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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FLAVIO MOTA DE LACERDA PESSOA

HUMOR, FUTEBOL, POLÍTICA E SOCIEDADE NAS CHARGES DO JORNAL DOS


SPORTS: um estudo comparativo entre as obras de Lorenzo Molas (1944-1947)
e Henfil (1968-1972)

RIO DE JANEIRO
2013
Flavio Mota de Lacerda Pessoa

HUMOR, FUTEBOL, POLÍTICA E SOCIEDADE NAS CHARGES DO JORNAL DOS


SPORTS: Um estudo comparativo entre as obras de Lorenzo Molas (1944-1947) e Henfil
(1968-1973)

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em História
Comparada da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em História Comparada.

Orientador: Prof. Dr. João Manuel Casquinha Malaia Santos

RIO DE JANEIRO
2013
FICHA CATALOGRÁFICA

Pessoa, Flavio Mota de Lacerda.


Humor, futebol, política e sociedade nas charges do Jornal
dos Sports: Um estudo comparativo entre as obras de Lorenzo
Molas (1944-1947) e Henfil (1968-1973). / Flavio Mota de
Lacerda Pessoa, 2013.
206 f.: il.
Dissertação (Mestrado em História Comparada) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
História, PPGHC, Rio de Janeiro, 2013.

Orientador: Prof. Dr. João Manuel Casquinha Malaia


Santos

1.Charges esportivas 2.Jornal dos Sports. 3.Futebol –


Teses.
I. Malaia, João Manuel C. (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de História, Programa de Pós- Graduação em História
Comparada. III. Título.
Flavio Mota de Lacerda Pessoa

HUMOR, FUTEBOL, POLÍTICA E SOCIEDADE NAS CHARGES DO JORNAL DOS


SPORTS: Um estudo comparativo das obras de Lorenzo Molas (1944-1947) e Henfil (1968-
1973).

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em História
Comparada da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em História Comparada.

Aprovado em: 03 / 05 / 2013

________________________________________________________
Prof. Dr. João Manuel Casquinha Malaia Santos
PPGHC – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Orientador

________________________________________________________
Prof. Dr. Victor Andrade de Melo
PPGHC – Universidade Federal do Rio de Janeiro

________________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Antônio da Silva
PPGHS – Universidade de São Paulo

________________________________________________________
Profa. Dra. Gracilda Alves (suplente)
PPGHC – Universidade Federal do Rio de Janeiro

________________________________________________________
Prof. Dr. Rafael Fortes Soares (suplente)
Laboratório de Comunicação e História - UNIRIO
Dedico a meus pais e meus irmãos, que sempre me deram apoio incondicional, atenção e
carinho a todas as minhas empreitadas, contribuindo, cada um a seu modo, para meu
conhecimento e amadurecimento, fundamentais a esta caminhada; e à Roberta de Freitas,
minha companheira, namorada, amiga, por todo apoio, ajuda, atenção e carinho dedicados ao
longo desse intenso período de mestrado.
AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. João Manuel Casquinha Malaia Santos, orientador da presente dissertação,
por sua completa dedicação e pelas preciosas contribuições para esta pesquisa.
Ao Prof. Dr. Victor Andrade de Melo, que, além de ter sugerido um tema tão profícuo,
acompanhou e sempre contribuiu para os rumos desta pesquisa.
Ao Prof. Dr. Marcos Antônio da Silva, por sua dedicação e pertinentes observações que
muito contribuíram para o enriquecimento das discussões da presente dissertação.
Ao cartunista do jornal Clarín, Hermenegildo Sábat, pelas preciosas informações e
fontes sobre Lorenzo Molas, bem como por dispor de seu tempo para uma valiosa e agradável
entrevista.
Ao jornalista Achiles Chirol, por preciosas informações sobre Henfil no período em que
foi diretor no Jornal dos Sports.
À Prof. Dra. Magda Jaolino Torres por ter me aceitado como aluno ouvinte e por ter
ajudado tanto na minha preparação para o processo seletivo do Programa de Pós-Graduação.
À Prof. Dra. Cristina Buarque de Hollanda, por ter me apresentado ao Programa de Pós-
Graduação em História Comparada, bem como ao Prof. Dr. Victor Andrade de Melo e o
grupo de estudos por ele coordenado.
A todos os colegas e companheiros do Sport: Laboratório de História do Esporte e do
Lazer (UFRJ) pela atenção, amizade e por todas as discussões e contribuições para o
aprimoramento da pesquisa.
À minha querida colega Karina Barbosa Cancella, que ingressou no mesmo ano que eu
no Programa de Pós-Graduação em História Comparada e que, do início ao fim do mestrado,
sempre me auxiliou e tirou minhas dúvidas em questões diversas.
A todos os professores, funcionários e colegas de Mestrado e Doutorado do Programa
de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro por
toda a atenção ao longo deste curso.
Aos inúmeros mestres que, desde o início de minha caminhada acadêmica e artística,
me auxiliaram na construção dos conhecimentos que serviram como base para este trabalho.
Aos funcionários da Biblioteca Nacional pela atenção de sempre.
Aos meus amigos pelo carinho de sempre e pela paciência e compreensão das ausências
em tantos momentos, em especial ao amigo Jardel Sebba Filho, que prontamente me
emprestou um livro raro de Mário Filho que muito contribuiu para a pesquisa.
RESUMO

PESSOA, Flavio Mota de Lacerda. Humor, futebol, política e sociedade nas charges do
Jornal dos Sports: um estudo comparativo entre as obras de Lorenzo Molas (1944-1947) e
Henfil (1968-1973). Rio de Janeiro, 2013. Dissertação (Mestrado em História Comparada) –
Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de História, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. 206f.

O poder de alcance do humor gráfico vem sendo reconhecido por novas perspectivas
historiográficas que investigam o que charges, caricaturas e cartuns podem nos informar sobre
o passado. Paralelamente, o campo da História do Esporte vem se consolidando nas últimas
décadas, ampliando as discussões entre os mais diversos assuntos que envolvem o fenômeno
esportivo. Com relação à charge esportiva, entretanto, percebemos que um farto material de
enorme relevância historiográfica permanece ainda inexplorado por pesquisadores que
abordam os dois campos de estudo. As charges de Lorenzo Molas e Henrique de Sousa Filho
(HENFIL) chamam a atenção, a princípio, por terem sido publicadas no diário esportivo que
alcançou provavelmente maior popularidade no Rio de Janeiro e por envolverem o futebol
carioca e representações simbólicas de tradicionais clubes e torcidas do Rio de Janeiro. Para
além dessas semelhanças, foram produzidas em períodos da história política recente do país,
marcados pelas duas ditaduras responsáveis por transformações significativas na sociedade
brasileira. A presente dissertação procura observar como essas charges expressam, de modo
peculiar, transformações e continuidades da sociedade no Rio de Janeiro.
Palavras-Chave: Charge esportiva. Jornal dos Sports. Futebol. Ditadura Militar. Estado
Novo.
ABSTRACT

PESSOA, Flavio Mota de Lacerda. Humor, futebol, política e sociedade nas charges do
Jornal dos Sports: um estudo comparativo entre as obras de Lorenzo Molas (1944-1947) e
Henfil (1968-1973). Master’s dissertation on Compared History – Universidade Federal do
Rio de Janeiro’s History Institute Compared History Post-graduation Program, Rio de Janeiro,
2013. 206f.

Political and Social Humor in Molas’ (1944-1947) and Henfil’s (1968-1972) cartoons for the
newspaper “Jornal dos Sports”

The reaching power of graphic humor has been recognized by new historiographical
perspectives that investigate what it can tell us about the past. In parallel, the field of sports
history has been consolidated in recent decades, expanding the discussions to a wider range of
issues surrounding the phenomenon of sports. Regarding sports cartoons, however, we
realized that a vast material of great historiographical relevance remains unexplored by
researchers that address the two fields of study. The cartoons of Lorenzo Molas and Henrique
de Sousa Filho, or Henfil, drew attention, at first, because they have been published in the
sports journal that reached probably the largest popularity and dealt with football and
symbolic representations of traditional clubs and fans in Rio de Janeiro. Beyond these
similarities, both produced their works in two periods of the country's recent political history,
marked by two dictatorships responsible for significant changes in Brazilian society. We
believe that, in many aspects and in a peculiar way, these cartoons express the delicate
moments that the country went through.

Keywords: Sports cartoon. Jornal dos Sports. Football. Military Dictatorship. Estado Novo.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Página
CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO
Figura 1.1 Charge de Molas: “Pelo buraco da fechadura”. JS, 12 out. 1944, p. 1 02
Figura 1.2 Charge de Henfil: “A união”. JS, 13 dez. 1970, p. 2 03

CAPÍTULO 2. HUMOR E SOCIEDADE NAS CHARGES DE MOLAS E HENFIL


Figura 2.1 Charge de Molas: “A Miss em Copacabana”. JS, 01 abr. 1945, p. 1 27
Figura 2.2 Charge de Henfil: Sem título. JS, 24 jan. 1970 28
Figura 2.3 Charge de Henfil: Sem título. JS, 14 jan. 1970, p. 2 29
Figura 2.4 Charge de Molas: “A outra filha da sogra”. JS, 06 mar. 1945 37
Figura 2.5 Charge de Henfil: Sem título. JS, 01 dez. 1970, p. 2 38
Figura 2.6 Charge de Molas: “As noites da outra filha da sogra”. JS, 04 abr. 1945, p. 1 42
Figura 2.7 Charge de Molas: “Quem casará com ela?”. JS, 01 jul. 1944, p. 1 44
Figura 2.8 Charge de Molas (detalhe da figura 0.1): JS, 12 out. 1944, p. 1 45
Figura 2.9 Charge de Molas: “A vida pedida a Deus”. JS, 02 nov. 1944, p. 1 46
Figura 2.10 Charge de Henfil: “Botafogo x Peñarol”. JS, 01 mar. 1973, p. 2 47
Figura 2.11 Charge de Molas: “Estrago com flores e estrago ao fragor das mechas”. JS,
17 out. 1944, p. 1 52
Figura 2.12 Charge de Henfil: Sem título. JS, 13 jan. 1970, p. 3 53
Figura 2.13 Charge de Henfil. Sem título. JS, 10 jan. 1970, p. 3 54
Figura 2.14 Charge de Henfil. Sem título. JS, 11 jan. 1970, p. 3 55

CAPÍTULO 3. CLUBES, TORCEDORES E SÍMBOLOS NAS REPRESENTAÇÕES


DA IMPRENSA ESPORTIVA
Figura 3.1 Coluna “Uma Pedrinha na Shooteira”, de Zé de São Januário. JS, 02 nov.
1944, p. 6 59
Figura 3.2 Matéria “Torcida consagra símbolos”. JS, 15 jun. 1969, p. 10 60
Figura 3.3 Charge de Henfil: Sem título. JS, 02 nov. 1969, p. 3 65
Figura 3.4 Charge de Molas: “O anel de noivado”. JS, 14 set. 1944, p. 1 66
Figura 3.5 Charge de Henfil: Sem título. JS, 26 set. 1969, p. 3 67
Figura 3.6 Charge de Molas: “O diabo pintou o sete”. JS, 19 set. 1944, p. 1 72
Figura 3.7 Charge de Henfil: Sem título. JS, 08 nov. 1969, p. 3 73
Figura 3.8 Charge de Molas: “O jogo que sobrou”. JS, 28 jun. 1944, p. 1 81
Figura 3.9 Charge de Henfil: Sem título. JS, 10 nov. 1970, p. 2 82
Figura 3.10 Charge de Henfil: Sem título. JS, 29 nov. 1970, p. 2 89
Figura 3.11 Charge de Henfil: Sem título. JS, 10 nov. 1969, p. 3 90
Figura 3.12 Charge de Henfil: Sem título. JS, 10 nov. 1969, p. 3 91
Figura 3.13 Anúncio do livro Histórias do Flamengo, desenho de Molas. JS, 09 mar.
1945, p. 6. 94
Figura 3.14 Charge de Molas: “Popeye abrirá a lata?”. JS, 04 ago. 1944, p. 1 95
Figura 3.15 Charge de Henfil: Sem título. JS, 05 dez. 1970, p. 2 96
Figura 3.16 Charge de Henfil: Sem título. JS, 10 jun. 1969, p. 3 102
Figura 3.17 Charge de Molas: “Entre les deux”. JS, 19 jul. 1944, p. 1 105
Figura 3.18 Charge de Henfil: Sem título. JS, 05 jun. 1969, p. 3 106
Figura 3.19 Charge de Molas: “Rumo ao sétimo céu”, JS, 01 nov. 1944, p. 1 108
Figura 3.20 Charge de Henfil: “Flu 3 x 1 Vasco”. JS, 03 nov. 1970, p. 2 110
Figura 3.21 Charge de Molas: “A Boda do Almirante”. JS, 20 nov. 1945, p. 10 116
Figura 3.22 Charge de Henfil: “Vam’ bora, Bacalhau!”. JS, 23 out. 1969, p. 3 117
Figura 3.23 Charge de Molas: “O ponto final do expresso.” JS, 14 nov. 1945, p. 1 123
Figura 3.24 Charge de Molas: “O Vasco tem apetite”. JS, 27 jun. 1944, p. 1 126
Figura 3.25 Charge de Molas: “A serenata do almirante”. JS, 04 ago. 1944, p. 1 128
Figura 3.26 Charge de Henfil: “Quem tem medo do negão.” JS, 01 nov. 1969, p. 3 130
Figura 3.27 Charge de Henfil: Sem título. JS, 01 nov. 1970. 131

CAPÍTULO 4. FUTEBOL E POLÍTICA NAS CHARGES DO COR-DE-ROSA


Figura 4.1 Charge de Molas: “O outro que renunciou”. JS, 08 nov. 1945, p. 1 135
Figura 4.2 Chamada na página 1 para charge de Henfil. “Aimoré disse que Luis
Carlos emprega tática de guerrilha”. JS, 15 mar. 1968, p. 1 136
Figura 4.3 Charge de Molas: “A cobra está fumando”. JS, 20 jan. 1945, p. 1 144
Figura 4.4 Chamada na página 1 para charge de Henfil. Sem título. JS, 14 dez. 1968 145
Figura 4.5 Charge de Molas: “Outro marujo para atrapalhar”. JS, 28 abr. 1945, p. 1 157
Figura 4.6 Charge de Henfil: “Aimoré disse que Luis Carlos emprega tática de
guerrilha 2”. JS, 16 mar. 1968, p. 4 161
Figura 4.7 Chamada na primeira página para charge de Henfil. “Flu empatou”. JS, 01
abr. 1968, p. 1 164
Figura 4.8 Charge de Henfil: “Cadê o Urubu?” JS, 17 jun. 1969, p. 3 166
Figura 4.9 Charge de Henfil: Sem título. JS, 22 jan. 1970, p. 3 170
Figura 4.10 Charge de Henfil: Sem título. JS, 28 jan. 1970, p. 3 171
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ABI: Associação Brasileira de Imprensa


AERP: Assessoria Especial de Relações Públicas
AI-5: Ato Institucional nº 5.
ANL: Aliança Nacional Libertadora.
CBD: Confederação Brasileira de Desportos.
CBF: Confederação Brasileira de Futebol.
CND: Conselho Nacional de Desportos.
COI: Comitê Olímpico Internacional.
DIP: Departamento de Imprensa e Propaganda.
DOI-CODI: Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa
Interna.
DOPS: Departamento de Ordem Política e Social.
FEB: Força Expedicionária Brasileira.
FFAA: Forças Armadas.
IBOPE: Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística.
JB: Jornal do Brasil.
JS: Jornal dos Sports.
LMSA: Liga Metropolitana de Sports Athleticos.
MR-8: Movimento Revolucionário Oito de Outubro.
OBAN: Operação Bandeirante.
VPR: Vanguarda Popular Revolucionária.
SUMÁRIO

Página
CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO 01
1.1 Estudos iconográficos e a interpretação da obra de arte: delimitando fronteiras entre
charge, cartum e caricatura 12
1.2 Vantagens do método comparativo 14
1.3 Corpus Documental 16
1.4 Ampliando a discussão historiográfica através da charge: um breve
mapeamento 18
1.5 Caricatura e esporte na história – um campo a ser explorado 21
1.6 Planejamento de capítulos 23

CAPÍTULO 2 – HUMOR E SOCIEDADE NAS CHARGES DE MOLAS E


HENFIL 26
2.1 O Rio de Janeiro de Molas e Henfil 27
2.2 O humor de Molas e Henfil 37

CAPÍTULO 3 – CLUBES, TORCEDORES E SÍMBOLOS NAS REPRESENTA-


ÇÕES DA IMPRENSA ESPORTIVA 58
3.1 Estimulando rivalidades 66
3.2 As mascotes e as representações da imprensa 77
3.2.1 Uma rebelde estrela solitária 81
3.2.2 Construindo uma “nação”: o caso do Flamengo 94
3.2.3 A elite carioca no futebol 105
3.2.4 A colônia portuguesa do Rio de Janeiro 116

CAPÍTULO 4 – FUTEBOL E POLÍTICA NAS CHARGES DO COR-DE-ROSA 134


4.1 As charges de Molas e Henfil e as propagandas políticas entre sintonias e conflitos 144
4.2 “Boa Vizinhança” e “Brother Sam” nas charges esportivas 154
4.3 Repressões, resistências e futebol no cor-de-rosa 164

CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS 174


5.1 Questões para novas discussões 183

REFERÊNCIAS 185
Fontes 186
Documentos 186
Periódicos 186
Bibliografia 189
1

1
INTRODUÇÃO
2

Figura 1.1 Lorenzo Molas utilizava a metáfora da conquista amorosa, em que as mascotes dos times do futebol
carioca disputavam todo ano a mão de uma nova Miss Campeonato. Mascotes dos times de menor expressão não
tinham lugar na casa. Jornal dos Sports, 12 de outubro de 1944, p. 1.
3

Figura 1.2 Concepção politizada das torcidas de futebol, explorando a diferença de classes. A charge esportiva
se torna um pretexto para tornar explícita a luta de classes e a distinção social. Jornal dos Sports, 13 de
dezembro de 1970.
4

Embora a primeira charge (Figura 1.1) remeta a acontecimentos esportivos, não vemos
ali qualquer vestígio de campo, bola ou jogadores uniformizados. Estamos, sim, diante de
uma sala de estar razoavelmente movimentada. No primeiro plano, à esquerda da cena, uma
senhora obesa joga cartas com um distinto e aborrecido cavalheiro, trajado a rigor. Enquanto a
senhora o observa com encanto, sonhando em levá-lo ao altar, o cavalheiro afunda a cabeça
sobre a mão e o cotovelo sobre a mesa, lamentando sua sorte: “até aonde eu desci”, diz ele.
Na certa, refere-se ao fato de ter trocado a companhia da desejada Miss Campeonato pela da
mãe dela, a robusta senhora à sua frente na mesa. Quem ocupa o posto mais disputado
daquela sala, no momento, é o marinheiro Popeye, que já toma o braço da pretendida, a
pretexto de tirar as medidas de seu dedo para mandar providenciar a aliança. Ao lado do sofá,
o Pato Donald e um almirante português confabulam, tramando arrancar o marinheiro de sua
confortável posição.
Seria preciso acompanhar as charges que vinham sendo publicadas diariamente no
Jornal dos Sports1 desde junho daquele ano para sabermos que o distinto cavalheiro que
acompanha a senhora no carteado é o Cartola, representante do aristocrático Fluminense; que
o Popeye representa o Flamengo; Pato Donald, o Botafogo; e o almirante português, o Vasco
da Gama. A senhora que alimenta pretensões matrimoniais com o Cartola é a mãe da tão
disputa Miss Campeonato. Do lado de fora da casa, competiam, para observar pelo buraco da
fechadura, representantes dos times que não mantinham grandes pretensões no campeonato: o
Diabo do América, o Operário do Bangu, o Santo Obeso do São Cristóvão, além do sujeito de
aparência tímida, carregando seu inseparável guarda-chuva e com o chapéu enterrado na
cabeça, que era o representante do Bonsucesso e posteriormente ganhou dos leitores o nome
de Seu Leopoldino.2 A referida charge registra um momento em que o Flamengo começaria
uma nova arrancada, repetindo um suposto feito mencionado em colunas e matérias do JS,
quando o clube conquistara o campeonato por duas vezes consecutivas após impor
surpreendentes reviravoltas, que lhe valeram a comparação com o personagem marinheiro que
renovava as forças com latas de espinafre.
Na charge seguinte (Figura 1.2), dividida em quadros, vemos um sujeito enfezado,
com pinta de janota, com uma desproporcional gravata borboleta, bigodinho discreto “à
francesa” e o cabelo partido ao meio. A camisa, de fios verticais estreitos e próximos, sugere
o tradicional uniforme tricolor do Fluminense. Mantendo sempre as mãos dadas com um
gordinho despenteado, enfiado na camisa alvinegra do Botafogo, em listras igualmente

1
A partir da próxima menção ao Jornal dos Sports, será usada a sigla JS.
2
Acreditamos se tratar de uma possível alusão à Estação Leopoldina, referência primordial no bairro.
5

verticais com faixas mais espessas pretas e brancas, o tricolor vai tirar satisfação com uma
rodinha de torcedores rivais, que não esboçam qualquer reação. O grupo é formado por três
personagens. O primeiro, de cabelo “pixaim”, traja uma camisa com grossas listras pretas
horizontais, representando o uniforme rubro-negro do Flamengo. No meio, de frente para o
leitor, vemos um gato sem camisa, mas “humanizado”: tem o mesmo tamanho dos demais e
se senta de pernas cruzadas, como os outros. Por acaso, não vemos no gato o escudo do
América sobre o peito, como aparecia em outras charges. O último personagem é um
volumoso português que personifica o estereótipo da colônia lusitana no Brasil: careca,
barrigudo, usando bigodes com as pontas voltadas para cima. Em sua camisa destaca-se uma
faixa preta atravessada no peito, ostentando a cruz de malta do Vasco da Gama, junto ao
coração.
No dia 13 de dezembro de 1970, dois dias antes da publicação da referida charge
(Figura 1.2), começava o quadrangular final do campeonato brasileiro3 e o Fluminense era o
único clube carioca ainda vivo na competição. Com a vitória tricolor na primeira rodada, a
charge de Henfil, publicada dois dias após a partida, não enaltecia o feito, preferindo dar uma
alfinetada no clube identificado com a elite. “Traidores injustos!”, brada furioso o elitista
torcedor do Fluminense, batizado pelo cartunista com o apelido com o qual a torcida tricolor
já era conhecida: “Pó de Arroz”.4 Mantendo sempre as mãos dadas com o Cri-Cri, torcedor do
Botafogo, o tricolor tira satisfação com os torcedores rivais. O motivo da revolta é por conta
de seus conterrâneos terem supostamente se alinhado, com exceção do alvinegro, à torcida do
Palmeiras. Diante da fúria do Pó de Arroz, os torcedores dos três times rivais (incluindo o
América, representado pelo gato)5 formam uma rodinha, fingindo indiferença. O Pó de Arroz
só interrompe subitamente sua indignação para mostrar seu reconhecimento ao gordinho
alvinegro, o único a apoiar o Fluminense no jogo com os paulistas. Trocando olhares de afeto
com o Cri-Cri, o Pó de Arroz, agradecido, reconhece o apoio do parceiro: “Só as bandeiras do
Botafogo ficaram do lado da elite carioca. Só a cricrizada não traiu o Rio e torceu pelo

3
O principal campeonato nacional de clubes, que reunia os mais tradicionais clubes do futebol brasileiro,
indicando os representantes brasileiros na Taça Libertadores da América, ainda não era tido como o Campeonato
Brasileiro. Só no fim do ano de 2010, os títulos das competições nacionais desde 1959 foram unificados.
4
Mário Filho eternizou no anedotário do futebol brasileiro, através da obra clássica “O Negro no Futebol
Brasileiro”, um episódio jamais comprovado pela pesquisa historiográfica em que um jogador mulato do
Fluminense, envergonhado pelo contraste entre o tom de sua pele e a de seus companheiros, cobria-se de pó de
arroz, o que teria originado o “apelido” da torcida tricolor. Ver: FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 42-43.
5
O único personagem que nessa charge não demonstra claramente seu time é o gato, representando a torcida do
América. Certamente a escolha pega carona na expressão: “meia dúzia de gatos pingados”, usada para se referir
a um número inexpressivo de pessoas, aludindo à certeza de que a torcida do América seria nitidamente a menos
numerosa entre as dos mais tradicionais clubes do Rio de Janeiro.
6

tricolor”. Diante da estupefação dos rivais, o Pó de Arroz promete se vingar da traição: “Mas
o crioléu vai pagar caro. Não vamos convidar nenhum de vocês para o nosso noivado não é,
Cri-Cri?”.
Ao primeiro olhar, as duas cenas descritas acima se contrastam explicitamente e, ao
olhar precipitado, parecem remeter a assuntos distintos. Entre as duas, o ponto em comum que
possibilita investir uma comparação válida para a pesquisa historiográfica é que ambas
ocuparam, em seus respectivos períodos, o espaço reservado ao humor gráfico das célebres
páginas cor-de-rosa do JS. Desde o dia 17 de junho de 1944, o JS, periódico que por tanto
tempo intitulou-se o diário esportivo de maior circulação da América do Sul,6 apresentava um
entretenimento a mais para seus leitores: uma nova charge diária sobre o futebol carioca.
Desde então, o espaço reservado ao desenho de humor passou a se tornar diário no JS, dando
prioridade ao futebol carioca. Nas páginas que abrem a presente introdução, destacamos duas
charges de períodos históricos separados 26 anos no tempo.
Na charge de 1944 (Figura 1.1), observamos uma grafia limpa e bem delineada.
Traços razoavelmente rápidos são expressos através de contornos espessos e decididos.
Sobressai a linha desenhada a bico de pena, acentuando as curvas. Nota-se, ainda, o ambiente
razoavelmente bem descritivo, que busca informações que vão além da piada, apenas
ressaltando o ambiente familiar. Percebe-se uma sintonia com alguns outros ilustradores da
época, que trabalhavam com cartuns ou histórias em quadrinhos, entre os quais: Péricles,7
Augusto Rodrigues8 ou Elzie C. Segar.9 A charge seguinte (Figura 1.2), de 1970, passa a
impressão de um esboço: traços gestuais, ágeis e espontâneos são também extremamente
econômicos, atendo-se ao mínimo necessário para se compreender a charge ou para se
transmitir a expressividade necessária. Poucas linhas bastam pra definir objetos ou
personagens. Expressões faciais são formadas apenas pelos seus elementos mais essenciais:
olhos, nariz, orelhas e boca. Para definir os cabelos emaranhados, basta um rabisco aleatório.
Henfil encontrou uma grafia extremamente pessoal, observando o pensamento visual mais
“econômico” de ilustradores como Jaguar,10 Jean Jaques Sempé11 e Saul Steinberg,12 mas

6
Durante várias décadas esta informação era impressa junto ao logotipo do jornal.
7
Péricles Maranhão (1924-1961), criador de “O Amigo da Onça”. Ver: SILVA, Marcos. Prazer e poder do
amigo da onça. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1989; LAGO, Pedro Corrêa do. Caricaturistas brasileiros. Rio de
Janeiro: Sextante, 1999, p.140-143.
8
Augusto Rodrigues (1913-1993) colaborou com periódicos, como “O Jornal”, “Fon-Fon” e “Careta”. Ver:
LAGO, op. cit., p. 136-139.
9
Elzie C. Segar. (1894-1938), cartunista americano, criador de Popeye, personagem que estreou em 1929 no
“New York Journal”. Ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Popeye.
10
Sérgio de M. G. Jaguaribe, cartunista brasileiro que começou a carreira na revista “Manchete”, se tornando o
principal ilustrador da revista “Senhor”, tendo passando ainda pela “Revista da Semana”, pelo semanário “Pif-
7

nenhuma das citadas referências lançava mão de um despojamento gestual tão


descompromissado, espontâneo e expressivo.
Ao observar diferenças no estilo gráfico de cada charge, percebemos o quão peculiares
são as obras dos cartunistas Lorenzo Miguel Ramón Molas e Henrique de Sousa Filho, mais
conhecido pelo pseudônimo Henfil. Além do estilo de traço, espécie de “caligrafia” do
desenho, os demais aspectos discursivos poderão oferecer pistas que podem apontar novas
perspectivas ou direcionamentos sobre esses dois momentos da história recente do país,
marcados por profundas transformações políticas, econômicas e sociais. A presente pesquisa
se dedicará, portanto, a observar a perspectiva social e política desses dois cartunistas que
trabalharam, cada um a seu momento, para o diário esportivo conhecido como o mais popular
do Rio de Janeiro nos períodos analisados (HOLLANDA, 2012).
As trajetórias de Molas e Henfil, entre diferenças fundamentais como períodos
históricos e formações profissionais, encontram na obra aqui analisada alguns aspectos em
comum, o que torna possível o exercício da comparação. Além de terem elaborado charges
esportivas para o JS, em suas respectivas épocas, ambos priorizam o futebol carioca e,
sobretudo, criaram personagens que se tornaram símbolos fortemente associados aos
tradicionais clubes do Rio de Janeiro, ainda vivos na memória afetiva dos torcedores.
Molas nasceu no bairro operário de Lanús, em Buenos Aires, no dia 22 de março de
1915, chegando ao Rio de Janeiro no dia 14 de junho de 1944 aos 29 anos de idade, poucos
dias antes de sua estreia no JS com quem assinaria um contrato de exclusividade com
ordenado fixado em dois mil cruzeiros.13 São muitas as lacunas sobre a trajetória de Lorenzo
Molas para além de sua produção no JS. Ainda que o cartunista portenho tivesse trabalhado
em outros órgãos da imprensa brasileira, como “A Última Hora” e “O Globo Sportivo”, seu
nome ainda é fortemente associado à criação das principais mascotes dos tradicionais clubes
de futebol do Rio de Janeiro. Esta vinculação ocorre, provavelmente, em vista da perenidade
de alguns desses personagens, como o Cartola do Fluminense, o Diabo do América e o
Almirante do Vasco, ainda vivos no imaginário popular do futebol. Uma nota de apresentação

Paf” e pelos jornais “Última Hora” e “Tribuna da Imprensa”, ganhando maior notoriedade ao fundar o semanário
“O Pasquim”. LAGO, op.cit., p. 156-161.
11
Cartunista francês criador das histórias em quadrinhos “O pequeno Nicolau”, colaborou ainda com os
periódicos mundialmente conhecidos “Paris Match”, e no “Le Figaro Littéraire” e “New Yorker”.
12
Saul Steinberg (1914-1999), nascido na Moldávia, naturalizado americano, ganhou notoriedade ilustrando para
a revista “The New Yorker Magazine”. Ver: SARAIVA, Roberta. Steinberg: as aventuras da linha. São Paulo:
IMS e Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2011.
13
Prontuário nº 14.269/44 sob a notação: SPMF/ RJ RNE 300.026. Para base de comparação, de acordo com
Eulália Santos Lobo, o salário mínimo, entre 1943 e 1949, se manteve fixado no valor de CR$ 380,00, sendo
CR$ 410,00 o industrial. (LOBO, 1992, p. 110).
8

no JS, publicada um dia após a publicação de sua primeira charge no periódico, informa que
ele que foi contratado do “Crítica”, jornal da grande imprensa de Buenos Aires, pelo sucesso
de seus desenhos sobre futebol.14 Em trânsito constante entre as capitais de Brasil e
Argentina, trabalhou também como diagramador e chargista nos periódicos portenhos
“Crítica”, “Clarín”, “Hoja da Tarde”, além de colaborar com cartuns eventuais na revista
“Mundo Deportivo”.15 De volta à “Crítica”, após sua experiência no JS, elaborou charges
esportivas diárias que repetiam a fórmula adaptada para o JS, com as mascotes dos clubes
argentinos disputando o coração da Miss Campeonato local. Nelas, destacam-se o Milionário,
mascote do River Plate, à semelhança do tricolor Cartola; o Diabo, do Independiente; o obeso
pizzaiolo “italianado”, do Boca Junior.16 Uma nota no “Clarín” informa que Molas faleceu no
dia 08 de fevereiro de 1994,17 alguns dias antes de completar 79 anos.
Enquanto a vivência de Molas compreende uma experiência profissional que se
expande pelas artes visuais, dividindo sua carreira entre a diagramação e o desenho de humor,
a formação inicial de Henfil parece mais claramente conduzida pela influência familiar em
relação à preocupação com as questões sociais do que pela sua vocação para as artes gráficas
(MALTA, 2008). O cartunista Henrique de Sousa Filho nasceu na cidade mineira de Ribeirão
das Neves em 05 de fevereiro de 1944. O historiador Euclides Couto observa que a condição
social do cartunista o teria possibilitado testemunhar, por ele mesmo, “as mazelas mais
profundas da sociedade brasileira” (COUTO, 2012, p. 152). Couto e o sociólogo Márcio
Malta concordam que a origem familiar modesta do cartunista, criado no bairro humilde de
Santa Efigênia, somados à influência dos irmãos mais velhos, o teriam conduzido
precocemente na direção do engajamento político (COUTO, 2012; MALTA, 2008). “Eu não
nasci no berço das artes gráficas. Nasci no berço da guerra social. Entendeu isso, entendeu
meu comportamento.” (HENFIL, 1984b, p. 109).
Na capital mineira, passaria rapidamente de revisor a cartunista na revista “Alterosa”.
Mas seria na sucursal mineira do JS que o trabalho de Henfil daria o primeiro impulso para
alcançar projeção nacional quando, a partir de 1967, passou a trabalhar na versão carioca do
mesmo periódico (COUTO, 2009). Sua trajetória profissional foi assumidamente delineada

14
JS, 18 de junho de 1944, p. 1. Embora a nota no jornal apresentando Molas no JS mencionasse desenhos do
cartunista sobre futebol, pouco encontramos desse tipo de produção entre os arquivos da seção de periódicos na
Biblioteca Nacional de Buenos Aires. Procurando nos períodos correspondentes ao ano anterior à sua chegada,
entre março de 1943 e junho de 1944, descobrimos apenas uma menção a futebol entre seus desenhos e em uma
peça publicitária.
15
FEUER, Daniel. Molas, creador que no quiere penas ni olvidos. Entrevista. Democracia, Buenos Aires, 13 de
julho de 1991, p. 2-3.
16
Crítica, Critica Deportes, Buenos Aires, 30 de maio de 1949.
17
Clarín, Buenos Aires, 10 de fevereiro de 1994.
9

por suas convicções políticas. Publicou em grandes veículos da imprensa brasileira e


americana, marcando presença no “Jornal do Brasil” e nas revistas “Realidade”, “Cruzeiro”,
“Placar e Visão”, no semanário humorístico “Pasquim”, bem como no “Chicago Tribune” e
no “Washington Post”. Seus personagens tornaram-se elementos característicos de uma
cultura de oposição durante a ditadura militar. Entre eles, ficaram mais conhecidos os
Fradinhos e a turma da Caatinga: Graúna, Zeferino e Bode Orelana, que debochavam do
propagado “milagre brasileiro”. Waldomiro Vergueiro, professor da Escola de Comunicação e
Artes da USP, destaca a obra de três cartunistas que teriam estabelecido modelos na formação
do humor gráfico brasileiro de suas respectivas épocas: Ângelo Agostini, J. Carlos e Henfil.
Segundo o autor, Henfil teria alcançado maior destaque entre os cartunistas de sua geração
por ter sido o mais ousado e persistente na busca pela crítica mais contundente, mesmo em
tempos em que essa postura implicava assumir riscos incalculáveis. (VERGUEIRO, 2011).
Henfil envolveu-se ainda com cinema, roteiro e produção do filme “Tanga. Deu no New York
Times” e com TV, como redator do quadro TV Homem, no extinto programa TV Mulher.18
Hemofílico, acabou contraindo o vírus da AIDS em uma transfusão de sangue e foi vencido
pela doença no dia 04 de janeiro de 1988.
A historiadora Maria da Conceição Francisca Pires analisa a obra de Henfil como
parte integrante de toda uma produção cultural de ativa resistência à ditadura militar, que a
autora considera um dos mais inventivos períodos culturais de nossa história recente. Pires
refere-se a essas manifestações de oposição e resistência à ditadura como
[...] uma produção cultural híbrida, contestadora, irreverente e anti-autoritária, que
soube manejar com especial habilidade a sua condição de marginalidade, fazendo
dessa sua identidade expressa na linguagem, na forma, e no estilo narrativo
empregado (PIRES, 2010, p. 33).

No decorrer deste estudo, será preciso trabalhar com personagens recorrentes nas
charges, pois eles se estabeleceram no imaginário popular da cultura futebolística como
mascotes, como personagens que a seu momento passaram a ser identificados como ícones
dos tradicionais clubes que dividiam a preferência dos torcedores cariocas. Molas ainda sentiu
necessidade de elaborar personagens também para os times de menor expressão, conhecidos
como “pequenos”, mas como são figuras menos recorrentes na trama, deixamos para
descrevê-los na medida em que forem aparecendo nas charges analisadas.
Na representação de Molas do América, a figura do Diabo alude ao vermelho vivo das
cores do time e também ao seu costume de “infernizar” os rivais. No humor de Henfil, a

18
De acordo com Márcio Malta (2008), as aparições de Henfil na televisão faziam com que seus desenhos
atingissem um número cada vez maior de pessoas.
10

referência se torna mais dócil, na figura do Gato Pingado, frisando a inexpressividade


numérica. Seja através do grã-fino Cartola de Molas ou do Pó de Arroz de Henfil, o
Fluminense é lembrado, nos dois momentos, por suas origens aristocráticas. No que se refere
ao Vasco da Gama, Molas optou por homenagear, na figura do Almirante, o histórico
navegador português reforçando os vínculos com a forte presença da colônia lusitana no Rio
de Janeiro. O Bacalhau criado por Henfil tem traços lusitanos, que conferem autenticidade ao
personagem. É um português representado por seus elementos mais fundamentais: a careca e
os bigodes com pontas voltadas para o teto. No entanto, é a identificação do Vasco com as
massas que é mais acentuada na obra do cartunista. Se as representações elaboradas para o
Botafogo distinguem-se visualmente por completo, aproximam-se conceitualmente. Molas
ironizou a irritabilidade e o espírito contestador atribuídos pela imprensa ao clube alvinegro,
ao adotar a imagem do Pato Donald, famoso pelos seus ataques de fúria. Henfil retirou os
resquícios finais de uma possível altivez do personagem fazendo-o conhecido por Cri-Cri,
uma figura mais triste, afetada, de tendências masoquistas. Referências completamente
diferentes motivaram Molas e Henfil nas representações escolhidas para o Flamengo. Em
1944, um bicampeonato conquistado após superar momentos iniciais complicados levou
Molas a escolher o Popeye, por encontrar forças adicionais em suas latas de espinafre. Henfil,
por sua vez, preferiu representar o clube através de um estereótipo até então pejorativo pela
sua associação com o lixo e a miséria. Mas, com o tempo, seu Urubu acabaria sendo
amplamente aceito entre os torcedores.
Na charge de Molas apresentada para abrir esta Introdução (Figura 1.1), publicada no
período em que o Brasil já havia decido alinhar-se às tropas aliadas na Segunda Guerra
Mundial, período marcado por uma grande intensificação da “política de boa vizinhança”, é
possível reconhecer dois fortes ícones das clássicas histórias em quadrinhos americanas:
Popeye e Pato Donald. A adoção desses personagens para representar clubes de futebol
associados às tradições culturais do Rio de Janeiro evidencia um entusiasmo popular com a
“febre da americanização” de aspectos da cultura brasileira. Basta lembrar que nesse período
o primeiro governo de Getúlio Vargas ia chegando ao fim e o país era “bombardeado” por
produtos, filmes, revistas e quadrinhos disseminados pelas poderosas indústrias de
entretenimento dos Estados Unidos. Já a outra charge (Figura 1.2) foi publicada na época em
que a repressão operada pelos órgãos do regime militar conhecia sua maior intensidade, na
época em que as relações diplomáticas com os Estados Unidos trariam à tona a operação
conhecida como “Brother Sam” que estabelecia um acordo de cooperação entre o governo
americano e o regime ditatorial. Henfil preferiu não recorrer aos ícones da cultura de massa
11

estadunidense, certamente por se mostrarem atrelados a um corpo ideológico de apologia ao


sistema capitalista em que discursos em defesa da democracia talvez já não fossem tão
convincentes quanto no momento anterior.
Ambos, Molas e Henfil, procuraram representar os explícitos contrastes sociais no Rio
de Janeiro. A diferença é que o primeiro situou a fronteira entre as diferentes classes sociais à
margem das atenções principais da trama, separando o grupo das mascotes que representavam
os times grandes do grupo formado pelos representantes dos clubes pequenos, que sempre
frisam a sua condição de coadjuvante. Henfil, por sua vez, propôs um reposicionamento desta
fronteira, situando-a no centro das atenções. Dividindo as principais torcidas em dois grupos,
definiu espaços privilegiados reservados aos representantes da elite e os mais modestos aos
representantes da massa. Os conflitos sempre giravam em torno dessa mesma dicotomia,
trazendo a discussão para o primeiro plano.
A escolha das duas charges esportivas apresentadas no início desta Introdução
justifica-se por se configurarem exemplares ao apresentar os personagens mais recorrentes das
duas tramas,19 em seus respectivos períodos, bem como para demonstrar os conflitos criados
para sustentar o enredo geral de cada uma. Entre diversos aspectos históricos a serem
discutidos no decorrer desta pesquisa salienta-se, na primeira charge assinada pelo cartunista
argentino Lorenzo Molas,20 a alusão aos costumes familiares da década de 1940, que envolve
o ritual do cortejo à donzela, passando pelo namoro consentido, noivado e matrimônio; bem
como os vestígios de um momento em que o país estreitava seus laços diplomáticos com os
Estados Unidos. A conhecida “Política de Boa Vizinhança” manifesta-se aqui na escolha de
personagens das histórias em quadrinhos americanas, Popeye e Pato Donald, para
representação de dois tradicionais clubes de futebol do Rio de Janeiro: Flamengo e Botafogo.
Já na segunda charge, Henfil preferiu reposicionar a linha que separa as classes sociais do Rio
de Janeiro, dividindo o grupo dos “quatro grandes” em dois e provocando uma ruptura social
entre eles. A representação das torcidas permitiu que o cartunista estabelecesse, da maneira
como enxergava, as identificações entre os clubes e a presença de seus torcedores entre as
classes sociais correspondentes. Fluminense e Botafogo, conhecidos popularmente por
estarem mais concentrados nas classes média e alta da sociedade, formavam a “República de
Ipanema Beach”, uma representação generalizante dos espaços mais nobres da cidade.
Flamengo e Vasco, com maior presença entre as camadas mais populares, compunham a

19
Ausentes na charge apresentada (Figura 1.1) apenas o Malandro, representante do Madureira, e o Garoto, do
Canto do Rio, que serão observados no decorrer da pesquisa na medida em que analisarmos as charges em que
eles aparecem.
20
Sobre Lorenzo Molas (1915-1994), ver mais informações no item “Trajetórias dos cartunistas”.
12

“República Popular de Ramos”, que compreendia as regiões periféricas e menos


favorecidas.21
Definindo os dois recortes temporais em que se concentra a análise desta pesquisa
delimitamos, então, um período que marca a primeira passagem de Molas pelo JS, de junho
de 1944 até agosto de 1947, quando o cartunista regressou à Argentina.22 O segundo período
selecionado contempla o ano de 1968, quando a charge de Henfil passou a abordar os
assuntos do futebol, aproveitando para criticar também as arbitrariedades do Regime Militar,
e se estende até julho de 1973, quando Henfil encerrou sua colaboração no JS.
Procuramos, então, concentrar o objetivo na análise do efeito discursivo da charge
esportiva desses dois períodos, tentando perceber o que elas podem nos informar sobre os
mais diversos aspectos culturais ou políticos de suas respectivas configurações sociais em
cada momento.

1.1 Estudos iconográficos e a interpretação da obra de arte: delimitando fronteiras entre


charge, cartum e caricatura

Erwing Panofsky (1972), na introdução de Studies in Iconology, demonstra em que


medida uma pesquisa que se debruce sobre uma obra de arte não abstrata prescinde do
conhecimento prévio do significado das representações nela expressas. A título de exemplo,
toma de empréstimo uma cena corriqueira do cotidiano: se um conhecido o saúda na rua,
tirando seu chapéu, o que o faz identificar o gesto como um cumprimento é o seu
conhecimento prévio dos códigos sociais. Na medida em que percebemos o gesto como um
cumprimento, estamos ultrapassando os limites da percepção puramente formal,
empreendendo uma observação que nos exige uma familiaridade maior com os costumes de
toda uma civilização. Do mesmo modo, a análise estritamente formal das obras de arte não
nos permitiria identificar a figura dos personagens das histórias em quadrinhos, nem tão
pouco interpretar o significado histórico que envolve a apropriação de um personagem de uma
determinada cultura em um meio cultural muito diferente de sua origem.

21
A divisão da cidade entre as repúblicas idealizadas por Henfil, dividindo em dois grupos as principais torcidas
de futebol do Rio de Janeiro, evidencia a então crescente valorização de Ipanema, já reconhecida enquanto bairro
nobre e privilegiado do Rio de Janeiro, ao passo que associa o bairro suburbano de Ramos às camadas mais
populares da cidade.
22
Molas ainda voltaria ao Brasil em 1951, colaborando desde as primeiras edições com o jornal “Última Hora”.
Descobrimos também duas charges publicadas em agosto de 1952, por ocasião da segunda edição da Copa Rio,
torneio organizado por Mário Filho e que procurava reunir clubes da América do Sul e da Europa.
13

São os estudos iconográficos, enfim, que nos permitem reconhecer e interpretar


valores simbólicos de um dado meio social. Panofsky (1972) explica que a mente humana se
expressa através de específicos temas e conceitos e os historiadores da arte devem confrontar
suas interpretações a respeito do significado intrínseco da obra, ou grupo de obras, com o
significado intrínseco dos demais documentos da civilização histórica que a produziu.
Uma vez que elegemos a charge como fonte primordial, torna-se imprescindível
procurar compreender as fronteiras entre as diferentes categorias de humor gráfico. O
historiador Rodrigo Patto Sá Motta (2006) afirma que as palavras “charge” e “caricatura”
costumam ser utilizadas indistintamente, ressaltando que nessa área não há definições
canônicas. A ideia mais aceita é que se um desenho de humor alude a um fato específico,
estamos falando de charge, enquanto a caricatura retrataria pessoas limitando-se à intenção de
caracterizá-las. Para Henry Bergson (1987), a arte do caricaturista estaria na capacidade de
captar o movimento do caricaturado, tornando-o visível através de sua ampliação. Mikhail
Bakthin (1993), ao refletir sobre as representações cênicas humorísticas durante o carnaval
nos estudos sobre a cultura popular na Idade Média, não chega a utilizar o termo, mas refere-
se a um realismo grotesco, a imagens ambivalentes, disformes, e a degradações paródicas
características da literatura do Renascimento.23 A ampliação do sentido do termo caricatura
ajuda a compreender seu uso na maior parte das produções historiográficas que focalizam o
humor gráfico, seja cartum ou charge.
Luiz Guilherme Sodré Teixeira (2001a, p. 102) parece ter encontrado uma definição
mais satisfatória sobre o cartum: “um traço de reflexão e de humor que problematiza sujeitos
e situações reais, através de personagens e temas fictícios”. Seu humor ou sua crítica tomam,
sim, o mundo à nossa volta como modelo, mas tomam também a liberdade de criar tipos e
situações que representem não exatamente algum sujeito ou acontecimento específico, mas
uma coletividade e situações imaginadas. Ao tratar do meu objeto de estudo, escolhi me
referir a ele como charge, por seu caráter factual, ainda que alguns desenhos encontrados
possam escapar a esta peculiaridade. Na obra do argentino Lorenzo Molas ou do mineiro
Henfil perceberemos que ambos trabalham, na maior parte das vezes, com personagens e
situações imaginadas.24 No entanto, a trama é elaborada com o pretexto de ironizar os eventos
ocorridos no futebol, muitas vezes estendendo a crítica ao contexto político e social de suas
respectivas épocas.

23
As encenações representavam situações e pessoas verídicas, também acentuando suas características mais
marcantes (BAKHTIN, 1993, p. 102-118).
24
Refiro-me aqui ao enredo das narrativas paralelas aos jogos e das situações imaginadas entre os personagens –
disputa por mulheres, apostas ou gozações – necessárias para o desenvolvimento da narrativa.
14

1.2 Vantagens do método comparativo

O historiador Julio Aróstegui (2006) considera que a pesquisa histórica é sempre, de


alguma forma, comparativa. Alega que não seria possível perceber a natureza do momento
histórico se não por meio da comparação entre fenômenos sociais, contrapondo as condições
de causa e consequência. José D’Assunção Barros lembra que Paul Veyne, como Aróstegui,
também considera que toda pesquisa histórica compreende o exercício da comparação, uma
vez que estabelecer analogias, elencar semelhanças e diferenças seriam práticas tão familiares
ao historiador como contextualizar os acontecimentos ou dialogar com as fontes (BARROS,
2007).
Mas então, neste caso, o que caracterizaria um modelo de estudo que se considere
comparativo? Barros (2007) esclarece que em um estudo que adote a História Comparada
como modalidade metodológica, as interações e iluminações recíprocas devem estruturar a
pesquisa em um nível de observação mais profundo e sistematizado. A História Comparada
situa a comparação no cerne da produção historiográfica. Barros ressalta que, para a análise
de cada caso, se estabelece um mesmo conjunto de variáveis, correspondentes a um mesmo
conjunto de indagações, verificando-se, então, os pontos diferenciadores entre os dois grupos.
Usar a metodologia comparatista envolve “[...] examinar sistematicamente como um mesmo
problema atravessa duas ou mais realidades histórico-sociais distintas, duas estruturas
situadas no espaço e no tempo [...]” (BARROS, 2007, p. 24).
A organização estrutural desta pesquisa foi delineada pela tentativa de manter o
exercício contínuo da comparação sistemática entre as fontes de cada período. Desse modo,
buscamos constantemente verificar as semelhanças e as diferenças na maneira como
determinados fenômenos se manifestam na obra dos dois cartunistas. Ao dividir nossa
discussão em três capítulos, buscamos elaborar variáveis comuns e adequadas aos dois
recortes temporais. Uma opção foi tentar situar os locais de produção das charges, por
exemplo, procurando compreender como as tramas elaboradas por Molas e Henfil
reproduzem, cada uma a seu modo, as transformações socioculturais no Brasil e, mais
especificamente, no Rio de Janeiro de suas respectivas épocas. Outra opção foi tentar perceber
em que medida as charges reproduzem as interpretações e construções da imprensa, fenômeno
que também observaremos nos dois períodos.
Barros (2007) adverte também para alguns riscos a serem evitados ao se adotar o
modelo comparativo. O perigo do anacronismo, por exemplo, espreita estudos como este, que
envolve comparações entre sociedades separadas por um intervalo de tempo relativamente
15

curto. A cada variável deve ser considerado o risco de se escolher um modelo válido para uma
dada espacialidade social e transportá-lo para um contexto social onde este modelo não
encontra sentido. Se por um lado podemos verificar transformações profundas entre os
períodos, por outro estamos analisando momentos separados por 21 anos entre o final do
primeiro e o início do segundo recorte. Lidando com a mesma natureza de fontes, publicadas
no mesmo periódico e com representações dos mesmos clubes, é natural que se constate
também algumas semelhanças, continuações, proximidades.
O receio do anacronismo trouxe naturais preocupações e dificuldades em se
determinar as variáveis comparativas suficientemente sólidas para os dois momentos. A
sugestão de Serkan Gül (2010) é estabelecer uma variável que permita uma comparação
equilibrada dos dois casos, generalizando um pouco mais a abordagem e focalizando os
aspectos mais gerais dos períodos estudados.
Merece atenção também a recomendação de Charles Meier (1992), em artigo que
aborda a metodologia comparada, quando ressalta a importância de se ter o máximo de
familiaridade com os contextos históricos analisados. Um dos perigos mencionados por ele é
a incapacidade de se dominar determinados contextos históricos, o que aumentaria os riscos
de anacronismo. Meier pretende deixar claro que o historiador deve ter familiaridade
suficiente com a sociedade examinada para que possa compreender seus mecanismos
institucionais. A proposta do autor é que o fim maior de um historiador que adote o método
comparativo deva ser o de se interrogar sobre a distribuição de poder, riqueza e status
verificados em qualquer situação histórica, ou sobre como funcionam crenças e símbolos em
torno da organização das sociedades examinadas.
Neste ponto, encontramos alguma desproporção no que se refere à comparação entre
os discursos nas duas obras. Enquanto o confronto de classes é fio condutor da crítica de
Henfil à sociedade, vestígios dessa distribuição desequilibrada de poder são mais sutis no
humor de Molas. A referência a esse desequilíbrio de poder na obra de Molas não está situada
no centro das atenções de sua trama, mas à margem dela, frisada na diferença entre a posição
social das mascotes que representavam os times grandes, para os que representavam os
pequenos. Se a menção de Molas às diferentes classes sociais é clara, ela acaba se tornando
uma percepção secundária dentro da trama, uma vez que os personagens que representam
esses clubes assumem e se resignam a este papel de coadjuvante. Henfil vai além de lançar
uma luz mais forte sobre a questão, ao estabelecer diferenças sociais entre os quatro times
tidos como grandes, de modo que estejam sempre implícitas no calor da disputa pelo título. O
cartunista sugere, ainda, uma nova possibilidade que se apresenta às camadas menos
16

favorecidas: a de inverter o jogo das relações de poder, conquistando títulos ou subjugando os


representantes da elite, demonstrando desprezo e debochando da “afetação” de seus hábitos e
comportamentos sociais.
Entre os cuidados apontados por Peter Burke (2002), nos interessa especialmente
aquele em que o historiador focaliza momentos diferentes de uma mesma unidade geográfica.
Burke recomenda que o historiador não aceite a premissa de que sociedades evoluem em uma
sequência inevitável de estágios, ignorando as diferentes possibilidades que uma sociedade
poderia seguir. Charles Meier (1992) também adverte sobre o problema de se identificar
estágios de desenvolvimento de um processo. O risco a se evitar seria o de considerar uma
continuidade presumível entre o período e os contextos históricos que envolvem a produção
das charges de Molas e Henfil, como se houvesse a possibilidade de considerá-las uma
consequência natural de um suposto desenvolvimento de uma obra para outra, no que diz
respeito, por exemplo, ao tipo de humor, de estética, de linguagem e à percepção de cada um
sobre a sociedade em que estão inseridos.

1.3 Corpus Documental

Entre as seis categorias de fontes compreendidas por Tânia de Luca (2006) –


documentais, arqueológicas, orais, biográficas, audiovisuais e impressas – é entre estas
últimas que as charges focalizadas nesta dissertação podem ser enquadradas. Torna-se
imprescindível refletir um pouco sobre a natureza desse tipo de fonte de modo a ampliar o
escopo de compreensão em torno do objeto, evitando armadilhas e observando os cuidados
metodológicos necessários. Situar o veículo onde a charge está sendo publicada exige um
esforço dobrado, uma vez que a posição social do JS entre um período e outro sofreu
mudanças drásticas, quer em relação ao poder de influência no meio político quer na
organização do espetáculo esportivo, no perfil editorial ou no público leitor.25 Talvez tenha,
entre um período e outro, deixado de ser o diário esportivo de maior circulação na América do

25
Basta verificar que na época da primeira charge apresentada nesta Introdução (Figura 1.1) a construção de um
estádio municipal ainda enfrentaria intensa polêmica no âmbito político quanto ao local de sua construção e
capacidade de público. Na época da segunda charge (Figura 1.2), o estádio Mário Filho, conhecido pelo nome da
região em que está localizado - Maracanã, ostentava o título de “maior do mundo”. De qualquer modo, se
estabelecera como uma praça esportiva capaz de comportar muito mais que cem mil pagantes. Ver:
HOLLANDA, Bernardo Buarque de. O cor-de-rosa: ascensão, hegemonia e queda do Jornal dos Sports entre
1930 e 1980. In: MELO, Victor; HOLLANDA, Bernardo Buarque de (Org.). O Esporte na imprensa e a
imprensa esportiva no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012, p. 80-106.
17

Sul, difícil saber, mas ainda gozava de grande popularidade, não havendo indícios de
concorrentes à altura, ao menos no Rio de Janeiro.
Max Weber (2002), no artigo que reflete sobre o papel da imprensa na sociedade,
propõe considerar o caráter empresarial da imprensa, observando questões fundamentais que
vão desde os contatos e interesses econômicos e políticos implicados nas decisões editoriais
até o conhecimento das origens do sustento da empresa. Weber alerta que, em primeiro lugar,
“são dois” os clientes de um jornal: de um lado os assinantes ou os eventuais compradores, de
outro os anunciantes; e adverte ainda que, ao contrário da tiragem, nunca se pode impor
limites aos anunciantes.26 Weber propõe indagarmos sobre o significado do desenvolvimento
capitalista de um determinado periódico para a posição sociológica da empresa, no que diz
respeito ao papel desempenhado como formadora de opinião em uma dada sociedade. E o
“formar opinião” a que se refere compreende desde a seleção de fatos até os outros “serviços
e produtos de entretenimento” que a imprensa passa a oferecer em volume cada vez maior.
Observada a questão, Weber procura situar as dimensões dessa mudança no sentido histórico
quando pergunta “A que tipo de leitura o jornal acostuma o homem moderno?” (WEBER,
2002, p. 190). Conclui que a imprensa, de fato, opera transformações poderosas nos hábitos
da leitura e na forma como “o homem capta e interpreta o mundo exterior” (WEBER, 2002, p.
193).
Podemos observar por este prisma o advento das charges diárias sobre futebol dentro
do JS na medida em que, uma vez estabelecido o espaço do humor gráfico no diário, o mesmo
tenha se tornado fixo no decorrer dos anos subsequentes, com exceção de breves períodos de
ausência. Deve-se também observar os chargistas por sua posição enquanto formadores de
opinião e, nesse sentido, a análise das fontes nos leva a acreditar que o humor de Henfil talvez
propusesse transformações ainda mais radicais como alternativa para a sociedade em que
vivia. De toda forma, ambos ofereceram suas contribuições à forma como os torcedores se
reconhecem e se identificam com os clubes para o qual torcem.
Weber (2002, p. 193) chama atenção para o poder de influência sobre “elementos
culturais objetivos ou supraindividuais”, e ainda: “o que se destrói ou é novamente criado no
âmbito da fé e das esperanças coletivas, do ‘sentimento de viver’”. Acreditamos que, ao
sacralizar na memória coletiva do torcedor suas próprias interpretações em torno do
imaginário do futebol através de discursos múltiplos que se espalham pelo jornal, no que as

26
Este fenômeno implica afirmar que um periódico não poderia aumentar a tiragem apenas para atender a uma
maior demanda de leitores, mas pode aumentar o número de páginas de uma edição para atender a necessidade
dos anunciantes (WEBER, 2002).
18

charges obviamente oferecem sua contribuição, a imprensa está exercendo, ao longo de um


processo vagaroso e gradativo, seu poder enquanto formadora de opinião. Neste ponto, a
imprensa molda, forja suas tradições e estabelece sua maneira de ver o mundo. Contribui
imensamente para a formação cultural de uma dada configuração social onde ela exerce
influência. Observar o fenômeno ajuda a perceber melhor a medida do poder social de um
determinado órgão da imprensa.

1.4 Ampliando a discussão historiográfica através da charge: um breve mapeamento

Tânia Regina de Luca (2006) traça instigante panorama sobre estudos historiográficos
que lançam mão de fontes impressas, mostrando a importância de se abrir o leque de
possibilidades no que concerne a documentação histórica. É natural, então, que os estudos
desse campo careçam ainda de maior produção bibliográfica que se especialize na
metodologia mais adequada para se trabalhar com imagens. Oferecendo pontuais referências
de produções historiográficas que se debruçam sobre a trajetória da ilustração no Brasil, a
autora considera a obra clássica de Herman Lima,27 como “o mais completo estudo sobre o
tema até agora realizado” (LUCA, 2006, p. 149). Lançado recentemente, o primeiro dos seis
tomos planejados para compor a nova abordagem da História da caricatura brasileira, de
Luciano Magno (2012), promete que a obra toda supere em volume e profundidade a obra de
Lima. Basta verificar que o primeiro volume não esgota, em suas 532 páginas, a produção do
século XIX, prometendo ainda dar continuidade ao período no próximo volume. Marcos Silva
(1989) oferece contribuição importante ao focalizar o personagem “O Amigo da Onça”, de
Péricles, para trabalhar representações de humor negro, compreendendo o período entre 1943
e 1962.
No artigo “A construção do saber histórico: historiadores e imagens”, Marcos Silva
(1992) defende o uso da produção visual – seja filmes, pinturas, fotografias ou caricaturas –
não como mero recurso ilustrativo, ou para suprir alguma carência de fontes, mas pela
necessidade de se ampliar o escopo documental da pesquisa historiográfica, sem se limitar a
perspectivas analíticas específicas de seu campo. O autor acusa a recorrente falta de esforço
por parte de historiadores, em geral, em integrar esses objetos em suas discussões sobre o
contexto social. Já em artigo para a revista “Ariús”, Marcos Silva (2007) considera a

27
LIMA, Herman. História da caricatura brasileira. v. I a IV. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963.
19

produção visual de uma cultura um meio tão participante da sociedade e tão igualmente
reprodutor de ideias quanto os que se expressam verbalmente. Salienta o poder de que a
caricatura pode usufruir ao emitir sua percepção do mundo, direcionando o olhar do leitor,
induzindo-o a refletir a respeito de determinado assunto. Em suas palavras:
Diante de uma caricatura, o desenhista, os editores, os apreciadores e os
pesquisadores experimentam aqueles caminhos, que significam a produção de
determinadas interpretações sobre o mundo, o contato com essas leituras enquanto
interpretações (então linguagens “naturais” ou espontâneas), as articulações entre
essas e outras compreensões. [...] Como consequência, as caricaturas não abordam
campos de poder apenas enquanto referenciais temáticos (sua suposta vocação
crítica sem fronteiras): ela mesma se constitui como poder de dirigir o olhar para
determinadas facetas das experiências humanas, de revelar essas facetas, através de
um olhar que pensa (SILVA, 2007, p. 118).

Em artigo publicado na Revista de História de São Paulo em 1992, Marcos Silva


aborda a importância da imagem na construção do saber histórico. Silva se ressente da
negligência da historiografia pela produção imagética, da falta da inclusão da cultura visual
nas discussões sobre culturas e sociedades (SILVA, 1992). Desconsiderando essas fontes,
historiadores ignoram a percepção dos cartunistas sobre seu tempo. O descaso nos parece
ainda mais grave quando percebemos que os ilustradores da imprensa muitas vezes formam
um grupo social integrado à elite intelectual, cuja obra possui poder de alcance considerável.
Herman Lima (1963) já destacava que a universalidade do alcance dessa arte teria
consolidado sua força como arma das mais poderosas da imprensa. Curiosamente, foi só no
decorrer da primeira década do século XXI que a historiografia começou a ampliar e
aprofundar o debate em torno de como a caricatura pode propiciar reflexões sobre a sociedade
em que ela é produzida (SILVA, 2007).
Na mesma linha, Elias Saliba, que aborda as representações humorísticas durante a
Belle Époque no Brasil, argumenta que a historiografia costuma sentir necessidade de se
amparar em narrativas sólidas e contínuas para forjar suas representações de realidade. Saliba
(2002) alerta, ainda, que a linguagem ambivalente do humor o eleva a uma forma
privilegiada de representação histórica. O uso da linguagem humorística como fonte abre um
leque de oportunidades reveladoras de novas alternativas à formalidade da narrativa textual.
Por usufruir, geralmente, de maior liberdade para críticas mais diretas e contundentes, a
charge constrói novas narrativas possíveis e permite novas leituras sobre as formas de pensar
de uma época. Ampliando a discussão, Maria da Conceição Francisca Pires (2010) traça um
paralelo entre história cultural e política, situando o humor como ferramenta primordial para
estabelecer posturas alternativas e críticas ao discurso dominante. Essa perspectiva mantém
sintonia com a de João Malaia (2012b), quando considera que em regimes de exceção, com
20

instauração da censura sistemática, a imprensa esportiva se encontra em posição privilegiada,


pois o humor e o esporte lhe conferem uma dupla “licença” para proferir o discurso político
crítico em grande amplitude.
Marcos Silva (1992) alerta ainda para o fato de que a maior parte dos estudos que tem
a imagem como foco restringe-se a abordagens pertencentes exclusivamente à história da arte,
levando em conta mais as análises formais, semióticas e aspectos visuais do que a sua
inserção e impacto sobre o meio social. Seguindo essa premissa, a análise de Rodrigo Motta
(2006) percebe a charge de modo ainda mais participativo nos rumos da sociedade. Motta
busca compreender o posicionamento e o discurso político da grande imprensa do período
imediatamente anterior ao golpe de 1964, propondo uma nova reflexão sobre o papel da
charge para a sociedade, procurando demonstrar como a crítica dos cartunistas ao momento
conturbado do governo de João Goulart reforçou a sensação de medo e insegurança que
acabaria culminando no golpe do 1º de abril.28
A respeito dos critérios de seleção adotados, foi dada preferência a charges que
forneciam subsídios mais nítidos para uma reflexão a respeito das questões políticas e sociais
em seus respectivos momentos. Ainda no periódico pesquisado, selecionamos um
determinado número de crônicas e anúncios que trazem alguma contribuição para se
compreender o papel das charges e das mascotes no matutino esportivo. Foi dada sempre
preferência às charges mais exemplares de Molas, aquelas que apresentavam representações
da sociedade que propiciassem questões para as abordagens pretendidas. Algumas foram
utilizadas mais de uma vez, quando suscitavam discussões pertinentes tanto a eventos da
esfera política como cultural.29 Foram selecionadas para análise as charges de Henfil que
fizessem clara alusão às práticas repressoras da ditadura militar, às manifestações da oposição
e aquelas que criticassem diretamente as arbitrariedades do governo e a situação econômica
do país, bem como as charges de Molas e de Henfil que demonstrassem representações mais
evidentes de como eles compreendiam as caracterizações das torcidas e clubes, ou de como
operavam as rivalidades e reforçavam interpretações propagadas pela imprensa ou pela
cultura popular. Algumas vezes optamos por analisar em conjunto duas ou três charges de um
mesmo cartunista, quando melhor ilustravam determinadas questões.

28
O autor esclarece que não pretende responsabilizar nenhum cartunista pela ditadura militar, lembrando que a
crítica política, seja ela qual for, pode levar a um amplo leque de mudanças, conduzindo a rumos tanto diversos
quanto contrastantes (MOTTA, 2006).
29
Ao final da Introdução, discorreremos mais profundamente sobre as abordagens adotadas e o planejamento
dos capítulos.
21

Como fontes complementares, selecionamos o prontuário de entrada de Lorenzo


Molas no país, que reúne documentos como seu visto de imigração, atestado de saúde e
contrato de trabalho com o JS, e revelam dados pessoais, residência e valores salariais do
artista.30 Dispomos ainda de uma entrevista concedida pelo cartunista portenho ao jornal
“Democracia”, órgão da imprensa platina,31,32 e de duas biografias de Henfil: a de Denis de
Moraes (1996), mais completa, e a do sociólogo Márcio Malta (2008), que busca uma
abordagem sobre a postura política de Henfil. Os livros escritos pelo próprio Henfil sobre a
sua estadia nos Estados Unidos e sobre sua visita à China33 talvez não configurem exatamente
uma biografia, mas na qualidade de livro de memórias acredito que se encaixe melhor entre as
fontes bibliográficas do que entre as impressas, considerando a categorização de Tânia de
Luca descrita anteriormente (LUCA, 2006). Em entrevista concedida à jornalista Neusa
Pinheiro, publicada em edição póstuma da revista “Caros Amigos”, Henfil emite opiniões
sobre assuntos diversos (PINHEIRO, 2002).

1.5 Caricatura e esporte na história – um campo a ser explorado

Em dois anos de pesquisa, descobrimos apenas uma publicação e um artigo acadêmico


de História que abordam especificamente a produção de charge esportiva no Brasil,34 além
das dez páginas dedicadas ao futebol do segundo volume da obra de Herman Lima (1963).
Dentre esses, o único artigo acadêmico no campo historiográfico, por um oportuno acaso,
aborda também a obra de Henfil para o JS. Euclides Couto (2009) oferece uma breve, mas
considerável contribuição para esta pesquisa ao abordar o caráter político das charges
esportivas de Henfil, em artigo sobre o qual dedicaremos pontuais atenções no decorrer da
presente dissertação.

30
Prontuário nº 14.269/44. Notação: SPMAF/RJ. RNE 300.026.
31
FEUER, Daniel. Molas, creador que no quiere penas ni olvidos. Entrevista. Democracia, Buenos Aires, 13 de
julho de 1991, p. 2-3.
32
Contamos com a ajuda do cartunista Hermenegildo Sábat, que, além de uma longa conversa, conseguiu o
material que nos foi concedido pelo “Clarín”: uma entrevista e a nota sobre o falecimento de Molas. Clarín,
Buenos Aires, 10 de fevereiro de 1994.
33
Os livros são, na verdade, uma coletânea de cartas enviadas por Henfil a familiares e amigos relatando sua
experiência nos dois países (HENFIL, 1984a, 1984b).
34
A única publicação encontrada que aborda a charge e o cartum sobre futebol foi a obra em conjunto do
cartunista e jornalista José Alberto Lovetro e do editor de arte Gualberto Costa, sócios na empresa JAL & GAL.
No livro, eles traçam um panorama geral da história do futebol no Brasil, reproduzindo as versões
“oficializadas” pela imprensa. No entanto, fartamente ilustrado, reúne uma seleção considerável do que foi
produzido na grande imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (JAL; GAL, 2004).
22

Tendo em conta que, de acordo com Melo (2001),35 o interesse da imprensa por
esportes remonta ao último quarto do século XIX, parece-nos inquietante que uma produção
sistemática de charges diárias sobre futebol só tenha começado a surgir na capital federal a
partir de 1944. Ainda assim, grandes nomes da caricatura brasileira já se dedicaram ao tema
de tal forma que o espaço limitado desta Introdução não nos deixa desenvolver a discussão
como o assunto merece. No entanto, vale dedicar aqui algumas linhas a alguns cartunistas,
para além dos que estão no foco da presente dissertação, entre os que mais se destacaram a
cobrir os eventos futebolísticos, já desculpando-nos por possíveis omissões.
Quando o futebol começou a surgir na caricatura brasileira, a perspectiva com que era
abordado não considerava propriamente os acontecimentos do mundo da bola. Na década de
1910 e 1920, o futebol se tornara uma metáfora corriqueira para os eventos políticos ou
expressões populares, em sátiras de costumes no traço de J. Carlos, K. Lixto ou Belmonte.36 J.
Carlos, na revista “Careta”, fazia humor com peculiaridades da vida cotidiana da cidade,
adicionando metáforas futebolísticas no linguajar da cidade. Em determinado cartum, um
sujeito de traços africanos, por exemplo, admite a duas moças ter levado uma bofetada porque
se empolgara “ao torcer... um beliscão na donzela que estava à sua frente” (supostamente em
um estádio de futebol), ao que uma delas comenta que o hands37 era proibido.38 Na cobertura
da revista do Campeonato sul-americano de 1919, entre uma foto e outra que chegavam a
tomar meia página, as moças suspiravam pelos jogadores também no traço limpo e preciso de
J. Carlos.39 Já K. Lixto recorria frequentemente ao uso da metáfora futebolística na sátira
política. Ainda em 1909, para a Revista “Fon-Fon”, o cartunista transportou para o campo de
futebol a disputa pela presidência da República, em que presidenciáveis como Campos Sales,
Pinheiro Machado, L. Müller e J. J. Seabra, tentavam dominar a “pelota presidencial”40
(LIMA, 1963). Nos Jogos de 1922, no embalo das comemorações pelo centenário da
Independência, J. Carlos e Belmonte destacavam-se em duras críticas à falsa imagem de país
civilizado, reforçando a figura do Jeca Tatu e menosprezando a conquista da seleção,
denunciando ou sugerindo a corrupção ostensiva nos investimentos públicos para a

35
Victor Melo (2001) refere-se principalmente ao turfe e ao remo, antes do futebol se tornar uma prática
institucionalizada.
36
J. Carlos (1884-1950), K. Lixto (1877-1957), Belmonte (1897-1947). Cartunistas que marcaram trajetória em
revistas como “Careta”, “Fon-fon”, “O Malho”, “Paratodos”, “Cruzeiro”. Ver maiores informações em: LAGO,
Pedro Corrêia do. Caricaturistas brasileiros. Rio de janeiro, Sextante, 1999; LIMA, Herman. História da
caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963.
37
Nessa época, a imprensa ainda usava os jargões do futebol em inglês. O termo hands (em português, usa-se
mão, no singular) é uma falta apontada quando um jogador leva as mãos à bola.
38
Careta, 10 de maio de 1919, p. 17.
39
Careta, 17 de maio de 1919, p. 8-9.
40
Fon-Fon, 04 de setembro de 1909.
23

organização dos festejos.41 Já no decorrer da década de 1930, a síntese gráfica de Nássara e


Guevara42 produziria caricaturas de grandes nomes do futebol brasileiro. Na Copa de 1938,
após a vitória do Brasil sobre a Polônia e da derrota da Alemanha para a Suíça, o zagueiro
Domingos da Guia debochava de um desolado Adolf Hitler, na charge do cartunista Théo43:
“Ora veja, seu Hitler! Eu não acreditava nessa história de superioridade de raças”.44 No
decorrer dos anos 1950, Miécio Café marcaria forte presença na “Gazeta Esportiva” de São
Paulo.
A despeito do vastíssimo arquivo de charges e caricaturas à disposição, que muito
enriqueceram a iconografia histórica do nosso futebol e que podem trazer colaborações
significativas para a historiografia, boa parte dessa obra permanece aparentemente ignorada
por estudos acadêmicos. A presente dissertação procura dar um pontapé inicial na esperança
de que motive novos mergulhos mais aprofundados sobre um tema tão profícuo quanto este, e
que une duas grandes tradições culturais do país: caricatura e futebol.

1.6 Planejamento de capítulos

Ainda que nossas fontes tenham sido produzidas na mesma cidade (o Rio de Janeiro),
abordem o mesmo tema (o futebol carioca) e exerçam a mesma função social (o humor) no
mesmo periódico esportivo (o JS), tratam-se de obras publicadas em períodos separados por
mais de duas décadas entre o final do primeiro recorte e o início do segundo. Transformações
políticas, sociais e econômicas ocorridas entre um período e outro alteraram profundamente a
vida cotidiana do Rio de Janeiro, que entre um recorte temporal e o outro perdera sua
condição de capital do país.
No primeiro capítulo “Humor e Sociedade nas charges de Molas e Henfil”
procuraremos observar o que o humor dos cartunistas podem nos revelar sobre a cultura e os
costumes da sociedade do Rio de Janeiro de seus respectivos momentos. Como um enredo de
novela, o casamento é o ápice da trama de Molas, que trabalha com representações de clubes.
Já na tira de Henfil, a disputa é transferida para o âmbito da torcida. Seus personagens, que já

41
“O Score e as Soturnas”, O Malho, 21 de outubro de 1922, capa. “É o que está faltando”, A Cigarra, ano X, n.
194, 15 de outubro de 1922, p. 8; “Novos Ministérios”, A Cigarra, ano X, n. 194, 15 de outubro de 1922, p. 25.
42
Nássara (1910-1996) e Guevara (1904-1964) trabalharam juntos em “Crítica”, jornal de Mário Rodrigues, pai
de Mário Filho, e no jornal “Última Hora”, desde as primeiras edições.
43
Théo marcou presença na Revista “Careta” e no JS durante a Copa de 1950 (FLORES, 2001).
44
Careta, 02 de julho de 1938, p. 26.
24

não mais representam os clubes, e sim os torcedores, trocam pontapés e bofetões nas
acaloradas discussões em torno do noticiário do futebol.
No capítulo seguinte, “Clubes, torcedores e símbolos nas representações da imprensa
esportiva”, procuraremos analisar especificamente como se situam, em cada período, as
representações escolhidas pelos cartunistas. Por que Molas optou por representar os clubes,
enquanto Henfil preferiu representar os torcedores? Em que medida seus personagens
reproduzem interpretações em torno do imaginário futebolístico da construção de mitos
históricos, levando em conta a “invenção” de tradições, e criação de identidades produzidas
pelo JS? Se é possível semelhanças ou continuidades nas representações de Fluminense ou
Botafogo, os símbolos criados para o Flamengo, ou para os flamenguistas, remetem a
motivações completamente diferentes entre os dois períodos. Na medida em que Molas se
propôs a representar os clubes, não lhe interessava levar em consideração a identificação de
determinadas torcidas com as camadas mais elitizadas ou populares da cidade. Henfil, ao
contrário, procurava a todo instante estabelecer e acentuar essa diferença, transpondo ao meio
futebolístico os grandes contrastes sociais do Rio de Janeiro.
Com relação às questões referentes à esfera política, procuramos analisar as charges no
terceiro capítulo intitulado “Futebol e política nas charges do cor-de-rosa”, observando de que
modo elas refletem a experiência de viver sob um regime autoritário, sob o domínio da
repressão e da censura aos órgãos de comunicação de massa. As referências dos cartunistas a
esse estado de coisas não é semelhante, o que desperta inquietações sobre as diferentes
condições de liberdades e repressões entre os dois períodos. A propósito da censura, ainda que
guardem diferenças marcantes na maneira como foram instauradas, optamos por considerar a
hipótese de que o JS, por se tratar de um periódico esportivo, não estaria no foco da censura
em nenhum dos dois períodos analisados (MALAIA, 2012b). Desta forma, as charges
esportivas estariam desfrutando de posição de raro privilégio se considerarmos esse suposto
“afrouxamento” da censura, uma vez que o espaço reservado ao humor costuma também
experimentar maior liberdade para confrontar poderes instituídos.
A aproximação diplomática entre os governos de Brasil e Estados Unidos, verificada
na obra de ambos os cartunistas, apresenta contornos um tanto distintos entre os dois
períodos. A penetração de elementos culturais norte-americanos no cotidiano do Rio de
Janeiro começava a se tornar um projeto político norte-americano de estreitamento com os
países da América Latina em fins da década de 1930, mas a partir do golpe de 1964 passou a
experimentar uma crescente reação contrária. Se em um primeiro momento a aproximação
com os Estados Unidos ajudava a disseminar valores como liberdade e democracia, anos mais
25

tarde a cooperação do governo americano com o regime golpista tornava mais frágeis esses
discursos.
Um dos objetivos primordiais da presente pesquisa é chamar atenção das charges
esportivas para a pesquisa historiográfica. Uma vez que o fenômeno esportivo, capaz de
mobilizar multidões, suscita discussões e reflexões a respeito de questões sociais, políticas,
culturais, econômicas, esperamos que a análise das obras aqui destacadas possa contribuir, de
alguma forma, para fomentar o debate sobre as diversas questões levantadas sobre os períodos
destacados.
26

2
HUMOR E SOCIEDADE
NAS CHARGES DE
MOLAS E HENFIL
27

2.1 O Rio de Janeiro de Molas e Henfil

Figura 2.1 Nas charges de Molas, as referências geográficas do Rio de Janeiro são as mais características. Molas
não delimita os diferentes espaços da cidade de acordo com as classes sociais. Todas as mascotes costumam
frequentar os mesmos ambientes. Aqui, um vestígio de uma época em que, como veremos, Copacabana vivia seu
apogeu enquanto espaço privilegiado da cidade. JS, 01 de abril de 1945.
28

Figura 2.2 Os espaços urbanos da cidade são delimitados de forma caricatural na perspectiva de Henfil, em que
duas grandes regiões mantém-se em constante conflito. A Zona Sul, área mais nobre da cidade, bem como o
subúrbio são representados por seus elementos e símbolos mais significativos: a praia, o Pão de Açúcar, com o
Cristo Redentor situado sobre ele, em vez de sobre o Corcovado onde o mesmo realmente está. JS, 24 de janeiro
de 1970.
29

Figura 2.3 Os espaços da cidade no humor de Henfil são representados de forma a acentuar os contrastes sociais
do Rio de Janeiro. A caracterização desses contrastes são reforçados aqui como denúncia da diferença de atenção
do Estado, se compararmos as áreas de moradias mais nobres e mais humildes. Contrasta-se, por exemplo, um
cacto na área da República de Ramos com as flores de Ipanema Beach. Nota-se também a diferença entre o
desenho das placas de identificação das duas regiões. JS, 14 de janeiro de 1970.
30

Nas charges destacadas, observamos duas representações distintas que reproduzem


aspectos culturais de diferentes momentos do Rio de Janeiro. Elas também abordam o mesmo
assunto, o futebol, que nos dois momentos interessava a uma parcela significativa da cidade, e
foram publicadas no mais popular diário esportivo do país, o “Jornal dos Sports”. Uma
primeira diferença assinala-se logo na identificação de localizações conhecidas da cidade. A
primeira tem como cenário a praia de Copacabana no momento em que o bairro vivia seu
apogeu. Pedro Pinchas Geiger (1963, p. 174-175), em seu estudo sobre a evolução urbana nas
grandes capitais do país, refere-se à Copacabana como sendo uma “cidade dentro da cidade”.
O bairro que se tornara o mais famoso “cartão postal do Rio de Janeiro”, era reconhecido, por
opinião generalizada, como espaço privilegiado da capital, mais bem servido no que diz
respeito ao comércio, serviços gerais, alternativas de lazer, transporte coletivo, acesso por
grandes avenidas que reduzem drasticamente o tempo de viagem, além do clima mais ameno
da orla oceânica. Além disso, a preferência dada pelos turistas estrangeiros conferia uma
“atmosfera mais cosmopolita” ao bairro. Parte desse glamour, entretanto, acabaria se
perdendo na medida em que o famoso bairro começava a experimentar uma crescente e
gradativa popularização, nas décadas de 1950 e 1960, período de intervalo entre os recortes
históricos discutidos nesta pesquisa. Com o advento do concreto armado e a exploração
imobiliária, foram erguidos novos edifícios residenciais com mais apartamentos, porém mais
estreitos, atraindo famílias de classes sociais mais humildes que preferiam conviver com
menos espaço em prol da boa localização e afastando as classes mais abastadas para os bairros
próximos de Ipanema e Leblon (GEIGER, 1963, p. 175).
As charges seguintes estabelecem uma fronteira imaginária entre os afastados bairros
de Ramos e Ipanema, em uma brincadeira que faz parte do jogo de polarizações articulado por
Henfil, ao acentuar os contrastes sociais no Rio de Janeiro. Nas suas charges, Henfil dividia o
Rio de Janeiro em duas frentes: a “República Popular de Ramos” e a “República de Ipanema
Beach”.45 Acentuando as diferenças entre as camadas sociais na cidade, dividindo-a em dois
ambientes totalmente distintos. De um lado, a elite, representada pelo bairro nobre de
Ipanema. Do outro, as camadas populares, mais identificadas com bairros suburbanos como
Ramos. Ainda que se deva levar em conta a acentuação dos contrastes articulada pelo
cartunista, notamos que a referência geográfica é acrescida em sua charge de uma conotação
social com maior relevância do que na obra de seu antecessor.

45
Ramos e Ipanema são utilizados aqui para, de maneira generalizante, representar espaços reconhecidos
respectivamente como referências de espaços reservados às classes mais humildes e mais abastadas da cidade.
31

A referência à Copacabana é completamente dispensável nesta charge de Molas, uma


vez que não altera em nada o sentido da piada. Na de Henfil, o oposto. A referência
geográfica é parte da crítica implícita ao conjunto da obra. A delimitação desta fronteira
fictícia parece querer esboçar uma caricatura do abismo social existente entre as classes
sociais mais abastadas e as mais modestas da cidade. Eles não estão impedidos de ultrapassar
a fronteira. Têm liberdade para invadir o espaço um do outro, mas não sem causar incômodos,
constrangimentos ou conflitos, verbais ou físicos.
Na charge de Molas (Figura 2.1), encontramos todas as mascotes na praia de
Copacabana, tão espantados quanto decepcionados com os trajes de banho da nova filha da
sogra, recém-chegada de um internato de freiras. Popeye caía duro pra trás e o Almirante
comentava que sua mãe usava um maiô assim. Ao centro da cena, trajando um modelo de
maiô bastante ultrapassado que lhe cobria o corpo do pescoço aos pés, a futura Miss 1945
carregava uma sombrinha, com um ridículo chapéu enfiado na cabeça e óculos de aros
enormes. Aparentando natural constrangimento ao perceber-se no centro das atenções, se
pergunta se não estaria muito escandalosa. Seu visual contrastava com o traje de banho da
época de todos os personagens da cena, incluindo o das duas moças que passavam, sem
resistir a comentários maliciosos: “De que museu saiu aquela mulher? É a Miss campeonato
45?”46
Para se compreender um pouco melhor o contexto da charge da praia, é preciso voltar
um pouco no tempo. O ano de 1945 foi o primeiro e único que contou com a charge de Molas
no JS durante todo o ano, desde o mês de janeiro. Faltando cerca de quatro meses para a bola
começar a rolar pelo campeonato carioca, coube a Molas dedicar-se a torneios como o
campeonato brasileiro de seleções estaduais e o campeonato sul-americano de seleções, ou a
amistosos que os clubes cariocas combinavam para manter as finanças e os atletas em
atividade. Mas havia chegada a hora de começar a aquecer os ânimos para a principal disputa
da época: o campeonato carioca de futebol. Molas, que já havia repetido a fórmula com as
outras competições, começaria a preparar o terreno para apresentar a mais desejada de todas
as misses. A pioneira e mais importante Miss Campeonato era uma espécie de “figura
alegórica” que representava o aclamado campeonato carioca de futebol, que reunia os
principais times do Rio de Janeiro e durava cerca de seis meses. Assim que as mascotes
ficaram sabendo da chegada de uma nova filha da sogra, que anuncia seu retorno de um

46
JS, 01 de abril de 1945.
32

internato de freiras, passaram a se mobilizar para, a todo custo, conhecer os atributos físicos
da moça. Em suma, queriam saber se valeria a pena o esforço da disputa.
Enquanto na charge de Molas ridiculariza-se o excesso de pudor da moça criada com a
rigidez dos colégios de freiras, a de Henfil articula uma trama sobre o meio futebolístico que
reproduz uma caricatura social do Rio de Janeiro. Na primeira charge de Henfil deste capítulo
(Figura 2.2), as informações esportivas transmitidas por um rádio de pilha vêm atrapalhar a
tranquilidade do Cri-Cri, torcedor do Botafogo, que curtia sua praia, em Ipanema, refestelado
à sombra de um guarda-sol. “Terminada a partida. Spartak 5 x 1 Botafogo”. A sonora goleada
deixava extremamente preocupado o assustado Cri-Cri, que passa a temer uma possível e
iminente invasão dos adversários, membros da “República Popular de Ramos”, à Ipanema. Ao
subir em um poste, de posse de uma luneta, visualiza o Urubu e o Bacalhau correndo em
direção à área nobre da cidade. “Putzgrila!” – exclama. “Já cruzaram a faixa desmilitarizada
da Cinelândia e rumam firme para Ipanema”. A partir daí, Henfil procura transmitir a angústia
do alvinegro, mostrando, nos quadrinhos seguintes, a perspectiva de quem olha por uma
luneta. Veem-se apenas os representantes das massas aproximando-se, na medida em que vão
sendo vistos em tamanhos cada vez maiores, até que chegam a extrapolar os limites do círculo
que os envolve e que representa a vista através da luneta. Chegando à Zona Sul, ansiosos,
põem-se a procurar pelo Cri-Cri. Suas expressões sugerem excitação e sadismo. Ao final, o
Cri-Cri, que estava escondido em uma lata de lixo, é descoberto pela dupla ao ser lançado
para o alto feito um foguete e expelir um enorme ovo, que seria levado com entusiasmo pelos
rivais em júbilo.
A outra charge de Henfil escolhida pra abrir a discussão (Figura 2.3) traz apenas o
torcedor alvinegro na sua euforia solitária.47 Seu traço gestual somente se presta, à minúcia de
detalhes, se servir a uma dose a mais de escárnio. Quando precisa delimitar, por exemplo, a
fronteira fictícia entre a “República de Ramos” e de “Ipanema Beach”, faz questão de
diferenciar as placas. A da elite, fincada sobre um jardim florido, mais estreita, sutil e bem
decorada, apresenta adornos nas extremidades, enquanto a do povo é maior, mais rude e sem
maiores “delicadezas”. No espaço reservado a Ramos, percebe-se a insólita presença de um
cacto. Além da referência sutil ao tratamento diferenciado dado pelos governantes às áreas
mais nobres da cidade, o cacto pode, talvez, sugerir a ideia de um clima “árido” nessas
regiões, ou uma associação entre todas as áreas carentes do país, como a caatinga,
representada por Henfil nas tiras da Graúna e Zeferino.

47
A respeito do conjunto de representações em torno do botafoguense, construído pela imprensa esportiva, ver
capítulo 2 da presente dissertação, p. 26-58.
33

A decepção do alvinegro é salientada pelo vazio cenográfico dos quadros. É possível


que este vazio não estivesse assim tão longe da realidade das ruas, uma vez que o momento
era de Copa do Mundo. Mais precisamente a do México, em 1970, que consagraria a seleção
brasileira como potência mundial no futebol, e o Brasil levaria definitivamente a taça Jules
Rimet ao conquistar o tricampeonato na primeira edição do torneio mundial transmitido ao
vivo pela televisão. O motivo da alegria do Cri-Cri era pela participação dos jogadores
alvinegros na vitória da seleção em uma partida amistosa. Para além do deboche direcionado à
patética euforia diante de motivo tão banal para celebração, ou direcionado a uma
desmoralização ainda maior, as charges de Henfil destacadas ainda denunciam, de modo
geral, uma ampliação desordenada da malha urbana, onde espaços mais nobres mantêm-se
sob domínio de uma casta privilegiada, enquanto as carentes e longínquas regiões periféricas
testemunham prolongados períodos de expansão demográfica.
Procuramos observar aqui, através do contexto do desenvolvimento urbano da cidade,
que aspectos foram capazes de influir no trabalho de Molas e Henfil. Os cartunistas
vivenciaram grandes transformações na cidade em seus períodos, no que diz respeito à
política, à sociedade, à urbanização, a valores morais e culturais. O Rio de Janeiro expandia-
se e industrializava-se em ritmo acelerado. Entre um momento e outro perdeu a condição de
Distrito Federal. Três anos após a transferência da capital para Brasília, Geiger (1963)
enumera uma série de fatores que dimensionam a importância para o desenvolvimento da
cidade, de ter usufruído ou mantido algumas das benesses adquiridas com a posição de capital
da República. Entre diversos dados apontados, destaca-se a renda do setor terciário
correspondente à manutenção do governo federal, o número de servidores públicos (mais de
200 mil, segundo o autor) e boa parte dos organismos econômicos oficiais mantiveram sua
sede na cidade.48
Mesmo com a perda da condição de capital federal, a população do município do Rio
de Janeiro passaria de 1.759.277 habitantes em 1940 para 3.330.431 em 1960 (ABREU, 2008,
p. 109, p. 117). Esse crescimento populacional evidentemente não ocorreu de maneira bem
distribuída, mas sempre com maior intensidade ou mais irregularmente nas zonas suburbanas
do que na área nobre da cidade. Sobre a população concentrada nas áreas tidas como menos
favorecidas da cidade, basta verificar que o aumento populacional apurado representa um

48
Geiger cita a Companhia Siderúrgica Nacional, Petrobrás, Banco do Brasil e Vale do Rio Doce, entre outras.
O autor lembra ainda que o valor dos depósitos nos bancos cariocas teriam contabilizado, em 1956, 46% dos
depósitos efetuados em todo o país (GEIGER, 1963, p. 159).
34

percentual que sobe de 48% da população da cidade em 1940, para 55% em 1960 (GEIGER,
1963, p. 177).
Além da preponderância das linhas férreas na paisagem, destacam-se vestígios da vida
rural, carentes dos serviços mais básicos como fornecimento de gás, água e esgoto
inexistentes em boa parte dos lares. Completando a situação nitidamente mais precária, a
ausência de vegetação e arvoredo lhes retira, nas palavras de Geiger (1963), todo o encanto. É
o que parece querer mostrar Henfil, quando, com poucos elementos como os diferentes
acabamentos das placas que indicam o espaço do “rico” e do “pobre” ou as flores da
“Ipanema Beach” contrastando com o cacto no espaço da “República Popular de Ramos”,
associa-o à penúria e ao clima “árido” de outras regiões “esquecidas” do país e sugere a “falta
de encanto” mencionada pelo autor.
É válido ressaltar ainda que o espaço fictício das tiras de Henfil ignora diferenças
cruciais de classes sociais, seja pelo lado da elite, seja entre as regiões mais periféricas da
cidade. Uma vez que as diferentes localidades indicam distintas condições socais, essa
caricatura que Henfil elabora dos espaços sociais do Rio de Janeiro ganham maior relevância
na sua obra do que a caricatura que Molas faz da cidade. Se a população da Zona Sul envolve
famílias de diferentes níveis sociais, podemos verificar, segundo Geiger (1963), nuances
bastantes distintas nos bairros e regiões do subúrbio carioca, onde Bangu se notabilizaria pela
forte presença de sua indústria têxtil, Madureira por importantes centros comerciais e
Marechal Hermes por servir de área residencial de militares. É todo esse universo, somado ao
das favelas cariocas espalhadas pela cidade, que está representado na “República Popular de
Ramos”. A caricatura aqui assume seu papel de acentuar os traços mais característicos, ao
desprezar diferenças de nível social radicais, seja entre os grupos formados pelas classes mais
favorecidas, seja entre as camadas mais populares (BERGSON, 1987).49 Ao esboçar a
caricatura da sociedade carioca, Henfil procura enfatizar o já forte contraste social do Rio de
Janeiro. Através da ampliação do fenômeno, confronta realidades sociais mais privilegiadas
com as mais modestas da população.
O momento registrado por Molas remete a um processo de popularização de
Copacabana que se intensificaria a tal ponto que, no período descrito por Henfil, o bairro já
não convence mais como representativo dessa elite. Após a abertura do Túnel Velho, ligando
Botafogo a Copacabana, na última década do século XIX, essa região da cidade passaria a
crescer em ritmo cada vez maior, com a urbanização de Copacabana, Ipanema e Leblon,

49
Para maiores considerações diversas sobre caricatura, charge e cartum, ver Introdução da presente dissertação,
p. 12.
35

transformando-se, no decorrer do século XX, no espaço privilegiado do Rio de Janeiro onde


se concentraram as camadas mais abastadas da cidade (ABREU, 2008; GEIGER, 1963). Com
o barateamento dos custos das obras e os investimentos públicos estimulando a construção
civil, o processo de verticalização foi se intensificando em Copacabana desde fins da década
de 1930. Parte da classe média começava a poder realizar o sonho de morar na Zona Sul e
essa expansão foi nitidamente maior em Copacabana, onde a oferta de comércio e serviços só
fazia crescer (ABREU, 2008). Vale reproduzir pertinente comentário de Pedro Pinchas Geiger
sobre o fenômeno: “[...] graças ao seu conteúdo social e ao dos bairros vizinhos, de constituir
uma clientela exigente, numerosa e concentrada, [o bairro se] distingue do restante da zona
residencial. Por tudo isso, Copacabana é uma cidade dentro da cidade” (GEIGER, 1963, p.
175). Nas palavras de Abreu, “assiste-se, assim, a partir de 1946, ao boom imobiliário de
Copacabana, com a substituição rápida e quase total das edificações construídas na fase de
ocupação do bairro, por construções mais modernas, de vários pavimentos” (ABREU, 2008,
p. 126). Na Zona Sul, a mudança mais significativa observada no intervalo entre os dois
recortes em questão ocorreu sem dúvida em Copacabana, que entre 1940 e 1960 viu sua
população triplicar, pulando de 74.133 para 240.347 habitantes (ABREU, 2008, p. 109, p.
117).
Geiger (1963) afirma que a explosão demográfica em Copacabana, que atraía
principalmente as famílias de renda mais modesta, foi afastando os mais abastados em direção
ao Leblon, passando evidentemente por Ipanema, que se tornaria um bairro símbolo da elite
carioca, como sublinha Henfil. Ainda que a “República de Ipanema Beach”, imaginada por
Henfil, compreendesse toda a Zona Sul, Copacabana talvez já não fosse mais o bairro
adequado para representar a elite.
A charge de Molas não associa Copacabana a um ícone elitista, mas podemos
imaginar a intenção de identificar uma localidade conhecida e afetiva à população
(provavelmente também para o próprio cartunista, morador do bairro)50 e que, pelas
afirmações de Geiger (1963) e Abreu (2008), vivia seu apogeu. A irrelevância dessa
identificação para a compreensão da charge, a nosso ver, só alimenta a hipótese de que a
intenção do cartunista seria apenas situar a cena em uma praia bem movimentada, a mais
famosa da época, onde a população carioca se encontrava nos domingos de sol. Se a praia, a
princípio, é reconhecida enquanto espaço público e de livre acesso à população, independente
de sua classe social, não causa espécie a presença dos cinco personagens mais associados aos

50
Prontuário 14.269/44, Serviço de Registro de Estrangeiros SPMARF/ RJ RNE 300.026, 11ª folha,
Requerimento de registro permanente, solicitado em 18 de dezembro de 1944.
36

times tidos como “pequenos” no cenário da praia. No entanto, podemos observar os trajes
inapropriados ao banho de alguns dos personagens “suburbanos”. Enquanto os que
representam os times “grandes” estão todos em trajes de banho, podemos observar o malandro
do Madureira com seu terno de sempre; o operário do Bangu com seu uniforme; e o Seu
Leopoldino, do Bonsucesso, com os seus inseparáveis paletó e guarda-chuva. Molas parece
querer evidenciar os limites sociais no uso não democrático desse espaço público ao frisar que
apenas os representantes da “elite” do futebol têm acesso aos lazeres.
37

2.2 O humor de Molas e Henfil

Figura 2.4 O grande mistério em torno dos atributos físicos da futura Miss Campeonato, que anuncia seu
regresso do colégio, ansiosa para casar-se, evidencia a manutenção da tradição familiar, talvez já insinuando uma
possível transgressão às regras na revelada intenção das mascotes em procurar conhecer a beldade por conta
própria. JS, 06 de março de 1945.
38

Figura 2.5 A conotação sexual assume contornos mais obscenos na obra de Henfil, explícitas em gestuais e
expressões usadas pelos personagens para sujeição do outro. JS, 01 de dezembro de 1970.
39

Observamos aqui duas formas diferentes de conotação sexual. A primeira charge


(Figura 2.5) procura instigar a imaginação do leitor quanto à aparência da nova Miss
Campeonato. Loura ou morena? Tímida? “Cheia de nove horas”? A segunda, por sua vez,
parece menos interessada na motivação sexual do leitor. Nenhum esboço sequer das belas
curvas de uma miss aparecem em um humor mais comprometido com a crítica social. A
conotação sexual surge aqui como linguagem figurada nos deboches entre torcedores rivais.
No entanto, a sugestão sexual parece mais carnal, mais explícita. A charge de Henfil é
carregada de um manancial de gesticulações e expressões verbais certamente inadequadas aos
tempos do namoro vigiado de outrora.
Para melhor analisarmos a charge de Molas destacada acima é preciso situá-la com
relação ao período em que foi produzida e em relação às charges que viriam em seguida.
Formando uma espécie de “folhetim gráfico”, tratava-se de uma provável estratégia para
manter o interesse dos leitores nas edições do JS durante o extenso período de pré-temporada
(o campeonato carioca daquele ano só começaria em fins de abril). Lorenzo Molas estava em
franca produção no JS desde o mês de janeiro de 1945. A partir do dia 6 de março, então,
chegou o momento de aquecer os ânimos e manter o interesse dos leitores nos bastidores do
meio futebolístico, período em que sua trama se tornou estritamente ficção, sem agora se
ancorar em nenhum acontecimento do campo esportivo. Molas dava continuidade à narrativa
entre as mascotes, mostrando uma nova trama após o casamento de Popeye, realizado no dia
29 de outubro do ano anterior, que ocupava toda a primeira página do diário cor-de-rosa dois
dias depois da conquista do tricampeonato do Flamengo. A cena do casamento, como
veremos mais adiante, acabava por compor um inusitado pôster de campeão com a cerimônia
na igreja tomada pelas demais mascotes, que figuravam como convidados (Figura 2.7).
Molas daria início à sua “novela gráfica” a partir da charge em que todas as mascotes,
bisbilhotando pela janela da sogra do Popeye, tomavam conhecimento da existência de outra
“filha da sogra”, irmã da esposa do “marinheiro rubro-negro”. A donzela anunciava seu
retorno do colégio interno, deixando claro suas ansiosas expectativas matrimoniais.
Instigando a imaginação dos leitores, convidava-os a tentar adivinhar a aparência daquela que
viria a ser a nova Miss Campeonato. Molas nos oferece uma perspectiva de quem está dentro
da já conhecida sala de estar da sogra. Sua forma redonda parece ocupar um espaço muito
maior do que a cadeira em que se senta pode lhe oferecer. Enquanto a mão direita segura uma
carta, a outra leva um monóculo ao olho esquerdo. Na carta generosamente ampliada de sua
filha mais nova, aluna do Colégio Sagrado Coração, o leitor pode testemunhar com os
próprios olhos a declarada ansiedade da moça, aflita para conhecer as felicidades da vida
40

matrimonial afirmando, decididamente, não ter nascido para ser tia. A sogra chega a exclamar
em voz alta que sua filhinha já está em idade para se casar, não percebendo na janela atrás de
si a presença inconveniente de seus futuros candidatos a genro, que já demonstram certa
inquietação ao saber da novidade. Perfilados na janela, reconhecemos o almirante,
representando o Vasco da Gama, vice-campeão do ano anterior, que havia terminado o ano na
companhia da sogra; o Popeye, campeão, que se casara com a Miss, sonhando em formar um
harém casando-se também com a irmã de sua esposa. A seu lado, a sugestão dada pelo Cartola
de procurar saber em que colégio estudava a moça casadoira é prontamente acolhida pelo
pato, desencadeando o desenrolar da “novela” de Molas.
Um quarto de século depois testemunha-se, na charge de Henfil (Figura 2.5),
personagens com um comportamento geral bem mais informal do que os das charges de seu
colega de outrora. O cartunista mineiro reproduzia diariamente possíveis discussões
futebolísticas entre os torcedores rivais, em que as gozações ao derrotado implicavam
insinuações sexuais das mais diversas. Após a derrota do Fluminense para o Atlético Mineiro
no campeonato brasileiro de 1970, o Urubu encontra o Pó de Arroz que, caminhando na ponta
dos pés, tentava passar sem ser percebido. Surpreendido pelo torcedor rival, resigna-se a
aturar as provocações do rubro-negro, como se houvesse entre eles uma regra que definisse
direitos e deveres de vitoriosos ou derrotados a cada jogo que envolvesse ao menos um dos
times cariocas. Dois quadros chamam atenção especial na charge destacada. A saudação do
Urubu já carrega uma provocação embutida que seria completamente improvável na obra de
Molas. Ainda que não se deva levar ao pé da letra, a expressão “Minha bichona louca” parece
carregar em si uma relativa liberdade de Henfil com relação às normas de conduta vigentes, se
compararmos a produção dos dois períodos.51 Mais forte ainda do que a expressão usada no
segundo quadrinho é a clara sugestão sexual, ainda que metafórica, no gesto do Urubu.
Percebe-se a clara simulação convencionada do ato sexual no seu movimento alternado de
quadril e na posição dobrada dos braços junto ao corpo, para frente e para trás: “Chega lá a
massa atleticana ó...ó...nocês!”.
Enquanto o humor de Molas transita na dualidade entre o respeito e pequenas
transgressões às tradições familiares, o humor de Henfil, mais corrosivo e espontâneo,
encontra inspiração nas provocações mais ousadas entre os torcedores, repleta de gestos e
insinuações obscenas. No primeiro momento o casamento com a Miss, dentro dos rituais da

51
Poucos anos antes da estreia de Henfil no JS, a polêmica proibição do romance “O Casamento” de Nelson
Rodrigues, em que a censura alegava, entre outras causas, o excesso de palavrões, servem como evidência de que
a questão ainda era um problema. Ver: CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico. São Paulo Companhia das letras,
1992, p. 350-351.
41

Igreja Católica, é o desejo coletivo de todos os personagens masculinos da trama, dispostos a


cumprir todas as etapas impostas pela tradição familiar. O matrimônio é o grande ápice em
torno do qual gira toda a narrativa. No momento posterior, desaparecem as sugestões
amorosas. Desaparece, inclusive, a figura feminina na narrativa de Henfil. A sugestão sexual
assume sentido figurado. O que passa a existir é o processo de converter o rival à figura do
feminino, como forma de exercício de poder e dominação. Não falta no humor de Henfil
personagens afetados ou assumidamente homossexuais, como o Fala-Fina (na trama,
representa a parcela da torcida do Vasco que se reconhecia enquanto homossexuais). Quando
faziam apostas, envolviam pôr ou chocar ovos, sempre incorporando o fator do processo de
“feminilização” do derrotado.
Na charge de Molas analisada anteriormente (Figura 2.4), a carta da filha despedindo-
se da mãe expressa uma declarada preocupação em recusar o rótulo da solteirice: “eu não
nasci pra ser tia.” Era o mesmo que frisar sua propensão à maternidade e a constituir família.
No artigo “Solteironas de fino trato”, Cláudia Fonseca (1989) dedica-se a tentar compreender
os significados sociais embutidos na ideia de casamento em famílias de classe alta média nas
primeiras décadas do século XX na França e apresenta contribuições pertinentes à nossa
discussão. Os ideais que percebem na tríade “casamento, lar e filhos”, o futuro ideal para a
mulher jovem, parecem tão comuns à sociedade francesa das primeiras décadas do século
quanto para a sociedade brasileira do período de Molas. A mulher que permanece solteira na
idade madura torna-se, aos olhares vigilantes dessa mesma sociedade, uma figura bizarra,
presa à mesma configuração familiar em que foi criada, e é vista como incapaz de constituir
sua própria família: ou seja, assumir o papel atribuído à mulher na sociedade.
42

Figura 2.6 A Arte de Amar, do poeta grego Ovídio, desperta uma beldade por debaixo dos panos castradores do
colégio interno. As mascotes, enfim, descobrem que a Miss vale a disputa. JS, 04 de abril de 1945, p. 1.
43

Não queremos afirmar, no entanto, que a charge de Molas mantém-se no nível da


inocência. Até porque a sugestão sexual não se limita apenas a uma figura de linguagem. A
figura feminina, objeto do desejo que mobiliza a trama, não se acanha em provocar a libido do
leitor em generosas exposições de pernas e decotes nus, de belos bustos e quadris apertados
em maiôs e vestidos sensuais. Além dos belos e indispensáveis atributos físicos, a moça
desfruta ainda de outra virtude almejada: a inocência sexual. É justamente na perversão dessa
inocência que reside o apelo sexual no humor de Molas.
A charge a ser discutida agora é a que apresenta aos leitores os verdadeiros atributos
da Miss de 1945. Não por acaso coube ao Diabo a incumbência de “tirar o véu” daquela que
viria a ser a mais cobiçada donzela de 1945. Espionando o quarto da moça, o Diabo descobre
uma beleza estonteante por baixo de tantos panos. Da esquerda para a direita, o leitor se
depara com uma cadeira que faz as vezes de cabide para o pesado figurino da ex-aluna do
colégio de freiras. Ocupando cerca de metade do quadro, vemos a nossa Miss Campeonato
com um aspecto muito mais sensual, cabelos soltos e sem os óculos, pousados na cabeceira.
Suas formas voluptuosas ganharam mais evidência na camisola curta e bem mais decotada.
Deitada em sua cama em pose atrativa, trazia um livro à mão, que era o grande responsável
pela drástica mudança. Atento a detalhes, Molas puxa uma seta da capa do livro explicando
tratar-se do clássico “A Arte de Amar”, obra poética milenar de Ovídio. O comentário da
moça parece não apenas querer incitar a imaginação do leitor, como também alfinetar a
educação católica em uma sutil sugestão de que esta pode não preparar muito bem as moças
para a vida adulta: “Este livro me ensinou mais do que cinco anos de colégio”. Uma vez que
todos conheceram a beleza que se escondia por baixo de tantas vestimentas, a moça pode se
adequar ao visual das outras moças de sua idade, e todas as mascotes passaram a disputá-la,
levando-a para passeios diversos.
É pertinente destacar que a grande transformação da futura Miss, que passa de moça
recatada interna do colégio de freiras à condição de “donzela pronta para o casamento”,
começa a partir da leitura de “A Arte de amar” de Ovídio, que remete à época de uma moral
pré-cristã, anteriores à ideia de castidade como virtude. É imprescindível lembrar aqui a
postulação de Fonseca (1989) quando adverte estar tratando de uma sociedade onde a
“solteirice” daquelas que se tornavam senhoras sem nunca terem casado, implicava, dentro
das normas sociais estabelecidas, a irrefutável condição de abstinência sexual.52

52
O foco em torno da beldade é visível no anúncio do “Álbum de Miss Campeonato” com as charges produzidas
em 1944. É a própria personagem, em seu tradicional e sensual maiô (PESSOA, 2012).
44

Figura 2.7 Nesta charge, Molas passa a estabelecer a Miss Campeonato como metáfora para o título do
Campeonato Carioca de 1944, que estava pra começar. Desde o momento em que surge a figura alegórica
representando a Miss, o casamento com a donzela é equiparado à grande vitória, privilégio único do campeão.
JS, 01 de julho de 1944.
45

Figura 2.8 No detalhe selecionado na charge acima, já discutida em seus pormenores na introdução, destacamos
o foco da atenção da charge todo direcionado ao Popeye, que desfruta da posição mais desejada de todos, na
companhia da sogra, e já tirando as medidas do dedo da Miss para encomendar as alianças. Salienta-se o
cumprimento das etapas o compromisso matrimonial. JS, 12 de outubro de 1944.
46

Figura 2.9 “A Vida pedida a Deus” reforça a ideia de que a vida de casado pode ser equiparada aos grandes
prazeres da vida, como a celebração para a conquista. JS, 02 de novembro de 1944.
47

Figura 2.10 A menção ao filme de Bertolucci surge aqui para uma insinuação de sexo anal entre os personagens
da tira. JS, 01 de março de 1973.
48

Confrontando o humor nas últimas charges de Molas e Henfil aqui apresentadas,


observamos contrastes radicais. À ideia que reconhece o matrimônio enquanto metáfora para
conquista e celebração, onde se respeitam, sobretudo, as etapas impostas pela tradição
familiar, podemos contrapor a sugestão de sexo anal, homossexual, envolvendo ainda o
ousado uso da manteiga como lubrificante, a exemplo do polêmico filme de Bertolucci.
Enquanto os personagens de Molas cultivam ainda um manancial de normas de conduta, os de
Henfil caminham e travam seus conflitos à margem dessas normas. O confronto descambaria
para o atrito físico com frequência muito maior.
As charges de Molas são analisadas aqui para observar o contexto do culto à
celebração matrimonial. Reproduzindo a situação do campeonato carioca em momentos
distintos, nota-se que o sonho do casamento estabelece o eixo condutor de toda a trama, que
começava pela disputa ao lugar no sofá, ao lado da Miss. Na primeira charge em que Molas
propõe a ideia de uma Miss Campeonato (Figura 2.7), ela aparece à margem esquerda do
quadro, chamando atenção de todas as dez mascotes que participavam do certame, em pose
que exala sensualidade, em um andar provocante que sugere um balanço cadenciado e
sugestivo, uma mão vai à cintura e a outra à cabeça, como quem, em um capricho de vaidade,
ajeita o cabelo. A charge seguinte (Figura 2.8) já apresenta uma reviravolta na disputa,
quando o Flamengo passa para a liderança do campeonato e o Popeye assume o lugar junto à
sua futura noiva, para desespero dos rivais. A derradeira (Figura 2.9), por fim, já apresenta o
Popeye desfrutando dos prazeres da vida de casado. Após a conquista do título de 1944,
celebrada na charge do dia 01 de novembro com a cerimônia de casamento entre o Popeye e a
Miss, Molas mostra, no dia seguinte, a intimidade do casal em um momento da lua de mel.
Próximos a uma inusitada lareira em pleno verão tropical, o casal se acomoda no sofá, onde
vemos Popeye deitado com a cabeça sobre o colo da esposa, que prontamente lhe oferece um
cafuné, impassível diante do mau cheiro exalado pelos pés descalços do marido.
Já na charge de 1973 (Figura 2.10), Henfil é ainda mais explícito no uso da metáfora
sexual. Dessa vez ela parece mais gratuita, não estabelecendo uma relação direta com alguma
partida de futebol. O Urubu procura subjugar o Cri-Cri não por efeito de algum vexame do
Botafogo, mas pela maneira afetada com que vinha se gabando pelo fato de seu time estar
disputando a “Libertadores da América”, a competição de futebol tida como a mais
importante do continente. Dominando quase todos os quadros da tirinha, o Cri-Cri vai
contornando o Urubu, em expressões corporais que sugerem passos de balé, enquanto o
bombardeia com comentários que explicitam o preconceito de raça e classe social:
49

Enquanto os inferiores ficam disputando a Taça Crioléu, torneios na Baixada


Fluminense, apanhando da PM baiana, a selefogo disputa a Taça Libertadores da
América, vestibular da Taça do mundo. Sabe, Urubuzim, é questão de classe,
questão de ser elite.53

Nesse momento, o Cri-Cri chega a virar de costas para o outro, empinando e


rebolando os quadris, para terminar o deboche da seguinte forma: “Questão de berço, de
nascer em ‘Ipanema Beach’, de não nascer em Ramos”. Até então impassível diante das
provocações, Urubu é ferino em sua resposta, ignorando absolutamente todo o longo discurso
preconceituoso do rival: “Botafoguense quando começa a bolear na frente da gente, eu já sei o
que quer! Você vai preferir com ou sem manteiga?” Não achando sentido na pergunta, o outro
estranha: “Manteiga? Pra que manteiga?” Com expressão característica para representar a
ideia de tarado, testa franzida e sorriso de muitos dentes, enormes e afiados, deixando um
espaço mínimo para por a língua pra fora, o Urubu responde, já correndo atrás de um
amedrontado alvinegro: “Pro nosso Último Tango em Paris! Me, Marlon Brando, you Maria
Schneider!”54, 55
O respeito à tradição do namoro consentido, nesse primeiro momento, contrasta com
os gestos e palavras vulgares, bem como com as insinuações explicitamente sexuais no
momento posterior. João Manuel Cardoso de Mello e Fernando Novais (2009) trazem
considerações pertinentes que envolvem a valorização do matrimônio, bem como da
penetração da moral católica na sociedade moderna brasileira que dialogam perfeitamente
com a linha humorística de Molas.
[...] O casamento romântico, que dera os primeiros passos em meados do século
XIX, havia praticamente triunfado. Homens e mulheres tinham adquirido o direito
de escolher o cônjuge de sua preferência, de seguir os ditames do coração. A
interferência existia, claro, mas estava circunscrita ao convite nem sempre amigável,
dos pais aos filhos, para que examinassem mais cuidadosamente, isto é, sem paixão,
a personalidade do ou da pretendente, especialmente seus possíveis defeitos de
caráter, evitando o “mau passo” (MELLO; NOVAIS, 2009, p. 48).

São fartas as possíveis referências que podemos encontrar nas charges de Molas que
remetam ao fenômeno percebido pelos autores. A figura da sogra, por exemplo, assume o
papel da família, ainda que sua interferência pareça a princípio mais comedida, já que permite
a possível transição de pretendentes a cortejar sua filha durante as possíveis reviravoltas
apresentadas na tabela de classificação. Esse jogo da avaliação da personalidade dos

53
JS, 01 de março de 1973, p. 2.
54
Ibidem.
55
O drama erótico franco-italiano de 1972, dirigido por Bernardo Bertolucci e estrelado por Marlon Brando e a
então desconhecida Maria Schneider, “Último Tango em Paris” (italiano: Ultimo Tango a Parigi; francês: Le
Dernier Tango à Paris) foi sucesso de bilheteria mundial. A célebre cena de sexo anal entre os protagonistas, em
que o personagem interpretado por Brando faz uso de manteiga como lubrificante, causou grande polêmica
internacional.
50

pretendentes não é explícito, mas é presumível que, dada a necessidade da referência ao


futebol, o caráter desejado seja o de vencedor.
Nesse aspecto, a trama elaborada por Molas também nos permite observar outro ponto
relevante no que diz respeito à divisão dos papéis sociais entre homem e mulher. Marcos
Silva (1989) observa o fenômeno manifestado nos cartuns do personagem “O Amigo da
Onça”, assinados por Péricles Maranhão e sucesso na revista Cruzeiro entre 1943 e 1961. O
personagem malicioso e debochado, que se consagrou pela sua astúcia, sadismo e por querer
tirar todo tipo de vantagem em todas as oportunidades, marcava sua presença pela exposição
do outro ao ridículo. Silva percebe que a perene necessidade do personagem em medir forças
com outros homens e vencer acaba expressando as dimensões da idealização social do ser
masculino. Ideias associadas à força, potência, vitória, beleza e segurança expandem-se por
demais valores vinculados ao mundo masculino, como poder econômico, posição social,
masculinidade de filhos, fidelidade da esposa, paternidade assegurada e força física. A
conquista do campeonato carrega em si todo um conjunto de ideias associadas à noção de
poder. A carga simbólica implícita na conquista de um campeonato envolve força,
competência, atitude, potência, virilidade. Da mesma forma, o bom funcionamento da
metáfora de Molas sugere que a Miss dê oportunidade somente a quem lidera ou conquista o
campeonato.
Já com relação ao papel reservado à mulher na sociedade, perceberemos tanto nos
cartuns de Péricles quanto no enredo de Molas, ainda que em medidas diferentes, que a figura
idealizada de feminino gira em torno de beleza, juventude, castidade (se solteira), conduta
moral (fidelidade, criação de filhos, cuidado com o lar) e classe social. Notamos que o
interesse de todas as mascotes está completamente dependente dos atributos físicos da
personagem feminina principal da trama. Percebe-se a manifesta passividade da protagonista,
sempre à espera do líder da rodada e do campeão, ao final do certame. Essas moças sem
nome, cuja popularidade já surge com prazo de validade até o início do campeonato seguinte
e que, por natureza da função, são extremamente volúveis, mantêm-se no centro das atenções
de mascotes e leitores até o final do campeonato.
O artigo do sociólogo Marcelo Lacombe (2008) nos inspira a buscar, na prosa de
Nelson Rodrigues, a transição desses costumes que envolvem a moralidade familiar entre um
momento e outro. “Nada de rua, quero namoro em casa, na sala!” (RODRIGUES, 2012, p.
256) costumava afirmar, referindo-se à própria filha, um dos inúmeros personagens que
Nelson Rodrigues criou para a série de crônicas “A Vida como ela é...”. No decorrer da
crônica, percebemos que o tal chefe da família estipulava também horário e dias certos para o
51

namoro, não passando de três vezes por semana. Infelizmente não há, na edição de que
dispomos, nenhuma referência à data exata em que “Um chefe de família” foi publicado na
célebre coluna que Nelson mantinha na “Última Hora”, só sendo possível assegurar que foi
em algum dia entre 1951 e 1960, período em que durou a coluna no jornal de Samuel Weiner.
A frase do personagem destacada acima é lembrada aqui como vestígio de uma resistência
mais conservadora à manutenção de algumas tradições que procuravam preservar o respeito à
ordem familiar estabelecida, em uma época em que os tabus em torno da virgindade feminina,
antes do matrimônio, tinham peso muito maior.
Já no momento de Henfil, seus personagens estão inseridos em um contexto onde
esses rituais familiares já não se sustentam. Maria Hermínia T. de Almeida e Luis Weis
(2006) ressaltam que a modernização da sociedade teria agilizado o processo de mudança dos
padrões de conduta privada. Os autores compreendem que, na perspectiva de uma geração de
esquerda que atingira a idade adulta durante a ditadura militar, “o peso das circunstâncias
políticas sobre as relações afetivas e familiares (acelerando, quem sabe, os vaivens amorosos)
misturava-se à liberação sexual e ao consumo de drogas [...]” (ALMEIDA; WEIS, 2006, p.
333-334). De acordo com esses autores, a liberação sexual e o consumo de drogas também
envolviam a afirmação de um comportamento de enfrentamento à ordem vigente, ligados a
construção de uma forma de ser oposição, de compor um “perfil político de rejeição ao status
squo” (ALMEIDA; WEIS, 2006, p. 334). Seguindo essa premissa, Henfil simplesmente
abdicou completamente do perfil polido que sobressai no humor de Molas. Se há um traço
comum a todos os personagens da tirinha de Henfil é justamente esse completo desapego à
necessidade da polidez, dos cavalheirismos de outrora. Seus personagens agridem-se verbal e
fisicamente, ofendem-se, debocham um do outro, e satisfazem-se sujeitando seus rivais a
diversas humilhações.
Na virada entre as décadas de 1960 e 1970, Henfil sentia-se à vontade para usar e
abusar das palavras tidas como de baixo calão, ainda que lançando mão do recurso de
anagramas ou de simples trocas de letras para disfarçar minimamente o sentido, (“camabuta
de fedapada”, por exemplo). O neologismo do cartunista mal disfarçava as expressões chulas
recorrentes em suas charges, evitando o choque de imprimir em páginas populares o linguajar
inapropriado, mas mantendo o sentido pretendido. A elite, no entanto, costumava expressar
sua agressividade de maneira diferente. Evitava o uso dos palavrões, mas abusava de termos
pejorativos para se referir aos rivais, como “crioléu” ou “populacho”, reforçando o caráter
preconceituoso das camadas mais abastadas da cidade. Nota-se, sobretudo, uma maior
52

agressividade no humor mais despojado de Henfil. Seja nos gestos ou no vocabulário, a


agressividade latente paira perenemente na atmosfera da trama de suas charges.

Figura 2.11 A associação entre confronto físico e futebol é mais eventual nas charges de Molas, em que
predomina a metáfora amorosa. Em uma das raras charges que demonstra a representação futebolística também
não faltam armas letais, sangue e aviões de guerra. Acreditamos que o feito dessa violência é diluído por estar
mencionada em sentido claramente figurado. JS, 17 de outubro de 1944, p. 1.
53

Figura 2.12 A agressividade explícita é potencializada na tira de Henfil, onde o consumo de álcool acirra os
ânimos de uma discussão banal entre amigos, provocando uma briga urbana, auxiliada por pedaços de pau e
estilhaço de garrafa quebrada. JS, 13 de janeiro de 1970, p. 3.
54

Figura 2.13 O Pó de Arroz, identificado com a elite, leva para a briga os ensinamentos de uma arte marcial, que
contrasta com a as táticas espontâneas da briga de rua expressa pelo Urubu. Na tira de Henfil, os conflitos partem
para o plano físico. JS, 10 de janeiro de 1970, p.3.
55

Figura 2.14 A briga entre o “judoca” Pó de Arroz contra o Urubu acaba resolvida pela figura efeminada do
personagem Fala-Fina, que representava um setor da torcida vascaína identificada como uma ala da
representação dos homossexuais do clube. JS, 11 de janeiro de 1970, p. 3.
56

Nas quatro charges recém-destacadas, tanto na primeira, de Molas, como nas demais
de Henfil verificamos confrontos físicos e bélicos, briga de rua com pedaço de pau e
estilhaços de vidro, facões sujos de sangue e até golpes de judô. À primeira vista podemos até
concordar que a charge de Molas sugere uma violência mais sanguinária do que na charge em
que o “judoca” tricolor desfere uns golpes no rival rubro-negro, mas é preciso lembrar que no
contexto narrativo de Molas essa violência assume uma referência mais claramente
metafórica, ao passo que o enredo de Henfil, por focalizar o conflito de torcedores, a menção
à violência já sugere uma situação mais verossímil.
Na charge de Molas (Figura 2.11), a crítica ao jogo entre Botafogo e Vasco é
demonstrada em dois quadros: “como se esperava que fosse o jogo”, onde Almirante e
Bacalhau travam uma luta sangrenta, com direto a mordida no nariz e facas sujas de sangue.
“Eu quero nadar num lago de sangue” chega a declarar o pato, em meio à peleja. No quadro
seguinte, porém, Molas demonstrou sua percepção sobre o provável “marasmo” da partida,
mostrando uma troca de cumprimentos e referências cordiais entre os dois. No último quadro,
representa as goleadas aplicadas por Flamengo (7 x 1 sobre o Bangu), Fluminense (6 x 1 no
Bonsucesso) e América (3 x 0 no São Cristóvão), através de Popeye, Cartola e o Diabo, que
do alto de seus aviões de guerra bombardeiam as regiões suburbanas, para desespero dos
personagens de Bangu, Bonsucesso e São Cristóvão. Uma vez que Molas operava com
representações de clubes, essas referências permanecem mais explicitamente no universo da
metáfora. Molas chegou a utilizar duas metáforas diferentes para representar os resultados de
jogos.
O deboche de Urubu e Bacalhau aos trajes de judoca do Pó de Arroz (Figuras 2.13 e
2.14), respondido através de golpes de judô deste último, desferidos contra o primeiro, parece
mais uma manifestação de como o conflito de classes sugerido por Henfil facilmente
descambava para o atrito físico. Em uma das raras vezes em que um representante da elite se
encaminhava para levar a melhor, ele logo é surpreendido pelo inusitado. Justamente o
personagem considerado mais fragilizado, no contexto da época, dada a sua forte expressão de
feminilidade, o personagem batizado de Fala-Fina (relacionado a um dos estereótipos do meio
homossexual) atira um sapato de salto alto e atinge Pó de Arroz na cabeça. Ao final da
sequência, Fala-Fina sai carregado por Urubu e Bacalhau, enquanto o tricolor jaz fora de
combate, deitado de bruços, aparentemente inconsciente com um galo na cabeça. O deboche
final do Urubu sugere a desmoralização completa de seu mais recente algoz: “Elas se
57

entendem”, insinuando uma possível feminilidade do Pó de Arroz, já equiparada a do


personagem Fala-Fina, uma vez que passa de vencedor do conflito à categoria de derrotado.56
Já na outra charge de 1970 (Figura 2.12), torcedores de Flamengo e Vasco travam
acalorada discussão, enquanto dividem uma garrafa do que aparenta ser uma forte
aguardente.57 Com caixotes improvisados em mesa e cadeiras, Henfil parece querer reforçar a
ideia de simplicidade das camadas mais populares, através de uma ambientação que procura
reproduzir um modesto botequim, provavelmente mais facilmente encontrado nas zonas
periféricas da cidade, e do consumo de uma bebida destilada tida como barata e popular. A
embriaguez dos dois vai tornando a discussão cada vez mais agressiva, até que o caixote que
serve de mesa é chutado para longe e, em um instante, estão partindo para o enfrentamento
físico. Bacalhau agarra um pedaço de pau, enquanto Urubu se aproxima do companheiro,
segurando pelo gargalo a parte maior dos estilhaços da garrafa quebrada. Nesse momento,
surge o Cri-Cri empolgado com a discórdia entre os representantes do povo: “Oba! Oba! O
crioléu está se devorando!”. Bastou que percebessem a “incômoda” presença de Cri-Cri
manifestando motivação diante dos entreveros pessoais dos dois para que Urubu e Bacalhau
esquecessem instantaneamente suas diferenças, unindo-se para partir para cima do intruso,
que foge desesperado, com uma garrafa quebrada enfiada na cabeça.
A análise dessas quatro últimas charges nos leva a perceber diferentes formas de
menção à violência. As referências bélicas na charge de Molas parecem aludir à Segunda
Guerra Mundial. Bombas sendo atiradas de avião traziam uma lembrança inevitável do
conflito que terminaria menos de um ano após a publicação da referida charge. A violência
urbana de Henfil, por sua vez, é uma violência possível entre torcedores e, portanto, sugere
uma proximidade maior com o cotidiano do leitor, mesmo que a distância, através de
possíveis manchetes de jornais. Ao mesmo tempo, a comparação entre as charges sugere uma
diferença clara entre o humor de cada cartunista. Molas, mesmo mostrando bombas e sangue,
parece transitar em meios menos turbulentos do que o segundo, de humor mais corrosivo, que
parece fazer questão de tornar explícitas as diversas mazelas sociais, como a violência urbana.

56
JS, 11 de janeiro de 1970, p. 3.
57
Percebemos a sugestão de que a bebida seria cachaça, e não outra bebida, pelas labaredas exaladas, ao
primeiro gole, pelos ouvidos e bocas dos personagens.
58

3
CLUBES, TORCEDORES
E SÍMBOLOS NAS
REPRESENTAÇÕES DA
IMPRENSA ESPORTIVA
59

O papel da imprensa na conformação de representações sobre o esporte fortalece-se


ainda mais quando ilustrações passam a integrar mais constantemente os periódicos.
(MELO, 2012, p. 39)

Figura 3.1 Encerrado o primeiro campeonato de futebol carioca registrado pelas charges de Lorenzo Molas, a
coluna “Uma Pedrinha na Shooteira”, da qual reproduzimos o detalhe acima, resolveu abordar o sucesso das
mascotes, novidade da temporada, e lançar uma promoção para a escolha dos nomes de mascotes de clubes de
menor expressão. JS, 02 de novembro de 1944, p. 6.
60

Figura 3.2 Matéria do JS que, poucos meses após o surgimento dos personagens símbolos, aborda a boa
recepção dos torcedores depois de uma primeira reação negativa evidenciada por cartas de protestos. Ao
contrário das representações elaboradas por Molas (que nessa matéria ganharam a interpretação do ilustrador
Marcelo), as referências de Henfil buscavam a ousada estratégia de ressaltar as características de forma mais
pejorativa. Com o tempo, os torcedores passariam a aceitar e adotar os símbolos. Nota-se que a foto mostra o
Urubu solto no estádio pela torcida rubro-negra, em dia de vitória. Era a consagração da mascote. JS, 15 de
junho de 1969, p. 10.
61

No dia 02 de novembro de 1944, já se haviam passado quatro dias do desfecho final


do campeonato de 1944, que também não foi nada satisfatório ao Vasco da Gama, amargando
o vice-campeonato e forçando seu ilustre Almirante a se contentar com a companhia da sogra,
a obesa senhora mãe da Miss Campeonato. A coluna “Uma Pedrinha na Shooteira” (Figura
3.1), que parecia assumir a parcialidade pelo Vasco se observarmos o logotipo desenhado por
Molas com a imagem da figura lusitana e o símbolo da Cruz de Malta e assinada por ele com
o pseudônimo Zé de São Januário (região da cidade onde se situa sede e estádio do clube),
resolveu dar destaque total à grande novidade que o JS oferecera aos leitores naquela
temporada: as charges de Lorenzo Molas. Dessa forma, Zé de São Januário abria assim sua
coluna naquele dia:
JORNAL DOS SPORTS, através do lápis mágico de Molas, lançou na temporada de
44 as figuras simbólicas dos clubes de football. O público esportivo da Capital
aceitou de bom grado esses símbolos alegres, cheios de vida, que movimentaram e
fizeram rir os esportistas de todos os setores. O Flamengo, por exemplo, apareceu-
nos representado pelo marinheiro Popeye, com as suas latas de espinafre que
decidem a “parada” a última hora. O tradicional Vasco da Gama representa um
velho almirante, verdadeiro lobo do mar, em sua caravela, sempre pronto a navegar
e enfrentar todas as tormentas. O Botafogo, o clube que não leva desaforo para casa,
nem é prejudicado sem dar o solene estrilo, tem como símbolo, o Pato Donald. O
Fluminense, o aristocrático clube das Laranjeiras, é representado pelo Cartola, um
cavalheiro de boas maneiras, que convence pela palavra sutil. O América simboliza
58
o Diabo Rubro, cuja ação diabólica provoca os mais sérios dissabores.

A coluna ainda descreve os símbolos de São Cristóvão e Bangu, para lembrar logo em
seguida que três dos dez times que participavam do campeonato, embora já tivessem suas
figuras simbólicas, estas ainda não haviam sido batizadas. Para tanto, contaria com a
colaboração dos leitores, anunciando assim um concurso promovido pelo jornal, em parceria
com a “Fábrica de Charutos Comercial, Casa Super-ball, Mário Filho,59 entre outros”. Nesse
momento não cita a “Rádio Tamoio” entre as empresas que ofereciam prêmios, mas indica
seu endereço, juntamente com o da redação do diário para o envio das cartas.
Já no dia 15 de junho de 1969, poucos meses após o surgimento das primeiras
mascotes elaboradas por Henfil para o JS, uma matéria trazendo um pouco dos bastidores da
criação dos personagens (Figura 3.2) era o destaque da página 10 daquela edição.60 Por serem
elucidativas no que diz respeito ao processo de criação (ou escolha) desses símbolos, tornam
válida a transcrição literal abaixo:

58
JS, 02 de novembro de 1944, p. 6.
59
A coluna se refere mesmo à pessoa física Mário Filho, não ao periódico.
60
Situada no primeiro quadrante da página, ultrapassava facilmente este quarto da folha, ocupando cerca de 20
centímetros de largura por 30 de comprimento.
62

De um abaixo-assinado com 38 assinaturas de torcedores rubro-negros e vascaínos


em protesto pelo endosso que o nosso chargista Henfil dava ao grito da torcida do
Botafogo, ao chamar rubro-negros e vascaínos de Urubu e Bacalhau, nasceram e se
formaram o símbolo das duas maiores torcidas do Rio. Do nascimento, oficialização
e consagração de Urubu e Bacalhau como símbolos, surgiu também a necessidade
61
de fixação de tipos para a torcida do Botafogo.

Percebemos pela matéria alguns aspectos bastante esclarecedores no sentido de


apontar alguns dos métodos adotados para a construção dos personagens. Se afirma-se que as
torcidas protestaram contra o endosso do chargista aos gritos das torcidas adversárias,
concluímos que uma estratégia adotada pelo cartunista foi a de ouvir os torcedores, mas não
necessariamente acatando suas opiniões. Se Henfil se inspirou nos gritos da torcida, preferiu
dar mais atenção às representações criadas pelas torcidas para insultar ou subjugar os
adversários do que às representações mais entusiastas que elas mantinham do próprio time. Se
os símbolos, a princípio, incomodaram seus torcedores, que não queriam se identificar com
suas mascotes, é porque o espírito provocador do cartunista buscava, na percepção pejorativa
do outro, a representação de cada torcida.
Seguindo a matéria, perceberemos que a elaboração do personagem que caracterizaria
o Botafogo se daria de forma um pouco diferente da ocorrida com a construção dos símbolos
dos adversários e, de maneira semelhante ao que se deu ao fim do campeonato de 1944,
através das sugestões de leitores. Do concurso promovido surgiram sugestões diversas, e sem
sucesso, como “chulé”, “macarrão”, “macacada”, “chita”, “seboso”, “morcegada”, até que
uma carta sugerindo o nome “Cri-Cri” agradou ao cartunista. O termo “Cri-Cri” significava,
nos dizeres da matéria, “o chato dos chatos, aquele que de fato, incomoda”.
Se repararmos a preferência de Henfil em provocar os torcedores com símbolos
associados a ideias mais pejorativas do que lisonjeiras, percebemos uma mudança estratégica
radical ao compararmos essa tática com a adotada por Molas, em 1944. Ao elaborar um
concurso para batizar os personagens usualmente mais coadjuvantes da trama, como o
Bonsucesso, Madureira e Canto do Rio,62 o JS parecia querer aumentar o vínculo emocional
entre leitores e as demais mascotes, que representavam clubes com torcida de menor
expressão numérica. Para tanto, estabelecia uma ação em conjunto com os demais anunciantes
e com um importante canal de comunicação: o rádio. Indicavam o endereço da “Rádio
Tamoio” para o envio das cartas. Notam-se ainda, nos detalhes da coluna “Uma pedrinha na

61
JS, 15 de junho de 1969.
62
Coincidência ou não, os três mascotes, cujos nomes ficaram a cargo dos leitores, representam os únicos dos
que disputavam regularmente o certame na época e que nunca haviam se sagrado campeões na história do
campeonato carioca de futebol. São Cristóvão se sagrara campeão em 1926 e Bangu havia conquistado o título
na liga profissional em 1933.
63

shooteira” destacada no início deste capítulo, aspectos consideráveis de um discurso afinado


com as ideias perpetuadas pelo matutino. Zé de São Januário generaliza a representação dos
leitores do JS, ampliando sua denominação para “o público esportivo da Capital da
República”, expressão muito semelhante à que fecha a nota de apresentação do cartunista, já
apresentada na introdução da presente dissertação: “Seus bonecos, tão movimentados como
um Fla-Flu de fim de campeonato, não tardarão, portanto, a se tornarem familiares à toda
cidade esportiva”. Os termos usados em ambos os casos reforçam sempre o caráter emotivo
dos clássicos embates do campeonato carioca e criam associações com as mascotes.
Percebe-se também que o autor da coluna não assume no corpo do texto transcrito
qualquer predileção ao clube da Cruz de Malta ou a sua mascote. Nesse dia, ao menos, ele
quer se dirigir a todos os torcedores, chamando atenção para o concurso e, ao descrever os
personagens, ao contrário do método adotado por Henfil, se preocupa em exaltar suas
características como invejáveis virtudes, afastando qualquer conotação pejorativa que pudesse
quebrar a sintonia entre torcedor e o símbolo escolhido. Na coluna, Zé de São Januário prefere
justificar a escolha do Pato Donald por ser o alvinegro um clube conhecido por não levar
desaforo pra casa. Assinala traços da atitude de cada clube: o Almirante, “sempre pronto a
navegar e enfrentar todas as tormentas”; o Popeye e suas latas de espinafre, decidindo “a
parada” na última hora; o Cartola, cavalheiro de boas maneiras que convence pela palavra
sutil; e o Diabo, a provocar os mais sérios dissabores. Exaltam-se as características dos
personagens de forma proativa, como homens de atitude, firmes em seus objetivos de
conquistar a desejada donzela. É a virilidade das mascotes em disputa.
Henfil, ao contrário, desafiaria essa virilidade ao criar situações humilhantes e
vexatórias para os personagens. Como típicos torcedores, as mascotes de Henfil travavam
apostas sobre o resultado dos jogos em que o perdedor se compromete a pôr ou chocar um
ovo, geralmente imenso, chegando a atingir duas, três vezes o tamanho dos personagens. A
ação de pôr ou chocar um ovo parece sugerir um breve processo de feminilização de
personagens masculinos, além da sutil conotação sexual se levarmos em conta a sugestão de
violação implícita na ideia de se expelir um ovo. As associações tidas como pejorativas aos
personagens, de fato, acabariam funcionando e as tiras de Henfil conheceriam rapidamente o
sucesso. Denis de Moraes (1996), biógrafo de Henfil, afirma que a tiragem do JS às segundas-
feiras após os jogos chegava a atingir 65 mil exemplares.63 É de se esperar também que a

63
Nota-se ainda que no período de Henfil, ao contrário do de Molas, o JS já circulava as segundas-feiras. Moraes
(1996) atribui o fato ao crescimento rápido e vertiginoso do JS, que estaria “no vermelho”, e ao editor-chefe
Maurício Azedo, que comandara a reforma gráfico-editorial do periódico. Um dos outros acertos do editor foi
64

conotação pejorativa trouxesse reações negativas de todas as torcidas64 repudiando a “falta de


respeito” para com os torcedores e seus respectivos times de coração. Vez por outra Henfil
gostava de responder, através de suas tiras, sempre com humor e ironia, as cartas indignadas
enviadas para a redação, como veremos ainda neste capítulo mais adiante.
Por ora, tomemos de empréstimo um depoimento do cartunista, cedido a Tárik de
Souza para o livro “Como se faz humor político”:
[...] Eu acho que sou um dos casos raros de reação que se possa medir. No Jornal
dos Sports eu fazia um personagem direto para a torcida. Eu escrevia pedindo coisas
pra torcida fazer no Maracanã. Por exemplo, vamos gritar “maricón” quando o
Paraguai jogar. Eles gritavam “maricón”, então eu sabia: era a resposta. Era quase
um programa de auditório. Pedia pra expulsar a torcida do Botafogo do Maracanã,
juntar a torcida do Vasco e do Flamengo... coisa impossível. A torcida do Flamengo
e do Vasco se juntou e botou a torcida do Botafogo fora de campo. Era a resposta.
Outra foi colocar como símbolo um insulto: o Urubu. Aí a torcida do Flamengo
colocou um urubu em campo com a bandeira. A torcida do Vasco começou a levar
bacalhau espetado (HENFIL, 1984a, p. 16).

Mais adiante consideraremos essa declaração, em que afirma que a torcida acabava
acatando suas dicas implícitas nas charges, dedicando atenção especial às charges em que
Urubu e Bacalhau planejam “expulsar” a torcida alvinegra do lugar que lhes era reservado no
estádio. Se de fato a torcida concretizou o planejamento da charge, infelizmente não dispomos
de qualquer outro indício que não seja a afirmação do próprio cartunista. Procurando nas
matérias que tratam do referido jogo, não encontramos qualquer menção ao fato. Um único
indício encontrado foi uma charge (Figura 3.3) do próprio chargista em que ele reproduzia e
respondia, em cada quadrinho, trechos de cartas dos leitores, a maioria indignada. Uma delas,
entretanto, parecia uma resposta positiva a Henfil, que ele agradece através do personagem
vascaíno.

aumentar o destaque das charges de Henfil. De acordo com os dados levantados pelo autor, a tiragem teria
subido de 12 mil para 65 mil exemplares nos dias seguintes aos jogos. (MORAES, 1996, p. 85).
64
Rubro-negros também não gostavam das críticas que Henfil fazia ao clube, supondo que ele fosse torcedor de
outro clube. JS, 02 de novembro de 1969, p. 3.
65

Figura 3.3 Henfil, volta e meia, usava a tirinha para responder a cartas dos leitores. Evidentemente não podemos
assegurar se ou quais as cartas ou leitores que, de fato, existiam, mas nos parece claro sua intenção de reforçar
seu ponto de vista sobre o espetáculo do futebol. JS, 02 de novembro de 1969, p. 3.

“Nós, vascaínos e rubro-negros só nos tornamos inimigos na semana do clássico dos


milhões. Fora disso, somos uma família unida. A prova disso é a interestadual historinha do
Henfil.” O trecho destacado está assinado pela leitora Marli Pedroso. A despeito da
declaração da leitora, que identifica a tira de Henfil não como causadora, mas como
reprodutora de uma possível união entre as torcidas de Vasco e Flamengo, nota-se que, no
depoimento do próprio Henfil, ele reconhece que essa união pareceria impossível antes que
ele testemunhasse o fenômeno. Trataremos a seguir, justamente, das diferentes maneiras em
que a rivalidade era estimulada pelos cartunistas em seus respectivos períodos. Evidentemente
não temos como assegurar se existiu mesmo a carta, ou mesmo a leitora, ou se são
construções fictícias de Henfil para corroborar sua perspectiva a respeito da união das
torcidas.
66

3.1 Estimulando rivalidades

Figura 3.4 Na trama elaborada por Molas, a rivalidade entre as mascotes é acirrada de forma individual. A
divisão estabelecida entre os clubes de maior ou menor expressão não implica qualquer tipo de parceria entre os
integrantes de cada grupo ou tão pouco de enfrentamento coletivo entre essas divisões. JS, 14 de setembro de
1944, p. 1.
67

Figura 3.5 A clara divisão entre os times considerados “grandes”, estabelecida por Henfil, procura articular os
conflitos da trama entre as duplas de times identificados com “a elite” e “a massa”, bem como reforça
constantemente o contraste social nos discursos preferidos pelos personagens, onde essa diferença está sempre
no eixo condutor das narrativas. JS, 26 de setembro de 1969, p. 3.
68

Um quarto de século separa as charges destacadas acima. Selecionadas por serem


exemplares da maneira como os dois cartunistas articulam as rivalidades em suas respectivas
narrativas, as charges apresentadas nos mostram duas diferentes metáforas para o contraste
social da cidade. Enquanto Molas agregou os quatro times de maior expressão no seleto grupo
que tem acesso à casa da Miss Campeonato, Henfil preferiu situar a linha entre esses mesmos
times, associando-os com a maior representatividade e penetração entre as torcedores “mais
populares” ou “mais elitizados” de sua época.
A metáfora de Molas alude à força dos clubes dentro de campo e procura não
estabelecer maiores diferenças entre os chamados “times grandes” do Rio. Na sua narrativa, a
fronteira entre a elite e a massa não se passa no centro de interesse da ação porque não se
estabelece essa diferença entre os quatro times que mais mobilizavam os torcedores. Quando
Henfil a situa no centro da ação, criando ou estimulando uma dualidade entre a elite e o povo
na torcida pelo futebol, ele assinala também o histórico conflito social entre aqueles que
detêm o poder e os que são reprimidos por ele. É em torno desse conflito que se articulam
todas as tramas das charges, todo o humor, toda a crítica e tentativa de mobilização social. É
esse conflito que conduz a narrativa.
Na história de Molas o conflito não está de todo ausente, se observarmos que
determinadas mascotes sequer são convidados à casa da Miss. Entretanto, o papel desses
personagens é secundário nas narrativas, porque o conflito social não está no centro da trama.
Se o foco de uma competição está na conquista do título de campeão, no caso da charge está
na casa da Miss, ou seja, na “elite” da história, embora o termo não seja utilizado. A charge do
dia 14 de setembro de 1944 (Figura 3.4) está dividida em duas partes, nos oferecendo ao
mesmo tempo a concorrida sala de estar da Miss Campeonato e a parte de fora da casa, à
frente da porta de entrada. Dessa vez a sala tem menos personagens do que de costume.
Observamos até a cabeça do Popeye na janela, mas do lado de fora observando o movimento
dentro da casa. Ao perceber o Almirante fazendo companhia no carteado à sogra do futuro
campeão, Popeye chega a sentir amenizado o sofrimento de ver o Cartola no sofá, ao lado da
Miss. O felizardo está impecável em seu traje a rigor: fraque, polainas e luvas. Pernas
cruzadas e peito aberto, Cartola parece bem à vontade e confiante, já tirando as medidas do
dedo da donzela. É para ele que olha o Almirante. Intrigado com o que seu concorrente faz no
dedo da pretendida, pergunta em voz alta, em sugestivo sotaque lusitano: “Que raios ele está
fazendo no dedo da garota?”. Estão todos tão entretidos com o casal no sofá que ninguém nota
uma súbita presença na sala. É o pato alvinegro que adentra o recinto, saltando, surrealmente,
69

de dentro de um quadro pendurado na parede. Traz à mão um embrulhinho, certamente um


regalo à moça, proferindo altivamente uma única palavra: “Protesto!”
Do lado de fora da casa quem concentra as atenções é o ousado representante do
Bonsucesso. Futuramente conhecido por Leopoldino, batia com o guarda-chuva na porta da
casa, como quem está mesmo disposto a apresentar-se como pretendente, enquanto segura
duas tímidas flores com a outra mão. Todas as demais mascotes, incluindo o Diabo, estão fora
do campo de visão de quem abrir a porta, totalmente espantados com a audaciosa atitude do
outro. O Diabo comenta que a mascote do Bonsucesso está louco varrido, enquanto o bebê
que representava o Canto do Rio, de chupeta e com uma tesoura de costureiro à mão, ameaça
alguma molecagem: “Maluquice pra cima de mim, não”. O anjo obeso e caolho do São
Cristóvão se contenta em desdenhar da façanha alheia: “Se eu não entrei, como é que ele vae
entrar?” O único que parece ignorar a situação é o malandro do Madureira. De costas para
cena, deitado de barriga para cima, pernas cruzadas e mãos entrelaçadas sobre o peito, cabeça
inclinada para frente, faz cair o chapéu que tapa o sol da vista. A suposta elegância do terno
que, repleto de estrelinhas, pode querer sugerir um gosto duvidoso, é quebrada pelo pé
descalço, que segura um charuto. Além dele, só o operário do Bangu apenas observa, atento, o
desenrolar da situação, sem expressar qualquer comentário.
Todos os personagens que estão à margem da ação principal acabam se tornando
espectadores de uma atração paralela à primeira. A trama elaborada por Molas reconhece dois
núcleos distintos. O núcleo dos personagens principais e dos coadjuvantes, mas até as
atenções do segundo estão sempre voltadas para o primeiro. Basta ver que a partir do
momento em que os personagens surgiram, ao menos um entre os quatro aparece sempre nas
charges, com exceção do Diabo do América que, apesar de não ter acesso à casa, é o
personagem mais recorrente do núcleo coadjuvante. Em 1944, o América totalizava seis
conquistas do campeonato carioca de futebol, a mais importante competição da época, sendo
que a anterior, como a do Botafogo, havia sido em 1935. O maior detentor de conquistas até
então era o Fluminense, que contabilizava 13 títulos, seguido pelo Flamengo, com 9
conquistas. O Botafogo,65 considerando todos os títulos conquistados em ligas diferentes das
que envolviam seus maiores rivais, alcançara sete conquistas. De todo modo, acreditamos que
demais aspectos como tradição do clube, número de torcedores e investimentos em jogadores
e estrutura eram possivelmente levados em consideração por Molas no momento em que
representava o América na transição entre os clubes “grandes e pequenos”.

65
Desconsiderando o campeonato de 1907, na época sem campeão declarado, o título em 1996 foi dividido por
decisão da Justiça Desportiva entre Fluminense e Botafogo.
70

Na charge do dia 26 de setembro de 1969 (Figura 3.5), percebemos logo no título do


espaço fixo reservado a Henfil uma diferença significativa em relação à obra de Molas. Henfil
adota a perspectiva de um dos times, assumindo sua clara predileção pelo Urubu que
representava o Flamengo, seu clube do coração. Basta ver o nome Urubu em grandes letras de
hastes espessas e com leve uma sombra que lhe atribui ideia de volume, destacando-se no
meio do quadrinho vazio. Embaixo do nome do urubu, em letras de menor tamanho e grafadas
no mesmo estilo do texto dos balões, lê-se entre parênteses: “(e Bacalhau)”. No primeiro
quadrinho em que a narrativa se inicia, observamos logo de cara os quatro personagens
principais divididos em pares. Enquanto Urubu e Bacalhau caminham lado a lado, Pó de
Arroz e Cri-Cri debocham exaustivamente do “personagem principal” da tirinha de Henfil:
“Ara vejam! O lanterninha66 Urubu criou coragem e levantou da sarjeta. Qual foi o veterinário
que te enganou?”, provoca o Cri-Cri. “Incrível a falta de vergonha desse povinho da massa.
Não reconhecem o seu lugar e teimam em andar feito gente”, concorda o Pó de Arroz. No
quadrinho seguinte as provocações continuam enquanto as fisionomias de Urubu e Bacalhau
vão revelando evidente aborrecimento. Olhos e bocas cerrados demonstram a apreensão do
Urubu, que chega a soltar fumaça da cabeça. “Dá pena, Pó de Arroz! O Mengo morreu e essa
cambada de trouxas ainda não descobriu”, prossegue o Cri-Cri, no que o Pó de Arroz
completa: “Eles são felizes com a sua sucata. Nunca vi time de abóbora jogar futebol. Rê, rê,
rê...”. Enfastiado, o Urubu resolve se livrar das companhias indesejáveis, baixando as calças e
mostrando as nádegas nuas, para espanto de todos. A charge até poderia acabar aí, mas na
sequência os rivais da elite já foram embora e Urubu e Bacalhau passam a lamentar a situação
a que chegaram: “Tá vendo a que ponto chegou. A elite não respeita mais a massa, não teme a
tradição furiosa de sua camisa.” Passa, então, a motivar o companheiro: “Tem que reagir
porque daqui a pouco até os cães vadios trocarão de calçada quando virem um rubro-negro”.
O Urubu, então, pousa a mão sobre o ombro do amigo, admitindo que “não há massa que
resista aos vexames desse time do Tim”.67 No quadrinho final, Bacalhau empurra o Urubu,

66
Acredita-se que o deboche fizesse alusão à situação do Flamengo, que, em seu grupo, era o time que mais
havia perdido pontos. O clube rubro-negro amargara mais recentemente uma derrota por 3 x 0 para o Grêmio e
não passara de um empate sem gols contra a - até então - modesta equipe do Bahia. A fórmula de disputa previa
uma primeira fase, onde os 17 participantes jogavam todos contra todos, em turno único, mas divididos em 2
grupos (um de 8 e outro de 9). Classificavam-se os 2 primeiros de cada grupo para a fase final. Os quatro
finalistas jogavam entre si em turno e returno e seria o campeão aquele que somasse mais pontos. A Folha de
São Paulo publicava duas tabelas de classificação: por pontos ganhos e por pontos perdidos. O Flamengo
aparecia, na rodada anterior à referida charge com quatro pontos ganhos e seis perdidos. Fluminense aparecia em
segundo, por pontos ganhos, com 5 pontos, mas por pontos perdidos caía para sétima posição, com os mesmos 5
pontos. O Botafogo na primeira classificação por pontos ganhos aparecia em quinto, tendo conquistado 2 pontos
e perdido 4 pontos, o que o empurrava para quarta posição.
67
Técnico do Flamengo na época da charge.
71

motivando-o a uma reação, sugerindo ir pressionar o técnico rubro-negro: “Então pra


começar, vamos dar uma traulitada nesse corôa anarquista”.
A charge destacada configura um dos exemplos mais perfeitos de como funcionava o
enredo elaborado por Henfil. A aproximação entre os times é abertamente relacionada a essa
divisão social, a qual as torcidas dos clubes se identificam. As duplas estão constantemente
reforçando essa separação, estabelecendo a diferença entre o “eu” e o “outro”. Delimitam as
características de cada grupo e as fronteiras entre os dois ambientes, cada um à sua
perspectiva, estabelecendo seus respectivos valores. Urubu e Bacalhau enaltecem valores
ligados à força da massa trabalhadora, alinhados aos discursos de movimentos de esquerda,
demonstrando consciência de classe, reforçando posições e jargões comuns ao meio, tratando
um ao outro por “companheiro” e lembrando a força do povo. Desse modo, procuram
desmoralizar os valores e costumes ligados às elites, denunciando seus privilégios onde as
regras de etiqueta viram “frescura”. Pó de Arroz e Cri-Cri, por sua vez, frisam sua posição na
hierarquia social estabelecida e procuram impor-se por uma pretensa “classe” ou
“sofisticação”, muitas vezes abusando de palavras menos coloquiais ou de expressões banais
em francês ou inglês. Poderíamos perceber aqui uma crítica de Henfil ao atribuir à elite uma
valorização à cultura estrangeira, face à nacional? A ideia em torno do domínio cultural
enquanto ferramenta de poder separando os dois meios é frisada a todo instante. A acusação à
classe popular de ignorância e falta de classe ou educação, especialmente com relação ao
Urubu, é contraposta à acusação de afetação e fragilidade às torcidas da elite. Esse conflito,
uma vez demarcado, jamais é suspenso. De certo modo, Henfil transformou uma rivalidade
entre quatro grandes agremiações em uma dualidade, a exemplo das partidas de futebol, ao
mesmo tempo em que transformou qualquer jogo entre duas dessas agremiações em um
conflito que envolvia os quatro grandes.
72

Figura 3.6 Almirante, Pato Donald e Popeye comemoram o tropeço do líder Fluminense diante do América,
renovando a motivação dos concorrentes na disputa pela Miss, que ficou à espera do Cartola. JS, 19 de setembro
de 1944.
73

Figura 3.7 Urubu e Bacalhau planejam juntar-se na torcida contra o Botafogo. A sugestão do cartunista, segundo
o próprio, foi aceita e posta em prática, o que seria inimaginável (HENFIL, 1984a, p. 16); JS, 08 de novembro de
1969.
74

Nota-se um clima de euforia entre as mascotes de Vasco, Botafogo e Flamengo na


charge do dia 19 de setembro de 1944 (Figura 3.6). No sábado anterior, o Fluminense, que até
então liderava o campeonato com relativa folga, perdeu por dois a um para o América,
alimentando a esperança dos concorrentes de ultrapassá-lo.68 A situação do Cartola,
impossibilitado de comparecer ao compromisso com a Miss por estar preso pelo tridente do
Diabo e pairando sobre seu caldeirão, com seu traje de gala em farrapos, torna sua expressão
triste e resignada. Contrasta com o largo sorriso no rosto do Almirante, do Popeye com sua
lata de espinafre e do Pato Donald, erguido no ar pelos outros dois. Demonstram certa união
em prol do interesse comum. De toda forma, o que vemos ali não é uma formação de parceria
permanente, mas uma necessidade de torcer contra o líder para poder alcançá-lo. Quando o
Flamengo ultrapassou o Fluminense na liderança do campeonato naquele ano, todos passaram
a confabular contra o Popeye.
A charge do dia 8 de novembro de 1969 (Figura 3.7) procurava aquecer os ânimos
para o jogo entre Flamengo e Botafogo pelo campeonato nacional.69 Henfil já havia feito a
sugestão e resumia a história no primeiro quadrinho da seguinte maneira: “Para ganhar, ‘pelo
menos’ na arquibancada, os líderes da massa Urubu e Bacalhau planejaram ocupar o lado
direito e o lado esquerdo do estádio no domingo”. Nos “43 graus e 3 décimos na República
Popular de Ramos”, Urubu e Bacalhau divertiam-se por antecipação, antevendo o sucesso de
sua armação na “guerra” contra a elite carioca e imaginando a torcida alvinegra se deparando
com os dois lados da arquibancada ocupados por representantes vascaínos e flamenguistas.
No meio da alegria, subitamente, o Bacalhau percebe que eles se esqueceram da parte do meio
da arquibancada. O Bacalhau ainda se lembra de pedir apoio à torcida do América, que “são
meio independentes, burguesia esclarecida e tal, mas simpatizam com a causa da massa”. No
que o deboche do Urubu ridiculariza a expressão numérica da torcida rubra: “Pô, Bacalhau!
Chico Anísio, Otávio, Lúcio Lacombe e Bayer não dão pra ocupar um degrau”. Se em
determinado momento se referem aos 32 torcedores do Botafogo, ambos os exageros
funcionam como elemento fundamental das caricaturas dessas torcidas. Ao se contentarem em
liberar a parte do meio da arquibancada para a torcida alvinegra, o Urubu ainda comenta que
tirar do Cri-Cri o espaço que lhe é reservado já seria uma vitória moral. Nos dois quadrinhos

68
Ao fim da rodada anterior, a 11ª do campeonato, o Fluminense acumulava 19 pontos ganhos e mantinha quatro
pontos de vantagem sobre os vice-líderes, Vasco e Botafogo, ambos com 15 pontos, seguidos de perto pelo
Flamengo, com 14 pontos conquistados até então. Na 12ª rodada, com a derrota do tricolor para o América e as
vitórias de Vasco, Botafogo e Flamengo diminuíam a vantagem tricolor para 2 e 3 pontos, respectivamente, e
tornavam a disputa mais acirrada. Com a vitória o América, mais distante dos demais, chegava a 13 pontos.
69
A referida charge traz à lembrança o depoimento de Henfil, destacado anteriormente no presente capítulo.
Henfil afirmara que as torcidas de Flamengo e Vasco, motivadas por sua charge, teriam se juntado no Maracanã.
75

finais, o cão alvinegro vai correndo assustado contar ao dono os planos da massa. Sua fúria
evidencia um acentuado e recíproco desprezo elitista pela massa: “O populacho quer destruir
a elite, mas não conseguirá! O que vem da lama não atinge a estratosfera!!!”.
As duas charges anteriores são bastante elucidativas da forma como Molas e Henfil
estimulam as rivalidades. Essas duas charges específicas também mostram como os dois
cartunistas estabelecem diferentes divisões entre os clubes. A rivalidade em Molas não
encontra muito espaço para uma manutenção constante de parcerias, como faria Henfil. A
charge de Molas se desenvolve em uma trama em que todos disputam a aceitação da Miss. As
parcerias, quando surgiam, eram provisórias. Somente ocorriam naqueles momentos em que
os menos favorecidos na tabela queriam o tropeço de quem estava por cima, como acontece
na charge destacada. A divisão estabelecida por Molas envolve um grupo que ainda pode
alimentar pretensões matrimoniais com a moça. São, sem dúvida, as mascotes dos times tidos
como de grande expressão, os maiores detentores de títulos,70 que mobilizavam as maiores
torcidas da cidade. Essas mascotes costumavam, ano a ano, frequentar a sala da Miss, ou seja,
representavam times que estavam sempre entre os primeiros na tabela, com chances de título.
Os demais, incluindo o América, resignavam-se a cumprir papel coadjuvante e,
excluídos das reuniões na casa da Miss, contentavam-se em observar as reviravoltas da
disputa pelo buraco da fechadura. Podemos supor uma metáfora também em Molas entre uma
determinada elite, representada pelos clubes de maior expressão, e os demais, que não
alimentavam maiores pretensões no certame. Uma diferença importante entre a divisão
articulada por Molas e por Henfil é que o primeiro concentra o grande foco de atração da
narrativa apenas no grupo “da elite”, daqueles que reúnem um mínimo de condições
fundamentais para poder frequentar a casa e alimentar pretensões à mão da Miss. O maior
interesse de um campeonato é o campeão, da mesma forma que o foco metafórico da charge
está em quem irá desposar a Miss Campeonato. Os que nem sequer frequentam a casa
permanecem à margem do interesse dos leitores. Logo, à margem da trama.
As mascotes que representam os clubes pequenos são desprezadas por Henfil.
Simplesmente não existem em sua trama. Além dos quatro principais, o único clube
representado era o América e mesmo assim aparecia ou era mencionado esporadicamente,
70
Chega a ser estranha a exclusão do América do grupo de elite na época de Molas, uma vez que acumulava um
total de títulos maior do que o Vasco, integrante mais recente na competição, e apenas um a menos do que o
Botafogo, considerando que o título de 1907, dividido com o Fluminense por decisão judicial de 1996, ainda não
era computado e que três de seus quatro títulos seguidos foram conquistados na época da cisão entre os clubes
pela questão do profissionalismo. A respeito da profissionalização, ver: MALAIA, João M. C. Revolução
Vascaína: a profissionalização do futebol e inserção sócio-econômica de negros e portugueses na cidade do Rio
de Janeiro (1915-1934). 2010. 490f. Tese (Doutorado em História Econômica) - Programa de Pós-Graduação em
História Econômica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
76

geralmente de maneira a reforçar a sua inexpressividade numérica. Estabelecendo uma


fronteira entre dois espaços claramente demarcados, dividindo em dois grupos os
representantes dos quatro clubes de maior expressão, faz com que toda a trama gire em torno
dessa separação. A divisão na charge de Henfil ganha relevância muito maior porque a
fronteira passa ao meio dos times que concentram maior atenção dos leitores e porque ela
estimula uma rivalidade específica, conduzida. Quando Henfil localiza a fronteira na divisão
social, traz os problemas do social para dentro da discussão futebolística, como se as duas
esferas fossem indissociáveis. Evidentemente, essa divisão é questão que merece discussão
mais profunda. A ela nos dedicaremos no capítulo referente aos aspectos políticos da charge.
Por ora, basta perceber essa união explícita entre os “rivais históricos” Flamengo e Vasco. Na
charge de Molas, Popeye comentava que seu “consolo era o Almirante com a velha”. Vale
ressaltar que “estar com a velha” significava uma segunda colocação, dentro da metáfora
utilizada por Molas, o que nos leva a concluir que o “peso” sobre os ombros do vice-campeão
era maior do que aquele sobre os ombros das demais piores colocações. Com isso, ao
contrário de Henfil, Molas parece querer ressaltar a rivalidade entre Flamengo e Vasco.
Confrontando as charges recém destacadas, torna-se visível uma diferença crucial na
maneira como os cartunistas articulavam as rivalidades. A despeito disso, Henfil teria optado
por uma licença poética ao tornar companheiras duas torcidas que alimentavam uma
rivalidade histórica? Richard Giulianotti (2002) parece reforçar a ideia que associa
identidades clubísticas a classes sociais, como prefere Henfil, percebendo no clássico Fla-Flu
um exemplo mais adequado a representar este antagonismo social, uma vez que Vasco e
Flamengo, reconhecidos como “times de massa”, mobilizariam dezenas de milhões de
torcedores em todo o país (CASTRO, 2001).
Devemos lembrar que é exatamente essa ideia em torno das figuras representativas dos
torcedores que é reforçada por Henfil, ao acentuar as polaridades sociais na rivalidade entre
estes dois clubes. A diferença é que a representação do Pó de Arroz elaborada por Henfil, ao
contrário de esconder, explicitava seu preconceito de raça e classe social. Sabe-se, entretanto,
que essas divisões de grupos de torcedores de futebol não estabelecem limites muito precisos,
tampouco obedecem a ordens muito racionais. A paixão esportiva por determinados clubes,
equipes ou agremiações são escolhas ligadas às mais diversas associações afetivas: ligações
familiares, regionalismos, identificações culturais, vivências pessoais e até causalidades. Ao
mesmo tempo, as diferenças sociais estão entre as múltiplas formas de identificação coletiva
em torno de uma agremiação esportiva. Antagonismos como o que existe entre Flamengo e
Fluminense são exemplares nesse sentido, em que um clube procura reivindicar um
77

pertencimento simbólico a uma determinada elite ou, ao contrário, sua identidade com a
massa.71

3.2 As mascotes e as representações da imprensa

Naquela quinta-feira eu encontrara o Molas preparando croquis para painéis


monstros. O Flamengo pedira quatro croquis. Um com Popeye de casaca, dando
braço à Miss Campeonato, vestida de noiva. Outro com Popeye sentado no pato
dizendo: Até sentado ganhei o campeonato. E mais um: Popeye de garção, servindo
um peru assado, com a cara do Almirante. E mais outro: Popeye abrindo três dedos:
Tri-campeão.
[...] O Vasco também mandara armar três carros alegóricos, para fazer um Carnaval
na Avenida, logo depois do jogo. E já tinha arranjado uma Miss de carne e osso.
Com um desenho de Molas, os vascaínos saíram à procura de uma Miss, de uma
mulher que tivesse o corpo da Miss. Uma costureira, torcedora do Vasco, fizera o
vestido da noiva, transparente. A Miss apareceria com muito pouca roupa, dando o
braço ao Almirante, que era o Manoel Atleta.
[...] Hoje de noite seria domingo de Carnaval. Só resta saber quem ia brincar na
Avenida. Se o Flamengo ou se o Vasco. Os bondes cheios passavam com mais
frequência. E os lotações corriam pela Avenida Beira Mar uns atrás dos outros
(FILHO, 1966, p. 216).

Na longa crônica sobre a final do campeonato de 1944, entre Flamengo e Vasco,


Mário Filho (1966) descreve detalhadamente as emoções da partida, desde os preparativos das
duas torcidas, dias antes do jogo, até o momento da grande festa, a que chamou de “Carnaval
da Primavera” e que acabou sendo a da torcida do Flamengo. Nas descrições dos preparativos,
de fato, podemos imaginar um verdadeiro carnaval, quando o jornalista descreve caravanas,
carros alegóricos, clarins, bandas de música, foguetes e serpentinas. Dada a subjetividade
dessas interpretações sobre essas representações de clubes, cremos poder atribuir uma função,
entre as mais imediatas, para a criação dessas mascotes no que se refere à construção de um
forte elemento no imaginário da cultura futebolística. Na medida em que essas representações
assumem uma forma concreta, cognoscível, passam a estabelecer uma maior pregnância na
memória iconográfica do torcedor. A imagem do Cartola passa até a dispensar a cartola, após

71
Ao tratar da competição de torcidas promovida pelo JS em 1951, Bernardo Buarque de Hollanda (2012)
afirma que a torcida tricolor planejava levar ao estádio a mundialmente conhecida orquestra do maestro
trompetista Tommy Dorsey, que não só se apresentaria como também representaria a torcida do Fluminense.
Cremos poder observar aqui uma possível intenção de se ressaltar o aspecto elitista da torcida, se levarmos em
conta que, embora muito popular nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, o jazz no Brasil daquele
momento ainda poderia ser mais associado ao gosto da elite. Até porque se tratava de um conjunto de estrutura
mais complexa, na linha das grandes orquestras do momento como a de Benny Goodman e Glen Miller. Se
compararmos a “estratégia musical” do Fluminense à do Flamengo para a mesma competição, por exemplo,
veremos que o rubro-negro dava preferência a valorizar ídolos nacionais da era do Rádio, como o cantor e
compositor Blecaute - negro, de origem humilde, torcedor do clube, que fazia enorme sucesso com a marchinha
de carnaval General da Banda e provavelmente já servisse de identificação com o clube, que, segundo Buarque
de Hollanda, àquela época já se autoproclamava “o mais querido do Brasil” (HOLLANDA, 2012, p. 90).
78

as primeiras charges, na medida em que o leitor já pôde aprender a relação entre o


personagem e o clube, através de uma convenção simbólica. O objeto “cartola” não precisa
estar em sua cabeça, pois o símbolo da aristocracia permanece atrelado à sua figura da mesma
forma. Cartola se transforma em um símbolo verbal, em um apelido. O mesmo acontece com
os personagens de Henfil. O Urubu e o Bacalhau são representados por um estereótipo do
negro e do português, mas a conotação pretendida está implícita.
Victor Melo (2012) analisa a importância da imagem sobre os primórdios da relação
entre imprensa e o esporte moderno em artigo publicado no livro “O Esporte na imprensa e a
imprensa esportiva no Brasil”. No artigo, o autor dimensiona o papel das ilustrações, charges
e fotografias na consolidação das representações da imprensa sobre o esporte. Através da
constante publicação das mais variadas imagens representativas de alguma modalidade, de
personagens do mundo esportivo, de instalações esportivas ou público, a imprensa imprime
sua perspectiva sobre diversas nuances do fenômeno esportivo. Melo (2012) ainda ressalta
que as imagens estabelecem um contato mais imediato com o leitor, impondo modas e
comportamentos. Além desses fatores, a imagem, por ser mais imediata e universal, ajuda a
estabelecer na memória o conjunto de interpretações, representações e ideologias propagadas
pelo veículo que a publica. A partir do momento em que o público passou a ter contato diário
com as informações verbais e visuais de Molas, e depois de Henfil, essas representações
passariam a estabelecer um diálogo com os leitores, onde eles assimilariam gradativamente
esse jogo de representações, compreendendo a figura simbólica de cada clube ou mascote,
como chamamos aqui, como novos símbolos desses clubes.72 No caso de Molas, a
apropriação de Pato Donald e Popeye, deslocando-os de seus respectivos ambientes fictícios
para o qual foram criados, significava possivelmente um desafio a mais no que diz respeito a
ensinar o leitor a compreendê-los em uma nova e inusitada conotação para os personagens.
Ir ao futebol e acompanhar os campeonatos da primeira divisão das principais ligas
transformou-se- em uma experiência singular pra aqueles que viveram no Rio de
Janeiro e em São Paulo nas primeiras décadas do século XX (MALAIA, 2012c, p.
59).

João Malaia (2012c) destaca a polarização de sentimentos nas competições


futebolísticas, onde a cada jogo se opõem dois times que mobilizam torcedores a apoiar um e
desejar a desgraça do outro e onde se registram emoções que com o passar das décadas vão se
tornando cada vez mais fortes e envolventes. Tomando emprestada uma ponderação de
Nicolau Sevcenko, quando afirma que “a multiplicação ciclópica das escalas do ambiente

72
Símbolo: um signo que indica seu objeto referencial por meio da convenção, não por semelhança ou
aproximação de elementos visuais (SANTAELA, 2005, p. 12-36).
79

urbano tinha como contrapartida o encolhimento da figura humana e a projeção da


coletividade como um personagem em si mesmo” (SEVCENKO, 1992 apud MALAIA,
2012c, p. 59), o autor sugere uma reflexão sobre o fenômeno dessas novas representações
coletivas analisando seu significado entre as torcidas de futebol. O desenvolvimento da
prática do futebol e sua crescente popularidade no país se tornaram responsáveis por uma
experiência de coletividade que estimula fortes sentimentos de euforia ligados aos de
pertencimento e reconhecimento de identidade em torno dessas agremiações.
No que concerne à questão das diferenças sociais estarem embutidas no bojo dessas
representações, há que se levantar o risco de tomar essa identificação como monolítica,
naturalizada e imutável. Imprescindível considerar a intervenção da imprensa na construção
de “tradições” e de “mitos fundadores”, bem como no processo de popularização de
determinadas agremiações, promovida pelo aumento de sua exposição na mídia. No Rio de
Janeiro, observaremos, por exemplo, a rápida transformação observada no caso do Clube de
Regatas Flamengo. Henfil, em 1969, já enaltecia a representatividade da massa, associando o
rubro-negro a um time das camadas mais populares. Mas se observarmos a representação
expressa por Molas, não veremos nenhuma referência a uma consciência de pertencimento de
classe. As referências iconográficas em torno do Popeye não parecem estabelecer associações
específicas com as camadas mais populares da cidade, pois o contexto original do personagem
de Segar não aborda a questão. A hipótese que levantamos é que possivelmente essa dita
massificação da torcida rubro-negra ainda estivesse em processo. Em todo caso, nos
dedicaremos mais profundamente a esse ponto ao tratarmos das representatividades que
Molas e Henfil elaboraram sobre cada clube ou sobre o torcedor de cada clube, refletindo
sobre as formações sociais nesses dois momentos.
Procuraremos, a seguir, tentar melhor compreender as interpretações da imprensa
sobre algo tão subjetivo como são as características essenciais da personalidade dos
torcedores e o histórico de cada clube. Se a imprensa tomou para si essa incumbência é
porque, a princípio, tal jogo de representações pareceu-lhe interessante no que diz respeito à
aproximação dos laços afetivos com os leitores. Era através do diário esportivo que muitos
torcedores buscavam se informar sobre os acontecimentos do universo futebolístico. Esses
órgãos da imprensa, por sua vez, interessavam-se em criar artifícios e novos produtos
editoriais, que ainda ajudavam a promover o espetáculo, “aquecendo os ânimos”, e mantendo
vivo o interesse dos leitores pelos bastidores do campeonato mesmo em períodos fora de
temporada.
80

Uma última observação faz-se imprescindível para ajudar a comparar as


representações nos dois momentos analisados nesta pesquisa. As mascotes de Molas
representavam os clubes. Tal jogo de representações era fundamental para a metáfora
utilizada pelo cartunista, ao comparar o troféu de campeão a uma exuberante morena,
ostentando o posto de Miss, simbolizando a mais desejada, a mulher mais bela de todas. A
disputa pelo título se transformava, em sua charge, em uma disputa amorosa cujo grande
prêmio é o casamento com a beldade. Nas charges de Henfil, cai a metáfora amorosa em
detrimento da metáfora política. Inverte-se o jogo das representações quando o futebol deixa
de ser apresentado pela metáfora amorosa. Com Henfil, foi o próprio futebol que se tornou
metáfora para a representação da desigualdade social e das tensões políticas antes e depois do
AI-5:
De um lado “Ipanema Beach”, a “elite tricolor”, a “burguesia botafoguense”. Do
outro a “República Popular de Ramos”, do Urubu e do Bacalhau que lutavam contra
a burguesia. [...] Eu não fazia personagens representando os clubes, eu fazia
representando as torcidas (HENFIL, 1984a, p. 17).

Acreditamos que suas fontes de inspiração poderiam mesmo ter sido suas próprias
impressões sobre o cotidiano esportivo da cidade, bem como as cartas dos leitores e,
sobretudo, a maneira como seus próprios colegas de redação percebiam e interpretavam as
diferentes características dos clubes e estereótipos das torcidas. Passaremos, então, às
discussões em torno dessas interpretações, observando nas representações de cada clube ou
torcida as semelhanças e diferenças entre os dois períodos. Veremos que as representações
articulam um conjunto de características que são absorvidas, reinterpretadas, abordadas de
forma diferente ou simplesmente negligenciadas ao compararmos um período com outro.
Para tanto, lançamos mão de ferramentas que nos serão fundamentais para a discussão,
como as recentes obras dedicadas ao fenômeno esportivo, principalmente aqueles dedicados à
torcida e à imprensa brasileira já aqui citados, com preciosos artigos como de Bernardo
Buarque de Hollanda (2012), Victor Melo (2012) e João Malaia (2012b, 2012c). Para análise
sobre as interpretações da imprensa sobre o futebol, precisaremos nos valer da extensa obra
dos grandes memorialistas Mário Filho (1964, 1966, 1994) e Nelson Rodrigues (2012). O
livro da jornalista Cláudia Mattos (1997) também será de grande utilidade, uma vez que ela
dedicou-se a um assunto um tanto impreciso para o meio historiográfico: a empreitada de
tentar compreender as diferenças no “espírito” dos torcedores dos quatro clubes de maior
expressão do Rio de Janeiro. Resultado de Dissertação de Mestrado em Comunicação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, a obra nos será útil como uma observação de uma
jornalista que, nos anos 1990, se debruçou sobre a obra de nomes como João Saldanha e os já
81

citados Mário Filho e Nelson Rodrigues, que deixaram suas interpretações sobre as torcidas
em períodos próximos aos que os cartunistas atuaram. Notando que a autora lança mão de
nomes de enorme relevância da crônica e da imprensa esportiva brasileira do século XX, é
preciso, no entanto, salientar que o trabalho da autora será analisado também enquanto mais
uma representação da imprensa.

3.2.1 Uma rebelde estrela solitária

Figura 3.8 “Essas coisas só acontecem comigo” é um conhecido ditado popular relacionado ao Botafogo, cuja
evidência acima parece constatar que já existia na época em que Molas começou a trabalhar no JS. Acima, a
primeira aparição do Pato Donald como figura simbólica do Botafogo. JS, 28 de junho de 1944, p. 1.
82

Figura 3.9 “Estou tão feliz que troquei o hino”: com esta simples frase, Henfil atribui o estigma da infelicidade
como norma ao torcedor do Botafogo e sugere que o hino flamenguista fosse reconhecido, mesmo por um
torcedor de outro time, como adequado para momentos de comemoração. JS, 10 de novembro de 1970, p. 2.
83

Observando as duas charges, podemos distinguir, de imediato, a enorme distância


entre as duas representações do Botafogo no que diz respeito ao caráter gráfico dos
personagens. Entre o Pato Donald e o gordinho invocado de camisa alvinegra, não há
aparentemente semelhança alguma que possa identificar um mínimo ponto em comum. É
necessário o conhecimento prévio dos personagens para saber que ambos representam o
mesmo clube em épocas diferentes. Da percepção imediatamente visual para a análise mais
atenta da tirinha, perceberemos, talvez, algumas outras semelhanças, uma vez que a linha de
raciocínio que estabelece a representação alvinegra pela imprensa manteve suas
características primordiais.
Estava marcada para aquela quarta-feira, dia 28 de junho de 1944, a realização de um
novo confronto pelo Torneio Municipal entre Botafogo e o clube Canto do Rio de Niterói. A
partida remarcada já não valia nada mais do que a terceira colocação na competição, já
vencida pelo Vasco três dias antes.73 O primeiro jogo, realizado no dia 5 de junho, teria sido
anulado por “erro de direito”, registrando em um campo de futebol brasileiro um episódio tão
inusitado quanto polêmico. O Botafogo estava vencendo o jogo pela contagem de dois a um
quando um escanteio contra a sua meta resultou no gol de empate da equipe niteroiense.
Como o gol se originou da cobrança de um escanteio inexistente, os jogadores do Botafogo
foram reclamar ao juiz Pereira Peixoto, que apesar de não estar completamente seguro sobre o
lance, expulsou o jogador Santa Maria. Ao consultar seu auxiliar, foi informado que, de fato,
não deveria ter assinalado escanteio para o Canto do Rio, mas tiro de meta a favor do
Botafogo. Ciente de seu equívoco, o juiz preferiu voltar atrás em sua decisão, anulando o
escanteio, o gol e a expulsão de Santa Maria. O jogo que seria futuramente anulado pela
Federação Metropolitana de Futebol acabou três a um a favor do Botafogo, suscitando uma
polêmica na imprensa (trataremos da polêmica após a descrição das duas charges). A charge
que ocupa posição de destaque na primeira página do jornal no dia seguinte ao da partida
(Figura 3.8) mostra uma representação do Pato Donald em seus clássicos ataques de fúria. Em
um grande salto, braços estendidos e punhos cerrados, ele exclama que “essas coisas só
acontecem comigo”, frase que é lembrada ainda hoje para se referir aos estranhos fenômenos
atribuídos ao clube. Estrelas acima de sua cabeça simbolizam uma forte dor provocada pela
pedra atirada pelo garoto, símbolo do Canto do Rio, que por sua vez se diverte com a
situação: “Sou de Niterói... Quero é me divertir...”. É provável que este “quero me divertir”

73
Justifica o título da charge: “O jogo que sobrou”. JS, 28 de junho de 1944, p. 1.
84

seja uma referência ao raro fato de um clube de Niterói participar do Torneio Municipal da
cidade do Rio de Janeiro.
Observando a charge do dia 10 de novembro de 1970 (Figura 3.9), optamos por
concentrar nosso foco apenas nos três primeiros quadros, que propiciam reflexões mais
pertinentes à discussão. Logo no primeiro quadrinho podemos ver o Cri-Cri radiante de
felicidade. Comemorava saltitante e de braços erguidos a recente contratação de seu
Botafogo: “Gérson no Botafogo!”. Tratava-se do meio-campo Gérson, que até então defendia
as cores do São Paulo e era conhecido como “o canhotinha de ouro”. Naquele mesmo ano,
Gérson se consagrou como titular absoluto da seleção brasileira tricampeã do mundo, no
México. Seu entusiasmo, porém, causa certo estranhamento no segundo quadro quando o
personagem começa a cantar o antigo hino rubro-negro: “Flamengo, Flamengo, Tua Glória é
lutar!” No terceiro quadrinho o personagem aparece envergonhado pela gafe, desculpando-se
com os leitores: “Desculpem, estou tão feliz que troquei o hino”.
Comparando as charges selecionadas, podemos observar algumas das características
mais perpetuadas pela imprensa esportiva a respeito do estereótipo do Botafogo ou do
botafoguense. O episódio inusitado na partida válida pelo Torneio Municipal serve de
pretexto para ironizar a revolta dos alvinegros, reforçando sua suposta postura de incansável
contestador. Ao anular as decisões por ele mesmo tomadas, o árbitro Pereira Peixoto gerou
uma interessante polêmica na imprensa. O “Correio da Manhã” demonstrou indignação com a
conduta do juiz por ter decidido anular suas próprias decisões: “Pelo exposto, quem conhece
as regras do futebol chegará à conclusão que um juiz que anula tanta coisa, não passa de um
nulo... na arte de arbitrar.”74 Já a “Folha da Noite”, ao contrário, o apoiava concluindo que
teria agido corretamente, uma vez que, ciente de seu erro, não poderia sustentá-lo: “Mas de
qualquer forma, fôssem quais fôssem as consequências para sua pessoa, seria êle um indigno
se mantivesse as penalidades impostas indevidamente ao clube que não incorreu em nenhuma
infração.”75 A polêmica evidencia, ao menos, que não havia unanimidade em relação à
condenação do juiz e à anulação da partida. Aproveitar o episódio para identificar o
botafoguense como um contestador irredutível, através de sua identificação com o Pato
Donald nos ajuda a refletir sobre a contribuição do JS para reforçar os estereótipos por eles
sustentados.

74
Correio da Manhã, 06 de junho de 1944, p. 9.
75
Folha da Noite, 08 de junho de 1944, p. 7.
85

A charge de Henfil, por sua vez, debocha da felicidade alvinegra, sugerindo se tratar
de um momento raro. Devemos ressaltar a assumida predileção de Henfil pelo rubro-negro,
não escondendo sua torcida pelo Flamengo em suas charges, o que nos leva a supor que é
possível que estivesse sugerindo que o hino alvinegro não fosse compatível, então, com
momentos de alegria, sendo o hino rubro-negro mais propício a festividades e comemorações.
No entanto, no ano de 1970 era o Flamengo que amargava um jejum maior de títulos, tendo
sido campeão pela última vez em 1965, enquanto o Botafogo havia se sagrado bicampeão em
1967 e 1968. Além disso, se o Botafogo perdia no número de títulos estaduais para o rival por
15 a 13, com relação ao Torneio Rio-São Paulo a diferença é esmagadora em favor do
alvinegro: 4 a 1. E o Botafogo ainda contava com uma Taça Brasil, que o Flamengo nunca
havia levado. Mais uma vez, as fontes nos levam a refletir sobre os mais variados artifícios,
entre os quais as charges se destacam, através dos quais a imprensa esportiva procurava impor
as suas perspectivas e interpretações a respeito do meio futebolístico.
Sobre os botafoguenses, Cláudia Mattos (1997, p. 110) procura tecer uma
característica ligada ao que chama de “cultura de oposição”, percebendo que seus torcedores
mais representativos formam uma “elite irresponsável”. Trata-se de uma intelectualidade
carioca de oposição, com poderes de formadora de opinião, que defende certa rejeição a
valores estabelecidos pela negação às instituições, bem como pelo senso comum, oferecendo
palpites intelectualmente fundamentados sobre as mais banais causalidades. Assim ela
percebe, por exemplo, a superstição atribuída ao torcedor, que encontra uma lógica particular
em um gesto ou hábito para explicar uma derrota ou uma vitória. O episódio lembrado pela
autora é exemplar. Em 1948, o presidente do Botafogo, Carlito Rocha, conhecido por ser
excessivamente supersticioso, encontrou no cachorro vira-lata Biriba76 a chave para a
conquista do campeonato. Rocha passaria a levar a mascote a todos os jogos, sentando-se ao
lado do cão na tribuna de honra.77 Ao final do campeonato, o título aguardado desde 1935
consagraria por muitos anos o cachorro como mascote do clube.78
Para organizar seus argumentos, Mattos (1997) seleciona episódios característicos da
trajetória do clube, escolhendo descrições de Nelson Rodrigues e Mário Filho, que nos serão
especialmente úteis nesta discussão.

76
Claudia Mattos refere-se a um vira-lata que, pelo quadro Baú do Esporte - reportagem especial da TV Globo,
mantém a aparência de um fox terrier preto e branco. Ver http://www.youtube.com/watch?v=LdQba08iUz0.
77
Carlito Rocha adotou o cachorro depois que o animal invadiu o campo e fez seu xixi em uma das traves do
adversário, distraindo o goleiro e provocando o gol do Botafogo (MATTOS, 1997, p. 114).
78
O cachorro ainda é a mascote utilizada por Mário Alberto, chargista do jornal “Lance” (principal diário
esportivo no país nos dias de hoje), para representar o Botafogo.
86

Assim como a intelectualidade carioca, e com ela o grupo de formadores de opinião


que a contém, se oporia ao academicismo das instituições, o Botafogo se opõe às
regras óbvias de um padrão de comportamento esportivo-clubístico (MATTOS,
1997, p. 111).

O que procuramos observar aqui é em que medida a identidade definida por “elite
irresponsável” para a cultura alvinegra, defendida pela jornalista, que ainda sugere a
preservação de uma “cultura de oposição”, pode encontrar respaldo na construção dos
personagens de Molas e Henfil. Há de se ressaltar que a autora seleciona e costura as mais
ricas percepções de Nelson Rodrigues e Mário Filho, nomes entre os mais atuantes e
relevantes na imprensa esportiva carioca e brasileira, sobre o clube conhecido por seus
torcedores como “O Glorioso”.
Mário Filho (1994) identifica nas origens do clube, idealizado por estudantes
adolescentes do Colégio Alfredo Gomes, uma perene disposição para dedicar-se a todo tipo
de enfrentamentos, de protestos e cisões. Tal disposição teria protagonizado os mais sérios
entreveros nas primeiras décadas de disputa do Campeonato Carioca de Futebol oficial. A
passagem destacada parece entregar uma crítica mal disfarçada ao alvinegro.
E não é difícil mexer com o Botafogo. Não há clube de sensibilidade mais à flor da
pele, com mais orgulho de Grande de Espanha do que o Botafogo. Eis porque ele
está sempre disposto a topar paradas, a se meter em encrencas, a arriscar até a
própria vida por uma coisinha. Nada que o atinja e mesmo que não o atinja, mas que
ele julgue que foi para atingi-lo, é coisinha pra ele. Ele devia ter nascido em outra
época. É a única flor retardatária de capa-e-espada que surgiu depois dos 1900
(MATTOS, 1997, p. 111; FILHO, 1994, p. 75).

Nota-se, pelas passagens, como “sensibilidade à flor da pele”, “arriscar até a vida por
uma coisinha”, “mesmo que não o atinja, mas que ele julgue que foi para atingi-lo [...]” uma
referência a um temperamento digno das fortes emoções juvenis, em que a conotação ao
comportamento adolescente parece mais clara. De fato, parece tão fácil quanto tentador
associar essa suposta “postura de brigão” do clube alvinegro ao sangue quente dos hormônios
em ebulição de seus primeiros dirigentes.
Pode-se verificar uma acentuação mais negativa do que positiva na perspectiva de
Mário Filho com relação ao Botafogo, observando apenas o trecho destacado. Nota-se,
sobretudo, que o autor, do mesmo modo que Molas em suas charges, não se refere à torcida,
mas ao clube. Refletindo sobre essa possibilidade, levando em conta a sua dedicação ao
enaltecer o futebol brasileiro e atrair as multidões, não podemos deixar de considerar que não
faria muito sentido que o editor do mais longevo e popular diário esportivo do Rio de Janeiro
nutrisse explicitamente uma declarada antipatia por qualquer um dos grandes clubes
brasileiros, alicerces fundamentais ao espetáculo que promovia. Há também certo caráter
87

positivo na postura de brigão do Botafogo: a ousadia, a confiança e a superação. Mário Filho,


na mesma crônica, enaltecia o mérito de um grupo de adolescentes imberbes terem
conseguido, de alguma forma, erguer um clube capaz de rivalizar com o Fluminense, o
melhor e mais organizado clube de futebol da cidade (FILHO, 1994).
Cláudia Mattos (1997) procura fundamentar a afirmação de Mário Filho destacada
acima através de momentos marcantes na história do Botafogo. O primeiro teria sido no
certame de 1911. A autora nos conta que, após três partidas, o jogador alvinegro Abelardo De
Lamare foi suspenso após ter dado um “bofetão” em um adversário. Não concordando com a
punição aplicada ao jogador, o clube preferiu abandonar o campeonato oficial, ingressando no
Campeonato da Pedreira e jogando contra times de menor expressão. Já no ano seguinte, o
Botafogo voltaria a disputar o campeonato da elite. A partir de 1933, o Botafogo seria o único
dos clubes de maior expressão a se manifestar contra o profissionalismo, preferindo disputar o
campeonato da liga amadora, novamente com os clubes de menor expressão, até se render ao
profissionalismo a partir do campeonato de 1937, que acabou conhecido como o “campeonato
da paz”.
“O Botafogo foi fundado pelos filhos da mesma elite que deu origem ao Fluminense.”
(MATTOS, 1997, p. 107). Claudia Mattos encontra fundamento nessa representação,
identificando o Botafogo não como um clube pertencente a uma elite aristocrática, como era o
caso do Fluminense, mas como uma elite em decadência, que “vivia seus últimos dias de
esplendor”. Traça um paralelo entre o bairro e o clube, que estavam em condição semelhante
nas primeiras décadas do século XX, até que a explosão demográfica que se acentuaria na orla
da Zona Sul na década de 1940 e 1950 o transformasse, em suas palavras, no “bairro de
passagem que se tornaria décadas mais tarde” (MATTOS, 1997, p. 109). Não surpreende que
o já citado depoimento de Henfil a Tárik de Sousa especifique da seguinte forma, a diferença
entre os representantes de Ipanema Beach: “a elite tricolor” e “a burguesia botafoguense”
(HENFIL, 1984a, p. 17).
Do mesmo modo, podemos ver diferenças explícitas entre as representações criadas
por Molas e Henfil para os dois times. Na obra de Molas, quem manteve a identificação com
essa elite foi o Cartola do Fluminense. Mesmo que a imprensa reconhecesse no Botafogo a
peculiaridade de uma elite decadente, a busca por autenticidade dos personagens não
permitiria que Molas atribuísse ao Botafogo uma representação que estivesse à sombra de
outro clube. Henfil, por sua vez, ao concentrar sua veia crítica na representação da elite,
preferia atribuir o nível social mais alto ao Fluminense. Veremos adiante alguns exemplos em
que o torcedor tricolor ostenta luxo e riqueza em algumas tiras, dispondo de um mordomo ou
88

de uma frota de carros. Este, como veremos, é cercado de uma simbologia ligada às mais altas
camadas sociais. Quanto ao Cri-Cri do Botafogo, apesar de formar a “República de Ipanema
Beach”, não aparecia nas charges de Henfil associado a esses símbolos mais aristocráticos.
A partir de 1969, ao elaborar novas representações para os grandes clubes da cidade,
Henfil escolheria entre as sugestões dos leitores um apelido para a torcida alvinegra que
mantinha certa sintonia com a representação de outrora e com a afirmação de Mário Filho,
destacada anteriormente. O verbete “Cricri” (grafado sem hífen, diferente da forma como
escrevia Henfil), segundo o dicionário Aurélio, remete a dois sinônimos: o primeiro,
relacionado à sua origem onomatopaica, sugere a imitação do canto do grilo, enquanto o
segundo refere-se às pessoas muito chatas.79 De fato, a característica que Henfil procurava
ressaltar era a associação entre o clube alvinegro e seus torcedores, junto com os do
Fluminense, às classes mais elitistas da cidade, residentes à Zona Sul. Mas é preciso
estabelecer diferenças entre as características do Cri-Cri e do Pó de Arroz para além da
identificação de ambos com a elite. Especificamente dois quadrinhos, o segundo e o terceiro,
na charge de Henfil parecem ajudar a compreender algumas diferenças.

79
“Cricri. Adj. 2 g.e.s. 2 g. Bras. Gir. Diz-se de, ou pessoa muito tediosa, chatíssima”. (HOLLANDA, 1975, p.
402).
89

Figura 3.10 Henfil procura a todo momento assinalar a suposta inexpressividade numérica da torcida do
Botafogo. JS, 29 de novembro de 1970, p. 2.
90

Henfil parecia querer desarmar aquela postura mais valente e decidida de outrora ao
construir um personagem mais triste, deprimido, de ímpeto mais arrefecido, encurvado,
tímido e acovardado.80 Muitas vezes, Henfil procurou salientar a menor expressividade da
representação da torcida do Botafogo em contraste com as demais, especialmente a do
Flamengo, que procurava exaltar e amplificar essa representação. Na charge destacada (Figura
3.10), por exemplo, Henfil ironiza a inexpressividade numérica das torcidas de Botafogo e
América. Observamos uma tranquila fila de botafoguenses em direção a um dos portões de
entrada do Maracanã. Na frente do portão, um funcionário vai contando os torcedores que vão
entrando: 1, 2, 3... Fecha a conta em 18, concluindo: “Pronto! Os 18 botafoguenses!”.

Figura 3.11 No quadrinho acima, o leitor pede a Henfil “que cesse de ficar reproduzindo em seus desenhos, as
histórias do Cri-Cri botando ovo”, alegando ser humilhante e exigindo respeito. Respondendo pela boca do
personagem citado, o cartunista sugere, em uma única frase, que o torcedor do Botafogo, além de cultivar
hábitos masoquistas, também não está acostumado a uma vida de prazeres enquanto torcedor: “Pô, Seu Milton e
Seu Pedro! Querem tirar o único prazer da minha vida?” JS, 10 de novembro de 1969, p. 3.

80
Veremos na parte que corresponde aos aspectos políticos que as motivações de Henfil justificam a
representação dos times ligados à elite uma imagem mais pejorativa.
91

Figura 3.12 Na resposta do quadrinho destacado, retirado da mesma tira do quadrinho anterior, o Urubu afirma
ter tido uma disenteria ao tentar torcer pelo Botafogo. JS, 10 de novembro de 1969, p. 3.

Mário Filho e Nelson Rodrigues, dois dos mais importantes nomes do JS, deixaram
escrito que parecem querer forjar a percepção de que esta representação alvinegra, mais ligada
a momentos de amargura, de mágoas, irritabilidade e tristeza, atravessa décadas na história.
Se o Pato Donald foi escolhido por Molas (ou por algum colega da redação) para representar
o alvinegro por conta de sua notória irritabilidade e constantes ataques de fúria, por essa
perspectiva não poderíamos compreender uma relativa aproximação entre as duas
representações aqui comparadas? Pato Donald e Cri-Cri estão associados a toda essa rede de
sentimentos de contestação e amargura. A maior diferença verificada na comparação está em
uma possível e relativa interpretação valorativa da característica assinalada (irritabilidade), no
primeiro momento, e mais pejorativa, no segundo. O Botafogo era o time que não levava
desaforo pra casa. O Pato Donald dava seus saltos, seus estrilos, mas mantinha uma pose mais
confiante, de peito aberto, chamando ao enfrentamento, enquanto o Cri-Cri é caracterizado
como um baixinho chato, afetado, preconceituoso e com tendências masoquistas. A expressão
numérica de sua torcida, geralmente reconhecida como a quarta maior do Rio de Janeiro,
encontra certa explicação que ajuda a compreender a impressão de Mattos (1997) sobre uma
possível simpatia e maior adesão entre parte da classe intelectual de oposição da cidade. Essa
característica é ressaltada e ampliada por Henfil, que procura torná-la ainda mais
92

inexpressiva. Henfil ainda procura acentuar outra característica suposta por Nelson Rodrigues:
o masoquismo. Poderemos perceber que a crônica de Nelson Rodrigues sobre o torcedor rival
encontra certa ressonância:
Na Sicília, quando um moribundo escapa de morrer, a quase viúva cai em frustração.
Ela se sente espoliada do seu defunto e seu respectivo velório. É a mesma tristeza do
alvinegro que não tem nenhum pretexto para soluçar suas mágoas clubísticas
(RODRIGUES apud MATTOS, 1997, p. 110).

A própria Claudia Mattos (1997) recomenda o devido cuidado com a carga dramática
e emocional das crônicas de Nelson Rodrigues. Não podemos acreditar piamente que um
torcedor de futebol, seja ele qual for, possa saborear uma derrota como quem “chupa um
Chika-bon”, como afirma a autora, tomando de empréstimo uma das usuais expressões do
dramaturgo tricolor (MATTOS, 1997, p. 110). Mas a autora endossa a representação do JS ao
identificar no botafoguense certa inclinação para se situar à oposição, lembrando em seguida
os episódios relatados no início desta reflexão a respeito da “comunidade alvinegra”. Se a
representação escolhida por Henfil para definir a torcida botafoguense parece, de algum
modo, encontrar eco nas palavras de Nelson (ou vice-versa), a representação de Molas acaba
reforçando a definição de Mário Filho. A ideia de masoquismo, explícita ou sutil, parece
encontrar sintonia com representações de Molas quando encontramos uma charge do
cartunista portenho que sugere certo prazer por parte dos botafoguenses em reclamar e criar
confusão. Em julho de 1947, os grandes clubes retornavam de temporadas vitoriosas, em uma
das usuais excursões que os clubes promoviam no período de férias,81 provavelmente para
“fazer caixa” e manter os atletas em forma. O Pato alvinegro é o único que regressa
levantando um senão em meio à alegria das conquistas: “O problema de ganhar é que a gente
nem pode dar um estrilozinho”.82
Como podemos perceber, as representações estabelecidas por Mário Filho, Nelson
Rodrigues, Molas e Henfil não apenas são disseminadas por meios diversos através da
imprensa, como também atravessam a história. Vão ganhando novos contornos, novas formas,
mas muitos aspectos do tronco principal das simbologias mantêm-se na memória coletiva dos
torcedores que, por sua vez, se identificam, se percebem representados e perpetuam ícones e
tradições de sua paixão futebolística. O personagem botafoguense pode ser, entre todos, o que
sofre uma transformação visual mais radical, mas talvez seja o que mais mantenha
semelhanças entre as características mais significativas dos dois períodos. O Pato Donald e o
Cri-Cri guardam semelhanças que os identificam certamente nessa cultura de oposição.
81
Vale lembrar que o campeonato carioca daquele ano só teve início em agosto (ASSAF; MARTINS, 2010, p.
253).
82
JS, 17 de julho de 1947, p. 1.
93

Oposição que pode ser refletida nos números caracterizados por Henfil como inexpressivos da
torcida alvinegra, como rejeição ao lugar comum, assim como também pode ser lida na
postura de constante enfrentamento do Pato, que não fica totalmente satisfeito se não tiver
oportunidade de dar seus estrilos. O prazer que o Pato demonstra em enfurecer-se, por sua
vez, encontrará reflexos na postura masoquista e resignada do Cri-Cri, que também frisa seu
prazer em pôr ovos na resposta debochada de Henfil (Figura 3.11). A manutenção de certos
símbolos deve-se certamente a fatores diversos, que têm em conta as ideias e metas editoriais
do periódico, a perspectiva crítica do cronista ou do cartunista e a aceitação ou rejeição da
torcida. O caso do Botafogo tornou-se o único entre os clubes mais tradicionais do Rio de
Janeiro em que as duas representações escolhidas pelos cartunistas não resistiram ao tempo e
acabaram esquecidas e restritas à memória dos torcedores mais antigos.
94

3.2.2 Construindo uma “nação”: o caso do Flamengo

Figura 3.13 Popeye, anunciando o livro “Histórias do Flamengo”, evidencia estratégias do jornal para aproveitar
as datas comemorativas lançando produtos específicos para cada torcedor e para, ao mesmo tempo, reforçar a
pregnância do símbolo entre seus leitores. JS, durante vários meses de 1945, ano do cinquentenário do clube.
95

Figura 3.14 Na charge em que vemos Popeye e sua indefectível lata de espinafre, percebemos que Molas
buscava associar as vitórias do Flamengo ao consumo de espinafre de seu personagem símbolo. JS, 04 de agosto
de 1944.
96

Figura 3.15 A hipérbole de Henfil reforça, na charge acima, a ideia em torno de uma multidão torcedora do
Flamengo, fato que talvez não fosse tão incontestável ou perceptível na década de 1940. JS, 05 de dezembro de
1970.
97

Em 1945, em vista do cinquentenário do Clube de Regatas do Flamengo, Mário Filho


lançou “Histórias do Flamengo” em edição popular, ao custo de 25 cruzeiros, o que na época
valia um pouco menos do que cinco vezes o preço de um ingresso para um Fla-Flu em maio
do mesmo ano.83 Àquela altura, o leitor assíduo do JS já estava mais do que apresentado ao
“Popeye carioca” de Molas, representando o Flamengo. Uma vez que o JS passou a veicular
uma representação gráfica e simbólica para cada clube de futebol da cidade, faz todo sentido
que essas mascotes passassem a figurar em outras mensagens do periódico para além das
charges. Mário Filho ganhava em duas frentes: aproveitava a popularidade dessa mascote na
divulgação do livro, ao mesmo tempo em que reforçava a imagem do personagem como um
símbolo do clube. O Flamengo havia conquistado, no final de 1944, o primeiro tricampeonato
de sua história, e a mascote, criada naquele ano, garantiu com a conquista do título levar ao
altar a disputada Miss Campeonato.
Aproveitando a data comemorativa, Mário Filho lançou a edição popular do livro que
relatava episódios da história do clube, entre detalhes dos jogos e bastidores da mais recente
conquista. Orgulhoso e satisfeito, vestido na tradicional camisa listrada rubro-negra, com seu
inseparável cachimbo que lhe impõe um sorriso de boca entreaberta, espremendo sempre o
olho direito que lhe falta, Popeye traz às mãos o livro de Mário Filho, anunciando aos leitores
que ele está inteirinho ali dentro (Figura 3.13). A popularidade do personagem pode ser
percebida também pelos já mencionados painéis desenhados pelo próprio Molas, em
encomenda da torcida rubro-negra. Não é difícil imaginar que tamanha demonstração de
popularidade não escaparia ao olhar romântico, detalhista e interessado de Mário Filho. Seus
relatos em um livro comemorativo do Flamengo estabelecem na memória coletiva do torcedor
suas interpretações e perspectiva sobre o imaginário do futebol brasileiro.
Já na charge do dia 05 de agosto de 1944 (Figura 3.14), vemos este mesmo Popeye
rubro-negro em uma calçada, ao lado de um muro de tijolos, esforçando-se para conseguir
abrir uma lata de espinafre. Concentrado, não percebe que um pato, semelhante ao Donald,
aproxima-se pelas suas costas, caminhando sorrateiramente em sua direção empunhando uma
pesada bengala, como quem está prestes a acertá-lo na cabeça. De fato, a representação rubro-
negra do período estava totalmente vinculada àquela lata de espinafre. Teria sido por conta de
triunfais “arrancadas” que o Flamengo conseguira conquistar seu primeiro tricampeonato
carioca fazendo, então, lembrar as clássicas histórias em quadrinhos do marinheiro, quando

83
Uma nota no JS informava que o ingresso para o Fla-Flu custaria Cr$ 5,50 na arquibancada. JS, 10 de abril de
1945, p. 6.
98

ele revertia situações complicadas ao comer seu espinafre e ganhar a força necessária pra
vencer seu inimigo.
Molas estabelece uma associação entre as reviravoltas proporcionadas pelo espinafre
do Popeye e as propagadas “arrancadas” do time rubro-negro. De todas as representações
escolhidas para os clubes, a do rubro-negro talvez fosse a mais desejável, uma vez que uma
das coisas que mais interessava aos torcedores era a força no futebol. As representações em
torno do espinafre podem ir além, uma vez que podemos ver relações também com ideias
positivas e apreciáveis no meio do esporte como superação, predestinação, esforço, heroísmo
e persistência. É possível encontrar indícios da campanha rubro-negra no livro “História do
Campeonato Carioca”, dos jornalistas Roberto Assaf e Clóvis Martins (2010), que chegam a
apresentar resultados de todos os confrontos, mas é mais difícil averiguar, a cada rodada, a
situação do time na classificação dos campeonatos vencidos pelo clube em 1942 e 1943.84
Anos mais tarde, a charge de Henfil dividida em dois quadros (Figura 3.15) mostra
dois urubus representando o mesmo clube da Gávea. Um deles, um urubu em sentido
figurado, era representado por um negro, carregando uma cruz imensa ao pescoço, o que,
observaremos, remete mais às religiões africanizadas do que ao catolicismo, ainda que ao
longo dos anos o chargista faça referência aos dois. Expressões como “o mais querido” ou
“nação rubro-negra” perpetuaram-se na memória coletiva da torcida carioca enquanto
referências ao Flamengo e sua torcida. A jornalista Cláudia Mattos (1997) apresenta um
resultado de uma pesquisa elaborada pelo Ibope por encomenda da revista “Placar”, de fins
dos anos 1990,85 que aponta o seguinte quadro de preferência dos torcedores do Rio de
Janeiro: Flamengo: 41,9%; Vasco: 18,4%; Fluminense: 16%; Botafogo: 10,10%.
Infelizmente, as pesquisas realizadas ao longo da história não estão todas devidamente
digitalizadas, arquivadas e à disposição do público. O que se encontra à disposição na internet
é selecionado, em sítios virtuais profissionais ou amadores. Os sítios oficiais de empresas
como IBOPE ou Data-Folha também não viabilizam pesquisas históricas e só divulgam
parcialmente as nacionais e mais recentes.

84
No breve relato geral sobre o campeonato, os autores afirmam que o Botafogo teria entrado com um recurso,
indeferido depois pela Federação, reivindicando a pontuação na vitória contra o São Cristóvão, alegando terem
sido prejudicados pela arbitragem, mantendo-os na segunda colocação a um ponto do rival. Observando a
campanha do campeão, jogo a jogo, observamos tropeços no início da campanha de 1942, onde, em 27 partidas,
as duas derrotas e 4 dos cinco empates foram nas primeiras 11 rodadas. Dali pra frente, apenas um empate no
jogo final, contra o Fluminense. Já em 1943, os autores ressaltam a chegada de um jogador chamado Bria, com o
qual o técnico Flávio Costa teria acertado a equipe, em que jogador atuou nas últimas cinco partidas. Observando
a campanha, veremos que houve dois empates, com o segundo (Fluminense) e terceiro (São Cristóvão)
colocados, e três goleadas nos últimos jogos (ASSAF; MARTINS, 2010, p. 223-239).
85
Mattos refere-se à pesquisa como sendo recente, tendo seu livro sido publicado em 1997 (MATTOS, 1997,
p.75).
99

Uma das representatividades mais fortes do Flamengo está ligada diretamente à sua
propagada imensa torcida, que Mário Filho situa como uma característica do clube atrelada ao
surgimento do futebol. Vale transcrever na íntegra o trecho em que o leitor se deixa levar pela
narrativa envolvente do autor:
O Flamengo, sem campo, não querendo pedir campo emprestado ao Fluminense,
tendo de ir treinar no Russell. Havia um gramado no Russell, o mesmo de hoje, onde
os garotos formavam times, jogavam futebol. Arranjado pela prefeitura para isso
mesmo, para ver se os garotos deixavam de jogar no meio da rua. Garotos e
marmanjos. O Flamengo treinava lá, era pertinho. Os jogadores saíam,
uniformizados, praia do Flamengo abaixo para a Glória, para o Russell. As travas
das chuteiras rangendo na calçada, o barulho da bola batendo no chão, o time do
Flamengo ia treinar, garotos de família, moleques, passavam a notícia de bôca em
bôca. Quando os jogadores do Flamengo chegavam no Russel já encontravam gente
esperando por eles. [...]
Mas aqueles garotos da praia do Russell, uns de boas famílias, calçados, vestidinhos
com roupa de tarde, outros de famílias pobres, calças rasgadas atrás, pés no chão,
foram ficando Flamengo. Aparecendo nos campos de futebol para torcer por êle.
Nas arquibancadas, nas gerais, nos morros (FILHO, 1964, p. 39).

De todas as versões sobre as origens do processo de “popularização” da adesão ao


clube rubro-negro, esta, relatada por Mário Filho, foi a que mais se perpetuou. O Flamengo,
enquanto clube de regatas, recebendo de uma hora para outra uma equipe de futebol — e não
qualquer equipe, mas a então campeã da liga oficial do Rio de Janeiro, ao defender as cores
do Fluminense — não poderia oferecer as acomodações necessárias para o treino dos atletas.
Parece compreensível que eles fossem apelar aos terrenos públicos e, igualmente
compreensível, que atraíssem uma “democrática” assistência, angariando novos torcedores
das camadas sociais mais humildes da cidade. “O futebol aproximando o clube do povo,
arranjando torcedores para êle. Gente que se metia no bloco do réco-réco, gente que ia ver o
Flamengo treinar.” (FILHO, 1964, p. 38). Por outro lado, podemos também observar a prosa
de Mário Filho como uma “via de mão dupla”, se considerarmos a contribuição dos episódios
romanceados do jornalista, propagados em livros e jornais, para a formação dessa torcida.
Mas é preciso ressaltar, sobretudo, que não há indício ou evidência que comprove
historicamente os “romanceados” relatos de Mário Filho, que chega a descrever com riqueza
de detalhes a caminhada da nova equipe rubro-negra para o treino nos campos públicos de
futebol: “As travas das chuteiras rangendo na calçada, o barulho da bola batendo no chão”.
Somam-se a este outros fatores que poderiam explicar a suposta popularidade do Flamengo.
Quem resume e procura outras explicações para as origens da crescente popularidade
atribuída ao clube é a jornalista Cláudia Mattos:
100

Quando deixaram para trás o ambiente aristocrático das Laranjeiras, os tricolores


dissidentes tiveram de se adaptar a uma nova vida para serem aceitos pelos rubro-
negros. Assim como os sócios do Fluminense, os sócios do Flamengo também eram
representados pela elite, mas uma elite que se comportava de forma totalmente
diferente da elite das Laranjeiras. Para começar, o Fluminense era um clube de
verdade, com sede social e um campo de futebol. O Flamengo era um prédio de dois
andares e um sótão, onde funcionavam, ao mesmo tempo, a garagem dos barcos e
uma república de estudantes.
[...] No Flamengo dos remadores, as festas de comemoração de vitórias não eram
realizadas num salão nobre de vitrais franceses, nem em restaurantes finos do centro
da cidade. As festas eram na própria garagem, que, pela fama de badboys que atletas
do Flamengo já tinham [...], não eram frequentadas por moças de boas famílias.
[...] Aos poucos os reco-recos, como eram chamadas as festas da garagem animadas
pelo som de violões, cavaquinhos e instrumentos de percussão, em vez das
orquestras tricolores, foram ganhando as ruas. Após uma vitoriosa tarde (futebol) ou
manhã (remo) de domingo, os reco-recos saíam da garagem do 22 em direção ao
Lamas, tocando e cantando marchinhas, até o restaurante que desde aquela época até
a construção do metrô, ficava no Largo do Machado. Os moradores da região abriam
as janelas para ver o Flamengo passar. Os mais animados desciam para a festa,
descrita pelos cronistas como um carnaval fora de época (MATTOS, 1997, p. 67-
69).

Os estudantes adolescentes que fundaram o Botafogo também encontraram


dificuldades em conseguir campo para treinar e, nem por isso, foram reconhecidos como uma
torcida popular, ainda que relatos do próprio Mário Filho também mencionem treinos no
Largo dos Leões. Mattos (1997) lembra que Mário Filho acrescentou à explicação da
popularidade do Flamengo a sua fragmentação por regiões diversificadas da cidade. A
afirmação dessa onipresença em pontos distintos da cidade, entretanto, não nos parece
satisfatória, porque não cabe como causa, mas como constatação deste fenômeno. Se ambos
encontram as raízes dessa popularidade logo nos primeiros anos do futebol do clube, João
Malaia (2010), ao contrário, encontra evidências que apontam um quadro um tanto distante
desta realidade. Em 1916, o jornal “Correio da Manhã” promovia um concurso para eleger o
clube e o jogador mais populares do Rio de Janeiro. O leitor deveria comprar o jornal, recortar
o cupom e responder a duas perguntas para depois enviá-lo à redação. O autor aponta que o
resultado obtido, então, foi o seguinte:
1. Qual o clube mais querido?
1º) Fluminense, com 15.907 votos.
2º) Botafogo, com 5.798 votos.
3º) Flamengo, com 2.678 votos.
2. Qual o melhor footballler?
1º) Francisco Netto (zagueiro do Fluminense), com 15.096 votos.
2º) Benjamim Sodré (atacante do Botafogo), com 6.833 votos.
3º) Emmanuel Nery ( zagueiro do Flamengo), com 912 votos.
101

Obviamente que esse concurso, como alerta Malaia (2010), não tem qualquer caráter
de pesquisa ou censo, mas oferece algum indício sobre o quadro de popularidade dos grandes
clubes da cidade. Ainda que o jornal só tenha publicado os três primeiros de cada categoria, a
diferença no número de votos entre o primeiro e o segundo, bem como entre o segundo e
terceiro colocados, em ambos os casos, é gritante. Em resposta à pergunta sobre qual o clube
de maior popularidade, o número de votos computados ao Fluminense é quase três vezes
maior que o do segundo colocado, e este se distancia pouco mais que duas vezes do terceiro.
Malaia (2010) credita esta popularidade do clube das Laranjeiras ao número de
conquistas (que àquela época contava com cinco títulos, desde 1906) e aos investimentos no
estádio, o que o capacitava a atender a crescente demanda de público, de forma que acabaria
popularizando, consequentemente, suas arquibancadas e gerais. Mesmo sendo, então, o
bicampeão da cidade com os últimos títulos alcançados nos anos imediatamente anteriores ao
concurso (1914 e 1915), e mesmo com a assistência popular nos treinos da Praia do Russel
relatados por Mário Filho, o Flamengo ficaria em terceiro, ao menos na preferência do leitor
do “Correio da Manhã”.
Muito se fala, por exemplo, da contribuição da imprensa para a formação dessa
enorme torcida, que hoje é frequentemente considerada a maior do Brasil (MATTOS, 1997).
Dentre os personagens que se destacaram no processo está o grande compositor Ari Barroso,
que por tanto tempo trabalhou também como locutor de futebol, assumindo sempre sua
predileção pelo Flamengo. Alia-se à popularidade do compositor de “Aquarela do Brasil”, o
início das transmissões difundidas para todo o país pela Rádio Nacional. (MALAIA, 2010).
Claudia Mattos nos recorda também a “inegável relação entre o populismo e o Flamengo, o
mais bem tratado pelos governos populistas brasileiros, principalmente na era Vargas, quando
ganharia do governo o terreno na Gávea, onde construiria seu estádio em 1938” (MATTOS,
1997, p. 70-71).
De todo modo, as representações de Lorenzo Molas não exploram essas diferenças de
popularidade. Poderia não ser interessante ao cartunista ou ao jornal estabelecer esse tipo de
diferença, ou porque não houvesse ainda pesquisas fidedignas para calcular o tamanho das
torcidas, ou mesmo porque essas diferenças não coubessem em sua trama, em que as figuras
simbólicas representavam os clubes em vez de torcidas. Ou, provavelmente, porque esta
enorme torcida ainda não fosse uma situação concreta, mas em construção. Por mais que o
personagem dos quadrinhos, o marinheiro Popeye, gozasse de grande popularidade, não
acreditamos ter sido este o motivo da escolha. A popularidade do Pato Donald certamente não
era menor e o clube que representava jamais foi associado às massas e às maiores torcidas da
102

cidade. De todo modo, Molas parecia não se preocupar com a questão, uma vez que não
estava representando as torcidas.

Figura 3.16 Lançando mão do recurso da metalinguagem, quando uma representação cultural faz referência a
ela mesma enquanto representação, Henfil opera a transformação na forma do personagem dentro da tirinha. O
quinto quadrinho esclarece os motivos da mudança: “o boneco anterior carecia de autenticidade”. JS, 10 de
junho de 1969, p. 3.
103

O personagem de Henfil que representa o torcedor do Flamengo não foi negro desde
que surgiu. Lançando mão do recurso da metalinguagem, a charge do dia 10 de junho de 1969
(Figura 3.16) apresenta o Urubu que, até então, tinha rigorosamente a mesma aparência do
Cri-Cri, diferenciando-se apenas pela camisa, passando por uma transformação radical. Logo
no primeiro quadrinho, o Urubu aparece com a aparência anterior pela última vez, reclamando
ao companheiro Bacalhau por estar se sentindo mal. De repente, um grande volume de
fumaça ocupa o lugar onde estava o personagem. A lamúria do Urubu se transforma em um
risinho debochado, como se seu corpo estivesse sendo tomado por alguma espécie de
entidade. Já no terceiro quadrinho a fumaça vai tomando conta de toda a cena. Espremidos,
em um canto do quadro, vemos Bacalhau apavorado, correndo e mostrando ao Pó de Arroz no
que o Urubu havia se transformado. O tricolor, espantado, responde com uma exclamação em
francês: “Mon Dieu!”. No quadrinho seguinte, em meio à fumaça que vai se esmaecendo,
surge a nova forma do Urubu. Agora ele é negro, mais alto, mais magro, mais altivo também.
Mãos na cintura, encara os companheiros com um sorriso de escárnio, com a testa franzida,
com um enorme crucifixo pendurado ao pescoço, quase tocando o chão: “Acalmai-vos,
irmãos! Sou o Urubu! Apenas sofri a ação da evolução histórica... o boneco anterior carecia
de autenticidade”.
No artigo em que se dedica também a esses mesmos personagens do universo
futebolístico de Henfil, Euclides do Couto (2012) ressalta a dupla simbologia do Urubu, que
podia ser reconhecido tanto na ave agourenta, batizada estranhamente como 133, como no
personagem negro que protagoniza a ação na maioria das charges. Percebe-se ainda uma
sugestão mais implícita do alter ego do próprio cartunista na representação do Urubu
enquanto espécie animal. Vale transpor suas palavras:
Urubu, nome escolhido pelo cartunista para intitular todos os quadros referentes às
tramas vividas pelos personagens-torcedores, também ganhava uma dupla
simbologia. Ou era utilizado como símbolo da torcida do Flamengo, sendo
representado por um homem negro, de cabelo ouriçado, que sempre trajava uma
camisa rubro-negra; ou era representado por uma ave negra à qual Henfil atribuiu
uma dupla função: ocasionalmente ele contracenava com seus adversários, descendo
até o plano onde ocorriam os conflitos; na maioria das vezes, no entanto, ele se
postava como um observador atento aos acontecimentos. Esse personagem
representaria uma metáfora do comportamento assumido pelo próprio cartunista, que
se reconhecia na ave urubu: animal sorrateiro, que com olhar malévolo agoura suas
vítimas, esperando a desgraça alheia – a putrefação da carne – para se alimentar.
Assim como o animal, o personagem criado por Henfil ou assume uma postura de
vigilância, esperando pela morte das suas vítimas [...]; outras vezes, tece
comentários maldosos, cujo teor objetiva denegrir e ridicularizar seus adversários –
cartolas e treinadores (COUTO, 2012, p. 158).
104

O Urubu rubro-negro agora ganhava a companhia de um urubu de verdade, a quem


chamava de 133. Este 133 era formado “na Academia de Mau Olhado de Luanda” e tinha
poderes paranormais. Ao fixar o olhar sobre o Bacalhau, vemos imediatamente cair no chão
seu cabelo, seu bigode e a cruz de malta da camisa. Percebemos, além da nova forma do
personagem, agora com traços africanizados, elementos que remetem, ainda que de forma
caricatural, à forma estereotipada e preconceituosa como as manifestações religiosas afro-
brasileiras eram conhecidas. Ele parece querer frisar essa relação a todo instante: quando se
refere a uma fictícia “Academia de Mau Olhado de Luanda”, por exemplo, estabelece uma
relação dupla com a cultura negra. Mas, por ironia, reproduz a noção limitada e
preconceituosa que a “Zona Sul” mantinha a respeito da ideia de força negativa em torno das
religiões afro-brasileiras, focalizando os trabalhos que visam o mal alheio. Ao mesmo tempo,
ainda situa a “academia” em Luanda, capital de Angola.
Junto com a associação a elementos fortemente ligados a costumes e tradições mais
populares da cidade, Henfil frisa também a falta de instrução predominante entre as camadas
mais humildes do Rio de Janeiro. A crítica aqui nos parece mais direcionada às esferas do
poder instituído do que ao personagem em si e a toda uma significativa parcela da população
que o personagem representa. Observa-se a crítica ao poder estabelecido, porque falha em
seus deveres primordiais, onde a ignorância do povo evidencia as precárias condições da
educação pública no país.
Assinala-se o vocabulário mais limitado do Urubu, por exemplo, na charge do dia86
em que Bacalhau aparece sozinho na maior parte da tirinha, aparentando estar dialogando
com uma tampa de bueiro, debaixo da qual estaria escondido o Urubu, depois de seguidos
vexames de seu time. Após um longo discurso valorizando a força da massa e repudiando a
atitude covarde do companheiro e a “frescura típica da burguesia”, o vascaíno vai ficando
nervoso com a passividade do Urubu, até que explode, chamando-o de “bastardo”. Surge,
então, um tímido balãozinho saindo do bueiro, perguntando humildemente: “Bacalhau, o que
é ‘bastardo’?”. Quando o português curva-se sobre o bueiro, explicando o significado, salta
dali o Urubu furioso atrás de um sorridente Bacalhau “vitorioso”: “Consegui! Consegui!”.
Reforçar a ignorância do Urubu nesse caso seria, ao mesmo tempo, reforçar a identidade do
clube com as camadas mais humildes e apontar as falhas no sistema educação enquanto um
crônico problema social no país. De fato, de acordo com o censo de 1970, verificava-se que
um terço da população brasileira era analfabeta (FERRARO; KREIDLOUF, 2004).

86
JS, 25 de setembro de 1969, p. 3.
105

Percebemos aqui que o Urubu é demonstrado como o mais autêntico representante das
massas entre os clubes do Rio, porque, de maneira mais intensa e completa do que Bacalhau,
carrega outros elementos que se identificam com características e valores da massa, ainda que
estereotipados e generalizantes. O urubu é negro, pobre, gosta de samba e de cachaça. Embora
componha a “República Popular de Ramos”, parece diferenciar-se do companheiro na medida
em que a identificação do Bacalhau com o português estende essa representação também à
imagem do português patrão, comerciante, dono de botequim. O que nos parece é que para
Henfil, embora ambos representassem as classes menos favorecidas da cidade, o torcedor do
Flamengo estaria mais ligado à imagem do proletariado carioca sem raízes lusitanas mais
próximas.

3.2.3 A elite carioca no futebol

O Fluminense foi o clube perfeito para o projeto de nova sociedade carioca


engendrado na Belle Époque. Um clube fino e requintado, no qual as melhores
famílias da cidade podiam se confraternizar, desfrutando de uma sede belíssima,
com salões decorados com imensos vitrais franceses, e assistindo ou praticando um
esporte saudável e civilizado, vindo da Inglaterra (MATTOS, 1997, p. 50).

Figura 3.17 Representação do Fluminense inclui fraque, cartola e o reforço verbal à sua posição na hierarquia
social. Mas a diferença para os rivais parece amenizada, quando a Miss se mostra indecisa: “embora sejas ‘de
bem’, mas o Vasco, meu amigo, tem açougue a armazém”. JS, 19 de julho de 1944, p. 1.
106

Figura 3. 18 O Pó de Arroz reforça sua condição social através de diversos elementos que compõem a tirinha: o
mordomo que atende por um sino (que não aparece, mas é sugerido pela onomatopéia “bong”), o banho de
espuma na banheira e os produtos em embalagens diversas ao lado desta, a menção a uma frota de carros de
luxo, a ideia de ociosidade da burguesia, que recebendo todas as regalias “de mão beijada” (mesada do “papai”),
não precisava trabalhar e a preocupação burguesa em aparecer em colunas sociais. JS, 05 de junho de 1969, p. 3.
107

Na charge de Molas do dia 19 de julho (Figura 3.17), cantava o distinto cavalheiro,


trajado a rigor, na serenata que fazia à Miss Campeonato: “Sou grã-fino e sou frajola, sou
solução para teu caso, se ando de fraque e cartola, não há de ser por acaso”. Fazendo menção
à marchinha carnavalesca de Mário Lago, o Cartola prometia à moça a casa que era para
“Aurora”, “com porteiro e elevador”. Frisava, entre outras vantagens, seu pertencimento à
classe social mais alta da cidade. Já na charge de Henfil, essa aristocracia é revestida de uma
afetação desmedida, onde seus hábitos luxuosos são garantidos por uma mesada paterna, de
uma ociosidade mal disfarçada e de vaidade em excesso, na medida em que desmarca a ida ao
Maracanã por conta da ausência de colunistas sociais. Ainda que as duas representações
remetam claramente à posição social privilegiada do símbolo tricolor, por outro lado carregam
conotações distintas. Se a representação de Molas reconhece apenas características mais
positivas no que diz respeito a essa posição, Henfil atribui uma personalidade mais pejorativa
ao seu personagem tricolor.
Ainda que relativamente obeso, nas primeiras charges, o personagem tricolor de Molas
permanece altivo, peito aberto, trajado no máximo rigor, ostentando, além da cartola à cabeça,
um elegante fraque, luvas às mãos, polainas nos sapatos, bengala encaixada na dobra do
cotovelo e um monóculo preso ao olho esquerdo. Carregados de símbolos indissociáveis à
figura de um distinto cavaleiro, o personagem construído por Molas procura a todo instante
ressaltar atributos como elegância, que se expressa não apenas nas vestes, mas nos hábitos,
gestos e comportamento. Nesta charge específica, Molas procura salientar também sua
invejável condição financeira, ao prometer um apartamento com porteiro e elevador,
possivelmente atributos associados às residências das classes mais abastadas.
Já Henfil não precisa e nem se interessa em “vestir” seu personagem com o
refinamento da aristocracia para salientar o pertencimento do personagem às classes mais
abastadas. Ao contrário, nesta charge do dia 06 de junho de 1969 (Figura 3.18), o personagem
está nu em quase todos os quadrinhos. Prestes a entrar em seu banho requintado em uma
banheira transbordando de espuma, é sempre assessorado por seu mordomo. Henfil consegue
transmitir a ideia de um ambiente elitizado em poucos traços, sem definir minuciosamente o
cenário. Bastam os elementos mais representativos para passar essa ideia, reforçada pelo
linguajar afetado, pela aproximação com a imprensa, pela preocupação superficial em
aparecer em colunas sociais. Em um dos quadrinhos, ainda canta um trecho da música “Bom
tempo”, composição do notório tricolor Chico Buarque: “Vou que vou, satisfeito/ alegria
batendo no peito/ o radinho apontado direito/ a vitória do meu tricolor”. Ao final, Henfil ainda
sugere um descompromisso do torcedor com seu time, na medida em que o personagem
108

desiste de ir ao Maracanã torcer pelo Fluminense quando vem a saber que nenhum de seus
colunistas sociais conhecidos estaria presente no estádio.

Figura 3.19 Molas ressalta a elegância do Cartola em diversos detalhes, que vão do traje à delicadeza do gesto
de carregar o véu da noiva, além do gestual expressivo do personagem. Vale notar, por exemplo, o dedo
mindinho da mão levemente erguido e o caminhar na ponta dos pés. JS, 01 de novembro de 1944, p. 1.
109

“Lições de elegância, ninguém me dá”, assegura o Cartola (Figura 3.19), enquanto


suspende, pelas pontas dos dedos, o longo vestido da noiva de seu concorrente Popeye. Se o
Cartola perdera o título e, em decorrência, a noiva, não perdia sua pose, seu cavalheirismo.
Não apenas aceita a derrota como faz questão de reverenciar os noivos, oferecendo seus
préstimos.
Na perspectiva de Henfil, a elegância dessa elite é convertida em esnobismo burguês,
transbordando de preconceito social e racial. Verbetes pejorativos como “crioléu”,
“populacho” surgiam a cada vírgula. O uso de termos menos coloquiais como “pustema” e de
expressões em francês ou inglês soa agora meio forçado, entregando uma presunção carregada
de preconceito, que não aparece no período anterior na obra de Molas. As charges destacadas
expressam duas perspectivas distintas em relação a essa aura nobre do clube, fundado no meio
da nata da elite carioca.
110

Figura 3.20 O personagem tricolor no traço de Henfil é mais arrogante do que elegante, procurando sempre
demonstrar uma erudição, em uma busca forçada de estabelecer diferenciação, abusando de expressões em
francês ou inglês e ou de verbetes menos coloquiais. JS, 03 de novembro de 1970, p. 2.
111

Ao contrário da elegância ostensiva do Cartola de Molas, ao aceitar a vitória do rival e


gentilmente carregar a ponta do vestido da noiva para evitar que se arrastasse ao chão, na
charge de Henfil o Pó de Arroz assume uma postura mais esnobe do que propriamente
elegante (Figura 3.20). Esquecendo-se da fidalguia, explícita no hino tricolor composto por
Lamartine Babo, o personagem tricolor não se furta a debochar do Bacalhau, após a vitória do
Fluminense sobre o Vasco, válida pelo campeonato brasileiro de 1970: “Bacalhau, vocês
ganharam o campeonato (carioca) por um equívoco. A elite Pó de Arroz é campeã moral da
Guanabara Maravilhosa”. A cada quadrinho, o personagem vai carregando mais no discurso
preconceituoso: “O crioléu fajuto não tem gabarito pra lutar com a nata do futebol
guanabarino”. Chega, inclusive, a pedir “excusas pela forte expressão chula” ao afirmar, aos
berros, na cara de um resignado e cabisbaixo Bacalhau, que “o Vasco é um pustema”. A
brincadeira de Henfil parece querer reforçar a arrogância do personagem tricolor, quando ele
se desculpa pelo uso de uma expressão vulgar antes de usar um termo pouco coloquial:
“pustema”, que não significa nada mais grave do que “lerdo, incapaz”, ou no sentido popular,
“machucado, ferida”.
Diversos clubes eram formados pelos membros da elite como espaços de distinção
social em diversas cidades do Brasil, como observa João Malaia (2010). A história do jovem
Oscar Cox que voltara de Lausanne, na Suíça, disposto a difundir no Brasil a prática dessa
nova sensação chamada football eternizou para a memória coletiva do futebol brasileiro o
nome desse esportista, junto com o de Charles Miller, como os principais “mitos fundadores”
desse esporte no país. No caso de Cox, como pioneiro na cidade do Rio de Janeiro ao articular
esforços para a fundação do Fluminense. Ainda que se tenha encontrado indícios históricos de
ocorrências mais remotas da prática do esporte bretão na cidade, é indiscutível seu
protagonismo no que se refere à organização e desenvolvimento administrativo e econômico
para a consolidação do futebol não apenas no Rio de Janeiro, como também no país. A
fundação do clube seria fundamental para o início de desenvolvimento do futebol na cidade,
no que diz respeito à formação de entidades sólidas, à promoção e divulgação do espetáculo
esportivo através de campeonatos oficiais, patrocínios, cobertura da imprensa e construção de
estádios.87

87
João Malaia apresenta diversos exemplos que ilustram essas afirmações. Os anos que se seguiram à fundação
do Fluminense Football Club e a do Rio Football Club testemunharam o surgimento de diversas agremiações
direcionadas, exclusiva ou prioritariamente, à prática de futebol, bem como a articulação com a imprensa.
(MALAIA, 2010, p. 33-37).
112

Cláudia Mattos (1997) destaca não apenas o prestígio de algumas tradicionais famílias,
como os Guinle ou os Coelho Netto, mas também o importante poder político que o peso
desses sobrenomes envolvia para, por exemplo, articular a criação de uma nova sociedade
carioca e financiar um projeto como o estádio do Fluminense. O poder desses sobrenomes,
como mostra a autora, se sugere maior que o da recém criada Confederação Brasileira de
Desportos (CBD), quando a partir do momento em que a Confederação admitiu não ter
condições financeiras para arcar com as despesas para a organização do Campeonato Sul-
Americano de 1919, o presidente do Fluminense, Arnaldo Guinle, assumiu a incumbência
levantando um empréstimo junto ao Banco do Brasil para a construção de um estádio com
capacidade para 18 mil pessoas, uma multidão se considerarmos a população
economicamente ativa do Distrito Federal em 1920, estimada em pouco mais de um milhão de
habitantes (ABREU, 2008). Mattos (1997) talvez ignorasse que em 1919 Arnaldo Guinle, que
dirigiu o clube entre 1916 e 1931, chegou a conciliar duas funções: na presidência do
Fluminense e da CBD entre 1916 e 1920.88 Nas palavras de Malaia (2010, p. 127), Arnaldo
Guinle teria sido o “primeiro grande empresário da indústria esportiva carioca”, estabelecendo
a meta de colocar o Fluminense entre os grandes clubes do mundo. Em sua gestão, o
Fluminense passou por amplas reformas em seu estádio, ampliando sua capacidade e as
receitas com a venda dos ingressos; aumentou o quadro social; organizou uma seção infantil;
dando início a um projeto de formação de jogadores, além de sediar competições esportivas
internacionais em 1919 e 1922, e de conquistar o primeiro tricampeonato carioca do clube
entre 1917 e 1919.
[...] as mensalidades eram de 40$000 e a joia89 de 100$000, para o ano de 1914. Por
esses valores dá para perceber que existe sim, além de uma barreira social criada
pelos sócios do clube em seus rígidos estatutos, uma barreira estritamente
econômica na seleção de membros do clube. Mensalidades de 40$000 ou 50$000 e
jóias de 100$000 não eram valores que os habitantes das camadas sociais inferiores,
os que se destinavam a trabalhos considerados à época como menos dignos - tais
como operários, garçons, choferes ou pedreiros - pudessem sequer cogitar em pagar
(MALAIA, 2010, p. 128).

Durante o carnaval de 1919, a coluna esportiva do jornal “O Imparcial” trazia


ilustrações humorísticas com sugestões de carros alegóricos com temáticas esportivas. Um
desses carros, dedicados ao aristocrático Fluminense, mostrava um senhor de bigodes e
chapéu coberto por uma montanha de moedas. Deste senhor, só se pode observar a cabeça,

88
. Para maiores informações sobre a sua relação com o Fluminense e a CBD, ver: MALAIA, João. M. C. O Rio
de Janeiro e os jogos de 1922: economia de um projeto esportivo. In: MALAIA, João; MELO, Victor. 1922
celebrações esportivas do centenário. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012, p. 63-72; e SARMENTO, Carlos
Eduardo. A regra do jogo: uma história institucional da CBF. Rio de Janeiro: CPDOC, 2006.
89
Taxa de admissão.
113

suas mãos e os pés.90 No meio da montanha de dinheiro, lê-se na altura de seu ventre as
inicias do nome completo do clube das Laranjeiras: FFC, de Fluminense Football Club.
Abaixo da ilustração, os versos reforçam a associação entre o clube e as classes mais
abastadas da cidade: “Queria que o Fluminense/ Para ser da terra o primeiro/ Só tivesse como
sócio/ Gente rica, de dinheiro”.91
Malaia (2010) ainda afirma que a manutenção da distinção do seleto grupo de
associados era garantida não apenas pela barreira econômica expressa no valor das joias e
mensalidades, mas também pela imposição de normas rigorosas para admissão de novos
sócios. O proponente deveria ser indicado por um sócio e aprovado pela assembleia geral dos
sócios. Muitas vezes, o autor observa que, mais do que reunir condições financeiras para
honrar as mensalidades, o que realmente interessava era o poder de influência do associado
que estivesse “apadrinhando” o proponente. Os salões do Fluminense tornaram-se um dos
principais pontos de encontro da elite carioca para bailes, festas e carnaval.
Ao longo de sua pertinente explanação sobre o imaginário cultural em torno da origem
nobre do Fluminense, Cláudia Mattos (1997) elenca diversos símbolos do clube identificado
com a nata da aristocracia do Rio de Janeiro no decorrer do século XX. A relação das famílias
mais ricas e tradicionais da cidade com o clube provavelmente ajudou a formar todo um
conjunto de ícones que ajudam a reforçar seus ideais de uma nova sociedade. Do brasão
formado pelas inicias sobrepostas, em uma clássica tipografia serifada, à ostentosa arquitetura
da sede, famosa pelos notórios vitrais franceses,92 passando pelo hino oficial composto por
Coelho Netto, os símbolos do clube procuram remeter a uma ideia europeizante, que servia
como modelo ideal ao projeto de modernização que se pretendia nas primeiras décadas do
século XX.
Um dos episódios que mais está associado a essa tradição é o relato de Mário Filho
(1964) sobre o Carlos Alberto, que não deixou qualquer evidência mais fidedigna. O jogador
viera do América para o Fluminense em 1916, juntamente com o célebre goleiro Marcos
Carneiro de Mendonça. A história propagada por Mário Filho é que Carlos Alberto, sentindo-
se diferenciado dos demais jogadores por ser mulato, destacando-se da maioria de brancos do
Fluminense, cobria-se com um produto delicado usado pelas madames: o pó de arroz. No
meio da partida, o talco descia junto com o suor e o que era para disfarçar deixava-o em
evidência ainda maior. A torcida do América, seu ex-time, não perdoava e os gritos de “pó de

90
O Imparcial, 04 de março de 1919, p. 8.
91
Ibidem.
92
Para maiores descrições sobre a sede do Fluminense e suas transformações, ver: COELHO NETTO, Paulo.
História do Fluminense (1902-2002). Rio de Janeiro: Pluri Edições, 2002.
114

arroz” passaram a ecoar das arquibancadas. Um dia, Carlos Alberto não jogou e os gritos de
pó de arroz partiram do mesmo jeito. O apelido estava passando do jogador para o time
(FILHO, 1964; MALAIA, 2010).
O Fluminense era Pó de Arroz, muito cheio de coisa, querendo ser mais do que os
outros, mais chique, mais elegante, mais aristocrático. O Pó de Arroz pegou feito
visgo. [...] O Pó de Arroz era coisa fina, cheirosa (FILHO, 1964, p. 43).

No entanto, a versão do goleiro Marcos Carneiro de Mendonça relatada em entrevista


para o programa Globo Esporte93 apresenta algumas diferenças em relação ao episódio
eternizado por Mário Filho. O goleiro, então com 90 anos, relatou que o mulato Carlos
Alberto, após se barbear, não passava talco na barba, mas “uma coisa branca” que deixava
mais evidente o contraste entre a parte de cima e de baixo do seu rosto, causando a
provocação dos torcedores adversários. O detalhe lembrado por Carneiro de Mendonça faz-se
relevante se levarmos em consideração que, se o jogador tivesse mesmo a intenção de
disfarçar a cor de sua pele, de certo que não o faria de uma forma que a deixasse em
evidência. As diferenças entre as versões apresentadas configuram indícios exemplares que
nos levam a refletir sobre a construção de simbologias em torno das representações
clubísticas.
Toda essa tradição aristocrática, expressa “nas raízes” do clube, acaba não passando de
uma representação simbólica no que diz respeito à torcida, mesmo em se considerando os
primeiros anos de futebol. Como relata Malaia (2010), com a progressiva ampliação do
estádio do clube foram estabelecidas mais diferenças entre as regalias dos sócios e as do
torcedor comum, com uma assistência que crescia à proporção da capacidade do estádio. E a
diretoria sempre fez questão de manter os ingressos a preços populares, preocupada em
manter a torcida e a assistência que garantiam as boas receitas. A diferença é que no caso do
Fluminense esse simbolismo era declarado. Difícil imaginar que uma torcida como a do
Fluminense, capaz de lotar o velho estádio das Laranjeiras em seus tempos de maior
capacidade, ou mesmo de manter forte presença no Maracanã, anos depois não tivesse entre
os seus uma boa parcela das camadas mais modestas da população. “Um mulato, um preto
podia torcer pelo Fluminense. Havia lugar, na geral do Fluminense, para o mulato e o preto. E
para o branco pobre.” (FILHO, 1964, p. 45). A despeito de Mário Filho não considerar a
possibilidade do negro rico, o mais interessante e elucidativo sobre a construção simbólica em
torno da aura aristocrática do Fluminense vem a seguir: “Mas o branco pobre, o mulato, o
93
Embora a presente dissertação não contemple a história oral e não trabalhe com entrevistas ou com fontes da
internet, é válida a menção ao relato do goleiro Marcos Carneiro de Mendonça. Procurar no youtube por
“Fluminense: o surgimento do pó de arroz” ou diretamente através do link:
http://www.youtube.com/watch?v=c0iXVC0xxz8
115

prêto que torciam pelo Fluminense, distinguiam-se dos torcedores dos outros clubes,
caprichando no modo de trajar, vestindo a roupa dos domingos.” (FILHO, 1964, p. 45). A
despeito da afirmação de Mário Filho, podemos perceber que os trajes de domingo não eram
privilégios dos torcedores do Fluminense, observando, por exemplo, o farto manancial de
fotografias de torcedores nas áreas mais modestas de diversos estádios. Tais fotografias foram
publicadas nas revistas “Careta” e “O Malho” e figuram nos anexos da Tese de Doutorado de
João Malaia (2010, p. 441-445).94
O Fluminense foi fundado por algumas das famílias mais importantes do Rio de
Janeiro em um momento em que o futebol se inseria no projeto de uma elite empolgada em
promover o processo de “civilização” no país, inspirado no modelo e costumes europeus,
deixando sempre em evidência suas raízes, seus símbolos associados a essa aristocracia. Essa
identificação com valores culturais da elite dominante conheceu diferentes percepções na
forma como foi representada por Molas e Henfil. Seus respectivos momentos históricos
situam e explicam essas diferenças. O primeiro ressalta tais condições através da imagem de
um cavalheiro que prima pela elegância no gesto e no trajar, enquanto o segundo atribui um
caráter mais arrogante a esta elite. Por mais que se mencionasse sua condição financeira,
Molas não estabelecia uma diferença gritante com os demais concorrentes ao título, ao passo
que Henfil aproveita a simbologia tricolor para descarregar seu arsenal, enquanto crítico
social, na representação da classe dominante e, portanto, opressora. Transformou toda a
simbologia em uma afetação esnobe e preconceituosa.

94
Cf. Careta, 09 de junho de 1917; Careta, 21 de julho de 1917; Careta, 31 de maio de 1919; Careta, 27 de maio
de 1919; Careta, 03 de maio de 1919; O Malho, 04 de abril de 1922.
116

3.2.4 A colônia portuguesa do Rio de Janeiro

Figura 3.21 Charge que funciona como pôster de campeão. Traz as fotos dos jogadores, adornando o desenho de
Molas, e reforça os laços culturais entre o Vasco e a colônia portuguesa. JS, 20 de novembro de 1945, p. 10.
117

Figura 3.22 A aproximação e o companheirismo entre Urubu e Bacalhau, sugerido por Henfil, não poupou o
representante da Cruz de Malta de “cutucadas” do cartunista durante as más fases. JS, 23 de outubro de 1969, p.
3.
118

O nome Vasco da Gama, é inegável, homenageia o histórico navegante português. As


origens ligadas à forte presença da colônia portuguesa no Brasil são igualmente
inquestionáveis. Mas, certamente, em nenhum dos dois momentos analisados sua imensa
torcida se limitava aos cariocas que mantinham laços familiares mais estreitos com os antigos
colonizadores. Os dois cartunistas buscam essa referência ao elaborar o personagem que
representa o clube, mas atribuem diferentes pesos a essa relação.
Molas transformou a comemoração vascaína em uma autêntica festa portuguesa
(Figura 3.19) explicitando essa origem no figurino, na decoração, nos detalhes, desde a
presença dos instrumentos mais usuais da música lusitana aos azulejos que enfeitam a entrada
do salão com versos do poeta Luiz Vaz de Camões. Henfil, por sua vez, representou, sim, um
estereótipo do tipo lusitano, careca, com os célebres bigodes com as pontas apontadas pra
cima. No falar, entretanto, não procurava enfatizar o sotaque português, fora algumas
eventuais exclamações. Molas, ao contrário, buscava frisar essa herança a cada fala do
Almirante.
Após um incômodo jejum de nove anos, finalmente em 1945 o Vasco voltava a ser
campeão carioca de futebol de maneira incontestável. Os últimos dois títulos conquistados,
um pela liga amadora outro pela profissional, aconteceram ainda na época da polêmica cisão
no futebol carioca sobre a questão do profissionalismo, entre 1933 e 1936. A equipe que se
tornou célebre como “expresso da vitória” havia sido formada em 1944 e, após conquistar o
Torneio Relâmpago e o Torneio Municipal, amargaria o vice-campeonato carioca ao perder
por um a zero para o Flamengo com um contestado gol de cabeça de Valido nos minutos
finais. Em 1945, porém, o clube da Cruz de Malta se sagraria campeão de maneira invicta,
com uma rodada de antecedência, com 58 gols marcados em apenas 18 jogos, 13 vitórias e
cinco empates.
Tal como fizera no ano anterior, Molas apresentava aos leitores o casamento da
mascote do clube campeão com a Miss Campeonato (Figura 2.19). Dessa vez, entretanto, a
homenagem não figurou na primeira página, como no ano anterior, mas na página dez. Outra
diferença assinala-se na obra em si. Em vez de uma cerimônia de casamento na igreja, Molas
optou por representar a festa, provavelmente para ter mais liberdade de atribuir características
lusitanas ao grande evento. E o fez com dedicação. O espaço representado sugere a
perspectiva de quem observa de dentro de um salão de festas decoradas com forte acento
português. Vemos uma grande abertura na parede, servindo como uma moldura para toda a
cena. A abertura, sem portas, dá passagem para um pátio cercado por um muro. Enfeitada
com lanternas de papel em forma de sanfona e bandeirolas semelhantes às de festa junina, a
119

passagem entre o pátio e o salão é amparada por duas colunas. Essa abertura nos permite ver
uma edificação que se assemelha à Torre de Belém, cercada por um céu estrelado. Na parede
do salão acima desse arco, vemos três conjuntos harmônicos de típicos azulejos portugueses
dispostos em um losango adornado sobre cada coluna, guardando para o conjunto do meio,
retangular, uma transcrição da clássica epopeia de Luiz Vaz de Camões, “Os Lusíadas”:
“Cesse tudo quanto a antiga musa canta/ Que um valor mais alto se levanta”.95
O pátio está repleto de convidados, todos vestidos à moda estereotipada dos
portugueses, com colete sobre camisas e calças dobradas até o joelho e muitos descalços.
Constatamos uma autêntica festa portuguesa, com músicos e dançarinos. Prestando mais
atenção na festa, reconheceremos que, dentre os diversos portugueses “anônimos” na trama,
alguns dos personagens de Molas procuram a companhia das moças ali presentes. Entre os
convidados em geral, alguns tocam instrumentos (bumbo, guitarra portuguesa, sanfona) ou
fazem movimentos que insinuam danças. Na extrema direita inferior, vemos um orgulhoso e
sorridente Almirante, passando um braço pelas costas da noiva à sua direita e afirmando que
só os reis se casam assim. Sobre a farda de gala de oficial da Marinha repleta de medalhas, a
faixa de campeão carioca de 1945. Funcionando de forma semelhante aos atuais pôsteres de
campeão, a charge era adornada pela margem esquerda e inferior por fotos dos atletas
vascaínos, dispostas em “L”. No título, de ponta a ponta no topo da página, lemos “A Boda do
Almirante” em vez de Vasco campeão.
Henfil, por sua vez, nos apresenta o estereótipo físico mais conhecido do português.
Corpulento, careca, de bigodes com as pontas voltadas para cima, mas expressando diálogos
que não acentuam tanto o modo de falar e as expressões lusitanas mais características.
Embora seus traços físicos sejam claramente ligados ao português branco, é sempre chamado
de “crioléu” pelos representantes da elite. Ao contrário do nobre Almirante de Molas, capaz
de bancar festas e bebidas aos amigos em dia de celebração, o português de Henfil prefere se
identificar com as massas. Seu Bacalhau não encontra outro aspecto em comum que não seja
pelas raízes portuguesas, quer seja com o Almirante quer seja com o outro personagem
português de Molas, aparentemente um comerciante bem sucedido, uma figura que, como
veremos adiante, chegou a ser usado por Molas para representar o Vasco.
O chargista afasta-o do estereótipo não apenas amenizando essas características, como
aproximando o Bacalhau mais com o proletariado do que com a figura do comerciante
português explorador, igualmente repulsiva a Henfil. Afinal, ele quer representar a torcida

95
Nos versos originais, lê-se “Musa antígua”, em vez de “antiga Musa” e “alevanta” no lugar de “levanta”.
120

vascaína e não esse passado do clube, ligado ao início do futebol e ao comerciante que
enriquece a custa da exploração do trabalho alheio. O que nos parece mais perceptível é que a
referência às raízes lusitanas só são caracterizadas por Henfil para que o personagem seja
identificado como representante do Vasco da Gama e para que tenha autenticidade. Por esse
lado, Henfil chegou a esboçar uma figura menos proeminente, até mais secundária dentro da
narrativa. Ainda que seja companheiro do Urubu, isso não impede que seja subjugado pelo
amigo, assumindo, resignado, um papel submisso na trama.
Na charge que destacamos acima (Figura 3.22) é o Urubu que tenta reanimar o
Bacalhau. Agora o Bacalhau recupera o ânimo depois de receber um murro do Urubu, no alto
da cabeça, de cima para baixo. No quadro final, sentindo-se recuperar, pede ao companheiro
que continue com o “tratamento”. Essa postura submissa pode ser verificada em outras
charges que analisaremos adiante. Já na charge discutida anteriormente, ao analisarmos as
representações do Flamengo quando era o Bacalhau tentando reanimar o Urubu, o desfecho
foi bastante diferente. O Urubu recuperava o ânimo saltando do bueiro, com sangue nos olhos
e disposto a fazer o Bacalhau engolir seu insulto.
João Malaia aprofunda a discussão em torno das diversas imagens que atribuíam aos
imigrantes portugueses no Brasil. A crise nos países periféricos da Europa fez intensificar, em
fins do século XIX, a imigração de portugueses (cerca de 200 mil na última década), seguidos
de longe por italianos (25 mil) e espanhóis (20 mil). Décadas mais tarde, o recenseamento de
1920 aponta que dos mais de 1.100.000 habitantes da cidade, 210.515 eram portugueses, o
que representava naquele momento 72% dos imigrantes radicados na cidade e quase 20% de
toda a população (MALAIA, 2010, p. 108). Esses imigrantes que chegavam com pouca ou
nenhuma instrução, sendo 44,3% deles analfabetos, empregavam-se nas funções mais
humildes do comércio, da construção civil, oficinas, docas e companhias de transporte. Como
a oferta de mão de obra era maior do que a demanda, aos outros tantos que não conseguiam
emprego fixo restavam os diversos trabalhos informais, em geral como vendedores
ambulantes. De acordo com Eulália Lahmeyer Lobo (2001), o Brasil se tornaria uma opção
cada vez mais atrativa aos portugueses não só pelas evidentes facilidades do idioma e das
semelhanças de costumes, como também por salários urbanos maiores do que em Portugal,
sobretudo no Rio de Janeiro.
121

Esses imigrantes portugueses que vinham para o Brasil, em sua maioria camponeses
sem instrução originários das aldeias do norte de Portugal, configuravam com a
massa de recém-libertos e de seus descendentes, e com os demais imigrantes, as
camadas mais baixas da sociedade carioca. O imigrante português ajudava a
configurar o lúmpen, a classe operária do rio de Janeiro (MALAIA, 2010, p. 108).

Se essa configuração não colabora com a imagem que o brasileiro expressava do


português, João Malaia, em sua tese, lembra que a elite brasileira, na motivação pelas
mudanças operadas pelo ideal de progresso, repudiava a herança lusitana do colonizador,
enxergando nesses portugueses que vinham tentar a vida no Brasil a antítese do mundo
civilizado. Além de serem percebidos como símbolo do atraso, não conseguiam se
desvincular da figura do colonizador de outrora, que os associava, também, à imagem da
repressão, exploração e controle, “passando a ser objetos das mais variadas formas de
preconceito na cidade” (MALAIA, 2010, p. 108).
Sobre esse aspecto, o artigo de Isabel Lustosa e Robertha Triches (2011) oferece
algumas ponderações pertinentes no que diz respeito à construção de um estereótipo que
identifica a figura do português com diversas características negativas: ignorante, ganancioso,
sovina, desonesto e descuidado com os hábitos mais sedimentares da higiene pessoal. As
autoras observam a personificação deste estereótipo na literatura, na imprensa, no humor. Nas
caricaturas, costumam ser apresentados
[...] trajando camiseta sem mangas, de cujas cavas saem ombros e braços peludos,
ou de camisa branca com suspensório e tamanco. É moreno e corpulento; tem uma
pança protuberante; imensos bigodes negros e a barba por fazer. O todo sugere
muito suor e pouca higiene. Um tipo consagrado como personagem característico do
cenário carioca e imortalizado pela caricatura brasileira do começo do século 20 é o
do português condutor de bondes. Mas em geral ele é apresentado como leiteiro,
padeiro, vendeiro, e suspeito de misturar água no leite, areia ao trigo do pão e de pôr
o dedo sorrateiramente na balança para aumentar o peso do que está vendendo
(LUSTOSA; TRICHES, 2011, p. 262).

É perceptível que as representações elaboradas pelos dois cartunistas, tanto o


Almirante de Molas quanto o bacalhau de Henfil, afastam-se dessa carga pejorativa mais
pesada, mas nem por isso configuram-se uma apologia à colônia portuguesa radicada no país.
Antes de tudo, devemos lembrar que o personagem criado por Molas para representar o Vasco
só passou a aparecer como Almirante após algumas charges. Antes disso, era representado por
um português, sim, mas com um aspecto mais de um comerciante do que como um almirante.
Sim, era corpulento, moreno claro e ostentava espessos bigodes, só que trajava o vestuário
civil, resguardando certa elegância: calça de vinco, colete e uma cruz de malta presa a uma
corrente que aparece à frente da enorme barriga. Essa caracterização parece se enquadrar mais
à ideia do português comerciante, que chegava pobre e acumulava riqueza a custa de muito
trabalho e algumas privações, passando de empregado a sócio e proprietário de diversos
122

estabelecimentos comerciais. Se por um lado o português era geralmente visto como símbolo
do atraso, concorrente em um mercado de trabalho acirrado e, por tudo isso, alvo de
preconceitos, também havia uma percepção diferente para aqueles casos em que conseguia
galgar posições na sociedade, em clara demonstração do “poder do novo sistema econômico
em alavancar indivíduos da miséria” (MALAIA, 2010, p. 112).
123

Figura 3.23 O Vasco é representado nesta charge, simultaneamente, por duas figuras. O Vasco é o almirante,
mas também pode ser percebido no português, atrás do balcão, que demonstra preocupação com o prejuízo, logo
após seu “parceiro conterrâneo” anunciar que todos podem beber à vontade, porque ele está pagando. O que nos
leva a concluir que os dois estão pagando, pois os dois, cada um à sua maneira, representam o clube campeão.
JS, 14 de novembro de 1945, p. 1.
124

A charge do dia 14 de novembro de 1945 (Figura 3.23) celebra a conquista vascaína,


que recém se sagrara o campeão carioca naquele ano. Para prestar homenagens a alguns
conhecidos, Molas dividiu em duas partes a charge do dia. À esquerda fez referências a
determinados torcedores do clube, não sabemos se anônimos ou se figuras conhecidas pelo
leitor. Esses quatro quadros não merecem grande relevância para a nossa discussão. À direita
do espaço que era reservado ao chargista, uma grande cena tomando mais da metade do
quadro mostrava todas as mascotes dos clubes entrando felizes em um botequim para começar
uma grande festa oferecida pelo Almirante, que prometia pagar a bebida. Recepcionando
todos à porta, braço esticado apontando ao balcão, convida todos a beber por sua conta. A seu
lado, a Miss faz apenas figuração. Trajando um ousado vestido que termina acima do joelho,
ela apenas observa a entrada dos convidados, de mãos na cintura. Atrás do balcão, ninguém
menos que o característico português, comerciante, dono de botequim, careca, fartos bigodes
com as pontas voltadas pra cima, sobrancelhas espessas e braços peludos. Ergue uma garrafa
na mão e um copo na outra, tendo à sua frente uma bandeja de copos à espera dos convidados.
Com um largo sorriso, segreda ao leitor que desta vez vai à falência, mas que valeria a pena.
“E não havia bar por aí que estava preparado para uma vitória do Vasco. Quando o Vasco
vencia, vendia-se mais cerveja”, garantia Mário Filho. “O torcedor do Vasco comemorava
uma vitória bebendo cerveja, pagando as despesas de todo mundo. A vitória tornava-o
generoso.” (FILHO, 1966, p. 230).
Pela crônica de Mário Filho (1966), o leitor é transportado ao domingo do dia 29 de
outubro de 1944 e é convidado a se envolver nas emoções motivadas pela mobilização em
torno do clássico. O jornalista fala em bondes e lotações apinhados de gente, buzinas,
desfraldar de bandeiras. Procura passar a ideia de uma cidade tomada pelo futebol e aquece os
ânimos falando dos preparativos dos clubes para promover um verdadeiro carnaval fora de
época. Ele se encanta e descreve, como ninguém, a empolgação coletiva em torno de uma
final, de um clássico que reunia, talvez, as maiores torcidas da cidade. Mário Filho procura
ressaltar a todo instante a emoção e participação popular em torno do futebol, seja
descrevendo a criatividade das torcidas, a “contribuição cultural” do carnaval nas
comemorações, seja perpetuando episódios pitorescos ou ensaiando interpretações mais
específicas sobre as torcidas. Molas reproduziu as formas gerais das interpretações de Mário
Filho em sua charge e na construção do caráter dos personagens, mostrando entrosamento
com o seu editor.
De toda forma, agregar o comerciante português à representação vascaína também
pode ser percebido como outra estratégia de Molas para reforçar a relação com a história do
125

futebol do clube da Cruz de Malta. Malaia (2010) dedica especial atenção à inserção do Vasco
da Gama no futebol carioca, percebendo sua contribuição no processo de profissionalização
do futebol carioca que já vinha desbancando o remo enquanto esporte mais popular da cidade,
atraindo multidões e as atenções da imprensa. Homem de negócios, dono da conhecida loja
“Casa Campos” e sócio na fábrica “Segura, Campos e Cia” (móveis de vime e malas), o
presidente do Vasco, Raul Campos, resolveu montar o departamento de futebol no clube ao
assumir o comando em 1915. Campos teria percebido, no crescimento da colônia portuguesa
na cidade, o potencial para reunir em torno de seu escudo a maior torcida da cidade. Planejou
montar uma equipe que trouxesse glórias e melhorasse a imagem da colônia portuguesa ou ao
menos, “amenizasse as tensões entre brasileiros e portugueses.” (MALAIA, 2010, p. 136).
No entanto, os propósitos e os modos administrativos para a inserção vascaína no
projeto do futebol provocariam alguns impasses e desagradariam à elite do futebol carioca
naquele momento. Suas práticas envolviam retribuição financeira aos atletas, tornando
“informalmente” profissional a relação dos jogadores com o clube. Como agravante, punham
em campo aqueles jogadores pertencentes a um círculo social que os representantes da liga
sempre se esforçaram em afastar. Configuravam presença indesejável ao ideal da manutenção
do esporte enquanto uma atividade de lazer de ilustres cavalheiros e ameaçavam assim a
supremacia da aristocracia no futebol (MALAIA, 2010). Com o acesso tardio à série A do
Campeonato Carioca de 1923 e levando o título logo em sua primeira participação na elite do
futebol carioca, com uma equipe repleta de jogadores negros, mestiços e pobres, o Vasco
conseguiu breve e crescente adesão e popularidade entre as classes sociais mais modestas da
cidade.
Na entrada da década de 1920, o Rio de Janeiro testemunharia o surgimento de uma
nova força entre a elite do futebol do Distrito Federal: o Vasco da Gama. Força esta que, por
práticas muito contestadas, acabaria exercendo forte influência na radical transição entre o
amadorismo e o profissionalismo no futebol carioca.
126

Figura 3.24 O Português vascaíno de Molas, antes de começar a adotar a figura do Almirante. Ostentação e
desleixo parecem sugerir uma figura ambígua, talvez a do estereótipo do português sem instrução que acumulou
dinheiro. JS, 27 de junho de 1944, p. 1.

Essa imagem ambígua sobre o português presente na imprensa carioca se mostra de


maneira exemplar na caricatura de Molas do clube de raízes lusitanas. Vale lembrar que a
participação do Vasco na primeira divisão do campeonato carioca era relativamente recente. É
preciso ter em conta também que, em vista da enorme torcida vascaína, talvez fosse arriscado
demais acentuar de forma excessiva as características mais pejorativas do estereótipo
português, como era visto fartamente nas caricaturas da imprensa carioca desde o século XIX
(LUSTOSA; TRICHES, 2011). Antes de o distinto Almirante surgir nas páginas do Cor-de-
rosa96, Molas chegou a pensar e a representar o time da Cruz de Malta pela imagem

96
Segundo Bernardo Buarque de Hollanda, o JS era popularmente conhecido como o Cor-de-rosa.
(HOLLANDA, 2012, p. 81).
127

estereotipada do comerciante português, remetendo possivelmente à imagem de uma elite


econômica sem instrução, que acumulara fortuna a custa do trabalho árduo no comércio.
A charge destacada (Figura 3.24) lembrava as recentes conquistas da equipe que
ficaria conhecida como “expressinho da vitória”. Em 1944, o Vasco começaria a disputa na
condição de campeão dos torneios anuais que movimentavam a cidade, enquanto não
começava o Campeonato Carioca. Em um restaurante, vemos um satisfeito e rechonchudo
português careca, peludo e de fartos bigodes, à frente de uma mesa. Enquanto uma mão ergue
um cálice de vinho, a outra acaricia a barriga, como que demonstrando estar saciado. Na
mesa, vemos três pratos, cada um com um enorme osso, onde lemos os nomes dos torneios
Initium, Relâmpago e Municipal, este último conquistado dois dias antes pela equipe
cruzmaltina. Pelo figurino do português (camisa social, colete, uma corrente que atravessa a
barriga e prende uma cruz de malta), percebemos que o personagem parece ocupar uma
posição relativamente respeitável na sociedade. No dedo maior da mão, que acaricia a pança,
um chamativo e reluzente anel. Ao mesmo tempo, hachuras em seu rosto podem sugerir certa
embriaguez ou a barba por fazer. As mangas arregaçadas deixam à mostra um braço peludo,
na linha da caricatura estereotipada na já citada descrição de Lustosa e Triches (2011, p. 251),
em que “o todo sugere muito suor e pouca higiene”. Ganha forma na charge um esboço desta
ambiguidade, na figura em que se reconhece o comerciante português, com traços que se
caracterizam por representações de uma emergência social pouco sutil, o comerciante que
galgara sucesso, mas que ainda mantinha os hábitos mais desleixados dos tempos difíceis.
Em determinado momento, por exemplo, o Almirante chega a aparecer no sofá da sala
de estar da mãe da Miss Campeonato com um pé descalço. A substituição da caricatura do
português pela do Almirante já busca uma referência mais ligada ao clube em si, à
homenagem que faz ao navegador português. Sobre a popularidade do personagem, ainda que
possamos descontar o envolvimento emocional de Mário Filho, encontramos um relato
pertinente já citado neste capítulo, quando o jornalista fala da pronta aceitação da torcida,
mencionando painéis desenhados por Molas e em representações, em carne e osso, da Miss
Campeonato e do Almirante.
Henfil, por sua vez, procurou reafirmar o Vasco enquanto clube de massas criando a
associação improvável com o Flamengo que, segundo seus relatos, teria logrado certo êxito. A
bem da verdade, Henfil não só distancia o Vasco do navegador como da ascendência
portuguesa. Claro que mantinha seus vestígios na representação física do personagem, mas
não acentuava essa origem.
128

Figura 3.25 Símbolos da ascendência portuguesa são constantemente frisados em Molas, que por mais que
procure se afastar da caricatura mais pejorativa do português, não escapa de embarcar no estereótipo do lusitano
bronco, a prometer “grana”, “boia” e uns “pescoções” em uma serenata que se pretendia romântica. JS, 04 de
agosto de 1944, p. 1.

Ó, Cachoupa, pancadão!/ Tou d’amor agonizante/ Dou-te farda de almirante/ E mais


meu coração/ Não olhes lá pr’esses gajos/ Que são uns pernas de pau!/ Dou-te
assucar, dou-te trajes/ Mais manteiga e vacalhau/ Cá, o amor, é à lusitana/ Cuida
d’alma e da barriga/ Dou-te calor, bóia e grana/ E uns p’scoções, rapariga.97

A serenata transcrita acima, com forte sotaque lusitano, é declamada por um redondo
Almirante (Figura 3.25), a dedilhar um típico instrumento de cordas da música popular
portuguesa: um bandolim ou uma guitarra portuguesa. Além do chapéu característico dos
oficiais da marinha, com uma cruz de malta à frente, traz novamente o ícone do clube preso a
uma corrente, cujas extremidades se escondem nos bolsos do colete. A seu lado observamos
ainda uma antiga caravela em miniatura, dos tempos do descobrimento, puxada por um

97
JS, 04 de agosto de 1944, p. 1.
129

cordão. À janela, o leitor percebe só a silhueta da Miss, que leva as mãos à cortina (fica a
cargo do leitor imaginar se ela está abrindo ou fechando).
Fortes características geralmente associadas ao estereótipo do português no Rio de
Janeiro estão sugeridas ou explícitas nesta charge de Molas. Quando Isabel Lustosa (2011)
descreve a caricatura do português no Brasil como um sujeito bronco, desleixado, sovina,
desonesto, de hábitos de higiene visto como pouco asseados, não conseguimos, à primeira
vista, reconhecer de forma completa essa descrição na imagem do Almirante, aqui se
esforçando para posar para a dama como um autêntico e generoso fidalgo, homem de posses e
oficial da marinha. Seu modo de falar entrega expressões e sotaque lusitanos, em que se
destacam verbetes como “cachoupa”, “gajos”, “vacalhau” e “p’scoções”, que revelam, ao
mesmo tempo, vocabulário e costumes mais rudes. Sem qualquer sutileza, oferece cuidar
“d’alma e da barriga”, prometendo calor, grana, “boia”, em clara sugestão a sexo, dinheiro e
comida. Ao mesmo tempo, seus trajes entregam certa opulência forçada, talvez satirizando a
elite emergente e ironizando um possível costume de ostentar sua nova posição social. Basta
ver a nada discreta cruz de malta presa a uma corrente que lhe atravessa, sobre o colete, a
enorme barriga e chega a arrastar no chão de tão grande. Além da cruz de malta, a referência
ao navegador português ainda pode ser observada em uma réplica de uma caravela, puxada
por rodinhas, cuja bandeira no topo da haste mais alta chega a atingir a altura do peito do
Almirante.
130

Figura 3.26 A torcida vascaína se divide entre uma facção assumidamente gay, representada por um personagem
com as mesmas feições do Bacalhau, com uma afetação escancaradamente afeminada e uma flor na cabeça; e o
Bacalhau, que, embora não se identifique, acaba se mostrando, muitas vezes, o lado mais fragilizado da dupla.
Bacalhau nesta charge não se incomoda de demonstrar medo e reverência à torcida do Flamengo. Tremendo de
medo pelo outro que vai enfrentar o Pelé, se desculpa por não ir. JS, 01 de novembro de 1969, p. 3.
131

Figura 3.27 Um ano depois, quando é o Vasco que vai enfrentar o Fluminense, o Urubu novamente não
demonstra medo e o Bacalhau, novamente, assume a porção mais fragilizada da massa. JS, 01 de novembro de
1970.
132

Nas outras duas charges selecionadas (Figuras 3.26 e 3.27), o Bacalhau apresenta
características bastante distintas. Podemos dizer que o “sotaque lusitano” quase se perde e o
personagem é amparado apenas pelos detalhes de seus traços físicos, mais especificamente
uma careca e um bigode mais sutil que o de Molas. O que é ressaltado aqui é uma postura
submissa, bem mais resignada a um papel secundário quando o Bacalhau não se acanha em
demonstrar medo, em frisar a força do companheiro em detrimento da própria (Figura 2.26):
“Admiro sua coragem, você é homem pacas! Não sou tão fanático.”
A charge seguinte (Figura 3.27) antecede o jogo entre Fluminense e Vasco. Urubu
procura provocar a reação do companheiro: “como é do conhecimento da massa vascaína, o
Flavio98 disse que o Vasco treme quando joga com o Flu”. No quadrinho seguinte, a chave
para compreender o significado da demonstração de medo na tirinha: “Ou, por outra: chamou
c’ês tudo de bichas!”, diz o Urubu dando ênfase à palavra “bichas”, com um sorriso
debochado. Dito isso, passa a palavra ao Bacalhau, que anuncia o plano de ação contra o
jogador. O plano consistia simplesmente em chamá-lo de galinha toda vez que ele tocasse na
bola. Empolgado com a imagem que lhe vem à cabeça, o Urubu corre animado puxando o
Bacalhau para o Maracanã, mas este freia repentinamente. Quando o Urubu percebe que está
sozinho, olha para trás apressando o companheiro, que está estagnado sobre uma poça de
urina, tremendo o corpo inteiro e assumindo seu pânico: “A tal tremedeira”, explica.
Não nos parece que essa característica mais submissa, mais secundária, acrescentada
por Henfil para caracterizar o Bacalhau tenha qualquer relação com a sua herança lusitana. Se
o cartunista percebia a torcida do Vasco como aliada do seu Flamengo, por ambos serem os
representantes do proletariado do Rio de Janeiro, talvez não fosse interessante acentuar a
notória relação do Vasco com a colônia portuguesa. No entanto, estabeleceu sua hierarquia ao
representar um Urubu mais altivo, mais confiante e assumindo um papel protagonista, como
que liderando as massas. Enquanto Henfil procurou distanciar o Bacalhau daquele velho
estereótipo do português, a representação do Almirante, símbolo do Vasco em Molas, somada
às demais características aqui assinaladas parecem um pouco mais aproximadas daquela
descrição de Lustosa e Triches (2011) destacada anteriormente para a caricatura do português,
sobre a qual ainda acrescentam:

98
Jogador do Fluminense.
133

A esses aspectos soma-se o sotaque característico: a maneira de falar trocando o v


pelo b ridicularizada desde o tempo da independência em versinhos do jornalista
Cipriano Barata e imitada até hoje pelos que contam anedota de português. Foi
marcante na MPB durante muito tempo, chegando a ela através do Teatro de
Revistas, em que o tipo do português da venda, simplório e caído pela mulata,
também foi bem desenvolvido (LUSTOSA; TRICHES, 2011, p. 262).

Esse sotaque característico ganha duas conotações distintas, sendo frisado no humor
de Molas e amenizado no de Henfil. No entanto, nenhum dos dois se furta a relacionar o
Vasco à colônia portuguesa, já que desenhos de humor se valem constantemente de
generalizações. Se as características mais pejorativas do estereótipo do português são
atenuadas ou negligenciadas nos dois casos, diferenças cruciais nas perspectivas e propósitos
entre os cartunistas evidenciam-se nas respectivas caracterizações. Pela caricatura do
almirante português, em comparação às já citadas caricaturas mais abundantes do personagem
da imprensa brasileira, podemos concluir que as conquistas do clube em campo, de fato,
parecem ter amenizado as tensões habituais com a figura do colonizador. Henfil, por sua vez,
parecia não se interessar em frisar a relação do Vasco com a colônia portuguesa mais do que o
apelido e os atributos físicos pudessem sugerir. Ainda que seu personagem se mantenha um
pouco a reboque do Urubu, assumindo um papel relativamente secundário, é um personagem
que representa um clube simpático ao cartunista, reconhecido mais como um companheiro do
que como um dos personagens escolhidos para serem os mais ridicularizados. É possível que
Henfil não quisesse associar demais o clube com essas raízes para frisar a noção de que a
torcida do Vasco não se limitava a essa representação portuguesa no Rio de Janeiro.
134

4
FUTEBOL E POLÍTICA
NAS CHARGES
DO COR-DE-ROSA
135

Figura 4.1 Em fins de outubro de 1945, dias após a saída de Vargas do Palácio do Catete após 15 anos de
governo, o Flamengo sepultava suas chances de conquista do tetracampeonato de futebol. Molas ligou os fatos,
com a declaração de Popeye afirmando nunca ter pretendido ser o ditador do futebol, após 3 conquistas
consecutivas. JS, 08 de novembro de 1945, p. 1.
136

Figura 4.2 O clima tenso dos interrogatórios do DOPS é reproduzido nesta charge de Henfil, que aproveitava a
suposta declaração de Aimoré em que comparava o jogador rubro-negro a um “guerrilheiro”. JS, 15 de março de
1968, p. 1.
137

De fato, observando as charges apresentadas acima, bem como as que serão analisadas
a seguir, parece claro que as referências aos acontecimentos políticos estão muito mais
explícitas no humor de Henfil do que no de Molas. Analisando as obras discutidas até aqui, já
se pode notar a diferença. No período de Vargas, as referências às decisões políticas do país
são casuais, pois as menções ao noticiário diário são pontuais. Durante a ditadura militar,
nota-se a persistente lembrança da sensação de insegurança da sociedade diante do regime
autoritário, expondo sistematicamente as diversas formas de repressão operada pelos
aparelhos do regime. Ainda que a função primeira de Molas e Henfil fosse a de registrar com
humor as notícias do mundo do futebol, na obra do primeiro elas nos parecem mais centradas
no assunto principal, em que a política pode surgir no pano de fundo ou nas escolhas de
personagens que ajudam a estreitar os laços culturais com os Estados Unidos. Já na obra de
Henfil, o futebol se torna pretexto para a crítica política contra as arbitrariedades do regime. A
referência política de Molas pode ser verificada de forma mais causal ou sutil, convertido em
crítica apenas em momentos de grande transformação. É difícil assegurar se o fenômeno se
deve a uma postura profissional pessoal, a alguma imposição do jornal ou se a alguma espécie
de censura, ainda que interna, mas acirrada. Marcos Silva (1989), entretanto, apresenta uma
fonte que sugere uma hipótese plausível para explicar a situação. Um artigo assinado por
Octávio Sgarbi e publicado no Anuário da Imprensa Brasileira de 1942, citado por Silva, nos
leva a acreditar que, naquele período, esse relativo “esvaziamento político” na caricatura não
seria “privilégio” da charge de Molas. Durante o Estado Novo, a caricatura política daria
lugar à caricatura de costumes, segundo Sgarbi (1942 apud SILVA, 1992, p. 27-28),
apontando como causa dessa mudança a identificação do Estado Novo com os ideais
brasileiros e a extinção dos partidos.99
Surge, então, um primeiro problema a apresentar riscos para a abordagem política que
pretendemos observar neste capítulo: a discrepância na quantidade de charges de cada artista
no que diz respeito ao repertório crítico. Enquanto a charge política de Molas trazia
informações sobre um período de maneira panorâmica, reproduzindo de forma caricatural
fenômenos e situações mais longevas, como o entusiasmo popular com a cultura
“americanizada”, a obra de Henfil acompanha mais de perto o noticiário político, alfinetando
os atos do governo em situações diversas. No entanto, não podemos simplesmente
negligenciar a questão, uma vez que, se ela é mais sutil em um dos casos, no outro ela é farta

99
Referência completa do texto citado por Silva (1992, p. 27-28): SGARBI, Octávio. Introdução à história da
caricatura brasileira. Anuário da imprensa brasileira. Rio de janeiro, Departamento de Imprensa e Propaganda,
1942, p. 77-90.
138

em número de fontes e em efeitos discursivos diretos. A seguir, a análise das duas charges
selecionadas para abrir o capítulo poderá nos ajudar a refletir melhor sobre as diferenças entre
as obras e sobre seus respectivos períodos.
Ao empatar com o Canto do Rio, no primeiro domingo de novembro de 1945, o
Flamengo mantinha a diferença de cinco pontos para o Vasco, que liderava o Campoenato
Carioca de Futebol.100 Faltando apenas dois jogos para completar a tabela, o resultado
afastava definitivamente a possibilidade do clube de regatas da Gávea se sagrar tetracampeão.
Nove dias antes, a manchete da primeira página do “Jornal do Brasil”101 era a renúncia oficial
do presidente Getúlio Vargas, que deixava o Palácio do Catete depois de quinze anos. Era o
fim do Estado Novo. Em uma das raras charges em que Lorenzo Molas menciona
acontecimentos políticos específicos, “O outro que renunciou”102 (Figura 4.1), a imprensa
queria saber de Popeye os motivos que o levaram a renunciar ao tetracampeonato carioca.
Desfilando uma certa soberba, como uma celebridade que finge esnobar a enxurrada de
fotógrafos ao seu redor, o marinheiro segue sem frear seu caminhar decidido. Peito estufado,
mãos na cintura, sem olhar para ninguém, responde tranquilamente: “Eu sou um democrata.
Nunca pretendi ser ditador do football”. Ainda que a casualidade tenha favorecido a piada de
Molas, com o Flamengo perdendo suas últimas esperanças de título poucos dias após o fim do
Estado Novo, a metáfora política usada pelo cartunista acaba reforçando a relação entre os
ícones da cultura popular americana e a luta pela democracia.103
Em março de 1968, o técnico Aimoré Moreira, ao deixar o Flamengo para assumir a
seleção, supostamente teria declarado à imprensa104 que seu ex-comandado, o atacante Luís
Carlos, empregava tática de guerrilha. Henfil fez uma charge,105 publicada no dia 15 de março
de 1968 (Figura 4.2), que talvez seja uma das mais ousadas de toda a sua trajetória porque
denunciava a prática intimidadora de interrogatórios. Com uma luz apontada para o rosto,
mãos amarradas para trás, sentado em um pequeno banquinho, suor escorrendo pelo rosto, o
atacante “guerrilheiro” declara, desesperado, diante de uma parede de homens de capacete

100
JS, 06 de novembro de 1945, p. 1.
101
A partir da próxima menção ao “Jornal do Brasil”, será usada a sigla JB para designar o periódico.
102
JS, 08 de novembro de 1945, p. 1.
103
Observaremos com maior atenção, ainda neste capítulo, as questões em torno da percepção dos cartunistas
sobre a importação da cultura de massa americana.
104
Imagino que o título da charge possa ter se inspirado em outro veículo de comunicação. Buscamos a
declaração no JS, no JB, e no “O Globo”, mas nada encontramos a respeito. No JS, apenas a informação de que o
jogador teria renovado contrato com o Flamengo, fixando um novo ordenado no valor que correspondia a quatro
vezes o salário anterior. JS, 15 de março de 1968, p. 5.
105
Trata-se, na verdade, de uma chamada na primeira página para a charge de dentro, na página 4. Mas como
muitas vezes ela tinha autonomia e funcionava sozinha como charge, refiro-me a ela aqui enquanto tal.
139

com inscrição do DOPS:106,107 “Mao-Tsé-Tung, não! Meu técnico é o Miraglia,108 juro.”


Ainda que a cena não demonstre explicitamente a tortura, faz menção à sensação de
insegurança generalizada diante de um estado de força.
Duas situações contrastantes definem os dois períodos destacados. Enquanto a
primeira charge evidencia o fim de uma longa ditadura, a seguinte prenuncia o acirramento de
um novo regime ainda mais arbitrário. Em 1945, a renúncia oficial de Vargas era ironizada
pela comparação com a “abdicação” do tetracampeonato pelo Clube de Regatas Flamengo.
Comparando a crítica política das charges de Molas com as charges de Henfil, nota-se um
ambiente bem mais ameno, onde “democracia” e “liberdades civis” se tornam valores
primordiais em uma sociedade que, naquele mesmo ano, mandara suas tropas combater o
nazifascismo na Europa. Não foi a primeira vez que Molas fez alusão a Getúlio enquanto
ditador, através da figura de Popeye. O “título” de “ditador do futebol” teria surgido em uma
outra charge mais remota e da qual, infelizmente, só se pôde encontrar indícios, mas como ela
colabora para reflexões pertinentes à nossa discussão, é preciso investigar as fontes que a
descrevem. Através da matéria sobre o chargista para o jornal da Associação Brasileira de
Imprensa (ABI), assinada pelo jornalista Manuel Epelbaum (2004), chegamos à entrevista
cedida pelo próprio Molas ao jornal de Buenos Aires “Democracia”, onde relata o episódio:
Gobernaba en Brasil Getulio Vargas, era un dictador, pero muy querido por su
pueblo. Después se suicidó. Cuando Flamengo salió por tercer año consecutivo
campeón, yo dibujé en La tapa a Popeye, pero con la pose clásica, la forma de
pararse de Getúlio, y en lugar de La pipe dibujé un habano, que era lo que fumaba El
presidente. El dibujo era enorme y de título puse “Flamengo el ‘Dictador del fútbol
de nuevo campeón”. Se armó tal revuelo, se vendió todo y al otro día el presidente
109
solicitó el dibujo original, para colgarlo en su despache.

Mesmo considerando as possíveis distorções operadas pela memória no relato de


Molas sobre o episódio, há que se considerar a peculiar habilidade política de Getúlio, ciente
de sua popularidade frente à classe trabalhadora, ao demonstrar que uma charge como aquela
não abalava sua autoconfiança. De qualquer modo, o contraponto com a charge aqui
apresentada é significativo. É válido notar que tanto na charge analisada (Figura 3.1), quanto

106
DOPS é a sigla de Departamento de Ordem Política e Social.
107
Figura 3.2 Henfil não se preocupava muito com a fidelidade à representação verídica dos personagens. Suas
escolhas eram estritamente simbólicas. Dirigentes, por exemplo, eram sempre representados com cartola.
108
O preparador técnico Válter Miraglia substituíra Aimoré no comando do Flamengo.
109
Foram examinadas todas as edições do JS desde o campeonato de 1944 até o início do campeonato de 1945,
mas, infelizmente, ela não foi encontrada. Como não tivemos acesso à edição dos álbuns da Miss Campeonato,
supomos que esta charge talvez só tenha sido publicada nesta ou em alguma outra possível edição especial do JS.
A ligeira confusão operada pela memória de Molas em relação às datas refere-se à charge como tendo sido
elaborada em 1943, quando as evidências encontradas comprovam ter sido em 1944 seu início no JS, bem como
o ano do primeiro tricampeonato rubro-negro. Ver: FEUER, Daniel. Molas, creador que no quiere penas ni
olvidos. Entrevista. Democracia, Buenos Aires, 13 de julho de 1991, p. 2-3.
140

naquela em que Molas associa o presidente Getúlio Vargas ao símbolo do Flamengo, está
presente a ironia com o rótulo de ditador. A diferença é que, em um primeiro momento, pelas
rápidas descrições do autor, a charge mencionada parece revestida de certa apologia à imagem
do ditador. Se é verdade que ele pediu o original ao cartunista, demonstrou não se incomodar
muito com tal rótulo. De fato, Vargas não era presidente por vias democráticas, mas por golpe
de estado, cancelando as eleições presidenciais que apontariam seu sucessor e proclamando o
Estado Novo, em 1937. Na segunda menção, Molas ironiza a renúncia de Vargas: como
entender que Vargas não queria ser ditador, uma vez que se manteve no governo por 15 anos?
Como entender que o Flamengo desdenhasse o tetracampeonato? Molas estabelece um
paralelo sutil entre a derrota política de Vargas com a derrota do Flamengo na conquista do
tetra.
Interessante também é perceber a ambiguidade que passa a ser atribuída ao
personagem do Popeye: se por um lado Molas o usou para sutilmente estabelecer um paralelo
com Vargas enquanto ditador, por outro, frisa seu caráter de defensor da democracia. Se
aceitarmos, ainda, a hipótese de que Mário Filho procurou sempre atribuir ao Flamengo uma
popularidade naturalizada e embrionária, “desde o berço”, ou que sempre procurou reforçar
suas ligações com as camadas mais populares da cidade, talvez possamos encontrar aí outra
comparação sutil com Getúlio que, apesar de ditador, desfrutava de imensa popularidade.
Essa popularidade, verificada principalmente entre a classe operária, se deve à
extensiva propaganda política que trabalhou a imagem de Vargas como a de “pai dos pobres”
e a uma série de transformações que garantiriam melhores condições de trabalho a uma classe
cada vez mais crescente, à mesma medida em que se acelerava o processo de industrialização
do país. O artigo de Ana Paula Vosne Martins (2008) exemplifica perfeitamente essa relação
de Vargas com o povo, ao estudar as inúmeras cartas recebidas pelo presidente pedindo todo
tipo de auxílio. A autora atribui a criação da imagem de Vargas como líder da nação,
“defensor do povo e de seus interesses”, às propagandas e às políticas sociais, mas sublinha,
sobretudo, a forma como o “pai dos pobres” procurava derrubar o uso de intermediários entre
ele e os trabalhadores, procurando estabelecer um canal de comunicação direto com o povo.
O ambiente mais ameno de Molas, em que os personagens estão mais interessados nas
belas formas da Miss Campeonato do que nas transformações políticas do país, parece não
encontrar mais lugar na charge de Henfil, onde o ambiente tenso da repressão, de insegurança
generalizada, parece cada vez mais intenso. O confronto entre a guerrilha e os órgãos da
repressão é expresso no que seriam “inofensivas” charges esportivas. Henfil, no entanto,
procurava manter viva na lembrança do leitor a sensação de insegurança generalizada, seja na
141

opressão ostensiva nas ruas contra as manifestações públicas de repúdio ao regime, seja nos
porões da ditadura, onde violentos interrogatórios se tornariam prática cada vez mais
frequente.
Carlos Fico (2004) identifica uma intensificação gradual e crescente da repressão
desde que Emílio Garrastazu Médici passou a comandar o Serviço Nacional de Informações
(SNI), criado ainda em 1964, através da Lei nº 4.341. O autor esclarece que não teria sido a
organização do aparato repressivo110 que culminaria na prática da tortura, mas, por outro lado,
a teria institucionalizado enquanto etapa rotineira dos interrogatórios. O Serviço Nacional de
Informações seria responsável pelo surgimento da polícia política no fim dos anos sessenta.
É esta oficialização da prática da tortura [...] que desmente as hipóteses da
“autonomia” e dos “excessos”. É rigorosamente impossível que a atividade
sistemática da tortura pudesse ser praticada dentro das unidades militares sem o
conhecimento de seus comandantes. [...] A independência com que trabalhavam,
tomando a iniciativa de investigar, prender, torturar este ou aquele indivíduo,
pressupunha exatamente essas etapas: investigação, prisão e tortura para obter
informações rapidamente (FICO, 2004, p. 83).

Podemos perceber na charge de Henfil uma representação humorística das palavras de


Fico (2004, p. 83): “investigação, prisão e tortura para obter informações rapidamente”. Na
charge, é só o jogador Luís Carlos quem fala, visivelmente amedrontado: “Mao Tsé Tung,
não. Meu técnico é o Miraglia! Eu juro!”. A declaração do jogador obviamente nos faz
perceber que os agentes do DOPS, na charge, queriam informações sobre quem o comandava.
O deboche escancarado de Henfil ironiza não apenas o estado geral de insegurança, diante da
repressão, como também uma suposta falta de perspicácia de seus agentes, uma vez que não
percebiam que o técnico Aimoré Moreira estaria falando em linguagem figurada.
Em 1968, cerca de nove meses antes do decreto do AI-5, Henfil já denunciava as
práticas da polícia política da repressão, no que se refere às investigações, prisões e
interrogatórios. Henfil parece chamar atenção para o controle excessivo do Estado quando
representa um jogador sendo levado a interrogatório por conta do uso inadvertido de uma
expressão mal colocada. Levando em conta o exagero caricatural que se espera de uma
charge, o que se torna evidente nesta é a suspensão das liberdades e direitos constitucionais
mais fundamentais. É certo que a agressão não é explícita, mas sugerida. Nota-se a tensão do
jogador, sentado, acuado, mãos pra trás, um foco de luz apontado pro seu rosto, suor
escorrendo e o desespero expresso em sua declaração. Acima dele, uma parede de homens do
DOPS, expressões fechadas, contribuem para aumentar o clima de tensão.

110
Carlos Fico refere-se ao Serviço Nacional de Informação. (FICO, 2004).
142

Essas estratégias, ironia e abordagens de outros contextos histórico-sociais faziam


parte de uma série de recursos articulados por artistas, produtores culturais, para “driblar” a
dedicada atenção da censura. De todo modo, despontam enquanto ícones de uma inclemente
resistência cultural, da qual Henfil também fazia parte.
A proposta de reflexão sobre o contexto político do país a partir da análise discursiva
de charges esportivas caminha em sintonia com algumas propostas de análise pensadas por
René Rémond (1996), que, ao defender a adoção de novas abordagens, propôs uma história
política completamente renovada. Lembrando que os limites da extensão do que é político
nunca foram fixos na História, o autor percebe o universo político em contínua expansão. A
esfera política se expande na medida em que os poderes públicos passam a se encarregar cada
vez mais de setores que afetam a sociedade em diversos aspectos, intervindo na saúde, bem
como na habitação, no transporte público, no lazer, na educação e na cultura, por exemplo.
[...] legislar, regulamentar, subvencionar, controlar a produção, a construção de
moradias, a assistência social, a saúde pública, a difusão da cultura, esses setores
passaram, um após outro, aos domínios da história política (RÉMOND, 1996, p. 24).

A obra “Por uma História Política” (RÉMOND, 1996) chama a atenção para a
amplitude do envolvimento político na sociedade, observando, por exemplo, de que forma as
decisões políticas afetam diferentes grupos ou camadas sociais, de que maneira enfrentam
resistências ou são conduzidas no sentido de satisfazer ou de não contrariar em excesso a
opinião pública. Na medida em que a pesquisa histórica passou a se preocupar em
compreender um fenômeno político em sua totalidade, passou também a exigir a adoção de
novas perspectivas historiográficas.
Vale a pena resgatar aqui o papel da linguagem humorística, lembrados na introdução
da presente dissertação. Nos períodos em que a censura se intensifica, o humor ganha ainda
maior relevância. Tais contextos motivaram os estudos de Elias Saliba (2002), que situa a
importância do humor na sociedade, ressaltando o caráter ambivalente de sua linguagem
como uma representação histórica privilegiada; ou os de Maria Francisca Pires (2010), que
considera a obra de Henfil como um elemento indissociável de uma cultura de oposição e
resistência à ditadura militar, destacando o período cultural como um dos mais inventivos de
nossa história recente.
O que procuramos observar neste capítulo é o teor político de uma categoria
específica de charge, aquela cuja função primeira seria fazer humor com as notícias
esportivas. A presença de personagens como o Pato Donald e o Popeye entre ícones do
futebol carioca em meados da década de 1940, ou as denúncias da cooperação norte-
143

americana com a ditadura, os interrogatórios e as repressões policiais a passeatas, em fins dos


anos 60, podem exemplificar, de maneira mais concreta, a forma como essas manifestações
do mundo político podem ser verificadas nas charges. Para o próprio Henfil, em depoimento
sobre as dimensões do político no humor, as histórias em quadrinhos do Tio Patinhas não
apenas consistem em um humor altamente politizado: “é só político”, sendo ao mesmo tempo
uma pregação do capitalismo e uma crítica, uma vez que não há como não considerar o
personagem um doente (HENFIL, 1984a, p. 6).
Se o caráter do Tio Patinhas pode ser percebido como caricatura dentro de um humor
político, o que dizer, então, da penetração de personagens americanos entre os símbolos dos
clubes de futebol brasileiros? Como interpretar o significado desta presença tão marcante em
tempos de política de boa vizinhança? Crítica, adesão ou uma constatação imparcial? As
fontes analisadas são percebidas aqui como evidências da penetração do “político” no
cotidiano de um público que se interessa por futebol, que agrega idades e classes sociais
distintas.
144

4.1 As charges de Molas e Henfil e as propagandas políticas entre sintonias e conflitos

Figura 4.3 A seleção brasileira de futebol é comparada aqui às Forças Armadas do país, ambos em plena
campanha no exterior. As Forças Expedicionárias Brasileiras, no conflito mundial, e o escrete da seleção, no
campeonato sul-americano. Nota-se ainda o reforço sutil ao estereótipo etnocêntrico da nação representada pelas
grandes metrópoles de Rio de Janeiro e São Paulo. JS, 20 de janeiro de 1945, p. 1.
145

Figura 4.4 No dia seguinte ao decreto do AI-5, que garantia plenos poderes à base governista, Henfil ironizava a
intervenção dos órgãos da repressão. Após esta charge, porém, sua crítica seria menos direta às arbitrariedades
do regime autoritário. JS, 14 de dezembro de 1968.
146

Em janeiro de 1945, o período de férias do campeonato carioca de clubes direcionava


as atenções da imprensa esportiva para a campanha da seleção brasileira no Campeonato Sul-
Americano de seleções, no Chile. Quando o Brasil estava para fazer a sua estreia na
competição, a charge de Molas111 apresenta aos leitores um detalhe do mapa da América do
Sul, com uma lupa sobre o Chile, país-sede do torneio (Figura 4.3). Na ampliação, vemos uma
cobra com um cachimbo pendurado à boca, enroscada em um canhão (com o primeiro nome
do jogador Ademir Menezes inscrito na lateral), apontado para o gol adversário. O goleiro da
Colômbia, procurando se proteger atrás de uma das traves, comenta que nunca tinha visto
uma cobra fumar. Na área reservada ao Brasil, aparecem representando a nação na torcida
pela seleção um bandeirante paulista e um típico janota carioca com seu inconfundível chapéu
de palhinha, no mesmo estilo do usado pelo Zé Carioca, colados ao rádio. Molas atribuiu a
ideia de poder ao símbolo da FEB, provocando o medo no adversário.
No dia 14 de dezembro de 1968,112 dia seguinte ao decreto do AI-5, o JS publicava
uma charge de Henfil (Figura 4.4), em que um torcedor brasileiro conclama: “Chega de
intermediários. Delegado Padilha1 para a seleção”. Trata-se de uma menção sutil ao decreto
da véspera, que dava amplos poderes ao poder executivo. A charge sobre o AI-5 não apenas
faz menção ao decreto, mas denuncia, ainda, o interesse dos militares pelo futebol enquanto
espetáculo e símbolo de identidade e união nacional. Segundo Marcos Aurélio de Oliveira
(2012), no artigo em que trata do uso do esporte como ferramenta do regime — através de
medidas como a criação da Loteria Esportiva, a construção de estádios, as interferências nas
federações e na organização oficial do campeonato brasileiro —, o Estado interessava-se pelo
futebol prioritariamente enquanto evento de massas, ainda que o apoio à Educação Física nas
instituições educacionais fosse encarado de maneira benéfica.
Uma diferença parece crucial entre as duas charges destacadas acima. A primeira
charge, a de Molas, parece reforçar uma ideia de unidade nacional, vinculando as Forças
Armadas à seleção de futebol do país, ambas em campanhas no exterior. O humor de Henfil
não propaga essa ideologia que exalta o caráter patriótico. Ao contrário, acusa o
intervencionismo político no futebol.

111
JS, 20 de janeiro de 1945, p. 1.
112
No mesmo dia o JB publicava, no espaço reservado à previsão meteorológica, a seguinte nota: “Tempo negro.
Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em
Brasília. Mín.: 5º em Laranjeiras”. Ainda que a previsão meteorológica não seja propriamente uma charge,
funciona como tal, pois só encontra sentido na interpretação de seus códigos. Sua função habitual era ignorada
naquele dia.
147

Uma vez que estamos observando uma natureza específica de charges, publicadas
também em um mesmo periódico esportivo, de grande penetração, forte influência política e
uma rede de colaboradores que figuram entre a nata da intelectualidade ou em diversas esferas
de poderes políticos e esportivos, vale observar que tipo ou intensidade de influência pode ter
sido exercida pela censura e pela propaganda política dos regimes arbitrários vigentes de
então. Os dois regimes, embora apresentem semelhanças, também demonstravam profundas
diferenças no que diz respeito à forma como instauraram a censura, bem como na forma como
a propaganda política foi trabalhada.
Como perceberemos em obras como as de Maurício Drumond (2008) e Marcus
Aurélio de Oliveira (2009) que abordam o uso do esporte enquanto propaganda política,
respectivamente, no Estado Novo e na Ditadura Militar, o futebol, em ambos os períodos, foi
amplamente utilizado, promovendo e propagando ideologias vigentes, como valores em torno
de uma identidade nacional. Acreditamos que o fenômeno contribui para reforçar a hipótese
levantada aqui de que as charges de Molas e Henfil, por tratarem de assunto de interesse do
governo e por alimentarem o envolvimento das massas com o espetáculo esportivo, talvez não
merecessem a mesma atenção que a censura dedicava a outros periódicos. No primeiro caso,
não percebemos em Molas críticas contundentes ao governo ou propagação de discursos que
desafiassem ideologias dominantes do poder constituído.
No livro “Multidões em cena”, Maria Helena Capelato (2008) ressalta a importância
da inspiração nos modelos nazifascistas da Alemanha e da Itália para o governo de Vargas,
ainda que este não se definisse como fenômeno fascista. Técnicas sofisticadas de
comunicação e propaganda política inspiradas nas utilizadas pelo ministro de propaganda do
III Reich, Joseph Goebbels, visavam aprovação e envolvimento das massas, para a qual
divulgavam ideais e valores conduzidos pela proposta de uma sociedade unida e harmônica.113
Através dos diversos meios de comunicação à disposição, com enfoque especial na imprensa
e no rádio, conseguiam atingir as massas.
Capelato (2008) explica como o Estado Novo trabalhou intensamente a propaganda
política, adotando os modelos dos regimes totalitários e intervindo diretamente nos meios de
comunicação. Foram instituídos órgãos reguladores, como o Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), que concediam registros obrigatórios para qualquer empresa de
comunicação se estabelecer. O DIP era responsável também pela censura, não apenas

113
A autora, no entanto, esclarece que não havia consenso a respeito da adoção da ideologia nazifascista entre os
adeptos do Estado Novo, que acabaria se aproximando diplomaticamente dos Estados Unidos (CAPELATO,
2008).
148

verificando o conteúdo das edições, como divulgando previamente os assuntos proibidos:


aqueles que mostrassem ou sugerissem descontentamento ou oposição ao regime, de
problemas econômicos a agressões, crimes, corrupção, suborno, etc. Os periódicos se viram
obrigados a reproduzir os discursos oficiais, dar ampla divulgação aos atos do governo e
publicar fotos de Vargas. Segundo Capelato (2008, p. 86), 60% das matérias eram fornecidas
pela Agência Nacional. O DIP calou vozes dissonantes e, dessa forma, o Estado Novo
garantia a divulgação positiva de sua imagem.
O trabalho desta autora contribui para afirmar a importância dos efeitos dos discursos
sobre a população, a propagar valores ligados a uma ideologia que legitimasse as ações de um
governo golpista. De acordo com Francisco Carlos Teixeira da Silva (1998), o projeto
“estadonovista” visava, em linhas gerais, “modernizar” o Brasil, abrangendo transformações
estruturais na sociedade. O programa desenvolvimentista, projetando um ideal de identidade
nacional positiva, parecia bastante coeso e bem fundamentado. O Estado Novo também
passaria a controlar, intervir e doutrinar o lazer público em praticamente todas as áreas: do
esporte ao cinema, passando pelo rádio, imprensa, ora investindo, ora produzindo e, por
vezes, censurando manifestações contrárias.
Nesse sentido, as charges de Molas, em um olhar panorâmico sobre o conjunto da
obra, não pareciam afrontar diretamente os discursos vigentes do governo, tampouco
debochavam da truculência ou da falta de perspicácia das forças policiais. Por outro lado, o
estudo do contexto geral do período não sugere que o Estado Novo tenha enfrentado tantas e
tão incisivas e sistemáticas formas diversificadas de resistência quanto a ditadura instaurada
pelos militares. As grandes transformações no país articuladas pelo Estado Novo, a
industrialização e as leis trabalhistas, que passaram a garantir direitos que se tornaram
constitucionais, davam contornos um tanto distintos da ditadura instaurada no período
posterior.
O meio intelectual em que Molas circulava era muito diferente do de Henfil. Mário
Filho não confrontou Vargas, como não chegou a confrontar a ditadura militar, enquanto
Mário Júlio Rodrigues, ao assumir o jornal após o falecimento do pai, em 17 de setembro de
1966, estendeu os assuntos do jornal a outros temas sensíveis a uma classe de estudantes mais
politizada e mais insatisfeita e incomodada com os rumos que a nação tomava. Principalmente
porque o momento era outro. Enquanto o governo Vargas havia posto fim a uma república
arcaica, que ainda privilegiava os interesses das oligarquias cafeeiras, começando a promover
a transição do agrário para o urbano-industrial, os militares minaram as esperanças de quem
ainda sonhava com o processo de democratização política e social no país (CAPELATO,
149

2008). A insatisfação durante o regime militar nos parece maior ou mais expressiva, tendo se
manifestado nas mais variadas produções artísticas culturais durante todo o longo período, de
uma forma que não se vê na época do Estado Novo. Os órgãos responsáveis pela propaganda
política na ditadura militar também tiveram trabalho árduo, uma vez que as produções mais
ostensivas se proliferavam, promovendo, assim, um conflito paralelo em que a resistência
poderia alimentar chances mais realistas de prevalecer.
Mauricio Drumond (2010, p. 230) destaca que a Copa de 1938, na França, teria sido
marcante no que diz respeito à aproximação de Vargas com o futebol. Além de ter concedido
uma alta subvenção para as despesas da delegação brasileira, teve na figura de sua própria
filha, Alzira Vargas, a madrinha da seleção, uma forte representatividade associando seu
nome à seleção que, pela primeira vez em uma Copa do Mundo, contava com a sua força
máxima. A miscigenação da equipe seria valorizada pelo governo como um retrato de nossa
democracia racial, ideologia abraçada por Vargas, em consonância com artistas e pensadores
modernistas, nas buscas das raízes culturais brasileiras. Se lembrarmos que as seleções de
Alemanha e Itália também serviram de representações simbólicas das ideologias nazifascistas,
na defesa de ideais xenófobos, parece explícito o peso político e ideológico que a disputa
daquela terceira Copa do Mundo carregava, pouco mais de um ano antes da eclosão da II
Guerra Mundial.
Àquela altura, no Brasil, o esporte já estava inserido de modo definitivo na política de
Estado, bem como nas estratégias publicitárias do governo. As práticas esportivas serviam de
múltiplas maneiras às propostas e aos projetos do Estado Novo. Entre as medidas do governo,
Drumond (2008) destaca a publicação de uma série de decretos-lei objetivando maior controle
sobre a prática esportiva no Brasil, bem ao tom do regime totalitário e centralizador do Estado
Novo. O esporte serviria também à preparação de uma nova geração de brasileiros, ajudando
a demonstrar as qualidades eugênicas do povo mestiço, reforçando sempre discursos em prol
da importância das atividades físicas em campanhas de conscientização.
A primeira medida oficial do Estado Novo nesta direção, data do dia 1º de julho de
1938, menos de duas semanas depois de encerrada a Copa da França (DRUMOND, 2010, p.
235). Através dela, criava-se o Conselho Nacional de Cultura dentro do Ministério de
Educação e Saúde, visando desenvolvimentos culturais que englobavam tanto campanhas
patrióticas, festas cívicas, quanto a promoção da Educação Física. De acordo com Maurício
Drumond (2010, p. 235), o Decreto-Lei n. 1.056 instituiu, em 21 de janeiro de 1939, a
Comissão Nacional de Desportos nomeando cinco membros encarregados de realizar um
estudo sobre os problemas dos esportes no país, elaborando, assim, um plano geral para a sua
150

regulamentação. Já em 1941, um novo Decreto-Lei, nº. 3.199 instituiu o Conselho Nacional


de Desportos, que concentraria o poder de controlar toda a estrutura da organização esportiva
nacional, orientando, fiscalizando e incentivando a prática de desportos em todo o país. Cada
modalidade esportiva ou grupo de modalidades poderia se organizar em torno de apenas uma
confederação em todo o território nacional, onde cada unidade territorial brasileira poderia
contar com uma federação filiada às suas respectivas confederações. A Confederação
Brasileira de Desportos, por sua vez, seria a principal confederação desportiva do Brasil.
Não é difícil perceber como a política centralizadora do Estado Novo conseguiu impor
uma coesa estrutura organizacional ao país, mobilizando, através de órgãos como o DIP, o
CND e a CBD, uma frente ampla e diversificada a reproduzir seus discursos vigentes. No
futebol, uma das forças que tomaram as rédeas no que diz respeito ao desenvolvimento
esportivo é justamente a imprensa, principal canal de comunicação entre o público e os grupos
que compõem a organização do espetáculo. A imprensa esportiva ampliou oportunidades de
mercado em torno do esporte, atraindo anunciantes, organizando competições, criando
memória sobre a trajetória do esporte no país, elegendo marcos, mitos, inventando tradições e
representações.
Maurício Drumond (2008, p. 66-67) enfatiza o uso do futebol como “um meio de levar
a ideologia oficial às massas”. Em 1941, o editorial do JS prestava “palpitantes homenagens à
influência renovadora do Estado Novo”114 por sua intervenção na organização do meio
esportivo no país: “Essa obra de reorganização, a que assistimos, assingnala, acima de tudo, a
actuação do Estado Novo”.115 Ao fim, o editorial conclui que o que estava sendo feito pelo
governo no âmbito esportivo nada teria de efêmero ou precário: “É uma obra poderosa, com
todas as qualidades para perdurar, sobreviver, continuar através das gerações”. Para além da
apologia explícita ao Estado Novo, o periódico ainda trabalhava a propaganda política através
de outros meios. Quem não tinha acesso direto aos textos de Gilberto Freire e Sérgio Buarque
de Holanda, encontraria esses mesmos ideais repercutidos em forma de crônicas esportivas,
assinadas por nomes como Mário Filho e José Lins do Rego, que ajudaram também a tornar a
linguagem jornalística mais acessível a um número maior de pessoas. Junto com a forma, a
valorização modernista da cultura popular encontrou um fortíssimo aliado nas crônicas
esportivas, também neste aspecto. Ao relacionar os livros que surgiram da coluna “Da
primeira fila”, assinada por Mário Filho na seção esportiva do “O Globo”, Ruy Castro refere-
se a “O negro no futebol brasileiro” como uma espécie de “Casa-Grande e Senzala” urbana e

114
JS, 13 de março de 1941, p. 1.
115
Ibidem.
151

afirma se tratar de “um livro equivalente na historiografia racial ao de Gilberto Freire”


(CASTRO, 1996, p. 222). Não por acaso, é o próprio Freire quem assina o prefácio da
primeira edição de “O negro...”, através da qual o sociólogo fundou a crença que se mantém
ainda viva no imaginário cultural do futebol brasileiro. Freire defende, de forma inconteste,
que a presença de elementos da capoeira e do samba no estilo brasileiro de se jogar futebol,
aspectos de nossa formação social e cultural, teria se tornado mais evidente aos olhos do
povo. Àquela altura, é válido lembrar, o Estado Novo já havia dois anos tinha chegado ao fim,
mas entre aquele momento e a repercussão com a publicação do original “Casa-Grande e
Senzala”, a figura do negro e a cultura afrodescendente começariam a se reposicionar no
quadro social do país.
Molas muitas vezes reproduzia determinada ordem de discursos que, se não eram
doutrinados pelo perfil editorial do matutino, também não pareciam querer confrontá-los. Ora
reduzindo a representação de Brasil a Rio e São Paulo, ora reforçando a imagem positiva da
Força Expedicionária Brasileira, em campanha no conflito mundial, ou enaltecendo a força do
futebol brasileiro, percebemos no humor de Molas, muitas vezes, uma representação gráfica
do discurso vigente do popular diário esportivo.
Assim como na Era Vargas, no período da ditadura militar uma infinidade de leis,
decretos e portarias que buscavam regulamentar o setor esportivo evidenciam a preocupação
do governo militar com o desenvolvimento do esporte. Marcos Aurélio Taborda de Oliveira
(2009) mostra como a forma em que o esporte era gestado não diferia em nada da maneira
como todas as outras esferas da sociedade eram administradas, com base em barganhas
políticas e econômicas em que as tradições de poder eram moedas de valor. O destino dos
recursos da Loteria Esportiva previa uma distribuição entre os clubes respeitando, segundo o
autor, a mesma política presente nas demais esferas da sociedade: a política da permanência
de poder para quem já o possui e da concentração de riquezas para quem já é rico. Na lista do
governo seriam agraciados 42 clubes situados nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e
Minas Gerais, que recolhiam 49,6 % dos recursos. Os demais 50,04 % seriam divididos pelos
outros 161 clubes. Com o decorrer dos anos, o Campeonato Brasileiro, instituído oficialmente
com essa nomenclatura a partir de 1971, passaria a inchar, chegando, no fim dos anos 1970, a
contar com cerca de 40 clubes, situação que iria perdurar até depois do fim da ditadura. “Onde
a Arena vai mal, mais um time no nacional” (FRANCO JUNIOR, 2007, p. 150) é uma
expressão que denuncia o interesse e a barganha política na gestão do futebol brasileiro, da
entidade máxima às federações estaduais e aos clubes.
152

Durante os períodos de máxima interferência, a delegação brasileira na Copa do


Mundo no México, em 1970, e na Alemanha, em 1974, teria vários cargos ocupados por
oficiais de alta patente das Forças Armadas, como o presidente da CBD Heleno Nunes. Essa
relação acaba por evidenciar que a ironia de Henfil era menos exagerada do que à primeira
vista pode-se supor (FRANCO JUNIOR, 2007, p. 145; OLIVEIRA, 2009, p. 411-416).
Oliveira (2010) ainda destaca episódio peculiar, que ganharia memórias escritas e seria
assimilado como exemplo a se medir o nível de ingerência dos militares nos domínios
esportivos. O autor relata o polêmico desentendimento entre o treinador da seleção João
Saldanha e o presidente Médici, que supostamente teria provocado a demissão do primeiro. O
autor, entretanto, não aceita passivamente a teoria de que o afastamento de Saldanha teria sido
pelas desavenças com o presidente, apostando mais no seu caráter intempestivo ou até no
desempenho da seleção, que recebia críticas.
Se por um lado o futebol foi usado como propaganda do regime, por outro pode-se
dizer que Henfil procurou incessantemente usar o mesmo artifício do governo, i.e., explorar a
capacidade do futebol para transmitir às massas suas denúncias às arbitrariedades do regime
militar. Curiosamente, a “sugestão” exposta na charge de Henfil no dia seguinte ao decreto do
AI-5 parece ter mantido seu caráter atual até o fim da ditadura. Após o AI-5, contudo, Henfil
atenuou o teor de sua crítica, seja por coincidência, acaso oportuno ou precaução. Com a
elaboração de novas mascotes para os clubes do Rio de Janeiro, Henfil deslocou o alvo de sua
crítica das repressões do regime para as diferenças sociais. As novas mascotes passaram a
reproduzir, na perspectiva de Henfil, o quadro social na cidade do Rio de Janeiro. Flamengo e
Vasco representando as camadas populares, e Fluminense e Botafogo, a elite.
Carlos Fico (2004, p. 87) lembra que a censura não é uma peculiaridade das ditaduras,
ela sempre existiu no Brasil, mesmo em governos democráticos, mas marcou os períodos
ditatoriais pela prática intensiva. No regime militar, com o estabelecimento da censura prévia,
a figura do censor passaria a fazer parte do cotidiano das redações dos grandes jornais do país,
entre os quais, o Correio da Manhã, que acabou sendo fechado pela constante oposição. A
partir do AI-5, haveria uma intensificação da censura. A partir daí, as decisões decorrentes do
ato não poderiam ser contestadas.
Dentro desse quadro, percebemos como parece presumível que Henfil realmente tenha
procurado desviar o foco das críticas ao regime para outras questões que também o
perturbavam, mas de forma aparentemente menos explícita. É sabido, no entanto, o
entusiasmo dos militares em promover as práticas esportivas, reforçando os mesmos discursos
153

incutidos pela Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP),116 discursos de amor à


pátria, em que a identidade nacional é reconhecida pelo uniforme canarinho da seleção
brasileira. A hipótese que poderíamos levantar é a de que o JS provavelmente não seria alvo
da preocupação da censura, uma vez que o meio esportivo era percebido como aliado do
governo, o que não impediu que Henfil, ou o editor Achiles Chirol, ter tomado a decisão de
amenizar o teor das críticas, por saudável precaução. Beatriz Kushnir (2004, p. 41), ao
mencionar a repressão à imprensa, esclarece estar se referindo especificamente aos jornais e
revistas de cunho político e econômico predominante. Maria Francisca Pires (2010, p. 32),
que aborda a obra de Henfil, questiona a perspectiva de que a promulgação do AI-5 teria
mergulhado a criação artística em um profundo “vazio cultural”. Para ela, a intensificação da
repressão gerava um mal-estar generalizado. Mesmo com a opressão da censura, fervilhavam
ideias e questionamentos, que se expressariam através de uma crescente imprensa alternativa.
A autora aponta justamente o período de maior repressão, entre o AI-5 e 1974, como um
marco divisório na consolidação da imprensa alternativa no Brasil, quando surgiram veículos
que experimentavam maior liberdade para a crítica social, política e econômica. Em meio a
essa intensa movimentação, surgiu o semanário humorístico “Pasquim”, em junho de 1969,
com uma tiragem inicial de 20 mil exemplares.
No entanto, a seu modo, Henfil desmistificou a suposta liberdade ao reclamar da
censura a amigos e familiares em parte de sua correspondência publicada no livro “Diário de
um cucaracha” (HENFIL, 1984b). Nas cartas escritas pelo humorista para os amigos quando
estava morando em Nova Iorque, sabemos que recorrentemente a censura vetava boa parte do
material que o cartunista enviava dos Estados Unidos por malote para o Brasil. Na carta
endereçada a seu amigo Zé Eduardo Barbosa, de 25 de janeiro de 1974, Henfil mostra espanto
por terem cortado uma charge sobre futebol, além de um anúncio para a livraria Paz e Terra,
levantando a suspeita que cortavam o material por conta da autoria (HENFIL, 1984b, p. 132).

116
A AERP foi criada no governo Costa e Silva, mas só tomaria vulto na gestão de Médici, passando o controle
para o coronel Otávio Costa. Em linhas gerais, a AERP trabalhava no sentido de vender a imagem de que o
regime conduzia correta e serenamente o país do futuro. Produzindo filmes publicitários para a TV, produzia
discursos em torno das ideias de participação, amor, educação, higiene e civilidade. (FICO, 2004, p. 110).
154

4.2 “Boa Vizinhança” e “Brother Sam” nas charges esportivas

Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno (2010, p. 245-248) destacam a habilidade


diplomática de Osvaldo Aranha à frente do Ministério das Relações Exteriores, entre março
de 1938 e agosto de 1944. Aranha procurou estreitar as relações diplomáticas, comerciais e
políticas com a república norte-americana, afastando paulatinamente a influência de regimes
totalitários de extrema direita no Brasil. O advento do Estado Novo, em 1937, teria causado
apreensão em um primeiro momento em Washington, tendo, obviamente, boa acolhida em
Berlim e Roma. Mas, ao contrário do que se temia nos Estados Unidos, o país não assumiu no
plano externo nenhuma atitude de alinhamento com os países que formavam o Eixo. Apesar
do acordo comercial firmado com a Alemanha, as relações com o governo americano não
sofreram abalo, em parte por conta da habilidade diplomática de Osvaldo Aranha, que chegara
a pedir demissão do cargo de embaixador em Washington por discordar das diretrizes do
Estado Novo, mas acabou aceitando a nomeação para o Ministério de Relações Exteriores
onde permaneceu até agosto de 1944.
Diante de suspeitas e denúncias de ligações entre a Ação Integralista Brasileira e
seções do Partido Nazista Alemão no país, Vargas daria passos em direção contrária ao
nazismo ao extinguir os partidos e proibir atividades políticas aos estrangeiros. O
pragmatismo do governo, declarando-se neutro no início da guerra, teria trazido vantagens
comerciais ao Brasil, permitindo ao país manter por mais tempo acordos favoráveis com as
duas frentes. A Alemanha precisava da matéria-prima e do mercado brasileiros. Os Estados
Unidos, interessados na posição estratégica do nosso país e em sua colaboração, oferecia
concessões ao Brasil. Cervo e Bueno (2010) afirmam que Osvaldo Aranha era o principal
articulador entre os interesses americanos e brasileiros e que, em sua agenda, constavam itens
relativos a relações políticas e comerciais. “O objetivo era, por meio de assistência
econômica, atrelar o Brasil ao sistema de poder dos Estados Unidos.” Mas alertam os autores
que “o objetivo da república americana não se limitava ao Brasil; fazia parte da política de
boa vizinhança”, direcionada também a outros países da América Latina (CERVO; BUENO,
2010, p. 251).
A escolha de Pato Donald e Popeye para representar clubes de futebol do Rio de
Janeiro pode ser mais bem compreendida se observada na perspectiva do estreitamento
político, econômico e cultural entre Brasil e Estados Unidos. É Antônio Pedro Tota (2000)
quem traz alguns indícios sobre a popularidade do Pato Donald, a começar pelas aparições
esporádicas em cinejornais que antecediam as sessões de cinema da cidade desde 1940. O
155

mais célebre pato dos estúdios Disney “chegaria” à imprensa brasileira através do “O Globo
Juvenil” a partir de 07 de março de 1942. No mesmo ano, as indústrias Matarazzo lançavam
uma coleção de figurinhas dos personagens Disney. Ainda no ano de 1942 foi lançado no
Brasil o filme “Alô, amigos”. O filme mesclava cenas de documentário com animação, em
que desenhistas dos estúdios de Walt Disney faziam um tour pela América do Sul com a
missão de buscar inspiração para criar novos personagens latinos a juntar-se à galeria de
personagens do popular estúdio americano. Surgiu assim o Zé Carioca, ciceroneando Donald
em sua visita ao Rio de Janeiro, promovendo um encontro que ficaria marcado como forte
ícone da política de boa vizinhança. Anos depois, já em 1950, a revista do Pato Donald se
tornou um dos primeiros lançamentos da “Editora Abril”, o que sugere um relativo sucesso do
filme ao trazer o mais famoso papagaio carioca nas primeiras capas da revista do amigo
americano (TOTA, 2000, p. 133-138).117
Se levarmos em consideração a propagação dos discursos ideológicos descritos por
Tota (2000), poderemos supor o entusiasmo popular em torno desses ícones no Brasil. No
entanto, ainda que a intenção de Molas fosse simplesmente a de reproduzir essa motivação em
seus desenhos, sua charge é analisada aqui como evidência de um momento político e cultural
do país. É válido ressaltar ainda que, se a charge de Molas reproduz a motivação popular no
processo democrático, isso não significa necessariamente uma reação ao governo de Vargas.
Capelato (2008) argumenta que não se costuma levar em conta questões de ordem política e
cultural para explicar a adesão da classe trabalhadora ao populismo. Nesse sentido, a já
mencionada preferência nacional “ao culto de heróis, divas e ideais veiculados por
Hollywood” nos ajuda a compreender a dimensão da penetração dos valores culturais norte-
americanos no Brasil (CAPELATO, 2008, p. 109). Ainda a respeito da grande popularidade
das produções norte-americanas, a autora alerta para o fiasco de bilheteria dos filmes de
ficção brasileiros produzidos sob a égide do Estado Novo. Essas produções, relativamente
pioneiras no Brasil, não conseguiam penetração no mercado exibidor, nem atrair público, cujo
interesse estava mais voltado às novidades vindas de Hollywood.
Analisaremos adiante uma charge de Molas que traz outras evidências que parecem
exprimir e contribuir para o entusiasmo por esses valores moldados ou reforçados, em grande
parte, pela forte presença norte-americana na cultura brasileira. Em 1945, o JS já contava com
o humor de Lorenzo Molas desde antes do início do campeonato. A partir do dia 06 de março
de 1945, o cartunista argentino elaborou, durante cerca de dois meses, uma série de desenhos

117
No segundo número da edição nacional de sua revista, Pato Donald aparece de goleiro com uma camisa em
tudo semelhante ao uniforme do Botafogo, recebendo uma bolada na barriga do Zé Carioca.
156

de humor que se enquadram mais na categoria cartum do que na de charge, uma vez que não
aludiam a fatos específicos. Elas apenas aqueciam os ânimos dos torcedores para o
campeonato que estava por vir.
Campeonato novo, nova Miss. Entra em cena a irmã mais nova da Miss Campeonato
do ano anterior. A de 1944 já havia se unido em matrimônio ao Popeye. Foram muitos dias de
mistério quanto aos atributos físicos da Miss 1945, mas no fim de abril todas as mascotes já
andavam em alvoroço com a nova beldade. A moça, no entanto, mostrava-se bem mais
encantada pelos marinheiros americanos, que pareciam marcar forte presença no cenário da
cidade, provocando ciúmes generalizados entre os representantes do futebol carioca, como
veremos na figura a seguir.
157

Figura 4.5 “Outro marujo para atrapalhar” procurou caracterizar a motivação da população pela cultura popular
americana na década de 1940. A Miss Campeonato 1945 surge acompanhada de um marinheiro americano para a
frustração de Donald, Popeye, Diabo, Cartola e Almirante. JS, 28 de abril de 1945, p. 1.
158

No desenho do dia 28 de abril de 1945 (Figura 4.5), vemos a sala de estar da casa da
Miss, já conhecida dos leitores, bastante movimentada. Popeye, Diabo, Cartola, Almirante e
Pato Donald esperam ansiosamente pela nova pretendida, acompanhados discretamente pelo
Malandro, do Madureira, e do santo gordo, do São Cristóvão, que parecem mais interessados
no jogo de dados entre eles. Molas nos mostra o momento em que a sogra abre a porta para a
sua filha mais nova, que chega acompanhada de um genuíno marinheiro americano para a
frustração geral. A moça surge trajada no estilo dos filmes de faroeste americanos. Chapéu de
cowboy, de aba longa, luvas e botas com esporas. Preso à cintura, um coldre guarda dois
revólveres. Suas pernas flexionadas e afastadas, além da mão pronta pra sacar uma das armas,
remetem aos clássicos duelos dos faroestes. O marinheiro ao seu lado recosta-se na porta com
o cotovelo, enquanto a mão do mesmo braço apara a cabeça, usando a outra para puxar um
chiclete. Sua postura sugere, sobretudo, certa petulância. O marinheiro saúda os
“concorrentes” com um simples “Alô, boys”, sem voltar o rosto para ninguém, mantendo seu
olhar apenas na goma adocicada que masca. A mão que apara a cabeça ajeita o quepe pra
frente, tapando um pouco as sobrancelhas. Sustenta-se sobre uma das pernas, também
ligeiramente afastadas, enquanto descansa a outra, cruzando-a na frente da primeira. A moça
parece, ao olhar de todos, completamente “colonizada”. Além dos trajes “a cowboy”, ainda
comenta empolgada que aprendera uma porção de coisas em inglês. No canto inferior, à
direita da cena, o papagaio de estimação da casa menciona querer aprender inglês também.
Seja por coincidência ou intenção, a ave que demonstra interesse em aprender inglês é a
mesma que já representava o Brasil na figura de Zé Carioca no já mencionado filme “Alô,
amigos”.
O interesse da mocinha pela presença da Marinha dos Estados Unidos no Brasil não se
restringe à sua atração pelos americanos de farda, mas parece se estender à cultura americana
como um todo. Além de sua empolgação por ter aumentado seu vocabulário no idioma
estrangeiro, vemos aqui representada a paixão nacional pelo cinema americano. Nesse caso,
qual seria a melhor maneira de interpretar o humor de Molas nessa cena? Sob o título de
“Mais um marujo para atrapalhar”, a charge refere-se à nova companhia americana da Miss,
marujo como o Popeye, que vem atrapalhar a disputa da qual participariam apenas as
mascotes dos clubes cariocas. Na medida em que o cartunista argentino mostra elementos da
cultura nacional (as figuras simbólicas dos clubes de futebol) ameaçados pela presença de um
novo personagem que se estabelece no cenário nacional durante a Segunda Guerra Mundial
(um marinheiro americano), essa constatação seria suficiente para considerarmos uma postura
crítica do autor com relação ao fenômeno? Mas se a postura é crítica, qual seria o sentido de
159

reforçar essa cultura americanizada justamente na representação de entidades tão afetivamente


associadas à cultura nacional, como são os clubes de futebol no Brasil?
Durante a Segunda Guerra Mundial, a célebre batalha de Monte Castelo, que seria
vencida dali a um mês com a ajuda das tropas brasileiras, já durava dois meses. No mesmo dia
em que foi publicada a charge de Molas, já descrita anteriormente (Figura 3.3), em que se
reproduz uma associação mutuamente positiva entre a seleção e as tropas brasileiras, que
simultaneamente representavam o país naquele momento, o “Jornal do Brasil” publicou a
carta do general americano Mark Clark, que comandava as forças aliadas na Itália, endereçada
ao general Mascarenhas de Moraes, à frente da FEB.
Peço também que expresse (ao Ministro da Guerra do Brasil, General Eurico Gaspar
Dutra) meu orgulho e satisfação em ter a Fôrça Expedicionária Brasileira servindo
como parte do 15º Grupo de Exércitos. Estou contando com ela para grandes
empreendimentos em futuras operações.118

Na mesma missiva enviada no fim de dezembro de 1944 ao General Mascarenhas de


Moraes, outra passagem merece destaque, no que se refere aos discursos propagados pelas
forças aliadas em torno dos ideais de democracia, ao reforçar a “sincera esperança de que o
ano novo verá a derrota completa e final da Alemanha e a libertação da Europa”.119
Evidencia-se na frase do general americano o discurso em prol de ideais democráticos,
somados ao caráter heroico e redentor de seus esforços de guerra: “a libertação da Europa”.
Ao declarar estar contando com a participação brasileira no conflito, “para grandes
empreendimentos em futuras operações”, o general Mark Clark parece envolver o Brasil em
uma empreitada que objetivava nada menos que a “libertação da Europa”, reforçando a
importância de sua participação. Se o maior inimigo do momento era a ideologia nazifascista,
que havia se alastrado pela Europa no decorrer daquela última década, parece compreensível
que o envolvimento brasileiro na luta pela democracia na Europa implicasse o compromisso
de dar início ao processo democrático dentro do próprio país. O alinhamento do Brasil à
frente das tropas aliadas parecia reforçar o clamor popular pelo fim da ditadura, facilmente
perceptível na charge destacada na abertura deste capítulo quando Molas usou o Popeye para
fazer alusão ao presidente Getúlio Vargas, deposto dias antes da rodada em que o Flamengo
perderia as chances de se sagrar tetracampeão.
Sobre a boa acolhida da cultura popular americana no Brasil, é novamente Antônio
Pedro Tota (2000) quem traz pertinentes observações. Os produtos culturais que aqui
chegavam transmitiam valores provenientes do que o autor chama de “fábrica de ideologias”.

118
JB, 20 de janeiro de 1945, p. 9.
119
Ibidem.
160

Produções da cultura de massa, como as histórias em quadrinhos e o cinema, serviam de


importante canal de propagação dos discursos que giravam em torno da exploração do
potencial criativo, científico e tecnológico de um país, e da defesa da democracia, reforçando
ideais sobre liberdade e direitos individuais.
Se por um lado a reprodução de ícones da cultura de massa americana em um meio
deslocado de sua realidade (futebol carioca) contribuiu para reforçar esses discursos, por outro
lado esses ícones também podem ser analisados como reflexos de uma motivação popular já
existente em nossa sociedade. De fato, podemos perceber a dificuldade em se precisar as
intenções e posturas políticas de Molas da mesma forma como veremos a seguir na obra de
Henfil. Essa incerteza reside na percepção de que as referências do meio político em Molas
são mais sutis, mais comedidas até, se as compararmos com as do discurso direto de seu
futuro “colega”. A trajetória de Molas que tentamos levantar, ainda que repleta de lacunas,
parece nos conduzir por um discurso alinhado a valores que defendem ideais democráticos,
liberdades e direitos civis, só que de maneira bem mais sutil do que Henfil viria a fazer. A
descoberta de mensagens publicitárias com seus personagens já fornecem forte indício de que
ele parecia não se opor à mercantilização de sua obra, o que contrasta com a postura
irredutível de Henfil, contrário à prática.
No livro “Da Operação Brother Sam aos anos de chumbo”, Carlos Fico (2008) afirma
que apesar do governo americano ter procurado desestabilizar o mandato de João Goulart, a
expectativa dos Estados Unidos, segundo o embaixador Lincoln Gordon, era de que o Brasil
mantivesse intacta a estrutura constitucional de 1946, permitindo a realização das eleições em
1965, quando um segundo mandato de Juscelino Kubitscheck era visto com entusiasmo. Na
ocasião foram gastos US $5 milhões de dólares para financiar a campanha eleitoral de
candidatos favoráveis à política norte-americana e opositores de Goulart. O autor situa este
episódio como o marco para o início do processo que tornaria a embaixada americana no Rio
de Janeiro “um ator político plenamente envolvido nos negócios internos brasileiros” (FICO,
2008, p. 77).
Mas no segundo semestre de 1963, Gordon já admitia a elaboração de planos de
contingência. Esses planos consistiam em um esforço abstrato de tentar antecipar os
desdobramentos de uma dada situação, a fim de encontrar previamente linhas alternativas de
ação. Fico (2008) investiga uma farta documentação que consiste em telegramas e
memorandos de conversas entre Gordon e Departamentos de Estado norte-americanos. O
autor descarta a participação efetiva dos Estados Unidos na elaboração conspiratória que
culminaria no golpe do dia 1º de abril de 1964, mas apresenta um memorando de conversação
161

do embaixador com o Departament of State Foreign Relations solicitando o envio de um


destacamento naval para marcar presença no Atlântico Sul, intimidando uma possível reação
ao golpe planejado pelos militares brasileiros. Para Fico (2008), a atuação do embaixador
Lincoln Gordon e do adido militar Vernon Walters iniciaria uma fase de interferência dos
Estados Unidos na política interna brasileira jamais vista. Os Estados Unidos teriam, como
contrapartida, a atitude subserviente do Brasil em relação à superpotência.

Figura 4.6 Quando Aimoré, ao assumir a seleção brasileira, supostamente declarara que seu ex-comandado, o
jogador rubro-negro Luís Carlos, seria um guerrilheiro, Henfil teria aproveitado o uso oportuno da expressão que
categorizava o militante envolvido na luta armada, para fazer a crítica ao governo e à cooperação norte-
americana com o regime militar. JS, 16 de março de 1968, p. 4.
162

Para discutir sobre a charge em que Henfil faz uma crítica mais direta à influência
política e cooperativa dos Estados Unidos com o regime golpista, precisamos voltar a março
de 1968, ainda no calor da já mencionada declaração do técnico Aimoré sobre o jogador Luis
Carlos ser um guerrilheiro. No dia 16 do mesmo mês, na semana em que o rubro-negro
enfrentaria o Bangu pelo campeonato carioca, o JS publicava uma charge de Henfil
ambientada em uma base militar americana, com dois oficiais. Um deles, representado por
insígnias nas mangas e um capacete enterrado à cabeça, com a inscrição “USA” apoiada sobre
três estrelas, recebia um comunicado impresso que ia sendo expelido por um grande
transmissor. Ainda puxando o papel que a máquina liberava, o espantado oficial chamava o
general William Westmoreland,120 que usava um enorme quepe sobre a cabeça e óculos
escuros. O comandante imediatamente interrompia a atenção que era dada aos papéis sobre
sua mesa, enquanto manipulava um compasso. Na prancheta do general Westmoreland,
percebemos o que parece um coração com a ponta voltada para direita do quadro. O oficial
que aparenta ser seu comandado anunciava ao general o teor do comunicado: “Westmoreland!
É do Bangu pedindo aviões B-52 para reforçar a defesa no domingo...”.
Ressalta-se aqui, antes de qualquer aspecto, o uso da expressão “tática guerrilheira”.
Beatriz Kushnir (2004, p. 264), por exemplo, ao relatar a invasão de agentes da OBAN121 à
livraria de Paulo Sandroni por conta dos cursos de marxismo que eram ali ministrados,
menciona que haveria a suspeita de “treinamento de guerrilheiros” no local, usando este termo
entre aspas, com a intenção de reproduzir fielmente a alegação dada pela força repressiva.
Nessa referência, a palavra alude aos militantes oposicionistas que aderiam à luta armada,
movimento que marcou a resistência à ditadura no país. O episódio relatado por Kushnir
(2004) teria sido em represália ao sequestro, ocorrido em setembro de 1969, do embaixador
americano Charles Elbrick por um grupo de jovens militantes ligados ao Movimento
Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) e à Aliança Nacional Libertadora (ANL).
A charge analisada reflete uma crescente insatisfação de um enorme grupo social
oposicionista, do qual Henfil fazia parte, com relação à política de cooperação do governo
americano com o regime ditatorial que se estabelecera no Brasil quatro anos antes. Parece
fundamental ressaltar algumas considerações na tentativa de definir mais precisamente o
grupo social a que me refiro. A declaração do embaixador americano Charles Elbrick,
lembrada por Carlos Fico (2008, p. 213), ajuda a compreender o inflexível posicionamento da
oposição brasileira no que diz respeito à imagem dos Estados Unidos. Para Elbrick, seria

120
O general William Westmoreland comandou as tropas americanas no conflito do Vietnã entre 1964 e 1968.
121
OBAN: Operação Bandeirante.
163

muito difícil estabelecer laços políticos com os grupos oposicionistas, ressaltando a pouca
possibilidade de influência positiva que a opção pelo apoio seletivo pudesse exercer. Voltando
à acirrada batalha narrada por Beatriz Kushnir (2004, p. 333-334), travada entre a grande
imprensa e a imprensa clandestina de São Paulo, a resposta do jornal “Venceremos” foi
igualmente agressiva. O editorial refere-se ao Sr. Octávio Frias Oliveira, como “testa de ferro
de inúmeros grupos americanos da indústria gráfica”. O autor do editorial ainda o acusa de
corrupção, delação de funcionários, colaboração com o regime golpista e finaliza afirmando
que o Sr. Octávio F. de Oliveira sentia-se acuado, por se saber inimigo do povo, ciente de que
“a verdade revolucionária o atingirá”, e que a justiça seria questão de tempo, de tal forma que
ele já havia feito as malas e se mudado para “a casa de seus patrões: mudou-se para os
Estados Unidos”. A despeito do apaixonado envolvimento político do autor, em que possa
pesar qualquer possível exagero em suas acusações, a fonte traz à discussão pertinente
demonstração de como a cooperação americana era percebida pela oposição.
O próprio Henfil não escondia seu repúdio nem em suas charges, nem em seus
depoimentos, bastando tomar algumas passagens de seu célebre livro “Diário de um
cucaracha”, onde relata através de suas correspondências pessoais, sua experiência na
república americana, quando foi buscar tratamento especializado de seu crônico problema de
hemofilia. Henfil chegou a comentar o repúdio que sentia pela república americana como um
todo (HENFIL, 1984b, p. 18; p. 101-102).
Cervo e Bueno (2010) sugerem que se cristalizou entre a esquerda brasileira a ideia de
que a cooperação americana teria sido representada por uma intervenção bem mais efetiva do
que realmente aconteceria. Isso parece se dever ao receio norte-americano quanto à imagem e
popularidade dos Estados Unidos na América Latina, à preocupação quanto ao reforço de
discursos em defesa das liberdades civis e à maior preocupação americana com outras
localidades mais suscetíveis às ameaças do “perigo comunista”. Fico (2008) apresenta
inúmeros exemplos, entre telegramas e memorandos de conversações, em que essa
preocupação é explícita por parte de funcionários de embaixadas, órgãos e Departamentos do
Estado norte-americanos.
O AI-5, de acordo com Fico (2008, p. 333), exerceu forte influência na decisão
americana por uma postura pragmática, regida por um “apoio seletivo” em que os
investimentos seriam contidos e seria diminuído o perfil oficial da missão dos Estados
Unidos, definindo que o governo americano conviveria com a ditadura, mas buscando reduzir
a sua identificação com o regime opressor.
164

4.3 Repressões, resistências e futebol no cor-de-rosa

Figura 4.7 Henfil ironiza o ambiente hostil gerado pela ditadura nesta charge em que sugere que o assassinato de
estudantes no Brasil seria banal. JS, 1º de abril de 1968, p. 1.
165

Poucos dias depois de publicada a charge de Henfil que mostra o jogador sendo
interrogado, percebemos que os ânimos continuavam acirrados e os confrontos entre a
população e a polícia ganhavam dimensões nacionais e transformavam os grandes centros das
maiores metrópoles em praças de guerra. Eulália Lobo, Fátima Lisboa e Mariza Simões
(1992, p. 398) destacam o aumento das manifestações públicas em 1968, quando, em fins de
março, uma reivindicação de caráter estudantil teria um desfecho trágico com a morte do
estudante Edson Luiz. O assassinato de um estudante pela repressão operaria uma mudança
no significado da manifestação. A reivindicação estudantil ganharia um sentido ainda mais
relevante no cenário nacional, transformando uma insatisfação por direitos estudantis em
protesto político.
Entre o assassinato do estudante Edson Luiz, a manifestação estudantil no restaurante
Calabouço e a sua missa de sétimo dia, também reprimida pela polícia, um dirigente do
Fluminense também teria sido hostilizado por torcedores do clube, insatisfeitos com a
campanha tricolor no campeonato carioca. Na ocasião de um frustrante empate da equipe
contra um time de menor expressão, segundo matéria do próprio periódico, teria havido uma
manifestação improvisada de alguns torcedores do Fluminense, que começaram a vaiar Dílson
Guedes, dirigente de futebol do clube, na saída do estádio após a partida.
Henfil focalizou a notícia esportiva, mas não perdeu a oportunidade de agregar o
componente político à charge (Figura 4.7), denunciando a situação de insegurança provocada
pelo assassinato de um estudante pela polícia. “Flu empatou...” servia de título para a charge
em que o dirigente Dílson Guedes corre desesperado de projéteis vindo em sua direção. Olhos
arregalados, pernas afastadas sugerindo que o “caçado” pairava no ar, um braço esticado
como quem abrisse caminho e a outra mão à cabeça. Em primeiro plano, um sujeito diz a
outro, que assiste perplexo à cena: “Estudante nada! É o Dílson Guedes”.122
Com a simples frase “Estudante, nada”, Henfil faz uma caricatura do episódio,
sugerindo que o assassinato de estudantes se tornaria absurdamente banal e corriqueiro. Uso o
termo “caricatura” aqui no sentido lato, que compreende naturezas diversas de manifestações,
inclusive cênicas. Segundo Henri Bergson (1987, p. 22), “um cacoete que se insinua”, porque
para Bergson o caricaturista “faz com que seus modelos careteiem como se fossem ao
extremo de sua careta”. As charges de Henfil estão todas repletas de caricaturas no sentido
que amplificam as características mais marcantes do modelo: seja ele uma figura histórica, no
caso acima o Dílson Guedes; um acontecimento, o assassinato do estudante Edson Luiz; uma

122
JS, 1º de abril de 1968, p. 1.
166

situação, o clima de insegurança com a repressão; ou uma representação de identidades


coletivas, como as dos torcedores que o cartunista viria a elaborar no ano seguinte.

Figura 4.8 Em junho de 1969, Henfil reforça a ideia da colaboração da elite dominante com o regime golpista,
através da representação do Pó de Arroz torturando o Bacalhau para descobrir o paradeiro do Urubu. Henfil
conseguia resumir em uma tirinha sobre futebol, as tensões características do período do AI-5. JS, 17 de junho de
1969, p. 3.
167

No dia 15 de junho de 1969, o Fluminense vencia o Flamengo pela contagem de três a


dois e se sagrava campeão carioca em um Fla-Flu dramático. Dois dias depois da partida, o
cartunista resolve “prestar sua homenagem” ao campeão com uma charge que procurava
ironizar a vitória do clube identificado com a elite. Na tirinha intitulada “Cadê o Urubu?”
(Figura 4.8), o Pó de Arroz comemora com entusiasmo, boca escancarada, braços abertos,
chorando de emoção: “Campeões! Merci, mon Dieu!123 Campeões! Eu morro! Eu grito!”
Enquanto enxuga as lágrimas de emoção, o Bacalhau demonstra ir se contagiando pela
emoção do outro: “Eles ficaram tão alegrinhos, tão felizes, que eu até esqueço que a massa foi
derrotada”. Ainda que entregue certa “recaída” do Bacalhau ao se empolgar com a
comemoração da elite, ao mesmo tempo, Henfil não perde a oportunidade de frisar os laços de
companheirismo entre os representantes dos clubes “de massa”. Quando o Pó de Arroz
subitamente se lembra de cobrar a aposta feita com o Urubu antes da decisão – que consistia
na humilhação de chocar um ovo enorme – e pressiona o Bacalhau a revelar onde havia se
escondido o rival batido, o representante da colônia portuguesa se recusa a “entregar o
companheiro Urubu”. Não é por acaso o uso de palavras como “traição” ou “companheiro”,
na boca dos representantes da massa. Henfil buscava constantemente associar os times da
massa à ideia de oposição, de militância, lançando mão de termos recorrentes desses meios.
Diante da recusa do Bacalhau em “colaborar”, o Pó de Arroz passa a adotar métodos
mais drásticos. Vemos o Pó de Arroz, ameaçador, direcionando uma luz no rosto do Bacalhau
que, de cócoras, é submetido à clássica tortura chinesa com uma torneira mal fechada,
pingando gotas sobre o alto da sua cabeça. No quadro seguinte, Bacalhau experimenta outro
método de tortura. Está preso a um maquinário que vai puxando seus braços e pernas em
sentidos opostos, enquanto o sádico tricolor vai girando a manivela e insistindo no
interrogatório. Interrompendo a tortura medieval, surge o Cri-Cri chamando saltitante pelo Pó
de Arroz. No quadro seguinte, o Cri-Cri, de expressão sádica, aponta um dedo
desproporcionalmente gigantesco para a direita, enquanto avisa ao tricolor que o Urubu havia
buscado asilo na embaixada do México. Pó de Arroz abandona Bacalhau imediatamente e
parte, sem disfarçar uma risada maquiavélica na busca pelo rival.

123
Trad. do francês: “Obrigado, meu Deus!”
168

Se podemos identificar nas charges de Molas, da década de 1940, um certo


alinhamento com a moral e a tradição católica, bem como valores estabelecidos pela cultura
de massa americana, é possível que o artigo de Marcelo Ridenti (2008) possa trazer alguma
luz que ajude a compreender um momento político anterior à influência política, econômica e
ideológica, tanto direta quanto indireta, do Partido Comunista Brasileiro (PCB) nas mais
diversas produções culturais, mesmo no período de clandestinidade. O autor defende que, a
partir da década de 1950, a atuação de intelectuais e artistas diversos ajudou a construir uma
“certa utopia da brasilidade libertadora” no cinema, no teatro, nas artes plásticas, na
arquitetura, na literatura buscando, cada um a sua maneira, uma nova possibilidade de
modernidade alternativa a que viria a se instalar após o golpe de 1964.
O artigo de Ridenti (2008) foi lembrado para demonstrar como no período de transição
entre a produção das obras de Molas e de Henfil travavam-se diferentes e variados conflitos
de ideias, valores, propostas e interesses sobre tudo o que envolvia a experiência social. Tais
conflitos, de certo modo, ajudam a estabelecer uma primeira suposição que ajude a
compreender as diferenças entre os compromissos políticos assumidos entre os dois
cartunistas. Podemos observar o fenômeno analisado por Ridenti como uma evidência de
interferência e influência política em manifestações artísticas e culturais por parte da
oposição, tornando-a capaz de articular uma transformação cultural da sociedade, mesmo que
não tenham logrado êxito no que diz respeito aos rumos políticos do país.
Basta, talvez, refletir sobre a formação da consciência social e política de Henfil,
observando onde, com quem e através de quais veículos ele se informava. “É lá que eu me
informo, é na elite intelectual. Se eu for me informar no terra-a-terra, eu vou me manter no
terra-a-terra.” (HENFIL, 1984b, p. 61).124 O artigo de Ridenti nos leva a levantar a hipótese
de que a sociedade em que Henfil se inseria não apenas testemunhou uma situação ainda mais
precária para a condição de vida da força de trabalho, como também herdou um legado
cultural inestimável no que concerne a produção intelectual e artística desenvolvida em
período posterior à primeira passagem de Molas pelo JS. Acreditamos que o fenômeno pode
ajudar a compreender uma das possíveis causas para os diferentes compromissos sócio-
políticos entre os cartunistas.

124
Depoimento de Henfil publicado em entrevista do Pasquim, no já citado “O Diário de um cucaracha”. De
fato, Denis de Moraes e Marcio Malta mencionam a formação cultural do cartunista e seu contato com revistas
francesas, o ingresso no curso de sociologia na Universidade de Minas Gerais e o contato com profissionais
diversos que representavam a nata da intelectualidade do Rio de Janeiro e que teriam influenciado, cada um a seu
modo e a seu tempo, suas ideias, seu humor e seu estilo gráfico (MALTA, 2008, p. 21-23; MORAES, 1996).
169

A charge chama atenção em vários aspectos. Henfil procurou acentuar os traços


arrogantes da elite através dos trejeitos afetados do torcedor tricolor. Eles se manifestam na
expressão corporal e no uso de expressões em francês e termos pejorativos para se referir à
massa, de modo a denunciar o racismo latente das classes dominantes: “Mon Dieu!” e “o
crioléu [...]”. Diante da recusa do “interrogado”, a elite passa às tão denunciadas e omitidas
práticas de tortura, que certamente haviam se intensificado com o aumento de prisões após o
AI-5. Se diante das torturas o bom militante não entrega seu companheiro, o Pó de Arroz
acaba conseguindo a preciosa informação com outro representante da elite. E o Urubu, ao
buscar asilo político na embaixada do México,125 trazia à lembrança o exílio forçado de tantos
que ousaram confrontar diretamente o regime.
Nota-se que o ambiente da charge é repleto das tensões políticas do momento: além do
constante confronto de classes que caracteriza essa série de charges, podemos levantar um
amplo leque de questões e interpretações ao analisá-la com o devido cuidado. Não é ao acaso
que, ao fazer referência à tortura, eleja o representante da elite para conduzir a prática.
Cremos podermos ler na charge de Henfil crítica semelhante à do historiador Daniel Aarão
Reis (2005), que procura reavaliar o papel de parte da sociedade civil que teria dado amplo
apoio ao regime golpista. Podemos observar, por exemplo, o apoio à deposição de João
Goulart por parte considerável da imprensa, formadora de opinião, cuja totalidade dos leitores
formava as classes média e alta do país.
Após o AI-5, ao criar personagens para os times de futebol, tal como havia feito o
cartunista argentino anteriormente, Henfil procurou reforçar os estereótipos com que se
reconhecia a identificação dos torcedores, mas em sua ótica particular. Procurava incentivar
as rivalidades pela associação com as classes sociais, como foi possível observar no Capítulo
2 do presente estudo, transportando uma espécie de luta de classes para o futebol. Na mesma
linha “democrática” do JS, Henfil não parecia se preocupar com a questão da
imparcialidade.126 Ao contrário, parecia querer ratificar constantemente sua torcida
assumidamente rubro-negra. A postura militante do cartunista ajuda a compreender porque os
torcedores de Fluminense e Botafogo eram os alvos a serem ridicularizados. O Pó de Arroz do
Fluminense e o Cri-Cri do Botafogo ficaram caracterizados como personagens afetados,
esnobes e arrogantes. O evidente repúdio de Henfil ao comportamento da elite transformou o

125
Por coincidência, seu irmão Herbert de Sousa escapou da prisão durante o golpe do Chile, em 1973, ao
refugiar-se na embaixada do Panamá, tendo morado no Canadá e no México posteriormente.
126
Vale notar que na extensa trajetória do periódico, desfilaram célebres escritores cuja paixão por determinados
clubes era notória e assumida, destacando-se, entre outros, o rubro-negro José Lins do Rego, dono da coluna
“Esporte é Vida”, e o tricolor Nelson Rodrigues, que assinava a coluna “A Sombra das chuteiras imortais”.
170

personagem em uma caricatura do elitista preconceituoso, com seu cabelo repartido ao meio,
o bigodinho aparado e a gravata borboleta em cima da camisa do Fluminense, referindo-se
com desprezo às torcidas populares e usando termos como “crioléu!”, fazendo uso constante
de palavras menos coloquiais ou de termos em inglês.
A partir de janeiro de 1970, meses após o célebre sequestro do embaixador americano
posto em prática por militantes do Movimento Revolucionário Oito de Outubro, em setembro
do ano anterior, Henfil trataria de representar tais atos de resistência em suas tiras esportivas,
selecionando como protagonistas, obviamente, os personagens Urubu e Bacalhau, que agiam
em nome da “República Popular de Ramos”.

Figura 4.9 Os personagens da República de Ramos passam a recorrer a sequestros para conseguir atingir seus
objetivos. JS, 22 de janeiro de 1970, p. 3.
171

Figura 4.10 Os sequestros articulados pela resistência armada à ditadura militar são representados na tirinha de
Henfil, onde os representantes da “República Popular de Ramos” cometem os atos em nome dos interesses da
massa, redigindo e lendo comunicados de protestos contra as arbitrariedades dos poderes instituídos. JS, 28 de
janeiro de 1970, p. 3.
172

As ações da guerrilha urbana ganhavam contornos humorísticos nas páginas do velho


cor-de-rosa. É bem possível que a inspiração de Henfil tenha sido o notório sequestro do
embaixador americano Charles Elbrick. Após a publicação da charge, viriam outros
sequestros políticos não só no Brasil, mas em outros países da América Latina também
controlados por regimes autoritários. Em ambas as charges nota-se que o Bacalhau, e sempre
ele, profere um breve discurso, em tom solene, explicando as motivações do sequestro logo
após ter deflagrado a ação com sucesso. Quando necessário o uso da primeira pessoa, refere-
se à “República Popular de Ramos”. Na tirinha do dia 28 de janeiro de 1970 (Figura 4.10),
Urubu e Bacalhau resolvem sequestrar o jogador do Flamengo Fio Maravilha em protesto
contra a decisão de dirigentes do clube, associados ao técnico Yustrich, de mandar consertar
os dentes tortos do atleta. Após conseguir ultrapassar a fronteira da República de Ramos,
carregando o atacante dentro de um grande saco, o Bacalhau põe-se a ler um comunicado:
Comunicado ao povo e à imprensa em geral:
Tendo em vista a propalada intenção do senhor Yustrich e diretores do Flamengo de
mandar consertar os dentes do Fio, o Conselho das Massas da República Popular de
Ramos resolve:
1) Manter Fio em sua guarda para impedir a depredação de um patrimônio histórico
das massas, por elementos que se dizem a serviço de duvidosa estética oficial.
2) Defenderemos até a morte a arcada dentária do Fio para gáudio e prazer de todo
o povo.
Assinado Comando Tiradentes.

Nota-se que ao final da tirinha, o Bacalhau prefere “assinar” seu manifesto com o
nome de um grupo militante fictício Comando Tiradentes, talvez uma dupla referência: uma
brincadeira com a reivindicação e a sugestão do nome ao “Movimento Revolucionário
Tiradentes”, organização de resistência e luta armada formado em setembro de 1969. De todo
modo, é clara a referência aos sequestros que agitavam a América Latina, a partir do sucesso
da ação do MR-8, quando lograram êxito ao trocar a vida do embaixador americano por
presos políticos. A diferença é que a abordagem de Henfil opõe-se à abordagem de boa parte
da grande imprensa que costumava se manifestar sobre o assunto. Em abril de 1970, o mal
sucedido sequestro executado por militantes da Guatemala terminou com a execução do
embaixador alemão, Conde Karivon Spreti. A capa da Revista “Veja”, no dia 15 de abril de
1970, trazia a seguinte manchete: “Crime e diplomacia, o drama do sequestro”.
Às 7 da noite do último dia 5, depois de intensas horas de negociações e expectativa
mundial, foi encontrado no chão de lama de uma cabana sem teto, a 17 quilômetros
da Cidade da Guatemala, o corpo do embaixador alemão, Conde Karivon Spreti,
sequestrado cinco dias antes por terroristas de esquerda. Atrás da orelha direita, a
marca de uma bala. Na mão direita, ensanguentado, um par de óculos. No bolso do
paletó, fotografias de sua mulher e do filho Alexander.127

127
Revista Veja, 15 de abril de 1970.
173

Os discursos perpetrados por parte da grande imprensa, simpatizante ao regime,


condenavam as condutas violentas das militâncias de esquerda no Brasil, destituindo-as de seu
caráter político. A criteriosa seleção de palavras ajudava a propagar discursos que procuravam
distanciar as atividades clandestinas desses movimentos de seus objetivos políticos e
aproximá-las da noção de criminalidade. Os órgãos da repressão e a imprensa simpatizante
buscavam estabelecer no imaginário popular uma relação intrínseca entre os ideais socialistas
ou comunistas e atos de terror e vandalismo.128 Termos como “terrorista” ou “marginal”,
fartamente utilizados para se referir a militantes como os que se envolviam nos sequestros,
despontam como uma estratégia que produz um poderoso efeito discursivo, subtraindo dos
atos políticos justamente sua motivação primeira. Destaca-se que Henfil, por sua vez, não só
apresentava uma perspectiva mais humorística, como refutava as versões oficiais de quem
defendia a ordem imposta pelo regime golpista.
Como aponta Gortázar (1993, p. 54), o problema provavelmente mais complexo de se
resolver na prática dos estudos comparados é o de se conseguir um equilibrado contrapeso da
atenção aos casos e às variáveis eleitas para análise, ambos imprescindíveis ao estudo
comparativo. A variável “futebol e política” trouxe um número de casos muito maior do autor
Henfil. No entanto, a ausência e o menor número de charge de Molas com conteúdo político
mais explícito não podem deixar de revelar informações ou hipóteses sobre seu período e
oferecer dados para o estudo comparado de seu momento e o de um de seus mais expressivos
sucessores no JS, Henrique de Sousa Filho, vulgo Henfil.

128
Revista Veja, 15 de abril de 1970.
174

5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
175

Cremos ter conseguido um resultado satisfatório no que se refere ao primeiro e maior


objetivo do presente estudo. Procuramos a todo o momento demonstrar a amplitude do leque
de discussões historiográficas possíveis, ao focalizarmos uma determinada natureza da
charge: aquela que visa mais especificamente o noticiário futebolístico. Um primeiro intuito
foi, de fato, demonstrar que as charges esportivas, ainda muito negligenciadas pela pesquisa
historiográfica, também oferecem oportunidade de análise sobre valores e comportamentos
sociais, bem como de vivências políticas. Ao longo dos três capítulos apresentados, foi
possível observar que as charges selecionadas trazem, em suas respectivas perspectivas
humorísticas sobre o universo futebolístico, inúmeras referências que trazem à tona
fenômenos diversos e transformações políticas, sociais, culturais, urbanísticas e
populacionais, ora reproduzindo ora confrontando ideologias e valores vigentes em cada
período analisado. Procuramos adotar a metodologia comparativa de modo a suscitar uma
iluminação recíproca dos fenômenos histórico-sociais observados. Acreditamos que somente
através da comparação sistemática das duas obras teríamos a capacidade de perceber rupturas,
transformações e continuidades, abordando o contexto histórico e social em que estavam
inseridas. Muitas vezes, o imenso contraste verificado na abordagem de algumas temáticas
generalizantes ajuda a compreender melhor o contexto social em que estão inseridos. Basta
prestarmos maior atenção e compararmos alguns indícios sobre o processo, o método ou o
critério de elaboração dos personagens ou mascotes dos clubes, em cada período, para
percebemos duas maneiras de pensar de dois diferentes formadores de opinião com trajetórias,
meios sociais e experiências de vida distintas. Podemos verificar mudanças radicais nas duas
perspectivas humorísticas quando o futebol deixa de ser mencionado através de uma metáfora
que alude à comédia de costumes e o assunto futebolístico passa a ser explícito para servir, ele
próprio, de metáfora para reproduzir a crítica política. Estas perspectivas trazem à tona as
grandes transformações no âmbito político, social, econômico e esportivo.
Procuramos analisar as charges selecionadas tanto no que se preze ao seu efeito
discursivo, quanto também em seu significado intrínseco enquanto espaço reservado ao
humor em um dos principais diários esportivos do Brasil. Observar sua função social,
situando-as no contexto social em que estão inseridas, torna-se imprescindível na medida em
que, ao conhecermos o grande alcance do periódico em que eram publicadas, seu significado
histórico acresce em relevância. Por vezes, é fundamental que a análise das charges passe pela
observação simultânea do discurso nelas expresso e sua ressonância nos demais espaços do
diário, tentando verificar em que medida esse discurso endossa ou confronta outras naturezas
discursivas dentro do próprio periódico.
176

A estratégia de dar início à discussão situando as mudanças na cidade do Rio de


Janeiro entre os dois recortes históricos selecionados segue a premissa de que, entre um
momento e outro, a cidade vivenciou mudanças históricas radicais, considerando este tão
curto período. Além de perder a condição de capital da República, testemunhou mudanças
profundas no que diz respeito ao crescimento industrial, urbano, populacional, social, e até no
que se refere ao futebol enquanto espetáculo popular que mobilizava multidões cada vez
maiores. A abordagem geográfica de Maurício de Abreu (2008) e Pedro Geiger (1963),
combinadas com a sociológica de Lacombe (2008), nos ajudou ainda a compreender as
transformações sociais de um país que traçara propósitos desenvolvimentistas, através do
crescimento industrial, mas que se confrontava, ou se libertava gradativamente, de valores
morais católicos rigorosos. Percebemos, ao comparar as charges nos dois momentos, como os
espaços são mencionados de maneiras diversas, ganhando conotações diferentes e como a eles
são atribuídos distintos graus de relevância. A delimitação do espaço social nas charges de
Molas é menos relevante do que na de Henfil e, logo, é mais esporádica. Na obra de Henfil, o
espaço da cidade é lembrado a todo instante como elemento diferenciador de classe social.
Entre os dois períodos destaca-se ainda a construção de uma colossal arena esportiva
que transformaria profundamente a paisagem urbana da região conhecida como Maracanã,
com a construção do monumental e controverso Estádio Municipal que mais tarde seria
batizado com o nome de seu grande defensor Mário Filho. Ao erguer um estádio com
capacidade estimada de 150 mil torcedores (ainda que muitas partidas históricas apresentem
números que extrapolam consideravelmente esta marca), a cidade passava a promover
espetáculos que poderiam reunir cerca de 5% a 10% de toda a sua população.
Bernardo Buarque de Hollanda (2012) e André Alexandre Couto (2011) ajudam a
dimensionar a popularidade do JS ao demonstrar que grandes ações promovidas em sua
trajetória garantiram uma hegemonia de cinco décadas em um dos maiores centros políticos e
culturais do país. A articulação para a realização da Copa do Mundo no Brasil e a campanha
política pela construção do estádio no Maracanã, bem como a organização de outros eventos
esportivos de mobilização nacional como os Jogos da Primavera ou o Torneio Rio-São Paulo,
não apenas comprovam como também alimentam o enorme prestígio do JS e de seu editor-
chefe, o jornalista Mário Filho. Tratam-se de realizações que exigem forte poder de
influência, em um círculo de relações privilegiado, envolvendo os maiores representantes
públicos entre prefeitos, governadores e presidentes, tanto da República como das mais
relevantes entidades esportivas, desde a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro
(FERJ) até a Fédération Internationale de Football Association (FIFA).
177

Ao percebermos que, nos momentos que compreendem os recortes históricos aqui


selecionados, o JS gozava de grande prestígio e boas tiragens, vemos que o fenômeno se
delineou através de grandes transformações em sua linguagem, em suas colunas, em seus
aspectos visuais, em sua linha editorial e em seu humor. Linhas editoriais correspondem a
respectivas ideologias e são determinadas por opções norteadas pelos valores culturais e
políticos de quem produz e de quem compra o jornal. Muda-se o jogo político, mudam-se
nomes na redação, muda-se também o perfil dos leitores. Vimos que Molas passou a
colaborar com o JS em um momento de grande expectativa com o futuro do país, tanto em
relação à política desenvolvimentista como em relação ao cenário político internacional, bem
como com o processo de democratização. Com relação ao futebol, a grande expectativa girava
em torno da possibilidade de realizar e ganhar, pela primeira vez, a Copa do Mundo. Na linha
editorial do jornal, Mário Filho e sua equipe de colaboradores enalteciam o futebol brasileiro,
a paixão nacional por esse esporte e a necessidade de uma arena com capacidade para acolher
as multidões empolgadas com o espetáculo.
Já no período que prenuncia o início da colaboração de Henfil, o JS apresentava
indícios graduais de que o periódico pretendia ampliar sua gama de assuntos, mesmo antes da
gestão de Mário Júlio Rodrigues, filho e herdeiro de Mário Filho, que passaria a dirigir o
jornal após o falecimento de seu pai. Sua aproximação com a juventude, que não se limitava à
promoção dos “Jogos da Juventude”, já se fazia notar também nas páginas cor-de-rosa do
diário, abrindo espaço para a crítica musical, além de dedicar algumas páginas e dicas para o
leitor que se preparava para o vestibular ou para outras provas de acesso ao Ensino Superior.
Aos poucos, abordando cada vez mais a cena cultural da cidade e, possivelmente, driblando a
desconfiança dos que não viam no futebol mais do que uma ferramenta de propaganda
política da ditadura, o JS agregou uma série de discussões e nomes em sua redação que
ampliavam a discussão para além “das quatro linhas”. De todos, quem melhor articulou os
dois assuntos foi possivelmente Henfil, em cujas charges pudemos perceber o quanto soube
usar o futebol, a seu jeito, para criticar e denunciar as arbitrariedades do regime.
Uma vez que Molas e Henfil estabeleceram e eternizaram símbolos para os mais
tradicionais clubes de futebol do Rio de Janeiro, procuramos perceber como ambos os
cartunistas reproduziam as interpretações discursivas do meio onde ambos trabalhavam.
Observando e comparando a representação que cada artista elaborou para cada clube,
percebemos continuidades e rupturas, diferenças e semelhanças entre as mascotes elaboradas
por cada cartunista. É evidente que, inspirando-se em modelos comuns, apresentassem
algumas coincidências. Mas um olhar mais atento revela como ambas as charges expressam
178

percepções completamente distintas, não apenas a respeito do meio futebolístico da cidade,


como em todo contexto histórico social em que estão inseridas.
A partir da própria fixação de personagens e da trama elaborada, cada cartunista traçou
uma direção completamente pessoal, articulando conflitos e estimulando rivalidades à sua
maneira. O estímulo às rivalidades entre as torcidas é um dos componentes primordiais que
movimentam o espetáculo e as multidões. Como aponta Giulianotti (2002, p. 26), interesses
econômicos também articulam rivalidades duais entre clubes próximos. Além de fazer humor
com o noticiário futebolístico e estabelecer símbolos que estreitem os laços afetivos entre os
torcedores e os clubes, acreditamos que outra função das charges era justamente a de reforçar
essas rivalidades que tanto alimentam o interesse e o envolvimento do público.
Ao delimitar a linha que separa os personagens da elite do futebol dos demais, à
margem da trama, Molas situou a crítica social de forma mais periférica, em que a presença
de personagens secundários limita-se a “jogar luz” sobre a ação principal. No núcleo principal
da trama de Molas, por sua vez, onde todos alimentam iguais pretensões matrimoniais com a
Miss, a rivalidade não reconhece alianças permanentes. A rivalidade entre o Cartola e o
Popeye não seria maior do que entre este último e o Almirante, por exemplo. Tudo depende
de quem está liderando o campeonato ou, na linguagem de Molas, de quem está mais próximo
de conquistar a Miss Campeonato. Quando Henfil reposicionou essa mesma fronteira social
separando os personagens principais da trama, reforçava a crítica à distinção social ao trazê-la
para o primeiro plano. Mais do que isso, Henfil procurou atribuir uma personalidade menos
conformada com sua situação. Na trama, os personagens que representam as classes sociais
menos favorecidas defendem clubes fortes, que disputam títulos, e, portanto, não se resignam
ao poder exercido pelas camadas mais poderosas, como acontece na charge de Molas. Henfil
procurava a todo instante sublinhar a força numérica dos times de massa face à
inexpressividade dos rivais da elite, vendo o futebol como um meio de superar os opressores.
O futebol surge em sua charge como uma oportunidade única de criticar e subjugar a classe
dominante, de oprimir o opressor. Desse modo, Henfil articulou uma rivalidade dual, em que
times da elite e das massas formam duas frentes em constante conflito, procurando a todo
instante humilhar um ao outro.
Atendo-se à representação dos quatro clubes de maior tradição do Rio de Janeiro,
procuramos empreender o exercício sistemático da comparação no que diz respeito às
interpretações de cada um sobre essas formações culturais identitárias que o futebol envolve.
Outra distinção crucial se faz notar desde o momento em que percebemos uma grande
diferença na perspectiva adotada por cada um. Molas se colocava como um narrador, se
179

isentando de partidarismos e não assumindo, ao menos de forma explícita, qualquer


predileção por um dos clubes. Já Henfil não se preocupava em esconder a parcialidade
assumida, a favor primeiro do clube rubro-negro e, em seguida, dos dois times identificados
com as massas. A partir daí, ao confrontarmos depoimentos diversos de nomes consagrados
na imprensa esportiva como Mário Filho (1964, 1966), Nelson Rodrigues (2012), da jornalista
Cláudia Mattos (1997) e do historiador João Malaia (2010, 2012a, 2012b, 2012c),
perceberemos que ambos os cartunistas elaboraram, cada um à sua perspectiva,
representações inspiradas nas identidades construídas ao longo dos anos por grandes nomes
da imprensa esportiva. De certo modo, boa parte dessas interpretações sobre o meio cultural
futebolístico, seus mitos e suas trajetórias romanceadas foi estabelecida pelos órgãos mais
poderosos da imprensa esportiva, na qual Mário Filho se tornaria protagonista. Destacamos
aqui o papel exercido por essa imprensa com alcance e experiência suficiente para impor e
estabelecer na memória afetiva dos torcedores a sua forma de compreender as tradições e
trajetória de cada clube. Nesse sentido, as charges de Molas e Henfil acabam servindo
também de evidência para a imposição de tradições por parte da imprensa esportiva, uma vez
que eles reforçavam muitas das ideias propagadas pelo jornal.
Observando as mascotes de clube por clube, procuramos tornar mais explícita
justamente a comparação entre as duas perspectivas, identificando possíveis continuidades ou
grandes contrastes. Mas o que se torna mais marcante, além das alianças que fixam um
constante confronto dual entre “dominantes” e “dominados”, é a forma como Henfil não se
furta a traçar algumas características pejorativas em cada personagem, enquanto Molas
procura enaltecer a virilidade dos personagens, geralmente exibindo confiança e disposição
para a disputa. Se a representação alvinegra, por exemplo, encontra um vínculo entre o Pato
Donald, pensado por Molas, e o Cri-Cri, criado por Henfil, este vínculo pode ser percebido
tanto na crônica de Mário Filho como na de Nelson Rodrigues e encontra alguma afinidade
com a percepção de Cláudia Mattos (1997), que identifica no Botafogo uma característica
associada à elite decadente de uma cultura de oposição, ligada a um clube de menor torcida,
mais supersticiosa e melancólica. Essa percepção não se afasta da de Mário Filho, que
enxerga, no clube da estrela solitária, resquícios de sua origem, da sua fundação por
adolescentes com as emoções à flor da pele e espírito rebelde e irritadiço, causador de
confusões, como observamos na concepção do Pato Donald de Molas e do Cri-Cri de Henfil.
A diferença é que Henfil carregou um caráter menos altivo, mais cabisbaixo, triste, resignado,
ou comemorando excessivamente empates ou vitórias irrelevantes. Na concepção do
personagem tricolor, o mesmo contraste. A elegância ressaltada por Molas ganhou conotação
180

menos nobre em Henfil. O Pó de Arroz embarca na crítica de Henfil à aristocracia, às elites


dominantes que ajudavam a manter todo aquele estado de coisas que era alvo de sua crítica. O
personagem, tal qual o Cri-Cri, outro representante da elite, além de receber uma carga
excessiva de afetação, demonstra preconceito racial e social explícito ao mesmo tempo em
que gozava uma vida abastada, sem esforço, vivendo as custas da mesada do pai.
Concluímos, portanto, que as representações elaboradas por Henfil convergem
também para a crítica que permeia toda a sua charge: o conflito social. Ele é insistentemente
explorado por Henfil e tratado de forma mais sutil por Molas, porque o futebol se tornou no
decorrer do século XX mais uma configuração social em que esses conflitos eram
reproduzidos. Se ambos os cartunistas reproduziam ou procuravam reproduzir o fenômeno
social que eles percebiam no Rio de Janeiro, também, por sua vez, ajudaram a estabelecer ou
fixar um conjunto de representações que motivava a escolha do torcedor. Se uma das
características mais fortes levantadas por Henfil para se referir ao Flamengo é sua relação
com a massa, essa relação entre clube e torcida é ignorada por Molas que, por sua vez,
apostava em uma comparação do clube com o Popeye por conta das arrancadas impostas pelo
clube nas retas finais das competições. No período em que Molas começou a colaborar com o
diário esportivo, o rubro-negro era o então bicampeão. Na “Charanga do Jaime”, recém-
criada, Ary Barroso narrava de maneira assumidamente parcial os jogos do clube para todo o
Brasil. A imensa torcida que iria motivar a criação da mascote do clube no período de Henfil
parecia estar em construção. Por mais que Mário Filho tenha tentado demonstrar que a imensa
popularidade do clube estava em suas raízes, com os treinos em terrenos públicos e o carnaval
fora de época promovido por sua torcida nas vitórias do time, as evidências encontradas
parecem indicar que a grande expressão numérica só se tornaria uma realidade décadas mais
tarde.
Já em relação ao Vasco, notam-se os diferentes pesos dados às referências lusitanas do
clube da Cruz de Malta. Procuramos referências mais fundamentadas na pesquisa
historiográfica de Malaia (2010), que aponta as conquistas do clube como uma forma que a
colônia portuguesa encontrou para contornar as desconfianças de uma sociedade brasileira
ainda em conflito com os antigos colonizadores. Se essa referência é mais acentuada na
charge de Molas do que na de Henfil, uma das suposições levantadas é o fato do interesse de
Henfil em amenizar esse vínculo, procurando mostrar que a representatividade do clube entre
a torcida carioca ia muito além dessa peculiaridade, mais associada às raízes do clube. Por
mais que Molas também tenha amenizado o estereótipo mais reconhecido da caricatura do
português, que Isabel Lustosa (2011) define como sujo, ignorante, desleixado e sovina, ainda
181

podemos perceber certo desleixo ou rudeza na figura proeminente do fidalgo Almirante.


Características que não foram lembradas na formação do Bacalhau, criado por Henfil. Na
configuração dos times de massa, Henfil costumava atribuir ao Bacalhau uma característica
mais intelectual nas ações da República de Ramos. É ele, e não o Urubu, quem costuma
idealizar planos de reação, redigindo e lendo os discursos de protesto que justificavam as
ações. Henfil procurou frisar a ignorância do Urubu para ressaltar seu pertencimento ao clube
mais identificado com as massas.
Percebemos que, mesmo ao tratar das questões das elaborações das representações dos
clubes, torna-se inevitável já adiantar algumas abordagens políticas, o que nos leva a
considerar as postulações de Rémond (1996, p. 23), quando ele alerta para a expansão do
político: “As fronteiras que delimitam o campo político não são eternas.” No capítulo que
concentra atenção na esfera do político, procurando analisar com mais detalhe as charges em
que as referências ao noticiário político estão mais explícitas, encontramos um primeiro
problema no exercício da comparação sistemática: a discrepância entre a quantidade de fontes
dos dois períodos. Marcos Silva (1989, p. 27-28) lembrou o artigo de Octávio Sgarbi para o
Anuário da Imprensa, em 1942, onde o autor afirma que a caricatura política no período do
Estado Novo passava a dar lugar à caricatura de costumes. No período de Henfil se passou o
oposto. Quando a censura se tornou rotineira no país, a crítica política proliferava,
encontrando espaço entre alguns veículos da imprensa alternativa.129
Assinalam-se aqui, sobretudo, diferentes regimes autoritários em diferentes momentos.
Enquanto na época de Molas o próprio direcionamento político do Estado Novo, alinhando-se
no conflito mundial ao lado daqueles que lutavam pela democracia, já dava sinais de desgaste
pela forma não democrática que o garantia no poder, percebemos na charge de Henfil um
clima de tensão expresso em manifestações públicas e investigação política às vozes
dissonantes, quando a ditadura militar preparava o terreno para tornar a repressão ainda mais
ostensiva. A esperança do primeiro momento contrasta com frustração e revolta no momento
seguinte. Se a relação do futebol brasileiro com as Forças Armadas era vista com entusiasmo
no momento em que o país enfrentava as tropas nazistas na Itália, passou a ser tratada com
crítica e deboche na campanha da Copa do Mundo de 1970. O orgulho por essa identidade
nacional, reconhecida no futebol e nas tropas brasileiras como podemos verificar no símbolo
da FEB com a cobra fumando disposta a detonar um canhão chamado Ademir, passou a ser

129
Entre os quais destacam-se semanários como “O Sol” ou “O Pasquim”.
182

rechaçado em 1970 quando os militares procuravam forçar essa associação com a delegação
brasileira tomada por altas patentes das Forças Armadas.
De todo modo, a suposta tranquilidade diante da identificação de Vargas com as
camadas populares e as esperanças de se acelerar o processo democrático ao fim da Segunda
Guerra Mundial, caminhando em sintonia com o entusiasmo popular com o estreitamento das
relações diplomáticas com os Estados Unidos, tornavam as menções políticas de Molas
menos explícitas e menos frequentes, apesar de expressas nas referências aos personagens dos
quadrinhos americanos. Já no período posterior, essas mesmas relações diplomáticas com os
norte-americanos já não convenciam mais com a mesma naturalidade, no que diz respeito ao
discurso em prol da democracia. A reação da oposição aos regimes de força parece
igualmente proporcional às insatisfações expressas nas charges. Se em um primeiro momento
a crítica à manutenção do regime ditatorial é ironizada, evitando, no entanto, arranhar a boa
imagem de Vargas, no momento posterior a reação é mais agressiva. Os focos de resistência à
ditadura na formação de diversos grupos de militantes, dispostos a enfrentar o regime pela
luta armada, passaram a ser reproduzidos nas devidas proporções consideradas para o meio
esportivo, quando observamos os dois membros da “República Popular de Ramos”
organizando atos de resistência aos poderes estabelecidos no mesmo compasso que iam se
sucedendo sequestros de embaixadores no Brasil e em demais países dominados por ditaduras
nesse período. Na contramão do discurso perpetuado por boa parte da grande imprensa que
simpatizava com o regime instaurado, ao comparar as ações a atos criminosos e esvaziando o
protesto político inserido na discussão, Henfil procurava reforçar os discursos da resistência,
levantando sempre ideias de defesa aos direitos da massa, direitos constituintes que o AI-5
usurparia dos cidadãos. Dentro desse quadro, parece claro o contraste entre o excesso de
fontes referentes ao conteúdo selecionado da obra de Henfil face à ausência de uma crítica
política mais sistemática no conjunto da obra de Molas. De fato, por mais que o Estado Novo
tenha extinguido partidos e perseguido opositores políticos, não parece ter havido no período
uma reação do tamanho que se testemunharia no momento da ditadura posterior, quando
diversos movimentos como o MR-8, VPR, Aliança Nacional Libertadora e tantos outros
procuraram, a seu modo, abalar os alicerces do regime opressor.
183

5.1 Questões para novas discussões

Antes de tudo, é preciso destacar que a necessária seleção das obras aqui discutidas
nos obrigou a deixar de fora diversas charges que podem suscitar novas reflexões de grande
interesse para a pesquisa historiográfica. Além das charges de Molas aqui selecionadas,
tivemos contato ainda com as charges elaboradas em órgãos da imprensa platina, onde o
chargista teria repetido a fórmula da disputa metafórica pela Miss Campeonato, criando
mascotes para os times argentinos tal como fizera no Rio de Janeiro. Molas chegou a repetir
também algumas características mais fortes de alguns clubes brasileiros, como o aristocrata do
tradicional River Plate ou o diabo do Independientes. A adoção da mesma fórmula na
imprensa de Buenos Aires pode ser interpretada como mais uma evidência do sucesso de sua
trama no periódico esportivo de Mário Filho. Esse tipo de conotação sexual usado como
metáfora para o meio futebolístico voltaria a surgir também através do traço de outros
cartunistas como Théo e Othelo Caçador, que sucederia Molas no cor-de-rosa.
A respeito do trabalho de Henfil, também fomos obrigados a deixar de fora algumas
charges bastante elucidativas no que diz respeito, por exemplo, ao polêmico comando de João
Saldanha à frente da seleção durante o período de eliminatórias para a Copa do Mundo de
1970, quando seu caráter explosivo era frequentemente ironizado pelo cartunista. Com a
substituição do comando pelo técnico Zagallo, Henfil passaria a investir no excesso de
intervencionismo das altas esferas da CBD no que diz respeito ao trabalho do treinador. No
decorrer da elaboração da dissertação, tivemos contato ainda com o trabalho de Henfil que
passou a ser publicado também na nova revista de esportes do grupo editorial da Abril, a
Placar, que surgiu em 1970 quando Henfil já havia atingido grande sucesso por seus trabalhos
no JS. Ali não se viam os personagens criados para o JS, mas sua crítica ferina e militante
mantinha a mesma postura de enfrentamento percebida no diário esportivo que o consagrou.
Mais até do que as obras de Molas e Henfil, que alcançaram grande destaque ao
elaborarem durante alguns anos charges diárias tendo o futebol carioca como principal
norteador, o historiador que se dedicar a explorar as potencialidades da charge e da caricatura
esportiva terá à sua disposição um amplo leque de possibilidades, presentes em diferentes e
característicos traços e humor em diversos veículos de comunicação impressos. Até para
perceber melhor a dimensão do que pode ter significado o surgimento da charge diária sobre
esporte, através de Molas, torna-se válido pesquisar a frequência dessa natureza de caricatura
antes de iniciada sua colaboração ao JS. Esse suposto pioneirismo com a grande novidade
oferecida pelo jornal de Mário Filho pode servir como mais um indício a ajudar a
184

compreender o seu sucesso. Ao que parece, o grande sucesso dos personagens de Molas pode
ter influenciado a imprensa paulistana, nas páginas da Gazeta Esportiva, a elaborar novas
mascotes inspirados nos clubes de São Paulo no traço de Miécio Café.
O meio da charge esportiva certamente não era um deserto antes de Molas, da mesma
forma que a imprensa esportiva brasileira também não engatinhava antes de Mário Filho, mas
as evidências parecem indicar que após o sucesso de Molas as charges esportivas ganhariam
um fôlego inédito, estendendo-se aos dias de hoje enquanto espaço obrigatório em periódicos
especialmente dedicados ao tema. Com a saída de Henfil, outros nomes o sucederam no diário
esportivo como o cartunista Nani e, anos mais tarde, o cartunista Amorim com um traço mais
clássico que lembra a grafia déco do cartunista Belmonte, que atuou entre as décadas de 1920
e 1940, mas com a crítica política às conturbadas e polêmicas medidas da Federação de
Futebol do Rio de Janeiro durante a longa gestão do controverso presidente Eduardo Vianna.
Como salientamos na Introdução da presente dissertação, grandes nomes da nossa
caricatura chegaram a dedicar seu traço ao tema. Um dos maiores, J. Carlos, oferece sua
contribuição ainda que com certo distanciamento, assim como K. Lixto, que mencionara o
futebol não mais do que como metáfora política. Mas nomes como Nássara ou Lan
dedicaram-se especificamente ao tema e podem, com certeza, suscitar novas discussões.
Àqueles mais empenhados na história do tempo presente, recomendamos veementemente as
charges de Mário Alberto, ainda titular do espaço reservado ao humor no diário esportivo
“Lance”. Mário estende sua crítica aos bastidores do meio político que comanda o nosso
futebol. Atento às denúncias de corrupção de dirigentes da CBF, não deixa de lado a batalha
travada pelo deputado Romário para promover uma devassa e a investigação atenta dos
órgãos federativos responsáveis pela organização da Copa do Mundo de 2014.
Nossa motivação imediata com a presente dissertação foi a de chamar atenção para as
potencialidades para a pesquisa historiográfica em torno do estudo desta natureza específica
de charge. Somando às potencialidades de representações humorísticas da imprensa, observar
a forma como as charges interpretam os acontecimentos esportivos suscita novas questões e
discussões para o campo da História do Esporte, bem como para o da História da Caricatura.
Se a caricatura apresenta geralmente uma forma mais espontânea e menos controlada de
representações sociais, o fenômeno esportivo não apenas mobiliza multidões como também
envolve interesses políticos e econômicos, interfere na rotina da sociedade, na vida pública e
privada, transformando a vida do cidadão comum e a imagem do país frente às grandes
nações do mundo.
185

REFERÊNCIAS
186

Fontes

Documentos

Prontuário nº 14.269/44 sob a notação: SPMF/ RJ RNE 300.026. Prontuário de imigração de


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Periódicos

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