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R eitor
Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, SJ
V ice-reitor
mDEditora Unisinos
D iretor
Pe. Pedro Gilberto Gomes, SJ
Conselho Editorial
Alfredo Culleton
Carlos Alberto Gianotti
Pe. Luis Fernando Rodrigues, SJ
v . Pe. Pedro Gilberto Gomes, SJ
Costas Douzmas
Tradutora
A raújo
E d i t o r a U n isin o s
C o leçã o D ik e
© C ostas D ouzinas
Título original:
The E n d ofH um an TUghts
E D I T O R A U N IS IN O S
C oleção D ík e
Sob direção de V icente d e Paulo B arretto
E ditor
C arlos A lb erto Gianotti
Tradutora 'Editoração
Luzia Araújo M ariana R am os
Revisor Capa
R enato D eitos M ari Pini
D 7 4 2 f D ouzinas, C ostas
O fim dos direitos hum anos / p o r C ostas D ouzinas; tradutora Lu zia Araújo.
reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas que compõem este Ii-
, para uso não-individual, mesmo para fins didáticos, sem autorização escrita do edi
tor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura-
Foi feito o depósito legal.
S umário
09 Prefácio
13 Prefácio à tradução brasileira
385 Bibliografia
403 índice remissivo
P r e f á c io
O movimento dos Estudos Jurídicos Críticos (CLS)* foi central neste processo,
Mas devo acrescentar que, para mim, a maior realização dos juristas críticos é que
eles ensinam, pesquisam e escrevem norteados pelo princípio de que um direito
sem justiça é um corpo sem alma, e uma formação jurídica que ensina regras sem
espírito é intelectualmente infecunda e moralmente falida. Este livro, uma crítica
do humanismo jurídico inspirado pelo amor à humanidade, faz parte dessa atmos
fera. Ele tem por objetivo ser um livro didátièo avançado de teoria jurídica e direi
tos humanos para o jurista melancólico do final do século mais atroz da história da
humanidade.
Tive a incrível sorte de estar envolvido com a criação e o fenomenal su
cesso da Birkbeck Law School no início dos anos 1990. Este sucesso não teria sido
possível sem o extra.ordinário grupo de acadêmicos empreendedores e pesquisa
dores dotados de fértil imaginação, meus antigos e atuais colegas, que transforma
ram a Birkbeck na melhor pequena faculdade de Direito da Grã Bretanha. Devo
muito intelectualmente a todos eles e em particular a Peter Goodrich e Nicola La-
cey, meus antecessores na direção da Birkbeck Law School A sensibilidade histó
rica de Peter, sua imaginação incandescente e seu ácido senso de humor contri
buíram para que este livro fosse escrito e para o projeto jurídico crítico como um
todo de muitas formas, muitas conscientes e reconhecidas, outras inconscientes e
nebulosas. A generosa sabedoria de Nicola e seusconselhos amigos em relação a
este e. a muitos outps projetos foram de imensa valia. Os estudos jurídicos críti
cos não teriam sidd:4im movimento tão influente sem estes dois amigos carismáti
cos.
Muitos colegas é amigos contribuíram para a realização deste livro nos
dois últimos anos. Não é possível mencionar todos eles. Mas tenho muito prazer
em agradecer a alguns amigos cujas contribuições estão próximas da superfície do
texto. Gostaria de agradecer em particular a Aiexandra BakalaM, Bill Bowring, julia
Chryssostali, Lindsay Farmer, Peter Fit2patrick, Rolando Gaete, Adam Gearey,
Shaun McVeigh, Les Moran, Tim Murphy e Adam Tomkins. Os alunos do curso
de Direitos Humanos da Birkbeck Law School contribuíram para este livro tanto
por meio de seu imenso entusiasmo e comprometimento com os direitos huma
nos quanto por sua suspeita em relação a todas as afirmações grandiosas feitas pe-
Forma abreviada em inglês para CriticaiLegal Stuáiu, usualmente empregada em português (N. deT .).
11
Pr e f á c io
los poderosos. Com o passar dos anos, aprendi mais com eles do que eles podem
ter aprendido comigo.
A pesquisa para este livro foi muito facilitada por várias subvenções e bol
sas de pesquisa. O Birkbeck College concedeu-me um longo período sabático
após a criação da Faculdade de Direito. Parte da pesquisa foi levada a cabo no
Instituto Universitário Europeu, em Florença, e na Universidade de Princeton e na
Cardozo Law School, em Nova York, com o subsídio de várias bolsas de pesquisa
em 1997 e 1998. Yiota Cravaritou foi de grande ajuda e inspiração em Florença; Je-
anne Schroeder e David Carlson foram importantes fontes de aperfeiçoamento
em Nova York, e Kostis Douzinas e Nancy Rauch proporcionaram maravilhosa
hospitalidade e animadas discussões naquela cidade. Natasja Smüjanic e Maria
Kyriakou foram inestimáveis assistentes de pesquisa em várias partes do projeto.
Minha filha Phaedra padeceu muito nos verões de 1998 e'1999 quando, em vez de
ir nadar com ela, eu ficava escrevendo e me transformava num acompanhante in
sociável e irritável. Nicos e Ana Tsigonía foram fontes de inspiração e de ideias
desafiadoras. Finalmente, meus mais profundos agradecimentos a Joanna Bour-
ke, que, por todo o seu annus mirabilis de 1999, continuou sendo uma companhia
versátil, tolerante e totalmente fabulosa.
1 Costas Douzinas, The E n d ofHuman 'Rights, Oxford: Hart, 2000,380; Costas Douzinas, T h End(s) o f Hu
man Rights, 2 6 /2 University o fMelbourne Law Revieiv 445,2002.
2 John Morss, 'Saving Human Rights from its Friends: A Critique o f the Imaginar)'justice o f Costas Douzi-
nas’ 27 Melbourne University Paw Revfov 890,2003.
14
C o s t a s D o ü z in a s
oposta. O livro era muito positivo em relação aos direitos. A política radical futura
iria “além dos direitos humanos” porque sua linguagem destorce tonto a diferença
quanto a alteridade e não pode conduzir à emancipacão.3 Uma figura de retórica
padrão seria o criticado alegar que, como é atacado tanto pela Direita quanto pela
Esquerda, ele deve ter encontrado um ponto de equilíbrio exato. Não posso lan
çar mão de uma defesa desse tipo. Primeiro, porque não me sinto confortável no
meio da estrada, lugar onde as pessoas são atropeladas. Mas, ainda mais importan
te, não posso alegar ser o intermediário prudente, o mediador ou sintetizador,
pois ambas as críticas estão parcialmente corretas. Os apologistas esperam dos di
reitos humanos muito mais do que é plausível e negligenciam seus efeitos colate
rais. Porém, não é possível “livrar-se” dos direitos como críticos generosos têm
insistido. Citando uma afirmação chave de 0 fim, “os direitos humanos têm ape
nas paradoxos a oferecer”. O paradoxal, o aporético, o contraditório não são dis
trações periféricas esperando para serem resolvidas pelo teórico. O paradoxo é o
princípio organizador dos direitos humanos.
Ao recapitular os acontecimentos atuais, após o 11 de Setembro, em meio
a consequências das guerras e ocupações desastrosas do Afeganistão e do Iraque,
ao despertar da guerra contra o terror, a Abu Ghraib e a Baía de Guatanamo, com
a experiência do hiato obsceno cada vez maior entre o Norte e o Sul e entre o po
bre e o rico em todos os lugares, o prenuncio do fim dos direitos humanos parece
um tanto profético.-jAs entusiasmadas discussões sobre as maravilhas da globali
zação, sobre a futurá^sujeição da soberania a regras morais e legais e sua substitui
ção por instituições internacionais e leis cosmopolitas abriram caminho para te
mores sombrios e ações ainda mais sombrias.4 O “estado de exceção”, a suspensão
das liberdades civis, o uso extensivo da tortura, coisas que, de acordo com o con
senso liberal, as democracias não podem fazer, estão de volta à agenda. Este é um
momento para as pessoas boas defenderem os direitos contra os ataques de gover
nos temíveis e exploradores do medo; na verdade, defenderem direitos contra os li
berais que foram seduzidos por estímulos de poder e estão preparados para descar
tar o princípio cardinal do liberalismo político.
Mas será que a recente suspensão de algumas liberdades civis significa o .
abandono radical da ordem jurídica e política em construção após 1989? Será que
3 Stewart M othaeThanos Zartaloudis, 'Law, Ethics and die Utopian End o f Human Rights’, 12 SocialLegal
Studies, 243-268,2003.
4 Joanna Bourke, Fear: A CulturalHistoy, Londres: Virago, 2005.
______________ 15______________
P r e f á c io À t r a d u ç ã o b r a s il e ir a
o Bush fils foi um rompimento tão radical com o Bush père? As políticas hegemô
nicas, as estratégias e os planos dos últimos anos foram introduzidos bem antes
dos ataques de 2001. O Afeganistão e o Iraque foram invadidos sob violação do.
Direito Internacional, mas a ilegalidade da guerra do Kosovo foi muito maior.
Quando sua justificação, a partir de argumentos de defesa preventiva, tomou-se
absurda, as invasões se transformaram em instâncias de mudança de regime, “ape
nas guerras” para libertar os afegãos e os iraquianos de líderes militares e ditado
res. Essas invasões representam uma continuação mais tenebrosa do “espírito de
Kosovo”, no qual o Ocidente demonstrou uma nova disposição de disseminar os
direitos humanos, a liberdade e a democracia'pelo mundo afora. O fim dos direitos
humanos anteviu que os excêntricos alardes sobre o alvorecer de uma nova era hu
manitária seriam acompanhados de sofrimento não computado.5 As “vitórias em
nome da liberdade e da democracia” no Afeganistão e no Iraque confirmaram
isso. Essas vitórias foram afogadas em um. naufrágio dos direitos humanos para as
pessoas locais.
Portanto, é importante continuar as lutas poKticas e intelectuais contra a
perversão do espírito de resistência e utopia identificado em O fim dos direitos hu
manos. Intelectualmente, -um imenso paradoxo caracteriza a filosofia dos direitos
humanos. Embora os direitos representem uma das mais nobres instituições libe
rais, a política liberal e a filosofia do direito parecem incapazes de compreender a
sua ação. Parte do problema deriva de um senso histórico e de uma consciência
política dos liberais deploravelmente inadequados. O mundo em que habitam é
um lugar atomocêntrico, constituído por contratos sociais e posturas originais
motivados pela cegueira subjetiva dos véus da ignorância, atribuídos a situações
de discurso ideais e que retornam a uma certeza pré-modema de respostas corre
tas únicas a conflitos morais e jurídicos. Igualmente, o modelo de pessoa que po
voa este mundo é o de um indivíduo autocentrado, racional e reflexivo, um sujeito
autônomo kantiano, desvinculado de raça, classe ou gênero, sem experiências in
conscientes ou traumáticas e que se encontra no perfeito domínio de si mesmo,
pronto a usar os direitos humanos para adequar o mundo aos seus próprios fins.
Os melhores filósofos liberais da direita escrevem como se duzentos anos de filo
sofia e teoria social não tivessem acontecido, como se eles nunca tivessem ouvido
falar de Marx e de lutas sociais, de Nietzsche, do poder e da resistência de Fouca-
28 de março de 2008
C .D .
Pa rte U m - A g e n e a l o g ia d o s d ir e it o s h u m a n o s
1 Fayed v. UK (1994) 18 EHR3R. [Essex Human Rights Review] 393; Saunàers v. UK (1997) 23 E H RR 242; The
Fom er King Constantin o fGnece v. Greãe Appl. 25701/94. Declarado admissível em 21 de abril de 1998.
20
C o s t a s D o u z in a s
2 A despeito de uma imensa quantidade de livros sobre direitos humanos, a jurisprudência dos direitos é do
minada pelos liberais neokantistas. Há umas poucas exceções notáveis. Huma:: BJgbtsnndtheU.mil; ofCritica!
Rtason, de Rolando Gaete (Aldershot: Dartmouth, 1993), é uma expressão significativa das dúvidas a testxá- .
to da demagogia dos direitos humanos e dos limites da capacidade emancipadora da razão. A partir de uma
perspectiva jurídica e histórica, a crítica roais importante aos direitos humanos é o pequeno clássico de Mi
chel Villey, L e Droit et les droits de l'homme (Paris: P.U.F., 1983). Bernard Bourgeois em Philosophe et droits de
lhomme. deKaiiïàMatxÇPziis: P.U.F., 1990) oferece a melhor introdução crítica à filosofia clássica dos direi
tos humanos. Em uma veia mais política, a coletânea recente Htmatt Rights:Fif!j Yesrs On, editada por Tony
Evans (Manchester: Manchester University Press, 1998), explora algumas das preocupações mais difundi
das sobre o estado das ieis internacionais de direitos humanos.
3 Gabriel Marcel, Creative FiM ty, 94 (trad. de R. Rosthal), Nova York: Fanar, Strauss, 1964.
4 Jacques Derrida, Spectresfo r M arx (trad. de P. Kamuf), Londres: Routledge, 1994, p. 85. [Em português:
Espectros de M arx (trad. deAnamaria Skinner), Rio de janeiro: Relomè Dumará, 1994,117].
Sempre que localizada, como na citação acima, é fornecida a tradução já existente em português, acompa
nhada da respectiva referência (N. de T.).
______________ 21 _________
O TRIUNFO DOS DIREITOS HUMANOS
cêntrica pode ser um bônus para a política e o direito liberal, mas é cognitivamente
limitada e moralmente empobrecida. Nossa estratégia é outra. Iremos examinar, a
partir das perspectivas liberal e não-liberal, ôs principais elementos formadores
do conceito de direitos humanos: o ser humano, o sujeito, a pessoa jurídica, a li
berdade e o direito, dentre outros. Burke, Hegel, Marx, Heidegger, Sartre, as
abordagens psicanalítica, desconstrutivista, semiótica e ética serão empregados,
primeiro, para aprofundar a nossa compreensão dos direitos e, depois, para cri
ticar aspectos da sua ação. Nenhuma grande síntese pode surgir a partir de tal comu-
cópia de reflexões filosóficas, e não há muito em comum entre Hegel e Heidegger ou
Sartre e Lacan. E mesmo assim, a despeito da ausência de uma teoria final e defini
tiva dos direitos, emergem vários temas comuns, um dos quais é precisamente a
impossibilidade de haver uma teoria geral dos direitos humanos. Á esperança é
que, ao se seguir as críticas filosóficas do liberalismo, a definição original de “críti
ca” de Kant possa ser revivida e nosso entendimento dos direitos humanos resga
tado da chatice do senso-comum analítico e de seu esvaziamento da visão política
e do propósito moral. Este é um livro didático para a mente crítica e o coração fo
goso.
Os direitos humanos podem ser examinados a partir de duas perspectivas
relacionadas, mas relativamente distintas: uma subjetiva e outra institucional. Por
um lado, elas ajudam a constituir o sujeito (jurídico) livre e ao mesmo tempo su
bordinado à lei. Mas os direitos humanos são também um discurso e uma prática
poderosos no Direito Nacional e no Internacional. Nossa abordagem é predomi
nantemente teórica, mas com frequência será complementada por narrativas
históricas e comentários poKücos e jurídicos sobre o registro contemporâneo
dos direitos humanos. De fato, críticas baseadas nas violações generalizadas dos
direitos humanos não são facilmente reconciliáveis com a crítica filosófica. A fi
losofia explora a essência ou o significado de um tema ou conceito, constrói dis
tinções indissolúveis e busca bases sólidas6, ao passo que a evidência empírica é
corrompida pelas impurezas da contingência, das peculiaridades do contexto e
das idiossincrasias do observador. Por outro lado, o lado empirista, os direitos hu
manos foram desde o início a experiência política da liberdade, a expressão da luta
para libertar os indivíduos da repressão externa e permitir sua auto-realização.
Neste sentido, não dependem de conceitos e fundamentos abstratos. Para a filo
sofia da Europa continental, a liberdade é, como colocou memoravelmente Marx,
“um insight sobre a necessidade”; para libertários civis anglo-americanos, a liber-
Para uma discussão mais gerai sobre a relação entre a filosofia da Europa continental e a anglo-americana
em relação ao conceito de liberdade, veja Jean-Luc Nancy, Tbs Experience o fFreedom!, Stanford: Stanford
University Press, 1993.
23
O TRIU N FO DOS DIREITOS HUMANOS
7 Veja Francis Fukuyama, The E n d o fHistory andtbeLasfMcw, Londres: Penguin, 1992, e os comentários críti
cos de Derrida em Espectros deM arx, op. at., supra n. 4. O debate alemão é revisto em Lutz Niethamer, Post-
historre. Has Histoiy Come to an End?, Londres: Verso, 1992.
24
C o s t a s D o u z in a s
8 Gianiu Vattimo, Tbs End o fModernity, Cambridge: Cambridge University Press, 1988,/wx»»; The Transparent
Society, Cambridge: Polity 1992, Capitulo 1.
9 Costas Douzinas e Ronnie Warrington com Shaun McVeigh, PostmodernJurisprudence. T ie lan' of text in the ■
textsofkiw, Londres: Routiedge, 1991, Capitulos 1 e 5.
10 Londxes: Verso, 1979.
O TRIUNFO DOS DIREITOS HUMANOS
to da teoria, não é provável que isto ocorra. O pensamento e a ação oficiais quanto
aos dkeitos humanos têm sido entregues aos cuidados de colunistas triunfalistas,
diplomatas entediados e abastados juristas internacionais em Nova York e Gene
bra, gente cuja experiência com ás violações dos direitos humanos está confinada
a que lhe seja servido vinho de uma péssima safra. No frigir dos ovos, os direitos
humanos foram transformados de um discurso de rebeldia e divergência em um
discurso de legitimidade do Estado.
Nesta época de incertezas e confusão entre triunfo e desastre, devemos
fazer uma avaliação da tradição dos direitos humanos. Mas será que podemos pôr
em dúvida o princípio dos direitos humanos e questionar a promessa de emanci
pação da humanidade por meio da razão e da lei quando parece que ele está próxi
mo de sua vitória final? Devemos acrescentar imediatamente que a alegação de
que as relações de poder podem ser plenamente traduzidas para a linguagem da lei
e dos direitos nunca foi totalmente digna de crédito e agora está mais esfarrapada
do que nunca. Estamos sempre enredados em relações de força e reagimos às exi
gências do poder que, como Foucault argumentou convincentemente, são colo
cadas em prática e estão disfarçadas em formas jurídicas. Conflitos militares e
confusões financeiras recentes têm mostrado que as relações de força e as lutas
políticas, de classe e nacionais adquiriram uma importância ainda mais abrangente
em nosso mundo globalizado. Enquanto isso, a democracia e o Estado de direito
são cada vez mais usados para garantir que as forças econômicas e tecnológicas
não estejam sujeitas a qualquer outro fim que não o da sua própria expansão con
tínua. D e fato, uma das razões da impressão de irrealidade, da qual os estudiosos
do Direito tanto reclamam, transmitida pela jurisprudência normativa, é que ela
tem total desprezo pelo papel da lei na manutenção das relações de poder e desce
a minúcias em exegeses e apologias desinteressantes da técnica jurídica.
Na época em que surgiram, seguindo a tradição radical do Direito Natu
ral, os direitos humanos eram um fundamento transcendente da crítica contra o
que é opressivo e do senso-comum. Nos anos 1980 também, na Polônia, na Tche-
coslováquia, na Alemanha Oriental, na Romênia, na Rússia e em outros lugares, a
expressão “direitos humanos” adquiriu mais uma vez, por um breve momento, o
tom de dissidência, rebeldia e reforma associado a Thomas Paine, aos revolucio
nários franceses, ao movimento de reforma e aos antigos movimentos socialistas.
Logo, no entanto, a redefinição popular dos direitos humanos foi abafada por di
plomatas, políticos e juristas internacionais que se reuniram em Viena, Pequim e
em outras festanças dos direitos humanos a fim de reaver o discurso das tuas para
os tratados, as convenções e os especialistas. A energia liberada pelo colapso do
comunismo foi outra vez contida pelos novos governos e pelas novas máfias do
Leste, que têm a mesma aparência dos governos e das máfias do Ocidente. .
26
C o s t a s D o u z in a s
* * *
11 Maurice Cranston, What are Human Rights>, Londres: Bodley Head, 1973,10-11. H. McCoubrey, The Deve
lopment ofNaturalistLegal Theory, Londres: Croom Helm, 1987, e urn bom exemplo deste estilo superficial de
jurisptudencia.
12 Cranston, ibid., II. -
27
O TRIU N FO DOS DIREITOS HUMANOS
13 Anchony Lisska, Aquina's Theary ofNaturalLaiu, Oxford: Clarendon, 1996; os Capítulos 1 ,2 e 3 fazem uma
abrangente revisão da recente volta do naturalismo à filosofia jurídica e política.
* Nome dado a um membro de um partido político britânico nos séculos XVHI e X I X , que era a fa
vor de mudanças políticas e sodais, reunindo tendências liberais, em oposição à Unha conservadora do Toty
Party (N. de T-).
C o s t a s D o u z in a s
14 Leo Strauss, NaturalLan> and History, Chicago: University o f Chicago Press, 1965, Capítulos 1 ,2 e 12.
15 Ibid., 319.
16 jeremy &
’ taxhzm,Ajiiirchica/Fa[lacies, em J. Waldron (ed.), Nortsmseupon Stits, Londresi'Methuen, 1987,53.
______________ 29
O TRIUNFO DOS DIREITOS HUMANOS
sabemos, passa a ser o ‘tribunal do mundo’, e o próprio direito deve ser pensado
como baseado em sua inserção na historicidade”.17 O sintoma da doença é ho-
meopaticamente declarado ser também sua cura, mas, como muitas terapias me
nos respeitáveis, leva a um mal ainda maior.
Quando a natureza não é mais o padrão do que é correto, todos os desejos
dos indivíduos podem set transformados em direitos. D e uma perspectiva subje
tiva, os direitos na pós-modernidade se tornaram afirmações ou extensões do Eu,
uma coletânea elaborada de máscaras que o sujeito coloca sobre a face sob o im
perativo de ser autêntico, “ser ele mesmo”, seguir sua versão preferida de identi
dade. Os direitos são o reconhecimento legal da vontade do indivíduo. As pessoas
adquirem sua natureza concreta, sua humanidade e subjetividade tendo direitos.
D o ponto de vista jurídico, a concordância generalizada de que um desejo ou um
interesse é constitutivo da “humanidade” basta para a criação de um novo direito.
Desta forma, é e deveria entram em colapso, os direitos são reduzidos aos fatos e
acordos expressos na legislação ou, em uma veia mais crítica, às prioridades disci-
plinadoras do poder e da dominação.58 Como coloca asperamente Sttauss, ao---
criticar a substituição do Direito Natural transcendente pela vontade geral so
cialmente imanente, “se o critério último da justiça passa a ser a vontade geral,
i.e., a vontade de uma sociedade livre, o canibalismo é tão justo quanto o seu
oposto. Toda instituição consagrada por um pensamento popular tem que ser
vista como sagrada”.19
O humanismo jurídico, ao unir direito e fato no terreno da natureza hu
mana, sem dúvida contribuiu para o surgimento do positivismo e do historicismo
jurídico. O historicismo é o companheiro indispensável do individualismo, e o
fascínio com a história o resultado paradoxal da nossa obsessão pelo presente.
Estamos interessados na história porque queremos entender e controlar nossa
época, e porque acreditamos que a história pode tornar a humanidade transparen
te à sua introspecção. A história é um antídoto—inadequado —pata aquelas filoso
fias da suspeita que declararam a finitude e a opacidade humanas. Hoje é impossível
não ser historicista, não acreditar que tudo acontece e é validado na história; é quase
impossível não acreditar que o direito é coevo dos direitos legais. Estas objeções
levaram à recente proliferação de teorias que tentam resgatar a esfera dos direitos
do relativismo do historicismo apresentando-os como a estrutura imanente das
sociedades ocidentais, as exigências inescapáveis da razão moral ou ambos.20 No
17 TnrPp nyp A l a in Rpnaiilf Fmm ihnRbhir nfMr.n fn iheRepubUeanldes ítrad de F . PhilipV Chicago: University
o f Chicago Press, 1992,31.
18 Veja Viiley, op. ck., supra n. 2, Capítulos 1 e 2 passim.
19 Leo Strauss, What is PoliticalPhilosophy, Chicago: University o f Chicago Press, 1959, 51.
20 Veja o Capítulo 9 mais adiante.
30
C o s t a s D o u z in a s
entanto, uma teoria dos direitos humanos que deposita toda a confiança em go
vernos, instituições internacionais, juizes e outros centros de poder público ou
privado, até mesmo os valores rudimentares de uma sociedade, frustra sua raison
d ’être, que era precisamente defender as pessoas dessas instituições e poderes. Mas
será uma teoria sólida dos direitos possível em nosso mundo altamente histori-
cizado? A alegação de que os direitos humanos são universais, transculturais e
absolutos é contraíntuitiva e vulnerável a acusações de imperialismo cultural;
por outro lado, a afirmação de que são criações da cultura europeia, embora his
toricamente precisa, priva-os de qualquer valor transcendente. D a perspectiva
da modernidade tardia, não se pode ser nem um universalista nem um relativista
cultural.
E aqui chegamos ao maior problema político e ético da nossa era: se a críti
ca da razão destruiu a crença na marcha inexorável do progresso, se a crítica da ideo
logia varreu para lóhge a maioria dos vestígios da credulidade metafísica, será que a
necessária sobrevivência da transcendência depende da inconvincente absolutiza-
ção do conceito liberal dos direitos por meio de sua imunização contra a história?
Ou estaremos condenados ao eterno cinismo em face dos universais imperiais e
dos particulares letais? Sloterdijk argumentou que a ideologia dominante da
pós-modernidade é o cinismo, uma “fa lsa consciência esclarecida. É a consciência mo
dernizada, infeliz, na qual trabalhou o Iluminismo tanto com sucesso quanto em
vão... Próspera e indigente ao mesmo tempo, essa consciência não se sente mais
afetada por qualquer crítica da ideologia; sua falsidade já está reflexivamente
amortecida”.21 O hiato entre o triunfo da ideologia dos direitos humanos e o desas
tre da sua aplicação é a melhor expressão do cinismo pós-moderno, a combinação
de iluminismo com resignação e apatia e, com uma forte sensação de impasse políti
co e claustrofobia existencial, de uma falta de saída no seio da mais maleável socie
dade. A única recomendação feita por um crítico dos direitos humanos é a de que
tomemos uma distância irônica daqueles que nos pedem para levar a sério os di
reitos e para aceitar a “contingência, a incerteza e a dolorosa responsabilidade”
por formas de “vida civil e civilização que irão acabar perecendo”.22 A ironia, ob
viamente, é uma das armas mais poderosas do cinismo e do niilismo interesseiro
do poder e dos detentores do poder, e dificilmente pode ser usada por si só como
programa político de resistência ao cinismo. Mas será que pode haver uma ética
que respeite o pluralismo de valores e comunidades? Será que podemos descobrir
na história uma concepção não absoluta do bem que possa ser usada como um
princípio quase transcendente de crítica? A última parte deste livro começa essa
tarefa, das mais difíceis e prementes, de buscar na história um ponto de vista críti
co em relação ao historicismo.
O significado da história e da determinação histórica estrutura uma se
gunda pergunta subsidiária. Qual é a ligação, caso exista, entre a tradição clássica
do Direito Natural e a moderna tradição dos direitos naturais e humanos?23 A D e
claração de Direitos francesa deu início a uma tendência ao proclamar que estes
direitos são “naturais, inalienáveis e sagrados”. Ela foi seguida pela Declaração de
Independência dos Estados Unidos, de acordo com a qual “all men are created equal,
[and] are endowed by their Creator with unalienable 'Right?’? uma afirmação repetida ver
batim pelo Artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Estas afirma
ções um tanto extremas apresentam os direitos naturais e humanos como uma
continuação direta da tradição jurídica clássica. Elas têm recebido amplo apoio
dos filósofos liberais. John Finnis alega que os direitos são extrapolações dos
“princípios sempre inerentes à tradição da Lei Natural”.24 Alan Gewirth acredita
que todos os seres humanos, em virtude de sua humanidade, reconhecem em si
mesmos e nos outros os direitos àliberdade e ao bem-estar. Elé prossegue e argu
menta que os direitos existem mesmo que não recebam “claro ou explícito reco
nhecimento ou elucidação”.25Jack Donnelly argumenta que embora os direitos
humanos tenham sido concebidos nos séculos XVII e XVIII, eles gozam de um ca
ráter universal que os tomam aplicáveis a todas as sociedades.26 Para Michael Perry,
finalmente, a ideia de direitos humanos é “inescapavelmente religiosa” e está indis
soluvelmente ligada às versões católica e escolástica do Direito Natural.27
23 V. Black, “On connecting natural rights with natural kw ”, Personaj Derecbo, 1990,183-209. Fred Miller re
centemente argumentou que a teoria da justiça de Aristóteles tem uma doutrina implícita de direitos natura- .
is, em F . Miller, Naiure, Justice, andRight in Aristotk‘s Politia, Oxford University Press, 1995. Brian Tierney
também argumentou que uma teoria dos direitos naturais poderia ser, mas não foi, formulada na linguagem
aristotélica. Tierney argumenta que teorias dos direitos naturais foram desenvolvidas primeiro no início da
Idade Média, bem antes da opinião geralmente aceita de que elas provêm do século XVII. Brian Tierney,
Theldta ofNaturalRights, Adanta, Geórgia: Scholat Press, 1997, Capítulos 1 e 11. Veja os Capítulos 2 ,3 e 4
mais adiante.
' A versão oficial em português do Artigo 1 é: ‘T odos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direi
tos mas o fraseado original oriundo da Declaração de Independência americana é, segundo a tradução
oficiai: 'T o d o s os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis
(...)” . (N. deT.)
24 Joh n Finnis, NaturalljnvandNaliiralRigbts, Oxford: Clarendon, Í980,passim . [Em português: L ei Naturale
Direitos Naturais (trad. de Leila Mendes), Porto Alegre: Ed. Unisinos, 2007,]
25 Alan Gewirth, Rtason andMorality, Uníversity o f Chicago Press, 1978,99; e HumanPãghts, Uníversity o f Chi
cago Press, 1982, Introdução e Capítulo 1.
26 JackDonnely, UniversalHuman Rights in Tbeory andPractíce^ Ithaca: Comell University Press, 1989, 88-106;
Louis Henkin, The A ge ofRights, Nova York: Columbia University Press, 1990, Introdução e Capítulo 1.
27 Michael Perry, The Sdea o fHuman Rights, Nova York: Oxford University Press, 1998, Capítulo 1.
32
C o s t a s D o u z in a s
Leo Strauss, Michel Villey e Alasdair Maclntyre negam que exista uma li
gação. Paca os neoàristotélicos, os filósofos políticos do século XVII criaram um
discurso moraí e político radicalmente novo, com base nos direitos individuais,
que destruiu a tradição clássica do Direito Natural. Os direitos naturais são uma
criação da modernidade, e suas origens são sucessivamente colocadas no início da
Idade Média (Tierney), no século XTV (Vílle) ou no XVII (MacPherson,
Maclntyre, Shapiro e quase todo o resto).28 D e mais a mais, o filósofo reconheci
do como tendo dado o passo crucial para a transformação do Direito Natural em
direitos naturais oscila de Guilherme de Ockham a Grócio, Hobbes ou Locke.
Por trás dessa periodização e desse reconhecimento reside uma famosa disputa
entre os “antigos e os modernos”. Strauss, Villey e Maclntyre acreditam que a pas
sagem dos antigos para os modernos foi catastrófica. Para Maclntyre, “direitos
naturais ou humanos são ficções”, invenções do individualismo moderno e de
vem ser descartados.29 Kenneth Minogue, Maurice Cranston e John Finnis, por
outro lado, veem esta mudança radical como um estágio necessário no processo
de emancipação humana.
Por todo este livro será argumentado que talvez tanto o rèlativismo do
historicismo quanto o universalismo a-histórico dos teóricos liberais, para quem
todas as sociedades e culturas têm sido ou devem ser submetidas à disciplina dos
direitos, estão errados. O historicismo não aceita que a história possa ser julgada;
para os fanáticos por direitos, a história termina na aceitação universal dos direitos
humanos que transforma conflito político em litígio técnico. Para o primeiro, a es
perança de transcendência do presente foi banida; já para o segundo grupo, a
transcendência ainda sobrevive nos postos avançados do império sob a forma de
aspiração a chegar a ser uma sociedade de consumo individualista do tipo ociden
tal. Para defender a ideia de transcendência sem abandonar a disciplina da história,
precisamos reexaminar a origem e a trajetória do Direito Natural.
Desta perspectiva, os próximos quatro capítulos apresentam uma genealo
gia dos direitos humanos sob a forma de uma história alternativa do Direito Natu
ral, para o qual a promessa de dignidade humana e justiça social não foi cumprida e
nem pode ser jamais totalmente cumprida. Nossos principais guias serão o filósofo
político conservador Leo Strauss, o filósofo e historiador jurídico católico Michel
Villey e o filósofo marxista Emst Bloch. O Direito Natural representa uma cons
tante na história das ideias, ou seja, a luta pela dignidade humana em liberdade
contra as infâmias, degradações e humilhações infligidas às pessoas por poderes
instituídos, instituições e leis. Os filósofos políticos Luc Ferry e Alain Renault
33 Alain Renault, The E ra o fthe Individual:A Contribution to aHistory o fSubjectivity (träd. deM . B. DeBeviose e F.
Philip) Princeton, Nova jersey: Princeton University Press, 1997, xxvii.
35______________
O TRIUNFO DOS DIREITOS HUMANOS
o retorno ao sujeito é evidente, na Direita, no recente domínio das teorias dos di
reitos e, na Esquerda, no moraiismo do politicamente correto. Embora a filosofia
e a teoria social insistam na construção social do Eu e no papel da estrutura, do
sistema e da linguagem na organização do mundo, o desejo de voltar a uma condi
ção pristina de personalidade e de restabelecer sua liberdade e propriedade, des-
construída e desmistificada pelas filosofias da suspeita, retornou radicalmente ao
Direito. Mas pode o sujeito soberano dos direitos conciliar-se com a desconstru-
ção da subjetividade?
Esta não é uma pergunta vã. Os direitos foram o primeiro reconhecimento
público da soberania do sujeito e influenciaram fortemente a modema “metafísica
da subjetividade”.34 Os filósofos “anti-humanistas” não discutiram os direitos hu
manos a fundo, com algumas poucas exceções.35 Por outro lado, de Adomo a
Arendt, e de Lyotard a Levinas, todos teceram comentários sobre o modo como o
humanismo pode ser transformado no inumano, seu' sonho de uma sociedade ra
cionalmente emancipada transformado no pesadelo da administração totalitária
ou da tecnocracia burocrática. Foucault, Lyotard e Derrida envolveram-se repe
tidamente em campanhas de direitos humanos e políticos. E como se o anti-hu-
manísmo filosófico e a defesa do que é humano fossem aliados naturais. Mas
esta ligação da crítica mais severa do humanismo com as lutas intelectuais e políti
cas por dignidade e igualdade-enfurecia os liberais. Alain Renaut, um filósofo polí
tico liberal francês que, com Luc Ferry, encabeçou vários ataques políticos
mal-educados a filósofos pós-estruturalistas, admitiu despreocupadamente, a res
peito das acusações que fez, que “embora tenhamos frequentemente insistido no
exame rigoroso do problema da subjetividade com referência aos direitos huma
nos, não tencionávamos julgar todas as filosofias possíveis por meio.de um ‘teste
de tornassor que medisse sua compatibilidade com a Declaração dos Direitos do
Homem de 1789 —fazendo-nos passar, por assim dizer, por magistrados intelec
tuais concedendo certificados de responsabilidade cívica”.30
do usado por Cícero quando diz: Unus susüneo ires 'Personas; Mei, Adversarii etJuâi-
í?y’.38 As pessoas devem ser trazidas diante da lei a fim de adquirir em direitos, de-,
veres, poderes e competências que conferem ao sujeito personalidade jurídica. A
pessoa jurídica é a criação do artifício jurídico ou teatral, o produto de uma perfor
mance institucional. No discurso dos direitos humanos, essapersona ou máscara, a
criação da lei, deve ser transformada no progenitor ou princípio da lei, o sujeito
que ganha vida no palco da lei deve também se submeter à lei e apoiar seu criador.
As três pessoas de Cícero, o “eu” ou ego, o sujeito jurídico e o juiz são as três face
tas que, fundidas em uma só, irão formar a santíssima trindade do humano, a lei e
seus sujeitos, e criar o princípio básico moderno de homem, pai e filho, devant la
loi, perante e de acordo com a lei.35
Nesse sentido, os direitos humanos são tento criações quanto criadores
da modernidade, a maior invenção política e jurídica da filosofia política e da juris
prudência modernas. Seu caráter moderno pode ser encontrado em todas as suas
características essenciais. Primeiramente, eles marcam uma profunda mudança no
pensamento político de dever para direito, de ávitas e communitas para civilização e
humanidade. Em segundo lugar, invertem a prioridade tradicional entre indivíduo
e sociedade. O Direito Natural clássico e medieval expressava uma ordem correta
do cosmos e das comunidades humanas dentro dele, uma ordem que dava ao cida
dão seu lugar, sua hora e sua dignidade, ao passo quê a modernidade emancipa a
pessoa humana, transforma o cidadão em indivíduo e o situa no centro da organi
zação e da atividade social e política. O cidadão atinge a maioridade quando é libe
rado das obrigações e compromissos tradicionais para agir como um indivíduo,
que segue seus desejos e emprega sua vontade no mundo natural e social. Esta li
bertação da vontade humana e sua entronização como princípio organizador do
mundo teve inúmeras aplicações políticas importantes. A liberdade ilimitada pode
destruir a si mesma. A vontade liberta deve ser restringida por leis e sanções, os
únicos limites que ela entende. Estes não são intrínsecos a ela nem fazem parte
dela, mas são empíricos e externos. Liberdade e coerção, lei e violência, nascem
no mesmo ato. O grande feito de Hobbes, o primeiro e provavelmente o melhor
teórico do liberalismo e dos direitos naturais modernos, foi entender que, quando a
natureza humana passa a ser soberana e liberta, ela precisa como seu contraponto
de um poder público que tenha em todos os detalhes as características do livre-arbí-
trio indiviso e singular do indivíduo e torne literal seu poder ilimitado metafórico. A
38 Hobbes, Leviathan, Richard Tuck (ed.), Cambridge University Press: 1996, Capítulo 1 6 ,1 1 2 . [Em portu
guês: LevittS (trad, de Alex Marins), São Paulo: Ed. Martin Claret, 2005,123.]
39 jaques Derrida, “Devant la Loi”, em Q. Ed off (ed.), Yjrfka and the Contemporary CriticalPerfomana: Centenary
Yjtaâlngs, Bloomington: Indiana University Ptess, 1989.
C o s t a s D o u z in a s
40 Esta expressão é oriunda de uma carta de Olympe de Gouges, autora da Deciaração dos Direitos daMulher
e da Gdadã, de 1791. joanne Scott (em OnlyPaTadoy.es to Offer. FrenchFemirttsSsandthe Pãghts o/Man, Cambrid-
ge, Massachusetts: Harvard University Press, 1996, em 4) emprega a expressão para descrever a posição das
mulheres na França revolucionária. O ponto que defendemos é mais geral: todo o campo dos direitos hu
manos é caracterizado por paradoxos e aporias. -
2. U ma b r e v e h istó ria d o D ir e it o N atural : A s origens dássicas
2 Hayek acredita que Heráclito foi o filósofo mais antigo a enfatizar o caráter primário da injustiça. N o entan
to, isto está incorreto, já que o fragmento de Anaximandro é anterior. F. A. Hayek, Laiv, Legislation, Liberty,
vol. 2 , Londres: Routiedge e Kegan Paul, 1976,162, n. 9; e veja J. Burnet, Eariy Greek Pbilosopby, 4> ed., Lon
dres: A & C Black, 1930, 166.
3 Martin Heidegger, “The Anaximander Fragment”, eoi Eariy G rnk Thinking (trad. de D. F. CreU e F . Capuz-
zi), Nova York: Harper and Row, 1975.
4 Esta é a. nossa tradução e enfatiza os aspectos morais e jurídicos do fragmento. O ensaio de Heidegger dis
cute as várias traduções (equivocadas) do fragmento. Nietzsche, em Pbiloscply in tbc TragicAge oftbe Greeks
(trad. de M. Cowan, Chicago: Regnery, 1962), de sua juventude mas publicado postumamente, o ttaduz as
sim: “N o lugar onde as coisas têm sua origem, elas também se extinguem de acordo com a necessidade;
pois devem pagar o preço e serem julgadas por suas injustiças de acordo com a ordem do tempo”. A tradu
ção dássica Fragmentos dospré-socráticos feita por Diels diz que "mas o lugar onde as coisas têm sua origem, lá
também a extinção delas ocorre de acordo com a necessidade; pois elas pagam a recompensa e a penalidade
umas às outras por sua imprudência, de acordo com o tempo firmemente estabelecido”, citado em Heideg
ger, op. cit-, supra n. 3, 41. Finalmente, J . M. Robinson, A n Introduction lo Eariy G m k Phi/osopbj, Boston:
Houghton Mifflin, 1968, p. 34 traduz o fragmento assim: “Naquelas coisas a partir das quais as coisas exis
tentes têm o seu passar a existir, a extinção delas também ocorre de acordo com o que tem que ser; pois fa
zem reparação umas às outras por suas injustiças de acordo com a ordem do tempo”.
Tradução que consta de Pré-Socrático, Os Pensadores, São Paulo: Ed. Nova Cultural, p. 16: “Pois donde agera-
çao e para os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário; pois concedem eles
mesmos justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a ordenação doterapo” (N. de T.).
________________________ 4 1 ____________________ _
U m a b r e v e h is t ó r ia d o D ir e it o N a t u r a l
dos seres e impõe uma dívida ou uma culpa às pessoas, coisas e instituições. A his
tória (a ordem do tempo) é o campo no qual a reparação ou a restituição pela in
justiça original será tentada e irá falhar, já que tudo irá voltar necessariamente a sua
injustiça original. Mas, embora as injustiças fossem claramente percebidas na épo
ca homérica, o desenvolvimento de uma teoria da justiça precisou esperar pela
descoberta da natureza.
A Grécia arcaica não distinguia entre lei e convenção ou entre direito e
costume. O costume é uma argamassa poderosa, une as famílias e as comunidades
firmemente, mas pode também entorpecer. Sem padrões externos, o desenvolvi
mento de uma abordagem crítica à autoridade tradicional é impossível, o que é
dado não é contestado e os escravos ficam na fila, uma opinião expressa por Herá-
clito, ao afirmar que a justiça e a injustiças são feitas pelo homem e Deus não se
importa com nenhuma das duas. Leo Strauss argumentou que “originalmente, a
autoridade p a r excellence ou a raiz de toda autoridade é o ancestral. Graças à desco
berta da natureza, a reivindicação do ancestral é erradicada; a filosofia apela do an
cestral ao bom, àquilo que é bom intrinsecamente, àquilo que é bom por natureza”.5
A filosofia grega, a natureza e a ideia do que é justo nasceram juntas em um ato de
resistência contra a autoridade tradicional e suas injustiças. Este desenvolvimento
fíca claro na história da palavra dike, o termo-chave grego para um aglomerado de
conceitos e palavras que conotam o que é correto, lícito ou justo. Em grego arcai
co, dike meava a ordem primordial, a forma de ser do mundo.6 Ela incluía no-
moi e tbesmoi, convenções e normas de conduta que, de acordo com Parmênides,
eram obrigatórias tanto para os deuses quanto para os mortais. Nomos, a palavra
usada mais tarde para lei, originalmente tinha o mesmo significado que ethos.
Como Heideggér mostrou, os nomoi eram inicialmente os pastos dos cavalos e mi
gração para pastoreio; mais tarde esta palavra assumiu o significado de posse e uso
regular, indicando tanto habitat quanto prática e movimento aceitos, antes de che
gar a seu significado jurídico clássico. Na época do período clássico, o significado
de dike também havia passado a ser julgamento justo, dikaion era o que é correto e
justo e dikaios a pessoa justa.7
5 Leo Sttm ss, N aüm /Laiv íind His/ory, Chicago: University o f Chicago Press, 1965, 91.
6 Para Heideggcr, dike "não é justiça, mas a estrutura irresistível do Ser; ela emerge e brilha em sua presença
permanente comopbysis e é reunida ém sua completude como logos”, Costas Douzinas e RonmeWarring-
ton./wtfwAíwcamW(Edimburgo: Edinburgh üniversity Press, 1994), 88. Heidegger discute dike,pJ/)'sise. no-
mos em A n Introdndion lo Melaphjsics (trad. de R. Mannheim), Nova Y o rk Doubieday Anchor, 1961.
7 D e acordo com Líddel e Scott, Grek-Englisb Lexicon (6\ ed., Oxford: Clarendon, 1992), ãke significa costu
me, uso; direito como dependente do costume, da lei; um julgamento; (mais tarde) processo judicial, o julga
mento de um caso. D ikam significa um modo comum de viver, a forma devida; (mais tarde) correto, bato,
justo.
42
C o s t a s D o u z in a s
10 Ernst Bloch, Natural Lam and Human Dignity (trad, de D . J. Schmidt), Cambridge, Massachusetts: MIT
Press, 1988,7-9.
11 O tratamento clássico de nomos no pensamento grego é L aL oi dansLapuisêe Grecqste: des origines â Aristotle, de
Jacqueline de Romilly (Paris: Les Belles Letrres, 1971); veja também Martha Nussbaum, “The Betrayal of
Convention: A reading o f Euripides’ Heer/ba”, cm The Fragility o fGoodness, Cambridge: Cambridge Univer
sity Press, 1986,397-421.
- 12 Platão, The Lavs (trad. d e T .j. Saunders), Londres: Penguin, 1988: “Quando [os ignorantes] usam o termo
‘natureza’ eies se referem ao processo por meio do qual as substâncias primárias foram criadas. Mas se for
possível mostrar que a alma veio primeiro, não o fogo nem o ar, e que ela foi uma das primeiras coisas a se
rem criadas, será correto dizer que a alma é preeminentemente natural”, 892 c.
13 Louis Dupré, Passage to Modernity, New Haven: Yale University Press, 1993,1 7 .
14 Os filósofos políticos franceses Ferry e Renaut argumentaram que Strauss é um antimodemista extremo
que defende o retorno à cultura clássica. Não se deram conta, no entanto, da intenção crítica da análise de
Strauss. Isto é necessário para o argumento deles, de acordo com o qual o naturalismo de Strauss é um au
toritarismo um tanto estéril e não pode ser resgatado da cosmologia aristotéüca. Luc Ferry e AJain Renaut,
From the Rights o fMan to the Republican Idea (trad, de Franklin Philip), Chicago: University o f Chicago Press,
1992,32-4. Para uma reação aoseu peculiar liberalismo heideggeriano,veja Bernard Bourgeois, Philosoptiie
et droits de I’homme, Paris: P /U .F ., 1990.
C o s t a s D o u z in a s
sito de um ser humano é realizar seu potencial, passar de nascituro ao seu estado
plenamente desenvolvido: o fim de uma criança é se tornar um adulto virtuoso, o
do carpinteiro produzir mesas excelentes, o do sapateiro as sandálias perfeitas. O
conceito de natureza de Aristóteles era, portanto, rico e complexo: tanto a causa
eficiente quanto a final, o germe presente no nascimento e o objetivo que os seres
tendem a realizar naturalmente.
Mas se a natureza de uma coisa ou de um ser é seu estado de realização ou
perfeição, e cada estágio da vida é uma parada na passagem de sua presença tran
siente a seu fim natural, o ser não pode ser distinguido do vir a ser, e a essência da
existência. A própria natureza, diferentemente da matéria inerte da ciência moder
na, representa o principio de movimento em um cosmos intencional, no qual no
zes do carvalho, cordeiros e crianças só podem ser entendidos com uma ordem
em desenvolvimento de inter-relações significativas e voltadas para o futuro. Para
Aristóteles, pbjsis era movimento, “uma fonte ou causa de- ser movido e de estar
em repouso naquiio ao qual pertence primariamente em virtude de si mesma”.í9
O ser estava sempre a caminho, em uma jornada que nunca termina, porque a per
feição estava sempre um passo à frente, um estado sempre a ser alcançado.
Observar a natureza do cosmos e das coisas e dos seres que estão nele en
volve imputar a eles objetivos, propósitos e fins politicamente, napolis, sempre em
conjunção com outras coisas e seres. Esses feloi não são arbitrários; são determina
dos pelas tendências de cada ser, por sua ordem de necessidades e carências que,
ao apontar para sua constituição natural, cria o intenso dever moral de se esforçar
para conseguir. O bem de uma entidade é a completude do movimento em dire
ção a sèu Gm, a transição sempre postergada de potencialidade à existência. A na
tureza de um ser corresponde a sua operação ou ao seu desempenho específico;
um ser é bom se cumpre bem sua função, se ségue sua natureza. Sua perfeição
constitui seu bem-estar, ou eu %ein, e proporciona uma orientação precisa em ques
tões éticas e práticas. Neste sentido, a vida boa é uma vida de acordo com a natu
reza e não existe nem deveria existir qualquer separação. A teleologia natural dos
antigos, sua natureza intencional, podia, assim, tornar-se a base de uma forte ética
da virtude e do valor. O certo de acordo com a natureza é o que contribui para a
perfeição do ser, o que o mantém em movimento na direção de seu fim; o errado
ou injusto é o que violentamente o retira de seu lugar, perturba sua trajetória natu
ral e o “impede de ser o que é”.20 O direito natural é, portanto, não apenas trans
cendente em relação à realidade, um “ideal”, como também pode ser certamente
descoberto por meio de observação e raciocínio, embora isto não o torne “objeü-
19 Physics (trad. de D. Bosctock), Oxford: Oxford University Press, 1996, II, 192b, 21-3.
20 Ferry e Renaut, op. c it, supra n. 14,34.
46
C o s t a s D o u z in a s
vo” no sentido moderno. A ideia de uma natureza eterna inerte é totalmente estra
nha à lei natural antiga.
Dentro deste amplo sistema de referências, as várias escolas de filosofia
clássica interpretavam a natureza de modo diferente. Para os sofistas,pbysis era a
essência das coisas que não era sagrada nem solene, mas simplesmente o que per
dura no decorrer das mudanças e permanece constante por trás da diversidade.
Seus sucessores filosóficos, os cínicos e os hedonistas, associavam a natureza com
a simplicidade da animalidade e a indulgência para com os prazeres privados. Os
cínicos lutavam contra a tradição e o artificio em suas muitas formas e atacavam
todas as invenções institucionais, da vida de fausto à propriedade, à família e àp o
lis. Os hedonistas pregavam o prazer; em contraste com a vida de cão de Dióge-
nes, Aristipo viveu uma vida de luxúria e pregava que natural é o que contribui
para a felicidade, o único critério para se julgar o valor das instituições. Dependen
do de o caráter da natureza inata ser sofrer ou desfrutar, frugalidade e prazer se
tomavam os objetivos gêmeos da lei natural. Até hoje os cínicos e os hedonistas
são os antepassados de muitos movimentos revolucionários, embora pregar o di
reito universal ao prazer sem hipocrisia seja mais perigoso para os ricos e podero
sos e mais difícil de concretizar que a mensagem de frugalidade dos cínicos.21
Muitas vezes na história do Direito Natural uma ideia inicialmente revo
lucionária era cooptada pelos poderes vigentes, abrandada e domesticada. Epicu-
ro transformou os prazeres hedonistas da carne com seu potencial revolucionário
no gozo privado e tranquilo do filósofo e tomou a-vida contemplativa o pré-re
quisito da dignidade humana. Sua insistência na privacidade dos deleites impassí
veis da mente o levou a duvidar da origem sagrada da polis, ele ensinava, em vez
disto, que as cidades eram estabelecidas por meio de um contrato feito entre indi
víduos livres e iguais que o celebravam para salvaguardar sua segurança. O propó
sito dapolis e a base das obrigações que possuem a força da lei natural é a utilidade;
o objetivo da lei é impedir prejuízos e danos mútuos. Mas a despeito do caráter in
dividualista do epicurismo, a suspeita que tinha dos poderes públicos e sua crítica
da injustiça, a natureza e seus prazeres continuaram totalmente privados e não ti
nham qualquer efeito imediato sobre a organização social que era mantida pelos
escravos sem qualquer participação óbvia no reino da felicidade.
A mutação final e mais drástica na relação inicial entrepbysis e. nomos foi in
troduzida pelos estoicos. Os estoícos permaneceram fiéis à superioridade de nrm
vida privada de tranquilidade e reflexão. Eles pregavam e praticavam a ataraxia, ou
imperturbabilidade, o dever supremo de autocontrole sobre as paixões e a irracio
nalidade. Mas, embora para Epicuro a felicidade de acordo com a natureza levasse
a uma vida digna, os estoicos tornaram o bem-estar o resultado de uma vida digni
ficada pelo orgulho de ser humano. A pessoa digna era alguém cuja “cabeça ficava
erguida (...) a pessoa que se mantinha ereta, que desde o início se relacionava com
o direito natural (...). Um orgulho que era universalmente formal impunha uma
atitude universal de afinidade ao indivíduo autônomo”.22 Os sofistas haviam con
traposto pbjsis a nomos\ os estoicos expandiram nomos para o vínculo necessário do
universo e identificaram os dois. A nova lei natural era universal e até mesmo divi
na, seu caráter comunitário emprestava umpáthos sublime a seus seguidores. Esta
paixão contra as paixões transgrediu pela primeira vez as divisões de classe e uruu
escravo (Epiteto) e imperador (Marco Aurélio). Os estoicos repetidamente se re
feriam a uma idade de ouro, governada por leis não escritas cujo conteúdo era a
igualdade e a unidade inata de tudo em um império racional de amor. “Uma natu
reza extremamente antropocêntrica e, no entanto, divinamente sublime, governa
da pela necessidade prevaleceu sobre a sociedade positiva e se tornou o úmco cri
tério de lei válida.”23 .
Embora os estoicos não estivessem particularmente interessados na juris
prudência, e sua passividade permitisse que aceitassem tanto a democracia quanto
a monarquia, eles deram uma contribuição duradoura ao pensamento jurídico.
Sua humanidade universal, baseada na essência racional do homem e nos direitos
iguais para toda a raça humana, foi um afastamento dramático do mundo grego de
homens livres e escravos ou helenos e bárbaros. “O contato com os antigos pro
fetas de Israel, que foram os primeiros a pretender uma postura análoga, foi um
acontecimento singular prenhe de consequências. A unidade da raça humana, o
direito natural à paz, à democracia formal, ao auxílio mútuo (...) vieram a ser o iní
cio de um conceito mais ou menos definido.”24Mas estas ideias revolucionárias fi
caram inicialmente confinadas ao exame interior e ao olhar austero do filósofo ou
à perfeição idealizada mas ausente do mundo helenístico. Sua aplicação mais con
creta teria que esperar pelo Direito do Império Romano e as declarações políticas
do início da modernidade.
Podemos concluir que, a despeito de suas diferenças, os filósofos clássi
cos viam a natureza como um padrão, que deve ser descoberto porque está obs
truído por uma combinação de convenções e autoridade ancestral. A filosofia tem
seu começo quando ela distingue entre verdades sobre um tópico dado pela lei,
pelas convenções ou pela opinião popular (doxá) e a verdade ou o bem a que se
chega por meio da crítica dialógica da sabedoria popular e da observação de sua
22 Ibid-, 12.
23 Ibid., 13.
24 Ibid., 16.
C o s t a s D o ü z in a s
natureza. Para os filósofos clássicos, a natureza não era apenas o mundo físico, o
“modo como as coisas são” ou tudo o que existe, mas um termo de distinção, uma
norma ou padrão usado para separar o trabalho do pensamento filosófico e políti
co daquilo que o obstrui ou oculta. A natureza era a arma da filosofia, o perturba
dor e revolucionário fogo prometeico usado em sua revolta contra a autoridade e
a lei. Sua “descoberta” e elevação a padrão axiológico contra as convenções
emanciparam a razão da tutela do poder e deram origem ao direito natural.
A possibilidade de julgar o real em nome do ideal só pode começar quan
do o que é correto por natureza confronta o que é legítimo por convenção ou prá-
lica passada. O conceito de correto foi libertado de sua subordinação à história ou
à opinião geral e se tornou uma arma independente para a crítica. A autonomiza
ção do correto foi a pré-condição necessária para o desenvolvimento de uma teo
ria da justiça a partir da. qual os arranjos em curso podem ser criticados. Assim a
natureza foi usada contra a cultura para criar o mais refinado dos conceitos. Mas
se a natureza foi um movimento tático motivado pela necessidade de combater as
.. reivindicações de autoridade que governavam ..a sociedade grega no início, su a. .
“descoberta” não foi tanto uma revelação ou uma retirada do véu, mas mais uma
invenção ou criação. A natureza deve se apresentar como o que estava obstruído
pela cultura, pois a filosofia não pode.p.assar a existir ou sobreviver se ela s_e.s-ub-.
meter à autoridade ancestral ou convencional. Neste sentido, as origens da filoso
fia e a descoberta da natureza foram gestos revolucionários, dirigidos contra a au
toridade do passado e da lei como convenção e dando origem à critica em nome
da justiça.
' uma vida de virtudes. D e acordo com isto, a moralidade pessoal e a ética polídca
- tinham o mesmo fim, atividade pacífica para a promoção da virtude. A ordem na- .
tural perfeita abrangida pela ordem política perfeita. A natureza incluía o embrião
da lei.
A justiça, o objetivo natural, da vida política e ó tópico de suma importân
cia na filosofia clássica, era o complemento necessário do direito natural. A inves
tigação sobre a justiça envolvia duas dimensões inter-relacionadas que podem ser
analiticamente distinguidas: uma dizia respeito à ordem política, e a outra era mais
especificamente jurídica. A primeira está associada a Platão e mais tarde aos es-
toicos, a segunda a Aristóteles. Vistas em conjunto, as duas representam um uso
perfeito do método do direito natural no exame' do vínculo social. Iremos exa
miná-los sucessivamente, enfatizando os aspectos das doutrinas clássicas que
são mais relevantes para a genealogia dos direitos humanos.
A filosofia de Platão preocupa-se com a questão da justiça. Sua República
ainda é, até hoje, uma das discussões mais prolongadas sobre esse tópico da litera-
. .......... tura mundial. A empreitada é conduzida sobta forma de um diálogo entre.Sócra-.,
tes, o defensor da justiça cpmo a ordem justa na cidade, e vários sofistas, apresen
tados como representantes das opiniões oriundas do senso comum. O diálogo se
dá pela refutação de várias definições e argumentos sobre a justiça, que Sócrates
mostra estarem equivocados e-descreverem a injustiça'e não a justiça.25 A busca
socrática da verdadeira justiça é uma refutação da injustiça usando a razão.
Sócrates começa descartando teorias convencionais que apresentam a
justiça como o ato de dar às pessoas aquilo que elas merecem, de dizer a verdade e
de pagar suas dívidas ou, finalmente, de fazer o bem aos amigos e prejudicar os
inimigos. E le então passa para o principal desafio. A visão cínica do sofista Trasí-
maco é a de que o que se passa por “justiça” é a expressão dos interesses dos go
vernantes, dos ricos e dos fortes e, com isso, o homem verdadeiramente virtuoso
sempre sai perdendo.26 É do interesse dos virtuosos, de acordo com isto, agir de
modo injusto e agir em benefício próprio já que a injustiça dá mais força, liberdade
e maestria do que a designação inapropriada “justiça”. A provocação de Trasíma-
co vai direto ao coração da dialética racionalista. E le repreende o filósofo: Que
estás falando aí há tanto tempo, Sócrates? (...) não te limites a interrogar nem pro
cures a celebridade a refutar quem te responde, reconhecendo que é mais fácil
perguntar do que dar a réplica. Mas responde tu mesmo e diz o que entendes por
27 Platão, Republic (trad, de D. Lee), Londres: Penguin, 1 9 7 4 ,336c. [Em português: Platão, ./í RxpúbUca(trad,
de P. Nassem^, São Paulo: Martin Claret, 2 0 0 3 ,336a-e, 22.]
28 Ibid., 345b.
29 Strauss, op. dt-, supra n. 5 ,1 3 9 .
__________________ 51__________________
U m a b r e v e h is t ó r ia d o D ir e it o N a t u r a l
ção”.32 Por trás dos diálogos sinuosos está o argumento último de Sócrates a favor
da justiça: seu sacrifício no altar de uma justiça que não pode ser definida, ou sua
superioridade provada racionalmente, mas com base na qual se deve agir, mesmo
ao custo mais alto de todos. A morte de Sócrates é o argumento mais forte sobre a
injustiça inerente na lei. Depois de seu sacrifício, o ônus da prova fica com aqueles
que acreditam na justiça da lei.
A República é a primeira tentativa de elevar a justiça a uma ideia ética uni
versal, totalmente independente de seu contexto histórico. As pessoas devem sair
da caverna ou da prisão da existência empírica e ingressar no mundo ideal das for
mas antes que possam compreender o funcionamento do bem e da justiça. O que
é mais notável no diálogo, no entanto, é sua crítica inabalável a todas as opiniões
convencionais e tradicionais. A verdade a respeito da justiça pode não ser acessí
vel a todos e, nes^.e caso, temos a obrigação de silenciar sobre essas questões.33
Talvez a única contribuição que a filosofia possa dar seja denunciar as muitas in
justiças, desmentir as muitas falsidades do senso comum e fazer com que entenda
-o propósito natural dzpolisr-No final, Sócrates parece aceitar que, como nenlrom ar-
gumento racional pode justificar conclusivamente sua teoria da justiça, ele deve ofe
recer seu próprio sacrifício como prova final e ofensa mais grave contra a razão. Ao
fazê-lo, seus argumentos e sua ação são unidos em uma formulação paradoxal que
pode ser denominada de aporia dajustiça, ser justo significa agir com justiça, estar
comprometido com um estado de espírito e seguir um curso de ação que deve ser
aceito antes da justificação racional conclusiva.34
A teoria clássica de justiça pode ser descrita, portanto, como uma doutrina
ética e política que visa produzir por meio do debate, da persuasão e da ação política
a “melhor república ou regime” no qual a perfeição e a virtude humanas na associa
ção com os outros possam ser alcançadas. Suas ferramentas metodológicas são a
observação da natureza e o argumento racional. Mas seria enganoso dizer que esse
regime é “dado” ou “encontrado” na natureza. O direito natural propõe uma alter
nativa ao determinismo histórico e à opinião autorizada e convencional. Por ser a
justiça, por definição, crítica em relação ao que existe, a filosofia adota a natureza
como a fonte de seus preceitos e defende uma “objetividade” natural para seu di
reito. Mas este ideal não é dado por Deus, obtido por meio de revelação ou sequer
39 Ibid., 1129bl4.
40 RaJph McInemy,.“Natural Law and Natural Rights” em A çuinas on Ruman Action, Washington, D .C : Cat-
hoiic University o f America Press, 1992,217.
41 Miche! Villey, “Diítaion-Torah” em Seiçe Essays de Philoscpbie D u Drvií, Paris: Dallo2, 1969.
55_______________ _
U m a b r e v e h is t ó r ia d o D ir e it o N a t u r a l
lar, a arte do juiz, não dizia respeito à moralidade, à utilidade ou à verdade, mas à
divisão dos bens externos, dos benefícios, ônus e recompensas. Dizia respeito à .
distribuição e punição e constituía o objeto próprio da arte jurídica. A tarefa do
juiz era precisamente chegar ao resultado correto na divisão dos bens externos.
Também Platão escreveu que o objetivo da arte jurídica (dikasúkè) é descobrir o di-
kaion e não estudar as leis, que são apenas suplementares a essa tarefa; uma lei injus
ta não é lei propriamente falando, porque o papel do jurista é encontrar a solução
justa.42 O juiz, como todos os cidadãos, deve buscar o bem, e a vocação judicial é a
justiça.
A descrição dada por Aristóteles da arte jurídica é detalhada e prática e se
gue o método do direito natural. Uma divisão justa envolve dois elementos: o re
conhecimento de um estado de coisas, de uma proporção equitativa que subsis
te entre as coisas, e uma distribuição das coisas em disputa de acordo com este
arranjo. Primeiro, a observação; para a filosofia clássica, a fonte da lei natural era
a organização natural do cosmos. O resultado justo já está inscrito.na natureza
' das' coisas e dos relacionamentos, na ordem cósmica dos propósitos e fins in-
ter-relacionados e aguarda.ser reconhecido e decretado pelo juiz. O cosmos e
tudo o que há nele, inclusive a polis, fazem parte de uma harmonia universal, as
várias partes e componentes estão apropriadamente equilibrados. A cidade não
desfruta da justiça perfeita, obviamente, mas as famílias, os grupos sociais e as
cidades, que passaram a existir espontaneamente e desenvolveram de forma gra
dual suas relações políticas, seus valores e constituições, são prefigurações da
ordem perfeita. Podem servir de modelos porque a esperança da cidade perfei
tamente justa pressupõe que podemos extrair a ideia de justiça a partir de suas
aproximações imperfeitas existentes. Observar a realidade é o primeiro passo para
a descoberta da solução justa.
O juiz atua como um botânico ou antropólogo: ele observa as conexões e
as relações entre seus concidadãos, o modo como eles organizam seus negócios,
em particular o modo como distribuem benefícios e ônus. Mas a decisão justa é
sempre provisória e experimental, transiente e dinâmica, do mesmo modo que a
natureza humana está sempre em movimento entre o real e o potencial e conti
nuamente se ajusta às mudanças, novas circunstâncias e contingências. Encontrar
o dikaion é o objetivo do jurista clássico, mas ele nunca é total e finalmente encon
trado; fica sempre a um passo de distância, a justiça completa é adiada, ainda não
está aqui e nunca é inteiramente cumprida. Neste sentido, buscar o que é justo en
volve a observação do mundo externo assim como um elemento futuro ou trans
cendente. “Se entendermos a palavra lei como sinônimo de uma regra formulada,
não existe uma lei natural”, escreve Villey.43 O direito natural é um princípio me
todológico que contribui para a descoberta da solução justa, não em nossa cons
ciência moral ou em algum conjunto preciso de regras, mas no mundo externo das
relações humanas. A lei natural é uma lei não escrita, seu conteúdo nunca é total
mente conhecido; ela não tem nada a ver com a ideia de uma regra positiva ou um
mandamento predominante na modernidade.
Além do mais, encontrar a solução justa era uma prática discursiva e um
auo político. Envolvia a escolha bem instruída do juiz que considera todas as cir
cunstâncias do caso e as condições particulares predominantes na época.44 O jurista
descoDre o dikaion usando a arte do direito: seu princípio-chave é audem alterampar-
i-enr. há sempre ao menos duas partes em conflito que devem ser ouvidas e que tor
nam o estilo de argumentação retórico e o método dialético. A dialética era uma
parte integrante do pensamento clássico; até o Renascimento, era o principal mé
todo erudito da Teologia, da Filosofia e do Direito. A solução dialeticamente justa
não é deduzida de uma regra geral, nem é o resultado de um exercício lógico, mas
a aplicação do conhecimento sobre a natureza das coisas. Será descoberta na reali
dade, por meio da consideração dos argumentos, exemplos e da observação da rela
ção entre as partes. O juiz leva em consideração as apelações das partes e compara
suas opiniões conflitantes e contraditórias como expressões parciais da realidade.
Colocando em debate os termos e argumentos, os juizes chegam a suas decisões di
aleticamente: não o parecer único ou verdadeiro, mas o melhor dentro das circuns
tâncias. O ingrediente final era político: na tomada de decisão, o legislador ou o
juiz suplementa a observação da natureza, a confrontação dialética e a justifica
ção racional com um ato da vontade que não pode ser totalmente teorizado. A
dialética é sempre provisória, aberta a novos argumentos, experiências e preocu
pações. O julgamento legal, conduzido nos reinos dapraxis e da techne e não da ciên
cia, episteme, é sempre acompanhado por certo grau de incerteza, que é eliminado
pela decisão. O dikaion é, portanto, um ato de vontade jurídica que, partindo de
uma combinação de observação natural e confrontações argumentativas, acres
centa um significado e uma determinação precisos (a punição para um delito é o
sacrifício de duas cabras) e põe um fim à questão.
No Direito Civil romano, o método se tornou explicitamente casuístico:
começava e terminava com o caso em pauta. Os casuístas se mantinham próxi
mos dos fatos do caso a partir dos quais extraíam a solução (exfactop is oritur). Eles
investigavam as opiniões existentes relacionadas ao caso, examinavam as autori
43 Míchael Viiley, Isxons dHistoire di la Pbilosopbie à'u Droit, Paris: Dalloz, 1962,240.
44 “Nao se pode dar de antemão o conteúdo da jusriça positiva; ele depende da dedsão livre do legislador”,
Anstotie, Ethics, op. d t , supra n. 36, VII. 6.1.
U m a b r e w h is t ó r ia d o D ir e it o N a t u r a l
lírico. Tanto objetivo quanto construído, o direito natural passou a ser um padrão
não historicista, mas profundamente histórico, para julgar o mundo.
Quando esse método é aplicado à política, vê-se que a justiça apresenta
dois aspectos, um político e outro legal. A justiça política explora a organização
como um todo dapolis e tenta imaginar a constituição perfeita, o arranjo mais belo
e harmonioso do vínculo social.. Porém, a justiça ou o justo é também o fim, não
apenas o objetivo, mas também o resultado da ação legal. A justiça como ideal
nunca é totalmente deste mundo; ela forma o horizonte contra o qual as práticas
correntes são julgadas e declaradas deficientes. O que é justo como resultado do
processo jurídico é voltado não só para o presente, mas também para o futuro. O
conceito de justiça é, portanto, fendido: uma justiça ideal ou geral,, que promete
uma perfeição futura e julga a realidade em seu nome, e uma justiça legal ou parti
cular que mantém e retifica a igualdade proporcional nas atividades diárias dos ci
dadãos, assim como reproduz o equilíbrio existente entre os cidadãos livres e os
escravos, os homens e as mulheres, os gregos e os bárbaros. A justiça legal poderia
também olhar para os dois lãdos: seus julgamentos provisórios alcançados face ao
horizonte de uma ordem intencional e uma justiça perfeita sempre adiada para o
futuro. Mas isto terá que esperar. Os gregos deviam muito aos filósofos, aos auto
res das tragédias e aos dissidentes, mais do que aos juizes, por defenderem o direi
to natural contra a justiça vinda de cima. Até hoje continuam sendo as poderosas
lentes que nos ajudam a ver através do ar enevoado da opressiva e incontestada
opinião convencional a verdade que é não apenas voltada para o futuro, mas tam
bém oportuna. De vez em quando precisamos de um satélite remoto para conse
guir ver melhor nossa própria terra.
3 . U m a B R E V E HISTÓRIA. D O D i r e i t o N A T U R A L: D o Direito Natural aos direitos naturais
1 Alguns historiadores do direito derivam a etimologia dejus do latimjnsstan e jubeo, ordenar. Essa possível as
sociação foi empregada para vincularjrts ao positivismo jurídico. Porém,jnbeo aqui não significa comando
em ktim. O campo semântico da palavra grega dikaion com seu vínculo entre justo e legal influenciou o la
tim e conduziu a um víncuio semelhante. Ver Michel ViUey, L e cimt et !cs droits ds Ibomme, Paris, P.U.F.,
1 9 8 3 ,3 9 ,4 8 .
2 Thomas Aquinas, Snmmc Tlnologi/ie, 2.2ae.57.I.
3 Digest 1 .1 .10 tilpian; Institutes 1.1,1.
4 O trecho completo é:justitia est constans etperpetua whnitósjus smtrn cuique tribuendi: 1 )]iinspraeceptasm:tbaec: ho
neste vivere, ateram non laedere, suam cuique tribnere;2)jnrisprudentia est divinarum atqm humanorum rerimi notitiajnsti
atqne injustisácntia [“justiça é a vontade constante e perpétua de conferir a cada um o direito que lhe cabe: 1)
os preceitos do direito são estes: viver honestamente, não lesar o outro, conferir a cada um o direito que lhe
cabe; 2) a jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência do que é justo e do que é
injusto.”], Digest 1 ,1 ,1 0 , Ulpian.
62
C o s t a s D o u z in a s
“nosso próprio Direito Civil não tem registro escrito, mas consiste unicamente
em interpretações de juristas”.5 As opiniões dos jurisconsultos passaram a ser es
critas e acabaram por adquirir uma força persuasiva para casos posteriores, mas o
método continuou dialético e casuístico. “Partindo do estudo de determinações
justas e injustas, a jurisprudência mostra-se à altura do conhecimento geral e passa
a formular ‘definições’, ‘regras’, Vereditos’- opiniões dos jurisconsultos.”6 O ju s
civile é um conjunto de decisões justas e regras jurisprudenciais, de decretos pro
cessuais dos magistrados e, mais tarde, de decretos dos juristas da corte imperial
e tem pouca afinidade com os sistemas jurídicos contemporâneos, a não ser com
o direito comum antes da ofensiva do espírito codificador europeu. O Digesto afir
ma claramente que “a regra descreve uma realidade brevemente. O ju s não deriva
da regra, mas o ju s que existe cria a regra”.7 O ju s designa a justa parte de cada ci
dadão na sua relação com os outros. Osju ra não são direitos individuais, mas en
tidades reais no mundo, são relações “objetivas” entre cidadãos. Geralmente
-são-coisas e, especialmente, objetos incorpóreos, incluindo ainda instituições,
tais como o casamento, a paternidade ou o comércio. Gaius enumera entre os
ju ra “oju s de construir casas mais altas e obstruir a luminosidade das casas vizi
nhas, ou não fazê-lo, porque isso obstrui a luminosidade delas; o ju s de cursos e
calhas, ou seja, de um vizinho acabar com um escoamento de um curso de água
ou de uma calha em seu quintal ou casa”.8 Passando rapidamente pela distinção
contemporânea entre direitos e deveres, os ju ra referem-se ainda aos deveres e
fardos cívicos dos cidadãos. O dever do serviço militar, por exemplo, é umju s, e
a execução brutal de um parricida é também chamada de ju s do assassino. Po
rém, predominantemente,>.r é o resultado justo da distribuição, o cálculo da
proporção justa entre coisas externas compartilhadas pelos cidadãos. É também
o final da ação ou do julgamento justo, o objetivo da arte do Direito (idadqu od
terminatus actusjustititaè). Para os juristasclássicos, ‘ju ra são simplesmente não di
reitos na acepção moderna”.9 Como Michel Villey argumentava, na definição de
justiça de Ulpiano como suumju s cuique tribuere, ju s refere-se não a um direito in
dividual, mas à divisão justa ou devida determinada dentro de uma estrutura de
relações estabelecida e que varia conforme a condição e o papel de cada pes-
5 A u t tstproprium ju s civile, quod sine scripto in sola pm knfiu m intepretatione consislif’. Digest, 1 ,2, 2 , Pomponius.
6 ViLley, op. cit., supra n. I, 66.
7 Regula est quae rem quae est brewter enarrant. Ju s non a regula sumatur sedaju re, quodest, rsgu lafiaf'. Digest, 5 0 ,1 7 ,1
Paul.
8 The institutes o f Gains, F . D e Zalueta (ed.), Oxford, 1946,1.
9 Richard Tuck, N atural Rights Theories, Cambridge: Cambridge University Press, 1979, 9.
63
U m a b r e v e h is t ó r ia d o D ir e it o N atural
10 Michel ViEey, “Les Origines de Ia notion du droit subjective” , em Leçons d ’histoire âe la philosophie dsi droit, Pa
ris: Dalioz 1962,22 ’i-57;L aF orm alion delaP en sëe Juridique Moderne, Paris: Montchrétien, 1968). Tem-se aigu-
mentado que o conceito dos romanos e dos giossaristas antigos mais próximo do direito individual não é
ju s, mas doniinium, com suas implicações de propriedade, posse e controle e, nessa medida, Villey está enga
nado. Para um exame desse debate, veja Tuck ib id , 5-39. A resposta de Michel Villey foi que, embora domini-
um significasse o domínio sobre paJavras ou coisas, não se. tratava de um constxuto legal, mas de uma realidade
pré-legal restrita pela lei. Para Villey, toda a estrutura da linguagem em Roma foi construída em torno de
conceitos diferentes dos nossos, nos quais as noções de sujeito e de direitos subjetivos não tinham lugar.
V eja L e droit et les droits de l 'homme, o p.cit, supra n. 1,74-104. Tuck concordava que os “romanos clássicos
não têm uma teoria sobre relações jurídicas na qual a noção modema de um direito subjetivo fizesse parte”,
ibid. em 12. E le difere de Villey, no entanto, que acreditava que o direito subjetivo fora introduzido após a
revolução nominalista no século X IV , e argumenta que os primeiros giossaristas colapsaram os conceitos
deju s e dominium n o século X II e criaram as origens de uma teoria dos direitos. Para uma análise abrangente
do debate, veja BrianTiem ey, The Idea o f N atural BJgbts, Atlanta: Scholars Press, 1997, Capítulo I.
11 Citado em E tn st Bloch, N atural Larv and Hnman D ignitf (trad. de D . J . Schmídt), Cambridge, Mass.: M IT
Press, 1988,14.
12 Ibid ., 20.
64
C o s t a s D o ü z in a s
usavam a natureza para explicai: ou qualificar conceitos jurídicos, seus termos ti
nham menos de uma matiz aristotélica e mais de uma implicação prática: “Pois
‘natural’ era pata eies não apenas o que derivava das qualidades físicas dos homens
e das coisas, mas também o que, no âmbito da estrutura daquele sistema, parecia
conciliar-se com a ordem normal e razoável dos interesses humanos e, por esta ra
zão, não precisa de evidência posterior”.13Ainda assim, o termo romanoju s conti
nuou a significar um conjunto de relações objetivas no mundo e, como o Direito
Grego, não tinha uma noção de direitos individuais. E , embora Aristóteles e a le
galidade universal possam ter coincidido pragmaticamente por um breve período,
em meio às necessidades do Império Romano, eles logo divergiram novamente. A
justiça aristotélica fez a sua última grande aparição nos escritos deTomás de Aqui
no e, então, gradualmente inclinou-se para o positivismo. A tradição do Direito
Natural, por outro Í2do, influenciada pelo estoicismo e pelo cristianismo, foi em
direção a uma tecrria da lei como comando e a uma interpretação do direito com
base no sujeito e preparou os alicerces para a concepção moderna de direitos hu
manos. Vamos-examinar mais detalhadamente alguns dos principais elementos
do pensamento estoico que, mal digerido e ecleticamente revisto por Cícero, exer
ceu uma enorme influência no pensamento político e jurídico subseqüente.14 O
ensinamento estoico transformou radicalmente tanto o método clássico de argu
mentação sobre o naturalmente justo quanto a essência da natureza, a origem da
lei. A natureza tornou-se a origem de um conjunto definido de regras e normas, de
um código legal, e deixou de ser uma forma de argumentar contra cristalizações
institucionais e opiniões comuns. Os estoicos foram os primeiros pagãos a acredi
tar que lei natural era a expressão de uma razão divina que impregnava o mundo e
tornava a lei humana um de seus aspectos. A notável citação de Cícero, da Repúbli
ca, é digna de ser reproduzida em detalhes:
A verdadeira lei éalei da razão, de acordo com a natureza conhecida de todos,
imutável e indestrutível, ela deve convocar os homens a cumprir seus deveres
através de seus preceitos e impedi-los de cometer atos ilegais com suas proibi
ções (...) Limitar essa lei é profano, alterá-la, ilícito, repeti-la, impossível; tam
pouco podemos ser liberados dela por ordem ou do senado ou da assembleia
popular; nem precisamos procurar por alguém para esclarecê-la ou interpre
tá-la; nem será ela uma lei em Roma e outra diferente em Atenas, nem será
algo diferente amanhã do que é hoje; porém, uma única e mesma lei, eterna e
imutável, será obrigatória para todas as pessoas e todas as idades; e Deus, seu
ideaüzador, intérprete e promulgador, será o único e universal soberano e go
vernador de todas as coisas.15
13 Em s Levy, “Natural Law in Roman Thought” , 1949 Studio e f 'Documenta H istoriée etJtrris 15 em 7.
14 Miche! Villey, H istoire de ia Philosophie du D roit, Paris, 4a. éd., 1975, 428-SO.
15 Ciceso, Rspublic (trad. de N. Rudd), Oxford: Oxford University Press, 1998, III,-22-.
__________________65________
Uma b r e v e h is t ó r ia d o D ir e it o N a tura l
Esta lei natural dada por Deus, eterna e absoluta tinha pouco a ver com o
direito natural dos sofistas ou de Platão e de Aristóteles.
A seguir, o conceito de natureza. A natureza aristotélica era um conceito
normativo que combinava a essência de uma coisa com seu potencial de cresci
mento e perfeição, o objetivo eficiente e último do cosmos e de todos os seres e
coisas. A natureza estóica era muito mais estática. Seu caráter normativo foi conti
do, mas se tornou um espírito onipresente e determinante (pneumâ), o logos ou ra
zão encontrada como uma muda em tudo. Esse logos onipotente une homem e
mundo; nos seres humanos, atua como o fogo do artista:36 ele cria e esculpe o cor
po e o toma coeso ao montar seus compontentes {logos spematikos) .17Mas ele tam
bém comanda o mundo todo, da mesma maneira que o imperador comanda seu
império. Diógenes Laércio escrevera que a natureza “é a força que restringe o
mundo (...) uma força estável que deriva dela própria, produz as razões seminais e
contém o que vem dela”.18A natureza era, portanto, expressada ontologicamente
e espiritualizada: ela tornou-se o espírito criativo ou o princípio da vida que, em
seu estado puro, é Deus, ao passo que no homem reside na almá. A alma, vis innata
de Cícero, é uma força interna que une o humano ao logos divino e os faz discernir
a lei da natureza, a qual são obrigados a observar.
N atura initiim juris disse Cícero.19 A lei, as instituições humanas, as regras
e toda ordem mundana derivam de uma única fonte, a toda poderosa natureza, a
xsxÀc&fons legum et/mis20, e o logos as revela para o homem. A natureza comanda, é
um preceito moral que ordena ao homem a obedecer ao logos soberano que rege a
história. O direito natural tornou-se uma questão de introspecção e revelação, ao
contrário de uma contemplação racional e uma confrontação dialética, e conduziu
a uma moralidade abstrata de preceitos que anteciparam K an t Consequentemen
te, duas possibilidades se abriram. Na primeira, a natureza, com seus princípios de
dignidade humana e igualdade social, foi mantida como uma categoria de oposição
social e legal e como a essência do direito. A segunda e predominante, entretanto,
equiparou o Direito Natural ao Positivo e o real ao racional e antecipou HegeL Ela
privilegiou a moralidade passiva e privada da alma feliz e sandonou instituições
existentes, hierarquias e desigualdades sociais com a aprovação oficial da razão e
da natureza. Pbjsis, que havia começado sua carreira em oposição a nomos, acabou
finalmente identificada com ela.
16 Cicero, D e natara deorum (trad, de R. W . Walsh), Oxford: Clarendon, 1997, II. 22. 57.
17 Ibid., H. 11.29; IL22.58.
18 Diogenes Laertius, VTI. 148, citado em Viliey, supra n. 14, p. 440.
19 Cicero, D e inventions (trad, de H. M. Hubbell), Londres, Heinemann, 1949, II, 2 2 ,6 5 .
20 Cicero, D eLegibus (trad, de N. Rudd), Oxford: Oxford University Press, 1 9 9 8 ,1 ,5.
66
C o s t a s D o u z in a s
Como alguém poderia encontrar a essência dessa lei natural? A reta razão
ou a recta raíio deriva do Deus do logos e seus mandamentos estão localizados na
consciência, representados pelas “noções comuns” mencionadas acima. O logos
foi inscrito nà alma e o dever fundamental é obedecer a seus comandos. O sábio
não precisa observar a natureza ou a cidade, mas apenas ouvir a sua voz interior.
O estoicismo tomou-se uma religião com a razão sendo seu deus e sua lei e com o
direito natural mais próximo da moralidade privada da consciência que do méto
do jurídico clássico. Os conceitos estoicos de natureza e lei tinham mais em co
mum com o cristianismo que com Aristóteles e conduziram diretamente à ideia
moderna de natureza humana. Vamos recapitular algumas inovações estóicas que
pavimentaram o caminho para o humanismo jurídico dos modernos.
A lei não mais deriva do externo, mas da natureza humana, da razão hu
mana. O homem é celebrado como um ser racional e é concedida a ele uma posi
ção preeminentejicirna do restante da natureza, contra a física aristotélica, na qual
a força da natureza harmonizava e hierarquizava seres humanos e-animais.25
Assim, embora natureza e razão estivessem no início intimamente relacionadas, a
razão acabou por substituir a natureza como a principal origem da lei. Obedecer
às suas ordens é seguir a nossa natureza. Porém, a razão é também racionada e
nem todos tinham igual acesso a ela; o guia mais seguro para suas ordens é a razão
dos sábios {raíio mensque sapientis)?2 Portanto, a ideia de que o legislador ou juiz é o
porta-voz do espírito ou da razão da lei ingressou no estágio histórico.23 Final
mente, lei e o justo residem na conjunção de regras legais e morais descobertas
pelo espírito humano. O âikaion dos gregos e oju s dos romanos foram identifica
dos com um conjunto de leis leges e tomaram-se um sistema de regras racionais,
descoberto pela razão dos sábios.
Jacques Derrida chamou a tradição dominante da metafísica ocidental de
logocêntrica”.24 Nos estoicos encontramos a primeira expressão de uma cons
trução filosófica e ideológica a que chamamos de “logonomocentrismo”.25 Ela
identifica o logos como razão com a lei e apresenta a norma racional como a base e
o espírito da comunidade. O ser é equiparado à presença, com o que está presente
21 Cícero propõe uma similaridade adicional: anunciando Grócio, Puffendorf e os naturalistas do século
X V II, ele parte da natureza humana para explicar a natureza da sociedade e da lei. Em D e Legibus, 1 .5 e em
D e O jftáis (trad. deM . T . Griffin c E . M. Atkins), Cambridge: Cambridge University Press, 1 9 9 1 ,1 IV .II,
Cícero apresenta uma relação legalmente relevante de traços e inclinações humanos que incluem, a í ? H ob
bes, a auto-preservação etc.
22 DeS^egibus, II. 4.
23 Cícero defende em D e Legibus que a razão universal e as normas dos sábios vêm de Júpiter (II. 4).
24 Jacques Derrida, O f Grammalology (trad, de G . Spivafc), Baltimore: The Joh n s Hopkins University Press,
1974. p m português: Grm miokgm (trad, de Miriam Schnaiderman e Renato jan in e Ribeiro), São Paulo: Ed.
Perspectiva e USP, 2004, 2a. ed.] :
25 Costas Douzinas e Ronnie Warrington com Shaun McVeigh, Postmodern Jurisprudence, Routledge, 1991,
25-8.
_________________67________
Um a b r e v e h is t ó r ia d o D ir e it o N a tu ra l
na consciência, e com a primazia do logos como nomos. Na verdade, o sér está pre
sente na lei e essa imanência confere à lei racional uma preeminência ontológica.
O racionalismo, o culto ao legislador e às regras, associado ao positivismo jurídi
co, a celebração dos direitos individuais que derivam da natureza humana, todos
eles aparecem juntos pela primeira vez no pensamento estóico mais recente e em
Cícero. Porém, a dimensão ontológica da lei também promove ideias de dignidade
humana e igualdade social. A lei como razão que cria o mundo impele na direção de
uma fraternidade de toda humanidade admitidamente abstrata. Nesse último aspec
to, o Direito Natural estoico continua sendo um dos capítulos mais louváveis na
história das ideias e está relacionado a teorias mais recentes dos direitos naturais e
humanos.
Contudo, a principal força a impulsionar o Direito em direção a uma teo
ria dos direitos naturais foi a sua gradual cristianização. A cosmologia judaica não .
possuía um conceito inclusivo e intencional do cosmos. Para a religião judaica, o
universo é a criação de Deus. Ele demonstra sua onipotência e presença precisa
mente por sua ausência e, como tal, não pode adquirir o peso autárquico normati
vo àfíphjsis grega. D o mesmo modo, o cristianismo alegava que o mundo havia
sido criado exnibilo por meio de uma lei arbitária de Deus. A natureza, invenção da
imaginação filosófica grega, foi transformada na criação de um ser todo-podero-
so. O cosmos foi reduzido, ao universo natural; os fins naturais conferidos a todas
as coisas e a todos os seres retomaram à sua posição providencial no plano da sal
vação, e a teleologia tomou-se a escatologia. A natureza manteve um caráter nor
mativo apenas limitado, “expressando no tempo o que de toda a eternidade reside
em Deus” e confirmando e complementando a lei divina.26
As sementes do Direito-Natural cristão podiam ser encontradas talvez na
afirmação de São Paulo, inspirada nos ensinamentos estoicos, de que Deus colo- .
cou a lei natural em nossos corações (Carta de São Paulo aos Romanos, 31:15).
Esse foi o início da ideia de que a consciência é a lei de Deus enraizada no coração.
Após a vitória do cristianismoJu s ficou intimamente ligado à moralidade e tomou
a forma de um conjunto de mandamentos ou regras, o tipo pragmaticamente ju
daico de legalidade. Finalmente, os sacerdotes cristãos, ao comentarem a Bíblia,
começaram a empregar o termoju s para referir-se ao mandamento divino e à lei
natural significando o Decálogo. O Decretum, de Graciano, publicado no século
XII, afirmava que a lei natural está contida nos Evangelhos e “antecede em termos
tanto de tempo quanto de posição a todas as coisas. Por isso o que quer que tenha
sido adotado como convenção, ou prescrito na escrita, se contrário à lei natural,
deve ser considerado nulo e sem valor (...) Assim, os estatutos eclesiásticos e secu-
26 Louis Dupre, Passage to M odernity, New Haven: Yale University Press, 1993,30.
C o s t a s D o u z in a s
lares, caso se mostrem contrários àlei natural, devem ser totalmente rejeitados.”27
Este uso foi adotado pelos canônicos medievais e, finalmente, no século XIV,yw
passou a significar poder individual ou direito subjetivo.
Uma ligação crucial na cristianização da lei deve ser buscada na teoria de •
justiça augustiniana que combinava algumas das dificuldades características da
metafísica de Platão e do racionalismo de Aristóteles. Aristóteles acreditava que
uma versão secuJarizada de dike, a ordem do mundo, ainda existia e leis e consti
tuições justas eram parte dela. Sua identificação de lei com justiça era, portanto,
uma forma de reforçar a autoridade da lei, embora retendo o caráter dinâmico da
justiça conforme a natureza. Agostinho, ao contrário, equiparava as duas a fim de
minar a autoridade da lei do Império Romano ainda pagão. Ele definia a justiça, as
sim como Aristóteles, como tribmre suum cuique. Contudo, enquanto para Aristóteles
o direito de um homem era determinado pela efhos de suapolis e pelos julgamentos
dos realisticamente prudentes, para o bispo cristão esse direito era servir a Deus. A
virtude da justiça era definida como ordo amoris, o amor à ordem: ao atribuir a cada
um sua própria medida de dignidade, á justiça conduz os homens a um estado
ideal no qual a alma está subordinada a Deus e o corpo à alma. Diante da ausência
dessa ordem, o homem, a lei e o Estado são injustos. A justiça é, portanto, o amor
do virtuoso máximo ou Deus.
Que justiça é essa que do verdadeiro Deus afasta o homem e o submete aos
imundos demônios? (...) Ou será que quem tira a propriedade a quem a com
prou e a dá a quem não tem direito a ela é injusto e é justo quem se furta áó
Deus dominador e Criador seu e serve os espíritos malignos? (...) Portanto,
quando um homem não serve Deus, que justiça há nele? (...) E, se no homèm
individualmente considerado não há justiça alguma, que justiça pode haver em
associação de homens composta de indivíduos semelhantes?28
Uma lei injusta não é lei, e um Estado injusto não é um Estado. Sem justi
ça, os Estados se tomam grandes pilhagens. c<(...) onde não há verdadeira justiça
não pode existir verdadeiro direito. Como o que se faz com direito se faz justa
mente, é impossível que se faça com direito o que se faz injustamente. Com efeito,
não devem chamar-se direito as iníquas instituições dos homens (...).”29 A denún
cia de Agostinho da injustiça do Estado pagão e de sua lei era uma consequência
do seu profundo pessimismo em relação à condição humana. O pecado original e
a expulsão do paraíso tornaram impossível à lei secular e à justiça redimirem as
27 Decretum, D . 8, 2, 9.
28 D e Civitats D ei (trad. de M. D od s,J.J . Smich c G . Wilson), Edinburgh; 1872, Livro IV , Capítulo 4. [Em por
tuguês: Santo Agostinho,.^! Cidade deD eus~ parte I I (trad. de O. P. Leme), Bragança Paulista: Ed. Universi-
. tária São Francisco, 2003, liv ro X IX , Capítulo 21,412-413.]
29 Ibid., Livro XEX, Capítulo 21. (Em português: ibid. Livro X3X, Capítulo 21,412.] '
_______________ 69__________ _
Uma b r e v e h is t ó r ia d o D ir e it o N a tu ra l
30 Judith Shklai, The Faces efJustice, New Haven: Yale University Press, 1990,26.
31 Dino Bigongiari, “T h e Political Ideas o f S t Augustine” , em St. Augustine, The P olitical Writings, Henry Pao-
lucti (ed.), Washington D.C.: Gateway, 1962,346.
C o s t a s D o u z in a s
a justiça absoluta de Deus, e impossíveis, uma vez que não há como construir uma
ponte entre o abismo que separa Deus e a humanidade. A justiça, identificada com
o amor de Deus, não pertence a este mundo; a injustiça torna-se a condição da hu
manidade. E mesmo assim, o movimento de Agostinho para o interior do Eu, em
suas Confissões, sua ênfase à justiça de um legislador soberano e ao papel coercitivo
do poder do Estado anunciam a jurisprudência da modernidade. Ao mesmo tem
po, sua cidade de Deus redefiniu a ideia de utopia para uma audiência cristã como
sendo ura lugar de bem-estar irretocável. Os estoicos haviam situado sua utopia
em um passado místico, ao passo que a cidade de Deus pertence a um futuro des
conhecido, porém predeterminado. Agostinho fora chamado de “profeta utópi
co”, de “principal origem daquele ideal de ordem mundial que persegue as mentes
de tantos hoje em dia”, mas também de “maquiavélico”.32 Se colocarmos entre
parênteses a sua metafísica cristã, ele se toma o primeiro filósofo político que não
apenas aceitou, mas também legitimou a força do Estado e propôs uma justiça su
perior que a lei do Estado flagrantemente viola. Os peregrinos cristãos de Agosti
nho não deviam contrastar as duas, mas “tolerar até mesmo’a'pior t, se necessário,
a mais atroz república”.33 Porém, a justaposição entre o céu e a terra e a sua precisa
separação criaram as condições para sua derradeira comparação e combinação.
Na medida em que a metafísica dos dois mundos era gradualmente enfraquecida,
chegava o momento quando os princípios do paraíso eram criados para primeiro
justificar e depois condenar as infâmias terrenas.
32 Etienne Gilson, citado na “Introductíon” de The P ofíücal Writings, op. cit., supra n. 31, vii.
33 D e Civitaíe D ei, op. cit., supra n. 28, X V III, 2.
34 Digest, 1.1. 10.
35 O Primeiro Artigo no capítulo de Summa sobre Justiça afirma categoricamente que o objeto deju s é o justo
ou direito e apresenta o Filósofo (Aristóteles) como principal evidência para a proposição. S T 11-11, Q . 57;
Saint Thomas Aqumas, On Law , M oraüty andPoM u, W . Baumgarth e R. Regan (eds.), Indiampolis: Hackett,
1988,137. Veja, de uma maneira geral, Anthony U&sk2,A qtán as’s Tbeory o f N aturalLaw , Oxford: Clarendon,
1996.
______________________________ 71_________________
Um a b r e v e h is t ó r ia d o D ir e it o N a tu r a l
36 Ibid.
37 Ibid., 138.
38 Leo Strauss, N atural Lrnv and History, Chicago: University o f Chicago Press, 19 6 5 ,1 4 4 .
72
C o s t a s D o u z in a s
48 Martin Jay, “Must Justice'be Blind”, em Costas' Douzinas e Lynda Nead, L a v and the Image, Chicago: Uni
versity o f Chicago Press, 1999, Capitulo 1.
49 Bloch, op. c it , supra n. I I , 38.
50 Ibid., 43.
51 je a n Jacques Rousseau, E m ile or on Education (trad, de A. Bloom), Londres: Penguin, 1991, IV .
__________________ 75____________ .
U ma b r e v e h is t ó r ia d o D ir e it o N a tu ra l
justo em uma determinada situação”, para o de Suarez como “algo benéfico —um poder
—que umapessoa. tenP foi um “divisor de águas”.52 Essa transição redefiniu o conce
ito de direito como um “poder” ou “liberdade” possuído por um indivíduo, uma
qualidade que caracteriza o seu ser. Os passos históricos detalhados que conduzi
ram a essa linha divisória foram examinados por Richard Tuck e Michel ViUey e
mais recentemente por Brian Tierney, e não há necessidade de reproduzi-los aqui.
O restante deste capítulo irá abordar rapidamente apenas as principais estações
dessa importante transição.
O nascimento do homem moderno e dos direitos individuais atravessa a
teologia da escolástica católica, que descobriu os princípios do Direito Natural na
forma como Deus criou os seres humanos.. A natureza essencial do homem foi
criada por Deus, e todos os principais elementos do Direito Natural podem ser
deduzidos a partir da moralidade dos mandamentos. Obrigações morais e políti
cas derivam da verdade revelada e, consequentemente, o amor cristão e a cantas da
providência substituíram a busca pela melhor república. O primeiro passo radical
.nessa direção foi dado pelos nominalistas franciscanos Duns Scótus e Guilherme
de Ockham. Eles foram os primeiros, no século XIV, a argumentar contra as con
cepções neoplatônicas predominantes de que a forma individual não é um sinal de
contingência, tampouco é a pessoa humana a concreta instanciação do universal.
Pelo contrário, a expressão máxima da criação é a individualidade, conforme evF“
denciado na encarnação histórica de Cristo, e seu conhecimento precede o daquele
das formas universais dos clássicos. O nominalismo rejeitava conceitos abstratos e
negava que termos genéricos como lei, justiça ou a cidade representassem entidades
ou relações reais. Para Guilherme, coletividades, cidades ou comunidades não são
naturais, mas.artificiais. O termo “cidade”, por exemplo, refere-se à soma total
dos cidadãos individuais e não á um agregado de atividades, objetivos e relações,
ao passo que “lei” é uma palavra universal seni qualquer referente empírico dis-
cemível e não tem qualquer significado independente. A sociedade, conforme a
Sra. Thatcher, uma nominalista contemporânea diria, não existe; existem apenas
indivíduos. A ciência medieval evitava totaüdades e sistemas e se concentrava em
particulares, pois, argumentavam os nominalistas, todos os conceitos e estruturas
gerais devem sua existência a práticas linguísticas convencionais e não possuem
qualquer peso ou valor empírico. Assim, significado e valor acabaram dissociados
da natureza e foram atribuídos a átomos ou partículas separados, abrindo o cami
nho para o conceito renascentista de gênio, de discípulo e parceiro de Deus e,
mais tarde, para o indivíduo soberano, o centro do mundo.53
52 Jo h n Fiani s, N aturalLatv an d N atural Rights, Oxford: Clarendon, 1980,207. [Em português: L eiN alu raleD i-
rátos N aturais {trad, de Leila Mendes), Porto Alegre: Editora Unismos, 2 007, p. 203].
53 E rn st Kantorowicz, “The Sovereignty o f the Artist: A note on Legal Maxims and Renaissance Theories o f
Art” em Selected Studies, Nova York: j . j . Augustin, 1965.
76
C o s t a s D o u z ín a s
54 Villey, H istoire de kP hilosophie, op. c it, supra n. 14,157-265; L e droit etles droils, op. c it, supra n. 1,118-25;
Tuck, op. c it, supra n. 9,15-31.
55 Rommen, citado em j . M. Kelly, A S bortH istoiyin W eslem LegalThsoiy, Oxford University Press, 1992,145.
56 Tuck, op. c it, supra n. 9,24.
_____________ _ 7 7 ______________ _
Ü M A B R E V E H IST Ó RIA D O D l& E IT O N A TU RA L
59 Joh n Rawls, ^4 Theory o f Justice, Oxford University Press, 1 9 7 2 .0 véu esconde todas as prindpais caracterís
ticas individualÍ2 adoras das partes contratantes.
_________________79_________________
Um a b r e v e h is t ó r ia d o D ir e it o N a tu r a l
impulsos “naturais” diferiam amplamente de um jurista natural para outro. Para al
guns, o homem natural era competitivo e agressivo; para outros, pacífico e diligente;
para outros, ambos. A natureza eterna parecia acompanhar as prioridades sociais e
as questões políticas correntes, assim como estar bem próxima das preocupações,
esperanças e temores dos contemporâneos do teórico.
O contrato hipotético tornou-se um mecanismo de especulações filosófi
cas acerca da natureza do vínculo social e da obrigação política, da constituição
modelo e dos direitos dos homens empíricos em Londres e Paris. A abstração, a
remoção das características concretas, foi vista como logicamente necessária. O
construto filosófico devia funcionar como uma refutação da sociedade feudal e
do governo absolutista, por meio da ação de uma cláusüla rescisória, revolucioná
ria e da qual não se tinha ouvido falar antes, que autorizava o povo a depor seu go
verno em caso da não-execução das suas obrigações contratuais, e como o projeto
do acordo constitucional ainda por vir. Nessa segunda função, o mecanismo con
tratual introduziu o racionalismo do lluminismo na constituição. Normas jurídicas
e relações sociais foram vergonhosamente subtraídas de proposições normativas
axiomáticas (mal original e desejo de segurança, bem original e sociabilidade, liber
dade individual e a necessidade de restringi-la etc.).
As várias escolas do Direito Natural moderno ou racionai, apesar de suas .
diferenças, compartilhavam'inúmeras características.60 Primeiro, todas elas acre
ditavam que a vida social e o Estado são o resultado da atividade individual. Pode
mos detectar aqui a forte influência da mentalidade jurídica. É profundamente
agradável a um jurista, calçado na doutrina do contrato, acreditar que formas jurídi
cas e os acordos-estão nas bases da sociedade. As teorias do contrato social adota
ram a doutrina do contrato do “conhecimento construtivo”: as partes contratantes
desejavam todas as consequências razoáveis de seu acordo, ao passo que o que
não pudesse ser racionalmente desejado não era sequer desejado (restrições sobre
propriedade e acúmulo de capital, por exemplo, eram irracionais, e um sistema
político que as impusesse colocava em ação a cláusula rescisória do contrato). Em
segundo lugar, se a ordem jurídica e social deriva de um acordo original, ela era
concretizada por meio do poder da razão e da lógica de deduzir um sistema de re
gras completo e sem”falhas a partir de uns poucos princípios axiomáticos. A es
sência do Estado devia ser racionalmente reconstruída a partir de seus elementos
válidos e justificada apenas por meio de argumento racional, com base nos princí
pios fundadores no contrato; na verdade, a razão foi declarada a essência do Esta
do. O prestígio das ciências naturais foi, assim, transferido para a filosofia política,
61 Ibid., 191.
______________________ 81______________ ' •
Um a b r e v e h is t ó r ia d o D ir e it o N a tu ra l
Porém, lado a lado com essa natureza obediente à lei e sombria, que cor
respondia aos interesses burgueses em calculabilidade e certeza, uma concepção,
distinta de natura immacülata espreitava sob a superfície, na pura e harmoniosa na
tureza do classicismo, nas visões edênicas do romantismo e na perfectibilidade
dos socialistas utópicos. Essa concepção marginai de uma natureza purificada e
perfeita vinculava-se à tradição clássica da natureza como norma e proporcionava
uma perspectiva crítica e redentora contra as injustiças e opressões que o sistema
social, justificado pelo Direito Natural racional, tolerava e até mesmo promovia.
Esse conceito de natureza iria, por £im, combinar com a ideia de utopia social e su
prir o lado radical dos direitos humanos.
ativa que vem de baixo, uma que tomaria a própria justiça desnecessária. O
Direito Natural jamais coincidiu com um mero senso de justiça-63
Para aqueles que lutam contra a Injustiça e para uma sociedade que trans
cende o presente* o direito natural foi o método e a lei natural definiu o conteúdo
do novo. Este é a ligação entre lei natural e direitos naturais e humanos. Porém, o
voluntarismo do Direito Natural moderno não pode proporcionar uma fundação
suficiente para os direitos humanos. Seu inevitável entrelaçamento com o positi
vismo jurídico significou que a tradição que criara os direitos naturais e, mais tar
de, os direitos humanos também contribuiu para as repetidas e brutais violações
da dignidade e da igualdade que têm acompanhado a modernidade como sua ines-
capável sombra.
4. O D ir e it o N a tu ra l e m H o b b e s e em L ocke
1 • Thomas Hobbes, Leviathan, Richard Tuck (ed.), Cambridge University Press, 1996, Capítulo 1 4 ,9 1 . [Em
português: Hobbes, L ev ialã (trad, de Ales Manns), São Paulo: Martin Ciaret, 2005, pi 101.}
•
___________ 85__________________
O D ir e it o N a t u r a l e m H o b b e s e em Locke
2 Hobbes, D e Corpore, I, 2, em 3. Cf. “por reta razão no estado natural dos homens eu entendo não uma fa
culdade infalível, com o muitos o fazem, mas o ato de raciocinar, ou seja, os raciocínios peculiares e verda
deiros de cada homem a respeito dessas ações suas, as quais podem resultar tanto cm prejuízo quanto, em
beneficio para seus vizinhos”, D e Cive 11,1 em 16.
C o s t a s D o u z in a s
Seja qual for o objeto do apetite ou desejo de qualquer homem, esse objeto é
aquele a que cada um chama bom; ao objeto de seu ódio e aversão chama mal,
e ao de seu desprezo chama vil e indigno (...) Filosofia moral não é mais do a
ciência do bem e do mal, na [conversação] e na sociedade humana. O bem e o
mal são nomes que significam nossos apetites e aversões, os quais são diferen
tes conforme os diferentes temperamentos, costumes e doutrinas dos ho
mens.3
O desejo é mais forte que a razão. Quando a razão o confronta, ela deve
ou reconhecer a sua importância ou tentar e recrutar as paixões em seu próprio —
sempre em perigo —benefício. Desejo e prazer, apresentados como forças ou
“impulsos” instintivos na termonologia psicanalítica, adquirem uma central signi-
ficância política e legal e transformam o nominalismo teológico dos medievais em
um individualismo “científico”. Este conceito radicalmente novo irá prover a ide
ia de direitos individuais, lutando para emergir nos escritos religiosamente inspirados
dos escolásticos, com uma fundação mundana e pragmaticamente fecunda. A centrali-
dade das paixões, tanto empiricamente observadas quanto metaforicamente afir
madas como naturais, transforma a filosofia moral de Hobbes em um hedonismo
político e prepara o terreno para o utilitarismo. O fim da lei não é mais a virtude e
a justiça, mas o prazer individual, e a razão é o principal instrumento para isso,
Esta abordagem toma o direito natural não mais a justa divisão de uma distribui
ção legal, um estado de coisas no mundo exterior, mas um atributo essencial do
sujeito. Um direito é um poder que pertence ao indíviduo, uma qualidade subjeti
va que logicamente exclui todo dever. Esta é precisamente a base da distinção en
tre lei e direito: a lei impõe deveres e não confere poderes; isto a torna o oposto do
direito. Quando o direito é a divisão de bens sociais, ele é sempre parte de rela
ções, implica deveres e é, por definição, limitado. O novo direito natural é o “po
der de fazer qualquer coisa", uma soberania iiimitada e indivisa do Eu.
3 'Leviaíban, supra n. I, Capítulo 6 ,3 9 ; Capítulo 16,110. [Bm português: L m atS , Capítulo 6 ,4 7 ; Capítulo 15,
________ 87___________________
O D ir e it o N a tu ra l em H o b b e s e em Lo c k e
7 Leviathan, supra n. I, Capítulo 13, 86. [Em português: Leviata, Capítulo 13, 96.]
8 Em português: ibid., Capítulo 13, 99
9 Hobbes afirma que o que “os homens desejam se diz também que o amam e que odeiam aquelas coisas pe
las quais sentem aversão. D e modo que o desejo e o amor são a mesma coisa”, Leviathan, supra n. I, Capí
tulo 6, 38. [Em português: Lsviatã, Capítulo 6, 46-47.] .,..
O D ir e it o N a t u r a l e m H o b b e s e em Locke
poder comum não há lei. Onde não há lei não há injustiça.”50A primazia do dese
jo conduz ao estabelecimento das leis civis {leges). A cosmologia clássica e medie
val, a origem do direito natural, assumia uma hierarquia natural de esferas e ser.
Hobbes transforma a cosmologia em uma antropologia e transfere o modo hie
rárquico do universo para os desejos humanos. Morte, a negação da natureza, é o
mais natural de todos os fatos, e o medo da morte a mais poderosa de todas as pai
xões. O desejo incontrolável encontra seu limite no desejo e no medo do Outro e
na morte. O desejo de autopreservação faz os homens abandonarem a liberdade
em troca da segurança oferecida pela comunidade criada por meio de sua sujeição
contratual ao Soberano.11 Portanto, não é a natureza, mas a morte, como negação
da natureza, que é a mais natural e a mais fortè das paixões. A morte é a base da lei
natural e o alvo das leis civis. Porque a igualdade é ilimitada, porque o desejo é in
controlável, a morte torna-se o senhor, e o poder do Soberano deve ser total e iii-
mitável. O Soberano é um “Deus Mortal”, seu único limite é a morte, o “senhor
absoluto”. A lei é o resultado do desejo e da pulsão de morte que, bem antes da
descoberta de Freud, uniu lei, desejo e mortalidade. Paixão ilimitada cria sobera
nia ilimitada; violência e seu medo são a base da lei. O direito natural, assim como
o Estado encarregado de sua proteção limitada, são limitados pela morte. Confor
me mencionou Leo Strauss, em Hobbes “a morte toma o lugar do teloi'?1
O impasse criado'pela busca livre do desejo por semelhantes pode ser
desfeito apenas por meio de um pacto que “erija um poder comum” e transfira o
direito natural para ele. O objeto de acordo é:
conferir toda a força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens,
(...)-como representantes deles próprios, (...) e submeter suas vontades à von
tade do representante e suas decisões à sua decisão. Isso é mais do que con
sentimento ou concórdia, pois resume-se numa verdadeira unidade de todos
eles, numa só e mesmà pessoa, realizada por um pacto de cada homem com
todos os homens, de modo que é como se cada homem dissesse a cada ho
mem: “Cedo e transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este homen,
ou a esta assembleia de homens, com a condição de que transfiras a ele teu di
reito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações” (...) a essência
do Estado, que pode assim ser definida: £CUma grande multidão institui a uma
pessoa, mediante pactos recíprocos uns com os outros, para em nome de cada
nm como autora, poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que
considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum”.33
14 “j á que tem o poder de fazer e revogar as leis, pode, quando lhe aprouver, libertar-se dessa sujeição”, D e
Cive, V I, 14, em 83; Leviathan, Capítulo 26. [Em português, Leviatã, Capítulo 2 6 ,198.] Esta é a razão pela
qual Hobbes é tão hostii em relação à tradição da lei comum, particularmente à alegação assodada a Sir
Edward Coke de que a lei comum é superior à lei do Rei e do Parlamento. Veja; Dialogue between a Philosopher
and a Student o f the Common L a v ofEngland, j . Crospey (ed.), Chicago, University o f Chicago Press, 1997.
15 Leviathan, supra n. I, Capítulo 2 6 ,183. [Em português, Leviatã, Capítulo 26,197.]
16 Ibid., 185. [Em português: ibid., 199.]
17 Ibid.
18 Ibid., 188.
19 Ibid., 187. p m português: ibid., Capítulo 24,184-185.]
__________________ 91___________________
O D ir e it o N a tu r a l e m H o b b e s e em Locke
Uma vez que o Estado foi estabelecido, o direito natural que levou à sua
fundação é transferido para as “ordenações do poder soberano”. Quando as leis
civis, exclusiva responsabilidade do Leviatã, recebem a tarefa de proteger os direi
tos dos indivíduos, a lei natural em uma façanha final de transubstanciação tor
na-se idêntica à lei civil. “A lei natural e a lei civil se contêm uma à outra e são de
idêntica importância (...) A lei natural faz parte da lei civil em todos os Estados do
mundo (...) Reciprocamente, a lei civil faz parte dos ditames da natureza.”20 A lei
civil e os direitos são a versão secular da lei natural. Sua fonte permanece a mesma,
uma razão natural adaptada apenas às exigências do mundo secular; mas as neces
sidades práticas da vida civil geralmente conduzem a ordens que contradizem a lei
natural. Consequentemente, após a identificação da lei civil e natural, a justiça foi
radicalmente redefinida: primeiro, e de acordo com a lei natural, “injustiça é o
não-cumprimento de um pacto. Tudo o que não é injusto é justo”.21 Porém, em
segundo lugar, “As leis são as regras do justo e do injusto, nada havendo que seja
considerado injusto e contrário a alguma lei”.22 Ao final de um longo processo, o
direito natural foi transformado em direitos individuais concedidos pelo Estado, e
a justiça tornou-se obediência à lei. O único princípio de justiça é a conformidade
com as leis do Estado.
Em princípio, o consentimento contratual parece ser a base do 'Leviatã e
do Estado moderno. Porém, esta é uma artimanha. A primazia do desejo conduz
inexoravelmente ao contrato social, que apresenta a sociedade como o resultado
de liberdade individual e acordo. Por certo, um pacto com base nessas premissas
não pode funcionar, a menos que se transforme na total sujeição de todos às or
dens do Estado. A violência que assinalava o início e a força demandada pelo .
medo da morte ingressam na lei civil e se. tornam sua inescapável condição e su
plemento. A ordem do Soberano torna-se a base de toda autoridade. Leis são leis
em virtude de sua origem e de suas sanções, não em virtude de sua razão. A supre
macia da autoridade do Estado espelha a liberdade natural do indivíduo; o Levzatã,
parceiro perfeito e necessário limite do indivíduo, não apenas compartilha, mas
também inaugura os atributos do indivíduo.23
O poder do soberano é, portanto, o resultado do desejo e do direito indi
viduais. O liberalismo, a filosofia política que trata os direitos como o fato político
fundamentai e finalmente identifica a função do Estado com a sua proteção, en
contra seu documento fundador em Hobbes. Direitos são naturais ao passo que
Conquanto nada do que os mortais façam possa ser imortal, mesmo assim, se
os homens se servissem da razão da mesma forma como fingem fazê-lo, po
diam pelo menos evitar que, por males internos, seus Estados perecessem.
Pela natureza de sua instituição, deveriam viver, tanto tempo quanto a huma
nidade, as leis naturais ou a própria justiça que lhes dá vida.26
28 Ibíd., 190,191.
29 Ibid.,195.
30 Lem aikan, supra a. 1, Capítulo 2 9 ,2 2 1 . p m português: L em tè, Capitulo 2 9 ,2 3 5 .j
94
C o s t a s D o u z in a s
um poder que ele não possui; eles simplesmente renunciam a seu direito de resis
tência. Para o nominalista Hobbes, os direitos pertencem apenas aos indivíduos.
Comunidades, multidões, as pessoas como péssoas não podem ter qualquer direi
to. Para a soberania entrar em vigor e oferecer seus serviços, ela deve pertencer a
um único sujeito. Isto acontece duas vezes. Primeiro, na ficção da personalidade
artificial, do l^eviatã, a coroa ou o Estado. Segundo, nà exigência de que o detentor
ou símbolo da soberania deve ser um monarca, uma pessoa natural, e não o Parla-
mento ou o povo. A Soberania é um atributo de individualidade, e sua construção
fictícia é necessária porque as coletividades não têm direitos.
Mas os súditos, também, detêm direitos. Eles não perdem o direito à auto
defesa e à liberdade de consciência. Mais importante, eles adquiriem aqueles direitos
civis que estavam ameaçados no estado de natureza e sobre os quais repousa a legiti
midade morai do Estado. Especificamente, eles adquirem o direito à propriedade.
Hobbes inaugura um sistema jurídico baseado no reconhecimento e na.proteção
dos direitos individuais. Um direito natural individual é tanto a fundação quanto o
resultado de um edifício. Direitos naturais conflitantes conduzem ao pacto, que
dá origem ao JLevzafã, que estabelece a lei a fim de proteger e assegurar direitos indi
viduais. A lei civil é criada por meio do avanço incontível dos direitos individuais, e a
finalidade da lei é a criação de direitos. Porém, estes são apenas direitos privados.
Os direitos públicos, direitos contra o Estado, estão totalmente excluídos. A cria
ção e o desfrute dos direitos privados são acompanhados por uma falta do que
hoje chamamos direitos humanos. O preço pela proteção contra outros é a míni
ma proteção contra o Estado. Direitos privados são o fim e o valor do sistema de
leis, que se torna um sistema de direitos subjetivos, de suas precondições e conse
quências: contratos, um Estado forte e uma lei absoluta.
Nessa transição do direito natural para os direitos individuais, o antigo
vínculo com a justiça foi rompido. Hobbes definia justiça como as obrigações de
manter promessas e de obedecer à lei. O direito natural é necessário a fim de man
ter a fragil paz social de uma sociedade baseada amplamente em acordos privados,
ao passo que os direitos individuais são uma consequência lógica da ausência de
quaisquer direitos diante do Soberano. Direitos públicos e privados, embora for-
malmente similares, são claramente distintos. A precondição dos direitos de pro
priedade individuais é a ausência de direitos políticos e humanos, e sujeição é a
precondição da liberdade. Esta é a tragédia do individualismo, mitigada pela intro
dução da democracia, mas ainda presente nas várias formas do neoliberaüsmo. A
tentativa de estabelecer a lei e um sistema de relações sociais na sua negação, o in
divíduo isolado e seus direitos, pode facilmente resultar em uma imagem-espelho
ameaçadora, um Estado onipotente, que destrói direitos em seu nome. Apesar de
alegações jurisprudenciais em contrário, o indivíduo e o ser humano são frequen- '
temente inimigos pungentes.
'• ■
__________ 95__________ .
O D ir e it o N a tu ra l em Hobbes e em Locke
35 Jo h n Locke, SecondTreatise o f Govimmmt, P. Laslett (ed.), Cambridge Univerity Press, 1960, s. 44. [Em portu- .
guês: D ois Tratados sobre o Governo (trad. de Julio Fischer), São Paulo: Martins Fontes, 2005, s. 44,424.]
36 Ibid-, s. 50. [Em português: ibid., s. 50,428.] •
_______________ 97______________ _ _
O D ir e it o n atural em Hobbes e em Lo c k e
tórío largo e fértil” na América.37 Segue-se que “o fim maior e principal pata os ho-
mens unirem-se em sociedades políticas e submeterem-se a um governo e, portan
to, a conservação da sua propriedade”.™ O capitalismo é correto e justo porque o ho
mem natural é “o senhor absoluto da sua própria pessoa e de suas posses” .
O ensinamento de Locke sobre propriedade foi mais revolucionário que
suas doutrinas políticas e constitucionais e produziu efeitos importantes e impre
vistos. O indivíduo toma-se o centro e a origem do mundo moral e político porque
ele cria e possui valor por meio de seus próprios esforços e é,. assim, emancipado da
natureza e de todos os vínculos sociais que antecediam o contrato. Independência
e criatividade tomam-se os símbolos da realização humana, poder aquisitivo o
símbolo de auto-realização e dignidade. “Entendimento e ciência encontram-se
na mesma relação para o ‘dado’ no qual o trabalho humano, exigido ao seu máxi
mo esforço pelo dinheiro, está para o material bruto (...) todo conhecimento e ad-,
quirido; todo conhecimento depende do trabalho e é trabalho.”39 O trabalho e o
meio natural de escapar da natureza. Este abandono da natureza por meio do tra
balho humano conduz à felicidade, “a maior felicidade [reside] na posse daquelas
coisas que produzem os maiores prazeres”. Porém, como a natureza não pode ser
conhecida, nenhuma distinção pode ser feita, seja entre prazeres maiores ou me
nores. A única orientação na ausência do summum bonum é evitar o summum malmn.
“O desejo é sempre movido pelo mal, a fim de controlá-lo”, e o maior mal é a
morte. O objeto do desejo e do medo coincidem. A natureza cria o desejo daquilo
que mais teme. O trabalho, a arte de imi.tar a natureza, mostra que o caminho da
felicidade é distanciar-se e negar a natureza. E como o trabalho agrega valor a to
das as coisas e a todos os seres, todo Eu ou coisa é maleável e pode se tornar o
alvo de intervenção consciente e investimento. O homem pode moldar a si mesmo
por meio de seu esforço tanto quanto pode moldar .o mundo físico. A maior felicida
de passa a ser o maior poder de moldar e adquirir coisas. A natureza, incluindo a natu
reza humana, que começou como a medida de todas as coisas, acaba sendo simples
mente matéria a ser controlada, explorada e modelada, seja pélo indivíduo automode-
iador ou pelo Soberano todo-poderoso. O medo e o desejo do outro são unidos em
um novo sistema social e político que tomam o indivíduo desejante e o I m ata de-
sejante à imagem-espelho um do outro. _ ,
Com Locke, a transição do Direito Natural para os direitos naturais e de
cosmos intencional para natureza humana foi concluída. O fim da lei nao e mais
anunciar a justiça como uma relação objetiva entre pessoas, nem e o direito natu
ral um aviso contra leis sedimentadas e opiniões comuns. Seu objetivo é servir ao
indivíduo e promover a sua “felicidade”; em outras palavras, seu desejo expressa
do através de seu Hvre-arbítrio. Porém, isso significa que os indivíduos não mais
buscam virtude ou lutam pelo bem e que as políticas não estão interessadas em
abordagens pragmáticas e julgamentos prudentes, mas na aplicação de verdades.
A proliferação de muitos desejos destruiu o bem, assim como havia feito com a
única verdade. O lugar vazio do bem foi preenchido pelo (medo do) mal, simboli
zado pela morte e amplamente interpretado como a não-realizaçao ou frustração
do desejo. Evitar o mal tornou-se o fim das sociedades modernas: é o resultado da
entronização do desejo como o princípio da ação individual e social. As únicas
lembranças distantes da antiga “melhor república” são as várias utopias, as memó
rias de um passado comum e as promessas de uma boa sociedade futura, a maioria
delas autoconscientes de sua impossibilidade. Os direitos humanos anunciados pe
ias grandes revoluções do século XVIII compartilharam brevemente de aspirações
utópicas. Eles estenderam a liberdade do privado para o público, ao contrário de
Hobbes, e a suplementaram com igualdade, ao contrário de Locke. Mas esses movi
mentos não eram finais nem irreversíveis. O caminho dos direitos naturais das re
voluções para os direitos humanos da nossa era testemunhou o triunfo tanto do
humanismo individualista quanto do canibalismo do desejo (do Estado e do indi
víduo). A dialética do desejo, inaugurada por Hobbes e Locke e santificada por
Hegel e Freud, transformou o mal e a morte no maior medo e no maior desejo.
Porém, o mal e seu medo não podem substituir o (a busca do) bem. Os direitos
humanos estão aprisionados nessa contínua gangorra entre o melhor e o pior, en
tre a esperança do futuro e as muitas opressões do presente.
5. R ev o lu ç õ es e d e c l a r a ç õ e s : o s d i r e i t o s d o s h o m e n s , d o s c id a d ã o s
E de ALGUNS OUTROS
1 Para uma história da Declaração Francesa, veja Lynn Hunt (ed.), The French Revolution and Human 'Rights:A
BriefDocp.mentaiy History, Boston, Bedford Books, 1996; Gail Schwab e Joh n jeanneney (eds.), The French Re
volution o f 1789 and its Impact, Westport, Greenwood Press, 1995.
2 Veja Stephen Marks, “From the ‘Single Confused Page’ to the “Decalogue for Six Billion Persons’: T h e Ro
ots o f the Universal Declaration o f Human Rights in the French Revolution”, 20 Human Rights Quarterly
459-514, em 461,1998.
3 Lynn Hunt, “The Revolutionary Origins o f Human Rights”, op. c it, supra n. 1, 3.
C o s t a s D o u z in a s
4 “Declaration o f the Rights'of Man and the Citizen” em S. Finer, V . Bogdanor e B . Rudden, Com pam gCons-
titutions, Oxford: Clarendon, 1995, 208-10. ;
* Bill o f Rights, mencionada mais adma. Corresponde às dez primeiras emendas da Constituição norte-ame- .
riçana, as quais garantem direitos fundamentais, tais como a liberdade de expressão, de credo e de reunião
(N .d e T .) .
101
R ev o lu ç õ es e declara çõ es
5 Georg jellinek, L a Déclaration dts droits de l'homme et du citoyen (trad. G .Fardis) (Paris, 1902).
6 Thomas Paine, The'Rjghts ofM an, BeinganA nsw ertoM r. Hurke’s A tkick on theFrench ’R évolution (H. CoUins ed.)
(London, Penguïn, 1969).
102
Costa s D o u z in a s
acreditavam que suas declarações eram não só uma reafirmação, mas também
uma clarificação da posição legal de seus ancestrais ingleses e o “senso comum”
da questão. Sua independência da Inglaterra permitiria à sociedade desenvolver
suas leis imanentes, cujas ações coincidiam com o interesse pessoal esclarecido
dos indivíduos.
O peso da história conseguiu sustentar a natureza óbvia das leis do livre
mercado, e o conflito potencial entre historicismo e naturalismo foi resolvido, em
estilo nó górdio: a contradição entre as duas abordagens foi negada e seus resulta
dos foram declarados idênticos. A revolução não representava um ato supremo
de vontade e seu objetivo não era construir teoricamente e legislar novos direitos.
Ela apenas limpou o terreno para a implementação integral das leis existentes.
Estas eram fundamentalmente sólidas e poderiam conduzir à felicidade individual
e social, se as influências que as distorciam fossem removidas. Assim, embora a
declaração de direitos modificasse a base de legitimidade de poder do Estado, sua
essência continuava amplamente inalterada. Os direitos norte-americanos eram
naturais, eles já existiam e eram bem conhecidos, e a função do governo era apli
car de forma prudente leis pré-existentes a novas situações.
Na França, a influência norte-americana foi reconhecida nos debates par
lamentares de julho e agosto de 1789, mas uma distinção precisa foi delineada en
tre as duas declarações. Conforme afirmara Rabaud Saint-Etáenne, na Assembleia
Nacional, a prioridade número um para uma nação, em vias de nascer é destruir a
velha ordem e recomeçar a partir do estabelecimento de um novo poder legislati
vo. Consequentemente, a necessidade de começar com uma declaração geral de
direitos não era premente para os norte-americanos. Porém, para a nação france
sa, que já existia, a maior prioridade era “constituir e não simplesmente declarar os
direitos, uma vez que eles são uma parte integral da Constituição”.7 As diferentes
prioridades ditaram as diferentes formas para as duas relações de direitos: a francesa
prefaciava sua Constituição com a Declaração tomando-a a base e a legitimação da
reforma constitucional, ao passo que a Declaração de Direitos foi introduaida como
uma série de emendas à Constituição norte-americana.&
A garantia central da Declaração Francesa era o direito de resistência à
opressão, uma expressão do caráter profundamente político e social da revolução.
Como declarou Mirabeau na Assembleia Constituinte, a Declaração não era uma
7 Citado em Blandine Baxret-Kriegel, L es droiis de l'homme et le droit naturel. Paris, P.U .F., 1989,35.
8 D e acordo com Bartet-Knegel, um historiador da Revolução Francesa, "na França a declaração de direitos
. constituiu a base para o próprio governo e foi, assiro, elaborada antes da constituição” , ibid., 35. Cf. Hunt,
op. c it, supra n. 1,15.
103
Re v o lu ç õ es e declara çõ es
lista de declarações abstratas, mas “um ato de guerra contra os tiranos”.9 Para os
franceses, a Revolução era um ato de vontade popular suprema, destinada a re
construir radicalmente a relação entre a sociedade e o Estado conforme os princí
pios dos direitos naturais. Ao contrário dos norte-americanos, não há nada óbvio
ou naturalmente lógico acerca deste ato e de suas consequências. O ancien rêgime
havia degradado a natureza e corrompido a constituição, e era tarefa da filosofia
auxiliar na elaboração de um esquema racional para o novo Estado, com base na
proteção dos direitos. Como observa Habermas, os franceses acreditavam que
quando o insight filosófico e a opinião pública estão separados, “recai sobre o filó
sofo a tarefa prática de proteger o reconhecimento político pela própria razão por
meio de sua influência sobre o poder da opinião pública. Os filósofos devem pro
pagar a verdade, devem propagar seus insights na íntegra e publicamente”.10 A Re
volução levou a filosofia para as barricadas e, uma vez vitoriosa, apontou-a como
sua principal conselheira.
A natureza pública e política da Revolução é evidente em todos os níveis.
Os direitos pertencem ao “homem” e ao “cidadão”, ressaltando uma íntima rela
ção entre humanidade e política; a diferença entre os direitos naturais do homem e
os direitos políticos do cidadão não fica clara; o “Ser Supremo” testemunha ape
nas e não legisla ou orienta a Declaração, que é o ato dos representantes do povo
agindo como o porta-voz da volontégénêrak de Rousseau. Finalmente, os direitos
proclamados não eram um fim em si mesmos, mas os meios usados pela Assem
bleia para reconstruir o Estado. Habermas conclui que, nos Estados Unidos, “é
uma questão de libertar as forças espontâneas da autorregulação em harmonia
com a Lei Natural, ao passo que na [França, a Revolução] busca impor pela prime
ira vez uma constituição plena conforme a Lei Natural contra uma sociedade de
pravada e uma natureza humana que havia sido corrompida”.11
Podemos detetar, nessas formulações, a expressão legal do projeto do Ilu-
minismo.12 A nova era prometia a emancipação do indivíduo de todas as formas
de opressão política primeiramente e, potencialmente, da tutelagèm/tutelage de
9 Citado em Norberto Bobbio, The A ge ofR igbts, Cambridge: Polity, 1996,87. (Em português: citado em B o b
bio, ^4 E ra dos D ireitos (trad. de Carlos Nelson Coutínho), Rio de Janeiro: Campus, 1992,98.] Cf. “ O tom da
Declaração é aparentemente abstrato; mas quem examinar com olhos de historiador as liberdades singula
res elencadas perceberá facilmente que cada uma delas representa uma antítese polêmica contxa um aspec
to determinado da sociedade e do Estado daquela época". D e Ruggiero, Storia d eiLiberalism o Europeo, citado
em Bobbio, 97, n. 34. [Em português: citado em Bobbio, ibid., n. 35,110.]
10 jurgen Habermas, Theoty and Practice, Londres: Heinemann, 1974,88.
11 Ibid., 105.
12 Veja, de um modo geraL Em stCassirer, ThePhiksophy f the Enlightenment (trad. F . C. A . Koelln e j . P. Pette-
. grove), Princeton NJ: Princeton University Press, 1968, especialmente o Capítulo V I; Lucien Goldmaan,
T he Phiksophy o f the Enligbtenment (trad. H. Maas), Londres: Roudedge and Kegan Paul, 1973.
104
C o s t a s D o u z in a s
13 Ernst Bloch, N atural L^n> and Human Dignity (trad. d eD . j . Schmidt), Cambridge, Mass.: M IT Press, 1988,
xi.
14 Charles Taylor, M ulticuliiiralism: Exam ining the Politics ofR scogiition, Princeton N j: Princeton University
Press, 1994,29; David Harvey,/«/*«, N alu n and the Geography o f Difference, Oxford: Blackwell, 1996.120-50.
Re v o l u ç õ es e d eclara çõ es
mos nossa história e podemos, portanto, julgá-la quando nos deparamos com
instâncias flagrantes de imoralidade histórica persistente. O agente da história e
a definição de opressão diferiram radicalmente desde o século XVIII: na extre
midade coletiva, revolucionários sociais, rebeldes anticoloniais e os bombardeiros
da OTAN na ex-Iugoslávia estavam todos envolvidos em cruzadas políticas de ca
ráter moral. Eles foram acompanhados, na extremidade privada, por doadores de
caridade, colaboradores assistenciais e redatores de cartas para o The Guardian e,
no meio disso, por campanhas em prol dos direitos humanos e ONGs. Os grandes
movimentos políticos da nossa era, que apelaram aos direitos humanos ou natu
rais, são os descendentes dos revolucionários franceses: eles incluem as campa
nhas antiescravidão e de descolonização, a luta popular contra o comunismo, o
movimento contra o apaiibeiâ, movimentos de protesto de sufragistas pelos direi
tos civis, de movimentos sindicalistas e de trabalhadores às várias resistências
contra a ocupação estrangeira e a opressão interna.
A estratégia norte-americana foi inicialmente mais passiva e otimista. Deter
minados traços sociais e leis permitiram a ação livré e, cõm algum incentivo gentil, vão
conduzir inexoravelmente ao estabelecimento e à promoção dos direitos humanos e
ao quase ajuste natural entre as demandas morais e as realidades empíricas. O livre
mercado, os procedimentos legais e o controle da legislação internacional ou nacio
nal podem retificar abusos dos direitos humanos com sua operação normal e impor
os princípios de dignidade e igualdade aos regimes tirânicos tanto quanto aos
democráticos. O enorme empreendimento de determinação de padrões nas Na
ções Unidas e em outras instituições internacionais e regionais, assim como os vá
rios tribunais, comissões e procedimentos de direitos humanos para supervisionar
seu cumprimento e implementação pertencem a essa segunda estratégia. Se, de
acordo com Lenin, o socialismo era uma combinação de democracia soviética e
eletricidade, para o presidente Carter, o primeiro grande expoente de uma política
externa moral, os direitos humanos são uma combinação de capitalismo e Estado
de direito. Seu sucesso depende de juristas, não de barricadas, de relatórios, não de
rebeliões e de protocolos e convenções, não de protestos. D a moralidade da histó
ria para a moralidade da lei, e da significância da cultura local para a predominância
de valores anistóricos, todas a principais estratégias e argumentos dos direitos hu
manos estavam prefigurados nessas declarações clássicas. Essa reconceitualização
radical de política, lei e moralidade traz consigo uma variedade de pressuposições fi
losóficas e importantes consequências para as quais nós agora nos voltamos.
15 Jean-Fraaçois Lyotard, The D ifférend(trad. G . van den Abbeele) (Manchester, Manchester University Press,
C o s t a s D o ü z in a s
nas do texto original francês são amplamente evidentes: no contraste entre homem
e cidadão, entre princípio e exceção, entre cidadão e estrangeiro, e entre homens e
mulheres, escravos, brancos, colonizados e todòs aqueles excluídos de direitos polí
ticos. Consequentemente, as contradições se revelam “na instabilidade da relação
entre o caráter aporético do texto e o caráter conflitante da situação na qual ele
surge e que serve como seu referente”.56 D o mesmo modo, o ponto de aplicação
do texto também é conflitante. Como perfomativas, as declarações desempe
nham sua função ao serem colocadas em prática no futuro, numa miríade de situa
ções e circunstâncias, muitas não previstas pelo legislador constitucional, muitas
em conflito com suas intenções originais.17 Os direitos humanos são prospectivos
e indeterminados; eles se tornam reais quando o ato de enunciação performa seus
efeitos em vários cenários, os quais, legitimados pela declaração, põem em prática
suas especificidades. Como uma declaração de prerrogativas, uma Declaração de
Direitos cria uma gramática prospectiva de ação e suas aplicações geralmente dife
rem do sentido sempre contestado de suas sentenças.
VamõFêxaminar, a seguir, de que forma o caráter performativo da
enunciação ancora uma série de reinvindicações feitas por grupos inicialmente
excluídos de determinados direitos.38 Tais reivindicações, se bem-sucedidas, es
tão apenas indiretamente relacionadas ao texto fundador. Deparamo-nos, portan
to, com um texto pragmaticamente aberto, cuja referência é um conflito passado e
cuja performance ajudará a decidir conflitos futuros. Interpretar a lei dos direitos
humanos, o que significa performar ou aplicar um código ou uma gramática a um
conflito, é, por definição, controverso. O infindável, repetitivo e até mesmo abor
recido debate norte-americano sobre a interpretação constitucional entre liberais,
conservadores radicais e “federalistas”, que alegam seguir as intenções dos fun
dadores, não é simplesmente uma questão de política de interpretação.19 Ao
contrário, ele escamoteia o fato de que a interpretação é política porque o tema
dos direitos humanos é político por outros meios. Tanto a origem quanto os des
tinos de uma Declaração de Direitos estão imersos em conflito. Assim, o texto,
mais que qualquer peça de literatura, é um modelo de indecibilidade, e mais que
qualquer programa de partido, é um manifesto político.
16 Etienne Balibar, "T h e Rights o f the Man and the Rights o f the Citizen”, in M asses, Classes, Ideas: Studies on Po-
litics and Philosophy before and after M arx (trad. j . Swanson) (New York, Routiedge, 1994) 3 9 -5 9 ,4 1 .
17 Hans-Georg Gadamer, Truth and M ethod, Londres: Sheen and Ward, 1975,324-41 [Em português: V erdade e
Método - Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica (trad, de Flávio Paulo Meuier), 4’. ed., Petrópoíis
RJ: V ozes, 2002]; Costas Doüzinas e Ronnie Warrington com Shaun McVeigh, PostmodernJurisprudence: The
L aw o f T ext in the T exts o f Law , Londres: Routiedge, 1991, Capítulos 2 e 3.
18 Veja o Capítulo 9 mais adiante.
19 Michelle Rosenberg (ed.), Constitutionalism, Identity, Difference and Legitimacy, Durham: Duke University Press,
1994; Ju st Interpretations, Berkeley: University o f California Press, 1998.
109
Revolu ç õ es e d ecla ra çõ es
A força das declarações não deve ser buscada, portanto, em seus apelos a
pactos originais fictícios ou em fontes divinas, nem nos igualmente místicos direitos
institucionais do homem inglês que se autogoverna e se autotributa. Na verdade, a
Declaração Francesa não faz qualquer referência a um pacto social. As declara
ções criam e exaurem a sua própria legitimidade em seu ato de enunciação. Não há
qualquer necessidade de oferecer nenhum argumento adicional, justificativa ou
razão para a sua gênese, além do ato proclamatório que confere aos legisladores
tanto o direito de legislar esses direitos quanto de alegar-que eles já pertencem a
todos os “homens”. Mas, embora o “homem” na natureza humana ou abstrata
seja o detentor ontológico de direitos em geral, nenhum direito humano no abs
trato, nenhum direito ao direito foi criado oü desenvolvido.20 Direitos humanos
envolvem sempre reivindicações específicas de liberdade de expressão, segurança
da pessoa etc. A base ontológica continua infundada, sem substância e determina
ção, um recipiente vazio que autoriza o legislador c recebe conteúdo é predicação
de atos históricos da elaboração das leis. Direitos humanos instalam a contingên
cia radical da proclamação linguística no coração dos acordos constitucionais.
20 Veja Renata Salecl, The Spoils ofF n etlm , Londres: Routledge, 1994,123-7.
21 Veja os Capítulos 8 e 9 mais adiante.
110
C o s t a s D o u z in a s
22 Citado em Jo an Scott, Only Paradoxes to Offer. French Fem inists an d the Rights ofM an, Cambridge Mass.: Har
vard University Press, 2996,6. Para uma história dos direitos das mulheres, veja P. H oflm ao, L a Femme dans .
la Pensée des Lumierss, Pads, Orphys, 1977; E . Varikas, "D roit naturel, nature féminine et égalité des sexes",
R em Internationale des R& herées et des Synthèses en Sciences Sociales, 3-4,1987.
Ill
Revolu ç õ es e d eclara çõ es
23 Ibid., 8.
24 Nicole Amaud-Duc, ‘'Women Entrapped: from Public Non-existence to Private Protection”, in A.-J.
Amaud e E . Kingdom, Women’s 'Rights and the Rights o f M en, Aberdeen University Press, 1 9 9 0 ,9 .
25 Citado ibid., 21.
26 Citado ibid., 11.
27 Ibid., 1 4
C o s t a s D o u z in a s
28 A .-j. Arnaud, “Women in the Boudoir, Women at the Pools: 1804, the History o f a Confinement”, in A .-j.
Amaud e E . Kingdom, Women's Rights and the Rights o f M en, Aberdeen University Press, 1990,1.
29 R. Badinter, LV niversalifé des D roits de I ’H om m dans tme Monde P/uraliste, Strasbourg, Conseil d’ Europe,
1989,2.
30 Elizabeth Kingdom, “Gendering Rights”, em A.-J. Arnaud e E . Kingdom, Women’s Rights and the Rights o f
Men, Aberdeen University Press, 1990,99. Para afirmações definitivas sobre a postara feminista, acerca dos
direitos, veja Luce Irigaray, Thinking the Difference (trad, de K . Montin), Nova Y ork, Roudedge: 1994; Nicola
Lacey, U nspeakable Subjects, Oxford: Hart, 1998.
31 C.L.R. Jam es descreve um interessante incidente durante a sessão da Assembleia Nacional que aboliu a es
cravidão em 1794. Uma mulhernegra que havia participado regularmente da Assembleia desmaiou quando
a votação da abolição foi aprovada. Ao ouvir isso, um representante pediu que ela fosse admitida à sessão.
Ela foi acomodada ao iado do orador, com lágrimas nos olhos, e foi;saudadacom aplausos. The "BlackJaco
bins: Toussaint d'Oitvtrfure and the San Domingo Revolution, Nova York: Vintage, 1980,140-1.
32 Joan Scott, op. c it, supra n. 22,11. Veja infra parte IV para otratamentoaestrangeirosnaFrançapós-revo-
lucionátia.
113
Revo lu ç õ es e declara çõ es .. .
ta. “Conheci italianos, russos, espanhóis, ingleses, franceses, mas não conheço o
homem em geral”, escreveu o conservador francês joseph de Maistre.-53Edmund
Burke concordou; os direitos são uma “abstração metafísica”,34 sua “perfeição
abstrata constitui seu defeito prático”.35 t£D e que adianta discutir o direito abstrato
do homem à alimentação ou aos medicamentos? A questão coloca-se em encon
trar o método pelo qual fornecê-la ou ministrá-los. Nessa deliberação, aconselha
rei sempre a que busquem a ajuda de um agricultor ou de um médico, e não de um
professor de metafísica.”36Direitos não são universais nem absolutos; eles não per-
tecem aos homens abstratos, mas a pessoas determinadas em sociedades concretas
com a sua “infinita modificação” de circunstâncias, tradição e prerrogativa legal.
Marx, na outra extremidade do espectro político, concordava: “O homem é
no mais literal sentido da palavra yoon politikon, não apenas um animal social, mas
um animal que pode se desenvolver como indivíduo somente em sociedade”.3' Sua
concordância é apenas parcial e acompanha Aristóteles e Montesquieu, ao enfati
zar a ação concreta e a procedência histórica dos direitos. Más a crítica ao “homem”
abstrato dos direitos não é simplesmente uma censura a seu excessivo racionalismo
ou a sua “especulação” metafísica. Para Marx, o “homem” dos direitos, ao contrá
rio de ser um recipiente vazio sem determinação e, portanto, irreal e inexistente, é
extremamente repleto de substância. Os direitos das declarações, sob o disfarce
da universalidade e da abstração, celebram e entronizam o poder de um homem
concreto, muito concreto: o indivíduo possessivo individual, o homem burguês
branco orientado ao mercado cujo direito à propriedade é transformado no fun
damento de todos os demais direitos e embasa o poder econômico do capital e o
poder político da classe capitalista. Para Burke e Marx, o sujeito dos direitos não
existe. Ou é muito abstrato para ser real, ou muito concreto para ser universal. Em
ambos os casos, o sujeito é falso, pois sua essência não corresponde, e não pode
corresponder, a pessoas reais.
33 C iad o em Claude Lcfort, The Political Forms o f M odem Society, Cambridge: Polity, 1986, 257.
34 Edmund Burke, Rejections on the R
’ evolution in France,J.G .A . Pockock (ed.), Indianapolis: Hackett, 1987,85.
[Em português: Burke, Reflexões sobre a Revolt!fio em Franca (trad, de Renato de Assumpçao Faria), Brasilia,
D F : Ed. U nB, 2a. ed., 1997.]
35 Ibid., 105.
36 I b i d . , 5 3 . [Em português: ibid., 89-90.] ,c n z -u a '
37 Kad Mars, Grundrisse em D . McLelian (ed.), Seletied Writings, Oxford: Oxford University Press, ,
114
C o s t a s D o u z in a s
38 Citado em Fiona Robinson, "H ie limits o f a rights-based approach to international ethics”, in Tony Evans
(ed.), Human Rights F ifty Y ears on:A reappraisal, M anchester Manchester University Press, 1998, 62.
39 V. S. Peterson e A. Sisson Ryan, G lobal Gender Issues, Boulder: W esm ew Press, 1993,34.
40 Ibid., 63.
116
C o s t a s D o u z in a s
41 julia Kristeva, N ations ivítkout Nationatísm (trad. de L> Roudiez), N ova York: Coiumbia Universitv Press
1993,20.
R evo lu çõ es e d eclara çõ es
42 Lyotard, op. c it, supra n. 15, 147. Esta afirmação parece representar também a modernidade recente
pós-Kosovo, se substituirmos norte-americanos por franceses.
43 A Je»s de Tocqueville, U anckn Tegpm t ila revolution. Paris: Gallimard, 1967,89.
44 Julia Kxisteva, Strangers to Ourscbes (trad, de Leon Roudiez), Columbia University Press, 1991,149.
118
C o s t a s D o u z in a s
45 Ibid., 156.
46 Ehsan Naraghi, 'T h e Republic’s Citizens o f Honour” em 1789: A ti Idea that Chanted the W orld, em The
U N ESCO Courier, junho 1989,13.
47 Ibid., 160.
48 Essa história fascinante é narrada em Albert Maöiiez, L a Révolution et les étrangers, Paris: La Renaissance du
liv re , 1928. Para uma versão resumida, na qual o presente rekto se baseia, ver Kristeva, supra n 4 4
148-67. y
49 Kristeva, supra a. 44,161.
119___________
Rev o lu ç õ es e declaraçõ es
não tem direitos porque não faz parte do Estado e é um ser humano inferior por
que não é um cidadão. Alguém é um homem em maior ou menor grau porque é
um cidadão em maior ou menor grau. O estrangeiro é a lacuna entre homem e ci
dadão. O sujeito moderno é o cidadão, e a cidadania garante os requisitos mínimos
necessários para ser um homem, um ser humano. Nós nos tornamos humanos atra
vés da cidadania, e a subjetividade é baseada na lacuna, na diferença entre homem
universal e cidadão do Estado.
Podemos concluir que o “homem” das declarações é uma abstração, uni
versal, mas irreal, uma entidade “desencarregada” despojada de suas característi
cas. Como representante da Razão, ele não tem tempo nem lugar. O cidadão, por
outro lado, é sempre um “homem inglês” burkeano. Tem direitos e deveres con
feridos a ele por leis do Estado e pela tradição nacional; deve ficar subordinado à
lei para tornar-se sujeito da lei. Conforme sugere Jay Bemstein, “a cidadania si
tua-se entre e medeia a particularidade abstrata da identidade pessoal e a univer
salidade abstrata dos direitos humanos. Os indivíduos somente têm direitos na
comunidade”.50 Para os que não têm representação, sobra muito pouco. Os
sem-Estado, os refugiados, as minorias de vários tipos não têm quaisquer direitos
humanos. Quando Estados liberais alegam ter abolido privilégios e proteger direi
tos universais, eles querem dizer que os privilégios foram agora estendidos a um
grupo chamado coletividade de cidadãos, que corresponde ainda à uma pequena
minoria. A subjetividade moderna é baseada naqueles outros cuja existência é evi
dência da universalidade da natureza humana, mas cuja exclusão é absolutamente
crucial para uma personalidade concreta, em outras palavras, para a cidadania.
Portanto, é possível argumentar que a Declaração dos Direitos Humanos
é a precondição da soberania e éstá inescapavelmente entrelaçada com a legisla
ção. O soberano moderno chega à sua vida onipòntente ao proclamar os direitos
dos cidadãos. Vistos a partir desta perspectiva, os direitos humanos são tentativas
de construir um princípio protetor contra o Leviatã, com base no reconhecimento
do desejo e na sua instituição como um contraprincípio ao desejo do Estado. Se o
Direito Público moderno é a legislação da política, os direitos humanos são a le
gislação do desejo, e seus componentes principais refletem profundamente as
características do Leviatã. O direito natural hobbesiano encontra seu limite no
Outro, e o Outro absoluto é a morte. Esses dois princípios que parecem ser contra
ditórios, falar para duas lógicas completamente diferentes, são os dois lados da mesma
moeda. Sua combinação histórica só poderia dar certo em momentos apocalípticos
absolutos, nos quais uma classe revolucionária compreende a história e impõe uma
50 Jay Bernstein, “Bights, Revolution and Community; Mars’s ‘O n the Jewish Question’ ” em Peter Osborne
(ed.), Socialism and the Lim its o f Liberalism , Londres, Verso, 1991,91-119,11 4 .
C o s t a s D o u z in a s
nova lógica radical. Mas essa combinação de lei e razão revolucionária que pode
mudar o curso dos antigos rios da história é factível somente por meio de -uma
violência apocalíptica; o homem torna-se o princípio da política em uma erupção
momentânea e suas respectivas declarações na França e nos Estados Unidos.
Assim que a lógica contraditória foi normalizada e colocada em prática, os dois
membros do paradoxo, de acordo com o qual o homem pode ter direitos inaliená
veis quando ele não tem quaisquer direitos a não ser aqueles garantidos a ele
pelo soberano, separam-se e determinam duas trajetórias opostas: aquela da so
berania, do positivismo jurídico e da intervenção utilitária, e aquela de um dese
jo autocriador que é potencialmente crítico do Estado e de sua lei. O positivismo
é um ataque a todos os princípios de transcendência. O projeto radical dos direi
tos humanos, embora aceite a rejeição da transcendência religiosa da modernida
de, insiste na importância do princípio de transcendência para a reconstrução das
formas históricas e herda a tarefa clássica de conceber uma ordem política e legal
que está além do aqui e agora.
6. O TRIUNFO DA HUMANIDADE: D E 1789 A 1989 E DOS DIREITOS NATURAIS AOS
DIREITOS HUMANOS .
1 j ererny Bentham, A .narchltkalfa lla d ss; being an examination o f the Declaration of'Rights issued during the FrencbR e-
volution em Jeremy Waldron (ed.), Nonsense upon Stilts, Londrcs: Methuea, 1987,46-76.
122
C o s t a s D o u z in a s
o resultado da lei comum da terra (...) e a lei da constituição não é a origem, mas a
consequência dos direitos dos indivíduos”.3 A combinação vitoriana de Dicey de
paroquialismo inglês com triunfalismo imperial expressou um abandono mais
amplo do princípio moral e do direito natural, vistos como abstrações metafísicas
e mitos, em prol de uma apreciação mais pragmática do enorme potencial de po
der do Estado deixado para seus recursos irrestritos. O tradicionalismo agressivo
de Burke finalmente havia se tomado o princípio da Constituição. Nos Estados
Unidos, as relações raciais foram definidas durante um século pelo princípio do
apartheiã de “separado, porém igual”, abandonado somente em 1954.4 A garantia
de livre expressão da Primeira Emenda, o direito mais litigado na história da
Constituição norte-americana, teria de esperar até 1919 para seu primeiro apareci
mento diante da Suprema Corte.5 Na Europa continental, Hannah Arendt obser
vou que, antes da Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos “haviam sido
invocados de modo bastante negligente, para defender certos indivíduos contra o
poder crescente do Estado e para atenuar a insegurança social [causada pela Re
volução Industrial]” (grifo meu). Aqueles juristas e filantropos que tentavam usar
os direitos humanos para proteger as minorias “tinham uma estranha semelhança
de linguagem e composição com os das sociedades protetoras dos animais”.6 E o
teórico jurídico alemão, Otto Gierke, escrevendo em 1934, enquanto os nazistas
estavam tomando o poder,.lamentava que, na Alemanha, “direito natural” e “hu
manidade” “tornaram-se agora praticamente incompreensíveis (...) e perderam
totalmente sua vida e cor originais”.7
Esse processo foi facilitado e acelerado pela transformação da filosofia po
lítica e da jurisprudência em ciência política, pela transformação da história em filo
sofia da história e pela evolução da grande teoria social. Hegel, Comte, Durkheim,
Marx, Weber e Freud substituíram seu interesse inicial pelos direitos individuais
por uma análise dos processos e. estruturas sociais que moldam a subjetividade e a
ação. Como observa o criador da sociologia, Auguste Comte, o espírito dos direi
tos do homem
3 A. V . Dicey, Introduction to the Study o f the L& v c fthe Constitution, Londxes, 1885; 10a-ed, 1959, com Introdução
de E.C.S. Wade, 198-9.
4 Bm vn v. B oard o f Education ofT cpeka 347 U.S. 483 (1984). A parte judicial da luta pela dessegregação é narrada
em Richard Kluger, SimpleJustice, Londres: Andre Deutsch, 1977.
5 Scbenck v. United States, 249 U.S. 47 (1919).
6 Hannah Arendt, The Origins ofTotalitarianism , San Diego: Harvest Books, 197 9 ,2 9 3 ,2 9 2 . [Em português: A s
Origens do Totalitarism o —Anti-semitismo, Imperialismo e Totalitarism o (trad, de Roberto Raposo), São Paulo:
Companhia das Letras, 1989, 326.]
7 O tto Gierke, N atural Law and tbe Theory o f Society (txzàu ú do com Introdução de Ernest Baker), Cambridge:
Cambridge University Press, 1934, 201-2.
124
C o stas D ou zin as
Nesse clima intelectual em que a ideia de sociedade foi inventada, ela re
cebeu prioridade em relação ao indivíduo e se tomou o principal objeto da in- •
vestigação científica. A consciência coletiva de Durkheim, a primazia de Marx do
econômico sobre os aspectos morais do desenvolvimento histórico e o processo
de Weber de racionalização sacudiram drasticamente a ideia naturalista, que havia
colocado os indivíduos e seus direitos num lugar mais elevado que as reivindica
ções sociais ou haviam afirmado que a sociedade era o resultado de acordos con
tratuais. As sociedades não mais eram vistas como o produto da_ação individual
deliberada, tampouco era a proteção dos direitos naturais a sua tarefa principal.
Como observa a historiadora joan Scott, “ao final do século XIX, o indivíduo foi
definido por teóricos sociais não em oposição ao social ou à sociedade, mas como
seu produto”.9 Para a teoria social que estava surgindo, a estrutura tomou-se políti
ca e cognitivamente mais importante do que a agência, os indivíduos tinham baixo
valor espistemológico e eram alvos de múltiplas determinações externas e limita
ções internali2adas. O indivíduo recém-liberado logo se tornou o objeto de poder
disciplinador e sua suposta soberania e suposto direito deram lugar a técnicas de
normalização.10
Um importante efeito dessa virada teórica foi a criação do conceito de
ideologia. A ideologia era.definida ou como falsa consciência, que poderia ser corri
gida pela ciência, ou como um conjunto de ideias representando interesses estreitos
e seccionais, porém reivindicando a dignidade do universal. Os direitos naturais
tomaram-se um excelente exemplo de ilusão ideológica; contra-suas pretensões
absolutistas, eles agora eram vistos como discurso convencional e interessado do
mais dúbio caráter. Ideologicamente reinterpretados, os direitos naturais passa
ram de eternos para invenções histórica e geograficamente locais, de absolutos
8 TbePositivePbilosoply ofA ugiste Comte {cà. e trad. deHarrietMartineau), Londres: 3a. ed., 1893, V o l 2,5 1 .
9 jo a n Scott, Only Paradoxes to Offer: French Feminists and the 'Rights o f M an, Cambridge Mass.: Harvard Univer
sity Press, 1996,10.
10 Michel Foucault, Discipline a id Punish: The Birth ofthePnson, Harmondsworth: Penguin, 1979; Michel Foucault,
The History o f Sexuality, V olum I : A n Introduction, Harmondsworth: Penguin, 1981. [Em português: V igareP u gr
- O Nascimento da Prisão (an d. de Raquel Ramalhete), Petrópolis RJ: Vozes, 1987; H istória da Sexualidade, vol. T, ■
A Vontade de saber (a-iá. de Maria Teresa da C. Albuquerque e j . A. Guilhon de Albuquerque), Rio de janeiro:
Graal, 2003,15’. ed.]
125'
O T R IU N FO DÁ H UM AN ID AD E
11 Leo Strauss, N aturaiLtnv and History, Chicago: University o f Chicago Press, 1965,33. Porém, veja o Capítu
lo 10 para uma réplica a essa crítica a partir de uma perspectiva hegeliana.
126
C o s t a s D o u z in a s
polícia e acabam quando ela é chamada para ajudar; pois cada absurdo peio qual
sofremos degenera para uma legalidade, assim como cada martírio acaba nos pa
rágrafos da Lei (...) Um Anjo protegido por Um policial - é assim que as verdades
morrem, é assim que os entusiasmos se esvaem”.12
O Direito Natural radical, por outro lado, desde os estoicos até o início da
modernidade, havia usado a natureza como produtora do futuro no presente e
sempre suspeitou da redução do direito ao racional ou ao real. Conforme sugere
Heidegger, a partir de uma perspectiva distinta, “mais acima da realidade reside a
possibilidade”.13 O que é não pode ser verdade ou idêntico a si mesmo, pois no
coração do presente espreita o que ainda está por vir. Contudo, a rejeição histori-
cista do direito natural significou que
todo direito é direito positivo, e isto significa que o que é certo é determinado
exclusivamente por legisladores e tribunais dos diferentes países, já, é obvia
mente'significativo, e às vezes até mesmo necessário, falar de leis “injustas” e
decisões “injustas”. Ao aprovar tais julgamentos pressupomos que há um pa
drão de certo e errado independente do direito positivo e mais elevado que o
direito positivo. Muitas pessoas hoje acreditam que o padrão em questão é, na
melhor das hipóteses, nada mais do que o ideal adotado por nossa sociedade
ou nossa “civilização” e personificado em seu modo de vida ou em suas ins
tituições (...) Se não existe um padrão mais elevado que o ideal da nossa soci
edade, ficamos totalmente impossibilitados de tomar uma distância crítica
daquele ideal.14
A perda do idéal critico e a tradução jurídica da perspectiva utópica tiveram
efeitos catastróficos. O caminho entre o desaparecimento dos direitos naturais no
século X IX e início do século XX e os recentes pronunciamentos do-tniinfo final
dos direitos humanos passa por duas guerras mundiais, um imenso número de con
flitos locais e inumeráveis, atrocidades e desastres humanitários. E é iluminado pelas
chamas do Holocausto.
12 E . M . G oran, A Short H istory o f Decay (trad, de R. Howard), Londres: Quartet Books, 1990, 74.
13 Martin Heidegger, Being and Time, Nova York: Harper and Row, 19(52,63. p m português: S ere Tempo (trad,
rev. de Márcia Sá C. Schuback), Petrópolis RJ: Vozes e Bragança Paulista SP: Ed. Universitária São Francis- .
co, 2006.}
14 Strauss, op. c it, supra n. 11,2-3.
___________127___________
O TRIUNFO DA HUMANIDADE
não será repetida aqui.15 Seus momentos simbólicos induem os Tribunais de Nu-
remberg e Tóquio, a assinatura da Carta das Nações Unidas (1945) e a adoção da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Seguindo a esses atos funda
mentais, a comunidade internacional lançou uma longa campanha de estabdeci-
mento de padrões. Centenas de convenções, tratados, dedaraçõès e acordos de
direitos humanos foram negodados e adotados pdas Nações Unidas, por orga
nismos regionais, tais como o Conselho da Europa e a Organização da Unidade
Africana, e por Estados.16 Os direitos humanos diversificaram-se de direitos dvis
e políticos, ou “negativos”, da “primeira geração”, assodados ao liberalismo, para
direitos econômicos, sociais e culturais, ou “positivos”, da “segunda geração”, as
sociados à tradição socialista, e, finalmente, para direitos de grupos e de soberania
nacional da “terceira geração”, associados ao processo de descolonÍ2ação. A pri
meira geração, ou direitos “azuis”, é simbolizada pela liberdade individual; a se
gunda, ou direitos “vermelhos”, por rdvindicações de igualdade e garantias de um
padrão de vida decente, ao passo que a terceria, ou direitos “verdes”, pelo direito à
autodeterminação e, tardiamente, pela proteção ao meio ambiente. Mas o que
está por trás dessa proliferação aparentemente incontívd dos direitos humanos?
A transformação mais evidente na transição dos direitos naturais para os
humanos foi a substituição de sua base filosófica e,de suas origens institudonais.
A crença na possibilidade de proteção dos direitos, fosse por intermédio do ajuste
automático das prerrogativas da natureza humana e da ação das instituições jurídi
cas, ou por intermédio das advinhações legislativas da soberania popular, mos-
trou-se irreal: Conforme observou Hannah Arendt, “é perfeitamente concebível
(...) que, um belo dia, uma humanidade altamente organizada e mecanizada che
gue, de maneira democrática—isto é, por decisão da maioria—, à condusão de que,
para a humanidade como um todo, convém liquidar certas partes de si mesma”.17
Sua afirmação, expressa como úma previsão, já se tornou um fato histórico terrí
vel. O “mercado” de dignidade e igualdade humanas não escamoteou uma “mão
secreta”, e as pessoas votaram e ainda votam em regimes e partidos determinados
a violar todos os direitos humanos, conforme demonstram os exemplos da Ale
manha de Hitler e da antiga Iugoslávia de Milosevic. Se a Revolução Francesa e a
15 D entre muitos, veja as seguintes introduções teoricamente orientadas à história e à filosofia dos direitos
humanos: Louis Heoldn, TheA ge cfR ights, Nova York; Columbia University Press, 1990; Norberto Bòfabio,
T beA gs o f Rights, Cambridge: Polity, 1996 [Em português: Bobbio, A E ra dos D ireitos (trad, de Carlos Nelson
Coutinho), Rio dejaneiro: Campus, 1992]; Jack Donnelly, UniversalHuman Eights in Theory andPractice,Ithz-
ca: Cornell University Press, 1989.
16 Para o mais abrangente compêndio sobre a rapidamente proliferadora lei internacional dos direitos huma
nos, veja Ian Brownlie (ed ), Basic Documents on Human Rights, Oxford: Clarendon, 1994.
17 Arendt, op. cit., supra n. 6 ,2 9 9 . [Em português, op. cit., 332.]
C o s t a s D o u z in a s
18 Leo Pasvolsky no Comitê de Relações Exteriores, The C harier o f lhe Ü niteJN etions Hearings citado em Nor
man Lewis, “Human rights, law and democracy in an unfree world” em Tony Evans (ed.), Human Rights
Fifty Years On: A reappraisal (Manchester, Manschester University Press, 1988), 88.
___________ 129 __________
O TRIUNFO DA HUMANIDADE
Todo Estado e todo poder ficam sob o raanto da lei internacional dos di
reitos humanos, cada governo torna-se civilizado uma vez que a “lei dos prínci
pes” finalmente tornou-se a lei “universal” da dignidade humana. Mas esta é uma
universalidade empírica, baseada na solidariedade competitiva de governos sobe
ranos e nos interesses pragmáticos e cálculos da política internacional. O univer
salismo variável do Direito Natural clássico ou a universalização kantiana atuaram
como princípios reguladores: eles conferiram uma perspectiva a partir da qual
cada ação em particular poderia ser julgada, pelo menos em teoria, em nome do
universal. A universalidade empírica dos direitos humanos, por outro lado, não é
um princípio normativo. É uma questão de contar quantos Estados adotaram
quantos tratados, ou quantos inteoduziram que reservas ou derrogações das obriga
ções dos tratados. Quando a universalidade normativa se toma uma globalização
calculável, ela passa de um ideal nobre, embora impossível, para o menor denomi
nador comum dos interesses e rivalidades do Estado. A comunidade dos direitos
humanos é universal, porém imaginária; a humanidade universal não existe empi
ricamente e não pode atuar como um princípio transcendental filosoficamente.
Direitos positivados universais preenchem a lacuna entre a realidade em
pírica e a ideal deixada aberta pela separação francesa entre homem e cidadão,
apesar de seus problemas evidentes. Um Estado que assina e aceita convenções e
declarações de direitos humanos pode alegar ser um Estado de direitos humanos.
Direitos humanos são, então, vistos como um discurso indeterminado de legiti
mação do Estado, ou como a retórica vazia da rebelião, discurso este que pode ser
facilmente co-optado por todos os tipos de oposição, minoria ou líderes religio
sos, cujo projeto político não é humanizar Estados repressivos, mas substituí-los
por seus próprios regimes igualmente homicidas.
Vamos agora passar das -bases para as instituições. As fragilidades e
inadequações do Direito Internacional, particularmente quando diante de in
divíduos, são bem conhecidas. Tradicionalmente, a lei do “príncipe civiliza
do” não tinha o menor interesse em pessoas comuns tampouco oferecia a elas
um locus standi, ou o direito de serem ouvidas. Isto certamente se modificou
desde a adoção da Declaração Universal, mas os problemas conceituais persis
tem. Primeiro, os direitos humanos são ainda predominantemente violados ou
protegidos em âmbito local. Eles foram criados como uma proteção superior
ou adicional contra o Estado, seu exército é sua polícia, suas autoridades políti
cas e públicas, seus juizes, negócios e mídia. Estes continuam sendo os culpados
ou —raramente —os anjos. Independente do que digam as instituições interna
cionais ou de quantos tratados os ministérios de relações exteriores assinem, di
reitos humanos são violados ou apoiados nas ruas, no local de trabalho e na
delegacia de polícia local. Sua realidade é burkeana, não kantiana. Até mesmo
no âmbito formal as cláusulas das constituições e leis nacionais são muito mais
importantes do que as incumbências internacionais.
130
C o sta s D o u z in a s
19 Norman Lewis, ibid., 89. Para a relação entre políticas internas e atitudes internacionais, veja P .G . Lauren,
Power an d Pnjudict: The P oliíks and Diplomacy o f R ociai Discrimination, Oxford: Westview Press, 1996, 2a. ed..
___________ 131___________
O TRIUNFO DA HUMANIDADE
20 Uma ilustração extrema desse problema existiu até 1998, ao mais bem-sucedido mecanismo de direitos hu
manos, a Convenção Européia de Direitos Humanos (EH RÇ). Em bora a Convenção mantivesse uma en
tidade semi e outra totalmente judicial (a Comissão e o Tribunal), a decisão formal nos casos não aplicados
ao Tribunal era tomada pelo Comité de Ministros. E m consequência, muitos casos politicamente contro
versos eram passados para os ministros que, geralmente, em vez de aceitarem as decisões da Comissão in
vestigadora as deixavam em suspenso. O problema era agravado peio fato de que o indivíduo que havia ini
ciado a reivindicação não tinha o direito de submeter o caso ao Tribunal para uma determinação final Isto
se modificou com a implementação do 1 I o. Protocolo à Convenção e com a fusão da Comissão com o T ri
bunal Porém, os membros do novo Tribunal unificado ainda são nomeados pelos governos e, a partir de
experiências passadas, ficam relutantes a votar contra reconhecidos interesses nacionais. Com efeito, mui
tos dos novos nomeados para o novo Tribunal são antigos diplomatas ou funcionários civis, o que dá ori
gem a sérias dúvidas quanto à sua independência. Pode soar impossível, mas, a menos que os governos se
jam afastados da direção das instituições de direitos humanos, elas terão pouca legitimidade.
* Radovan Karadzic e o comandante de seu Exérdto, Ratko Mladic, foram iadidados pelo Tribunal Intema-
donaí para a ex-Iugoslávia em julho de 1995 (caso no. IT-95-5-1); a íntegra de seu indiciamento, que deta
lha todas as acusações contra eles, está disponível em (acesso em 22 jul 08). Karadzic foi preso na Sérvia,
em julho de 2008, e Mladic continua foragido, “Karadzic é preso na Sérvia por genocídio”, O Estado ds S.
Paulo, 22 jul 08, A l 1 (N .d eT .).
132
C o s t a s D o u z in a s
ilustração simbólica da situação da lei dos direitos humanos, a Força foi autoriza
da a prendê-los, caso eles cruzassem o seu caminho, mas não a persegui-los.21** Fi
nalmente, em algumas poucas instâncias os tribunais ou comissões internacionais
investigam reivindicações de vítimas de abusos dos direitos humanos e procedi
mentos de conduta pseudojudicial contra Estados. Contudo, a jurisprudência dos
tribunais de direitos humanos é extremamente restrita e duvidosa, e suas rápidas
mudanças de rumo confirmam alguns dos piores temores do realismo jurídico: ju
ristas que aparecem diante de entidades internacionais, tais como o Tribunal Eu
ropeu de Direitos Humanos, rapidamente aprendem que pesquisar as filiações
políticas dos juizes nomeados pelos governos é uma preparação melhor do que
estudar as leis elaboradas a partir de casos precedentes do Tribunal. É sabido
que mudanças na orientação política dos governos nomeadores rapidamente se
refletem no pessoal dos tribunais e das comissões de direitos humanos interna
cionais.22 ^
Sob essa luz, a criação de um tribunal permanente para crimes de guerra
adquiriu uma enorme signiíicância. Um tratado estabelecendo-o Tribunal Penal
Internacional (doravante TPI) foi adotado em Roma por representantes de 120
países, em julho de 1998. O TPI tem jurisdição sobre crimes de guerra e crimes de
agressão, crimes contra a humanidade e genocídio. Ele substitui os tribunais para
crimes de guerra ad hoc, como os de Nuremberg, Tóquio, ex-Iugoslávia e Ruanda,
e se encontra em melhor posição para defender suas ações da crítica padrão de
que a responsabilidade penal internacional equivale a um caso particularmente
vingativo de “justiça dos vencedores”. Sem dúvida, todas as medidas que afastam
os direitos humanos e sua administração dos governos, os principais vilões do pe
daço, são bem-vindas, juizes independentes, sensíveis à péssima situação dos
21 Um resultado semelhante seguiu ao hdiciamento de Miiosevic durante a guerra do Kosovo. Conforme ad
mitiu o cx-presidente Ciinton, após o final da guerra, as forças da OTA N em Kosovo não foram autoriza
das a prender Miiosevic e sua denúncia não é iminente.
** O cx-presidente Siobodan Miiosevic manteve-se iíder até 2000, quando se recusa a aceitar o resultado das
umas e o povo exige a sua deposição. Entra paxa a clandestinidade e épreso em 2001, em Belgrado, e trans
ferido para a sede do T P I, em Haia. Foi encontrado morto em sua cela na prisão, em março de 2006, duran
te seu julgamento por crimes de guerra (N. de T.)
22 Somente o sistema europeu segue um procedimento judicia! experiente e tem uma lei de casos desenvol
vida. A té mesmo na Europa, entretanto, durante a maiorparte da sua existência os organismos de Estras-
burgo declararam admissível” e examinaram menos de 3 % de todos os processos submetidos a eles.
Esta porcentagem aumentou levemente desde a admissão dos países do Leste europeu nos anos 1990. A
jurisprudência da Comissão europeia e, mais ainda a do Tribunal, acompanhou as concepções políticas
dos governos nomeadores que asseguraram que seus nomeados são ideologicamente simpáticos às suas
concepções. Para uma análise cuidadosa sobre as prioridades políticas e os métodos dos tribunais e insti- .
tuições de direitos humanos, veja Roiando Gaete,H#«dff K & te an itheL irm U ofCriticaT& iason, Aidershot:
Dartmouth, 1993, Capítulos 6,7 e 8.
___________133_________ :
O TRIUNFO DA HUMANIDADE
23 Henry Steiner e Philip Alston, hitm ation álHuman Eights in Context, Oxford: Clarendon, 1 9 9 6 .0 Capítulo 15
analisa o debate que conduz ao estabelecimento do Tribunal. Para críticas anteriores ao Tratado de Roma,
veja Steve Tully, “A vain Conceit? T h e Rome Statute o f the ICC and the Enforcem ent o f Human Rights”,
I I Wig & Caw/1999,16-20; M ortenBergsmo e David Toibert, “Reflections on the Stature o f die IC C”, I I
Wigó'Cavenm,2í-6.
*** O ex-ditador chileno foi detido em Londres, em outubro de 1998, e cumpriu prisão domiciliar em uma
mansão em Surrey até março de 2000, quando retomou ao Chile. O governo britânico alegou na ocasião
que ele não estava em condições de enfrentar um julgamento por razões de saúde e negou a sua extradição
para a Espanha. Seus últimos anos em Santiago foram marcados por acusações, julgamentos, prisões domi
ciliares, concessões e perdas de imunidade. Pinochet faleceu em dezembro de 2006 (N. de T.).
24 "U S troops •will quit, allies warned”, The Guardian, 10 jul 1998,3.
134
C o s t a s D o u z in a s
que poderia ter minado a premissa por trás do novo Tribunal. David Scheffer, o
representante norte-americano, declarou que se a conferência aprovasse a juris
dição universal, para o TPI, os Estados Unidos iriam “ativamente se opor” a ele
desde o princípio.25 A Conferência, na ânsia de incluir a principal força militar in
ternacional no tratado, restringiu drasticamente os poderes do TPI e enfraqueceu
sua independência, mas não deu a garantia absoluta de que nenhum soldado nor-
te-americano jamais fosse trazido perante ele. Por conseguinte, os Estados Unidos
foram um dos sete países, que incluíam Iraque, Líbia e China (nações que a políti
ca externa norte-americana tem com frequência endemoniado), a votar contra a
versão final e muito comprometedora.
Os Estados Unidos geralmente promovem o universalismo dos direitos.
Sua rejeição ao TPI representou uma ocorrência de relativismo cultural que adqui
riu a forma de uma cláusula de exceção imperial Representou também uma ad
missão implícita de que crimes de guerra e atrocidades não são domínio èxclusivo
de regimes “rebeldes”.26 Isso não. deveria nos surpreender. O universalismo, na
cional e internacionalmente, vem com o recurso de optar pelo não. Esta não é
simplesmente uma questão de hipocrisia do poder; uma reivindicação de univer
salidade pode ser feita se uma potência pelo menos não está coberta por ela e é ca
paz de definir os parâmetros do universal. Isso era a França, na ordem moderna
antiga, e são os Estados Unidos na nova ordem mundial.
membro chinês sugeriu em uma festa que ele deveria “suspender [suas] demais
obrigações durante seis meses e estudar filosofia chinesa, período após o qual [ele]
seria capaz de preparar um texto para o comitê”. Humphrey preparou o texto, que
foi substancialmente adotado pelo comitê, porém sua resposta à sugestão indica a
atitude ocidental que afinai se tornou a face universalista do debate em oposição
ao relativismo cultural: “Não fui à China nem estudei os textos de Confucius”.27
Os traveauxpréparatoires que ele usou para preparar sua versão originaram-se, com
apenas duas exceções, de fontes ocidentais em língua inglesa, sendo o ponto de
vista do American Law lnstitute uma influência central.28Apenas um dos sete elabo-
radores principais não era cristão, conforme observa Stephen Marks, “o nível do
grupo [de elaboradores] na qualidade de filósofos e moralistas fica aquém de seus
predecessores do século XVHI”.29
Humphrey acreditava que sua versão “era uma tentativa de combinar li
beralismo humanitário e democracia social”.30 O componente social-democrático
da Declaração consistia em uma série de direitos econômicos, sociais e culturais
que, segundo Antonio Cassese, “reduzia consideravelmente o impacto das ideias
ocidentais ao assegurar aprovação para alguns postulados fundamentais da ideo
logia marxista”.31 Não foi assim que o delegado soviético a viu; para ele a Declara
ção era simplesmente “um amontoado de frases devotos”. O bloco soviético e a
Arábia Saudita abstiveram-se da votação final na Assembleia Geral, ao passo que a
África do Sul votou contra. Porém, a posição soviética não foi a única. Sentimen
tos semelhantes foram manifestados pelo representante norte-americano nas Na
ções Unidas, durante o governo do presidente Reagan, que chamou a Declaração
de “uma carta para Papai N oeF, e pelo embaixador norte-americano, Morris
Abram, que, ao se dirigir à Comissão de Direitos Humanos da ONU, rejeitou o di
reito ao desenvolvimento como sendo um “incitamento perigoso” e “pouco mais
do que um recipiente vazio dentro do qual esperanças vagas e expectativas incipi
entes podem ser despejadas”.32
Após esse início pouco propício, os direitos humanos tornaram-se uma
importante arma ideológica durante a Guerra Fria. As frentes de batalha foram es-
33 Um relatório britânico bem mais modesto sobre direitos humanos foi publicado pela primeira vez pelo D e
partamento de Desenvolvimento Internacional, em abril de 1998. Como parte da nova política externa
“ética” do Partido dos Trabalhadores, ele foi comparado “em estilo e formato [a] uma grande empresa pú
blica anunciando seus resultados” , com um tom “otimista” e um humor “corporativo e lustroso”. The Gu
ardian, 22 abr 1998, 11.
34 “Amnesty urges curb on US ‘human rights abuse’ ”, The G uardian, 14 abr 1999 .9 . É notável que o Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos tenha determinado que as condições de detenção nos corredores da morte -
norte-americanos equivalem à violação do Artigo 3o. da Convenção que proíbe a tortura e o tratamento de
sumano e degradante. Soeríngv. U K (1989) I I E H R R 439.
137
O T R IU N FO D A H UM AN ID AD E
este incidente, não foi nenhuma surpresa que a publicação do relatório final dos
sábios fosse acompanhada de controvérsia. Foi amplamente relatado que gover
nos europeus se mexeram antes da publicação para depreciar propostas de que a
UE deveria estabelecer um departamento especial, dirigido por um novo comis-
sionário, para coordenar a atuação em direitos humanos por toda a Europa.
Foram omitidos da versão final referências ao tratamento desumano e degradante
dispensado a detentos e detalhes de mortes de pessoas em busca de asilo sob a cus
tódia policial, que constavam no relatório inicial. Mas o relatório realmente con
cluiu, apesar dos esforços dos eurocratas regados a vinho francês, que na Europa “a
forte retórica dos direitos humanos não corresponde à realidade”.35
Se o placar ideológico é o preço simbólico por trás das controvérsias sobre
direitos humanos, o comércio e a penetração no mercado geralmente representam
o verdadeiro intej^sse. Um exemplo interessante vem das prósperas relações
sino-ocidentais. Supostamente, elas foram seriamente afetadas após o massacre de
centenas de estudantes que protestavam na Praça da Paz Celestial, em maio de
1989, e da ampla repressão a dissidentes que ainda ocorre na China. Mas esse es
friamento das relações perdurou por um período limitado, e as relações normais
foram logo restabelecidas. Tem sido repetidamente relatado que toda vez que
um líder ocidental visita Beijing, listas de dissidentes conhecidos são entregues
às autoridades chinesas. “Diplomatas cínicos dizem que isso mantém o lobby do
méstico dos direitos humanos em silêncio. D e tempos em tempos, a China ganha
créditos diplomáticos pela libertação de um nome famoso.”36 O país tem sido
particularmente perito no uso de negociações comerciais para evitar o opróbrio
internacional. Em consequência, nenhuma resolução criticando violações chine
sas passou pela Comissão de Direitos Humanos da ONU. D o mesmo modo, em
1997, apesar de sua política externa "ética”, o governo britânico foi adiante com a
negociação para vender jatos Hawk ao regime indonésio genocida do Presidente
Suharto, cujo longo e repressivo reinado levou à morte meio milhão de timoren-
ses do leste. Como observou um político da oposição, “outros governos darão
bem pouco crédito a Robin Cook se ele sair pelo mundo ensinando-lhes sobre
direitos humanos, sabendo eles que o governo britânico emitiu oitenta e cinco
novas licenças de exportação [de armas] para a Turquia e vinte e duas para a
Indonésia [entre maio de 1997 e abril de 1998]”-.-37 D e acordo com revelações re
35 “Europe’s human rights rhetoric at odds with reality”, T he Guardian, 10 out 198 8 .0 relatório finai “Leading
by example: A Human Rights Agenda for the European Union for the Year 2000” está publicado em Philip
Alston, "T h e European Union and Human Rights”, Oxford University Press, 1999, apêndice.
36 “T h e price o f dissent”. The Guardian, 31 mai 1999, G2.
37 “Robin Cook’s tour o f the global badlands”. The Guardian, 22 abr 1998,6. ' ':
___________139___________
O TRIUNFO DA HUMANIDADE
38 “U S aided butchers o f Timor”, The Observer, 19 set 1999. V eja também Jo h n Pilger, “Under the influence” ,
The Guardian, 21 set 1999,18.
140
C o s t a s D o u z in a s
mata gaba-se de que uma coerência de princípios nas relações exteriores é impos
sível na prática, indesejável nas negociações, mas indispensávei na apresentação
pública da política. A coerência moral requer a existência de uma moralidade in
ternacional e transcultural comum, que minaria iniciativas políticas visando a sa
tisfação da consciência da humanidade. Contudo, nenhum desses elementos exis
te ou pode surgir rias relações entre Estados. Conforme observa Noam Chomsky,
í£os sofisticados entendem que apelar para obrigações legais e princípios morais é
legítimo, mas como uma arma contra inimigos selecionados”.39 A crítica à hipo
crisia é válida, portanto, apenas em relação a alegações governamentais de que re
lações exteriores podem ser guiadas pela ética ou por direitos humanos. A política
externa dos governos é guiada por interesses e tão alienada de considerações éti
cas quanto as opções de investimento das corporações multinacionais.
Dessa forma, é inconvincente apresentar o positivismo suigeneris dos códi
gos internacionais legislados por governos, das comissões nomeadas por governos
- --e-dos-mecanismos de aplicação politicamente motivados como sendo o remédio
contra o positivismo do Direito Natural, sua desumanidade persistente e seu di
vórcio da ética e da justiça. Pessoas ainda são assassinadas, torturadas e morrem
de-fome graças a governos, leis e instituições nacionais. Os maiores crimes da e
contra a humanidade foram conduzidos em nome da nação, da ordem ou do bem
comum, e não há qualquer evidência convincente de que isso possa chegar ao fim
porque a humanidade foi declarada sacrossanta. Os droits de l ’homme rousseauanos
e os rights o f the Englishman burkeanos constituíam a faceta legal da promessa de
emancipação do Huminismo. Eles se mostraram claramente insuficientes e a sua.
redeclaração internacional não pode ser a única resposta à desumanidade do ho
mem para com o homem.
40 A teoria religiosa contemporânea de gueira justa tem uma série de componentes: a força deveria ser usada
para defender a agressão injusta; deveria haver proporcionalidade entre danos infligidos com o uso da força
e fins esperados; os alvos escolhidos deveriam ser militares; a força jamais deveria ser um fim em si mesma.
É questionável que dois elementos da definição de guerra justa (o segundo e o terceiro) estavam faltando na
guerra do Kosovo. As igrejas, com algumas reservas, ou apoiaram a gueixa ou permaneceram cm silêncio.
Após o seu término, um relatório elaborado pelo Comitê de Responsabilidade Social da Igreja da Inglaterra
afirmava que a “extensão da tragédia humana criou a percepção de que a ação da OTA N precipitou e não
preveniu a catástrofe humana” . “Church o f England questíons air campaign” , The Guardian, 13 jul 1999,14.
Michael Walzer,/Kií Uií/ usí W ar$:A M oralA rgum tntw ithH istoricallüustTatkm , Londres: Penguin, 1980, é
a melhor introdução ao assunto.
142
C o s t a s D o u z in a s
43 Isso ficou particularmente evidente na Grã-Bretanha durante o conflito de Kosovo, em que maiorias con-
sistentemente elevadas apoiavam a guerra. A reação norte-americana foi mais abafada. Uma maioria se
opôs à guetra quando se solicitou a respondentes que considerassem mais de cinquenta, baixas norte-ameri
canas.
C o s t a s D o u z in a s
decidindo sobre a retirada dos integrantes da força de paz é apenas “20 por cento
tentando obter um cessar-fogo”, o Conselho finalmente votou, erri 24 de abril,
pela retirada, exceto por uma força simbólica de 270 homens. Cinco dias mais tar
de, o presidente do Conselho propôs uma resolução declarando que um genocídio
estava em curso e aplicando as sanções da Convenção do Genocídio. As potências
ocidentais fizeram objeções; os representantes britânicos não queriam o emprego
da palavra “genocídio” porque isso tornaria o Conselho um “motivo de debo
che”.48 As vidas de algumas centenas de integrantes das forças de paz ocidentais
eram certamente mais importantes que as centenas de milhares de africanos. O
general Quesnot, um militar francês que conhecia muito bem a situação ruandesa,
estimou que “2.000 a 2.500 soldados ‘determinados’ teriam sido suficientes para
conter a chacina”.49 Como retoncamente perguntou o embaixador nigeriano, “a
África saiu do mapa da questão moral?”.
Finalmente, Kosovo. Desde o colapso da ex-Iugoslávia, em 1991, os Esta
dos Unidos jogaram uma “curiosa partida de pôquer” com o então presidente sér-,
vio Slobodan Milosevic, tentando isolá-lo, por um lado, e tratando-o como o “fia
dor de seus planos de paz”, por outro.50 Segundo a The "Economist, ao final de 1998,
a ideia norte-americana era “se você não consegue bombardear, pelo menos apoie
a democracia”, uma política das “umas e do missel de. cruzeiro”, alguém poderia
dizer. Nenhum auxílio ou apoio foi dado, no entanto, à oposição sérvia que, por
muitos meses, em 1996 e 1997, havia mobilizado enormes multidões diariamente
clamando por reformas democráticas. A preferência pela democracia chegou tarde
demais. Algumas semanas mais tarde, aviões da OTAN começaram a bombardear
alvos em Kosovo,'na Sérvia e em Montenegro. Havia tempo ainda para negocia
ções e sanções? Diálogos adicionais eram sem sentido, como alegava a OTAN?
Nós jamais saberemos, mas Mary Robinson, uma alta comissária de Direitos Hu
manos da ONU, declarou que as atitudes ocidentais em 1998 “representaram uma
falha fundamental da comunidade internacional”. Apesar dos esforços de seu es
critório para alertar os governos sobre a crise iminente, “ninguém dava ouvi
dos”.51
48 Alison des Forges, op. c it, 638-9. Quando várias ON G s pediram aos Estados Unidos que bloqueassem a
RTLM , iima estação dc rádio que incitava o genocídio, o Departamento de Estado, após receber aconse
lhamento legal, respondeu que “o tradicional comprometimento norte-americano com a liberdade de ex
pressão era mais importante do que interromper a voz do genocídio”, 641.
49 O relato completo é contado de forma arrepiante em Alison des Forges, “Ignoring Genocide”, op. c it,
595-635 e 607.
50 "W ill Slobodan Milosevic 6ÜJ?”, T beSconom hl, 5 dez 1998, 51.
51 Citado em “Kosovo: the Untold Story”, The Observer, 18 jul 1999,16.
146
C o s t a s D o u z in a s
52 ‘T ara não deixar que se enraízem e endureçam nesse isolar-se, e que por isso o todo se desagregue e o espí
rito se evapore, o Governo deve, de tempos em tempos, sacudi-los em seu íntimo pelas guerras, e com isso
ihes ferir e perturbar a ordem rotineira e o direito à independência. Quanto aos indivíduos, que afundados
ali se desprendem do todo e aspiram ao ser-para-si inviolável, e à segurança da pessoa, o Governo, no traba
lho que lhes impõe, deve dar-lhes a sentir seu senhor: a morte.” Hegel, The PhenomenologyofSpirit (txad. de A.
V . Miller), Oxford: Oxford Universíty Press, 1977,272-3 [Em português: Fenom enokffa do B spíri/o (trad. de
Paulo Meneses, c o l de Karl-Heinz Effcen e Jo sé N. Machado), Petrópolis R J: Vozes e Bragança Paulista
SP: E d . Universitária São Francisco, 2002, T . Ed. rev., p. 314.] Jacques Dem da, G las, Lincoln: University
o f Nebraska Press, 1986, comenta: “Dessa forma a guerra evitaria jque as pessoas se arraigassem; a guerra
preserva a ‘saúde ética das pessoas’, assim como o vento que agita os oceanos os purifica, evita a decompo
sição, a corrupção, a putrefação com a qual uma ‘calmaria continua’ e uma ‘paz perpétua’ infectariam a saú
de”, 101 e 131-49.
___________147___________
O TRIUNFO DA HUMANIDADE
do, a campanha de Kosovo não foi uma guerra, mas um tipo de caçada: um lado
estava totalmente protegido, ao passo que o outro não tinha nenhuma chance de
efetivamente se defender ou contra-atacar. Muitos generais do exército e da pol-
trana (aposentados) alegavam, durante a campanha, que ela não poderia ser venci-.
da rapidamente sem tropas terrestres. Eles se mostraram parcialmente errados.
Uma guerra sem baixas para o seu lado, um tipo de guerra de jogo eletrônico ou a
imbatível “guerra nas estrelas” de Reagan, talvez seja o sonho de toda autoridade
militar. Mas uma guerra na qual a vida de um soldado é mais valiosa do que a de
muitos civis não pode ser moral ou humanitária. Ao estimar a vida de um aliado em
muitas centenas de vidas sérvias, a declaração de que todos são iguais em dignidade
e desfrutam de igual direito à vida tornou-se completamente desacreditada.
Finalmente, como soubemos após o término da guerra, a plena proteção
às tripulações aéreas significou que o sucesso dos bombardeios foi extremamente
limitado. Apesar do triunfalismo cauteloso da OTAN durante a missão, apenas
treze tanques sérvios foram atingidos em onze semanas de bombardeios intensos,
e a vasta maioria de mísseis terra-ar sérvios escapou. Alvos civis eram mais fáceis
de identificar e destruir. Algumas semanas após o início da guerra, o general Mi-
chael Short, da Força Aérea dos EUA, declarou aos jornalistas que o fundamental
para o sucesso era atingir o moral civil. Sua tática ia ser “nada de energia para sua
geladeira. Nada de gás paraseu fogão. Vocês não podem chegar ao trabalho por
que a ponte foi destruída —a ponte onde vocês faziam seus concertos de rock e
tudo o mais ficou cora alvos sobre suas cabeças. Isso precisa desaparecer”.53 Se
gundo estimativas iniciais, umas cinquenta pontes foram destruídas, assim
como inúmeras estações de TV e rádio, inúmeros hospitais, escolas e creches,
sedes culturais, econômicas e industriais, centrais de redes de computadores e
de geração de energia.54A infra-estrutura civil como alvo e os repetidos erros le
varam Mary Robinson a declarar, ao término de quatro semanas de bombardeios,
que a campanha havia “perdido sua razão moral”.55
Nada disso explica ou justifica as atrocidades cometidas pelos sérvios e a
sistemática faxina étnica dos albaneses kosovares. As ações da polícia sérvia, dos
paramilitares e do exército entraram para os anais do barbarismo do século XX, ao
lado daquelas de Hitler, Stalin, Saddam Husseín e Pol Pot. Não existe nenhuma
Kosovo é um bom exemplo desse processo. Foi somente após Milosevic extin
guir a autonomia kosovar, em 1994, e declarar que ela permaneceria para sempre
no Estado iugoslavo, como o berço da nação sérvia, que a opressão servia come
çou e o KLA, o Movimento para Libertação da Albânia, tornou-se ativo. Entre
aquele momento e 1999, um nacionalismo fratricida tomou conta das duas comu
nidades, mas não como resultado de inimizades antigas; o sentimento foi criado e
estimulado pelos respectivos donos do poder. Esse processo foi ainda mais evi
dente em Ruanda. O genocídio lá não foi cometido por monstros, mas por pes
soas comuns que foram coagidas, ameaçadas e levadas a acreditar por burocratas,
militares, políticos, órgãos da imprensa, intelectuais, acadêmicos e artistas que
matar era a única forma de evitar o seu próprio extermínio nas mãos das vítimas.
A rivalidade tribal entre hutus e tútsis foi redefinida, estimulada e exacerbada a tal
ponto que a “ação” se tornou inevitável.56
Muito frequentemente o respeito por diferenças culturais, um corretivo
necessário üara combater a arrogância do universalismo, transformou-se em um
escudo protetor de práticas locais funestas. Quando o primeiro-ministro malaio,
Mahathir Mohamad, criticou a Declaração Universal porque ela “fora formulada
por superpotências que não compreendem as necessidades dos países pobres”,
acrescentando que o Ocidente “preferia ver pessoas passando fome a permitir um
governo estável. Eles preferiam ter seu governo perseguindo manifestantes nas
ruas (...) existem outras coisas nos d i r e i t o s h u m a n o s além de mera liberdade indi
vidual”,57 ele estava expressando não a sua tradição cultural, mas sua consternação
pelo fato de que os direitos humanos talvez fossem usados em oposição ao seu re
gime, um dos ihais opressores do mundo. A mesma ambiguidade fica evidente
com respeito a minorias dentro de minorias. Grupos étnicos, como os franceses
no Quebec, seitas religiosas, como os cientologistas, e partidos políticos, como al
guns partidos comunistas ocidentais reivindicam autonomia, direitos humanos e
respeito por suás práticas apenas com o objetivo de usá-lás para reprimir minorias
menores em sua sociedade, os falantes de inglês, os hereges, os traidores, aqueles
que não se ajustam. Novamente, a causa do problema não é o truismo que valores
são criados em contextos históricos e culturais, mas uma construção excludente
da cultura tão imanente à inclusão e à interpretação dos valores da maioria quanto
à verdade absoluta; esses traços imitam, na esfera local, o desdém e a opressão do
Estado em relação a todas as minorias. De acordo com filósofo francês Jean-Luc
Nancy, o autoritarismo comunitário é catastrófico porque “designa à comunidade
um ser comum, ao passo que a comunidade é uma questão de algo bem diferente, ou
seja, de existência na medida em que é em comum, mas sem se deixar ser absorvida
em uma substância comum”.58 A diferença entre um. universalismo postulado na
essência do homem e um relativismo postulado na essência da comunidade é
pequena, em sua determinação comum de ver homem e comunidade como ima
nentes, eles formam “o horizonte geral do nosso tempo, abrangendo tanto as
democracias quanto os frágeis parapeitos jurídicos”.59
A moralidade universal assim como a identidade cultural expressam dife
rentes aspectos da experiência humana. Sua comparação de um modo geral é fótil,
como os infindáveis debates têm mostrado, e geralmente comprova, de uma ma
neira autogratíScante, a posição da qual o comparador partiu.60 O debate universa
lismo versus relativismo tomou o lugar do velho confronto ideológico entre direitos
civis e políticos e direitos económicos e sociais, e é conduzido com o mesmo rigor.
Mesmo assim as diferenças entre eles não são acentuadas. Quando um Estado ado
ta direitos humanos universais”, ele os interpretará e aplicará, se é que, conforme
procedimentos legais e princípios morais locais, fazendo do universal o subordi
nado do particular. O contrário também é verdadeiro: mesmo aqueles sistemas ju
rídicos que zelosamente protegem os direitos tradicionais e as práticas culturais
contra a intrusão do universal já se acham contaminados por ele. Todos os direi
tos e princípios, apesar de provincianos em sua. essência, compartilham o ímpeto
universalizador da sua forma. Nesse sentido, os direitos carregam a semente da
dissolução da comunidade, e a única defesa é resistir à ideia de direito no geral,
algo impossível no mundo capitalista global. Países em desenvolvimento que im
portam filmes de Hollywood, BzgM acs e a internet, importam' também direitos hu
manos, quer queiram quer não. Como deixa claro o primeiro-ministro Mohamad
em seus comentários, seus fins e os da política externa norte-americana são idênti
cos, apesar de tudo, muito embora os meios possam diferir em alguns momentos:
As pessoas não podem fazer negócios, não podem trabalhar em virtude da cha
mada expressão de liberdade do indivíduo”.« As alegações de universalidade e
tradição, ao contrário de se oporem em combate mortal, tornaram-se aliadas des
confortáveis, cujo frágil elo fora sancionado pelo Banco Mundial.
58 Jean-Luc Nancy, The inoperative Community, P. Connor (ed ), Minneapolis: University o f Minnesota Press,
1991, xxxviii. Veja o Capítulo 8 mais adiante
59 Ibid., 3.
60 Hillary Lim e K ate Green, "W hat is this Thing about Female Circumcision”, The S ocial andL% a2 Studies
365-87,1998; Henry Steinef ; Philip Alston, op. c it, supra n. 23, o Capítulo 4 oferece urn panorama geral
do debate.
61 Citado em Marks, op. c it, supra n. 29. ....
__________ 151__________
O TRIUNFO DA HUMANIDADE
nor diferença se é implementado pelo mundo todo ou por uma única alma. Inversamente, se não existe, .
pôr uma extxema maioria atras dele não fará qualquer diferença para seu status.
64 Bauman, op. d t , supra n. 62, 4 1 .'
_____ 153
O TRIUNFO DA HUMANIDADE
V. O “triunfo” da humanidade
65 Arendt, op. cit., supra n. 6, 298. [Em português: op. cit., 332.]
154
C o s t a s D o u z in a s
66 Os refugiados são geralmente colocados "em órbita” sob a regra do “primeiro país seguro” que permite a
um Estado devolver um refugiado para o Estado de onde veio no qual não sinta medo de perseguição.
67 Arendt, supra n. 6 ,2 9 4 . [Em português: op. d t., 328.]
___________155___________
O TRIUNFO DA HUMANIDADE
68 Kristeva, Strangers to Ourselves (trad. d eL eon Roudiez), Columbia University Press: 1991,151.
69 Arendt, op. c it, supra n. 6 ,2 9 7 . [Em português: op. cit., 330.]
70 Jean-Francois Lyotard, "T h e Other’s rights”, em On Human Rights, Stephen Shute e Susan Hurley (eds.),
Nova York: Basic Books, 1993,136.
156
C o s t a s D o u z in a s
de é negada ou denegrida, aos grupos de oposição, a todos aqueles que são alvos
de repressão e dominação. Somente pessoas em ação de base e local podem apri-
monar os direitos humanos; pessoas de fora, incluindo organizações por direitos
humanos, podem ajudar ao apoiá-los. A partir desta perspectiva, convenções in
ternacionais são úteis a ativistas de direitos humanos ao oferecerem um padrão
para crítica a seus governos. Após um Estado ter adotado um conjunto específico
de direitos, fica mais difícil, embora de forma alguma impossível, para seu gover
no negar ter cometido abusos evidentes. D o mesmo modo, o monitoramento e os
relatórios externos podem ampliar a consciência em relação às violações de um
Estado, e a vergonha que acompanha a exposição pode levar a melhorias. Mas o
sucesso do monitoramento é limitado, e os efeitos adversos da publicidade são in
tangíveis e demoram a chegar.
Quando j^Grécia foi forçada a deixar o Conselho da Europa, em 1969,
após a Comissão europeia de Direitos Humanos ter verificado que cada artigo da
Convenção havia sido violado pelos coronéis, a resposta dos ditadores foi peculi
ar. Eles afirmaram com grande estardalhaço que o Conselho e a Comissão euro
peus eram uma conspiração de homossexuais e comunistas contra os valores he
lénicos e aumentaram drasticamente a repressão. D e igual modo, embora o Chile
de Pinochet e a África do Sul do aparthád fossem repetidamente condenados por
entidades de direitos humanos e pela Assembleia Geral da. ONU, os regimes ataca
vam os ‘estrangeiros intrometidos’ e assim sobreviveram por décadas. Nigel Rod-
ley, relator especial das Nações Unidas sobre tortura, desde 1993, viu os usos de
sua tarefa como segue:
“1 "T h e -world is watching: A survey o f human rights law” , TheEconom ist, 5 dez 1998,(5.
157
O T R IU N F O D A H UM AN IDADE
a Europa fizeram dos anos 1990 a década dos direitos e da elaboração de constitui
ções e condenaram as previsões e as ponderações de Burke aos anais de uma he
rança ingiesa peculiarmente insular sepultada por Bruxelas e Tony Blair.
Porém, há algo de perene relevância na crítica de Burke aos “falsos direi
tos desses teóricos”. A maioria dos críticos dos direitos pertence hoje à Esquerda
política e dificilmente conhece, muito menos usa, as ideias e polêmicas simplistas
de um arquiconservador do século XVIII. Mesmo assim, muitas das análises de
Burke acerca das dificuldades confrontadas por qualquer teorização consistente
sobre os direitos humanos não se provaram equivocadas nem foram aprimoradas
por críticos contemporâneos. Hannah Arendt concordou com a ênfase de Burke
ao caráter local da proteção dos direitos.2 Michel Villey lembrou-nos de que Burke
não era um reacionário comum.3 Ele apoiava fervorosamente a revolução ameri
cana e se mostrava crítico em relação ao tratamento dos índios e homossexuais
por parte da classegovernante inglesa da sua época. Críticos feministas e comuni-
taristas compartilham da objeção de Burke ao caráter abstrato e indeterminado do
discurso dos direitos, muito embora desprezem sua política. Finalmente, aborda
gens pós-modernas do direito, influenciadas pela ética da alteridade associada às
filosofias de Levinas e Derrida, são críticas ao racionalismo dos direitos e enfati
zam seu caráter localizado e enraizado. Nisso, elas não se acham tão distantes da
afirmação de Burke de que apenas uma justiça individualizada pode proteger a li
berdade.4 Vamos retornar à crítica de Burke em relação à revolução e seus direitos
a partir de uma perspectiva crítica contemporânea- Quais são seus principais argu
mentos e linhas de ataque?
1. A principal crítica de Burke assinala que o discurso dos direitos padec
de idealismo e racionalismo metafísico. Os defensores dos direitos sèguem uma
metafísica política tosca, são racionalistas metafísicos ou “especuladores”, o pior
insulto no rico vocabulário de abuso de Burke.5A especulação é a crença em que a
2 Hannah Arendt, The Origins ofTotaHtarianisni, Harvest Book, 1979,300. [Em português: A s Origens do Totali
tarism o-A nti-sem itism o, Imperialismo e Totalitarismo (trad, de Roberto Raposo), São Paulo: Companhia das Le
tras, 1989.]
3 Michel Villey, “La philosophie du droit de Burke” em Critique de la pensés juridique moderne. Pans: Dailoz,
1975. Villey apresenta Burke como um verdadeiro aristotélico que adaptou a filosofia jurídica às circuns
tâncias de seu tempo. "E le recusa-se a construir a lei de acordo com a ideia de essência humana ou razão,
mas, como jusnaturalistas clássicos, de acordo com o que existe na natureza positivamente”, 178. Para Vil
ley, Burke não é contra os direitos, mas contra a “liberdade abstrata que, como outras abstrações, não exis
te” . Direitos são, ao contrário, muitos e diversos, sempre relativos ao espaço e ao tempo, 171.
4 C. Douzinas e R . Warrington, Justice MúcãFried, Edinburgh: Edinburgh University Press, 1994, Capítulo 4;
“A Well-founded Fear o f Justice” II/2 Law and Critique 1 IS, 1991; Marinos Diaman tides, “Ethics in Law:
Death Marks on a ‘Still Life’”, V I/2 Lain and Critique, 209,1995; Mark Armstrong, “Face to Face ■with Child
Abuse: Towards an Ethics o f Listening”. X/2 h aw and Critique, 147,1999.
5 Reflections, op. cit., supra n. 1, 51. p m português: Reflexões, op. e it, 88.]
_____________________ 161_____________________
A S CRÍTICAS CLÁSSICAS AOS DIREITOS: B ü R K E E M A RX
prática política, a 2rte do possível, deve ser guiada pela teoria, em que a intrincada
redi da vida política e o complexo e antigo patrimônio dos deveres e prerrogativas
legais devem ser reorganizados de acordo com algum plano concebido pela razão
humana e conduzido pela ação radical. A Revolução Francesa foi a primeira “re
volução completa”, liderada por filósofos, metafísicos e homens das letras, “não
como instrumentos subordinados e trumpetistas de sedição, mas como principais
arranjadores e realizadores”.6 Esses filósofos tinham por objetivo derrubar o an-
àentrégim e em toda a sua força institucional e moral e redesenhar completamente o
mapa da nação e do Estado, seguindo prescrições e receitas filosóficas. Mas essa é
a maior tolice. A prática política e a sabedoria prática ou prudência diferem da es
peculação teórica; a primeira preocupa-se com o particular e o mutável, ao passo
que a teoria com o universal e o imutável. Nenhum aspecto da política pode ser
concebido no abstrato.
A “ciência do governo” lida com a moralidade e os fins próprios do go
verno conforme se apresentam no aqui e agora. O mesmo ocorre com os meios
dá política: nenhum método ou instrumento político é universalmente válido e
aplicável; métodos acreditados devem ser frequentemente colocados de lado em
deferência às reviravoltas e guinadas do acaso ou dajortrna. A contingência, o con
texto e o acaso, ao contrário da especulação teórica, determinam a política: “São
as circunstâncias —circunstâncias que alguns julgam desprezíveis - que, na reali
dade, dão a todo princípio político sua cor própria e seu efeito particular. São as
circunstâncias que fazem os sistemas políticos bons ou nocivos à humanidade”.7
juízos políticos ou práticos e juízos teóricos estão, portanto, em oposição: os pri
meiros envolvem casos concretos e não podem esperar muito, limitados como
são por necessidades prementes -e prazos finais. Juízos práticos não podem ser
suspensos até que todos os argumentos tenham sido sondados e avaliados; eles
devem ser satisfeitos, portanto, com um grau de certeza e clareza inferior ao da te
oria. Juízos teóricos, por outro lado, são dissociados e imparciais, frios e lângui
dos. A teoria sempre parte do princípio e segue todo o caminho; a prática parte do
precedente e da convenção e chega rapidamente ao fim. Finalmente, a teoria rejei
ta o erro e o preconceito, ao passo que o estadista faz bom uso deles.8
Assim, para Burke, o ponto de vista, do absoluto e universal cega o políti
co diante das realidades do particular e do concreto e o toma metafísico e profeta,
repleto de hipérboles retóricas (nada distintas das do próprio Burke), porém inca
paz de governar. Políticos especuladores da variante francesa, fascinados pela ma
6 Ib id .,53
7 Ib ià , 7 [Em português: ibid., 50.]
8 L eo Saauss, N rJu ral Rjgbts andH istory, Chicago: University o f Chicago Press, 1965,310-1.
162
C o s t a s D o u z ín a s
17 Reflectíons, op. cit., supra-nrl- 68. [Em português: Reflexões, op. dt-, 101J
18 “Nesse novo esquema de coisas, um rei é apenas um homem; uma tainha, uma mulher, uma mulher, um
animal, e não animal de ordem muito elevada”, ibid., 67. [Em português: ibid., 101.]
19 Ibid., 85. [Brn .português:, ibid-, 116.]
20 Veja o Capítulo 11 mais adiante.
21 Reflectiam, op. cít., supra n. 1, 83. [Em português: R efkxões, 115.] •••"
_________ ________________ 1 6 5 ______________
Á S CRÍTICAS CLÁSSICAS AOS DIREITOS: BU R K E E MAUX
veria parecer e, consequentemente, maior sua falta de utilidade política e sua falsi
dade moral. “D e que adianta discutir o direito abstrato de um homem à alimenta
ção ou aos medicamentos? A questão coloca-se em encontrar o método pelo qual
se deve fornecê-la ou administrá-los. Nessa deliberação, aconselharei sempre a
que busqxiem a ajuda de um agricultor ou de um médico, e não de um professor de
metafísica.”22 D e que adianta o direito abstrato à vida ou à liberdade de expressão
e de imprensa às vítimas da fome e da guerra ou às pessoas incapazes de ler por
faltá de recursos educacionais? D e que adianta proclamar o direito à saúde em um
lugar como o Haiti, onde um hospital básico atende a mais de dois milhões de pes
soas e pacientes de AIDS são rotineiramente dispensados por não poderem ser
tratados devido à falta de recursos? As considerações de Burke, tecidas cerca de
duzentos anos atrás, soam proféticas à luz dos fardos colocados sobre o mundo
em desenvolvimento pela dívida imensa e a má gestão, a corrupção e a ineficiência
que acompanharam a ajuda humanitária.
A objeção de Burke focaliza principalmente os delírios metafísicos de
constitucionalistas e entusiastas dos direitos, porém os juristas não escapam à sua
censura. Eles também podem recorrer à “especulação”, quando afirmam que a lei,
repleta de abstrações e universais, pode dar respostas a questões políticas. Na ver
dade, de acordo com Strauss, Burke “questionava menos os direitos do que a sabe
doria de exercitai: esses direitos (...) ele tentava restaurar o genuinamente político em
vez de uma abordagem legalista”.23 Não há insulto maior às vitimas de catástrofes
naturais ou produzidas pelo homem, de fome coletiva e guerra, de terremotos e fa
xina étnica, de epidemia e tortura, não há maior escárnio e desconsideração que di
zer a essas vítimas que, de acordo com um importante tratado internacional, elas
têm direito à comida e a paz, a um abrigo e a um lar ou a atendimento médico e a um
fim aos maus-tratos. Os professores de metafísica e geometristas morais contem
porâneos são os diplomatas e juristas internacionais, os emissários governamentais
e os funcionários de organizações internacionais. Eles produzem códigos de direi
tos e prerrogativas que permitem aos governos apaziguar sua consciência coletiva
da mais pública das maneiras. Direitos humanos tornaram-se o símbolo da superio
ridade dos Estados ocidentais, uma espécie de mantra, cuja repetição alivia a dolo
rosa lembrança das .infâmias passadas e a culpa por injustiças presentes. Quando
isto acontece, os temores de Burke são confirmados: os direitos humanos blo
queiam o futuro.
A segunda crítica de Burke dirige-se à natureza abstrata do sujeito dos di
reitos humanos, O homem sem determinação das declarações não é apenas uma
pessoa inexistente; ele é também tão indeterminado que seu pálido contorno pode
oferecer bem pouca proteção. Para Burke, a natureza humana é socialmente de
terminada e cada sociedade cria o seu próprio tipo de pessoa. Portanto, não exis
tem direitos gerais do homem, ou, caso existam, eles não têm valor. Os únicos
direitos eficazes são os criados por uma história, tradição e cultura particulares.
A humanidade comum anunciada nas declarações de direitos é imaginária; a hu
manidade real constitui-se “como se houvesse muitas espécies diferentes de ani
mais”.24 Críticos dos direitos, tanto conservadores quanto radicais, concordam
nesse ponto. O francês joseph de Malstre afirmava que “já conheci italianos, rus
sos, espanhóis, ingleses, franceses, mas não conheço um homem em geral”. Marx
acreditava apenas na existência de indivíduos concretos, histórica e socialmente
determinados e moldados por sua posição de classe.25 Para outro crítico anterior,
H. A. Taine, a Declaração Francesa
não são mais do que dogmas abstratos, definições metafísicas, axiomas mais
ou menos literários, ou seja, mais ou menos falsos, ora vagos, ora contraditó
rios, suscetíveis de mais de um significado e de significados opostos (...), uma
espécie de insígnia pomposa, inútil e pesada, que (...) corre o risco de cair na
cabeça de transeuntes, já que todo dia é sacudida por mãos violentas.26
34 Reflections, op. cit, supra n. 1, 54. [Em português. Reflexões, op. cit, 91.]
' _________________________ 169 ___________________________________
de direito natural, que precedeu a constituição imemorial, mas foi mais tarde intei
ramente incorporado e protegido por ela; em outros momentos, ele alega que a
constituição não tem ou não carece de qualquer referência a um direito anterior.
Mas á'cõntradição é apenas aparente. Sua preferência pelos “direitos reais” do ho
mem inglês era detrimento àqueles arranjados por designs racionais não necessita
de validação externa por justificativas naturalistas ou de qualquer outro tipo. A
constituição é a garantia da sua própria bondade e “padrões transcendentais po
dem ser dispensados se o padrão está inerente ao processo’5.35 A filosofia dos “di
reitos reais” de Burke torna-se uma euiogia provinciana com base na alegação de
que uma sabedoria latente ou imanente do direito está presente no Direito e na
constituição inglesas, uma prévia empírica da alegação hegeliana de que o real e o
presente coincidem com o racional.
A herança de Burke é confusa, mas não seria impreciso dizer que todas as
principais críticas aos direitos compartilham algum aspecto de suas posições. To
davia, apesar de sua invectiva de estilo, pertinente e incomparável contra a arro
gância metafísica dos fanáticos por direitos, ele foi o primeiro escritor a afirmar
que o Direito Comum é o melhor depositário e fiador dos direitos. O recente
triunfalismo dos direitos tomou a crítica ao seu racionalismo, à sua abstração e a ao
seu absolutismo altamente tópica. Porém, em outro sentido, teóricos liberais seguem
os passos de Burke sem a süa sensibilidade histórica. Liberais contemporâneos, que
defendem que os direitos não apenas estão imanentes nos sitemas jurídicos oci
dentais, mas também podem atuar como um princípio de crítica da atividade do
Estado, adotaram o historicismo de Burke, acrescentando-lhe o racionalismo
dos direitos que ele denunciou de forma tão eloquente. Ao assim proceder, to
dos acabam em meiò aos problemas do historicismo associados ao racionalismo
sem as qualidades redentoras da transcendência.
36 . Karl Marx, “O n the Jewish Question” em E a rlj Texts, trad, de D . McLellan, Oxford: Blackwell 1975
85-114.
_____________________ 171_________________ ___
A S CRÍTICAS CLÁSSICAS AOS DIREITOS: BU R K E E M ARX
O sujeito dos direitos humanos perde sua identidade concreta, com sua
classe, setfgênero e suas características étnicas; todas as determinações humanas
reais são 'sacrificadas no altar do homem abstrato, sem história nem contexto.
Mas, ao mesmo tempo, esse homem abstrato figura como uma pessoa real e seus
direitos sustentam alguém repleto de substância. A emancipação do homem irreal
sujeita pessoas reais a uma regra muito concreta: “os direitos do homem, diferente
dos direitos do cidadão, nada são além dos direitos do membro da sociedade bur
guesa, ou seja, do homem egoísta, do homem separado do outro homem e da co
munidade”.38
Mais uma vez, quando Matx examinou direitos específicos, suas críticas
foram mordazes. A liberdade que eles proclamam é negativa, baseada numa socie
dade de mônadas isoladas que se vêem como uma ameaça e um obstáculo para
seus fins. A propriedade privada dos meios de produção separa as pessoas das
ferramentas de seu trabalho e as divide em capitalistas e escravos do trabalho as
salariado. As liberdades de opinião e expressão são o equivalente espiritual da
propriedade privada, uma postura que pode ter sido levemente exagerada num
momento de convulsão política, quando Marx escreveu, mas que soa mais plausí
vel na era de Murdoch, Tumer e Gates. A igualdade formal promove a desigualda
de real e mina as relações reais e diretas entre as pessoas:
O direito, por sua própria-natureza, pode consistir apenas na aplicação de um
igual padrão; mas indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos diferentes
se não fossem desiguais) são mensuráveis apenas por um igual ponto de vista,
são considerados a partir de um lado definido apenas (...) Um trabalhador é
casado, o outro não; um tem mais filhos do que o outro e assim por diante.
Para evitar todas essas imperfeições, o direito em vez de ser igual deveria ser
desigual.39
Consequentemente, apenas o direito à segurança constrói vínculos, em
bora artificiais, entre indivíduos temerosos e a sociedade. O valor social máximo
não é o bem público, mas o princípio de policiamento, o “conceito supremo da
sociedade burguesa, a garantia do egoísmo [burguês]”,40 que é assegurado com a
37 Ibid., 92.
38 Ibid., 102.
39 Karl Marx, “Critique o f the Gotha Programme” em Selected Writings, David M cLdlan (ed.), Oxford: Oxford
University Press, 1977, 569.
40 W . Benjamin, “Critique o f Violence”, em Refierticns, Nova Y o rk Schocken Books, 1978,104.
_________ ' ________ 172_____________________
C o s t a s D o ü z in a s
Os homens, assim, vivem uma vida dupla: uma vida social de discórdia e
conflito privado durante a semana de trabalho e uma segunda que, como um sabá
metafórico, é devotada à atividade política pública na busca do bem comum, en
quanto interesses privados são supostamente abandonados temporariamente. Na
realidade, uma clara hierarquia subordina os direitos políticos do cidadão etéreo
aos interesses concretos do homem burguês apresentados como direitos naturais.
Igualdade e liberdade são ficções ideológicas que pertencem ao Estado, embora a
realidade que sustentam seja de uma sociedade e existência diária de èxploraçãõ,
opressão e individualismo.
Marx era crítico também em relação aos direitos do .cidadão. Porém, isso
não se devia ao fato desses direitos serem falsos e opressivos, mas por não pode
rem cumprir o que prometem nos confins da sociedade burguesa. “Evidentemen
te, a emancipação política representa um enorme progresso. Embora ela não seja
a forma final da emancipação humana em geral, ela é, contudo, a derradeira forma
da emancipação humana no interior da presente ordem mundial”'.42 Na verdade,
direitos políticos não são direitos de “uma mônada isolada mergulhada em si mes
ma, sem consideração por outros homens”. Esses direitos criam uma comunida
de política'na qual o homem “conta como ser da espécie”, é “valorizado como um
ser comum” e como uma “pessoa moral”.43 Mas, embora os direitos políticos pre
figurassem a futura comunidade, a principal inovação da Revolução Francesa e
sua Declaração foi abstrair a política da sociedade e confiná-la ao domínio isolado
41 Ibid., 94.
42. Ibid., 95.
43 Ibid-, 9 3 ,9 4 , 95.
________________ 173
A S CRÍTICAS CLÁSSICAS AOS DIREITOS: BU R K E E M ARX
44 Jay Bernstein, “Eight, Revolution and Community: Marx’s ‘O n the Jewish Question’” em Peter Osborne
(ed.). Socialism and the L im its o f Liberalism , Londres: Verso, 1991,109.
45 Karl Marx, ‘T h e Class Struggle in France: 1S48 to 1850” citado em Ferry and Renaut, “From the Rights o f
Man to the Republican Idea” (trad, de F. Philip), University o f Chicago Press, 1992, op. c i t , 88.
174
C o s t a s D o ü z in a s
47 Karl M ats, Critique o f H egel’s Philosophy o f Right, Introduction em E arly Texts, op. a t , supra n. 36,115-129,
em 123.
48 Ernst Bloch, Na&ra/L<ni'aWH«»c«D^;rf)r(trad, de D . Schmidt), Cambridge Ma,: M IT Press, 1988,188.
49 Costas Douzinas e Ronnie Warrington, “Domination, exploitation and suffering: Marxism and the ope
ning o f dosed systems o f thought”, 1986/4Journal ofth e American B a r Foundation, 801-44.
176
C o s t a s D o u z ín a s
dos últimos vinte anos, teóricos pós-marxistas têm intensamente tentado explorar
não apenas o potencial inexplorado, mas também as limitações da crítica marxis
ta.50
Com efeito, o respeito aos direitos humanos e à democracia foi a principal
plataforma sobre a qual os comunistas da Europa ocidental, na Itália, Espanha,
Grécia e Grã-Bretanha, romperam com sua antiga e desqualificada adulação e de
fesa da União Soviética e foram em direção à estratégia de uma “estrada democrá
tica para o socialismo”. Esta reavaliação fundamental deveu-se em parte às terríveis
violações de todos os aspectos da dignidade humana e da igualdade sofridas pelos
povos espanhóis, portugueses, gregos e chilenos e, predominantemente entre eles,
por radicais esquerdistas, durante as ditaduras apoiadas pelos EUA nesses países e
em outras localidades nos últimos sessenta anos ou mais. As divisões bipolares ele
mentares da GuerraFria não conseguiram explicar a ampla violação dos direitos po
líticos mínimos em muitos Estados capitalistas ocidentais, que faziam alarde por
suas liberdades civis e políticas, ou a deplorável falta de muitas comodidades básicas
nos países comunistas que se orgulhavam por seus direitos econômicos universal
mente garantidos.
Esse processo de reavaliação de antigas ortodoxias teve importantes efei
tos práticos. Um dos mais evidentes foi o abandono, por partidos comunistas oci
dentais, de políticas e símbolos de linha-dura e seu surgimento como a Esquerda
de partidos socialistas democráticos de centro, mais espetacularmente na Itália. O
Partido Comunista Italiano permaneceu excluído do governo por cerca de cin
quenta anos,- mas tornou-se cypartido natural e de confiança do governo no final
dos anos 1990, após seu novo rótulo como o partido da Esquerda democrática.
Esses desdobramentos políticos foram acompanhados de movimentos paralelos
na teoria. Em st Bloch e muitos pós-marxistas, como Nicos Poulantzas, Claude
Lefort e Etienne Balibar, enfatizavam a centralidade dos direitos para o socialis
mo. Além das pirotecnias ideológicas da Guerra Fria e de seu fim, o pensamento
marxista assumiu o desafio dos direitos humanos. Mas pode o marxismo dar uma
contribuição à avaliação pós-Guerra Fria dos direitos humanos?
Uma das principais tarefas dos pós-marxistas foi explorar as “reviravoltas
ideológicas” que, de acordo com Marx, caracterizaram os direitos humanos. Inde
pendente da precisão original desses insigbts, as reviravoltas foram estabelecidas,
os direitos humanos foram ampliados em conteúdo e abrangência e se tomaram a
50 V eja entre muitos, Nicos Poukntzas, State, Power, Socialism, Londres: New Left Books, 1978; Claude Lefort,
The PoliticalForm s o f M odem Society, Cambridge: Polity, 1986; Emesto Laclau e ChantalMouffe, Hegemony and
ScdalistStrategy, Londies: Verso, 1985; Wendy Brown, "Rights and Identity in Modernity: Revisiting the J e
wish Question”’ em A. Sarat and T . Keams (eds.). Identities, Politics and Rights, Ann A rb o r University o f Mi
chigan Press, 1997,85-130; Jay Bernstein, op. c it , supra n. 44.
180
C o s t a s D o u z in a s
íros. “A humanidade do homem é identificada não com algo dado ou com uma es
sência, seja ela natural ou supranaturaí, mas com uma prática ou tarefa: a tarefa de
autoemancipação de toda dominação e sujeição por meio de um acesso coletivo e
universal à política.”60 Direitos humanos são o título legal e a garantia institucional
do indeterminado. Para Balibar, a sujeição a seres superiores sociais, Deus ou rei,
que caracterizavam o mundo pré-moderno chegou ao fim com a identificação de
sujeito e cidadão na Revolução Francesa. Mas, em sua tentativa de redimir os di
reitos humanos para a política radical, Balibar exagera os efeitos igualitários da
Revolução e sua Declaração. É verdade que a política democrática da moderni
dade estabeleceu um espaço público no qual a igualdade política pudesse ajudar
a minimizar as reais desigualdades da esfera privada. Esta é a igualdade da cidada
nia criada por meio do exercício dos cidadãos com idênticas liberdades políticas.
Mas o conjunto de cidadãos permaneceu severamente restrito em sua composi
ção por exclusões raciais, étnicas, legais e de gênero durante mais de um século, e a
cidadania ainda obedece geralmente a limites territoriais arbitrários, como o co
lapso da ex-Iugoslávia claramente demonstrou. A almejada ampliação dos direitos
políticos para toda a população e a sua expansão em direitos sociais, econômicos e
culturais pode ser explicada, a partir da perspectiva de Balibar, como a transferên
cia da lógica de igual liberdade política para áreas anteriormente consideradas
como parte do domínio privado ou social com suas desigualdades “aceitáveis”. A
luta por direitos de trabalhadores e sindicatos, por exemplo, politizou o local de
trabalho e, quando bem-sucedida, expandiu a cidadania ao tomar desigualdades e
diferenças de tratamento no trabalho tão ilegítimas quanto a negação do direito ao
voto ou à liberdade de expressão no domínio público.61
A partir de uma perspectiva diferente, Jean-François Lyotard enfatiza a
maneira pela qual os direitos humanos constroem pessoas e estruturas políticas de
forma a tornar o outro sempre presente.62Aplicando a filosofia linguística, Lyotard
argumenta que o traço humano básico é a comunicação. A estrutura da interlocução
organiza as relações entre fakntes com base em suas semelhanças e diferenças e aju
da a organizar a temporalidade. O “eu” do falante sempre se dirige a “você” agora
e, por sua vez, toma-se “você” para o “eu” do interlocutor no futuro. Identidade e .
comunidade, o “eu” e o “nós”, são efeitos desse diálogo alternado e o outro,
como traço, como um interlocutor real ou potencial, continua envolto em ambos.
60 Balibar, "Subjection and Subjectm tion”, em Jo an Copjec ( t à ) , Supposing the Subject, Londres: Verso 1994
12 .
61 Para uma análise seguindo essas linhas, veja Ernesto Laclau e Chantai Mouffe, Hegemony en âS oáalistS treteg,
op. cit., supra n. 50, Capítulo 5.
62 Jean-François Lyotard, “The Other’s Rights”, em On Human Rights, Stephen Shute e Susan Hurley (eds.),
Nova York, Basic Books, 1993,135-47.
_________________________________________ 1 85 _________________________________________
A S CRÍTICAS CLÁSSICAS AOS DIREITOS: BU R K E E M AKX
63 Ibid, 145.
186
C o s t a s D o u z in a s
cultura judaica da Europa central e nos valores românticos alemães, continua ini
gualável, muito embora, após o colapso do comunismo, não esteja mais em moda
ou seja “politicamente correto”. Bloch representa um avanço genuíno a partir de
Marx; ele preserva os principais elementos da sua crítica dos direitos, mas desco
bre, na tradição do Direito Natural e dos direitos o traço humano historicamente
variável, porém eterno, de resistir à dominação e à opressão e de imaginar e lutar
por uma sociedade na qual “o homem vai andar de cabeça erguida”. Não pode ha
ver qualquer fundamento real dos direitos humanos sem um fim à exploração e
nenhum fim à exploração sem o estabelecimento dos direitos humanos.
D e acordo com Bloch, desde os sofistas e os estoicos até os modernos a
natureza era constituída de diferentes maneiras em forma de uma categoria que
confrontava relações sociais existentes como “um fetiche contra padrões sociais”.67
Mas a luta entre essa natureza sempre em transformação e o mundo sedimentado
do Direito Positivo sempre era perdida até que a modernidade inventou, a demo
cracia e o socialismo na obra de Rousseau e Marx, respectivamente. Rousseau re
solveu o problema da proteção à liberdade individual, ao estabelecer uma relação
imediata entre os cidadãos e a vontade geral, transformando, assim, o Direito Natu
ral, até então um construto filosófico ou religioso, em uma instituição histórica. O
Direito Natural tomou-se a lei legislada pela soberania popular, e a vontade geral
deveria garantir que o princípio da liberdade individual pudesse existir apenas em
uma comunidade de direitoè-humanos. Nesse sentido, política e direitos ficaram
indissoluvelmente ligados e garantiram as conquistas da Revolução ao submeter o
governo a um controle constante dos cidadãos. O Direito Natural não mais era
deduzido de uma regra abstrata da razão e de proposições axiomáticas sobre a na
tureza humana, mas tornava-se o resultado da razão concreta das pessoas. Pela
primeira vez na história, o lícito e o ju s tornaram-se sinônimos dos direitos das
pessoas, a política adotou a ideia de igualdade para todos, e o tríptico de liberdade,
igualdade e fraternidade adquiriu um peso normativo. Porém, a propriedade con
tava como um dos direitos inalienáveis e, com isso, a igualdade ficava restrita à po
lítica e, mesmo nessa esfera, aos brancos do sexo masculino; o potencial dos direi
tos não tinha permissão para materializar-se. “Este foi o ponto alto do Direito
Natural, mas a época durante a qual floresceu foi umailusão, pois do interior do á-
tqyen surgiu o burguês; isso foi um prenúncio, uma vez que o burguês era julgado
pelo átoyenr^ Ao expandir a distinção de Marx entre homem e cidadão, Bloch via
o último como um anúncio da futura liberdade socializada. Embora a ideia de ci
dadania tivesse sido prejudicada por seu mau uso burguês, ela não representava
“uma barreira à liberdade, íal como o faz no egoísmo dos droits de l'homme (...) na
verdade, como observou Holderlin, ela sempre possuiu a capacidade de autopuri-
ficação”.69
O prenuncio, a profetização de um futuro ainda não e jamais presente au
xilia na autopurificação de ideias morais contaminadas pelos poderosos. O trípti
co da Revolução Francesa mostra essa estratégia em ação. A liberdade, sendo ética
e política, sendo pessoal e pública, como a liberdade de escolha e de ação, é a capa
cidade de “agir contrafatum , portanto em uma perspectiva de um mundo ainda
aberto, um mundo não ainda determinado até ofinal*?® Opressão e dominação são vio
lações evidentes da liberdade, pois transformam poder político e condições eco
nômicas em destinos inescapáveis. Porém, a liberdade é também irreconciliável
com um mundo totalmente determinado e fechado, no qual a única intervenção
pessoal possível é um acerto judicial a ideais dominantes e à exploração de estru
turas dadas e inescapáveis à vantagem do sujeito; uma vantagem cujos contornos
foram muito bem demarcados e cujas fronteiras estão rigorosamente policiadas.
Nesse sentido, a liberdade é ampliada pela capacidade dos direitos de estender os
limites do social e de expandir e redefinir as identidades pessoais e coletivas. Ela
funciona apenas se possibilidades ainda não-fechadas permanecem no mundo e
se extingue quando a dupla determinação do sujeito como livre e subordinado
rama em direção ao pólo da sujeição. Mas, em um mundo regulado, no qual pouca
margem de ação é autorizada fora dos parâmetros do capitalismo global e da or
dem autoritária, a liberdade pode vir a significar uma resistência à “liberdade” de
possuir e controlar ainda mais objetos como sinal último de autoexpressão, ou à
“liberdade” de definir e moldar a vida de acordo com uma lista fechada de direitos
definidos por “especialistas morais”. A liberdade não pode ser definida de ante
mão, exceto como o “comportamento humano diante de uma possibilidade real
objetiva”.71 Cada exercício seu abre, por sua vez, uma nova perspectiva que, se pe
trificada, torna-se uma limitação extema que deve ser superada novamente. lib er
dade é um conceito ambíguo, que começa a partir de determinações è cristalizações
passadas e continuamente as desafia em nome de um futuro sempre elusivo e prote
lado.
A amplidão do conceito de liberdade permitiu a sua cooptação por ideo
logias e movimentos hostis à sua essência, como aqueles do capitalismo de merca
do desregulado ou de lei e economia neoliberais. Isto não pode acontecer com a
igualdade, conceito gêmeo da liberdade. Seu significado pode ser restrito a igual
69 Ibid., 177.
70 Ib id , 162.
71 Ibid., 163.
_______________ 189_____________________
As CRÍTICAS CLÁSSICAS AOS DIREITOS: BURKE E M A RX
dade diante da lei ou obscurecido como a igualdade das almas no plano de salva
ção de Deus, mas suas violações evidentes e graves não podem ser ocultadas. A
enorme lacuna entre o Norte e o Sul, entre o rico e o pobre, em sua versão
pós-moderna, entre a classe média satisfeita e a classe inferior destituída de seu di
reito ao voto, não pode ser distorcida. As consequências ameaçádoras da pobreza
exemplificam o fato, bem conhecido por mais de cem anos, de que não pode ha
ver liberdade sem igualdade econômica. A primeira tarefa da liberdade como li
bertação de determinações opressivas é, portanto, eliminar a privação econômica,
liberdade não vinculada à igualdade é uma quimera. A função da igualdade nos
dias de hoje, cerca de 150 anos depois que os primeiros socialistas identificaram
sua vinculação interna com a liberdade, tem a ver com o oferecimento de um- mí
nimo de liberdade à grande maioria das pessoas no mundo. Embora sua ação difi
ra, os objetivos da igualdade e da liberdade coincidem: ambas são voltadas à
“identidade humana que ainda não chegou; em outras palavras, aquela identidade
que sempre ameaça, sempre cintila como a harmonia dos homens com a imagem
que têm do bum anunr?1
A identidade que “ainda não é” deriva sua inspiração do passado e das
melhores tradições do Direito Natural radical. O humanismo de Bloch apresen
ta o marxismo como o herdeiro de rebeldes e reformistas, que substituíram a fé
em deuses e a lealdade a reis pela dignidade humàna e igualdade. Mas como a
realidade é sempre incompleta"e o presente prenho de possibilidades futuras,
todo realismo tem a utopia em seu centro. Utopia é o nome para o grande poder
da imaginação que encontra o futuro latente em cada produto cultural e preser
va o cerne do entusiasmo radical em toda ideologia que critica. O Direito Natu
ral, apesar de suas muitas formulações religiosas e reacionárias, emerge a partir
dessa história revisionista como uma paixão determinada a salvar a dignidade do
humanum. Embora as críticas de Bloch em relação às ilusões do “Direito Natural
burguês” sejam devastadoras, ele conclui que “os homens concordavam na in
tenção de se libertar da opressão e de instaurar a dignidade humana, pelo menos
desde a época dos gregos. Porém, somente essa vontade é imutável, e não (...)
[o] ‘homem3 e seu chamado direito eterno”.73
O Direito Natural foi perfeitamente complementado pelas grandes utopias
sociais do século XIX. Ambos compartilham muitas características, mas apresentam
importantes diferenças também. More, Campanella, Bacon, Owen, Fourier e St.
Simon escreveram suas utopias lançando um olhar para as ideias do Direito Natu
ral. Mas, embora os jusnaturalitas derivassem seus esquemas de direitos a partir de
72 Ibid., 167.
73 Ibid., 191.
190
C o s t a s D o u z in a s
princípios axiomáticos sobre a natureza humana de uma maneira que lembra de
duções matemáticas e provas científicas, a imaginação utópica empregava narrati
vas, imagens e alegorias para projetar a sociedade futura. O Direito Natural deriva
seu poder de grandes pensadores do passado, ao passo que utopias são projeções
imaginárias do futuro. Mais importante ainda, o Direito Natural objetiva abolir a
degradação e sustentar a dignidade humana, ao passo que as utopias sociais objeti
vam reduzir o sofrimento e promover a felicidade humana, produzir o eu %ein ou a
vida boa dos gregos. Reconhecidamente, muitas dessas utopias foram demonstra
ções irreais de filantropia e não tinham a mínima possibilidade de sucesso. O princí
pio da utopia de Bloch não coincide com os vários lugares e esquemas grandiosos
daquele nome. Sua obra-prima 0 Princípio Esperança não se restringe a planos for
mais, mas engloba sob o momento utópico as fantasias e os devaneios particulares,
da vida diária comum,.as perspectivas apocalípticas da religião e do misticismo, a
sublime representação da literatura, da música e da arte, e também os contos de
fada, canções folclóricas, carnavais e tradições pagãs da cultura popular. “Uma
energia utópica que flui livremente5’ é buscada nos pontos altos e baixos da histó
ria, “canalizada em uma multiplicidade de formas, algumas reacionárias, algumas
progressistas; o utopismo não está, portanto, confinado à ‘Utopia’”.74 O utopis
mo é um sonho com o futuro, abastecido pelo passado e imanente no presente.
Felicidade e dignidade marcharam separadamente por gerações (e nos di
zem repetidamente que sua separação definitiva é também a grande conquista do
liberalismo). Mas “não pode haver dignidade humana sem o fim da miséria e da
necessidade, tampouco nenhuma felicidade humana sem o fim das velhas e novas
formas de servidão”.75 Esta relação dialética entre dignidade e felicidade, ou entre
direitos e utopia, permeia a estrutura não apenas do Princípio Esperança, mas tam
bém do D ireito N atural e Dignidade Humana, muito embora as prioridades pareçam
se modificar, na medida em que Bloch se tomava cada vez mais ciente dos abusos
do comunismo e um senso de melancolia começava a permear seus textos. Contu
do, o principal argumento ao longo de sua obra é o de que a promessa do Huminis-
mo continua não cumprida: “Estamos preocupados com uma herança peculiar.
Seu melhor continua em estado jacente e ainda a ser apenso. O que é passado não-
volta, especialmente de maneira desatualizada, mas pode ser tomado como sua
palavra. É simplesmente tão urgente suo modo de levantar a questão de uma heran
ça do Direito Natural clássico quanto é falar da herança das utopias sociais”.76 A
narrativa de Bloch não envolvia uma simples apropriação ou repetição do passa
do. O ímpeto radicai do Direito Natural estava implícito desde os estoicos até os
primórdios da modernidade, e a tarefa iniciada, porém incompleta, é redimir um
passado não totalmente presente a si próprio e reativar momentos que “permane
ciam dormentes nas margens do excesso ilusionário”.77 Para o utópico, a tradição
não segue um tempo linear nem é uma descendente direta do passado. E , ao con
trário, uma recriação restrospectiva da reminiscência passada, da interpretação
psicanalítica de um sintoma contemporâneo na condição de efeito de uma causa
inconsciente desconhecida, porém ativa. E , na medida em que esse passado é co
locado a serviço de um futuro indeterminado, a utopia pode ser definida como a
lembrança do futuro. Nisso, somos lembrados das teses sobre história de Walter
Benjamin, o outro grande marxista messiânico, para quem toda esperança reside
numa memória de derrotas e resistências passadas: “O perigo afeta tanto o con
teúdo da tradição quanto seus destinatários. A mesma ameaça paira sobre ambos:
a de se tornar um instrumento das classes governantes. Em cada era, deve-se re
novar a tentativa de arrebatar a tradição de um conformismo que está prestes a
dominá-la”.78 E precisamente esse conformismo que ameaça os direitos humanos
quando eles se tornam um instrumento de Estados, governos e organizações in
ternacionais.
Bloch, apesar de suas críticas às tendências autoritárias do comunismo,
permaneceu muito intimamente ligado ao regime é não percebeu por completo
como essa combinação das “melhores tradições do Direito Natural e utopia so
cial” acabaram por violar todos os seus princípios básicos e esperanças. Mas, em
sua obra posterior, Direito Natural e direitos humanos ganham prioridade em re
lação à utopia. Embora a lei do Estado, que apoia a opressão e a dominação, não
tenha lugar na sociedade do futuro, os direitos humanos ficarão no coração do so
cialismo e assegurarão que o “patos do indivíduo livre pareça como um alerta
contra qualquer confusão ou mistura da coletividade com a multidão ou caráter
da multidão”.79 Para Bloch, o “estipêndio” dos direitos humanos toma a forma
utópica concreta de uma promessa que antecipa uma humanidade real ainda por
vir. “Liberdade, igualdade, fraternidade, a ortopedia da conduta virtuosa, do or
gulho humano e da dignidade humana apontam para muito além do horizonte
do mundo burguês.”80 Este “princípio esperança”, segundo o qual todas as rela
77 David Kaufmann, “Thanks for the Memory: Bloch, Benjamin, and t i e Philosophy o f History” , em Daniel
e Moylan, op. cit., supra n. 6 6 ,4 1 .
78 Walter Benjamin, “Theses on the Philosophy o f History”, e m Illuminations (trad. deH . Zohn), Nova York,
Schocken, 1969,255.
79 Ernst Bloch, The Principle o f H ope {trad. d eN . e S. Plaice e P. Knight), Oxford: Blackwell, 1986,547. p m
português: 0 Principio E sp era n ça io h . I , I I e IJ3 (trad. deN élio Schneider), Rio de Janeiro: Ed. U E R Je Con
traponto, 2005.]
80 N atural L aw and Human Dignity, op. cit., supran. 48,174.
192
C o s t a s D o u z in a s
1 Jean Vartíer, Lesprocès ãis anm auxdu M oyenA g à nosjours. Paris: Hachette, 1970; Luc Ferry, The Ne&Ecologi-
cal O rder(txad. de Carol Volk), University o f Chicago Press, 1992, ix-xvi.
2 N o Direito Comum, era comum que prisioneiros, quando condenados por delitos graves, perdessem to
dos os seus direitos civis e liberdades. Eles perdiam até mesmo o direito de conduzir procedimentos legais,
ap o nto de, juridicamente, deixarem de ser pessoas.” David Feldman, C M U bsrties and Human SJghts in
Rnglnnd and W aks, Oxford: Oxford University Press, 1993,276. E m um arrastado processo, amplamente
facilitado por decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, nos anos 1970 e 1980, os prisioneiros
foram admitidos a uma segunda classe de humanidade. V eja Stephen Livingstone e Tim Owen, Prison L a v ,
Oxford: Oxford University Press, 1993, especialmente os Capítulos 3, 6 e 10.
_________195
SUBJECTUME SUBJECTUS
manos ou por contar com alguma outra qualidade? E quanto aos animais? O mo
vimento pelos direitos dos animais, desde a ecologia radical e a militância andvivis-
secção até as suas versões verdes mais brandas, fincou firmemente a diferenciação
jurídica entre humano e animal na agenda política e elaborou várias.Declarações de
direitos dos animais. Importantes questões filosóficas e ontológicas estão envolvi
das aqui. Em uma extremidade do debate, os direitos são promovidos para anima
is, como aqueles macacos grandes, que estão geneticamente mais próximos dos
seres humanos.3 A linha divisória entre humanidade e animalidade se manteve,
mas foi cedendo. Na outra extremidade, a própria divisão é desafiada, e os huma
nos são vistos como uma espécie única e não-privilegiada no orgânico contínuo
do Universo.
Empresas e outras pessoas jurídicas não-humanas têm conquistado direi
tos legais durante séculos, evidentemente. Christopher Stone, professor nor-
te-americano de Direito, alegou que árvores, parques e outros objetos naturais
também deveriam ter direitos,4 e um autor francês reivindicou a transformação de
áreas do cinturão verde em sujeitos jurídicos com o poder de ir aos tribunais, por
meio de representantes, para proteger seu ecossistema de invasão.5 Portanto, pa
rece que a subjetividade jurídica não foi exclusivamente outorgada aos humanos;
seu emprego como uma estratégia^econômica indica que a distinção entre a huma
nidade e seus outros não é rígida ou imutável O significado de humanidade não
foi conclusivamente estabelecido quando abandonamos o pensamento clássico
ouaceitamos um frágil sentido de Direito Natural a la Hart.6 Conforme afirmou
Leo Strauss, a questão da natureza humana continuou a ‘‘perseguir o pensamento
moderno e se complicou ainda mais em consequência de contradições geradas
pela ciência positiva e pelo historicismo”;7 Mas, como chegamos ao conceito mo
derno de natureza humana e humanidade?
Sociedades pré-modernas não desenvolveram ideias de liberdade ou indi
vidualidade. Tanto Atenas quanto Roma tinham cidadãos, mas não “homens”, no
sentido de membros da éspécie humana. A soríetasgeneri hutnani estava ausente do
3 O projeto GreatA pe, formado por um grupo de cientistas, filósofos e juristas que inclui, entre outros, D ou
glas Adams, Richard Dawkins, Jan e Goodaii e Peter Singer, elaborou uma relação de direitos para primatas
de grande porte e defende que chimpanzés, orangotangos e gorilas devem ter assegurados os direitos à
vida, a liberdade e a não so&er tortura. Peter Singer, “Rights for chimps”, The Guardian, 29 jul 1999,9; Peter
Singer e Paola Cavalieri (eds), The GreatA pe Project:Equality beforeHumanity, Londzes: Fourth Estate, 1993.
4 Christopher Stone, “Should Trees have Standing? Towards Legai Rights for Natural Otjects”, 1972 Sout
hern California Law Revieiv.
5 Marie-Angêle Hermitte, “Le concept de diversité biologique et la creation d’un status de la nature” em
L ’homme, la nature, k droit, Paris: Bourgeois, 1988. '-
6 H. L. A. Hart, The Contept o f Law, Oxford: Clarendon, 189-94.
7 Claude Lefort, The PoliticalEarns o f Modem Society, J ohn Thompson (ed.), Cambridge: Polity, 1986,240.
196
C o s t a s D o u z in a s
“Se s essência do homem é ser um atributo universal, é essencial que sujeitos concretos existam como dados
absolutos; isto implica um empirismo do sujeito. Se esses indivíduos-empíricos devem ser homens, é essen
cial que cada um carregue em si mesmo toda a essênda humana, se não de fato, pelo menos em princípio; -
isto implica um idealismo da essência. Assim, o empirismo do sujeito impüca o idealismo da essência e
vice-versa.” Louis Althusser, F or M arx (trzd. d e B . Brewster), Londres: Alien L a n e ,1 9 6 9 ,228.
197
S U BJECTU M E S U B JE C W S
9 Ernst Cassirer, The Philosophy o f the Enlightenment (ttzd. de F.C.A. Koelin e J.P . Pettegrove), Princeton NT:
Princeton University Press, 1968; M ania Heidegger, Bang and Time, Nova York: Harper and Row 1962
P m português-.Sere Tempo (trad. rev. de Márcia Sá C Schuback), Petrópolis RJ: Vozes e Bragança Paulista
: Ed. Universitária Sao Francisco, 2006]; Costas Douzinas and Ronnie Warrington with Shaun McVeigh,
PostmodernJurisprudence: The Law o f Text in the Texts o f Law, Edinburgh: Edinburgh University Press, 1991,
apitulos 1 e 2; Richard Kearny, The W ake o f Imagination, Londres: Hutchinson, 1988; Agnes Heller, Beyond
Justice, Oxford: Blackweli, 1987. ..
199
S UBJECTUM E SUBJECTUS
sem objetivo, que o homem pode conquistar e controlar ao descobrir nela regulari-
dades, padrões e íeis. Sujeito e objeto, liberdade e necessidade, vontade e proscri
ção são os resultados gêmeos do mesmo processo que transformou o ser humano
em sujeito e base do ser e o mundo em um objeto e imagem para o sujeito. Sua
história a partir desse ponto está, ao mesmo tempo, irrevogavelmente separada
e vinculada. A vínculação é a ratio do homem que, em ideias, números, conceitos
e categorias claros e concisos, descreve e ordena o mundo. O homem e o mundo
não mais existem lado-a-lado em um universo mais amplo. A ideia de natureza
como padrão se perdeu, mas, em compensação, o homem pode agora tratar a na
tureza, incluindo a natureza humana e social, como artefatos e impor ordem e mu
dança a elas. Arrancada do habitat natural do mundo pré-moderno, privada das
certezas limitadas da existência, a humanidade embarca em uma busca sem fim de
satisfação absoluta^sua essência consiste na contínua invenção de novos mundos.
Mas o sujeito não é simplesmente uma entidade racional; ele é também
um ser de vontade. Sua relação com o mundo é não apenas cognitiva, mas tam
bém ativa. A vontade moderna estará sempre dirigida a um exterior; a ação projeta
o Eu soberano em sua orientação para outros e em sua operação, que outorga va
lor à natureza. O poder da vontade é único; não está mais inserido no mundo na
tural, não brota das emoções nem da inteligência pura, mas obedece aos desejos e
interesses do sujeito. Descartes o descreveu como o mesmo em nós e em Deus. A
vontade modema não conhece limites teóricos, mas apenas empíricos. É o abso
luto poder de escolha, uma soberania indivisível do Eu. Esse poder encontra sua
perfeita expressão na decisão. Ao tomar uma decisão, o Eu toma-se agente, um
sujeito autônomo e responsável, cuja marca é encontrada em suas manifestações
externas, aquelas ações que podem ser imputadas a ele. Sem livre-arbítrio, não
pode haver Eu nem sujeito e, sem um agente, não pode haver ação livre. “Não
pode haver agente sem esse poder que une a ação ao sujeito que decide sobre ela e,
desse modo, assume total responsabilidade por ela.”15
No período clássico, o bem e a justiça coincidiam, assim como o julgamen
to moral e a ação política.12 Nessas condições, um conflito ético inevitavelmente
adquiriu dimensões trágicas e criou Antígona. Mas, com liberdade, a principal as
piração e conquista da modernidade, e subjetividade, seu corolário ontológico, o
sujeito moderno torna-se livre para decidir o que é bom para si próprio, e suas
ações não podem ficar restritas à aplicação inquestionável de normas e regras. A
consciência e a vontade modernas tomam-se legislativas: sujeitos agora podem
11 J . P. Vemant e P. VJdal-Naquet, M yth and Tragedy in A ncient Greece, N ova York; Zone Books, 1990, 50.
12 Douzinas e Warrington, Justice M iscarried, Edinburgh University Press, 1994, Capiculo 4.
SUBJECTUME SUBJECTUS
13 Immanuel Kant, Critique o f Practical Reason, Londres: MacmilSan, 1956 [Em português: Crítica da Ra^ão Práti
ca (trad, de Valcrio Rohden), São Paulo: Martins Fontes, 2003.]
202
C o s t a s D o u z in a s
gem das normas e regras (“Fica decretado que nas circunstâncias Y, pessoas do
tipo Z devem X”) não são isomorfas. Com isso, o conhecimento não pode consti
tuir a base de julgamentos morais e da ação, tampouco podem os princípios da lei
ser extraídos do exame de ordens especiais. Além disso, como o bem não é mais
dado e não pode ser derivado da experiência, julgamentos morais não são reações
emocionais a percepções e propriedades empíricas. A lei moral não segue a causa
lidade; pelo contrário, a moralidade é a causa dos atos. Qual é o status da lei moral,
então? Em um movimento que se assemelha às operações da estética na Crítica da
Faculdade do]m\o, Kant deduz a lei por analogia, como se ela fosse um fato da nature
za aceitável à razão, como se ela fosse uma “lei universal da natureza”. A lei existe,
mas não pode ser derivada de outras fontes ou afirmações. Ela é um “fato da ra-
zão” e não da experiência, e a liberdade é o resultado da sua operação.
Essas ideias conferem à filosofia prática kantiana o seu caráter revolucioná
rio. A moralidade não mais se funda em uma ideia pré-existente do bem, nèm deriva
de uma fonte externa. A filosofia clássica cometeu o erro, acreditava Kant, de pos
tular primeiro o bem e o mal e, depois, modelar a lei moral de modo apropriado.
“Os antigos, todavia, cometeram abertamente esse erro, por terem apostado a sua
investigação moral totalmente na determinação do conceito de sumo bem, por conse
guinte de um objeto que depois tencionavam tomar fundamento determinante da
vontade na lei moral (...).”1S Mas, ao fazê-lo, “a sua proposição fundamental consis
tia sempre em heteronomia e eles tinham que inevitavelmente encontrar condições
empíricas para uma lei moral (~.)”.16 Kant inverteu o procedimento: não é o con
ceito do bem que postula a lei, mas a lei moral que define o bem e o mal. As pre-
condições universais da ação moral são descobertas na ação livre e .racional do
agente autônomo, que segue a lei do imperativo categórico sem qualquer incenti
vo, exceto por um puro sentido de dever e respeito: “Age de tal modo que a máxi
ma de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como o princípio de
uma legislação universal”,57 em outras palavras, sempre que se deparar com uma
escolha moral, proceda de acordo com um princípio que seja universalmente
'aplicável sem contradição a todas as situações similares. Seu débito cristão fica
aparente em outra de suas muitas formulações: “age de tal forma que trates a hu
manidade, seja em tua pessoa ou na de uma outra, sempre como um fim”.18
Essa lei é um tanto estranha: é imperativa (age de tal modo que...), mas
sua ordem é seguir uma forma pura, a da legalidade (o princípio da ação deveria
ser sempre válido, na forma de uma norma universal). O imperativo categórico
pede-me para agir como se a máxima da minha vontade pudesse se tornar um
princípio de legislação universal. A lei determina seguir uma forma pura, a da uni
versalidade, proclamada como a essência da razão prática. Mas a lei força e impõe
uma vontade que emana dela própria. A vontade moral é livre porque encontra
todas as suas determinações nela mesma; o sujeito torna-se o legislador desejante
da sua própria sujeição. Contudo, a lei moral fere; seguir seu interdito para univer
salizar significa abandonar sentimentos, paixões e desejos individuais e agir de
modo totalmente desinteressado, a partir de um puro senso de obrigação. A auto
nomia kantiana toma o homem moderno o sujeito da lei em um duplo sentido: ele é
o legislador, o sujeito que provê alei, e o sujeito jurídico, sujeitado à.lei na condi
ção de que participou de sua legislação. E , mais uma vez, como uma quase-lei da
natureza, a lei moral surge ao mesmo tempo como regularidade, a interconexão
universal das coisas, e também como uma ordem propositada na tradição da lei
natural.
O reconhecimento da implicação da vontade na ação é um movimento
tipicamente moderno e distingue a razão prática-da razão pura. Além disso, o
proclamação do Eu não apenas como quem provê a lei, mas também como sujei
to, assinala a inauguração da concepção moderna de autonomia ou autodetermi
nação, o outro lado da entronização da vontade. A lei moral confere ao sujeito a
sua liberdade. O sujeito moral é autônomo, ao passo que o não-moral, incluindo o
sujeito jurídico, ao adquirir sua lei de fora, é heteronômico. A liberdade como au
tonomia é o presente da subjetividade,''eTéssência do homem é a de ser um sujei
to tanto deju re (como o destinatário e representante da lei moral) quanto defacto
(como seu legislador).
Quando Kant se volta para a teoria do Estado, ele vê o contrato social não
como um pacto histórico, mas como a causa e o efeito da razão pura. Todas as
versões anteriores do contrato incluíam referências a essas características e impul
sos, considerados por teóricos como naturais e dos quais a razão delineou seu
princípios. Para Kant, todas essas impurezas empíricas devem ser eliminadas por
serem metodologicamente inaceitáveis e moralmente erradas. Com isso, o contra
to se torna uma ficção reguladora, segundo a qual o Estado deveria ser tratado
como se fosse seu produto. O princípio que o norteia é o de que a “justiça é a limi
tação da liberdade de cada pessoa de maneira tal que ela entre em acordo com as
demais, na medida em que isso seja possível segundo uma lei universal; e o Direito
Público é a soma de leis externas que tomam possível o cumprimento de tal acor
C o s t a s D o u z in a s
do”.59 A justiça ordena o legislador a introduzir leis, como se elas tivessem sido
elaboradas pelas pessoas, e a determinar seu conteúdo sob o princípio da universa
lidade. Porém,, os princípios lógicos da necessidade e da não-contradição podem
sustentar absolutamente qualquer conteúdo, como vigorosamente argumentava
Hegel contra Kant A necessidade lógica de uma proposição nada diz quanto à sua
substância empírica ou valor moral.
A moralidade autônoma e a legalidade heteronômica estavam, no início,
rigorosamente separadas. Mas a separação foi logo enfraquecida na medida em
que ambas foram feitas para seguir a razão pura e estavam igualmente despreocu
padas quanto às características empíricas das pessoas que supostamente deveriam
guiar. Um forte sentimento de dever e respeito pela lei tomou-se igualmente im
portante para ambas, moralidade e legalidade; a ação moral segue a lei universal dá
razão, e a legalidade é a obediência às leis do Estado. Porém, apenas aquelas máxi
mas, regras e normas que atendem ao critério da universalidade são moralmente
obtigatérias, uma vez que todas as demais são contraditériasr A natureza,-e-eon-
ceito que desde a Grécia clássica atuou como um padrão da crítica, dissolveu-se
em razão e suas ordens formais e em lei do Estado e suas sanções. Mas uma von-
tade moral, totalmente desvinculada de paixões e desejos carnais, não poderia
motivar nem mesmo os devotos burgueses da Prússia de Kant, e seu rigor fora.
forçosamente deslocado para a legalidade. As leis do Estado prussiano autocráti
co, argumentava Kant, atendiam ao critério formal da legalidade, ao passo que. o
direito ao perdão é a mais obscena de todas as leis, pois “se a justiça legal perece,
então não vale mais a pena para os homens viver na terra”.20 Desse modo, a auto
nomia moral absoluta tornou-se a máscara da total heteronomia e o livre-arbítrio
do sujeito foi embasado peia forca.21 A formalidade, como formalismo legal ou
como procedimentalismo, será, daqui em diante, o componente moral da lei posi
tiva. Todas as principais oposições da jurisprudência da modernidade foram inau
guradas por Kant: legalidade e moralidade, forma e conteúdo, validade e valor,
norma e fato.
A revolução kantiana transferiu o alicerce do significado e a base da lei do
divino e transcendental para o humano e social A lei moral nos é assegurada antes
que possamos começar a questionar a sua natureza ou a sua ação e nos vincula
imediata e absolutamente. Mas esse primeiro passo radical chega ao fim na afirma
ção de que vivemos em uma comunidade da razão totalizável. O imperativo para
seguir princípios que seriam aceitáveis e desejados por todas as pessoas racionais
pressupõe que os desejos e ações do Eu são compatíveis e coerentes com o de to
dos os demais. A filosofia prática kantiana reúne a razão, a liberdade e a lei no corpo
do sujeito moderno; porém, a moralidade tornou-se exclusivamente uma obediên
cia à lei, e a exclusão de paixões e desejos da obediência à lei torna a reconciliação
muito perfeita filosoficamente e totalmente inverossímil na prática. A lei (morai)
apela para a sua ação ao horizonte de uma comunidade universal que deveria agir
como um princípio regulador. Porém, tal comunidade não existe empiricamente e
seu excessivo formalismo não pode torná-la um valor normativo também. A utili
dade limitada do conceito ficou aparente na lei internacional dos direitos huma
nos, em que ela atua como um mecanismo racionalizador e legitimador para leis
•-do-Estado amplamente desprovidas de conteúdo éticsr— - •
Podemos concluir que a essência da subjetividade é o livre-arbítrio. A
reinterpretação de Kant do “penso” cartesiano como o “quero” moral e sua ênfa
se à' autonomia como autolegislação forneceram a base filosófica e moral para o
domínio dos direitos e o reconhecimento público do desejo individual. Ao mes
mo tempo, a entronização do sujeito preparou o terreno para a manipulação infinita
dos mundos natural, social e psíquico. Antes da modernidade, a vontade estava su
bordinada aos fins que supostamente almejava no esquema teleológico do mun
do. E m Kant, a razão prática deseja a si mesmo como liberdade; a razão como
vontade pura é a conclusão do -ser de vontade que, incondicionado e absoluto,
tornou-se uma vontade de querer. ^
res e virtudes. O Direito Natural modemo, em seus primórdios, influenciado pelo es
toicismo e pelo universalismo espiritual cristão, corrigiu essa ontologia altamente dife
renciada e desenvolveu a ideia de existência das espécies, de uma natureza humana
comum que une todas as pessoas, sejam quais forem suas características individu
ais e suas determinações culturais ou sociais. ParaHobbes ouLocke, Descartes ou
Voltaire, os homens compartilham uma humanidade comum que confere a todos
os homens empíricos as mesmas necessidades e características essenciais, muito
embora seu conteúdo específico difira de acordo com o teórico. Cada pessoa é
uma aplicação individual do homem universal; a essência humana vem antes da
existência.
O deslocamento da ontologia tradicional de fms e naturezas múltiplos
para uma humanidade comum foi desafiado e desenvolvido cedo por uma abor
dagem filosófica principiante, que caracterizava a modernidade pela prioridade da
liberdade sobre a natureza e da lei sobre o fato e, nesse sentido, constituía uma
versão radical da moralidade kantiana. Rousseau, por exemplo, acreditava que -
após a retirada da teologia clássica, o novo homem emergente era definido pela
tendência ao perfeccionismo e por sua liberdade sem fundamento, a capacidade
de desvincular-se de determinações naturais e históricas, de migrar e deixar para
trás a terra, o lar, ou a p a t r ia , e de rejeitar o chamado da natureza. À medida que o
universo fechado dos antigos recuou diante do mundo aberto dos modernos, o
homem perdeu seu lugar e função designados e sua natureza não mais podia ditar
sua missão. Naquele momento, a liberdade fora entronizada como o senhor e
atormentador dos modernos. Rousseau encontrou a liberdade em seu grau mais
imperioso, quando ela atuava contra a natureza e o instinto:
[O animal] escolhe ou rejeita por instinto e [o homem] por um ato de liberda
de, razão por que o animal não pode desviar-se da regra que lhe é prescrita,
mesmo quando lhe fora vantajoso fazê-lo, e o homem, em seu prejuízo, fre
quentemente se afasta dela. Assim, um pombo morreria de fome perto de um
prato cheio das melhores carnes e um gato sobre um monte de frutas ou de se
mentes, embora tanto um quanto outro pudessem alimentar-se muito bem
com o alimento que desdenham, se fosse atilado para tentá-lo; assim, homens
dissolutos se entregam a excessos que lhes causam febre e morte, porque o es
pírito deprava os sentidos e a vontade ainda fala quando a natureza se cala.22
22 Jean-Jacques Rousseau, The First and Second Discourse (trad de R. e J . Masters), Nova Y o r k S t Martin’s
Press, 1964 [Bm português: Discurso sobre a Origem eosFundamento.tdaDesijiualdade entre os Homens e Discurso so
bre as Ciências e asArtes (trad, de Lourdes Santos Machado), São Paulo: Nova fjitm ral, 1997. O s Pensadores
•rol. n , 64.]
207_________
S UBJECTUM E SUBJECTUS
23 Jacques Lacan, “K ant avec Sade”, 51 October(Jnvem o 1989), 55-75; Costas Douzinas, “Law’s Birth Antigo
ne’s Death: on Ontological and Psychoanalytical Ethics”, 16 Cardoso Lam Reviav, 1325-62,1995; Douzinas,
“ Deathbound Legality” em D . Manderson (ed.), Courting Death, Londres: Pluto, 1999.
24 Douzinas e Warrington, Justice Miscarried, supra n. 12, Capitulo 4.
25 Luc Ferry, The New Ecological Order (trad. deC . Volk), Chicago: University o f Chicago Press, 1 9 9 2 ,5 . '
26 Jean-Paul Sartre, Existentialism and Humanism (trad, de P. Mairet), Londres: Methuen, 1980.
C o s t a s D o u z in a s
a si mesmo com suas escolhas e ações. O homem primeiro existe e age no mundo
e apenas em um segundo estágio define a si mesmo e a sua natureza. Contra o es-
sencialismo ontológico, Sartre argumentava que a principal característica da natu
reza humana não são suas determinações históricas, culturais ou sociais, mas sua
capacidade de libertar-se de quaisquer códigos estabelecidos, tradições e outras
cargas sociais. A natureza dos humanos é não ter uma natureza intrínseca, a não
ser o que fazem de si mesmos; a essência humana é o nada, a ausência de qualquer
essência.
Esse vazio radical significa que nenhum valor ou concepção apriori do bem
pode ser encontrado na história, na religião ou na tradição. Quando Dostoievsky es
creveu, em suas N otas do Subterrâneo, que “se Deus não existisse, tudo seria permiti
do”, ele anteviu o sistema de valores do existencialismo.27 Porém, de acordo com
Sartre, a autolegislação, embora desprovida da autodisciplina kaníiana impraticá
vel, não conduz ao niilismo. O homem deve escolher seus próprios valores, ele é o
legislador da sua própria moralidade e, nesse sentido, sua responsabilidade é ex
trema. Nem valores do passado nem esperanças de futuro podem explicar ou jus
tificar nossas ações: “Estamos sozinhos, sem desculpa. É isso o que quero dizer
quando falo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque ele não
criou a si mesmo, mas ainda assim está em liberdade, e a partir do momento em
que é atirado neste mundo ele é responsável por tudo o que faz”.28 Nenhuma re
gra moral pode guiar esta escolha e nenhuma lei pode substituir a responsabilida
de da decisão que é, ao mesmo tempo, uma invenção do Eu. O critério último é se
os julgamentos e ações de uma pessoa promovem a liberdade de escolha e a res
ponsabilidade por si mesmo e por outros. O homem está sempre “fora de si mes
mo: é na projeção e na perda de si mesmo além de si mesmo que ele faz o homem
existir; e, por outro lado, é ao buscar objetivos transcendentes que ele próprio é
capaz de existir. Uma vez que o homem é assim autossuperador e pode compre
ender objetos apenas em relação à sua autossuperação, ele próprio é o coração e o
centro da sua transcendência”.29 Essa transcendência, que constitui a identidade
por meio da sua autossuperação, é o que Sartre chama de “humanismo existen
cial”. Na linguagem heideggeriana, existência vem de ek-sistence, é a capacidade de
escapar, de “libertar a si mesmo dos códigos”.30
Se a liberdade existencial é a principal característica humana, a natureza
humana não pode ser reduzida a suas determinações biológicas, psicológicas e so
27 Ibid., 33.
28 Ibid., 34 ;
29 Ibid., 55.
30 Luc Ferry e Alain Renaut, Heitkgger andM odtnùty (trad. de F . Philip), Chicago: University o£ Chicago Press,
1990,4.
S UBjECW M E SUBJECTUS
lores “humanos” europeus. Seu desafio à tradição e sua negação de restrições rei-
ficadas apiicam-se igualmente às culturas locais de relativistas e às leis universais
da ortodoxia arrogante da humanidade globalizada. A fuga de ambos pode ser im
possível talvez; ícaro pode estar enganado ou condenado. No entanto, é somente
ao planejar um curso de vôo e ao sonhar com a beleza do sol que ele consegue
compreender a bestialidade do Minotauro.
34 Simon CritchJey, "Prolegomena to any Post-Deconstrudve Subjectivity” eU te Guzzoni, "D o we still want
to be Subjects?” em S. Critchley e P . Dews (eds.), Deamstructive Subjectivities, Nova York: S-U-N.Y. Press,
1 9 9 6,13-46 e201-16.
35 Aristotle, Metaphysics, 1028b33-1029a33.
C o s t a s D o u z in a s
36 Etienne Balibar, “Subjection and Subjectivation”, em Joan Copjec (ed.), Supposingthe Subject, Londres, V er
so, 1994,4.
37 Martin Heidegger, “T h e Age o f the World Picture” em The Question Concerning Technology anã Other Essays
(trad, de W. Lovitt), Nova York: Harper and Row, 1977,133.
38 As críticas à “razão instrumental” e à tecnologia vinculam Heidegger à escola critica esquerdista de Frank
fort de Adorno, Horkheimer e Marcuse. Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialectics o f Enlightenment
(trad, de J . Cummkig), Londres: Verso, 1979; Theodor Adorno, Negative Dialectics (trad, de E . B . Ashton),
Londres: Roudedge: 1990; Herbert Marcuse, Eros and Civilisation, Boston: Beacon Press, 1966.
39 Heidegger, supra n. 37,127.
_________ 215
S UBJECWM E SUBJEC1VS
40 Martin Heidegger, “Letter on Humanism”, em Basic Wriüngs, D . F . Kreli (ed.), Harper: San Francisco, 1977,
204.
41 Ibid., 221.
216
C o s t a s D o u z in a s
42 Ibid., 228.
217
S ü B JE C T U M E S U B JE C T V S
43 Martin Heidegger, “The Question Concerning Technology”, em Basic Writings, supra n. 40,308.
218
C o s t a s D o u z in a s
Um humanismo não-mtafzsico ?
44 Zygmunt Bauman, Postmodern Ethks, Oxford: Blackwell, 1 9 9 3 ,193.;[Em português: Bauman, Ética Pés-Mo-
•■lema (trad, de j o i o Rezende Costa), São Paulo: Paulus, 1997, 220-221.]
45 Louis Dumont, Essays on Individualism: Modem Ideology in Anthropological Perspective, Chicago: University o f
Chicago Press, 1986,262.
219
S U B JE C W M E SU BJE C TU S
49 Dana V ihs.A reiidtam iH eidegger T èeF a/eoftieP eM cal, Princeton N J: Princeton University Press, 1996,183.
50 Heidegger, “Letter on Humanism”, supra n. 40,235. Veja também: Douzinas, “Deathbound Legality”, su
pra n. 23.
51 Heidegger, ibid., 205-2.
52 Jo a n n a H o d g e ,H « i^ irW E £ é / iïJ Londres: Routledge, 1995, 90.
__________221 __________
S UBJECIUM E SUBJECTUS
53 Jean-LucN ancy, The Inopsrative CommumQ, Minneapolis: University o f Minnesota Press, 1991, xxxviii.
222
C o s t a s D o u z in a s
trar em nossa jornada, reside uma esperança utópica (ou desespero) de um futuro
que pode não chegar jamais.
61 Etienne Balibar, “Citizen Subject” em E . Cadava,P- Connor e j.L . Nancy (eds.), W ho Cowes afier the Subject,
Nova York: Roudedge, 1991,33-57; “Subjection and Subjectivaaon”, supia n. 3 6 ,1 -1 4 ; “T h e Rights o f
man’ and the ‘Rights o f the Citizen’” em M asses, Classes, Ideas, Cambridge: Polity, 1994,39-59.
62 “ Citizen Subject”, supra n. 36,33-40.
63 Ibid., 41.
________ 227________
S UBJECTUM B SUBJECTUS
64 “ Citizen Subject”, supra n. 41. Para uma discussão geral, veja Waiter Ullman, The Individual and Soàety m the
M iddleA ges, Baltimore: The Joh n s Hopkins University Press, 1 9 6 6 ,eA H islory of'Political Thought: The M iddle
A ges, Londres: Penguin, 1965. Para uma perspectiva inglesa, veja J ohn Figgis, The Divine Right o f Kings, Bris
tol: Thoemmes Press, 1994 (ed. original 1914).
65 W . T . Murphy, The Oldest SocialScience? Configurations o f Lm v andM odem ity, Oxford: Oxford University Press,
1997,11.
228
C o s t a s D o u z in a s
va por suas infrações, e temporal, uma lei de regras rígidas e julgamentos severos
provenientes de autoridades seculares. Esse poder aterrorizante do Grande Ou
tro, em termos lacanianos, que fazia o sujeito prestar contas, oscilava entre o visí
vel e o invisível, o individual e o universal, o empírico e o metafísico: senhor ou
soberano, Deus ou a própria consciência do sujeito, a voz que grita de fora ou
murmura incessantemente de dentro na calada da noite, adquiriam a mesma for
ma, a forma de um mandamento jurídico. 0 ;mecanismo de sujeição da
voz interior (...) aquela de uma autoridade transcendental a que todos são obri
gados a obedecer, ou que sempre já compeliu a todos a obedecer, incluindo os
rebeldes (eles certamente não escapam à voz da Lei, mesmo que não se ren
dam a ela) - porque o fundamento da autoridade não se localiza fora do indiví- .
duo, em alguma desigualdade ou dependência natural, mas dentro dele, em
seu prógrio ser como criatura do verbo e como fiel a ela,66
era sempre acompanhado pela voz externa e pela força do rei, senhor ou juiz, e os
dois juntos, envharnionia estereofônica, trouxeram o sujeito à vida. -
Esse novo tipo de sujeição tinha certas vantagens para seus sujeitos. O suje
ito cuja alma obedece não pode se tomar um escravo ou. um objeto dos caprichos
do rei. A alma obediente inseriu o sujeito na ordem divina e criou para o rei respon
sabilidades assim como poderes e direitos.67 Mas os direitos e liberdades do sujeito
não precediam nem desautorizavam o poder do soberano. Ao contrário, eles eram
apresentados como suas concessões unilaterias, mesmo quando representavam o
resultado de conflito social e compromisso ou derrota monárquicos. Sem a magna
nimidade e as concessões reais, os sujeitos não possuíam quaisquer direitos absolu
tamente. Essa combinação de lealdade e fé unificou os sujeitos na obediência à lei,
mas o resultado ficou intrinsecamente instável, aberto a conflitos em potencial e di
visões entre seus componentes espirituais e temporais. A mesma econonia frágil ca
racteriza o rei, cujo corpo estava dividido entre uma parte física e uma mística e cujo
direito era ao mesmo tempo uma concessão de Deus e uma prerrogativa da sua na
tureza.
O absolutismo foi o período da dupla existência p a r excellence do rei e do
sujeito. Os reis absolutos incitaram ao extremo as aspirações de uma forma total,
coerente e ilimitada de poder autofundador e, ao fazê-lo, conduziram o edifício
inteiro à sua ruína. O rei alegava ser a encarnação do bem e da verdade; com isso,
os sujeitos não tinham qualquer necessidade ou motivo para compreender o que
estava prescrito para eles. Os direitos respeitados pelo monarca eram tidos como
derivados de uma longa história e tradição e também como o resultado de um pac
to limitado entre a soberania e os sujeitos. D o mesmo modo, embora Deus fosse a
derradeira origem do direito, esses direitos eram considerados a essência do reino
e, ao respeitá-los, o rei simplesmente honrava a sua própria natureza. Assim, em
bora o rei parecesse juridicamente limitado, seu verdadeiro poder era ilimitado.
Ao exacerbar tensões internas, concentrar poder, dissolver centros intermediários
de influência e enfatizar a unidade do Estado, o absolutismo enfraquecia o duplo
conceito de obediência e sujeição. Muitos de seus teóricos apresentavam os subjecti
como cidadãos livres, mas uma falha havia começado a se desenvolver na ideia de
um subjecius livre e legalmente protegido. Quando o rei e o Estado absoluto deixa
ram de ser os representantes da ordem divina, a crença em que um sujeito depen
dente do poder absoluto de outro poderia, ao mesmo tempo, ser livre foi fatalmente
minada. Nesse momento, a revolução inscreveu-se na história e anunciou a moder
nidade.
.... . A diferenciação entre homem e cidadão, a qual. pode ser vista como um
desenvolvimento da díade subjectusjsubjectum, caracterizou a Declaração Francesa
e sua política e tornou-se o alvo das duas primeiras críticas aos direitos humanos,
feitas por Burke e Marx. Entretanto, de acordo com o neomarxista Balibar, a con
sequência mais revolucionária da Declaração foi inverter a soberania monárquica
do absolutismo e criar o conceito de soberania do cidadão. A indivisível e onipo
tente volontêgénérak substituiu a soberania unitária e ilimitada do Leviatã em todas
as suas particularidades.68Mas essa nova soberania legislativa, apesar da aparência
de indivisibilidade, era um composto: ela consistia na somatória total das vonta
des dos cidadãos. Nesse sentido, a soberania popular era uma ideia ao mesmo
tempo revolucionária e altamente artificial. A soberania monárquica era hierárqui
ca, com o rei como o discípulo e servo de Deus em seu ápice, recebendo a obediên
cia livremente dada e ordenada dos sujeitos. A soberania anunciada pela Revolução
Francesa, por outro lado, baseava-se no princípio sem precedentes de igualdade e
liberdade do cidadão.
O cidadão agora se^teína um homem livre. Ele desfruta de seus direitos
naturais, como um ser igual a todos os demais (exceto, é claro, para mulheres e
não-brancos).69 Porém, o princípio da igualdade, mesmo em sua forma limitada, é
altamente paradoxal. “[A] soberania igualitária [é] praticamente uma contradição
em termos, mas a única forma de expulsar radicalmente toda transcendência e de
inscrever a ordem política e social no elemento da imanência, a autoconstituição
68 Mareei Gauchet, Lm R
’ êvclution des droiís de Ibom m (Paris: Galliroard, 1989) argumenta que a Sm de jusdScar
a representação democrática a Revolução Francesa inaugurou um conceito de soberania n 2cional absoluta,
que era a inversão mimetizada da soberania absolutista do ande/: rêgime.
69 Veja o Capítulo 5 acima.
230
Co st a s D o u zenas
70 ‘“The Rights o f man’ aod the ‘Rights o f the Citizen”’, supra n. 61,43.
71 “Citizen Subject”, supra n. 61,46.
72 Lefort, op. c it, supra n. 7,255.
________ 231_________
S UBJECWM E SUBJECTUS
73 j.-J. Rousseau, Tbe Social Contract zm PolilicalW ritíngs, F. Watkins (ed.), Londres: Nelson, 1953,18 [Em por
tuguês: D o Contrato S oàa l e E nsaio sobre a Origem das Unguas (trad, de Lourdes Santos Machado), São Pauio:
Nova Cultural, 1997, Os Pensadores, vol. I, 74.]
74 Ibid., 44. [Em português: ibid., 112.] Para uma análise desta passagem, veja Douzinas e Warrington, "Pos
ting the Law: Social Contracts and the Postal Rule’s Gramitiatology”, IV/11 InternationalJournalojtheSetnto-
tk s c tfU » 115(1991).
232
C o s t a s D o ü z in a s
tual e constitucional, podem ser impossíveis. Na verdade, uma grande parte da or
ganização textual do Contrato Socialpode ser compreendida como uma resposta ao
fracasso de sua promessa. O soberano está sempre certo, se ele fala através de leis
gerais, “válidas para todos igualmente”. Mas como irá a vontade geral expressar a
si mesma? Em Do estado civil, a adesão ao contrato produz £cno liomem uma mu
dança notável (...) e fez, de um animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um
homem”.75 Em D a lei, entretanto, a vontade geral parece estranhamente emudeci
da, e os cidadãos são apresentados como uma multidão ignorante: “Como uma
multidão cega, que frequentemente não sabe o que deseja porque raramente sabe
o que lhe convém, cumpriria por si mesma empresa tão grande e tão difícil quanto
um sistema de legislação?”76 Para resolver o impasse, Rousseau repete a divisão
que estabeleceu o soberano no contrato: os que estão sujeitos à lei devem também-
ser seus autores. AT.çüvisão original está agora reproduzida na pessoa do legislador,
porém é igualmente enganosa.
O legislador deve ser um gênio. Ele precisa ser, se deve presidiras, ex
traordinárias reviravoltas temporais e causais observadas acima: ele deve garantir
que os homens sejam, antes das leis, aquilo que devem se tomar por meio delas.
Mas esse é um truque tão improvável que o legislador deve atribuir suas leis aos
deuses. “Essa razão sublime, que escapa ao alcance dos homens vulgares, é aquela
cujas decisões o Legislador põe na boca dos imortais, para guiar pela autoridade
divina os que a prudência humana não poderia abalar.”77 Assim, o contrato é or- '
ganizado ao redor de uma série de divisões e reviravoltas: os sujeitos são os sobe
ranos; os cumpridores da lei deveriam ser os seus autores; o povo deveria ser antes
da lei aquilo em que devem ser tornar por meio de sua operação; a lei que desem
penha todos esses truques deveria advir de um legislador humano que deve estar
presente, entretanto, comò divino. Rousseau finalmente admitiu que o legislador
é um impostor. “(...) enquanto a orgulhosa filosofia ou o cego espírito faccioso
não vêem neles mais do que impostores de sorte, o verdadeiro político admira nas
suas instituições esse grande e poderoso gênio que preside os estabelecimentos
duradouros.”78
A igualdade e a soberania dos cidadãos exibem a mesma estrutura de divi
são e sutura que observamos na extraordinária díade subjedtm /subjectus. Os cidadãos
são membros idênticos do legislador soberano, mas é o legislador e suas ordens que
os tornarão o que eles devem ser. Rousseau, que primeiramente teorizou sobre a
revolução democrática, foi muito mais realista em relação a suas perspectivas
igualitárias do que seus seguidores contemporâneos. Suas reviravoltas teóricas e
truques são um reconhecimento do fato de que a soberania do cidadão, mesmo na
democracia direta de Rousseau, é uma proposição improvável. A concentração de
poder político e econômico, o papel disciplinador dos partidos e a influência dire
tiva da mídia e, não menos importante, a globalização da cultura e da informação
tomam a ideia totalmente desacreditada em uma democracia capitalista represen
tativa contemporânea, apesar da retórica dos direitos humanos. Em todo caso,
para a maioria da humanidade, o pólo da sujeição representa muito mais a expe
riência diária que a liberdade.
***
79 Peter Goodrich, “Social Scieace and the Displacement o f la\v”, 32/2 L cw and Soàety Rí-view473 (1998), 476.
234
C o s t a s D o u z in a s
80 ^25 l LCgendte’ U D isirP otiti^ue & D ie": w r fo montages de l ’E te l et du D roit, Paris: Fayard, 1988,
_______ 235_______
S UBJECW M E SUBJECTUS
pode adquirir sua autonomia, conforme Kant, Kafka, Althusser e Lacan reconhe
ceram. O sujeito nasce para a lei e pertence à lei.
A modernidade é a época de uma subjetividade juridicamente induzida e,
nessa medida, a excessiva legislação, da qual os liberais tanto reclamam, é talvez a
consequência de um inescapável impulso metafísico. D o mesmo modo, a centra-
lidade do sujeito na filosofia, na moralidade e na estética e a organização nomo-
cêntrica da sociedade moderna não estão desconectadas. Conforme argumentou
Althusser, “a categoria do sujeito (...) aparece (...) acima de tudo com o surgimen
to da ideologia jurídica (...) que emprestou a categoria de ‘sujeito na lei’ para elabo
rar uma noção ideológica: o homem é por natureza sujeito”.81 O sujeito chegou a .
tal proeminência talvez em virtude da importância metafísica da legalidade, que
não poderia funcionar sem um centro ativo e um destinatário, sem um sujeito (ju
rídico). Nada escapa ao império da lei que, a fim de realizar suas tarefas, precisa de
veículos para dotar de prerrogativas e deveres, competências e obrigações. Como
a criação e o criador da lei, o sujeito é o seu parceiro e o seu servo indispensáveis.
Sua continuidade histórica e permanência institucional indicam que a lei não é
simplesmente uma criação da soberania popular; ela é também a condutora dos
ditames da reprodução social, a procriadora de sujeitos e o veículo da violência.
Sujeitos e sujeitados, sublimes e humildes, livres e determinados, nós obedecemos
a nossas ordens para avançar sob as bandeiras da lei.
81 Louis Althusser, ‘Ideology and Ideological S a te Apparatuses” em Lenin andPhiksophy an d otherEssays (trad.'
de B. Brewster), Loadres: Verso, 2971,127-188, 160.
9. O s S U JE IT O S D O D lR E I T O : O S D IR E IT O S E O H U M A N ISM O JU R ÍD IC O
1 Pcter Goodrich, Languages o f Law, Londres: Weidenfeid e Nicolson, 1993; OedipusLex, Berkeley: University
o f California Press, 1395.
2 M » ; Weber discutiu o “escepcionalismo” inglês em G. Roth e C. Witach (eds.) Economy and Society A.n ottlli-
ne oflnterpntaiive Sociology, Berkeley: University o f California Press, 1978,89 0 e seguintes; Franz Neumann,
“The Concept o f Political Freedom^ em W. Scheuerraan (ed.) The Vjde ofL a v underSiege, Berkeley. Univer
sity o f California Press, 1996, 195-230; O tto Kkchheimer, "T h e Recbsstaat as M ag e WaH” ibid., 243-64.
Para uma análise, veja W . T . Murphy, The Second Oldest Profession, Oxford: Oxford University Press, 1998,
Capítulo 3, 51-6.
238
C o s t a s D o u z in a s
3 Entre muitos, veja Keir Statmer, European Human RightsLaw, Londres: LA G , 1999); J . Coppell, The Human
Rights A ct 1998, Londres: Joh n WHey & Sons, 1999; Anthony Lester e David Pannick, Human Rights Lain
and Practice, Londres: Butterworths, 1999.
4 Lorde jow itt, o Lard Chancellor à época da assinatura da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de-
nunciou-a como “um esquema mal-elaborado a ser administrado por um tribunal desconhecido” e “tão
vaga e desatinada que pode significar praticamente tudo”, citado em William Wade, “T h e United King
dom’s Bill o f Rights” em ConstitutionalReform in the UnitedKingdom, Cambridge Centre for Public Law, 1998,
61. Para Lord Denning, em 1985, os perigos de uma Declaração de Direitos vinham dos litigantes, não dos
juizes: “Vocês vão ter uma minade de casos de uma porção de malucos e eles vão ter de ser dispensados
mais cedo ou mais tarde , 468 H .L . Deb. c o l 172 (10 Dezembro 1985), citado em Geoffrey Marshall, “Pa-
triatíng Rights - With Reservations”, ibid., 74. A discussão sobre o caráter não-inglês do sistema europeu
dos direitos humanos foi redescoberta e trazida à tona, n o final dos anos 1980 e início dos 1990, sempre
que o Reino Unido era acusado pelo Tribunal Europeu de estar transgredindo a Convenção.
239_________
Os s u je ito s d o D ir e it o
5 Martin Loughlin, Public Law and Political Theory, Oxford University Press, 1992, 33-4.
6 Veja: Bernard Edeiman, The Qnmmh'p o f the Image (trad, de E . Kingdom), Londres: Routledge & Kegan
Paul, 1979; Paul Hirst, Law and Ideology, Londres: Macmillan, 1985; Peter Goodrich, Languages o f Law, Lon
dres: Weidenfeid e Nicolson, 1990; Alan Norrie, Crime, Reason andHistory, Londres: Weidenfeld e Nicolson,
1993; Rolando Gaete, Human Rights and the Limits o f Critical Reason, Aldershot: Dartmouth, 1993; Costas
Douzinas, “Human Rights at the End o f History”, 4/1 Angelaki, 99 (1999); Pierre Schlag, “The problem o f
the Subject”, 69 Texas Law Revieiv, 1627 (1991); W .T . Murphy, The Oldest SocialScience? Configurations o f Law
andModernity, Oxford: Oxford University Press, 1997. Para iniciativas recentes, inspiradas principalmente
pela psicanálise, veja: Peter Goodrich, OedipusLex, supra n. 1; Jeanne Shroeder e David Carslon, “The Sub
ject is Nothing”, Law and Critique, 93 (1994); David Carlson, “Duellism in American jurisprudence”, Cardo-
%oLaw R&nerv (2000V
C o s t a s D o u z in a s
sujeito é uma criação da lei, uma entidade artificial que serve como o suporte lógi
co de relações jurídicas.7 Direito e sujeito vêm à vida juntos.8 Mas, por outro lado,
a lei funciona efetivamente porque sujeitos jurídicos aceitam a sua legitimidade e
reconhecem o seu poder de criar direitos. Não existe sujeito nem direito sem a lei,
mas a lei não pode funcionar sem assumir os sujeitos jurídicos. Para ser mais pre
ciso, a relação é triangular. Regra, sujeito e direito andam juntos e pressupõem um
ao outro: o sujeito jurídico é o sujeito dos direitos por meio da operação de uma
norma jurídica que atribui direitos e deveres aos sujeitos.
Esta é a abordagem do grande jurista positivista, Hans Kelsen. Para puri
ficar a “ciência jurídica” completamente e transformá-la em uma ciência material
mente descontaminada de normas e conceitos, Kelsen precisou desconstruir as
grandiosas afirmações do humanismo jurídico. Para Kelsen, o sujeito jurídico, em
vez de ser o centro da lei, é um construto jurídico secundário, um espaço lógico ou
poin tde capefon, que ajuda a aproximar e a combinar uma série de normas e regras
de comportamento. O sujeito é o portador de direitos e deveres, uma personifica
ção de normas. Conforme observa Kelsen, a “pessoa jurídica não é um ser humano,
mas uma combinação personalizada de regras jurídicas que impõem obrigações e
concedem prerrogativas a um mesmo indivíduo. Não constitui uma entidade natu
ral, mas um construto legal criado pela ciência jurídica, um conceito auxiliar para a
descrição e a criação dos elementos do Direito”.9 Nesse sentido, ã pessoa jurídica
natural é mais artificial que uma corporação, pois sua condição como ser humano
obscurece o que é perfeitamente visível numa companhia: o fato de serem ambas
criações da lei.
O sujeito jurídico é, portanto, um subjectus construído, uma criação ou fic
ção legal. Suas primeiras manifestações foram organizadas conforme as “defini
ções bíblicas de rei e súdito, majestade e sujeição (...) o substrato fundamental da
ordem social era um corpo de textos [religiosos e jurídicos], e, em consequência, o
sujeito pertencia primeiro e mais diretamente a uma ordem textual. Era o texto,
em outras palavras, que definia a sujeição, tanto a identidade quanto o dever do
sujeito, e era no âmbito do texto que essa ficção legal de uma pessoa tinha seu
7 Essa abordagem foi primeiro enfatizada pelo jurista francês Leon Duguit, no início do século X X . Veja:
Traité de D roit Constitutionnel, Paris 1921, Vol. 1, 2 0 0,319-326,361 em diante. V eja também: A. Manitakls,
The Subject Oj ConstitutionaïBJghts, Atenas: 1981, 42-46.
8 G . de k Praddle U H oanneJuridique, Paris: Maspero, 1979, assinala que le sujet de droit est l'être quelconque à qui
les normesjuridiques s'adressent et qui est,p a r conséquent, titulaire desprérogatives que ces normes instituent en dêtenn'mant,
p a r cela seul, sa personnalité an sens Strict [o sujeito de direito é qualquer sera quem se dirigem as normas jurídi
cas e que é, em consequência, titular das prerrogativas que tàis normas instituem ao determinar, por si pró
prias, sua personalidade em sentido estrito], 75-6.
9 Hans Kelsen, G eneral Theorj ofL aw and State, Cambridge Mass.: Harvard University Press, 1949, 93. [Em
português: Teoria G eraldo D ireito e do Estado (trad. de Luis Carlos Borges), São Paulo: Martins Fontes, 2000,
3 a. ed., 139.]
242
C o s t a s D o u z in a s
ser”.10 Como vimos, essas proteções limitadas anteriores assumiam que seres hu
manos eram almas obedientes e zelosas. Mas quando o Direito Moderno fez dos
direitos seus alicerces,, os seres humanos foram redefinidos como criaturas de
vontade e desejo. O ponto de partida da ciência da lei é o Homem, tão logo ele é
constituído em um sujeito jurídico. O ponto de chegada da ciência jurídica bur
guesa é o homem. Essa ciência não se move, ela começa com o homem e termina
redescobrindo o sujeito.”11
Todos os seres humanos são sujeitos jurídicos, constituídos pela totalida
de dos reconhecimentos legais e das relações jurídicas. Uma criança nasce para
sua mãe e torna a nascer perante a lei. Desde o nascimento, e em alguns casos
desde a concepção, o ser humano torna-se mais ou menos um sujeito jurídico. O
recém-nascido é um território quase vazio, um substrato ou veículo amplamente in
diferenciado que, à medida que a vida passa, será gradualmente investido de direitos
e deveres, privilégios e obrigações até a morte. Isto se modificaria radicalmente, se
um projeto de lei federal, apresentado ao Congresso norte-americano no verão de
1999, virasse lei/ Esse projeto de lei reconhecia o feto como uma entidade jurídica
separada de sua futura mãe e transformava em crime para qualquer pessoa, in
cluindo a mãe, prejudicá-lo de alguma maneira. Esta é uma medida antiaborto dra
coniana; quer seja ou não introduzida na legislação, trata-se de uma evidência a
mais para o argumento deste livro de que a subjetividade (jurídica), como a huma
nidade, é uma categoria elástica que pode ser distendida e contraída sem grandes
dificuldades e que, ao fazê-lo, a lei exerce seu poder antropogênico. O sujeito jurí
dico é um lugar metafórico em que várias capacidades e vários poderes atribuídos
pela lei convergem, uma tela sobre a qual diferentes condições e estados jurídicos
serão pintados, conferindo à pessoa seu amplo contorno e definição. Regras jurí
dicas não se dirigem a pessoas reais, mas à personalidade jurídica criada pela lei
para representar a pessoa humana. Conforme observa Tím Murphy, “o sujeito ju
rídico apresenta a si mesmo’ diante da lei como uma face, ou uma superfície, o
que significa dizer que é uma tela na qual várias projeções serão realizadas”.12
10 Peter Goodrich, "Social Science and the Displacement o f Law”, 3 2 /2 L a v an d S o d tty R * « ^ 4 ? 3 (1998) em
477.
11 B . E d elm an , L â D m 'f saisip ar lapbotograpbk, Pans: Maspero, 1973,102.
Esse projeto de lei não foi aprovado naquela oportunidade, mas é sabido que as pressões sobre o legislativo
e a Suprema Corte dos Estados Unidos têm aumentado desde então (cf. C. Douzinas, E lfin de los dm ehcs hu
manos, Bogotá: Uíiiversidad de Antíoquia y Legis, 2008,282, n. 12} (N. d eT .).
12 W. T. Murphy, supra n. 6,196. ....
_________243_________
Os s u j e i t o s d o D i r e i t o
13 Carios N ino, The E lhics ofH um an Rigbls, Oxford: Clarendon, 1993. Curiosamente, Nino, ao contrário de
seus colegas anglo-americanos, está ativamente envolvido no movimento dos direitos jurídicos contra a
Junta argentina e foi um destacado assessor do primeiro presidente democraticamente eleito. Veja seu The
R a â kalE v il on T rial, New Haven: Yale University Press, 1996.
14 Ibid., 110.
15 Ibid.
16 Jellinek, citado em E m st Bloch, N aturalLaw andHumzn Dignity (trad. d e D .J. Schmidt), Cambridge, Mass.:
M IT Press, 1988, 210.
244
Co sta s D o u z in a s
17 A chamada “teoria da vontade” é uma das mais proeminentes e permanentes teorias dos direitos segundo a
qual alguém tem um direito se está na posição de determinar como outra pessoa deve agir. H. L. A. Hart,
“Are T hete Any Natural Rights?” , 64 PbilosophüalRevkm , 175-91, 178,181 (1995).
18 Citado em Bloch., supra n. 16,217.
19 Hart^op. cit., fn. 17. :
20 Bloch, op. c it, supra a. 16, 210.
21. Nino, op. cit, supra n. 13,112,113.
22 Ibid.,115.
Os s u j e i t o s d o D i r e i t o
23 Para a base contratual do masoquismo e a constitutional do sadismo, veja Gilles Deleuze, Coldness and
Cruelty” em M asochism (ti 2d. d e j. McNeil), Nova York: Zone Books, 1989.
24 J . Vining, L egal Identify New Haven: Yale University Press, 197S, 2.
25 Alan N om e, op. cit., supra n. 6 ,2 3 .
246
C o s t a s D o u z in a s
contratuais posiciona-se no centro do universo e pede à lei para garantir suas prer
rogativas sem máiores preocupações quanto a considerações éticas e sem èmpatia
pelo outro. Se a pessoa jurídica é um sujeito isolado e narcisista que percebe o
mundo como um lugar hostil para ser ou usado ou contra o qual deve se voltar por
meio de direitos e contratos, ela é também desincorporada, sem gênero, uma pes
soa estranhamente mutilada. Conforme observa Schlag, “essa emancipação do
Eu de seus contextos (...) e o qúe o permite ser emancipado de todas as demais
forças e influências que não a própria lei”.2®No universo jurídico tanto o Eu
quanto o Outro, como sujeitos jurídicos, são seres racionais com direitos, prerro
gativas e deveres. Esperamos ser tratados em pé de igualdade com o Outro, e a re
ciprocidade de prerrogativa e obrigação colocada na base da mentalidade jurídica.
Contudo, essa igualdade é apenas formal: ela necessariamente ignora a história, o
motivo e a necessidade específicos que o litigante traz para a lei a fim de adminis
trar o cálculo da regra e a aplicação da medida. O sujeito jurídico abstrato é um
ser metafísico ou calculista, voltado para si próprio, concebido de uma maneira
antíssocial em um mundo cuja sociabilidade nada mais era do que a aproximação
de indivíduos em um contrato social (...) a lei não conhecia indivíduos reais, ape
nas suas abstrações místicas”.27 Entre a falta e o excesso, o sujeito jurídico tor
na-se um veículo maleável:
26 Pierre Schlag, The Enchantment ofR eason, Durham: Duke University Press 1998 127
27 Ibid., 31. : ’ ’ '
28 Pierre Schlag, 'T h e Empty Circles o f liberal Justification'', 96, M ichigan ham Review 1 (1997), 37.
- Douztnas e Warrington, Justice M iscarried, Edinburgh: Edinburgh University Press,-1-994, Capitulo 4.
_________ 247_________
Os s u j e i t o s d o D i r e i t o
os da lei é que o sujeito jurídico é uma imagem ou máscara colocada sobre pessoas
reais que, ao contrário das abstrações da filosofia moral, ferem, sentem dor e so
frem.
Finalmente, vamos examinar de maneira breve alguns exemplos desse so
frimento, casos em que o sujeito jurídico mina a pessoa real. Um exemplo instruti
vo é a separação entre intenção e motivo no Direito Penal. O motivo refere-se à
necessidade, ao desejo, ao propósito, à história individual e social, aos impulsos
conscientes e inconscientes à ação, em outras palavras, àquilo que torna as pes
soas reais. Intenção, ao contrário, é uma construção ardficial que se refere à culpa,
a atribuição de responsabilidade independente de razões ou motivos para a ação.
E ainda assim a intenção é o principal conceito no Direito Penal, ao passo que o
motivo é totalmente ignorado na determinação da culpa e é introduzido de modo
periférico no estágio da sentença ou em determinadas defesas excepcionais, como
a coerção. De acordo com Alan Norrie, a lei “não faz [do motivo] um elemento
mental normal na conduta humana” e não vai “além da perspectiva da criança pe
quena”.30 Como observa Anatole France, a lei em sua majestade, pune igualmente
o rico e o pobre por roubar pão ou dormir embaixo de pontes. Norrie e outros
teóricos marxistas consideram esse estado de coisas irracional, o resultado da in
clinação política da lei. Isto pode ser verdade em parte, mas a verdadeira razão
para a escolha reside em outro lugar: a pessoa jurídica é a principal cifra e compa
nhia metafísica do sujeito da modernidade. Todo nosso universo antropocêntrico
foi construído sobre o pressuposto de que o sujeito é moralmente responsável
por sua liberdade e legalmente responsável por suas ações. A lei deve desconside
rar motivos e circunstâncias, que introduzem determinações externas, a fim de
sustentar a pedra fundamental dã nossa época, a alegação de que o livre-arbítrio é
o princípio predominante e o sujeito o senhor do seu destino e do mundo. Se o
motivo fosse substituir a intenção na determinação da culpabilidade, a centralida-
de da subjetividade chegaria ao fim. Isso não parece fazer parte da agenda históri
ca neste momento.
A mesma estrutura fica evidente na operação de liberdades legalmente
sancionadas. É a liberdade de aceder ao repertório disponível de formas e direitos
legais, a liberdade de ser o que a lei determinou, acompanhada da ameaça de que
optai não é permitido, de que a desobediência a uma norma jurídica significa de
sobediência ao Estado de direito tout court e de que a vida fora da forma jurídica
cessa. O contrato nos dá o exemplo aqui: embora as partes contratantes sejam ge
ralmente desiguais e o consumidor ou trabalhador não tenha alternativa a não ser
entrar em acordo com o varejista, o provedor de serviços ou o empregador, a lei
assume que o negócio foi acordado após livres negociações entre partes ampla
mente iguais. Mais uma vez a fachada é mais importante que o conteúdo, o princí
pio importa mais que òs fatos, a clareza lógica mais que a experiência empírica ou
a correção moral. O sujeito jundico, o conceito-chave sem o qual os direitos não
podem existir, é, por definição, altamente abstrato, uma estrutura ou esqueleto
que será preenchido com a carne fraca dos deveres e o sangue desbotado dos di
reitos. A metafísica jurídica não tem tempo para a dor das pessoas reais.
tam sua validação legal. Ambos inscrevem-se no cenário histórico ao mesmo tem
po e complementam um ao outro perfeitamente.
O direito clássico ouju s era uma limitação ao excesso individual; os direi
tos modernos não têm limites inerentes sobre eles: eles constituem a legalização
do desejo e, como tal, a santificação do ilimite individual. Os direitos não derivam
. da natureza objetiva, mas do desejo individual; eles seguem o “catecismo de pai
xões” de Burke. A subjetividade encontra os direitos, “direitos subjetivos expres
sam determinadas possibilidades que estão inerentes no sujeito individual”.31A lei
traduz o desejo em direito e o transforma no fundamento do compromisso social.
Os desejos são postulados por vontades individuais; os direitos são seu reconheci
mento formal e as pré-condições da humanidade: quanto mais direitos um indiví
duo tem, mais humano ele é. Conforme sugere Strauss, “os direitos expressam, e
devem expressar, algo que todos desejam de alguma maneira; eles santificam o in
teresse pessoal de cada um conforme cada um consegue percebê-lo”.32 Se um
novo objeto de desejo acaba sendo formulado em termos legais, se uma nova rei
vindicação cruza o limiar da aceitabilidade popular, seu completo reconhecimen
to legal é uma questão de tempo, e o reconhecimento legal o transforma em outra
característica humana “essencial”. No limite, todos os desejos vão ser legalizados,
todos os interresses farão surgir reivindicações aplicáveis e a plena humanidade
será alcançada, um estado que, como acreditam Villey, Strauss e Legendre, condu
zirá à total dissolução do compromisso social e não ficará muito distante da desu
manidade total.
Já vemos isso acontecendo nas relações internacionais após o colapso dos
impérios comunistas. Cada minoria, tribo ou grupo que insistentemente alega
possuir identidade étnica e tradição cultural acaba se tomando um Estado ou enti
dade independente e passa a oprimir minorias menores dentro dele, como de
monstra o tratamento dos russos nos Estados pós-soviéticos recém-emancipados
e dos sérvios no Kosovo pós-guerra. Quando as políticas internacionais são do
minadas pela retórica dos direitos, nenhum argumento moral pode resistir ao de
sejo de até mesmo grupos pequenos de adquirir autonomia e caráter de Estado.
Porém, esse desafio da história pelo desejo inevitavelmente conduziu a mais con
flito e miséria. Um mapa mundial na forma de um mosaico de pequenos estados
independentes será o prolongamento natural da lógica agressiva dos direitos, mas
a uma enorme distância da paz cosmopolita à que Kant esperava que os direitos
levassem.
31 Luc Ferry e Alain Renaut, From the PJgbls o f M an to the 'Republican Idea (trad, de Franklin Philip), Chicago: Uni
versity o f Chicago Press, 1992,40.
32 Leo Strauss, N atural L aw and History, Chicago: University o f Chicago Press, 1965,182-3.
250
C o s t a s D o u z in a s
33 Léo Strauss, W batls P olitm l Pbilosopby, Chicago: University o f Chicago Press, 1959,51.
34 Miche) Vülcy, “L'Humanisme et le droit”, em S eiçe essais dephilosophie du droit, Paris: Dalio 2, 1969 ,6 0 .
_________ 251_________
Os s u j e i t o s d o D i r e i t o
38 Thomas Taylor, precursor do movimento dos homens, publicou seu V inâkation cfth e VJgbís ofB n /let em
1792 argumentando a favor da total igualdade dos animais, como uma resposta irônica à defesa da igualda
de das mulheres de Mary Wòllstonecraft. Cada direito cria medos e conttadireitos.- ■:
253
Os s u j e i t o s d o D ir e it o
trágico irrompe e me coloca, como espectador, cara a cara com a minha responsa
bilidade, uma responsabilidade que não deriva de códigos, nem de convenções ou
regras, mas de um sentimento de culpa pessoal pelo sofrimento no mundo, de
uma obrigação de salvar a humanidade aos. olhos da vítima.
39 Richard Rorty, “Human Rights, Rationality and Sentimentality” em Stephen Shute e Susan Hades1 (eds.),
’ ights, N ora York: Basic Books, 1993,116.
On Human R
40 H.L.A- Kart, The Concept o f L ooj, Oxford: Clarendon, 1979, Capítulo IX .
254
C o s t a s D o u z in a s
41 A apresentação mais concisa dessa perspectiva e defesa irrefutável dos direitos liberais contra seus críticos
é encontrada em jeremy Waldron, "Nonsense upon Stflts? - a reply” em j . Waldron («L), Nonsense ,pon
Stílts: Bentham, Burke andM arx on the XJgbís o/M an, Londres: Methuen, 1987,151-209. Uma variação do ar
gumento da estrutura imanente mais evidente na filosofia analítica mora] que na jurisprudência alega que os
direitos humanos são normativamente necessários porque “cada agente logicamente deve manter ou acei
tar que ele e todos os outros agentes têm esses direitos porque seus Objetos são as condições necessárias da
ação humana”, Alan Gewirth, H cm anBJgbts, Chicago: Umversity o f Chicago Press, 1982,20. Gewirth cha
ma seu método de dialeticamente necessário”: “ele parte de afirmações apresentadas com o sendo feitas
ou aceitas por um agente; prossegue a partir de seu ponto de vista conativo em primeira pessoa, e examina
o que suas afirmações logicamente implicam dentro desse ponto de vista (...) as afirmações logicamente de
vem ser feitas ou aceitas por cada agente, pois derivam de características genéricas de ação intencional”.
Esse método é uma “necessidade racional” e rejeitar seu princípio conduz a ‘‘inconsistência lógica”, 210-6.
A propna certeza do neofcantismo contemporâneo está em uroa proporção espantosamente inversa à in
certeza moral e polídca que obscurece o campo dos direitos humanos e pode apenas ser comparada, em
tom, com os argumentos de "autoevidência” explícitos nos escritos de Joh n Finnis. A maiorparte da juris
prudência ortodoxa parece prender-se a uma combinação de "estrutura imanente” e de argumentos de
“necessidade moral e lógica imanente” para os direitos. Mas mesmo em termos da filosofia analítica, o ar
gumento não é convincente. Como Phaedra, Sócrates, Kierkegaard, M dntyre e Nagel, entre outros, reco
nheceram, até mesmo a teoria moral perfeita não tem qualquer garantia de que a ação moral seguirá suas
prescrições. Conheço inúmeras razões pelas quais os poderosos violam os direitos humanos, mas não sei de
nenhum caso em que as violações pararam porque o culpado sentiu que era moralmente autoconttaditório.
42 Ronald Dworkin, Taking BJgbts Serioust?, Londres: Duckworth, 1977; “Law as Interpretarion”, em W. J . T .
Mitchell (ed.) The P oliliu oflntopretetion, Chicago: University o f Chicago Press, 1983; Lam 'sEm pire, Londres:
Fontana, 1986. ...
_________ 255_________
Os s u j e i t o s d o D i r e i t o
ver institucional dos magistrados é apresentar a lei à sua melhor luz possível.
Novas decisões devem impulsionar a história institucional e apresentá-la como
um todo coerente, ao qual a adição cai naturalmente, como um novo capítulo em
um romance multiautoral. A “melhor” interpretação das matérias jurídicas e a(s)
resposta(s) correta(s) a um “caso difícil” devem mostrar os padrões públicos da
comunidade como sendo um esquema único e coerente, animado pelos princípios
do respeito e da consideração. Princípios e direitos fazem parte da lei, não apenas
porque se ajustam a escolhas e decisões jurídicas passadas, mas também porque as
justificam a partir do ponto de vista da moralidade política substantiva. Se eu me
oponho, portanto, a um ato como uma violação de direitos humanos, embora ele
não tenha sido legalmente reconhecido como tal, devo empregar um tipo de argu
mento que explique que o ato constestado não condiz com compromissos ou
princípios profundos, os quais nosso sistema jurídico e político altamente valori
za. Se tiver sucesso ao vincular a estrutura profunda com o caso contestado, meu
interlocutor terá de aceitar a conclusão a partir da honestidade moral e/ou intelec
tual: moralmente, porque ele próprio valoriza os mesmos princípios e crenças da
nossa sociedade e, consequentemente, valoriza também, m algfê lui, o direito con
testado ou, porque, a menos que aceite que o direito contestado é um direito real,
um grande número de compromissos, princípios e direitos positivos na nossa
comunidade não fariam o-menor sentido. Mais genericamente, ao final de suas
deliberações, filósofos políticos seguidores dessa abordagem concluem que as so
ciedades ocidentais estão comprometidas com os princípios do liyre-arbítrio e da
autonomia, com a igualdade formal e com a igualdade material limitada. Em ou
tras palavras, eles descobrem, ao final de sua busca, os princípios liberais com os
quais começaram.
Existe uma série de problemas óbvios cóm todas essas “teorias da estru
tura imanente”. O primeiro e mais grave reporta-nos à discussão do sujeito autô
nomo (kantiano) dos direitos. Autonomia era o resultado da operação da razão
moral: o sujeito torna-se livre ao obedecer à lei moral que encontra em si mesmo.
A filosofia moral esperava “limpar os mundos do preconceito e da superstição.
Essa limpeza permitiria mostrar-nos superiores à nossa animalidade ao nos tor
nar, pela primeira vez, totalmente racionais e, assim, totalmente humanos”.43 A lei
do Estado, por outro lado, é um conjunto de regras heteronômico imposto de
fora ao sujeito; moralidade e legalidade estavam, no início, rigorosamente separa
das. Mas teorias da “estrutura imamente” superaram a separação entre Direito e
ética. A racionalidade do Direito jamais foi questionada por seus apologistas; ago
ra o Direito tornou-se inteiramente moral também. Em certo sentido, a imanência
dos direitos nada mais é do que o reconhecimento da relação circular èntre o Direi
to Positivo e os direitos. Mas, nas mãos de teóricos “antipositivistas” dos direitos,
como Dworkin, ela se toma muito mais. A integração do Direito com os direitos
significa que o primeiro foi inteiramente moralizado, que todos os recursos para a
crítica devem ser buscados no interior de sua organização e que o aspecto radical
dos direitos humanos foi extirpado por completo.
Edmund Burke argumentava que o Direito inglês não precisava de um
princípio ou justificação transcendente, pois uma sabedoria latente ou imanente
do direito estava presente nele. Havia muitas razões para essa manifestação de
megalomania provinciana, como vimos. Elas incluíam o medo conservador da
Revolução Francesa e do potencial radical, até mesmo revolucionário, dos direi
tos proclamados. Os direitos naturais representavam “um ato de guerra contra ti
ranos”.44 Burke acreditava que a constituição britânica era a arma perfeita contra a
tirania, e sua denúncia dos direitos humanos e outros princípios da crítica foi uma
conclusão lógica. A teoria política e jurídica inglesa seguindo a sua liderança pas
sou a preocupar-se com o real, com as criações dá prática jurídica, e abandonou a
busca do ideal. A realidade, que desqualifica ou coopta o ideal, pode adquirir uma
forma empírica e positivista ou assumir a forma de uma realidade idealizada. A
primeira abordagem é aquela do positivismo jurídico, a segunda, a dos vários teó
ricos dos direitos. Ambas defendem que “o que é” é o que deve ser, e ambas são
igualmente hostis a críticos que aplicam padrões externos. Ronald Dworkin, por
exemplo, afirma que o império da lei deve ser defendido de seu inimigo, o ceticis
mo externo, que não usa “argumentos do tipo que o empreendimento exige”45, e
dos juristas críticos, os inimigos internos, “a serviço de objetivos políticos não re
velados”.46 Na transição de Burke para Dworkin, uma certa perda de estilo e uma
redução de visão ocorreram, mas os sentimentos expressos e os alvos atacados
são os mesmos.
As teorias da estrutura imanente transformam a história em historicismo.
“O ideal (ou o racional identificado com a verdade e o bem) não está em oposição
ao real, mas concretiza-se por si próprio.”47 Com isso, nada escapa ao império do
existente. A distinção fato/valor desaparece, teorias dos direitos tornam-se exclu
sivamente “históricas [e] incapazes de compreender algo eterno”, um falso antí
doto para o positivismo jurídico.48 Apesar de protestos em contrário, a certeza
complacente dessas teorias é uma evidência da sua natureza metafísica. A identifi-
49 Sob a doutrina do “separado, porém igual” de Pkssey p. Fergusson, a igualdade de tratamento é acordada
quando se proporciona às raças facilidades substancialmente iguais, muito embora essas facilidades estejam
separadas, 163 U.S. 537 (1896). Em B/ww a Suprema Corte inverteu, declarando que “no campo da educa
ção pública, a doutrina do ‘separado, porém igual’ não tem lugar. Facilidades educacionais separadas são
inerentemente desiguais”, 347 U.S. 483 (1954).
2(50
C o s t a s D o u z in a s
a. Truques linguísticos
ir a uma festa. Se algo pode ser expresso na linguagem, esse algo pode adquirir di
reitos e pode certamente tornar-se o objeto dos direitos. Mas quais processos es
tão envolvidos nessa interminável proliferação dos direitos?
Afirmamos acima que a principal característica do "homem” dos âroits de
rbomme é a total falta de determinação de sua substância além da declaração - vazia
de conteúdo em si mesma —de seu livre-arbítrio. D o mesmo modo, a humanida
de, a sucessora do homem”, é um atributo sempre presente, mas indiferenciado,
da identidade humana que espera a atribuição de predicação, características, um
tempo e um lugar. Aplicando a terminologia da semiótica, pode-se alegar que o
homem dos direitos do homem ou, o “humano” dos direitos humanos, funciona
como um significante flutuante. Como significante, ele é simplesmente uma palavra,
um elemento discursivo que não está automática ou necessariamente vinculado a
qualquer significado ou conceito específico. Ao contrário, a palavra “humano” é
vazia de sentido epode ser atrelada a um número infinito de significados. Com
isso, ela não pode ser total e finalmente identificada com nenhuma concepção
particular, pois transcende e sobredetermina todas elas.52 Mas a “humanidade”
dos direitos humanos não é simplesmente um significante vazio; ela carrega um
enorme capital simbólico, um excedente de valor e dignidade dotado pelas revo
luções e declarações e intensificado em cada nova luta por reconhecimento e pro
teção dos direitos humanos. Esse excesso simbólico transforma o significante
humano em um significante flutuante, em algo que combatentes nas lutas polí
ticas, sociais e jurídicas desejam cooptar à sua causa a fim de beneficiarem-se de
seu capital simbólico.
Para ter direitos humanos, o que, na modernidade, é sinônimo de ser hu
mano, você deve reivindicá-los. Um novo direito é reconhecido se tem sucesso ao
fixar uma determinação —temporária òu parcial —sobre a palavra “humano”, se
consegue deter seu voo. Esse processo é conduzido em lutas políticas, ideológi
cas e institucionais. Tipicamente, grupos, campanhas e indivíduos distintos lutam
em uma série de arenas políticas, culturais e jurídicas e por meio de práticas diver
gentes e entrelaçadas, tais como protestos públicos, lobbies, políticas partidárias ou
casos precedentes, para ter um direito existente estendido ou um novo tipo de di
reito aceito. Esses esforços ocasionalmente despendidos estão relacionados entre •
si pela natureza simbólica e linguística do direito reivindicado. O potencial criati
vo da linguagem e da retórica permite aos direitos originais do “homem” firag-
mentarem-se e proliferarem nos direitos dos vários tipos de sujeito, como, por
exemplo, os direitos de trabalhadores, mulheres, crianças, refogiados, ou os direi
tos de um povo à autodeterminação, ou os direitos dos animais e ambientais.
*2 . uma 2PacaÇã° do conceito psicanaJídco de "sobredeterminação” na teoria política, veja Ernesto La-
u e Chantal Mouffe, Hegemonj and S oàaâst Strateg, Londres: Verso, 1985. ';
_________263_________
Os s u j e i t o s d o D i r e i t o
gue suas propriedades “naturais”. Dizer, por exemplo, que “as mulheres (não) são
iguais aos homens” tem.pouco significado no abstrato. Esse tipo de essencialismo
tem atormentado as discussões femimstas sobre os direitos. As mulheres perma
neceram invisíveis aos direitos humanos por muito tempo, seja devido à negação
de sua semelhança com o conceito simbólico fundador ou devido à negação de
sua especificidade e diferença em relação a ele. A admissão das mulheres à condi
ção de humanidade (a ação da semelhança) sem contestar as demandas de diferen
ça é igualmente problematica. Ela assume que a outorga às mulheres dos direitos
dos representantes da humanidade (homens brancos bem-sucedidos) automatica
mente aumentaria sua liberdade, igualdade e dignidade. Mas como o feminismo
da diferença tem argumentado de modo irrefutável, a universalidade dos direitos
necessariamente negligencia as necessidades e as experiências específicas das mu
lheres.34-O Direito Civil e o Direito Internacional tiveram grandes problemas ao
aceitar, por exemplo, a natureza especial do estupro doméstico ou do estupro e
do abuso sexual durante a guerra. No jogo retórico dos direitos, semelhança e di
ferença por si só podem ser empregadas para promover os mais contraditórios
objetivos. Uma reivindicação de diferença sem semelhança pode estabelecer a sin
gularidade de um grupo específico e justificar sua exigência de tratamento especi
al, mas pode também racionalizar sua inferioridade social ou política. Aristóteles
escreveu que “alguns homens são livres por natureza e alguns são escravos (...)
Desde o nascimento, alguns estão marcados para a sujeição e outros para ditar a
regra .55 Um escravo grego ou romano era visto como um anim alvocale, um operá
rio no século XIX era tratado como um “dente da engrenagem” ou uma mercado
ria descartável, uma esposa até tempos relativamente recentes era a propriedade
do marido. Em todos esses casos, a diferença empírica estabelecia e justificava a
dominação. Mais genericamente, o aparecimento de diferenças linguísticas, raciais, de
gênero e outras sem uma reivindicação correspondente de semelhança foi usada na
maioria dos casos para estabelecer hierarquias e legitimar desequilíbrios de poder.
A questão, portanto, é quando, como e em relação a quais atributos as
mulheres (não) são como os homens” ? A maioria das lutas por direitos humanos
toma a forma desse tipo de comparação oportuna, histórica e específica. Seu obje
tivo é redefinir o modo predominante de compreender as relações entre classes,
grupos e indivíduos e, para isso, táticas retóricas e argumentos discursivos repre
sentam uma de suas principais armas. O objetivo cultural das lutas contra a escra-
54 -Luce Irigaray, Thinking the Difference (trad, de K . Mbntin), Nova York; Routledge, 1994; A n E thics o f Sexual
Difference (trad, de Carolyn Burke e Gillian Gill), Londres: Athlone 1993; I love toyou (trad, de Alison Martin),
Nova York: Routiedge 1996. Para uma excelente apresentação das várias posições no feminismo, veja: Ni- .
cola Lacey, Unspeakable Subjects, Oxford-Hart, 1998,jtajxw e Capítulo 7.
55 Aristóteles, Politics (trad, de H. Rakham), Cambridge Mass.: Loeb, 1 9 9 0 ,1 .1, 6. ■ •
_________ 265_________
Os s u j e i t o s d o D i r e i t o
56 Esse reconhecimento básico acontece particularmente quando relacionamentos homossexuais são descri-
minalizados. Veja; Dudgeon v. United Kingdom 4 E.H .R.R. 149 (1981).
57 Jacques Derrida, “Eating Well” em E . Cadava, P. Connor e J . L. Nancy (eds)> W ho Comes A p r the Subject,
Nova York: Routledge, 1993,111-16.
266
C o s t a s D o u z in a s
58 Veja Em es to Laciau, N ew Refections on the Revolution o f our T im , Londies: Verso 1990; 3-85.
_________ 267_________
Os s u j e i t o s d o D i r e i t o
goria de direitos contestada, por exemplo, a dos direitos das mulheres, atua como
o reconhecimento parcial de um tipo particular de identidade vinculado aos direi
tos relevantes. Inversamente, uma pessoa reconhecida como sujeito jurídico em re
lação aos direitos das mulheres é reconhecida como a detentora de certos atributos
e a beneficiária de certas atividades, mas, ao mesmo tempo, como uma pessoa de
uma identidade particular que compartilha entre outros da dignidade da natureza
humana abstrata. Deve-se acrescentar imediatamente que a identidade de uma
mulher em particular não é exaurida em sua identificação como um sujeito dos di
reitos das mulheres ou em seu reconhecimento como a beneficiária da igualdade e
da liberdade da natureza humana.59 Ela também terá direitos políticos na qualida
de de cidadã e outros direitos que emanam de sua posição na economia (direitos
de trabalhadores e direitos sociais) ou como a habitante de -um ambiente em parti
cular etc. O sujeito jurídico atua como o conceito e a técnica organizadores, medi
adores e unificadores por meio dos quais a lei atribui categorias, fixa identidades
e tenta estabilizar a proliferação do significado social. Um indivíduo é um ser hu
mano, um cidadão, uma mulher, um trabalhador etc. na medida em que é reco
nhecido como o sujeito jurídico dos respectivos direitos; sua.identidade jurídica é
a somatória total do conjunto de seus diréitos. Se, para estar fora da lei, você deve
ser honesto, você deve estar dentro lei para ser humano. Na modernidade, sabe
mos apenas o que podemos fazer; a legalização do desejo significa que podemos
agora “fazer” a nós mesmos ao investir o desejo de significado jurídico. Somos
potencialmente autorizados a nos tornar legalmente tudo o que queremos ser.
A personalidade jurídica é, portanto, uma estratégia-chave de individua
ção. Homens e mulheres não mais representam os veículos materiais da alma, ou
as formas externas de uma psyche universal. Como seres sensíveis, eles adquirem
sua imagem pública por meio de seus atributos legais reconhecidos, os quais os
autorizam a realizar atos significativos para outros. A subjetividade jurídica para
doxalmente representa tanto o princípio do universalismo quanto o processo pelo
qual a individuação é realizada na modernidade. Nesse sentido, os direitos não
apenas pertencem aos seres humanos; ao contrário, eles fabricam o humano, não
apenas ao reconhecer sua capacidade legislativa de produzir direitos e o livre-arbí-
trio, mas também ao dotá-los dos poderes e capacidades concretas por meio dos
quais eles podem concretizar seu livre-arbítrio. Esta é a razão pela qual uma defi
nição completa dos direitos é impossível e porque eles estio abertos à contínua
expansão e proliferação. Os direitos humanos jamais podem alcançar um estado
de aceitação definitiva ou um triunfo final, pois a lógica dos direitos não pode ficar
restrita a algum campo particular ou tipo de sujeito. A lei dos direitos humanos é
59 Esse era o principal objetivo por trás da primeira fase das batalhas jurídicas por direitos das mulheres e' de
cada um dos demais movimentos sociais.
C o s t a s D o u z in a s
flagrada ainda em outro paradoxo: na qualidade de lei, ela atua como um agente de
estabilização da identidade e de racionalização do poder do Estado; na qualidade
de direitos humanos, eià introduz no Estado e na personalidade (jurídica) a aber
tura da indeterminação social e cultural. O conceito abstrato de natureza humana,
que embasa as declarações revolucionárias, foi substituído, nas sociedades
pós-modernas, pelas reivindicações que proliferam de direitos novos e especiali
zados. Com isso, o próprio desejo substitui a natureza humana como o conceito
fundador e se toma o significante flutuante e vazio que pode ser atrelado ou à lógi
ca do poder e do Estado ou à lógica da justiça e da abertura.
Podemos concluir que a queixa comum quanto à excessiva legalização do
mundo é o resultado inevitável da legalização do desejo. O desejo tornou-se a ex
pressão formal da relação do sujeito com os outros e com a república e conquis
tou reconhecimento jurídico, inicialmente limitado, no mundo ocidental na virada
do sécuio passado.vtím a vez estabelecido esse fato básico, a multiplicação de titu
lares de direitos, a proliferação de reivindicações e a mutação'infinita dos objetos
de direito foi uma questão de tempo, de deixar-a-linguagem, a política e o desejo
fazerem o seu trabalho. Os direitos são, portanto, ficções.extremamente podero
sas cujo efeito sobre as pessoas e as coisas é profundo: eles fazem as pessoas sacrí- .
ficarem sua vida ou sua liberdade, eles levam as pessoas a matar ou mutilar em seu
nome, eles inspiram as pessoas a protestar, a se rebelar e a mudar o mundo. Os di
reitos são ficções linguísticas que funcionam e reconhecimentos de um desejo que
nunca chega ao fim.
1 0 . O D IR E IT O D E H E G E L : D IR E IT O S E R E C O N H E C IM E N T O
Hegel foi, sem cerimônia, excluído dos anais da filosofia radical em 1969
para ser redescoberto em 1989. Em 1969, Louis Alíhusser publicou o influente F or
M arx, no qual o filósofo francês, um proeminente representante da então predomi
nante escola de pensamento estruturalista, anunciava que a “revolução epistemoló-
gica” marxista começara apenas depois que Marx descartou a influência idealista
de Hegel, influência esta que havia caracterizado seus escritos iniciais.1 Mas o en
terro foi prematuro. Após o colapso do comunismo e a subsequente e geralmente
injusta culpa atribuída a Marx por seus males, Hegel retornou como um fantasma,
e a “dialética sem historicismo” tomou-se uma importante fonte de inspiração
para aqueles que não aceitavam a lógica linear do capitalismo triunfante.
No entanto, em um outro sentido, Hegel jamais saiu do cenário filosófico.
Os poderes colonizadores de seu sistema são tais que praticamente todas as posi
ções filosóficas podem ser apresentadas como um relato parcial da progressão do
espírito para a consdência-de-si, e cada acontecimento histórico pode ser facilmen
te cooptado nesse edifício monumental. D e acordo com Jacques Derrida, a filosofia
moderna está obcecada pelo sistema hegeliano e, no rastro da proclamação de He
gel do fim da filosofia, mostra-se incerta quanto a seus fins.2 Porém, o inexorável
surgimento e eventual domínio do estruturalismo nas ciências humanas e sociais, no
período pós-guerra, aliado ao liberalismo político, significou que o historicismo do
sistema hegeliano e sua biisca pela totalização perderam terreno. Durante gerações,
intelectuais radicais filtraram os estudos de Hegel com as críticas do jovem Marx a
seu mentor filosófico. Foi após a queda do comunismo, um acontecimento cuja
importância histórica vai levar um bom tempo para ser totalmente entendida, que
os filósofos retornaram a Hegel sans Marx. A vastidão e a ambição da obra hegelia-
1 Louis Althusser, F orM arx{ttad. d e B . Brewster), Londres: Alien Lane, 1969. Em dois ensaios seminais nes
se volume, "O n the Young Marx” e “Marxism and Humanism”, A lthusser afirm ava que M arx rom peu com
o humanismo e o definiu como ideologia, em 1845,227-231. Isto permitiu-lhe criar uma ciência não-huma-
nista da história, a qual reunia as outras grandes descobertas científicas, Louis Althusser, "Marx’s Relation
to Hegel”, cm Politics andH isloiy (trad, de B . Brewster), Londres: New Left Books, 1972,163-86.
2 Este é um ponto principal de G /as, de Jacques Derrida (trad. d e j. Leavy e R. Rand), Lincoln: University o f
Nebraska Press, 1986, que abre sua coluna da esquerda, dedicada a Hegel, como segue: “o que, afinal, resta
hoje para nós, aqui, de Hegel? Para nós, aqui e agora: de agora em diante é o que não se conseguiu pensar
sem ele. Para nós, aqui e agora: estas palavras são citações, já e sempre, teremos aprendido com ele , em
270
C o s t a s D o u z in a s
Michel Rosenfeid, “Hegel and the Dialectics o f Contract”, 10 Cardoso L a v Review 1199 (1989); Drurilla
Cornell, Michei Rosenfeid e David Carison, H egel an d U galT beoy, N tiv aY o rk Routiedge, 1991; Margaret
Jan e Radm, ReintepretingPropertf, Chicago: University o f Chicago Press, 1993; Alan Brudner, The Unity o f the
Common Law : Studies in Hegelian Jurisprudence, Berkeley: University o f California Press, 1995; Jeanne Shroe-
der, The V estal and the Fasces, Berkeley: University o f California Press, 1998.
______ 271______
O D IREITO D E H E G E L
A partir da perspectiva do estágio final, do fim da história, o espírito olha para trás
e vê a história não como uma sequência aleatória de acontecimentos, mas como a
revelação de uma trajetória progressiva que conduz à superação do conflito. A fi
losofia segue uma trajetória paralela, acabando por mesclar-se com o primeiro, o
qual, gradativamente, vem a reconhecer a história como a encarnação da razão.
Quando Hegel se volta para o campo normativo, ele alega, contrariando o
formalismo moral e jurídico de Kant e sua separação da moralidade da legalidade,
que a liberdade e a vida ética estio intrinsecamente vinculadas. Na vida ética, o es
tágio final, introduzido no cenário histórico com o Estado moderno, a moralidade
e a legalidade são finalmente reunidas em um todo orgânico e se tomam a mani
festação institucional do Estado. Todos os sistemas normativos anteriores, desde
as cidades-estado gregas, com suas desigualdades, até a monarquia absoluta, com
suas proteções legais limitadas, constituíam estações intermediárias no caminho
para a reconciliação final da vida ética. A subjetividade, também, acreditava Hegel,
é criada por meio de uma luta entre pessoas pelo reconhecimento recíproco de sua
identidade. Essa luta conduziu a separações sociais e hierarquias, as quais culmi
naram na criação de uma classe de senhores e escravos, e' é somente a partir da su
peração moderna da relação senhor/escravo que a pessoa humana completa ga
nha vida. A evolução dialética do domínio normativo e da personalidade são cru
ciais ao desenvolvimento de uma crítica dos direitos hegeliana e merece uma aná
lise um tanto detalhada.
A obra Princípios da Filosofia do D ireit/f de Hegel apresenta o movimento
em direção ao espírito absoluto ou à encarnação histórica da razão como uma pro
gressão tripartite que explicitamente assume uma forma jurídica. O direito abstra
to formal abre caminho para a moralidade do kantianismo (M oralitai), que é final
mente transcendida pela vida ética. No primeiro estágio, os direitos possuem uma
existência formal, mas nenhum conteúdo determinado, e a personalidade jurídica,
o conceito organizador chave, existe apenas no abstrato. Direito e moralidade ex
pressam a unidade imediata e indiferenciada dos princípios universais e, com isso,
a vontade humana é livre, mas sua única ação é relacionar o E u a si mesmo e, as
sim, criar uma pessoa que não tem características concretas e não se relaciona com
outras. Essa abstração representa o sujeito jurídico, uma cifra lógica pura, cujo
único papel é servir de suporte abstrato das normas universais e cuja única quali
dade é possuir direitos e deveres legais. Assim como os membros queridos de
uma família, cujas negociações entre si estão além das regras jurídicas, o sujeito ju
rídico pressuposto pelo direito formal jamais entra em contato com o mundo real.
A lei do Estado não se dirige a ficções, tampouco constituem abstrações envolvi
4 G. W . F. Hegel, Phihsophy ojY-jght (trad. d eT. M. Knox), Oxford: Oxford Univetsity Press, 1967 [Era portu
guês: Princípios áã Filosofiã do D ireito (trad. de Orlando Vltorino), São Paulo: Martins Fontes, 2000.]
273
O d ir e it o d e H e g e l
5 Ibid. 37-40.
6 G . W. F . Hegel, “System o f Ethical Life” (1802-3) e “firs t Philosophy o f Spirit” (1805-6) (trad. <ie n . &.
Harris e T . M. Knox), Albany; S.U.N.Y. Press, 1977, e N atural Law (trad. d e T . M . Knox), Philadelphia:
University o f Pennsylvania Press, 1975.
; 274
C o s t a s D o u z in a s
ereto, o sujeito kantiano constitui a sua única carapaça externa. Para passar disso
para o indivíduo único, o universal concreto”, a mentalidade jurídica deve ser
complementada com consideração emocional. Sem ela, a autonomia kantiana
obedece a critérios puramente formais e conduz a arbitrariedades morais internas,
quase a um sadismo, de acordo com Lacan,7 e a uma coerção legal externa conti
nuamente em expansão.
O direito formal e a moralidade abstrata são finalmente absorvidos, can
celados e transcendidos no terceiro momentò da S ittlkhkeit. O bem abstrato e a
consciência humana, mantidos afastados do mundo pela moralidade, agora se
unem e são realizados nas ações de indivíduos concretos. Ao contrário da lei coer
civa da liberdade kantiana, a vida ética é o viver bem praticado e experenciado por
cada cidadão. Essa lei do viver restringe a “opinião e o capricho subjetivos”8 com
uma necessidade mínima de sanções externas e torna a virtude “refletida no cará
ter individual .9 Aaütonomia toma-se real somente quando está personificada em
instituições políticas e leis universais que conferem conteúdo à razão, modelam
nossa personalidade e conferem substância aos nossos deveres morais. Ao contrá
rio da universalidade abstrata do direito e da subjetividade formal da moralidade,
na vida ética o direito e o dever se fundem e, por estar na ordem ética, um ho
mem possui direitos na medida em que tem deveres, e deveres na medida em que
possui direitos .10 A universalidade do espírito historicamente encarnado é um gri
to distante da ordem formal do legalismo e da ordem estranha dos objetos naturais
que escamoteiam sua racionalidade sob o disfarce da contingência e a exibem ape
nas em sua maneira totalmente externa e singularizada ou desconectada”.11 Nesse
estágio final, as leis e as instituições não são os suplementos necessários de n m a
crnel e ineficiente consciência, mas as, concretas personificações da moralidade'
viva. Esse espírito pode chamar-se a lei humana, por ser essencialmente na for
ma da efeümdade consciente dela mesma. Na forma de universalidade, é a lei conhecida e o
costume c o r r e n t ê As ddades-estado gregas, as prefigurações históricas da vida
ética, sentiam-se em casa em seu mundo e compreendiam o particular, mas não
concebiam a si mesmas como representantes do universal. A vida ética, por outro
lado, integra o universal e o particular, toma a liberdade concreta, une sujeito e ob
7 Jacques Lacan, “Kant avec Sade”, 51 (Winter 1989), 55-75; Costas Douzinas, “Antigone’s Death
and L a V s Birth: on Ontological and Psychoanalytical Ethics”, (1995) 16 Cardoso Law Review 3-4 1325
8 Philosophy o f Right, op. c it, supra: n. 4,105.
9 Ibid., 107,109.
10 Ibid., 109.
11 Ibid., 106.
12 J W - R He^ o f Spirit (trad, de A.V. Miller), Oxford: Oxford University Press, 1 9 7 7 ,2Ó7-8.
[Em português: Fenomenolcga do Espirito, (trad de Paulo Meneses, col! de Karl-Heinz Efken e Jo sé N . Ma-
PeCrÓpolÍS Vozes e Bragân?a Pauüsta SP: Ed. Universitária São Francisco, 2 0 0 2 ,7 “. Ed. rev..
275
O d ir e it o d e H e g e l
jeto, é e deve ser conteúdo e forma. Este é, então, o movimento do. espírito na his
tória: do direito à moralidade, à vida ética no domínio dos princípios morais, e da
família à sociedade civil, ao Estado nas instituições. A progressão está repleta de
contradições internas e externas, de conflitos, reviravoltas e atribulações, que são
gradativamente absorvidos na marcha inexorável do espírito em direção à sua
própria consciência-de-si.
Hegel seguiu uma abordagem semelhante quando se voltou para a nature
za do sujeito. Seu objetivo era reconstruir os pressupostos filosóficos e os estágios
históricos necessários por meio dos quais a subjetividade moderna e sua consciên
cia histórica e filosófica ganharam vida. O movimento dialético funciona de trás
para frente: o que acontece hoje é explicado pela sua necessidade em uma história
longa e evolutiva:
A necessidade da dialética é retrospectiva e não prospectiva —ela olha para
trás e não para frente. A retroatívidade da dialética está refletida na conhecida
metáfora de Hegel no prefácio de seus Princípios da "Filosofia do D ireito: “quando
a filosofia pinta seu grisalho de grisalho, uma forma de vida envelheceu e não
pode ser rejuvenescida, mas apenas reconhecida pelo grisalho no grisalho da
filosofia; a coruja de Minerva inicia seu vôo apenas ao cair do anoitecer”.13
13 Jeanne Schroeder, Tbs V estal and tbs Fasces: 'Psychoanalyticaland PhilosophicalPerspectives on the Feminine andPro-
perty, Berkeley: University o f California Press, 1998,13-4.
276
C o s t a s D o u z in a s
Porém, essa negação voraz abole o objeto e atira o sujeito, sua fome e de
sejo, temporariamente saciados, de volta à sua identidade própria ilusória, a qual
não diferencia seres humanos de animais. O homem deve negar o objeto sem abo
li-lo, pois a abolição do mundo conduziria à eliminação da humanidade. O pleno
desejo humano não é dirigido, portanto, a um objeto ou a um ser, mas a um
não-objeto, a outra consciência-de-si. É o reconhecimento e o desejo do Outro
que dá origem ao Eu, que vê a si próprio refletido em outro, cuja exterioridade
deve ser negada para dar origem ao ego, mas cuja existência e alteridade sobre
vivem.
14 K egeland the Human Spirit: A Translation ofIheJena Lectures outbe Philosophy o f the Spirit (1805-6,) with C om m ent^ •
(trad. L. Rauch), Detroit: Wayne State University Press, 1983,116.
15 ChajJes Taylor, Hegel, Cambridge University Press, 1977,148-50.
277
O DIREITO D E H E G EL
16 Ibid.,150.
17 phsncm nohgf, supran. 12,140.
18 Slavoj Zizek, F or they k>m< rot whot !hey do: E n joyrm t as a P olitka! Fnclvr, Londres: Verso, 1991, - -
278
C o s t a s D o u z in a s
arrisca sua vida por prestígio, toma-se o senhor; o Outro seu escravo. O escravo
subordinou seu desejo de reconhecimento ao de sobrevivência.
A superioridade do senhor será concretizada no trabalho do escravo, o
qual coloca a natureza a serviço de seu senhor; em troca, o senhor depende, para
sua existência, do trabalho escravo. Hegel acreditava que a relação senhor-escravo
é um estágio necessário na ascensão da humanidade ao seu autorreconhecimento
como o valor universal. Essa transcendência final é desencadeada pelo medo da
morte e pelo conhecimento produzido por meio do trabalho. Preocupados com
as tarefas corriqueiras diárias, tratados como objetos à mercê de seu senhor, os es
cravos levavam uma vida de particularidade separada do universal. Mas a morte,
seu “lorde e senhor”,19 coloca-os em contato com o universal e pòr fim os liber
ta para negar sua negação e fugir da vida da particularidade rumo à liberdade. A
experiência do trabalho contribui ainda para a transcendência da escravidão. O fa
zendeiro, o construtor e o trabalhador lutam diariamente para transformar a natu
reza a fim de criar valor para seu senhor. Mas a natureza resiste a seus esforços;
para dominá-la, os escravos fazem planos, desenvolvem tecnologias, inventam
métodos de trabalho e logo se dão conta de que sua atividade humanizou o meio
ambiente. Gradualmente dão-se conta do poder do pensamento que, por meio da
criação de conceitos universais e da aplicação da lógica do intelecto, pode dominar
o mundo. Quando essa percepção adentra a política, os senhores e os escravos são
finalmente transcendidos e substituídos pelo cidadão universal. Nesse momento,
o espírito torna-se consciente de si mesmo e reconhece a história humana como o
processo de realização gradual da razão.
A filosofia hegeliana concebe a história como uma totalidade reveladora
na qual o conhecimento, as relações sociais e a estrutura da subjetividade são, lógi
ca, se não empiricamente, determinadas pela luta entre selfs desejantes, por seu inevi
tável corolário na dialética do senhor e do escravo e por sua eventual transcendência
no Estado ético. A história começou quando os homens opuseram-se uns aos ou
tros e terminará quando a luta resultar na percepção de que a humanidade é o
princípio universal e a razão, sua personificação, anima o mundo e embasa o siste
ma de valores de vida do Estado ético. Quando a oposição entre a humanidade e o
mundo é transcendida, a história chega ao fim. Senhor e escravo estão dialettca-
mente superados, subanulados em uma síntese final “que é o Homem total, o Ci
dadão do Estado universal e homogêneo”.20Para Hegel, o Estado prussiano havia
21 Frands Fukuyama, H ave me reached the E n d ofH istoy?, Santa Monica, Ca.: Rand Corporation, 1989,22-3.
22 Francis Fukuyama, The E n d o f History and the L ast M an, Londres: Penguin, 1992,46. p m português: 0 Kw
da H istória e o Último Homem (trad, de Aulyde Soares Rodrigues), Rio de Janeiro: Rocco, 1992,77.]
23 Jean-François Lyotard, The Postmodern Condition:A n Essay on Knowledge, Manchester: Manchester University
Press, 1984. [Em p ortag aès: A Condição Pôs-M odema (trad, de Ricardo C o r r ê a B a r b o s a ) , R i o dejanekor Ed.
Jo sé Olympio, 2004,8*. ed.]
C o s t a s D o u z in a s
Mas qual é a contribuição da lei e dos direitos para a luta por reconheci
mento e para a formação da personalidade? Seguindo a dialética trinitária usual,
Honneth apresenta o reconhecimento jurídico como uma das três etapas princi
pais do reconhecimento mútuo, o estágio intermediário entre o amor e a solidarie
dade. Todas as três representam maneiras éticas de reconhecer o Outro e criar o
Eu; elas ajudam a constituir diferentes tipos de identidade. Primeiro, o amor. Seu
terreno primário é a família. Membros da família e pessoas que se amam encon-
24 Asei Honneth, Tbs S tru ck fa r Recognition (trad, de j . Anderson.), Cambridge: Polity, 1995, 38. (Em portu
guês: Honneth, L u tap or nconhedmento - A gramática m oral io s conflitos sociais (trad, de Luiz Repa) São Paulo' -
Editora 34, 2003.}
25 Ibid., 17. [Err. português: ibid., 47 J
2 8 1 _________
O DIREITO D E H E G EL
26 Hegel cm Encjclopaidia, citado cm Honneth ibid., 108. [Em português: ibid., 1/9.]
282
C o s t a s D o u z in a s
A origem interna do crime é a força coerciva da lei (...) o crime como tal é diri
gido contra a pessoa como tal e seu conhecimento dele posto que o criminoso
é inteligência. Sua justificativa interna é a coerção, a oposição à sua vontade in
dividual de poder, de contar como algo, de ser reconhecido. Como Eróstrato,
eíe quer ser algo, não exatamente famoso, mas exerce sua vontade em defesa
da vontade universal.30
27 Jo e l Feinberg, Rights, Justice and lhe V alue o f Liberty, Princeton N J: Princeton University Press, 1980,151.
28 A partii de uma perspectiva naturalista, Jacques Maritain chega a uma conclusão parecida; “A dignidade da
pessoa humanar' A expressão nada significa se não significa que, em virtude do direito natural, a pessoa hu
mana tem os direitos de ser respeitada, é o sujeito dos direitos, possui direitos”, The Rights o f M an and N atural
W (trad, de D . Anson), N ova York: Charica Scribner’s Sons, 1951, 6.
29 Kart Marx, era seu estiio maravilhosamente irônico, ao mesmo tempo endossou e satirizou Hegel: “Um fi
lósofo produz ideias, um poeta poemas, um clérigo sermões, um professor compêndios e assim por diante.
Um criminoso produz crimes ( ...) o criminoso, além disso, produz a totalidade da polida e da justiça penal,
guardas, juizes, carrascos, juris etc.; e todas essas diferentes linhas de negócios, que formam tantas categorias
de divisão social de trabalho, desenvolvem diferentes capacidades da mente humana, rHam novas necessi
dades e novas formas de satisfazê-las. Só a tortura deu origem às mais engenhosas invenções mecânicas e
empregou muitos artesãos honrados na produção de instrumentos ( ...) as fechaduras teriam alcançado seu
grau de excelência atual se não houvesse ladrões? A produção de cédulas teria alcancado sua perfeição atual
se não existissem falsificadores?” Them e o f Surplus V alue (trad, de J . Cohen), Lonckes: Lawrence and W s-
hart, 1972.
30 Jen a Lectures ox the Philosophy o f the Spirit, o p . cit., supran. 14,130.
283
O d ir e it o d e H e g e l
pede que a lei vá em direção a úma maior igualdade substancial Ao mesmo tem
po, a agressão do criminoso às relações jurídicas e ao reconhecimento que elas
sustentam alerta as pessoas em relação à sua dependência da comunidade e de
suas instituições. O crime e a resposta a ele auxiliam a personalidade a desenvolver
um tipo de reconhecimento que deveria levar a uma maior autonomia e também a
maior socialização harmoniosa exigidas pelo estágio histórico final, o da vida ética.
Aqui, relações jurídicas abstratas' são suplantadas por um tipo de reconhecimento
no qual os indivíduos compreendem a si mesmos como totalmente dependentes
um do outro e, ao mesmo tempo, como pessoas totalmente únicas e concretas. Na
narrativa de Honneth, o formalismo da lei torna-se a razão ontológica para a sua
negação pelo criminoso, mas, em troca, o crime contribui para a superação dialéti
ca do legalismo formal.
32 Margaret jan e Radir. chega à mesma conclusão em relação à abordagem de Hegel de pessoa, que é “a mes
ma de Kant - simplesmente uma entidade autônoma abstrata capaz de possuir direitos, um artificio para
abstrair princípios universais e, por definição, desprovida de características individualkadoras”, em Riwter-
preting P rcpn ij, o p .cit, supra n. 3 ,4 4 .
33 Honneth, op. c it, supra n. 24, 55. p m português: op. c it, 103.]
34 Ibid.,61-2.
286
C o s t a s D o u z in a s
Fasces (fasces licíoris) eram uma espécie de feixe de varas que, na Roma Antiga, os lictores portaram ao acom
panhar os magistrados e cônsules, como um símbolo de autoridade, do direito que estes tinham de punir. Nos
anos 1920, esse objeto foi adotado por Mussolini, na Itáüa, como símbolo do fascismo (N. de T.).
C o s t a s D o u z ín a s
çãos em consagrações) invenções, e afins” que, embora não sejam parte da pessoa,
abstrata, são supra-agregados a ela e a transformam em um indivíduo concreto e
singular, pertencem ao mundo dos objetos.39 A propriedade sobre os objetos e as
relações jurídicas associadas não constituem, portanto, um aspecto indispensável
ao processo logicamente necessário de objeüficação da pessoa abstrata. O que é
necessário é que o livre-arbítrio inicial materialize-se por meio de propriedades
que se agregam à pessoa, conferindo-lhe uma solidez empírica. A propriedade real
pode ter sido um importante aspecto desse processo à epoca de Hegel e nos Esta
dos Unidos contemporâneo, mas não há nada inevitável ou exclusivo acerca de
suas capacidades humanizadoras.
De fato, a abordagem de Shroeder da propriedade e sua celebração de seu
caráter criativo e formador do sujeito possui um tom missionário. “A propriedade
está bem e funcionando (...) todos os direitos legais devem ser reinterpretados em
termos de propriedade.”40 O som do triunfalismo é audível. Com o colapso do
comunismo, a era do próprio reconhecimento e da erotização da propriedade des-
. pertou no-xenário-mundiai. Talvez-não tenhamos alcançado completamente o
"fim da história”, mas estamos bem perto de elevar a propriedade a seu estado
universal. Contudo, isso é ao mesmo tempo logicamente desnecessário e histori
camente mal concebido. O que precisamos para o reconhecimento jurídico de
outros e de nós mesmos através dos olhos deles não é de propriedade, mas de pro
priedades. Queremos ser reconhecidos como uma pessoa com tais e tais talen
tos, habilidades, características e realizações e não simplesmente como o propri
etário de um Porsche ou de um Rolex, ou, de fato, de nada exceto nossas roupas
esfarrapadas, como os refugiados ruandeses ou kosovares.41 A reconceitualização
dos direitos que explica e enfatiza seu papel na construção da subjetividade consti
tui uma importante emenda da teoria liberal. Porém transformar todos os direitos
em propriedade não adianta, pois a maioria dos tipos atoais de propriedade divide
e atomiza as pessoas. Ao contrário, a propriedade deveria ser enfraquecida e se
tornar um aspecto apenas dos direitos, associado à igualdade que o universalismo
dos direitos introduz.-
42 Lacan também compreende o desejo de reconhecimento com o conduzindo à violência imaginária que
deve ser sublimada por meio da feia e da lei. V eja os Capítulos 11 e 12 mais adianti-,
43 E m st Bloch, N otarei L aw an d Httman Digniíy (trad. de D .J. Schmidt), Catabridge, Mass.: MTT Press, 1988,
65.
44 Veja o Capítulo 7 acima.
291________
O D IREITO D E H E G EL
como o exercício dos direitos políticos e a ativa associação nas atividades da co
munidade, e é produzida por meio “do reconhecimento mútuo de cada membro
como cidadão por todos os demais”.45 A ideia de reconhecimento é crucial aqui e
indica um retomo do pensamento marxista a uma série de temas hegelianos. O re
conhecimento como cidadão torna a política central e introduz a comunidade no
coração da subjetividade. É a partir desta perspectiva que Bemstein afirma, um tan
to contraffactualmente, que “nada na análise marxista depõe contra os direitos”.46
Marx previu, de acordo com Bernstein, que o socialismo superaria a separação en
tre o Estado e a sociedade civil e não que destruiria os direitos. Nesta sociedade do
futuro, o indivíduo irá absorver o ser humano abstrato, os atributos da universali
dade e do bem comum serão estendidos do Estado para toda a sociedade, e os di
reitos humanos serão redefinidos como os direitos de participação de todos em
todos os aspectos da atividade social. No socialismo, todas as relações serão políti
cas. D e fato, é verdade que Marx não descartou a possibilidade de uma sociedade
socialista que respeita determinados tipos de direitos e, após o colapso do comu
nismo, este é o tipo de sociedade na qual os socialistas acreditam. Porém, a adoção
de parte da lógica hegeliana do reconhecimento e de parte da economia marxista,
não nos ajuda a compreender a atual ação dos direitos.
Contudo, há muito que podemos aprender ao combinar a estratégia de
Marx ^mrHegel, de Berstedn, com a ênfase de Honneth à luta por reconhecimento
e as perspectivas de Shroeder sobre a propriedade como o objeto de desejo. Pri
meiramente, o antigo debate sobre a prioridade do indivíduo ou comunidade em
relação aos direitos pode ser concluído. Os direitos pertencem a pessoas como
um reconhecimento e uma proteção de suas características inatas, sua consciência,
liberdade, racionalidade ou o qiiè for, ou são eles criações contingentes da lei e da
tradição, sujeitas ao uso e à manipulação do Estádo? A resposta hegeliana-marxis-
ta é clara: os direitos humanos podem ser apresentados como naturais e eternos,
mas são altamente históricos e contingentes. Podem ser declarados acima da polí
tica, mas são a construção de relações políticas e da luta contínua por reconheci
mento (do grupo ou individual). Finalmente, eles podem ser proclamados como
racionais, mas são, em parte, o resultado de um desejo todo-poderoso que desafia
limites legais e lógicos em seu esforço incessante para atrair o amor do Outro'.
Shroeder afirma que o sujeito é criado por meio de seu desejo de reconhe
cimento pelo Outro, mediado pelo objeto de propriedade. Se adotarmos a ampla
definição do objeto como cada traço, característica ou posse que é combinado
com a pessoa abstrata para tomá-la um indivíduo concreto, podemos afirmar que
45 Jay Bernstein, “Right, Revolution and Community; Marx’s ‘O n the Jewish Question”’ em Peter Osborne
(ed.)> Soaatism and the L im its o f Liberalism , Londres: Verso, 1991,102. Veja o Capitulo 7, parte III, acima.
46 Ibid., 109.
292
C o s t a s D o ü z in a s
47 Ib id .,102. _ .
48 A abordagem psicanalítica aceita o papel formador do sujeito do Outro ed os direitos, mas é
ãca quanto à contribuição dos direitos para a criação e a expansão da comunidade. Veja os Capi os e
12 mais adiante.
294
C o s t a s D o u z in a s
49 Ia s Marion Young, Justice W the Politics o f Difference, Princeton:'Princeton University Press, 1990, 6.
295
O d ir e it o d e H e g e l
50 “Todas as pessoas têm o direito à autodeterminação. Graças a esse direito, elas determinam livremente a
sua situação política e buscam livremente o seu desenvolvimento econômico, social e cultural.” Este e o
primeiro artigo tanto do Pacto por Direitos Políticos e Civis quanto do Pacto por Direitos Economicos,
Sociais e Culturais, ambos adotados peias Nações Unidas, em 1966.
C o s t a s D o u z in a s
53 Honneth, op. c it, supra n. 24, 20. [Em português: Honneth, op. cit., supra n. 24, 52.]
298
C o s t a s D o u z in a s
ma. A crueldade da tortura não fica restrita à violência gratuita infligida ao corpo.
Muitos tipos de dor extrema e sofrimento físico em guerras, martírios religiosos
ou doenças são enfrentados com dignidade e paciência. O mal da tortura reside em
outro lugar: ele nega à vítima o mínimo reconhecimento oferecido pot um sistema
jurídico e social liberal e, ao fazê-lo, destrói o respeito que as pessoas costumeira-
mente esperam das outras. O que é mais importante, a tortura tem por objetivo
minar a forma como a vítima se relaciona com o seu próprio Eu, seu respeito pró
prio, e assim dissolver a essência da sua personalidade.
Conforme observa Elaine Scarry:
a relação entre o corpo e a voz que, para o prisioneiro, começa em oposição (a
dor é tão real que a pergunta é irreal, insignificante) e prossegue até tornar-se
uma identificação (a pergunta, como a dor, é uma forma de ferir; a dor, como
a pergunta, é um veículo de autotraição), finalmente acaba em oposição mais
uma vez. Pois, o que o processo de tortura faz é dividir o ser humano em dois,
tornar enfático o sempre presente, mas, exceto no extremo da doença ou da
morte, apenas latente a distinção entre um Eu e um corpo, entre um “eu” e
“meu corpo”. O “Eu” ou “eu” que é vivendado, por um lado, como mais pri
vado, mais essencialmente ao centro, e, por outro, como participante do ou
tro lado da ponte do corpo no mundo, está “personificado” na voz, na lingua
gem. O objetivo do torturador é tomar o um,,o corpo, enfática e esmagadora-
mente presente ao destruí-lo, e tomar o Outro, a voz, ausente ao destruí-la.54
54 Elaine Scarry, Tbs Body in Pain, Oxford: Oxford University Press, 1985,48-9.
C o s t a s D o u z in a s
55 Mari Matsuda, Charles Lawrence III, Richard Delgado e Kimberley Crenshaw (eds.), IV ordsthai W oun i Cri
ticai Race Tbcory, A ssaultive Speecb and lhe F irstAmetidment, Bouider: Weswiew Press, 1993.
56 Direitos representam ‘um símbolo profundamente enredado na psique do oprimido para perder sem trau
ma e muita resistência’ , Patrícia Williams, TheA khem y o fR a a andVJghts, Cambridge Ma.: Harvard Univer-
sity Press, 1991,165.
O DIREITO D E H E G EL
1 Explorações recentes da relação entre o Direito e a Psicanálise incluem David Caudill, Lacan an d the Subject
o f L aw : Toward a Psychoanalytic C ritical LegalTheoiy (Atlantic, N.J., Humanities Press, 1997); Jeanne Shroeder,
The V estal an d the Fasces: Psychoanalyticaland PhilosophicalPerspectives on the Feminine and Property (Berkeley, Uni
versity o f California Press, 1997) e Peter Goodrich, Oedipus L ex : Psychoanalysis, History, L aiv (University o f
California Press 1995). Veja também número especial de Cardoso L ain Review sobre “Law and the Postmo
dern Mind” VoL 16, Nos. 3-4 (1995) e, em particular, Drucilla Cornell, "Rethinking the Beyond o f the
Real”, 16 Cardoso L aiv Review 3-4, 729-792(1995). Para uma análise da jurisprudência psicanaíítica recente,
veja: Costas Douzinas, “Psychoanalysis Becomes the Law. Notes on an Encounter Foretold” , 1997 Legal
Studies Forum 323.
2 Pierre Legendre, L e Crime de C oiporal Lortie (Paris: Fayard, 1989); L'A m our du Censeur (Paris: Seuil, 1974);
“T h e Other Dimension o f Law”, 16 Cardoso Lam Review 3-4,943-62(1995). UmR&Ji&rdaobrade Legendre
foi recentemente publicado em inglês: Law and the Unconscious, Peter Goodrich (ed.), Londres: Macmillan,
1997.
3 Peter Goodrich, Languages o f L aw , Butterworths, 1993; Oedipus Lex, op. tit., supra n. 1; Law in the Courts o f
Love, Londres: Routledge, 1996.
4 Slavoj Zizek, The Sublime Object o f Ideology, Londres: Verso 1989; F o r the/ Know not n>hat they do: Enjoyment as a
Political Factor, London: Verso, 1991; “Superego by Default” 16 Cardoso L aw Review 3 -4 ,9 2 5 -9 4 2 (1995).
5 Renata Salecl, The Spoils o f Freedom, Londre: Routledge, 1995; “Rights in Psychoanalytic and Feminist Pers
pective”, 16 Cardoso L aw Review 3-4,1121-1138 (1994).
304
C o s t a s D o u z in a s
ços entre a lei e a psique. Este Capítulo irá introduzir, primeiramente, os aspectos
da teoria psicanalítica que possuem maior relevância para o Direito e irá examinar
criticamente a contribuição que a psicanálise deu até agora para a nossa compre
ensão dos direitos. Se a lei expressa o poder e a lógica da instituição, da tradição e
da razão, pode ser que nossa experiência e história pessoal, com seus traumas, de
sejos e sintomas, sejam determinantes do modo pelo quai nos vinculamos à insti
tuição. Neste sentido, a psicanálise poderia nos ajudar a explicar a centralidade
dos direitos no Direito Moderno de uma maneira concreta, que leva em conta as
diferenças pessoais: ao combinar necessidade institucional e escolha pessoal, os
direitos representam a mais característica expressão jurídica não apenas da deter
minação social, mas também do desejo pessoal.
6 Sigmund Freud, Why W ar, em Civilisation, Society and Religion (ed. e trad, de Jam es Strachey), Penguin, 1985
341,359.
305
A PSICA N Á LISE T O R N A -SE A L E I
7 Sigmund Freud, Totem and Taboo, em The Origns o f Religio», ] ames Strachey (cd.) (trad, de Albert Dickson),
Penguin, 1985,208. - .
8 Sigmund Freud, G roip Psychology and the A nalysis o f the Ego in Civilisation, Society and Re/igm supra n. 6, .
9 Ibid.
10 Sigmund Freud, Why War?, supra n. 6.
306
C o s t a s D o u z in a s
lei foi criticado por suas imperfeições lógicas. Se a lei e a moralidade são o resulta
do de um assassinato, o sentimento de culpa experimentado pelos filhos-assassi-
nos não pode ser explicado. Essas inconsistências fizeram o psicanalista e filósofo
francês jacques Lacan transformar o enredo de Freud em uma estrutura mística e
compreendê-lo de uma maneira semelhante à explicação de Levi-Strauss para as
estruturas elementares do parentesco, como uma tentativa de conferir uma forma
épica narrativa à estrutura de subjetividade e à operação do desejo. A “novidade
daquilo que Freud traz ao domínio da ética” ,14 de acordo com Lacan, foi a desco
berta do princípio estruturador da subjetividade e do compromisso social. Isso o
habilitou a compreender as razões pelas quais os esforços das mentes mais refina
das e dos corações mais ardentes durante três milênios não conseguiram estabele
cer um código moral bem-sucedido ou uma prática ética aceitável, abandonando,
assim, a civilização mergulhada em seu descontentamento.
Na interpretação de Lacan, o pai primevo, assassinado e canibalizado, re
presenta um símbolo da intemalização da lei pelo sujeito. O parricídio e seu efeito
não podem ser provados, mas, se devemos compreender a subjetividade e a sexu
alidade, sua estruturadeve ser pressuposta. Enquanto Freud, de.comum acordo
com todos os grandes construtores de sistemas e, especialmente, seu herói Moi
sés, narrou a criação da lei, Lacan, mais próximo das questões da àntropologia, da
linguística e do estruturalis'mo, enfatiza a contribuição da lei para a constituição da
identidade humana. A psicanálise freudiana tentou explicar a lei como sendo a
resposta necessária da personalidade socializada a diversas necessidades, diver
sos desejos e instintos. A teoria lacaniana explica os desejos, as necessidades e a
identidade do.sujeito por meio da sujeição à lei.
Segundo a estrutura edipiana de Freud, o sujeito passa a existir com a in
tervenção do pai que perturba a díade mãe-criança ao proibir o desejo da criança
pela mãe. O “retomo a Freud” de Lacan interpreta essa “repressão primária” em
termos linguísticos. O vínculo primitivo entre a mãe e a criança é rompido, e o su
jeito passa a existir ao inscrever-se no ordenamento simbólico, tipicamente uma
combinação de linguagem e lei. O simbólico separa a criança do corpo maternal,
“castra-a”, e essa separação imprime no Eu a perda, a ausência e a falta. Esta falta
é parcialmente manejada a partir da identificação da criança com significantes,
com palavras e imagens. No chamado “estádio do espelho”, a criança entre seis e
dezoito meses experimenta um sentimento de júbilo ao reconhecer, pela primeira
vez, sua imagem no espelho ou no olhar da mãe e, através do reflexo, vem a se
identificar com um corpo inteiro e completo. Mas essa imagem é exterior ao cor
po e diferente da experiência sensual da criança de um corpo desarticulado e de
15 Veja meu "Prosopon and A ntipm opon: Prolegomena for a Legal Iconology”, em Costas Douzinas e Lynda
Nead (eds.), Lm» and tbs Image: The Authority o f A rt and the Aesthetics ofL -sif, Chicago: University o f Chicago
Press, 1999,36-67.
16 D n icilk Cornell, The Imaginary Domnin, Nova York; Roudedge, 1995,39.
17 R iff I and the Human S p irit A Translation oftheJen a Ledt/res on th e’P hilosophy o f the Spirit (1805-6) m th Commentary
(trad. deL. Rauch), D etroit Wayne State University Press, 1983, 89-95.
18 Alexandre Kojéve, Introduction to tbeR eadingofH egel’s "Phenomenology o f Spirit” (tx aà.â z A. H. Nichols), Ithaca:
Cornell University Press, 1989,140-1.
19 Jacques Lacan, “Radiophonie” 2/3 Scilicet, 1970,65.
20 Jacques Lacan, Écrits (Paris, Seuii, 1966) 82-3.
___________ 309___________
A PSICANÁLISE TORNA-SE A LEI
21 Jacques Lacan, “The subversion o fth e subject and the dialeerie ofdesire in the Freudian Unconscious em
É crils:A Sckction {tiad. de Alan Sheridan), Londres: Roudedge, 1977, 292-325.
22 Para Lacan, o acesso ao ordenamento simbólico é muito mais fácil paca a menina que, ao não possuir o pê
nis, aceita com menos dificuldade a privação de tomar-se o falo imaginário da mãe. Nesse sentido, homens
que abrigam a esperança ridícula de que o órgão Ssico é idêntico à posição simbólica são mulheres mcom
pletas”. ,
23 “Se esse intercâmbio deve ser descrito como androccntrico (...) é,Levi-Strauss nos fala, era vsreu e a ocor^
rênda do poder político que os tom a percebidos nele, poder que cabe aos homens (sic) exercer. Portanto, e
por ser também o cedro que o falo predomina - em outras palavras, ele pertence aura ordenamento sim o
iico”. Lacan, no Seminário X não publicado, citado por Mitócel Borcb-jacobsen, Lacan. The A sou /e ' tisUi
(trad. de Douglas Brick), Stanford University Press, 1991,213.
24 Lacan, Éerits, supra n. 21, 67.
310
C o s t a s D o u z in a s
ça não pode ser separada da mãe e não pode ser introduzida à subjetividade. Po
rém, ao separar o sujeito do objeto de amor e introduzi-io à falta, a lei é também a
criadora do desejo.
Para a psicanálise, portanto, a lei ou interdição básica que cria a humani
dade como uma espécie falante é aquela da divisão e da separação: do corpo ma
terno, por meio da lei edipiana do Pai, do próprio corpo de alguém por meio da
identificação narcisista com sua imagem, do outro como sujeito e objeto por meio
de sua negação ou niihficação” no signo. Devo identificar-me com minh? ima
gem no espelho e com meu nome, essas entidades descorporificadas, com esses
exemplos de alteridade para me tomar um ego. Devo aceitar a divisão e a negativi-
dade, devo aceitar que sou o que não sou, na feliz frase de Rimbaud J e estun autre.
O ego desde o início é alter; um outro; nasce em seu encontro com o Grande Outro,
o universo linguistico e jurídico simbolizado não pelo Pai ou pela função pátema,
como em Freud, mas por um signo ao qual Lacan denomina o significante-mestre
ou o Nome-do-Pai.
Quando passamos da lei para o fogos, do pai para a reescritura linguística
do drama edipiano, as metáforas jurídicas proliferam umà vez mais. A linguagem,
tanto em sua estrutura quanto em sua ação, é homóloga à lei. “Ninguém é tido
como desconhecedor da lei; essa fórmula um tanto humorística extraída do nosso
Código de Justiça, todavia, expressa a verdade na qual nossa experiência está fun
dada (...) Nenhum homem é realmente desconhecedor dela, uma vez que a lei do
homem tem sido a lei da linguagem desde as primeiras palavras de reconhecimen
to.” 23 Novamente, ao comentar a interpretação estrutural de Levi-Strauss de pa
rentesco e intercâmbio, Lacan insiste na primazia da ordem lei-linguagem:
O compromisso do matrimônio é governado por uma ordem de preferência
cuja lei relativa a nomes de parentesco é, assim como a linguagem, imperativa
para o grupo em suas formas, mas inconsciente em sua estrutura (...) A Lei pri
mordial é, portanto, aquela que, ao regular compromissos de matrimônio,
sobrepõe o reinado da cultura sobre aquele da natureza abandonada à lei do
acasalamento (...) Essalei, então, é revelada de modo claro o suficiente como
idêntica a uma ordem da linguagem.26
25 Ibid.,61.
26 Ibid., 66.
311
A PSIC A N Á LISE TO R N A -SE A L E I
27 Ib id , 305-6.
28 Kojeve, supra o. 18, 44.
29 Veja, entxe outros: Vincent Descombes, M odem French ’P hilosophies (trad, de L. Scott-Fox e J . M. Harding),
Cambridge University Press, 1980, Capitulo 1; Borsch-Jacobson, l^atan, op. c it, supra n. 23 , Introduction,
Michael Taylor, Chicago University Press, 1987, Capitulos 1 e 5; Slavoj Zizek, The Sublime Olyed o f
Ideology, op. c i t , supra n. 4, passim.
C o s t a s D o u z ín a s
30 A respeito da atitude de Hegel em relação à morte, o “senhor absoluto”, veja Costas Douzínas e Ronnie -
. Warrington, “Antigone’s Dike” em Justice M iscarried, Edinburgh University Press, 1994, Capítulo 2.
31 Lacan no Seminário V I não-pubücado, citado por Borch-Jacobsen, Lacan, op. c it supra n. 23, 94.
313
A PSICAN ÁLISE TO R N A -SE A L E I
não por meio de uma batalha fatal. Toda fala, o falar a si mesmo antes de qualquer
conteúdo do dizer ou da intenção de comunicar, promulga os termos desse con
trato.
As implicações dessa teoria para a jurisprudência são monumentais. A lei
é a face social do contrato intersubjetivo da fala. Não é a lei que precisa de legiti
midade; a legitimidade é o produto de uma legalidade primordial. O aspecto mais
importante da instituição jurídica é garantir o contrato da fala, oferecer uma fonte
ou origem simbólica —o Soberano, o Legislador, a Lei —a qual anuncia que lei e
fala têm autoridade e devem ser obedecidas.
Todo poder legítimo sempre repousa no símbolo, assim como o faz qualquer
tipo de poder. E a polícia, como todos os poderes, também repousa no sím
bolo. Em situações atribuladas, como viram, vocês se deixariam levar presos
como ovelhas se alguém lhes dissesse “Polícia” e exibisse uma insígnia; caso
contrário, começariam a agredi-lo tão logo ele encostasse um dedo em vo
cês.37
37 T am n í The Sem inar ofJacqu es Lucan, Vol. I (trad, deJoh n Forester), Norton, 1988,201.
316
C o s t a s D o u z in a s
ca.38 Para Legendre, o sistema jurídico “institui a vida” ,39 ele forma o “vínculo, atô
mico” que une a “matéria-prima do homem: a biologia, o social e o inconscien
te” .40A instituição jurídica é operacionalmente homóloga à lei do pai ou, em outra
versão, ela interpreta e aplica a interdição original. D o mesmo modo que o
Nome-do-Pai introduz o sujeito à separação, à falta e à negatividade, a linguagem
e a instituição “separam o sujeito do fantasma de ser completo” .41 Mas essa sepa
ração precisa de um fiador, um lugar “sagrado” inacessível que represente a origem
ou a causa do ser do sujeito. Nas sociedades pré-modernas, esse papel era desempe
nhado por totens, por referências religiosas ou místicas ao divino ou simplesmente
pelos fundamentos da lei. Na modernidade, é “o Estado [que] constitui o lugar sa
grado do Totem, onde quer que ele exerça o controle, qualquer que seja sua forma
constitucional, o espaço religioso ou místico do discurso invocado para garantir as
fundações sem asquais a lei permaneceria inconcebível” .42
A lei representa o totem ou a interdição em tomo do pai, mais especifica
mente em torno “da imagem da substância-do Pai, que equivale ao princípio totê-
mico na civilização europeia” .43 As “montagens jurídicas” dessa imagem, Deus ou
o Papa, o Imperador ou o Rei, o Estado ou o legislador, “conferejm] consistência
ao discurso fundador ao representar o Outro como um conceito, a fim de esten
der os efeitos da Interdição, o que siginifica dizer, os efeitos dos juridicamente or
ganizados” .44 Novamente, quando Legendre se volta para o contrato místico da
38 A obra de Pierce Legendre é quase sem precedentes na historiografia jurídica. Em suas inúmeras publica
ções (supra n. 2) ele inaugurou um novo campo de escrita jurídica ou de poética jurídica na qual o amor so
texto (da lei) e a fontes medievais e patrísticas é acompanhado por um estilo altamente literário e alusivo —
quase barroco. Sua genealogia do Direito moderno e do mal de seu racionalismo tecnocrata relaciona a “re-
volução dos intérpretes” no século X II com a incorporação dos temas centrais da lei canônica à lei civil e
desafia muitos dos pressupostos da historiografia tradicional. D o mesmo modo, o insight histórico e teóri
co de Legendre de que a lei captura a alma e, ao vincular o corpo ao espírito, cria o sujeito abre uma ampla
perspectiva para a jurisprudência, e este autor foi consideravelmente influenciado por sua teoria e prosa ca
tivantes e sedutoras. Porém, uma jurisprudência crítica deve questionar as repercussões de sua antropolo
gia jurídica, conforme apresentada a um público leitor inglês em seu ensaio da Cardoso Lm v Reviem, op. c it,
supra n. 2, Nesses aspectos, Legendre junta-se à atmosfera da resposta católica reacionária à modernidade.
A critica desse aspecto é indispensável ao desenvolvimento de uma jurisprudência psicanalítica critica, que
irá se beneficiar enormemente de um engajamento com a obra de Legendre. Cf. supra n. 3; Anton Schuíz,
“Sons ofW rit, Sons ofW rath” 16 Cardoso I^aip Rípííw 3-4,975-1012 (1995); eP eter Goodrich, “Introducti-
on: Psychoanalysis and Law” em Goodrich (ed.), Lenv an ã the Unconscious: A Legendre R & dir (Macmillan
1997). Para uma abordagem mais crítica, veja Alain Pottage, “T h e Paternity o f Law” em Douzinas et a l
(eds), Politics, Poslwodtmity, CriticaiLegtdStndies (Routledge, 1994).
39 Legendre, “The Other dimension o f Law” , op. c it, supra n. 2, 943.
40 Ib id , 954.
41 lb id , 952. :
42 Jbid.
43 lbid ., 959.
44 lbid ., 960. -
317
A PSICA N Á LISE T O R N A -SE A L E I
fala, ele o interpreta de um modo legalista. O vazio que garante a ordem social —o
que Legendre chama de a Referência—deve ser transmitido e validado legalmente,
por meio da genealogia patrilinear, de emblemas judiciais e da razão da lei. Esta é a
“outra dimensão” importantíssima, porém neglicenciada, da lei: “um corpo de
discursos que, em qualquer sociedade, constrói a imagem fundadora que é a ban
deira de marcha dos sujeitos. Estes são valorizados institucionalmente, não con
forme seu conteúdo expresso (que é uma função da intenção declarada do autor),
mas pelo fato de, simbolicamente, receberem um lugar na sociedade como repre
sentações da referência” .45 A “verdade” e a função da instituição são, portanto,
produzidas pela “razão jurídica, como comunicadora dessa dimensão não-jurídica
da lei, e manejadas por uma função de paternidade” .46 Mas como a psicanálise
compreende os direitos? O restante deste Capítulo focaliza o insight que a teoria
analítica pode trazer para a compreensão dos direitos.
54 Bruce Fink, The Laconian Subject, Princeton: Princeton University Press, 1995, 94.
1 2 . O D O M ÍN IO IM A G IN Á R IO E O FU T U R O D A U T O P IA
2 Zygrnunt Bauman, Postmodern Ethics, Oxford: Blackwell, í 9 9 3 ,193. [Em português: Bauman, É tica Pás-Mo-
denta, 220.]
3 Jacques Ellul, The TechnologicalSociety {xx&à. de J . Wilkinson), Nova York: Random House 1964 388
4 Ibid., 391.
5 William MacNeil, “Law’s CorpusD elktú The Fantasmatic Body o f Rights Discourse” IX / 2 L aw <& Critique,
^37-57,45-6 (1998). Embora a liberdade de movimentação e a segurança da pessoa sejam tratadas com o li
berdades avis cruciais, nenhuma das principais convenções de direitos humanos, incluindo a europeia, cria
um direito geral de residência. Algumas sequer induem tal direito. Outras o restringem a cidadãos nadona-
ÍS-
6 Drucilla Cornell, Tbe Imaginary Domain, Nova York: Roudedge, 1995, 38.
O DOMÍNIO IMAGINÁRIO E O FUTURO DA UTOPIA
7 Legendre refere-se a um caso canadense e outro no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em “The
Other Dimension ofLaw ”, 16 Carâozo L aw Reviav 3-4,943-962 (1995).
8 . Ibid.,956.
.9 . Ib id .,9 5 7 .
___________________ 331___________ ■
O DOMÍNIO IMAGINÁRIO E O FUTURO DA UTOPLA
cia são áreas nas quais esse gozo sacrificado é depositado e ajuda a criar e a desen
volver a cultura.'Artefatos culturais, afirma Lacan, geralmente adqukem vida
própria e, quando entramos em contato com eles, recebemos de volta um pouco
desse prazer-excedente criativo sublimado. O princípio é claro: “é apenas na me
dida em que nos alienamos no Outro e nos alistamos em favor do discurso do Ou
tro que podemos compartilhar um pouco do gozo que circula no Outro” .13 Nesse
momento Lacan se volta para os direitos:
Nenhum gozo me é dado ou me poderia ser dado a não ser aquele do meu
próprio corpo. Isso não fica imediatamente claro, mas se suspeita, e as pessoas
instituem em torno desse gozo, que é bom, que é, assim, meu único ativo, a
grade de proteção da conhecida lei universal chamada os direitos do homem:
ninguém me impede de usar meu corpo da forma como eu quiser. O resultado
do limite (...) é que o gozo se esvai para todos.14
13 Bruce Fink, The Laconian Subject, Princeton: Princeton University Press, 1995,99.
14 Lacan, citado em Fink, 101.
15 Costas Douzinas, * Introduction” and “Pm opon and A ntiprosopon: Prolegomena for a Legal iconology”, em
C. Douzinas e L . Nead, L aw and lie Image, Chicago: Chicago University Press, 1999, Capítulo 1; Costas
Douzinas, "Law’s Fear o f the Image” 19/3 A rt History, 353-369,1996. É discutível, por exemplo, que um
direito rigorosamente definido e apiicado à propriedade intelectual, que transformaria em roubo a incorpo
ração em uma obra de arte de todas as influências de estilo e inovações introduzidas por outros, aumentaria
a renda de alguns artistas, mas minaria a criatividade de todos os demais.
16 Podemos ver isto acontecendo nos “guetos dos homens ricos” que Sorescem nos subúrbios metropolita
nos do mundo ocidental. Essas clausuras induzidas pela segurança oferecem a milionários pós-modemos
iodas as pompas da riqueza material e a total proteção da lei publica, além de cordons san itaim de administra
ção privada, mas, ao mesmo tempo, os mantêm cativos em suas prisões escolhidas voluntariamente, longe
dos perigos e da interação e diversão humanas. •■
___________ -__________________ 333____________________________ -
O DOMÍNIO IMAGINÁRIO E O FUTURO DA UTOPIA
ria e afirmaram nossa necessidade de um novo contrato social, que irá opor sua
verdade fictícia à mentira do imaginário e irá “instalar (ou; reinstalar) a regra do
jogo na falta de alguma regra, em um momento em que a verdade, precisamente,
já não é mais ‘acreditável” ’.17 Talregra, em uma era que não acredita em verdades,
pode ser aceita apenas pragmaticamente, pois ela é sustentada pela força, pela pis
tola ou pelo míssil. Nesse sentido, o bombardeio da Iugoslávia representa, na ver
dade, a primeira guerra humanitária verdadeira em uma era de incertezas. Como
veremos no próximo segmento, embora o soberano não seja a origem da lei, mas
uma função da ação da lei sobre a psique, ele é indispensável. O legislador é um
impostor, mas, conforme a narrativa lacaniana, isto torna ainda mais imperativo
que sua autoridade seja imposta e a falsa verdade da sua lei proclamada. Para o 1a-
caniano, o legislador - os Estados Unidos, a OTAN, a nova ordem mundial - é a
única esperança que temos, e sua violência é a resposta necessária à violência ca
tastrófica criada pela falta de verdade e pelo fracasso da busca do sujeito por
completude. Quando a psicanálise passa da descrição para a prescrição, suas
aplicações críticas esgotam-se rapidamente. Mas a imagem sombria que ela apre
senta é uma emenda para os excessos da retórica dos direitos humanos.
lico como um conjunto matemático, a lei pode ser fechada e o ordenamento sim
bólico completo somente se um significante-mestre adicional existir fora do
conjunto, além do Nome-do-Pai. Um significante que, por estar fora do simbóli
co, pode atuar como a garantia última da completude da lei e permitir que o cam
po se feche. Em termos psicanaliticos, tal significante transcendental é chamado o
Outro do Outro, um super ou um metassignificante-mestre, não incluído no Ou
tro da lei e, portanto, capaz de torná-la completa. Mas, o Nome-do-Pai ou o falo
são, eles próprios, sigmficantes, pertencem ao campo simbólico e não podem aju
dá-la a se fechar ao seu redor, são incapazes de tornar a lei coerente e completa.
Não existe um Pai real por trás do nome, nenhum Deus por trás da palavra, ne
nhum Outro do Outro.
O significante transcendental ou o legislador sublime são, portanto, tanto,
necessários quantoinexístentes e impossíveis. Seu papel foi tradicionalmente de
sempenhado por Üeus, pelo Imperador, pelo Soberano ou pela Lei, várias figuras
patriarcais que, conforme mostrou Legendre, infalivelmente embasaram a legali
dade ocidental. O desejo de um autor, que avalia as inescapáveis instituições soci
ais e concede autoridade a elas, anima a lei e a erudição jurídica. Seus sinais estão
em todo lugar: na obsessão do Direito comum por suas fontes; nos intermináveis '
e raramente esclarecedores debates norte-americanos sobre a construção rígida ou
liberal da Constituição e seu pálido reflexo inglês na suposta regra de interpretação
literal ; no infindável processo de estabelecimento de padrões e de elaboração de
tratados das instituições internacionais e, finalmente, na “regra de reconhecimen-
to hartiana, na Grmdnorm kelseniana e em outras ficções jurísprudenciais similares.
Tudo isso são tentativas do que pode ser chamado “legitimidade retrospectiva”:
embora as leis e as regulamentações, as normas superiores e as disciplinas triviais
proliferem, a necessidade de reportá-las a uma pessoa ou a um texto autoritário
atesta esse desejo de um Pai, ou de um legislador, que está fora de sua ação e a in
funde com sua majestade e justiça ou, em termos psicanaliticos, com seu caráter
sem lacunas e fechado.
No Direito Internacional, a frenética atividade legislativa indica esse dese
jo em seu máximo. A elaboração de leis em excesso é um substituto para a eviden-
te falta de um legislador unitário e uma implementação crível, uma tentativa bem
transparente de alegar que um autor existe porque, caso contrário, muitos textos
não teriam vindo a existir e muita progénie estaria órfã. As negociações para pôr
fim à guerra na Iugoslávia foram um bom exemplo. A OTAN e seus aliados impu
seram seus termos aos sérvios derrotados e, mais tarde, iniciaram negociações
com os terceiros Estados, membros do Conselho de Segurança, para que os ter
mos fossem adotados pelo Conselho. A força da guerra ditou os termos a serem
rechaçados; sua atribuição retrospectiva às Nações Unidas serviu mais para esta- •
belecer a posição do Conselho como a origem neutra da lei que.para convencer
___________________335_____________ '
O DOMÍNIO IMAGINÁRIO E O FUTURO DA UTOPIA
que ela tinha muito a ver com o cessar do conflito. Podemos agora entender tam
bém por que os Estados Unidos alegam que não podem ficar totalmente sujeitos
ao Direito Internacional, como Kosovo e os episódios do tribunal de crimes de
guerra mostraram. Se o Direito Internacional deve ser visto tanto como política
quanto ética universal e internacional, um poder deve estar isento das suas ações
e, por meio de sua intervenção contundente e da interpretação soberana da lei,
conferir-lhe sua desejada perfeição.
A lei necessita de um legislador, sua presença inescapável cria o desejo de
nma origem completa e indivisa. O Legislador, o Rei, o Soberano, o Tribunal
Constitucional, os Estados Unidos, ou o Conselho de Segurança são funções para
o sujeito jurídico, garantias de que sua sujeição não é arbitrária, desnecessária, in
desejável. Pierre Legendre alega que essa função é necessária, que precisamos da
montagem ou da imagem do inefável poder e soberania, mesmo que falsa, a fim
de domesticar a plena alteridade da morte e aceitar o terrível fato de que não há
nada além do poder da linguagem e dos comandos da lei. Podemos ver isto clara
mente na jurisprudência contemporânea, ainda obcecada com soberania e direitos,
obrigação e prerrogativa. Os debates constitucionais britânicos sobre a Europa e o
federalismo ou sobre a Declaração dos Direitos e a soberania parlamentar estão re
pletos de questões e conceitos do século XVIII. Parafraseando Foucault, no Direi
to Constitucional a cabeça do rei ainda não foi cortada. Parafraseando Legendre,
mesmo se cortada, devemos manter a cabeça no corpo do rei e fingir que ele ainda
está vivo. Exatamente como aqueles especialistas em poder dos símbolos, os so
viéticos, que preservaram o corpo do ex-presidente Brezhnev até bem depois de
sua morte, como se estivesse vivo, para assegurar uma transição tranquila ou para
assegurar, em termos psicanalíticos, que o significante-mestre nunca morre.
Porém, como vez ou outra insistia Lacan, não existe o Outro do Outro;
todos esses legisladores são impostores, não há nada além da linguagem, sua es
trutura e interdição, assim como a lei e o legislador, são apenas uma série de signi-
ficantes. Não há nada além de signos que possam garantir sua completude e nada
além da lei que possa trazer sua justiça. Deus e o Rei não são a causa, mas o efeito
da lei. Não é que a religião seja o ópio do povo, como entendia Marx, mas, sim, o
desejo das pessoas. Mas a função paternal anda sob ataque na modernidade recen
te e não pode mais cumprir seu papel. Conforme as figuras paternas se retraem,
zombadas fora do tribunal por mulheres, grupos étnicos, gays, transexuais e todo
tipo de minorias que se recusam a aceitar a mentira do pai, outro significante deve
ocupar a posição impossível, porém indispensável, de fiador da completude da lei.
Tal outro é a justiça, o tópico mais discutido na filosofia ocidental, de Pla
tão e os sofistas até Rawls e a teoria jurídica crítica. Em termos jurisprudenciais,
justiça é um sinônimo para as várias formas do Bem, o princípio ou valor que con
fere ao Direito Positivo sua qualidade moral e o toma moro consdentiae obrigatório.
336
C o s t a s D o u z in a s
18 Sigmund Freud, Why W ar, em Civilisation, Society and Religion (trad e ed. de Jam es Strachey), Penguin, 1985
355. ’ ’
19 Waiter Benjamin, “T h e Critique o f Violence” em Reflections (trad de E . Jephcott), Nova York: Schocken
Books, 1978,27 /-300, e o longo comentário de Jacques Derrida “The Force o f Law; T h e ‘Mystical Foun
dation o f Authority’”, 11 Cardoso Lm v Review 919-1046 (1990).
20 Sigmund Freud, Why War, supra n. 18,360.
21 Sigmund Freud, Civilisation and its Discontents, em Civilisation, Society an d Religion, supra n. 1 8 ,3 2 7 .
22 J . F. Lyotard, “A I” Insy (Unbeknownst) em Miami Theory Collective (ed.), Community a t Loose Ends, Min
nesota University Press, 42-8, 46.
337
O D O M ÍN IO IM A G IN Á RIO E O FU TU RO D A U TO PIA
23 Ib id .,4 4 ,4 3 .
24 J . R. Lucas, 0 » Justice (Oxford, Ciaxendon, 1980) 18-9.
25 Claude Lfifort, Donocraçy and Poliiical Tbeoiy (trad. de D . Macey), Minneapolis: University o f Minnesota
Press, 1988,19.
C o s t a s D o u z in a s
26 Luce Irigaray, Speculum fo r another Woman;A n Ethics o f Sexu alDifference (erad. de Carolyn Burke e Gillian Gill),
Londres: Athlone, 1993; I lovt toyou (trad, de Alison Martin), Nova York: Routledge, 1996.
27 Julia Kristeva, T he A bject: Powers o f H orror (p s â . de Leon Roudiez), Columbia University Press, 1982; Parte
II , “W omen, Psychoanalysis Politics” era The Kristeva Render, T oril Moi (ed.), Oxford: Blackwell, 1986,
137-320.
28 Emmanuel Levinas, Humamsme ds I A utre Homme, Montpellier, 1972,68. V eja o Capítulo 13 mais adiante.
29 Para uma discussão sobre esses temas, veja Douzinas e Warrington, ‘T h e Force o f Justice: A jurisprudence
o f Alterity” (1994) 3 S ocial an ã L egal Studies 405 e Justice M iscarried, Edinburgh University Press, 1994, Capí
tulos 2 e 4.
_____________________________________________________________ 3 4 0 __________________________________________ __ __________________ __ . '
C o s t a s D o u z ín a s
ciedade, está além do ego e do corpo social. Este é o coração utópico dos direitos
humanos.
30 Slavoj Zizek, T bebidw isibíeR em aw derA nE ssayonScbeilingcndR elatcdM atiersJjsnâiz^.Y cT So, 1996,46-7.
341
O D O M ÍN IO IM A G IN Á RIO E O FU TU RO D A UTO PIA
sarnento crítico. O conceito de utopia passou pela primeira turbulência nos anos
1950 e 1960, quando os gulags soviéticos e os hospitais mentais tornaram-se ampla
mente connecidos, e foi apagado do dicionário político com o colapso do comu
nismo. Nesse clima antiutópico, Francis Fukuyama conquistou fama mundial ao
declarar: ‘No tempo dos nossos avós, muitas pessoas sensatas podiam prever um
iuturo socialista luminoso no qual teriam sido abolidos a propriedade privada e o
capitalismo e no qual a própria política seria uma coisa ultrapassada. Hoje, ao con
trário, mal podemos imaginar um mundo radicalmente melhor do que o nosso ou
um futuro que não seja essencialmente capitalista e democrático. (...) Mas não po
demos visualizar um mundo essencialmente diferente do atual e ao mesmo tempo
melhor .3:> Como o indivíduo e seus direitos tornaram-se a religião universal, a
imaginação coletiva parece ter secado, e o princípio esperança ou é realizado no
capitalismo liberal ou extinto.
Russell jacoby, em seu livro apropriadamente denominado The S n d o f
Utopia, abordou recentemente a perda de vitalidade da Esquerda e concluiu que
na melhor das hipóteses, radicais e esquerdistas preveem uma sociedade modifi
cada com pedaços maiores de torta para mais consumidores. Eles viram utilita-
ristas, liberais e celebradores. A esquerda uma vez descartou o mercado como
explorador; ela agora venera o mercado como racional e humano” .30 A afirma
ção desenha precisamente o caminho da Cláusula Quarta para o Novo Partido
Trabalhista. Mas também alude ao momento cultural mais amplo do fm-àe-sM e,
partilhado pela Esquerda, no qual grandes teorias e metanarrativas foram desacre
ditadas e as políticas da multiplicidade, da diferença e do pluralismo substituíram a
promessa de um futuro perfeito. O desaparecimento do comunismo produziu na
Esquerda um relutante respeito pelo liberalismo e suas fracassadas tentativas de
criar um esquema racional para negociar de modo justo as interações entre indiví
duos, cujos desejos e interesses estão inevitavelmente em conflito.
E , ainda assim, nenhuma época foi mais homicida e genocida que o sécu
lo XX, e o £im da história não sinalizou o õm do genocídio. Jacqués Derrida
apropriadamente elencou as limitações da “nova ordem mundial” e do &scurso
sobre os direitos humanos:
35 Francis Fukuyama, The E n d o f H istory and the L ast M an, Londres: Penguin, 1992 ,4 6 . [Em português: O Fim
^ H isíona e o Ú ltim Homem (trad, de Aujyde Soares Rodrigues), Rio de janeiro: Rocco, 1992, 77.]
Russeü jacoby. The E n d o f Utopia, Nova York: Basic Books, 1999, 10.
345
O D O M ÍN IO IM A G IN Á RIO E O F Ü T U R O D A U TO PIA
37 Jaques Derrida, Spectresfo r M arx (trad, de P . Kamuf), Nova York: Roudedge, 1994, 85. [Em português:
Especiros de M arx (irad. de Ansmaria Skinner), Rio de Janeiro: Relume D um ari, 1994,116-117.]
346
C o s t a s D o u z in a s
38 T^eodot Adorno, M inima M oralia: R eß clm sfn m T)am ageäU fe (trad. de E.jephcott^Londres: Verso, 1991,
39 Thomas Hagel, R qudity zndV zrticlily, Nova York: Oxford University Press, 1991,23/
_______________ 347___________________
O DOMÍNIO IMAGINÁRIO E O FUTURO DA UTOPIA
negam os direitos das leis e Estados em nome das humanidades plurais ainda por
vir.
Porém, as advertências de Adorno são justificadas. A esperança do futuro
não deve escamotear as infâmias do presente, e a distância necessária para a crítica
não deve se txansformat no hiato da indiferença. O princípio esperança pós-mo-
derno, como representado pelos direitos humanos, é talvez aporético e não utópi
co: flagrado entre a ação mutiladora da lei que separa o corpo ffsico e o Estado (a
função do simbólico), e o futuro redentor da integridade existencial (a função do
imaginário), os direitos humanos representam, ao mesmo tempo, o mal e a sua
cura, o veneno e o seu antídoto, um legítimopharmakon derridiano.^3
40 Jacques Derrida, “Plato’s Pharmacy”, em Disseminations (trad, de B . Johnson), Londres, AthJone Press,
1981,61-171. (Em português: Derrida, ^4Ja m â à a ds P ktS e (trad. de Rogério da Costa), São Paulo: Eumir.u-
ras, 1991.] -
13. OS D IR E IT O S HUM ANOS D O OUTRO
1 Para as raízes heideggedanas desta argumentação, veja jean-L uc Nancy, The Experience o f Freedom (trad, de
B . McDonald), Stanford University Press, 1993.
350
C o s t a s D o u z in a s
Manfred Frank, W hat is 'Neoslruciuralism? (trad. d eS. Wilke e R . Gray), Minneapolís: University o f Minneso-,
ta Press, Press, 1989, 297.
352
C o s t a s D o u z in a s
ao contrário, são aqueles entre os quais também se está (...) o mundo é sempre o
mundo compartilhado com os outros.”3 Não existe vida que não seja vida com
outros. O Eu não postula o Outro à sua própria imagem, mas, ao descobrir-se, si
multaneamente reconhece o Outro. Contudo, a ontologia heideggeriana, ao privi
legiar a relação entre seres e o Ser, abandona a ética em favor do ethos primordial.
Para Heidegger, o Eu e o Outro são participantes iguais no “nós” por meio dos
quais compartilhamos o mundo. Inevitavelmente, toda especulação em relação ao
significado do Ser parte da análise do meu próprio ser e retorna à preocupação da
ontologia com o Eu. Sartre, por outro lado, aceitava que o Outro é um sujeito an
tes de mim, mas acreditava que a separação en tre Eu e os outros era tão radical a
ponto de impedir qualquer possibilidade de conhecimento genuíno do Outro. O
Outro fixa seu olhar em mim e me torna um objeto antes que eu possa estabelecer
a mim mesmo como um sujeito que olha, que objetifica. A vergonha de ser olhado
e julgado faz com que eu queira, em troca, objetificar o Outro e acabe descobrindo
o inferno na face de outros. A epistemologia da modernidade seguiu o exemplo: o
mundo corresponde a suas representações construídas pelo sujeito, e'verdade ê a
aproximação entre imagens mentais e teorias particulares e o mundo. O que todas
essas teorias possuem em comum é uma crença exagerada na ideia do Eu sobera
no, a afirmação de que a alteridade do mundo e da outra pessoa pode ser domesti
cada na imanência do Eu para consigo mesmo.
Quando a filosofia ontológica passa para a ética, ela deve suplementar o
Ser com o postulado de um livre-arbítrio, uma faculdade ausente do império da
razão pura. Desse modo, o logos universal que proporciona o critério fundador da
validade moral torna-se, ao mesmo tempo, necessário e moralmente obrigatório.
Na filosofia moral kantiana, o sujeito promulga a lei à qual obedece, mas, para fazer
isso, ele deve postular uma comunidade universal de seres supostamente similares,
quando não idênticos ao ego tanto em razão quanto em inclinações. A passagem da
ontologia para a ética e a passagem da necessidade teórica para o domínio da práxis
passam pela liberdade da racionalidade universal da forma. Obedecer ao logosé, por
tanto, ser autônomo.4A razão revela a estrutura da realidade e subsome casos indi
viduais e dilemas morais ao imperativo da universalidade que, necessariamente,.
reduz a singularidade da pessoa individual. Mas o ponto de partida e de chegada
dessa lei moral universal é o ego, o sujeito conhecedor e desejante, que encontra
dentro de si mesmo todos os recursos necessários para transformar a injunção
3 Martin Heidegger, Being and Time (trad, de J . Macquarrie e E . Robinson), Nova Y ork: Harper & Row, 1962,
144-5. p m português: Heidegger, Ser e Tempo, (trad. rev. de Mareia Sá C. Schuback), Petrópolis: Vozes,
Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2006,174-175.]
4 Simon Critchley, The Ethics cfD econstmtíion, D errida and Levinas (Oxford, Blackwell, 1992).
353
O S D IR E IT O S HUMANOS D O O U TRO
5 Emmanuel Levinas, Collected Philosophical Papsrs (trad, de A. lin g?s),T h e Hague: Ni;hof£, 198/, 144.
C o s t a s D o u z in a s
Esta argumentação é aprofundada em seus aspectos críticos e construtivos em Douzinas e Warrineton Ins-
ticeM iscam ed, Edinburgh University Press, 1994,passim.
Emmanuel Levinas, Totality and Infinity (trad, de A. lin gis), Pittsburgh: Duquesne University Press, 1969-
Otbermse thanBetng or Beyond Essence (trad, de A. Lingis), K W r , 1991. Para usos da ética da alteridade no
8 Levinas citado em J acques Derrida, ‘^Violence and Metaphysics” em Writing and Difference (trad, de A. Bass),
Londies: Routledge, 1978,100.
9 Derrida, ibid., 96.
10 Jean-Frawjois Lyotard, T ie Different! (trad, de G . Van D en Abbeele), Manchester: Manchester University
Press, 1988,111.
356
C o s t a s D o ü z in a s
11 E . Levinas, ‘T h e Rights ofM an aad the Rights o f the Other” em OulsidetheSub}ect{t& &. de M. Smith), Lon-
dres:Athk>0 e Press, 1993,116-25.
12 Costas Douzinas, ‘"Law’ birth and Antigone’s Death: O n Ontological and Psychoanalytical Ethics”, 16
Cardoso LaivT&vieiv, 1325-1362,1995. •
_____________357_____________
O S DIREITOS HUMANOS D O OUTRO
13 Citado em A kin Renaut, T b sE ra oftbeln iim âu d íp & à. de M . B . DeBevoise), Princeton: Pocceton Uniuer-
sity Press, 1997,147.
C o s t a s D o u z in a s
14- Emmanuel Levinas, U i Souffrance mutik, citado em Zygmunt Bauman, Postmodemity and its Discontents, Cam
bodge: Polity, 1997,48. [Era português: Bauman, O M ai-E star Ja P ds-M odem id^ (trad. deM auro G am ae
Claudia M. Gama), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, 65.]
IS Citado em Bauman, supra n. 14, 50. [Em português: Bauman, op. cit., 66.]
_____________359_____________
O s DIREITOS HUMANOS DO OUTRO
16 Citado em Bauman, supra n. 14, 63. [Em português: Bauman, op. c it, 82.]
17 Levinas, “The Rights ofM an”, op. cit., supra n. 11,124-5.
361______________
Os DIREITOS HUMANOS D O OUTRO
18 As possíveis rekções entre as concepções radicais do Outro em Lacan e Levirs2 S foram recentemente ob
servadas em Sarah Hansym (ed.), Levinas andLacan: The M tssulEncounter, Albany: State University o ova
York Press, 1998.
19 Renaut, op. cit., supra n. 13,141.
362
C o s t a s D o u z in a s
20 Emmanuel Levinas, Otherwise than Being or Beyond Essence (trad, de A-Lingjs), Kluwer, 1991, 81
364
C o s t a s D o u z in a s
24 Ibid., 202.
25 Ibid., 199.
366
C o s t a D o u z in a s
26 Naquela epoca, a justificativa dada para essas mudanças por Peter Lilley, então secretário da Previdência
Social, foi bem peculiar. A exceção “após a entrada no país” é justificada porque tais solicitações têm “me
nor mento” que as submetidas em um porto de entrada. Mas, no período entre 1992-5,3.445 solicitações
“apos a entrada no país” tiveram a permanência permitida contra apenas 1.385 solicitações em portos de
entrada. Pessoas rendas em função de alguma "mudança de circunstância” seriam excluídas da suspensão
do benefício, se a Secretaria de Estado declarasse que seu país havia sofrido uma “mudança fundamental”,
mas não em consequência de uma mudança em suas circunstâncias individuais. Finalmente, foram suspen
sos os benefícios dos que apelavam contra o indeferimento, pois apenas uma pequena porcentagem destes
sao anulados na apelação. Isto talvez diga algo acerca da eficácia das medidas implantadas a fim de desenco
rajar solicitantes a apelar e reduzir o número de requerimentos apróvados, mas nada fez em benefício da
queles exercendo sua prerrogativa legal de apelar e tendo de sobreviver vários meses em média - o intervalo
entre o indeferimento do requerimento e a determinação de apelação - sem qualquer recurso financeiro.
K. v. Secretary ofS tate fo r SocialSecurity exparie J . C. W. 1 [1997] 1 W LR 275.
_____________ 367_____________
Os d i r e i t o s h u m a n o s d o o u t r o
uma pessoa em busca de asilo, legalmente no país, devesse ser deixada ao léu, pas
sando fom e ou em risco de contrair alguma doença grave e até mesmo de morte
por não conseguir encontrar ninguém para prover-lhe as necessidades básicas de
vida.”28
Esses casos exemplificam as duas maneiras mais comuns de objetificar o
Outro. O refugiado é transformado em um objeto de conhecimento totalmente
transparente ou em uma entidade quase-humana desprovida das necessidades mí
nimas de sobrevivência e abandonado aos desígnios da benevolência pública ou
da caridade privada. N a primeira situação, quando a lei se confronta com um O u
tro traumatizado e produtor de traumas, ela adota uma atitude cognitiva e tenta
torná-lo totalmente transparente, negar seu trauma e traduzi-lo para o idioma de
uma verdade objetiva e manejável, um caso de domínio político por meio da von
tade de saber. Para o sujeito conhecedor, o conhecimento e seus objetos figuram
em perfeita harmonia. Porém , o Outro, a pessoa concreta, não pode sér subsumi
da a essências universais, nem pode ser unicamente transformada no caso de uma
norma. O Outro, na singularidade da sua dignidade e vulnerabilidade, permanece
exterior ao conceito e .à essência. Conforme observa Levinas, o conhecimento
com o compreensão completa é “uma maneira de abordar o ser conhecido de tal
form a que sua alteridade em relação ao ser conhecedor desapareça”.29 E le acres
centa que isso é a base da dominação. “A submissão das coisas externas (...) não
significa a sua compreensão inocente, mas também o seu controle, sua domestica
ção, sua posse.”30 Mas essa domesticação apresenta resultados devastadores para
o sujeito conhecedor também. A o recusar a exterioridade do Outro absoluto, o
sujeito bloqueia a abertura do seu próprio desejo em relação ao Outro e o caráter
prospectivo da sua identidade. Assim, ele retom a à miséria de uma existência te
merosa e perde a promessa dos direitos hum anosde construir o mundo e moldar
o Eu.
N a segunda situação, os refugiados não são tratados com o sujeitos, mas
com o o contrário ou oposto do sujeito, ou com o não-sujeitos ou objetos. Se eles
são objetos, não são seres humanos, portanto, não fazem jus nem mesmo às ne
cessidades mínimas de vida, com o alimento, abrigo, roupas, um refugio. Se eles
são não-sujeitos, não têm direitos nem prerrogativas; a lei nada deve a eles, e sua
sobrevivência fica a cargo da benevolência do Estado ou da filantropia privada.
As “necessidades básicas de vida” oferecidas relutantemente diante do medo de
28 H v. Hammersmith an d F u lba m lJC ex p orteM . W i t ; R . v. Westminster City Councilex parte A ., The T im s, Fe
bruary 19,1997; (1997) 9 Admin L R 504.
29 Levinas, Totality and Infinity, supra a. 7 ,4 2 .
30 Levinas, Collected Philosophical Papers, supra n. 5, 50.
C o s t a s D o u z in a s
31 JSudgaycaj v. Sem tary ofS tate fo r the Home Department [1987] 1 Ali E R 940, HL.
32 Ibid-, 947.
33 Ibid., 951.
369
O S D IR E IT O S HUM ANOS D O O U TRO
cara-a-cara com o trauma e evitarão o rosto. U m rosto com medo ou dor vem, em
sua singularidade, para assombrar seus semelhantes tanto quanto seus persegui
dores. O trauma deve ser negado, deve ser mandado embora para seu lugar que é
também um não-lugar, o inconsciente. O carrasco encobre a cabeça do executado
com o uma defesa contra o rosto sobre o qual o sofrimento indelével e indescriti
velmente se inscreve e o qual, após descarte ou morte, persegue o perseguidor.
Para vir até a lei, o refugiado vem para o porto de entrada, a porta física e metafóri
ca da lei. Mas, para encarar a lei, o refugiado deve deixar ao mesmo tempo o país e
a sua lei. A chegada prenuncia a partida, a lei está presente e tom a sua presença
sentida apenas para o ausente. O refugiado é trazido perante alei ao ser removido;
a exclusão na base da lei é, ao mesmo tempo, repetida e reprimida. N ossa comuni
dade e a lei não vão ficar cara-a-cara com nossa injustiça.
A última estratégia pode ser chamada de asserção da unidade ou negação
da castração. O caso M v. Home Office^ é um dos mais famosos casos de re fu ta
dos. Seu elemento mais importante é que o refugiado, sob a inicial “M [mtrder,
em inglês, ou “homicídio11],35 é apenas um acessório no processo, ausente, em si-
Iênciot m orto. “M ” é a inicial de um refugiado zairense que havia solicitado asilo
na Grã-Bretanha sob a alegação de ter sofrido constante tortura em decorrência
de atividades sindicalistas e contra o govem o. O então ministro do Interior, Ken-
neth Baker, com base em seus “relatórios objetivos”, indeferiu a solicitação e or
denou a sua deportação para o Zaire, atual República Dem ocrática do Congo.
Graças a um recurso de último minuto por meio de revisão judicial, um juiz orde
nou a suspensão da deportação até que novos relatórios médicos fossem obtidos.
P or trás de uma série de acontecimentos jamais totalmente explicados, o ministro
desobedeu a ordem judicial por considerar que, no D ireito Constitucional britâni
co, uma ordem mandatória contra a Coroa estava além da jurisdição do TnbunaL
Com isso, “M ” foi libertado na Em baixada Britânica, em Kinshasa, e jamais se
ouviu falar dele novamente. A questão perante o Tribunal, em um recurso sub
sequente de revisão judicial, foi se o ministro do Interior havia ou não atuado
em desacato ao Tribunal ao desobedecer uma ordem emitida por eíe.
N este caso, mais que qualquer outro, o desejo da lei vem a tona. Diante
do Outro ausente, em silêncio e provavelmente m orto, a lei surge em seu estado
mais grandioso e absurdo. A morte é o mais insólito dos medos e o mais forte dese
jo do inconsciente. A morte do refugiado espelha esse medo e esse desejo e indica,
do modo mais intenso possível, a falta, o vazio no centro do sujeito e da republica.
O s tribunais renegam o objeto traumático diante deles ao oferecer uma das mais
elaboradas defesas da unidade espiritual da Coroa e da validade eterna do Direito
Comum. A ação do ministro, se considerada um desacato, seria um desafio “con
tra a supremacia fundamental da lei”.30 Porém, o ministro do Interior, na qualida
de de ministro da Coroa e parte integral da constituição não escrita, não pode ter
ofendido a supremacia da lei ou a dignidade da sua administração. A Coroa, a mais
fictícia de todas as entidades, é a fonte da justiça, uma imagem de unidade eterna,
de laços afetivos e confiança imemorial. Ela não pode estar em desacato com sua
própria criação e atributo.
A estratégia da lei é clara: quanto mais ameaçadores a exclusão e o medo,
mais intesamente o Tribunal os nega ao proclamar a completude e a integridade
da comunidade política e ao oferecer um tributo à supremacia da lei, a confiança
residual entre o Governo e os tribunais, e a unidade da Coroa e da nação que ela
representa. O trauma é negado por meio da construção de um cenário imaginário
de completude jurídica e de uma repúplica unificada. O desejo é negar a castração,
esquecer a violência e a exclusão presentes na sua base e novamente promulgadas
quando o refugiado é enviado para sua morte, apresentar o Estado e o corposjuris
com o imunes à alteridade e ao medo.
Podemos concluir que respostas jurídicas ao refugiado indicam a sua ver
dadeira natureza. A falta de comunidade e a total ausência dos direitos transformam
o refugiado no Outro ameaçador total e absoluto. D istante do abrigo da família e
do grupo e fora da proteção da lei, o refugiado é reduzido a um estado de humani
dade nua e abstrata, um exemplar natureza humana universal antes de se tomar
concreto por meio da ação individualizadora da comunidade e do efeito equaliza
dor da lei. O refugiado é tão radicalmente diferente de nós, que nenhuma seme
lhança pode ser encontrada ou equivalência construída. É o símbolo da diferença
com o tal; representa nada além de sua própria individualidade absolutamente úni
ca que, desprovida de todo reconhecimento ou proteção, é tão fatal quanto a mor
te é totalmente singular. O refugiado é um símbolo ameaçador da totalização da
diferença e da negação da afinidade e aponta para aqueles domínios os quais a ci
vilização não pode modificar e tem uma tendência para destruir.
Confrontar o refugiado levanta a possibilidade de que nós, igualmente,
somos refugiados, o que implica meu dever não apenas de aceitar o Outro, mas
também de aceitar que sou um Outro, e a necessidade de estender a noção do es
trangeiro itinerante até a “estrangeiridade” que habita profundamente em mim e
na comunidade política. O refugiado está dentro de nós. A o lutar com o refugia
do, lutamos com nosso inconsciente, esse lugar impróprio em meio de nós pró-
37 Veja, de um modo geral, Alian Hutchinson (ed.), C ritical Lego!Studies, Totowa N J.: Rowman & Littlefield,
1989.
38 Rolando Gaete, Human Rights and the Lim its o f C ritical Reason, Aldershot: Dartmouth'; 1993,107.
_______________ __________________ 373__________________
Os DIREITOS HUMANOS D O OUTRO
39 O locus classicus sobre a relação entre lei e retórica é Peter Goodrich P., L egal Discourse, Londres: Macmillan,
1988 e O edipushtx, op. a t , supra n. 35, que apresenta a construção retóricae a análise do texto jurídico em
termos de uma sintomatologia do inconsciente institucional. V eja também Douzinas e Wamngton, com
McVeigh PostmodernJurisprudence, Capítulo 4.
40 S. Fish, “Dennis Martinez and the Uses o f Theory”, 96 Y ah L aw 'Review 1773-1800,1987, em
374
C o s t a s D o u z in a s
A justiça dos direitos humanos, assim, não oferece uma definição e uma
descrição da sodedade justa ou uma prescrição de suas condições de existência.
Essa falta de definição, que é também a definição da falta, é logicamente necessá
ria e eticamente inevitável. Peter Sloterdijk, em referência ao filósofo-escravo D ió-
genes, chama de “cínico” alguém que adota não o ponto de vista da razão universal,
mas o de uma dor apriorí\ não a posição desinteressada, mas a da proximidade, da
intimidade e do interesse pelo Outro, não da ironia fria, mas a do riso satírico aco
lhedor, e a política da sensualidade e do corpo:41 É nesse sentido “cínico” que uma
sodedade dos direitos humanos aceita que a pessoa e os direitos sejam radical
mente contingentes e que essa contingência encontra uma forte obrigação ética; é
nesse mesmo sentido que o sujeito dos direitos é interno ao discurso dos direitos e
não tem determinação ou base externas; e, finalmente, que uma defesa dos dirdtos
deve estar alicerçada nas necessidades concretas da pessoa que comparece perante a
lei. O s direitos humanos não têm um lugar, um tempo ou ideologia próprios, eles
não podem ser atribuídos a nenhuma época ou partido específicos. E stão abertos à
aplicação a novas áreas e a novos campos que agora seguem a lógica da continui
dade e o desenvolvimento por princípios e os mecanismos do jogo retórico que
permite sua ampliação incontível a campos adjacentes. E ste é o dinamismo do lo-
gos; no entanto, os direitos expressam ainda uma passividade primordial em rela
ção à demanda do Outro e à proximidade de um para o Outro.
Quando a ld tenta interromper a abertura do sodal e fixar identidades, os
direitos humanos a denunciam por injustiça. Quando a lei se esquece do sofri
mento da pessoa que comparece perante ela, em nome de consistência racional' e
igualdade^ formal, os dirdtos humanos denunciam sua imoralidade. A justiça,
com o sinônimo de direitos humanos, não é crítica apenas de tentativas totalitárias
ou ditatoriais de negá-los; ainda mais importante é seu desafio e superação dos li
mites do E u e da lei. Sua importânda simbólica é que eles inscrevem uma “tempo
ralidade futura” na lei. Sua importância ética relacióna-se à demanda de que cada
pessoa seja tratada com o uma encarnação única da humanidade e sua necessidade
seja entendida com o minha responsabilidade primeiro e, posteriormente, da lei.
Flagrada entre o simbólico e o ético, paradoxalmente presa na indeterminação do
faturo e na concretude do presente, repousa a aporia da justiça pós-modema. Os
direitos humanos jamais podem triunfar; eles podem padecer e até mesmo ser
temporariamente destruídos. Mas sua vitória e sua justiça estarão sempre em um
futuro aberto e um presente fugaz, porém premente. É nesse sentido que os direi
tos humanos representam nosso princípio utópico: um princípio negativo que co
loca a energia da liberdade a serviço da nossa responsabilidade ética em relação ao
Outro.
com longas lutas políticas, não com o uma Instância da diferença natural entre as
raças, mas com o o caso mais extremo e inaceitável de dominação e opressão; As
campanhas de extermínio e genocídio da segunda metade do século X X mostram
que a admissão formal dos seres humanos à dignidade da humanidade não é irre
versível. O s prisioneiros dos campos de concentração alemães, cambojanos,
ruandeses ou sérvios foram construídos com o parasitas não-humanos, com o se
res tão inferiores e perigosos para os integralmente humanos que o seu extermínio
consistia uma necessidade natural. Quando olhamos para os animais, o fato de
não terem uma linguagem desenvolvida significa que eles não nasceram social
mente por meio da inscrição na ordem simbólica. Porém, embora eles não pos
sam se tornar sujeitos humanos, nada os impede de vir a ser sujeitos jurídicos, se
são conferidos a eles direitos e proteções legais, conform e defendem as campa
nhas ambientalistas e de libertação dos animais.
Conforme tristemente verificamos após as atrocidades e os genocídios do
último e pior século do segundo milênio, o reconhecimento de humanidade jama
is é totalmente garantido a todos. Vale frisar que não é uma questão de seres hu
manos terem direitos, mas que os direitos constroem o humano. A humanidade
apresenta muitas tonalidades e tipos. Os pobres, cuja expectativa de vida na África
subsaariana é cerca de trinta anos mais baixa que a média britânica, são seres hu
manos inferiores. Os cinco mil bebês iraquianos, que morrem a cada; mês em con
sequência do embargo ocidental, e os bebês africanos, que compõem uma taxa de
mortalidade infantil dezessete vezes maior que a das crianças européias, represen
tam uma parcela ainda mais inferior da humanidade, mal no seu limiar.1 Aqueles
que são perseguidos em virtude de sua opção sexual ou de sua raça são seres hu
manos defeituosos, pois uma grande parte de sua identidade e auto-estima é apa
gada ou se transforma em causa de vitimização. A subjetividade, de acordo com a
lei, é uma conquista frágil; ela pode ser facilmente minada e destruída sob agressão
física e simbólica. A humanidade é, portanto, uma condição avaliada e classificada
com muitas sombras e camadas entre o Ocidente “super-humano”, branco, hete
rossexual masculino em uma extremidade, e o não-humano, os prisioneiros dos
campos de concentração ou os refugiados em fuga, na outra. Tornar-se mais ou
menos humano por meio da distribuição vigiada dos direitos é o jeito moderno de
criar o sujeito com o animal social. Desenvolvimentos tecnológicos e genéticos,
acompanhados das necessárias extensões institucionais e ajustes, podem ainda re
mover a centralidade da pessoa humana. E m tal caso, irá emergir o inverso da ex
1 Em 1990, a expectativa de vida ao nascimento era de 50 anos na Áftica subsaariana contra 75 anos no Rei-
no Unido. A mortalidade infantil era de 136 por 1.000 crianças nascidas vivas na África contia sete no Rei
no Unido. The Guardian, 12 jun 1999,16. - ••:
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O FIM DOS DIREITOS HUMANOS
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378
C o s t a s D o u z in a s
pendente das teorias dos direitos. Mas devemos resistir a essa equalização dos di
reitos (o alicerce de todo positivismo) e dos direitos humanos, os quais constituem a
promessa de um faturo e a crítica de todo o Direito Positivo e do sistema de direi
tos. É um sinal da penúria moral da jurisprudência e da sua negação do domínio
imaginário que o mais avançado discurso e prática da transcendência seja aborda
do exclusivamente com base em uma compreensão banal do existente. O pensa
mento jurídico abandonou a transcendência, condenou o Direito Natural à história
das ideias, domesticou a justiça e se tornou uma contabilidade de regras.
A positivação e a globalização dos direitos humanos assinalam o fim da
modernidade política da mesma maneira com o a economia globalizada assinala o
£im do Leviatã. Seu triunfo é o reconhecimento da falta que constitui a identidade
humana. O desejo é movido pela falta, por desejo e medo do Outro. Se, para Hob-
bes, o desencadeamento do desejo de organizar a sociedade moderna conduz ao
estabelecimento do Estado absolutista, feito à imagem do indivíduo emancipado,
em Locke o medo da morte conduz a uma busca ilimitada de acumulação e de
modelamento da república e do mundo conform e os ditames do desejo infinito.
O Soberano e os direitos humanos representam as causas'e os objetos gêmeos do
desejo legalizado. O Soberano, construído sobre o princípio do desejo individual
ilimitado, mas assumindo a posição de líder do partido, da classe ou da nação,
pode transformar o seu desejo em faria assassina e na negação de todo direito. O
século X X repetidamente testemunhou esse declínio do direito de grapo ou na
cional para a afirmação dos direitos de morte. D o Holocausto aos Gulags e de
Hiroshima aos campos assassinos do; Vietnã e do Camboja, da Bósnia a Ruanda e
Kosovo, os direitos do desejo absoluto foram confirmados diversas vezes. Quan
do o Soberano é concebido de acordo com as características do E u desejante, ele
tem a capacidade, empiricamente negada aos indivíduos, de frustrar todo desejo
humano e de render as pessoas aos horrores contra os quais supostamente deveria
protegê-las.
A globalização do princípio de soberania e a agressiva legitimação do po-
der do Estado pela referência à moralidade e aos direitos humanos deixa ninguém
e nada intocados. Os direitos humanos tornaram-se a raison d ’être do sistema do
Estado na medida em que seus principais constituintes são desafiados por tendên
cias econômicas, sociais e culturais. N ão é por acaso que os direitos humanos
“triunfaram” em um momento de maior ânsia em reiação a mudanças de vida e
mal-estar em relação ao colapso das certezas morais e dos projetos políticos. O
enorme potencial para diversidade liberado pelo fim do comunismo foi acom
panhado por um desejo de unidade e ordem sem precedentes. Seus sinais estão
evidentes pelo mundo inteiro. São expressos na form a de desespero em relação à
falta de autoridade do Estado, virilidade nacional e poder parental, especificamen- '
te paterno e masculino; na forma de grave preocupação acerca do aumento de fa-
___________ 379___________
O FIM DOS DIREITOS HUMANOS
cora o Outro. Não há qualquer garantia de que o afeto suplantará o medo. Entre
tanto, a experiência nos ensina que, quando o medo do O utro, do estrangeiro, do
judeu, do refugiado, torna-se sua lógica institucional, os direitos humanos perdem
seu valor protetor contra o Estado. Uma alternativa, já visível na porção politica
mente liberal do nosso mundo globalizado, é que o potencial devorador do desejo
terrível em sua forma jurídica seguirá colonizando o mundo social. O resultado fi
nal será a fragmentação da comunidade e do com prom isso social em uma mona-
dologia, na qual algumas pessoas serão capazes de afirmar sua final e absoluta
soberania, ao passo que outras serão reduzidas à condição de classe inferior per
petuamente oprimida. Porém, um indivíduo inteiramente soberano é um simu
lacro falacioso e um tanto ridículo do Leviatã. E m ambos os casos, os direitos
humanos positivados e o desejo legalizado, fundamentos no medo do Outro,
coincidem, e seu mundo e o potencial autocriador da liberdade existencial estão
extintos.
mítico de liberdade absoluta, igualdade irrestrita e êxtase edênica, e olha para fren
te, para uma era em que a redenção e a paz vão chegar a este mundo. Como mito e
utopia, ele expressa o poder da imaginação, as energias poéticas de sociedades
onde o presente não pode amordaçar o futuro e o que existe é julgado no tribunal
daquilo què jamais vai ser. Porém, o Direito Natural é com o ja n o de outra manei
ra ainda: a tradição que opõe o presente em nome do futuro também triunfou
muitas vezes. N o entanto, nessa transição do sonho para a realidade e da imagina
ção para o projeto institucional, o presente e existente tem frequentemente silen
ciado o futuro e ausente, o sinal da cruz ou o martelo e a foice transmutaram-se de
testemunho em martírio, de resistência e redenção em símbolos de império, obe
diência e dominação. O D ireito Natural simultaneamente subverteu e sustentou a
ordem existente, sua história flagrada entre o duradouro passado e o infinito futu
ro, entre o sonho e sua realização, que geralmente coincide com sua traição. A
busca incessante pelo Direito Natural oferece o mais consistente mapa da capaci
dade humana de transtornar o mundo empírico e ir além do dado, na esperança de
que o presente possa e deva ser empurrado para o lado a fim de liberar o futuro.
Sua falha inevitável, a inescapável traição da utopia, mostra a humanidade como
sendo um projeto incompleto lançado pelas injustiças e infâmias deste mundo,
porém incapaz de alcançar o estado de graça.
Para o D ireito Natural, o futuro possui umâ influência dinâmica. A reali
dade jamais está completa e todo realismo honesto inclui o ainda não, o futuro ou
a utopia no seu centro. ÍCN ão existe realismo digno de seu nom e se ele se abstrai
do elemento mais forte na realidade, uma realidade não terminada.5’3 Nisso, o
pensamento utópico pode ser auxiliado por inúghts hegelianos e psicanalíticos.
Hegel abriu a Filosofia do D ireito cóm a alegação merecidamente infame de que o
racional é real; o real é racional”. E la foi repetidamente interpretada, com o vimos,
com o sendo o símbolo mais revelador do historicismo e do conservadorismo da
filosofia hegeliana. O Estado Prussiano foi o primeiro a ser identificado com o o
espírito do mundo e sua racionalidade. Mas esse foi um acontecimento um tánto
inconvincente, e muito se percorreu e milhões de mortes foram deixadas na histó
ria. O s pronunciamentos mais recentes sobre o fim de todo conflito, da vitória fi
nal do capitalismo liberal e da morte da utopia são mais convincentes - e mais
ameaçadores. A partir da perspectiva dos vencedores da Guerra Fria, toda crítica é
descartada com o irracional e irreal. A utopia foi rotulada com o intelectualmente
falida, um verniz moralmente repugnante do comunismo. A partir da perspectiva
dos profetas do fim, o livre mercado e os direitos humanos são as ideologias
não-ideológicas que sobraram, provas finais da benevolência pragmática do Arne-
4 JE D' ^ da> 7 1 5 * & -ST° nS; em M5chad SPrinkfer W ’ Ghos‘b V e m tícm :A Sjt/iposium on Jog u es
D em da s Spectresfo r M arx", Londres: Verso, 1999, 249. ....
___________ 383___________
O FIM DOS DIREITOS HUMANOS
5 Freud comenta que o mandamento cristão "amar ao próximo” é o princípio mais obsceno que ele conhece.
Lacan formula o princípio ético da psicanálise como “jamais desista de seu desejo” . Em bora esses princípi
os “éricos” possam ser úteis quando endereçados aos participantes da sessão terapêutica, eles representam
expressões de uma visão da ética centrada no Eu, a qual, caso genericamente aplicada, pode apresentar con
sequências catastróficas. N o cânone lacaniano, agir completamente a partir do seu desejo significa seguir a
pulsão de morte sobre o desejo erótico. O s resultados fatais da pulsão de morte inundaram as páginas da
história do século X X inúmeras vezes. Veja Costas Douzinas, “Law’s Birth and Antigone’s Death: On
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movimento da razão para vontade, 76 livre-arbítrio, 81, 98, 105, 107, 115, 122,
Leibniz, 199 200,2 0 4 ,2 2 6 ,2 4 4 ,2 4 7 ,2 5 5 ,2 6 2 ,2 6 8 ,
Lenin, 105 287, 303, 350, 360
Lester, 238 Locke, 26-27, 32, 36, 77-78, 83, 95-97,
Leviatã, 38, 83-84, 86-97, 115, 119, 122, 205,378
378 logos, 212,310,336,351-352,360,372-374
Levinas, 35, 52, 148, 160, 207, 339, 352, Lorde jowitt, 238
354,-358, 360-361,367, 371 Lougbün, 238-239
Lévi-Strauss, 307, 309 Lucas, 337
Levy, 64 Lyotard, 35, 58, 107, 116, 155, 181,
Lewis, 128, 130 184-185,219,279, 336,355
lex, 73-74, 84,336 diferendo, 142
liberalismo, 224, 243, 261, 269, 320-321, o outro, 184-185
344, 350, 354, 357
reivindicação da. posição do universal, macacos, 195
23, 279 MacIntyre, 32
democracia liberal, 20 MacNeil, 328
liberal humanismo, 33 " MacPherson, 32
jurisprudência libera! dos dkcitos, 21, Madison, 118
34,185,259, 377 Maimônides, 73
filosofia liberai, 210 mal, 86
teóricos liberais, 32 Manitakis, 241
neoliberalismo, 245 Maquiavel, 28, 92
liberalismo político, 14, 21
Mareei, 20
liberdade de expressão, 100, 123, 182,
Marco Aurélio, 47
252, 260, 262 Marcuse, 214
como direito humano fundamental, 185
Margolis, 219
Maritain, 282
liberdade, 19,22,24,27,31,160,163,173,
Marks, 99,135,149,150
180, 183, 187, 189,191-193,195,199,
Marx, 22-23, 33-34, 108, 112-113, 119,
200, 203-205, 207-209, 217, 220 ,225,
122,157
229-232, 234, 237, 243, 247, 252, 254, distinção entre homem e cidadão, 170
257, 264, 266, 270, 273-274, 276, 278, direitos do homem,.166-167,170-171
282-283, 289-290, 297, 305, 318, 322, Marxismo, 169,174,179,185,189
325,341,347, 349, 353,356,360,362, ideologia, 135
368, 371, 375, 379, 382 neomarxistas, 229
liberdade sem fundamento, 105,234 pós-marxistas, 179,185
indeterminação de, 183 massacre de My Lai, 134
na companhia de outros, 209
Mathiez, 118
liberdade negativa, 115,177,379
Matsuda, 230
Liddell, 41
Maver, 251
Liiley, 366
McCoubrey, 26
Lim, 150
Mclnemy, 55
Linowitz, 251
McIntyre, 254
Lisska, 27, 45, 70
McVeigh, 24, 66,108,198, 373
Livingstone, 194
413
In d ic e r e m is s iv o
utopia, 21, 50, 53, 70, 77-78, 81, 98, 178, vontade de querer, 205,243
186, 189-191, 253, 279, 297-298, 325,
339,342-347,375,380-384 Waddington, 142-143
paradoxo da, 345 Wade, 123, 238
esperança utópica, 224,343,345-347 Waldron, 28,121,254
tribunal utópico, 364 Walzer, 141,251
Warrington, 24,41,66,108,160,175,180,
Varikas, 110 1 98,200,207,231,247,312,339,354,
Vartieir, 194 373
Vattimo, 24 Washington, 118
verdade, 198-199,207,211, 213-215, 310, Watkins, 231
312, 3 1 7 ,3 3 2 , 339, 352 Weber, 123-124, 217,237
Vernant, 200 Whig, 27
Vidal-Naquet, 200 Wilberforce, 115
Vilia, 219 Wilde, 325
Vüley, 20, 29, 32, 53, 56, 58-59, 61,-65, Williams, 300
70-73, 75-76,160,249-250 Wittich, 237
Vining, 245 Wolf, 39
Voltake, 205 Wollstonecraft, 252
Von Masoch, 245
vontade, 199, 234, 240 Young, 294, 296
vontade gerai, 211,214, 216,244,250
vontade de vontade, 202,205-207, 214,
Zizek, 277,303,340
240
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