Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
Carolina Silveira Costa1, Tiago Zilles Fedrizzi2, Iana Scopel Van Nouhuys3, , Rumi Kubo4
1
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS), silveiraca2016@gmail.com
2
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS), tiago_fedrizzi@hotmail.com
³Bióloga/UFRGS, ianasvn@gmail.com
4
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDRUFRGS), rumikubo2002@gmail.com
Resumo: Assim como outras etnias ameríndias, os Mbyá Guarani possuem uma relação profunda com as plantas
que cultivam em sua roça. Na cosmogonia Mbyá, foi através das próprias pegadas que Nhãnderú Tenonde Gua
(Nosso Pai) criou o milho. Estes coletivos buscam organizar-se social e territorialmente através de uma constante
movimentação de indivíduos e de sementes tradicionais que constituem sua base alimentar. Em cidades como
Porto Alegre (RS) e Viamão (RS), aldeias mbyá resistem e persistem buscando exercer seu modo de vida, que
por sua vez está intrinsecamente ligado à mata e à roça. Este trabalho objetiva compreender o papel que as roças
tradicionais mbyá guarani das aldeias Nhundy e Jatai’ty na região metropolitana de Porto Alegre, exercem no
âmbito da segurança e soberania alimentar em um contexto de uma sociedade cada vez mais urbanizada, assim
como a sua importância biocultural dentro destes coletivos. As análises basearam-se em observações, conversas
e participação em mutirões de plantio e encontros nas aldeias, relacionando com as discussões teóricas onde
verificou-se a centralidade das caminhadas (jeguatá) orientadas pelo conhecimento ancestral, para a manutenção
do fluxo genético de espécies como a mandioca e o milho. Estas, encontram diversos obstáculos territoriais,
tanto geográficos, quanto agrários. Entretanto, apesar de limitadas, as trocas e plantios de sementes continuam a
ser efetuadas, por uma complexa conjunção entre as aldeias, acionando memórias, territorialidades e o modo de
vida guarani, existindo e re-existindo apesar das limitações impostas.
Antigamente os Guarani não paravam quatro ou cinco anos no mesmo lugar, porque
todos os Guarani foram orientados por Nhanderu, porque estamos procurando a terra
sem males. Hoje não é assim, não dá para continuar fazendo como naquele tempo,
porque os brancos já tomaram tudo, é bom conseguir demarcação e ficar. A FUNAI
diz que não dá para fazer demarcação porque os Guarani não param. Hoje os
Guarani pensam diferente, não adianta ficar mudando de lugar e ficar sem terra. A
terra, a natureza, foram feitas por Nhanderu; e antigamente não tinha fronteira
Brasil, Paraguai e Argentina. Antigamente tudo era dos povos indígenas e hoje em
dia os Guarani estão vivendo muito precário (sic) por causa disso. E hoje as aldeias
dos Guarani são os lugares onde o juruá não tem mais como aproveitar a terra, por
isso ele deu para os Guarani. (LADEIRA & MATTA, 2004 apud Z ANIN, 2006,
p.33) .
Apesar das dificuldades devido a pouca terra e pouco acesso à mata, até hoje
conseguiram, de certa maneira, dar continuidade à transmissão do seu modo de vida, o que
reflete no seu plantio da roça tradicional pelas Kokué.
1
É considerada a área mais densamente povoada do estado, compreendendo atualmente 34 municípios e
aproximadamente 4 milhões de habitantes, ou seja, 38 % da população do RS.
A presença Mbyá na região metropolitana de Porto Alegre
A região metropolitana de Porto Alegre, apesar de ainda possuir áreas rurais em seus
municípios, tem como característica a forte urbanização e a crescente especulação imobiliária.
Ainda assim, entre outras comunidades tradicionais existentes na região, os mbyá guarani
buscam seguir seu mbyá rekó- modo de ser guarani- nas aldeias e acampamentos da região.
Uma destas aldeias, a Tekoa Nhundy, localizada no bairro Estiva em Viamão, RS, é formada
por uma área de 7 hectares. Inicialmente havia no local somente uma área considerável com
plantação de eucaliptos e um acúmulo de resíduos de descarte, no entanto, na estruturação da
aldeia, foi destinada uma área para plantio de vegetação nativa pelos próprios mbyá.
Atualmente cerca de 200 pessoas vivem na tekoá, caracterizando um local onde, do ponto de
vista da proporção entre pessoas e área, não permite o bom desenvolvimento de atividades
perante suas tradições e modos de ser. Apesar disso, alguns anciãos e anciãs plantam suas
pequenas Kokué em torno das casas, principalmente milho, mandioca e amendoim. Dona
Talcira, que hoje vive em uma aldeia situada na cidade de Rio Grande, conta que antigamente
já plantou muita melancia na Tekoá Nhundy, deixando claro que apesar da terra ser bastante
mesclada com a areia, “dá para plantar caso haja o espaço necessário”.
Hoje, para pessoas como Seu João, karai (pajé) da aldeia Nhundy, poder plantar suas
sementes tradicionais, é necessário que se peça a um vizinho da aldeia a cedência de um
pequeno espaço para a atividade. Os próprios jovens da aldeia relatam que plantam raramente,
mas conhecem as sementes tradicionais, a técnica de plantio e participam de mutirões em
outras aldeias quando necessário.
Segundo Ladeira e Matta (2004) os guarani conservam a natureza e têm grande conhecimento
sobre o manejo ambiental visto que demandam destas terras para que possam viver e praticar
seus modos de vida, ressaltando a importância que tem a terra para o coletivo. Vivendo em
outra realidade espacial, a aldeia Jatai’ty, na Terra Indígena Cantagalo, também no município
de Viamão, RS, dispõe de uma área maior por habitante. Cerca de 38 famílias vivem em 246
hectares cercados por uma cadeia de morros onde vertem nascentes ainda cobertos por
vegetação nativa bastante destacada. Em relação às práticas agrícolas, partiu-se de uma
problemática na aldeia Jatai’ty na qual a tradicional agricultura de coivara, pelo corte e
queima da vegetação para o consequente plantio das roças tradicionais (Kokué), já não se faz
eficaz há vários anos devido a uma resistência do capim Brachiaria que de acordo com o
cacique “rebrotava mais forte”. Num contraste ainda mais crítico, verificou-se o uso de
herbicida para o controle do capim em áreas de roça muito próximas às casas e córregos,
receitado por extensionistas dos órgãos responsáveis. Ante a esta situação, a provocação
coletiva para o fato, transfigurou-se num desafio, buscando soluções que respeitem aspectos e
conhecimentos locais e que se fundem com o conhecimento científico e prático da
Agroecologia.
Do modo a possibilitar a manutenção dos cultivos das kokué e reduzindo assim
problemáticas, tanto de sáude pela contaminação por agrotóxicos, quanto de um
agroecossistema saudável, sugeriu-se então, “experimentações ecológicas”. Com atuação dos
mbya, consistiu na confecção de glebas roçadas seguidas de semeadura a lanço de espécies de
“adubação verde” – aveia-preta (Avena strigosa) e ervilhaca (Vicia spp.) – de modo que essas
espécies suprimam e reduzam o potencial de rebrote do capim, incorporando biomassa no
solo e proporcionando melhores condições físicas, químicas e biológicas para o preparo das
roças, coincidindo com o Ara pyau (primavera-verão / “ano novo”), tempo onde se (re)
iniciam os cultivos tradicionais. O aprimoramento da técnica, inclusive com o uso de
sementes de espécies primárias nativas, comuns na sucessão vegetacional e reestabelecimento
da área, são necessárias para desenvolvimento de práticas, passíveis de serem replicadas em
contextos de áreas com terras degradadas, permitindo uma re-existência biocultural.
As problemáticas envolvendo os processos de desapropriação em diversos níveis,
obriga os indígenas a buscar mecanismo de resistência que permitam reorganizar suas práticas
agrícolas e que garantam níveis de segurança e soberania alimentares. Neste sentido, as trocas
e apropriações de elementos externos se coadunam com as tradicionais, como o próprio
exemplo citado acima, além da introdução de outras espécies cultivadas como abacaxi,
melancia, pepino, por trocas realizadas em suas trajetórias e caminhadas, “guaranizando”
estes elementos a partir da sua visão de mundo (MEDEIROS; DARELLA, 2007 ).
Podemos presenciar essa “guaranização de elementos” também nas variedades cultivadas para
a merenda escolar, onde indígenas plantam, além de seus alimentos tradicionais, hortaliças, a
fim de alimentar o corpo e a alma da criança mbyá guarani. Neste sentido, pontua-se a ação da
comunidade do Cantagalo juntamente com a Emater (Empresa de Assistência Técnica e
Extensão Rural), no aumento das áreas de roça para suprir as demandas da escola, além da
geração de renda pela venda da merenda escolar.
Percebe-se a tendência dominante de uma mercantilização e valorização sobre as terras na
região metropolitana, repercutindo no realocamento de comunidades mbyá para áreas onde,
pelo ponto de vista geográfico, ou seja, mais afastadas, acabam por segregar e interromper os
fluxos e as ligações entre as aldeias, e quanto aos aspectos pedológicos, a baixa qualidade do
solos para a prática agrícola tradicional, criando empecilhos para a manutenção das práticas.
Neste sentido, apesar da aldeia contar com áreas representativas de roça tradicional, não é o
suficiente para promover uma autonomia, pois é preciso, por exemplo, lidar com a questão da
fertilidade e do ponto de vista físico, muito arenoso e pouco estruturado quanto à aptidão
agrícola, demandando alguma vezes o aporte de insumos externos.
Apesar de toda esta realidade que, de certa forma, dificulta a manutenção do seu bem viver, é
preciso levar em conta o fato inegável que, na hora em que o Guarani está fazendo o manejo
de sua roça, ele está mantendo viva a memória biocultural de seu coletivo. O que reflete no
conhecimento encontrado em diferentes gerações de indivíduos pertencentes a estes grupos e
nas sementes tradicionais, chamadas pelos guarani de sementes verdadeiras, que são
guardadas e semeadas mesmo com todas as adversidades.
Para compreender mais profundamente o porquê disto, precisamos pensar acerca da maneira
como os mbyá enxergam e vivenciam a natureza e a cultura. O antropólogo Philippe Descola
contribuiu para as reflexões sobre natureza e cultura de maneira marcante a partir de suas
vivências com os Jivaro Achuar, na Amazônia Equatoriana. Ao compreender que as
cosmologias amazônicas “estabelecem uma diferença de grau, não de natureza entre os
homens, plantas e animais” (Descola, 1998, p. 25), o autor enuncia basicamente que para estes
grupos, o conceito ontológico de natureza, tal qual há na filosofia ocidental, não existe. As
relações que existem entre humanos e não-humanos são baseadas em uma combinação do
totemismo e animismo, neste último:
(..) seres não-humanos possuem atributos e disposições sociais. Então, com plantas
ou animais, é possível estabelecer trocas, baseadas nas mesmas “regras” da
organização da vida social entre os humanos, como os laços de consanguinidade ou
afinidade(..) Uma combinação entre predação e reciprocidade –e em algum grau e
alguns casos, proteção – conformam formas de relação cosmo e ecológicas(..)
Independente do tipo de relação predominante com animais, plantas, espíritos e
deuses, as sociedades indígenas podem ser concebidas de forma expandida,
enquanto coletividades de humanos e não humanos (COSSIO, 2015, p.27).
Em uma conversa com Ivanilde Kerexu, Mbyá Guarani da Aldeia Nhundy, sobre
arqueologia e o avaxi (milho), podemos presenciar novamente como a não-separação da
natureza e da cultura e um olhar holístico não significam um pensamento menos complexo ou
científico. Nesse sentido, percebendo a extrema ligação entre símbolos ritualísticos, alimentos
e as caminhadas das sementes e pessoas entre as aldeias, a intercientificidade é elucidada nas
palavras de COSSIO, 2015.
Assim como em diversos povos originários da América Latina, o milho tem um papel
bastante significativo na espiritualidade e alimentação mbyá, figura essencial no
nhemongarai, que é celebrado dentro da Opy, sua semente é guardada e protegida pelos
guarani.
Segundo estudos arqueológicos, todas as variedades de milho existentes têm seu berço
no México e foram introduzidos em outras partes da América Latina através das trocas feitas
entre as sociedades originárias pré-colombianas, chegando a atingir o sul do continente. No
diálogo com a mbya, foi ressaltado que a arqueologia clássica se vale, em grande parte, da
cultura material para fazer suas teorias e não da história oral como protagonista, Ivanilde fez
uma ponte entre a narrativa arqueológica do milho e a narrativa Mbyá. Nesta, Nhanderu foi
caminhando pelo mundo e assim crescia o milho, através de suas pegadas. Afinal, não havia
algo que impedia o acontecimento. Caso fosse para colocar um nome acadêmico, diria que ela
teve uma visão “cosmoarqueológica e intercientifica” pois não houve anulação de saberes e
sim possíveis pontes entre eles, ressignificados pela sua visão de mundo, uma visão “para
fora”, no sentido de não estar sendo guiada pela cultura material, pelo tempo de Chronos mas
sim pela inconstância de tudo que a envolve, onde a percepção é mais válida do que a
concepção (Catafesto de Souza, 2017).
Considerações Finais
Referências
BROCHADO, J. P. An Ecological Model of the Spread of Pottery and Agriculture into Eastern South
America, Tese (Doutorado), University of Illinois, 1984.
COSSIO, R.R. Etnoecologia Caminhante, Oguata Va'e, em Trilhas para a Descolonização de Relações
Interculturais: Circulação de Pessoas e Plantas Mbya Guarani entre Brasil e Argentina. Dissertação de
Mestrado – UFRGS: Porto Alegre, 2015.
DESCOLA, P. Estrutura ou Sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Mana. Rio de Janeiro. v.4. Rio
de Janeiro, 1998
FELIPIM, A. P. O sistema agrícola Guarani Mbyá e seus cultivares de milho: um estudo de caso na aldeia
Guarani da Ilha do Cardoso, município de Cananéia, SP. Dissertação. Piracicaba: ESALQ/USP, 2001.
GARLET, I.J. Mobilidade Mbyá: História e Significação. Dissertação. Mestrado em História Iberoamericana,
PUCRS: Porto Alegre. 1997.
MEDEIROS, J.C.A; DARELLA, M.D.P . Manejo e conservação da agrobiodiversidade pelos índios Guarani
Mbyá. In: Walter Simon de Boef;Marja Helen Thijssen; Juliana Bernardi Ogliari; Bhuwon R. Sthapit. (Org.).
Biodiversidade e Agricultores. Fortalecendo o manejo comunitário. 1ed.Porto Alegre: L&PM, 2007, v. 1, p.
252-271.
MOUZER, Marcus Vinícius de Souza. Cartilha Florestal Mbyá Guarani. Trabalho de Conclusão de Curso –
UFRGS: Porto Alegre, 2011
NOELLI, F.S Sem tekoha não há tekó: em Busca de um Modelo Etnoarqueológico da Aldeia e da Subsistência
Guarani e sua Aplicação a uma Área de Domínio no Delta do Rio Jacuí-RS. Dissertação de Mestrado, PUCRS,
1993.
TEMPASS, M.C. A doce cosmologia M’Bya-Guarani: uma etnografia de saberes e sabores. Curitiba: Appris,
2012.
PRADELLA, L.G.S. Entre os Seus e os Outros: Horizonte, Mobilidade e Cosmopolítica Guarani. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social), Porto Alegre: PPGAS, UFRGS, 2009.