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O PROBLEMA DA DESIGUALDADE SOCIAL...
do sentido social: a dimensão social (Sozialdi- estratificação social, diz-se que a tese do pri-
mension) e a dimensão temporal (Zeitdimen- mado é incompatível com uma compreensão
sion). Essa interpretação da tese do primado adequada da desigualdade social estruturada
não implica nem a dissolução do conceito de (Schwinn, 2007, p. 15); que, em decorrência
desigualdade social estruturada nem a sua ir- dela, seria necessário postular “[...] o desmonte
relevância para a questão da ordem social. das formas verticais e hierarquizadas de desi-
A segunda tese (II) é a de que o primado gualdade social nas sociedades do bem-estar
da diferenciação funcional implica a possibili- social” (Haller, 1986, p. 180).
dade de que estruturas de desigualdade sejam Essas críticas não são injustificadas, pois
percebidas como contingentes (como possíveis Luhmann não define de modo claro o conceito de
de outro modo) em sua contribuição para a or- primado e, consequentemente, a relação entre as
dem social. Por desigualdade social deve-se formas primárias e “secundárias” de diferenciação:
entender a distribuição desigual de chances de
Deve-se falar em primado de uma forma de diferen-
participação comunicativas por meio da cons- ciação [...] quando se pode identificar que esta regula
trução e da atribuição de endereços sociais as possibilidades de emprego das outras. Neste sen-
(dimensão social). A contingência da desigual- tido, as sociedades de nobreza (Adelsgesellschaften)
dade social decorre de que a construção e a são sociedades primariamente diferenciadas por
atribuição de endereços sociais é sempre uma estratificação, mas elas mantêm uma diferenciação
segmentar em comunidades domésticas (Haushalte)
operação interna dos sistemas sociais, rom-
e famílias, a fim de permitir a endogamia da nobre-
pendo-se, assim, o imperativo de que as de- za assim como de assegurar que as famílias nobres
sigualdades produzidas em um sistema sejam possam se distinguir das famílias não nobres. Na
tomadas como necessárias por outro sistema.1 sociedade funcionalmente diferenciada existe estra-
tificação na forma de classes sociais e diferenças en-
tre centro e periferia, mas estes fenômenos são agora
produtos colaterais da dinâmica própria dos sistemas
O PRIMADO DA DIFERENCIAÇÃO
funcionais (Luhmann, 1997b, p. 612 tradução nossa).
FUNCIONAL
Parece ser inquestionável que estratifi-
A tese do primado da diferenciação fun- cação e diferenciações entre centro e periferia
cional é frequentemente compreendida como têm a ver com a dinâmica própria dos sistemas
se ela implicasse a dissolução do conceito de funcionais. Assim com não há dúvida de que
Caderno CRH, Salvador, v. 27, n. 72, p. 547-561, Set./Dez. 2014
desigualdade social estruturada. Compreende- esses fenômenos, por assim dizer, se alimen-
se o conceito de primado como se as “formas tam da não transparência mútua entre os sub-
secundárias de diferenciação” (diferenciação sistemas funcionais. O que está em questão é
segmentar, estratificação e diferenciação entre como definir conceitualmente a relação entre
centro e periferia) tivessem de ser deduzidas essas diferentes formas de desigualdade social
da forma primária de diferenciação. Afirma-se, e a diferenciação funcional. Mas a afirmação
portanto, que a tese do primado e a existência de que elas são produtos colaterais da dinâmi-
dessas “formas secundárias” de diferenciação ca própria dos sistemas funcionais certamente
como dimensões estruturais de tipo próprio não contribui para a busca de precisão con-
negam-se mutuamente.2 No que se refere à ceitual, pois ela traz exigências ao conceito de
primado que ele não pode atender. Seguindo
1
O fato de romper-se esse imperativo, definidor de socie-
dades primariamente diferenciadas em estamentos hierár- essa linha de interpretação (que chamarei de
quicos, não significa que não possa ocorrer a transmissão
de desigualdades entre sistemas sociais, como é o caso do “versão ortodoxa da tese do primado funcio-
fenômeno da cumulação de exclusões. nal”), André Kieserling3 defende a tese de que
2
Um das mais importantes contribuições para a análise da
relação entre a diferenciação centro–periferia e a diferen- 3
Nesse sentido, Kieserling é mais preciso do que Luhmann,
ciação funcional é a do brasileiro Marcelo Neves (2006). pois ele especifica o que se deve compreender por regular
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limite e além da qual não se pode imaginar ne- em que elas se tornam insubstituíveis em relação às
nhuma possibilidade de ordem. Essa fronteira funções que desempenham.
rede recursiva de comunicações, a qual define a unidade temporal, dimensão social, dimensão objeti-
dos sistemas sociais (Baraldi, Corsi, Esposito, 1997).
5
Meios de comunicação simbolicamente generalizados são
va), de modo que, por exemplo, a dimensão
estruturas específicas que asseguram possibilidade de su- temática de toda comunicação (dimensão
cesso à comunicação, tornando provável algo inicialmente
improvável: que a seleção de Alter seja aceita por Ego. O objetiva) não seja confundida com o fato de
sucesso da comunicação é improvável porque Ego pode re-
cusar a seleção sugerida por Alter (um favor, uma sugestão, cada indivíduo possuir uma perspectiva pró-
uma ordem, uma proposta de compra) como premissa para pria sobre o mundo (dimensão social). Nesse
sua conduta seletiva. Nem todas as comunicações linguis-
ticamente codificadas precisam de um meio de comunica- sentido, a autonomização da dimensão obje-
ção simbolicamente generalizado. Em sociedades nas quais
toda comunicação é oral, as chances de recusa e aceitação tiva (Sachdimension) desemboca no desaco-
de uma comunicação são estruturadas por experiências va-
lorativas e uma memória social compartilhada, assim como plamento de diferentes problemas funcionais
pela pressão em favor do consenso exercida pela presença fundamentais tanto entre si como em relação à
interativa. Com a difusão da comunicação entre ausentes
– o que torna a aceitação da comunicação improvável –, dimensão social (Luhmann, 1984, p. 133-134).
isso se torna impossível. A motivação de Ego em aceitar a
seleção de Alter torna-se improvável, e o desenvolvimento A especialização e a monopolização funcio-
dos meios de comunicação simbolicamente generalizados
é precisamente uma reposta a esse problema da comuni- nais desses problemas fundamentais ocorrem
cação entre ausentes e desconhecidos. Em seu desenvolvi- através da formação de sistemas funcionais
mento e diferenciação, os meios de comunicação simboli-
camente generalizados se constituem como constelações que se diferenciam de seu entorno (Umwelt),
de atribuição e coordenação de ações e vivências aos parti-
cipantes da comunicação (Baraldi; Corsi; Esposito, 1997). na medida em que desempenham uma função
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própria para a sociedade. Isso implica que to- sições no sistema científico e para decidir sobre
dos os outros subsistemas situados no entorno o uso do código da ciência, ou seja, para decidir
social (innergesellschaftliche Umwelt) sejam o que é uma verdade científica e o que não é. O
percebidos como incompetentes em relação fato de existir um conjunto de estratégias de clas-
ao desempenho dessa função. Isso ocorre, so- se que permitem a conversão de poder aquisitivo
bretudo, porque a especialização de funções em prestígio científico, assim como mecanismos
assegura um alto nível de desempenho no que permitem que certas classes ou “milieus”
preenchimento de funções sociais. Esse nível sociais monopolizem o acesso a posições de des-
de desempenho decorre do aumento da com- taque, como as de juiz, professor, empresário,
plexidade interna dos sistemas funcionais, ou político etc., não contradiz a dinâmica própria
seja, das relações possíveis entre os elementos dos sistemas funcionais. Isso porque tais estraté-
e operações que pertencem à rede de comuni- gias de conversão e monopolização de chances
cações de um sistema funcional. A atualização de acesso precisam levar em conta os programas
seletiva dessas relações deve-se ao surgimento sistêmicos, assim como o nível interno que rege o
de organizações e “especialistas” (Leistungs- desempenho das respectivas funções sociais, não
rollen) que condicionam o desenvolvimento podendo ignorá-los.
dos programas sistêmicos, ou seja, das estru- Mas o desacoplamento dos diferentes
turas que regulam a redução da complexidade problemas fundamentais somente se consolida
interna e o uso do código sistêmico. quando os subsistemas funcionais conseguem
O aumento e a redução de complexidade diferenciar sua forma de comunicação das ou-
interna pressupõem que os subsistemas sociais tras formas de comunicação através de uma
sejam liberados de uma relação estreita com seu codificação binária de suas operações. Códi-
entorno, isto é, com os outros sistemas sociais. gos binários como lícito e ilícito, ter e não ter,
Os subsistemas conseguem evitar essa relação verdadeiro e falso, governo e oposição, entre
estreita através de mecanismos que Luhmann outros, são, em primeiro lugar, esquematiza-
(1997b, p. 759 e 776ss) denomina “acoplamen- ções altamente abstratas, diferenciadas entre
tos estruturais”.6 Trata-se, nesse caso, de uma si e que sustentam a reprodução autopoiética
relação seletiva com as irritações do entorno. Es- de um sistema funcional, desde que as opera-
pecialização funcional e acoplamentos estrutu- ções deste sistema orientem-se exclusivamen-
rais permitem que os subsistemas desenvolvam te pela diferença binária do código. Trata-se da
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operação é observada à luz da possibilidade de paradoxo (ninguém tem o direito de decidir so-
seu correlato negativo. Isso permite que o códi- bre o direito alheio), seja como uma tautologia
go seja reproduzido em todas as operações do (direito é direito), funcionaria como um sabota-
sistema, seja através da alocação do valor posi- gem insuportável para as operações sistêmicas.
tivo, seja através da alocação do valor negativo. A autorreferência circular do código precisa,
Mas, ao contrário da alocação de seus valores, o por meio de uma referência externa como a se-
próprio código não pode ser tratado como con- mântica da vontade popular e da constituição,
tingente pelo sistema funcional: “Somente a di- que acoplam o direito à política, ser interrom-
ferença pode dar estabilidade a seus dois lados, pida no tempo, de modo a evitar o curto-cir-
e isso porque ela está vinculada a um contexto cuito no processo de produção de sentido. So-
funcional, porque ela se diferencia junto com mente quando as operações sistêmicas tomam
este contexto e parece ser necessária para ele” o código como diferença entre valores que se
(Luhmann, 1988, p. 209). contradizem, e não como unidade da diferença,
O código precisa se reproduzir como é que elas podem se orientar pelo código.
uma referência invariável e necessária do sis- Com isso se consegue o desdobramento da autorre-
tema (Luhmann, 1997b, p. 771, 1987, p. 184). ferência, ou seja, evitar que ela seja, sem mediações
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e de modo compacto, vista como uma unidade (em- estrutura social, de tal modo assegurada, para além
bora essa autorreferência jogue um jogo, por assim de contextos específicos, que nenhum interesse
dizer, dialético, já que cada valor ganha sua iden- contra a própria disjunção consegue se formar nem
tidade em relação a um ‘contravalor” (Luhmann, tornar-se compreensível, mas somente o interesse
1986, p. 77, tradução nossa). na licitude, na verdade científica, na propriedade
(Luhmann, 1981, p. 228, tradução nossa).
A sociedade e seus subsistemas funcio-
nais são reproduzidos, desdobrados e tornados A diferenciação entre sistemas funcio-
invisíveis como unidade, no decorrer das ope- nais, códigos valorativos e problemas funda-
rações sistêmicas. Eles existem, como unida- mentais generaliza-se em tal medida, que sua
de, somente no plano da latência operativa, no existência se desacopla de qualquer estrutura-
plano da autofundamentação de esquemas de ção específica da dimensão social, assim como
valoração diferenciados entre si, ou seja, como de qualquer programa sistêmico específico
“ponto cego” da forma primária da diferencia- que regula a alocação dos valores sistêmicos
ção. Nas palavras de Luhmann (1997b, p. 369, em determinadas regiões da sociedade global.
tradução nossa): A ordem sistêmica orientada pela diferencia-
ção funcional torna-se “uma não contingência
O código concede a si mesmo, por assim dizer, a
permissão necessária para operar, sem que para isso fundada no próprio fato de essa ordem existir”
tenha de recorrer a valores superiores. Sua autofun- (Luhmann, 1984, p. 465). O primado da dife-
damentação não é tematizada, ela permanece laten- renciação funcional significa que, na sociedade
te. Com isso, ela se livra do risco envolvido em toda (mundial) moderna, existem possibilidades de
performance comunicativa (Mitteilung): o risco de
comunicação que ultrapassam as fronteiras de
receber um sim ou um não. Exatamente nesse sen-
estruturas de desigualdade social, assim como
tido é que os lados positivos e negativos do código
são ‘valores’[...] E o código pode, assim, afirmar sua as fronteiras criadas por diferenciações segmen-
autonomia e evitar que seu paradoxo fique visível, tares (como os estados nacionais), mas não as
e tudo isso com alta plausibilidade. Pois em que al- fronteiras da própria diferenciação funcional.
guém poderia se apoiar para questionar o direito de Resumindo: o primado da diferencia-
se estabelecer a diferença entre licitude e ilicitude!
ção funcional significa que essa forma de di-
O primado da diferenciação funcional ferenciação tornou-se autoevidente, de modo
se mostra nessa capacidade de autovalidação que a diferença entre subsistemas funcionais
das fronteiras sistêmicas, a qual desonera os é percebida como uma fronteira de toda ordem
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Consequentemente, a transição para o cial tida como a única possível. Nesse sentido,
primado da diferenciação funcional só é pos- ele é o pressuposto para a que desigualdade so-
sível quando a ordem social pode ser produzi- cial seja criticada socialmente. Isso contradiz
da mesmo quando as fronteiras de estruturas a tese comum de que a especificidade da so-
de estratificação concretas são ultrapassadas. ciedade moderna reside na “ascensão da bur-
E isso acontece exatamente com o desenvolvi- guesia” (Luhmann, 1980, p. 7). O que define a
mento (diferenciação) dos códigos binários e especificidade da sociedade moderna com re-
seus respectivos subsistemas sociais: através lação à estratificação social não é o surgimento
da diferenciação de dicotomias específicas en- nem a decadência de nenhuma classe social
tre “sim” e “não” (ter e não ter, governo e opo- específica, mas o fato de que qualquer estrutu-
sição, lícito e ilícito, doente e saudável etc.), os ra de estratificação social pode ser observada
sistemas funcionais podem observar estrutu- como contingente.
ras de desigualdade como sendo contingentes, A contingência da desigualdade social
como sendo mutáveis, sem que isso represente faz-se presente também no nível das trajetórias
uma “catástrofe evolutiva” para esses sistemas individuais, as quais, na sociedade moderna,
e para a sociedade como um todo. Deve-se são constituídas por um “futuro em aberto.”
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Por causa da diferenciação mais intensa en- tamento da urgência econômica – precisam
tre os contextos de socialização e os contextos ser tornadas invisíveis. Essa assimetria, que
de inclusão (Luhmann, 1989, p. 171 e 220), é constitutiva do conceito de primado, fica
a posição de origem traz, no máximo, vanta- evidente quando se constata que é impossível
gens socializatórias, cujo significado, para uma inversão do argumento: as operações dos
os destinos individuais, passa a depender de sistemas funcionais não podem ser fundamen-
eventos contingentes, principalmente do en- tadas em desigualdades externas.
cadeamento de decisões em organizações. A Mas o primado da diferenciação funcio-
mera pertença a uma “família nobre” não pode nal não significa que essa forma de diferencia-
substituir as competências e recursos relevan- ção seja capaz de produzir todos os mecanis-
tes para os sistemas funcionais (Frie, 2005). mos necessários para a reprodução dinâmica
“Nascimento, socialização doméstica e situ- da sociedade moderna. Ao contrário: visto que
ação de classe não são mais suficientes para a diferenciação entre subsistemas é deslocada
construir expectativas que orientem uma traje- para a dimensão objetiva, aparece o proble-
tória de vida normal” (Luhmann, 1989, p. 232). ma da “seleção de pessoas” como uma ques-
Por isso, a origem social só é recursiva quando tão especial que a construção da ordem social
ela permite aos indivíduos que se preparem precisa enfrentar e que não pode ser resolvido
para disputar e ocupar posições que somente pela diferenciação funcional. Com a dissolu-
se tornam acessíveis com a sequência seleti- ção do primado da estratificação, também se
va de eventos na trajetória de vida. Trata-se de dissolve o essencialismo pré-moderno que
um controle dinâmico e temporalizado (condi- regulava a seleção social de pessoas por meio
cionado por eventos contingentes) de chances da referência direta ao seu pertencimento esta-
de carreira, cujo êxito depende da preparação mental. No lugar desse essencialismo, aparece,
para lidar com a contingência dos eventos so- no século dezenove, o conceito de população.
ciais (Luhmann, 1997b, p. 742). Uma população consiste de uma variedade
O fato de a estratificação social não ser de indivíduos (Luhmann, 1997a, p. 25), defi-
mais a forma primária de diferenciação impli- nidos precisamente por sua indeterminação,
ca também que as estruturas de desigualdade pela inexistência de tipificações rígidas, pela
social são obrigadas a se fundamentar e a se necessidade de educação e pelo desenvolvi-
legitimar pela diferenciação funcional. Es- mento de pretensões próprias. Essa variedade
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a microdiversidade de seus respectivos pú- de diferentes códigos não pode se dar por meio
blicos. Cada um desses públicos representa, de um denominador comum. Programas de
no plano da microdiversidade, um excedente investimento e de consumo na economia não
de possibilidades operativas que os sistemas são capazes de orientar a atribuição dos valo-
funcionais precisam constantemente domar res lítico e ilícito no sistema do direito, pois
para que haja ordem social no nível de sua au- somente normas jurídicas desempenham este
to-organização. Tudo indica que os mecanis- papel. Além disso, os programas, ao contrário
mos que permitem reduzir esse excedente de dos códigos, são contingentes e variáveis. Nes-
possibilidades operativas precisam ir além da se sentido, o conceito de programa não serve
individualização das identidades pessoais. Na para uma concepção da desigualdade social
verdade, uma vez que essa individualização que pretenda explicar o acesso aos valores dos
consiste em neutralizar diferenças de classe e diferentes sistemas funcionais por meio de
origem social, é de se esperar que ela contribua uma noção unitária de estrutura social.
para formar o excedente de possibilidades co- Mas é possível supor, sendo coerente
municativas, e não para reduzi-lo. A redução com o conceito, que os programas sistêmicos
dessas possibilidades só é possível quando os se vinculam de dois modos com estruturas de
sistemas funcionais aceitam assimetrias e de- desigualdade social. Em primeiro lugar, os sis-
sigualdades capazes de estruturar a construção temas funcionais precisam que a contingência,
de “endereços sociais” na dimensão social. no plano dos programas, seja reduzida de tal
A contribuição das assimetrias e desi- modo, que a atribuição dos valores de um úni-
gualdades da dimensão social para a produção co e mesmo código não seja, no mesmo con-
e a reprodução da ordem social pode ser ob- texto e ao mesmo tempo, disputada por vários
servada mais precisamente quando levamos programas. As possibilidades de programação
em conta a diferença entre código e programa. precisam ser controladas de algum modo, o
Embora o código binário seja constitutivo para que tipicamente ocorre por meio de “especia-
a identidade do sistema funcional, ele não car- listas” em organizações. No caso desse contro-
rega, em si mesmo, nenhum critério de seleção le, o “terceiro valor” introduzido no contexto
que oriente a atribuição de seus valores nega- funcional de um código binário serve não ape-
tivos e positivos. Por isso, o código sozinho nas para decidir sobre a alocação de valores,
não é capaz de produzir nenhuma operação do mas também sobre as premissas que vão orien-
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sistema. Para isso, são necessários programas, tá-la. Esse terceiro valor pode ser, por exem-
ou seja, premissas de decisão que definam as plo, o prestígio de um cientista, que o permite
condições sob as quais a atribuição dos valores transformar suas novas teorias em programa
sistêmicos é “correta”. Trata-se da reintrodu- de sua disciplina científica. Em segundo lu-
ção de um terceiro valor no sistema, ou seja, gar, toda programação sistêmica, a fim de po-
de contornar, em outro nível, o binarismo in- der determinar as condições de correção dos
contornável no nível do código. Mesmo que comportamentos vinculados à atribuição dos
o sistema só oriente suas operações pelos va- valores binários, exige que a dimensão social
lores positivo e negativo de seu código – caso seja devidamente estruturada. Para que o com-
contrário, deixaria de existir como sistema portamento de várias pessoas possa ser coor-
funcional –, ele precisa aceitar um terceiro va- denado segundo as condições de correção para
lor no nível de seus programas, pois esse valor atribuir os valores sistêmicos, é preciso que a
adicional é que permite a realização das ope- dimensão social tenha sua complexidade re-
rações sistêmicas. Luhmann enfatiza que tais duzida por meio da construção de “pontos de
programas são específicos de cada código e de atribuição” (endereços sociais). Esses “pontos
cada sistema funcional: a alocação dos valores de atribuição” orientam a seleção de pessoas
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cujo comportamento social condiz com a res- estrutura do público financeiro, decorrentes
pectiva programação das operações sistêmicas. da inclusão de indivíduos que, segundo a atri-
A “questão” dos programas é reduzir o exce- buição dos estabelecidos, não tomam decisões
dente de possibilidades operativas que a im- de compra e venda de ações e demais papéis
possibilidade de se construírem “endereços so- segundo os próprios cálculos, reflexões e opi-
ciais” – ou seja, de se personalizarem expecta- niões, mas sim como parte de uma “massa irra-
tivas de comportamento no plano dos códigos cional”, imitando o comportamento dos outros
sistêmicos – produz na dimensão social. especuladores (Stäheli, 2009, p. 267).
Para realizar essa redução de possibili- Mesmo enfatizando a individualidade
dades operativas, os programas se vinculam, pessoal, esses mecanismos de construção sele-
de modo constitutivo, a mecanismos de sele- tiva dos públicos dos sistemas funcionais pre-
ção social. Essa vinculação fica evidente quan- cisam, tanto quanto possível, ignorar as espe-
do se leva em conta a importância das constru- cificidades individuais, pois somente assim a
ções ou observações sistêmicas sobre seu pú- complexidade do entorno humano pode ser es-
blico. Tais construções ou observações, como truturada (reduzida) pelos sistemas sociais. Ao
mostra Stäheli (2009), reduzem as possibilida- contrário da atribuição meramente individua-
des operativas dos sistemas porque criam uma lizante de expectativas de comportamento, as
fronteira entre os “endereços sociais” com as atribuições realizadas por esses mecanismos
competências para participar das operações de seleção de pessoas são generalizadas não
dos sistemas funcionais e um “lado de fora” apenas na dimensão temporal (ou seja, como
que ou é percebido como uma ameaça a ser duração das expectativas individuais de com-
afastada e excluída das operações sistêmicas, portamento), mas também na dimensão social.
ou como uma população dotada de um poten- A autonomização da dimensão social signifi-
cial de inclusão capaz de, no futuro, permitir ca a produção de uma dimensão do sentido
a ampliação das fronteiras do público. Precisa- que ressalta a singularidade das perspectivas
mente porque tais construções ou observações individuais, mesmo que os temas e objetos da
não são derivadas da forma de diferenciação comunicação (dimensão objetiva) sejam idên-
funcional é que os sistemas funcionais de- ticos. Quando essa dimensão do sentido torna-
pendem de programas em geral produzidos e se autônoma, não é mais possível determinar
reproduzidos em organizações que delimitem as possibilidades de comportamento dos indi-
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exatamente em substituir o enfoque concreto bre a distribuição de posições sociais nos sis-
nas especificidades individuais por um enfo- temas sociais também se estende às decisões
que mais abstrato em modelos de individua- sobre a alocação dos valores em jogo nos siste-
lização. Mesmo assim, ela não alcança o nível mas funcionais. Vale repetir: os programas não
estrutural de papéis sociais com expectativas neutralizam essas desigualdades externas, mas
comportamentais formalmente definidas, mas sim as transformam em desigualdades internas
sim o nível da tipificação informal de indiví- por meio de processos de atribuição que tor-
duos aptos a assumirem esses papéis sociais. nam as influências externas invisíveis. A tese
A relação entre a programação e as ge- da neutralização (Kieserling), além de caren-
neralizações sobre o público dos sistemas fun- te de qualquer sustentação empírica, desvia o
cionais acontece, sobretudo, por meio da atri- foco de uma questão decisiva na relação entre
buição de preferências valorativas que tornam desigualdades sociais “não funcionais” (exter-
os indivíduos “endereços sociais” legítimos das nas aos sistemas funcionais) e diferenciação
operações sistêmicas. E isso inclui também os funcional: a questão do grau de autonomia que
valores positivos dos respectivos códigos biná- os programas sistêmicos possuem em relação
rios. Tais preferências valorativas funcionam às desigualdades externas (produzidas por ou-
como índice de que os indivíduos fazem um tros sistemas sociais) nos processos internos
uso adequado dos meios de comunicação sim- de distribuição e atribuição de chances comu-
bolicamente generalizados (dinheiro, poder, fé, nicativas. Essa autonomia – eis a hipótese de
amor, verdade etc.). Os sistemas sociais podem, pesquisa decorrente dessas reflexões teóricas –
por exemplo, atribuir aos indivíduos “[...] a pre- pode ser definida como o grau de liberdade dos
ferência pela obtenção, pela estabilização ou programas em tratar as desigualdades externas
pela ampliação do poder político, pela multipli- como referências contingentes para orientar as
cação da propriedade (pela obtenção de lucro), operações de distribuição e atribuição de chan-
ou pelo desenvolvimento de teorias novas e to- ces comunicativas. Um alto grau de autonomia
madas como verdadeiras. (Schneider, 2011, p. significa que essas operações podem selecionar
112). Com isso, os sistemas funcionais passam internamente os critérios de discriminação de
a dispor de endereços sociais com o potencial pessoas, ou seja, que nenhuma seleção externa
de se identificarem com as formas sociais pro- prévia impõe-se como necessária. Quando, por
duzidas pelo uso dos códigos binários, ou seja, exemplo, indivíduos se distanciam das neces-
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salte a relevância das estruturas de desigualdade desigualdade como as concepções sobre justiça
para a reprodução social. Para isso, buscou-se social – aí incluídos tanto as utopias políticas
precisar a concepção de primado da diferencia- como o “igualitarismo primitivo” dos sociólo-
ção funcional como traço definidor da sociedade gos (Müller, 2002, p. 497-498) – pressupõem,
moderna. O primado não significa a neutraliza- portanto, uma ordem social na qual a mutabili-
ção da influência de fatores externos aos siste- dade e a construção de estruturas de desigual-
mas funcionais na produção das desigualdades dade possam se tornar visíveis sem que essa
internas a esses sistemas. Essa versão do conceito ordem social entre em colapso. É precisamente
não se sustenta face aos sólidos achados da so- por isso que o estatuto da desigualdade como
ciologia da desigualdade, os quais confirmam a problema social e sociológico é uma conquis-
influência de fatores do entorno sobre as chances ta evolutiva (evolutionäre Errungenschaft) da
de participação individual nas operações dos sis- sociedade moderna, constitutivamente vincu-
temas sociais. O primado da forma funcional de lada ao primado da diferenciação funcional e
diferenciação sistêmica – como Luhmann enfati- ao princípio normativo da inclusão de todos os
za em várias passagens – refere-se ao fato de que indivíduos nos diferentes subsistemas sociais.
as formas de comunicação mais importantes e O primado funcional diz exatamente que a re-
abrangentes da sociedade (economia, política, di- produção da sociedade não é idêntica à repro-
reito, comunicação de massas, ciência etc.), sem dução e à ontologização de uma determinada
as quais a ordem social não é percebida como hierarquia social. Somente por conta dessa não
possível, não se constituem primariamente pela identidade entre sociedade e estratificação so-
hierarquização ontológica de pessoas, mas sim cial é que os sistemas funcionais, no processo
pela especificação de relações entre distintos pro- de construção de suas desigualdades internas,
blemas funcionais e soluções. podem tomar distância das desigualdades en-
Mas qual o ganho que a tese do primado contradas em seu entorno, isto é, percebê-las
funcional traz para a análise da desigualdade? como contingentes e não como necessárias.
O ganho refere-se, sobretudo, à articulação dos Nesse quadro teórico, a desigualdade,
pressupostos sociológicos da observação dis- embora não seja identificada como o eixo pri-
tanciada da desigualdade, tanto como proble- mário da sociedade, tem relevância para a re-
ma social como problema de pesquisa. A ques- produção das operações dos distintos sistemas
tão primordial para uma teoria social da desi- sociais. Em sua relação com o seguimento de
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O PROBLEMA DA DESIGUALDADE SOCIAL...
simetrias de outra ordem. A questão aqui é que MÜLLER, Hans-Peter. Die drei Welten der sozialen
Ungleichheit: Belohnungen, Prestige und Citzenship.
essas interdependências entre desigualdades Berliner Journal für Soziologie, S. 485-503. 2002
de “dentro” e de “fora” são contingentes, ou MÜNCH, Richard. Funktionale, stratifikatorische und
segmentäre Differenzierung der Weltgesellschaft. KZfSS,
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Roberto Dutra Torres Junior
Niklas Luhmann’s Theory of Society is frequently La théorie de la société de Niklas Luhmann est
accused of being conservative since it neglects the souvent accusée d’être conservatrice vu qu’elle
relevance of the structures of inequality in modern ne prend pas en considération l’importance des
society. This article proposes an alternative reading structures d’ inégalités dans la société moderne. Cet
of this theory which implies a reconsideration article propose une lecture alternative de cette théorie
of the part of the structures of inequality for the qui consiste à reconsidérer le rôle des structures
reproduction of social systems. The main argument d’inégalités pour la reproduction des systèmes
is that the structures of inequality guide the manner sociaux. L’argument principal consiste en ce que les
with which social systems select individuals for their structures d’inégalités guident la manière qu’ont les
operations. At the same time, the luhmannian thesis systèmes sociaux de sélectionner les individus pour
about the superiority of functional differentiation is effectuer leurs opérations. On y défend en même
defended, because while the structures of inequality temps la thèse luhmanienne concernant la primauté
may vary, assuming contingent strengths whose de la différenciation fonctionnelle puisque lorsque
transformation does not represent the transformations les structures d’inégalités peuvent varier en assumant
of society, the functional differentiation represents des formes contingentes dont la transformation ne
the identity of society, remaining as an invariable représente pas la transformation de la société, la
and necessary dimension in the horizon of meaning différenciation fonctionnelle, au contraire, représente
in modern times. l’identité elle-même de la société et se maintient
comme une dimension invariable et nécessaire aux
horizons du sens de la modernité.
Roberto Dutra Torres Junior – Doutor em Sociologia. Professor Associado do Laboratório de Gestão
e Políticas Públicas (LGPP), Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).
Temas de interesse: teoria social, sociologia da estratificação social, sociologia da religião, teoria do
reconhecimento social, teoria da modernidade, teoria dos sistemas, sociologia da administração pública.
Publicações recentes: Das Primat funktionaler Differenzierung und die Kontingenz sozialer Ungleichheit:
Gesellschaftliche Voraussetzungen für den Begriff des sozialen Milieus?. Zeitschrift für theoretische
Soziologie, v. 1, p. 382-397, 2014; Por uma sociologia sistêmica da gestão de políticas públicas. Conexão
Política, v. 2, p. 11-47, 2014; O neopentecostalismo e o novo espírito do capitalismo na modernidade
periférica. Perspectivas: Revista de Ciências Sociais (UNESP. Araraquara. Impresso), v. 32, p. 85-125,
2007.
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