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Benditas sejam as moças
As Crônicas de Antônio Maria
SUMÁRIO
Prefácio
Conversa de pai e filha
Mulher nua na janela
O coração dos homens
A fidelidade e o queijo
Aos suicidas e feios
"Você, hein?..."
Canção modal do homem que chama sua amada
Eram cinco e quinze
Uma velhinha é uma velhinha
Segredo do apartamento 912
Brasileiras dão dor de cabeça
Discurso informal
Conversa em voz alta
Amanhecer no Margarida’s
Poesia perdida
Adultério e considerações
Canção compassada, do encontro e da dor
Crônica mal-humorada
Notas sobre Dolores Duran
Do conhecimento da mulher
Coração opresso, coração leve
"Consultório sentimental"
A carona
Vigésimo aniversário
História que não acaba
Bilhete deixado sobre a mesa de...
O andar
As mulheres pela idade
Cena e exemplo a seguir
As duas irmãs
As canções e as pessoas da noite
O último encontro
Honra
Provas de amor
Do telefone à realidade
Conversa de café-society
Duas moças de biquíni
Explicação de futuro
"Voluntários do amor"
O encontro melancólico
Procurar e encontrar
Poesia perdida...
Mulher dos outros
A cidade e a mulher
Benditas sejam as moças
Era um homem muito bom
Mulher de nariz arrebitado
PREFÁCIO
JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS
Pai, eu tenho um namorado. Pai, que ouve isto da filha mocinha, pela
primeira vez, sente uma dor muito grande. Todo sangue lhe sobe à cabeça, e o
chão do mundo roda sob seus pés. Ele pensava, até então, que só a filha dos
outros tinha namorado. A sua tem, também. Um namorado presunçosamente
homem, sem coração e sem ternura. Um rapazola, banal, que dominará sua
filha. Que a beijará no cinema e lhe sentirá o corpo, no enleio da dança. Que
lhe fará ciúmes de lágrimas e revolta; pior ainda, de submissão, enganando-a
com outras mocinhas. Que, quando sentir os seus ciúmes, com toda certeza,
lhe dirá o nome feio e, possivelmente, lhe torcerá o braço. E ela chorará,
porque o braço lhe doerá. Mas ela o perdoará no mesmo momento ou, quem
sabe, não chegará, sequer, a odiá-lo.
E lhe dirá, com o braço doendo ainda: "Gosto de você, mais que de
tudo, só de você." Mais que de tudo e mais que dele, o pai, que nunca lhe
torceu o braço. Só de você é não gostar dele, o pai. E pensará, o pai, que esse
porcaria de rapaz fará a filha mocinha beber whisky, e ela, que é mocinha,
ficará tonta, com o estômago às voltas. Mas terá que sorrir.
E tudo o que conseguir dela será, somente, para contar aos amigos,
com quem permuta as gabolices sobre suas namoradas. Ah! O pai se toma da
imensa vontade de abraçar-se à filha mocinha e pedir-lhe que não seja de
ninguém. De abraçá-la e rogar a Deus que os mate, aos dois, assim, abraçados,
ali mesmo, antes que torçam o bracinho da filha. Como é absurda e
egoisticamente irracional amor de pai! Mais que ódio de fera.
Ele sabe disso e se sente um coitado. Embora sem evitar que todos
esses medos, iras e zelos passem por sua cabeça, tem que saber que sua filha é
igual à filha dos outros; e, como a filha dos outros, será beijada na boca. Ele, o
pai, beijou a filha dos outros. Disse-lhe, com ciúme, o nome feio. E torceu-lhe
o braço, até doer. Nunca pensou que sua namorada fosse filha de ninguém.
Ele, o pai, humanamente lamentável, lamentavelmente humano. Ele, o pai,
tem, agora, que olhar a filha com o maior de todos os carinhos e sorrir-lhe um
sorriso completo de bem-querer, para que ela, em nenhum momento, sinta
que está sendo perdoada. Protegida, sim. Amada, muito mais. E, quando ela
repetir que tem um namorado, dizer-lhe apenas:
- Queira bem a ele, minha filha.
***
Última Hora / 3 de agosto de 1960
***
***
A fidelidade e o queijo
A gente não imagina que haja ainda quem seja capaz de contar certas
coisas e de pedir determinados conselhos. A experiência do viver tranca o
homem, cada vez mais, em si mesmo, aconselhando-o a sarar, sozinho, todas
as escoriações da alma.
Pois bem, não faz uma semana e um amigo pouco íntimo (desses que
a gente chama de amigo porque a palavra CONHECIDO não quer dizer
nada) veio fazer-me esta confidencia de antiqüíssimo modelo: ao chegar em
casa, fora do horário habitual, encontrou a mulher e o vizinho... Nessa altura,
reticenciou a narrativa, desejando, certamente, que lhe perguntasse COMO e
ONDE. Tal pergunta não lhe foi feita, obrigando-o a dizer que estavam os
dois sentados à mesa de jantar, tomando café, com queijo. Daí por diante,
travou-se, entre nós, o seguinte diálogo:
ELE - Você, o que acha?
EU - De quê?
ELE - De estarem, os dois, tomando café com queijo?
EU - O queijo é mais grave que o café, porém nenhum dos dois quer
dizer nada. - E tentei explicar-lhe que oferecer café é uma simples cerimônia,
enquanto café com queijo já passa a ser uma intimidade.
ELE - Que devo fazer?
EU - E os cinzeiros?
ELE - No dela, oito pontas; no dele, quatorze.
EU - Havia ponta de cigarro dele no cinzeiro dela, e viceversa?
ELE - Acho que não. Tenho a impressão que não. Certamente, não.
EU - Então, não há gravidade de espécie alguma, porque está
provado que fumaram muito, o tempo inteiro, distantes um do outro, cada
qual em seu cinzeiro.
Nessa altura, começou a falar sem fazer-me seu alvo, isto é, começou
a pensar, com palavras. Considerou a quebra de confiança, advertiu-se da
beleza física do vizinho, blasfemou contra as mulheres em geral, até que,
falando realmente comigo, suplicou:
ELE - Eu lhe peço que você me diga, exatamente, o que está
pensando sobre o caso. Use de toda a sua franqueza.
EU - O vizinho vai muito à sua casa?
ELE - De vez em quando, telefonar.
EU - Não há motivo para a menor desconfiança. Foi telefonar e,
como há alguma intimidade, conversaram.
ELE - Durante muito tempo?
EU - A conversa durou, exatamente, quatorze cigarros dele e oito de
sua mulher. (PAUSA) Ela ofereceu-lhe um café e, lembrando-se que havia
queijo, ofereceu-lhe uma fatia.
ELE - Mas o queijo, foi ele que trouxe.
EU - Então, já não está mais aqui quem falou.
***
Não encontrei, até hoje, uma só razão para que alguém se matasse.
Leio todas as cartas dos suicidas, cada uma mais absurda e ingênua. A uns,
falta dinheiro. A outros, amor de mulher. Que frágil, a humanidade, ao
desejar, constantemente, ser amada e rica! Hoje, por exemplo, nos jornais da
manhã, a notícia do rapaz que se atirou de um 10 andar, unicamente, porque
era feio. Achava que as mulheres não o queriam para nada.
Dedico esta crônica a todos os homens feios do Brasil. Sendo um
deles, posso falar com autoridade, em nome da classe. Fiquem certos, colegas,
de que não há nada mais sem graça que homem bonito. São chatíssimos. Os
verdadeiros canastrões da vida real! As mulheres já não os suportam e se
bandeiam, aflitas, para nós, que somos confortavelmente feios,
encantadoramente feios, venturosamente feios. Ai de nós, se não fosse a
bobagem dos rapazes bonitos! Não se cuidam, colegas. Ou melhor, cuidar,
cuidam do cabelo, do colarinho, da gravata, do terno e dos borzeguins.
Feito tudo isso, acham que já cumpriram todos os seus deveres para
com a Humanidade e Deus. Então, ficam aquelas figuras Ducal espalhadas
pela vida, a dar um show de vaziísmo desastroso. Enquanto isso, nós, os
privilegiadamente horríveis, vamos cuidando de fazer alguma coisa - fazer, já
que não somos. Ou somos tanto por dentro, que não precisamos fazer nada
por fora.
Vocês, meus caríssimos companheiros do Feiúra Futebol Clube,
examinem, por aí, o enorme êxito dos feios. Frank Sinatra, por exemplo. Não
há homem que dê mais sorte com mulher, no mundo inteiro. E é feio mesmo.
Mas faz bonito tudo o que faz. Basta sorrir e olhar, para que elas não queiram
mais sair de perto.
Coitado desse colega nosso, que se atirou do 10 andar porque a
companheira de repartição (sua última esperança de sucesso) negou-lhe um
encontro. Coitados de todos aqueles que repetem suspirosos:
- Ah, eu não dou sorte com mulher!
É engano, prezadíssimos irmãos! Eu, se tivesse pretensões amorosas e
trabalhasse nesse ramo, em cada um dos meus fracassos lamentaria as
desditosas mulheres que não dessem sorte comigo.
Conheço um homem que não tem nada de bonito. É gordo, baixo e
passa dos sessenta. Foi não foi, está com uma mocinha pela mão. Certa vez
lhe descobriram um caso sensacional - uma mulher lindíssima, com quem ele
teria dado suas voltinhas. Na roda onde estávamos, alguém fez a pergunta
indiscreta de sempre:
- Que tal Fulana, é boa?
E meu gordo, baixo e velho amigo respondeu não mais:
- Ah, não sei. Sei que eu sou formidável.
***
"Você, hein?..."
***
Tudo entre nós havia que continuar sendo casual. Não tínhamos nada
que marcar encontro das cinco e quinze, no tal bar, tido e havido como
discreto. Resultado: aquele sem jeito, aquela falta de ar, aquela vontade de
voltar para casa, que nós, apesar de lúcidos e afins, não conseguimos explicar.
Mas que foi engraçado, foi. Primeiro, para termos direito a uma mesa, o
garçom exigiu que fizéssemos uma despesa qualquer.
Dinheiro havia. O que nos faltava era apetência. Deixamos a cargo do
garçom o preço que haveríamos de pagar pelo local e pela discrição do nosso
rendez-vous. Podia ter estourado um Moêt & Chandon, mas, homem cauto,
olhando-me nas alpargatas, trouxe-nos uma coca-cola tamanho família e um
sanduíche de grande montagem. Eu, como sempre brilhante naquilo que irei
dizer e em tudo que poderia ter dito, na hora de falar, não disse coisa
nenhuma. Julguei que se tratasse de uma simples burrice inicial que passaria
tão logo nos habituássemos à novidade de estarmos sós. Mas não. Andou o
tempo e nós continuamos naquela conversinha de Alvarenga e Ranchinho,
que não vende nem compra coisa alguma. Repare bem, o que dissemos não
valia mais que: "ehh, cumpade... pois é... tá sorto". E por quê? Prometemos,
no dia seguinte, uma explicação telefônica que nos reabilitasse, um para o
outro e cada qual perante si mesmo. Infelizmente, prezada senhora, a
explicação encontrada não é das mais honrosas. Primeiro, para esse negócio
de namoro, é preciso ter peito. Nós não temos, hélas! Depois, é necessário, ao
menos no começo, que um leve o outro no bico. E nós não podemos. Somos
muito puros, um no outro. Muito iguais, muito devassados, um para o outro.
Podemos falar, sim, já falamos. Mas, na realidade, não temos nada que contar
um ao outro. Em nosso caso, desgraçadamente, seria chegar, abraçar e deixar
sentir. Mas cadê peito? Continuemos, então, a viver dos acasos, até que um
deles, um dia, seja o mais importante e cumpra, afinal, o nosso fado.
***
Não sei se os outros pensam assim, mas, quando vejo uma velhinha e
procuro imaginar que ela já tenha sido jovem, e tido um namorado, e feito
todas as coisas a que o amor obriga, por mais que eu queira, não acredito. Ou,
se acredito, não entendo. Porque uma velhinha é uma velhinha, tal qual uma
rosa, que é uma rosa. Dá-me uma idéia do ser humano eterno, que sempre
houve e não deixará de haver, com sua golinha de rendas, seu chapéu com
aplicação de jasmins, seu guarda-chuva, seus sapatos de fivelas. As de Paris
passeiam, de manhã, em Auteuil, comprando carne para os gatos, queijos e
legumes para si. Passeiam seus cães, à tardinha, no bois e, enquanto dão-lhes
folga, discutem, umas com as outras, sobre a última e a próxima guerra.
Queixam-se do frio, da bruma constante e, se um sinal de luz aponta para os
lados de Versailles, dizem todas, ao mesmo tempo, numa felicíssima
esperança: "vá faire beau!" Adoram o sol. Que engraçado vê-las ao sol! Ficam
mexeriqueiras, rigorosas e bisbilhotam a vida de todas as velhinhas ausentes.
Voltam à humildade de antes, quando o sol se cobre e a praça esfria outra vez,
mandando-as para casa. Passava horas vendo as velhinhas de Paris. Na Ferme
d'Auteuil, entre cinco e seis da tarde, tomavam seu chá, lentamente, e era uma
delícia ouvi-las conversar. Mas nunca me consenti acreditar que houvessem
sido mocinhas, ou que houvessem tirado aquela espécie de farda, um dia
sequer, em suas vidas.
Há pouco tempo, em um café de Friburgo, sentou-se uma velhinha
para conversar. Precisava de um dinheiro, para caiar a casa e ajudar no
casamento de uma neta. Aceitou uma xícara, beliscou de uns doces, e foram
tantas as perguntas, que acabou contando sua vida. Tivera um namorado,
andara fazendo suas facilidades com ele. Depois, casou com outro e, mesmo
casada, facilitou também, porque não soubera resistir aos encantos de um
primo, em Magé. Por fim, morreu-lhe o marido e, na campanha por um novo
casamento, dera-se a duas ou três fantasias pouco recomendáveis, em
senhoras viúvas. Isso representou para mim um choque muito grande. De
repente, as velhinhas de Auteuil deixaram de ser os seres eternos que eu,
sabiamente, imaginara. Todas se transformaram, violentamente, em gente
igual a mim, que comete dos meus erros e, como eu, de felicidade em
felicidade, de abraço em abraço, de ilusão em ilusão, inebriadamente,
envelhece...
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Última Hora / 29 de abril de 1961
Discurso informal
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Amanhecer no Margarida's
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Poesia perdida
Não sei onde deixei minha poesia. Deve ter sido em um desses bares,
por aí. Ou no olhar, na carne, no breve dia feliz da mulher amada. Sei que a
perdi e, se era tão pouca, foi bom que se perdesse, porque poesia é como areia
- só merece menção quando é muita; exemplo: praia e deserto.
Que me lembre, senti-a pela última vez em um amanhecer do cais de
Hamburgo. Era a noite curta de um fim de primavera e, já às três da
madrugada, começava a clarear. Aos nossos pés, faxinando o seu barco, um
marujo cantava uma canção de palavras engroladas, mas muito bonita, a
canção. A alguma distância sobre o horizonte do amanhecer, a silhueta de
Bismarck. Foi a última madrugada da minha poesia.
Deus, bem haja as viagens que me deste!
De lá para cá, as coisas têm acontecido fora de mim. Sinto-as
intensamente mas nada nasce, como outrora nascia, dentro do meu coração -
um Universo à parte. Ao contrário do que possam pensar, essa mudança não
me desgasta. Digo-me, muitas vezes: Que bom não ser poeta! Que alívio
interior, que descanso, o de não gerar! A poesia é, agora, o acontecimento
fugaz e ocasional em minha volta. Eu só o temo, depois de escolher.
Mas há uns dois ou três dias, distraído, ia-me encrencando com um
desses acontecimentos exteriores. Era uma festa. A porta se abriu e entrou
uma mulher. Bem, já tem havido isso, de portas se abrirem e, por elas,
entrarem mulheres. Mas, embora a porta fosse igual a todas as outras, a
mulher não era. As mulheres deviam ser como os caranguejos – todas iguais.
Entanto, para desgraça nossa, não o são. É verdade que é bom ter-se uma
mulher por quem se faça barba todos os dias, por quem se mande fazer um
terno azul de casimira, por quem se encomende uma gravata na Dominique
France, por quem se deixe de comer pão, arroz, batata e manteiga. Todavia...
Quando a porta se abriu e aquela mulher entrou, porque ela fosse
alígera ou, simplesmente, míope, uma sensação já minha conhecida vibrou no
peito esquerdo. Algum mal estaria me acontecendo: poesia ou burrice? Deus
queira que tenha sido este último... Poesia só leva ao que não serve.
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Adultério e considerações
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Última Hora / 5 de agosto de 1960
Crônica mal-humorada
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Última Hora / 27 de outubro de 1959
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Ultima Hora / 30 de junho de 1959
Do conhecimento da mulher
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Tão bonita à minha frente, acordando tanta coisa neste coração que já
fez versos, mas angustiada. Suas mãos, que pousavam sobre a mesa, partindo
palitos, rasgando prata de cigarro, fazendo bolinhas de miolo de pão. Cinco
minutos depois, a toalha, em seu lugar, parecia um chãozinho de pombal.
Olhei-lhe os olhos, sabe Deus com que sentimento! E ela talvez também
tenha sabido, porque linguagem de olho, embora só olho entenda, é a mais
clara e sincera do corpo humano.
Achava-me diante de mais um caso, claríssimo, de ma/od/e d'amour,
cuja sintomatologia está contida em obras de Lupicínio Rodrigues, Charles
Aznavour, Herivelto Martins, Margueritte Monot e Maísa. Essa enfermidade,
em casos agudos, requer que o doente seja transportado, sem perda de tempo,
a uma cartomante, sempre que possível, egípcia. E isso foi feito,
imediatamente, em duas viagens, pois o corpo da paciente viajou de táxi, e a
alma, um pouco antes, em maca do Serviço Nacional de Mal de Amor. Lá
chegando (desculpem a frase feita), foram postas as cartas na mesa e, da
intervenção, que durou vinte minutos, resultou um coração repleto de
esperanças, com felicidade garantida para, ao menos, vinte e quatro horas
deste agosto. O trabalho da cartomante foi impecável, porque, no primeiro
lance, descobriu uma viagem para breve e, no exame do causador daquela
crise, revelou que ele a ama, que ele a adora, que ele não a trocaria por
nenhuma, mas, por fraqueza, além de não confessar, ainda judia do coração da
moça.
Voltamos ao ponto de partida, dessa vez numa viagem só, porque
após a cartomancioterapia, dispensa-se a maça do SNMA, podendo corpo e
alma viajar no mesmo táxi. A meu lado, ia uma moça de coração leve, em
silêncio, mas com um sorriso que devia ser, exatamente, o de São Francisco de
Assis, ao relembrar as gracinhas dos seus passarinhos prediletos.
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Última Hora / março de 1960
"Consultório sentimental"
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A carona
Vigésimo aniversário
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Chega, aflita, à minha casa, uma mulher que eu nunca vi. Vem aos
prantos e continua chorando (após sentar-se), sem que eu saiba de que se
trata. Afinal, após boa meia hora, começa a contar. Primeiro, uma porção de
tragédias, na infância. Depois, algumas infelicidades, desde o dia em que
casou. Finalmente, a tragédia capital. Enamorou-se do rapaz que mora em
frente, apaixonou-se por ele e, com o tempo, o marido os viu juntos.
Situação, na época, da minha lacrimosa visita: o marido a abandonou
(questão de honra); o namorado a abandonou (para não enfrentar a ira do
marido ultrajado); toda a família (mãe, inclusive) a abandonou, por considerá-
la mulher indigna. Pede-me um conselho. Não sei dar conselhos.
Nunca os dei, nem a parentes de sangue. Mas a essa mulher, sei lá por
que, aconselhei uma hibernoterapia. Vinte e cinco dias de sono, distante de
tudo e de todos, como em uma viagem.
A moça aceita o conselho. Desaparece. Eu me esqueço dela. Ei-la
que, hoje, volta à minha casa. Em vez de lágrimas, traz o rosto enxuto e
sorridente. Mais repousado e bonito (o rosto), depois do sono. Vem agradecer
o bem que lhe fiz. Hibernou durante vinte e cinco dias e, ao voltar, o marido a
perdoou. A família (mãe, inclusive) também.
Pergunto-lhe preocupado:
- E o namorado, de defronte?
A moça baixa os olhos, preferindo não responder. Insisto. A moça
me diz sem vontade:
- Perdoou, também. Voltou ao que era.
Agora, a tragédia recomeçará. O marido a verá outra vez com o
namorado e a abandonará. O namorado, para não enfrentar a ira do vizinho, a
abandonará. A família a abandonará. Minha visita voltará à hibernoterapia, e,
ao sair, todos voltarão às boas... É uma história, portanto, que não acabará,
nunca mais.
Última Hora / 4 de agosto de 1959
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Última Hora / 8 de janeiro de 1960
O andar
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Última Hora / 25 de julho de 1960
As duas irmãs
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O último encontro
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Última Hora/ 1 de fevereiro de 1961
Honra
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Última Hora/10 de junho de 1960
Provas de amor
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Última Hora / 24 de julho de 1959
Do telefone à realidade
Na noite desta última lua cheia, uma moça telefonou e, após longa
explanação sobre sua sensibilidade, sugeriu que saíssemos por aí, pois sentia
imensa vontade de falar. Achou necessário dizer que, além da alma bonita, era
idem de cara e de corpo. Expliquei-lhe que estava sem automóvel, mas isso
não adiantou, porque sua vontade era andar a pé. Copacabana, de ponta a
ponta. Lembrei-lhe a jovem violentada no Aterro do Flamengo, o que
também não lhe abalou os propósitos, por não temer violências. Fui vê-la,
afinal, e tratava-se, realmente, de pessoa bonita, mais até do que se poderia
imaginar, àquela hora da noite. Estava dentro de umas calças muito elegantes
e vestia a metade superior do corpo com um sweater de boa lã, e até onde se
pode adivinhar sob um sweater não haver nenhuma outra peça, adivinhei.
Saímos andando, calçada afora, ambos de mãos nos bolsos. Logo aos
primeiros cinqüenta metros, achei que devíamos andar menos depressa, para
evitarmos ofegâncias desnecessárias. Graças a Deus, sua disposição era mais
falar que ouvir, e, do Lido até o Hotel Trocadero, se eu disse muito, disse "é
claro", duas ou três vezes. Seu primeiro tema foi o Homem, que considera em
má fase. Seus três últimos namorados eram pouco inteligentes e, em tudo e
por tudo, mesquinhos. Daí, passou à literatura, mas, como seus escritores e
poetas não eram os meus, mudou para política. Na primeira frase, já
estávamos em desacordo, porque é dessas que acham: o Brasil precisa de Jânio
Quadros. Afinal, começamos a nos entender quando falou de suas viagens, e,
nessa altura, já íamos no Hotel Miramar.
Morou na Espanha, um longo tempo; e sabia tudo sobre touradas. Os
nomes de todos os toureiros. Ao contar-lhes os feitos, parava, fazia os passos
e as esquivas de um bom toureiro. Ficou uma gracinha. Sabia assoviar os
toques do ritual e dizia, com "ss" bem espanhóis, as palavras que profere o
matador: "En ei mismo nombre de Dios!" Para a lua, nem olhamos.
Veio uma certa sede de cerveja e nos levou ao Pescador, da Francisco
Otaviano. Aí, sim, é que foi bonito. Sabia uma porção de bolerias, cantos
soleares, e, para cativar-me, foi a única pessoa que, nestes últimos dois anos,
soube cantar a melodia de um certo pasodoble chamado Las campaneras.
Quando olhamos a rua, o dia estava querendo clarear e já havia sons de
leiteiro e açougue. Sugeri a volta, que ela ainda ousou insinuar fosse feita a pé.
Lembrei-lhe a minha idade, acrescida dos seis quilômetros Lido-Pescador, e
concordou que tomássemos um táxi. Mas, na metade do caminho, quando viu
a cabeleira do sol apontando na Ilha Rasa, perguntou, com desplante: "Que tal
um banho de mar?"
***
Última Hora/ 15 de agosto de 1960
Conversa de café-society
Estou lendo carta de uma leitora de Varginha, Dinah, que diz gostar
muito de viver em sociedade e que seu sonho seria viver no café-society
carioca, indo a cocktails e jantares em companhia de (cita nomes de homens e
mulheres). Acha a leitora Dinah que seu sonho nunca se realizará, porque,
mesmo vindo morar no Rio, nunca terá acesso a esse grupo. Lamenta-se
muito por isso. Depois, pergunta: "Como é que eles são?"
Minha prezada Dinah, eles não são mais pessoas da sua idade e, sim,
da minha. Ou mais, vestem-se muito emperiquitadamente, a qualquer hora do
dia ou da noite. Nas reuniões, falam de uma coisa só: o Amor. Mal a gente
chega, ouve a pergunta:
- Você não acha que o amor é dar? E fica aquela discussão, metade a
teimar que o amor "é receber". Fala-se de amor a noite inteira. Cada uma diz
como gostaria de amar. Cada um também, sempre à maneira de um filme.
Quando passou Lês amants, durante o filme, todos acharam que só
seria bom amar assim. Mas na cena final, quando Jeanne Moreau saiu com o
careta, todos mudaram de idéia, porque o carro dele era ruim e, muito,
porque, em companhia dele, não haveria cocktails e partidas de golfe. Então,
qual seria o amor ideal do cinema? Ah, minha cara Dinah, todos querem ter
um caso igual ao de Jennifer Jones e William Holden em Love Is a Many
Splendored Thing. Aquela mesma coisa agoniada, mas muito bonita, com a
baía de Hong Kong ao fundo. Com William Holden morrendo e ela
recebendo a carta, etc.
Você vindo ao Rio, Dinah, em qualquer reunião a que você
compareça, o piano estará tocando (a pedido) Love Is a Many Splendored
Thing e todos estarão dançando ou suspirando, em clima da maior
cumplicidade. E sempre a pergunta que ainda não foi devidamente
respondida:
- Você não acha que amor é dar?
E o piano repetindo a ária do amor esplendoroso. As mulheres
absolutamente certas de que são Jennifer Jones. Os homens, sem exceção, se
você chegar perto de qualquer um e disser:
- Olá, William! Responderão:
- Hein!
A coisa é assim, Dinah. Não sofra tanto, se nunca realizar o seu
sonho de viver entre essas pessoas que você me cita em carta. Você é Dinah,
de Varginha. E isso lhe basta. Chegando aqui, depois de dois cocktails já será
Jennifer Jones e terá, na roda, o seu William Holden.
***
Última Hora/ 13 de junho de 1961
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Explicação de futuro
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"Voluntários do amor"
Meu pobre carro, mais para velho que para novo, freia rente às pernas
de uma senhora, que atravessava a rua com o sinal fechado. Não teve culpa,
nem eu. Até que se portou muito bem ante a imprudência da senhora. Mas a
dita, tomando-se de ódio, resolveu descompor o pobre carro:
- Essa lata! Uma porcaria de automóvel! Atira isso ao mar!
Uma pobre Kombi, coitada, um tanto ou quanto comida pela maresia,
mas discreta em sua velhice. Prestou-me serviços valiosos, deu-me alegrias,
levou-me a algumas felicidades. Tinha que defendê-la:
- Ah, minha senhora...
Não cheguei a dizer mais que isso. A mulher levantou a vista e deu
com a minha cara:
- Logo vi que era você. Tinha que ser um animal como você, que não
faz outra coisa senão injuriar o Governador. Pois quer saber de uma coisa?
Vai morrer de... (e disse o nome da doença que um cronista social, no
auge do seu mau gosto, noticiou estar atacando uma das dez mais).
Olhei bem o rosto da mulher. Pálida, olhos baços, boca fina, orelhas
modelo ventania. O busto de boneca de pano, os quadris tristes. Não havia
nada a fazer. Estava eu diante de uma "mal-amada". Nunca mais as vira, desde
as eleições. Mas não mudaram. Não amaram, das eleições até aqui. Comecei a
pensar que o Governo, em penhor de gratidão, devia criar uma instituição de
voluntários, para dar alegria a essas desamparadas. Um grupo de jovens
desempregados, de farda e quepe, com uma inscrição no quepe: "Voluntários
do Amor". Seriam pagos pela verba extorquida aos bicheiros. E não seríamos
agredidos, na rua, por essas deusas fenecidas udenolacerdistas. É triste a
mulher que passa a vida sem "abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim".
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O encontro melancólico
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Procurar e encontrar
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Última Hora / 8 de junho de 1960
Poesia perdida...
***
Última Hora / 23 de agosto de 1960
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A cidade e a mulher
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Última Hora / 22 de setembro de 1959
***
Fim do livro