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RIO DE JANEIRO
2013
Flavio Mota de Lacerda Pessoa
RIO DE JANEIRO
2013
FICHA CATALOGRÁFICA
________________________________________________________
Prof. Dr. João Manuel Casquinha Malaia Santos
PPGHC – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Orientador
________________________________________________________
Prof. Dr. Victor Andrade de Melo
PPGHC – Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Antônio da Silva
PPGHS – Universidade de São Paulo
________________________________________________________
Profa. Dra. Gracilda Alves (suplente)
PPGHC – Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________________________________________
Prof. Dr. Rafael Fortes Soares (suplente)
Laboratório de Comunicação e História - UNIRIO
Dedico a meus pais e meus irmãos, que sempre me deram apoio incondicional, atenção e
carinho a todas as minhas empreitadas, contribuindo, cada um a seu modo, para meu
conhecimento e amadurecimento, fundamentais a esta caminhada; e à Roberta de Freitas,
minha companheira, namorada, amiga, por todo apoio, ajuda, atenção e carinho dedicados ao
longo desse intenso período de mestrado.
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. João Manuel Casquinha Malaia Santos, orientador da presente dissertação,
por sua completa dedicação e pelas preciosas contribuições para esta pesquisa.
Ao Prof. Dr. Victor Andrade de Melo, que, além de ter sugerido um tema tão profícuo,
acompanhou e sempre contribuiu para os rumos desta pesquisa.
Ao Prof. Dr. Marcos Antônio da Silva, por sua dedicação e pertinentes observações que
muito contribuíram para o enriquecimento das discussões da presente dissertação.
Ao cartunista do jornal Clarín, Hermenegildo Sábat, pelas preciosas informações e
fontes sobre Lorenzo Molas, bem como por dispor de seu tempo para uma valiosa e agradável
entrevista.
Ao jornalista Achiles Chirol, por preciosas informações sobre Henfil no período em que
foi diretor no Jornal dos Sports.
À Prof. Dra. Magda Jaolino Torres por ter me aceitado como aluno ouvinte e por ter
ajudado tanto na minha preparação para o processo seletivo do Programa de Pós-Graduação.
À Prof. Dra. Cristina Buarque de Hollanda, por ter me apresentado ao Programa de Pós-
Graduação em História Comparada, bem como ao Prof. Dr. Victor Andrade de Melo e o
grupo de estudos por ele coordenado.
A todos os colegas e companheiros do Sport: Laboratório de História do Esporte e do
Lazer (UFRJ) pela atenção, amizade e por todas as discussões e contribuições para o
aprimoramento da pesquisa.
À minha querida colega Karina Barbosa Cancella, que ingressou no mesmo ano que eu
no Programa de Pós-Graduação em História Comparada e que, do início ao fim do mestrado,
sempre me auxiliou e tirou minhas dúvidas em questões diversas.
A todos os professores, funcionários e colegas de Mestrado e Doutorado do Programa
de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro por
toda a atenção ao longo deste curso.
Aos inúmeros mestres que, desde o início de minha caminhada acadêmica e artística,
me auxiliaram na construção dos conhecimentos que serviram como base para este trabalho.
Aos funcionários da Biblioteca Nacional pela atenção de sempre.
Aos meus amigos pelo carinho de sempre e pela paciência e compreensão das ausências
em tantos momentos, em especial ao amigo Jardel Sebba Filho, que prontamente me
emprestou um livro raro de Mário Filho que muito contribuiu para a pesquisa.
RESUMO
PESSOA, Flavio Mota de Lacerda. Humor, futebol, política e sociedade nas charges do
Jornal dos Sports: um estudo comparativo entre as obras de Lorenzo Molas (1944-1947) e
Henfil (1968-1973). Rio de Janeiro, 2013. Dissertação (Mestrado em História Comparada) –
Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de História, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. 206f.
O poder de alcance do humor gráfico vem sendo reconhecido por novas perspectivas
historiográficas que investigam o que charges, caricaturas e cartuns podem nos informar sobre
o passado. Paralelamente, o campo da História do Esporte vem se consolidando nas últimas
décadas, ampliando as discussões entre os mais diversos assuntos que envolvem o fenômeno
esportivo. Com relação à charge esportiva, entretanto, percebemos que um farto material de
enorme relevância historiográfica permanece ainda inexplorado por pesquisadores que
abordam os dois campos de estudo. As charges de Lorenzo Molas e Henrique de Sousa Filho
(HENFIL) chamam a atenção, a princípio, por terem sido publicadas no diário esportivo que
alcançou provavelmente maior popularidade no Rio de Janeiro e por envolverem o futebol
carioca e representações simbólicas de tradicionais clubes e torcidas do Rio de Janeiro. Para
além dessas semelhanças, foram produzidas em períodos da história política recente do país,
marcados pelas duas ditaduras responsáveis por transformações significativas na sociedade
brasileira. A presente dissertação procura observar como essas charges expressam, de modo
peculiar, transformações e continuidades da sociedade no Rio de Janeiro.
Palavras-Chave: Charge esportiva. Jornal dos Sports. Futebol. Ditadura Militar. Estado
Novo.
ABSTRACT
PESSOA, Flavio Mota de Lacerda. Humor, futebol, política e sociedade nas charges do
Jornal dos Sports: um estudo comparativo entre as obras de Lorenzo Molas (1944-1947) e
Henfil (1968-1973). Master’s dissertation on Compared History – Universidade Federal do
Rio de Janeiro’s History Institute Compared History Post-graduation Program, Rio de Janeiro,
2013. 206f.
Political and Social Humor in Molas’ (1944-1947) and Henfil’s (1968-1972) cartoons for the
newspaper “Jornal dos Sports”
The reaching power of graphic humor has been recognized by new historiographical
perspectives that investigate what it can tell us about the past. In parallel, the field of sports
history has been consolidated in recent decades, expanding the discussions to a wider range of
issues surrounding the phenomenon of sports. Regarding sports cartoons, however, we
realized that a vast material of great historiographical relevance remains unexplored by
researchers that address the two fields of study. The cartoons of Lorenzo Molas and Henrique
de Sousa Filho, or Henfil, drew attention, at first, because they have been published in the
sports journal that reached probably the largest popularity and dealt with football and
symbolic representations of traditional clubs and fans in Rio de Janeiro. Beyond these
similarities, both produced their works in two periods of the country's recent political history,
marked by two dictatorships responsible for significant changes in Brazilian society. We
believe that, in many aspects and in a peculiar way, these cartoons express the delicate
moments that the country went through.
Keywords: Sports cartoon. Jornal dos Sports. Football. Military Dictatorship. Estado Novo.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Página
CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO
Figura 1.1 Charge de Molas: “Pelo buraco da fechadura”. JS, 12 out. 1944, p. 1 02
Figura 1.2 Charge de Henfil: “A união”. JS, 13 dez. 1970, p. 2 03
Página
CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO 01
1.1 Estudos iconográficos e a interpretação da obra de arte: delimitando fronteiras entre
charge, cartum e caricatura 12
1.2 Vantagens do método comparativo 14
1.3 Corpus Documental 16
1.4 Ampliando a discussão historiográfica através da charge: um breve
mapeamento 18
1.5 Caricatura e esporte na história – um campo a ser explorado 21
1.6 Planejamento de capítulos 23
REFERÊNCIAS 185
Fontes 186
Documentos 186
Periódicos 186
Bibliografia 189
1
1
INTRODUÇÃO
2
Figura 1.1 Lorenzo Molas utilizava a metáfora da conquista amorosa, em que as mascotes dos times do futebol
carioca disputavam todo ano a mão de uma nova Miss Campeonato. Mascotes dos times de menor expressão não
tinham lugar na casa. Jornal dos Sports, 12 de outubro de 1944, p. 1.
3
Figura 1.2 Concepção politizada das torcidas de futebol, explorando a diferença de classes. A charge esportiva
se torna um pretexto para tornar explícita a luta de classes e a distinção social. Jornal dos Sports, 13 de
dezembro de 1970.
4
Embora a primeira charge (Figura 1.1) remeta a acontecimentos esportivos, não vemos
ali qualquer vestígio de campo, bola ou jogadores uniformizados. Estamos, sim, diante de
uma sala de estar razoavelmente movimentada. No primeiro plano, à esquerda da cena, uma
senhora obesa joga cartas com um distinto e aborrecido cavalheiro, trajado a rigor. Enquanto a
senhora o observa com encanto, sonhando em levá-lo ao altar, o cavalheiro afunda a cabeça
sobre a mão e o cotovelo sobre a mesa, lamentando sua sorte: “até aonde eu desci”, diz ele.
Na certa, refere-se ao fato de ter trocado a companhia da desejada Miss Campeonato pela da
mãe dela, a robusta senhora à sua frente na mesa. Quem ocupa o posto mais disputado
daquela sala, no momento, é o marinheiro Popeye, que já toma o braço da pretendida, a
pretexto de tirar as medidas de seu dedo para mandar providenciar a aliança. Ao lado do sofá,
o Pato Donald e um almirante português confabulam, tramando arrancar o marinheiro de sua
confortável posição.
Seria preciso acompanhar as charges que vinham sendo publicadas diariamente no
Jornal dos Sports1 desde junho daquele ano para sabermos que o distinto cavalheiro que
acompanha a senhora no carteado é o Cartola, representante do aristocrático Fluminense; que
o Popeye representa o Flamengo; Pato Donald, o Botafogo; e o almirante português, o Vasco
da Gama. A senhora que alimenta pretensões matrimoniais com o Cartola é a mãe da tão
disputa Miss Campeonato. Do lado de fora da casa, competiam, para observar pelo buraco da
fechadura, representantes dos times que não mantinham grandes pretensões no campeonato: o
Diabo do América, o Operário do Bangu, o Santo Obeso do São Cristóvão, além do sujeito de
aparência tímida, carregando seu inseparável guarda-chuva e com o chapéu enterrado na
cabeça, que era o representante do Bonsucesso e posteriormente ganhou dos leitores o nome
de Seu Leopoldino.2 A referida charge registra um momento em que o Flamengo começaria
uma nova arrancada, repetindo um suposto feito mencionado em colunas e matérias do JS,
quando o clube conquistara o campeonato por duas vezes consecutivas após impor
surpreendentes reviravoltas, que lhe valeram a comparação com o personagem marinheiro que
renovava as forças com latas de espinafre.
Na charge seguinte (Figura 1.2), dividida em quadros, vemos um sujeito enfezado,
com pinta de janota, com uma desproporcional gravata borboleta, bigodinho discreto “à
francesa” e o cabelo partido ao meio. A camisa, de fios verticais estreitos e próximos, sugere
o tradicional uniforme tricolor do Fluminense. Mantendo sempre as mãos dadas com um
gordinho despenteado, enfiado na camisa alvinegra do Botafogo, em listras igualmente
1
A partir da próxima menção ao Jornal dos Sports, será usada a sigla JS.
2
Acreditamos se tratar de uma possível alusão à Estação Leopoldina, referência primordial no bairro.
5
verticais com faixas mais espessas pretas e brancas, o tricolor vai tirar satisfação com uma
rodinha de torcedores rivais, que não esboçam qualquer reação. O grupo é formado por três
personagens. O primeiro, de cabelo “pixaim”, traja uma camisa com grossas listras pretas
horizontais, representando o uniforme rubro-negro do Flamengo. No meio, de frente para o
leitor, vemos um gato sem camisa, mas “humanizado”: tem o mesmo tamanho dos demais e
se senta de pernas cruzadas, como os outros. Por acaso, não vemos no gato o escudo do
América sobre o peito, como aparecia em outras charges. O último personagem é um
volumoso português que personifica o estereótipo da colônia lusitana no Brasil: careca,
barrigudo, usando bigodes com as pontas voltadas para cima. Em sua camisa destaca-se uma
faixa preta atravessada no peito, ostentando a cruz de malta do Vasco da Gama, junto ao
coração.
No dia 13 de dezembro de 1970, dois dias antes da publicação da referida charge
(Figura 1.2), começava o quadrangular final do campeonato brasileiro3 e o Fluminense era o
único clube carioca ainda vivo na competição. Com a vitória tricolor na primeira rodada, a
charge de Henfil, publicada dois dias após a partida, não enaltecia o feito, preferindo dar uma
alfinetada no clube identificado com a elite. “Traidores injustos!”, brada furioso o elitista
torcedor do Fluminense, batizado pelo cartunista com o apelido com o qual a torcida tricolor
já era conhecida: “Pó de Arroz”.4 Mantendo sempre as mãos dadas com o Cri-Cri, torcedor do
Botafogo, o tricolor tira satisfação com os torcedores rivais. O motivo da revolta é por conta
de seus conterrâneos terem supostamente se alinhado, com exceção do alvinegro, à torcida do
Palmeiras. Diante da fúria do Pó de Arroz, os torcedores dos três times rivais (incluindo o
América, representado pelo gato)5 formam uma rodinha, fingindo indiferença. O Pó de Arroz
só interrompe subitamente sua indignação para mostrar seu reconhecimento ao gordinho
alvinegro, o único a apoiar o Fluminense no jogo com os paulistas. Trocando olhares de afeto
com o Cri-Cri, o Pó de Arroz, agradecido, reconhece o apoio do parceiro: “Só as bandeiras do
Botafogo ficaram do lado da elite carioca. Só a cricrizada não traiu o Rio e torceu pelo
3
O principal campeonato nacional de clubes, que reunia os mais tradicionais clubes do futebol brasileiro,
indicando os representantes brasileiros na Taça Libertadores da América, ainda não era tido como o Campeonato
Brasileiro. Só no fim do ano de 2010, os títulos das competições nacionais desde 1959 foram unificados.
4
Mário Filho eternizou no anedotário do futebol brasileiro, através da obra clássica “O Negro no Futebol
Brasileiro”, um episódio jamais comprovado pela pesquisa historiográfica em que um jogador mulato do
Fluminense, envergonhado pelo contraste entre o tom de sua pele e a de seus companheiros, cobria-se de pó de
arroz, o que teria originado o “apelido” da torcida tricolor. Ver: FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 42-43.
5
O único personagem que nessa charge não demonstra claramente seu time é o gato, representando a torcida do
América. Certamente a escolha pega carona na expressão: “meia dúzia de gatos pingados”, usada para se referir
a um número inexpressivo de pessoas, aludindo à certeza de que a torcida do América seria nitidamente a menos
numerosa entre as dos mais tradicionais clubes do Rio de Janeiro.
6
tricolor”. Diante da estupefação dos rivais, o Pó de Arroz promete se vingar da traição: “Mas
o crioléu vai pagar caro. Não vamos convidar nenhum de vocês para o nosso noivado não é,
Cri-Cri?”.
Ao primeiro olhar, as duas cenas descritas acima se contrastam explicitamente e, ao
olhar precipitado, parecem remeter a assuntos distintos. Entre as duas, o ponto em comum que
possibilita investir uma comparação válida para a pesquisa historiográfica é que ambas
ocuparam, em seus respectivos períodos, o espaço reservado ao humor gráfico das célebres
páginas cor-de-rosa do JS. Desde o dia 17 de junho de 1944, o JS, periódico que por tanto
tempo intitulou-se o diário esportivo de maior circulação da América do Sul,6 apresentava um
entretenimento a mais para seus leitores: uma nova charge diária sobre o futebol carioca.
Desde então, o espaço reservado ao desenho de humor passou a se tornar diário no JS, dando
prioridade ao futebol carioca. Nas páginas que abrem a presente introdução, destacamos duas
charges de períodos históricos separados 26 anos no tempo.
Na charge de 1944 (Figura 1.1), observamos uma grafia limpa e bem delineada.
Traços razoavelmente rápidos são expressos através de contornos espessos e decididos.
Sobressai a linha desenhada a bico de pena, acentuando as curvas. Nota-se, ainda, o ambiente
razoavelmente bem descritivo, que busca informações que vão além da piada, apenas
ressaltando o ambiente familiar. Percebe-se uma sintonia com alguns outros ilustradores da
época, que trabalhavam com cartuns ou histórias em quadrinhos, entre os quais: Péricles,7
Augusto Rodrigues8 ou Elzie C. Segar.9 A charge seguinte (Figura 1.2), de 1970, passa a
impressão de um esboço: traços gestuais, ágeis e espontâneos são também extremamente
econômicos, atendo-se ao mínimo necessário para se compreender a charge ou para se
transmitir a expressividade necessária. Poucas linhas bastam pra definir objetos ou
personagens. Expressões faciais são formadas apenas pelos seus elementos mais essenciais:
olhos, nariz, orelhas e boca. Para definir os cabelos emaranhados, basta um rabisco aleatório.
Henfil encontrou uma grafia extremamente pessoal, observando o pensamento visual mais
“econômico” de ilustradores como Jaguar,10 Jean Jaques Sempé11 e Saul Steinberg,12 mas
6
Durante várias décadas esta informação era impressa junto ao logotipo do jornal.
7
Péricles Maranhão (1924-1961), criador de “O Amigo da Onça”. Ver: SILVA, Marcos. Prazer e poder do
amigo da onça. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1989; LAGO, Pedro Corrêa do. Caricaturistas brasileiros. Rio de
Janeiro: Sextante, 1999, p.140-143.
8
Augusto Rodrigues (1913-1993) colaborou com periódicos, como “O Jornal”, “Fon-Fon” e “Careta”. Ver:
LAGO, op. cit., p. 136-139.
9
Elzie C. Segar. (1894-1938), cartunista americano, criador de Popeye, personagem que estreou em 1929 no
“New York Journal”. Ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Popeye.
10
Sérgio de M. G. Jaguaribe, cartunista brasileiro que começou a carreira na revista “Manchete”, se tornando o
principal ilustrador da revista “Senhor”, tendo passando ainda pela “Revista da Semana”, pelo semanário “Pif-
7
Paf” e pelos jornais “Última Hora” e “Tribuna da Imprensa”, ganhando maior notoriedade ao fundar o semanário
“O Pasquim”. LAGO, op.cit., p. 156-161.
11
Cartunista francês criador das histórias em quadrinhos “O pequeno Nicolau”, colaborou ainda com os
periódicos mundialmente conhecidos “Paris Match”, e no “Le Figaro Littéraire” e “New Yorker”.
12
Saul Steinberg (1914-1999), nascido na Moldávia, naturalizado americano, ganhou notoriedade ilustrando para
a revista “The New Yorker Magazine”. Ver: SARAIVA, Roberta. Steinberg: as aventuras da linha. São Paulo:
IMS e Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2011.
13
Prontuário nº 14.269/44 sob a notação: SPMF/ RJ RNE 300.026. Para base de comparação, de acordo com
Eulália Santos Lobo, o salário mínimo, entre 1943 e 1949, se manteve fixado no valor de CR$ 380,00, sendo
CR$ 410,00 o industrial. (LOBO, 1992, p. 110).
8
no JS, publicada um dia após a publicação de sua primeira charge no periódico, informa que
ele que foi contratado do “Crítica”, jornal da grande imprensa de Buenos Aires, pelo sucesso
de seus desenhos sobre futebol.14 Em trânsito constante entre as capitais de Brasil e
Argentina, trabalhou também como diagramador e chargista nos periódicos portenhos
“Crítica”, “Clarín”, “Hoja da Tarde”, além de colaborar com cartuns eventuais na revista
“Mundo Deportivo”.15 De volta à “Crítica”, após sua experiência no JS, elaborou charges
esportivas diárias que repetiam a fórmula adaptada para o JS, com as mascotes dos clubes
argentinos disputando o coração da Miss Campeonato local. Nelas, destacam-se o Milionário,
mascote do River Plate, à semelhança do tricolor Cartola; o Diabo, do Independiente; o obeso
pizzaiolo “italianado”, do Boca Junior.16 Uma nota no “Clarín” informa que Molas faleceu no
dia 08 de fevereiro de 1994,17 alguns dias antes de completar 79 anos.
Enquanto a vivência de Molas compreende uma experiência profissional que se
expande pelas artes visuais, dividindo sua carreira entre a diagramação e o desenho de humor,
a formação inicial de Henfil parece mais claramente conduzida pela influência familiar em
relação à preocupação com as questões sociais do que pela sua vocação para as artes gráficas
(MALTA, 2008). O cartunista Henrique de Sousa Filho nasceu na cidade mineira de Ribeirão
das Neves em 05 de fevereiro de 1944. O historiador Euclides Couto observa que a condição
social do cartunista o teria possibilitado testemunhar, por ele mesmo, “as mazelas mais
profundas da sociedade brasileira” (COUTO, 2012, p. 152). Couto e o sociólogo Márcio
Malta concordam que a origem familiar modesta do cartunista, criado no bairro humilde de
Santa Efigênia, somados à influência dos irmãos mais velhos, o teriam conduzido
precocemente na direção do engajamento político (COUTO, 2012; MALTA, 2008). “Eu não
nasci no berço das artes gráficas. Nasci no berço da guerra social. Entendeu isso, entendeu
meu comportamento.” (HENFIL, 1984b, p. 109).
Na capital mineira, passaria rapidamente de revisor a cartunista na revista “Alterosa”.
Mas seria na sucursal mineira do JS que o trabalho de Henfil daria o primeiro impulso para
alcançar projeção nacional quando, a partir de 1967, passou a trabalhar na versão carioca do
mesmo periódico (COUTO, 2009). Sua trajetória profissional foi assumidamente delineada
14
JS, 18 de junho de 1944, p. 1. Embora a nota no jornal apresentando Molas no JS mencionasse desenhos do
cartunista sobre futebol, pouco encontramos desse tipo de produção entre os arquivos da seção de periódicos na
Biblioteca Nacional de Buenos Aires. Procurando nos períodos correspondentes ao ano anterior à sua chegada,
entre março de 1943 e junho de 1944, descobrimos apenas uma menção a futebol entre seus desenhos e em uma
peça publicitária.
15
FEUER, Daniel. Molas, creador que no quiere penas ni olvidos. Entrevista. Democracia, Buenos Aires, 13 de
julho de 1991, p. 2-3.
16
Crítica, Critica Deportes, Buenos Aires, 30 de maio de 1949.
17
Clarín, Buenos Aires, 10 de fevereiro de 1994.
9
No decorrer deste estudo, será preciso trabalhar com personagens recorrentes nas
charges, pois eles se estabeleceram no imaginário popular da cultura futebolística como
mascotes, como personagens que a seu momento passaram a ser identificados como ícones
dos tradicionais clubes que dividiam a preferência dos torcedores cariocas. Molas ainda sentiu
necessidade de elaborar personagens também para os times de menor expressão, conhecidos
como “pequenos”, mas como são figuras menos recorrentes na trama, deixamos para
descrevê-los na medida em que forem aparecendo nas charges analisadas.
Na representação de Molas do América, a figura do Diabo alude ao vermelho vivo das
cores do time e também ao seu costume de “infernizar” os rivais. No humor de Henfil, a
18
De acordo com Márcio Malta (2008), as aparições de Henfil na televisão faziam com que seus desenhos
atingissem um número cada vez maior de pessoas.
10
19
Ausentes na charge apresentada (Figura 1.1) apenas o Malandro, representante do Madureira, e o Garoto, do
Canto do Rio, que serão observados no decorrer da pesquisa na medida em que analisarmos as charges em que
eles aparecem.
20
Sobre Lorenzo Molas (1915-1994), ver mais informações no item “Trajetórias dos cartunistas”.
12
21
A divisão da cidade entre as repúblicas idealizadas por Henfil, dividindo em dois grupos as principais torcidas
de futebol do Rio de Janeiro, evidencia a então crescente valorização de Ipanema, já reconhecida enquanto bairro
nobre e privilegiado do Rio de Janeiro, ao passo que associa o bairro suburbano de Ramos às camadas mais
populares da cidade.
22
Molas ainda voltaria ao Brasil em 1951, colaborando desde as primeiras edições com o jornal “Última Hora”.
Descobrimos também duas charges publicadas em agosto de 1952, por ocasião da segunda edição da Copa Rio,
torneio organizado por Mário Filho e que procurava reunir clubes da América do Sul e da Europa.
13
23
As encenações representavam situações e pessoas verídicas, também acentuando suas características mais
marcantes (BAKHTIN, 1993, p. 102-118).
24
Refiro-me aqui ao enredo das narrativas paralelas aos jogos e das situações imaginadas entre os personagens –
disputa por mulheres, apostas ou gozações – necessárias para o desenvolvimento da narrativa.
14
curto. A cada variável deve ser considerado o risco de se escolher um modelo válido para uma
dada espacialidade social e transportá-lo para um contexto social onde este modelo não
encontra sentido. Se por um lado podemos verificar transformações profundas entre os
períodos, por outro estamos analisando momentos separados por 21 anos entre o final do
primeiro e o início do segundo recorte. Lidando com a mesma natureza de fontes, publicadas
no mesmo periódico e com representações dos mesmos clubes, é natural que se constate
também algumas semelhanças, continuações, proximidades.
O receio do anacronismo trouxe naturais preocupações e dificuldades em se
determinar as variáveis comparativas suficientemente sólidas para os dois momentos. A
sugestão de Serkan Gül (2010) é estabelecer uma variável que permita uma comparação
equilibrada dos dois casos, generalizando um pouco mais a abordagem e focalizando os
aspectos mais gerais dos períodos estudados.
Merece atenção também a recomendação de Charles Meier (1992), em artigo que
aborda a metodologia comparada, quando ressalta a importância de se ter o máximo de
familiaridade com os contextos históricos analisados. Um dos perigos mencionados por ele é
a incapacidade de se dominar determinados contextos históricos, o que aumentaria os riscos
de anacronismo. Meier pretende deixar claro que o historiador deve ter familiaridade
suficiente com a sociedade examinada para que possa compreender seus mecanismos
institucionais. A proposta do autor é que o fim maior de um historiador que adote o método
comparativo deva ser o de se interrogar sobre a distribuição de poder, riqueza e status
verificados em qualquer situação histórica, ou sobre como funcionam crenças e símbolos em
torno da organização das sociedades examinadas.
Neste ponto, encontramos alguma desproporção no que se refere à comparação entre
os discursos nas duas obras. Enquanto o confronto de classes é fio condutor da crítica de
Henfil à sociedade, vestígios dessa distribuição desequilibrada de poder são mais sutis no
humor de Molas. A referência a esse desequilíbrio de poder na obra de Molas não está situada
no centro das atenções de sua trama, mas à margem dela, frisada na diferença entre a posição
social das mascotes que representavam os times grandes, para os que representavam os
pequenos. Se a menção de Molas às diferentes classes sociais é clara, ela acaba se tornando
uma percepção secundária dentro da trama, uma vez que os personagens que representam
esses clubes assumem e se resignam a este papel de coadjuvante. Henfil vai além de lançar
uma luz mais forte sobre a questão, ao estabelecer diferenças sociais entre os quatro times
tidos como grandes, de modo que estejam sempre implícitas no calor da disputa pelo título. O
cartunista sugere, ainda, uma nova possibilidade que se apresenta às camadas menos
16
25
Basta verificar que na época da primeira charge apresentada nesta Introdução (Figura 1.1) a construção de um
estádio municipal ainda enfrentaria intensa polêmica no âmbito político quanto ao local de sua construção e
capacidade de público. Na época da segunda charge (Figura 1.2), o estádio Mário Filho, conhecido pelo nome da
região em que está localizado - Maracanã, ostentava o título de “maior do mundo”. De qualquer modo, se
estabelecera como uma praça esportiva capaz de comportar muito mais que cem mil pagantes. Ver:
HOLLANDA, Bernardo Buarque de. O cor-de-rosa: ascensão, hegemonia e queda do Jornal dos Sports entre
1930 e 1980. In: MELO, Victor; HOLLANDA, Bernardo Buarque de (Org.). O Esporte na imprensa e a
imprensa esportiva no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012, p. 80-106.
17
Sul, difícil saber, mas ainda gozava de grande popularidade, não havendo indícios de
concorrentes à altura, ao menos no Rio de Janeiro.
Max Weber (2002), no artigo que reflete sobre o papel da imprensa na sociedade,
propõe considerar o caráter empresarial da imprensa, observando questões fundamentais que
vão desde os contatos e interesses econômicos e políticos implicados nas decisões editoriais
até o conhecimento das origens do sustento da empresa. Weber alerta que, em primeiro lugar,
“são dois” os clientes de um jornal: de um lado os assinantes ou os eventuais compradores, de
outro os anunciantes; e adverte ainda que, ao contrário da tiragem, nunca se pode impor
limites aos anunciantes.26 Weber propõe indagarmos sobre o significado do desenvolvimento
capitalista de um determinado periódico para a posição sociológica da empresa, no que diz
respeito ao papel desempenhado como formadora de opinião em uma dada sociedade. E o
“formar opinião” a que se refere compreende desde a seleção de fatos até os outros “serviços
e produtos de entretenimento” que a imprensa passa a oferecer em volume cada vez maior.
Observada a questão, Weber procura situar as dimensões dessa mudança no sentido histórico
quando pergunta “A que tipo de leitura o jornal acostuma o homem moderno?” (WEBER,
2002, p. 190). Conclui que a imprensa, de fato, opera transformações poderosas nos hábitos
da leitura e na forma como “o homem capta e interpreta o mundo exterior” (WEBER, 2002, p.
193).
Podemos observar por este prisma o advento das charges diárias sobre futebol dentro
do JS na medida em que, uma vez estabelecido o espaço do humor gráfico no diário, o mesmo
tenha se tornado fixo no decorrer dos anos subsequentes, com exceção de breves períodos de
ausência. Deve-se também observar os chargistas por sua posição enquanto formadores de
opinião e, nesse sentido, a análise das fontes nos leva a acreditar que o humor de Henfil talvez
propusesse transformações ainda mais radicais como alternativa para a sociedade em que
vivia. De toda forma, ambos ofereceram suas contribuições à forma como os torcedores se
reconhecem e se identificam com os clubes para o qual torcem.
Weber (2002, p. 193) chama atenção para o poder de influência sobre “elementos
culturais objetivos ou supraindividuais”, e ainda: “o que se destrói ou é novamente criado no
âmbito da fé e das esperanças coletivas, do ‘sentimento de viver’”. Acreditamos que, ao
sacralizar na memória coletiva do torcedor suas próprias interpretações em torno do
imaginário do futebol através de discursos múltiplos que se espalham pelo jornal, no que as
26
Este fenômeno implica afirmar que um periódico não poderia aumentar a tiragem apenas para atender a uma
maior demanda de leitores, mas pode aumentar o número de páginas de uma edição para atender a necessidade
dos anunciantes (WEBER, 2002).
18
Tânia Regina de Luca (2006) traça instigante panorama sobre estudos historiográficos
que lançam mão de fontes impressas, mostrando a importância de se abrir o leque de
possibilidades no que concerne a documentação histórica. É natural, então, que os estudos
desse campo careçam ainda de maior produção bibliográfica que se especialize na
metodologia mais adequada para se trabalhar com imagens. Oferecendo pontuais referências
de produções historiográficas que se debruçam sobre a trajetória da ilustração no Brasil, a
autora considera a obra clássica de Herman Lima,27 como “o mais completo estudo sobre o
tema até agora realizado” (LUCA, 2006, p. 149). Lançado recentemente, o primeiro dos seis
tomos planejados para compor a nova abordagem da História da caricatura brasileira, de
Luciano Magno (2012), promete que a obra toda supere em volume e profundidade a obra de
Lima. Basta verificar que o primeiro volume não esgota, em suas 532 páginas, a produção do
século XIX, prometendo ainda dar continuidade ao período no próximo volume. Marcos Silva
(1989) oferece contribuição importante ao focalizar o personagem “O Amigo da Onça”, de
Péricles, para trabalhar representações de humor negro, compreendendo o período entre 1943
e 1962.
No artigo “A construção do saber histórico: historiadores e imagens”, Marcos Silva
(1992) defende o uso da produção visual – seja filmes, pinturas, fotografias ou caricaturas –
não como mero recurso ilustrativo, ou para suprir alguma carência de fontes, mas pela
necessidade de se ampliar o escopo documental da pesquisa historiográfica, sem se limitar a
perspectivas analíticas específicas de seu campo. O autor acusa a recorrente falta de esforço
por parte de historiadores, em geral, em integrar esses objetos em suas discussões sobre o
contexto social. Já em artigo para a revista “Ariús”, Marcos Silva (2007) considera a
27
LIMA, Herman. História da caricatura brasileira. v. I a IV. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963.
19
produção visual de uma cultura um meio tão participante da sociedade e tão igualmente
reprodutor de ideias quanto os que se expressam verbalmente. Salienta o poder de que a
caricatura pode usufruir ao emitir sua percepção do mundo, direcionando o olhar do leitor,
induzindo-o a refletir a respeito de determinado assunto. Em suas palavras:
Diante de uma caricatura, o desenhista, os editores, os apreciadores e os
pesquisadores experimentam aqueles caminhos, que significam a produção de
determinadas interpretações sobre o mundo, o contato com essas leituras enquanto
interpretações (então linguagens “naturais” ou espontâneas), as articulações entre
essas e outras compreensões. [...] Como consequência, as caricaturas não abordam
campos de poder apenas enquanto referenciais temáticos (sua suposta vocação
crítica sem fronteiras): ela mesma se constitui como poder de dirigir o olhar para
determinadas facetas das experiências humanas, de revelar essas facetas, através de
um olhar que pensa (SILVA, 2007, p. 118).
28
O autor esclarece que não pretende responsabilizar nenhum cartunista pela ditadura militar, lembrando que a
crítica política, seja ela qual for, pode levar a um amplo leque de mudanças, conduzindo a rumos tanto diversos
quanto contrastantes (MOTTA, 2006).
29
Ao final da Introdução, discorreremos mais profundamente sobre as abordagens adotadas e o planejamento
dos capítulos.
21
30
Prontuário nº 14.269/44. Notação: SPMAF/RJ. RNE 300.026.
31
FEUER, Daniel. Molas, creador que no quiere penas ni olvidos. Entrevista. Democracia, Buenos Aires, 13 de
julho de 1991, p. 2-3.
32
Contamos com a ajuda do cartunista Hermenegildo Sábat, que, além de uma longa conversa, conseguiu o
material que nos foi concedido pelo “Clarín”: uma entrevista e a nota sobre o falecimento de Molas. Clarín,
Buenos Aires, 10 de fevereiro de 1994.
33
Os livros são, na verdade, uma coletânea de cartas enviadas por Henfil a familiares e amigos relatando sua
experiência nos dois países (HENFIL, 1984a, 1984b).
34
A única publicação encontrada que aborda a charge e o cartum sobre futebol foi a obra em conjunto do
cartunista e jornalista José Alberto Lovetro e do editor de arte Gualberto Costa, sócios na empresa JAL & GAL.
No livro, eles traçam um panorama geral da história do futebol no Brasil, reproduzindo as versões
“oficializadas” pela imprensa. No entanto, fartamente ilustrado, reúne uma seleção considerável do que foi
produzido na grande imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (JAL; GAL, 2004).
22
Tendo em conta que, de acordo com Melo (2001),35 o interesse da imprensa por
esportes remonta ao último quarto do século XIX, parece-nos inquietante que uma produção
sistemática de charges diárias sobre futebol só tenha começado a surgir na capital federal a
partir de 1944. Ainda assim, grandes nomes da caricatura brasileira já se dedicaram ao tema
de tal forma que o espaço limitado desta Introdução não nos deixa desenvolver a discussão
como o assunto merece. No entanto, vale dedicar aqui algumas linhas a alguns cartunistas,
para além dos que estão no foco da presente dissertação, entre os que mais se destacaram a
cobrir os eventos futebolísticos, já desculpando-nos por possíveis omissões.
Quando o futebol começou a surgir na caricatura brasileira, a perspectiva com que era
abordado não considerava propriamente os acontecimentos do mundo da bola. Na década de
1910 e 1920, o futebol se tornara uma metáfora corriqueira para os eventos políticos ou
expressões populares, em sátiras de costumes no traço de J. Carlos, K. Lixto ou Belmonte.36 J.
Carlos, na revista “Careta”, fazia humor com peculiaridades da vida cotidiana da cidade,
adicionando metáforas futebolísticas no linguajar da cidade. Em determinado cartum, um
sujeito de traços africanos, por exemplo, admite a duas moças ter levado uma bofetada porque
se empolgara “ao torcer... um beliscão na donzela que estava à sua frente” (supostamente em
um estádio de futebol), ao que uma delas comenta que o hands37 era proibido.38 Na cobertura
da revista do Campeonato sul-americano de 1919, entre uma foto e outra que chegavam a
tomar meia página, as moças suspiravam pelos jogadores também no traço limpo e preciso de
J. Carlos.39 Já K. Lixto recorria frequentemente ao uso da metáfora futebolística na sátira
política. Ainda em 1909, para a Revista “Fon-Fon”, o cartunista transportou para o campo de
futebol a disputa pela presidência da República, em que presidenciáveis como Campos Sales,
Pinheiro Machado, L. Müller e J. J. Seabra, tentavam dominar a “pelota presidencial”40
(LIMA, 1963). Nos Jogos de 1922, no embalo das comemorações pelo centenário da
Independência, J. Carlos e Belmonte destacavam-se em duras críticas à falsa imagem de país
civilizado, reforçando a figura do Jeca Tatu e menosprezando a conquista da seleção,
denunciando ou sugerindo a corrupção ostensiva nos investimentos públicos para a
35
Victor Melo (2001) refere-se principalmente ao turfe e ao remo, antes do futebol se tornar uma prática
institucionalizada.
36
J. Carlos (1884-1950), K. Lixto (1877-1957), Belmonte (1897-1947). Cartunistas que marcaram trajetória em
revistas como “Careta”, “Fon-fon”, “O Malho”, “Paratodos”, “Cruzeiro”. Ver maiores informações em: LAGO,
Pedro Corrêia do. Caricaturistas brasileiros. Rio de janeiro, Sextante, 1999; LIMA, Herman. História da
caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963.
37
Nessa época, a imprensa ainda usava os jargões do futebol em inglês. O termo hands (em português, usa-se
mão, no singular) é uma falta apontada quando um jogador leva as mãos à bola.
38
Careta, 10 de maio de 1919, p. 17.
39
Careta, 17 de maio de 1919, p. 8-9.
40
Fon-Fon, 04 de setembro de 1909.
23
Ainda que nossas fontes tenham sido produzidas na mesma cidade (o Rio de Janeiro),
abordem o mesmo tema (o futebol carioca) e exerçam a mesma função social (o humor) no
mesmo periódico esportivo (o JS), tratam-se de obras publicadas em períodos separados por
mais de duas décadas entre o final do primeiro recorte e o início do segundo. Transformações
políticas, sociais e econômicas ocorridas entre um período e outro alteraram profundamente a
vida cotidiana do Rio de Janeiro, que entre um recorte temporal e o outro perdera sua
condição de capital do país.
No primeiro capítulo “Humor e Sociedade nas charges de Molas e Henfil”
procuraremos observar o que o humor dos cartunistas podem nos revelar sobre a cultura e os
costumes da sociedade do Rio de Janeiro de seus respectivos momentos. Como um enredo de
novela, o casamento é o ápice da trama de Molas, que trabalha com representações de clubes.
Já na tira de Henfil, a disputa é transferida para o âmbito da torcida. Seus personagens, que já
41
“O Score e as Soturnas”, O Malho, 21 de outubro de 1922, capa. “É o que está faltando”, A Cigarra, ano X, n.
194, 15 de outubro de 1922, p. 8; “Novos Ministérios”, A Cigarra, ano X, n. 194, 15 de outubro de 1922, p. 25.
42
Nássara (1910-1996) e Guevara (1904-1964) trabalharam juntos em “Crítica”, jornal de Mário Rodrigues, pai
de Mário Filho, e no jornal “Última Hora”, desde as primeiras edições.
43
Théo marcou presença na Revista “Careta” e no JS durante a Copa de 1950 (FLORES, 2001).
44
Careta, 02 de julho de 1938, p. 26.
24
não mais representam os clubes, e sim os torcedores, trocam pontapés e bofetões nas
acaloradas discussões em torno do noticiário do futebol.
No capítulo seguinte, “Clubes, torcedores e símbolos nas representações da imprensa
esportiva”, procuraremos analisar especificamente como se situam, em cada período, as
representações escolhidas pelos cartunistas. Por que Molas optou por representar os clubes,
enquanto Henfil preferiu representar os torcedores? Em que medida seus personagens
reproduzem interpretações em torno do imaginário futebolístico da construção de mitos
históricos, levando em conta a “invenção” de tradições, e criação de identidades produzidas
pelo JS? Se é possível semelhanças ou continuidades nas representações de Fluminense ou
Botafogo, os símbolos criados para o Flamengo, ou para os flamenguistas, remetem a
motivações completamente diferentes entre os dois períodos. Na medida em que Molas se
propôs a representar os clubes, não lhe interessava levar em consideração a identificação de
determinadas torcidas com as camadas mais elitizadas ou populares da cidade. Henfil, ao
contrário, procurava a todo instante estabelecer e acentuar essa diferença, transpondo ao meio
futebolístico os grandes contrastes sociais do Rio de Janeiro.
Com relação às questões referentes à esfera política, procuramos analisar as charges no
terceiro capítulo intitulado “Futebol e política nas charges do cor-de-rosa”, observando de que
modo elas refletem a experiência de viver sob um regime autoritário, sob o domínio da
repressão e da censura aos órgãos de comunicação de massa. As referências dos cartunistas a
esse estado de coisas não é semelhante, o que desperta inquietações sobre as diferentes
condições de liberdades e repressões entre os dois períodos. A propósito da censura, ainda que
guardem diferenças marcantes na maneira como foram instauradas, optamos por considerar a
hipótese de que o JS, por se tratar de um periódico esportivo, não estaria no foco da censura
em nenhum dos dois períodos analisados (MALAIA, 2012b). Desta forma, as charges
esportivas estariam desfrutando de posição de raro privilégio se considerarmos esse suposto
“afrouxamento” da censura, uma vez que o espaço reservado ao humor costuma também
experimentar maior liberdade para confrontar poderes instituídos.
A aproximação diplomática entre os governos de Brasil e Estados Unidos, verificada
na obra de ambos os cartunistas, apresenta contornos um tanto distintos entre os dois
períodos. A penetração de elementos culturais norte-americanos no cotidiano do Rio de
Janeiro começava a se tornar um projeto político norte-americano de estreitamento com os
países da América Latina em fins da década de 1930, mas a partir do golpe de 1964 passou a
experimentar uma crescente reação contrária. Se em um primeiro momento a aproximação
com os Estados Unidos ajudava a disseminar valores como liberdade e democracia, anos mais
25
tarde a cooperação do governo americano com o regime golpista tornava mais frágeis esses
discursos.
Um dos objetivos primordiais da presente pesquisa é chamar atenção das charges
esportivas para a pesquisa historiográfica. Uma vez que o fenômeno esportivo, capaz de
mobilizar multidões, suscita discussões e reflexões a respeito de questões sociais, políticas,
culturais, econômicas, esperamos que a análise das obras aqui destacadas possa contribuir, de
alguma forma, para fomentar o debate sobre as diversas questões levantadas sobre os períodos
destacados.
26
2
HUMOR E SOCIEDADE
NAS CHARGES DE
MOLAS E HENFIL
27
Figura 2.1 Nas charges de Molas, as referências geográficas do Rio de Janeiro são as mais características. Molas
não delimita os diferentes espaços da cidade de acordo com as classes sociais. Todas as mascotes costumam
frequentar os mesmos ambientes. Aqui, um vestígio de uma época em que, como veremos, Copacabana vivia seu
apogeu enquanto espaço privilegiado da cidade. JS, 01 de abril de 1945.
28
Figura 2.2 Os espaços urbanos da cidade são delimitados de forma caricatural na perspectiva de Henfil, em que
duas grandes regiões mantém-se em constante conflito. A Zona Sul, área mais nobre da cidade, bem como o
subúrbio são representados por seus elementos e símbolos mais significativos: a praia, o Pão de Açúcar, com o
Cristo Redentor situado sobre ele, em vez de sobre o Corcovado onde o mesmo realmente está. JS, 24 de janeiro
de 1970.
29
Figura 2.3 Os espaços da cidade no humor de Henfil são representados de forma a acentuar os contrastes sociais
do Rio de Janeiro. A caracterização desses contrastes são reforçados aqui como denúncia da diferença de atenção
do Estado, se compararmos as áreas de moradias mais nobres e mais humildes. Contrasta-se, por exemplo, um
cacto na área da República de Ramos com as flores de Ipanema Beach. Nota-se também a diferença entre o
desenho das placas de identificação das duas regiões. JS, 14 de janeiro de 1970.
30
45
Ramos e Ipanema são utilizados aqui para, de maneira generalizante, representar espaços reconhecidos
respectivamente como referências de espaços reservados às classes mais humildes e mais abastadas da cidade.
31
46
JS, 01 de abril de 1945.
32
internato de freiras, passaram a se mobilizar para, a todo custo, conhecer os atributos físicos
da moça. Em suma, queriam saber se valeria a pena o esforço da disputa.
Enquanto na charge de Molas ridiculariza-se o excesso de pudor da moça criada com a
rigidez dos colégios de freiras, a de Henfil articula uma trama sobre o meio futebolístico que
reproduz uma caricatura social do Rio de Janeiro. Na primeira charge de Henfil deste capítulo
(Figura 2.2), as informações esportivas transmitidas por um rádio de pilha vêm atrapalhar a
tranquilidade do Cri-Cri, torcedor do Botafogo, que curtia sua praia, em Ipanema, refestelado
à sombra de um guarda-sol. “Terminada a partida. Spartak 5 x 1 Botafogo”. A sonora goleada
deixava extremamente preocupado o assustado Cri-Cri, que passa a temer uma possível e
iminente invasão dos adversários, membros da “República Popular de Ramos”, à Ipanema. Ao
subir em um poste, de posse de uma luneta, visualiza o Urubu e o Bacalhau correndo em
direção à área nobre da cidade. “Putzgrila!” – exclama. “Já cruzaram a faixa desmilitarizada
da Cinelândia e rumam firme para Ipanema”. A partir daí, Henfil procura transmitir a angústia
do alvinegro, mostrando, nos quadrinhos seguintes, a perspectiva de quem olha por uma
luneta. Veem-se apenas os representantes das massas aproximando-se, na medida em que vão
sendo vistos em tamanhos cada vez maiores, até que chegam a extrapolar os limites do círculo
que os envolve e que representa a vista através da luneta. Chegando à Zona Sul, ansiosos,
põem-se a procurar pelo Cri-Cri. Suas expressões sugerem excitação e sadismo. Ao final, o
Cri-Cri, que estava escondido em uma lata de lixo, é descoberto pela dupla ao ser lançado
para o alto feito um foguete e expelir um enorme ovo, que seria levado com entusiasmo pelos
rivais em júbilo.
A outra charge de Henfil escolhida pra abrir a discussão (Figura 2.3) traz apenas o
torcedor alvinegro na sua euforia solitária.47 Seu traço gestual somente se presta, à minúcia de
detalhes, se servir a uma dose a mais de escárnio. Quando precisa delimitar, por exemplo, a
fronteira fictícia entre a “República de Ramos” e de “Ipanema Beach”, faz questão de
diferenciar as placas. A da elite, fincada sobre um jardim florido, mais estreita, sutil e bem
decorada, apresenta adornos nas extremidades, enquanto a do povo é maior, mais rude e sem
maiores “delicadezas”. No espaço reservado a Ramos, percebe-se a insólita presença de um
cacto. Além da referência sutil ao tratamento diferenciado dado pelos governantes às áreas
mais nobres da cidade, o cacto pode, talvez, sugerir a ideia de um clima “árido” nessas
regiões, ou uma associação entre todas as áreas carentes do país, como a caatinga,
representada por Henfil nas tiras da Graúna e Zeferino.
47
A respeito do conjunto de representações em torno do botafoguense, construído pela imprensa esportiva, ver
capítulo 2 da presente dissertação, p. 26-58.
33
48
Geiger cita a Companhia Siderúrgica Nacional, Petrobrás, Banco do Brasil e Vale do Rio Doce, entre outras.
O autor lembra ainda que o valor dos depósitos nos bancos cariocas teriam contabilizado, em 1956, 46% dos
depósitos efetuados em todo o país (GEIGER, 1963, p. 159).
34
percentual que sobe de 48% da população da cidade em 1940, para 55% em 1960 (GEIGER,
1963, p. 177).
Além da preponderância das linhas férreas na paisagem, destacam-se vestígios da vida
rural, carentes dos serviços mais básicos como fornecimento de gás, água e esgoto
inexistentes em boa parte dos lares. Completando a situação nitidamente mais precária, a
ausência de vegetação e arvoredo lhes retira, nas palavras de Geiger (1963), todo o encanto. É
o que parece querer mostrar Henfil, quando, com poucos elementos como os diferentes
acabamentos das placas que indicam o espaço do “rico” e do “pobre” ou as flores da
“Ipanema Beach” contrastando com o cacto no espaço da “República Popular de Ramos”,
associa-o à penúria e ao clima “árido” de outras regiões “esquecidas” do país e sugere a “falta
de encanto” mencionada pelo autor.
É válido ressaltar ainda que o espaço fictício das tiras de Henfil ignora diferenças
cruciais de classes sociais, seja pelo lado da elite, seja entre as regiões mais periféricas da
cidade. Uma vez que as diferentes localidades indicam distintas condições socais, essa
caricatura que Henfil elabora dos espaços sociais do Rio de Janeiro ganham maior relevância
na sua obra do que a caricatura que Molas faz da cidade. Se a população da Zona Sul envolve
famílias de diferentes níveis sociais, podemos verificar, segundo Geiger (1963), nuances
bastantes distintas nos bairros e regiões do subúrbio carioca, onde Bangu se notabilizaria pela
forte presença de sua indústria têxtil, Madureira por importantes centros comerciais e
Marechal Hermes por servir de área residencial de militares. É todo esse universo, somado ao
das favelas cariocas espalhadas pela cidade, que está representado na “República Popular de
Ramos”. A caricatura aqui assume seu papel de acentuar os traços mais característicos, ao
desprezar diferenças de nível social radicais, seja entre os grupos formados pelas classes mais
favorecidas, seja entre as camadas mais populares (BERGSON, 1987).49 Ao esboçar a
caricatura da sociedade carioca, Henfil procura enfatizar o já forte contraste social do Rio de
Janeiro. Através da ampliação do fenômeno, confronta realidades sociais mais privilegiadas
com as mais modestas da população.
O momento registrado por Molas remete a um processo de popularização de
Copacabana que se intensificaria a tal ponto que, no período descrito por Henfil, o bairro já
não convence mais como representativo dessa elite. Após a abertura do Túnel Velho, ligando
Botafogo a Copacabana, na última década do século XIX, essa região da cidade passaria a
crescer em ritmo cada vez maior, com a urbanização de Copacabana, Ipanema e Leblon,
49
Para maiores considerações diversas sobre caricatura, charge e cartum, ver Introdução da presente dissertação,
p. 12.
35
50
Prontuário 14.269/44, Serviço de Registro de Estrangeiros SPMARF/ RJ RNE 300.026, 11ª folha,
Requerimento de registro permanente, solicitado em 18 de dezembro de 1944.
36
times tidos como “pequenos” no cenário da praia. No entanto, podemos observar os trajes
inapropriados ao banho de alguns dos personagens “suburbanos”. Enquanto os que
representam os times “grandes” estão todos em trajes de banho, podemos observar o malandro
do Madureira com seu terno de sempre; o operário do Bangu com seu uniforme; e o Seu
Leopoldino, do Bonsucesso, com os seus inseparáveis paletó e guarda-chuva. Molas parece
querer evidenciar os limites sociais no uso não democrático desse espaço público ao frisar que
apenas os representantes da “elite” do futebol têm acesso aos lazeres.
37
Figura 2.4 O grande mistério em torno dos atributos físicos da futura Miss Campeonato, que anuncia seu
regresso do colégio, ansiosa para casar-se, evidencia a manutenção da tradição familiar, talvez já insinuando uma
possível transgressão às regras na revelada intenção das mascotes em procurar conhecer a beldade por conta
própria. JS, 06 de março de 1945.
38
Figura 2.5 A conotação sexual assume contornos mais obscenos na obra de Henfil, explícitas em gestuais e
expressões usadas pelos personagens para sujeição do outro. JS, 01 de dezembro de 1970.
39
matrimonial afirmando, decididamente, não ter nascido para ser tia. A sogra chega a exclamar
em voz alta que sua filhinha já está em idade para se casar, não percebendo na janela atrás de
si a presença inconveniente de seus futuros candidatos a genro, que já demonstram certa
inquietação ao saber da novidade. Perfilados na janela, reconhecemos o almirante,
representando o Vasco da Gama, vice-campeão do ano anterior, que havia terminado o ano na
companhia da sogra; o Popeye, campeão, que se casara com a Miss, sonhando em formar um
harém casando-se também com a irmã de sua esposa. A seu lado, a sugestão dada pelo Cartola
de procurar saber em que colégio estudava a moça casadoira é prontamente acolhida pelo
pato, desencadeando o desenrolar da “novela” de Molas.
Um quarto de século depois testemunha-se, na charge de Henfil (Figura 2.5),
personagens com um comportamento geral bem mais informal do que os das charges de seu
colega de outrora. O cartunista mineiro reproduzia diariamente possíveis discussões
futebolísticas entre os torcedores rivais, em que as gozações ao derrotado implicavam
insinuações sexuais das mais diversas. Após a derrota do Fluminense para o Atlético Mineiro
no campeonato brasileiro de 1970, o Urubu encontra o Pó de Arroz que, caminhando na ponta
dos pés, tentava passar sem ser percebido. Surpreendido pelo torcedor rival, resigna-se a
aturar as provocações do rubro-negro, como se houvesse entre eles uma regra que definisse
direitos e deveres de vitoriosos ou derrotados a cada jogo que envolvesse ao menos um dos
times cariocas. Dois quadros chamam atenção especial na charge destacada. A saudação do
Urubu já carrega uma provocação embutida que seria completamente improvável na obra de
Molas. Ainda que não se deva levar ao pé da letra, a expressão “Minha bichona louca” parece
carregar em si uma relativa liberdade de Henfil com relação às normas de conduta vigentes, se
compararmos a produção dos dois períodos.51 Mais forte ainda do que a expressão usada no
segundo quadrinho é a clara sugestão sexual, ainda que metafórica, no gesto do Urubu.
Percebe-se a clara simulação convencionada do ato sexual no seu movimento alternado de
quadril e na posição dobrada dos braços junto ao corpo, para frente e para trás: “Chega lá a
massa atleticana ó...ó...nocês!”.
Enquanto o humor de Molas transita na dualidade entre o respeito e pequenas
transgressões às tradições familiares, o humor de Henfil, mais corrosivo e espontâneo,
encontra inspiração nas provocações mais ousadas entre os torcedores, repleta de gestos e
insinuações obscenas. No primeiro momento o casamento com a Miss, dentro dos rituais da
51
Poucos anos antes da estreia de Henfil no JS, a polêmica proibição do romance “O Casamento” de Nelson
Rodrigues, em que a censura alegava, entre outras causas, o excesso de palavrões, servem como evidência de que
a questão ainda era um problema. Ver: CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico. São Paulo Companhia das letras,
1992, p. 350-351.
41
Figura 2.6 A Arte de Amar, do poeta grego Ovídio, desperta uma beldade por debaixo dos panos castradores do
colégio interno. As mascotes, enfim, descobrem que a Miss vale a disputa. JS, 04 de abril de 1945, p. 1.
43
52
O foco em torno da beldade é visível no anúncio do “Álbum de Miss Campeonato” com as charges produzidas
em 1944. É a própria personagem, em seu tradicional e sensual maiô (PESSOA, 2012).
44
Figura 2.7 Nesta charge, Molas passa a estabelecer a Miss Campeonato como metáfora para o título do
Campeonato Carioca de 1944, que estava pra começar. Desde o momento em que surge a figura alegórica
representando a Miss, o casamento com a donzela é equiparado à grande vitória, privilégio único do campeão.
JS, 01 de julho de 1944.
45
Figura 2.8 No detalhe selecionado na charge acima, já discutida em seus pormenores na introdução, destacamos
o foco da atenção da charge todo direcionado ao Popeye, que desfruta da posição mais desejada de todos, na
companhia da sogra, e já tirando as medidas do dedo da Miss para encomendar as alianças. Salienta-se o
cumprimento das etapas o compromisso matrimonial. JS, 12 de outubro de 1944.
46
Figura 2.9 “A Vida pedida a Deus” reforça a ideia de que a vida de casado pode ser equiparada aos grandes
prazeres da vida, como a celebração para a conquista. JS, 02 de novembro de 1944.
47
Figura 2.10 A menção ao filme de Bertolucci surge aqui para uma insinuação de sexo anal entre os personagens
da tira. JS, 01 de março de 1973.
48
São fartas as possíveis referências que podemos encontrar nas charges de Molas que
remetam ao fenômeno percebido pelos autores. A figura da sogra, por exemplo, assume o
papel da família, ainda que sua interferência pareça a princípio mais comedida, já que permite
a possível transição de pretendentes a cortejar sua filha durante as possíveis reviravoltas
apresentadas na tabela de classificação. Esse jogo da avaliação da personalidade dos
53
JS, 01 de março de 1973, p. 2.
54
Ibidem.
55
O drama erótico franco-italiano de 1972, dirigido por Bernardo Bertolucci e estrelado por Marlon Brando e a
então desconhecida Maria Schneider, “Último Tango em Paris” (italiano: Ultimo Tango a Parigi; francês: Le
Dernier Tango à Paris) foi sucesso de bilheteria mundial. A célebre cena de sexo anal entre os protagonistas, em
que o personagem interpretado por Brando faz uso de manteiga como lubrificante, causou grande polêmica
internacional.
50
namoro, não passando de três vezes por semana. Infelizmente não há, na edição de que
dispomos, nenhuma referência à data exata em que “Um chefe de família” foi publicado na
célebre coluna que Nelson mantinha na “Última Hora”, só sendo possível assegurar que foi
em algum dia entre 1951 e 1960, período em que durou a coluna no jornal de Samuel Weiner.
A frase do personagem destacada acima é lembrada aqui como vestígio de uma resistência
mais conservadora à manutenção de algumas tradições que procuravam preservar o respeito à
ordem familiar estabelecida, em uma época em que os tabus em torno da virgindade feminina,
antes do matrimônio, tinham peso muito maior.
Já no momento de Henfil, seus personagens estão inseridos em um contexto onde
esses rituais familiares já não se sustentam. Maria Hermínia T. de Almeida e Luis Weis
(2006) ressaltam que a modernização da sociedade teria agilizado o processo de mudança dos
padrões de conduta privada. Os autores compreendem que, na perspectiva de uma geração de
esquerda que atingira a idade adulta durante a ditadura militar, “o peso das circunstâncias
políticas sobre as relações afetivas e familiares (acelerando, quem sabe, os vaivens amorosos)
misturava-se à liberação sexual e ao consumo de drogas [...]” (ALMEIDA; WEIS, 2006, p.
333-334). De acordo com esses autores, a liberação sexual e o consumo de drogas também
envolviam a afirmação de um comportamento de enfrentamento à ordem vigente, ligados a
construção de uma forma de ser oposição, de compor um “perfil político de rejeição ao status
squo” (ALMEIDA; WEIS, 2006, p. 334). Seguindo essa premissa, Henfil simplesmente
abdicou completamente do perfil polido que sobressai no humor de Molas. Se há um traço
comum a todos os personagens da tirinha de Henfil é justamente esse completo desapego à
necessidade da polidez, dos cavalheirismos de outrora. Seus personagens agridem-se verbal e
fisicamente, ofendem-se, debocham um do outro, e satisfazem-se sujeitando seus rivais a
diversas humilhações.
Na virada entre as décadas de 1960 e 1970, Henfil sentia-se à vontade para usar e
abusar das palavras tidas como de baixo calão, ainda que lançando mão do recurso de
anagramas ou de simples trocas de letras para disfarçar minimamente o sentido, (“camabuta
de fedapada”, por exemplo). O neologismo do cartunista mal disfarçava as expressões chulas
recorrentes em suas charges, evitando o choque de imprimir em páginas populares o linguajar
inapropriado, mas mantendo o sentido pretendido. A elite, no entanto, costumava expressar
sua agressividade de maneira diferente. Evitava o uso dos palavrões, mas abusava de termos
pejorativos para se referir aos rivais, como “crioléu” ou “populacho”, reforçando o caráter
preconceituoso das camadas mais abastadas da cidade. Nota-se, sobretudo, uma maior
52
Figura 2.11 A associação entre confronto físico e futebol é mais eventual nas charges de Molas, em que
predomina a metáfora amorosa. Em uma das raras charges que demonstra a representação futebolística também
não faltam armas letais, sangue e aviões de guerra. Acreditamos que o feito dessa violência é diluído por estar
mencionada em sentido claramente figurado. JS, 17 de outubro de 1944, p. 1.
53
Figura 2.12 A agressividade explícita é potencializada na tira de Henfil, onde o consumo de álcool acirra os
ânimos de uma discussão banal entre amigos, provocando uma briga urbana, auxiliada por pedaços de pau e
estilhaço de garrafa quebrada. JS, 13 de janeiro de 1970, p. 3.
54
Figura 2.13 O Pó de Arroz, identificado com a elite, leva para a briga os ensinamentos de uma arte marcial, que
contrasta com a as táticas espontâneas da briga de rua expressa pelo Urubu. Na tira de Henfil, os conflitos partem
para o plano físico. JS, 10 de janeiro de 1970, p.3.
55
Figura 2.14 A briga entre o “judoca” Pó de Arroz contra o Urubu acaba resolvida pela figura efeminada do
personagem Fala-Fina, que representava um setor da torcida vascaína identificada como uma ala da
representação dos homossexuais do clube. JS, 11 de janeiro de 1970, p. 3.
56
Nas quatro charges recém-destacadas, tanto na primeira, de Molas, como nas demais
de Henfil verificamos confrontos físicos e bélicos, briga de rua com pedaço de pau e
estilhaços de vidro, facões sujos de sangue e até golpes de judô. À primeira vista podemos até
concordar que a charge de Molas sugere uma violência mais sanguinária do que na charge em
que o “judoca” tricolor desfere uns golpes no rival rubro-negro, mas é preciso lembrar que no
contexto narrativo de Molas essa violência assume uma referência mais claramente
metafórica, ao passo que o enredo de Henfil, por focalizar o conflito de torcedores, a menção
à violência já sugere uma situação mais verossímil.
Na charge de Molas (Figura 2.11), a crítica ao jogo entre Botafogo e Vasco é
demonstrada em dois quadros: “como se esperava que fosse o jogo”, onde Almirante e
Bacalhau travam uma luta sangrenta, com direto a mordida no nariz e facas sujas de sangue.
“Eu quero nadar num lago de sangue” chega a declarar o pato, em meio à peleja. No quadro
seguinte, porém, Molas demonstrou sua percepção sobre o provável “marasmo” da partida,
mostrando uma troca de cumprimentos e referências cordiais entre os dois. No último quadro,
representa as goleadas aplicadas por Flamengo (7 x 1 sobre o Bangu), Fluminense (6 x 1 no
Bonsucesso) e América (3 x 0 no São Cristóvão), através de Popeye, Cartola e o Diabo, que
do alto de seus aviões de guerra bombardeiam as regiões suburbanas, para desespero dos
personagens de Bangu, Bonsucesso e São Cristóvão. Uma vez que Molas operava com
representações de clubes, essas referências permanecem mais explicitamente no universo da
metáfora. Molas chegou a utilizar duas metáforas diferentes para representar os resultados de
jogos.
O deboche de Urubu e Bacalhau aos trajes de judoca do Pó de Arroz (Figuras 2.13 e
2.14), respondido através de golpes de judô deste último, desferidos contra o primeiro, parece
mais uma manifestação de como o conflito de classes sugerido por Henfil facilmente
descambava para o atrito físico. Em uma das raras vezes em que um representante da elite se
encaminhava para levar a melhor, ele logo é surpreendido pelo inusitado. Justamente o
personagem considerado mais fragilizado, no contexto da época, dada a sua forte expressão de
feminilidade, o personagem batizado de Fala-Fina (relacionado a um dos estereótipos do meio
homossexual) atira um sapato de salto alto e atinge Pó de Arroz na cabeça. Ao final da
sequência, Fala-Fina sai carregado por Urubu e Bacalhau, enquanto o tricolor jaz fora de
combate, deitado de bruços, aparentemente inconsciente com um galo na cabeça. O deboche
final do Urubu sugere a desmoralização completa de seu mais recente algoz: “Elas se
57
56
JS, 11 de janeiro de 1970, p. 3.
57
Percebemos a sugestão de que a bebida seria cachaça, e não outra bebida, pelas labaredas exaladas, ao
primeiro gole, pelos ouvidos e bocas dos personagens.
58
3
CLUBES, TORCEDORES
E SÍMBOLOS NAS
REPRESENTAÇÕES DA
IMPRENSA ESPORTIVA
59
Figura 3.1 Encerrado o primeiro campeonato de futebol carioca registrado pelas charges de Lorenzo Molas, a
coluna “Uma Pedrinha na Shooteira”, da qual reproduzimos o detalhe acima, resolveu abordar o sucesso das
mascotes, novidade da temporada, e lançar uma promoção para a escolha dos nomes de mascotes de clubes de
menor expressão. JS, 02 de novembro de 1944, p. 6.
60
Figura 3.2 Matéria do JS que, poucos meses após o surgimento dos personagens símbolos, aborda a boa
recepção dos torcedores depois de uma primeira reação negativa evidenciada por cartas de protestos. Ao
contrário das representações elaboradas por Molas (que nessa matéria ganharam a interpretação do ilustrador
Marcelo), as referências de Henfil buscavam a ousada estratégia de ressaltar as características de forma mais
pejorativa. Com o tempo, os torcedores passariam a aceitar e adotar os símbolos. Nota-se que a foto mostra o
Urubu solto no estádio pela torcida rubro-negra, em dia de vitória. Era a consagração da mascote. JS, 15 de
junho de 1969, p. 10.
61
A coluna ainda descreve os símbolos de São Cristóvão e Bangu, para lembrar logo em
seguida que três dos dez times que participavam do campeonato, embora já tivessem suas
figuras simbólicas, estas ainda não haviam sido batizadas. Para tanto, contaria com a
colaboração dos leitores, anunciando assim um concurso promovido pelo jornal, em parceria
com a “Fábrica de Charutos Comercial, Casa Super-ball, Mário Filho,59 entre outros”. Nesse
momento não cita a “Rádio Tamoio” entre as empresas que ofereciam prêmios, mas indica
seu endereço, juntamente com o da redação do diário para o envio das cartas.
Já no dia 15 de junho de 1969, poucos meses após o surgimento das primeiras
mascotes elaboradas por Henfil para o JS, uma matéria trazendo um pouco dos bastidores da
criação dos personagens (Figura 3.2) era o destaque da página 10 daquela edição.60 Por serem
elucidativas no que diz respeito ao processo de criação (ou escolha) desses símbolos, tornam
válida a transcrição literal abaixo:
58
JS, 02 de novembro de 1944, p. 6.
59
A coluna se refere mesmo à pessoa física Mário Filho, não ao periódico.
60
Situada no primeiro quadrante da página, ultrapassava facilmente este quarto da folha, ocupando cerca de 20
centímetros de largura por 30 de comprimento.
62
61
JS, 15 de junho de 1969.
62
Coincidência ou não, os três mascotes, cujos nomes ficaram a cargo dos leitores, representam os únicos dos
que disputavam regularmente o certame na época e que nunca haviam se sagrado campeões na história do
campeonato carioca de futebol. São Cristóvão se sagrara campeão em 1926 e Bangu havia conquistado o título
na liga profissional em 1933.
63
63
Nota-se ainda que no período de Henfil, ao contrário do de Molas, o JS já circulava as segundas-feiras. Moraes
(1996) atribui o fato ao crescimento rápido e vertiginoso do JS, que estaria “no vermelho”, e ao editor-chefe
Maurício Azedo, que comandara a reforma gráfico-editorial do periódico. Um dos outros acertos do editor foi
64
Mais adiante consideraremos essa declaração, em que afirma que a torcida acabava
acatando suas dicas implícitas nas charges, dedicando atenção especial às charges em que
Urubu e Bacalhau planejam “expulsar” a torcida alvinegra do lugar que lhes era reservado no
estádio. Se de fato a torcida concretizou o planejamento da charge, infelizmente não dispomos
de qualquer outro indício que não seja a afirmação do próprio cartunista. Procurando nas
matérias que tratam do referido jogo, não encontramos qualquer menção ao fato. Um único
indício encontrado foi uma charge (Figura 3.3) do próprio chargista em que ele reproduzia e
respondia, em cada quadrinho, trechos de cartas dos leitores, a maioria indignada. Uma delas,
entretanto, parecia uma resposta positiva a Henfil, que ele agradece através do personagem
vascaíno.
aumentar o destaque das charges de Henfil. De acordo com os dados levantados pelo autor, a tiragem teria
subido de 12 mil para 65 mil exemplares nos dias seguintes aos jogos. (MORAES, 1996, p. 85).
64
Rubro-negros também não gostavam das críticas que Henfil fazia ao clube, supondo que ele fosse torcedor de
outro clube. JS, 02 de novembro de 1969, p. 3.
65
Figura 3.3 Henfil, volta e meia, usava a tirinha para responder a cartas dos leitores. Evidentemente não podemos
assegurar se ou quais as cartas ou leitores que, de fato, existiam, mas nos parece claro sua intenção de reforçar
seu ponto de vista sobre o espetáculo do futebol. JS, 02 de novembro de 1969, p. 3.
Figura 3.4 Na trama elaborada por Molas, a rivalidade entre as mascotes é acirrada de forma individual. A
divisão estabelecida entre os clubes de maior ou menor expressão não implica qualquer tipo de parceria entre os
integrantes de cada grupo ou tão pouco de enfrentamento coletivo entre essas divisões. JS, 14 de setembro de
1944, p. 1.
67
Figura 3.5 A clara divisão entre os times considerados “grandes”, estabelecida por Henfil, procura articular os
conflitos da trama entre as duplas de times identificados com “a elite” e “a massa”, bem como reforça
constantemente o contraste social nos discursos preferidos pelos personagens, onde essa diferença está sempre
no eixo condutor das narrativas. JS, 26 de setembro de 1969, p. 3.
68
65
Desconsiderando o campeonato de 1907, na época sem campeão declarado, o título em 1996 foi dividido por
decisão da Justiça Desportiva entre Fluminense e Botafogo.
70
66
Acredita-se que o deboche fizesse alusão à situação do Flamengo, que, em seu grupo, era o time que mais
havia perdido pontos. O clube rubro-negro amargara mais recentemente uma derrota por 3 x 0 para o Grêmio e
não passara de um empate sem gols contra a - até então - modesta equipe do Bahia. A fórmula de disputa previa
uma primeira fase, onde os 17 participantes jogavam todos contra todos, em turno único, mas divididos em 2
grupos (um de 8 e outro de 9). Classificavam-se os 2 primeiros de cada grupo para a fase final. Os quatro
finalistas jogavam entre si em turno e returno e seria o campeão aquele que somasse mais pontos. A Folha de
São Paulo publicava duas tabelas de classificação: por pontos ganhos e por pontos perdidos. O Flamengo
aparecia, na rodada anterior à referida charge com quatro pontos ganhos e seis perdidos. Fluminense aparecia em
segundo, por pontos ganhos, com 5 pontos, mas por pontos perdidos caía para sétima posição, com os mesmos 5
pontos. O Botafogo na primeira classificação por pontos ganhos aparecia em quinto, tendo conquistado 2 pontos
e perdido 4 pontos, o que o empurrava para quarta posição.
67
Técnico do Flamengo na época da charge.
71
Figura 3.6 Almirante, Pato Donald e Popeye comemoram o tropeço do líder Fluminense diante do América,
renovando a motivação dos concorrentes na disputa pela Miss, que ficou à espera do Cartola. JS, 19 de setembro
de 1944.
73
Figura 3.7 Urubu e Bacalhau planejam juntar-se na torcida contra o Botafogo. A sugestão do cartunista, segundo
o próprio, foi aceita e posta em prática, o que seria inimaginável (HENFIL, 1984a, p. 16); JS, 08 de novembro de
1969.
74
68
Ao fim da rodada anterior, a 11ª do campeonato, o Fluminense acumulava 19 pontos ganhos e mantinha quatro
pontos de vantagem sobre os vice-líderes, Vasco e Botafogo, ambos com 15 pontos, seguidos de perto pelo
Flamengo, com 14 pontos conquistados até então. Na 12ª rodada, com a derrota do tricolor para o América e as
vitórias de Vasco, Botafogo e Flamengo diminuíam a vantagem tricolor para 2 e 3 pontos, respectivamente, e
tornavam a disputa mais acirrada. Com a vitória o América, mais distante dos demais, chegava a 13 pontos.
69
A referida charge traz à lembrança o depoimento de Henfil, destacado anteriormente no presente capítulo.
Henfil afirmara que as torcidas de Flamengo e Vasco, motivadas por sua charge, teriam se juntado no Maracanã.
75
finais, o cão alvinegro vai correndo assustado contar ao dono os planos da massa. Sua fúria
evidencia um acentuado e recíproco desprezo elitista pela massa: “O populacho quer destruir
a elite, mas não conseguirá! O que vem da lama não atinge a estratosfera!!!”.
As duas charges anteriores são bastante elucidativas da forma como Molas e Henfil
estimulam as rivalidades. Essas duas charges específicas também mostram como os dois
cartunistas estabelecem diferentes divisões entre os clubes. A rivalidade em Molas não
encontra muito espaço para uma manutenção constante de parcerias, como faria Henfil. A
charge de Molas se desenvolve em uma trama em que todos disputam a aceitação da Miss. As
parcerias, quando surgiam, eram provisórias. Somente ocorriam naqueles momentos em que
os menos favorecidos na tabela queriam o tropeço de quem estava por cima, como acontece
na charge destacada. A divisão estabelecida por Molas envolve um grupo que ainda pode
alimentar pretensões matrimoniais com a moça. São, sem dúvida, as mascotes dos times tidos
como de grande expressão, os maiores detentores de títulos,70 que mobilizavam as maiores
torcidas da cidade. Essas mascotes costumavam, ano a ano, frequentar a sala da Miss, ou seja,
representavam times que estavam sempre entre os primeiros na tabela, com chances de título.
Os demais, incluindo o América, resignavam-se a cumprir papel coadjuvante e,
excluídos das reuniões na casa da Miss, contentavam-se em observar as reviravoltas da
disputa pelo buraco da fechadura. Podemos supor uma metáfora também em Molas entre uma
determinada elite, representada pelos clubes de maior expressão, e os demais, que não
alimentavam maiores pretensões no certame. Uma diferença importante entre a divisão
articulada por Molas e por Henfil é que o primeiro concentra o grande foco de atração da
narrativa apenas no grupo “da elite”, daqueles que reúnem um mínimo de condições
fundamentais para poder frequentar a casa e alimentar pretensões à mão da Miss. O maior
interesse de um campeonato é o campeão, da mesma forma que o foco metafórico da charge
está em quem irá desposar a Miss Campeonato. Os que nem sequer frequentam a casa
permanecem à margem do interesse dos leitores. Logo, à margem da trama.
As mascotes que representam os clubes pequenos são desprezadas por Henfil.
Simplesmente não existem em sua trama. Além dos quatro principais, o único clube
representado era o América e mesmo assim aparecia ou era mencionado esporadicamente,
70
Chega a ser estranha a exclusão do América do grupo de elite na época de Molas, uma vez que acumulava um
total de títulos maior do que o Vasco, integrante mais recente na competição, e apenas um a menos do que o
Botafogo, considerando que o título de 1907, dividido com o Fluminense por decisão judicial de 1996, ainda não
era computado e que três de seus quatro títulos seguidos foram conquistados na época da cisão entre os clubes
pela questão do profissionalismo. A respeito da profissionalização, ver: MALAIA, João M. C. Revolução
Vascaína: a profissionalização do futebol e inserção sócio-econômica de negros e portugueses na cidade do Rio
de Janeiro (1915-1934). 2010. 490f. Tese (Doutorado em História Econômica) - Programa de Pós-Graduação em
História Econômica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
76
pertencimento simbólico a uma determinada elite ou, ao contrário, sua identidade com a
massa.71
71
Ao tratar da competição de torcidas promovida pelo JS em 1951, Bernardo Buarque de Hollanda (2012)
afirma que a torcida tricolor planejava levar ao estádio a mundialmente conhecida orquestra do maestro
trompetista Tommy Dorsey, que não só se apresentaria como também representaria a torcida do Fluminense.
Cremos poder observar aqui uma possível intenção de se ressaltar o aspecto elitista da torcida, se levarmos em
conta que, embora muito popular nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, o jazz no Brasil daquele
momento ainda poderia ser mais associado ao gosto da elite. Até porque se tratava de um conjunto de estrutura
mais complexa, na linha das grandes orquestras do momento como a de Benny Goodman e Glen Miller. Se
compararmos a “estratégia musical” do Fluminense à do Flamengo para a mesma competição, por exemplo,
veremos que o rubro-negro dava preferência a valorizar ídolos nacionais da era do Rádio, como o cantor e
compositor Blecaute - negro, de origem humilde, torcedor do clube, que fazia enorme sucesso com a marchinha
de carnaval General da Banda e provavelmente já servisse de identificação com o clube, que, segundo Buarque
de Hollanda, àquela época já se autoproclamava “o mais querido do Brasil” (HOLLANDA, 2012, p. 90).
78
72
Símbolo: um signo que indica seu objeto referencial por meio da convenção, não por semelhança ou
aproximação de elementos visuais (SANTAELA, 2005, p. 12-36).
79
Acreditamos que suas fontes de inspiração poderiam mesmo ter sido suas próprias
impressões sobre o cotidiano esportivo da cidade, bem como as cartas dos leitores e,
sobretudo, a maneira como seus próprios colegas de redação percebiam e interpretavam as
diferentes características dos clubes e estereótipos das torcidas. Passaremos, então, às
discussões em torno dessas interpretações, observando nas representações de cada clube ou
torcida as semelhanças e diferenças entre os dois períodos. Veremos que as representações
articulam um conjunto de características que são absorvidas, reinterpretadas, abordadas de
forma diferente ou simplesmente negligenciadas ao compararmos um período com outro.
Para tanto, lançamos mão de ferramentas que nos serão fundamentais para a discussão,
como as recentes obras dedicadas ao fenômeno esportivo, principalmente aqueles dedicados à
torcida e à imprensa brasileira já aqui citados, com preciosos artigos como de Bernardo
Buarque de Hollanda (2012), Victor Melo (2012) e João Malaia (2012b, 2012c). Para análise
sobre as interpretações da imprensa sobre o futebol, precisaremos nos valer da extensa obra
dos grandes memorialistas Mário Filho (1964, 1966, 1994) e Nelson Rodrigues (2012). O
livro da jornalista Cláudia Mattos (1997) também será de grande utilidade, uma vez que ela
dedicou-se a um assunto um tanto impreciso para o meio historiográfico: a empreitada de
tentar compreender as diferenças no “espírito” dos torcedores dos quatro clubes de maior
expressão do Rio de Janeiro. Resultado de Dissertação de Mestrado em Comunicação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, a obra nos será útil como uma observação de uma
jornalista que, nos anos 1990, se debruçou sobre a obra de nomes como João Saldanha e os já
81
citados Mário Filho e Nelson Rodrigues, que deixaram suas interpretações sobre as torcidas
em períodos próximos aos que os cartunistas atuaram. Notando que a autora lança mão de
nomes de enorme relevância da crônica e da imprensa esportiva brasileira do século XX, é
preciso, no entanto, salientar que o trabalho da autora será analisado também enquanto mais
uma representação da imprensa.
Figura 3.8 “Essas coisas só acontecem comigo” é um conhecido ditado popular relacionado ao Botafogo, cuja
evidência acima parece constatar que já existia na época em que Molas começou a trabalhar no JS. Acima, a
primeira aparição do Pato Donald como figura simbólica do Botafogo. JS, 28 de junho de 1944, p. 1.
82
Figura 3.9 “Estou tão feliz que troquei o hino”: com esta simples frase, Henfil atribui o estigma da infelicidade
como norma ao torcedor do Botafogo e sugere que o hino flamenguista fosse reconhecido, mesmo por um
torcedor de outro time, como adequado para momentos de comemoração. JS, 10 de novembro de 1970, p. 2.
83
73
Justifica o título da charge: “O jogo que sobrou”. JS, 28 de junho de 1944, p. 1.
84
seja uma referência ao raro fato de um clube de Niterói participar do Torneio Municipal da
cidade do Rio de Janeiro.
Observando a charge do dia 10 de novembro de 1970 (Figura 3.9), optamos por
concentrar nosso foco apenas nos três primeiros quadros, que propiciam reflexões mais
pertinentes à discussão. Logo no primeiro quadrinho podemos ver o Cri-Cri radiante de
felicidade. Comemorava saltitante e de braços erguidos a recente contratação de seu
Botafogo: “Gérson no Botafogo!”. Tratava-se do meio-campo Gérson, que até então defendia
as cores do São Paulo e era conhecido como “o canhotinha de ouro”. Naquele mesmo ano,
Gérson se consagrou como titular absoluto da seleção brasileira tricampeã do mundo, no
México. Seu entusiasmo, porém, causa certo estranhamento no segundo quadro quando o
personagem começa a cantar o antigo hino rubro-negro: “Flamengo, Flamengo, Tua Glória é
lutar!” No terceiro quadrinho o personagem aparece envergonhado pela gafe, desculpando-se
com os leitores: “Desculpem, estou tão feliz que troquei o hino”.
Comparando as charges selecionadas, podemos observar algumas das características
mais perpetuadas pela imprensa esportiva a respeito do estereótipo do Botafogo ou do
botafoguense. O episódio inusitado na partida válida pelo Torneio Municipal serve de
pretexto para ironizar a revolta dos alvinegros, reforçando sua suposta postura de incansável
contestador. Ao anular as decisões por ele mesmo tomadas, o árbitro Pereira Peixoto gerou
uma interessante polêmica na imprensa. O “Correio da Manhã” demonstrou indignação com a
conduta do juiz por ter decidido anular suas próprias decisões: “Pelo exposto, quem conhece
as regras do futebol chegará à conclusão que um juiz que anula tanta coisa, não passa de um
nulo... na arte de arbitrar.”74 Já a “Folha da Noite”, ao contrário, o apoiava concluindo que
teria agido corretamente, uma vez que, ciente de seu erro, não poderia sustentá-lo: “Mas de
qualquer forma, fôssem quais fôssem as consequências para sua pessoa, seria êle um indigno
se mantivesse as penalidades impostas indevidamente ao clube que não incorreu em nenhuma
infração.”75 A polêmica evidencia, ao menos, que não havia unanimidade em relação à
condenação do juiz e à anulação da partida. Aproveitar o episódio para identificar o
botafoguense como um contestador irredutível, através de sua identificação com o Pato
Donald nos ajuda a refletir sobre a contribuição do JS para reforçar os estereótipos por eles
sustentados.
74
Correio da Manhã, 06 de junho de 1944, p. 9.
75
Folha da Noite, 08 de junho de 1944, p. 7.
85
A charge de Henfil, por sua vez, debocha da felicidade alvinegra, sugerindo se tratar
de um momento raro. Devemos ressaltar a assumida predileção de Henfil pelo rubro-negro,
não escondendo sua torcida pelo Flamengo em suas charges, o que nos leva a supor que é
possível que estivesse sugerindo que o hino alvinegro não fosse compatível, então, com
momentos de alegria, sendo o hino rubro-negro mais propício a festividades e comemorações.
No entanto, no ano de 1970 era o Flamengo que amargava um jejum maior de títulos, tendo
sido campeão pela última vez em 1965, enquanto o Botafogo havia se sagrado bicampeão em
1967 e 1968. Além disso, se o Botafogo perdia no número de títulos estaduais para o rival por
15 a 13, com relação ao Torneio Rio-São Paulo a diferença é esmagadora em favor do
alvinegro: 4 a 1. E o Botafogo ainda contava com uma Taça Brasil, que o Flamengo nunca
havia levado. Mais uma vez, as fontes nos levam a refletir sobre os mais variados artifícios,
entre os quais as charges se destacam, através dos quais a imprensa esportiva procurava impor
as suas perspectivas e interpretações a respeito do meio futebolístico.
Sobre os botafoguenses, Cláudia Mattos (1997, p. 110) procura tecer uma
característica ligada ao que chama de “cultura de oposição”, percebendo que seus torcedores
mais representativos formam uma “elite irresponsável”. Trata-se de uma intelectualidade
carioca de oposição, com poderes de formadora de opinião, que defende certa rejeição a
valores estabelecidos pela negação às instituições, bem como pelo senso comum, oferecendo
palpites intelectualmente fundamentados sobre as mais banais causalidades. Assim ela
percebe, por exemplo, a superstição atribuída ao torcedor, que encontra uma lógica particular
em um gesto ou hábito para explicar uma derrota ou uma vitória. O episódio lembrado pela
autora é exemplar. Em 1948, o presidente do Botafogo, Carlito Rocha, conhecido por ser
excessivamente supersticioso, encontrou no cachorro vira-lata Biriba76 a chave para a
conquista do campeonato. Rocha passaria a levar a mascote a todos os jogos, sentando-se ao
lado do cão na tribuna de honra.77 Ao final do campeonato, o título aguardado desde 1935
consagraria por muitos anos o cachorro como mascote do clube.78
Para organizar seus argumentos, Mattos (1997) seleciona episódios característicos da
trajetória do clube, escolhendo descrições de Nelson Rodrigues e Mário Filho, que nos serão
especialmente úteis nesta discussão.
76
Claudia Mattos refere-se a um vira-lata que, pelo quadro Baú do Esporte - reportagem especial da TV Globo,
mantém a aparência de um fox terrier preto e branco. Ver http://www.youtube.com/watch?v=LdQba08iUz0.
77
Carlito Rocha adotou o cachorro depois que o animal invadiu o campo e fez seu xixi em uma das traves do
adversário, distraindo o goleiro e provocando o gol do Botafogo (MATTOS, 1997, p. 114).
78
O cachorro ainda é a mascote utilizada por Mário Alberto, chargista do jornal “Lance” (principal diário
esportivo no país nos dias de hoje), para representar o Botafogo.
86
O que procuramos observar aqui é em que medida a identidade definida por “elite
irresponsável” para a cultura alvinegra, defendida pela jornalista, que ainda sugere a
preservação de uma “cultura de oposição”, pode encontrar respaldo na construção dos
personagens de Molas e Henfil. Há de se ressaltar que a autora seleciona e costura as mais
ricas percepções de Nelson Rodrigues e Mário Filho, nomes entre os mais atuantes e
relevantes na imprensa esportiva carioca e brasileira, sobre o clube conhecido por seus
torcedores como “O Glorioso”.
Mário Filho (1994) identifica nas origens do clube, idealizado por estudantes
adolescentes do Colégio Alfredo Gomes, uma perene disposição para dedicar-se a todo tipo
de enfrentamentos, de protestos e cisões. Tal disposição teria protagonizado os mais sérios
entreveros nas primeiras décadas de disputa do Campeonato Carioca de Futebol oficial. A
passagem destacada parece entregar uma crítica mal disfarçada ao alvinegro.
E não é difícil mexer com o Botafogo. Não há clube de sensibilidade mais à flor da
pele, com mais orgulho de Grande de Espanha do que o Botafogo. Eis porque ele
está sempre disposto a topar paradas, a se meter em encrencas, a arriscar até a
própria vida por uma coisinha. Nada que o atinja e mesmo que não o atinja, mas que
ele julgue que foi para atingi-lo, é coisinha pra ele. Ele devia ter nascido em outra
época. É a única flor retardatária de capa-e-espada que surgiu depois dos 1900
(MATTOS, 1997, p. 111; FILHO, 1994, p. 75).
Nota-se, pelas passagens, como “sensibilidade à flor da pele”, “arriscar até a vida por
uma coisinha”, “mesmo que não o atinja, mas que ele julgue que foi para atingi-lo [...]” uma
referência a um temperamento digno das fortes emoções juvenis, em que a conotação ao
comportamento adolescente parece mais clara. De fato, parece tão fácil quanto tentador
associar essa suposta “postura de brigão” do clube alvinegro ao sangue quente dos hormônios
em ebulição de seus primeiros dirigentes.
Pode-se verificar uma acentuação mais negativa do que positiva na perspectiva de
Mário Filho com relação ao Botafogo, observando apenas o trecho destacado. Nota-se,
sobretudo, que o autor, do mesmo modo que Molas em suas charges, não se refere à torcida,
mas ao clube. Refletindo sobre essa possibilidade, levando em conta a sua dedicação ao
enaltecer o futebol brasileiro e atrair as multidões, não podemos deixar de considerar que não
faria muito sentido que o editor do mais longevo e popular diário esportivo do Rio de Janeiro
nutrisse explicitamente uma declarada antipatia por qualquer um dos grandes clubes
brasileiros, alicerces fundamentais ao espetáculo que promovia. Há também certo caráter
87
de uma frota de carros. Este, como veremos, é cercado de uma simbologia ligada às mais altas
camadas sociais. Quanto ao Cri-Cri do Botafogo, apesar de formar a “República de Ipanema
Beach”, não aparecia nas charges de Henfil associado a esses símbolos mais aristocráticos.
A partir de 1969, ao elaborar novas representações para os grandes clubes da cidade,
Henfil escolheria entre as sugestões dos leitores um apelido para a torcida alvinegra que
mantinha certa sintonia com a representação de outrora e com a afirmação de Mário Filho,
destacada anteriormente. O verbete “Cricri” (grafado sem hífen, diferente da forma como
escrevia Henfil), segundo o dicionário Aurélio, remete a dois sinônimos: o primeiro,
relacionado à sua origem onomatopaica, sugere a imitação do canto do grilo, enquanto o
segundo refere-se às pessoas muito chatas.79 De fato, a característica que Henfil procurava
ressaltar era a associação entre o clube alvinegro e seus torcedores, junto com os do
Fluminense, às classes mais elitistas da cidade, residentes à Zona Sul. Mas é preciso
estabelecer diferenças entre as características do Cri-Cri e do Pó de Arroz para além da
identificação de ambos com a elite. Especificamente dois quadrinhos, o segundo e o terceiro,
na charge de Henfil parecem ajudar a compreender algumas diferenças.
79
“Cricri. Adj. 2 g.e.s. 2 g. Bras. Gir. Diz-se de, ou pessoa muito tediosa, chatíssima”. (HOLLANDA, 1975, p.
402).
89
Figura 3.10 Henfil procura a todo momento assinalar a suposta inexpressividade numérica da torcida do
Botafogo. JS, 29 de novembro de 1970, p. 2.
90
Henfil parecia querer desarmar aquela postura mais valente e decidida de outrora ao
construir um personagem mais triste, deprimido, de ímpeto mais arrefecido, encurvado,
tímido e acovardado.80 Muitas vezes, Henfil procurou salientar a menor expressividade da
representação da torcida do Botafogo em contraste com as demais, especialmente a do
Flamengo, que procurava exaltar e amplificar essa representação. Na charge destacada (Figura
3.10), por exemplo, Henfil ironiza a inexpressividade numérica das torcidas de Botafogo e
América. Observamos uma tranquila fila de botafoguenses em direção a um dos portões de
entrada do Maracanã. Na frente do portão, um funcionário vai contando os torcedores que vão
entrando: 1, 2, 3... Fecha a conta em 18, concluindo: “Pronto! Os 18 botafoguenses!”.
Figura 3.11 No quadrinho acima, o leitor pede a Henfil “que cesse de ficar reproduzindo em seus desenhos, as
histórias do Cri-Cri botando ovo”, alegando ser humilhante e exigindo respeito. Respondendo pela boca do
personagem citado, o cartunista sugere, em uma única frase, que o torcedor do Botafogo, além de cultivar
hábitos masoquistas, também não está acostumado a uma vida de prazeres enquanto torcedor: “Pô, Seu Milton e
Seu Pedro! Querem tirar o único prazer da minha vida?” JS, 10 de novembro de 1969, p. 3.
80
Veremos na parte que corresponde aos aspectos políticos que as motivações de Henfil justificam a
representação dos times ligados à elite uma imagem mais pejorativa.
91
Figura 3.12 Na resposta do quadrinho destacado, retirado da mesma tira do quadrinho anterior, o Urubu afirma
ter tido uma disenteria ao tentar torcer pelo Botafogo. JS, 10 de novembro de 1969, p. 3.
Mário Filho e Nelson Rodrigues, dois dos mais importantes nomes do JS, deixaram
escrito que parecem querer forjar a percepção de que esta representação alvinegra, mais ligada
a momentos de amargura, de mágoas, irritabilidade e tristeza, atravessa décadas na história.
Se o Pato Donald foi escolhido por Molas (ou por algum colega da redação) para representar
o alvinegro por conta de sua notória irritabilidade e constantes ataques de fúria, por essa
perspectiva não poderíamos compreender uma relativa aproximação entre as duas
representações aqui comparadas? Pato Donald e Cri-Cri estão associados a toda essa rede de
sentimentos de contestação e amargura. A maior diferença verificada na comparação está em
uma possível e relativa interpretação valorativa da característica assinalada (irritabilidade), no
primeiro momento, e mais pejorativa, no segundo. O Botafogo era o time que não levava
desaforo pra casa. O Pato Donald dava seus saltos, seus estrilos, mas mantinha uma pose mais
confiante, de peito aberto, chamando ao enfrentamento, enquanto o Cri-Cri é caracterizado
como um baixinho chato, afetado, preconceituoso e com tendências masoquistas. A expressão
numérica de sua torcida, geralmente reconhecida como a quarta maior do Rio de Janeiro,
encontra certa explicação que ajuda a compreender a impressão de Mattos (1997) sobre uma
possível simpatia e maior adesão entre parte da classe intelectual de oposição da cidade. Essa
característica é ressaltada e ampliada por Henfil, que procura torná-la ainda mais
92
inexpressiva. Henfil ainda procura acentuar outra característica suposta por Nelson Rodrigues:
o masoquismo. Poderemos perceber que a crônica de Nelson Rodrigues sobre o torcedor rival
encontra certa ressonância:
Na Sicília, quando um moribundo escapa de morrer, a quase viúva cai em frustração.
Ela se sente espoliada do seu defunto e seu respectivo velório. É a mesma tristeza do
alvinegro que não tem nenhum pretexto para soluçar suas mágoas clubísticas
(RODRIGUES apud MATTOS, 1997, p. 110).
A própria Claudia Mattos (1997) recomenda o devido cuidado com a carga dramática
e emocional das crônicas de Nelson Rodrigues. Não podemos acreditar piamente que um
torcedor de futebol, seja ele qual for, possa saborear uma derrota como quem “chupa um
Chika-bon”, como afirma a autora, tomando de empréstimo uma das usuais expressões do
dramaturgo tricolor (MATTOS, 1997, p. 110). Mas a autora endossa a representação do JS ao
identificar no botafoguense certa inclinação para se situar à oposição, lembrando em seguida
os episódios relatados no início desta reflexão a respeito da “comunidade alvinegra”. Se a
representação escolhida por Henfil para definir a torcida botafoguense parece, de algum
modo, encontrar eco nas palavras de Nelson (ou vice-versa), a representação de Molas acaba
reforçando a definição de Mário Filho. A ideia de masoquismo, explícita ou sutil, parece
encontrar sintonia com representações de Molas quando encontramos uma charge do
cartunista portenho que sugere certo prazer por parte dos botafoguenses em reclamar e criar
confusão. Em julho de 1947, os grandes clubes retornavam de temporadas vitoriosas, em uma
das usuais excursões que os clubes promoviam no período de férias,81 provavelmente para
“fazer caixa” e manter os atletas em forma. O Pato alvinegro é o único que regressa
levantando um senão em meio à alegria das conquistas: “O problema de ganhar é que a gente
nem pode dar um estrilozinho”.82
Como podemos perceber, as representações estabelecidas por Mário Filho, Nelson
Rodrigues, Molas e Henfil não apenas são disseminadas por meios diversos através da
imprensa, como também atravessam a história. Vão ganhando novos contornos, novas formas,
mas muitos aspectos do tronco principal das simbologias mantêm-se na memória coletiva dos
torcedores que, por sua vez, se identificam, se percebem representados e perpetuam ícones e
tradições de sua paixão futebolística. O personagem botafoguense pode ser, entre todos, o que
sofre uma transformação visual mais radical, mas talvez seja o que mais mantenha
semelhanças entre as características mais significativas dos dois períodos. O Pato Donald e o
Cri-Cri guardam semelhanças que os identificam certamente nessa cultura de oposição.
81
Vale lembrar que o campeonato carioca daquele ano só teve início em agosto (ASSAF; MARTINS, 2010, p.
253).
82
JS, 17 de julho de 1947, p. 1.
93
Oposição que pode ser refletida nos números caracterizados por Henfil como inexpressivos da
torcida alvinegra, como rejeição ao lugar comum, assim como também pode ser lida na
postura de constante enfrentamento do Pato, que não fica totalmente satisfeito se não tiver
oportunidade de dar seus estrilos. O prazer que o Pato demonstra em enfurecer-se, por sua
vez, encontrará reflexos na postura masoquista e resignada do Cri-Cri, que também frisa seu
prazer em pôr ovos na resposta debochada de Henfil (Figura 3.11). A manutenção de certos
símbolos deve-se certamente a fatores diversos, que têm em conta as ideias e metas editoriais
do periódico, a perspectiva crítica do cronista ou do cartunista e a aceitação ou rejeição da
torcida. O caso do Botafogo tornou-se o único entre os clubes mais tradicionais do Rio de
Janeiro em que as duas representações escolhidas pelos cartunistas não resistiram ao tempo e
acabaram esquecidas e restritas à memória dos torcedores mais antigos.
94
Figura 3.13 Popeye, anunciando o livro “Histórias do Flamengo”, evidencia estratégias do jornal para aproveitar
as datas comemorativas lançando produtos específicos para cada torcedor e para, ao mesmo tempo, reforçar a
pregnância do símbolo entre seus leitores. JS, durante vários meses de 1945, ano do cinquentenário do clube.
95
Figura 3.14 Na charge em que vemos Popeye e sua indefectível lata de espinafre, percebemos que Molas
buscava associar as vitórias do Flamengo ao consumo de espinafre de seu personagem símbolo. JS, 04 de agosto
de 1944.
96
Figura 3.15 A hipérbole de Henfil reforça, na charge acima, a ideia em torno de uma multidão torcedora do
Flamengo, fato que talvez não fosse tão incontestável ou perceptível na década de 1940. JS, 05 de dezembro de
1970.
97
83
Uma nota no JS informava que o ingresso para o Fla-Flu custaria Cr$ 5,50 na arquibancada. JS, 10 de abril de
1945, p. 6.
98
ele revertia situações complicadas ao comer seu espinafre e ganhar a força necessária pra
vencer seu inimigo.
Molas estabelece uma associação entre as reviravoltas proporcionadas pelo espinafre
do Popeye e as propagadas “arrancadas” do time rubro-negro. De todas as representações
escolhidas para os clubes, a do rubro-negro talvez fosse a mais desejável, uma vez que uma
das coisas que mais interessava aos torcedores era a força no futebol. As representações em
torno do espinafre podem ir além, uma vez que podemos ver relações também com ideias
positivas e apreciáveis no meio do esporte como superação, predestinação, esforço, heroísmo
e persistência. É possível encontrar indícios da campanha rubro-negra no livro “História do
Campeonato Carioca”, dos jornalistas Roberto Assaf e Clóvis Martins (2010), que chegam a
apresentar resultados de todos os confrontos, mas é mais difícil averiguar, a cada rodada, a
situação do time na classificação dos campeonatos vencidos pelo clube em 1942 e 1943.84
Anos mais tarde, a charge de Henfil dividida em dois quadros (Figura 3.15) mostra
dois urubus representando o mesmo clube da Gávea. Um deles, um urubu em sentido
figurado, era representado por um negro, carregando uma cruz imensa ao pescoço, o que,
observaremos, remete mais às religiões africanizadas do que ao catolicismo, ainda que ao
longo dos anos o chargista faça referência aos dois. Expressões como “o mais querido” ou
“nação rubro-negra” perpetuaram-se na memória coletiva da torcida carioca enquanto
referências ao Flamengo e sua torcida. A jornalista Cláudia Mattos (1997) apresenta um
resultado de uma pesquisa elaborada pelo Ibope por encomenda da revista “Placar”, de fins
dos anos 1990,85 que aponta o seguinte quadro de preferência dos torcedores do Rio de
Janeiro: Flamengo: 41,9%; Vasco: 18,4%; Fluminense: 16%; Botafogo: 10,10%.
Infelizmente, as pesquisas realizadas ao longo da história não estão todas devidamente
digitalizadas, arquivadas e à disposição do público. O que se encontra à disposição na internet
é selecionado, em sítios virtuais profissionais ou amadores. Os sítios oficiais de empresas
como IBOPE ou Data-Folha também não viabilizam pesquisas históricas e só divulgam
parcialmente as nacionais e mais recentes.
84
No breve relato geral sobre o campeonato, os autores afirmam que o Botafogo teria entrado com um recurso,
indeferido depois pela Federação, reivindicando a pontuação na vitória contra o São Cristóvão, alegando terem
sido prejudicados pela arbitragem, mantendo-os na segunda colocação a um ponto do rival. Observando a
campanha do campeão, jogo a jogo, observamos tropeços no início da campanha de 1942, onde, em 27 partidas,
as duas derrotas e 4 dos cinco empates foram nas primeiras 11 rodadas. Dali pra frente, apenas um empate no
jogo final, contra o Fluminense. Já em 1943, os autores ressaltam a chegada de um jogador chamado Bria, com o
qual o técnico Flávio Costa teria acertado a equipe, em que jogador atuou nas últimas cinco partidas. Observando
a campanha, veremos que houve dois empates, com o segundo (Fluminense) e terceiro (São Cristóvão)
colocados, e três goleadas nos últimos jogos (ASSAF; MARTINS, 2010, p. 223-239).
85
Mattos refere-se à pesquisa como sendo recente, tendo seu livro sido publicado em 1997 (MATTOS, 1997,
p.75).
99
Uma das representatividades mais fortes do Flamengo está ligada diretamente à sua
propagada imensa torcida, que Mário Filho situa como uma característica do clube atrelada ao
surgimento do futebol. Vale transcrever na íntegra o trecho em que o leitor se deixa levar pela
narrativa envolvente do autor:
O Flamengo, sem campo, não querendo pedir campo emprestado ao Fluminense,
tendo de ir treinar no Russell. Havia um gramado no Russell, o mesmo de hoje, onde
os garotos formavam times, jogavam futebol. Arranjado pela prefeitura para isso
mesmo, para ver se os garotos deixavam de jogar no meio da rua. Garotos e
marmanjos. O Flamengo treinava lá, era pertinho. Os jogadores saíam,
uniformizados, praia do Flamengo abaixo para a Glória, para o Russell. As travas
das chuteiras rangendo na calçada, o barulho da bola batendo no chão, o time do
Flamengo ia treinar, garotos de família, moleques, passavam a notícia de bôca em
bôca. Quando os jogadores do Flamengo chegavam no Russel já encontravam gente
esperando por eles. [...]
Mas aqueles garotos da praia do Russell, uns de boas famílias, calçados, vestidinhos
com roupa de tarde, outros de famílias pobres, calças rasgadas atrás, pés no chão,
foram ficando Flamengo. Aparecendo nos campos de futebol para torcer por êle.
Nas arquibancadas, nas gerais, nos morros (FILHO, 1964, p. 39).
Obviamente que esse concurso, como alerta Malaia (2010), não tem qualquer caráter
de pesquisa ou censo, mas oferece algum indício sobre o quadro de popularidade dos grandes
clubes da cidade. Ainda que o jornal só tenha publicado os três primeiros de cada categoria, a
diferença no número de votos entre o primeiro e o segundo, bem como entre o segundo e
terceiro colocados, em ambos os casos, é gritante. Em resposta à pergunta sobre qual o clube
de maior popularidade, o número de votos computados ao Fluminense é quase três vezes
maior que o do segundo colocado, e este se distancia pouco mais que duas vezes do terceiro.
Malaia (2010) credita esta popularidade do clube das Laranjeiras ao número de
conquistas (que àquela época contava com cinco títulos, desde 1906) e aos investimentos no
estádio, o que o capacitava a atender a crescente demanda de público, de forma que acabaria
popularizando, consequentemente, suas arquibancadas e gerais. Mesmo sendo, então, o
bicampeão da cidade com os últimos títulos alcançados nos anos imediatamente anteriores ao
concurso (1914 e 1915), e mesmo com a assistência popular nos treinos da Praia do Russel
relatados por Mário Filho, o Flamengo ficaria em terceiro, ao menos na preferência do leitor
do “Correio da Manhã”.
Muito se fala, por exemplo, da contribuição da imprensa para a formação dessa
enorme torcida, que hoje é frequentemente considerada a maior do Brasil (MATTOS, 1997).
Dentre os personagens que se destacaram no processo está o grande compositor Ari Barroso,
que por tanto tempo trabalhou também como locutor de futebol, assumindo sempre sua
predileção pelo Flamengo. Alia-se à popularidade do compositor de “Aquarela do Brasil”, o
início das transmissões difundidas para todo o país pela Rádio Nacional. (MALAIA, 2010).
Claudia Mattos nos recorda também a “inegável relação entre o populismo e o Flamengo, o
mais bem tratado pelos governos populistas brasileiros, principalmente na era Vargas, quando
ganharia do governo o terreno na Gávea, onde construiria seu estádio em 1938” (MATTOS,
1997, p. 70-71).
De todo modo, as representações de Lorenzo Molas não exploram essas diferenças de
popularidade. Poderia não ser interessante ao cartunista ou ao jornal estabelecer esse tipo de
diferença, ou porque não houvesse ainda pesquisas fidedignas para calcular o tamanho das
torcidas, ou mesmo porque essas diferenças não coubessem em sua trama, em que as figuras
simbólicas representavam os clubes em vez de torcidas. Ou, provavelmente, porque esta
enorme torcida ainda não fosse uma situação concreta, mas em construção. Por mais que o
personagem dos quadrinhos, o marinheiro Popeye, gozasse de grande popularidade, não
acreditamos ter sido este o motivo da escolha. A popularidade do Pato Donald certamente não
era menor e o clube que representava jamais foi associado às massas e às maiores torcidas da
102
cidade. De todo modo, Molas parecia não se preocupar com a questão, uma vez que não
estava representando as torcidas.
Figura 3.16 Lançando mão do recurso da metalinguagem, quando uma representação cultural faz referência a
ela mesma enquanto representação, Henfil opera a transformação na forma do personagem dentro da tirinha. O
quinto quadrinho esclarece os motivos da mudança: “o boneco anterior carecia de autenticidade”. JS, 10 de
junho de 1969, p. 3.
103
O personagem de Henfil que representa o torcedor do Flamengo não foi negro desde
que surgiu. Lançando mão do recurso da metalinguagem, a charge do dia 10 de junho de 1969
(Figura 3.16) apresenta o Urubu que, até então, tinha rigorosamente a mesma aparência do
Cri-Cri, diferenciando-se apenas pela camisa, passando por uma transformação radical. Logo
no primeiro quadrinho, o Urubu aparece com a aparência anterior pela última vez, reclamando
ao companheiro Bacalhau por estar se sentindo mal. De repente, um grande volume de
fumaça ocupa o lugar onde estava o personagem. A lamúria do Urubu se transforma em um
risinho debochado, como se seu corpo estivesse sendo tomado por alguma espécie de
entidade. Já no terceiro quadrinho a fumaça vai tomando conta de toda a cena. Espremidos,
em um canto do quadro, vemos Bacalhau apavorado, correndo e mostrando ao Pó de Arroz no
que o Urubu havia se transformado. O tricolor, espantado, responde com uma exclamação em
francês: “Mon Dieu!”. No quadrinho seguinte, em meio à fumaça que vai se esmaecendo,
surge a nova forma do Urubu. Agora ele é negro, mais alto, mais magro, mais altivo também.
Mãos na cintura, encara os companheiros com um sorriso de escárnio, com a testa franzida,
com um enorme crucifixo pendurado ao pescoço, quase tocando o chão: “Acalmai-vos,
irmãos! Sou o Urubu! Apenas sofri a ação da evolução histórica... o boneco anterior carecia
de autenticidade”.
No artigo em que se dedica também a esses mesmos personagens do universo
futebolístico de Henfil, Euclides do Couto (2012) ressalta a dupla simbologia do Urubu, que
podia ser reconhecido tanto na ave agourenta, batizada estranhamente como 133, como no
personagem negro que protagoniza a ação na maioria das charges. Percebe-se ainda uma
sugestão mais implícita do alter ego do próprio cartunista na representação do Urubu
enquanto espécie animal. Vale transpor suas palavras:
Urubu, nome escolhido pelo cartunista para intitular todos os quadros referentes às
tramas vividas pelos personagens-torcedores, também ganhava uma dupla
simbologia. Ou era utilizado como símbolo da torcida do Flamengo, sendo
representado por um homem negro, de cabelo ouriçado, que sempre trajava uma
camisa rubro-negra; ou era representado por uma ave negra à qual Henfil atribuiu
uma dupla função: ocasionalmente ele contracenava com seus adversários, descendo
até o plano onde ocorriam os conflitos; na maioria das vezes, no entanto, ele se
postava como um observador atento aos acontecimentos. Esse personagem
representaria uma metáfora do comportamento assumido pelo próprio cartunista, que
se reconhecia na ave urubu: animal sorrateiro, que com olhar malévolo agoura suas
vítimas, esperando a desgraça alheia – a putrefação da carne – para se alimentar.
Assim como o animal, o personagem criado por Henfil ou assume uma postura de
vigilância, esperando pela morte das suas vítimas [...]; outras vezes, tece
comentários maldosos, cujo teor objetiva denegrir e ridicularizar seus adversários –
cartolas e treinadores (COUTO, 2012, p. 158).
104
86
JS, 25 de setembro de 1969, p. 3.
105
Percebemos aqui que o Urubu é demonstrado como o mais autêntico representante das
massas entre os clubes do Rio, porque, de maneira mais intensa e completa do que Bacalhau,
carrega outros elementos que se identificam com características e valores da massa, ainda que
estereotipados e generalizantes. O urubu é negro, pobre, gosta de samba e de cachaça. Embora
componha a “República Popular de Ramos”, parece diferenciar-se do companheiro na medida
em que a identificação do Bacalhau com o português estende essa representação também à
imagem do português patrão, comerciante, dono de botequim. O que nos parece é que para
Henfil, embora ambos representassem as classes menos favorecidas da cidade, o torcedor do
Flamengo estaria mais ligado à imagem do proletariado carioca sem raízes lusitanas mais
próximas.
Figura 3.17 Representação do Fluminense inclui fraque, cartola e o reforço verbal à sua posição na hierarquia
social. Mas a diferença para os rivais parece amenizada, quando a Miss se mostra indecisa: “embora sejas ‘de
bem’, mas o Vasco, meu amigo, tem açougue a armazém”. JS, 19 de julho de 1944, p. 1.
106
Figura 3. 18 O Pó de Arroz reforça sua condição social através de diversos elementos que compõem a tirinha: o
mordomo que atende por um sino (que não aparece, mas é sugerido pela onomatopéia “bong”), o banho de
espuma na banheira e os produtos em embalagens diversas ao lado desta, a menção a uma frota de carros de
luxo, a ideia de ociosidade da burguesia, que recebendo todas as regalias “de mão beijada” (mesada do “papai”),
não precisava trabalhar e a preocupação burguesa em aparecer em colunas sociais. JS, 05 de junho de 1969, p. 3.
107
desiste de ir ao Maracanã torcer pelo Fluminense quando vem a saber que nenhum de seus
colunistas sociais conhecidos estaria presente no estádio.
Figura 3.19 Molas ressalta a elegância do Cartola em diversos detalhes, que vão do traje à delicadeza do gesto
de carregar o véu da noiva, além do gestual expressivo do personagem. Vale notar, por exemplo, o dedo
mindinho da mão levemente erguido e o caminhar na ponta dos pés. JS, 01 de novembro de 1944, p. 1.
109
Figura 3.20 O personagem tricolor no traço de Henfil é mais arrogante do que elegante, procurando sempre
demonstrar uma erudição, em uma busca forçada de estabelecer diferenciação, abusando de expressões em
francês ou inglês e ou de verbetes menos coloquiais. JS, 03 de novembro de 1970, p. 2.
111
87
João Malaia apresenta diversos exemplos que ilustram essas afirmações. Os anos que se seguiram à fundação
do Fluminense Football Club e a do Rio Football Club testemunharam o surgimento de diversas agremiações
direcionadas, exclusiva ou prioritariamente, à prática de futebol, bem como a articulação com a imprensa.
(MALAIA, 2010, p. 33-37).
112
Cláudia Mattos (1997) destaca não apenas o prestígio de algumas tradicionais famílias,
como os Guinle ou os Coelho Netto, mas também o importante poder político que o peso
desses sobrenomes envolvia para, por exemplo, articular a criação de uma nova sociedade
carioca e financiar um projeto como o estádio do Fluminense. O poder desses sobrenomes,
como mostra a autora, se sugere maior que o da recém criada Confederação Brasileira de
Desportos (CBD), quando a partir do momento em que a Confederação admitiu não ter
condições financeiras para arcar com as despesas para a organização do Campeonato Sul-
Americano de 1919, o presidente do Fluminense, Arnaldo Guinle, assumiu a incumbência
levantando um empréstimo junto ao Banco do Brasil para a construção de um estádio com
capacidade para 18 mil pessoas, uma multidão se considerarmos a população
economicamente ativa do Distrito Federal em 1920, estimada em pouco mais de um milhão de
habitantes (ABREU, 2008). Mattos (1997) talvez ignorasse que em 1919 Arnaldo Guinle, que
dirigiu o clube entre 1916 e 1931, chegou a conciliar duas funções: na presidência do
Fluminense e da CBD entre 1916 e 1920.88 Nas palavras de Malaia (2010, p. 127), Arnaldo
Guinle teria sido o “primeiro grande empresário da indústria esportiva carioca”, estabelecendo
a meta de colocar o Fluminense entre os grandes clubes do mundo. Em sua gestão, o
Fluminense passou por amplas reformas em seu estádio, ampliando sua capacidade e as
receitas com a venda dos ingressos; aumentou o quadro social; organizou uma seção infantil;
dando início a um projeto de formação de jogadores, além de sediar competições esportivas
internacionais em 1919 e 1922, e de conquistar o primeiro tricampeonato carioca do clube
entre 1917 e 1919.
[...] as mensalidades eram de 40$000 e a joia89 de 100$000, para o ano de 1914. Por
esses valores dá para perceber que existe sim, além de uma barreira social criada
pelos sócios do clube em seus rígidos estatutos, uma barreira estritamente
econômica na seleção de membros do clube. Mensalidades de 40$000 ou 50$000 e
jóias de 100$000 não eram valores que os habitantes das camadas sociais inferiores,
os que se destinavam a trabalhos considerados à época como menos dignos - tais
como operários, garçons, choferes ou pedreiros - pudessem sequer cogitar em pagar
(MALAIA, 2010, p. 128).
88
. Para maiores informações sobre a sua relação com o Fluminense e a CBD, ver: MALAIA, João. M. C. O Rio
de Janeiro e os jogos de 1922: economia de um projeto esportivo. In: MALAIA, João; MELO, Victor. 1922
celebrações esportivas do centenário. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012, p. 63-72; e SARMENTO, Carlos
Eduardo. A regra do jogo: uma história institucional da CBF. Rio de Janeiro: CPDOC, 2006.
89
Taxa de admissão.
113
suas mãos e os pés.90 No meio da montanha de dinheiro, lê-se na altura de seu ventre as
inicias do nome completo do clube das Laranjeiras: FFC, de Fluminense Football Club.
Abaixo da ilustração, os versos reforçam a associação entre o clube e as classes mais
abastadas da cidade: “Queria que o Fluminense/ Para ser da terra o primeiro/ Só tivesse como
sócio/ Gente rica, de dinheiro”.91
Malaia (2010) ainda afirma que a manutenção da distinção do seleto grupo de
associados era garantida não apenas pela barreira econômica expressa no valor das joias e
mensalidades, mas também pela imposição de normas rigorosas para admissão de novos
sócios. O proponente deveria ser indicado por um sócio e aprovado pela assembleia geral dos
sócios. Muitas vezes, o autor observa que, mais do que reunir condições financeiras para
honrar as mensalidades, o que realmente interessava era o poder de influência do associado
que estivesse “apadrinhando” o proponente. Os salões do Fluminense tornaram-se um dos
principais pontos de encontro da elite carioca para bailes, festas e carnaval.
Ao longo de sua pertinente explanação sobre o imaginário cultural em torno da origem
nobre do Fluminense, Cláudia Mattos (1997) elenca diversos símbolos do clube identificado
com a nata da aristocracia do Rio de Janeiro no decorrer do século XX. A relação das famílias
mais ricas e tradicionais da cidade com o clube provavelmente ajudou a formar todo um
conjunto de ícones que ajudam a reforçar seus ideais de uma nova sociedade. Do brasão
formado pelas inicias sobrepostas, em uma clássica tipografia serifada, à ostentosa arquitetura
da sede, famosa pelos notórios vitrais franceses,92 passando pelo hino oficial composto por
Coelho Netto, os símbolos do clube procuram remeter a uma ideia europeizante, que servia
como modelo ideal ao projeto de modernização que se pretendia nas primeiras décadas do
século XX.
Um dos episódios que mais está associado a essa tradição é o relato de Mário Filho
(1964) sobre o Carlos Alberto, que não deixou qualquer evidência mais fidedigna. O jogador
viera do América para o Fluminense em 1916, juntamente com o célebre goleiro Marcos
Carneiro de Mendonça. A história propagada por Mário Filho é que Carlos Alberto, sentindo-
se diferenciado dos demais jogadores por ser mulato, destacando-se da maioria de brancos do
Fluminense, cobria-se com um produto delicado usado pelas madames: o pó de arroz. No
meio da partida, o talco descia junto com o suor e o que era para disfarçar deixava-o em
evidência ainda maior. A torcida do América, seu ex-time, não perdoava e os gritos de “pó de
90
O Imparcial, 04 de março de 1919, p. 8.
91
Ibidem.
92
Para maiores descrições sobre a sede do Fluminense e suas transformações, ver: COELHO NETTO, Paulo.
História do Fluminense (1902-2002). Rio de Janeiro: Pluri Edições, 2002.
114
arroz” passaram a ecoar das arquibancadas. Um dia, Carlos Alberto não jogou e os gritos de
pó de arroz partiram do mesmo jeito. O apelido estava passando do jogador para o time
(FILHO, 1964; MALAIA, 2010).
O Fluminense era Pó de Arroz, muito cheio de coisa, querendo ser mais do que os
outros, mais chique, mais elegante, mais aristocrático. O Pó de Arroz pegou feito
visgo. [...] O Pó de Arroz era coisa fina, cheirosa (FILHO, 1964, p. 43).
prêto que torciam pelo Fluminense, distinguiam-se dos torcedores dos outros clubes,
caprichando no modo de trajar, vestindo a roupa dos domingos.” (FILHO, 1964, p. 45). A
despeito da afirmação de Mário Filho, podemos perceber que os trajes de domingo não eram
privilégios dos torcedores do Fluminense, observando, por exemplo, o farto manancial de
fotografias de torcedores nas áreas mais modestas de diversos estádios. Tais fotografias foram
publicadas nas revistas “Careta” e “O Malho” e figuram nos anexos da Tese de Doutorado de
João Malaia (2010, p. 441-445).94
O Fluminense foi fundado por algumas das famílias mais importantes do Rio de
Janeiro em um momento em que o futebol se inseria no projeto de uma elite empolgada em
promover o processo de “civilização” no país, inspirado no modelo e costumes europeus,
deixando sempre em evidência suas raízes, seus símbolos associados a essa aristocracia. Essa
identificação com valores culturais da elite dominante conheceu diferentes percepções na
forma como foi representada por Molas e Henfil. Seus respectivos momentos históricos
situam e explicam essas diferenças. O primeiro ressalta tais condições através da imagem de
um cavalheiro que prima pela elegância no gesto e no trajar, enquanto o segundo atribui um
caráter mais arrogante a esta elite. Por mais que se mencionasse sua condição financeira,
Molas não estabelecia uma diferença gritante com os demais concorrentes ao título, ao passo
que Henfil aproveita a simbologia tricolor para descarregar seu arsenal, enquanto crítico
social, na representação da classe dominante e, portanto, opressora. Transformou toda a
simbologia em uma afetação esnobe e preconceituosa.
94
Cf. Careta, 09 de junho de 1917; Careta, 21 de julho de 1917; Careta, 31 de maio de 1919; Careta, 27 de maio
de 1919; Careta, 03 de maio de 1919; O Malho, 04 de abril de 1922.
116
Figura 3.21 Charge que funciona como pôster de campeão. Traz as fotos dos jogadores, adornando o desenho de
Molas, e reforça os laços culturais entre o Vasco e a colônia portuguesa. JS, 20 de novembro de 1945, p. 10.
117
Figura 3.22 A aproximação e o companheirismo entre Urubu e Bacalhau, sugerido por Henfil, não poupou o
representante da Cruz de Malta de “cutucadas” do cartunista durante as más fases. JS, 23 de outubro de 1969, p.
3.
118
passagem entre o pátio e o salão é amparada por duas colunas. Essa abertura nos permite ver
uma edificação que se assemelha à Torre de Belém, cercada por um céu estrelado. Na parede
do salão acima desse arco, vemos três conjuntos harmônicos de típicos azulejos portugueses
dispostos em um losango adornado sobre cada coluna, guardando para o conjunto do meio,
retangular, uma transcrição da clássica epopeia de Luiz Vaz de Camões, “Os Lusíadas”:
“Cesse tudo quanto a antiga musa canta/ Que um valor mais alto se levanta”.95
O pátio está repleto de convidados, todos vestidos à moda estereotipada dos
portugueses, com colete sobre camisas e calças dobradas até o joelho e muitos descalços.
Constatamos uma autêntica festa portuguesa, com músicos e dançarinos. Prestando mais
atenção na festa, reconheceremos que, dentre os diversos portugueses “anônimos” na trama,
alguns dos personagens de Molas procuram a companhia das moças ali presentes. Entre os
convidados em geral, alguns tocam instrumentos (bumbo, guitarra portuguesa, sanfona) ou
fazem movimentos que insinuam danças. Na extrema direita inferior, vemos um orgulhoso e
sorridente Almirante, passando um braço pelas costas da noiva à sua direita e afirmando que
só os reis se casam assim. Sobre a farda de gala de oficial da Marinha repleta de medalhas, a
faixa de campeão carioca de 1945. Funcionando de forma semelhante aos atuais pôsteres de
campeão, a charge era adornada pela margem esquerda e inferior por fotos dos atletas
vascaínos, dispostas em “L”. No título, de ponta a ponta no topo da página, lemos “A Boda do
Almirante” em vez de Vasco campeão.
Henfil, por sua vez, nos apresenta o estereótipo físico mais conhecido do português.
Corpulento, careca, de bigodes com as pontas voltadas para cima, mas expressando diálogos
que não acentuam tanto o modo de falar e as expressões lusitanas mais características.
Embora seus traços físicos sejam claramente ligados ao português branco, é sempre chamado
de “crioléu” pelos representantes da elite. Ao contrário do nobre Almirante de Molas, capaz
de bancar festas e bebidas aos amigos em dia de celebração, o português de Henfil prefere se
identificar com as massas. Seu Bacalhau não encontra outro aspecto em comum que não seja
pelas raízes portuguesas, quer seja com o Almirante quer seja com o outro personagem
português de Molas, aparentemente um comerciante bem sucedido, uma figura que, como
veremos adiante, chegou a ser usado por Molas para representar o Vasco.
O chargista afasta-o do estereótipo não apenas amenizando essas características, como
aproximando o Bacalhau mais com o proletariado do que com a figura do comerciante
português explorador, igualmente repulsiva a Henfil. Afinal, ele quer representar a torcida
95
Nos versos originais, lê-se “Musa antígua”, em vez de “antiga Musa” e “alevanta” no lugar de “levanta”.
120
vascaína e não esse passado do clube, ligado ao início do futebol e ao comerciante que
enriquece a custa da exploração do trabalho alheio. O que nos parece mais perceptível é que a
referência às raízes lusitanas só são caracterizadas por Henfil para que o personagem seja
identificado como representante do Vasco da Gama e para que tenha autenticidade. Por esse
lado, Henfil chegou a esboçar uma figura menos proeminente, até mais secundária dentro da
narrativa. Ainda que seja companheiro do Urubu, isso não impede que seja subjugado pelo
amigo, assumindo, resignado, um papel submisso na trama.
Na charge que destacamos acima (Figura 3.22) é o Urubu que tenta reanimar o
Bacalhau. Agora o Bacalhau recupera o ânimo depois de receber um murro do Urubu, no alto
da cabeça, de cima para baixo. No quadro final, sentindo-se recuperar, pede ao companheiro
que continue com o “tratamento”. Essa postura submissa pode ser verificada em outras
charges que analisaremos adiante. Já na charge discutida anteriormente, ao analisarmos as
representações do Flamengo quando era o Bacalhau tentando reanimar o Urubu, o desfecho
foi bastante diferente. O Urubu recuperava o ânimo saltando do bueiro, com sangue nos olhos
e disposto a fazer o Bacalhau engolir seu insulto.
João Malaia aprofunda a discussão em torno das diversas imagens que atribuíam aos
imigrantes portugueses no Brasil. A crise nos países periféricos da Europa fez intensificar, em
fins do século XIX, a imigração de portugueses (cerca de 200 mil na última década), seguidos
de longe por italianos (25 mil) e espanhóis (20 mil). Décadas mais tarde, o recenseamento de
1920 aponta que dos mais de 1.100.000 habitantes da cidade, 210.515 eram portugueses, o
que representava naquele momento 72% dos imigrantes radicados na cidade e quase 20% de
toda a população (MALAIA, 2010, p. 108). Esses imigrantes que chegavam com pouca ou
nenhuma instrução, sendo 44,3% deles analfabetos, empregavam-se nas funções mais
humildes do comércio, da construção civil, oficinas, docas e companhias de transporte. Como
a oferta de mão de obra era maior do que a demanda, aos outros tantos que não conseguiam
emprego fixo restavam os diversos trabalhos informais, em geral como vendedores
ambulantes. De acordo com Eulália Lahmeyer Lobo (2001), o Brasil se tornaria uma opção
cada vez mais atrativa aos portugueses não só pelas evidentes facilidades do idioma e das
semelhanças de costumes, como também por salários urbanos maiores do que em Portugal,
sobretudo no Rio de Janeiro.
121
Esses imigrantes portugueses que vinham para o Brasil, em sua maioria camponeses
sem instrução originários das aldeias do norte de Portugal, configuravam com a
massa de recém-libertos e de seus descendentes, e com os demais imigrantes, as
camadas mais baixas da sociedade carioca. O imigrante português ajudava a
configurar o lúmpen, a classe operária do rio de Janeiro (MALAIA, 2010, p. 108).
estabelecimentos comerciais. Se por um lado o português era geralmente visto como símbolo
do atraso, concorrente em um mercado de trabalho acirrado e, por tudo isso, alvo de
preconceitos, também havia uma percepção diferente para aqueles casos em que conseguia
galgar posições na sociedade, em clara demonstração do “poder do novo sistema econômico
em alavancar indivíduos da miséria” (MALAIA, 2010, p. 112).
123
Figura 3.23 O Vasco é representado nesta charge, simultaneamente, por duas figuras. O Vasco é o almirante,
mas também pode ser percebido no português, atrás do balcão, que demonstra preocupação com o prejuízo, logo
após seu “parceiro conterrâneo” anunciar que todos podem beber à vontade, porque ele está pagando. O que nos
leva a concluir que os dois estão pagando, pois os dois, cada um à sua maneira, representam o clube campeão.
JS, 14 de novembro de 1945, p. 1.
124
futebol do clube da Cruz de Malta. Malaia (2010) dedica especial atenção à inserção do Vasco
da Gama no futebol carioca, percebendo sua contribuição no processo de profissionalização
do futebol carioca que já vinha desbancando o remo enquanto esporte mais popular da cidade,
atraindo multidões e as atenções da imprensa. Homem de negócios, dono da conhecida loja
“Casa Campos” e sócio na fábrica “Segura, Campos e Cia” (móveis de vime e malas), o
presidente do Vasco, Raul Campos, resolveu montar o departamento de futebol no clube ao
assumir o comando em 1915. Campos teria percebido, no crescimento da colônia portuguesa
na cidade, o potencial para reunir em torno de seu escudo a maior torcida da cidade. Planejou
montar uma equipe que trouxesse glórias e melhorasse a imagem da colônia portuguesa ou ao
menos, “amenizasse as tensões entre brasileiros e portugueses.” (MALAIA, 2010, p. 136).
No entanto, os propósitos e os modos administrativos para a inserção vascaína no
projeto do futebol provocariam alguns impasses e desagradariam à elite do futebol carioca
naquele momento. Suas práticas envolviam retribuição financeira aos atletas, tornando
“informalmente” profissional a relação dos jogadores com o clube. Como agravante, punham
em campo aqueles jogadores pertencentes a um círculo social que os representantes da liga
sempre se esforçaram em afastar. Configuravam presença indesejável ao ideal da manutenção
do esporte enquanto uma atividade de lazer de ilustres cavalheiros e ameaçavam assim a
supremacia da aristocracia no futebol (MALAIA, 2010). Com o acesso tardio à série A do
Campeonato Carioca de 1923 e levando o título logo em sua primeira participação na elite do
futebol carioca, com uma equipe repleta de jogadores negros, mestiços e pobres, o Vasco
conseguiu breve e crescente adesão e popularidade entre as classes sociais mais modestas da
cidade.
Na entrada da década de 1920, o Rio de Janeiro testemunharia o surgimento de uma
nova força entre a elite do futebol do Distrito Federal: o Vasco da Gama. Força esta que, por
práticas muito contestadas, acabaria exercendo forte influência na radical transição entre o
amadorismo e o profissionalismo no futebol carioca.
126
Figura 3.24 O Português vascaíno de Molas, antes de começar a adotar a figura do Almirante. Ostentação e
desleixo parecem sugerir uma figura ambígua, talvez a do estereótipo do português sem instrução que acumulou
dinheiro. JS, 27 de junho de 1944, p. 1.
96
Segundo Bernardo Buarque de Hollanda, o JS era popularmente conhecido como o Cor-de-rosa.
(HOLLANDA, 2012, p. 81).
127
Figura 3.25 Símbolos da ascendência portuguesa são constantemente frisados em Molas, que por mais que
procure se afastar da caricatura mais pejorativa do português, não escapa de embarcar no estereótipo do lusitano
bronco, a prometer “grana”, “boia” e uns “pescoções” em uma serenata que se pretendia romântica. JS, 04 de
agosto de 1944, p. 1.
A serenata transcrita acima, com forte sotaque lusitano, é declamada por um redondo
Almirante (Figura 3.25), a dedilhar um típico instrumento de cordas da música popular
portuguesa: um bandolim ou uma guitarra portuguesa. Além do chapéu característico dos
oficiais da marinha, com uma cruz de malta à frente, traz novamente o ícone do clube preso a
uma corrente, cujas extremidades se escondem nos bolsos do colete. A seu lado observamos
ainda uma antiga caravela em miniatura, dos tempos do descobrimento, puxada por um
97
JS, 04 de agosto de 1944, p. 1.
129
cordão. À janela, o leitor percebe só a silhueta da Miss, que leva as mãos à cortina (fica a
cargo do leitor imaginar se ela está abrindo ou fechando).
Fortes características geralmente associadas ao estereótipo do português no Rio de
Janeiro estão sugeridas ou explícitas nesta charge de Molas. Quando Isabel Lustosa (2011)
descreve a caricatura do português no Brasil como um sujeito bronco, desleixado, sovina,
desonesto, de hábitos de higiene visto como pouco asseados, não conseguimos, à primeira
vista, reconhecer de forma completa essa descrição na imagem do Almirante, aqui se
esforçando para posar para a dama como um autêntico e generoso fidalgo, homem de posses e
oficial da marinha. Seu modo de falar entrega expressões e sotaque lusitanos, em que se
destacam verbetes como “cachoupa”, “gajos”, “vacalhau” e “p’scoções”, que revelam, ao
mesmo tempo, vocabulário e costumes mais rudes. Sem qualquer sutileza, oferece cuidar
“d’alma e da barriga”, prometendo calor, grana, “boia”, em clara sugestão a sexo, dinheiro e
comida. Ao mesmo tempo, seus trajes entregam certa opulência forçada, talvez satirizando a
elite emergente e ironizando um possível costume de ostentar sua nova posição social. Basta
ver a nada discreta cruz de malta presa a uma corrente que lhe atravessa, sobre o colete, a
enorme barriga e chega a arrastar no chão de tão grande. Além da cruz de malta, a referência
ao navegador português ainda pode ser observada em uma réplica de uma caravela, puxada
por rodinhas, cuja bandeira no topo da haste mais alta chega a atingir a altura do peito do
Almirante.
130
Figura 3.26 A torcida vascaína se divide entre uma facção assumidamente gay, representada por um personagem
com as mesmas feições do Bacalhau, com uma afetação escancaradamente afeminada e uma flor na cabeça; e o
Bacalhau, que, embora não se identifique, acaba se mostrando, muitas vezes, o lado mais fragilizado da dupla.
Bacalhau nesta charge não se incomoda de demonstrar medo e reverência à torcida do Flamengo. Tremendo de
medo pelo outro que vai enfrentar o Pelé, se desculpa por não ir. JS, 01 de novembro de 1969, p. 3.
131
Figura 3.27 Um ano depois, quando é o Vasco que vai enfrentar o Fluminense, o Urubu novamente não
demonstra medo e o Bacalhau, novamente, assume a porção mais fragilizada da massa. JS, 01 de novembro de
1970.
132
Nas outras duas charges selecionadas (Figuras 3.26 e 3.27), o Bacalhau apresenta
características bastante distintas. Podemos dizer que o “sotaque lusitano” quase se perde e o
personagem é amparado apenas pelos detalhes de seus traços físicos, mais especificamente
uma careca e um bigode mais sutil que o de Molas. O que é ressaltado aqui é uma postura
submissa, bem mais resignada a um papel secundário quando o Bacalhau não se acanha em
demonstrar medo, em frisar a força do companheiro em detrimento da própria (Figura 2.26):
“Admiro sua coragem, você é homem pacas! Não sou tão fanático.”
A charge seguinte (Figura 3.27) antecede o jogo entre Fluminense e Vasco. Urubu
procura provocar a reação do companheiro: “como é do conhecimento da massa vascaína, o
Flavio98 disse que o Vasco treme quando joga com o Flu”. No quadrinho seguinte, a chave
para compreender o significado da demonstração de medo na tirinha: “Ou, por outra: chamou
c’ês tudo de bichas!”, diz o Urubu dando ênfase à palavra “bichas”, com um sorriso
debochado. Dito isso, passa a palavra ao Bacalhau, que anuncia o plano de ação contra o
jogador. O plano consistia simplesmente em chamá-lo de galinha toda vez que ele tocasse na
bola. Empolgado com a imagem que lhe vem à cabeça, o Urubu corre animado puxando o
Bacalhau para o Maracanã, mas este freia repentinamente. Quando o Urubu percebe que está
sozinho, olha para trás apressando o companheiro, que está estagnado sobre uma poça de
urina, tremendo o corpo inteiro e assumindo seu pânico: “A tal tremedeira”, explica.
Não nos parece que essa característica mais submissa, mais secundária, acrescentada
por Henfil para caracterizar o Bacalhau tenha qualquer relação com a sua herança lusitana. Se
o cartunista percebia a torcida do Vasco como aliada do seu Flamengo, por ambos serem os
representantes do proletariado do Rio de Janeiro, talvez não fosse interessante acentuar a
notória relação do Vasco com a colônia portuguesa. No entanto, estabeleceu sua hierarquia ao
representar um Urubu mais altivo, mais confiante e assumindo um papel protagonista, como
que liderando as massas. Enquanto Henfil procurou distanciar o Bacalhau daquele velho
estereótipo do português, a representação do Almirante, símbolo do Vasco em Molas, somada
às demais características aqui assinaladas parecem um pouco mais aproximadas daquela
descrição de Lustosa e Triches (2011) destacada anteriormente para a caricatura do português,
sobre a qual ainda acrescentam:
98
Jogador do Fluminense.
133
Esse sotaque característico ganha duas conotações distintas, sendo frisado no humor
de Molas e amenizado no de Henfil. No entanto, nenhum dos dois se furta a relacionar o
Vasco à colônia portuguesa, já que desenhos de humor se valem constantemente de
generalizações. Se as características mais pejorativas do estereótipo do português são
atenuadas ou negligenciadas nos dois casos, diferenças cruciais nas perspectivas e propósitos
entre os cartunistas evidenciam-se nas respectivas caracterizações. Pela caricatura do
almirante português, em comparação às já citadas caricaturas mais abundantes do personagem
da imprensa brasileira, podemos concluir que as conquistas do clube em campo, de fato,
parecem ter amenizado as tensões habituais com a figura do colonizador. Henfil, por sua vez,
parecia não se interessar em frisar a relação do Vasco com a colônia portuguesa mais do que o
apelido e os atributos físicos pudessem sugerir. Ainda que seu personagem se mantenha um
pouco a reboque do Urubu, assumindo um papel relativamente secundário, é um personagem
que representa um clube simpático ao cartunista, reconhecido mais como um companheiro do
que como um dos personagens escolhidos para serem os mais ridicularizados. É possível que
Henfil não quisesse associar demais o clube com essas raízes para frisar a noção de que a
torcida do Vasco não se limitava a essa representação portuguesa no Rio de Janeiro.
134
4
FUTEBOL E POLÍTICA
NAS CHARGES
DO COR-DE-ROSA
135
Figura 4.1 Em fins de outubro de 1945, dias após a saída de Vargas do Palácio do Catete após 15 anos de
governo, o Flamengo sepultava suas chances de conquista do tetracampeonato de futebol. Molas ligou os fatos,
com a declaração de Popeye afirmando nunca ter pretendido ser o ditador do futebol, após 3 conquistas
consecutivas. JS, 08 de novembro de 1945, p. 1.
136
Figura 4.2 O clima tenso dos interrogatórios do DOPS é reproduzido nesta charge de Henfil, que aproveitava a
suposta declaração de Aimoré em que comparava o jogador rubro-negro a um “guerrilheiro”. JS, 15 de março de
1968, p. 1.
137
De fato, observando as charges apresentadas acima, bem como as que serão analisadas
a seguir, parece claro que as referências aos acontecimentos políticos estão muito mais
explícitas no humor de Henfil do que no de Molas. Analisando as obras discutidas até aqui, já
se pode notar a diferença. No período de Vargas, as referências às decisões políticas do país
são casuais, pois as menções ao noticiário diário são pontuais. Durante a ditadura militar,
nota-se a persistente lembrança da sensação de insegurança da sociedade diante do regime
autoritário, expondo sistematicamente as diversas formas de repressão operada pelos
aparelhos do regime. Ainda que a função primeira de Molas e Henfil fosse a de registrar com
humor as notícias do mundo do futebol, na obra do primeiro elas nos parecem mais centradas
no assunto principal, em que a política pode surgir no pano de fundo ou nas escolhas de
personagens que ajudam a estreitar os laços culturais com os Estados Unidos. Já na obra de
Henfil, o futebol se torna pretexto para a crítica política contra as arbitrariedades do regime. A
referência política de Molas pode ser verificada de forma mais causal ou sutil, convertido em
crítica apenas em momentos de grande transformação. É difícil assegurar se o fenômeno se
deve a uma postura profissional pessoal, a alguma imposição do jornal ou se a alguma espécie
de censura, ainda que interna, mas acirrada. Marcos Silva (1989), entretanto, apresenta uma
fonte que sugere uma hipótese plausível para explicar a situação. Um artigo assinado por
Octávio Sgarbi e publicado no Anuário da Imprensa Brasileira de 1942, citado por Silva, nos
leva a acreditar que, naquele período, esse relativo “esvaziamento político” na caricatura não
seria “privilégio” da charge de Molas. Durante o Estado Novo, a caricatura política daria
lugar à caricatura de costumes, segundo Sgarbi (1942 apud SILVA, 1992, p. 27-28),
apontando como causa dessa mudança a identificação do Estado Novo com os ideais
brasileiros e a extinção dos partidos.99
Surge, então, um primeiro problema a apresentar riscos para a abordagem política que
pretendemos observar neste capítulo: a discrepância na quantidade de charges de cada artista
no que diz respeito ao repertório crítico. Enquanto a charge política de Molas trazia
informações sobre um período de maneira panorâmica, reproduzindo de forma caricatural
fenômenos e situações mais longevas, como o entusiasmo popular com a cultura
“americanizada”, a obra de Henfil acompanha mais de perto o noticiário político, alfinetando
os atos do governo em situações diversas. No entanto, não podemos simplesmente
negligenciar a questão, uma vez que, se ela é mais sutil em um dos casos, no outro ela é farta
99
Referência completa do texto citado por Silva (1992, p. 27-28): SGARBI, Octávio. Introdução à história da
caricatura brasileira. Anuário da imprensa brasileira. Rio de janeiro, Departamento de Imprensa e Propaganda,
1942, p. 77-90.
138
em número de fontes e em efeitos discursivos diretos. A seguir, a análise das duas charges
selecionadas para abrir o capítulo poderá nos ajudar a refletir melhor sobre as diferenças entre
as obras e sobre seus respectivos períodos.
Ao empatar com o Canto do Rio, no primeiro domingo de novembro de 1945, o
Flamengo mantinha a diferença de cinco pontos para o Vasco, que liderava o Campoenato
Carioca de Futebol.100 Faltando apenas dois jogos para completar a tabela, o resultado
afastava definitivamente a possibilidade do clube de regatas da Gávea se sagrar tetracampeão.
Nove dias antes, a manchete da primeira página do “Jornal do Brasil”101 era a renúncia oficial
do presidente Getúlio Vargas, que deixava o Palácio do Catete depois de quinze anos. Era o
fim do Estado Novo. Em uma das raras charges em que Lorenzo Molas menciona
acontecimentos políticos específicos, “O outro que renunciou”102 (Figura 4.1), a imprensa
queria saber de Popeye os motivos que o levaram a renunciar ao tetracampeonato carioca.
Desfilando uma certa soberba, como uma celebridade que finge esnobar a enxurrada de
fotógrafos ao seu redor, o marinheiro segue sem frear seu caminhar decidido. Peito estufado,
mãos na cintura, sem olhar para ninguém, responde tranquilamente: “Eu sou um democrata.
Nunca pretendi ser ditador do football”. Ainda que a casualidade tenha favorecido a piada de
Molas, com o Flamengo perdendo suas últimas esperanças de título poucos dias após o fim do
Estado Novo, a metáfora política usada pelo cartunista acaba reforçando a relação entre os
ícones da cultura popular americana e a luta pela democracia.103
Em março de 1968, o técnico Aimoré Moreira, ao deixar o Flamengo para assumir a
seleção, supostamente teria declarado à imprensa104 que seu ex-comandado, o atacante Luís
Carlos, empregava tática de guerrilha. Henfil fez uma charge,105 publicada no dia 15 de março
de 1968 (Figura 4.2), que talvez seja uma das mais ousadas de toda a sua trajetória porque
denunciava a prática intimidadora de interrogatórios. Com uma luz apontada para o rosto,
mãos amarradas para trás, sentado em um pequeno banquinho, suor escorrendo pelo rosto, o
atacante “guerrilheiro” declara, desesperado, diante de uma parede de homens de capacete
100
JS, 06 de novembro de 1945, p. 1.
101
A partir da próxima menção ao “Jornal do Brasil”, será usada a sigla JB para designar o periódico.
102
JS, 08 de novembro de 1945, p. 1.
103
Observaremos com maior atenção, ainda neste capítulo, as questões em torno da percepção dos cartunistas
sobre a importação da cultura de massa americana.
104
Imagino que o título da charge possa ter se inspirado em outro veículo de comunicação. Buscamos a
declaração no JS, no JB, e no “O Globo”, mas nada encontramos a respeito. No JS, apenas a informação de que o
jogador teria renovado contrato com o Flamengo, fixando um novo ordenado no valor que correspondia a quatro
vezes o salário anterior. JS, 15 de março de 1968, p. 5.
105
Trata-se, na verdade, de uma chamada na primeira página para a charge de dentro, na página 4. Mas como
muitas vezes ela tinha autonomia e funcionava sozinha como charge, refiro-me a ela aqui enquanto tal.
139
106
DOPS é a sigla de Departamento de Ordem Política e Social.
107
Figura 3.2 Henfil não se preocupava muito com a fidelidade à representação verídica dos personagens. Suas
escolhas eram estritamente simbólicas. Dirigentes, por exemplo, eram sempre representados com cartola.
108
O preparador técnico Válter Miraglia substituíra Aimoré no comando do Flamengo.
109
Foram examinadas todas as edições do JS desde o campeonato de 1944 até o início do campeonato de 1945,
mas, infelizmente, ela não foi encontrada. Como não tivemos acesso à edição dos álbuns da Miss Campeonato,
supomos que esta charge talvez só tenha sido publicada nesta ou em alguma outra possível edição especial do JS.
A ligeira confusão operada pela memória de Molas em relação às datas refere-se à charge como tendo sido
elaborada em 1943, quando as evidências encontradas comprovam ter sido em 1944 seu início no JS, bem como
o ano do primeiro tricampeonato rubro-negro. Ver: FEUER, Daniel. Molas, creador que no quiere penas ni
olvidos. Entrevista. Democracia, Buenos Aires, 13 de julho de 1991, p. 2-3.
140
naquela em que Molas associa o presidente Getúlio Vargas ao símbolo do Flamengo, está
presente a ironia com o rótulo de ditador. A diferença é que, em um primeiro momento, pelas
rápidas descrições do autor, a charge mencionada parece revestida de certa apologia à imagem
do ditador. Se é verdade que ele pediu o original ao cartunista, demonstrou não se incomodar
muito com tal rótulo. De fato, Vargas não era presidente por vias democráticas, mas por golpe
de estado, cancelando as eleições presidenciais que apontariam seu sucessor e proclamando o
Estado Novo, em 1937. Na segunda menção, Molas ironiza a renúncia de Vargas: como
entender que Vargas não queria ser ditador, uma vez que se manteve no governo por 15 anos?
Como entender que o Flamengo desdenhasse o tetracampeonato? Molas estabelece um
paralelo sutil entre a derrota política de Vargas com a derrota do Flamengo na conquista do
tetra.
Interessante também é perceber a ambiguidade que passa a ser atribuída ao
personagem do Popeye: se por um lado Molas o usou para sutilmente estabelecer um paralelo
com Vargas enquanto ditador, por outro, frisa seu caráter de defensor da democracia. Se
aceitarmos, ainda, a hipótese de que Mário Filho procurou sempre atribuir ao Flamengo uma
popularidade naturalizada e embrionária, “desde o berço”, ou que sempre procurou reforçar
suas ligações com as camadas mais populares da cidade, talvez possamos encontrar aí outra
comparação sutil com Getúlio que, apesar de ditador, desfrutava de imensa popularidade.
Essa popularidade, verificada principalmente entre a classe operária, se deve à
extensiva propaganda política que trabalhou a imagem de Vargas como a de “pai dos pobres”
e a uma série de transformações que garantiriam melhores condições de trabalho a uma classe
cada vez mais crescente, à mesma medida em que se acelerava o processo de industrialização
do país. O artigo de Ana Paula Vosne Martins (2008) exemplifica perfeitamente essa relação
de Vargas com o povo, ao estudar as inúmeras cartas recebidas pelo presidente pedindo todo
tipo de auxílio. A autora atribui a criação da imagem de Vargas como líder da nação,
“defensor do povo e de seus interesses”, às propagandas e às políticas sociais, mas sublinha,
sobretudo, a forma como o “pai dos pobres” procurava derrubar o uso de intermediários entre
ele e os trabalhadores, procurando estabelecer um canal de comunicação direto com o povo.
O ambiente mais ameno de Molas, em que os personagens estão mais interessados nas
belas formas da Miss Campeonato do que nas transformações políticas do país, parece não
encontrar mais lugar na charge de Henfil, onde o ambiente tenso da repressão, de insegurança
generalizada, parece cada vez mais intenso. O confronto entre a guerrilha e os órgãos da
repressão é expresso no que seriam “inofensivas” charges esportivas. Henfil, no entanto,
procurava manter viva na lembrança do leitor a sensação de insegurança generalizada, seja na
141
opressão ostensiva nas ruas contra as manifestações públicas de repúdio ao regime, seja nos
porões da ditadura, onde violentos interrogatórios se tornariam prática cada vez mais
frequente.
Carlos Fico (2004) identifica uma intensificação gradual e crescente da repressão
desde que Emílio Garrastazu Médici passou a comandar o Serviço Nacional de Informações
(SNI), criado ainda em 1964, através da Lei nº 4.341. O autor esclarece que não teria sido a
organização do aparato repressivo110 que culminaria na prática da tortura, mas, por outro lado,
a teria institucionalizado enquanto etapa rotineira dos interrogatórios. O Serviço Nacional de
Informações seria responsável pelo surgimento da polícia política no fim dos anos sessenta.
É esta oficialização da prática da tortura [...] que desmente as hipóteses da
“autonomia” e dos “excessos”. É rigorosamente impossível que a atividade
sistemática da tortura pudesse ser praticada dentro das unidades militares sem o
conhecimento de seus comandantes. [...] A independência com que trabalhavam,
tomando a iniciativa de investigar, prender, torturar este ou aquele indivíduo,
pressupunha exatamente essas etapas: investigação, prisão e tortura para obter
informações rapidamente (FICO, 2004, p. 83).
110
Carlos Fico refere-se ao Serviço Nacional de Informação. (FICO, 2004).
142
A obra “Por uma História Política” (RÉMOND, 1996) chama a atenção para a
amplitude do envolvimento político na sociedade, observando, por exemplo, de que forma as
decisões políticas afetam diferentes grupos ou camadas sociais, de que maneira enfrentam
resistências ou são conduzidas no sentido de satisfazer ou de não contrariar em excesso a
opinião pública. Na medida em que a pesquisa histórica passou a se preocupar em
compreender um fenômeno político em sua totalidade, passou também a exigir a adoção de
novas perspectivas historiográficas.
Vale a pena resgatar aqui o papel da linguagem humorística, lembrados na introdução
da presente dissertação. Nos períodos em que a censura se intensifica, o humor ganha ainda
maior relevância. Tais contextos motivaram os estudos de Elias Saliba (2002), que situa a
importância do humor na sociedade, ressaltando o caráter ambivalente de sua linguagem
como uma representação histórica privilegiada; ou os de Maria Francisca Pires (2010), que
considera a obra de Henfil como um elemento indissociável de uma cultura de oposição e
resistência à ditadura militar, destacando o período cultural como um dos mais inventivos de
nossa história recente.
O que procuramos observar neste capítulo é o teor político de uma categoria
específica de charge, aquela cuja função primeira seria fazer humor com as notícias
esportivas. A presença de personagens como o Pato Donald e o Popeye entre ícones do
futebol carioca em meados da década de 1940, ou as denúncias da cooperação norte-
143
Figura 4.3 A seleção brasileira de futebol é comparada aqui às Forças Armadas do país, ambos em plena
campanha no exterior. As Forças Expedicionárias Brasileiras, no conflito mundial, e o escrete da seleção, no
campeonato sul-americano. Nota-se ainda o reforço sutil ao estereótipo etnocêntrico da nação representada pelas
grandes metrópoles de Rio de Janeiro e São Paulo. JS, 20 de janeiro de 1945, p. 1.
145
Figura 4.4 No dia seguinte ao decreto do AI-5, que garantia plenos poderes à base governista, Henfil ironizava a
intervenção dos órgãos da repressão. Após esta charge, porém, sua crítica seria menos direta às arbitrariedades
do regime autoritário. JS, 14 de dezembro de 1968.
146
111
JS, 20 de janeiro de 1945, p. 1.
112
No mesmo dia o JB publicava, no espaço reservado à previsão meteorológica, a seguinte nota: “Tempo negro.
Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em
Brasília. Mín.: 5º em Laranjeiras”. Ainda que a previsão meteorológica não seja propriamente uma charge,
funciona como tal, pois só encontra sentido na interpretação de seus códigos. Sua função habitual era ignorada
naquele dia.
147
Uma vez que estamos observando uma natureza específica de charges, publicadas
também em um mesmo periódico esportivo, de grande penetração, forte influência política e
uma rede de colaboradores que figuram entre a nata da intelectualidade ou em diversas esferas
de poderes políticos e esportivos, vale observar que tipo ou intensidade de influência pode ter
sido exercida pela censura e pela propaganda política dos regimes arbitrários vigentes de
então. Os dois regimes, embora apresentem semelhanças, também demonstravam profundas
diferenças no que diz respeito à forma como instauraram a censura, bem como na forma como
a propaganda política foi trabalhada.
Como perceberemos em obras como as de Maurício Drumond (2008) e Marcus
Aurélio de Oliveira (2009) que abordam o uso do esporte enquanto propaganda política,
respectivamente, no Estado Novo e na Ditadura Militar, o futebol, em ambos os períodos, foi
amplamente utilizado, promovendo e propagando ideologias vigentes, como valores em torno
de uma identidade nacional. Acreditamos que o fenômeno contribui para reforçar a hipótese
levantada aqui de que as charges de Molas e Henfil, por tratarem de assunto de interesse do
governo e por alimentarem o envolvimento das massas com o espetáculo esportivo, talvez não
merecessem a mesma atenção que a censura dedicava a outros periódicos. No primeiro caso,
não percebemos em Molas críticas contundentes ao governo ou propagação de discursos que
desafiassem ideologias dominantes do poder constituído.
No livro “Multidões em cena”, Maria Helena Capelato (2008) ressalta a importância
da inspiração nos modelos nazifascistas da Alemanha e da Itália para o governo de Vargas,
ainda que este não se definisse como fenômeno fascista. Técnicas sofisticadas de
comunicação e propaganda política inspiradas nas utilizadas pelo ministro de propaganda do
III Reich, Joseph Goebbels, visavam aprovação e envolvimento das massas, para a qual
divulgavam ideais e valores conduzidos pela proposta de uma sociedade unida e harmônica.113
Através dos diversos meios de comunicação à disposição, com enfoque especial na imprensa
e no rádio, conseguiam atingir as massas.
Capelato (2008) explica como o Estado Novo trabalhou intensamente a propaganda
política, adotando os modelos dos regimes totalitários e intervindo diretamente nos meios de
comunicação. Foram instituídos órgãos reguladores, como o Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), que concediam registros obrigatórios para qualquer empresa de
comunicação se estabelecer. O DIP era responsável também pela censura, não apenas
113
A autora, no entanto, esclarece que não havia consenso a respeito da adoção da ideologia nazifascista entre os
adeptos do Estado Novo, que acabaria se aproximando diplomaticamente dos Estados Unidos (CAPELATO,
2008).
148
2008). A insatisfação durante o regime militar nos parece maior ou mais expressiva, tendo se
manifestado nas mais variadas produções artísticas culturais durante todo o longo período, de
uma forma que não se vê na época do Estado Novo. Os órgãos responsáveis pela propaganda
política na ditadura militar também tiveram trabalho árduo, uma vez que as produções mais
ostensivas se proliferavam, promovendo, assim, um conflito paralelo em que a resistência
poderia alimentar chances mais realistas de prevalecer.
Mauricio Drumond (2010, p. 230) destaca que a Copa de 1938, na França, teria sido
marcante no que diz respeito à aproximação de Vargas com o futebol. Além de ter concedido
uma alta subvenção para as despesas da delegação brasileira, teve na figura de sua própria
filha, Alzira Vargas, a madrinha da seleção, uma forte representatividade associando seu
nome à seleção que, pela primeira vez em uma Copa do Mundo, contava com a sua força
máxima. A miscigenação da equipe seria valorizada pelo governo como um retrato de nossa
democracia racial, ideologia abraçada por Vargas, em consonância com artistas e pensadores
modernistas, nas buscas das raízes culturais brasileiras. Se lembrarmos que as seleções de
Alemanha e Itália também serviram de representações simbólicas das ideologias nazifascistas,
na defesa de ideais xenófobos, parece explícito o peso político e ideológico que a disputa
daquela terceira Copa do Mundo carregava, pouco mais de um ano antes da eclosão da II
Guerra Mundial.
Àquela altura, no Brasil, o esporte já estava inserido de modo definitivo na política de
Estado, bem como nas estratégias publicitárias do governo. As práticas esportivas serviam de
múltiplas maneiras às propostas e aos projetos do Estado Novo. Entre as medidas do governo,
Drumond (2008) destaca a publicação de uma série de decretos-lei objetivando maior controle
sobre a prática esportiva no Brasil, bem ao tom do regime totalitário e centralizador do Estado
Novo. O esporte serviria também à preparação de uma nova geração de brasileiros, ajudando
a demonstrar as qualidades eugênicas do povo mestiço, reforçando sempre discursos em prol
da importância das atividades físicas em campanhas de conscientização.
A primeira medida oficial do Estado Novo nesta direção, data do dia 1º de julho de
1938, menos de duas semanas depois de encerrada a Copa da França (DRUMOND, 2010, p.
235). Através dela, criava-se o Conselho Nacional de Cultura dentro do Ministério de
Educação e Saúde, visando desenvolvimentos culturais que englobavam tanto campanhas
patrióticas, festas cívicas, quanto a promoção da Educação Física. De acordo com Maurício
Drumond (2010, p. 235), o Decreto-Lei n. 1.056 instituiu, em 21 de janeiro de 1939, a
Comissão Nacional de Desportos nomeando cinco membros encarregados de realizar um
estudo sobre os problemas dos esportes no país, elaborando, assim, um plano geral para a sua
150
114
JS, 13 de março de 1941, p. 1.
115
Ibidem.
151
116
A AERP foi criada no governo Costa e Silva, mas só tomaria vulto na gestão de Médici, passando o controle
para o coronel Otávio Costa. Em linhas gerais, a AERP trabalhava no sentido de vender a imagem de que o
regime conduzia correta e serenamente o país do futuro. Produzindo filmes publicitários para a TV, produzia
discursos em torno das ideias de participação, amor, educação, higiene e civilidade. (FICO, 2004, p. 110).
154
mais célebre pato dos estúdios Disney “chegaria” à imprensa brasileira através do “O Globo
Juvenil” a partir de 07 de março de 1942. No mesmo ano, as indústrias Matarazzo lançavam
uma coleção de figurinhas dos personagens Disney. Ainda no ano de 1942 foi lançado no
Brasil o filme “Alô, amigos”. O filme mesclava cenas de documentário com animação, em
que desenhistas dos estúdios de Walt Disney faziam um tour pela América do Sul com a
missão de buscar inspiração para criar novos personagens latinos a juntar-se à galeria de
personagens do popular estúdio americano. Surgiu assim o Zé Carioca, ciceroneando Donald
em sua visita ao Rio de Janeiro, promovendo um encontro que ficaria marcado como forte
ícone da política de boa vizinhança. Anos depois, já em 1950, a revista do Pato Donald se
tornou um dos primeiros lançamentos da “Editora Abril”, o que sugere um relativo sucesso do
filme ao trazer o mais famoso papagaio carioca nas primeiras capas da revista do amigo
americano (TOTA, 2000, p. 133-138).117
Se levarmos em consideração a propagação dos discursos ideológicos descritos por
Tota (2000), poderemos supor o entusiasmo popular em torno desses ícones no Brasil. No
entanto, ainda que a intenção de Molas fosse simplesmente a de reproduzir essa motivação em
seus desenhos, sua charge é analisada aqui como evidência de um momento político e cultural
do país. É válido ressaltar ainda que, se a charge de Molas reproduz a motivação popular no
processo democrático, isso não significa necessariamente uma reação ao governo de Vargas.
Capelato (2008) argumenta que não se costuma levar em conta questões de ordem política e
cultural para explicar a adesão da classe trabalhadora ao populismo. Nesse sentido, a já
mencionada preferência nacional “ao culto de heróis, divas e ideais veiculados por
Hollywood” nos ajuda a compreender a dimensão da penetração dos valores culturais norte-
americanos no Brasil (CAPELATO, 2008, p. 109). Ainda a respeito da grande popularidade
das produções norte-americanas, a autora alerta para o fiasco de bilheteria dos filmes de
ficção brasileiros produzidos sob a égide do Estado Novo. Essas produções, relativamente
pioneiras no Brasil, não conseguiam penetração no mercado exibidor, nem atrair público, cujo
interesse estava mais voltado às novidades vindas de Hollywood.
Analisaremos adiante uma charge de Molas que traz outras evidências que parecem
exprimir e contribuir para o entusiasmo por esses valores moldados ou reforçados, em grande
parte, pela forte presença norte-americana na cultura brasileira. Em 1945, o JS já contava com
o humor de Lorenzo Molas desde antes do início do campeonato. A partir do dia 06 de março
de 1945, o cartunista argentino elaborou, durante cerca de dois meses, uma série de desenhos
117
No segundo número da edição nacional de sua revista, Pato Donald aparece de goleiro com uma camisa em
tudo semelhante ao uniforme do Botafogo, recebendo uma bolada na barriga do Zé Carioca.
156
de humor que se enquadram mais na categoria cartum do que na de charge, uma vez que não
aludiam a fatos específicos. Elas apenas aqueciam os ânimos dos torcedores para o
campeonato que estava por vir.
Campeonato novo, nova Miss. Entra em cena a irmã mais nova da Miss Campeonato
do ano anterior. A de 1944 já havia se unido em matrimônio ao Popeye. Foram muitos dias de
mistério quanto aos atributos físicos da Miss 1945, mas no fim de abril todas as mascotes já
andavam em alvoroço com a nova beldade. A moça, no entanto, mostrava-se bem mais
encantada pelos marinheiros americanos, que pareciam marcar forte presença no cenário da
cidade, provocando ciúmes generalizados entre os representantes do futebol carioca, como
veremos na figura a seguir.
157
Figura 4.5 “Outro marujo para atrapalhar” procurou caracterizar a motivação da população pela cultura popular
americana na década de 1940. A Miss Campeonato 1945 surge acompanhada de um marinheiro americano para a
frustração de Donald, Popeye, Diabo, Cartola e Almirante. JS, 28 de abril de 1945, p. 1.
158
No desenho do dia 28 de abril de 1945 (Figura 4.5), vemos a sala de estar da casa da
Miss, já conhecida dos leitores, bastante movimentada. Popeye, Diabo, Cartola, Almirante e
Pato Donald esperam ansiosamente pela nova pretendida, acompanhados discretamente pelo
Malandro, do Madureira, e do santo gordo, do São Cristóvão, que parecem mais interessados
no jogo de dados entre eles. Molas nos mostra o momento em que a sogra abre a porta para a
sua filha mais nova, que chega acompanhada de um genuíno marinheiro americano para a
frustração geral. A moça surge trajada no estilo dos filmes de faroeste americanos. Chapéu de
cowboy, de aba longa, luvas e botas com esporas. Preso à cintura, um coldre guarda dois
revólveres. Suas pernas flexionadas e afastadas, além da mão pronta pra sacar uma das armas,
remetem aos clássicos duelos dos faroestes. O marinheiro ao seu lado recosta-se na porta com
o cotovelo, enquanto a mão do mesmo braço apara a cabeça, usando a outra para puxar um
chiclete. Sua postura sugere, sobretudo, certa petulância. O marinheiro saúda os
“concorrentes” com um simples “Alô, boys”, sem voltar o rosto para ninguém, mantendo seu
olhar apenas na goma adocicada que masca. A mão que apara a cabeça ajeita o quepe pra
frente, tapando um pouco as sobrancelhas. Sustenta-se sobre uma das pernas, também
ligeiramente afastadas, enquanto descansa a outra, cruzando-a na frente da primeira. A moça
parece, ao olhar de todos, completamente “colonizada”. Além dos trajes “a cowboy”, ainda
comenta empolgada que aprendera uma porção de coisas em inglês. No canto inferior, à
direita da cena, o papagaio de estimação da casa menciona querer aprender inglês também.
Seja por coincidência ou intenção, a ave que demonstra interesse em aprender inglês é a
mesma que já representava o Brasil na figura de Zé Carioca no já mencionado filme “Alô,
amigos”.
O interesse da mocinha pela presença da Marinha dos Estados Unidos no Brasil não se
restringe à sua atração pelos americanos de farda, mas parece se estender à cultura americana
como um todo. Além de sua empolgação por ter aumentado seu vocabulário no idioma
estrangeiro, vemos aqui representada a paixão nacional pelo cinema americano. Nesse caso,
qual seria a melhor maneira de interpretar o humor de Molas nessa cena? Sob o título de
“Mais um marujo para atrapalhar”, a charge refere-se à nova companhia americana da Miss,
marujo como o Popeye, que vem atrapalhar a disputa da qual participariam apenas as
mascotes dos clubes cariocas. Na medida em que o cartunista argentino mostra elementos da
cultura nacional (as figuras simbólicas dos clubes de futebol) ameaçados pela presença de um
novo personagem que se estabelece no cenário nacional durante a Segunda Guerra Mundial
(um marinheiro americano), essa constatação seria suficiente para considerarmos uma postura
crítica do autor com relação ao fenômeno? Mas se a postura é crítica, qual seria o sentido de
159
118
JB, 20 de janeiro de 1945, p. 9.
119
Ibidem.
160
Figura 4.6 Quando Aimoré, ao assumir a seleção brasileira, supostamente declarara que seu ex-comandado, o
jogador rubro-negro Luís Carlos, seria um guerrilheiro, Henfil teria aproveitado o uso oportuno da expressão que
categorizava o militante envolvido na luta armada, para fazer a crítica ao governo e à cooperação norte-
americana com o regime militar. JS, 16 de março de 1968, p. 4.
162
Para discutir sobre a charge em que Henfil faz uma crítica mais direta à influência
política e cooperativa dos Estados Unidos com o regime golpista, precisamos voltar a março
de 1968, ainda no calor da já mencionada declaração do técnico Aimoré sobre o jogador Luis
Carlos ser um guerrilheiro. No dia 16 do mesmo mês, na semana em que o rubro-negro
enfrentaria o Bangu pelo campeonato carioca, o JS publicava uma charge de Henfil
ambientada em uma base militar americana, com dois oficiais. Um deles, representado por
insígnias nas mangas e um capacete enterrado à cabeça, com a inscrição “USA” apoiada sobre
três estrelas, recebia um comunicado impresso que ia sendo expelido por um grande
transmissor. Ainda puxando o papel que a máquina liberava, o espantado oficial chamava o
general William Westmoreland,120 que usava um enorme quepe sobre a cabeça e óculos
escuros. O comandante imediatamente interrompia a atenção que era dada aos papéis sobre
sua mesa, enquanto manipulava um compasso. Na prancheta do general Westmoreland,
percebemos o que parece um coração com a ponta voltada para direita do quadro. O oficial
que aparenta ser seu comandado anunciava ao general o teor do comunicado: “Westmoreland!
É do Bangu pedindo aviões B-52 para reforçar a defesa no domingo...”.
Ressalta-se aqui, antes de qualquer aspecto, o uso da expressão “tática guerrilheira”.
Beatriz Kushnir (2004, p. 264), por exemplo, ao relatar a invasão de agentes da OBAN121 à
livraria de Paulo Sandroni por conta dos cursos de marxismo que eram ali ministrados,
menciona que haveria a suspeita de “treinamento de guerrilheiros” no local, usando este termo
entre aspas, com a intenção de reproduzir fielmente a alegação dada pela força repressiva.
Nessa referência, a palavra alude aos militantes oposicionistas que aderiam à luta armada,
movimento que marcou a resistência à ditadura no país. O episódio relatado por Kushnir
(2004) teria sido em represália ao sequestro, ocorrido em setembro de 1969, do embaixador
americano Charles Elbrick por um grupo de jovens militantes ligados ao Movimento
Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) e à Aliança Nacional Libertadora (ANL).
A charge analisada reflete uma crescente insatisfação de um enorme grupo social
oposicionista, do qual Henfil fazia parte, com relação à política de cooperação do governo
americano com o regime ditatorial que se estabelecera no Brasil quatro anos antes. Parece
fundamental ressaltar algumas considerações na tentativa de definir mais precisamente o
grupo social a que me refiro. A declaração do embaixador americano Charles Elbrick,
lembrada por Carlos Fico (2008, p. 213), ajuda a compreender o inflexível posicionamento da
oposição brasileira no que diz respeito à imagem dos Estados Unidos. Para Elbrick, seria
120
O general William Westmoreland comandou as tropas americanas no conflito do Vietnã entre 1964 e 1968.
121
OBAN: Operação Bandeirante.
163
muito difícil estabelecer laços políticos com os grupos oposicionistas, ressaltando a pouca
possibilidade de influência positiva que a opção pelo apoio seletivo pudesse exercer. Voltando
à acirrada batalha narrada por Beatriz Kushnir (2004, p. 333-334), travada entre a grande
imprensa e a imprensa clandestina de São Paulo, a resposta do jornal “Venceremos” foi
igualmente agressiva. O editorial refere-se ao Sr. Octávio Frias Oliveira, como “testa de ferro
de inúmeros grupos americanos da indústria gráfica”. O autor do editorial ainda o acusa de
corrupção, delação de funcionários, colaboração com o regime golpista e finaliza afirmando
que o Sr. Octávio F. de Oliveira sentia-se acuado, por se saber inimigo do povo, ciente de que
“a verdade revolucionária o atingirá”, e que a justiça seria questão de tempo, de tal forma que
ele já havia feito as malas e se mudado para “a casa de seus patrões: mudou-se para os
Estados Unidos”. A despeito do apaixonado envolvimento político do autor, em que possa
pesar qualquer possível exagero em suas acusações, a fonte traz à discussão pertinente
demonstração de como a cooperação americana era percebida pela oposição.
O próprio Henfil não escondia seu repúdio nem em suas charges, nem em seus
depoimentos, bastando tomar algumas passagens de seu célebre livro “Diário de um
cucaracha”, onde relata através de suas correspondências pessoais, sua experiência na
república americana, quando foi buscar tratamento especializado de seu crônico problema de
hemofilia. Henfil chegou a comentar o repúdio que sentia pela república americana como um
todo (HENFIL, 1984b, p. 18; p. 101-102).
Cervo e Bueno (2010) sugerem que se cristalizou entre a esquerda brasileira a ideia de
que a cooperação americana teria sido representada por uma intervenção bem mais efetiva do
que realmente aconteceria. Isso parece se dever ao receio norte-americano quanto à imagem e
popularidade dos Estados Unidos na América Latina, à preocupação quanto ao reforço de
discursos em defesa das liberdades civis e à maior preocupação americana com outras
localidades mais suscetíveis às ameaças do “perigo comunista”. Fico (2008) apresenta
inúmeros exemplos, entre telegramas e memorandos de conversações, em que essa
preocupação é explícita por parte de funcionários de embaixadas, órgãos e Departamentos do
Estado norte-americanos.
O AI-5, de acordo com Fico (2008, p. 333), exerceu forte influência na decisão
americana por uma postura pragmática, regida por um “apoio seletivo” em que os
investimentos seriam contidos e seria diminuído o perfil oficial da missão dos Estados
Unidos, definindo que o governo americano conviveria com a ditadura, mas buscando reduzir
a sua identificação com o regime opressor.
164
Figura 4.7 Henfil ironiza o ambiente hostil gerado pela ditadura nesta charge em que sugere que o assassinato de
estudantes no Brasil seria banal. JS, 1º de abril de 1968, p. 1.
165
Poucos dias depois de publicada a charge de Henfil que mostra o jogador sendo
interrogado, percebemos que os ânimos continuavam acirrados e os confrontos entre a
população e a polícia ganhavam dimensões nacionais e transformavam os grandes centros das
maiores metrópoles em praças de guerra. Eulália Lobo, Fátima Lisboa e Mariza Simões
(1992, p. 398) destacam o aumento das manifestações públicas em 1968, quando, em fins de
março, uma reivindicação de caráter estudantil teria um desfecho trágico com a morte do
estudante Edson Luiz. O assassinato de um estudante pela repressão operaria uma mudança
no significado da manifestação. A reivindicação estudantil ganharia um sentido ainda mais
relevante no cenário nacional, transformando uma insatisfação por direitos estudantis em
protesto político.
Entre o assassinato do estudante Edson Luiz, a manifestação estudantil no restaurante
Calabouço e a sua missa de sétimo dia, também reprimida pela polícia, um dirigente do
Fluminense também teria sido hostilizado por torcedores do clube, insatisfeitos com a
campanha tricolor no campeonato carioca. Na ocasião de um frustrante empate da equipe
contra um time de menor expressão, segundo matéria do próprio periódico, teria havido uma
manifestação improvisada de alguns torcedores do Fluminense, que começaram a vaiar Dílson
Guedes, dirigente de futebol do clube, na saída do estádio após a partida.
Henfil focalizou a notícia esportiva, mas não perdeu a oportunidade de agregar o
componente político à charge (Figura 4.7), denunciando a situação de insegurança provocada
pelo assassinato de um estudante pela polícia. “Flu empatou...” servia de título para a charge
em que o dirigente Dílson Guedes corre desesperado de projéteis vindo em sua direção. Olhos
arregalados, pernas afastadas sugerindo que o “caçado” pairava no ar, um braço esticado
como quem abrisse caminho e a outra mão à cabeça. Em primeiro plano, um sujeito diz a
outro, que assiste perplexo à cena: “Estudante nada! É o Dílson Guedes”.122
Com a simples frase “Estudante, nada”, Henfil faz uma caricatura do episódio,
sugerindo que o assassinato de estudantes se tornaria absurdamente banal e corriqueiro. Uso o
termo “caricatura” aqui no sentido lato, que compreende naturezas diversas de manifestações,
inclusive cênicas. Segundo Henri Bergson (1987, p. 22), “um cacoete que se insinua”, porque
para Bergson o caricaturista “faz com que seus modelos careteiem como se fossem ao
extremo de sua careta”. As charges de Henfil estão todas repletas de caricaturas no sentido
que amplificam as características mais marcantes do modelo: seja ele uma figura histórica, no
caso acima o Dílson Guedes; um acontecimento, o assassinato do estudante Edson Luiz; uma
122
JS, 1º de abril de 1968, p. 1.
166
Figura 4.8 Em junho de 1969, Henfil reforça a ideia da colaboração da elite dominante com o regime golpista,
através da representação do Pó de Arroz torturando o Bacalhau para descobrir o paradeiro do Urubu. Henfil
conseguia resumir em uma tirinha sobre futebol, as tensões características do período do AI-5. JS, 17 de junho de
1969, p. 3.
167
123
Trad. do francês: “Obrigado, meu Deus!”
168
124
Depoimento de Henfil publicado em entrevista do Pasquim, no já citado “O Diário de um cucaracha”. De
fato, Denis de Moraes e Marcio Malta mencionam a formação cultural do cartunista e seu contato com revistas
francesas, o ingresso no curso de sociologia na Universidade de Minas Gerais e o contato com profissionais
diversos que representavam a nata da intelectualidade do Rio de Janeiro e que teriam influenciado, cada um a seu
modo e a seu tempo, suas ideias, seu humor e seu estilo gráfico (MALTA, 2008, p. 21-23; MORAES, 1996).
169
125
Por coincidência, seu irmão Herbert de Sousa escapou da prisão durante o golpe do Chile, em 1973, ao
refugiar-se na embaixada do Panamá, tendo morado no Canadá e no México posteriormente.
126
Vale notar que na extensa trajetória do periódico, desfilaram célebres escritores cuja paixão por determinados
clubes era notória e assumida, destacando-se, entre outros, o rubro-negro José Lins do Rego, dono da coluna
“Esporte é Vida”, e o tricolor Nelson Rodrigues, que assinava a coluna “A Sombra das chuteiras imortais”.
170
personagem em uma caricatura do elitista preconceituoso, com seu cabelo repartido ao meio,
o bigodinho aparado e a gravata borboleta em cima da camisa do Fluminense, referindo-se
com desprezo às torcidas populares e usando termos como “crioléu!”, fazendo uso constante
de palavras menos coloquiais ou de termos em inglês.
A partir de janeiro de 1970, meses após o célebre sequestro do embaixador americano
posto em prática por militantes do Movimento Revolucionário Oito de Outubro, em setembro
do ano anterior, Henfil trataria de representar tais atos de resistência em suas tiras esportivas,
selecionando como protagonistas, obviamente, os personagens Urubu e Bacalhau, que agiam
em nome da “República Popular de Ramos”.
Figura 4.9 Os personagens da República de Ramos passam a recorrer a sequestros para conseguir atingir seus
objetivos. JS, 22 de janeiro de 1970, p. 3.
171
Figura 4.10 Os sequestros articulados pela resistência armada à ditadura militar são representados na tirinha de
Henfil, onde os representantes da “República Popular de Ramos” cometem os atos em nome dos interesses da
massa, redigindo e lendo comunicados de protestos contra as arbitrariedades dos poderes instituídos. JS, 28 de
janeiro de 1970, p. 3.
172
Nota-se que ao final da tirinha, o Bacalhau prefere “assinar” seu manifesto com o
nome de um grupo militante fictício Comando Tiradentes, talvez uma dupla referência: uma
brincadeira com a reivindicação e a sugestão do nome ao “Movimento Revolucionário
Tiradentes”, organização de resistência e luta armada formado em setembro de 1969. De todo
modo, é clara a referência aos sequestros que agitavam a América Latina, a partir do sucesso
da ação do MR-8, quando lograram êxito ao trocar a vida do embaixador americano por
presos políticos. A diferença é que a abordagem de Henfil opõe-se à abordagem de boa parte
da grande imprensa que costumava se manifestar sobre o assunto. Em abril de 1970, o mal
sucedido sequestro executado por militantes da Guatemala terminou com a execução do
embaixador alemão, Conde Karivon Spreti. A capa da Revista “Veja”, no dia 15 de abril de
1970, trazia a seguinte manchete: “Crime e diplomacia, o drama do sequestro”.
Às 7 da noite do último dia 5, depois de intensas horas de negociações e expectativa
mundial, foi encontrado no chão de lama de uma cabana sem teto, a 17 quilômetros
da Cidade da Guatemala, o corpo do embaixador alemão, Conde Karivon Spreti,
sequestrado cinco dias antes por terroristas de esquerda. Atrás da orelha direita, a
marca de uma bala. Na mão direita, ensanguentado, um par de óculos. No bolso do
paletó, fotografias de sua mulher e do filho Alexander.127
127
Revista Veja, 15 de abril de 1970.
173
128
Revista Veja, 15 de abril de 1970.
174
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
175
129
Entre os quais destacam-se semanários como “O Sol” ou “O Pasquim”.
182
rechaçado em 1970 quando os militares procuravam forçar essa associação com a delegação
brasileira tomada por altas patentes das Forças Armadas.
De todo modo, a suposta tranquilidade diante da identificação de Vargas com as
camadas populares e as esperanças de se acelerar o processo democrático ao fim da Segunda
Guerra Mundial, caminhando em sintonia com o entusiasmo popular com o estreitamento das
relações diplomáticas com os Estados Unidos, tornavam as menções políticas de Molas
menos explícitas e menos frequentes, apesar de expressas nas referências aos personagens dos
quadrinhos americanos. Já no período posterior, essas mesmas relações diplomáticas com os
norte-americanos já não convenciam mais com a mesma naturalidade, no que diz respeito ao
discurso em prol da democracia. A reação da oposição aos regimes de força parece
igualmente proporcional às insatisfações expressas nas charges. Se em um primeiro momento
a crítica à manutenção do regime ditatorial é ironizada, evitando, no entanto, arranhar a boa
imagem de Vargas, no momento posterior a reação é mais agressiva. Os focos de resistência à
ditadura na formação de diversos grupos de militantes, dispostos a enfrentar o regime pela
luta armada, passaram a ser reproduzidos nas devidas proporções consideradas para o meio
esportivo, quando observamos os dois membros da “República Popular de Ramos”
organizando atos de resistência aos poderes estabelecidos no mesmo compasso que iam se
sucedendo sequestros de embaixadores no Brasil e em demais países dominados por ditaduras
nesse período. Na contramão do discurso perpetuado por boa parte da grande imprensa que
simpatizava com o regime instaurado, ao comparar as ações a atos criminosos e esvaziando o
protesto político inserido na discussão, Henfil procurava reforçar os discursos da resistência,
levantando sempre ideias de defesa aos direitos da massa, direitos constituintes que o AI-5
usurparia dos cidadãos. Dentro desse quadro, parece claro o contraste entre o excesso de
fontes referentes ao conteúdo selecionado da obra de Henfil face à ausência de uma crítica
política mais sistemática no conjunto da obra de Molas. De fato, por mais que o Estado Novo
tenha extinguido partidos e perseguido opositores políticos, não parece ter havido no período
uma reação do tamanho que se testemunharia no momento da ditadura posterior, quando
diversos movimentos como o MR-8, VPR, Aliança Nacional Libertadora e tantos outros
procuraram, a seu modo, abalar os alicerces do regime opressor.
183
Antes de tudo, é preciso destacar que a necessária seleção das obras aqui discutidas
nos obrigou a deixar de fora diversas charges que podem suscitar novas reflexões de grande
interesse para a pesquisa historiográfica. Além das charges de Molas aqui selecionadas,
tivemos contato ainda com as charges elaboradas em órgãos da imprensa platina, onde o
chargista teria repetido a fórmula da disputa metafórica pela Miss Campeonato, criando
mascotes para os times argentinos tal como fizera no Rio de Janeiro. Molas chegou a repetir
também algumas características mais fortes de alguns clubes brasileiros, como o aristocrata do
tradicional River Plate ou o diabo do Independientes. A adoção da mesma fórmula na
imprensa de Buenos Aires pode ser interpretada como mais uma evidência do sucesso de sua
trama no periódico esportivo de Mário Filho. Esse tipo de conotação sexual usado como
metáfora para o meio futebolístico voltaria a surgir também através do traço de outros
cartunistas como Théo e Othelo Caçador, que sucederia Molas no cor-de-rosa.
A respeito do trabalho de Henfil, também fomos obrigados a deixar de fora algumas
charges bastante elucidativas no que diz respeito, por exemplo, ao polêmico comando de João
Saldanha à frente da seleção durante o período de eliminatórias para a Copa do Mundo de
1970, quando seu caráter explosivo era frequentemente ironizado pelo cartunista. Com a
substituição do comando pelo técnico Zagallo, Henfil passaria a investir no excesso de
intervencionismo das altas esferas da CBD no que diz respeito ao trabalho do treinador. No
decorrer da elaboração da dissertação, tivemos contato ainda com o trabalho de Henfil que
passou a ser publicado também na nova revista de esportes do grupo editorial da Abril, a
Placar, que surgiu em 1970 quando Henfil já havia atingido grande sucesso por seus trabalhos
no JS. Ali não se viam os personagens criados para o JS, mas sua crítica ferina e militante
mantinha a mesma postura de enfrentamento percebida no diário esportivo que o consagrou.
Mais até do que as obras de Molas e Henfil, que alcançaram grande destaque ao
elaborarem durante alguns anos charges diárias tendo o futebol carioca como principal
norteador, o historiador que se dedicar a explorar as potencialidades da charge e da caricatura
esportiva terá à sua disposição um amplo leque de possibilidades, presentes em diferentes e
característicos traços e humor em diversos veículos de comunicação impressos. Até para
perceber melhor a dimensão do que pode ter significado o surgimento da charge diária sobre
esporte, através de Molas, torna-se válido pesquisar a frequência dessa natureza de caricatura
antes de iniciada sua colaboração ao JS. Esse suposto pioneirismo com a grande novidade
oferecida pelo jornal de Mário Filho pode servir como mais um indício a ajudar a
184
compreender o seu sucesso. Ao que parece, o grande sucesso dos personagens de Molas pode
ter influenciado a imprensa paulistana, nas páginas da Gazeta Esportiva, a elaborar novas
mascotes inspirados nos clubes de São Paulo no traço de Miécio Café.
O meio da charge esportiva certamente não era um deserto antes de Molas, da mesma
forma que a imprensa esportiva brasileira também não engatinhava antes de Mário Filho, mas
as evidências parecem indicar que após o sucesso de Molas as charges esportivas ganhariam
um fôlego inédito, estendendo-se aos dias de hoje enquanto espaço obrigatório em periódicos
especialmente dedicados ao tema. Com a saída de Henfil, outros nomes o sucederam no diário
esportivo como o cartunista Nani e, anos mais tarde, o cartunista Amorim com um traço mais
clássico que lembra a grafia déco do cartunista Belmonte, que atuou entre as décadas de 1920
e 1940, mas com a crítica política às conturbadas e polêmicas medidas da Federação de
Futebol do Rio de Janeiro durante a longa gestão do controverso presidente Eduardo Vianna.
Como salientamos na Introdução da presente dissertação, grandes nomes da nossa
caricatura chegaram a dedicar seu traço ao tema. Um dos maiores, J. Carlos, oferece sua
contribuição ainda que com certo distanciamento, assim como K. Lixto, que mencionara o
futebol não mais do que como metáfora política. Mas nomes como Nássara ou Lan
dedicaram-se especificamente ao tema e podem, com certeza, suscitar novas discussões.
Àqueles mais empenhados na história do tempo presente, recomendamos veementemente as
charges de Mário Alberto, ainda titular do espaço reservado ao humor no diário esportivo
“Lance”. Mário estende sua crítica aos bastidores do meio político que comanda o nosso
futebol. Atento às denúncias de corrupção de dirigentes da CBF, não deixa de lado a batalha
travada pelo deputado Romário para promover uma devassa e a investigação atenta dos
órgãos federativos responsáveis pela organização da Copa do Mundo de 2014.
Nossa motivação imediata com a presente dissertação foi a de chamar atenção para as
potencialidades para a pesquisa historiográfica em torno do estudo desta natureza específica
de charge. Somando às potencialidades de representações humorísticas da imprensa, observar
a forma como as charges interpretam os acontecimentos esportivos suscita novas questões e
discussões para o campo da História do Esporte, bem como para o da História da Caricatura.
Se a caricatura apresenta geralmente uma forma mais espontânea e menos controlada de
representações sociais, o fenômeno esportivo não apenas mobiliza multidões como também
envolve interesses políticos e econômicos, interfere na rotina da sociedade, na vida pública e
privada, transformando a vida do cidadão comum e a imagem do país frente às grandes
nações do mundo.
185
REFERÊNCIAS
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