreram em países como
inescrupulosos. Porém, para a grande Nigéria (onde mais de 1.000 pessoas foram
maioria das populações locais, esses assassinadas, em 2004), Colômbia, ilha de
conflitos trouxeram uma torrente de Bougainville em Papua Nova Guiné, e a
violações de direitos humanos, desastres província de Aceh, na Indonésia. 4
humanitários e destruição ambiental, Finalmente, as tensões e disputas surgem
ajudando a levar esses países ao nível mais quando os grandes consumidores de
baixo dos índices de desenvolvimento recursos disputam o acesso e controle. A
humano.2 história do petróleo, particularmente, é uma
Em lugares como Afeganistão, Angola, de intervenções militares e outras formas de
Camboja, Colômbia e Sudão, pilhagem de interferência estrangeira, das quais a invasão
recursos permitiu que a continuação de do Iraque é somente o último capítulo. À
conflitos violentos que resultaram, medida que a demanda por petróleo se
originalmente, de injustiça ou lutas torna maior, um novo grupo de rivalidades
separatistas e ideológicas. A receita oriunda entre grandes poderes está emergindo.5

109
Estado do Mundo 2005
RIQUEZA NATURAL E CONFLITO

Estados Unidos, Serra Leoa,


Rússia e China Libéria e Angola
estão apoiando – terminaram,
planos mas outros
competitivos de continuam. Na
oleodutos para os República
recursos do Garimpeiros de diamantes, Serra Leoa Democrática do
Cáspio, e China e Congo, as forças
Japão estão forçando rotas de exportação estrangeiras invasoras que invadiram o país
mutuamente exclusivas na sua disputa pelo em 1998 se retiraram, no entanto ainda
acesso ao petróleo siberiano. Na África, a continua a luta entre várias facções
França e os Estados Unidos estão domésticas armadas, sendo estabelecidas
manobrando por influência, aprofundando redes ilegais complexas e forças de proteção
laços militares com os regimes autoritários que continuam a explorar os recursos
do Congo-Brazaville, Gabão e Angola. A naturais.8
China está procurando ampliar a ingerência A enorme expansão do comércio e redes
de suas companhias de petróleo, financeiras mundiais tornou o acesso de
particularmente no Sudão, e trabalhando grupos beligerantes a mercados chave,
para aumentar sua influência política na relativamente fácil. Eles têm pouca
África e Oriente Médio. Soldados dos dificuldade em estabelecer redes
Estados Unidos patrulham o Delta do internacionais de contrabando e de evadir
Niger, rico em petróleo e mergulhado na embargos internacionais, dado o grau de
violência, juntamente com suas cumplicidade entre certas companhias e
contrapartidas nigerianas e ajudam a muitas vezes controles alfandegários pouco
proteger um oleoduto colombiano de rigorosos nas nações importadoras.9
exportação contra ataques de rebeldes. 6
Nos últimos cinco anos,
Países ricos em recursos deixam muitas aproximadamente, a consciência dos laços
vezes de investir, adequadamente, em áreas estreitos entre extração de recursos,
sociais e infra-estrutura pública vitais. Mas subdesenvolvimento e conflito cresceu
os dividendos de recursos ajudam seus rapidamente. Movimentos de grupos da
lideres a se manter no poder, mesmo sem sociedade civil e relatórios de investigação
legitimação popular – pelo financiamento dos painéis de especialistas das Nações
de apadrinhamento e fortalecimento de um Unidas lançaram luz nestas conexões,
aparato de segurança interna para eliminar tornando pelo menos, um pouco mais
desafios a seu poder. 7
difícil para “recursos de conflito,” como
Finalmente, uma série de conflitos – na diamantes, serem vendidos nos mercados
Estado do Mundo 2005
RIQUEZA NATURAL E CONFLITO

mundiais. Para desencorajar operações mais eticamente, através de relatórios


ilícitas, os fluxos de receita proveniente da investigativos e através de “delatar e
extração de recursos precisam se tornar embaraçar” corporações específicas.
mais transparentes, mas governos, empresas Empresas eletrônicas, por exemplo, foram
e instituições financeiras muitas vezes ainda pressionadas no sentido de examinarem
negligenciam suas responsabilidades.10 seus estoques de coltan (columbita-tantalita),
Sistemas de identificação de mercadorias um ingrediente chave de placas de circuito, e
também são igualmente importantes. Na solicitarem às firmas de processamento que
indústria de diamantes foram estabelecidos parem de comprar coltan extraído
esquemas de certificação nacional e um ilegalmente. 12
esquema de certificação global padronizado. A promoção da democratização, justiça e
Mas o conjunto de regras resultantes ainda maior respeito pelos direitos humanos são
sofre da falta de monitoramento tarefas chave, juntamente com os esforços
independente e muito fica na dependência para reduzir a impunidade com que alguns
de medidas espontâneas. Esforços estão governos e grupos rebeldes aderem á
sendo envidados pela União Européia para violência extrema. Outro objetivo é a
estabelecer um sistema de certificação para facilitação da diversidade econômica,
suas importações de madeira tropical. – diminuindo uma forte dependência dos
metade da qual está ligada a conflitos produtos primários em favor de um mix
armados ou ao crime organizado. 11 mais abrangente de atividades. Uma
Os recursos naturais continuarão a economia mais diversificada, maiores
alimentar conflitos mortais, enquanto as investimentos em desenvolvimento humano
sociedades consumidoras importam e ajuda para que as comunidades locais se
mercadorias com pouca preocupação com tornem guardiãs poderosas da base de
sua origem ou condições em que foram recursos naturais diminuirão a probabilidade
produzidas.Alguns grupos da sociedade civil das mercadorias se tornarem peões numa
procuraram aumentar a consciência do luta entre competidores implacáveis por
consumidor e compelir empresas a negociar riqueza e poder.
- Michael Renner
Estado do Mundo 2005
SETOR PRIVADO

LIGAÇÃO DE SEGURANÇA

Setor Privado
Num pronunciamento ao Conselho de produzido pelo consórcio liderado pela
Segurança das Nações Unidas, em abril de Talisman chegou a contribuir até $500
2004, o Secretário Geral Kofi Annan milhões anuais para a receita do país. Estes
destacou o importante papel que as pagamentos supostamente contribuíram
empresas privadas podem desempenhar – para duplicar o orçamento de defesa do
bom ou ruim – nos países mais propensos a governo no mesmo período e assim para a
conflitos: “Suas decisões – sobre campanha de “terra arrasada” que expulsou
investimento e emprego, sobre relações com as pessoas dos campos de petróleo do país.
comunidades locais, sobre providências Em pelo menos um caso registrado
com a própria segurança – pode ajudar um helicópteros com metralhadoras e aviões
país a dar as costas ao conflito ou agravar as militares usaram a pista de aterrissagem do
tensões que o alimentaram originalmente.” 1 consórcio como ponto de partida para
Nos últimos anos, movimentos populares ataques a civis. 3
e painéis das Nações Unidas documentaram . Em março de 2003, tendo sido acusada
a alegada cumplicidade das multinacionais num processo em Nova Iorque, a Talisman
numa vasta gama de situações de conflito – vendeu suas ações no consórcio petrolífero
desde abusos de direitos humanos no Sudão para a companhia de energia indiana
e Nigéria, ricos em petróleo, passando pelo ONGC Videsh. Ainda assim, mesmo com a
tráfico de diamantes e madeira do Congo e elevação do valor das ações, a saída da
Serra Leoa, até o mau uso de serviços Talisman do Sudão criou um dilema
financeiros para compra de armas e atos complexo. Por um lado, demonstrou à
terroristas. À luz desses relatórios, as indústria de petróleo que investimentos ou
corporações estão cada vez mais conscientes atividades duvidosas podem afetar a
de que, além de alimentar a violência, os reputação de uma companhia e baixar o
investimentos em situações de conflito valor de suas ações (no caso da Talisman,
podem manchar gravemente a reputação de até 15%). Por outro lado, a retirada de
uma empresa, podendo tornar-se até investimentos de uma grande multinacional
mesmo um ônus legal.2 em países instáveis pode, em última análise,
Num caso notório, sensacional, a reduzir o escrutínio internacional destes
companhia canadense de petróleo Talisman lugares, diminuindo a pressão nas
Energy foi forçada a vender sua companhias remanescentes para seguirem
participação no petróleo do Sudão, após padrões sociais e ambientais mínimos. 4
denuncias de ter contribuído para a longa Existem situações, onde o setor privado
guerra civil que durou 20 anos. Iniciando tem sido instrumental na ajuda para o
com o término de um oleoduto de término de hostilidades. No Sri Lanka, um
exportação, em 1999, o petróleo bruto ataque ao aeroporto internacional em julho

112
Estado do Mundo 2005
SETOR PRIVADO

de 2001, marcou teriam a


a virada no oportunidade de
conflito de 10 redirecionar o
anos entre a centro de suas
maioria sinhalesa operações
e os separatistas comerciais,
Tamil. Líderes atividades de
Construção do oleoduto Chade-Camarõpes
empresários de investimento
ambos os lados formaram o movimento social, e política de estratégias públicas no
Sri Lanka First para organizar apoio sentido de minimizar o dano. Para acelerar
popular contra a guerra.O grupo ajudou a este procedimento, governos poderiam
coordenar, em setembro, uma exigir que as agências de crédito à
demonstração de milhões de pessoas, e exportação (ACEs) e outros financiadores
durante a eleição subseqüente fez campanha de áreas propensas a conflito, para fazer de
para legisladores que favorecessem um tais avaliações uma condição de acesso
acordo negociado. Estas ações ajudaram a preferencial ao financiamento. Do mesmo
direcionar os separatistas Tamil e o governo modo, os departamentos de crédito ao
para um cessar-fogo, no início de 2002. 5 setor privado do Banco Mundial, poderiam
O papel a ser desempenhado pelas estabelecer diretrizes para as avaliações
empresas é na redução de conflito e não em semelhantes àquelas que utilizam para o
contribuir para ele. Para que assim seja, meio ambiente.6
entretanto, elas necessitarão desenvolver Também seria essencial dar maior
diretrizes para administrar os riscos sociais, transparência às ações corporativas. A
fortalecendo transparência e iniciativa governamental Publish What You Pay
responsabilidade, e sedimentando relações [Publiquem o Que Pagam] busca assegurar
colaborativas – capacitando assim os transparência às royalties de projetos
diretores para atravessar situações difíceis extrativistas e outros pagamentos a
mais responsavelmente. governos. E a estratal Extractive Industries
Antes de tudo, e principalmente, devem Transparency Initiative [Iniciativa de
ser mais bem entendidas as conseqüências Transparência das Indústrias Extrativistas]
de projetos comerciais e de do Reino Unido, conclama países anfitriões
desenvolvimento. Analisando os prováveis a serem mais transparentes quanto à
impactos de conflito nas operações da aplicação desses fluxos de receita. Um
empresa, bem como os impactos de outro conjunto de ações necessárias em
atividades associadas nas comunidades locais países anfitriões, é o encorajamento da
e o tecido social abrangente, as empresas capacidade da sociedade civil para que

113
Estado do Mundo 2005
MUDANDO
SETOR PRIVADO
A ECONOMIA DO PETRÓLEO

responsabilizem os governos pela prestação da sociedade civil, em áreas já em conflito


de contas da aplicação destes recursos.7 ou potencialmente conflituosas. Essas
São necessárias normas de parcerias podem enfatizar a sensibilidade e
responsabilidade legal precisas e legitimidade da empresa, enquanto reduz
concordadas internacionalmente para a riscos, valorizando assim o investimento no
cumplicidade empresarial em violações todo. Por exemplo, grupos de multi-
maiores dos direitos humanos, crimes de interessados estabelecidos sob a supervisão
guerra e violações das sanções das Nações do Banco Mundial, fortaleceram a
Unidas. A responsabilidade civil pode ser responsabilidade dos governos e
fortalecida através do Tribunal Internacional operadores de projetos para liberação de
de Crimes, ou através dos tribunais civis, programas sociais e de mitigação dos
usando mecanismos semelhantes aos do impactos de projetos, no caso dos
Alien Tort Claims Act [Estatuto de Dano ao oleodutos Chade-Camarões e Baku-Tblisi-
Estrangeiro], nos Estados Unidos. Embora Ceyhan. 9
códigos voluntários de conduta, relativos O preço dos desacertos de investimentos
aos direitos humanos e corrupção - do setor privado tem alcançado valores
semelhantes aos da Global Compact das nunca vistos. Corrupção, protecionismo e
Nações Unidos – sejam pontos de partida enriquecimento ilícito estão desestabilizando
preciosos, um grau de imposição, baseado países e causando sofrimento humano
em padrões mínimos concordado injustificado. Mas se a ética, legislação e
internacionalmente, é vital. 8 incentivos apoiarem a mudança, a empresa
Atores do setor privado podem também responsável pode se tornar uma forte
formar parcerias valiosas com governos, liderança para a paz.
agências de desenvolvimento e organizações - Jason Switzer, International Institute
for Sustainable Development

114
Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

CAPÍTULO 6

Mudando a Economia do
Petróleo
Thomas Prugh, Christopher Flavin,
e Janet L. Sawin

O petróleo se tornou tão crucial para a ordem civil, direitos humanos e democracia
civilização moderna que a linguagem se esforça em muitas regiões. Na terceira, o petróleo
para transmitir sua importância; as metáforas ameaça a estabilidade climática, porque seu uso,
comuns para seu papel – espinha dorsal, que está acelerando, é responsável por uma
sangue vital, preciosidade – parecem forçadas grande parcela das emissões globais de gás de
e inadequadas. O petróleo satura praticamente estufa e porque seu domínio completo do
cada aspecto da vida moderna e o bem-estar mercado de combustível de transporte o torna
de cada indivíduo, comunidade e nação do difícil de ser substituído. Em suma, o ponto
planeta está ligado à nossa cultura energética que fez com que o petróleo outrora tenha nos
baseada no petróleo. Todavia, mesmo com o ajudado a garantir a segurança humana, hoje,
petróleo se tornando indispensável, seu uso nos tornou mais vulneráveis.
contínuo já começa a impor custos e riscos
inaceitáveis. Uma Mercadoria Estratégica
Os custos e riscos do uso do petróleo
podem ser reunidos em três categorias amplas. Para entender como o petróleo deixou de
Na primeira, o petróleo ameaça a segurança ser vantagem para se tornar um ônus, temos
econômica global, porque é um recurso finito, que começar com seu lugar na vida moderna.
para o qual não foi desenvolvido um sucessor Consideremos um cidadão típico, morando
efetivo, e porque o fosso entre oferta e procura numa cidade ou subúrbio do mundo
parece estar crescendo, tornando o mundo industrializado – chamemo-lo de Sr. Lee –
vulnerável a graves choques econômicos. Na numa atividade rotineira de uma manhã de
segunda, o valor do petróleo como uma um sábado qualquer. Ele desperta ao som do
mercadoria solapa a segurança civil, ao rádio-relógio, toma um chuveiro, coloca suas
comprometer os esforços de conquista de paz, lentes de contato, veste seu moleton e calça

115
Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

seu tênis. Na cozinha, Sr. Lee toma um anti- segurança, alto-falantes, pneus, painel de
histamínico contra um resfriado e um prato de instrumentos, tinta, anticongelante), guarda-
cereal, escova seus dentes, coloca um agasalho chuvas, CDs, raquetes e bolas de tênis (e as
de nylon e sai na garoa da manhã para as latas), cartões de crédito, esferográficas,
compras. Carro ou trem? Hoje prefere o carro. câmeras, filmes, celulares e inúmeros
Primeiramente, ele pára na sua loja de música cosméticos. O folhado de Sr. Lee é um ator-
favorita, onde estaciona, abre seu guarda- substituto para o papel imenso que o petróleo
chuva e corre para a loja. Lá dentro, olha um desempenha na produção agrícola – desde a
pouco e escolhe um par de CDs, pagando fabricação e alimentação das máquinas
com cartão de crédito. Depois, segue pela rua agrícolas ao seu uso como insumo fertilizante
para uma loja esportiva – parando no caminho e no processamento, embalagem e transporte.
para comer um folhado na padaria local –, Também há as mobílias e os carpetes da
onde compra uma nova raquete de tênis e uma residência de Sr. Lee, o telhado sobre sua cabe-
lata de bolas para o aniversário da Sra. Lee. ça e as ruas e estradas sobre as quais dirige –
No caminho de casa, Sr. Lee pára numa loja literalmente milhares de itens. Em muitos
fotográfica para comprar uma nova câmera casos, não há substitutos do petróleo para a
digital, também para a esposa, e um cassete fabricação desses itens.1
para a câmera de vídeo. Chama a esposa pelo Claramente, o petróleo é importante como
celular para saber se precisa de algo da matéria-prima; nos Estados Unidos, por
farmácia; ela lhe pede loção para as mãos e exemplo, seu uso como matéria-prima
seu batom favorito. representa aproximadamente um quinto do
Com pequenas modificações, esta vinheta consumo. Porém, o petróleo é ainda mais
pode se aplicar à vida de centenas de milhões importante como fonte energética. A energia
de pessoas em Cingapura, Berlim, Nova York assumiu uma presença gigantesca na economia
ou qualquer outro lugar no mundo mundial e nas vidas de bilhões de pessoas.
industrializado. Imagine, porém, como o Poucos entendem quão importante ela é – ou
quadro mudaria se um elemento – o petróleo que a grande abundância de energia é o que
define a vida nas nações industrializadas e a
– fosse apagado da tela.
distingue das formas tradicionais. Estas formas
Para início de conversa, tanto carros quanto
foram marcadas pela sujeição a um pingo de
subúrbios espraiados são criações do petróleo
energia solar, força física essencialmente
barato e seriam muito menos comuns. Mas,
humana ou animal alimentada por vegetais. As
mesmo com uma granulagem mais fina, nossa
pessoas faziam pouco uso de carvão ou
estória mudaria radicalmente. Os itens
petróleo antes da Revolução Industrial, mas
seguintes que são mencionados ou estão
esta era transformou literalmente a economia
implícitos ou são, pelo menos em parte, feitos
energética mundial. O padrão geral pode ser
com petróleo: rádios, cortinas de chuveiros,
visto na história da energia nos Estados
xampu, lentes de contato, escovas e pastas de
Unidos. (Ver Figura 6-1.)2
dente, medicamentos e cápsulas de pílulas,
tecidos, sapatos, automóveis (tapetes e A grande abundância de energia é o que
estofamento, isolamento, correias de venti- define a vida nas nações industrializadas
ladores, caixas de baterias, vidros e cintos de e a distingue das formas tradicionais.

116
Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

Embora a madeira tenha sido a principal natural –, rapidamente, predominaram nos


fonte de energia não-musculosa, através da era orçamentos energéticos nas nações com
pré-moderna (e continua assim para bilhões pronto acesso a eles. Tanto o consumo per
de pessoas no mundo em desenvolvimento), capita quanto o total dispararam, particu-
logo que os combustíveis fósseis se tornaram larmente, após a introdução de tecnologias
amplamente disponíveis, no final do século como automóveis e usinas geradoras que
XIX – primeiro carvão, depois petróleo e gás foram adaptadas para as vantagens dos novos
combustíveis.

Figura 6-1. Consumo de Energia nos Estados Unidos, 1635-2000

Hoje, o consumo global da energia útil por Quadro 6-1.) O valor e disponibilidade do
pessoa é cerca de 13 vezes maior do que na petróleo como fonte de combustível de
época pré-industrial – embora a população transporte significa que o petróleo representa
total tenha decuplicado desde 1700. (O quase todo consumo energético do setor. A
consumo per capita é, naturalmente, muito combustão do petróleo também é responsável
maior do que a média global nas nações por 42% de todas as emissões de dióxido de
industrializadas e muito menor nos países em carbono (CO 2), o principal gás de estufa
desenvolvimento.) O petróleo – de fácil produzido pelo homem.3
extração, flexível e de densidade energética – Nesta “cultura de consumo de energia,”
é a fonte de energia mais valorizada do mundo. singular na história da humanidade, a saúde,
É a maior fonte de energia mundial, bem-estar, prosperidade e perspectivas de
responsável por aproximadamente 37% da bilhões de pessoas – sua segurança e a das
produção global de energia. E mantém uma suas nações – estão diretamente influenciadas
posição dominante na economia mundial. (Ver pelo preço e disponibilidade do petróleo. O

117
Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

petróleo tornou-se a mercadoria estratégica


QUADRO 6-1. ALGUNS INDICADORES DA
mais importante de todos os tempos. Numa POSIÇÃO CENTRAL DO PETRÓLEO NA
economia globalizada, aglutina todas as ECONOMIA
economias e povos mundiais numa matriz Duas entre as 10 maiores corporações nos Estados
compartilhada. Esta matriz, porém, está sob Unidos em termos de vendas (ExxonMobil e
Chevron Texaco) e 3 das 20 maiores (as duas
crescente tensão. A servidão do mundo ao
primeiras e mais ConocoPhillips) são empresas
petróleo cria ameaças que embasam petrolíferas. As 10 maiores empresas petrolíferas
argumentos fortes para o fim do atual regime dos Estados Unidos atingiram receitas de quase
US$ 430 bilhões, em 2002. Em 1999, 6 das 10
energético.4 maiores corporações em todo o mundo (e 9 das
20 maiores) eram empresas petrolíferas ou colegas
O Petróleo e a Segurança afins – empresas automobilísticas.
As empresas petrolíferas são grandes e
Econômica Global lucrativas, devido à forte demanda global de
petróleo. A maior parte do petróleo é utilizada em
transportes e a maior categoria de veículo é o
A dependência do petróleo significa automóvel (incluindo, pelo menos nos Estados
vulnerabilidade econômica. Picos do preço do Unidos, caminhões leves e veículos utilitários
esportivos). A frota mundial de automóveis cresceu
petróleo podem provocar tanto inflação de 53 milhões, em 1950, para 539 milhões, em
quanto recessão, com impactos efetivos sobre 2003. A produção igualmente disparou de 8
rendas pessoais e emprego. Nos Estados milhões, em 1950, para mais de 41 milhões, em
2003. Este tendência deverá continuar, à medida
Unidos, altamente dependentes do petróleo, que os países em desenvolvimento se motorizam:
os aumentos de preço precederam 9 das 10 na China, por exemplo, foram vendidos mais de 2
recessões, desde a II Guerra Mundial.5 milhões de veículos, em 2003 (80% a mais do que
em 2002), e a frota está projetada a totalizar 28
Os principais atores no palco petrolífero – milhões, até 2010.
nações importadoras e exportadoras – Embora as viagens aéreas representem uma
parcela bem menor do consumo total de petróleo,
mantêm o mesmo tipo de relacionamento que elas também aumentaram dramaticamente,
viciados e traficantes: nenhum pode facilmente especialmente após a introdução dos jatos
prescindir do outro. Este tema de vício é comerciais, no final dos anos 50. O volume de
viagens aumentou mais de 100 vezes, desde 1950,
familiar, porém não é só um conceito. Em de 28 bilhões para 2,9 bilhões de quilômetros/
estudos de dependência química, a definição passageiros em 2002.
clássica de vício tem três aspectos: tolerância, ___________________________________________________________
fonte: Vide nota final 3.
a tendência de usar mais de uma substância
para atingir o efeito desejado; abstinência,
experiência de efeitos desagradáveis quando países o petróleo fornece praticamente todo
o uso é interrompido; e uso contínuo de uma o combustível dos transportes. O consumo
substância, apesar das conseqüências adversas. global em geral subiu ao longo do tempo –
Todos os três são visíveis no relacionamento exceto quando picos de preço provocam
do mundo moderno com o petróleo. Ele surtos de “abstinência” econômica –, apesar
representa 36% do orçamento energético da do aumento cada vez mais perturbante de
França, 39% dos Estados Unidos, 49% do poluição, emissões de gás de estufa e outros
Japão, 51% da Tailândia e 77% do Equador. problemas.6
Mesmo estes índices brutos não dão a medida Embora os países industrializados ainda
exata da dependência, uma vez que em muitos utilizem a maior parte do petróleo mundial,

118
Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

as nações em desenvolvimento são, em média, 270.000 mensais. James Woolsey, Ex-diretor


mais dependentes do petróleo, como parcela da CIA (Agência Central de Inteligência dos
do uso total de energia (excluindo biomassa), Estados Unidos), observa que, nos anos 90,
e utilizam muito mais petróleo em proporção o “Oriente Médio Muçulmano”, com uma
ao porte de suas economias. Muitos países em população de 260 milhões, tinha menos
desenvolvimento importam praticamente exportações não-petrolíferas do que a
todo seu petróleo, estando assim mais Finlândia, que tem 5 milhões de pessoas.8
vulneráveis a choques de preço do que muitas O mundo foi relembrado de forma aguda
nações industrializadas. A Agência Internacional de sua dependência do petróleo, em 2004,
de Energia (IEA, na sigla em inglês) estimou quando duas décadas de calma relativa
que, se o aumento de preço de US$ 20 por terminaram com um aumento brutal de
barril em 2004 fosse sustentado, reduziria o preços, de cerca de US$ 33 por barril, no início
crescimento econômico em 2006 em 1,0% do ano, para mais de US$ 50, em outubro, –
nos Estados Unidos e 1,6% na Europa, porém, o maior preço, ajustado pela inflação, desde
3,2% na Índia e 5,1% nas nações mais meados dos anos 80 (ver Figura 6-2). O
endividadas, principalmente na África. Esses aumento enfureceu motoristas, sacudiu as
aumentos de preço se traduzem diretamente bolsas internacionais e colocou em risco uma
em custos humanos nos países pobres, uma incipiente recuperação econômica global.
vez que o aumento no custo dos transportes Vários fatores contribuíram para o salto dos
de alimentos pode afetar as dietas de preços, inclusive sabotagem de instalações no
populações urbanas pobres e preços mais altos Iraque e Arábia Saudita, inquietação política
de querosene podem significar a falta de nos campos petrolíferos da Nigéria e danos
combustível de cozinha.7 causados à infra-estrutura petrolífera por
Nações exportadoras de petróleo, a sua furacões no Golfo do México. Mas uma força
maneira, são igualmente dependentes. Muitas mais fundamental também agia: oferta e
dependem em alto grau de um fluxo contínuo procura.9
de receita petrolífera por
não terem utilizado
receitas anteriores das
exportações para diver-
sificar suas economias.
Em alguns casos, grande
parte da receita do
petróleo foi desviada para
enriquecer elites e pagar
por incrementos militares
sofisticados. Na Arábia
Saudita, a dinastia Sa’ud
subsidia milhares de
“príncipes” com estipên-
dios reais de até US$ Figura 6-2. Preço Mundial do Petróleo, 1990-2004

119
Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

O consumo do petróleo acelerou no final e a OPEP pôde manter uma capacidade extra-
da recessão de 2001 a 02, aumentando 1,5 substancial, principalmente no Golfo Pérsico
milhão de barris por dia, em 2003, e outros e especialmente na Arábia Saudita. Mas o
2,3 milhões de barris por dia, em 2004, crescimento da produção fora do Golfo
atingindo um novo recorde de mais de 82 Pérsico desacelerou substancialmente nos
milhões de barris por dia, em outubro de últimos anos. Parte deste recuo foi
2004. O consumo subiu em dezenas de países compensado com uma maior produção na
em desenvolvimento e industrializados. Só os Rússia; o resto veio da Arábia Saudita e outros
Estados Unidos contribuíram com um quarto países do Golfo. Hoje, praticamente toda a
do aumento, enquanto o consumo na China capacidade extra desapareceu, deixando o
aumentou ainda mais rapidamente – 5,2 mercado sensível a tudo, desde previsões
milhões de barris por dia, em 2002, para cerca meteorológicas no Caribe a uma greve na
de 6,6 milhões, em 2004, com a maior parte Nigéria.12
da demanda sendo atendida por aumento das Será que este desequilíbrio na oferta e
importações. (Ver Figura 6-3.)10 procura representa um desafio de curto prazo,
Esses aumentos pós-recessão não são ou algo mais fundamental? A visão
incomuns. O que foi incomum foi que os convencional, compartilhada por todos, desde
produtores não conseguiram atender à a U.S. Geological Survey à IEA, é que ainda há
intensificação da demanda. Quando os preços muito petróleo para ser produzido e que
atingiram níveis bem acima das metas, no preços ligeiramente mais altos abrirão as
início de 2004, a Organização dos Países comportas. Eles atribuem os preços mais altos
Exportadores de Petróleo (OPEP) elevou as ao aumento da demanda e à falta de
cotas de produção e assegurou repetidamente investimentos por parte das empresas
ao mundo que estava fazendo tudo para petrolíferas, mas acreditam que o mercado
aumentar a produção. Nenhuma das duas se corrigirá em breve. A maioria dos analistas
ações conseguiu impedir o aumento dos acha que as reservas oficiais de petróleo (mais
preços.11 de um trilhão de barris) permitirão o aumento
Desde meados dos anos 80 até 2003, tem da produção durante décadas, incrementada
havido capacidade adicional de produção por novas tecnologias que permitirão o
suficiente para permitir aos países da OPEP petróleo ser extraído de locais inacessíveis e
manter os preços dentro da meta de US$ 22 de folhelho betuminoso e areias betuminosas.
– 28 por barril, através do aumento da Essas premissas levam muitos especialistas
produção, quando necessário. Na realidade, o governamentais a prever que a produção
principal problema da OPEP durante o mundial de petróleo continuará a subir. O
período foi evitar que os preços caíssem IEA, por exemplo, projeta que a produção
demais, o que ocorreu em 1998, quando global atingirá 121 milhões de barris/dia, até
chegaram, por pouco tempo, a US$ 12 por 2030.13
barril. Durante a maior parte dos anos 80 e Estas projeções são pura fantasia, na
90, o aumento da produção fora do Golfo opinião de um número crescente de analistas
Pérsico, como na Noruega, Nigéria e Brasil, dissidentes, que acreditam que o aumento
foi suficiente para atender à demanda crescente recente de preços já é um sinal de que os

120
Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

eficiência, ela na realidade


acelera o ritmo em que um
deter minado poço será
exaurido. A produção
global deverá inevita-
velmente começar a cair –
em 2007, confor me o
último modelo de
Campbell e colegas, ou um
pouco mais cedo ou mais
tarde, de acordo com
outras previsões.15
Figura 6-3. Consumo e Produção de Petróleo na China, O modelo padrão para
1973-2004 esses analistas é os Estados
produtores simplesmente não estão Unidos, onde foi descoberto o primeiro
conseguindo achar petróleo suficiente para grande campo petrolífero do mundo, em
acompanhar o crescimento da demanda. Spindletop, Texas, em 1901. A produção dos
Liderados pelo ex-geólogo da Amoco, Colin Estados Unidos atingiu seu pico em 1970,
Campbell e outros com afiliações desde a U.S. caindo desde então, tendo desacelerado sua
Geological Survey à Companhia Nacional de queda apenas temporariamente com os preços
Petróleo do Irã, esses geólogos analisaram recordes do final dos anos 70 e início dos anos
cuidadosamente as descobertas ao longo do 80. A produção continental dos Estados
último meio-século e concluíram que, mesmo Unidos caiu pela metade – de 9,4 milhões de
com aumento da exploração e avanços barris/dia, em 1970, para 4,7 milhões, em
tecnológicos, o petróleo está sendo descoberto 2004. A produção no Alaska atingiu seu pico
em quantidades cada vez menores e em regiões de 2 milhões de barris/dia, em 1988, estando
cada vez mais remotas.14 hoje a menos de 1 milhão de barris/dia (ver
Realmente, Campbell e seus colegas Figura 6-4). Campbell e seus aliados assinalam
apontam para dados que revelam que as que as descobertas de petróleo nos Estados
descobertas mundiais atingiram seu pico no Unidos atingiram o pico nos anos 30, quatro
início dos anos 60, tendo caído a cada década décadas antes da virada da produção, e que o
subseqüente, com as descobertas anuais hoje a mundo hoje está passando o 40 aniversário
o

menos de um quinto do seu nível de pico. A do pico global das descobertas de petróleo.
16

produção tem superado as descobertas já há Muitos outros países estão seguindo o


três décadas, argumentam – e o fosso continua mesmo caminho. A produção estabilizou ou
a aumentar. Embora reconheçam o papel que caiu em 33 dos 48 maiores produtores,
a melhoria tecnológica desempenhou no incluindo 6 dos 11 membros da OPEP. A
aumento da produção, os pessimistas produção já está caindo no Reino Unido e na
acreditam que ela simplesmente permite que Indonésia, por exemplo, e não está mais
um pouco mais de petróleo seja extraído de aumentando significativamente na Noruega,
um determinado poço, e, ao aumentar a México ou Venezuela. Ademais, as visões

121
Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

há petróleo suficiente para


sustentar uma produção
crescente. O Diretor Sênior
da PFC, Michael Rogers,
acredita que as empresas de
petróleo não estão aumen-
tando seus orçamentos de
exploração, mesmo aos
preços altos de hoje, porque
os campos ficaram tão
pequenos que não valem o
esforço.18
Ninguém pode prever a
Figura 6-4. Produção de Petróleo nos Estados Unidos,
1954-2003 data exata quando a
produção mundial atingirá
cornucopianas dos otimistas foram abaladas, seu pico, simplesmente porque há incertezas
em março de 2004, quando a Royal Dutch demais: taxas de crescimento da demanda,
Shell, segunda maior empresa privada de movimentação dos preços, desenvolvimentos
petróleo do mundo, admitiu que, durante anos, tecnológicos e a estabilidade política dos
havia inflado artificialmente suas estimativas países produtores. Estes fatores sempre
das reservas. Isto fomentou mais ceticismo complicaram as projeções, mas hoje estão
ainda sobre os números robustos das reservas acompanhados de uma incerteza adicional
do setor. Outro índice de limitações referente ao estado real das reservas no
emergentes é o aumento recente dos preços Golfo Pérsico, particularmente na Arábia
futuros do petróleo; por exemplo, o contrato Saudita.
BP Royalty Trust para 2020 quase dobrou de Matthew Simmons, banqueiro de
valor, de US$ 49 por barril, em maio de 2003, investimentos da indústria petrolífera, de
para mais de US$ 93, em agosto de 2004.17 Houston, analisou cuidadosamente trabalhos
As conjecturas anteriores sobre picos de técnicos publicados por especialistas da
preço foram prematuras. Mas, alguns dos empresa nacional de petróleo da Arábia
principais analistas acham que os pessimistas Saudita e concluiu que seus alardeados campos
podem estar certos agora. A PFC Energy, uma de classe internacional estão em dificuldades.
empresa especializada em previsões de As gigantescas cifras oficiais das reservas
petróleo, sediada em Washington e respeitada sauditas (alegadamente 40% do total mundial)
internacionalmente, divulgou um estudo, em foram elevadas subitamente durante os anos
setembro de 2004, estimando que a produção 80 – uma medida considerada pelo setor
mundial de petróleo atingiria seu pico em como um meio de aumentar a participação
torno de 2015, não mais do que 20% acima saudita nas cotas de produção da OPEP.
dos níveis atuais. Com base numa análise país Simmons constatou que, mesmo hoje, apenas
a país de tendências de reservas e produção, seis campos, todos com mais de 30 anos,
o novo estudo conclui que simplesmente não representam quase toda a produção do país.

122
Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

Os documentos sugerem que os altos níveis muito mais tempo, entretanto, esta realidade
de produção estão sendo mantidos pelo surge justamente quando China e Índia – com
bombeamento de grandes volumes de água uma população total de 2,5 bilhões de
salgada nos campos. “Eles estão efetivamente pessoas – e outros países entram num estágio
varrendo os reservatórios, até que o petróleo petrolífero intensivo de desenvolvimento
de fácil recuperação tenha acabado”, diz econômico, mexendo-se para reivindicar seus
Simmons. “Não há um 2º Ato.” Ele acredita direitos sobre as reservas mundiais. Com a
que longe de dobrar, como presume a IEA, a intensificação da competição pelo petróleo,
produção de petróleo da Arábia Saudita o pico de produção, quando ocorrer,
poderá começar a cair dentro de uma década.19 certamente provocará um período de alta
Assim sendo, o futuro poderá ser ainda mais disparada de preços. Os efeitos conjuntos
caótico do que os geólogos mais pessimistas sobre a economia global – transportes,
prevêem. Os sauditas rejeitam veementemente agricultura e indústria – deverão ser graves.
essas previsões. Mas, mesmo os otimistas Quão graves, dependerá de muitas coisas,
concordam que o atendimento à demanda mas especialmente da vontade política de
crescente contínua implicará um aumento governos de restringir o consumo e encontrar
substancial da dependência de fornecimento caminhos fora do petróleo. Essas medidas
do Oriente Médio – a região mais instável do precisão ser estudadas e implantadas dentro
mundo. Serão necessários dezenas de bilhões de uma geração, provavelmente antes. Se
de dólares de investimentos externos para esperar mos até então para agir, será
aumentar a produção do Golfo Pérsico, mas demasiadamente tarde.
estes investimentos só virão quando as
empresas petrolíferas se convencerem de que O Petróleo e a Segurança
a região está suficientemente estável. A falta Civil
de segurança é a razão pela qual, em 2004, a
produção iraquiana ficou bem aquém, até
A longa história do petróleo é uma trajetória
mesmo dos níveis restritos dos anos finais
de competição, corrupção, repressão política,
de Saddam Hussein, contrariamente às
manobras para acesso e conflito aberto. Na
previsões do Pentágono de que a produção
escala global de desavenças de grandes
subiria no ano após Saddam ter sido
potências, esta história começou em 1912,
deposto.20
quando a Marinha Real Britânica começou a
A produção estabilizou ou caiu em 33 mudar seus navios, do carvão galês para o
dos 48 maiores produtores, incluindo 6 petróleo, em busca de maior velocidade e
alcance. Sem fontes domésticas de petróleo, a
dos 11 membros da OPEP.
Grã-Bretanha enviou sua frota para assegurar
suprimento confiável, dando início assim a um
Entre as incertezas, parece provável que a
envolvimento profundo na política do Oriente
economia energética mundial entrou num
Médio, que culminou com a crise de Suez, em
período de turbulência prolongada. O ritmo
1956, quando os Estados Unidos finalmente
de crescimento da demanda de petróleo da
desalojaram o Reino Unido como o poder
última década não poderá ser atendida por
dominante no Oriente Médio.21

123
Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

Os Estados Unidos consomem um quarto lançaram “a pedra angular da [sua] máquina


daprodução global de petróleo e o Golfo industrial.”23
Pérsico ainda fornece um quinto das No final da guerra, os campos de petróleo
importações do país. dos Estados Unidos ainda supriam cerca de
dois terços do petróleo mundial. Mas, uma
A I Guerra Mundial deu uma indicação do explosão do crescimento econômico pós-
valor estratégico do petróleo – uma guerra disparou a demanda. Os Estados
autoridade francesa o denominou de “sangue Unidos se tornaram importadores líquidos em
da vitória” –, quando se tornou vital para as 1948 e, desde então, ficaram cada vez mais
belonaves, fábricas de defesa e novas armas, dependentes de importações – como também
como tanques e aviões de combate. Durante quase todas nações industrializadas. As
a II Guerra Mundial, as economias enormes reservas da Arábia Saudita e outras
industrializadas e as forças armadas nações do Golfo Pérsico se tornaram mais
mecanizadas de todos os principais vitais do que nunca, devido, em parte, ao fato
combatentes necessitavam de acesso seguro de sua exploração permitir que os recursos
ao petróleo para combustível e lubrificantes, petrolíferos dos Estados Unidos fossem
porém apenas os Estados Unidos e União preservados. O resultado, à medida que os
Soviética gozavam de vastas reservas Estados Unidos exerciam sua influência
domésticas. A ausência destas reser vas crescente na região, foi uma rede de relações
ocasionou a invasão japonesa do sudeste comerciais ligada aos Estados Unidos, que
asiático e a invasão alemã da União Soviética, permitiu a extração e exportação eficientes de
cujos fracassos conseqüentes contribuíram para petróleo, através da Arabian American Oil
a derrocada das potências do Eixo.22 Company (mais conhecida como Aramco) e
Os britânicos foram instrumentais na criação outras empresas. A produção da Arábia
do Iraque, com olho no controle do fluxo de Saudita e nações circunvizinhas disparou,
petróleo da região, tendo empresas petrolíferas enriquecendo a família real e seus aliados.24
dos Estados Unidos se unido aos britânicos Ativos petrolíferos dos Estados Unidos e
na exploração de petróleo no Oriente Médio,
de outros países ocidentais foram
na década de 1920. Mas a II Guerra Mundial
expropriados nos anos 60 e 70, porém a
assinalou uma nova fase no envolvimento
dependência saudita de engenheiros e gerentes
profundo dos Estados Unidos na região,
americanos e europeus continuou. A receita
quando a importância geológica das reservas
do petróleo permitiu que os sauditas
petrolíferas no Golfo Pérsico se tornou mais
adquirissem um grande volume de
clara para os Estados Unidos, em torno de
equipamentos militares do Ocidente, desde
1940. O Presidente Franklin Roosevelt e o Rei
botas até jatos de combate e sistemas de radar.
da Arábia Saudita Ibn Sa’ud reuniram-se a
E o governo dos Estados Unidos, ansioso
bordo de um navio de guerra americano, no
para proteger o petróleo da região da União
início de 1945, para negociar o começo de
Soviética, Irã e qualquer outro provocador –
um relacionamento oficial que perdura até
hoje. Os sauditas conquistaram um poderoso e melhorar seu balanço de pagamentos –
patrono capaz de protegê-los de seus muitos estava ávido para vender.
inimigos regionais e os Estados Unidos Todavia, o petróleo foi e continua sendo

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importante demais para ser deixado ao sabor “Doutrina Carter” foi efetivamente invocada
do mercado. Sempre provocou uma em 1991, quando o exército americano
abordagem realpolitik para as relações expulsou o Iraque dos campos de petróleo
internacionais: medidas duras e até mesmo do Kuwait, ocupado alguns meses antes.26
impiedosas para assegurar o acesso ao A Doutrina Carter ainda faz parte da
petróleo. Já em 1946, o economista americano política americana. Os riscos são maiores do
Herbert Féis sustentava que “os interesses que nunca: os Estados Unidos consomem um
americanos precisam deter controle físico quarto da produção global de petróleo e,
efetivo, ou pelo menos acesso assegurado, de embora tenha diversificado suas fontes de
uma fonte de suprimento adequada e bem suprimento nos últimos anos, o Golfo Pérsico
localizada.” Esta linguagem direta, sem ainda fornece um quinto das importações.
rodeios, significa uma disposição de utilizar Ademais, aliados importantes, incluindo Japão
força militar – uma disposição originalmente e muitas nações da Europa Ocidental,
expressa nos anos 50, quando os presidentes dependem muito do petróleo da região e a
Harr y Truman e Dwight Eisenhower produção do Golfo tem ajudado a estabilizar
asseguraram explicitamente ao Rei Ibn Sa’ud os preços internacionais em níveis
o compromisso dos Estados Unidos de agir relativamente baixos, ao longo dos anos, para
contra qualquer ameaça à soberania saudita.25 o bem econômico dos países importadores.27
Durante pelo menos 30 anos, os Estados Qualquer perda de produção –
Unidos têm planos contingenciais militares especialmente a perda da produção da Arábia
para apoderar-se de poços estratégicos no Saudita – traria conseqüências devastadoras
Oriente Médio, caso necessário, para assegurar para toda economia global. Neste contexto,
o escoamento do petróleo – planos as guerras recentes na região do Golfo podem
estimulados pelo embargo árabe do petróleo ser consideradas como mais exercícios de
de 1973 a 74 quando, ironicamente, foi a aplicação da Doutrina Carter. Em abril de
primeira vez em que o próprio petróleo foi 2001, um relatório de política energética
utilizado como ar ma contra interesses enviado ao Vice-presidente dos Estados
ocidentais. Após o embargo ter sido levantado, Unidos, elaborado por um “think tank”
o Secretário de Estado Henry Kissinger ligado ao Partido Republicano, observou que,
descreveu, para a revista Business Week, as numa época de redução da oferta de petróleo
circunstâncias adequadas para o uso de força e declínio da capacidade de produção
militar em defesa do escoamento do petróleo. adicional, o Iraque havia se tornado o “fiel da
De forma mais aberta ainda, o Presidente balança” e uma influência desestabilizadora
Jimmy Carter, em 1980, anunciou em seu sobre o abastecimento. Na medida em que
pronunciamento State of the Union (prestação permitiu o controle sobre as reservas do
anual de contas do presidente ao Congresso e Iraque (10% do total global) e capacidade de
ao povo) que qualquer tentativa de controle produção, a invasão de 2003 objetivou não
do Golfo Pérsico seria considerado “um só evitar que Saddam Hussein pressionasse o
ataque aos interesses vitais dos Estados preço internacional do petróleo, mas também
Unidos,” que seria “repelido por qualquer conquistar este poder para os EUA.28
meio necessário, inclusive força militar.” A Segundo uma estimativa, o custo direto para

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os contribuintes americanos da manutenção Casaquistão, Quirjistão, Paquistão,


de uma presença militar destinada a assegurar Turcomenistão e Uzbequistão – que, ou
o escoamento do petróleo do Oriente Médio, possuem reservas inexploradas importantes
de 1993 até 2003, foi de US$ 49 bilhões anuais. ou cobrem rotas potenciais de oleodutos.
Estes custos – não compensados nos postos Grande parte dessa atividade representa
de abastecimento – não incluem alocações iniciativas dos Estados Unidos, num esforço
adicionais específicas para as duas guerras tripartite com Rússia e China para assegurar
lideradas pelos Estados Unidos no Iraque. E, acesso aos recursos de gás e petróleo da região,
sem dúvida, não incluem os custos humanos uma competição que manterá armas e outro
– soldados mortos e mutilados e a dor das tipo de ajuda fluindo abundantemente para os
famílias – envolvidos em ações militares.29 regimes locais e, sem dúvida, mantendo tensões
As ações do Ocidente para assegurar em alta. De acordo com Human Rights Watch, os
suprimentos confiáveis também se estenderam regimes de todos esses países se destacam por
para outras partes do mundo ricas em abusos significativos de direitos humanos, como
petróleo. Estas medidas incluem não apenas prisões ou assédio a políticos oposicionistas,
grandes gastos militares, como também repressão a jornalistas, corrupção, brutalidade
alianças de conveniência com países e líderes policial, violência e fraude eleitoral e ausência
políticos cujos valores, objetivos e métodos de liberdade religiosa.31
podem ser antidemocráticos, repressivos ou Além de estar associado a manobras das
até mesmo assassinos. Como o atual e maior grandes potências, intervencionismo militar e
poder garantidor de estabilidade política e alianças de conveniência, o petróleo está
disponibilidade de petróleo no Oriente Médio, associado também a uma variedade de outras
os Estados Unidos há muito vêm ajudando ações que solapam a segurança civil. Por
ou se aliando a muitos regimes repressivos, exemplo, o petróleo demonstra vividamente
inclusive Arábia Saudita, Irã e, numa ocasião, a “maldição do recurso natural” – a tendência
Iraque. Laços deste tipo estão perpetuamente de a riqueza de recursos sustentar corrupção
sob revisão, à medida que as circunstâncias e conflito, ao invés de crescimento e
políticas mudam e a busca por fontes mais desenvolvimento. Os efeitos são evidentes em
diversificadas de petróleo encoraja o inúmeros países, inclusive nos Estados Unidos.
desenvolvimento de novos relacionamentos.30 Além da Arábia Saudita e outras nações do
Golfo Pérsico, a maldição do recurso natural
O petróleo demonstra vividamente pode ser sentida em Angola, Camarões,
a tendência da riqueza de recursos Colômbia, Equador, Guiné Equatorial,
sustentar corrupção e conflito, ao invés Indonésia, Nigéria, República Democrática do
de crescimento e desenvolvimento. Congo, Sudão e Venezuela, dentre outros. A
“maldição” é freqüentemente ajudada e
Nos últimos anos, os Estados Unidos encorajada por corporações agindo com o
cultivaram ligações (ajuda civil ou militar, conhecimento (e conluio) de governos
incluindo bases para tropas em algumas nacionais em busca de recursos. As medidas
ocasiões) com um número de países da Ásia adotadas para assegurar acesso e extração
Central –, incluindo Afeganistão, Azerbaijão, restringem direitos de povos indígenas e

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pilham ou até envenenam suas terras recursos para uma rede de instituições de
tradicionais.32 caridade que construíram milhares de
O petróleo e outras riquezas minerais mesquitas e escolas administradas, segundo as
também parecem impedir a implantação e diretrizes do Wahhabism, uma variante
preservação da democracia, uma vez que a fundamentalista do Islã, como também
riqueza per mite aos governos reduzir campos de treinamento paramilitares e
movimentos por democracia com impostos operações de recrutamento terrorista. Com
baixos e gastos altos. E, quando isto não os soviéticos fora do Afeganistão, a presença
funciona, mobilizam forças de segurança para americana crescente na Arábia Saudita e outros
suprimir dissensões. Este ponto é de particular países do Oriente Médio, após a guerra do
importância, pois é evidente que o terrorismo Iraque de 1991, ajudou a provocar os radicais
é uma resposta mais provável à ausência de a cometerem uma série de ataques a interesses
direitos políticos e oportunidades do que a americanos, inclusive às embaixadas do Quênia
pobreza. De uma maneira mais geral, os países e da Tanzânia, ao navio USS Cole e ao World
que dependem de receitas do petróleo tendem Trade Center.34
a ser mais autoritários, mais corruptos, mais A apoio saudita às caridades totalizou cerca
propensos a conflitos e menos desenvolvidos de US$ 70 bilhões, ao longo dos anos. Dada
do que os países de economias diversificadas. a escassez de renda saudita de qualquer outra
Também gastam mais com forças armadas e fonte que não de venda de petróleo, esses
possuem maiores parcelas da população recursos na realidade fazem dos consumidores
atoladas na pobreza. O petróleo, um líquido ocidentais cúmplices de atos de terror
tóxico sob vários aspectos, é uma tamanha direcionados principalmente contra ocidentais.
bênção mista, que até já foi chamado de Desta forma, e de outras já mencionadas –
lágrimas do demônio.33 aventureirismo militar, alianças com regimes
A mais recente ameaça à segurança civil facínoras, conflitos por recursos –, a
relacionada ao petróleo é o terrorismo. O dependência dos países industrializados,
aspecto mais famoso desta história apareceu particularmente os Estados Unidos, do
após os ataques terroristas de 11 de setembro petróleo impõe um pesado ônus de risco
de 2001. A maioria dos seqüestradores dos geopolítico e culpabilidade moral.35
aviões era formada por cidadãos sauditas –
um dos legados irônicos do apoio dos O Petróleo e a Segurança
Estados Unidos e da Arábia Saudita aos
Climática
combatentes muçulmanos radicais que lutaram
e derrotaram os soviéticos no Afeganistão, na
Cinqüenta páginas adentro, num relatório
década de 1980. Este apoio, organizado em
de 2004 da Casa Branca, um leitor diligente
parte pela Agência Central de Inteligência dos
encontrará esta declaração: “A comparação de
Estados Unidos e pela família real saudita,
tendência de índices em obser vações e
criou um quadro de dezenas de milhares de
simulações modelares mostra que as mudanças
radicais muçulmanos, inclusive Osama bin
de temperatura norte-americanas, entre 1950
Laden, do qual a al Qaeda recrutou seus
e 1999, provavelmente não foram devidas
membros. A contribuição saudita incluiu
unicamente a variações climáticas naturais.”

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Com esta frase despretensiosa, as autoridades cenário, maior aquecimento incremental elevará
americanas finalmente se alinharam ao mais ainda o nível do mar e reduzirá as
consenso global sobre mudança climática: que capacidades dos sistemas naturais da Terra, o
a Terra está se aquecendo e que as ações que poderá ameaçar a própria sobrevivência
humanas, principalmente o desmatamento e de pequenas ilhas-nações, desestabilizar a
a queima de combustíveis fósseis (petróleo, economia e o equilíbrio geopolítico global e
carvão e gás natural) são as causas principais. incitar conflitos violentos.38
Apenas o petróleo é responsável por mais de A própria civilização humana foi viabilizada
dois quintos das emissões totais de dióxido apenas porque o clima tem se mantido
de carbono, o principal gás de estufa relativamente estável ao longo dos últimos
produzido pelo homem.36 milhares de anos. Mas, essa estabilidade
O consenso sobre a mudança climática vem climática – incomum em escalas geológicas
aumentando há algum tempo. Já em 1988, os de tempo – está correndo perigo. A
cientistas observaram que o que o homem concentração de CO2 na atmosfera da Terra
vem fazendo com o clima é “uma experiência está hoje maior do que em qualquer época
não-intencional, descontrolada e de extensão nos últimos 400.000 anos e a taxa de
global, cuja conseqüência final só rivalizaria crescimento está acelerando. Em junho de
com uma guerra nuclear global.” Cada 2004, um novo e mais preciso sistema de
relatório sucessivo do Painel Intergo- modelagem supercomputadorizada revelou
vernamental sobre Mudança Climática, o que as temperaturas globais podem aumentar
órgão mais confiável sintetizador da imensa mais rapidamente do que foi projetado
pesquisa neste assunto, vem sustentando a anteriormente.39
influência humana sobre o clima de uma forma À medida que as concentrações de CO2
cada vez mais veemente. A temperatura aumentam e o planeta aquece mais, os efeitos
superficial da Terra está 0,6oC mais alta do provavelmente serão tempestades, enchentes
que um século atrás, e as concentrações de e secas mais graves e freqüentes; ondas de
gás de estufa estão subindo, à medida que as calor prolongadas e mais freqüentes;
disseminação de doenças como malária e
emissões continuam a aumentar. Um número
dengue; e acidificação da água oceânica,
crescente de líderes em todo o mundo hoje
branqueamento de corais e aumento do nível
alerta que a mudança climática é, nas palavras
do mar. Isto estressará ainda mais a capacidade
do Conselheiro Científico do Reino Unido,
de resistência da Terra, que já está no limite,
David King, “o problema mais grave que
segundo algumas estimativas. As ameaças
enfrentamos hoje – mais grave ainda do que
existentes à segurança serão intensificadas, na
a ameaça do terrorismo.”37
proporção em que os impactos da mudança
A mudança climática, seja incremental (o
climática afetem mananciais regionais de água
cenário mais provável) ou súbita, irá
doce, produtividade agrícola, saúde humana
provavelmente provocar secas regionais, fome
e de ecossistemas, infra-estrutura, fluxos
e desastres relacionados com o clima, que
financeiros e economias e padrões de migração.
poderão ceifar milhares ou milhões de vidas, As incertezas quanto à disponibilidade futura
agravar tensões existentes e contribuir para de recursos essenciais acentuarão essas
disputas diplomáticas ou comerciais. No pior ameaças.40

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A pobreza global provavelmente aumen- ondas de migração, à medida que a produ-


tará, de acordo com a alteração do clima, tividade agrícola cair, a água doce se tornar
ameaçando lares e meios de vida através de mais escassa ou o nível do mar subir,
tempestades, estiagens, doenças e outros ameaçando também a estabilidade
estresses. Isto, por sua vez, impedirá o internacional. Historicamente, a migração para
desenvolvimento, aumentará instabilidades áreas urbanas estressou serviços e infra-
nacionais e regionais e intensificará disparidades estrutura limitados, incitando o crime ou
de renda entre países ricos e pobres. Tais movimentos insurgentes, enquanto a migração
impactos, também, levarão a confrontos transfronteiriça freqüentemente causou
militares sobre distribuição da riqueza mundial choques violentos por terras e recursos.43
ou fomentarão o terrorismo ou crime Os estresses já impostos pela mudança
transnacional.41 climática fazem com que seja vital lidar com
Países com grande população, como China as vulnerabilidades atuais. A pobreza precisa
e Índia, poderão se defrontar com problemas ser reduzida através do desenvolvimento
graves causados por secas e enchentes
sustentável, para que as pessoas possam lidar
plurianuais, e o conseqüente aumento de
melhor com as mudanças provocadas pelo
importações de alimentos poderá aumentar
aquecimento global. A energia renovável
dramaticamente os preços em todo o mundo.
precisará desempenhar um papel importante
A redução da oferta de alimentos poderá
neste particular, porque poderá ajudar a aliviar
provocar inquietações internas e aumentar o
a pobreza e reduzir o risco de conflitos pela
uso do alimento como arma por países
exportadores. Padrões alterados de energia não-renovável e recursos hídricos, e
precipitação poderão acentuar as tensões também porque sistemas de energia distribuída
sobre o uso de corpos d’água compartilhados minoram a susceptibilidade a desastres naturais.
e aumentar o potencial de conflito violento Além disso, a gestão ambiental e a conservação
por recursos hídricos. Estas mudanças nos podem reduzir a vulnerabilidade aos impactos
motivos para confronto e no posicionamento da mudança climática, ao criar ecossistemas
de recursos essenciais poderão alterar o mais resilientes.
equilíbrio de poder entre nações, causando É inevitável um maior aquecimento do
instabilidade política global.42 clima. Porém, quanto mais extremo for, mais
Se os conflitos resultarão ou não da grave serão as conseqüências – portanto, é
mudança climática vai depender, em grande crucial adotar todas as medidas possíveis para
parte, da vulnerabilidade da sociedade ao reverter o aumento das emissões. Isto significa
estresse e da sua capacidade de mitigação ou mudar, o mais rápido possível, para uma
de adaptação a impactos. A violência economia energética global pós-carbono –
relacionada ao meio ambiente tende a ocorrer uma economia que não libere mais carbono
em nações fracas ou não-democráticas e tende na atmosfera.
a ser interna e não externa. Assim, é mais A mudança climática já ceifa mais vidas
provável que os conflitos tomem a forma de anualmente do que o terrorismo: um estudo
insurgências domésticas ou guerras civis. da Organização Mundial de Saúde e da Escola
Todavia, a mudança climática poderá causar de Higiene e Medicina Tropical, de Londres,

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MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

estimou que, talvez, 160.000 pessoas morrem desigualmente distribuída. E a mudança


a cada ano, devido aos efeitos secundários da climática impõe tensões tanto mais graves
mudança climática, como a malária e a má- quanto demorarmos a restringir as emissões
nutrição. Como o petróleo contribui de carbono do uso do petróleo e outros
sobremaneira para este custo, o corte da combustíveis fósseis.
ligação com o petróleo incrementará a
segurança global.44 A mudança climática poderá causar
ondas de migrações, à medida que a
A Encruzilhada produtividade agrícola cair, a água
doce se tornar mais escassa ou o nível
Para as seguranças econômica global, do mar subir.
nacional e pessoal, e para a estabilidade do
sistema climático mundial, será necessário Quanto ao tipo de transição que fizermos,
acabar com a nossa dependência do petróleo. isto dependerá muito das escolhas das pessoas
Mas, será possível? A resposta direta é sim – e, especialmente, dos governos. O papel dos
com tempo. As questões-chave são: quanto governos é de suma importância; as principais
tempo temos? Que tipo de transição será? empresas energéticas existentes devem se
A mudança terá que ser o mais rápido envolver na transição; todavia já têm bilhões
possível. As estimativas variam sobre quanto de dólares investidos em ativos que
tempo será razoável: um cenário de 1995 da simplesmente não podem abandonar. Só os
Shell sugeria que fontes de energia renovável governos podem criar as estruturas de
poderiam suprir metade da energia mundial, incentivo para encorajar o investimento
em 2050, enquanto o Instituto do Meio necessário.
Ambiente de Estocolmo argumentava que um Escolhas governamentais ponderadas
esforço conjunto poderia criar um sistema aumentarão as chances de realizar a transição
quase que totalmente dependente de para uma nova era energética que poderá
renováveis, até 2100, mesmo considerando o aliviar algumas das maiores tensões do regime
crescimento constante do uso de energia.45 atual, sem maiores perturbações econômicas
É importante lembrar que a escala de e sociais. Más escolhas – inclusive o “status
tempo é movida por políticas e que, entre os quo” ou simplesmente deixar o barco correr
problemas de segurança relacionados ao – provavelmente nos levarão a uma era onde
petróleo, nada melhora com o tempo; tudo os traumas econômicos, civis e climáticos do
piora. A segurança econômica global está cada regime energético atual serão exacerbados.
vez mais ameaçada pelas tensões crescentes Ambientalistas têm sido críticos da
sobre a oferta de petróleo e a dependência dependência exagerada do petróleo e de
cada vez maior do mundo das reservas do outros combustíveis fósseis há anos, mas há
Oriente Médio. Questões de segurança civil hoje consenso significativo em muitos setores
simplesmente continuarão a deteriorar, quanto à necessidade de reformar a economia
ceifando vidas e minando o desenvolvimento, energética mundial. Está sendo amplamente
enquanto o petróleo permanecer como uma afirmado que uma independência energética
mercadoria imoderadamente valiosa e rígida para os Estados Unidos e outras

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Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

importantes nações importadoras de petróleo de desenvolvimento para facilitar esses


é impossível, enquanto o petróleo continuar esquemas de vida. Entre as concessionárias de
como uma parte substancial da economia eletricidade e gás natural, a gestão de demanda
energética global. Isto pode ser verdade, (também chamada de gestão do lado da
dependendo de como a nova economia procura, ou DSM na sigla em inglês) assume
energética evolua, particularmente no que diz a for ma de programas que tornam o
respeito a estratégias de transportes. Porém, o consumidor mais consciente do seu consumo
provável mix de opções escolhidas como e do desperdício de energia e mostram como
sucessor da economia do petróleo – ambos podem ser reduzidos; de assistência
renováveis, gestão de demanda, eficiência e financeira para aumentar o uso de tecnologias
outras – encorajará flexibilidade, confiabilidade eficientes em termos energéticos, gestão de
e vulnerabilidade reduzida mundialmente, ao carga (incentivos para o uso de energia em
envolver sistemas energéticos menos horários fora de pico); e outras opções. O
centralizados, uso de uma maior variedade de objetivo é obter mais da energia consumida,
tecnologias energéticas e combustíveis e ao invés de simplesmente aumentar o
diversificação de fontes.46 consumo.47
Programas DSM podem economizar um
Investimentos totais mundiais em volume imenso de energia (e dinheiro). Nos
renováveis ultrapassaram US$ 20 bilhões, Estados Unidos, as concessionárias elétricas
em 2003, e o mercado poderá atingir US$ evitaram a construção de quase 30.000
85 bilhões anuais, dentro de poucos anos megawatts de capacidade, em 1996, o ano de
pico desses programas. Em ter mos
econômicos, isto significou que as
Esta transição assinala a proeminência concessionárias não precisaram financiar e
crescente e penetração mercadológica das construir – e os contribuintes pagarem – várias
tecnologias de energia renovável, analisadas usinas elétricas grandes, reduzindo o consumo
resumidamente nesta seção. Um elemento de combustível e poluição. Entretanto, esses
importante, todavia, não é a tecnologia e sim programas foram torpedeados e começaram
uma mudança política para a conservação a perder eficácia, no final dos anos 90, quando
inteligente. Longe de “congelar no escuro,” a a geração de eletricidade nos Estados Unidos
conser vação praticada como gestão de foi desregulada e as concessionárias novamente
demanda envolve uma vasta gama de recompensadas por gerar e vender eletricidade
esquemas sociais e econômicos que reduzem como mercadoria, ao invés de prestarem
ou eliminam a necessidade de energia, sem serviços – um poderoso exemplo de como a
perder os benefícios materiais do consumo política governamental pode determinar o
de energia. Pode ser tão simples quanto morar regime energético.48
perto das lojas e do trabalho, dispensando o Uma abordagem afim é a eficiência
automóvel ou o metrô para compras ou para energética, que envolve a disposição de
trabalhar. tecnologias modernas que utilizam menos
Em nível institucional, leis de zoneamento energia para realizar as mesmas tarefas.
comunitário podem determinar os padrões Lâmpadas fluorescentes compactas, que

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MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

duram mais e produzem luz equivalente com Será que todas as melhorias óbvias de
menor corrente do que as lâmpadas eficiência já foram obtidas? Dificilmente.
incandescentes comuns, são um exemplo Estima-se que a elevação da economia média
familiar. Milhões de residências foram de combustível, em 2000, da frota de veículos
informadas tanto sobre DSM quanto sobre leves dos Estados Unidos, de 1,37 quilômetros
fluorescentes compactas pelos programas das por litro, teria economizado tanto petróleo
concessionárias que baratearam e facilitaram quanto foi importado do Golfo Pérsico
a aquisição das lâmpadas. Outro exemplo é o naquele ano. Quando a eficiência de
avanço nas tecnologias de motores de combustível era uma meta valorizada, no início
automóveis – parte mecânicas (duplo dos anos 80, levou menos de três anos para
comando no cabeçote, três ou mais válvulas atingi-la. Um estudo de 2002, da Academia
por cilindro ao invés de duas, tempo variável Nacional de Ciência, estimou que a eficiência
das válvulas) e parte eletrônicas (computadores da frota dos Estados Unidos poderia ser
sofisticados que controlam o combustível, quase dobrada de uma maneira custo-eficiente
ponto de centelhamento, etc.) – e seu uso mais sem perda de segurança ou desempenho – e
difundido em mais e mais veículos. A marcha este estudo não levou em conta os ganhos de
desses avanços foi determinada por décadas um uso mais amplo de tecnologias híbridas
de preço alto da gasolina na Europa e pelas de gás ou elétricas. Outras tecnologias novas,
crises do petróleo, nos anos 70 e 80, que envolvendo avanços não só em sistemas
despertou os motoristas americanos para o powertrain (otimização de desempenho), mas
valor de uma boa economia de combustível. também na construção de carrocerias e chassis,
Políticas governamentais sob a forma de são muito promissoras.50
padrões de quilometragem de combustível de Quanto a outros setores, melhorias de
frota, ajudaram a manter o avanço – pelo eficiência podem ser a forma mais custo-
menos por um tempo. eficiente de reduzir emissões da carbono
Essas melhorias podem fazer uma imensa comerciais e industriais. Um estudo estimou
diferença no orçamento energético de uma que a maioria dos prédios e fábricas poderiam
nação. Ganhos de eficiência nos transportes e reduzir seu consumo de eletricidade em pelo
outros setores ajudaram a economia dos menos um quarto, com a economia
Estados Unidos a elevar sua produtividade compensando o investimento em menos de
energética global (volume de produção quatro anos. Uma vez que os setores
econômica por unidade de energia consumida) comerciais e industriais consomem grandes
em 64%, entre 1975 e 2000. A produtividade volumes de eletricidade – mais de 60% de
do petróleo melhorou surpreendentes 93%, toda a eletricidade gerada nos Estados Unidos,
embora as políticas governamentais não por exemplo – e a maior parte desta
tenham favorecido esta meta. Quando eletricidade ainda é gerada pela queima de
efetivamente promoveram eficiência, combustíveis fósseis (principalmente carvão),
especialmente no período de 1977 a 85, as a economia potencial de carbono é significativa
importações líquidas de petróleo caíram pela - e a baixo custo.51
metade e as importações do Golfo Pérsico Consumir menos energia e com maior
despencaram 87%.49 eficiência é necessário – mas não suficiente

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MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

– para criar um regime energético solar são as fontes de energia de maior


sustentável. Um mundo que deseje ficar livre crescimento do mundo; investimentos
do carbono deverá também planejar gerar globais totais em renováveis ultrapassaram
sua energia de fontes renováveis, US$ 20 bilhões, em 2003, e o mercado
possivelmente com alguma contribuição poderá atingir US$ 85 bilhões ao ano, dentro
transicional de sistemas de combustíveis de poucos anos. O potencial teórico de energia
fósseis incorporando tecnologia de captura de fontes renováveis é maior do que o
e armazenagem de carbono (ver Quadro consumo global de energia por um fator de
6-2). Felizmente, isto não é mais um sonho 18, mesmo utilizando as tecnologias eólicas,
febril de ambientalistas; a era moderna dos solares, de biomassa e geotérmicas atuais.52
renováveis já chegou. Eletricidade eólica e Os transportes poderão ser o setor mais

QUADRO 6-2. CAPTURA DO CARBONO: DESAFOGO DO COMBUSTÍVEL FÓSSIL OU CORTINA


DE FUMAÇA?
O Diretor-presidente da Shell Transport fez poderiam armazenar 280 anos de emissões globais de
recentemente uma observação surpreendente: carbono às taxas de 1990 e que – pelo menos no
“Ninguém pode estar confortável com a perspectiva Japão – a CAC é tanto prática quanto competitiva,
de se continuar lançando no ar o volume de dióxido em termos de custo com medidas de conservação de
de carbono como estamos fazendo hoje”, declarou energia e energia renovável. Outras estimativas indicam
Lord Oxburgh, “com conseqüências que não que há capacidade de armazenagem subterrânea
podemos realmente prever, mas que provavelmente suficiente para conter várias décadas de CO2, às taxas
não são boas.” Esta declaração, progressista para um atuais de emissão.
executivo de uma empresa petrolífera, seria Entretanto, permanecem dúvidas. A maior é o
indicadora de uma virada para renováveis. custo: cerca de US$ 150 por tonelada de carbono
Talvez – a não ser que o carbono liberado pela com as tecnologias atuais, o que aumentaria o custo da
queima de combustíveis fósseis possa ser agregado e eletricidade em 2,5 a 4 centavos de dólar por kWh. As
introduzido de volta ao solo de onde veio. Esta tecnologias atuais também são adequadas apenas para
opção, chamada de captura e armazenagem de grandes fontes de CO2, como usinas termelétricas a
carbono (CAC), deixaria um papel para os carvão, que são responsáveis por menos de um terço
combustíveis fósseis desempenharem na economia das emissões globais de carbono. São, assim, inúteis
energética do futuro – e retiraria a pressão das para limpar a imensa e crescente frota de veículos que
empresas de carvão, petróleo e gás natural e dos emitem 42% do total global. E o que é mais grave,
países com grandes reservas de combustíveis fósseis, e ninguém sabe por quanto tempo o CO2 injetado ficará
ao mesmo tempo reduziria possivelmente a urgência latente, mesmo imperturbado – quanto mais se for
de conversão para energia renovável. submetido a terremotos ou outros abalos. Até hoje,
A captura do carbono está sendo promovida estudos têm monitorado pontos de injeção apenas por
agressivamente em certos setores: empresas de poucos anos, e mesmo taxas muito baixas de
carvão, particularmente, têm grande interesse no seu vazamento poderiam reliberar CO2 suficiente para
sucesso, uma vez que, com o petróleo em declínio, causar grandes problemas dentro de algumas décadas.
grande parte das emissões futuras de carbono adviria Caso não haja solução definitiva, essas
da queima do carvão. Mas as perspectivas para a preocupações indicam que confiar na CAC para algo
CAC não estão definidas. Já está em uso limitado, por mais que uma contribuição temporária, transicional, de
exemplo, a empresa petrolífera norueguesa Statoil, redução das concentrações atmosférica de carbono,
vem injetando CO2 capturado em aqüíferos off-shore, seria arriscado.
desde 1996, e hoje injeta um milhão de toneladas por Mais pesquisa poderá ajudar a responder algumas
ano para evitar impostos de carbono. O dióxido de dessas questões. O Painel Intergovernamental sobre
carbono também vem sendo reinjetado há tempos Mudança Climática pretende divulgar um importante
em poços de petróleo para incrementar sua relatório sobre a CAC, em 2005.
recuperação. Um estudo japonês conclui que ___________________________________________________________________________________________
reservatórios superficiais adequados, por si só, fonte: Vide nota final 52.

133
Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

desafiador para conversão, uma vez que fechado seria neutro em carbono e poderia
máquinas e infra-estrutura são quase que ser sustentando enquanto o sol brilhar – ou
exclusivamente projetadas para combustíveis por vários bilhões de anos.54
líquidos, extraídos do petróleo, densos em Pessimistas do hidrogênio não contestam a
energia e de fácil manipulação. Combustíveis desejabilidade de uma economia energética de
de biomassa como etanol e biodiesel, hidrogênio, porém acreditam que a transição
entretanto, estão tecnicamente comprovados levará mais tempo do que os otimistas pensam
e podem ser economicamente competitivos e exigirá uma tecnologia-ponte. Uma destas
com a gasolina e o diesel. Estudos indicam tecnologias é a de automóveis e caminhões
que o etanol da biomassa celulósica (resíduos leves híbridos a gasolina e diesel-elétricos.
vegetais) poderá deslocar aproximadamente Células de combustível ainda não estão
de um quarto a um terço da demanda de tecnicamente prontas ou suficientemente
gasolina dos Estados Unidos, a um preço de baratas para aplicação veicular, porém os
matéria-prima de US$ 50 por tonelada. A híbridos podem ser quase tão eficientes quanto
Agência Internacional de Energia, relati- as células de combustível (e duas vezes mais
vamente conservadora, estima que, em termos eficientes do que os motores de combustão
de potencial técnico, o etanol poderá vir a interna), quando avaliadas numa base “poço-
representar a metade ou mais dos combustíveis a-rodas.” Ademais, híbridos estão facilitando
de transportes globais até 2050.53 a “estréia” de veículos a células de combustível,
O objetivo final é substituir a economia ao proporcionar um laboratório para o
energética global do carbono pelo hidrogênio. desenvolvimento de controles eletrônicos
O hidrogênio não é um gás de estufa e sua cruciais e sistemas de gestão de energia.55
queima não libera carbono algum. Quando é Se as tecnologias de energia renovável são
passado por uma célula de combustível, os tão atraentes, por que não obtemos mais
produtos são eletricidade, calor e vapor energia delas? A presença de mercado dos
d’água. Células de combustível de hidrogênio renováveis até hoje é pequena, em termos
são uma tecnologia antiga com a qual as absolutos, apesar do seu extraordinário
pessoas se entusiasmaram alguns anos atrás. crescimento recente. Entretanto, as razões têm
Todavia, parte deste entusiasmo esmoreceu, pouco a ver com tecnologia e mais a ver com
quando surgiram análises mas profundas dos o ambiente normativo e político. A maioria
desafios transicionais. O potencial de longo das sociedades, inclusive os Estados Unidos,
prazo do hidrogênio é grande, porém o há muito está casada com combustíveis não-
hidrogênio é mais um portador de energia do renováveis e instalações geradoras grandes e
que um combustível per se. A capitalização nele centralizadas – usinas nucleares e a combustível
poderá depender de avanços técnicos na fóssil, gigantescas barragens hidrelétricas – e
geração de eletricidade renovável eficiente para as tem sustentado com enormes subsídios ao
extrair hidrogênio da água. (A utilização da longo dos anos.
energia nuclear como fonte de eletricidade, As estimativas desses subsídios variam
apesar das esperanças dos seus proponentes, muito, devido a diferentes premissas e
é muito dispendiosa e apresenta graves definições; os subsídios podem incluir de tudo,
problemas de segurança.) Este sistema de ciclo desde isenções fiscais e créditos de exaustão a

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Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

financiamento de P&D. (E, nos Estados A experiência de vários países –


Unidos, a Lei Price-Anderson limita a especialmente Alemanha e Japão, que em
responsabilidade da indústria nuclear por apenas poucos anos se transformaram em
acidentes catastróficos – uma vantagem líderes mundiais em energia eólica e
incalculável, uma vez que nenhuma usina fotovoltaicos, respectivamente – fornece uma
nuclear poderia ser segurada ou construída diretriz clara para os governos em quatro
sem ela.) Não obstante, as estimativas serem principais categorias políticas, além da
instrutivas: na Europa, subsídios nacionais e reformulação de políticas de subsídios.57
da União Européia para usinas nucleares e de Em primeiro lugar, os governos devem
combustíveis fósseis foram estimados, em assegurar que renováveis tenham acesso efetivo
1997, em quase US$ 15 bilhões anuais. Um aos mercados energéticos. A tática mais eficaz,
relatório de 2004 as estimou em 29 bilhões até hoje, tem sido legislação tarifária, que
de euros (US$ 36 bilhões), em 2001. Dois garante preços mínimos fixos para eletricidade
estudos diferentes de subsídios nos Estados e obrigam as concessionárias a permitirem
Unidos mencionam o total em US$ 5 bilhões acesso a grades. Sistemas de cotas, que exigem
(só para combustíveis fósseis) e US$ 36 bilhões uma participação ou capacidade mínima de
anuais. Apenas uma pequena fração de renováveis, também funcionaram; exemplos
subsídios apoiava renováveis. Imagine-se o incluem padrões de renováveis implantados
avanço que poderia ser alcançado – na em vários estados nos Estados Unidos e cotas
elevação da relativamente baixa eficiência de de etanol no Brasil.
células solares, por exemplo – se de US$ 20 a Em segundo, os investidores e consu-
US$ 30 bilhões anuais fossem direcionados midores, são freqüentemente mal informados
para pesquisas intensivas em renováveis ou em sobre a disponibilidade e o potencial dos
incentivos e rebates à produção para aumentar recursos renováveis, novos desenvolvimentos
sua penetração de mercado.56 tecnológicos e incentivos existentes para
Além de remediar o desequilíbrio de construção de capacidade renovável ou
subsídios, os governos podem e devem ser instalação de equipamentos. Governos, grupos
proativos no aceleramento do crescimento dos não-governamentais e a indústria devem
renováveis via refor ma reguladora. O cooperar não apenas para desfazer esta
ambiente regulatório em muitos países não tem ignorância, como também para assegurar a
sido suficientemente estável ou conducente a disponibilidade de uma força de trabalho
investimentos em renováveis. A rápida adoção especializada para construir, instalar e manter
de renováveis poderá mitigar alguns dos piores sistemas de energia renovável.
efeitos do aperto da oferta de petróleo e Em terceiro, já está demonstrado que a
mudança climática, porém os riscos e participação pública na determinação de
incertezas quanto às novas tecnologias poderão políticas, desenvolvimento de projetos e
obstaculizar os investimentos substanciais propriedade aumenta o apoio político e as
necessários, a não ser que os investidores sejam chances de sucesso, seja o projeto uma turbina
não só informados quanto ao potencial dos eólica na Dinamarca ou uma minigrade solar
renováveis, mas também estejam convencidos no Nepal.
de que o ambiente regulatório é estável e Finalmente, normas industriais, exigência de
convidativo. licenças e códigos de construção são

135
Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

importantes para assegurar que equipamento prometeu que, até 2010, irá gerar 10% de sua
inferior não seja colocado no mercado e energia elétrica de “novas” fontes renováveis
destrua a confiança de consumidores e (ou seja, não incluindo grandes hidrelétricas
investidores, que temores públicos quanto à como o Projeto Três Gargantas). Nos países
localização de usinas sejam atendidos e que com políticas pouco progressistas, alguns
novas edificações sejam compatíveis com governos locais estão aceitando o desafio; nos
renováveis. Estados Unidos, por exemplo, muitos estados
Essas medidas, efetivamente, são o cerne oferecem programas de rebates e outros
do manual de operação para a transição de incentivos para encorajar as pessoas a
uma economia de petróleo para uma instalarem equipamento de energia solar nos
economia de renováveis. Como observado telhados de suas residências.59
anteriormente, as melhores estimativas atuais A consolidação destes e de outros esforços
sobre quando a oferta escassa de petróleo e para transformar o regime energético global
os preços em ascensão irão determinar o fim dominado pelo petróleo é hoje premente. O
da era do petróleo indicam um prazo de 30 petróleo foi outrora uma linha de vida para a
anos a partir de agora. A substituição completa civilização, mas hoje é um laço. Chegamos a
da infra-estrutura energética mundial atual uma encruzilhada. Um caminho leva à
(valendo cerca de US$ 10 a 12 trilhões) probabilidade de perda calamitosa de uma
também levará de 30 a 40 anos e exigirá cerca fonte primária de energia, antes de o mundo
de US$ 16 trilhões. Desviar a fatia do leão estar preparado e, portanto, para um planeta
deste investimento – sem falar dos recursos economicamente precário, mais quente e mais
adicionais – para os renováveis dará ao perigoso. O outro caminho nos leva para fora
mundo uma nova economia energética de do petróleo, antes que a crise crie o pânico, e
uma forma oportuna.58 em direção a um mundo de energia
Sabemos como fazê-lo e sabemos que abundante, limpa e estável, mais amplamente
deverá ser feito logo. Terão os governos e os disponível para um número maior do que
cidadãos comuns a vontade de agir? Há muitos nunca de pessoas no mundo. Ou, em outras
sinais promissores, como as leis sobre energia palavras, nossa opção é ser carente de petróleo
renovável da Europa. E, em 2004, a China ou ser livre dele.

136
Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

LIGAÇÃO DE SEGURANÇA

Energia Nuclear
Existem hoje 438 usinas nucleares comerciais forem corrigidos a tempo. Desde o início da
operando em 30 países. Estes reatores era nuclear, tem havido centenas de acidentes
fornecem 16% da eletricidade global, uma nucleares. Embora alguns tenham sido de
consideração importante para um mundo importância relativamente menor, outros têm
onde a demanda energética está crescendo sido catastróficos – o mais grave ocorreu em
rapidamente. No entanto, elas representam Chernobil, na Ucrânia, em 1986. O vazamento
também um alvo tentador para terroristas, e de um reator causou pelo menos 6.000
sua destruição – intencional ou acidental – pode mortes, bem como índices elevados de câncer
ter efeitos catastróficos. Mais ainda, como os da tireóide, dano ambiental significante e o
materiais nucleares são retirados das minas e reassentamento de mais de 370.00 pessoas. 3
espalhados pelo globo, eles contaminam o Por pouco também deixaram de ocorrer
solo, ar e a água, prejudicando o meio ambiente acidentes graves. Por exemplo, em 2002, na
e a saúde humana. 1 usina Davis-Besse, em Ohio, ácido bórico
Ataques simulados a usinas nucleares têm corroeu um buraco na chapa de 17
demonstrado que muitos reatores são pouco centímetros no cabeçote do reator. Se tivesse
seguros. Tanto nos Estados Unidos quanto atravessado o meio centímetro restante de aço
na Rússia, agências governamentais realizaram que continha o líquido refrigerante, poderia
ataques simulados em reatores, somente para ter ocorrido um vazamento. Como advertiu
provar que as defesas das usinas nucleares são uma análise da Union of Concerned Scientists, de
muitas vezes inadequadas para evitar 2004, muitas das 103 usinas nucleares dos
infiltrações ou instalação de bombas falsas. Estados Unidos estão agora entrando na
Vinte sete dos 57 ataques simulados nos última fase de vida útil, o que aumenta a
Estados Unidos, durante a década de 90, probabilidade de falha de reator e de possíveis
revelaram vulnerabilidades agudas que podiam desastres. 4
ter causado “estrago no núcleo” e “vazamento Mesmo sem ataques ou acidentes, materiais
radiativo”. Mesmo grupos ambientalistas nucleares ameaçam a segurança global mais
foram capazes de simular com sucesso ataques sutilmente. Em 2002, cerca de 65.000
a usinas nucleares. Em 2003, para demonstrar toneladas de urânio foram usadas em usinas
a vulnerabilidade da usina, os ativistas do comerciais do mundo – 36.000 toneladas das
Greenpeace invadiram a usina nuclear Sizewell, quais foram extraídas de minas de urânio. Estas
do Reino Unidos, e escalaram o reator sem minas muitas vezes ameaçam as comunidades
resistência. 2 vizinhas, criando poeira e resíduos que podem
A sabotagem dos reatores nucleares não é espalhar contaminação radioativa. Por
a única ameaça. Como a história tem exemplo, no Quirjistão, pelo menos 2 milhões
demonstrado, erros de construção e falhas de toneladas de refugo de urânio estão
humanas podem ter efeitos desastrosos, se não depositadas em 23 lagoas de resíduos de

137
Estado do Mundo 2005
ENERGIA NUCLEAR

Mailuu-Suu. conversão do urâ-


Restos de mine- nio enriquecido em
ração e de ope- combustível nu-
rações de moa- clear: diminui o
gem do urânio potencial do urânio
soviético, estes para armas cair em
resíduos estão a mãos de terroristas
ponto de vazar no e reduz a neces-
rio local e podem Bastões de combustível usado numa lagoa de sidade de minerar
facilmente armazenagem de uma usina nuclear britânica mais urânio, retar-
contaminar o vale do rio Fergana e seus 6 dando assim a injeção de novos materiais
milhões de habitantes.5 nucleares em circulação. Os Estados Unidos
Alguns dos resíduos mais radiativos não e a Rússia já estão convertendo ogivas, através
permanecem perto das velhas minas, mas no da Cooperative Threat Reduction Initiative. Nos
local de usinas nucleares na for ma de últimos 10 anos, cerca de 8.000 ogivas
combustível usado. Muitas vezes, do mesmo nucleares foram desmontadas e convertidas
modo que os reatores, são protegidos em combustível nuclear – suprindo assim
inadequadamente, representando riscos à metade do urânio necessário para funcionar
segurança. Embora seja essencial encontrar usinas nucleares nos Estados Unidos. 7
instalações de armazenagem de longo prazo Embora seus defensores sempre aleguem
para proteger estes resíduos, o desafio será que a energia nuclear ajudará a reduzir a ameaça
encontrar locais adequados que permaneçam de mudança climática, eles raramente
geologicamente estáveis por centenas de incorporam o ciclo total do combustível em
milhares de anos – que é o tempo que o urânio suas considerações. De acordo com o Oeko-
continua nocivo.Atualmente, os Estados Institut, quando as emissões indiretas são
Unidos estão planejando construir um incluídas, a energia nuclear produz de 1,5 a
depósito na montanha Yucca, no estado de três vezes o dióxido de carbono por kW/h
Nevada. Entretanto, os críticos questionam a que a energia eólica produz. Acrescente-se a
adequação deste local: é geograficamente isto a poluição, efeitos na saúde e riscos de
instável e a água nos depósitos pode corroer segurança desta fonte de energia, e a energia
os recipientes de estocagem, contaminando nuclear torna-se cada vez menos uma opção
as reservas de água subterrânea da região.6 razoável. 8
Um modo imediato de reduzir a ameaça Para eliminar completamente a ameaça que
nuclear seria desativar tantas armas nucleares a energia nuclear representa, as usinas nucleares
quanto fosse possível e convertê-las em precisariam ser desativadas, completamente.
combustível. Existe um benefício duplo na Embora isto possa parecer impossível em

138
Estado do Mundo 2005
ENERGIA NUCLEAR

alguns países – na França, por exemplo, 78% anos aumentarão a circulação de materiais
da eletricidade são gerados por energia nucleares, concorrendo conseqüentemente
nuclear –, Bélgica, Alemanha, Suécia e com ameaças à segurança, poluição, e danos à
Espanha estão planejando eliminar esta fonte saúde. 9
de energia nos próximos 20 a 30 anos. No Como é sabido, facilitar a desativação da
entanto, esta pode ser mais uma energia nuclear será um grande desafio, já que
contratendência do que uma tendência: em é uma das indústrias mais protegidas do
todo o mundo, 28 novos reatores estão sendo mundo. Mas, com o término dos subsídios
construídos e outros 35 estão em projeto, volumosos que a indústria recebe, remoção
inclusive em alguns países que não tinham do seguro contra catástrofe e isenções de
construído novas usinas há décadas. Em 2002, seguro, e inclusão dos custos ambientais e
o Parlamento da Finlândia aprovou a sociais da energia nuclear, os legisladores
construção de um novo reator – o primeiro podem fazer o preço da energia nuclear refletir
em 20 anos. Os prováveis 8% de aumento seus custos verdadeiros.
da capacidade nuclear nos próximos cinco - -Erik Assadourian

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Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO

CAPÍTULO 7

Desarmando as Sociedades
Pós-guerra
Michael Renner

Como analisada neste Estado do Mundo 2005, a se promover o desarmamento, a fim de


segurança é influenciada por um conjunto de reduzir a probabilidade de as armas
fatores bem mais amplo do que os limites alimentarem guerras, provocarem ondas de
estreitos que o pensamento tradicional poderia crimes ou ficarem disponíveis para extremistas.
sugerir. Isto não quer dizer, entretanto, que Embora este capítulo enfoque armas
questões relacionadas a armas e combatentes convencionais de pequeno calibre, outros tipos
sejam irrelevantes. Gastos militares desviam de armas são, naturalmente, de grande
recursos escassos de programas sociais e importância. Armas nucleares, químicas e
ambientais que – adequadamente financiados biológicas, minas terrestres e ar mas
– formam a base de um mundo mais estável. convencionais pesadas – tanques, jatos, mísseis
E os legados de guerras passadas podem ser e belonaves – são uma ameaça contínua à
obstáculos poderosos para a criação de segurança econômica e física de todas as
sociedades mais seguras e pacíficas. Isto é tão nações. Os que têm armas nucleares não
verdadeiro para as repercussões ambientais de demonstram nenhuma inclinação para
conflitos armados – desde florestas pilhadas e desarmamento. Enquanto isso, Israel, Índia,
sistemas de irrigação devastados, até a Paquistão e, possivelmente, Coréia do Norte
disseminação de armas de urânio empobrecido entraram no “clube” nuclear e o Irã poderá
– como o é para a vasta gama de armas entrar também, em breve. Na medida em que
produzidas e comercializadas por todo o planeta. as nações perseguem programas nucleares
As armas que os orçamentos militares “civis,” sempre haverá alguma ambigüidade
compram são aparentemente adquiridas para sobre as verdadeiras intenções e sempre haverá
incrementar a segurança, mas podem bem ter o perigo de que os materiais possam vir a ser
o efeito contrário. Por todo o espectro de desviados para programas de armas ou vir a
armamentos, há uma necessidade urgente de ser roubados por grupos terroristas.

140
Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

Há também um temor crescente de que interrupção. Após o fim da guerra fria, os


armas químicas ou materiais precursores governos efetivamente concluíram um tratado
necessários para sua fabricação possam cair que regula vários tipos desses armamentos na
em mãos terroristas. Felizmente, neste caso, há Europa e uma quantidade gigantesca foi
muito mais avanço em direção ao desmantelada. Porém, muitas outras foram
desarmamento universal, motivado não só vendidas para outros países, com pouca
por um tratado como também por um possibilidade de essas nações concordarem
sentimento de que os estoques existentes com os limites sobre armas convencionais
representam maior perigo para seus donos do pesadas.
que para qualquer inimigo. No caso das armas Enquanto isso, ar mas convencionais
biológicas, todavia, a ambigüidade é muito menores – o foco deste capítulo – foram
maior: embora uma convenção internacional responsáveis pela maioria das mortes, nas
proíba esses arsenais, não há meios de saber últimas décadas, durante e após conflitos
se as nações cumprem esse tratado e todos os armados. A ampla disponibilidade dessas
esforços para criar um mecanismo de armas leves impede a pacificação, após
verificação fracassaram diante da oposição dos conflitos armados terem terminado,
Estados Unidos. facilitando violência criminosa, pessoal e
Minas antipessoais causaram pesadas baixas política, mesmo em países que não estejam
durante décadas. Continuam a matar em guerra. Paz e estabilidade verdadeiras em
indiscriminadamente muito depois de um regiões devastadas por guerras continuarão
conflito ter terminado e não distinguem inatingíveis, a não ser que soldados e outros
soldados de civis. Estimativas indicam que um combatentes sejam desarmados, desmo-
milhão de pessoas foram mortas ou mutiladas bilizados e reintegrados à sociedade.
por minas terrestres, desde 1975; cerca de 80%
delas eram civis. Entretanto, desde a Um “Faroeste” Global
aprovação de um tratado internacional
proibindo minas antipessoais, em 1999, foram Nos países por todo o globo, há centenas
obtidos avanços significativos nos últimos de milhões de “armas pequenas e armas leves”
anos, tendo a produção e exportação caído de baixa tecnologia, baratas, resistentes e de
drasticamente e estoques foram destruídos em fácil manejo. Esta categoria inclui um amplo
ritmo acelerado. Todavia, confor me a espectro de armas na posse de militares e civis
Campanha Internacional de Proibição de – como pistolas de mão e rifles de caça, rifles
Minas Terrestres, seis países ainda utilizam de assalto e metralhadoras.2
minas antipessoais e Rússia e Myanmar as Armas pequenas são as preferidas, na
utilizam regularmente. Além disso, forças de maioria dos conflitos modernos – batalhas
oposição armadas continuam a utilizar minas disputadas dentro, ao invés de entre países.
em 11 países. Assim, ainda há um longo Estima-se que cerca de 300.000 pessoas são
caminho a percorrer, antes que as minas mortas por armas pequenas anualmente em
terrestres deixem de ser um problema.1 conflitos armados. Mas, quando as armas são
A produção e comércio de grandes armas endêmicas, também afetam as sociedades que
convencionais continuam, de certa forma, sem estão formalmente em paz. Assim, outras

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Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

200.000 pessoas morrem anualmente em A violência com armas pequenas pode ter
violência relacionada às armas, e 1,5 milhão conseqüências fatais para o desenvolvimento
de pessoas são feridas. Nas mãos de governos humano, conturbando sistemas de saúde e
repressivos ou déspotas cruéis, as pequenas educacionais já estressados.
armas podem contribuir para violações
maciças de direitos humanos – expulsando ou
“desaparecendo” pessoas, silenciando Sociedades que emergiram de um longo
opositores políticos e intimidando a sociedade período de guerra freqüentemente continuam
civil.3 a sofrer tensões e violência consideráveis,
A distribuição de armas entre exércitos alimentadas por insatisfações não resolvidas,
privados e milícias, grupos insurgentes, uma cultura de violência e grandes estoques
organizações criminosas, turmas de vigilantes de sobras de armas. Combatentes recém-
e cidadãos privados alimenta um ciclo de desmobilizados, quase sempre mal-equipados
violência que, por sua vez, causa uma demanda para a vida civil, podem se voltar para o
banditismo. Países do sul da África e vários
ainda maior. A violência política lança governos
da América Central, por exemplo, sofreram
contra forças insurgentes que lutam para
uma transição inconsútil da violência
derrubar o governo ou se separar; a violência
politicamente motivada para a criminosa, no
comunitária envolve grupos étnicos ou
início dos anos 90, sofrendo mortes que se
religiosos diferentes, ou de outras identidades;
equipararam ao número de pessoas que
e a violência criminosa envolve traficantes, sucumbiram durante os conflitos armados.
grupos do crime organizado ou pequenos Mais recentemente, países como Sri Lanka
criminosos. Além de danos pessoais e perda enfrentam problemas semelhantes; como a
de vida, a ampla disponibilidade de armas guerra civil aparentava estar prestes a terminar,
pequenas cria um clima de medo e ilegalidade armas disponíveis abertamente provocaram
que pode solapar a estabilidade política, uma onda de crimes.4
desbaratar a atividade econômica e ameaçar A América Latina se destaca neste quadro
destruir realizações desenvolvimentistas do global, devido à sua alta taxa de mortes por
passado. armas de fogo. Na Venezuela, a relação é de
Embora altos níveis de posse de armas não 21 homicídios com armas por 100.000
redundem automaticamente em violência, a habitantes, na Jamaica 17, Brasil 14 e na
fácil disponibilidade de armas faz a diferença. Colômbia devastada por conflitos, 50, em
Isto ocorre particularmente em sociedades comparação a 30 por 100.000 habitantes na
onde as desigualdades sociais e econômicas África do Sul, porém 3,5 nos Estados Unidos
são acentuadas, a pobreza é endêmica, o e 0,2 na Alemanha. Crianças estão cada vez
desemprego leva os jovens de futuro incerto mais envolvidas com sindicatos de traficantes
a se unirem a gangues ou milícias, o tecido de drogas e violência urbana. No Rio de
social está sob tensão aguda, onde persistem Janeiro, por exemplo, cerca de 12.000 crianças
fortes animosidades étnicas intergrupais ou e adolescentes estão envolvidos com o tráfico
outras, ou a legitimidade das instituições de narcóticos e, em El Salvador, pelo menos
políticas está em dúvida. 25.000 crianças pertencem a gangues.5

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Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

e ter Violência com armas pequenas pode ter do Sul, onde o orçamento policial para 2000
vimento conseqüências fatais para o desenvolvimento e 2001 foi 26% superior ao da saúde. Na
úde e humano, conturbando sistemas de saúde e América Latina, despesas de segurança pública
educacionais já estressados. Por toda a África e privada absorveram aproximadamente de
subsaariana, por exemplo, esforços de 13 a 15% do PIB conjunto da região, em
vacinação têm sido impedidos. Na República meados dos anos 90 – superando as despesas
Democrática do Congo, um terço de todas assistenciais e previdenciárias.8
as crianças entre 5 e 14 anos ficaram fora das
escolas, entre 1999 e 2000, com maior Vender, Saquear,
proporção nas áreas mais afetadas pala Contrabandear
violência contínua. Na Jamaica, 30% das
meninas pesquisadas declararam que tinham
Por terem sido sempre consideradas
medo de ir à escola, devido ao perigo ligado
essenciais para proteção nacional e pessoal,
às armas de fogo.6
armas pequenas são produzidas, comercia-
Armas pequenas podem contribuir para um
lizadas e armazenadas por muitas décadas,
declínio vertiginoso e até mesmo para o
com pouca atenção para as repercussões na
colapso da atividade econômica, sem falar da
segurança pública, desenvolvimento e meios
destruição direta ou deterioração da infra-
de vida. Não se sabe quantas dessas armas
estrutura física. Guerras civis, banditismo e
existem, e a maioria dos governos e empresas
outras formas de violência armada podem
continuam sendo extremamente reticentes
causar um colapso da confiança básica,
quanto a disponibilizar esta informação. Com
essencial para o comércio e outras transações
base em premissas conservadoras, a Small
econômicas. Investidores tendem a se afastar
Arms Survey, de Genebra – a mais confiável
de países onde a segurança pessoal e a garantia
fonte de informação pública –, estima os
da propriedade estejam em risco. E, nas áreas
estoques globais de armas militares e civis em
rurais, a violência endêmica pode forçar os
639 milhões. Para grande parte das regiões e
agricultores a abandonarem suas plantações.
países mundiais, só existem estimativas
Em Angola, por exemplo, a participação da
aproximadas e freqüentemente parciais para
agricultura no Produto Interno Bruto (PIB)
o número de armas pequenas em poder da
caiu de 23%, em 1991, para 6%, em 2000.
população civil, polícia, forças armadas e
Entre os grupos pastores no leste da África, o
grupos insurgentes. (Ver Tabela 7-1.)9
influxo de armas de alto calibre tornou as
A utilidade de números agregados, por si
práticas tradicionais de roubo de gado muito
só, é naturalmente limitada, uma vez que
mais violentas.7
incluem uma variedade imensa de tipos
Lidar com crime e violência desvia uma
diferentes de ar mas. Ar mas militares,
parcela crescente de investimentos, ajuda
calculadas em mais de 240 milhões, têm maior
externa e orçamentos domésticos para fins
poder de fogo. O que mais predomina entre
improdutivos. Precisa-se gastar tanto com
estas são os rifles de assalto, dos quais cerca
polícia, aplicação da lei, segurança particular e
de 90 a 122 milhões foram produzidos
outras formas de “segurança,” que pouco resta
mundialmente. Mas armas de fogo civis – bem
para os serviços sociais. Este é o caso da África
mais numerosas – podem na realidade

143
Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

representar um desafio ainda maior em relação generalizada, ocorrendo em pelo menos 25


ao crime e violência urbana. Entretanto, países, inclusive Chile, Gana, África do Sul,
números apenas não são bons previsores das Turquia, Paquistão e Filipinas.12
conseqüências prováveis. Contexto social e Apesar dos esforços crescentes na coleta
intencionalidade são cruciais. Alguns países que de dados e transparência, o mundo ainda está
não estão em guerra possuem arsenais muito longe de ter um quadro claro e consistente,
maiores de armas de fogo do que outros, até mesmo do comércio autorizado de armas
assolados pela violência organizada. Uma pequenas, sem falar dos negócios do mercado
arma nas mãos de um indivíduo impiedoso negro ou cinza. Estados Unidos, Itália, Bélgica,
ou de grupos como déspotas, rebeldes ou Alemanha, Rússia, Brasil e China são os
sindicatos de crime tem muito mais chance maiores exportadores, enquanto Estados
de ser utilizada. Mesmo quantidades limitadas Unidos, Arábia Saudita, Chipre, Japão, Coréia
de armas pequenas podem causar morte, do Sul, Alemanha e Canadá são os principais
dano e devastação em larga escala.10 importadores. A Small Arms Survey estima o
A produção global de ar mas comércio internacional legal em US$ 4 bilhões
pequenas está estimada em 7,5 e 8 milhões de anuais, ou cerca da metade do valor estimado
unidades anuais, das quais 7 milhões são do da produção total; calcula-se que o comércio
tipo civil e o restante militar. Estima-se que a ilícito se situe em torno de US$ 1 bilhão.13
produção anual de munição para armas Em última análise, entretanto, é
pequenas de calibre militar esteja na faixa de praticamente impossível traçar uma linha
10 a 14 bilhões de pentes – ou cerca de 1,5 a divisória entre essas categorias, pois uma arma
2 balas para cada pessoa viva no mundo. A “legal” pode facilmente se tornar ilícita. Uma
produção de armas militares pode estar parcela significativa até mesmo do comércio
aumentando no rastro das invasões do internacional legal é realizada em segredo. E
Afeganistão e Iraque e dos programas de inúmeras redes comerciais per mitem
rearmamento nos Estados Unidos, Rússia, fornecimentos clandestinos por agências
China e partes da Europa. Se assim for, isto governamentais, vendas no mercado negro
seria uma reversão das tendências dos últimos por comerciantes privados e transferências não
anos.11 autorizadas de recipientes originais para
Os Estados Unidos, Rússia e China são os secundários. Acrescentando-se outros fatores
maiores produtores, mas existem pelo menos como roubo ou perda de muitas armas
outros 27 países produtores médios – 15 na pequenas, após sua fabricação, não há meios
Europa, 6 na Ásia, 3 no Oriente Médio, mais possíveis de se saber em que mãos as armas
Canadá, Brasil e África do Sul. No total, pelo irão acabar.14
menos 1.249 empresas em 92 países estão O comércio de segunda mão começou a
envolvidas na fabricação de armas. Não florescer após a guerra fria, quando os
constam desta estatística grupos de insurgentes exércitos da América do Norte, Europa e Ex-
e de oposição em vários países, com condições União Soviética doaram grande parte de seus
de produzir armas simples, de pequeno equipamentos excedentes ou venderam a
calibre. Também a produção ilegal, em preços baixos. Desfazer-se de estoques
pequena escala, parece estar relativamente excedentes pode fazer sentido sob um ponto

144
Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

Tabela 7-1. Estimativas Aproximadas dos Estoques de Armas P equenas,


Pequenas,
Países e Regiões Selecionadas

País ou Estoques Estimados


Região

América Latina De 45 a 80 milhões (de 37 a 72 milhões civis, 1,8 milhão policiais, 7 milhões
militares)

Estados Unidos De 238 a 276 milhões (civis, policiais e militares)

União Européia (UE) 67 milhões (de 15 a 16 milhões militares e policiais)

Europa não-EU (incluindo Rússia) Pelo menos de 13 a 14 milhões de armas de fogo (civis apenas)

África subsaariana 29 milhões (23 milhões civis; 600 mil grupos insurgentes; o restante é de
militares e policiais)

África do Sul 4,5 milhões (civis apenas)

Iraque Pelo menos de 7 a 8 milhões (armas militares e civis), possivelmente muito mais

Iêmen De 5 a 8 milhões (militares e civis)

Índia 48 milhões (40 milhões civis; 7 milhões militares; 600.000 policiais; 100.000
insurgentes)

Paquistão 23 milhões (20 milhões civis; 3 milhões militares; 400.000 policiais)

China 30 milhões (pelo menos 27 milhões militares; 3 milhões policiais); informações


insuficientes sobre posse civil

Obs.: Estes números, na maioria dos casos, representam estimativas muito primárias.
FONTE: Vide nota final 9.

de vista estreito de custo-benefício, com excedentes para governos “amigos.” (Nos


economia de recursos e esforço necessários Estados Unidos, ar mas excedentes são
para desmantelar e destruir as armas obtendo, também rotineiramente transferidas para
ao mesmo tempo, uma fonte de receita. Mas órgãos domésticos de segurança ou vendidas
se essas armas forem para clientes indesejáveis para o público.)16
ou irresponsáveis, o custo a longo prazo Em vários países em desenvolvimento, as
poderá ser substancialmente maior do que o compras de armas são financiadas através da
previsto.15 venda de mercadorias ou escambo direto por
Embora Noruega e Alemanha tenham recursos naturais, produtos animais ou drogas.
praticamente cessado as exportações de armas Na Libéria, Serra Leoa e Angola, por exem-
ou munições excedentes, o Reino Unido, plo, a receita de diamantes, petróleo, madeira
Rússia e Estados Unidos ainda seguem a velha e produtos da vida silvestre ajudou tanto o
prática. No final dos anos 90, por exemplo, governo quanto as forças rebeldes a
Washington vendeu cerca de 320.000 armas adquirirem armas. Rebeldes cambojanos

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Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

pagaram por suas atividades através da venda um mercado tentador e lucrativo para sobras
de madeira e pedras preciosas. E, no de armas.19
Afeganistão, mujahideen anti-soviéticos, e Uma das transferências de armas pequenas
posteriormente o Talibã, se sustentaram mais extraordinárias e rápidas ocorreu após o
através do comércio de ópio.17 colapso do regime de Saddam Hussein, no
Outras fontes importantes de escoamento Iraque, quando os arsenais do governo foram
de armas são a captura delas por forças saqueados. Quando o comandante das forças
insurgentes, o saque generalizado de depósitos de ocupação, Paul Bremer, debandou o
militares e policiais e os “vazamentos” exército iraquiano, em maio de 2003, não
contínuos de arsenais governamentais, com apenas acelerou o fluxo de armas para a
soldados roubando e vendendo as armas. sociedade civil, como também criou uma classe
Houve casos, por exemplo, de armas de de pessoas que, embora houvessem perdido
arsenais militares e policiais da Argentina repentinamente seu meio de vida, estava bem
alugadas para gangues domésticas e armada. Cerca de 4,2 milhões de armas
contrabandeadas para o Rio de Janeiro, desapareceram dos arsenais e se somaram a
assolado pelo crime. Há também evidências pelo menos outras 3 milhões, já em mãos dos
de que armas pequenas estão sendo desviadas civis. Esta enxurrada de armas ajudou a armar
dos estoques do governo da Arábia Saudita as milícias mantidas por líderes rivais regionais,
para uma variedade de organizações religiosos e faccionais, provocando o aumento
terroristas, inclusive a al Qaeda. Nas Filipinas, do crime e de mortes entre uma população
a grande maioria das armas nas mãos de empobrecida e desesperada. Poderá ainda vir
insurgentes veio de depósitos policiais e a solapar a estabilidade de países vizinhos, caso
militares.18 uma parcela significativa cruze fronteiras
Alguns casos envolvem quantidades difíceis de controlar. Já há informações de
imensas de armas. Após a queda da ditadura armas AK-47 e lançadores de granadas
de Siad Barre, na Somália, centenas de iraquianos surgindo na Arábia Saudita.20
milhares de armas foram pilhadas de arsenais Além dessas perdas impressionantes, há
militares em 1991 e 92, fomentando a inúmeros incidentes de pequenos volumes de
ascensão de déspotas. Em 1997, uma revolta armas sendo perdidos ou desviados. O
popular na Albânia provocou o saque de impacto cumulativo não é menos insidioso.
depósitos militares e policiais. Cerca de No mínimo, 1 milhão de armas de fogo são
643.000 armas pequenas foram roubadas e perdidas ou roubadas, mundialmente, a cada
muitas contrabandeadas para albaneses ano, principalmente de particulares, embora
étnicos nas regiões vizinhas de Kosovo e o total provavelmente seja muito maior.21
Macedônia, onde conflitos se desencadearam
posteriormente. Ar mas pequenas são Até Agora, uma Reação
freqüentemente transportadas ilicitamente de
Medíocre
um ponto crítico do mundo para outro (ver
Tabela 7-2). Quando um conflito em um
Lidar com a proliferação de armas
determinado país chega ao fim, conflitos em
pequenas requer uma profusão de abordagens.
andamento em outros países proporcionam
A experiência da Colômbia, ao longo das

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Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

últimas quatro décadas, ilustra os problemas cooperação entre alfândegas; códigos de


enfrentados por governos e sociedades conduta e embargos para evitar transferências
atolados em armas pequenas (ver Quadro 7- a usuários questionáveis; redução do número
1). Entre as novas abordagens necessárias estão de armas em circulação, através de programas
maior transparência; controles mais rígidos de de recompra de armas e outros métodos de
exportação para evitar embarques ilícitos; maior coleta; e destruição de estoques excedentes.22

Tabela 7-2. Exemplos Selecionados de T ransferências de Armas P


Transferências equenas de
Pequenas
um Ponto Crítico a Outro, Década de 70 até 2002

Origem Recebedores

Vietnã Após o fim da guerra do Vietnã, sobras de armas e munições americanas foram
adquiridas por Cuba e, posteriormente, pelo governo sandinista da Nicarágua e
insurgentes salvadorenhos.

Organização para Libertação da Munições soviéticas confiscadas pelas forças israelenses foram transferidas pela
Palestina CIA para os rebeldes Contra da Nicarágua, nos anos 80.

Nicarágua e El Salvador Armamentos dos Estados Unidos despejados nas guerras civis da América
Central nos anos 80 formaram, posteriormente, parte de um mercado negro
regional, com armas indo para México, Colômbia, Peru e gangues
salvadorenhas nos Estados Unidos.

Afeganistão Dois terços de armas valendo US$ 6 – 9 bilhões, destinadas aos combatentes
anti-soviéticos durante os anos 80, acabaram no Paquistão, região do Punjab na
Índia, Caxemira, Tajiquistão, Sri Lanka, Myanmar e Argélia.

Líbano Sobras de armas da guerra civil dos anos 70 e 80 foram transferidas para a
Bósnia, no início dos anos 90.

Moçambique e Angola Armas originalmente fornecidas para forças antigovernamentais em


Moçambique e Angola pelo regime apartheid, da África do Sul, foram
posteriormente contrabandeadas de volta à África do Sul, alimentando uma
extraordinária onda de crimes.

Camboja Fluxos de armas foram rastreados para as Filipinas, Aceh (Indonésia), Sri Lanka,
Índia e Caxemira.

Sudeste da Ásia Rebeldes da região de Assam, na Índia, receberam armas de outros insurgentes,
inclusive dos rebeldes Tamil de Sri Lanka, Kachins de Myanmar, Khmer Rouge
do Camboja e grupos Kashimiri.

Sudão e Somália Um influxo de armas de zonas de guerra para o Quênia transformou conflitos
menores entre pecuaristas em confrontos cada vez mais violentos.

Grécia e Turquia Rebeldes PKK curdos transferiram mísseis Stinger para os rebeldes Tamil de Sri
Lanka. Os mísseis foram fabricados na Grécia, sob licença dos Estados Unidos.

Libéria Ex-combatentes estão supostamente contrabandeando AK-47s e outras armas


para países vizinhos, em troca de bens de consumo.
FONTE: Vide nota final 19

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Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

As nações européias ampliaram seu de Armas, estipulando que armas não deverão
compartilhamento de dados, dentro do ser enviadas a países onde haja risco claro de
âmbito da Organização para Segurança e serem utilizadas para agressão externa ou
Cooperação na Europa (OSCE, na sigla em repressão interna.
inglês). E, em dezembro de 2003, os membros Em outubro de 1998, chefes de Estado
do Tratado de Wassenaar sobre Controle de da África ocidental declararam uma moratória
Exportações de Armas Convencionais e sobre importação, exportação e produção de
Tecnologias e Objetos de Uso Duplo – na armas pequenas dentro da região. Todavia,
realidade, um clube de fornecedores de armas violações repetidas representam um grande
– decidiram trocar informações regularmente. desafio.
Entretanto, uma maior transparência entre Em 2001, a Comunidade de Desenvol-
agências governamentais não é o mesmo que vimento da África Austral assinou um
a disposição de levar este tipo de informação Protocolo sobre Armas de Fogo, Munição e
ao conhecimento público.23 Materiais Afins, objetivando a criação de
Durante a última década, controles de controles regionais sobre a posse e contra o
exportação se tornaram mais rígidos e os tráfico.
governos começaram a exercer maior cautela Em 2002, o Centro do Sudeste Europeu
em suas vendas a países envolvidos em para o Controle de Armas Pequenas e Leves
conflitos armados ou violações de direitos foi criado, em cooperação com o Programa
humanos. Uma variedade de acordos regionais das Nações Unidas para o Desenvolvimento
e mecanismos que tratam da fabricação, (PNUD).
transferência e gestão de armazenagem de Em abril de 2004, representantes de 11
armas estão em vigor: nações africanas das regiões dos Grandes
Em 1993, a OSCE assinou os Princípios Lagos e Chifre da África assinaram o
que Regem as Transferências de Armas Protocolo de Nairobi para Prevenção,
Convencionais e, em seguida, um Documento Controle e Redução de Armas Pequenas e
sobre Armas Pequenas e Leves, estabelecendo Leves, obrigando-as a adotarem medidas
os critérios sobre a fabricação e exportação, concretas para restringir a fabricação, tráfico
intermediação, e gestão de armazenagem e e posse ilegal de armas pequenas.24
sobras de armas. Para encorajar padrões mais Infelizmente, a eficácia desses esforços
elevados, a OSCE publicou um Manual de continua relativamente limitada, uma vez que
Melhores Práticas (Handbook of Best Practices), quase todas são politicamente (mas não
em 2003. legalmente) obrigatórias e, assim, difíceis de
Em novembro de 1997, os membros da serem impostas, já que o foco está em armas
Organização dos Estados Americanos ilícitas (a maioria desconsiderando transfe-
assinaram a Convenção Interamericana contra rências sancionadas por nações), e também
a Fabricação Ilícita e Tráfico de Armas de não há exigência expressa para que nações
Fogo, Munição, Explosivos e Outros Materiais exportadoras respeitem leis humanitárias ou
Afins, primeiro acordo vinculante. de direitos humanos internacionais. Mesmo
Em 1998, a União Européia aprovou assim, esses acordos sinalizam compromissos
um Código de Conduta sobre Exportações crescentes por parte dos governos e fazem

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Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

QUADRO 7-1. COLÔMBIA: OBSTÁCULOS PARA A PAZ


A julgar pelo impacto humano maciço, gigantesco A Colômbia tem um dos níveis mundiais mais altos
custo econômico e ligações entre a violência de desigualdade da posse da terra, o que é agravado
generalizada, economias de mercado negro, pelos deslocamentos forçados. A ausência de
desigualdade social e violações de direitos humanos, o oportunidades de emprego para a população urbana
pior conflito da América Latina é, sem dúvida, o da pobre, aumenta a pressão sobre este problema. De
Colômbia. Causou uma crise humanitária grave e tem acordo com as Nações Unidas, 55% dos
o potencial de disseminar a violência e instabilidade colombianos vivem na pobreza; 27% estão sob
por todas a região andina e amazônica. pobreza extrema. Assim, é essencial promover
Este conflito está enraizado em desigualdades, reformas estruturais que assegurem maior acesso à
exclusão social e violência endêmica extensas, terra e a outras atividades produtivas, e adotar uma
remontando a várias décadas. Repressão e política econômica direcionada à criação de emprego,
concentração crescente de riqueza e poder inclusive para aqueles que foram desmobilizados.
desencadearam o surgimento de grupos guerrilheiros Políticas fortalecidas de saúde e educação
de esquerda, nos anos 60. Em resposta, os militares contribuirão para reduzir a pobreza e melhorar a
ajudaram a criar grupos paramilitares que se tornaram distribuição da riqueza, Isto exige uma nação com
notórios por massacres de civis. mais recursos. Todavia, o sistema fiscal atual arrecada
Negociações atualmente em curso entre a pouco e favorece os ricos –apenas pouco mais de
Autodefensas Unidas de Colômbia (AUC, a maior 400.000 pessoas numa população de cerca de 44
organização “guarda-chuva” dos grupos paramilitares) milhões pagam imposto de renda.
e o governo de Álvaro Uribe poderão levar à Embora o tráfico de drogas não tenha sido o
desmobilização de alguns grupos armados. Mas, a estopim do conflito, tornou-se sua força motriz. O
anistia proposta para os membros da AUC é um conflito se tornou mais complexo, devido ao
retrocesso em termos de impunidade por atos vis. E crescimento de grupos paramilitares que se
as negociações podem acabar legalizando a autofinanciam através da extorsão e tráfico de
propriedade da terra e outros bens obtidos drogas. Sua responsabilidade pela expulsão forçada de
ilicitamente. camponeses e suas ligações com algumas unidades das
Os esforços de paz durante as duas últimas forças armadas ficaram claramente demonstradas.
décadas demonstram que apenas a desmobilização e A política dos Estados Unidos quanto a drogas
a reintegração de combatentes não são suficientes. O ilícitas, como expresso no Plano Colômbia, tem se
ciclo de violência não será rompido, caso os tornado cada vez mais militarizada. Os principais
problemas estruturais que são tanto causa como componentes incluem ajuda militar, conselheiros
conseqüência do conflito permaneçam insolúveis. militares uniformizados e do setor privado, e
Aspectos-chave de uma estratégia de paz e fumigação aérea maciça de culturas ilegais. Mais de
restabelecimento de legitimidade política incluem 350.000 hectares foram fumigados, desde 2000. Os
respeito ao regime das leis e direitos humanos, efeitos negativos da fumigação aérea sobre o meio
acabando com a impunidade dos atos de violência ambiente e a saúde humana têm sido alvo de
cometidos por grupos armados e estabelecendo um protestos generalizados. Os camponeses são os que
poder judiciário independente e eficaz. Ataques a civis mais sofrem com o Plano Colômbia, enquanto o
têm sido parte integrante das estratégias praticadas tráfico internacional e as redes de lavagem de dinheiro
por vários grupos armados – incluindo assassinatos, continuam praticamente intocáveis. Anos de
desaparecimentos, tortura e seqüestros, abuso sexual tentativas para acabar com a produção de coca na
de mulheres, ataques a pessoal protegido como Colômbia parecem ter conseguido apenas uma
médicos militares e deslocamento forçado de mudança geográfica da área de cultivo. Não há
pessoas. A Colômbia possui um dos maiores números redução visível na disponibilidade de drogas nos
de pessoas deslocadas internamente do mundo. mercados ocidentais.
A militarização em curso da sociedade colombiana Uma política alternativa seria não criminalizar os
representa um imenso obstáculo à paz. O Plano camponeses produtores de coca, substituir a
Colômbia, adotado pelo governo e apoiado pelos fumigação aérea por projetos de erradicação manual,
Estados Unidos, busca mobilizar toda população, seja promover projetos de desenvolvimento alternativos
como informantes ou como membros de grupos que levem em conta as causas sociais e econômicas
paramilitares locais. O estado democrático está se que forçam camponeses ao cultivo ilícito e tentar
tornando cada vez mais subordinado à lógica da assegurar para outras culturas melhor acesso ao
guerra e a distinção entre combatentes e civis é difusa, mercado.
senão inexistente. Líderes sindicais, grupos femininos e Manuela Mesa, Centro de Investigación para la Paz,
organizações de direitos humanos são freqüentemente Madri
alvos de perseguição. fonte: Vide nota final 22.

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Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

parte de um processo de criação de normas e sobre esta questão. Avanços na implementação


regulamentos novos.25 do Programa de Ação estão particularmente
Todavia, práticas questionáveis continuam lentos na África do Norte, Oriente Médio e
a ocorrer. Em 2003, por exemplo, o Reino partes da Ásia. A fim de estimular as ações, o
Unido decidiu continuar com as exportações Centro Regional de Segurança Humana, na
para Indonésia, apesar do Código de Conduta Jordânia, organizou um workshop sobre
da UE. Embora a preocupação crescente medidas nacionais e regionais e uma ONG
com segurança nesta era de terrorismo foi fundada em novembro de 2002.28
presumivelmente recomendasse maior cautela
com as transferências, a “guerra ao terror” está O Brasil, assolado pelo crime,
tendo, de certa forma, o efeito oposto. A promulgou o Estatuto do
disposição de um governo recipiente juntar- Desarmamento, em dezembro de 2003,
se à coalizão “antiterror”, freqüentemente, que estabelece, entre outros objetivos,
relega seus abusos aos direitos humanos e a a proibição do porte de armas de fogo.
outras considerações.26
Em nível global, o controle de armas Outro esforço em nível global é o
pequenas recebeu um novo impulso a partir Protocolo de Ar mas de Fogo à atual
de uma conferência das Nações Unidas, em Convenção contra o Crime Transnacional
2001, que levou a um Programa de Ação. Organizado, que a Assembléia Geral da ONU
Embora tenha ficado aquém das expectativas adotou, em maio de 2001. O protocolo visa
de grupos engajados da sociedade civil, o promover a cooperação entre governos para
programa efetivamente encoraja governos a a prevenção e combate à fabricação ilícita e
adotarem leis e regulamentos adequados e a ao tráfico de armas de fogo, componentes e
informar as medidas que estão tomando em munição, através do desenvolvimento de
várias áreas: melhoria de gestão de estocagem, normas internacionais harmônicas. Todavia,
controle de transferência e regulação de até setembro de 2004, apenas 52 nações
intermediação, melhorias na marcação e haviam assinado (Estados Unidos, França e
rastreamento de armas e também registro, Rússia, especialmente, não o fizeram); as 26
estabelecimento de penalidades criminais para ratificações até hoje ainda estão muito aquém
o tráfico, recolhimento e disposição de armas das 40 necessárias para que o protocolo entre
excedentes e aumento da conscientização em vigor.29
pública.27 Vários governos intensificaram seus
Uma coalizão global da sociedade civil, a esforços, aplicando maior rigor no controle
Rede de Ação Internacional sobre Armas interno. Os esforços enfocaram parti-
Pequenas, está pressionando os governos a cularmente a posse de armas automáticas e
cumprirem seus compromissos e a fecharem semi-automáticas. Uma das iniciativas mais
o fosso entre retórica e ação. Enquanto isso, ambiciosas ocorreu no Canadá, que
vários governos, organizações internacionais promulgou uma nova lei, em janeiro de 2003.
e não-governamentais (ONGs) se reuniram E o Brasil, assolado pelo crime – onde 300.000
no que foi denominado “Processo de pessoas foram mortas em violência urbana na
Genebra” para consultas informais regulares última década –, promulgou o Estatuto do

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Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

Desarmamento, em dezembro de 2003, que de manutenção da paz, não só das Nações


estabelece, entre outros objetivos, a proibição Unidas – na América Central, Bálcãs, diferentes
do porte de armas de fogo, elevação da idade regiões da África subsaariana, Afeganistão e
mínima para a posse legal para 25 anos e a Camboja –, cujos mandatos incluíam o
realização de um referendo nacional, em 2005, desarmamento de ex-soldados e combatentes
sobre a proibição de todas as vendas de armas rebeldes.32
e munição. Na Tailândia, o Primeiro-ministro Caracteristicamente, no final de um conflito
Thaksin Shinawatra deseja tornar o país livre não existe um inventário seguro ou confiável
de armas dentro de cinco a seis anos, a partir das armas em poder dos combatentes, e assim
de uma proibição de novas vendas. Nos torna-se difícil estabelecer uma base e avaliar
Estados Unidos, por outro lado, a influência quando o desar mamento está, de fato,
política do lobby das armas impede qualquer ocorrendo. Durante as negociações de paz,
medida mais ousada. O poder da National Rifle cada lado tem interesse em inflar o número
Association foi novamente demonstrado em de armas sob seu controle, a fim de ganhar
setembro de 2004, quando o Governo Bush concessões dos oponentes. Quando se chega
e o Congresso deixaram de prorrogar uma ao desarmamento efetivo, todavia, os prota-
proibição de 1994 sobre armas de assalto, gonistas tendem a minimizar seus estoques,
numa afronta ao grande apoio popular à entregando apenas uma parcela das armas e
proibição.30 retendo as melhores. Duas perguntas
Finalmente, embargos internacionais de importantes, não respondidas, são se medidas
armas – embora caracteristicamente não coercitivas devem ser tomadas, caso alguns
limitados a (ou focados em) armas pequenas dos atores descumpram compromissos e se
– são outra iniciativa de controle do fluxo os civis, além dos ex-combatentes, também
ilícito de armas. Vários governos e grupos devem ser desarmados.33
rebeldes têm sido objeto de embargos de A escolha do momento é crucial.
armas pelas Nações Unidas, desde 1990 (ver Idealmente, o desarmamento deve ser
Tabela 7-3). Além disso, a União Européia realizado logo que a situação política seja
aplicou embargos à Líbia, China, Myanmar, favorável e os recursos adequados e as forças
vários países sucessores iugoslavos, República de paz em número suficiente de efetivos
Democrática do Congo, Sudão, Nigéria, estejam posicionadas. Freqüentemente, porém,
Indonésia e Zimbábue. Estes esforços, porém, há muita demora na criação de condições
são freqüentemente violados, necessitando de favoráveis e a experiência revela que a
maiores recursos para monitoração e disposição dos protagonistas de serem
implementação.31 desarmados tende a diminuir, ao longo do
Os esforços para limitar e controlar o fluxo tempo, independentemente dos compro-
de armas pequenas são apenas uma face da missos no papel. E, uma vez que as armas
moeda; a outra face é a redução do número são recolhidas, alguém deverá decidir o que
de armas em circulação. Uma das tarefas mais fazer com elas. Mantenedores da paz
urgentes é o recolhimento de armas que freqüentemente as repassam para um exército
sobram após o fim das guerras civis. Desde nacional reconstituído (que integre soldados
1990, houve pelo menos 17 grandes operações governamentais e rebeldes), ao invés de

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Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

Tabela 7-3. Embargos Internacionais de Armas, 1990 até o presente

País-alvo Entrada em Vigor Duração Observações

Iraque Agosto de 1990 Em curso

Antiga Iugoslávia Setembro de 1991 Junho de 1996

Somália Janeiro de 1992 Em curso

Líbia Março de 1992 Abril de 1999

Libéria Novembro de 1992 Em curso O embargo original terminou em


março de 2001, porém foi
substituído por outro, imposto
por outros motivos.
Haiti Junho de 1993 1994

Angola (rebeldes UNITA) Setembro de 1993 Em curso

Ruanda (rebeldes) Maio de 1994 Em curso Aplicado apenas para grupos


rebeldes, após agosto de 1995

Afeganistão Dezembro de 1996 Janeiro de 2002 Iniciado como embargo


voluntário; tornou-se obrigatório
em dezembro de 2000. Após
janeiro de 2002, restrito a
Osama bin Laden e membros da
al Qaeda e Talibã.

Antiga Iugoslávia, Kosovo Março de 1998 Setembro de 2001

Serra Leoa (rebeldes RUF) Outubro de 1997 Em curso Aplicado apenas para rebeldes
RUF, após junho de 1998.

Eritréa e Etiópia Fevereiro de 1999 Maio de 2001 Iniciado como embargo


voluntário; tornou-se obrigatório,
em maio de 2000.

FONTE: Vide nota final 31.

destruí-las. Entretanto, controles fracos sobre ser entregues sem receio de processo. Após a
elas e o fato de muitos soldados ganharem guerra civil de El Salvador, por exemplo, um
pouco são um convite para o roubo e venda programa de mercadorias-por-ar mas,
de armas, causando problemas adicionais.34 conduzido pelo Movimento Patriótico contra
Além dos esforços de coleta de o Crime, recolheu quase 5.000 armas de 1996
armas no contexto de operações de a 1997, e a empresa de Nova York Guns for
manutenção da paz, foi lançada uma variedade Goods patrocinou a troca de alimentos e
de programas de recompra, encorajando as roupas por armas em três cidades. Em ambos
pessoas a entregarem suas armas, os casos, a falta de recursos limitou sua
voluntariamente, em troca de compensação eficácia. Na vizinha Nicarágua, incentivos em
monetária. Freqüentemente, os governos espécie e em alimentos e um programa de
estabelecem um período de “anistia”, durante microempreendimento, patrocinado pela
o qual armas sem licença ou ilícitas podem Itália, renderam 64.000 armas de 1992 a 1993

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Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

(com outras 78.000 confiscadas). Em esforços de “armas-para-desenvolvimento”


Moçambique, após os conflitos, o Conselho atraíram apoio financeiro da UE. Outrora,
Cristão iniciou o projeto Transformação de uma reser va praticamente exclusiva de
Armas em Charruas, em 1995 (garantido, em ministérios de defesa e de relações exteriores,
parte, pela Alemanha e Japão), que permitiu os programas de recolhimento de armas
às pessoas trocarem armas por vacas, arados, apoiados por doadores internacionais estão
máquinas de costura e bicicletas.35 cada vez mais integrando as análises de
desarmamento e desenvolvimento. A partir
Além dos esforços de coleta de armas no do final dos anos 90, os governos britânicos,
contexto das operações de manutenção canadenses, alemães e japoneses desenvol-
da paz, foi lançada uma variedade de veram respostas transetoriais que congregam
programas de recompra. diferentes tipos de especialização.37
Em geral, números significativos de armas
Lições importantes foram extraídas destes foram recolhidos nos últimos anos, através de
esforços. A compensação monetária pelas uma variedade de métodos (ver Tabela 7-4).
armas é uma forma, mas pode incentivar o Há hoje um reconhecimento crescente de que
roubo de armas para trocá-las por dinheiro, é melhor destruir as armas para evitar que
fomentando assim atividades ilícitas. O preço sejam roubadas. As Nações Unidas, por
pode ser um fator crucial: se muito abaixo do exemplo, patrocinou o Dia Global da
valor do mercado negro, poucas armas serão Destruição de Armas, em julho de 2002, com
entregues; se muito acima, por outro lado, eventos destinados a causarem impacto
estimulará o mercado negro. Mas, público na Argentina, Brasil, Bósnia, Sérvia,
especialmente nos países em desenvolvimento, África do Sul, Indonésia, Filipinas e outros
onde se pode esperar que muitos ex- países. No Brasil, a ONG Viva Rio foi
combatentes retornem a áreas rurais, os instrumental na destruição de 100.000 armas,
programas que fornecem alimentos ou em 2001 – o maior número destruído num
implementos agrícolas são mais apropriados único dia, em qualquer lugar do mundo.38
do que a oferta de dinheiro. Em termos gerais, Todavia, as maiores quantidades de armas
esquemas de recompra tendem a ser mais destruídas envolveram excedentes de estoques
bem-sucedidos quando são incorporados em policiais ou militares, eliminando mais de 8
programas comunitários mais amplos.36 milhões de armas pequenas, desde 1990 (ver
O PNUD está promovendo Tabela 7-5). Rússia, Ucrânia e Bulgária poderão
programas “armas para o desenvolvimento” em breve destruir outras 3,2 milhões de armas
em mais de 15 países nos Bálcãs, África indesejadas. (A Rússia planejava desativar 1
subsaariana e América Central. Na Albânia, milhão de armas pequenas, juntamente com
onde cerca de 200.000 armas saqueadas de 140 milhões de pentes de munição, entre 2002
depósitos do governo ainda estavam em e 2005, porém ainda está considerando
circulação, um projeto do PNUD, de 2002 a exportar ao invés de destruir.)39
2004, fez comunidades competirem por Muito do que ocorreu em prol de uma
recursos para projetos desenvolvimentistas, maior coleta e destruição de armas, ao longo
através da entrega de armas. No Camboja, da última década, foi encorajador. Porém, é

153
Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

Tabela 7-4. Programas Selecionados de Recolhimento de Armas P equenas,


Pequenas,
de 1989 a 2003
Armas Pequenas Recolhidas1
Organização ou
Região/País Período Implementação Armas Pentes de Munição

África

Máli de 1995 a 96 PNUD 3.000 —


Moçambique de 1995 a 2003 Moçambique, governos sul-africanos 34.903 11,4 milhões
Libéria de 1996 a 97 Força de Paz da ONU/África Ocidental 17.287 1,4milhão
Serra Leoa de 1999 a 2002 Força de Paz da ONU/África Ocidental 26.000 935.495
Angola 2002 Grupo rebelde UNITA 25.000 —
África do Sul desde 1995 Governo 260.000 —

Américas
Nicarágua de 1989 a 93 Força de Paz da ONU 159.833 250.000
El Salvador de 1992 a 93, de 1996 a 99 Força de Paz da ONU, ONGs Antiarmas 28.927 4,1 milhões
Brasil de 2001 a 02 Governo, ONGs 110.000 —
Argentina de 2001 a 02 Governo, ONGs, ONU 12.766 7.200

Ásia-Pacífico
Austrália de 1996 a 98 Governo 643.726 —
Camboja de 1998 a 2002 Governo 119.000 —
Paquistão de 2001 a 02 Governo 141.180 848.407
Tailândia 2003 Governo 100.000+ —

Europa
Croácia de 1996 a 97 Força de Paz da ONU 21.929 1,8 milhão
Grã-Bretanha de 1996 a 97 Governo 185.000 —
Kosovo 1999 Força de Paz da OTAN 38.200 5 milhões
Albânia de 1997 a 2002 Agências da ONU 200.377 —
Bósnia de 1999 a 2002 Força de Paz da OTAN 96.230 6,6 milhões
1
Algumas destas armas foram posteriormente destruídas
FONTE: Vide nota final 38.

necessário um maior avanço, a fim de das dimensões do problema; um outro é evitar


verdadeiramente enfrentar a praga das armas que ex-combatentes se tornem agentes de
pequenas. Considerando que surgem cerca de descontentamento e instabilidade. A reinte-
8 milhões de novas armas a cada ano, a gração destes à vida civil é uma tarefa
produção ainda supera a destruição, no monumental, numa ocasião quando a guerra
mínimo, por um fator de 10. destruiu grande parte da infra-estrutura pública,
a atividade econômica continua debilitada e
os tesouros nacionais estão exauridos. Embora
Do Combate à Vida Civil não haja violência política, a violência social e
criminal estão, freqüentemente, em ascensão.
Nos países que se recuperam de conflitos A desmobilização envolve, caracteris-
armados, o processo de desmobilização de ticamente, o alojamento temporário de ex-
soldados e outros combatentes é um desafio combatentes em áreas onde podem ser
gigantesco. Assegurar que as armas não se desarmados, receber alimentação e cuidados
disseminem para novos conflitos é apenas uma médicos, e algum treinamento básico e

154
Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

Tabela 7-5. Principais Esforços de sobreviver pode ser difícil de resistir – parti-
Destruição de Armas Pequenas, cularmente quando tende a ser mais lucrativa
1990-2003
do que a vida precária de um agricultor de
País Período Nº de Armas subsistência ou trabalhador diarista. Outros
Destruídas
Alemanha de 1990 a 2003 2,2 milhões
podem decidir vender armas que porventura
China de 1999 a 2001 1,3 milhão guardaram a fim de suplementar suas baixas
Rússia de 1998 a 2002 890.000 rendas, alimentando um desmedido mercado
Estados de 1993 a 96 830.000
Unidos
negro de armas excedentes.41
Austrália de 1997 a 98 644.000 A reintegração de ex-combatentes precisará
África do Sul de 1998 a 2001 315.000 acompanhar a reconstrução geral da
FONTE: Vide nota final 39.
sociedade, inclusive reconciliação e
orientação para ajudá-los a lidar com a vida consolidação de processos políticos e
civil. Nos países pobres, os recursos instituições que possam evitar nova
disponíveis são, quase sempre, insuficientes, e instabilidade e violência. A experiência recente
assim, estes locais são inadequados – sem de Angola é um exemplo das dificuldades
saneamento e acomodações apropriadas e envolvidas. (Ver Quadro 7-2).42
comida suficiente. Atrasos devidos à carência Em alguns casos, a instabilidade contínua
de recursos ou obstáculos políticos e agrava o desafio, como demonstra a situação
burocráticos podem, às vezes, desfazer todos do Afeganistão. Estagnação econômica,
os esforços de desmobilização. Posterior- desemprego, faccionalismo político e o
mente ao estágio de alojamento, a capacidade contínuo poder de déspotas regionais
e disposição de as comunidades absorverem representam uma situação espinhosa. O que
ex-combatentes e suas famílias é crucial para agrava mais este problema é o lento e
o sucesso dos esforços de reintegração. Um inadequado desembolso da ajuda internacional
obstáculo é que, em guerras civis, a população e o retorno mais rápido do que esperado de
civil sofre o impacto maior da violência e fica refugiados, o que estressa os recursos e gera
indignada com aqueles que julga responsáveis animosidade crescente. A continuada operação
pelo seu sofrimento.40 militar dos Estados Unidos na realidade
Encontrar novos meios de vida é ajudou os déspotas a consolidarem o poder,
freqüentemente difícil. Mesmo quando surgem alienando grande parte da população.43
trabalho e benefícios de curto prazo, não há A experiência com desmobilização em
garantia de um emprego de mais longo prazo. diferentes partes do mundo, ao longo dos
Muitos ex-combatentes enfrentam dificul- últimos 10 a 15 anos é, definitivamente, variada
dades tremendas, devido não só a sua baixa (ver Tabela 7-6). Mas, sem dúvida, o
instrução e qualificação, como também a sua entendimento prático do que é necessário para
pouca experiência com o ambiente do mundo viabilizar os processos de desmobilização e
civil. O treinamento em especializações civis reintegração pós-conflito aumentou consi-
ou não existe ou é inadequado. Oportunidades deravelmente.44
de emprego são raras. Conseqüentemente, a Vários fatores são cruciais para um
tentação de se engajar no banditismo, tráfico resultado bem-sucedido. A capacidade gover-
de drogas ou outras atividades criminosas para namental e vontade política são os mais

155
Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

QUADRO 7-2. ANGOLA: O DESAFIO DA RECONSTRUÇÃO


Angola é um laboratório para os complexos desafios população não dispõe de acesso à água potável; e
de reconstrução de países emergindo de muitos anos mais da metade das crianças não freqüenta escolas.
de guerra. De uma população total de 13 milhões, a Cerca de 1,5 milhão de pessoas dependem da
guerra matou ou mutilou cerca de 1 milhão de assistência internacional para comer.
pessoas; há aproximadamente 4 milhões de pessoas A morte do Comandante da UNITA Jonas
deslocadas internamente e 500.000 refugiados nos Savimbi, em fevereiro de 2002, abriu caminho para a
países vizinhos. A guerra civil devastadora que durou assinatura dos Acordos de Luena e a desmobilização
de 1975 até 2002 lançou o Movimento Popular para da UNITA. Mas, Cabinda, onde a Frente de Liberação
a Libertação de Angola (MPLA) contra a União do Enclave de Cabinda luta pela secessão, ainda está
Nacional para a Independência Total de Angola em guerra. Esta província produz 60% do petróleo
(UNITA). de Angola, porém sofre de uma pobreza ainda maior
Angola é rica em recursos minerais e agrícolas. É o do que o país como um todo. Partes da região estão
segundo maior produtor de petróleo da África hoje com acesso negado para grupos de direitos
subsaariana – com uma produção de 900.000 barris/ humanos e observadores estrangeiros.
dia, devendo superar a Nigéria, até 2008 – e possui a O Banco Mundial e agências das Nações Unidas
quarta maior reserva de diamantes do mundo. Mas, estão hoje fornecendo apoio a mais de 400.000 ex-
com petróleo e diamantes alimentando a guerra, a combatentes e suas famílias. Os esforços focam
agricultura e a indústria ou foram destruídas ou agricultura, treinamento vocacional, criação de
desprezadas. Durante a guerra, empréstimos de emprego e colocação, e apoio ao micro-crédito. A
bancos internacionais foram garantidos contra a reintegração deverá ser concluída até dezembro de
produção futura de petróleo, hipotecando o futuro 2006. Porém este apoio não é suficiente. A situação
do país. O país atualmente ocupa a 166a posição das mulheres é particularmente crítica, uma vez que
entre 175 países no Índice de Desenvolvimento seu “status” como ex-combatentes nunca foi
Humano do PNUD: 70% da população vive na reconhecido. Da mesma forma, a maioria dos
pobreza; a expectativa de vida, de aproximadamente refugiados e pessoas deslocadas retornou sem
40 anos, está um terço abaixo da média dos países qualquer assistência e continua altamente vulnerável. O
em desenvolvimento; uma em cada quatro crianças desarmamento teve pouco impacto na redução do
morre antes de completar cinco anos; 60% da número de armas pequenas (a maior parte em poder

decisivos. Porém, outros fatores importantes crianças-soldados são analfabetas e sem


incluem a influência exercida por fatores qualquer qualificação para a vida civil. Em geral,
externos; coordenação entre agências mais de meio milhão de crianças – a maioria
doadoras nacionais, ajuda internacional e entre 15 e 18 anos, mas algumas muito mais
organizações desenvolvimentistas e grupos da jovens – foram recrutadas para as forças
sociedade civil; percepções políticas de custo- armadas e uma variedade de grupos armados
benefício entre combatentes, comunidades não-governamentais, em mais de 85 países em
locais e outros agentes; e oportunidades eco- todo o mundo. Acredita-se que mais de
nômicas para aqueles que buscam rein- 300.000 destes menores estejam ativamente
tegração.45 envolvidos em lutas em cerca de 33 conflitos
Crianças-soldados têm necessidades recentes ou em andamento. Enquanto algumas
específicas. Muitas delas nunca tiveram uma foram recrutadas à força, outras foram
infância “normal” e algumas só conhecem a motivadas a se alistar pela pobreza – particu-
violência organizada. Família, amigos e larmente falta de instrução, ausência de
comunidade foram assoladas pela guerra; emprego, exclusão e discriminação. Uma vez
escolas freqüentemente são destruídas ou que as armas pequenas são simples de operar
abandonadas, o que quer dizer que muitas e leves, sua proliferação facilitou o crescimento

156
Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

QUADRO 7-2. ANGOLA: O DESAFIO DA RECONSTRUÇÃO

de civis), calculado em torno de 4 milhões. Imensas públicas que utilizam o argumento de patriotismo e
áreas ainda estão inacessíveis devido a minas terrestres soberania para silenciar vozes opositoras.
(estimadas a grosso modo entre 2 e 6 milhões), que As eleições poderão ser um divisor de águas. Mas
impedem o retorno e retomada da agricultura. A só se as necessidades básicas da população forem
desativação provavelmente levará cerca de 10 anos. atendidas, para que as preocupações quanto à
Uma rede clientelista se estende por todos os sobrevivência diária não eclipsem o debate político,
setores da sociedade angolana. Acesso a emprego, caso o cadastramento de eleitores avance,
bens, serviços e recursos depende dessas relações e é suficientemente, e caso maior liberdade de informação
marcado por divisões classistas, étnicas e regionais. Em seja criada, acabando com o quase monopólio total
muitas municipalidades, comunas e aldeias, o Estado é da mídia pelo Estado. Só assim poderá a incipiente,
praticamente ausente, não há vontade política e meios mas ainda fraca, sociedade civil se fazer ouvir. De
para prestar serviços sociais. O controle da máquina outra forma, as eleições servirão apenas para legitimar
estatal pelo MPLA permite-lhe se apropriar dos o sistema autoritário do MPLA.
recursos, controlar a riqueza e criar uma autocracia Angola praticamente desapareceu da agenda
predatória, turvando a distinção entre partido e internacional, já que a guerra acabou. Há perigo de a
governo. Entretanto, isto é um sintoma geral da comunidade internacional apoiar o governo, enquanto
cultura política angolana: outros partidos outros países têm assegurado um suprimento contínuo
provavelmente fariam o mesmo se estivessem no de petróleo. Porém, o apoio de doadores deverá
poder. estar condicionado a avanços em direção à
A UNITA se transformou num partido político, transparência, boa governança e conduta
porém, a reconciliação – tão necessária – não é parte democrática. Além disso, as empresas petrolíferas e
do debate público. A situação continua volátil e atos outros investidores estrangeiros deverão prestar
de violência política têm ocorrido. Há um clima de contas de suas atividades. Estas são tarefas cruciais
terror, especialmente nas áreas rurais. Tensões podem para a sociedade civil, dentro e fora de Angola.
se agravar próximo às eleições gerais, que devem ser
realizadas em 2006. O medo continua a limitar a - Mabel González Bustelo, Centro de Investigación
participação de amplos setores da população nos para la Paz, Madri
assuntos públicos, alimentado por uma cultura política
que confunde crítica com subversão e por autoridades fonte: Vide nota final 42.

das fileiras de crianças-soldados.46 recrutamento por grupos armados não-


O Unicef desempenhou um papel-chave governamentais, de 15 para 18 anos.47
no desenvolvimento de programas de Programas de desmobilização e reinte-
assessoramento, alfabetização e vocacionais, gração sofrem freqüentemente de uma falta
buscando reunificar as crianças com suas de apoio financeiro, carecendo de um
famílias em Serra Leoa, Burundi, Libéria, compromisso dedicado dos países doadores.
Angola, Sri Lanka e Filipinas. Há esforços em Em geral, tem sido mais fácil obter finan-
curso para proibir o recrutamento de menores. ciamento para desarmamento do que para
Em maio de 2000, o Protocolo Opcional à desmobilização; o componente de
Convenção dos Direitos da Criança, que trata reintegração – que tende a ter menos
do envolvimento de crianças em conflitos visibilidade e exigir compromissos de longo
armados, foi submetido à assinatura. Entrou prazo – tem sido particularmente burlado.48
em vigor em fevereiro de 2002, e 78 nações Tão importante como assegurar que ex-
já o ratificaram. O protocolo eleva a idade combatentes não sejam uma ameaça contínua
mínima para participação direta em hosti- para a sociedade é não prestar assistência a
lidades, recrutamento obrigatório e qualquer eles às custas de outros grupos que sofreram

157
Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

Tabela 7-6. Experiências Selecionadas de Desmobilização em Países


Países
Emergentes de Guerras, de 1992 ao Presente

País Observações

El Salvador Uma taxa de desemprego atingindo 50% tornou a reintegração extremamente difícil
para muitos dos 40.000 soldados e guerrilheiros desmobilizados em 1992. Gangues
fortemente armadas, formadas por alguns ex-soldados e jovens insatisfeitos, são
responsáveis por assassinatos, seqüestros, roubos e tráfico de armas e de drogas.

Nicarágua A promessa de grande parte das terras, tratamento de saúde e ajuda econômica para
88.000 combatentes sandinistas e contras desmobilizados, e suas famílias, não se
materializou. A penúria aguda levou ex-combatentes a se voltarem para o banditismo
e o tráfico de armas. Levaram anos para se chegar a um acordo com todos os
grupos.

Moçambique O financiamento internacional insuficiente e atrasado limitou programas de


reintegração, como treinamento vocacional, esquemas de obras públicas e
fornecimento de sementes e implementos agrícolas. A falta de emprego levou a um
aumento do crime e da violência.

Serra Leoa Em janeiro de 2002, um total de 72.490 combatentes havia concluído o processo de
desarmamento. A reintegração de longo prazo depende da revitalização da
economia, empregos e projetos comunitários bem planejados. Não está claro
quantos ex-combatentes encontraram um novo meio de vida.

Libéria Um acordo de paz acabou com a guerra civil, em agosto de 2003. No verão de
2004, 49.000, dos 60.000 antigos combatentes governamentais e rebeldes haviam
sido desarmados, e cerca de 7.000 receberam treinamento vocacional. Porém, a
ajuda insuficiente ameaça a reintegração, o reassentamento de refugiados e de
pessoas deslocadas internamente e a reconstrução.

Afeganistão Condições econômicas precárias impedem a reintegração de ex-combatentes. Um


projeto-piloto da ONU ajuda 20.000 ex-combatentes e suas comunidades, através
de treinamento vocacional e profissional, esquemas geradores de renda através de
microcrédito e formação de microempresas, e parcerias público-privadas de
investimento. A Organização Internacional do Comércio está oferecendo treinamento
necessário para o setor de construção.

Sri Lanka Considerando os graves problemas de desemprego, a reintegração de um grande


número de ex-combatentes poderá exacerbar as tensões sociais. Desertores das
forças armadas de Sri Lanka são responsáveis pelo aumento do crime no sul do país.
FONTE : Vide nota final 44.

com os conflitos (como refugiados e pessoas comunidades progressistas poderão assegurar


deslocadas internamente), quase sempre por que ex-combatentes, ou outros, não recorram
culpa daqueles que estão sendo desmo- às armas para acerto de contas. Neste contexto,
bilizados. Faz sentido, portanto, desenvolver nunca será demasiado realçar a importância
programas integrados que beneficiem de proporcionar justiça pós-conflito, apoiar a
amplamente as comunidades. Afinal, só as reconstrução e promover a reconciliação.49
Teóricos e praticantes tradicionais de
segurança tendem a supor que o importante
158 é lidar com os armamentos. Aqueles que
promovem uma visão alternativa da
Estado do Mundo 2005
DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA

LIGAÇÃO DE SEGURANÇA

Proliferação Nuclear
Existem muitos perigos graves decorrentes suscitam temores. Alguns dos insucessos na
das cerca de 28.000 armas nucleares contenção da não-proliferação resultaram
mantidas por oito nações em todo o de falhas do próprio regime de não-
mundo. O mais perigoso é a ampla proliferação; muitos outros derivam da má
disponibilidade de urânio e plutônio vontade de cobrar compromissos
altamente enriquecidos, os materiais físseis assumidos e exigir cumprimento das
no núcleo das armas nucleares. Esses resoluções tão determinantemente
materiais se tornaram mais accessíveis a aprovadas.2
terroristas, devido ao colapso da União Existem entretanto tendências
Soviética e à segurança precária dos positivas a serem consolidadas. Desde a
estoques nucleares nas antigas repúblicas assinatura do TNP, em 1968, mais países
soviéticas e em dezenas de outros países desistiram de programas de arma nuclear
possuidores de energia nuclear.1 do que iniciaram. Existem menos armas
Existe também o perigo de algumas nucleares no mundo, e menos nações com
nações adquirirem armas nucleares estes programas, do que existiam 20 anos
explorando as brechas do Tratado de Não- atrás. Os Estados Unidos e a União
proliferação Nuclear (TNP). Da forma que Soviética continuam a cooperar na
está redigido, os países podem adquirir desmontagem e segurança das armas
tecnologias que os conduzam à beira da nucleares e materiais da guerra fria. No
capacidade de armas nucleares, sem entanto, o Tratado bilateral de Moscou é
necessariamente violar os termos do omisso em medidas de verificação e
acordo; poderão então abandonar o tratado qualquer um dos participantes pode desistir
sem sofrer penalidades. ao final de seu termo; assim ele deixa de
Finalmente, há dúvidas crescentes sobre a fortalecer tratados anteriores de controle de
sustentabilidade do regime de não- armas, o START I e II. 3
proliferação. Isto é mais perturbador nas A decisão da Líbia de desistir e
nações com capacidade tecnológica de comprovadamente desmontar sua
desenvolver armas nucleares e que tomaram capacidade clandestina de armas nucleares é
uma decisão política de não fazê-lo. Alguns um sucesso importante. A Líbia seguiu o
líderes brasileiros e japoneses, por exemplo, exemplo da África do Sul – o primeiro país
têm sugerido abertamente que seus a construir armas nucleares e a então desistir
respectivos países reconsiderem as opções delas, em 1993 – e deveria servir de modelo
de armas nucleares. Revelações recentes, para outras nações delinqüentes. 4
dando conta de que cientistas da Coréia do Por outro lado, Índia, Paquistão e
Sul produziram uma pequena quantidade de presumivelmente Israel se filiaram ao
urânio altamente enriquecido, também “clube” nuclear. A crise do Iraque,

159
Estado do Mundo 2005
PROLIFERAÇÃO NUCLEAR

disseminação de Abrangente de Proibição


tecnologias nucleares de Testes Nucleares e a
pelo Paquistão, as um Tratado verificável
artimanhas da Coréia do de Proibição da
Norte e preocupações Produção de Materiais
sobre o Iraque Físseis, bem como
aumentaram a vigilância cessando toda pesquisa e
internacional sobre os desenvolvimento de
perigos representados novas armas nucleares.
pela proliferação. Diante Concordância significa
destes perigos, a União mais do que assinatura
Européia tomou uma de tratados ou
nova decisão para a O míssil balístico intercontinental Peacekeeper declarações de boas
proliferação, se intenções – significa
esforçando para frustrar os programas da atuação. E “universal” significa que todas as
Líbia e Iraque e adotando uma estratégia partes implicadas devem concordar com as
unificada que requer concordância plena normas e condições aplicáveis. Isto inclui
com as normas de não-proliferação em atores que se filiaram ao TNP e os que não
todos os acordos futuros de comércio e se filiaram. Também inclui corporações e
cooperação.5 indivíduos. O peso do compromisso
Para consolidar esses sucessos e prevenir abrange não somente as nações procurando
novas ameaças, o mundo necessita de uma se capacitar às armas nucleares através de
nova estratégia. A meta desta estratégia programas de ciclo de uso duplo de
agora deve ser a concordância universal combustível ou aqueles incentivando a
com as normas e termos de um regime proliferação, através de transferência de
restrito de não-proliferação nuclear. Os tecnologia, mas também nações com armas
Estados Unidos devem assumir a liderança nucleares que não estão honrando seus
no desenvolvimento deste plano global. compromissos.
Para que isto aconteça, a próxima Cinco obrigações compõem a estratégia de
administração terá de trabalhar com afinco consentimento mundial. O pleno atendimento
para recompor a perda de credibilidade de atenderá aos problemas mais urgentes. Cada
Washington, depois das acusações falsas um destes objetivos gerais requer políticas
ao Iraque da posse de armas de destruição subsidiárias nacionais e intencionais, recursos
em massa. Deve também reverter o curso e reformas institucionais. Algumas destas
da atual política nuclear dos Estados medidas requerem novos códigos de conduta
Unidos, com um compromisso ao Tratado voluntários e novas leis; outras necessitam
Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

somente da vontade de atender aos honrar seus compromissos de banir testes


compromissos existentes. 6 explosivos nucleares e minimizar o papel das
Primeiramente, países sem armas nucleares armas nucleares nas medidas de segurança e
devem reafirmar seu compromisso de nunca política internacional. Devem também
adquirir estas armas. Este compromisso deve identificar e esforçar-se para criar condições
se desenvolver para a proibição de aquisição necessárias para a eliminação inspecionada de
adicional nacional de instalações que possam todos os arsenais nucleares.
produzir materiais usados diretamente em Em quinto lugar, os países devem se
armas nucleares (plutônio separado e urânio comprometer a desenvolver estratégias
altamente enriquecido). diplomáticas baseadas em resolução de
Em segundo, os países devem proteger conflitos. Aqueles que possuem ar mas
todos materiais nucleares, mantendo normas nucleares devem usar sua liderança para
e mecanismos de segurança e monitoramento, resolver conflitos regionais que levem ou
e responder por todos os materiais físseis sob justifiquem a procura de segurança por parte
qualquer forma. Tais mecanismos se fazem de alguns países, através de armas nucleares,
necessários para prevenir o terrorismo nuclear biológicas ou químicas.
e concomitantemente criar a possibilidade de Líderes políticos devem forjar uma nova e
um desarmamento nuclear seguro. Devem ser corajosa estratégia de segurança nuclear – uma
desenvolvidas opções para o descarte seguro, que proteja e elimine materiais nucleares antes
a longo prazo, de materiais físseis. que terroristas possam roubá-los, e que reforce
Em terceiro lugar, os países devem um regime de não-proliferação gravemente
estabelecer proibições aplicáveis a corporações atingido, antes que surjam novos países
e países que ajudem secretamente a aquisição nucleares. Com envolvimento ativo de
de tecnologia, material, e know-how necessários cidadãos conscientes, com colaboração
para armas nucleares. internacional e com real liderança esta é uma
Em quarto, medidas devem ser tomadas meta exeqüível.
para desvalorizar o valor político e militar das - Joseph Cirincione, Carnegie Endowment
armas nucleares. Todos os países devem for International Peace

161
Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR

LIGAÇÃO DE SEGURANÇA

Armas Químicas
Os ataques de 11 de setembro aos Estados em abril de 1997, obrigando os quatros
Unidos e a subseqüente “guerra ao signatários, possuidores, na época, de
terrorismo” chamaram a atenção do público estoques declarados – Estados Unidos,
e do governo quanto à importância da Rússia, Índia e Coréia do Sul –, a abolir seus
aceleração dos programas antiterrorismo e de arsenais, até 2007, com opção de dilatação
não-proliferação de armas. Felizmente, todas até 2012. Até setembro de 2004, 165 países
as grandes potências concordaram em abolir já tinham ratificado ou assinado o tratado, se
uma das principais classes de armas de comprometendo em parar toda a pesquisa,
destruição em massa: as armas químicas. O desenvolvimento, produção, uso e
uso pelo Iraque de tais armas contra seus transferência de armas químicas e em
cidadãos curdos em Halabja, em março de destruir todas as suas reservas. Entre os
1988, e o uso do gás sarin pelo grupo países que ainda não ratificaram ou
terrorista japonês Aum Shinrikyo, no metrô assinaram a convenção estão Egito, Iraque,
de Tóquio, em março de 1995, ilustram o Israel, Líbano, Coréia do Norte, Somália e
terrível potencial dessas armas mortais.1 Síria.3
Atualmente, apenas seis países no mundo A destruição de reservas de armas
possuem estoques declarados de armas químicas está acontecendo, embora
químicas - Albânia, Índia, Líbia, Rússia, lentamente. Os Estados Unidos começaram
Coréia do Sul e Estados Unidos. Rússia e um programa de destruição ativa no início
Estados Unidos possuem acima de 98% da década de 90 e até agora destruíram mais
destes estoques. Um dos maiores perigos é de 8.000 toneladas – 26% do seu arsenal
a possibilidade de desvio e ameaça declarado de aproximadamente 31.500
terrorista. Ao longo da década passada, toneladas. A Rússia ficou atrás, tendo
inspeções bilaterais e multilaterais de destruído somente cerca de 800 toneladas,
arsenais, in loco, demonstraram quão ou 2% do seu arsenal declarado de
vulnerável são alguns, se não todos, à aproximadamente 40.000 toneladas. O
infiltração, roubo e possível desvio para ritmo, entretanto, deve acelerar nos
grupos nacionais ou subnacionais. 2 próximos cinco anos, com duas novas
Duas décadas atrás, os Estados Unidos e instalações para administrar a destruição
a União Soviética concordaram unilateral e entrando em operação. Tanto Índia quanto
reciprocamente em abolir seus grandes e Coréia do Sul estão fazendo grande
obsoletos arsenais. Este compromisso foi progresso na eliminação de seus pequenos
fortalecido em 1993, quando estes dois arsenais; também Albânia e Líbia logo darão
juntaram-se a 128 outros países na Convenção início a seus programas. 4
de Armas Químicas, internacionalmente A chave para o sucesso se tornou visível.
mandatória. A convenção entrou em vigor,

162
Estado do Mundo 2005
ARMAS QUÍMICAS

Primeiramente, e ajudar
acima de tudo, funcionários e o
tornou-se claro público a
que todos decidirem sobre
proprietários – suas escolhas. Por
incluindo Cápsulas de artilharia com agente VX aguardando exemplo, a
governos locais e destruição, Rússia
liberação
regionais e proposta de
comunidades vizinhas – devem ser efluentes de agente de nervo neutralizado no
envolvidos no processo completo de rio Delaware, nos Estados Unidos, levantou
destruição de armas. A Rússia aprendeu esta muitos questionamentos não abordados, do
dura lição, em 1989, após uma comunidade mesmo modo que o armazenamento de
local ter voltado atrás e suspendido seu longo prazo de refugo tóxico de betume, na
plano inicial (secreto) de destruição de suas região Kurga, na Rússia. 6
armas químicas, numa instalação centralizada É também essencial uma maior
em Chapeyevsk. Embora os Estados transparência para promover consenso e
Unidos tenham tido um processo mais progresso. Por razões óbvias, o segrego tem
inclusivo, com escritórios de amplo alcance dominado por muito tempo as áreas
e Comissões de Aconselhamento aos nuclear, química e de armas biológicas. Com
Cidadãos, ainda surgem oposições de o aumento do terrorismo e a ameaça de
cidadãos, reguladores oficiais e governos roubo de armas e ataque a reservas,
estaduais, sobre planejamento e discussões representantes oficiais estão outra vez
insuficientes. O que se faz necessário é o tentando limitar o conhecimento e a
reconhecimento de que o desenvolvimento discussão pública. Na maioria dos casos,
social e econômico, a assistência técnica e a isto é um erro. Interessados locais, regionais,
desmilitarização devem trabalhar nacionais e internacionais precisam ter
conjuntamente, para que um projeto seja certeza de que seus interesses estão sendo
bem sucedido. 5 protegidos, uma meta que só pode ser
É também importante que os riscos e alcançada através de transparência e
impactos potenciais para a saúde pública e inspeção. 7
meio ambiente sejam exaustivamente Concomitantemente com um maior
analisados e publicamente discutidos. Todas compromisso com a sociedade civil, existe
as tecnologias de destruição produzem uma necessidade de ampliar as opções
resíduos, alguns mais tóxicos do que outros. tecnológicas disponíveis de desmonte de
Avaliações confiáveis e independentes de armas químicas. A destruição física destas
riscos e da saúde devem ser realizadas para armas não é nem simples nem barata.

163
Estado do Mundo 2005
ARMAS QUÍMICAS

Abrange uma grande variedade de materiais bilhões; o custo do programa dos Estados
e processos perigosos, com riscos Unidos hoje ultrapassa US$ 25 bilhões e
amplamente diversos para o meio ambiente continua subindo. Os compromissos do
e para a saúde pública. A tecnologia de programa Redução Cooperativa de
destruição preferida do exército dos Ameaças, dos Estados Unidos, juntamente
Estados Unidos tem sido, há muito, a com a Parceria Global do G-8, de 2002, de
incineração das armas químicas; no entanto, cerca de US$ 20 bilhões para destruir as
foi o desenvolvimento e a comprovação de armas de destruição em massa na Rússia,
alternativas não-incineradoras, tais como a são elementos vitais para a proteção e
neutralização, que permitiram aos Estados destruição oportunas destes estoques
Unidos implantar instalações em cada local perigosos. 8
de estoques de armas químicas. Uma vez Porém, os países doadores devem
que o desarmamento de armas é do reconhecer que a provisão de fundos e
interesse de todos os países, não somente apoio técnico não lhes dá o direito de ditar
dos proprietários de armas, a comunidade prioridades. E uma associação de fato exige
internacional deve compartilhar a que nações beneficiadas, como a Rússia,
responsabilidade e custo do desarmamento, ajudem a facilitar o processo de
particularmente nos países mais pobres. Em desarmamento com acesso local,
virtude de sua economia em transição, a transparência, vistos, questões de
Rússia deixou isto claro quando assinou e responsabilidade, como é exigido na
ratificou a Convenção de Armas Químicas. maioria dos acordos bilaterais. Com
A destruição das armas químicas da Rússia cooperação de todos os lados, a era das
custará pelo menos de US$ 5 a US$ 10 armas químicas pode ser encerrada.
- Paul F. Walker, Global Green USA

164
Estado do Mundo 2005
PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

CAPÍTULO 8

Construindo a Paz através da


Cooperação Ambiental
Ken Conca, Alexander Carius,
e Geoffrey D. Dabelko

Ao longo da fronteira que separa o Peru do as hostilidades, em 1998, nos termos de um


Equador, as espetaculares florestas úmidas da acordo de paz facilitado pelo Brasil, Argentina,
Cordillera del Condor abrigam uma Chile e Estados Unidos.1
abundância de espécies raras e ameaçadas. Retraçar a fronteira exigiu uma negociação
Esparsamente habitada e minimamente inovadora. Os governos de Peru e Equador
desenvolvida, a cordilheira ostenta uma concordaram em estabelecer zonas de
opulência de biodiversidade só rivalizada pela conservação, ao longo da divisa, que seriam
riqueza de seu ouro, urânio e depósitos administradas por suas agências nacionais,
petrolíferos. Ao invés de se beneficiar deles, chefiadas, porém, por um Comitê Diretor
todavia, a população da Cordillera del Condor binacional. Esta gestão conjunta segue uma
passou por décadas de hostilidade, conflitos lógica tanto ecológica quanto política. Os
fronteiriços e descaso governamental. ecossistemas dos países são fundamentalmente
Durante os meses de verão, quando o clima interdependentes; a zona de conservação da
facilita seu acesso à região remota, forças Cordillera del Condor (ou “parque da paz”)
militares de ambos os países trocam fogo de utiliza esta interdependência para remover um
artilharia, num conflito de baixo nível, que obstáculo particularmente espinhoso para
colocou seus habitantes em perigo e a paz.
desestabilizou a região fronteiriça. Finalmente, Entretanto, os habitantes da cordilheira
após décadas de ebulição e disputas ainda enfrentam certos desafios perenes:
fronteiriças acirradas, Peru e Equador cessaram pobreza aguda, tensões sociais e até mesmo

Ken Conca é Professor Adjunto de Governo e Política e Diretor do Programa Harrison da Agenda Global Futura da
Universidade de Maryland. Alexander Carius é Diretor da Adelphi Research, Berlim. Geoffrey D. Dabelko é Diretor do
Projeto de Mudança Ambiental e Segurança do Woodrow Wilson International Center for Scholars, Washington DC.

165
Estado do Mundo 2005
PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

violência, parte do que é provocado pelo barragem na seção curta do rio que atravessa
próprio parque da paz. Na floresta protegida o país na Faixa Caprivi. Botsuana, por outro
em torno de Canton Nagaritza, os relatos de lado, defende o status quo, que atrai um fluxo
violência entre colonos e agências de turístico lucrativo para explorar o singular
conser vação indicam que, embora os ecossistema do maior delta interiorano da
governos estejam em paz, algumas pessoas África subsaariana e uma área de pantanal
continuam em luta – mas, agora, contra os internacionalmente reconhecida como de
arquitetos do parque. A iniciativa do parque grande significação ecológica.4
da paz pode fortalecer a transformação de Embora estes objetivos mistos e
conflitos entre os dois países, porém o esforço contraditórios possam levar ao conflito, pela
humano por paz e desenvolvimento susten- obtenção de maior controle sobre os recursos
tável continua sendo uma batalha diária.2 partilhados, há esperança de que as instituições
A onze mil quilômetros e um oceano de colaboradoras – se fortes e vitais – possam
distância, a cooperação ambiental também está gerir demandas competitivas sem violência.
ajudando o sul da África a se recuperar de Em 1994, os três países criaram a Comissão
conflitos devastadores e a evitar o surgimento Per manente da Bacia Hidrográfica do
de novos conflitos. Após quase três décadas Okavango (conhecida como OKACOM)
de guerra civil em Angola, hoje é a paz que para gerir a bacia. Há um bom relacionamento
ameaça a tranqüilidade do Rio Okavango, que entre os comissários da OKACOM e um
cai de sua cabeceira em Angola e corre para o reconhecimento crescente de que a cooperação
amplo delta em Botsuana, atravessando a poderá trazer benefícios maiores para todos
Namíbia, num trajeto de 1.100 quilômetros do que as disputas pela água.5
ao sul para o Deserto de Kalahari. Este
ambiente prístino em uma das poucas bacias A cooperação ambiental está ajudando
não-industrializadas que restam no mundo, o sul da África a se recuperar de
abriga uma miríade de espécies de flora e fauna conflitos devastadores e a evitar o
que escapou do impacto do desenvolvimento surgimento de nova violência.
moderno.3
As prementes necessidades ambientais das Infelizmente, a comissão tem se empenhado
três nações da bacia estão pressionando o frágil para obter recursos financeiros e uma forma
meio ambiente fluvial, levantando o espectro política de catalisar uma cooperação proativa.
de um tipo diferente de conflito. Angola deseja Recentemente, a OKACOM convocou
reassentar seus cidadãos deslocados pela organizações não-governamentais (ONGs) e
guerra, que precisarão mais da água do rio. E, a sociedade civil a desempenharem um papel
como nação a montante, Angola tem o poder mais ativo do que comumente ocorre em
de perturbar acordos que, hoje, favorecem outras bacias hidrográficas compartilhadas,
seus vizinhos a jusante. A recém-independente reconhecendo que os três países não poderão,
Namíbia também tem planos para a água do isoladamente, implementar estratégias eficazes
Okavango: quer construir uma adutora para de gestão. Também buscaram oportunidades
seu interior árido e, vez por outra, ameaça de colaboração com doadores e grupos
reativar seu antigo projeto de construir uma conservacionistas internacionais que

166
Estado do Mundo 2005
PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

promovem desenvolvimento ambientalmente ambientais causam ou exacerbam conflitos


sustentável. Até agora, estes mecanismos violentos. Embora recursos escassos e não-
institucionais têm sido suficientemente eficazes, renováveis, como o petróleo, venham, há
eqüitativos e participativos em pender a balança muito, sendo considerados como fonte
mais para criação de confiança e cooperação potencial de conflito, esta nova pesquisa
do que para tensão e violência.6 deslocou o foco para recursos renováveis,
Congregando ecologia e política a serviço como florestas, pesqueiros, água doce e terras
da paz, a Cordillera del Condor e as cultiváveis. Grande parte desse trabalho,
instituições da bacia do Okavango são dois inclusive projetos por pesquisadores
exemplos de uma variedade crescente de canadenses e suíços, em meados dos anos 90,
iniciativas – incluindo parques de paz, projetos constatou pouca evidência de que a
de gestão de bacias hidrográficas compar- degradação ambiental houvesse contribuído
tilhadas, acordos de mares regionais e significativamente para a guerra entre nações.
programas de monitoração ambiental Todavia, os estudos constataram alguma
conjunta –, que buscam promover a evidência de que problemas ambientais
manutenção da paz, através da cooperação podem provocar ou agravar conflitos locais
ambiental. Isto envolve esforços cooperativos oriundos de divisões sociais como etnia, classe
para gerir recursos ambientais como forma ou religião. (Ver Tabela 8-1.)7
de transformar inseguranças e criar relações À medida que o debate meio ambiente-
mais pacíficas entre as partes em disputa. À conflito avançava dentro da comunidade
medida que estas iniciativas se tornarem mais acadêmica, o conceito de “segurança
freqüentes e ganhem ímpeto, poderão ambiental” começou a atrair a atenção das
proporcionar meios de transformar o modo instituições de segurança e legisladores em
como as pessoas abordam conflitos e vêem todo o mundo industrializado. (Da forma que
o meio ambiente. Surpreendentemente, a expressão é comumente utilizada, a segurança
entretanto, relativamente pouco se sabe sobre ambiental engloba um conjunto diversificado
os melhores projetos para essas iniciativas ou de preocupações, além da questão mais
as condições sob as quais podem ter sucesso. estreita das ligações meio ambiente-conflito,
Embora um grande número de pesquisas que incluem a compreensão dos impactos
examine a contribuição da degradação ambientais dos preparativos e condutas de
ambiental para conflitos violentos, existem guerra, redefinição da segurança para focar as
poucas avaliações, em termos de conhe- ameaças ambientais e à saúde dos seres
cimento sistemático, sobre uma possibilidade humanos, e utilização das instituições de
igualmente importante: a cooperação segurança na ajuda ao estudo e gestão do meio
ambiental pode conduzir à paz. ambiente.) Recentemente, o Secretário-Geral
da ONU, Kofi Annan, solicitou a integração
Meio Ambiente e Conflito: das contribuições ambientais a conflitos e
instabilidades na estratégia das Nações Unidas
Um Histórico
para prevenção de conflitos, e nas deliberações
do seu Painel de Alto Nível sobre Ameaças,
Ao longo dos últimos 15 anos, muitos
Desafios e Mudança.8
acadêmicos consideraram se problemas

167
Estado do Mundo 2005
PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

Nos últimos anos, governos nacionais e freqüentemente presente em debates de


organizações intergovernamentais encomen- segurança ambiental. Vejamos esta declaração
daram análises especializadas sobre o conceito de John Deutsch, da Agência Central de
de segurança ambiental, visando ao Inteligência dos Estados Unidos: “Sistemas
desenvolvimento de diretrizes políticas e nacionais de reconhecimento que rastreiam o
procedimentos implementadores. A União movimento de tanques pelo deserto podem,
Européia discutiu formas de integrar o ao mesmo tempo, rastrear o movimento do
conceito em sua emergente política externa e próprio deserto... A inclusão desta dimensão
de segurança e promoveu a segurança ambiental na análise política, econômica e
ambiental como um dos temas da Cúpula militar tradicional acentua nossa capacidade de
Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, alertar legisladores quanto a instabilidades,
realizada em Joanesburgo, em 2002. Nos conflitos ou desastres humanos potenciais e
Estados Unidos, várias agências gover- de identificar situações que possam atrair
namentais – inclusive o Departamento de envolvimento americano.”11
Estado, Departamento da Defesa, Agência de Muitos observadores interpretaram este tipo
Proteção Ambiental, Agência de de declaração como evidência de motivos
Desenvolvimento Internacional e vários órgãos inconfessáveis. Suspeita-se que a atenção às
de inteligência – elaboraram mandatos e ligações meio ambiente-conflito refletem não
políticas, nos anos 90, para lidar com o meio apenas uma preocupação genuína, mas sim
ambiente, conflitos e ligações de segurança. um desejo de prever e isolar pontos críticos
Embora os eventos de 11 de setembro de preocupantes. Preocupações ambientais
2001 tenham colocado essas idéias em segundo podem até ser utilizadas como um raciocínio
plano, muitas agências federais e ONGs lógico para intervenções – como o interesse
continuam buscando meios para transformar súbito do governo americano no longo
essas idéias em programas concretos.9 sofrimento dos “árabes do pântano no
Alegações de que a degradação ambiental Iraque”, que surgiu em paralelo à intervenção
induz a conflitos violentos continuam militar contra o regime de Saddam Hussein.
polêmicas. Céticos assinalam que a cadeia causal Visto sob este prisma, o interesse militar dos
na maioria dos modelos de conflito ambiental Estados Unidos, digamos, nos campos
é longa e tênue, com uma miríade de fatores devastadoramente desnudos do Haiti, poderia
sociais, econômicos e políticos posicionados estar fundamentado num desejo de barrar
entre mudança ambiental e conflito. Outros ondas de refugiados haitianos, ao invés de
questionam as implicações desse conceito, buscar formas de lidar com a pobreza
temendo que definir problemas ambientais sistêmica ou de reverter a degradação de
como conflito “securitizará” a política recursos naturais vitais.
ambiental, injetando pensamentos milita- Apesar do seu ímpeto em muitas partes
rizados do tipo “nós-versus-eles” num âmbito do mundo industrializado, a idéia de segurança
que exija respostas interdependentes e ambiental não tem desempenhado bem seu
cooperativas.10 papel nos palcos globais. Os governos do Sul
Essas reações não são surpreendentes à luz global vêm, há muito, suspeitando de que o
da estrutura de segurança nacional que está interesse cada vez maior do Norte na proteção

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Estado do Mundo 2005
PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

Tabela 8-1. Iniciativas Nacionais e Internacionais Selecionadas sobre o Meio


Ambiente, Conflito, Paz e Segurança

Grupo ou País Ano Iniciativa

Clube de Roma / Dep. de 1972 Os Limites do Crescimento, do Clube de Roma e o Relatório


Estado dos EUA 1981 Global de 2002 ao Presidente, do Governo dos Estados Unidos,
chamaram atenção para os riscos ambientais e para uma gama
de mudanças socioeconômicas associadas (crescimento
populacional, urbanização e migração) que poderiam levar a
conflitos sociais.

Comissão Independente sobre 1982 Em seu primeiro relatório, Segurança Comum, a Comissão
Desarmamento e Questões de Segurança enfatizou a ligação entre segurança e meio ambiente.

Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e 1987 A Comissão ampliou o conceito de segurança em Nosso Futuro
Desenvolvimento Comum: “Toda a noção de segurança como entendida
tradicionalmente – em termos de ameaças políticas e militares à
soberania nacional – deverá ser ampliada para incluir os
impactos crescentes do estresse ambiental – local, nacional,
regional e global.” A Comissão concluiu que “o estresse
ambiental poderá desta forma ser parte importante da rede de
causalidade associada a qualquer conflito podendo, em alguns
casos, ser catalítico.”

Programa das Nações Unidas para o Meio 1988 Um programa conjunto entre o PNUMA e o Instituto de
Ambiente (PNUMA) / Instituto de Pesquisa Pesquisa da Paz, Oslo, sobre “Atividades Militares e Meio
da Paz, Oslo (PRIO) Ambiente Humano” incluiu projetos empíricos de pesquisa em
grande parte concebidos e implementados pelo PRIO. A partir
desta iniciativa, o PRIO desenvolveu um foco de pesquisa sobre
meio ambiente e segurança.

União Soviética 1989 Propostas para a criação de um Conselho de Segurança


Ecológica nas Nações Unidas têm surgido repetidamente, ao
longo dos últimos 15 anos, desde quando o Ministro do Exterior
soviético, Eduard Shevardnadze, e o Presidente Mikhail
Gorbachev, sugeriram à 46ª Assembléia Geral que as questões
ambientais fossem elevadas a este alto status.

Governo da Noruega 1989 Em 1989, o Ministro da Defesa Johan Jørgen Holst observou
que os problemas ambientais podem se tornar fatores
importantes no desenvolvimento de conflitos violentos.

Programa das Nações Unidas para o 1994 O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento incluiu
Desenvolvimento (PNUD) explicitamente a segurança ambiental como um dos
componentes de “segurança humana,” uma estrutura que
continua a encontrar apoio entre o PNUD e alguns governos
nacionais proeminentes, como o Canadá.

Governo da Alemanha 1996 O Ministro Federal do Meio Ambiente encomendou um


relatório especializado sobre meio ambiente e conflito, para
explorar as oportunidades de reforço de políticas e leis
ambientais internacionais.

FONTE: Vide nota final 7

169
Estado do Mundo 2005
PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

Tabela 8-1. (continuação)

Grupo ou País Ano Iniciativa

Organização para o Desenvolvimento e 1998 O Comitê de Assistência ao Desenvolvimento da Organização


Cooperação Econômica para o Desenvolvimento e Cooperação Econômica encomendou
um relatório especializado sobre meio ambiente e conflito.

Organização do Tratado do Atlântico 1999 Em março de 1999, o Comitê da Organização do Tratado do


Norte Atlântico Norte sobre os Desafios da Sociedade Moderna
publicou um relatório abrangente, Meio Ambiente e Segurança
dentro de um Contexto Internacional, após uma consultoria de
três anos com legisladores e especialistas em segurança, meio
ambiente e estrangeiros.

União Européia 2001 Em abril de 2001, o Conselho de Assuntos Gerais da UE


apresentou sua estratégia de integração ambiental sobre a
questão de meio ambiente e segurança e a contribuição do
desenvolvimento sustentável à segurança regional (adotada em
março de 2002).
2002 A UE discutiu como integrar segurança ambiental em sua
emergente política externa e de segurança e a promoveu como
tema para a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável,
em 2002.

Agência Suíça de Cooperação para o 2002 A Agência Suíça de Cooperação para o Desenvolvimento
Desenvolvimento explorou formas de adaptar avaliações de paz e impactos de
conflito a projetos selecionados do seu programa ambiental.

Nações Unidas 2002 O Secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, solicitou
uma melhor integração das contribuições ambientais a conflitos
e instabilidades, na estratégia da organização sobre prevenção
de conflitos e nas deliberações do seu Painel de Alto Nível sobre
Ameaças, Desafios e Mudanças.
Governo da Alemanha
2004 O Plano de Ação Federal sobre Prevenção de Crise Civil,
Resolução de Conflito e Consolidação da Paz Pós-conflito
(publicado em maio de 2004, após aprovação parlamentar)
identificou o desenvolvimento sustentável e a cooperação
ambiental transfronteiriça como fatores decisivos para a
promoção da paz e da estabilidade.

FONTE: Vide nota final 7

ambiental internacional pode prejudicar sua rico servindo aos interesses de países ricos para
própria busca pelo desenvolvimento controle de recursos naturais e de estratégias
econômico. Num contexto de um diálogo desenvolvimentistas. Vista sob este ponto de
ambiental Norte-Sul já contencioso, os países vista, a ênfase do Norte sobre ameaças à
pobres freqüentemente vêem o conceito de segurança do Sul desloca o ônus da
segurança ambiental como uma agenda de país responsabilidade dos males globais, sugere

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Estado do Mundo 2005
PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

uma lógica para intervenção no uso dos identidades regionais em torno de recursos
recursos do Sul e sublinha a tênue soberania compartilhados e estabelecer direitos e
dos países pobres, em face de um poder expectativas mutuamente reconhecidos.13
econômico, militar e institucional, A interdependência de ecossistemas oferece
desigualmente distribuído. Muitos brasileiros, oportunidades de mútuo benefício. Quando
há muito, vêem com suspeita a caracterização vistos isoladamente, os problemas ambientais
da Amazônia pelo Norte como “pulmão da freqüentemente criam graves dicotomias a
Terra,” considerando-a como parte de uma montante e jusante, complicando a cooperação.
campanha de “internacionalização” da floresta Por exemplo, a maioria das leis hídricas
e obstrução do desenvolvimento.12 internacionais parte da premissa de que nações
Dadas essas preocupações, a reformulação a montante e jusante têm interesses
de debates ambientais em termos de segurança fundamentalmente diferentes quanto ao uso
não tem sido um catalisador eficaz para a da água e da proteção ambiental. Mas, as
cooperação ambiental global. Eis aí um comunidades caracteristicamente possuem
paradoxo: a apresentação de um problema muitas interdependências ecológicas
como de “segurança ambiental” poderá inibir simultaneamente sobrepostas; locais a
a cooperação, justamente nos locais onde as montante de um vizinho numa relação
inseguranças ecológicas das pessoas e ecológica podem estar a jusante em relação à
comunidades são mais flagrantes. outra (ver Capítulo 5). Por exemplo, o Japão
está “a jusante” das chaminés industriais da
Por Que o Meio China, porém os dois países compartilham um
ecossistema marinho regional. Os Estados
Ambiente? Unidos estão a montante do México, no Rio
Colorado, porém, a jusante (pelo menos no
Um número crescente de vozes tem sentido físico) das indústrias tóxicas que se
sugerido que focar a paz – e não a segurança desenvolvem na fronteira EUA-México. Estas
– poderá proporcionar um meio de romper interdependências complexas criam
o impasse. Como instrumento de paz, o meio oportunidades para reunir os diferentes
ambiente oferece algumas qualidades úteis, problemas ambientais em formas mais
talvez até singulares, que se prestam à criação estruturadas de cooperação ambiental.
de paz e transformação de conflito: desafios Por sua própria natureza, os problemas
ambientais ignoram fronteiras políticas, exigem ambientais exigem ação preventiva, implicam
uma perspectiva de longo prazo, encorajam horizontes de mais longo prazo e requerem
participação local e não-governamental e um reconhecimento de mudanças súbitas,
estendem a criação de comunidades, além das surpreendentes e dramáticas. Dadas estas
ligações econômicas polarizadoras. Estes características, a cooperação ambiental pode
predicados, às vezes, tornam a cooperação influenciar tomadores de decisão a abraçarem
ambiental transfronteiriça difícil de ser horizontes de mais longo prazo, para que os
alcançada. Porém, onde a cooperação ganhos futuros tenham peso maior nos
efetivamente se enraíza é que é importante cálculos atuais. Por exemplo, tem se tornado
incrementar confiança, implantar hábitos mais comum nos últimos anos as nações que
cooperativos, criar o compartilhamento de assinam acordos sobre bacias hidrográficas

171
Estado do Mundo 2005
PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

compartilhadas criarem uma comissão De forma mais ambiciosa, e também mais


permanente da bacia como plataforma para especulativa, pode ser que a cooperação
troca de informações, iniciativas de conhe- ambiental transfronteiriça possa também
cimento comum e uma perspectiva de mais ajudar a criar um conceito mais amplamente
longo prazo sobre a gestão da bacia compartilhado de lugar e de comunidade.
compartilhada.14 Uma conseqüência poderá ser a soltura das
Questões ambientais encorajam as pessoas amarras tradicionais de identidades políticas
a trabalharem em nível de sociedade-a- “exclusionárias” a favor de um sentido mais
sociedade, como também no nível entre amplo de comunidade ecológica.
nação. Comunidades nacionais podem se unir
através de fronteiras em torno de interdepen- Utilizando Cooperação
dências ecológicas, dando, às vezes, os Ambiental para Construir
primeiros passos para um diálogo que seria
difícil através de canais oficiais. A longo prazo, a Paz
a interação regular entre cientistas e ONGs
poderá ajudar a alicerçar a confiança e a A maioria das iniciativas de paz através da
cooperação implícita. Apesar das batalhas cooperação ambiental se enquadra em uma
diárias nas ruas da Margem Ocidental e na de três categorias parcialmente justapostas:
esforços de prevenção de conflitos relacio-
Faixa de Gaza, para citar apenas um exemplo,
nados diretamente ao meio ambiente, ten-
os palestinos e israelenses continuam a se reunir
tativas de iniciar e manter diálogo entre as
informalmente para administrar aspectos de
partes em conflito e iniciativas para criar uma
seus recursos hídricos compartilhados. base sustentável para a paz. Se a exigência
É quase um artigo de fé entre internacio- mínima para paz é a ausência de conflito vio-
nalistas liberais que a interdependência crescente lento, então, a cooperação ambiental pode
é uma força para a paz na política mundial. desempenhar um papel na prevenção do tipo
Todavia, a interdependência baseada predomi- de violência, que pode ser provocada pela
nantemente em ligações comerciais e de exploração predatória de recursos, degradação
investimento pode ter efeitos profundamente de ecossistemas ou destruição de meios de
polarizadores, como visto na reação contra a vida lastreados em recursos naturais. Não é
globalização econômica. A cooperação de se estranhar que estudos ligando a degra-
ambiental oferece uma oportunidade impor- dação ambiental a conseqüências violentas
tante para estender a construção comunitária tenham apontado para a necessidade de aliviar
transfronteiriça, além da esfera estreita e as pressões sobre meios de vida e realçar a
freqüentemente polarizadora das ligações capacidade das instituições de responderem
econômicas. Por exemplo, muitas organizações aos desafios ambientais. Em outras palavras,
civis e grupos locais no México e Estados a forma mais direta de se fazer a paz através
Unidos, que se opõem ao Acordo de Livre da cooperação ambiental poderá ser a ação
Comércio da América do Norte (ALCA), preventiva de conflitos ambientalmente
estão envolvidos em esforços conjuntos de induzidos.16
proteção ambiental ao longo e através da A cooperação ambiental pode também
fronteira.15 aliviar descontentamentos grupais que se

172
Estado do Mundo 2005
PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

formam em torno de injustiças ecológicas ou conser vacionistas, persuadiu os dois a


são exacerbados por elas. Problemas am- estabelecerem uma reserva trilateral da biosfera
bientais que se agravam podem criar uma na região sul do Cáucaso. Os organizadores
ligação perigosa entre insegurança material e esperam que a cooperação ambiental regional
identificação das pessoas como um grupo irá acentuar a preser vação natural, o
marginalizado. Em cenários onde a etnia afeta desenvolvimento sustentável e, acima de tudo,
as oportunidades políticas e econômicas, os a estabilidade política. Este projeto de longo
efeitos ambientais freqüentemente se prazo fará primeiramente coleta de dados,
desenvolvem de forma desigual também ao capacitação e conscientização. Embora
longo de linhas étnicas. Assim, muitas das áreas Ar mênia e Azerbaijão não estejam, no
de maior poluição industrial nas nações bálticas momento, dispostos a cooperar diretamente,
pós-União Soviética abrigam, basicamente o acordo prevê que reservas naturais da
russos étnicos – criando um mix potencial- biosfera serão implantadas e finalmente
mente explosivo de identidades etno-nacionais, fundidas. Os dois governos também solici-
acentuando a desigualdade social e insa- taram uma avaliação ambiental internacional
tisfações ambientais. Uma cooperação am- independentemente de Nagorno-Karabakh;
biental proativa poderia ajudar a aliviar uma dados objetivos, aceitáveis por ambas as
fonte importante de descontentamento que partes, poderiam pelo menos lançar as bases
está exacerbando esses tipos de divisões sociais. para cooperação.17
Uma segunda abordagem à paz através da
colaboração ambiental vai além de conflitos Apesar das batalhas diárias nas ruas
com componente ambiental específico, da Margem Ocidental, palestinos e
buscando construir a paz através de respostas israelenses continuam a se reunir
cooperativas a desafios ambientais compar- informalmente para administrar aspectos
tilhados. Iniciativas que visem problemas
de seus recursos hídricos compartilhados.
ambientais compartilhados podem ser
utilizadas para estabelecer uma linha direta de
diálogo, quando outras tentativas diplomáticas Uma tentativa semelhante está sendo feita
falharam. Em muitas ocasiões, governos na Cashemira, alvo de uma disputa acirrada
presos a relacionamentos marcados por entre Índia e Paquistão, desde a descolonização
suspeita e hostilidade – quando não violência britânica e o fim da II Guerra Mundial. Alguns
declarada – constataram que questões conservacionistas internacionais argumentam
ambientais são um dos poucos temas em que a implantação de um parque da paz nas
torno dos quais um diálogo contínuo pode montanhas Karakoram, entre Índia e
ser mantido. Paquistão, que marcam a extremidade
Um dos conflitos não-solucionados mais ocidental do Himalaia, ajudaria na adminis-
graves na região politicamente instável do tração do conflito fronteiriço, promovendo
Cáucaso é a disputa entre Armênia e Azer- uma gestão conjunta deste singular ambiente
baijão pelo controle de Nagorno-Karabakh. glacial, onde muitas baixas militares são
No outono de 2000, a Geórgia, que vem causadas mais pelos elementos do que pelo
mediando um diálogo sobre questões fogo inimigo. A idéia de gestão conjunta está

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Estado do Mundo 2005
PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

também enraizada no reconhecimento de que Os céticos poderão ser tentados a descartar


a poluição é a maior ameaça a este ambiente essas iniciativas como questões marginais, não
singular. Sem dúvida, um programa de relacionadas à essência de conflitos arraigados
conservação conjunta numa área remota, – do mesmo modo, talvez, que a cooperação
despopulada, onde o custo de montar das superpotências no espaço sideral durante
operações militares sustentadas é proibitivo, a guerra fria. Porém, a importância política e
parece inadequado para transformar a econômica da cooperação ambiental é alta:
dinâmica estrutural do conflito Índia-Paquistão. nos exemplos fornecidos neste capítulo, isto
Todavia, considerando o atual cessar-fogo e está claro para as partes envolvidas. Problemas
o recente esfriamento das tensões, há um em torno de bacias hidrográficas compar-
sentimento crescente que engajamentos tilhadas, biodiversidade regional, ecossistemas
transfronteiriços deste tipo têm um papel florestais ou padrões de uso do solo e da água
importante a desempenhar na transformação são questões polêmicas e de alto valor, que
de conflitos.18 envolvem a nação em seus níveis mais altos.
Desafios ambientais compartilhados Uma terceira linha de paz através da
podem ser úteis, não só para iniciar diálogos, cooperação ambiental reconhece que uma
mas também para efetivamente transformar, paz duradoura exigirá um alicerce de susten-
através do rompimento das barreiras à tabilidade. Um foco acanhado sobre o fato
cooperação, relações de conflito – transfor- de a carência hídrica “causar” ou não
mando desconfiança, suspeita e interesses violência entre israelenses e palestinos, por
divergentes numa base de conhecimento e exemplo, não percebe o ponto principal:
objetivos compartilhados. Questões tecni- como uma questão de alto valor, a
camente complexas, onde as partes trabalham resolução dos problemas hídricos
a partir de bases rivais de conhecimento compartilhados se torna uma condição
fragmentado, podem acentuar desconfianças. necessária para uma paz mais ampla.
Para superar isto, a complexidade técnica em Embora as tensões relacionadas à água entre
torno de muitas questões ambientais poderia israelenses e palestinos possam não ter preci-
ser utilizada para criação de conhecimento pitado o conflito maior, a gestão dos recursos
cooperativo conjunto. Por exemplo, a hídricos não é só uma linha potencial de
OKACOM identificou avaliações conjuntas da salvação para a continuação de diálogo
vazão do rio Okavango e dos impactos durante o conflito, mas também uma
potenciais da hidroenergia e desvios para questão-chave das negociações para o
irrigação como um passo decisivo para o término do conflito. Nos Acordos de Paz
desenvolvimento de bases acordadas para uma de Oslo, entre palestinos e israelenses, a água
gestão exitosa e pacífica dos recursos hídricos.19 assegurou seu próprio grupo negociador, da
mesma forma que faz nas negociações entre
Iniciativas acanhadas governo-a-governo Índia e Paquistão, iniciadas em 2004. Seja a
correm o risco de criar condições mais água a causa fundamental de conflito ou
eficientes para pilhagens de recursos, apenas exacerbadora das diferenças
existentes, não haverá paz duradoura sem
sem promover paz ou sustentabilidade.
uma base hídrica sustentável para a região.20

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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

Desafios Remanescentes projetos. O ecoturismo pode beneficiar bem


mais ricos hoteleiros e investidores estrangeiros
Apesar do potencial ambiental para o do que as populações locais vivendo à sombra
estabelecimento da paz, um olho cético é de parques da paz e áreas de preservação
necessário quando essas iniciativas continuam transfronteiriças. Dentro da Comunidade de
restritas à jurisdição de governos e elites Desenvolvimento do Sul da África, a implan-
político-econômicas. Iniciativas que melhorem tação de áreas de preservação transfronteiriças
a confiança e a reciprocidade entre governos proporcionou um forte impulso à cooperação
sem promover uma base mais ampla de regional. Todavia, os projetos foram mais
sociedade a sociedade para a paz correm o bem-sucedidos quando, após um processo
risco de reforçar uma lógica estatal de apressado e basicamente verticalizado de
segurança nacional de “soma zero”. São implantação dos primeiros parques da paz,
também propensas a esforços mitigatórios de foi outorgado às comunidades locais maior
curto prazo que não consideram o alcance controle sobre a terra e recursos.22
pleno do problema. Um acordo marginal à A preservação natural transfronteiriça possui
ALCA criou um mecanismo inovador para um potencial significativo de contribuir para
financiar projetos comunitários na fronteira a prevenção de conflito, principalmente ao
EUA-México, por exemplo. Porém, inves- facilitar a comunicação, melhorar os meios de
timentos em iniciativas cooperativas durante os vida locais e promover benefícios ecológicos,
primeiros anos de operação foram apenas uma sociais, econômicos e políticos das áreas sob
fração do que havia sido projetado e muitos proteção. Não obstante, as tensões continuam
grupos civis em ambos os lados da fronteira entre, de um lado, os imperativos da
reclamaram por ter ficado fora do processo.21 preservação natural gerida pelo Estado e, do
Iniciativas acanhadas de governo-a-governo outro, as atividades econômicas das popu-
também correm o risco de criar condições lações indígenas.
mais eficientes para pilhagens de recursos, sem Uma dose saudável de realismo também é
promover paz ou sustentabilidade. Muitos necessária, com relação à questão crucial de
acordos fluviais internacionais são insinceros compromisso. Mesmo onde as iniciativas
nos princípios de gestão cooperativa de bacias foram desenvolvidas visando à paz e à criação
hidrográficas, concentrando-se principalmente de confiança, freqüentemente, tem havido
em esquemas de capital intensivo para desen- pouco avanço. O Mar de Aral é um exemplo
volvimento de recursos hídricos e trans- admonitório dos desafios de paz efetiva,
ferências entre bacias. através de cooperação ambiental. Quando a
Igualmente, parques da paz no sul da África União Soviética entrou em colapso, em 1991,
servem como meio de reconciliação entre o que havia sido o quarto maior corpo d’água
inimigos da era do apartheid, conseguindo interiorano, em 1960, era apenas uma sombra
ganhos conservacionistas, ao derrubar cercas do seu passado. Com seus rios tributários
políticas que arbitrariamente destroem habitats. represados e desviados para programas de
Mas há o perigo de governos estarem irrigação, o nível do mar caiu cerca de 15
simplesmente tomando decisões sem levar em metros, sua superfície foi cortada ao meio, seu
conta os interesses daqueles mais afetados pelos nível de salinidade triplicou e seu volume

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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

diminuiu em dois terços. Os novos Estados fim de colocar a economia da região em bases
independentes da Ásia Central enfrentaram sustentáveis e de iniciativas novas para
uma crescente crise socioeconômica, criando aumentar o engajamento da sociedade civil
condições de irrupção de conflitos hídricos neste processo.25
ao longo das linhas etno-nacionais.23
Com ajuda do Banco Mundial e outras Tornando a Paz através da
agências ocidentais, os países ripários dos
Cooperação Ambiental
tributários do Mar de Aral, o Amu e Syr Darya,
esquematizaram uma estrutura cooperativa uma Realidade
para responder à crise. Ao fazê-lo, estabi-
lizaram as relações entre nações durante uma Há muito, está evidente, mesmo que não
época de turbulência política regional. De tenha inspirado ação, que a cooperação
acordo com a pesquisadora Érika Weinthal, a ambiental transfronteiriça pode gerar vanta-
iniciação da cooperação hídrica pelos recém- gens ambientais, econômicas e políticas
formados Estados independentes pós-União tangíveis. Adequadamente planejadas, inicia-
Soviética pode ter ajudado a evitar a violência tivas ambientais também podem reduzir
hídrica.24 tensões e probabilidade de conflito violento
A interdependência compartilhada durante entre países e comunidades. Estratégias de paz
o tumulto pós-soviético foi suficiente para levar através da cooperação ambiental oferecem
Uzbequistão, Casaquistão, Turcomenistão, uma oportunidade para formar um arcabouço
Tajiquistão e Quirjistão à mesa de negociações, político prático e positivo de cooperação que
porém, não alterou o problema fundamental: pode engajar uma ampla comunidade de
a morte lenta do Mar de Aral, acentuando as interessados, ao reunir questões relacionadas
inseguranças da população regional. O ao meio ambiente, desenvolvimento e paz.
problema básico – práticas agrícolas
insustentáveis – mal foi considerado e a nova Estratégias de paz, através da cooperação
estr utura cooperativa criou pouco, ou Ambiental, oferecem a oportunidade de
nenhum, espaço democrático para os formar um arcabouço político prático
interessados ou para a sociedade civil. O e positivo para cooperação.
Banco Mundial e as agências bilaterais de ajuda
podem ter desempenhado um papel Obviamente, a cooperação ambiental não
catalisador mediando o acordo entre nações surge de forma automática ou fácil, nem irá
durante a crise, porém, falharam, não criando automaticamente incrementar a paz. Tudo
formas mais robustas de governança ambiental depende da forma institucional específica de
regional. Na realidade, irrompeu a síndrome cooperação. Todavia, o conhecimento sobre
comum do compromisso frouxo, conhecida iniciativas destinadas especificamente a lidar
como “fadiga de doador”, e o cinismo quanto com violência e insegurança é limitado. Em
aos motivos dos governos da região e os termos simples, governos e outros atores não
atores inter nacionais é profundo. A têm se dedicado suficientemente a atividades
transformação desta situação exigirá um cooperativas sobre problemas ambientais,
compromisso de recursos a longo prazo, a voltadas para a paz, que permitam conclusões

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Estado do Mundo 2005
PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

seguras. Onde já iniciaram programas, apenas desenvolvimento. Assim, a ENVSEC se


começaram a compartilhar experiências e beneficia não apenas em muito dessas
conhecimento sobre o assunto, através de especializações distintas, mas complementares,
avaliações de paz-e-conflito de projetos e como também de uma rede de presenças de
programas ambientais. Sem este conhecimento, campo em suas regiões de operação: sudeste
a comunidade internacional poderá estar europeu, Ásia central e países ao sul do
perdendo grandes oportunidades de paz no Cáucaso. (Ver Quadro 8-1.)27
âmbito do meio ambiente. Na divisão do trabalho, a OSCE assume a
O desafio, então, é reunir evidências – não liderança em desenvolvimento de programas
importa quão parcial ou indiretas – de que e questões políticas, o PNUMA contribui com
estratégias mais agressivas de paz através da sua experiência em avaliação, comunicação
cooperação ambiental podem criar visual e apresentação, e o PNUD está mais
oportunidades. Estas evidências poderão ser intimamente envolvido com desenvolvimento
utilizadas para instar governos, organizações institucional e implementação de projetos. Os
não-governamentais, movimentos sociais e desafios, naturalmente, continuam: os três
outros fatores a serem mais agressivos na parceiros têm culturas organizacionais e modos
cooperação ambiental. A identificação de operacionais muito diferentes, que não foram
derivantes confiáveis de meios para a paz projetados para cooperação formal com
poderá tornar as pessoas mais dispostas a outras organizações internacional ou gestão
investirem nesses projetos. conjunta de projetos.
A ENVSEC (sigla em inglês da Iniciativa A ENVSEC ilustra os obstáculos comu-
para o Meio Ambiente e Segurança), uma mente enfrentados pelas tentativas de colocar
parceria entre a Organização para Segurança as idéias de paz através de cooperação
e Cooperação na Europa (OSCE), Programa ambiental em operação. O conceito de
das Nações Unidas para o Meio Ambiente e ligações meio ambiente/segurança é, às vezes,
o Programa das Nações Unidas para o contestado por governos anfitriões ou, pelo
Desenvolvimento, lançada no outono de 2002, menos, considerados menos significativos do
é uma tentativa importante para testar os que outros problemas regionais. Ao mesmo
argumentos da paz através da cooperação tempo, a iniciativa enfrenta expectativas
ambiental. Seu objetivo é identificar, mapear financeiras, políticas ou outras de apoio desen-
e responder a situações onde problemas volvimentista, que estão além do seu alcance.
ambientais ameacem gerar tensões ou Vários interessados têm expectativas diferentes
ofereçam oportunidades para sinergias e as sensibilidades políticas devem ser sempre
cooperativas entre comunidades, países ou consideradas. Apesar destes problemas, o valor
regiões.26 da ENVSEC está exatamente na aplicação
O esforço é notável não só pela sua prática, que serve para revelar a complexidade
aplicação de uma abordagem de paz através cotidiana da paz através da cooperação
da cooperação ambiental. É também a ambiental. Regiões mundiais, tão diversificadas
primeira cooperação formal entre essas três como a Europa oriental pós-soviética, o sul
organizações que se especializam indivi- da África pós-apartheid, o nordeste da Ásia
dualmente em segurança, meio ambiente e pós-guerra fria e a América do Norte sob a

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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

QUADRO 8-1. ENFOCANDO RISCOS AMBIENTAIS E À SEGURANÇA E OPORTUNIDADES NO SUL


DO CÁUCASO

O sul do Cáucaso – formado pela Armênia, questões de segurança e ambientais ou pressões


Geórgia e Azerbaijão – vem sendo, há muito, um sobre recursos naturais coincidem.
foco de mudança, uma ponte entre Ásia e Europa. Foram identificados três conjuntos de ligações
Hoje, transformações sociais, políticas e meio-ambiente/segurança. Degradação ambiental
econômicas estão alterando relações centenárias em zonas de conflito e falta de informação sobre o
entre países e comunidades e afetando o meio estado do meio ambiente são pontos de discórdia
ambiente natural. A região é marcada por em relação a Nagorno-Karabakh e Abkhazia. Além
instabilidades que podem ser divididas em duas disso, a crescente produtividade econômica pode
categorias gerais. Primeiro, há um perigo constante aumentar as tensões sobre o acesso a recursos
de violência relacionada a conflitos de identidade naturais, como água limpa, solo e espaço para
herdados do colapso da União Soviética, incluindo habitação, podendo agravar a poluição. Finalmente,
o conflito Armênia-Azerbaijão sobre a região o fracasso de um governo no manejo apropriado
Nagorno-Karabakh, o conflito Geórgia-Ossetia e o dos recursos naturais e condições do meio
conflito Geórgia-Abkhazia, com possíveis efeitos do ambiente, poderá aumentar a frustração pública e
norte do Cáucaso. Segundo, outros conflitos levar governos a perderem legitimidade durante este
(geralmente menos violentos) podem surgir do frágil período pós-soviético.
declínio de padrões de vida e mudanças no cenário Apesar dos interesses conflitantes, os governos
político, que ocorreram devido a choques entre do sul do Cáucaso reconhecem que alguns desafios
grupos dominantes e elites rivais, ou entre os ambientais exigem ação conjunta, como
“ganhadores” e “perdedores” do desenvolvimento demonstram um número de projetos de gestão da
socioeconômico pós-soviético. bacia do Rio Kura-Araks. Mesmo enquanto graves
Os países do sul do Cáucaso também disputas entre as partes continuam a prejudicar os
enfrentam imensos problemas ambientais como esforços de cooperação, diferentes grupos
legado do período soviético. Alguns dos principais, declararam claramente durante a avaliação que
pressionando as relações entre nações e a segurança desejavam cooperar com órgãos internacionais para
humana, incluem a falta de dados atualizados aumentar o volume de informações e dados
precisos; a qualidade da água e o tratamento de ambientais sobre poluição, a fim de tratar das
esgoto; a irrigação e a degradação de sistemas de questões comuns e reduzir as tensões sobre os
drenagem; o desmatamento; e a degradação da recursos naturais.
terra e do solo, incluindo deslizamentos e A fim de lidar com as prioridades ambientais e
desertificação. A poluição do petróleo, os de segurança, a ENVSEC compilou um Programa
terremotos, a condição do Mar Negro e do Mar Preliminar de Trabalho das atividades que as
Cáspio e a contaminação radiativa não afetam, organizações parceiras sugerem que sejam
igualmente, todos os três países, porém ainda implementadas dentro do contexto da iniciativa. As
concorrem para o risco dos efeitos ambientais atividades serão desenvolvidas em estreita
negativos transfronteiriços. colaboração com os interessados nas regiões e serão
Em maio de 2004, uma avaliação da Iniciativa parte de uma abordagem “tríplice”: avaliação
de Meio Ambiente e Segurança foi realizada na profunda de vulnerabilidade, alerta prévio e
Armênia, Azerbaijão e Geórgia, envolvendo monitoramento de áreas “de risco”;
representantes dos ministérios do meio ambiente, desenvolvimento e implementação de políticas;
relações exteriores, agricultura, defesa e saúde, desenvolvimento institucional, capacitação e
como também da sociedade civil e comunidade proteção.
científica. Uma questão central para a Iniciativa foi - Gianluca Rampolla, Organização para Segurança e
como a cooperação ambiental pode ser incentivada Cooperação na Europa, e Moira Feil, Adelphi Research
em áreas prioritárias transfronteiriças, onde
fonte: Vide nota final 27.

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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

ALCA, estão estabelecendo novas relações de cidade de a globalização colocar a dinâmica


segurança no rastro de um período política fora de um quadro entre nações
particularmente turbulento de mudanças estreito e dentro de um contexto mais amplo
internacionais. Em cada região, as de sociedade para sociedade é um sinal
transformações da última década criaram importante e seguro. Este novo espaço social
espaço político entre nações e sociedades para contém muito do potencial de paz através
buscar um futuro mais pacífico e cooperativo, do meio ambiente. Valerá bem a pena
mesmo quando emergem novos e descobrir se essas mudanças criarão
intimidantes desafios para paz e segurança. oportunidades para consolidar a paz, aliviarão
Outra dificuldade nova é a globalização. a insegurança ambiental e quebrarão a lógica
Seus efeitos são complexos e de forma de soma zero que tanto aflige as relações
alguma inteiramente saudáveis para a internacionais.28
sustentabilidade ecológica. Porém, a capa-

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Estado do Mundo 2005
PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL

LIGAÇÃO DE SEGURANÇA

Impactos Ambientais
das Guerras
Conflitos militares sempre causam situação é única, devido à natureza particular
sofrimento humano. Trazem também do conflito, a sociedade e a ecologia.
ameaças de mais longo prazo à segurança, No Afeganistão, duas décadas de conflito
como degradação ambiental e novos riscos armado degradaram o meio ambiente a tal
à saúde humana. Já há sete anos o Programa ponto que isso agora representa uma
das Nações Unidas para o Meio Ambiente barreira aos esforços de reconstrução do
(PNUMA) vem trabalhando em áreas do país. A guerra paralisou a gestão ambiental e
mundo onde o meio ambiente natural e as estratégias de conservação anteriores,
humano foi comprometido, como causou um colapso da governabilidade local
conseqüência de conflitos. Em 1999, e nacional, destruiu infra-estruturas,
enquanto as instalações industriais alvejadas prejudicou a atividade agrícola e levou as
de Kosovo, Sérvia e Montenegro ainda pessoas para as cidades já carentes das mais
ardiam, as equipes do PNUMA realizaram a básicas amenidades públicas. 3
primeira “avaliação ambiental pós- Mais de 80% dos afegãos vivem em áreas
conflito”.1 rurais, onde viram muito de seus recursos
O trabalho nos Bálcãs concluiu que havia básicos – água para irrigação, árvores para
vários hotspots ambientais onde uma ação alimento e energia – desaparecerem em
imediata de limpeza se fazia necessária, para apenas uma geração. Nas áreas urbanas, a
evitar ameaças adicionais à saúde humana, água potável – a maior das necessidades
tais como as refinarias de petróleo em básicas para o bem-estar humano – pode
Pancevo e Novi Sad atingidas, e as estar disponível para apenas 12% da
instalações industriais em Kragujevac e Bor. população. Lixões mal-administrados
O rio Danúbio estava ameaçado, devido ao contaminaram a água subterrânea e
vazamento de Pancebo de mais de 60 disseminaram a poluição aérea, e a atividade
produtos químicos diferentes, incluindo madeireira ilegal causou perda generalizada
mercúrio. Estas descobertas levaram, pela da cobertura florestal.4
primeira vez, a comunidade internacional a No Iraque, um quadro similar pode ser
incluir a limpeza do meio ambiente na sua desenhado. Lá, a avaliação do PNUMA
ajuda humanitária pós-conflito. 2 concluiu que o conflito de 2003 e a
Depois dos Bálcãs, este novo instrumento pilhagem pós-guerra concorreram para o
ambiental foi usado na Libéria, em estresse ambiental crônico, já presente desde
territórios palestinos ocupados, no a guerra Irã-Iraque, de 1980, a guerra do
Afeganistão e mais recente no Iraque. Cada Golfo, em 1991, a má administração

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IMPACTOS AMBIENTAIS DAS GUERRAS

ambiental do regime os rios Eufrates e Tigre,


iraquiano anterior e os mas também a região do
efeitos involuntários Golfo Pérsico no todo. 8
das sanções. 5
No Iraque, como em
A maior ameaça muitas situações pós-
para o povo do Iraque conflito, as questões
é o acúmulo da ambientais estão
destruição física da intimamente ligadas às
infra-estrutura necessidades humanitárias
ambiental do país. e de reconstrução. As
Particularmente, a prioridades incluem a
destruição e a falta de Artefatos não explodidos, Bósnia recuperação do
investimento dos fornecimento de água e
sistemas hídricos e sanitários aumentaram os sistemas sanitários, limpeza de hotspots
níveis de risco de poluição e da saúde. poluídos e limpeza de lixões, para reduzir o
Quando os cortes de energia pararam as risco de doenças causadas pelo lixo
usinas geradoras, tanto o suprimento de municipal e hospitalar. Durante a Guerra do
água potável quanto o tratamento de água Golfo, em 1991, e a Guerra do Iraque, em
servida foram ameaçados. 6 2003, armas de urânio enfraquecido foram
A destruição da infra-estrutura militar e utilizadas em vários locais do Iraque. Para
industrial, durante os vários conflitos no proteção da população local, os locais com
Iraque, liberou metais pesados e outras estes resíduos de guerra precisam ser
substâncias perigosas no ar, solo e água. A avaliados e limpos. 9
fumaça dos incêndios dos poços de Em todas as áreas de conflito existem
petróleo, a queima das valas de petróleo problemas ambientais de longo prazo e
durante a guerra, a pilhagem e a sabotagem problemas diretamente relacionados com a
causaram poluição e contaminação do ar e ação militar. Além disso, as avaliações
solo locais. A falta de investimento na ambientais pós-conflito do PNUMA
indústria de petróleo reduziu a manutenção, demonstram claramente que as crises
aumentando o risco de vazamentos. 7 militares são quase sempre acompanhadas
Um dos principais projetos do regime de por crise ambiental.
Saddam Hussein – drenagem dos Pântanos Conseqüentemente, uma lição-chave é a
da Mesopotâmia e a construção de canais necessidade de minimizar os riscos para a
artificiais – arruinaram algumas das mais saúde humana ambiental durante o conflito,
ricas áreas de biodiversidade do Iraque. A através de prontidão e proteção civil.
poluição hídrica está afetando não somente Imediatamente após o fim do conflito, deve

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Estado do Mundo 2005
IMPACTOS AMBIENTAIS DAS GUERRAS

acontecer uma avaliação e uma limpeza válida de desenvolver confiança entre países
adequadas. Apoio e fortalecimento da anteriormente hostis. 10
capacidade administrativa ambiental Um modo importante de se minimizar
existente ou recém-estabelecida é crucial os riscos ao meio ambiente e à saúde é
para a sustentabilidade de longo prazo. Na através de regulamentos de guerra que
análise de como restaurar o meio ambiente, limitem alvos possíveis e armas. Um bom
após o silenciar dos canhões, toda a história exemplo dos instrumentos legais que
ambiental da região deve ser levada em podem ser usados é a convenção ENMOD
consideração. [Técnicas de Modificação Ambiental], que
Mais ainda, após o término do conflito, evita o uso de mudanças artificiais no meio
esforços devem ser feitos para reengajar o ambiente – como enchentes causadas pelo
país na cooperação ambientação regional e homem – como uma arma de guerra. Uma
internacional – especialmente quando estão vez que os impactos negativos dos
em pauta recursos compartilhados, como a diferentes tipos de armas são conhecidos, e
água. Na primavera de 2004, pela primeira desde que exista bastante evidência dos
vez em 29 anos, autoridades ambientais e riscos para a população, uma nova legislação
hídricas discutiram conjuntamente o se faz necessária. 11
compartilhamento dos pântanos da O adicionamento dos custos ambientais à
Mesopotâmia. Velhos inimigos negociando longa lista de conseqüências negativas do
mais uma vez assuntos ambientais. conflito – perda humana, refugiados, perdas
Juntamente com a melhoria do estado econômicas – deve fazer as soluções não-
destes recursos, a gestão de recursos violentas ainda mais atraentes.
partilhados pode servir como uma maneira - Pekka Haavisto,
UNEP Post-Conflict Asssessment Unit

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

CAPÍTULO 9

Estabelecendo os Fundamentos
para a Paz - Metas do Milênio
Hilary French, Gary Gardner e Erik Assadourian

Enquanto as pessoas observavam horrorizadas outros tipos de desafios, como conflitos civis
as torres gêmeas do World Trade Center se internos e terrorismo internacional. Estes
desintegrando, em 11 de setembro de 2001, problemas estão enraizados em instabilidades
o que dominava suas mentes era a perda sociais, paralelamente a uma gama complexa
imediata de vidas. Contudo, logo ficou claro de fenômenos – da pobreza e doença,
que os eventos daquele dia tinham um passando pelo crescimento populacional e
significado maior, inaugurando uma nova era degradação ambiental, até o fundamentalismo
na história mundial. Da mesma forma que o religioso e o ódio étnico (ver Capítulo 1). As
ataque japonês a Pearl Harbor, em 7 de técnicas militares tradicionais são de uso
dezembro de 1941, levou os Estados Unidos limitado na resposta a essas forças subjacentes.2
a declararem guerra ao Japão no dia seguinte, A postura adotada pelos Estados Unidos
os eventos de 11 de setembro levaram o perante a comunidade global também foi
Presidente George W. Bush a declarar guerra significativamente diferente, após 11 de
ao terrorismo, antes de aquele dia terminar. setembro, do que havia sido durante a II
E, da mesma forma que o período pós-guerra Guerra Mundial. O Presidente Bush falou
veio a definir uma época histórica, os anos inicialmente da importância da cooperação
pós-11/9 serão, por muito tempo, internacional no combate ao terrorismo global.
considerados como fundamentalmente Porém, sua decisão subseqüente de invadir o
diferentes dos anteriores.1 Iraque, no início de 2003, sem obter o apoio
Todavia, os problemas de segurança global do Conselho de Segurança da ONU, destruiu
diferem significativamente daqueles da era da as esperanças iniciais de que a luta contra o
II Guerra Mundial. Contrariamente ao terrorismo seria um esforço unificador e não
expansionismo territorial daquela época, os divisório. Durante a II Guerra Mundial, por
pontos de ignição contemporâneos envolvem outro lado, os Estados Unidos trabalharam

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

com os aliados, antes mesmo de entrarem na declarou o Secretário-geral Kofi Annan, no


guerra, começando a estabelecer os outono de 2003, quando falou aos líderes
fundamentos para uma paz pós-guerra mundiais na Assembléia Geral: “Três anos
duradoura, através de um projeto para a atrás, quando estivemos aqui na Cúpula do
criação das Nações Unidas. Isto culminou na Milênio, compartilhávamos de uma visão de
assinatura da Carta das Nações Unidas, em solidariedade global e segurança coletiva... Os
São Francisco, em junho de 1945, nos últimos eventos recentes põem aquele consenso em
meses da guerra.3 dúvida... Chegamos a uma encruzilhada. Este
Uma outra forma pela qual o ambiente pode ser um momento tão decisivo quanto
atual de segurança difere daquele após a II 1945, quando a ONU foi fundada... Hoje,
Guerra Mundial é a influência crescente da precisamos decidir se é possível continuar nas
sociedade civil global. Organizações civis há bases acordadas então, ou se são necessárias
muito vinham advogando um mundo mais mudanças radicais.” A crise provocada pela
pacífico, inclusive pressionando para a criação polêmica sobre a guerra do Iraque teve o
das Nações Unidas. E as últimas décadas lenitivo de criar um momento de
testemunharam um ímpeto significativo no oportunidade para estabelecer as bases para a
desempenho, força e alcance global da paz, através da reformulação das Nações
sociedade civil.4 Unidas para os desafios de segurança de hoje
Apesar das muitas diferenças entre 1945 e e do futuro.5
hoje, uma percepção fundamental daquela Enquanto o mundo se prepara para esta
época ainda se mantém: o estabelecimento das tarefa, é importante considerar quão bem as
bases para uma paz duradoura exigirá estruturas de 1945 suportaram o teste do
cooperação internacional, numa ampla tempo. O primeiro propósito das Nações
variedade de frentes - da resistência à agressão Unidas, conforme definido em sua carta, é
ao combate ao terrorismo, mediando acordos “manter a paz e a segurança internacional.”
de paz e enfocando as causas subjacentes de Para tal, a Carta das Nações Unidas estipula
conflitos e instabilidade. Ao mesmo tempo, a um conjunto de mecanismos para o Conselho
experiência das últimas décadas tornou claro de Segurança destinado a galvanizar uma
que a construção de um mundo seguro exigirá resposta coletiva dos membros, quando
interações extensas entre uma vasta gama de confrontados com uma ameaça crucial à paz
atores, incluindo autoridades governamentais e à estabilidade globais.6
e políticos idealistas e engajados, tanto Contrariamente às expectativas, incursões
regionais quanto nacionais, e cidadãos militares transfronteiriças têm sido
dedicados de visão global. relativamente raras desde que a ONU foi
criada. Porém, não têm faltado distúrbios civis
Reinventando a Governança e a organização freqüentemente desempenhou
um papel importante nas negociações e
Global
manutenção da paz. A ONU ajudou a efetivar
mais de 170 acordos de paz, inclusive aqueles
A divisão de opinião internacional quanto
que levaram ao término da guerra Irã-Iraque,
à decisão da guerra ao Iraque causou uma crise
em 1988, à retirada das tropas soviéticas do
de identidade nas Nações Unidas. Como

185
Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

Afeganistão, em 1988, e ao fim da guerra civil Organização Internacional do Trabalho e o


em El Salvador, em 1992. As 59 missões de Programa das Nações Unidas para o Meio
paz da ONU, desde 1948, ajudaram países a Ambiente (PNUMA) sendo forçadas a lutar
manter cessar-fogos, realizar eleições livres e pelo direito de, até mesmo, cumprir as
justas, e monitorar retirada de tropas em países deliberações da OMC.9
tão diversificados quanto Camboja, Chipre e No meio-século, desde a criação das
Timor Leste.7 Nações Unidas e de instituições de Bretton
Mas, desde seu início, a Organização das Woods, a miséria e a pobreza em todo o mun-
Nações Unidas era para ter um envolvimento do têm se revelado adversários gigantescos.
muito mais abrangente do que lidar unicamente Não obstante, o sistema das Nações Unidas
com questões militares. A Carta das Nações tem obtido alguns sucessos numa variedade
Unidas declara que um dos objetivos centrais de questões sociais. No campo da saúde
da organização é “obter cooperação inter- global, por exemplo, a Organização Mundial
nacional na resolução de problemas de Saúde (OMS), uma agência especializada
internacionais de natureza econômica, social, da ONU, iniciou uma campanha global de
cultural ou humanitária.” Estas disposições erradicação da varíola, em 1967. Naquela
foram estabelecidas em resposta a uma crença ocasião, a doença afligia cerca de 15 milhões
generalizada de que as desastrosas condições de pessoas, anualmente, causando
econômicas mundiais dos anos 30 haviam, aproximadamente 2 milhões de mortes. Em
indiretamente, ajudado a precipitar a II Guerra 1980, a OMS declarou que a doença havia
Mundial, ao criar um clima propício para o sido erradicada globalmente (ver Capítulo 3).
surgimento do Nazismo.8 Hoje está chegando perto a sucessos seme-
Esta mesma convicção fundamentou uma lhantes com a Hanseníase, verme da Guiné,
importante conferência internacional realizada pólio e doença de Chagas. A erradicação,
em Bretton Woods, New Hampshire, em infelizmente, está longe se ser alcançada para
1944, que levou à criação do Banco Mundial, uma variedade de outras doenças mortais,
Fundo Monetário Internacional (FMI) e do inclusive o HIV/AIDS, tuberculose e malária,
Acordo Geral de Tarifas e Comércio porém a OMS está agindo junto a outras
(posteriormente transformado na OMC – instituições e parceiros internacionais para
Organização Mundial do Comércio). reduzir o número de pessoas atacadas por
Tecnicamente, o Banco Mundial e o FMI são essas doenças e ampliar o acesso ao tratamento
agências especializadas das Nações Unidas, para os que precisam.10
mas desde o começo mostraram pouca A ONU também se mostrou flexível, frente
inclinação a se associarem intimamente com a novos problemas e desafios. Nem o
o resto da organização. Na realidade, um crescimento populacional acelerado ou a
acordo de 1947, entre o Banco Mundial e as degradação ambiental, por exemplo, foram
Nações Unidas foi descrito como sendo “mais reconhecidos como problema global
uma declaração de independência da ONU significativo em 1945. Conseqüentemente,
do que um acordo de ação conjunta.” nenhum deles é ao menos mencionado na
Problemas semelhantes afetaram as relações Carta da ONU. Mas, à medida que a gravidade
com a OMC, com agências da ONU como a de ambos se tornou aparente, novas instituições

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

foram implantadas para lidar com eles: o Conferência das Nações Unidas sobre
Fundo das Nações Unidas para Populações, População e Desenvolvimento, realizada em
em 1962; o PNUMA, em 1972; e, no início 1994 no Cairo, por exemplo, forjou um novo
dos anos 90, a Global Environment Facility (Fundo consenso global sobre a relação entre
Global para o Meio Ambiente), um empre- estabilização populacional, tratamento de
endimento conjunto do Banco Mundial, saúde reprodutiva e do crescimento do poder
Programa das Nações Unidas para o das mulheres, incluindo acordo numa série de
Desenvolvimento e o PNUMA, que financia metas sobre acesso à educação universal e
projetos nos países em desenvolvimento que serviços de saúde reprodutiva.13
enfocam ameaças ambientais globais como A nova compreensão sobre a variedade de
mudança climática e perda de diversidade questões tratadas pelas conferências globais dos
biológica.11 anos 90, finalmente, encontrou expressão nos
Igualmente, a disseminação do terrorismo Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
e armas de destr uição em massa são (ODM), aprovados por unanimidade
preocupações relativamente novas para a preliminarmente na Assembléia do Milênio,
comunidade mundial, e a ONU está sendo em 2000 (ver Quadro 9-1). E a Cúpula
convocada para desempenhar um papel cada Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável,
vez mais destacado no seu combate. Como o realizada em 2002 em Joanesburgo, África do
Secretário-geral Kofi Annan argumentou Sul, chamou uma nova atenção política para
perante a Assembléia Geral, semanas após os os desafios do desenvolvimento sustentável,
ataques de 11 de setembro: “A legitimidade inclusive a adoção ou reafirmação pelos
que as Nações Unidas transmitem assegura que governos de uma vasta gama de metas para
um maior número de nações sejam capazes e água, energia, saúde, agricultura e diversidade
estejam determinadas a adotar as medidas biológica (ver Quadro 9-2). A ONU está
necessárias e difíceis – diplomáticas, legais e atualmente encontrando um novo papel para
políticas – que são exigidas para derrotar o si mesma, encorajando governos a
terrorismo.” Ele seguiu analisando a implementarem as refor mas políticas
importância de os governos avançarem na necessárias para atingir esses objetivos e metas,
adoção e ratificação das 12 convenções e monitorando seu progresso ao longo do
protocolos internacionais já existentes sobre caminho.14
terrorismo internacional, e implementarem Apesar de todas as conquistas até hoje, não
importantes tratados internacionais que visam há dúvida de que serão necessárias reformas
minimizar a disseminação de ar mas de ousadas para estabelecer os fundamentos para
destruição em massa, como aqueles que a paz, equipando melhor as Nações Unidas
proíbem armas químicas e biológicas e a para os desafios à segurança atuais e futuros.
proliferação nuclear.12 A necessidade de renovações periódicas às
Através de uma série de conferências estruturas da ONU foi, na realidade, prevista
internacionais de alto nível nas últimas décadas, desde o começo, quando o Presidente dos
as Nações Unidas têm focado questões Estados Unidos Harry Truman observou em
emergentes globais e ajudado a induzir ações seu discurso à conferência de São Francisco,
para resolvê-las global e nacionalmente. A em 1945, que “esta carta, como nossa própria

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

Constituição, será ampliada e melhorada ao Conselho de Segurança mais representativo do


longo do tempo. Ninguém pode achar que mundo moderno. Em setembro de 2004, os
ela hoje seja um instrumento final ou perfeito... governos do Brasil, Alemanha, Japão e Índia
As mudanças das condições mundiais exigirão divulgaram uma declaração conjunta,
estes reajustes.” Para este fim, em setembro observando que “o Conselho de Segurança
de 2003, o Secretário-geral Annan anunciou a deve refletir a realidade da comunidade
nomeação de um painel de eminentes líderes internacional do século XXI.” Além de
mundiais, encarregado de analisar as atuais reivindicar suas próprias causas como fortes
ameaças e desafios à paz e segurança globais candidatos para membros permanentes, os
e considerar as amplas mudanças necessárias quatro países acentuaram que status semelhante
para enfrentá-los. O relatório do painel também deve ser concedido a uma nação
embasará as recomendações de Annan à africana.17
Assembléia Geral da ONU, no outono de Também é importante incrementar a
2005.15 capacidade das Nações Unidas de lidar com
as ameaças subjacentes à paz e à segurança
Apesar das conquistas até hoje, serão internacional, incluindo pobreza, doenças,
necessárias reformas ousadas para declínio ambiental e crescimento populacional
estabelecer os fundamentos para a paz, acelerado. O Conselho de Segurança poderia
equipando melhor as Nações Unidas para receber um mandato mais amplo para tratar
os desafios à segurança atuais e futuros. das questões não-tradicionais de segurança,
como ocorreu em 2000 com o HIV/AIDS.
Uma das altas prioridades na preparação Contrariamente a outros órgãos da ONU, o
das Nações Unidas para o futuro é repensar a Conselho de Segurança possui capacidades
composição do Conselho de Segurança. Em executivas significativas e, assim, lidar com as
1945, China, França, União Soviética, Estados novas ameaças à segurança proporciona
Unidos e Reino Unido receberam um status benefícios importantes tanto práticos quanto
especial como membros permanentes, com simbólicos. Outras abordagens possíveis
direito a vetar resoluções. Sem estas dispo- incluem o fortalecimento e a modernização
sições, seria improvável que os Estados Unidos dos atuais órgãos econômicos e sociais, como
ou a União Soviética fossem membros da o Conselho Econômico e Social, ou a criação
nova organização. Porém estas condições de um novo Conselho de Segurança
tiveram um preço: recursos constantes ao veto Econômica ou entidade semelhante de alto
têm prejudicado a eficácia do Conselho de nível, dedicada à prevenção de conflitos
Segurança, particularmente durante a guerra através da redução da pobreza e
fria, e a participação limitada de membros enfrentamento de outras causas subjacentes de
permanentes é hoje largamente considerada insegurança.18
como anacrônica e não-democrática.16 Ao longo dos anos, também tem
Embora as propostas para alteração do havido apelos para que seja dada mais atenção
status quo sempre encontrem forte oposição, às questões ambientais dentro do sistema da
já existe, todavia, um consenso de que ONU. Entre as idéias apresentadas, existem
mudanças são necessárias para tornar o propostas para criação de um Conselho de

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

QUADRO 9-1. OBJETIVOS E METAS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO


Erradicar a pobreza extrema e a fome
Até 2015, reduzir pela metade tanto a proporção de pessoas vivendo com menos de US$ 1 ao dia, quanto
a parcela que passa fome.
Conquistar educação fundamental universal
Assegurar que, até 2015, todos os meninos e meninas tenham concluído todo o ensino fundamental.
Promover igualdade de gênero e dar poder as mulheres
Eliminar disparidade de gênero no ensino fundamental e secundário, preferivelmente até 2005, e em todos
os níveis até 2015.
Reduzir a mortalidade infantil
Até 2015, reduzir em dois terços a taxa de mortalidade de crianças abaixo de 5 anos.
Melhorar a saúde materna
Até 2015, reduzir em três quartos a taxa de mortalidade materna.
Combater HIV/AIDS, malária e outras doenças
Parar e começar a reverter a disseminação do HIV/AIDS, malária e outras doenças graves, até 2015.
Assegurar sustentabilidade ambiental
Incorporar os princípios de desenvolvimento sustentável nas políticas e programas nacionais e reverter a
perda de recursos ambientais. Até 2015, reduzir pela metade a proporção de pessoas sem acesso sustentável à
água potável e saneamento. Até 2020, melhorar significativamente as vidas de 100 milhões de favelados.
Desenvolver uma parceria global para o desenvolvimento
Desenvolver um sistema comercial e financeiro aberto que seja regulamentado, não-discriminatório, e inclua
um compromisso à boa governança, desenvolvimento e redução da pobreza. Tratar das necessidades especiais
dos países menos desenvolvidos, pequenas ilhas-nações em desenvolvimento e países interioranos. Tornar as
dívidas sustentáveis, aumentar a oferta de emprego para a juventude e proporcionar acesso a medicamentos
essenciais e novas tecnologias.
___________________________________________________________________________________________
fonte: Vide nota final 14.

Segurança Ambiental, utilização do extinto também será importante reformar o Banco


Conselho de Tutela para este fim, criação de Mundial, o FMI e a OMC, cada um dos quais
um Alto Comissariado para o Meio Ambiente se tornou cada vez mais poderoso e cada vez
ou Desenvolvimento Sustentável ou a criação mais polêmico ao longo dos anos. Estas
de uma nova Organização Ambiental Global. instituições são comumente consideradas
A proposta de maior destaque político é uma representantes dos interesses dos principais
variação da última idéia: sob a liderança do países industrializados, seja como resultado dos
Presidente Jacques Chirac, o Governo da seus procedimentos formais de votação ou
França está promovendo a transformação do através de meios menos formais mas não
PNUMA, sediada em Nairobi, numa agência menos irredutíveis de fazer negócio. Cada
independente e especializada da ONU, como organização tem sido também criticada nos
a OMS e a UNESCO. Esta proposta está últimos anos por promover estratégias
sendo hoje alvo de uma análise séria em várias ortodoxas de globalização econômica que, em
reuniões internacionais, embora ainda não esteja alguns casos, mais prejudicam do que
claro se obterá apoio suficiente para ser beneficiam os pobres ou o meio ambiente.20
viabilizada no curto prazo.19 Uma forma de lidar com essas deficiências
Além de melhorar a máquina social seria as instituições econômicas globais
econômica e ambiental das Nações Unidas, trabalharem mais intimamente com as Nações

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

inclusive organizações da sociedade civil e setor


QUADRO 9-2. METAS SELECIONADAS
ADOTADAS NA CÚPULA MUNDIAL SOBRE privado. Instadas em parte por pressões do
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL movimento de protesto à globalização, tanto
as Nações Unidas quanto as instituições
Reduzir à metade a proporção de pessoas sem econômicas internacionais adotaram,
acesso a saneamento básico, até 2015.
Recuperar pesqueiros para sua produção recentemente, medidas para tornar suas
máxima sustentável até 2015 e evitar, obstar e operações mais transparentes para a sociedade
eliminar pesca ilegal, não divulgada e não regulada, civil. Porém, há ainda muitos obstáculos para
até 2004.
Reduzir significativamente a taxa de perda de conquistar uma participação pública mais
biodiversidade, até 2010. completa e significativa.22
Reverter a tendência atual de degradação de
recursos naturais.
Acabar com a extração ilegal de madeira, que
contribui para o desmatamento.
Mudando as Prioridades
Assegurar que, até 2020, não sejam Governamentais
produzidos ou utilizados produtos químicos de
forma que prejudiquem a saúde humana e o meio
ambiente. A reformulação das instituições inter-
Assegurar acesso à energia para pelo menos nacionais é apenas o primeiro passo. As
35% dos africanos, dentro de 20 anos.
Utilizar energia renovável para atender a 10%
Nações Unidas e organizações afiliadas, agindo
das necessidades energéticas da América Latina e através de seus países-membros, estabelecem
Caribe, até 2010, reafirmando um compromisso visões, enumeram metas para a comunidade
destes países.
_____________________________________________________ global e ajudam a orientar os esforços de
fonte: Vide nota final 14. implementação. Porém, os governos nacionais
têm as tarefas duras de reunir a vontade política
Unidas. Esta colaboração ajudaria a assegurar doméstica e os recursos necessários para tornar
que o novo consenso desenvolvimentista aquela visão uma realidade e assegurar que suas
expresso nos Objetivos de Desenvolvimento prioridades estejam em linha com as novas e
do Milênio (ODM) e na ampla variedade de emergentes ameaças globais à segurança.
acordos ambientais, sociais e de direitos Uma das primeiras coisas que os governos
humanos da ONU, esteja mais claramente podem fazer é reconhecer como os gastos
refletido in loco, inclusive nas situações pós- em segurança hoje são mal dirigidos. Quase
conflito. A criação de um novo conselho US$ 1 trilhão é gasto anualmente com as forças
super visor de alto nível, com alguma armadas mundiais, a maioria destinada às
autoridade tanto sobre as Nações Unidas ameaças tradicionais à segurança. Como os
quanto sobre as instituições econômicas líderes políticos reconhecem que a pobreza,
globais, seria uma estratégia para a promoção populações em crescimento acelerado, doenças
da colaboração necessária.21 e degradação do meio ambiente são questões
Uma outra alta prioridade para um futuro legítimas de segurança, estas questões
pacífico e seguro é a reformulação das poderiam adquirir maior importância nos
estruturas de governança global, para que se orçamentos governamentais. Ao mesmo
esforcem mais em dominar a eficácia e tempo, uma tabulação de programas militares
conhecimento de uma vasta gama de atores, ultrapassados, ineficientes ou esbanjadores irá,

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

provavelmente, acentuar ricas fontes de as desigualdades globais crescentes de forma


recursos que poderiam ser redirecionados para sustentável. No mundo após 11/9, todavia,
o enfrentamento das ameaças sociais e onde ameaças à segurança se tornaram a
ambientais. Neste novo arcabouço, programas preocupação dominante, os ODMs poderão
sociais e ambientais anteriormente consi- igualmente ser vistos como meios de
derados dispendiosos poderiam, subitamente, fortalecimento da segurança nacional e
ser vistos como realizáveis – ou mesmo global.24
indispensáveis.23 Embora, no papel, o compromisso de
Felizmente, a estrutura internacional para atingir estes objetivos seja firme, seu avanço
lidar com esta variedade complexa de ameaças tem sido, em grande parte, dolorosamente
já existe – as metas dos Objetivos de lento. Em 2004, o Fórum Econômico Mundial
Desenvolvimento do Milênio e da Cúpula solicitou a alguns dos principais especialistas
Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável. em desenvolvimento do mundo que
Na Assembléia do Milênio, em 2000, os analisassem o avanço obtido durante os três
membros das Nações Unidas concordaram primeiros anos. Os resultados foram
em reduzir a pobreza, doenças e desigualdades desencorajadores: o mundo havia dedicado
sociais globais de forma significativa, até 2015. apenas um terço dos esforços necessários para
As metas da Cúpula Mundial, adotadas dois atingir aqueles objetivos.25
anos antes, completaram o quadro, ao Embora alguns países tenham realizado
estabelecer como os países poderão melhorar notáveis progressos em alcançar um número
as condições sociais com a proteção de de metas (ver Tabela 9-1), poucas nações estão
sistemas naturais vitais. Estes objetivos foram em condições de atingir a maioria dos
adotados primeiramente a fim de lidar com objetivos (ver Tabela 9-2). De acordo com o

Tabela 9-1. Avanço na Ampliação do Acesso à Água e Alimentação em Países


Selecionados

Meta ODM: Reduzir a Fome pela Metade Meta ODM: Reduzir pela Metade Aqueles sem
Acesso à Água

País 1990 1999 Objetivo Em 1990 2000 Objetivo Em


a 92 A 2001 2015 Condições? 2015 Condições?
(percentual da população subnutrida) (percentual da população sem acesso à fonte de
água tratada)

Bangladesh 35 32 18 6 3 3 Sim
Brasil 12 9 6 Sim 17 13 8 Sim
China 17 11 9 Sim 29 25 14
Egito 5 3 3 Sim 6 3 3 Sim
Índia 25 21 13 32 16 16 Sim
México 5 5 3 20 12 10 Sim
Peru 40 11 20 26 20 13 Sim
Quênia 44 37 22 Sim 55 43 27 Sim
Tailândia 28 19 14 Sim 20 16 10 Sim
Uganda 23 19 12 Sim 55 48 27
FONTE : Vide nota final 26.

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ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

Banco Mundial, menos de um quinto de todos 684.000, em 1988, para US$ 82 milhões, em
os países estão atualmente em condições de 1997, e a Tailândia foi capaz de reduzir novas
reduzir a mortalidade infantil e materna e infecções de um pico de 143.000, em 1991,
oferecer acesso à água e saneamento, por para 19.000, em 2003.27
exemplo, enquanto uma parcela menor ainda Outros países desenvolveram formas
tem condição de conter HIV, malária e outras criativas de lidar com muitos objetivos
doenças graves. A análise do Fórum simultaneamente. No México, por exemplo,
Econômico Mundial torna claro que a razão quase 20 milhões de pessoas, em 1995, não
principal do fracasso é a ausência de foco tinham condições de adquirir alimentos
sobre as prioridades básicas de desen- suficientes para atender a suas necessidades
volvimento.26 nutricionais diárias, 10 milhlões não tinham
Todavia, quando governos efetivamente acesso a tratamento de saúde e pelo menos
estabelecem a conquista de certos objetivos 1,5 milhão de crianças estava fora da escola.
como prioridade, podem rapidamente obter O governo criou um programa assistencial de
grande sucesso – um sucesso que é “transferência condicional de fundos” que
freqüentemente multiplicado em função da realizava pagamentos com base num
forte ligação entre diferences problemas sociais. compromisso familiar quanto às necessidades
Ao investirem na prevenção da AIDS, por específicas de saúde e educação. Os recipientes
exemplo, os governos não só contêm a precisavam provar que seus filhos estavam
disseminação da doença, mas também matriculados, que as mães recebiam lições
reduzem custos de saúde, número de crianças mensais de nutrição e higiene e que as famílias
órfãs, perda de produtividade econômica e realizavam exames rotineiros de saúde. Os
de muitos profissionais necessários como resultados foram extraordinários. Doenças
professores e médicos. entre bebês caíram 25%, e 20% entre crianças
A Tailândia logo cedo percebeu a sabedoria com menos de 5 anos. A altura e peso das
de investimentos preventivos. Em 1990, após crianças aumentaram significativamente,
receber um estudo declarando que, se o HIV enquanto as taxas de anemia caíram 19%. As
permanecesse descontrolado, contaminaria 4 matrículas também aumentaram, uma vez que
milhões de tailandeses até 2000 e custaria 20% as famílias sofriam menos pressão financeira
do PIB, anualmente, o Ministro do Gabinete para fazerem seus filhos trabalhar. Em 2004,
do Primeiro-ministro, Mechai Viravaidya, o programa estava proporcionando
reconheceu que a AIDS não era apenas uma benefícios a mais de 25 milhões de pessoas, a
questão médica, mas sim “uma grave ameaça um custo de apenas 0,3% do PIB mexicano.28
à segurança nacional”. Após o encorajamento Embora governos nacionais sejam líderes
de Mechai, como ele é conhecido em todo o naturais para perseguir os ODMs, muito pode
país, o Primeiro-ministro Anand Panyarachun ser feito também em nível regional e local,
liderou pessoalmente uma campanha de quando legisladores estão determinados a
prevenção à AIDS. Com este grau de enfrentar problemas sociais. Um dos exemplos
compromisso, todos os ministérios do mais famosos é o estado de Kerala, na Índia.
governo foram autorizados a combater a Comparadas com o resto do país, as
AIDS. Os recursos dispararam, de US$ estatísticas de desenvolvimento de Kerala são

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

Tabela 9-2. Avanço Regional para Alcançar Objetivos de Desenvolvimento do


Milênio Selecionados

Região Pobreza Fome Ensino Mortalidade Acesso à Água Acesso à


Fundamental Infantil n.d. Saneamento
Nações Árabes alcançados retrocesso em curso lento alcançados n.d.
Europa Central/ Leste e CEI retrocesso n.d. alcançados lento lento n.d.
Leste da Ásia/ Pacífico alcançados em curso alcançados lento em curso lento
América Latina/ Caribe Lento em curso alcançados em curso em curso lento
Sul da Ásia em curso lento lento lento lento lento
África subsaariana retrocesso retrocesso lento lento em curso retrocesso
MUNDO em curso lento lento lento lento

FONTE: Vide nota final 26

impressionantes: a mortalidade infantil é um forma ecologicamente sustentável, para evitar


quarto da taxa nacional, a vacinação, quase o ganhos de curto prazo às custas do bem-estar
dobro e a taxa de fertilidade dois terços. (Na e segurança futuros. Um exemplo de como
realidade, com 1,96 nascimento por mulher, não desenvolver isto é o caso da bacia do
Kerala possui taxa de fertilidade mais baixa Mar de Aral, na Ásia Central. Em 1960,
do que os Estados Unidos.) Juntamente com planejadores do governo iniciaram um
um forte engajamento cívico, uma grande programa de desenvolvimento econômico
medida do sucesso de Kerala advém da agressivo para transformar uma região árida
dedicação das autoridades que priorizaram a no cinturão de algodão da União Soviética.
provisão de tratamento de saúde, educação e Por um tempo, foram bem sucedidos: terras
outros serviços básicos.29 irrigadas aumentaram para 7 milhões de
A cidade de Porto Alegre, no Brasil, hectares (duas vezes a área irrigada da
também obteve ganhos expressivos na Califórnia), agricultores constantemente
melhoria das condições de saúde e sociais. Em superaram suas cotas de produção, e a área se
apenas uma década, a porcentagem da tornou a principal fornecedora de algodão e
população com acesso à água e saneamento produtos agrícolas da União Soviética.
saltou de 75 para 98% e o número de escolas Contudo, a água foi drenada muito
quadruplicou. Isto ocorreu, porque a prefeitura rapidamente dos rios que alimentam o Mar
deu poderes à população para determinar as de Aral e eles começaram a secar.31
prioridades nas alocações das verbas Hoje, o Mar de Aral tem metade da área
municipais. As pessoas decidiram aplicar de outrora, com menos de um quinto do
recursos para garantir suas necessidades volume de água. Os pesqueiros que
básicas, o que significou aumentar o orçamento anteriormente supriam 45.000 toneladas de
de saúde e educação de 13%, em 1985, para peixes anualmente estão mortos. E o sal do
quase 40%, em 1996.30 leito seco, levado pelo vento por toda a região,
Todavia, mesmo quando governos se hoje contamina a área e envenena as terras
empenham para alcançar os objetivos básicos agrícolas restantes. E o que é pior, sem o mar
de desenvolvimento, terão que persegui-los de para regular o clima, a estação de cultivo

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

encurtou e há menos chuvas, prejudicando a do combustível de biomassa (cuja queima


agricultura ainda mais. No todo, este desastre freqüentemente contribui para doenças
ambiental afetou de 3,5 a 7 milhões de respiratórias), sobrando mais tempo para
pessoas.32 educação, ao reduzir as horas gastas
Embora nem sempre tão dramáticas, recolhendo água e combustível. A partir do
tragédias semelhantes devido a iniciativas fim de 2001 e ao longo de 20 meses, o
insustentáveis de desenvolvimento ocorrem governo instalou turbinas eólicas, sistemas
em todo o mundo. Os manguezais do sudeste fotovoltaicos solares e pequenos conjuntos
da Ásia foram dizimados pelo cultivo do hidrelétricos em mais de mil cidades,
camarão que, por si só, tem vida produtiva fornecendo eletricidade a quase um milhão de
curta; florestas tropicais têm sido desmatadas pessoas. Ao utilizar recursos energéticos
na Amazônia, eliminando estilos tradicionais renováveis, o governo não só ajudou a elevar
de vida e inúmeras espécies não descobertas; os padrões de vida nas áreas rurais, mas
e 15.000 km2 do Golfo do México – uma também reduziu problemas ambientais locais
área quase do tamanho do Kuwait – estão como desmatamento e desertificação, dimi-
hoje mortos, devido ao escoamento de nuindo a contribuição geral da China para a
resíduos agrícolas no Rio Mississipi.33 mudança climática.35
A sobrecarga de sistemas ecológicos dos Entretanto, tão importante como são os
quais as pessoas dependem está criando novas projetos de desenvolvimento nacional e as
ameaças graves. Algumas das estratégias mudanças de políticas, uma nova definição de
necessárias para os ODMs naturalmente sucesso econômico também é necessária para
ajudarão a contê-las – por exemplo, que as nações implantem suas economias em
proporcionar educação básica às mulheres bases sustentáveis. O entendimento atual de
tende a reduzir as taxas de fertilidade e, sucesso, medido freqüentemente em termos
subseqüentemente, pressões populacionais. de Produto Interno Bruto, enfoca
Porém, podem também agravar as ameaças principalmente o crescimento ou diminuição
– a educação poderá fornecer os meios ou da economia nacional. Todavia, o PIB esconde
incentivos para adesão à classe consumista o fato de que certo tipo de crescimento é
global, o que aumentaria em muito o uso dos destrutivo; é necessário uma alternativa que
recursos. A incorporação dos princípios de forneça uma melhor medida de sucesso.
sustentabilidade diretamente nas estratégias de Embora muitas organizações não-
desenvolvimento ajudaria os governos a evitar governamentais (ONGs) tenham criado
maiores estresses ecológicos.34 alternativas ao longo das três últimas décadas
A China está se empenhando para, que incorporavam custos ambientais e sociais
simultaneamente, reduzir a pobreza e aliviar na medida do PIB, 2004 se tornar um divisor
os problemas ambientais, através de seu de águas nesta abordagem. A China anunciou
ambicioso programa de eletrificação rural. que, dentro dos próximos três a cinco anos,
Noventa por cento das pessoas mais pobres adotará uma medida PIB Verde que subtrairia
da China vivem em áreas rurais. O governo a exaustão de recursos e custos de poluição
reconheceu que a eletricidade é um meio eficaz do PIB. Isto já está sendo testado na cidade
de aliviar a pobreza, pois reduz a dependência de Chongqing e na província de Hainan. Os

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

primeiros resultados indicam que o US$ 35 a US$ 40 por pessoa, anualmente. Para
crescimento médio do PIB chinês seria 1,2% os países mais pobres, onde o PIB per capita
menor, entre 1985 e 2000, caso os custos se situa em poucas centenas, isto será impossível
ambientais houvessem sido subtraídos do sem ajuda externa. Como o oitavo ODM
cálculo. Se for implementado, isto não só torna claro, será essencial um esforço
levaria a China a seguir um caminho de concentrado dos países industrializados e
desenvolvimento mais sustentável, mas instituições globais – tanto na oferta de ajuda
também poderá incentivar outras grandes adicional, quanto em iniciativas como
economias mundiais a seguirem o exemplo – aumento do alívio da dívida externa e
o que daria início a uma poderosa comércio justo.38
transformação nos tipos de desenvolvimento Muito pouca ajuda está sendo atualmente
econômico que o mundo valoriza.36 proporcionada para alcançar as ODMs. Em
Alcançar os Objetivos de Desenvolvimento 2003, países doadores ofereceram US$ 68
do Milênio exigirá maior investimentos. Alguns bilhões em assistência oficial ao
países já reconhecem isto e estão agindo. Em desenvolvimento (ODA na sigla em inglês),
2003, por exemplo, o Brasil postergou a ou apenas 0,25% de suas Rendas Internas
compra de jatos de combate no valor de US$ Brutas (RIB). Na cúpula de Joanesburgo, os
760 milhões e reduziu seu orçamento militar governos reafirmaram a necessidade de
em 4%, a fim de financiar um ambicioso prestar 0,7% da RIB em ajuda. Porém, apenas
programa contra a fome. A Costa Rica, por cinco países o fizeram – Dinamarca,
não possuir forças armadas por 50 anos, pôde Luxemburgo, Holanda, Noruega e Suécia. Se
dedicar uma parcela bem maior de seu todos os doadores efetivamente atendessem
orçamento a gastos sociais – com resultados a este objetivo plenamente alcançável, a ajuda
impressionantes. Com um PIB per capita anual ao desenvolvimento aumentaria em mais
semelhante à América Latina como um todo, de US$ 110 bilhões – mais do dobro dos
a Costa Rica tem a maior taxa de expectativa US$ 50 bilhões estimados como necessários
de vida e um dos maiores níveis de em ter mos de recursos adicionais para
alfabetização de toda a região. Mesmo que os alcançar os ODMs. Até agora, só Bélgica e
países em desenvolvimento redirecionem Irlanda anunciaram planos para aumentar sua
apenas uma pequena parcela de seus gastos ODA para 0,7%.39
militares, estimados em mais de US$ 220 Além disso, países doadores terão que
bilhões, para alcançar os ODMs, isto dispo- melhorar a destinação da ajuda que prestam.
nibilizaria recursos adicionais significativos.37 Em 2001, mais de um quinto da ajuda foi
Mas, a maioria desses países necessitará de condicionada à compra de bens e serviços do
mais recursos do que pode suprir por si só. país doador, enquanto menos de um terço
Realmente, para os países mais pobres será destinou-se a melhorias em saúde, saneamento
praticamente impossível obter recursos e serviços educacionais. A fim de encarar com
suficientes dentro de seus orçamentos para sucesso as ameaças não-tradicionais à
oferecer serviços básicos. A OMS calcula, por segurança, maior ajuda terá que ser destinada
exemplo, que, para sustentar um sistema de diretamente para atingir os ODMs.40
saúde pública, é necessário um mínimo de Países doadores também precisam fazer

195
Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

mais para reduzir os ônus insuportáveis dos Figura 9-1). Na realidade, redirecionando
países altamente endividados, muitos dos quais apenas 7,4% dos orçamentos militares dos
gastam uma parcela significativa de seus PIBs países doadores para ajuda ao desen-
anuais para o serviço de suas dívidas em aberto volvimento, proporcionaria todos os recursos
– freqüentemente em detrimento de serviços adicionais – US$ 50 bilhões anuais –
sociais básicos. Após uma longa campanha necessários para pagar pelos ODMs. De
para alívio da dívida nos anos 90, os benefícios acordo com um relatório de 2004, do Centro
estão começando a surgir. Os 26 países que de Informação de Defesa e Política Externa
receberam algum alívio reduziram seus em Foco, US$ 51 bilhões – ou 13% -
serviços da dívida em 42%, de US$ 3,8 bilhões, poderiam ser cortados do orçamento militar
em 1998, para US$ 2,2 bilhões, em 2001. Cerca dos Estados Unidos, apenas com a remoção
de 65% dessas economias foram redire- de programas ultrapassados e desnecessários.
cionadas para programas de saúde e educação. Apenas isto proporcionaria os recursos
Isto ajudou Uganda, por exemplo, a alcançar adicionais necessários para atingir as ODMs.43
um nível de matrículas quase universal no
ensino fundamental. Todavia, a África
Em 2003, o Brasil postergou a compra
subsaariana – a região mais atrasada na
de jatos de combate no valor de US$
conquista dos ODMs – continua a pagar as
nações credoras US$ 13 bilhões ao ano, no 760 milhões e reduziu seu orçamento
serviço da dívida.41 militar em 4%, a fim de financiar um
Embora ajuda e alívio da dívida sejam ambicioso programa contra a fome.
importantes, estes ganhos são freqüentemente
eclipsados pelas disparidades criadas por Um dos compromissos mais promissores
subsídios comerciais e tarifas dos países e abrangentes com o desenvolvimento vem
industrializados. Por exemplo, enquanto a da Suécia. No final de 2003, o governo sueco
União Européia dá uma ajuda de cerca de promulgou uma lei intitulada Responsabilidade
US$ 8 por pessoa na África subsaariana, Compartilhada – Política Sueca para o
anualmente, oferece US$ 913 em subsídios por Desenvolvimento Global. Ela obriga o
vaca, na Europa. No total, mais de US$ 300 governo a facilitar o desenvolvimento não
bilhões em subsídios anuais e tarifas agrícolas apenas através de ajuda (que também planeja
enfraquecem a capacidade dos agricultores nos aumentar para 1,0% do PIB), mas alinhando
países em desenvolvimento de competirem todas as políticas governamentais – comerciais,
com outros agricultores. De acordo com um agrícolas, ambientais e de defesa – em torno
estudo feito, em 2004, pelo Instituto de de um princípio orientador de desen-
Economia Internacional e o Centro para volvimento global eqüitativo e sustentável. Em
Desenvolvimento Global, a remoção dessas setembro de 2004, o governo sueco divulgou
tarifas e subsídios poderia retirar 200 milhões seu primeiro relatório anual. Utilizado como
de pessoas da pobreza, até 2020.42 for ma de fornecer uma visão geral do
Outra fonte potencial de ajuda assistencial ambiente político atual, o relatório
de desenvolvimento seria recursos de documentou as muitas inconsistências das
financiamento militar redirecionados (ver atuais políticas e forneceu um ponto de partida
para engajar ministérios e a sociedade civil na
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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

reorientação da política sueca em torno de um sociedade civil estiver envolvida no esforço.


programa de desenvolvimento sustentável Felizmente, o registro dos últimos 15 anos
global.44 indica que atores do setor civil – especialmente
Entretanto, mesmo se os Objetivos de ONGs, um subconjunto das organizações da
Desenvolvimento do Milênio forem alcançados sociedade civil – emergiram como intérpretes
hábeis em política global
e até mesmo como
líderes numa grande
variedade de questões
pertinentes à segurança
(ver Quadro 9-3). A
escolha de Wangari
Maathai, líder do
movimento Cinturão
Verde, do Quênia, para
receber o Prêmio Nobel
da Paz de 2004 é um
exemplo encorajador da
aceitação desses líderes
no palco internacional e
da ligação do meio
ambiente a questões de
paz e segurança. A
eficácia crescente da
sociedade civil pode ser
creditada a uma
Figura 9-1. Gastos Militares versus Assistência Desenvolvimentista, variedade de valores que
fortalecem a capacidade
até 2015, ainda assim restariam 400 milhões de de grupos de “trabalhar em rede” – talvez a
pessoas subnutridas, 600 milhões vivendo com expressão emblemática desta era globalizante.
menos de US$ 1 por dia, e 1,2 bilhão sem acesso A sociedade civil poderá ajudar melhor a
a saneamento básico. E o mundo não está nem estabelecer os fundamentos da paz,
perto de atingir esses modestos objetivos. Para desenvolvendo mais esta capacidade de ser
um parceiro eficaz, aplicando essas
tal, os governos terão que assumir compro-
qualificações a questões de segurança.46
missos sérios – e mantê-los.45
Uma ilustração poderosa da capacidade do
setor civil em atravessar fronteiras nacionais
Engajando a Sociedade numa questão de segurança surgiu quando
Civil estava prestes a irromper a guerra do Iraque
O sucesso na criação de um mundo mais de 2003, quando emergiu um movimento
seguro e mais pacífico será mais provável se a global antiguerra que gerou as maiores

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

QUADRO 9-3. A ASCENSÃO DA SOCIEDADE CIVIL

A estatura proeminente da sociedade civil é mudança climática e competição por água e outros
resultado de várias tendências sociais que emergiram recursos foram sendo gradativamente reconhecidas
nas duas últimas décadas. O que abriu caminho foi o como muito complexas para um único governo - ou até
avanço da democracia em dezenas de países, que criou mesmo grupos de governos - lidar. Governos e
maior espaço para os cidadãos e organizações civis. corporações começaram a perceber que parcerias com
Desde os anos 80, e particularmente desde o colapso uma sociedade civil liberada e poderosa poderiam ser
do Muro de Berlim, dezenas de países da Europa uma forma eficaz de lidar com algumas das questões
Oriental, Ásia e América Latina abandonaram governos mais intratáveis da época moderna.
totalitários ou autoritários em favor de sistemas Dentro deste espaço político energizado entraram os
políticos que ofereciam maior grau de liberdade de vários conjuntos de entidades civis conhecidos como
pensamento e de imprensa – o sangue vital de um setor ONGs. Estas geralmente operam com objetivos
civil vibrante. Enquanto isso, algumas democracias públicos, caracteristicamente em questões como direitos
consolidadas da Europa e das Américas começaram a humanos, proteção ambiental, questões de gênero e
se voltar a organizações civis para assumirem as tratamento de saúde – e freqüentemente sob uma
responsabilidades indesejadas por governos e variada gama de perspectivas políticas. ONGs são
corporações, desde sopas para pobres à comumente consideradas como flexíveis, eficientes,
implementação de projetos de desenvolvimento no pequenas, intimamente ligadas a cidadãos, e capazes de
exterior. unir a eficiência operacional de um negócio com o
À medida que a latitude dos grupos civis se objetivo público de um governo. Seu crescimento tem
ampliava, tecnologias de comunicação poderosas e sido notável, mesmo em nível internacional: entre 1975 e
acessíveis os ajudaram a organizar e compartilhar 2000, o número de ONGs internacionais cresceu de
informações, acentuando seu status como atores menos de 5.000 para aproximadamente 25.000.
políticos. Nos anos 80, os computadores haviam se O novo setor civil pleno de poder, gerado por esta
tornado relativamente baratos, portáteis, combinação de tendências históricas, levou um repórter
descentralizados e interligados – uma combinação de do New York Times, em 2003, a classificar a opinião
atributos que multiplicou as oportunidades de trabalho pública global como uma “segunda superpotência” – um
em rede para organizações e indivíduos. poder cujas atividades de líderes políticos não podem
Particularmente, o avanço acelerado da Internet ignorar sem correr considerável risco político.
aumentou em muito as oportunidades de democracia ___________________________________________________________________________________________
participativa e apelos diretos a tomadores de decisão. fonte: Vide nota final 46.
Ao mesmo tempo, questões internacionais como

manifestações da história: milhões de pessoas de Segurança numa questão que considerava


se reuniram em centenas de cidades em todo de importância vital – aliado à preocupação
o mundo, durante o fim de semana de 15 de entre os países-membros de que os inspetores
fevereiro de 2003, para protestar contra as de armas não tiveram permissão de concluir
hostilidades a serem dirigidas ao Iraque. seu trabalho. Estimulados pelas manifestações
Embora o movimento não tenha evitado a públicas e pesquisas revelando que a maioria
guerra, registrou alguns sucessos notáveis. A se opunha à guerra, em quase todos os países
mobilização de um público global a um consultados, o Conselho de Segurança resistiu
mesmo momento sobre uma questão crucial à pressão dos Estados Unidos por uma
foi, em si, um avanço considerável para a autorização para a guerra. A relutância do
sociedade civil. E, pela primeira vez desde a Conselho em aprovar fortaleceu, por sua vez,
fundação das Nações Unidas, a opinião os organizadores antiguerra a continuarem
pública ajudou a evitar que os Estados Unidos com seus esforços.47
obtivessem a maioria dos votos no Conselho As manifestações se diferenciaram das

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

marchas pela paz do século XX em formas que geram eventos como Fóruns Sociais
que acentuam a linha de colaboração que passa regionais e globais estão se desenvolvendo
hoje pelas iniciativas da sociedade civil. Mais regularmente ao longo de mais de uma
obviamente, as novas manifestações foram década. O Centro para Estudo da Gover-
globalmente coordenadas por ONGs, nança Global (CSGG na sigla em inglês), de
embora houvessem sido organizadas Londres, infor ma que organizações da
primeiramente em nível local. Nos Estados sociedade civil incrementaram suas atividades
Unidos, por exemplo, uma nova ONG de reuniões significativamente nos últimos
chamada Unida para a Paz e Justiça surgiu para anos: quase um terço das principais reuniões
ajudar a coordenar mais de 70 manifestações internacionais sobre questões de paz, meio
por todo o país – e dar publicidade às ambiente e desenvolvimento organizadas por
manifestações realizadas em outros países. estes grupos desde 1988 foram realizadas num
Nenhuma manifestação de paz transfronteiriça período de apenas 15 meses, em 2002 e 2003.
– nem aquelas contra a Guerra do Vietnã nos E essas reuniões são cada vez mais sofisticadas.
anos 60, ou as de oposição a armas nucleares Muitas são grandes – cerca de 55% com mais
nos anos 80 – teve tamanha coordenação de 10.000 participantes – e são cada vez mais
internacional.48 eventos independentes, ao invés de eventos
Além disso, as manifestações de fevereiro “paralelos” a reuniões oficiais. Além de
de 2003 foram distintas por estarem oferecer uma plataforma de comunicação
incorporadas numa rede maior de atividade global, as reuniões são uma excelente
da sociedade civil sobre questões que se oportunidade para um trabalho em rede
estendem além da guerra. A gênese das “cara-a-cara”: organizações civis pesquisadas
manifestações naquele dia, de fato, foi um para o relatório do CSGG listaram o trabalho
chamamento feito numa reunião do Fórum em rede e parceria como os principais
Social Europeu, em novembro de 2002, e objetivos para a participação.50
apoiado no Fórum Social Mundial (FSM), em Ao mesmo tempo, algumas das vantagens
janeiro de 2003 – reuniões de organizações associadas às mobilizações e reuniões das
da sociedade civil e de outros atores cívicos organizações civis são uma faca de dois gumes,
que enfocam basicamente questões sociais e sugerindo necessidade de cautela, à medida
econômicas. E alguns dos gr upos que esses grupos capitalizam seus sucessos. De
organizadores das marchas de 15 de fevereiro início, as energias de uma cidadania
eram veteranos das manifestações de 1999 que amplamente mobilizada podem ter pouca
impediram a reunião da Organização Mundial durabilidade e deverão ser utilizadas com
do Comércio em Seattle. As ligações com um parcimônia. Uma evidência disto foi o
movimento de uma sociedade civil mais chamado para as manifestações globais
ampla e globalmente ativa indicam que a antiguerra em março de 2004, no primeiro
mobilização de 15 de fevereiro não foi um aniversário do início da guerra do Iraque,
extravasamento isolado de indignação quando apenas uma fração da participação do
pública.49 ano anterior compareceu, tendo pouco, ou
Realmente, há evidências de que a nenhum, impacto sobre a ocupação do Iraque
capacidade da sociedade civil formar as redes pelos Estados Unidos. Mobilizações em larga

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

escala podem ser difíceis de organizar com como estes, num país com uma longa história
muita freqüência e deverão ser usadas de proteção legal a manifestações públicas,
estrategicamente para obtenção de máximo indicam que os atores civis não devem achar
efeito. Esta realidade desafiará os líderes da que seu espaço operacional – que em muitos
sociedade civil, globalmente, a trabalharem países é território recém-conquistado – seja
juntos para determinar o melhor momento algo líquido e certo.53
para mobilizações globais.51 O trabalho em rede das organizações civis
Além disso, o sucesso das organizações civis também está sendo facilitado pelo uso das
na organização de grandes reuniões poderá, novas tecnologias de comunicação. A
ironicamente, criar seus próprios desafios. O Campanha Internacional de Proibição de
Fórum Social Mundial cresceu de forma Minas Terrestres (ICBL, na sigla em inglês),
impressionante – de 10.000 participantes, na por exemplo, foi um esforço coordenado nos
primeira reunião em 2001, para 100.000 ou anos 90, de centenas de organizações civis
mais, em 2004, números que podem reunidas através de e-mails e da internet. A
facilmente estressar a capacidade de campanha concebeu, elaborou e obteve apoio
participação efetiva e levar as reuniões a se governamental para um Tratado de Proibição
transformarem em pouco mais do que de Minas Terrestres que, em outubro de 2004,
festivais. Este é o perigo específico do fórum, possuía 143 signatários – a primeira vez que
que não foi planejado para pressionar por um tratado foi elaborado e levado a viger com
uma agenda de ação particular e sim para uma liderança básica da sociedade civil. Esta
proporcionar um espaço onde pontos de realização deu ao ICBL o Prêmio Nobel da
vista diferentes possam ser articulados sob a Paz em 1997. O grupo evidentemente foi
rubrica “outro mundo é possível”. Veteranos duplamente merecedor do prêmio: pelo
do fór um, como Arundhati Roy, hoje tratado propriamente dito, que demonstra
sugerem que as oportunidades para ação uma promessa real de eliminação de uma das
devem formar parte rotineira das reuniões.52 maiores pragas que afligem populações civis
Finalmente, à medida que as mobilizações pós-guerra, e pela forma inovadora com que
públicas obtêm maior sucesso, a sociedade o grupo trabalhou, fortalecendo a sociedade
civil precisará estar alerta para medidas civil como força de paz.54
defensivas que diluam sua eficácia. Alegando Outras organizações civis podem aprender
questões de segurança, a cidade de Nova com a experiência do trabalho em rede da
York, por exemplo, esforçou-se para ICBL. Pesquisas sobre armas biológicas, por
minimizar o impacto das marchas de 15 de exemplo, eram, até pouco tempo atrás,
fevereiro desviando os manifestantes das rotas lideradas em grande parte por bolsões de
traçadas e impedindo a passagem pela frente especialistas no Ocidente, incluindo pequenos
das Nações Unidas. Esforços semelhantes grupos de acadêmicos e cientistas que visavam
ocorreram 18 meses depois, quando a cidade a legisladores, ao invés do público, com
redirecionou as manifestações programadas informações. Mas, a partir de 2001, algumas
para a Convenção do Partido Republicano, ONGs como Sunshine Project, da Alemanha e
no verão de 2004, e prendeu milhares de dos Estados Unidos, se empenharam para
manifestantes, com pouca base legal. Desafios ampliar o interesse reformulando o tema para

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

incluir questões com as quais as organizações Organizações civis em países mais ricos
civis já estavam ativas, como biodiversidade e poderão ajudar a assegurar que organizações
biossegurança. Outro grupo, o BioWeapons menos prósperas sejam tão eficazes quanto
Prevention Project [Projeto de Prevenção a possível, fornecendo as tecnologias que
Bioar mas], utilizou os mecanismos de necessitam. Um exemplo inspirador desta
atividades locais para levar adiante ações sobre colaboração é o trabalho da Witness, uma
questões de guerra biológica. Estabeleceu redes organização sem fins lucrativos nos Estados
de grupos civis na Europa, América do Norte Unidos, estabelecida em 1992, que fornece
e África, juntamente com uma publicação camcorders, treinamento técnico e em
anual, BioWeapons Monitor, para ajudar o público desenvolvimento de mensagem para
a acompanhar o cumprimento à Convenção organizações civis em todo o mundo.
sobre Armas Biológicas. Através das páginas Capitalizando o maior poder e preço baixo
da internet, e-mails e outras tecnologias de de câmeras portáteis e equipamento de edição
comunicação moderna, estes dois grupos estão de vídeos nas duas últimas décadas, Witness se
ampliando a público interessado em questões dispôs a ajudar atores civis a documentarem
biológicas e químicas além de cientistas, além abusos a pessoas e ao meio ambiente. Em
dos países industrializados e além da 2004, o grupo havia colaborado com mais
comunidade tradicional de segurança.55 de 200 parceiros em projetos em 50 países,
tendo obtido vários sucessos significativos,
inclusive o fechamento de um notório hospital
A Campanha Internacional de Proibição
de doenças mentais no México, após uma
de Minas Terrestres foi um esforço
transmissão pública de uma filmagem
coordenado, nos anos 90, de centenas de realizada por uma organização apoiada pela
organizações civis reunidas através de e- Witness. Os vídeos da Witness também foram
mail e internet. responsáveis por ter instigado o Governo das
Filipinas a investigar os assassinatos de ativistas
Outro exemplo marcante do uso da indígenas que reclamaram direitos ancestrais à
tecnologia é a mobilização cidadã que forçou terra.57
o Presidente das Filipinas Joseph Estrada a
renunciar, em janeiro de 2001. Alertados que A sociedade civil, governos e corporações
seu julgamento de impeachment por corrupção estão formando parcerias para lidar com
havia sido suspenso indefinidamente, cidadãos questões de interesse comum, inclusive
indignados utilizaram mensagens de texto em problemas de paz e segurança.
celulares e computadores para organizar um
protesto que reuniu 150.000 pessoas no centro Além do seu trabalho com outros atores
de Manila, em duas horas. Os manifestantes da sociedade civil, as organizações civis
ficaram em vigília durante quatro dias, em também estão adquirindo experiência valiosa
número tão expressivo que o Presidente se na colaboração com governo e indústria no
viu forçado a renunciar.56 enfrentamento dos problemas mais intratáveis
Estes sucessos são possíveis, naturalmente, da sociedade. O padrão tradicional da
só onde a tecnologia está disponível. diplomacia internacional, onde iniciativas de

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

políticas transfronteiriças foram, em grande Democrática do Congo da organização, após


parte, empreendidas por governos e este não ter conseguido comprovar a origem
organizações internacionais (com pressões, às de diamantes congoleses e garantir que eram
vezes, das corporações e ocasionalmente da “limpos”. A ação impede o Congo de
sociedade civil) está cedendo lugar a uma nova exportar diamantes para qualquer um dos 43
dinâmica. A sociedade civil, governo e membros do KPCS que exercem o
corporações estão formando parcerias – comércio.60
freqüentemente temporárias e de natureza não Redes de ONGs colaboradoras, governos
hierárquica – para lidar com questões de e corporações demonstram grande capacidade
interesse comum, inclusive problemas de paz para lidar com uma variedade de questões de
e segurança. Estas “redes de políticas públicas segurança e merecem o apoio de governos e
globais” oferecem um lugar à mesa de instituições internacionais. A promoção pela
legisladores para ONGs e outras organizações ONU deste tipo de parceria, na Cúpula
da sociedade civil de maneira sem precedentes. Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável,
(Ver Tabela 9-3.)58 em 2002, é um exemplo do tipo de apoio
Um exemplo da nova colaboração é o institucional que essas iniciativas necessitam. Na
KPCS (sigla em inglês do Esquema Kimberley reunião em Joanesburgo, mais de 100 grandes
de Certificação de Processo), um acordo parcerias entre governos, corporações e
cooperativo entre empresas de diamante, ONGs foram estabelecidas, para lidar com
governos e organizações civis, que atesta que várias questões, desde gestão hídrica à
os diamantes exportados não são “diamantes promoção de energia renovável.61
de conflitos” – pedras brutas cuja venda gera As instituições internacionais também
receita utilizada para financiar conflitos civis podem apoiar redes transetoriais
em Angola, Serra Leoa, Libéria e outros indiretamente, trabalhando com as
países. Iniciado no início de 2003, após uma organizações civis e legitimando-as como
solicitação da Assembléia Geral da ONU para parceiros potenciais para governos e
a certificação de diamantes em 2000, o corporações. O Banco Mundial consulta
processo de certificação Kimberley hoje cobre constantemente as organizações civis em seu
cerca de 98% das exportações mundiais de trabalho ao longo da última década – alega
diamante. A indústria, organizações civis e que cerca de 70% de seus projetos envolveram
governos se reúnem em grupos de trabalho colaboração com organizações civis, em 2002,
para administrar o esquema e monitorar seu contra 50% cinco anos antes, um
funcionamento.59 desenvolvimento promissor que eleva a
O sucesso do Processo Kimberley ainda estatura da sociedade civil.62
está em dúvida. Críticos alegam que os Enquanto isso, as Nações Unidas também
varejistas de diamantes têm sido lentos em estão tomando medidas para promover maior
apoiar o processo, assegurando que os inclusão de ONGs. A sociedade civil tem sido
diamantes são livres de conflitos. Por outro muito ativa no trabalho econômico e social
lado, o KPCS se mostrou disposto a ser duro da ONU, particularmente nas principais
com os governos, como na decisão de julho conferências e após a Cúpula da Terra no Rio
de 2004, que expulsou o governo da República de Janeiro, através da Comissão sobre

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

Desenvolvimento Sustentável. Porém, o considerando reformas que poderão levar a


Conselho de Segurança tem estado mais diálogos ainda entre a sociedade civil e o
tradicionalmente inacessível a qualquer um, Conselho de Segurança, além de envolver
exceto delegações oficiais da ONU. Isto, grupos civis mais intimamente nos trabalhos
entretanto, está começando a mudar de campo da ONU, e estabelecer um fundo
lentamente, com o Conselho hoje permitindo especial de ajuda às organizações civis nos
troca de idéias a portas fechadas, oficiosas, países em desenvolvimento para aumentar sua
entre ONGs e delegados governamentais. capacidade de trabalho eficaz com as Nações
Ademais, o Secretário-geral Kofi Annan está Unidas.63

Tabela 9-3. Redes Selecionadas de Políticas Públicas Globais


Nome da Rede Parceiros Selecionados Detalhes

Roll Back Malaria Bayer Environmental Science, Lançado em 1998, com o objetivo de
(Fazer Recuar a Malária) CORE, PNUD, UNICEF, Banco reduzir pela metade o ônus da malária, até
Mundial, OMS, Governos de 2010, através de uma abordagem
Gana, Índia e Itália internacional coordenada

World Commission on Dams FAO, Agência Internacional de Em 1998, a comissão realizou dois anos
(Comissão Mundial de Barragens) Energia, IUCN, Transparency de consultas e estudos de caso sobre o
International, PNUMA, Banco papel das grandes barragens no
Mundial, OMS desenvolvimento. O relatório final foi
divulgado em 2000 e, em 2001, o Projeto
do PNUMA de Barragens e
Desenvolvimento foi criado para
disseminar as conclusões do relatório.

Global Water Partnership União Européia, IFPRI, A parceria foi estabelecida após as
(Parceria Mundial da Água) Universidade de Pequim, Agência conferências de Dublin e Rio de Janeiro,
Internacional de Desenvolvimento em 1992, para apoiar países no manejo
da Suécia, PNUD, Banco Mundial sustentável de seus recursos hídricos

Africa Stockpiles União Africana, CropLife Este programa teve início em 2000 como
Programme International, GEF, um esforço entre múltiplos interessados,
para eliminar armazenagem de pesticidas
obsoletos na África, dar destinação final a
produtos químicos orgânicos persistentes
(Programa Africano Pesticide Action Network-Africa, conforme diretrizes internacionais e
de Armazenamento) PNUMA, OMS, WWF impedir acumulação futura de pesticidas.

Global Village Energy BP Solar, USAID, PNUD, Lançado em 2002 na Cúpula Mundial
Parnership(Aliança Global Winrock International, Banco sobre Desenvolvimento Sustentável, esta
para Universalização Mundial parceria visa aumentar a comunicação
de Energia) entre investidores de energia, empresários
e usuários; desenvolver políticas
energéticas em vilarejos; e proporcionar a
400 milhões de pessoas acesso a serviços
energéticos modernos como aquecimento,
resfriamento e cozimento.
FONTE: Vide nota final 58.

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

Educação, mídia e religião estão por produzir cidadãos e líderes que engen-
posicionadas para estabelecer um draram o século mais violento e mais
entendimento público sobre como tornar ambientalmente destrutivo da história da
as sociedades mais pacíficas e justas. humanidade. Vale notar, também, que algumas
das civilizações mais duradouras da história
foram lideradas por pessoas sem a instrução
Muitas questões ainda precisam ser tratadas formal que conhecemos hoje. Todavia, as
com relação ao lugar da sociedade civil nessas escolas poderiam ser instituições que geram
redes de políticas. Dentre os diversos atores “cidadãos globais”: aqueles que entendem suas
do setor civil, qual teria acesso à rede de ligações com as pessoas e problemas de outras
políticas e quem decidiria? Quão represen- terras, que se vêem às voltas com questões
tativas são as organizações civis, cuja liderança fundamentais de justiça global, e que sentem
raramente é eleita pelo público e não presta profundamente que o meio ambiente natural
contas a este público? Que tipos de verificações é parte integrante de seu bem-estar e, portanto,
são necessárias para assegurar que as merecedor de proteção. A criação deste
organizações civis não sejam instrumentos de sistema educacional é o grande desafio para o
seus governos ou parceiros comerciais? Estas século XXI.
e outras questões complexas ainda precisam Enquanto isso, a mídia mundial – televisão,
ser resolvidas enquanto o movimento se rádio, jornais, livros, música e a internet, entre
consolida. Contudo, o mesmo espírito de outros meios – pode ser pensada como um
colaboração que caracteriza a operação dessas sistema educacional paralelo, tão generalizado
redes poderá, presumivelmente, ajudar a é seu alcance e tão poderosa é sua capacidade
resolver também estas questões. de formar visões de mundo. Uma pesquisa
Os esforços de redes relativamente novas da Pew Research Center, realizada em março de
e instáveis – sejam colaborações transitórias 2003, constatou que 41% dos americanos
entre ONGs ou esforços mais institu- identificaram a mídia como a influência básica
cionalizados de redes de políticas – podem na formação de suas opiniões sobre a guerra
ser sustentadas pelo trabalho de valorização do Iraque. Uma mídia que alarga as visões
de centros consolidados de influência da dos cidadãos, que oferece uma diversidade
sociedade civil. Particularmente a educação, de perspectivas sobre grandes questões sociais
mídia e religião estão posicionadas para e que é reformulada para depender muito
estabelecer um entendimento público dos menos da publicidade para seu sustento
processos políticos globais e de como tornar influenciaria fortemente os valores sociais numa
as sociedades mais pacíficas e justas. Cada uma direção mais consistente com as necessidades
dessas instituições possui uma história de um mundo globalizado e ambientalmente
diversificada, naturalmente, no exercício do e socialmente estressado.64
poder. Escolas, mídia e igrejas são, às vezes, Finalmente, a influência religiosa sobre
tão eficazes em conclamar os cidadãos às visões de mundo é considerável, agindo
armas como liderá-los na manutenção da paz. freqüentemente nos níveis mais profundos da
A educação do século XX, por exemplo – psique humana e expressa através de rituais,
apesar de seu sucesso –, tem sido criticada ensinamentos bíblicos e exortação moral.

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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ

Exercido, às vezes, violentamente e com fins sobre a gama de crises que a comunidade
repressivos, este poder, não obstante, tem sido global enfrenta hoje – especialmente guerra,
utilizado também de forma construtiva. O desigualdade e degradação ambiental –
movimento de Gandhi pela independência da poderá afetar profundamente o curso dos
Índia, a luta pelos direitos civis nos Estados acontecimentos do novo século.
Unidos, o boicote internacional de fórmulas Este novo foco desses três centros de
infantis nos anos 70, o movimento antinuclear influência muito contribuirá para fortalecer um
dos anos 80 e a campanha de reestruturação setor civil cheio de vigor e poder. Facilitará
da dívida dos países em desenvolvimento nos também a reforma das instituições inter-
anos 90, foram todos liderados ou influenciados nacionais e a realização das visões sociais,
por pessoas e organizações religiosas. E os econômicas e ambientais endossadas pela
esforços colaborativos para acabar com Assembléia do Milênio e pela Cúpula Mundial
conflitos, como as iniciativas da Fundação Inter- sobre Desenvolvimento Sustentável. Uma
religiosa de Paz de Sri Lanka – um grupo de cidadania globalmente orientada que abrace
budistas, cristãos, muçulmanos, hindus e Baha’is um senso de solidariedade com os mais
trabalhando pela paz na ilha-nação oferecem pobres do mundo e de responsabilidade pelo
esperanças de que grupos religiosos possam planeta que nos sustenta, provavelmente, não
combinar sua influência em prol da paz.65 só apoiaria novas iniciativas de políticas, como
Explorar o poder das várias tradições também insistiria nelas.
religiosas mundiais para formar perspectivas

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