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Benditas sejam as moças
As Crônicas de Antônio Maria
SUMÁRIO

Prefácio
Conversa de pai e filha
Mulher nua na janela
O coração dos homens
A fidelidade e o queijo
Aos suicidas e feios
"Você, hein?..."
Canção modal do homem que chama sua amada
Eram cinco e quinze
Uma velhinha é uma velhinha
Segredo do apartamento 912
Brasileiras dão dor de cabeça
Discurso informal
Conversa em voz alta
Amanhecer no Margarida’s
Poesia perdida
Adultério e considerações
Canção compassada, do encontro e da dor
Crônica mal-humorada
Notas sobre Dolores Duran
Do conhecimento da mulher
Coração opresso, coração leve
"Consultório sentimental"
A carona
Vigésimo aniversário
História que não acaba
Bilhete deixado sobre a mesa de...
O andar
As mulheres pela idade
Cena e exemplo a seguir
As duas irmãs
As canções e as pessoas da noite
O último encontro
Honra
Provas de amor
Do telefone à realidade
Conversa de café-society
Duas moças de biquíni
Explicação de futuro
"Voluntários do amor"
O encontro melancólico
Procurar e encontrar
Poesia perdida...
Mulher dos outros
A cidade e a mulher
Benditas sejam as moças
Era um homem muito bom
Mulher de nariz arrebitado
PREFÁCIO
JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS

Das 47 crônicas de Benditas sejam as moças publicadas originalmente


no jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, entre 1959 e 1961, 45 são inéditas
em livro. Antônio Maria escrevia duas colunas diárias: "Romance Policial de
Copacabana" e "Jornal de Antônio Maria". Na primeira publicava, em estilo
mezzo cronista, mezzo repórter, o noticiário que ele mesmo apurava na
delegacia do bairro. Na segunda, a pauta era livre. O "Jornal de Antônio
Maria" tinha quase sempre uma seção de notas curtas, flashes sobre o
movimento na noite, recomendações gastronômicas, pequenas observações
críticas. No meio dessas pílulas vinha a única ilustração, geralmente a foto de
uma mulher bonita. O texto principal do "Jornal" era uma crônica de tema
livre. Nela, Maria podia fazer reflexões sobre um acontecimento político da
semana, traçar o perfil de alguma nova estrela da música ou, seu carro-chefe,
inventariar alegrias e angústias do encontro homem-mulher.
Maria debatia a relação, como se costuma banalizar hoje. O estilo, no
entanto, era o de um dos nossos maiores craques literários de todos os
tempos. Os apaixonados podiam até estar se desencontrando em suas
caminhadas, mas o verbo do escritor pernambucano realizava sempre uma
delicada harmonia com o sujeito, o predicado, o objeto e seus afins.
As crônicas de Antônio Maria nos jornais do Rio poderiam ser
reunidas em uma dúzia de livros a partir de suas principais referências: o
humor, a música, a infância em Pernambuco, a política, o Rio, perfis, a noite,
etc. Um dos charmes do "menino grande", Im90, 100kg, era a multiplicidade
de assuntos. Benditas sejam as moças, como diz o título, tirado de um dos
textos aqui publicados, é exclusivamente sobre o amor. Uma elegia às
mulheres.
Para falar delas, o grande tema de sua vida, resultado de outra dúzia
de clássicos do samba-canção, Maria usa todos os ritmos literários: o
existencial, o engraçado, o dramático, o filosófico, o quase jornalístico, o
discursivo, o diálogo, os tópicos. Há nas crônicas uma esperança na felicidade
amorosa que nem sempre era percebida nas letras do compositor de
"Ninguém me ama". Com toda a autoridade de um dos homem mais
sedutores de seu tempo, amante de mulheres belíssimas, em certos momentos
Maria usa esse dom para escrever a partir da visão delas, na voz feminina.
O resultado é sempre inteligente, leve e iluminador. Como em
Vinícius de Moraes, não por acaso seu grande companheiro da noite.
Ninguém mais na literatura brasileira tratou o ser ou não ser dos amantes com
tanto brilho intelectual e capacitação técnica quanto Maria e Moraes. Afinal,
foram homens que paralelamente à obra literária não esqueceram da obra
maior: Viver a Vida.
A busca do Amor - eis a pauta por trás dos textos que você lera agora.
Em 47 crônicas, muitas delas confessionais, visivelmente tiradas de
experiências que estava acabando de sofrer ou exultar, Maria revela seus
segredos numa arte para sempre - e benditas sejam as moças por isso -
misteriosa.
Última Hora / 21 de julho de 1960

Conversa de pai e filha

Pai, eu tenho um namorado. Pai, que ouve isto da filha mocinha, pela
primeira vez, sente uma dor muito grande. Todo sangue lhe sobe à cabeça, e o
chão do mundo roda sob seus pés. Ele pensava, até então, que só a filha dos
outros tinha namorado. A sua tem, também. Um namorado presunçosamente
homem, sem coração e sem ternura. Um rapazola, banal, que dominará sua
filha. Que a beijará no cinema e lhe sentirá o corpo, no enleio da dança. Que
lhe fará ciúmes de lágrimas e revolta; pior ainda, de submissão, enganando-a
com outras mocinhas. Que, quando sentir os seus ciúmes, com toda certeza,
lhe dirá o nome feio e, possivelmente, lhe torcerá o braço. E ela chorará,
porque o braço lhe doerá. Mas ela o perdoará no mesmo momento ou, quem
sabe, não chegará, sequer, a odiá-lo.
E lhe dirá, com o braço doendo ainda: "Gosto de você, mais que de
tudo, só de você." Mais que de tudo e mais que dele, o pai, que nunca lhe
torceu o braço. Só de você é não gostar dele, o pai. E pensará, o pai, que esse
porcaria de rapaz fará a filha mocinha beber whisky, e ela, que é mocinha,
ficará tonta, com o estômago às voltas. Mas terá que sorrir.
E tudo o que conseguir dela será, somente, para contar aos amigos,
com quem permuta as gabolices sobre suas namoradas. Ah! O pai se toma da
imensa vontade de abraçar-se à filha mocinha e pedir-lhe que não seja de
ninguém. De abraçá-la e rogar a Deus que os mate, aos dois, assim, abraçados,
ali mesmo, antes que torçam o bracinho da filha. Como é absurda e
egoisticamente irracional amor de pai! Mais que ódio de fera.
Ele sabe disso e se sente um coitado. Embora sem evitar que todos
esses medos, iras e zelos passem por sua cabeça, tem que saber que sua filha é
igual à filha dos outros; e, como a filha dos outros, será beijada na boca. Ele, o
pai, beijou a filha dos outros. Disse-lhe, com ciúme, o nome feio. E torceu-lhe
o braço, até doer. Nunca pensou que sua namorada fosse filha de ninguém.
Ele, o pai, humanamente lamentável, lamentavelmente humano. Ele, o pai,
tem, agora, que olhar a filha com o maior de todos os carinhos e sorrir-lhe um
sorriso completo de bem-querer, para que ela, em nenhum momento, sinta
que está sendo perdoada. Protegida, sim. Amada, muito mais. E, quando ela
repetir que tem um namorado, dizer-lhe apenas:
- Queira bem a ele, minha filha.

***
Última Hora / 3 de agosto de 1960

Mulher nua na janela

Conheço dezenas de homens de bem - advogados, médicos, físicos e


fiscais de consumo - cujo prazer na vida é ver mulher nua a distância, da janela
ou varanda do seu apartamento. Equipam-se para isso. Adquirem binóculos e
lunetas, das melhores marcas. Haja o que houver, festa ou trabalho, na hora
da noite em que a maioria das mulheres troca de roupa (sete e dez), estão em
casa, de luz apagada e binóculo em punho.
A mulher, coitadinha, troca o vestido de janela aberta, porque:
Olhando de sua janela, vê as dos outros apagadas e não imagina que possa
haver um homem de luneta, a espiá-la; Mesmo desconfiando de que haja
alguém a espiá-la, não lhe custa dar esse prazer a uns pobres-diabos que ficam
tão felizes com (para ela) tão pouco; Janela fechada faz calor; Segundo o poeta
Vinícius, havia "uma mulher tão cheia de pudor, que andava nua".
Já vi umas três ou quatro mulheres nuas, da minha janela, mas,
casualmente, a olho também nu, e não me lembrei, jamais, de voltar à mesma
hora, do dia seguinte, a fim de repetir o espetáculo. Convenhamos que dá
muito trabalho alguém organizar-se para ver mulheres nuas, de sua janela ou
varanda. Tem-se que estar em casa, todos os dias, às sete e dez. Tem-se que
mentir aos outros para estar-se em casa, todos os dias, às sete e dez. Tem-se
que apagar todas as luzes do aposento e estar-se munido de binóculos e
lunetas, da marca Zeiss, excelentes para ver mulheres nuas. Dá trabalho. É
como um emprego.
Ao homem de alguma idade e certa experiência, se ele gosta mesmo
de mulher nua, é muito mais fácil vê-las de perto. Querendo, pode até dançar
blues com elas. Quase nenhuma se recusa.
Ontem, cheguei à janela e minha vizinha de defronte estava um
pouco à vontade. Vestida, porém. Blusa branca e saia escocesa, de lã. Sentada
numa poltrona, lia uma revista. Até aí tudo muito bem. Mas uma das pernas, a
esquerda, espichava sobre uma cadeira. A outra, a direita, fazendo um ângulo
de quase 45 graus, abrira-a sobre o braço da poltrona.
Não nego que era bonito o que eu via, de onde eu via, na ordem em
que via: primeiro, o pé e a perna esquerda; logo depois, o ângulo de quase 45
graus; em seguida, a saia escocesa (bem pouquinho), a perna sobre o braço da
poltrona (descoberta), a revista, as mãos que pegavam a revista e, por cima da
revista, dois dedos de testa e os cabelos claros da minha indefensável vizinha.
Ao lado, no chão, "esse negro telefone".
Pensei nos homens, de binóculos e lunetas, que estariam gozando o
espetáculo. Tive uma idéia. Pela rua, pelo andar e pelo nome da lista, encontrei
um número telefônico que seria, provavelmente, o da minha desguarnecida
vizinha. Disquei-o e fiquei à espera, aqui, do que ia acontecer, lá. Vi-a descer o
braço e trazer o telefone do chão.
Imediatamente, a voz (grave) ao meu ouvido: "Alô..."
- Quem fala aqui é um vizinho seu. Baixe a perna.
- Baixe o quê?
- A perna.
E, lá, num gesto rápido de defesa e recomposição, baixou a perna que
estava sobre o braço da poltrona. Ao mesmo tempo, largou o fone no gancho.
Levantou-se e foi à janela. Ficou procurando, por alguns instantes, quem lhe
havia telefonado. Depois, fechou a janela, não sei se grata ou com ódio.
Naquela hora, no céu, em homenagem aqui ao colega, os anjos devem
ter cantado, em coro: "Guarda a rosa que eu te dei..."

***

Última Hora/ 18 de janeiro de 1960

O coração dos homens

Vi-a passar. Comecei a vê-la de longe, quando despontou na rua.


Conheci-lhe a blusa, mas achei diferente a maneira de caminhar.
Aquele andar mole, de quem não vai para lugar nenhum. Talvez não fosse o
caso, no entanto; as pessoas, quando não estão felizes, ou quando estão
infelizes, por mais que andem, parece que não vão para lugar nenhum.
Pensei que fosse outra pessoa. Há muitas blusas da mesma cor e
muita gente que anda sem saber das pernas. Sem ir para lugar nenhum. Mas o
cabelo também era dela - ou melhor, era dela de tarde -, puxado a escova, de
um jeito qualquer, sempre às pressas, às vezes com desgosto.
Era ela, sim, e veio andando. Pensei em deixá-la passar e só dizer-lhe
uma coisa, se ela me visse e me demorasse os olhos. Mas eu não havia sentido
aquele aperto no coração, que as pessoas sentem, quando têm culpa, ódio ou
amor, na pessoa que passa. Eu estava inocente, nela. E procurei mesmo os
seus olhos, durante todo o tempo em que veio vindo. Um simples sentimento
amistoso se apossava de mim e me impelia ao gesto tristemente fraternal de
abrir-lhe os braços, com aquela naturalidade dos amigos que nunca se
sofreram... E dizer as palavras esparsas, sem conteúdo, sem raízes - sem a dor
necessária que há no fundo de todas as palavras de quem ama. As interjeições
idiotas dos amigos banais, quando se encontram: ah! eh! ih! oh! uh! Eu senti,
deploravelmente, que seria capaz de todas as interjeições idiotas, de todas as
vogais com "h", de todos os beijos desprezíveis que os amigos trocam nas
bochechas. Então procurei, as pressas, aflitamente, dentro de mim, um pouco
de dor - fosse ela feita de ciúme, de despeito, de vaidade (fosse do que fosse),
e não encontrei. A gente quando precisa das coisas não encontra nunca!
E ela estava cada vez mais perto. Já podia ver-lhe os olhos, os
mesmos e belos de sempre. Mas tão sem destino quanto o andar. Por que ao
menos isso não me comovia? Não havia tempo, mas, naquele minuto que em
minha mente era espaçoso e demorado, revi as minhas angústias passadas.
Todas tão intensas e verdadeiras. Todas esquecidas, agora, como se eu tivesse
uma memória nova, sem marcas ainda, e se a antiga apenas lhe tivesse contado
o que com ela se passara. Exatamente isso: eu me lembrava, mas as
lembranças, embora tão nítidas, não me faziam bem nem mal.
Ah, que desgosto de mim!
Enfim, quando passou à minha frente, disse-lhe o nome: Fulana!
Parou, subitamente, como se recebesse nas costas uma flechada de índio. E
não parou, apenas. Imobilizou-se, como se imobilizavam os personagens de
Carne, nos Vosifeurs du sor. Depois é que voltou o rosto e me fitou nos
olhos. Eu olhei sua boca, porque era sempre em sua boca que as coisas
aconteciam. Qualquer acontecimento de sua alma (de triste ou alegre) foi
sempre na boca que transpareceu. Como uma criança. As crianças têm a boca
mais comovente que os olhos. Aquele breve fremir do lábio inferior, que
precede o choro da criança, é, a meu ver, o momento mais grave do ser
humano. A gente não respeita e o chama de "fazer beicinho"...
E essa moça, que vinha vindo, guardou isso, do tempo em que foi
criança.
Seus olhos sabem esconder, omitir, nentir. A boca não sabe. E foi
sempre por ela que me guiei. Sempre diante dela, quando fremiu, que desci,
pesadamente, a todo o meu sofrimento.
Vi-a, agora, e não sentia nada. Que sem jeito iria ficar, se ela chorasse.
Estendi-lhe os braços, amistosamente. Perguntei-lhe, sem querer, pela saúde...
Como é melancólico chegar-se à paz tão perfeita de perguntar-se pela saúde
da pessoa que se amou. Os amantes não cogitam dos detalhes como saúde.
Fiz todas as coisas banais, dos amigos.
Beijei-lhe as bochechas. Ofereci-lhe as minhas (não aceitou), como se
fosse um general francês. Segurei-lhe os ombros com as mãos. Mexi-lhe o
cabelo, e, à medida que mais amistoso me mostrava, mais me perdia de mim
mesmo. Agora, sim, me perdia e não conseguia fitar o seu olhar duro no meu,
como que a me cobrar aquele ar magoado que sempre tive, quando...
Eu a habituara à ciumosa aflição dos meus olhos.
E agora? O que restava, agora? Se pudesse, pedir que seguisse. Que
me deixasse em paz, com a minha repugnante serenidade de gente livre e
forte.
Seu olhar mendigo, nos meus olhos. Sua boca de criança, cujo ricto eu
gostaria de desmanchar com as mãos porque sentia que, dali em diante,
começaria a sofrer.
E ela entendeu. Passou, na boca e nos olhos, o punho da camisa.
Como se acordasse, tirou-me de sua frente com uma das mãos, e, sem dizer
nada, foi andando, com um andar que, então, não era só infeliz, mas trôpego e
indefensável, como o dos bêbedos. Fiquei a espiá-la, de longe, até desaparecer
entre as outras pessoas. Ia batendo os ombros contra os outros. De vez em
quando, era olhada com insolência pelos homens que olham as moças bonitas.
Uns lhe diziam coisas, que deviam ser as mesmas sordices que os homens
dizem, há milênios, quando passam pelas mulheres bonitas. Eu a espiava de
longe, sem sentimento nenhum... Ou com um leve sentimento de proteção,
que poderia transformar-se num gesto de defesa ou ajuda. Eu a espiava,
apenas, vago e desatento. Quanto mais depressa desaparecesse, melhor para
mim, que não tenho coração.

***

Ultima Hora/19 de junho de 1960

A fidelidade e o queijo

A gente não imagina que haja ainda quem seja capaz de contar certas
coisas e de pedir determinados conselhos. A experiência do viver tranca o
homem, cada vez mais, em si mesmo, aconselhando-o a sarar, sozinho, todas
as escoriações da alma.
Pois bem, não faz uma semana e um amigo pouco íntimo (desses que
a gente chama de amigo porque a palavra CONHECIDO não quer dizer
nada) veio fazer-me esta confidencia de antiqüíssimo modelo: ao chegar em
casa, fora do horário habitual, encontrou a mulher e o vizinho... Nessa altura,
reticenciou a narrativa, desejando, certamente, que lhe perguntasse COMO e
ONDE. Tal pergunta não lhe foi feita, obrigando-o a dizer que estavam os
dois sentados à mesa de jantar, tomando café, com queijo. Daí por diante,
travou-se, entre nós, o seguinte diálogo:
ELE - Você, o que acha?
EU - De quê?
ELE - De estarem, os dois, tomando café com queijo?
EU - O queijo é mais grave que o café, porém nenhum dos dois quer
dizer nada. - E tentei explicar-lhe que oferecer café é uma simples cerimônia,
enquanto café com queijo já passa a ser uma intimidade.
ELE - Que devo fazer?
EU - E os cinzeiros?
ELE - No dela, oito pontas; no dele, quatorze.
EU - Havia ponta de cigarro dele no cinzeiro dela, e viceversa?
ELE - Acho que não. Tenho a impressão que não. Certamente, não.
EU - Então, não há gravidade de espécie alguma, porque está
provado que fumaram muito, o tempo inteiro, distantes um do outro, cada
qual em seu cinzeiro.
Nessa altura, começou a falar sem fazer-me seu alvo, isto é, começou
a pensar, com palavras. Considerou a quebra de confiança, advertiu-se da
beleza física do vizinho, blasfemou contra as mulheres em geral, até que,
falando realmente comigo, suplicou:
ELE - Eu lhe peço que você me diga, exatamente, o que está
pensando sobre o caso. Use de toda a sua franqueza.
EU - O vizinho vai muito à sua casa?
ELE - De vez em quando, telefonar.
EU - Não há motivo para a menor desconfiança. Foi telefonar e,
como há alguma intimidade, conversaram.
ELE - Durante muito tempo?
EU - A conversa durou, exatamente, quatorze cigarros dele e oito de
sua mulher. (PAUSA) Ela ofereceu-lhe um café e, lembrando-se que havia
queijo, ofereceu-lhe uma fatia.
ELE - Mas o queijo, foi ele que trouxe.
EU - Então, já não está mais aqui quem falou.

***

Última Hora / 28 de novembro de 1959

Aos suicidas e feios

Não encontrei, até hoje, uma só razão para que alguém se matasse.
Leio todas as cartas dos suicidas, cada uma mais absurda e ingênua. A uns,
falta dinheiro. A outros, amor de mulher. Que frágil, a humanidade, ao
desejar, constantemente, ser amada e rica! Hoje, por exemplo, nos jornais da
manhã, a notícia do rapaz que se atirou de um 10 andar, unicamente, porque
era feio. Achava que as mulheres não o queriam para nada.
Dedico esta crônica a todos os homens feios do Brasil. Sendo um
deles, posso falar com autoridade, em nome da classe. Fiquem certos, colegas,
de que não há nada mais sem graça que homem bonito. São chatíssimos. Os
verdadeiros canastrões da vida real! As mulheres já não os suportam e se
bandeiam, aflitas, para nós, que somos confortavelmente feios,
encantadoramente feios, venturosamente feios. Ai de nós, se não fosse a
bobagem dos rapazes bonitos! Não se cuidam, colegas. Ou melhor, cuidar,
cuidam do cabelo, do colarinho, da gravata, do terno e dos borzeguins.
Feito tudo isso, acham que já cumpriram todos os seus deveres para
com a Humanidade e Deus. Então, ficam aquelas figuras Ducal espalhadas
pela vida, a dar um show de vaziísmo desastroso. Enquanto isso, nós, os
privilegiadamente horríveis, vamos cuidando de fazer alguma coisa - fazer, já
que não somos. Ou somos tanto por dentro, que não precisamos fazer nada
por fora.
Vocês, meus caríssimos companheiros do Feiúra Futebol Clube,
examinem, por aí, o enorme êxito dos feios. Frank Sinatra, por exemplo. Não
há homem que dê mais sorte com mulher, no mundo inteiro. E é feio mesmo.
Mas faz bonito tudo o que faz. Basta sorrir e olhar, para que elas não queiram
mais sair de perto.
Coitado desse colega nosso, que se atirou do 10 andar porque a
companheira de repartição (sua última esperança de sucesso) negou-lhe um
encontro. Coitados de todos aqueles que repetem suspirosos:
- Ah, eu não dou sorte com mulher!
É engano, prezadíssimos irmãos! Eu, se tivesse pretensões amorosas e
trabalhasse nesse ramo, em cada um dos meus fracassos lamentaria as
desditosas mulheres que não dessem sorte comigo.
Conheço um homem que não tem nada de bonito. É gordo, baixo e
passa dos sessenta. Foi não foi, está com uma mocinha pela mão. Certa vez
lhe descobriram um caso sensacional - uma mulher lindíssima, com quem ele
teria dado suas voltinhas. Na roda onde estávamos, alguém fez a pergunta
indiscreta de sempre:
- Que tal Fulana, é boa?
E meu gordo, baixo e velho amigo respondeu não mais:
- Ah, não sei. Sei que eu sou formidável.

***

Última Hora/ 28 de abril de 1961

"Você, hein?..."

No "Romance" de Copacabana contamos ontem o caso tragicômico


da Sra.
Mariazinha de Tal. Esposa fidelíssima havia três anos, cedeu à
insistência do homem que lhe fazia a corte e, com ele, deu uma voltinha de
automóvel. Mas só uma voltinha.
Às sete da noite já estava em casa na cama, coberta de remorsos e de
cobertores. Queria dormir para esquecer. Às nove, chegou o marido e,
olhando para Mariazinha, disse, sem grandes intenções:
- Você, hein, Mariazinha?
Foi tudo. A mulher atirou-se-lhe aos pés e confessou que se havia
encontrado com Reinaldo de Tal. O marido, Pedro de Tal, espancou
Mariazinha, que, esta manhã, está no radiologista, tirando dezenas de chapas
dos ossos faciais.
O engraçado da história é que, quando Pedro de Tal (marido) falou:
- Você, hein, Mariazinha?
...estava reclamando o botão de sua camisa, que Mariazinha ficara de
pregar e não pregou. Confessou a este repórter que jamais poderia pensar na
mínima infidelidade da mulher. Mas, agora, está convencido de que toda
mulher "faz das suas" e com elas "a gente não pode facilitar".
Perguntado se perdoaria Mariazinha, respondeu que não. Que não
quer saber mais dela, nem de mulher nenhuma. Que vai cuidar dos seus
negócios e enriquecer:
- Quando eu quiser uma mulher para pregar botões em minhas
camisas, eu pago... de preferência, uma costureira.
O repórter fez ver a Pedro de Tal que ele não era o primeiro marido
cuja mulher dera uma voltinha de automóvel. E que ele se lembrasse de
quantas voltinhas ele, Pedro de Tal, já dera com a mulher dos outros.
Advertiu-o, ainda, da possibilidade de dona Mariazinha, estando livre
e perdendo a possibilidade de reavê-lo, criar gosto e dar outras voltinhas de
automóvel.
Ao fim da conversa, Pedro de Tal concordou em que devia refletir
melhor, antes de tomar qualquer resolução definitiva.
Este caso serve de lição a todos os maridos. Que nenhum, porque lhe
falte um botão na camisa ou um cerzido na meia, cometa o erro de, chegando
em casa, dizer à mulher:
- Você, hein, Fulana?
E Fulana será capaz de confessar tudo.

***

Última Hora/ 11 de junho de 1960

Canção modal do homem que chama sua amada

Vem, se quiseres. Bebo álcool e fumo cigarros fortes. Gosto de


música sem palavras, no piano de Peffer e no instrumento grave de Mulligan.
Gosto das palavras sem música, como se sabia dizer Albert Camus.
De dia para dia, mais aquiesço à aridez dos sons.
Vem, se quiseres. Sou irascível, quando trabalho. Digo nomes feios,
se me interrompem. Volto bêbedo para casa e não trago mais que a inocência,
o cansaço e o hábito dos bêbedos. Tenho todos os defeitos que, nos outros,
detesto.
Só uma disposição, em mim, é generosa - a do amor. Se um dia fores
minha, ao ter-te, amar-te-ei mais, e mais ainda depois de ter-te. Vestirei o teu
corpo com as minhas mãos e algumas vezes fecharei os olhos, para ver-te
ainda mais bela. Haverá horas lentas de ciúmes, e um silêncio angustiado
sufocará as palavras que nos fariam negociar o perdão. Ah, o martírio dos
amantes, que não se acreditam, que não se confiam, que não têm senão um
cárcere de medos, onde afogam o sentimento espiritualíssimo da carne.
O corpo é espiritual. O espírito nem sempre.
Vem, se quiseres. Se crês numa alma oculta em minha rudez. Se não
professas a abominável esperança do amor eterno. Se acreditas, lucidamente,
no "amor até quando" (?)... Se não te amas e se me amas, vem, e aqui te
esperam séculos de sede e de dor, sem um momento de paz verdadeira, a não
ser aquele, de lassidão, quando, depois de ter-te, amar-te-ei mais ainda...
Última Hora/25 de novembro de 1959

Eram cinco e quinze

Tudo entre nós havia que continuar sendo casual. Não tínhamos nada
que marcar encontro das cinco e quinze, no tal bar, tido e havido como
discreto. Resultado: aquele sem jeito, aquela falta de ar, aquela vontade de
voltar para casa, que nós, apesar de lúcidos e afins, não conseguimos explicar.
Mas que foi engraçado, foi. Primeiro, para termos direito a uma mesa, o
garçom exigiu que fizéssemos uma despesa qualquer.
Dinheiro havia. O que nos faltava era apetência. Deixamos a cargo do
garçom o preço que haveríamos de pagar pelo local e pela discrição do nosso
rendez-vous. Podia ter estourado um Moêt & Chandon, mas, homem cauto,
olhando-me nas alpargatas, trouxe-nos uma coca-cola tamanho família e um
sanduíche de grande montagem. Eu, como sempre brilhante naquilo que irei
dizer e em tudo que poderia ter dito, na hora de falar, não disse coisa
nenhuma. Julguei que se tratasse de uma simples burrice inicial que passaria
tão logo nos habituássemos à novidade de estarmos sós. Mas não. Andou o
tempo e nós continuamos naquela conversinha de Alvarenga e Ranchinho,
que não vende nem compra coisa alguma. Repare bem, o que dissemos não
valia mais que: "ehh, cumpade... pois é... tá sorto". E por quê? Prometemos,
no dia seguinte, uma explicação telefônica que nos reabilitasse, um para o
outro e cada qual perante si mesmo. Infelizmente, prezada senhora, a
explicação encontrada não é das mais honrosas. Primeiro, para esse negócio
de namoro, é preciso ter peito. Nós não temos, hélas! Depois, é necessário, ao
menos no começo, que um leve o outro no bico. E nós não podemos. Somos
muito puros, um no outro. Muito iguais, muito devassados, um para o outro.
Podemos falar, sim, já falamos. Mas, na realidade, não temos nada que contar
um ao outro. Em nosso caso, desgraçadamente, seria chegar, abraçar e deixar
sentir. Mas cadê peito? Continuemos, então, a viver dos acasos, até que um
deles, um dia, seja o mais importante e cumpra, afinal, o nosso fado.

***

Última Hora / 9 de julho de 1959

Uma velhinha é uma velhinha

Não sei se os outros pensam assim, mas, quando vejo uma velhinha e
procuro imaginar que ela já tenha sido jovem, e tido um namorado, e feito
todas as coisas a que o amor obriga, por mais que eu queira, não acredito. Ou,
se acredito, não entendo. Porque uma velhinha é uma velhinha, tal qual uma
rosa, que é uma rosa. Dá-me uma idéia do ser humano eterno, que sempre
houve e não deixará de haver, com sua golinha de rendas, seu chapéu com
aplicação de jasmins, seu guarda-chuva, seus sapatos de fivelas. As de Paris
passeiam, de manhã, em Auteuil, comprando carne para os gatos, queijos e
legumes para si. Passeiam seus cães, à tardinha, no bois e, enquanto dão-lhes
folga, discutem, umas com as outras, sobre a última e a próxima guerra.
Queixam-se do frio, da bruma constante e, se um sinal de luz aponta para os
lados de Versailles, dizem todas, ao mesmo tempo, numa felicíssima
esperança: "vá faire beau!" Adoram o sol. Que engraçado vê-las ao sol! Ficam
mexeriqueiras, rigorosas e bisbilhotam a vida de todas as velhinhas ausentes.
Voltam à humildade de antes, quando o sol se cobre e a praça esfria outra vez,
mandando-as para casa. Passava horas vendo as velhinhas de Paris. Na Ferme
d'Auteuil, entre cinco e seis da tarde, tomavam seu chá, lentamente, e era uma
delícia ouvi-las conversar. Mas nunca me consenti acreditar que houvessem
sido mocinhas, ou que houvessem tirado aquela espécie de farda, um dia
sequer, em suas vidas.
Há pouco tempo, em um café de Friburgo, sentou-se uma velhinha
para conversar. Precisava de um dinheiro, para caiar a casa e ajudar no
casamento de uma neta. Aceitou uma xícara, beliscou de uns doces, e foram
tantas as perguntas, que acabou contando sua vida. Tivera um namorado,
andara fazendo suas facilidades com ele. Depois, casou com outro e, mesmo
casada, facilitou também, porque não soubera resistir aos encantos de um
primo, em Magé. Por fim, morreu-lhe o marido e, na campanha por um novo
casamento, dera-se a duas ou três fantasias pouco recomendáveis, em
senhoras viúvas. Isso representou para mim um choque muito grande. De
repente, as velhinhas de Auteuil deixaram de ser os seres eternos que eu,
sabiamente, imaginara. Todas se transformaram, violentamente, em gente
igual a mim, que comete dos meus erros e, como eu, de felicidade em
felicidade, de abraço em abraço, de ilusão em ilusão, inebriadamente,
envelhece...

***

Última Hora/ 19 de julho de 1960

Segredo do apartamento 912

Avisara, pelo telefone, que ia chegar. Ele a recebeu, no elevador, e a


abraçou, fundamente, de olhos fechados. Beijou-a, depois, na boca, no nariz e
na cabeça, tomando-lhe o rosto com as duas mãos. Sua alegria era aflita,
quando ela vinha.
- Chega. Me leve daqui - pediu ela.
Levou-a para o apartamento e começou a perguntar-lhe pela vida.
- Faz minha sopa, que estou com frio - disse ela, sem antes ter
respondido a nenhuma das perguntas. Era uma sopa alemã, em tabletes. Cada
tablete dá quatro sopas. Ele tinha que ter sempre em casa, para quando ela
chegasse. Botou água para ferver e cortou o tablete em quatro. Jogou um dos
quadradinhos dentro da panela e tirou a xícara, a que era dela, de porcelana
alemã, onde havia, em letras góticas, um verso de Goethe: "Só será feliz a
alma que amar". Uma xícara maior que as outras, como as das crianças, a
quem se fazem os dengues.
- No dia que você quebrar minha xícara, nem que seja um pedacinho,
não venho mais aqui - disse ela, atrás dele, enquanto ele começava a mexer o
quadradinho de sopa, na água quente. Depois, sem dizer nada, pegou-lhe no
cabelo, que estava grande cobrindo as orelhas (sorriu do cabelo grande);
levantou-lhe um pouco o blusão, para ver se o cinto era o mesmo que ela lhe
dera (era); depois, encostou-lhe a testa, com força, no ombro e beijou-lhe o
braço. Ele fazia a sopa pensando em uma porção de coisas. Que ela era uma
criança; que não podia viver por aí a vida que vivia; que todas as pessoas e
todas as coisas só lhe faziam mal; por isso ela vinha, de vez em quando, e
pedia a sopa; porque sua casa era aquela, onde havia sopa e verdade. Ele
pensava todas essas coisas e foi fazer a mesa, com um guardanapo, a xícara e a
colher. O guardanapo e a colher, como a xícara, eram especiais - tinham as
letras do nome dela.
Ela foi ao quarto, enquanto a sopa ficava pronta. Voltou com a
camisa que vestia sempre. De malha de algodão, azul, mangas compridas.
Como era dele, nela ia até aos joelhos. As mangas, tinha que arregaçar para
não cobrir as mãos. Nos pés, os chinelos de prender entre os dedos (dele),
duas vezes o seu tamanho. Ficava uma figura muito engraçada, naqueles trajes.
Como era bonita, podia vestir o que vestisse e ficava muito engraçada. Ele a
chamou para tomar a sopa e deu-lhe, na mão, as duas bolachas cream
crackers de sempre. Sentou-se atrás, numa poltrona, e começou a falar. E
falava coisas mais ou menos assim:
... que ela tinha de fazer uma vida qualquer, que não fosse a que fazia;
que tinha de trabalhar e cuidar mais do filho; que não via por que abandonou
o curso de inglês e as aulas de ballet...
Ela o interrompeu para dizer que a sopa estava com o gosto um
pouquinho diferente. Ele continuou:
... que ela só se metia com gente sem proveito, que os outros não
davam nada a ela - só tiravam; que o seu maior desejo (dele) era metê-la num
colégio de freiras até envelhecer.
Engolindo a sopa, com uma bolacha na boca, ela lhe disse, sem virar a
cabeça:
- Você não é meu pai.
E continuou a tomar a sopa, com barulho, como as crianças tomam
sopa.
Depois, levantou e sentou no sofá, ao lado da vitrola. Pegou uma
revista e ficou passando página, enquanto fazia as perguntas de sempre:
- Quem é tua mulher agora?
Ele respondeu que nenhuma e dispôs-se a continuar na reza das
repreensões. Ela, virando página, perguntou ainda:
- Quem é uma Alice, altona, de olho puxado?
Ele respondeu que não sabia, e ela, muito séria, sem parar nas páginas
e sem tirar os olhos da revista, disse, muito séria, como se não estivesse
sentindo o menor despeito:
- Me disseram que ela não toma banho.
E sem parar de passar as páginas, e sem tirar os olhos da revista, disse
também muito séria:
- No dia que você gostar de outra pessoa, eu me mato. Largou a
revista e foi buscar um disco na estante. O mesmo Aznavour. O lado que
começa com uma canção triste: pleut. Pede que lhe vá dizendo o sentido da
letra: "A vida toda está molhada", etc.
...Vem do sofá para a poltrona e senta sobre as pernas. Enrosca-se-lhe
no pescoço. Ele a enlaça e lhe sente o cheiro e os seios.
- Deixe eu quietinha - pede-lhe ela. Depois: Só em você fico assim.
Depois: Só tenho uma casa, que é esta. Depois: As outras pessoas
nem são gente. Depois: Que é isto aqui no seu ombro? (Ele responde que
deve ter sido mordida de mosquito.) Depois: Me bota na cama, assim como
eu estou.
Ele se ergue com ela nos braços. Levanta a perna e, com dois dedos
do pé (com ela nos braços), puxa a colcha até o fim da cama. Deita-a.
Deita-se ao lado. Ela vira-lhe as costas e pede-lhe que a abrace. Ele
pensa em como fica cômodo toda vez que a abraça assim. São poucas as
pessoas a quem a gente se abraça e fica cômodo. As pessoas que se amam são
confortáveis entre si. Ele ia explicando quanto o abraço dos dois dava certo,
quando ela o interrompeu, dizendo que estava sentindo e pensando a mesma
coisa.
Na sala, a canção de Aznavour se repetindo. O braço da vitrola, mal
acaba o Mourir pour toi, volta ao pleut. Vai ficar tocando, a noite inteira. É
sempre assim.
- Como é o nome daquela palavra grande, que tem no rótulo da sopa?
- pergunta ela, com a voz abafada pelo travesseiro. Faz sempre essa pergunta.
Ele diz que só sabe uma, a da marca: Zamek. Ela diz, orgulhosamente, a
palavra toda, como um alemão lhe ensinou:
- Nohrungsmitteltabriken.
Sorri. Ajeita mais o corpo no corpo dele. Segue um pouco a melodia
de pleut, de boca fechada.
- Você tira a letra para mim?
- Tiro.
- Depois traduz?
- Traduzo.
- A mulher que não gosta de banho é verdade?
- Não.
Naquele momento, nada na vida era verdade, além do abraço, além
do cheiro dos cabelos, além da canção, que dizia estar a vida molhada. Na rua,
os últimos ruídos da noite, cada vez mais distantes.
Há um grande segredo no apartamento 912. Não adianta contar
depois daí, porque, mesmo sabendo, mesmo entendendo, ninguém dirá que é
verdade.

***

Última Hora / 9 de fevereiro de 1960

Brasileiras dão dor de cabeça

Recebo carta de um amigo (mora em Nova York), contando que uma


brasileira andou por lá, houve aquele encontro casual, sentaram-se num bar e,
no segundo whisky, já a moça havia lançado o desafio:
- Sabe que, há cinco anos, eu esperava por este momento?
Daí por diante, sabe como é... Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter
fim. Horas adoráveis, em bares de pouca gente. Juras infinitas, confissões
sufocantes, até chegarem à conclusão do poeta Leone, de que nasceram um
para o outro dessa argila de que são as criaturas feitas raras. Na vitrola, uma
canção, que os dois adotaram como hino. Mais uns dias, e as despedidas, no
aeroporto de Idlewidle (aposto meu ordenado contra o do revisor como essa
palavra não se escreve assim).
Agora, o amigo me escreve, com o coração na tipóia. Não come, não
dorme... mas beber, bebe. Vontade de trabalhar, se sempre teve pouca, agora
acabou. Bem feito. Quem mandou se meter com brasileira fora do Brasil?
Se aqui já não são de brincadeira, em Paris ou Nova York é preciso
ter um caráter assim como o do Brigadeiro Eduardo Gomes, para agüentá-las.
Inventam mágicas, enredam histórias e fazem tantas gracinhas que o
camarada, quando se dá conta, está colonizado pelos seus encantos. O
brasileiro cauto, ao encontrar uma brasileira em qualquer cidade do mundo (a
não ser em Buenos Aires, que elas ficam chatíssimas), se o encontro é na rua,
a primeira coisa que deve fazer é mudar de calçada. Se é num bar e se as
circunstâncias os reuniram numa mesma mesa, a providência é tratá-la no
plano cerimonioso do "prezada senhora". Nem por sombra, conversar sobre
os respectivos espíritos, descobrir afinidades, porque isso acaba sempre em
um acender o cigarro do outro, e, daí em diante, é desdita para o Palestra.
Meu caro amigo, lamento as dores que lhe oprimem o peito, mas não
posso fazer nada. De outra vez, seja homem e não capitule. Aqui, devo dizer-
lhe que a manhã está linda. E já disse muito.

***
Última Hora / 29 de abril de 1961

Discurso informal

Em um minuto e dez segundos, do homem humildemente homem


para o mulher a quem ema, por quem se deplora, etc....
Se você se visse com meus olhos... Se você se tocasse com as minhas
mãos... Se você soubesse com o meu olfato... e se beijasse com a minha boca...
e se esquecesse com o meu esquecimento (durante o enleio) de todas as
coisas... e se lembrasse com a minha lembrança (durante o enleio) da vez
anterior... e temesse com o meu medo, que fosse a última vez... e
desesperasse, com meu desespero, por ter havido um passado, e no passado...
e desesperasse com meu desespero à idéia de haver o futuro, e no futuro...
Se você houvesse ao menos por um dia, com a minha lamentável
ambição física, ficado sem você... Se você atinasse que toda matéria é espírito,
e que a verdadeira espiritualidade começa na fadiga da carne confortada...
Se você soubesse de tudo isso, você amaria, com meu amor, o
momento da Eternidade em que estamos juntos... você entenderia o
espiritualíssimo excesso possessivo do meu carinho...
E você se conheceria, e me perdoaria, e diria a você mesma, de olhos
fechados, sorrindo, na mais grave e pura de todas as confidencias:
- Eu sou feliz!
Se você se visse em meus olhos... Mas os meus olhos são baços e
velhos.
Não sou mais que um homem, meu amor. Humildemente um
homem.

***

Última Hora / 16 de fevereiro de 1960

Conversa em voz alta

Não quero que ninguém me dê conselhos! - dizia a moça, em voz alta.


E continuou, no mesmo tom:
- A vida é minha e gosto de, antes de fazer o melhor, tentar sempre o
pior. Depois, então, se o pior me causou qualquer arrependimento ou mal-
estar, faço o melhor. Mas não tenho sorte, nove entre dez pessoas que se
aproximam de mim, antes do bom-dia, dizem sempre: "Vou lhe dar um
conselho." Eu queria saber de uma coisa: "Por que é que só dão conselhos às
mulheres bonitas?" Está bem, eu tenho vinte e dois anos, tenho olhos
grandes, pernas grossas e tudo. Então, os homens, em seu reles fingimento de
paternidade, estão sempre dispostos a achar que eu posso proceder de uma
maneira melhor! Eu queria saber de uma coisa: "Quando eu tiver quarenta
anos, os olhos ficarem pequenos e as pernas finas, ainda vão me dar
conselhos?" Não vão. Então deixem eu errar agora. Não é que eu queira,
propriamente, errar. Eu quero escolher - você me entende? É muito melhor a
gente errar desamparada do que acertar pela mão dos outros. O que é que eu
faço de mau? Fumo, gosto de música e tenho um namorado. Todas as pessoas
dizem que o meu namorado não presta. Mas todas as pessoas dirão sempre
que o namorado atual não presta. Depois, quando a gente acaba, todas as
pessoas, as mesmas pessoas, vão dizer que o viram, que estava bonito,
inteligente e honesto. Também não gosto de dar conselhos a ninguém. E
conheço, quando vêm pedi-los. É a mesma conversa de sempre. Começam
dizendo: "Eu fiz uma coisa horrorosa!" Dizem a coisa horrorosa e, por mais
horrorosa que seja, eu digo invariavelmente que já fiz ou estou muito inclinada
a fazer. Em resumo, não gosto que se metam em minha vida, enquanto eu
tiver os olhos grandes e as pernas grossas.
E o homem sentado à sua frente, que a ouvia em silêncio respeitoso,
tragou profundamente o seu cigarro e começou uma frase, exatamente, assim:
- Olhe aqui, minha filha, eu vou lhe dar um conselho...

***

Última Hora/ 2 de agosto de 1960

Amanhecer no Margarida's

Abro o janelão do meu quarto. Ainda não amanheceu. Quem mandou


dormir cedo? Não eram dez horas e, abraçado amorosamente a um
travesseiro, rendera-me à maravilhosa morte do sono. Sonhei que jogava
pôquer, fazia um straight flush de espadas (até dama) e, tal qual acontece
quando estou acordado, ninguém me pagava. Que sina, esta minha, de sonhar
sempre as mesmas coisas que vivo!
Ainda não amanheceu. Sopra um vento frio, muito forte. As nuvens
são escuras e estão agitadas. Voam, velozmente, e, de repente, partem-se em
dois e três pedaços. Tenho certo medo de todas as coisas do céu. Do próprio
céu. De Deus. Ensinaram-me, em menino, que todos os castigos vêm do céu,
de Deus. E que, mesmo assim, eu deveria fazer tudo para ir para o céu. Não
quero. Tenho medo, e tanto, que não aprendi o nome das estrelas, nem das
várias espécies de nuvens. A gente não sabe nada sobre as coisas de que tem
medo. Teme, sem discutir. Mulher, por exemplo, que tem medo de barata, que
sabe a mulher sobre as baratas? Assim sou eu, com o céu e Deus. Não sei
nada. Temo-os. Agora, quem me garante que, dessas nuvens agitadas, não vá
cair alguma coisa em minha cabeça? Quem me garante?
Aos poucos, a silhueta da montanha se desenha, escura, sobre o
fundo esbranquiçado. Que delícia estar sozinho! - penso, com a maior
franqueza.
Em companhia de quem eu poderia estar, que já não me houvesse
dito:
"Saia desse sereno!" (?) E, no meu próximo espirro, mesmo que fosse
daqui a dez anos, cobrar-me-ia o cuidado tomado: "Está vendo? Não lhe disse
que aquele sereno ia lhe fazer mal?" Não há nada mais antigo que ser contra o
sereno.
Nunca se faz rigorosamente o que se quer, em companhia de outra
pessoa.
Pode ser-se feliz, em companhia de outra pessoa, mas é uma
felicidade de renúncia, como a do cristão que reza de joelhos, morrendo de
dor, nas rótulas e nos rins. Ou, então, não é felicidade e, sim, uma atitude
interesseira, de espera e emboscada. É-se feliz, vá lá, de esperança, ao lado de
uma mulher. À grande felicidade seria, portanto, a de estar-se inteiramente só,
em companhia de alguém. Mas quem seria esse alguém, tão perfeito? E eu,
quem seria? Muita gente chama de felicidade a burrice que bate, quando se
está junto da pessoa amada. É uma burrice agradável, mas é burrice. Agora, se
se quiser dizer que burrice e felicidade são dois estados parecidos, está certo.
Pa-re-ci-dos. Mas nunca se é burro quando se está inteiramente só. E nunca se
é rigorosamente feliz quando se está perto de alguém.
Enquanto pensava nessas coisas, tantas e tão lúcidas, clareou muito
pouco. Logo, pensei tudo depressa, porque estava só, inteligente. Se houvesse
alguém ao meu lado, por melhor que fosse, Santiago Dantas, a conversa teria
ficado na dúvida do sereno fazer ou não fazer mal à saúde. Já seriam,
portanto, oito da manhã. Mulher diz uma frase que, perante as leis civis e
religiosas, deveria constituir justa causa para a anulação do matrimônio: "Vista
um suéter, meu bem."
Abre-se o janelão ao lado do meu. É o cronista Braga, que se debruça.
Penso em quanta gente gostaria de acordar e, como num milagre, ver
o cronista Braga ao pé de si. Quanta mulher! Todavia, não é assim, como
imagina. Começa que, quando se levanta, o cronista Braga está dormindo
ainda e, durante dez minutos, não diz coisa com coisa. Quando principia a
raciocinar, informa se o vento está soprando de sul ou de norte e o que irá
acontecer, se for de noroeste. Tira do bolso um higrômetro e proclama o grau
de umidade do ar. Daí por diante, começa a identificar os passarinhos pelo
canto. Se voa uma andorinha, comenta-lhe o vôo, que considera o mais
gracioso.
Então, ao abrir-se o janelão ao lado, eis que surge o cronista Braga.
Após o boletim meteorológico, conta que dormiu pouco, porque
esteve a rever crônicas do seu próximo livro. Leu Proust. Sugere descermos à
cidade e tomarmos um café. Lembro-lhe a falta de leite e vamos assim
mesmo.
No nosso quase-caminhão, descemos, os dois, uma ladeira muito em
pé. Se o freio falhar, serão dois cronistas a menos, numa cidade onde há (dizer
com a música do samba) "mais cronista que mulher". O "Sabiá" veste sua
japona de lã grossa, fechada até o queixo. Não somos suficientemente
interessantes para nos aturarmos todos os dias. Mas damo-nos bem, nos fins
de semana. Há muitos anos, com algumas interrupções, saímos, às sextas-
feiras, para um lugar ou outro. Dormimos e comemos, o mais possível. Beber,
havendo caráter, evita-se. Compramos coisas de trazer, como lingüiças e
boudins. Jogamos muito no bicho. Havendo dinheiro, jogamos alto. Quando
os jogos são separados, ele ganha, eu não. Aqui, em Petrópolis, vamos ao
ceramista de Itaípava ao orquidário do caminho de Caraneola e ao Parque São
Vicente - No mais, ficamos na Avenida Quinze, vende? mocas - Esta sempre
pretendendo, o "Sabiá", comprar um terreno num ploteau, de vista bonita.
Pergunta muito o preço por metro quadrado.
Rejeitamos convites para banhos de piscina.
É assim leitor que os vossos escravos se refazem, para que não vos
falte o pão do espírito - Vão por aí a dormir em bons lençóis a revolver cada
qual sua consciência, e voltam de mente lúcida tão viva e tão ungida, para (de
minha parte) escrever estas chatices - as terças-feiras.

***

Última Hora / 8 de junho de 1960

Poesia perdida

Não sei onde deixei minha poesia. Deve ter sido em um desses bares,
por aí. Ou no olhar, na carne, no breve dia feliz da mulher amada. Sei que a
perdi e, se era tão pouca, foi bom que se perdesse, porque poesia é como areia
- só merece menção quando é muita; exemplo: praia e deserto.
Que me lembre, senti-a pela última vez em um amanhecer do cais de
Hamburgo. Era a noite curta de um fim de primavera e, já às três da
madrugada, começava a clarear. Aos nossos pés, faxinando o seu barco, um
marujo cantava uma canção de palavras engroladas, mas muito bonita, a
canção. A alguma distância sobre o horizonte do amanhecer, a silhueta de
Bismarck. Foi a última madrugada da minha poesia.
Deus, bem haja as viagens que me deste!
De lá para cá, as coisas têm acontecido fora de mim. Sinto-as
intensamente mas nada nasce, como outrora nascia, dentro do meu coração -
um Universo à parte. Ao contrário do que possam pensar, essa mudança não
me desgasta. Digo-me, muitas vezes: Que bom não ser poeta! Que alívio
interior, que descanso, o de não gerar! A poesia é, agora, o acontecimento
fugaz e ocasional em minha volta. Eu só o temo, depois de escolher.
Mas há uns dois ou três dias, distraído, ia-me encrencando com um
desses acontecimentos exteriores. Era uma festa. A porta se abriu e entrou
uma mulher. Bem, já tem havido isso, de portas se abrirem e, por elas,
entrarem mulheres. Mas, embora a porta fosse igual a todas as outras, a
mulher não era. As mulheres deviam ser como os caranguejos – todas iguais.
Entanto, para desgraça nossa, não o são. É verdade que é bom ter-se uma
mulher por quem se faça barba todos os dias, por quem se mande fazer um
terno azul de casimira, por quem se encomende uma gravata na Dominique
France, por quem se deixe de comer pão, arroz, batata e manteiga. Todavia...
Quando a porta se abriu e aquela mulher entrou, porque ela fosse
alígera ou, simplesmente, míope, uma sensação já minha conhecida vibrou no
peito esquerdo. Algum mal estaria me acontecendo: poesia ou burrice? Deus
queira que tenha sido este último... Poesia só leva ao que não serve.

***

Última Hora / 7 de janeiro de 1960

Adultério e considerações

No jornal, a notícia de um flagrante de adultério, onde se dá muita


importância ao fato de um dos flagrados ser almirante. Pelo texto, o flagrante
me pareceu ilegítimo, uma vez que a porta foi aberta à Polícia,
espontaneamente, pela mulher flagrada. No apartamento, além dos flagrados
estarem vestidinhos da cabeça aos pés, não havia nada que caracterizasse o
adultério. Uma mulher, no interior de um apartamento com um almirante,
pode estar fazendo mil coisas direitas, como troca de idéias (marítimas), sessão
de discos na vitrola, compra de terrenos - que, do momento em que entra um
almirante, seriam da Marinha. Por que, então, achar que a moça estaria a
cometer desatinos? Se, na entrada da Polícia, fossem ambos encontrados em
abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim, aí, sim. Mas não. A mulher tinha,
no olhar, toda a autoridade de honradez intacta, e o almirante, sentado em
confortável poltrona, fumava um cigarrinho, no caso, um único gesto digno
de um almirante (pena, não era batavo). Esta é a notícia, diante da qual o
cronista lavra o seu protesto. Agora, passemos às considerações em torno.
Não há nada de maior mau gosto que o flagrante de adultério.
Examinemos, inicialmente, a parte que promove a diligência policial, é claro, o
marido. Que satisfação teria esse herói em ver sua mulher, ou ex-mulher, em
atitude mais íntima, na companhia de outro homem? Depois, a causa dos
flagrados. Imagine-se a situação de um casal, em trajes menores, diante de um
marido ultrajado, um policial, um escrivão e três testemunhas.
Não, os maridos, quando passados para trás ou para a frente (há
maridos que depois de enganados melhoram de vida), devem tomar outras
providências. Além disso, é preciso que se respeite o adultério. É pecado, é
ilegal, é tudo o que se queira, mas existe desde os começos da humanidade.
Como se pode, sem a menor consideração pelas razões sentimentais e pela
coragem dos adúlteros, entrar-lhes de tugúrio adentro, com Polícia, escrivão e
tudo? Não tenham dúvida, de todas as desafrontas ao amor infiel, esta é a de
maior mau gosto. Marido enganado, quando já sabe que foi enganado, deve
ficar quietinho, tocar a vida para a frente, largar (se puder) a mulher e não
fazer o São Tome, que sempre se deu mal na base do "ver para crer".

***

Ultima Hora/ 16 de novembro de 1959

Canção compassada, do encontro e da dor

Marcaram encontro sem leve lembrar que a vida, por si, já é um


encontro; que o Amor fez-nos todos, mandou-nos à Vida para, cedo ou tarde,
haver o encontro. Portanto, o encontro, por que se marcar? E quem fez-nos
todos? Foi Deus ou o Amor? Mas isso é detalhe e se acerta depois. O fato é
que os dois marcaram o encontro que estava marcado. Seria num bairro
distante de tudo. Distante, ainda mais, das limitações do senso comum, das
proibições, dos zelos morais. Os zelos morais, Morais de Vinícius, na forma
invertida, tirando-se o "de", Vinícius Morais.
De longe, ele a viu, sentiu uma coisa. O sangue esquentou, subiu-lhe
na face e, como um aperto, de falta de ar, pesou-lhe, no peito, a pedra do
medo. Alguém sabe disso: a pedra do medo? É coisa do amor e, certo, alguém
sabe. Se alguém não souber, azar, nunca amou.
Sentaram-se, os dois, num banco de pedra. Fazia calor, no bairro e
nos dois. Então, pôs-se a vê-la. Por fora, o vestido, de azul floreal. Mas, findo
o vestido, saíam-lhe as pernas que, belas assim, não houve um só dia, na face
da terra, no olhar de ninguém. Pensou em ficar, e continuar, a ver só as
pernas, que muito já eram. Mas havia tanto ainda que olhar!
Ergueu seu olhar. Foi vê-la no rosto - que imensa beleza! Pensou em
ganhar, pensou em perder. Pensando em perder (antecipação), pensou em
morrer. Porque se, um dia, ficasse sem ela, melhor lhe seria deixar de viver.
(Perdão, estas rimas são tão casuais!) Reparem que olhos tão raros, na
vida! Tal qual o vestido, de azul floreal, o branco dos olhos azul também era.
Pensou poesia, fazer poesia, que não importava ser bela ou banal. Pensou
indagar: são olhos ou mar? Podia ser mar porque cada um "tinha uma
ilhazinha" castanha a boiar, no meio do azul dos olhos (ou mar). Não sei se
ficou aqui explicado que os olhos da moça não eram azuis. Azul era o espaço
que branco seria, se a moça em questão "fosse uma" qualquer. A parte central,
chamada "ilhazinha", foi vista castanha.
Ao sentir-se assim, anatomizada, a moça sorria. Que dentes, Antônio!
Bonitos assim, só houve uma vez, em mil novecentos e cinqüenta e
três - em outra mocinha, que durou um mês, de março a abril de mil
novecentos e cinqüenta e três. Mas isto passou. Passou como o barco, passou
como a dor, passou como a chuva, passou como a glória de Ramón Novarro.
Agora existia, no bairro distante dos zelos morais, apenas a moça, no banco
de pedra, vestida de azul, enquanto fazia calor-38, no bairro e nos dois.
Por fora, a beleza. Por dentro, o silêncio. Que imenso mistério, o
silêncio por dentro de todas as coisas! Que medo nos causa o silêncio que
existe por dentro dos homens!
Os braços dourados do sol da manhã! O rosto vermelho, de
encabulação, do susto feliz de estar sendo bela, de estar encantando o homem
do encontro e, é claro, também, vermelho, também, do sol da manhã. Porque,
de manhã, no banho de mar, ficara no sol.
Vestira maio - pensou, ciumento, o homem que a via. Andara na
praia, e todos que a viram pensaram pecados, que Deus, friamente, irá
perdoar.
Mas ele, jamais. Cresceu-lhe o ciúme. Lembrou-se do Braga, se ali
estivesse, com os dedos no ombro da bela mocinha. Botando dragonas nos
ombros dourados da bela mocinha. Dizendo coisinhas, no diminutivo. Que
graça, Jesus, que pode encontrar alguém de bom senso no Capitão Braga?
Que mau primitivo! Morreu-se em ciúmes do cronista Braga, coitado,
inocente, em sua Ipanema, pensando em Irene. Perdão, Capitão. Mas foste,
Braguinha, naquele momento, a encarnação de todos os homens metidos a
sebo, que há por aí.
Daí por diante, no peito do herói, a dor começou. Nasceu-lhe, na
mente, cruel profecia: a moça bonita não seria sua. Olhou-se por dentro. Que
horrível que era! Que gasto que estava de amores passados! Que marcas
imensas de desilusões. Olhou-se por dentro, como debruçado na borda de um
poço. Que morto que estava de amores passados! Olhou-se por fora. Um
velho senhor de olhos cansados. Seus olhos mais velhos que o resto do corpo.
Os dentes escuros, de tanto fumar. O rosto marcado de vincos enormes, de
tanto aprender. As marcas das mãos! Por que cicatrizes, nas mãos de um
poeta? Porque sua vida, em todas as horas da lida e da vida, foi sempre
marcada de muitos perigos, de riscos de vida, de luta e de sangue, por causa
das iras do álcool e do amor. Sentiu-se mais triste.
Arrependimento, de tudo, lhe veio. De ser de onde era, de ser o que
era e ver, no que era, que nunca, na vida, devia ter sido. Por que concordou
em ir ao encontro? Porque não sabia, de si, nada então. Pensou que sabia por
convencimento. Agora, aprendia, naquela menina, de azul floreal, que nunca
devera marcar o encontro. Daí por diante, restava sofrer. Saiu pela rua,
andando pesado, seu passo sem rumo que a nada levou. Semanas depois,
achou sua casa. Abriu sua porta, entrou, foi chorar. Passou um menino, na
rua, e gritou: "Já viram que coisa: um homem chorando?!"
(ESTA ÚLTIMA FRASE É DESCOMPASSADA.) Foi bem feito
que o menino dissesse o que disse, porque os homens gostam de mangar de
menino que chora.

***
Última Hora / 5 de agosto de 1960

Crônica mal-humorada

O terceiro whisky. Uma coisa se completa imediatamente, em mim: o


bem-estar. O terceiro whisky é o melhor de todos. A meu lado, desde que
cheguei, uma senhora fala alto a dizer coisas que, supôs, eu gostaria de ouvir.
Ou, ouvindo-as, iria fazer bom juízo a seu respeito. Mais ou menos
desesperançada da minha aquiescência, pede-me um cigarro. Dou-lhe um dos
meus, fortíssimos, certo do que iria acontecer. Na primeira tragada, tossiu,
levou a mão ao peito, tossiu outra vez e disse, na tosse:
- É muito forte.
- Não. A senhora é que é fraca.
Apaga o cigarro, com força, contra o cinzeiro e tira, da bolsa, um dos
seus, fraco, de filtro comum. Pede-me que o acenda. Está querendo, como eu
esperava, conversa. Pergunta:
- Quem é a nova paixão?
As pessoas mal informadas sobre mim fazem-me sempre essa
pergunta, e outra, mais estúpida ainda:
- Por que está tão triste?
Essa pergunta da "nova paixão" deve fazer-se a pessoas tolas,
vaidosas, banais e não a mim, que sei, humildemente, o que seja amor, por que
se ama e como se ama. A da tristeza não passa de ingênuo começo de
conversa, porque as pessoas, de um modo geral, quando se lhes pergunta se
estão tristes, ficam muito felizes, lisonjeadas até, e mentem, horas seguidas,
sobre uma porção de suas particularidades, ridículas, quase sempre de amor,
que, em vez de mágoa, lhes causam imenso prazer íntimo. Não me lembro de
ter permanecido triste, publicamente, uma vez sequer. Tristeza é um estado
acidental desconcertante, que descompõe o homem moralmente, tanto quanto
a braguilha aberta. Sempre que me senti triste, corri para casa e me deitei de
bruços sobre minha tristeza. Para escondê-la - a única coisa decente que se
deve fazer de uma dor: escondê-la, com o mesmo pudor com que os gatos
escondem suas fezes. Logo, em um bar, sempre que pareci triste, estive sério.
Mas vivemos em um país onde a única pessoa considerada séria é o Brigadeiro
Eduardo Gomes, porque nunca se casou, nunca sorriu e nunca disse nada.
Então, uma pessoa, porque está séria e, logicamente, feliz, tem que ouvir
sempre a mesma pergunta: "Por que está tão triste?" Ou, então, a variante,
mais nefanda:
"Já vi você mais feliz." Ahhhh... Viro-me para minha vizinha e digo,
sem a menor esperança de que ela, um dia, venha a entender:
- Minha senhora, um dos grandes males da Humanidade é a UDN.

***
Última Hora / 27 de outubro de 1959

Notas sobre Dolores Duran

Vi-a, pela primeira vez, no Vogue. Cantava escondidinha, fora de luz,


atrás do saxofonista. Quase não se lhe via o rosto. Faz muito tempo. Mais
tarde, fizemo-nos amigos. Com Ismael Neto, andávamos constantemente
juntos. Estava presente, quando fizemos algumas canções, Canção da volta,
por exemplo, de que foi a primeira intérprete. Hoje em dia, lembrava-se de
canções, minhas e de Ismael, das quais não me lembro. Só ela se lembrava.
Prometia sempre um encontro (um maestro presente), para escrevermos essas
músicas, que Ismael não teve tempo de escrever. Uma delas chama-se Dez
noites. Essas músicas não serão conhecidas nunca mais.
Poucas vezes passou pela música popular uma mulher de tanta
sensibilidade. Seu coração era um coração repleto de amor. Nunca a vi que
não dissesse estar apaixonada. Não dizia por quem. Vi-a, pela última vez, na
madrugada da última quinta-feira, no Kilt Bar. Fazia contracanto com um
disco de canção francesa. Todos a ouviam, em silêncio. Depois, levantou-se,
atravessou o bar e foi sentar-se sozinha, a uma mesa escanteada. Atirou-me
um amendoim, para que eu a olhasse, e gritou de lá: "Estou tão apaixonada, e
quero ficar aqui quietinha. Posso?"
Ultimamente, fazia canções lindíssimas, uma delas, Por causa de você,
de parceria com tom. Sozinha, fez o samba Castigo, onde, expressivamente,
disse o que nenhum compositor ou letrista soube dizer antes: "A gente briga,
diz tanta coisa que não quer dizer; briga pensando que não vai sofrer", etc.
Sua última composição é, porém, a mais bonita de todas - "para enfeitar a
noite do meu bem". É aí que dá todo o seu delicado coração. As coisas que ela
arranja para enfeitar a noite do seu bem vão desde a "paz de criança
dormindo" até a "alegria de um barco voltando".
Agora, que Dolores foi dormir, o que encontraremos, o que iremos
buscar, para enfeitar-lhe a longa noite?
Nos começos deste ano, aqui esteve uma condessa portuguesa, que
me pediu, certa noite, para levá-la a lugar onde visse gente interessante.
Estava cansada de uma Sociedade que freqüentava. Expliquei-lhe que
coisa difícil ela me pedia. E levei-a, por levar, ao Baccara. Lá, chegou Dolores,
casualmente. Sentamos os três, e Dolores começou a contar sua viagem à
União Soviética. Minha amiga não parava de rir um só instante. Dolores, com
aquela riqueza de palavras raras, com aquele seu espírito agudíssimo de
observação, a descrever Moscou (com todos os seus bens e males) como
ninguém descreveu, até hoje. Em cartas, essa minha amiga, de vez em quando,
recorda essa noite e manda lembranças e recados para Dolores Duran. Dizia,
na última carta: "Essa menina não existe." Terei que mandar dizer-lhe:
"Aquela menina já não existe."
Desambiciosa. Simples e modesta. Feliz, porém, da alma que tinha.
Não sabia fazer planos. Pretendia, mas só pretendia, voltar um dia a Paris, ir
ficando e, lá, continuar até à morte: "Nasci para viver aquela vida. É uma vida
que eu não sei dizer como é. Mas ê aquela vida que eu quero viver."
Perdemos uma amiga de qualidades muito raras. Não sei muito o que
dizer do seu coração. Sei que o conhecia e o amava. Aqui, onde estou, penso
em levar flores para enfeitar sua Noite. São tantas as rosas por aqui. Prefiro
mandar-lhe, porém, o meu pensamento, repleto de amor, transbordante de
saudade.
Chega o cantor Bola Sete, com um violão. Faço-o sentar. Dou-lhe a
notícia e um copo de vodka. O negro chora, procurando esconder o rosto
dentro das mãos. Conta, entre soluções, que, na véspera, Dolores tocou em
seu violão. "Estava tão calma" - disse o negro. Soluça e diz depois às pessoas
que se sentavam conosco: "Pergunte a ele quanto ela era boa."
Pegou o violão e cantou, entre lágrimas, A noite do meu bem.
E é só, Dolores. Essas palavras. Só. Depois, a pouco e pouco, iremos
todos esquecê-la. Lá uma vez ou outra, quando cantarem o Castigo, a gente se
lembrará. Seu rosto gordo, sua boca fina, seus olhos ansiosos, sua voz rouca,
bonita - a voz que eu mais gostava de ouvir. Escrevo estas notas em um dia
limpo de sol. Você gostaria de ver este dia, porque você amava os dias claros,
assim. Você disse, numa canção: "Me dê a mão, vamos sair pra ver o sol".
Como eu queria agora lhe dar a mão! É tarde, menina. Sua mão é distante.
Tem que ficar para depois, se depois houver, ainda, uma manhã assim, de sol
glorioso e imensa fraternidade.
Tem que ficar para depois - um "depois" que a gente não sabe onde é
e quando será. Que triste a vida, quando se perde um amigo!
Procuro você, agora, para guardar os traços do seu rosto. Você,
palidamente, você. O aroma da morte, entre as flores. Realizo no sono do seu
rosto toda a humanidade, num só momento difuso e longínquo. Roda-me a
cabeça pelo álcool que bebi à notícia de sua partida. Já não sei onde estão as
palavras. Bola Sete está aqui defronte, emborcado sobre os braços. Há pouco,
levantou a cabeça e, ao ver-me escrevendo, pediu, como se pedisse a alguém
que escrevesse uma carta: "Mande-lhe um abraço."
Emborcou-se outra vez sobre os braços. Desce sobre mim um sono
feito de todas as desilusões. Não é o sono bom, de todas as noites, onde o
cansaço e a rendição voltam todas as noites. É um sono sem brandura, que
deve somar todas as minhas desesperanças. Alguém já escreveu qualquer coisa
parecida com isso, sobre o sono. Um poeta, Dolores, não me lembro qual.
Estou que não sei mais o valor e a ordem das palavras. Mando-lhe um beijo,
para enfeitar sua noite. Se for pouco, depois a gente acerta. Devo ter melhor
em mim, melhor que isto, para um bilhete de despedidas.
Depois, a gente acerta.

***
Ultima Hora / 30 de junho de 1959

Do conhecimento da mulher

Nunca estive sentado, por mais de duas horas, ao lado de uma


mulher, sem que ela me dissesse, num dado momento: "Uff... foi-se o fio da
minha meia." Logo, não é a carne que é fraca. São as meias. A certas moças de
hoje, de dezenove e vinte anos, se lhes pedirmos, curiosamente, que indiquem
três nomes nacionais de sua maior admiração, elas dirão, sem perda de tempo:
Baby, Pittigliani e Jorge Guinle. Se fizermos a mesma pergunta, mas no setor
das letras, citarão Jean Pouchard, José Rodolfo Câmara e, hesitando quanto ao
terceiro, invocarão Jeff Thomas, na base do "vá lá". Esse mesmo tipo de moça
vive e procede sob o peso de uma constante procura: "ser ou não ser uma boa
promoção". Ir a um night-club com Fulano pode não ser divertido, mas, se
for uma boa promoção, por que não ir?
As de mais cabeça e mais idade estão, atualmente, preocupadas em
escrever um diário de memórias, assim como o de Helena Morley. E não
encontram quem lhes diga quão difícil será repetir Helena Morley. Tanto
quanto seria difícil repetir Gide ou SainteBeuve. Quando a moda feminina
será imaginada e desenhada por mulheres? Os costureiros, nem sempre
rigorosamente homens, por mais arte que emprestem às suas criações, deixam
em cada modelo, propositadamente, um detalhe negativo de absurdo ou de
ridículo. Quando os cabelos voltarão a ser livres, a ter movimento, a viver,
enfim, numa cabeça que meneia? Ou melhor, quando será abolido o uso
insuportável (para nós homens) do laquê? E por que os cabeleireiros insistem
em encobrir a testa das mulheres? Uma fronte descoberta é a beleza da altivez
e da personalidade. Se as mulheres pudessem ver os ares de enlevada posse,
no rosto de certos cavalheiros com que estão dançando, exigiriam que a dança
fosse praticada olho a olho, como a esgrima e o boxe. Há homens que, ao
dançar, fazem olhares sensualíssimos para falar, simplesmente, de alka-seltzer
e aspirina. A mulher será sempre indefensável. O código que rege o seu
procedimento de vivência é ingrato e irrecorrível. Se uma mulher começou a
namorar alguém, delas dir-se-á sempre: "Fulana não vale nada. Imaginem que
está andando com Beltrano." E, de Beltrano, no mesmo caso, cinco minutos
depois, far-se-ão todos os elogios, inclusive o da sua esperteza, por estar
saindo com Fulana. Invente um nome de mulher ou imagine uma mulher
absurdamente inabordável. Em seguida, ao seu melhor amigo, pergunte, com
ar de prévia aprovação: "Você já teve alguma coisa com Fulana?" Nove entre
dez dos seus melhores amigos, em vez de dizer, simplesmente, "nunca",
perguntarão, num sorriso repleto de possibilidades: "Quem lhe disse isso?" A
maioria das mulheres se apaixonou, perdidamente, pelo homem amado depois
que o contemplou dormindo, horas a fio. Porque um homem dormindo é
mais que uma criança ou um lago. E, para fim de conversa, eu gostaria de
dizer a todas as moças belas que conheço: Sejam mais e façam menos. Nas
pessoas verdadeiramente bonitas, cada FAZER é uma grave possibilidade de
erro. No mais, amai-vos e odiai-me!

***

Última Hora / 26 de agosto de 1959

Coração opresso, coração leve

Tão bonita à minha frente, acordando tanta coisa neste coração que já
fez versos, mas angustiada. Suas mãos, que pousavam sobre a mesa, partindo
palitos, rasgando prata de cigarro, fazendo bolinhas de miolo de pão. Cinco
minutos depois, a toalha, em seu lugar, parecia um chãozinho de pombal.
Olhei-lhe os olhos, sabe Deus com que sentimento! E ela talvez também
tenha sabido, porque linguagem de olho, embora só olho entenda, é a mais
clara e sincera do corpo humano.
Achava-me diante de mais um caso, claríssimo, de ma/od/e d'amour,
cuja sintomatologia está contida em obras de Lupicínio Rodrigues, Charles
Aznavour, Herivelto Martins, Margueritte Monot e Maísa. Essa enfermidade,
em casos agudos, requer que o doente seja transportado, sem perda de tempo,
a uma cartomante, sempre que possível, egípcia. E isso foi feito,
imediatamente, em duas viagens, pois o corpo da paciente viajou de táxi, e a
alma, um pouco antes, em maca do Serviço Nacional de Mal de Amor. Lá
chegando (desculpem a frase feita), foram postas as cartas na mesa e, da
intervenção, que durou vinte minutos, resultou um coração repleto de
esperanças, com felicidade garantida para, ao menos, vinte e quatro horas
deste agosto. O trabalho da cartomante foi impecável, porque, no primeiro
lance, descobriu uma viagem para breve e, no exame do causador daquela
crise, revelou que ele a ama, que ele a adora, que ele não a trocaria por
nenhuma, mas, por fraqueza, além de não confessar, ainda judia do coração da
moça.
Voltamos ao ponto de partida, dessa vez numa viagem só, porque
após a cartomancioterapia, dispensa-se a maça do SNMA, podendo corpo e
alma viajar no mesmo táxi. A meu lado, ia uma moça de coração leve, em
silêncio, mas com um sorriso que devia ser, exatamente, o de São Francisco de
Assis, ao relembrar as gracinhas dos seus passarinhos prediletos.

***
Última Hora / março de 1960

"Consultório sentimental"

A leitora Diamantina escreve para o "SOS da ZS", contando um


problema que não é do seu bairro ou da sua rua, mas de sua vida e do seu
coração. Diz ela: "Sei que você gostaria que a minha carta falasse da falta
d'água ou de luz. Meu SOS é de falta de paz." E conta que seu marido, dia a
dia, vai se largando mais dela. Pergunta, aflitamente, o que deve fazer para
prendê-lo. Fará qualquer coisa que nós lhe ensinemos, pois até um
"despacho" para Exu já andou tentando.
É comovente a carta de Diamantina e foi escrita com tanto empenho
que seria judiaria não respondê-la. Mesmo que seja para não adiantar nada.
Mesmo que faça Diamantina derramar mais uma lágrima. Ao menos,
para Diamantina saber que sua carta chegou, foi lida e pensada.
Diamantina, lamento dizer-lhe que você não pode fazer nada para
prender o seu marido. Ninguém consegue prender, mudar ou inventar uma
pessoa. Nem Lacerda. Existe o Homem e existe a Vida. Acontece que a Vida
é muito mais forte que o Homem e faz dele o que bem quer. O mais que uma
pessoa pode fazer em relação à outra é gostar dela. Você gosta do seu marido?
Então, já fez tudo. O resto é problema dele.
Não lute mais, Diamantina. Lutar cansa. Deixe a vida correr e fique
certa de que muita coisa ainda lhe irá acontecer. A vida é feita de acasos, e
todos são muito importantes. Vá ao cabeleireiro, compre um vestido novo,
mude para melhor o traço dos seus olhos, fume um cigarro, beba um whisky,
olhe-se no espelho e se convença de que há muito ainda o que dar e sentir. O
principal é não embagulhar. Não fenecer, Diamantina.

***

Última Hora / 20 de abril de 1961

A carona

De manhã, quando ia encostando o carro, as duas mocinhas pediram


carona até seu colégio, em Ipanema. A rua estava cheia de água e não havia
ônibus, lotação, táxi, nada.
- Vai pela praia, que é mais bonito - diz a de cabelos claros.
Obedeço. A outra, a moreninha, pergunta:
- O senhor chega sempre a essa hora?
- De onde você pensa que eu estou vindo?
- Sei lá. Dessas boates por aí.
- Pois olhe, estou vindo de uma igreja.
- Igreeeeeeeeeeeeeja? - aparteia a de cabelos claros. E continuou: -
Meu pai disse que o senhor era comunista.
Tentei explicar que um homem é muitas coisas e nunca deve ser só
comunista, só católico ou só burguês. Mas a explicação era longa e elas não
estavam mais prestando atenção. Em frente ao Rian, a moreninha botou a
cabeça fora do carro e falou que o namorado dela morava por ali.
- Namoraaaaaaaaaaado? - disse a de cabelos claros, no mesmo tom em
que dissera "igreja". E continuou: - Sabe que idade tem o namorado dessa
garota?
A moreninha, com as duas mãos, tentou tapar-lhe a boca. Mas não foi
possível, a de cabelos claros livrou-se e pegou embalagem:
- Vinte e sete anos. E é desquitado. E tem mais uma: não gosta dela,
nem um pouco. - E virando-se para a amiga: - Verdade ou mentira?
- Gosta, sim. Ontem mesmo telefonou, falou que ia falar com o meu
pai para, quando eu saísse do colégio, casar com ele e tudo.
- Essa garota é boba - começou a de cabelos claros, virando-se para
mim.
E depois: - Esse careta que ela inventou que gosta dele (sim, você
inventou) vive com uma dona aí e já disse mesmo a ela que não pode largar.
- Mas não pode largar por gratidão, porque ela foi muito boazinha
com ele, quando ele estava doente.
A moreninha estava dando muito "serviço". Numa simples carona de
Copacabana a Ipanema, eu já sabia de quase toda a sua vida. Ao
menos do principal. Então, para descansar a moreninha, perguntei à de
cabelos claros:
- E seu namorado, quem é?
Foi muito engraçado. A menina tomou um susto e ficou com aquela
cara de quem desce um degrau que não existe. Antes que a outra falasse,
avançou-lhe no pescoço e tapou-lhe a boca, com as duas mãos. Embolaram as
duas, no automóvel. O mais que eu pude fazer foi travar a porta, para que não
caíssem na rua. Não estavam brigando, mas estavam emboladas. A
moreninha, mesmo amordaçada, queria falar. A outra gritava-lhe, com a voz
desesperada:
- Num vai falar, garota! Num vai dizer nada!
Avistei o colégio. Parei o carro e consegui separá-las. A de cabelos
claros estava zangada mesmo; a moreninha, ofegando, com o rosto e o
pescoço marcados pelas mãos da outra, dizia, ajeitando a blusa e os cabelos:
- Tá vendo! Tá vendo como é bom mexer com os outros!
Desceram a vinte metros do colégio. Dezenas de mocinhas, iguais a
elas, iam chegando, aos pares. Quando desceram, disse a moreninha,
despedindo-se e agradecendo a carona:
- O senhor desculpe, mas nós somos malucas.
Malucas, é possível que não (pensei). Um pouco velhas, talvez, para o
uniforme que usavam.
Última Hora / 5 de abril de 1961

Vigésimo aniversário

Comemoro, hoje, em intimidade, os meus primeiros vinte anos de


crônica.
Como não tenho a menor esperança de completar outros vinte, sirvo-
me de um whisky puro e bebo-o festivamente, não em homenagem, mas em
lembrança de tudo quanto passei.
- Tua saúde, homem!
Comecei no Recife, em abril de 1941, via pistolão, após receber de
volta onze crônicas que entreguei, pessoalmente, ao secretário do jornal. Fui
publicado, afinal, descrevendo uma mulher que vira na Rua Nova e que face a
ela me colocara "com a humildade de um mendigo diante de um prato de
comida". A imagem fez muito sucesso entre quatro ou cinco amigos, na
calçada da Fênix, Recife. Mas foi só. À noite, quando fui levar a segunda
crônica, o secretário trancou-se comigo em seu gabinete e passou-me este
carão:
- A Norma Shearer (havia-lhe elogiado o "estrabismo lascivo de
Norma Shearer") de quem você falou é esposa de um anunciante nosso, que
mandou suspender o anúncio da edição do domingo. Você, hoje, tem que
escrever qualquer coisa explicando que a semelhança de sua personagem com
qualquer pessoa é mera coincidência.
Depois:
- Já vi que você quer ir no caminho de Rubem Braga. Mas fique
sabendo que, em cidade pequena, isto é impossível.
Segui dali para a frente tomando imenso cuidado com qualquer coisa
que pudesse desgostar o anunciante. Na mesma crônica de estréia, a revisão
me atingira pela primeira vez. Corrigira "mendigo" para "mendingo". Na do
dia seguinte, sobre carnaval, saiu "sempertina". Em vez de "serpentina".
Pensei muito em abandonar o jornalismo. Por dois motivos: o anunciante e a
revisão.
Aqui, no Rio, em meus começos, por mais que procurasse evitar,
escrevia sempre para uma minoria, que freqüentava o Vogue. Moças educadas
no Sacré-Coeur, que me chamavam, suspirosas, de poeta. Causavam-me
náuseas os olhares oleosos com que me diziam o elogio. Tudo falso - o olhar,
a voz, o ficeleiro que me ofereciam. Na época, o Petitprince estava muito em
moda. Era chie citar-se o diálogo da raposa com o "pequeno príncipe".
A raposa a dizer que era preciso primeiro cativar. Aquilo me
enfadava, de tão repetido. Uma vez me disseram que eu era o Saint Exupéry
do Brasil, e passei a fugir de toda aquela gente prodigiosamente tola.
Entediava-me, depois de tanto viver, ser o "Exupéry do Sacha's".
Faço, hoje, vinte anos de cronista. Andei um bom pedaço de mundo
e conheci um sem-número de corações. Tranquei-me em casa depois. Não
gosto de escrever. Se soubesse fazer outra coisa, mesmo que fosse um
contrabando, não escreveria coisa alguma. Mas preciso escrever e tenho que
continuar. Encontrei, porém, um caminho melhor. Meu leitor não é mais a
moça educada no Sacré-Coeur. É o portuário Porfírio. É o candango
demitido, em Brasília. É a funcionária pública, cujo salário não lhe paga o
almoço na cidade. É uma gente que existe. A viver males que existem.
Homens e mulheres de verdade, para quem a raposa de Saint-Ex tem uma
importância muito limitada. Faz-me bem, ao tomar este whisky
comemorativo, saudar o novo público de carne e osso: - Saúde, leitor!

***

Última Hora/ 1 de setembro de 1960

História que não acaba

Chega, aflita, à minha casa, uma mulher que eu nunca vi. Vem aos
prantos e continua chorando (após sentar-se), sem que eu saiba de que se
trata. Afinal, após boa meia hora, começa a contar. Primeiro, uma porção de
tragédias, na infância. Depois, algumas infelicidades, desde o dia em que
casou. Finalmente, a tragédia capital. Enamorou-se do rapaz que mora em
frente, apaixonou-se por ele e, com o tempo, o marido os viu juntos.
Situação, na época, da minha lacrimosa visita: o marido a abandonou
(questão de honra); o namorado a abandonou (para não enfrentar a ira do
marido ultrajado); toda a família (mãe, inclusive) a abandonou, por considerá-
la mulher indigna. Pede-me um conselho. Não sei dar conselhos.
Nunca os dei, nem a parentes de sangue. Mas a essa mulher, sei lá por
que, aconselhei uma hibernoterapia. Vinte e cinco dias de sono, distante de
tudo e de todos, como em uma viagem.
A moça aceita o conselho. Desaparece. Eu me esqueço dela. Ei-la
que, hoje, volta à minha casa. Em vez de lágrimas, traz o rosto enxuto e
sorridente. Mais repousado e bonito (o rosto), depois do sono. Vem agradecer
o bem que lhe fiz. Hibernou durante vinte e cinco dias e, ao voltar, o marido a
perdoou. A família (mãe, inclusive) também.
Pergunto-lhe preocupado:
- E o namorado, de defronte?
A moça baixa os olhos, preferindo não responder. Insisto. A moça
me diz sem vontade:
- Perdoou, também. Voltou ao que era.
Agora, a tragédia recomeçará. O marido a verá outra vez com o
namorado e a abandonará. O namorado, para não enfrentar a ira do vizinho, a
abandonará. A família a abandonará. Minha visita voltará à hibernoterapia, e,
ao sair, todos voltarão às boas... É uma história, portanto, que não acabará,
nunca mais.
Última Hora / 4 de agosto de 1959

Bilhete deixado sobre a mesa de...

Cá estive, pedindo a Deus não te encontrar e que não chegasses,


enquanto rabisco este bilhete. Pessoalmente, quase nunca te pude pedir
perdão, porque tu pensas que isto é, apenas, uma humildade, que humildade é
um apoucamento, e assumes, cada vez, uma soberba desdenhosa, que não te
fica bem, que me enfada e me apieda de ti. Sempre que te amansei e te
conduzi um pouco à realidade foi com descaso - e só eu sei quanto me custou
fingi-lo. Odeio a mentira, e a pior delas é a que esconde um sentimento
bonito, para expandir, em defesa própria, uma atitude banal, de gestos e
palavras. Quando e em quem será o dia que poderei valer pelos meus
sentimentos mais legítimos? Assim por escrito, é-me fácil chegar a teu
coração, porque não estou presente... e tu usas o coração por fora da blusa,
não sentirás necessidade de escondê-lo.
Cá estive, para que estes recados desdissessem alguma crueldade que
te fiz, quando tentaste encontrar em mim uma bondade maior que a dos
homens. Esqueceste de que eu era, simplesmente, um homem; fragilmente,
um homem; fortemente, um homem. E que o homem - o melhor deles - é
feito apenas de dor e orgulho. Tu não quiseste que eu partilhasse do teu
sofrimento. Tu me vieste exibi-lo, cruelmente, para saber até que ponto eu
resistiria ao desespero. E eu era um homem, como os outros, feito de dor e de
orgulho. Agora, preciso dizer-te quanto me sinto responsável por ti, muito
mais que se o fosse perante teu senhorio, tua Société Anonyme du Gaz, tua
Casa da Banha, teu algum argent-de-poche. Mas perante mim mesmo, que te
sei a mais indefensável das pessoas. E que isto, em todas as horas, me traz
inquietação e cuidados, numa sufocante angústia paternal. Que saber disto te
faça companhia, quando todos e tudo te cercarem. Que ao menos isto te
afague a fronte, quando todos e tudo te humilharem. Que ao menos isto te
agasalhe o corpo, quando todos e tudo te ultrajarem. Que ao menos isto seja
poesia, quando a dor te fizer chorar de noite, porque de te ferir já se fartaram,
todos e tudo, e te deixaram só.
Muito mais que te pudesse amar, eu te sofro. Muito mais do que te
queira perto, eu te quero feliz. Se isto te parecer um arremedo de poesia é
porque isto é verdade, e em toda verdade há muito de poesia, e só há poesia
na verdade, de todos e de tudo.

***
Última Hora / 8 de janeiro de 1960

O andar

Aconteceu na Avenida Copacabana, esquina de Santa Clara. Uma


jovem senhora chamou o guarda e apontou o homem, encostado a um poste:
- Prenda este homem, que ele está se portando inconvenientemente.
Era um homem magro, pálido, vestido em casimira velhinha. Não
tinha cara de gente má. Ao contrário, seus olhos eram doces e mendigos.
O policial segurou o homem pela lapela. O homem não se mexeu.
Apenas levantou os olhos e perguntou:
- Por quê?
A senhora estava uma fúria e dizia num fôlego só:
- Há uma hora este cidadão me segue. Começou no lotação. Desceu
quando eu desci. Entrei numa loja e ele entrou também. Andei um quarteirão
e ele andou também. Entrei no mercadinho e ele entrou também...
- E lhe disse alguma coisa?
- Não. Só olhava.
O guarda soltou a lapela do homem. O homem agradeceu. O guarda
dirigiu-se ainda à mulher:
- Mas ele só olhava?
- Sim. Mas olhava de maneira obscena. O guarda perguntou, então, ao
homem:
- Você olhava de maneira obscena?
- Sim. Não sei mentir. Mas qualquer um no meu lugar faria o mesmo.
O senhor já viu ela andar?
O guarda viu depois, quando a mulher desistiu da prisão do seu
espectador e foi andando. Não se deve explicar muito, mas é preciso que se
diga: era uma moça brasileira. Uma moça de formato brasileiro, com
movimentos brasileiríssimos. Dessas que deviam ter, como certos automóveis,
uma tabuleta às costas, onde se lesse: "Amaciando".

***

Última Hora/ 22 de fevereiro de 1960

As mulheres pela idade

Há bem pouco tempo, quando os homens se reuniam para falar de


seus casos, o importante não era dizer o nome da amante recente e sim o do
marido. Ela não era Júlia nem Francisca. Era a "mulher de Fulano de Tal".
Hoje, sem que se possa ainda explicar se para bem ou para mal, já não
dizem o nome do marido (ou responsável). E não se diz, também, se os olhos
são azuis ou verdes ou se o cabelo é curto ou comprido. Diz-se, unicamente, a
idade da moça. Assim, com o sorriso do êxito absoluto:
- Imagina. Dezoito anos!
E corre o olhar nos olhos da platéia, para sentir-lhe a inveja e a
estupefação. Depois:
- Aliás, vai fazer dezoito anos, agora em março. Espera e ouve os
comentários. Depois, sem fitar especialmente ninguém, estas inevitáveis
considerações:
- Vejam vocês. Eu, um homem já passado pelos quarenta, como é que
posso arranjar uma coisa dessas? Eu tenho a impressão de que essas mocinhas
estão malucas... (num suspiro). Taí, eu sou uma pessoa que não posso me
queixar da vida!
O parceiro da frente está de narração engatilhada e aguarda, apenas,
que o outro acabe de rejubilar-se. E ataca sua história:
- Eu não queria contar, mas a minha tem dezessete. Será que essas
mocinhas estão ficando malucas? Não, sabe o que é? É que essa rapaziada de
dezoito e vinte anos não tem, hoje em dia, o menor interesse. São bonitões,
fortões... mas cadê a conversa?
Outro tipo de diálogo, quando o herói não está presente:
- É verdade que Fulano está de caso novo?
- Também já me disseram.
- E você sabe quem é?
- O nome, não. Mas tem uns dezessete para dezoito anos, no
máximo.
A grosso modo, pode dizer-se que se trata de uma influência literária -
no caso, de Lolita. Mas não é bem isso, o homem. O homem já se fartou de
passar para trás o marido, já não se interessa em ser o dono da "mulher de
Fulano de Tal". Então, para não dar confiança à mulher em si - a cor dos
olhos, o formato da boca, o desenho dos quadris -, aponta-lhe o valor pela
idade. Isso o faz muito feliz, porque todos os homens adoram lidar com
números.

***

Última Hora / 18 de novembro de 1959

Cena e exemplo a seguir

Não adiantava bancar o discreto e passar sem assistir, porque os


protagonistas da cena pouco estavam ligando se os espectadores fossem dois
ou mil. Tudo acontecia numa porta de boate, depois das três da madrugada.
Ele era um rapaz bem-vestido, conhecido de todos nós, pelas suas conquistas.
E ela também, conhecidíssima, pelo que dela vem contando toda uma geração
discretíssima. Ele estava encostado na parede e procurava, sem conseguir,
dizer alguma coisa. Ela é que falava:
- Você não disse que me levou ao seu apartamento e fez isso, isso e
isso?
Ele procurava defender o nariz e a boca (com as mãos), enquanto
levava, na orelha esquerda, um tapa sonoro e ecoante. O outro espectador deu
um passo à frente e eu lhe fiz sinal para que não desse outro. Ela continuava:
- E você também disse que, depois de fazer isso, isso e isso, não
gostou. Mentira ou verdade? Fale!
Pausa, e agora era a bolsa, na mão esquerda, que ia sobre o olho
direito do rapaz. O outro espectador gritou: "Chega!", e eu lhe pedi que não
dissesse mais nada. A vítima nos olhava, agora, suplicemente.
Fitando o outro espectador, deu um riso amarelo e quis dizer que a
"moça" estava brincando. Levou o terceiro tapa, na cabeça, desmanchando o
penteado. Ela, então, resolveu tomar conhecimento da nossa presença:
- Onde estão minhas luvas?
Estavam no chão, e a vítima se abaixou para apanhar. Ela não quis
receber, deu-lhe as costas, veio andando até nós:
- Tem cigarro? Então, faz favor, porque eu estou de boca seca.
Foi-lhe dado, de coração, um long-size, com filtro e tudo, e, se
houvesse uma caneta à mão, levaria uma dedicatória entusiástica. Uma
dedicatória escrita ao longo do cigarro, com toda a admiração do primeiro
espectador. Ela ofegava, mas sorria feliz, no canto da boca:
- Pois é, essa porcaria de homem ofereceu-se, ontem, para me levar
em casa. Pegou-me aqui nesta calçada e deixou-me na porta da minha casa.
Nem aperto de mão nós trocamos. Pois bem, foi contar a todo
mundo que eu dormi no apartamento dele.
Voltou-se, como para continuar o que havia interrompido. A vítima
porém já não estava. Tinha-se saído de fininho e tomado um táxi, na esquina.
Ali ficava um exemplo de decisão a seguir. Se todas as mulheres fizessem o
mesmo, seria menor o número de grandes conquistadores desta cidade.
Queira aceitar, senhorita, todo o Amor (esta palavra não tem sinônimos) desta
testemunha de sua bravura.

***
Última Hora / 25 de julho de 1960

As duas irmãs

Caso glorioso da mãe, que morreu, ficaram duas filhas, Glorinha e


Zilda. Recorda-se, do dia do enterro, que Glorinha era moça feita e chorava
muito. Zilda era pequena, da altura de uma cadeira, e andava pela casa,
estonteada, saber direito o que tinha havido e o que estava sentindo.
Isso foi em 1940, em Porto Alegre. A guerra estava começando.
Glorinha tinha vinte anos e arranjou, com uma pessoa da família Vargas,
emprego em um instituto (possivelmente o de Transportes e Cargas), aqui no
Rio.
Veio e trouxe a irmã. Moraram, primeiro, numa pensão na Correia
Dutha; depois, num quarto, em casa de uma senhora (também no Flamengo),
e, finalmente, no apartamento de quarto, sala, banheiro e cozinha, comprado
pela Caixa e que ainda hoje habitam, em Copacabana. Glorinha não casou e,
não sendo feia, não se uniu de amor a ninguém, por causa da irmã.
Tinha que criá-la, educá-la, defendê-la.
Hoje, Glorinha tem quarenta anos e Zilda, vinte e quatro. Glorinha
trata a irmã com os mesmos cuidados de antes) como se fosse menina. O caso
que aqui se narra passou um mês atrás.
Zilda saiu, não disse para onde, mas falou que voltava antes da meia-
noite. Chegou às duas, e, como nunca chegara depois da hora prometida,
Glorinha a esperou, sobressaltada. Tinha a chave (Zilda) e entrou. Glorinha
esperava na sala, na mesa de jantar:
- Onde você estava?! - perguntou, pondo-se de pé.
- Que é isso? Que olhar é esse?
Zilda caminhou, sorrindo manso, na direção da irmã. Queria acalmá-
la.
- Já telefonei para tudo quanto foi canto e ninguém sabe de você.
Polícia, também; Miguel Couto, também. Fala: Onde é que você andava?
Zilda não pôde continuar sorrindo. Baixou os olhos.
- E isso no braço? - perguntou Glorinha, tomando a mão da irmã.
- Foi o rapaz que estava comigo - respondeu Zilda, sabendo a
extensão do desgosto que ia causar.
- O rapaz, quem?
- Sílvio.
- Por que esse desgraçado fez isso em você?
- Porque ele queria que eu ficasse com ele. Também, daí por diante,
Glorinha não perguntou mais.
Podia ter perguntado: "Ficou ou não ficou?" Mas não perguntou,
porque intimidade de irmão com irmão é muito limitada. De pai com filho,
também. Não dá para agüentar, saber de constrangimentos, à moral do sexo.
A moral imperecível do sexo. No caso de Glorinha, faltava-lhe coragem para
saber, de Zilda, o resto da história. Abraçou a irmã, fundamente, em seu
coração e beijou-a no rosto. Os arranhões do braço eram três marcas de unha,
apenas a pele descolada, onde minava água de sangue. Trouxe um algodão
com álcool e outro com mercurocromo. O de álcool ardeu e as duas
sopraram, como se a dor fosse das duas, o lugar ferido. O toque do mercúrio
não doeu. As duas, muito caladas, foram deitar-se. Uma não queria contar e a
outra não queria saber. Eram irmãs.
Não tinham intimidade. Os amigos, sim, têm intimidade, para dizer e
ouvir. Os inimigos, mais ainda. Os irmãos, não.
No dia seguinte, muito cedo, Glorinha desceu à rua e a primeira
pessoa que encontrou foi um preto forte, de óculos ray-ban. Pensou: "Se ele
aceitar, vai ser ótimo." Deu bom-dia ao preto e convidou-o para tomar um
café. O preto não entendeu, mas aceitou. Sentaram-se os dois, na mesinha do
café. Glorinha perguntou se o preto queria café ou um conhaque.
- É melhor o conhaque, que já está pronto - respondeu o preto, com
um sorriso muito bom.
Glorinha não contou a história, mas perguntou-lhe se aceitava dar
uma surra num moço de nome Sílvio, dono de um DKW, residente à rua tal,
número tal. O preto achava tudo muito estranho e perguntava por quê.
- Porque ele bateu na minha irmã mais moça.
- Alguma coisa ela andou fazendo - ponderou o preto, sorrindo, mas
falando sério. Glorinha disse que não, que a irmã era muito boa. Apenas não
fizera o que ele mandara. O preto entendeu, e falou que deixasse o moço por
sua conta. Glorinha lhe ofereceu três contos. O preto sorriu, disse que não, de
jeito nenhum, que aceitava outro conhaque, mas quando fizesse o serviço.
Glorinha escreveu, num papel de pão, o nome e o endereço de Sílvio,
acrescentando que o carro era DKW. Quase beijou aquele homem, tão
simples, de óculos ray-ban. Ele entendeu que ela estava grata e queria
demonstrar. Preferia que não demonstrasse.
- Deixe comigo - falou, sorrindo, encurtando o encontro. Era um
sábado.
Passou o domingo, a segunda; quando foi na terça de tarde, Zilda
entrou aflita, com um jornal na mão, e disse, de passagem para o quarto,
abrindo a "maneira" do vestido e largando o jornal no chão:
- Sílvio foi assaltado!
Glorinha apanhou o jornal e leu a notícia:
"MAIS UM ASSALTO, NA TONELEROS - Sílvio Guedes Rosas
foi assaltado, em plena luz do dia. O assaltante, um preto corpulento, além de
levar-lhe o relógio de ouro e uma carteira com 8 mil cruzeiros, esmurrou-o,
desapiedadamente. A vítima medicou-se no Posto do Lido, sendo recolhida ao
Miguel Couto, com suspeita de fratura do crânio. A Polícia precisa atentar
para os repetidos assaltos", etc., etc...
O resto não lhe interessava, porque era contra o restante conselheiral
da notícia. Sentia-se feliz, por dentro e por fora. A irmã veio do quarto, de
roupa mudada e bolsa na mão.
- Vai para onde? - quis saber Glorinha.
- Cinema. A mulher e o fantoche.
- Não vai, não, que saiu de cartaz.
E, com carinho, tirou-lhe a bolsa da mão. Sentaram-se frente a frente
e se sorriram. Zilda não entendia, mas ia ficar. Glorinha sentia, por dentro,
uma felicidade como nunca sentira. Podiam pensar que fosse ruim.
Não era. Tinha certeza disso. E pensava do preto, de óculos ray-ban:
um estranho e fascinante homem de bem; difícil de ser explicado, sobretudo.

***

Ultima Hora / 24 de novembro de 1959

As canções e as pessoas da noite

As canções mudam muito o moral amoroso dos que vivem de noite.


Vejamos o exemplo de três canções, as de maior sucesso nestes últimos dois
meses, e as transformações que elas causaram. Comecemos por Eu sei que
vou te amar. Centenas de romances iniciaram-se, na Zona Sul, por culpa dessa
música. Amigos, simples amigos (homem e mulher) que saíam juntos,
transformaram-se, por sugestão da letra, em pares amorosos. E não era para
menos. Não é brincadeira uma voz a repetir, em cima de bonita melodia, "eu
sei que vou te amar"... a gente acaba se convencendo mesmo de que vai amar
e amando.
Logo depois, apareceu A noite do meu bem, a ensinar uma maneira
delicada de enfeitar o sono (ou a vigília) da pessoa amada. Muitos elementos
poéticos entravam na mise-en-scene da tal noite, como, por exemplo: paz de
criança dormindo, alegria de barco voltando, abandono de flores se abrindo e
a estrela mais linda que houvesse, "para enfeitar a noite do meu bem". Então,
naqueles pares que se formaram à custa do Eu sei que vou te amar, o amor
tomou forma de enlevo mais que tudo. A canção ainda hoje tem seu lugar,
mas, neste último fim de semana, os bares e boates foram invadidos pelo E
daí. Esta música veio atingir, exatamente, os que tinham medo de amar ou
estavam amando na moita. Contém a letra uma proclamação de coragem (ou
mais), de desafio nunca dantes visto.
Ontem, em toda parte, era só o que se cantava. Senhoras e senhores,
depois do terceiro copo, gritavam os tais versos de provocação: "Proíbam
tudo, tudo, botem avisos, fechem portas, ponham guizos, e o amor
perguntará: e daí, e daí?" Este samba foi um grito de independência na noite
carioca, e os primeiros resultados têm causado distúrbios. Maria confessou
que gostava mesmo era de João, e Felisberto deu o serviço dos seus amores,
até então secretos, com Teresa. E nestes, como em outros casos, houve a
pergunta irrespondível do desafio: "E daí?..."
Pode, agora, o leitor examinar as transformações causadas pelos três
sambas. No primeiro, nasceram amores impossíveis. No segundo, enfeitaram-
se, dentro do possível, todos os amores recém-nascidos. E, no terceiro, tudo
que vinha sendo mantido em segredo, ou contenção, virou notícia e grito de
independência. É a força inevitável das canções - das verdadeiras canções - na
alma amorosa das noites.

***

Ultima Hora / 11 de dezembro de 1959

O último encontro

Ele, um velho, tanto quanto Spencer Tracy. Ela, uma mocinha.


Apresentados os personagens e verificada a desigualdade da luta, devo dizer
que o velho está sentado à minha frente, tragando o seu cigarro forte, nos
entre goles de uma bebida de álcool. Se está triste, não sei - deve estar. Mas
sua velhice é tão anterior e mais forte, que lhe impossibilita qualquer revelação
de estado d'alma. Mas deve estar triste, sim, embora comedidamente triste,
porque as pessoas de sua idade têm obrigação de saber que a dor deve ser
sofrida em silêncio, uma vez que todas as queixas e lamúrias são ridículas. E
mais: que o Homem é só, desde o momento em que lhe cortam o umbigo e
anunciam à parturiente (como se isto fosse uma boa notícia): "É homem!"
Na história que conta, a mocinha o procurou, fez e aconteceu.
Chegou a convencê-lo de que o amava sobre todas as coisas, inclusive Deus
(desculpe, Deus, eu sei que você não é coisa), e que estava disposta a fazer e
acontecer, muito mais ainda. Passados os primeiros dias da paz perfeita,
passou (a mocinha) a trazer-lhe as primeiras notícias das reações de família, os
temores da mãe, as iras do pai e a intromissão das tias, que, como todas as
tias, adoram falar, embora, no fundo, como todas as tias, pouco estejam
ligando para a sorte dos sobrinhos. Foi aí que ele começou a amá-la. Um amor
de dentro para fora que, além de sentimentos, tinha mãos e dentes. Mas, daí
por diante, ela começou a retrair-se, até que, hoje, marcou o último encontro.
Tinha que ser em local onde não fossem vistos juntos e, tanto quanto
possível, separados também. A sala grande de um cinema, em sessão
quase vazia. Os dois de óculos escuros. Ele chegaria primeiro e ela, algum
tempo depois. Ela planejava e dirigia a Operação. Ele cumpria, apenas.
Sentaram-se, afinal, e deram-se as mãos. Da fita, não viram nada ou
ele viu, de vez em quando, Mirna Loy, que não via há cem anos. Estava
caindo aos pedaços. Sobre Mirna Loy fez ela a pergunta de uma curiosidade
perdoabilíssima a todas as pessoas da Geração-Ivo Pitanguy: "Ela operou o
nariz, foi?" Ele explicou que não, que o grande "charme" de Mirna Loy era
sempre a ponta do nariz, onde Clark Gable, Gary Cooper e Robert
Montgomery faziam gracinhas do tipo bilubilu, nas cenas de amor do cinema
antigo. Então, começaram a tratar do seu caso. Ela é que falava:
- Não, não pode ser. Você pertence a um mundo e eu a outro. Para
nós nos encontrarmos é preciso que haja outro mundo. Onde?
- Alagarça - respondeu o velho, num momento engraçado de seu
desapontamento. E falaram durante toda a sessão, ela mais que ele,
argumentando, e ele, a não ser quando sugeria o tal terceiro mundo,
concordando. Cinco minutos antes da fita acabar, segundo o plano adrede
traçado, ela saiu e ele ficou. Tudo na escuridão, para que não fossem vistos
juntos e, se possível, separados.
Agora, eis o velho à minha frente, numa visita que intitula de
solidariedade pelos meus últimos dissabores. Faz-me rir sua seriedade. O seu
ar espectral. Sua imagem parece resultar de uma transformação qualquer da
Física, que seria, no caso, a própria decomposição da luz, que gera os
espectros. Tudo isso (talvez, não seja fácil explicar) sem aparentar tristeza e
sim velhice. Quem mandou se meter a cavalo-do-cão?
Agora, agüenta. Então, não viu que a mocinha estava querendo fazer
uma história? E começou a fazer. Escolheu você para um dos papéis
principais. O outro seria o dela. Fez o começo, o meio e, depois, precisou do
fim. Tinha pressa. Não havendo nada de melhor, escolheu a tal sala de cinema
e comandou todos aqueles cuidados necessários a que ninguém os visse. O
diálogo final seria aquele mesmo dos dois pertencerem a mundos diferentes e
ser preciso encontrar o terceiro mundo. Depois de você ter sugerido
"Alagarça", ela ainda pôde escrever umas dez ou quinze linhas conclusivas,
sobre a chuva morna que caiu de repente, na qual ela se teria deixado molhar
e, nisso, lembrar, em parte, Bárbara, personagem de Prévert: "Cefíe p/ufe
sage et heureuse sur ton usage"... mas o visage de Bárbara era heureuxl Não
faz mal: à falta de outro na lembrança, serve Bárbara, "epanouie, ravie,
ruisselante, sous la pluie". O que importa é a chuva de Brest como imagem.
A personagem, desde que os cabelos lhe escorram molhados pelo rosto, pode
ser triste, trôpega, hesitante, como fica bem a todos os personagens, depois do
último encontro.
O homem velho começou a rir. De si mesmo como sempre gostou de
rir. Os pequenos sonhos que ardiam em seus olhos eram comoventes.

***
Última Hora/ 1 de fevereiro de 1961

Honra

As pessoas vêm ao Rio, geralmente, ver as modas e fazer compras.


Voltam, depois, para João Pessoa, Recife e Belém do Pará.
Osvaldo Girão veio do Ceará para perguntar à mulher, que estava
aqui:
- Você já me traiu?
E ela respondeu:
- Sim.
- Meus filhos são meus?... - quis saber Girão.
E a mulher:
- Todos, não.
Osvaldo Girão pegou o revólver e deu quatro tiros na mulher.
Neste caso, cuja reportagem escrevemos anteontem e UH, ontem,
repetiu, há dois erros tradicionais: 1a - O de lavar a honra com sangue; 2a - O
de confessar a infidelidade. O que tinha Girão de vir lá do Ceará para
procurar, aqui, desse tipo de desventura? O que tinha a mulher de confessar a
traição? Ficasse Girão em Fortaleza, tomando suas cajuínas, na Praça do
Ferreira... E, já que veio, que a mulher lhe dissesse:
- Meu bem, pode ficar certo de que nunca lhe traí, nem em
pensamento. Os filhos são seus. Não só os meus, mas os de todas as
mulheres.
Girão não estaria, hoje, na cadeia, e a mulher (Stela) não ocuparia o
leito que ocupa, nesse triste e descuidado hospital que é o Miguel Couto. Aqui
os conceitos de cronista para casos futuros:
1 - Sangue não lava coisa alguma. Só suja. 2 - Adultério é adultério.
Não se confessa. 3 - Não se vem do Ceará matar aqui. No Ceará, há sempre a
quem matar.
Em tudo isto, deve ressaltar-se a declaração sensacional da mulher:
- Girão é um egoísta. Querer que todos os meus filhos sejam dele!
Engraçado.

***
Última Hora/10 de junho de 1960

Provas de amor

O homem de bigode, a moça loura e a senhora gorda. Os três a uma


mesa e, ao centro, uma garrafa de vodka. Crê-se, entre os espectadores da
cena, que tudo aconteceu por causa da garrafa de vodka, já nas últimas,
quando chegou o cronista.
A moça loura virou-se, subitamente, para o homem de bigode e falou:
- Você é mesmo uma porcaria!
O homem de bigode estremeceu, mas a senhora gorda, segurando-lhe
a mão, disse em tom de sabedoria:
- Não liga, não. Mulher só xinga quando quer bem.
O homem de bigode achou que sim e fez mais uma dose em cada
copo. A moça loura pegou a sua vodka, a da senhora gorda, e atirou no rosto
do homem de bigode. O homem de bigode tremeu nos lábios e... e a senhora
gorda falou, no mesmo tom de onisciência:
- Mulher só atira bebida em cara de homem quando quer bem.
O homem de bigode enxugou o rosto nos punhos da camisa e sorriu.
A moça loura deu-lhe uma cuspida no meio da testa e, sem intervalo, uma
bofetada, de direita, no pé do ouvido. Antes que o homem de bigode dissesse
ou fizesse alguma coisa, a senhora gorda lhe passou a mão nos cabelos e
sentenciou:
- Mulher só cospe e só bate em cara de homem que ela gosta muito.
O homem de bigode fez um ar, já inconvicto, de quem achava que
sim e levou o copo à boca. Foi aí, exatamente aí, que a moça loura, segurando
a garrafa pelo gargalo, brandiu-a, com o máximo da sua força, no plateau da
cabeça do homem de bigode. Este, coitado, entortou os olhos e, como que
fulminado, caiu de boca no mármore da mesa. Um veio de sangue correu a
mesa e começou a pingar no chão. A senhora gorda levantou-se, a moça loura
também, e uma ajudou a vestir o casaco da outra. Todos os presentes
ouvimos quando a senhora gorda disse à moça loura:
- Meus parabéns. Você fez tudo direitinho como eu ensinei.
Andaram até a rua e um táxi as levou.

***
Última Hora / 24 de julho de 1959

Do telefone à realidade

Na noite desta última lua cheia, uma moça telefonou e, após longa
explanação sobre sua sensibilidade, sugeriu que saíssemos por aí, pois sentia
imensa vontade de falar. Achou necessário dizer que, além da alma bonita, era
idem de cara e de corpo. Expliquei-lhe que estava sem automóvel, mas isso
não adiantou, porque sua vontade era andar a pé. Copacabana, de ponta a
ponta. Lembrei-lhe a jovem violentada no Aterro do Flamengo, o que
também não lhe abalou os propósitos, por não temer violências. Fui vê-la,
afinal, e tratava-se, realmente, de pessoa bonita, mais até do que se poderia
imaginar, àquela hora da noite. Estava dentro de umas calças muito elegantes
e vestia a metade superior do corpo com um sweater de boa lã, e até onde se
pode adivinhar sob um sweater não haver nenhuma outra peça, adivinhei.
Saímos andando, calçada afora, ambos de mãos nos bolsos. Logo aos
primeiros cinqüenta metros, achei que devíamos andar menos depressa, para
evitarmos ofegâncias desnecessárias. Graças a Deus, sua disposição era mais
falar que ouvir, e, do Lido até o Hotel Trocadero, se eu disse muito, disse "é
claro", duas ou três vezes. Seu primeiro tema foi o Homem, que considera em
má fase. Seus três últimos namorados eram pouco inteligentes e, em tudo e
por tudo, mesquinhos. Daí, passou à literatura, mas, como seus escritores e
poetas não eram os meus, mudou para política. Na primeira frase, já
estávamos em desacordo, porque é dessas que acham: o Brasil precisa de Jânio
Quadros. Afinal, começamos a nos entender quando falou de suas viagens, e,
nessa altura, já íamos no Hotel Miramar.
Morou na Espanha, um longo tempo; e sabia tudo sobre touradas. Os
nomes de todos os toureiros. Ao contar-lhes os feitos, parava, fazia os passos
e as esquivas de um bom toureiro. Ficou uma gracinha. Sabia assoviar os
toques do ritual e dizia, com "ss" bem espanhóis, as palavras que profere o
matador: "En ei mismo nombre de Dios!" Para a lua, nem olhamos.
Veio uma certa sede de cerveja e nos levou ao Pescador, da Francisco
Otaviano. Aí, sim, é que foi bonito. Sabia uma porção de bolerias, cantos
soleares, e, para cativar-me, foi a única pessoa que, nestes últimos dois anos,
soube cantar a melodia de um certo pasodoble chamado Las campaneras.
Quando olhamos a rua, o dia estava querendo clarear e já havia sons de
leiteiro e açougue. Sugeri a volta, que ela ainda ousou insinuar fosse feita a pé.
Lembrei-lhe a minha idade, acrescida dos seis quilômetros Lido-Pescador, e
concordou que tomássemos um táxi. Mas, na metade do caminho, quando viu
a cabeleira do sol apontando na Ilha Rasa, perguntou, com desplante: "Que tal
um banho de mar?"

***
Última Hora/ 15 de agosto de 1960

Conversa de café-society

Estou lendo carta de uma leitora de Varginha, Dinah, que diz gostar
muito de viver em sociedade e que seu sonho seria viver no café-society
carioca, indo a cocktails e jantares em companhia de (cita nomes de homens e
mulheres). Acha a leitora Dinah que seu sonho nunca se realizará, porque,
mesmo vindo morar no Rio, nunca terá acesso a esse grupo. Lamenta-se
muito por isso. Depois, pergunta: "Como é que eles são?"
Minha prezada Dinah, eles não são mais pessoas da sua idade e, sim,
da minha. Ou mais, vestem-se muito emperiquitadamente, a qualquer hora do
dia ou da noite. Nas reuniões, falam de uma coisa só: o Amor. Mal a gente
chega, ouve a pergunta:
- Você não acha que o amor é dar? E fica aquela discussão, metade a
teimar que o amor "é receber". Fala-se de amor a noite inteira. Cada uma diz
como gostaria de amar. Cada um também, sempre à maneira de um filme.
Quando passou Lês amants, durante o filme, todos acharam que só
seria bom amar assim. Mas na cena final, quando Jeanne Moreau saiu com o
careta, todos mudaram de idéia, porque o carro dele era ruim e, muito,
porque, em companhia dele, não haveria cocktails e partidas de golfe. Então,
qual seria o amor ideal do cinema? Ah, minha cara Dinah, todos querem ter
um caso igual ao de Jennifer Jones e William Holden em Love Is a Many
Splendored Thing. Aquela mesma coisa agoniada, mas muito bonita, com a
baía de Hong Kong ao fundo. Com William Holden morrendo e ela
recebendo a carta, etc.
Você vindo ao Rio, Dinah, em qualquer reunião a que você
compareça, o piano estará tocando (a pedido) Love Is a Many Splendored
Thing e todos estarão dançando ou suspirando, em clima da maior
cumplicidade. E sempre a pergunta que ainda não foi devidamente
respondida:
- Você não acha que amor é dar?
E o piano repetindo a ária do amor esplendoroso. As mulheres
absolutamente certas de que são Jennifer Jones. Os homens, sem exceção, se
você chegar perto de qualquer um e disser:
- Olá, William! Responderão:
- Hein!
A coisa é assim, Dinah. Não sofra tanto, se nunca realizar o seu
sonho de viver entre essas pessoas que você me cita em carta. Você é Dinah,
de Varginha. E isso lhe basta. Chegando aqui, depois de dois cocktails já será
Jennifer Jones e terá, na roda, o seu William Holden.

***
Última Hora/ 13 de junho de 1961

Duas moças de biquíni

As duas moças vestiram seus biquínis e foram à praia. Era domingo.


Duas moças bonitinhas, dos seus dezessete e dezoito anos. Ou melhor, as
duas, com toda certeza, não somavam quarenta anos.
Ou porque as moças fossem bonitinhas ou porque os homens, de
repente, se tivessem irracionalizado, o que aconteceu foi constrangedor. Mal
as moças botaram os pés no asfalto quente da Avenida Atlântica, um bando
de homens, de todas as cores, de todas as idades, partiu em cima das moças.
Como feras partiram aqueles homens, para comer vivas as duas
mocinhas de biquíni. O jeito era correr. E correram, as duas, à procura de
guarida, até que parou um Volkswagen e dois rapazes lhes ofereceram
socorro. Aceitaram. Entraram no Volkswagen.
O repórter acompanhava a fuga e começou a imaginar o novo drama
que iria começar para as duas mocinhas de biquíni: Quando elas se iriam livrar
dos rapazes do Volkswagen? Quando e como? Afinal, elas lhes deviam muito.
Talvez tudo. A vida. E se eles exigissem que a dívida fosse saldada?
Convenhamos que é muito difícil, para uma mocinha, estando de
biquíni, recusar o pagamento de certas dívidas.
Mas não. Os dois rapazes do Volkswagen eram direitos. Na Barata
Ribeiro, largaram as duas moças. Se lhes pediram o número do telefone, disso
não chegamos a saber. Tinham direito. O fato é que, sem cobrar nada por ter-
lhes evitado um contratempo (quem sabe, a morte), largaram as duas, sãs e
salvas, à porta de um edifício, na Rua Barata Ribeiro. Ainda existem bons
rapazes em Copacabana. Além das feras, para as quais não há Polícia (a Polícia
só proíbe jogar "frescobol"). Existem rapazes em Copacabana que deixam em
casa, sendo domingo, duas moças bonitas, de biquíni.

***

Última Hora/ 1 de novembro de 1960

Explicação de futuro

(Os amantes temem o futuro. Temem, amanhã, estar fartos,


detestarem-se; horrorizam-se à idéia de, um dia, serem melancolicamente
amigos. Daí a explicação do futuro, em três pontos e três cenários.)
1 - "Luz e som": quando o vento mudar de direção e de umidade;
quando anoitecer; quando ouvirmos, na rua, mais aflitos os sons de trânsito
do anoitecer; quando entrar pela janela o cheiro dos jantares da vizinhança e,
pela mesma janela, vierem as formigas de asa; quando o disco, após a canção,
continuar rodando na vitrola.
2 - "Na cozinha": quando o molho da carne do almoço restar frio e
branco no prato de travessa.
3 - "No quarto": quando cerrares os olhos, aflitamente, à minha
nudez (ou eu à tua); quando te puseres de pé e eu analisar o teu seio; quando
as minhas pernas te parecerem mais grossas; quando a idéia de um beijo nos
causar um arrepio de saciedade - o asco da saciedade; quando nos analisarmos;
quando eu passar a ouvir o som dos teus passos e, sem querer, contá-los,
como se fossem golpes; quando, pelos sons de água, eu acompanhar tua
permanência no banheiro; quando sentires o cheiro do meu cigarro forte e eu
odiar a tua anágua; quando os teus cotovelos me parecerem escuros e
detestares a minha tosse de fumante; quando estivermos absolutamente certos
de que a única liberdade é a da solidão absoluta...
Será, então, o futuro, de que tanto falavas, que tanto receavas.
Não sentirás perda alguma. Eu também não.

***

Última Hora / agosto de 1961

"Voluntários do amor"

Meu pobre carro, mais para velho que para novo, freia rente às pernas
de uma senhora, que atravessava a rua com o sinal fechado. Não teve culpa,
nem eu. Até que se portou muito bem ante a imprudência da senhora. Mas a
dita, tomando-se de ódio, resolveu descompor o pobre carro:
- Essa lata! Uma porcaria de automóvel! Atira isso ao mar!
Uma pobre Kombi, coitada, um tanto ou quanto comida pela maresia,
mas discreta em sua velhice. Prestou-me serviços valiosos, deu-me alegrias,
levou-me a algumas felicidades. Tinha que defendê-la:
- Ah, minha senhora...
Não cheguei a dizer mais que isso. A mulher levantou a vista e deu
com a minha cara:
- Logo vi que era você. Tinha que ser um animal como você, que não
faz outra coisa senão injuriar o Governador. Pois quer saber de uma coisa?
Vai morrer de... (e disse o nome da doença que um cronista social, no
auge do seu mau gosto, noticiou estar atacando uma das dez mais).
Olhei bem o rosto da mulher. Pálida, olhos baços, boca fina, orelhas
modelo ventania. O busto de boneca de pano, os quadris tristes. Não havia
nada a fazer. Estava eu diante de uma "mal-amada". Nunca mais as vira, desde
as eleições. Mas não mudaram. Não amaram, das eleições até aqui. Comecei a
pensar que o Governo, em penhor de gratidão, devia criar uma instituição de
voluntários, para dar alegria a essas desamparadas. Um grupo de jovens
desempregados, de farda e quepe, com uma inscrição no quepe: "Voluntários
do Amor". Seriam pagos pela verba extorquida aos bicheiros. E não seríamos
agredidos, na rua, por essas deusas fenecidas udenolacerdistas. É triste a
mulher que passa a vida sem "abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim".

***

Ultima Hora / 29 de agosto de 1959

O encontro melancólico

Sentaram-se, os dois, já arrependidos de terem marcado o encontro.


Esvaziaram os pulmões, num suspiro da saciedade. Aos dois, faltava a
coragem de perguntar:
- Por que isto? Por que não vamos embora de uma vez?
Preferiram ser gentis e tentar. Ele perguntou se ela queria beber
alguma coisa, ou comer alguma coisa. Ela respondeu um "nada" de quem
anseia abreviar a angústia de estarem juntos. Ambos sentiram calor, ou porque
a tarde estivesse fria, ambos suaram, sem calor, na testa e no pescoço.
Que saudade os trouxera ali? Nenhuma. Vieram, simplesmente,
porque um gostaria de saber, no coração do outro, o tamanho da falta que
estava fazendo. As pessoas são muito vaidosas e, quando acabam seus
romances, têm a mania de pensar que, de um modo ou de outro, marcaram,
para sempre, a pessoa amada. É uma pretensão tola, esta de ser inesquecível,
na carne ou na alma de quem se amou. O mundo renova muito a todos nós.
Ou, quando não renova, envelhece, muda-nos sempre, enchendo-nos a vida
de quatro ou cinco belezas novas ou de uma nova dor, que abrange todo o
ser, defendendo-o contra qualquer recaída na doença de que saímos vivos.
Sentados frente a frente, fumavam e trocavam perguntas, cujas
respostas eram dispensáveis: "Como vai sua irmã?" "Sua tia viajou, afinal?"
"Como estão as aulas de taquigrafia?" Pediram uma cerveja, para fazer jus à
mesa e à tolerância do garçom. Era uma cerveja amarga, porque o gosto das
cervejas é a gente quem faz, com a doçura, o tanino ou o amargo que se traz
na vida. Ela evitou que ele lhe acendesse o cigarro. Ele guardou o isqueiro,
sem o menor constrangimento. Depois de tudo isso foi que se olharam bem
nos olhos. Um olhar sem enlevo, sem mensagem, sem mágoa. Um olhar
corajoso, só isso. Como era estranho, depois de tanto amor, depois de tantas
vezes terem chegado ao trágico, verem-se agora como se fossem dois
parentes. Nem ao menos se odiavam. Como a vida é sábia, em suas
acomodações! Riram-se, cada um de si mesmo e os dois da vida. Não havia
nada a dizer, porque sabiam de tudo, sem linguagem. A palavra complica
muito. Levantaram-se. Deram-se as mãos nas pontas dos dedos, foram
caminhando e largando-se aos poucos, até que passou um táxi e ele correu
para alcançá-lo. Ao entrar no carro, ainda olhou para trás e gritou-lhe um
"adeus" qualquer. Que ela não ouviu, porque entrara em uma loja de
bombons. E dali por diante, nada os uniu ou mesmo separou, no ar, nas
pedras e na música da cidade.

***

Última Hora / 3 de agosto de 1961

Procurar e encontrar

Várias pessoas nos procuram, a nós que escrevemos nos jornais,


certas de que somos doutores da ciência de viver. Há quem acredite na
infalibilidade das nossas opiniões e, em muitos casos, da nossa intervenção em
casos que só Deus daria jeito.
Uma senhora, não digo bem-vestida, mas vestida da cabeça aos pés
(usava chapéu, com pena), procurou-me esta manhã, dizendo vir da parte de
Vinícius de Moraes. Uma recomendada do poeta Vini é sempre bem recebida
nesta casa e passará na frente de outra que, porventura, venha da parte de Di
Cavalcanti ou de Gagarin.
Quando a recebi, fez questão de confessar que mentira. Que usara o
nome de Vinícius por saber do meu apreço pelo poeta, compositor, cineasta,
dramaturgo, cantor, violeiro, etc. Tinha, porém, um problema tão grave
(palavras suas) "que só o senhor poderá resolver". Depois de muitos rodeios,
conseguiu dizer exatamente isto:
- Sou casada há vinte e dois anos e o meu marido não me procura
mais.
Em meu lugar qualquer pessoa lhe teria feito a mesma pergunta:
- Mas quando deixou de procurá-la?
- Há dois ou três meses - respondeu a grave senhora de chapéu.
A humanidade está cada vez mais difícil de contentar-se.
Essa senhora passou vinte e um anos e dez meses sendo procurada
pelo marido, e porque, de dois meses para cá, isso não vem acontecendo, vai à
casa de um desconhecido de sua confiança, a fim de pedir uma solução
urgente para seu caso. Expliquei-lhe que muito pior é o caso de quem procura
e não encontra. Eu, por exemplo, há dois meses estou atrás de João Conde
(para negócios, é claro) e não o encontro em parte alguma.
Casa, escritório, bares. Nunca está.
A boa senhora saiu consolada.

***
Última Hora / 8 de junho de 1960

Poesia perdida...

Houve um tempo, tive uma namorada. Sou, hoje, um homem tão


velho e tão sem razão, que tenho imensa vergonha de falar na primeira pessoa.
Mas outros falam, e isso consola. O Braga, por exemplo, esta semana, em
Manchete, está atrás de uma árvore, entre um café e um açougue, com a barba
meio crescida, falando a uma mulher da janela alta. Dirão vocês:
"O Braga pode." Direi eu, num protesto: "Braga canta seus amores,
também vou cantar os meus."
Sem datas e sem nomes, conta-se a história, mais ou menos assim.
Nós éramos amigos e, um dia, bêbedos, achamos que éramos
namorados. Foi tudo, então, muito feliz. Houve rosas, canções e falta de ar.
Ciúmes, houve também, mas infundados, sem cenas. Ciúme no peito, calado,
opresso, sempre de receio, nunca de traição, que passava depressa, num
simples olhar de fidelidade.
Ah, amigos, interrompendo a história acima, devo dizer que a
fidelidade é tão bonita! Não a fidelidade dos tratos, da prestação de contas e
compromissos. Não a fidelidade formal do "só vou se você for". Nunca a
fidelidade discutida, dos sacrifícios alegados. Mas a fidelidade-estado, sem
juras, sem normas estabelecidas, sem uma só palavra (se possível), de que só
são capazes as pessoas simples. Que coisa complicada, a simplicidade! Nós
éramos fiéis, simplesmente.
Foi tudo, realmente, muito bonito, até que outro dia, lúcidos,
descobrimos que éramos amigos. E continuamos sendo.
Acabou-se, então, a minha poesia. Posso ter tido humor, coragem,
densidade, altruísmo. Poesia, nunca mais. Aquele íntimo convencimento de
saber e poder. Aquela capacidade de possuir, de legar, de transferir, de
esquecer, de lembrar, de prever, de multiplicar, de dividir... Aquela segurança
de (numa só palavra) "criar", isto, que é a Poesia, nunca mais. Para sempre,
seja bem ou mal, mau ou bom, nunca mais.
Recolhido ao seu quarto, enchendo laudas imensas de papel-trabalho,
sem zelo de si e de ninguém, aflitivamente de óculos, resta um homem que,
sem se desincumbir, rompeu os graves compromissos com e da poesia.
Um homem mais forte e mais livre. Indiscutivelmente, melhor.

***
Última Hora / 23 de agosto de 1960

Mulher dos outros

Dia claro. Primeiras horas do dia claro. Havíamos bebido e


procurávamos um café aberto, para uma média, com pão-canoa. Quase todos
estavam fechados ou não tinham ainda leite ou pão. Fomos parar em
Ipanema, num cafezinho, cujo dono era um português e nos conhecia de
nome de notícia. Propôs-nos, em vez de café, um vinho maduro, que recebera
de sua terra, "uma terrinha (como disse) ao pé de Braga". Não se recusa um
vinho maduro, sejam quais forem as circunstâncias. Aceitamo-lo. Nossa grata
homenagem a José Manuel Pereira, que nos deu seu vinho.
Nesse café, além de nós, havia um casal, aos beijos. As garrafas vazias
(de cerveja) eram quatro sobre a mesa e seis sob. Beijavam-se, bebiam sua
cervejinha e voltavam a beijar-se. Não olhavam para nós e pouco estavam
ligando para o resto do mundo. Em dado momento, entraram dois rapazes e
pediram aguardente no balcão. Ambos disseram palavrões, em voz alta. O
casal dos beijos e da cerveja parou com as duas coisas. Outros palavrões e o
cabeça do casal protestou:
- Pára com isso, que tem senhora aqui! Um dos rapazes dos palavrões:
- Não chateia!
- Não chateia o quê? Pára com isso agora! Um dos rapazes do
palavrão:
- E essa mulher é tua mulher?
- Não é, mas é mulher de um amigo meu!
A briga não foi adiante. Todos rimos. O dono da casa, os rapazes dos
palavrões, o casal. Está provado que: quem sai aos beijos com mulher de
amigo não tem direito a reclamar coisa alguma.

***

Ultima Hora / 8 de fevereiro de 1960

A cidade e a mulher

A cidade chamarei de "G" para, se lhe for infiel em alguma


lembrança, não lhe ter escrito o nome. Por igual motivo, à mulher chamarei de
"M". Das duas, a mais comovente era a cidade. Mais importante, a mulher.
Sobrado, só havia um, o do armazém de tecidos, onde o dono morava
com a família. Sessão de cinema, às quintas e aos domingos, se as latas do
filme viessem no trem das sete. Era o maquinista que trazia, quando trazia, e,
antes do trem parar, entregava ao portador do cinema. Zé de Júlia, um preto
de bigodes mongólicos que, no cinema, além de ir buscar o filme, ajudava na
venda dos bilhetes, consertava a máquina de projeção e expulsava da sala
quem fizesse ou dissesse qualquer coisa menos decente. Seu nome era por
causa de Júlia, sua mulher, sua mãe, sua enfermeira e seu padre. Quando
recebia as latas das mãos do maquinista, gritava com a voz mais fina que um
homem pode ter:
- Turma, tem cinema!
Imediatamente, a correria, a poeira, a campainha tocando na bilheteria
e os empurrões para comprar os ingressos. Naquele tempo, não havia fila, os
bilhetes de ingressos continham uma recomendação: "Não rasgue, que é para
aproveitar." Comprava-se o bilhete e entregava-se ao rapaz da porta. Ele
guardava cuidadosamente, numa caixa, para vendê-lo na próxima fita. Senhor
"RL", dono do cinema, explicava que inventara essa economia porque naquele
tempo (já naquele tempo se diziam dessas coisas): "qualquer trabalho de
tipografia custa uma fortuna".
A mulher era "M" e tinha os olhos claros. Além de filha de Maria,
pertencia ao Apostolado da Oração e à Associação do Pão dos Pobres. Os
cabelos escuros, de tarde soltos nas costas; de noite, presos num coque. Usava
vestidos brancos, bordados, com variações sem importância de um para
outro. Eram muito engomados. Passava na farmácia (vinha da igreja) e
comprava duzentos réis de uma pastilha cor-de-rosa, que diziam milagrosa
para a garganta. Estavam todos sentados na calçada (os homens de maior
prestígio), cada um na cadeira que trazia de casa.
Embeveciam-se com "M" e, para ela demorar, falavam a favor da
Maçonaria. Ela era contra e provava, por a+b, que cada maçom era filho do
diabo. Quando saía, os homens ficavam pensando e, às vezes, falando seus
amores com ela, no condicional futuro.
Os rapazes da usina vinham em cavalos finos de sela. Baixeiros e
meeiros, manga-largas ou campolinas, os mais cobiçados de toda a Zona da
Mata, porque cada um custara em volta de um conto de réis. Os rapazes da
usina paravam os cavalos e conversavam com "M". Ela não achava a menor
graça em nenhum deles e costumava dizer, sempre que havia ocasião:
"Detesto filho de usineiro."
O rio passava atrás da estação, encachoeirado. Por volta do meio-dia,
os jacarés subiam às pedras, "esquentando sol". Jacaré tem ouvido de
tuberculoso. Qualquer barulhinho, por menor que fosse, caíam n'água e iam
singrando a tona, só com os olhos de fora. Sumiam, depois, no capim-
paraguaio. O nome do rio, pode-se dizer, porque os rios não são de ninguém:
Serinhaém. Dava uma "cheia" por ano, em junho ou julho. Em setembro e
outubro, a usina lhe derramava toda a calda fermentada. Os peixes ficavam
bêbedos, com os olhos enormes, e a meninada os pegava com as mãos.
Traíras, jundiás, piabas. Os nomes dos peixes de água doce são mais bonitos.
Festa, havia uma por ano - a da Penha. Novena, e cada noite tinha um
juiz e juíza. Quase sempre usineiros e senhores de engenho, porque pagavam
as flores, as velas e os fogos. À noite, baile no Crisantemo. A orquestra
custava cem mil-réis. "M" comparecia e tomava gasosa de maçã. Os cabelos
presos à espanhola, e o vestido branco, de linho bordado. Seu sorriso ia sendo
esquecido. Mostrava os dentes quase todos, muito brancos e corretos. A
pontinha de um pré-molar era de ouro. Se alguém ia tirá-la para dançar, dizia
com uma segurança muito triste: "Só danço com os meus irmãos." Era
melancólico vê-la sair dançando com os irmãos, um de doze e outro de onze
anos, os dois menores que ela, de calças curtas e camisa de gola americana.

***

Última Hora/17 de outubro de 1959

Benditas sejam as moças

Era uma casa tão desarrumada que, de desarrumada, passou a triste.


Os jornais velhos se amontoavam por cima das mesas e dos armários. As
roupas grandes, entrouxadas e pelo avesso, por cima das cadeiras. As
pequenas, sujas, aos montinhos, pelos cantos das salas. A cama, então, nem se
pode falar, porque havia dias não se forrava, e, sobre ela, livros, revistas,
toalhas molhadas, maços de cigarros e caixas de fósforos.
Uma pessoa foi chamada, examinou tudo direitinho e disse:
"Arrumar, não pode. Aqui só tem um jeito - mudança." E foi feita a mudança,
para uma casa menor, porém mais clara. Nesse mesmo dia, uma moça
mandou flores e outra mandou um quadrinho, por ela mesma pintado, que
ficou uma graça na parede de melhor luz. Essa mesma moça mandou uma
porção de livros. Parecia combinação, porque veio outra moça, trouxe uma
mesa, um jarro, outro quadrinho e fez a nova arrumação. Ah, que bonitos
ficaram os livros sobre as mesinhas, as flores no jarro, os quadrinhos nas
paredes... e nada de roupas, grandes ou pequenas, pelas cadeiras e cantos de
sala.
O inquilino ficou a morrer de felicidade, e tão cuidadoso, que perdeu
a personalidade. Evita trocar as coisas e, na sala dos quadrinhos e das flores,
vai o menos possível. Fica olhando de longe.
Ah, as moças são formidáveis. Quando querem ajudar, ajudam de
corpo e alma. É por isso que, na vida, deve ter-se o máximo possível de
inimigos homens e ao menos cem amigas moças, dessas que trazem flores,
quadrinhos, livros e, com as mãos, ajeitam todas as coisas. Benditas sejam as
moças, sem distinção de raça ou de seita, de cor política ou preferências
clubísticas!

***
Última Hora / 22 de setembro de 1959

Era um homem muito bom

Lá vai a mulher, levando o bêbedo para casa. Uma mulher pequena e


um bêbedo grande. Ele não quer ir. Pára, agarra-se ao poste. Vem um guarda
e o bêbedo o insulta. O guarda segura o bêbedo pelas abas do paletó. A
mulher lhe pede que não faça nada, porque aquele é um bêbedo muito bom.
O guarda entende. Vai-se embora. A mulher toma a mão do bêbedo e
começa a puxá-lo. O bêbedo diz o nome de outra mulher e olha
demoradamente o mar, como se a procurasse. Mas a luz nova da manhã
queima e fecha os seus olhos. Ele diz que vai buscá-la e começa a tirar os
sapatos, para entrar de mar adentro. Passa um automóvel, de onde outro
bêbedo lhe grita um palavrão. A mulher toma-lhe a mão, outra vez, e
consegue que caminhem uns quatro ou cinco passos. Passa um rapaz forte, de
calção. O bêbedo o insulta. O rapaz morde-se na boca, fecha a mão e os seus
olhos faíscam. A mulher pede-lhe que se abrande, repetindo que aquele é um
bêbedo muito bom. O rapaz atende e vai-se embora. O bêbedo se encosta ao
muro de uma casa e repete o nome, que dissera minutos antes. Um nome
muito bonito, de uma dona que, pelo olhar triste do bêbedo, deve estar longe.
Passam duas mocinhas de colégio e riem do bêbedo. A mulher odeia as duas,
que não sabem sentir, nem perdoar o bêbedo. Vem um capitão e o bêbedo
insulta o Exército. Antes que o capitão dissesse alguma coisa, a mulher lhe
suplicou que não fizesse nada e fosse embora para o quartel.
O capitão atendeu, mas antes murmurou uma palavra de ódio, com os
lábios semicerrados. O bêbedo sorri e cobre o rosto com as mãos. A mulher o
abraça, num carinho, e beija-lhe o peito. Vem uma velhinha e pergunta alguma
coisa. A mulher lhe explica que aquele bêbedo ela encontrou num bar, mas é
um homem muito bom, diferente dos outros, e ela o vai levando para sua
casa, onde lhe pedirá que fique, para sempre. O bêbedo sorri e diz, com
orgulho, o nome da outra mulher. Saem andando...

***

Última Hora / 27 de junho de 1960

Mulher de nariz arrebitado

Tinha medo da mulher. De grito, não; nem de pancada. Tinha medo


que ela o enganasse. Era uma mulherzinha de sangue capixaba, misturado
com italiano. Pequenina, cintura fina, ponta de nariz arrebitado e narinas
frementes.
Quando dizia uma coisa, fazia. E já lhe dissera mais de uma vez:
- Se eu souber de alguma malandragem sua, pode considerar-se um
homem enganado.
Teixeira, um dia, se meteu com um grupo de amigos. Tomaram umas
cervejas na cidade. Depois, um do grupo telefonou para a casa de uma amiga e
foram todos para lá. Essa amiga convidara mais quatro amigas, todas
engraçadinhas, aí por volta dos seus vinte anos. Daí por diante, a bebida foi
whisky. Uma delas achou que Teixeira parecia com Gary Cooper.
Mentira. Para começar, Teixeira não tinha nem 1,60m completos. Mas
Teixeira considerou o fato. Às onze horas, lembrou-se que devia telefonar
para a mulher. Discou o número. Uma voz de homem atendeu do outro lado
da linha e falou apenas:
- O senhor está enganado.
Estava tão impressionado com a possibilidade de a mulher o enganar,
que ficou certo de que a desgraça já havia ocorrido. "O senhor está
enganado." Só muito tempo depois, admitiu que houvera ligado o número
errado. Discou de novo. A mulher atendeu, estremunhada. Ele não teve
coragem de falar e desligou. Voltou para junto da moça. Continuou bebendo.
Faltavam dez para as três, pegou um táxi e foi para casa. No trajeto, pensou, o
tempo inteiro, na probabilidade de a mulher o enganar. Horrorizou-se. Um
tremor, dos pés à cabeça, só em pensar que outro homem pudesse tocar-lhe a
pele. Mas, se ela disse que fazia, é porque ia fazer mesmo.
Entrou em casa e, sem os sapatos, caminhou até o quarto. A mulher
estava sentada na cama. Pequenininha, cintura fina, as narinas fremindo mais
que nunca. A lâmpada de cabeceira acesa e o relógio marcando três horas. Ela
perguntou, apenas:
- Que horas são, Teixeira?
Ele olhou o relógio e respondeu, com a voz mais humilde que um
homem pode ter:
- Meia-noite e quinze.
Ela deitou-se e puxou as cobertas até o pescoço. Ele pensou que a
tapeara e foi-se deitando, também. Ela virou o rosto para ele, sem abrir os
olhos, tirou uma mão das cobertas, alisou-se a testa e disse baixinho:
- Vai ser amanhã, ouviu, Teixeira?

Fim do livro

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