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The traditional horticulture system (​kokué​) Mbya Guarani as points of

biocultural re-existence in urbanized regions

As roças tradicionais (​kokué​) Mbyá Guarani como pontos de re-existência


biocultural em regiões urbanizadas

Carolina Silveira Costa​1​, Tiago Zilles Fedrizzi​2​, Iana Scopel Van Nouhuys​3,​ ,​ Rumi Kubo​4

1​
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS), silveiraca2016@gmail.com
2​
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS), tiago_fedrizzi@hotmail.com
³Bióloga/UFRGS, ianasvn@gmail.com
4​
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDRUFRGS), rumikubo2002@gmail.com

Resumo: ​Assim como outras etnias ameríndias, os Mbyá Guarani possuem uma relação profunda com as plantas
que cultivam em sua roça. Na cosmogonia Mbyá, foi através das próprias pegadas que ​Nhãnderú Tenonde Gua
(Nosso Pai) criou o milho. Estes coletivos buscam organizar-se social e territorialmente através de uma constante
movimentação de indivíduos e de sementes tradicionais que constituem sua base alimentar. Em cidades como
Porto Alegre (RS) e Viamão (RS), aldeias mbyá resistem e persistem buscando exercer seu modo de vida, que
por sua vez está intrinsecamente ligado à mata e à roça. Este trabalho objetiva compreender o papel que as roças
tradicionais mbyá guarani das aldeias ​Nhundy e ​Jatai’ty na região metropolitana de Porto Alegre, exercem no
âmbito da segurança e soberania alimentar em um contexto de uma sociedade cada vez mais urbanizada, assim
como a sua importância biocultural dentro destes coletivos. As análises basearam-se em observações, conversas
e participação em mutirões de plantio e encontros nas aldeias, relacionando com as discussões teóricas onde
verificou-se a centralidade das caminhadas (​jeguatá)​ orientadas pelo conhecimento ancestral, para a manutenção
do fluxo genético de espécies como a mandioca e o milho. Estas, encontram diversos obstáculos territoriais,
tanto geográficos, quanto agrários. Entretanto, apesar de limitadas, as trocas e plantios de sementes continuam a
ser efetuadas, por uma complexa conjunção entre as aldeias, acionando memórias, territorialidades e o modo de
vida guarani, existindo e re-existindo apesar das limitações impostas.

Palavras-chave: ​sementes tradicionais, agricultura, guarani, patrimônio biocultural.


De uma Territorialidade em Movimento à Agrobiodiversidade

A agricultura e outros processos de mudança de paisagens, demonstram o vínculo


estreito entre processos biológicos, genéticos, linguísticos, cognitivos, agrícolas e
paisagísticos. Este conjunto forma o complexo biológico-cultural constituído historicamente,
produto dos milhares de anos de interação entre as culturas humanas e o ambiente natural.
Segundo Toledo (2015), o processo de caráter simbólico e coevolutivo aconteceu graças à
habilidade da mente humana de aproveitar as singularidades do seu entorno, em função das
suas necessidades materiais e espirituais. Atualmente, nos diversos processos sociais, esta
memória biocultural encontra-se viva nas comunidades tradicionais e mais especificamente,
entre os povos indígenas do mundo. Tais processos, traduzem-se em movimentos propostos
por autoras como Vandana Shiva, ao defender que “na semente a diversidade cultural
converge com a biológica” (SHIVA 2001, p. 152). Dito isto, a agrobiodiversidade engloba
uma parte da biodiversidade da qual os seres humanos demandam para obter alimentos, fibras
e energia, abrangendo plantas, animais e outros organismos importantes na produção agrícola
(MEDEIROS; DARELLA, 2007). Portanto, a agrobiodiversidade enquanto relações sociais,
associadas ao conhecimento, observação, uso e cultivos de determinadas plantas, é intrínseca
às práticas e vivências destes povos.
Em toda sua diversidade de cosmovisões e etnias, as comunidades tradicionais, dentre
elas as ameríndias, têm como ponto em comum o fato de não haver uma separação abissal
entre natureza, cultura e produção, o que reflete nos seus sistemas de conhecimento, saber este
que se engendra de maneira holística, complexa e aberta, com base nas experiências
transgeracionais e em constante adaptação às dinâmicas tecnológicas e socioeconômicas
(TOLEDO, 2015).
Assim como outras comunidades indígenas, os Mbyá Guarani possuem uma relação
profunda com as plantas que cultivam em sua roça, “os alimentos tradicionais são deste e do
outro mundo, são telúricos e são sagrados” (TEMPASS, 2012, p. 88). O plantio de alimentos
tradicionais, para os Mbyá, é responsável por orientações ritualísticas que se estendem por
todo o ano e, por consequência, toda a vida de um guarani.
Reduzidos populacionalmente de forma drástica pelo etnocídio que acontece até os
dias atuais, os coletivos guarani, pertencentes ao tronco linguístico Tupi-Guarani (P.
CLASTRES, 2003, ​apud PRADELLA, 2009, p.39) estão presentes em diferentes
parcialidades, nos países Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai. Em conjunto com os Kaiowás
e os Nhandevas, os ​Mbyá Guarani constituem as parcialidades étnicas dos Guarani no Brasil.
Os ​mbyá têm a sua territorialidade continental reconhecida nos estados do sul e sudeste
brasileiro, bem como na Argentina e Paraguai, buscando “erguer” sua ​tekoá (aldeia) derivado
do ​mbyá tekó (modo de vida mbyá) + ​a (lugar), formando o termo que se pode traduzir por
lugar de exercício do costume ​mbyá​ guarani (GARLET, 1997).
No que diz respeito à territorialidade ​mbyá guarani, não há como dissociá-la da ideia
de pessoa, pois a constituição do corpo de cada ​mbyá é baseado na morada celestial seu ​nhe’e
(espírito definidor de ser guarani) a qual pertence e como ele se comunica com os deuses para
fazer sua ​jeguatá ​(caminhada), sustentando seu andar nos ensinamentos de ​Nhanderu e
Nhanderu kuery​, depositando “nos corpos um lugar central para a constituição de sua
socialidade” (CAIXETA DE QUEIROZ, 2008 p. 117-118).” A questão da mobilidade
Guarani permeia todas as discussões que envolvem a regularização das terras e atividades de
subsistência. Também para os Guarani, mas a partir de outro critérios, os movimentos fazem
parte de sua construção. Os deslocamentos (movimentos) dos Guarani podem ser de naturezas
e motivos diversos mas não são antagônicos, podem ser complementares e suas causas podem
estar interligadas (LADEIRA, 200 ​apud​ PRADELLA, 2009, p. 66).
Para compreender melhor como se dá a relação do guarani com a paisagem, é
relevante pensar como se organizava o viver de seus antepassados. A ocupação territorial
guarani pré-colombiana se dava por “enxameamento”- fazendo um paralelo ao processo
apícola pelo aumento populacional e consequentemente demanda de áreas capazes de fornecer
recursos em quantia - de forma radial, tendo como ponto de partida um local central e a partir
dele, buscava-se locais para conseguir recursos e para plantio. Conforme a Arqueologia
clássica, o processo de ocupação seria circular, sendo que cada aldeia era ocupada por uma
média de 30 anos, de onde se daria todo um fenômeno de deslocamento pelo território
(movimentação) , para não haver a escassez de recursos. (BROCHADO, 1984)
O pensamento ​mbyá sobre o cosmos, embora vivam em áreas subtropicais, converge
com o de povos indígenas amazônicos. Segundo Noelli (1993) os sistemas de manejo de suas
roças e de subsistência, tais como o plantio nas várzeas do rio e a coivara, são típicos da
Amazônia.
Atualmente, apesar da mata, chamada de ​ka’aguy pelos mbyá, estar mais escassa, a
atual disposição espacial das aldeias (tais como as trilhas entre os núcleos de casas, assim
como as áreas de roça - chamadas ​kokué) ​têm diversas características que remetem à
disposição das aldeias há cerca de 800 anos. Mesmo tendo uma constante intervenção e troca
com projetos desenvolvimentistas estatais com visões de certa forma colonialistas, que
suprimem a vivência territorial deste povo desde a época dos jesuítas, os mbya resistem e se
re-estabelecem. Têm o teko porã (bem viver) como caminho para que se alcance a terra sem
males. Tais aspectos podem ser evidenciadas em falas, como as de Altino dos Santos,
mbyá-​ guarani de Ubatuba, SP:

Antigamente os Guarani não paravam quatro ou cinco anos no mesmo lugar, porque
todos os Guarani foram orientados por Nhanderu, porque estamos procurando a terra
sem males. Hoje não é assim, não dá para continuar fazendo como naquele tempo,
porque os brancos já tomaram tudo, é bom conseguir demarcação e ficar. A FUNAI
diz que não dá para fazer demarcação porque os Guarani não param. Hoje os
Guarani pensam diferente, não adianta ficar mudando de lugar e ficar sem terra. A
terra, a natureza, foram feitas por Nhanderu; e antigamente não tinha fronteira
Brasil, Paraguai e Argentina. Antigamente tudo era dos povos indígenas e hoje em
dia os Guarani estão vivendo muito precário (sic) por causa disso. E hoje as aldeias
dos Guarani são os lugares onde o ​juruá não tem mais como aproveitar a terra, por
isso ele deu para os Guarani. (LADEIRA & MATTA, 2004 ​apud Z ​ ANIN, 2006,
p.33) ​.

Apesar das dificuldades devido a pouca terra e pouco acesso à mata, até hoje
conseguiram, de certa maneira, dar continuidade à transmissão do seu modo de vida, o que
reflete no seu plantio da roça tradicional pelas ​Kokué​.

Os Mbyá desenvolveram, como coletivos envolvidos há milhares de anos com as


formações florestais americanas, um conhecimento especializado e uma relação
profunda com a grande diversidade de ambientes ocupados. Existem elementos de
relevância simbólica, material e alimentar, nos diferentes ecossistemas que
compõem a mata atlântica, em um fluxo de espécies e materiais genéticos
promovido pelos mbyá. Em relação a espécies agrícolas, o povo Mbyá Guarani
resguarda, ainda hoje, grande diversidade de cultivares tradicionais. (MOUZER,
2011, p.39).

Ao estudar a agrobiodiversidade nos territórios Mbya, Felipim (2001) percorrendo


algumas aldeias localizadas na região sudeste (SP e RJ), identificou nove variedades de
milho, sete de batata-doce, três de amendoim, duas variedades de feijão “de corda” e duas de
aipim, além de porongo, sorgo sacarino, fumo, melancia, entre outras. Considerou que os
mecanismos que constroem o sistema agrícola guarani favorecem a manutenção e o aumento
da variabilidade genética de seus cultivares, possibilitando a efetiva manutenção desta
variabilidade genética a longo prazo. Tais condições possibilitam novas estratégias
adaptativas aos ambientes que vêm sendo modificados tanto no tempo como no espaço,
permitindo a continuidade de seus processos, suas análises basearam-se em observações,
conversas e participação em mutirões de plantio e encontros nas aldeias, consideradas como
situações de trocas de saberes. Na realidade encontrada em aldeias no Rio Grande do Sul,
podemos observar situações semelhantes, onde a agrobiodiversidade é vivida pelos mbyá
mesmo em locais não tão propícios devido a fatores como urbanização e falta de espaço.
Especificamente na região da Grande Porto Alegre, podemos encontrar roças cuidadas por
adultos, idosos e crianças onde se encontram plantadas sementes de batata doce e milho
tradicional por exemplo. Visto isto, a fim de compreender de maneira mais densa como se
dá a agrobiodiversidade nas roças tradicionais dos mbyá atualmente assim como seu papel
no âmbito da segurança e soberania alimentar destes povos, em um contexto de uma
sociedade cada vez mais urbanizada e a sua importância biocultural dentro destes coletivos e
para as sociedades humanas como um todo , no próximo tópico serão retratados contextos de
duas diferentes aldeias, acompanhadas pelos autores há cerca de dois anos: a aldeia jatai’ty,
localizada na Terra Indígena Cantagalo, e a aldeia Nhundy/Estiva, ambas localizadas no
município de Viamão na região Metropolitana de Porto Alegre1, RS, Brasil

1
É considerada a área mais densamente povoada do estado, compreendendo atualmente 34 municípios e
aproximadamente 4 milhões de habitantes, ou seja, 38 % da população do RS.
A presença Mbyá na região metropolitana de Porto Alegre

A região metropolitana de Porto Alegre, apesar de ainda possuir áreas rurais em seus
municípios, tem como característica a forte urbanização e a crescente especulação imobiliária.
Ainda assim, entre outras comunidades tradicionais existentes na região, os mbyá guarani
buscam seguir seu mbyá rekó- modo de ser guarani- nas aldeias e acampamentos da região.
Uma destas aldeias, a Tekoa Nhundy, localizada no bairro Estiva em Viamão, RS, é formada
por uma área de 7 hectares. Inicialmente havia no local somente uma área considerável com
plantação de eucaliptos e um acúmulo de resíduos de descarte, no entanto, na estruturação da
aldeia, foi destinada uma área para plantio de vegetação nativa pelos próprios mbyá.
Atualmente cerca de 200 pessoas vivem na tekoá, caracterizando um local onde, do ponto de
vista da proporção entre pessoas e área, não permite o bom desenvolvimento de atividades
perante suas tradições e modos de ser. Apesar disso, alguns anciãos e anciãs plantam suas
pequenas Kokué em torno das casas, principalmente milho, mandioca e amendoim. Dona
Talcira, que hoje vive em uma aldeia situada na cidade de Rio Grande, conta que antigamente
já plantou muita melancia na Tekoá Nhundy, deixando claro que apesar da terra ser bastante
mesclada com a areia, “dá para plantar caso haja o espaço necessário”.
Hoje, para pessoas como Seu João, karai (pajé) da aldeia Nhundy, poder plantar suas
sementes tradicionais, é necessário que se peça a um vizinho da aldeia a cedência de um
pequeno espaço para a atividade. Os próprios jovens da aldeia relatam que plantam raramente,
mas conhecem as sementes tradicionais, a técnica de plantio e participam de mutirões em
outras aldeias quando necessário.
Segundo Ladeira e Matta (2004) os guarani conservam a natureza e têm grande conhecimento
sobre o manejo ambiental visto que demandam destas terras para que possam viver e praticar
seus modos de vida, ressaltando a importância que tem a terra para o coletivo. Vivendo em
outra realidade espacial, a aldeia Jatai’ty, na Terra Indígena Cantagalo, também no município
de Viamão, RS, dispõe de uma área maior por habitante. Cerca de 38 famílias vivem em 246
hectares cercados por uma cadeia de morros onde vertem nascentes ainda cobertos por
vegetação nativa bastante destacada. Em relação às práticas agrícolas, partiu-se de uma
problemática na aldeia Jatai’ty na qual a tradicional agricultura de coivara, pelo corte e
queima da vegetação para o consequente plantio das roças tradicionais (Kokué), já não se faz
eficaz há vários anos devido a uma resistência do capim Brachiaria que de acordo com o
cacique “rebrotava mais forte”. Num contraste ainda mais crítico, verificou-se o uso de
herbicida para o controle do capim em áreas de roça muito próximas às casas e córregos,
receitado por extensionistas dos órgãos responsáveis. Ante a esta situação, a provocação
coletiva para o fato, transfigurou-se num desafio, buscando soluções que respeitem aspectos e
conhecimentos locais e que se fundem com o conhecimento científico e prático da
Agroecologia.
Do modo a possibilitar a manutenção dos cultivos das kokué e reduzindo assim
problemáticas, tanto de sáude pela contaminação por agrotóxicos, quanto de um
agroecossistema saudável, sugeriu-se então, “experimentações ecológicas”. Com atuação dos
mbya, consistiu na confecção de glebas roçadas seguidas de semeadura a lanço de espécies de
“adubação verde” – aveia-preta (Avena strigosa) e ervilhaca (Vicia spp.) – de modo que essas
espécies suprimam e reduzam o potencial de rebrote do capim, incorporando biomassa no
solo e proporcionando melhores condições físicas, químicas e biológicas para o preparo das
roças, coincidindo com o Ara pyau (primavera-verão / “ano novo”), tempo onde se (re)
iniciam os cultivos tradicionais. O aprimoramento da técnica, inclusive com o uso de
sementes de espécies primárias nativas, comuns na sucessão vegetacional e reestabelecimento
da área, são necessárias para desenvolvimento de práticas, passíveis de serem replicadas em
contextos de áreas com terras degradadas, permitindo uma re-existência biocultural.
As problemáticas envolvendo os processos de desapropriação em diversos níveis,
obriga os indígenas a buscar mecanismo de resistência que permitam reorganizar suas práticas
agrícolas e que garantam níveis de segurança e soberania alimentares. Neste sentido, as trocas
e apropriações de elementos externos se coadunam com as tradicionais, como o próprio
exemplo citado acima, além da introdução de outras espécies cultivadas como abacaxi,
melancia, pepino, por trocas realizadas em suas trajetórias e caminhadas, “guaranizando”
estes elementos a partir da sua visão de mundo (MEDEIROS; DARELLA, 2007 ).
Podemos presenciar essa “guaranização de elementos” também nas variedades cultivadas para
a merenda escolar, onde indígenas plantam, além de seus alimentos tradicionais, hortaliças, a
fim de alimentar o corpo e a alma da criança mbyá guarani. Neste sentido, pontua-se a ação da
comunidade do Cantagalo juntamente com a Emater (Empresa de Assistência Técnica e
Extensão Rural), no aumento das áreas de roça para suprir as demandas da escola, além da
geração de renda pela venda da merenda escolar.
Percebe-se a tendência dominante de uma mercantilização e valorização sobre as terras na
região metropolitana, repercutindo no realocamento de comunidades mbyá para áreas onde,
pelo ponto de vista geográfico, ou seja, mais afastadas, acabam por segregar e interromper os
fluxos e as ligações entre as aldeias, e quanto aos aspectos pedológicos, a baixa qualidade do
solos para a prática agrícola tradicional, criando empecilhos para a manutenção das práticas.
Neste sentido, apesar da aldeia contar com áreas representativas de roça tradicional, não é o
suficiente para promover uma autonomia, pois é preciso, por exemplo, lidar com a questão da
fertilidade e do ponto de vista físico, muito arenoso e pouco estruturado quanto à aptidão
agrícola, demandando alguma vezes o aporte de insumos externos.
Apesar de toda esta realidade que, de certa forma, dificulta a manutenção do seu bem viver, é
preciso levar em conta o fato inegável que, na hora em que o Guarani está fazendo o manejo
de sua roça, ele está mantendo viva a memória biocultural de seu coletivo. O que reflete no
conhecimento encontrado em diferentes gerações de indivíduos pertencentes a estes grupos e
nas sementes tradicionais, chamadas pelos guarani de sementes verdadeiras, que são
guardadas e semeadas mesmo com todas as adversidades.
Para compreender mais profundamente o porquê disto, precisamos pensar acerca da maneira
como os mbyá enxergam e vivenciam a natureza e a cultura. O antropólogo Philippe Descola
contribuiu para as reflexões sobre natureza e cultura de maneira marcante a partir de suas
vivências com os Jivaro Achuar, na Amazônia Equatoriana. Ao compreender que as
cosmologias amazônicas “estabelecem uma diferença de grau, não de natureza entre os
homens, plantas e animais” (Descola, 1998, p. 25), o autor enuncia basicamente que para estes
grupos, o conceito ontológico de natureza, tal qual há na filosofia ocidental, não existe. As
relações que existem entre humanos e não-humanos são baseadas em uma combinação do
totemismo e animismo, neste último:
(..) seres não-humanos possuem atributos e disposições sociais. Então, com plantas
ou animais, é possível estabelecer trocas, baseadas nas mesmas “regras” da
organização da vida social entre os humanos, como os laços de consanguinidade ou
afinidade(..) Uma combinação entre predação e reciprocidade –e em algum grau e
alguns casos, proteção – conformam formas de relação cosmo e ecológicas(..)
Independente do tipo de relação predominante com animais, plantas, espíritos e
deuses, as sociedades indígenas podem ser concebidas de forma expandida,
enquanto coletividades de humanos e não humanos (COSSIO, 2015, p.27).

Em uma conversa com Ivanilde Kerexu, Mbyá Guarani da Aldeia ​Nhundy,​ sobre
arqueologia e o ​avaxi ​(milho), podemos presenciar novamente como a não-separação da
natureza e da cultura e um olhar holístico não significam um pensamento menos complexo ou
científico. Nesse sentido, percebendo a extrema ligação entre símbolos ritualísticos, alimentos
e as caminhadas das sementes e pessoas entre as aldeias, a intercientificidade é elucidada nas
palavras de COSSIO, 2015.

As plantas ajudam a perceber o sentimento espiritual do povo Mbya Guarani na


relação com a natureza, a antiguidade e a riqueza do seu sistema agroflorestal e os
vínculos ancestrais com as florestas subtropicais. Assim como mostram a existência
de algo que pode ser chamado de interculturalidade na convivência cotidiana das
famílias dentro e fora da aldeia. Estas relações no âmbito de discussões
etnoecológicas (e no desenvolvimento rural) também podem conter elementos de
intercientificidade, optando pela interpretação de Paul Little. O autor sugere, assim
como o relacionamento entre distintas culturas produz formas de interculturalidade,
a inter-relação entre distintos sistemas de conhecimento científico produz formas de
intercientificidade (COSSIO, 2015 p. 148).

Assim como em diversos povos originários da América Latina, o milho tem um papel
bastante significativo na espiritualidade e alimentação mbyá, figura essencial no
nhemongarai,​ que é celebrado dentro da ​Opy​, sua semente é guardada e protegida pelos
guarani.
Segundo estudos arqueológicos, todas as variedades de milho existentes têm seu berço
no México e foram introduzidos em outras partes da América Latina através das trocas feitas
entre as sociedades originárias pré-colombianas, chegando a atingir o sul do continente. No
diálogo com a ​mbya,​ foi ressaltado que a arqueologia clássica se vale, em grande parte, da
cultura material para fazer suas teorias e não da história oral como protagonista, Ivanilde fez
uma ponte entre a narrativa arqueológica do milho e a narrativa ​Mbyá​. Nesta, ​Nhanderu ​foi
caminhando pelo mundo e assim crescia o milho, através de suas pegadas. Afinal, não havia
algo que impedia o acontecimento. Caso fosse para colocar um nome acadêmico, diria que ela
teve uma visão “cosmoarqueológica e intercientifica” pois não houve anulação de saberes e
sim possíveis pontes entre eles, ressignificados pela sua visão de mundo, uma visão “para
fora”, no sentido de não estar sendo guiada pela cultura material, pelo tempo de Chronos mas
sim pela inconstância de tudo que a envolve, onde a percepção é mais válida do que a
concepção (Catafesto de Souza, 2017).

Considerações Finais

As vivências, envolvendo mutirões, conversas, plantios junto às aldeias ​Nhundy e


Jatai’ty, retratam a resistência destas comunidades através dos plantios tradicionais bem como
de espécies arbóreas nativas. Segundo palavras de Jaime, cacique da Aldeia do Cantagalo “Na
​ as foram os próprios ​juruá
cultura guarani quem planta as árvores é ​Nhanderú. M
(não-indígenas) que terminaram com as árvores nativas, eles que deveriam plantar”. Dessa
forma, ao solicitar plantios de árvores, sendo esse um saber não-indígena a priori, as práticas
dos ​Juruá são “guaranizadas” e apropriadas pela comunidade para dar continuidade à cultura
mbya.
Percebe-se, em ​Jatai’ty ressignificações em relação ao cultivo da ​kokué,​ aliando os
cultivos tradicionais à geração de renda, pela comercialização dos excedentes para a própria
escola que irá alimentar as crianças ​mbya.​ Portanto, são estratégias que permitem, de certa
forma, uma segurança econômica num contexto de urbanização cada vez mais elevada,
possibilitando a re-existência da cultura ​mbya​.
O povo das matas, seus corpos e suas relações tanto entre si quanto ambiente onde
estão, assim como dependem, são a própria agrobiodiversidade. O cultivo das roças
tradicionais Guarani representa a permanência da contagem do tempo anual, da organização
interna baseada em reciprocidade, da demarcação dos espaços familiares, dos ritos de batismo
associados às sementes e também da produção do alimento onde a agricultura envolve
aspectos simbólicos e sociais.
Distinto do pensamento colonizador, ao transitar com os ​mbyá guarani,​ ouvi-los falar
sobre a Terra, vê-los trabalhar com a terra, percebe-se nitidamente na sua cosmopráxis, a
profunda sabedoria em relação a paisagem em que vivem e as diferentes redes etnoecológicas
existentes ali. Portanto, a interação entre indígena e plantas segue sendo a forma de manter
vivos os corpos e o povo mbyá guarani.
O presente trabalho está em andamento, tendo como meta a expansão da reflexão
acerca da segurança alimentar e nutricional nos coletivos ​mbya guarani aos quais tem-se
trabalhado em conjunto. Além disso, pensar em corredores entre aldeias que permitam a
autonomia de suas trajetórias, o planejamento territorial ligando suas terras e famílias se faz
necessário para que se mantenham acesa a memória biocultural.

Referências

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