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de um problema filosófico. Não estamos diante, contém uma forma última de justiça no seu íntimo
portanto, de uma típica pesquisa especializada so- e essa é sua sedução [...], el[a] oferece uma compen-
bre o pensamento moral antigo. A extensa erudição sação, um consolo a um sentimento da iniquida-
mobilizada e o pormenor das exegeses dos textos de do mundo” (Idem, p. 21). Em oposição a essa
clássicos estão à serviço da tentativa de investigar imagem de uma vontade moral autossuficiente, o
uma questão no terreno da filosofia moral, e o “ar- filósofo inglês procura discutir o papel que a experi-
gumento histórico geral” do livro está, em última ência da fortuna pode desempenhar não apenas no
análise, condicionado pelos interesses filosóficos condicionamento das nossas ações, mas também na
que orientam a discussão. Nesse sentido, pode-se própria justificação racional que somos capazes de
dizer que Martha Nussbaum analisa seu problema oferecer a respeito delas. A fortuna não seria mera-
a partir dos gregos, e não exclusivamente nos gre- mente exterior à vida moral, algo que afetaria seus
gos. Ao mesmo tempo, não me parece indiferente desdobramentos no mundo, mas não a integridade
que esta investigação de um problema de filosofia da intenção moral. Pelo contrário, ela influenciaria
moral se faça sob a forma de um retorno ao pensa- e, em algumas circunstâncias, determinaria nossas
mento ético dos gregos. É evidente que a formação avaliações e sentimentos morais. Ao enfatizar o pro-
intelectual da autora a conduzia nessa direção. A blema da “fortuna moral”, Williams não tem em
pergunta, porém, que talvez seja mais interessante mente o puramente acidental, o aleatório, mas so-
de se colocar é por que o problema filosófico espe- bretudo aquilo que escapa ao controle do agente e
cífico que ela se dispôs a abordar no livro – as rela- que, por força de sua simples efetividade, acontece
ções entre ética e fortuna – pôde se tornar atraente com ele. Assim, a aceitação sem reservas da ideia
para uma especialista em estudos clássicos. Vejamos kantiana da moralidade só seria possível ao preço de
esse ponto com um pouco mais de atenção. desconsiderar uma série de experiências humanas,
A própria autora indica na abertura do livro de tal modo que uma “vida sem essas experiências
que o projeto de escrevê-lo ganhou forma quando envolveria uma reconstrução dos nossos sentimen-
entrou em contato com a reflexão moral do filóso- tos e da nossa visão sobre nós mesmos muito mais
fo inglês Bernard Williams. Mais especificamente, vasta do que se poderia supor” (Idem, p. 22)
A fragilidade da bondade dialoga com a ideia de A crítica de Bernard Williams à autossuficiên-
“fortuna moral” (moral luck) introduzida por Willia- cia racional da ética de fundo kantiano traz consigo
ms no âmbito do pensamento filosófico anglo-saxão a possibilidade do questionamento de um dualis-
no artigo “Moral luck” (Williams, 1981).6 A noção mo que estaria na base mesma dessa concepção. Tal
de “fortuna moral” tem como seu principal alvo as dualismo é, por assim dizer, paralelo às oposições
concepções éticas derivadas da obra de Kant. Para entre sujeito e objeto, dever ser e ser, ideal e real
Williams, um dos equívocos do racionalismo e que inauguram a experiência moderna do mundo e
da pretensão de universalidade dessas concepções do sujeito. Ele implica cindir a ação em dois polos:
está em sua ênfase na impermeabilidade da injun- em um extremo, o aspecto puramente subjetivo, a
ção moral em face das circunstâncias. A liberdade e intenção do agente e a orientação normativa da sua
a dignidade do agente, nessa perspectiva, residem vontade; no outro, o elemento objetivo, a efetivida-
na sua autonomia em relação a todo tipo de condi- de do ato e seu desdobrar-se na realidade. A inte-
cionamento exterior. O sujeito moral é livre justa- gridade da vida moral, nessa perspectiva, identifica-
mente porque seus juízos e suas deliberações não são -se com a plena autonomia do sujeito e requer que
dependentes de quaisquer condições externas, mas todo valor esteja colocado no polo da intenção. A
sim de uma necessidade racional interior à vontade. afirmação do significado ético da fortuna, em con-
A noção de moralidade de inspiração kantiana par- trapartida, busca negar a estrita separação entre es-
te da premissa de que o elemento definidor da vida ses dois níveis e nos impede de imaginar uma vida
ética está sob o controle do próprio agente e pode moralmente boa que estivesse desvinculada das cir-
ser fruto da determinação exclusiva de uma vontade cunstâncias em que a atividade moral encontra a
incondicionada. Segundo Williams, “tal concepção sua realização. Abre-se, com isso, a possibilidade de
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deslocar o interesse intelectual de sua concentração de uma boa vida – o amor, a amizade, a atividade
prioritária na intenção e na conformação racional política etc. – seriam por definição vulneráveis ao
da vontade do agente e considerar, também, a ação risco, ao perecimento e impregnadas de incerteza.
do ponto de vista de sua prática, de seu fazer-se efe- Segundo, as coisas tidas como valiosas são plurais,
tivo. Nesse particular, o pensamento moral da an- podem ser incompatíveis entre si e, em última aná-
tiguidade parece oferecer um terreno propício à ex- lise, são irredutíveis a um valor superior. Por isso,
ploração. Como observa Monique Canto-Sperber, podem gerar, em circunstâncias que não estão su-
a despeito das diferenças entre as correntes filosófi- jeitas ao controle humano, exigências conflitantes
cas, seria possível dizer que “a compreensão da vida e incontornáveis. Terceiro, as emoções, os desejos,
humana como lugar mesmo da moralidade é co- os sentimentos nos vinculam a objetos, por defi-
mum aos pensadores antigos [...]. Ademais, a vida nição, particulares e contingentes, expondo-nos à
humana é concebida como uma prática, um agir precariedade e à indeterminação constitutiva des-
do qual o homem é o autor. Seu fim é, portanto, ses últimos. Essa ênfase no papel moral da fortuna
uma boa prática (eupragia), um feito, uma forma fornece alguns dos temas centrais do livro: a de-
de sucesso” (2001, p. 89). pendência da vida moral bem-sucedida em relação
O problema da “fortuna moral” não oferece a fatores que escapam ao controle dos agentes, a
apenas a Martha Nussbaum um ponto de vista a fragilidade dos valores morais humanos e sua vul-
partir do qual abordar um traço distintivo do pen- nerabilidade ao conflito e à contingência, os riscos
samento moral antigo, ou seja, sua ênfase nos as- da crença na possibilidade de eliminação do aca-
pectos especificamente práticos da ação. Ao tomar so da existência humana e os limites da pretensão
para si esse problema, ela altera o foco da atenção à autossuficiência racional no pensamento ético.
em relação àquele que havia sido o eixo da análi- Se levarmos em conta o que foi dito até agora,
se de Bernard Williams. Como vimos, Williams, não chega a ser surpreendente que Martha Nuss-
em seu artigo, tinha como alvo a imagem de que baum dedique, como já assinalei, um lugar relati-
a consciência reflexiva do sujeito moral seria um vamente reduzido à análise do conceito de tuch no
dado exterior às circunstâncias da deliberação, corpus textual dos séculos V e IV a.C. A questão da
constituindo, exatamente por isso, a condição da tuch está, em certa medida, posta de antemão por
deliberação nas circunstâncias. Dessa forma, ele sua apropriação do problema da “fortuna moral”,
buscava mostrar que a própria avaliação racional e a abordagem dos textos se fará sob a forma de
das nossas escolhas morais não é imune à fortuna um diálogo com esse problema. Não será possível
e que, portanto, o sujeito moral não pode ser pen- no espaço de que disponho apresentar de forma
sado fora das condições em que seus julgamentos mais pormenorizada a maneira como a autora de-
são feitos. Nussbaum volta sua atenção, prioritaria- senvolve sua discussão ao longo dos seus capítulos
mente, embora não exclusivamente, para os impas- e suas muitas páginas. Somente o contato direto
ses objetivos resultantes da tensão entre a busca de com o texto poderá revelar ao leitor a inteligência
uma vida moral bem-sucedida e as contingências e a riqueza das questões tratadas pelo livro. Como
da sua realização. Sendo assim, ela desdobra o pro- alternativa, retomarei uma afirmação anterior-
blema da “fortuna moral” em três questões centrais, mente citada de Bernard Williams, para expor, de
que são apresentadas no capítulo de abertura do livro modo algo esquemático, o que considero ser a es-
e acompanharão o restante da exposição. Tendo em trutura geral do argumento. No trecho a que me
vista a explícita adesão da autora ao “método” aris- refiro, Williams dizia que aceitação da crença na
totélico de abordagem das coisas humanas, creio ser imunidade à fortuna e na autossuficiência racional
possível dizer que essas três questões contêm em es- da norma ética exigiriam uma vasta reconstrução
boço uma espécie de “fenomenologia” da vida ética da visão que temos sobre nós mesmos. Acredi-
humana e do papel que a fortuna aí desempenha.7 to que essa observação permite pensar a manei-
Em primeiro lugar, diz a autora, atividades e rela- ra como Martha Nussbaum constrói o seu texto,
ções que podemos valorizar como parte inseparável dividindo-o em três partes.
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colocado pelo pensamento de Platão e em busca de 2 Essa é, diga-se de passagem, a primeira tradução de
uma filosofia moral na medida do humano. Essa úl- um livro de Martha Nussbaum no mercado editorial
tima significaria um “retorno a muitos insights e valo- brasileiro. Antes disso, havia sido editado um opúsculo
res da tragédia, uma vez que articula uma concepção (na verdade, trata-se da tradução de uma conferência),
denominado A República de Platão: a boa sociedade e
de racionalidade prática que tornará os seres huma-
a deformação do desejo (Porto Alegre, Bestiário, 2004).
nos autossuficientes de um modo apropriadamente
3 Ver, por exemplo, as resenhas de John M. Cooper
humano” (p. 7, tradução modificada). Após a tenta-
(1988), T. H. Irwin (1988) e Nicholas P. White (1988)
tiva platônica de reconstrução racional das bases da dedicadas ao livro na ocasião do seu lançamento. Os
ética, a reflexão de Aristóteles implicaria um esforço três são especialistas em filosofia clássica e fazem duras
de restauração no interior da filosofia e por meio da restrições ao livro, afirmando que suas interpretações
filosofia de uma compreensão da vida moral afina- dos textos clássicos se fariam ao preço de distorções e
da com “nossa visão sobre nós mesmos”, como diria omissões, que, no final das contas, comprometeriam a
Bernard Williams. A filosofia assumiria um “objeti- própria sustentação do argumento filosófico da obra.
vo terapêutico” (p. 228) e se definiria de forma crí- 4 Como observa Martha Nussbaum, “a ‘bondade’ do tí-
tica em relação aos empreendimentos intelectuais tulo deve ser entendida como ‘o bem humano’ ou eu-
que exigem que nos afastemos de nossas opiniões daimonía, e não como ‘bondade de caráter’” (p. xiii).
sobre a natureza da vida moral. Tais opiniões, ainda 5 Parafraseio aqui as observações de Nicholas P. White
que inarticuladas e não raro contraditórias, consti- na resenha anteriormente citada (1988, p. 137). Para
tuiriam o ponto de partida e, no fim das contas, o ser mais preciso, cabe observar que Martha Nussbaum
limite da própria reflexão filosófica, o dado com que discute a noção de tuch no capítulo 4 em relação com o
ela tem que se defrontar, caso queira oferecer um conceito de techn (perícia, arte, ciência). A ênfase dessa
discussão, porém, está na análise da ideia de techn e na
conhecimento sobre a experiência humana em que
tentativa de apontar que essa ideia é concebida nos sé-
ainda possamos nos reconhecer. Para a autora, a ética culos V e IV a.C. como uma forma de controle sobre a
aristotélica reata com o mundo da tragédia por ser tuch. Acompanho as transliterações das palavras gregas
antropocêntrica (cf. p. 212), sendo levada a assumir propostas no texto original que são, em alguns casos,
a fortuna como condição constitutiva da vida que diferentes das oferecidas na tradução brasileira.
os seres humanos são capazes de viver. Tal reconhe- 6 O artigo de Bernard Williams é 1976 (Proceedings of
cimento tem um impacto sobre a compreensão do the Aristotelian society, vol. 50, 1976) e foi depois in-
papel da racionalidade prática. Esta última não po- cluído no livro Moral luck (1981).
deria ser pensada abstraída das circunstâncias, como 7 Como assinala a própria autora, “toda investigação
portadora de princípios universais, em condições de da relação entre um ser humano com a tuch e com o
orientar a deliberação nas mais diversas situações. A mundo do acontecimento natural deve, implícita ou
sabedoria prática requer não só o conhecimento de explicitamente, oferecer alguma reflexão sobre o que
normas gerais, mas principalmente a percepção dos significa ser um animal humano, um ser que tenta
particulares concretos envolvidos na deliberação. Em controlar a natureza, mas que recebe o efeito e a influ-
ência da natureza” (p. 208).
Aristóteles, observa Martha Nussbaum, os limites do
discurso da filosofia moral estão dados pelos limites
do humano, “sua matéria é o bem humano, ou a boa
vida para um ser humano” (p. 255). E esse bem, diz BIBLIOGRAFIA
ela, por estar exposto à fortuna e ao acaso, é frágil.
BODÉÜS, Richard. (1990), “Resenha de The fra-
gility of goodness: luck and ethics in greek tragedy
Notas and philosophy”. Dialogue, 29, 1: 144-146.
CANTO-SPERBER, Monique. (2001), Éthiques
1 Aristotle’s De Motu Animalium. Text with translation, grecques. Paris, PUF.
commentary, and interpretive essays. Princeton, Prin- COOPER, John M. (1988), “Resenha de The fra-
ceton University Press, 1978. gility of goodness: luck and ethics in greek tragedy
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