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Introdução
I. Bulwer
Edward Bulwer tinha doze anos quando o imperador
Napoleão Ifoi derrotado em Waterloo; morreu três anos depois
de Bismarck ter derrotado Napoleão III, e foi sepultado na
Abadia de Westminster [Abadia de Westminster - Fundada em
616, de estilo gótico primitivo, onde se encontram os túmulos
dos reis e dos homens célebres de Inglaterra. Actualmente só
existe a igreja (anglicana), ao lado da qual se ergue uma
catedral católica, construída em 1895]. Recebeu o título de
barão quatro anos antes da sua morte. Sucedeu-lhe seu filho
que, como vice-rei em Delhi, proclamou a rainha Vitória
Imperatriz da Índia e recebeu o título de conde. O seu neto
ocupou várias posições públicas distintas e tornou-se
cavaleiro da Ordem de Jarreteira [Ordem de cavalaria,
instituída por Eduardo III, em 1348. A origem desta Ordem é a
seguinte! A condessa de Salisbúria, dançando com Eduardo III,
deixou cair a jarreteira, ou liga, da perna esquerda. O rei
apanhou-a, entregou-a à condessa, e, vendo que os presentes
se riam maliciosamente, disse! "Honni soit qui mal pense"
(Vergonha sobre quem puser nisto malícia). E afirmou ainda!
Os que hoje riem, orgulhar-se-ão de a usar amanhã.
Instituiu, então, a Ordem de Jarreteira, que foi colocada sob
a égide de S. Jorge, e que os cavaleiros usam na perna
esquerda, abaixo do joelho. Trata-se de uma fita de veludo
azul, com bordadura de ouro e a divisa! Honni soit qui mal
pense!).
No fim da sua vida, o império da rainha Vitória tinha
desaparecido com o vento. O autor desta introdução é o seu
bisneto.
Bulwer recebeu o nome, e mais tarde o título de
"Lytton", ao suceder a sua mãe nas propriedades de Knebworth.
A casa e as terras pertencem hoje a uma das suas bisnetas,
que abre parte da Knebworth House ao público. Knebworth é o
título de cortesia do meufilho mais velho, que está agora a
aprender a ler.
Bulwer escrevia poesia e apaixonou-se algo seriamente
antes de ir para Cambridge. Publicou trabalhos em verso e
prosa, incluindo três peças de êxito, tendo começado com a
idade de dezassete anos e continuando depois a escrever
durante 56 anos, até morrer. Casou contra a vontade de sua
mãe, e ela cortou-lhe a mesada. Então começou a escrever para
viver, e embrenhou-se de tal maneira no seu trabalho que
perdeu a afeição da mulher, que o condenou publicamente.
Bulwer defendia que os seus romances históricos não eram
meramente narrativas com uma base histórica, mas sim história
em toda a sua verdade, com um romance inserido. Trabalhou
então em história com a diligência de um historiador
profissional.
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Iona de Pompeia pertence a Bulwer, tal como Lorna Doone
pertence a Blacnmore. Mas são peregrinos bem verdadeiros que
hoje visitam em grande número os santuários destas duas
heroínas de ficção; e é talvez este facto que confere o halo
de imortalidade ao novelista histórico.
Na narrativa de Bulwer, o leitor encontrará e aprenderá
a conhecer cerca de duas dúzias de personagens distintos. Tal
como na vida real, sentirá o forte impacto de alguns deles e
a vaga presença de outros. Misturando-se com estes, há
vislumbres e sombras de uma multidão: convidados num
banquete, adoradores num templo, multidões nas ruas e nas
arenas.
Fechamos o livro, nofim, tendo conhecido uma
civilização, e tendo também encontrado um leão em estreitas
relações de amizade com a sua vítima, quando ambos procuraram
refúgio do terror do Vesúvio.
Mas a cabeça de Bulwer está tão cheia da sua história,
que ele se esquece mesmo de lhe fazer qualquer introdução.
Reparem nas suas primeiras palavras: "Olá, Diómedes,
ainda bem que te encontrei !"
A minha tarefa, por isso, é colocar o retrato de
Diómedes e de todos os outros dentro de uma moldura, e
pendurá-la no seu devido lugar na parede da história.
II. VESÚVIO
Olhem através da baía de Nápoles, na direcção das
encostas verdes do Vesúvio, no sopé do qual fica Pompeia;
depois, olhem para cima, para a cratera, onde um novelo de
fumo parece desprender-se do coração derretido da montanha.
É uma paisagem de cores brilhantes e ar suave, de
ternura e alegria.
A terra é maravilhosamente fértil e a água de um azul
transparente. O clima é tão doce para a pobreza humana, como
para as flores dos campos e dos jardins. Há vinhedos nas
encostas mais baixas do vulcão, e o vinho que deles provém, é
conhecido hoje como Lacryma Christy [Lágrima de Cristo).
Talvez essa designação seja realmente a mais apropriada já
que a cidade de Pompeia, ali mesmo ao pé, foi destruída tão
violentamente como Jerusalém, e apenas nove anos depois.
O Vesúvio não era conhecido pelos antigos como um
vulcão; a história escrita não tinha ainda registado qualquer
erupção.
Não havia mesmo, sequer, uma cratera; quando muito,
poder-se-ia esperar uma erupção de Snowdon.
Então, subitamente, estrondos e tremores começaram a
sacudir a terra, e assim continuaram durante 16 anos, até que
a montanha rebentou numa erupção total no dia 24 de Agosto do
ano 79 d. C. Rápido, absoluto, um desastre irreversível
abateu-se sobre Pompeia e duas outras cidades, que ficaram
sepultadas em cinzas e lava, e por isso desapareceram da
memória dos homens. As ruinas de Pompeia, esquecidas durante
18 séculos, estavam ainda a ser escavadas, quando Bulwer
escreveu o seu grande romance no próprio local.
Nesta história, encontraremos um amor que nunca chegou a
ser correspondido até perecer entre as ondas, e um amor que
prosperou e viveu apesar de todos os perigos.
Talvez compreendam melhor estes dois amores, se alguma
vez foram avassalados seriamente pelo amor antes de terem 20
anos!
V. RELIGIÃO
O plano da sociedade em que Os Últimos Dias de Pompeia
se inserem ficaria incompleto sem uma referência à atmosfera
religiosa. Todo o mundo antigo do qual sabemos alguma coisa,
era politeísta, com uma única excepção: o excepcionalpovo da
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antiguidade que foi o povo de Israel (e não me esqueço
daquele poderoso e sublime espírito de Aristóteles). Em 79,
Vespasiano e o seu filho Tito tinham recentemente (70)
destruído os Judeus e quase tinham arrasado a cidade santa de
Jerusalém. O fim de Israel, como Estado, estava a aproximar-
se a passos largos do seu fim, e a maior parte dos Judeus
estava já dispersa pelas cidades civilizadas do império, onde
muitos deles eram ricos, e exerciam, até, uma certa
influência. No entanto, poucos pagãos estavam ansiosos por
abraçar afé judaica.
Os cristãos eram ainda uma minoria com pouca influência
aparente. Chamados Nazarenos, eram, primeiramente,
classificados como uma seita hebraica; foi o imperador Nero
que os reconheceu, pela primeira vez, legalmente, como um
corpo separado, talvez (se o suporte histórico deixar de ser
depreciação ou difamação) a fim de que esse corpo pudesse
suportar o ódio causado pelo incêndio que ele próprio ateara.
Em 79, a primeira perseguição sob as ordens de Nero não tinha
sido feita há mais de dez anos, e todos os prosélitos
cristãos na história de Bulwer devem ter sentido a espada de
Democles suspensa sobre a sua cabeça. . .
Vespasiano era um homem justo, mas o clamor popular
prejudicava sempre qualquer cristão que se visse envolvido em
qualquer conflito com outros cidadãos. No entanto, apesar de
todos os perigos, o Cristianismo estava a ganhar cada vez
mais partidários, especialmente entre os aristocratas,
oficiais e no próprio exército. Parece que os ricos, que se
converteram ainda durante o tempo de vida de Cristo na terra,
eram já de idade madura e es tavam no ocaso das suas vidas e
fortunas, excepto o galante mas pouco popular milionário que
trepou a uma árvore para ter uma vista melhor.
Mas, por volta de 79, em Roma, e provavelmente também em
Pompeia, a religião dos "pobres de espírito" tínha deixado de
se confinar tão largamente aos "pobres em dinheiro". O
conflito entre o único Deus vivo e a "divindade" crescente do
imperador, estava a entrar numa fase mais aguda, quando se
começou a verificar que até mesmo as pessoas responsáveis
estavam envolvidas nestas heresias de traição.
No entanto, há um aspecto que merece que se lhe dê um
ênfase especial: o mundo pagão era profundamente religioso,
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muito mais do que é o nosso próprio país de hoje.
Consideramos leviana e erradamente a teoria das "morais sem
religião", e chegamos a confundir vida devassa com paganismo.
Que erro profundo! Horácio poderia erguer lamentos,
comparáveis apenas com uma pequena alteração, a alguns
daqueles levantados pelo antigo arcebispo de York: "Foi o
desrespeito pelos deuses que fez com que milhares de
lamentações se tivessem abatido sobre a infeliz Itália."
Na história de Bulwer, o pagão religioso é visto tal
como era, mas não como a maior parte de nós pensamos hoje que
ele era.
Outra religião, ou melhor, outro culto, que chegou ao
mundo romano aproximadamente na mesma altura que o
Cristianismo, vinha do Egipto. A deusa Ísis, irmã e mulher do
assassinado Osiris, chegou com as suas cerimónias e os seus
sacrifícios, os seus sacramentos e os seus sacerdotes votados
ao celibato.
A Roma imperial ficou fascinada pelo culto, que foi
oficialmente reconhecido pelo imperador Calígula.
Mas nenhum culto pagão escapou às consequências
desintegrantes da libertinagem e da magia. Além disso, nenhum
deus vindo do Egipto era isento de arrogância; os Egípcios
nunca foram humildes, e a chamada "confissão negativa" foi
criada mais para proclamar a não existência de pecados no
penitente, do que para o levar a bater no peito com um
contrito "mea culpa.
Em devido tempo, Tertuliano devia escrever o epitáfio do
culto nas seguintes palavras: "Muito em breve as chamas
inundaram os altares que, do Sara ao Atlântico, nasflorestas
bárbaras germânicas, na Holanda, em York, levaram homens e
mulheres de todos os níveis e de todos os temperamentos, a
caírem de joelhos perante a deusa Ísis, rapariga, mãe,
sofredora, poderosa e suave.
A verdade, como o sol, tem sempre maneira de penetrar
nos cantos mais sombrios.
O culto de Ísis e seus sacerdotes, o conflito interno
entre as suas devoções e as de Cristo, o conflito externo
entre Deus e César, o conflito entre a matéria e o espírito,
são algumas das constantes correntes de pensamento religioso
que Bulwer trata facilmente num cenário antigo que ainda não
está fora de moda.
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Vemos nobres aspirações imersas num combate mortal com
asforças do mal, enquanto que o conhecimento e a ciência
lutam lado a lado com a ignorância.
Vemos também o amor humano na sua melhor interligação
com osfios da imortalidade e isso, sem dúvida, é o motivo
pelo qual a história se mantém viva ao fim de 122 anos.
LYTTON, 1956
Livro Primeiro
Capítulo Primeiro
Capítulo segundo
A rapariga das flores, cega, e a beleza da moda - a confissão
do atenienseapresentação de Arbaces, o egípcio, aos leitores
Venham comprar!
Venham comprar!
Escutem:
Como suspiram... tão doces...
(Sim, porque elas têm uma voz como a nossa!)
O suspiro da jovem cega
Faz fechar as pétalas das rosas entristecidas!
Nós somos suaves e ternas, nós as filhas da luz!
Capítulo Terceiro
Percorremos, cansados,
O dia estival, mole e exaustivo;
Voamos agora para a noite
Através dos seus portais cinzentos de penumbra.
Saúdem-nos com canções !
Com canções, canções!
Um hino brilhante e cheio de alegria
Tal como a jovem de Creta,
Tornada audaciosa pelo crepúsculo.
Ela despertou, e ergueu-se na sombra de marfim.
E o deus do vinho consolou-a pela primeira vez.
Dos céus silenciosos
Tombou o seu olhar semicerrado e lânguido,
E, por todo o lado,
Com um som de ternura,
Choravam as ondas do mar Egeu.
No seu colo repousa a cabeça de lince.
E a sua cama de noiva erafeita de tomilho selvagem;
E sempre, por cada ranhura estreita
No abraço verde dos verdes vinhedos
Os Faunos espreitavam, em segredo,
Capítulo quarto
Capítulo Quinto
Capitulo sexto
Capítulo sétimo
Capitulo oitavo
O Hino De Eros
.......
(1) A mais bela das Nêiades.
(2) Hesíodo.
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Amai, filhos da terra... pois o amor é o suave saber do
mundo,
Olhai onde ides... a terra enche-se de MIM;
Aprendei com as ondas que constantemente beijam as praias,
E com os ventos que se aninham no mar ofegante.
Tu ensinas o amor!
A doce voz, como um sonho,
Desfez-se na luz, e as brisas no ar.
As sebes ondulantes... a sussurrante corrente,
E a verde floresta, murmuram:
AMAI!
Anacreõntico
I
Tu estás na terra do escuro Anfitrião,
Tu que bebeste e gozaste!
Pelo Solene Rio desliza umfantasma,
Mas o teu pensamento é nosso,
Se a memória pode ainda voar,
Para os céus dourados,
E Inventar os perdidos prazeres!
Pelos salões em ruínas
Onde a tua alma outrora tinha o seu palácio;
estas flores de Comos!
Quando a rosa era viva ao teu cheiro,
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E o sorriso cintilava no cálice,
E a voz de prata da cítara
Podia fazer rejubilar o teu coração,
Quando a noite eclipsava o dia.
II
Morte, morte é a praia obscura
Onde nós vogaremos!
Suave, suave, tu remo deslizante!
Sopra suave, doce vento!
Acorrenta com grinaldas as Horas;
Que se ergam todas as canções e flores!
III
Tu és bem-vindo, hóspede da escuridão,
Que vieste do longinquo e horrível mar!
Quando a última rosa murcha,
As nossas margens enchem-se de ti!
Ave, escuro hóspede!
Quem tem uma razão tão bela
Para ser o nosso bem-vindo hóspede,
Como tu, em cujo átrio solene,
Porfim festejaremos todos,
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Na costa obscura e sinistra?
Há muito tempo somos nós o Anfitrião!
E Tu, Sombra da Morte, tu,
No teu olhar não há alegria
Tu... nosso Hóspede passante!
Neste momento, a jovem que estava junto de Apaecides, começou
subitamente a cantar!
IV
Feliz está agora o nosso destino
A Terra e Sol são nossos!
E longe do túmulo terrível
Correu as asas das róseas Horas.
Doce é, para ti, a taça,
Doces são os teus olhos, meu amor!
Voo para a tua alma terna,
Como o pássaro para a sua pomba!
Toma-me, oh, toma-ne!
Recebe-me no teu peito!
Deixa-me mergulhar nele, suavemente.
Mas desperta-me... oh,
despertar-me!
E diz-me com palavras e suspiros,
Mas mais com os teus olhos suaves,
Que o meu sol ainda não se pôs,
Que o archote não está extinto na urna,
Que nós amamos, respiramos e queimamos.
Diz-me... que ainda me amas!
Livro Segundo
Capítulo primeiro
Vamos agora para uma daquelas zonas de Pompeia que não eram
frequentadas propriamente pelos amantes do prazer, mas pelos
seus servidores e pelas suas vítimas; antros de gladiadores e
lutadores a prémio, dos viciados e miseráveis, dos selvagens
e obscenos... a Alsácia de uma cidade antiga.
A casa era grande e abria imediatamente para um caminho
estreito e cheio de gente. Diante do portal estava um grupo
de homens, cujos músculos de ferro e bem treinados, pescoços
pequenos mas hercúleos, rostos duros e descuidados, indicavam
os campeões da arena. Numa prateleira fora da loja, estavam
enfileirados jarros de vinho e óleo; e mesmo por cima dela,
estava inserida na parede uma pintura grosseira representando
gladiadores entregues ao prazer do vinho... tão antigos e tão
veneráveis são os costumes!
Dentro da sala havia várias mesas pequenas, metidas em
qualquer coisa parecida com os modernos reservados e à volta
destas, alguns bebendo, outros jogando aos dados, alguns
outros entregues àquele jogo mais habilidoso chamado duodecim
scriptae que alguns sapientes precipitados confundiram com o
xadrês, embora, talvez, se assemelhasse mais ao gamão a dois,
e que era habitualmente, embora não sempre, jogado com o
auxílio de dados.
Era manhã cedo, e nada melhor do que a própria hora,
desusada, podia talvez demarcar a indolência destes
frequentadores habituais das tabernas. Contudo, apesar da
situação da casa e do carácter dos seus ocupantes, nada
mostrava ali aquela esqualidez sórdida que teria
caracterizado um tegúrio semelhante numa cidade moderna.
A alegre disposição de todos os habitantes de Pompeia, que
procuravam, pelo menos, satisfazer os sentidos mesmo onde
negligenciavam o espírito, era notória nas cores pomposas que
decoravam as paredes, e nas formas fantásticas, sem deixarem
de
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ser elegantes, em que as tochas, as taças, os mais comuns
utensílios domésticos eram trabalhados.
- Por Pollux! - exclamou um dos gladiadores, encostando- se
contra a parede da soleira. -O vinho que nos vendes, velho
Silenus, é suficiente para enfraquecer o melhor sangue que
nos corre nas veias.
Enquanto falava, batia com força nas costas de um personagem.
O homem assim carinhosamente saudado e cujos braços
nus, avental branco, chaves e guardanapos pendurados no
cinto, indicavam ser o dono da taberna, tinha já ultrapassado
o outono da sua vida; mas a sua estatura era ainda tão
robusta e atlética, que poderia muito bem envergonhar mesmo
as formas vigorosas que se encontravam diante dele, excepto
que os músculos se tinham transformado em carne, as faces
estavam flácidas e papudas, e o estómago dilatado atirava
para a sombra o peito enorme e maciço que se erguia acima
dele.
- Nada dessas vis blasfémias comigo! - resmungou o gigantesco
taberneiro, naquele semigrunhido de um tigre insultado. -O
meu vinho é suficientemente bom para uma carcaça que em breve
morderá o pó do spoliarium! (1)
- Não nos venhas com presságios, velho abutre! - retorquiu o
gladiador, rindo escarninhamente. -Viverás para te enforcares
a ti próprio de despeito, quando me vires ganhar a coroa de
palma; e quando eu receber a bolsa no anfiteatro, como
certamente ganharei, o meu primeiro voto a Hércules será
renegar-te, a ti e às tuas beberagens!
- Escutem-no! Escutem este modesto Pyrgopolinices! De certeza
serviu sob Bombochides Cluninstaridys archides (2) - exclamou
o taberneiro. -Sporus, Negro, Tetraides, ele diz que vos vai
ganhar a bolsa. Oh, céus! Cada um dos vossos músculos é
suficientemente forte para abafar todo o seu corpo inteiro,
ou
então eu não percebo já nada de arenas!
- Oh! - exclamou o gladiador, corando de súbita fúria. - O
nosso papista contaria uma história diferente!
- Que história poderia ele contar contra mim, Lidon? -
inquiriu Tetraides, com ar carrancudo.
........
(1) Local onde os mortos e os mortalmente feridos eram
depositados, quando retirados da arena.
(2) Nilo Glorioso, Acto I. Para dizer em linguagem moderna!
Serviu sob as ordens de Bombastes, o Furioso.
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- Ou contra mim, que venci em quinze lutas! - perguntou o
gigantesco negro, avançando arrogantemente para o gladiador.
-Ou contra mim? - grunhiu Sporus, com os olhos em chamas.
- Hum! - resmungou Lidon, cruzando os braços e olhando os
seus rivais com um ar de desafio. -O tempo do julgamento virá
em breve; guardem a vossa coragem até lá!
- Sim! É verdade! - disse o façanhudo taberneiro. - E se eu
mexer um dedo para te salvar, que as Parcas cortem o meu fio!
- A tua corda, queres tu dizer! - disse Lidon,
zombeteiramente. - Toma! Tens aqui um sestércio para
comprares uma.
O titã vendedor de vinho agarrou na mão estendida para ele, e
apertou-a com tanta força que o sangue esguichou das pontas
dos dedos para as vestes dos circunstantes.
Ouviram-se gargalhadas estrondosas.
-Hei-de ensinar-te, jovem fanfarrão, a jogares a macedónia
comigo! Não sou nenhum persa insignificante, garanto-te!
Homem, o que não lutei eu durante vinte anos na arena, sem
nunca ter baixado os meus braços uma só vez! E não recebi eu
o bastão das próprias mãos do responsável como um sinal de
vitória, e como uma graça para me retirar com os meus louros?
E vou agora deixar que um franganote qualquer me ensine!
Assim falando, abanou as mãos num grande gesto de escárnio.
Sem mexer um músculo, mas com o mesmo sorriso no rosto com
que anteriormente tinha insultado o taberneiro, o gladiador
aguentou corajosamente o violento aperto a que fora sujeito.
Mas assim que a sua mão ficou solta, resfolegou durante uns
instantes como um animal selvagem; os cabelos entoiceiraram-
se-lhe na cabeça e na barba, e, com um grito selvagem e
estridente, saltou à garganta do gigante com um ímpeto tal
que o taberneiro, grande e poderoso como era, perdeu o
equilíbrio e caiu como uma rocha no chão, enquanto sobre ele
saltava o seu feroz inimigo.
Talvez o nosso taberneiro não tivesse tido necessidade da
corda que Lidon tão gentilmente lhe recomendara, se tivesse
ficado naquela mesma posição durante mais três minutos. Mas,
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atraída pelo barulho da sua queda, uma mulher, que até ali se
tinha mantido dentro da loja, correu para o local da luta.
Esta nova aliada era, em si própria, um desafio para o
gladiador: alta, magra, e com braços que podiam fazer outra
coisa além de suaves abraços. De facto, a gentil companheira
de Burbo, o taberneiro, tinha, como ele próprio, lutado nas
Listas (1), sob o olhar do
imperador. E o próprio Burbo -Burbo o imbatível no campo da
luta, de acordo com os relatos - por mais de uma vez entregou
a palma à sua suave Stratonice. Esta doce criatura, assim
que viu o perigo iminente que aguardava o seu companheiro, e
sem outras armas para além das que a natureza lhe tinha dado,
atirou-se sobre o gladiador, agarrando-o pela cintura com os
seus longos braços, semelhantes a uma cobra, arrancou-o com
um rápido puxão do corpo do marido, deixando apenas as mão
sdele agarradas à garganta do seu inimigo. Parecia um cão
arrancado pelas pernas traseiras da luta contra o rival, nos
braços de algum inimigo ciumento; assim, via-se metade dele
no ar - passivo e sem hipótese de luta - enquanto que a outra
metade, cabeça, dentes, olhos, unhas, pareciam enterradas e
engalfinhadas no inimigo lacerado e prostrado. Enquanto isso,
os gladiadores, empaturrados de sangue, apinhavam-se,
deliciados, em redor dos combatentes... as narinas
distendidas, os lábios crispados, os olhos ardentemente fixos
na garganta em sangue de um, e nas garras denteadas do outro.
A Habet (apanhou-o!) Habet! - gritavam eles, numa espécie de
rugido, esfregando as mãos nervosas.
- Non Habet, mentirosos! Não apanhei! - gritou o taberneiro.
Ao mesmo tempo, com um poderoso esforço, libertou-se daquelas
mãos mortíferas e ergueu-se sobre os seus pés, ofegante,
cambaleante, lacerado, completamente coberto de sangue,
enfrentando, com os olhos nublados, o olhar brilhante e os
dentes arreganhados do seu desconcertado inimigo, debatendo-
se agora (mas debatendo-se com desdém) nas garras da vigorosa
amazona.
- Jogo limpo! - gritaram os gladiadores - Um para um!
As mulheres participavam, por vezes, nas lutas nos
anfiteatros, e até mesmo as de nascimento nobre.
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E rodeando agora Lidon e a mulher, separaram o nosso
taberneiro do seu cortês hóspede.
Mas Lidon, sentindo-se envergonhado com a sua actual posição,
e tentando, em vão, afastar de si o abraço vigoroso, meteu a
mão no cinto e retirou de lá uma faca curta. O seu olhar era
tão ameaçador, a lâmina brilhava tão terrivelmente, que
Stratonice, que estava habituada apenas àquela luta a que
nós, modernos, chamamos de pugilística, recuou alarmada.
- Oh, deuses! - exclamou ela. - O malandro! Ele anda com
armas escondidas! Isso é jogo limpo? Isso é de um gentleman e
de um gladiador? Não! Na verdade, eu sinto nojo de gente como
esta!
Com estas palavras, voltou ostensivamente as costas ao
gladiador, e apressou-se a ir ver o estado em que se
encontrava o seu marido.
Mas este, tão habituado aos exercícios físicos como um brill-
dog inglês o está a uma luta com um antagonista mais gentil,
já estava recuperado. A cor purpúrea desapareceu da
superfície vermelha da sua cara, as veias da testa voltaram
ao seu tamanho normal. Agitou-se com um grunhido complacente,
satisfeito por se encontrar ainda vivo, e olhando então para
o seu inimigo, dos pés à cabeça, com um ar de mais aprovação
do que jamais lhe tinha concedido antes, disse:
- Por Castor! És um indivíduo mais forte do que eu pensei!
Vejo que és um homem de mérito e virtude. Dá-me a tua mão,
meu herói!
- Bom velho Burbo! - gritaram os gladiadores, aplaudindo. -
Leal até à espinha. Dá-lhe a tua mão, Lidon!
- Oh, certamente! - disse o gladiador. - Mas agora que
saboreei o sangue, espero lambê-lo todo!
- Por Hércules! - ripostou o taberneiro, perfeitamente
indiferente. - Esse é o sentimento do verdadeiro gladiador.
Por Polux! Penso no bom treino que o homem pode fazer. Bom!
Um animal não podia ser mais feroz.
- Um animal! Estúpido! Nós engolimos as feras! - gritou
Tetraides.
- Bem! Bem! - disse Stratonice, que estava agora ocupada a
alisar o cabelo e a ajeitar o vestido. -Se somos todos outra
vez amigos, recomendo-vos que fiquem calmos e ordeiros.
Alguns jovens nobres, os vossos patrões e apoiantes, mandaram
di-
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zer que virão aqui visitar-vos. Querem ver-vos mais à vontade
do que nas escolas, antes de fazerem as suas apostas sobre a
grande luta no anfiteatro. Já sabeis que eles vêm sempre a
minha casa para esse fim. Eles sabem que nós recebemos os
melhores gladiadores de Pompeia. As nossas companhias são
muito seleccionadas, graças aos deuses!
- Sim! - continuou Burbo, bebendo uma taça, ou antes, um
balde de vinho. - Um homem que ganhou os meus louros só pode
encorajar os bravos. Lidon, bebe, meu rapaz! Possas tu chegar
a uma idade tão respeitável como a minha!
- Chega aqui! - disse Stratonice, arrastando o marido
afectuosamente pelas orelhas, naquela carícia que Tibullus
tão belamente descreveu. - Vem cá!
- Não com tanta força, loba! És pior do que o gladia dor! -
murmurou Burbo.
- Chiu! - disse ela, sussurrando. - Calenus acabou agora
mesmo de entrar, disfarçado, pelas traseiras. Espero que ele
tenha trazido os sestércios.
- Oh! Oh! Vou já ter com ele! - afirmou Burbo.
-Entretanto, mantém o olho bem aberto nessas taças. Presta
bem atenção ao número delas. Não deixes que te enganem,
mulher! Eles são heróis, não há dúvida, mas também são os
mais refinados vigaristas! Cacus não era nada para eles!
- Não tenhas receio, louco! - foi a resposta da cônjuge. E
Burbo, satisfeito com a certeza de que tudo estaria em ordem
na sala, passou à penetrália da casa.
- Então, esses augustos patrões vêm aí olhar para os nossos
músculos! - disse o Negro. - Quem mandou avisar, senhora?
-Lepidus. Vai trazer com ele Clodius, o maior apostador em
Pompeia, e o jovem grego Glaucus.
- Uma aposta sobre uma aposta! - exclamou Tetraides.
- Clodius aposta em mim vinte sestércios! O que dizes tu,
Lidon!
- Ele aposta em mim! - resmungou Lidon.
- Não! Em mim! - grunhiu Sporus.
- Idiotas! Julgam, se calhar, que ele iria preferir qualquer
de vocês ao Negro? - inquiriu o adeta, nomeando-se,
modestamente, a si próprio.
- Bem! Bem! - disse Stratonice, colocando uma ânfora entre os
hóspedes, que se tinham sentado diante de uma das me-
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sas. -Homens grandes e bravos, como todos pensais que sois,
qual de vós lutará com o leão da Numídia, no caso de não
aparecer nenhum malfeitor que vos prive da escolha!
- Eu escapei aos teus braços, orgulhosa Stratonice! - sorriu
Lidon. - Posso, penso eu, ir ao encontro desse leão com
segurança.
- Mas, diz-me - disse Tetraides - Onde está aquela tua jovem
escrava, a cega, de olhos brilhantes? Há muito tempo que não
a vejo!
- Oh! Ela é demasiado delicada para ti, filho de Neptuno! -
sorriu a hospedeira. - E mesmo demasiado suave para todos
nós, penso eu. Mandamo-la para a cidade vender flores e
cantar para as senhoras; ela arranja assim mais dinheiro do
que arranjava a servir-vos. Além disso, tem muitas vezes
outros empregos ainda bem melhores do que esse!
- Outros empregos! - disse o Negro. - Mas ela é demasiado
nova para eles.
- Silêncio, animal! - ordenou Stratonice. - Julgas que não há
outros jogos senão os corintianos? Se Nídia tivesse o dobro
da idade que tem agora, seria igualmente apta para Vesta...
Pobre rapariga!
- Mas... escuta, Stratonice! - disse Lidon. - Como é que tu
conseguiste uma escrava tão gentil e delicada? Ela era mais
própria para criada de alguma rica matrona de Roma do que
para ti.
-Isso é verdade! -retorquiu Stratonice. - E um dia destes vou
fazer uma fortuna a vendê-la. Perguntaste como é que eu a
arranjei, não foi?
- Sim!
- Bom... tu vês a minha escrava Stafyla... Lembras-te de
Stafyla, Negro?
- Sim! Uma mulher de mãos grandes, com uma cara que mais
parecia uma máscara cómica. Como a poderia eu esquecer, por
Pluto! De quem é ela criada agora!
-Cala-te, bruto! Bem, Stafyla morreu um dia, e olha que foi
uma grande perda para mim! Fui ao mercado comprar outra
escrava. Mas... pelos deuses! Elas tinham-se tornado tão
caras desde que eu tinha comprado Stafyla, e o dinheiro era
tão pouco, que quase estive para deixar o lugar, desesperada,
quando um mercador me puxou pelo vestido. "Senhora!" disse
ele. "Queres uma escrava barata? Tenho uma criança para ven-
117
der... uma pechincha. Ela é pequena, é quase uma criança, é
verdade! mas é calada e sossegada, dócil e esperta, canta bem
e é de bom sangue, garanto-te". De que país perguntei eu.
"Da Tessália". Eu sabia que os Tessalianos eram espertos e
gentis. Assim, disse que queria ver a rapariga. Vi-a como
vocês a vêem agora, um pouco mais pequena e mais jovem ainda.
Ela parecia paciente e resignada, com as mãos cruzadas sobre
o peito e os olhos baixos. Perguntei ao mercador qual era o
preço. Era moderado, e por isso a comprei imediatamente. O
mercador trouxe-a a minha casa e desapareceu imediatamente.
Bem, meus amigos, imaginem o meu espanto quando vi que ela
era cega! Ah! Oh! Um tipo esperto, esse mercador! Corri logo
aos magistrados, mas o traficante já tinha saído de Pompeia.
E assim, vi-me obrigada a vir para casa, de muito mau humor,
asseguro-vos. E a pobre rapariga sentiu os efeitos disso. Mas
ela não tinha culpa de ser cega, porque o tinha sido durante
toda a vida. A pouco e pouco, fomo-nos reconciliando com a
nossa compra. Verdade que ela não tem a força de Stafyla, e
era de muito pouca utilidade em casa, mas em pouco tempo
aprendeu o caminho para a cidade tão bem como se tivesse os
olhos de Argus; e quando, uma manhã, nos trouxe uma mão cheia
de sestércios, que disse ter arranjado a vender flores que
tinha apanhado no nosso pequeno jardim, julgámos que ela nos
tinha sido enviada pelos deuses. Assim, a partir dessa
altura, deixamo-la sair quando quer, enchendo o cesto com
flores que ela depois tece em grinaldas à moda da Tessália e
que agradam muito aos elegantes. E a gente da alta parece
gostar dela, porque pagam-lhe sempre mais do que a qualquer
outra vendedeira, e ela traz todo o dinheiro para casa, o que
é mais do que qualquer outra escrava faria. Assim, eu
trabalho sozinha, mas em breve obterei com ela ganhos com os
quais poderei comprar uma outra Stafyla. Sem dúvida que o
raptador tessaliano roubou a cega aos seus pais (i). Além da
sua habilidade a fazer grinaldas, ela canta e toca a cítara,
o que também dá dinheiro, e ultimamente... mas isso é um
segredo!
.........
(1) Os mercadores de escravos de Tessália eram conhecidos por
raptarem pessoas de nascimento e educação. Não poupavam
sequer as do seu próprio país. Aristófanes fala amargamente
dessa gente (proverbiais trapaceiros) pelo seu desmedido
desejo de dinheiro.
118
- Isso é um segredo! O quê! - exclamou Lidon. Transformaste-
te agora em esfinge?
- Esfinge! Não! Porquê, esfinge!
-Acaba com o teu palavreado, boa senhora, e traz-nos a nossa
carne. Tenho fome! - interrompeu Sporus, impaciente.
- E eu, também! - afirmou o feio Negro, limpando a face à
palma da mão.
A amazona afastou-se para a cozinha e logo voltou com uma
travessa cheia de grandes pedaços de carne crua. Porque era
assim que, como agora, os heróis das lutas a prémio julgam
sustentar melhor os seus músculos e ferocidade; voltaram-se
para a mesa com olhos de lobos esfomeados, e a carne
desapareceu e o vinho volatilizou-se.
Deixemos assim estes importantes personagens da vida
clássica, para seguirmos os passos de Burbo.
Capitulo segundo
Capítulo terceiro
Capítulo quarto
Capitulo sexto
À medida que Iona lia a carta, era como se uma névoa caísse
dos seus olhos. Qual tinha sido a suposta ofensa de Glaucus?
Que ele não tinha amado realmente?! E agora, claramente, sem
termos dúbios, ele confessava esse amor. A partir daquele
momento, o seu poder ficou totalmente reparado. A cada
palavra terna naquela carta, tão cheia de paixão romântica e
confiante, o seu coração batia descompassadamente. E ela
tinha duvidado da sua fé! E ela tinha duvidado dele e
acreditado nas palavras de outro! E ela não lhe tinha, pelo
menos, permitido o direito de saber o seu crime, de
apresentar a sua defesa!
As lágrimas rolavam-lhe pelas faces. Beijou a carta, colocou-
a junto ao peito. E, voltando-se para Nídia, que continuava
no mesmo lugar e na mesma posição, disse:
-Queres sentar-te, criança, enquanto eu escrevo uma resposta
a esta carta!
- Responde, então! - disse Nídia, friamente. - O escravo que
me acompanhou levará a tua resposta.
Iona retorquiu:
- Sim, porque tu ficarás comigo... confiarás em mim, o teu
serviço será leve.
.......
(1) A flora grega.
151
Nídia curvou a cabeça:
-Qual é o teu nome?
- Chamam-me Nídia.
- E de onde és!
- Da terra do Olimpo... da Tessália.
- Serás uma amiga para mim-disse Iona carinhosamente -, já
que és, afinal, quase minha conterrânea. Entretanto ordeno-te
que não fiques sobre esses mármores frios. Anda Agora que
estás sentada, posso deixar-te por instantes.
Quando Iona reapareceu com a carta, que ela não ousara voltar
a ler depois de a ter escrito (Ah! comum temeridade, comum
timidez do amor!), Nídia ergueu-se do lugar onde se
encontrava sentada.
- Escreveste a Glaucus?
- Escrevi.
- E... agradecerá ele ao mensageiro que lhe entregar a tua
carta!
Iona esqueceu-se de que a sua companheira era cega. Corou
desde a testa até ao pescoço e permaneceu em silêncio.
Num tom mais calmo, Nídia continuou:
- Digo isso porque a mais pequena palavra de frieza da tua
parte, irá entristecê-lo... e o mais leve acento de
amabilidade alegrá-lo-á. Se for a primeira, deixa que seja o
escravo a levar-Lhe a tua resposta. Se for a última, deixa
que seja eu a levar-lha... Voltarei esta tarde.
Evasivamente, Iona perguntou:
- E porquê, Nídia, serias tu a portadora da minha carta?
-É, então, assim! - disse Nídia. - Ah! Como seria possível
ser de outro modo!! Quem podia ser indelicado
com Glaucus?
Um pouco mais reservada do que anteriormente, Iona disse:
152
- Minha criança, falas num tom muito terno! Então, a teus
olhos, Glaucus é amável?
- Nobre Iona! Glaucus foi-o para mim, para quem nem a Fortuna
nem os deuses foram amigos!
A tristeza misturada com dignidade, com que Nídia proferiu
estas simples palavras, comoveram a bela Iona. Curvou-se e
beijou-a.
-És agradecida e ele merece que o sejas. Porque haveria eu de
corar dizendo que Glaucus é merecedor da tua gratidão? Vai,
minha Nídia, leva- lhe tu própria esta carta, mas volta outra
vez. Se eu não estiver em casa quando regressares, o que,
provavelmente, acontecerá esta noite, o teu quarto estará
preparado ao lado do meu. Nídia! Não tenho nenhuma irmã...
Quererás tu ser uma irmã para mim!
A tessaliana beijou a mão de Iona, e depois disse, com algum
embaraço:
- Um favor, bela Iona... Posso ousar pedir-to?
-Não poderás pedir o que eu não te poder conceder! -respondeu
a napolitana.
Então disse Nídia:
-Disseram-me que és mais linda do que toda a beleza da Terra.
Infelizmente não posso ver o que tanta luz dá ao mundo!
Importar-te-ás que eu passe a minha mão pelo teu rosto? Esse
é o meu único critério de beleza... e normalmente acerto.
Não esperou pela resposta de Iona, mas, enquanto falava,
passou gentil e lentamente a sua mão pelas feições meio
afastadas da grega... feições que apenas uma imagem no mundo
pode descrever e recordar. Essa imagem é a mutilada mas
maravilhosa estátua da sua cidade natal, a sua própria
Nápoles; aquele rosto de Pária, diante do qual toda a beleza
de Vénus Florentina é pobre e terrena, aquele aspecto tão
cheio de harmonia, de juventude, de génio, de alma, que os
críticos modernos supuseram ser a representação de Psique
(1).
Os seus dedos deslizàram pelo cabelo entrançado e pelas
sedosas sobrancelhas, pelas faces macias, pelos lábios
ondeados, pelo pescoço branco de cisne.
........
(1) Os restos maravilhosos da estátua assim chamada estão no
Museu Borbónico. O rosto, quanto a sentimento e feições, é o
mais belo de todos quantos a escultura antiga nos deixou.
153
- Agora sei que és bela! - disse a cega. - E posso pintar-te
na minha escuridão, de hoje em diante, e para sempre!
Quando Nídia a deixou, Iona afundou-se num sonho profundo e
delicioso. Glaucus amava-a! Ele amava- a. Voltou a reler
aquela confissão tão querida. Parava a cada palavra que lia,
beijava cada linha. Não perguntava a si própria porque é que
ele tinha sido difamado; sentia, tinha a certeza de que ele o
tinha sido. Admirava-se de como é que alguma vez tinha podido
acreditar numa sílaba sequer pronunciada contra ele.
Admirava-se de como é que o egípcio tinha sido capaz de
exercer sobre ela um poder tão grande contra Glaucus. Sentiu
um arrepio gelado percorrer todo o seu corpo quando voltou a
ler o seu aviso contra Arbaces, e o seu secreto temor, por
aquele sombrio ser, escureceu-lhe a alma. Foi despertada
pelas suas servas, que vieram anunciar-lhe que tinha chegado
a hora marcada para visitar Arbaces. Ficou estática e
espantada. Tinha-se esquecido comple tamente da promessa
feita...
A sua primeira ideia foi não ir. Depois, o seu segundo
impulso foi rir dos seus próprios receios pelo seu mais velho
amigo vivo. Apressou-se a colocar sobre o vestido os
habituais ornamentos e, duvidando se deveria interrogar o
egípcio mais apertadamente a respeito da sua acusação de
Glaucus, ou se deveria esperar até que, sem citar a fonte,
insinuasse a Glaucus a própria acusação, partiu na direcção
da mansão de Arbaces.
Capitulo sétimo
Capítulo oitavo
A solidão e o solilóquio do egípcio - análise do seu carácter
Livro Terceiro
Capítulo Primeiro
O forum dos habitantes de Pompeia - o primeiro rude
maquinismo pelo qual a nova era do mundo foi forjada
......
(1) No museu de Nápoles existe um quadro pouco conhecido mas
que representa um lado do forum em Pompeia, como então
existia, ao qual muito devo a presente descrição. Pode servir
de erudita consolação aos meus leitores mais jovens saber que
a cerimónia do "içar da bandeira", vem da alta antiguidade, e
parece ter sido executada com todo o legítimo e público vigor
no forum de Pompeia.
186
pobres passava através do pequeno vestíbulo que dava acesso
ao interior, com cestos debaixo dos braços, procurando
atingir uma plataforma colocada entre duas colunas, onde se
vendiam provisões que os sacerdotes tinham recuperado dos
sacrifícios.
Num dos edifícios públicos destinados aos assuntos da cidade
viam-se homens sobre as colunas, e ouvia-se o barulho do seu
trabalho que de vez em quando se erguia acima do bruá-á-á da
multidão; as colunas não foram concluídas até hoje.
Fantástico conjunto aquele. Nada podia suplantar, em
variedade, os costumes, as classes, os modos, as ocupações da
multidão; nada podia exceder o burburinho, a alegria, a
animação, o correr e a vivacidade da vida por todo o lado.
Viam-se ali todas as miríades sinais de uma civilização
calorosa e febril, onde o prazer e o comércio, o ócio e o
trabalho, a avareza e a ambição, misturavam num só golfo as
suas irrequietas e contudo harmoniosas correntes.
Em frente dos degraus do templo de Júpiter, de braços
cruzados e um sobrolho franzido e desdenhoso, estava um homem
de cerca de 50 anos de idade. As suas vestes eram
extremamente simples, não tanto pelo material de que eram
feitas, mas pela ausência de todos aqueles ornamentos que
eram usados pelos habitantes de Pompeia de todas as classes,
em parte pelo gosto que tinham da exibição, em parte também
porque eram principalmente trabalhados nas formas
consideradas mais eficazes em resistir aos ataques da magia e
à influência do mau olhado.
A sua testa era alta e calva; os poucos anéis de cabelo que
lhe restavam na parte de trás da cabeça estavam tapados por
uma espécie de capuz que fazia parte da sua capa, e que se
podia levantar ou baixar conforme se pretendesse; estava
agora meio puxado para trás, mas cobria- lhe ainda uma parte
da cabeça como uma protecção contra os raios do sol. A cor
das suas vestes era castanha, cor que não era popular entre
os habitantes de Pompeia; todas as habituais misturas de
escarlate ou púrpura pareciam ter sido cuidadosamente
evitadas ou excluídas. O seu cimto continha um pequeno
receptáculo para tinta, um estilete (ou utensílio para
escrever) e "tábuas" de tamanho fora do vulgar. O que era
ainda mais notável, é que do cinto não pendia qualquer bolsa,
o que era acessório quase indispensável, mesmo quando a bolsa
tinha a infelicidade de se encontrar vazia.
Era muito raro que os habitantes de Pompeia, alegres e
187
egoístas, se ocupassem a observar as feições e acções dos
seus vizinhos, mas nos lábios e nos olhos daquele homem havia
algo de tão notavelmente amargo e desdenhoso quando observava
a procissão religiosa que subia os degraus do templo, que não
pôde deixar de atrair a atenção de muitos.
- Quem é aquele cínico! - perguntou um comerciante ao seu
companheiro, um ourives.
- É Olintus - respondeu o joalheiro. - Um nazareno confesso.
O comerciante encolheu os ombros.
- Uma seita terrível! - disse ele, numa voz surda e
ameaçadora. - Diz-se que quando eles se encontram à noite,
começam sempre as suas cerimónias por assassinar um recém-
nascido. Professam uma comunhão de bens, também, os
miseráveis! Uma comunhão de bens! O que seria dos mercadores,
ou dos joalheiros, também, se essas ideias entrassem na moda?
- Isso é verdade! - retorquiu o joalheiro. - Além disso, não
usam jóias, murmuram imprecações quando vêem uma serpente, e,
em Pompeia, todos os nossos ornamentos são em forma de
serpente!
Um terceiro homem, fabricante de bronzes, ajuntou:
-Mas observem como aquele nazareno franze a carranca à
piedade da procissão que vai oferecer o sacrifício. Podem ter
a certeza que murmura maldições sobre o templo. Sabes,
Celcinus, aquele sujeito quando passou pela minha loja no
outro dia, e vendo que eu estava a trabalhar uma estátua de
Minerva, disse-me, carrancudo, que se ela fosse de mármore a
teria partido; mas que o bronze era demasiado forte para ele.
"Partir uma deusa!" disse eu. "Uma deusa!" respondeu o ateu.
É um demónio, um espírito mau! Depois, continuou o seu
caminho, soltando imprecações. Será que vamos ter de suportar
estas coisas? Não admira que a terra tenha tremido tão
terrivelmente na noite passada! Está ansiosa por expulsar
estes ateus do seu seio! Um ateu... foi o que eu disse?
Desgraçados de nós, os fabricantes de bronze, se esses
sujeitos alguma vez impuserem as suas leis à sociedade.
- São estes os incendiários que queimaram Roma, no tempo de
Nero! - grunhiu o joalheiro.
Enquanto estes pouco amistosos cumprimentos eram provocados
pelo ar e pela fé do nazareno, o próprio Olintus ficava per-
188
feitamente insensível ao efeito que provocava. Olhou em seu
redor, e observou os rostos intencionais da multidão que se
acumulava à sua volta, murmurando qualquer coisa de
ininteligível enquanto os observava e, olhando-os por um
momento com uma expressão, primeiro de desafio e depois de
compaixão, juntou a sua capa em redor do corpo e afastou-se,
murmurando, desta vez de uma maneira bem audível:
- Idólatras iludidos! A convulsão da noite passada não vos
avisou! Ah! Como enfrentareis vós o último dia!
A multidão que ouviu estas palavras ameaçadoras deu-lhe
diferentes interpretações, de acordo com os seus diferentes
graus de ignorância e de medo; todos, no entanto, concordaram
em imaginar que elas transmitiam qualquer terrível ameaça.
Olharam o cristão como se ele fosse o inimigo da humanidade.
Os epítetos que lançaram sobre ele, dos quais "ateu" era o
mais suave e frequente, podem servir, talvez, para nos
avisar, a nós crentes da mesma fé agora triunfante, como
toleramos e perdoamos a perseguição de opinião que Olintus
sofria nessa altura, e como aplicamos àqueles cujas ideias
diferem das nossas, os termos que naqueles tempos eram
aplicados aos pais da nossa fé.
Quando abria caminho entre a multidão, e chegou a um dos
lugares mais privados de saída do forum, reparou que um rosto
pálido e sério o observava, rosto esse que depressa
reconheceu.
Envolto numa espécie de capa que escondia parcialmente as
suas vestes sagradas, o jovem Apaecides observava o discípulo
daquela nova e misteriosa fé, à qual ele uma vez tinha sido
meio convertido.
Será ele, também, um impostor? Será que este homem tão
modesto e tão simples no modo de vida, nas vestes, no
comportamento... será que ele também, como Arbaces, faz da
austeridade apenas o manto que esconde e disfarça o
sensualista? Será que o véu de Vesta esconde os vícios da
prostituta?
Olintus, habituado a homens de todas as classes, e
combinando, com o entusiasmo da sua fé, uma profunda
experiência da sua espécie, adivinhou, talvez pelas suas
feições, alguma coisa que se passava dentro do peito do
sacerdote. Enfrentou os olhos de Apaecides com um olhar firme
e um ar de serena e aberta candura.
- A paz seja contigo! - disse ele, saudando Apaecides.
189
- Paz! - repetiu o sacerdote, como um eco, num tom tão
soturno que chegou imediatamente ao coração do nazareno.
- Desse desejo - continuou Olintus - todas as coisas boas se
combinam. Sem virtude não podes ter paz. Como o arco-íris, a
paz fica sobre a terra, mas o seu arco perde- se nos céus. O
céu banha-o em cores de luz, ele surge por entre lágrimas e
nuvens... É um reflexo do Sol Eterno, é a certeza da calma, é
o sinal de um grande pacto entre o Homem e Deus. Tal par, ó
jovem, é o sorriso da alma. É uma emoção da urbe distante de
luz imortal. A PAZ seja contigo!
- Ah! ... - começou Apaecides, quando reparou no olhar
curioso dos ociosos, querendo saber qual poderia,
possivelmente, ser o tema da conversa entre um reputado
nazareno e um sacerdote de Ísis. Parou e depois continuou num
tom baixo. Não podemos conversar aqui. Seguir-te-ei até às
margens do rio. Há lá um caminho que a esta hora costuma
estar habitualmente deserto e solitário.
Olintus fez um gesto de assentimento. Passou pelas ruas,
apressado, mas olhando rápida e cuidadosamente à sua volta.
De vez em quando, cruzava um olhar significativo, um ligeiro
sinal com alguém que passava por ele, cujas vestes revelavam
pertencer a uma classe mais humilde. Porque o Cristianismo
era o tipo de todas as outras e menos poderosas revoluções.
Por entre as vastas cabanas da pobreza e do trabalho, a
enorme corrente que depois lançou as suas águas pelas cidades
e palácios da terra, iniciava aqui o seu curso.
Capitulo Segundo
I
O vento e o Rio de Sol amaram a Rosa,
E a Rosa amava um deles;
Alguem prefere o vento quando ele sopra!
Quem não ama o Sol?
II
Ninguém sabia por onde o humilde vento andava,
Pobre companheiro dos céus!
Ninguém sonhava que o vento tinha uma alma,
Nos seus suspiros dolorosos!
194
III
Oh, feliz raio de sol!
Como podes tu provar
Aquele teu brilhante amor?
Na tua luz está a prova do teu amor,
Não tens que fazer mais nada... senão brilhar!
IV
Como pode o vento revelar o seu amor?
O seu suspiro é mal recebido.
Mudo... mudo para com a sua Rosa...
A sua prova é... morrer!
III
E tu minha amada, tu,
Quandofito os teus olhos suaves
Penso, por profundos, que vejo
O sagrado nascimento do novo renascimento!
As tuas pálpebras são a cela gentil,
Onde ojovem Amor se cobre de rubor! Vê!
Ela parte da mística cela,
Ela sai dos teus olhos suaves!
Salve! Oh, salve!
Ela vem, quando sai do mar,
Para a minha alma, que olha em ti.
Ela vem! Ela vem!
Ela vem, quando sai do mar
Para a minha alma, que olha em ti;
Salve! Oh, salve!
Capítulo Terceiro
A Congregação
Seguido por Apaecides, o nazareno chegou às margens do
Sarnus. Aquele rio, que agora corre apertado, numa diminuta
corrente, corria então alegremente para o mar, coberto de
inúmeras embarcações e reflectindo nas suas ondas os jardins,
os vinhedos, os palácios e os templos de Pompeia.
Afastando-se das suas margens mais barulhentas e
frequentadas, Olintus dirigiu os seus passos para uma vereda
que serpenteava por entre um sombrio aglomerado de árvores, a
pouca distância do rio. Este caminho era, à noitinha, um
local preferido pelos habitantes de Pompeia, mas durante o
calor e a ocupação do dia era raramente visitado, excepto por
alguns grupos de crianças, algum poeta meditativo, ou alguns
filósofos disputados. No lado mais afastado do rio, figuras
ideais entrecalavam a mais delicada e evanescente folhagem;
aqui e ali elas eram cortadas em miríades de formas, por
vezes de faunos e de sátiras, outras vezes em pirâmides
egípcias miniaturais, outras ainda em letras que compunham o
nome de um cidadão popular e eminente. Assim, o falso gosto é
igualmente tão antigo como gosto puro. E os retirados
negociantes de Hackneye Paddington, há um século atrás, mal
adivinhavam, talvez, que nos feixes torturados e formas
esculturais encontrariam os seus modelos no período mais
magnífico da antiguidade romana, nos jardins de Pompeia, e
nas vivendas do fastidioso Plínio.
Este caminho, agora quando o sol do meio-dia brilhava
perpendicularmente através das folhas, estava completamente
deserto; pelo menos nenhumas outras figuras, para além das de
Olintus e do sacerdote, quebravam a solidão. Sentaram-se num
dos bancos, colocados aqui e ali por entre as árvores,
virados para a suave brisa que subia languidamente do rio,
cujas ondas pareciam dançar, cintilando, diante deles. Um par
estranho e profundamente contrastante: o crente no mais
recente culto do mundo... e o sacerdote do mais antigo culto
do mundo.
- Tens andado feliz, desde a última vez que me deixaste tão
abruptamente! - perguntou Olintus. - O teu coração encon-
202
trou contentamento e repouso, sob essas vestes sacerdotais?
Tu que buscas ainda a voz de Deus, ouviste-a murmurar-te
confortos pelos oráculos de Ísis? Esse olhar, esse rosto
meio-escondido deu-me a resposta que a minha alma previa.
- Ah! - exclamou Apaecides, tristemente. - Vês na tua frente
um homem miserável e perdido! Desde a minha infáncia que
idealizei os sonhos da virtude! Invejei a santidade dos
homens que, em templos soturnos e solitários, tinham a
ventura suprema de gozar a companhia dos seres que estão
muito acima deste mundo; os meus dias foram desperdiçados em
vãos e febris desejos; as minhas noites foram consumidas com
visões pomposas, mas fúteis. Seduzido pelas místicas
profecias de um impostor, enverguei estas vestes. A minha
natureza revoltou-se contra o que vi e contra aquilo a que
fui condenado a partilhar. Procurando a verdade, tornei-me
apenas num ministro de falsidades. Na noite daquele dia em
que te encontrei pela última vez, eu sentia-me embriagado
pelas esperanças criadas por aquele mesmo impostor, a quem eu
tinha obrigação de já conhecer melhor. Eu... não interessa,
não interessa! Já basta que tenha junto o perjúrio e o
pecado, a imprudência e o desgosto. O véu foi agora arrancado
para sempre dos meus olhos. Eu vi um vilão onde parecia um
semideus. A terra escurece diante dos meus olhos. Encontro-me
no mais profundo dos abismos. Não sei se há deuses lá em
cima, se nós somos coisas do acaso, se para além do limitado
e melancólico presente existe apenas a destruição e o nada...
ou... uma vida depois desta... Diz-me! Fala-me, então da tua
fé! Desfaz-me estas dúvidas, se é que tens, na verdade o
poder para isso!
- Não me admiro! - respondeu o nazareno. - Não me admiro que
te tenhas enganado assim. Ou que sejas assim tão céptico. Há
80 anos atrás, não havia para o homem certeza nenhuma sobre
Deus, ou sobre um certo e definido futuro para lá do túmulo.
Novas leis foram declaradas para aquele que tem ouvidos... um
céu, um verdadeiro Olimpo, é revelado àquele que tem olhos...
Acalma-te, então, e escuta!
E com toda a honestidade, com toda a sinceridade dum homem
que acredita ardentemente em si próprio, e ansioso por
converter os outros à sua fé, o nazareno começou a falar a
Apaecides sobre as certezas da promessa da Escritura. Falou
primeiro, dos sofrimentos e dos milagres de Cristo... e
chorou
203
enquanto falava. Falou, depois, das glórias da Ascensão do
Salvador, das claras profecias da Revelação. Descreveu aquele
céu puro e insensual destinado aos virtuosos, aqueles fogos e
tormentos que eram a condenação dos culpados.
As dúvidas que assaltaram o espírito dos últimos pensadores,
na imensidade do sacrifício de Deus ao homem, não eram as que
ocorreriam a um antigo pagão. Este tinha sido habituado a
acreditar que os deuses tinham vivido na terra, e adoptado as
formas dos homens; tinham partilhado das paixões humanas, dos
trabalhos humanos, e das desgraças humanas. Tal era o mister
do próprio filho de Alamena, cujos altares fumegavam agora
com o incenso de inúmeras cidades. Não tinha o grande Apolo
Dório expiado um pecado místico, descendo para o túmulo?
Aqueles que eram, agora, as entidades divinas do céu, tinham
sido os legisladores ou os benfeitores na terra, e fora a
gratidão para com eles que conduzira à sua veneração e ao seu
culto.
Assim, para o pagão, não parecia ser nada de novo, nem de
estranho, que Cristo tivesse sido enviado dos céus à terra,
que um imortal tivesse assumido a mortalidade e saboreado o
amargor da morte.
Mas, o objectivo pelo qual Ele assim mourejara e assim
morrera... quão mais glorioso aparecia Ele aos olhos de
Apaecides, do que aqueloutro pelo qual as divindades dos
antigos tinham visitado este mundo vil e baixo, e passado
pelos portões da morte! Não seria muito mais digno de um
Deus, descer a estes obscuros vales, a fim de afastar as
nuvens sombrias que se acumulam pelos montes, dar satisfação
às dúvidas dos sábios e eruditos, transformar a especulação
em certeza firme, indicar, pelo próprio exemplo, as leis que
devem reger a vida, revelar o enigma do túmulo, e provar que
a alma não luta em vão, quando sonha com a imortalidade?
Este último era o grande argumento daqueles homens que tinham
sido destinados a converter o mundo.
Tal como nada é mais agradável e adulador ao orgulho e
esperanças do homem, do que a fé numa determinada posição
futura, também nada podia ser mais vago e mais confuso do que
as ideias dos sábios pagãos sobre aquele assunto místico.
Apaecides tinha já aprendido que a fé dos filósofos não era
propriamente a que eles pregavam ao rebanho; sabia já que,
204
acaso professavam, secretamente, uma fé nalgum poder divino,
essa não era a mesma que eles consideravam mais aconselhado
propagar à comunidade; aprendera, até, que o sacerdote
ridicularizava aquilo que pregava ao povo, que a fé de alguns
não era igual à fé dos que constituíam o número maior.
Mas nesta nova fé, parecia-lhe que filósofo, sacerdote e
povo, os divulgadores da religião e os seus seguidores, eram
igualmente concordantes; não especulavam nem debatiam sobre a
imortalidade, mas falavam dela, como uma coisa certa e
segura; a magnificência da promessa confundiam-no, as suas
consolações confortavam-no. Porque, a Fé Cristã fez os seus
primeiros convertidos entre os pecadores! Muitos dos seus
pais e dos seus mártires eram aqueles que tinham sentido a
amargura do vício, e que não eram, por isso, tentados pelo
seu aspecto falso a afastarem-se dos caminhos de uma virtude
austera e incomprometedora.
Todas as seguranças desta fé salvadora convidavam ao
arrependimento, e eram peculiarmente próprias ao espírito
magoado e amargo! O próprio remorso que Apaecides sentia
pelos seus recentes excessos, fê-lo inclinar-se perante
aquele que encontrava santidade no remorso, e que falava
sobre a alegria nos céus para um pecador arrependido.
O nazareno, quando se apercebeu do efeito que estava a
produzir, convidou:
- Vem! Vem até ao humilde vestíbulo onde nos encontramos...
uns poucos escolhidos e seleccionados. Vem escutar ali as
nossas orações. Vem reparar na sinceridade das nossas
lágrimas arrependidas. Mistura-te no nosso simples
sacrifício... não de vítimas, nem de grinaldas, mas oferecido
por pensamentos vestidos de branco sobre o altar do coração.
As flores que depomos não murcham... florescem sobre nós
quando já não existimos. Ou antes, elas acompanham-nos para
lá do túmulo, irrompem por debaixo dos nossos pés no céu,
deleitam-nos com um odor eterno, porque elas são da alma,
elas participam da sua natureza; estas ofertas são tentações
vencidas, e pecados arrependidos. Vem! Anda, vem! Não percas
mais tempo! Prepara-te já para a grande viagem terrível, da
escuridão para a luz, do sofrimento para a bênção, da
corrupção para a imortalidade! Este é o dia do Senhor, um dia
que nós guardamos para as nossas devoções. Embora nos
encontremos habitualmente à noite, alguns de
205
nós estão reunidos neste preciso momento. Que alegria, que
triunfo existirá dentro de nós, quando conseguimos trazer um
cordeiro perdido para junto do altar sagrado!
Capítulo Quarto
Os dias são como os anos nos corações dos jovens, quando não
há nem barreiras, nem obstáculos que separem os seus
corações, quando o sol brilha e a vida decorre suavemente,
quando o seu amor é próspero e confessado.
Iona já não escondia de Glaucus a atracção que sentia por
ele, e a conversa entre os dois incidia sempre e apenas sobre
o amor que os unia. Sobre o arrebatamento do presente, as
esperanças do futuro cintilavam como os céus sobre os jardins
da Primavera. Nos pensamentos que confiavam um ao outro,
desciam pela corrente do tempo, delineavam os parâmetros do
seu destino vindouro. Sofriam a luz de hoje, derramando-a
sobre o amanhã. Na juventude dos seus corações parecia como
se o cui dado, a mudança, a morte fossem coisas
desconhecidas. Talvez se amassem um ao outro mais porque a
condição do mundo não deixara a Glaucus nenhum objectivo nem
nenhuma aspiração, senão amar; porque as distracções comuns
nos estados livres às afeições dos homens, não existiam para
o ateniense; porque o seu país não o tentava para o
burburinho da vida civil; porque a ambição não oferecia
nenhum contrapeso ao amor; e, por isso, sobre os seus
esquemas e projectos, reinava apenas o amor. Na
211
idade do ferro, imaginavam-se na idade do ouro, condenados
apenas a viver e a amar.
Para o observador superficial que se interessa apenas pelos
caracteres fortemente marcados e largamente coloridos, os
dois apaixonados podem parecer um molde demasiado fraco e
vulgar. No delinear dos caracteres propositadamente
subjugados, o leitor imagina por vezes que há uma vontade de
carácter. Talvez na verdade eu erre a natureza real destes
dois apaixonados, não pintando mais fortemente as suas mais
marcadas individualidades. Mas, é preciso insistir na sua
existência brilhante, pela antecipação das mudanças que os
aguardam, e para as quais eles estavam tão mal preparados.
Era precisamente esta suavidade e alegria de vida que
contrastava mais fortemente com as vicissitudes do seu
destino vindouro. Há menos receio para o carvalho, sem frutos
nem flores, cujo coração duro e áspero está preparado para a
tempestade, do que para os ramos delicados da murta, e para
os risonhos cachos dos vinhedos.
Tinham agora entrado em Agosto, o seu casamento estava
marcado para o mês seguinte, e o portal de Glaucus estava já
pejado de miríades de grinaldas e festões; à noite, junto à
porta de Iona, ele fazia profusas e ricas libações. Ele
deixara de existir para os seus companheiros; estava sempre
com Iona.
Durante a manhã, encantavam o sol com música; ao fim do dia
evitavam os retiros cheios de gente para fazerem longos
passeios no mar ou ao longo das férteis planícies cobertas de
vinhedos que ficavam na base do fatal monte do Vesúvio. A
terra já não tremia. Os alegres habitantes de Pompeia
esqueciam-se mesmo que tinha havido aquele aviso tão terrível
do horroroso destino que se aproximava. Na futilidade da sua
religião pagã Glaucus imaginava que aquela convulsão tinha
sido uma intervenção especial dos deuses, menos por causa da
sua própria segurança do que pela de Iona. Ofereceu
sacrifícios de gratidão nos templos da sua fé; e mesmo o
altar de Ísis foi coberto com suas grinaldas; quanto ao
prodígio do mármore animado, corava de vergonha pelo efeito
que tinha produzido nele. Acreditava realmente, que aquilo
tinha sido forjado pela magia do homem, mas o resultado
convencia-o de que não representava nenhuma ira da deusa.
De Arbaces, ouviram apenas dizer que continuava vivo; jazendo
no seu leito de sofrimento, ele recuperava lentamente do
212
efeito do choque que sofrera, não perturbando os dois
apaixonados mas arquitectando, hora a hora, o modo como havia
de exercer a sua vingança.
Tanto nas manhãs passadas em casa de Iona, como nas suas
excursões ao fim do dia, Nídia era, habitualmente, a sua
constante e muitas vezes única companheira. Eles nem sequer
suspeitavam do fogo secreto que a consumia; a abrupta
liberdade com que ela se imiscuía nas suas conversas, a sua
disposição caprichosa e tantas vezes obstinada e
impertinente, encontravam pronta indulgência no
reconhecimento do serviço que eles lhe deviam, e na sua
compaixão pelo seu sofrimento. Sentiam por ela um interesse,
talvez maior e mais afectuoso pela estranheza e capricho ou
indocilidade da sua natureza, as suas singulares mudanças de
paixão e doçura, a mistura da ignorância e do génio, da
delicadeza e da rudeza, dos rápidos humores da criança, e a
orgulhosa calma da mulher. Embora recusasse aceitar a
liberdade, ela sofria constantemente por ser livre; ia para
onde queria, nenhumas reticências eram postas às suas
palavras nem às suas acções. Sentiam por aquele alguém cujo
destino era tão sombrio e que era, por isso só, tão
susceptível de todas as feridas, a mesma piedosa e amável
indulgência que a mãe sente por um filho doente e estragado
de mimos, receavam impor autoridades mesmo quando sentiam que
seria para seu próprio bem.
Ela aproveitava-se de toda aquela indulgência, recusando
mesmo a companhia do escravo que eles desejavam que a
acompanhasse sempre. Com o fino bastão que guiava os seus
passos, ela caminhava agora, como no seu estado anterior
desprotegido, ao longo das ruas populosas; era quase um
milagre ver como, rápida e dextra, ela se afastava da
multidão, evitando qualquer perigo, e conseguindo encontrar o
seu caminho ensombrado pelo negro da noite, através do mais
intrincado labirinto da cidade. Mas, o seu principal deleite
continuava a ser visitar o diminuto pedaço de terreno que
constituía o jardim de Glaucus, cuidar amorosamente das
flores que rapidamente retribuíam o amor com que eram
tratadas. Por vezes, entrava na sala onde ele se encontrava
sentado, e procurava iniciar uma conversa que pouco depois
ela própria chegava a interromper abruptamente... pois a
conversa com Glaucus acabava sempre por incidir num único
tema: Iona. E aquele nome pronunciado pelos lábios dele, eram
agonia profunda para o coração dela.
213
Muitas vezes se arrependia amargamente do serviço que tinha
prestado a Iona. Muitas vezes dizia para consigo própria:
Se ela tivesse caído, talvez Glaucus deixasse de a amar! E
então, obscuros e terríveis pensamentos avolumavam- se-lhe no
peito.
Ela não experimentara totalmente as opções que lhe estavam
reservadas, quando tinha sido assim tão generosa. Nunca tinha
estado presente anteriormente, enquanto Glaucus e Iona se
encontravam juntos; nunca tinha ouvido aquela voz tão suave
para ela, ser ainda mais suave para outra pessoa. O choque
que lhe despedaçou o coração quando soube que Glaucus amava,
tinha-a, a princípio, apenas entristecido e paralisado. Mas,
pouco a pouco, o ciúme ganhou formas mais violentas e
audazes, acendia o ódio, murmurava vingança.
Tal como o vento que apenas agita a verde folha no ramo da
árvore, enquanto que a folha que jaz gasta e murcha no chão,
magoada e pisada, até que a seiva e a vida se vão, é
subitamente arrebatada no ar... ora aqui, ora ali, sem
descanso e sem repouso. Assim, o amor que vive nos felizes e
nos esperançosos não tem senão frescura nas suas asas! A sua
violência é apenas brincalhona! Mas, o coração que caiu das
verdes coisas da vida, que não tem esperança, que não tem
verão nas suas fibras, é arrastado em turbilhão pelo mesmo
vento que apenas acaricia as suas irmãs, não tem ramo a que
se agarrar e despedaça-se, esmagada, de caminho em caminho,
até que os ventos se abatam, e ela fique para sempre
despedaçada na lama.
A infância, sem amor, de Nídia, tinha endurecido
prematuramente o seu carácter; talvez as ardentes cenas de
devassidão e desregramento pelas quais tinha passado,
aparentemente incólume, tivessem amadurecido as suas paixões,
embora não tivessem manchado a sua pureza. As orgias de Burbo
podiam ter a desgostado e enojado; os banquetes do egípcio
podiam ter a aterrorizado, mas os ventos que passam
despercebidos sobre solo, deixam sementes por detrás deles.
Como a escuridão também favorece a imaginação, assim, talvez,
a sua própria cegueira tivesse contribuído para alimentar,
com visões desvairadas e delirantes, o amor da infeliz
rapariga.
A voz de Glaucus fora a primeira que tinha soado ternamente
aos seus ouvidos. A ternura dele deixara uma profunda
impressão no seu espírito. Quando ele deixara Pompeia no ano
214
anterior, ela guardara religiosamente dentro do seu coração,
como um tesouro, todas e cada uma das palavras que ele
proferira. E quando alguém lhe dizia que o amigo e patrono da
pobre cega, vendedeira de flores, era o mais belo e o mais
brilhante dos jovens amantes de festas e banquetes de
Pompeia, sentia crescer dentro de si um agradável orgulho por
ter embalado e acalentado aquela recordação dentro de si.
Mesmo o trabalho que a si própria impusera, de tratar das
flores dele, servia para o manter presente no seu espírito.
Associava-o com tudo que fosse encantador. E quando se
recusara a exprimir qual a imagem a que ela comparava Iona,
segundo a sua própria fantasia, fizera-o, em parte, talvez
porque tudo quanto era brilhante e suave, ela já tinha
associado com a ideia que fazia de Glaucus.
Se algum dos meus leitores alguma vez numa idade da qual, ao
recordarem-se hoje, sorriem... uma idade em que a fantasia e
a imaginação se sobrepõem à razão, eles que digam se o amor,
entre todos os seus estranhos e complicados sabores não era,
acima de todas as paixões posteriores, a mais susceptível ao
ciúme? Não procuro aqui a causa; sei que isso é, vulgarmente
um facto.
Quando Glaucus regressou a Pompeia, Nídia tinha vencido mais
um ano da sua vida; aquele ano, com os seus sofrimentos e a
sua solidão, as suas experiências, tinham desenvolvido
enormemente o seu espírito e o seu coração; e quando o
ateniense a apertou, inconscientemente, contra o peito,
considerando-a ainda uma criança, tanto no espírito como no
número de anos quando a beijou nas suas faces de seda, e
rodeou com os seus braços o seu corpo tremente, Nídia sentiu
subitamente, e como uma revelação, que aqueles sentimentos
que ela tinha durante tanto tempo acariciado eram, na
realidade, sentimentos de amor.
Destinada a ser resgatada à tirania por Glaucus, destinada a
acolher- se sob o seu tecto, condenada a respirar, ainda que
por breve tempo, o mesmo ar que ele, e condenada, no primeiro
fulgor de milhares de sentimentos felizes, deliciosos, de
gratidão de um coração pungente, a ouvir que ele amava outra,
ser entregue a essa outra, ser mensageira, sentir subitamente
o amargo nada que ela era, que sempre deveria continuar a
ser, mas que, até então, o seu jovem coração ainda não lhe
tinha ensinado, aquele amargo nada para ele, para ele que era
tudo para ela... não admira que, na sua alma solitária e
apaixonada, todos os elementos
215
se entrechocassem, discordantes. Se o amor reinava sobre
todas as coisas, não era esse amor nascido das emoções mais
sagradas e mais puras!
Receava, por vezes, que Glaucus descobrisse o seu segredo.
Mas, outras vezes, sentia-se indignada por ele nem sequer
suspeitar desse amor. Era um sinal de desdém... Poderia ele
imaginar que ela ambicionava e aspirava tão alto? Os seus
sentimentos para com Iona diminuíam e aumentavam a cada hora
que passava; ora o amava por ele a amar, ora a odiava a ela,
pela mesma razão. Havia momentos em que teria sido capaz de
assassinar a sua inconsciente ama; outros momentos havia em
que teria sido capaz de dar a sua vida por ela. Estes
sentimentos violentos e tumultuosos, estas bruscas mudanças
de paixão eram demasiado fortes para as poder suportar por
muito tempo. A sua saúde foi-se deteriorando, embora ela não
o sentisse. As faces empalideciam, os seus passos tornavam-se
mais inseguros, as lágrimas soltavam-se-lhe dos olhos mais
frequentemente, e aliviavam-na pouco.
Uma manhã, quando se entregava ao seu habitual trabalho no
jardim do ateniense, encontrou Glaucus debaixo das colunas do
peristilo, com um mercador da cidade. Ele estava a escolher
jóias para a sua noiva. Tinha já preparado a caixa, e as
jóias que comprava naquele dia estavam já colocadas dentro
dela. Podem ser hoje vistas entre os tesouros que foram
descobertos em Pompeia, na sala do estúdio, em Nápoles (1).
- Vem cá, Nídia! Pousa esse vaso e vem cá. Deixa-me pôr-te
este colar... espera... pronto, já está! Vê, Servilius, não
lhe fica bem?
- Maravilhosamente! - respondeu o joalheiro, pois os
joalheiros já eram, mesmo naquela altura, homens bem educados
e lisonjeadores. -Mas quando estes brincos brilharem nas
orelhas da nobre Iona, então, por Baco!, verás se a minha
arte junta alguma coisa à sua beleza!
- Iona! - repetiu Nídia, que até então, aceitara, ruborizada
e sorridente, o presente de Glaucus.
- Sim! - respondeu o ateniense, brincando cuidadosamente com
as jóias. -Estou a escolher um presente para Iona, não
encontro nada verdadeiramente digno dela.
..........
(1)1 Várias pulseiras, correntes e jóias que foram
encontradas na casa.
216
Foi subitamente surpreendido, enquanto falava, por um abrupto
gesto de Nídia. Ela arrancou violentamente o colar do pescoço
e atirou-o ao chão.
- O que é isso? O que é que se passa, Nídia? Não gostas do
colar? Estás ofendida?
- Tratas-me sempre como uma escrava e como uma criança! -
retorquiu a tessaliana, com o peito assaltado por violentos
soluços mal reprimidos.
E, voltando-se de costas, afastou-se rapidamente para o canto
mais afastado do jardim.
A apologia do prazer
I
Quem assumirá os louros
Que o herói enverga?
Grinaldas no Túmulo dos Dias
Para sempre desaparecidas!
Quem perturbará o bravo,
Ou uma folha sequer do seu sagrado túmulo
Os louros são-lhe dedicados.
Deixem os louros no seu sagrado ramo!
Mas esta, a rosa, a esmaecente rosa
Cresce, tanto para o escravo, como para o homem livre.
II
Se a memória existe junto aos mortos
Com túmulos para seu único tesouro;
Se a esperança é perdida e a liberdade fugiu,
Maior desculpa há para o prazer.
Vem, tece a tua grinalda, tece as rosas,
Pelo menos a rosa é nossa.
Aos fracos corações deixo os nossos ais
Em escárnio piedoso, asflores!
221
III
No cume, gasto e grisalho
Do solene monte de Phyle,
Ressoam ainda os passos dos bravos!
E ainda no entristecido Marte Pulsa aquele coração poderoso
Cujo sangue era a glória!
Glaucopsis cai desamparada
Os deuses irados esquecem-nos;
Mas, contudo, as correntes azuis beijam os pés da canção de
prata; E o pássaro nocturno desperta a Lua;
E as abelhas no agitado dia
Abrigam o coração do velho Hymettos.
Estamos caídos, mas não desesperados,
Se alguma coisa se perdeu,
Como o Amor foi o primeiro a nascer,
Assim o Amor será o último a morrer!
IV
Tece então as rosas, tece;
O BELO é ainda nosso,
Enquanto a corrente correr e o céu brilhar
O BELO é ainda nosso,
Tudo quanto é lindo, e suave, e brilhante
No colo do dia ou nos braços da noite,
Murmura a nossa alma da Grécia... da Grécia,
E enche-nos com a voz da paz.
Tece as tuas rosas, tece!
Elas falar-me-ão das horas passadas,
Eeu ouvirei o coração do meu país dos lábios dasflores!
Capitulo Quinto
Capitulo Sexto
Capítulo Sétimo
Capitulo Oitavo
Arbaces estava sentado num quarto que abria para uma espécie
de balcão ou pórtico que dava para o seu jardim. As faces
estavam pálidas e abatidas com o sofrimento que tivera mas a
sua constituição de ferro já tinha recuperado dos gravíssimos
efeitos daquele acidente que tinha frustrado os seus dois
242
intentos no momento exacto da vitória. O ar que chegava até
ele, fragrante e intenso, fazia-o reviver lânguidas
sensações, e o sangue circulou mais livremente do que correra
nos últimos dias, pelas suas apertadas veias.
Pensava ele nesse momento:
"Então, a tempestade do destino quebrou e afastou-se, o mal
que o meu saber predizia, ameaçando a própria vida, aconteceu
e, no entanto, continuo vivo! Ele veio, tal como os astros
anunciavam. E agora, a longa, brilhante e próspera carreira
que havia de suceder ao mal, se eu lhe sobrevivesse, sorri.
Passei, sobrevivi ao último perigo do meu destino. Agora só
tenho de ficar nos jardins do meu futuro destino, sem temores
e em segurança. Em primeiro lugar, antes de todos os
prazeres, mesmo antes do amor, virá a vingança! Esse
rapazinho grego, que se atravessou no meu caminho e na minha
paixão, destruindo os meus intentos, escapando-se-me mesmo
quando a lâmina ia beber o seu maldito sangue... não me
escapará pela segunda vez! Mas... qual será o método melhor
para a minha vingança? Tenho de pensar maduramente nisso! Oh!
Até! Se és, na verdade, uma deusa, enche-me da tua mais cara
e profunda inspiração!"
O egípcio pareceu ficar mergulhado em sonhos, que não
pareciam apresentar-lhe quaisquer sugestões claras ou
satisfatórias. Mudou, impaciente, de posição, enquanto
passava de um esquema para o outro, pondo de lado uma ideia,
mal ela lhe surgia. Por várias vezes bateu no peito,
resmungando em voz alta, ardendo em desejos de vingança e
sentindo-se impotente para a executar.
Enquanto assim estava, absorvido em pensamentos, um escravo
entrou timidamente no quarto.
Uma mulher -que pelo aspecto do seu vestido e pelas vestes do
único escravo que a acompanhava, pertencia sem dúvida a uma
classe elevada - estava lá em baixo e aguardava que Arbaces
lhe concedesse uma audiência.
- Uma mulher! - exclamou Arbaces, com o coração a bater mais
rapidamente. - É nova?
- O rosto dela está coberto por um véu. Mas a sua figura é
leve, se bem que um pouco arredondada, como a das jovens.
- Manda-a entrar! - disse o egípcio.
Por um momento, o seu vão coração sonhou que a estranha
pudesse ser Iona.
243
Um primeiro olhar lançado à visitante que agora entrava no
quarto, bastou para o convencer da sua errónea fantasia. É
verdade que ela era da mesma altura de Iona, e talvez da
mesma idade, verdade que era finamente e ricamente formada...
mas, onde estava aquela graça ondulante e inefável que
acompanhava cada movimento da insuperável napolitana? Onde
estava o garbo puro e maravilhoso, tão simples mesmo no
cuidado da maneira como se arranjava? E os passos
dignificados e todavia tímidos... a majestade da mulher e a
sua modéstia?
- Perdoa-me que me custe a levantar - disse Arbaces, fixando
a estranha. -Estou ainda debilitado por uma doença recente.
- Não te incomodes, grande Egípcio! - retorquiu Júlia,
procurando disfarçar o medo que já experimentava. -E desculpa
uma infeliz mulher, que procura a consolação no teu saber.
- Aproxima-te, estranha! - disse Arbaces. - E fala sem
receios nem reservas.
Júlia colocou-se num assento junto do egípcio e olhoú,
admirada, à sua volta, observando as elaboradas e ricas
ornamentações que envergonhavam mesmo as ricas decorações da
casa de seu pai. Sentindo o medo a crescer dentro dela, olhou
as inscrições hieroglíficas nas paredes, os rostos das
misteriosas imagens, que em cada canto pareciam fixá-la, o
tripé que se encontrava a pouca distância, e, sobretudo, as
graves e notáveis feições do próprio Arbaces. Um longo
vestido, branco como um véu, cobria-o desde os cabelos
hirsutos até aos pés; o rosto parecia ainda mais
impressionante com a palidez que o cobria, e os seus olhos
escuros e penetrantes pareciam trespassar o véu que lhe
cobria o rosto, e explorar os secretos da sua alma fútil e
bem pouco feminina.
Numa voz profunda e baixa, disse Arbaces:
- E... o que te traz até mim, ó jovem? O que te traz à casa
deste estrangeiro do oriente?
- A sua fama! - respondeu Júlia.
- Em quê? - perguntou ele, com um sorriso leve e estranho.
- Porque perguntas, sábio Arbaces? Não é, acaso, o teu
conhecimento e a tua sabedoria o tema de todas as conversas
de Pompeia!
- Tenho, efectivamente, guardado como um tesouro o meu
244
pobre conhecimento! - retorquiu Arbaces. - Mas, em que é que
esses segredos sérios e estéreis podem beneficiar os ouvidos
da tua beleza!
- Ah! - exclamou Júlia, um pouco animada por aqueles elogios
tão habituais. -Não é costume a dor procurar alívio na
sabedoria? E aqueles que amam sem esperança, não são eles as
vítimas escolhidas pela dor?
- Sim! - respondeu Arbaces. - Pode o amor não correspondido
ser o mal de uma figura tão bela, cujas proporções modeladas
são visíveis mesmo por baixo das pregas do teu vestido?
Digna-te, jovem, erguer o teu véu, para que eu pelo menos
possa ver se o teu rosto corresponde à maravilha do teu
corpo.
Não pretendendo, talvez, exibir os seus encantos, e pensando
que eles pouco interesse teriam para o feiticeiro, Júlia,
após alguma hesitação, ergueu o véu e revelou uma beleza que,
salvo para arte, tinha sido na verdade atraente para o olhar
fixo do egípcio.
- Como me podes tu vir pedir conselho sobre um amor infeliz?
-perguntou ele. -Bem, volta esse rosto para quem tão mal
agradecido parece ser. Que outros encantamentos te poderei eu
dar?
- Oh! Deixa-te dessas conesias! - disse Júlia. - É,
realmente, um encantamento de amor que eu pretendo!
- Bela estranha! - retorquiu Arbaces, um pouco
escarninhamente. -Os feitiços de amor não estão entre os
segredos com que gastei o óleo da meia-noite a estudar!
- Isso é verdade? Nesse caso, perdoa-me, grande Arbaces, e
adeus!
- Fica! - pediu Arbaces que, apesar da sua paixão por Iona,
não se sentia indiferente perante a beleza da sua visitante.
E se ele se encontrasse com mais saúde, ter-se-ia tentado a
consolar a bela Júlia por outros meios e não propriamente com
a sua sabedoria sobrenatural.
- Fica! - repetiu. - Embora confesse que abandonei a
feitiçaria dos filtros e poções àqueles cujo comércio reside
nesse conhecimento, não sou tão insensível perante a beleza
que não os tenha usado na minha juventude, a meu próprio
favor. Posso, pelo menos, aconselhar-te, se fores amável para
comigo. Diz-me, então, primeiro: és solteira, como o teu
vestido significa?
- Sim! - respondeu Júlia.
245
- E, tendo sido favorecida com a fortuna, procuras alguém
igualmente rico?
- Sou mais rica do que aquele que me despreza.
- Estranho! Cada vez mais estranho! E tu amas alguém que não
te ama?
- Não sei se ele me ama! - respondeu Júlia, orgulhosamente. -
Mas sei que queria ver-me triunfante sobre uma rival, queria
vê-lo rastejar perante mim, queria vê-la, a ela que ele
preferiu, por sua vez desprezada.
- Uma ambição natural e... bem feminina - disse o egipcio,
num tom demasiado grave para ser irónico. -Mas, bela jovem,
quererás confiar-me o nome do teu apaixonado? Pode ele ser de
Pompeia, e desprezar a riqueza, mesmo admitindo que seja cego
perante a beleza?
- Ele é de Atenas! - respondeu Júlia, baixando os olhos.
- Ah! - exclamou o egípcio, impetuosamente, enquanto o sangue
lhe inundava as faces. - Só há um ateniense, jovem e nobre,
em Pompeia. Será, por acaso, Glaucus, de quem falas?
- Ah! Não me atraiçoes... Sim! É esse o seu nome.
O egípcio deixou-se cair para trás, olhando vagamente para os
olhos baixos da filha do mercador, e murmurando interiormente
para si próprio; esta conversa, a qual até então ele apenas
suportava, divertindo-se, até, com a credulidade e a vaidade
da sua visitante... não poderia levá-lo à sua vingança!
- Vejo que não me podes ajudar! - disse Júlia, ofendida com o
seu silêncio. - Guarda, pelo menos, o meu segredo. Uma vez
mais, adeus!
- Jovem! - tornou o egípcio, num tom grave e sério. - O teu
caso comoveu-me. Vou fazer aquilo que queres. Escuta-me! Eu
não me tenho envolvido com esses mistérios menores, conheço
alguém que talvez te possa ajudar. Na base do Vesúvio a menos
de uma légua da cidade, vive uma poderosa feiticeira. Sob o
orvalho da lua nova, ela colhe ervas que possuem a faculdade
de amarrar o Amor com eternos grilhões. A sua arte há-de
trazer o teu apaixonado a teus pés. Procura-a e fala-lhe no
nome de Arbaces. Ela teme esse nome, e dar-te-á os seus
filtros potentes.
- Ah! - exclamou Júlia. - Não sei o caminho para casa de quem
tu falas. Esse caminho, embora seja curto, é longo para ser
atravessado por uma rapariga que deixa a casa de seu pai
246
sem ninguém o saber. A zona está coberta de vinhe, os
selvagens i é perigosa, cheia de cavernas escuras. Não ouso
confiar-me a simples estranhos para me guiarem até lá. A
reputação das mulheres da classe nobre é facilmente
destruida... e embora eu não me importe que saibam que amo
Glaucus, não gostaria que soubessem que consegui o seu amor
por meio de um feitiço.
- Se eu tivesse mais três dias de repouso - disse o egipcio,
erguendo- se e caminhando pelo quarto, com passos irregulares
e fracos, como se quisesse experimentar as suas forças - eu
próprio te acompanharia. Bem, terás de esperar!
- Mas... Glaucus em breve casará com aquela odiada
napolitana.
- Casar?
- Sim! No princípio do próximo mês.
- Tão cedo! Estás bem informada disso?
- Soube-o dos lábios da própria escrava dela.
- Isso não pode ser! - exclamou o egípcio, violentamente.
-Não tenhas medo, Glaucus será teu. Mas, se conseguires a
poção, como achas que lha vais poder dar?
- O meu pai convidou-o, e à napolitana também, segundo julgo,
para um banquete depois de amanhã. Terei possibilidade de lha
dar nessa altura!
- Nesse caso está bem! - disse o egípcio, com os olhos
faiscantes de alegria, de tal maneira que o olhar de Júlia
tremeu. - Amanhã ao fim do dia, pede a tua liteira. Tens
alguma ao teu serviço!
- Certamente... sim! - retorquiu a orgulhosa Júlia.
- Prepara, então, a tua liteira. A duas milhas de distância
da cidade há uma casa que costuma ser frequentada pelos ricos
de Pompeia, pela excelência dos seus banhos e pela beleza dos
seus jardins. Podes perfeitamente fingir que vais passear até
lá. E ali, vivo ou morto, hei- de ir ter contigo junto à
estátua de Sileno, no bosque que circunda o jardim. E eu
próprio te levarei até à feiticeira. Esperaremos que as
cabras dos pastores se afastem para os seus redis, com a
estrela da tarde, e quando o crepúsculo for suficiente para
nos esconder e ninguém puder cruzar-se no nosso caminho. Vai
para casa e não tenhas medo. Por Hades! Arbaces jura que Iona
jamais se casará com Glaucus.
- E que Glaucus será meu? - perguntou Júlia, terminando a
frase deixada incompleta pelo egípcio.
247
- Tu o disseste! - retorquiu Arbaces.
Júlia, meio assustada com este encontro, mas acicatada pelo
ciúme e pela rivalidade, muito mais do que pelo amor,
resolveu cumprir o que o egípcio lhe dissera.
Uma vez sozinho, Arbaces explodiu:
"Brilhantes astros que nunca mentis. Já iniciastes a execução
das vossas promessas... sucesso no amor e vitória sobre os
inimigos, para o resto da minha doce existência. Na hora
precisa em que o espírito não conseguia ver nenhuma maneira
de obter a minha vingança, vós mandastes-me esta pobre louca
para me guiar."
Parou por momentos, em profundos pensamentos. "Sim!" murmurou
ele de novo, mas numa voz mais calma "Não poderei ser eu a
dar-lhe o veneno, que será, na verdade, o filtro. A morte
dele poderia ser trazida à minha porta. Mas a feiticeira...
ah! esse será o agente que cumprirá a minha vontade!"
Chamou um dos seus escravos, e ordenou-lhe que fosse atrás de
Júlia, para saber qual o seu nome e condição. Uma vez isto
feito, dirigiu-se para o pórtico. Os céus estavam serenos e
claros. Mas ele, profundo conhecedor dos mais pequenos sinais
de mudança, viu numa massa de nuvens, longe no horizonte, que
o vento começava lentamente a agitar, que se preparava uma
tempestade.
"É como a minha vingança"! murmurou ele. "O céu está claro,
mas a nuvem começa a mover-se!"
Capítulo Nono
Capitulo Décimo
O senhor do cinto de fogo e o seu lacaio - o destino escreve
a sua profecia em letras vermelhas, mas... Quem as lerá?
Livro Quarto
Capítulo Primeiro
I
Não é que o nosso céu de outrora
Deixe escapar as suas chuvas de Abril,
Ou que no coração da infância
Não existam serpentes por entre as flores.
Ah! Dobrada está de desgosto
Afolha mais brilhante,
As víboras envolveram-nos!
Embora jovens, o Passado atormenta-nos,
E o Presente enche-os de dor!
Mas a esperança rejubila em cada coisa.
Espera-nos o amanhã,
Como os raios do sol
Que apagam as sombras mais escuras.
II
Não que o futuro se teça apenas de cuidados!
Mas já o sorriso afasta a lágrima!...
Mais penosamente, mais doloridamente...
291
Asferidas são curadas.
Mas... tão devagar!
E o voto da Memória
Para os que agora estão perddidos,
Alegra-me demasiado, quase um sacrilégio!
E ensombra-se agora o rosto de Íris,
Ela que sorria sempre quando as nuvens nos cobriam!
Se as tempestades surgirem, partiremos tristes,
Para um espaço vazio à nossa frente;
E com os brinquedos
As alegrias de infância,
Quebrámos o bordão que nos apoiava!
Sábia e delicadamente, Iona tinha escolhido aquela canção,
embora a sua mensagem parecesse triste. Quando estamos
profundamente tristes, a voz da alegria surge discordante
acima de todas as outras; as palavras mais apropriadas são as
que advêm da própria melancolia, porque os pensamentos
sombrios, quando nenhuma luz os ilumina, podem pelo menos ser
suavizados, e perdem assim o contorno preciso e rígido da sua
verdade, e as suas cores liquefazem-se no ideal. Tal como a
sanguessuga provoca uma irritação exterior, quando aplicada a
uma ferida interna, a suave ferida que lha provoca afasta o
veneno daquela outra que era mais mortal, assim também, nas
chagas do espírito, o melhor é desviar para uma tristeza mais
suave à superfície, a dor que dilacera as entranhas.
O mesmo aconteceu com Apaecides, agarrando-se à influéncia da
voz de prata que lhe recordava o passado e não lhe falava
senão de metade do desgosto existente no presente; esqueceu
assim as suas mais imediatas e mais penosas fontes de
ansiedade. Passou horas a fazer com que Iona ora falasse com
ele, ora cantasse; e quando se levantou para a deixar, sentia
o espírito calmo e aquietado.
- Iona! - disse ele, apertando-lhe a mão. - Se ouvisses o meu
nome enegrecido e amaldiçoado... acreditarias nas más
línguas?
- Nunca, meu irmão, nunca!
- Não imaginas, de acordo com a tua fé, que o mal é sempre
punido e o bem recompensado?
- Podes tu duvidar disso?
292
- Pensas, então, que aquele que é verdadeiramente bom deveria
sacrificar todo e qualquer interesse egoísta ao fervor da
virtude?
- Aquele que assim faz é igual aos deuses!
- E tu acreditas que, de acordo com a pureza e a coragem com
que ele executa a sua acção, receberá a bênção, mesmo para lá
do túmulo?
- Assim nos ensinaram a ter esperança.
- Beija-me, minha irmã. Espera... só mais uma coisa... Tu
vais casar com Glaucus; talvez esse casamento nos vá separar
aimda mais irremediavelmente! Mas não é disso que quero falar
agora. Vais casar com Glaucus... Ama-lo tu? Espera, minha
irmã, responde-me por palavras.
- Sim! - murmurou Iona, corando.
- Sentes que, por ele, serias capaz de renunciar ao orgulho,
à honra, e seres mesmo levada à morte? Ouvi dizer que quando
as mulheres amam realmente, são levadas a esse excesso.
- Meu irmão! Tudo isso seria eu capaz de fazer por Glaucus, e
não o sentiria como um sacrifício para aqueles que amam,
quando sofrem pela coisa amada.
- Já chega! Poderá a mulher sentir assim pelo homem, e o
homem sentir menos devoção pelo seu Deus?
Não falou mais. Todo o seu rosto parecia imbuído e inspirado
com uma vida divina. O seu peito inchou de orgulho, os olhos
cintilaram, na testa lia-se a majestade de um homem que pode
ousar ser nobre! Voltou- se para fixar os olhos de Iona...
honestamente, corajosamente, temerariamente. Beijou-a com
ternura, apertou-a meigamente contra o peito e pouco depois
afastou-se.
Iona ficou por muito tempo no mesmo lugar, muda e pensativa.
As servas vieram uma vez e outra avisá-la de que o dia estava
a declinar e a recordar-lhe o convite para o banquete de
Diómedes. Por fim, despertou do seu sonho e preparou-se, não
orgulhosa pela sua beleza, mas melancólica e indiferente,
para a festa. Apenas um pensamento a reconciliava com a
prometida visita: iria encontrar Glaucus, iria poder confiar-
lhe o seu pesar e a angústia por causa do seu irmão.
Capitulo terceiro
Uma festa da moda e um jantar "à la mode" em pompeia
I
Escutem! Por estas flores a nossa música envia a sua saudação
A os nossos amados paços, onde Psilas faz brilhar o dia
Quando o jovem deus se encontra com a sua ninfa
Ensinou esta ária a rústicaflauta de Pan
Suave como os orvalhos do vinho
Espalhados neste banguete;
A rica libação da torrente divina do Som!
Oh, reverenda harpa, toca para Afrodite.
II
A trompeta ressoa selvagem, sobre as fileiras
I
Os alegres Amores estavam, um dia,
Saltando e brincando loucamente;
Mas raramente podem os Amores
Brincar durante muito tempo
Sem se comportarem de uma maneira triste.
......
(1) Sugerido por duas pinturas de Pompeia, que se encontram
actualmente no Museu de Nápoles, e que representam uma pomba
e um elmo entronizados por Cupidos.
307
Riram, brincaram, saltaram !
E então, subitamente, zangaram-se.
Que vergonha! Que vergonha!
Como podem discutir assim!
Minha Lésbia... ah! que vergonha, amor!
Acho que ainda não há uma hora atrás
Nósfizemos o mesmo, amor!
II
Os Amores eram livres até então,
Não tinham nem rei, nem leis, amor;
Mas os deuses, como os homens
Deviam ser súbditos!
Assim, resolveram, calmamente,
escolhér um rei que dominasse a revolta.
Um beijo! Ah! ah! Que coisa dolorosa
Se eu aceitasse o jugo de um rei
E deixxasse de ser livre, criança!
III
Entre os seus brinquedos um elmo encontraram;
Era o elmo de Ares;
O topo coroado de eriçadas palavras
Assustou todos os Lares.
Um rei tão belo jamais se conheceu...
E colocaram o elmo no trono.
Minha jovem, já que a Bravura vence o mundo,
Escolheram um chefe poderoso;
Mas a tua bandeira suave
De sorrisos desfraldada
Venceria o mundo bem mais depressa!
IV
Em breve achou o elmo de Amores
Demasiado dfíceis de dominar!
Pois os guerreiros sabem como uma dessas crianças
Sempre os enganou.
308
Aborreceram-no tanto que, em desespero,
Ele arranjou uma mulher para o ajudar.
Se até os próprios reis acham
Que a terra é tão severa
Quando não partilhada, amor!
Porquê dividir as colinas da vida?
Vem, toma o teu companheiro, rapariga!
V
Dentro daquela sala o Pássaro do Amor
Todo o caso tinha visto;
O monarca sarou a pomba real,
E colocou-a a seu lado;
Que alegria entre os Amores!
Longa vida! exclamou, para o Rei e para a Rainha!
Ah! Lésbia, fossem meus esses tronos
E minhas as coroas para cobrir a tua testa, amor!
E, no entanto, eu sei que o teu coração
Para mim é trono suficiente, amor!
VI
Os marotos esperavam aborrecer a companheira
Como tinham aborrecido o herói.
Mas quando a pomba em sentença os julgou
Acharam que ela era pior que Nero!
Cada olhar um sobrolho, cada palavra uma lei.
Os pequenos súbditos tremeram de medo.
Em ti encontro o mesmo engano.
Mas, ah! é demasiado tarde!
Onde haverá um rosto mais doce?
E onde, um tirano mais duro?
Capítulo Quarto
A história detém-se por momentos num episódio
Capítulo Quinto
Capítulo Sexto
Capítulo sétimo
Onde o leitor sabe do estado de glaucus - a amizade testada -
a inimizade suavizada - o amor continua o
Mesmo - uma das que ama, é cega
Capítulo oitavo
Um funeral clássico
O Canto Fúnebre
Sobre a triste soleira, onde o ramo de cipreste
Suplanta a rosa que deve adornar a tua casa,
Na última peregrinação sobre a terra
Que agora te aguarda,
A ti vagueante para Cocytus, vem!
Os nossos lamentos sombrios convidam ao choro,
A morte é tua hóspede...
O teu banquete reclama a tua alma,
As tuas grinaldas pendem dentro da
Casa da Noite
E apenas a negra corrente enche a tua taça
........
(1) Este costume era mais grego que romano; mas o leitor
observará que nes cidades da Magna Grécia, os costumes e as
superstições gregas misturavam-se com as dos romanos.
344
Não mais para ti o riso e a canção,
A jucunda noite.., a glória do dia!
As filhas de Argive (1) nos seus labores;
O pássaro do inferno descendo sobre a sua vítima,
O falso Aeolidesz (2) erguendo-se lento
Sobre o monte eterno, a eterna pedra,
O coroado Lydian (3), na sua grinalda,
E o filho da verde Callirrhoe, da cabeça de monstro!
Estes verás tu, enegrecidos
pelo escuro,
Que faz o céu de Plutão ainda mais sombrio.
Oh! Onde estás, olhando pálido na barca
Que espera o nosso rito para te levar?
Vem então! Sem mais demoras! Os pinheiros fantasmas
Aguardam o insepulto para a sua última moda;
Sobre o céu cinzento brilha impaciente o archote!
Vem, tristeza, vem... o perdido ordena-te que venhas!
Hino Ao Vento
III
O Ar augusto e eterno!
A fonte do todo aquele que respira e existe,
Do barro mudo diante de ti transporta
As sementes que de ti tirou!
Aspira, brilhante chama! Aspira!
Vento selvagem, desperta!
Desperta! É teu o Fogo Solene!
Oh, ar, toma o que é teu!
IV
Ele vem ! Ele vem ! Oh ! Ele varre
O vento que invocamos ainda agora,
E crepita, e dardeja e lambe.
A luz na pilha sagrada Ergue-se!
As suas asas entrelaçam-se,
Com chamas, como elas uivam e crescem.
Enroscam-se, enrolam-se aqui e ali
.....
(1) Flora.
(2) Rodes.
348
Como brilham as serpentes de chama,
Erguendo-se cada vez mais alto, cada vez mais alto
Continua, continua, fogo terrível!
Os teus membros gigantes enroscam-se
Nos braços do vento!
Oh! Os elementos encontram-se no trono
Da morte... para reclamar o que lhes pertence!
V
Balançai, balançai o incensório.
Fazei soar as cordas mais suavemente,
Das cadeias do teu tributo terreno,
Das amarras do teu espiral mortal,
Da prisão onde o barro te apertou
As mãos da chama libertam-te.
Oh, Alma! Tu és livre...
Completamente livre!
Quando os ventos na sua caçada sem fim,
Quando eles correm sobre o mar,
Tu podes voar pelos impérios do espaço.
Não há grilhões para ti!
Alegra-te! Sobre a onda lenta
Salve Eternum
Adeus ! Oh, alma que partiste!
Adeus! Oh, urna sagrada!
Os pranteadores voltam-se para a terra
350
Desoladamente... tristemente!
Partiste à nossa frente,
Para as praias escuras.
Mas as rápidas Horas levam-nos,
E tu precedeste-nos apenas por um instante.
Salve! Salve!
Amada urna e tu cela solene,
Mudas cinzas! Adeus!
Adeus!
Salve! Salve!
II
Ilicet... ire licet...
Ah! Partimos em vão!
O teu túmulo é o fiel coração.
Para todo o sempre te guardaremos,
Porque quem te pode arrancar do coração?
Em vão espalhamos sobre nós
As gotas da corrente,
E em vão brilhante diante de nós
O lustral fogo brilhará,
Porque onde está o encanto expelindo
O teu pensamento da sagrada morada!
As nossas dores são a tua festa funeral
E a Memória o teu sacerdote.
Salve! Salve!
III
Ilicet... ire licet!
A chama partiu da lareira
Para um lugar qualquer levada pelo ar.
Os elementos levam o que lhes pertencem,
Enquanto deslizas pelo Rio Sombrio!
Se o amor pode na vida ser breve,
Na morte existe para sempre.
Salve! Salve!
No hall que ilumina as nossas festas,
A rosa pode florir por uma hora.
351
Mas o cipreste que cobre o túmulo,
O cipreste é verde para sempre!
Salve! Salve!
Capítulo Nono
Onde uma aventura acontece a iona
Capitulo décimo
O que acontece a nídia em casa de Arbaces - o egípcio sente
compaixão por glaucus - a compaixão é, muitas vezes, um
visitante bem inútil nos que são culpados
395
- Sósia! De quanto precisas tu para comprares a tua li
berdade?
- De quanto? Ora, de cerca de dois mil sestércios.
- Que os deuses sejam louvados! Só precisas disso? Estás a
ver estas pulseiras e esta corrente? Elas valem bem mais que
o dobro dessa soma. Dar-tas-ei se...
- Não me tentes! Não posso libertar-te. Arbaces é um amo
severo e terrível. Quem sabe? Era até capaz de me mandar
atirar ao Sarnus, para servir de alimento aos peixes! Oh! E
então... nem todos os sestércios do mundo chegariam para me
devolver a vida. É bem melhor um cão vivo do que um leão
morto.
- Sósia... a tua liberdade! Pensa bem! E basta apenas que me
deixes sair por uma hora! Deixa-me sair à meia-noite... Vol
tarei antes que amanheça! Ou melhor, podes até vir comigo!
- Não! - disse Sósia teimosa e abruptamente. - Um escravo que
se atreva a desobedecer a Arbaces nunca mais ninguém ouve
falar dele!
- Mas a lei não permite que um amo tenha poderes sobre a
vida de um escravo!
- A lei é muito bondosa, mas, infelizmente, é mais cortês do
que eficiente. Eu sei que Arbaces consegue pôr sempre a lei
do lado dele. Além disso, se eu já estiver morto, não há lei
nenhuma que me restitua a vida.
Nídia torceu as mãos num gesto de desespero.
- Não há, então, nenhuma esperança? - perguntou ela,
convulsivamente.
- Nenhuma! Não sairás daqui, a não ser quando Arbaces
der ordens para isso!
Rapidamente, Nídia disse:
- Bem, então, não poderás, pelo menos, recusar-te a levar uma
carta minha. O teu amo não te pode matar por isso...
- Uma carta para quem?
- Para o pretor!
- Para um magistrado! Não... eu não! Fariam de mim testemunha
no tribunal, para eu falar daquilo que sei. E a maneira
que eles utilizam para fazer os interrogatórios aos escravos
é a tortura.
- Perdão! Eu não queria dizer o pretor! Essa palavra
396
escapou-se-me dos lábios sem eu querer. Eu queria dizer outra
pessoa completamente diferente... o alegre Sallust.
- Oh! Que podes tu querer dele?
- Glaucus foi meu amo. Comprou-me a um amo cruel. Só ele foi
bondoso para comigo. E agora... vai morrer! Jamais poderei
voltar a viver feliz se não puder fazer com que, na hora da
sua condenação, ele saiba que existe ao menos um coração que
lhe agradece o que fez. Sallust é seu amigo. Ele entregar-
lhe-á a minha mensagem.
- Tenho a certeza de que não fará nada disso. Glaucus terá
bastante em que pensar entre hoje e amanhã sem estar a
preocupar-se com uma rapariga tola e cega.
- Homem! - ripostou Nídia, erguendo-se. - Queres ficar livre?
Tens nas tuas mãos o poder de conseguires essa liberdade!
Amanhã será demasiado tarde. Nunca a liberdade foi tão
facilmente negociada. Podes deixar a casa com facilidade e
sem que dêem pela tua falta, e em menos de uma hora estarás
de volta. Por uma coisa assim tão simples recusas a
liberdade?
Sósia sentiu-se hesitante. Era verdade que aquele pedido era
espantosamente estúpido e insignificante. Mas... e depois? O
que é que ele tinha a ver com aquilo que ela escrevia, ou
não? Tanto melhor! Podia fechar a porta, deixando Nídia
trancada e se Arbaces viesse a descobrir a sua ausência, o
delito era menor e não valeria senão uma simples reprimenda.
No entanto, se a carta de Nídia contivesse mais alguma coisa
do que ela tinha dito, se ela falasse da sua prisão, como ele
imaginava que faria, o que poderia acontecer? Era preciso que
Arbaces nunca soubesse que tinha sido ele quem tinha levado a
carta. Mas... o suborno era enorme, o risco era pequeno, a
tentação irresistível. Não hesitou mais... e aceitou a
proposta.
- Passa então para cá essas bijuterias sem valor e eu levarei
a carta. Mas, espera, tu és uma escrava! Tu não tens nenhum
direito a esses ornamentos. Eles pertencem a teu amo!
- Eles foram um presente de Glaucus. Ele é o meu amo. Como
pode ele reclamá-los? Quem mais sabe que estão em meu poder?
- Está bem! Já chega! Vou buscar-te papiro para escreveres!
- Não! Papiro não! Traz-me antes uma tábua de cera e um
estilete.
397
Nídia, como o leitor já terá percebido, provinha de famílias
educadas. Os seus pais tinham feito tudo para aliviar a sua
infelicidade, e a sua inteligência sagaz e arguta tinha
correspondido aos esforços deles. Apesar de ser cega, ela
tinha aprendido na infância, a arte, ainda que imperfeita, de
escrever com um estilete afiado sobre placas de cera, sobre
as quais o seu apurado sentido do tacto a ajudava.
Quando as placas lhe foram trazidas, traçou algumas letras em
grego, a linguagem da sua infância, e que quase todos os
italianos da classe elevada deviam conhecer. Rodeou
cuidadosamente a epístola com o fio protector e cobriu o nó
com cera.
Antes de a depositar nas mãos de Sósia, Nídia dirigiu-se-lhe
com as seguintes palavras:
- Sósia, eu sou cega e estou prisioneira. Podes pensar em
enganar-me, poder fingir que levas a carta a Sallust, podes
não cumprir a tua promessa! Mas solenemente aqui declaro que
a vingança caia sobre a tua cabeça, que a tua alma vá para os
poderes do inferno, se iludires a confiança que em ti
deposito. Exijo-te que coloques a tua mão direita sobre a
minha, e repitas comigo estas palavras! "Pelo chão sobre o
qual nos encontramos, pelos elementos que contêm a vida e
podem amaldiçoar a vida, por Orcus, o sempre vingador, por
Júpiter Soberano e Omnividente, juro que cumprirei
honestamente a missão que me foi confiada e que entregarei
esta carta nas mãos de Sallust! E se eu cometer perjúrio
neste juramento, que todas as maldições dos céus e dos
infernos se abatam sobre mim! Pronto!" Já chega! Confio em
ti... Toma a tua recompensa. Já está escuro... Parte
imediatamente!
- És uma rapariga estranha, e assustaste-me terrivelmente.
Mas é tudo muito natural! E se eu conseguir encontrar
Sallust, podes crer que lhe entregarei a carta, tal como
jurei. Pela minha fé, posso ter os meus pecadilhos, mas
perjúrio... nunca! Deixo isso para os outros!
Depois destas palavras, Sósia retirou-se, fechando
cuidadosamente a porta da cela de Nídia com a pesada tranca,
deixando assim bem trancada a sua prisioneira, e guardou a
chave no cinto. Dirigiu-se depois para o seu cubiculum,
enrolou-se da cabeça aos pés com uma enorme capa e deslizou
pelas traseiras da casa sem um ruído e sem ser visto.
398
As ruas estavam vazias e ele chegou rapidamente a casa de
Sallust. O porteiro ordenou-lhe que deixasse a sua carta e
que se fosse embora porque Sallust estava tão perturbado pela
condenação de Glaucus que não podia ser incomodado por
absolutamente nada deste mundo.
- Seja como for, eu jurei que entregaria esta carta nas suas
próprias mãos... e é isso que farei!
E Sósia, sabendo bem, pela própria experiência, que Cerberus
gostava de qualquer coisa que o consolasse, meteu meia dúzia
de sestércios na mão do porteiro.
- Bem... bem! - retorquiu este último, relutante. - Podes
entrar, se quiseres. Mas, para te dizer a verdade, Sallust
tem estado a beber que nem um perdido para aliviar o seu
desgosto. É sempre o que ele faz, quando qualquer coisa o
perturba e incomoda. Ordena que lhe façam uma ceia soberba,
que lhe sirvam o melhor vinho e não acaba senão quando tudo
lhe desaparece de dentro da cabeça... excepto os efeitos do
vinho!
- Um plano excelente... excelente! - exclamou Sósia.
- Ah, o que não vale ser rico! Se eu fosse Sallust, arranjava
um desgosto todos os dias. Mas... vê se dás uma palavrinha
amável
ao escravo do átrio... Ele vem ali!
Sallust estava demasiado triste para receber companhia.
Estava demasiado triste, também, para beber sozinho. Assim,
mandou que o seu criado favorito lhe fizesse companhia e
nunca banquete mais estranho se tinha realizado. De vez em
quando o bondoso epicurista suspirava, lamuriava, chorava
desalmadamente e depois devotava-se de corpo e alma a outro
prato e a outro copo novamente cheio.
- Meu bom companheiro! - dizia ele para o criado. - Foi um
julgamento horroroso! Ai... Ai de mim! Aquele tipo não é mau!
Pobre Glaucus! Querido Glaucus! E que mandíbulas tem aquele
maldito leão, também! Ah! Ah! Ah!
E Sallust chorava ruidosamente, sendo de repente interrompido
por violentos soluços.
- Toma uma taça de vinho! - aconselhou o criado.
- Uma ideia demasiado fria! Mas... como Glaucus deve sentir
frio! Fecha a casa toda amanhã! Que nada se mexa! Que nem um
só escravo se atreva a fazer barulho, nenhum deles, e ninguém
desta casa irá àquela maldita arena! Ninguém! Não!
Não! Não!
399
- Prova o falerniano... ele ajudará a distrair-te... Pelos
deuses, verás que te ajuda... Toma, come este pedaço de bolo
de queijo.
Foi neste auspicioso momento que Sósia foi levado à presença
do inconsolável romano.
- Oh! ... Quem és tu!
- Apenas um mensageiro para Sallust. Venho entregar-lhe este
bilhete mandado por uma jovem. Não é preciso dar resposta,
que eu saiba. Posso ir-me embora?
Assim falou Sósia, mantendo o rosto encoberto pela capa e
falando com voz disfarçada, para que nunca o pudessem vir a
reconhecer.
- Pelos deuses! Um alcoviteiro! Miserável sem sentimentos!
Não vês o meu desgosto? Vai-te embora! Que as maldições de
Pandurus caiam sobre ti!
Sósia não esperou nem mais um momento e retirou-se.
- Queres ler a carta, Sallust? - perguntou o criado.
- Carta? Qual carta? - inquiriu o epicuro, vacilando, porque
começava a ver as coisas em duplicado. - Malditas meretrizes!
... É o que digo! Serei eu um homem para pensar... quando...
o meu amigo vai ser devorado?
- Come outro pedaço de bolo!
- Não! Não! O meu desgosto é demasiado grande!
- Levai-o para a cama! - ordenou o criado aos escravos.
Os escravos obedeceram e transportaram Sallust, agora de
cabeça descaída sobre o peito, para o seu cubiculum; o romano
continuava a murmurar lamentações por Glaucus e imprecações
pela falta de sentimentos das damas do prazer.
Enquanto isso, Sósia voltava, indignado, para casa.
- Alcoviteiro! ... Realmente! - resmungava ele de si para si.
- Alcoviteiro! Um língua suja é o que ele é... aquele
Sallust! Se me tivesse chamado velhaco, ou ladrão, ainda lhe
podia perdoar. Mas... alcoviteiro! Que sem vergonha! Há nessa
palavra algo que nem o estômago mais duro do mundo consegue
suportar! Um velhaco é um velhaco para seu próprio prazer, e
um ladrão é um ladrão para seu próprio proveito. E há
qualquer coisa de honroso e de filosófico em se ser um
vigarista para seu próprio bem... isto é, fazer coisas sob um
princípio... em grande escala. Mas um alcoviteiro é uma coisa
que se corrompe por ou tra... uma panela de barro que é posta
ao fogo para fazer a sopa
400
de outra pessoa qualquer... um guardanapo onde todos os
convidados limpam os dedos! E o lavador de pratos diz: "Com
sua licença Um alcoviteiro!" Antes me tivesse chamado
parricida!
"- Mas o homem estava bêbado, e não sabia o que dizia! E,
além
disso, eu estava disfarçado. Se ele tivesse visto que era
Sósia que tinha à sua frente e que falava com ele, teria dito
honesto Sósia!... e homem digno! Aposto que era isso que ele
faria.
Bom, mas o que interessa é que aquelas jóias foram ganhas
facilmente... isso já é algum conforto! E... oh, deusa
Ferónia! Em breve serei um homem livre! E então... sempre
quero ver quem
é que me vai chamar de alcoviteiro! A menos que... me pague
bastante bem por isso!
Enquanto assim falava consigo mesmo, deste modo tão elevado e
generoso, Sósia seguia o seu caminho por uma estreita
vereda que levava ao anfiteatro e aos palácios que lhe
ficavam
adjacentes. De repente, quando virou uma esquina, encontrou-
se no meio de uma considerável multidão. Homens, mulheres e
crianças todos pareciam excitados, falando, rindo,
gesticulando e, antes que se apercebesse bem do que se estava
a passar, o digno Sósia foi arrastado pela barulhenta
corrente.
- O que é que se passa? - perguntou ele ao seu mais próximo
vizinho, um jovem artífice. - Para onde é que correm estas
boas gentes? Será que algum patrono rico está a distribuir,
esta
noite, esmolas e alimentos?
- Não, homem! É ainda melhor! - respondeu o artífice.
- O nobre Pansa... o amigo do povo... deixou que o povo visse
as feras nos seus vivaria. Por Hércules! Elas não serão
vistas
amanhã com tanta segurança por algumas pessoas!
- É um bom espectáculo! - disse o escravo, acompanhando
a multidão que o empurrava para a frente. - E já que não
posso
ir amanhã aos jogos, posso bem dar hoje uma olhadela às
feras!
- Farás bem - retorquiu o seu novo conhecido. - Um
leão e um tigre não são coisas que se vejam todos os dias em
Pompeia!
A populaça tinha agora entrado num espaço mais irregular
onde, como era pouco iluminado e estreito, a pressão se
tornava perigosa para aqueles cujos membros e ombros não eram
propriamente resistentes para andarem no meio duma multidão.
Todavia, especialmente as mulheres, muitas das quais com
crianças nos braços e mesmo ao peito, eram as mais resolutas
401
em forçar o caminho. E as suas exclamações estridentes de
queixa ou exprobação faziam-se ouvir acima das vozes mais
joviais e masculinas. No entanto, entre elas ouviu-se uma voz
jovem de rapariga que parecia vir de alguém demasiado feliz
na sua excitação de estar viva para grande inconveniente da
multidão.
- Ah! - gritou a jovem, a alguns dos seus companheiros. - Eu
sempre disse isso! Eu sempre disse que havíamos de ter um
homem para o leão. E agora temos um também para o tigre!
Queria que o dia de amanhã já tivesse chegado!
Canção Epicurista
Livro Quinto
Capitulo primeiro
O sonho de Arbaces - um visitante e um aviso para o egípcio
Capitulo segundo
O Anfiteatro
Capítulo terceiro
Capitulo quarto
Capítulo Quinto
Capitulo sexto
O Progresso Da Destruição
Capítulo oitavo
Arbaces Encontra Glaucus E Iona
Capitulo nono
Capítulo décimo
Último capítulo
Como Terminam Todas As Coisas
Fiiiiiiiiiiiiiiiim