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TROCANDO AS LENTES

Um novo foco sobre o crime e a justiça

HOWARD ZEHR

Tradução de Tânia Van Acker


Titulo original: Changing Lenses - A New Focus for Crime and Justice
© 2005 by Herald Press, Scottdale, Pa. 15683
Primeira edição 1990

Projeto editorial: Lia Diskin


Tradução: Tônia Van Acker
Coordenação editorial: Daniela Baudouin
Projeto gráfico e diagramação: Luciano Pessoa
Capa: Fábio Miguez Deus é compaixão e piedade,
Foto da capa: Craig Spaulding e Howard Zehr Lento para a cólera e cheio de amor.
Deus não disputa perpetuamente,
E seu rancor não dura para sempre.
Nunca nos trata conforme nossos pecados,
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Nem nos devolve segundo nossas faltas.
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Zehr, Howard
Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça / Howard Zehr ; Salmos 103: 8-10, Bíblia de Jerusalém, 2006
tradução de Tônia Van Acker. -- São Paulo: Palas Athena, 2008.

Título original: Chanping lenses : a new focus for crime and justice.
Bibliografia.
ISBN 978-85-60804-05-4

1. Crimes e criminosos 2. Justiça criminal - Administração 3. Punição 4.


Reconciliação 5. Vítimas de crimes I. Título.

08-02407 CDD-340.114

Índices para catálogo sistemático:


1. Justiça restaurativa: Direito 340.114

~..
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610 de 19 de fevereiro

.
~
de 1998. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios .. '.•
....


sem autorização prévia, por escrito, da Editora.
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www.palasathena.org.breditora@palasathena.org.br
2008
Sumário

11
Prefácio

Parte I - A experiência do crime

Capítulo 1 - Uma ilustração 15


15
O caso

19
Capítulo 2 - A vítima
19
A vivência
24
Por que tão traumático?
O processo de recuperação 25
29
Nossa reação

33
Capítulo 3 - O ofensor
33
A experiência da prisão
40
O que precisa acontecer?
43
O que acontecerá?

Capítulo 4 - Alguns temas comuns 45


45
Arrependimento e perdão
51
A questão do poder
57
A mistificação do crime
~
Capítulo\S - O direito da aliança: a alternativa bíblica 120
Parte li - O paradigma de justiça
O que diz a Bíblia? 120
Shalom: uma visão unificadora 124
Capítulo 5 - justiça retributiva 61 126
Aliança: a base para shalom
Estabelecimento da culpa 63 128
Shalom e aliança como forças transformadoras
A vitória da justiça e a dor 71 129
A justiça da aliança
O processo 74 130
Quais as qualidades da justiça divina?
O crime como violação da lei 77 135
Direito da aliança
Quem é a vítima? 78 140
O paradigma bíblico
Conceitos de justiça, bíblicos e modernos 143
Capítulo 6 - justiça como paradigma 80 146
Um curto-circuito histórico
A importância do paradigma 81
Aplicando os paradigmas 84 149
Capítulo 9 - VORP, um campo experimental
Os paradigmas mudam 86 151
O conceito VORP
O que aprendemos 154
Os objetivos são importantes 159
O VORP como catalisador 162
Parte III - Raízes e marcos

Capítulo 7 - justiça comunitária: a alternativa histórica 93


Justiça comunitária 94 Parte IV - Lentes novas
A opção retributiva 97
A opção judicial 100 Capítulo 10 - Uma lente restaurativa 167
Uma avaliação 102 Crime: violação de pessoas e relacionamentos 171
A revolução jurídica 103 Formas de ver o crime 174
O papel da lei canônica 105 Restauração: o objetivo 175
Vitória da justiça do Estado 109 A justiça começa nas necessidades 180
115 O crime gera obrigações 185
As dimensões da revolução jurídica
118 Ofensores também têm necessidades 188
Uma mudança de paradigma
Uma questão de responsabilidade 189
Compreendendo a responsabilidade 190

o processo deve empoderar e informar 191 Prefácio


196
A justiça envolve rituais
197
Há lugar para punição?
199
Duas lentes
199
Visões de justiça

203 Este livro surgiu da minha experiência ao longo de vários anos e de


Capítulo 11 - E agora?
203 leituras e discussões, sendo mais um trabalho de síntese do que de
Possibilidades sistêmicas
210 criação. Ou seja, resulta das idéias e experiências de inúmeras pesso-
Enquanto isso
212 as a quem eu devo muito. Elas são bem mais numerosas do que seria
O novo dentro do antigo
214 possível registrar aqui, mas ao menos gostaria de expressar minha
No mínimo
gratidão a algumas delas nominalmente.
215 Meu colega canadense Dave Worth, que me incentivou e con-
Posfácio à primeira edição
venceu a terminar este livro, e também contribuiu com suas idéias
e sugestões.
Apêndice 1 - Indicadores de justiça restaurativa 217
A Martin Wright, Millard Lind, Alan Kreider e W H. Allchin,
Apêndice 2 - A subversão das visões 219
que leram o manuscrito, me ofereceram incentivo para continuar e
Apêndice 3 - Sugestões para grupos de estudo 223 fizeram muitas sugestões úteis.
Apêndice 4 - Lições aprendidas com os círculos Àqueles cujas contribuições procurei dar reconhecimento neste
de sentenciamento e conferências livro e a muitos que contribuíram de formas que eu não seria capaz
de grupos familiares 244 ele citar especificamente. E especialmente a Nils Christie e Herman
Olanchi, cujos escritos e discussões me ajudaram a vislumbrar o
251 caminho a seguir.
Posfácio à terceira edição
Questões pertinentes às partes interessadas 253 Aos participantes de conferências e seminários nos Estados Uni-
256 dos, Canadá e Inglaterra, que ouviram e testaram ao longo dos últi-
História e origens
O conceito de justiça restaurativa 257 mos anos as idéias que consignei aqui.
262 Às centenas de pessoas envolvidas no movimento VORP - nos
Na prática
264 Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e alhures - cuja determinação e
Um modo de vida?
266 exemplo me deram coragem e ancoragem na vida real.
Valores
Ao Comité Central Menonita dos Estados Unidos (Mennonite
269 Central Committee u.s.) que me ofereceu incentivo e espaço para de-
Ensaio bibliográfico à terceira edição
11
senvolver minhas idéias e escrevê-las. H. A. Penner, ex-diretor do Pro-
grama MCC-US, me deu especial incentivo ao longo do processo.
Ajohn Harding e ao Hampshire Probation Service, que me con-
vidaram a visitar a Inglaterra, me acolheram e me ofereceram uma
casa onde trabalhar no manuscrito durante minha estada.
A Doris Rupe, que providenciou um lugar silencioso para eu
escrever enquanto estava longe do meu escritório. Parte I
Muitas pessoas ajudaram a dar forma a esse trabalho - na verda-
de, mais do que as que consegui agradecer aqui. No entanto, neste
momento assumo a responsabilidade pelo conteúdo total, que não A experiência do crime
reflete necessariamente a posição do Comité Central Menonita, onde
trabalhei enquanto escrevia, nem de outros que mencionei acima.
Nos anos após o lançamento da presente obra, ela se tornou um
clássico no campo da justiça restaurativa. Por isso, e pelo fato dos
meus horizontes terem se expandido (mais do que se desenvolvido)
em muitas direções, não mudei o texto para a edição de 2005. Ao
invés disso, escrevi um novo posfácio que delineia alguns desdobra-
mentos recentes e substituí a antiga bibliografia por uma nova. Obri-
gado ajudah Oudshoorn ejennifer Larson Sawin por suas sugestões
sobre o posfácio e a judah por seu auxílio com a bibliografia.
Como sustenta a presente obra, a justiça restaurativa é, acima
de tudo, uma introdução ao diálogo e ao descobrimento. Espero que
você se junte ao crescente número de comunidades que empreen-
dem essa jornada.

Howard Zehr

12

'-----
./-----.
Capítulo 1

Uma ilustração

Este é um livro que trata de princípios e ideais. Ele busca - talvez


presunçosamente - identificar e avaliar alguns dos nossos pressu-
postos básicos sobre o crime, a justiça e o modo como vivemos em
comunidade. Procura esboçar brevemente a forma como viemos a
adotar esses pressupostos e sugere algumas alternativas.
Tal esforço envolve abstrações, sem se limitar a elas. Devemos
começar por entrar na experiência real do crime e da justiça o mais
profundamente possível. Somente com uma base firme nessa reali-
dade é que começaremos a compreender o que fazemos e por quê. E
talvez, assim espero, será possível identificar o que podemos come-
çar a fazer de modo diferente.
Mas compreender a experiência do crime não é tarefa fácil, e
nem todos estamos dispostos a empreendê-la. Enfrentar o signifi-
cado de ser uma vítima ou fazer de outra pessoa uma vítima é algo
que desencadeia emoções intensas que, em geral, assustam e nos fa-
zem recuar. A menos que tenhamos vivenciado o crime diretamente
pode ser difícil criar uma empatia total com a situaçào. No entanto,
t preciso tentar, sabendo que a tentativa será incompleta e, talvez,
dolorosa.
Portanto, este livro começa assim.

o caso
,li. muitos anos, eu me encontrava na corte de uma pequena cidade
ftorte-americana, sentado ao lado de um réu de dezessete anos. Ha-

15

"-..._--
UMA ILUSTRAÇÃO
liMA II.USTRAÇAo

viam pedido a mim e a um colega que preparássemos uma proposta perou. Segundo relatos, na ocasião da prisão ele teria dito: "Eu não
de sentenciamento para submeter à apreciação do juiz. Agora aguar- queria fazer isso, eu não queria fazer isso. Eu não queria machucar
dávamos a sentença. ninguém. Diga a ela que sinto muito". De qualquer forma, ele foi
preso quando os dois saíam do apartamento. Por fim, foi indiciado e
Uma triste sucessão de eventos é que culminou nessa situação.
agora aguardava a sentença.
Esse jovem (que na época do crime tinha dezesseis anos) usara uma
faca para confrontar uma moça num corredor escuro. Durante a luta Na minúscula corte dessa pequena comunidade ele estava sen-
que se seguiu ela perdeu um olho. Agora a sorte dele seria decidida. tado com seu advogado de frente para o juiz. Atrás dele estavam
os membros de sua família. Na fila de trás, a família e parentes da
Embora os detalhes não tenham ficado claros, algo assim parece
vítima. Dispersos pela sala estavam uns poucos observadores inte-
ter acontecido: O rapaz - que vinha de um contexto familiar infeliz,
ressados e profissionais de direito criminal.
onde provavelmente sofria abusos - decidira fugir com sua namo-
rada, mas não tinha o dinheiro necessário. Ele não possuía histórico Antes que ele ouvisse a condenação, apresentei minha proposta
de violência, mas a televisão parece tê-lo convencido de que se ele de sentença que pedia por um tempo limitado de privação de liber-
ameaçasse alguém, esse alguém daria a ele o dinheiro e o problema dade, supervisão posterior, ressarcimento à vítima, reintegração à
estaria resolvido. comunidade, aconselhamento, educação, rotina de vida estruturada
e emprego. Foi-lhe perguntado se queria dizer alguma coisa.
Como vítima ele selecionou uma moça com a qual cruzara na
rua ocasionalmente. Várias vezes tentara conversar com ela, mas fora Ele falou de seu arrependimento pelo que tinha feito, de sua ten-
rejeitado. Presumindo que ela estava bem de vida, concluiu que a tativa de compreender o que aquilo significava para a moça: "Perce-
moça seria uma boa escolha. bo", disse ele, "que causei muito sofrimento. A srta. [... ] perdeu uma
coisa que nunca terá de volta. Com prazer eu daria meu olho a ela
Esperou no corredor do apartamento dela com uma faca na mão
para que pudesse enxergar de novO. Sinto muito pelo que fiz, e peço
e o rosto coberto por uma máscara (ele alegou ter escolhido uma
que ela me perdoe. Não quero causar nenhum dano à família dela no
faca pequena de propósito). Quando ela entrou, ele a agarrou por
futuro, não importa quando". E então veio o momento da sentença.
trás. Mas em vez de passivamente entregar o dinheiro, conforme o
rapaz esperava, a moça entrou em pânico - como a maioria de nós Mas antes do pronunciamento da sentença o juiz enumerou me-
provavelmente faria - e começou a gritar e reagir. A mâe do rapaz todicamente os objetivos corriqueiros das sentenças: a necessidade
mencionou mais tarde que ele jamais suportara que lhe levantassem de ressarcimento, a necessidade de isolar os ofensores da sociedade,
a voz, e que ele tendia a agir de modo irracional quando isso aconte- a necessidade de reabilitação, a necessidade de coibir. Observou,
cia. Talvez isso explique o comportamento dele, pois quando a moça ainda, que é necessário que os ofensores sejam responsabilizados
reagiu, ele também entrou em pânico, apunhalando-a várias vezes, por suas ações.
inclusive no olho. O juiz também examinou a intenção do rapaz ao cometer o
Os dois então entraram no apartamento dela. Nesse ponto as crime. Ele havia sido acusado de assalto à mão armada com intenção
estórias do rapaz e da moça começam a divergir, ela dizendo que ele rde matar. O juiz pareceu concordar com a versão do réu de que não
a manteve cativa, e ele dizendo que tentou ajudá-la e que ela coo- havia intenção de matar no início do assalto. Contudo, o juiz con-

16 17
~'MA IIl'~l "A~A(l

cluiu que a intenção havia se formado durante a luta e, portanto, a ( Capítulo 2

acusação era acertada e grave. A vítima


E então o juiz pronunciou a sentença. O rapaz foi condenado a
uma pena de 20 a 85 anos de prisão sem possibilidade de condicio-
nal ou liberdade por bom comportamento antes do cumprimento
da pena mínima. Na melhor das hipóteses, ele sairá da prisão com
37 anos de idade. "Espero", admoestou o juiz ao pronunciar sua
Nunca estive com a moça do caso narrado acima. A natureza ad-
sentença, "que lá você esqueça os padrões de comportamento que o
versarial do processo judicial desestimulou esse encontro pelas cir-
levaram a essa violenta transgressão".
cunstâncias do meu envolvimento no caso, e por minha própria
Não se pode negar a natureza trágica desse caso. Mas é uma tra-
dúvida quanto ao modo de agir. Olhando em retrospectiva, penso
gédia que foi logo abstraída para tornar-se um outro tipo de drama.
que deveria ter arriscado uma tentativa. De qualquer modo, pro-
Em vez de um confronto trágico entre dois indivíduos, o procedi-
curei projetar, com base nas experiências de outras "vítimas", um
mento legal e a mídia o transformaram num crime envolvendo um
criminoso e - algo lembrado apenas secundariamente - uma vítima. pouco do que ela passou. I
O drama foi travado entre duas abstrações. O acontecimento foi mis-
tificado e mitificado até que as verdadeiras experiências e motiva-
ções desaparecessem. A vivência
Comecemos, portanto, a desmistificar e desmitificar essa tra- Quando ela entrou no corredor de seu apartamento e foi atacada
gédia tão comum. Tentemos desembaraçar os meandros dessa vi- por um homem de máscara com uma faca na mão, ficou aterrorizada.
vência, enxergando-a como uma tragédia humana que envolve duas Sua primeira reação foi de choque e negação: "Isso não pode estar
pessoas - pessoas que, em muitos aspectos, se assemelham bastante acontecendo comigo". Algumas vítimas relatam que ficam inicial-
a nós mesmos. mente paralisadas, incapazes de agir. Ela, no entanto, gritou e tentou
se livrar. A moça disse, depois, que teve certeza de que ia morrer.
Uma reação comum entre as vítimas é o que os psicólogos deno-
minaram "aceitação por pavor paralisante". Diante de uma situação
apavorante e inescapável, as vítimas de crimes violentos (como, por
exemplo, seqúestros) freqúentemente parecem cooperar com seus
1.11' ••• ••••••••••••
1, vem sendo disponibilizadas muitas informações sobre a experiência de ser vítima. Cos-
t.t ~.pecialmente de The Crime Victim's Book, de Morton Bard e Oawn Sangrey (Nova York:
'runner-Mazel, 1986), 2a ed. Ver também Shelley Neiderbach, Invisible Wounds: Crime Victims
',.alt (Nova York: The Haymorth Press, 1986) e Doug Magee, What Murder Leaves Behind: The
,,..'\IIe/tl'l1~ Family (Nova York: Oodd, Mead and Co., 1983). Charlotte Hullinger, co-fundadora
ia "'Delação Parents of Murdered Children, foi de grande ajuda.

19
18
A VÍTIMA
T
~; A VÍTIMA

opressores. Em alguns crimes como o estupro, essa reação psicoló- esnobado o rapaz das vezes que ele tentara falar com ela ... Se ela não
gica natural pode ser interpretada erroneamente durante o processo tivesse saído naquela noite ... Talvez isto fosse uma punição por algo
judicial como colaboração voluntária. Na verdade, entretanto, tal que fizera no passado ...
colaboração se funda no medo.
Ela sempre lutará com o medo e com a sensação de vulnerabi-
Ao fim do ataque inicial, a moça de fato reagiu dessa forma. Do lidade e impotência. Alguém assumiu o controle deixando-a impo-
ponto de vista do agressor, depois de perceber o que tinha feito, ele tente e vulnerável e será difícil reconquistar a confiança de sentir-se
tentou procurar socorro. Na ótica dele, ela cooperou. Mas, na ver- segura e no controle da situação. Junto com essa luta interior ela es-
dade, ela estava com medo, sentia-se totalmente a mercê dele, e por tará tentando recobrar a confiança nos outros, no mundo. Ela e seu
isso procurou cooperar e acalmá-lo como pôde. mundo foram violados por alguém, e a sensação de estar à vontade
Durante a fase do "impacto" inicial, portanto, as reaçôes dela com as pessoas, com sua casa, sua vizinhança e com seu mundo será
foram iguais à da maioria das vítimas: viu-se tomada por sentimentos difícil de resgatar.
de confusão, impotência, pavor e vulnerabilidade. Estas emoções a A maioria das vítimas sente muita raiva da pessoa que cometeu
acompanharam por algumas semanas, embora com menor intensida- o ato, dos outros que deveriam ter evitado isso e de Deus que permi-
de. Contudo, novas e intensas emoções surgiram: raiva, culpa, sus- tiu que acontecesse. Essa intensa raiva poderá contradizer os valores
peita, depressão, ausência de sentido, dúvidas e arrependimento. que professam, agravando o sentimento de culpa. Para uma pessoa
Durante essa fase de "retração" ela lutou para se ajustar e passou religiosa, uma experiência assim muitas vezes provoca uma crise de
por violentas variações de humor. Havia dias em que parecia ter reco- fé. Por que isso aconteceu? O que fiz para merecê-lo? Como pôde
um Deus justo e bom deixar que isso acontecesse? A falta de uma
brado sua animação costumeira, seu otimismo, que em seguida eram
resposta satisfatória a essas perguntas pode levar a uma profunda
substituídos por depressão profunda e/ou raiva. Ela passou a suspei-
crise de crença religiosa.
tar dos outros, especialmente estranhos, e a se assustar facilmente.
Durante as semanas que se seguiram ao assalto essa jovem lutou
Começou a ter sonhos vívidos e assustadores e fantasias que não
para se adaptar à sua nova situação. Em parte ela lamentava uma
lhe eram próprias e que iam contra seus valores. Ela fantasiava, por
perda, a perda de seu olho, de sua inocência. Ela buscou formas de
exemplo, que estava se vingando cruelmente da pessoa que lhe tinha
lidar com as novas e intensas emoções de raiva, culpa e vulnerabili-
causado mal. Pelo fato disso ser contrário aos seus valores, sentia
dade. E precisou reajustar sua visão de mundo e de si mesma. Hoje
ansiedade e culpa. Acordada, muitas vezes repassava mentalmente o
ela vê o mundo como um lugar potencialmente perigoso que a traiu;
ocorrido e também suas reações, imaginando por que teria reagido
nAo mais lhe parece o ambiente confortável e previsível do passado.
daquela forma e o que poderia ter feito de modo diferente.
Ela se vê como tendo sido inocente, e sente que precisa parar de ser
Como a maioria das vítimas de crimes, ela lutou com sentimen- t_o "boazinha" e confiante. Diante destes novos sentimentos ela in-
tos de vergonha e culpa. Repetidamente se perguntava por que aqui- clusive começou a reajustar sua auto-imagem. Embora antes ~e visse
lo tinha acontecido com ela, por que tinha reagido daquele modo e como um indivíduo amoroso, voltado para o cuidado dos outros e
se poderia ter agido de outra forma, sentindo-se tentada a concluir ,... para as pessoas em geral, esta idéia de si mesma foi destruída.
que tudo aquilo era de algum modo culpa sua. Se ela não tivesse E seus amigos?

20 2l
A VÍTIMA A VÍTIMA

"

Com um pouco de sorte ela teria amigos, companheiros de fé e Então procuramos fugir do assunto e estabelecer culpas. Afinal, se
de trabalho e vizinhos que a procurassem. Ela precisava de pessoas conseguirmos localizar a causa do problema em algo que a vítima é
que aceitassem seus sentimentos, independente de compreensão e ou fez, nos distanciaremos de sua situação. Conseguiremos acreditar
julgamento, e que estivessem dispostas a ouvir sua história repetidas que tal coisa não acontecerá a nós. Isto nos faz sentir mais seguros.
vezes. Precisava de amigos que a ajudassem a não sentir culpa pelo Portanto, ela teve que lutar pelo direito de lamentar sua per-
que aconteceu ou pela forma como reagiu, e que oferecessem apoio da. Como seus amigos mais próximos (inclusive, talvez, o namorado)
e ajuda sem paternalismo. 2 sofreram com ela, um estresse adicional foi causado pelo fato de
Mas para sua infelicidade os amigos procuraram evitar o assunto. que cada um deles lamentou de modo diferente e expressou menos
Logo se cansaram de ouvir essa história e acharam que ela precisava abertamente seus sentimentos. Sabemos, por exemplo, que o índice
esquecer e tocar a bola para frente. A aconselharam a não sentir raiva de divórcios entre os pais de crianças assassinadas é alto, em parte
e sugeriram, de várias maneiras, que ela contribuiu com o acontecido porque os parceiros choram a perda de modo diferente e têm formas
- que ela foi·em parte culpada. Sugeriram que os fatos foram de certa distintas de se adaptarem. Essas diferenças, se não identificadas e
forma a vontade de Deus. Talvez ela estivesse precisando ser punida compreendidas, podem afastar as pessoas.
por alguma coisa. Talvez Deus tenha feito isto para o bem dela. Talvez A experiência de ser vítima de um crime pode ser muito inten-
Deus estivesse tentado ensinar-lhe algo. Tais sugestões aumentaram sa, afetando todas as áreas da vida. No caso desta moça afetou seu
sua tendência de culpar a si mesma e questionar sua fé. sono, seu apetite e sua saúde. Ela recorreu a drogas e bebidas alco-
ólicas para agüentar. Os custos do tratamento foram muito pesados.
Essas reações por parte de amigos e conhecidos são exemplos do
Seu desempenho no trabalho caiu. Várias experiências e eventos
que os psicólogos chamam de "vitimização secundária". Quando ou-
continuaram a levá-la de volta a lembranças dolorosas. Se ela fosse
vimos o relato de um crime, quando escutamos a vítima contar sua
casada, seu casamento poderia ter sofrido. Seu interesse sexual e
história, também nós vivenciamos a dor que gostaríamos de evitar.
comportamento poderiam ter sido afetados. Para as vítimas de cri-
2. Charlotte Hullinger. co-fundadora da Parents of Murdered Children, e ela própria uma
mes, os efeitos colaterais são muitas vezes bastante traumáticos e de
vítima, identificou quatro modos como os amigos tendem a reagir diante de uma vítima: longo alcance.
O salvador: O medo faz com que queira uma decisão rápida. Em vez de ouvír, ele faz sugestões Não é difícil reconhecer a amplitude e intensidade da experi-
e incentiva a dependência. Sente-se desconfortável em deixar a vítima desabafar. É difícil para ele
ver pessoas sofrendo e sentirem-se impotentes, portanto quer solucionar as coisas rapidamente. encia do crime no caso de um ataque violento como este, mas para
O ajudante hostil: O medo o toma agressivo. Ele talvez culpe a vítima. Fala emitindo jul- pessoas que não foram vítimas não é fácil avaliar a dimensão total da
gamentos e procura distanciar-se da vítima. Como sente medo, alega que tal coisa não teria
acontecido com ele.
crise. O que ignoramos é que as vítimas de agressões menos graves
O ajudante impotente: É tomado pelo medo. Sente-se tão mal ou pior do que a vítima, mas podem ter reações semelhantes. Ao descrever suas experiências, as
não ouve realmente. Poderá fazer a vítima sentir-se tão mal que esta ficará com pena daquele vitimas de furto muitas vezes têm um discurso semelhante às vítimas
que está tentando ajudar.
de estupro. Vítimas de vandalismo e furto de carro relatam muitas
O ajudante positivo: Essa pessoa está consciente e reconhece o medo. Encara a vulnerabi-
lidade, ouve sem julgar e sabe fazer as coisas no momento apropriado. Tal ajudante poderá reações semelhantes às de vítimas de assalto, embora, talvez, de for-
,..-ma menos intensa.
dizer coisas do tipo: "Você deve estar se sentindo muito mal" ou "Vai levar tempo" ou "Você
fez o certo" ou "Deve ser horrível". Em outras palavras, dão à vítima permissão para falar sem
dizer especificamente como devem fazê-lo.

22 23
A VÍTIMA
t. A VÍTIMA

Por que tão traumático? vítima vulrierável, indefesa, sem controle, desumanizada. Novamen-
te, a auto-culpabilização oferece um mecanismo para lidarmos com
Qual o porquê dessas reações? Por que o crime é tão devastador, tão a experiência. Se conseguirmos localizar em algo que fizemos a cau-
difícil de superar? Porque o crime é essencialmente uma violação: sa do crime, podemos tomar a decisão de evitar tal comportamento,
uma violação do ser, uma dessacralização daquilo que somos, daqui- reconquistando assim um sentido de controle.
lo em que acreditamos, de nosso espaço privado. O crime é devasta-
A moça da nossa história não foi simplesmente vítima de um
dor porque perturba dois pressupostos fundamentais sobre os quais
assalto físico, portanto. Ela foi - e ainda é - vítima de um assalto ao
calcamos nossa vida: a crença de que o mundo é um lugar ordenado
seu próprio sentido de ser, de sua auto-imagem como ser autõnomo
e dotado de significado, e a crença na autonomia pessoal. Esses dois
atuando num mundo previsível. Na verdade, os efeitos psicológicos
pressupostos são essenciais para a inteireza do nosso ser.
podem ser mais graves que a perda física.
A maioria de nós supõe que o mundo (ao menos a parte do
mundo na qual vivemos) é um lugar ordenado, previsível e com-
preensível. Nem tudo acontece da forma como gostaríamos, mas ao o processo de recuperação
menos conseguimos encontrar explicações para boa parte do que
Para se recuperarem as vítimas precisam passar da fase de "retração"
acontece. Geralmente sabemos o que esperar. Não fosse assim, como
ter alguma sensação de segurança? à fase de "reorganização". No caso de crimes graves, precisam deixar
de ser vítimas e começar a ser sobreviventes. As vítimas precisam
O crime, como um câncer, rompe com o sentido de ordem e sig-
progredir até o ponto onde a agressão e o agressor não mais os do-
nificado. Conseqüentemente, as vítimas de crime, como as vítimas
minem. Contudo, este é um processo difícil e que leva muito tempo.
de câncer, procuram explicações. Por que isso aconteceu a mim?
Para muitos ele jamais termina.
O que eu poderia ter feito para impedir? Estas são apenas algumas
das questões que atormentam as vítimas. É importante encontrar as O que é preciso para que a vítima se recupere? Qualquer res-
respostas porque elas restauram a ordem e o significado. Se conse- posta a essa questão é um pouco arriscada. Somente a vítima poderia
guirmos responder ao como e aos porquês, o mundo pode tornar- responder com autenticidade, e as necessidades variam de pessoa
se seguro outra vez. Sem respostas as vítimas tendem a culpar a si para pessoa. Mas em geral as necessidades das vítimas incluem (sem
mesmas, aos outros, ou a Deus. A culpa, de fato, é uma importante se limitarem) as que descrevo a seguir.
forma de responder às perguntas que buscam restaurar o significado O mais óbvio é que as vítimas precisam ressarcimento por suas
e um simulacro de inteireza. perdas. Prejuízos financeiros e materiais podem constituir um fardo
Mas para sermos inteiros também é preciso possuir um sentido financeiro muito concreto. Além do mais, o valor simbólico das per-
de autonomia pessoal, de poder sobre nossas vidas. É intensamente (ias pode ser tão importante ou até mais importante que o prejuízo
degradante e desumanizador perder o poder pessoal contra a pró- material em si. Em todo caso, a indenização contribui para a recupe-
pria vontade e ficar sob o poder dos outros contra a própria vontade. ração. Pode ser que seja impossível ressarcir plenamente as perdas
O crime destrói o sentido de autonomia. Alguém de fora assume o e psicológicas. Mas a sensação de perda e conseqüente ne-
controle de nossa vida, nossa propriedade, nosso espaço. Isto deixa a cessidade de reparação material podem tornar-se muito prementes.

24 25
A VÍTIMA
A ViTIMA


mguem
'pode devolver o olho à moça desse caso. Mas reem-
. . o pode
° realmente? Por que comigo? Informações podem ser muito preciosas
bolso das despesas pode suavizar o ônus. Ao. me~mo t~mp ,
para as vítimas, e as respostas a tais perguntas poderão constituir
oferecer uma sensação de restauração no âmbno slmbóhco. .
uma passagem para o caminho da recuperação. Sem respostas a
Mesmo que as perdas materiais sejam importantes, p~sqUlsas essas questões, a cura pode ser difícil.
feitas entre vítimas de crimes mostram que elas em geral dao pndo-
Além de indenização e respostas, as vítimas precisam Oportuni-
ridade a outras necessidades. Uma d e1as é a sede de respostas
. e e1
dades para expressar e validar suas emoções: sua raiva, medo e dor.
.m f o ço-es Por
rma.. que eu? Essa pessoa tinha alguma COlsa pessoa
. ha Mesmo que seja difícil ouvir esses sentimentos, e mesmo que não
contra mim? Ele ou ela vão voltar? O que ac_onteceu com mm '_
estejam de acordo com o que gostaríamos que a vítima sentisse, eles
ro riedade? O que eu poderia ter feito para nao me tornar uma Vl
~m~? As informações precisam ser fornecidas e as respostas dadas.
são uma reação humana natural à violação do crime. Aliás, a raiva
precisa ser reconhecida como uma fase normal do sofrimento, um
Poderíamos dizer que a vítima precisa encontrar respostas para estágio que não pode ser pulado. O sofrimento e a dor fazem parte
seis perguntas básicas a fim de se recuperar..3 da violação e precisam ser ventilados e ouvidos. As vítimas precisam
encontrar Oportunidades e espaços para expressar seus sentimentos
1. O que aconteceu? e seu sofrimento, mas também para contar suas histórias. Elas preci-
. ( sam que sua "verdade" seja ouvida e validada pelos outros.
2. Por que aconteceu comlgo.
3. Por que agi da forma como agi na ocaSlao.( '- As vítimas precisam também de empoderamento. Seu sentido
de autonomia pessoal lhes foi roubado e precisa ser restituído. Isto
4. Por que tenho agido da forma como tenho desde aquela
inclui uma sensação de controle sobre seu ambiente. Assim, fecha-
ocasião?
duras novas e outros equipamentos de segurança são importantes
5. E se acontecer de novo? . para elas. Elas talvez queiram modificar seu estilo de vida como for-
6. O que isso significa para mim e para minhas ex~ectatlvas ma de minimizar riscos. Precisam igualmente de uma sensação de
(minha fé, minha visão de mundo, meu futuro). controle e envolvimento com a solução de seu caso. Necessitam sen-
tir que têm escolhas, e que tais escolhas são reais.

Algumas destas perguntas só podem ser respondida~ pelas Um fio condutor que une tudo isto pode ser descrito como a
róprias vítimas. Elas devem encontrar sua própria exp~lCaçao, ~or necessidade de uma experiência de justiça. Para muitas vítimas isto
~xem lo, para seu comportamento na ocasião e partlr de ~ ent~o. pode assumir a forma de uma exigência de vingança. No entanto,
preci!m também resolver qual será sua reação dlante de sltuaçoes uma exigência de retribuição pode surgir da própria frustração da
similares no futuro. No entanto, as duas primeiras perguntas se vítima que não conseguiu ter uma experiência positiva de justiça.
"
referem aos fatos que conStltUlram . l'enCl.a . O que aconteceu
a VlO Com efeito, a experiência de justiça é tão básica que sem ela a cura
poderá ser inviável.
.................... ." S' An Overview ofFamily Reactions", capo 1 do Aquilo que a vítima vivencia como experiência de justiça é algo
3. Adaptado de Charles Fmley, catastroph\.. 5 and the Family, vaI. Il: Coping wlth
livro de Charles Finley e Hamilton 1. McCub m, tress tem muitas dimensões, algumas das quais já esboçadas aqui. As
Catastrophe (Nova York: BrunnerlMazel, 1983).
vitimas precisam ter certeza de que o que lhes aconteceu é errado,
26
27
A VÍTIMA
A VÍTIMA

mundo que tem significado. O crime é também uma violação da


injusto, imerecido. Precisam oportunidades de falar a :erdade sob~e
confiança depositada no relacionamento com os outros,
o que lhes aconteceu, inclusive seu sofrimento. NecessItam ser OUVI-
das e receber confirmação. profissionais que trabalham com mulhe- Em segundo lugar, isto é verdadeiro não apenas nos crimes vio-
res vítimas de violência doméstica sintetizam as necessidades delas "
r,
lentos como assassinato e estupro, que a maioria de nós vê como
usando termos como "dizer a verdade", "romper o silêncio", "tornar graves, mas também para crimes como violência conjugal, assalto,
vandalismo ou roubo de carro - delitos que a sociedade muitas vezes
público" e "deixar de minimizar".
trata como de menor gravidade.
Como parte integrante da experiência de justiça, as.v~tima~ ~re­
cisam saber que passos estão sendo tomados para cornglr as mJus- Em terceiro lugar, entre as vítimas há padrões comuns de rea-
tiças e reduzir as oportunidades de reincidência. Como observ~~o ção, mesmo levando em conta as variações advindas de personali-
antes, podem desejar indenização não só para os aspectos matenms, dade, situação e tipo de delito. Sentimentos como medo e raiva são
mas para os aspectos morais implícitos no reconhecimento de que o quase universais, por exemplo, e muitas vítimas parecem transitar
ato foi injusto, numa tentativa de corrigir as coisas. por estágios identificáveis de adaptação,
A justiça pode ser um estado de coisas, mas é também uma ex- Por fim, ser vítima de uma outra pessoa gera uma série de
periência, e deve ser vivenciada como algo real. A~ vítimas e~ ge~al necessidades que, se satisfeitas, podem auxiliar no processo de recu-
não se satisfazem com afirmações de que as devIdas provIdenClas peração. No entanto, a vítima desatendida poderá ter muita dificul-
estão sendo tomadas. Querem ser informadas e, ao menos em certos dade para recuperar-se, ou ter uma recuperação incompleta.
aspectos, consultadas e envolvidas no processo.
O crime poderá nos roubar o sentido de significado, que co~sti­
N assa reação
tui uma necessidade humana básica. Conseqüentemente, o cammho
para a recuperação envolve a busca de significado. De fa.to, as seis Diante de tudo isso, seria mais lógico que as vítimas estivessem no
perguntas que as vítimas devem responder para co~segUlr se recu- fulcro do processo judicial, e que suas necessidades fossem o foco
perarem envolvem precisamente essa busca. Para vlt1mas de cnmes central. Seria de se supor que as vítimas tivessem alguma ingerên-
a necessidade de justiça é a mais básica porque, como observou o cia sobre as acusações que são feitas, e que suas necessidades se-
filósofo e historiador MichaelIgnatieff, a justiça oferece uma estru- riam levadas em consideração no desenlace final do caso. Seria de
4
tura de significado que confere sentido à experiência. Tudo isto me se esperar que, ao menos, elas fossem informadas de que o infrator
levou a várias constatações. foi identificado, e sobre as demais fases do processo penal. Mas na
Em primeiro lugar, a vitimização poderá ser uma experiência maioria dos casos pouco ou nada disso acontece. Elas não podem
extremamente traumática. Isto porque é uma violação de algo fun- influenciar em nada o modo como o caso será decidido. Freqüen-
damental: a nossa auto-imagem como indivíduos autõnomos num temente as vítimas são levadas em consideração apenas quando são
necessárias como testemunhas, Raramente são notificadas quando
.. ~.' .~~~~~~~. ~~~tieff, "Imprisonment and the Need for Justice", co~ferência proferida no um infrator é preso, Somente quando a lei exige é que as varas
Congresso de Justiça Criminal Canadense em Toronto, 1987. Urna versao edItada fOI publica- criminais fazem um esforço sistemático para notificar as vítimas
da em Liaison,janeiro de 1988.

29
28
A VÍTIMA A VíTIMA

sobre o andamento do processo ou solicitar sua contribuição para nizatórios permitem às vítimas de crimes graves se candidatarem ao
o sentenciamento. . . reembolso de despesas, já que para tanto elas enfrentam vários crité-
Isto foi ilustrado exemplarmente por uma mulh~r que partlCl- rios muito rigorosos. Nas comunidades onde foram implantados, os
ou de um seminário que ajudei a organizar. Eu passeI algum tempo programas de assistência às vítimas oferecem aconselhamento e ou-
~escrevendo a situação das vítimas de crimes - seu sofnmento, suas tros recursos. A Inglaterra é líder no desenvolvimento de programas
necessidades, sua ausência do processo d a ".JUS t"IÇ a" - quando uma locais de apoio a vítimas, usando voluntários que oferecem apoio e
mulher sentada lá no fundo se levantou e disse: assistência a vítimas enquanto estas passam pelo processo judicial e
buscam recuperação. 5
Tudo isso ajuda e revela uma nova e importante preocupação
Você está certo. A minha casa já foi arrombada por assaltantes. Eu já
para com as vítimas. Mas lamentavelmente estas iniciativas conti-
fui assaltada numa rua escura. Em nenhum dos casos fui informada;u
consultada até que o processo já estivesse no fim ou quase finaliza O.
nuam incipientes, verdadeiras gotas no oceano das necessidades
E eu sou a procuradora de justiça! A minha própria eqmpe deIXOU de existentes. As vítimas ainda continuam prioridades periféricas no
me informar!. processo judicial. Elas são as notas de rodapé do processo criminal.
O fato de que não levamos as vítimas a sério deixa um imenso
legado de medo, suspeita, raiva e culpa e nos conduz a exigências
Imaginem, então, o que acontece ao restante dos cidadãos.
?,
persistentes e crescentes de vingança. Encoraja a formação de estere-
Essa percepção em geral chega às vítimas logo depois de terem
ótipos (como entender um transgressor que não conhecemos?) que,
d ad o q u . e de Iumxdelito
a . É comum o seu assombro dIante do fato I- por sua vez, levam ao agravamento da desconfiança, estimulando
de que suas denúncias são investigadas ou abandonadas sem qua preconceitos de raça e classe social.
quer respeito ao desejo delas, vítimas, e sem que recebam qualquer
Do ponto de vista da vítima, talvez o pior de tudo seja a falta
informação sobre o caso.
de encerramento da experiência. Quando as vítimas não têm suas
· ~ . ale'm de não atender às suas
TaI neg11genCIa, ... necessidades,
_" necessidades atendidas, muitas vezes acham difícil deixar a expe-
d
agrava sua O. '- r M"litos falam sobre a "segunda
. ., .
vItImIzaçao , per-_
riência no passado. Freqúentemente relatam suas experiências de
petrada pelos profissionais do judlCl~no .e pelo processo. A ques
modo muito vívido, como se tivessem acontecido ontem, mesmo
tão do poder pessoal é de importãnCla VItal n~sse con~exto. Parte
que anos tenham se passado. Nada do que vivenciaram as ajudou
da natureza desumanizadora da vitimização cnmmosa e seu poder
a superar o trauma. Pelo contrário. A experiência e o perpetrador
de roubar à vítima seu poder pessoal. Em vez de de.volver-.lhes o
ainda dominam suas vidas. A vítima continua desprovida de poder.
poder permitindo-lhes participar do processo da JustIça, o SIstema
E os danos não se limitam à vítima individualmente, são partilhados
judicial reforça o dano negando às vítimas esse poder. Em vez de
ajudar, o processo lesa. . 5. National Association ofVictim Support Schemes, Cranmer House, 39 Brixton Rd., Lon-
Nos Estados Unidos foi aprovada uma legislação feder~1 cUJ~ dres sw9 6DZ, Reino Unido; wwwvictimsupport.org.uk. Nos Estados Unidos a National Or-
ganization for Victim Assistance, 1730 Park Rd. N.W., Washington DC 20010, serve como
fito é auxiliar no apoio às vítimas e fomentar programas de mdem- centro de referência; www.trynova.org.NationaICenterforVictimsofCrime.2000M.St.
zação que haviam surgido em muitos Estados. Os programas mde- N.W. Washington, DC 20036; www.ncvc.org.

30 31
A VÍTIMA

por amigos e conhecidos que ouviram sobre a trag~dia. Essa~ feridas


Capítulo 3
abertas acabam gerando mais suspeitas, medo, ralVa e se~tIm~ntos
de vulnerabilidade em toda a comunidade. Aliás, operam sllenclOsa- O ofensor
mente minando o espírito comunitário.
Mas o fato de não conseguirmos atender às necessidades da
vítima não significa que jamais mencionemos a vítima no processo
judicial ou nas notícias. Pelo contrário. Conseguimo~ usar o nome
da vítima para impor todo tipo de coisas ao ofensor, mde~e~dem~­ No capítulo amerior sugeri que a vítima ferida no caso que relatei
mente da vontade da vítima. O fato é que, apesar da retonca, nao
provavelmente não tenha sentido que a justiça fora feita. Mas o que
fazemos quase nada que beneficie diretamente a vítima. Não escuta- aconteceu ao rapaz que a assaltou?
mos o seu sofrimento nem as suas necessidades. Não nos esforçamos
para restituir parte do que perderam. Não pennitim~s. que ajudem Ele passou por um processo elaborado e longo no qual um pro-
a decidir como a situação deve ser resolvida. Não auxIlIamos na sua fissional - um advogado, que Supostamente representa seus ime-
recuperação. Talvez nem informemos a elas o que aconteceu desde resses - foi colocado numa arena contra um outro profissional _ o
o momento do delito! promotor de justiça, que representa o Estado e seus interesses. Tal
Este é, portanto, o cúmulo da ironia, o cúmulo da tragédia. Àque- processo é guiado por um complexo labirimo de regras chamadas
"processo penal", concebido para proteger os direitos de ambos (mas
les que mais sofreram diretameme negamos particip~Ç.ãO na r~sol~­
ção da ofensa. De fato, como veremos adiante, as VltImas nao sao não necessariamente os da vítima). Ao longo do processo uma série
sequer parte da nossa compreensão do problema. de profissionais (promotores, juiz, oficiais de condicional, psiquia-
tras) comribuíram para decidir se ele é de fato culpado de um delito
definido em lei. Não apenas o processo determinou que de fato ele
cometeu um delito definido em lei, mas também que teve intenção
de fazê-lo. E o juiz decidiu o que será feito dele.
Ao longo do processo o ofensor foi quase um espectador. Ele
manteve sua atenção sobre sua própria situação e seu futuro. lnevita-
II velmeme preocupou-se Com os vários obstáculos, decisões e estágios

I
'li
t
~
.
que precisam ser encarados. No entanto, boa parte das decisões foi
tomada por outros em seu nome .

'I
A experiência da prisão
Agora ele está na prisão. Embora a extensão da pena em geral de-
terminada nos Estados Unidos possa parecer incomum no Canadá

32
33
,.,...lt>.
o OFENSOR

O OFENSOR

ou na Europa Ocidental, a decisão de privação de liberdade não é.


normal, que a violência é a chave ara a saIu -
Com efeito, o encarceramento é a reação normal ao crime nas socie- é preciso ser violento para sob ~ çao dos problemas, que
dades contemporâneas ocidentais. Funcionamos sob o pressuposto reVIver que a . IA . -
de reagir à frustração Afi I _' VIO enCla e uma forma
da prisão. A privação de liberdade não é um último recurso que deve . na, este e o padrão d l'd d
mundo distorcido da prisão. e norma I a e no
ser ponderado e justificado pelo juiz que a impõe. Pelo contrário. A
prisão é normativa, e os juízes sentem a necessidade de explicar e vítim~ ~~:::~a~:oe :;~~:se~:t~~;:~ca ~e~se rapaz o tornarão uma
justificar as sentenças que diferem da privação de liberdade. xuaI. O estupro homossexu I d ' la _ISIca, mas de vlOlência se-
a e Jovens e freqüent .-
Esse pressuposto explica por que nossos índices de encarcera- transgressores mais velhos e cal . d . e na pnsao, onde
mento são tão altas. Os cidadãos estadunidenses muitas vezes con- delinqüentes mais novos eJa os mUItas vezes ficam junto com
sideram que o país é "tolerante demais" diante do crime. Embora de refletir a prolongada . ' m:nos expenentes. Estupros assim podem
fato haja casos particulares e jurisdições em que o criminoso escapa vida carcerária. Mas e!n::~;o sexual e frustração características da
impune, a realidade é bem outra quando se pensa em termos do país de afirmar o poder sob g o estupro se torna uma forma distorcida
re os outros entre pess -
como um todo. Pelos padrões internacionais os Estados Unidos são formas legítimas de atrI'b' d '. oas que nao pOSsuem
UIr po er e sIgmficad .
bastante rigorosos. No início da década de 1990 o país tinha o maior tupra homossexual é também um' o a SI mesmas. O es-
índice de encarceramento per capita do mundo. Desde então, essas depreciar o outro o que po melO de expressar desprezo e de
, r sua vez reflete um
taxas aumentaram ainda mais em função das leis do tipo "Three-stri- cida - e infelizmente m 't a compreensão distor-
UI o comum - do que' l' .
kes, y'ou're out",* sancionadas a partir de 1994. minilidade Dada . seja mas cu mIdade e fe-
. a aparente msegurança d d
é provável que seu sentido d I _ o rapaz a nossa história,
A prisão é o primeiro em vez de ser o último recurso, e não ape- . d . e va or propno e masculinid d .
nas para crimes violentos. Muitos observadores internacionais ficam am a maIS severamente p . d' d ' a e sejam
P reJU Ica os e dIstorcidos pela experiência
surpresos ao saber que boa parte dos condenados à prisão nos EUA arece certo, portanto, que são vãs as e . . .
servem penas por crimes patrimoniais. As taxas de encarceramento padrões de comportament 'I .speranças do JUIZ de que os
o VIO ento sejam esquec'd N d
estadunidenses são altas porque consideramos a privação de liber- o juiz decidiu que esse ofensor viva _. lOS. a ver ade
dade uma norma. atmosfera que nutre e ensin 'A por no ~InImo VInte anos numa
ele um meio de sobreviver ~ a vIo~enCla. A vlOlência se tornará para
No caso do rapaz do assalto relatado acima, em sua sentença o E ' e reso ver problemas, de se comunicar
juiz expressou a esperança de que o jovem ofensor aprendesse pa- sse rapaz já se meteu nessa situa - '
tima, autonomia e pode I çao por ter pouca auto-es-
drões de comportamento não-violento enquanto estivesse na prisão. r pessoa Mas a expe . A • d
mento irá despHo compl t .d nenCla e encarcera-
Mas na realidade o que ele aprenderá? e amente o pouco q t' h d'
ainda mais privado d ue In a, eIxando-o
A esta altura o rapaz bem pode ter se tornado uma vítima da e recursos para obter a t .
mia de forma legítima. u o-estIma e auto no-
violência. Qual a lição que ele aprenderá? Aprenderá que o embate é
Estou convencI'do de q ue'enmes e VI. IA .
* N.T.: Lei que determina aumento de pena automático para réus reincidentes. O nome se
uma forma de afirmar a identidade e o enCIa ~ãO muitas vezes
refere a uma regra do beisebol segundo a qual o rebatedor é eliminado se não conseguir bater bem colocado po . poder pessoars. Isto foi muito
r um amIgo que P d
três bolas válidas consecutivas. por causa de uma série d I asso~ ezessete anos na prisão
e assa tos a mao armada, Depois, com a
34
35
o OFENSOR
o OFENSOR

paciente ajuda de pessoas religiosas, ele fez a transição para a vida outros. No entanto, o ambiente prisional irá despi-lo de todo o seu
em sociedade. Bobby foi um menino negro e pobre. Seu pal, um senso de valor e poder.
alcoólatra que trabalhava como zelador, sentia-se preso ~um mundo
Todo o entorno carcerário é estruturado com o fim de desuma-
que se tornou uma prisão sem saída. Para Bob~: o cnme era uma
nizar. Os prisioneiros recebem um nümero, um uniforme, pouco
esperança de sair da prisão da nulidade pessoal. Com uma arma na
ou nenhum espaço pessoal. São privados de praticamente todas as
- ao men os eu me sentia alguém!" '
mao ele .
me disse. Como
'} respeItar
oportunidades de tomar decisões e exercer poder pessoal. De fato,
os outros se ele tinha tão pouco respeito por SI mesmo.
o foco de todo o ambiente é a obediência e o aprendizado de aceitar
O psicólogo Robert Johnson, que escreveu. sobre assassi~os
ordens. Numa situação assim a pessoa tem poucas escolhas. Ele ou
condenados à morte, apreendeu muito bem o sIgmficado e as raIzes
ela talvez aprendam a obedecer, a ser submissos, e essa é a reação
da violência. que o sistema prisional incentiva. Mas é justamente a reação que
menos propiciará uma transição bem sucedida para a liberdade da
Sua violência não é um fantasma ou doença que os aflige ~em motivo, vida lá fora. Esse rapaz se meteu na encrenca por não saber como se
nem tampouco um veículo conveniente para paixões hedlOn.das. Pelo auto-governar, conduzir a sua vida de modo legítimo - e a prisão irá
contrário, sua violência é uma adaptação a vIdas vaZIas e mUl~as ve~es agravar essa inabilidade. Assim, não é de se surpreender que aque-
. [ ... ] . [A violência] de boa parte dos homens vlOlentosl' e, em ul-
b rutaIs d les que melhor se conformam às regras da prisão são os que pior se
tima análise, gerada pela hostilidade e abusos de outros, e a Imenta a adaptam à vida na comunidade depois de soltos.
pela falta de confiança em si e baixa auto-estima. Paradoxalmente, sua
violência é um tipo deformado de auto-defesa e serve somente para
Uma segunda reação diante da pressão para obedecer é a re-
confirmar os sentimentos de fraqueza e vulnerabilidade ~ue. foram a belião, e muitos se rebelam. Em parte, essa reação é uma tentativa
origem primeira dessa mesma violência. Quando sua vlOlenCla atmge de reter algum sentido de individualidade. No geral, aqueles que se
vítimas inocentes, assinala não um triunfo da coragem, mas uma per- rebelam parecem ter mais sucesso na transição para a vida em li-
da de controle. l berdade do que aqueles que se submetem (muito embora a rebelião
reduza em muito as chances de uma soltura com condicional). Mas
há exceções. Se a rebelião for muito violenta ou muito prolongada,
Dadas a baixa auto-estima e autonomia pessoal.características
um padrão de revolta e violência poderão dominar.
da maioria dos criminosos, pequenas brigas e conflItos dentro ~a
pnsao freqüentemente levam a violência extrema. Uma dIscussao Jack Abbot é um prisioneiro que passou boa parte de sua vida
por causa de um dólar pode facilmente acabar em m~rte. lutando contra a conformidade na prisão. Seu livro intitulado In the
O jovem ofensor do nosso caso pode ter .se metido na encren- Belly of the Beast [Na barriga da besta] é uma obra articulada e perspi-
ca por causa de sua baixa auto-estima e sent~do de poder pessoal~ caz sobre o mundo prisional,2 Depois de anos na prisão ele foi solto,
Seu crime pode ter sido uma tentativa distorCIda de dIzer que ele e e cometeu novo assassinato na primeira ocasião em que se sentiu
ofendido.
alguém e afirmar algum controle sobre sua vida e talvez sobre a dos
I •••••••••••••••••••

···;.·~~~~~·;~~~~~n, "A Life for a Life?",Justice Quarterly, 1, n° 4 (dez, 1984), p. 571. 2. Jack Henry Abbott, In the Belly oj the Beas/: Letters from Prison (Nova York: Random
House, 1981).

36 37
o OFENSOR
o OFENSOR

A terceira reação possível é tornar-se ardiloso: manter as apa-


Vistas nesse contexto, as esperanças do juiz se mostram incri-
rências de obediência enquanto encontra formas de conservar algu- velmente inocentes e equivocadas.
mas áreas de liberdade pessoal. Isto leva a uma outra lição ensinada
pela privação de liberdade: aprende-se que a manipulação é normal. _ S~rá que a prisão ensinará a ele padrões de comportamento
Afinal, é assim que se conseguem as coisas na prisão. É também o nao-VI~lento? Dificilmente. Com toda probabilidade o tornará ainda
método usado pelas autoridades para gerenciar os prisioneiros. De mms VIolento. Conseguirá a prisão proteger a sociedade desse rapaz?
que outra forma poderiam tão poucos funcionários lidar com tantos Talvez por algum tempo, mas, por fim, ele sairá bem pior do que
prisioneiros, dada a limitação de recursos existente? Em resumo, o entrou. E enquanto estiver lá dentro, talvez se torne uma ameaça
para os outros internos.
condenado aprende a ludibriar.
O jovem ofensor do nosso caso delinqüiu porque não soube Será quea prisão coíbe o crime? É discutível se seu aprisiona-
tomar boas decisões. A capacidade de decidir bem por conta própria mento desestlmulará outros a cometerem crimes similares. Mas ele
ficará ainda mais comprometida pela experiência prisional. Durante próprio com certeza não será desestimulado. Como já mencionei
os vinte ou mais anos que passará ali, ele terá pouco ou nenhum a~tes, ele tem maior, e não menor probabilidade de cometer novos
estímulo e oportunidade para tomar decisões e assumir responsabi- cnmes em função da falta de habilidade para lidar com a liberdade
lidades. De fato, ele aprenderá a dependência. Ao longo desses anos e ~~s padrões de relacionamento e comportamento aprendidos na
ele não terá que pagar aluguel, nem gerenciar seu dinheiro, nem ~nsao. Além disso, a ameaça de encarceramento não será mais algo
manter uma família. Ele dependerá do Estado que cuidará dele. E tao assustador para ele, depois de ter descoberto que consegue so-
quando sair, terá poucas habilidades de sobrevivência. Como apren- breVIver alI. Na verdade, depois de vinte anos na prisão ela se terá
derá a manter um emprego, poupar, ficar dentro de seu orçamento, tornado sua casa e ele se sentirá inseguro fora dela.
pagar as contas? Algumas pessoas que cumpriram penas longas cometem crimes
Na prisão esse transgressor absorverá um padrão distorcido de ao serem libertadas exatamente para poder voltar ao lugar onde se
relacionamentos interpessoais. A dominação sobre os outros será seu s.entem em casa. Preferem estar num lugar onde conhecem as habi-
objetivo, seja no caso do parceiro matrimonial, dos contatos comer- hdades ~eces,sárias para sobreviver do que ter que enfrentar os peri-
ciais ou dos amigos. O cuidado amoroso será visto como uma fra- gos ~~ VIda la fora. Recentemente fui convidado a participar de uma
queza. E os fracos existem para serem explorados. reumao .~um centro de apoio a ex-prisioneiros na Inglaterra. Um dos
Esse delinqüente precisa aprender que ele é alguém de valor, que r~pazes ]a, tmha estado na prisão várias vezes. "Eu gosto de estar fora",
ele tem poder e responsabilidade suficientes para tomar boas deci- dls~e ele, 'mas também não acho ruim estar na prisão". A ameaça de
sões. Ele precisa aprender a respeitar os outros e seus bens. Ele precisa apnslOnamento não consegue intimidar uma pessoa assim.
aprender a lidar pacificamente com frustrações e conflitos. Ele precisa
A prisão também não constitui desestímulo para pessoas pobres
aprender a lidar com as coisas. Ao invés disso, aprenderá a recorrer
e ~~rgmahzadas que vêem a vida em liberdade como uma espécie de
à violência para obter validação pessoal, para conseguir lidar com o
~nsao. Para uma pessoa em tais condições, ser sentenciada à prisão é
mundo, para resolver problemas. Seu sentido de valor e autonomia
sImplesmente trocar um tipo de confinamento por outro. No entanto
será solapado ou então fincará suas raízes em terreno perigoso.
são basicamente pobres e desvalidos os que condenamos à prisão. '

38
39
o OFENSOR
o OFENSOR

o que precisa acontecer? processo estimula uma tendência a focalizar os erros cometidos pelo
Na sentença desse rapaz o juiz mencionou a necessidade de res- ofensor, desviando a atenção que deveria estar sobre o dano causado
ponsabilizar os ofensores. A maioria de nós concorda com isso. Os à vítima. Muitos, senão a maioria dos ofensores, acabam sentindo
ofensores precisam, de fato, ser responsabilizados por seu compor- que foram maltratados (e bem podem ter sido!). Por sua vez, isto os
tamento. Mas o que significa responsabilizar? Para esse juiz, e para a incentiva a olhar para sua própria condição ao invés de ver a condi-
maioria das pessoas no mundo de hoje, a responsabilização significa ção da vítima. No mínimo, e por causa da complexidade e foco no
que o ofensor deve sofrer conseqüências punitivas - no mais das ve- ofensor do processo criminal, eles se vêem totalmente envolvidos
com sua própria situação jurídica.
zes, a prisão - seja com o intuito de coação ou de punição. "Respon-
sabilizar" significa forçar as pessoas a "tomar um remédio amargo" Por conseguinte, os ofensores raramente são estimulados a olha-
- uma velha metáfora para algo tão insalubre como a prisão. rem para os verdadeiros custos humanos dos atos que cometeram.
Esta é uma visão extremamente limitada e abstrata da responsa- Qual será a sensação de ter sua casa invadida e roubada, o carro
bilidade. Sem um vínculo intrínseco entre o ato e as conseqüências, roubado? Como será sentir medo e dúvida quanto a quem fez isto e
a verdadeira responsabilidade é praticamente impossível. E visto que por quê? Como será a sensação de sentir que se vai morrer e depois
as conseqüências são escolhidas por outros que não o ofensor, elas perder um olho? Que tipo de pessoa é a vítima? Dentro do âmbito da
não levam o ofensor a responsabilizar-se. experiência do ofensor no processo judicial nada toca nessas ques-
tões. Nada o obriga a encarar suas racionalizações e estereótipos. No
Para cometer ofensas e conviver com seu comportamento, os
caso acima, o ofensor tentou entender o ocorrido, mas sua compre-
ofensores freqüentemente constroem racionalizações bastante elabo-
ensão foi incompleta e, além do mais, logo será ofuscada pela sua
radas para os atos que cometeram, e a prisão lhes oferece tempo e vivência da justiça e da punição.
incentivo de sobra para tanto. Eles acabam acreditando que o que
A verdadeira responsabilidade, portanto, inclui a compreensão
fizeram não é tão grave assim, que a vítima "mereceu", que todos
das conseqüências humanas advindas de nossos atos - encarar aqui-
estão fazendo a mesma coisa, que o seguro pagará pelos danos. En-
lo que fizemos e a pessoa a quem o fizemos. Mas a verdadeira res-
contram maneiras de colocar a culpa em outras pessoas e situações.
ponsabilidade vai um passo além. Ela envolve igualmente assumir
Também adotam estereótipos sobre as vítimas de fato, e sobre víti-
a responsabilidade pelos resultados de nossas ações. Os ofensores
mas em potencial. Inconscientemente, ou talvez conscientemente,
deveriam ser estimulados a ajudar a decidir o que será feito para
procuram isolar-se das vítimas. Alguns assaltantes chegam a relatar
corrigir a situação, e depois incentivados a tomar as medidas para
que, ao entrar numa casa, viram os retratos para a parede a fim de reparar os danos.
não pensar em suas vítimas.
O juiz Dennis Challeen mostra que o problema da maioria das
Nenhuma etapa do nosso processo judicial questiona essas atri-
sentenças é que, embora responsabilizem os ofensores (no sentido
buições equivocadas. Pelo contrário. O processo em geral fomenta
ele receberem a punição), essas sentenças não os tornam responsá-
racionalizações e fortalece os estereótipos. A natureza adversarial do
veis. Aliás, a falta de responsabilidade é justamente o que os leva a
processo tende a sedimentar os estereótipos sobre as vítimas e.sobre
transgredir. Quando uma punição é imposta a pessoas responsáveis,
a sociedade. A natureza complicada, dolorosa e não partlClpatlva do
argumenta Challeen, estas reagem com responsabilidade. Mas quan-
40
41
o OFENSOR
o OFENSOR

do impomos sanções a pessoas irresponsáveis, isto tende a torná-las se um cidadão produtivo poderá aumentar sua auto-estima e enco-
mais irresponsáveis ainda. 3 rajá-lo a adotar um comportamento lícito.
Algumas cortes começaram a introduzir a restituição às vítimas
como parte da sentença. Esse passo vai na direção certa, contudo, a
justificação para tal restituição tem se mostrado imprecisa e inade- o que acontecerá?
quada no mais das vezes. Ela é vista freqüentemente como forma de Nada disso acontecerá ao jovem ofensor do nosso caso durante os
punir o ofensor ao invés de um modo de ressarcir a vítima. Em ger~l próximos vinte anos. Mas então o que acontecerá?
é também uma sanção imposta e, como tal, não fomenta o sentl-
Ele não terá qualquer oportunidade de questionar os estereóti-
mento de autoria dos resultados por parte do ofensor. Em geral, este
pos e racionalizações que o levaram a este delito. Na verdade, eles
não participa na decisão de restituição, e tem pouca ou nenhuma
serão amplificados e elaborados ao longo de seus anos de prisão. Ele
compreensão das perdas sofridas pela vitima. Assim, o ofensor tende
não terá oportunidade de desenvolver as habilidades interpessoais e a
a ver a restituição como mais uma punição imposta, ao invés de per-
capacidade de lidar com as situações construtivamente que lhe serão
cebê-la como uma tentativa lógica de corrigir um mal e cumprir uma
exigidas para viver lá fora. Aliás, ele aprenderá as habilidades inter-
obrigação frente a outra pessoa. Sentenças restitutivas impo.sta~ aos
pessoais erradas e perderá as capacidades que tem. Não terá oportu-
ofensores como punição têm toda probabilidade de não ajuda-los
nidade de encarar o que fez ou de corrigir os males que causou.
a se tornarem responsáveis. Esta é a principal razão para os baixos
índices de retorno em alguns programas de restituição. Será impossível lidar com a culpa deixada por essa ofensa. Não
existe no processo criminal um momento em que ele possa ser per-
O jovem ofensor de nosso caso precisa assumir a responsabi-
doado, em que ele possa sentir que conseguiu fazer alguma coisa para
lidade por seu comportamento de todos os modos possíveis. Ou
corrigir o mal feito. Quais não serão as conseqüências disso para sua
seja, ele precisa ser estimulado a formar uma compreensão, o maIS
auto-imagem? Ele tem poucas alternativas. Poderá fugir da questão
completa possível, daquilo que ele fez (por exemplo, o que suas
racionalizando seu comportamento. Poderá voltar sua raiva Contra si
ações representaram para a outra pessoa envolvida, e qual fOl seu
mesmo e aventar a possibilidade de suicídio. Poderá voltar SUa raiva
papel). Devemos também permitir e encorajá-lo a corrigir seus erros
contra os outros. Em todo caso, continuará sendo definido como um
na medida do possível. Ele deve participar do processo de encontrar
ofensor muito depois de ter "pago a sua dívida" sofrendo a punição.
modos para fazer isto. Esta é a verdadeira responsabilidade.
O ódio e a violência que serão cultivados dentro dele na prisão virão
Tal responsabilidade talvez ajude a resolver as coisas para a ví- a substituir o pesar e o arrependimento que talvez tenha sentido.
tima, pois poderá atender a algumas das necessidades dela. Talvez
Tal como a vitima, ele não terá oportunidade de fechar esse capítu-
traga uma resolução também para o ofensor, pois um pleno enten-
lo, de resolver a questão e passar adiante. A ferida continuará aberta.
dimento da dor que causou pode desestimular um comportamento
semelhante no futuro. A oportunidade de corrigir o mal e de tornar- Através de suas ações nosso jovem ofensor violou uma outra
pessoa. Violou também as relações de confiança com a comunidade.
~~~~;~.~. ~~alleen,
.. ;.' Mahing it Right: A Common Sens Approach to Criminaljustice (Aber- Mas o processo criminal não oferecerá a ele nenhum dispositivo que
deen: Milieus and Peterson Publishing, 1986). O ajude a compreender a dimensão do que fez.

42 43
o OFENSOR

A ofensa foi cometida por uma pessoa que, por sua vez, também Capítulo 4
foi violada. Embora isto não seja desculpa para seus atos, ele~ d: fato
Alguns temas comuns
nasceram de um histórico de abusos. Criança, ele, sofreu
. vlOlenCla
.. I
física. Depois de crescido, sofreu violência psicologlCa e espmtua ,
ue feriram seu sentido de ser e relacionar-se com o mun~o. Ne-
~hum aspecto do processo levará estas coisas em ~onslderaçao. Pro-
vavelmente nada o conduzirá ao cammho da mtelreza.
Embora tenhamos contemplado vítima e ofensor separadamente,
existem alguns temas comuns a ambos.

Arrependimento e perdão
Até o momento analisamos suas vivências e necessidades primárias
em termos experimentais e psicológicos. Agora, examinemos breve-
mente seu dilema do ponto de vista da tradição cristã.
Os dois jovens envolvidos no caso precisam de cura. Para que
haja cura genuína, ao menos dois pré-requisitos devem ser cumpri-
dos: arrependimento e perdão.
Para que haja cura, é importante que as vítimas possam perdoar.
Da perspectiva teológica este é um dado objetivo: somos cha-
mados a perdoar nossos inimigos, aqueles que nos fazem mal, pois
Deus nos perdoou. Não nos libertaremos enquanto estivermos do-
minados pelo inimigo. Devemos seguir o exemplo de Deus.
Do ponto de vista prático e experimental, isto é dificílimo, talvez
até impossível. Como pode uma mãe ou um pai perdoar aquele que
matou seu filho? Como chegar a sentir outra coisa senão raiva e sede
de vingança? Como alguém, sem ter passado por isso, ousaria suge-
rir tal coisa? É possível contemplar a possibilidade de perdoar antes
que estejamos em segurança? Será possível obter tal segurança?
Perdoar e ser perdoado não são coisas fáceis, e estas ações não
podem ser sugeridas levianamente. Nem se pode impor um fardo
a mais de culpa àqueles que não conseguem perdoar. O verdadeiro

44 45
ALGUNS TEMAS COMUNS
ALGUNS TEMAS COMUNS

perdão é impossível de obter pela força de vontade ou por obrigação,


sentem que viver muito bem depois da tragédia é a melhor vingança.
deve chegar no seu devido tempo e com a ajuda divina. 1 O perdão é A abordagem deles é do tipo "eles vão ver", e não deixa de ter seu
um dom, e não pode ser transformado em ônus. 2 valor psicológico. No entanto, tal abordagem ainda deixa a ofensa e
É importante explicar nosso entendimento do que seja o perdão. o ofen:orno centro da ação. O perdão, ao contrário, permite que a
Muitas vezes se pensa que o perdão significa esquecer o que aconte- expenenCla se torne parte da história de vida, uma parte importante
ceu, riscar o incidente do mapa mental, talvez desligar simplesmente de nossa blOgrafia, mas sem permitir que ela continue a dominar,
o canal de comunicação com o ofensor. Mas perdoar não é esquecer.
. ~ertas condições favorecem o perdão. Manifestações de respon-
A jovem de nosso caso não deveria e jamais esquecerá completamen- sabIlIdade, ~esar e arrependimento por parte do ofensor podem ser
te o seu trauma e a sua perda. Nem se pode esperar isso dela. O de grande ajuda, Mas, para a maioria das pessoas, um fator essencial
perdão também não significa redefinir a ofensa como uma não-ofen- é o apoio de outros e a experiência da justiça. A oração é parte im-
sa. Não significa pensar: "Não foi tão ruim assim, não faz mal". Foi portante na "cura da memória". Uma pessoa ou grupo que tenha um
péssimo sim, e negá-lo seria desvalorizar a experiência, o sofrimento
papel pastoral pode ouvir a confissão e oferecer absolvição. Todos
e a humanidade mesma da pessoa responsável pelo ato. nós, ~ principalmente nossas congregações, têm a responsabilidade
Perdoar é abrir mão do poder que a ofensa e o ofensor têm de CDar um espaço onde isto possa acontecer.
sobre a pessoa. Significa não mais permitir que a ofensa e o ofensor
, Co~o mencionei anteriormente, a experiência de justiça tem
dominem. Sem esta experiência de perdão, sem este encerramento mUltas dImensões, e uma delas é retratada no conceito bíblico da la-
da experiência, a ferida gangrena, a violação toma todo o espaço da
mentação, que aparece em alguns salmos. Falando à igreja, o teólogo
consciência, domina toda a vida - a violação e o ofensor assumem o Walter Brueggemann descreveu muito bem esse conceito.
controle. Portanto, o verdadeiro perdão é um ato de empoderamento
e cura. Ele permite passar da condição de vítima à de sobrevivente.
Também é possível passar de vítima a sobrevivente de outras for- o modo de caminhar para a maturidade passa pela manifestação aber-
ta de todas as negatividades, Posso ver um sacerdote dizendo: você já
mas. Algumas vítimas procuram esse resultado "vivendo bem", pois
consegUIU dIzer tudo, ou há mais alguma coisa que queira pôr para
fora? E veJo que se eu conseguir dizer tudo, de uma forma estruturada
1. No tocante ao perdão, creio que o trabalho de Marie Marshall Fortune é esclarecedor. Ver,
por ex., Sexual Violence: The Unmentionable Sin (Nova York: Pilgrim Press, 1983) e 'Jusnce- que torne aquilo passível de ser ouvido, de fato, saio dali renovado e
Making in Aftermath of Woman-Battering" em Domestic VlOlence on Tnal, ed. Damel Sonkm livre, Mas se não for possível praticar a lamentação, se não praticarmos
(Nova York: Springer Publishers, 1987), pp. 237-48. Ver Jeffne G. Murphy e Jean Hampton,
o d:scurso que se dirige ao trono do Divino, teremos que carregar
Forgiveness and Mercy (Camridge: Cambridge University Press, 1988) e Thomas R. Yoder Neu-
field, "Forgiveness and the Dangerous Few: The Biblical Basis" pronuncIamento para o Chns- aqUIlo pelo resto de nossas vidas. Este é um mundo de pessoas que
tian Counci! for Reconciliation em Montreal, em 18 de noVo de 1983, esperam pela oportunidade de falar no ouvido do Sagrado. O mistério
Morton MacCullum-Paterson sugeriu que o perdão pode envolver uma vontade de desistir é que, se dizemos tudo honestamente ao Divino, o Divino não se as-
da intenção de vingar-se, Pode envolver a vontade de deixar a questão nas mãos de Deus
para perdoar, A etimologia da palavra inglesa forgive no Novo Testamento, observa o autor, susta, não se ofende, não se afasta; ao contrário, Ele se aproxima [... l.
é entregar ou colocar de lado. Ver Toward ajustice That Heals (Toronto: The Umted Church Muitas pessoas na nossa cultura repressiva precisam constante permissão
Publishing House, 1988), p 56,
para e~pressar sua raiva, ódio, dores e medos. Dificilmente as pessoas
2, Sou grato a Dave Worth por esta distinção bastante útil.
cantamo hmos de louvor com a mesma liberdade, poder e energia se

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ALGUNS TEMAS COMUNS
ALGUNS 'TEMAS COMUNS

ão tiverem passado antes pela declaração integral de suas perdas, sares se valem de uma série de técnicas defensivas a fim de evitar a
~ofrimentos e dores. A tarefa pastoral é a de autorizar as pessoas a se culpa e manter seu sentido de valor próprio.
expressarem de modo a viabilizar essa tarefa [... l.
Um desses métodos é o que Michael Ignatieff chamou de "es-
Ot abalho da Igreia nào é o de dizer coisas boas, mas o de dizer a verdade. tratégias desculpadoras" para desviar ou negar sua culpa. 5 Eles talvez
r ~ verdade é a da dor. O Sa1mo 88 (87),e, um salmo
Algumas vezes a única . argumentem, por exemplo, que "todo mundo faz isso", ou que a
ara esses momentos. A verdade expressa por ele é uma 50: a dor e~ls­
~e e é preciso ventilar essa dor. No dia seguinte, talvez seja posSlVel vítima "mereceu", ou tem recursos de sobra para arcar com os pre-
juízos, ou ainda, que foram provocados além do razoável. Poderão
· um ba"lsamo , mas não sem antes ventilar a fenda. O Salmo
ap1lCar 'd 88
não vacila diante da dolorosa verdade de que há trechos da Vl a que adotar a linguagem do determinismo social e psicológico dizendo
são indizíveis 3 que "sou depravado porque sofri privações". Da mesma forma, a
tendência que os ofensores têm de sentirem-se obcecados com as
injustiças das quais se percebem vítimas pode ser um meio de se
A Igreja tem uma responsabilidade vital nesse.processo. Infeliz- isolarem do peso da culpa.
t amiúde ela tem procurado evitar a dor e dIspensar a lamen-
men e, ,. erdoar Para conseguirem conviver com a sua consciência, alguns ofen-
- Mas ao mesmo tempo em que pressiona as
taçao. . VItImas a'
p d, sores desenvolvem elaboradas fantasias sobre quem são e o que fize-
tem relutado em perdoar as vítimas por seus sentlmentos naturalS e
ram. Alguns quase criam duas personalidades, separando totalmente
raiva e hostilidade em relação ao ofensor, à sociedade e à Deus.
a pessoa culpada do restante de si mesmos.
Se a vítima precisa de uma vivência do perdão, ass~m também
r De que outra forma poderia encontrar. soluça0 'para sua Estou convencido de que a culpa está por trás de boa parte da
o Olensor. d 7 raiva manifestada pelos ofensores. A culpa aceita se torna raiva de
culpa? De que outro modo seguir adiante e constrmr um~ nova VI a.
Como desenvolver uma identidade saudável e um senndo de valor si próprio. A culpa negada pode se tornar raiva dos outros. De todo
modo tal raiva tem um grande potencial destrutivo.
próprio, como se salvar a não ser pelo perdãO?
Ao contrário do que em geral se pensa, os ofensores sentem cuI- Alguns argumentam que a culpa pode ser aliviada através da
a pelos atos que cometeram. Mas a sensação de cul~a pode ameaça~ punição. Aceitando a punição, a dívida fica paga e a culpa acaba.
pravemente seu sentido de valor próprio e sua IdentIdade. Um ~stu Seja isto verdadeiro ou não do ponto de vista teórico, o fato é que
~o concluiu que os ofensores são caracterizados por medos ternveIS, na realidade as coisas não funcionam assim. Para que a punição
e ue seu maior temor é o de ser um "zero à esquerda", ou seja, o alivie a culpa, ela deve ser percebida como legítima e merecida.
m~do da total falta de valor pessoa1. 4 Conseqúentemente, os ofen- Dificilmente isto ocorre na vida real. Além do mais, a idéia de
que o delito foi contra a sociedade e que a dívida deve ser paga
. . . . .. . . . . . . . . .. . . . . 8 bre os Salmos realizado em Toronto e citado em "A à sociedade raramente faz sentido para os ofensores. É uma idéia
3. Baseado em um workshop de 19 050 R lates to Cri:rünal]ustice", trabalho não publicado
Reflective Analysls on ReconClhbatllohn ~ I~ ~. nal Associations Active in Criminal ]ustice para por demais abstrata, e sua identificação com a sociedade dema-
preparado por um grupo de tra a o a a ~o siado limitada.
um workshop de 1987 em Ottawa no Canada. . ,
4. Ver David Kelley, "Stalking the Criminal Mind, Psychopaths, 'Moral ImbeClles , and Free ~ , ................. .
Will", Harpar\ ago. de 1985. ,. Ignatieff, "Imprisonment and the Need for Justice", op. cito

48 49
. "",.

ALGUNS TEMAS COMUNS

ALGUNS TEMAS COMUNS

Carecemos de rituais que reconheçam a dívida como tendo sido


confissão arrependo
saldada e a culpa expiada. Como aponta Ignatieff, o perdão deveria , lmento e reconciliação Parte d' d
tecer entre os indivíd . ISSO eve acon-
exonerar a dívida tão bem ou ainda melhor do que a punição. No en- Mas há tamb' IUOS e seu Deus, sua igreja, sua comunidade.
tanto, partimos do pressuposto de que é preciso castigar antes de po- em o re aCIOnamento da vítima com o r
relacio oiensor um
der perdoar. Na prática, administramos as punições de tal modo que depois ~:~~nto que, se não existia antes da ofensa, passou a e~istir
elas se tornam perniciosas e são percebidas como imerecidas, e depois
deixamos de oferecer oportunidades para que o perdão ocorra. Infelizmente o atual sistema de ]'Ustiça criml'nal _
pIa h d nao Contem-
Para que uma nova vida seja possível é preciso haver perdão e reco:~~ia~: ~ses ,est.ágios. Na verdade, o sistema desestimula a
confissão. Para que os ofensores voltem a ser pessoas íntegras, de- . . propno processo penal não dá espaço
vem confessar seus erros, admitir sua responsabilidade e reconhecer rependlmento, muito menos para o perdão Além . para o ar-
o mal que fizeram. Somente então é possível o arrependimento e a própria natureza, ele estimula os ofensores ~ negaredISSO , PelaI sua
se conce t m sua cu pa e
virada para começar de novo em outra direção. A confissão seguida ,. n rarem na Sua própria situação. Busca ativamente
de arrependimento é a chave para a cura dos ofensores - mas tam- ;tlma e o~en~or separados, realçando sua condição de advers:~::e:
bém podem trazer cura para as vítimas. esestlmu an_ o a busca de um entendimento comum sobre a ofensa
e sua reso luçao.
Nada disso - arrependimento, confissão e perdão por Deus ou
pela vítima - elimina as conseqüências das ações do ofensor. Um esta- Exemplo disso é um jovem ofensor que conheci há alguns anos
Enquanto cumpria sua .
do de graça não se obtém tão fácil. Restam as responsabilidades em re- I' pena, tornara-se cristão. Quando foi solto
lação à vítima. No entanto, é possível chegar à redenção e liberdade. pe o ofiCIal da condicional, ele conta que foi advertido' "S b
que você se t o m ' . a em os
O caminho para esta redenção, segundo muitos capelães e pes- ou um cnstão. Por isso talvez procure a vítim
soas que visitam prisioneiros, repousa no reconhecimento do nosso tentar acertar as coisas. Se você tentar chegar perto da 't' a ~ara
pecado e indignidade, já que o pecado nasce do amor próprio. 6 traremos de volta na mesma hora l " Est ' VI lma, nos o
'. a e uma reação comp ,
ve I, porém trágica. reenSl-
É verdade que muitas vezes falta aos ofensores um senso ético, no
sentido de uma preocupação com suas próprias necessidades combi-
nada com a inabilidade de se colocar na situação do outro. No entanto,
A questão do poder
acredito que essa preocupação consigo mesmo se funda, na verdade,
numa auto-imagem fraca, talvez em ódio de si. Se isto for verdadeiro, As quedstões do poder pessoal e da autonomia são centrais ao fenô-
a cura só será possível mediante a consciência de que são amados e meno o cnme e da l'us!' . - .
Iça, pOIS sao vlvenciadas tanto pel 'tO
têm valor - ao invés da confirmação de sua insignificância. como pelo ofensor. a VI lma
Em suma, tanto a vítima quanto o ofensor precisam de cura, e A negação da autonomia da vítima por parte do D '
esta só ocorrerá se forem oferecidas ocasiões para que haja perdão, boa parte o q E d " . o ensor e, em
. ' ue az a vltlmlzação algo tão traumátic P
inteIro . O. ara sermos
s preCIsamos estar no controle de nossas vid d .
6. Ver Gerald Austin McHugh, Christian Faith and Criminaljustice: Toward a Christian Respon-
se to Crime and Punishment (Nova York: Paulist Press, 1978), pp. 172 e ss.
,.5úb~to privados disso, de forma arbitrária e assus~sd:raes:l:os. De
encla nos desumaniza intensamente. Os ofensores tran ; xpen-
SlÜrmam as
50
51
ALGUNS TEMAS COMUNS
ALGUNS TEMAS COMUNS

vítimas em objetos, em "coisas", privando-as assim do poder sobre


Muitas vezes penso que a verdadeira linha divisória entre as
suas vidas, e esta é uma experiência profundamente degradante.
classes baixa e média-alta da nossa sociedade se desenha muito me-
Quando as pessoas são privadas de algo tão básico como seu
nos em função de educação e riqueza em si e muito mais pelo sen-
sentido de autonomia, buscam caminhos para reafirmá-lo. As víti-
tIdo de escolha e de poder. A maioria dentre os que crescem em
mas precisam recobrar esse senso de autonomia e o fazem de muitas
famílias das classes média e alta acredita que somos basicamente
maneiras. Para alguns basta "dar a volta por cima", viver bem, tor-
senhores de nosso próprio destino. Embora haja obstáculos, e em-
nar-se um sobrevivente. Para outros, o processo passa pela criação
bora a sorte e a providência desempenhem seu papel, acreditamos
de mecanismos de segurança ou outros modos de sentir que sua vida
que de fato temos escolhas, temos algum poder real de determinar
lhes pertence novamente. Alguns o fazem exigindo vingança e pu- o nosso futuro.
nição. Outros se empoderam através do perdão cristão. De qualquer
forma, a questão do poder pessoal - sua privação e reafirmação - é Muitas pessoas pobres não acreditam nisso. Na visão delas o
fundamental à experiência da vítima.
q~e lhes acontece deve-se mais ao acaso do que a algo que tenh~m
feno. Se o sucesso chega, deve-se mais à sorte do que ao esforço. Se
Essa questão está também no fulcro da experiência do ofensor.
são presos por um delito, isto se deve mais ao azar do que a algo
Muitas pessoas se sentem impotentes e insignificantes. Na nossa SOCle-
que tenham feito. Tenham ou não o poder de fazer escolhas reais
dade essa privação de um sentido de poder pessoal é vivenciada pelos
muitos não acreditam que podem, e isto é o mais significativo. Po;
rapazes como um ataque à sua masculinidade, já que masculinidade e
poder são freqüentemente equiparados. Uma forma de s:tl~~az~r ess~
sede de autonomia e de reagir à sensação de estar sendo Vlt1mlZado
pela sociedade é encontrando uma outra vítima para dominar. O. es-
t
I
isso, para muitas pessoas, o crime pode ser uma maneira de afirmar
seu senso de controle, algo que de outra forma lhes pareceria estar
faltando em sua vida.

Inúmeras pessoas crêem que as coisas lhes acontecem, não acre-


tupro homossexual na prisão é exemplo de tal fenômeno. Mas mUltos
crimes são uma forma distorcida de afirmação do próprio poder e ditando qu~ suas ações influenciem o futuro. Esta crença tem impor-
valor, uma tentativa desastrosa de auto-afirmação e auto-expressão. tantes ImplIcações para a questão de coibir a criminalidade. Para ser
coibido é preciso acreditar que suas ações se baseiam em escolhas
Será que as pessoas na nossa sociedade realmente têm tão pou~
que, por sua vez, afetam o futuro. Mas as entrevistas que Parker Ros-
co poder como acabo de sugerir? Certamente minha afirmativa vm
sman fez com jovens em conflito com a lei em Nova York oferecem
contra o mito americano da recompensa pela capacidade pessoal. um quadro diferente. 7
Todas as pessoas capazes que estiverem dispostas a trabalhar duro
podem se tornar alguém. Se não conseguirem, a culpa é delas. Alé~ Todos os dias esses jovens vêem pessoas inocentes sendo presas.
disso, o sucesso é medido em termos materiais. Poder e nqueza sao Todos os dias vêem pessoas culpadas em liberdade. Para eles prati-
as medidas básicas do sucesso e, portanto, do valor. Sem entrar na camente não há relação entre delito e punição. Ao contrário, na sua
discussão de se o mito da escolha individual e recompensa é verda- perspectiva a punição é mais ou menos como a chuva que às vezes
deiro ou não - sabendo que para muitos casos não é - o fato é que Cal, às vezes não cai: ela molha igualmente os justos e os injustos.

muito poucas pessoas pobres acreditam nesse mito, ao menos no seu A mmona dos jovens têm a expectativa de passar pela experiência
t •••••••••••••••••••

caso individual.
7. Parker Rossman, After Punishment What? (Cleveland; Collins, 1980).

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ALGUNS TEMAS COMUNS
ALGUNS TEMAS COMUNS

de ser pego e punido em algum momento da vida. Como tudo no


diferentes da sua. A centralização do poder no procurador de Justiça
futuro que enxergam, isto é algo que simplesmente acontece, e que
e no juiz talvez agrave o problema.
está sob o controle de forças totalmente irresistíveis.
Muitas pessoas na nossa sociedade carecem de um sentido de Em suma, o crime pode ser uma forma que o ofensor encontra
para afirmar seu poder e ganhar um sentido de valor pessoal. Mas o
poder pessoal, e o crime pode ser uma forma de afirmar esse poder.
crime tira de alguém seu sentido de poder pessoal. Para que a vítima
Nesse contexto, nosso remédio para alguém que roubou o poder
recobre sua inteireza, é preciso que lhe seja devolvida a autonomia.
pessoal de outra pessoa a fim de afirmar o próprio é bi~a.rro: nós rou-
bamos dele toda sua autonomia. O sistema judicial fOl mteuamente Para que o ofensor conquiste a inteireza, ele deve desenvolver Um
projetado para fazer exatamente isto: impressionar _o ofensor com o senso de autonomia que não se baseie em dominar os outros. E, no
poder do Estado e sua própria falta de poder. Eles sao t=atados com.o entanto, o processo penal intensifica o problema, privando tanto a
peças de um tabuleiro ao longo do processo. DepOls vao para a P=I- vítima como o ofensor de um sentido legítimo de poder enquanto
são onde continuam a ser privados do senso de poder e valor, a nao concentra o poder perigosamente nas mãos de uns poucos.
ser 'que consigam algum dentro da deturpada sub-cultura pris,i~nal. Passemos agora a explorar as semelhanças entre as experiências
Assim, eles resistem à "coerção" pelo mesmo motivo que as vItImas da vítima e do ofensor em termos um pouco diferentes.
resistem à vitimização, por lhes estar sendo negado um senso de O juiz Challeen observou em suas audiências que uma das
autonomia. Como podemos esperar, portanto, que os prisioneiros características de muitos ofensores é que, segundo os padrões da
saiam dali com um sentido de valor que não resulta do fato de do- sociedade, eles são fracassados ou perdedores. 9 As pessoas que se
minar os outroS?8 vêem como fracassados têm maior probabilidade de afirmar SUa
Também às vítimas é negado o poder ao longo do processo pe- identidade através do crime. Igualmente, têm menor probabilidade
naL Suas necessidades são ignoradas e elas ficam de fora do proces- de serem coibidos pelo medo das conseqüências que podem advir.
so, o que aprofunda o senso de vitimização. Challeen conclui, portanto, que o temor da punição não intimida
Tanto a vítima quanto o ofensor são privados de poder pelo aqueles que mais precisariam ser coibidos: os fracassados, os que
processo penal, com conseqüências danosas a ~mbos. Mas.a unila- têm muito pouco a perder, os que não se preocupam com os efeitos
da prisão e da punição.
teralidade do poder ao longo do processo tem mnda outras ImplIca-
ções. Uma concentração excessiva de poder pode levar os indivíduos No tocante às vítimas, o criminologista norueguês Nils Christie
à intoxicação, fazendo-os agir como se estivessem aClma da leI.. A observou que a vitimização não é uma "coisa" em si. lO Pelo contrário,
concentração de poder, em combinação com diferenças educaclO- depende da interpretação que o participante faz da situação. Diante
nais e de status social, muitas vezes impede que pessoas em papéis- da mesma experiência, algumas pessoas se definiriam como vítimas,
chave tenham empatia com os desprovidos de poder, sejam vítimas outras como perdedoras, e outras ainda como vitoriosas. O exato
ou ofensores. Muitas vezes não estão dispostos a ouvir perspectivas ....................
9. Dennis A. Challeen, Making it Right (Aberdeen, South Dakota: Milieus and Peterson,
1986), pp. II e ss.; 43 e 55 ..
.• 's' ·0·····:·· 'd'" Ri hard Kom "Crime Criminaljustice and Corrections", University of San Fran-
artlgo e c , , . _ d d
cis~o Law Review, de out. de 1971 é especialmente proveitoso no tocante a questao o po er. 10. Nils Christie, "The Ideal Victim", palestra não publicada, proferida no 33° Curso de
Criminologia, em Vancouver.

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ALGUNS TEMAS COMUNS
ALGUNS TEMAS COMUNS

modo como a "vítima" percebe a situação depende de uma série de


A mistificação do crime
fatores. Quando a pessoa entende que foi lesada, sabe identificar o
autor e o modo como aquilo aconteceu, provavelmente se perceberá O caso do rapaz que assaltou e feriu a moça ganhou bastante atenção
como uma vítima. Por outro lado, alguns estão acostumados a per- dentro da comunidade. Como na maioria desses casos, contudo, os
der a ser vítimas. Se não forem capazes de identificar o modo como acontecimentos e as pessoas envolvidas foram transformados pelo
for;m lesados e por quem, poderão interpretar a mesma experiência processo penal e pela mídia.
como uma perda a mais, uma prova a mais do seu fracasso. O rapaz traumatizado que cometeu o delito transformou-se
Tanto Christie como os sociólogos Richard Sennett e jonathan num criminoso e foi, portanto, tratado como uma abstração, através
Cobb argumentam que nossa sociedade tende a incentivar as pesso- de estereótipos. A moça ferida tornou-se uma vítima, mas Suas ne-
as marginalizadas a se enxergarem como perdedoras ao invés de víti- cessidades provavelmente receberam pouca ou nenhuma atenção.
mas. 11 As crianças da classe trabalhadora tendem a ver suas derrotas Os eventos se tornaram um crime, e o crime foi descrito e tratado
não como prova das limitações sociais que lhes são impostas, mas em termos simbólicos e jurídicos estranhos às pessoas envolvidas.
como fracassos pessoais. Assim, em especial os pobres acabam por Todo o processo foi mistificado e mitificado, tornando-se assim uma
se auto-definirem como perdedores ou fracassados. ferramenta útil a serviço da mídia e do processo político.
Indivíduos que se identificam como perdedores podem come- O "crime" é algo importante para a mídia. Estudos mostram que
ter crimes como forma de afirmação e auto-empoderamento. No isso se deve em parte ao fato de que os crimes vendem. As pessoas
entanto, em virtude de estarem acostumados a acreditar que não são atraídas pelo sensacionalismo. Mas a cobertura de crimes tem
têm o poder de determinar seu futuro e que as coisas simplesmente proeminência também porque é "notícia fácil". Diferente de outras
"acontecem", dificilmente serão coibidos pela ameaça de punição. O notícias, as que versam sobre o crime são fáceis de obter. Basta que
resultado disso é que se cria uma outra classe de vítimas: as vítimas o repórter fique em contato com a delegacia e o Ministério Público.
de crimes. No entanto, essa "notícia" muitas vezes é obtida de modo pouco
crítico. As notícias sobre crime em geral são aceitas de fontes oficiais
Algumas destas vítimas se identificarão com o rótulo de vítimas
sem questionamento ou verificação independente. Para ter acesso
do crime, mas algumas não. As pessoas que estão acostumadas ao
a elas os repórteres precisam manter boas relações com a polícia e
infortúnio e vivenciam a criminalidade diariamente provavelmente
o Ministério Público, e isto acaba por não fomentar a objetividade.
se definirão como perdedoras, enxergarão a vida como algo fora de
Assim, a notícia sobre o crime é vista através dos olhos do processo
seu controle, e verão o crime como mais um infortúnio. A vitimiza-
jurídico e seus profissionais. Uma notícia assim não é apenas unila-
ção simplesmente confirma sua condição. Nesse grupo podem sur-
teral, tende a fazer com que o crime seja abstraído de seu contexto
gir mais ofensores. E o ciclo se perpetua. e mistificado.
O crime é também importante ferramenta para os políticos, pois
.................... poderá servir de arma. Uma opinião sobre a criminalidade é uma
11. ]onathan Cobb e Richard Sennett, Hidden Injury Df Class (Nova York: Cambridge Uni- forma crucial de se "colocar" no contexto da sociedade. Trata-se de
versity Press, 1977).
um realista durão ou um idealista sonhador? Dar declaração sobre o
56
57
ALGUNS TEMAS COMUNS

crime é uma forma de se posicionar de um lado ou do outro, como


se viu nas eleições presidenciais estadunidenses de 1988.
Mas como vimos anteriormente, os problemas e eventos por trás
do que chamamos crime ficam ocultos. O processo é mistificado, mi-
tificado, até tomar-se algo maior e muito distante da vida. Ao longo
de todo esse processo, todos nós nos tornamos mais temerosos.
E tudo isso tem impacto sobre o nosso senso comunitário. Te-
mos várias escolhas diante do crime. Podemos nos reunir defensiva-
mente contra o "inimigo". Nesse caso o sentido de comunidade se Parte II
intensifica, mas esta será uma comunidade defensiva, excludente,
ameaçada. Ou podemos fugir para dentro de casas fortificadas, des-
confiando dos outros. Neste caso, o senso de comunidade, já fraco,
é ainda mais solapado.
o paradigma de justiça
A questão de como reagir diante do ato lesivo tem, portanto,
importantes implicações para o nosso futuro.

58
Capítulo 5

Justiça retributiva

Ao longo de todo o processo criminal as lesões e necessidades da


vítima e do ofensor são negligenciadas. Ou pior, as lesões podem
ser agravadas.
Dentro do processo, o fenômeno do crime se torna maior do
que a vida. O crime é mistificado e mitificado, criando-se um símbo-
lo que é facilmente manipulado por políticos e pela imprensa.
Muitos têm feito tentativas de reformular esse processo nos úl-
timos séculos. A conclusão de alguns de que "nada resolve", ou de
que nenhum bem pode advir desses esforços de reformulação, é im-
precisa. No entanto, muitas, senão a maioria dessas tentativas, têm
sido infrutíferas. Os esforços de reforma têm sido usados para servir
a propósitos muito diferentes daqueles originalmente visados. As
prisões mesmas foram originalmente criadas como alternativas mais
humanas aos castigos corporais e à pena de morte. O encarceramen-
to deveria atender às necessidades sociais de punição e proteção en-
quanto promovem a reeducação dos ofensores. Uns poucos anos de-
pois de sua implementação, as prisões tornaram-se sede de horrores
e nasceu o movimento para a reformulação do sistema prisional.
O reconhecimento da inadequação e mau uso das prisões logo
levou à busca de "alternativas" ao encarceramento. l Muitas variantes
tem sido introduzidas, mas seu histórico não é encorajador. Muitas
I' • • • • • • • • • • • • • • • • • •

1. Existe considerável literatura sobre a história e efeitos das "alternativas". Ver, por ex.:
Clvid T. Rothman, Conscience and Convenience: The Asylum and Its Alternatives in Progressive
Amerlca (Boston: Little, Brown, and Co., 1980) e M. Kay Harris, "Strategies, Values, and the
rlmerging Generation of Alternative to Incarceration", New York University Review of Law and
'Cclal Change, XII, n° 1, 1983-84, pp. 141-70.

61
.,..
I II

li
I

i
I
JUSTIÇA RETRIBUTIVA

vezes têm servido como alternativas a outras "alternativas" que não


as alternativas à prisão. Com demasiada freqüência têm servido de
, JUSTIÇA RETRIBUTIVA

dos com os direitos dos ofensores e as circunstâncias que levaram


ao crime. Por fim, acreditamos que liberais e conservadores adotam
alternativa à adoção de uma medida formal. As populações carcerá-
abordagens bem diferentes quanto ao crime e à justiça. 2
rias continuam a crescer ao mesmo tempo em que as "alternativas"
No entanto, esses dois "opostos" na verdade não diferem tanto
também crescem, aumentando o número de pessoas sob o controle
e supervisão do Estado. A rede de controle e intervenção se ampliou, assim um do outro. Depois de uma análise mais detida, descobrimos
que a maioria de nós partilha dos mesmos pressupostos e idéias que
aprofundou e estendeu, mas sem efeito perceptível sobre o crime e
transcendem os rótulos de liberal e conservador. Alguns desses pres-
sem atender às necessidades essenciais de vítima e ofensor.
supostos estão corporificados na lei penal, alguns não estão. Mas é
Por que isto ocorre? Por que as necessidades daqueles mais en- importante compreender quais são.
volvidos com o crime - sejam vítimas ou ofensores - são tão irre-
levantes ao processo de "justiça"? Por que as mudanças que visam Quando identificamos algo com um crime, vários pressupostos
básicos contribuem para formar nossa reação. Nós presumimos que:
reformas não conseguem alterar esse padrão? As respostas a estas
perguntas repousam em nossa compreensão partilhada do que sejam
o crime e a justiça. Uma mudança verdadeira só será possível se nos 1. A culpa deve ser estabelecida.
debruçarmos sobre essas definições e pressupostos fundamentais. 2. A justiça deve vencer.
Existem de fato pressupostos comuns sobre o que sejam o crime 3. A justiça passa necessariamente pela imposição de dor.
e a justiça? Na superfície encontramos bastante diversidade, mesmo 4. Ajustiça é medida pelo processo.
entre os profissionais do direito criminal. Dentre os juízes, por exem-
5. A violação da lei define o crime.
plo, encontramos grande variedade de percepções sobre que resulta-
dos são apropriados e por quê. Esta é uma das principais razões para
a grave falta de uniformidade dentre as sentenças. Essa diversidade Examinamos esses pressupostos mais detidamen.te.
filosófica e de opiniões vêm sendo apontada por estudos em que os
juízes recebem relatos de casos idênticos e são solicitados a indicar
qual seriam suas sentenças. A gama de resultados é espantosa. Cada Estabelecimento da culpa
juiz, cada promotor, cada oficial de condicional opera segundo sua A questão da culpa é o fulcro de todo o processo penal. O estabele-
própria compreensão do que é apropriado, algo que varia muito. cimento da culpa é a atividade central e tudo gira em torno ou flui a
Portanto, o entendimento do que deve ser feito a respeito do partir desse evento.
crime é bastante diversificado. Nos Estados Unidos as pessoas em Dada sua importância, e visto que as conseqüências não são
geral usam as palavras liberal e conservador para dar conta dessa di- poucas, regras bastante elaboradas governam o estabelecimento da
versidade. Espera-se que os conservadores exijam punição rápida, ....................
inescapável e dura, reprovem leis que protejam os direitos dos ofen- 2. As abordagens liberal e conservadora são exploradas com grande proveito no livro de
sores e enfatizem a decisão de cometer o crime enquanto minimizam Elhott Cume, Confronting Crime: An American Dílemma (Nova York: Pantheon Books, 1985).
as circunstâncias. Espera-se que os liberais estejam mais preocupa- Ver Nils Christie, "Crime, Pain, and Death", em New perspectives on Crime andjustice, Issue n0 1
(Akron: Mennonite Central Committee, 1984).

62
63
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
JUSTIÇA RETRIBUTIVA

culpa. Uma vez estabelecida a culpa, diminui a preocupação com no, as acusações podem resultar de negociações entre seu advogado e
salvaguardas processuais e direitos. o promotor. Mesmo se ele cometeu um delito, poderá não ser juridi-
A centralidade da culpa significa que o resultado final recebe camente culpado e será aconselhado a declarar-se "inocente". Assim,
menos atenção. A educação jurídica concentra-se nas regras e pro- ele talvez comece a acreditar que de fato não é culpado. E mesmo que
cessos relativos à culpa, e os estudantes de direito recebem pouca ele seja juridicamente culpado, seu advogado talvez o aconselhe a de-
instrução no tocante à negociação e desenho da sentença. Portanto, clarar-se "inocente". Na linguagem jurídica "inocente" significa "quero
poucos juízes e ainda menos advogados estudaram a fundo sobre o um julgamento" ou "preciso de mais tempo". Tudo isto tende a nublar
resultado apropriado para os processos penais. a realidade ética e vivencial da culpa e da inocência.
Nossa preocupação com a determinação da culpa significa que Legalmente, culpa e inocência são mutuamente excludentes.
tendemos a focalizar o passado. O que aconteceu? Quem fez? Estas A gravidade do delito pode variar, mas no final não há graus de
perguntas têm precedência sobre a questão do que fazer para resolver culpa. Ou se é culpado ou não. Alguns ganham e outros perdem.
os problemas que o ofensor criou (e os problemas que levaram à ofen- Nils Christie identifica bem as implicações disso: "Pensamos que
sa). Os profissionais da lei dedicam pouco tempo às coisas que podem as cortes ensinam e sustentam as normas sociais, mas na verdade a
ser feitas para prevenir a reincidência e os problemas futuros. mensagem oculta que passam é que as pessoas podem ser avaliadas
O conceito de culpa que guia o processo judicial é limitado, em termos de dicotomias simplistas".4
altamente técnico e tem natureza primariamente "objetiva" ou des-
Embora o conceito de culpa do jurista seja técnico e descritivo,
critiva. O acusado cometeu os atos descritos em lei? Ele ou ela tinha
Um ofensor poderá ter contato com profissionais cuja perspectiva é
intenção de cometer tal ato? Os atos são contrários à lei? A culpa
mais "prescritiva", nas palavras do teólogo Tom Yoder Neufeld. Tal
legal questiona somente se a pessoa acusada de fato cometeu aquele
conceito de culpa ou responsabilidade preocupa-se mais com a ex-
ato e, em caso positivo, se esta pessoa é imputável diante da lei.
plicação de por que a ofensa aconteceu, focalizando sua causalidade
Dentro do sistema jurídico, a transgressão e as questões de cul- e previsibilidade, normalmente em termos sociais e psicológicos. 5
pa são colocadas de uma forma muito diferente daquela como são
O psicólogo, por exemplo, abordará o conceito de culpa em
I; vivenciadas pela vítima e pelo ofensor na realidade. A denúncia po-
termos que não são jurídicos nem morais. De fato, é provável que o
I derá guardar pouca semelhança com a ofensa de fato cometida, e a
I'!I psicólogo evite esse termo e busque determinar que fatores psicoló-
linguagem de culpa e inocência poderá ter pouca relação com o que
gicos levaram ao delito, talvez vendo o comportamento como evi-
I de fato aconteceu. Como inúmeros defensores do sistema reconhe-
II I dência de doença ou grave disfunção. O sociólogo poderá focalizar
ceram recentemente, "A culpa legal e não a culpa factual [. .. ] é o
as causas e padrões em termos de forças sociais dentro da família,
, I
fundamento do processo pena1" .3
'"
I
O acusado logo percebe isto. Ele poderá ser acusado de algo que 4. Nils Christie, Limíts to Pain (Oslo: Universitetsforlaget, 1981), p, 45.
II soa muito diferente do que ele fez. No sistema jurídico norte-america- 5. Esta discussão da culpa se baseia em grande parte na obra de Tom Yoder Newfeld, Guílt
"
and Humanness: The Significance of Guilt for the Humanization of the judicial-Correctional System
'I (Kmgston: Queen:S Theological College, 1982). Ver McHugh, Christian Faith and Criminal jus-
3. Donald R. Ranish e David Shichor, "The Victim's Role in the Penal Process: Recent Deve- ttee, capo 7 e Patrick Kerans, Punishment vs. Reconciliation: Retributive justice and Social justice in
lopments in California", Federal Probatíon, XLIX, nO 1 (mar. 1985), p. 55. the Light of Social Ethics (Kingston: Queen's Theological College, 1982).

I 64 65
ti 11,
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
JUSTIÇA RETRIBUTIVA

da comunidade ou da sociedade em geral. Enquanto o jurista tratará jurídicos, o processo o incentivará a negar sua culpa salvo S I r
o ofensor como indivíduo autônomo que faz escolhas mais ou me- . , e e e lOr
tecmcamente culpado ou não tiver outra escolha Ao mesmo
nos conscientes, cientistas sociais e comportamentais o verão como . . tempo,
ele pode ser atendIdo por um psicólogo ou terapeuta que o ajudará a
ao menos parcialmente sob a influência de forças mais abrangentes. compreender seu comportamento em termos psicológicos ta] .
Tal perspectiva levanta questões sobre a medida da responsabIlIdade . , vez SI-
lenClando seu sentido de responsabilidade pessoal Ele poder' . d
pessoal do ofensor, e talvez sobre o grau em que ele é vítima ao invés . ,aam a
encontrar pela frente um capelão que falará de culpa em terln
. . ·'LOS mo-
de ofensor. raIS e aInda de perdão, graça e a bondade de Deus Este capeI" I
. . 40 ta vez
Enquanto especialistas como juristas e cientistas sociais anali~a~ sugIra que sua culpa é real, não apenas técnica mas que é p . I
' OSSIve
rão a questão da culpa à sua moda, uma terceira perspectlva tmgIra encontrar uma SOlução. E haverá ainda outras pessoas como
. , os car-
os pensamentos da maioria das pessoas - incluindo muitos profis- cereIros, que passarão o conceito popular de culpa segundo o I
I · - 'qua a
sionais da justiça criminal. Trata-se de um conceito mais moralIsta cu pa e real e nao passa - o ofensor é, de fato, uma pessoa "l1J.á"
ou "imputativo". Na visão popular, a culpa não é mera~ente uma Qual o significado verdadeiro da culpa 7 Como pode um or
descrição de comportamento, mas uma afirmação de quahdade mo- . Lensor
compreender a sua ação? Ele ou ela são de fato ofensores ou s' ..
ral. A culpa diz algo sobre a qualidade da pessoa que praticou o 7E . . élO VItI-
mas. Xlste culpa? Culpa de quê? E possível superar isto e reco"., 7
ato e tem uma característica indelével e bastante "adesiva". A culpa 'ueçar.
Como aponta Neufeld, os ofensores são constantemente conf
ad~re à pessoa de modo mais ou menos permanente, e ~á ~oucos ranta-
dos pela terminologia da culpa, mas nega-se a eles a linguagem e a
solventes conhecidos. Em geral ela se torna uma caractenstlCa pn- clareza de significa~o q~e permitiriam atingir a compreensão plena
mária que define a pessoa. A pessoa culpada de um roubo se torna do que ocorreu. Alem dISSO, faltam mecanismos de resolução.
um ladrão, um criminoso. Uma pessoa que foi aprisionada se torna
Os conceitos jurídicos e populares de culpa que governatn nos-
um ex-presidiário, um ex-criminoso, e isso passa a fazer parte de sua
sas reações ao crime são confusos e por vezes até contradi·t. .
identidade, sendo difícil de eliminar. • . onos,
mas eles tem uma COIsa em comum: são altamente individualisl O
O jovem ofensor do caso que narrei será para sempre afeta~o e . . d ~.
SIstema jurí ico e valores ocidentais são em geral ditados pela
definido pelo delito que cometeu, não importando as boas quahda- . '. crença
no mdIVlduo como agente livre. Se alguém comete um cri'"
des que tenha ou venha a desenvolver. O fato de ter cometido um ",e, esta
pessoa o fez porque quis. Portanto a punição é merecida visto
delito definirá suas possibilidades de emprego, seu potenClal profis- . . '. . '. 'quea
escolha fOI lIvre. Os mdlVlduos respondem pessoal e individualmen_
sional e o resto de sua vida. Sua culpa Ce não seus outros atributos) te por seus atos. A culpa é individual.
determinará seu futuro. Nada dentro do processo criminal permitirá
O pressuposto básico da liberdade humana e da responsabilida_
a superação desse fato - nem mesmo o pagamento da "dívida para
de pessoal é importante. Obviamente, o determinismo é inaceitável.
com a sociedade" através do cumprimento da pena. Mesmo assim, existem problemas quanto às formas assumid
O conceito jurídico de culpa é, portanto, altamente técnico e . as por
nossos pressupostos sobre a lIberdade e a responsabilidade n I
distante da experiência da vida real. No entanto, muitos conceitos tura ocidental. a cu-
de culpa operam num mesmo caso, o que pode confundir bastante
Há abundante evidência no sentido de que os ofensores]h .
o ofensor. Seu advogado conversará com ele sobre culpa em termos ,,,UItas
vezes não agem livremente ou, pelo menos, não se percebelll Como

66 67
"K,..H ..
- .......

JUSTIÇA RETRIBUTlVA JUSTIÇA RETRIBUTIVA

capazes de agir livremente. Como sugeri no capitulo anterior, mui- tam ser possuidores de tal liberdade. Partimos do pressuposto de
tas pessoas na nossa sociedade não se vêem como agentes livres, na que têm a capacidade de prever conseqüências remotas. Presumi-
direção de suas próprias vidas. Pelo contrário, vêem-se como sendo mos que sejam capazes de fazer a ligação entre comportamento e
moldados por forças praticamente irresistíveis - seja por fatores só- conseqüências. Além disso, ignoramos a natureza da ação incorreta
cioeconômicos ou pela providência. Nesse contexto as idéias sobre enquanto padrão complexo de comportamento. Por fim, ignoramos
liberdade humana e conseqüente responsabilidade assumem neces- o contexto social, econômico e psicológico no qual a ação se deu.
sariamente um colorido diferente. Por isso, a justiça para os ofensores é conduzida sem referência à
A compreensão atomística da culpa e responsabilidade também justiça social e sem questionar o status quo. A punição será merecida,
deixa de fora o contexto comportamenta1. Embora cada um de nós haja ou não o contexto de justiça social.
seja responsável pelas escolhas que fazemos, o contexto social e psi- Talvez esta concepção de culpa seja inevitável numa cultura in-
cológico no qual nos encontramos certamente influencia nossas es- dividualista e competitiva que define o valor em termos de sucesso
colhas, sejam as atuais ou as potenciais. O contexto social, econômi- material e social, e que define o sucesso e o fracasso em termos pura-
co, político e psicológico do comportamento é de fato importante, mente individuais. As pessoas são julgadas em função de seu acesso
mas nosso conceito individualista de culpa ignora o contexto. à riqueza e ao poder. Aqueles que não conseguem ter sucesso são
A motivação para agir de forma errada é bem mais complexa individualmente responsáveis por isso. Eles não apenas perderam,
do que reconhece nossa abordagem individualista. O apóstolo Pau- mas são perdedores. O mesmo vale para a culpa. A culpa é definida
lo certamente reconheceu a complexidade da responsabilidade pelo como um defeito individual. O contexto do comportamento indivi-
I
, I
ato lesivo. Embora entendesse que os seres humanos fazem escolhas dual é ignorado. Os ofensores tiveram várias oportunidades e, tendo
e são responsáveis por seu comportamento, ele reconheceu que a escolhido as erradas, são rotulados como culpados.
imagem simplista de uma pessoa enquanto agente totalmente livre Resumindo, portanto, a fixação da culpa é central à nossa noção
não faz justiça à presença generalizada do poder do mal. Na Carta de justiça. A administração da justiça é uma espécie de teatro no
aos Romanos, capítulo 7, Paulo se angustia diante do poder do mal qual os temas culpa e inocência predominam. O julgamento ou a
em sua vida, falando sobre sua própria tendência de fazer o que não confissão de culpa formam o clímax dramático, tendo a sentença
devia. Ali ele sugere que há uma diferença entre a liberdade real e como desenlace. Assim, a justiça se preocupa com o passado em
potencial, vendo a liberdade como uma dádiva e não algo intrínseco detrimento do futuro.
ao indivíduo. A ação incorreta pode ser um padrão moldado por O conceito legal de culpa que orienta o processo judicial é al-
forças diversas, algumas das quais resultam de escolhas e outras não. tamente técnico, abstraído da experiência, e isto faz com que seja
Tais padrões de comportamento podem ser difíceis de mudar. mais fácil para o ofensor negar a responsabilidade pelo seu próprio
Em função de nosso conceito individualista de culpa e liberda- comportamento. Também frustra as vítimas, que têm dificuldades
de, presumimos que o indivíduo é livre para fazer escolhas e prevê para casar a descrição jurídica dos fatos com sua própria experiên-
as conseqüências dessas mesmas escolhas. Presumimos que a pessoa cia. Mas tanto vítima quanto ofensor são obrigados a falar a lingua-
modificou seu comportamento levando isso em consideração. Esses gem do "sistema", definindo sua realidade em termos que não lhes
pressupostos passam ao largo da questão de se indivíduos acredi- são próprios.

68 69
II

I JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RETRIBUTIVA


11I
ii
Illi
Devido a essa definição estrita de culpa, centrada no compor- N o seu .trabalho
b sobre justiça criminal a canadense Rena te Moh r
11i
III tamento individual, acabamos por ignorar as raízes e o contexto só- col ocou mUlto em essa questão:
I:I~I cioeconômico do crime. Assim, intentamos criar a justiça deixando
1III de fora muitas variáveis relevantes. Pelo fato da culpa ser vista em
Ili dComo éd que punimos? Isto é feito de tal forma que nenh um mdIVÍ- . .
II termos excludentes, promovemos uma visão simplista do mundo uo po e ser responsabilizado pela privação de liberd d d
que tende a isolar o bem do mal, eles de nós. A justiça se torna um O' d" a e e outrem
c SIstema ' e. Justiça criminal [... ] foi projetado como uma sene " .de'
1i
J
II teatro de culpa, uma peça sobre moralidade que nos permite adotar
, "
ompartlmentos
" . Isolados e contidos em si mesmos O
. que faz a de-
1i
I uma visão simplista do mundo. nunCIa, o que contesta a denúncia, o que a pronuncI'a sentença o
I1 I q
1
I
Mas o conceito jurídico de culpa funciona junto com vários ou- n ue hexecuta a sentença são todos pessoas distintas que t'em pouco 'ou
I1 tros conceitos. Esse fato em si causa bastante confusão e pode ajudar en
1 um contato entre si ou com o réu. Há uma pa1avra espeClal . para
1
o ofensor a negar responsabilidade pelo ato. Alguns desses pressu- se ar o. compartimento
_ 1 do juiz. Tendo cumprido sua fu - d .
nçao e lmpor
a pumçao, e es se declaram functus. Isto significa q d
111I postos - como a qualidade indelével da culpa - têm conseqüências não precisam, aliás, não devem [... ] se preocupar uce oravdante eles
. om as ores da
:I~ graves e de longa duração para o ofensor. pena que
II II
. I'Impuseram
. . a outro ser humano. E assim o p rocesso garante
Aquele que cometeu o delito deve ser responsabilizado pelos que a VlO enCIa sep imposta aos outros diariamente sem h
IIIII . d' "d que nen um
seus atos. Uma das dimensões da responsabilidade é compreender m IVl uo tenha que assumir responsabilidade por isso. 6
II"1
e assumir a autoria da ação incorreta. No entanto, nossas noções de
I1I
I1 culpa não estimulam esse tipo de responsabilidade e, na pior das
1I A vitória da justiça e a dor
iI I1
hipóteses, dificultam. A falta de procedimentos para solucionar a
,
II culpa fomenta o uso de "estratégias desculpadoras", como a racio-
"

I II Uma vez estabelecida a culpa, um segundo pressuposto entra em


nalização e os estereótipos, como forma de evitar o pesado fardo da
" '
cena. PresumImos que os ofensores devem receber o "]. usto castigo"
.
': I culpa. Uma outra hipótese é que o ofensor poderá ser motivado a A' .
]U~tIça d~ve prevalecer e o ofensor deve aceitar e pagar "olho .
:1
II
. po~
adotar a profecia contida no rótulo atribuído a ele.
, olho . O cnme cria uma dívida moral que deve ser paga
II Enquanto o processo se concentra nas questões da culpa e da um pro d I ' e a]ustlça e
I I1 cesso que evo ve o equilíbrio à balança É com '.
I responsabilidade do réu, tende também a dispersar a responsabili- uma bal f . . o se eXIstIsse
I1 ança meta ISlca no universo que foi desequilib d .
I1 dade pelos resultados e negar questões de responsabilidade coletiva ser corrigida. ra a e preCIsa
I
I pelos delitos. Os principais tomadores de decisão (advogados, pro-
Esse conceito de justiça tende a focalizar abstrações a . "
motores, juízes, oficiais de condicional) são estimulados a se enxer-
de se concentrar no mal que foi feito . Parte d o pressuposto de
o mves
I 1

1
garem como executores da lei que estão cumprindo um dever. Eles
são levados a atribuírem a responsabilidade pelo desfecho do caso
em cada caso, o necessário para acertar as contas é algo
atingível P . d
h'd'
que
con eCI o e
. resume, am a, que o necessário para ajustar essa balan a
il\ como sendo do "sistema". Isto significa que aqueles que "fazem" .................... ç
lill justiça podem negar sua responsabilidade pessoal pelos resultados. 6. Renate M. Mohr, "A Femlmsts
, . , Analysls
' of the Obiectiv d AI
I Igualmente, não são estimulados a reconhecer aquilo que têm em ment", em trabalho não publicado apresentad
C' . I L
nmma aw Reform, Ottawa, 1987.
C ~ es an ternatives Re:Punish-
o na onlerence on Femin' p
1St erspectives on
I11 comum com os ofensores enquanto seres humanos.
11
I
111
70 71
1I
II1
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RETRIBUTIVA

, . - As autoridades do ramo judiciário vêem seu traba- Não gostamos de dor e vingança e certamente não queremos
e uma pumçao. . - O ofensores
lho como o de dispensar níveis adequados de p~mçao. _s ser vistos como a pessoa que inflige a dor e, portanto, escondemos e
são levados a acreditar que, ao aceitar a pumçao, estarao pagando encobrimos o fato. No entanto, é isto que fazemos ao fazer "justiça".
sua dívida com a sociedade. . Infligimos dor como resposta ao crime.

Mas a um exame maI's detido , vê-se que os ofensores têm dIficul- Mas a punição é papel de profissionais e acontece longe da nos-
d f "g ndo sua sa vista. Camuflamos essa realidade com uma série de explicações e
d ades em acreditar que dessa maneira estarão e ato pa a h '
. b -
dívida". O "pagamento" é demasIado a strato e nao a h' um recon eCl- termos. Falamos de "centros correcionais" ao invés de prisões, e de
"agentes correcionais" ao invés de guardas.
e to público no final, quando a dívida já foi paga. Esse pagamento
:ã: traz grande benefício para a comunidade. Aliás, custa mUlto ~- Inventamos uma série de motivos para infligir dor. Algumas ve-
. ma comunidade. Passar ao ofensor a mensagem e zes é imposta como terapia, para levar à reabilitação. Muitas vezes a
n h eIro a essa mes - b'"
que "você fez mal a alguém então nós faremos mal a voce tam em impomos a fim de prevenir crimes, intimidar o ofensor e coibir outros
simplesmente aumenta a quantidade de mal neste mundo: ., ofensores em potencial. Administramos a dor em nome da prevenção,
Culpa e punição são os fulcros gêmeos do sistema JudIcIal. As muito embora seu poder de intimidação e sua eficácia sejam bastante
pessoas devem sofrer por causa do sofrimento que provocaram. So- discutíveis. E o fazemos apesar do fato de que é eticamente questioná-
vel infligir dor a uma pessoa a fim de possivelmente coibir outras. Infli-
mente pela dor terão sido acertadas as contas.
gimos a dor mesmo que ela possa ter pouca relevância para as necessi-
Devemos ser honestos no uso d a I'mguagem. Quando falamos
, . dades da vítima ou para a solução dos problemas cIiados pela ofensa.
de punição estamos falando de infligir dor a alguém, d~ prodPodslt~. Nós administramos a dor, como observa John Lampen da Irlanda do
Nils Christie nos ajuda a ver que a 1eI. pena1 é de fato a.,leI a d or, Norte, porque fomos educados para acreditar que a humilhação e o
pois se trata de um elaborado mecanismo para admmIstrar oses
sofrimento são da natureza da justiça, e que o mal deve ser contido
7
"justas" de dor. , pela violência ao invés do amor e da compreensão. 9
Em geral procuramos esconder essa realidade. A no~sa e uma Ironicamente, esse foco em infligir dor pode interferir com o pri-
cultura que busca evitar a realidade da dor. Tentam~s bamr a, modrte meiro foco, o do estabelecimento da culpa. Por causa da ameaça de
. e a entregamos a profissionaIs. Tambem a-
de nossas consciênCIas punição os ofensores relutam em admitir a verdade. Pelo fato das con-
mos a ela outros nomes, dizendo que as pessoas "falecem" em vez seqüências punitivas serem tão graves, são necessárias elaboradas sal-
de morrer. 8 . vaguardas de direitos do ofensor, que podem tornar o caminho até a
'I
O desconforto gerado pela imposição de dor ao outro é comph- f verdade bem mais difícil. Também juízes e jurados poderão achar mais
cado pelo tabu contra a vingança enquanto motivação. Por sdua v~;, difícil condenar um ofensor se a possível punição for muito severa.
.
IStO aumenta a neceSSI'dade de J'ustificar e negar a natureza aqUI o Os corolários da vitória da justiça e da imposição da dor são
que estamos fazendo. esses: os ofensores se vêem presos num mundo em que reina a regra
do "olho por olho". Isto, por sua vez, tende a confirmar a perspectiva
... 'j'
7. Christie, Limits to Pain.
8. Christie, Crime, Pain and Death. 9. John Lampen, Mending Hurts (Londres: Quaker Home Service, 1987), pp. 61-67 e ss.

72 73
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JusrrçA RETRIBUTIVA

e experiência de vida de muitos ofensores. Os males deve~ ser pa- precedência sobre o mérito. Foram obedecidos os procedimentos e
gos por males, e aqueles que cometeram ofensas n:erecem vmg_ança. regras corretas? Então foi feita justiça.
Muitos crimes são cometidos por pessoas que tem a mtençao de O procedimento recursal nos Estados Unidos é exemplo disso.
"punir" sua família, vizinhos ou conhecidos. Somente em circunstâncias especiais é que se pode recorrer das
Estudos feitos sobre a pena de morte não conseguiram encon- sentenças no tocante ao mérito ou fundamentos de fato. Na sua
trar provas de que a pena máxima coíba o crime. Algumas evidências maioria as apelações se concentram na observância ou não do pro-
mostram que o exemplo da pena de morte na verdade leva algumas cedimento correto. O tribunal superior não examina as evidências
pessoas a cometer assassinato. 10 Aparentemente, alguns ofensores ·i
do caso em si.
não percebem que matar é errado, mas entendem que aqueles que Várias características desse processo são dignas de nota:
erram merecem morrer. A mensagem de que os ofensores _devem
Ele é adversarial, ou seja, parte do pressuposto - e fomenta _ o
pagar, e que o pagamento é a punição, pode ensinar uma hçao bem
conflito de interesses entre as partes. O processo supõe que através
diferente daquela que pretendemos.
do conflito regulado entre interesses opostos a verdade emergirá,
Há muito se reconhece que a ameaça de infligir dor àqueles que
tendo sido salvaguardados os direitos das partes. Pressupõe inte-
desobedecem está na base do sistema jurídico moderno. A essência
resses irreconciliáveis e depois não mede esforços para garantir que
do Estado é muitas vezes descrita por cientistas sociais como o, '?e-
sejam de fato irreconciliáveis. A justiça adversarial tende a tornar-se
gítimo" monopólio da violência. Como obs~rvou 0_ filósofo pohtlCO uma profecia que cumpre a si mesma.
J. W. Mohr, as instituições e métodos do duelto sao, ~sslm, part~~
integrantes do ciclo da violência ao invés de uma soluça0 para ela. Jerold Auerbach, em sua história da solução de disputas nos
Estados Unidos, apontou de modo eloqüente que o processo segue
também um modelo de individualismo e competição extremos. Ele
o processo não apenas nasce de uma sociedade fragmentada e competitiva, mas
também a fomenta. 13
O objetivo básico de nosso processo penal é a determinação da c~lpa
e uma vez estabelecida, a administração da dor. Contudo, segumdo Esse modelo tem qualidades, mas no fundo é um modelo de
a' direção apontada pelo antigo direito romano, a justiça é defimda guerra, trata-se de um duelo bem regulamentado. Não é por acaso,
pelo processo mais do que pelo seu resultado. 12 O procedimento tem portanto, que os políticos e os aplicadores e sancionadores da lei
falem tão freqüentemente sobre a "guerra ao crime".
.. ~.~ ..~ ... ~~. '~i;liam J. Bowers e Glenn L. Pierce, "Deterrence or Brutalization: What is the
Liberais e conservadores nos Estados Unidos divergem quan-
Effe~t O~rEx~~UtiOns?", em Crime and Delinquency, 26, n° 4 (out. de 1980), pp. 453-84 ..
11.]. W Mohr, "Causes of Violence: A Socio-Legal Perspective", trabalho não pubh~do to ao foco, mas ambos entendem a justiça como um conflito que
apresentado na conferência da John Howard Society ''VlOlence m Contemporary Cana lan obedece a regras. Os conservadores, ao defenderem o que foi cha-
Society" em Ottawa, 1986. . . _ . mado de orientação para o "controle do crime" tendem a dar mais
12' E 1983 a Suprema Corte dos Estados Unidos chegou a deCldlr que a observanCla do
. m
procedimento _ mesmo que um condenado à morte
correto pode justificar a execuçao _ . apresente
b d
novas rovas de sua inocência. Proveitosa com relação a est: e outras questoes : a o ra e 13. Jerold S. Auerbach, justice Without Law? (Nova York: Oxford University Press, 1983),
Herma~ Bianchi. Ver, por ex., seu manuscrito não pubhcado justlce as Sanctuary . pp. 138 e 55.

74 75
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
T ,
JUSTIÇA RETRIBUTIVA

prioridade ao combate ao crime (note os termos usados) do que aos Portanto, tendemos a definir a justiça como um procedimento
direitos do réu. Os liberais, por outro lado, vêm enfatIzando a cen- que rege uma batalha ou jogO.14 Enfatizamos a intenção de tratar as
tralidade dos direitos individuais - um modelo regido pelo "devido pessoas com igualdade no processo, ignorando a desigualdade de
procedimento". Mas ambos presumem que a justiça se trata de uma circunstâncias e não nos preocupando com a igualdade dos resulta-
batalha regulamentada entre partes hostis. dos. Dependemos totalmente de procuradores ao longo de todo esse
Diante dessa ênfase nas regras e procedimentos, a isonomia ga- complexo procedimento.
nha prioridade como teste de justiça. A intenção é de que os réus
recebam tratamento igual. É preciso notar duas características dessa
ênfase na isonomia. Em primeiro lugar, ela recai mais sobre a in-
o crime como violação da lei
tenção do que sobre o resultado. Na prática, mesmo uma igual~ade Na nossa sociedade a justiça é definida como aplicação da lei. O
aproximada de resultados é difícil de obter, como se vê ~a~ dIS?a- crime é definido pela violação ou infração de uma lei.
ridades radicais evidentes no universo das populações pnslOnaIs e
Ao invés de focalizarmos o dano efetivamente causado ou a ex-
.

que esperam o cumprimento da sentença de morte. Mas é difícil .i.r;
, periência vivida por vítima e ofensor, nos concentramos no ato da
questionar esses resultados, já que não há como provar que houve
violação da lei. O que define a ofensa e dá início ao processo crimi-
intenção de tratar os réus de forma desigual. nal é este cometer um ato definido em lei como crime - e não o dano
A justiça é retratada como uma deusa vendada que segura uma ou o conflito.
balança. Portanto, seu foco está na isonomia do processo, não nas
A ênfase no ato de violar a norma de direito penal é o que per-
circunstâncias de fato. O processo penal visa ignorar diferenças so-
mite que tanto ofensa como culpa sejam definidas em termos estri-
ciais, econômicas e políticas, procurando tratar todos os ofensores
tamente legais. Como mencionado anteriormente, as questões éticas
como se fossem iguais perante a lei. Como o processo busca tratar os
e sociais tornam-se secundárias e, em alguns casos, até irrelevantes.
desiguais igualmente, as desigualdades sociais e políticas existentes
O contexto do ato é desconsiderado exceto na medida de suas impli-
são ignoradas e mantidas. De forma paradoxal, a justiça acaba man-
cações legais. Como Christie acertadamente apontou:
tendo desigualdades em nome da igualdade.
O processo penal, enredado nas muitas voltas de suas comple-
A educação jurídica é um treinamento em simplificações. É uma inca-
xas regras, depende de procuradores profissionais que representem
pacidade aprendida que faz com que o profissional, em vez de olhar
o réu e o Estado. Isto, por sua vez, afasta o processo de justiça dos
todos os valores de uma situação, selecione somente os que têm rele-
indivíduos e da comunidade que foram afetados pelo delito. Vítima
vância juridica, ou seja, aqueles definidos pelos altos escalões do siste-
e ofensor tornam-se espectadores que não participam de seu próprio ma como sendo relevantes. 15
processo. Daí nasce uma imensa máquina burocrática com ~nteresses
cativos próprios. Assim se reforça a tendência da nossa SOCIedade de
procurar profissionais para resolver seus problemas.
14. Ver John Griffiths, "Ideology in Criminal Procedure or a Third Model of the Criminal
Process", The Yale Law Joumal, 79, nO 3 Qan.1970), pp. 359-415.
15. Christie, Limits to Pain, p. 57.

76 77
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RETRIBUTlVA

Fatores sociais, éticos e pessoais são relevantes apenas na ~e­ tado ser tão impessoal e abstrato é praticamente impossível obter o
dida em que são definidos juridicamente como relevant~s~ O, at? perdão e a clemência.
criminoso" é de importância decisiva, e ganha uma defimçao tecm-
Já que o Estado é definido como vítima, não é de se admirar
ca e estrita. que as vítimas sejam sistematicamente deixadas de fora do processo
e suas necessidades e desejos sejam tão pouco acatados. Por que
Quem é a vítima? reconhecer suas necessidades? Elas não são sequer partes da equa-
ção criminosa. As vítimas são meras notas de rodapé no processo
Procurei esboçar abaixo cinco pressupostos comuns sobre o crime e
penal, juridicamente necessárias apenas quando seu testemunho é
a justiça. Nós costumamos presumir que: imperativo.
Os programas de ressarcimento e assistência às vítimas torna-
1. o crime é basicamente uma violação da lei;
ram-se populares nos últimos anos, como de fato deveriam ser. No
2. quando uma infração é cometida, a justiça começa pelo entanto, não se pode esperar que tenham um grande e duradouro
estabelecimento da culpa; impacto até que reexaminemos nossa definição de crime. Enquan-
3. para que o justo castigo possa ser administrado; to as vítimas não se tornem elementos intrínsecos da definição de
4. pela imposição de dor; crime, é natural esperar que continuem sendo mais peças de um
5. através de um coriflíto cujas regras e intenções estão acima de tabuleiro do que participantes ativos.
seus resultados. O processo criminal não promove reconciliação entre vítima e
ofensor porque o relacionamento entre eles não é visto como um
Tais pressupostos e suas implicações nos ajudam a explicar al- problema importante. De fato, como poderiam seus sentimentos um
gumas das falhas, mas há ainda um outro elemento essenClal: nossa em relação ao outro ser levados a sério se nenhum dos dois participa
identificação da vítima. da equação?
No direito penal o crime é definido como uma ofensa .contr~ o Um sexto pressuposto seria, portanto, o mais importante: o de
Estado. O Estado, e não o indivíduo, é definido como vítima. E o que o Estado é a verdadeira vítima. As implicações desse pressuposto
Estado e somente o Estado quem pode reagir. são bastante profundas.
Já que o Estado é a vítima, a lei penal coloca os ofensores c~ntra O crime é uma ofensa contra o Estado e a justiça consiste em
o Estado. Na prática, isto significa que um procurador p~ofisslOnal estabelecer a culpa e impor a dor dentro de uma batalha regulamen-
representando o ofensor (o advogado de defesa) é antagomsta de um tada. O processo é tido como responsabilidade e, aliás, monopólio
outro profissional que representa o Estado (promotor ~e j.ustiça), e do Estado.
há ainda um outro profissional (o juiz) que atua como arbItro. Enquanto não questionarmos esses pressupostos, as mudanças
Pelo fato do poder do Estado ser tão extenso e as implicações que viermos a introduzir poderão ter pouco impacto. Nosso modelo
para as liberdades civis serem tão profundas, é fundamental que ,de justiça é essencialmente retributivo, e esse modelo está na raiz de
existam complexas salvaguardas procedimentais. E pelo fato do Es- muitos de nossos problemas.

78 79
Capítulo 6 A importância do paradigma
A justiça como paradigma Antes do século XVII a compreensão ocidental do mundo era go-
vernada pela cosmovisão de Ptolomeu. Todos sabiam que a terra
e a humanidade estavam no centro do universo físico. Os planetas
revolviam em órbitas concêntricas em torno desse núcleo central.
Essa imagem do cosmos se articulava com a física aristotélica que
, d nos tornamos um pou co mais modes- explicava o movimento em termos de seu propósito e da "natureza"
Ao longo do seculo passa o b m certeza Estamos menos das coisas. Assim, a teologia e a física se apoiavam mutuamente.
, . s que sa emos co .
tos no tocante as COIsa ponde precisamente à
convictos de que aquilo que pensamos corres As pessoas concordavam em geral que essa cosmovisão propu-
realidade objetiva ao nosso redor. . nha uma representação acurada do universo. Qualquer coisa que
. " -culturais nos ajudaram a ver o não se encaixasse nesse modelo pareceria um absurdo. Embora esse
Perspectivas ~lston::~d:a:smoldada pelas lentes específicas modelo nos pareça estranho nos dias de hoje, para a mente medieval
quanto nossa Vlsao do d A psicologia moderna e renascentista tratava-se de bom senso.
. mos esse mesmo mun o.
através das qUalS ve '1 ue fazemos e pensamos, e A revolução científica do século XVII criou um quadro totalmen-
1
revelou as motivações ocultas daqUI o qe sobrepostas de realidades te novo do mundo, e essa perspectiva moldou a compreensão que
h' adas comp exas
demonstrou que a cam A' f mos forçados a reconhecer nos trouxe ao nosso tempo. A nova estrutura, criada por pioneiros
. bconsClentes. SSlm, o
conSClentes e su alidade é muitas vezes, como Copérnico e Newton, colocou o sol no centro e reconheceu a
'1 nsamos conhecer como are , .
que aqUi o que pe b l ' t" o do que as aparências indIcam. Terra como um dos planetas. Isto separou a teologia da física. A física
algo mais complexo e pro ema IC
newtoniana, que tornou o cosmos heliocêntrico algo funcional, pro-
. " . m prometer certezas
Em certa época as ciênCldas üSIl~das dPar:~: no final do século XX põe um universo racional, mecanicista, que segue leis racionais passí-
trutura a rea 1 a e. veis de serem conhecidas. Ela coloca como pressuposto que existem
quanto à natureza e es de que suas representações
. . , t am menos seguros fenõmenos que ocorrem com regularidade, passíveis de descoberta e
os cientlstas]a es av . fI'SI'co Muitos também
f lhavam o umverso .
da realidade d e ato espe _ d seus métodos podem quantificação. Depreende que tais eventos podem ser explicados em
.. a afirmaçao e que termos de causa e efeito. Assim, o passado pode ser visto como causa
estão menos mSlstentes n 'd lidade Embo-
. 1eficácia a todas as areas a rea . completa ou explicação do presente. Além disso, o presente molda o
ser aplicados com 19ua destos alegando certezas
. f tes bem pouco mo , futuro (sem que o futuro possa moldar o presente).
ra os cientIstas ossem an . ~. d confirmar que
hoje as ClenClas ten em a
e prometendo respostas, _ da realidade. Percebem Portanto, o universo é previsível - isto é, se formos capazes de
r' 'nossa compreensao
existem certos lmItes a b Ih emelha mais a modelos descobrir os fatores corretos da equação. Existe uma lógica básica no
. nto de tra a o se ass mundo, e com ela podemos compreender esse mesmo mundo.
agora que seu mstrume d -o fotográfica da realidade.
ou "paradigmas" do que a uma repro uça
A abordagem "científica" newtoniana funciona bem para ex-
plicar e prever boa parte do que acontece no mundo físico visível.
Durante muitos anos acreditou-se que ela era uma representação

80 81
A JUSTIÇA COMO PARADIGMA

acurada da estrutura da realidade, aplicável ao mundo psicológico e


T A JUSTIÇA COMO PARADIGMA

. Os limites da ciência tradicional na esfera da psicologia foram


ao mundo físico. Esta visão formou nosso bom senso. multo bem descritos na "Primeira lei da psicologia animal":
No entanto, hoje estamos aprendendo que esta compreensão é
limitada. E esses limites se mostram não apenas na área da psicolo- Se um animal com passado genético conhecido e estável for criado
gia, mas também no próprio mundo físico. num ambiente de laboratório cuidadosamente controlado, receben-
De fato, a visão newtoniana funciona para corpos de tamanho do estímulos medidos com precisão, o animal agirá da forma como
bem entender2
"normal" que se movem em velocidades "normais", ou seja, no
mundo palpável e visível. Contudo, os cientistas descobriram que a
física newtoniana não funciona no âmbito das coisas muito peque- Leshan e Margenau explicam aquilo que os filósofos da ciên-
nas que se movem muito rápido. Da mesma forma, no âmbito da cia vêm dizendo já há algum tempo. Nossas definições de realidade
genética os pressupostos newtonianos nem sempre valem. Nesses numa dada cultura e era são formas de construir a realidade. Estas
casos, a probabilidade começa a substituir as "leis" e a previsibilida- definições são, na verdade, modelos ou paradigmas. Funcionarão no
de. O futuro se torna difícil de prever em termos de causa e efeito. sent~do de explicar e influenciar algumas Situações, mas podem não
No espaço sideral e em altas velocidades o "bom senso", no que diz funcIOnar em outros contextos. Elas são representações da realidade
respeito ao tempo e espaço, deixa de ser adequado, já que esses moldadas pelas nossas necessidades e pressupostos específicos, po-
conceitos se tornam mais flexíveis e sobrepostos. Nesse âmbito a fí- dendo ser bastante incompletas.
sica de Einstein começa a substituir a de Newton e é preciso adotar Os paradigmas moldam nossa abordagem não apenas do mun-
uma outra cosmovisão. do físico, mas também do mundo social, psicológico e filosófico.
No livro Einstein's Space and Van Gogh's Sky, Lawrence Leshan e Eles são a lente através das quais compreendemos os fenômenos.
Henry Margenau, respectivamente um físico e um psicólogo, mos- Eles determinam a forma como resolvemos problemas. Moldam o
tram que a visão de mundo tradicional e "científica" também não é nosso "conhecimento" sobre o que é possível e o que é impossível.
adequada aos campos da arte, da psicologia e da espiritualidade.
1
Noss~s paradigmas constituem o bom senso, e tudo o que foge ao
Nestas áreas existe uma outra dinâmica e é preciso lançar mão de paradIgma nos parece absurdo.
outras vias para conhecer. Os seres humanos, por exemplo, são ca- Paradigmas são modos específicos de construir a realidade e a
pazes de fazer projeções de futuro e moldar seu comportamento de c~ncepção. retr~butiva de justiça é uma dessas construções. O ~ara­
acordo. Nesse caso, o futuro afeta o presente. A noção de causa e dlg~a retnbutlvo da justiça é uma forma específica de organizar a
efeito deve ser temperada com o conceito de propósito. "Leis" racio- realIdade. Os paradigmas moldam a forma como definimos proble-
nais e mecanicistas não podem servir de pressuposto. É preciso usar mas e o nosso reconhecimento do que sejam soluções apropriadas.
outras descrições da realidade. Nos parece que o que nos conduz é o bom senso, no entanto,
.................... trata-se na verdade de um paradigma. E como todos os paradigmas,
1. Lawrence Leshan e Henry Margenau, Einstein's Space and Van Gogh's Shy Physical Reality
and Beyond (Nova Yorlc Colher Books, 1982). O livro representa um avanço sIgmficatIvo para
2. Id., ibid., p. 150.
a teoria dos paradigmas. O presente capítulo deve muito a esta obra.

82 83
A JUSTIÇA COMO PARADIGMA
1 A JUSTIÇA COMO PARADIGMA

tem certas qualidades. Mas como to d os os parad'gmas


1 , constitui nida por critérios menos estritos. Na verdade, ali o que se discute
também uma armadilha. são questões de responsabilidade e obrigações ao invés de culpa, e é
Christie captou muito bem a importância dos paradigmas na possível haver vários graus de responsabilidade. Por conseguinte, é
formação de nossas expectativas: menos provável que os resultados sejam vistos em termos de dico-
tomias do tipo ganhar/perder, como no caso do processo criminal.
Diferente dos processos no âmbito criminal, o processo civil em ge-
Um guerreiro usa armadura, um amante, flores. Cada um escolhe ralleva a alguma forma de indenização.
o equipamento segundo sua expectativa do que lhe espera, e seu
Somente uma fração mínima das disputas chega ao procedi-
equipamento aumenta a probabilidade de que suas expectativas
mento especializado do direito penal. Mas quando esses casos che-
estejam corretas.
~\
gam, um conjunto totalmente diferente de pressupostos e conceitos
passa a viger.
o mesmo vale para a instituição a que chamamos direito penal. 3
A quantidade de disputas e danos "criminalizáveis" é bastante
diminuta, e somente parte deles de fato são definidos como crimes.4
A seleção das situações que são definidas como crimes e depois pro-
Aplicando os paradigmas
cessadas criminalmente é, na verdade, bastante variável e arbitrária.
É interessante notar que aplicamos o paradigma retributivo somente As definições de crime variam no tempo e no espaço, por vezes
em situações muito específicas. Muitos conflitos e danos acontecem de modo bastante aleatório. Por exemplo, muitos danos cometidos
todos os dias, mas lidamos com a maioria deles de mod~ mformal ou por indivíduos são considerados crimes, mas danos bem maiores
extraJu . I Somente uma ínfima minoria
. d'lCIa. . " desses
, conflItos adentram
._ cometidos por grandes empresas - e que às vezes lesam inúmeras
o sistema judicial. Ou seja, o sistema JudICIal e somente uma das mm pessoas - não são.
tas maneiras de resolver disputas e danos, e é usado raramente.
Dentre os atos "criminosos", apenas uma pequena parcela che-
N o entanto, dentre os poucos casos que são tratados pelo. sistema ga ao processo penal. Novamente, esta seleção é por vezes bastante
. dicial a maioria é da esfera do direito civil. No processo clVll uma arbitrária. Por exemplo, fatores como status social, raça e etnia da
~uessoa ~ antagonista da outra ao invés de antagonist~ d~ Es_ta~o. ~~te vítima e do ofensor podem influenciar a seleção. Mas também as
desempenha o papel de juiz e árbitro. Recorrer ou nao a açao JudICIal prioridades e a carga de trabalho do promotor, da polícia e dos tri-
fica a critério dos envolvidos, e eles podem abandonar o processo se bunais contribuem.
e quando quiserem encontrar uma solução consensual.
O importante é perceber que aquilo que chamamos crime é a
O processo civil não segue regulamentos tão severos co~o o pontinha de uma pirâmide de danos e conflitos. Somente algumas
penal pelo fato de seu foco recair no acordo entr~ as partes e ~ao na
perda de liberdade ou da vida. Pelo mesmo motIVO, a culpa e defi- 4. Louk H. C. Hulsman demonstrou este argumento em uma série de contextos. Ver "Criti-
ca! Criminalagyand the Cancept af Crime", Contemporary Crises: Law, Crime, and Social Policy,
............ .•...•.. C' . Law Crime and 10, n° 1 (1986), pp. 63-80. Ver Jahn R. Blad, Hans van Mastrigt e Niels A. UUdriks, eds.,
3. Christie, "lrnages of Man in Modem Penal Law", Contemporary nses. , The Criminal Justice System as a Social Problern: An Abolitionist Perspective (Rotterdam: Erasmus
Universiteit, 1987).
Social poliey, 10, n° 1 (1986), p. 95.

84 85
11 "Ii'"

A JUSTIÇA COMO PARADIGMA


A JUSTIÇA COMO PARADIGMA

dessas situações e comportamentos são descritos como potenci.al- Se deitarmos de costas contemplando o céu à noite e fixarmos a estrela
mente passíveis de serem considerados crimes. E uma parcela a~n­ do Norte como ponto de referência, as estrelas e planetas parecem es-
da menor é realmente tratada como crime. Lidamos com a malOr tar orbitando num globo com a Terra no centro. Elas de fato parecem
II I
parte dos danos e conflitos de outros modos. estar se movendo. Fazia sentido pensar no cosmos como uma série de
! I
A partir do momento em que descrevemos dado acont~cimento "esferas cristalinas" concêntricas tendo a Terra como centro.
ou comportamento como crime, passamos a definir a reahdade d~
I

I I O universo geocêntrico se coadunava também com os pressu-


I I modo bastante diferente, em termos que podem não correspon~era postos filosóficos e teológicos da época. A humanidade representava
I I vivência dos participantes. O paradigma retributivo cna sua propna
I I o cume da criação divina e era perfeitamente lógico que sua morada
I
realidade. Nos dias de hoje a ofensa é contra o Estado, que dete:mma fosse o centro do universo.
I
como reaglm. os a ela . A punição , e não a solução ou acordo, e vlsta
Mas vários fenômenos não se encaixavam nesse esquema.
como o resultado apropriado. A responsabilidade se torna absoluta,
é definida em termos de culpa ao invés de dívida. Os resultados da Quando surgiram os telescópios e os céus foram examinados, au-
:ÇãO são impostos com pouca participação da vítima e do ofe_nsor. mentou a quantidade desses fenômenos inexplicáveis. Por exemplo,
O paradigma retributivo abarca tudo, moldando nossa percepçao do os cometas pareciam cruzar nas áreas onde supostamente estariam
os globos de vidro. As distâncias calculadas pareciam incorretas. Os
que pode e deve ser feito.
planetas aparentemente descreviam um movimento retrógrado em
dados trechos de suas órbitas.
Os paradigmas mudam Este fenômeno, chamado movimento retrógrado, era perturbador
Nosso entendimento do que é possível ou impossível s~ baseia na pois ficava difícil entender como isto seria possível se os planetas esti-
forma que construímos a realidade, mas tais construçoes podem vessem encrustrados em globos de vidro. Os cientistas decidiram que
os planetas provavelmente se moviam em pequenas órbitas dentro
mudar e de fato mudam.
da órbita maior, e chamaram esse fenômeno de epiciclos. Ao obser-
Thomas Kuhn, num importante livro intitulado A e~trut~ra ~as
var cada vez mais os movimentos retrógrados, o número de epiciclos
revoluções científicas, sugere que as mudanças na perspectl~a Cle~tlfi­ cresceu incrivelmente.
ca acontecem através de uma série de mudanças de paradlgma.
Um modelo paradigmático substitui o outro, provocando assim As disfunções do modelo de Ptolomeu se multiplicaram no iní-
uma revolução no modo como vemos e compreendemos o mundo. cio do século XVII. Ao mesmo tempo, surgiram uma série de novas
O padrão dessas mudanças sugere um possível padrão para as mu- descobertas e teorias. Kepler publicou suas "leis", Galileu propôs as
leis do movimento. Através das lentes do telescópio que ele criou,
danças paradigmáticas em geral.
começou a observar os céus. Brahe passou a registrar de modo siste-
O padrão de Ptolomeu, que configurou a compreensão ocid,ental
mático os movimentos celestes. Cada vez mais fenômenos pareciam
até o século XVII, parecia se coadunar com os fenômenos observavelS.
não se encaixar nas expectativas do paradigma vigente.
.. ; ..;~~~~~. '~~~n, The Structure of Scientific Revolutions (Chicago: University of Chicago Mas era difícil jogar no lixo a compreensão ptolomeica que, afi-
I I
Press, 1970). nal, há séculos era sinônimo de bom senso. Ela estava também ligada
I,
I

86 87
I,

A JUSTIÇA COMO PARADIGMA A JUSTIÇA COMO PARADIGMA

a conhecimentos filosóficos e teológicos. Descartar esse paradigma se- ções. Uma série de "epiciclos" já foram criados para "remendar" o
ria algo revolucionário e assustador. Então os cientistas usaram uma sl~tema~ mas aquelas disfunções estão se tornando grandes demais e
infinidade de epiciclos para explicar essas coisas, e grande pressão foi nao estao sendo facilmente sanadas.
exercida sobre os inovadores para que retirassem suas propostas. Nas primeiras aplicações do modelo retributivo as punições
No entanto, no início do século XVII cada vez mais fenômenos eram se~eras. Não havia salvaguardas contra abusos, nem qualquer
fugiam à regra ptolomeica. Ao mesmo tempo, os cientistas iam fa- correlaçao entre a severidade do delito e a pena imposta. O concei-
zendo novas descobertas. Isaak Newton encaixou todas as peças to de pena proporcional foi uma invenção do Renascimento que
através de um novo paradigma tão convincente, tão razoável, que tor~ou a pena mais racional e suportável. A idéia era que se a 'pena
não pôde ser ignorado. A física newtoniana permitiu que o universo e~tlvesse maIS adequada ao crime, tomando-se assim menos arbitrá-
de Copérnico funcionasse, viabilizando o novo paradigma. na,. meno~ dependente dos caprichos das autoridades, tal pena faria
maIS sentIdo.
Khum sugere que por dedução podemos encontrar nessa revolu-
ção científica um padrão para as revoluções intelectuais em geral. Ele As pris?es ~ornaram-se populares como forma de aplicar pe-
sustenta que a forma pela qual compreendemos os fenômenos é go- nas ~ropOrClOnaIs. As sentenças de privação de liberdade podem ser
vernada por um modelo em particular, um paradigma específico. Esse medIdas em ~eríodos de tempo e dosadas segundo a gravidade do
paradigma mestre parece explicar todos os fenômenos, e várias exce- cnme, permItl~~o ~ue sejam vistas como científicas e lógicas. Numa
ções são criadas para dar conta dos fenômenos que não se encaixam. e~a_em que a ClenCla e a racionalidade foram tão importantes, a pu-
mçao.proporclO~al foi uma forma palpável de controlar o paradigma
Com o tempo vão aparecendo disfunções à medida que mais e
pumtl~o. Os penodos variáveis de encarceramento foram um modo
mais fenômenos deixam de se coadunar com o paradigma. Contudo,
de aplIcar o conceito "cientificamente".
continuamos tentando salvar o modelo através da criação de epici-
clos e reformas que remendam a teoria. Então, por fim, o senso de . Outros epiciclos foram criados. A reabilitação, por exemplo,
disfunção se torna tão agudo que o modelo colapsa e é substituído remou nos esquemas de sentenciamento da primeira metade do sé-
por outro. Mas isto não pode acontecer antes de surgir uma nova culo ~.trazendo um novo princípio penal. Mas na década de 1960
"física". Ou seja, muitos elementos construtivos devem estar dispo- a reabIlitação caiu em descrédito e as sentenças discricionárias, in-
níveis antes que uma nova síntese possa acontecer fazendo surgir determmadas, que faziam parte daquele modelo "terapêutico" foram
abandonadas. Este e~iciclo cedeu lugar à filosofia da justa punição
um novo bom senso.
qu~ f~ndamenta as leIS de sentenciamento obrigatório e determinado,
Num interessante artigo escrito há alguns anos, Randy Barnett hOJe tao populares.
sugeriu que a história de nosso paradigma jurídico mostra alguns
6 A busca. de alternativas à privação de liberdade representa uma
dos sintomas que prenunciam uma mudança de paradigma. Assim
outra tentatlva
. , de remendar o paradigma . Ao'mves , d e procurar
como aconteceu na revolução científica do século XVII, o paradigma
aIternatIvas a pena , o movimento em prol d e a lternatIvas
. r
Olerece
atual há muito mostra evidências de certas inadequações e disfun-
p~nas alternativas. Criando novas formas de punição menos dispen-
I
I I 6. Randy Barnett, "Restitution: A Paradigm of Criminal ]ustice", em Perspectives on Crime
dlOsas e maIS at~aentes que a prisão, seus proponentes conseguem
Victims, eds. Burt Galaway eJoe Hudson (Sc Louis: C. V Mosby Co., 1981), pp. 245-61. manter o paradIgma em pé. Contudo, pelo fato de constituírem

'I
ir
88 89
I/
1,/
A JUSTIÇA COMO PARADIGMA

apenas outro epiciclo, não questiona os pressupostos que repousam


no fundamento da punição. E por isso não têm impacto sobre o
problema em si (a superlotação carcerária), problema para o qual '."

pretendiam ser a solução.


Exemplo disso são as sentenças de serviço comunitário que se
tornaram bastante populares. No seu advento elas prometiam tirar
os presos da cadeia resolvendo o problema da superlotação. Na ver-
dade elas ofereceram uma forma de punir ofensores que antes não
seriam punidos. Hoje o monitoramento eletrônico de ofensores pro-
Parte lU
mete novas possibilidades de punição e controle.
Indenização e assistência às vítimas podem ser vistas também "

como epiciclos. Nos Estados Unidos os esforços nesse sentido ten- Raízes e marcos
dem a se fundamentar nos direitos das vítimas. Na Inglaterra os ar-
gumentos se baseiam mais nas suas necessidades e no seu bem-estar.
As duas abordagens procuram remediar um problema do paradigma
atual, mas nenhuma delas questiona os pressupostos básicos sobre
o papel do Estado e da vítima na justiça. Reorganizam um problema
legítimo, mas não chegam à raiz mesma desse problema.
A percepção de disfunção e crise é generalizada. Ao mesmo
tempo, muitas pessoas buscam uma nova "física" para compreender
e reagir às situações que chamamos de crimes. Talvez o terreno este-
ja sendo preparado para uma verdadeira mudança de paradigma.
Segundo proponho, o motivo de tantos de nossoS fracassos é a
lente através da qual enxergamos o crime e a justiça, pois essa lente
é uma construção da realidade bastante específica, ela é um paradig-
ma. Mas este não é o único paradigma possível. Nos próximos ca-
pítulos farei um sumário de algumas visões históricas e bíblicas que
sugerem que nosso paradigma retributivo é relativamente recente e
que outros paradigmas são possíveis. Eles sugerem também alguns
materiais construtivos para criar uma visão alternativa.

90
T Capítulo 7

Justiça comunitária:
a alternativa histórica
I

: I

Os ofensores violam a lei estatal e devem ser punidos. O Estado se


I encarrega. Tudo isto nos parece bastante natural e inevitável. Com
certeza, o paradigma retributivo vem nos acompanhando há muito
tempo. Seguramente ele representa uma melhoria significativa em
relação ao que era praticado antes. Sem dúvida, ele é o que deve ser.
Mas o modelo retributivo de justiça não é a única forma em
que concebemos a justiça no Ocidente. Com efeito, outros modelos
de justiça predominaram ao longo da maior parte de nossa história.
Somente nos últimos séculos é que o paradigma retributivo mono-
polizou a nossa visão.
E a vitória desse paradigma tampouco representa necessaria-
mente uma melhoria. Interpretar a história como progresso é uma
falácia comum. Vemos os desenvolvimentos mais recentes Como me-
lhorias quase que inevitáveis em relação ao passado. Mas o presente
não está fatalmente ligado ao passado, nem representa sempre um
progresso em relação a este.
As interpretações históricas tendem a focalizar dois desenvolvi-
mentos da história da justiça criminal: a ascensão da justiça pública
em detrimento da justiça privada, e a crescente dependência do en-
carceramento como forma de punição. Não há dúvida de que essas
duas instâncias foram desenvolvimentos de algum tipo. Contudo,
estudos históricos recentes levantam algumas dúvidas sobre o pa-
I I drão e significado desses desenvolvimentos.
I I Normalmente pensamos no passado como um período domi-
nado pela justiça "privada". A justiça privada é caracterizada como

93
I, I
JUSTIÇA COMUNITÁRIA' A ALTERNATIVA HISTÓRICA JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA

vingança pessoal, muitas vezes descontrolada e brutal. A modern~ tradições comuns. As culturas tribais greco-romana e germânica
justiça pública, ao contrário, é vista como u~ processo controlado. moldaram parcialmente a cosmovisão medieval. Experiências e ne-
mais humano, mais equilibrado, menos pumnvo. PresumImos que cessidades comuns também levaram a similaridades na forma de
as prisões são menos punitivas e mais modernas do que aquilo q~e compreender esses conceitos.
ocorria antes. Segundo essa perspectiva, teríamos nos tornado maIS Até a Idade Moderna o crime era visto primariamente num con-
civilizados e racionais na administração da justiça e da punição. texto interpessoal. A maior parte dos crimes era retratada essencial-
Mas a realidade se revela mais complexa do que esse quadro mente como um mal cometido contra uma pessoa ou como um con-
convencional sugeriria. A justiça "privada" não era necessariamen- flito interpessoal. Semelhante aos processos civis, o que importava
te privada, nem envolvia necessariamente vingança. As soluções na maior parte dos delitos era o dano efetivamente causado, e não a
"privadas" não eram necessariamente mais punitivas, menos ~ome­ violação de leis ou da ordem social e moral enquanto abstração. Os
didas ou racionais do que a justiça dispensada pela esfera publIca. males cometidos criavam obrigações e dívidas que de alguma forma
Pelo contrário. A justiça pública pode ser até mais punitiva em sua tinham que ser cumpridas e saldadas. A briga era um modo de resol-
abordagem, oferecendo uma gama mais limitada de resul~ad~s pos- ver tais situações, mas também a negociação, a restituição e a recon-
síveis. A vingança, que provavelmente ocorria antes da Jusnça es- ciliação, em igual medida. Vítimas e ofensores, bem como parentes e
tatal, era apenas uma dentro de um conjunto mui.to mais amylo. de a comunidade, desempenhavam papel vital no processo.
opções. A chamada justiça privada certamente tmha defiCle~~Ias,
Já que o crime criava obrigações, um resultado típico da justiça
mas o quadro não é tão simples quanto costumamos presumIr.
era algum tipo de acordo. Eram comuns acordos de restituição ou in-
denização, mesmo nos casos de delitos contra a pessoa. As leis e costu-
Justiça comunitária mes freqüentemente previam uma gama de indenizações apropriadas
tanto para ofensas contra a propriedade como para contra a pessoa.
A história do Ocidente abriga uma diversidade considerável de es- Estas incluíam fórmulas para fazer a correspondência do dano à pessoa
truturas e costumes. As práticas de justiça locais variam em fun- com a sua devida compensação material. Nossos conceitos de culpa
ção de época e lugar. Não obstante, grandes semelha~ças quanto e punição podem representar uma transformação (e talvez uma per-
à compreensão geral do que seja crime e justiça permelam o mun-
versão) desse princípio de "conversão". A palavra grega pune significa
do pré-moderno. Em certa medida, essas similaridades refletem
uma troca de dinheiro por danos cometidos e pode estar na origem da
palavra punição. Da mesma forma, culpa [no inglês, guiltl pode derivar
...; .. ~;~~ .~~~. ~;~~alhos citados neste capítulo, as seguintes fontes foram especialmente úteis:
George Calhoun , The Growth 01 Criminal Law in Ancient CreeceTh(Berkeley: UmverSlty of Cal1- do termo anglo-saxão geldun que, como a palavra alemã Geld, refere-se
. . . th I d t aI 2
fórnia Press, 1927); Michael Ignatieff, A Just Measure of Pain: e Pemtentlary m e n us n • pagamento. As ofensas criavam dívidas. A justiça exigia que alguns
Revolution, 1750-1850 (Nova York: Pantheon Press, 1978); Stanley Cohen e Andrew Seul!, eds.
Social Control and the State (Nova York: St. Martin's Press, 1983);john H. Langbem, Prosecutmg passos fossem cumpridos para que se considerasse reparado o mal.
Crime in the Renaissance: England, Germany and France (Cambndge: Harvard Umverslty Press,
1974); Alred Soman, "Deviance and Criminaljustice in Western Europe, 1300-1800: An Es-
. Structure" Criminal Justice History: An Internatwnal Annual, I (1980), pp. 3-28, Pleter ~,J. W Mohr, "Criminaljustice and Christian Responsibility: The Secularization of Criminal
say m , . 1R . (C b dge' , trabalho não publicado apresentado no Encontro Anual do Mennonite Central Commit-
I ' Spierenburg, The Spectade of Suftering: Executions and the Evolutwn o epresswn am n .
~lo Canadã em Abbotsford, em 22 de jan. de 1981.
! Cambridge University Press, 1984).

94 95
il JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA
I I
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA

o ofensor e a vítima (ou representante da vítima no caso de


trajudiciais negociadas, em geral envolvendo indenizações. No en-
assassinato) resolviam a maior parte das disputas e danos - inclusive
tanto, duas abordagens alternativas se apresentavam. As duas ten-
os que consideramos criminosos - fora das cortes. E o faziam n~ ~~n­
diam a ser deixadas como último recurso, escolhidas apenas como
texto de sua família e comunidade. A Igreja e os líderes comumtanos
meio de forçar uma negociação ou de sair dela em caso de insucesso.
freqüentemente desempenhavam papéis importantes nas soluções
Assim, ambas representavam uma espécie de fracasso, embora sua
que envolviam negociação ou arbitragem, registrando ~s a~ordos
existência talvez ajudasse a garantir o funcionamento da norma.
que eram estabelecidos pelas partes. A administr~çã~ da JustIça era
i primariamente um processo de mediação e negoClaçao .~alS do que
I
I I
! um processo de aplicação de regras e imposição de deClsoes. A opção retributiva
I1
I Refletindo esta visão do papel da Igrej a, em 1681 um ancião da
Igreja Reformada Francesa conclamou-a a "trabalhar diligente~ente A vingança era uma dessas alternativas. Esta opção era adotada com
pela reconciliação de quaisquer desavenças que houver no selO dos menos freqüência do que em geral se pensa, e por razões óbvias.
membros do consistório". 3 As ditas desavenças incluíam ofensas que A vingança é perigosa, costuma levar à violência recíproca e der-
hoje poderíamos descrever como crimes. Os mais velhos deci~iram ramamento de sangue. Nas sociedades caracterizadas por comuni-
então fazer uma lista de conflitos e instar os oponentes a resolve-los, dades pequenas, de relações muito estreitas, havia necessidade de
sob pena de privar da eucaristia aqueles que não o fizessem. Os "atos manutenção dos relacionamentos. Assim, negociação e indenização
faziam muito mais sentido do que a violência.
de acomodação" franceses representavam justamente estes acordos
que eram registrados diante de um notário. 4 Com certeza, a possibilidade de vingança estava sempre pre-
Como se vê, esta abordagem de justiça pode ser melhor des- sente, mas sua aplicação era limitada e seu papel e significado muito
diferentes daqueles que hoje imaginamos.
crita como justiça comunitária do que como justiça estatal. Tanto
o dano causado como o processo de "justiça" posterior se inserem Um dos limites da vingança, que por sua vez confirma a im-
claramente num contexto comunitário. Quando um indivíduo sofria portância da justiça negociada, era a existência de asilos. 5 Durante
um dano, a família e a comunidade também se sentiam atingidas. E todo o período medieval até a Revolução Francesa, a Europa oci-
tanto família como comunidade se envolviam de modo significativo dental estava salpicada por variados lugares de guarida que eram
na solução. Podiam fazer pressão para obter uma solução ou servír independentes de outras leis e autoridades. As pessoas acusadas de
como árbitros e mediadores. Talvez fossem chamados a testemunhar ter cometido delitos podiam correr para esses locais a fim de escapar
ou mesmo ajudar a garantir o cumprimento dos acordos. à vingança pessoal ou às autoridades locais. Muitos desses locais
A justiça comunitária se fiava em grande parte nas soluções ex- não eram asilos de longo prazo, mas locais seguros onde se podia
esperar a raiva passar enquanto as negociações progrediam. Alguns
....................
3. Soman, "Deviance and Criminal]ustice", op. cit., p. 18.
4. Bruce Lenman e Geoffrey Parker, "The State, the Community and the Criminal Law in 5, Sobre asilos, ver Herman Bianchi,Justice as Sanctuary: Toward a New System of Crime Con-
Early Modern Europe", em Crime and the Law: The Social History of Cnme m Westem Europe trai (Bloomington: Indiana University Press, 1994); Michael R. Weisser, Crime and Punishment
Since 1500, eds. V A. C. Gatrell, Bruce Lenman, Geoffrey Parker (Londres: Europa, 1979), In Barly Modem Europe (Atlantic Highlands: Humanities Press, 1979), p, 54; Paul Rock, "Law
pp. 19 e ss. Order and Power in the Late Seventeenth and Early Eighteenth-Century England", em Social
Control and the State, eds. Cohen e Scull, pp. 191-221.

96
97
JUSTIÇA COMUN ITÁRIA A ALTERNATIVA HISTÓRICA JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA

asilos especificavam o tempo que o acusado podia permanecer, mas nas sociedades não reguladas por códigos e procedimentos legais
enquanto se encontravam ali, estavam a salvo. formais, tais fórmulas não eram encaradas como mandamentos, mas
O criminologista holandês Herman Bianchi sugeriu o~tra pos- limitadores da violência: "Faça isto, mas somente isto e não mais". A
sível função desses asilos. Ele e seus associados descobnram que reação deveria ser proporcional ao dano, sem permitir uma escalada
do conflito.
os peregrinos viajando em penitência pediam abrigo nesses l~ga­
res. Aparentemente, esses peregrinos se pemtenClavam. por ~nm:s Além do mais, as pessoas em geral entendiam essas fórmulas
cometidos. Isto sugere que tanto a penitência como a mdemzaçao como equações para determinar o valor da indenização: "O valor de
parecem ter sido consideradas reações apropriadas a certa~ ofe~sas. um olho pelo valor de um olho". Acordos em dinheiro ou proprie-
dade foram bastante comuns ao longo da história, mesmo em casos
Em período sabático que gozei recentemente, conhecI a ~Idade
de violência grave, e os códigos daquela natureza forneciam critérios
de Winchester na Inglaterra e descobri a "Casa de Godbergot . Este para a determinação dos pagamentos.
prédio, onde hoje funciona uma loja de roupas, é o que ~estou da
Mansão de Godbergot, um legado que a Rainha Emma deIXOU p~ra Mesmo nos casos em que a regra do "olho por olho" era enten-
. em 1052. À casa foi concedido direito total de auto-gestao, dida literalmente, a troca era percebida como pagamento. Quando
a IgreJa d I 1" alguém morre ou é ferido numa sociedade comunitária, o equilíbrio
incluindo o direito de "excluir todas as outras autoridades o oca .
de poder entre tribos, clãs, ou outros grupos fica perturbado. Pode
Registros do tribunal da mansão sugerem. que ela serv~u de asIlo
ser necessário restaurar o equilíbrio através da equivalência numéri-
para ofensores até sua dissolução por Hennque VIII no seculo XVI.
ca. A violência imposta pela fórmula pretendia equilibrar os poderes
Aqueles registros indicam que em várias ocasiões as pessoas en- mais do que conseguir vingança.
travam no asilo e prendiam ofensores, mas mostram também que atos
No passado, como nos dias de hoje, as vítimas sentiam a ne-
dessa natureza eram considerados violação de asilo. Um estatuto .de
cessidade de Vindicação moral. Queriam reconhecimento público
Winchester do século XIII especifica que não s~ podia pertencer a Wm-
de que tinham sido vítimas de um mal e uma declaração publica de
chester e à mansão sem pagar uma multa. E interessante notar. que
responsabilidade por parte do ofensor. O pagamento era uma forma
exceção era feita exclusivamente àqueles que se enco~travam ah por
de obter tal vindicação, mas a retribuição por vezes inclUía também
"crimes graves como assassinato ou incêndio". Esses dOIS exemplos su-
uma certa compensação moral. Em dadas situações a ameaça de re-
gerem que a mansão cumpria o papel de asilo para ofensores. . tribuição servia como estímulo para que os ofensores assumissem
A vingança era limitada também por uma combi~ação de leI e essa responsabilidade publicamente.
costume. Por exemplo, na Europa medieval a luta so era consIde- A ameaça de retribUição certamente existia, mas talvez ela tenha
rada legítima se negociações tivessem sido propost~s e recusadas,: sido um meio, além de um fim em si mesma. O significado e as fun-
Também a conhecida fórmula do Antigo Testamento 'olho por olho Ções da retribuição por vezes refletiam uma visão compensatória. O
foi um procedimento que ajudou a regular as vinganças pnvadas ao sistema repousava primordialmente na necessidade de compensar
longo de boa parte da história ocidental. . a perda das vítimas e reparar relacionamentos. Isto normalmente
"Olho por olho" é uma fórmula que também podia ser entendI- ;.exigia negociações para se chegar a um acordo que reconhecesse a
da literalmente, e uma vingança assim poderia ser brutal. Contudo, responsabilidade e obrigações do ofensor.

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JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA
Tf
.,
JUSTlÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATlVA HISTÓRICA

Ao longo da maior parte de nossa história surgiram exceções a Os tribunais medievais tinham natureza "acusatória". Salvo por
este ideal de justiça restitutiva no tocante a certos tipos de crime. alguns tipos de ofensas (como aquelas contra uma pessoa da reale-
As sociedades teocráticas primitivas consideravam poucas ofensas za), nem mesmo os tribunais reais podiam iniciar um processo penal
como tendo dimensões religiosas que exigissem reações especiais, sem o pedido da vítima ou sua família. Sem acusador, não havia pro-
fora do normal. Certas ofensas sexuais, por exemplo, eram consi- cesso. Não existiam procuradores públicos e eram poucos os funda-
deradas especialmente hediondas porque ofendiam a deidade tra- mentos legais para uma acusação estatal independente, exceção feita
zendo culpa coletiva sobre a sociedade como um todo. A fim de às ofensas em que a própria coroa era a vítima.
demonstrar sua condenação a tal comportamento, assim evitando Uma vez dado início ao processo, o papel da corte era ga-
partilhar da culpa, uma purificação simbólica era necessária. No rantir que as partes cooperassem. Sua tarefa era a de equilibrar as
entanto, essas ofensas eram poucas e cuidadosamente proibidas relações de poder na medida do possível, e regular o conflito em
pela lei e pelo costume, não constituindo a norma para a maioria geral. As cortes constituíam uma espécie de árbitro. Se as partes
das transgressões "criminais". chegassem a um acordo, era permitido que encerrassem o processo
Na Europa do começo da era moderna eram poucas as ofensas a qualquer tempo. O Estado não tinha autoridade legal para conti-
consideradas ameaça à ordem política e moral, exigindo a aplicação nuar a acusação sem um acusador. A iniciativa estava nas mãos das
partes envolvidas.
de respostas violentas: a bruxaria, o incesto, a sodomia e certos tipos
de assassinato especialmente hediondos. As pessoas em geral recorriam às cortes apenas para pressionar a
outra parte a reconhecer sua responsabilidade e fazer o acordo. For-
mas extrajudiciais de justiça comunitária eram preferidas até a ldade
A opção judicial Moderna. Essa relutância em adotar a via judicial se baseava em uma
série de fatores. A preferência por acordos negociados era um deles.
A vingança era uma das alternativas ao ideal de justiça restitutiva ne-
Contudo, a resistência local à autoridade central era também um
gociada. Apelar aos tribunais institucionais era outra. Mas, tal como
fator importante. O mesmo se pode dizer dos custos financeiros que
a vingança, esta última opção era igualmente um último recurso ao
uma acusação poderia acarretar. Além disso, nas cortes medievais as-
qual recorrer quando as negociações fracassavam ou nas situações
sumia-se um risco recíproco. Se o acusador não conseguisse provar
em que a lei ou o costume exigiam. Era escolhida como forma de
sua acusação de modo convincente, poderia ficar sujeito às conse-
promover acordos negociados. Na visão da mentalidade moderna, qüências que recairiam sobre o acusado. Assim, o acusador deveria
os membros daquela sociedade mostravam incrível relutância em ter necessariamente um caso muito sólido para processar. Por fim,
adotar a máquina formal da justiça. os tribunais reais tinham a opçâo de impor multas como sentença. Já
Existiam várias cortes "oficiais" na Europa ocidental continental que o dinheiro era recolhido aos cofres da família real mantenedora
durante a ldade Média. Algumas delas eram tribunais reais ou esta- do tribunal, esse resultado pouco beneficiava a vítima.
tais. Outras eram operadas por autoridades eclesiásticas, municipais O modelo acusatório que moldou a estrutura dos tribunais e
ou senhoriais. Mas mesmo os tribunais estatais tendiam a funcionar procedimentos funcionava, portanto, no contexto da justiça co-
no contexto e segundo os princípios da justiça comunitária. munitária, que por sua vez valorizava a indenização e a iniciativa

100 101
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA

das partes. As cortes acusatórias confirmaram a centralidade da


avaliação da justiça tradicional a fim de refletir suas possibilidades
justiça comunitária. de retribuição e reconciliação.

Uma avaliação A revolução jurídica


A justiça pré-moderna é amiúde retratada como vingativa e b~rbara,
O sistema penal que conhecemos não existia na Europa medieval.
e contraposta à justiça moderna mais racional e human~. EVIdente-
Nenhuma legislação identificava certos atos como crimes, atribuin-
mente, tal representação é demasiado simplista e negatIva. N~ en-
do-lhes determinadas punições. Os processos não eram conduzi-
tanto, seria igualmente enganoso cultivar a nostalgia ~or uma epoca
dos por profissionais da área jurídica. As autoridades políticas e
dourada que se foi. A justiça comunitária tinha defeIt~s grav~s. Os
judiciais tinham um papel reconhecido, porém limitado. Existiam
métodos para determinar a culpa eram arbitrários e ImpreClsos, e
várias cortes, mas no geral elas funcionavam dentro dos pressu-
faltavam as devidas salvaguardas. Essa forma de justiça funclOnava
postos e parâmetros da justiça comunitária. Recorria-se a elas com
muito bem entre iguais. Mas se o ofensor fosse um subordinado, a
considerável relutância.
justiça seria sumária e brutal.
Nos séculos XI e XII foi dado início a uma série de mudan-
A justiça comunitária por vezes onerava bastan~e as vítimas, já
ças que, ao longo dos séculos seguintes, lançaram os fundamentos
que o processo dependia de sua iniciativa e talvez .ate de seus recu~­
para uma abordagem drasticamente nova do crime e da justiça.
sos. As penalidades por ofensas consideradas hedlOndas eram mUl-
Essas mudanças levaram séculos para amadurecer e enfrentaram a
tas vezes atrozes.
resistência feroz de muitos. O novo modelo de justiça não obteve
Contudo, os acordos compensatórios negociados que orienta- vitória senão no século XIX, No entanto, esta metamorfose, embora
ram a justiça comunitária representam uma visão altern~tiva ~e cn- demorada e em geral ignorada pelos historiadores, constituiu aqui-
me e justiça bastante importante. Os conceitos tradIClOnaIs de JustIça lo que o historiador do direito Harold J. Berman chamou de uma
reconheciam que uma pessoa tinha sofrido um mal, que as pessoas revolução jurídica. 6
envolvidas constituíam o foco da resolução do conflito, e que a re-
Autoridades políticas de períodos anteriores haviam se sentido
paração do dano era fundamental. A justiça comuni~ária_ valorizava
obrigadas a moldar a "lei" segundo a estrutura das práticas e prin-
muito a manutenção dos relacionamentos e a reconClhaçao. Portan-
cípios consuetudinários. No final da Idade Média começaram a re-
to, o paradigma da justiça comunitária talvez reflet~ss,~ a ~eali~~de do
clamar o direito de fazer novas leis e derrogar as antigas. Códigos
crime melhor do que o nosso paradigma atual malS raclOnal .
legislativos formais, escritos, que incorporavam novos princípios co-
Muitas vezes a justiça tradicional é descrita como punitiva. Mas
a punição era somente um dentre os muitos r~sultados p~ssíveis, e 6. HaroldJ. Berman, Law and Revolution: The Formation of the Westem Legal Tradition (Cam-
não raro representava o fracasso em relação ao Ideal. AJusnça comu- bridge, EUA: Harvard University Press, 1983) e "The Religious Foundations ofWestern Law",
em The Catholic University of America Law Review, 24, nO 3, 1975, pp. 490-508. O trabalho
nitária oferecia uma gama mais ampla de resultados do que oferece pioneiro de Berman é importantíssimo. Outras fontes importantes sobre a justiça moderna e a
o nosso paradigma retributivo. No mínimo devemos revisar nossa revolução jurídica são: A. Esmein, A History of Continental Criminal Procedures (Boston: Urtle,
Brown, and Co., 1913) e Weisser, Crime and Punishment.

102
103
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA

meçaram a substituir os costumes. Nos séculos XVIII e XIX um corpo Os advogados do Estado lançaram mão de uma variedade d
legislativo especial havia sido criado para tratar de certos danos e rec~rsos e argumentos jurídicos, alguns velhos e outros novos par:
JustIficar seu envolvimento. Os procedimentos acusatórios h~viam
disputas chamados crimes. reconheCIdo que o modo "comum" d e mICIar
... o processo era pelas ví-
.
Novos argumentos e procedimentos começaram a abrir as pos- tlmas ou s~us fa~~liares. Algumas jurisdições deixavam espaço ara
sibilidades de intervenção e iniciativa estatal em certos tipos de pro- certas denuncIas extraordinárias" por parte da corte ou do Esf d
cesso. No continente europeu começaram a aparecer procuradores e~sItuaçõ~s limitadas. Por exemplo, na França do século XIV h:Vi~
do Estado. Na Inglaterra juízes de paz passaram a representar o Es- vanos cammhos p~ra que uma corte tomasse ciência de uma ofensa.
tado de modo limitado. As cortes começaram a deixar seu papel rea- Normalmente a Illlerativa era do acusador No entanto d
"fi d 1'" , " no caso e
tivo, oficiador, para assumir o comando de certos tipos de processo, agra~te e ItO ou 'relato comum" (quando vítima e ofensor eram
inclusive recolhendo as provas pertinentes. conhecIdo~ de todos), a corte podia intervir sem a presença de um
Na Europa continental o estilo das cortes mudou de acusatório acusador d~reto. Igualmente, previa-se a hipótese de iniciar-se o pro-
c~sso atraves de "denúncia". Nesse caso ainda havia acusadores mas
para inquisitório. Ali a corte era responsável por iniciar as acusações,
e ~s. permaneciam em segundo plano, desempenhando um ~apel
compilar evidências, e determinar o resultado - freqüentemente em
mmImo .. C~mo acontece muitas vezes, a longo prazo procedimentos
segredo. Na Inglaterra foi mantida uma estrutura acusatória devido extraordmanos vão se tornando ordinários. 7
ao papel do jüri e a retenção da forma de acusação privada. Ali tam-
O uso de tais recursos jurídicos foi combinado com argumentos
bém os agentes do Estado substituíram o cidadão enquanto autori-
novos. A ~oroa passou a impor sua pretensão de guardiã da paz
dade orientadora nos processos criminais.
B~slto; maIS um pequeno passo para alegar que, quando a paz foss~
Em tais casos, a natureza do resultado começou a mudar. A VIa a a,_ o Estado era a vítima. Não é de surpreender que o papel e as
punição passou a ter precedência sobre os acordos. As multas pretensoes das vítimas tenham se perdido nesse processo.
_ recolhidas aos cofres públicos - começaram a substituir a inde-
nização às vítimas. A tortura tornou-se não apenas uma punição
aceitável mas uma ferramenta forense para descobrir a verdade.
o papel da lei canônica
Em meio a tudo isso os interesses da vítima foram perdendo im- Não ~or acaso, o desenvolvimento deste novo sistema jurídico com
portância. autondades centrais aconteceu dentro do contexto de uma I t
l' d 1 u a gene-
Esse processo não aconteceu através da tomada direta e súbita ra Iza a pe o poder. Essa batalha pela hegemonia se deu tanto dentro
de uma ampla gama de processos pelo Estado. Ao contrário, os re- como entre estrut~ra~ religiosas e seculares. Ela afetou profundamente
presentantes deste foram se insinuando gradualmente no processo. a fo~a como .a JustIça passou a ser feita. O desenvolvimento da lei
canomca - a lo da Igreja católica - foi uma parte vital dessa luta.
Começando como investigador, o Estado paulatinamente se tornou
acusador. Por volta de 1498 a lei francesa reconhecia que o rei, ou D~rante os pri~eiros séculos do cristianismo a Igreja era des-
o procurador do rei, era parte em todas as ações. Alegando inicial- centralrzada. Paulatmamente, surgiram vários centros de poder que
.................. .
mente ter o direito de participar dos processos, o Estado por fim "

7. Ver E5mein, A Hístory, pp. 121 e 55 ..


reivindicou a propriedade sobre o mesmo.

104 105
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA

competiam entre si, cada qual alegando certa autoridade. Problemas


O direito romano era formal, racional e codificado, baseado em
de disciplina interna também afligiram a Igreja. Portanto, uma das
princípios lógicos fundamentais. Ao invés de estribar-se nos cos-
principais preocupações do papado durante o período medieval era
tumes e na história, esse direito tinha como referência a si mesmo.
consolidar sua autoridade dentro dela. Ao mesmo tempo, o papado
Portanto, oferecia às autoridades centrais possibilidades e métodos
estava envolvido numa luta para ter igual autoridade, ou mais auto-
para inventar novas leis e descartar as "antigas". Mas o direito roma-
ridade que as autoridades "seculares" ou políticas.
no também partia do pressuposto da existência de uma autoridade
Mas várias autoridades seculares centralizadoras começavam a central e, assim, oferecia uma base para a iniciativa "legítima" de
emergir nessa época, e apresentavam necessidades similares. Também uma ação por parte da autoridade central. Boa parte de sua atração
queriam consolidar seu poder dentro de suas próprias esferas, bus~an­ provinha do importante papel dado a essa autoridade central.
do modos de subordinar outros centros de poder, inclUSIve a Igreja.
O direito romano era uma lei escrita baseada em princípios in-
Tanto as autoridades religiosas como as seculares, portanto, dependentes de costumes específicos. Vinha equipado como um mé-
buscavam novos argumentos e recursos que os ajudassem a consoli- todo para testar e desenvolver leis (a escolástica). Assim, o direito
dar o seu poder. As leis do Império Romano já extinto ofereceram o romano não apenas se prestava à sistematização e expansão mas tam-
instrumento ideal, primeiro para a Igreja e depois para o Estado. bém ao estudo e ensino transnacional através de profissionais. Esse
Durante a era republicana da história romana o crime era basi- caráter universal ajuda a explicar seu sucesso e disseminação quase
camente uma questão privada da comunidade, sendo que o Estado que imediata pelas universidades de boa parte da Europa ocidental.
tinha papel limitado. Com a ascensão do Império, contudo, desen- Apoiada no direito romano a Igreja ergueu a elaborada estrutura
volveu-se uma tradição jurídica que reconheceu e expandiu o papel do direito canônico, o primeiro sistema jurídico moderno. Este foi
daquele na criação das leis e na administração da justiça. um desenvolvimento revolucionário. Oferecia ao papado uma arma
No século VI estas leis tinham sido perdidas, mas não totalmente importante na sua luta pela supremacia, tanto dentro da Igreja como
esquecidas. A redescoberta do Código de ]ustiniano pelo Ocidente no seu relacionamento com autoridades políticas seculares.
no final do século XI pode não ter sido um acidente. Apoiadores do Permitindo que a autoridade central tivesse iniciativa de ação,
papa e talvez apoiadores das autoridades seculares talvez estivessem estabeleceu as bases para atacar a heresia e os abusos clericais inter-
procurando há tempos. Depois de sua redescoberta, o direito romano nos da Igreja. A expressão mais extrema dessa nova abordagem foi
serviu de fundamento para a lei canônica. Mais tarde seus contornos a Inquisição, na qual representantes do papa caçavam hereges e os
foram adotados pelo poder secular em toda a Europa continental oci- torturavam para obter provas e acertar as contas.
dental. Até certo ponto ele também influenciou o direito inglês.
O indivíduo não era mais a vítima primária. Na InquisiçãO a ví-
Berman examinou estas leis e suas adaptações. Ele observa que tima era toda uma ordem moral, e a autoridade central sua guardiã.
o direito romano foi um desvio radical em relação às praticas con- Os males cometidos não eram mais simples danos que precisavam
suetudinárias. Adotou-se um corpo de leis autônomo que vinha de ser indenizados. Tornaram-se pecados.
uma civilização temporal e culturalmente distante. Elementos novos
Como se vê, o direito canônico não foi apenas a introdução de
e importantes foram introduzidos com estas leis.
uma lei formal e sistematizada que oferecia um papel ampliado para
106
107
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA

as autoridades centrais. Ele significou um conceito totalmente novo uma explicação completa para o desenvolvimento da justiça retri-
de crime e de justiça. A justiça se tornou uma questão de aplicação butiva centrada no Estado. A Inglaterra foi menos influenciada pelo
de regras, estabelecimento de culpa e fixação de penalidades. As prá- direito canônico do que o continente. Embora não tenha desenvolvi-
ticas do cristianismo primitivo privilegiavam a aceitação e perdão do um sistema jurídico inquisitorial, surgiu ali um sistema de direito
dos males cometidos, enfatizando a necessidade de reconciliação e penal que tinha o Estado como poder condutor. Dadas as tendências
redenção. 8 O direito canônico e o arcabouço teológico que se de- sociais e a necessidade da emergência de nações-Estado, a justiça
senvolveu em paralelo começaram a identificar o crime como mal talvez trilhasse caminho similar sem o exemplo do direito canônico.
coletivo contra uma ordem moral ou metafísica. O crime era um pe- Contudo, o padrão oferecido por esta adaptação do direito romano
·,1
"
cado, não apenas contra uma pessoa, mas contra Deus, sendo dever sem dúvida ofereceu técnicas e conceitos importantes que foram uti-
da Igreja purgar o mundo dessa transgressão. Bastou apenas mais lizados por autoridades políticas para consolidar suas posições.
t um passo para se presumir que a ordem social era vontade de Deus
e que o crime constituía um pecado contra a ordem social. A Igreja
O papel da teologia cristã é incerto. Alguns historiadores pro-
põem que os conceitos teológicos de culpa e responsabilidade moral
(e mais tarde o Estado) devia, portanto, sancionar aquela ordem.
II Previsivelmente, o foco mudou dos acordos entre participantes para
desempenharam papel desencadeador que ajudou a formar conceitos
novos de crime, justiça e poder que o Estado implementou. Outros ar-
11/,
a punição pelas autoridades estabelecidas 9 gumentam que o desenvolvimento da justiça moderna baseou-se nas
, I
II
O direito canônico e os conceitos teológicos que o acompanha- necessidades políticas das emergentes naçôes-Estado ou em proces-
,I:
ram formalizaram conceitos sobre livre arbítrio e responsabilidade sos sócioeconômicos. A teologia teria seguido a tendência oferecendo
pessoal. Isto ajudou a formar a base para uma lógica punitiva. O justificativas para estas novas modalidades jurídicas. Seja como for, é
aprisionamento tornou-se uma forma de punir monges rebeldes, o evidente que há ligações entre a teologia e os desdobramentos acima.
que levou ao uso generalizado do encarceramento como punição
nos séculos XVIII e XIX.
O direito canônico introduziu princípios novos e importantes, A vitória da justiça do Estado
que por sua vez foram adotados e adaptados pelas autoridades po- Os historiadores Bruce Lenman e Geoffrey Parker sugeriram que a
líticas, servindo como modelo para sistemas jurídicos seculares da história ocidental pode ser vista como um processo dialético entre
Inglaterra até a Polônia e a Hungria. dois modelos básicos de direito ou justiça: comunitário e estatal. lO
O exemplo do direito canônico não constitui de modo algum A justiça estatal despontou muito cedo. Alguns de seus elemen-
tos podem ser detectados no código de Hamurábi ou nas reformas
8. Gerald Austin McHugh, Christian Faith and Criminaljustice: Toward a Christian Response to

! Crime and Punishment (Nova York: Paulist Press, 1978), pp. 14 e ss,
9. Esse tipo de raciocínio não era totalmente inédito, é claro. A prova medieval da tortura
jurídicas de Sólon na Grécia Antiga. Mas somente nos últimos sé-
culos é que a autêntica justiça estatal saiu vitoriosa e monopolizou
'li se fundava em conceitos correlatos. O pensamento medieval relacionava o comportamento a nossa visão do crime.
natureza. Pelo fato de certos delitos serem contra Deus e a natureza, era de se esperar que a
natureza rejeitasse o criminoso. Uma pessoa má que fosse jogada na água boiaria posto que a
água, sendo pura, rejeitaria aquela pessoa. Uma pessoa inocente deveria afundar - urna vitória 10. Lenman e Parker, "The State, the Communityand the Criminal Law". A tese dos autores
duvidosa para aqueles que não sabiam nadar. constitui parte da estrutura do presente capítulo.

I 'I

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lI,ii I
JUSTIÇA COMUNITÁRIA' A ALTERNATIVA HISTÓRICA JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA

No seu auge a justiça comunitária significou, no máximo, uma nais começ.ar_am a descrever transgressões e indicar penas. Algumas
justiça restitutiva negociada. Sua essência foi capturada pela pala- destas pumçoes eram descomunalmente severas, incluindo-se a tor-
vra frith, vocábulo germânico tribal que designa paz enquanto paz tura e a. morte. As sanções econômicas também podiam ser impostas
horizontal consensual. Mas a paz estatal é a "paz do rei": vertical, em murtos casos.
hierárquica, imposta e punitiva. l l A Reforma Protestante do século XVI pode ter promovido essa
Embora a justiça estatal e comunitária possam parecer concei- tendência favorável a sanções punitivas administradas pelo Estado.
tos antagônicos, é mais acertado vê-las como extremos com muitas Lutero ~n~ossava francamente o papel deste como agente de Deus
graduações entre um e outroY Num pólo está a justiça comunitária na admmIstração de punições. O calvinismo tendeu a enfatizar as
"pura" com acordos negociados entre as partes interessadas. A jus- imagens de Deus como juiz punitivo e também conferiu ao Estado
tiça se torna um pouco mais formal quando outras partes, possi- importante papel de garantidor da ordem moral.
velmente designadas pelas autoridades políticas, se envolvem como A justiça estatal era a onda do futuro, mas ainda não dominava
árbitros ou notários. As cortes de acusação são ainda mais formais e e não podia reivindicar o monopólio da justiça. Foram necessários o
nelas há um papel específico para o Estado. No final da escala está o Iluminismo do século XVIII e a Revolução Francesa para que a justiça
verdadeiro tribunal estatal onde o Estado é a vítima, tem a iniciativa estatal pudesse tomar um passo tão drástico. 13 No século XVIII o Es-
da ação e também a discricionariedade e o controle da mesma. tado já reclamava poder absoluto, que exercia de modo incrivelmen-
A justiça comunitária, na forma vigente na Europa em princí- te arbitrário e abusivo. Torturas e penas quase inimagináveis eram
pios da ldade Moderna, continha elementos de justiça estatal. Talvez comuns - não apenas para os "criminosos" devidamente julgados
a mistura, a relação simbiótica entre elas, tenha permitido o bom e condenados, mas também para suspeitos e inimigos políticos. A
funcionamento da justiça comunitária. Pode ser que a ameaça de coroa se declarava acima da lei, e esta era um labirinto insano de
justiça estatal tenha azeitado as engrenagens da justiça comunitária. c~stumes.e princípios, lógica e arbitrariedade, interesses particulares
Talvez a habilidade para escolher os espaços de negociação fosse um e ImperatIvos públicos.
fator importante. Mas como a justiça estatal saiu vitoriosa, a compre- Os reformadores do período iluminista tentaram colocar a lei
ensão do que era apropriado e possível acabou mudando. A justiça acima dos governos e criar leis com fundamento racional. Profun-
comunitária deixou de ser opção para a maioria dos eventos que dament.e críticos em relação à tradição e à religião, que viam como
hoje chamamos de crime. superstlções ilógicas, eles abraçaram uma forma jurídica secular ba-
No final do século XVI as pedras angulares da justiça estatal já seada na lei natural e princípios racionais.
estavam posicionadas na Europa. Novos códigos legais na França, Em meio a esse processo, os pensadores iluministas começaram
Alemanha e Inglaterra ampliaram as dimensões públicas de certas a formular novos conceitos de sociedade e de Estado com base num
ofensas e conferiram ao Estado um papel bem maior. Os códigos pe- contrato social implícito. Segundo eles, as leis deveriam refletir a

11. Bianchi, 'justice as Sanctumy", capo 6, p. 13 e ss. 11 13.I Além


I . das
'. fontes anteriormente
.. citadas ' ver Michael Ignatieff" "State c·IVl'1 S·
oClety, an d
12. Ver Herman Diederiks, "Patterns of Criminality and Law Enforcement During the ata nsntutlOns. A CDuque of Reeent Social Histories Df Punishment", em Cohen e Seul!
Ancien Regime: The Duteh Case", em Criminal]ustice History: An International Annual, 1980, (eds.), Socra! Control and the State, pp. 75-105; e jaeques Ellul, The Theo!ogica! Foundatíons of
Law (Nova York: Seabury Press, 1969).
pp. 157-74.

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JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA

vontade da sociedade em geral e aos governos caberia o papel de conceito plenamente racional e "utilitário" de direito, na verdade
articular e administrar essas leis. Isto não significa que sonhassem manteve fortes elementos punitivos e até de retaliação. 14
em ver as pessoas comuns tomando decisões políticas. A maioria dos A Revolução Francesa, que teve início em 1789 e se estendeu
pensadores iluministas não eram, nem de longe, democratas! Mas até o século seguinte, bebeu na fonte do Iluminismo, mas teve uma
começaram a articular o conceito de governo enquanto representan- dinâmica própria. Ela também atacou os costumes e os privilégios,
te dos interesses da sociedade em geral, em vez de exclusivamente buscando substituí-los por um conceito racionalizado de direito e
de alguns grupos de interesse ou da família real. um novo modelo de Estado. Mas, como o Iluminismo, ela deu corpo
Diante dos abusos de poder do Estado que se pretendia absolu- a idéias mais em vez de menos ambiciosas sobre seu poder.
to, os reformadores do século XVIII poderiam ter atacado o pressu-
Os novos códigos penais adotados pelos governos revolucio-
posto do Estado centralizado. Mas não o fizeram. Ao invés disso, não
nário e napoleônico ilustram tais tendências. Eles deram ao Estado
apenas conceberam um Estado forte mas lançaram as bases para um
amplos poderes de iniciar ações penais. Eram também bastante pu-
poder ampliado fundado numa nova lógica e responsabilidade. A
nitivos, embora com um foco mais racional e eqüitativo.
nova lógica era o contrato social com as novas responsabilidades
estendidas para porções maiores da população e para o direito. Os desenvolvimentos ocorridos nos séculos XVIII e XIX foram
importantes portanto na formulação da forma atual de justiça re-
O livro de Cesare Beccaria intitulado On Crime and Punishment
tributiva. O Estado ganhou nova legitimidade e também novos me-
[Do crime e do castigo], publicado pela primeira vez em 1764 e
canismos para exercer seu poder. O direito foi revestido de uma
muitas vezes citado como fundamento do moderno direito penal, foi
santidade inédita, que tornou a transgressão algo mais repreensível
em parte uma expressão dessa abordagem iluminista. Beccaria partiu
e suas conseqüências mais "merecidas".
do pressuposto de que a lei devia estar logicamente enraizada na
vontade da comunidade como um todo. Afirmou que ela devia ser O pensamento iluminista e a prática pós-iluminista reforçaram
aplicada a todos, e administrada de modo racional pelo Estado. a tendência no sentido de definir as ofensas em termos de violação
Beccaria entendia, ainda, que as pessoas decidiam como iriam da lei ao invés de em função do dano real. Diante de danos mais gra-
se comportar com base em suas expectativas quanto à dor ou o pra- ves, a ênfase recaía cada vez mais sobre a esfera pública ao invés da
zer advindos de suas escolhas. Logo, a lei deveria administrar doses privada. Se o Estado representasse a vontade e interesses populares,
racionais e limitadas de dor levando em consideração a quantidade ficaria mais fácil justificar sua definição como vítima e entregar-lhe o
necessária para contrabalançar o prazer que o perpetrador deriva da monopólio das intervenções jurídicas. Mais importante, o Iluminis-
ofensa cometida. Mas a dor a ser administrada devia ser proporcio- mo trouxe consigo a nova física da dor.
nal ao mal cometido. Os pensadores do Iluminismo e da Revolução Francesa não
O livro de Beccaria foi uma arma bastante útil para atacar os questionaram a idéia de que quando um mal é cometido, a dor deve
abusos cometidos pelo Estado e pelo direito consuetudinário. Mas ser administrada. Pelo contrário, ofereceram novas justificativas.
ao invés de questionar o papel central daquele dentro do campo
14. Ver David B. Young, "LetUs Content Ourselves with Praising the Work While Drawing
da justiça, ele ofereceu renovada legitimação. Além disso, embora the Vell Over Its Pnnclples: Elghteenth-Century Reactions to Beccarias. On Crime and Pu-
tenha sido compreendido por alguns como tendo entronizado um nishment",]ustice Quarterly, 1, nO 2 aun. 1984), pp 155-69.

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JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTÓRICA

lnstituíram diretrizes mais racionais para a administração da dor. E


para justificar o uso das prisões a fim de infligir o que Christie cha-
introduziram novos mecanismos para aplicação das punições.
mou de "dor dotada de propósito".
O instrumento básico de aplicação da dor veio a ser a prisão.
As raizes da justiça formal centrada no Estado nasceram há
Eram muitas as razões para a introdução do aprisionamento como
muitos séculos, mas a justiça estatal enfrentou considerável resis-
sansão penal naquela época. Mas a parte atraente da privação de
tência, e emergiu vitoriosa apenas no século passado. A experiên-
liberdade é que ela permitia graduar o tempo da pena segundo a
cia estadunidense é um caso elucidativo. 18 Relatos sobre a justiça
gravidade da ofensa. As prisões constituíam uma forma de dosar a
nos Estados Unidos amiúde enfatizam o desenvolvimento precoce
punição em unidades de tempo, oferecendo uma aparência de racio-
de formas públicas e legalistas de justiça, situando sua origem no
nalidade e mesmo de ciência à aplicação da dor.
período pré-revolucionário. Mas estudos recentes revelaram que os
As prisões também se coadunavam muito bem com as sensibi- procuradores públicos tinham papéis bastante limitados. Não goza-
lidades e necessidades que surgiam. Publicidade e sofrimento físico vam de autonomia para iniciar ou encerrar um processo criminal até
haviam caracterizado as punições do Antigo Regime. Os absolutistas a metade do século XIX ou mesmo mais tarde. Ao invés disso, outras
tinham usado punições publicas e brutais como forma de tornar formas de justiça (incluindo mediação, arbitragem e procedimen-
visível seu poder. Os novos governos com maior base popular não tos Cíveis) eram populares e persistiram inclusive depois da justiça
tinham necessidade de demonstrações públicas para legitimar seu estatal triunfar. A restituição era uma forma popular de acordo, ao
poder. Além disso, as pessoas não se sentiam mais tão à vontade com menos para os crimes patrimoniais, e as vítimas desempenhavam
a dor e a morte. A forma de lidar com a morte e a doença mudou, papel importante.
refletindo a necessidade de esconder ou mesmo negar esses aspectos
difíceis da vida. 15 Nesse contexto, as prisões ofereciam uma forma de Por fim a justiça estatal dominou. O estabelecimento de procu-
administrar a dor a portas fechadas. radores públicos com amplos poderes e discricionariedade e a dispo-
nibilidade de penitenciárias foram parte importante nesse processo
À medida que a tecnologia para infligir dor mudou, modificou-
nos Estados Unidos. O resultado é que hoje, como Jerold Auerbach
se também o escopo de suas intenções. No início da ldade Moderna
colocou de modo bastante elucidativo, "A lei é nossa religião nacio-
as formas de punição visavam o corpo, muitas vezes de modo brutal.
nal, os advogados são os sacerdotes e o tribunal é a catedral onde o
O moderno uso da prisão buscava atingir a alma, como observou o
teatro das paixões contemporâneas é encenado". 19
historiador francês Michael Foucault. 16 Os quakers americanos que
defendiam a prisão 17 o faziam na expectativa de incentivar o arrepen-
dimento e a conversão. Justificativas posteriores pintavam as prisões As dimensões da revolução jurídica
como laboratórios para mudar comportamentos e padrões mentais
e para reformar personalidades. Muitíssimas razões foram cunhadas A vitória de justiça estatal tardou a chegar. Mas como documentou

15. Spierenburg, Spectacle of Suffenng, capo 6. 18. Ver josephine Gittler "Expanding the Role of the Victim in a Criminal Action: An Over-
16. Michel Foucault, Discipline and Punish: The Birth of the Prison (Nova York, Parthenon view of Issues and Problems", Pepperdine Law Review, 11, 1984; e Allen Steinburg, "From Pri-
Press, 1977). Ver também Ignatieff, A]ust Measure ofPain e "State, Civil Society". vate prosecution to Plea Bargaining: Criminal Prosecution, the District Attorney, and American
Legal History", Crime and Delinquency, 30, nO 4 (out.l984), pp. 568-92.
17. O ano de 1980 marcou o 200° aniversário da primeira prisão moderna, a Walnut Streetjail.
19. jerold S. Auerbach,]ustice Without Law? (Nova York: Oxford University Press, 1983, p. 9.

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115
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTORICA

Berman, representou nada menos que uma revolução jurídica com


T JUSTIÇA COMUNITÁRIA. A ALTERNATIVA HISTORICA

Como a punição tornou-se a norma, formas inovadoras de


profundas implicações. As dimensões dessa revolução no tocante à pena foram surgindo. O significado simbólico da punição também
forma como se pensa e faz justiça estão resumidas nos parágrafos mudou. No mundo pré-moderno a motivação de vingança desem-
seguintes. penhava um claro papel quando alguém buscava punição. Mas tão
Em primeiro lugar, no centro dessa revolução estava a mudança importante como a idéia da punição era a vindicação da vítima. Na
de uma justiça privada ou comunitária para uma justiça pública. Tal maior parte dos casos a punição era pública. Assim, ao ser imposta
movimento começou pela abertura de possibilidades de denúncia uma punição estava implícita uma declaração simbólica de que a
por parte do Estado. Depois este colocou-se como parceiro, e mais vítima estava correta do ponto de vista moral.
adiante proprietário, até que afinal tinha o monopólio da justiça para Nas sociedades teocráticas, a punição também funcionava como
todos os danos e males chamados crimes. purificação simbólica que livrava a comunidade da poluição criada
Ao longo desse processo a vítima do crime foi redefinida, e o pelo crime. A punição demonstrava que a sociedade não tolerava tais
Estado tornou-se a vítima de direito. As vítimas foram abstraídas e ações, e assim ajudava a manter um sentido de limites e identidade
os indivíduos tornaram-se periféricos ao problema e sua solução. da comunidade.

Em segundo lugar, concomitante a esse processo, a justiça foi Os governos que recém surgiam estavam identificados de modo
sendo cada vez mais calcada na lei formal ao invés de nos costumes personalista com a família real e preocupavam-se em solidificar suas
e na conveniência. A justiça acabou sendo equiparada com a lei es- posições. As penas públicas brutais serviam como demonstração de
crita e interpretada e gerenciada por profissionais. Cada vez mais o poder do Estado, uma forma de asseverar e dramatizar seu poder.
critério da justiça passou a ser o processo utilizado. Nesse contexto, a justiça freqúentemente não passava de um teatro
de culpa e vindicação para demonstrar o assombroso poder das au-
Certos danos e conflitos vieram a ser definidos como diferentes
toridades centrais. 20 Essa função simbólica ajuda a explicar a severi-
dos outros, dando início a procedimentos criminais em que o Estado
dade de muitas penas, visto que eram concebidas para demonstrar
predominava. Outros foram deixados a cargo da lei civil, onde os as conseqüências de opor-se a ele. A punição precisava infundir ter-
participantes retiveram considerável discricionariedade e poder. ror. Esse papel simbólico também contribui para explicar a resistên-
Em terceiro, a vingança era um possível resultado da justiça cia pública a algumas formas de punição. O carrasco era uma figu-
comunitária. O Estado assumiu essa opção, diminuindo a disponi- ra especialmente odiada dentro de muitas comunidades européias,
bilidade de outras possibilidades. A punição tornou-se normativa. principalmente por representar a justiça imposta pelo EstadoY
Resoluções amigáveis e acordos passaram a ser raros e até ilegais. Hoje a punição é justificada em termos pragmáticos e utilitá-
Como a norma fosse a punição e não a restituição, a importância da rios: como forma de coibir, isolar da sociedade ou reabilitar. Por trás
vítima individual dentro do processo diminuiu.
É interessante notar que a Igreja nunca articulou qualquer crí- 20. Ver Spierenburg, Spectacle, pp. 200 e 55.; Mark A. Sargent, resenha sobre Foucault no
New EnglandJournal on Prison Law, primavera de 1979, pp. 235-40; Heinz Steinert, "Beyond
tica séria a esse processo. Preocupada em controlar a vingança pri- Crime and Punishment", Contemporary Crimes: Law, Crime and Social Policy, 10, nO 1, 1986,
vada, e rápida em reconhecer o papel do Estado, ela acabou por p. 25; e Horace Bleackley eJohn Lofland, State Executions Viewed Historically and Sociologically
(Montclair: Patterson Smith, 1977).
oferecer apoio eficaz. 21. Ver Spierenburg, The Spectacle of Suffering, capítulo 2 e pp. 200 e 55 ..

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JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTORICA
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: A ALTERNATIVA HISTORICA

destas perduram muitas funções simbólicas importantes que retêm anonimato da sociedade como resultantes do crescimento popula-
elementos das punições antigas. Quando observo o modo como as cional, do advento das cidades e da industrialização. Talvez os mé-
penas são impostas, muitas vezes suspeito que há uma necessidade todos tradicionais de solução de problemas tenham deixado de fun-
de dramatizar o poder do Estado e da lei sobre o indivíduo. cionar adequadamente na ausência da base comunitária.

Em quarto lugar, os diferentes conceitos de justiça trouxeram Outros observam que a sociedade, ou ao menos as classes altas,
consigo novas maneiras de entender o crime e o criminoso. Em vez sentiram a necessidade de controlar a turbulência social. Procurou-se
de uma violação ou conflito individual, certos comportamentos reduzir os conflitos de classe e encontrar formas de manter a ordem
tornam-se violações coletivas ou sociais de ordem sobrenatural. A sem perturbar os padrões vigentes de desigualdade social e política.
dimensão pública foi elevada acima da privada e isto serviu de jus- Uma interpretação comum indica a necessidade de controlar
tificativa para que o Estado impusesse uma ordem social e moral. A as vinganças privadas. Segundo esta visão, a vingança saíra de con-
justiça veio a ser vista como o alinhamento da balança, um equilí- trole e somente dando ao Estado o "legítimo monopólio da violên-
brio metafísico de abstrações. cia" é que se poderia conter as vinganças. Este foi um argumento
muito usado pelos seus representantes. Mas os historiadores vêm
questionando o fato de que a vingança estivesse tão fora do con-
Uma mudança de paradigma trole, ou que as alternativas fossem tão limitadas quanto aquela
explicação faz parecer.
A revolução jurídica, como indiquei acima, envolveu uma mudança
de paradigmas de formas de construir e compreender a realidade. O Parte da resposta à nossa questão talvez repouse na necessida-
que jaz no fundamento desta mudança? Muitas respostas podem e de que os Estados emergentes tinham de monopolizar e exercer o
foram de fato propostas. poder. Qual o problema que o paradigma retributivo procurava re-
solver? Talvez a necessidade do Estado de legitimar e consolidar seu
11 Leshan e Margenau notam que os novos paradigmas emergem
poder. Afinal, o Estado moderno é uma "instituição gananciosa", nas
1 como tentativa de resolver os problemas mais prementes de uma
1
'I 1'"i '
,1,' palavras do sociólogo Lewis Coser. 23
kl
sociedade ou cultura. 22 Segundo eles, o paradigma científico surgiu
I,
I,
'
como tentativa de resolver o problema mais grave da sociedade oci- Seja como for, o paradigma mudou. Mas a inadequação do novo
dental do final da Idade Média, ou seja, problemas catastróficos como paradigma logo ficou evidente e variados "epiciclos" e mudanças co-
a peste negra. A sociedade via-se confrontada pela necessidade pre- meçaram a ser introduzidos. Atualmente há forte percepção de que
mente de controlar seu entorno e, portanto, desenvolveu um paradig- ele é disfuncional. Outro paradigma será possível? Em caso afirmati-
ma adequado à tarefa. Mas com o surgimento de outros problemas, o vo, poderá esse novo paradigma se inspirar em elementos do passa-
paradigma tornou-se inadequado e foi preciso que outros surgissem. do? Nossa tradição sugere algumas possibilidades.

Qual foi o problema que o paradigma retributivo tentou solu-


cionar? Algumas explicações focalizam a crescente complexidade e

22. Lawrence Leshan e Henry Margenau, Einstein's Space and Van Gogh's Sky: Physical Reality
23. Lewis A. Coser, Greedy Institutions (Nova York: Free Press, 1974).
and Beyond (Nova York: Collier Books, 1982).

118 119
o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA

Capítulo 8
Não te vingarás e não guardarás rancor contra os filhos do teu povo.
O direito da aliança: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou Iahweh. Guardarás os
a alternativa bíblica meus estatutos. Não jungirás animais de espécie diferente no teu reba-
nho; não semearás no teu campo duas espécies de sementes diferentes
e não usarás vestes de duas espécies de tecido. (Lev: 19: 18-19)
Se alguém tiver um filho rebelde e indócil, que não obedece ao pai e à
Nosso passado oferece um modelo que mostra um caminho diferen- mãe e não os ouve mesmo quando o corrigem, o pai e a mãe o pegarão
te; o da justiça comunitária. Mas há um outro modelo que para os e levarão aos anciãos da cidade, à porta do lugar, e dirão aos anciãos
da cidade: "Este nosso filho é rebelde e indócil, não nos obedece, é de-
cristãos é ainda mais significativo: a justiça bíblica.
vasso e beberrão". E todos os homens da cidade o apedrejarão até que
Talvez seja chocante dizer que a justiça bíblica poderia oferecer morra. Deste modo extirparão o mal do teu meio e todo Israel ouvirá
um modelo muito diferente da justiça retributiva. Afinal, a citação bí- e ficará com medo. (Deut. 21: 18-21)
blica mais freqüente nessa mesma ceara é justamente "Olho por olho,
Se pecar e se tomar assim responsável, deverá restituir aquilo que ex-
disse o Senhor". Impossível encontrar demonstração mais clara de que
torquiu ou que exigiu em demasia: o depósito que lhe foi confiado, o
a Bíblia pede o 'Justo castigo" na forma de punição para os crimes.
objeto perdido que achou, ou todo o objeto ou assunto a respeito do
Mas as aparências enganam quando se trata de "olho por olho". qual prestou um falso testemunho. Fará um acréscimo de um quinto
Um exame mais detido desse princípio da "lei de talião" não significa e devolverá o valor ao proprietário do objeto, no dia em que se tomou
aquilo que muitas pessoas entendem. Além disso, este não é de modo responsável. (Lev: 5: 23-25)
algum o tema preponderante, o paradigma, da justiça bíblica.
Não lavrarás com um boi e um asno na mesma junta. (Deut. 22: 10)
Aquele que blasfemar o nome de Iahweh deverá morrer, e toda a co-
o que diz a Bíblia? munidade o apedrejará. Quer seja estrangeiro ou natural, morrerá,
caso blasfeme o Nome. (Lev. 24: 16)
O que a Bíblia tem a dizer sobre assuntos como crime e justiça? Ob-
viamente, ela tem muito a dizer. Nem tudo faz sentido para nós, dado
o tempo e a situação em que vivemos. Algumas passagens até parecem Alguns trechos parecem enfatizar a retribuiçãO. Outros parecem
mutuamente contraditórias quando contempladas superficialmente. restaurativos. Alguns "fazem sentido" para a mente do século xx.
Vejamos, por exemplo, os seguintes exemplos de preceitos le- Outros parecem completamente estranhos e até bárbaros. Obvia-
gais, todos tirados do Antigo Testamento. mente não podemos seguir todos eles. Qual escolher? Como formar
um preceito claro?!
Se um homem ferir um compatriota, desfigurando-o, como ele fez,
I •••••••••••••••••••

assim se lhe fará: Fratura por fratura, olho por olho, dente por dente.
1. Para uma discussão das abordagens à interpretação da Bíblia, ver Willard M. Swar-
O dano que se causa a alguém, assim também se sofrerá. (Lev. 24: tley, Slavery, Sabbath, War, and Women: Case Issues in Bíblical Interpretatíon (Scottdale: Herald
19-20) Press, 1983), capo 5; e Perry Yoder, Toward Understanding the Bible (Newton: Faith and Life
Press, 1978).

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o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA

Uma abordagem que parece reduzir o número de problemas cos importantes que para nós precisam constar de um código penal,
hermenêuticas é a de nos limitarmos ao Novo Testamento, que é o como assassinato e furto, estão misturados com itens que não pre-
material bíblico mais recente. Tal método tem seus méritos já que o cisam ser contemplados como, por exemplo, normas sobre a agri-
próprio Cristo deixou claro que a "nova aliança" tinha precedência cultura, alimentação, vestimenta, casamento e adoração. Algumas
sobre a anterior. ofensas e seus remédios jurídicos têm evidente dimensão religiosa e
ritual, enquanto outras parecem mais objetivas.
Evidentemente, o Novo Testamento deve ser nosso padrão bási-
co. Mas ignorar o Antigo Testamento é alijarmo-nos de um riquíssimo Pelo fato da nossa linguagem ser tão diferente, especialmente no
caso do Antigo Testamento, seria muito problemático aplicar suas
material que, em sua maioria, deu sustentação ao Novo Testamento.
prescrições legais e judiciais ao nosso contexto atual. Certamente não
A fim de compreender mais plenamente as dimensões da justiça e
é adequado transplantar uma lei isolada para a nossa realidade. Nem
das intenções do Deus da Bíblia para a humanidade, devemos levar o
seria acertado tomar conceitos isolados e enxertá-los num tronco
Antigo Testamento a sério.
filosófico distinto. Como veremos, essa abordagem na verdade tem
Ao examinar a Bíblia, e especialmente o Antigo Testamento, levado à perversão de importantes idéias contidas na Bíblia. Deve-
devemos primeiro ter em mente que estamos lendo literatura de mos, sim, tentar compreender os princípios e intenções subjacentes
um outro mundo, um mundo distante de nós não apenas no tempo e então seguir, a partir deles, em direção a conceitos de lei e justiça.
e no espaço, mas também na filosofia, nos sistemas políticos e na Como propôs Jesus, é preciso apreender o espírito, e não apenas a
estrutura social. Como é de se esperar, as leis tinham uma forma letra da lei. Somente assim poderemos compreender as "leis" bíbli-
muito diferente. Também seus propósitos e métodos de administra- cas individuais para aplicação no contexto contemporâneo.
ção eram distintos dos de hoje. 2 Mesmo os pressupostos básicos em Portanto, tentaremos descobrir aqui estas perspectivas e dire-
relação a assuntos como culpa e responsabilidade eram diferentes ções. Não creio ser este o espaço adequado para uma análise deta-
dos nossos, o que afetava diretamente os conceitos de lei e justiça. lhada da função, forma, conteúdo e administração da lei hebraica.
A culpa, por exemplo, era coletiva, como também a responsa- Minha abordagem será a de esboçar o que parecem ser seus vetores
bilidade. Por isso, na visão do povo da época, certos tipos de crime subjacentes e depois contemplar os conceitos de justiça e lei a par-
contaminavam a sociedade como um todo. Para expiar essa culpa tir dessas orientações. Por fim, procurarei tirar algumas conclusões
eram necessárias cerimõnias coletivas de penitência, e por isso a sobre o significado do crime e da justiça que tenham aplicação no
contexto atual.
correção sugerida pelo Antigo Testamento para certas ofensas tem
caráter sacrificial, coisa que hoje nos parece estranha. Dois conceitos básicos são fundamentais para desvelar o pensa-
Tudo isso faz com que as leis do Levítico e do Deuteronômio mento bíblico no tocante à lei e à justiça (e, na verdade, para tudo o
mais): shalom e aliança. É preciso começar por eles.
nos pareçam bizarras. Como vimos dos trechos citados acima, tópi-

2. Uma útil introduÇão ao direito do Antigo Testamento: Hans Jochen Boecker, Law and
the Administration of ]ustice in the Old Testament and Ancient East (Minneapolis: Augsburg Pu-
Shalom: uma visão unificadora
blishing House, 1980); Dale Patrick, Old Testament Law (Atlanta: John Knox Press, 1985);
Millard Lind, "Review Essay",]oumal ofLaw and Religion, v. 4, nO 2 (1986), pp.479-85. Um tema essencial da mensagem bíblica, manifestado tanto no An-

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o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA
o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA

tigo como no Novo Testamento, consiste na palavra hebraica shalom


que as pessoas vivem em paz, sem inimizade (o que não significa
(em grego, usado no Novo Testamento, o vocábulo corresponden- sem conflitos!!!).
te é eirene). Shalom não é um tema periférico, nem simplesmente
Na Bíblia está claro que isto inclui viver relações econômicas
um dentre muitos outros, é uma crença central básica em torno da
e políticas justas com os outros. Ela reitera inúmeras vezes que a
qual muitos outros valores importantes se organizam. Shalom resu-
opressão e a injustiça são contrárias a shalom, não representam bons
me todas as intenções divinas fundamentais, a visão de Deus para a
relacionamentos e não devem existir. Shalom depende de bons rela-
humanidade.
cionamentos entre as pessoas, e isso significa a eliminação da opres-
Conseqüentemente, devemos compreender a salvação, a remis- são. Diferenças marcantes entre condições materiais e poder, que
são, o perdão e a justiça a partir da sua raiz em shalom. resultam em empobrecimento e opressão de alguns, são condições
A tradução corriqueira de shalom, "paz", transmite um aspecto que não podem coexistir com shalom, pois ela significa o bem-estar
do conceito, mas não expressa adequadamente todas as conotações de todos da sociedade. Quando isto não existe, não há shalom.
da palavra. Shalom diz respeito a uma condição em que "tudo está Uma terceira dimensão ou aplicação de shalom na sua acepção
certo" e as coisas estão como devem ser em inúmeras dimensões. Em bíblica está no campo ético. Segundo Yoder, shalom se refere a uma
seu estudo sobre shalom, o estudioso da Bíblia Perry Yoder afirma ter condição de "transparência" ou "sinceridade". O conceito funciona
encontrado basicamente três dimensões de significado para a pala- de duas maneiras nesse contexto. Refere-se à honestidade e ausência
vra no contexto bíblico. 3 de falsidade no trato com o outro, e a uma condição de ausência de
Contrariamente ao entendimento corriqueiro, shalom em geral culpa (estar sem falta ou erro). Shalom envolve honestidade, integri-
se refere a condições ou circunstâncias materiais ou físicas. Segundo dade ética. Embora importante, esta dimensão de shalom é a menos
mencionada na Bíblia.
a Bíblia, intenção de Deus é que a humanidade viva com bem-estar
físico. No mínimo, isto significa uma situação em que as coisas estão Shalom define o modo como Deus pretende que as coisas sejam.
bem. Mas em algumas instâncias a palavra parece apontar para algo Deus pretende que as pessoas vivam em uma situação "correta em
mais, para prosperidade e abundância. Ao menos as visões de futuro todos os aspectos" no mundo material, nos relacionamentos inter-
articuladas de modo tão pictórico pelos profetas incluem saúde e pessoais, sociais e políticos, e também em seu caráter individual.
prosperidade material e ausência de ameaças físicas como doenças, Não pode haver shalom quando as coisas não estão COmo devem ser,
pobreza e guerra. e sua ausência está no cerne das críticas que os profetas do Antigo
Testamento faziam ao povo de Deus. A perspectiva de shalom tam-
Uma segunda dimensão da palavra diz respeito às relações
bém molda as esperanças e promessas para o futuro.
sociais. Segundo a Bíblia, Deus pretende que as pessoas vivam em
bom relacionamento mútuo e com Ele. Viver em shalom significa Embora as implicações totais de shalom extrapolem o escopo da
presente obra, o seu significado está na base do significado de outros
3. Perry B. Yoder, Shalom: The Bible's Word for Salvation, ]ustice, and Peace (Newton, Kansas:
pilares centrais dos valores bíblicos. A visão de shalom também nos
Faith and Life Press, 1987). Este capítulo se baseia muito na reflexão sobre shalom, justiça, lei ,a.juda a compreender as ações de Deus e suas promessas ao longo da
e aliança feita por Yoder.
.. história contada pela Bíblia.

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o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA
I1
I
o conceito de shalom embasa todo o pensamento do Antigo No contexto bíblico uma aliança é um acordo com força de lei
Testamento. Seus autores usaram os termos drene e shalom para de- entre as partes. A aliança presume um relacionamento pessoal entre
signar a boa notícia de Deus para a humanidade. 4 Semelhante a sha- elas e implica em responsabilidades e compromissos recíprocos. A
10m, drene se refere à paz entre os povos e Deus, e entre as pessoas fé bíblica tem por pressuposto uma aliança entre Deus e o povo,
em várias instâncias. uma aliança baseada nos atos salvíficos e justos Dele. O principal ato
A vida de Cristo, seus ensinamentos e morte mostram o padrão salvífico do Antigo Testamento foi um ato de libertação, o êxodo do
para uma vida desse tipo. Transformam o relacionamento divino- Egito. Tal ato foi realizado por causa do amor de Deus, e não porque
I, humano e também o relacionamento entre as pessoas. Nas palavras fosse merecido ou tivesse sido conquistado pelo esforço do povo.
,li

de Yoder, 'Jesus veio para que as coisas fossem como deveriam ser Embora o êxodo seja emblemático, o Antigo Testamento é um
entre as pessoas e entre as pessoas e Deus e também a natureza". 5 relato de repetidos resgates e salvação renovada. Os profetas enten-
Assim, a reconciliação é um tema importante no Novo Tes- diam estes reiterados atos de salvação como sendo parte do com-
tamento, mas o estado em que "tudo está certo" pretendido por promisso de Deus, assumido através da aliança Dele com seu povo.
Deus continua tendo dimensões materiais e físicas, como tinha no Mesmo que o povo freqüentemente falhasse no cumprimento das
responsabilidades assumidas de sua parte, os profetas afirmavam
Antigo Testamento.
que Deus havia permanecido fiel à sua promessa original.
Ocasionalmente o povo renovava sua aliança com Deus e disso
Aliança: a base para shalom resultava a criação das condições necessárias à existência de shalom
já que o relacionamento agora estava correto. Assim, a aliança ofere~
o conceito de aliança é a base e modelo primário de shalom na Bí- cia o fundamento e também o modelo para shalom.
blia. 6 O que diferenciava os israelitas tão marcadamente de seus con-
Mas uma aliança pressupõe obrigações mútuas. Os conceitos de
temporâneos do Oriente Próximo era, em boa parte, a crença de que
'li lei e justiça possibilitavam às pessoas compreender e trabalhar por
I, Deus havia feito uma aliança com a humanidade. Este conceito de
shalom cumprindo aquelas obrigações.
aliança moldou os conceitos de lei, justiça, ordem social, fé e espe-
No Antigo Testamento, o ato fundamental de libertação que
rança. Leis que talvez fossem semelhantes e até importadas de outras
constituiu o paradigma da aliança e a base para a visão de shalom
sociedades fronteiriças acabavam sendo radicalmente transformadas
foi o êxodo e a libertação da escravidão no Egito. O novo ato de
por esta aliança.
libertação representado pela vida, morte e ressurreição de Cristo
formou a base para uma "nova" aliança, uma nova forma de con-
4. Yoder, op. cit., pp. 19-2l.
vivência. O Novo Testamento, talvez melhor compreendido como
5. Yoder, op. cit., p. 2I.
6. Além da obra de Yoder (e.g. pp. 75-82), baseei-me bastante nas reflexões de Millard
nova aliança, foi criado em cima dos antigos entendimentos e deu
Lind sobre aliança e direito. Ver "O direito no Antigo Testamento", em The Bible and Law, ed. continuidade aos conceitos de shalom e aliança, mas em forma re-
Wíllard M. Swartley, OccasionaJ Papers n° 3 do Council of Mennonite Seminaries (Elkhart:
Institute of Mennonite Studies, 1983); e The Transformation ofJustice: From Moses to Jesus, nO 5,
novada. Segundo a Bíblia, ali nasceu um novo dia no relaciona-
New Perspectives on Crime and]ustice: Occasional Papers (Akron: Mennonite Central Commit- mento entre Deus e a humanidade - e entre as pessoas. Mas, como
tee,1986). no Antigo Testamento, a base para a aliança é o ato salvífico e

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o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA
o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA

libertador de Deus. Esse gesto de Deus oferece um caminho para toda autoridade, acima de todos os reis. Esse Deus era pessoal , fiel ,
conviver em shalom, que pressupõe responsabilidades mútuas en- preocupado com os fracos e com a condição humana em geral. Tais
tre Deus e a humanidade, e entre as pessoas. qualidades estavam arraigadas na visão de shalom e na crença na
A aliança do Antigo Testamento fundou-se num ato central de aliança. Assim, a justiça da aliança apresentava um contraste mar-
salvação e libertação. Tal aliança criou a base para uma nova socie- cante em relação à justiça estatal.
dade, uma sociedade que fosse diferente das outras, que operasse O conceito de transformação é importante, mas há ainda uma
por princípios próprios, e que funcionasse no sentido de realizar outra dimensão. Deus opera dentro dos limites da época, dentro
shalom. Também a aliança do Novo Testamento se assenta em atos dos limites da nossa compreensão e visão. A compreensão humana
fundamentais de salvação e libertação e lança as bases para uma é sempre incompleta, mas, como se lê em Marcos 10: 5, Deus leva
nova comunidade, com seus próprios princípios operacionais e isto em conta. No entanto, Ele força esses limites, procurando ex-
que constitui o alicerce para a obra de shalom neste mundo. A pandir nossa compreensão e visão. Assim, o conhecimento humano
aliança continua sendo o fundamento. continuou a se desenvolver através da história. A atuação de Cristo
foi parte desse processo, e muitas vezes se deu pela transformação
dos valores da antiga aliança. Os conceitos de shalom e aliança foram
Shalom e aliança como forças transformadoras
forças transformadoras que moldaram as idéias de direito e justiça,
Na sociedade bíblica shalom e aliança foram forças transformadoras mas, por sua vez, também eles foram transformados.
que desenvolveram os conceitos de direito e justiça. Ao longo de sua Portanto, o conceito de transformação faz sentido em várias di-
evolução, a sociedade dos hebreus enfrentou as mesmas carências e mensões. Lind chamou esse processo multi dimensional de "a trans-
pressões que outras sociedades antigas do Oriente Próximo. Como o formação da justiça de Moisés até Jesus".
líder babilônico Hamurábi, os governantes judaicos se viram diante da
necessidade de padronização e unificação diante do crescimento, da
urbanização e da especialização. As ferramentas legais e judiciais ado- A justiça da aliança
tadas ao longo desse processo por vezes tinham semelhanças formais
Como está implícito no conceito de shalom, a questão da justiça não
ou mesmo raízes semelhantes em Israel e em outros reinos do Oriente
é um assunto marginal na Bíblia. Nela, a justiça não é uma matéria
Próximo. Contudo, as idéias judaicas sobre direito e justiça eram radi-
"eletiva" que possamos deixar de lado. 8 A justiça diz respeito à pre-
calmente diferentes das de Hamurábi no tocante ao conteúdo. E essa
sença de shalom nos relacionamentos e, portanto, é fundamental à
diferença vinha da transformação operada por shalom e a aliança.
missão de Deus, à identidade de Deus e ao nosso futuro. De fato, a
O estudioso do Antigo Testamento Millard Lind escreveu que justiça serve como medida e prova de shalom.
a Lei de Hamurábi era uma lei estatal, hierárquica, imposta, puni-
Assim, não é por acaso que a questão da justiça seja tão re-
tiva, e nitidamente enraizada num rei distante e todo-poderos0 7 O
corrente na Bíblia. Nem é de surpreender que quando os profetas
direito judaico, por outro lado, pressupunha Deus como a fonte de , .................. .

8. Além das obras citadas, ver Matthew Fox, A Spirituality Named Compassion and the Healing
7. Lind, The Transformation ofJustice: From Moses to Jesus, nO 5, p. 3. ofthe Global Village, Humpty Dumpty and Us (Minneapolis: Winston Press, 1979).

Ii 128 129
:1:, ,li
o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA

condenaram Israel por afastar-se de seu Deus, afirmaram claramente contra shalom. Os atos daquele que oprime são tão graves quanto os
que a injustiça foi uma causa tão importante quanto a falta de ado- do indivíduo que assalta e rouba. Ambos violam shalom. A justiça
ração sincera. não é separável.
No idioma hebraico não há uma palavra única para transmitir a Nossos âmbitos de justiça retributiva e distributiva, embora go-
idéia de "justiça", mas duas palavras freqüentemente traduzidas por vernados por regras operacionais diferentes, baseiam-se ambos no
justiça são sedeqah e mishpat. 9 Nenhuma delas expressa exatamente pressuposto de que a justiça diz respeito à justa distribuição das
o que nosso vocábulo justiça quer dizer, mas ambas dizem respeito recompensas. Ambas cuidam para que as pessoas recebam o que
à "retidão", à correção, ao ato de retificar as coisas. Fazer justiça é merecem. Assim, tanto a justiça retributiva como a distributiva se
corrigir as coisas, e a história da relação de aliança entre Deus e Israel baseiam no princípio da reciprocidade, do merecido castigo. Isto
é um modelo, uma promessa e um chamado. O preceito de justiça remete a um tipo de ordem ética, abstrata, em que os desequilíbrios
nasce, portanto, do relacionamento de Iahweh com Israel. A justiça devem ser corrigidos. Implica também em que a justiça deve ser me-
bíblica se funda numa visão de shalom, moldada pelos atos salvíficos recida ou conquistada. Por exemplo, a justiça distributiva parte do
fundamentais de Deus no contexto da aliança Dele com seu povo. pressuposto de que as pessoas devem receber as coisas em função de
A forma como Deus reage aos males cometidos é uma janela para a seu esforço. Da mesma forma, a preocupação na justiça retributiva é
justiça divina. conseguir que as pessoas recebam a punição que merecem.
Na Bíblia a justiça "olho por olho" tem seu lugar. Mas a ênfa-
Quais as qualidades da justiça divina? se está alhures. O espírito do "olho por olho" deve ser temperado
pela justiça shalom, e esta, semelhante à salvação divina, preocupa-se
Seguindo as tradições grega e romana, tendemos a dividir a justi- com a necessidade e não com o mérito.
ça em áreas como "justiça social", por vezes chamada justiça distri- A rejeição da justiça "olho por olho" ou legalista aparece em
butiva, e "justiça criminal" ou justiça retributiva. Quando os males todo o relato da Bíblia. Ela se faz presente em todas as passagens
cometidos se relacionam com a distribuição da riqueza e do poder, em que as conseqüências prescritas ou reconhecidas na lei não são
falamos em justiça social. Quando os males cometidos foram defi- executadas. Embora Caim merecesse a pena de morte pelo assassi-
nidos em lei como crimes, dizemos que pertencem ao âmbito da nato de seu irmão, Deus rejeita essa penalidade. Quando a mulher
justiça retributiva. de Oséias comete falta grave, ela é poupada. No episódio da mu-
Na nossa visão, a justiça distributiva é difícil de conseguir, é um lher que cometera adultério e merecia morrer pelos padrões de seu
objetivo longínquo. Enquanto ela não vem, nos empenhamos em apli- tempo, Jesus rejeita essa penalidade. Tal rejeição do merecido castigo
car a justiça retributiva. Ou seja, presumimos que é possível separar as aparece mais uma vez na parábola dos trabalhadores da vinha. Os
áreas da justiça e lidar com cada uma delas de modo distinto. operários que começaram ao meio-dia recebem o mesmo pagamento
A justiça bíblica é mais holística e vê as duas esferas como parte generoso que aqueles que chegaram de manhã cedo, contrariando as
de um todo. A injustiça de qualquer tipo, em qualquer campo, vai expectativas da justiça "olho por olho".
Acima de tudo, tal rejeição do "merecido castigo" é demons-
9. Por ex., em Miquéias 6: 1-8. Ver Lind, Transformation, p. 1. Ver também nota nO 12. trada pela própria ação de Deus, cujo propósito é servir de modelo

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o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA
o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA

para a justiça shalom. Diante de recalcitrante iniqüidade, Deus não


Como a justiça bíblica visa melhorar as coisas, ela não é proj eta-
desiste de Israel.
da para manter o status quo. De fato, seu propósito é balancear o es-
Tendemos a considerar o amor e a misericórdia como diferentes tabelecido, aprimorar, seguir em direção a shalom. Esse movimento
ou opostos à justiça. Um juiz pronuncia uma sentença. Depois, po- não significa uma vantagem para todos necessariamente. De fato, é
derá mitigar a pena por um ato de clemência. Mas a justiça bíblica uma péssima notícia para o opressor. Também este é um aspecto que
nasce do amor. Tal justiça é de fato um ato de amor que busca corri- contrasta com a justiça que, atuando na manutenção da ordem, atua
gir as coisas. Nesse modelo o amor e a justiça não são opostos, nem na verdade para manter a ordem estabelecida e o status quo, mesmo
estão em conflito. Pelo contrário, o amor promove uma justiça que quando injustos.
busca em primeiro lugar endireitar o que não está bem.
Do ponto de vista bíblico a prova de justiça não se dá verifican-
Vale a pena lembrar que os conceitos ocidentais de amor ro-
do se as regras corretas foram aplicadas da maneira certa. O teste da
mântico e emocional complicam em muito nossa compreensão do
justiça é o resultado. A árvore se conhece pelos frutos. 10 É o mérito,
amor como fonte da ação. Não que o conceito bíblico de amor deixe
e não o procedimento, o que define se foi feita justiça. E qual deve
de lado nossos sentimentos. Cristo deixou bem claro que sentir ódio
ser o resultado? O critério decisivo é o modo como os pobres e opri-
é tão grave quanto agir com ódio. Mas ali o amor não se caracteriza midos são afetados.
por uma emoção melosa. O amor é um ato consciente de zelo amo-
roso pelo bem do outro. Quando a Bíblia fala de amor, as palavras Embora a administração da justiça nos tempos bíblicos fosse
em geral denotam ação e volição mais do que emoções. necessariamente um reflexo imperfeito desse ideal, ainda assim, ela
encarnava os pressupostos da justiça da aliança. 11 Quando uma falta
A justiça bíblica busca endireitar as coisas, e a ênfase é sobre a
era cometida, as pessoas iam até os portões da cidade para buscar
libertação. Deus procura corrigir as coisas, libertando aqueles que
justiça numa "assembléia legal" da qual participavam os cidadãos.
estão oprimidos do ponto de vista material, social e emocional. A
O foco dessa corte, por vezes chamada de "organização de recon-
justiça é um ato libertador, e tal libertação não acontece porque é
Ciliação" não era satisfazer um conceito abstrato de justiça, mas en-
merecida, mas porque é necessária.
contrar uma solução para um problema. A palavra julgamento aqui
Nossa imagem da justiça, emprestada aos romanos e vestida de
poderia ser traduzida por acordo ou decisão. A restitUição e a inde-
forma jurídica pela Revolução Francesa, é a de uma mulher venda-
nização eram resultados comuns. A passagem do capítulo 6 do Leví-
da, isenta, que segura uma balança de pratos equilibrados. A justiça
tico citada acima é um exemplo disso na medida em que pede pela
trata as pessoas como iguais, sem parcialidade. Mas será realmente
reparação de uma perda, e mais uma indenização. Em Êxodo 18,
justo tratar os desiguais igualmente? A justiça bíblica almeja c~rrigir
relata-se que Moisés estabeleceu um sistema de juízes. Seu objetivo
as coisas, e muitas vezes isto significa libertação para os deSIguaIs.
não era identificar vencedores e perdedores, mas garantir que "toda
Portanto, a justiça bíblica mostra uma inequívoca parcialidade em
essa gente vá para casa em paz", ou seja, em shalom CÊxodo18: 23).
relação aos oprimidos e empobrecidos. Ela está evidentemente do
lado dos pobres, reconhecendo suas necessidades e desvantagens. A
justiça bíblica está de olhos abertos, e suas mãos se estendem para 10. Ver Herman Bianchi, A Biblical Vision oflustice, n° 2, New Perspectives on Crime and justice:
{:)ccasional Papers (Akron: Mennonite Central Committee, 1984), p. 7.
os necessitados. 11. Ver Boecker, Law and the Administration ofJustice, pp. 31 e 55.

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o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA
o DIREITO DA ALIANÇA' A ALTERNATIVA BÍBLICA

Em vista dessa ênfase, não é de se estranhar que as palavras para


Como sugere este exemplo, a retribuição é um dos temas do
retribuir (shilIum) e recompensar (shillem) tenham a mesma raiz da
Antigo Testamento. Mas em geral a punição de Deus aparecia no
alavra shalom. A restituição era uma forma de tentar endireitar as
~oisas. A recompensa, às vezes traduzida por retribuição, mas com
contexto de shalom. A punição não era - como é para nós hoje - o
fim da justiça. Ela em geral visava uma restauração ou então subjugar
uma conotação de satisfazer ao invés de vingar-se, representava um
o poder do opressor (reivindicando justiça para o oprimido). Esse
reconhecimento de direitos. As duas dizem respeito à restauração de
contexto de shalom servia para limitar seu potencial retributivo.
shalom 12
Da mesma forma, a punição devia dar-se num contexto de amor
As ofensas eram vistas como um mal cometido contra pessoas
e na comunidade. Isto é, a punição era acompanhada por uma reno-
e contra shalom, e o processo judicial envolvia um acordo. Este é o
vação da aliança. Portanto, a punição era vista como justa, merecida.
modelo que encontramos em Miquéias 6. O povo de Israel havia
Ela mantinha aberta a possibilidade de eventual reconciliação e res-
contrariado a vontade divina, violando a aliança. As queixas de Deus
tauração, ao invés de condenar a um isolamento perpétuo. Ela era
estão relatadas numa forma que provavelmente correspondia à das
uma justiça restaurativa ao invés de destrutiva. A punição não era
ações judiciais daquele tempo. Através do profeta Miquéias ouvi-
mos uma viva descrição das queixas de Deus e das conseqüências a finalidade do processo. Assim, o conceito de shalom temperava o
funcionamento da justiça retributiva.
das violações. Depois vem o resultado final. Apesar de tuG"o, Deus
não desistiu. Em Miquéias 7: 18, vemos a justiça de Deus: "Qual é Com certeza a justiça bíblica não era uma investigação forense do
I o Deus como tu, que tira a falta, que perdoa o crime? Em favor do ato lesivo a fim de determinar a culpa e decidir qual a pena merecida.
'li resto de sua herança, ele não exaspera sempre sua cólera, mas tem Ao contrário, a justiça bíblica era uma tentativa de endireitar o que
prazer em conceder graça". estava errado e encontrar soluções que promovessem bem-estar.

···1·2···:;··D·····W····V: Ness Crime and Its Victims (Downers Grave: 1nterVarsity Press, 1986),
. ver an . an , . V"
'! p. 120; e Van Ness, "Persuing a Restorative Vision of Justice", em Justice: Restoratlve lswn, Direito da aliança
nO 7, New Perspectives on Crime and Justice: Occasional Papers (Akran: Mennomte Central
Committee, 1989), p. 18. O foco da justiça não recaía tanto na legalidade como no mérito. A
Millard Lind sugere as seguintes definições:
, I! ofensa não era definida primariamente como não conformidade com
Shillum: Recomposição, retribuição, prêmio (Hoseas 9: 7; Miquéias 7: 3)
as normas e leis, e a justiça não significava correta aplicação da lei.
Shillem: Recompensa (Deut. 32: 35)
Shalom: O bem-estar que nasce de um relacionamento de aliança. Isto talvez pareça bastante problemático aos nossos olhos. Ten-
Mishpat: A expressão social da retidão de Deus; a norma de comportamento que nasce do demos a ver as leis como salvaguarda da justiça e da ordem. Por-
relacionamento divino-humano, e os relacionamentos entre humanos baseados naquele.
tanto, vemos a transgressão como violação da lei e a justiça como
Sedeqah: Como sinônimo de mishpat, pode ser traduzido como justiça. Em outra contexto
mishpat pode referir-se à justiça aplicada, enquanto que sedeqa~ representa um atnbuto de aplicação da lei. Na Bíblia nada disso acontece.
Deus enquanto líder soberano. Muitas vezes traduzIda por salvaçao ou Vltona. Qua_ndo usado
em relação aos humanos, pode referir-se a conduta etlca, aos atos humanos que sao uma re-
Os dez mandamentos, as mais famosas (embora não mais tí-
cordação dos feitos e ensinamentos de Iahweh. picas) leis da Bíblia, nos oferecem uma visão da natureza e função
Eirene: Harmonia e concôrdia entre as nações e os indivíduos; segurança e bem-estar que da lei. Tendemos a interpretar estes preceitos do ponto de vista das
nasce do relacionamento de aliança (ver shalom)
nossas próprias leis, de modo que os percebemos como imperativos,
134
135
li i li
I
o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA

I.
proibições: "Faça isso, senão ... ". Mas esta coletânea de leis pode ser e não a letra da lei o que importava. Tal era o principal foco original
lida no futuro do imperativo. Os dez mandamentos, como tantas da Torá. No entanto, com o tempo ela foi se enrijecendo. E foi a esse
outras leis bíblicas, são convites, promessas: "Se você realmente esti- legalismo, a essa rigidez que Jesus Cristo se opôs frontalmente. Isto
ver vivendo como se deve, será assim a sua vida. Não matarás. Não nos ajuda a compreender por que no Antigo Testamento é o espírito
roubarás. [. .. ]". Os dez mandamentos e, de fato, toda a Torá são um e não a letra da lei o que funciona. Como apontou Jesus em seus
padrão para a vida em aliança, em shalom. 13 comentários sobre o Sabá, a lei foi feita para o povo, e não o povo
A Torá é um modelo de como viver em shalom sob a antiga para a lei. A intenção era promover a internalização das "indicações
aliança. Será um engano considerá-la um conjunto de imperativos, sábias", que fosse seguido o impulso da lei.
de regras que não devem ser violadas. Elas são uma promessa, um A Bíblia contém muitos preceitos legais sobre uma infinidade
convite, um exemplo de como deveria ser a nossa vida. de tópicos. Tendemos a compreender essas leis do ponto de vista de
Se a Torá oferece um padrão para a vida em comunidade sob a nossas próprias leis, e por isso as interpretamos como códigos. De
antiga aliança, o sermão da montanha indica um padrão para viver fato, muitos desses preceitos representam decisões judiciais pregres-
sob a nova aliança. Novamente, é um engano ver esse conjunto de sas, oferecidas como orientação para encontrar princípios aplicáveis
preceitos como regras imperativas e proibições. Como a Torá, eles em outras situações. Novamente, estas são mais "indicações sábias"
são um convite, um modelo de shalom, um vislumbre de como será do que regras de conduta, e oferecem princípios a serem usados na
viver a vida em shalom. resolução de disputas, e não bases para estabelecer culpa e quanti-
O direito bíblico tem por propósito oferecer um norte: "É nesta ficar punições.
direção que devemos seguir". A tradução da palavra Torá é "ensi- A lei era um meio e não um fim. Era um instrumento para
namento" e ela inclui estórias e preceitos ou halaka, o caminho a construir shalom, para construir relacionamentos corretos. Seu
seguir. Dada nossa visão da rigidez e finalidade da lei, muitas vezes propósito específico não era punir, mas redimir, fazer as coisas fi-
nos espantamos com a forma como os israelitas questionavam e de- carem como devem.
batiam sua lei. Mas as leis serviam para ensinar princípios éticos.
Os códigos legais do Israel histórico combinavam elementos de
Além disso, eram pontos de partida para discussão, pois se esperava
direito comunitário e direito estatal. I4 Mas as leis como o código de
que as pessoas refletissem sobre a lei. Acredito que em sua tradução
Hamurábi e os códigos modernos são, afinal, impessoais e baseados
da Bíblia para o alemão, Martin Buber foi quem melhor captou o
no poder coercitivo do Estado. Contudo, a base de aliança do direi-
espírito da lei bíblica quando a chama de "indicações sábias". Elas
to bíblico significava que a obediência devia advir de uma reação à
colocam uma orientação e com isso estabelecem princípios, que de-
ação salvífica de Deus, e não do poder cogente do Estado. Além dis-
vem ser discutidos.
so, tanto o direito como as autoridades políticas estavam sujeitas a
O propósito da lei bíblica era servir de meio, e não de fim em Deus. Nenhum deles era independente. O direito não era autônomo.
si mesmo. A melhor lei era o direito não escrito, pois era o espírito
14. Essa discusSão da lei se baseia fundamentalmente em Lind, Yoder, Boecker e Patrick.
13. Herman Bianchi, A Biblical Vision, pp. 5-7. Ver também sua reflexão sobre a Torá Contudo, ver também John E. Toews, "Some Theses Toward a Theology of Law in the New
e sedeqah. Testament", em The Bible and Law, ed. Willard M. Swartley, pp. 43-64.

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, I

o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA


o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA

Nem a formulação nem a administração da lei estavam centradas no


"perfeitos" no amor incondicional, no amor que não foi conquista-
Estado. Embora existisse em Israel uma espécie de monarquia, as do, no perdão, na misericórdia.
leis jamais foram orientadas para girar em torno dela, de modo que
A frase "olho por olho" é usada em geral para resumir a natureza
a administração da lei continuou sendo basicamente uma questão a
retributiva do direito bíblico. Contudo, a frase aparece apenas três
ser tratada pelas cortes e clãs locais.
vezes no Antigo Testamento. No Novo Testamento Jesus a rejeita
A forma do direito bíblico reflete sua base na aliança e seu foco explicitamente. "Vocês ouviram o que foi dito, 'olho por olho"', diz
na redenção. As leis bíblicas em geral começam por uma afirmação ele, "Mas eu digo, fazei o bem àqueles que vos ofendem". Estaria ele
sobre o que Deus realizou e depois mostram a reação adequada. de fato contradizendo as leis do Antigo Testamento?
Ou seja, os artigos de lei em geral começam com o que se denomi-
"Olho por olho" era um preceito de proporcionalidade destina-
nou "justificação motivadora". Deus fez um ato libertador salvífico,
do a limitar e não encorajar vinganças. De fato, esse princípio legal
portanto, isto é o que devemos fazer em resposta. A lei do Deute-
fundou as bases para a restituição, oferecendo um princípio de pro-
ronômio que dispõe sobre a escravidão, por exemplo, vem casada
porcionalidade para reger a reação à transgressão.
com uma justificação motivadora: "Lembra-te de que foste escravo
Portanto o foco do preceito "olho por olho" não era a retribui-
na terra do Egito, e que o Senhor teu Deus te redimiu. Por isso te
ção, mas sim a limitação e proporcionalidade. Mais do que isto, no
deu essa ordem".
contexto da aliança, centrado na libertação, esse princípio comum
Da mesma forma, os dez mandamentos se seguem a um lembrete estabelecia a eqüidade.
sobre a ação libertadora de Deus (Deut. 5: 15). Essa justificação mo-
O parágrafo 24 do Levítico é uma das passagens em que essa
tivadora é característica de boa parte das leis do Antigo Testamento,15
expressão aparece. Imediatamente a seguir vem uma admoestação
mas o mesmo raciocínio é usado por Paulo no Novo Testamento.
no sentido de que deve haver um padrão para todos, para o estran-
A justificativa motivadora, o modelo lógico desse padrão está geiro como para o nativo. Os estrangeiros em geral eram pobres e
enraizado no conceito da aliança e, assim, a própria lei tornou-se oprimidos, e Deus freqüentemente lembra ao povo de Israel que
uma reafirmação da aliança. A lei se baseia na ação salvífica e liber- eles tinham sido estrangeiros e que uma ação salvífica de Deus os
tadora de Deus, realizada por amor e não porque o povo mereces- resgatou. Em troca, os nativos deviam cuidar dos estrangeiros que se
se. Já que Deus fez isto por nós, eis como devemos retribuir. Nesse encontrassem entre eles. O preceito do "olho por olho" estabelecia,
modelo a graça precede a lei, e a forma da lei afirma não apenas portanto, a idéia de que todos deviam ser tratados igualmente.
nossa responsabilidade mas os motivos dela: os atos de redenção
A motivação de vingança existe e é reconhecida no Antigo Testa-
praticados por Deus.
mento, mas a lei bíblica logo tratou de estabelecer limites. Um desses
A verdadeira história da Bíblia, do Antigo ao Novo Testamento, limites era a "lei de talião", uma diretriz de proporcionalidade. 16 Outro
é uma só: Deus não desiste. É este o modelo a imitar para sermos limite eram as cidades que concediam asilo. O capítulo 19 do Deu-
teronômio ordena a criação de cidades de refúgio onde aqueles que
15. Ver especialmente Deut. 12: 28 e Lev. 17: 26. Para uma breve discussão do padrão de
justificação motivadora, ver Lind, "Law in the Old Te5tament", pp. 17 e 55. e Yoder, Shalom,
pp. 71 e 55.
16. Ver Patrick, Old Testament Law, capo 4; Roland de Vaux, Ancient Israel (Nova York: Mc-
Graw-Hill, 1961), p. 149; Boecker, Law, 171 e 55.

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o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BiBLICA
o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA IIIIILICA

haviam cometido assassinato não intencional podiam pedir guarida vai da ira à restauração. A retribuição que se subordina à shCl!om
enquanto os ânimos esfriavam e as negociações eram realizadas. tempera e limita a justiça retributiva. 19
Essa característica da justiça divina é demonstrada de modo
dramático em passagens como o capítulo 26 do Levítico e o capItulo
o paradigma bíblico 4 do Deuteronômio. O povo de Israel recebe vivas descrições uas
Tudo isso mostra que o paradigma da justiça bíblica, inclusive do horríveis conseqüências de praticar o mal. Coisas terríveis sucedl'-
Antigo Testamento, não é a retribuição. A chave não está no "olho rão. Mas essas passagens sempre terminam prometendo que Deus
por olho", mas na justificação motivadora. A reação de Deus à trans- não desistirá. Deus não os destruirá. Deus é fiel e compassivo.
gressão é normativa. No Novo Testamento o foco de Cristo é ainda mais nitídaml'l1tt'
Quando confrontado com as ofensas, Deus é descrito em termos restaurativo na sua resposta ao mal feito. Não se trata de um I"Ompl
humanos como furioso, cheio de ira. A etimologia destas palavras em mento com a direção dada pelo Antigo Testamento, nem r~jcjc,;.1ll do
inglês têm conotações que remetem a calor, fungar, inspirarY impulso original da antiga aliança. Pelo contrário. Esse foco ofcn'("t'
um passo além na compreenSão do conceito, uma transformuc,;rlo
Novamente, é preciso estar atento à tradução. Estudiosos do he- continuada da justiça.
braico relatam que várias palavras em geral traduzidas por retribui-
A Bíblia começa com a história de um assassinato. Ali elu rt'l'().
ção e punição podem significar coibir, ensinar, corrigir. O conceito
nhece que a retaliação ilimitada é uma resposta humana normal, ()
de punição poderá estar presente, mas em geral com uma conotação
capítulo 4 do Gênesis relata a "lei de Lamec" dizendo que ck' Sl'n)
diversa do que a palavra tem no outro idioma. 18 Além do mais, Paulo
vingado setenta e sete vezes, quase indefinidamente. 2o
lembra em Romanos 12: 19, citando a Sagrada Escritura, que aque-
las punições são assunto de Deus e não nosso. Mas logo são colocados limites à vingança. No caso de Callll (I I

primeiro assassinato, a reação "normal" não é aplicada. E no Levlt Ivo


Essas conotações nos ajudam a entender o que aparenta ser uma
encontramos o princípio limitador, que impõe proporcionalidlldt,:
contradição entre as descrições de Deus como alguém que castiga e "Olho por olho".
de Deus como sendo lento para a cólera e cheio de amor (e.g. Êxodo
Há ainda um outro limite: ama ao próximo. Não se vingul' li,·
34: 6; Números 14: 18). Deus pune, mas Deus é fiel. Israel transgri-
seu irmão ou irmã. Vem Redekop nos oferece uma proveitosa tradu·
de repetidamente e Deus se encoleriza, mas Deus não desiste. Deus ção de Levítico 19: 17-18:

17. Ver Virginia Mackey, Punishment in the Scripture and Tradition ofJudaism, Christianity and
Islam (Nova York: National Interreligious Task Force on Criminal Justice, 1983). Ver também Não permitas que tua mente seja cheia de ódio contra leu innOo nu
C. F D. Moule, "Punishment and Retribution: An Attempt to Delimit Their Scope in New irmã. Repreende o teu parceiro e não te deixes levar peJa cOlldUlIl
Testament Thought", em Svensk Exegetisk Arsbok, xxx, 1996, pp. 932-33. James E. Lindsey
Jr., "Vengeance", em The Interpreter~ Dictionary of the Bible, vol. supl. (Abingdon: Nashville, errônea (o pecado). Não te vingarás e não guardarás rancor conlru "1'1
1976), pp. 932-33. Quanto à ira divina, a obra de Morton MacCallum-Paterson foi bastante
proveitosa. Ver, por ex., "Blood Cries: Lament, Wrath and the Mercy of God", Touchstone, mai. 19. Yoder, Shalom, p. 36.
1987, pp. 14-25: e TowardJustice Ihat Heals: Ihe Church's Response to Crime (Toronto: United
Church Publishing House, 1988). 20. Clarence Jordan esboçou em vários pontos esse movimento que vai cle rrlalhll;ntl 1/11111
tada até amor ilimitado. Ver, por ex., Sermon on the Mount (Valley Forge: Judsol1 Pf(·.~N, 1')/11,
18. Bianchi, A Biblical Vision, pp. 1-2. Ver Moule, "Punishment and Retribution". rev. ed., pp. 63 e 55.

140 141
o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA

pessoas de tua comunidade. Ama ao próximo como a ti mesmo. Eu Conceitos de justiça, bíblicos e modernos
sou o Senhor. 21

Shalom só pode se realizar se cuidarmos do bem-estar uns dos


outros, mesmo nos erros.
1. justiça dividida em partes, 1. justiça vista como um todo
Cristo leva esse tema adiante, aprofundando e ampliando suas cada qual com regras distintas integrado
aplicações. A estória do bom Samaritano mostra que nosso próximo
não é somente alguém da nossa raça. Temos responsabilidades que ~nxfriisti~9~odijusft~a > .
,tmqUiituto invest~gaç~o deculp~
vão além de nosso próprio povo. Na verdade, devemos fazer o bem
até àqueles que nos maltrataram. Isto significa dizer não à retaliação 3. A justiça é avaliada por regras, 3. A justiça é definida por
procedimentos resultados, pelo mérito
ilimitada da lei de Lamec, dizer não à retaliação limitada da lei de
talião. Ao invés, amor ilimitado. Talvez não por acaso Jesus tenha
multiplicado esse dever em setenta vezes sete, um número quase 5. Punição como fim 5. Punição como redenção,
inimaginável. shalom
Segundo a Bíblia, o Deus que salva, livrando da opressão sem 6, Justiça baseada na necesst~a;4e,
olhar para o merecimento, é limitado na ira mas ilimitado no amor , não no merecimento' ..
(na linguagem poética do Deuteronômio, "até a milésima geração"). 7. justiça oposta à misericórdia 7. justiça baseada na compaixão
É o amor ilimitado de Deus e não sua ira o que devemos imitar. A e no amor
justificativa motivadora é também um modelo. 22
qu~ aI~ga tratar 8. Justiça parcial e justa
A justificativa motivadora, e não a lei de talião, é o que resume ";:1 todos igl,1almente '
a essência da justiça da aliança. A restauração e não a retribuição é
9. justiça enquanto mantenedora 9. justiça ativa e progressiva,
seu paradigma.
do status quo que transforma o status quo
No capítulo 2 esbocei uma série de pressupostos sobre os quais
"10. Foco nó dahb~aúsado
nosso modelo de justiça "retributivo" atual está fundado. Como se
comparam aos pressupostos e critérios bíblicos? A tabela a seguir
11. O crime como violação 11. O crime como violação de
compara esses pressupostos sobre justiça.
das regras pessoas, relacionamentos,
shalom
Cl1~pàperdoávd,. embcmi. "
I,lerqt,:\1;em. obrigaçÕes
13. DiferenCiação entre 13. Reconhecimento de que
21. Chureh Counei! on]ustiee and Correetions (Canadá). "Atualização" (primavera 1985). "ofensores" e os demais somos ofensores
22. Lind, Transformation, pp. 5 e ss.

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o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BíBLICA
o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BíBLICA

Hoje se mede a justiça avaliando se foi seguido o procedimento


prescrito. A justiça bíblica, ou sedeqah, se mede pelo mérito, pelo
resultado, pelos frutos. O resultado conseguiu corrigir a situação?
15. Ação como livre escolha 15. AÇão como escolha, mas Foi endireitada a vida dos mais carentes e menos poderosos, os que
reconhecendo o poder do mal menos "fizeram por merecer"? A justiça bíblica visa relacionamentos
corretos, e não regras corretas.
Nosso sistema jurídico define as ofensas como violações das
normas, das leis. Definimos o Estado como vítima. Em termos bí-
17. Foco na letra da lei 17. O mais importante é o blicos, entretanto, o mal não é uma violação de regras, mas uma
espírito da lei
violação do bom relacionamento. As vítimas são as pessoas e os rela-
cionamentos, e não as regras ou governos ou a ordem moral.
Os pressupostos da justiça bíblica são, portanto, bem diferentes
19. Justiça a serviço da divisão 19. A justiça a serviço da união dos nossos. Mas uma crítica bíblica à justiça moderna vai além dos
pressupostos que examinamos no capítulo 2. A justiça bíblica não
nos autoriza a divorciar as questões criminais das questões perti-
nentes à pobreza e ao poder. A justiça é um todo que não pode ser
Nosso sistema judicial é, acima de tudo, um sistema para .diS~U- fragmentado. Empresas fraudadoras ou aquelas que prejudicam as
.
tlracu. lpa Conseqüentemente, está centrado no passado.I - A JustIça
'fi pessoas destruindo o meio ambiente são tão responsáveis por suas
bíblica busca antes resolver os problemas, encontrar so uçoes, retl - ações como os indivíduos que cometem homicídio. Além disso, o
car o que não está bem e olhar para o futuro. Contexto social do crime deve ser levado em conta. Não se pode
A justiça hoje procura dar a cada um o casti~o m~recido, garan- separar os atos criminosos ou seus atores da situação social por trás
tir que as pessoas recebam o justo castigo. A JustIça blbhca reage na deles. As leis injustas de qualquer tipo devem ser questionadas.
medida do necessário, muitas vezes usando de bondade diante do A justiça contemporânea busca ser neutra e imparcial. Procura
mal. A justiça bíblica age porque está faltando shalom, e não porque tratar as pessoas com eqüidade. Seu foco primário é a manutenção
a justiça deva dar o castigo merecido. . da ordem. Por causa disso, e pelo fato de separar questões de justiça
. . - e " em geral única - reação depOls penal de questões de justiça social, a ordem que ela tende a manter
Nossa pnmelra .. do esta-
belecimento da culpa é infligir dor como punição. lnfllglda ~ dor, é a ordem vigente, o status quo. Portanto, muito freqúentemente, o
direito moderno age como uma força conservadora. A justiça bíbli-
considera-se que foi feita justiça. No contexto da justiça da a.hança,
ca, em comparação, é uma força ativa, progressiva, que busca trans-
quando se dá a punição, ela em geral não é um .fim, mas SIm um
formar a ordem vigente em uma ordem mais justa e, ao fazê-lo, zela
. de restauraçao.,
melO - Ale'm disso a punição é basICamente. . atnbuto
_ principalmente pelos pobres e fracos.
de Deus. O foco primário da justiça bíblica é corrigu a sltuaçao e
A justiça contemporânea coloca no centro o Estado e seu poder
construir shalom agindo para ajudar os necessitados.
de coerção como fonte, guardião e sancionador da lei. A justiça bí-
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o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA
o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA

blica coloca as pessoas e os relacionamentos no centro, sujeitando Nossa compreensão de um evento bíblico central, a remissão,
tanto a lei quanto os governos a Deus.
pode ser pertinente à questão. Perry Yoder explica que a Bíblia em
Portanto, a justiça bíblica oferece uma alternativa paradigmá- si não oferece uma teoria estruturada da remissão (i.e. a morte de
tica que questiona frontalmente nossa abordagem retributiva cen- Cristo).24 Apresenta apenas uma série de imagens, metáforas e visões
trada no Estado. que os teólogos usaram para construir várias explicações.
Uma questão fundamental para muitos é por que Cristo mor-
Um curto-circuito histórico reu, e por que sua morte poderia "remir" os pecados alheios. As
teorias criadas para responder a essa questão tendem a interpretar o
Como vimos, ao contrário do que em geral se pensa, a justiça bíblica resto da Bíblia a partir da visão romana de justiça.
é basicamente restaurativa ao invés de retributiva. Se isso é verdade,
Por exemplo, algumas teorias da remissão vêem a Deus como
como se desenvolveu essa falsa idéia a respeito da justiça bíblica?
um juiz colérico que precisa ser aplacado. Segundo elas, as pesso-
Como a temática restaurativa foi subjugada pela retributiva?
as são culpadas de pecados e ofenderam a Deus. Merecem punição
Alguns têm argumentado que este erro surgiu de um "curto-cir- porque a punição é normativa e não há modo de recompor os danos
cuito histórico", resultado da mistura de idéias bíblicas com concei- causados. Deus não pode simplesmente perdoar porque isto repre-
tos greco-romanos. 23 Conceitos como os da lei de talião, que tinham sentaria o fracasso da justiça retributiva. Existe uma dívida e Jesus
um significado específico no contexto da aliança e de shalom, teriam
se ofereceu para pagar. O contexto dessa abordagem é claramente
sido descontextualizados e plantados na filosofia greco-romana, mais
retributivo ao invés de retratar a justiça shalom.
abstrata e punitiva. As idéias de retribuição e penalidade perderam
seu fundamento em shalom e tornaram-se fins em si mesmos, fora A tradução corrente dos versículos 1-11 do capítulo 5 da Car-
de um contexto ou propósito restaurativo. O interesse greco-romano ta aos Romanos ilustra bem essa questão. As palavras de abertura
em princípios e ideais abstratos levou a uma abstração do conceito dessa passagem falam de paz e justiça, mas a formação acadêmica
de justiça e merecido castigo, na contramão do espírito do direito e as traduções obscureceram essa dimensão. 25 Em geral a tradução
bíblico. Assim, o foco original se perdeu e foi pervertido, enquanto reza: "Portanto, desde que somos justificados pela fé, temos paz com
algumas das antigas formas foram preservadas. Assim, as novas pers- Deus". Boa parte do protestantismo se fixou na justificação, interpre-
pectivas híbridas aparentavam ter raízes bíblicas. tando-a como um ato pelo qual Deus proclama que somos inocentes
mesmo que não sejamos. No cerne da remissão há um procedimento
Isto feito, as pessoas começaram a olhar para a Bíblia através
dessa nova lente, interpretando e traduzindo as passagens segundo judicial, uma ficção legal, que exigiu a ação de Deus, não nossa. Lois
esse ponto de vista. Partindo de uma mentalidade retributiva que Barrett observa que uma tradução mais fiel da passagem seria "Por-
enfatizava leis rígidas, culpa, punição e condenação, foi fácil encon- tanto, uma vez que estamos em relacionamento correto pela fé (ou
trar na Bíblia esses tópicos, passando por cima dos temas restaura ti- fidelidade) [... ]". Paulo falava tendo como pano de fundo a justiça
vos mais amplos e mais importantes.
24. Yoder, Shalom, pp. 53-70.
25. Ver Lois Barrett, "The Gospe\ of Peace", MCC Peace Section Newsletter, 18, nO 2 (mar.-abr.,
23. Herman Bianchi,]ustice as Sanctuary: Toward a New System of Crime Control, op. cit.
1988) pp. 1-8.

146 147
o DIREITO DA ALIANÇA: A ALTERNATIVA BÍBLICA

da aliança do Antigo Testamento. A remissão adquire novas dimen- Capítulo 9


,
sões sob essa luz.
VORP: um campo experimental
Portanto, o fundamento em shalom empresta uma nova visão de
I I
remissão, uma visão que harmoniza a vida e a morte de Cristo com
, i

I
o cenário maior da história bíblica. A vida de Cristo é uma tentativa
de levar a humanidade em direção a shalom, em direção ao reino de
Deus. Isto o colocou em conflito com as autoridades estabelecidas,
o que levou à sua morte. Mas Cristo ressurgiu, e sua ressurreição é Em 28 de maio de 1974 dois jovens de Elmira, Ontário, se decla-
um sinal, um sinal de que o amor vence o mal, um sinal de que o raram culpados de vandalismo contra 22 propriedades. l Ninguém
bem triunfará no final. A vida de Cristo oferece um modelo de vida imaginava que o caso deles levaria a um movimento com dimen-
shalom. Sua morte e ressurreição preconizam a libertação futura, sões internacionais.
mostram que shalom é algo possível.
Dias antes um grupo de cristãos havia se reunido para discutir
Usando o simbolismo sacrificial da antiga aliança, afirma-se sobre uma resposta cristã a assaltos em lojas. O caso de Elmira ga-
uma nova aliança. Como é característico da justiça da aliança, Deus nhara muita publicidade e surgiu naturalmente durante a reunião.
I:
oferece perdão - não porque o tenhamos conquistado ou porque Estava presente o oficial de condicional Mark Yantzi, cuja atribuição
o mereçamos - mas porque Deus nos ama. É possível apagar tudo era apresentar o relatório pré-sentença. * "Não seria ótimo se esses
e recomeçar. ofensores pudessem se encontrar com as vítimas?", sonhou ele. Sa-
Não é secundária a questão de se a Bíblia aponta na direção da bendo que isso era impossível, Mark abandonou a idéia.
retribuição ou da restauração. Essa questão está no cerne de nossa
Mas Dave Worth, coordenador do Serviço de Voluntários do
visão de mundo e aqueles que cresceram na tradição judaico-cristã
Comité Central Menonita (MCC) de Kitchener, Ontário, não quis
não podem fugir dela.
abandonar a idéia. Frustrado com o processo normal e interessado
em levar o trabalho de paz para a prática, ele declarou que estava
pronto para tentar algo realmente ousado. Mark, também um me-
nonita, tinha sido apontado para o departamento de liberdade con-
dicional através de uma parceria com o MCC. Sua missão era ajudar
a explorar alternativas comunitárias. Estava aberto a novas idéias,
mas tinha suas dúvidas. "Será que quero arriscar minha reputação

1. John Bender recanta essa estória em Peace Section Newsletter, 16, n° 1 0an.-fev. de 1986),
pp. 1-5. O mesmo faz Dean Peachey, "The Kitchener Experiment", Mediation and Criminal
]ustice: Victims, Offenders and Community, eds. Martin Wright e Burt Galaway (Londres: Sage
Publications, 1989) pp. 14-26.
* N.T.: Relatório que nos Estados Unidos descreve as penalidades para o crime e suas varian-
tes, agravantes e atenuantes, bem como alternativas e outras informações pertinentes.

148 l49
VORP: UM CAMPO EXPERIMENTAL

sugerindo um acordo negociado entre as vítimas e esses ofensores, alguma ligação explícita com a tradição VORP. Mas considerados em
sem nenhuma base lega!?", ele se perguntava. Mark por fim decidiu seu conjunto todos esses programas oferecem uma base ampla de
arriscar e'propôs ao juiz que os ofensores se encontrassem com as experiências úteis a uma abordagem que combina elementos de me-
vítimas para combinar o ressarcimento. diação e justiça reparadora dentro da estrutura da justiça criminal.
A primeira reação do juiz foi previsível: "Não se pode fazer isso". Um grande leque de programas de resolução de conflitos apareceu
Mas para a surpresa de Mark e Dave, quando chegou a hora da sen- nos últimos tempos, alguns dos quais tratam de casos com envol-
tença, o juiz determinou que se fizessem encontros presenciais entre vimento atual ou potencial com a justiça criminal. Também estes
vítima e ofensor a fim de chegar a um acordo de indenização. Acom- oferecem ricas experiências com as quais podemos aprender.
panhados de seus oficiais de condicional e do coordenador, os dois
rapazes visitaram todas as vítimas, salvo duas que haviam se muda-
do. Foi negociado o ressarcimento e dentro de alguns meses a dívida
o conceito VORP
tinha sido paga. Assim nasceu o movimento de reconciliação entre Na sua forma "clássica", conforme o modelo pioneiro de Kitchener,
vítimas e ofensores do Canadá. Nos Estados Unidos o movimento Ontário, e Elkhart, Indiana, VORP é uma organização independente,
começou com um projeto em Elkhart, Indiana, em 1977-78. externa ao sistema de justiça criminal, mas que trabalha em coo-
No caso de Elmira, a abordagem foi bem simples. Mark lembra peração com ele. 4 O procedimento do VORP consiste de encontros
que "fomos bem diretos. Nós os levávamos até lá. Os meninos ba- presenciais entre vítima e ofensor em casos nos quais foi dado início
tiam na porta. E nós anotávamos tudo". Felizmente a metodologia e ao processo penal e o ofensor admitiu ser autor do dano. Nesses
a filosofia do Programa de Reconciliação Vítima-Ofensor [em inglês, encontros são enfatizados três elementos: os fatos, os sentimentos
VORP] evoluiu bastante desde então. e os acordos. O encontro é facilitado e presidido por um mediador
Embora as abordagens e nomes variem, há hoje mais de cem treinado, de preferência um voluntário da comunidade.
programas nos Estados Unidos usando algum tipo de mediação ví- Esses facilitadores externos ou mediadores desempenham papel
tima-ofensor, um elemento básico do VORP. 2 Existem dúzias de pro- importantíssimo no processo, mas são treinados para não impor suas
gramas no Canadá, e programas semelhantes estão funcionando na próprias interpretações ou soluções. Os encontros são promovidos
Inglaterra e também em vários países do continente europeu, inclu- numa atmosfera mais ou menos estruturada, mas que permite aos
sive na Alemanha, França, Finlândia e Holanda. 3 Nem todos tiveram participantes, sem muita interferência dos facilitadores, determinar
origem no VORP. Cerca de 60% dos programas estadunidenses têm os resultados. As duas partes são incentivadas a contar suas estórias.
Ambas têm oportunidades de fazer perguntas e descobrir da outra
2. Mark Umbreit, "Mediation of Victim Offender Conflict", journal of Dispute Resolutíon,
1988, pp. 85-l0l. parte o que aconteceu. Falam também sobre o impacto e as implica-
3. Algumas dimensões desse movimento estão esboçadas em ensaios em Heinz Messener e ções de sua experiência. Ao fim desse processo, as partes decidem o
Hans-Uwe Otto, eds., Restorativejustíce on Irial: Pítfalls and Potentials ofVictim-Offender Medía-
tíon - International Research Perspectíves (Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1992). Veja
a bibliografia selecionada para outras obras. Nos últimos anos as conferências de grupos fami- 4. Uma visão geral do VORP pode ser encontrada em Howard Zehr, Mediating the Victim-
liares da Nova Zelândia e os círculos de sentenciamento em algumas comunidades aborígenes Offender Conflict (Akron: Mennonite Central Committee, 1980) e também em muitas das
do Canadá têm sugerido novas possibilidades para o VORP. Ver apêndice 4. obras incluídas na bibliografia.

150 151
, Illi
I,
Ii'I VORP: UM CAMPO EXPERIMENTAL VORP: UM CAMPO EXPERIMENTAL

que será feito a respeito. Quando chegam a um acordo, assinam um e depois desses encontros. Antes do encontro a vítima e o ofensor
contrato. Boa parte das vezes ele prevê uma restituição financeira, são contatados separadamente. Isto oferece à vítima e ao ofensor
mas esta não é a única possibilidade. a possibilidade de expressar seus sentimentos e necessidades e de
Os ofensores poderão, por exemplo, se dispor a trabalhar para decidir se querem participar. Se resolverem participar, é marcado o
a vítima. Às vezes a vítima pede que o ofensor trabalhe para a co- encontro. Depois do encontro vem a fase de acompanhamento. Um
munidade e este assina um termo de serviço à comunidade. Ou as funcionário precisa monitorar os contratos, assegurando-se de que
'i I
partes poderão chegar a um acordo sobre certo comportamento. Se estão sendo cumpridos, e também resolver os problemas que surgi-
o incidente envolveu pessoas que se conheciam antes do ato lesivo, rem no caso de descumprimento. Alguns programas estão promo-
o acordo poderá especificar como irão se comportar mutuamente vendo também um encontro final entre vítima e ofensor para fechar
no futuro. o caso depois de cumprido o contrato.
Esses encontros podem constituir experiências importantes tan- A maioria dos casos encaminhados ao VORP vem pela via judi-
to para vítimas como para ofensores. As vítimas ganham a oportu- cial, mas há algumas exceções. Certos programas recebem encami-
f I

nidade única de "ficar sabendo de tudo", de fazer as perguntas que nhamentos pela via policial. Às vezes são as vítimas ou os ofensores
as estão perturbando. Também podem falar sobre o que a ofensa quem procuram o programa. Alguns casos são tratados como artifí-
significou para elas e para o perpetrador. Já que têm a oportunida- cio para evadir o processo, mas em sua forma "clássica" nos Estados
de de encontrar com o próprio autor do ato lesivo, os estereótipos Unidos, o programa recebe a maioria dos casos das cortes, e o acor-
muitas vezes são desfeitos e o medo diminui. A vítima tem a opor- do se transforma numa sentença, ou em parte dela. Nos casos enca-
tunidade de ter os danos ressarcidos e também de contribuir para a minhados pelas cortes, os ofensores ficam em liberdade condicional
decisão sobre como isto será realizado. O VORP oferece, assim, uma durante o cumprimento do contrato assinado.
oportunidade para expressão de sentimentos, troca de informações, A maioria dos casos atendidos pelo VORP nos Estados Unidos e
e recuperação de perdas, além de fortalecer a vítima. no Canadá são casos de dano patrimonial, sendo o furto ou furto qua-
Os ofensores ganham a oportunidade de mostrar sua verdadeira lificado os mais comuns. Este é um delito adequado para o proces-
face àqueles que causaram dano. Eles ouvem de primeira mão so- so VORP. Enquanto o "sistema" em geral considera o furto um crime
bre as conseqüências de seus atos. Estereótipos e racionalizações são menos grave, as vítimas vivenciam o furto como um violento ataque
questionados diretamente. Dessa forma, motivados a assumir o en- pessoal. O encontro com o ofensor oferece a oportunidade de ventilar
cargo de corrigir o mal, eles se responsabilizam diretamente pelo que sentimentos, descobrir o que realmente aconteceu e conhecer a pes-
fizeram. Têm a chance de fechar o ciclo emocional provocado pela soa do perpetrador. Por que você escolheu a minha casa? O que teria
ofensa agindo no sentido de retificar a situação e, se assim desejarem, acontecido se eu estivesse em casa? O que aconteceu com aquele meu
expressando remorso ou se desculpando diante da vítima. Pelo fato objeto de estimação? Nesse encontro em geral as perguntas são res-
de se tornarem de fato participantes do processo, e não meramente pondidas, o medo diminui e os estereótipos são transformados. E por
espectadores, os ofensores poderão também sair fortalecidos. existirem danos materiais, há um foco concreto para o encontro.
Os encontros para discutir a ofensa e sua resolução são o cerne Mas os crimes não patrimoniais estão sendo tratados pelo
do processo VORP, mas importantes procedimentos acontecem antes VORP em número crescente. Programas criados em Batavia, EUA e

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VORP: UM CAMPO EXPERIMENTAL

Langley, Canadá, por exemplo, foram desenhados especificamente bia, disseram que participariam novamente se fosse preciso. 8 Portan-
para lidar com casos de violência grave. Evidentemente, tais casos to, é evidente a satisfação das vítimas.
exigem precauções especiais. Alguns buscam explicitamente pro- Elas relatam inúmeras razões para participar, mas ao adentrar o
mover oportunidades de cura ao invés de uma pena alternativa. 5 programa a maioria comenta a importância da restituição. E, depois
Um programa implementado na prisão de Grateford exige como de passar pelo programa, outros benefícios parecem mais impor-
condição de participação que o ofensor não o utilize em procedi- tantes a seus olhos. Num estudo sobre furtos em Minneapolis, por
mentos legais ou de comutação de pena. Como demonstrado pelo exemplo, as vítimas relataram que o maior benefício foi o encontro
estudo de um programa britânico, a gravidade do crime não deter- com o ofensor. Muitas vezes isso abateu os temores, reduziu os es-
mina a eficácia do processo. tereótipos, ou deu a elas a oportunidade de providenciar para que o
ofensor recebesse ajuda. Mas as vítimas também notam a importân-
cia de contar o que aconteceu e obter respostas. 9
1,1
o que aprendemos? Nesse estudo o tema mais marcante foi a sensação de participa-
,11, i

'I Ii
A maioria das pesquisas realizadas até agora nos dá motivos para ção. Aparentemente o VORP consegue possibilitar algumas das con-
"",
otimismo. Embora apenas metade do total de indicações resulte em dições para a cura: empoderamento, dizer a verdade, obter respostas
1'1'
! II i i encontro (e essa média é coerente com as porcentagens encontradas para as perguntas, receber ressarcimento pelas perdas e até conquis-
I,' I
11'

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,
nos programas de mediação em geral), praticamente todos os encon- tar uma sensação de segurança. O procedimento também oferece às
,
i!
,
tros terminam em acordo. 6 vítimas a oportunidade de sentir que estão "fazendo alguma coisa"
Além disso, diferente de outros contratos de restituição não me- para, talvez, ajudar a mudar o comportamento do ofensor, um tema
diados, a maioria desses acordos é levada a bom termo - em geral a que a pesquisa descobriu, para surpresa de todos, ser importante
porcentagem fica em torno de 80% e 90%. para as vítimas. !O
Um estudo sobre os VORPS no Meio-Oeste dos Estados Unidos Também os ofensores parecem encontrar satisfação em partici-
descobriu que somente 11 % das vítimas participantes expressou al- par. Todos os ofensores do estudo no Meio-Oeste dos Estados Unidos
gum tipo de insatisfação. 97% afirmaram que fariam tudo de novo citado acima, e 91 % dos ofensores da pesquisa realizada em Langley,
e que recomendariam aos amigos que fizessem. 7 Todas as vítimas de afirmaram que, se precisassem passar por tudo de novo, participa-
um estudo menor, porém mais recente, em Langley, British Colum- riam do VORP novamente. Os ofensores expressaram uma consciên-
cia maior em relação às vítimas como pessoas e foi possível constatar
5. Sobre mediação em casos de violência grave, ver, por ex., Mark s. Umbreit, Mediating Inter-
personal Conjlicts: A Pathway to Peace (West Concord:
CPI Publishing, 1995), pp. 148 e ss.
8. Andrew Gibson, "Victim-Offender Reconciliation Program: Research Project, Langley;
6. Pesquisas que vêm sendo realizadas desde 1990 confirmam os achados sintetizados aqui. B.C"(Simon Fraser University, 1986).
Ver Mark S. Umbreit, Victim Meets Offender: The Impact of Restorative justice and Mediation
9. Mark S. Umbreit e Mike Schumacher, Victim Understanding of Fairness: Burglary Victi-
(Monsey: CriminalJustice Press, 1994) e "Victim and Offender mediation: International Pers-
ms in Victim Offender Mediation (Minneapolis: Minnesota Citizens Counci! on Crime and
pectives on Theory, Research, and Practice", Harry Mika, ed" Mediation Quarterly, 12, nO 3
Justice, 1988)
(ed. esp., primavera de 1995).
10. Para perspectiva das vítimas na Inglaterra ver Helen Reeves, 'The Victim Support Perspec-
7. Robert B. Coates e John Gehm, Victim Meets Offender: An Evaluation of Victim-Offender
tive", Mediation and Criminaljustice, eds. Wright and Galaway; pp. 44-55 (ver esp. pp. 51 e ss.)
Reconciliation Programs (Michigan City: PACT Institute ofJustice, 1985).

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uma mudança de atitude quantificável em alguns casos. No entanto, O estudo de Minneapolis foi pequeno e tinha caráter preliminar,
eles acharam a experiência difícil e referiam-se a ela como uma dura mas um de seus achados é especialmente promissor. As vítimas que
punição. Muitas vezes os ofensores avaliam o encontro com a vítima passaram pelo VORP tinham o dobro da probabilidade de sentirem
como sendo a melhor e a pior parte do procedimento. que foram tratadas com justiça pelo sistema judiciário. Parece que o
O VORP modifica o comportamento do ofensor? Vários estudos VORP de fato oferece uma vivência de justiça.

recentes constataram uma redução nas taxas de reincidência dos Em um artigo de 1988 Burt Galaway fez um levantamento de
ofensores que passam pelo programa. Serão necessários mais estu- tudo que foi possível aprender, desde o começo da década de 1970,
dos, mas Burt Galaway, um importante especialista em restituição, com os programas de restituição, inclusive o VORP. 12 Suas conclusões
reviu a literatura e concluiu que o impacto da restituição e do VORP são animadoras.
nas reincidências é tão grande ou maior do que o de outras penas. 11
Galaway concluiu que a experiência dos últimos dezesseis anos
As pessoas que administram o VORP sentem que ele de fato pro- indicava de modo inequívoco que tais programas podem ser imple-
move mudanças comportamentais, mas questionam se essa questão mentados. Definir quantias para restituição não tem sido uma tarefa
deve ser considerada central. O VORP é importante porque trata do demasiado difícil e os índices de indenizações efetivamente pagas são
relacionamento vítima-ofensor e satisfaz algumas de suas necessida- altos, inclusive no VORP. OS estudos indicam que mais de 50% das
des mais prementes e que normalmente não são atendidas. O VORP vítimas estão dispostas a participar. Segundo ele, a mediação é um
reconhece as obrigações criadas pelo crime, e mesmo que não tives- "método viável para chegar ao valor da restituição e constitui uma
se nenhum impacto sobre o comportamento, só o fato de colocar as experiência construtiva tanto para a vítima quanto para o ofensor".
coisas novamente no trilho certo já valeria a pena.
A restituição e o VORP podem atingir algumas das principais
Mas o VORP faz justiça? No estudo do Meio-Oeste dos EUA per- metas do processo judicial vigente, observa Galaway Ao partir do
guntou-se a vítimas e ofensores o que entendiam por justiça e se eles pressuposto de que as pessoas devem "receber o justo castigo", a jus-
achavam que ela tinha sido feita. Cerca de 80% das vítimas e dos tiça retributiva está buscando um senso de proporcionalidade entre
ofensores que haviam passado pelo VORP entendiam que tinha sido a ofensa e a penalidade. Isto acontece quando os participantes perce-
feita justiça no seu caso em particular. As definições de justiça foram bem o resultado como sendo justo. Embora as pesquisas sobre esse
variadas, mas idéias comuns foram as de "corrigir as coisas" (um assunto ainda sejam escassas, parece que a restituição é vista como
conceito bíblico!), responsabilizar os ofensores e 'Justiça e eqüidade algo justo e que satisfaz a vítimas e ofensores e também ao público
na solução de contendas". Na verdade, "corrigir as coisas" foi o prin- em geral. Ela pode, portanto, ser vista como um "justo castigo".
cipal motivo fornecido pelos ofensores para participar do programa
O outro objetivo da punição é coibir comportamentos específi-
de Langley No estudo de Minneapolis a idéia mais tradicional de
cos. Por que as pessoas voltam a transgredir? Quantidade crescente de
justiça (enquanto punição através da perda de liberdade) foi a preo-
evidências mostra que a restituição, inclusive o VORP, tem uma impac-
cupação menos citada pelas vítimas participantes.
to maior ou igual a outras sanções sobre as taxas de reincidência.
11. Burt Galaway, "Restitution as lnnovation or Unfulfilled Promise?" Federal Probation, XII,
nO 3 eSet. 1988), pp. 3-14. 12. Galaway, "Restitution as Innovation or Unfulfilled Promise?", op. cit.

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VORP: UM CAMPO EXPERIMENTAL

Tanto as vítimas como o público em geral apóiam a prática da d) se necessário, ofereçam ao ofensor oportunidades que facilitem sua
restituição. Inúmeros estudos mostram que o público aprova sanções habilitação ou reabilitação como cidadão produtivo e respeitador da lei;
reparadoras e que, assim como as vítimas, apóiam mudanças no sen-
e) e, se necessário, denunciem o comportamento ofensivo ou privem
tido de adotar sanções não custodiais que incluem restituição. Além
de liberdade o ofensor.
disso, programas como o VORP podem oferecer às vítimas informações
sobre o seu caso e dar a elas um senso de participação. Segundo as
pesquisas esta é uma importante preocupação das vítimas. o relatório "Assumindo responsabilidades" aborda especifica-
mente as necessidades das vítimas e reconhece que a definição de
Diante desses achados, Galaway concluiu que programas restau-
crime como delito contra o Estado é algo que "deixa de reconhecer
rativos como o VORP devem começar a substituir outras penalidades
o sofrimento da vítima e sua sensação de injustiça". Ele prossegue
dentro do atual sistema penal. No Canadá, o Comitê Parlamentar de
dizendo que "há cinco requisitos básicos que permitirão à vítima
Justiça e o procurador geral já implementaram medidas nesse sen-
restaurar seu sentido de valor e retomar sua vida". Esses requisitos
tidoY Em agosto de 1988 produziram um relatório sobre senten-
são descritos como: informação, apoio, reconhecimento do dano,
ciamento, medidas correcionais e liberdade condicional intitulado
reparação do mesmo e proteção eficaz.
"Assumindo responsabilidades". Esse relatório descreve o VORP e
seus benefícios e recomenda mudanças legislativas que facilitem e Como se vê da passagem citada abaixo, o Comitê reconheceu o
estimulem essa abordagem. Uma das recomendações é a de passar a conceito de justiça restaurativa.
víger o seguinte (e pouco usual) objetivo de sentenciamento:
Os proponentes do conceito de justiça restaurativa há muito reco-
o objetivo do sentenciamento é contribuir para a manutenção de uma nhecem que é importante, tanto para a vitima quanto para o ofensor
sociedade justa, pacífica e segura, responsabilizando os ofensores por Ce, através deles, em última análise, para toda a comunidade) que o
sua conduta criminosa através da imposição de sanções justas que: ofensor assuma a responsabilidade por seus atos e tome medidas para
reparar o dano causado.
a) exijam, ou incentivem quando não for possível exigir, que os ofen-
sores reconheçam o dano causado às vítimas e à comunidade, e assu-
mam a responsabilidade pelas conseqüências de seu comportamento; Os objetivos são importantes
b) relatem as medidas tomadas pelo ofensor, ou as que ele se propõe É evídente que a abordagem do VORP tem a capacidade de atender a
a tomar para reparar os danos causados à vítima elou comunidade, ou várias necessidades. No entanto, o movimento como um todo tem
outra demonstração de que assume a responsabilidade; sido cobrado quanto à clareza de seus valores e objetivos. Seu obje-
c) facilitem a reconciliação vítima-ofensor sempre que a vítima soli- tivo básico seria constituir uma pena alternativa? Recuperar ofenso-
citar ou estiver disposta a participar de programa dessa natureza; res? Ajudar as vítimas? Envolver a comunidade? Os objetivos que o
VORP eleger terão um grande impacto no modo como ele funcionará
13. "Taking Responsibility: Report of the Standing Committee onJustice and Solicitar Gene- na prática.
ral on Sentencing, Conditional Release, and Related Aspects of Corrections", David Daubney,
pres., sumário e excertos em]ustice, novo 1988, uma publicação do Church Council onJustice De fato, o movimento tem sido lembrado de que nem sempre
and Corrections, 507 Bank St. Ottawa, Ontário K2p 125, Canadá.
seus objetivos estão claros, e algumas vezes são contraditórios. O

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VORP: UM CAMPO EXPERIMENTAL VORP: UM CAMPO EXPERIMENTAL

programa precisa escolher um objetivo dominante e ter claras as primário. O processo vale a pena mesmo que essas atitudes e com-
implicações dessa escolha para os demais objetivos e a operaciona- portamentos não mudem. A ofensa causa dano à pessoa e cria uma
lização do programa. obrigação em relação a essa pessoa. A reação justa, portanto, envolve
Se o objetivo básico é a recuperação de ofensores ou a mitigação alguma tentativa de acertar as coisas. Essa é a coisa "certa" a fazer,
de sua punição, os VORPs poderão facilmente passar a negligenciar as independente de outras vantagens.
necessidades e o ponto de vista das vitimas, mesmo alegando levar as O foco do VORP num objetivo tão pouco convencional como a
vítimas a sério. A crítica surgiu da avaliação de alguns programas bri- reconciliação é fonte de alguma tensão no meio do sistema de justiça
tânicos.1 4 Se o VORP for fundamentalmente uma tentativa de oferecer criminal. Como fundir dois processos com abordagens respectiva-
uma pena alternativa, acabarão por concentrar-se em casos graves, mente reparativa e retributiva? É possível ou no final o sistema maior
passíveis de penas de privação de liberdade - negligenciando os casos terá prevalência sobre o menor? Poderá o VORP ajudar a transformar
"menores" que talvez tenham implicações graves para as vítimas, os o sistema de justiça criminal orientado para a retribuição, ou será
ofensores e seu relacionamento. Assim, a clareza quanto aos objetivos que esse sistema modificará o VORP? Será que o VORP seguirá pelo
e quanto à sua ordem de prioridade é muito importante. caminho de tantas outras "alternativas", tornando-se, talvez, outro
Alguns VORPS têm ignorado essa questão e outros têm reagido instrumento de controle e punição?
de modos variados. O programa de Elkhart concluiu que seu obje- Estas são perguntas legítimas e já existem pesquisas investigan-
tivo principal é a reconciliação. A equipe reconhece que este é um do sinais de alerta nessas áreas. Alguns dos programas, por exemplo,
objetivo que soa estranho no mundo da justiça criminal e que é tam- passaram a refletir a orientação para o ofensor e negligenciar as ví-
bém difícil de definir. No entanto, a reconciliação enquanto objetivo timas. A reconciliação muitas vezes é substituída por objetivos mais
significa que o relacionamento vítima-ofensor é o foco principal do correntes como responsabilidade e mesmo restituição. Muitos estão
processo. Isto posto, o funcionamento do programa precisou ser re- começando a minimizar a reconciliação, que é o objetivo, e enfatizar
organizado a fim de refletir esse foco. Os voluntários tiveram que ser a mediação, que é o processo.
treinados, por exemplo, não apenas para conseguir um acordo, mas
Um recente estudo dos programas britânicos alerta para os pe-
para incentivar a expressão de sentimentos e atitudes.
rigos de atrelar experiências novas ao sistema de justiça criminal
A decisão de reconciliar (ou ao menos dar a oportunidade de vigente. 1s Isso inclui até (ou especialmente) as de reparação. No mí-
reconciliação) não significa que outros benefícios potenciais não nimo, esses estudos nos lembram de que devemos manter a questão
existam ou não devam ser buscados, mas que são secundários. Os
ética e a escolha de valores no primeiro plano. Convidam a uma
profissionais que atuam no VORP acreditam, por exemplo, que a res-
nova compreensão e linguagem no âmbito da justiça e indicam a
ponsabilidade pessoal que o VORP promove pode modificar a atitude
necessidade de mais pesquisas que ajudem a moldar e testar a viabi-
e comportamento dos ofensores. No entanto, esse não é o objetivo
lidade do paradigma de reparação.
14. o governo britânico vem patrocinando muitas pesquisas de qualidade sobre o VORP ou
"projetos de reparação" naquele país. Sou grato a Tony Marshall - que reviu essa pesquisa 15. Gwynn Davis, Jacky Boucherat e David Watson, A Preliminary Study of Victim Offender
para o governo britânico - e me forneceu um sumário dos resultados, que serão publicados Mediation and Reparation Schemes in England and Wales, Research and Planning Unit Paper, 42
em breve. (Londres: Home Office, 1987), pp. 60-65.

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VORP: UM CAMPO EXPERIMENTAL VORP: UM CAMPO EXPERIMENTAL

o VORP como catalisado r to, testam a nova variedade semeando-a em campos experimentais.
Quando a experiência dá certo, esses campos se tornam um campo
Participo do VORP desde 1978. No início eu era resistente e cético. de demonstração que ajuda a convencer outros agricultores a expe-
Em virtude do meu trabalho anterior com a justiça criminal, desen- rimentar a variedade nova. Desde 1974 o VORP vem servindo como
volvera uma visão que eu considerava bastante crítica. Suspeitava campo de experiência e demonstração. 16 O papel demonstrativo é
que o VORP não constituía um questionamento sério das premissas importante. O VORP serve como lembrete de que há outros modos
básicas. Mas quando tive uma experiência direta do VORP, percebi de compreender e reagir ao crime - e de que a justiça pode restaurar.
que os parâmetros da minha estrutura "crítica" anterior eram, na Mas o papel experimental não pode ser abandonado. O próprio VORP
verdade, bastante convencionais. O VORP foi que acabou transfor- deve continuar a experimentar, abrir novas fronteiras. Precisamos de
mando minhas idéias sobre a justiça. experiências que vão além do VORP, que ~udem a desenvolver e tes-
No meu trabalho anterior com prisioneiros e advogados de tar novos conhecimentos sobre o crime e a justiça.
defesa, eu não conseguira compreender a perspectiva das vítimas. O movimento VORP está bem estabelecido no mundo todo, mas
E nem queria, pois elas constituíam basicamente uma interferência como ele personifica uma visão de justiça bíblica, a Igreja teve um
no processo de fazer "justiça" ao ofensor. Eu não questionava os papel importante no seu desenvolvimento e disseminação e, em mui-
fundamentos do papel do Estado na justiça, nem me perguntava se tas comunidades, continua bastante envolvida no processo. O VORP
a administração da dor era a abordagem adequada. Não obstante, precisará de muitos aliados no futuro se quiser sobreviver e manter o
estava bem consciente das freqüentes e sistemáticas injustiças no espírito original. A Igreja poderá oferecer o fundamento ético e ins-
modo como a justiça criminal seleciona e trata os ofensores. titucional independente capaz de dar sustentabilidade a essa visão.
O VORP me obrigou a encontrar e ouvir vítimas de crimes, e isto Motivada por uma visão bíblica de justiça como restauração, talvez
me fez começar a repensar o que é o crime e o que deve acontecer ela possa continuar a plantar campos experimentais e demonstrar
quando ele é cometido. A experiência de ver duas pessoas hostis outros caminhos. Se o VORP quiser sobreviver como catalisador de
- vítima e ofensor - saírem de uma reunião com outra compreensão mudanças, a Igreja deve manter seu envolvimento.
sobre o que aconteceu inevitavelmente deixou suas impressões em
mim. Muitas vezes eles saíam com uma nova visão recíproca, muitas
vezes com um relacionamento novo e até amistoso. Por fim, as im-
plicações de tudo isso começaram a permear minha compreensão.
Para mim o VORP se tornou agente transformador da minha visão de
justiça e uma demonstração de que tal justiça não é apenas teórica
mas passível de ser praticada. Não obstante, a implementação e dis-
seminação do VORP tem levantado importantes questionamentos e
disparado sinais de alerta.
Quando agricultores querem resolver um problema, muitas ve- 16. Os créditos pela analogia dos campos experimentais vão para Clarence Jordan e
zes fazem experiências com novas variedades de plantas. Para tan- John H. Yoder.

162 163
Capítulo 10

Uma lente restaurativa

Enquanto refletia para poder escrever esse capítulo, eu costumava pas-


sar algum tempo na corte. O meu vizinho, um rapaz de dezoito anos,
ia ser sentenciado. Ele se declarara culpado de molestar uma menina,
sua vizinha. A mãe dela me pediu para ajudar pois não queria que o
rapaz fosse para a cadeia. Ela sabia que lá ele se tornaria também uma
vítima. Ela só queria que o mau comportamento parasse. "Se fosse
outro, eu o quereria preso, mas sei que Ted só precisa de ajuda."
Ted já incomodou outras crianças antes, inclusive as minhas
filhas.
"Vou postergar esse sentenciamento", me disse o juiz. "Franca-
mente, Howard, não sei o que fazer. Quem sabe você pode me dar
uma mão".
Por onde começar em casos como esse? Eu comecei enquadran-
do o caso da maneira convencional. Ele desobedeceu a lei. O que
prevê a lei? O que deve o juiz ordenar? Então me lembrei de tudo
que estive escrevendo e o meu quadro mental começou a mudar.
O quadro mental faz muita diferença. Como interpretaremos os
acontecimentos? Quais os fatores relevantes? Que reações são possí-
veis e apropriadas? A lente através da qual enxergamos determina o
modo como configuraremos o problema e a "solução". Essa lente é
o tema deste livro.
Há muitos anos me dedico à fotografia. Uma das lições que apren-
di é que a lente usada afeta profundamente o resultado. Minha escolha
de lentes determina as circunstâncias nas quais é possível trabalhar
e também a forma como vejo as coisas. Se escolher uma lente com

167
II
I I

UMA LENTE RESTAURATIVA UMA LENTE RESTAURATIVA

pouca abertura máxima, a imagem será escura e uma fotografia de Segundo proponho, a razão para essa incapacidade repousa
qualidade pode ser difícil de obter num ambiente de pouca luz. na nossa escolha de lentes. Ou seja, nos nossos pressupostos sobre
A profundidade de campo da lente também faz diferença. A lente o crime e a justiça. Tais pressupostos, que governam nossa reação
grande-angular é bastante inclusiva, incorpora num mesmo quadro diante de atos danosos, estão em descompasso com a experiência
uma porção de objetos, mas o faz à custa de certa distorção. Os obje- do crime. Além disso, estão em descompasso com as raízes judaico-
tos próximos ficam grandes e os do fundo pequeninos. Também a for- cristãs e mesmo com boa parte da história do Ocidente. Para achar
ma dos objetos enquadrados fica alterada. Círculos se tornam elipses. a saída desse labirinto, teremos que procurar mais além de simples
penas alternativas. Teremos que buscar formas alternativas de ver o
A teleobjetiva é mais seletiva. O escopo de sua visão é mais es-
problema e a solução. O professor Kay Harris, especialista em sen-
treito, incorporando menos objetos na foto. Ela também "distorce",
tenciamento, nos faz lembrar que se trata de adotar valores diferen-
mas de modo diferente da grande-angular. A teleobjetiva deixa os
tes, e não tecnologias de punição diferentes.!
objetos maiores, mas as distâncias ficam encurtadas. Os objetos pa-
recem mais próximos da câmera - e mais próximos uns dos outros Nossos fracassos são indicações negativas mostrando a necessi-
- do que pareceriam a olho nu. dade de mudança, mas há indicações positivas que apontam o rumo
a seguir. As experiências e necessidades das vítimas e ofensores assi-
Portanto a escolha da lente afeta aquilo que aparece no enqua-
nalam algumas das questões que devemos tratar. A tradição bíblica
dramento da foto. Determina também o relacionamento e propor-
oferece alguns princípios. A história e os "campos experimentais" re-
ção relativa dos elementos escolhidos. Da mesma forma, a lente que
centes sugerem abordagens possíveis. Talvez essas indicações sirvam
usamos ao examinar o crime e a justiça afeta aquilo que escolhemos como elementos para construir uma nova lente.
como variáveis relevantes, nossa avaliação de sua importância relati-
Sim, uma nova lente. Mas, e um novo paradigma? Um paradig-
va e nosso entendimento do que seja um resultado adequado.
ma é mais do que uma forma de ver ou uma perspectiva. Exige uma
Nós vemos o crime através da lente retributiva. O processo pe- teoria muito bem articulada, combinada a uma sólida gramática e
nal, valendo-se desta lente, não consegue atender a muitas das ne- uma física de aplicação - além de certo grau de consenso. Ele não
cessidades da vítima e do ofensor. O processo negligencia as vítimas precisa resolver todos os problemas, mas pelo menos os mais pre-
enquanto fracassa no intento declarado de responsabilizar os ofen- mentes, e deve indicar a direção a seguir. Não creio que tenhamos
sores e coibir o crime. chegado a esse ponto ainda.
Tal incapacidade nos trouxe até a sensação de crise generali- Um objetivo mais realista para o nosso estágio seria o de visões
zada que vivemos hoje. Muitas reformas foram implementadas. As alternativas fundamentadas em princípios e experiências, e que pos-
modas mais recentes são a monitoração eletrônica e a supervisão sam guiar nossa busca de soluções à crise atual. Podemos adotar uma
intensiva, mas elas são simplesmente as últimas de uma lista muito lente diferente, mesmo que ainda não seja um paradigma plenamente
longa de "soluções". O sistema tem se mostrado incrivelmente re-
sistente a melhorias significativas, tendo até agora absorvido e sub- 1. Ver M. Kay Harris, "Strategies, Values and the Emerging Generations of Alternatives to
Incarceration", New York University Review of Law and Social Change, XII, nO 1, 1983-84, pp.
vertido os esforços de reforma. O provérbio francês parece válido 141-70; e "Observations of a 'Friend of the Court' on the Future of Probation and Parole",
nesse caso: "Quanto mais as coisas mudam, mais ficam iguais". Federal Probation, LI, nO 4 (dez. 1987), pp. 12-21.

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UMA LENTE RESTAURATIVA
UMA LENTE RESTAURATIVA

desenvolvido. Tais visões podem ajudar a orientar-nos na direção de comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconci-
uma viagem, forçosamente partilhada, de experiências e explorações. liação e segurança.
Estamos buscando uma visão do que pode ser considerado um
padrão, uma visão da norma, e não de uma reação realista adequada
a todas as situações. A lente atual se fundamenta naquilo que é pou- Crime: violação de pessoas e relacionamentos
co usual e bizarro. As regras criadas para essas exceções são a norma,
No primeiro capítulo vimos que as pessoas muitas vezes vivenciam
valem para as ofensas "ordinárias". Alguns ofensores são tão ineren-
mesmo crimes patrimoniais de pequena monta como ataques à sua
temente perigosos que precisam ficar presos. Alguém tem que tomar
identidade. As pessoas se sentem vítimas de uma violação pessoal,
essa decisão com base em regras e salvaguardas de direito. Algumas
mesmo quando o dano foi somente contra a propriedade. A visão de
ofensas são tão hediondas que requerem tratamento especial. Mas
a reação a esses casos especiais não deveria ser a norma. Portanto,
shalom nos lembra que esse nível material é importante para o senso
I de bem-estar individual.
nossa abordagem seria a de identificar o que o crime significa e o que
deveria acontecer normalmente quando ele acontece, reconhecendo A visão de shalom também nos lembra que o crime representa
as necessidades impostas por algumas exceções. Assim, por ora não uma violação dos relacionamentos. Ele afeta nossa confiança no
nos preocuparemos em avaliar se nossa visão pode englobar todas as outro, trazendo sentimentos de suspeita e estranheza, por vezes
situações. Tentaremos visualizar o que deveria ser a norma. racismo. Não raro ergue muros entre amigos, pessoas amadas, pa-
Um modo de começar essa exploração é tirando o crime de seu rentes e vizinhos. O crime afeta nosso relacionamento com todos
pedestal abstrato. Isto significa compreendê-lo como a Bíblia com- à nossa volta.
preendia e da forma como nós o vivenciamos: como um dano e uma O crime também representa um relacionamento dilacerado en-
violação de pessoas e relacionamentos. A justiça deveria se concen- tre vítima e ofensor. Mesmo se eles não tinham um relacionamento
trar na reparação, em acertar o que não está certo. prévio, o delito cria um vínculo, que em geral é hostil. Se não resol-
Nesse caso, duas lentes bem diferentes poderiam ser descritas vido, esse relacionamento hostil afetará, por sua vez, o bem-estar da
da seguinte forma: vítima e do ofensor.
O crime significa um agravo à vítima, mas poderá também ser
Justiça retributiva um agravo ao ofensor. Muitos crimes nascem de violações. Muitos
O crime é uma violação contra o Estado, definida pela desobediência à ofensores foram vítimas de abusos na infância e carecem das ha-
lei e pela culpa. A justiça detennina a culpa e inflige dor no contexto de bilidades e formação que possibilitariam um emprego e uma vida
uma disputa entre ofensor e Estado, regida por regras sistemáticas. significativa. Muitos buscam validação e empoderamento. Para eles
o crime é uma forma de gritar por socorro e afirmar sua condição
de pessoa. Em parte, prejudicam os outros porque foram prejudica-
Justiça restaurativa
dos. E não raro são prejudicados ainda mais pelo sistema judicial.
O crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obri- Tal dimensão nasce, em certa medida, de outras questões da justiça
gação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a retributiva. É também parte integrante da visão de shalom.

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Em seu ceTne o crime é, portanto, uma violação cometida contra uma intensificação do conflito. A violência está numa categoria dife-
outra pessoa por um indivíduo que, por sua vez, também pode ter rente. Uma coisa é ter uma diferença de opiniões e brigar, outra bem
sido vítima de violações. Trata-se de uma violação do justo relacio- diferente é atacar o outro fisicamente.
namento que deveria existir entre indivíduos. O crime tem ainda Em virtude de suas dimensões interpessoais, o crime obviamen-
I
uma dimensão social maior. De fato, os efeitos do crime reverberam, te envolve conflito. Mas fazer dele um sinônimo de conflito poderá
como ondas, afetando muitos outros indivíduos. A sociedade é uma levar a erro e toldará alguns aspectos importantes.
parte interessada no resultado, e portanto tem um papel a desem-
O que dizer da palavra crime? Alguns gostariam que a palavra
penhar. Não obstante, essa dimensão social não deveria ser o ponto fosse evitada. O crime é resultado de um sistema legal que faz dis-
inicial do processo. O crime não é primeiramente uma ofensa contra tinções arbitrárias entre variados danos e conflitos. É um construto
a sociedade, muito menos contra o Estado. Ele é em primeiro lugar artificial que joga num só balaio uma série de comportamentos e
uma ofensa contra as pessoas, e é delas que se deve partir. experiências distintos, separando-os de outros danos e violações e,
Essa dimensão interpessoal do crime nos lembra que o crime assim, ocultando o verdadeiro significado da experiência.
envolve um conflito. 2 De fato, inúmeros estudiosos europeus que Por isso o criminologista e advogado holandês Louk Hulsman
estão trabalhando em direção a uma lente nova para o crime vêm sugeriu o termo situações problemáticas. 4 Essa expressão é útil pois
nos incitando a definir o crime como uma espécie de conflito. Afinal, nos lembra da ligação entre os "crimes" e outros tipos de danos e
o crime cria conflitos interpessoais e às vezes nasce de um conflito. conflitos. Sugere também as possibilidades de aprendizado inerentes
Sem dúvida ele está ligado a outros prejuízos e conflitos sociais. Se a tais situações. Mas situações problemáticas soa um pouco vago e,
abordadas adequadamente, muitas dessas situações conflituosas po- no caso de violações graves, pode parecer minimização das dimen-
deriam ser oportunidades de aprendizado e crescimento, estejam ou sões do dano. Na linguagem corrente, é muito difícil imaginar como
não definidas como crimes. substituiríamos a palavra crime por situações problemáticas!
Marie Marshall Fortune nos alerta para o fato de que rotular o Seria bom ter um termo alternativo, mas por enquanto não en-
crime como conflito pode ser enganador e perigoso. 3 Em casos de contrei um substituto aceitável. Assim, por ora continuaremos utili-
violência doméstica, por exemplo, atos violentos com sérias conse- zando o termo crime, tendo sempre em mente suas inadequações.
qúências têm sido com demasiada freqúência definidos como sim- O crime envolve violações que precisam ser sanadas. Essas vio-
ples resultado de conflitos. Isto tendeu a calar a responsabilidade por lações representam as quatro dimensões básicas do mal cometido:
comportamentos através da culpabilização da vítima. Fomos levados
também a presumir que a violência é simplesmente uma escalada 1. à vítima
do conflito. Fortune nos lembra que a violência não é simplesmente 2. aos relacionamentos interpessoais
3. ao ofensor
2. Ver, e.g., Louk Hulsman, citado acima. Ver também John R. Blad, Hans van Mastrigt e 4. à comunidade
Niels A. Uldriks, eds., The Criminal ]ustice System as a Social Problem: An Abolitionist Perspective
(Rotterdam: Erasmus Universiteit, 1987).
3. Marshall Fortune levantou a questão num parecer sobre justiça restaurativa em "casos 4. Ver "Criticai Criminology and the Concept of Crime". Contemporary Crisis: Law, Crime and
graves", exposto em Guelph, Ontário, em 1986. Social Policy, 10, 1986, pp. 63-80.

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I
I
I,
I'
li I
A lente retributiva se concentra basicamente na última, nas di- , 8. Arraturezacohflituosádo
mensões sociais. E o faz tornando a comunidade algo abstrato e im- crime é reconhecida
pessoal. A justiça retributiva define o Estado como vítima, define o 9. O dano causado ao ofensor é 9. O dano causado ao ofensor é
comportamento danoso como violação de regras e considera irrele- periférico importante
vante o relacionamento entre vítima e ofensor. Os crimes, portanto, A ofeIlsa é deSnida e~ termos 10. A oferisa é compreend.ida eu:-
, I estão em outra categoria, separados dos outros tipos de dano. C"''-~'!C.\.1''" jUrfdIcbs seu çontexto total: étíco, sOcial,
A lente restaurativa identifica as pessoas como vítimas e reco- econômico e político
nhece a centralidade das dimensões interpessoais. As ofensas são de-
finidas como danos pessoais e como relacionamentos interpessoais. Até o momento limitamos boa parte de nossa discussão aos
II, O crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. danos e conflitos que em geral rotulamos como crimes. Esse foco é
i muito estreito se pensarmos em termos do paradigma bíblico. Ele
nos oferece uma visão de como as pessoas deveriam conviver num
Formas de ver o crime estado de shalom, de relacionamentos retos. Os comportamentos
que chamamos de crime violam esses relacionamentos, da mesma
forma que muitas outras violações, inclusive atos de injustiça e
opressão dos poderosos contra os desprovidos de poder. O para-
1. o crime é definido pela 1. O crime é definido pelo dano digma bíblico nos obriga a ver a injustiça de modo holístico, sem
violação da lei à pessoa e ao relacionamento
divisões artificiais entre crimes e outras injustiças. É preciso ter
(violação do relacionamento)
diante dos olhos todo o contínuo dos danos. Os crimes se mesclam
2.'0s dânO$ com outros males e conflitos que em geral colocamos no âmbito do
iq$t;ato'
direito civil. Mas tais injustiças se juntam às injustiças do poder e
3. O crime está numa categoria 3. O crime está reconhecidamente da riqueza. Usando a linguagem do Antigo Testamento, os profetas
distinta dos outros danos ligado a outros danos e nos lembram que a injustiça estrutural é um pecado, que por sua
conflitos
vez gera mais injustiças .
.A~peSSoas ,'~()$
relationamento$'são aS vítimas
Restauração: o objetivo
5. O Estado e o ofensor são as 5. A vítima e o ofensor são as
partes no processo partes no processo Se o crime é um dano, uma lesâo, o que é a justiça? Novamente,
6. As necessidades e direitos das 6 . .AS' necessidades edireítos das valendo-nos da visão consignada na Bíblia, se o crime machuca as
~timas são ignoradas, víÚD::tàSsâo ,a, pl"eqcupaçãb; pessoas, a justiça deveria acertar tudo para as pessoas e entre elas.
central' Quando um mal é cometido, a questão central não deveria ser "O
7. As dimensões interpessoais são 7. As dimensões interpessoais são que devemos fazer ao ofensor?", ou "O que o ofensor merece?", mas
irrelevantes centrais sim "O que podemos fazer para corrigir a situação?".

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Em vez de definir a justiça como retribuição, nós a definiremos Diante das preocupações do cérebro em relação ao que deve ser, o co-
como restauração. Se o crime é um ato lesivo, a justiça significará ração responde com o que é. A cabeça pode traçar uma rota para o cora-
reparar a lesão e promover a cura. Atos de restauração - ao invés ção, mas o coração deve chegar lá no seu próprio ritmo. A reconciliação
de mais violação - deveriam contrabalançar o dano advindo do cri- partindo do coração é um ciclo com vários estágios de permeio. 5
I
I,
i me. É impossível garantir recuperação total, evidentemente, mas a
verdadeira justiça teria como objetivo oferecer um contexto no qual Segundo Ron Claassen, diretor do VORP de Fresno, Califórnia,
esse processo pode começar. devemos ver a reconciliação como um contínuo. 6 Num extremo
Se o ato lesivo tem quatro dimensões, as energias reparadoras temos franca hostilidade. No outro extremo temos restauração ou
deveriam tratar todas elas. O primeiro objetivo da justiça deveria ser, criação de um forte relacionamento positivo. Quando acontece um
portanto, reparação e cura para as vítimas. crime, o relacionamento em geral está no extremo hostil da escala.
Sem atendimento, o relacionamento em geral fica estagnado ou até
Cura para as vítimas não significa esquecer ou minimizar a
caminha para uma hostilidade mais acirrada. O objetivo da justi-
violação. Implica num senso de recuperação, numa forma de fe-
ça deveria ser, portanto, o de levar o relacionamento em direção à
char o ciclo. A vítima deveria voltar a sentir que a vida faz sentido e
reconciliação. A cura desses relacionamentos, mesmo que apenas
que ela está segura e no controle. O ofensor deveria ser incentivado
parcial, é um passo importante para a cura individual. A justiça não
a mudar. Ele ou ela deveriam receber a liberdade de começara vida
pode garantir nem forçar a reconciliação, mas deveria oferecer a
de novo. A cura abarca um senso de recuperação e esperança em oportunidade para que essa reconciliação aconteça.
relação ao futuro.
Estive envolvido em casos do VORP nos quais houve aparente-
Sanar o relacionamento entre vítima e ofensor deveria ser a se- mente pouco progresso em direção à reconciliação. Reunidos para
gunda maior preocupação da justiça. O movimento de reconciliação discutir a ofensa e sua resolução, vítima e ofensor continuaram hos-
vítima-ofensor chamou esse objetivo de reconciliação. tis. No entanto, a natureza de sua hostilidade mudou. Eles não esta-
A palavra descreve pleno arrependimento e perdão e envolve o vam mais com raiva de uma abstração, de um estereótipo de vítima
estabelecimento de um relacionamento positivo entre vítima e ofen- ou ofensor. Estavam agora zangados com uma pessoa concreta. Isto
sor. A experiência do VORP sugere que isso é possível. Contudo, não já é um progresso.
seria realista esperar que a reconciliação aconteça em todos os casos. Também ofensores precisam de cura. É claro, eles devem ser
Em muitos deles não se chegará a nada parecido com reconciliação. responsabilizados pelo que fizeram. Não se pode "deixar passar em
Em outros será possível evoluir para um relacionamento satisfatório branco". Mas essa responsabilização pode ser em si um passo em
que não envolva intimidade ou confiança total. Os participantes ja- direção à mudança e à cura. Também suas outras necessidades pre-
mais devem sentir que estão sendo coagidos a se reconciliarem. Ron cisam de atenção.
Kraybill, ex-diretor do Serviço de Conciliação Menonita (Mennonite
Conciliation Service), nos lembra que a reconciliação tem um ritmo 5. Ron Kraybill. "From Head to Heart: The Cycle of Reconciliation", Mennonite Conciliation
Service: Conciliation Quarterly, 7, nO 4, 1988, p. 2.
e uma dinâmica próprios. Mesmo desejando conscientemente a re-
6. Ron Claassen e Howard Zehr, VORP Organizing: A Foundation in the Church (Elkhart: Men-
conciliação, nossas emoções podem seguir outro rumo. nonite Central Committee, 1988), p. 5.

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A comunidade igualmente precisa de cura. O crime solapa seu as funções e crescer. Através da vivência da lesão e da cura, é possível
sentido de inteireza e essa lesão precisa de tratamento. compreender as condições que levaram àquela lesão e as condições
A experiência de justiça é uma necessidade humana básica. Sem que trouxeram a cura. [Então] podemos trabalhar para mudar a lesão
e oferecer a cura a outros que foram feridos.
ela a cura e a reconciliação são difíceis ou até impossíveis. A justiça
é pré-condição para uma solução.
É claro que uma sensação plena de justiça é algo raro. No en- Wilma Derksen, cuja filha foi brutalmente assassinada, sugeriu
tanto, até uma "justiça aproximada" pode ser de ajuda? Mesmo ainda uma outra metáfora que considero ainda mais prometedora. O
uma experiência parcial pode lançar as bases necessárias para obter crime cria um vazio, portanto a justiça é preencher o vazio. 8
uma sensação de recuperação e encerramento do ciclo. Por exem- O parâmetro bíblico de justiça mostra que a justiça restaurativa
plo, quando o ofensor não foi identificado, ou quando ele se nega deve muitas vezes ser uma justiça transformadora. 9 Para corrigir a si-
a assumir a responsabilidade, a comunidade pode desempenhar o tuaçâo, pode ser necessário fazer mais do que simplesmente restituir
seu papel promovendo uma experiência de justiça. Ela pode ouvir as coisas e pessoas à sua condição original. Nos casos de violência
sinceramente e valorizar a vítima, concordando com suas queixas de conjugal, por exemplo, não é suficiente cobrir os danos. A verdadei-
que o que aconteceu foi errado e atendendo e dando ouvidos às suas ra justiça não acontecerá a não ser que as pessoas e relacionamentos
necessidades. Uma quase justiça é melhor do que nenhuma justiça e sejam transformados em algo saudável de modo que a violência não
seja recorrente. Nesse contexto, a justiça pode significar uma mu-
ajuda o processo de cura.
dança ao invés da volta à situação anterior.
Que imagem deveríamos ter da justiça? A deusa vendada com
A justiça pode envolver mais do que preencher um buraco
a balança na mão simboliza bem a natureza impessoal, preocupada
e nivelar a superfície. Talvez seja necessário fazer um monte por
com o procedimento, do paradigma atual. Qual seria a alternativa?
cima do buraco. Novamente, Dave Worth resume essa imagem me-
Uma possibilidade é ver a justiça como a cura de uma lesão. lhor do que eu:
Meu colega Dave Worth, comentando um rascunho do presente ca-
pítulo, descreveu bem essa imagem:
Em II Coríntios 5: 18 e ss., faz-se uma analogia entre reconciliação e
recriação. Esta talvez seja a essência da reconciliação. Nela, algo novo
Novos tecidos devem crescer para preencher o espaço daquele que acontece entre duas pessoas. Algo que não está fundado no modo
foi dilacerado. As condições e nutrientes adequados precisam estar como as coisas foram no passado, mas no modo como deveriam ser. A
disponíveis para que o novo cresça. São necessários segurança, higie- reconciliação é uma abordagem prospectiva do problema.
ne e tempo. Algumas vezes ficam cicatrizes, às vezes incapacidades.
A verdadeira justiça remete à abundância. Não é uma abordagem lega-
Mas quando a ferida sara é possível novamente mover-se, recuperar lista de justiça enquanto o mínimo necessário. Não estamos falando da
balança da justiça. Falamos de uma situação na qual a verdadeira justi-
7. Marie Marshall Fortune sugeriu essa terminologia na Guelph Consultation, ver Fortune,
"Making]ustice: Sources ofHealing for Incest Survivors", Working Together (verão, 1987), p. 5;
e ']ustice-Making in the Aftermath of Women-Battering", Domestic Violence on Trial, ed. Daniel 8. Wilma Derksen, Have You Seen Candice? (Wheaton: Tyndale, 1992).
Sonkin (Nova York: Springer Publishers, 1987), pp. 237-48. 9. Devo esse termo a Marie Marshall Fortune.

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ça aconteceu, trazendo à luz algo novo. Algo que não deixa as pessoas A linguagem usada para dizer a verdade, se lamentar e exigir
menores, nem iguais, mas plenas e superabundantes, de modo que restituição é, via de regra, bastante rude e raivoso. Devemos acei-
possam sair e espalhar a mesma justiça para todos à sua volta. Talvez tar isso e ouvir verdadeiramente. Somente assim as pessoas pode-
o problema da atual abordagem legalista seja justamente esse - ela não rão superar essa fase e seguir adiante. Morton MacCallum-Paterson
satisfaz plenamente as pessoas e, portanto, elas não estão prontas a chegou à conclusão que os gritos de angústia das vítimas de crime
partilhar justiça com os outros. são parecidos com os gritos de dor exigindo vingança retratados no
Antigo Testamento como "orações" dirigidas aos ouvidos de Deus,
pedindo por sua simpatia e lamento. Muitas vezes soam a ódio e
A justiça começa nas necessidades vingança, mas nem sempre são uma exigência de ação por parte
Uma justiça que vise satisfazer e sobejar deve começar por identificar da comunidade. Como disse o pai de uma vítima de assassinato a
;1 e tentar satisfazer as necessidades humanas. No caso de um crime, o Paterson: "Talvez pareça que estamos pedindo a pena de morte. Na
'I
I II1
ponto de partida deve ser as necessidades daqueles que foram viola- verdade não estamos [ ... ] mas, o que mais podemos dizer?".
1

dos. Quando um crime acontece (tenha o ofensor sido identificado


ou não), a primeira preocupação é: "Quem sofreu dano?", "Que tipo o que mais se pode dizer? Essa é a questão. Não há palavras mais ex-
de dano?", "O que estão precisando?". Esse tipo de abordagem, é pressivas do que reclamar sangue para falar da dor, do pesar e do ódio
claro, difere muito da justiça retributiva que pergunta em primeiro daqueles que a vítima de assassinato deixou para trás. A escolha dessas
lugar: "Quem fez isso?", 'O que faremos com o culpado?" - e que palavras como estratégia de ação a fim de obter a execução do assassi-
no é uma outra questão. Isto dependerá de uma decisão posterior. O
dificilmente vai além disso.
lamento como tal não contém as decisões mas [... ] o lamento é uma
As vítimas têm muitas necessidades a serem atendidas para che- linguagem que assume a forma de uma maldição. Com efeito, é um
garem a vivenciar algo que se aproxime de justiça. Em muitos casos as pedido para que Deus amaldiçoe aquele que tirou a vida da vítima. lO
necessidades principais e mais prementes são de apoio e segurança.
Logo depois, no entanto, surgem várias outras necessidades, al- A retribuição pode ser uma forma de solução, mas a restituição
gumas das quais descrevi no primeiro capítulo. As vítimas precisam também. Num pequeno e importante livro intitulado Mending Hurts,
de alguém que as escute. Precisam de oportunidades para contar a John Lampen, da Irlanda do Norte, observa que a restituição é uma
história e ventilar seus sentimentos, repetidamente. Elas precisam reação humana tão fundamental como a retribuição.!!
contar sua verdade. E precisam que os outros partilhem de seu sofri- A restituição representa a recuperação de perdas, mas sua ver-
mento, lamentem com elas o mal que lhes foi feito. dadeira importância é simbólica. A restituição significa um reconhe-
Em algum ponto do processo as vítimas necessitam sentir-se cimento do erro e uma declaração de responsabilidade. A correção
vindicadas. Precisam saber que o que lhes aconteceu estava errado do mal é, em si, uma forma de expiação que poderá promover a cura
mais eficazmente do que a retribuição.
e não era merecido, e que os outros também acham aquilo errado.
Elas precisam saber que algo foi feito para corrigir o mal e reduzir as
10. Morton MacCallum-Paterson, "Blood Cries: Lament, Wrath and the Merey of God",
chances de uma nova ocorrência. Querem ouvir os outros reconhe- Touchstone, maL 1987, p. 19.
cendo sua dor e legitimando sua experiência. 1l. John Lampen, Mending Hurts (Londres: Quaker Home Serviee, 1987), p. 57.

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A retribuição em geral deixa um legado de ódio. Talvez a re- Além disso, as vítimas precisam ser empoderadas. A justiça não
tribuição seja melhor do que nada em termos de uma experiência pode simplesmente ser feita para e por elas. As vítimas precisam se
satisfatória de justiça, mas ela não ajuda em nada para aplacar hos- sentir necessárias e ouvidas ao longo do processo. Uma das dimen-
tilidades que dificultam a cura. Essa é a beleza do perdão. Ao tratar sões do mal é que elas foram despidas de poder, portanto, uma das
os sentimentos hostis, ele permite que vítima e ofensor assumam o dimensões da justiça deve ser a restituição desse poder. No mínimo
controle de suas próprias vidas. Como vimos no caso da reconcilia- isso significa que elas devem ser a peça principal na determinação de
ção, não é fácil chegar ao perdão e não se pode forçá-lo. Para muitos quais são suas necessidades, e como e quando devem ser atendidas.
a experiência de justiça é pré-requisito necessário ao perdão. Para Mas as vítimas deveriam participar de alguma forma do processo
como um todo.
alguns o perdão parecerá impossível.
As vítimas têm necessidade de segurança, reparação, justifica-
Tanto a retribuição como a restituição dizem respeito à restaura-
ção e empoderamento, mas precisam, especialmente, encontrar sig-
ção de um equilíbrio. Embora a retribuição e a restauração tenham
nificado. Recordemos a percepção de Ignatieff no sentido de que a
importante valor simbólico, a restituição é uma forma mais concreta
justiça oferece uma estrutura de significado. As vítimas precisam en-
de restaurar a eqüidade. Também a retribuição busca o equilíbrio
contrar respostas para suas dúvidas sobre o que aconteceu, por que
baixando o ofensor ao nível onde foi parar a vítima. É uma tenta-
aconteceu e o que está sendo feito a respeito. Precisam lidar com as
tiva de vencer o malfeitor anulando sua alegação de superioridade
seis questões que listei no primeiro capítulo e que abrem o caminho
e confirmando o senso de valor da vítima. A restituição, por outro
para a recuperação. Somente a própria vítima pode responder a al-
lado, busca elevar a vítima a seu nível original. Para tanto, reconhece
gumas daquelas questões, embora talvez possamos ajudar na busca
o valor ético da vítima, percebendo ainda o papel do ofensor e as das respostas. Mas algumas dessas questões dizem respeito aos fatos.
possibilidades de arrependimento - assim reconhecendo também o Quem fez, por que, que tipo de pessoa ele/ela é, e o que está sen-
valor do ofensor. 12 do feito a respeito? No mínimo, a justiça deve oferecer informações
A maioria de nós presume que a retribuição é uma prioridade acerca dessas perguntas.
das vítimas. Mas pesquisas realizadas com as vítimas mostram um Por isso as vítimas almejam vindicação, que inclui denúncia do
quadro diferente. As vítimas muitas vezes são favoráveis a penas re- mal cometido, lamento, narração da verdade, publicidade e não-mi-
parativas que não envolvem encarceramento - na verdade, muito nimização. Buscam eqüidade, inclusive reparação, reconciliação e
mais vezes do que se faz público.u perdão. Sentem necessidade de empoderamento, incluindo partici-
Além disso, elas freqúentemente listam a reabilitação do ofensor pação e segurança. Querem proteção e apoio, alguém com quem
como algo importante. Afinal, ajudar o ofensor é uma das maneiras partilhar o sofrimento, esclarecimento das responsabilidades e pre-
de tratar do problema da segurança e prevenção de delitos futuros. venção. E necessitam significado, informação, imparcialidade, res-
postas e um sentido de proporção.
12. Ver Jeffrie G. Murphy e Jean Hampton, Forgiveness and Mercy (Cambridge: Cambridge A vítima de crime se sente violada, e essa violação gera necessi-
University Press, 1988).
dades. Mas as comunidades também se sentem violadas, e têm ne-
13. Ver, por ex., Russ Immarigeon, "Surveys Reveal Broad Support for Alternative Senten-
cing", National Prison ProjectJoumal, nO 9 (outono, 1966), pp. 1-4. cessidades análogas. Uma vez que não se pode ignorar as dimensões

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públicas do crime, em muitos casos o processo judicial não pode ser quer coisa sem controles formais ou informais, seria, provavelmente,
inteiramente privado. Também a comunidade quer estar segura de caótica e insegura - o mundo vislumbrado por Hobbes. A ordem
que o ocorrido é errado, algo está sendo feito a respeito, e medidas total, por outro lado, mesmo se possível de obter, seria alcançada
estão sendo tomadas para evitar a reincidência. Também nesse caso pela perda da liberdade. Se punições severas pudessem coibir o cri-
a informação é importante, pois pode ajudar a reduzir os estereóti- me, teriam que ser rápidas e certeiras. O preço a pagar? Deveríamos
pos e medos infundados. E, novamente, a restituição desempenha estar dispostos a cometer muitos erros e dar poder arbitrário a uma
um papel importante já que oferece um símbolo da restauração da autoridade central- um poder que certamente seria usado abusiva-
integridade. De fato, o papel do simbolismo é fundamental. O crime mente. A maioria de nós não gostaria de viver num mundo assim.
perturba o sentido de inteireza da comunidade. A reparação da co- Portanto, nos vemos indo e voltando na região média daquele contí-
munidade como um todo requer algum tipo de ação simbólica que nuo, buscando um equilíbrio entre liberdade e poder. Os conserva-
tenha elementos de denúncia da ofensa, vindicação, restauração da dores tendem mais para o extremo da ordem, os liberais mais para
confiança e reparação. o extremo oposto.
Essas dimensões públicas do crime são importantes portanto, Há ainda um outro engano nos pressupostos correntes sobre
mas elas não devem ser o ponto de partida da justiça. E a comunida- liberdade e ordem. Quase sempre pensamos na ordem como sendo
de precisa ser questionada no tocante a alguns de seus pressupostos feita de regras e penalidades, ou seja, controles formais. Nos esque-
sobre o crime. Uma dessas suposições é a de que total segurança e cemos, contudo, que ao longo da história a ordem vem sendo man-
ordem são possíveis no contexto de uma sociedade livre. tida por controles informais - por sistemas de crença, por pressões
Recentemente, numa festa organizada para levantar fundos para e obrigações sociais, pelas recompensas da conformidade. Isto vale
nosso VORP local, eu estava sentado na mesa de piquenique com um também para nossa vida diária. Presumir que a ordem deriva sim-
homem abastado. Ameaçava um temporal, e todos tinham nos aban- plesmente da lei e da punição é ignorar os laços que mantêm a so-
donado para buscar o abrigo da casa. Sentados olhando a chuva, ciedade unida.
ele me perguntou sobre a organização para a qual tinha acabado de
A questão é que não podemos viver em total segurança enquan-
contribuir, e isto levou a uma conversa sobre a justiça. Ele me falou
to mantendo alguns valores que nos são caros. Ao mesmo tempo,
com grande honestidade sobre sua própria batalha interna a respei-
nossa liberdade também está em risco quando não trazemos à res-
to. Conhecia desde a infância um homem que era ladrão. Parte dele
ponsabilidade as pessoas que tentam exercer sua vontade violando a
se preocupava com a reabilitação e bem-estar do amigo. Por outro
liberdade dos outros.
lado, considerava-se um conservador e sentia que o ladrão devia ter
uma punição dura. "Às vezes acho que deveríamos fazer como no Irã
- cortar o braço do ladrão, punir severamente. Só assim estaríamos
seguros", disse-me ele. "Talvez", respondi, "Mas, se fosse assim, será
o crime gera obrigações
que você gostaria de viver aqui?". A reflexão sobre necessidades logo leva às questões de responsabili-
A ordem e a liberdade são dois extremos de um contínuo. A dade e dever. Violações geram obrigações.
liberdade total, ao menos no sentido de liberdade para fazer qual- A obrigação primária, obviamente, é da pessoa que causou a

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violação. Quando alguém prejudica outrem, tem a obrigação de cor- sociedade de fato pode fazer é dizer ao ofensor: "Você errou ao lesar
rigir o mal. Isto é o que deveria ser chamado de justiça. Significa alguém. Você tem a obrigação de corrigir os seus erros. Você pode
levar os ofensores a compreenderem e reconhecerem o mal que fi- fazer isso voluntariamente, e permitiremos que você participe do
zeram e, em seguida, tomarem medidas, mesmo que incompletas e processo para descobrir como fazê-lo. Se você não quiser aceitar essa
simbólicas, para corrigi-lo. responsabilidade, nós decidiremos por você o que precisa ser feito e
Corrigir é algo central para a justiça. Acertar o que está errado exigiremos que você o faça".
não é uma atividade periférica e opcional. É uma obrigação. Ideal- Pode-se pedir ao ofensor que aceite a obrigação de corrigir o mal.
I
mente, o processo de justiça pode ajudar os ofensores a reconhece- Pode-se incentivá-lo fortemente a assumir a responsabilidade e encarar
I
rem e assumirem suas responsabilidades voluntariamente. Isto pode suas vítimas. Contudo, não se pode e não se deve obrigá-lo a isso. Com
II
acontecer e de fato acontece no processo do VORP. Mas na maioria certeza, não se deve coibi-lo a participar! Encontros forçados dificil-
das vezes as pessoas aceitam essa responsabilidade com relutância mente serão bons, quer para o ofensor quer para a vítima, e o tiro pode
I I no início. Muitos ofensores relutam em se tornarem vulneráveis ao sair pela culatra. Podemos solicitar que o ofensor corrija seu erro, mas
tentar entender as conseqüências de seus atos. Afinal, construíram ele não pode ser inteiramente responsável sem algum grau de vontade.
edifícios de estereótipos e racionalizações a fim de se protegerem Um dos propósitos da punição e da reparação é enviar uma
exatamente contra esse tipo de informação. Muitos relutam em as- mensagem. A função utilitária da punição é dizer ao ofensor: "Não
sumir a responsabilidade. Receber uma punição é mais fácil por uma cometa ofensas pois elas são contra a lei. Aqueles que fazem o mal
série de motivos. Embora ela cause sofrimento por algum tempo, devem sofrer". A reparação ou a restituição visam enviar uma men-
não envolve responsabilidades nem ameaça as racionalizações e es- sagem diferente: "Não cometa ofensas pois elas prejudicam alguém.
tereótipos. Freqüentemente os ofensores precisam de forte incentivo Aqueles que prejudicam os outros têm que corrigir seu erro". A in-
ou mesmo coerção para aceitar suas obrigações. tenção da mensagem que nossas ações pretendem exprimir nem
! I O movimento VORP dos Estados Unidos e da Inglaterra tem sempre é ouvida, como observou o autor britânico Martin Wright.
discutido essa questão em várias ocasiões. Obviamente, a aceitação Mas em caso afirmativo, ainda será preciso verificar se foi ouvida a
voluntária de responsabilidade é melhor. Mas também é óbvio que mensagem correta. 14
pode haver abusos na coerção. Mesmo assim, em princípio não me Com relação à necessidade de enviar a mensagem de que o
oponho à exigência de que os ofensores assumam a responsabilida- crime é errado, Wright observa: "Podemos denunciar o crime de
de. Afinal, se alguém causa dano a outrem, esse alguém tem uma maneira mais construtiva fazendo coisas pela vítima (e pedindo ao
obrigação, uma dívida. O ofensor deveria reconhecer isto volunta- ofensor que faça) ao invés de contra o ofensor" .15
riamente e aceitar as responsabilidades, e o processo judicial deveria
O crime dá origem a uma dívida que precisa ser acertada, e essa
servir de estímulo.
dívida permanece, independente do fato de ter havido perdão ou
Ainda assim, as pessoas não assumem responsabilidades facil-
mente. Um dos motivos pelos quais muitos ofensores se metem em 14. "Mediation" Mediation UK, 5, nO 2 (mar. 1989), p. 7.
encrencas é sua falta de certos tipos de responsabilidade. Não é pos- 15. Martin Wright, "From Retribution to Restoration: A New Model for Criminal Justice",
sível superar tal irresponsabilidade com tanta rapidez. Mas o que a New Life: The Prison Service Chaplaincy Review, 5, 1988, p. 49.

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não. Quando causamos dano não podemos presumir que pelo fato Os ofensores têm muitas necessidades, é claro. Precisam que
de termos o perdão de Deus ou mesmo da vítima foram extintas as se questionem seus estereótipos e racionalizações - suas falsas atri-
nossas obrigações. No entanto, é também verdade que a vítima pode buições - sobre a vítima e o evento. Talvez precisem aprender a ser
escolher perdoar mesmo as obrigações concretas devidas. Raramen- mais responsáveis. Talvez precisem adquirir habilidades laborais ou
te um ofensor consegue compensar plenamente pelo que a vítima e interpessoais. Em geral necessitam de apoio emocional. Muitas ve-
o ofensor perderam. Herman Bianchi observou que o crime cria uma zes precisam aprender a canalizar raiva e frustração de modo mais
dívida, e que o perdão é a suspensão da obrigação no tocante àquilo apropriado. Talvez precisem ajuda para desenvolver uma auto-ima-
que não pode ser restituído. gem mais sadia e positiva e também para lidar com a culpa. Como
Na medida do possível os ofensores deveriam oferecer com- no caso das vítimas, se essas necessidades não forem atendidas, os
pensação pelo que fizeram. No entanto, em muitos casos há grande ofensores não conseguem fechar o ciclo.
demora na identificação dos ofensores. Muitas vezes eles jamais são Na esteira do crime, as necessidades das vítimas são o ponto
identificados. Além disso, está fora do alcance do ofensor suprir mui- inicial para a justiça restaurativa. Mas não se devem negligenciar as
tas das necessidades da vítima e da comunidade. E também os ofen- necessidades do ofensor e da comunidade.
sores têm necessidades. Esta é uma responsabilidade social: atender
as necessidades que os indivíduos sozinhos não conseguem atender.
Portanto, o crime gera também obrigações para a comunidade.
Uma questão de responsabilidade
Necessidades e responsabilidades - trata-se de prestar contas a al-
guém por um ato cometido. Quando um dano ocorre, o causador
Ofensores também têm necessidades precisa responder pelo que fez vendo as conseqüências naturais de
Segundo o paradigma bíblico, a justiça é feita não por merecimento, seus atos. Isto significa compreender e reconhecer o dano e agir para
mas por necessidade. Embora um modelo retributivo ou do "mere- corrigir a situação. Há uma terceira dimensão intermediária na res-
cido castigo" dite que os ofensores não "merecem" que suas neces- ponsabilidade do ofensor: partilhar da responsabilidade de decidir
o que precisa ser feito. O juiz Challeen fala sobre sentenciamento
sidades tenham prioridade, é do interesse da sociedade que essas
responsável. 16
necessidades integrem uma reação justa ao crime. A identificação e
tratamento das necessidades dos ofensores é um elemento-chave da Uma vez que o comportamento dos ofensores muitas vezes re-
justiça restaurativa. vela irresponsabilidade, simplesmente dizer a eles o que vai aconte-
cer seria poupá-los e incentivar seu comportamento irresponsável.
Na história com a qual abri o presente capítulo, Ted precisava de
Portanto, em sua vara, ele expõe aos ofensores as dimensões pelas
tratamento. O sistema jurídico interpreta seu comportamento como
quais precisarão prestar contas. Então, o juiz lhes dá um prazo ao
"molestação sexual", e esse comportamento faz parte de um padrão
fim do qual devem voltar com uma proposta de como vão atender às
mais amplo de inadequação e disfunção. Sem tratamento, o proble-
ma irá se agravar. Parte do tratamento necessário envolve ajudar Ted 16. Dennis A. Challeeen, Making It Right: A Common Sense Approach to Crime (Aberdeen:
a reconhecer o impacto de suas ações sobre sua jovem vítima. Mielius and Peterson, 1986).

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UMA LENTE RESTAURATIVA

exigências e como a sentença será monitorada e sancionada. O VORP 3. A culpa é indelével 3. A culpa pode ser redimida pelo
ajuda nessa fase, levando os ofensores a negociarem e chegarem a arrependimento e reparação
um acordo de restituição.
"'·:·"~ff".n", é.f!.bsrrílta 1. Ad~vida..~. 9ortçret~
Na nova experiência de "reparação juvenil" que funciona no
5. A dívida é paga sofrendo 5. A dívida é paga fazendo o certo
Centro de Justiça Comunitária de Indiana, os jovens ofensores de- punição
vem passar pelo programa antes do sentenciamento. Ali eles são in-
centivados a perceberem que seu comportamento causa danos: 1. à 6. Adívida lCom a Víúma
vítima; 2. à comunidade; 3. a si mesmos. Os profissionais do progra-
em pri:t1ieiro lugar;:
ma trabalham com eles para que cheguem a uma proposta de "sen- 7. Responder pelos seus atos 7. Responder pelos seus atos
tença" que satisfaça os três envolvidos. Através do VORP eles ficam aceitando o "remédio" assumindo a responsabilidade
sabendo sobre as necessidades das vítimas e têm a oportunidade de que o compo~w.:mento 8. R~~onheçeas dif~retJ.ç~s~l:l,tre
propor restituição. Eles podem tentar pagar sua dívida com a co- livremente escolhido a realizaçãopoten~taleatual'
munidade através de voluntariado. Por meio de acompanhamento,
da liberdade h'ilm?:na . .
terapia e outras atividades eles têm a chance de atender a algumas de 9. Livre arbítrio ou determinismo 9. Reconhece o papel do contexto
suas próprias necessidades. Ainda não está claro se essa experiência social social nas escolhas sem negar
a responsabilidade pessoal
terá sucesso, mas responder pelos seus atos é algo que empodera e
incentiva a responsabilidade. E o ofensor deve prestar contas nos
três níveis de obrigação: vitima, comunidade e ofensor.
Os ofensores devem responder pelos seus atos, mas a sociedade o processo deve empoderar e informar
também. A sociedade deve responder às vítimas, ajudando a identi-
Juízes e advogados têm por certo que o que as pessoas mais querem
ficar e atender suas necessidades. Da mesma forma, a comunidade
é ganhar o processo. Mas pesquisas recentes mostram que o proces-
deve atender às necessidades dos ofensores, buscando não apenas
so em si conta muito, e que o processo criminal freqüentemente não
restaurar, mas transformar. A responsabilização é multi dimensional
deixa uma impressão de justiça. O importante não é apenas o que
e transformadora.
acontece, mas também o modo como se chega à decisão. 17
A justiça precisa ser vivida, e não simplesmente realizada por
Compreendendo a responsabilidade outros e notificada a nós. Quando alguém simplesmente nos infor-
ma que foi feita justiça e que agora a vítima irá para casa e o ofensor
para a cadeia, isto não dá a sensação de justiça. Nem sempre é agra-
dável vivenciar, passar pela experiência da justiça. Mas ao menos
1. Os erros geram culpa 1. Os erros geram dívidas saberemos que ela existiu porque participamos dela ao invés de ter
e obrigações
"2:Ai:lJlpâ éllbsolutà, ou ·"2.Hã.gr~Vs·de·re~B9n~Jbí!~q~de 17. Ver Mediatian, jun. 1988, e Martin Wright, Mahing Gaod: Prisans, Punishment and Beyond
(Londres: Burnett Books, 1982), pp. 246 e ss.

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alguém a fazer isto por nós. Não é suficiente que haja justiça, é pre- teceu, por que aconteceu, e quem fez aquilo. Rostos precisam substi-
ciso vivenciar a justiça. tuir os estereótipos. Representações equivocadas precisam ser ques-
O primeiro passo na justiça restaurativa é atender às necessi- tionadas. Essa troca de informações é vital, e idealmente ela deveria
dades imediatas, especialmente as da vítima. Depois disso a justi- acontecer numa interação direta. Num contexto assim é possível tra-
ça restaurativa deveria buscar identificar necessidades e obrigações tar do que aconteceu no passado e do que vai acontecer no futuro.
mais amplas. Para tanto o processo deverá, na medida do possível, Os resultados dessa interação devem ser registrados na forma de
colocar o poder e a responsabilidade nas mãos dos diretamente en- acordos passíveis de serem quantificados e monitorados.
volvidos: a vítima e o ofensor. Deve haver espaço também para o A mediação entre vítima e ofensor é uma abordagem que atende
envolvimento da comunidade. Em segundo lugar, ela deve tratar do a esses critérios. A mediação vítima-ofensor fortalece os participan-
relacionamento vítima-ofensor facilitando sua interação e a troca de tes, põe em cheque as representações equivocadas, oferece ocasião
informações sobre o acontecido, sobre cada um dos envolvidos e para troca de informações e incentiva ações com o propósito de Cor-
sobre suas necessidades. Em terceiro lugar, ela deve se concentrar rigir a situação. Quando mediadores da comunidade estão envolví-
na resolução dos problemas, tratando não apenas das necessidades dos, esse tipo de mediação também abre espaço para a participação
presentes, mas das intenções futuras. comunitária. A mediação é totalmente compatível com a abordagem
Já mencionei a importãncia da participação, tanto para vítima restaurativa na justiça.
quanto para ofensor. No caso da vítima a perda de poder é um ele- Mas a mediação deve atender a alguns pré-requisitos. Os parti-
mento central da violação. O empoderamento torna-se crucial para cipantes precisam receber o apoio emocional necessário e estar dis-
que haja recuperação e justiça. Para o ofensor a irresponsabilidade e postos a participar. O treinamento dos mediadores é essencial. E
a falta de poder podem ter pavimentado o caminho que levou até o tudo deve acontecer no momento certo.
delito. O ofensor só poderá chegar à responsabilidade e ao encerra-
Depois de atendidos esses pré-requisitos, a mediação deve ser
mento da vívência pela participação na "solução".
realizada de modo adequado e focalizar os temas centrais. Mark Um-
Também nesse caso a comunidade tem um papel a desempe-
brett mostrou a importância de um estilo de mediação "empodera-
nhar. Parte da tragédia da sociedade moderna é nossa :endência de
dor" ao invés de um no qual o mediador impõe seu programa de
delegar a solução de nossos problemas a especialistas. E o que faze-
intenções prévias e sua personalidade, seja diretamente ou através
mos em relação à saúde, educação, e criação de filhos - e com certeza de manipulação. 18
também aos males e conflitos que chamamos de crimes. Ao fazê-lo,
perdemos o poder e a capacidade de resolver nossos próprios pro- Não se pode pular a troca de informações e a expressão de senti-
blemas. Pior, abrimos mão de oportunidades de aprender e crescer mentos no caminho para o acordo. Ron Claassen ensina seus media-
com aquelas situações. A resposta restaurativa deve reconhecer que dores do VORP que, para que a mediação seja completa, três questões
a comunidade tem um papel a desempenhar na busca da justiça. precisam ser satisfatoriamente respondidas:

Uma parte importante da justiça é a troca de informações - uns


18. Mark Umbreit, Victim Understandin g of Fairness: Burglary Victims in Victim Offender
sobre os outros, sobre os fatos, sobre a ofensa, sobre necessidades. Mediation (Minneapolis: Minnesota Citizens Council on Crime and justice, 1988), pp.
As vítimas querem respostas para suas dúvidas quanto ao que acon- 25 e ss.

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Em primeiro lugar, a injustiça foi reconhecida e assumida? O A maioria das terapias aplicadas em casos de abuso sexual aten-
ofensor reconheceu e aceitou a responsabilidade por seus atos? As de vítima e ofensor separadamente. Isto não proporciona reconheci-
perguntas da vítima foram respondidas? O ofensor teve chance de mento nem formas de tratar o abuso de confiança característico da
explicar o que vem acontecendo na sua vída? ofensa. Não se abre uma trilha para a resolução do caso. Não se dá
Em segundo lugar, houve concordância quanto ao que precisa atenção ao modo como os eventos foram percebidos nem às falsas
ser feito para restaurar a eqüidade na medida do possível? representações sobre o evento ou sobre os indivíduos envolvídos.
Em terceiro lugar, foram abordadas as intenções para o futu- A terapia para ofensas sexuais desenvolvida pelo terapeuta Wal-
ro? O ofensor pretende ter o mesmo comportamento no futuro? A ter Berea é diferente. 21 Essa abordagem terapêutica tem três está-
vítima se sente segura? Há um programa para acompanhamento e gios. O primeiro é o estágio de comunicação. Nele o terapeuta entra
monitoração do acordo? em contato com o oficial de condicional, os terapeutas anteriores e,
Usando a metáfora bíblica, Claassen resume as três fases em eventualmente, com a vítima. O contato com a VÍtima oferece infor-
confissão, restituição e arrependimento. 19 mações mais completas sobre os eventos, permite que a vítima saiba
Mas a mediação nem sempre é apropriada. Mesmo com apoio e que o ofensor está em terapia, e dá oportunidade para que o terapeu-
ta pergunte se as necessidades da vítima estão sendo atendidas.
garantia de segurança, a vítima pode sentir muito medo. A diferença
de poder entre as partes pode ser muito pronunciada e impossí- No segundo estágio da terapia são questionadas as falsas repre-
vel de superar. A vítima ou o ofensor podem não estar dispostos a sentações que o ofensor faz sobre a vítima. O ofensor recebe ajuda
participar. O crime talvez seja por demais hediondo e o sofrimento para reconhecer a responsabilidade e compreender as conseqüências
lancinante. Uma das partes pode estar emocionalmente instável. O de seu comportamento. Durante esse estágio ele escreve uma carta
contato direto entre vítima e ofensor pode ser de muita ajuda, mas a pedindo desculpas à vítima. Esse estágio oferece um tempo para que
justiça não pode depender apenas de interações diretas. a vítima se assegure de que não é culpada.
Nesses casos há maneiras de manter o foco na interação e troca O terceiro e último estágio da terapia tem foco na reconciliação.
de informações. O uso de vítimas substitutas, adotado em programas Isto pode acontecer de vários modos inclusive: receber a carta de
pioneiros no Canadá e na Inglaterra, é exemplo disso. Ali alguns ofen- desculpas do ofensor, ter um encontro face a face com ele-, ou , sem
sores se encontram com vítimas que não são as suas como um passo ter contato com o ofensor, estabelecer um contrato com ele dispon-
em direção a assumir a responsabilidade e partilhar informação. Isto do sobre o futuro. A escolha fica a critério da vítima. Essa abordagem
pode ser de muita ajuda em situações muito emocionais, como no leva a sério o dano e as dimensões interpessoais da ofensa e também
caso de crimes sexuais, ou nos casos ainda não resolvidos. 20 as necessidades da vítima e do ofensor.
"Genesee justice - criada com orgulho no estado de Nova York"
19. Claassen e Zehr, VORP Organizing, pp. 24-25. são os dizeres do logo de um programa do Departamento de Polí-
20. Ver, por ex., Ross lmmarigeon, "Reconciliation between Victims and lmprisoned orren-
ders: Program Models and lssues" CAkron: Minnonite Central Committee, 1994). Um outro 21. Walter H. Berea, "The Systernatic/Attributional Model; Victim-Sensitive Orfender The-
exemplo de programa pioneiro, dessa vez para violência grave, é liderado pela Fraser Region
rapy", em James M. Yokley, ed. The Use oj Victim-Ojjender Communication in the Treatment oj
Community Justice lnitiatives Association, em Langley, no Canadá. Sexual Abuse: Three Intervention Models COrwell: Safer Society Press, 1990).

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cia de Batavia, Nova York. Preocupados com o recurso abusivo ao qüentemente narrado nos Salmos, se torna apropriado. O programa
encarceramento e com as necessidades das vítimas, esse programa descrito acima percebeu essa necessidade e oferece cerimônias reli-
foi criado especificamente para casos de violência grave: homicídio giosas de lamentação e cura para os interessados.
culposo, tentativa de assassinato e homicídio doloso. Quando uma Depois é feita justiça - e seja ela completa ou incompleta - pre-
ofensa desse tipo ocorre, ajuda imediata e intensiva é oferecida a cisamos de rituais que fechem o ciclo. Louk Hulsman chamou a es-
vítimas e sobreviventes. Esse apoio é holístico e visa não apenas as ses rituais de "rituais de reordenação", e eles podem ser importantes
necessidades legais, mas também emocionais e espirituais. tanto para vítima quanto para ofensor.
Os funcionários do programa acompanham as pessoas ao lon- Esses rituais são um espaço onde as tradições espirituais podem
go de todo o processo, fornecem ajuda para que elas consigam dar desempenhar um papel significativo.
toda a informação requerida pelo "sistema" sobre sua experiência.
Durante o processo as vítimas podem ter algum envolvimento em
decisões sobre fiança e até sentenciamento, por exemplo, através de Há lugar para punição?
um encontro vítima-ofensor. Dado todo o apoio e participação, os
Venho argumentando que a punição não deveria ser o foco da jus-
desejos das vítimas muitas vezes acabam sendo surpreendentemente
tiça. Mas haveria lugar para algum tipo de punição dentro do con-
criativos e redentores. No mínimo, suas necessidades são levadas em
ceito de justiça restaurativa? Com certeza opções como a restituição
conta e as muitas dimensões do mal cometido são reconhecidas.
serão entendidas como punição por alguns, embora uma punição
Os ideais de empoderamento e interação direta entre vítima e mais merecida e lógica. Num grande estudo realizado sobre o VORP
ofensor nem sempre podem ser atingidos. Algumas decisões por ter- os ofensores descreveram o resultado como punição, porém vista
ceiros são inevitáveis. Casos que tenham implicações muito graves por eles como mais positiva do que a punição tradicional. Talvez a
para a comunidade não podem ficar simplesmente nas mãos de víti- terminologia punitiva tenha surgido devido à nossa falta de termos
ma e ofensor. Deve haver algum tipo de supervisão da comunidade. alternativos (embora tenha havido quem usasse a expressão "corri-
Mas esses casos não precisam ser a regra de como enxergamos e rea- gir os erros" para descrever a justiça). No entanto, é doloroso assu-
gimos ao crime. Mesmo nesses casos, precisamos manter diante dos mir responsabilidades, e isso é algo necessariamente compreendido
olhos um quadro da natureza verdadeira do crime e do que deveria como punição - da mesma forma que é doloroso o isolamento de
acontecer idealmente. pessoas consideradas perigosas, mesmo que nas melhores condições
de isolamento.

A justiça envolve rituais A verdadeira questão não é, portanto, se as pessoas vivenciarão


alguns elementos da justiça restaurativa como punição, mas se a pu-
Nosso sistema jurídico tem muitos rituais. De fato, os júris são em nição, imposta com intenção punitiva, tem alguma função. Christie
boa parte ritual e teatro. Contudo, em geral ignoramos as mais im- argumenta que se a dor - infligi da com o propósito de causar dor
portantes necessidades de ritual. - for utilizada, ao menos não deveria ter propósitos ulteriores. 22
Uma dessas ocasiões onde o ritual é importante é quando ocor-
re uma ofensa. Nesse momento é que o ritual do lamento, tão elo- 22. Ver trabalhos já citados.

196 197
r
UMA LENTE RESTAURATIVA
UMA LENTE RESTAURATIVA

A dor deve ser infligida apenas como punição, não como forma
Duas lentes
de atingir outro objetivo, como reabilitação ou controle social. In-
fligir dor com propósitos utilitários é desonesto e é usar as pessoas Fiz acima um breve sumário das lentes retributiva e restaurativa.
como coisas. Ele oferece uma analogia com o lamento. Quando la- Essas duas perspectivas podem ser apresentadas de modo mais ex-
mentamos uma morte, o fazemos por causa da dor que sentimos, e tenso. Segundo a justiça retributiva: 1. o crime viola o Estado e suas
não em função de outros objetivos. Christie também nos aconselha leis; 2. o foco da justiça é o estabelecimento da culpa 3. para que se
a infligir dor apenas nas situações em que isto reduzirá o nível de possa administrar doses de dor; 4. a justiça é buscada através de um
imposição de dor. conflito entre adversários 5. no qual o ofensor está contra o Estado;
Talvez seja impossível eliminar inteiramente a punição dentro 6. regras e intenções valem mais que os resultados; 6. um lado ganha
e o outro perde.
da abordagem restaurativa, mas ela não deve ser normativa, e sua
utilização e propósitos deveriam ser indicados com cuidado. O para- Segundo a justiça restaurativa: 1. o crime viola pessoas e rela-
digma bíblico sugere que o objetivo, natureza e contexto da punição cionamentos; 2. a justiça visa identificar necessidades e obrigações
são de vital importância. No contexto bíblico, por exemplo, a puni- 3. para que as coisas fiquem bem; 4. a justiça fomenta o diálogo e
ção não é um fim, mas visa libertar e criar shalom. A justiça bíblica é entendimento mútuo; 5. dá às vítimas e ofensores papéis principais;
administrada no contexto da compaixão. A possibilidade de perdão 6. é avaliada pela medida em que responsabilidades foram assumi-
e reconciliação é a luz no fim do túnel. A punição tem limites e a das, necessidades atendidas, e cura (de indivíduos e relacionamen-
compaixão não. O amor que redime é a primeira responsabilidade tos) promovida.
humana - e não a punição. Uma justiça que busca em primeiro lugar atender necessidades e
Quando nós punimos, enquanto sociedade, devemos fazê-lo no endireitar as situações se apresenta muito diferente da justiça que tem
contexto do que é justo e merecido. A punição precisa ser vista como como cerne a culpa e a dor. O quadro a seguir procura comparar al-
justa e legítima, observa Ignatieff, porque não conseguimos sentir gumas das características e implicações dos dois conceitos de justiça.
que houve justiça a menos que ela forneça uma estrutura de senti-
do que viabilize a compreensão da experiência. Para que a punição
Visões de justiça
pareça justa o resultado e o processo precisam ter uma ligação com
o mal cometido. Contudo, o contexto social também deve ser visto
como justo, e isto levanta questões mais amplas de justiça social,
econômica e política.
1. A apuração da culpa é central 1. A solução do problema é
Se há lugar para punição na abordagem restaurativa, ele não central
deve ser um lugar central. A punição precisaria ser aplicada sob
'foco no passado 2. Foco no futuro
condições em que o nível de dor é controlado e reduzido a fim de
manter a restauração e a cura como objetivos. Talvez possa existir 3. As necessidades são 3. As necessidades são primárias
secundárias
uma "punição restaurativa". No entanto, me apresso a dizer que as
possibilidades de punição destrutiva são muito mais numerosas. batalha, advers<trial 4; O diálogo é a norma
198 199
UMA LENTE RESTAURATIVA UMA LENTE RESTAURATIVA

5. Enfatiza as diferenças 5. Busca traços comuns

21. Enfraquecimento dos laços do 21. Reforço da integração do


ofensor com a comunidade ofensor com a comunidade

7. Um dano social é cumulado ao 7. Enfatiza a reparação de danos .()ofe'i1~ot é Vistd'dem6d6


outro sociais fragínéhtad():~r Ofensaô define i.
23. O senso de equilíbrio é 23. O senso de equilíbrio é
conseguido pela retribuição conseguido pela restituição

. 24. O equilíbriQ é alcançado 24 . .0 equi1pJÜq~álcançadó


9. Foco no ofensor: ignora-se a 9. As necessidades da vítima são rebaixando o ofensor' soerguendo Víti:mª e dfensoi
vítima centrais
25. A justiça é avaliada por 25. A justiça é avaliada por seus
seus propósitos e pelo frutos ou resultados
procedimento em si

11. Falta informação às vítimas 11. As vítimas recebem 26. A justiça como regrasjustas 26, A justiça cOU1Q . . .. . . i ••

informações telaçiona1;l1entóssaud~'Veis
27. Ignora-se o relacionamento 27. O relacionamento vítima-
vítima-ofensor ofensor é central
13. A "verdade" das vítimas é 13. As vítimas têm a
secundária oportunidade de "dizer a sua i 28. O processo aliena 28. O processo visar~2oJ1cília:Çãb
verdade"
29. Reação baseada no 29. Reação baseada nas
comportamento pregresso do conseqüências do
ofensor comportamento do ofensor

15. O Estado age em relação ao 15. O ofensor tem participação na 30. Não se estimriíao 30. Estimula-se o arrependimento
ofensor; o ofensor é passivo solUÇão arrependimento e o perdão e o pérdão
31. Procuradores profissionais são 31. Vítima e ofensor são os
os principais atores principais, mas contam com
ajuda profissional

17. O ofensor não tem 17. O ofensor tem Valores dé competição e i 32. Valores de re<;ipr'QCiÇ).adee
responsabilidade pela responsabilidade pela individualismo sãO fomentados cQoperaçãosào. fometlwd,os
resolução resolução
o o
33. O contexto social, econômico 33. Todo o contexto é relevante
18. Os resultadó5incenttvam.a 1l3.0çom,pbrtâmento e moral do comportamento é
.i'rresponsabilídatle do ofensor responS~*,el é incentivado ignorado
19. Rituais de denúncia e
exclusão
19. Rituais de lamentação e
reordenação
34,PresUn;te resulta4os..elUQ\le
'ium ganha eOQLltr()petde .
i 34. 'Possipilita J.l
o"
rn .t~stíltadodo
tipo.ganh4\-gal1M

200 201
UMA LENTE RESTAURATIVA

Justiça retributiva e justiça restaurativa - o mundo nos parece Capítulo 11


bem diferente olhando através dessas duas lentes. A justiça retri-
butiva é o que temos. Ela talvez não faça o que precisa ser feito,
E agora?
nem o que seus adeptos alegam que ela faz, mas ela "funciona" no
sentido de que sabemos como operá-la. O que dizer da perspectiva
menos conhecida que chamei de justiça restaurativa? Qual será o
futuro dela?
Como faremos para implementar plenamente um sistema restaurati-
vo? Seria interessante especular a esse respeito.

Possibilidades sistêmicas
Alguns nos exortam a "civilizar" a lei. I
Diferente do direito penal, o direito civil define os atos lesivos
em termos de dano e obrigação sem falar de culpa. Como resultado,
portanto, temos o acordo e a restituição ao invés de punição. Ele
permite uma graduação da responsabilidade sem que seja definida
como derrota/vitória. Como o Estado não é a vítima, os participantes
ganham o centro do palco, mantendo ao longo do processo signifi-
cativo poder e responsabilidade. Como os resultados não são pri-
mordialmente punitivos, as salvaguardas procedimentais são menos
rígidas e os fatos relevantes menos circunscritos. O que aconteceria
se modificássemos o processo civil para incluir certas salvaguardas?
E se colocássemos um advogado da vítima no processo, permitindo
decisões de terceiros quando não fosse possível chegar a um acordo
ou quando questões de risco iminente estivessem em pauta? E se
tirássemos alguns casos do processo penal para fazê-los correr por
um processo civil modificado?
A aplicação do direito penal é o que desencadeia o paradigma
retributivo. Mas a lei penal é uma aquisição relativamente nova da

1. Ver Martin Wright, Making Caad (Londres: Numett Books, 1982) pp. 249-50.

202 203
E AGORA? E AGORA?

sociedade ocidental e funciona sob pressupostos que, em muitos as- As vítimas podem acabar com poder demais. No final das contas, o
pectos, estão em dissonância com o resto de nossa vida. A estrutura Estado e seu sistema formal de justiça podem acabar tendo mais em
do direito civil pode ser uma alternativa para um conceito de justiça vez de menos poder e legitimação. O movimento de resolução de
que passe ao largo daqueles pressupostos. conflitos está sendo incitado a rever cuidadosamente seus pressu-
Talvez não devamos sonhar em desmontar o sistema retributi- postos e metas.
vo, mas sim desenvolver um sistema paralelo mantendo a escolha Nesse contexto, o modelo japonês se mostra especialmente in-
de qual deles usar. Herman Bianchi argumenta que na Idade Média teressante.john O. Haley, um especialista em direito nipônico, relata
a existência de caminhos paralelos - justiça estatal e justiça da Igre- que funciona ali um singular sistema judicial de duas vias. 3
ja - foi positiva em certos aspectos. A existência de dois caminhos Uma das vias é um sistema criminal formal ao estilo ociden-
oferecia escolhas para as partes em certos casos. Além disso, cada tal com muitas características que nos são familiares. O processo se
caminho servia como verificação e juízo crítico do outro. concentra na culpa e punição, é regido por normas formais e ope-
O desenvolvimento de caminhos jurídicos diferentes tem sido a rado por profissionais como procuradores públicos. Esse caminho
estratégia dos Conselhos Comunitários em São Francisco. Esses pro- é utilizado·para muitos crimes. No entanto, poucos casos chegam a
gramas vêm sendo desenvolvidos com base na estrutura dos bairros passar por todo o sistema terminando num longo tempo de prisão
para resolver disputas fora do "sistema". O programa treina pessoas ou outras penalidades severas. Os casos são constantemente deixa-
da comunidade para servirem como agentes de resolução de con- dos de lado. Aos olhos de um ocidental o sistema parece ser exces-
flito e mediadores, e também investe muito na educação e empo- sivamente tolerante.
deramento da comunidade. Seu processo de mediação serve como
Essa aparente tolerância e a falta de envolvimento de longo pra-
alternativa para as varas cíveis e criminais. De fato, eles se recusam
zo por parte do sistema jurídico formal é resultado de um segundo
a aceitar um caso que já esteja correndo pelo caminho judicial. O
sistema menos formal, uma via que não tem paralelo no Ocidente.
programa é uma forma de educar e fortalecer a comunidade a fim de
Haley descreve resumidamente esse sistema da seguinte forma:
que ela resolva seus próprios problemas.
Os Conselhos Comunitários e outros programas de resolução de
conflitos se mostram bastante promissores. Representam uma forma Um padrão de confissão, arrependimento e absolvição domina cada
de implementar de fato uma visão de justiça orientada para a resolu- etapa do sistema de manutenção da ordem no]apão. Os atores do pro-
ção de problemas em comunidade. No entanto, esse tipo de "justiça cesso não incluem apenas autoridades em novos papéis, mas também
informal" vem sendo alvo de crescentes ataques nos últimos anos. 2 o ofensor e a vítima. Desde o primeiro interrogatório na polícia até a
última audiência judicial para sentenciamento, a grande maioria dos
Vários alertas foram dados. Os resultados desses procedimen- acusados confessa, mostra arrependimento, negocia o perdão junto à
tos não são uniformes e, portanto, contradizem o senso de justiça
mais básico. A justiça informal pode acabar sendo reservada aos po- 3. Baseio-me num artigo ainda não publicado, "Mediation and Criminal Justice: The Ja-
bres e impotentes, negando a eles acesso a outras formas de justiça. panese Model - Confession, Repentance, and Absolution", apresentado no Seminário eLE
"Creativejustice Thraugh Mediation", Seattle, 29 de out. de 1988. Vertambémjohn O. Haley,
"Victim-Offender Mediation: Lessons fram thejapanese Experience", Mediaíion Quarterly, 12,
2. Ver Roger Matthews, ed., Informal Justice? (Londres: Sage, 1980). nO 3 (núm. esp., primavera de 1995), pp. 233-48.

204 205
E AGORA? E AGORA?

vítima e se submete à clemência das autoridades. Em troca, são trata- nosso pressuposto de que o processo formal é primário e seu foco
dos com grande tolerância. No mínimo o acusado ganha a perspectiva principal é estabelecer a culpa e aplicar a punição. O objetivo básico
de absolvição institucional, saindo do processo formal de justiça. do processo criminal no Japão é corrigir, e esse princípio rege as
decisões das autoridades.
Os casos saem do sistema jurídico formal em qualquer estágio
do processo. Somente uma fração dos casos chega à denúncia, e Assim, o papel das autoridades não fica confinado às tarefas formais
menos ainda acaba passando por todo o processo acusatório. Uma de prender, acusar e sentenciar. Ao contrário, quando pessoalmente
pequena minoria chega ao encarceramento e poucos ficam mais que convencidos de que o suspeito é autor do ilícito, muda sua primeira
um ano na prisão. Mas isto não significa que os criminosos japone- preocupação, que é com as provas evidenciais da culpa, tomando-
ses não são condenados. De fato, no Japão o índice de condenações se uma preocupação com a atitude do suspeito e suas perspectivas
chega a 99,5%. de reabilitação e reintegração na sociedade, inclusive sua aceitação da
Vários fatores influenciam a decisão de tirar o caso do processo autoridade. A tolerãncia é considerada uma reação adequada quando
tem início o proce,sso de correção.
formal ou impor sentenças não punitivas. Algumas dessas conside-
rações são conhecidas dos ocidentais, como a gravidade da ofensa
e a natureza do ofensor. Mas, além disso, há variáveis singulares: a Haley conta que o padrão de reação típica do japonês diante
disposição do ofensor em reconhecer a culpa, expressar remorso e do crime é
compensar a vítima, e a disposição da vítima de receber essa com-
pensação e perdoar. reconhecimento da culpa, expressão de remorso, inclusive negociação
No Japão os índices de condenação são altos em boa parte por- direta com a vítima quanto à restituição e perdão como pré-requisitos
que os ofensores se mostram dispostos a confessar e assumir a res- para um tratamento tolerante, evitando-se o recurso ao encarceramen-
ponsabilidade. As raízes dessa disposição são em parte culturais, é to por longos períodos.
claro, mas em parte se devem ao entendimento de que, se confessa-
rem, o resultado provavelmente se concentrará em compensação e Os ocidentais entendem que uma reação tão "tolerante" não
correção, mais do que em punição. Enquanto o complexo sistema conseguiria coibir a criminalidade. Mas Haley conclui que esse tipo
jurídico punitivo da sociedade ocidental desestimula a confissão, o de reação é, na verdade, parcialmente responsável pelos baixos índi-
sistema nipônico parece fazer dele a norma. ces de criminalidade no Japão.
As vítimas têm um papel importante nesse processo. A restitui- Haley se admira de que os japoneses tenham institucionaliza-
ção pelas perdas é um resultado esperado. E elas têm voz quando se do os conceitos de arrependimento e perdão e o Ocidente não. O
trata da decisão da autoridade de denunciar, diligenciar e sentenciar. imperativo do arrependimento e perdão é, no mínimo, tão forte na
No entanto, não controlam o processo, nem fazem um papel de ad- tradição judaico-cristã como na japonesa. No entanto, o Ocidente
versário ou acusador.
Os ocidentais ficam espantados com a disposição das autorida- não conseguiu desenvolver mecanismos institucionais para a imple-
des de tirar o caso do sistema jurídico formal. Isto se deve apenas ao mentação de imperativos éticos. Em vez disso, as instituições legais e

206 207
E AGORA? E AGORA?

procedimentos do direito ocidental refletem e reforçam as exigências com a "minoria perigosa"? Encarceramos? Em caso afirmativo, como
sociais de retribuição e vingança. tomar essa decisão? Há espaço para punição? Como idéia de justiça
restaurativa no âmbito penal se coaduna com questões mais amplas de
Embora o padrão nipônico esteja obviamente ligado à cultura ja- justiça social, econômica e política? A fonte bíblica supõe uma ligação
ponesa, Haley acredita que temos muito a aprender com esse exem- estreita entre esses fatores, mas o que isso significa hoje na prática?
plo, que sugere possibilidades intrigantes de ligação entre os sistemas Além disso, em que medida a minha formulação não estará re-
formal e informal, adversarial e não adversarial. O modelo japonês fletindo a perspectiva de um homem branco da classe média nor-
sugere um lugar para a máquina formal da justiça e para o Estado, mas te-americano? A obra de Kay Harris sobre o conceito feminista de
guarda um lugar para a restauração e dá à vítima e ao ofensor papéis justiça aponta na mesma direção em certos casos, mas não todos. 5 A
importantes. Embora o Ocidente não possa simplesmente imitar esse idéia de justiça restaurativa precisa ser testada em vista das perspec-
modelo, ele mostra que a justiça pode ser a um só tempo pessoal e for- tivas de várias culturas, tradições e experiências.
mal. Jerold Auerbach vem se preocupando com os perigos da lei sem Mesmo que pudéssemos apresentar a justiça restaurativa como
justiça, mas especialmente da injustiça sem lei. O modelo japonês nos um paradigma pronto e acabado, devo admitir que uma implemen-
oferece a esperança de que essas não são as únicas possibilidades. tação sistêmica continuaria me preocupando.
E as possibilidades são intrigantes. Contudo, devo admitir que Uma das fraquezas da teoria de Kuhn sobre mudanças de pa-
não acredito muito em projetos prontos para implementação sis- radigma é que elas são tratadas como se fossem uma atividade in-
têmica, ao menos não nesse estágio. Fiquei aliviado quando soube telectual, negligenciando a dinâmica política e institucional dessas
que Kay Harris, numa oficina sobre justiça restaurativa, nos incitou mudanças de paradigma. Os interesses políticos e institucionais
a continuar desenvolvendo a visão e a resistir às pressões no sentido
certamente afetam a ocorrência ou não das mudanças e a forma
de uma "praticidade prematura".4
que elas finalmente assumem. O paradigma retributivo está for-
Há muito trabalho conceitual por fazer. No capítulo anterior temente associado aos interesses e funções do Estado moderno e
mencionei que a justiça restaurativa ainda não se tornou um pa- isto terá impacto decisivo sobre a possibilidade de mudança e, se
radigma. É preciso desenvolver muitas questões e responder umas ela ocorrer, a forma que irá assumir. A história da mudança na
tantas outras. Comunidade é um termo não muito preciso e do qual área do direito e da justiça não é muito animadora. Os esforços
temos abusado bastante. O que significa e como emprestar realida- nesse sentido foram freqüentemente cooptados e desviados de suas
de a esse termo dentro da abordagem restaurativa? Qual é o papel visões originais, por vezes de modo perverso e nocivo. A origem
apropriado do Estado? das prisões é um caso típico, e deve servir de lembrete e aviso
Tenho enfatizado as responsabilidades dos ofensores, mas o que permanente àqueles dentre nós que pensam em mudanças. Tal-
dizer das responsabilidades em relação aos ofensores? O que fazer vez essas "melhorias" deram errado porque não questionaram os

4. Ver M. Kay Harris, "Alternative Visions in the Context of Contemporary Realities", em 5. Ver "Moving into the New Millennium: Toward a Feminist Vision of ]ustice", em Harold
]ustice; The Restorative Vision, n° 7, New Perspectives on Crime and ]ustice: Occasional Papers Pepinksye Richard Quinney, eds., Criminology as Peacemaning (Bloomington: Indiana Univer-
(Akron: Mennonite Central Committee, 1989), pp. 31-40. sity Press, 1991).

208 209
4
E AGORA?
E AGORA?

pressupostos fundamentais, como sugeri acima. Mas o problema é VORPS, por exemplo, e testar novas formas e aplicações. Devemos
ainda mais complexo. oferecer novos serviços às vítimas, serviços com uma estrutura res-
Muitas vezes as chamadas alternativas usam uma nova lingua- taurativa, incluindo rituais importantes que demonstrem que nós,
gem para vestir idéias que não são novas. 6 Freqüentemente as idéias enquanto comunidade, estamos com elas no seu sofrimento, na de-
têm implicações ocultas que levam tempo para emergir. E uma série núncia do mal, e na busca de cura. Precisamos igualmente oferecer
de pressões - internas e externas - tendem a desviar esses esforços novos serviços aos ofensores e suas famílias. E ao fazê-lo, também
de sua direção original. Por vezes, acabam reformulando aquelas al- explorar alternativas à punição que ofereçam oportunidades de res-
ternativas para que sirvam a interesses e objetivos bem diferentes ponsabilização, reparação e empoderamento.
dos pretendidos. Através do VORP ficamos sabendo bastante sobre abordagens
Portanto, antes de sonharmos alto demais, temos a obrigação de restaurativas ao crime patrimonial. Agora chegou a hora de aplicar
pensar cuidadosamente em todas as implicações. Devemos estudar o teste dos "casos difíceis". Como será com o assassinato? E agressão
ao máximo a dinâmica da mudança e antever todos os tropeços de contra cônjuge e crianças? Estupro? Quais são as possibilidades e
nosso sonho. quais os limites? Que procedimentos funcionam e quais não funcio-
nam? Que salvaguardas serão necessárias?
A discussão e avaliação dessas questões já começou, mas ainda
Enquanto isso
há muito por fazer. Esta é uma empreitada que exigirá criatividade,
Enquanto contemplamos possibilidades mais amplas, devemos tam- e que envolve riscos e sonhos, assim como realismo, trabalho duro
bém perseguir metas e atividades intermediárias. Há muitas coisas e cautela. Demandará cooperação entre teóricos e práticos, entre es-
que podem e devem ser feitas nesse meio tempo, aqui e agora. pecialistas e leigos. O envolvimento de pessoas que foram vítimas e
Devemos continuar a dialogar, "palavrear"7 com os simpatizan- ofensores no passado é fundamental.
tes e os não simpatizantes. Devemos testar, explorar, e desenvolver Ao testar nossas "alternativas", teremos que verificar constante-
nossa visão. mente se elas de fato são alternativas. Será que realmente refletem
Devemos nos tornar agricultores da justiça, plantando nossos valores alternativos? Ou são simples alternativas tecnológicas? São
campos experimentais e de demonstração. Precisamos plantar mais coerentes com o foco restaurativo? Nos levam nessa direção?
Precisamos desenvolver abordagens e estratégias intermedi-
6. Matthews, Informal Justice?, op. cit., p. 102. árias, mas sempre atentar para onde elas estão nos levando. No
7. Estamos usando esse nome (que vem do português "palavra") para nossas discussões mínimo, devemos fazer as seguintes perguntas a respeito de nossos
por sugestão de Herman Bianchi. Russ Immarigeon, do Main Council of Churches, observou
recentemente que, segundo o The American Heritage Dictionary, ele é definido como "conversa projetos: Eles incentivam ou desestimulam valores punitivos? Po-
sem propósito" ou "conversa que visa encantar e conquistar", ou ainda "uma conversação dem ser usados para construir novos modos de controle e punição?
entre exploradores europeus e representantes de populações locais, especialmente na África".
Estaríamos jogando conversa fora, pergunta ele. E por que "especialmente na África"? Produzirão um reservatório de experiências que sirvam de "campo
O dicionário mostra outro nível de significado mais neutro que significa discussão e debate, de teste ou demonstração"? Incorporam "elementos-chave" de uma
mas talvez as outras conotações devam ser lembradas também!
visão restaurativa?

210 211
E AGORA?
E AGORA?

Quais são os "elementos-chave" de uma visão restaurativa? o trabalhador católico acredita na criação de uma nova sociedade den-
Talvez pudéssemos começar a desenvolver indicadores restaurati- tro da casca da antiga, utilizando a filosofia da nova, que não é uma
vos para medir nossos esforços. Procurei fazer uma listagem mais nova filosofia, mas uma muito antiga, tão antiga que parece nova.
completa no apêndice, mas basicamente as perguntas possíveis se-
riam as seguintes: O programa ou seus resultados buscam corrigir A estratégia do Cristo foi criar uma nova sociedade (a Igreja),
o mal feito à vítima? Tratam das necessidades do ofensor? Levam com novos pressupostos e prinCípios operacionais, que funcionasse
em conta as necessidades e responsabilidades da comunidade? no seio da antiga, servindo de exemplo e desafio a estaS
Cuida do relacionamento vítima-ofensor? Fomenta a responsabili- Para responder às perguntas de Lind, portanto, precisamos or-
dade do ofensor? Vítima e ofensor são incentivados a participar do ganizar de modo eficiente nossa visão. Muito freqüentemente temos
processo e da decisão? ignorado a vitima e reagido ao crime com uma lente retributiva que
tomamos emprestada da sociedade em geral. O apóstolo Paulo ad-
vertiu os cristãos para evitarem levar suas contendas às cortes esta-
o novo dentro do antigo tais que, segundo ele, operam sob pressupostos inadequados. Seu
Enquanto isso, a Igreja pode desempenhar um papel importante. argumento não era meramente negativo. Ele supunha que a Igreja
O estudioso do Antigo Testamento Millard Lind nos lembrou que a desenvolveria suas próprias estruturas alternativas para a implemen-
justiça bíblica é - e sempre foi - muito diferente da justiça estatal. tação da justiça da aliança. O certo é que devemos reexaminar as
Diante dessa constatação, ele propõe importantes perguntas: Como lentes que usamos para lidar com o mal e os conflitos dentro dela,
os cristãos relacionam este novo modelo de justiça com os sistemas criando novas estruturas que incorporem uma visão restaurativa.
Desse modo, a Igreja poderá oferecer um modelo à sociedade. 9
de justiça vigentes? Qual a responsabilidade da comunidade cristã?
Quando operamos fora da estrutura da Igreja, precisamos le-
Lind fala de quatro tipos de resposta da Igreja ao longo dos
var conosco nossa lente restaurativa, permitindo que ela molde e
séculos. A primeira é a estratégia do isolamento. Em dados momen-
informe as coisas que fazemos. A Igreja deve também mostrar o
tos a Igreja tentou se isolar do mundo. Esta é uma estratégia de
caminho implementando estruturas alternativas dentro da estrutu-
infidelidade pois ignora a qualidade "agressiva" da justiça divina, ra antiga. Devemos assumir a liderança na plantação de campos de
que deve ser partilhada. Uma segunda resposta é a de Constantino, teste e demonstração.
a estratégia da capitulação. Esta vem sendo a reação predominante Se quisermos algum dia chegar a uma alternativa à justiça re-
da Igreja, que adotou em grande parte os pressupostos do mundo tributiva que seja de fato um verdadeiro paradigma, será preciso ir
secular. Uma terceira estratégia foi aquela adotada pelo Iluminismo, além da teoria e construir uma nova gramática e uma nova "física"
que nega a tensão entre os modelos de justiça. - ou seja, precisamos uma nova linguagem e também um novo con-
Mas a estratégia adotada por Cristo oferece uma quarta opção: junto de princípios e procedimentos de implementação que façam
criar o novo no seio do antigo. Em Easy Essays, Peter Maurin captu-
rou belamente esse espírito ao falar do trabalhador católico: 8. Ver John H. Yoder, The Original Revolution eScottdale: Herald Press, 1971).
9. Para conteúdos sobre resolução de conflitos dentro do contexto da Igreja, entre em con-
tato com Mennonite Conciliation Service, Box M, Akron, PA 17051.

212 213
E AGORA'

do novo paradigma algo coerente. A Igreja tem especial responsabi- Posfácio à primeira edição
lidade nesse processo.

No mínimo
A justiça retributiva está profundamente cravada em nossas institui-
ções políticas e na nossa psique. Talvez seja esperar muito pensar
que ela possa mudar a partir de suas bases. Mesmo assim, devemos As coisas que escrevi talvez soem incrivelmente visionárias e pouco
reconhecer a importância dos paradigmas que usamos e ter a liber-
realistas. Também a abolição da escravatura foi assim. Com efeito,
dade de questioná-los. Também podemos começar a usar uma nova
muito daquilo que hoje consideramos mero bom senso foi um dia
lente para dar forma àquilo que decidirmos que vale a pena fazer.
considerado utopia. As lentes mudam.
E podemos começar a usar outra lente naquelas áreas da nossa vida
onde temos algum controle: na família, na comunidade religiosa, na Mesmo assim, confesso que para mim, na minha própria vida,
vida diária. estas coisas de fato me parecem utopias. Confrontado com minha pró-
Se a justiça restaurativa não é um paradigma, talvez ela possa, ain- pria raiva, minha tendência a culpar, relutância em dialogar e minha
da assim, servir como "teoria sintetizadora" .10 Quem sabe possa ao me- aversão por conflitos, muitas vezes tive medo de escrever este livro.
nos nos fazer pensar cuidadosamente antes de infligir dor a alguém. Mas acredito em ideais. Na maioria das vezes não conseguimos
Muitos observadores vêm buscando compreender por que a atingi-los, mas eles continuam servindo como farol, um objetivo que
Holanda tem tido índices tão baixos de encarceramento desde a se coloca no horizonte, um critério para medir nossas ações. Eles
Segunda Guerra Mundial. Um estudo recente concluiu que a re- mostram a direção. Somente quando temos uma direção é que po-
lutância das autoridades locais em impor penas de prisão é menos demos saber se nos desviamos da rota. O lugar para começarmos
resultado de uma filosofia de sentenciamento e mais o resultado de a vivenciar a restauração não é em cima, mas embaixo, nas nossas
uma "consciência culpada" em relação às prisões. l l
próprias casas e comunidades. Continuo acreditando que a comu-
A combinação da vivência nas prisões nazistas e de um currícu- nidade do povo de Deus pode nos levar nessa direção. Certamente
lo de direito que questionava o encarceramento acabou por moldar falharemos muitas vezes, como fizeram aqueles sobre os quais lemos
toda uma geração de juristas. O resultado foi a relutância em infligir
na bíblia. Mas com igual certeza Deus nos perdoará e restaurará.
dor na forma de aprisionamento. No mínimo a discussão sobre nos-
sas lentes pode contribuir para criar um meio no qual a imposição Confessei que a justiça restaurativa é em parte um ideal, e isto
de dor se torne um último recurso, uma admissão de fracasso ao levanta uma outra questão. Me preocupa que diante dessa confissão
invés do fulcro da justiça. o leitor não leve a sério essa visão. Lembro-me do prefácio ao livro
de Copérnico - não sugerindo que o meu seja do mesmo tipo - mas
10. Sebastian Scheerer, "Tawards Abalitianism", Contemporary Crisis: Law, Crime and Social para tirar proveito da lição que pode nos ensinar.
Policy, 10, nO 1, 1986, p. 9.
11. Willem De Haan, "Abalitionism and lhe Palitics af 'Bad Canscience"', The HarvardJour-
O livro de Copérnico revolucionou a forma como pensamos
nal of Criminaljustice, 26, n° 1 (fev. 1987), pp. 15-32. sobre o cosmos em si. Foi um elemento-chave na mudança de para-

214 215
POSFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO

digma que chamamos de revolução científica. Mas levou um século Apêndice 1


para que as pessoas o levassem a sério.
Indicadores de justiça restaurativa
No começo as pessoas não o levaram a sério - em parte por-
que ia contra o bom senso da época. Mas também o seu prefácio
talvez tenha induzido àquele desprezo. Com efeito, no prefácio o
autor Oreander diz: "Veja, leitor, que livro interessante. Ele merece
ser lido. Mas lembre-se, é só uma idéia, um modelo, uma visão. Não
é necessariamente a realidade". Esse comentário pode ter tornado o 1. As vítimas vivenciam uma experiência de justiça?
livro mais palatável aos seus inimigos, mas pode também ter des- a. Há suficientes oportunidades para que elas contem sua
pistado os leitores por sugerir que o paradigma de Copérnico era verdade a ouvintes relevantes?
apenas um modelo imaginário. Temo estar fazendo o mesmo. b. Elas estão recebendo a restituição ou compensação
Minha esperança é de que você compreenderá isto como uma necessária?
visão - uma visão que é menos uma miragem enganadora e mais c. A injustiça foi adequadamente reconhecida?
uma destinação ainda incerta numa estrada necessariamente longa
d. Estão suficientemente protegidas de mais violações?
e serpenteante.
e. A decisão reflete adequadamente a gravidade da ofensa?
f. Estão recebendo informação suficiente sobre o evento, o
ofensor e o processo?
g. Elas têm voz no processo?
h. A experiência da justiça é adequadamente pública?
i. Elas recebem apoio adequado de terceiros?
j. Suas famílias estão tendo a assistência e apoio devidos?
k. Outras necessidades - materiais, psicológicas, espirituais
- estão sendo atendidas?

2. Os ofensores vivenciam uma experiência de justiça?


a. São incentivados a entender e assumir a responsabilidade
pelo que fizeram?
b. São questionadas suas falsas representações?
c. Eles recebem incentivo e oportunidade para corrigir a situação?
d. Têm a oportunidade de participar do processo?

216 217
APÊNDICE 1

e. São incentivados a mudar de comportamento Apêndice 2


(arrependimento) ?
A subversão das visões
f. Há mecanismos para monitorar ou verificar mudanças?
g. Suas necessidades estão sendo atendidas?
h. Suas famílias estão recebendo apoio e assistência?

3. O relacionamento vítima-ofensor está sendo cuidado? Quando visões inovadoras são operacionalizadas, tendem a se des-
a. Há oportunidade de encontro direto ou terapêutico, quando viar (ou ser subvertidas) de suas intenções originais. Às vezes aca-
apropriado? bam servindo a propósitos diametralmente opostos aos pretendidos.
b. Há oportunidade e estímulo para troca de informações Essa tendência se evidencia em várias áreas, inclusive (e especial-
recíprocas e sobre o evento? mente) na justiça criminal. Também o VORP pode se transformar em
algo totalmente diferente do plano original. De fato, alguns vêm ar-
c. As falsas representações estão sendo questionadas?
gumentando que esse processo está em andamento.
Ao longo dos anos e do meu envolvimento diversificado com o
4. Estão sendo levadas em conta as preocupações da comunidade? VORP, tenho lutado para compreender as forças que tendem a dis-
a. O processo e a decisão estão sendo adequadamente torcer nossa visão. Pode ser que essas distorções sejam inevitáveis,
disponibilizados ao público? mas elas podem ser minimizadas se entendermos a dinâmica do
b. Estão sendo tomadas medidas para garantir a segurança da processo. Os parágrafos que seguem são uma tentativa de catalogar
comunidade? algumas das fontes desses desvios ou subversões da forma como eu
c. Há necessidade de restituição ou ato simbólico para a as percebo. Estão colocadas em três categorias:
comunidade?
d. A comunidade foi representada de alguma forma no processo? Interesses da justiça criminal
Nos círculos do VORP discute-se freqúentemente um desvio que nas-
5. O futuro está sendo levado em consideração? ce do conflito entre objetivos retributivos e restaurativos. O sistema
a. Há medidas para resolver os problemas que causaram o de justiça criminal é essencialmente retributivo, buscando funda-
evento lesivo? mentalmente a punição. Mas o VORP se declara preocupado com a
restauração. Será que esses dois objetivos conseguirão coexistir? Ou
b. Há medidas para resolver os problemas causados pelo
será que o sistema maior nos pressionará a adotar seus objetivos? Se
evento lesivo?
falarmos a língua que o sistema entende, a linguagem da punição,
c. Foram levadas em conta as intenções futuras? esta poderá eclipsar a restauração. Se nos recusarmos a falar a língua
d. Foram tomadas medidas para monitorar e verificar da punição, é provável que continuemos marginais, assessórios e
resultados e resolver eventuais problemas? destinados a casos "menores".

218 219
APÊNDICE 2 APÊNDICE 2

o sistema de justiça criminal cria pressões deturpadoras de mui- precisamos de dinheiro. Como alguém já disse, os programas aca-
tas outras formas. A justiça criminal é inerentemente orientada para bam ficando com a cara das fontes mantenedoras.
o ofensor. Os acontecimentos, o processo e os principais atores são Outra dimensão da dinâmica da institucionalização é o desen-
todos definidos em torno do ofensor. A vítima tem pouca relevância volvimento da identidade da equipe e seus objetivos de carreira. À
jurídica. Trabalhando em paralelo e recebendo casos indicados por medida que as instituições crescem, as pessoas começam a querer
um sistema orientado para o ofensor, será que conseguiremos fazer fazer carreira dentro delas. Passam a tomar decisões pessoais e pro-
justiça igual e verdadeira para a vítima? fissionais com vistas a esses objetivos de carreira. Os efeitos disso são
Uma terceira fonte de pressão se origina nos interesses do sutis e significativos.
próprio processo penal. Como notei antes, todas as partes do "sis-
Todos procuramos apoio nas pessoas que estão à nossa volta,
tema" têm interesses próprios e tendem a encontrar maneiras de
os nossos pares. Aonde estão os pares das pessoas envolvidas com o
cooptar e controlar novos conceitos para que se coadunem com
VORP? Ao nos fixarmos provavelmente começamos a procurar nossos
seus interesses. E ]ustice without Law, de Jerold Auerbach, oferece
pares dentro dos meios da justiça criminal. Isto tem suas vantagens,
uma anatomia desse processo no tocante à resolução de conflitos
mas também cria pressões de conformidade com os valores e pres-
na história estadunidense.
supostos que movem aquele sistema.
As pessoas que integram a equipe e seus valores são fundamen-
A dinâmica da institucionalização tais. Boa parte das análises feitas sobre a subversão de inovações
Para que as idéias se tornem realidade, é preciso criar instituições. A mostra um processo gradual de cooptação. Mas o processo é mais
dinâmica mesma dessas instituições cria pressões deturpadoras. básico e começa muito antes. Enquanto os líderes articulam uma
Considerações administrativas começam a se tornar importan- visão grandiosa, a equipe talvez tenha sido formada por pessoas que
tes. A administração requer indicadores de fácil coleta, tabulação e exerciam funções dentro do sistema de justiça criminal tradicional.
processamento. Eles são usados para justificar a existência da orga- Guiados por uma perspectiva tradicional ao invés de um paradigma
nização. No caso do VORP é tentador medir ou avaliar segundo o nú- alternativo, eles tendem a fazer as coisas do modo tradicional. Se
mero de casos tratados e a quantidade de desfechos "de sucesso". todos não partilham de valores alternativos, é difícil conseguir resul-
Uma vez que a reconciliação é difícil de medir, talvez comece- tados expressivos.
mos a enfatizar a restituição, que é bem mais fácil de medir. Pode Ao longo de seu desenvolvimento, as organizações passam por
acontecer de começarmos a pressionar os mediadores para terminar vários estágios. Cada um deles requer um certo tipo de liderança,
logo os casos a fim de ter volume, sem grande preocupação com a cada qual com suas forças e deficiências. Também isto afeta a for-
qualidade do resultado. Talvez comecemos a lançar mão de media- ma do programa.
dores profissionais. Assim, os objetivos administrativos e suas quan- Os primeiros estágios de uma organização requerem empreen-
tificações podem facilmente remodelar a visão do projeto. dedores. Esses líderes são visionários, aceitam assumir riscos, têm
Como se vê, estão envolvidas questões de subsistência. Isso nos criatividade. As idéias devem ganhar forma e ser operacionalizadas.
leva ao tema do custeio e das fontes mantenedoras. Para fazer o bem, É preciso encontrar recursos e articulá-los de modo criativo.

220 221
APÊNDICE 2

Pessoas com esse tipo de empreendedorismo trazem muita ener- Apêndice 3


gia, entusiasmo e criatividade ao trabalho. Mas em muitos casos elas Sugestões para grupos de estudo
não são gerentes. Portanto, em algum momento é importante que a
liderança se torne mais gerencial a fim de lidar com as realidades de
manter uma organização e seus programas. Mas os gerentes em geral
não são visionários. Tendem a se preocupar mais com as necessidades
operacionais e menos com implicações de longo prazo, avaliação dos
programas e sonhos. Eles não gostam muito de riscos. Se o programa O propósito do roteiro de estudo e sugestões de atividades abaixo é
seguir para a fase "gerencial" sem ter construído funções proféticas e ajudar pessoas que desejam usar este livro num contexto de grupos
visionárias, teremos uma outra fonte de deturpação em potencial. de estudo. O capítulo 1 não tem perguntas, já que o caso ilustrativo
daquele capítulo apenas serve de base para as reflexões dos capítu-
los seguintes.
Planejamento e operação do programa
Os líderes dos grupos devem selecionar as perguntas e ativida-
Os programas buscam atingir uma série de metas, mas seu bom des mais proveitosas para o contexto específico do grupo. Embora
funcionamento em geral exige que haja apenas uma meta principal. haja bem mais que uma hora de perguntas e atividades para cada
Além disso, pode haver objetivos contraditórios. capítulo, elas têm o propósito de servir apenas como sugestão para
Descobrimos que isto aconteceu no VORP de Elkhart, e estudos facilitar o estudo do livro. Os líderes dos grupos de estudo devem ter
recentes na Inglaterra confirmam o mesmo resultado. A meta de não a liberdade de criar outras questões e atividades.
levar as pessoas ao encarceramento por vezes conflita com a de re-
É importante que haja incentivo para desenvolver outras suges-
conciliação, por exemplo. Os programas que começaram por preocu-
tões criativas de como lidar com criminosos e idéias práticas de ações
par-se com reduzir penas de privação de liberdade tendem a deixar
para segundo plano a reconciliação e as necessidades da vítima. a nível local. Por favor, enviem sugestões e outras impressões para:

Como se vê, é fácil implementar políticas sem examinar suas im-


plicações de longo prazo, tanto práticas como filosóficas. Uma série de Howard Zehr
pequenas medidas concretas, sem avaliação, pode nos levar para mui- Office on Crime and justice
to longe do caminho original e, inadvertidamente, nos perdemos.
Mennonite Central Committee u.s.
2l S. 12th Street
Akron, PA 17501-0500

222 223
APÊNDICE 3 APÊNDICE 3

Capítulo 2 - A vítima outros procedimentos, como a restituição e o perdão. Como


você vê essa questão?
8. Tendemos a culpar as vítimas de vários modos. Quais? Por que
PERGUNTAS
fazemos isso?
9. Discutam as seis questões que precisam ser respondidas para que
1. Suponhamos que você chega em casa e encontra a porta arrom-
a cura seja possível (em "Por que tão traumático?"). O que será
bada e sinais de vandalismo. Coisas valiosas, inclusive heranças
necessário para responder a cada uma delas. Quem fará isso?
de família, sumiram. Foi utilizado um machado para o arrom-
Quem pode e deve ajudar em cada um dos casos?
bamento. Como você se sentiria? Como isto alo afetaria? Que
perguntas você se faria? Quais seriam suas necessidades? 10. Quais deveriam ser os direitos e papéis das vítimas no processo
judicial? Quais seriam as vantagens e desvantagens ou perigos
2. Você conhece alguma vítima de crime pessoalmente? Você já foi
desse tipo de envolvimento - para a vítima, para o ofensor e
vítima? Como reagiu? Como se sentiu?
para o sistema em si?
3. Se você fosse a vítima, o que você acha que deveria ter acontecido
11. E no caso de abuso de cônjuge ou incesto? Qual a semelhança
no caso do capítulo 1?
e quais as diferenças em relação a crimes como roubo e ameaça
4. De que modo a experiência de uma vítima de crime se assemelha de agressão?
à de outras vítimas (por exemplo, de doenças ou desastres na-
turais)? Qual a diferença? (leia principalmente a parte "Por que
ATIVIDADES
tão traumático?").
5. Você concorda que a raiva é uma parte natural do processo de
cura e que sua expressão deveria ser incentivada? Como você, L Num quadro negro ou flipchart faça uma lista com palavras rela-
pessoalmente, reage a alguém que está ferido e com raiva? cionadas à vítima, como por exemplo:

6. Charlotte Hullinger enuncia quatro tipos de ajudante (veja a nota


2 do capo 2). Quais as vantagens e desvantagens de cada um de- Vítima
les? Em que tipo você se enquadra? O que você pode fazer para Roubo
se tornar um "ajudante positivo"?
Tribunal
7. Alguns argumentam que a retribuição é uma necessidade hu- Justiça
mana inata. Eles dizem que se ela não for atendida pela ação
Procurador de Justiça
governamental, os indivíduos passarão a administrá-la. Ou-
tros dizem que é uma necessidade aprendida. Outros ainda Vingança
sustentam que é uma necessidade melhor atendida através de Restituição

224 225
AP"ÊNDICE 3
APÊNDICE 3

Repasse os itens da lista pedindo às pessoas que falem qual- 2. O que o autor sugere no tocante a conceitos de valor próprio e
quer palavra que lhes venha à mente em associação com aque- poder pessoal no contexto da transgressão? Você concorda? (Ver
las. Anote tudo. Depois de terminar a lista toda analisem estas também o capítulo 4).
associações em conjunto. 3. Quais as sentenças não privativas de liberdade aplicadas hoje em
2. Crie uma simulação oferecendo detalhes de um caso específico. dia? (Por exemplo, serviço comunitário, liberdade condicional,
Divida a turma em grupos de três, que representarão a vítima, tratamento, moradia em casas que dão abrigo e facilitam a rein-
um amigo ou profissional de assistência (como, por exemplo, tegração à sociedade, restituição). Qual o objetivo de cada uma
um policial) e um observador. A vítima deve representar seu pa- delas? Em que medida são punitivas?
pel e o amigo ou profissional de ajuda deve reagir de acordo. 4. Qual o legítimo propósito e função da prisão dentro do nosso
3. Convide uma vítima ou profissional que presta assistência a víti- sistema penal (se é que existem)?
mas para falar sobre sua experiência (ou mostre um dos audio- 5. O que o autor inclui ao usar o termo responsabilidade? Em que
visuais disponíveis nos locais listados). medida isto coincide com o seu conceito de responsabilidade?
4. Descreva os detalhes básicos de um caso verdadeiro (ou use um Ela deve ser o objetivo central da justiça e, em caso positivo,
dos casos de S. Neiderbach, Invisible Wounds, listado na biblio- como deve ser obtida?
grafia) e proponha uma discussão sobre: Quais as necessidades 6. É proveitoso ver o ofensor como alguém que também sofreu vio-
básicas da vítima? Quem pode e deve suprir essas necessidades? lações? Em que medida seu comportamento nasce de abusos
O que você, como indivíduo, pode fazer? O que o "sistema" sofridos em casa ou de oportunidades restritas de educação e
pode fazer? E a comunidade? E a Igreja? emprego? Como isso deve afetar sua responsabilidade? Como
5. Convide alguém do "sistema" para falar sobre o papel da vítima no afeta a responsabilidade da sociedade?
processo judicial- de preferência um advogado de defesa, procu-
rador de justiça ou juiz. Quais são os direitos da vítima? Qual é, ATIVIDADES
em geral, o papel da vítima? Como ele ou ela são tratados? Tam-
bém se pode convidar uma vítima de crime para participar.
1. Como sugerido para o capítulo 2, enumere uma série de palavras
no quadro. Peça ao grupo suas associações. Quando todos tive-
Capítulo 3 - O ofensor rem falado suas idéias, analise com eles as reações.

PERGUNTAS
Palavras sugeridas:
Ofensor
1. Qual a sua opinião sobre a sentença do ofensor do caso relatado
Criminoso
no caso ilustrativo (capítulo 1)? Se lhe pedissem para desenvol-
ver uma proposta alternativa, o que você proporia? Prisão

226 227
APÊNDICE 3 AI'~,NflltIl1

Juiz 5. O autor sustenta que certos pré-requisitos facilitam o perdia.


Punição Quais são? Você concorda? Há antecedentes bíblicos?
Vingança 6. Descreva maneiras como as tradições religiosas poderiam fazer
Tribunal "rituais de lamentação" e "rituais de reordenação" (ou de perdão
e reconciliação) com vítimas e ofensores.

2. Convide um juiz ou oficial de condicional que faça relatórios de 7. Qual a relação entre culpa e punição? A punição alivia a culpa (do
pré-sentenciamento para falar de como são feitas as recomenda- ponto de vista lógico, emocional, bíblico)? Deveria? Quais são
ções para sentenciamento. as alternativas?

3. Convide um terapeuta que trabalha com ofensores para discutir 8. Quais são os requisitos para que uma punição seja "justa"?
as "falsas representações" e "estratégias desculpadoras": estere- 9. Quais os requisitos para que a punição seja "eficaz"? O que é uma
ótipos e racionalizações usados para justificar e racionalizar o punição eficaz?
comportamento lesivo.
10. O autor sugere que o mau comportamento é resultado de auto-
4. Ver e discutir um dos audiovisuais listados no apêndice. depreciação mais do que de amor próprio. Isso é verdade?
Em caso positivo, como isso afeta nossa abordagem da cura e
reabilitação?
Capítulo 4 - Alguns temas comuns
11. O que podemos fazer para desmistificar o crime enquanto indi-
víduos, sociedade e membros de uma tradição religiosa?
PERGUNTAS

ATIVIDADES
1. Para você, qual o significado de arrependimento e perdão?
2. O perdão é compatível com o sistema jurídico? É uma preocu- 1. Examinem recortes de jornal com notícias tiradas da página policial.
pação apropriada no contexto do crime? Em caso afirmativo, Enumerem e discutam os modos como esse tipo de cobertura
como pode ser incentivado? Que perigos você vê? jornalística fomenta medo, estereótipos e falsas atribuições sobre
3. O que o autor quer dizer quando diz "o perdão é um dom; não crime, vitimas, ofensores, autoridades e o processo judicial.
deve ser transformado num fardo"? Isso se encaixa com sua vi- 2. Convide um repórter que faça a cobertura de crimes e peça qut'
são do perdão? fale à turma sobre como essas notícias são obtidas e redigidas.
4. Qual o papel do arrependimento e do perdão no processo que 3. Convide membros do grupo ou pessoas de fora (por exemplo,
leva da condição de vítima para a de sobrevivente? Este proces- uma vítima ou ofensor) para falar sobre como vêem e como
so pode acontecer sem o perdão? Como? vivenciaram (ou não) o perdão.

228 229
APÊNDICE 3 APÊNDICE 3

Capítulo 5 - Justiça retributiva 9. A punição satisfaz as vítimas? E os ofensores? O que lhe diz a sua
experiência pessoal com a punição?

PERGUNTAS
10. De que modo tentamos esconder a realidade da punição (inclu-
sive pela linguagem)?
11. Qual a relação entre as seguintes idéias: punição, retribuição,
1. Enumere e avalie os seis pressupostos identificados nesse capí-
vingança, retaliação?
tulo. São esses de fato nossos pressupostos? Há outros? Eles
estão "corretos"? 12. Examine suas próprias tendências em relação a amigos, cônjuge,
filhos. Quando você se sente injustiçado, tem basicamente uma
2. Como você entende a culpa? Qual a visão bíblica de culpa? Que
reação do tipo "olho por olho", do tipo "resolver o problema",
outras visões de culpa existem em outras áreas da sociedade,
ou alguma outra?
como por exemplo nas ciências sociais, psicologia, direito?
Quais os pontos fortes e fracos dessas várias visões? 13. O que significa dizer que nosso sistema é "adversarial"? Quais as
implicações disso?
3. Em que medida o processo judicial incentiva ou desestimula a
aceitação da responsabilidade por parte dos ofensores? 14. Examine seus próprios pressupostos sobre os atos lesivos. Você
tende a defini-los em termos da lei que foi violada ou em fun-
4. Será que nossa visão de culpa e responsabilidade é tão indivi-
ção de suas conseqüências e danos? Quais são as conseqüências
dualista como sugere o autor? Isto constitui um problema? Há
alternativas? dessas duas perspectivas distintas?

5. Existe alguma maneira de compreender a responsabilidade de for- 15. Alguma vez antes você se deu conta de que o Estado, e não o in-
I ma a levar em conta tanto a responsabilidade pessoal quanto o divíduo, é a vítima legal do crime? Quais seriam as implicações
contexto social, econômico e político do comportamento indi- disso se você fosse uma vítima?
vidual? Seria possível incorporar isto ao sistema judicial?
6. De que modo nosso sistema jurídico incentiva uma mentalidade ATIVIDADES

separatista (do tipo "nós" e "eles")? Quem são "eles" e quem so-
mos "nós"? Quais as conseqüências dessa divisão? 1. Invente um caso de crime. Pergunte a diferentes profissionais do
7. Defina punição. A definição que subentende "dor infligida com judiciário Quízes, oficiais de condicional, advogados, procura-
intenção de causar dor" é apropriada? dores de justiça) qual deveria ser a sentença ou resultado. Relate
ao grupo e compare os resultados.
8. É realmente verdade que a maioria das pessoas acredita que o mal
deve ser contrabalançado pelo sofrimento? Em caso positivo, 2. Peça ao grupo para opinar sobre uma série de afirmativas. Os que
esta seria uma equação aprendida ou inerente à psicologia discordam devem ficar em pé num lado da sala, os que concor-
humana? É uma visão bíblica? Existem alternativas? dam no outro, e os indecisos no meio. A cada afirmação eles

230 231
APÊNDICE 3
APÊNDICE 3

precisarão mudar de lugar. Interrompa para discutir as razões pe- 7. Há sinais de que estejamos na iminência de uma mudança de
las quais concordam ou discordam de cada afirmação. paradigma jurídico? (Por exemplo, quais os sinais de disfunção
ou crise?) Quais são esses sinais?
As afirmações (crie as suas) podem ser parecidas com:
a. A pena de morte deveria ser aplicada a todos os assassinos. 8. Avalie as mudanças atuais do direito penal (assistência às vítimas,
condicional intensiva, prisões privadas, monitoramento ele-
b. A pena de morte deveria ser aplicada somente aos piores
trônico, serviço comunitário). Em que medida estas reformas
assassinos. apontam numa nova direção? Em que medida são simplesmen-
c. Maus tratos e abuso de cônjuge deveriam ser crimes te remendos aplicados ao paradigma vigente?
definidos em lei.
d. As pessoas que cometem crimes devem ir para a cadeia para
ATIVIDADES
pagar pelo que fizeram.

Suponha que duas crianças briguem na escola e uma delas acabe


Capítulo 6 - A justiça como paradigma tirando um dente da outra com um soco. Este acontecimento pode
ser tratado como um problema que exige punição, um conflito que
PERGUNTAS requer resolução, ou um dano que pede restituição. Pode ser visto
como uma questão a ser resolvida na escola, como crime, ou como
caso de responsabilidade civil. Todas estas reações podem e de fato
1. O que o autor quer dizer com a palavra paradigma?
ocorrem em tais casos.
2. Que paradigmas usamos para compreender o mundo, não apenas Discuta o que determina a reação. Quais as prováveis conse-
no âmbito da física e da psicologia, mas na vida diária (nos rela- qüências de cada uma delas? Qual delas trará um resultado mais
cionamentos familiares, no ambiente de trabalho etc.)? satisfatório e por quê? De que maneira o caminho escolhido afeta a
3. De que forma esses paradigmas moldam a nossa visão sobre o que compreensão da briga original?
sejam problemas relevantes e suas soluções?
4. Por que vemos e tratamos o crime como algo diferente de outros Capítulo 7 - Justiça comunitária: a alternativa bíblica
males e atos lesivos? Será que deveríamos mudar esta visão? Em
caso afirmativo, onde você colocaria a linha divisória?
PERGUNTAS
5. Em que o direito civil difere do direito penal? O que determina
que uma situação seja tratada no âmbito civil ou penal?
6. Quais as formas não jurídicas que usamos para resolver conflitos 1. O que você ouviu dizer ou aprendeu sobre o modo como se lidava
e danos na vida diária e na sociedade como um todo? Dê exem- com o crime no passado? Como isso se compara com aquilo
plos de sua própria experiência. retratado pelo autor?

232 233
/'
APÊNDICE 3 APÊNDICE 3

2. Quais as diferenças entre 'Justiça pública" e 'Justiça privada"? "Jus- 2. Compare os princípios básicos de sua fé com o conceito de sha-
tiça estatal" e "justiça comunitária"? (Pode ser de ajuda traçar no 10m. As coisas mudam se você tentar fundar seu pensamento
quadro o contínuo entre justiça estatal e comunitária sugerido numa visão de shalom?
pelo autor). Em que diferem os pólos desse contínuo? 3. Qual era a sua interpretação de "olho por olho, dente por dente" no
3. A que sistema judicial você gostaria de se submeter, moderno ou passado? Essa interpretação mudou? Em caso positivo, como?
pré-moderno? Por quê? O que você gostaria de mudar no siste- 4. Quais são as idéias do Antigo Testamento sobre culpa? Em que
ma que escolheu? medida partilhamos das mesmas idéias hoje em dia?
4. Segundo o autor, quais as três opções para haver justiça no mun- 5. O nosso entendimento da justiça bíblica depende, em última aná-
do pré-moderno? O que você gostaria de modificar no sistema lise, da imagem que temos de Deus. Para alguns a imagem de
escolhido? Por quê? Deus é a de um parente amoroso. Outros o vêem principal-
mente como um juiz severo. Que outras possibilidades existem?
5. O autor menciona a importância de "vindicação" quando acon-
Qual é a imagem predominante para você?
tece uma ofensa. O que isso significa? É importante? De que
modo isso acontecia no passado? Como acontece hoje? Como 6. Qual a relação entre a justiça de shalom e a justiça "olho por olho"
poderia acontecer num sistema aprimorado? no Antigo Testamento? O nosso conceito de "olho por olho"
ou reciprocidade sofre modificações se o concebermos como
6. De que modo a teologia cristã serviu para corroborar a emergente fundado em shalom?
visão "retributiva" do crime?
7. Como os conceitos gêmeos de shalom e aliança transformaram o di-
7. De que modo as punições modernas buscam atingir a alma, como reito bíblico em relação ao direito das outras sociedades? Ou seja,
disse Michael Foucault, e não apenas o corpo? como esses conceitos transformam o direito e sua aplicação?
8. Quais os pontos positivos e negativos da revolução jurídica? 8. Como o "critério bíblico" se encaixa com a sua visão de justiça?
9. Qual o papel simbólico da punição hoje em dia? São válidas as comparações com a justiça moderna?
9. O que aconteceria se avaliássemos a justiça segundo seus "frutos"
(por exemplo, pelo resultado, ao invés do processo)? Quais se-
Capítulo 8 - A justiça da aliança: uma alternativa riam os possíveis benefícios e perigos?
bíblica 10. O que muda no nosso entendimento dos Dez Mandamentos e do
Sermão da Montanha se os tratarmos como convites e promes-
PERGUNTAS sas ao invés de proibições e ditames? Parece apropriado com-
preendê-los dessa forma?
1. O autor sustenta que no Antigo Testamento a lei tinha outro signi- 11. Se levamos shalom a sério como meta e visão, será que podemos
ficado e função do que tem hoje. Quais são as diferenças? Quais continuar a tratar a justiça penal sem cuidar de outras questões
as implicações disso? judiciais? Quais seriam as conseqüências de não o fazer?

234 235
APÊNDICE 3 APÊNDICE 3

12. A justiça moderna em geral é vista como uma deusa vendada que 2. Se você fosse uma vítima (ou ofensor) prestes li d"cidir se pnrlici-
segura uma balança. Quais os significados dessa imagem? Ela é pará ou não do VORP, que benefícios em pOlcm:inl Vtlc(l visaria
uma imagem saudável? Ela é uma imagem perigosa? Por quê? para si? Quais seriam suas preocupações? Que falOrl's podt'l'hul1
Qual seria uma imagem apropriada para a justiça restaurativa? levá-lo a participar ou não?
3. Se você fosse uma vítima (ou ofensor) participando do Vlll~l', tl
ATIVIDADES que você mais desejaria que acontecesse no encontro? (~Lllll
você desejaria que fosse o resultado do encontro?

1. Escolha alguns exemplos bíblicos de vingança. Escolha exemplos 4. Qual deveria ser a meta fundamental e prioritária do VORP? Que
de perdão e reconciliação. Qual dos temas parece mais impor- outros objetivos se mostram adequados? Quais não?
tante no Antigo Testamento? E no Novo Testamento? Como 5. Se a reconciliação deve ser um objetivo do VORP, o que ela signi-
você entende o relacionamento entre esses dois temas? fica? Como seria quantificada?
2. Leia e discuta o Salmo 103. Que visão de justiça aparece ali? Como 6. Como poderia a abordagem básica do VORP ser modificada para
se relaciona com os outros temas mais retributivos do Antigo utilização em casos "graves" (como estupro, assassinato, violên-
Testamento? (ver também Levítico 26 e Deuteronômio 4). cia doméstica)? Deveria ser usada nesses casos? Quais são os
3. Leia o livro de Oséias. Observe e discuta o modo como Deus mos- benefícios e perigos em potencial?
tra seu descontentamento. 7. Você consegue imaginar outras aplicações da abordagem VORP em
4. Escolha um caso que tenha saído no jornal. Examine-o à luz do nossa sociedade (como, por exemplo, fora da justiça penal)?
"critério bíblico". Agora, usando esse critério, ou algum outro, 8. Como podem as tradições religiosas se envolverem com o VORP?
discuta o que poderia ter sido diferente no caso do jornal. Quais são as possibilidades e responsabilidades das religiões
5. Examine vários exemplos de direito bíblico. Procure especialmen- nesse caso? Que forma teria esse envolvimento? (Sugestões se
te as cláusulas que vêm depois de "portanto". Qual o impacto encontram em VORP Organizing: A Foundation in the Church, for-
desse padrão sobre a força da lei? necido pelo Mennonite Central Committee, cujo endereço está
no apêndice).

Capítulo 9 - VORP: um campo experimental


ATIVIDADES

PERGUNTAS
1. Encenar um encontro de reconciliação entre vítima e ofensor. Di-
vida a turma em grupos de três ou quatro, em que os membros
1. Cite alguns benefícios potenciais da abordagem VORP. Cite alguns representam o papel de vítima, ofensor, mediador e observador.
problemas em potencial. (Para sugestões de encenação ver The Role Play Booh, criado para

236 237
APÊNDICE 3
APÊNDICE 3

usar em treinamento de mediação. Ele é fornecido pelo Mennoni- 7. E os crimes chamados "sem vítimas" ou contra a ordem pública?
te Conciliation Service, cujo endereço está no apêndice). Como lidar com eles?

2. Assista e discuta um audiovisual sobre o VORP. a apresentação 8. As ofensas cometidas por corporações são diferentes daquelas co-
de slídes "Crime, The Broken Community" e "Crime, Mediating metidas por indivíduos? Como devem ser tratadas?
the Conflict" ou o vide o Goíng 5traight. Veja a lista de recursos 9. Herman Bianchi criticou o modelo do VORP por trabalhar com in-
audiovisuais do MCC e do PACT Institute of ]ustice listadas no divíduos isolados. Qual deveria ser o papel da família e amigos
apêndice. de vítimas e ofensores no processo restaurativo?
3. Se na sua comunidade existe um Programa de Reconciliação Víti- 10. Qual deveria ser o papel da comunidade? Como se pode concre-
ma-Ofensor, convide um dos colaboradores, mediadores volun- tizar esse papel? Quem é a comunidade?
tários, vítimas ou ofensores para falar ao grupo. 11. Será que deveríamos usar o termo "crime"? O que aconteceria
se abolíssemos a distinção entre "crimes" e outros tipos de atos
lesivos e conflitos? Quais seriam as vantagens e desvantagens?
Capítulo 10 - Uma lente restaurativa
12. Qual a importância da dimensão interpessoal do crime? Será que
o autor dá peso demais às atitudes e sentimentos entre vítima
PERGUNTAS e ofensor? Será que o tratamento desses aspectos deveria ser o
objetivo central da justiça ou apenas uma questão periférica?

1. Quais são as diferenças básicas entre as "lentes" restaurativa e re- 13. O que você pensa do argumento do autor no sentido de que as
tributiva? Enumere e avalie as diferenças. necessidades da vítima deveriam ser o ponto de partida, mas
que as necessidades do ofensor têm igual importância? Isto pa-
2. O que seria uma "experiência satisfatória de justiça" para a vítima? rece apropriado? Será que funciona?
E para o ofensor?
14. O autor argumenta que a justiça retributiva começa com culpa
3. A justiça restaurativa pode realmente oferecer uma nova lente ou e direitos, mas que o modelo restaurativo começa com neces-
ela serve apenas como corretivo para o sistema atual? sidades e obrigações. Quais as implicações desses dois pontos
4. O que acontece quando se implementa uma abordagem restaura- de partida?
tiva num sistema ou sociedade onde não há justiça social? 15. Dentro de um modelo restaurativo, qual seria o papel do "devi-
5. O que seria necessário para fazer da "lente restaurativa" um para- do processo legal"? Haveria perigo de violação de direitos? Que
digma completo? salvaguardas seriam necessárias?

6. Há espaço no modelo restaurativo para as metas da justiça crimi- 16. Um modelo de justiça que levasse a sério as necessidades de ví-
nal tradicional (como perda de liberdade, intimidação e reabili- tima e ofensor, dando a eles mais participação, teria resultados
tação)? Elas se encaixam? muito mais variados. As expectativas normais de uniformida-

238 239
APÊNDICE 3 APÊNDICE 3

de de resultados seriam frustradas. Quais as implicações disso? 25. Qual seria a responsabilidade da sociedade numa abordagem
Qual a sua visão a respeito? restaurativa, e a quem responderia?
17. Discuta o termo vindicar. Qual o seu significado bíblico? (Ver, 26. Qual o significado de "responsabilidade" dentro das abordagens
por ex., o Salmo 103: 6). O que significa para você? E o que retributiva e restaurativa? Que importância deveria ter a respon-
pode significar para as vítimas? sabilidade? Como pode ser implementada?
18. Dadas as necessidades que foram identificadas aqui, de que 27. Quais são os rituais necessários no processo de cura e de justiça?
modo pode a Igreja assistir na cura de vítimas e ofensores? Quando e onde devem acontecer? Em que as tradições religio-
sas poderiam ajudar nesse aspecto?
19. E os "poucos muito perigosos"?, Como decidir sobre isso?
28. Há um papel legítimo para a punição? Em caso positivo, quais as
20. Alguns estados estão aumentando o envolvimento das vítimas
circunstâncias em que deveria acontecer e qual o seu propósito 7
permitindo que recebam informações sobre o processo de sen-
Como podemos minimizar seu uso indevido?
tenciamento. O que acontecerá se isso for feito dentro do siste-
ma retributivo e adversarial atual?
ATIVIDADES
21. O autor argumenta que o sistema atual exagera a dimensão pú-
blica do crime e minimiza sua dimensão privada. Quais são as
dimensões públicas do crime e como deveriam ser tratadas den- 1. Ignore momentaneamente as questões de implementação e tente
tro da estrutura restaurativa? criar uma abordagem totalmente restaurativa para o tratamento
dos crimes. Como seria?
22. Qual o papel da coerção no modelo restaurativo? As vítimas
devem sofrer coerção para participar? E os ofensores? Quais se- 2. Imagine um caso como exemplo. Projete um processo restaurativo
riam as implicações disso? e o desfecho do caso. Tenha em mente as "quatro dimensões do
ato lesivo" e também os elementos-chave do modelo restaura-
23. O sistema atual cria muitas oportunidades para o abuso de po- tivo. Ao terminar, teste seu desfecho usando os "indicadores de
der, mas o modelo restaurativo também poderia criar situações justiça restaurativa" do apêndice, ou crie seu próprio conjunto
desse tipo. Quais seriam elas? Como minimizá-las? de indicadores.
24. Pense na justiça como um sistema de comunicação projetado para Considere cuidadosamente por onde começar. Quais as neces-
enviar várias mensagens. Que mensagens o sistema atual está ten- sidades fundamentais que precisam ser atendidas? Quem pode
tando enviar e para quem? Que mensagens chegam? Que mensa- melhor dizer quais são essas necessidades e como devem ser
gens deveria um sistema restaurativo enviar e como faria isso? atendidas? Quais as preocupações e objetivos principais a serem
tratados pela sua abordagem?
* N.T.: "Dangerous jew" - expressão que designa os poucos criminosos muito perigosos. Se- Agora, pense no que normalmente aconteceria num caso como
gundo pesquisa realizada nos EUA, se mantidos encarcerados apenas os criminosos reinciden-
tes com padrão agressivo devido a distúrbio mental e aqueles ligados ao crime organizado, o seu. Ou, se estiver usando um caso real, examine o desfecho
haveria apenas cerca de cem pessoas encarceradas em cada estado da federação. como aconteceu de fato.

240 241
APÊNDICE 3 APÊNDICE 3

Capítulo 11 - E agora? ATIVIDADES

PERGUNTAS 1. Partindo da discussâo que o autor faz em torno dos sistemas japo-
nês e comunitário moderno, imagine e reflita sobre como seria
I
um sistema de "duas vias" em nossa sociedade atual. Como se-
1. Qual o papel apropriado do Estado no processo judicial? Como riam esses dois sistemas? Como tomar a decisão de que cami-
esse papel mudaria num modelo restaurativo? nho utilizar e quando?
2. Algum desses dois modelos contém vieses culturais, raciais, ou 2. Enumere e discuta algumas "estratégias intermediárias". Que ob-
sexuais? Em caso afirmativo, seriam eles inerentes ao conceito jetivos e programas podem ser implementados agora, em con-
ou podem ser modificados para se tornarem menos um reflexo dições que não são ideais, mas que não obstante pudessem nos
J da perspectiva do homem branco de classe média? levar na direção da justiça restaurativa?

I
3. Do ponto de vista feminista, qual seria a apreciação dos modelos
retributivo e restaurativo? Desse ponto de vista, quais são suas
I qualidades e deficiências? Levando-se a sério as preocupações
feministas com poder, processo e metas, algo deveria ser muda-
I do no modelo restaurativo?
4. Quais as dinâmicas políticas e institucionais que poderiam in-
fluenciar possibilidades de mudança no nosso paradigma de
justiça? Quais são as reais possibilidades de uma mudança de
paradigma?
5. Como pode a Igreja praticar justiça restaurativa internamente? Ver,
por exemplo, o Mennonite Conciliation Resources no apêndice.
6. O que aconteceria se "civilizássemos" a lei, tratando os "crimes"
como todos os outros atos lesivos e conflitos? Que procedimen-
tos especiais e salvaguardas seriam necessários?
7. O que mudará no modo como você reage ao crime e outros males
depois de ter lido esse livro?

242 243
UMA LENTE RESTAURATIVA UMA LENTE RESTAURATIVA

A retribuição em geral deixa um legado de ódio. Talvez a re- Além disso, as vítimas precisam ser empoderadas. A justiça não
tribuição seja melhor do que nada em termos de uma experiência pode simplesmente ser feita para e por elas. As vítimas precisam se
satisfatória de justiça, mas ela não ajuda em nada para aplacar hos- sentir necessárias e ouvidas ao longo do processo. Uma das dimen-
tilidades que dificultam a cura. Essa é a beleza do perdão. Ao tratar sões do mal é que elas foram despidas de poder, portanto, uma das
os sentimentos hostis, ele permite que vítima e ofensor assumam o dimensões da justiça deve ser a restituição desse poder. No mínimo
controle de suas próprias vidas. Como vimos no caso da reconcilia- isso significa que elas devem ser a peça principal na determinação de
ção, não é fácil chegar ao perdão e não se pode forçá-lo. Para muitos quais são suas necessidades, e como e quando devem ser atendidas.
a experiência de justiça é pré-requisito necessário ao perdão. Para Mas as vítimas deveriam participar de alguma forma do processo
como um todo.
alguns o perdão parecerá impossível.
As vítimas têm necessidade de segurança, reparação, justifica-
Tanto a retribuição como a restituição dizem respeito à restaura-
ção e empoderamento, mas precisam, especialmente, encontrar sig-
ção de um equilíbrio. Embora a retribuição e a restauração tenham
nificado. Recordemos a percepção de Ignatieff no sentido de que a
importante valor simbólico, a restituição é uma forma mais concreta
justiça oferece uma estrutura de significado. As vítimas precisam en-
de restaurar a eqüidade. Também a retribuição busca o equilíbrio
contrar respostas para suas dúvidas sobre o que aconteceu, por que
baixando o ofensor ao nível onde foi parar a vítima. É uma tenta-
aconteceu e o que está sendo feito a respeito. Precisam lidar com as
tiva de vencer o malfeitor anulando sua alegação de superioridade
seis questões que listei no primeiro capítulo e que abrem o caminho
e confirmando o senso de valor da vítima. A restituição, por outro
para a recuperação. Somente a própria vítima pode responder a al-
lado, busca elevar a vítima a seu nível original. Para tanto, reconhece
gumas daquelas questões, embora talvez possamos ajudar na busca
o valor ético da vítima, percebendo ainda o papel do ofensor e as das respostas. Mas algumas dessas questões dizem respeito aos fatos.
possibilidades de arrependimento - assim reconhecendo também o Quem fez, por que, que tipo de pessoa ele/ela é, e o que está sen-
valor do ofensor. 12 do feito a respeito? No mínimo, a justiça deve oferecer informações
A maioria de nós presume que a retribuição é uma prioridade acerca dessas perguntas.
das vítimas. Mas pesquisas realizadas com as vítimas mostram um Por isso as vítimas almejam vindicação, que inclui denúncia do
quadro diferente. As vítimas muitas vezes são favoráveis a penas re- mal cometido, lamento, narração da verdade, publicidade e não-mi-
parativas que não envolvem encarceramento - na verdade, muito nimização. Buscam eqüidade, inclusive reparação, reconciliação e
mais vezes do que se faz público.u perdão. Sentem necessidade de empoderamento, incluindo partici-
Além disso, elas freqúentemente listam a reabilitação do ofensor pação e segurança. Querem proteção e apoio, alguém com quem
como algo importante. Afinal, ajudar o ofensor é uma das maneiras partilhar o sofrimento, esclarecimento das responsabilidades e pre-
de tratar do problema da segurança e prevenção de delitos futuros. venção. E necessitam significado, informação, imparcialidade, res-
postas e um sentido de proporção.
12. Ver Jeffrie G. Murphy e Jean Hampton, Forgiveness and Mercy (Cambridge: Cambridge A vítima de crime se sente violada, e essa violação gera necessi-
University Press, 1988).
dades. Mas as comunidades também se sentem violadas, e têm ne-
13. Ver, por ex., Russ Immarigeon, "Surveys Reveal Broad Support for Alternative Senten-
cing", National Prison ProjectJoumal, nO 9 (outono, 1966), pp. 1-4. cessidades análogas. Uma vez que não se pode ignorar as dimensões

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públicas do crime, em muitos casos o processo judicial não pode ser quer coisa sem controles formais ou informais, seria, provavelmente,
inteiramente privado. Também a comunidade quer estar segura de caótica e insegura - o mundo vislumbrado por Hobbes. A ordem
que o ocorrido é errado, algo está sendo feito a respeito, e medidas total, por outro lado, mesmo se possível de obter, seria alcançada
estão sendo tomadas para evitar a reincidência. Também nesse caso pela perda da liberdade. Se punições severas pudessem coibir o cri-
a informação é importante, pois pode ajudar a reduzir os estereóti- me, teriam que ser rápidas e certeiras. O preço a pagar? Deveríamos
pos e medos infundados. E, novamente, a restituição desempenha estar dispostos a cometer muitos erros e dar poder arbitrário a uma
um papel importante já que oferece um símbolo da restauração da autoridade central- um poder que certamente seria usado abusiva-
integridade. De fato, o papel do simbolismo é fundamental. O crime mente. A maioria de nós não gostaria de viver num mundo assim.
perturba o sentido de inteireza da comunidade. A reparação da co- Portanto, nos vemos indo e voltando na região média daquele contí-
munidade como um todo requer algum tipo de ação simbólica que nuo, buscando um equilíbrio entre liberdade e poder. Os conserva-
tenha elementos de denúncia da ofensa, vindicação, restauração da dores tendem mais para o extremo da ordem, os liberais mais para
confiança e reparação. o extremo oposto.
Essas dimensões públicas do crime são importantes portanto, Há ainda um outro engano nos pressupostos correntes sobre
mas elas não devem ser o ponto de partida da justiça. E a comunida- liberdade e ordem. Quase sempre pensamos na ordem como sendo
de precisa ser questionada no tocante a alguns de seus pressupostos feita de regras e penalidades, ou seja, controles formais. Nos esque-
sobre o crime. Uma dessas suposições é a de que total segurança e cemos, contudo, que ao longo da história a ordem vem sendo man-
ordem são possíveis no contexto de uma sociedade livre. tida por controles informais - por sistemas de crença, por pressões
Recentemente, numa festa organizada para levantar fundos para e obrigações sociais, pelas recompensas da conformidade. Isto vale
nosso VORP local, eu estava sentado na mesa de piquenique com um também para nossa vida diária. Presumir que a ordem deriva sim-
homem abastado. Ameaçava um temporal, e todos tinham nos aban- plesmente da lei e da punição é ignorar os laços que mantêm a so-
donado para buscar o abrigo da casa. Sentados olhando a chuva, ciedade unida.
ele me perguntou sobre a organização para a qual tinha acabado de
A questão é que não podemos viver em total segurança enquan-
contribuir, e isto levou a uma conversa sobre a justiça. Ele me falou
to mantendo alguns valores que nos são caros. Ao mesmo tempo,
com grande honestidade sobre sua própria batalha interna a respei-
nossa liberdade também está em risco quando não trazemos à res-
to. Conhecia desde a infância um homem que era ladrão. Parte dele
ponsabilidade as pessoas que tentam exercer sua vontade violando a
se preocupava com a reabilitação e bem-estar do amigo. Por outro
liberdade dos outros.
lado, considerava-se um conservador e sentia que o ladrão devia ter
uma punição dura. "Às vezes acho que deveríamos fazer como no Irã
- cortar o braço do ladrão, punir severamente. Só assim estaríamos
seguros", disse-me ele. "Talvez", respondi, "Mas, se fosse assim, será
o crime gera obrigações
que você gostaria de viver aqui?". A reflexão sobre necessidades logo leva às questões de responsabili-
A ordem e a liberdade são dois extremos de um contínuo. A dade e dever. Violações geram obrigações.
liberdade total, ao menos no sentido de liberdade para fazer qual- A obrigação primária, obviamente, é da pessoa que causou a

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violação. Quando alguém prejudica outrem, tem a obrigação de cor- sociedade de fato pode fazer é dizer ao ofensor: "Você errou ao lesar
rigir o mal. Isto é o que deveria ser chamado de justiça. Significa alguém. Você tem a obrigação de corrigir os seus erros. Você pode
levar os ofensores a compreenderem e reconhecerem o mal que fi- fazer isso voluntariamente, e permitiremos que você participe do
zeram e, em seguida, tomarem medidas, mesmo que incompletas e processo para descobrir como fazê-lo. Se você não quiser aceitar essa
simbólicas, para corrigi-lo. responsabilidade, nós decidiremos por você o que precisa ser feito e
Corrigir é algo central para a justiça. Acertar o que está errado exigiremos que você o faça".
não é uma atividade periférica e opcional. É uma obrigação. Ideal- Pode-se pedir ao ofensor que aceite a obrigação de corrigir o mal.
I
mente, o processo de justiça pode ajudar os ofensores a reconhece- Pode-se incentivá-lo fortemente a assumir a responsabilidade e encarar
I
rem e assumirem suas responsabilidades voluntariamente. Isto pode suas vítimas. Contudo, não se pode e não se deve obrigá-lo a isso. Com
II
acontecer e de fato acontece no processo do VORP. Mas na maioria certeza, não se deve coibi-lo a participar! Encontros forçados dificil-
das vezes as pessoas aceitam essa responsabilidade com relutância mente serão bons, quer para o ofensor quer para a vítima, e o tiro pode
I I no início. Muitos ofensores relutam em se tornarem vulneráveis ao sair pela culatra. Podemos solicitar que o ofensor corrija seu erro, mas
tentar entender as conseqüências de seus atos. Afinal, construíram ele não pode ser inteiramente responsável sem algum grau de vontade.
edifícios de estereótipos e racionalizações a fim de se protegerem Um dos propósitos da punição e da reparação é enviar uma
exatamente contra esse tipo de informação. Muitos relutam em as- mensagem. A função utilitária da punição é dizer ao ofensor: "Não
sumir a responsabilidade. Receber uma punição é mais fácil por uma cometa ofensas pois elas são contra a lei. Aqueles que fazem o mal
série de motivos. Embora ela cause sofrimento por algum tempo, devem sofrer". A reparação ou a restituição visam enviar uma men-
não envolve responsabilidades nem ameaça as racionalizações e es- sagem diferente: "Não cometa ofensas pois elas prejudicam alguém.
tereótipos. Freqüentemente os ofensores precisam de forte incentivo Aqueles que prejudicam os outros têm que corrigir seu erro". A in-
ou mesmo coerção para aceitar suas obrigações. tenção da mensagem que nossas ações pretendem exprimir nem
! I O movimento VORP dos Estados Unidos e da Inglaterra tem sempre é ouvida, como observou o autor britânico Martin Wright.
discutido essa questão em várias ocasiões. Obviamente, a aceitação Mas em caso afirmativo, ainda será preciso verificar se foi ouvida a
voluntária de responsabilidade é melhor. Mas também é óbvio que mensagem correta. 14
pode haver abusos na coerção. Mesmo assim, em princípio não me Com relação à necessidade de enviar a mensagem de que o
oponho à exigência de que os ofensores assumam a responsabilida- crime é errado, Wright observa: "Podemos denunciar o crime de
de. Afinal, se alguém causa dano a outrem, esse alguém tem uma maneira mais construtiva fazendo coisas pela vítima (e pedindo ao
obrigação, uma dívida. O ofensor deveria reconhecer isto volunta- ofensor que faça) ao invés de contra o ofensor" .15
riamente e aceitar as responsabilidades, e o processo judicial deveria
O crime dá origem a uma dívida que precisa ser acertada, e essa
servir de estímulo.
dívida permanece, independente do fato de ter havido perdão ou
Ainda assim, as pessoas não assumem responsabilidades facil-
mente. Um dos motivos pelos quais muitos ofensores se metem em 14. "Mediation" Mediation UK, 5, nO 2 (mar. 1989), p. 7.
encrencas é sua falta de certos tipos de responsabilidade. Não é pos- 15. Martin Wright, "From Retribution to Restoration: A New Model for Criminal Justice",
sível superar tal irresponsabilidade com tanta rapidez. Mas o que a New Life: The Prison Service Chaplaincy Review, 5, 1988, p. 49.

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não. Quando causamos dano não podemos presumir que pelo fato Os ofensores têm muitas necessidades, é claro. Precisam que
de termos o perdão de Deus ou mesmo da vítima foram extintas as se questionem seus estereótipos e racionalizações - suas falsas atri-
nossas obrigações. No entanto, é também verdade que a vítima pode buições - sobre a vítima e o evento. Talvez precisem aprender a ser
escolher perdoar mesmo as obrigações concretas devidas. Raramen- mais responsáveis. Talvez precisem adquirir habilidades laborais ou
te um ofensor consegue compensar plenamente pelo que a vítima e interpessoais. Em geral necessitam de apoio emocional. Muitas ve-
o ofensor perderam. Herman Bianchi observou que o crime cria uma zes precisam aprender a canalizar raiva e frustração de modo mais
dívida, e que o perdão é a suspensão da obrigação no tocante àquilo apropriado. Talvez precisem ajuda para desenvolver uma auto-ima-
que não pode ser restituído. gem mais sadia e positiva e também para lidar com a culpa. Como
Na medida do possível os ofensores deveriam oferecer com- no caso das vítimas, se essas necessidades não forem atendidas, os
pensação pelo que fizeram. No entanto, em muitos casos há grande ofensores não conseguem fechar o ciclo.
demora na identificação dos ofensores. Muitas vezes eles jamais são Na esteira do crime, as necessidades das vítimas são o ponto
identificados. Além disso, está fora do alcance do ofensor suprir mui- inicial para a justiça restaurativa. Mas não se devem negligenciar as
tas das necessidades da vítima e da comunidade. E também os ofen- necessidades do ofensor e da comunidade.
sores têm necessidades. Esta é uma responsabilidade social: atender
as necessidades que os indivíduos sozinhos não conseguem atender.
Portanto, o crime gera também obrigações para a comunidade.
Uma questão de responsabilidade
Necessidades e responsabilidades - trata-se de prestar contas a al-
guém por um ato cometido. Quando um dano ocorre, o causador
Ofensores também têm necessidades precisa responder pelo que fez vendo as conseqüências naturais de
Segundo o paradigma bíblico, a justiça é feita não por merecimento, seus atos. Isto significa compreender e reconhecer o dano e agir para
mas por necessidade. Embora um modelo retributivo ou do "mere- corrigir a situação. Há uma terceira dimensão intermediária na res-
cido castigo" dite que os ofensores não "merecem" que suas neces- ponsabilidade do ofensor: partilhar da responsabilidade de decidir
o que precisa ser feito. O juiz Challeen fala sobre sentenciamento
sidades tenham prioridade, é do interesse da sociedade que essas
responsável. 16
necessidades integrem uma reação justa ao crime. A identificação e
tratamento das necessidades dos ofensores é um elemento-chave da Uma vez que o comportamento dos ofensores muitas vezes re-
justiça restaurativa. vela irresponsabilidade, simplesmente dizer a eles o que vai aconte-
cer seria poupá-los e incentivar seu comportamento irresponsável.
Na história com a qual abri o presente capítulo, Ted precisava de
Portanto, em sua vara, ele expõe aos ofensores as dimensões pelas
tratamento. O sistema jurídico interpreta seu comportamento como
quais precisarão prestar contas. Então, o juiz lhes dá um prazo ao
"molestação sexual", e esse comportamento faz parte de um padrão
fim do qual devem voltar com uma proposta de como vão atender às
mais amplo de inadequação e disfunção. Sem tratamento, o proble-
ma irá se agravar. Parte do tratamento necessário envolve ajudar Ted 16. Dennis A. Challeeen, Making It Right: A Common Sense Approach to Crime (Aberdeen:
a reconhecer o impacto de suas ações sobre sua jovem vítima. Mielius and Peterson, 1986).

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exigências e como a sentença será monitorada e sancionada. O VORP 3. A culpa é indelével 3. A culpa pode ser redimida pelo
ajuda nessa fase, levando os ofensores a negociarem e chegarem a arrependimento e reparação
um acordo de restituição.
"'·:·"~ff".n", é.f!.bsrrílta 1. Ad~vida..~. 9ortçret~
Na nova experiência de "reparação juvenil" que funciona no
5. A dívida é paga sofrendo 5. A dívida é paga fazendo o certo
Centro de Justiça Comunitária de Indiana, os jovens ofensores de- punição
vem passar pelo programa antes do sentenciamento. Ali eles são in-
centivados a perceberem que seu comportamento causa danos: 1. à 6. Adívida lCom a Víúma
vítima; 2. à comunidade; 3. a si mesmos. Os profissionais do progra-
em pri:t1ieiro lugar;:
ma trabalham com eles para que cheguem a uma proposta de "sen- 7. Responder pelos seus atos 7. Responder pelos seus atos
tença" que satisfaça os três envolvidos. Através do VORP eles ficam aceitando o "remédio" assumindo a responsabilidade
sabendo sobre as necessidades das vítimas e têm a oportunidade de que o compo~w.:mento 8. R~~onheçeas dif~retJ.ç~s~l:l,tre
propor restituição. Eles podem tentar pagar sua dívida com a co- livremente escolhido a realizaçãopoten~taleatual'
munidade através de voluntariado. Por meio de acompanhamento,
da liberdade h'ilm?:na . .
terapia e outras atividades eles têm a chance de atender a algumas de 9. Livre arbítrio ou determinismo 9. Reconhece o papel do contexto
suas próprias necessidades. Ainda não está claro se essa experiência social social nas escolhas sem negar
a responsabilidade pessoal
terá sucesso, mas responder pelos seus atos é algo que empodera e
incentiva a responsabilidade. E o ofensor deve prestar contas nos
três níveis de obrigação: vitima, comunidade e ofensor.
Os ofensores devem responder pelos seus atos, mas a sociedade o processo deve empoderar e informar
também. A sociedade deve responder às vítimas, ajudando a identi-
Juízes e advogados têm por certo que o que as pessoas mais querem
ficar e atender suas necessidades. Da mesma forma, a comunidade
é ganhar o processo. Mas pesquisas recentes mostram que o proces-
deve atender às necessidades dos ofensores, buscando não apenas
so em si conta muito, e que o processo criminal freqüentemente não
restaurar, mas transformar. A responsabilização é multi dimensional
deixa uma impressão de justiça. O importante não é apenas o que
e transformadora.
acontece, mas também o modo como se chega à decisão. 17
A justiça precisa ser vivida, e não simplesmente realizada por
Compreendendo a responsabilidade outros e notificada a nós. Quando alguém simplesmente nos infor-
ma que foi feita justiça e que agora a vítima irá para casa e o ofensor
para a cadeia, isto não dá a sensação de justiça. Nem sempre é agra-
dável vivenciar, passar pela experiência da justiça. Mas ao menos
1. Os erros geram culpa 1. Os erros geram dívidas saberemos que ela existiu porque participamos dela ao invés de ter
e obrigações
"2:Ai:lJlpâ éllbsolutà, ou ·"2.Hã.gr~Vs·de·re~B9n~Jbí!~q~de 17. Ver Mediatian, jun. 1988, e Martin Wright, Mahing Gaod: Prisans, Punishment and Beyond
(Londres: Burnett Books, 1982), pp. 246 e ss.

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alguém a fazer isto por nós. Não é suficiente que haja justiça, é pre- teceu, por que aconteceu, e quem fez aquilo. Rostos precisam substi-
ciso vivenciar a justiça. tuir os estereótipos. Representações equivocadas precisam ser ques-
O primeiro passo na justiça restaurativa é atender às necessi- tionadas. Essa troca de informações é vital, e idealmente ela deveria
dades imediatas, especialmente as da vítima. Depois disso a justi- acontecer numa interação direta. Num contexto assim é possível tra-
ça restaurativa deveria buscar identificar necessidades e obrigações tar do que aconteceu no passado e do que vai acontecer no futuro.
mais amplas. Para tanto o processo deverá, na medida do possível, Os resultados dessa interação devem ser registrados na forma de
colocar o poder e a responsabilidade nas mãos dos diretamente en- acordos passíveis de serem quantificados e monitorados.
volvidos: a vítima e o ofensor. Deve haver espaço também para o A mediação entre vítima e ofensor é uma abordagem que atende
envolvimento da comunidade. Em segundo lugar, ela deve tratar do a esses critérios. A mediação vítima-ofensor fortalece os participan-
relacionamento vítima-ofensor facilitando sua interação e a troca de tes, põe em cheque as representações equivocadas, oferece ocasião
informações sobre o acontecido, sobre cada um dos envolvidos e para troca de informações e incentiva ações com o propósito de Cor-
sobre suas necessidades. Em terceiro lugar, ela deve se concentrar rigir a situação. Quando mediadores da comunidade estão envolví-
na resolução dos problemas, tratando não apenas das necessidades dos, esse tipo de mediação também abre espaço para a participação
presentes, mas das intenções futuras. comunitária. A mediação é totalmente compatível com a abordagem
Já mencionei a importãncia da participação, tanto para vítima restaurativa na justiça.
quanto para ofensor. No caso da vítima a perda de poder é um ele- Mas a mediação deve atender a alguns pré-requisitos. Os parti-
mento central da violação. O empoderamento torna-se crucial para cipantes precisam receber o apoio emocional necessário e estar dis-
que haja recuperação e justiça. Para o ofensor a irresponsabilidade e postos a participar. O treinamento dos mediadores é essencial. E
a falta de poder podem ter pavimentado o caminho que levou até o tudo deve acontecer no momento certo.
delito. O ofensor só poderá chegar à responsabilidade e ao encerra-
Depois de atendidos esses pré-requisitos, a mediação deve ser
mento da vívência pela participação na "solução".
realizada de modo adequado e focalizar os temas centrais. Mark Um-
Também nesse caso a comunidade tem um papel a desempe-
brett mostrou a importância de um estilo de mediação "empodera-
nhar. Parte da tragédia da sociedade moderna é nossa :endência de
dor" ao invés de um no qual o mediador impõe seu programa de
delegar a solução de nossos problemas a especialistas. E o que faze-
intenções prévias e sua personalidade, seja diretamente ou através
mos em relação à saúde, educação, e criação de filhos - e com certeza de manipulação. 18
também aos males e conflitos que chamamos de crimes. Ao fazê-lo,
perdemos o poder e a capacidade de resolver nossos próprios pro- Não se pode pular a troca de informações e a expressão de senti-
blemas. Pior, abrimos mão de oportunidades de aprender e crescer mentos no caminho para o acordo. Ron Claassen ensina seus media-
com aquelas situações. A resposta restaurativa deve reconhecer que dores do VORP que, para que a mediação seja completa, três questões
a comunidade tem um papel a desempenhar na busca da justiça. precisam ser satisfatoriamente respondidas:

Uma parte importante da justiça é a troca de informações - uns


18. Mark Umbreit, Victim Understandin g of Fairness: Burglary Victims in Victim Offender
sobre os outros, sobre os fatos, sobre a ofensa, sobre necessidades. Mediation (Minneapolis: Minnesota Citizens Council on Crime and justice, 1988), pp.
As vítimas querem respostas para suas dúvidas quanto ao que acon- 25 e ss.

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Em primeiro lugar, a injustiça foi reconhecida e assumida? O A maioria das terapias aplicadas em casos de abuso sexual aten-
ofensor reconheceu e aceitou a responsabilidade por seus atos? As de vítima e ofensor separadamente. Isto não proporciona reconheci-
perguntas da vítima foram respondidas? O ofensor teve chance de mento nem formas de tratar o abuso de confiança característico da
explicar o que vem acontecendo na sua vída? ofensa. Não se abre uma trilha para a resolução do caso. Não se dá
Em segundo lugar, houve concordância quanto ao que precisa atenção ao modo como os eventos foram percebidos nem às falsas
ser feito para restaurar a eqüidade na medida do possível? representações sobre o evento ou sobre os indivíduos envolvídos.
Em terceiro lugar, foram abordadas as intenções para o futu- A terapia para ofensas sexuais desenvolvida pelo terapeuta Wal-
ro? O ofensor pretende ter o mesmo comportamento no futuro? A ter Berea é diferente. 21 Essa abordagem terapêutica tem três está-
vítima se sente segura? Há um programa para acompanhamento e gios. O primeiro é o estágio de comunicação. Nele o terapeuta entra
monitoração do acordo? em contato com o oficial de condicional, os terapeutas anteriores e,
Usando a metáfora bíblica, Claassen resume as três fases em eventualmente, com a vítima. O contato com a VÍtima oferece infor-
confissão, restituição e arrependimento. 19 mações mais completas sobre os eventos, permite que a vítima saiba
Mas a mediação nem sempre é apropriada. Mesmo com apoio e que o ofensor está em terapia, e dá oportunidade para que o terapeu-
ta pergunte se as necessidades da vítima estão sendo atendidas.
garantia de segurança, a vítima pode sentir muito medo. A diferença
de poder entre as partes pode ser muito pronunciada e impossí- No segundo estágio da terapia são questionadas as falsas repre-
vel de superar. A vítima ou o ofensor podem não estar dispostos a sentações que o ofensor faz sobre a vítima. O ofensor recebe ajuda
participar. O crime talvez seja por demais hediondo e o sofrimento para reconhecer a responsabilidade e compreender as conseqüências
lancinante. Uma das partes pode estar emocionalmente instável. O de seu comportamento. Durante esse estágio ele escreve uma carta
contato direto entre vítima e ofensor pode ser de muita ajuda, mas a pedindo desculpas à vítima. Esse estágio oferece um tempo para que
justiça não pode depender apenas de interações diretas. a vítima se assegure de que não é culpada.
Nesses casos há maneiras de manter o foco na interação e troca O terceiro e último estágio da terapia tem foco na reconciliação.
de informações. O uso de vítimas substitutas, adotado em programas Isto pode acontecer de vários modos inclusive: receber a carta de
pioneiros no Canadá e na Inglaterra, é exemplo disso. Ali alguns ofen- desculpas do ofensor, ter um encontro face a face com ele-, ou , sem
sores se encontram com vítimas que não são as suas como um passo ter contato com o ofensor, estabelecer um contrato com ele dispon-
em direção a assumir a responsabilidade e partilhar informação. Isto do sobre o futuro. A escolha fica a critério da vítima. Essa abordagem
pode ser de muita ajuda em situações muito emocionais, como no leva a sério o dano e as dimensões interpessoais da ofensa e também
caso de crimes sexuais, ou nos casos ainda não resolvidos. 20 as necessidades da vítima e do ofensor.
"Genesee justice - criada com orgulho no estado de Nova York"
19. Claassen e Zehr, VORP Organizing, pp. 24-25. são os dizeres do logo de um programa do Departamento de Polí-
20. Ver, por ex., Ross lmmarigeon, "Reconciliation between Victims and lmprisoned orren-
ders: Program Models and lssues" CAkron: Minnonite Central Committee, 1994). Um outro 21. Walter H. Berea, "The Systernatic/Attributional Model; Victim-Sensitive Orfender The-
exemplo de programa pioneiro, dessa vez para violência grave, é liderado pela Fraser Region
rapy", em James M. Yokley, ed. The Use oj Victim-Ojjender Communication in the Treatment oj
Community Justice lnitiatives Association, em Langley, no Canadá. Sexual Abuse: Three Intervention Models COrwell: Safer Society Press, 1990).

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cia de Batavia, Nova York. Preocupados com o recurso abusivo ao qüentemente narrado nos Salmos, se torna apropriado. O programa
encarceramento e com as necessidades das vítimas, esse programa descrito acima percebeu essa necessidade e oferece cerimônias reli-
foi criado especificamente para casos de violência grave: homicídio giosas de lamentação e cura para os interessados.
culposo, tentativa de assassinato e homicídio doloso. Quando uma Depois é feita justiça - e seja ela completa ou incompleta - pre-
ofensa desse tipo ocorre, ajuda imediata e intensiva é oferecida a cisamos de rituais que fechem o ciclo. Louk Hulsman chamou a es-
vítimas e sobreviventes. Esse apoio é holístico e visa não apenas as ses rituais de "rituais de reordenação", e eles podem ser importantes
necessidades legais, mas também emocionais e espirituais. tanto para vítima quanto para ofensor.
Os funcionários do programa acompanham as pessoas ao lon- Esses rituais são um espaço onde as tradições espirituais podem
go de todo o processo, fornecem ajuda para que elas consigam dar desempenhar um papel significativo.
toda a informação requerida pelo "sistema" sobre sua experiência.
Durante o processo as vítimas podem ter algum envolvimento em
decisões sobre fiança e até sentenciamento, por exemplo, através de Há lugar para punição?
um encontro vítima-ofensor. Dado todo o apoio e participação, os
Venho argumentando que a punição não deveria ser o foco da jus-
desejos das vítimas muitas vezes acabam sendo surpreendentemente
tiça. Mas haveria lugar para algum tipo de punição dentro do con-
criativos e redentores. No mínimo, suas necessidades são levadas em
ceito de justiça restaurativa? Com certeza opções como a restituição
conta e as muitas dimensões do mal cometido são reconhecidas.
serão entendidas como punição por alguns, embora uma punição
Os ideais de empoderamento e interação direta entre vítima e mais merecida e lógica. Num grande estudo realizado sobre o VORP
ofensor nem sempre podem ser atingidos. Algumas decisões por ter- os ofensores descreveram o resultado como punição, porém vista
ceiros são inevitáveis. Casos que tenham implicações muito graves por eles como mais positiva do que a punição tradicional. Talvez a
para a comunidade não podem ficar simplesmente nas mãos de víti- terminologia punitiva tenha surgido devido à nossa falta de termos
ma e ofensor. Deve haver algum tipo de supervisão da comunidade. alternativos (embora tenha havido quem usasse a expressão "corri-
Mas esses casos não precisam ser a regra de como enxergamos e rea- gir os erros" para descrever a justiça). No entanto, é doloroso assu-
gimos ao crime. Mesmo nesses casos, precisamos manter diante dos mir responsabilidades, e isso é algo necessariamente compreendido
olhos um quadro da natureza verdadeira do crime e do que deveria como punição - da mesma forma que é doloroso o isolamento de
acontecer idealmente. pessoas consideradas perigosas, mesmo que nas melhores condições
de isolamento.

A justiça envolve rituais A verdadeira questão não é, portanto, se as pessoas vivenciarão


alguns elementos da justiça restaurativa como punição, mas se a pu-
Nosso sistema jurídico tem muitos rituais. De fato, os júris são em nição, imposta com intenção punitiva, tem alguma função. Christie
boa parte ritual e teatro. Contudo, em geral ignoramos as mais im- argumenta que se a dor - infligi da com o propósito de causar dor
portantes necessidades de ritual. - for utilizada, ao menos não deveria ter propósitos ulteriores. 22
Uma dessas ocasiões onde o ritual é importante é quando ocor-
re uma ofensa. Nesse momento é que o ritual do lamento, tão elo- 22. Ver trabalhos já citados.

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r
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UMA LENTE RESTAURATIVA

A dor deve ser infligida apenas como punição, não como forma
Duas lentes
de atingir outro objetivo, como reabilitação ou controle social. In-
fligir dor com propósitos utilitários é desonesto e é usar as pessoas Fiz acima um breve sumário das lentes retributiva e restaurativa.
como coisas. Ele oferece uma analogia com o lamento. Quando la- Essas duas perspectivas podem ser apresentadas de modo mais ex-
mentamos uma morte, o fazemos por causa da dor que sentimos, e tenso. Segundo a justiça retributiva: 1. o crime viola o Estado e suas
não em função de outros objetivos. Christie também nos aconselha leis; 2. o foco da justiça é o estabelecimento da culpa 3. para que se
a infligir dor apenas nas situações em que isto reduzirá o nível de possa administrar doses de dor; 4. a justiça é buscada através de um
imposição de dor. conflito entre adversários 5. no qual o ofensor está contra o Estado;
Talvez seja impossível eliminar inteiramente a punição dentro 6. regras e intenções valem mais que os resultados; 6. um lado ganha
e o outro perde.
da abordagem restaurativa, mas ela não deve ser normativa, e sua
utilização e propósitos deveriam ser indicados com cuidado. O para- Segundo a justiça restaurativa: 1. o crime viola pessoas e rela-
digma bíblico sugere que o objetivo, natureza e contexto da punição cionamentos; 2. a justiça visa identificar necessidades e obrigações
são de vital importância. No contexto bíblico, por exemplo, a puni- 3. para que as coisas fiquem bem; 4. a justiça fomenta o diálogo e
ção não é um fim, mas visa libertar e criar shalom. A justiça bíblica é entendimento mútuo; 5. dá às vítimas e ofensores papéis principais;
administrada no contexto da compaixão. A possibilidade de perdão 6. é avaliada pela medida em que responsabilidades foram assumi-
e reconciliação é a luz no fim do túnel. A punição tem limites e a das, necessidades atendidas, e cura (de indivíduos e relacionamen-
compaixão não. O amor que redime é a primeira responsabilidade tos) promovida.
humana - e não a punição. Uma justiça que busca em primeiro lugar atender necessidades e
Quando nós punimos, enquanto sociedade, devemos fazê-lo no endireitar as situações se apresenta muito diferente da justiça que tem
contexto do que é justo e merecido. A punição precisa ser vista como como cerne a culpa e a dor. O quadro a seguir procura comparar al-
justa e legítima, observa Ignatieff, porque não conseguimos sentir gumas das características e implicações dos dois conceitos de justiça.
que houve justiça a menos que ela forneça uma estrutura de senti-
do que viabilize a compreensão da experiência. Para que a punição
Visões de justiça
pareça justa o resultado e o processo precisam ter uma ligação com
o mal cometido. Contudo, o contexto social também deve ser visto
como justo, e isto levanta questões mais amplas de justiça social,
econômica e política.
1. A apuração da culpa é central 1. A solução do problema é
Se há lugar para punição na abordagem restaurativa, ele não central
deve ser um lugar central. A punição precisaria ser aplicada sob
'foco no passado 2. Foco no futuro
condições em que o nível de dor é controlado e reduzido a fim de
manter a restauração e a cura como objetivos. Talvez possa existir 3. As necessidades são 3. As necessidades são primárias
secundárias
uma "punição restaurativa". No entanto, me apresso a dizer que as
possibilidades de punição destrutiva são muito mais numerosas. batalha, advers<trial 4; O diálogo é a norma
198 199
UMA LENTE RESTAURATIVA UMA LENTE RESTAURATIVA

5. Enfatiza as diferenças 5. Busca traços comuns

21. Enfraquecimento dos laços do 21. Reforço da integração do


ofensor com a comunidade ofensor com a comunidade

7. Um dano social é cumulado ao 7. Enfatiza a reparação de danos .()ofe'i1~ot é Vistd'dem6d6


outro sociais fragínéhtad():~r Ofensaô define i.
23. O senso de equilíbrio é 23. O senso de equilíbrio é
conseguido pela retribuição conseguido pela restituição

. 24. O equilíbriQ é alcançado 24 . .0 equi1pJÜq~álcançadó


9. Foco no ofensor: ignora-se a 9. As necessidades da vítima são rebaixando o ofensor' soerguendo Víti:mª e dfensoi
vítima centrais
25. A justiça é avaliada por 25. A justiça é avaliada por seus
seus propósitos e pelo frutos ou resultados
procedimento em si

11. Falta informação às vítimas 11. As vítimas recebem 26. A justiça como regrasjustas 26, A justiça cOU1Q . . .. . . i ••

informações telaçiona1;l1entóssaud~'Veis
27. Ignora-se o relacionamento 27. O relacionamento vítima-
vítima-ofensor ofensor é central
13. A "verdade" das vítimas é 13. As vítimas têm a
secundária oportunidade de "dizer a sua i 28. O processo aliena 28. O processo visar~2oJ1cília:Çãb
verdade"
29. Reação baseada no 29. Reação baseada nas
comportamento pregresso do conseqüências do
ofensor comportamento do ofensor

15. O Estado age em relação ao 15. O ofensor tem participação na 30. Não se estimriíao 30. Estimula-se o arrependimento
ofensor; o ofensor é passivo solUÇão arrependimento e o perdão e o pérdão
31. Procuradores profissionais são 31. Vítima e ofensor são os
os principais atores principais, mas contam com
ajuda profissional

17. O ofensor não tem 17. O ofensor tem Valores dé competição e i 32. Valores de re<;ipr'QCiÇ).adee
responsabilidade pela responsabilidade pela individualismo sãO fomentados cQoperaçãosào. fometlwd,os
resolução resolução
o o
33. O contexto social, econômico 33. Todo o contexto é relevante
18. Os resultadó5incenttvam.a 1l3.0çom,pbrtâmento e moral do comportamento é
.i'rresponsabilídatle do ofensor responS~*,el é incentivado ignorado
19. Rituais de denúncia e
exclusão
19. Rituais de lamentação e
reordenação
34,PresUn;te resulta4os..elUQ\le
'ium ganha eOQLltr()petde .
i 34. 'Possipilita J.l
o"
rn .t~stíltadodo
tipo.ganh4\-gal1M

200 201
UMA LENTE RESTAURATIVA

Justiça retributiva e justiça restaurativa - o mundo nos parece Capítulo 11


bem diferente olhando através dessas duas lentes. A justiça retri-
butiva é o que temos. Ela talvez não faça o que precisa ser feito,
E agora?
nem o que seus adeptos alegam que ela faz, mas ela "funciona" no
sentido de que sabemos como operá-la. O que dizer da perspectiva
menos conhecida que chamei de justiça restaurativa? Qual será o
futuro dela?
Como faremos para implementar plenamente um sistema restaurati-
vo? Seria interessante especular a esse respeito.

Possibilidades sistêmicas
Alguns nos exortam a "civilizar" a lei. I
Diferente do direito penal, o direito civil define os atos lesivos
em termos de dano e obrigação sem falar de culpa. Como resultado,
portanto, temos o acordo e a restituição ao invés de punição. Ele
permite uma graduação da responsabilidade sem que seja definida
como derrota/vitória. Como o Estado não é a vítima, os participantes
ganham o centro do palco, mantendo ao longo do processo signifi-
cativo poder e responsabilidade. Como os resultados não são pri-
mordialmente punitivos, as salvaguardas procedimentais são menos
rígidas e os fatos relevantes menos circunscritos. O que aconteceria
se modificássemos o processo civil para incluir certas salvaguardas?
E se colocássemos um advogado da vítima no processo, permitindo
decisões de terceiros quando não fosse possível chegar a um acordo
ou quando questões de risco iminente estivessem em pauta? E se
tirássemos alguns casos do processo penal para fazê-los correr por
um processo civil modificado?
A aplicação do direito penal é o que desencadeia o paradigma
retributivo. Mas a lei penal é uma aquisição relativamente nova da

1. Ver Martin Wright, Making Caad (Londres: Numett Books, 1982) pp. 249-50.

202 203
E AGORA? E AGORA?

sociedade ocidental e funciona sob pressupostos que, em muitos as- As vítimas podem acabar com poder demais. No final das contas, o
pectos, estão em dissonância com o resto de nossa vida. A estrutura Estado e seu sistema formal de justiça podem acabar tendo mais em
do direito civil pode ser uma alternativa para um conceito de justiça vez de menos poder e legitimação. O movimento de resolução de
que passe ao largo daqueles pressupostos. conflitos está sendo incitado a rever cuidadosamente seus pressu-
Talvez não devamos sonhar em desmontar o sistema retributi- postos e metas.
vo, mas sim desenvolver um sistema paralelo mantendo a escolha Nesse contexto, o modelo japonês se mostra especialmente in-
de qual deles usar. Herman Bianchi argumenta que na Idade Média teressante.john O. Haley, um especialista em direito nipônico, relata
a existência de caminhos paralelos - justiça estatal e justiça da Igre- que funciona ali um singular sistema judicial de duas vias. 3
ja - foi positiva em certos aspectos. A existência de dois caminhos Uma das vias é um sistema criminal formal ao estilo ociden-
oferecia escolhas para as partes em certos casos. Além disso, cada tal com muitas características que nos são familiares. O processo se
caminho servia como verificação e juízo crítico do outro. concentra na culpa e punição, é regido por normas formais e ope-
O desenvolvimento de caminhos jurídicos diferentes tem sido a rado por profissionais como procuradores públicos. Esse caminho
estratégia dos Conselhos Comunitários em São Francisco. Esses pro- é utilizado·para muitos crimes. No entanto, poucos casos chegam a
gramas vêm sendo desenvolvidos com base na estrutura dos bairros passar por todo o sistema terminando num longo tempo de prisão
para resolver disputas fora do "sistema". O programa treina pessoas ou outras penalidades severas. Os casos são constantemente deixa-
da comunidade para servirem como agentes de resolução de con- dos de lado. Aos olhos de um ocidental o sistema parece ser exces-
flito e mediadores, e também investe muito na educação e empo- sivamente tolerante.
deramento da comunidade. Seu processo de mediação serve como
Essa aparente tolerância e a falta de envolvimento de longo pra-
alternativa para as varas cíveis e criminais. De fato, eles se recusam
zo por parte do sistema jurídico formal é resultado de um segundo
a aceitar um caso que já esteja correndo pelo caminho judicial. O
sistema menos formal, uma via que não tem paralelo no Ocidente.
programa é uma forma de educar e fortalecer a comunidade a fim de
Haley descreve resumidamente esse sistema da seguinte forma:
que ela resolva seus próprios problemas.
Os Conselhos Comunitários e outros programas de resolução de
conflitos se mostram bastante promissores. Representam uma forma Um padrão de confissão, arrependimento e absolvição domina cada
de implementar de fato uma visão de justiça orientada para a resolu- etapa do sistema de manutenção da ordem no]apão. Os atores do pro-
ção de problemas em comunidade. No entanto, esse tipo de "justiça cesso não incluem apenas autoridades em novos papéis, mas também
informal" vem sendo alvo de crescentes ataques nos últimos anos. 2 o ofensor e a vítima. Desde o primeiro interrogatório na polícia até a
última audiência judicial para sentenciamento, a grande maioria dos
Vários alertas foram dados. Os resultados desses procedimen- acusados confessa, mostra arrependimento, negocia o perdão junto à
tos não são uniformes e, portanto, contradizem o senso de justiça
mais básico. A justiça informal pode acabar sendo reservada aos po- 3. Baseio-me num artigo ainda não publicado, "Mediation and Criminal Justice: The Ja-
bres e impotentes, negando a eles acesso a outras formas de justiça. panese Model - Confession, Repentance, and Absolution", apresentado no Seminário eLE
"Creativejustice Thraugh Mediation", Seattle, 29 de out. de 1988. Vertambémjohn O. Haley,
"Victim-Offender Mediation: Lessons fram thejapanese Experience", Mediaíion Quarterly, 12,
2. Ver Roger Matthews, ed., Informal Justice? (Londres: Sage, 1980). nO 3 (núm. esp., primavera de 1995), pp. 233-48.

204 205
E AGORA? E AGORA?

vítima e se submete à clemência das autoridades. Em troca, são trata- nosso pressuposto de que o processo formal é primário e seu foco
dos com grande tolerância. No mínimo o acusado ganha a perspectiva principal é estabelecer a culpa e aplicar a punição. O objetivo básico
de absolvição institucional, saindo do processo formal de justiça. do processo criminal no Japão é corrigir, e esse princípio rege as
decisões das autoridades.
Os casos saem do sistema jurídico formal em qualquer estágio
do processo. Somente uma fração dos casos chega à denúncia, e Assim, o papel das autoridades não fica confinado às tarefas formais
menos ainda acaba passando por todo o processo acusatório. Uma de prender, acusar e sentenciar. Ao contrário, quando pessoalmente
pequena minoria chega ao encarceramento e poucos ficam mais que convencidos de que o suspeito é autor do ilícito, muda sua primeira
um ano na prisão. Mas isto não significa que os criminosos japone- preocupação, que é com as provas evidenciais da culpa, tomando-
ses não são condenados. De fato, no Japão o índice de condenações se uma preocupação com a atitude do suspeito e suas perspectivas
chega a 99,5%. de reabilitação e reintegração na sociedade, inclusive sua aceitação da
Vários fatores influenciam a decisão de tirar o caso do processo autoridade. A tolerãncia é considerada uma reação adequada quando
tem início o proce,sso de correção.
formal ou impor sentenças não punitivas. Algumas dessas conside-
rações são conhecidas dos ocidentais, como a gravidade da ofensa
e a natureza do ofensor. Mas, além disso, há variáveis singulares: a Haley conta que o padrão de reação típica do japonês diante
disposição do ofensor em reconhecer a culpa, expressar remorso e do crime é
compensar a vítima, e a disposição da vítima de receber essa com-
pensação e perdoar. reconhecimento da culpa, expressão de remorso, inclusive negociação
No Japão os índices de condenação são altos em boa parte por- direta com a vítima quanto à restituição e perdão como pré-requisitos
que os ofensores se mostram dispostos a confessar e assumir a res- para um tratamento tolerante, evitando-se o recurso ao encarceramen-
ponsabilidade. As raízes dessa disposição são em parte culturais, é to por longos períodos.
claro, mas em parte se devem ao entendimento de que, se confessa-
rem, o resultado provavelmente se concentrará em compensação e Os ocidentais entendem que uma reação tão "tolerante" não
correção, mais do que em punição. Enquanto o complexo sistema conseguiria coibir a criminalidade. Mas Haley conclui que esse tipo
jurídico punitivo da sociedade ocidental desestimula a confissão, o de reação é, na verdade, parcialmente responsável pelos baixos índi-
sistema nipônico parece fazer dele a norma. ces de criminalidade no Japão.
As vítimas têm um papel importante nesse processo. A restitui- Haley se admira de que os japoneses tenham institucionaliza-
ção pelas perdas é um resultado esperado. E elas têm voz quando se do os conceitos de arrependimento e perdão e o Ocidente não. O
trata da decisão da autoridade de denunciar, diligenciar e sentenciar. imperativo do arrependimento e perdão é, no mínimo, tão forte na
No entanto, não controlam o processo, nem fazem um papel de ad- tradição judaico-cristã como na japonesa. No entanto, o Ocidente
versário ou acusador.
Os ocidentais ficam espantados com a disposição das autorida- não conseguiu desenvolver mecanismos institucionais para a imple-
des de tirar o caso do sistema jurídico formal. Isto se deve apenas ao mentação de imperativos éticos. Em vez disso, as instituições legais e

206 207
E AGORA? E AGORA?

procedimentos do direito ocidental refletem e reforçam as exigências com a "minoria perigosa"? Encarceramos? Em caso afirmativo, como
sociais de retribuição e vingança. tomar essa decisão? Há espaço para punição? Como idéia de justiça
restaurativa no âmbito penal se coaduna com questões mais amplas de
Embora o padrão nipônico esteja obviamente ligado à cultura ja- justiça social, econômica e política? A fonte bíblica supõe uma ligação
ponesa, Haley acredita que temos muito a aprender com esse exem- estreita entre esses fatores, mas o que isso significa hoje na prática?
plo, que sugere possibilidades intrigantes de ligação entre os sistemas Além disso, em que medida a minha formulação não estará re-
formal e informal, adversarial e não adversarial. O modelo japonês fletindo a perspectiva de um homem branco da classe média nor-
sugere um lugar para a máquina formal da justiça e para o Estado, mas te-americano? A obra de Kay Harris sobre o conceito feminista de
guarda um lugar para a restauração e dá à vítima e ao ofensor papéis justiça aponta na mesma direção em certos casos, mas não todos. 5 A
importantes. Embora o Ocidente não possa simplesmente imitar esse idéia de justiça restaurativa precisa ser testada em vista das perspec-
modelo, ele mostra que a justiça pode ser a um só tempo pessoal e for- tivas de várias culturas, tradições e experiências.
mal. Jerold Auerbach vem se preocupando com os perigos da lei sem Mesmo que pudéssemos apresentar a justiça restaurativa como
justiça, mas especialmente da injustiça sem lei. O modelo japonês nos um paradigma pronto e acabado, devo admitir que uma implemen-
oferece a esperança de que essas não são as únicas possibilidades. tação sistêmica continuaria me preocupando.
E as possibilidades são intrigantes. Contudo, devo admitir que Uma das fraquezas da teoria de Kuhn sobre mudanças de pa-
não acredito muito em projetos prontos para implementação sis- radigma é que elas são tratadas como se fossem uma atividade in-
têmica, ao menos não nesse estágio. Fiquei aliviado quando soube telectual, negligenciando a dinâmica política e institucional dessas
que Kay Harris, numa oficina sobre justiça restaurativa, nos incitou mudanças de paradigma. Os interesses políticos e institucionais
a continuar desenvolvendo a visão e a resistir às pressões no sentido
certamente afetam a ocorrência ou não das mudanças e a forma
de uma "praticidade prematura".4
que elas finalmente assumem. O paradigma retributivo está for-
Há muito trabalho conceitual por fazer. No capítulo anterior temente associado aos interesses e funções do Estado moderno e
mencionei que a justiça restaurativa ainda não se tornou um pa- isto terá impacto decisivo sobre a possibilidade de mudança e, se
radigma. É preciso desenvolver muitas questões e responder umas ela ocorrer, a forma que irá assumir. A história da mudança na
tantas outras. Comunidade é um termo não muito preciso e do qual área do direito e da justiça não é muito animadora. Os esforços
temos abusado bastante. O que significa e como emprestar realida- nesse sentido foram freqüentemente cooptados e desviados de suas
de a esse termo dentro da abordagem restaurativa? Qual é o papel visões originais, por vezes de modo perverso e nocivo. A origem
apropriado do Estado? das prisões é um caso típico, e deve servir de lembrete e aviso
Tenho enfatizado as responsabilidades dos ofensores, mas o que permanente àqueles dentre nós que pensam em mudanças. Tal-
dizer das responsabilidades em relação aos ofensores? O que fazer vez essas "melhorias" deram errado porque não questionaram os

4. Ver M. Kay Harris, "Alternative Visions in the Context of Contemporary Realities", em 5. Ver "Moving into the New Millennium: Toward a Feminist Vision of ]ustice", em Harold
]ustice; The Restorative Vision, n° 7, New Perspectives on Crime and ]ustice: Occasional Papers Pepinksye Richard Quinney, eds., Criminology as Peacemaning (Bloomington: Indiana Univer-
(Akron: Mennonite Central Committee, 1989), pp. 31-40. sity Press, 1991).

208 209
4
E AGORA?
E AGORA?

pressupostos fundamentais, como sugeri acima. Mas o problema é VORPS, por exemplo, e testar novas formas e aplicações. Devemos
ainda mais complexo. oferecer novos serviços às vítimas, serviços com uma estrutura res-
Muitas vezes as chamadas alternativas usam uma nova lingua- taurativa, incluindo rituais importantes que demonstrem que nós,
gem para vestir idéias que não são novas. 6 Freqüentemente as idéias enquanto comunidade, estamos com elas no seu sofrimento, na de-
têm implicações ocultas que levam tempo para emergir. E uma série núncia do mal, e na busca de cura. Precisamos igualmente oferecer
de pressões - internas e externas - tendem a desviar esses esforços novos serviços aos ofensores e suas famílias. E ao fazê-lo, também
de sua direção original. Por vezes, acabam reformulando aquelas al- explorar alternativas à punição que ofereçam oportunidades de res-
ternativas para que sirvam a interesses e objetivos bem diferentes ponsabilização, reparação e empoderamento.
dos pretendidos. Através do VORP ficamos sabendo bastante sobre abordagens
Portanto, antes de sonharmos alto demais, temos a obrigação de restaurativas ao crime patrimonial. Agora chegou a hora de aplicar
pensar cuidadosamente em todas as implicações. Devemos estudar o teste dos "casos difíceis". Como será com o assassinato? E agressão
ao máximo a dinâmica da mudança e antever todos os tropeços de contra cônjuge e crianças? Estupro? Quais são as possibilidades e
nosso sonho. quais os limites? Que procedimentos funcionam e quais não funcio-
nam? Que salvaguardas serão necessárias?
A discussão e avaliação dessas questões já começou, mas ainda
Enquanto isso
há muito por fazer. Esta é uma empreitada que exigirá criatividade,
Enquanto contemplamos possibilidades mais amplas, devemos tam- e que envolve riscos e sonhos, assim como realismo, trabalho duro
bém perseguir metas e atividades intermediárias. Há muitas coisas e cautela. Demandará cooperação entre teóricos e práticos, entre es-
que podem e devem ser feitas nesse meio tempo, aqui e agora. pecialistas e leigos. O envolvimento de pessoas que foram vítimas e
Devemos continuar a dialogar, "palavrear"7 com os simpatizan- ofensores no passado é fundamental.
tes e os não simpatizantes. Devemos testar, explorar, e desenvolver Ao testar nossas "alternativas", teremos que verificar constante-
nossa visão. mente se elas de fato são alternativas. Será que realmente refletem
Devemos nos tornar agricultores da justiça, plantando nossos valores alternativos? Ou são simples alternativas tecnológicas? São
campos experimentais e de demonstração. Precisamos plantar mais coerentes com o foco restaurativo? Nos levam nessa direção?
Precisamos desenvolver abordagens e estratégias intermedi-
6. Matthews, Informal Justice?, op. cit., p. 102. árias, mas sempre atentar para onde elas estão nos levando. No
7. Estamos usando esse nome (que vem do português "palavra") para nossas discussões mínimo, devemos fazer as seguintes perguntas a respeito de nossos
por sugestão de Herman Bianchi. Russ Immarigeon, do Main Council of Churches, observou
recentemente que, segundo o The American Heritage Dictionary, ele é definido como "conversa projetos: Eles incentivam ou desestimulam valores punitivos? Po-
sem propósito" ou "conversa que visa encantar e conquistar", ou ainda "uma conversação dem ser usados para construir novos modos de controle e punição?
entre exploradores europeus e representantes de populações locais, especialmente na África".
Estaríamos jogando conversa fora, pergunta ele. E por que "especialmente na África"? Produzirão um reservatório de experiências que sirvam de "campo
O dicionário mostra outro nível de significado mais neutro que significa discussão e debate, de teste ou demonstração"? Incorporam "elementos-chave" de uma
mas talvez as outras conotações devam ser lembradas também!
visão restaurativa?

210 211
E AGORA?
E AGORA?

Quais são os "elementos-chave" de uma visão restaurativa? o trabalhador católico acredita na criação de uma nova sociedade den-
Talvez pudéssemos começar a desenvolver indicadores restaurati- tro da casca da antiga, utilizando a filosofia da nova, que não é uma
vos para medir nossos esforços. Procurei fazer uma listagem mais nova filosofia, mas uma muito antiga, tão antiga que parece nova.
completa no apêndice, mas basicamente as perguntas possíveis se-
riam as seguintes: O programa ou seus resultados buscam corrigir A estratégia do Cristo foi criar uma nova sociedade (a Igreja),
o mal feito à vítima? Tratam das necessidades do ofensor? Levam com novos pressupostos e prinCípios operacionais, que funcionasse
em conta as necessidades e responsabilidades da comunidade? no seio da antiga, servindo de exemplo e desafio a estaS
Cuida do relacionamento vítima-ofensor? Fomenta a responsabili- Para responder às perguntas de Lind, portanto, precisamos or-
dade do ofensor? Vítima e ofensor são incentivados a participar do ganizar de modo eficiente nossa visão. Muito freqüentemente temos
processo e da decisão? ignorado a vitima e reagido ao crime com uma lente retributiva que
tomamos emprestada da sociedade em geral. O apóstolo Paulo ad-
vertiu os cristãos para evitarem levar suas contendas às cortes esta-
o novo dentro do antigo tais que, segundo ele, operam sob pressupostos inadequados. Seu
Enquanto isso, a Igreja pode desempenhar um papel importante. argumento não era meramente negativo. Ele supunha que a Igreja
O estudioso do Antigo Testamento Millard Lind nos lembrou que a desenvolveria suas próprias estruturas alternativas para a implemen-
justiça bíblica é - e sempre foi - muito diferente da justiça estatal. tação da justiça da aliança. O certo é que devemos reexaminar as
Diante dessa constatação, ele propõe importantes perguntas: Como lentes que usamos para lidar com o mal e os conflitos dentro dela,
os cristãos relacionam este novo modelo de justiça com os sistemas criando novas estruturas que incorporem uma visão restaurativa.
Desse modo, a Igreja poderá oferecer um modelo à sociedade. 9
de justiça vigentes? Qual a responsabilidade da comunidade cristã?
Quando operamos fora da estrutura da Igreja, precisamos le-
Lind fala de quatro tipos de resposta da Igreja ao longo dos
var conosco nossa lente restaurativa, permitindo que ela molde e
séculos. A primeira é a estratégia do isolamento. Em dados momen-
informe as coisas que fazemos. A Igreja deve também mostrar o
tos a Igreja tentou se isolar do mundo. Esta é uma estratégia de
caminho implementando estruturas alternativas dentro da estrutu-
infidelidade pois ignora a qualidade "agressiva" da justiça divina, ra antiga. Devemos assumir a liderança na plantação de campos de
que deve ser partilhada. Uma segunda resposta é a de Constantino, teste e demonstração.
a estratégia da capitulação. Esta vem sendo a reação predominante Se quisermos algum dia chegar a uma alternativa à justiça re-
da Igreja, que adotou em grande parte os pressupostos do mundo tributiva que seja de fato um verdadeiro paradigma, será preciso ir
secular. Uma terceira estratégia foi aquela adotada pelo Iluminismo, além da teoria e construir uma nova gramática e uma nova "física"
que nega a tensão entre os modelos de justiça. - ou seja, precisamos uma nova linguagem e também um novo con-
Mas a estratégia adotada por Cristo oferece uma quarta opção: junto de princípios e procedimentos de implementação que façam
criar o novo no seio do antigo. Em Easy Essays, Peter Maurin captu-
rou belamente esse espírito ao falar do trabalhador católico: 8. Ver John H. Yoder, The Original Revolution eScottdale: Herald Press, 1971).
9. Para conteúdos sobre resolução de conflitos dentro do contexto da Igreja, entre em con-
tato com Mennonite Conciliation Service, Box M, Akron, PA 17051.

212 213
E AGORA'

do novo paradigma algo coerente. A Igreja tem especial responsabi- Posfácio à primeira edição
lidade nesse processo.

No mínimo
A justiça retributiva está profundamente cravada em nossas institui-
ções políticas e na nossa psique. Talvez seja esperar muito pensar
que ela possa mudar a partir de suas bases. Mesmo assim, devemos As coisas que escrevi talvez soem incrivelmente visionárias e pouco
reconhecer a importância dos paradigmas que usamos e ter a liber-
realistas. Também a abolição da escravatura foi assim. Com efeito,
dade de questioná-los. Também podemos começar a usar uma nova
muito daquilo que hoje consideramos mero bom senso foi um dia
lente para dar forma àquilo que decidirmos que vale a pena fazer.
considerado utopia. As lentes mudam.
E podemos começar a usar outra lente naquelas áreas da nossa vida
onde temos algum controle: na família, na comunidade religiosa, na Mesmo assim, confesso que para mim, na minha própria vida,
vida diária. estas coisas de fato me parecem utopias. Confrontado com minha pró-
Se a justiça restaurativa não é um paradigma, talvez ela possa, ain- pria raiva, minha tendência a culpar, relutância em dialogar e minha
da assim, servir como "teoria sintetizadora" .10 Quem sabe possa ao me- aversão por conflitos, muitas vezes tive medo de escrever este livro.
nos nos fazer pensar cuidadosamente antes de infligir dor a alguém. Mas acredito em ideais. Na maioria das vezes não conseguimos
Muitos observadores vêm buscando compreender por que a atingi-los, mas eles continuam servindo como farol, um objetivo que
Holanda tem tido índices tão baixos de encarceramento desde a se coloca no horizonte, um critério para medir nossas ações. Eles
Segunda Guerra Mundial. Um estudo recente concluiu que a re- mostram a direção. Somente quando temos uma direção é que po-
lutância das autoridades locais em impor penas de prisão é menos demos saber se nos desviamos da rota. O lugar para começarmos
resultado de uma filosofia de sentenciamento e mais o resultado de a vivenciar a restauração não é em cima, mas embaixo, nas nossas
uma "consciência culpada" em relação às prisões. l l
próprias casas e comunidades. Continuo acreditando que a comu-
A combinação da vivência nas prisões nazistas e de um currícu- nidade do povo de Deus pode nos levar nessa direção. Certamente
lo de direito que questionava o encarceramento acabou por moldar falharemos muitas vezes, como fizeram aqueles sobre os quais lemos
toda uma geração de juristas. O resultado foi a relutância em infligir
na bíblia. Mas com igual certeza Deus nos perdoará e restaurará.
dor na forma de aprisionamento. No mínimo a discussão sobre nos-
sas lentes pode contribuir para criar um meio no qual a imposição Confessei que a justiça restaurativa é em parte um ideal, e isto
de dor se torne um último recurso, uma admissão de fracasso ao levanta uma outra questão. Me preocupa que diante dessa confissão
invés do fulcro da justiça. o leitor não leve a sério essa visão. Lembro-me do prefácio ao livro
de Copérnico - não sugerindo que o meu seja do mesmo tipo - mas
10. Sebastian Scheerer, "Tawards Abalitianism", Contemporary Crisis: Law, Crime and Social para tirar proveito da lição que pode nos ensinar.
Policy, 10, nO 1, 1986, p. 9.
11. Willem De Haan, "Abalitionism and lhe Palitics af 'Bad Canscience"', The HarvardJour-
O livro de Copérnico revolucionou a forma como pensamos
nal of Criminaljustice, 26, n° 1 (fev. 1987), pp. 15-32. sobre o cosmos em si. Foi um elemento-chave na mudança de para-

214 215
POSFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO

digma que chamamos de revolução científica. Mas levou um século Apêndice 1


para que as pessoas o levassem a sério.
Indicadores de justiça restaurativa
No começo as pessoas não o levaram a sério - em parte por-
que ia contra o bom senso da época. Mas também o seu prefácio
talvez tenha induzido àquele desprezo. Com efeito, no prefácio o
autor Oreander diz: "Veja, leitor, que livro interessante. Ele merece
ser lido. Mas lembre-se, é só uma idéia, um modelo, uma visão. Não
é necessariamente a realidade". Esse comentário pode ter tornado o 1. As vítimas vivenciam uma experiência de justiça?
livro mais palatável aos seus inimigos, mas pode também ter des- a. Há suficientes oportunidades para que elas contem sua
pistado os leitores por sugerir que o paradigma de Copérnico era verdade a ouvintes relevantes?
apenas um modelo imaginário. Temo estar fazendo o mesmo. b. Elas estão recebendo a restituição ou compensação
Minha esperança é de que você compreenderá isto como uma necessária?
visão - uma visão que é menos uma miragem enganadora e mais c. A injustiça foi adequadamente reconhecida?
uma destinação ainda incerta numa estrada necessariamente longa
d. Estão suficientemente protegidas de mais violações?
e serpenteante.
e. A decisão reflete adequadamente a gravidade da ofensa?
f. Estão recebendo informação suficiente sobre o evento, o
ofensor e o processo?
g. Elas têm voz no processo?
h. A experiência da justiça é adequadamente pública?
i. Elas recebem apoio adequado de terceiros?
j. Suas famílias estão tendo a assistência e apoio devidos?
k. Outras necessidades - materiais, psicológicas, espirituais
- estão sendo atendidas?

2. Os ofensores vivenciam uma experiência de justiça?


a. São incentivados a entender e assumir a responsabilidade
pelo que fizeram?
b. São questionadas suas falsas representações?
c. Eles recebem incentivo e oportunidade para corrigir a situação?
d. Têm a oportunidade de participar do processo?

216 217
APÊNDICE 1

e. São incentivados a mudar de comportamento Apêndice 2


(arrependimento) ?
A subversão das visões
f. Há mecanismos para monitorar ou verificar mudanças?
g. Suas necessidades estão sendo atendidas?
h. Suas famílias estão recebendo apoio e assistência?

3. O relacionamento vítima-ofensor está sendo cuidado? Quando visões inovadoras são operacionalizadas, tendem a se des-
a. Há oportunidade de encontro direto ou terapêutico, quando viar (ou ser subvertidas) de suas intenções originais. Às vezes aca-
apropriado? bam servindo a propósitos diametralmente opostos aos pretendidos.
b. Há oportunidade e estímulo para troca de informações Essa tendência se evidencia em várias áreas, inclusive (e especial-
recíprocas e sobre o evento? mente) na justiça criminal. Também o VORP pode se transformar em
algo totalmente diferente do plano original. De fato, alguns vêm ar-
c. As falsas representações estão sendo questionadas?
gumentando que esse processo está em andamento.
Ao longo dos anos e do meu envolvimento diversificado com o
4. Estão sendo levadas em conta as preocupações da comunidade? VORP, tenho lutado para compreender as forças que tendem a dis-
a. O processo e a decisão estão sendo adequadamente torcer nossa visão. Pode ser que essas distorções sejam inevitáveis,
disponibilizados ao público? mas elas podem ser minimizadas se entendermos a dinâmica do
b. Estão sendo tomadas medidas para garantir a segurança da processo. Os parágrafos que seguem são uma tentativa de catalogar
comunidade? algumas das fontes desses desvios ou subversões da forma como eu
c. Há necessidade de restituição ou ato simbólico para a as percebo. Estão colocadas em três categorias:
comunidade?
d. A comunidade foi representada de alguma forma no processo? Interesses da justiça criminal
Nos círculos do VORP discute-se freqúentemente um desvio que nas-
5. O futuro está sendo levado em consideração? ce do conflito entre objetivos retributivos e restaurativos. O sistema
a. Há medidas para resolver os problemas que causaram o de justiça criminal é essencialmente retributivo, buscando funda-
evento lesivo? mentalmente a punição. Mas o VORP se declara preocupado com a
restauração. Será que esses dois objetivos conseguirão coexistir? Ou
b. Há medidas para resolver os problemas causados pelo
será que o sistema maior nos pressionará a adotar seus objetivos? Se
evento lesivo?
falarmos a língua que o sistema entende, a linguagem da punição,
c. Foram levadas em conta as intenções futuras? esta poderá eclipsar a restauração. Se nos recusarmos a falar a língua
d. Foram tomadas medidas para monitorar e verificar da punição, é provável que continuemos marginais, assessórios e
resultados e resolver eventuais problemas? destinados a casos "menores".

218 219
APÊNDICE 2 APÊNDICE 2

o sistema de justiça criminal cria pressões deturpadoras de mui- precisamos de dinheiro. Como alguém já disse, os programas aca-
tas outras formas. A justiça criminal é inerentemente orientada para bam ficando com a cara das fontes mantenedoras.
o ofensor. Os acontecimentos, o processo e os principais atores são Outra dimensão da dinâmica da institucionalização é o desen-
todos definidos em torno do ofensor. A vítima tem pouca relevância volvimento da identidade da equipe e seus objetivos de carreira. À
jurídica. Trabalhando em paralelo e recebendo casos indicados por medida que as instituições crescem, as pessoas começam a querer
um sistema orientado para o ofensor, será que conseguiremos fazer fazer carreira dentro delas. Passam a tomar decisões pessoais e pro-
justiça igual e verdadeira para a vítima? fissionais com vistas a esses objetivos de carreira. Os efeitos disso são
Uma terceira fonte de pressão se origina nos interesses do sutis e significativos.
próprio processo penal. Como notei antes, todas as partes do "sis-
Todos procuramos apoio nas pessoas que estão à nossa volta,
tema" têm interesses próprios e tendem a encontrar maneiras de
os nossos pares. Aonde estão os pares das pessoas envolvidas com o
cooptar e controlar novos conceitos para que se coadunem com
VORP? Ao nos fixarmos provavelmente começamos a procurar nossos
seus interesses. E ]ustice without Law, de Jerold Auerbach, oferece
pares dentro dos meios da justiça criminal. Isto tem suas vantagens,
uma anatomia desse processo no tocante à resolução de conflitos
mas também cria pressões de conformidade com os valores e pres-
na história estadunidense.
supostos que movem aquele sistema.
As pessoas que integram a equipe e seus valores são fundamen-
A dinâmica da institucionalização tais. Boa parte das análises feitas sobre a subversão de inovações
Para que as idéias se tornem realidade, é preciso criar instituições. A mostra um processo gradual de cooptação. Mas o processo é mais
dinâmica mesma dessas instituições cria pressões deturpadoras. básico e começa muito antes. Enquanto os líderes articulam uma
Considerações administrativas começam a se tornar importan- visão grandiosa, a equipe talvez tenha sido formada por pessoas que
tes. A administração requer indicadores de fácil coleta, tabulação e exerciam funções dentro do sistema de justiça criminal tradicional.
processamento. Eles são usados para justificar a existência da orga- Guiados por uma perspectiva tradicional ao invés de um paradigma
nização. No caso do VORP é tentador medir ou avaliar segundo o nú- alternativo, eles tendem a fazer as coisas do modo tradicional. Se
mero de casos tratados e a quantidade de desfechos "de sucesso". todos não partilham de valores alternativos, é difícil conseguir resul-
Uma vez que a reconciliação é difícil de medir, talvez comece- tados expressivos.
mos a enfatizar a restituição, que é bem mais fácil de medir. Pode Ao longo de seu desenvolvimento, as organizações passam por
acontecer de começarmos a pressionar os mediadores para terminar vários estágios. Cada um deles requer um certo tipo de liderança,
logo os casos a fim de ter volume, sem grande preocupação com a cada qual com suas forças e deficiências. Também isto afeta a for-
qualidade do resultado. Talvez comecemos a lançar mão de media- ma do programa.
dores profissionais. Assim, os objetivos administrativos e suas quan- Os primeiros estágios de uma organização requerem empreen-
tificações podem facilmente remodelar a visão do projeto. dedores. Esses líderes são visionários, aceitam assumir riscos, têm
Como se vê, estão envolvidas questões de subsistência. Isso nos criatividade. As idéias devem ganhar forma e ser operacionalizadas.
leva ao tema do custeio e das fontes mantenedoras. Para fazer o bem, É preciso encontrar recursos e articulá-los de modo criativo.

220 221
APÊNDICE 2

Pessoas com esse tipo de empreendedorismo trazem muita ener- Apêndice 3


gia, entusiasmo e criatividade ao trabalho. Mas em muitos casos elas Sugestões para grupos de estudo
não são gerentes. Portanto, em algum momento é importante que a
liderança se torne mais gerencial a fim de lidar com as realidades de
manter uma organização e seus programas. Mas os gerentes em geral
não são visionários. Tendem a se preocupar mais com as necessidades
operacionais e menos com implicações de longo prazo, avaliação dos
programas e sonhos. Eles não gostam muito de riscos. Se o programa O propósito do roteiro de estudo e sugestões de atividades abaixo é
seguir para a fase "gerencial" sem ter construído funções proféticas e ajudar pessoas que desejam usar este livro num contexto de grupos
visionárias, teremos uma outra fonte de deturpação em potencial. de estudo. O capítulo 1 não tem perguntas, já que o caso ilustrativo
daquele capítulo apenas serve de base para as reflexões dos capítu-
los seguintes.
Planejamento e operação do programa
Os líderes dos grupos devem selecionar as perguntas e ativida-
Os programas buscam atingir uma série de metas, mas seu bom des mais proveitosas para o contexto específico do grupo. Embora
funcionamento em geral exige que haja apenas uma meta principal. haja bem mais que uma hora de perguntas e atividades para cada
Além disso, pode haver objetivos contraditórios. capítulo, elas têm o propósito de servir apenas como sugestão para
Descobrimos que isto aconteceu no VORP de Elkhart, e estudos facilitar o estudo do livro. Os líderes dos grupos de estudo devem ter
recentes na Inglaterra confirmam o mesmo resultado. A meta de não a liberdade de criar outras questões e atividades.
levar as pessoas ao encarceramento por vezes conflita com a de re-
É importante que haja incentivo para desenvolver outras suges-
conciliação, por exemplo. Os programas que começaram por preocu-
tões criativas de como lidar com criminosos e idéias práticas de ações
par-se com reduzir penas de privação de liberdade tendem a deixar
para segundo plano a reconciliação e as necessidades da vítima. a nível local. Por favor, enviem sugestões e outras impressões para:

Como se vê, é fácil implementar políticas sem examinar suas im-


plicações de longo prazo, tanto práticas como filosóficas. Uma série de Howard Zehr
pequenas medidas concretas, sem avaliação, pode nos levar para mui- Office on Crime and justice
to longe do caminho original e, inadvertidamente, nos perdemos.
Mennonite Central Committee u.s.
2l S. 12th Street
Akron, PA 17501-0500

222 223
APÊNDICE 3 APÊNDICE 3

Capítulo 2 - A vítima outros procedimentos, como a restituição e o perdão. Como


você vê essa questão?
8. Tendemos a culpar as vítimas de vários modos. Quais? Por que
PERGUNTAS
fazemos isso?
9. Discutam as seis questões que precisam ser respondidas para que
1. Suponhamos que você chega em casa e encontra a porta arrom-
a cura seja possível (em "Por que tão traumático?"). O que será
bada e sinais de vandalismo. Coisas valiosas, inclusive heranças
necessário para responder a cada uma delas. Quem fará isso?
de família, sumiram. Foi utilizado um machado para o arrom-
Quem pode e deve ajudar em cada um dos casos?
bamento. Como você se sentiria? Como isto alo afetaria? Que
perguntas você se faria? Quais seriam suas necessidades? 10. Quais deveriam ser os direitos e papéis das vítimas no processo
judicial? Quais seriam as vantagens e desvantagens ou perigos
2. Você conhece alguma vítima de crime pessoalmente? Você já foi
desse tipo de envolvimento - para a vítima, para o ofensor e
vítima? Como reagiu? Como se sentiu?
para o sistema em si?
3. Se você fosse a vítima, o que você acha que deveria ter acontecido
11. E no caso de abuso de cônjuge ou incesto? Qual a semelhança
no caso do capítulo 1?
e quais as diferenças em relação a crimes como roubo e ameaça
4. De que modo a experiência de uma vítima de crime se assemelha de agressão?
à de outras vítimas (por exemplo, de doenças ou desastres na-
turais)? Qual a diferença? (leia principalmente a parte "Por que
ATIVIDADES
tão traumático?").
5. Você concorda que a raiva é uma parte natural do processo de
cura e que sua expressão deveria ser incentivada? Como você, L Num quadro negro ou flipchart faça uma lista com palavras rela-
pessoalmente, reage a alguém que está ferido e com raiva? cionadas à vítima, como por exemplo:

6. Charlotte Hullinger enuncia quatro tipos de ajudante (veja a nota


2 do capo 2). Quais as vantagens e desvantagens de cada um de- Vítima
les? Em que tipo você se enquadra? O que você pode fazer para Roubo
se tornar um "ajudante positivo"?
Tribunal
7. Alguns argumentam que a retribuição é uma necessidade hu- Justiça
mana inata. Eles dizem que se ela não for atendida pela ação
Procurador de Justiça
governamental, os indivíduos passarão a administrá-la. Ou-
tros dizem que é uma necessidade aprendida. Outros ainda Vingança
sustentam que é uma necessidade melhor atendida através de Restituição

224 225
Apêndice 4 Hoje, duas abordagens restaurativas estão nos forçando a rever
esses pressupostos. Elas oferecem formas de implementar o papel
Lições aprendidas com os círculos da comunidade aceitas pela abordagem restaurativa. É interessante
de sentenciamento e conferências notar que ambas foram inspiradas na aplicação desses conceitos pra-
de grupos familiares ticada por culturas indígenas dentro da estrutura jurídica ocidental.
As Conferências de Grupos Familiares nasceram na Nova Ze-
lãndia (e logo foram adaptadas na Austrália) no final dos anos 1980
Nos primórdios do VORP o professor de direito holandês Herman como reação, em parte, às preocupações e tradições da população
Bianchi nos criticou dizendo que a abordagem era muito individua- indígena maori. Todos sabiam que as varas de infãncia e adoles-
lista e privada. Ele nos falou que é costume em muitas culturas tratar cência ocidentais não estavam funcionando bem, e muitos maoris
de seus conflitos e problemas dentro do contexto familiar ou comu- alegavam que o sistema era antiético aos olhos de sua tradição. Esse
nitário. Essas culturas achariam nossas duplas simples de vítima e sistema estava orientado para punir ao invés de resolver problemas,
ofensor algo muito isolado. era imposto e não negociado e deixava a família e a comunidade de
Arquivei essa idéia como algo inteligente mas difícil de imple- fora do processo.
mentar no nosso modelo. A teoria da reconciliação vítima-ofensor e No novo sistema adotado em 1989, todos os casos envolvendo
da justiça restaurativa de fato reconhece o papel da comunidade. Na jovens, exceto uns poucos crimes muito violentos, são tirados da
verdade, muitos de nós víamos nela uma forma de devolver os con- polícia e dos tribunais e levados para as Conferências de Grupos Fa-
flitos à comunidade. Nós nos consolávamos com a idéia de que a co- miliares. Como resultado, os processos nessas varas diminuíram em
munidade estava presente na pessoa dos mediadores voluntários e das 80%. O juiz neozelandês Fred McElrea diz que esta foi a primeira
abordagem realmente restaurativa a ser institucionalizada dentro de
organizações comunitárias que abrigavam muitos dos programas.
uma estru tura jurídica ocidental.]
No caso de infratores juvenis, as famílias sempre foram leva-
Em vez de audiência com o juiz, um coordenador de justiça da
das em consideração, muito embora seu papel fosse visto como algo
juventude (contratado pelo serviço de assistência social e não pelo
problemático. Alguns programas vêem a família do ofensor como
judiciário) facilita uma reunião semelhante à do VORP, no sentido
um estorvo em potencial; devem ser informadas, mas mantidas de
de que ela oferece um espaço para a manifestação de sentimentos,
fora do encontro em si para evitar que assumam a responsabilidade
a exploração de fatos, e a negociação de acordos. Os ofensores são
no lugar do ofensor. Outros programas incentivam a presença da responsabilizados e as vítimas têm a oportunidade de ter algumas de
família, mas procuram garantir que o diálogo essencial seja entre
o jovem ofensor e a vítima. Nessa situação os pais têm um papel a 1. Ver, por ex., os ensaios de McElrea em Jonathan Burnside e Nicola Baker, eds., Relational
desempenhar, mas ele é de apoio e não central. Justice: Repairing the Breach (Winchester: Waterside Press, 1994), pp. 104-13; e B.]. Brown
e F W M. McElrea, eds., The Youth Court in New Zeland: A New Model ofJustice (Legal Resear-
Ou seja, reconheceu-se o papel da família e da comunidade ch Foundation, Publication n° 34, 1993). Descrições e avaliações de conferências de grupos
familiares na Nova Zelândia e Austrália podem ser encontradas em Christine Alder e Joy
mas, na prática, esse papel tem se mostrado ambíguo e esporádico Wundersitz, eds., Farnily Group Canferencing andJuvenileJustice: The Way Forward ar Misplaced
ou marginal ao invés de integral. Optimism? (Canberra: Institute of Criminology, 1994).

244 245
APÊNDICE 4 APÊNDICE 4

suas necessidades atendidas. Mas há também grandes diferenças em há dois tipos de vergonha: a vergonha estigmatizante e a vergonha
relação ao VORP no formato do encontro e no escopo da discussão. reintegradora. 2
Comparados aos encontros do VORP, as CGF são imensas. Os fa- Na abordagem do nosso sistema judicial retributivo a vergonha
miliares do ofensor são um ingrediente essencial, e neles se incluem é estigmatizante. Ele envia a mensagem de que não apenas o com-
tanto a família nuclear como a família estendida. No caso de famílias portamento é mau, mas que a pessoa é má. Não há nada que a pessoa
desmembradas ou disfuncionais, parentes ainda mais distantes ou possa fazer para consertar isso. Assim, fica difícil a reintegração no
pessoas significativas podem ser envolvidas no processo. Cuidado- grupo social e as pessoas que cometeram ofensas se sentem perma-
res que prestam serviços à família podem ser convidados e um ad- nentemente rotuladas como ofensores e acabam buscando a compa-
vogado da juventude - um advogado especial- também comparece nhia de outros transgressores. Muitas teorias criminológicas partem
para velar pelos direitos do ofensor. As vítimas podem trazer a famí- do conceito de vergonha estigmatizante: sub-culturas de delinqüên-
lia e apoiadores. Além disso, a polícia (que são os procuradores de cia, teoria da associação diferencial, teoria da rotulação.
justiça nesse sistema jurídico) participa do encontro. Portanto, essas Por outro lado, a vergonha reintegradora denuncia a ofensa, mas
reuniões são grandes e incluem partes com interesses e pontos de não o ofensor e, além disso, oferece um caminho de volta. Através de
vista divergentes. medidas como o reconhecimento do mal feito e ações para corrigir
Isto já parece bem radical, mas não é tudo. Espera-se que esse as coisas, o ofensor é capaz de voltar a ter respeito por si mesmo e ser
grupo chegue a uma recomendação para o desenlace do caso todo, e aceito na comunidade. Essa vergonha usa o mal feito como oportu-
não apenas a um acordo de restituição. E é preciso haver consenso! nidade para fortalecer o caráter do ofensor e a comunidade.
O mais surpreendente é que na maioria dos casos eles conseguem. As conferências de grupos familiares são um espaço para apli-
As Conferências de Grupos Familiares estão funcionando tão cação positiva dessa vergonha. É tremendo o potencial de denúncia
bem que alguns juízes e outros profissionais do direito estão pleitean- do erro dentro do círculo familiar. Já é ruim passar vergonha diante
do uma forma adaptada para as varas de adultos na Nova Zelândia. É da vítima, imagine diante de seu avõ e sua avó! Mas como o ofensor
certo que esse sistema vem passando por ajustes. Por exemplo, nem é parte da família, as CGF também oferecem incentivo para a afir-
sempre o acompanhamento da restituição é apropriado. A legisla- mação do valor do ofensor. Segundo relatos, os membros da família
ção inicial não reconhecia adequadamente o papel central da vítima. manifestam seu desapontamento e raiva em relação ao comporta-
Apesar desses pequenos problemas, a experiência que emerge dos mento, mas também afirmam o valor essencial e dons do jovem que
cinco ou seis anos de experiência é impressionante. Da mesma for- cometeu a ofensa. Trabalhando juntos como uma família, eles che-
ma, os esforços realizados na Austrália, como a abordagem baseada gam a estratégias de colaboração através da discussão que permite
na ação policial em Wagga Wagga, parecem estar funcionando bem ao ofensor assumir a responsabilidade de corrigir as coisas e se sentir
e vão ser testados em algumas cidades norte-americanas. apoiado pelo processo.
O envolvimento das famílias maximiza as possibilidades daqui- Além disso, o envolvimento na determinação do resultado do
lo que o criminologista australiano John Braithwaite chama de "ver- caso faz com que o sucesso seja apropriado pelo grupo, o que torna
gonha reintegradora". Em seu livro pioneiro ele observa que uma
das formas mais poderosas de controle social é a vergonha - mas que 2. Crime, Shame, and Reintegration CCambridge: Cambridge University Press, 1989).

246 247
APÊNDICE 4
APÊNDICE 4

mais provável que a família dê apoio e incentivo para que o acordo o principal valor dos Círculos de Sentenciamento Comunitários não
seja cumprido. pode ser medido pelo que acontece aos ofensores, mas sim pelo que
As CGF não são uma panacéia, é claro, mas as evidências colhi- acontece às comunidades. Ao reforçar e construir um senso de comu-
das até agora prometem muito. Nas minhas visitas à Nova Zelândia, nidade: os Círculos de Sentenciamento aprimoram a capacidade da
ouvi histórias dramáticas, em geral contadas por profissionais que comumdade de curar indivíduos e famílias e, em última análise, pre-
não costumam se deixar enganar facilmente, como juízes, policiais vemr o cnme. Eles são uma importante oportunidade para as pessoas
e advogados. melhorarem sua auto-imagem participando significativamente de um
processo que ajuda os outros a se curarem.
Outras lições estão surgindo dos Círculos de Sentenciamento
usados em algumas comunidades de nativos canadenses. Como no
caso das CGF, os Círculos de Sentenciamento oferecem a oportunidade .Ele argumenta que esta não é uma idéia revolucionária, e se
de incorporar abordagens tradicionais de resolução de problemas no baseIa nas tradições de culturas nativas e também da sociedade oci-
contexto geral de um sistema juridico ocidental. Também nesse caso o ~ental" a~tes que esta se tornasse "dependente de 'curadores profis-
resultado do processo - inclusive planos de sentenciamento do siste- SIOnms e resolvedores de conflitos"'.
ma formal- é alcançado através de discussão e consenso. No entanto, ,No terri~ório de Yukon, onde ele atua, são utilizados vários tipos
comparados às Conferências de Grupos Familiares, há mais ênfase na de CIrculo. CIrculos de Cura são usados para tratar necessidades indi-
participação da comunidade. Os encontros ou "círculos" chegam a ser vI~ums e da comunidade, inclusive relacionamentos vítima-ofensor.
bem grandes, com muitos membros da comunidade presentes. Vanas formas de Círculos de Sentenciamento abrem espaço para de-
senvolver planos de sentenciamento ao mesmo tempo em que tratam
O juiz Barry Stuart, da jurisdição de Yukon, onde esses en-
de problemas e fatores desencadeantes da comunidade. Os Círculos
contros acontecem freqüentemente, salienta que as dimensões de
de Sentenciamento reúnem ofensor, vítima (ou seu representante),
fortalecimento da comunidade e de resolução de problemas comu-
grupos de apOlO e pessoas da comunidade interessadas em discutir o
nitários talvez sejam os resultados mais importantes dos Círculos
que aconteceu, por que aconteceu, e o que deve ser feito a respeito.
de Sentenciamento. 3 Quando a comunidade é excluída, como no
Segundo relatos, essas discussões são amplas e englobam não ape-
processo penal clássico, perdem-se grandes oportunidades de cres- nas o plan~ ~e sentenciamento mas também causas, responsabilida-
cimento e fortalecimento da mesma. Mas quando os conflitos são des c?mumtanas e necessidades de cura. Stuart enumera os seguintes
processados adequadamente, constituem um meio para construir re- obJetIVOS: 1. tratar causas e não sintomas; 2. envolver as partes de
lacionamentos entre pessoas e comunidades. Ao eliminar isso, elimi- modo pessoal, oferecendo uma oportunidade para ventilarem seus
na-se a pedra fundamental que sustenta a comunidade e a prevenção s~ntl~entos e tr_abalharem em direção a soluções; 3. reduzir a depen-
do crime. O juiz Stuart coloca dessa forma: dencla em relaçao a profissionais; 4. construir um senso comunitário.
Ele argumenta que essa abordagem é passível de implementação tanto
3. "Alternative Dispute Resolutions in Action in Canada: Community Justice Cirdes" (traba- nas CIdades como em comunidades rurais nativas.
lho não publicado, Yukon Territorial Coun, Whitehouse, Yukon). Os Círculos de Sentencia-
menta (e também as CGFS) são descritos brevemente em autos de conferência reproduzidos em Os Círculos de Sentenciamento, como também as Conferências
Restorative]ustice: Four Community Models, disponibilizados pelo MCC Canadá Victim Offender de Grupos Familiares, ampliam o escopo da resolução de problemas
Ministries, po Box 2038, Clearbrock, BC, V2T 3T8.
e propICIam a vergonha reintegradora, relata o juiz Stuart:

248 249
APÊNDICE 4

A comunidade (muitas vezes) diz ao ofensor que ele fez uma coisa má, Posfácio à terceira edição
mas também diz que ele não é uma pessoa má, que tem boas qualIda-
des que podem ser desenvolvidas [... l. Introduzir o amor, a preocupa-
ção, o apoio e a disposiçãO de perdoar no processo _de sentenclamento
é algo que influencia profundamente a atitude e açoes de mUltos ofe~­
sores. Como disse um deles: "Nunca ouvi isso antes - as pessoas nao
gostavam de ml·m. Na-o sei , comigo era sempre assim, sabe,. um cara
.
ruim que faz coisas ruins, então eu fiquei bom em fazer COlsas rums. Quando eu escrevia este livro em meados da década de 1980, às ve-
Por que não? Eu tinha raiva por causa do jeito que eles me tratavam, e
zes especulava se ele seria motivo de chacota e desprezo. É verdade
agora descubro que eles na verdade gostam de mim - que ;uerem me
que os encontros vítima-ofensor estavam sendo praticados em vários
ajudar. Eu me sinto diferente - me faz querer ser dIferente.
países naquela época, mas era algo ainda pouco conhecido do públi-
co em geral e a estrutura conceitual da justiça restaurativa era nova
Num certo aspecto, as histórias que nos chega~ da~ CG~ e CC e parecia um pouco fora de esquadro.
soam familiares aos que já trabalharam em reconc~haçao Vltlma-
Duas décadas depois a justiça restaurativa já está bem estabele-
ofensor. No entanto, a inclusão da família e da comumda~e sugerem
cida internacionalmente como movimento e campo de estudo e prá-
direções importantes que devem ser levadas a s~rio se qmsermos de-
tica. Ela continua marginal em muitas comunidades e é desconheci-
senvolver ainda mais a teoria e prática de uma JustIça que restaura.
da em outras, mas cada vez mais notícias sobre justiça restaurativa
se difundem pelo mundo afora. Ela agora é debatida por acadêmicos
Howard Zehr em conferências e os livros sobre o assunto se multiplicam rapida-
Agosto de 1995 mente nos vários idiomas. Alguns governos chegam a advogar a jus-
tiça restaurativa e custeá-la. Cada vez mais comunidades e países
estão implementando a justiça restaurativa. Muitas pessoas buscam
carreiras nesse campo.
Nós que estivemos envolvidos nisso nos anos 1980 jamais terí-
amos sonhado que a justiça restaurativa viraria assunto de debate e
até seria praticada em lugares como a Rússia e a África do Sul. Nem
poderíamos imaginar que a justiça restaurativa se tornasse um pro-
cesso judicial padrão, tendo o sistema de varas criminais servindo
como segurança, como no caso do sistema da Nova Zelândia para
menores infratores.
O campo da justiça restaurativa começou com ofensas relativa-
mente "leves", mas começa a se ampliar incluindo casos de violência
grave e até casos de pena de morte. Além disso, a abordagem chegou

250 251
-
POSFÁCIO À TERCEIRA EDIÇÀO
POSFÁCIO Á TERCEIRA EDIÇAo

muito além da justiça criminal, tendo entrado nas escolas, ~ocais de A validade dessa descrição torna-se cada vez mais evidente à
trabalho, e mesmo no âmbito social em situações pós-conflIto. medida que a articulação ocidental da justiça restaurativa interage
Num período relativamente curto de tempo o fio de água se com outras culturas e tradições religiosas. Nas minhas aulas, que
transformou num rio. recebem praticantes de vários países e tradições, os alunos muitas
Aprendemos muito com essas experiências e int~rações. Uma vezes descobrem que a justiça restaurativa tem uma ligação muito
. aprendemos é que embora a justiça restauratIva seja essen- profunda com suas próprias tradições culturais e religiosas, mas que
COIsa que . 1. - - fun a teoria, prática e pressupostos básicos não podem ser simplesmente
cialmente um conceito muito simples, suas Imp lCaçoes sao pro , .-
transportados para seus próprios contextos.
das, complexas e até problemáticas. De fato, junto com a ~o~ nOtlCIa
d seu impacto positivo veio a má notícia sobre as mevltavelS ~orças Por outro lado, a justiça restaurativa é um importante catalisa-
d: cooptação e deturpação (esboçadas no Apêndice 2) que esta o em dor para discussões em variados contextos - sempre que for tomada
franca expansão. pelo que é, e não como um pacote pronto para implementação. Na
Se eu fosse escrever este livro hoje, à luz de tudo que foi apren- melhor das hipóteses ajustiça restaurativa é uma bússola que aponta
dido nas últimas décadas, faria algumas coisas de modo dIferente. a direção, não um mapa detalhado que descreve como se chega lá.
No entanto, acredito que a estrutura básica e argumentos do livro Em última análise o mais importante da justiça restauratíva talvez
. não seja sua teoria ou prática específica, mas o modo como ela abre,
contmuam va'l·d
1 os . A maioria das mudanças senam mudanças de ,
no âmbito de nossas comunidades e sociedades, o diálogo, a explo-
ênfase ou ampliação de alguns tópicos. A seguir abordo alguns to-
ração dos nossos pressupostos e necessidades. O que queremos di-
Picos que gostaria de acrescentar ou explorar com malS detalhe. A zer com a palavra justiça? Os sistemas vigentes fazem justiça? O que
. lusive alguns
. - sugere fantes, mc
bibliografia para esta edlçao , . de meus
precisa mudar? Quais são nossos valores, o que é importante para
livros mais recentes, para estudo mais detido desses toplCOS Ce as
nós? Quando conduzo oficinas sobre justiça restaurativa inevitavel-
referências abaixo podem ser encontradas ali).
mente falamos não apenas sobre o sistema de justiça formal, mas
Nas aulas que ministro para a graduação em justiça restaura=i- também sobre as escolas, comunidades e o modo como vivemos em
va muitas vezes peço aos participantes que escrevam uma re~açao sociedade. Tais discussões em geral abrem janelas de esperança no
obre como o livro Trocando as lentes poderia ser melhorado a l.uz sentido de permitir que tentemos fazer as coisas de outro modo.
~as experiências e escritos posteriores. Nesse sentido, Gary Shaplro
A seguir, portanto, alguns dos temas que gostaria de tratar caso
manifestou uma característica fundamental desse livro, que devemos estivesse escrevendo Trocando as lentes hoje em dia.
ter em mente:

o contexto é basicamente moderno, ocidental, racionalista,. cristão,


Questões pertinentes às partes interessadas
..
liberal-democrata e indlV1dua 1·1sta. O que falt a é uma. perspectlva
_ . ma1S A justiça restaurativa surgiu, em parte, da análise das necessidades e
ampla e profunda que integre a cultura social e po.lítlca n~o o~ldental e
papéis daqueles que têm um "interesse" na justiça. Este livro identi-
coletivista com uma espiritualidade não hierárqUlca e nao telsta.
fica tais interessados como sendo em primeira instância as vítimas,
os ofensores e as comunidades. Ele fala relativamente pouco sobre

252 253
POSFÃCIO À TERCEIRA EDIÇÀO POSFÃCIO À TERCEIRA EDIÇÃO

o papel do governo enquanto parte interessa~a. Embora isso reflita experiência, os governos representam legitimamente os interesses
um viés pessoal favorável às iniciativas da. sOCledade clVIl, e um.c~­ da comunidade.
to ceticismo em relação ao governo (advmdo, em parte, de mm a Hoje tenho bem mais experiência com vítimas de crime do que
formação religiosa anabatista), o governo de fato tem inter~sses em tinha nos anos 1980 e, portanto, poderia falar muito mais sobre seu
'ogo e um papel importante na justiça restaurativa. No mmImo, o ponto de vista. Se eu fosse escrever de novo, seria bem mais espe-
Jgoverno tem a importante função de alicerçar esses processos, sa~va­ cífico sobre quais são suas necessidades em relação ao processo de
guardando direitos humanos e oferecendo proc~dimentos que deem justiça, e também sobre os desafios de criar uma justiça restaurativa
conta das situações quando não é possível aplrcar uma abordagem realmente voltada para a vítima. Do mesmo modo, muito mais po-
totalmente restaurativa. Mas o papel apropriado do governo é um deria ser dito sobre os ofensores. Interessei-me especialmente pelo
tema complexo e muito discutido no campo jurídico. papel desempenhado pela vergonha e pelo trauma na vida de ofen-
Nos últimos anos a questão comunitária vem se tornando mui- sores e vítimas e pela importância de criar novas narrativas de vida
to mais parte da justiça restaurativa, mas também. mais complexa e para conseguir superar o passado.
contenciosa. Muitos defensores da justiça restauratlva entendem que Desde o lançamento do livro desbravador de John Braíthwaite,
ela não estará completa a menos que a comunidade esteja plenamen- Crime, Shame and Reintegration, a vergonha tornou-se um importante
te representada no processo restaurativo. Alguns argu~entam que as A
tema de debate dentro da justiça restaurativa. Braithwaite argumenta
abordagens de justiça restaurativa, como os processos Clrculares, tem que a vergonha se torna estigmatizante se não for apropriadamente
potencial para incentivar uma forma mais participativa de democra- gerenciada, e quando ela se torna um estigma, acaba por estimular
cia no âmbito da comunidade. Eles sugerem que um dos critérios de comportamentos ofensivos. Ele argumenta também que boa parte
avaliação da justiça restaurativa seja justamente su~ capaci~ad.e de dos processos judiciais que conhecemos no Ocidente são estigma-
fortalecer a comunidade. Seja como for, as comumdades tem mte- tizantes, o que ajuda a perpetuar o ciclo ofensivo. Contudo, argu-
resse porque em certa medida elas também são vítimas, e também menta que a vergonha pode ser positiva e "reíntegradora" se ade-
têm obrigações, representando um recurso importante. quadamente aplicada e gerenciada, como no caso das conferências
Embora a importãncia da comunidade na justiça restaura.tiva restaurativas. Mas alguns duvidam que a vergonha possa ser uma
tenha sido enfatizada de modo crescente, a definição de comumda- força positiva. Outros se preocupam com que certos praticantes de
de continua objeto de grande debate. Como definir a comunidade? justiça restaurativa estejam interpretando maIo recado de Braithwai-
O que significa na prática? Qual o papel adequado do governo no te e outros. Em vez de se concentrarem em como remover e trans-
tocante às iniciativas comunitárias? Alguns defendem que a comu- formar a vergonha de modo a torná-la reintegradora, praticantes f'
nidade deveria ser proprietária e gerenciar os processos restaurat~­ participantes por vezes se empenham para que os ofensores sinta'
vos enquanto outros entendem que a comunidade está por demars vergonha, uma estratégia que tenderá a ser um tiro pela culatra.
traumatizada e doente para podermos confiar a ela esse processo. Estou convencido de que as questões de vergonha e humilha-
Aqueles que vivem em contextos como os da Europa oci.dental, ção - e seus opostos: o respeito, a dignidade e a honra - são de fato
onde a maioria dos governos desempenhou um papel pOSItIVO Im- importantes para compreendermos a experiência e necessidades de
portante para o bem-estar social, argumentam que, segundo sua ofensores e vítimas. Vergonha e respeito, humilhação e honra têm

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POSFÁCIO À TERCEIRA EDIÇÀO POSFÁCIO À TERCEIRA EDIÇÀO

enorme poder analítico e podem nos ajudar a compreender as expe- valores básicos, princípios e abordagens dessas tradições combina-
riências, motivações e perspectivas de ofensores e também de víti- dos com a moderna realidade e sensibilidade quanto aos direitos
mas. Vivências de vergonha e desrespeito também ajudam a explicar humanos. Colocando de outra forma, um juiz maori de uma vara de
por que tantas vezes a justiça produz resultados contrários ao seu menores da Nova Zelândia me disse uma vez que minha abordagem
propósito. Não creio que devamos impor vergonha propositalmente de justiça restaurativa era uma forma de articular os elementos-cha-
ao ofensor. Ao longo do processo da justiça restaurativa a experiên- ve de sua própria tradição de modo que fossem compreensíveis e
cia de encontrar a vítima e familiares, de criar empatia com eles, em aceitáveis para um ocidental.
geral já provoca vergonha em boa parte dos ofensores naturalmente. No capítulo 7 descrevi brevemente a "revolução jurídica" que
Nossos esforços devem se concentrar em buscar maneiras para que o promoveu um sistema judicial mais retributivo. Se eu integrasse pes-
ofensor possa se livrar da vergonha, na medida do possível transfor- quisas históricas mais recentes seria possível traçar um quadro mais
mando-a em um senso de respeito próprio. completo de como a teoria jurídica e a teologia em desenvolvimento
se distorceram e reforçaram mutuamente, implantando valores pu-
nitivos nas profundezas da cultura ocidental.
História e origens
Ao escrever sobre a minha própria tradição "indígena" européia, na
época em que o livro foi escrito, não atentei suficientemente para o conceito de justiça restaurativa
tudo que a justiça restaurativa deve a muitas tradições indígenas.
Embora meu conceito básico de justiça restaurativa não tenha mu-
Dois povos fizeram contribuições profundas e muito específicas às
dado fundamentalmente ao longo das centenas de conferências que
práticas nesse campo: os povos das primeiras nações do Canadá e
proferi e debates que coordenei, o modo como a descrevo tornou-
dos .Estados Unidos e os maori da Nova Zelãndia. Mas de muitas
se mais claro. Hoje muitas vezes descrevo a justiça restaurativa da
maneiras a justiça restaurativa representa a validação de valores e
seguinte forma:
práticas que são característicos de muitos grupos indígenas. En-
quanto alguns tentam desqualificar essa alegação como um "mito
de origem", verifiquei que a justiça restaurativa tem eco em muitas A justiça restaurativa ...
tradições indígenas com as quais tive contato nas minhas aulas e 1. Tem foco nos danos e conseqüentes necessidades (da vítima,
viagens. Braithwaite escreveu que ele ainda está para encontrar uma mas também da comunidade e do ofensor).
tradição indígena que não tenha elementos de justiça restaurativa e
2. Trata das obrigações resultantes desses danos (obrigações do
retributiva, e isso confere também com a minha experiência.
ofensor mas também da comunidade e da SOCiedade).
Hoje vejo a justiça restaurativa como um modo de legitimação e
3. Utiliza processos inclusivos e cooperativos.
resgate dos elementos restaurativos das nossas tradições - tradições
que foram freqüentemente desprezadas e reprimidas pelos coloni- 4. Envolve todos os que têm um interesse na situação (vítimas,
zadores europeus. No entanto, a justiça restaurativa moderna não ofensores, a comunidade, a sociedade).
é uma simples recriação do passado, mas sim adaptação de alguns 5. Busca corrigir os males.

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POSFÃCIO À TERCEIRA EDIÇÃO POSFÃCIO À TERCEIRA EDIÇÃO

Às vezes descrevo a justiça restaurativa como uma roda. No cen- Quem sofreu o dano?
tro dessa roda está o eixo, que é o esforço no sentido de "concertar" o Quais são suas necessidades?
mal feito, na medida do possível (item 5 acima). No entanto, a minha
Quem tem obrigação de supri-las?
visão desse esforço se ampliou. Depois de ouvir as vitimas e também
observar os participantes das conferências de grupos familiares na Quais as causas?
Nova Zelândia - e especialmente os participantes maoris, percebi que Quem tem interesse na situação?
"corrigir" significa que devemos tratar dos danos e necessidades das Qual o processo apropriado para envolver os interessados no
vitimas, mas também as causas da ofensa. Assim, o plano que emerge esforço de tratar das causas e corrigir a situação?
das conferências de justiça para a juventude da Nova Zelândia deve ter
duas partes fundamentais: um plano para cuidar dos danos e necessi-
dades da vitima, e um plano para tratar daquilo que está acontecendo Nas páginas anteriores descrevi a 'Justiça retributiva" como
na vida do jovem ofensor e que contribuiu para levá-lo à ofensa. Isto muito distinta da justiça restaurativa. Embora acredite que tais com-
representa um esforço holístico para corrigir a situação. parações ainda sejam úteis como ferramentas, não me valho mais de
dicotomias tão marcadas. De fato, alguns críticos apontam que estas
Em volta do eixo da roda (o esforço para corrigir) há quatro
dicotomias refletem a mesma abordagem adversarial que procuro
raios (os itens 1 a 4 listados acima). A justiça restaurativa trata de
criticar nesta obra. Há três dimensões que valem a pena ser exami-
danos e necessidades bem como das obrigações decorrentes, e en-
nadas nesse particular:
volve todos os que sofrem o impacto ou têm algum interesse na
situação utilizando, na medida do possível, processos cooperativos
e inclusivos. 1. O ensaio de Conrad Burk em The Spiritual Roots of Restorative Jus-
. Uma roda não funciona apenas com um eixo e raios. É preciso tice me ajudou a perceber que no nível teórico a retribuição e a
um aro, e para mim fica cada vez mais claro que esse aro são os va- restauração têm muito em comum. O objetivo principal tanto
lores que cercam e alicerçam nosso trabalho. Uma crítica importante da teoria retributiva como da restaurativa é conseguir reciproci-
à justiça restaurativa contida nesse livro é que ela focaliza princípios dade "igualando o placar". A diferença repousa naquilo que de
mas não os valores subjacentes a esses princípios. De fato, é possível fato conseguirá igualar os pratos da balança. Ambas reconhe-
seguir os princípios da justiça restaurativa e, ainda assim, fazer coi- cem a intuição ética básica de que o mal feito desestabilizou um
sas bem pouco restaurativas - a menos que enunciemos claramente equilíbrio. Em conseqúência, a vítima merece algo e o ofensor
e nos deixemos guiar por seus valores subjacentes. Discutirei três deve algo. As duas abordagens propõem que deve haver um
desses valores mais adiante. relacionamento proporcional entre o ato e a reação. Mas dife-
No fundo, Trocando as lentes nos incita a mudar as perguntas que rem quanto à moeda que quitará as obrigações e endireitará os
fazemos. Em vez de nos preocuparmos com as três perguntas que pratos da balança.
dominam o sistema judicial ocidental (Que lei foi violada? Quem fez A teoria retributiva crê que a dor vindicará, mas na prática isto
isso? O que ele merece?), proponho que sejamos guiados pelo que é contraproducente tanto para a vitima como para o ofensor. A
denominei Perguntas Guia da Justiça Restaurativa: teoria da justiça restaurativa, por outro lado, argumenta que a

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POSFÁCIO À TERCEIRA EDIÇAO

vindicação vem do reconhecimento dos danos sofridos pela ví- dentro da realidade da situação, talvez colocando a justiça res-
tima e de suas necessidades, junto com um esforço ativo no sen- taurativa como procedimento padrão, à semelhança do sistema
tido de incentivar os ofensores a assumirem a responsabilidade de justiça para a juventude, vigente na Nova Zelândia.
e corrigirem o mal, e de tratar as causas de seu comportamento O ideal, talvez, fosse um sistema com base e cerne restaurativos ,
lesivo. Ao criar um contexto positivo para a necessidade de vin- mas com opções menos restaurativas para quando as mais res-
dicação, a justiça restaurativa tem o potencial de afirmar tanto taurativas não forem eficazes ou apropriadas. Em Restorative Jus-
VÍtima como ofensor e ajudá-los a transformarem suas vidas. tice and Responsive Regulation, Braithwaite argumenta que, usadas
Portanto, pintar a retribuição e a restauração como mutuamente como último recurso, as opções menos restaurativas (como inti-
excludentes acaba por diminuir as possibilidades de exploração midação e privação de liberdade) se tornam mais eficazes num
de traços comuns e interesses mútuos entre aqueles que defen- contexto restaurativo do que num contexto punitivo.
dem uma e outra. Colocá-las como opostos também obscurece 3. Dentro da justiça restaurativa, vejo um contínuo que vai do total-
os elementos retributivos que podem ser parte de uma aborda- mente restaurativo numa ponta até o não restaurativo na outra.
gem restaurativa. Entre esses dois pólos teremos variadas opções com qualidades
restaurativas. Algumas serão parcialmente restaurativas e algumas
potencialmente restaurativas. Algumas abordagens - como os ser-
2. Ao invés de opostas, as duas abordagens à justiça - a abordagem viços de atendimento às VÍtimas - são essenciais dentro de um sis-
legalista e a restaurativa - podem ser vistas como o começo e o tema restaurativo, mas não podem, sozinhas, dar conta de todos
fim de uma escala ou medida. Por vezes o ponteiro irá mais para os critérios de um sistema restaurativo, visto que não podem tra-
o lado legalista, outras vezes mais para o lado restaurativo. Como tar adequadamente de questões relativas ao ofensor. Outras abor-
mencionei antes, ao trabalhar em regiões do mundo onde não dagens, como os programas de restituição dos serviços comuni-
existe um sistema legal que funcione bem e onde inexiste uma tários, podem ser restaurativos se adequadamente concebidos e
tradição clara de direitos humanos, percebi que precisamos de implementados, embora a maioria dos programas existentes não
sistemas judiciais bem estruturados que ajudem a salvaguardar sejam restaurativos. Essa precisão analítica e terminológica ganha
esses direitos e a estabelecer algum tipo de "verdade" quando importância à medida que o termo 'Justiça restaurativa" se trans-
tais direitos estão sendo negados. Não se pode presumir que forma num chamariz utilizado por várias abordagens, algumas
esses sistemas existam sempre. Contudo, também é preciso ver das quais não são nem um pouco restaurativas.
claramente os pontos fracos da abordagem legalista ocidental
e trabalhar no sentido de obter, do nosso sistema e nos casos
dos quais cuidamos, processos e resultados que sejam tão res- A discussão que vem sendo travada sobre a adequação ou não
taurativos quanto possível. Em dados momentos avançaremos do termo 'Justiça restaurativa" apresenta críticas em pelo menos dois
bastante em direção ao extremo restaurativo, enquanto que ou- níveis. Em primeiro lugar, como se reconhece em Trocando as lentes,
tras vezes talvez caminhemos muito pouco naquela direção. O as palavras com prefixo "re" são problemáticas porque muitos dos
objetivo deve ser um processo tão restaurativo quanto possível envolvidos ou interessados no processo não entram nele buscando

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POSFÀCIO À TERCEIRA EDIÇÃO

um retorno ao estado anterior, mas querem progredir para condi- No entanto, embora as "entrevistas" vitima-ofensor (nunca gostei do
ções novas e melhores. De fato, a necessidade na maioria dos casos termo "mediação" para esses encontros, embora seja muito usado)
é de achar uma nova realidade. Alguns sugeriram que "justiça trans- continuem sendo a forma predominante de justiça restaurativa pra-
formadora" seria um termo mais preciso. ticada nos Estados Unidos, duas novas formas de encontro foram
criadas - todas com raízes em comunidades indígenas. Ambas am-
Os partidários desse termo também observam, com razão, que
pliam bastante o círculo de envolvimento e impacto. Descrevi as
se a justiça restaurativa replicar a ênfase dada aos indivíduos pelo
Conferências de Grupos Familiares no Apêndice 4, que foi incluído
sistema judiciário sem tratar das causas mais amplas, estruturais, da
neste livro na edição de 1995. Desde então essas formas de encontro
ofensa e vitimização, ela continuará a perpetuar o crime. Eles advo-
vêm se mesclando cada vez mais, de modo que as distinções entre
gam, portanto, uma abordagem transformadora para a justiça, que
elas vão ficando menos nítidas. O que ficou claro é o valor de se au-
não apenas trate da questão do ato lesivo individual mas também
mentar o número de interessados envolvidos e, em muitas situações,
dos danos e obrigações inerentes aos sistemas sociais, econômicos e
o número de assuntos abordados nesses encontros.
políticos. A meu ver a justiça restaurativa deveria incluir uma justiça
transformadora nesse sentido, muito embora perceba que na prática Uma das modalidades dessa prática dentro do campo da justiça
esse aspecto tende a ficar de lado. Reconheço também que a formu- criminal, e uma que jamais teria sido prevista, é sua aplicação nos
lação da justiça restaurativa, na forma como aparece em Trocando as casos de pena de morte nos Estados Unidos. O movimento Apoio
lentes, provavelmente não lida satisfatoriamente com essas questões a Vitimas com Base na Defesa (Defense Based Victim Outreach -
DEVO), criado pela pioneira Tammy Krause, minha ex-aluna, atua
estruturais mais amplas.
em casos de pena de morte criando uma ponte entre a família da
Em Trocando as lentes tentei explorar os pressupostos básicos
vítima de assassinato e os advogados de defesa a fim de ajudar no
- expressos e velados - que estão na base de nossa compreensão do
atendimento das necessidades das vítimas e reduzir os traumas do
crime e da justiça. Para usar um termo mais recente, nesta obra faço
processo judicial. Funcionando a partir dos princípios de justiça res-
um convite à reestruturação da nossa compreensão a respeito. Mas
taurativa, em função do eixo de necessidades da vítima e obrigações
o que eu não compreendia na época em que escrevi era que nossos
do ofensor, um "especialista em apoio a vítimas" trabalha com as
pressupostos e estruturas estão profundamente sedimentados e mol-
vitimas para identificar quais são suas necessidades e o que querem
dados pela linguagem e pela metáfora. Se eu fosse reescrever este
obter do processo penal, aquilo que for possível obter do ofensor e
livro, exploraria mais essa dimensão. de seu advogado de defesa. Muitas vezes essa necessidade é de infor-
Resumindo, a troca de lentes envolve uma troca de perguntas e mação autêntica sobre o que aconteceu durante o crime e o que vai
de metáforas. acontecer durante o processo. Os sobreviventes muitas vezes que-
rem que o ofensor reconheça sua responsabilidade. Freqúentemente
o trabalho com as vítimas chega a resultar em acordos que levam o
Na prática ofensor, entre outras coisas, a declarar-se culpado, reconhecendo as-
Como mencionei antes, a prática da justiça restaurativa foi muito sim sua responsabilidade. Em outros casos os especialistas de apoio
além da utilização de encontros vítima-ofensor para casos de roubo. às vitimas se limitam a cuidar daquelas necessidades das vítimas que

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podem ser atendidas dentro do processo judicial padrão. Embora o sistema criminal ocidental tem o propósito de promover al-
esses casos em geral levem a um encontro entre os sobreviventes guns valores positivos importantes: os direitos inerentes da pessoa,
e o ofensor, no mais das vezes trata-se de uma justiça restaurativa os limites do comportamento aceitável, a importância da justiça e
parcial, com ênfase no empoderamento das vítimas, atendimento da coerência. Contudo, o faz de modo bastante negativo, afirman-
de algumas de suas necessidades, e redução do trauma criado pelo do "faça isso, ou então ... "; faremos a você aquilo que você fez aos
processo judicial. outros; o sofrimento se paga com sofrimento; a penalidade é um es-
pelho da ofensa. Um dos motivos pelos quais temos tanta literatura
Em uns poucos anos esse movimento de Apoio a Vitimas com
racionalizando o princípio da punição é que o Estado tem o poder
Base na Defesa caminha para se tornar a norma nos casos federais
de infligir dor, muito embora esse ato seja visto na maior parte das
de pena capital. Cada vez mais ele é visto como parte essencial da
vezes como algo eticamente questionável.
responsabilidade dos advogados de defesa. No final de 2004, o
Comitê de Serviços de Defesa da Conferência Judicial dos Estados Para manter o sistema humanizado e para mitigar o sofrimento
Unidos - um comitê de juízes federais que supervisiona o serviço que causamos, somos obrigados a nos reportar a valores importantes
que são alheios ao sistema ético da justiça. Por exemplo, é necessário
de defensores da justiça gratuita - reconheceu que esse trabalho
ensinar os praticantes de justiça restaurativa a tratar com humani-
deve ser parte da investigação que a defesa deve empreender nos
dade os ofensores porque nossa visão punitiva e baseada no 'Justo
casos de pena capital.
castigo" não enfatiza esse valor. Valores importados são sempre me-
nos eficazes do que os valores internos. Além disso, a abordagem
punitiva da justiça não oferece em si mesma uma visão do bem ou
Um modo de vida?
de como queremos conviver.
Ao longo dos anos tenho ouvido muitas pessoas argumentarem A justiça restaurativa, por outro lado, oferece um sistema de
que a justiça restaurativa é um modo de vida. No início isso me valores inerentemente positivo e relativamente coerente. Ela traduz
causava perplexidade. Como pode uma estrutura conceitual - e uma visão do bem e de como queremos conviver. Semelhante a mui-
um conceito até bem simples - projetado para aplicação a crimes tas tradições religiosas e indígenas, a justiça restaurativa se funda no
ser visto como algo que transforma a vida ou como um modo de pressuposto de que, como indivíduos, nós estamos todos interliga-
vida? dos, e o que fazemos afeta todas as outras pessoas e vice-versa. Assim,
Mas recentemente conclui que a justiça restaurativa como os princípios básicos da justiça restaurativa constituem orientações
"modo de vida" diz respeito ao sistema ético que a justiça restaura- que a maioria de nós gostaria que regessem o nosso convívio diário.
tiva encarna. Alguns sustentam que a justiça restaurativa reflete ou A justiça restaurativa nos faz lembrar da importância dos relaciona-
toca valores universais - daí sua ligação com tantas tradições indí- mentos, nos incita a considerar o impacto de nosso comportamento
genas e religiosas. Seja isso verdadeiro ou não (pessoalmente acho sobre os outros e as obrigações geradas pelas nossas ações. Ela en-
que deve ser), a justiça restaurativa de fato corporifica um sistema de fatiza a dignidade que todos merecemos. Talvez, portanto, a justiça
valores lógico e internamente coerente, algo que não pode ser dito restaurativa de fato sugira um modo de vida.
da justiça criminal.

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POSFÃCIO À TERCEIRA EDIÇÀO POSFÃCIO À TERCEIRA EDIÇÃO

Valores dificilmente conseguimos perceber conscientemente. A humildade


nos convida a apreciar com profundidade e grande abertura a reali-
Como observei anteriormente, a "roda" da justiça deve estar cercada
dade do outro. Tal abertura é de vital importância num mundo cada
por um aro de valores. Três deles se tornaram especialmente impor- vez mais polarizado.
tantes para mim.
Somente a humildade pode nos proteger de uma justiça que,
O primeiro é o respeito. Estou convencido de que a questão
enquanto libertadora para nós, se torna um fardo para os outros
do respeito é central em boa parte das ofensas e no modo negativo - ou, como aconteceu em muitas outras "reformas" precedentes, se
como muitos ofensores vivenciam a justiça. Da mesma forma, res- torna uma arma contra as pessoas. Há uma lição a ser aprendida do
peito e desrespeito desempenham papéis importantes no proce~so histórico do sistema prisional moderno: ele foi introduzido como
de trauma e recuperação das vítimas, bem como no modo negatIvo reforma, mas logo se tornou tão brutal que o movimento para re-
como vivenciam a justiça. formá-lo é quase tão antigo quanto o próprio. A humildade pede
Para dizer com poucas palavras, a justiça restaurativa é respei- àqueles que defendem a justiça restaurativa que ouçam nossos de-
to. Se levarmos esse valor a sério, tentando ativamente respeitar as tratores, comparem nossas visões com a realidade, sejam a um só
perspectivas, necessidades e valor de todos os envolvidos, inevita- tempo defensores e críticos.
velmente faremos justiça de modo restaurativo. O terceiro valor é o maravilhamento, o assombro. O modo oci-
O segundo valor chave é a humildade. lncluo nesse termo dental de conhecer foi profundamente influenciado pelo filósofo
sua acepção comum, a idéia de não desejar excessivo reconheci- Descartes. Sua abordagem epistemológica básica era a dúvida. Du-
mento. De fato, esse é um valor importante para os profisslOnaIs vide de tudo, dizia ele, até que possa encontrar alguma certeza. Para
da justiça restaurativa. Quando a justiça é bem feita, em geral os ele a única certeza era o axioma "penso, logo existo". Essa tese da
participantes não atentam para o papel do facilitador, e é impor- dúvida tem seus pontos fortes - eu mesmo argumentei acima que a
tante que os profissionais possam viver bem com essa falta de humildade pede que sejamos um pouco céticos em relação ao que
reconhecimento. sabemos e fazemos - mas uma atitude de ceticismo generalizado
Mas com o termo humildade quero significar também algo mais pode levar a um alto grau de cinismo.
básico e mais difícil: um reconhecimento profundo dos limites do Meu professor Delbert Wiens começou o curso de filosofia do
nosso conhecimento. Um dos princípios no cerne da justiça restau- meu primeiro ano de faculdade reconhecendo este axioma do pen-
rativa é o de que ela deve ser contextual, ou seja, moldada sempre a samento ocidental e depois sugerindo uma correção: o modo de en-
partir do zero em cima de um dado contexto. A humildade nos ajuda carar o mundo é através do maravilhamento. Essa visão vem se tor-
a ter muito cuidado e não fazer generalizações, aplicando o que pre- nando cada vez mais importante para mim e, acredito, também para
sumimos saber às situações de outras pessoas. A humildade também o campo da justiça restaurativa. O maravilhamento, o assombro, sig-
nos força a ter profunda consciência de como nossa biografia pessoal nificam a apreciação do mistério, da ambigüidade, do paradoxo e até
molda conhecimento e preconceitos. Nosso gênero, cultura, etnia e das contradições. A habilidade de viver com aquilo que desconhece-
histórico pessoal e coletivo informam profundamente o modo como mos, com surpresas e com o aparentemente ilógico é essencial para
conhecemos e o objeto do nosso conhecimento, e de uma forma que a prática adequada da justiça restaurativa.

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POSFÀCIO À TERCEIRA EDIÇÃO

Em seu livro My Story as Told by Water (San Francisco: Sierra


Club Books, 2001), David James Duncan define assim o maravilha-
Ensaio bibliográfico à terceira edição
mento: "Maravilhamento é vivenciar o desconhecido como prazer".
Nessa perspectiva, o campo da justiça restaurativa promete ser mui-
to prazeroso. Embora a justiça restaurativa contemporânea já tenha
mais de 25 anos de história, e apesar de suas raízes estarem fincadas
na história da humanidade, ainda estamos começando a aprender.
Há muita coisa que ainda não sabemos. Quinze anos depois de lançada a primeira edição de Trocando as
No posfácio à primeira edição de Trocando as lentes, descrevi a lentes em inglês, a literatura sobre justiça restaurativa e assuntos cor-
justiça restaurativa como "uma destinação ainda incerta de uma jor- relatos cresceu exponencialmente. Em 1997, Paul McCold publicou
nada necessariamente longa e serpenteante". Hoje, muitas décadas sua obra Restoratíve justíce: An Annotated Bíblíography (Monsey: Cri-
depois, posso dizer com confiança que, embora a jornada ainda se minal Justice Press), com 150 páginas, e desde então centenas de
mostre cheia de curvas, o destino não é mais tão incerto. outros livros e artigos foram lançados.
Acredito que se embarcarmos nessa viagem com respeito e hu- Neste ensaio bibliográfico procurei ser abrangente. De fato, esta
mildade, com uma atitude de maravilhamento, ela poderá nos levar é uma seleção dos livros mais recentes que me interessaram especial-
ao mundo que desejamos para nossos filhos e netos. mente na última década, ou livros que penso serem de interesse para
o leitor que está a menos tempo em contato com a justiça restaura-
tiva. As fontes que foram especialmente importantes no desenvolvi-
mento do conceito proposto em Trocando as lentes estão elencadas
nas notas de rodapé.
Para obter mais referências sugiro o excelente sUe da Prison
Fellowship: www.restorativejustice.org, que declara ter, e deve mes-
mo ter, a maior bibliografia comentada sobre justiça restaurativa da
internet. Ali também se encontram conexões para outros sUes.

Capítulo 2 - A vítima
o livro pioneiro de Judith Lewis Herman, Trauma and Recovery (Nova
York: BasicBooks, 1997) é leitura essencial nas áreas de vitimização
e trauma. Também apreciei o livro de Sandra Bloom, Creating Sanc-
tuary: Toward the Evolution of Sane Societies (Nova York: Routledge,
1997), por sua compreensão do trauma e dos relacionamentos en-

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ENSAIO BIBLIOGRÁFICO A TERCEIRA EDIÇÃO

tre trauma e estrutura social. Lisa Bames Lampman e Michelle D. bridge University Press, 1996), explora a questão racial no sistema
Shattuck editaram o livro God and the Victim: Theological Reflections de justiça criminal.
on Evil, Victimization, ]ustice, and Forgiveness (Grand Rapids: Wm. Para compreender as necessidades e perspectivas do ofen-
B. Eerdmans Publishing, 1999), que é uma coletânea de trabalhos sor, considero de especial importância os livros de Shadd Maruna,
apresentados em conferência. Embora ele tenha um leve sabor aca- Making Good: How Ex-Convicts Reform and Rebuild Their Lives (Wa-
dêmico, debate algumas questões teológicas fundamentais no tocan- shington, DC American Psychological Association Books, 2001) e
te à vitimização. de James Gilligan: Violence: Reflections of a National Epidemic (Nova
Minha própria sinopse recente sobre a experiência da vítima, York: Vintage Books, 1996).
combinada com depoimentos de vítimas, está em Transcending: Re- O estudo de Vivien Stem: A Sin Against the Future: Imprisonment
flections of Crime Victims (Intercourse: Good Books, 2001). in the World (Boston: Northeastem University Press, 1998), e o livro
de Susan Cook e Susanne Davies: Harsh Punishment: Intemational
Experiences of Womens Imprisonment (Boston: North-eastern Uni-
Capítulo 3 - O ofensor versity Press, 2000) examinam o fenômeno do aprisionamento no
mundo todo.
Muitas obras escritas por ou sobre prisioneiros continuam a ser
lançadas. Dentre essas coletâneas estão: Bell Gale Chevigny (ed.), O livro de David Cayley, The Expanding Prison: The Crisis in Cri-
Doing Time: 25 Years of Prison Writing (N ova York: Arcade Publishing, me and Punishment and the Search for Altematives (Toronto: House of
1999); Robert Johnson e Hans Toch (eds.), Crime and Punishment: Anansi Press, 1998) surgiu de uma série de entrevistas concedidas
Inside Views (Los Angeles: Roxbury Publishing, 2000); e Lori B. Gir- à rádio à Canadian Broadcast Corporation e constitui leitura impor-
shick, No Safe Haven: Stories of Women in Prison (Boston: Northeas- tante quanto à teoria da punição e sua prática, bem como muitos dos
tem University Press, 2000). O livro Too Much Time (Londres: Phai- assuntos a seguir.
don Press, 2000) de Jane Evelyn Atwood inclui fotos e escritos de
mulheres na prisão.
Capítulo 4 - Temas comuns
Meu livro Doing Life: Reflections of Men and Women Serving Life
Sentences (Intercourse: Good Books, 1996) oferece retratos e depoi- A questão do perdão vem se tornando popular nos últimos anos e
mentos de homens e mulheres cumprindo prisão perpétua. a literatura é substancial. Gostei do livro de Cynthia Ransley e Terri
Spy, Forgiveness and the Healing Process: A Central Therapeutic Con-
O ramo prisional é examinado em vários livros. Neles se in-
cem (Hove: Brunner-Routledge, 2004). Os editores, um cristão e o
cluem: Nils Christie, Crime Control as Industry (Nova York: Routled-
outro não, nos oferecem perspectivas bastante variadas e ricas.
ge, 1993), Joel Dyer, The PerpetuaI Prisoner Machine: How America
Profits from Crime (Boulder: Westview Press, 2000) e Daniel Burton- Wilma L. Derksen, mãe de uma menina assassinada, lançou re-
Rose, Dan Pens e Paul Wright, The Cdling of America: An Inside Look centemente seu mais novo livro: Confronting the Horror: The After-
at the u.s. Prison Industry. De Jerome Miller, Search and Destroy: Afri- math of Violence (Winnipeg: Amity Publishers, 2002). Uma leitura
can-American Males in the Criminaljustice System (Cambridge: Cam- bastante agradável é o livro de Eliot Cose intitulado Bone to Pick: Of

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ENSAIO BIBLIOGRÁFICO A TERCEIRA EDIÇAO ENSAIO BIBLIOGRÁFICO À TERCEIRA EDIÇÃO

Forgiveness, Reconciliation, Reparation, and Revenge (Nova York: Atria Capítulo 7 - A alternativa histórica
Books, 2004), que examina o fenômeno do perdão e da restauração
em vários contextos internacionais. Donald W Shriver ]r. escreveu O livro The Expandíng Prison: The Crisis in Crime and Puníshment and
the Search for AIternatíves, de David Cayley, (acima) traz uma discus-
An Ethic for Enemies: Forgiveness in Politics (Nova York: Oxford Uni-
são histórica elucidativa.
versity Press, 1995), que se debruça sobre o perdão como fenômeno
político. Nicholas Tavuchis escreveu Mea Culpa: A Sociology of Apolo- Há três livros que exploram em maior profundidade o modo
gy and Reconciliation (Stanford: Stanford University Press, 1991) que, como o desenvolvimento do sistema legal ocidental e da teologia
cristã influenciaram-se mutuamente, por sua vez fortalecendo a na-
embora seja um livro mais antigo, ainda oferece uma análise forte e
tureza punitiva da cultura ocidental. São eles: Timothy Gorringe,
útil da dinâmica da desculpa e do perdão.
God's]ust Vengeance (Nova York: Cambridge University Press, 1996),
A questão da vergonha tornou-se importante (e muito debatida) que examina essa questão na Idade Média cristã e posteriormente; T.
dentro da justiça restaurativa desde a publicação do livro de ]ohn Richard Snyder persegue o tema dentro da tradição protestante em
Braithwaite: Crime, Shame and Reintegration (Cambridge: Cambridge The Protestant Ethic and the Spirit of Puníshment (Grand Rapids: Wm.
University Press, 1989). A questão é controversa e produziu muitos B. Eerdmans, 2001); e Gil Bailie, em Víolence Unveíled: Humanity at
artigos (ver Gabrielle Maxwell e Allison Morris em CriticaI Issues in the Crossroads (Nova York: Crossroad, 1995), aplica o arcabouço de
Restorative ]ustice, Zehr e Toews (eds.), citado no capítulo 11 abai- Rene Girard a essa história.
xo). Em Violence: Rejlection of a National Epidemic (Nova York: Vinta- Um livro preferido de meus alunos de graduação em justi-
ge Books, 1996), Gilligan argumenta que a vergonha é a motivação ça restaurativa é: Rupert Ross, Return to the Teachings (Nova York:
primária da violência. Em "]ourney to Belonging" (Restorative ]usti- Penguin Books, 1996). Ross explora as diferenças entre as visões
ce: Theoretical Foundations, Elmar G. M. Weitekamp e Hans-]uergen de mundo do indígena norte-americano e do europeu. Seu livro
Kerner, eds.; Devon: Willan Publishing, 2002) eu defendo que a é parte de uma crescente literatura que examina as contribuições
vergonha atua tanto na vida de vítimas como na de ofensores. indígenas à justiça restaurativa.

Capítulos 5 e 6 - Justiça retributiva e justiça como Capítulo 8 - A alternativa bíblica


paradigma Embora muitos artigos e capítulos de livros abordem as raízes bíbli-
cas da justiça restaurativa, o livro de Christopher Marshall intitula-
O capítulo "Restorative ]ustice and the Philosophical Theories of Cri- do Beyond Retribution: A New Testament Vision for ]ustice, Crime, and
minal Punishment" escrito por Conrad G. Brunk em Hadley (ed.), Punishment (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing, 2001) é
The Spiritual Roots of Restorative ]ustice, (Albany: State University of leitura obrigatória. Meu capítulo focaliza principalmente o Antigo
New York Press, 2001), me levou a repensar o relacionamento entre Testamento, mas Marshalllança um novo olhar sobre os temas res-
retribuição e restauração. A publicação Utah Law Review, v. 23, n. 1, taurativos do Novo Testamento. Uma versão mais sucinta de sua
traz alguns trabalhos proveitosos sobre temas relativos à punição e perspectiva pode ser encontrada em Christopher Marshall, The Líttle
retribuição e também sobre outras questões da justiça restaurativa. Book ofBiblicaljustice (Intercourse: Good Books, no prelo).

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ENSAIO BIBLIOGRÁFICO À TERCEIRA EDIÇÃO
ENSAIO BIBLIOGRÁFICO À TERCEIRA EDIÇÁO

Michael Hadley editou The Spiritual Roots of Restorative justice mentos disciplinares ou judiciais envolvidos. Escrito por Kay Pra-
(Albany: State University of New York Press, 2001), cujos articu- nis, Barry Stuart e Mark Wedge, Peacemahing Circles: From Crime to
listas exploram elementos restaurativos de muitas outras tradições Community (St. Paul: Living]ustice Press, 2003) descreve essa meto-
espirituais. dologia de modo detalhado. Uma breve introdução está disponível
na obra de Kay Pranis, The Little Booh of Circle Processes (Intercourse:
Good Books, 2005).
Capítulo 9 - VORP Allison Morris e Gabriel Maxwell, dois pesquisadores neo-zelan-
Na maioria das comunidades a mediação ou conferência entre vítima deses, examinam esses processos em várias publicações. Ver, por ex.,
e ofensor não tem mais o nome de VORP, ou Programa de Reconci- Morris e Maxwell (eds.), Restorative justice for juveniles: Conferencing,
liação Vítima-Ofensor. Essa metodologia se disseminou e sofisticou. Mediation and Circles (Oxford: Hart Publishing, 2002). As pesquisas
Um dos pesquisadores que segue de perto esse movimento é Mark sobre essas abordagens variadas estão resumidas também em Brai-
Umbreit; ver, por ex., The Handbooh of Victim Offender Mediation: thwaite, Restorative justice and Response Regulation (Oxford: Oxford
. An Essential Cuide to Practice and Research (San Francisco: ]ossey- University Press, 2002). David Cayley, em The Expanding Prison: The
Bass, 2001). A metodologia vem sendo cada vez mais aplicada em Crisis in Crime and Punishment and the Search for Alternatives (ver aci-
casos de violência grave. Mark Umbreit, Betty Vos, Robert B. Coa- ma), oferece algumas histórias sobre cada uma das abordagens.
tes e Katherine A. Brown descrevem e estudam esse fenômeno em
Facing Violence: The Path of Restorative justice and Dialogue (Monsey:
Criminal ]ustice Press, 2003). Mark Yantzi, um dos facilitadores no
Capítulo 10 - Justiça restaurativa
projeto pioneiro de Elmira, Ontário, examina uma área de aplicação Daniel W Van Ness e Karen Heetderks Strong, em Restoring justice
especialmente difícil em Sexual Offending and Restoration (Waterloo, (Cincinnati: Anderson Publishing, 1997), oferecem uma visão geral
Canadá: Herald Press, 1998). da filosofia e prática da justiça restaurativa. Assim também Gerry
Ao longo dos últimos anos muitas outras áreas de aplicação da ]ohnstone em Restorative justice: Ideas, Values, and Debates (Devon:
justiça restaurativa foram surgindo. Dentre elas as conferências de Willan Publishing, 2001). Mas]olmstone também identifica proble-
grupos familiares e círculos restaurativos. O modelo original de con- mas e questões polêmicas nesse campo, sugerindo formas de tratá-
ferências de grupos familiares, que está na base de todo o sistema de las. A Restorative ]ustice Reader: Texts, sources, context (Devon: Willan
justiça para a juventude na Nova Zelândia, está descrito por Allan Publishing, 2003), ]olmstone (ed.), oferece em um único volume
MacRae e Howard Zehr em Family Croup Conferencíng, New Zealand uma seleção de algumas das fontes mais importantes no campo da
Style (Intercourse: Good Books, 2004). Um modelo de conferência justiça restaurativa. O pequeno livro escrito por ]im Consedine, Res-
diferente é promovido pela Real ]ustice Organization. O website de- torative ]ustice: Healing the Effects of Crime (Lyttelton: Ploughshares
les tem material sobre várias abordagens a essas conferências. Para Publications, 1995), oferece uma breve introdução, incluindo uma
ver a biblioteca, acesse www.realjustice.orgllibrary/index. perspectiva bíblica, mas seus capítulos são inusitados, apresentando
Os círculos estão sendo cada vez mais utilizados para tratar de várias abordagens restaurativas indígenas. Em Ruth Ann Strickland,
problemas e conflitos, mesmo nos casos em que não há procedi- Restorative ]ustice (Nova York: Peter Lang Publishing, 2004) temos

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ENSAIO BIBLIOGRÁFICO À TERCEIRA EDIÇÃO

uma visão geral recente. Denis Breton e Stephen Lehman, em seu


livro The Mystic Heart oJ justice: Restoring Wholeness in a Brohen World
Obras da Palas Athena Editora
(West Chester: Chrysalis Books, 2001), começam por uma aborda- complementares à temática
gem voltada para dentro. abordada neste livro:
Dúzias de trabalhos sobre justiça restaurativa são apresentados
e publicados todos os anos. A Willan Publishing publica estes traba-
lhos e para acessá-los veja www.willanpublishing.co.uk.
Minha própria visão atual sobre a teoria e prática da justiça res- A árvore do conhecimento
taurativa está resumida em The Líttle Booh oJ Restorative justice (Inter-
Humberto Maturana e Francisco Varela
course: Good Books, 2002).
O ponto de partida do livro se pauta na idéia da vida como sendo um
processo de busca e aquisição de conhecimento. Assim, se o objetivo é
Capítulo 11: E agora? compreendê-la, é necessário entender como os seres vivos percebem o
mundo, no processo que os autores chamam de "biologia da cognição".
Essa questão é tratada em boa parte da literatura citada no capítulo Maturana e Varela defendem a existência de uma idéia pré-concebida de
anterior. Contudo, Dennis Sullivan e Larry Tifft, em Restorative jus- mundo, e de que esta é construída ao longo da interação de um indivíduo
tice: Healing the Foundations oJ Our Everyday Líves (Monsey: Willow com o mesmo. As teorias dos autores constituem uma concepção original
Tree Press, 2001), dão exemplos de como os autores estão começan- e desafiadora, cujas conseqüências éticas agora começam a ser percebidas
do a explorar as implicações da justiça restaurativa em nossas vidas com crescente nitidez.
pessoais bem como na sociedade como um todo.
Em Criticai Issues in Restorative justice (Monsey: Criminal Jus-
tice Press, 2004), Howard Zehr e Barb Toews (eds.) convidam os Diálogo: Comunicação e redes de convivência
autores do mundo todo a contemplarem alguns perigos e problemas David Bohm
que poderão surgir à medida que a justiça restaurativa se disseminar
Expoente da física e filosofia da ciência do século xx, o americano David
e se tornar mais popular.
Bohm tem seu interesse focado nas ciências cognitivas e relações humanas,
Um dos livros recentes mais importantes que faz um apanhado e área em que se enquadra esta obra. Para Bohm, "diálogo" significa mais que
mapeia o percurso futuro da justiça restaurativa é a obra de John Brai- o simples pingue-pongue de opiniões, argumentos e pontos de vista que
thwaite: Restorative ]ustice and Responsive Regulation (citado acima). habitualmente ocorrem entre dois ou mais interlocutores. O autor parte de
uma premissa de suspensão temporária de todos os pressupostos, teorias e
opiniões arraigadas em relação aos assuntos em pauta para observar o que
emerge de novo no fluxo da conversação. O propósito de seu método é in-
vestigar o pensamento não só depois de estruturado, mas também como o
pensamento se forma, como são seus mecanismos e a sua dinãmica. O livro
foi composto a partir da edição de seminários promovidos por Bohm.

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Transcender e transformar onde a violência e o medo são vistos como naturais, e onde os mais fracos
ficam desabrigados.
Johan Galtung O modelo de parceria é mais horizontal e não privilegia os homens em
Este manual prático nos oferece um método para transcender e transformar favor das mulheres, reconhecendo os direitos não só de ambos os gêneros
conflitos - desde os pessoais e domésticos, até as dissensões internacionais como também das crianças, dos idosos, do meio ambiente, dos animais.
por motivos econõmicos e religiosos, passando por confrontos que se ori- Quando os relacionamentos são pautados pelo modelo de parceria, as pes-
ginam em questões de etnia, classe e gênero. soas mostram respeito umas pelas outras, abrem espaço para diferenças e
Revela a interligação entre o conflito, a cultura profunda e os estratos tomam cuidado com o que necessita de atenção.
sociais; mostrando que uma grande variedade de soluções está disponível Riane Eisler argumenta que já há um movimento em todo o mundo na
para nós - se estivermos dispostos a explorá-las com empatia, criatividade e direção da parceria, de relações mais democráticas, de cuidado pelas pes-
não-violência. É uma obra valiosa para todos os que lidam diariamente com soas e pela natureza. No entanto, esse movimento é resistido e combatido
conflitos: professores, assistentes sociais, pais, casais, mediadores e também pelos defensores do modelo da dominação, que preferem negar a realidade
para os que estudam a paz. de relações que estão destruindo nosso planeta e fomentando sociedades
cada vez mais violentas.
A autora nos faz um convite audacioso: que deixemos de pensar em
o princípio da não-violência: Uma trajetória nós mesmos como impotentes, vítimas da situação, e comecemos a mudar
o mundo. O poder da parceria é um convite para entendermos o que está
filosófica acontecendo e passemos a mudar nossa realidade, fazendo todas as nossas
relações se aproximarem cada vez mais do modelo de parceria.
Jean-Marie Muller
A obra sintetiza o que pensadores ao longo da história humana disseram
e defenderam sobre a não-violência, descrevendo com lucidez as críticas
Gandhi: Poder, parceria e resistência
contra e os argumentos a seu favor. Com uma análise que vai de Platão a
Simone Weil, de Confúcio a Maquiavel, aprofundando-se em Éric Weil e Ravindra Varma
nas ações de Mohandas Gandhi, o autor esclarece conceitos tradicional- Fruto de parceria entre a Associação Palas Athena e a UNESCO, a publicação
mente nebulosos e aponta as razões filosóficas para a recusa da ideologia da consiste na reunião de palestras proferidas por Ravindra Varma quando
violência "necessária, legítima e honrosa". de sua passagem pelo Brasil. As idéias de Varma representam importante
contribuição para a construção de uma cultura de paz apta a promover a
justiça social, a redução das desigualdades e da violência.
o poder da parceria
Riane Eisler
Numa linguagem lógica e acessível, Eisler explica que percebeu existirem
dois modelos que podemos utilizar em nossos relacionamentos: o de do-
minação e o de parceria. O modelo de dominação é o que herdamos de
épocas passadas, mais autoritárias e despóticas. Por este modelo, alguns
poucos homens ficam no topo de hierarquias rígidas, que utilizam para Para obter informações sobre estas e outras obras publicadas pela Palas
enriquecer-se cada vez mais. Este é o modelo que aprova a competitividade, Athena Editora sugerimos consultar o nosso site: www.palasathena.org.br

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