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SEGURANÇA REDEFINIDA
ESTADO DO MUNDO
2005
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SEGURANÇA REDEFINIDA
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SEGURANÇA REDEFINIDA
CAPÍTULO 1
Segurança Redefinida
Michael Renner
Pouco mais de uma década após o término ambientais e políticas – forças que, conjun-
da guerra fria ter prenunciado uma nova era tamente, criam um mundo tumultuado e
de paz, temores quanto à segurança estão de instável. Dentre elas, destacam-se pobreza
volta ao topo da agenda mundial. É palpável endêmica, transições econômicas convulsivas
uma sensação mais aguda de insegurança, que causam desigualdade crescente e alto
refletida tanto nas manchetes como em desemprego, crime internacional, disse-
pesquisas de opinião em todo o mundo. Os minação de armamentos mortais, movi-
ataques terroristas de 11 de setembro nos mentos populacionais em grande escala,
Estados Unidos foram, sem dúvida, um desastres naturais recorrentes, colapso de
evento pivotal. Ataques subseqüentes em ecossistemas, doenças contagiosas novas e
outros países, da Espanha ao Quênia, da ressurgentes, e o incremento de disputas sobre
Arábia Saudita à Rússia e do Paquistão à terras e outros recursos naturais, particu-
Indonésia reforçaram a sensação generalizada larmente o petróleo. Estes “problemas sem
de vulnerabilidade. E o caos crescente no passaporte” deverão se agravar nos anos
Iraque após a ocupação liderada pelos Estados futuros. Entretanto, diferentemente de ameaças
Unidos nutre a inquietação sobre as reper- tradicionais de algum adversário, são melhor
cussões de um Oriente Médio desestabilizado. entendidas como riscos e vulnerabilidades
Mas o terrorismo é apenas sintomático de compartilhadas. Não podem ser resolvidas
um conjunto muito mais amplo de temores através de aumentos em gastos militares ou
que geraram uma nova era de ansiedade. Atos mobilização de tropas. Também não podem
de terror e as conseqüentes reações são como ser contidas com fechamento de fronteiras ou
pontos de exclamação num mesclado nocivo manutenção do status quo num mundo
de profundas pressões socioeconômicas, extremamente desigual.1
Unidades de medidas utilizadas neste livro são métricas, salvo quando a prática comum recomende em contrário.
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mundo parece cada vez mais distante da segurança. Isto é verdade para nações adver-
solução das questões fundamentais que sárias possuidoras de armas de tamanho poder
enfrenta, e cada vez mais profundamente de destruição que nenhuma defesa é possível.
imerso numa fase de confrontamento, É verdade em guerras civis, onde a franca
violência e disparidades culturais exageradas”4. disponibilidade de ar mas fortalece os
Políticas que buscam segurança priori- implacáveis mas não proporciona defesa aos
tariamente por meios militares e não lidam civis. E foi verdade no dia 11 de setembro,
com fatores subjacentes de instabilidade, irão quando um grupo obstinado de terroristas
provavelmente provocar uma espiral de atacou com impunidade o país mais militar-
violência e instabilidade, e possivelmente causar mente poderoso do mundo.
o colapso de regras e normas internacionais. A segurança efetiva num mundo glo-
Políticas derivadas de uma nova conscien- balizante não poderá ser proporcionada em
tização de segurança global podem evitar esses bases puramente nacionais. Será necessário
perigos e promover alternativas construtivas. uma abordagem multilateral e até mesmo glo-
Uma abordagem firme e abrangente à criação bal para lidar eficazmente com a profusão de
de um mundo mais estável implica medidas desafios transfronteiras.
destinadas a impedir o declínio ambiental, O foco tradicional na segurança do
romper os grilhões da pobreza e reverter a Estado (ou regime) é inadequado e precisa
tendência à desigualdade e insegurança social abranger a segurança e bem-estar de seus
crescentes que geram desespero e extremismo. habitantes. Se indivíduos e comunidades estão
Uma mudança fundamental de prioridades é inseguros, a própria segurança nacional pode
essencial para a realização dessas tarefas. Em se tornar extremamente frágil. A governança
última análise, a segurança tem que ser democrática e uma sociedade civil vibrante
universal. poderão vir a se tornar mais imperativas para
a segurança do que um exército.
As Raízes da Insegurança Dimensões não-militares têm grande
influência sobre segurança e estabilidade.
A conscientização das ameaças e desafios Nações em todo o mundo, mas particular-
que não podem ser resolvidos dentro do mente as nações e comunidades mais fracas,
arcabouço tradicional de segurança nacional, confrontam uma profusão de pressões.
levou uma vasta gama de organizações não Enfrentam uma combinação debilitante de
governamentais (ONGs), acadêmicos e outros competição crescente por recursos, colapso
a apurarem e redefinirem nosso conceito de ambiental agudo, ressurgimento de doenças
segurança, ao longo das últimas duas décadas. infecciosas, pobreza e crescente disparidade
Qual o objeto de segurança? Qual a natureza de renda, pressões demográficas, desemprego
das ameaças? Quem proporcionará segu- e incerteza de meios de vida.5
rança? E por que meios? Estas questões e As pressões diante de sociedades e povos
discussões ganharam ímpeto após o fim da de todo o mundo não geram, automatica-
guerra fria. E, hoje, as conclusões fundamentais mente, ou necessariamente, violência. Podem,
a que levaram são mais relevantes ainda: porém, se traduzir numa dinâmica política que
Armas não proporcionam necessariamente leva a uma crescente polarização e radica-
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lização. As piores conseqüências são mais pro- combinações capazes de causar resultados
váveis, onde insatisfações se agravam, onde desestabilizadores.7
populações sofrem com desemprego em Os recursos naturais estão no centro de
massa ou pobreza crônica, onde instituições muitos conflitos. Através da história da
são fracas ou corruptas, onde armas estão humanidade, grandes potências têm
livremente disponibilizadas e onde humilhação repetidamente intervindo em países ricos em
ou desespero político frente à desesperança recursos, seja militarmente ou por outros
por um futuro melhor pode direcionar as meios, a fim de controlarem suas riquezas na-
pessoas para movimentos extremistas. turais. Freqüentemente, o resultado tem sido
A insegurança pode se manifestar em for- instabilidade política duradoura. Contra o
mas não necessariamente violentas. A “prova pano de fundo da demanda cada vez mais
dos nove” é se o bem-estar e integridade da intensa de petróleo, voltam a se intensificar
sociedade estão tão comprometidos a ponto competições geopolíticas por acesso
de levarem, possivelmente, a períodos preferencial entre os grandes importadores.
prolongados de instabilidade e sofrimento em (Ver Capítulo 6)
massa. Medidas pelo número de vítimas e As vantagens e desvantagens de projetos
deslocamento em massa causados, as de exploração petrolífera, mineração e extra-
repercussões da pobreza intensa e outros ção de madeira freqüentemente se distribuem
fracassos sociais tendem a surgir de forma desigualmente, provocando disputas com
mais ampla do que as irrupções de conflito povos indígenas por todo o planeta. Riquezas
armado. Enquanto cerca de 300.000 pessoas naturais também têm fomentado uma série
morreram em conflitos armados em 2000, de guerras civis, com governos, rebeldes e
por exemplo, outros tantos morrem a cada déspotas na América Latina, África e Ásia,
mês, devido à água contaminada ou à ausência disputando recursos como petróleo, metais e
de saneamento básico.6 minerais, pedras preciosas e madeira. A receita
Em termos abstratos, questões como proveniente destes bens ajuda a pagar pelas
doenças infecciosas, desemprego ou mudança armas e sustentar guerras de conseqüências
climática poderão ou não representar desafios devastadoras para os civis presos no fogo
à segurança. Será, porém, que cruzam limiares cruzado; lutas e saques rompem infra-
de grandeza ou provocam uma dinâmica que estruturas civis, destroem safras e impedem a
os transformam em algo mais poderoso? Por prestação de serviços vitais.8
si, ou combinados a outros fatores, podem Disputas também surgem sobre acesso a
facilmente criar condições que põem em recursos naturais renováveis como água, terras
dúvida o tecido básico de comunidades e cultiváveis, florestas e pesqueiros. Isto ocorre
nações. Como pergunta Alyson Bailes, Diretor particularmente entre grupos – como lavra-
do Stockholm International Peace Research Institute: dores, pastores nômades, pecuaristas e extra-
“De que ‘choques’ pode uma sociedade se tivistas – que dependem diretamente da saúde
recuperar facilmente, e quais os que ameaçam e produtividade da base de recursos, mas cujas
minar toda sua viabilidade?” O esforço, então, necessidades são incompatíveis. Essas tensões
será incrementar nossa conscientização das se intensificam com a crescente exaustão dos
interações e dinâmica entre esses fatores e as recursos naturais e aumento da demanda
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insatisfações políticas crescentes – podem desviados para redes paralelas que beneficiam
radicalizar sociedades e até mesmo causar apenas uma pequena elite. Divisões étnicas,
colapso de governos. Disfuncionais, frágeis e tribais e de classe são exploradas por líderes
propensos à violência, os assim chamados oportunistas. E persistem as pressões popu-
governos fracassados fomentam instabilidade lacionais e sobre recursos naturais.21
e desespero crônico, onde déspotas, redes Esses fracassos dão alento a forças
criminosas ou grupos extremistas têm condi- extremistas. No Iraque, por exemplo, a
ções de explorar um vácuo de governança e continuação de um estado de guerra e severas
legitimidade. sanções internacionais, entre 1990 e 2003,
Antes de 11 de setembro, a pobreza, insta- causaram o virtual desaparecimento da classe
bilidade e guerras nos países pobres eram média e o colapso de um sistema educacional
amplamente consideradas como marginais aos secular, resultando em desesperança e
interesses e bem-estar dos ricos. Mas, após os analfabetismo generalizado, o que facilitou o
ataques, ficou claro que as condições de desenvolvimento de forças religiosas funda-
perturbação política e miséria social não mentalistas.22
podem ficar eternamente restritas à periferia. Porém, o ter mo “nação fracassada”
“Se é que aprendemos alguma coisa com 11 esconde uma verdade inconveniente: fatores
de setembro,” escreveu o colunista do New externos são igualmente importantes. Thomas
York Times, Thomas Friedman, “é que, se não Friedman poderia ter escrito mais apropria-
formos a um bairro ruim, ele virá até nós.” O damente: “Se você ajudar a criar um bairro
Afeganistão, desmantelado por lutas ruim, ele acabará por atemorizá-lo.” O regime
geopolíticas pelo poder e depois esquecido atual de comércio e investimentos globais
após o término da guerra fria, tornou-se um atende, principalmente, aos interesses de cerca
santuário ideal para a al Qaeda, abrigada pelo de 20% da humanidade que reivindica 80%
regime Talibã. Há também evidência de que dos recursos do planeta. Tende a marginalizar
agentes da al Qaeda puderam utilizar a Libéria os pobres, aguçar as desigualdades sociais e
como santuário, entre 1998 e 2002; juntamente econômicas e debilitar a capacidade do Estado
com o déspota-tornado-presidente Charles de prover serviços necessários e enfrentar os
Taylor, a organização esteve aparentemente desafios.23
envolvida no tráfico de diamantes da vizinha Outro fator crucial é a intervenção externa
Serra Leoa.20 que semeia desordem. No Afeganistão, por
Por que nações fracassam? Há, claramente, exemplo, os Estados Unidos, Paquistão e
muitas razões internas para isto, e ocorre em Arábia Saudita recrutaram combatentes
muitas partes do mundo, do Haiti à Libéria e mujahedins nos anos 80, para forçar a retirada
de Ruanda ao Afeganistão. Corrupção e das forças soviéticas de ocupação. Esta luta e
clientelismo abundam. Golpes de Estado e a feroz guerra civil que se seguiu entre os
regimes ditatoriais eclipsam regimes grupos vitoriosos da resistência devastaram o
democráticos e provocam ciclos de repressão país. O desfazimento da sociedade afegã
e distúrbios. Estruturas de “Estado fantasma” per mitiu que elementos cruéis fossem
deliberadamente enfraquecem instituições vitoriosos. O Talibã foi o produto desta longa
públicas, enquanto receitas e serviços são decaída na impunidade e colapso social, e a
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rede al Qaeda de Osama bin Laden nasceu do haviam falhado perante seu próprio povo. Ou
movimento de recrutamento anti-soviético. O seja, mesmo que nações fracassadas específicas
apoio aos mujahedins, composto de alguns dos nunca consigam fazer parte da agenda do
líderes mais violentos e extremistas, dentro de norte – se nunca forem taxadas como tal –,
um grande “jogo” de poder, parecia fazer ainda assim frustram seu próprio povo. O Pa-
sentido nos anos 80 sob uma ótica geopolítica quistão, por exemplo, pode se encaixar nesta
estreita. Porém, os ataques de 11 de setembro descrição, considerando sua pobreza enraizada,
causaram um fatídico efeito bumerangue à corrupção endêmica, escolas religiosas que
guerra por procuração afegã.24 mais doutrinam do que capacitam, e escassos
A Somália, freqüentemente citada como recursos orçamentários desviados para fins
uma nação fracassada, desintegrou-se, em militares e desenvolvimento de armas nu-
parte porque a militarização patrocinada, cleares, ao invés de atendimento às
primeiramente, pelos soviéticos e depois pelos necessidades básicas. A miséria que acompanha
Estados Unidos levou, no final dos anos 70, a colapsos nacionais precisa ser tratada em seu
uma guerra desastrosa com a Etiópia que próprio mérito – e não só porque os ricos e
deixou o país abarrotado de armas. O imenso poderosos identificaram essa condição como
descaso das necessidades civis abriu caminho ameaça a eles mesmos.
para uma revolta popular, a derrubada da O Norte e o Sul, ricos e pobres, tendem a
ditadura de Siad Barre e para a guerra civil. considerar os desafios à segurança de formas
Cerca de 500.000 armas caíram em mãos de bem diversas. Mas o Secretário Geral da ONU,
déspotas rivais que devastaram o país.25 Kofi Annan, alertou: “Vemos hoje, com uma
Alguns comentaristas insistiram em novas clareza perturbadora, que um mundo onde
intervenções militares, a fim de afastar vários milhões de pessoas sofrem opressão
problemas emanando de “sociedades brutal e miséria extrema nunca estará ple-
desordeiras.” Max Boot, do Conselho de namente seguro, mesmo para seus habitantes
Relações Exteriores dos Estados Unidos, mais privilegiados.” Annan instou o mundo
escreveu que “o Afeganistão e outras regiões em março de 2004 a afastar a idéia de que
atribuladas clamam pelo tipo de administração algumas ameaças, como o terrorismo e armas
externa esclarecida outrora conduzida por de destruição em massa, interessam apenas aos
ingleses autoconfiantes, vestidos em calças estilo países do hemisfério norte, enquanto ameaças
montaria e chapéu de explorador.” Mas, a como pobreza e esforços para assegurar as
infeliz história de “blowback” – as conse- necessidades básicas da existência humana só
qüências imprevistas de ações empreendidas dizem respeito ao sul. “Acho que necessitamos
por potências interventoras – indica que o de um entendimento global claro das ameaças
resultado provável será ciclos de violência ao e desafios que todos teremos que enfrentar,
invés de qualquer estabilidade duradoura.26 pois negligenciar qualquer um deles poderá
A descoberta de que nações fracassadas minar fatalmente nossos esforços no con-
podem representar uma ameaça maior à fronto de outros.”27
segurança não corresponde a uma realidade Superar as divisões que cada vez mais
complexa. Muito antes de esses casos surgirem separam comunidades, culturas e nações
nas telas de radar do hemisfério norte, já díspares e melhorar dramaticamente a coope-
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ração internacional é claramente uma tarefa Capítulo 7.) Avanços consideráveis foram
hercúlea. Países individuais têm poderes obtidos contra um tipo de ar ma dessa
imensamente divergentes, capacidades variadas categoria, as minas terrestres antipessoais. Essas
de enfrentar desafios e diferentes perspectivas armas indiscriminadas impõem ônus debi-
sobre as ações adequadas a serem adotadas. litantes nos sistemas de saúde pública,
Uma concepção compartilhada de segurança transformam terras férteis em áreas inúteis,
só poderá ser desenvolvida se as ligações entre paralisam a atividade econômica e obstruem
desafios diferentes forem reconhecidas e se os esforços de reconstrução pós-conflito. Um
houver uma melhor compreensão de que tratado pioneiro em 1997, proibindo minas
muitos deles são, efetivamente, riscos e terrestres antipessoais, levou à redução do uso
apresentam vulnerabilidades compartilhadas de minas, a uma queda dramática na produção
que requerem soluções conjuntas. e à quase paralisação de exportações, à
destruição de mais de 50 milhões de minas
Controle de Armas, estocadas e à redução significativa no número
Desativação de Conflitos de vítimas.29
Numa outra importante conquista regu-
ladora, muitas nações aderiram a um novo
A obtenção de segurança compartilhada
Tribunal Criminal Internacional, criado com
dependerá, em parte, do enfrentamento ao
o objetivo de servir como instrumento para
desafio tradicional de segurança de limitar a
trazer à justiça os perpetradores de genocídio,
disseminação de armas e resolver conflitos
crimes de guerra e outros atos de impunidade.
antes de se tornarem violentos. Infelizmente,
Os estatutos do Tribunal foram aprovados
o histórico recente não é animador. O acervo
em 1998, entrando em vigor a partir de 2002;
mundial de tanques, artilharia, jatos de
em outubro de 2004, 139 países haviam
combate, navios de guerra e outras armas
assinado e 97 outros ratificado os estatutos.30
convencionais pesadas foi reduzido em um
quarto, entre 1985 e
2002. Os estoques de
ogivas nucleares caíram
68%, gastos militares fo-
ram reduzidos em 30%
e as exportações de
armas diminuíram 58%.
O número de soldados
encolheu 27% e as fileiras
de trabalhadores nas
indústrias bélicas 54%.
(Ver Figura 1-1)28
O controle de armas
leves tornou-se um item
aceitável da agenda
internacional (ver Figura 1-1. Progresso no Desarmamento Global, 1985-2002
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Essas realizações teriam sido impensáveis excessivos. Enquanto isso, há também o perigo
sem o surgimento daquilo que alguns de material físsil do setor civil de energia
denominaram “segunda superpotência” – a nuclear ser perdido ou desviado para fins
opinião pública mundial. Os anos 90 armamentistas. As quantidades de plutônio e
testemunharam o “poder suave” – uma urânio altamente enriquecido, oriundo de
combinação de diplomacia, persuasão e reatores militares e civis, continuam a crescer.
organização da opinião pública – exercido por Estimados em mais de 3.700 toneladas no
ONGs, freqüentemente agindo em concerto final de 2003, em cerca de 60 países, isto é
com “governos afins.” O envolvimento de suficiente para produzir centenas de milhares
ONGs ajudou a ampliar o alcance das de armas nucleares.33
discussões sobre segurança e promoveu novos Enquanto a África do Sul e mais recen-
conceitos de segurança. Questões não-militares temente a Líbia renunciaram às armas
também foram levantadas numa série de nucleares, disputas políticas e rivalidades regio-
conferências das Nações Unidas sobre o meio nais incitaram Índia, Israel, Coréia do Norte e
ambiente, desenvolvimento social, populações Paquistão a adquirirem capacidade nuclear, o
e mulheres.31 que pode persuadir outras nações, como o
Todavia, os anos 90 foram uma década de Irã, por exemplo, a seguirem seu exemplo. As
resultados altamente contraditórios – uma era potências nucleares existentes não deram
tanto de oportunidades perdidas quanto de indicação alguma de que irão cumprir seus
realizações notáveis. O desarmamento teve compromissos de desarmamento, nos termos
seus limites. Embora os países-membros da do Tratado de Não-proliferação. Pelo con-
OTAN e do Pacto de Varsóvia reduzissem trário, os Estados Unidos estão desenvolvendo
substancialmente seus arsenais, uma parcela projetos mais aplicáveis de ogivas e armas
significativa do excesso não foi destruída e sim nucleares de baixa potência, tendo sua Nuclear
transferida para países em desenvolvimento Posture Review [Revisão de Postura Nuclear], de
– que, hoje, pela primeira vez, possuem mais 2001, declarado que armas nucleares “propor-
armamentos pesados do
que os países indus-
trializados do hemisfério
norte.32
O número de armas
nucleares posicionadas
diminuiu, porém, desde
1995, o ritmo do desar-
mamento desacelerou
significativamente. A
Rússia, particularmente,
precisa de muita ajuda
para salvaguardar suas
ogivas contra roubo e
desmontar seus estoques Figura 1-2. Conflitos Armados, 1955-2002
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cionam opções militares confiáveis de 1990 e o final de 2004 – uma média anual
dissuasão de uma vasta gama de ameaças” e bem menor do que os 199 vetos entre 1946
ajudam a “atingir objetivos estratégicos e e 1989. Mesmo assim, os membros perma-
políticos.”34 nentes vêm recorrendo cada vez mais a um
O número global de guerras declinou veto “oculto” – ameaçando utilizar o veto a
durante os anos 90. (Ver Figura 1-2.) Embora fim de manter itens indesejados fora da
seja obviamente uma boa notícia, permanecem agenda do Conselho, que nunca age em
algumas questões sobre se as estatísticas dispo- conflitos em que os membros permanentes
níveis captam a extensão plena da violência considerem como sua própria área de
ar mada no mundo. Além de limitações influência, como na Chechênia, Tibete ou
metodológicas, a distinção entre guerra e paz Irlanda do Norte. Tanto os vetos efetivos
se tornou nebulosa sob vários aspectos. A quanto os ocultos, pelos Estados Unidos,
violência é freqüentemente mais esporádica do impediram a ação do Conselho no conflito
que contínua, e a instabilidade continua a israelense-palestino.37
contaminar muitas sociedades, mesmo após Outrossim, o desinteresse das grandes
o término formal do conflito. Exércitos potências impede repetidamente o envol-
regulares diminuíram seus efetivos, todavia vimento do Conselho onde desastres bélicos
déspotas, redes de crime e companhias e humanitários exigiriam ação. O resultado é
militares privadas apontam para uma crescente uma escolha desagradável entre paralisia (como
privatização da violência e formas de inse- ocorreu durante o genocídio em Ruanda, em
gurança que ainda não foram necessariamente 1994) e intervenção por nações que se auto-
compiladas pelas estatísticas bélicas.35 declaram “interessadas” (como em Kosovo,
Devido à instabilidade crônica, fluxos de em 1999, quando a Rússia bloqueou a ação
refugiados e outros efeitos colaterais, o do Conselho e a OTAN iniciou uma guerra
mundo tem interesse óbvio em evitar a aérea contra a Sér via). Sem dúvida, a
irrupção de conflitos violentos e terminar as autoridade do Conselho ficou tremendamente
guerras em andamento o mais rápido possível. abalada.38
O número de missões de paz cresceu consi- Em retrospecto, os anos 90 propor-
deravelmente a partir do início dos anos 90. cionaram uma breve janela de oportunidade
Entretanto, a maioria dos esforços é após a guerra fria, para criar instituições e
prejudicada pela inadequação de recursos, mecanismos que pudessem lidar com novos
apoio político errático e falta de uma estrutura desafios e agir para uma conscientização mais
permanente que assegure o posicionamento abrangente de segurança. A oportunidade foi
de forças de paz bem treinadas, de maneira em grande parte desperdiçada: no todo, o
oportuna e em número suficiente.36 investimento da comunidade internacional na
O fim da guerra fria efetivamente criou prevenção de conflitos, manutenção da paz e
oportunidades, outrora indisponíveis, de reconstrução pós-conflito foi inadequado. O
manutenção da paz, per mitindo que o fracasso em avançar mais decididamente
Conselho de Segurança trabalhasse com maior durante a “lua-de-mel” pós-guerra fria volta
produtividade. Os cinco membros perma- agora a nos atormentar na era pós-11 de
nentes apresentaram apenas 18 vetos entre setembro.39
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dos órgãos de defesa são vastos em questões como ‘Quem tem direito a intervir?’
comparação a ministérios de desenvolvimento ‘Sob que condições?’ e ‘Através de que meios?’
e meio ambiente. Legisladores estrangeiros e A Comissão Internacional sobre Intervenção
de segurança são capazes de assegurar a e Soberania dos Estados (ICISS, na sigla em
atenção política e a força burocrática, mas inglês), patrocinada pelo governo canadense,
podem simplesmente varrer as questões de focou cuidadosamente essas questões em seu
segurança humana para baixo do tapete da relatório The Responsibility to Protect [A
agenda tradicional de segurança. Na realidade, Responsabilidade de Proteger], de dezembro
a ajuda externa há muito está subordinada a de 2001. A Comissão esclarece que tais
questões convencionais de “segurança intervenções devem ser um último recurso,
nacional.” As instituições encarregadas de necessita de amplo apoio internacional,
proteção ambiental ou ajuda desenvol- devendo cumprir rigorosamente a legislação
vimentista têm capacidade especializada, internacional. A escala, duração e intensidade
todavia pouca influência política e parcos das operações devem estar voltadas não à
meios financeiros. derrubada de um governo, e sim à proteção
da população. Por extensão, o uso de certos
Existe o perigo de uma forma global de tipos de armas é inaceitável.60
apartheid – relações de poder altamente São bons princípios e idealmente deveriam
desiguais – ser ainda mais consolidada estar inseridos numa convenção internacional.
e ratificada. Críticos, porém, argumentam que inter-
venções humanitárias invariavelmente serão
Esses princípios estão sendo testados no executadas pelo forte contra o fraco, e as
crescente debate sobre a noção de nações capazes de intervir só o fazem se for
“inter venção humanitária” em Estados de seu interesse. O humanitarismo pode
fracassados, onde governos são incapazes de facilmente servir como desculpa conveniente
proteger seus próprios cidadãos contra para outros propósitos, abrindo a porta, nas
assassinatos em massa ou expulsões, ou que palavras do jornalista britânico George
tenham ao menos os objetivado. Os horrores Monbiot, “a um sem-número de ações de
na Bósnia, Ruanda, Kosovo, Timor Leste e conquista mascarado em ação humanitária.”61
mais recentemente Darfur, no Sudão, dão voz De fato, existe o perigo de uma forma
a um coro crescente clamando por novos global de apartheid – relações de poder
instrumentos que evitem desastres huma- altamente desiguais – ser ainda mais
nitários em larga escala. O argumento que a consolidada e ratificada. Já há propostas de
soberania de uma nação envolve responsa- novas for mas de inter vencionismo.
bilidades para com seus cidadãos foi adotado Escrevendo em Foreign Affairs, Lee Feinstein e
pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, Anne-Marie Slaughter sugerem “um princípio
entre outros.59 corolário no campo da segurança global: um
Mas provocou uma intensa discussão compromisso coletivo, o chamado “dever de
normativa sobre como equilibrar os valores impedir” nações comandadas por governantes
concorrentes de soberania (e não-intervenção) sem controles internos sobre seus poderes de
e direitos humanos. Não há consenso em adquirirem ou utilizarem armas de destruição
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em massa.” A natureza seletiva desta proposta jamais ser uma cura para violência e suas
é bastante clara. Os autores escrevem: “Para condições subjacentes. Talvez o problema
ser prático, o dever tem que ser limitado e mais crucial da intervenção humanitária seja
aplicado a casos que podem gerar resultados o de fracassar no teste da prevenção. Ela trata
benéficos. Aplicar-se-ia à Coréia do Norte de dos sintomas e não das razões subjacentes
Kim Jong Il, mas não à China de Hu Jintao das calamidades humanitárias. É movida por
(ou até mesmo a de Mao).” Presumivelmente, uma paixão de acabar com a violência que
aqueles que fariam a intervenção seriam as faz manchetes, mas ignora a morte e miséria
mesmas nações que possuem armas nucleares causadas pela pobreza e colapso ambiental.64
e interesse paroquial em negar tais arsenais a Caso a prevenção de conflitos enfocando
outros governos.62 a dinâmica básica e razões estruturais da
Ao invés de perseguir medidas obrigatórias insegurança não seja promovida, o mundo
de desarmamento universal, os países então sempre se verá diante de uma dura
ocidentais hoje estão mais concentrados em escolha entre intervenção militar e inação. Em
não-proliferação – em outras palavras, no tal situação, qualquer ação adotada enfatiza
desarmamento dos outros. Os instrumentos o papel militar e acaba por consolidar o
escolhidos são controle de exportações, poder da noção conservadora de segurança
sanções e medidas como a Proliferation Security e das instituições tradicionais.
Porém, não precisamos nos limitar a
Initiative, que prevê a criação de um regime
opções sem saída. Como este livro
informal na área da “contra-proliferação,”
demonstra, há muitas políticas sociais,
através do qual os Estados Unidos e seus
econômicas e ambientais que podem ajudar
principais aliados interceptam carregamentos
a criar um mundo mais justo e sustentável, e
marítimos, terrestres e aéreos que supos-
que podem transformar vulnerabilidades
tamente contenham ar mas químicas,
compartilhadas em oportunidades para uma
biológicas ou nucleares, ou componentes de
ação conjunta. Essas políticas fazem seu
mísseis.63 próprio sentido, e oferecem o bônus extra
Em nível mais fundamental, existe a de criar segurança real de uma maneira que a
questão se a intervenção militar poderia força das armas jamais poderá.
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CRIME TRANSNACIONAL
LIGAÇÃO DE SEGURANÇA
Crime Transnacional
Com um mundo globalizado, vem uma lixo perigoso e produtos químicos
movimentação maior de pessoas, produtos proibidos. Anualmente, os traficantes destes
e dinheiro, bem como um aumento da produtos rendem para as organizações do
demanda por produtos – inclusive ilícitos crime transacional entre US$22 e US$31
como drogas, armas, recursos bilhões. O lixo perigoso é muitas vezes
ambientalmente sensíveis e até mesmo seres transportado secretamente junto com o lixo
humanos. Sindicatos criminosos e recicláveis exportados, rendendo, por
transnacionais, os maiores transportadores exemplo, de US$10 a US$12 bilhões,
destes produtos, representam uma ameaça criando ao mesmo tempo depósitos de lixo
considerável à segurança global. Eles tóxico pelo mundo.3
distribuem materiais perigosos, armas, e A venda de produtos químicos proibidos
drogas, exploram comunidades locais, também representa uma importante ameaça
perturbam ecossistemas frágeis e controlam ambiental. Por exemplo, o tráfico anual de
recursos importantes da economia. Em 20.000 a 30.000 toneladas de substâncias que
2003, os sindicatos do crime transnacional diminuem o ozônio enfraqueceu a
tiveram um lucro bruto de US$2 trilhões – capacidade do Protocolo de Montreal de
mais do que todas as economias, com proteger efetivamente a camada de ozônio.
exceção dos Estados Unidos, Japão e À medida que o contrabando destes
Alemanha.1 produtos químicos diminui nos países
O lucro total dos sindicatos do crime industriais, novos mercados surgem nos
advém do tráfico de drogas. Vendas de países em desenvolvimento, onde a
drogas ilegais renderam, em 2001, de proibição dos clorofluorocarbonos (CFCs)
US$300 a US$500 bilhões. Não somente está se tornando agora mais rígida.4
contribuem diretamente para mais de O contrabando de espécies ameaçadas
200.000 mortes anualmente, como a injeta de US$6 a US$10 bilhões
dependência das drogas desorganiza 10 provenientes da venda de mais de 350
milhões de vidas e o uso de drogas milhões de espécies sob proteção. Ao
intravenosas pode disseminar doenças como mesmo tempo em que ameaça a
HIV e hepatite. A venda de drogas ilícitas é, sobrevivência destas espécies, o tráfico
também, uma fonte importante de recursos destas plantas e animais pode comprometer
para grupos insurgentes e organizações a segurança global, disseminando doenças e
terroristas. 2 espécies não nativas em novos habitats
Outra importante fonte de recursos para sensíveis.
os sindicatos do crime transnacional são os Felizmente, a Convenção de 1973 sobre
produtos ambientais – tudo, desde planta e Comércio Internacional de Espécies da
animais e recursos naturais sob proteção, até Fauna e Flora Selvagem Ameaçadas
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CRIME TRANSNACIONAL
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CAPÍTULO 2
Analisando Ligações
entre População e Segurança
Lisa Mastny e Richard P. Cincotta
No início dos anos 90, a Agência Central de Uma constatação particularmente forte e
Inteligência dos Estados Unidos reuniu uma surpreendente se destacou: a alta taxa de
equipe de destacados pesquisadores, mortalidade infantil – a proporção de recém-
acadêmicos e analistas para examinar uma nascidos morrendo antes de atingir o primeiro
questão vexatória e sempre presente: por que aniversário – foi o melhor indicador individual
alguns países são mais propensos à violência e de instabilidade mundial. Foi ainda um melhor
conflitos armados do que outros? O grupo, indicador do que fatores como baixos níveis
denominado “Força-tarefa para Fracasso de de democracia ou ausência de abertura ao
Estados” [State Failure Task Force], analisou comércio. A mortalidade infantil, conforme
minuciosamente centenas de variáveis sociais, verificado, serve como substituto para uma
políticas, econômicas e ambientais, desde os vasta gama de outros indicadores – incluindo
anos 50 até a década de 90, buscando fatores desempenho econômico, níveis educacionais,
que pudessem prever o “fracasso de um saúde, qualidade do meio ambiente e até a
Estado” – um colapso da ordem nacional presença de instituições democráticas –,
causado por genocídios políticos ou étnicos, proporcionando, assim, uma indicação segura
golpes de Estado ou guerras civis. da qualidade geral de vida de uma nação.2
Objetivavam chegar às raízes das instabilidades Não é surpresa que fatores demográficos
generalizadas que continuam a atrasar o tenham ligações estatísticas fortes com a
desenvolvimento econômico e humano em instabilidade. A dinâmica da população
regiões desde a África subsaariana até o Sul humana – particularmente as taxas flutuantes
da Ásia.1 de nascimentos e mortes – pode ser uma força
Richard P. Cincotta é Pesquisador Associado Sênior da Population Action International, de Washington, D.C. Este
capítulo baseia-se, em grande parte, num relatório de 2003 que ele escreveu com seus colegas Robert Engelman
e Danielle Anastasion intitulado The Security Demographic: Population and Civil Conflict After the Cold War.
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poderosa. Não apenas influencia a taxa global de 41 anos, no início dos anos 50, para 63
de crescimento, porte e configuração de uma anos hoje, em grande parte devido ao aumento
população, mas também molda sua estrutura da sobrevivência infantil.4
etária – a proporção de pessoas em cada grupo Todavia, essas estatísticas proporcionam
etário em relação à população como um todo. uma visão incompleta, mascarando tendências
Isto, por sua vez, determina variáveis diversas, tanto intra quanto inter países e
econômicas importantes, como o número de regiões. A população humana continua
pessoas que entram e deixam a força de expressiva, com 6,4 bilhões de pessoas, e
trabalho e a relação entre dependentes jovens continua crescendo em mais de 70 milhões
ou idosos e trabalhadores. O fluxo e refluxo anualmente, a maioria nos países em
das pessoas influencia tendências importantes desenvolvimento. Enquanto isso, a transição
como urbanização e também a demanda e demográfica global – a mudança de
oferta de recursos cruciais como alimento, populações nacionais de vidas breves e famílias
água e energia. Todas essas forças podem grandes para famílias menores de vida mais
exercer fortes pressões políticas, sociais, longa, principalmente no mundo indus-
econômicas ou ambientais sobre uma socie- trializado – continua lamentavelmente
dade e suas instituições, e ter fortes implicações incompleta. Cerca de um terço de todos os
na estabilidade interna e até mesmo na segurança países, incluindo muitos na África subsaariana,
internacional. Neste caso, segurança não é Oriente Médio e Sul e Centro da Ásia, ainda
apenas a ausência de conflito, mas uma se encontra nos estágios iniciais da transição,
confiança razoável entre as pessoas da não- com taxas de fertilidade acima de quatro filhos
iminência ou probabilidade de conflito.3 por mulher.5
O mundo está passando por uma época Estudos recentes indicam que esses países
demográfica interessante. Países de muita correm maiores riscos de se enredarem em
história política e religiosa e praticamente todas conflitos civis armados – guerras internas, que
as regiões do mundo têm sofrido mudanças vão de insurgência política e étnica à violência
relevantes no número e estrutura de suas sancionada pelo Estado, e ao terrorismo do-
populações, ao longo das últimas décadas. méstico. A maioria está atolada numa situação
Devido, em parte, a esforços internacionais, o demográfica debilitante. Abriga altas e
tamanho médio da família é hoje pouco mais crescentes proporções de jovens, muitos dos
da metade do que era no início dos anos 60 – quais inflando as fileiras dos desempregados
em torno de três filhos por casal – e a ou subempregados. Muitos desses países
mortalidade infantil declinou em dois terços. também sofrem não só um acelerado
O crescimento populacional global está crescimento populacional urbano –
desacelerando mais dramaticamente do que freqüentemente além do que podem
se esperava mesmo há uma década, estando acomodar – como também níveis extre-
hoje crescendo a uma taxa de 1,2%, quase a mamente baixos, per capita, de terras
metade do que era 35 anos atrás. E, mesmo cultiváveis ou água doce. Enquanto isso, a
com o retorno alarmante da malária e crescente pandemia do HIV/AIDS está
surgimento do HIV/AIDS, a expectativa de atingindo mortalmente os serviços básicos e
vida no mundo em desenvolvimento subiu atividades governamentais de vários países.
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Essas condições atuam como “fatores de risco pessoas entre 15 e 29 anos representam mais
demográficos” que podem contribuir em de 40% de todos os adultos. Todos esses países
muito ao ciclo de conflitos recorrentes e extremamente jovens estão no mundo em
deterioração política que inibe o progresso desenvolvimento, onde as taxas de fertilidade
econômico e social nos países mais fracos e são as mais altas, e a maioria está na África
instáveis do mundo.6 subsaariana e Oriente Médio. (Na América do
Norte e Europa, por outro lado, jovens
O Choque das Idades adultos representam apenas 20-25% de todos
os adultos.) (Ver Tabela 2-1).9
Pouco antes da aurora do dia 28 de abril Na maioria dos casos, um inchaço jovem é
de 2004, um grupo brandindo facas e facões o resultado de várias décadas de crescimento
lançou um ataque surpresa a um posto policial populacional acelerado. Ocorre caracteris-
na província de Pattani, no sul da Tailândia. ticamente em países nos primeiros estágios da
Não conseguindo tomar o prédio, os militantes transição demográfica: embora as taxas de
fugiram para a mesquita Krue Se, próxima ao natalidade continuem altas, a mortalidade
local, onde logo se viram cercados por forças infantil começou a cair, devido aos avanços
de segurança governamentais fortemente no tratamento da saúde e nutrição, resultando
ar madas. Durante três horas as tropas numa maior sobrevivência infantil em geral.
mantiveram fogo cerrado com granadas e As taxas de natalidade tendem a declinar
armas automáticas contra esta edificação do menos do que as de mortalidade, não só de-
século XVI, abatendo mais de 30 agressores.7 vido a preferências culturais por maior nú-
À medida que as notícias do massacre se mero de filhos e vida mais longa, mas também
espalharam, os analistas atribuíram as tensões porque as novas técnicas de controle de
à crescente inquietação étnica entre a população natalidade tendem a ser mais complicadas,
do sul, basicamente muçulmana, que há muito menos diversificadas e mais polêmicas do que
reclama da repressão cultural, religiosa e aquelas disponíveis para prolongamento da
econômica por parte do governo de vida. Populações jovens desproporcionalmente
Bancoque. Mas, num pronunciamento à nação altas podem também estar presentes em países
logo após os ataques, o Primeiro-ministro onde ocorre uma “explosão de bebês”, onde
Thaksin Shinawatra apontou para uma outra um grande número de adultos emigra, ou
variável: a idade e perspectiva dos comba- onde a AIDS é uma das causas principais de
tentes, cuja maioria era formada de jovens de morte prematura de adultos. 10
idade inferior a 20 anos. “São pobres, com Uma abundância de jovens não é,
pouca educação e desempregados,” observou necessariamente, ruim. Nos Estados Unidos
ele. “Dispõem de pouca renda e muito ócio, e outros países industrializados, onde a maioria
criando uma lacuna... a ser preenchida.”8 dos jovens adultos tem bom nível educacional
A Tailândia não é o único país a sentir os ou técnico, os empregadores vêem os jovens
efeitos do desequilíbrio demográfico. De como um bem e as empresas buscam intensa-
acordo com as Nações Unidas, mais de 100 mente sua energia e engenhosidade. Os
países em todo o mundo sofriam de “inchaços economistas há muito reconhecem que uma
jovens” em 2000 – uma situação onde as grande proporção de jovens trabalhadores
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per capita em 2002 totalizou apenas US$ 150 técnica devido a restrições do partido na sua
(em comparação a US$ 36.006 nos Estados ascensão às elites. E Samuel P Huntington,
Unidos). Uma autoridade do Fundo Cristão Professor de Harvard e autor do tratado
para Crianças, na capital Freetown, declarou, polêmico sobre o “choque das civilizações”,
a respeito do grande número de jovens assinalou as ligações entre as expectativas
soldados, o seguinte: “São uma coorte há insatisfeitas de jovens capacitados e as tensões
muito negligenciada; carecem de emprego e contínuas no Oriente Médio, onde 65% da
treinamento, e é muito fácil convencê-los a se população têm idade inferior a 25 anos. Muitos
juntarem à luta.”14 países islâmicos, argumenta ele, aplicaram suas
receitas petrolíferas no treinamento e educação
De acordo com as Nações Unidas, de um grande contingente de jovens. Porém,
mais de 100 países em todo o mundo com baixo crescimento econômico, poucos
sofriam de “inchaço jovem” em 2000. desta força de trabalho em crescimento
acelerado têm a oportunidade de utilizar seus
Mas não são apenas os pobres ou os sem conhecimentos. Jovens com boa formação
instrução que estão descontentes. “Temos um educacional nessa região, conclui Huntington,
grande número de jovens entre 18 e 35 anos freqüentemente se vêem diante de três
que possuem instrução adequada, mas que não caminhos: migrarem para o Ocidente,
têm nada a fazer,” lamentou William Ochieng, juntarem-se a organizações fundamentalistas
ex-autoridade governamental, escrevendo para e partidos políticos, ou alistarem-se em grupos
o jornal The Daily Nation, de Quênia, em janeiro guerrilheiros e redes terroristas.16
de 2002. Estudos revelam que os riscos de
instabilidade entre jovens podem aumentar As taxas de mortalidade reverteram
quando membros capacitados das elites são seu declínio em mais de 30 países,
marginalizados por falta de oportunidade. O mundialmente
sociólogo Jack Goldstone observou que as
rebeliões e movimentos religiosos dos séculos Elites descontentes podem, por sua vez,
XVI e XVII foram liderados por jovens das mobilizar grupos menos instruídos para sua
classes dominantes que, quando atingiam a causa. Investigações do recente incremento da
idade adulta dentro de um grupo excessi- violência na Tailândia apontam para o possível
vamente grande da mesma idade, viam que o envolvimento de grupos extremistas muçul-
apadrinhamento do Estado não podia manos, que podem estar recrutando
recompensá-los com o salário, terras ou ativamente jovens fervorosos e com pouca
posições burocráticas que correspondessem instr ução for mal para promover seus
a seu status e conquistas educacionais.15 objetivos islâmicos. Na cidade de Suso, que
Não é difícil encontrar paralelos contem- perdeu 18 homens com menos de 30 anos de
porâneos. Goldstone atribui o colapso do idade no levante de abril de 2004, a maioria
regime comunista da União Soviética no início dos mortos havia se formado em escolas
dos anos 90, em parte, à mobilização de particulares islâmicas do país, freqüentemente
grande número de jovens descontentes um recurso extremo das famílias que não
impossibilitados de exercerem sua capacidade podem pagar por uma educação formal
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mas também pessoas nos anos mais prevê que, na ausência de tratamento, cerca
produtivos de suas vidas. Quase 90% das de 74 milhões de trabalhadores em todo o
fatalidades associadas à doença ocorrem entre mundo poderão morrer de causas relacionadas
pessoas em idade produtiva. Nove países da com a AIDS, até 2015 – o equivalente à perda
África subsaariana hoje perdem mais de 10% de um país inteiro do tamanho da África do
de suas populações em idade produtiva a cada Sul ou Tailândia. Como observou Peter Piot,
cinco anos, principalmente pela alta prevalência Diretor Executivo da UNAIDS, “a AIDS está
do HIV. (Vide Tabela 2-2.) (Compara- devastando as fileiras dos membros mais
tivamente, os países industrializados perdem produtivos da sociedade com uma eficácia
cerca de 1% desse grupo etário a cada cinco [que] a história reserva para grandes conflitos
anos, enquanto até mesmo em países assolados armados”.23
por guerras com relativamente baixa preva- Ao invés de provocar confrontos diretos
lência do HIV, como Afeganistão e Sudão, este com, digamos, acesso a medicamentos ou
número foi de 4 – 6% no final dos anos 90.)22 tratamentos contra AIDS, o HIV/AIDS
A Organização Internacional do Trabalho provavelmente se destacará de forma mais
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o crescimento populacional mais lento devido Porém, como muitos países em desen-
à AIDS, provavelmente, dificultará o volvimento crescendo aceleradamente, esta
crescimento econômico.26 nação pobre está despreparada para lidar com
Em geral, a epidemia da AIDS está criando os efeitos colaterais desse ataque urbano,
uma combinação perniciosa de aprofun- incluindo desabrigo, crime e desemprego.28
damento da pobreza e perda de confiança em Desde 1950, a população urbana mundial
governos que se mostram cada vez mais mais que quadruplicou, indo de 733 milhões
incapazes de prestar serviços básicos, sem falar até um pouco mais de 3 bilhões, e hoje cresce
na promoção de desenvolvimento econô- mais rapidamente do que a população mundial
mico. O Secretário de Estado dos Estados como um todo. Cerca de 60% deste
Unidos Colin Powell descreveu a doença crescimento é resultado de aumentos naturais
como um iminente “destruidor de na- – nascimentos menos mortes urbanas. Porém,
ções...[com] o potencial de desestabilizar uma onda incessante de migração representa
regiões, talvez até continentes inteiros.” E o quase todo o resto, com as pessoas simulta-
Ex-presidente dos Estados Unidos Bill neamente “empurradas” para as cidades
Clinton denominou a pandemia como um deixando as áreas rurais, devido à estagnação
prelúdio a “mais terror, mais mercenários, ou devastação de guerras, e “puxadas” pelo
mais guerras...e colapso de democracias encanto de empregos mais promissores,
frágeis.” Sem a capacidade de planejar e educação e os atrativos da modernização. À
resolver problemas de longo prazo e medida que esta tendência continua, a
responder a crises agudas, os países mais humanidade se aproxima de um marco
afetados pela AIDS correm o risco de estancar histórico: até 2007, pela primeira vez no
em seu caminho para a industrialização, mundo, mais pessoas viverão nas cidades do
democracia e as fases finais da transição que em áreas rurais.29
demográfica.27 A urbanização é, em geral, uma tendência
demográfica positiva. Tradicionalmente, o
Crescimento Urbano deslocamento para as cidades contribuiu para
Acelerado o crescimento econômico e integração global,
à medida que mais pessoas encontram
Já há muitos anos, ciclos intensos de seca e residências próximas a escolas, clínicas, locais
enchentes causaram caos na minúscula Malawi, de trabalho e redes de comunicações. Como
no coração da África meridional. Em 2002 e as cidades são centros de indústria e educação,
2003, chuvas torrenciais provocaram seus habitantes estão quase sempre à frente
deslizamentos maciços, destruindo pontes e das populações rurais no acesso a novas
residências e devastando lavouras de milho, o tecnologias, informação e bens. Populações
principal alimento básico. Impossibilitados de urbanas também são geralmente as primeiras
extrair algum sustento da terra devastada, a a experienciarem declínios em mortalidade
população rural se deslocou maciçamente para infantil e fertilidade, à medida que os governos
as florescentes cidades do país – concedendo priorizam clínicas urbanas que podem prestar
a Malawi a distinção dúbia de ser a nação de serviços de saúde mais eficientes em termos
maior desenvolvimento urbano do mundo. de custo/benefício. Na África, por exemplo,
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pelo governo. A escala e organização da política agrária nacional que, caso seja efeti-
rebelião inquietaram investidores estrangeiros vamente implementada, poderá resolver
e, de acordo com alguns analistas, pode ter questões renitentes sobre distribuição de terras.
contribuído para a crise monetária nacional (Vide Quadro 2-2.) E muitos países europeus
que acabou por solapar o poder do regime com escassez de recursos, como também
em vigor.44 nações asiáticas industrializadas como Coréia
do Sul, Taiwan e Japão, incrementaram suas
Reivindicações concorrentes por importações de alimentos e ração animal, a
água doce poderão complicar os fim de aliviar as crescentes demandas agrícolas
esforços para solução dos infindáveis sobre terras e água doce. Outros, começaram
a importar água doce através de adutoras e
conflitos no Oriente Médio.
outros meios diretos, tornaram-se mais
eficientes no uso da água ou se voltaram para
Independentemente dos vários exemplos a dessalinização, a fim de suplementar a
históricos de violência relacionada a recursos carência de água potável.46
naturais, pesquisas indicam que as ligações entre
escassez de recursos e conflitos podem não Para a maioria dos países em
ser tão fortes quanto aquelas entre conflitos e desenvolvimento enfrentando diminuição
outros fatores demográficos, como
de recursos e populações em constante
urbanização ou inchaço jovem. A maioria dos
aumento, há pouca esperança imediata
teóricos concorda que mudanças ambientais
de atrair o capital necessário para
– sejam terras cultiváveis ou escassez hídrica
ou aumento de desmatamento e erosão do uma rápida industrialização.
solo – são apenas uma pequena parte de um
misto complexo de estresses que promovem Naturalmente, a maioria dos países
instabilidade social maciça. O sociólogo Jack industrializados ricos tem condições de investir
Goldstone, por exemplo, argumenta que o em tecnologia eficiente no uso da água e
descontentamento entre as elites é um possuem amplos recursos financeiros para
elemento mais agudo na evolução de conflito importar grãos – tornando-os muito menos
civil. Escassez ambiental e “marginalização vulneráveis a um conflito envolvendo recursos
ecológica,” assegura Goldstone, não são naturais. Para a maioria dos países em
determinantes poderosos de vulnerabilidade, desenvolvimento enfrentando diminuição de
uma vez que estes fatores raramente afetam recursos e populações em constante aumento,
os meios de vida ou poder da elite de forma há pouca esperança imediata de atrair o capital
adversa.45 necessário para uma rápida industrialização, ou
Ademais, existe uma vasta gama de para transformar radicalmente seus usos do
oportunidades para mediar escassezes solo e da água. Seja qual for o registro histórico,
potencialmente explosivas, através de as conseqüências da competição cada vez
legislação e políticas econômicas seguras, do maior por esses recursos cruciais são incertas
comércio e cooperação técnica. Ruanda, por e pouco animadoras. Por este motivo, a
exemplo, está em vias de finalizar uma nova necessidade de focar as forças demográficas
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subjacentes que movem a escassez de recursos países conseguiram compensar esses riscos
– e investir em programas que ajudem a através de governança forte, resolução de
desacelerar o crescimento populacional nessas conflitos, mediação étnica ou políticas
regiões afetadas – é cada vez mais urgente. econômicas bem-sucedidas – incluindo a
criação de emprego urbano, importação de
Minimizando Riscos recursos críticos, distribuição de terras e
encorajamento à imigração. Cabo Verde, na
e Avançando
África Ocidental, pode ter compensado sua
vulnerabilidade durante os anos 80 e 90,
Em muitos casos, os quatro “fatores
facilitando a migração de seus cidadãos para
demográficos de risco” – aumento crescente
Europa em busca de emprego, e encorajando-
de jovens, crise do HIV/AIDS, urbanização
acelerada e disponibilidade reduzida de terras os a remeterem uma parcela de suas rendas
cultiváveis ou água doce – não ocorrem de volta ao país.48
isoladamente. Pelo contrário, interagem uns Enquanto isso, países do Leste e Sudeste
com os outros e com variáveis não- da Ásia, como a Coréia do Sul e a Malásia,
demográficas, incluindo tensões étnico- transformaram um inchaço jovem crescente
históricas, governança insensível e instituições nos anos 60 e início dos anos 70 numa força
fracas, produzindo um estresse que desafia econômica positiva, através de investimentos
lideranças governamentais e a capacidade dos críticos em educação e treinamento pro-
países funcionarem eficazmente. Embora seja fissional. E muitos países ricos em petróleo
improvável que levem diretamente ao caos criaram empregos urbanos, grandes exércitos
político ou à guerra, podem agravar em muito e burocracias excessivas para absorver suas
a vulnerabilidade de um país a conflitos. De crescentes populações – além de reprimir
acordo com a Population Action International, impiedosamente qualquer dissensão que
países que revelaram dois ou mais fatores, seja pudesse levar a conflito. Na Coréia do Norte,
alta proporção de jovens, altas taxas de cres- China e Turcomenistão, a expansão das forças
cimento urbano ou carências de dispo- militares e de segurança interna provavelmente
nibilidade per capita de terras cultiváveis ou água ajudou os regimes repressivos a manterem
doce, representaram 23 dos 36 países que estabilidade política durante a era pós-guerra
sofreram novas eclosões de conflitos civis fria, apesar da grande proporção de jovens
durante os anos 90.47 adultos.49
Felizmente, demografia não é destino. Mas No longo prazo, todavia, a única forma de
a probabilidade de conflito futuro poderá vir aliviar as pressões demográficas potencial-
a refletir a forma que as sociedades escolhem mente voláteis será através do enfrentamento
de como enfrentar seus desafios demo- direto ao crescimento populacional. A queda
gráficos. Por exemplo, a PAI constatou que, significativa de fertilidade que ocorreu em cerca
cerca da metade dos países que deveriam estar de 20 países em desenvolvimento no Leste
correndo riscos demográficos muito altos da Ásia, Caribe e América Latina, nas últimas
durante os anos 90, na realidade navegaram décadas, é uma tendência encorajadora.
pacificamente o período pós-guerra fria. Por Grande parte do crédito para esta trans-
quê? Em pelo menos alguns desses casos, os formação deve-se aos países que investiram
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alcance e assistência técnica do exterior. Muitos duplicar dentro da próxima década, de US$
países também promoveram políticas que 239 milhões em 2000 para US$ 557 milhões
ajudaram a permanência escolar de meninas e em 2015.51
aumentaram as oportunidades de emprego Infelizmente, justamente quando há mais
fora de casa para mulheres – incrementando urgência, o apoio internacional para o
o status e a renda das mulheres, melhorando planejamento familiar e serviços afins continua
a nutrição e a sobrevivência infantis e amplian- a diminuir. Em 2000, chegava apenas a metade
do a demanda por contracepção moderna.50 da meta de US$ 17 bilhões estabelecida pelas
Infelizmente, a maioria dos países que Nações Unidas, em 1994, na Conferência
correm altos riscos demográficos hoje não Internacional sobre População e Desen-
dispõe de capacidade institucional para volvimento, no Cairo. A parcela dos Estados
responder a esses desafios. Precisam dos Unidos se traduziu em US$ 1,9 bilhão, porém
sistemas financeiros e mercados estáveis, em 2000, os recursos dos EUA para saúde
aplicação adequada de leis, direitos de reprodutiva – que inclui programas de
propriedade claramente delineados, e sistemas planejamento familiar, HIV/AIDS e saúde
educacionais e de saúde eficientes, que são os materna e infantil, e uma contribuição ao
alicerces de nações fortes. E, na maioria dos Fundo de População das Nações Unidas
casos, o nível e qualidade dos serviços que (FNUAP) – totalizaram apenas um terço da-
poderiam evitar o agravamento da situação quele compromisso. Em 2004, pelo terceiro
demográfica desses países – inclusive ano consecutivo, o governo dos Estados
planejamento familiar, educação feminina, Unidos reteve os US$ 34 milhões que deve
saúde materna e infantil e prevenção do HIV/ ao FNUAP – cerca de 10% do orçamento
AIDS – são lamentavelmente inadequados. chave da organização. O fracasso contínuo de
A extensão desses serviços aos países mais cumprimento dos compromissos inter-
fracos e pobres do particularmente mundo nacionais prejudicará significativamente o
exigirá muito mais colaboração e assistência avanço da transição demográfica, dificultando
internacional do que existe hoje. Países mais ainda mais a contenção da disseminação do
ricos precisarão tomar a iniciativa de contribuir HIV.52
com capacitação técnica, recursos financeiros Embora políticas e programas que
e suprimentos. O mundo hoje enfrenta influenciam as tendências populacionais
carências críticas de suprimentos necessários tenham estado tradicionalmente na esfera de
para contracepção, prevenção de HIV/AIDS doadores e prestadores de serviços sociais e
e outros serviços de tratamento e cuidados de saúde internacionais, a comunidade
sexuais e de saúde reprodutiva. Conforme um internacional de segurança, também, começa
estudo recente, em 1999, menos de cinco a se apresentar. Em abril de 2002, numa
preser vativos por homem em idade resposta por escrito ao questionamento do
reprodutiva foram disponibilizados por Congresso, a Agência Central de Inteligência
doadores internacionais e governos para toda dos Estados Unidos observou que “várias
a África subsaariana. E o custo anual de suprir tendências globais graves – especialmente o
preservativos grátis e acessíveis suficientes em crescente inchaço demográfico jovem nas
todo o mundo está projetado a mais que nações em desenvolvimento, cujos sistemas
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contribuir para assegurar que particularmente poderão ajudar as forças armadas na África e
as mulheres tenham oportunidade de Ásia a reduzirem suas altas taxas de transmissão
representar seus próprios interesses e dos seus de HIV, que hoje ameaça os militares, suas
filhos – não só em situação de refugiadas, mas famílias e comunidades vizinhas.
também durante o processo de paz e Claramente, o incentivo à mudança demo-
reconstrução de países afetados por conflitos. gráfica poderá criar grandes oportunidades.
O Departamento de Desenvolvimento Não é, porém, uma fórmula milagrosa para
Internacional do Reino Unido, por exemplo, a segurança. Obviamente, o avanço demo-
fortaleceu sua inclusão de mulheres em pro- gráfico por si só não pode garantir que um
cessos de mediação e de paz, como também país derrube uma liderança opressiva, junte-
em assuntos legais e políticos em ambientes se à família global de nações democráticas ou
pós-conflito. Ao apoiar mudanças sociais e resista a conluio com insurgentes e terroristas.
políticas que encorajam moças a perma- Não se pode depender de mudanças demo-
necerem na escola e oferecem às mulheres gráficas para reduzir riscos onde conflitos
maiores oportunidades, esses grupos podem armados sejam persistentes ou recorrentes,
ajudar a melhorar o status das mulheres, redu- onde uma cultura de violência e retribuição
zir taxas de fertilidade e possivelmente até esteja firmemente enraizada, ou onde pro-
mesmo desviar as prioridades nacionais de blemas se alastrem de países instáveis vizinhos.
conflitos para o desenvolvimento humano. “A Colômbia, Irlanda do Norte e Sri Lanka são
questão de participação igualitária das mulheres regiões onde avanços demográficos nos anos
não é simplesmente uma questão de igualdade 90 deveriam ter ajudado a aliviar riscos.
de gênero e direitos humanos, mas sim uma Entretanto, em cada um dos casos, conflitos
que representa um fator decisivo para a civis onerosos que tiveram início em anos
manutenção de desenvolvimento pacífico anteriores, persistiram por toda a década.58
numa região conturbada,” observou Lul Da mesma forma, a mudança para os
Seyoum, uma ativista de direitos femininos da últimos estágios da transição demográfica não
Eritréa, numa conferência em 1999 sobre é a única forma de um país reduzir sua
mulheres e conflitos.57 vulnerabilidade à instabilidade ou conflito.
Na área de prevenção e tratamento do Processos demográficos raramente – ou
HIV/AIDS, governos com programas exem- nunca – agem sozinhos aumentando ou
plares em suas próprias forças armadas podem reduzindo a chance de instabilidade política.
compartilhar essas ações de uma forma mais Conflitos civis, particularmente, são processos
ampla com populações militares e civis em complexos, de múltiplos estágios, que se
outros países. Governos doadores, enquanto alimentam das vulnerabilidades históricas e
isso, podem ampliar seus programas de saúde modernas de um país e são movidos ao longo
reprodutiva para assegurar que tratamentos de do tempo por eventos basicamente
alta qualidade incluindo informações e serviços específicos e imprevisíveis. Os esforços inter-
contraceptivos abrangentes, prevenção de nacionais de resolução de conflitos e manu-
doenças sexualmente transmissíveis e saúde tenção da paz fizeram muito para reduzir a
materna e infantil – estejam disponibilizados freqüência de conflitos menores e incipientes.
para militares e suas famílias. Essas iniciativas E há fortes evidências que os países podem
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Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA
reduzir sua vulnerabilidade a conflitos através enorme influência não só nas perspectivas
da disseminação de instituições democráticas, demográficas, mas também no futuro da
desenvolvimento econômico e alívio da segurança global. Para países nos primeiros
pobreza, e ampliação das relações comerciais estágios de suas transições demográficas,
internacionais.59 poderá levar quase duas décadas após a
Todavia, a demografia precisa formar parte fertilidade começar a cair para se observar uma
da análise. Se as relações entre transição demo- redução significativa no crescimento
gráfica e conflitos for mantida nas próximas populacional. Os vários riscos da demora dessa
décadas, as decisões tomadas hoje que afetam transição sublinham a necessidade de os
essa importante transição poderão ter uma governos implementarem políticas de apoio
o mais cedo possível.
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Estado do Mundo 2005
LIGAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E SEGURANÇA
LIGAÇÃO DE SEGURANÇA
Refugiados Ambientais
Em 2003, aproximadamente, uma em cada existem, atualmente, 30 milhões de
370 pessoas na Terra – 17,1 milhões no total refugiados ambientais em todo mundo.2
- foi classificada como “pessoa vulnerável”, Em 2002, a Cruz Vermelha informou
pelo Alto Comissariado das Nações Unidas que o número de pessoas mortas por
para Refugiados (ACNUR), a agência das desastres naturais, incluindo enchentes, secas,
Nações Unidas dedicada à proteção de e terremotos, caiu 40% entre as décadas de
refugiados e outras populações desalojadas. 1970 e 1990 (devido principalmente à
Esta cifra inclui 9,7 refugiados (pessoas melhor prontidão para desastres), enquanto
fugindo de perseguição ou temendo o número de vidas afetadas adversamente
perseguição), 1,1 milhão de refugiados por estes acontecimentos aumentou 65%.
repatriados , 4,2 milhões de pessoas Prevê-se o aumento desta cifra, à medida
desalojadas internamente (PDIs), 233.000 que se intensificam os impactos previstos
pessoas desalojadas repatriadas e realojadas, pela mudança climática: de acordo com o
995.000 em busca de asilo e 912.000 em Painel Intergovernamental sobre Mudança
outras categorias, incluindo “apátridas”.1 Climática, poderá haver perto de 150
Esta estimativa não inclui o número milhões de refugiados ambientais até 2050.3
crescente de refugiados ambientais – Adicionalmente, o deslocamento de
pessoas “forçadas a abandonar seu habitat massas populacionais desalojadas pode
tradicional, provisória ou permanentemente, deflagrar instabilidade ou conflito no país de
em decorrência de uma perturbação origem, nos países hospedeiros ou dentro
ambiental marcante... que coloque em da região. Recursos escassos podem ser
perigo sua existência e/ou afete ainda mais degradados ou exauridos e gerar
profundamente sua qualidade de vida.” competição pelo acesso a eles; infra-
Entre os fatores ambientais naturais ou estrutura insuficiente ou distribuição injusta
causados pelo homem que forçam as pode reforçar divisões sociais e tensões.
pessoas a mudar, estão a escassez de Condições de superpopulação ou insalubres
recursos e distribuição injusta de recursos e falta de água potável podem causar
naturais; desmatamento e outras epidemias mortais. Se acontecerem os
degradações ambientais; desastres naturais movimentos globais populacionais
ou industriais; mudança climática; destruição previstos, estes e outros impactos poderão
sistemática do meio ambiente como ter implicações graves na segurança global.
instrumento de guerra e remanescentes de A despeito da seriedade destas tendências,
guerra; superpopulação e projetos de o tema “refugiados ambientais” tem
desenvolvimento. Em 2004, Essam El- recebido pouca atenção nos níveis mais
Hinnawi, do Instituto Ambiental e de altos. O foco tem sido mais o impacto que
Recursos Naturais do Cairo, estimou que o desalojamento de massas tem no
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REFUGIADOS AMBIENTAIS
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REFUGIADOS AMBIENTAIS
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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS
CAPÍTULO 3
Contendo Doenças
Infecciosas
Dennis Pirages
Movendo-se lentamente para o oeste com os em 29 países, matando quase 800 pessoas e
mercadores e outros viajantes, ao longo das fazendo adoecer mais de 8.000. Felizmente, a
rotas comerciais da China, a Morte Negra extensão do surto foi limitada pelo fato de o
chegou a Kaffa, na Criméia, em 1346. Levada vírus ser transmitido por gotículas respiratórias,
de região a região pelo rato negro (Rattus rattus) tornando a doença susceptível a medidas
e suas pulgas, a doença seguiu lenta e preventivas simples, como máscaras cirúrgicas.
inexoravelmente pelo continente europeu, Caso fosse de mais fácil transmissão, a
chegando à França, Itália e Espanha, em 1348. pandemia (epidemia global) resultante teria
A peste seguiu, alcançando a costa leste do matado milhões em todo o mundo.2
Mar do Norte e Mar Báltico, em 1350. Em Medida em número de mortes prematuras
quase toda Europa Ocidental, cerca de 40% e sofrimento físico associado, a maior fonte
da população morreu durante esta epidemia.1 de insegurança humana, no passado e presente,
Numa região remota do sul da China, no é a temida doença infecciosa, o Quarto
final de 2002, uma nova doença respiratória, Cavaleiro do Apocalipse. Em 2002, por
que ficou conhecida como SRAG (síndrome exemplo, as guerras foram responsáveis por
respiratória aguda grave), saltou de animais 0,3% de todas as mortes mundiais. Doenças
para humanos e se alastrou rapidamente para contagiosas representaram 26%. A aceleração
outras partes do país. Em questão de poucas de viagens internacionais e o crescimento do
semanas, a doença avançou célere, levada por comércio global estão transformando a
viajantes em trens e aviões por toda a Ásia, e disseminação rápida de doenças infecciosas
daí para grande parte do mundo. Dentro de num desafio extremamente urgente à
apenas seis meses, surgiram relatos da SRAG segurança.3
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Estado do Mundo 2005
CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS
Ao longo dos séculos, o número de mortos declararam que os países industrializados não
e feridos em combates militares diminuiu, em mais precisavam se preocupar com a praga
comparação ao número correspondente a das doenças contagiosas. Trinta e cinco anos
doenças. Estima-se que todas as guerras do atrás, o Ministro da Saúde W.H. Steward
século XX mataram 111 milhões de declarou ao Congresso dos Estados Unidos
combatentes e civis, uma média de cerca de que havia chegado a hora de “fechar o livro”
1,1 milhão por ano. Doenças contagiosas, hoje, das doenças infecciosas. E, 30 anos atrás, o
matam 14 vezes mais, anualmente. Mesmo famoso biólogo John Cairnes escreveu que o
durante o período em que o mundo estava mundo ocidental havia, praticamente,
envolvido pelos horrores militares da I Guerra eliminado a morte por doença infecciosa.5
Mundial, um vírus da influenza disseminava- Infelizmente, o otimismo deles foi mal-
se por todo o mundo. Estimativas do número fundado. Não só a campanha de erradicação
de mortes desta pandemia variam, porém, de doenças infecciosas continua, como
calcula-se que o vírus ceifou a vida de 20 a 40 também as patogenias têm revelado notável
milhões de soldados e civis, muitas vezes mais resiliência e flexibilidade. Antigas moléstias
do que o número de mortes diretamente como tuberculose, malária e cólera persistem
atribuíveis à guerra.4 e se disseminam geograficamente. E doenças
Considerando o legado extremamente anteriormente desconhecidas, como Ebola,
visível de conflitos violentos entre os povos, hepatite C, hantavírus e HIV, emergiram como
compreende-se por que a segurança veio a novas ameaças. Por que, após repetidas
ser definida principalmente como questão declarações de que a luta contra doenças
militar. Guerras são vívidas, violentas e infecciosas havia terminado, os especialistas
destrutivas. Porém, mais importante, as agora estão muito mais cautelosos sobre os
pessoas historicamente têm sido capazes de desafios apresentados pelos microorganismos
perceber a natureza das ameaças militares e patogênicos?
conceber estratégias para lidar com elas.
Contrariamente, embora as patogenias tenham A redução da mortandade mundial
causado números maiores de perdas humanas,
causada por doenças infecciosas
relativamente, poucos recursos dos tesouros
deveria ter prioridade máxima.
públicos têm sido alocados para lidar com
elas, uma vez que as causas e reparações têm
sido muito pouco entendidas. Pesquisa e vigilância hoje geram um
Outra razão pela qual as doenças não têm entendimento muito maior da dinâmica dos
sido consideradas como grave ameaça à surtos de doenças, e novos medicamentos
segurança é porque, durante a maior parte do estão cada vez mais disponíveis para lidar com
último século, a campanha contra doenças elas. A redução da mortandade mundial
infecciosas esteve, presumivelmente, no limiar causada por doenças infecciosas deveria ter
da vitória. Encorajadas pelas melhorias das prioridade máxima. Se mesmo uma pequena
condições sanitárias, avanços em pesquisas porcentagem do dinheiro que os Estados
médicas, novas vacinas e melhores antibióticos, Unidos e outras potências militares aplicam
as autoridades de saúde, nos anos 70, na defesa fosse desviado para a promoção
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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS
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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS
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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS
aumento populacional deverá ocorrer nos mente em todo o mundo, devido a vários tipos
países em desenvolvimento. Em 1965, 36% de emergências humanitárias. Campos de
da população mundial era urbana. Este refugiados abarrotados são incubadoras ideais
número hoje já se aproxima de 50%. O de doenças, e as pessoas que conseguem sair
número de pessoas que vivem em cortiços deles, freqüentemente, levam doenças para
abarrotados nos países pobres está seus novos destinos. Na região conturbada de
explodindo. Na Ásia, a população empilhada Darfur, no Sudão, por exemplo, do final de
nas cidades aumentará do atual 1,5 bilhão para maio até o final de agosto de 2004, houve
2,6 bilhões, até 2030. Na África, a quantidade 3.573 casos confirmados de hepatite E, que
de citadinos crescerá de 297 milhões para 766 causaram 55 mortes.14
milhões, durante o mesmo período. A persistência da pobreza diante do
Obviamente, à medida que maior número de crescimento populacional acelerado do
pessoas vivem sob condições anti-higiênicas mundo em desenvolvimento em urbanização
em cidades mais densamente habitadas, torna- é outro fator que está aumentando o potencial
se fácil a disseminação de patogenias de surtos de doenças. Apesar do crescimento
rapidamente.13 da economia global ao longo das últimas
décadas, o fosso entre ricos e pobres, tanto
dentro como entre países, está efetivamente
A mudança ambiental pode perturbar aumentando. Entre 1970 e 1995, a renda real
equilíbrios já estabelecidos entre per capita para o terço mais rico de todos os
pessoas e patogenias, facilitando países aumentou 1,9% anualmente, o terço
novos surtos de doenças. intermediário teve um aumento anual de
apenas 0,7%, enquanto o terço inferior não
Não apenas esse crescimento populacional, registrou aumento algum. Esses números
como também a violência étnica periódica nos mudaram pouco ao longo da última década.
países em desenvolvimento, está forçando dois Cerca de 2,8 bilhões de pessoas vivem hoje
tipos de migração que também contribuem com menos de US$ 2 por dia. As desigual-
para a disseminação de doenças. O cres- dades atuais de renda estão refletidas nos
cimento populacional na maioria desses países gastos comparativos com a saúde. Nos
está pressionando as pessoas a se assentarem Estados Unidos, o total de gastos per capita
em terras anterior mente desocupadas, com saúde foi de US$ 4.887, em 2001. Em
freqüentemente florestas desmatadas. Este Niger, este número, à taxa média de câmbio,
novo tipo de assentamento é freqüentemente foi de US$ 6, em Serra Leoa US$ 7, e na
compartilhado com inúmeras patogenias Nigéria US$ 15. As pessoas vivendo sob
potencialmente perigosas. Esses micróbios condições de tamanha pobreza têm pouco
permaneceram em animais hospedeiros em acesso a tratamento de saúde.15
áreas rurais, até que pessoas se intrometeram, Dessa forma, vivemos hoje num mundo
proporcionando assim novas rotas fora da epidemiologicamente dividido. Muitas pessoas
floresta para populações humanas. Igualmente, sofrem das doenças infecciosas dos
há aproximadamente 17 milhões de subnutridos, ao mesmo tempo em que um
refugiados e populações deslocadas interna- número cada vez maior é afligido pelas
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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS
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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS
importados e aos micróbios que, freqüen- eliminados, num esforço para prevenir maior
temente, contêm.19 disseminação da doença. A gripe aviária
Da mesma forma que a era das explorações reapareceu na Europa, em 2003, e 30 milhões
trouxe varíola e várias outras doenças européias de frangos foram mortos como medida
para o hemisfério ocidental, com efeitos preventiva. Em 2004, a gripe aviária varreu
devastadores para os americanos nativos, as oito países asiáticos, matando mais de duas
viagens de animais domesticados e outros dúzias de pessoas e levando ao matadouro
disseminaram suas próprias patogenias. mais de 100 milhões de aves. A doença
Provavelmente, os 300 suínos que Hernando também apareceu no Canadá e Estados
de Soto trouxe consigo para a Flórida, em Unidos. (Vide também o Capítulo 4.)21
1539, foram mais responsáveis pela A forma atual do vírus da gripe aviária
transmissão de mais enfermidades aos (H5NI) demonstrou uma capacidade de saltar
americanos nativos, alces e perus do que seus das aves para apenas um número limitado de
soldados. No mundo contemporâneo, pessoas. Mas, no final de setembro de 2004, a
inúmeras doenças infecciosas estão se OMS divulgou o primeiro caso provável de
disseminando entre populações animais. Na transmissão pessoa-a-pessoa, quando uma
África central, surtos de Ebola mataram mulher na Tailândia morreu. O temor é que a
milhares de primatas. O vírus do Nilo, que gripe possa continuar a mudar de tal forma
matou 241 pessoas nos Estados Unidos, em que possa vir a ser transmitida facilmente entre
2002, também adoeceu 14.000 cavalos naquele as pessoas, possivelmente abrindo caminho
ano e disseminou-se para quase 200 espécies para uma pandemia mortal. Especialistas
de aves, répteis e mamíferos, causando um continuam a monitorar a doença, atentos a
número desconhecido de mortes. O aumento mudanças que possam indicar o aparecimento
das viagens e do comércio também está de variantes mais letais. Há temores também
disseminando patogenias virais, bacterianas e quanto a recentes mudanças genéticas em vírus
fúngicas a vegetais em todo o mundo.20 da gripe suína que poderiam desenvolver uma
variante letal aos seres humanos.22
A cada ano, mais de 2,3 milhões de
pessoas, principalmente nos países O uso generalizado e quase sempre
pobres, morrem de oito doenças que indiscriminado de antibióticos e outros
poderiam facilmente ser evitadas por agentes antibacterianos está criando
vacinação. famílias de micróbios resistentes a drogas.
A gripe aviária é um vírus animal que, A inovação tecnológica também está ligada
periodicamente, ameaça disseminar-se às muitas mudanças ambientais que estão
amplamente para populações humanas. Em ajudando o surgimento de novas doenças e o
1997, 18 pessoas adoeceram em Hong Kong ressurgimento e disseminação de antigas
e 6 morreram quando a gripe saltou moléstias. Mudanças na qualidade da água, por
diretamente dos frangos para as pessoas. exemplo, são freqüentemente o resultado da
Como resultado, 1,4 milhão de frangos foram urbanização intensa e industrialização da
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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS
agricultura. Doenças veiculadas pela água são de antibióticos e outros agentes antibacterianos
responsáveis por cerca de 90% das conta- está criando famílias de micróbios resistentes
minações nos países em desenvolvimento, a drogas. Isto é acelerado por pacientes que
onde quase 95% do esgoto urbano é não completam os tratamentos prescritos, e
despejado, sem tratamento, em rios e lagos. pelo uso em larga escala de agentes antibac-
Na Índia, 114 cidades despejam esgoto sem terianos em sabonetes, loções e detergentes.25
tratamento e corpos parcialmente cremados A resistência antimicrobiana é um problema
no Ganges. E o escoamento agrícola, grave e crescente. Cerca de 14.000 pessoas
incluindo dejetos animais e resíduos químicos morrem anualmente nos Estados Unidos pela
ameaçam ecossistemas aquáticos em países ação de micróbios resistentes a drogas, através
tanto industrializados quando em desen- de infecções hospitalares. Metade das pessoas
volvimento.23 contaminadas com HIV hospeda uma
Mudanças atmosféricas, devidas principal- linhagem que é hoje resistente a pelo menos
mente à atividade industrial, também estão um dos medicamentos utilizados para
aumentando a exposição das pessoas a combater esta doença. A pneumonia continua
doenças. O acúmulo de gases de estufa está sendo uma ameaça grave, matando de 3 a 4
aumentando o potencial de maior incidência milhões de pessoas por ano. Em algumas
de doenças, pois a mudança climática deverá regiões do mundo, até 70% das infecções
aumentar o alcance geográfico das doenças peitorais são resistentes aos antimicrobianos
que vicejam em climas quentes. Doenças graves disponíveis. A bactéria que causa o cólera
também está se tornando resistente aos
como cólera, malária e febre amarela – hoje
principais antibióticos utilizados para seu
praticamente restrita aos trópicos – poderão
combate. Em Ruanda, por exemplo, existe
se disseminar para áreas atualmente
uma resistência de quase 100% à tetraciclina e
temperadas, à medida que o aquecimento ao cloranfenicol, dois dos principais anti-
ocorre. E o vírus do Nilo, transmitido pelo bióticos usados no combate ao cólera.26
mosquito sensível à temperatura Culex pipiens, A tuberculose também está se tornando
chegou a Nova York no verão de 1999 e, desde resistente a muitos medicamentos. Um simples
então, tem atacado animais e pessoas por toda período de tratamento de seis meses para a
a América do Norte. Poderá bem ser o tuberculose não resistente a drogas pode custar
pressagiador do que está por vir.24 apenas US$ 20. Porém, o tratamento com
Finalmente, a tecnologia também está antibióticos de segunda e terceira linha pode
desempenhando um papel não-intencional na custar entre US$7.000 e US$8.500. Em alguns
transfor mação do mundo microbiano. casos mais graves, o tratamento da tuberculose
Paradoxalmente, os antibióticos e outros resistente a múltiplos medicamentos pode
medicamentos destinados a controlar custar US$250.000 e levar até dois anos.27
patogenias freqüentemente têm efeitos
danosos. Cerca de 23 milhões de quilos de O Estado Atual
antibióticos são produzidos anualmente nos da “Microssegurança”
Estados Unidos. Mais de um terço deste total
é administrado a animais agrícolas. O uso
Considerando esses e muitos outros fatores
generalizado e quase sempre indiscriminado
que estão alterando significativamente as
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Parcela de todas as
Doença 2000 2002 Mortes em 2002
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saúde de um país. O Japão hoje possui o maior Suécia e Suíça podem contar com, no mínimo,
índice de expectativa de vida. Uma criança 73 anos de vida saudável. Os Estados Unidos,
nascida lá, hoje, viverá teoricamente 81,9 anos. apesar de ter, de longe, o maior gasto médico
Um indicador de saúde mais matizado, per capita do mundo, estão classificados apenas
entretanto, é a expectativa de vida saudável, em 28o lugar, com uma expectativa de vida
chamada HALE, na sigla em inglês. Esta é uma saudável de 69,3 anos. No extremo inferior
medida do número de anos saudáveis que um da distribuição estão sete países da África
recém-nascido pode hoje esperar viver, com subsaariana, com HALEs de menos de 35
base nas taxas atuais de má saúde e anos, resultante de uma conjugação de pobreza
mortalidade. No Japão, a HALE hoje é 75, e da devastação do HIV/AIDS.32
ou seja, a criança média japonesa nascida hoje Olhando para o futuro próximo, a questão
pode esperar ter 75 anos de saúde e 6,9 anos mais urgente continuará sendo o HIV/AIDS.
de incapacitação, devido a doenças infecciosas Presume-se que o HIV saltou dos chimpanzés
ou crônicas. Em Serra Leoa, num contraste para os seres humanos, tendo sido origi-
gritante, uma criança nascida hoje tem uma nalmente identificado no início dos anos 80.
expectativa de vida sadia de apenas 28,6 anos.31 O vírus é particularmente perigoso devido a
seu longo período de incubação, ataque direto
ao sistema imunológico e mutação freqüente,
A ameaça mais preocupante de curto como também por não haver, ainda, vacina
prazo de doenças tradicionais é a da nem cura para ele. O longo período de
influenza. incubação significa que podem passar anos
antes que as vítimas exibam sintomas. Assim,
Há uma diferença enorme nas expectativas elas podem involuntariamente contaminar
de vida saudável nos países ricos e pobres outras pessoas ao longo de um extenso
(vide Tabela 3-2). As populações do Japão, período de tempo.
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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS
geralmente muito inferior a 1%, o principal Produto Interno Bruto (PIB) das 33 nações
impacto econômico da doença tem sido no africanas que revelam um impacto econômico
aumento das despesas de saúde. O custo mensurável do HIV/AIDS caiu em média
econômico indireto em perda de 1,1% ao ano, entre 1992 e 2002; até 2020, isto
produtividade foi insignificante. Mas, em significará uma perda coletiva de crescimento
muitos dos países menos desenvolvidos econômico da ordem de 18% - ou aproxi-
economicamente que estão mais afetados pela madamente US$ 144 bilhões. Em torno de 9
doença, a predominância do HIV entre adultos a 18% dos adultos em idade produtiva
em idade produtiva situa-se acima de 20% morrem prematuramente a cada cinco anos
(vide Tabela 3-3). Gastos de saúde per capita nos países subsaarianos mais afetados. Desta
nesses países são geralmente muito baixos, e é forma, as fileiras de pessoas mais produtivas
o custo econômico indireto causado pelo em alguns dos países mais pobres do mundo
impacto da doença sobre a força de trabalho estão sendo sistematicamente esvaziadas pelo
que tem sido mais devastador.40 HIV/AIDS. A doença está retardando o
A África subsaariana é a região mais atingida desenvolvimento industrial, reduzindo a
pelo HIV/AIDS. Em 2003, cerca de 26,6 produção agrícola, devastando a educação,
milhões de pessoas na região eram debilitando as forças armadas (vide Quadro
soropositivas, e cerca de 2,3 milhões morre- 3-1.), podendo vir a solapar a estabilidade
ram da doença. Em geral, o crescimento do política.41
Botsuana 39 14 330
Zimbábue 34 18 2.300
Suazilândia 33 16 170
Lesoto 31 15 360
Namíbia 23 11 230
Zâmbia 22 15 1.200
África do Sul 20 10 5.000
Quênia 15 9 2.500
Malawi 15 11 850
Moçambique 13 10 1.100
FONTE: Vide nota final 40
Com mais de 5 milhões de pessoas A maior parte dessas mortes ocorrerá entre a
soropositivas, a África do Sul possui hoje o população adulta jovem. Entre 1992 e 2002,
maior número de vítimas do mundo. Mais de a África do Sul perdeu cerca de US$ 7 bilhões
500.000 pessoas já morreram e o número de anuais, devido ao declínio de sua força de
soropositivos deverá atingir 6 milhões até 2010. trabalho. Os esforços para criar um sistema
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educacional numa era pós-apartheid estão bioterrorismo (vide Quadro 3-2) têm
sendo dificultados pela perda de pessoal fomentado uma nova conscientização quanto
causada pela doença, e prevê-se uma grave à necessidade de maior fiscalização em escala
escassez de professores secundários e global. Foram criadas duas redes na internet
universitários ao longo da próxima década. para pesquisar e monitorar surtos de doenças.
O capital humano está sendo exaurido O ProMED-mail (Programa de Monitoração
significativamente por doenças, e os de Doenças Infecciosas) foi implantado em
investidores estrangeiros hesitam em investir 1994. Este sistema de alerta na internet é
mais no país. Como conseqüência do destinado a reunir e disseminar rapidamente
esvaziamento da força de trabalho e queda todas as informações sobre surtos de doenças
nos investimentos, o PIB da África do Sul para mundialmente. Possui hoje links com mais de
o período 2006-10 está projetado para 3,1% 30.000 assinantes em 150 países. A qualquer
abaixo do que seria sem o HIV/AIDS.42 hora, correspondentes de todo o mundo
registram informações sobre surtos que
Lidando com Futuros afetem pessoas, plantas ou animais. A OMS
Surtos de Doenças também participa, utilizando a internet para
fazer as ligações entre especialistas em doenças
e laboratórios, quando necessário.44
Há uma corrida em curso entre, de um lado,
Devido à rapidez com que as doenças
o ritmo acelerado da globalização, mudanças
podem surgir e se alastrar por todo o mundo,
associadas na condição humana e novos
as autoridades de saúde hoje precisam agir de
desafios afins do mundo microbiano e, do
forma previdente. Um novo vírus de influenza
outro lado, a crescente capacitação de cientistas,
pode facilmente se disseminar mundialmente,
médicos e autoridades de saúde para localizar,
bem antes de uma vacina eficaz ser preparada.
diagnosticar e conter os surtos. O enfren-
Assim, a OMS implantou uma rede de
tamento aos desafios de doenças novas e
monitoração de alcance global encarregada de
velhas num mundo mais densamente habitado
investigar mutações virais que possam não só
exige que a comunidade internacional adote
causar uma nova pandemia de influenza, como
várias medidas importantes: aumentar
também ajudar a determinar a composição
rapidamente a fiscalização para detectar novos
da vacina a cada ano. Nos Estados Unidos,
surtos; antecipar planos e ação para se preparar
todo mês de fevereiro, a FDA (órgão que
e evitar possíveis pandemias futuras; iniciar uma
controla os alimentos e medicamentos nos
campanha de erradicação de doenças graves
Estados Unidos) utiliza um painel de técnicos
entre os pobres do mundo; encorajar maior
para selecionar linhagens virais como
transparência nos países onde surtos de
candidatas a vacinas que serão distribuídas no
doenças podem ocorrer; e desviar gastos de
segundo semestre. Em fevereiro de 2003, a
segurança de fins militares para a criação de
OMS identificou uma nova linhagem da gripe
sistemas eficazes de saúde pública.43
(A/Fujian) que os assessores da FDA
A experiência recente com a rápida
desejavam incluir em sua vacina anual. Porém,
disseminação da SRAG, a ameaça de uma
um meio de cultura aprovado, necessário para
nova pandemia de influenza, a disseminação
a produção da vacina, não pôde ser
continuada do HIV/AIDS e o espectro do
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constante. Nos primeiros dias do surto, a econômicas que devem ser consideradas, em
burocracia chinesa bloqueou o fluxo oportuno função da necessidade de rápido desen-
de infor mações para os médicos. Na volvimento de vacinas no caso de doenças de
Província de Guangdong, o departamento de movimentação acelerada. Finalmente, há uma
saúde inicialmente recebeu informação sobre necessidade premente para criar não apenas
a doença em documento “altamente confi- mecanismos inovadores que proporcionem
dencial” de um comitê de saúde do governo medicamentos acessíveis às vítimas de doenças
central. Infelizmente, o documento ficou numa nos países pobres, como também incentivos
carteira durante três dias, porque ninguém na para o desenvolvimento de novas vacinas e
ocasião tinha autoridade para abri-lo. medicamentos aplicáveis às doenças graves que
Inicialmente, o Partido Comunista tentou ainda são endêmicas nessas nações.
abafar o surto, a fim de proteger o comércio, Assim, a corrida continua entre a capacidade
especialmente turístico. Mas o temor e a ira crescente de doenças novas e ressurgentes se
dos cidadãos forçou o Presidente Hu Jin-tao disseminarem com maior velocidade e a
a voltar atrás e liberar a comunicação sobre a capacidade de uma rede cada vez mais
SRAG. Vários membros responsáveis do sofisticada de autoridades de saúde e
partido foram expulsos e antigos comitês de laboratórios em todo o mundo de respon-
“vigilância local” voltaram à ativa e derem rapidamente a novas ameaças. A boa
começaram a monitorar cuidadosamente a notícia é que o HIV/AIDS, a SRAG e a
saúde da população. No final, o Presidente ameaça do bioterrorismo alertaram os
Hu provavelmente obteve um ganho legisladores quanto às questões graves de
considerável de popularidade pelos seus segurança humana representadas pelas doenças
esforços.57 infecciosas. O primeiro passo na resposta à
O estágio seguinte da contenção de doenças ameaça crescente das doenças foi o uso da
infecciosas exige um confrontamento de capacidade tecnológica na criação de redes de
questões políticas e econômicas difíceis. A monitoração mais eficazes e na aplicação de
principal delas é a redefinição das prioridades novas especializações e tecnologias médicas,
de financiamento da segurança, que reflita a na tarefa de identificação rápida de doenças
natureza grave dos desafios das novas e potencialmente fatais. Porém, resta muito ainda
ressurgentes doenças numa era de globa- a fazer. A infra-estrutura da saúde pública
lização. E, como os recentes surtos de doenças deverá ser aprimorada substancialmente em
vieram acompanhados de uma relutância por quase todos os países, ricos e pobres. O mais
parte de autoridades governamentais de importante, todavia, é que as prioridades e
fornecerem informações oportunas, uma gastos da segurança deverão ser drasticamente
maior transparência é claramente essencial para revistos para refletirem a gravidade das
lidar com a ameaça de vírus de alastramento ameaças que as doenças infecciosas repre-
acelerado. Há também questões de obrigações sentam num mundo cada vez mais interligado.
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CONTENDO DOENÇAS INFECCIOSAS
LIGAÇÃO DE SEGURANÇA
Bioinvasões
Aumentos consideráveis no comércio e pelos recursos locais com as nativas. Elas
turismos mundiais estão desorganizando os sobrecarregam os pastos, perturbam
ecossistemas em todo globo. O valor das sistemas hídricos e levam outras espécies à
mercadorias e serviços exportados extinção. No México, 167 dos 500 peixes
mundialmente aumentou seis vezes nas três nativos de água doce estão atualmente
últimas décadas – de US$ 1,5 trilhão, em ameaçados de extinção – e 76 destes casos
1970, para US$ 9,1 trilhão, em 2003. estão relacionados com a disseminação de
Somente entre 1990 e 2003, as chegadas invasoras.2
turísticas internacionais aumentaram 50%, Espécies invasivas também causam
alcançando um pico de 702,6 milhões de prejuízos econômicos. Na China, perdas
chegadas em 2002. Do mesmo modo que decorrentes de espécies invasivas atingem
as pessoas se movimentam pelo mundo, hoje US$ 14,5 bilhões anuais, ou 1,36% do
especialmente por navio ou avião, outras Produto Interno Bruto do país. Nos
espécies também o fazem. E, como Estados Unidos, estas perdas ultrapassam
espécies invasivas – organismos US$ 138 bilhões a cada ano. Espécies
introduzidos com potencial de diminuir a invasivas também causam impactos
biodiversidade e prejudicar economias e o econômicos locais. No Benin, as mulheres,
meio ambiente – espalhadas por todo tradicionalmente, se dedicam ao transporte e
mundo, é mais provável que elas colonizem ao comércio, enquanto os homens pescam e
ecossistemas degradados pelo uso aram. Após um dos rios do país ter sido
insustentável de recursos ou simplificados infestado por uma planta aquática chamada
pela agricultura intensificada. 1 jacinto, eles sofreram uma queda de 70% na
Embora em torno de 50.000 espécies sua renda anual, de US$ 1.984 para US$
tenham entrado nos Estados Unidos nos 607, em sete anos. E as mulheres que
últimos 200 anos, somente uma em cada ganhavam anualmente US$ 519
sete é considerada invasora. Na realidade, comercializando ao longo do rio, antes que
espécies introduzidas deliberadamente – seus roteiros fossem invadidos pelos
incluindo milho, trigo, arroz, gado e aves – jacintos, ganharam somente US$ 137
foram responsáveis por 98% do sistema anuais, durante a infestação.3
alimentar dos Estados Unidos, em 1998. Devido aos potentes efeitos ecológicos e
Mas muitos outros tipos de organismos, econômicos dos agentes biológicos e a
especialmente invertebrados e micróbios, facilidade com que terroristas podem obtê-
são introduzidos intencionalmente. Estas los, a bioinvasão é atualmente considerada
novas espécies vegetais e animais muitas como uma possível ameaça terrorista.
vezes invadem os ecossistemas, se Robert Pratt, escrevendo no US Army War
espalhando rapidamente e competindo College Quarterly, sugere que os terroristas
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BIOINVASÕES
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BIOINVASÕES
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CAPÍTULO 4
Cultivando a Segurança
Alimentar
Danielle Nierenberg e Brian Halweil
Na Conferência Internacional sobre a AIDS, cerca de 60% das pessoas que convivem com
em Julho de 2004, participantes de todo o a AIDS na África subsaariana e muitas foram
mundo reuniram-se em Bancoque para forçadas a abandonar a lavoura para cuidar
discutir as perspectivas cada vez mais terríveis de seus maridos e parentes. A região também
de milhões de pessoas que sofrem desta está perdendo grande parte do seu
doença. A cobertura da mídia divulgou conhecimento de agricultura, pois os pais estão
dezenas de artigos sobre como as mulheres morrendo antes de passarem suas noções e
são o segmento de maior crescimento da experiências à geração seguinte. Assim,
população aidética, sobre a explosão da AIDS crianças órfãs com o encargo de cuidar das
na Ásia e sobre a falta de medicamentos plantações estão, em alguns casos, substituindo
adequados no mundo em desenvolvimento. cultivos alimentares tradicionais como feijão,
Uma reportagem onde a maioria falhou, de alto teor protéico e nutricional, por
entretanto, foi como a AIDS se tornou tubérculos que são muito mais fáceis de
cúmplice da insegurança alimentar. Na cultivar, porém menos nutritivo.1
realidade, a doença está gradativamente O impacto da AIDS sobre a produção
desfazendo a base agrícola de muitos países agrícola pode ser novo, mas não é, de forma
em desenvolvimento. alguma, a única ameaça à segurança alimentar.
Na África, 7 milhões de trabalhadores Onde as pessoas não têm condições financeiras
morreram entre 1985 e 2000, nos 25 países para adquirirem alimento suficiente, problemas
mais afetados. No Quênia, um estudo eternos como a falta d’água continuam a
constatou que o consumo de alimentos caíra representar o fator principal da fome.
40% nos lares onde havia pessoas Mundialmente, 434 milhões de pessoas se
contaminadas. As mulheres, que perfazem 80% vêem diante da escassez hídrica e, até 2025,
da mão-de-obra agrícola, representam hoje de 2,6 a 3,1 bilhões de pessoas estarão vivendo
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vegetais e animais a cada ano, devido a guerras, décadas. De acordo com a FAO, a demanda
pragas e doenças, mudança climática, crescente de carne, ovos, leite e outros
urbanização, comércio global de material produtos animais forçou os produtores a
exótico de criação e a agricultura industrial em abandonarem raças locais e a se concentrarem
larga escala. Grandes fazendas mecanizadas num número cada vez mais limitado de gado
não podem lidar com uma variedade de de alta produtividade.9
culturas e gigantescos fabricantes de alimentos Durante o último século, 1.000 raças – cerca
exigem produtos de uniformidade e tamanho de 15% das raças pecuárias e avícolas –
padronizados. À medida que as fazendas se desapareceram e cerca de 300 dessas perdas
tornam mais e mais tecnologicamente ocorreram nos últimos 15 anos. O problema
sofisticadas, também se tornam mais e mais tem sido mais grave nos países industrializados,
ecologicamente frágeis. onde a atividade de fábricas-fazenda é mais
Desde o início do século passado, intensa. Na Europa, mais da metade de todas
perderam-se 75% da diversidade genética da as raças de animais domésticos se tornaram
agricultura. Na China, 10.000 variedades de extintas desde a virada do último século, e 43%
trigo estavam sob cultivo em 1949; já nos anos das remanescentes estão sob ameaça de
70, só 1.000 estavam em produção. Apenas extinção. Porém, à medida que os países em
20% - um quinto – das variedades existentes desenvolvimento ascendem na escala protéica,
no México, em 1930, são conhecidas hoje. E o estoque genético de raças pecuárias também
os agricultores nas Filipinas, que outrora está se erodindo, pois raças indígenas estão
cultivaram milhares de variedades de arroz, sendo substituídas por raças industriais de
nos anos 80 possuíam apenas duas variedades maior produtividade. Esta homogeneidade
cobrindo 98% de toda a área produtora. gradativa debilita a capacidade de reação dos
Variedades da Revolução Verde, introduzidas criadores contra pragas, doenças e mudanças
apenas quatro décadas antes, hoje cobrem mais climáticas.10
da metade de todos os arrozais nos países em A importância da diversidade agrícola, ou
desenvolvimento. De acordo com Patrick sua falta, tornou-se assustadoramente clara nos
Mulvany, da Intermediate Technology Development Estados Unidos, algumas décadas atrás. Em
Group, o mundo dispõe de 7.000 – 10.000 1970, mais de 80% da lavoura de milho
espécies vegetais comestíveis; cerca de 100 possuía um gene que tornava a planta
destas são importantes para a segurança susceptível à Helmintosporiose, um fungo que
alimentar da maioria dos países, todavia produz lesões roxas nas folhas ou manchas
apenas 4 – milho, arroz, trigo e batata – pretas nas espigas. Este fungo reduziu a
fornecem 60% da energia dietética mundial.8 produção em até 50%, causando um prejuízo
Recursos genéticos pecuários são causa de aos produtores de quase US$ 1 bilhão, apenas
preocupação hoje. (Ver Tabela 4-1.) Embora em 1970. Surpreendentemente, a cura não veio
ações de conservação dos recursos vegetais de um laboratório, mas dos campos do sul
mundiais tenham se desenvolvendo há mais do México, onde pequenos produtores
de um século – os primeiros bancos de conservam a diversidade genética do milho,
sementes foram criados em 1894 –, a pecuária cultivando centenas de raças de polinização
tem sido foco de atenção apenas nas últimas aberta – genitores genéticos do milho
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Gado Lulu O gado Lulu do Nepal está bem Este gado está ameaçado devido ao
adaptado à vida em ambientes extremos cruzamento descontrolado, uma vez que
e é altamente resistente a doenças. as raças indígenas são consideradas
Requer poucos insumos e é inferiores a raças exóticas.
extremamente produtivo, produzindo até
dois litros de leite por dia.
Suíno do Sul da China O suíno do Sul da China é uma raça Devido à intensificação das fábricas-
forte, adaptada à pouca alimentação e fazenda na Malásia, restam apenas cerca
altamente resistente ao calor e radiação de 400 destas espécies.
solar direta. É também imune à verme do
rim e fascíola hepática, contrariamente às
raças estrangeiras.
Galinha Mukhatat Nativa do Iraque, a galinha Mukhatat Restam menos de 600 aves.
pode ser criada em ambientes hostis com
pouca exigência nutricional.
Ovino Criolla Mora Criolla Mora é uma raça de ovinos Cientistas não dispõem de números
colombianos que datam de 1548. exatos, estimando restarem cerca de
Utilizados pela carne e lã, são resistentes 100 a 1.000 nos planaltos colombianos.
à infestação endoparasitária.
Cherne Este peixe do sudoeste do Atlântico é Por nunca sair de seu habitat imediato, é
popular pela sua carne branca e fácil de ser pescado. De acordo com
escamosa, podendo atingir peso superior cientistas, corre “extremo alto risco” de
a 660 quilos. extinção nos próximos 10 anos.
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passado, todavia, com a agricultura se tornando e China. Só no leste e sudeste da Ásia, cerca
maior e mais intensificada, expandindo-se de 6 bilhões de aves são criadas para corte,
para outras áreas, a natureza dessas doenças com a maioria delas criadas nas megacidades
também mudou. Imensas fábricas-fazenda da região, em rápido crescimento. Esta
abarrotadas de animais e inchadas com esterco, intensidade cada vez maior na produção de
monoculturas substituindo sistemas de cultivo frangos e outros animais em centros urbanos
múltiplo, reciclagem de animais e lixo para e áreas rurais, juntamente com sua proxi-
ração animal, concentração da indústria de midade a residências, começa a ter conse-
abate e processamento, uso indevido de qüências que podem ameaçar a saúde humana.
antibióticos – todos esses referenciais da Desde 1997, a gripe aviária se disseminou de
agricultura industrial dão às patogenias maiores aves para humanos, pelo menos em três
oportunidades de infeccionarem cada camada ocasiões. E, em outubro de 2004, o primeiro
da cadeia alimentar e, por fim, afetar a saúde caso provável de transmissão pessoa-a-pessoa
humana. (Ver Tabela 4-2.)18 foi constatado na Tailândia.19
Tomemos a gripe aviária, por exemplo. De O último surto apareceu no final de 2003 e
acordo com a FAO, a disseminação da gripe 2004, disseminando-se pela Ásia e
do Paquistão para China pode ter sido contaminando milhares de aves. Pelo menos
facilitada pelo aumento acelerado das 100 milhões foram “despopuladas” – em
operações avícolas e suínas e a concentração outras palavras, sacrificadas – quando a doença
geográfica maciça de gado na Tailândia, Vietnã saltou a barreira das espécies e a maioria das
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Doença Descrição
Influenza Aviária A gripe aviária saltou a barreira das espécies pela primeira vez
em 1997, matando seis pessoas em Hong Kong. Em 2003 e
2004, o virulento vírus H2N51 matou pelo menos 30 pessoas.
Patogenias veiculadas por Doenças veiculadas pelos alimentos são um dos problemas de
alimentos saúde mais comuns em todo o mundo. Campylobactéria,
E.coli patogênica e salmonela são as patogenias mais
freqüentemente associadas à carne contaminada e produtos
animais.
FONTE: Vide nota final 18
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temperatura média hoje está 2,5oC acima do no sistema climático, o que significa mais
que era, 50 anos atrás. “No arroz, trigo e milho, mudanças extremas – seco para úmido, quente
a produção deverá cair 10% por cada grau para frio. (É por esta razão que ainda pode
de aumento da temperatura acima de 30oC,” haver invernos rigorosos num planeta em
diz o pesquisador John Sheehy. “Estamos aquecimento e por que março de 2004 foi o
perto ou já neste limiar.” Sheehy estima que a mês mais quente da história, após um dos
produção de grãos nos trópicos pode cair em invernos mais frios.) Vários desses impactos
até 30%, ao longo dos próximos 50 anos – projetados já estão sendo observados por
um período quando a população já má climatólogos, na maioria das regiões:
nutrida da região aumentará 44%.37 temperaturas máximas mais altas e dias mais
Hartwell Allen, cientista vegetal do USDA quentes; temperaturas mínimas mais altas e dias
e da Universidade da Flórida-Gainsville, menos frios; eventos de chuva mais variáveis
constatou que, enquanto uma duplicação de e extremos; maior seca no verão e risco
dióxido de carbono e uma temperatura associado de estiagem nos interiores conti-
ligeiramente mais alta estimulam a germinação nentais. Todas essas condições provavelmente
de sementes e fazem as plantas crescerem mais irão se acelerando até o próximo século.39
e com maior exuberância, temperaturas mais Talvez o local em que a previsibilidade é
altas serão mortais quando a planta começar mais crucial para a agricultura seja nos arrozais
a produzir pólen. Por exemplo, a uma não irrigados e campos de trigo da Ásia, onde
temperatura acima de 36 o C durante a as monções anuais fazem o sucesso ou ruína
polinização, a produção de amendoim cai de milhões de vidas. “Se tivermos um
cerca de 6% por grau de aumento. Allen está aquecimento global significativo, não tenho
particularmente preocupado com as dúvida que haverá mudanças profundas na
implicações para locais como Índia e África monção,” disse David Rhind, pesquisador
Ocidental, onde o amendoim é um alimento climático sênior do Instituto Goddard de
básico e as temperaturas durante a estação de Estudos Espaciais da NASA, na Universidade
cultivo já se movem para a faixa alta dos 30oC. de Colúmbia. Por exemplo, eventos do El
“Nestas regiões, as lavouras são alimentadas Niño freqüentemente correspondem a
pela chuva,” observa ele. “Se o aquecimento monções mais fracas, e os El Niños
global também levar à seca nestas áreas, a provavelmente aumentarão com o
produção poderá ser até menor.”38 aquecimento global. O que não está claro, disse
Os principais vegetais do mundo podem Rhind, é a direção dessas mudanças. “Meu
lidar, até certo ponto, com mudanças de palpite é que as respostas serão muito mais
temperatura, porém, desde a aurora da intensas em todas as direções.”40
agricultura os produtores têm selecionado Cynthia Rosenzweig, cientista pesquisadora
plantas que vicejam sob condições estáveis. sênior do Instituto Goddard, argumenta que,
Entretanto, quando os climatólogos consultam embora modelos climáticos estarão sempre
modelos climáticos globais, vêem tudo com sendo aprimorados, há certas mudanças que
menos estabilidade. À medida que os gases já podemos prever com algum grau de
de estufa concentram mais calor do sol na certeza. Primeiro, a maioria dos estudos
atmosfera da Terra, há também mais energia indicam “intensificação do ciclo hidrológico”
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parte das áreas tradicionais de café e chá no quartos da ração – aveia, sorgo em grão e
Caribe, América Latina e África. Em Uganda, alfafa – que necessita para seus cavalos de
onde café e chá representam quase toda a tração, gado de corte e aves. Esterco e
exportação agrícola, um aumento médio da leguminosas na rotação do cultivo substituem
temperatura de 2oC reduziria dramaticamente os fertilizantes de nitrogênio devoradores de
a colheita, pois todas as áreas, com exceção energia. Um sistema fotovoltaico de 4,5
das maiores altitudes, se tornarão muito quilowatts opera a oficina, cercas elétricas,
quentes para o cultivo do café.53 bombeamento de água e as chocadeiras. No
Fazendas com árvores estrategicamente todo, a fazenda eliminou a energia utilizada
plantadas entre as lavouras não só resistirão para fabricar e transportar 90% dos seus
melhor a chuvas torrenciais e estiagens suprimentos. Incluindo a energia necessária
escaldantes, como também reterão mais para fabricar os equipamentos da fazenda, o
carbono. Verchot observa que os alqueives percentual cai para 50%, mas mesmo assim é
melhorados utilizados na África podem reter um ganho imenso comparado com uma
até de 10 a 20 vezes o carbono da vizinha fazenda americana comum.55
monocultura cerealista e 30% do carbono de Marty Bender, Diretor de Pesquisa da
uma floresta intacta. E o acúmulo do estoque Sunshine Farm, observa que “o cultivo de
de matéria orgânica no solo – o material carbono é uma solução temporária.” Ele
escuro, esponjoso que dá aos solos um cheiro assinala um trabalho recente na revista Science,
forte e é a for ma pela qual os solos demonstrando que, mesmo se todos os solos
armazenam dióxido de carbono – não só nos Estados Unidos retornassem a seu teor
aumenta o volume de água que o solo pode de carbono pré-lavra – um nível máximo
reter (bom para resistir às secas), como teórico de quanto carbono poderiam reter –,
também ajuda a aglutinar mais nutrientes (bom isto equivaleria apenas a duas décadas das
para o desenvolvimento da lavoura).54 emissões americanas. “Isto mostra quão pouco
No Land Institute de Salina, Kansas, onde tempo estaríamos comprando,” diz Bender,
climatólogos locais suspeitam que a mudança “apesar do fato que poderá levar cem anos
climática poderá transformar os campos de de cultivo de carbono e florestamento
trigo do estado num deserto, os agricultores agressivo para restaurar o carbono perdido.”
não estão ouvindo isto passivamente. O Cynthia Rosenzweig, do Goddard Institute,
Projeto Sunshine Farm [Fazenda Ensolarada] também observa que o potencial de retenção
do Instituto desenvolve cultivos sem de carbono é limitado e que um planeta mais
combustíveis fósseis, fertilizantes ou pesticidas, quente reduzirá a quantidade de carbono que
como forma de reduzir sua contribuição à os solos podem reter: à medida que a terra se
mudança climática e encontrar uma solução aquece, micróbios revigorados do solo
essencialmente local para um problema global. produzem mais dióxido de carbono.56
Como seu nome indica, a fazenda basicamente “Deveríamos na realidade estar enfocando
funciona à luz solar. Sementes de girassol eficiência energética e conservação de energia,
cultivado localmente e grãos de soja se a fim de reduzir as emissões de carbono da
transformam em biodiesel, que move tratores nossa economia nacional,” conclui Marty
e caminhões. A fazenda produz quase três Bender. Nos Estados Unidos, como em
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CAPÍTULO 5
Gerindo Disputas
e Cooperação Hídricas
Aaron T. Wolf, Annika Kramer,
Alexander Carius e Geoffrey D. Dabelko
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Bacia do Mekong Quantidade Após a construção da Barragem Pak Mun, na Tailândia, mais
de 25.000 pessoas foram afetadas pelas reduções drásticas
dos pesqueiros a montante e outros problemas de meios de
vida. As comunidades afetadas vêm lutando por indenizações
desde a conclusão da barragem, em 1994.
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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS
Internacional Disputas podem surgir entre países ripários sobre águas transfronteiriçasBaixa violência,
mas tensões existentes entre as partes são arraigadas e difíceis de superar, resultando em
más relações políticas, gestão hídrica ineficiente e ecossistemas negligenciadosRegistro
longo e pleno de resolução de conflitos e desenvolvimento de instituições flexíveis
Nacional Disputas podem surgir entre unidades políticas subnacionais, incluindo províncias, grupos
étnicos ou religiosos ou setores econômicosMaior potencial de violência do que no nível
internacionalFundamentos para envolvimento internacional são mais difíceis, dadas as
questões de soberania nacional
Local (indireta) Perda de meios hídricos de vida (devido à perda de água de irrigação ou ecossistemas de
água doce) pode levar a migrações politicamente desestabilizadoras para cidades ou países
vizinhosInstabilidade local pode desestabilizar regiõesAlívio da pobreza está implicitamente
ligado à melhoria das questões de segurança
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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS
(ver Tabela 5-3); os dilemas representados por conflitos em andamento entre árabes e
bacias como a do Danúbio (compartilhada israelenses.7
por 17 países) ou do Nilo (10 países) podem O único problema com este cenário é a
ser fáceis de imaginar.6 ausência de corroboração. Em 1951-53, e
O alto número de rios compartilhados, novamente em 1964-66, Israel e Síria trocaram
combinado com uma escassez hídrica cada fogo em função do projeto sírio de desviar o
vez maior para populações crescentes, leva Rio Jordão, porém o confronto final –
muitos políticos e manchetes a trombetearem destacando-se ataques de tanques e aviões –
um porvir de “guerras hídricas.” Em 1995, paralisou a construção e acabou de fato com
por exemplo, o Vice Presidente do Banco as hostilidades relacionadas à água entre os dois
Mundial, Ismail Serageldin, adiantou que “as países. Não obstante, a guerra de 1967 eclodiu
guerras do próximo século serão pela água.” quase um ano depois. A água teve pouco – ou
Estes alertas apontam, invariavelmente, para nenhum – impacto sobre a estratégia militar na
o árido e hostil Oriente Médio, onde exércitos violência subseqüente entre árabes e israelenses
se mobilizam e se chocam por este recurso (inclusive as guerras de 1967, 1973 e 1982).
precioso e escasso. Teorias complexas, se bem Todavia, a água foi o motivo subjacente de
que mal-denominadas como de “imperativo estresse político e um dos tópicos mais difíceis
hídrico,” citam a água como a motivação nas negociações posteriores. Em outras palavras,
fundamental de estratégias militares e embora as guerras não houvessem sido travadas
conquistas territoriais,particularmente nos pela água, desacordos sobre alocação foram
Número Bacias
de Países Internacionais
3 Asi (Orontes), Awash, Cavally, Cestos, Chiloango, Dnieper, Dniester, Drin, Ebro, Essequibo,
Gâmbia, Garonne, Gash, Geba, Har Us Nur, Hari (Harirud), Helmand, Hondo, Ili (Kunes He),
Incomati, Irrawaddy, Juba-Shibeli, Kemi, Lago Prespa, Sistema Lago Titicaca-Poopo, Lempa,
Maputo, Maritsa, Maroni, Moa, Neretva, Ntem, Ob, Oueme, Pasvik, Vermelho (Song Hong),
Rhone, Ruvuma, Salween, Schelde, Sena, St. John, Sulak, Torne (Tornealven), Tumen, Umbeluzi,
Vardar, Volga e Zapaleri
4 Amur, Daugava, Elba, Indus, Komoe, Lago Turkana, Limpopo, Pantanal Lotagipi, Narva,
Oder (Odra), Ogooue, Okavango, Orange, Pó, Pu-Lun-T’o, Senegal e Struma
5 La Plata, Neman e Vistula (Wista)
6 Mar de Aral, Ganges-Brahmaputra-Meghna, Jordão, Kura-Araks, Mekong, Tarim, Tigre e
Eufrates (Shatt al Arab) e Volta
8 Amazonas e Lago Chad
9 Reno e Zambezi
10 Nilo
11 Congo e Niger
17 Danúbio
FONTE: Vide nota final 6.
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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS
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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS
mesmo quando as relações são tensas. ração na região. De fato, o Protocolo sobre
A Comissão do Mekong, por exemplo, Sistemas de Cursos de Água Partilhados, de
estabelecida pelos governos do Camboja, 1995, foi o primeiro protocolo assinado no
Laos, Tailândia e Vietnã, como uma agência âmbito da Comunidade Desenvolvimentista
intergovernamental em 1957, trocaram dados da África do Sul. Ripários se sujeitam a
e informações sobre o desenvolvimento de negociações duras e demoradas a fim de obter
recursos hídricos durante toda a Guerra do benefícios do desenvolvimento conjunto de
Vietnã. Israel e Jordânia mantiveram encontros recursos hídricos. Assim, alguns pesquisadores
secretos na confluência dos rios Jordão e identificaram cooperação em recursos hídricos
Yarmuk (que ficaram conhecidos como como um ponto de acesso particularmente
“conversações à mesa de piquenique”) sobre proveitoso para construção da paz. (Ver
a gestão do Rio Jordão, a partir do fracasso Capítulo 8.)15
das negociações Johnston de 1953-55, mesmo Então, se a água compartilhada não conduz
estando em guerra desde a independência de à violência entre nações, qual é o problema?
Israel em 1948, até o tratado de 1994. (Ver Na realidade, complicadores como o lapso
Quadro 5-1.) A Comissão do Rio Indus de tempo entre o início das disputas e acordos
sobreviveu a duas grandes guerras entre Índia finais, podem fazer com que questões hídricas
e Paquistão. E todos os 10 países ripários da agravem tensões. Ripários freqüentemente
Bacia do Nilo estão atualmente envolvidos em desenvolvem projetos unilateralmente em seus
negociações em nível ministerial para o próprios territórios, numa tentativa de evitar
desenvolvimento cooperativo da bacia, apesar as complexidades políticas das partilhas de
da ferrenha retórica de “guerras hídricas” entre recursos. A certa altura, um dos ripários (geral-
nações a montante e a jusante.14 mente o mais poderoso) iniciará um projeto
que afetará pelo menos um dos vizinhos.
O registro histórico comprova que Sem relações ou instituições conducentes à
disputas de águas internacionais são resolução de conflitos, ação unilateral pode
resolvidas, mesmo entre inimigos, e agravar tensões e instabilidade regional,
necessitando de anos ou décadas para serem
mesmo quando surgem outros conflitos.
solucionadas: o tratado do Indus levou 10 anos
de negociações; do Ganges, 30; e do Jordão,
No sul da África, foram assinados vários 40. A água foi a última – e mais contenciosa –
acordos de bacias hidrográficas quando a questão negociada num tratado de paz de
região esteve envolvida numa série de guerras 1994, entre Israel e Jordânia, sendo relegada à
locais nos anos 70 e 80 (incluindo a “guerra categoria de “situação final” entre Israel e os
do povo” na África do Sul e guerras civis em palestinos, juntamente com questões comple-
Moçambique e Angola). Embora as nego- xas como refugiado e o status de Jerusalém.
ciações fossem complexas, os acordos pro- Durante este longo processo, a qualidade e
porcionaram raros momentos de cooperação quantidade da água pode degradar até que a
pacífica entre muitos dos países. Hoje, quando saúde das populações e ecossistemas
a maioria das guerras e a era do apartheid dependentes seja prejudicada ou destruída. O
acabaram, a água é um dos alicerces de coope- problema se agrava à medida que a disputa se
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Estado do Mundo 2005
DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS
QUADRO 5-1.
QUADRO PARTILHA DE
5-1. PARTILHA DE ÁGUA
ÁGUA ENTRE
ENTRE ISRAEL,
ISRAEL, JORDÂNIA
JORDÂNIA EE OS
OSPALESTINOS
PALESTINOS
A escassez hídrica mais grave do mundo é a do da violência, não deverão ser concluídas tão cedo.
Oriente Médio. O déficit é particularmente alarmante Não obstante, israelenses e palestinos concordam
na bacia do Rio Jordão e aqüíferos adjacentes da que é indispensável manter a cooperação sobre sua
Margem Ocidental, onde se cruzam os interesses água partilhada.
hídricos israelenses, palestinos e jordanianos. Em Duas importantes recomendações programáticas
Gaza e na Margem Ocidental, a disponibilidade anual podem ser estabelecidas deste caso. Primeiro, a
de água é bem abaixo de 100 metros cúbicos de cooperação hídrica está intimamente ligada à política
água renovável por pessoa, enquanto Israel tem – um processo altamente complexo influenciado por
menos de 300 e Jordânia em torno de 100 metros considerações tanto domésticas quanto
cúbicos. Um país é geralmente considerado carente internacionais. Se os doadores não realizarem uma
de água quando a disponibilidade é inferior a 1.000 análise completa do contexto político,
metros cúbicos. provavelmente não irão entender como a água está,
Crescimento populacional, resultante tanto de às vezes, subordinada a prioridades políticas mais
altas taxas de natalidade entre palestinos e importantes e é utilizada como instrumento político.
jordanianos quanto da imigração para Israel, Segundo, agências doadoras e organizações
pressiona cada vez mais os já escassos recursos e internacionais podem desempenhar um papel
aumenta o risco de conflitos relacionados à água. importante se estiverem dispostas a oferecer apoio
Colonos israelenses na Margem Ocidental e em Gaza de longo prazo para o estabelecimento de
recebem uma parcela maior da água disponível do cooperação para água compartilhada. Os doadores
que os palestinos, complicando ainda mais a situação. caracteristicamente desejam ver resultados tangíveis
Apesar dos temores de violência relacionada à dentro de uma curta escala de tempo. Todavia, é
água, Israel tem mantido um clima de cooperação essencial entender que há riscos envolvidos,
com Jordânia e os palestinos sobre suas águas obstáculos ocasionais ocorrerão e benefícios não irão
partilhadas, mesmo após o início da segunda intifada, se materializar rapidamente. Os doadores precisarão
em setembro de 2000. Esta cooperação básica entre se engajar num “financiamento de processo” de apoio
Israel e Jordânia – sob os auspícios da ONU – se não a um projeto comum de desenvolvimento com
estende desde o início dos anos 50, apesar destes um ciclo de 2-4 anos, e sim a um processo que pode
países estarem formalmente em guerra. Esta cobrir 10-25 anos. No caso Israel-Jordânia, a
interação ajudou a criar confiança e um conjunto Organização de Supervisão da Trégua da ONU, que
compartilhado de normas e regulamentos, agiu como uma organização “guarda-chuva” para
posteriormente formalizados no âmbito do acordo discussões sobre coordenação hídrica apesar da
de paz entre os dois países, em 1994. Conforme ausência de um acordo de paz, desempenhou um
estipulado neste acordo, foi implantada uma papel crucial.
Comissão Hídrica Conjunta de coordenação e Embora exista a possibilidade de surgirem mais
resolução de problemas que ajudou a solucionar os conflitos de interesse no futuro sobre as águas da
desacordos sobre alocações. bacia do Rio Jordão, a gestão hídrica – com suporte
Um acordo provisório de 1995 regula questões adequado – proporciona uma janela de oportunidade
hídricas israelenses-palestinas, como a proteção dos para uma cooperação mais ampla nesta região
sistemas de água e esgoto. A Comissão Hídrica conturbada do mundo.
Conjunta e suas subcomissões continuaram a se - Anders Jägerskog
encontrar, apesar da violência dos últimos anos. Para Grupo de Especialistas sobre Questões
os palestinos, o acordo atual é insatisfatório sob a Desenvolvimentistas Ministério de Relações Exteriores,
perspectiva de direitos e disponibilidade. Suécia
Conversações para se chegar a um acordo final ___________________________________________________________________________________________
formam parte de um processo global de negociação fonte: Vide nota final 14. As opiniões expressas são do
mas, considerando o impasse político e a continuação autor e não do Ministério de Relações Exteriores da
Suécia.
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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS
irrompem ameaças e disputas através de a seu estilo de vida, cada vez mais ameaçado
fronteiras, como se viu na Índia e Paquistão, por novas demandas para cidades e
ou Canadá e Estados Unidos. Desconfiança e hidroenergia.18
tensões (mesmo que não levem a conflitos
abertos) podem prejudicar desenvolvimentos
Ação unilateral pode agravar tensões e
regionais ao impedir projetos conjuntos e
instabilidade regional, necessitando de
infra-estrutura mutuamente benéfica. Uma das
fontes mais importantes de água tanto para anos ou décadas para serem solucionadas
israelenses quanto para palestinos, o Aqüífero
da Montanha, está ameaçada pela poluição de Conflitos hídricos internos levaram a
esgotos não tratados. O conflito existente confrontos entre usuários a montante e a
impediu iniciativas de doadores para a jusante, ao longo do Rio Cauvery, na Índia, e
construção de estações de tratamento de entre americanos nativos e colonos europeus.
esgotos na Palestina, iniciando um círculo Em 1934, o estado interiorano do Arizona
vicioso à medida que a poluição da água constituiu uma força naval (um ferryboat) e
subterrânea aumenta a escassez da água enviou a milícia estadual para impedir um
regional e, por sua vez, agrava o conflito entre projeto de barragem e desvio no Rio
israelenses e palestinos.17 Colorado. Disputas relacionadas à água podem
também engendrar também desobediência
Disputas intra Nações civil, atos de sabotagem e manifestações
violentas. Na província chinesa de Shandong,
A literatura sobre águas transfronteiriças milhares de agricultores entraram em choque
freqüentemente trata as entidades políticas com a polícia em julho de 2000, devido ao
como monólitos homogêneos: “Canadá projeto do governo de desviar a água de
sente...” ou “Jordânia deseja...” Recentemente, irrigação da agricultura para as cidades e
analistas identificaram os perigos desta indústrias. Várias pessoas morreram nas
abordagem, mostrando como subgrupos de manifestações. E de 1907 a 1913, no Vale
atores nacionais possuem valores e prioridades Owens, na Califórnia, os agricultores
diferentes para a gestão hídrica. Na realidade, bombardearam repetidamente uma adutora
a história da violência relacionada à água inclui que desviava água para Los Angeles.19
incidentes entre tribos, setores de uso da água, A instabilidade nacional também pode ser
populações rurais e urbanas e estados ou provocada por uma gestão falha ou injusta
províncias. Algumas pesquisas até sugerem que de serviços hídricos. As disputas surgem sobre
à medida que a escala geográfica cai, a conexões em subúrbios ou zonas rurais,
probabilidade e intensidade de violência responsabilidade pelo serviço e especialmente
aumentam. Em todo o mundo, questões tarifas. Na maioria dos países, o estado é
hídricas locais giram em torno de valores responsável pelo fornecimento de água
básicos que, freqüentemente, remontam a potável; mesmo quando concessões são
várias gerações. Irrigadores, populações outorgadas a empresas privadas, o estado
indígenas e ambientalistas, por exemplo, geralmente continua responsável pelo serviço.
podem, todos, considerar a água como ligada As disputas sobre a gestão do abastecimento,
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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS
portanto, surgem geralmente entre Durante os 30 anos que Israel ocupou a Faixa
comunidades e autoridades estaduais. (Ver de Gaza, por exemplo, a qualidade da água
Quadro 5-2.) Protestos ocorrem quando deteriorou constantemente, a água salgada
usuários suspeitam que os ser viços são infiltrou-se nos poços locais e doenças
geridos de forma corrupta ou que recursos relacionadas à água causaram perdas entre
públicos estão sendo desviados em proveito os habitantes. Em 1987, a segunda intifada
próprio.20 começou no Faixa de Gaza, e o levante logo
se alastrou pela Margem Ocidental. Embora
Impactos Locais seja simplista alegar que a perda de qualidade
da água tenha causado a violência, ela sem
Quando a qualidade da água se degrada dúvida exacerbou uma situação já sensível ao
ou a quantidade diminui, afeta a saúde das causar danos à saúde e meios de vida..22
pessoas e destrói meios de vida que Um exame das relações entre Índia e
dependem dela. A agricultura consome dois Bangladesh demonstra que as instabilidades
terços da água mundial e é a maior fonte de locais podem surgir de disputas hídricas
sustento, especialmente nos países em internacionais, vindo a agravar tensões
desenvolvimento, onde uma grande parcela internacionais. Nos anos 60, a Índia construiu
da população depende da agricultura de uma barragem em Farakka, desviando uma
subsistência. A lista de Sandra Postel de países parte do Ganges de Bangladesh para remover
que dependem da água de irrigação cada vez a sedimentação do porto de Calcutá, 160
mais escassa, inclui oito que atualmente quilômetros ao sul. Em Bangladesh, a vazão
preocupam a comunidade de segurança: menor drenou a água superficial e
Bangladesh, China, Egito, Índia, Irã, Iraque, subterrânea, impediu a navegação, aumentou
Paquistão e Uzbequistão. Quando o acesso à a salinidade, degradou pesqueiros e colocou
água de irrigação é interrompido, grupos de em risco o abastecimento de água e a saúde
homens desempregados e insatisfeitos pública, forçando alguns habitantes a
podem ser forçados a deixar o campo e se migrarem – muitos, ironicamente, para a
deslocar para as cidades – um notório Índia.23
contribuidor para instabilidade política. A Assim, embora não tenha ocorrido
migração pode provocar tensões entre nenhuma “guerra hídrica,” a ausência de água
comunidades, especialmente quando aumenta doce pura ou a competição pelo acesso a
a pressão sobre recursos já escassos, e a recursos hídricos causou, ocasionalmente,
migração transfronteiriça pode contribuir instabilidade política intensa que resultou em
para tensões inter-nações. (Ver Capítulo 2.)21 violência aguda, embora em pequena escala.
Assim, problemas com a água podem Acesso insuficiente à água é uma das causas
contribuir para causar instabilidade local, o principais de perda de meios de vida,
que, por sua vez, pode desestabilizar uma alimentando assim conflitos relacionados a
nação ou toda uma região. Desta forma meios de sustento. Proteção ambiental, paz e
indireta, a água contribui para disputas estabilidade são difíceis de serem
internacionais e nacionais, embora as partes conquistadas num mundo onde tantos
não entrem em luta explicitamente pela água. sofrem de pobreza.24
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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS
Desde a II Guerra Mundial, cerca de 45.000 grandes recusaram a sair e tentaram negociar condições mais
barragens foram construídas, gerando justas. As tensões aumentaram quando o governo
aproximadamente 20% da eletricidade mundial e declarou os habitantes restantes subversivos,
proporcionando irrigação a campos que produzem apreendeu registros das promessas de
cerca de 10% do alimento mundial. reassentamento e escrituras da terra, e matou líderes
Todavia, para as 40-80 milhões de pessoas cujas comunitários. Em seguida a um segundo golpe militar
vidas e sustento estavam enraizadas nas margens e em março de 1982, o General Rios Montt iniciou uma
vales de rios selvagens, a construção de barragens política de “terra arrasada” contra a população Maia.
alterou profundamente a saúde, economia e cultura Quando a construção da barragem foi concluída e as
de comunidades e nações inteiras. Uma vez que as águas começaram a subir, os habitantes foram
barragens geralmente são localizadas próximas a expulsos sob a mira de fuzis e as casas e campos
nações indígenas, no final são as minorias rurais e queimados. Massacres se seguiram, inclusive nos
étnicas, distantes dos corredores centrais do poder, vilarejos que deram refúgio aos sobreviventes. No
que são forçadas a arcar com o ônus. Planos de vilarejo de Rio Negro, por exemplo, 487 pessoas –
desenvolvimento insensatos, despejos forçados e metade da população – foi assassinada em setembro
reassentamentos com indenizações inadequadas de 1982.
geram condições para conflitos que ameaçam a Após os Acordos de Paz de Oslo, em 1994 e o
segurança de direitos individuais e grupais à cultura, término da guerra civil da Guatemala, uma série de
auto-determinação, meios de vida e à própria vida. investigações rompeu o silêncio sobre os massacres.
Esta dinâmica está ilustrada no caso da Barragem Em 1999, uma comissão patrocinada pelas Nações
Chixoy, na Guatemala, que gera 80% da eletricidade Unidas concluiu que mais de 200.000 civis Maias
deste país. Foi projetada e desenvolvida pelo INDE haviam sido mortos, que atos de genocídio foram
(Instituto Nacional de Eletrificação) e financiada em cometidos contra comunidades Maias específicas, e
grande parte pelo Banco Inter-Americano de que o Governo da Guatemala era responsável por
Desenvolvimento e Banco Mundial. O projeto foi 93% das violações de direitos humanos e atos de
aprovado e a construção iniciada sem aviso à violência contra civis.
população local, realização de um levantamento Hoje, esta questão está longe de estar resolvida.
abrangente dos vilarejos afetados ou consideração O fracasso em proporcionar terra cultivável e
quanto a indenizações e reassentamentos para os moradia de tamanho e qualidade equivalente para os
3.400 habitantes, quase todos Maias. A ditadura reassentados gerou uma pobreza aguda, fome
militar de Lucas Garcia declarou a Barragem Chixoy e generalizada e altas taxas de má-nutrição. As
seu entorno como zona militarizada em 1978. comunidades que foram excluídas do programa de
Alguns habitantes aceitaram as ofertas de reassentamento também enfrentam uma gama de
reassentamento mas receberam habitação de pior problemas. Abertura das comportas ocorrem sem
qualidade, área menor e terra infértil. Outros se aviso prévio, e as enchentes decorrentes destroem
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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS
lavouras, afogam o gado e, às vezes, matam pessoas. decisão de operar a barragem em base sazonal.
A maioria dos habitantes de antigas vilas pesqueiras, Numa segunda barragem no Rio Mun, a Rasi Salai,
com seus meios de vida destruídos, se voltou para o populações deslocadas implantaram um vilarejo de
trabalho migrante. Comunidades a montante viram protesto em 1999, recusando-se a sair enquanto as
parte de suas terras agrícolas serem submersas e o águas do reservatório cobriam seu acampamento. Seu
acesso à terras, estradas e mercados regionais protesto não violento e disposição de enfrentar a
bloqueado. Não há mecanismos para as pessoas iminência de afogamento sacudiram a nação. Em julho
afetadas reclamarem ou negociarem ajuda. de 2000, as comportas da Rasi Salai foram abertas
As comunidades afetadas pela Barragem Chixoy se para permitir a recuperação do meio ambiente e
reuniram para discutir problemas e estratégias avaliação de impactos, e continuam abertas até hoje.
comuns, testemunharam perante comissões da Na documentação dos muitos fracassos na
verdade e, com ajuda de advogados nacionais e observação adequada de direitos e recursos, as
internacionais, estão se empenhando em documentar comunidades afetadas por barragens assumiram a
o impacto da barragem. Em setembro de 2004, liderança no desafio às premissas que orientam
cerca de 500 agricultores Maias ocuparam a tomadas de decisão desenvolvimentistas e na
barragem e ameaçaram cortar a energia caso não exigência de responsabilidades institucionais. Suas
fossem indenizados pela perda das terras e vidas.Num exigências por “reparações” são muito mais do que
número cada vez maior de casos, os esforços de clamores por indenização. São exigências para
populações afetadas por barragens para remediação significativa, o que significa que o
documentarem experiências e reclamarem por danos consentimento livre, prévio e informado dos
e perdas, obtiveram sucesso em produzir alguma habitantes seja obtido antes da aprovação do
remediação. Na Tailândia, onde a Barragem Pak Mun financiamento e início da construção da barragem,
destruiu pesqueiros e meios de vida de dezenas de que avaliações científicas e projetos sejam
milhares de pessoas, uma década de protestos forçou desenvolvidos com a participação igualitária dos
o governo a desativar temporariamente a barragem. membros das comunidades afetadas, que governos e
Os aldeões prejudicados realizaram um financiadores respeitem os direitos dos povos
levantamento do impacto da barragem sobre suas indígenas à auto-determinação – inclusive o direito de
vidas e o ecossistema do Rio Mun, documentando o dizer não, e que novos projetos não sejam financiados
retorno de 156 espécies de peixe para o rio após a até que todos os problemas pendentes de projetos
abertura das comportas e subseqüente revitalização anteriores tenham sido resolvidos.
da economia pesqueira e da comunidade. Estas - Barbara Rose JohnstonCenter for Political Ecology,
avaliações desempenharam um papel chave na Santa Cruz, Califórnia.
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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS
O cerne das disputas hídricas ainda diz conflito. Com toda a parafernália do Século
respeito a pouco mais do que a XXI – modelação dinâmica, sensoriamento
abertura de uma comporta de desvio remoto, sistemas de informação geográfica,
ou lixo flutuando rio abaixo. dessalinização, biotecnologia ou gestão de
demanda – e a recém-descoberta preo-
A gestão hídrica cooperativa é uma questão cupação com globalização e privatização, o
desafiadora que requer tempo e compromisso. cerne das disputas hídricas ainda diz respeito
A participação extensa de interessados nem a pouco mais do que a abertura de comportas
sempre é viável; em alguns casos, pode até de desvio ou lixo flutuando rio abaixo.
nem ser recomendável. Em qualquer escala Entretanto, qualquer um que tentar gerir
de gestão hídrica, se o nível de disputa for conflitos relacionados com a água deverá ter
muito alto e as disparidades muito grandes, em mente que, ao invés de ser simplesmente
as partes conflitantes provavelmente não outro insumo ambiental, a água é comumente
chegarão a um consenso e podem até recusar tratada como questão de segurança, dádiva
a participar em atividades de gestão da natureza ou ponto focal da sociedade local.
cooperativa. Nestes casos, a confiança e me- As disputas, portanto, são mais do que
didas de obtenção de consenso, como “simples” lutas por uma quantidade de um
treinamento conjunto ou investigação conjunta, recurso; são argumentos sobre atitudes,
ajudarão na tomada de decisão cooperativa. significados e contextos conflitantes.
Medidas anticonflito envolvendo terceiros, Obviamente, não há garantia que o futuro
tais como mediação, facilitação ou arbitragem, será como o passado; os mundos da água e
ajudam nos casos de disputas abertas sobre dos conflitos estão passando por mudanças
gestão de recursos hídricos. Partes relacionadas, lentas porém constantes. Um número sem
como conselheiros, mulheres ou especialistas precedentes de pessoas não tem acesso a um
hídricos, obtiveram sucesso em iniciar a suprimento seguro e estável de água. Á medida
cooperação quando os grupos em conflito que cresce a exploração dos mananciais mun-
não puderam se reunir. A Iniciativa de Paz diais, a qualidade se torna um problema mais
Wajir, liderado por mulheres, por exemplo, grave do que a quantidade, e o consumo da
ajudou a reduzir o conflito violento entre água está sendo desviado para fontes menos
pastores no Quênia, onde o acesso à água es- tradicionais como aqüíferos fósseis pro-
tava em disputa. Em alguns casos altamente fundos, recuperação de água servida e trans-
contenciosos, como da Bacia do Nilo, um ferências inter-bacias. Os conflitos, também,
“modelo de elite” que busca consenso entre estão se tornando menos tradicionais, movidos
representantes de alto nível antes de encorajar cada vez mais por pressões internas ou locais
uma participação mais ampla, obteve algum ou, mais sutilmente, pela pobreza e insta-
sucesso no desenvolvimento de uma visão bilidade. Estas mudanças indicam que as
compartilhada para gestão da bacia. A inte- disputas hídricas do futuro poderão ser bem
gração efetiva da participação pública é hoje diferentes das de hoje.
o desafio básico para implementação a longo Por outro lado, a água é um caminho
prazo de esforços de negociação da elite.37 produtivo para criação de confiança, coope-
A gestão hídrica é, por definição, gestão de ração e também para prevenção de conflito,
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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS
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DISPUTAS E COOPERAÇÃO HÍDRICAS
LIGAÇÃO DE SEGURANÇA
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RIQUEZA NATURAL E CONFLITO
LIGAÇÃO DE SEGURANÇA
Setor Privado
Num pronunciamento ao Conselho de produzido pelo consórcio liderado pela
Segurança das Nações Unidas, em abril de Talisman chegou a contribuir até $500
2004, o Secretário Geral Kofi Annan milhões anuais para a receita do país. Estes
destacou o importante papel que as pagamentos supostamente contribuíram
empresas privadas podem desempenhar – para duplicar o orçamento de defesa do
bom ou ruim – nos países mais propensos a governo no mesmo período e assim para a
conflitos: “Suas decisões – sobre campanha de “terra arrasada” que expulsou
investimento e emprego, sobre relações com as pessoas dos campos de petróleo do país.
comunidades locais, sobre providências Em pelo menos um caso registrado
com a própria segurança – pode ajudar um helicópteros com metralhadoras e aviões
país a dar as costas ao conflito ou agravar as militares usaram a pista de aterrissagem do
tensões que o alimentaram originalmente.” 1 consórcio como ponto de partida para
Nos últimos anos, movimentos populares ataques a civis. 3
e painéis das Nações Unidas documentaram . Em março de 2003, tendo sido acusada
a alegada cumplicidade das multinacionais num processo em Nova Iorque, a Talisman
numa vasta gama de situações de conflito – vendeu suas ações no consórcio petrolífero
desde abusos de direitos humanos no Sudão para a companhia de energia indiana
e Nigéria, ricos em petróleo, passando pelo ONGC Videsh. Ainda assim, mesmo com a
tráfico de diamantes e madeira do Congo e elevação do valor das ações, a saída da
Serra Leoa, até o mau uso de serviços Talisman do Sudão criou um dilema
financeiros para compra de armas e atos complexo. Por um lado, demonstrou à
terroristas. À luz desses relatórios, as indústria de petróleo que investimentos ou
corporações estão cada vez mais conscientes atividades duvidosas podem afetar a
de que, além de alimentar a violência, os reputação de uma companhia e baixar o
investimentos em situações de conflito valor de suas ações (no caso da Talisman,
podem manchar gravemente a reputação de até 15%). Por outro lado, a retirada de
uma empresa, podendo tornar-se até investimentos de uma grande multinacional
mesmo um ônus legal.2 em países instáveis pode, em última análise,
Num caso notório, sensacional, a reduzir o escrutínio internacional destes
companhia canadense de petróleo Talisman lugares, diminuindo a pressão nas
Energy foi forçada a vender sua companhias remanescentes para seguirem
participação no petróleo do Sudão, após padrões sociais e ambientais mínimos. 4
denuncias de ter contribuído para a longa Existem situações, onde o setor privado
guerra civil que durou 20 anos. Iniciando tem sido instrumental na ajuda para o
com o término de um oleoduto de término de hostilidades. No Sri Lanka, um
exportação, em 1999, o petróleo bruto ataque ao aeroporto internacional em julho
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Estado do Mundo 2005
SETOR PRIVADO
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MUDANDO
SETOR PRIVADO
A ECONOMIA DO PETRÓLEO
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MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO
CAPÍTULO 6
Mudando a Economia do
Petróleo
Thomas Prugh, Christopher Flavin,
e Janet L. Sawin
O petróleo se tornou tão crucial para a ordem civil, direitos humanos e democracia
civilização moderna que a linguagem se esforça em muitas regiões. Na terceira, o petróleo
para transmitir sua importância; as metáforas ameaça a estabilidade climática, porque seu uso,
comuns para seu papel – espinha dorsal, que está acelerando, é responsável por uma
sangue vital, preciosidade – parecem forçadas grande parcela das emissões globais de gás de
e inadequadas. O petróleo satura praticamente estufa e porque seu domínio completo do
cada aspecto da vida moderna e o bem-estar mercado de combustível de transporte o torna
de cada indivíduo, comunidade e nação do difícil de ser substituído. Em suma, o ponto
planeta está ligado à nossa cultura energética que fez com que o petróleo outrora tenha nos
baseada no petróleo. Todavia, mesmo com o ajudado a garantir a segurança humana, hoje,
petróleo se tornando indispensável, seu uso nos tornou mais vulneráveis.
contínuo já começa a impor custos e riscos
inaceitáveis. Uma Mercadoria Estratégica
Os custos e riscos do uso do petróleo
podem ser reunidos em três categorias amplas. Para entender como o petróleo deixou de
Na primeira, o petróleo ameaça a segurança ser vantagem para se tornar um ônus, temos
econômica global, porque é um recurso finito, que começar com seu lugar na vida moderna.
para o qual não foi desenvolvido um sucessor Consideremos um cidadão típico, morando
efetivo, e porque o fosso entre oferta e procura numa cidade ou subúrbio do mundo
parece estar crescendo, tornando o mundo industrializado – chamemo-lo de Sr. Lee –
vulnerável a graves choques econômicos. Na numa atividade rotineira de uma manhã de
segunda, o valor do petróleo como uma um sábado qualquer. Ele desperta ao som do
mercadoria solapa a segurança civil, ao rádio-relógio, toma um chuveiro, coloca suas
comprometer os esforços de conquista de paz, lentes de contato, veste seu moleton e calça
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Estado do Mundo 2005
MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO
seu tênis. Na cozinha, Sr. Lee toma um anti- segurança, alto-falantes, pneus, painel de
histamínico contra um resfriado e um prato de instrumentos, tinta, anticongelante), guarda-
cereal, escova seus dentes, coloca um agasalho chuvas, CDs, raquetes e bolas de tênis (e as
de nylon e sai na garoa da manhã para as latas), cartões de crédito, esferográficas,
compras. Carro ou trem? Hoje prefere o carro. câmeras, filmes, celulares e inúmeros
Primeiramente, ele pára na sua loja de música cosméticos. O folhado de Sr. Lee é um ator-
favorita, onde estaciona, abre seu guarda- substituto para o papel imenso que o petróleo
chuva e corre para a loja. Lá dentro, olha um desempenha na produção agrícola – desde a
pouco e escolhe um par de CDs, pagando fabricação e alimentação das máquinas
com cartão de crédito. Depois, segue pela rua agrícolas ao seu uso como insumo fertilizante
para uma loja esportiva – parando no caminho e no processamento, embalagem e transporte.
para comer um folhado na padaria local –, Também há as mobílias e os carpetes da
onde compra uma nova raquete de tênis e uma residência de Sr. Lee, o telhado sobre sua cabe-
lata de bolas para o aniversário da Sra. Lee. ça e as ruas e estradas sobre as quais dirige –
No caminho de casa, Sr. Lee pára numa loja literalmente milhares de itens. Em muitos
fotográfica para comprar uma nova câmera casos, não há substitutos do petróleo para a
digital, também para a esposa, e um cassete fabricação desses itens.1
para a câmera de vídeo. Chama a esposa pelo Claramente, o petróleo é importante como
celular para saber se precisa de algo da matéria-prima; nos Estados Unidos, por
farmácia; ela lhe pede loção para as mãos e exemplo, seu uso como matéria-prima
seu batom favorito. representa aproximadamente um quinto do
Com pequenas modificações, esta vinheta consumo. Porém, o petróleo é ainda mais
pode se aplicar à vida de centenas de milhões importante como fonte energética. A energia
de pessoas em Cingapura, Berlim, Nova York assumiu uma presença gigantesca na economia
ou qualquer outro lugar no mundo mundial e nas vidas de bilhões de pessoas.
industrializado. Imagine, porém, como o Poucos entendem quão importante ela é – ou
quadro mudaria se um elemento – o petróleo que a grande abundância de energia é o que
define a vida nas nações industrializadas e a
– fosse apagado da tela.
distingue das formas tradicionais. Estas formas
Para início de conversa, tanto carros quanto
foram marcadas pela sujeição a um pingo de
subúrbios espraiados são criações do petróleo
energia solar, força física essencialmente
barato e seriam muito menos comuns. Mas,
humana ou animal alimentada por vegetais. As
mesmo com uma granulagem mais fina, nossa
pessoas faziam pouco uso de carvão ou
estória mudaria radicalmente. Os itens
petróleo antes da Revolução Industrial, mas
seguintes que são mencionados ou estão
esta era transformou literalmente a economia
implícitos ou são, pelo menos em parte, feitos
energética mundial. O padrão geral pode ser
com petróleo: rádios, cortinas de chuveiros,
visto na história da energia nos Estados
xampu, lentes de contato, escovas e pastas de
Unidos. (Ver Figura 6-1.)2
dente, medicamentos e cápsulas de pílulas,
tecidos, sapatos, automóveis (tapetes e A grande abundância de energia é o que
estofamento, isolamento, correias de venti- define a vida nas nações industrializadas
ladores, caixas de baterias, vidros e cintos de e a distingue das formas tradicionais.
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MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO
Hoje, o consumo global da energia útil por Quadro 6-1.) O valor e disponibilidade do
pessoa é cerca de 13 vezes maior do que na petróleo como fonte de combustível de
época pré-industrial – embora a população transporte significa que o petróleo representa
total tenha decuplicado desde 1700. (O quase todo consumo energético do setor. A
consumo per capita é, naturalmente, muito combustão do petróleo também é responsável
maior do que a média global nas nações por 42% de todas as emissões de dióxido de
industrializadas e muito menor nos países em carbono (CO 2), o principal gás de estufa
desenvolvimento.) O petróleo – de fácil produzido pelo homem.3
extração, flexível e de densidade energética – Nesta “cultura de consumo de energia,”
é a fonte de energia mais valorizada do mundo. singular na história da humanidade, a saúde,
É a maior fonte de energia mundial, bem-estar, prosperidade e perspectivas de
responsável por aproximadamente 37% da bilhões de pessoas – sua segurança e a das
produção global de energia. E mantém uma suas nações – estão diretamente influenciadas
posição dominante na economia mundial. (Ver pelo preço e disponibilidade do petróleo. O
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O consumo do petróleo acelerou no final e a OPEP pôde manter uma capacidade extra-
da recessão de 2001 a 02, aumentando 1,5 substancial, principalmente no Golfo Pérsico
milhão de barris por dia, em 2003, e outros e especialmente na Arábia Saudita. Mas o
2,3 milhões de barris por dia, em 2004, crescimento da produção fora do Golfo
atingindo um novo recorde de mais de 82 Pérsico desacelerou substancialmente nos
milhões de barris por dia, em outubro de últimos anos. Parte deste recuo foi
2004. O consumo subiu em dezenas de países compensado com uma maior produção na
em desenvolvimento e industrializados. Só os Rússia; o resto veio da Arábia Saudita e outros
Estados Unidos contribuíram com um quarto países do Golfo. Hoje, praticamente toda a
do aumento, enquanto o consumo na China capacidade extra desapareceu, deixando o
aumentou ainda mais rapidamente – 5,2 mercado sensível a tudo, desde previsões
milhões de barris por dia, em 2002, para cerca meteorológicas no Caribe a uma greve na
de 6,6 milhões, em 2004, com a maior parte Nigéria.12
da demanda sendo atendida por aumento das Será que este desequilíbrio na oferta e
importações. (Ver Figura 6-3.)10 procura representa um desafio de curto prazo,
Esses aumentos pós-recessão não são ou algo mais fundamental? A visão
incomuns. O que foi incomum foi que os convencional, compartilhada por todos, desde
produtores não conseguiram atender à a U.S. Geological Survey à IEA, é que ainda há
intensificação da demanda. Quando os preços muito petróleo para ser produzido e que
atingiram níveis bem acima das metas, no preços ligeiramente mais altos abrirão as
início de 2004, a Organização dos Países comportas. Eles atribuem os preços mais altos
Exportadores de Petróleo (OPEP) elevou as ao aumento da demanda e à falta de
cotas de produção e assegurou repetidamente investimentos por parte das empresas
ao mundo que estava fazendo tudo para petrolíferas, mas acreditam que o mercado
aumentar a produção. Nenhuma das duas se corrigirá em breve. A maioria dos analistas
ações conseguiu impedir o aumento dos acha que as reservas oficiais de petróleo (mais
preços.11 de um trilhão de barris) permitirão o aumento
Desde meados dos anos 80 até 2003, tem da produção durante décadas, incrementada
havido capacidade adicional de produção por novas tecnologias que permitirão o
suficiente para permitir aos países da OPEP petróleo ser extraído de locais inacessíveis e
manter os preços dentro da meta de US$ 22 de folhelho betuminoso e areias betuminosas.
– 28 por barril, através do aumento da Essas premissas levam muitos especialistas
produção, quando necessário. Na realidade, o governamentais a prever que a produção
principal problema da OPEP durante o mundial de petróleo continuará a subir. O
período foi evitar que os preços caíssem IEA, por exemplo, projeta que a produção
demais, o que ocorreu em 1998, quando global atingirá 121 milhões de barris/dia, até
chegaram, por pouco tempo, a US$ 12 por 2030.13
barril. Durante a maior parte dos anos 80 e Estas projeções são pura fantasia, na
90, o aumento da produção fora do Golfo opinião de um número crescente de analistas
Pérsico, como na Noruega, Nigéria e Brasil, dissidentes, que acreditam que o aumento
foi suficiente para atender à demanda crescente recente de preços já é um sinal de que os
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menos de um quinto do seu nível de pico. A do pico global das descobertas de petróleo.
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Os documentos sugerem que os altos níveis muito mais tempo, entretanto, esta realidade
de produção estão sendo mantidos pelo surge justamente quando China e Índia – com
bombeamento de grandes volumes de água uma população total de 2,5 bilhões de
salgada nos campos. “Eles estão efetivamente pessoas – e outros países entram num estágio
varrendo os reservatórios, até que o petróleo petrolífero intensivo de desenvolvimento
de fácil recuperação tenha acabado”, diz econômico, mexendo-se para reivindicar seus
Simmons. “Não há um 2º Ato.” Ele acredita direitos sobre as reservas mundiais. Com a
que longe de dobrar, como presume a IEA, a intensificação da competição pelo petróleo,
produção de petróleo da Arábia Saudita o pico de produção, quando ocorrer,
poderá começar a cair dentro de uma década.19 certamente provocará um período de alta
Assim sendo, o futuro poderá ser ainda mais disparada de preços. Os efeitos conjuntos
caótico do que os geólogos mais pessimistas sobre a economia global – transportes,
prevêem. Os sauditas rejeitam veementemente agricultura e indústria – deverão ser graves.
essas previsões. Mas, mesmo os otimistas Quão graves, dependerá de muitas coisas,
concordam que o atendimento à demanda mas especialmente da vontade política de
crescente contínua implicará um aumento governos de restringir o consumo e encontrar
substancial da dependência de fornecimento caminhos fora do petróleo. Essas medidas
do Oriente Médio – a região mais instável do precisão ser estudadas e implantadas dentro
mundo. Serão necessários dezenas de bilhões de uma geração, provavelmente antes. Se
de dólares de investimentos externos para esperar mos até então para agir, será
aumentar a produção do Golfo Pérsico, mas demasiadamente tarde.
estes investimentos só virão quando as
empresas petrolíferas se convencerem de que O Petróleo e a Segurança
a região está suficientemente estável. A falta Civil
de segurança é a razão pela qual, em 2004, a
produção iraquiana ficou bem aquém, até
A longa história do petróleo é uma trajetória
mesmo dos níveis restritos dos anos finais
de competição, corrupção, repressão política,
de Saddam Hussein, contrariamente às
manobras para acesso e conflito aberto. Na
previsões do Pentágono de que a produção
escala global de desavenças de grandes
subiria no ano após Saddam ter sido
potências, esta história começou em 1912,
deposto.20
quando a Marinha Real Britânica começou a
A produção estabilizou ou caiu em 33 mudar seus navios, do carvão galês para o
dos 48 maiores produtores, incluindo 6 petróleo, em busca de maior velocidade e
alcance. Sem fontes domésticas de petróleo, a
dos 11 membros da OPEP.
Grã-Bretanha enviou sua frota para assegurar
suprimento confiável, dando início assim a um
Entre as incertezas, parece provável que a
envolvimento profundo na política do Oriente
economia energética mundial entrou num
Médio, que culminou com a crise de Suez, em
período de turbulência prolongada. O ritmo
1956, quando os Estados Unidos finalmente
de crescimento da demanda de petróleo da
desalojaram o Reino Unido como o poder
última década não poderá ser atendida por
dominante no Oriente Médio.21
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importante demais para ser deixado ao sabor “Doutrina Carter” foi efetivamente invocada
do mercado. Sempre provocou uma em 1991, quando o exército americano
abordagem realpolitik para as relações expulsou o Iraque dos campos de petróleo
internacionais: medidas duras e até mesmo do Kuwait, ocupado alguns meses antes.26
impiedosas para assegurar o acesso ao A Doutrina Carter ainda faz parte da
petróleo. Já em 1946, o economista americano política americana. Os riscos são maiores do
Herbert Féis sustentava que “os interesses que nunca: os Estados Unidos consomem um
americanos precisam deter controle físico quarto da produção global de petróleo e,
efetivo, ou pelo menos acesso assegurado, de embora tenha diversificado suas fontes de
uma fonte de suprimento adequada e bem suprimento nos últimos anos, o Golfo Pérsico
localizada.” Esta linguagem direta, sem ainda fornece um quinto das importações.
rodeios, significa uma disposição de utilizar Ademais, aliados importantes, incluindo Japão
força militar – uma disposição originalmente e muitas nações da Europa Ocidental,
expressa nos anos 50, quando os presidentes dependem muito do petróleo da região e a
Harr y Truman e Dwight Eisenhower produção do Golfo tem ajudado a estabilizar
asseguraram explicitamente ao Rei Ibn Sa’ud os preços internacionais em níveis
o compromisso dos Estados Unidos de agir relativamente baixos, ao longo dos anos, para
contra qualquer ameaça à soberania saudita.25 o bem econômico dos países importadores.27
Durante pelo menos 30 anos, os Estados Qualquer perda de produção –
Unidos têm planos contingenciais militares especialmente a perda da produção da Arábia
para apoderar-se de poços estratégicos no Saudita – traria conseqüências devastadoras
Oriente Médio, caso necessário, para assegurar para toda economia global. Neste contexto,
o escoamento do petróleo – planos as guerras recentes na região do Golfo podem
estimulados pelo embargo árabe do petróleo ser consideradas como mais exercícios de
de 1973 a 74 quando, ironicamente, foi a aplicação da Doutrina Carter. Em abril de
primeira vez em que o próprio petróleo foi 2001, um relatório de política energética
utilizado como ar ma contra interesses enviado ao Vice-presidente dos Estados
ocidentais. Após o embargo ter sido levantado, Unidos, elaborado por um “think tank”
o Secretário de Estado Henry Kissinger ligado ao Partido Republicano, observou que,
descreveu, para a revista Business Week, as numa época de redução da oferta de petróleo
circunstâncias adequadas para o uso de força e declínio da capacidade de produção
militar em defesa do escoamento do petróleo. adicional, o Iraque havia se tornado o “fiel da
De forma mais aberta ainda, o Presidente balança” e uma influência desestabilizadora
Jimmy Carter, em 1980, anunciou em seu sobre o abastecimento. Na medida em que
pronunciamento State of the Union (prestação permitiu o controle sobre as reservas do
anual de contas do presidente ao Congresso e Iraque (10% do total global) e capacidade de
ao povo) que qualquer tentativa de controle produção, a invasão de 2003 objetivou não
do Golfo Pérsico seria considerado “um só evitar que Saddam Hussein pressionasse o
ataque aos interesses vitais dos Estados preço internacional do petróleo, mas também
Unidos,” que seria “repelido por qualquer conquistar este poder para os EUA.28
meio necessário, inclusive força militar.” A Segundo uma estimativa, o custo direto para
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pilham ou até envenenam suas terras recursos para uma rede de instituições de
tradicionais.32 caridade que construíram milhares de
O petróleo e outras riquezas minerais mesquitas e escolas administradas, segundo as
também parecem impedir a implantação e diretrizes do Wahhabism, uma variante
preservação da democracia, uma vez que a fundamentalista do Islã, como também
riqueza per mite aos governos reduzir campos de treinamento paramilitares e
movimentos por democracia com impostos operações de recrutamento terrorista. Com
baixos e gastos altos. E, quando isto não os soviéticos fora do Afeganistão, a presença
funciona, mobilizam forças de segurança para americana crescente na Arábia Saudita e outros
suprimir dissensões. Este ponto é de particular países do Oriente Médio, após a guerra do
importância, pois é evidente que o terrorismo Iraque de 1991, ajudou a provocar os radicais
é uma resposta mais provável à ausência de a cometerem uma série de ataques a interesses
direitos políticos e oportunidades do que a americanos, inclusive às embaixadas do Quênia
pobreza. De uma maneira mais geral, os países e da Tanzânia, ao navio USS Cole e ao World
que dependem de receitas do petróleo tendem Trade Center.34
a ser mais autoritários, mais corruptos, mais A apoio saudita às caridades totalizou cerca
propensos a conflitos e menos desenvolvidos de US$ 70 bilhões, ao longo dos anos. Dada
do que os países de economias diversificadas. a escassez de renda saudita de qualquer outra
Também gastam mais com forças armadas e fonte que não de venda de petróleo, esses
possuem maiores parcelas da população recursos na realidade fazem dos consumidores
atoladas na pobreza. O petróleo, um líquido ocidentais cúmplices de atos de terror
tóxico sob vários aspectos, é uma tamanha direcionados principalmente contra ocidentais.
bênção mista, que até já foi chamado de Desta forma, e de outras já mencionadas –
lágrimas do demônio.33 aventureirismo militar, alianças com regimes
A mais recente ameaça à segurança civil facínoras, conflitos por recursos –, a
relacionada ao petróleo é o terrorismo. O dependência dos países industrializados,
aspecto mais famoso desta história apareceu particularmente os Estados Unidos, do
após os ataques terroristas de 11 de setembro petróleo impõe um pesado ônus de risco
de 2001. A maioria dos seqüestradores dos geopolítico e culpabilidade moral.35
aviões era formada por cidadãos sauditas –
um dos legados irônicos do apoio dos O Petróleo e a Segurança
Estados Unidos e da Arábia Saudita aos
Climática
combatentes muçulmanos radicais que lutaram
e derrotaram os soviéticos no Afeganistão, na
Cinqüenta páginas adentro, num relatório
década de 1980. Este apoio, organizado em
de 2004 da Casa Branca, um leitor diligente
parte pela Agência Central de Inteligência dos
encontrará esta declaração: “A comparação de
Estados Unidos e pela família real saudita,
tendência de índices em obser vações e
criou um quadro de dezenas de milhares de
simulações modelares mostra que as mudanças
radicais muçulmanos, inclusive Osama bin
de temperatura norte-americanas, entre 1950
Laden, do qual a al Qaeda recrutou seus
e 1999, provavelmente não foram devidas
membros. A contribuição saudita incluiu
unicamente a variações climáticas naturais.”
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Com esta frase despretensiosa, as autoridades cenário, maior aquecimento incremental elevará
americanas finalmente se alinharam ao mais ainda o nível do mar e reduzirá as
consenso global sobre mudança climática: que capacidades dos sistemas naturais da Terra, o
a Terra está se aquecendo e que as ações que poderá ameaçar a própria sobrevivência
humanas, principalmente o desmatamento e de pequenas ilhas-nações, desestabilizar a
a queima de combustíveis fósseis (petróleo, economia e o equilíbrio geopolítico global e
carvão e gás natural) são as causas principais. incitar conflitos violentos.38
Apenas o petróleo é responsável por mais de A própria civilização humana foi viabilizada
dois quintos das emissões totais de dióxido apenas porque o clima tem se mantido
de carbono, o principal gás de estufa relativamente estável ao longo dos últimos
produzido pelo homem.36 milhares de anos. Mas, essa estabilidade
O consenso sobre a mudança climática vem climática – incomum em escalas geológicas
aumentando há algum tempo. Já em 1988, os de tempo – está correndo perigo. A
cientistas observaram que o que o homem concentração de CO2 na atmosfera da Terra
vem fazendo com o clima é “uma experiência está hoje maior do que em qualquer época
não-intencional, descontrolada e de extensão nos últimos 400.000 anos e a taxa de
global, cuja conseqüência final só rivalizaria crescimento está acelerando. Em junho de
com uma guerra nuclear global.” Cada 2004, um novo e mais preciso sistema de
relatório sucessivo do Painel Intergo- modelagem supercomputadorizada revelou
vernamental sobre Mudança Climática, o que as temperaturas globais podem aumentar
órgão mais confiável sintetizador da imensa mais rapidamente do que foi projetado
pesquisa neste assunto, vem sustentando a anteriormente.39
influência humana sobre o clima de uma forma À medida que as concentrações de CO2
cada vez mais veemente. A temperatura aumentam e o planeta aquece mais, os efeitos
superficial da Terra está 0,6oC mais alta do provavelmente serão tempestades, enchentes
que um século atrás, e as concentrações de e secas mais graves e freqüentes; ondas de
gás de estufa estão subindo, à medida que as calor prolongadas e mais freqüentes;
disseminação de doenças como malária e
emissões continuam a aumentar. Um número
dengue; e acidificação da água oceânica,
crescente de líderes em todo o mundo hoje
branqueamento de corais e aumento do nível
alerta que a mudança climática é, nas palavras
do mar. Isto estressará ainda mais a capacidade
do Conselheiro Científico do Reino Unido,
de resistência da Terra, que já está no limite,
David King, “o problema mais grave que
segundo algumas estimativas. As ameaças
enfrentamos hoje – mais grave ainda do que
existentes à segurança serão intensificadas, na
a ameaça do terrorismo.”37
proporção em que os impactos da mudança
A mudança climática, seja incremental (o
climática afetem mananciais regionais de água
cenário mais provável) ou súbita, irá
doce, produtividade agrícola, saúde humana
provavelmente provocar secas regionais, fome
e de ecossistemas, infra-estrutura, fluxos
e desastres relacionados com o clima, que
financeiros e economias e padrões de migração.
poderão ceifar milhares ou milhões de vidas, As incertezas quanto à disponibilidade futura
agravar tensões existentes e contribuir para de recursos essenciais acentuarão essas
disputas diplomáticas ou comerciais. No pior ameaças.40
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duram mais e produzem luz equivalente com Será que todas as melhorias óbvias de
menor corrente do que as lâmpadas eficiência já foram obtidas? Dificilmente.
incandescentes comuns, são um exemplo Estima-se que a elevação da economia média
familiar. Milhões de residências foram de combustível, em 2000, da frota de veículos
informadas tanto sobre DSM quanto sobre leves dos Estados Unidos, de 1,37 quilômetros
fluorescentes compactas pelos programas das por litro, teria economizado tanto petróleo
concessionárias que baratearam e facilitaram quanto foi importado do Golfo Pérsico
a aquisição das lâmpadas. Outro exemplo é o naquele ano. Quando a eficiência de
avanço nas tecnologias de motores de combustível era uma meta valorizada, no início
automóveis – parte mecânicas (duplo dos anos 80, levou menos de três anos para
comando no cabeçote, três ou mais válvulas atingi-la. Um estudo de 2002, da Academia
por cilindro ao invés de duas, tempo variável Nacional de Ciência, estimou que a eficiência
das válvulas) e parte eletrônicas (computadores da frota dos Estados Unidos poderia ser
sofisticados que controlam o combustível, quase dobrada de uma maneira custo-eficiente
ponto de centelhamento, etc.) – e seu uso mais sem perda de segurança ou desempenho – e
difundido em mais e mais veículos. A marcha este estudo não levou em conta os ganhos de
desses avanços foi determinada por décadas um uso mais amplo de tecnologias híbridas
de preço alto da gasolina na Europa e pelas de gás ou elétricas. Outras tecnologias novas,
crises do petróleo, nos anos 70 e 80, que envolvendo avanços não só em sistemas
despertou os motoristas americanos para o powertrain (otimização de desempenho), mas
valor de uma boa economia de combustível. também na construção de carrocerias e chassis,
Políticas governamentais sob a forma de são muito promissoras.50
padrões de quilometragem de combustível de Quanto a outros setores, melhorias de
frota, ajudaram a manter o avanço – pelo eficiência podem ser a forma mais custo-
menos por um tempo. eficiente de reduzir emissões da carbono
Essas melhorias podem fazer uma imensa comerciais e industriais. Um estudo estimou
diferença no orçamento energético de uma que a maioria dos prédios e fábricas poderiam
nação. Ganhos de eficiência nos transportes e reduzir seu consumo de eletricidade em pelo
outros setores ajudaram a economia dos menos um quarto, com a economia
Estados Unidos a elevar sua produtividade compensando o investimento em menos de
energética global (volume de produção quatro anos. Uma vez que os setores
econômica por unidade de energia consumida) comerciais e industriais consomem grandes
em 64%, entre 1975 e 2000. A produtividade volumes de eletricidade – mais de 60% de
do petróleo melhorou surpreendentes 93%, toda a eletricidade gerada nos Estados Unidos,
embora as políticas governamentais não por exemplo – e a maior parte desta
tenham favorecido esta meta. Quando eletricidade ainda é gerada pela queima de
efetivamente promoveram eficiência, combustíveis fósseis (principalmente carvão),
especialmente no período de 1977 a 85, as a economia potencial de carbono é significativa
importações líquidas de petróleo caíram pela - e a baixo custo.51
metade e as importações do Golfo Pérsico Consumir menos energia e com maior
despencaram 87%.49 eficiência é necessário – mas não suficiente
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desafiador para conversão, uma vez que fechado seria neutro em carbono e poderia
máquinas e infra-estrutura são quase que ser sustentando enquanto o sol brilhar – ou
exclusivamente projetadas para combustíveis por vários bilhões de anos.54
líquidos, extraídos do petróleo, densos em Pessimistas do hidrogênio não contestam a
energia e de fácil manipulação. Combustíveis desejabilidade de uma economia energética de
de biomassa como etanol e biodiesel, hidrogênio, porém acreditam que a transição
entretanto, estão tecnicamente comprovados levará mais tempo do que os otimistas pensam
e podem ser economicamente competitivos e exigirá uma tecnologia-ponte. Uma destas
com a gasolina e o diesel. Estudos indicam tecnologias é a de automóveis e caminhões
que o etanol da biomassa celulósica (resíduos leves híbridos a gasolina e diesel-elétricos.
vegetais) poderá deslocar aproximadamente Células de combustível ainda não estão
de um quarto a um terço da demanda de tecnicamente prontas ou suficientemente
gasolina dos Estados Unidos, a um preço de baratas para aplicação veicular, porém os
matéria-prima de US$ 50 por tonelada. A híbridos podem ser quase tão eficientes quanto
Agência Internacional de Energia, relati- as células de combustível (e duas vezes mais
vamente conservadora, estima que, em termos eficientes do que os motores de combustão
de potencial técnico, o etanol poderá vir a interna), quando avaliadas numa base “poço-
representar a metade ou mais dos combustíveis a-rodas.” Ademais, híbridos estão facilitando
de transportes globais até 2050.53 a “estréia” de veículos a células de combustível,
O objetivo final é substituir a economia ao proporcionar um laboratório para o
energética global do carbono pelo hidrogênio. desenvolvimento de controles eletrônicos
O hidrogênio não é um gás de estufa e sua cruciais e sistemas de gestão de energia.55
queima não libera carbono algum. Quando é Se as tecnologias de energia renovável são
passado por uma célula de combustível, os tão atraentes, por que não obtemos mais
produtos são eletricidade, calor e vapor energia delas? A presença de mercado dos
d’água. Células de combustível de hidrogênio renováveis até hoje é pequena, em termos
são uma tecnologia antiga com a qual as absolutos, apesar do seu extraordinário
pessoas se entusiasmaram alguns anos atrás. crescimento recente. Entretanto, as razões têm
Todavia, parte deste entusiasmo esmoreceu, pouco a ver com tecnologia e mais a ver com
quando surgiram análises mas profundas dos o ambiente normativo e político. A maioria
desafios transicionais. O potencial de longo das sociedades, inclusive os Estados Unidos,
prazo do hidrogênio é grande, porém o há muito está casada com combustíveis não-
hidrogênio é mais um portador de energia do renováveis e instalações geradoras grandes e
que um combustível per se. A capitalização nele centralizadas – usinas nucleares e a combustível
poderá depender de avanços técnicos na fóssil, gigantescas barragens hidrelétricas – e
geração de eletricidade renovável eficiente para as tem sustentado com enormes subsídios ao
extrair hidrogênio da água. (A utilização da longo dos anos.
energia nuclear como fonte de eletricidade, As estimativas desses subsídios variam
apesar das esperanças dos seus proponentes, muito, devido a diferentes premissas e
é muito dispendiosa e apresenta graves definições; os subsídios podem incluir de tudo,
problemas de segurança.) Este sistema de ciclo desde isenções fiscais e créditos de exaustão a
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importantes para assegurar que equipamento prometeu que, até 2010, irá gerar 10% de sua
inferior não seja colocado no mercado e energia elétrica de “novas” fontes renováveis
destrua a confiança de consumidores e (ou seja, não incluindo grandes hidrelétricas
investidores, que temores públicos quanto à como o Projeto Três Gargantas). Nos países
localização de usinas sejam atendidos e que com políticas pouco progressistas, alguns
novas edificações sejam compatíveis com governos locais estão aceitando o desafio; nos
renováveis. Estados Unidos, por exemplo, muitos estados
Essas medidas, efetivamente, são o cerne oferecem programas de rebates e outros
do manual de operação para a transição de incentivos para encorajar as pessoas a
uma economia de petróleo para uma instalarem equipamento de energia solar nos
economia de renováveis. Como observado telhados de suas residências.59
anteriormente, as melhores estimativas atuais A consolidação destes e de outros esforços
sobre quando a oferta escassa de petróleo e para transformar o regime energético global
os preços em ascensão irão determinar o fim dominado pelo petróleo é hoje premente. O
da era do petróleo indicam um prazo de 30 petróleo foi outrora uma linha de vida para a
anos a partir de agora. A substituição completa civilização, mas hoje é um laço. Chegamos a
da infra-estrutura energética mundial atual uma encruzilhada. Um caminho leva à
(valendo cerca de US$ 10 a 12 trilhões) probabilidade de perda calamitosa de uma
também levará de 30 a 40 anos e exigirá cerca fonte primária de energia, antes de o mundo
de US$ 16 trilhões. Desviar a fatia do leão estar preparado e, portanto, para um planeta
deste investimento – sem falar dos recursos economicamente precário, mais quente e mais
adicionais – para os renováveis dará ao perigoso. O outro caminho nos leva para fora
mundo uma nova economia energética de do petróleo, antes que a crise crie o pânico, e
uma forma oportuna.58 em direção a um mundo de energia
Sabemos como fazê-lo e sabemos que abundante, limpa e estável, mais amplamente
deverá ser feito logo. Terão os governos e os disponível para um número maior do que
cidadãos comuns a vontade de agir? Há muitos nunca de pessoas no mundo. Ou, em outras
sinais promissores, como as leis sobre energia palavras, nossa opção é ser carente de petróleo
renovável da Europa. E, em 2004, a China ou ser livre dele.
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MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO
LIGAÇÃO DE SEGURANÇA
Energia Nuclear
Existem hoje 438 usinas nucleares comerciais forem corrigidos a tempo. Desde o início da
operando em 30 países. Estes reatores era nuclear, tem havido centenas de acidentes
fornecem 16% da eletricidade global, uma nucleares. Embora alguns tenham sido de
consideração importante para um mundo importância relativamente menor, outros têm
onde a demanda energética está crescendo sido catastróficos – o mais grave ocorreu em
rapidamente. No entanto, elas representam Chernobil, na Ucrânia, em 1986. O vazamento
também um alvo tentador para terroristas, e de um reator causou pelo menos 6.000
sua destruição – intencional ou acidental – pode mortes, bem como índices elevados de câncer
ter efeitos catastróficos. Mais ainda, como os da tireóide, dano ambiental significante e o
materiais nucleares são retirados das minas e reassentamento de mais de 370.00 pessoas. 3
espalhados pelo globo, eles contaminam o Por pouco também deixaram de ocorrer
solo, ar e a água, prejudicando o meio ambiente acidentes graves. Por exemplo, em 2002, na
e a saúde humana. 1 usina Davis-Besse, em Ohio, ácido bórico
Ataques simulados a usinas nucleares têm corroeu um buraco na chapa de 17
demonstrado que muitos reatores são pouco centímetros no cabeçote do reator. Se tivesse
seguros. Tanto nos Estados Unidos quanto atravessado o meio centímetro restante de aço
na Rússia, agências governamentais realizaram que continha o líquido refrigerante, poderia
ataques simulados em reatores, somente para ter ocorrido um vazamento. Como advertiu
provar que as defesas das usinas nucleares são uma análise da Union of Concerned Scientists, de
muitas vezes inadequadas para evitar 2004, muitas das 103 usinas nucleares dos
infiltrações ou instalação de bombas falsas. Estados Unidos estão agora entrando na
Vinte sete dos 57 ataques simulados nos última fase de vida útil, o que aumenta a
Estados Unidos, durante a década de 90, probabilidade de falha de reator e de possíveis
revelaram vulnerabilidades agudas que podiam desastres. 4
ter causado “estrago no núcleo” e “vazamento Mesmo sem ataques ou acidentes, materiais
radiativo”. Mesmo grupos ambientalistas nucleares ameaçam a segurança global mais
foram capazes de simular com sucesso ataques sutilmente. Em 2002, cerca de 65.000
a usinas nucleares. Em 2003, para demonstrar toneladas de urânio foram usadas em usinas
a vulnerabilidade da usina, os ativistas do comerciais do mundo – 36.000 toneladas das
Greenpeace invadiram a usina nuclear Sizewell, quais foram extraídas de minas de urânio. Estas
do Reino Unidos, e escalaram o reator sem minas muitas vezes ameaçam as comunidades
resistência. 2 vizinhas, criando poeira e resíduos que podem
A sabotagem dos reatores nucleares não é espalhar contaminação radioativa. Por
a única ameaça. Como a história tem exemplo, no Quirjistão, pelo menos 2 milhões
demonstrado, erros de construção e falhas de toneladas de refugo de urânio estão
humanas podem ter efeitos desastrosos, se não depositadas em 23 lagoas de resíduos de
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ENERGIA NUCLEAR
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ENERGIA NUCLEAR
alguns países – na França, por exemplo, 78% anos aumentarão a circulação de materiais
da eletricidade são gerados por energia nucleares, concorrendo conseqüentemente
nuclear –, Bélgica, Alemanha, Suécia e com ameaças à segurança, poluição, e danos à
Espanha estão planejando eliminar esta fonte saúde. 9
de energia nos próximos 20 a 30 anos. No Como é sabido, facilitar a desativação da
entanto, esta pode ser mais uma energia nuclear será um grande desafio, já que
contratendência do que uma tendência: em é uma das indústrias mais protegidas do
todo o mundo, 28 novos reatores estão sendo mundo. Mas, com o término dos subsídios
construídos e outros 35 estão em projeto, volumosos que a indústria recebe, remoção
inclusive em alguns países que não tinham do seguro contra catástrofe e isenções de
construído novas usinas há décadas. Em 2002, seguro, e inclusão dos custos ambientais e
o Parlamento da Finlândia aprovou a sociais da energia nuclear, os legisladores
construção de um novo reator – o primeiro podem fazer o preço da energia nuclear refletir
em 20 anos. Os prováveis 8% de aumento seus custos verdadeiros.
da capacidade nuclear nos próximos cinco - -Erik Assadourian
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MUDANDO A ECONOMIA DO PETRÓLEO
CAPÍTULO 7
Desarmando as Sociedades
Pós-guerra
Michael Renner
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DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA
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DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA
200.000 pessoas morrem anualmente em A violência com armas pequenas pode ter
violência relacionada às armas, e 1,5 milhão conseqüências fatais para o desenvolvimento
de pessoas são feridas. Nas mãos de governos humano, conturbando sistemas de saúde e
repressivos ou déspotas cruéis, as pequenas educacionais já estressados.
armas podem contribuir para violações
maciças de direitos humanos – expulsando ou
“desaparecendo” pessoas, silenciando Sociedades que emergiram de um longo
opositores políticos e intimidando a sociedade período de guerra freqüentemente continuam
civil.3 a sofrer tensões e violência consideráveis,
A distribuição de armas entre exércitos alimentadas por insatisfações não resolvidas,
privados e milícias, grupos insurgentes, uma cultura de violência e grandes estoques
organizações criminosas, turmas de vigilantes de sobras de armas. Combatentes recém-
e cidadãos privados alimenta um ciclo de desmobilizados, quase sempre mal-equipados
violência que, por sua vez, causa uma demanda para a vida civil, podem se voltar para o
banditismo. Países do sul da África e vários
ainda maior. A violência política lança governos
da América Central, por exemplo, sofreram
contra forças insurgentes que lutam para
uma transição inconsútil da violência
derrubar o governo ou se separar; a violência
politicamente motivada para a criminosa, no
comunitária envolve grupos étnicos ou
início dos anos 90, sofrendo mortes que se
religiosos diferentes, ou de outras identidades;
equipararam ao número de pessoas que
e a violência criminosa envolve traficantes, sucumbiram durante os conflitos armados.
grupos do crime organizado ou pequenos Mais recentemente, países como Sri Lanka
criminosos. Além de danos pessoais e perda enfrentam problemas semelhantes; como a
de vida, a ampla disponibilidade de armas guerra civil aparentava estar prestes a terminar,
pequenas cria um clima de medo e ilegalidade armas disponíveis abertamente provocaram
que pode solapar a estabilidade política, uma onda de crimes.4
desbaratar a atividade econômica e ameaçar A América Latina se destaca neste quadro
destruir realizações desenvolvimentistas do global, devido à sua alta taxa de mortes por
passado. armas de fogo. Na Venezuela, a relação é de
Embora altos níveis de posse de armas não 21 homicídios com armas por 100.000
redundem automaticamente em violência, a habitantes, na Jamaica 17, Brasil 14 e na
fácil disponibilidade de armas faz a diferença. Colômbia devastada por conflitos, 50, em
Isto ocorre particularmente em sociedades comparação a 30 por 100.000 habitantes na
onde as desigualdades sociais e econômicas África do Sul, porém 3,5 nos Estados Unidos
são acentuadas, a pobreza é endêmica, o e 0,2 na Alemanha. Crianças estão cada vez
desemprego leva os jovens de futuro incerto mais envolvidas com sindicatos de traficantes
a se unirem a gangues ou milícias, o tecido de drogas e violência urbana. No Rio de
social está sob tensão aguda, onde persistem Janeiro, por exemplo, cerca de 12.000 crianças
fortes animosidades étnicas intergrupais ou e adolescentes estão envolvidos com o tráfico
outras, ou a legitimidade das instituições de narcóticos e, em El Salvador, pelo menos
políticas está em dúvida. 25.000 crianças pertencem a gangues.5
142
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DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA
e ter Violência com armas pequenas pode ter do Sul, onde o orçamento policial para 2000
vimento conseqüências fatais para o desenvolvimento e 2001 foi 26% superior ao da saúde. Na
úde e humano, conturbando sistemas de saúde e América Latina, despesas de segurança pública
educacionais já estressados. Por toda a África e privada absorveram aproximadamente de
subsaariana, por exemplo, esforços de 13 a 15% do PIB conjunto da região, em
vacinação têm sido impedidos. Na República meados dos anos 90 – superando as despesas
Democrática do Congo, um terço de todas assistenciais e previdenciárias.8
as crianças entre 5 e 14 anos ficaram fora das
escolas, entre 1999 e 2000, com maior Vender, Saquear,
proporção nas áreas mais afetadas pala Contrabandear
violência contínua. Na Jamaica, 30% das
meninas pesquisadas declararam que tinham
Por terem sido sempre consideradas
medo de ir à escola, devido ao perigo ligado
essenciais para proteção nacional e pessoal,
às armas de fogo.6
armas pequenas são produzidas, comercia-
Armas pequenas podem contribuir para um
lizadas e armazenadas por muitas décadas,
declínio vertiginoso e até mesmo para o
com pouca atenção para as repercussões na
colapso da atividade econômica, sem falar da
segurança pública, desenvolvimento e meios
destruição direta ou deterioração da infra-
de vida. Não se sabe quantas dessas armas
estrutura física. Guerras civis, banditismo e
existem, e a maioria dos governos e empresas
outras formas de violência armada podem
continuam sendo extremamente reticentes
causar um colapso da confiança básica,
quanto a disponibilizar esta informação. Com
essencial para o comércio e outras transações
base em premissas conservadoras, a Small
econômicas. Investidores tendem a se afastar
Arms Survey, de Genebra – a mais confiável
de países onde a segurança pessoal e a garantia
fonte de informação pública –, estima os
da propriedade estejam em risco. E, nas áreas
estoques globais de armas militares e civis em
rurais, a violência endêmica pode forçar os
639 milhões. Para grande parte das regiões e
agricultores a abandonarem suas plantações.
países mundiais, só existem estimativas
Em Angola, por exemplo, a participação da
aproximadas e freqüentemente parciais para
agricultura no Produto Interno Bruto (PIB)
o número de armas pequenas em poder da
caiu de 23%, em 1991, para 6%, em 2000.
população civil, polícia, forças armadas e
Entre os grupos pastores no leste da África, o
grupos insurgentes. (Ver Tabela 7-1.)9
influxo de armas de alto calibre tornou as
A utilidade de números agregados, por si
práticas tradicionais de roubo de gado muito
só, é naturalmente limitada, uma vez que
mais violentas.7
incluem uma variedade imensa de tipos
Lidar com crime e violência desvia uma
diferentes de ar mas. Ar mas militares,
parcela crescente de investimentos, ajuda
calculadas em mais de 240 milhões, têm maior
externa e orçamentos domésticos para fins
poder de fogo. O que mais predomina entre
improdutivos. Precisa-se gastar tanto com
estas são os rifles de assalto, dos quais cerca
polícia, aplicação da lei, segurança particular e
de 90 a 122 milhões foram produzidos
outras formas de “segurança,” que pouco resta
mundialmente. Mas armas de fogo civis – bem
para os serviços sociais. Este é o caso da África
mais numerosas – podem na realidade
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DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA
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DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA
América Latina De 45 a 80 milhões (de 37 a 72 milhões civis, 1,8 milhão policiais, 7 milhões
militares)
Europa não-EU (incluindo Rússia) Pelo menos de 13 a 14 milhões de armas de fogo (civis apenas)
África subsaariana 29 milhões (23 milhões civis; 600 mil grupos insurgentes; o restante é de
militares e policiais)
Iraque Pelo menos de 7 a 8 milhões (armas militares e civis), possivelmente muito mais
Índia 48 milhões (40 milhões civis; 7 milhões militares; 600.000 policiais; 100.000
insurgentes)
Obs.: Estes números, na maioria dos casos, representam estimativas muito primárias.
FONTE: Vide nota final 9.
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DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA
pagaram por suas atividades através da venda um mercado tentador e lucrativo para sobras
de madeira e pedras preciosas. E, no de armas.19
Afeganistão, mujahideen anti-soviéticos, e Uma das transferências de armas pequenas
posteriormente o Talibã, se sustentaram mais extraordinárias e rápidas ocorreu após o
através do comércio de ópio.17 colapso do regime de Saddam Hussein, no
Outras fontes importantes de escoamento Iraque, quando os arsenais do governo foram
de armas são a captura delas por forças saqueados. Quando o comandante das forças
insurgentes, o saque generalizado de depósitos de ocupação, Paul Bremer, debandou o
militares e policiais e os “vazamentos” exército iraquiano, em maio de 2003, não
contínuos de arsenais governamentais, com apenas acelerou o fluxo de armas para a
soldados roubando e vendendo as armas. sociedade civil, como também criou uma classe
Houve casos, por exemplo, de armas de de pessoas que, embora houvessem perdido
arsenais militares e policiais da Argentina repentinamente seu meio de vida, estava bem
alugadas para gangues domésticas e armada. Cerca de 4,2 milhões de armas
contrabandeadas para o Rio de Janeiro, desapareceram dos arsenais e se somaram a
assolado pelo crime. Há também evidências pelo menos outras 3 milhões, já em mãos dos
de que armas pequenas estão sendo desviadas civis. Esta enxurrada de armas ajudou a armar
dos estoques do governo da Arábia Saudita as milícias mantidas por líderes rivais regionais,
para uma variedade de organizações religiosos e faccionais, provocando o aumento
terroristas, inclusive a al Qaeda. Nas Filipinas, do crime e de mortes entre uma população
a grande maioria das armas nas mãos de empobrecida e desesperada. Poderá ainda vir
insurgentes veio de depósitos policiais e a solapar a estabilidade de países vizinhos, caso
militares.18 uma parcela significativa cruze fronteiras
Alguns casos envolvem quantidades difíceis de controlar. Já há informações de
imensas de armas. Após a queda da ditadura armas AK-47 e lançadores de granadas
de Siad Barre, na Somália, centenas de iraquianos surgindo na Arábia Saudita.20
milhares de armas foram pilhadas de arsenais Além dessas perdas impressionantes, há
militares em 1991 e 92, fomentando a inúmeros incidentes de pequenos volumes de
ascensão de déspotas. Em 1997, uma revolta armas sendo perdidos ou desviados. O
popular na Albânia provocou o saque de impacto cumulativo não é menos insidioso.
depósitos militares e policiais. Cerca de No mínimo, 1 milhão de armas de fogo são
643.000 armas pequenas foram roubadas e perdidas ou roubadas, mundialmente, a cada
muitas contrabandeadas para albaneses ano, principalmente de particulares, embora
étnicos nas regiões vizinhas de Kosovo e o total provavelmente seja muito maior.21
Macedônia, onde conflitos se desencadearam
posteriormente. Ar mas pequenas são Até Agora, uma Reação
freqüentemente transportadas ilicitamente de
Medíocre
um ponto crítico do mundo para outro (ver
Tabela 7-2). Quando um conflito em um
Lidar com a proliferação de armas
determinado país chega ao fim, conflitos em
pequenas requer uma profusão de abordagens.
andamento em outros países proporcionam
A experiência da Colômbia, ao longo das
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DESARMANDO AS SOCIEDADES PÓS-GUERRA
Origem Recebedores
Vietnã Após o fim da guerra do Vietnã, sobras de armas e munições americanas foram
adquiridas por Cuba e, posteriormente, pelo governo sandinista da Nicarágua e
insurgentes salvadorenhos.
Organização para Libertação da Munições soviéticas confiscadas pelas forças israelenses foram transferidas pela
Palestina CIA para os rebeldes Contra da Nicarágua, nos anos 80.
Nicarágua e El Salvador Armamentos dos Estados Unidos despejados nas guerras civis da América
Central nos anos 80 formaram, posteriormente, parte de um mercado negro
regional, com armas indo para México, Colômbia, Peru e gangues
salvadorenhas nos Estados Unidos.
Afeganistão Dois terços de armas valendo US$ 6 – 9 bilhões, destinadas aos combatentes
anti-soviéticos durante os anos 80, acabaram no Paquistão, região do Punjab na
Índia, Caxemira, Tajiquistão, Sri Lanka, Myanmar e Argélia.
Líbano Sobras de armas da guerra civil dos anos 70 e 80 foram transferidas para a
Bósnia, no início dos anos 90.
Camboja Fluxos de armas foram rastreados para as Filipinas, Aceh (Indonésia), Sri Lanka,
Índia e Caxemira.
Sudeste da Ásia Rebeldes da região de Assam, na Índia, receberam armas de outros insurgentes,
inclusive dos rebeldes Tamil de Sri Lanka, Kachins de Myanmar, Khmer Rouge
do Camboja e grupos Kashimiri.
Sudão e Somália Um influxo de armas de zonas de guerra para o Quênia transformou conflitos
menores entre pecuaristas em confrontos cada vez mais violentos.
Grécia e Turquia Rebeldes PKK curdos transferiram mísseis Stinger para os rebeldes Tamil de Sri
Lanka. Os mísseis foram fabricados na Grécia, sob licença dos Estados Unidos.
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As nações européias ampliaram seu de Armas, estipulando que armas não deverão
compartilhamento de dados, dentro do ser enviadas a países onde haja risco claro de
âmbito da Organização para Segurança e serem utilizadas para agressão externa ou
Cooperação na Europa (OSCE, na sigla em repressão interna.
inglês). E, em dezembro de 2003, os membros Em outubro de 1998, chefes de Estado
do Tratado de Wassenaar sobre Controle de da África ocidental declararam uma moratória
Exportações de Armas Convencionais e sobre importação, exportação e produção de
Tecnologias e Objetos de Uso Duplo – na armas pequenas dentro da região. Todavia,
realidade, um clube de fornecedores de armas violações repetidas representam um grande
– decidiram trocar informações regularmente. desafio.
Entretanto, uma maior transparência entre Em 2001, a Comunidade de Desenvol-
agências governamentais não é o mesmo que vimento da África Austral assinou um
a disposição de levar este tipo de informação Protocolo sobre Armas de Fogo, Munição e
ao conhecimento público.23 Materiais Afins, objetivando a criação de
Durante a última década, controles de controles regionais sobre a posse e contra o
exportação se tornaram mais rígidos e os tráfico.
governos começaram a exercer maior cautela Em 2002, o Centro do Sudeste Europeu
em suas vendas a países envolvidos em para o Controle de Armas Pequenas e Leves
conflitos armados ou violações de direitos foi criado, em cooperação com o Programa
humanos. Uma variedade de acordos regionais das Nações Unidas para o Desenvolvimento
e mecanismos que tratam da fabricação, (PNUD).
transferência e gestão de armazenagem de Em abril de 2004, representantes de 11
armas estão em vigor: nações africanas das regiões dos Grandes
Em 1993, a OSCE assinou os Princípios Lagos e Chifre da África assinaram o
que Regem as Transferências de Armas Protocolo de Nairobi para Prevenção,
Convencionais e, em seguida, um Documento Controle e Redução de Armas Pequenas e
sobre Armas Pequenas e Leves, estabelecendo Leves, obrigando-as a adotarem medidas
os critérios sobre a fabricação e exportação, concretas para restringir a fabricação, tráfico
intermediação, e gestão de armazenagem e e posse ilegal de armas pequenas.24
sobras de armas. Para encorajar padrões mais Infelizmente, a eficácia desses esforços
elevados, a OSCE publicou um Manual de continua relativamente limitada, uma vez que
Melhores Práticas (Handbook of Best Practices), quase todas são politicamente (mas não
em 2003. legalmente) obrigatórias e, assim, difíceis de
Em novembro de 1997, os membros da serem impostas, já que o foco está em armas
Organização dos Estados Americanos ilícitas (a maioria desconsiderando transfe-
assinaram a Convenção Interamericana contra rências sancionadas por nações), e também
a Fabricação Ilícita e Tráfico de Armas de não há exigência expressa para que nações
Fogo, Munição, Explosivos e Outros Materiais exportadoras respeitem leis humanitárias ou
Afins, primeiro acordo vinculante. de direitos humanos internacionais. Mesmo
Em 1998, a União Européia aprovou assim, esses acordos sinalizam compromissos
um Código de Conduta sobre Exportações crescentes por parte dos governos e fazem
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Serra Leoa (rebeldes RUF) Outubro de 1997 Em curso Aplicado apenas para rebeldes
RUF, após junho de 1998.
destruí-las. Entretanto, controles fracos sobre ser entregues sem receio de processo. Após a
elas e o fato de muitos soldados ganharem guerra civil de El Salvador, por exemplo, um
pouco são um convite para o roubo e venda programa de mercadorias-por-ar mas,
de armas, causando problemas adicionais.34 conduzido pelo Movimento Patriótico contra
Além dos esforços de coleta de o Crime, recolheu quase 5.000 armas de 1996
armas no contexto de operações de a 1997, e a empresa de Nova York Guns for
manutenção da paz, foi lançada uma variedade Goods patrocinou a troca de alimentos e
de programas de recompra, encorajando as roupas por armas em três cidades. Em ambos
pessoas a entregarem suas armas, os casos, a falta de recursos limitou sua
voluntariamente, em troca de compensação eficácia. Na vizinha Nicarágua, incentivos em
monetária. Freqüentemente, os governos espécie e em alimentos e um programa de
estabelecem um período de “anistia”, durante microempreendimento, patrocinado pela
o qual armas sem licença ou ilícitas podem Itália, renderam 64.000 armas de 1992 a 1993
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África
Américas
Nicarágua de 1989 a 93 Força de Paz da ONU 159.833 250.000
El Salvador de 1992 a 93, de 1996 a 99 Força de Paz da ONU, ONGs Antiarmas 28.927 4,1 milhões
Brasil de 2001 a 02 Governo, ONGs 110.000 —
Argentina de 2001 a 02 Governo, ONGs, ONU 12.766 7.200
Ásia-Pacífico
Austrália de 1996 a 98 Governo 643.726 —
Camboja de 1998 a 2002 Governo 119.000 —
Paquistão de 2001 a 02 Governo 141.180 848.407
Tailândia 2003 Governo 100.000+ —
Europa
Croácia de 1996 a 97 Força de Paz da ONU 21.929 1,8 milhão
Grã-Bretanha de 1996 a 97 Governo 185.000 —
Kosovo 1999 Força de Paz da OTAN 38.200 5 milhões
Albânia de 1997 a 2002 Agências da ONU 200.377 —
Bósnia de 1999 a 2002 Força de Paz da OTAN 96.230 6,6 milhões
1
Algumas destas armas foram posteriormente destruídas
FONTE: Vide nota final 38.
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Tabela 7-5. Principais Esforços de sobreviver pode ser difícil de resistir – parti-
Destruição de Armas Pequenas, cularmente quando tende a ser mais lucrativa
1990-2003
do que a vida precária de um agricultor de
País Período Nº de Armas subsistência ou trabalhador diarista. Outros
Destruídas
Alemanha de 1990 a 2003 2,2 milhões
podem decidir vender armas que porventura
China de 1999 a 2001 1,3 milhão guardaram a fim de suplementar suas baixas
Rússia de 1998 a 2002 890.000 rendas, alimentando um desmedido mercado
Estados de 1993 a 96 830.000
Unidos
negro de armas excedentes.41
Austrália de 1997 a 98 644.000 A reintegração de ex-combatentes precisará
África do Sul de 1998 a 2001 315.000 acompanhar a reconstrução geral da
FONTE: Vide nota final 39.
sociedade, inclusive reconciliação e
orientação para ajudá-los a lidar com a vida consolidação de processos políticos e
civil. Nos países pobres, os recursos instituições que possam evitar nova
disponíveis são, quase sempre, insuficientes, e instabilidade e violência. A experiência recente
assim, estes locais são inadequados – sem de Angola é um exemplo das dificuldades
saneamento e acomodações apropriadas e envolvidas. (Ver Quadro 7-2).42
comida suficiente. Atrasos devidos à carência Em alguns casos, a instabilidade contínua
de recursos ou obstáculos políticos e agrava o desafio, como demonstra a situação
burocráticos podem, às vezes, desfazer todos do Afeganistão. Estagnação econômica,
os esforços de desmobilização. Posterior- desemprego, faccionalismo político e o
mente ao estágio de alojamento, a capacidade contínuo poder de déspotas regionais
e disposição de as comunidades absorverem representam uma situação espinhosa. O que
ex-combatentes e suas famílias é crucial para agrava mais este problema é o lento e
o sucesso dos esforços de reintegração. Um inadequado desembolso da ajuda internacional
obstáculo é que, em guerras civis, a população e o retorno mais rápido do que esperado de
civil sofre o impacto maior da violência e fica refugiados, o que estressa os recursos e gera
indignada com aqueles que julga responsáveis animosidade crescente. A continuada operação
pelo seu sofrimento.40 militar dos Estados Unidos na realidade
Encontrar novos meios de vida é ajudou os déspotas a consolidarem o poder,
freqüentemente difícil. Mesmo quando surgem alienando grande parte da população.43
trabalho e benefícios de curto prazo, não há A experiência com desmobilização em
garantia de um emprego de mais longo prazo. diferentes partes do mundo, ao longo dos
Muitos ex-combatentes enfrentam dificul- últimos 10 a 15 anos é, definitivamente, variada
dades tremendas, devido não só a sua baixa (ver Tabela 7-6). Mas, sem dúvida, o
instrução e qualificação, como também a sua entendimento prático do que é necessário para
pouca experiência com o ambiente do mundo viabilizar os processos de desmobilização e
civil. O treinamento em especializações civis reintegração pós-conflito aumentou consi-
ou não existe ou é inadequado. Oportunidades deravelmente.44
de emprego são raras. Conseqüentemente, a Vários fatores são cruciais para um
tentação de se engajar no banditismo, tráfico resultado bem-sucedido. A capacidade gover-
de drogas ou outras atividades criminosas para namental e vontade política são os mais
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de civis), calculado em torno de 4 milhões. Imensas públicas que utilizam o argumento de patriotismo e
áreas ainda estão inacessíveis devido a minas terrestres soberania para silenciar vozes opositoras.
(estimadas a grosso modo entre 2 e 6 milhões), que As eleições poderão ser um divisor de águas. Mas
impedem o retorno e retomada da agricultura. A só se as necessidades básicas da população forem
desativação provavelmente levará cerca de 10 anos. atendidas, para que as preocupações quanto à
Uma rede clientelista se estende por todos os sobrevivência diária não eclipsem o debate político,
setores da sociedade angolana. Acesso a emprego, caso o cadastramento de eleitores avance,
bens, serviços e recursos depende dessas relações e é suficientemente, e caso maior liberdade de informação
marcado por divisões classistas, étnicas e regionais. Em seja criada, acabando com o quase monopólio total
muitas municipalidades, comunas e aldeias, o Estado é da mídia pelo Estado. Só assim poderá a incipiente,
praticamente ausente, não há vontade política e meios mas ainda fraca, sociedade civil se fazer ouvir. De
para prestar serviços sociais. O controle da máquina outra forma, as eleições servirão apenas para legitimar
estatal pelo MPLA permite-lhe se apropriar dos o sistema autoritário do MPLA.
recursos, controlar a riqueza e criar uma autocracia Angola praticamente desapareceu da agenda
predatória, turvando a distinção entre partido e internacional, já que a guerra acabou. Há perigo de a
governo. Entretanto, isto é um sintoma geral da comunidade internacional apoiar o governo, enquanto
cultura política angolana: outros partidos outros países têm assegurado um suprimento contínuo
provavelmente fariam o mesmo se estivessem no de petróleo. Porém, o apoio de doadores deverá
poder. estar condicionado a avanços em direção à
A UNITA se transformou num partido político, transparência, boa governança e conduta
porém, a reconciliação – tão necessária – não é parte democrática. Além disso, as empresas petrolíferas e
do debate público. A situação continua volátil e atos outros investidores estrangeiros deverão prestar
de violência política têm ocorrido. Há um clima de contas de suas atividades. Estas são tarefas cruciais
terror, especialmente nas áreas rurais. Tensões podem para a sociedade civil, dentro e fora de Angola.
se agravar próximo às eleições gerais, que devem ser
realizadas em 2006. O medo continua a limitar a - Mabel González Bustelo, Centro de Investigación
participação de amplos setores da população nos para la Paz, Madri
assuntos públicos, alimentado por uma cultura política
que confunde crítica com subversão e por autoridades fonte: Vide nota final 42.
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País Observações
El Salvador Uma taxa de desemprego atingindo 50% tornou a reintegração extremamente difícil
para muitos dos 40.000 soldados e guerrilheiros desmobilizados em 1992. Gangues
fortemente armadas, formadas por alguns ex-soldados e jovens insatisfeitos, são
responsáveis por assassinatos, seqüestros, roubos e tráfico de armas e de drogas.
Nicarágua A promessa de grande parte das terras, tratamento de saúde e ajuda econômica para
88.000 combatentes sandinistas e contras desmobilizados, e suas famílias, não se
materializou. A penúria aguda levou ex-combatentes a se voltarem para o banditismo
e o tráfico de armas. Levaram anos para se chegar a um acordo com todos os
grupos.
Serra Leoa Em janeiro de 2002, um total de 72.490 combatentes havia concluído o processo de
desarmamento. A reintegração de longo prazo depende da revitalização da
economia, empregos e projetos comunitários bem planejados. Não está claro
quantos ex-combatentes encontraram um novo meio de vida.
Libéria Um acordo de paz acabou com a guerra civil, em agosto de 2003. No verão de
2004, 49.000, dos 60.000 antigos combatentes governamentais e rebeldes haviam
sido desarmados, e cerca de 7.000 receberam treinamento vocacional. Porém, a
ajuda insuficiente ameaça a reintegração, o reassentamento de refugiados e de
pessoas deslocadas internamente e a reconstrução.
LIGAÇÃO DE SEGURANÇA
Proliferação Nuclear
Existem muitos perigos graves decorrentes suscitam temores. Alguns dos insucessos na
das cerca de 28.000 armas nucleares contenção da não-proliferação resultaram
mantidas por oito nações em todo o de falhas do próprio regime de não-
mundo. O mais perigoso é a ampla proliferação; muitos outros derivam da má
disponibilidade de urânio e plutônio vontade de cobrar compromissos
altamente enriquecidos, os materiais físseis assumidos e exigir cumprimento das
no núcleo das armas nucleares. Esses resoluções tão determinantemente
materiais se tornaram mais accessíveis a aprovadas.2
terroristas, devido ao colapso da União Existem entretanto tendências
Soviética e à segurança precária dos positivas a serem consolidadas. Desde a
estoques nucleares nas antigas repúblicas assinatura do TNP, em 1968, mais países
soviéticas e em dezenas de outros países desistiram de programas de arma nuclear
possuidores de energia nuclear.1 do que iniciaram. Existem menos armas
Existe também o perigo de algumas nucleares no mundo, e menos nações com
nações adquirirem armas nucleares estes programas, do que existiam 20 anos
explorando as brechas do Tratado de Não- atrás. Os Estados Unidos e a União
proliferação Nuclear (TNP). Da forma que Soviética continuam a cooperar na
está redigido, os países podem adquirir desmontagem e segurança das armas
tecnologias que os conduzam à beira da nucleares e materiais da guerra fria. No
capacidade de armas nucleares, sem entanto, o Tratado bilateral de Moscou é
necessariamente violar os termos do omisso em medidas de verificação e
acordo; poderão então abandonar o tratado qualquer um dos participantes pode desistir
sem sofrer penalidades. ao final de seu termo; assim ele deixa de
Finalmente, há dúvidas crescentes sobre a fortalecer tratados anteriores de controle de
sustentabilidade do regime de não- armas, o START I e II. 3
proliferação. Isto é mais perturbador nas A decisão da Líbia de desistir e
nações com capacidade tecnológica de comprovadamente desmontar sua
desenvolver armas nucleares e que tomaram capacidade clandestina de armas nucleares é
uma decisão política de não fazê-lo. Alguns um sucesso importante. A Líbia seguiu o
líderes brasileiros e japoneses, por exemplo, exemplo da África do Sul – o primeiro país
têm sugerido abertamente que seus a construir armas nucleares e a então desistir
respectivos países reconsiderem as opções delas, em 1993 – e deveria servir de modelo
de armas nucleares. Revelações recentes, para outras nações delinqüentes. 4
dando conta de que cientistas da Coréia do Por outro lado, Índia, Paquistão e
Sul produziram uma pequena quantidade de presumivelmente Israel se filiaram ao
urânio altamente enriquecido, também “clube” nuclear. A crise do Iraque,
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Estado do Mundo 2005
PROLIFERAÇÃO NUCLEAR
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Estado do Mundo 2005
CULTIVANDO A SEGURANÇA ALIMENTAR
LIGAÇÃO DE SEGURANÇA
Armas Químicas
Os ataques de 11 de setembro aos Estados em abril de 1997, obrigando os quatros
Unidos e a subseqüente “guerra ao signatários, possuidores, na época, de
terrorismo” chamaram a atenção do público estoques declarados – Estados Unidos,
e do governo quanto à importância da Rússia, Índia e Coréia do Sul –, a abolir seus
aceleração dos programas antiterrorismo e de arsenais, até 2007, com opção de dilatação
não-proliferação de armas. Felizmente, todas até 2012. Até setembro de 2004, 165 países
as grandes potências concordaram em abolir já tinham ratificado ou assinado o tratado, se
uma das principais classes de armas de comprometendo em parar toda a pesquisa,
destruição em massa: as armas químicas. O desenvolvimento, produção, uso e
uso pelo Iraque de tais armas contra seus transferência de armas químicas e em
cidadãos curdos em Halabja, em março de destruir todas as suas reservas. Entre os
1988, e o uso do gás sarin pelo grupo países que ainda não ratificaram ou
terrorista japonês Aum Shinrikyo, no metrô assinaram a convenção estão Egito, Iraque,
de Tóquio, em março de 1995, ilustram o Israel, Líbano, Coréia do Norte, Somália e
terrível potencial dessas armas mortais.1 Síria.3
Atualmente, apenas seis países no mundo A destruição de reservas de armas
possuem estoques declarados de armas químicas está acontecendo, embora
químicas - Albânia, Índia, Líbia, Rússia, lentamente. Os Estados Unidos começaram
Coréia do Sul e Estados Unidos. Rússia e um programa de destruição ativa no início
Estados Unidos possuem acima de 98% da década de 90 e até agora destruíram mais
destes estoques. Um dos maiores perigos é de 8.000 toneladas – 26% do seu arsenal
a possibilidade de desvio e ameaça declarado de aproximadamente 31.500
terrorista. Ao longo da década passada, toneladas. A Rússia ficou atrás, tendo
inspeções bilaterais e multilaterais de destruído somente cerca de 800 toneladas,
arsenais, in loco, demonstraram quão ou 2% do seu arsenal declarado de
vulnerável são alguns, se não todos, à aproximadamente 40.000 toneladas. O
infiltração, roubo e possível desvio para ritmo, entretanto, deve acelerar nos
grupos nacionais ou subnacionais. 2 próximos cinco anos, com duas novas
Duas décadas atrás, os Estados Unidos e instalações para administrar a destruição
a União Soviética concordaram unilateral e entrando em operação. Tanto Índia quanto
reciprocamente em abolir seus grandes e Coréia do Sul estão fazendo grande
obsoletos arsenais. Este compromisso foi progresso na eliminação de seus pequenos
fortalecido em 1993, quando estes dois arsenais; também Albânia e Líbia logo darão
juntaram-se a 128 outros países na Convenção início a seus programas. 4
de Armas Químicas, internacionalmente A chave para o sucesso se tornou visível.
mandatória. A convenção entrou em vigor,
162
Estado do Mundo 2005
ARMAS QUÍMICAS
Primeiramente, e ajudar
acima de tudo, funcionários e o
tornou-se claro público a
que todos decidirem sobre
proprietários – suas escolhas. Por
incluindo Cápsulas de artilharia com agente VX aguardando exemplo, a
governos locais e destruição, Rússia
liberação
regionais e proposta de
comunidades vizinhas – devem ser efluentes de agente de nervo neutralizado no
envolvidos no processo completo de rio Delaware, nos Estados Unidos, levantou
destruição de armas. A Rússia aprendeu esta muitos questionamentos não abordados, do
dura lição, em 1989, após uma comunidade mesmo modo que o armazenamento de
local ter voltado atrás e suspendido seu longo prazo de refugo tóxico de betume, na
plano inicial (secreto) de destruição de suas região Kurga, na Rússia. 6
armas químicas, numa instalação centralizada É também essencial uma maior
em Chapeyevsk. Embora os Estados transparência para promover consenso e
Unidos tenham tido um processo mais progresso. Por razões óbvias, o segrego tem
inclusivo, com escritórios de amplo alcance dominado por muito tempo as áreas
e Comissões de Aconselhamento aos nuclear, química e de armas biológicas. Com
Cidadãos, ainda surgem oposições de o aumento do terrorismo e a ameaça de
cidadãos, reguladores oficiais e governos roubo de armas e ataque a reservas,
estaduais, sobre planejamento e discussões representantes oficiais estão outra vez
insuficientes. O que se faz necessário é o tentando limitar o conhecimento e a
reconhecimento de que o desenvolvimento discussão pública. Na maioria dos casos,
social e econômico, a assistência técnica e a isto é um erro. Interessados locais, regionais,
desmilitarização devem trabalhar nacionais e internacionais precisam ter
conjuntamente, para que um projeto seja certeza de que seus interesses estão sendo
bem sucedido. 5 protegidos, uma meta que só pode ser
É também importante que os riscos e alcançada através de transparência e
impactos potenciais para a saúde pública e inspeção. 7
meio ambiente sejam exaustivamente Concomitantemente com um maior
analisados e publicamente discutidos. Todas compromisso com a sociedade civil, existe
as tecnologias de destruição produzem uma necessidade de ampliar as opções
resíduos, alguns mais tóxicos do que outros. tecnológicas disponíveis de desmonte de
Avaliações confiáveis e independentes de armas químicas. A destruição física destas
riscos e da saúde devem ser realizadas para armas não é nem simples nem barata.
163
Estado do Mundo 2005
ARMAS QUÍMICAS
Abrange uma grande variedade de materiais bilhões; o custo do programa dos Estados
e processos perigosos, com riscos Unidos hoje ultrapassa US$ 25 bilhões e
amplamente diversos para o meio ambiente continua subindo. Os compromissos do
e para a saúde pública. A tecnologia de programa Redução Cooperativa de
destruição preferida do exército dos Ameaças, dos Estados Unidos, juntamente
Estados Unidos tem sido, há muito, a com a Parceria Global do G-8, de 2002, de
incineração das armas químicas; no entanto, cerca de US$ 20 bilhões para destruir as
foi o desenvolvimento e a comprovação de armas de destruição em massa na Rússia,
alternativas não-incineradoras, tais como a são elementos vitais para a proteção e
neutralização, que permitiram aos Estados destruição oportunas destes estoques
Unidos implantar instalações em cada local perigosos. 8
de estoques de armas químicas. Uma vez Porém, os países doadores devem
que o desarmamento de armas é do reconhecer que a provisão de fundos e
interesse de todos os países, não somente apoio técnico não lhes dá o direito de ditar
dos proprietários de armas, a comunidade prioridades. E uma associação de fato exige
internacional deve compartilhar a que nações beneficiadas, como a Rússia,
responsabilidade e custo do desarmamento, ajudem a facilitar o processo de
particularmente nos países mais pobres. Em desarmamento com acesso local,
virtude de sua economia em transição, a transparência, vistos, questões de
Rússia deixou isto claro quando assinou e responsabilidade, como é exigido na
ratificou a Convenção de Armas Químicas. maioria dos acordos bilaterais. Com
A destruição das armas químicas da Rússia cooperação de todos os lados, a era das
custará pelo menos de US$ 5 a US$ 10 armas químicas pode ser encerrada.
- Paul F. Walker, Global Green USA
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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL
CAPÍTULO 8
Ken Conca é Professor Adjunto de Governo e Política e Diretor do Programa Harrison da Agenda Global Futura da
Universidade de Maryland. Alexander Carius é Diretor da Adelphi Research, Berlim. Geoffrey D. Dabelko é Diretor do
Projeto de Mudança Ambiental e Segurança do Woodrow Wilson International Center for Scholars, Washington DC.
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Estado do Mundo 2005
PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL
violência, parte do que é provocado pelo barragem na seção curta do rio que atravessa
próprio parque da paz. Na floresta protegida o país na Faixa Caprivi. Botsuana, por outro
em torno de Canton Nagaritza, os relatos de lado, defende o status quo, que atrai um fluxo
violência entre colonos e agências de turístico lucrativo para explorar o singular
conser vação indicam que, embora os ecossistema do maior delta interiorano da
governos estejam em paz, algumas pessoas África subsaariana e uma área de pantanal
continuam em luta – mas, agora, contra os internacionalmente reconhecida como de
arquitetos do parque. A iniciativa do parque grande significação ecológica.4
da paz pode fortalecer a transformação de Embora estes objetivos mistos e
conflitos entre os dois países, porém o esforço contraditórios possam levar ao conflito, pela
humano por paz e desenvolvimento susten- obtenção de maior controle sobre os recursos
tável continua sendo uma batalha diária.2 partilhados, há esperança de que as instituições
A onze mil quilômetros e um oceano de colaboradoras – se fortes e vitais – possam
distância, a cooperação ambiental também está gerir demandas competitivas sem violência.
ajudando o sul da África a se recuperar de Em 1994, os três países criaram a Comissão
conflitos devastadores e a evitar o surgimento Per manente da Bacia Hidrográfica do
de novos conflitos. Após quase três décadas Okavango (conhecida como OKACOM)
de guerra civil em Angola, hoje é a paz que para gerir a bacia. Há um bom relacionamento
ameaça a tranqüilidade do Rio Okavango, que entre os comissários da OKACOM e um
cai de sua cabeceira em Angola e corre para o reconhecimento crescente de que a cooperação
amplo delta em Botsuana, atravessando a poderá trazer benefícios maiores para todos
Namíbia, num trajeto de 1.100 quilômetros do que as disputas pela água.5
ao sul para o Deserto de Kalahari. Este
ambiente prístino em uma das poucas bacias A cooperação ambiental está ajudando
não-industrializadas que restam no mundo, o sul da África a se recuperar de
abriga uma miríade de espécies de flora e fauna conflitos devastadores e a evitar o
que escapou do impacto do desenvolvimento surgimento de nova violência.
moderno.3
As prementes necessidades ambientais das Infelizmente, a comissão tem se empenhado
três nações da bacia estão pressionando o frágil para obter recursos financeiros e uma forma
meio ambiente fluvial, levantando o espectro política de catalisar uma cooperação proativa.
de um tipo diferente de conflito. Angola deseja Recentemente, a OKACOM convocou
reassentar seus cidadãos deslocados pela organizações não-governamentais (ONGs) e
guerra, que precisarão mais da água do rio. E, a sociedade civil a desempenharem um papel
como nação a montante, Angola tem o poder mais ativo do que comumente ocorre em
de perturbar acordos que, hoje, favorecem outras bacias hidrográficas compartilhadas,
seus vizinhos a jusante. A recém-independente reconhecendo que os três países não poderão,
Namíbia também tem planos para a água do isoladamente, implementar estratégias eficazes
Okavango: quer construir uma adutora para de gestão. Também buscaram oportunidades
seu interior árido e, vez por outra, ameaça de colaboração com doadores e grupos
reativar seu antigo projeto de construir uma conservacionistas internacionais que
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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL
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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL
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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL
Comissão Independente sobre 1982 Em seu primeiro relatório, Segurança Comum, a Comissão
Desarmamento e Questões de Segurança enfatizou a ligação entre segurança e meio ambiente.
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e 1987 A Comissão ampliou o conceito de segurança em Nosso Futuro
Desenvolvimento Comum: “Toda a noção de segurança como entendida
tradicionalmente – em termos de ameaças políticas e militares à
soberania nacional – deverá ser ampliada para incluir os
impactos crescentes do estresse ambiental – local, nacional,
regional e global.” A Comissão concluiu que “o estresse
ambiental poderá desta forma ser parte importante da rede de
causalidade associada a qualquer conflito podendo, em alguns
casos, ser catalítico.”
Programa das Nações Unidas para o Meio 1988 Um programa conjunto entre o PNUMA e o Instituto de
Ambiente (PNUMA) / Instituto de Pesquisa Pesquisa da Paz, Oslo, sobre “Atividades Militares e Meio
da Paz, Oslo (PRIO) Ambiente Humano” incluiu projetos empíricos de pesquisa em
grande parte concebidos e implementados pelo PRIO. A partir
desta iniciativa, o PRIO desenvolveu um foco de pesquisa sobre
meio ambiente e segurança.
Governo da Noruega 1989 Em 1989, o Ministro da Defesa Johan Jørgen Holst observou
que os problemas ambientais podem se tornar fatores
importantes no desenvolvimento de conflitos violentos.
Programa das Nações Unidas para o 1994 O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento incluiu
Desenvolvimento (PNUD) explicitamente a segurança ambiental como um dos
componentes de “segurança humana,” uma estrutura que
continua a encontrar apoio entre o PNUD e alguns governos
nacionais proeminentes, como o Canadá.
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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL
Agência Suíça de Cooperação para o 2002 A Agência Suíça de Cooperação para o Desenvolvimento
Desenvolvimento explorou formas de adaptar avaliações de paz e impactos de
conflito a projetos selecionados do seu programa ambiental.
Nações Unidas 2002 O Secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, solicitou
uma melhor integração das contribuições ambientais a conflitos
e instabilidades, na estratégia da organização sobre prevenção
de conflitos e nas deliberações do seu Painel de Alto Nível sobre
Ameaças, Desafios e Mudanças.
Governo da Alemanha
2004 O Plano de Ação Federal sobre Prevenção de Crise Civil,
Resolução de Conflito e Consolidação da Paz Pós-conflito
(publicado em maio de 2004, após aprovação parlamentar)
identificou o desenvolvimento sustentável e a cooperação
ambiental transfronteiriça como fatores decisivos para a
promoção da paz e da estabilidade.
ambiental internacional pode prejudicar sua rico servindo aos interesses de países ricos para
própria busca pelo desenvolvimento controle de recursos naturais e de estratégias
econômico. Num contexto de um diálogo desenvolvimentistas. Vista sob este ponto de
ambiental Norte-Sul já contencioso, os países vista, a ênfase do Norte sobre ameaças à
pobres freqüentemente vêem o conceito de segurança do Sul desloca o ônus da
segurança ambiental como uma agenda de país responsabilidade dos males globais, sugere
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PAZ ATRAVÉS DA COOPERAÇÃO AMBIENTAL
uma lógica para intervenção no uso dos identidades regionais em torno de recursos
recursos do Sul e sublinha a tênue soberania compartilhados e estabelecer direitos e
dos países pobres, em face de um poder expectativas mutuamente reconhecidos.13
econômico, militar e institucional, A interdependência de ecossistemas oferece
desigualmente distribuído. Muitos brasileiros, oportunidades de mútuo benefício. Quando
há muito, vêem com suspeita a caracterização vistos isoladamente, os problemas ambientais
da Amazônia pelo Norte como “pulmão da freqüentemente criam graves dicotomias a
Terra,” considerando-a como parte de uma montante e jusante, complicando a cooperação.
campanha de “internacionalização” da floresta Por exemplo, a maioria das leis hídricas
e obstrução do desenvolvimento.12 internacionais parte da premissa de que nações
Dadas essas preocupações, a reformulação a montante e jusante têm interesses
de debates ambientais em termos de segurança fundamentalmente diferentes quanto ao uso
não tem sido um catalisador eficaz para a da água e da proteção ambiental. Mas, as
cooperação ambiental global. Eis aí um comunidades caracteristicamente possuem
paradoxo: a apresentação de um problema muitas interdependências ecológicas
como de “segurança ambiental” poderá inibir simultaneamente sobrepostas; locais a
a cooperação, justamente nos locais onde as montante de um vizinho numa relação
inseguranças ecológicas das pessoas e ecológica podem estar a jusante em relação à
comunidades são mais flagrantes. outra (ver Capítulo 5). Por exemplo, o Japão
está “a jusante” das chaminés industriais da
Por Que o Meio China, porém os dois países compartilham um
ecossistema marinho regional. Os Estados
Ambiente? Unidos estão a montante do México, no Rio
Colorado, porém, a jusante (pelo menos no
Um número crescente de vozes tem sentido físico) das indústrias tóxicas que se
sugerido que focar a paz – e não a segurança desenvolvem na fronteira EUA-México. Estas
– poderá proporcionar um meio de romper interdependências complexas criam
o impasse. Como instrumento de paz, o meio oportunidades para reunir os diferentes
ambiente oferece algumas qualidades úteis, problemas ambientais em formas mais
talvez até singulares, que se prestam à criação estruturadas de cooperação ambiental.
de paz e transformação de conflito: desafios Por sua própria natureza, os problemas
ambientais ignoram fronteiras políticas, exigem ambientais exigem ação preventiva, implicam
uma perspectiva de longo prazo, encorajam horizontes de mais longo prazo e requerem
participação local e não-governamental e um reconhecimento de mudanças súbitas,
estendem a criação de comunidades, além das surpreendentes e dramáticas. Dadas estas
ligações econômicas polarizadoras. Estes características, a cooperação ambiental pode
predicados, às vezes, tornam a cooperação influenciar tomadores de decisão a abraçarem
ambiental transfronteiriça difícil de ser horizontes de mais longo prazo, para que os
alcançada. Porém, onde a cooperação ganhos futuros tenham peso maior nos
efetivamente se enraíza é que é importante cálculos atuais. Por exemplo, tem se tornado
incrementar confiança, implantar hábitos mais comum nos últimos anos as nações que
cooperativos, criar o compartilhamento de assinam acordos sobre bacias hidrográficas
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diminuiu em dois terços. Os novos Estados fim de colocar a economia da região em bases
independentes da Ásia Central enfrentaram sustentáveis e de iniciativas novas para
uma crescente crise socioeconômica, criando aumentar o engajamento da sociedade civil
condições de irrupção de conflitos hídricos neste processo.25
ao longo das linhas etno-nacionais.23
Com ajuda do Banco Mundial e outras Tornando a Paz através da
agências ocidentais, os países ripários dos
Cooperação Ambiental
tributários do Mar de Aral, o Amu e Syr Darya,
esquematizaram uma estrutura cooperativa uma Realidade
para responder à crise. Ao fazê-lo, estabi-
lizaram as relações entre nações durante uma Há muito, está evidente, mesmo que não
época de turbulência política regional. De tenha inspirado ação, que a cooperação
acordo com a pesquisadora Érika Weinthal, a ambiental transfronteiriça pode gerar vanta-
iniciação da cooperação hídrica pelos recém- gens ambientais, econômicas e políticas
formados Estados independentes pós-União tangíveis. Adequadamente planejadas, inicia-
Soviética pode ter ajudado a evitar a violência tivas ambientais também podem reduzir
hídrica.24 tensões e probabilidade de conflito violento
A interdependência compartilhada durante entre países e comunidades. Estratégias de paz
o tumulto pós-soviético foi suficiente para levar através da cooperação ambiental oferecem
Uzbequistão, Casaquistão, Turcomenistão, uma oportunidade para formar um arcabouço
Tajiquistão e Quirjistão à mesa de negociações, político prático e positivo de cooperação que
porém, não alterou o problema fundamental: pode engajar uma ampla comunidade de
a morte lenta do Mar de Aral, acentuando as interessados, ao reunir questões relacionadas
inseguranças da população regional. O ao meio ambiente, desenvolvimento e paz.
problema básico – práticas agrícolas
insustentáveis – mal foi considerado e a nova Estratégias de paz, através da cooperação
estr utura cooperativa criou pouco, ou Ambiental, oferecem a oportunidade de
nenhum, espaço democrático para os formar um arcabouço político prático
interessados ou para a sociedade civil. O e positivo para cooperação.
Banco Mundial e as agências bilaterais de ajuda
podem ter desempenhado um papel Obviamente, a cooperação ambiental não
catalisador mediando o acordo entre nações surge de forma automática ou fácil, nem irá
durante a crise, porém, falharam, não criando automaticamente incrementar a paz. Tudo
formas mais robustas de governança ambiental depende da forma institucional específica de
regional. Na realidade, irrompeu a síndrome cooperação. Todavia, o conhecimento sobre
comum do compromisso frouxo, conhecida iniciativas destinadas especificamente a lidar
como “fadiga de doador”, e o cinismo quanto com violência e insegurança é limitado. Em
aos motivos dos governos da região e os termos simples, governos e outros atores não
atores inter nacionais é profundo. A têm se dedicado suficientemente a atividades
transformação desta situação exigirá um cooperativas sobre problemas ambientais,
compromisso de recursos a longo prazo, a voltadas para a paz, que permitam conclusões
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LIGAÇÃO DE SEGURANÇA
Impactos Ambientais
das Guerras
Conflitos militares sempre causam situação é única, devido à natureza particular
sofrimento humano. Trazem também do conflito, a sociedade e a ecologia.
ameaças de mais longo prazo à segurança, No Afeganistão, duas décadas de conflito
como degradação ambiental e novos riscos armado degradaram o meio ambiente a tal
à saúde humana. Já há sete anos o Programa ponto que isso agora representa uma
das Nações Unidas para o Meio Ambiente barreira aos esforços de reconstrução do
(PNUMA) vem trabalhando em áreas do país. A guerra paralisou a gestão ambiental e
mundo onde o meio ambiente natural e as estratégias de conservação anteriores,
humano foi comprometido, como causou um colapso da governabilidade local
conseqüência de conflitos. Em 1999, e nacional, destruiu infra-estruturas,
enquanto as instalações industriais alvejadas prejudicou a atividade agrícola e levou as
de Kosovo, Sérvia e Montenegro ainda pessoas para as cidades já carentes das mais
ardiam, as equipes do PNUMA realizaram a básicas amenidades públicas. 3
primeira “avaliação ambiental pós- Mais de 80% dos afegãos vivem em áreas
conflito”.1 rurais, onde viram muito de seus recursos
O trabalho nos Bálcãs concluiu que havia básicos – água para irrigação, árvores para
vários hotspots ambientais onde uma ação alimento e energia – desaparecerem em
imediata de limpeza se fazia necessária, para apenas uma geração. Nas áreas urbanas, a
evitar ameaças adicionais à saúde humana, água potável – a maior das necessidades
tais como as refinarias de petróleo em básicas para o bem-estar humano – pode
Pancevo e Novi Sad atingidas, e as estar disponível para apenas 12% da
instalações industriais em Kragujevac e Bor. população. Lixões mal-administrados
O rio Danúbio estava ameaçado, devido ao contaminaram a água subterrânea e
vazamento de Pancebo de mais de 60 disseminaram a poluição aérea, e a atividade
produtos químicos diferentes, incluindo madeireira ilegal causou perda generalizada
mercúrio. Estas descobertas levaram, pela da cobertura florestal.4
primeira vez, a comunidade internacional a No Iraque, um quadro similar pode ser
incluir a limpeza do meio ambiente na sua desenhado. Lá, a avaliação do PNUMA
ajuda humanitária pós-conflito. 2 concluiu que o conflito de 2003 e a
Depois dos Bálcãs, este novo instrumento pilhagem pós-guerra concorreram para o
ambiental foi usado na Libéria, em estresse ambiental crônico, já presente desde
territórios palestinos ocupados, no a guerra Irã-Iraque, de 1980, a guerra do
Afeganistão e mais recente no Iraque. Cada Golfo, em 1991, a má administração
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IMPACTOS AMBIENTAIS DAS GUERRAS
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IMPACTOS AMBIENTAIS DAS GUERRAS
acontecer uma avaliação e uma limpeza válida de desenvolver confiança entre países
adequadas. Apoio e fortalecimento da anteriormente hostis. 10
capacidade administrativa ambiental Um modo importante de se minimizar
existente ou recém-estabelecida é crucial os riscos ao meio ambiente e à saúde é
para a sustentabilidade de longo prazo. Na através de regulamentos de guerra que
análise de como restaurar o meio ambiente, limitem alvos possíveis e armas. Um bom
após o silenciar dos canhões, toda a história exemplo dos instrumentos legais que
ambiental da região deve ser levada em podem ser usados é a convenção ENMOD
consideração. [Técnicas de Modificação Ambiental], que
Mais ainda, após o término do conflito, evita o uso de mudanças artificiais no meio
esforços devem ser feitos para reengajar o ambiente – como enchentes causadas pelo
país na cooperação ambientação regional e homem – como uma arma de guerra. Uma
internacional – especialmente quando estão vez que os impactos negativos dos
em pauta recursos compartilhados, como a diferentes tipos de armas são conhecidos, e
água. Na primavera de 2004, pela primeira desde que exista bastante evidência dos
vez em 29 anos, autoridades ambientais e riscos para a população, uma nova legislação
hídricas discutiram conjuntamente o se faz necessária. 11
compartilhamento dos pântanos da O adicionamento dos custos ambientais à
Mesopotâmia. Velhos inimigos negociando longa lista de conseqüências negativas do
mais uma vez assuntos ambientais. conflito – perda humana, refugiados, perdas
Juntamente com a melhoria do estado econômicas – deve fazer as soluções não-
destes recursos, a gestão de recursos violentas ainda mais atraentes.
partilhados pode servir como uma maneira - Pekka Haavisto,
UNEP Post-Conflict Asssessment Unit
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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ
CAPÍTULO 9
Estabelecendo os Fundamentos
para a Paz - Metas do Milênio
Hilary French, Gary Gardner e Erik Assadourian
Enquanto as pessoas observavam horrorizadas outros tipos de desafios, como conflitos civis
as torres gêmeas do World Trade Center se internos e terrorismo internacional. Estes
desintegrando, em 11 de setembro de 2001, problemas estão enraizados em instabilidades
o que dominava suas mentes era a perda sociais, paralelamente a uma gama complexa
imediata de vidas. Contudo, logo ficou claro de fenômenos – da pobreza e doença,
que os eventos daquele dia tinham um passando pelo crescimento populacional e
significado maior, inaugurando uma nova era degradação ambiental, até o fundamentalismo
na história mundial. Da mesma forma que o religioso e o ódio étnico (ver Capítulo 1). As
ataque japonês a Pearl Harbor, em 7 de técnicas militares tradicionais são de uso
dezembro de 1941, levou os Estados Unidos limitado na resposta a essas forças subjacentes.2
a declararem guerra ao Japão no dia seguinte, A postura adotada pelos Estados Unidos
os eventos de 11 de setembro levaram o perante a comunidade global também foi
Presidente George W. Bush a declarar guerra significativamente diferente, após 11 de
ao terrorismo, antes de aquele dia terminar. setembro, do que havia sido durante a II
E, da mesma forma que o período pós-guerra Guerra Mundial. O Presidente Bush falou
veio a definir uma época histórica, os anos inicialmente da importância da cooperação
pós-11/9 serão, por muito tempo, internacional no combate ao terrorismo global.
considerados como fundamentalmente Porém, sua decisão subseqüente de invadir o
diferentes dos anteriores.1 Iraque, no início de 2003, sem obter o apoio
Todavia, os problemas de segurança global do Conselho de Segurança da ONU, destruiu
diferem significativamente daqueles da era da as esperanças iniciais de que a luta contra o
II Guerra Mundial. Contrariamente ao terrorismo seria um esforço unificador e não
expansionismo territorial daquela época, os divisório. Durante a II Guerra Mundial, por
pontos de ignição contemporâneos envolvem outro lado, os Estados Unidos trabalharam
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foram implantadas para lidar com eles: o Conferência das Nações Unidas sobre
Fundo das Nações Unidas para Populações, População e Desenvolvimento, realizada em
em 1962; o PNUMA, em 1972; e, no início 1994 no Cairo, por exemplo, forjou um novo
dos anos 90, a Global Environment Facility (Fundo consenso global sobre a relação entre
Global para o Meio Ambiente), um empre- estabilização populacional, tratamento de
endimento conjunto do Banco Mundial, saúde reprodutiva e do crescimento do poder
Programa das Nações Unidas para o das mulheres, incluindo acordo numa série de
Desenvolvimento e o PNUMA, que financia metas sobre acesso à educação universal e
projetos nos países em desenvolvimento que serviços de saúde reprodutiva.13
enfocam ameaças ambientais globais como A nova compreensão sobre a variedade de
mudança climática e perda de diversidade questões tratadas pelas conferências globais dos
biológica.11 anos 90, finalmente, encontrou expressão nos
Igualmente, a disseminação do terrorismo Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
e armas de destr uição em massa são (ODM), aprovados por unanimidade
preocupações relativamente novas para a preliminarmente na Assembléia do Milênio,
comunidade mundial, e a ONU está sendo em 2000 (ver Quadro 9-1). E a Cúpula
convocada para desempenhar um papel cada Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável,
vez mais destacado no seu combate. Como o realizada em 2002 em Joanesburgo, África do
Secretário-geral Kofi Annan argumentou Sul, chamou uma nova atenção política para
perante a Assembléia Geral, semanas após os os desafios do desenvolvimento sustentável,
ataques de 11 de setembro: “A legitimidade inclusive a adoção ou reafirmação pelos
que as Nações Unidas transmitem assegura que governos de uma vasta gama de metas para
um maior número de nações sejam capazes e água, energia, saúde, agricultura e diversidade
estejam determinadas a adotar as medidas biológica (ver Quadro 9-2). A ONU está
necessárias e difíceis – diplomáticas, legais e atualmente encontrando um novo papel para
políticas – que são exigidas para derrotar o si mesma, encorajando governos a
terrorismo.” Ele seguiu analisando a implementarem as refor mas políticas
importância de os governos avançarem na necessárias para atingir esses objetivos e metas,
adoção e ratificação das 12 convenções e monitorando seu progresso ao longo do
protocolos internacionais já existentes sobre caminho.14
terrorismo internacional, e implementarem Apesar de todas as conquistas até hoje, não
importantes tratados internacionais que visam há dúvida de que serão necessárias reformas
minimizar a disseminação de ar mas de ousadas para estabelecer os fundamentos para
destruição em massa, como aqueles que a paz, equipando melhor as Nações Unidas
proíbem armas químicas e biológicas e a para os desafios à segurança atuais e futuros.
proliferação nuclear.12 A necessidade de renovações periódicas às
Através de uma série de conferências estruturas da ONU foi, na realidade, prevista
internacionais de alto nível nas últimas décadas, desde o começo, quando o Presidente dos
as Nações Unidas têm focado questões Estados Unidos Harry Truman observou em
emergentes globais e ajudado a induzir ações seu discurso à conferência de São Francisco,
para resolvê-las global e nacionalmente. A em 1945, que “esta carta, como nossa própria
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Meta ODM: Reduzir a Fome pela Metade Meta ODM: Reduzir pela Metade Aqueles sem
Acesso à Água
Bangladesh 35 32 18 6 3 3 Sim
Brasil 12 9 6 Sim 17 13 8 Sim
China 17 11 9 Sim 29 25 14
Egito 5 3 3 Sim 6 3 3 Sim
Índia 25 21 13 32 16 16 Sim
México 5 5 3 20 12 10 Sim
Peru 40 11 20 26 20 13 Sim
Quênia 44 37 22 Sim 55 43 27 Sim
Tailândia 28 19 14 Sim 20 16 10 Sim
Uganda 23 19 12 Sim 55 48 27
FONTE : Vide nota final 26.
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Banco Mundial, menos de um quinto de todos 684.000, em 1988, para US$ 82 milhões, em
os países estão atualmente em condições de 1997, e a Tailândia foi capaz de reduzir novas
reduzir a mortalidade infantil e materna e infecções de um pico de 143.000, em 1991,
oferecer acesso à água e saneamento, por para 19.000, em 2003.27
exemplo, enquanto uma parcela menor ainda Outros países desenvolveram formas
tem condição de conter HIV, malária e outras criativas de lidar com muitos objetivos
doenças graves. A análise do Fórum simultaneamente. No México, por exemplo,
Econômico Mundial torna claro que a razão quase 20 milhões de pessoas, em 1995, não
principal do fracasso é a ausência de foco tinham condições de adquirir alimentos
sobre as prioridades básicas de desen- suficientes para atender a suas necessidades
volvimento.26 nutricionais diárias, 10 milhlões não tinham
Todavia, quando governos efetivamente acesso a tratamento de saúde e pelo menos
estabelecem a conquista de certos objetivos 1,5 milhão de crianças estava fora da escola.
como prioridade, podem rapidamente obter O governo criou um programa assistencial de
grande sucesso – um sucesso que é “transferência condicional de fundos” que
freqüentemente multiplicado em função da realizava pagamentos com base num
forte ligação entre diferences problemas sociais. compromisso familiar quanto às necessidades
Ao investirem na prevenção da AIDS, por específicas de saúde e educação. Os recipientes
exemplo, os governos não só contêm a precisavam provar que seus filhos estavam
disseminação da doença, mas também matriculados, que as mães recebiam lições
reduzem custos de saúde, número de crianças mensais de nutrição e higiene e que as famílias
órfãs, perda de produtividade econômica e realizavam exames rotineiros de saúde. Os
de muitos profissionais necessários como resultados foram extraordinários. Doenças
professores e médicos. entre bebês caíram 25%, e 20% entre crianças
A Tailândia logo cedo percebeu a sabedoria com menos de 5 anos. A altura e peso das
de investimentos preventivos. Em 1990, após crianças aumentaram significativamente,
receber um estudo declarando que, se o HIV enquanto as taxas de anemia caíram 19%. As
permanecesse descontrolado, contaminaria 4 matrículas também aumentaram, uma vez que
milhões de tailandeses até 2000 e custaria 20% as famílias sofriam menos pressão financeira
do PIB, anualmente, o Ministro do Gabinete para fazerem seus filhos trabalhar. Em 2004,
do Primeiro-ministro, Mechai Viravaidya, o programa estava proporcionando
reconheceu que a AIDS não era apenas uma benefícios a mais de 25 milhões de pessoas, a
questão médica, mas sim “uma grave ameaça um custo de apenas 0,3% do PIB mexicano.28
à segurança nacional”. Após o encorajamento Embora governos nacionais sejam líderes
de Mechai, como ele é conhecido em todo o naturais para perseguir os ODMs, muito pode
país, o Primeiro-ministro Anand Panyarachun ser feito também em nível regional e local,
liderou pessoalmente uma campanha de quando legisladores estão determinados a
prevenção à AIDS. Com este grau de enfrentar problemas sociais. Um dos exemplos
compromisso, todos os ministérios do mais famosos é o estado de Kerala, na Índia.
governo foram autorizados a combater a Comparadas com o resto do país, as
AIDS. Os recursos dispararam, de US$ estatísticas de desenvolvimento de Kerala são
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primeiros resultados indicam que o US$ 35 a US$ 40 por pessoa, anualmente. Para
crescimento médio do PIB chinês seria 1,2% os países mais pobres, onde o PIB per capita
menor, entre 1985 e 2000, caso os custos se situa em poucas centenas, isto será impossível
ambientais houvessem sido subtraídos do sem ajuda externa. Como o oitavo ODM
cálculo. Se for implementado, isto não só torna claro, será essencial um esforço
levaria a China a seguir um caminho de concentrado dos países industrializados e
desenvolvimento mais sustentável, mas instituições globais – tanto na oferta de ajuda
também poderá incentivar outras grandes adicional, quanto em iniciativas como
economias mundiais a seguirem o exemplo – aumento do alívio da dívida externa e
o que daria início a uma poderosa comércio justo.38
transformação nos tipos de desenvolvimento Muito pouca ajuda está sendo atualmente
econômico que o mundo valoriza.36 proporcionada para alcançar as ODMs. Em
Alcançar os Objetivos de Desenvolvimento 2003, países doadores ofereceram US$ 68
do Milênio exigirá maior investimentos. Alguns bilhões em assistência oficial ao
países já reconhecem isto e estão agindo. Em desenvolvimento (ODA na sigla em inglês),
2003, por exemplo, o Brasil postergou a ou apenas 0,25% de suas Rendas Internas
compra de jatos de combate no valor de US$ Brutas (RIB). Na cúpula de Joanesburgo, os
760 milhões e reduziu seu orçamento militar governos reafirmaram a necessidade de
em 4%, a fim de financiar um ambicioso prestar 0,7% da RIB em ajuda. Porém, apenas
programa contra a fome. A Costa Rica, por cinco países o fizeram – Dinamarca,
não possuir forças armadas por 50 anos, pôde Luxemburgo, Holanda, Noruega e Suécia. Se
dedicar uma parcela bem maior de seu todos os doadores efetivamente atendessem
orçamento a gastos sociais – com resultados a este objetivo plenamente alcançável, a ajuda
impressionantes. Com um PIB per capita anual ao desenvolvimento aumentaria em mais
semelhante à América Latina como um todo, de US$ 110 bilhões – mais do dobro dos
a Costa Rica tem a maior taxa de expectativa US$ 50 bilhões estimados como necessários
de vida e um dos maiores níveis de em ter mos de recursos adicionais para
alfabetização de toda a região. Mesmo que os alcançar os ODMs. Até agora, só Bélgica e
países em desenvolvimento redirecionem Irlanda anunciaram planos para aumentar sua
apenas uma pequena parcela de seus gastos ODA para 0,7%.39
militares, estimados em mais de US$ 220 Além disso, países doadores terão que
bilhões, para alcançar os ODMs, isto dispo- melhorar a destinação da ajuda que prestam.
nibilizaria recursos adicionais significativos.37 Em 2001, mais de um quinto da ajuda foi
Mas, a maioria desses países necessitará de condicionada à compra de bens e serviços do
mais recursos do que pode suprir por si só. país doador, enquanto menos de um terço
Realmente, para os países mais pobres será destinou-se a melhorias em saúde, saneamento
praticamente impossível obter recursos e serviços educacionais. A fim de encarar com
suficientes dentro de seus orçamentos para sucesso as ameaças não-tradicionais à
oferecer serviços básicos. A OMS calcula, por segurança, maior ajuda terá que ser destinada
exemplo, que, para sustentar um sistema de diretamente para atingir os ODMs.40
saúde pública, é necessário um mínimo de Países doadores também precisam fazer
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mais para reduzir os ônus insuportáveis dos Figura 9-1). Na realidade, redirecionando
países altamente endividados, muitos dos quais apenas 7,4% dos orçamentos militares dos
gastam uma parcela significativa de seus PIBs países doadores para ajuda ao desen-
anuais para o serviço de suas dívidas em aberto volvimento, proporcionaria todos os recursos
– freqüentemente em detrimento de serviços adicionais – US$ 50 bilhões anuais –
sociais básicos. Após uma longa campanha necessários para pagar pelos ODMs. De
para alívio da dívida nos anos 90, os benefícios acordo com um relatório de 2004, do Centro
estão começando a surgir. Os 26 países que de Informação de Defesa e Política Externa
receberam algum alívio reduziram seus em Foco, US$ 51 bilhões – ou 13% -
serviços da dívida em 42%, de US$ 3,8 bilhões, poderiam ser cortados do orçamento militar
em 1998, para US$ 2,2 bilhões, em 2001. Cerca dos Estados Unidos, apenas com a remoção
de 65% dessas economias foram redire- de programas ultrapassados e desnecessários.
cionadas para programas de saúde e educação. Apenas isto proporcionaria os recursos
Isto ajudou Uganda, por exemplo, a alcançar adicionais necessários para atingir as ODMs.43
um nível de matrículas quase universal no
ensino fundamental. Todavia, a África
Em 2003, o Brasil postergou a compra
subsaariana – a região mais atrasada na
de jatos de combate no valor de US$
conquista dos ODMs – continua a pagar as
nações credoras US$ 13 bilhões ao ano, no 760 milhões e reduziu seu orçamento
serviço da dívida.41 militar em 4%, a fim de financiar um
Embora ajuda e alívio da dívida sejam ambicioso programa contra a fome.
importantes, estes ganhos são freqüentemente
eclipsados pelas disparidades criadas por Um dos compromissos mais promissores
subsídios comerciais e tarifas dos países e abrangentes com o desenvolvimento vem
industrializados. Por exemplo, enquanto a da Suécia. No final de 2003, o governo sueco
União Européia dá uma ajuda de cerca de promulgou uma lei intitulada Responsabilidade
US$ 8 por pessoa na África subsaariana, Compartilhada – Política Sueca para o
anualmente, oferece US$ 913 em subsídios por Desenvolvimento Global. Ela obriga o
vaca, na Europa. No total, mais de US$ 300 governo a facilitar o desenvolvimento não
bilhões em subsídios anuais e tarifas agrícolas apenas através de ajuda (que também planeja
enfraquecem a capacidade dos agricultores nos aumentar para 1,0% do PIB), mas alinhando
países em desenvolvimento de competirem todas as políticas governamentais – comerciais,
com outros agricultores. De acordo com um agrícolas, ambientais e de defesa – em torno
estudo feito, em 2004, pelo Instituto de de um princípio orientador de desen-
Economia Internacional e o Centro para volvimento global eqüitativo e sustentável. Em
Desenvolvimento Global, a remoção dessas setembro de 2004, o governo sueco divulgou
tarifas e subsídios poderia retirar 200 milhões seu primeiro relatório anual. Utilizado como
de pessoas da pobreza, até 2020.42 for ma de fornecer uma visão geral do
Outra fonte potencial de ajuda assistencial ambiente político atual, o relatório
de desenvolvimento seria recursos de documentou as muitas inconsistências das
financiamento militar redirecionados (ver atuais políticas e forneceu um ponto de partida
para engajar ministérios e a sociedade civil na
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A estatura proeminente da sociedade civil é mudança climática e competição por água e outros
resultado de várias tendências sociais que emergiram recursos foram sendo gradativamente reconhecidas
nas duas últimas décadas. O que abriu caminho foi o como muito complexas para um único governo - ou até
avanço da democracia em dezenas de países, que criou mesmo grupos de governos - lidar. Governos e
maior espaço para os cidadãos e organizações civis. corporações começaram a perceber que parcerias com
Desde os anos 80, e particularmente desde o colapso uma sociedade civil liberada e poderosa poderiam ser
do Muro de Berlim, dezenas de países da Europa uma forma eficaz de lidar com algumas das questões
Oriental, Ásia e América Latina abandonaram governos mais intratáveis da época moderna.
totalitários ou autoritários em favor de sistemas Dentro deste espaço político energizado entraram os
políticos que ofereciam maior grau de liberdade de vários conjuntos de entidades civis conhecidos como
pensamento e de imprensa – o sangue vital de um setor ONGs. Estas geralmente operam com objetivos
civil vibrante. Enquanto isso, algumas democracias públicos, caracteristicamente em questões como direitos
consolidadas da Europa e das Américas começaram a humanos, proteção ambiental, questões de gênero e
se voltar a organizações civis para assumirem as tratamento de saúde – e freqüentemente sob uma
responsabilidades indesejadas por governos e variada gama de perspectivas políticas. ONGs são
corporações, desde sopas para pobres à comumente consideradas como flexíveis, eficientes,
implementação de projetos de desenvolvimento no pequenas, intimamente ligadas a cidadãos, e capazes de
exterior. unir a eficiência operacional de um negócio com o
À medida que a latitude dos grupos civis se objetivo público de um governo. Seu crescimento tem
ampliava, tecnologias de comunicação poderosas e sido notável, mesmo em nível internacional: entre 1975 e
acessíveis os ajudaram a organizar e compartilhar 2000, o número de ONGs internacionais cresceu de
informações, acentuando seu status como atores menos de 5.000 para aproximadamente 25.000.
políticos. Nos anos 80, os computadores haviam se O novo setor civil pleno de poder, gerado por esta
tornado relativamente baratos, portáteis, combinação de tendências históricas, levou um repórter
descentralizados e interligados – uma combinação de do New York Times, em 2003, a classificar a opinião
atributos que multiplicou as oportunidades de trabalho pública global como uma “segunda superpotência” – um
em rede para organizações e indivíduos. poder cujas atividades de líderes políticos não podem
Particularmente, o avanço acelerado da Internet ignorar sem correr considerável risco político.
aumentou em muito as oportunidades de democracia ___________________________________________________________________________________________
participativa e apelos diretos a tomadores de decisão. fonte: Vide nota final 46.
Ao mesmo tempo, questões internacionais como
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marchas pela paz do século XX em formas que geram eventos como Fóruns Sociais
que acentuam a linha de colaboração que passa regionais e globais estão se desenvolvendo
hoje pelas iniciativas da sociedade civil. Mais regularmente ao longo de mais de uma
obviamente, as novas manifestações foram década. O Centro para Estudo da Gover-
globalmente coordenadas por ONGs, nança Global (CSGG na sigla em inglês), de
embora houvessem sido organizadas Londres, infor ma que organizações da
primeiramente em nível local. Nos Estados sociedade civil incrementaram suas atividades
Unidos, por exemplo, uma nova ONG de reuniões significativamente nos últimos
chamada Unida para a Paz e Justiça surgiu para anos: quase um terço das principais reuniões
ajudar a coordenar mais de 70 manifestações internacionais sobre questões de paz, meio
por todo o país – e dar publicidade às ambiente e desenvolvimento organizadas por
manifestações realizadas em outros países. estes grupos desde 1988 foram realizadas num
Nenhuma manifestação de paz transfronteiriça período de apenas 15 meses, em 2002 e 2003.
– nem aquelas contra a Guerra do Vietnã nos E essas reuniões são cada vez mais sofisticadas.
anos 60, ou as de oposição a armas nucleares Muitas são grandes – cerca de 55% com mais
nos anos 80 – teve tamanha coordenação de 10.000 participantes – e são cada vez mais
internacional.48 eventos independentes, ao invés de eventos
Além disso, as manifestações de fevereiro “paralelos” a reuniões oficiais. Além de
de 2003 foram distintas por estarem oferecer uma plataforma de comunicação
incorporadas numa rede maior de atividade global, as reuniões são uma excelente
da sociedade civil sobre questões que se oportunidade para um trabalho em rede
estendem além da guerra. A gênese das “cara-a-cara”: organizações civis pesquisadas
manifestações naquele dia, de fato, foi um para o relatório do CSGG listaram o trabalho
chamamento feito numa reunião do Fórum em rede e parceria como os principais
Social Europeu, em novembro de 2002, e objetivos para a participação.50
apoiado no Fórum Social Mundial (FSM), em Ao mesmo tempo, algumas das vantagens
janeiro de 2003 – reuniões de organizações associadas às mobilizações e reuniões das
da sociedade civil e de outros atores cívicos organizações civis são uma faca de dois gumes,
que enfocam basicamente questões sociais e sugerindo necessidade de cautela, à medida
econômicas. E alguns dos gr upos que esses grupos capitalizam seus sucessos. De
organizadores das marchas de 15 de fevereiro início, as energias de uma cidadania
eram veteranos das manifestações de 1999 que amplamente mobilizada podem ter pouca
impediram a reunião da Organização Mundial durabilidade e deverão ser utilizadas com
do Comércio em Seattle. As ligações com um parcimônia. Uma evidência disto foi o
movimento de uma sociedade civil mais chamado para as manifestações globais
ampla e globalmente ativa indicam que a antiguerra em março de 2004, no primeiro
mobilização de 15 de fevereiro não foi um aniversário do início da guerra do Iraque,
extravasamento isolado de indignação quando apenas uma fração da participação do
pública.49 ano anterior compareceu, tendo pouco, ou
Realmente, há evidências de que a nenhum, impacto sobre a ocupação do Iraque
capacidade da sociedade civil formar as redes pelos Estados Unidos. Mobilizações em larga
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escala podem ser difíceis de organizar com como estes, num país com uma longa história
muita freqüência e deverão ser usadas de proteção legal a manifestações públicas,
estrategicamente para obtenção de máximo indicam que os atores civis não devem achar
efeito. Esta realidade desafiará os líderes da que seu espaço operacional – que em muitos
sociedade civil, globalmente, a trabalharem países é território recém-conquistado – seja
juntos para determinar o melhor momento algo líquido e certo.53
para mobilizações globais.51 O trabalho em rede das organizações civis
Além disso, o sucesso das organizações civis também está sendo facilitado pelo uso das
na organização de grandes reuniões poderá, novas tecnologias de comunicação. A
ironicamente, criar seus próprios desafios. O Campanha Internacional de Proibição de
Fórum Social Mundial cresceu de forma Minas Terrestres (ICBL, na sigla em inglês),
impressionante – de 10.000 participantes, na por exemplo, foi um esforço coordenado nos
primeira reunião em 2001, para 100.000 ou anos 90, de centenas de organizações civis
mais, em 2004, números que podem reunidas através de e-mails e da internet. A
facilmente estressar a capacidade de campanha concebeu, elaborou e obteve apoio
participação efetiva e levar as reuniões a se governamental para um Tratado de Proibição
transformarem em pouco mais do que de Minas Terrestres que, em outubro de 2004,
festivais. Este é o perigo específico do fórum, possuía 143 signatários – a primeira vez que
que não foi planejado para pressionar por um tratado foi elaborado e levado a viger com
uma agenda de ação particular e sim para uma liderança básica da sociedade civil. Esta
proporcionar um espaço onde pontos de realização deu ao ICBL o Prêmio Nobel da
vista diferentes possam ser articulados sob a Paz em 1997. O grupo evidentemente foi
rubrica “outro mundo é possível”. Veteranos duplamente merecedor do prêmio: pelo
do fór um, como Arundhati Roy, hoje tratado propriamente dito, que demonstra
sugerem que as oportunidades para ação uma promessa real de eliminação de uma das
devem formar parte rotineira das reuniões.52 maiores pragas que afligem populações civis
Finalmente, à medida que as mobilizações pós-guerra, e pela forma inovadora com que
públicas obtêm maior sucesso, a sociedade o grupo trabalhou, fortalecendo a sociedade
civil precisará estar alerta para medidas civil como força de paz.54
defensivas que diluam sua eficácia. Alegando Outras organizações civis podem aprender
questões de segurança, a cidade de Nova com a experiência do trabalho em rede da
York, por exemplo, esforçou-se para ICBL. Pesquisas sobre armas biológicas, por
minimizar o impacto das marchas de 15 de exemplo, eram, até pouco tempo atrás,
fevereiro desviando os manifestantes das rotas lideradas em grande parte por bolsões de
traçadas e impedindo a passagem pela frente especialistas no Ocidente, incluindo pequenos
das Nações Unidas. Esforços semelhantes grupos de acadêmicos e cientistas que visavam
ocorreram 18 meses depois, quando a cidade a legisladores, ao invés do público, com
redirecionou as manifestações programadas informações. Mas, a partir de 2001, algumas
para a Convenção do Partido Republicano, ONGs como Sunshine Project, da Alemanha e
no verão de 2004, e prendeu milhares de dos Estados Unidos, se empenharam para
manifestantes, com pouca base legal. Desafios ampliar o interesse reformulando o tema para
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incluir questões com as quais as organizações Organizações civis em países mais ricos
civis já estavam ativas, como biodiversidade e poderão ajudar a assegurar que organizações
biossegurança. Outro grupo, o BioWeapons menos prósperas sejam tão eficazes quanto
Prevention Project [Projeto de Prevenção a possível, fornecendo as tecnologias que
Bioar mas], utilizou os mecanismos de necessitam. Um exemplo inspirador desta
atividades locais para levar adiante ações sobre colaboração é o trabalho da Witness, uma
questões de guerra biológica. Estabeleceu redes organização sem fins lucrativos nos Estados
de grupos civis na Europa, América do Norte Unidos, estabelecida em 1992, que fornece
e África, juntamente com uma publicação camcorders, treinamento técnico e em
anual, BioWeapons Monitor, para ajudar o público desenvolvimento de mensagem para
a acompanhar o cumprimento à Convenção organizações civis em todo o mundo.
sobre Armas Biológicas. Através das páginas Capitalizando o maior poder e preço baixo
da internet, e-mails e outras tecnologias de de câmeras portáteis e equipamento de edição
comunicação moderna, estes dois grupos estão de vídeos nas duas últimas décadas, Witness se
ampliando a público interessado em questões dispôs a ajudar atores civis a documentarem
biológicas e químicas além de cientistas, além abusos a pessoas e ao meio ambiente. Em
dos países industrializados e além da 2004, o grupo havia colaborado com mais
comunidade tradicional de segurança.55 de 200 parceiros em projetos em 50 países,
tendo obtido vários sucessos significativos,
inclusive o fechamento de um notório hospital
A Campanha Internacional de Proibição
de doenças mentais no México, após uma
de Minas Terrestres foi um esforço
transmissão pública de uma filmagem
coordenado, nos anos 90, de centenas de realizada por uma organização apoiada pela
organizações civis reunidas através de e- Witness. Os vídeos da Witness também foram
mail e internet. responsáveis por ter instigado o Governo das
Filipinas a investigar os assassinatos de ativistas
Outro exemplo marcante do uso da indígenas que reclamaram direitos ancestrais à
tecnologia é a mobilização cidadã que forçou terra.57
o Presidente das Filipinas Joseph Estrada a
renunciar, em janeiro de 2001. Alertados que A sociedade civil, governos e corporações
seu julgamento de impeachment por corrupção estão formando parcerias para lidar com
havia sido suspenso indefinidamente, cidadãos questões de interesse comum, inclusive
indignados utilizaram mensagens de texto em problemas de paz e segurança.
celulares e computadores para organizar um
protesto que reuniu 150.000 pessoas no centro Além do seu trabalho com outros atores
de Manila, em duas horas. Os manifestantes da sociedade civil, as organizações civis
ficaram em vigília durante quatro dias, em também estão adquirindo experiência valiosa
número tão expressivo que o Presidente se na colaboração com governo e indústria no
viu forçado a renunciar.56 enfrentamento dos problemas mais intratáveis
Estes sucessos são possíveis, naturalmente, da sociedade. O padrão tradicional da
só onde a tecnologia está disponível. diplomacia internacional, onde iniciativas de
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Roll Back Malaria Bayer Environmental Science, Lançado em 1998, com o objetivo de
(Fazer Recuar a Malária) CORE, PNUD, UNICEF, Banco reduzir pela metade o ônus da malária, até
Mundial, OMS, Governos de 2010, através de uma abordagem
Gana, Índia e Itália internacional coordenada
World Commission on Dams FAO, Agência Internacional de Em 1998, a comissão realizou dois anos
(Comissão Mundial de Barragens) Energia, IUCN, Transparency de consultas e estudos de caso sobre o
International, PNUMA, Banco papel das grandes barragens no
Mundial, OMS desenvolvimento. O relatório final foi
divulgado em 2000 e, em 2001, o Projeto
do PNUMA de Barragens e
Desenvolvimento foi criado para
disseminar as conclusões do relatório.
Global Water Partnership União Européia, IFPRI, A parceria foi estabelecida após as
(Parceria Mundial da Água) Universidade de Pequim, Agência conferências de Dublin e Rio de Janeiro,
Internacional de Desenvolvimento em 1992, para apoiar países no manejo
da Suécia, PNUD, Banco Mundial sustentável de seus recursos hídricos
Africa Stockpiles União Africana, CropLife Este programa teve início em 2000 como
Programme International, GEF, um esforço entre múltiplos interessados,
para eliminar armazenagem de pesticidas
obsoletos na África, dar destinação final a
produtos químicos orgânicos persistentes
(Programa Africano Pesticide Action Network-Africa, conforme diretrizes internacionais e
de Armazenamento) PNUMA, OMS, WWF impedir acumulação futura de pesticidas.
Global Village Energy BP Solar, USAID, PNUD, Lançado em 2002 na Cúpula Mundial
Parnership(Aliança Global Winrock International, Banco sobre Desenvolvimento Sustentável, esta
para Universalização Mundial parceria visa aumentar a comunicação
de Energia) entre investidores de energia, empresários
e usuários; desenvolver políticas
energéticas em vilarejos; e proporcionar a
400 milhões de pessoas acesso a serviços
energéticos modernos como aquecimento,
resfriamento e cozimento.
FONTE: Vide nota final 58.
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Educação, mídia e religião estão por produzir cidadãos e líderes que engen-
posicionadas para estabelecer um draram o século mais violento e mais
entendimento público sobre como tornar ambientalmente destrutivo da história da
as sociedades mais pacíficas e justas. humanidade. Vale notar, também, que algumas
das civilizações mais duradouras da história
foram lideradas por pessoas sem a instrução
Muitas questões ainda precisam ser tratadas formal que conhecemos hoje. Todavia, as
com relação ao lugar da sociedade civil nessas escolas poderiam ser instituições que geram
redes de políticas. Dentre os diversos atores “cidadãos globais”: aqueles que entendem suas
do setor civil, qual teria acesso à rede de ligações com as pessoas e problemas de outras
políticas e quem decidiria? Quão represen- terras, que se vêem às voltas com questões
tativas são as organizações civis, cuja liderança fundamentais de justiça global, e que sentem
raramente é eleita pelo público e não presta profundamente que o meio ambiente natural
contas a este público? Que tipos de verificações é parte integrante de seu bem-estar e, portanto,
são necessárias para assegurar que as merecedor de proteção. A criação deste
organizações civis não sejam instrumentos de sistema educacional é o grande desafio para o
seus governos ou parceiros comerciais? Estas século XXI.
e outras questões complexas ainda precisam Enquanto isso, a mídia mundial – televisão,
ser resolvidas enquanto o movimento se rádio, jornais, livros, música e a internet, entre
consolida. Contudo, o mesmo espírito de outros meios – pode ser pensada como um
colaboração que caracteriza a operação dessas sistema educacional paralelo, tão generalizado
redes poderá, presumivelmente, ajudar a é seu alcance e tão poderosa é sua capacidade
resolver também estas questões. de formar visões de mundo. Uma pesquisa
Os esforços de redes relativamente novas da Pew Research Center, realizada em março de
e instáveis – sejam colaborações transitórias 2003, constatou que 41% dos americanos
entre ONGs ou esforços mais institu- identificaram a mídia como a influência básica
cionalizados de redes de políticas – podem na formação de suas opiniões sobre a guerra
ser sustentadas pelo trabalho de valorização do Iraque. Uma mídia que alarga as visões
de centros consolidados de influência da dos cidadãos, que oferece uma diversidade
sociedade civil. Particularmente a educação, de perspectivas sobre grandes questões sociais
mídia e religião estão posicionadas para e que é reformulada para depender muito
estabelecer um entendimento público dos menos da publicidade para seu sustento
processos políticos globais e de como tornar influenciaria fortemente os valores sociais numa
as sociedades mais pacíficas e justas. Cada uma direção mais consistente com as necessidades
dessas instituições possui uma história de um mundo globalizado e ambientalmente
diversificada, naturalmente, no exercício do e socialmente estressado.64
poder. Escolas, mídia e igrejas são, às vezes, Finalmente, a influência religiosa sobre
tão eficazes em conclamar os cidadãos às visões de mundo é considerável, agindo
armas como liderá-los na manutenção da paz. freqüentemente nos níveis mais profundos da
A educação do século XX, por exemplo – psique humana e expressa através de rituais,
apesar de seu sucesso –, tem sido criticada ensinamentos bíblicos e exortação moral.
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Estado do Mundo 2005
ESTABELECENDO OS FUNDAMENTOS PARA A PAZ
Exercido, às vezes, violentamente e com fins sobre a gama de crises que a comunidade
repressivos, este poder, não obstante, tem sido global enfrenta hoje – especialmente guerra,
utilizado também de forma construtiva. O desigualdade e degradação ambiental –
movimento de Gandhi pela independência da poderá afetar profundamente o curso dos
Índia, a luta pelos direitos civis nos Estados acontecimentos do novo século.
Unidos, o boicote internacional de fórmulas Este novo foco desses três centros de
infantis nos anos 70, o movimento antinuclear influência muito contribuirá para fortalecer um
dos anos 80 e a campanha de reestruturação setor civil cheio de vigor e poder. Facilitará
da dívida dos países em desenvolvimento nos também a reforma das instituições inter-
anos 90, foram todos liderados ou influenciados nacionais e a realização das visões sociais,
por pessoas e organizações religiosas. E os econômicas e ambientais endossadas pela
esforços colaborativos para acabar com Assembléia do Milênio e pela Cúpula Mundial
conflitos, como as iniciativas da Fundação Inter- sobre Desenvolvimento Sustentável. Uma
religiosa de Paz de Sri Lanka – um grupo de cidadania globalmente orientada que abrace
budistas, cristãos, muçulmanos, hindus e Baha’is um senso de solidariedade com os mais
trabalhando pela paz na ilha-nação oferecem pobres do mundo e de responsabilidade pelo
esperanças de que grupos religiosos possam planeta que nos sustenta, provavelmente, não
combinar sua influência em prol da paz.65 só apoiaria novas iniciativas de políticas, como
Explorar o poder das várias tradições também insistiria nelas.
religiosas mundiais para formar perspectivas
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