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FACULDADE TEOLÓGICA BATISTA DO PARANÁ

Programa de Bacharelado em Teologia

ABRAÃO COMO EXEMPLO DIDÁTICO PARA A EXPLICAÇÃO PAULINA DA


JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ

por

NATALINO DAS NEVES

Monografia apresentada como requisito


parcial para a colação de grau em
Bacharel em Teologia na Faculdade
Teológica Batista do Paraná.

Professor Doutor: Antônio Renato


Gusso

CURITIBA
Nov/2005

i
EPÍGRAFE

O conteúdo do evangelho da morte e ressurreição de

Cristo pode ser definido como a revelação da justiça de


Deus para todo o que crê.

Herman Ridderbos

ii
FACULDADE TEOLÓGICA BATISTA DO PARANÁ

ABRAÃO COMO EXEMPLO DIDÁTICO PARA A EXPLICAÇÃO PAULINA DA


JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ

por

NATALINO DAS NEVES

Monografia de bacharelado apresentada aos Senhores:

Prof. Dr. Antônio Renato Gusso

Prof. Dr. Jaziel Guerreiro Martins

Prof. Dr. Hilmar Fürstenau

Vista e permitida a impressão.

Curitiba, ___/___/___.

iii
RESUMO

A doutrina da justificação pela fé é um assunto difícil para se explicar, principalmente

aos judeus e aos judeus convertidos ao cristianismo, e o apóstolo Paulo precisava

de um recurso didático para demonstrar com eficácia esse ensinamento e, de

preferência, que fosse algo conhecido e aceito por eles. A intenção deste estudo é

mostrar como a figura de Abraão, respeitando a limitação desse recurso, foi bem

adequada para que o apóstolo pudesse explicar a doutrina da justificação pela fé,

essencial ao cristianismo, aos destinatários da Epístola de Romanos, de forma

inquestionável.

PALAVRAS-CHAVE

Justificação, Fé, Graça, Obras, Circuncisão, Lei, Justiça.

iv
SUMÁRIO

EPÍGRAFE ............................................................................................................................................... ii
RESUMO ................................................................................................................................................. iv
PALAVRAS-CHAVE ................................................................................................................................ iv
SUMÁRIO ................................................................................................................................................. v
1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................................1
2. REFERENCIAL TEÓRICO ..............................................................................................................3
2.1 O pensamento paulino e a doutrina da justificação pela fé ..................................3
2.1.1 O desenvolvimento do pensamento paulino.....................................................4
2.1.2 A doutrina da justificação pela fé ......................................................................6
2.1.3 A doutrina da justificação pela fé e a reforma protestante ............................ 12
2.1.4 A doutrina da justificação pela fé sob o aspecto forense .............................. 13
2.1.5 Jesus e a justificação pela fé ......................................................................... 16
2.2 Utilização e limitação de figuras ......................................................................... 18
2.3 O contexto da Epístola aos Romanos ................................................................ 21
2.3.1 O Império Romano ......................................................................................... 21
2.3.2 A Comunidade judaica em Roma .................................................................. 23
2.3.3 A comunidade cristã em Roma ...................................................................... 24
2.3.4 O propósito da Epístola aos Romanos .......................................................... 26
2.3.5 Uma visão panorâmica dos cinco primeiros capítulos de Romanos ............. 26

3. O EXEMPLO DE ABRAÃO DEMONSTRA QUE A JUSTIFICAÇÃO É PELA FÉ E MEDIANTE A


GRAÇA DE DEUS – V 1-16 .................................................................................................................. 29
3.1 A justificação de Abraão não foi por obras meritórias – v. 1-3 ........................... 30
3.2 A justificação de Abraão foi um presente divino – v. 4-8 ................................... 33
3.3 A Justificação de Abraão não foi por meio de ritual externo - v. 9-12............... 38
3.4 A justificação de Abraão não foi por meio da lei – v.13-16 ................................ 43

4. O EXEMPLO DE ABRAÃO DEMONSTRA QUE A JUSTIFICAÇÃO É PARA TODOS E


SOMENTE POR MEIO DE CRISTO - v. 17-25 ..................................................................................... 49
4.1 A Justificação é para todos - v. 17-22a .............................................................. 50
4.2 A justificação é possível somente por meio de Cristo – v. 22b-25..................... 52

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................... 56


6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E CONSULTADAS ............................................................. 59

v
1. INTRODUÇÃO

Neste trabalho de conclusão de curso será abordado o tema da


justificação pela fé descrita na Epístola de Romanos, mais especificamente no
capítulo 4, onde o apóstolo Paulo utiliza a figura de Abraão como exemplo para
auxiliar a compreensão do argumento utilizado no capítulo anterior (Rm 3.21-31).
Este trabalho de pesquisa se justifica principalmente pela necessidade do
entendimento da justificação pela fé no processo da salvação e como a fé de Abraão
antecedeu o conceito da fé cristã antes da encarnação de Cristo e a aparente
contradição entre a fé demonstrada por Abraão e a fé do Novo Testamento.
Este tema suscita interesse devido à abordagem que o apóstolo Paulo faz
da justificação de Abraão no Antigo Testamento, sem que este viesse a conhecer
pessoalmente a Jesus, mas que demonstrou uma confiança incondicional em Deus
e em sua promessa.
A literatura que será utilizada tem as mais diversas interpretações, não
tendo como objetivo a definição de uma linha de pensamento, mas uma pesquisa
isenta de dogmas, priorizando o tema em detrimento de opiniões pré-concebidas. A
bibliografia indicada neste estudo será utilizada na fundamentação teórica e
posteriormente na apresentação de conceitos, estudos e conclusões.
A principal questão que esta pesquisa procurará elucidar é o motivo pelo
qual o exemplo de Abraão se tornou tão adequado para a explicação paulina da
doutrina da justificação pela fé aos destinatários da Epístola aos Romanos. Para
isto, serão abordadas outras questões secundárias como por exemplo: se Abraão foi
justificado pela fé, ele de algum modo antecedeu a fé cristã. Mas de que forma ele
se identificou com ela? Até que ponto o apóstolo Paulo pôde constatar a fé cristã
antes de Cristo e como resolveu esta aparente contradição?
Para desenvolver a argumentação serão avaliadas algumas hipóteses
possíveis como a afirmação de que a justificação pela fé no Antigo Testamento, mais
especificamente no caso de Abraão, dava-se pela convicção incondicional de que
Deus pode operar o impossível, enquanto no Novo Testamento, a única forma de
justificação é a fé em Cristo e sua ressurreição; de que o exemplo da fé de Abraão
se opõe a própria concepção judaica diante da citação do apóstolo Paulo de vários

1
exemplos de fé no Antigo Testamento, comparando-os com Abraão e colocando
este em um nível muito mais elevado; que Abraão foi justificado antes da circuncisão
e da instituição da lei, portanto não foi mediante a lei que recebeu a promessa,
inclusive, não é exclusiva para a nação de Israel, mas para todas as nações e
pessoas.
Para a apresentação e compreensão do tema, este trabalho está dividido
em seis capítulos, incluindo esta introdução. O arcabouço teórico emprega uma
descrição da doutrina da justificação pela fé que é de suma importância para a
compreensão do tema proposto; da utilização e a limitação de figura para uma
interpretação adequada deste recurso; do motivo da escolha de Abraão pelo
apóstolo para exemplificar a doutrina da justificação pela fé; e a apresentação do
contexto dos cincos primeiros capítulos da Epístola aos Romanos para auxiliar na
compreensão dos capítulos posteriores.
Os dois capítulos seguintes abordarão argumentações de que o exemplo
de Abraão demonstra que a justificação pela fé é independente de obras meritórias e
é imputada gratuitamente por Deus; de que independe de rituais e da religião, pois
se deu antes de vários rituais do judaísmo, bem como da própria instituição da lei
para o povo de Israel; que a promessa feita a Abraão não era exclusiva para os seus
descendentes físicos, mas sim a todos àqueles que crêem em Jesus e sua
ressurreição, o único meio de salvação.
Por fim, esta pesquisa apresentará as conclusões extraídas destas
argumentações com a finalidade de comprovar as hipóteses levantadas nos
parágrafos anteriores. O material bibliográfico empregado na elaboração da
monografia encontra-se relacionado no último capítulo.
Nesta pesquisa, quando mencionado os termos apóstolo ou Paulo,
entenda-se sempre que a referência é ao apóstolo Paulo. A metodologia de
referência de citação que será utilizada é do sistema numérico no rodapé da página
e será utilizada a tradução da Bíblia NVI – Nova Tradução Internacional - nas
citações de textos bíblicos. O sistema de transliteração adotado será de Stelio Rega
para os termos gregos e Edson de Faria Francisco para os termos hebraicos.

2
2. REFERENCIAL TEÓRICO

Paulo foi o primeiro e o maior teólogo de todos os tempos. Ele, mais do


que ninguém, contribuiu para que o cristianismo se tornasse internacionalmente
conhecido e intelectualmente coerente. Seus escritos moldaram o cristianismo mais
do que qualquer outro e desde a primeira vez em que foram recebidos obtiveram o
reconhecimento da igreja como uma norma oficial de fé e vida1.
Como esta pesquisa tem com base o capítulo quatro da Epístola de Paulo
aos Romanos, que é uma epístola de certa forma tardia do apóstolo, é necessário
analisar a evolução do pensamento paulino desde sua conversão bem como a
influência de conhecimentos adquiridos anteriormente, além dos fundamentos
defendidos ao longo do tempo sobre a doutrina da justificação pela fé, elemento
essencial para esta pesquisa.
As cartas do apóstolo Paulo são altamente pessoais e tratam de assuntos
fundamentais, às vezes de vida ou morte, para seus leitores. Isto torna praticamente
impossível compreender sua teologia, sem antes fazer uma avaliação teológica dos
argumentos que apresenta e das opiniões que expressa2.
Para isso, neste capítulo serão apresentados alguns pontos que auxiliarão
na análise e compreensão dos demais capítulos.

2.1 O pensamento paulino e a doutrina da justificação pela fé

Para Kümmel, o pensamento teológico de Paulo ocupa o centro do Novo


Testamento sob o ponto de vista cronológico e determina a evolução do pensamento
cristão primitivo3. Paulo foi inicialmente um fariseu convicto, discípulo de um
importante rabino de Jerusalém, ao mesmo tempo fora um judeu da diáspora em
contato com não-judeus e naturalmente com sua cultura. Torna-se importante avaliar
até que ponto o conceito judaico-palestino, judaico-helenisto como também gentílico-

1
DUNN, James D. G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 25-27.
2
Ibidem, p. 33.
3
KÜMMEL, Werner Georg. Síntese teológica do Novo Testamento. São Paulo: Teológica,
2003, p. 178.

3
helenista influenciaram o pensamento do apóstolo4.
Quando se pensa em justificação pela fé, Paulo é o autor que logo vem à
mente. Mas será que ele foi o primeiro a falar sobre este assunto? Ele sempre
pensou da mesma maneira como se havia recebido de uma vez a teologia pronta e
acabada? O que os Judeus, Jesus, demais apóstolos e as gerações após a igreja
primitiva pensavam sobre isso?
Esses questionamentos precisam de uma resposta significativa para se
entender qual foi a intenção de Paulo ao utilizar o exemplo didático de Abraão para
explicar esta que é uma das mais comentadas doutrinas bíblicas, a justificação pela
fé.

2.1.1 O desenvolvimento do pensamento paulino

Schnelle defende que o apóstolo Paulo não recebeu a doutrina que


apresenta no Novo Testamento de uma vez5. A diversidade de exegeses sobre a
teologia paulina, em especial a partir do século XIX, suscitou a interpretação de que
fica evidente nos seus escritos que houve um desenvolvimento gradual da teologia e
que foi motivada pelas necessidades da missão entre os gentios6.
Dunn também concorda ao afirmar que a teologia de Paulo logo após a
experiência da cristofania não era a mesma da consulta de Jerusalém, do incidente
na Antioquia, da que ensinou após ouvir as notícias da Galácia e durante seus
intercâmbios com a igreja de Corinto e assim por diante7.
Schnelle aborda que as próprias epístolas escritas por Paulo são
testemunhas de que o seu pensamento se caracteriza por transformações
significativas e não representam um compêndio de sua doutrina. Mas argumenta
que a “disparidade do material acolhido” pelo apóstolo, aliada à mudança
substancial do tema central de seus escritos, deve ser considerada na avaliação do
seu pensamento8.

4
Ibidem, p. 180.
5
SCHNELLE, Udo. A evolução do pensamento paulino. São Paulo: Edições Loyola, 1999,
p. 9.
6
Ibidem, p. 9-10.
7
DUNN, James D. G. Op. cit., p. 55.
8
SCHNELLE, Udo. Op. cit., p. 11-4.

4
A teologia paulina não se estabelece completamente em sua experiência
de Damasco. Nem o fato de reconhecer Jesus como seu senhor no caminho, nem a
conseqüente colisão com a lei judaica o tornou em um antinomista, mas lhe trouxe
uma nova compreensão da lei. Entretanto, esta experiência foi significativa para a
convicção de seu chamado. Vale ressaltar que ele recorre a esta fase de sua vida
somente quando argumenta em defesa de seu apostolado e não no desenvolver de
sua teologia9.
Jeremias afirma que, depois de Damasco, os olhos do apóstolo foram
abertos para a ilusão de que o homem poderia gloriar-se diante de Deus pelos seus
méritos e passa a se opor à tese dos judaizantes de que a lei seja o caminho da
salvação10. Porém, não afirma que ele recebera a doutrina da justificação pela fé
plenamente fundamentada como apresenta nas epístolas aos Gálatas e aos
Romanos.
Schnelle apresenta a possível cronologia da escrita das epístolas paulinas
para justificar sua argumentação do desenvolvimento gradual do pensamento
paulino com relação à sua compreensão da doutrina da justificação pela fé e com a
finalidade da lei judaica. Demonstra que a doutrina da justificação pela fé começa a
ser defendida de forma mais veemente na epístola aos Gálatas que serve de “fio
condutor” para o pensamento apresentado na epístola aos Romanos11.
Dunn concorda com a evolução do pensamento Paulino, em especial sobre
o exemplo mais comumente citado pelos teólogos que é a escatologia. Entretanto,
comenta que não é plenamente seguro recorrer à cronologia das cartas para afirmar
o desenvolvimento entre elas, por não se ter conhecimentos suficientes das
circunstâncias de cada carta para poder diferenciar se houve influência das
circunstâncias ou evolução da teologia de Paulo12.
Kümmel também faz uma afirmação semelhante após comentar sobre as
dificuldades de afirmar a autoria e a data da escrita de algumas epístolas
consideradas como paulinas, aliado ao fato de sua chamada ter ocorrido 18 anos

9
SCHNELLE, Udo. Op. cit., p. 17-24.
10
JEREMIAS, Joaquim. A mensagem central do Novo Testamento. São Paulo: Editora
Academia Cristã, 2005, p. 72-3.
11
SCHNELLE, Udo. Op. cit., p. 24-84.
12
DUNN, James D. G. Op. cit., p. 48-9.

5
antes das epístolas mais antigas conservadas, não sendo possível uma visão segura
da formação do pensamento paulino e nem de eventuais evoluções posteriores de
sua teologia13.
Jeremias argumenta que a doutrina da justificação pela fé não aparece na
maioria das epístolas paulinas. Não é citada nas epístolas aos Tessanolicenses e
aparece pela primeira vez na epístola aos Gálatas, que vem, segundo ele,
cronologicamente logo depois. Ressalta que nas duas epístolas aos Coríntios,
dikaiosu,ne (dikaiosyne) tem o sentido de “salvação”, mas em nenhuma das duas
aparece a fórmula completa da justificação pela fé. Nas demais epístolas posteriores
às enviadas aos Gálatas e Romanos somente na epístola aos Filipenses aparece
novamente esta doutrina bem definida14.
Segundo Jeremias esta doutrina aparentemente só aparece quando o
apóstolo entra em debate com o judaísmo15 e Schnelle afirma que a doutrina da
justificação, “do ponto de vista histórico é uma forma tardia da teologia paulina,
fortemente condicionada por uma situação”16.
Com isso não se quer afirmar que a doutrina da justificação surgiu a partir
do apóstolo Paulo, mas como será apresentada no próximo capítulo, já havia sido
defendida antes de o apóstolo fundamentá-la em seus escritos.

2.1.2 A doutrina da justificação pela fé

Dunn afirma que o objeto principal da pesquisa deve ser o centro


organizacional da teologia de Paulo17. Surge, a partir desta afirmação, o
questionamento se a doutrina da justificação pela fé é o cerne da teologia paulina,
porém não há unanimidade em relação a este assunto. Ainda, segundo Dunn, no
século XX não há dúvida que a justificação pela fé ocupou o centro da teologia
paulina, principalmente pela influência dos dois mais importantes especialistas
protestantes do Novo Testamento: Bultmann, fornecendo base teológica para o seu
programa de demitologização e Ernst Käsemann, que considerava a justificação o

13
KÜMMEL, Werner Georg. Op. cit., p. 182.
14
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 75.
15
Ibidem, p. 72.
16
SCHNELLE, Udo. Op. cit., p. 101.
17
DUNN, James D. G. Op. cit., p. 47.

6
“cânon dentro do cânon”18.
Schnelle defende que a doutrina da justificação não é o centro do
pensamento paulino, mas que é utilizada por ele somente quando em confronto
direto com o ensino judaico ou dos judeu-cristãos, além de ser uma forma tardia
apresentada pelo apóstolo, sendo que na epístola de Romanos já se apresenta de
forma evoluída19, conforme tratado na seção anterior. Outro defensor dessa idéia é
Jeremias que cita Wrede e Schweitzer, sendo que ambos afirmam que a justificação
pela fé não ocupa o centro da teologia de Paulo, mas um lugar secundário20.
Kümmel não concorda com a afirmação anterior e argumenta que pode ser
facilmente constatado que a doutrina da justificação é a forma fundamental e mais
pessoal com que Paulo expressa a mensagem do agir de Deus para a salvação
escatológica de Deus. Porém, concorda que a doutrina ensinada pelo apóstolo entra
em confronto com a doutrina judaica da Salvação, mas nem por isso a torna como
meramente uma doutrina de luta21.
Segundo Dunn, juntamente com a justificação pela fé (tendo como
convictos defensores Bultmann e Ernest Käseman), existem vários temas que são
apontados como principais nos ensinamentos do apóstolo Paulo como a tensão
entre o cristianismo judaico e o cristianismo gentílico; justificação pela fé; misticismo
de Cristo ou teologia da cruz; e a antropologia paulina22. Porém não aponta a
doutrina da justificação pela fé como um ponto central da teologia do apóstolo Paulo.
Diferente de Dunn, Goppelt afirma que a doutrina da justificação tem
ocupado o centro das atenções da teologia neotestamentária23. MacArthur
acrescenta que ela é a mais importante da teologia evangélica. Cita Lutero para
defender que a doutrina da justificação é o princípio fundamental da reforma e que é
o que define se uma igreja está em pé ou caindo. Afirma, ainda, que a denominação
que não preserva este princípio tende ao liberalismo e a apostasia da fé, ao desvio
da doutrina bíblica central. Cita Rm 10.3 para afirmar que o abandono desta doutrina

18
Ibidem, p. 389.
19
SCHNELLE, Udo. Op. cit., p. 10-1.
20
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 73.
21
KÜMMEL, Werner Georg. Op. cit.,. p. 244.
22
DUNN, James D. G. Op. cit., p. 47.
23 a
GOPPELT, Leonard. Teologia do Novo Testamento. 3 Edição, São Paulo: Teológica,
2003, p. 379.

7
era a base da apostasia de Israel24.
Ridderbos concorda com a afirmação de Goppelt, mas questiona se esta
ordem não deve ser mudada. Ao seu ver a prioridade deve ser dada ao tema
“reconciliação” argumentando ser mais abrangente, pois o campo de visão desse
tema é a criação como um todo, enquanto a da justificação envolve somente o
relacionamento do homem com Deus25. Vai mais além, quando afirma que a doutrina
da justificação não é nova em si, e que conforme a realização do plano divino de
redenção foi se revelando o seu mistério e o conhecimento se aprofundando26.
Jeremias descreve que ultimamente tem-se afirmado que os textos de
Qumran demonstram que os essênios já tinham este conceito da justificação pela fé,
especialmente o último salmo do Manual de Disciplina (I QS 11.1ss) que tem uma
surpreendente semelhança com os escritos paulinos a respeito da doutrina da
justificação27. Segue o texto citado:
Mas, quanto a mim, minha justificação (mispati) pertence a Deus. E em sua mão está a
inocência do meu comportamento, juntamente com a retidão de coração, e em sua justiça
minha transgressão será apagada (I QS 11.2s).

Da fonte de sua justiça vem minha justificação (mispati), uma luz em meu coração vindo
de seus mistérios maravilhosos (11.5).
Se tropeço por causa da carne pecadora, minha justificação (mispati) permanecerá
eternamente por causa da justiça de Deus (11.12).

Por sua misericórdia ele me deixou aproximar e de sua graciosa manifestação veio minha
e
justificação (mispati); pela justiça de sua verdade ele me justificou (s phatani) e na sua
grande bondade ele restaurará todos os meus pecados e por sua justiça me lavará de
28
toda mancha humana (11.13s) .
Porém, Jeremias discorda da tradução de mispati como justificação,
argumentando que tanto no Novo Testamento como no judaísmo tardio jamais
significaria a justificação do ímpio, “mas antes a predestinação à via de paciente
obediência à torá” 29. Fürstenau discorda da afirmação de Jeremias e defende que a

24
MACARTHUR JR., John et all. Justificação pela fé somente: a marca da vitalidade
espiritual da igreja. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2005, p. 11.
25
RIDDERBOS, Herman. A teologia do apóstolo Paulo: a obra definitiva sobre o
pensamento do apóstolo dos gentios. Editora Cultura Cristã, 2004, p.183.
26
RIDDERBOS, Op. cit., p. 182.
27
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 84.
28
Ibidem, p. 85.
29
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 86-7.

8
tradução de mispati por justificação é apropriada30. Segundo Kirst, a tradução de
fP;v.mi (mispat) é “direito a”, “conformidade” e “justiça”31. Portanto, é aceitável a
tradução de fP;v.mi (mispat) como justificação.
Jeremias apresenta outra contradição da interpretação de Qumran (I Qp
Hab), do texto de Hab 2.4, de que Deus salvará aquele que cumpre a lei, seguindo
lealmente a Torá, ao contrário de Paulo que entende que o texto ensina que Deus
concede a vida ao ímpio que não confia em sua própria obra e crê em Jesus32.
Kümmel também afirma que o conceito de “justiça de Deus” já estava
presente no judaísmo “apocalíptico” dos últimos séculos antes de Cristo para
designar a fidelidade de Deus que preserva benignamente a sua aliança, mas
concorda com Jeremias de que o entendimento não é o mesmo apresentado pelo
apóstolo Paulo:

(...) Mas o fato de que em tais círculos se encontram afirmações semelhantes (“Por tua
bondade somente é justificado o homem” (Cânticos de Louvor 13.16, vide J. Maier, p. 109)
não nos deve iludir de que, embora o judaísmo do tempo do Novo Testamento conheça
muito bem a idéia pressupõe a necessidade da obediência radical, e não conhece como
Paulo o agir salvífico escatológico de Deus, que na verdade cria primeiramente as
33
possibilidades da salvação do homem .

Jeremias afirma que os textos de Qumran não antecipam a doutrina


paulina da justificação, mas o próprio ensinamento de Jesus que disse que Deus
não quer tratar com o justo mas com o pecador. Mensagem presente em diversas
parábolas do mestre dos mestres e na sua conduta como a refeição com “publicanos
e pecadores”. Paulo apresenta uma compreensão da mensagem de Jesus maior do
que outro autor do Novo Testamento, “ele foi o intérprete fiel de Jesus, e isto vale
particularmente para doutrina da justificação”34. Mesmo que a doutrina da
justificação pela fé não seja oriunda de Qumran, fica evidente que não surgiu do
apóstolo Paulo.
Stuhlmacher também defende que os textos pré-cristãos de Qumran

30
Aula ministrada na Faculdade Teológica Batista do Paraná em 27/10/2005, disciplina de
Teologia do Antigo Testamento.
31
KIRST, Nelson et all. Dicionário hebraico-português & aramaico-português. São
Leopoldo – RS: Editora Sinodal, 1987, p. 146.
32
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 86-7.
33
KÜMMEL, Werner Georg. Op. cit., p. 245.
34
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 88-9.

9
demonstram que os essênios entendiam que a justificação dependia da misericórdia
de Deus e não dos méritos humanos: “(...) De acordo com os essênios de Qumran,
os piedosos não conseguem obter imunidade do julgamento pela própria perfeição,
seja agora, seja no futuro. Pelo contrário, dependem da misericórdia do Deus
onipotente” 35.
Os argumentos apresentados pelos autores de que a doutrina da
justificação pela fé não estava presente nos textos de Qumran, especialmente o
último salmo do Manual de Disciplina (I QS 11.1ss), não é suficiente. Entretanto fica
evidente que a doutrina da justificação ainda não estava bem sistematizada, o que
acontece nos escritos de Paulo, como a epístola de Romanos.
Segundo Jeremias, a doutrina da justificação não pode ser entendida sem
a antítese entre achar a graça de Deus pela fé e pelas obras meritórias do homem.
Paulo utiliza essa antítese para combater o judaísmo e o cristianismo judaizante, que
defendiam que o homem encontra a graça de Deus quando cumpre a vontade divina
por meio da lei judaica36. “Em lugar das obras da lei humana, Paulo exige a fé do
homem como realização prévia para que Deus o declare justo” 37.
MacArthur afirma que quem procura estabelecer sua própria justiça ou
mistura a fé com as obras não alcança a justificação, que é alcançada somente por
aqueles que confiam na obra de Jesus para a justificação somente pela fé.
Comenta, ainda, que alguns tendem a outro extremo ao declarar que a obediência à
lei moral de Deus é facultativa e, com isso, procuram mudar a graça de Deus em
libertinagem38.
Segundo Jeremias, para Paulo o significado de dikaiw (dikaiô) no ativo

significa “conceder a graça a favor”, e no passivo dikaiw,stai (dikaiôsthai), “achar

a graça ou favor”39. Enquanto que dikaiosu,ne/dikaiosyne deve-se traduzir por

“a salvação de Deus” e dikaiw,stai (dikaiôsthai) por “achar a graça de Deus”.


Portanto, a justificação provém de Deus e demonstra um “transbordar da

35
STUHLMACHER, Peter. Lei e graça em Paulo: uma reafirmação da doutrina da
justificação. São Paulo: Vida Nova, 2002, p. 80.
36
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 72-3.
37
KÜMMEL, Werner Georg. Op. cit., p. 245.
38
MACARTHUR JR. John et all. Op. cit., p. 11-2.
39
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 70.

10
graça” de Deus40.
Calvino afirma que “o homem encontra sua justificação única e
exclusivamente na misericórdia de Deus, em Cristo, ao ser ela oferecida no
evangelho e recebida pela fé” e que o homem em seu estado natural não consegue
se despertar em busca desta justiça se não for “ferroado” pelo temor do juízo
41
divino .
Segundo Jeremias Deus concede sua misericórdia com base numa
façanha. Mas complementa que esta façanha não é do próprio homem e sim de
Cristo na Cruz, que a mesma não é uma simples façanha, “mas a mão que apanha a
obra de Cristo e a dirige para Deus. A fé diz: eis a façanha – O Cristo morreu por
mim na cruz (Gl 2.20)”42.
O erro dos Gálatas foi desprezar este sacrifício e misturar a justificação
com a santificação confiando nas obras de justiça (Gl 1.6,9), o que Paulo chama de
outro evangelho. Segundo MacArthur, nos últimos dias têm-se levantado apologistas
católicos que defendem que a doutrina da justificação pela fé não é bíblica, mas
invenção de Lutero e dos reformadores43. Esta controvérsia entre católicos e
reformadores será tratada em seção específica.
Segundo Jeremias, Martinho Lutero foi criticado pelo acréscimo de
“somente” em sua tradução de Rm 3.28 que ficou assim: “Pois reputamos que o
homem é justificado pela fé somente”. Mas defende que, do ponto de vista
lingüístico, Lutero tinha razão de traduzir assim por ser uma característica da língua
semítica o fato da palavra “somente” e “só” ser omitida44. Com isso, enfatiza que não
há outra forma de justificação a não ser por meio da fé.
Afirma que Paulo, ao utilizar o termo “justificado” ou “ser justificado”, vai
muito além da esfera jurídica, mesmo quando o aspecto forense não está ausente.
Defende que o que comanda o discurso de Paulo da justificação é a conotação
soteriológica e, fazendo citação de Rm 4.2, 5.1 e 5.9, afirma que “a justificação que
provém de Deus é um transbordar de graça que extravasa largamente à esfera

40
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 70-1.
41 a
CALVINO, João. ROMANOS. 2 Edição. São Paulo: Edições Parakletos, 2001, p.24.
42
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 73.
43
MACARTHUR JR. John et all. Op. cit., p. 12-3.
44
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 72.

11
jurídica”45.
Para ele a justificação pela fé é um perdão no sentido mais pleno.
Acompanha de um novo começo, da transformação em uma nova vida, uma nova
criação pelo dom do Espírito Santo. “Enquanto penhor da salvação final de Deus, a
justificação se volta para o futuro”46. Sendo justificado tem-se a garantia da
concessão da salvação final. “Não é um mero esquecimento do passado, mas
como penhor, um dom antecipado da salvação total; é uma nova criação pelo
Espírito de Deus; e o Cristo tomando posse da vida desde agora e já aqui” 47.
Diante destes argumentos fica evidenciado que a justificação pela fé
é uma doutrina bíblica que acertadamente exclui a necessidade de obras
meritórias para a salvação do ser humano, porém não abre possibilidade para
o outro extremo, do antinomismo, mas a justificação produz outro processo
que é o da santificação.

2.1.3 A doutrina da justificação pela fé e a reforma protestante

A redescoberta da justificação pela fé por Lutero trouxe conseqüências


significativas em várias áreas além da teologia, como sociais, políticas, literárias e
culturais48. A doutrina da justificação foi a força propulsora para a reforma
protestante49.
Lutero frustrou-se quando a igreja não quis falar sobre o assunto, pois
derrubaria automaticamente as vendas de indulgências e demais práticas absurdas
impostas pelo clero. Entretanto a igreja não pôde fugir do debate por muito tempo,
uma vez que os reformadores propagaram esta doutrina e a igreja católica foi
obrigada a tratar do assunto no Concílio de Trento, ocorrido no século XVI50.
Os Cânones e Decretos de Trento definiram que as obras são essenciais
para a justificação e representam a posição oficial da igreja católica até os dias

45
Ibidem, p. 70-1.
46
Ibidem, p. 83.
47
Ibidem, p. 77-84.
48
DUNN, James D. G. Op. cit., p. 389.
49
MACARTHUR JR. John et all. Op. cit., p. 15.
50
Ibidem, p. 15-6.

12
atuais. Defendem que a justificação compreende todo o processo de santificação e
dura para a vida toda, inclusive após a morte, por meio do purgatório. Além de
afirmar que a causa da justificação não é a fé, mas o sacramento do batismo51.
Jeremias faz um comentário parecido com esta afirmação, ao defender que
Paulo faz uma relação da justificação pela fé com o batismo, que era o ato decisivo
que demonstrava tanto para judeus como gentios convertidos ao cristianismo que a
pessoa havia decidido por Jesus. Argumenta, ainda, que Deus salva pelo batismo:
“O laço da justificação com o batismo é tão claro para Paulo, que absolutamente não
acha necessário dizer que é pelo batismo que Deus salva aquele que crê em Jesus
Cristo” , pois afirma que “é justamente esta formulação da graça batismal que Paulo
criou no seu conflito com o judaísmo”. Complementa que a doutrina da justificação
não poderia ser compreendida se não relacionada ao conjunto dos ensinamentos
sobre o batismo52.
Segundo o Concílio de Trento, se não forem acrescidas obras à fé a
justificação não é alcançada e complementa amaldiçoando todos que pensarem
diferente à condenação eterna. MacArthur refuta esta afirmação afirmando que a
Bíblia ensina “que a justificação é um ato declarativo de Deus, e não um processo”,
pois Jesus garante a salvação imediata (Jo 5.24). Apresenta a salvação como
resultado e a justificação pela fé como único caminho para alcançá-la53.
Para auxiliar no entendimento desta afirmação do ato declarativo de Deus
e como se desenvolve, na próxima seção será apresentado o ambiente em que se
dá o processo da justificação pela fé.

2.1.4 A doutrina da justificação pela fé sob o aspecto forense

O termo forense está relacionado a assuntos do sistema e práticas judiciais


como também com o falar em público, oriundas dos chamados “eventos forenses”
que são conferências e debates formais promovidos por escolas e universidades .
No que se refere à justificação pela fé, tem a ver com o conceito de declaração

51
Ibidem, p. 16-7.
52
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 76-8.
53
MACARTHUR JR. John et all Op. cit., p. 17-20.

13
judicial e envolve não um tribunal comum, mas o supremo tribunal de Deus54.
Como poderia um pecador, um ser humano decaído e miserável,
sobreviver diante do tribunal de um Deus absolutamente santo e justo, sendo que
não possui nenhuma possibilidade de reparar seu erro? Não há outra alternativa a
não ser a justificação vinda do próprio Deus. Porém fica um questionamento se o
homem é declarado justo ou feito justo por meio da justificação divina. Esta
controvérsia, a partir do advento da reforma, acompanha a história da igreja por
meio da diferença de posicionamento dos protestantes e católicos55.
Kümmel afirma que não há dúvidas de que o verbo empregado por Paulo
designa “declarar justo, justificar”. Portanto, significa o agir salvífico de Deus que
declara justo e recria o homem pecador como novo homem, desde que a ação divina
seja relacionada com Jesus e tendo a fé como condicional56.
Ridderbos também defende que se trata de um termo legal e complementa
que tem o sentido escatológico onde aponta o que é necessário para o ser humano
ser libertado do julgamento divino. Afirma que a justiça é a antítese de condenação e
o verbo justificar o oposto de condenação divina. Aquele que inicialmente estava
condenado pela ira de Deus, com a justificação é retirada a sentença divina como
uma dádiva redentora de Deus, concedida pelo evangelho de Cristo a todo que crê57.
Segundo Hodge, comentando a Confissão de Fé de Westminster, a
justificação é um ato judicial onde declara aquele que aceita o sacrifício de Cristo
tornando-o conformado às exigências da lei e lançando em favor o crédito da justiça
de “seu grande Representante e Fiador, Jesus Cristo” . Portanto, um ato declarativo
de que a pessoa está de acordo com as exigências da lei, mas não significa que
este ato a torna santa (Gl 2.16; 3.11). Justificação e santificação são apresentadas
como graças distintas, porém inseparáveis58.
Para Gospelt não tem como contestar de que justificação é um ato forense,
pois Deus coloca o homem na relação correta consigo mesmo. Mas adverte que ela

54
SPROUL, R. C. in MACARTHUR JR., John et all. Justificação pela fé somente: a marca
da vitalidade espiritual da igreja. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2005, p. 27.
55
Ibidem, p. 28.
56
KÜMMEL, Werner Georg. Op. cit., p. 247.
57
RIDDERBOS, Herman. Op. cit., p. 185.
58 a
HODGE, A. A. Confissão da fé Westminster comentada por A. A. Hodge. 2 Edição, São
Paulo: 1999, p. 245-8.

14
é condicional, ou seja, é válida enquanto se está a serviço da justiça, no lugar em
que Deus indica59.
Segundo Sproul, a visão protestante é de que o homem é declarado justo
na justificação e feito justo por meio da santificação e glorificação. Afirma que pode
se distinguir a doutrina bíblica dos conceitos bíblicos da justificação, porém não
separá-los60.
Para Sproul, a visão católica é contraditória devido à tradução do verbo
justificar do latim, que distorce o significado do texto original do hebraico,
considerando a justiça como inerente do homem e não imputada a ele por Deus.
Esta diferença de compreensão foi importantíssima para o surgimento da reforma,
conforme mencionado na seção anterior, e para o conceito da doutrina da
justificação forense61.
A visão católica é de que a fé é essencial, mas não a causa principal e
única. Portanto, a justificação não se dá pela fé somente, sendo secundária da
“causa instrumental que é o Batismo inicialmente e o sacramento da Penitência
depois para quem precisa de um segundo esteio da justificação” 62.
Sproul cita o famoso dito de Lutero “ao mesmo tempo justo e pecador”
para reforçar o argumento do pecador ser judicialmente considerado justo por meio
da imputação da justiça de Cristo, enquanto permanece ainda um pecador, porém
justificado. A intenção não é afirmar que a pessoa não foi transformada e que não há
um processo de santificação, mas que aqueles que possuem a fé salvadora
imediatamente começam a produzir frutos oriundos da obediência; contudo, a base
da justificação continua sendo a justiça imputada de Cristo e somente por esta
justiça que não é do homem é que pode ser declarado justo63.
Para os reformadores a única base da justificação é a justiça imputada de
Cristo e não uma que seja inerente do homem, sendo, portanto, a imputação da
justiça de Cristo para o pecador que crê o cerne da justificação forense. A obra de
Cristo satisfaz a necessidade da justiça de Deus pelos nossos pecados, pois

59
GOPPELT, Leonard. Op. cit., p. 380.
60
SPROUL, R. C. in MACARTHUR JR., Op. cit., p. 30.
61
Ibidem, p. 30-1.
62
Ibidem, p. 32-3.
63
Ibidem, p. 33-4.

15
recebeu em si a penalidade que nos estava proposta e conquistou o direito da
justiça perfeita64 que é atribuída a todo o que crê e aceita o sacrifício vicário de
Cristo.
A justiça inerente do homem é insuficiente para a justificação, considerada
como “trapos imundos”, sendo necessário uma justiça superior que está fora do
homem e que lhe seja atribuída. Deus imputa a própria justiça de Cristo em nosso
favor para nossa justificação forense. “O termo justificação se refere mesmo ao ato
judicial declarativo de Deus e não à pessoa que recebe o benefício desse ato
declarativo e que dizemos estar justificada” 65, a declaração forense de Deus.
A essência da justificação é de que o homem é perdoado com justiça, mas
a justiça alcançada por Cristo por sua perfeita obediência e sacrifício de si mesmo
que é atribuída ao “crente”. Essa justificação traz como efeito o perdão, a paz com
Deus e a certeza da salvação. As boas obras não são consideradas como base, mas
como conseqüências da justificação66.
O fato de a justiça de Cristo ser a base da justificação acentua amplamente
a graça de Deus e “a cruz de Cristo é o centro para o qual os mais intensos raios
como os da divina graça e justiça se convergem, nos quais eles são perfeitamente
reconciliados”. Antes da justificação, “Deus é um juiz irado” que mantém a
condenação da lei, mas após a justificação inocenta e trata o pecador como filho67.

2.1.5 Jesus e a justificação pela fé

A doutrina da justificação pela fé está presente na mensagem propagada


por Jesus, como pode ser percebida em diversas parábolas e também no seu
próprio estilo de vida como o fato de participar de refeições com “publicanos e
pecadores”, que eram discriminados pelos judeus. O apóstolo Paulo apresenta uma
compreensão da mensagem de Jesus maior do que qualquer outro autor do Novo
Testamento, “ele foi o intérprete fiel de Jesus, e isto vale particularmente para a

64
Ibidem, p. 35-7.
65
Ibidem, p. 38-41.
66
HODGE, A. A. Op. cit., p. 249-53.
67
Ibidem, p. 254-6.

16
doutrina da justificação” 68.
Um ensinamento tão crucial como a doutrina da justificação não poderia
estar ausente nos ensinamentos do “Mestre dos mestres”, o senhor Jesus Cristo.
Não é apresentada de uma forma sistemática como pelo apóstolo Paulo, mas os
conceitos permeavam toda sua pregação do evangelho. Embora nunca tenha
discursado diretamente sobre o assunto, pode ser percebido no seu ministério
evangelístico69.
Um dos exemplos clássicos é o relato do encontro de Jesus com o ladrão
que estava ao seu lado na cruz. Por meio de sua fé em Cristo, recebeu a promessa
de que estaria com ele no paraíso (Lc 23.43), sem exigir nenhum sacramento, obra
ou ritual para que alcançasse a justificação. MacArthur sugere um bom exemplo que
demonstra claramente o ensino da justificação pela fé por Jesus, a parábola do
fariseu e do publicano, descrita em Lc 18.9-1470.
A figura do fariseu na parábola que confiava em sim mesmo e se
considerava justo representava os ouvintes de Jesus, que receberam com um
grande impacto o ensinamento. Eles observavam os mais rigorosos padrões
legalistas com jejuns, orações, esmolas e outros rituais que excediam a leis
cerimoniais mosaicas. Esta atitude se repetiu em várias situações, como por
exemplo quando disse que para entrar no reino de Deus era necessário que a justiça
excedesse a justiça dos escribas e fariseus71. Como poderia ser possível?
A resposta Jesus apresenta por meio da parábola que certamente pasmou
ainda mais os ouvintes ao “colocar um cobrador de impostos detestáveis em melhor
posição quanto à espiritualidade do que um fariseu que orava. A lição de Jesus é
clara. Estava ensinando que a justificação é pela fé somente”. A justificação do
cobrador de impostos foi instantânea, não foi um processo, mas voltou justificado
para casa, não por obras meritórias e sim por algo que foi feito a seu favor72.
O publicano reconhecia sua falta de capacidade e que sua dívida era
muito alta e não tinha condições de pagá-la, única coisa que poderia fazer era rogar

68
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 88-9.
69
MACARTHUR JR. Op. cit., p. 21.
70
Ibidem, p. 21-2.
71
Ibidem, p. 22
72
Ibidem, p. 22-3.

17
pela misericórdia de Deus. Não recorreu a obras que havia realizado, nem ofereceu
fazer nada por Deus, simplesmente rogou que Deus fizesse por ele o que ele próprio
não podia fazer, só com base na fé. “Essa é a natureza da penitência que Jesus
pedia” 73.
Por outro lado, o fariseu demonstrou arrogância, confiando que os jejuns
realizados, dízimos e outras obras consideradas justas o tornariam aceito por Deus.
Porém Jesus afirma que este não foi justificado. Como um cobrador de impostos,
considerado traidor dos judeus poderia ser justificado? “A única resposta possível é
que recebeu uma justiça que não era dele próprio (cf. Fp 3.9). A justiça lhe foi
atribuída mediante a fé (Rm 4.9-11)”. De quem era essa justiça? Só podia ser de
alguém com capacidade de apresentar uma justiça perfeita para sofrer a penalidade
da ira de Deus sobre o pecado, Jesus 74.
Portanto, fica evidenciado que a doutrina da justificação pela fé, mesmo
que não ensinada diretamente por Jesus estava presente em seus ensinamentos e
no seu explícito estilo de vida.

2.2 Utilização e limitação de figuras

Gusso alerta do perigo em não conhecer as diferenças entre a grande


quantidade de tipos literários na realização da interpretação de um texto bíblico. A
interpretação deve ter como objetivo principal chegar a realidade mais próxima
possível do que o autor quis dizer. Enfatiza que apesar dos tipos serem diferentes,
não existe diferença de valor, ou seja, os tipos literários têm o mesmo valor como
palavra de Deus75.
Alguns intérpretes têm atitudes extremadas ao analisar todas as partes da
escritura do mesmo modo. Ainda que sejam boas as intenções podem prejudicar, e
muito, a interpretação do texto. Gusso utiliza o texto de Lc 19.40 para demonstrar
que há uma “tendência de se pensar que aquilo que é figurado também é uma
alegoria”. Afirma que o texto citado geralmente é utilizado como uma alegoria para a

73
Ibidem, p. 22.
74
Ibidem, p. 24.
75
GUSSO, Antônio Renato. Como entender a Bíblia? Curitiba: Editora A. D. Santos, 1998,
p. 41-2.

18
evangelização, mas que a intenção do texto é demonstrar que era “impossível” fazer
os discípulos calarem depois de presenciarem os milagres realizados por Jesus,
assim como fazer as pedras clamarem76. Portanto, além de conhecer e identificar
corretamente os tipos literários, também é necessário respeitar as suas limitações.
Berkhof afirma que é de suma importância ter o conceito claro das “coisas”
nas quais as figuras estão baseadas, devendo essas coisas ser entendidas para que
se tenha uma interpretação segura das figuras derivadas dela. Que o objetivo do
intérprete é descobrir a idéia principal sem dar ênfase demasiada nos detalhes,
mesmo que sejam encontrados mais pontos de correspondência, deve se limitar aos
pretendidos pelo autor77.
Diante disso, será analisado na próxima seção o motivo pelo qual o
apóstolo Paulo escolheu a figura de Abraão para explicar que a justificação não se
dá por meio de obras ou rituais religiosos, como também não é exclusiva para uma
nação. Além de provar que a justificação pela fé não é uma novidade paulina, pois
estava presente também na escritura aceita e ensinada pelos judeus, não deixando
assim meios para que os judeu-cristãos pudessem exigir o cumprimento da lei como
requisito necessário de salvação para a comunidade cristã em Roma e em nenhum
outro lugar do mundo.
Portanto, deve ser observada a limitação da figura, ou seja, que a figura de
Abraão não pode ser usada como um modelo ideal que responda a todas as
definições da doutrina da justificação pela fé, mas somente naqueles pontos em que
o autor quis evidenciar.
Para demonstrar para os judeus a validade da doutrina da justificação pela
fé, Paulo não poderia enfocar somente o seu momento presente, mas apresentar
sua profundidade histórico-salvífica. Recorre ao exemplo de Abraão, não como faz o
autor de Hebreus que usa seu exemplo dentre muitos de forma aleatória, mas como
um exemplo impossível de repetir78.
Paulo precisava buscar no Antigo Testamento um exemplo que servisse de
precedente para demonstrar que a doutrina da justificação que ele ensinava não era

76
GUSSO, Antônio Renato. Op. cit., p. 53-60.
77 a
BERKHOF, Louis. Princípios de Interpretação bíblica. 2 Edição, São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 2004, p. 66-7.
78
POHL, Adolf. Carta aos romanos. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1999, p. 79.

19
nenhuma novidade, mas estava presente na mesma escritura que era venerada
pelos judeus. Além de reforçar aos gentios o privilégio que haviam alcançado por
meio da fé em Jesus. Portanto, por meio do exemplo de Abraão, poderia demonstrar
que a justificação pela fé é o único meio da salvação tanto na antiga aliança (Antigo
Testamento) como na nova aliança (Novo Testamento)79.
O apóstolo Paulo coloca Abraão acima de todas as figuras dominantes
para o povo judeu e dedica todo o capítulo quatro da epístola para falar sobre ele e
como serve de modelo para a explicação didática da justificação pela fé por meio da
observação do seu modelo de fé e obediência. Abraão é apresentado como superior
ao próprio rei Davi, figura do rei-messias, que é de muito respeito entre o povo judeu
e é utilizado para atender a norma rabínica que exige duas testemunhas para
qualquer questão controvertida, que no caso foi a explicação cristã para Gn 15.6 –
“Abraão creu no SENHOR, e isso lhe foi creditado como justiça” – porém, Abraão
ocupa a função da testemunha principal80.
O apóstolo concentra em Gn 15.6, citando 03 vezes no capítulo quatro, um
texto-chave que conecta firmemente “fé” e “justiça”, que são conceitos centrais da
doutrina da justificação pela fé. Paulo não poderia utilizar outro exemplo para
combater a doutrina da justificação pelas obras, pois Abraão era considerado para o
judaísmo como paradigma original de virtude. “Supunha-se que nada de maligno
tinha poder sobre ele, todos os dias de sua vida ele viveu como ‘o mais íntegro entre
os íntegros’ na obediência perfeita” 81.
Stott apresenta duas razões pela escolha de Abraão como figura para
explicar a justificação pela fé. A primeira é que ele era o primeiro pai da nação
israelita, o favorecido pela recepção da aliança e promessas de Deus. A segunda é
semelhante à afirmação de Pohl, em que Stott afirma que, “sem dúvida”, aos olhos
dos rabinos, Abraão era considerado a síntese da justiça e amigo especial de Deus.
Com isso, consideravam que ele havia sido justificado pelas suas obras. Os rabinos
citavam as escrituras para argumentar que Deus prometera abençoar Abraão pela
sua obediência, sem observar que a promessa havia sido dada após a sua

79
STOTT, John. Romanos. São Paulo: ABU editora, 2000, p. 140.
80 a
KASEMANN, Ernest. Perspectivas paulinas. 2 edição. São Paulo: Teológica, 2003, p.
131.
81
POHL, Adolf. Op. cit., p. 79.

20
justificação82. Antítese bem explorada pelo apóstolo no capítulo quatro de Romanos.
Portanto Abraão era o único que possuía todas as características que o
credenciava para ser o modelo ideal a ser usado pelo apóstolo Paulo para explicar
que o ser humano é justificado somente por meio da fé em Cristo e na sua
Ressurreição.

2.3 O contexto da Epístola aos Romanos

Como mencionado anteriormente, as cartas do apóstolo Paulo são


altamente pessoais e tratam de assuntos fundamentais para seus leitores, sendo
necessária uma avaliação teológica dos argumentos e das opiniões expressas pelo
apóstolo, mas isso não é suficiente. Também é necessário avaliar quais eram os
fatores religiosos e as características sociais de seus destinatários83.
Dunn afirma que os argumentos e exortações do apóstolo freqüentemente
focalizavam as situações de seus ouvintes, no caso específico os cristãos de Roma,
e as opiniões daqueles que discordavam de sua teologia, no caso específico os
judeus (grifo do autor)84. Por teologia do apóstolo deve ser entendido o que está por
trás de suas cartas, que “algo como as seções de um iceberg acima da superfície da
água”, formando um elo entre o texto e seu contexto histórico85.
Portanto serão apresentadas a seguir informações relevantes para a
compreensão do objetivo e de afirmações paulinas no texto em estudo.

2.3.1 O Império Romano

Para Roma afluíam pessoas de toda espécie e de todas partes do império


romano por meio de um moderno sistema de estradas, as vias Flamínia, Aurélia,
Triunfo, Labiana, Pinciana e Ápia, a Estrada Alta e a Rua Patrícia que se
espalhavam por todo território romano86. Roma era famosa por ter sido a capital

82
STOTT, John. Op. cit., p. 141.
83
DUNN, James D. G. Op. cit., p. 35.
84
Idem.
85
Ibidem, p. 38-41.
86
SOUZA, Itamir Neves. Carta aos Romanos: um evangelho singular. Londrina: Editora
Descoberta, 2004, p. 69-70.

21
política e cultural do mundo por séculos87.
Teve como origem a fusão de dois povos: os latinos e os sabinos.
Pesquisas arqueológicas demonstram que era habitada desde a Era do Bronze,
cerca de 1500 antes de Cristo, neste período foi submetida a invasões de vários
povos como os gregos, etruscos e outros, e a miscigenação cultural recebida
influenciou mais tarde a cultura do império romano, fundado oficialmente em 21 de
abril de 753 antes de Cristo88.
Portanto, na cidade de Roma, devido a essa miscigenação, havia as mais
diversas religiões e filosofias da época89. E na área religiosa, Roma era famosa pelo
seu politeísmo e superstições. “Os deuses romanos eram mais agricultores e
guerreiros que as divindades gregas, talvez como reflexo dos povos que os
conceberam”. Também possuía seus sacerdotes e “cada chefe de família oficiava o
culto doméstico, exercendo autoridade que chegava ao direito de vender ou suplicar
quem estivesse sob suas ordens” 90.
Quando o apóstolo Paulo chegou a Roma, entre os anos 50 e 60 d. C.,
encontrou uma população diversificada e cosmopolita. Ruas estreitas e repletas de
pessoas de várias origens e costumes. Os monumentos públicos lembravam aos
visitantes o poder, as tradições e a amplitude do Império Romano91.
Segundo Ronis, no tempo do apóstolo em Roma havia cerca de um milhão
de habitantes92. Já Souza afirma que a população era de aproximadamente um
milhão e trezentas mil pessoas93.
Os romanos apresentavam facilidade em adaptar modas e idéias de
centenas de culturas dos mais diversos povos sob seu comando, embora em
algumas ocasiões houvesse resistência por parte dos romanos a essa miscelânea
de costumes, como: o culto a Baco em 173 e 161 a. C., expulsão dos filósofos
gregos em 53 a. C., destruição de altares dos deuses egípcios 49/50 d. C., e

87 a
RONIS, Osvaldo. Geografia bíblica. 3 Edição. Rio de Janeiro: SEGRAFE, 1978, p. 54-
55.
88
SOUZA, Itamir Neves. Op. cit., p. 70.
89
SOUZA, Itamir Neves. Op. cit., p. 72-3.
90 a
CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado: versículo por versículo. V.3. 10
Edição. São Paulo: Candeia, 1995, p.721.
91
SOUZA, Itamir Neves. Op. cit., p. 71.
92
RONIS, Osvaldo. Op. cit., p. 54-55.
93
SOUZA, Itamir Neves. Op. cit., p. 73.

22
especialmente, a expulsão dos judeus da cidade em 54 d. C.94.
Durante séculos os romanos se orgulharam por sua reputação, porém com
a consolidação do poderio romano por todo território em torno do Mar Mediterrâneo,
em diversas ocasiões os soldados “saqueavam os cadáveres dos inimigos e
submetiam os restantes as mais humilhantes situações”. A exemplo da sociedade
grega, também era escravista, e foi um elemento central de estabilidade do império
durante sua existência95.
A sociedade era estruturada de acordo com a posição social do indivíduo,
que determinava o que se podia esperar dele. Esta distinção era bem definida e
respeitada pelos integrantes de cada classe, reforçada pela distância e
possibilidades remotas de serem transposta. Mais da metade da população era
escrava e considerada como mercadorias.
Diferente dos gregos, que tendiam para o belo e a filosofia, os romanos
inclinavam-se para as questões práticas e o direito. Inclusive, as leis ocidentais dos
dias atuais têm como base o chamado direito romano96.

2.3.2 A Comunidade judaica em Roma

Dentro da comunidade judaica a sua maioria era contrária ao império,


como os fariseus e zelotes, porém, havia também simpatizantes como os herodianos
e saduceus. Existiam deles que conquistaram uma certa autonomia, pois em 61 a.
C. alguns judeus trazidos para Roma por Pompeu, depois de ter conquistado a
Judéia, foram resgatados por compatriotas ricos que já moravam em Roma. Júlio
Cesar, por meio de decreto, deu liberdade para os judeus enviarem contribuições
para o Templo de Jerusalém97.
Judeus de todas as classes sociais viviam em Roma ou a visitava.
Arqueólogos descobriram nas ruínas romanas várias inscrições com nomes das
mais variadas origens e também nomes judaicos, inclusive as inscrições nas
catacumbas judaicas indicam que a metade dos judeus tinha nomes latinos,

94
SOUZA, Itamir Neves. Op. cit., p. 72.
95
Idem.
96
Idem.
97
SOUZA, Itamir Neves. Op. cit., p. 73-4.

23
provavelmente obtidos por emancipação da escravidão98.
A comunidade judaica era bem representada na capital do império, a ponto
de no primeiro século constituir o maior centro judaico do mundo antigo, tendo pelo
menos 13 sinagogas na cidade. Mesmo não sendo escravos pertenciam de modo
geral às classes dos pobres, mas possuíam “certas regalias como a liberdade de
culto, guarda do sábado, dispensa do serviço militar e jurisdição sobre seus próprios
membros”99. Contudo, nem sempre gozavam deste privilégio, pois “em muitas
ocasiões esses períodos de tranqüilidade eram interrompidos por períodos de
grandes dificuldades ocasionadas, muitas vezes, pela não aceitação por parte dos
judeus de atos que provocavam sua crença e práticas religiosas” 100.
Os judeus contavam com a simpatia da população. Isto refletia na prática
judaica de fazer prosélitos, a ponto de terem como convertidos ao judaísmo pessoas
como Fúlvia, esposa de senador; Pompéia, esposa de Nero; e Flávio Clemente,
primo de Domiciano, entre outros. Entre os prosélitos no dia de pentecostes,
provavelmente estavam vários romanos101.

2.3.3 A comunidade cristã em Roma

O livro de Atos, no capítulo 28, registra a chegada do apóstolo Paulo em


Roma por via terrestre. Seu sonho estava sendo realizado, mesmo que atrasado.
Pohl comenta sobre este fato: “(...) Era um momento grandioso (...) Muito mais tarde
que o planejado. Tinham decorrido cinco anos desde que escrevera à igreja romana:
‘estou chegando’, e vinha de maneira diferente do que havia imaginado: com um
transporte de prisioneiros”102.
Antes de chegar à cidade foi recebido pelos irmãos: “Ainda a uma boa
distância fora de Roma encontraram um grupo de homens que se apresentou como
delegação da igreja romana. Vieram ao seu encontro nada mais nada menos que 65
km, para lhe dar um cortejo honorífico”103. Este gesto deve ter emocionado, e muito,

98
Ibidem, p. 74.
99
Idem.
100
SOUZA, Itamir Neves. Op. cit., p. 74-5.
101
Idem.
102
POHL, Adolf. Op. cit., p.17.
103
Ibidem, p.80.

24
a Paulo.
Portanto, fica evidente que se já havia uma comunidade cristã em Roma,
não foi o apóstolo Paulo o seu fundador. O que também pode ser percebido no
primeiro capítulo da epístola onde ele menciona que rogava a Deus uma
oportunidade de conhecê-los104.
A comunidade cristã em Roma provavelmente foi fruto da facilidade de
locomoção proporcionada pelo comércio mundial e a diáspora judaica, como os
romanos que estiveram no pentecostes, fato registrado no capítulo dois do livro de
Atos: “(...) É provável que esses prosélitos e alguns judeus habitantes de Roma,
tendo se tornado cristãos, voltaram para Roma e proclamaram as boas novas do
evangelho no ambiente que lhes era mais propício, isto é, nas sinagogas”105.
Moody é contrário a esta afirmação, argumenta que os judeu-cristãos
naquela época não se sentiam diferentes dos judeus e não começaram a organizar
igrejas locais separadas das sinagogas. Defende que a idéia mais provável é a de
que a igreja foi organizada por convertidos pela pregação de Paulo, Estevão e
outros apóstolos106.
Moody argumenta que é muito improvável que um dos apóstolos estivesse
em Roma quando Paulo escreveu a epístola, principalmente o apóstolo Pedro, o que
certamente teria uma saudação específica de Paulo107. Cabral também defende esta
idéia quando contraria a tradição da igreja católica de que o apóstolo Pedro foi o
fundador da comunidade cristã em Roma108.
A igreja em Roma era constituída por judeus e gentios, sendo que estes
últimos foram se tornando a maioria. Esta diferença foi mais acentuada depois do
decreto de Cláudio que baniu os judeus de Roma, aproximadamente em 50 depois
de Cristo109. Moody afirma que a maneira do autor tratar os leitores não deixa dúvida
alguma de que são predominantemente gentios110.

104
SOUZA, Itamir Neves. Op. cit., p. 76-8.
105
Idem.
106
MOODY. Comentário bíblico Moody: Romanos à Apocalipse. São Paulo: Editora
Batista Regular, 2001, vol. 5. p. 1.
107
Idem.
108 a
CABRAL, Elienai. Romanos: o evangelho da justiça de Deus. 7 edição. Rio de Janeiro:
CPAD, 2003, p. 14.
109
MOODY. Op. cit., p. 79-80.
110
Ibidem, p. 2.

25
2.3.4 O propósito da Epístola aos Romanos

Segundo Cabral, o apóstolo teve dois objetivos ao escrever aos romanos,


um missionário e o outro doutrinário. O primeiro, devido ao sentimento de que o
trabalho missionário na Ásia e na Grécia já estava completo, tencionava levar o
evangelho aonde ainda não o conheciam e realizar o sonho de pregar na Europa,
principalmente na Itália e Espanha111.
O segundo objetivo foi de expor de forma didática e compreensiva as
verdades centrais do evangelho, já que provavelmente não possui grandes líderes
na igreja, uma vez que Paulo não os menciona. O problema principal apresentado é
sobre os direitos e privilégios da salvação112, principalmente para enfatizar que não
havia distinção entre gregos e gentios com relação a salvação.
Para Champlin, a epístola também teve um propósito apologético,
afirmando que os argumentos sobre a justificação pela fé não eram simplesmente
informativos, mas uma oposição aos judaizantes que estavam atuando na cidade.
Porém, também, havia muitas indagações, entre os cristãos de origem judaica, sobre
a posição de Israel diante de Deus e a validade das promessas feitas pelo Senhor
àquela nação, uma vez que haviam rejeitado o messias113.
Tinha também um caráter didático, principalmente na seção de prática
geral, sobre a moral e a conduta cristã, presentes do capítulo décimo segundo ao
décimo quinto, que tem por objetivo “ensinar, informar e iluminar, e não meramente
resolver determinados problemas”114.

2.3.5 Uma visão panorâmica dos cinco primeiros capítulos de Romanos

Dunn afirma que Romanos oferece um exemplo ordenado


seqüencialmente dos principais temas da teologia Paulina115. Em 1539, o primeiro
livro da Bíblia comentado por Calvino, considerado como o exegeta por excelência
da Reforma, foi a Epístola de Paulo aos Romanos, considerava-a como parte central

111
CABRAL, Elienai. Op. cit., p.14.
112
Ibidem, p. 16.
113
CHAMPLIN, R. N. Op. cit., p. 729-30.
114
Ibidem, p. 730.
115
DUNN, James D. G. Op. cit., p. 54.

26
e principal da escritura. Justifica a sua escolha por entender que se o ser humano
conseguir uma genuína compreensão desta epístola será aberta a porta de acesso
aos mais profundos tesouros da Escritura116.
Martinho Lutero, considerada a principal personagem da reforma, no seu
prefácio do comentário da mesma epístola, afirma que ela é a principal de todo Novo
Testamento e seu conteúdo o mais puro de todos evangelhos, digna de que todo
cristão decore palavra por palavra, bem como se ocupe diariamente com ela, pois
quanto mais for praticada mais saborosa se tornará117.
A Epístola aos Romanos é singular por ter sido em toda história das idéias
cristãs e do protestantismo um importante veículo de reavaliação teológica. Basta
lembrar a importância que teve no processo de transformação da vida de Lutero e a
quantidade de comentários que importantes teólogos como Barth, Lutero, Calvino, J.
A. Bengel, Charles Hodge, C. H. Dodd, Ernest Käsemann, M. Lloyd-Jones, entre
outros118.
O apóstolo Paulo inicia com a defesa de seu apostolado, dando ênfase ao
valor do evangelho, semelhante ao que faz em outras epístolas como a enviada aos
Gálatas, e inclui o assunto principal de toda a Epístola: a justificação pela fé. Para
trabalhar este tema, o apóstolo envolve mais especificamente os cincos primeiros
capítulos119.
No segundo capítulo apresenta a condenação de toda humanidade, desde
os tempos da criação, por sua ingratidão com o Supremo Criador em relação à sua
excelente obra, e registra os atos pecaminosos que todos estão sujeitos a cometer.
Judeus e alguns gentios, baseados na tradição judaica, se vestiam de uma
santidade externa para esconder a impiedade interior e achavam que estavam
isentos da condenação. Porém o apóstolo os convida a colocar suas obras diante do
tribunal de Deus120.
Em seguida, coloca os judeus e os gentios em separado diante do tribunal
divino, ou seja, os gentios que desconheciam as escrituras não eram escusáveis,

116
CALVINO, João. Op. cit., p. 9-23.
117
CABRAL, Elienai. Op. cit., p.11-2.
118
BARTH, Karl. Carta aos Romanos: Tradução e comentários Lindolfo K. Anders. São
Paulo: Novo Século, 2003, p. 5.
119
CALVINO, João. Op. cit., p. 23.
120
Ibidem, p. 24.

27
pois tinham a consciência como parâmetro; e os judeus, sendo conhecedores
deviam ser julgados pela própria escritura121.
Afirma que o pacto divino dava privilégios para os judeus, porém pela
misericórdia de Deus e não por mérito deles. Entretanto, prova, a partir da
autoridade das escrituras, que tanto judeus e gentios são todos pecadores,
apresenta a justificação como exclusiva pela fé, e que diante desta afirmação,
perante Deus, tanto judeus como gentios estão em pé de igualdade122.
Para exemplificar a afirmação anterior, no quarto capítulo, objeto principal
desta pesquisa, o apóstolo utiliza um exemplo claro e notável de Abraão como um
padrão e figura geral de justificação pela fé, abrangendo judeus e gentios.
Nesse capítulo o autor analisa a situação dos chamados “Filhos de Abraão”
sob o ponto de vista de descendência física, raça e espiritual que são objetos da
herança espiritual prometida por Deus. Conclui que o caminho para a obtenção da
herança é somente mediante a fé, que é um milagre divino123.
Para contrastar seus opositores que eram defensores da justificação pelas
obras, recorre também ao testemunho de Davi que afirma ser a bem-aventurança do
homem dependente da misericórdia divina e não das obras humanas. Afirma, ainda,
que Abraão alcançou justificação quando ainda incircunciso e que, se a promessa
da salvação dependesse da lei, a consciência humana nunca teria paz124.
No capítulo cinco, os frutos e efeitos da justiça são realçados, reforçando o
que fora dito anteriormente. Enfatiza o amor de Deus pelo fato de dar seu único filho
em resgate dos pecadores e apresenta uma comparação entre pecado e justiça
gratuita, Cristo e Adão, morte e vida, lei e graça125.

121
Ibidem, p. 24-25.
122
Ibidem, p. 24.
123
BARTH, Karl. Op. cit., p. 177.
124
CALVINO, João. Op. cit., p. 25.
125
Ibidem, p. 26.

28
3. O EXEMPLO DE ABRAÃO DEMONSTRA QUE A JUSTIFICAÇÃO É
PELA FÉ E MEDIANTE A GRAÇA DE DEUS – V 1-16

No capítulo anterior foi apresentado o arcabouço teórico sobre pontos


fundamentais que definem a doutrina da justificação pela fé e também uma
avaliação do contexto histórico da epístola que auxiliará a compreensão do presente
capítulo, cujo objetivo é demonstrar que o exemplo de Abraão apresentado nos
primeiros dezesseis versículos do capítulo quatro de Romanos, é bem adequado
para provar que a justificação independente de méritos humanos, mas é um
presente divino e está relacionada a não imputação dos pecados cometidos, sendo,
portanto, unicamente pela fé mediante a graça de Deus.
Diferente de Fílon que se referia a Abraão como protótipo da fé da tradição
judaica, Käsemann afirma que o capítulo quatro de Romanos é a parte central da
epístola, pois fornece argumentações que fundamentam a doutrina da justificação
pela fé apresentada no capítulo anterior (Rm 3.21-31), e de forma como nunca
afirmada pelo fato de apresentar a fé de Abraão como uma figura da fé cristã que
defende a justificação pela fé126.
Para confirmar argumentos sobre a justificação pela fé, o apóstolo Paulo
faz, de forma didática, uso do exemplo de Abraão, pois como pode ser observado a
seguir, apresenta pontos de correspondência muito parecidos.
Barth defende a necessidade de se fazer um vínculo da historicidade de
Jesus, ou seja, que o seu “fio carmesim” através de toda a história se apresenta não
como “uma religião”, mas como fato histórico que estabelece uma unidade entre o
passado longínquo e o presente, caso contrário este fio se romperá em nossas mãos
quando contrastarmos Abraão com Jesus127.
Segundo Käsemann, a fé cristã não tem como objetivo firmar dogmas
religiosos e nem se firmar por meio de experiências religiosas que se repetem, mas
provocar mudanças no seguidor de Cristo a ponto deste refletir em sua vida as

126 a
KASEMANN, Ernest. Perspectivas paulinas. 2 edição. São Paulo: Teológica, 2003, p.
131-3.
127
BARTH, Karl. Carta aos Romanos: Tradução e comentários Lindolfo K. Anders. São
Paulo: Novo Século, 2003, p. 181-2.

29
características que Cristo demonstrou através de seu exemplo de fé e obediência na
palavra do Pai.128
Jesus afirmou que era antes de Abraão. O Antigo Testamento foi sua vida
pré-histórica e, portanto, uma testemunha da justificação de Abraão pela fé. Fica,
assim, um desafio para esta pesquisa apresentar este vínculo.

3.1 A justificação de Abraão não foi por obras meritórias – v. 1-3

MURRAY afirma que no início do capítulo quatro, o apóstolo Paulo


demonstra por meio da escritura do Antigo Testamento a doutrina introduzida no
capítulo anterior, pois segundo ele, não há dúvida que a principal intenção é a
antítese entre a justificação pelas obras e a justificação pela fé129.
Käsemann comenta que uma das grandes características do apóstolo
Paulo é a convicção pela sua fé, pois não evita o campo escolhido pelos seus
adversários, pelo contrário, utiliza-o para fundamentar sua teologia. Mesmo
reconhecendo a importância das obras, defende que Abraão não foi justificado por
elas, mas por sua obediência adquirida através da fé na palavra de Deus130.
Calvino argumenta que o homem pode se gloriar de suas obras perante os
homens, mas perante Deus não encontrará justificativa, pois se nem mesmo Abraão
alcançou por méritos: “Quem dentre vós reivindicará para si a mínima partícula de
mérito, quando o mesmo foi negado a Abraão?” 131
Barth também afirma que apesar de a história proclamar a fama de Abraão
como homem de caráter, herói e personalidade brilhante, se ele fosse justificado por
estas qualidades a justiça de Deus seria semelhante à justiça humana. Argumenta,
ainda, que se houvesse um só ponto ou característica de ser humano que o pudesse
justificar, existiriam outros caminhos para se alcançar a justificação além do caminho
da morte e cruz apresentado por Jesus, e certamente os homens escolheriam “este
caminho” mais simples. A proclamada retidão de Abraão pode justificar a sua glória

128
KÄSEMANN, Ernest. Op. cit. p. 136.
129
MURRAY, John. Romanos: comentário bíblico fiel. São Paulo: Editora Fiel, 2003, p.
154.
130
KÄSEMANN, Ernest. Op. cit. p. 134-135.
131 a
CALVINO, João. ROMANOS. 2 Edição. São Paulo: Edições Parakletos, 2001, p. 148.

30
perante os homens, mas não perante Deus132.
Käsemann afirma categoricamente que a justificação de Abraão foi efetiva
quando demonstrada pela sua confiança na promessa de Deus constatada por meio
de suas atitudes, assim como os crentes em Cristo devem demonstrar por meio de
uma vida cristã sadia e transformada133. Barth acrescenta que foi o arrependimento
sincero de seu coração penitente (Rm 2.4); a obra conforme for aceita e “paga” por
Deus (Rm 2.6); e a circuncisão do coração (Rm 2.29) que permitiu Abraão “gloriar-se
perante Deus”134.
Calvino argumenta que Paulo refreia os judeus que se gloriavam por serem
filhos de Abraão, uma vez que demonstra a justificação gratuita de Abraão. Bem
como ao utilizar a expressão “O que Abraão obteve segundo a carne?”, tinha o
intuito de conceder aos judeus um laço de união mais estreito, a fim de exortá-los a
não se afastarem do exemplo de seu antepassado (pai) 135.
Käsemann afirma que não podemos entender a fé como obra nossa, mas
como obra do Criador, mediante a sua palavra. Diante disso, Paulo utiliza a citação
de Gênesis 15.6 em Romanos para anunciar a justificação do ímpio por meio do
exemplo de Abraão, dando assim à sua teologia a mais forte capacidade de
ataque136. Para Murray, esta era a principal base da argumentação de Paulo, o fato
de que a fé de Abraão estava em primeiro plano137.
Segundo Calvino “somente aqueles que têm consciência de que, por
natureza, são ímpios é que alcançarão a justiça [procedente] da fé” 138. Comenta que
a citação de Gênesis 15.6 é utilizada por fazer parte da escritura hebraica,
totalmente aceita pelos judeus, para demonstrar que Abraão foi justificado por
reconhecer sua própria miséria e por ter clamado pela misericórdia de Deus e não
por qualquer obra efetuada. Com isso, garante que a justiça pela fé é o referencial
para todo pecador destituído de obras139. Segundo Pohl, o sentido literal do texto
citado de Gênesis é de que a “fé em Abraão não era praticar com fé as prescrições,

132
BARTH, Karl. Op. cit., p. 183-5.
133
KÄSEMANN, Ernest. Op. cit., p. 135.
134
BARTH, Karl. Op. cit., p. 185.
135
CALVINO, João. Op. cit., p. 146-7.
136
KÄSEMANN, Ernest. Op. cit., p. 138.
137
MURRAY, John. Op. cit., p. 158.
138
CALVINO, João. Op. cit., p. 152.
139
Ibidem, p. 148.

31
mas submeter-se sem reservas à promessa de Deus” 140.
Segundo Murray, o texto hebraico de Gênesis 15.6 é semelhante ao do
Salmos 106.31: “Isso lhe foi imputado por justiça, de geração em geração, para
sempre” que ser refere ao zelo de Finéias pelo Senhor. A justificação dos dois,
Abraão e Finéias, é similar, porém, a de Finéias era no sentido ético e religioso,
enquanto que a de Abraão era de natureza bem diversa. Murray justifica com esta
argumentação que este foi o motivo de que Paulo não utilizou o Salmos 106.31, pois
seria uma contradição inerente, “demonstrando que a justificação é possível
mediante um ato justo e cheio de zelo”, excluindo, assim, o ímpio sem obras.
Gênesis trata da justificação, enquanto que o Salmos 106.31 trata das boas obras
que são fruto da fé141.
Calvino também utiliza o texto do Salmo 106 para defender a aparente
contradição da afirmação de justificação da ação de Finéias, o sacerdote do Senhor,
que vingou o opróbrio de Israel ao castigar um adúltero e uma meretriz com o
argumento paulino da justificação de Abraão, concluindo que um só vem
complementar o outro:

[...] Como, pois, pode tal vingança por ele infligida ser-lhe imputada para justiça? Era-lhe
necessário que antes fosse justificado pela graça de Deus, pois aqueles que já se acham
vestidos com a justiça de Cristo têm a Deus não só em favor deles mesmos, mas também
em favor de suas obras. As manchas e defeitos dessas obras são cobertos pela pureza de
Cristo, a fim de que não se apresentem para juízo; e se não são encontradas com alguma
mancha, são por isso consideradas justas. É plenamente evidente que sem tais
abstenções, nenhuma obra humana poderia agradar a Deus. Mas se a justiça
[procedente] da fé é a única razão por que nossas obras são consideradas justas, quão
absurdo é o argumento daqueles que dizem que a justiça não é tão-só pela fé, visto que
142
ela é atribuída às obras .

Outra afirmação de Calvino que merece uma atenção especial é de que a


interpretação que Abraão agiu de forma correta e honrosa ao crer na promessa de
Deus e, com isso, recebeu aprovação divina está equivocada, pois dependeu única
e exclusivamente de Deus, que “conferiu a Abraão sua graça com o fim de fazê-lo
ainda mais convicto da adoção divina e do favor paternal de Deus, nos quais se
acha inclusa a salvação eterna através de Cristo. Por esta razão Abraão, ao crer,

140
POHL, Adolf. Carta aos romanos. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1999, p. 80.
141
MURRAY, John. Op. cit., p. 158.
142
CALVINO, João. Op. cit., p. 154.

32
abraçou nada mais nada menos que a graça a ele oferecida, para que seu crer não
fosse destituído de efeito”143.
Barth qualifica Abraão de “ímpio” igual aos demais homens: “com sua
retidão humana e sua falta de retidão perante Deus, Abraão é apenas “ímpio” (1,18);
apenas pode enquadrar-se como toda a humanidade, em o NÃO divino” 144.
Calvino conclui que a única base de sua justiça consiste em esperar todas
as coisas como provindas de Deus e que a intenção de Moisés (defende sua autoria
de Gênesis) foi de relatar o caráter que Abraão possuía diante de Deus e não o que
as pessoas pensavam dele. A questão não é “o que os homens inerentemente são,
e, sim, como Deus os considera” 145, pois quando se busca a razão do amor de Deus
para com o ser humano e do fato de ser justificado por ele, Cristo deve ser
contemplado como Aquele que nos veste com sua própria justiça 146.
Paulo descarta qualquer possibilidade do ser humano se gloriar diante de
Deus e, semelhante a prática de Jesus, usou da autoridade da escritura para esta
afirmação147. Barth também é categórico ao afirmar que a justificação é possível
somente se vier de Deus, inclusive afirma que o arrependimento não vem por
iniciativa humana, mas pela graça divina e, portanto, somente Deus o pode ver e
julgar. Considera um milagre divino, por isso, intitula a perícope dos versículos um
ao oito de “fé e milagre”. A certeza de Abraão, de que Deus se dirige às coisas que
não são como se já fossem, é o grande milagre da justificação pela fé148.

3.2 A justificação de Abraão foi um presente divino – v. 4-8

Segundo Murray, os versículos quatro e cinco são uma continuação do


pensamento expresso no versículo dois, ou seja, há uma antítese entre a
recompensa resultante de obras e o método da graça149. Para enfatizar esta
afirmação, o autor da epístola, conta Abraão entre as pessoas sem Deus. Pohl,

143
Ibidem, p. 149.
144
BARTH, Karl. Op. cit., p. 191.
145
CALVINO, João. Op. cit., p. 150.
146
Ibidem, p. 149-50.
147
STOTT, John. Op. cit., p. 143-4.
148
BARTH, Karl. Op. cit., p. 185-7.
149
MURRAY, John. Ibidem, p. 158.

33
defende a idéia de que a intenção é apontar para a descendência gentílica do
patriarca, desafiando assim, de forma corajosa, a interpretação tradicional judaica.150
Calvino afirma que estes versículos não intencionam tratar da vida de
pessoas que vivem na prática de boas obras, que é um dever de todo servo de
Deus, mas se refere a uma figura para simbolizar a salvação, ou seja: “que Deus
não comunica justiça como dívida, mas no-la concede como dádiva” 151.
Paulo passa a trabalhar com o significado de “creditar” usado pela primeira
vez, mas que se repete cinco vezes do versículo três ao oito. Existem duas formas
que são incompatíveis para se creditar algo em conta de alguém: como salário que é
um crédito por direito, dívida ou obrigação a receber; ou, como presente que se
aplica no contexto da justificação que é recebido sem o mínimo direito de
pagamento152.
Segundo Barth, trata-se de uma ação divina inteiramente livre,
desvinculada do homem e originária da vontade soberana, real e poderosa de
Deus153. Se Deus for retribuir por obras realizadas pelo homem já não será mais o
“Deus Criador, Senhor e Redentor, que pratica a misericórdia e atribui justiça”, mas
um Deus pagador de dívidas, semelhante a um contratante ou empreiteiro154.
Murray afirma que “a antítese não é simplesmente entre o trabalhador e a
pessoa que não trabalha, e sim entre o trabalhador e a pessoa que não trabalha
mas crê. Não se trata apenas de crer, mas crer com uma específica qualidade de
direção – crer “naquele que justifica o ímpio”” 155. Esta afirmação mostra a magnitude
e a abrangência da graça de Deus para com o pecador.
Barth afirma que não há mérito algum sem Cristo e sua ressurreição e se
Abraão tivesse que se gloriar teria de ser no sangue de Jesus. Argumenta que se
Abraão pudesse se gloriar como homem seria unicamente do privilégio de ser na
história da redenção “o primeiro marco que aponta a Jesus. É a primeira
confirmação clara, precisa, definida, do “pequeno evangelho” a boa nova contida na
declaração que Deus fez à antiga serpente: A semente da mulher ferirá a tua cabeça

150
POHL, Adolf. Op. cit., p. 80.
151
CALVINO, João. Op. cit., p. 150-1.
152
STOTT, John. Op. cit., p. 144.
153
BARTH, Karl. Op. cit., p. 188.
154
Ibidem, p. 89.
155
MURRAY, John. Op. cit., p. 159-60.

34
– (Gên. 3,15)” 156. Barth, se precipita ao fazer a afirmação anterior, como se Abraão
conhecesse a Jesus, pois o próprio apóstolo Paulo no capítulo 4 somente referencia
Jesus nos versículos finais.
O fato como Deus concede seu favor ao homem e a mulher é contrário a
toda forma de pensar do ser humano. Jeremias afirma que “isto salta aos olhos, se
consideramos quem é justificado, ou seja, o ímpio (Rm 4.5 – “Todavia, àquele que
não trabalha, mas confia em Deus, que justifica o ímpio, sua fé lhe é creditada como
justiça”) que merece a morte porque é portador da maldição de Deus (Gl 3.10 - ). A
salvação de Deus lhe é concedida“ a título gracioso” (Rm 4.4; 5.17), como um dom
gratuito (Rm 3.24)” 157. A graça de Deus, diferente do que era propagado pela lei
judaica, aceita gentios e pecadores.
Portanto Abraão foi justificado não porque tinha crédito com Deus, mas
porque a fé demonstrada de que Deus pode justificar o ímpio foi suficiente para
alcançar a graça do Senhor.
O apóstolo utiliza mais uma citação do Antigo Testamento nos versículos
seis a oito para reforçar a afirmação de que a justificação pela fé já estava inserida
na antiga aliança158. Muda de Abraão para Davi, de Gn 15.6 – “Abraão creu no
SENHOR, e isso lhe foi creditado como justiça” - para Sl 32.1-2 – “Como é feliz
aquele que tem suas transgressões perdoadas e seus pecados apagados! Como é
feliz aquele a quem o SENHOR não atribui culpa e em quem não há hipocrisia!” - e
demonstra que entre os dois há uma concordância fundamental159.
Davi era considerado pelos judeus digno de nota pelas suas obras.
Calvino, entretanto, demonstra que Davi também confiava na graça de Deus para
sua justificação. A justiça proveniente da fé é gratuita e independe de obras, pois
Deus justifica os homens em razão de não lhes imputar seus pecados, diferente da
crença dos judeus que para obter a justiça divina por meio do perdão dos pecados
deve ser mediante as obras160.

156
BARTH, Karl. Op. cit., p. 192.
157
JEREMIAS, Joaquim. A mensagem central do Novo Testamento. São Paulo: Editora
Academia Cristã, 2005, p. 74.
158
MURRAY, John. Op. cit., p. 160.
159
STOTT, John. Romanos. São Paulo: ABU editora, 2000, p. 145.
160
CALVINO, João. Ibidem, p. 152-3.

35
Segundo Stott, nos versículos seis a oito muda a linguagem do “crédito”, o
que é creditado na conta não é a “fé como justiça”, mas a própria justiça, pois “ao
invés de levar em conta os nossos pecados e voltá-los contra nós, Deus os perdoa e
cobre” . Portanto, Deus recusa-se a creditar os pecados contra o pecador161.
Calvino defende que o rei Davi está falando de sua própria experiência
quando fora cobrado pela sua consciência. Um homem que havia servido a Deus por
longos anos, de repente se vê na mesma posição daqueles que desobedecem a
Deus e são colocados diante do tribunal de Deus, e declara que não há outro
caminho para a bem-aventurança a não ser a busca da graça de Deus para que não
sejam imputados os pecados162. Este exemplo demonstra que Davi recebeu
gratuitamente o perdão e foi declarado “sem culpa” diante do tribunal de Deus163.
Parece contraditória a afirmação, já citada nesta pesquisa, de que Abraão
é um protótipo da justificação do ímpio, mas Käsemann argumenta de que pelos
critérios do mundo judaico e grego, em hipótese alguma, Abraão poderia ser
considerado justo. Aliado a isso, cita o Salmo 32.1-2 para demonstrar que “o perdão
é concedido necessariamente somente àquele que não é piedoso no sentido usual,
da justiça das obras, isto é, que é sem Deus. Por outro lado, a divindade de Deus se
manifesta no fato de ele agir perdoando, isto é, de voltar-se para o ímpio”164.
Bruce discorda da afirmação de que Abraão fosse considerado ímpio, mas
o classifica como “homem de notável piedade e justiça”. Porém, argumenta que na
justificação de Abraão as obras de justiça não foram consideradas e esse princípio é
válido também para o ímpio, mas que a exemplo do publicano da parábola de Lc
18.9ss, foi justificado não por confiança em si mesmo, mas por confiar na graça de
Deus. Parece contraditória esta afirmação de que Deus justifica o ímpio quando
confrontada com textos do Antigo Testamento que afirmam que a absolvição do
culpado é denunciada como ato de juízes injustos165. Entretanto a resposta se
encontra em Rm 5.6 – “De fato, no devido tempo, quando ainda éramos fracos,

161
STOTT, John. Op. cit., p. 145-6.
162
CALVINO, João. Op. cit., p. 153-4.
163
BRUCE, F.F. Romanos: introdução e comentário. São Paulo: Editora Vida Nova, 2004,
p. 91.
164
KÄSEMANN, Ernest. Op. cit., p. 140.
165
BRUCE, F.F. Op. cit., p. 93-4.

36
Cristo morreu pelos ímpios” - que afirma que Cristo morreu pelos ímpios166.
O que Davi define como não imputação e perdão de pecados, Paulo
interpreta como imputação de justiça. A partir da citação da afirmação de Davi, o
apóstolo considera a justificação como correlativa à remissão de pecados. A pessoa
bem-aventurada não é aquela que tem as obras lançadas em sua conta, mas a que
não tem lançada em sua conta os pecados cometidos 167.
Murray afirma que não podemos definir toda a natureza da justificação na
remissão de pecados, mas que a justificação, também, inclui a remissão de
pecados. A remissão não define a justificação, porém esta envolve a remissão168. A
intenção do autor é demonstrar que a bem-aventurança não é a recompensa
proveniente de obras, mas sim a graça mediante a fé. A justiça não desloca o amor,
e o amor não desloca a justiça 169.
Stott utiliza o exemplo de Davi para referenciar a disputa do século XVI
entre católicos e reformadores, já citado nesta pesquisa no referencial teórico, se
Deus “infunde” (defesa da Igreja Católica) ou “imputa” (defesa dos reformadores)
justiça, afirmando que os reformadores tinham razão em afirmar a justificação pela fé
é um ato declarativo e não que torna o pecador justo, adquirido somente com o
processo da santificação170.
Segundo Barth, o homem considerado bem-aventurado pelo salmista é
“aquele que nada é e que, no seu constante morrer, se renova de dia a dia”, sendo
beneficiado pela imputação da justiça divina e da não imputação das transgressões
cometidas. A exemplo de Calvino, entende que trata de experiência pessoal do
salmista, citando o evento do assassinato de Urias, o reconhecimento do erro, o
pedido de perdão por Davi sem tentativa de justificar-se pelos atos da vida pregressa
e o sentimento de alívio e felicidade ao perceber o perdão de Deus171.
Para Jeremias a justificação nada mais é do que o perdão pelo amor de
Cristo172.

166
BRUCE, F.F. Op. cit., p. 100.
167
MURRAY, John. Op. cit., p. 161.
168
Ibidem, p.162.
169
POHL, Adolf. Op. cit., p. 81.
170
STOTT, John. Op. cit., p. 146-7.
171
BARTH, Karl. Op. cit., p. 195-6.
172
JEREMIAS, Joaquim. Op. cit., p. 74.

37
3.3 A Justificação de Abraão não foi por meio de ritual externo - v. 9-12

Paulo introduz o versículo nove com uma nova pergunta, se a bem-


aventurança da justificação era somente para os circuncidados ou também se
aplicava aos incircuncisos. Ele mesmo responde para argumentar contra o
ensinamento dos rabinos de que era necessário circuncidar-se para depois alcançar
a justificação. Segundo Stott, o período que separava os dois eventos era de pelo
menos 14 anos e, segundo a tradição judaica, 29 anos173. Nestes versículos Paulo
define a relação entre a circuncisão e a fé demonstrada por Abraão174.
Paulo procura demonstrar nos versículos nove a doze que Deus vai tratar
os incircuncisos da mesma forma que os circuncisos175. O exemplo da justificação de
Abraão demonstra que a circuncisão serviu apenas como um sinal externo do estado
de justo como dom de Deus. A circuncisão não lhe acrescentou nada176. Murray
afirma que Paulo não considera a circuncisão como um mero rito secular ou sinal de
identidade racial, mas que sua importância procedia de sua relação com a fé e com
a justiça da fé, ou seja, simbolizou e selou a fé que Abraão possuía177.
A comunidade judaica baseava-se em rituais como meio de justificação
diante de Deus. Segundo a doutrina rabínica, no juízo final, Deus perdoará somente
os circuncidados, e esse ensinamento paulino traria uma grande dificuldade para os
leitores do apóstolo. Por isso ele pacientemente inicia uma nova fase de
explicações178.
Os hipócritas que se gloriam de obras também disfarçam por meio de
sinais externos e, no caso dos judeus, a circuncisão era um deles, o qual
simbolicamente iniciava o povo judeu na obediência à religião judaica e a Deus, ou
seja, à obra da justiça da lei. A circuncisão era motivo de orgulho judaico por ser
considerada base da justiça procedente da lei e, por isso, consideravam-se
superiores aos demais povos179. Barth classifica a circuncisão como “acessório

173
STOTT, John. Op. cit., p. 148.
174
MURRAY, John. Op. cit., p. 164.
175
SANDERS, E. P. Paulo, a lei e o povo judeu. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, p. 54.
176
BRUCE, F.F. Op. cit., p. 94-5.
177
MURRAY, John. Op. cit., p. 164.
178
POHL, Adolf. Op. cit., p. 82.
179
CALVINO, João. Op. cit., p. 155-6.

38
visível” e “aparência do mundo religioso” 180.
Um dos argumentos mais fortes utilizados pela Epístola aos Romanos da
paternidade de Abraão de todos aqueles que crêem e da justificação pela fé,
encontra-se nos versículos nove a doze. O período em que Abraão foi declarado
justo pela sua fé na palavra de Deus, conforme descrito em Gênesis 15.6,
correspondia a uma época bem anterior à sua circuncisão, ritual este muito
defendido pelo judaísmo como requisito essencial para a salvação do ser humano.
Segundo Käsemann, o apóstolo argumenta se a justiça de Abraão consiste
na remissão de pecados e foi efetuada antes da circuncisão, então a remissão não
pode ser obtida por méritos antecipados, ou seja, a causa sempre precede o
efeito181. Com isso, deixa irrefutável a afirmação de que a circuncisão não foi pré-
requisito para a justificação de Abraão, mas somente um sinal de legitimação da
justificação já efetuada182.
Stott destaca que embora os eventos da justificação e circuncisão
estivessem separados por um longo período não eram desvinculados um do outro.
Mesmo que a circuncisão não fosse a base para a justificação o próprio Deus a
chamou de “sinal da aliança” estabelecida com Abraão e que seria identificada como
um selo para autenticá-lo juntamente com sua descendência como o povo justificado
de Deus183.
O argumento paulino destrói o que era considerado como um grande
argumento dos judeus: “(...) são postos por terra os privilégios reinvidicados por
Israel. A justiça de Deus não se limita ao âmbito da circuncisão, no qual, o próprio
Abraão já entrou justificado e o qual não pode assegurar uma verdadeira fé”. Para o
desespero dos judaizantes, Paulo afirma que a verdadeira circuncisão é aquela que
se dá no coração, independente de ritual externo. “Com isso, na realidade, a
promessa feita a Abraão vale agora somente para aquele grupo de circuncidados
que se tornaram cristãos”184.
Deus estava conduzindo Abraão para ser a figura de uma comunidade

180
BARTH, Karl. Op. cit., p. 199.
181
CALVINO, João. Op. cit., p. 156.
182
KÄSEMANN, Ernest. Op. cit., p. 140-141.
183
STOTT, John. Op. cit., p. 148-9.
184
KÄSEMANN, Ernest. Op. cit., p. 141-44.

39
universal de salvação. Com a circuncisão estava apenas assegurando que já o havia
escolhido e o retirado da vida gentia sem Deus para uma vida de comunhão com
ele. Seguindo a vida cronológica do patriarca, a prioridade é dos gentios, pois
primeiro ele foi justificado e depois circuncidado, sendo, portanto, antes pai da
incircuncisão, depois da circuncisão185. Os judeus, por serem adeptos da
circuncisão, não se faziam iguais ao “pai da nação judaica”, mas para receberem o
mesmo tratamento que recebeu Abraão de Deus, deveriam ter a mesma fé que ele
teve.
Moody, conclui que se a fé e a justificação de Abraão ocorrem antes da
circuncisão, ele é o pai dos gentios que crêem independentes de circuncisão.
Porém, não exclui os judeus, ao afirmar que se a circuncisão é um sinal da
justificação de Abraão, ele também é pai dos judeus circuncisos, os quais tiveram a
mesma fé dele e receberam a circuncisão como um sinal e não pré-requisito para a
justificação186.
Entretanto o apóstolo não desmerece de tudo a circuncisão como se fosse
supérflua, mas aponta outra utilidade a de selar e ratificar a justiça que Abraão já
havia alcançado ainda incircunciso. Portanto, era apenas um sinal e em nada
acrescentava ou diminuía em termos de justiça a Abraão187.
Portanto, Abraão não é o pai espiritual exclusivo de quem tem “o sinal”
externo, mas de todos que andam na mesma fé que ele teve antes de receber
qualquer sinal externo, como ritual que supostamente Deus teria ordenado para
mérito humano188. Paulo afirma que Deus é o Deus dos gentios tanto quanto dos
judeus e justifica os incircuncisos e os circuncisos sobre a mesma base, a fé189.
Calvino, diante desse exemplo, defende a manutenção de sacramentos
como símbolos sagrados para testemunhar a graça de Deus, segundo ele, ainda
que seja questionável por alguns:

Esta é uma passagem mui notável no tocante aos benefícios gerais dos sacramentos.
Segundo Paulo testifica, estes são selos pelos quais as promessas de Deus são de certa
forma impressas em nossos corações, e a certeza da graça é confirmada. Embora eles,

185
POHL, Adolf. Op. cit., p. 82-3.
186
MOODY. Op. cit., p. 21.
187
CALVINO, João. Op. cit., p. 156.
188
MOODY. Op. cit., p. 21.
189
SANDERS, E. P. Op. cit., p. 53.

40
inerentemente, são de nenhum proveito, todavia Deus os designou para que fossem
instrumentos de sua graça, e pela graça secreta de seu Espírito promovem o bem dos
190
eleitos através de seus efeitos .

Calvino afirma que Abraão recebeu uma dupla graça, a reconciliação


gratuita com Deus e, por analogia, aos seus descendentes espirituais. Moisés
ordenou a circuncisão a todos os recém-nascidos e mencionou a circuncisão
espiritual como uma obra divina (Dt 30.6 – “O SENHOR, o seu Deus, dará um
coração fiel a vocês e aos seus descendentes para que o amem de todo o coração e
de toda a alma e vivam”) e posteriormente os profetas explicaram essa idéia191.
Segundo Calvino afirma que no caso de Abraão a justiça precedeu a
circuncisão, mas nem sempre é assim nos casos do sacramento192. Calvino entra
em contradição ao afirmar que a justificação não se dá por meio da lei ou rituais e
depois equipara a circuncisão a um sacramento, sendo, portanto, necessário para
salvação.
Paulo demonstra aos seus oponentes que não tinham do que se orgulhar
contra os gentios, pois se a circuncisão era um ato de selar a justiça procedente da
fé ela é imputada a todos os que crêem como Abraão. Para os cristãos a circuncisão
não é necessária, pois foi estabelecido outro sinal da graça de Deus, o batismo193.
Berkhof afirma que os verdadeiros israelitas não são os descendentes
naturais de Abraão, mas somente aqueles que partilham de sua fé, e que a eleição
de Israel não visou sua separação como nação, mas à formação de um povo
espiritual incluindo os povos vizinhos. Argumenta que desde os tempos antigos os
prosélitos eram incorporados à religião judaica citando a oração dedicatória de
Salomão (1Rs 8.41ss – “Quanto ao estrangeiro que não pertence a Israel, o teu
povo, e que veio de uma terra distante por causa do teu nome – pois ouvirão acerca
do teu grande nome, da tua mão poderosa e do teu braço forte – quando ele vier ...)
e os profetas194.
Segundo calvino, o versículo doze se refere aos descendentes físicos de

190
CALVINO, João. Op. cit., p. 157.
191
Ibidem, p. 157-8.
192
Ibidem, p. 158.
193
Ibidem, p. 158-9
194 a
BERKHOF, Louis. Princípios de Interpretação bíblica. 2 Edição, São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 2004, p. 103.

41
Abraão “daqueles que não apenas circuncisos” que tinham apenas a circuncisão
externa e que deveriam imitar a fé de Abraão que era a única forma de salvação.
Porém, complementa, afirmando que Paulo estava distinguindo fé e sacramento, e
demonstrando que não são excludentes e que a fé não é suficiente sem o
sacramento195. Stott concorda com a comparação da circuncisão com o batismo,
porém identifica o batismo sem a função de sacramento196.
Barth defende que nenhum rito ou qualquer forma de religiosidade ou o
fato de pertencer a uma religião é o fato preponderante para Deus, mas a fé e os
frutos oriundos dela:

O vocacionamento dos homens por Deus, precede aos contrastes [das situações
humanas], entre a circuncisão e incircuncisão, a religiosidade e a irreligiosidade, entre o
pertencer e o não pertencer a uma Igreja, e essa precedência se verifica, não raro, até
cronologicamente. [Deus Chama o homem independente, e mesmo antes, de ele haver
cumprido ou se submetido às formalidades religiosas (batismo, profissão de fé, etc.)].
A fé que encontramos em Abraão [e que lhe foi imputada por justiça] ainda não é religião
nem fenômeno histórico espiritual da crença [ou da conversão]. A fé é o fator inicial [e a
condição preparatória, preliminar] das manifestações [exteriores que tornam públicos os
frutos da fé]; ela é a origem comum de todos eles, porém não é nem religiosa nem
irreligiosa; nem santa, nem profana, contudo é sempre ambas essas coisas, tem as duas
197
posições, simultaneamente .

A justificação de Abraão se deu pelo que é invisível, sua fé que emana de


Deus nada tem a ver com o que procede do mundo ou que nele se faz, nem com a
religião. A bem-aventurança vem pela fé e não pela crença e nem pela ortodoxia.
Somente a fé é imputada por justiça por Deus tanto ao piedoso como ao ímpio.
Barth, porém, não exclui a igreja da vida do cristão, mas afirma que é, ou deve ser
um sinal de testemunho da graça de Deus; e caso isso não ocorra perderá o seu
objetivo. Descreve a igreja e a religião como “sinetes e símbolos” que apontam para
a efetivação do pacto entre Deus e os homens198.
O exemplo de Abraão, uma vez que não foi justificado por obras meritórias,
nem por rituais externos, faz dele o protótipo da fé do verdadeiro cristianismo, uma
fé não baseada em ritualismo e religiosidade199. Sendo, portanto, pai de todos os

195
CALVINO, João. Op. cit., p. 159.
196
STOTT, John. Op. cit., p. 149.
197
BARTH, Karl. Op. cit., p. 200.
198
Ibidem, p. 200-1.
199
KÄSEMANN, Ernest. Op. cit., p. 139.

42
crentes, circuncidados ou não200.
Estes versículos demonstram que a justificação de Abraão foi unicamente
pela fé e que o mundo religioso é transitório, temporal e finito. Faz o cristão atual
refletir se não está incorrendo no mesmo erro dos judeus que Paulo advertiu,
colocando a religião e os dogmas aprendidos acima da própria justificação e
salvação.

3.4 A justificação de Abraão não foi por meio da lei – v.13-16

O interesse fundamental nesta perícope é o mesmo da anterior, porém


entra em cena um novo elemento no versículo treze, a antítese entre a lei e a
promessa. A lei mosaica, estabelecida 430 anos depois da promessa não a anulou
ou suspendeu, continuava válida e em pleno vigor201.
Abraão ocupa um lugar de evidência na história da salvação, superior a
Adão e ao próprio profeta Moisés, representante da lei e da antiga aliança, quando é
apontado como anterior à lei e como, pela promessa, aponta para a nova aliança:
“Ele pertence à Antiga Aliança, mas (à diferença de Moisés) não assinala a antítese
ao anúncio do evangelho, mas o lugar a partir do qual a Antiga Aliança,
ultrapassando a si mesma, aponta para a Nova, isto é, para a promessa”202.
Novamente o ensino apostólico entra em conflito com a doutrina de
redenção sinagogal judaica quando cita “pela fé, sem lei”, frase esta que não pode
ser compreendida num contexto judaico, pois para eles o cumprimento concreto da
lei constitui o homem justo diante de Deus. O cumprimento da lei, segundo o
ensinamento judaico, garante ao judeu um tesouro para a absolvição no dia do
julgamento. Segundo a crença judaica, a posse da lei é exclusiva dos israelitas e
única garantia da justificação, sendo portanto, um privilégio daquela nação203.
Os judeus não conheciam outra forma de salvação a não ser pela lei, este
era o cerne da doutrina judaica. Paulo não nega o privilégio especial dos judeus por
serem receptores da dádiva da lei (Rm 9.4), mas demonstra a ineficiência absoluta

200
STOTT, John. Op. cit., p. 149.
201
MURRAY, John. Op. cit., p. 167.
202
KÄSEMANN, Ernest. Op. cit., p. 133.
203
RIDDERBOS, Herman. A teologia do apóstolo Paulo: a obra definitiva sobre o
pensamento do apóstolo dos gentios. Editora Cultura Cristã, 2004, p. 191-2.

43
da lei como meio de salvação que serve apenas como sombra para a eficácia
redentora da morte e ressurreição de Cristo. Ninguém melhor do que Paulo para
testemunhar esta superioridade de Cristo, pois anteriormente ele também havia
atribuído o mais alto valor às obras da lei, mas na ocasião da conversão um fardo
pesado caiu de seus ombros204.
Segundo Käsemann, a justificação pela fé não limita a salvação a um
determinado grupo de pessoas com tradições legais exclusivistas, mas trata com o
mundo todo e não somente para pessoas piedosas, ampliando o conceito que era
disseminado pela tradição rabínica205. A justificação de Abraão não serviu para um
fim em si próprio, mas apontava para frente, o futuro longínquo, independente do
estabelecimento da lei.
Para Pohl, o judaísmo fazia esta conexão com o futuro, porém com base
na lei: “Também o judaísmo tocava, em conexão com Abraão, na dimensão do
futuro, ao falar dele como sendo o ‘herdeiro do mundo’ (cf v 13). Ocasião e garantia
dessas promessas grandiosas de Deus teriam sido sua impecável obediência à
lei”206. A justiça pela lei tem como base o que o homem tem e é, não o que recebe
como justiça de Deus207.
Os judeus se apropriaram da lei e colocaram sua confiança absoluta nela
em vez de apoiarem-se em Deus; orgulhavam-se por possuírem a lei como povo de
Deus, servindo de empecilho para alcançar o verdadeiro objetivo da lei. O zelo
demasiado fazia com que eles confiassem em suas próprias obras e impedia que
eles alcançassem a justificação para qual a lei aponta208.
Paulo precisava reverter essa visão em prol do seu argumento em relação
à justificação pela fé. Por isso questiona como seria se a promessa feita ao patriarca
dependesse do cumprimento de prescrições legais. O apóstolo afirma que seria
anulada a fé e a promessa cancelada, e o que seria evidenciado, seria de que o ser
humano estaria entregue à culpa por causa do pecado. A promessa só pode ser
eficaz se for baseada incondicionalmente na ordem da graça, por meio da fé209. A lei

204
RIDDERBOS, Herman. Op. cit., p. 142-5.
205
KÄSEMANN, Ernest. Op. cit., p. 144.
206
POHL, Adolf. Op. cit., p. 84.
207
RIDDERBOS, Herman. Op. cit., p. 189.
208
RIDDERBOS, Herman. Op. cit., p. 147-8.
209
POHL, Adolf. Op. cit., p. 84.

44
produz a ira quando violada e não conhece a graça, enquanto que a promessa é a
garantia da outorga da graça, portanto a promessa não foi por intermédio da lei210.
A ênfase exclusiva na fé contrastada com as obras da fé tem um
significado negativo à medida que a justificação é baseada naquilo que o homem é
ou realiza. Mas o apóstolo demonstra que o homem é justificado com base no que
não possui, porém pode receber por meio da fé. Contrasta o que é absolutamente
receptivo e dependente com o que é produtivo211.
Para Sanders, a questão da alegação de Paulo se os herdeiros de Abraão
são os da lei, não tem sentido a fé, demonstra “que a negação da lei como meio
para a justificação é dirigida contra a condição privilegiada, não contra o orgulhar-se
das ações meritórias” 212.
Sanders é um dos defensores da chamada "nova perspectiva" sobre Paulo
e a lei de Moisés, em que é descartada a interpretação tradicional de que Paulo e o
Novo Testamento nos apresentam o judaísmo daquele período como uma religião
legalista. Conseqüentemente, surgiram várias novas interpretações para explicar a
polêmica de Paulo contra a lei. A abordagem sociológica de Dunn é a que tem sido
mais aceita: Paulo combate as obras da lei não porque expressam legalismo, mas
porque "obras da lei" para Paulo se referem aos emblemas característicos do
judaísmo (leis dietárias, sábado, e circuncisão), os quais enfatizam a separação
entre judeus e gentios que Cristo aboliu213.
Sanders, como também Dunn, defende que a justificação ocupa espaço na
teologia paulina como tema secundário e que deve ser reavaliado214, afirmando que
“não há nenhuma indicação de que Paulo tenha pensado que a lei falhara porque a
sua observância levaria à atitude errônea ou de que a sua oposição à vanglória
explique sua afirmação de que a justificação não é pela lei”. Enfatiza que o contexto
anterior e posterior do capítulo quatro afirmam que todos pecam e conclui que o que
está por trás da “objeção de Paulo à justificação pela lei nesta secção é o fato

210
MURRAY, John. Op. cit., p. 168.
211
RIDDERBOS, Herman. Op. cit., p. -3.
212
SANDERS, E. P. Op. cit., p. 55.
213
STUHLMACHER, Peter. Lei e graça em Paulo: uma reafirmação da doutrina da
justificação. São Paulo: Vida Nova, 2002, p. 8-9.
214
Ibidem, p. 9-12.

45
universal da transgressão” 215.
Sanders continua seu argumento afirmando que as afirmações paulinas da
iniqüidade universal são notavelmente inconsistentes, alegando que o capítulo dois
não combina com o capítulo cinco, pois aquele diz que a mesma lei julga a todos,
enquanto que este diz que, durante o período de Adão a Moisés, o pecado levou à
morte mesmo sem a lei. “A transgressão levou à condenação mesmo entre Adão e
Moisés (5.14-18)”. Acusando a argumentação de Paulo de inconsistente, defende a
tese de que a dificuldade de praticar a lei não é o fundamento para a justificação
pela fé216.
Segundo Dunn, a justificação pela fé é um tema considerado importante
tanto para católicos como para protestantes, porém esta ênfase trouxe
conseqüências negativas como o antijudaísmo. Afirma que “como Lutero havia
rejeitado uma igreja medieval que oferecia a salvação por mérito e as boas obras, a
mesma coisa era verdadeira, assim se supunha, para Paulo em relação ao judaísmo
do seu tempo”217.
Para Moody, a escolha do legalismo como base para conquistar a herança
do mundo e agradar a Deus “significa abandonar a fé e a promessa que nela se
baseia”218. Pohl reforça que a graça de Deus é dada sem lei e uma experiência
caracterizada pela alegria que causa: “pois, para recebê-la, não existe, por parte do
receptor, nem pressuposto, nem preparo, nem expectativa. Ela sobrevém como
presente puro. Ela jorra surpreendentemente do mundo de Deus sobre nós, como
Criação do alto (v 17)”219.
Para Käsemann, não é a lei de Moisés o fundamento para interpretar a
justificação de Abraão, o que tornaria Deus exclusivo para a nação israelita,
contrariando, assim, a promessa de que em Abraão seriam benditas todas as
nações da terra220. O apóstolo contesta a doutrina do judaísmo que afirmava ser
Abraão é o pai de todos os judeus e prosélitos, e inverte seu sentido ao afirmar ter
Abraão se tornado participante da aliança de Deus antes da lei, sendo portanto, o

215
SANDERS, E. P. Op. cit., p. 56.
216
Ibidem, p. 56-7.
217
DUNN, James D. G. Op. cit., p. 389.
218
MOODY. Op. cit. p. 22.
219
POHL, Adolf. Op. cit., p. 84
220
KÄSEMANN, Ernest. Op. cit., p. 144.

46
pai de todos os que crêem, independente da lei221.
Não quer dizer com isso que Paulo havia rompido com os apóstolos judeu-
cristãos, mas mesmo não havendo consenso pleno, jamais rompeu com eles. O
evangelho de Cristo, para eles, era mais importante do que “questões particulares de
soteriologia e ética”. Porém Paulo entendeu que o chamado de Deus para sua vida
era, em especial, aos gentios222, conhecidos como “os sem lei”, mas justificados por
meio de Cristo Jesus.
Moody argumenta bem ao dizer que a promessa é baseada na fé para que
seja entendido que ela é dada como um favor e não como uma retribuição de algo
que Abraão tenha feito, além de ser para toda sua descendência e sem exigência, a
não ser a mesma fé exemplar de Abraão223.
Paulo faz uma releitura dos textos do Antigo Testamento e, ao contrário do
que se propagava, apresenta argumentos para a renúncia a todas possibilidades
humanas de justificação e a busca da intervenção redentora de Deus224. Fica claro
que a justificação de Abraão não tinha nada a ver com a lei e que Deus justifica
judeus e gentios sobre a mesma base, a fé, independe da obediência à lei, nem a
promessa se restringe aos que são “da lei” 225.
O conteúdo histórico-redentor da doutrina de Paulo demonstra que a única
base para a justificação é a morte e ressurreição de Cristo, sendo que Jesus é o fim
da lei para justificação de todo aquele que crê (Rm 10.4). Com isso, é possível
compreender nossa insuficiência, culpa e dependência da graça de Deus226.
Os judeus deveriam ter deixado de procurar estabelecer a sua própria
justiça pela prática da lei porque por ela ninguém será justificado, visto que todos,
judeus e gentios, estão debaixo do pecado. Antes, eles deveriam ter se submetido à
justiça de Deus crendo em Cristo. Cristo, sim, realizou aquilo que é impossível aos
homens, para obter-lhes a justiça, a qual ele lhes oferece gratuitamente pela fé, à
parte das obras da lei. Os judeus deveriam, portanto, ter compreendido que Cristo,

221
Ibidem, p. 141.
222
STUHLMACHER, Peter. Op. cit., p. 80.
223
MOODY. Comentário bíblico Moody: Romanos à Apocalipse. São Paulo: Editora
Batista Regular, 2001, vol. 5., p. 22.
224
RIDDERBOS, Herman. Op. cit., p. 193.
225
SANDERS, E. P. Op. cit., p. 55.
226
RIDDERBOS, Herman. Op. cit., p. 194-5.

47
para aquele que crê, põe um fim a esta maneira errônea de buscar a justiça pelas
obras da lei.
Conforme já parcialmente mencionado, Paulo não está afirmando que a lei
foi abolida, nem que Cristo é o alvo da lei, nem que a exclusividade da lei foi posta
de lado. Ele está tratando, a partir da perspectiva da experiência dos crentes, do
problema do legalismo dos judeus: Cristo, para o crente, é o fim do legalismo.

48
4. O EXEMPLO DE ABRAÃO DEMONSTRA QUE A JUSTIFICAÇÃO É
PARA TODOS E SOMENTE POR MEIO DE CRISTO - V. 17-25

Paulo preparou todas as explicações anteriores para chegar a esse ponto,


demonstrar que a justificação de Abraão está relacionada com Jesus e com sua obra
na cruz, a qual é meritória e capaz de justificar todo aquele que crê.
A afirmação da justificação de Abraão em Gênesis 15.6 deve ser aplicada
ao presente, pois a intenção e a base de justificação continua a mesma227.
Entretanto Käsemann faz uma afirmação polêmica para o cristianismo, pois diferente
do que geralmente se ouve ou se escreve no meio cristão, argumenta que seria
absurdo afirmarmos que a justificação é possível somente após a morte de Cristo:

A escolha do patriarca como exemplo e protótipo seria absurda, se devêssemos limitar a


possibilidade da justiça de Deus ao tempo posterior à crucificação de Cristo.
Simultaneamente, o apelo, característico do Apóstolo, ao Antigo Testamento perderia todo
o significado teológico positivo, de modo que, a exemplo de Marcião, seria necessário tirar
228
as conseqüências em relação ao cânon .

Argumenta, ainda, que Paulo não considera como necessário uma


continuidade cronológica da história da salvação por meio de uma transição de
Israel, como filhos de Abraão, segundo a carne, para o cristianismo. Portanto, não
separou a fé da história universal:

Paulo não atesta uma continuidade perceptível e humanamente ininterrupta entre Abraão
e Cristo, que se possa enquadrar na fórmula teológica de promessa e cumprimento.
Finalmente não passa de um postulado dizer que Abraão teve de acreditar por causa da
ratificação escatológica da promessa. Neste caso ele perderia a historicidade e ficaria
reduzido a um número enigmático em um plano de salvação reconstruído por gnósticos.
Deve-se ter por certo, de ambos os lados, que o Apóstolo não separou a fé da história
universal. Mas seria um grosseiro mal-entendido, de um lado, atomizar as decisões da fé
e eliminar, mediante uma amputação teológica, o problema de Israel, em torno do qual
Paulo lutou tão duramente, e, de outro, definir a fé como um confiar por princípio na
229
história, considerando a história como fundamento elementar da fé.

Esta afirmação de Käsemann torna desafiante e motivadora o

227
SANDERS, E. P. Paulo, a lei e o povo judeu. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, p. 55.
228 a
KASEMANN, Ernest. Perspectivas paulinas. 2 edição. São Paulo: Teológica, 2003, p.
136.
229
Ibidem, p.144.

49
desenvolvimento desta pesquisa.

4.1 A Justificação é para todos - v. 17-22a

Nas seções anteriores, ainda que de forma secundária, foi abordado este
tema, principalmente quando foi afirmado que a justificação pela fé não está
baseada em ritos externos como a circuncisão, ou na obediência a preceitos da lei
mosaica. Nessas seções, por algumas vezes, foi demonstrado nas afirmações de
que Abraão foi justificado antes de ser circuncidado e antes da lei o torna pai de
todos os que crêem, independente de nacionalidade ou religião. Porém é a partir do
versículo dezessete que é dada uma ênfase maior neste tema.
Käsemann afirma que o apóstolo Paulo em defesa da doutrina da
justificação pela fé, faz oposição à tradição judaica atacando o ponto central da
defesa do judaísmo, onde julgavam ser invencíveis, que coloca Abraão como o pai
de todos os judeus. O apóstolo atribui a Abraão o título de pai da fé de todo aquele
que crê em Cristo e não somente e exclusivamente de uma nação. Afirma que este
é o cerne da teologia paulina230. “É a fé em Jesus Cristo, que é acessível a todos,
que exclui o vangloriar-se de condição privilegiada” 231.
Outro argumento, considerado forte, utilizado pelo judaísmo em defesa de
sua fé, era o “direito” exclusivo de interpretação da escritura. Porém, com o
argumento paulino, fica clara a liberdade real do cristão sobre a escritura, bem como
em relação ao patriarca232. Pois no versículo dezessete novamente ele recorre às
Escrituras – “como está escrito” – para confirmar sua argumentação de que Abraão
é pai de todos os que crêem, sem discriminação233, de todas as nações, como
herdeiros da promessa feita a Abraão.
Quando Paulo cita que Deus faz viver os mortos, Pohl recorre a Hb 11.19 e
relembra o acontecimento de Moriá. Deus ordenando o sacrifício de Isaque e Abraão
obedecendo mesmo sabendo que nele havia sido feita a promessa de posteridade.
Esta compreensão e crença de Abraão de que Deus era poderoso para fazer reviver

230
Ibidem, p. 132.
231
SANDERS, E. P. Op. cit., p. 53.
232
Ibidem, p. 132-3.
233
MURRAY, John. Romanos: comentário bíblico fiel. São Paulo: Editora Fiel, 2003, p.
172.

50
o seu filho que é importantíssima para fazer uma conexão de sua fé com a do
cristianismo234. “Essa fé é definida em sua forma presente que veio com Cristo,
como fé naquele que ressuscitou Jesus Cristo, dentro os mortos”235.
Bruce quando se refere à expressão “o Deus que vivifica os mortos”,
diferente de Pohl, afirma que se trata de “uma designação geral de Deus na devoção
judaica”, mas que é utilizada neste versículo por Paulo para se referir ao próprio
corpo de Abraão e Sara, já amortecidos biologicamente236. Diferente de Murray que
afirma ser esta frase utilizada como referência a fé de Abraão no poder de Deus
para dar vida, mesmo aos mortos237.
Bruce afirma que a expressão “e chama à existência as coisas que não
existem”, refere-se às muitas nações que descenderam de Abraão e ainda não
existiam238, enquanto Murray informa que existem várias interpretações, mas o
importante é ressaltar que Abraão tinha tanta certeza de que a promessa de Deus ia
ser cumprida, que se considerava como se já havia sido concretizada e descansou
em Deus239.
Entretanto Abraão e Sara não possuíam condições humanas para o
cumprimento da promessa, por isso a expressão “esperando contra a esperança”. A
fé de Abraão levou em conta a onipotência e a fidelidade de Deus240.
O apóstolo Paulo ao escrever que Abraão não fraquejou na fé, não quer
dizer que ele jamais sentiu fraqueza, mas que a superou, ao afirmar que embora
levasse em conta seu próprio corpo amortecido, pois tanto ele como sua esposa
eram fisicamente incapazes de gerar filhos, a credibilidade em Deus continuou
sendo a realidade prioritária para ele241. Ao contrário, Abraão se fortaleceu na fé ou
confiança242. Não deixou que esses fatos avolumassem em seus pensamentos a
ponto de abalar sua fé na promessa de Deus243. Com esta atitude Abraão glorificou

234
POHL, Adolf. Carta aos romanos. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1999, p. 86.
235
RIDDERBOS, Herman. A teologia do apóstolo Paulo: a obra definitiva sobre o
pensamento do apóstolo dos gentios. Editora Cultura Cristã, 2004, p. 193.
236
BRUCE, F.F. Romanos: introdução e comentário. São Paulo: Editora Vida Nova, 2004,
p. 96.
237
MURRAY, John. Op. cit., p. 172.
238
BRUCE, F.F. Op. cit., p. 96.
239
MURRAY, John. Op. cit., p. 172-3.
240
Ibidem, p.173-4.
241
POHL, Adolf. Op. cit., p. 86-7.
242
MOODY. Op. cit., p. 23.
243
MURRAY, John. Op. cit., p. 176.

51
a Deus244.
Paulo diz que Abraão estava convencido de que o Deus que havia
prometido a ele uma descendência era poderoso para cumprir. Moody observa que o
verbo ”prometer” está no perfeito, significando que Abraão estava na posse da
promessa, “tão grande era sua convicção de que a promessa se realizaria. E este
era o tipo de fé creditado a Abraão como justiça” 245.
Käsemann argumenta que Paulo não considera como necessário uma
continuidade cronológica da história da salvação por meio de uma transição de
Israel, como filhos de Abraão, segundo a carne para o cristianismo: “Paulo não
atesta uma continuidade perceptível e humanamente ininterrupta entre Abraão e
Cristo, que se possa enquadrar na fórmula teológica de promessa e cumprimento”246.
Portanto, não separou a fé da história universal.
A afirmação de Käsemann parece lógica e real, a salvação não originou da
nação de Israel, pois a promessa física foi da formação de um povo e a espiritual,
que inclui a justificação e salvação, foi feita a todos os povos.

4.2 A justificação é possível somente por meio de Cristo – v. 22b-25

Nos últimos versículos do capítulo finalmente é revelado definitivamente o


público alvo de tudo o que foi escrito sobre o patriarca Abraão: a comunidade
cristã247. Estes versículos finais destacam a fé exercida por Abraão e seu alcance.
De acordo com o exemplo de Abraão explicitado por Paulo, todos os que crerem
como ele serão igualmente justificados pela fé248.
Bruce afirma que o versículo 25 provavelmente tenha se originado de uma
confissão de fé primitiva e que o verbo “entregar-se” (paradidomi/paradidomi)
ocorre duas vezes no capítulo 53 de Isaías, podendo indicar que a linguagem usada
por Paulo foi baseada neste texto do profeta249.
Segundo Pohl, não existe somente uma concordância entre os cristãos e o

244
RIDDERBOS, Herman. Op. cit., p. 193.
245
MOODY. Op. cit., p. 22.
246
Ibidem, p. 144.
247
MOODY. Op. cit., p. 88.
248
MURRAY, John. Op. cit., p. 179.
249
BRUCE, F.F. Op. cit., p. 96.

52
patriarca, pois ambos crêem naquele que tem poder para ressuscitar mortos250. O
apóstolo aproveita para enfatizar que Deus não somente ressuscitou o Senhor
Jesus, mas que o motivo pelo qual ele foi ressuscitado, a nossa justificação, a saber,
de todos que crêem nele e na sua ressurreição, circuncidados ou não.
Stuhlmacher concorda com a afirmação de Käsemann citada
anteriormente, afirmando, também, que Abraão é um protótipo da fé cristã que crê
no Deus que ressuscitou Jesus dentre os mortos e cita a Epístola de Romanos 4.23-
25 como argumentação251. Porém fica evidente que as circunstâncias da fé
cristã não poderão ser idênticas às de Abraão, pois o contexto é outro. O
objeto da fé cristã é explicitado pelo apóstolo, a fé naquele que ressuscitou
Jesus dentre os mortos. Paulo faz a relação com a fé de Abraão ao afirmar
que ele cria no Deus que tinha poder para vivificar mortos252.
Porém Moody, como também Stott253 diferenciam a fé de Abraão da
fé do cristão atual, pois ele confiou sem um exemplo ou um acontecimento
anterior semelhante para comprovar o poder de Deus, diferente dos que
vivem depois da morte e ressurreição de Jesus, portanto, depois do fato
consumado254. Portanto, para o cristão atual é mais razoável crer do que foi
para Abraão255.
Segundo Stuhlmacher: “de acordo com Paulo, Israel foi eleito para
justificação por intermédio de Jesus, o Cristo, já em Abraão”256. Nele e por meio dele,
Deus efetuou a justificação tanto de Judeus como gentios. Continua afirmando que a
salvação por meio de Jesus é historicamente anterior à fé: “Cristologicamente, Paulo
sustenta que a obra divina da salvação em Cristo e por meio dele é historicamente
anterior à fé que as pessoas depositam em Jesus Cristo. Antes mesmo que os
pecadores pudessem imaginar, Deus já havia feito expiação por eles e havia feito de
Cristo a garantia de sua justificação ( cf. Rm 4.25; 5.6-8)” 257.

250
POHL, Adolf. Op. cit., p. 88.
251
STUHLMACHER, Peter. Op. cit., p. 80.
252
MURRAY, John. Op. cit., p. 179.
253
STOTT, John. Romanos. São Paulo: ABU editora, 2000, p. 154.
254
MOODY. Op. cit., p. 22.
255
STOTT, John. Op. cit., p. 158.
256
MOODY. Op. cit., p. 37.
257
Ibidem, p. 76.

53
Contesta, portanto, a afirmação de Käsemann citada na introdução deste
capítulo de que seria absurdo afirmarmos que a justificação é possível somente após
a morte de Cristo.
Entretanto, Ridderbos afirma que a base para absolvição no julgamento
divino é a morte de Cristo. Segundo ele, até Cristo Deus não havia dado o castigo
devido pelos pecados de todas gerações anteriores, portanto reteve seu julgamento,
mas fez de Cristo o meio de propiciação mediante sua morte, após ter ajuntado os
pecados do mundo e lançado sobre Cristo e por meio de sua ressurreição ocorreu a
justificação da humanidade, a saber, dos que crêem em Jesus Cristo e sua
ressurreição258.
Na morte de Cristo Deus demonstra o julgamento justo e na sua
ressurreição a prova de sua justiça. A idéia legal de um ambiente forense é
demonstrada no fato de Cristo ao sofrer a morte de cruz tornou-se maldição em
nosso lugar, ele que sem pecado, foi feito pecado por nós, para que nele fossemos
feitos justiça de Deus. Aqueles que estão em Cristo pela fé são absolvidos no
julgamento de Deus259.
Cristo morreu pela humanidade não como um estranho, mas como Filho de
Deus que encarnou em forma humana com o propósito de morrer em lugar do ser
humano para que este pudesse receber a justiça de Deus pelo seu sacrifício. É,
portanto, o antítipo do primeiro Adão pelo seu ato de justiça pela obediência de
entrega de si mesmo à morte para revelar o julgamento justo e justificador de Deus
no sentido escatológico da palavra, tornando todos uma unidade corporativa com
ele260.
Murray apresenta duas alternativas para interpretar o versículo 25. A
primeira afirma que em relação à morte e ressurreição de Cristo, a nossa justificação
foi concretizada antes mesmo da ressurreição, e esta é conseqüência da
justificação, que precisa ser compreendida como equivalente à reconciliação e a
propiciação, consumada de uma vez por todas. A segunda que a morte para fazer a
expiação de nossos pecados e a sua ressurreição para nossa justificação. Porém
conclui a questão dizendo ser mais apropriado considerar os dois fatos como

258
RIDDERBOS, Herman. Op. cit., p. 187-8.
259
RIDDERBOS, Herman. Op. cit., p. 189.
260
RIDDERBOS, Herman. Op. cit., p. 191.

54
inseparáveis da obra da redenção, tanto a morte como a ressurreição261.
Ressalta que o apóstolo, neste contexto, enfatiza as ações de Deus
Pai, pois o versículo 24 afirma que a justificação se dá pela fé naquele que
ressuscitou Jesus dentre os mortos, que lança em nossa conta a justiça
conquistada por Cristo pela sua morte e ressurreição262. O mesmo Deus que
creditou fé a Abraão como justiça creditará a todos que crerem no Deus que
ressuscitou a Cristo dentre os mortos263.

261
MURRAY, John. Op. cit., p. 181.
262
Ibidem, p.182-3.
263
STOTT, John. Op. cit., p. 156.

55
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os argumentos apresentados nesta pesquisa demonstram que o


pensamento paulino teve uma evolução através do tempo e que foi influenciado por
literaturas anteriores e a medida em que novas situações históricas são enfrentadas
são desenvolvidas novas afirmações em resposta e, conseqüentemente,
sistematizando a sua doutrina.
A composição da igreja em Roma também foi outro fator importante
apontado, pois ficou demonstrado que a igreja era composta em sua maioria por
gentios, mas que tinham uma certa influência dos judeu-cristãos que traziam para o
meio cristão algumas crenças do judaísmo e tentavam impor também aos demais
membros da igreja.
Ficou demonstrado que Abraão é uma figura bem adequada para a
explicação paulina da doutrina da justificação pela fé, pois por meio de seu exemplo
Paulo provou que a justificação não se dá por obras meritórias, rituais religiosos,
pela própria religião, pela imposição de regras, mas unicamente pela fé no Deus que
ressuscitou Jesus e crê que a obra de Cristo é suficiente para justificar o ímpio
diante de Deus.
Inicialmente a figura de Abraão, considerado como o pai da nação judaica,
foi usada para combater o ensinamento judaico de que o homem poderia se justificar
diante de Deus por obras meritórias. Se tivesse alguém que pudesse ser justificado
por obras, Abraão o seria, com toda certeza. Mas o apóstolo contrapõe a justificação
pelas obras citando o livro de Gênesis (15.6) que afirma ter sido Abraão justificado
pela fé, e não pelas obras. Assim Abraão recebeu o favor de Deus, e não recebeu
um salário devido por serviço prestado ao Senhor.
Com estas argumentações sobre a figura de Abraão, Paulo demonstra que
a justificação não se dá por meio de obras meritórias do ser humano por mais
significativas que possam parecer, mas pela fé no Deus que tem poder para perdoar
pecados, sendo que nisso que se constitui a verdadeira felicidade conforme exemplo
citado de Davi.
A argumentação apresentada nesta pesquisa demonstra que Abraão não
foi considerado justo diante de Deus por obras meritórias, ou seja, por ter realizado

56
algo que o fizesse merecedor de tal justificação, pois não há obra humana que
possa o justificar ou que seja motivo de se gloriar diante de Deus.
O exemplo de Abraão serve para os dias atuais, pois o ser humano não
pode confiar em suas próprias obras, mas deve estar ciente que é justificado pela
graça de Deus, mediante a confiança nas promessas de Deus. Se houver confiança
incondicional na palavra de Deus, as promessas divinas se concretizarão e o que
parece impossível, Deus poderá tornar realidade.
Paulo retorna à figura de Abraão para demonstrar que a justificação não
se dá por meio de rituais religiosos, para isso, prova que não há relação entre a
circuncisão, que é um ritual religioso, com a justificação pelo fato de que o patriarca
foi justificado pela fé, muito antes de ter se circuncidado. Sendo esse ritual uma
conseqüência, selo da fé, e não causa da justificação.
Da mesma forma o cristão atual também não pode depositar sua confiança
na sua denominação, no líder da igreja, ou em rituais criados pelo homem, mas
unicamente na fé em Jesus Cristo e na sua ressurreição. É necessário ter uma
transformação de vida, ter o coração “circuncidado“, ou melhor, mudança interior e
não exterior. O salvo não está sob a lei religiosa de Israel, que apontava para o
Messias, e que foi cumprida em Cristo, e não o prende sob nenhuma de suas
ordenanças cerimoniais, uma vez que está sob a graça do evangelho de Cristo.
Em seguida, a figura de Abraão é utilizada para demonstrar que a
justificação não se dá pela lei, pois ela havia recebido as promessas de Deus antes
que houvesse uma nação Judaica e a lei mosaica. Portanto, estas promessas não
dependem da lei, mas da fé, de crer em Deus. O pai dos judeus foi justificado pela
fé. Como, então, os gentios seriam justificados? Pela lei? Não! Eles também podem
ser salvos pela fé.
O problema do legalismo não foi só do judeu no passado, mas está sempre
presente como uma tentação para os cristãos atuais. É comum hoje encontrar
crentes legalistas que não se dão conta da incoerência de suas posições, confiam
em Cristo como Salvador, mas sentem que precisam fazer algo para merecer a sua
salvação. Pastores se debatem contra o legalismo evangélico de suas ovelhas,
parece que a doutrina legalista do romanismo, entre outras, ainda influencia a vida
de fé dos convertidos. Problemas de depressão espiritual têm, por vezes, como raiz
uma apreensão defeituosa e distorcida da justificação pela fé. Ademais, na

57
evangelização do povo brasileiro é imprescindível focalizar que Cristo põe fim à
tendência humana de pensar que se pode "comprar" com obras a eterna salvação.
Na parte final do capítulo, a figura de Abraão comprova que a doutrina da
justificação pela fé garante a salvação para todos os que crêem, indistintamente, e
aponta para o ápice da salvação da humanidade, Jesus Cristo. Nessa altura, a
explicação paulina da justificação deixa clara a ligação do exemplo de Abraão com a
obra salvadora de Cristo. Todos os que crerem como Abraão serão igualmente
justificados pela fé no poder de justificação da morte e ressurreição de Cristo que
liberta o ser humano do poder do pecado. Portanto, a doutrina da justificação pela fé
não deixa dúvida que o único meio de salvação é a confiança na obra de Cristo,
aceita por Deus, e outorgada a todo que nele crê.
Enfim, o exemplo de Abraão utilizado por Paulo esclarece aos cristãos em
Roma de sua época a dúvida que havia surgido no meio da igreja por meio do
ensino dos legalistas de origem judaica que pretendiam levá-los a ter uma vida de
religiosidade e confiança nas suas obras meritórias. Deixa claro que a salvação é
somente pela fé em Jesus Cristo, e não numa religião, não em uma nacionalidade,
nem em qualquer obra do homem. O apóstolo Paulo utiliza o exemplo de Abraão
para demonstrar que nem mesmo ele, personagem muito respeitado pelos judeus,
foi justificado pelas suas obras, e de forma didática demonstra que a fé em Cristo e
em sua obra é o único meio de justificação do ímpio e de livramento da ira futura de
Deus.

58
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