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Introdução.
O ano de 2008 foi marcado por comemorações de boa parte da comunidade
dos cientistas sociais. Afinal, a sociologia reavia seu status de disciplina obrigatória,
por força de lei (Lei n° 11.683, de 2 de junho de 2008). Foi uma conquista há muito
desejada. Mas haverá garantias de que assim permaneça?
A nosso ver, entretanto, a permanência da disciplina no quadro das disciplinas
acolhidas tradicionalmente na matriz disciplinar para o ensino médio ainda demandará
intervenções da comunidade científica. A julgar pela história da disciplina, marcada
por intermitências em sua presença nos currículos escolares (Silva, 2004; Moraes,
2003) e freqüente suspeição, vivemos um momento de cautela. Não há garantia de
que a obrigatoriedade se mantenha. Uma possibilidade de abordagem do problema é
especularmos sobre as condições para a permanência da sociologia como disciplina
do ensino médio brasileiro. Disciplina legítima, e não somente obrigatória do ponto de
vista legal.
Como contribuição ao debate, podemos nos perguntar se a legitimidade da
disciplina advirá do sentido que lograrmos construir para ela. Neste empreendimento,
a comunidade dos cientistas sociais, ou sua parte interessada, com ênfase aos
quadros universitários, tem um papel singular a desempenhar, qual seja, a dedicação
às investigações metodológicas que envolvem seu ensino, num esforço de elaborar
teoricamente suas potencialidades educacionais; o que, vale dizer, significará
construir a justificativa para sua presença no ensino médio, afirmar
argumentativamente sua relevância, estabelecer seus fins, seus desdobramentos, sua
metodologia própria. Assim, o sentido da sociologia na escola – ainda a ser construído
discursivamente nas experiências de comunicação entre professores de ensino médio
e pesquisadores das ciências sociais - abrange a fundamentação teórica da mesma e
implica a densificação dos debates acerca de seu ensino que passam a ser
protagonizados pelos seus profissionais, quer nas escolas, quer nas universidades e
institutos de pesquisa, nenhum deles unilateralmente.
O projeto político de construção da disciplina e de seu retorno aos currículos
escolares não é decorrente duma necessidade inerente ou essencial à escola ou à
própria disciplina. A julgar pelas justificativas dadas até o presente e pelas
resistências advindas da inclusão da sociologia no quadro das disciplinas oferecidas
no ensino médio, não temos sido muito bem sucedidos em sua defesa – ao menos,
3
não no plano discursivo. Pois que afirmar ser a disciplina relevante para o
desenvolvimento do pensamento crítico e para a construção da cidadania é nadar na
superfície e pouco contribui para esclarecer em quê, exatamente, a disciplina se
diferencia das demais e qual seu papel no sistema educacional. Afinal, os dois
objetivos citados, normalmente elencados quando se trata de justificar a disciplina,
podem – ou deveriam – ser alcançados por todas as disciplinas, objetivos inerentes à
própria atividade educacional que são.
Ora, não é por uma necessidade intrínseca à escola que podemos esperar a
permanência da disciplina na educação básica. Muito menos pelo “natural” interesse
da comunidade acadêmica dos cientistas sociais, como se pela presença das ciências
sociais nos cursos universitários decorresse a obrigação de sua transposição à
escola. A legitimidade social da sociologia como disciplina obrigatória do ensino médio
brasileiro, única via para garantir sua permanência, é projeto político e intelectual;
uma construção que depende essencialmente de nossa capacidade de construí-lo,
teórica e politicamente.
Na esperança de colaborarmos com esta construção, retomamos algumas
questões que vêm sendo debatidas há cerca de alguns anos e que, felizmente,
parece ocupar cada vez mais as reflexões sobre o tema 1. Tais podem ser assim
expressas: qual a natureza do conhecimento sociológico? O ensino da sociologia na
escola média deve ser o ensino de uma ciência, como um conjunto de conhecimentos
acumulados sobre determinados fenômenos sociais? Ou o ensino da sociologia se
define por promover a emancipação dos sujeitos? Quais os melhores caminhos para
operacionalizar o ensino da disciplina? Tais perguntas dizem respeito diretamente às
questões de ensino e suas respostas são capazes de indicar distintos
direcionamentos para este. É evidente que tais perguntas podem ser apresentadas de
outras formas, tanto quanto outros aspectos, além dos explicitados, poderiam ser
postos em foco, o mais importante sendo o que orienta tais questões. Com a primeira
pergunta, tentamos nos aproximar de uma reflexão sobre a epistemologia das
ciências sociais, suas distintas racionalidades, o tipo de conhecimento que têm
produzido e a perspectiva sobre o social que vêm construindo, como fundamentação
de seu ensino na escola média. A segunda e a terceira perguntas remetem-nos
1
Como se multiplicam, hoje, os artigos publicados, produções acadêmicas, seminários e simpósios sobre o
tema. Exemplar disso foi o I Encontro Nacional sobre o Ensino de sociologia na Educação Básica, realizado
no IFCS/UFRJ, em 2009, sob os auspícios da SBS.
4
uma estratégia que privilegiava as lutas localizadas nos estados federativos e, num
momento mais recente, por uma campanha unificada que teve como alvo a União.
Tais campanhas, lutas e movimentos – tanto quanto as produções de
pesquisas, produções didáticas e até mesmo manifestações panfletárias e artigos de
opinião publicados em jornais diários – constituem momentos distintos da história da
disciplina; separados no tempo, as lutas e produções das décadas que vai de 1920 a
1950, e as que emergiram a partir de 1980 guardam muitas diferenças e algumas
convergências que merecem explanação e análise. No entanto, o que de imediato
sobressai, dentre as diferenças entre os dois momentos destacados, é o completo
esquecimento dos debates anteriores, das justificações, das investigações e das
produções propositivas (como produções didáticas) realizadas nas décadas
precedentes. Sobressai, ainda, algo que está no centro do presente projeto: as lutas
recentes em torno da disciplina tem sido capitaneadas por entidades não vinculadas,
senão indiretamente, à universidade e, não raro, distantes das agendas acadêmicas.
Sem dúvida, são momentos distintos da história política do país, diferentes
compromissos articulados entre intelectuais, estado e as camadas sociais
dominantes; no entanto, impossível explicar as movimentações em torno da inclusão
da disciplina sem a nítida compreensão das relações estabelecidas no interior do
próprio campo das ciências sociais e as representações em torno da ciência e de seu
ensino.
Se na primeira metade do século XX o ensino de sociologia ocupava lugar de
destaque nos debates educacionais e políticos, atualmente é relevado à periferia
acadêmica, tratado com indiferença pelos gestores públicos da educação e
abandonado a um discurso em geral corporativista dos sindicatos de sociólogos. Por
sua vez, a academia tem revelado verdadeira indiferença com relação à disciplina.
Trata-se, portanto, de explicar estes dois eventos e suas correlações: por um lado a
invisibilidade do ensino da sociologia na escola média – invisibilidade para o campo
acadêmico das ciências sociais; por outro, as apropriações simbólicas da disciplina
empreendidas pelas associações profissionais e sindicais de cientistas sociais.
de formação específica em ciências sociais, mas pela sua presença no antigo curso
normal e no curso secundário, ainda nas primeiras décadas do século XX; e não
somente pela sua inclusão no sistema de ensino. Ao contrário, parte importante dessa
história se desenrolou no esforço de alguns intelectuais para publicar obras de
sistematização do conhecimento sociológico ou traduzir importantes textos de autores
estrangeiros. O processo de institucionalização das ciências sociais em nosso país
encontrou guarida, em sua primeira fase, no ensino secundário antes que na
academia (Meucci, 2000; Giglio, 1999). Até porque, a rigor, não existiam
universidades (Melo, 1999; Meucci, 2000). Sabe-se que após a transferência da
Coroa Portuguesa para o Brasil , em 1808, foram inauguradas imediatamente a
Academia Militar, a Escola Nacional de Belas Artes e duas faculdades de medicina,
uma no Rio de Janeiro e outra na Bahia, de onde surgiram algumas obras de filosofia
publicadas no Brasil no século XIX. Somente em 1827 é que são criadas as
faculdades de direito de Olinda – posteriormente transferida para o Recife – e de São
Paulo. Assim compõe-se o nosso sistema de ensino superior até a terceira década do
século XX. E ainda assim, tanto a criação da USP, como da Escola Livre de
Sociologia e Política ou a “agregação” de cursos na Universidade do Rio de Janeiro,
eventos que se deram na primeira metade da década de 1930, podem ser
considerados casos isolados e não representaram o que seria o início de uma política
governamental de fomento à educação superior; na verdade, caracterizaram uma
educação votada às elites.
Mesmo com a expansão do ensino superior a partir dos anos 30, é somente
após 1964 que o Brasil vai conhecer um processo de “democratização do ensino
superior” e de incentivo à pesquisa, além de uma política voltada à criação de
universidades e programas de pós-graduação, na linha da modernização
industrializante do regime militar. No entanto, a produção em ciências sociais já existia
desde antes e se a inexistência desses cursos universitários, por um lado, é a
condição objetiva que favoreceu o ensino da sociologia enquanto disciplina do ensino
secundário, por outro, não é condição suficiente para explicar o fenômeno. Pois, se a
inexistência de um sistema universitário nos obriga a relativizar a importância
atribuída à inserção da disciplina no secundário como algo excepcional, não justifica,
todavia, o desinteresse atual pelo que se fez na época, no secundário.
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2
Ano de implantação do primeiro curso de sociologia no ensino normal, no Colégio Pedro II, por
Delgado de Carvalho.
9
aqueles sociólogos do início do século XX3, por outro nos revela também a intenção
de elevar-se a sociologia à condição de ciência com reconhecimento social. Na
verdade, não apenas se creditava à disciplina a condição de ciência fundamental, na
esteira do pensamento comtiano, capacitada para o conhecimento seguro da
realidade social e fornecedora de instrumentos de intervenção que contribuíssem para
a harmonia e o desenvolvimento da sociedade; mais que isso: a considerar as
relações de parte desses intelectuais com o pragmatismo de Dewey e a forte
influência, nos anos 20 e 30, da Educação Nova no Brasil, capitaneada por Anísio
Teixeira, é compreensível que a sociologia seja alçada à condição de “arte de salvar
rapidamente o Brasil”, nos dizeres de Mário de Andrade4. Há um forte componente
missionário na produção do período que de algum modo parece deitar raízes nos
discursos atuais.
Segundo os trabalhos de Villas Bôas (1998), Giglio (1999), Bispo (2003) e
Rêses (2004), a disciplina sociologia teria sido proposta ainda no Império. Em 1882,
“Rui Barbosa, enquanto deputado, apresentou projeto que versava sobre a
reestruturação do ensino” (Rêses, 2005); em 1891, nova proposta é lançada a partir
de um projeto para a re-estruturação do ensino no Brasil, de Benjamin Constant. A
proposta foi descartada após a morte de Constant, retirada do currículo pela Reforma
Epitácio Pessoa, de 1901, “sem nunca ter sido ofertada” e efetivada (Rêses, 2004, p.
7), outra vez proposta pela Reforma Rocha Vaz, em 1925, e ratificada com a Reforma
Francisco Campos, em 1931. Em 1942, no entanto, a Reforma Capanema retira a
obrigatoriedade do ensino da sociologia da escola secundária e entre esse ano e
1960 a disciplina vai sendo alijada pouco a pouco do ensino secundário, sobrevivendo
apenas no curso superior e na escola normal5. Em nota de rodapé, Meucci esclarece
que tal retirada
3
É significativo o fato de Azevedo (1969) ressaltar e classificar como um período da história da
sociologia justamente o de sua inserção nos sistema de ensino secundário, a partir de 1928, por
meio de um recorte da história da disciplina sociológica muito peculiar: privilegia os anos em que
esta esteve presente no secundário como um período a ser destacado.
4
Apud João Cruz Costa, Augusto Comte e as origens do positivismo, 1969, São Paulo: Editora
Nacional, 2ª edição [1ª ed. De 1957], p. 139. Citado por Simone Meucci (2000), p. 44.
5
Como observou o professor Dr. Amaury César Moraes, em conversas com o autor deste texto, há
um aparente paradoxo a ser investigado: o ensino de sociologia parece ter persistido em
momentos predominantemente autoritários da vida política nacional, como sob o Estado Novo, e
recebido forte rejeição em períodos ditos democráticos.
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6
Sobre insulamento discutirei mais adiante. Porém, fique registrado desde já que com a expressão
“insulamento acadêmico” pretendo traçar um paralelo ao conceito de “insulamento burocrático”, no
sentido apresentado por Edson Nunes (1999), modelo que deverá ser construído e elaborado ao
longo da investigação. Naturalmente, não pretendo aplicar diretamente o conceito de Nunes à
compreensão da história da disciplina e às questões aqui tratadas.
11
Insulamento e invisibilidade.
O Estado Novo provocou uma estagnação de cerca de oito anos no
pensamento político-social brasileiro (Santos, 2002) e afastou a sociologia do
secundário; o regime militar consolidou seu insulamento acadêmico e a afastou dos
debates públicos. Compreensível diante do grau de importância a que as ciências
sociais foram elevadas desde o início do século no imaginário social do país e do grau
de autonomia dos intelectuais. Colocar sob controle essa efervescência reformadora
deveria passar necessariamente pelo seu afastamento dos centros decisórios e dos
espaços de influência intelectual e formação da opinião pública.
Ainda que o início da institucionalização tenha se dado pela inserção da
sociologia no secundário e pela produção dos seus primeiros manuais e textos de
reflexão sobre ensino, a partir da década de 1930 o processo da institucionalização
strictu sensu se deu via criação de universidades e cursos de graduação. A partir de
1960, se consolidou via criação dos programas de pós-graduação por meio dos quais
se pode falar propriamente em linhagens e práticas de pesquisa. Sem dúvida, “a
expansão da pós-graduação constitui o melhor indicador da institucionalização das
ciências sociais no Brasil” (Melo, 1999, p. 174). É no mínimo curioso o fato da
instituição dos programas de pós-graduação, no Brasil, ter ocorrido após 1968, em
sua maioria. Com exceção de casos isolados, como a concessão dos títulos de
mestre e doutor pela USP desde ao menos 1947, os primeiros programas de pós-
graduação foram instituídos entre fins da década de 1960 e início de 1970 (Melo, op.,
cit., p. 210), fato que demonstra um período de concentração na emergência dos
12
Invisibilidade e esquecimento.
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7
A exemplo do que afirma Melo (1999: 179-180): “para completar esta rápida discussão sobre as
relações entre a ciência social institucionalizada e o ensino, é necessária uma menção ao trabalho
desenvolvido nas escolas de primeiro e segundo graus. Trata-se de uma área ainda invisível para
os cientistas sociais, apesar de constituir o mercado de trabalho de uma parte dos graduados nos
cursos de sociologia”.
15
8
São objetivos do ensino de sociologia, segundo Costa Pinto: “1) dar conhecimentos positivos e
estabelecer conceitos fundamentais sobre a vida social, suas bases, sua organização, seus
processos e seus produtos; 2) tomar essas informações e conhecimentos científicos sobre a vida
social como pontos de partida e como materiais para gerar e elaborar no educando atitudes,
estados de espírito e formas de comportamento capazes de dar caráter ativo e consciente à sua
participação e integração na sociedade e na cultura” (Costa Pinto, 1947, p. 15, grifos meus).
9
A referência de Fernando de Azevedo é de Princípios de Sociologia: pequena introdução ao
estudo de Sociologia geral. São Paulo, Duas Cidades, 1973. introdução, p. 7. A crítica ao ensino da
“ciência feita”, por Fernando de Azevedo, pretendia atingir, principalmente, a educação
“enciclopédica” e marcar uma diferença fundamental quanto à sociologia no ensino secundário,
que deveria privilegiar a aprendizagem, por parte dos alunos, dos métodos e modos de pensar da
investigação científica. Essa crítica de Azevedo também foi recuperada por Meucci (2000).
16
ensino médio por parte dos gestores da educação, pública ou privada, mas também
por parte de parcela da própria comunidade dos cientistas sociais, deve-se a razões
que se apresentam na inserção e desenvolvimento das ciências sociais no Brasil,
como vem sendo proposto neste texto.
O resgate desse debate talvez – e sua interpretação à luz do contexto em que
emergiu – pudesse evitar o que o próprio Florestan Fernandes avaliou como uma
perda ao se referir a uma espécie de “geração perdida”, conforme escreve em artigo
com esse título, relembrado por Giglio (1999, p. 9):
“no fim de umas três décadas, o que pretendíamos fazer já não
possui sentido prático e vemos os ‘novos’ retomar os mesmos
caminhos, para refazer o que já foi feito, sem aproveitar o esforço de
um avanço que, pelo menos, deveria representar um novo ponto de
partida e uma reflexão crítica mais madura e profunda quanto às
relações entre talento e sociedade no Brasil”.
À guisa de conclusão.
Como vimos, apesar da indiferença com que vem sendo tratado o ensino de
sociologia no ensino médio pela comunidade dos cientistas sociais, refletir sobre a
sociologia enquanto disciplina no secundário ou no ensino médio é refletir sobre as
ciências – e as ciências sociais em particular –, no Brasil. A história da sociologia no
ensino médio se confunde com a história da organização de nosso sistema
educacional e com a constituição do campo das ciências sociais (Meucci, 2000); a
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disciplina fez-se presente no debate público desde o Império, foi alçada à condição
estratégica de modernização democrática da sociedade brasileira para, por fim,
tornar-se questão presente naquilo que Nietzsche chamou de “história de antiquário”,
ou uma simples “nota de rodapé” Giglio (1999) em papers acadêmicos; tanto como
veio a constituir-se em ponto programático dos discursos corporativistas dos
sindicatos de sociólogos. Compreender sua história e as motivações com que
diferentes atores justificam suas ações com relação à disciplina, por fim, compreender
as apropriações simbólicas da sociologia enquanto disciplina na escola média é o
objetivo da presente pesquisa. Para que este objetivo possa ser alcançado, proponho
que sejam investigadas duas hipóteses.
Proponho, como primeira hipótese a ser investigada: (1) a institucionalização
das ciências sociais na pós-graduação, e seu insulamento, está indissociavelmente
relacionada à invisibilidade das questões de ensino para o campo acadêmico das
ciências sociais. Como dimensões dessa hipótese temos: (i) foram articuladas novas
concepções acerca do papel das ciências sociais em geral, e das ciências sociais em
particular, resultantes de re-acomodações e transformações internas ao campo das
ciências sociais; (ii) houve um novo redirecionamento das energias dos cientistas
sociais, que voltaram seus interesses à disputas interdepartamentais e
intradepartamentais, no âmbito da universidade; (iii) emergiu uma nova estratégia de
legitimação do campo, desencaixada das questões de seu ensino e da educação em
geral. A idéia central aqui, como proposição a ser verificada em pesquisa, é que uma
dimensão importante – a contribuir para explicar a história parcialmente narrada
anteriormente neste texto – da singularidade da disciplina sociologia está menos nas
ações políticas deliberadas e contextos políticos particulares, porém nas alterações no
próprio no campo científico, que permitem compreender a relação dos diferentes
atores.
Como segunda hipótese, propomos que diferentes interesses em conflito de
uma “burocracia pedagógica”10, que se constitui um estamento próprio da estrutura do
estado brasileiro, agindo de modo relativamente autônomo e em função de clivagens
múltiplas, influíram na presença ou ausência na educação básica da disciplina
sociologia; a relação deste estamento com associações científicas e profissionais,
Devo esta hipótese e a expressão “burocracia pedagógica” ao professor Dr. Amaury César
10
Moraes (FE-USP).
19
sociologia uma ciência legítima, como Sílvio Romero, e os que a consideravam uma
falácia, como Tobias Barreto; o primeiro, em seu “Ensaios de filosofia do direito”,
anotações de seus cursos na Faculdade de Direito, de 1895, e o segundo como autor
de “Variações antisociológicas”, de 1884. O que se esboça nestes textos é um
acirrado debate sobre a possibilidade mesma do conhecimento sociológico, num
momento em que a sociologia estava apenas nascendo na Europa e nos EUA. Ora,
não é de estranhar que o debate sobre o ensino da disciplina tenha ganho adeptos e
críticos nos anos que se seguiram, nem que a reforma proposta por Constant, um
positivista, a tenha incluído. Certamente, e para não nos alongarmos neste ponto, em
períodos distintos e contextos particularmente diferentes, outros podem ter sido os
fatores a pesarem sobre as decisões quanto à disciplina, mais que a simplificadora
referência imediata à regimes políticos.
As novas e necessárias investigações a se realizar podem vir a esclarecer,
também, as influências que diferentes atores e movimentos desempenharam quanto à
presença ou ausência da disciplina, ou que ainda desempenham sobre sua, talvez,
fragilidade. Para mais um exemplo, pensemos sobre a distância que o campo
acadêmico das ciências sociais tomou do ensino da sociologia, a partir das décadas
que se seguiram à Reforma Capanema, antes um objeto central, como durante o
período de sua institucionalização nos cursos secundários e do Manifesto dos
Educadores Novos. Há a possibilidade de que a institucionalização das ciências
sociais, em nível universitário, sobretudo com a consolidação dos programas de pós-
graduação, tenha sido um fator importante para este distanciamento, por um aparente
efeito de insulamento acadêmico e conseqüente invisibilidade da disciplina. As novas
agendas de pesquisa parecem ter se afastado da aposta na Educação na constituição
da modernidade. Aliás, a modernidade está em xeque em críticas mais ácidas ou
menos à sua negligência às vozes de diferentes sujeitos, referidos hoje como grupos
subalternos 12. Pensamos, porém, que estamos diante do desafio de se rever projetos
civilizatórios, e projetos pedagógicos, não de subestimá-los. Ora, não é casual que o
discurso dos direitos individuais pareça hoje suplantar o das políticas de Estado e que
haja um rebatimento também nas políticas educacionais, fragmentando-as num sem
número de programas nem sempre passíveis de serem articulados.
12
Aos interessados no debate das releituras e dos novos paradigmas na sociologia latinoamericana, por
exemplo, pode-se ler, dentre tantos outros, Miglievich Ribeiro; Veras; Navarrete et. al. “Aspectos do
pensamento social crítico latino-americano ontem e hoje: intelectuais e produção do conhecimento”, 2009.
22
13
O vazio foi ocupado pelas associações profissionais e sindicais de cientistas sociais e sociólogos, com novas
implicações em termos de disputas internas ao campo e apropriações simbólicas da disciplina. É impossível,
portanto, afirmar que o silêncio em torno do tema se deu nalgum dia. Mais recentemente, a SBS (Sociedade
Brasileira de sociologia) consolidou sua chamada Comissão de Ensino, ligada à diretoria, que, desde seu
início é coordenada pela Dra. Heloísa Martins (USP) e secretariada pela Dra. Ileizi Fiorelli Silva (UEL), à
qual professores e pesquisadores, em nível universitário, que nunca deixaram de se dedicar à questão do
ofício do sociólogo e/ou de sua prática docente, portanto, também no empenho do retorno da disciplina à
escola aderiram imediatamente.
14
Pode-se citar o caso do Estado do Rio de Janeiro que, através da Associação Profissional dos Sociólogos do
Estado do Rio de Janeiro (APSERJ), viu a sociologia retornar como disciplina obrigatória atestada pela
Constituição Estadual de 1989, tendo sido realizado, após esta, o primeiro concurso público em 1991. Apesar
do imperativo legal, a realidade de não-reconhecimento da disciplina preponderou. Ainda assim, sua presença
na matriz curricular obrigou uma mais permanente vigilância da parte de seus profissionais com um papel
eminente para a APSERJ, na promoção, dentre outros, de encontros e debates entre os professores da rede
estadual.
15
Em coletânea organizada por Maria Stella Grossi Porto e Tom Dwyer, sociologia em transformação:
pesquisa social do século XXI (2006), podem ser lidos três artigos da autoria respectiva de Adelia Miglievich
Ribeiro, Alice Plancherel e Tânia Magno que, derivados da mesa “Histórias locais das ciências sociais no
Brasil”, possibilitam ao leitor o conhecimento da trajetória das ciências sociais também no Rio de Janeiro, em
Alagoas e em Sergipe. Também, cabe citar o livro organizado por Marcio de Oliveira sobre “As Ciências
Sociais no Paraná” (2006). As várias pesquisas acerca da história das ciências sociais, de variados ângulos,
têm-nos permitido, também, um olhar mais cuidadoso sobre as singularidades dos processos de
institucionalização de nossa ciência no vasto território nacional, no ensino e na pesquisa, nas instituições de
cultura, nas universidades, nas escolas.
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Referências
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sociológicas no Brasil” in Dicionário de sociologia Globo, São Paulo/ Porto Alegre:
Editora Globo, 4ª edição, 1969 (1ª edição em 1961). Extraído do livro Princípios de
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Sociologia da Rede Pública de Ensino do Distrito Federal. Dissertação de mestrado.
Brasília, UnB, (junho) 2002. Orientador: Carlos Benedito Martins.
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profissionalização e organização da categoria – história e perspectivas. 1998 (agosto).
Elaborado para apresentação no XIV Congresso Mundial de Sociologia, realizado em
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(FNS).
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à “Sociologia Educacional”: ciência social e democracia na educação brasileira.
Trabalho que integra pesquisas vinculadas ao projeto “Filosofia e Ciência no Discurso
Educacional Renovador (Brasil: 1930-1960)”, com subsídios do CNPq (bolsa
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MELO, Manuel Palácios da Cunha e. Quem explica o Brasil. Juiz de Fora: Editora
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