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HENRY DAVID THOREAU

A DESOBEDIÊNCIA
CIVIL

Tradução de
Sergio Karam

LPM

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A Desobediência Civil cito permanente é apenas um braço do governo
permanente. O governo em si, que é apenas a
maneira escolhida pelo povo para executar sua
vontade, está igualmente sujeito ao abuso e à
perversão antes que o povo possa agir por meio
dele. Basta pensar na atual guerra mexicana1,
obra de uns poucos indivíduos que usam o go-
verno permanente como seu instrumento, pois,
de início, o povo não teria consentido nesta me-
dida.
O que é este governo americano senão
uma tradição, embora recente, que se empe-
nha em passar inalterada à posteridade, mas
que perde a cada instante algo de sua integri-
“O melhor governo é o que governa me- dade? Não possui a vitalidade e a força de um
nos” — aceito entusiasticamente esta divisa único homem vivo, pois pode dobrar-se à von-
e gostaria de vê-la posta em prática de modo tade deste homem. É uma espécie de arma de
mais rápido e sistemático. Uma vez alcançada, brinquedo para o povo, mas nem por isso me-
ela finalmente equivale a esta outra, em que nos necessária, pois o povo precisa ter algum
também acredito: “O melhor governo é o que tipo de maquinaria complicada, e ouvir sua al-
absolutamente não governa”, e quando os ho- gazarra, para satisfazer sua idéia de governo.
mens estiverem preparados para ele, será o tipo Assim, os governos demonstram até que ponto
de governo que terão. Na melhor das hipóteses, os homens podem ser enganados, ou enganar
o governo não é mais do que uma conveniência, a si mesmos, para seu próprio benefício. Isto é
embora a maior parte deles seja, normalmen- excelente, devemos todos concordar. E no en-
te, inconveniente — e, por vezes, todos os go- tanto, este governo, por si só, nunca apoiou
vernos o são. As objeções levantadas contra a qualquer empreendimento, a não ser pela rapi-
existência de um exército permanente — e elas dez com que lhe saiu do caminho. Ele não man-
são muitas e fortes e merecem prevalecer — tém o país livre. Ele não povoa o Oeste. Ele não
podem afinal ser levantadas também contra a educa. O caráter inerente ao povo americano
existência de um governo permanente. O exér- é que fez tudo o que foi realizado, e teria feito

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ainda mais se o governo não houvesse às vezes decida em todos os casos não pode se basear
se colocado em seu caminho. Pois o governo é na justiça, nem mesmo na justiça tal qual os ho-
uma conveniência pela qual os homens conse- mens a entendem. Não poderá existir um gover-
guem, de bom grado, deixar-se em paz uns aos no em que a consciência, e não a maioria, deci-
outros, e, como já se disse, quanto mais conve- da virtualmente o que é certo e o que é errado?
niente ele for, tanto mais deixará em paz seus Um governo em que as maiorias decidam ape-
governados. Se não fossem feitos de borracha, nas aquelas questões às quais se apliquem as
o comércio e o tráfico em geral jamais conse- regras de conveniência? Deve o cidadão, sequer
guiriam superar os obstáculos que os legislado- por um momento, ou minimamente, renunciar
res continuamente colocam em seu caminho. à sua consciência em favor do legislador? Então
E se tivéssemos que julgar estes homens intei- por que todo homem tem uma consciência?
ramente pelos efeitos de seus atos, e não, em Penso que devemos ser homens, em primeiro
parte, por suas intenções, eles mereceriam ser lugar, e depois súditos. Não é desejável cultivar
punidos tanto quanto aquelas pessoas nocivas pela lei o mesmo respeito que cultivamos pelo
que obstruem as ferrovias. direito. A única obrigação que tenho o direito
Porém, para falar de modo prático e de assumir é a de fazer a qualquer tempo aquilo
como um cidadão, ao contrário daqueles que que considero direito. É com razão que se diz
chamam a si mesmos de antigovernistas, eu que uma corporação não tem consciência, mas
clamo não já por governo nenhum, mas imedia- uma corporação de homens conscientes é uma
tamente por um governo melhor. Deixemos que corporação com consciência. A lei jamais tor-
cada homem faça saber que tipo de governo nou os homens mais justos, e, por meio de seu
mereceria seu respeito e este já seria um passo respeito por ela, mesmo os mais bem-intencio-
na direção de obtê-lo. nados transformam-se diariamente em agentes
Afinal, a razão prática por que se permite da injustiça. Um resultado comum e natural do
que uma maioria governe, e continue a fazê-lo indevido respeito pela lei é que se pode ver
por um longo tempo, quando o poder finalmen- uma fila de soldados — coronel, capitão, cabo,
te se coloca nas mãos do povo, não é a de que soldados rasos, etc. — marchando em direção
esta maioria esteja provavelmente mais certa, à guerra em ordem admirável através de mor-
nem a de que isto pareça mais justo para a mi- ros e vales, contra as suas vontades, ah!, contra
noria, mas sim a de que a maioria é fisicamente suas consciências e seu bom senso, o que torna
mais forte. Mas um governo no qual a maioria esta marcha bastante difícil, na verdade, e pro-

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duz uma palpitação no coração. Eles não têm da árvore, da terra e das pedras. E talvez se pos-
dúvida alguma de que estão envolvidos numa sam fabricar homens de madeira que sirvam
atividade condenável, pois todos têm inclina- igualmente a tal propósito. Tais homens não
ções pacíficas. Então, o que são eles? Homens merecem respeito maior que um espantalho ou
ou pequenos fortes e paióis a serviço de algum um monte de lama. O valor que possuem é o
homem inescrupuloso no poder? Visitem o ar- mesmo dos cavalos e dos cães. No entanto, al-
senal da Marinha e contemplem um fuzileiro guns deles são até considerados bons cidadãos.
naval, alguém que o governo americano pode Outros — como a maioria dos legisladores, po-
fazer ou que um homem pode fazer com sua líticos, advogados, ministros e funcionários pú-
magia negra — uma mera sombra e reminiscên- blicos — servem ao Estado principalmente com
cia de humanidade, um homem amortalhado seu intelecto, e, como raramente fazem qual-
em vida, de pé, mas já sepultado em armas com quer distinção moral, estão igualmente pro-
acompanhamento fúnebre, pode-se dizer, em- pensos a servir tanto ao diabo, sem intenção de
bora também possa ocorrer que: fazê-lo, quanto a Deus. Uns poucos — como os
heróis, os patriotas, os mártires, os reformado-
“Não se ouviu nenhum tambor, nenhuma res no melhor sentido e os homens — servem
nota funeral, ao Estado também com sua consciência, e assim
Enquanto levávamos seu corpo para a trin- necessariamente resistem a ele, em sua maio-
cheira final;
ria, e são comumente tratados como inimigos.
Nem salva de adeus disparada por nenhum
soldado Um homem sábio só será útil como homem e
Sobre a tumba em que nosso herói foi enter- não se sujeitará ao papel de “barro” para “tapar
rado.” um buraco que impeça o vento de entrar”, mas
deixará esta tarefa, ao menos, para suas cinzas:
A grande maioria dos homens serve ao
Estado desse modo, não como homens propria- “Sou nobre demais para ser posse,
mente, mas como máquinas, com seus corpos. Ser um subalterno no comando,
Ou mesmo servo e instrumento útil
São o exército permanente, as milícias, os car-
A qualquer Estado soberano deste mundo.”
cereiros, os policiais, os membros da força ci-
vil, etc. Na maioria dos casos não há um livre Aquele que se dá inteiramente a seus se-
exercício seja do discernimento ou do senso melhantes parece-lhes inútil e egoísta; aquele,
moral, eles simplesmente se colocam ao nível

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porém, que a eles se dá parcialmente é conside- país inteiro é injustamente invadido e conquis-
rado um benfeitor e um filantropo. tado por um exército estrangeiro e submetido
De que modo convém a um homem com- à lei militar, penso que não é demasiado cedo
portar-se em relação ao atual governo america- para os homens honestos se rebelarem e darem
no? Respondo que ele não poderá associar-se início a uma revolução. O que torna este dever
a tal governo sem desonra. Não posso, por um ainda mais urgente é o fato de que o país invadi-
instante sequer, reconhecer como meu governo do não é o nosso mas é nosso o exército invasor.
uma organização política que é também gover- Paley3, para muitos uma autoridade em
no de escravos. questões morais, no capítulo que dedica ao
Todos os homens reconhecem o direito “Dever de Submissão ao Governo Civil”, reduz
de revolução, isto é, o direito de recusar lealda- toda obrigação civil a uma questão de conveni-
de ao governo, e opor-lhe resistência, quando ência e prossegue afirmando que “uma vez que
sua tirania ou sua ineficiência tornam-se insu- o interesse de toda a sociedade o exija, ou seja,
portáveis. Mas quase todos dizem que não é uma vez que não se pode resistir ao governo
este o caso no momento atual. Mas foi este o estabelecido ou mudá-lo sem inconveniência
caso, pensam, na Revolução de 752. Se alguém pública, é vontade de Deus que o governo es-
me dissesse que este é um mau governo porque tabelecido seja obedecido, e não mais que isto.
tributa determinadas mercadorias estrangeiras Admitindo-se este princípio, a justiça de cada
trazidas a seus portos, é bastante provável que caso particular de resistência reduz-se ao cál-
eu não movesse uma palha a respeito, já que culo da quantidade de perigo e ressentimento,
posso passar sem elas. Todas as máquinas têm de um lado, e da probabilidade e do custo de
seu atrito, e isto possivelmente tem um lado repará-lo, de outro”. A respeito disso, afirma,
bom que compensa o lado ruim. De qualquer cada homem terá que julgar por si próprio. Mas
modo, seria bastante nocivo fazer muito alvoro- Paley parece jamais ter contemplado os casos
ço por causa disso. Mas quando o atrito chega aos quais não se aplicam as regras de conveni-
ao ponto de controlar a máquina, e a opressão ência, em que um povo, tanto quanto um indi-
e o roubo se tornam organizados, digo que não víduo, deve fazer justiça, custe o que custar. Se
devemos mais ficar presos a tal máquina. Em injustamente arrebatei a tábua de salvação a
outras palavras, quando um sexto da população um homem que se afogava, devo devolvê-la a
de uma nação que se comprometeu a ser o abri- ele mesmo que me afogue. Isto, de acordo com
go da liberdade é formado por escravos, e um Paley, seria inconveniente. Mas aquele que sal-

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vasse sua própria vida, em tal caso, acabaria por a massa. Existem milhares de pessoas que se
perdê-la. Este povo deve deixar de ter escravos opõem teoricamente à escravidão e à guerra, e
e de fazer guerra ao México, mesmo que isso que, no entanto, efetivamente nada fazem para
lhe custe sua existência como povo. dar-lhes um fim; que, considerando-se filhos
Em sua prática, as nações concordam de Washington e Franklin, sentam-se com as
com Paley. Mas será que alguém pensa que o mãos nos bolsos e dizem não saber o que fazer,
estado de Massachusetts faz exatamente o que e nada fazem; que chegam a postergar a ques-
é direito na presente crise? tão da liberdade em nome da questão do livre
comércio, e, serenamente, após o jantar, lêem
“Uma meretriz de profissão, vestida de prata, as listas com as cotações de preços junto com
Ergue a cauda do vestido, as últimas notícias do México, possivelmente
Mas sua alma se arrasta no lodo.” dormindo sobre ambas. Qual é, hoje, a cotação
de um homem honesto e de um patriota? Eles
Falando de modo prático, os que se
hesitam, e lamentam, e às vezes suplicam, mas
opõem a uma reforma em Massachusetts não
não fazem nada a sério ou que seja eficaz. Es-
são os cem mil políticos do Sul, mas os cem
perarão, bem dispostos, que outros remediem
mil mercadores e fazendeiros daqui, que estão
o mal, para que não precisem mais lamentar. O
mais interessados no comércio e na agricultura
máximo que fazem, quando o direito lhes passa
do que na humanidade e não estão preparados
perto, é dar-lhe um voto barato, mostrando-lhe
para fazer justiça aos escravos e ao México, cus-
uma expressão débil e desejando-lhe felicida-
te o que custar. Não brigo com inimigos distan-
des. Há novecentos e noventa e nove defenso-
tes mas com aqueles que, aqui perto, cooperam
res da virtude para cada homem virtuoso. Mas
com os que estão longe e cumprem suas or-
é mais fácil lidar com quem verdadeiramente
dens, e sem os quais os últimos seriam inofensi-
possui algo do que com quem apenas o guarda
vos. Estamos acostumados a dizer que a massa
temporariamente.
dos homens é despreparada, mas o progresso é
Toda votação é uma espécie de jogo,
lento porque a minoria não é substancialmente
como o de damas ou o gamão, com um leve
mais sábia ou melhor do que a maioria. Não é
matiz moral, um jogo com o certo e o errado,
tão importante que a maioria seja tão boa quan-
com questões morais, naturalmente acompa-
to vós, mas sim que exista a bondade absoluta
nhado de apostas. O caráter dos votantes não
em alguma parte, pois isto fará fermentar toda
está em discussão. Dou meu voto, talvez, ao

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que considero direito, mas não estou vitalmen- país muitos indivíduos que não participam de
te interessado em que este direito prevaleça. convenções? Mas não: vejo que o homem res-
Disponho-me a deixar isto nas mãos da maioria. peitável, chamado a participar, imediatamente
A obrigação desta, portanto, jamais excede a se desvia de sua posição e passa a desesperar
da conveniência. Mesmo votar em favor do di- de seu país, quando este teria muito mais razões
reito é não fazer coisa alguma por ele. Significa para desesperar dele. Sem demora, adota um
apenas expressar debilmente aos homens seu dos candidatos assim escolhidos como o único
desejo de que ele prevaleça. Um homem sábio candidato disponível, provando, deste modo,
não deixará o direito à mercê do acaso, nem que ele próprio está disponível para quaisquer
desejará que ele prevaleça por meio do poder propósitos dos demagogos. Seu voto não tem
da maioria. Não há senão uma escassa virtu- mais valor que o de qualquer estrangeiro sem
de na ação de multidões de homens. Quando princípios ou o de algum mercenário nativo que
a maioria finalmente votar a favor da abolição tenha sido comprado. Oh, para um homem que
da escravidão, será porque esta lhe é indiferen- é homem e que, como diz meu vizinho, tem uma
te ou porque não haverá senão um mínimo de espinha nas costas que não se deixa dobrar!
escravidão a ser abolida por meio de seu voto. Nossas estatísticas são equivocadas: a popula-
Eles, então, serão os únicos escravos. Somente ção foi estimada em excesso. Quantos homens
o voto de quem afirma sua própria liberdade existem em cada mil milhas quadradas deste
através desse voto pode apressar a abolição da país? Apenas um, se tanto. A América não ofe-
escravidão. recerá nenhum incentivo aos homens para que
Ouço falar de uma convenção a ser rea- aqui se estabeleçam? O americano reduziu-se a
lizada em Baltimore, ou em algum outro lugar, um Sujeito Peculiar, que pode ser reconhecido
para a escolha de um candidato à Presidência, pelo desenvolvimento de seu órgão gregário e
formada principalmente por diretores de jor- pela manifesta ausência de intelecto e alegre
nais e políticos profissionais. Mas pergunto: autoconfiança; um sujeito cuja principal preo-
que importância tem para qualquer homem cupação, ao chegar ao mundo, é verificar se os
independente, inteligente e respeitável a deci- asilos de pobres estão em bom estado; e que,
são a que possam eles chegar? Não poderemos antes mesmo de ter legalmente vestido um uni-
ter, apesar disso, os benefícios de sua sabedo- forme varonil, já está coletando fundos para as
ria e honestidade? Não poderemos contar com viúvas e órfãos que possam porventura existir;
alguns votos independentes? Não existirão no em suma, alguém que só se aventura a viver

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através da ajuda da Companhia de Seguros Mú- sim, em nome da Ordem e do Governo Civil,
tuos, que prometeu enterrá-lo decentemente. somos levados, finalmente, a homenagear e a
Não é dever de um homem, na verdade, sustentar nossa própria vileza. Depois do pri-
devotar-se à erradicação de qualquer injustiça, meiro rubor do pecado vem a indiferença, e, de
mesmo a maior delas, pois ele pode perfeita- imoral, ela passa a ser, digamos, amoral, e não
mente estar absorvido por outras preocupa- inteiramente desnecessária à vida que levamos.
ções. Mas é seu dever, ao menos, lavar as mãos O erro mais óbvio e geral, para susten-
em relação a ela e, se não quiser mais levá-la tar-se, exige a virtude mais desinteressada.
em consideração, não lhe dar seu apoio em ter- A leve censura a que a virtude do patriotismo
mos práticos. Se me dedico a outras ocupações encontra-se normalmente sujeita é exercida,
e projetos, devo ao menos verificar, inicialmen- com mais probabilidade, pelos homens nobres.
te, se não o faço sentando sobre os ombros de Aqueles que, embora desaprovando o caráter e
outro homem. Devo sair de cima dele, antes de as medidas do governo, dão a ele sua lealdade
mais nada, para que também ele possa ocupar- e seu apoio, são indubitavelmente seus defen-
se de seus projetos. Vejam que gritante contra- sores mais conscienciosos e freqüentemente
dição se tolera. Ouvi alguns de meus concida- tornam-se os mais sérios obstáculos à reforma.
dãos afirmarem: “Gostaria que me mandassem Alguns dirigem-se ao Estado pedindo que este
ajudar a sufocar uma insurreição de escravos dissolva a União, que desconsidere as solicita-
ou marchar em direção ao México — vejam só ções do Presidente. Por que eles mesmos não
se eu iria!”. No entanto, estes mesmos homens, dissolvem a união que existe entre eles e o Es-
seja diretamente através de sua sujeição, ou tado e não se recusam a pagar sua cota ao Te-
indiretamente, pelo menos, através de seu di- souro? Não se mantêm, assim, em relação ao
nheiro, forneceram substitutos para si mesmos. Estado, do mesmo modo que o Estado em rela-
O soldado que se recusa a servir numa guerra ção à União? E não serão as mesmas razões que
injusta é aplaudido por aqueles que não se re- impediram o Estado de resistir à União que os
cusam a sustentar o governo injusto que faz a impedem de resistir ao Estado?
guerra, por aqueles cujos atos e autoridade ele Como pode um homem satisfazer-se com
negligencia e despreza, como se o Estado fosse apenas ter uma opinião e deleitar-se com ela?
penitente ao ponto de contratar alguém para Haverá nela algum deleite se sua opinião for a
castigá-lo enquanto peca mas não ao ponto de de que ele se sente lesado? Se teu vizinho te
deixar de pecar por um momento sequer. As- rouba um único dólar, não te contentarás em

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saber que foste roubado, ou em dizer que o fos- Pode-se pensar que a deliberada e eficaz
te, nem mesmo em pedir que ele pague o que negação de sua autoridade tenha sido a única
te deve, mas tomaras providências efetivas para ofensa jamais levada em conta pelo governo. De
obter de volta toda a quantia e, ao mesmo tem- outro modo, por que não lhe atribuiu ele uma
po, para que não sejas novamente roubado. A penalidade definida, adequada e proporcional?
ação baseada num princípio, a percepção e exe- Se um homem sem propriedade alguma recusa-
cução do direito, modifica coisas e relações; é se uma única vez a contribuir com nove xelins
essencialmente revolucionária e não condiz in- para o Estado, é aprisionado por um período
teiramente com nada que lhe seja anterior. Ela de tempo ilimitado por qualquer lei que seja de
não divide apenas Estados e Igrejas, mas tam- meu conhecimento, e determinado apenas pelo
bém famílias, ah!, divide o indivíduo, separando critério pessoal daqueles que ali o colocaram.
nele o diabólico do divino. Mas tivesse ele roubado ao Estado noventa ve-
Leis injustas existem: devemos conten- zes nove xelins, teria sido sem demora posto em
tar-nos em obedecer a elas ou esforçar-nos em liberdade.
corrigi-las, obedecer-lhes até triunfarmos ou Se a injustiça faz parte do atrito necessá-
transgredi-las desde logo? Num governo como rio à máquina do governo, deixemos que assim
este, os homens geralmente pensam que de- seja: talvez amacie com o passar do tempo, e
vem esperar até que a maioria seja persuadida certamente a máquina irá se desgastar. Se a in-
a alterá-las. Pensam que, se resistissem ao go- justiça tem uma mola, polia, cabo ou manivela
verno, o remédio seria pior que o mal. Mas é exclusivamente para si, talvez possamos ques-
culpa do próprio governo que o remédio seja, tionar se o remédio não será pior que o mal.
efetivamente, pior que o mal. É ele que o torna Mas se ela for de natureza tal que exija que nos
pior. Por que ele não está mais apto a antecipar tornemos agentes de injustiça para com os ou-
e proporcionar a reforma? Por que não trata tros, então proponho que violemos a lei. Deixe-
com carinho sua sábia minoria? Por que suplica mos que nossas vidas sejam um antiatrito capaz
e resiste antes de ser ferido? Por que não en- de deter a máquina. O que devemos fazer, de
coraja seus cidadãos a prontamente apontarem qualquer maneira, é verificar se não nos esta-
seus defeitos e a agirem melhor do que ele lhes mos prestando ao mal que condenamos.
pede? Por que sempre crucifica Cristo, exco- Quanto a adotar os meios que o Estado
munga Copérnico e Lutero e declara Washing- propiciou para remediar o mal, nada sei sobre
ton e Franklin rebeldes? eles. Levam tempo demais e a vida se esgotaria.

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Tenho outros assuntos com que me preocupar. o governo do Estado, uma vez por ano — não
Vim a este mundo não, principalmente, para fa- mais — na pessoa do coletor de impostos. Este
zer dele um bom lugar para se viver, mas para é o único modo pelo qual um homem na minha
viver nele, seja bom ou mau. Um homem não situação pode necessariamente encontrá-lo. E
tem que fazer tudo, mas algo, e não é porque então ele afirma claramente: “Reconheça-me”.
não pode fazer tudo que precisa fazer este algo E a maneira mais simples, mais efetiva e, no
de maneira errada. Não tenho maior obrigação atual estado de coisas, mais indispensável de
de enviar petições ao Governador ou à Legisla- tratar com ele sobre este assunto, de expressar
tura do que eles a mim, e, se não atenderem a nossa pouca satisfação e carinho em relação a
minhas solicitações, o que devo fazer? Mas nes- ele, então, é negá-lo. O coletor de impostos,
te caso o Estado não propicia solução alguma: o meu semelhante, é exatamente o homem com
mal está em sua própria Constituição. Isto pode quem tenho de tratar — pois, afinal, é com ho-
parecer rude, inflexível e hostil, mas é tratar mens que brigo e não com pergaminhos — e
com a máxima bondade e consideração o úni- ele escolheu voluntariamente ser um agente do
co espírito que pode apreciá-lo ou merecê-lo. governo. Como poderá ele saber, com certeza,
E assim o são todas as mudanças para melhor, o que é e o que faz como representante do go-
como o nascimento e a morte, que convulsio- verno, ou como homem, até que seja obrigado
nam o corpo. a decidir se irá tratar a mim, seu semelhante,
Não hesito em dizer que aqueles que se por quem tem respeito, como um homem bem-
autoproclamam abolicionistas deveriam, ime- intencionado e um seu semelhante, ou como
diata e efetivamente, retirar seu apoio pessoal um maníaco e perturbador da ordem, até que
ou econômico ao governo de Massachusetts, e seja obrigado a ver se tem condições de superar
não esperar até que se constituam em maioria este obstáculo a sua urbanidade sem um pen-
de um para só então obter o direito de predo- samento ou discurso mais rudes e impetuosos
minar. Penso ser suficiente que tenham Deus a correspondentes a sua ação? Estou certo de
seu lado sem que precisem esperar por aquele que se mil, se cem, se dez homens aos quais pu-
homem a mais. Além disso, qualquer homem desse nomear-se dez homens honestos apenas
mais justo que seus semelhantes já constitui — ah, se um homem HONESTO, neste Estado de
uma maioria de um. Massachusetts, deixando de manter escravos,
Encontro diretamente, frente a frente, decidisse realmente retirar-se desta sociedade
esse governo americano, ou seu representante, e fosse por isto encarcerado, isso significaria o

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fim da escravidão nos Estados Unidos. Pois não parte, embora mais livre e honroso, em que o
importa quão limitado possa parecer o começo: Estado coloca aqueles que não estão com ele,
aquilo que é bem feito uma vez está feito para mas contra ele — o único lugar num Estado es-
sempre. Mas preferimos falar sobre isso: essa é cravo em que um homem livre pode viver com
a nossa missão, dizemos. A reforma tem a seu honra. Se alguém pensa que ali sua influência se
serviço um grande número de jornais, mas ne- perderá, que sua voz não mais atormentará os
nhum homem. Se meu estimado semelhante, o ouvidos do Estado e que ele não será como um
representante do Estado, que dedica seus dias inimigo dentro de suas muralhas, é porque não
ao arranjo da questão dos direitos humanos na sabe o quanto a verdade é mais poderosa que o
Câmara do Conselho, ao invés de ser ameaçado erro, nem o quão mais eloqüente e eficazmente
com as prisões da Carolina, assumisse a condi- pode combater a injustiça aquele que já a tenha
ção de prisioneiro de Massachusetts, este Esta- experimentado em sua própria carne. Dá o teu
do sempre ansioso por impingir o pecado da es- voto inteiro, não uma simples tira de papel, mas
cravidão a seu irmão — embora, no momento, toda tua influência. Uma minoria é impotente
possa apenas descobrir um ato de inospitalida- enquanto se conforma à maioria, nem chega a
de como base para uma disputa com ele — , a ser uma minoria então, mas torna-se irresistí-
Legislatura não deixaria inteiramente de lado o vel quando se põe a obstruir com todo o seu
assunto no próximo inverno. peso. Se a alternativa for a de manter todos os
Num governo que aprisiona qualquer homens justos na prisão ou desistir da guerra
pessoa injustamente, o verdadeiro lugar de um e da escravidão, o Estado não hesitará em sua
homem justo é também a prisão. O lugar apro- escolha. Se mil homens se recusassem a pagar
priado, hoje, o único lugar que Massachusetts seus impostos este ano, esta não seria uma me-
proporciona a seus espíritos mais livres e menos dida violenta e sangrenta, como seria a de pa-
desesperançados, são seus cárceres, nos quais gá-los e permitir ao Estado cometer violências
se verão aprisionados e expulsos do Estado, por e derramar sangue inocente. Esta é, de fato, a
ação deste, os mesmos homens que já haviam definição de uma revolução pacífica, se tal for
expulsado a si mesmos por seus princípios. É ali possível. Se o coletor de impostos ou qualquer
que deverão encontrá-los o escravo foragido, outro funcionário público perguntar-me, como
o prisioneiro mexicano em liberdade condicio- um deles já o fez, “Mas o que devo fazer?”, mi-
nal e o índio que queiram protestar contra as nha resposta será: “Se deseja realmente fazer
injustiças sofridas por sua raça; naquele lugar à algo, peça demissão”. Quando o súdito recusar

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sua lealdade e o funcionário demitir-se de seu ao mesmo tempo em que a única nova ques-
cargo, então a revolução terá se realizado. Mas tão que lhe propõe é a difícil, embora supérflua,
suponhamos, até, que deva correr sangue. Já questão de saber como gastá-lo. Assim, seu fun-
não se derrama uma espécie de sangue quando damento moral lhe é retirado de sob os pés. As
a consciência é ferida? Através deste ferimento oportunidades de viver diminuem na proporção
esvai-se a verdadeira coragem e imortalidade em que aumenta o que se chama de “meios”. O
de um homem, e ele sangra até a morte. Vejo melhor que um homem pode fazer por sua cul-
este sangue correndo neste momento. tura, quando enriquece, é tentar pôr em prática
Refleti sobre o aprisionamento do ofen- os planos que concebeu quando pobre. Cristo
sor e não sobre o confisco de seus bens, embo- respondeu ao herodianos de acordo com sua
ra ambos possam servir ao mesmo propósito, situação. “Mostrai-me o dinheiro do tributo”,
porque aqueles que afirmam o mais puro direi- disse, e um deles tirou uma moeda do bolso. Se
to, e são, conseqüentemente, mais perigosos usais dinheiro com a imagem de César gravada,
para um Estado corrupto, normalmente não e que ele tornou corrente e útil, ou seja, se sois
passaram muito tempo a acumular proprieda- homens do Estado, e de bom grado desfrutais
des. A esses, o Estado presta, comparativamen- as vantagens do governo de César, então devol-
te, pouco serviço, e um pequeno imposto costu- vei a ele um pouco do que lhe pertence quando
ma ser visto como exorbitante, particularmente ele assim o exigir. “Logo, dai a César o que é de
se são obrigados a ganhá-lo com suas próprias César, e a Deus o que é de Deus”, disse, deixan-
mãos. Se houvesse alguém que pudesse viver do-os sem saber mais do que antes a respeito
inteiramente sem o uso de dinheiro, o próprio de qual era qual, pois não desejavam sabê-lo.
Estado hesitaria em exigir-lhe pagamento. Mas Quando converso com os mais livres dos
o homem rico — sem querer fazer nenhuma meus semelhantes, percebo que, seja o que for
comparação invejosa — está sempre vendido que digam sobre a magnitude e seriedade do
à instituição que o faz rico. Falando em termos problema, e sobre sua preocupação com a tran-
absolutos, quanto mais dinheiro, menos virtu- qüilidade pública, o cerne da questão é que não
de, pois o dinheiro se interpõe entre um ho- podem dispensar a proteção do governo exis-
mem e seus objetivos, e os obtém para ele, e tente e temem as conseqüências que possam
certamente não há grande virtude em fazê-lo. advir para suas propriedades e suas famílias da
O dinheiro abafa muitas questões que, de outro desobediência a ele. De minha parte, não gos-
modo, este homem seria levado a responder, taria de pensar que alguma vez tenha confiado

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na proteção do Estado. No entanto, se nego a ts e seu direito a minha vida e meu patrimônio.
autoridade do Estado quando ele me apresen- Custa-me menos, em todos os sentidos, incor-
ta a conta dos impostos, logo ele irá se apossar rer na pena de desobediência ao Estado do que
de meu patrimônio e dissipá-lo, molestando- me custaria obedecer-lhe. Neste caso, eu have-
me, assim, interminavelmente, bem como aos ria de me sentir diminuído.
meus filhos. Isso é injusto. Isso torna impossível Há alguns anos, o Estado veio ao meu en-
a um homem viver honestamente, e ao mesmo contro, em nome da Igreja, e mandou-me pagar
tempo confortavelmente, no que diz respeito uma certa quantia em benefício de um padre a
às circunstâncias exteriores. Não valerá a pena cujas pregações meu pai comparecia, mas a que
acumular propriedades, pois com certeza estas eu mesmo jamais comparecera. “Paga”, disse,
seriam novamente confiscadas. Deves arrendar “ou serás preso”. Eu me recusei a pagar, mas, in-
ou ocupar terra devoluta num lugar qualquer, felizmente, outro homem houve por bem fazê-
plantar não mais que uma pequena safra e con- lo. Eu não via por que o mestre-escola deveria
sumi-la imediatamente. Deves viver contigo e pagar um imposto para sustentar o padre, e não
depender só de ti, sempre arrumado e pronto o contrário, já que eu não era um mestre-escola
para partir, e não ter muitos negócios. Um ho- do Estado mas me mantinha através de subscri-
mem pode enriquecer até mesmo na Turquia, ção voluntária. Não via por que a escola não de-
se for, em todos os aspectos, um bom súdito do veria apresentar sua conta de impostos e fazer
governo turco. Confúcio disse: “Se um Estado com que o Estado atendesse a suas exigências,
for governado pelos princípios da razão, a po- assim como a Igreja. Contudo, a pedido dos
breza e a miséria serão objeto de vergonha; se conselheiros municipais, concordei em fazer,
um Estado não for governado pelos princípios por escrito, uma declaração como esta: “Sai-
da razão, a riqueza e as honrarias serão objeto bam todos, pela presente, que eu, Henry Tho-
de vergonha.” Não: até que eu queira que a pro- reau, não desejo ser considerado membro de
teção de Massachusetts me seja proporcionada nenhuma sociedade juridicamente constituída
em algum distante porto do Sul em que minha à qual não tenha me associado”. Entreguei-a ao
liberdade seja ameaçada, ou até que eu me secretário da câmara municipal, que a guarda
veja exclusivamente voltado para o desenvolvi- com ele. Desde então, o Estado, tendo tomado
mento de uma propriedade em seu território, conhecimento de que eu não desejava ser con-
através de um empreendimento pacífico, posso siderado membro daquela igreja, nunca mais
permitir-me recusar obediência a Massachuset- me fez tal exigência, embora dissesse que pre-

27 28
cisava manter-se fiel a sua presunção inicial na- por pensarem que meu maior desejo era estar
quela época. Se eu tivesse como especificá-las do outro lado daquele muro de pedra. Eu não
então, teria identificado minuciosamente todas podia senão sorrir ao ver quão diligentemente
as sociedades às quais não pertencia. Mas não fechavam a porta às minhas meditações, que os
soube onde encontrar uma lista completa delas. perseguiam totalmente desimpedidas, e eles é
Não pago imposto individual há seis que eram, na verdade, tudo de perigoso. Como
anos. Por causa disso, certa vez, fui colocado na não podiam alcançar-me, resolveram punir meu
cadeia por uma noite. E, enquanto contemplava corpo; como meninos que, não conseguindo
as sólidas paredes de pedra, com dois ou três atacar alguém que odeiam, maltratam-lhe o
pés de espessura, a porta de madeira e ferro, cão. Vi que o Estado era irresponsável, tímido
com um pé de espessura, e a grade de ferro que como uma mulher solitária com suas colheres
filtrava a luz, não pude deixar de ficar impressio- de prata, e que não sabia distinguir seus amigos
nado com a insensatez daquela instituição que de seus inimigos, e perdi o resto de respeito que
me tratava como se eu fosse um mero amonto- ainda nutria por ele, e tive pena dele.
ado de carne, sangue e ossos, pronto para ser Portanto, o Estado nunca enfrenta inten-
aprisionado. Estranhei que ela tenha concluído, cionalmente a consciência intelectual ou moral
por fim, que aquele fosse o melhor uso que po- de um homem, mas apenas seu corpo, seus
deria fazer de mim e que não tenha pensado sentidos. Não está equipado com inteligência
em aproveitar-se de meus serviços de algum ou honestidade superiores, mas com força físi-
modo. Vi que, se havia um muro de pedra entre ca superior. Não nasci para ser forçado a nada.
eu e meus concidadãos, havia um outro ainda Respirarei a meu próprio modo. Vejamos quem
mais difícil de galgar e transpor para que eles é o mais forte. Que força tem uma multidão?
pudessem tornar-se tão livres quanto eu. Não Só pode forçar-me aquele que obedece a uma
me senti aprisionado sequer por um momen- lei mais alta que a minha. Forçam-me a tornar-
to e aqueles muros pareceram-me um enorme me como eles. Não sei de homens que tenham
desperdício de pedra e argamassa. Sentia-me sido forçados a viver desta ou daquela maneira
como se apenas eu, entre todos meus concida- por uma massa de homens. Que espécie de vida
dãos, tivesse pago o imposto. Eles claramente seria essa? Quando me deparo com um gover-
não sabiam como tratar-me mas portavam-se no que diz “Teu dinheiro ou tua vida”, por que
como pessoas mal-educadas. Em cada ameaça deveria apressar-me em dar-lhe meu dinheiro?
e em cada cumprimento havia um disparate, Ele pode estar em grande dificuldade e não sa-

29 30
ber o que fazer, mas não posso ajudá-lo nisso. claro, que fosse um homem honesto. E, do jeito que
Ele deve ajudar a si mesmo, fazer como eu faço. anda o mundo, acredito que o fosse. “Bem”, disse
Não vale a pena lamuriar-se. Não sou respon- ele, “fui acusado de incendiar um celeiro, mas não o
sável pelo bom funcionamento da maquinaria fiz”. Tanto quanto pude constatar, ele provavelmen-
te fora dormir bêbado num celeiro, fumara ali seu
da sociedade. Não sou o filho do maquinista.
cachimbo e assim incendiara o celeiro. Tinha a fama
Observo que, quando uma bolota de carvalho de ser um homem inteligente, estava ali há cerca de
e uma castanha caem lado a lado, uma não três meses esperando que seu julgamento fosse re-
se mantém inerte para dar lugar à outra, mas alizado e ainda teria que esperar outro tanto, mas
ambas obedecem às próprias leis, e desenvol- encontrava-se bastante domesticado e satisfeito, já
vem-se e crescem e florescem tão bem quan- que tinha casa e comida de graça e achava que era
to podem, até que uma delas, talvez, domine bem tratado.
e destrua a outra. Se uma planta não consegue Ele ocupava uma das janelas e eu a outra, e
viver de acordo com sua natureza, ela morre, e descobri que, se alguém ficasse ali por muito tem-
assim também um homem. po, sua principal ocupação seria a de ficar olhando
pela janela. Em pouco tempo eu havia lido todos os
panfletos que tinham sido deixados ali, e examina-
A noite que passei na prisão foi bastante
do por onde antigos prisioneiros haviam escapado,
inusitada e interessante. Quando lá entrei, os pri-
e onde uma grade havia sido serrada, e escutado
sioneiros, em mangas de camisa, conversavam e
a história dos vários ocupantes daquela cela, pois
aproveitavam o ar da noite perto da entrada. Mas
descobri que mesmo ali havia histórias e boatos que
o carcereiro disse: “Vamos lá, rapazes, é hora de
nunca haviam circulado além dos muros da prisão.
fechar”, e assim eles debandaram, e pude ouvir o
Esta é provavelmente a única casa da cidade em que
som de seus passos retornando às celas vazias. Meu
se compõem versos que são posteriormente impres-
companheiro de cela foi-me apresentado pelo car-
sos sob forma de circular mas não são publicados.
cereiro como “um camarada de primeira e um ho-
Mostraram-me uma lista bastante longa de versos
mem inteligente”. Quando a porta foi fechada, ele
compostos por alguns jovens que haviam sido des-
me mostrou onde pendurar meu chapéu e como
cobertos numa tentativa de fuga e que se vingaram
lidava com as coisas ali. As celas eram caiadas uma
cantando-os.
vez por mês, e aquele, pelo menos, era o aposento
Tirei o máximo que pude de meu companhei-
mais alvo, o mais simplesmente mobiliado e prova-
ro de cela, temendo que não voltasse a vê-lo nunca
velmente o mais asseado da cidade. Naturalmente,
mais, mas ele, afinal, mostrou-me qual era a minha
ele quis saber de onde eu vinha e o que me levara
cama e deixou-me com a missão de apagar a lam-
até ali. E, depois de ter lhe contado, perguntei-lhe
parina.
igualmente como tinha ido parar ali, presumindo, é

31 32
Dormir ali por uma noite foi como viajar para mudanças houvessem ocorrido nas coisas comuns,
um país distante, que eu jamais esperara conhecer. como o faria alguém que tivesse entrado jovem na
Pareceu-me que eu nunca antes tinha ouvido a ba- prisão e dela saísse já grisalho e cambaleante. Mes-
tida do relógio da cidade, nem os sons noturnos da mo assim, aos meus olhos, ocorrera uma mudança
vila, pois dormíamos com as janelas abertas, que no cenário — na cidade, no estado, no país — , uma
eram gradeadas por fora. Era como ver minha vila mudança maior do que qualquer outra que pudesse
natal à luz da Idade Média, e nosso Concord trans- ser efetuada pela mera passagem do tempo. Enxer-
formava-se num riacho como os do Reno, e visões guei ainda mais claramente o Estado em que vivia.
de cavaleiros e castelos passavam diante de meus Vi até que ponto podia confiar, como bons vizinhos e
olhos. Eram as vozes dos velhos cidadãos dos bur- amigos, nas pessoas entre as quais vivia. Vi que sua
gos que eu ouvia nas ruas. Eu era um espectador e amizade valia apenas para o tempo bom, que eles
um ouvinte involuntário de tudo que era dito e feito não se propunham muito a praticar o bem. Vi que
na cozinha da estalagem contígua — uma experiên- eram de uma raça diferente da minha, tanto quan-
cia totalmente nova e rara para mim. Era uma visão to os chineses e os malaios, devido a seus precon-
mais minuciosa de minha cidade natal. Eu estava ceitos e superstições; que, em seus sacrifícios pela
completamente dentro dela. Nunca havia enxergado humanidade, não colocavam nada em risco, nem
suas instituições antes. Aquela era uma de suas ins- mesmo seu patrimônio; que, afinal de contas, não
tituições peculiares, pois era um condado. Comecei eram assim tão nobres, pois tratavam o ladrão como
a compreender com que se ocupavam seus habitan- este os havia tratado, e esperavam, através de certas
tes. observâncias exteriores, de umas poucas preces e de
Pela manhã, nosso desjejum era passado andarem por um determinado caminho reto, porém
através da vigia da porta, em pequenas vasilhas de inútil, de tempos em tempos, salvar suas almas. Isto
lata retangulares que continham meio litro de cho- pode parecer um julgamento demasiado severo de
colate, pão preto e uma colher de ferro. Quando pe- meus próximos, pois acredito que muitos deles não
diram de volta as vasilhas, minha inexperiência me estejam conscientes da existência de uma instituição
fez devolver o pão que me sobrara, mas meu com- como a cadeia em sua vila.
panheiro agarrou-o e disse que eu deveria guardá-lo Antigamente era costume em nossa vila,
para o almoço ou o jantar. Pouco depois, deixaram- quando um pobre devedor saía da cadeia, seus co-
no sair para trabalhar num campo de feno próximo nhecidos o saudarem olhando-o através dos dedos,
dali, para onde ia todos os dias, e, como estaria de que eram cruzados para representar as grades de
volta só depois do meio-dia, disse-me adeus, pois uma janela de prisão, e dizendo “Como vai?”. Meus
duvidava que fosse me ver outra vez. conterrâneos não me saudaram desta forma, mas
Quando saí da prisão — pois alguém interfe- primeiro olharam para mim, depois uns para os
riu e pagou aquele imposto — não achei que grandes outros, como se eu tivesse retornado de uma lon-

33 34
ga jornada. Eu tinha sido preso enquanto me dirigia gido, por solidariedade ao Estado, fazem sim-
ao sapateiro para buscar um sapato que precisara plesmente o que já haviam feito em seus pró-
de conserto. Quando saí, na manhã seguinte, tratei prios casos, ou, mais exatamente, favorecem
de completar minha pequena missão e, já calçando a injustiça numa extensão maior que a exigida
meu sapato consertado, juntei-me à turma do hu-
pelo Estado. Se pagam o imposto devido a um
ckleberry, que estava impaciente para ser por mim
conduzida e, depois de meia hora — pois o cavalo
interesse equivocado pelo indivíduo taxado,
fora atrelado em seguida —, encontrávamo-nos no para salvar seu patrimônio ou impedir que ele
meio de um campo de huckleberry4, numa de nos- vá para a cadeia, é porque não avaliaram sensa-
sas colinas mais altas, a duas milhas de distância, e tamente até que ponto permitem que seus sen-
logo já não podíamos enxergar o Estado em parte timentos pessoais interfiram no bem público.
alguma. Esta é, portanto, minha posição atual.
Esta é toda a história das “Minhas Prisões”. Num caso como esse, porém, nunca se pode
estar demasiadamente em guarda, para que
Nunca me recusei a pagar o imposto ro- nossa ação não seja influenciada pela obstina-
doviário, pois desejo tanto ser um bom vizinho ção ou por uma indevida consideração pelas
quanto um mau súdito. E, quanto a sustentar as opiniões dos homens. Tratemos de fazer apenas
escolas, faço minha parte educando hoje meus aquilo que nos seja próprio e oportuno.
concidadãos. Não é por nenhum item específico Às vezes, penso: ora, essas pessoas são
da lista de impostos que me recuso a pagá-la. bem-intencionadas, mas são ignorantes. Agi-
Simplesmente desejo recusar sujeição ao Es- riam melhor se soubessem como fazê-lo: por
tado, afastar-me dele e manter-me à parte de que dar a nossos concidadãos o incômodo de
modo efetivo. Não me interessa traçar a rota tratar-nos de uma maneira pela qual não se mos-
de meu dólar, mesmo que pudesse, até o ponto tram inclinados? Mas penso melhor: isto não é
em que ele compre um homem ou um mosque- razão para que eu aja como eles ou permita que
te para matar um homem — o dólar é inocente outros sofram um incômodo muito maior, de
—, mas a mim interessa rastrear os efeitos de um tipo diferente. Digo a mim mesmo, também:
minha sujeição. Na verdade, serenamente de- quando muitos milhões de homens, sem ódio,
claro guerra ao Estado, a meu modo, embora eu sem hostilidade, sem sentimentos pessoais de
ainda possa vir a usá-lo e obter dele as vanta- qualquer espécie, exigem de ti apenas uns pou-
gens que puder, como é comum nestes casos. cos xelins, sem a possibilidade, por seu tempe-
Se outros pagam o imposto que me é exi- ramento, de retraírem-se ou de alterarem sua

35 36
atual demanda, e sem a possibilidade, de tua Orfeu, mudar a natureza das rochas, das árvo-
parte, de apelar para quaisquer outros milhões, res e dos animais.
por que expor-te a esta força bruta e esmaga- Não desejo brigar com nenhum homem
dora? Não resistes tão obstinadamente ao frio ou nação. Não quero entrar em minúcias des-
e à fome, aos ventos e às ondas; submetes-te necessárias, nem fazer distinções sutis, nem
serenamente a mil necessidades semelhantes. pretendo parecer melhor do que meus seme-
Não colocas tua cabeça no fogo. Mas na exata lhantes. Ao contrário, posso dizer que até mes-
medida em que considero que esta não é uma mo procuro uma desculpa para conformar-me
força inteiramente bruta, mas parcialmente hu- com as leis da terra. Estou mesmo pronto a con-
mana, e que me relaciono com esses milhões formar-me com elas. Na verdade, tenho razões
de homens tanto quanto com outros milhões, para suspeitar de mim mesmo quanto a este as-
e não simplesmente com coisas brutas ou ina- sunto. E todo ano, quando reaparece o coletor
nimadas, vejo que se torna possível um apelo, de impostos, vejo-me disposto a rever os atos e
antes de mais nada, deles ao seu Criador, e, em a posição do governo geral e do Estado, e o es-
segundo lugar, deles a eles mesmos. Porém, se pírito do povo, para descobrir um pretexto para
eu colocar deliberadamente minha cabeça no a conformidade.
fogo, não haverá apelo que possa fazer ao fogo
ou ao seu Criador, e só poderei culpar a mim Devemos amar nossa pátria como a nossos
mesmo. Se eu pudesse convencer-me de que pais;
tenho algum direito de estar satisfeito com os E se em algum momento deixarmos de dedi-
car-lhe
homens tais como são, e de tratá-los de acordo
Nosso amor e nossos cuidados,
com isso, e não de acordo, em alguns aspectos, Devemos honrar o afeto e ensinar à alma
com minhas exigências e expectativas quanto As coisas da consciência e da religião,
ao que eles e eu devamos ser, então, como um E não o desejo de poder ou beneficio.
bom muçulmano e fatalista, deveria empenhar-
me para me satisfazer com as coisas como elas Acredito que o Estado logo será capaz de
são, e dizer que esta é a vontade de Deus. E, me tirar das mãos todo trabalho desse tipo e
acima de tudo, existe uma diferença entre re- então não serei melhor patriota que meus con-
sistir a isto e a uma força puramente bruta ou terrâneos. Analisada de um ponto de vista in-
natural, que é a de que posso resistir a isto com ferior, a Constituição, com todos os seus defei-
algum sucesso, mas não posso esperar, como tos, é muito boa; a lei e os tribunais são muito

37 38
respeitáveis; mesmo este Estado e este governo ventaram sistemas engenhosos e mesmo úteis,
americano são, sob muitos aspectos, bastante pelos quais sinceramente lhes agradecemos.
raros e admiráveis, como muitos já os descre- Mas todo seu engenho e utilidade situam-se
veram, e podemos ser gratos a eles. Porém, dentro de limites não muito amplos. Costumam
analisados de um ponto de vista um pouco mais esquecer que o mundo não é governado pela
elevado, eles são exatamente aquilo que des- sagacidade e pela conveniência. Webster5 nun-
crevi, e, vistos de um lugar ainda mais alto, do ca chega aos bastidores do governo e, portanto,
topo mesmo, quem poderá dizer o que eles são não pode falar com autoridade sobre ele. Suas
ou que merecem ser apreciados e ser objeto de palavras são a própria sabedoria para aqueles
nossos pensamentos? legisladores que não consideram fazer nenhu-
Entretanto, o governo não me interessa ma reforma essencial no governo existente.
tanto assim, e dedicarei a ele o menor núme- Mas para aqueles que pensam, e para os que
ro possível de pensamentos. Não são muitos os legislam para todos os tempos, ele não chega
momentos em que vivo sob um governo, mes- sequer a vislumbrar o assunto. Sei de alguns
mo neste mundo. Se um homem pudesse não cujas serenas e sábias especulações a respei-
ter mais pensamentos, fantasias ou imaginação, to deste tema logo colocariam em evidência
algo que jamais poderia lhe acontecer por um os limites da amplitude e da receptividade da
tempo muito longo, então, fatalmente, os go- mente de Webster. Mesmo assim, comparadas
vernantes ou reformadores insensatos não po- com as manifestações ordinárias da maioria dos
deriam interrompê-lo. reformadores, e com a sabedoria e a eloqüên-
Sei que a maioria dos homens pensa de cia ainda mais ordinárias dos políticos em geral,
modo diferente do meu, mas aqueles que de- suas palavras são quase as únicas palavras sen-
dicam suas vidas profissionais ao estudo deste satas e válidas, e agradecemos aos Céus por ele.
e de outros assuntos afins contentam-me tão Comparativamente, ele é sempre forte, original
pouco quanto os demais. Os estadistas e legis- e, sobretudo, prático. No entanto, sua virtude
ladores, situando-se tão completamente den- é a prudência, não a sabedoria. A verdade do
tro da instituição, nunca a contemplam nítida e advogado não é Verdade, mas coerência, ou
abertamente. Falam de uma sociedade em mo- uma conveniência coerente. A Verdade está
vimento, mas fora dela não têm nenhum lugar sempre em harmonia consigo própria e não se
onde descansar. Podem ser homens de certa preocupa primordialmente em exibir a justiça
experiência e discernimento, e sem dúvida in- que possa condizer com o mal. Webster bem

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merece ser chamado, como realmente o foi, de sentimento humanitário ou de qualquer outra
Defensor da Constituição. Não há, realmente, causa, não têm absolutamente nada a ver com
outros golpes que ele possa desferir senão os ela. Jamais receberam qualquer encorajamento
defensivos. Ele não é um líder, mas um segui- de minha parte e jamais o receberão.”
dor. Seus líderes são os homens de 876 . “Nunca Aqueles que não conhecem fontes mais
fiz qualquer esforço”, diz, “nem me proponho a puras de verdade, que não seguiram seu curso
fazê-lo; nunca apoiei qualquer esforço, e nem até mais alto, apóiam-se, sabiamente, na Bíblia
pretendo fazê-lo um dia, no sentido de pertur- e na Constituição, e bebem-na ali com reverên-
bar o acordo originalmente feito pelo qual os cia e humildade; mas aqueles que contemplam
vários Estados constituíram a União.” Contudo, o lugar de onde ela verte para este lago ou
pensando na sanção que a Constituição conce- aquela lagoa, arregaçam as mangas mais uma
de à escravidão, ele diz: “Deixêmo-la perma- vez e continuam sua peregrinação até suas nas-
necer, já que fazia parte do arranjo original”. A centes.
despeito de sua notável agudeza e capacidade, Nenhum homem com gênio para legis-
ele é incapaz de isolar um fato de suas relações lar apareceu na América. Eles são raros até na
meramente políticas e contemplá-lo em termos história do mundo. Existem oradores, políticos
absolutos, como convém ao intelecto conside- e homens eloqüentes aos milhares, mas ainda
rá-lo — por exemplo, o que cabe a um homem não abriu a boca para falar aquele interlocutor
fazer hoje, na América, com relação à escravi- capaz de resolver as questões mais discutidas
dão. Aventura-se, porém, ou é levado a fazer do momento. Amamos a eloqüência pela elo-
declarações desesperadas como as seguintes, qüência e não por qualquer verdade que possa
embora reconheça estar falando em termos ab- exprimir ou por qualquer heroísmo que possa
solutos e como particular — que novo e singular inspirar. Nossos legisladores ainda não apren-
código de deveres sociais pode ser inferido dis- deram o valor comparativo que têm o livre co-
to? “A maneira pela qual”, afirma, “os governos mércio e a liberdade, a união e a retidão, para
dos Estados onde existe a escravidão deverão uma nação. Não têm gênio ou talento para as
regulamentá-la será a de levar em considera- questões relativamente modestas de tributação
ção as leis gerais da propriedade, humanidade e finanças, comércio, manufaturas e agricultu-
e justiça, além de seu temor a Deus, por força ra. Se nos deixássemos guiar exclusivamente
da responsabilidade perante seus constituintes. pela palavrosa sabedoria dos legisladores do
Associações formadas alhures, nascidas de um Congresso, sem que esta fosse corrigida pela

41 42
oportuna experiência e pelas efetivas reclama- este venha a reconhecer o indivíduo como um
ções do povo, os Estados Unidos não sustenta- poder mais alto e independente, do qual deriva
riam por muito tempo o lugar que ocupam en- todo seu próprio poder e autoridade, e o trate
tre as nações. Há mil e oitocentos anos, embora da maneira adequada. Agrada-me imaginar um
eu talvez não tenha o direito de dizê-lo, o Novo Estado que, afinal, possa permitir-se ser justo
Testamento foi escrito. E, no entanto, onde está com todos os homens e tratar o indivíduo com
o legislador com sabedoria e talento prático respeito, como um seu semelhante; que consi-
bastante para tirar proveito da luz que ele lança ga até mesmo não achar incompatível com sua
sobre a ciência da legislação? própria paz o fato de uns poucos viverem à par-
A autoridade do governo, mesmo aque- te dele, sem intrometer-se com ele, sem serem
la a que estou disposto a me submeter — pois abarcados por ele, e que cumpram todos os
obedecerei com prazer àqueles que saibam e seus deveres como homens e cidadãos. Um Es-
possam fazer melhor do que eu, e, em muitas tado que produzisse este tipo de fruto, e que o
coisas, mesmo àqueles que não saibam nem deixasse cair assim que estivesse maduro, pre-
possam fazer tão bem — , é ainda uma autori- pararia o caminho para um Estado ainda mais
dade impura: para ser rigorosamente justa, ela perfeito e glorioso, que também imaginei, mas
deve ter a sanção e o consentimento dos gover- que ainda não avistei em parte alguma.
nados. Não pode ter nenhum direito puro sobre
minha pessoa e meu patrimônio, apenas aquele Notas:
que lhe concedo. O progresso de uma monar-
quia absoluta para uma monarquia limitada e (1) Guerra de 1846 entre os EUA e o México.
(2) Refere-se ao ano de 1775, que marca o início da
desta para uma democracia é um progresso no
revolução da independência dos EUA.
sentido de um verdadeiro respeito pelo indiví- (3) William Paley (1743-1805), teólogo inglês que
duo. Mesmo o filósofo chinês foi sábio bastante escreveu Princípios de Filosofia Moral e Política.
para ver no indivíduo a base do império. Será (4) Mirtilo norte-americano, planta da família das
a democracia, tal como a conhecemos, o últi- ericáceas.
(5) Daniel Webster (1782-1852), advogado, esta-
mo desenvolvimento possível em matéria de dista e orador norte-americano.
governo? Não será possível dar um passo mais (6) 1787, ano da Convenção dc Filadélfia, que ela-
além no sentido do reconhecimento e da orga- borou uma constituição para os EUA.
nização dos direitos do homem? Jamais haverá
um Estado realmente livre e esclarecido até que

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Leituras Nenhuma poeira acumulou-se naquele manto,
nenhum tempo se passou desde que aquela di-
(extraído de WALDEN)
vindade foi revelada. O tempo que realmente
aproveitamos, ou que pode ser aproveitado,
não é passado nem presente nem futuro.
Minha casa era mais propícia do que uma
universidade não só ao pensamento mas tam-
bém às leituras sérias. E embora eu estivesse
fora do alcance da usual biblioteca circulante,
mais do que nunca estava sob a influência da-
queles livros que circulam pelo mundo, cujas
sentenças foram primeiramente escritas em
cascas de árvores e são agora simplesmente
copiadas, de tempos em tempos, em papel de
Com um pouco mais de deliberação na
linho. Diz o poeta Mir Camar Uddin Mast: “Sen-
escolha de seus propósitos, todos os homens,
tado para percorrer as regiões do mundo espiri-
talvez, pudessem tornar-se essencialmente es-
tual, obtive dos livros esta vantagem. Intoxicar-
tudantes e observadores, pois certamente sua
se com uma única taça de vinho: experimentei
natureza e seu destino interessam igualmente
este prazer ao beber o licor das doutrinas esoté-
a todos. Ao acumularmos riquezas para nós
ricas”. Mantive a Ilíada de Homero sobre a mesa
mesmos ou para nossa posteridade, ao fundar-
durante todo o verão, embora percorresse suas
mos uma família ou um Estado, ou mesmo ao
páginas só de vez em quando. O trabalho manu-
adquirirmos fama, somos mortais; porém, ao li-
al incessante, antes de mais nada — pois tinha
darmos com a verdade tornamo-nos imortais e
que terminar minha casa e cuidar de meus fei-
não precisamos temer mudanças ou acidentes.
jões ao mesmo tempo impossibilitou me de es-
O mais antigo filósofo egípcio ou hindu levantou
tudar mais. Contudo, animava-me a perspectiva
a extremidade do véu que cobria a estátua da
de fazer tais leituras no futuro. Li um ou dois
divindade; o trêmulo manto permanece ergui-
livros de viagem banais nos intervalos de meu
do e posso mirá-la em sua glória tão bem quan-
trabalho até que essa ocupação me fez ficar
to ele, já que fui eu nele a ser tão ousado, e é
envergonhado e me perguntei, afinal, em que
ele em mim que agora pode rememorar a visão.
lugar estava vivendo.

45 46
O estudante pode ler Homero ou Ésquilo senão o registro dos mais nobres pensamentos
em grego sem perigo de dissipação ou luxo, pois do homem? Eles são os únicos oráculos que
isto implica que, em alguma medida, ele imita não decaíram e neles encontramos respostas às
seus heróis e consagra as horas matinais à lei- questões mais atuais como não nos poderiam
tura de suas páginas. Os livros heróicos, mes- dar Delfos ou Dodona. Poderíamos também
mo que impressos em nossa língua materna, deixar de estudar a Natureza por ser velha. Ler
estarão sempre escritos numa língua morta aos bem, isto é, ler livros verdadeiros com um espíri-
olhos de épocas corrompidas, e precisaremos to verdadeiro, é um nobre exercício, que exigirá
laboriosamente procurar o significado de cada do leitor mais do que qualquer outro apreciado
palavra ou verso, supondo m sentido mais am- pelos hábitos de sua época. Requer um treina-
plo que o permitido pelo uso comum, baseados mento igual ao que se submetem os atletas, a
na sabedoria, o valor e na generosidade que tenaz dedicação de quase toda a vida a este ob-
possuirmos, moderna, fértil e barata impressão jetivo. Os livros devem ser lidos tão deliberada
de livros, com todas as suas traduções, fez mui- e reservadamente quanto foram escritos. Não é
to pouco no sentido de nos aproximar dos escri- suficiente nem mesmo sermos capazes de falar
tores heróicos da antigüidade. Eles nos parecem a língua do país para o qual foram escritos, pois
tão solitários como sempre, assim como a letra existe uma notável distância entre a língua fa-
na qual foram impressos permanece tão singu- lada e a escrita, a língua que se ouve e a língua
lar e rara quanto antes. Vale a pena despender que se lê. Uma é normalmente transitória, um
dias juvenis e horas preciosas para se aprender som, uma fala, um simples dialeto, quase incul-
algumas palavras de uma língua antiga, que se to, que aprendemos inconscientemente, como
erguem da trivialidade das ruas para se trans- os animais, com nossa mãe. A outra é a matu-
formarem em perpétuas sugestões e provoca- ridade e a experiência da primeira; se aquela é
ções. Não é em vão que o lavrador recorda e nossa língua materna, esta é nossa língua pa-
repete as poucas palavras latinas que ouviu. Os terna, uma expressão reservada e seleta, signi-
homens às vezes falam como se o estudo dos ficativa demais para ser percebida pelo ouvido,
clássicos fosse finalmente dar lugar a estudos e que exigiria que nascêssemos outra vez para a
mais modernos e práticos, mas o estudante ou- podermos falar.
sado sempre estudará os clássicos, seja qual for As massas de homens que simplesmente
a língua em que estejam escritos e por mais an- falavam grego e latim na Idade Média não esta-
tigos que possam ser. Pois o que são os clássicos vam habilitadas, pelo mero acidente de nasci-

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mento, a ler as obras geniais escritas naquelas orador entrega-se à inspiração de um momento
línguas, pois elas não estavam escritas no grego passageiro e fala para a multidão à sua frente,
ou latim que conheciam, mas na seleta lingua- para aqueles que podem ouvi-lo; o escritor, po-
gem da literatura. Aqueles homens não haviam rém, que encontra seu momento na vida serena
aprendido os nobres dialetos da Grécia e de e que seria perturbado pelos incidentes e pela
Roma, e o próprio material em que estavam multidão que inspiram o orador, fala para o in-
escritos era para eles papel inútil. Ao invés dis- telecto e o coração da humanidade, para todos,
so, prezavam a literatura barata da época. Mas em qualquer época, que possam compreendê-
quando os diversos países da Europa desen- lo.
volveram suas próprias línguas escritas — que, Não admira que, em suas expedições,
embora rudes, eram suficientes para os propó- Alexandre levasse consigo a Ilíada, guardada
sitos de suas nascentes literaturas — aquele num precioso escrínio. Uma palavra escrita é a
primeiro aprendizado foi revivido, e os eruditos mais fina das relíquias. É algo ao mesmo tempo
puderam perceber, ocultos naqueles tempos re- mais íntimo e mais universal que qualquer outra
motos, os tesouros da antigüidade. Aquilo que obra de arte. É a obra de arte que mais se apro-
as multidões gregas e romanas não ouviam, uns xima da vida. Pode ser traduzida para qualquer
poucos sábios puderam ler, depois de um inter- língua e não apenas ser lida mas aspirada por
valo de séculos, e ainda hoje uns poucos sábios todos os lábios humanos; pode ser não apenas
continuam a ler. gravada em tela ou em mármore mas esculpi-
Por mais que admiremos as ocasionais da a partir do próprio sopro da vida. O símbolo
explosões de eloqüência de um orador, as mais do pensamento de um homem da antigüidade
nobres palavras escritas situam-se normalmen- transforma-se na linguagem do homem de hoje.
te tão além ou acima da fugaz língua falada Dois mil verões fizeram apenas emprestar aos
quanto o firmamento com suas estrelas encon- monumentos da literatura grega, bem como a
tra-se além das nuvens. Há estrelas, e aqueles suas esculturas, uma tonalidade dourada e ou-
que podem lê-las. Os astrônomos eternamen- tonal mais madura, pois eles carregam consigo,
te as estão observando e explicando. Elas não para todos os lugares, uma atmosfera serena e
são emanações como nossos colóquios diários celestial que os protege da corrosão do tempo.
e nossas impalpáveis respirações. Aquilo que Os livros são o tesouro precioso do mundo e a
se chama de eloqüência no tribunal é normal- digna herança das gerações e nações. Os livros,
mente entendido como retórica nos estudos. O aqueles mais antigos e melhores, encontram-

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se de modo natural e legítimo nas estantes de quanto a própria manhã. Pois os escritores pos-
qualquer cabana. Eles não têm causa própria a teriores, diga-se o que se quiser de seus talen-
defender, apenas instruem e amparam o leitor, tos, raramente igualaram a elaborada beleza, o
cujo senso comum não os recusa. Seus autores acabamento e o eterno e heróico labor literá-
formam uma aristocracia natural e irresistível rio dos antigos, se é que alguma vez o fizeram.
em qualquer sociedade e, mais do que os reis Só falam em esquecê-los aqueles que nunca os
ou imperadores, exercem influência sobre a conheceram. Estaremos prontos para esquecê-
humanidade. Quando o comerciante iletrado los quando tivermos a cultura e o gênio que
e quiçá desdenhoso conquista, através da ini- nos permitam freqüentá-los e apreciá-los. Será
ciativa e do esforço, seus ambicionados lazer verdadeiramente rica a época em que estas
e independência, e é admitido nos círculos da relíquias a que chamamos Clássicos, e as mais
riqueza e da alta sociedade, ele por fim se volta, antigas e clássicas mas ainda menos conhecidas
inevitavelmente, àqueles círculos ainda mais al- Escrituras das nações, forem acumuladas em
tos e inacessíveis do intelecto e da genialidade. maior número, quando os Vaticanos estiverem
Tem consciência apenas da imperfeição de sua lotados de Vedas, Zendavestas e Bíblias, de Ho-
cultura e da futilidade e insuficiência de todos meros, Dantes e Shakespeares, e quando os sé-
os seus bens, e coloca à prova uma vez mais seu culos vindouros tiverem sucessivamente depo-
bom senso através do empenho em assegurar a sitado seus troféus no fórum do mundo. Por tal
seus filhos aquela cultura intelectual cuja falta monte podemos ter a esperança de finalmente
sente tão profundamente. E é assim que ele se alcançar os céus.
torna o fundador de uma família. As obras dos grandes poetas não foram
Aqueles que não aprenderam a ler os an- nunca lidas pela humanidade, pois apenas os
tigos clássicos na língua em que foram escritos grandes poetas as podem ler. Elas simplesmen-
devem possuir um conhecimento bastante im- te têm sido lidas como as multidões lêem as es-
perfeito da história da raça humana, pois é no- trelas, de um modo astrológico, e não astronô-
tável que jamais se tenha feito uma transcrição mico. Os homens, em sua maioria, aprenderam
deles para qualquer língua moderna, a menos a ler para satisfazer a uma mesquinha conveni-
que se considere nossa própria civilização como ência, assim como aprenderam a calcular a fim
tal transcrição. Homero jamais foi publicado em de organizarem sua contabilidade e não serem
inglês, nem Ésquilo, nem mesmo Virgílio, e suas enganados no comércio, mas sabem pouco ou
obras são quase tão refinadas, sólidas e belas nada a respeito da leitura como um nobre exer-

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cício intelectual. Contudo, num sentido eleva- amor — de qualquer maneira, como avançava
do, a leitura é exatamente isso, não o que nos e tropeçava e erguia-se uma vez mais e prosse-
acalenta como um luxo e faz adormecer nossos guia, assim como um pobre infeliz que houvesse
mais nobres sentidos, mas o que nos coloca em subido até o alto da torre de uma igreja quan-
alerta e a que dedicamos nossas horas mais do teria sido melhor não ter passado do cam-
atentas. panário. E então, tendo inutilmente o colocado
Penso que, tendo sido alfabetizados, de- naquela altura, o alegre romancista faz soar o
veríamos ler o melhor da literatura e não ficar sino chamando o mundo inteiro para ouvir, oh
repetindo para sempre nosso bê-a-bá e nossos Deus!, como conseguiu ele descer outra vez! De
monossílabos, sentados a vida inteira na primei- minha parte, penso que fariam melhor se trans-
ra fila da sala de aula. A maioria dos homens fica formassem tais aspirantes a heróis da novelís-
satisfeita se consegue ler ou ouvir outros lerem tica universal em cataventos humanos, assim
um único livro, a Bíblia, persuadidos talvez por como era costume colocar os heróis entre as
sua sabedoria, e pelo resto de suas vidas põem- constelações e deixá-los ali girando até que fi-
se a vegetar e a dissipar suas faculdades com cassem enferrujados e não pudessem de modo
aquilo que se chama de leitura fácil. Existe uma algum voltar para aborrecer homens honestos
obra em vários volumes em nossa Biblioteca com suas travessuras. Da próxima vez que o ro-
Circulante, chamada Pequenas Leituras (Little mancista fizer soar o sino, não me moverei nem
Reading), que eu pensava referir-se a uma cida- que a igreja seja destruída pelo fogo. “O Salto
de do mesmo nome à qual nunca havia visita- na Ponta do Pé, romance medieval, pelo célebre
do. Há aqueles que, como avestruzes ou corvos autor de Tittle-Tol-Tan, a ser publicado em capí-
marinhos, são capazes de digerir toda espécie tulos mensais, uma grande atração.” Tudo isto
de livros como este, mesmo depois do mais far- é lido com olhos arregalados, com uma curio-
to jantar composto por carnes e legumes, pois sidade primitiva e alerta e com um estômago
não permitem que nada seja desperdiçado. Se incansável, cujas dobras nem mesmo precisam
outros são as máquinas que fornecem este tipo ser estimuladas, exatamente como um menino
de alimento, eles são as máquinas que o con- de quatro anos lê a história da Gata Borralheira
somem. São capazes de ler a milésima versão numa edição dourada e barata — sem nenhum
da lenda de Zebulão e Sofrônia, sobre como aperfeiçoamento visível da pronúncia, da acen-
se amaram como nunca ninguém amou antes tuação ou da ênfase, e sem exigir qualquer ha-
e tampouco foi sereno o curso de seu genuíno bilidade maior em extrair ou atribuir uma mo-

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ral à história. O resultado é o embotamento da geral fazem ou aspiram fazer os homens instru-
visão, a estagnação da circulação vital e a de- ídos, e para este propósito lêem jornais em in-
generação de todas as faculdades intelectuais. glês. Quantas pessoas poderá encontrar com as
Este tipo vulgar de pão é assado diariamente quais possa conversar sobre o assunto alguém
em quase todos os fornos, com mais diligência que tenha lido um dos melhores livros em in-
do que o puro pão de trigo ou de centeio, e tem glês? Ou, então, suponhamos que tenha acaba-
mercado garantido. do de ler um clássico grego ou latino no original,
Os melhores livros não são lidos nem cujo valor é familiar até mesmo para os assim
mesmo por aqueles que são considerados bons chamados analfabetos: não encontrará abso-
leitores. A que se resume a cultura em nossa lutamente ninguém com quem falar e deverá
Concord? Não há nesta cidade, com pouquís- silenciar a respeito. De fato, dificilmente encon-
simas exceções, gosto algum pelos melhores traremos em nossas escolas um professor que,
livros, ou por livros muito bons, mesmo os de tendo superado as dificuldades da língua, tenha
literatura em língua inglesa, cujas palavras po- dominado igualmente as sutilezas do espírito e
dem ser lidas e soletradas por todos. Mesmo os da poética de um escritor grego e tenha algu-
homens com instrução superior e os que tive- ma vontade de partilhá-las com o leitor heróico
ram a chamada educação liberal, aqui ou alhu- e perspicaz. Quanto às Sagradas Escrituras, ou
res, possuem pouca ou nenhuma intimidade às Bíblias da humanidade, quem nesta cidade
com os clássicos da língua. E quanto ao registro pode ao menos me dizer seus títulos? A maio-
da sabedoria da humanidade, os antigos clássi- ria dos homens não sabe sequer que foram os
cos e as Bíblias, acessíveis a qualquer um que os hebreus a terem uma escritura sagrada. Um
conheça, fazem-se aqui os mais débeis esforços homem, qualquer homem, afastar-se-á consi-
para se ter algum contato com eles. Conheço deravelmente de seu caminho para apanhar um
um lenhador de meia-idade que gosta do ler dólar de prata. Mas eis que aqui temos palavras
um jornal francês, não para saber das notícias, de ouro, proferidas pelos homens mais sábios
como ele mesmo diz, pois está acima disso, mas da Antigüidade, cujo valor nos foi assegurado
“para manter-se em dia” com sua língua, já que pela sabedoria de todas as épocas posteriores,
é canadense. E quando lhe pergunto o que con- e mesmo assim só aprendemos a ler os livros fá-
sidera ser a melhor coisa a fazer neste mundo, ceis, as cartilhas e livros escolares, e, ao sairmos
alem disso, afirma que é conservar e aprimorar da escola, as Pequenas Leituras e outros livros
seu inglês. Isto é praticamente tudo o que em de histórias, próprios para crianças e principian-

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tes. E, assim, nossas leituras, nossas conversas e compreender, seriam mais salutares a nossas
e nossos pensamentos situam-se todos num vidas do que as unhas ou a primavera, e possi-
nível muito baixo, dignos apenas de pigmeus e velmente dariam um novo aspecto à face das
homúnculos. coisas. Quantos homens terão começado uma
Aspiro relacionar-me com homens mais nova era em sua vida depois da leitura de um
sábios do que esses que Concord produziu, livro! Talvez exista o livro que explique nossos
cujos nomes mal são conhecidos aqui. Ou ouvi- milagres e revele-nos outros. As coisas inexpri-
rei o nome de Platão sem jamais ler seus livros? míveis de hoje talvez estejam ditas em algum
É como se ele fosse meu conterrâneo e eu nunca lugar. As mesmas questões que nos perturbam,
o tivesse visto, meu vizinho de porta e eu nun- desorientam e confundem ocorreram, por sua
ca o tivesse ouvido falar ou prestado atenção vez, a todos os homens sábios. Nenhuma foi
à sabedoria de suas palavras. Mas o que acon- omitida e cada um respondeu a elas, segundo
tece realmente? Seus Diálogos, que contêm o sua capacidade, por meio de suas palavras e de
que nele era imortal, acham-se na estante ao sua vida. Ademais, com a sabedoria aprende-
lado e no entanto eu nunca os li. Somos vulga- mos a ser tolerantes. O solitário empregado de
res, incultos e analfabetos; e, em relação a isso, uma fazenda nos arredores de Concord, tendo
confesso que não faço maiores distinções entre sido batizado e vivido uma peculiar experiência
o analfabetismo de meus concidadãos que não religiosa, e acreditando estar sendo conduzi-
aprenderam a ler e o de quem aprendeu a ler do, por sua fé, ao silêncio grave e à exclusivi-
somente aquilo que se destina às crianças e aos dade, pode achar que isto não é verdade. Mas
intelectos medíocres. Deveríamos ser tão bons Zoroastro, há milhares de anos, percorreu o
quanto os ilustres escritores da antigüidade, mesmo caminho e teve a mesma experiência.
reconhecendo, antes de mais nada, o quanto Porém, sendo sábio, sabia que esta experiência
eles eram bons. Somos uma raça de acanhados era universal e passou a tratar seus vizinhos de
homens-pássaro e em nossos vôos intelectuais acordo com isso, afirmando-se mesmo que te-
elevamo-nos pouco mais alto do que as colunas nha inventado e estabelecido a idolatria entre
dos jornais diários. os homens. Deixemo-lo, então, humildemente
Nem todos os livros são tão tediosos compartilhar com Zoroastro, e, através da tole-
quanto seus leitores. Provavelmente há pala- rante influência de todas as sumidades, com o
vras que se aplicam exatamente a nossa condi- próprio Jesus Cristo, e deixemos “nossa Igreja”
ção, e que, se as pudéssemos realmente escutar naufragar.

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Orgulhamo-nos por pertencermos ao tados da escola por um longo tempo e negligen-
século XIX e por estarmos progredindo mais ciamos tristemente nossa educação. Neste país,
rapidamente que qualquer outro pais. Mas a aldeia deveria, sob certos aspectos, assumir o
pensemos no pouco que esta aldeia faz por sua lugar do nobre na Europa e tornar-se a prote-
própria cultura. Não desejo exaltar meus con- tora das belas artes. Ela é rica o suficiente para
terrâneos, nem ser exaltado por eles, pois isso isso e necessita apenas de magnanimidade e re-
não faria progredir a nenhum de nós. Precisa- finamento. Pode gastar dinheiro bastante com
mos ser provocados, açulados como bois para coisas apreciadas por fazendeiros e comercian-
seguir adiante. Possuímos um sistema compa- tes, mas considera utópico gastá-lo com aquilo
rativamente decente de escolas públicas primá- que os homens mais inteligentes sabem possuir
rias, exclusivas para crianças. Porém, à exceção um valor bem maior. Esta cidade gastou dezes-
do agonizante Liceu no inverno, e, mais tarde, sete mil dólares para construir uma sede para a
do insignificante projeto de biblioteca proposto câmara municipal, graças à fortuna ou à política,
pelo Estado, não há escolas para nós. Gastamos mas provavelmente não investirá tanto na inte-
mais com qualquer artigo que alimente nosso ligência e no espírito vivos, a verdadeira carne
corpo do que com alimentos espirituais. Já é a preencher aquela concha, dentro dos próxi-
tempo de possuirmos escolas superiores, de mos cem anos. Os cento e vinte e cinco dólares
não interrompermos nossa educação quando de contribuição anual para os cursos de inver-
começamos a nos tornar adultos. Já é tempo de no do Liceu são gastos com maior proveito do
as aldeias se transformarem em universidades que qualquer soma semelhante arrecadada na
e de seus habitantes mais velhos serem os pes- cidade. Se vivemos no século XIX, por que não
quisadores destas universidades, com tempo aproveitarmos as vantagens que ele nos ofere-
disponível — se tiverem de fato condições — ce? Por que deveríamos levar uma vida provin-
para se dedicar nos estudos liberais pelo resto ciana, sob qualquer aspecto? Se temos que ler
de suas vidas. Deverá o mundo se restringir para jornais, por que não deixamos de lado as intri-
sempre a uma Paris ou uma Oxford? Não pode- gas de Boston e passamos logo a ler o melhor
rão os estudantes ser internados aqui e obter jornal do mundo? Chega de sorver o mingau de
uma educação liberal sob os céus de Concord? jornais de “famílias neutras” e de pastar Olive-
Não poderemos contratar um Abelardo para Branches aqui na Nova Inglaterra. Deixemos
nos ensinar? Ah, mas temos que alimentar o que cheguem a nós as notícias de todas as so-
gado e tomar conta da loja, e assim somos afas- ciedades cultas e veremos se eles sabem algu-

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ma coisa. Por que devemos deixar que a Harper
& Brothers e a Redding & Co. escolham nossas
leituras? Assim como o nobre de bom gosto se
cerca de tudo que possa contribuir para sua
cultura — o gênio, a erudição, a inteligência, li-
vros, pinturas, esculturas, música, ferramentas
filosóficas, etc. —, deixemos que nossa aldeia
faça o mesmo. Que não se contente com um
pedagogo, um pastor, um sacristão, uma biblio-
teca paroquial e três conselheiros municipais,
só porque nossos antepassados, certa vez, atra-
vessaram com eles um frio inverno sobre uma
rocha descampada. Agir coletivamente está de
acordo com o espírito de nossas instituições,
e confio em que, já que nossas condições são
mais favoráveis, nossos recursos são maiores
que os do nobre. A Nova Inglaterra pode con-
tratar todos os homens sábios do mundo para
vir ensiná-la, e aqui abrigá-los, e deixar de ser
provinciana. Esta é a escola incomum que de-
sejamos. Ao invés de nobres, tenhamos nobres
aldeias de homens. Se for necessário, deixemos
de lado aquela ponte sobre o rio, façamos uma
pequena volta e lancemos ao menos um arco
sobre o abismo escuro da ignorância que nos
cerca.

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