Sei sulla pagina 1di 139

CANANEUS DA BÍBLIA O GENOCÍDIO CONTRA OS

CANANEUS

Quando comecei a ler a Bíblia, por sugestão de


professores de um Colégio Marista, tinha menos de 15
anos. Levei mais ou menos um ano e meio para ir do
Gênesis ao Apocalipse. Mas desde o início, certos
relatos me deixaram perplexo e espantado. Por que
havia tantos crimes ordenados ou praticados por Deus,
se em seus mandamentos ele mandava “não matar?”
Por que havia tanta formicação, incestos, poligamia,
relações homosexuais, se nos mandamentos tudo isso
era proibido? Levei dezenas de anos, pesquisando em
mais de uma centena de livros e tratados para
descobrir que os “Dez Mandamentos” só foram escritos
durante o período dos reis, entre 700 a 500 a.C.,
enquanto os fatos narrados aconteceram numa época
entre 2.000 a 1.000 a.C. quando os israelitas ainda não
tinham nem reis, nem leis e nem escrita. Interessante é
que nessa época Deus conversava diretamente com
Abraão, Jacó, Moisés e Josué e ordenava o que eles
deviam fazer. Para Deus o melhor que Josué podia fazer
era conquistar o máximo de cidades e povoados na
terra dos cananeus (atual Palestina) sem poupar a vida
de ninguém. Era um genocídio total contra os cananeus,
os legítimos donos das terras. Josué 10: 28 – No mesmo
dia, Josué tomou Maceda e passou-a ao fio da espada,
bem como o seu rei: votou-os ao anátema, com tudo
que lá se encontrava de ser vivo, sem deixar
sobrevivente, e tratou o rei de Maceda como havia
tratado o rei de Jericó. 29 – Josué, com todo Israel,
passou então de Maceda a Lebna e a atacou. Iahweh a
entregou, com o seu rei, nas mãos de Israel, que a
passou ao fio da espada, bem como a todo ser vivo que
lá se encontrava, não deixando um sobrevivente sequer.
Tratou o seu rei como havia tratado o rei de Jericó. 31 –
Então Josué, e todo Israel com ele, passou de Lebna a
Laquis, que sitiou e atacou. 32 – Iahweh entregou
Laquis nas mãos de Israel, que a tomou no segundo dia
e passou ao foi da espada, com tudo o que nela havia de
ser vivo como havia feito com Lebna. 33 – Nesse tempo
o rei de Gazer, Horam, subiu para socorrer Laquis;
Josué, porém, o derrotou, bem como ao seu povo, sem
deixar sobrevivente. 34 – Josué, com todo Israel, passou
de Laquis a Eglon. O Ouro dos Dias Prof Roque R$20,00
AMOMAR MARCELO RUSSELL R$50,00 VIDA EM
POESIA Gracinda Rodrigues R$25,00 Só Rondel
Ibernise EUR8,00 Minha filha... Autista? Lu Ar R$32,00
Gregório de Matos e Voltaire o Barroco e o Iluminismo
na Bahia TADEU BAHIA R$25,00 PAIXÃO E MARTÍRIO
DE CRISTO Flavio Cavalcante R$23,39 EMOÇÕES EM
PALAVRAS Fernanda Pietragalla R$26,00 Singularidade:
coletânea poética Ricardo Miranda Filho, Vários
autores R$34,90 O TESOURO ARCANO - A MAÇONARIA
E SEU SIMBOLISMO João Anatalino R$35,00 VITRINE
Como anunciar nesta vitrine? 10/06/2019 CANANEUS
DA BÍBLIA
https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-religi
ao-e-teologia/6515780 2/9 Sitiaram-na e atacaram-na.
35 – E no mesmo dia a tomaram e passaramna ao fio da
espada. Ainda no mesmo dia consagraram ao anátema
tudo o que nela havia de ser vivo, assim como havia
feito com Laquis. 36 – De Eglon Josué subiu, com todo
Israel, a Hebron, e atacaram-na. 37 – Tomaram-na e a
passaram ao fio da espada, bem como seu rei, todas as
cidades dela dependente e tudo o que nelas se achou de
ser vivo. Não deixou nenhum sobrevivente, do mesmo
modo como fizera com Eglon. Consagrou-a ao anátema,
bem como tudo o que nela se encontrava de ser vivo. 38
– Então Josué, com todo Israel, dirigiu-se a Dabir e a
atacou 39 – Tomou-a com o seu rei e com todas as
cidades dela dependentes; passaram-nas ao fio da
espada e votaram ao anátema tudo o que nelas se
achou de ser vivo; não deixando nenhum sobrevivente.
Como havia feito a Hebron, assim fez Josué a Dabir e ao
seu rei, tudo como havia feito a Lebna e ao seu rei. 40 –
Assim Josué conquistou toda a terra, a saber: a
montanha, o Negueb, a planície e as encostas, com
todos os seus reis. Não deixou nenhum sobrevivente e
votou todo ser vivo ao anátema conforme havia
ordenado Iahweh, o Deus de Israel; 41 – Josué os
destruiu desde Cades Berner até Gaza, e toda a terra de
Gósen até Gabaon. 42 - Todos esses reis, com suas
terras, Josué os tomou de uma só vez, porquanto
Iahweh, Deus de Israel, combatia por Israel. 43 –
Finalmente Josué, com todo Israel, voltou ao
acampamento de Guilgal. Esse foi apenas um início do
genocídio israelita que se estendeu para muitos outros
locas e povos por cerca de 40 anos, sempre com o aval e
apoio de seu malvado e vingativo Deus Javé.. Em toda a
narrativa sempre fica bem claro que esses massacres
foram feitos “sem deixar um sobrevivente sequer”, ou
seja: foram trucidados homens, mulheres e crianças
indistintamente. Sempre com a anuência e auxílio de
seu Deus Javé: invejoso, malvado, vingativo e assassino,
aos poucos os israelitas foram praticando um
extermínio em massa em uma terra que jamais tinha
sido deles, mas que o seu Deus Javé tinha “prometido”
para seus antepassados, a custa do assassinato de
milhares de pessoas. Lendo a historia da Bíblia, sempre
constatei que o Deus que ali era mostrado não era o
Deus cristão que eu havia aprendido nas aulas de
religião. O “meu” Deus era um cara muito legal,
amoroso, compreensivo, compassivo e se diferenciava
muito daquele Deus brutal e raivoso que os israelitas
seguiam. O que podemos ver na Bíblia é que, mo início,
os hebreus eram um pequeno grupo de pastores.
Quando Abraão (2160-1985 a.C.) chegou a Canaã com
familiares, lá por 2085 a.C. não deviam ser mais de uns
10 homens (ele, Ló e agregados) com suas mulheres e
filhos. Andavam com seus rebanhos pela região desde
as margens do Eufrates até a região do Neguev, a
procura de bons pastos, em uma região não muito
povoada. Sempre eram bem recebidos pelos habitantes
locais. Viviam trocando de pastos constantemente em
busca de novas pastagens. Quando Jacó (2000-
10/06/2019 CANANEUS DA BÍBLIA
https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-religi
ao-e-teologia/6515780 3/9 1853 a.C.), neto de Abraão,
deixou Canaã com destino ao Egito, lá por 1870 a.C.,
seus familiares eram 66 pessoas (Gênesis 46:: 27).
Continuavam a ser apenas humildes pastores nômades,
ignorantes e analfabetos, morando em tendas, sem uma
pátria definida. Depois da saída do Egito, lá por 1440,
eles seriam 603.500 homens de 20 anos para cima
(|Números 1: 46), sem contar mulheres, crianças e
velhos. Depois de 40 anos no deserto, guiados por
Moisés, de um povo de pastores pacíficos tornaram-se
um grupo de bárbaro sanguinário, aniquilando e
saqueando tudo que encontravam pelo caminho.
Segundo Moisés, todos esses massacres eram
mandados ou comandados por seu Deus Javé. Ao ler e
reler esses trechos da Bíblia, sempre me perguntava:
que Deus é esse? Confortava-me imaginar que
provavelmente tudo isso acontecia não por ordem ou
anuência de Deus, mas pela mente distorcida e insana
de Josué, que usava o nome de Deus, para praticar suas
atrocidades. Isso também aconteceu na cristianismo,
quando cruzados, em nome de Deus, executaram
atrocidades contra os povos árabes, ou mesmo os
cristãos contra si mesmos, durante as várias “Santas
Inquisições”. Triste é var que em “nome de Deus”,
tantos crimes e injustiças são praticados. FONTE: Bíblia
de Jerusalém – Ed. Paulus, São Paulo, 2016.
COMENTÁRIOS: O homem sempre criou deus à sua
imagem e semelhança. E sempre usou o nome de deus
para justificar seus atos. O deus dos hebreus não era
nada diferente do deus Zeus dos gregos, lançador de
raios, ou do deus da guerra Marte dos romanos, Apenas
somos herdeiros desta cultura, E por estarmos dentro
dela, tendemos a tomá-la como absoluta, como um
peixe dentro de um aquário, que não tem consciência
da água. Os judeus atuais não tem este concepção da
divindade furiosa e violenta dos hebreus da idade do
bronze. Os hebreus desenvolveram o Talmud e Kabalah
para situar as coisas no seu devido contexto. E
interpretar as escrituras como alegorias, portadoras de
um significado escatológico. Nas interpretação atuais
dos judeus, os conflitos de implantação de Israel,
( sejam historicamente verdadeiros ou falsos) são
alegorias dos conflitos das pessoas com seus impulsos
irracionais e primitivos, na busca da realização ( a terra
prometida). O conceito humano sobre Deus é sempre
historicamente situado e localizado. Porque as
coletividades humanas ( a massa) não podem
transcender o seu tempo histórico. Só o indivíduo é
capaz de fazêlo. As Cruzadas para a conquista da Terra
Santa, que ocorreram entre os anos 1000 a 1200 não
tinham nada a ver com os turcos otomanos que só
surgiram na região, vindo da Ásia central, no ano 1299,
quando as cruzadas já tinham sido aniquilados pelos
árabes muçulmanos. Não podemos confundir, árabes
muçulmanos com turcos otomanos, que não
10/06/2019 CANANEUS DA BÍBLIA
https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-religi
ao-e-teologia/6515780 4/9 tinham nada a ver com os
árabes, e que de 1299 a 1923, dominaram toda o
Oriente Médio, subjugando todos os povos árabes que
eram grupos de tribos inimigas e rivais entre si. Foi o
inglês, Lawrence da Arábia, que uniu os povos árabes
para guerrear contra os turcos e os vencer. também li
bíblia em criança e muito me escandalizei, mortes filhos
querendo matar pais,mulheres decapitando generais
inimigos........Nao sou favorável a leitura OBRIGATÓRIA
DA BÍBLIA! Mas, a freira diretora da escola, mulher
inteligente, fez o certo:deu, a toda classe 12 anos - tanto
a bíblia quanto um livro que adorei, chamado Historia
geral - com fotos do Egito da assíria, esfinges,
índia.....Deixou a minha escolha hora de ler um ou outro,
era libertaria ofereceu conhecimento e escolha!!!!!!!!
Conquistas e invasões fundamentadas em religiões. Os
cananeus eram um povo perverso, que, entre outras
atrocidades, oferecia crianças a Moloque no fogo. O
Criador é santo e justo. O dia do castigo e da punição
teria que chegar. No caso dos cananeus levou séculos.
Que diferença faz se o Criador, na execução de seus
justos juízos escolhe como agentes exércitos humanos
ou catástrofes naturais? Ele é Deus. Quem é o homem
mortal para que possa questiná-lo ou acusálo de
injustiça? Outro erro crasso de sua análise parcial,
tendenciosa e ateísta: o "lo qatal" (= "não matarás") não
excluía a pena de morte por crimes, tudo devidamente
registrado na Torá. Você está corretíssimo...
biblicamente foi por isso que Deus mandou matar...
exatamente por causa dos pecados dos outros povos
(que não era o povo escolhido)... lembrando que tudo
começa com Abraão... Deus revela ser o único e
verdadeiro Deus não há outro Deus apenas o Deus
revelado por Abraão (Deus se auto-revela para Abraão
- o pai da fé judaico-cristã)... enquanto que toda a
população da terra de Ur era politeísta... Na Bíblia está
escrito e fica muito claro... o Deus de Israel... Israel é o
meu povo... Israel o povo escolhido. Para o contexto da
época no caso de não existir a guerra... apenas se e
somente se... Os outros povos estrangeiros se
convertessem a fé em Javé... como aconteceu com
alguns egípcios na época do êxodo e a figura
estrangeira mais famosa convertida a Raabe. Deus
mandou matar mulheres grávidas as crianças e até
mesmo os animais dos povos inimigos destruindo toda
a identidade destes povos que cultuavam deuses
ballains feitos pela mão humana. A Justiça de Deus é
que os outros povos fossem sim punidos pelos seus
pecados e idolatrias... o assunto é polêmico e complexo...
muitos tem diversas opiniões... passando uma borracha
nisso tudo... surge Jesus que prega o amor ao próximo e
até mesmo o amor pelos nossos inimigos. Veja como
este assunto é fantástico e incrível... e precisa ser sim
bastante estudado... eu amo a Bíblia. Quando Abraão foi
para Canaã, foi muito bem recebido pelos cananeus
como se fossem da mesma família. Ele vivia na terra
dos cananeus 10/06/2019 CANANEUS DA BÍBLIA
https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-religi
ao-e-teologia/6515780 5/9 mudando de partos, com
seus rebanhos sem ser incomodado. Seus descendentes
casaram e arruaram mulheres cananitas para seus
filhos. A história, a arqueologia, a paleontologia, a
genética comprova que cananeus e hebreus tinham a
mesma origem genética, a língua tinha a mesma origem
acadiana, tinham os mesmos costumes, as mesmas
crenças, e os mesmos deuses, só variando um pouco os
rituais em cultuar esses deuses. O Deus El, dos
cananeus virou Eloim para os hebreus. O nome de
personagens bíblicos sempre tem o EL, no final
referendo-se ao deus cananeus. Samuel, Ezequiel, e o
próprio pais se chama Israel, nome que o Deus El, deu
para Jacó. No geral os cananeus não eram nem piores
nem melhores do que os israelitas, pios na Bíblia há
dezenas de passagens onde eles ou seus descendentes,
os isra(EL)itas, fazem sacrifícios de crianças para o
deus Baal, filho de El, e também cultuado tanto pelos
cananeus como pelos israelitas. COMENTÁRIO DO
DEUS BÍBLICO: O Deus bíblico pode ser fusão de vários
deuses pagãos, dizem especialistas. Personalidade e
atributos de Javé são compartilhados com outras
divindades do Oriente. Pai celestial El, jovem guerreiro
Baal e até 'senhora' Asherah teriam sido influências. A
afirmação pode soar desrespeitosa para judeus ou
cristãos, mas não está muito longe da verdade: Javé, o
Deus do Antigo Testamento, parece ter múltiplas
personalidades. Para ser mais exato, especialistas que
estudam os textos bíblicos, lêem antigas inscrições
encontradas nos arredores de Israel ou escavam sítios
arqueólogicos estão reconhecendo a influência
conjunta de diversos deuses pagãos antigos no retrato
de Javé traçado pela Bíblia. A idéia não é demonstrar
que o Deus bíblico não passa de mais um personagem
da mitologia. Os pesquisadores querem apenas
entender como elementos comuns à cultura do antigo
Oriente Próximo, e principalmente da região onde hoje
ficam o estado de Israel, os territórios palestinos, o
Líbano e a Síria, contribuíram para as idéias que os
antigos israelitas tinham sobre os seres divinos. As
conclusões ainda são preliminares, mas há bons
indícios de que Javé é uma fusão entre um deus idoso e
paternal e um jovem deus guerreiro, com pitadas de
outras divindades – uma delas do sexo feminino. O
ponto de partida dessas análises é o fundo cultural
comum entre o antigo povo de Israel e seus vizinhos e
adversários, os cananeus (moradores da terra de Canaã,
como era chamada a região entre o rio Jordão e o mar
Mediterrâneo em tempos antigos). A Bíblia retrata os
israelitas como um povo quase totalmente distinto dos
cananeus, mas os dados arqueológicos revelam
profundas semelhanças de língua, costumes e cultura
material – a língua de Canaã, por exemplo, era só um
dialeto um pouco diferente do hebraico bíblico.
10/06/2019 CANANEUS DA BÍBLIA
https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-religi
ao-e-teologia/6515780 6/9 Memórias de Ugarit Os
cananeus não deixaram para trás uma herança literária
tão rica quanto a Bíblia. No entanto, poucos
quilômetros ao norte de Canaã, na atual Síria, ficava a
cidade-Estado de Ugarit, cuja língua e cultura eram
praticamente idênticas às de seus primos do sul. Ugarit
foi destruída por invasores bárbaros em 1200 a.C., mas
os arqueólogos recuperaram numerosas inscrições da
cidade, nas quais dá para entrever uma mitologia que
apresenta semelhanças (e diferenças) impressionantes
com as narrativas da Bíblia. “Por isso, Ugarit é uma
parte importante do fundo cultural que, mais tarde,
daria origem às tribos de Israel”, resume Christine
Hayes, professora de estudos clássicos judaicos da
Universidade Yale (EUA). Uma das figuras mais
proeminentes nesses textos é El – nome que quer dizer
simplesmente “deus” nas antigas línguas da região, mas
que também se refere a uma divindade específica, o
patriarca, ou chefe de família, dos deuses. “Patriarca” é
a palavra-chave: o El de Ugarit tem paralelos muito
específicos com a figura de Deus durante o período
patriarcal, retratado no livro do Gênesis e personificado
pelos ancestrais dos israelitas: Abraão, Isaac e Jacó.
Nesses textos da Bíblia há, por exemplo, referências a El
Shadday (literalmente “El da Montanha”, embora a
expressão normalmente seja traduzida como “Deus
Todo-Poderoso”), El Elyon (“Deus Altíssimo”) e El Olam
(“Deus Eterno”). O curioso é que, na mitologia ugarítica,
El também é imaginado vivendo no alto de uma
montanha e visto como um ancião sábio, de vida eterna.
Tal como os patriarcas bíblicos, El é uma espécie de
nômade, vivendo numa versão divina da tenda dos
beduínos; e, mais importante ainda, El tem uma relação
especial com os chefes dos clãs, tal como Abraão, Isaac
e Jacó: eles os protege e lhes promete uma
descendência numerosa. Ora, a maior parte do livro do
Gênesis é o relato da amizade de Deus com os
patriarcas israelitas, guiando suas migrações e fazendo
a promessa solene de transformar a descendência deles
num povo “mais numeroso que as estrelas do céu”.
Israel ou “Israías”? Outros dados, mais circunstanciais,
traçam outros elos entre o Deus do Gênesis e El: num
dos trechos aparentemente mais antigos do livro
bíblico, Deus é chamado pelo epíteto poético de “Touro
de Jacó” (frase às vezes traduzida como “Poderoso de
Jacó”), enquanto a mitologia ugarítica compara El
freqüentemente a um touro. Finalmente, o próprio
nome do povo escolhido – Israel, originalmente dado
como alcunha ao patriarca Jacó – carrega o elemento
“-el”, lembra Airton José da Silva, professor de Antigo
Testamento do Centro de Estudos da Arquidiocese de
Ribeirão Preto (SP). “É o nome do deus cananeu, mais
um indício de que Israel surge dentro de Canaã, por um
processo gradual”, diz Silva. Ele argumenta que, se Javé
10/06/2019 CANANEUS DA BÍBLIA
https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-religi
ao-e-teologia/6515780 7/9 fosse desde sempre a
divindade dos israelitas, o nome desse povo seria
“Israías”. Isso porque o elemento adaptado como “-ías”
em português (algo como -yahu) era, em hebraico, uma
forma contrata do nome “Javé”. Curiosamente, o
elemento se torna dominante nos chamados nomes
teofóricos (ligados a uma divindade) dados a israelitas
no período da monarquia, a partir dos séculos 10 a.C. e
9 a.C. E esse nome (provavelmente Yahweh em
hebraico; a sonoridade original foi obscurecida pelo
costume de não pronunciar a palavra por respeito) é
um enigma e tanto. As tradições bíblicas são um tanto
contraditórias, mas pelo menos uma fonte das
Escrituras afirma que Javé só deu a conhecer seu
verdadeiro nome aos israelitas quando convocou
Moisés para ser seu profeta e arrancar os descendentes
de Jacó da escravidão no Egito. (A Moisés, Deus diz que
apareceu a Abraão, Isaac e Jacó como “El Shadday”.) O
problema é que ninguém sabe qual a origem de Javé, o
qual nunca parece ter sido uma divindade cananéia,
exatamente como diz o autor bíblico. Senhor do deserto
A esmagadora maioria dos arqueólogos e historiadores
modernos não coloca suas fichas no Êxodo maciço de
600 mil israelitas (sem contar mulheres e crianças) do
Egito, por dois motivos: a semelhança entre Israel e os
cananeus e a falta de qualquer indício direto da fuga.
Mas muitos supõem que um pequeno componente dos
grupos que se juntaram para formar a nação israelita
tenha sido formado por adoradores de Javé, que
acabaram popularizando o culto. Quem seriam esses
primeiros javistas? Uma pista pode vir de alguns
documentos egípcios, que os chamam de Shasu – algo
como “nômades” ou “beduínos”. “Duas ou três
inscrições egípcias mencionam um lugar chamado
'Yhwh dos Shasu', o que, para alguns especialistas,
parece ser 'Javé dos Shasu'. Talvez sim, talvez não. Não
temos como saber ao certo”, diz Mark S. Smith,
pesquisador da Universidade de Nova York e autor do
livro “The Early History of God” (“A História Antiga de
Deus”, ainda sem tradução para o português). “É menos
provável que o culto a Javé venha de dentro da
Palestina e da Síria, e um pouco mais plausível que ele
tenha se originado em certas regiões da Arábia”, diz
Airton da Silva. Mark Smith lembra que algumas das
passagens poéticas consideradas as mais antigas da
Bíblia – nos livros dos Juízes e nos Salmos, por exemplo
– referem-se ao “lar” de Javé em locais denominados
“Teiman” ou “Paran”. Aparentemente, são áreas
desérticas, apropriadas para a vida de nomadismo.
“Muitos especialistas localizam essa região no que seria
o noroeste da atual Arábia Saudita, ao sul da antiga
Judá [parte mais meridional dos territórios israelitas]”,
diz Smith. Guerreiro divino Seja como for, quando Javé
entra em cena com seu “nome oficial” durante o Êxodo
bíblico, a impressão que se tem é que ele já absorveu
boa parte das características de um outro deus cananeu:
Baal (literalmente “senhor”, 10/06/2019 CANANEUS
DA BÍBLIA
https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-religi
ao-e-teologia/6515780 8/9 “mestre” e, em certos
contextos, até “marido”), um guerreiro jovem e
impetuoso que acabou assumindo, na mitologia de
Ugarit e da Fenícia (atual Líbano), o papel de comando
que era de El. Indícios dessa nova “personalidade” de
Deus surgem no fato de que, pela primeira vez na
narrativa bíblica, Javé é visto como um guerreiro,
destruindo os “carros de guerra e cavaleiros” do Faraó
e, mais tarde, guiando as tribos de Israel à vitória
durante a conquista da terra de Canaã. Tal como Baal,
Javé é descrita como “cavalgando as nuvens” e
“trovejando”. E, mais importante ainda, uma série de
textos bíblicos falam de Deus impondo sua vontade
contra os mares impetuosos (como no caso do Mar
Vermelho, em que as águas engolem o exército egípcio
por ordem divina) ou derrotando monstros marinhos.
Há aí uma série de semelhanças com a mitologia
cananéia sobre Baal, o qual derrotou em combate o
deus-monstro marinho Yamm (o nome quer dizer
simplesmente “mar” em hebraico) ou “o Rio”
personificado. Na mitologia do Oriente Próximo, as
águas marinhas eram vistas como símbolos do caos
primitivo, e por isso tinham de ser derrotadas e
domadas pelos deuses. Javé também é associado à
chuva e à fertilidade da terra pelos antigos autores
bíblicos – atributos que aparecem entre as funções de
Baal. Há, porém, uma diferença importante entre os
dois deuses: outra narrativa de Ugarit fala do
assassinato de Baal pelas mãos de Mot, o deus da morte,
e da ressurreição do jovem guerreiro – provavelmente
uma representação mítica do ciclo das estações do ano,
essencial para a agricultura, já que Baal era um deus
que abençoava a lavoura. O lado guerreiro de Javé é
talvez o mais difícil de aceitar para a sensibilidade
moderna: quando os israelitas realizam a conquista da
terra de Canaã, a ordem dada por Deus é de
simplesmente exterminar todos os habitantes, e às
vezes até os animais (embora, em alguns casos, os
homens de Israel recebam permissão para transformar
as mulheres do inimigo em concubinas). Textos de
outra nação da área, os moabitas (habitantes de Moab,
a leste do Jordão) ajudam a lançar luz sobre esse
costume aparentemente bárbaro. Um monumento de
pedra conhecido como a estela de Mesa (nome de um
rei de Moab em meados do século 9 a.C.) fala,
ironicamente, de uma guerra de Mesa com Israel na
qual o rei moabita, por ordem de seu deus, Chemosh,
decreta o herem, ou “interdito”. E o herem nada mais é
que a execução de todos os prisioneiros inimigos como
um ato sagrado. Tratava-se, portanto, de um elemento
cultural de toda a região. Lado feminino Se a “múltipla
personalidade” de Javé pode ser basicamente descrita
como uma combinação de El e Baal, há uma influência
mais sutil, mas também perceptível, de um elemento
feminino: a deusa da fertilidade Asherah, originalmente
a esposa de Baal na mitologia cananéia. Normalmente,
Deus 10/06/2019 CANANEUS DA BÍBLIA
https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-religi
ao-e-teologia/6515780 9/9 Comentários Sobre o autor
escriba vilela Salvador - Bahia - Brasil, 66 anos 378
textos (42104 leituras) (estatísticas atualizadas
diariamente - última atualização em 10/06/19 06:50)
Perfil Textos Contato se comporta de forma masculina
na Bíblia, e a linguagem utilizada para falar de sua
relação com os israelitas é, muitas vezes, a de um
marido (Deus) e a esposa (o povo de Israel). Mas o livro
bíblico dos Provérbios, bem como alguns outras fontes
israelitas, apresenta a figura da Sabedoria
personificada, uma espécie de “auxiliar” ou “primeira
criatura” de Deus que o teria auxiliado na obra da
criação do mundo. Segundo o texto dos Provérbios,
Deus “se deleita” com a Sabedoria e a usa para inspirar
atos sábios nos seres humanos. Para muitos
pesquisadores, a figura da Sabedoria incorpora
aspectos da antiga Asherah na maneira como os antigos
israelitas viam Deus, criando uma espécie de tensão:
embora o próprio Deus não seja descrito como
feminino, haveria uma complementaridade entre ele e
sua principal auxiliar.

--------------------------

Centro de estudos cristãos da Bahia - CECB

A Bíblia desenterrada
FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. The Bible
Unearthed. Archaeology’s New Vision of Ancient Israel
and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free
Press, 2001, xii + 385 p. – ISBN 9780684869124
leitura: 54 min
Israel Finkelstein, autor de importantes estudos no
campo da arqueologia da Palestina, foi o Diretor do
Instituto de Arqueologia Sonia e Marco Nadler da
Universidade de Tel Aviv, Israel, de 1996 a 2003, e
Diretor das escavações de Tel Meguido. Ganhou
em 2005 o prêmio Dan David. É o titular da Cátedra
Jacob M. Alkow de Arqueologia de Israel nas Idades do
Bronze e do Ferro da mesma Universidade. Neil Asher
Silberman é Professor do Departamento de
Antropologia da Universidade de
Massachusetts-Amherst, nos Estados Unidos.
Este envolvente livro, A Bíblia desenterrada: Uma nova
visão arqueológica do antigo Israel e da origem de seus
textos sagrados (no Brasil: A Bíblia não tinha razão. São
Paulo: A Girafa, 2003; A Bíblia desenterrada: A nova
visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos
seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018), contém
12 capítulos agrupados em três partes, um epílogo, 7
apêndices – que retomam e aprofundam temas tratados
ao longo do texto – uma bibliografia, um índice de
nomes e lugares, além dos tradicionais prólogo e
introdução. Donos de prosa refinada, os autores tomam
cuidadosamente o leitor pela mão e o conduzem em
aventura fascinante através do mundo do Antigo Israel.
Mesmo antes do prólogo, nos agradecimentos feitos
pelos autores àqueles que colaboraram na produção da
obra, os autores já explicam a razão da publicação do
livro.
O livro, dizem, foi pensado cerca de oito anos antes de
sua publicação. E o motivo foi o debate sobre a
historicidade da Bíblia, que então começava a atrair o
público leigo. Os autores concluíram, ainda no começo
da década de 90, que “um livro atualizado sobre este
tema para os leitores em geral se fazia necessário” (p.
V).
Finkelstein e Silberman observam que, nestes últimos
anos, a controvérsia arqueológica sobre a questão
bíblica cresceu muito, inclusive com acusações pessoais
de motivações políticas inconfessáveis [os autores
devem estar se referindo às possíveis implicações da
pesquisa acadêmica para as reivindicações atuais de
determinados grupos em Israel sobre o território
palestino].
Houve um êxodo? Existiu uma conquista de Canaã?
Davi e Salomão governaram um grande império?
Questões como estas atraíram jornalistas, chegaram ao
grande público e, ao ultrapassarem os círculos
acadêmicos da arqueologia e da exegese bíblica,
criaram polêmicos debates teológicos, resultando até
em discussões sobre a crença religiosa deste ou
daquele estudioso.
Por tudo isso é que declaram os autores: “Apesar das
paixões suscitadas por este tema, nós acreditamos que
uma reavaliação dos achados das escavações mais
antigas e as contínuas descobertas feitas pelas novas
escavações deixaram claro que os estudiosos devem
agora abordar os problemas das origens bíblicas e da
antiga sociedade israelita de uma nova perspectiva,
completamente diferente da anterior” (p. V-VI). Sua
proposta no livro: apresentar evidências que sustentam
esta afirmação e reconstruir uma história do antigo
Israel bem diferente das habituais. Os autores deixam,
finalmente, aos leitores, o julgamento de sua
empreitada.
No Prólogo os autores propõem que o mundo em que a
Bíblia nasceu foi o da Jerusalém da reforma do rei
Josias no século VII AEC [antes da Era Comum, o
mesmo que a.C.= antes de Cristo]. O núcleo histórico da
Bíblia, pelo menos, nasceu nas ruas de Jerusalém, nos
pátios do palácio real da dinastia davídica e no Templo
do Deus de Israel, em parte de materiais tradicionais
herdados, em parte de composições originais da época.
Nas palavras dos autores: “A saga histórica contida na
Bíblia – do encontro de Abraão com Deus e sua jornada
para Canaã, da libertação mosaica dos filhos de Israel
da escravidão até a ascensão e queda dos reinos de
Israel e Judá – não foi uma revelação miraculosa, mas
um brilhante produto da imaginação humana. Ela foi
concebida pela primeira vez – como as recentes
descobertas arqueológicas sugerem – no espaço de
duas ou três gerações, a cerca de dois mil e seiscentos
anos atrás. Seu berço foi o reino de Judá, uma região
escassamente povoada por pastores e agricultores,
governada por uma isolada cidade real precariamente
encravada no coração da região montanhosa sobre um
estreito cume, entre profundos, rochosos
desfiladeiros” (p. 1).
Uma cidade que pareceria extremamente modesta aos
olhos de um observador moderno, com seus cerca de
15 mil habitantes, com bazares e casas amontoadas a
oeste e sul de um modesto palácio real e seu Templo.
Entretanto, no século VII AEC, esta cidade fervilhava
com uma agitada população de oficiais reais, sacerdotes,
profetas, refugiados e camponeses privados de suas
terras. Uma cidade consciente de sua história,
identidade, destino e relação direta com Deus.
Esta visão da antiga Jerusalém e das circunstâncias que
deram origem à Bíblia, insistem os autores, é
proveniente das recentes descobertas arqueológicas.
Descobertas que “revolucionaram o estudo do Israel
primitivo e lançaram sérias dúvidas sobre as bases
históricas das tão famosas estórias bíblicas como as
peregrinações dos patriarcas, o Êxodo do Egito, a
conquista de Canaã e o glorioso império de Davi e
Salomão” (p. 3).
É isto que os autores deste livro pretendem contar: “A
estória do antigo Israel e o nascimento de suas
escrituras sagradas a partir de uma nova perspectiva,
uma perspectiva arqueológica” (p. 3). Os autores
pretendem separar história de lenda. Enfim, declaram,
seu propósito não é simplesmente desmontar
conhecimentos ou crenças, mas partilhar as mais
recentes percepções arqueológicas “não apenas sobre
o quando, mas também sobre o porquê a Bíblia foi
escrita, e porque ela permanece tão poderosa ainda
hoje” (p. 3).
Na Introdução, p. 4-24, sob o título A Arqueologia e a
Bíblia, os autores nos informam que foram os estudos
detalhados dos textos bíblicos e as pesquisas
arqueológicas realizadas na Palestina nos dois últimos
séculos que nos ajudaram a reconstruir a real história
escondida atrás da Bíblia.
Em seguida, ao oferecerem algumas definições básicas
do que é a Bíblia Hebraica [= Antigo Testamento] e
explicar a sua estrutura – “O coração da Bíblia Hebraica
é uma história épica que descreve o surgimento do
povo de Israel e sua contínua relação com Deus” (p. 8) -,
Finkelstein e Silberman dizem que este livro examina
as principais obras ‘históricas’ da Bíblia, ou seja, a Torá
[= Pentateuco: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio] e os Profetas Anteriores [= OHDtr –
Obra Histórica Deuteronomista: Josué, Juízes, 1 e 2
Samuel e 1 e 2 Reis].
E explicam: “Nós comparamos esta narrativa com a
riqueza dos dados arqueológicos que foram coletados
nas últimas décadas. O resultado é a descoberta de uma
relação complexa e fascinante entre o
que realmente aconteceu na terra da Bíblia durante o
período bíblico (…) e os conhecidos detalhes da
elaborada narrativa histórica contida na Bíblia
Hebraica” (p. 8).
Após esboçarem a história da pesquisa do Pentateuco e
da OHDtr, os autores continuam definindo, em gradual
aproximação, a sua perspectiva que é: a arqueologia
oferece hoje evidência suficiente para que se sustente
uma nova proposta. Proposta que diz ter sido o núcleo
histórico do Pentateuco e da OHDtr modelado no século
VII AEC.
“Nós focalizaremos o Judá do final do século VIII e do
século VII AEC, quando este processo literário começou
para valer, e argumentaremos que a maior parte do
Pentateuco é uma criação da monarquia recente,
elaborado em defesa da ideologia e necessidades do
reino de Judá, e, como tal, está intimamente associado à
História Deuteronomista. E nos alinharemos com
aqueles estudiosos que argumentam que a História
Deuteronomista foi compilada, principalmente, no
tempo do rei Josias [640-609 AEC], para oferecer uma
legitimação ideológica para ambições políticas e
reformas religiosas específicas” (p. 14).
Finalmente, depois de brevemente resenhar a história
da arqueologia da Palestina, Finkelstein e Silberman
concluem, na p. 23, que “a maior parte daquilo que é
normalmente considerado como história acurada (…)
são, na verdade, as criativas expressões de um
poderoso movimento de reforma religiosa que
floresceu no reino de Judá na Idade Recente do Ferro”.
Isto não implica, para os autores, que o antigo Israel
não tenha uma história genuína, nem que os relatos
bíblicos devam ser descartados, mas que, amparados
pelos achados arqueológicos e pelos testemunhos
extrabíblicos, se verá como as narrativas bíblicas são,
elas mesmas, parte da estória, e não o inquestionável
quadro histórico dentro do qual deveriam se encaixar
cada achado arqueológico ou conclusão da pesquisa.
A Bíblia é, nesta perspectiva, um artefato específico que,
juntamente com a cerâmica, a arquitetura e as
inscrições, nos ajuda a compreender a sociedade na
qual ela foi produzida.
“Nossa estória se afastará dramaticamente da familiar
narrativa bíblica. Será a estória não de um, mas
de dois reinos escolhidos, que juntos contêm as raízes
históricas do povo de Israel”, concluem os autores ao
término da Introdução, na p. 23.

A Primeira Parte do livro – A Bíblia como História? –


tem cinco capítulos, que tratam, respectivamente, dos
patriarcas (p. 27-47), do êxodo (p. 48-71), da conquista
de Canaã (p. 72-96), da identidade dos israelitas (p.
97-122) e da monarquia sob Davi/Salomão (p.
123-145).
No capítulo sobre os patriarcas, após sintetizarem as
tradições bíblicas sobre estas figuras, os autores se
perguntam: reais ou fictícias?
Para responder a isso, eles explicam as razões da busca
dos estudiosos pelos patriarcas, nos últimos séculos, e
como a historiografia bíblica ficou convencida de sua
historicidade. Entre os nomes mais conhecidos estão,
por exemplo, Albright, De Vaux, Speiser, Gordon e
Benjamin Mazar.
Entretanto, lembram os autores, um acordo nunca foi
alcançado, especialmente na questão da datação dos
patriarcas. E questionam: onde está o erro desta busca?
O erro está em que todos eles acreditavam que a época
patriarcal deveria ser vista, de qualquer modo, como a
primeira fase de uma história sequencial de Israel,
concluem na p. 36. E se esta sequência – patriarcas,
êxodo, conquista, monarquia unida, reinos divididos,
exílio etc – não for considerada?
Em seguida, os autores expõem a posição de
especialistas que, analisando de modo diferente as
tradições, não acreditam na historicidade dos
patriarcas. Destacam Wellhausen, Van Seters e Thomas
L. Thompson, todos mostrando que as narrativas são
compilações bem recentes. E, mais uma vez, perguntas:
mas estas compilações teriam ocorrido quando?
Buscando na arqueologia as respostas, Finkelstein e
Silberman mostram as inconsistências existentes nas
tradições patriarcais. E defendem que detalhes como a
presença impossível de camelos e filisteus no mundo
patriarcal são ‘anacronismos’ a serem seriamente
considerados, pois não são inserções posteriores em
narrativas antigas, mas indícios de que as narrativas
são bem mais recentes do que alguns estudiosos
pensavam. E tudo aponta para os séculos VIII/VII AEC,
concluem na p. 38, quando estes elementos não eram,
de modo algum, anacrônicos.
E é a partir desse pressuposto que os autores vão
mostrar como o exame das genealogias e dos costumes
patriarcais “oferecem um colorido mapa humano do
Antigo Oriente Médio de um inquestionável ponto de
vista dos reinos de Israel e Judá nos séculos oitavo e
sétimo AEC. Estas estórias oferecem um comentário
altamente sofisticado dos negócios políticos nesta
região nos períodos assírio e neobabilônico”, dizem nas
p. 38-39.
Finkelstein e Silberman consideram que a
caracterização de muitos termos e nomes de lugares
das tradições patriarcais combinam perfeitamente com
a relação de Israel e Judá com os reinos e povos
vizinhos desta época. Para demonstrar isto, tratam dos
arameus, de Amon e Moab, Edom, dos descendentes de
Ismael e de nomes de lugares mencionados em Gn 14 e
outros textos.
Na sequência, os autores lembram a posição de M. Noth
de que os patriarcas seriam originariamente ancestrais
isolados que foram agrupados como uma família para
criar uma história unificada. E mostram, então, nesta
perspectiva, que a escolha de Abraão e sua ligação com
Hebron e Jerusalém (Salém em Gn 14,18), cidades reais
davídicas, foi feita para enfatizar a primazia de Judá.
Escolha esta feita nos séculos VIII/VII AEC, mas
retroprojetadas para o começo, para legitimar Judá
como projeto divino. “Então, a ideia pan-israelita, com
Judá no centro, nasceu”, sentenciam na p. 44.
Concluem, assim, Finkelstein e Silberman a questão
patriarcal: as narrativas patriarcais são provavelmente,
baseadas em antigas tradições locais, mas “a ordem em
que elas foram agrupadas as transformam em uma
poderosa expressão dos sonhos judaítas do século
sétimo” (p. 45). Por isso, as tradições patriarcais devem
ser lidas como uma espécie de piedosa ‘pré-história’ de
Israel, na qual Judá exerce um papel decisivo. Sob tal
perspectiva, devemos considerar a versão javista (J)
das narrativas patriarcais como uma tentativa de
redefinir a unidade do povo de Israel, muito mais do
que a recuperação de vidas de personagens que teriam
vivido um milênio antes.
Finkelstein e Silberman consideram, finalmente, que a
grande genialidade dos criadores deste épico nacional
do século sétimo AEC foi ter transformado os filhos de
Abraão, Isaac e Jacó numa grande família, unidos pelo
poder da lenda, muito mais forte do que poderiam ser
tênues lembranças de alguns indivíduos nômades
perambulando pelas montanhas de Canaã.
No capítulo sobre o êxodo, os autores fazem quatro
perguntas: O êxodo tem credibilidade histórica? A
arqueologia pode ajudar a reconstruí-lo? É possível
traçar a rota do êxodo? O êxodo aconteceu como
descrito na Bíblia?
Após uma síntese da narrativa bíblica, Finkelstein e
Silberman confirmam que as migrações de Canaã para
o Egito são bem documentadas pela arqueologia e por
textos da época. Para muitos habitantes de Canaã,
região periodicamente sujeita a severas secas, a única
saída era ir para o Egito. Pinturas e textos egípcios
testemunham a presença de semitas no delta do Nilo ao
longo das Idades do Bronze e do Ferro.
Por outro lado, há intrigantes paralelos entre a história
bíblica de José e o êxodo e a história egípcia escrita por
Maneton, sobre a invasão do Egito pelos hicsos e sua
posterior expulsão após um século. “Invasão” que
escavações arqueológicas recentes revelaram ter sido
muito mais uma ocupação cananeia gradual e pacífica
do delta do que uma operação militar. “As descobertas
feitas em Tell ed-Daba [a antiga Avaris, capital dos
hicsos] constituem evidência de um longo e gradual
desenvolvimento da presença cananeia no delta e um
controle pacífico da região”, concluem na p. 55.
Estes paralelismos entre a história bíblica de José e a
história egípcia dos hicsos indicam a possibilidade do
êxodo. Entretanto, duas questões permanecem: Quem
eram este imigrantes semitas? E será que a data de sua
permanência no Egito [1670-1570 AEC] combina com a
cronologia bíblica?
A Bíblia colocou o êxodo em torno de 1440 AEC, data
que se obtém pela comparação de dados bíblicos com
fontes extrabíblicas. Entretanto, esta data não coincide
com a expulsão dos hicsos. Por isto, muitos estudiosos
consideram-na simbólica apenas, e datam o êxodo no
século XIII AEC, na época de Ramsés II, fundados em
testemunhos egípcios indiretos, como a construção da
cidade de Pi-Ramsés no delta, na qual trabalharam
semitas, e na estela de Merneptah, filho e sucessor de
Ramsés II, que fala da presença de uma entidade de
nome ‘Israel’ presente em Canaã, no final do século XIII
AEC.
Mas quem eram estes semitas presentes no Egito na
construção de cidades e que ‘Israel’ é este da estela de
Merneptah? Ainda não há respostas definitivas para
estas perguntas. E mais: um êxodo em massa teria sido
possível na época de Ramsés II?
O que se sabe é que não existe nas fontes egípcias da
época menção alguma da presença de israelitas no
Egito. Nem ligados aos hicsos (séculos XVII-XVI AEC),
nem aos grupos cananeus mencionados nas Cartas de
Tell el-Amarna (século XIV AEC), nem a um fuga para
Canaã (século XIII AEC).
Trabalhando a partir desta lógica, Finkelstein e
Silberman vão concluir pela impossibilidade do êxodo
no século XIII AEC. Entre outras coisas, eles alegam que,
nesta época, a fronteira do Egito com Canaã era
severamente controlada, como a arqueologia
comprovou na década de 70; que não existe nenhum
sinal de ocupação do Sinai na época de Ramsés II ou
predecessores imediatos; que não existe sinal do êxodo
em Kadesh-Barnea ou Ezion-Geber, nem nos outros
lugares mencionados na narrativa do êxodo, como Tel
Arad, Tel Hesbon ou Edom. Convém considerar,
também, que as narrativas bíblicas do êxodo jamais
mencionam o nome do faraó que os israelitas
enfrentaram.
E concluem: “Os locais mencionados na narrativa do
êxodo são reais. Alguns eram bem conhecidos e
aparentemente estavam ocupados em épocas mais
antigas e em épocas mais recentes – após o
estabelecimento do reino de Judá, quando a narrativa
bíblica foi pela primeira vez escrita. Infelizmente, para
os defensores da historicidade do êxodo, estes locais
estavam desocupados exatamente na época em que
aparentemente eles exerceram algum papel nas
andanças dos israelitas pelo deserto” (p. 64).
E é então que se verifica estarem as condições do
sétimo século AEC, época da escrita, bem mais
presentes na estória do êxodo, do que uma realidade do
século XIII AEC. E aqui Finkelstein e Silberman vão
adotar a tese do egiptólogo Donald B. REDFORD,
exposta no livro Egypt, Canaan, and Israel in Ancient
Times. Princeton: Princeton University Press, 1992.
Falando de maneira muito simplificada, a proposta é a
seguinte: a memória da invasão e expulsão dos hicsos
foi incorporada em Canaã como uma memória de
confronto, vitória e libertação. Israel, ao surgir de
Canaã, será o herdeiro dessa memória. Quando, no
século VII AEC, Psamético I, faraó do Egito e Josias, rei
de Judá tentam ocupar o espaço deixado pela Assíria na
região da Palestina, e se confrontam – Josias será
vencido por Necao II, filho de Psamético I -, esta
memória serve de pano de fundo para a narrativa do
êxodo. Êxodo impossível na época de Ramsés II, mas
um paradigma de resistência na luta de Josias para
reunificar o grande Israel.
Para finalizar: “A saga do êxodo de Israel do Egito não é
uma verdade histórica, nem uma ficção literária. Ela é
uma poderosa expressão de memória e esperança
nascida em um mundo em transformação. O confronto
entre Moisés e o faraó espelha o crucial confronto entre
o jovem rei Josias e o recém-coroado faraó Necao. Fixar
esta imagem bíblica em uma data anterior é subtrair da
estória seu mais profundo significado. A Páscoa se
revela, assim, não como um simples evento, mas como
uma experiência contínua de resistência nacional
contra os poderes estabelecidos” (pp.70-71).
No capítulo sobre a conquista de Canaã, a questão
básica é: história ou mito? Para responder a isto, os
autores, após resumir a saga bíblica da conquista
narrada no livro de Josué, dizem que as Cartas de Tell
el-Amarna, do século XIV AEC, mostram um Canaã bem
diferente daquele de Josué, ou seja, como uma
província egípcia, governada por fracos chefes nas
cidades. Realidade que a arqueologia confirma, ao
escavar cidades pequenas e fracas, algumas
abandonadas ou diminuídas em população e povoados
sem muralhas.
E no século XIII AEC? Não temos dados como os das
Cartas de Tell el-Amarna, mas o forte governo de
Ramsés II estava presente em Canaã, como se pode ver
na fortaleza egípcia de Bet-Shean e em Meguido, do que
os autores deduzem que os egípcios em Canaã não
ficariam indiferentes a uma destruição tal como a de
Josué.
Após repassar a arqueologia da conquista – quer dizer,
os defensores da versão de Josué – na primeira metade
do século XX, com as escavações de Albright em Tell
Beit Mirsim/Debir (1926-1932), dos britânicos em Tell
ed-Duweir/Lakish (1930ss) e do israelense Yigael
Yadin em Tell el-Waqqas/Hasor (1956), Finkelstein e
Silberman explicam como a euforia desta teoria entrou
em crise com as pesquisas de Jericó, Ai, Gabaon e outras
cidades que nem existiam no século XIII AEC, fazendo
cair o consenso sobre a conquista de Canaã.
Em seguida, alertam que, para se compreender Canaã, é
preciso olharmos o Mundo Mediterrâneo como um
todo no século XIII AEC. E aí apontam transformações
dramáticas, tais como o grandioso Egito de Ramsés II
que se enfrenta com o império de Hatti na batalha de
Cades, levando ao tratado egípcio-hitita; o mundo de
Micenas; Chipre…
E, então, por volta de 1130 AEC o grande ‘terremoto’ da
migração dos Povos do Mar, a sua tentativa de invasão
do Egito na época de Ramsés III, a presença dos
filisteus em Ashdod e Ekron, a destruição de outras
cidades cananeias como Hasor, Afek, Lakish e Meguido,
destruição lenta e gradual, concluindo que não pode ter
sido Josué o destruidor destas cidades.
Lembram também os autores como a escola alemã de
Alt e Noth já mostrava, antes da atual posição da
arqueologia, a inconsistência de uma conquista, tal
como narrada em Josué, e a maior coerência da
narrativa de Jz 1. Para concluir disto o seguinte: o livro
de Josué pode trazer, sim, memórias populares e lendas
sobre esta época de profundas transformações, mas o
que deve ter sido uma destruição caótica provocada
por diferentes fatores e grupos diversos, ficou na
tradição como uma poderosa saga de uma brilhante
conquista territorial comandada pelas bênçãos divinas.
Ainda: a lista de cidades de Js 15,21-22 corresponde às
fronteiras do reino de Judá na época de Josias. E
algumas localidades estiveram habitadas somente nas
décadas finais do século VII AEC. Assim, o que a OHDtr
narra das batalhas de Josué cabe melhor na época de
Josias, como o caso de Jericó, Ai (na região de Betel), o
caso dos gabaonitas, a conquista da Shefelá e a
conquista do norte, especialmente Hasor.
Donde os autores concluem que as conquistas de Josué
são uma ‘mascara’ para as conquistas de Josias: e isto
está bem entranhado na OHDtr, onde os paralelismos
entre as figuras de Josué e Josias não são apenas
convencionais, mas “paralelismos diretos na linguagem
e na ideologia – além dos idênticos objetivos de
conquista dos dois personagens” (p. 85).
No capítulo sobre a identidade dos israelitas, a questão
é: se, como a arqueologia sugere, as sagas dos
patriarcas e do êxodo são lendárias, compostas em
épocas bem mais recentes, e se não houve uma
conquista unificada de Canaã sob o comando de Josué,
quem é este Israel que reivindica uma identidade
nacional desde tempos antigos?
Ora, “a arqueologia, surpreendentemente, nos revela
que este povo que vivia nestes povoados, eram
habitantes nativos de Canaã que somente
gradualmente desenvolveram uma identidade étnica
que poderia ser chamada de israelita”, dizem os autores
na p. 98.
Após repassarem uma síntese bíblica da divisão do
território entre as tribos, segundo o livro de Josué, e as
lutas do livro dos Juízes, mais questões são colocadas
por Finkelstein e Silberman: a Bíblia está narrando algo
que realmente aconteceu? Cultuava Israel um só Deus,
mas caía, às vezes, no politeísmo? Como viviam estes
israelitas no seu cotidiano? Sabemos de suas fronteiras
e batalhas, mas como eram os assentamentos e como se
sustentavam? Como nômades do deserto aprenderam a
ser agricultores tão rapidamente?
Em seguida, os autores falam do ‘Israel’ citado na estela
de Merneptah no final do século XIII AEC, da diferença
entre as culturas cananeia e a dos invasores
‘seminômades’ percebida pelos arqueólogos, da teoria
da infiltração pacífica de A. Alt e dos testemunhos
egípcios sobre os apiru e os shoshu. Criticam, por um
lado, a teoria da infiltração pacífica e, por outro, a
proposta da revolta camponesa de Mendenhall e
Gottwald, esta última, pela falta de suporte
arqueológico, para chegar onde sempre chegam: a
resposta às questões colocadas deve ser buscada na
arqueologia.
Mas, dizem Finkelstein e Silberman, os arqueólogos até
os anos 60 procuravam Israel nos lugares errados, nos
grandes sítios das maiores cidades cananeias. E isto
porque acreditavam em Josué. A exceção foi Y. Aharoni
que fez escavações na Alta Galileia. Entretanto,
lembram, desde os anos 40 os arqueólogos já
reconheciam a necessidade da pesquisa de uma região
e não apenas de uma localidade.
E, então, a partir de 1967, os territórios das tribos de
Judá, Benjamin, Efraim e Manassés foram
intensivamente pesquisados, revolucionando o estudo
do antigo Israel, pois uma densa rede de povoados
montanheses foi descoberta: cerca de 250
comunidades habitando as colinas apareceram. “Aqui
estavam os primeiros israelitas”, comemoram os
autores na p. 107.
Como assim? Neste ponto do capítulo, eles passam a
descrever as características de um típico povoado da
Idade do Ferro I, oferecendo inclusive desenhos
ilustrativos e afirmando que a população de todos estes
povoados por volta do ano 1000 AEC não ultrapassava
em muito as 45 mil pessoas. Descrevem o modo de vida
nos povoados, usando como exemplo Izbet Sartah que
foi bem pesquisado.
Disto concluem: a principal luta dos primeiros israelitas
não era com outros povos, mas com as duras condições
da natureza onde viviam. E parece que viviam em
relativa paz e com uma economia auto-suficiente,
isolados das principais rotas comerciais da região e
razoavelmente distantes uns dos outros, não havendo
sinais de comércio entre os povoados. “Por isso, não
nos surpreende que inexistam evidências de
significativa estratificação social nestes povoados,
nenhum sinal de edifícios administrativos, nem grandes
residências de dignitários ou produtos especializados
de hábeis artesãos”, dizem os autores na p. 110.
Entretanto, uma pergunta permanece: de onde eles
vieram? Ora,a partir da pesquisa de Izbet Sartah, que
preservou bastante bem suas estruturas originais,
pode-se acompanhar a evolução dos povoados. E tudo
indica que uma grande parte dos primeiros israelitas
veio do meio pastoril. Pastores nômades, mas que
estavam passando por profundas transformações,
tornando-se, gradualmente, agricultores.
Outra coisa interessante que a arqueologia mostra
também é que esta transformação no século XII AEC
não foi nem a primeira, nem a única: duas outras ondas
de ocupação da região montanhosa de Canaã
ocorreram antes.
A primeira onda foi na Idade do Bronze Antigo, por
volta de 3500 AEC, com cerca de 100 povoados e
pequenas cidades, acontecendo o abandono da maior
parte das povoações nas montanhas por volta de 2200
AEC. A segunda onda ocorreu na Idade do Bronze
Médio, por volta de 2000 AEC, com cerca de 220
assentamentos, que iam desde povoados até cidades e
centros regionais fortificados, chegando a população a
um total de 40 mil pessoas. Esta onda terminou no
século XVI AEC.
A terceira onda, a dos assentamentos israelitas, ocorreu
por volta de 1200 AEC, com uma população de
aproximadamente 45 mil habitantes em cerca de 250
localidades. O ápice desta ocupação foi no século VIII
AEC, após a constituição dos reinos de Judá e de Israel,
com cerca de 500 localidades e uma população de
aproximadamente 160 mil habitantes.
Agora, uma questão interessante é colocada pelos
autores: existe algum padrão nestas três
ocupações? Existe, sim, respondem. A parte norte da
região montanhosa sempre foi mais populosa do que a
parte sul; cada onda de crescimento demográfico
parece ter começado no leste e se expandido para o
oeste; as três ondas possuem uma cultura material
comum (na cerâmica, na arquitetura e na estrutura dos
povoados), resultado provável de condições ambientais
e econômicas semelhantes.
Interessante, porém, é o que a arqueologia revelou ao
escavar ossos de animais: nos períodos entre estas
ondas de ocupação não acontecia um abandono da
região, mas uma mudança de atividade: da agricultura e
criação de gado para o pastoreio. Este, aliás, parece ter
sido, ao longo dos séculos, um comportamento típico
das populações da região: em períodos de intenso
povoamento, há maior dedicação à agricultura,
enquanto que, nos períodos de crise, as pessoas
praticam mais o pastoreio, o que lhes dá maior
mobilidade.
E isto tem importância para a identificação dos
primeiros israelitas? Tem. O que se observa é que
agricultores e pastores nômades sempre tiveram uma
relação de interdependência nas sociedades do Antigo
Oriente Médio, complementando-se na troca de seus
produtos. Entretanto, esta troca não é inteiramente
equilibrada, pois os habitantes dos povoados podem
sobreviver apenas com seus próprios produtos, o
mesmo não acontecendo com os pastores nômades:
eles precisam de grãos para complementar sua dieta,
totalmente dependente do rebanho. E assim, quando
não há povoados com os quais comerciar, eles são
obrigados a produzir, eles mesmos, seus grãos.
Aparentemente, foi isto o que aconteceu no século XII
AEC, quando teria ocorrido a ausência do controle
egípcio sobre Canaã e a economia da região entrou em
colapso.
Assim concluem os autores na p. 118: “O processo que
nós descrevemos aqui é, na verdade, o oposto daquele
que temos na Bíblia: a emergência do Israel primitivo
foi uma consequência do colapso da cultura cananeia,
não a sua causa. E a maior parte dos israelitas não veio
de fora de Canaã – eles emergiram de dentro desta
terra. Não ocorreu um êxodo em massa do Egito. Não
houve uma conquista violenta de Canaã. A maior parte
das pessoas que formaram o primitivo Israel eram
moradores locais – as mesmas pessoas que vemos nas
montanhas nas Idades do Bronze e do Ferro. Os
israelitas primitivos eram – ironia das ironias – eles
mesmos originariamente cananeus!”
O mesmo processo poderia ser, segundo os autores,
testemunhado na Transjordânia, com populações locais
formando os povos de Amon, Moab e Edom.
Finalmente, terminam Finkelstein e Silberman este
capítulo com duas especulações: os israelitas, já nas
suas origens, não consumiam carne de porco – não se
sabe a razão -, não tendo sido encontrados ossos deste
animal nos povoados das montanhas, e isto seria sua
marca distintiva; e o livro dos Juízes, parte da OHDtr,
reflete, não as lutas dos primeiros tempos de Israel,
mas a época de Josias, quando este, controlando o
antigo território do reino de Israel e centralizando o
culto em Jerusalém, quebrou o círculo vicioso de
apostasia e desastre que atingia periodicamente Israel.
De minha parte, considero a especulação sobre a
ausência de consumo da carne de porco como elemento
distintivo dos israelitas primitivos especialmente
frágil…
No capítulo sobre a monarquia davídico-salomônica, os
autores lembram como, para os leitores da Bíblia, Davi
e Salomão representam uma idade de ouro, enquanto
que para os estudiosos representavam, até
recentemente, o primeiro período bíblico realmente
histórico. Hoje, a crise se abateu sobre o “império”
davídico-salomônico. E se perguntam: Davi e Salomão
existiram?
Mostram como os minimalistas dizem: “não”, os
argumentos pró e contra a postura dos minimalistas,
para chegarem à questão chave: o que diz a arqueologia
sobre Davi/Salomão?
Para Finkelstein e Silberman a evolução dos primeiros
assentamentos para modestos reinos é um processo
possível e até necessário na região. Descrevendo as
características do território de Judá, concluem que este
permaneceu pouco desenvolvido, escassamente
habitado e isolado no período atribuído pela Bíblia a
Davi/Salomão: é o que a arqueologia descobriu.
E Jerusalém? As escavações de Yigal Shiloh, da
Universidade Hebraica de Jerusalém, nas décadas de 70
e 80, na Jerusalém das Idades do Bronze e do Ferro
mostram que não há nenhuma evidência de uma
ocupação no século X AEC. A postura mais otimista
aponta para um vilarejo no século décimo, enquanto
que o resto de Judá, na mesma época seria composto
por cerca de 20 pequenos povoados e poucos milhares
de habitantes, tendo havido, portanto, dificilmente, um
grande império davídico.
Mas e as conquistas davídicas? Até recentemente, em
qualquer lugar em que se encontravam cidades
destruídas por volta do ano 1000 AEC isto era atribuído
a Davi por causa das narrativas de Samuel.
Teoricamente é possível que os israelitas da região
montanhosa tenham controlado pequenas cidades
filisteias como Tel Qasile, escavada por Benjamin Mazar
em 1948-1950, ou até mesmo cidades cananeias
maiores como Gezer, Meguido ou Bet-Shean. Mas será
que o fizeram?
E o glorioso reino de Salomão? Em Jerusalém, nada foi
encontrado, mas e Meguido, Hasor e Gezer? Em
Meguido, P. L. O. Guy, da Universidade de Chicago,
descobriu, nas décadas de 20 e 30, os “estábulos” de
Salomão. Sua interpretação dos edifícios achados se
baseou em 1Rs 7,12;9,15.19. Na década de 50, Yigael
Yadin descobriu, ou identificou nas descobertas de
outros, as “portas salomônicas” de Hasor, Gezer e
Meguido. Também a chave aqui foi 1Rs 9,15, que
diz: “Eis o que se refere à corveia que o rei Salomão
organizou para construir o Templo de Iahweh, seu
palácio, o Melo e o muro de Jerusalém, bem como Hasor,
Meguido, Gazer [=Gezer]“.
Mas, na década de 60, Y. Yadin escava novamente
Meguido e faz a descoberta de um belo palácio que
parecia ligado à porta da cidade e abaixo dos
“estábulos”, o que o leva à seguinte conclusão : os
palácios [a Universidade de Chicago encontrara outro
antes] e a porta de Meguido são salomônicas, enquanto
que os “estábulos” seriam da época de Acab, rei de
Israel do norte no século IX AEC.
Durante muitos anos, estas “portas salomônicas” de
Hasor, Gezer e Meguido foram o mais poderoso suporte
arqueológico ao texto bíblico. Mas o modelo
arquitetônico dos palácios salomônicos veio dos
palácios bit hilani da Síria, e estes, se descobriu, só
aparecem no século IX AEC, pelo menos meio século
após a época de Salomão. “Como poderiam os
arquitetos de Salomão ter adotado um estilo
arquitetônico que ainda não existia?”, se perguntam os
autores na p. 140. E o contraste entre Meguido e
Jerusalém? Como um rei constrói fabulosos palácios em
uma cidade provincial e governa a partir de um
modesto povoado?
Pois bem, dizem Finkelstein e Silberman na p.
140: “Agora nós sabemos que a evidência arqueológica
para a grande extensão das conquistas davídicas e para
a grandiosidade do reino salomônico foi o resultado de
datações equivocadas”.
Dois tipos de evidência fundavam os argumentos em
favor de Davi e Salomão: o fim da típica cerâmica
filisteia por volta de 1000 AEC fundamentava as
conquistas davídicas; e as construções das
monumentais portas e palácios de Hasor, Gezer e
Meguido testemunhavam o reino de Salomão. Nós
últimos anos, entretanto, estas evidências começaram a
desabar [aqui os autores remetem o leitor ao Apêndice
D, p. 340-344, onde os seus argumentos são mais
detalhados].
Primeiro, a cerâmica filisteia continua após Davi e não
serve mais para datar suas conquistas; segundo, os
estilos arquitetônicos e as cerâmicas de Hasor, Gezer e
Meguido atribuídos à época salomônica são, de fato, do
século IX AEC; e, por último, testes com o Carbono 14
em Meguido e outras localidades apontam para datas
da metade do século IX AEC.
Enfim: a arqueologia mostra hoje que é preciso “abaixar”
as datas em cerca de um século [anoto aqui que esta
“cronologia baixa” de Finkelstein tem dado muito o que
falar nos meios acadêmicos!]. O que se atribuía ao
século XI é da metade do século X e o que era datado na
época de Salomão deve ser visto como pertencendo ao
século IX AEC.
Dizem os autores: “Não há razões para duvidarmos da
historicidade de Davi e Salomão. Há, sim, muitos
motivos para questionarmos as dimensões e o
esplendor de seus reinos. Mas, e se não existiu um
grande império, nem monumentos, nem uma magnífica
capital, qual era a natureza do reino de Davi?” (p. 142).
O quadro é o seguinte: região rural… nenhum
documento escrito… nenhum sinal de uma estrutura
cultural necessária em uma monarquia… do ponto de
visto demográfico, de Jerusalém para o norte,
povoamento mais denso; de Jerusalém para o sul, mais
escasso… estimativa populacional: dos 45 mil
habitantes da região montanhosa, cerca de 40 mil
habitariam os povoados do norte e apenas 5 mil se
distribuíam entre Jerusalém, Hebron e mais uns 20
pequenos povoados de Judá, com grupos continuando o
pastoreio…
Davi e seus descendentes? “No século décimo, pelo
menos, seu governo não possuía nenhum império, nem
cidades com palácios, nem uma espetacular capital.
Arqueologicamente, de Davi e Salomão só podemos
dizer que eles existiram – e que sua lenda perdurou” (p.
143).
Entretanto, quando o Deuteronomista escreveu sua
obra no século VII AEC, Jerusalém tinha todas as
estruturas de uma sofisticada capital monárquica.
Então, o ambiente desta época é que serviu de pano de
fundo para a narrativa de uma mítica idade de ouro.
Uma bem elaborada teologia ligava Josias e o destino de
todo o povo de Israel à herança davídica: ele unificara o
território, acabara com o ciclo idolátrico da época dos
Juízes e concretizara a promessa feita a Abraão de um
vasto e poderoso reino. Josias era o novo Davi e Iahweh
cumprira suas promessas “O que o historiador
deuteronomista queria dizer é simples e forte: existe
ainda uma maneira de reconquistar a glória do
passado” (p. 144).

A Segunda Parte do livro – A Ascensão e Queda do


Antigo Israel – tem três capítulos, que tratam,
respectivamente, do surgimento do reino de Israel (p.
149-168), da dinastia de Omri (p. 169-195) e do
domínio assírio sobre Israel (p. 196-225).
No capítulo sobre o surgimento do reino de Israel, os
autores começam lembrando o relato bíblico sobre a
rebelião do norte, onde Judá e Simeão aparecem em
forte contraste com o condenável comportamento das
10 tribos do norte.
Este esquema bíblico, de uma monarquia unida, que se
desintegra após a morte de Salomão, sempre foi aceito
por arqueólogos e historiadores, mas está errado. Não
há evidências de uma monarquia unida governada por
Jerusalém, mas há boas razões para se acreditar que
sempre houve duas diferentes entidades políticas na
região montanhosa de Canaã, garantem os autores.
A pesquisa arqueológica nos anos 80 retrata uma
situação bem diferente do relato bíblico. Em cada uma
das ondas de ocupação das montanhas (Idade Antiga do
Bronze: 3500-2200; Idade Média do Bronze:
2000-1550 AEC) sempre aparecem duas sociedades
distintas, norte e sul, assim como no Ferro I (1150-900
AEC) existe a distinção entre Israel e Judá. A região
norte sempre aparece mais povoada, com uma
complexa hierarquia de grandes, médios e pequenos
sítios arqueológicos e sempre mais fortemente ligada à
agricultura. A região sul sempre aparece como mais
escassamente povoada, com pequenos sítios
arqueológicos e uma população de grupos nômades
mais significativa.
No Bronze Antigo dois únicos centros se destacam em
Canaã: no sul, Khirbet et-Tell (Ai) e no norte Tell
el-Farah (Tirsá). No Bronze Médio, dois centros se
destacam no sul, Jerusalém e Hebron, e um centro no
norte, Siquém. Além destas pistas arqueológicas,
os Textos de Execração egípcios mencionam, para este
período, apenas dois centros nas montanhas de Canaã:
Siquém e Jerusalém.
Uma inscrição egípcia do século XIX AEC, falando das
ações de um general egípcio chamado Khu-Sebek na
região montanhosa de Canaã, menciona a ‘terra’, e não
a cidade, de Siquém em paralelo com Retenu (um dos
nomes egípcios para Canaã). No Bronze Recente, as
Cartas de Tell el-Amarna, do século XIV AEC, indicam
duas cidades líderes na região das montanhas: Siquém
e Jerusalém.
Assim, Siquém e Jerusalém, Israel e Judá, parecem ter
sido sempre dois territórios distintos e rivais, concluem
os autores.
Norte e sul possuem, de fato, dois ecossistemas bem
diferentes sob qualquer aspecto: topografia, formação
rochosa, clima, vegetação e potencial econômico. O sul
é mais isolado por barreiras topográficas, enquanto que
o norte possui vales férteis com maior potencial
econômico. O maior desenvolvimento do norte pode ter
proporcionado o surgimento de instituições
econômicas mais complexas, levando ao surgimento de
instituições políticas mais sofisticadas, nascendo daí
um ‘Estado’.
“A evolução das colinas de Canaã em duas distintas
entidades políticas foi um desenvolvimento natural.
Não há evidência arqueológica em lugar algum de que
esta situação de norte e sul tenha surgido de uma
anterior unidade política – muito menos de uma
localizada no sul”, dizem os autores na p. 158.
Judá, nos séculos X e IX AEC, era pastoril e pouco
significativo. Jerusalém era um pequeno povoado na
época de Salomão e Roboão, enquanto que o norte já
era mais populoso e desenvolvido. Israel (do norte) já
era um Estado no século IX AEC, enquanto que a
sociedade e economia de Judá pouco tinham mudado
desde suas origens nas montanhas.
Sem dúvida, Israel e Judá da Idade do Ferro tinham
muito em comum: ambos cultuavam Iahweh (além de
outros deuses) e seus povos partilhavam muitas
estórias sobre um passado comum. Falavam línguas
semelhantes, ou dialetos do hebraico, e, por volta do
século VIII AEC, partilhavam da mesma escrita. Mas
experimentaram diferentes histórias e desenvolveram
culturas distintas, sendo Israel mais desenvolvido do
que Judá.
O norte pode ter se desenvolvido mais do que o sul,
mas não era tão próspero e urbanizado como as
cidades-estado cananeias das planícies e da região
costeira. Foi a derrocada destas cidades na Idade Antiga
do Bronze – quer tenha sido causada pelos Povos do
Mar, ou por rivalidades entre elas ou, ainda, por
desordens sociais – que possibilitou a sua
independência.
Mas no século XI AEC houve nova onda de
prosperidade nas regiões das planícies: filisteus na
costa sul e fenícios na norte. Meguido é um bom
exemplo deste processo. Entretanto, este renascimento
durou pouco: o faraó Shishaq (ou Sheshonq, nas
inscrições egípcias), fundador da Décima Segunda
Dinastia, fez agressivo ataque, no final do século X AEC,
à região: Meguido, Taanach, Rehov e Bet-Shean, no vale
de Jezreel, foram alvos das forças egípcias. Embora os
motivos e detalhes desta destruição sejam problemas
não respondidos até hoje… Mas isto tem importantes
implicações: abriu caminho para a ocupação israelita
do Vale de Jezreel…
Entretanto: por que a Bíblia narra tudo diferente,
surgindo Israel (do norte) de uma ruptura com Judá? A
resposta está em quatro profecias ligadas pela
narrativa bíblica à queda da monarquia unida: Salomão
como responsável pela quebra da unidade (1Rs
11,4-13); Jeroboão como ‘herdeiro do norte, segundo o
profeta Aías de Silo (1Rs 11,31-39); Jeroboão
recebendo, em Betel, a profecia de “um homem de Deus”
sobre Josias que destruirá o altar de Betel (1Rs 13,1-2);
Aías de Silo falando à esposa de Jeroboão do extermínio
de sua dinastia e do exílio de Israel (1Rs 14,7-16). O
argumento de Finkelstein e Silberman aqui pareceu-me
meio “circular” e pouco convincente…
Entretanto, segundo eles, a inevitabilidade da queda de
Israel e o triunfo de Josias tornou-se um tema central
para o redator deuteronomista no século VII AEC. Betel,
a ameaça ao santuário de Jerusalém, cai sob Josias…
O historiador deuteronomista transmite ao leitor a
seguinte mensagem, segundo os autores, na p. 167: “De
um lado ele descreve Judá e Israel como Estados irmãos;
de outro lado, ele mostra forte antagonismo entre eles.
Era ambição de Josias expandir-se para o norte e tomar
posse dos territórios montanhosos que outrora
pertenceram ao reino do norte. Assim, a Bíblia legitima
esta ambição, explicando que o reino do norte se
estabelecera sobre os territórios da mítica monarquia
unida, que fora governada a partir de Jerusalém; que
havia um reino israelita irmão; que sua população era
composta de israelitas que haviam prestado culto em
Jerusalém; que os israelitas ainda vivendo nestes
territórios deveriam voltar seus olhos para Jerusalém; e
que Josias, o herdeiro do trono davídico e da promessa
eterna feita a Davi, era o único legítimo herdeiro dos
territórios do vencido Israel. Por outro lado, os autores
da Bíblia precisavam deslegitimar o culto do norte –
especialmente o santuário de Betel – e mostrar que as
típicas tradições religiosas do reino do norte eram
todas más, que elas deveriam ser eliminadas e
substituídas pelo culto centralizado no Templo de
Jerusalém”.
No capítulo sobre a dinastia de Omri, os autores
começam lembrando que, segundo o texto bíblico, os
omríadas foram os piores: o casal Acab e Jezabel é
acusado de idolatria, assassinatos brutais, confisco de
terras de herança, tudo na mais perfeita impunidade.
Mas, lembram Finkelstein e Silberman, a
arqueologia hoje aponta noutra direção, mostrando que
Acab foi um poderoso rei, seu casamento com Jezabel,
filha do rei fenício Etbaal, foi uma grande vitória
diplomática para Israel, suas construções foram
magníficas, seu poder militar e suas conquistas
territoriais foram brilhantes.
Em seguida, após repassarem a descrição bíblica dos
governos do reino de Israel de Nadab a Jorão, ou seja,
do segundo ao nono rei, os autores passam a mostrar as
inconsistências e anacronismos da Obra Histórica
Deuteronomista. Isto porque a narrativa bíblica,
segundo eles, está por demais influenciada pela
teologia dos escritores do século VII AEC. Estaríamos,
nesta perspectiva, muito mais diante de uma novela
histórica do que de posse de uma acurada crônica
histórica.
Entretanto, os testemunhos extrabíblicos nos permitem
ver os omríadas sob diferente perspectiva, exercendo
forte papel aí a Estela de Mesha, a Inscrição de Tel Dan
e os testemunhos assírios, como a Inscrição de
Salmanasar III, que cita os dois mil carros de combate
de Acab – número impressionante! – usados como
parte de uma coalizão da Síria, Israel e Fenícia contra as
suas investidas na região.
Além disso, as escavações de Samaria, Meguido, Hasor e
Dan mostram os omríadas como grandes
administradores e construtores arrojados.
Para os autores, o que até então era atribuído a
Salomão pode tranquilamente ser considerado como
omríada. E eles mostram características comuns nas
cidades de Samaria, Jezreel, Hasor, Meguido e Gezer,
para eles, todas resultantes de atividades da dinastia de
Omri. Como consequência, Salomão e Jerusalém ficam
bastante diminuídos.
O poder dos omríadas impressiona também por sua
presença na Transjordânia, e bem ao sul, no território
de Moab, em Ataroth (=Khirbet Atarus) e em Jahaz
(talvez Khirbet el-Mudayna, sítio que está sendo
escavado por Michèle Daviau, da Wilfrid Laurier
University, Canadá).
Neste ponto, Finkelstein & Silberman se perguntam: de
onde vinham os recursos para estas realizações?
Eles acreditam que possam haver vários elementos em
jogo. Como a destruição dos centros cananeus pelo
faraó Shishaq no final do século X AEC, que teria aberto
o caminho para que Omri tomasse posse dos territórios
de Meguido, Hasor e Gezer.
Mas especialmente a diversidade de populações no
território – cananeus, israelitas, arameus e fenícios –
seria um elemento importante, porque integrava vários
ecossistemas e mecanismos econômicos que só
fortaleciam o país. As duas capitais seriam
representativas desta diversidade: Samaria seria mais
israelita, enquanto Jezreel seria mais cananeia. A
estimativa demográfica para o século nono é difícil, mas
no século VIII AEC, segundo eles, seria de 350 mil
habitantes em Israel, fazendo deste território o mais
densamente povoado do Levante. Seu único rival
possível seria o reino de Damasco.
Este era um Estado “israelita”? Dificilmente… a
identidade israelita atribuída ao território do norte
parece ser muito mais a obra de escritores de uma
monarquia judaíta mais recente!
E uma última pergunta: por que, então, o
Deuteronomista, séculos mais tarde, faz de tudo para
deslegitimar os omríadas? Exatamente porque Omri, o
primeiro rei verdadeiro do reino de Israel, ofuscou o
pobre, marginalizado e rural território de Judá…
No capítulo oitavo o livro trata do domínio assírio
sobre Israel. Os autores começam mostrando como a
interpretação bíblica do trágico destino do reino de
Israel, destruído pela Assíria, é muito mais teológica do
que histórica: segundo o Deuteronomista, a devastação
de Israel pelos exércitos estrangeiros fazia parte de um
preciso plano divino, que puniu o povo e seus líderes
por sua recusa do culto a Iahweh no Templo de
Jerusalém e por sua adesão a outros deuses. Veja-se,
por exemplo: Jeú: 2Rs 10,28-33; Joás: 2Rs 13,22-25;
Jeroboão II: 2Rs 14,23-27; o motivo do fim do reino do
norte: 2Rs 17,7-41. Mas a arqueologia apresenta uma
perspectiva diferente: Israel foi invadido pelos assírios
por ter sido um reino bem sucedido que, vivendo à
sombra do grande império, suscitou sua cobiça.
Após mostrar os equívocos da arqueologia tradicional
na pesquisa do reino de Israel, os autores colocam lado
a lado os dados do Deuteronomista e da inscrição de
Tel Dan, alertando o leitor para a tremenda
importância de Aram no declínio de Israel, embora seja
complicado decidir se foi Jeú, o general israelita (como
diz o Dtr), ou Hazael, o rei arameu (como diz a inscrição
de Tel Dan), o responsável pela queda dos omríadas. De
qualquer maneira, detalham como Israel teve seu
território destruído e parcialmente ocupado por Aram
– leia-se por Hazael – por um período significativo.
Entretanto, a chegada ao poder do assírio Adad-nirari
III decretou o fim da hegemonia de Damasco na região
e fez com que o fiel vassalo assírio que era Israel
começasse a se expandir sob Joás e Jeroboão II.
Testemunhos arqueológicos desse crescimento,
durante o governo de Jeroboão II, no século VIII AEC,
segundo os autores, não faltam.
Citam como exemplo os óstraca de Samaria que
testemunham a grande produção e exportação de óleo
de oliva e de vinho para a Assíria e Egito, o aumento da
população que pode ter chegado a 350 mil habitantes –
enquanto Judá teria cerca de 100 mil – as construções
em Meguido, Hasor e Gezer, a criação de cavalos
treinados para a guerra e exportados para a Assíria –
possível interpretação para a origem dos
controvertidos “estábulos” encontrados em Meguido –
a riqueza de Samaria e, até mesmo, os desmandos da
elite governante e dos comerciantes denunciados pelos
profetas Amós e Oseias.
Só que este crescimento gerou rivalidade entre facções
israelitas que, após a morte de Jeroboão, entraram em
confronto, fazendo com que os golpes de Estado se
sucedessem em ritmo frenético nos últimos 30 anos de
Israel. Confronto este que se agravou com a ascensão
ao trono do poderoso e ambicioso rei assírio
Tiglat-Pileser III que acabará invadindo, destruindo e
incorporando Aram e quase todo o Israel. Pouco mais
tarde, Israel encontrou seu fim definitivo nas mãos dos
assírios Salmanasar V e Sargão II.

A Terceira e Última Parte do livro – Judá e a Elaboração


da História Bíblica – tem quatro capítulos e um epílogo,
que tratam, respectivamente, de Judá desde Roboão até
a reforma de Ezequias (p. 229-250), de Judá da invasão
de Senaquerib à ascensão de Josias (p. 251-274), da
reforma de Josias à destruição de Jerusalém por
Nabucodonosor (p. 275-295) e do exílio babilônico e da
volta para a terra sob domínio persa (p. 296-313). Um
epílogo de quatro páginas fala de Israel a partir de
Alexandre Magno (p. 315-318).
No capítulo nono, A Transformação de Judá, que trata
da região de Roboão até a reforma de Ezequias, os
autores começam sintetizando o que vão desenvolver
nas páginas seguintes, ou seja, a constatação
arqueológica da pouca importância de Judá até o século
VIII AEC. Mas, logo em seguida, definem que a lista de
reis de Judá, como apresentada na OHDtr, a partir de
Roboão é aceitável. Reis bons e ruins se sucedem,
contudo o período de governo dos bons é superior ao
dos ruins. Um ponto que é interessante: concluem que a
“reforma” de Ezequias não foi a restauração de uma
estrutura desmantelada ao longo do tempo, mas uma
inovação. “A idolatria dos judaítas não foi um abandono
de seu anterior monoteísmo, pois esta era a forma
como a população de Judá tinha praticado seu culto por
centenas de anos” (p. 234).
Observando a arqueologia da região, Finkelstein e
Silberman dizem que os monumentos atribuídos pelo
Deuteronomista aos reis Roboão e Asa são bem
posteriores, são do século VIII AEC para cá. Aliás, os
sinais de um Estado desenvolvido aparecem em Judá
apenas dois séculos após Salomão e é apenas no século
VII AEC que burocracia e comércio controlado podem
ser detectados. Até este ponto, dizendo mais o que Judá
não era do que era, concluem: “À luz destas descobertas,
está claro agora que o Judá da Idade do Ferro não viveu
uma precoce era de ouro. Davi, seu filho Salomão e os
reis seguintes da dinastia davídica governaram uma
região rural, marginalizada e isolada, sem nenhum
sinal de grande riqueza ou administração centralizada.
Esta região não sofreu um súbito declínio, perdendo
uma condição de incomparável prosperidade. O que ela
experimentou foi um longo e gradual desenvolvimento
ao longo dos séculos. A Jerusalém de Davi e Salomão
era apenas um entre outros centros religiosos na terra
de Israel, e não o centro espiritual de todo o povo desde
o começo” (p. 238).
Aqui, a necessária pergunta: mas o que era então
Jerusalém e redondezas até o século VIII AEC?
Para responder, recorrem às cartas de Tell el-Amarna,
do século XIV AEC, entre as quais estão seis do rei de
Jerusalém Abdi-Hepa (ou Abdi-Heba). Aí aparece seu
“reino”: um pequeno território de uns dois mil e
trezentos quilômetros quadrados, com cerca de mil e
quinhentos habitantes localizados em oito pequenos
assentamentos e um número impreciso de nômades
pastores. E não há razão para pensar Jerusalém e Judá
na época de Davi de maneira muito diferente.
Explicam também os autores que o culto a Iahweh
convivia com vários outros deuses e cultos na época
dos reis de Judá. O que é descrito em 1Rs 14,22-24,
como sendo práticas idolátricas típicas da época de
Roboão, era um costume generalizado na região e na
maioria dos governos judaítas. Conviviam com o culto a
Iahweh (e a outros deuses?) no Templo de Jerusalém,
rituais rurais, cultos domésticos, cultos da fertilidade…
Só que, para os autores, subitamente, com a
interferência de Tiglat-Pileser III na região e a posterior
destruição do reino do norte na época de Sargão II,
Jerusalém perdeu seu isolamento típico e, ancorada na
política assíria, cresceu de 10 a 12 para 150 acres e de
cerca de mil para algo em torno de 15 mil habitantes. E
em Judá, no final do século VIII AEC, havia cerca de 300
assentamentos e uma população de uns 120 mil
habitantes. Surge, só agora, uma elite judaíta e se
formam as estruturas de um verdadeiro Estado.
Junto com esta extraordinária transformação social,
começa uma intensa luta religiosa, caracterizada pelos
autores como a defesa do monoteísmo javista por
profetas e sacerdotes [levitas?] dissidentes vindos do
norte, somados ao pessoal do Templo de Jerusalém. Na
esteira de Morton Smith, os autores defendem que,
neste momento, se estrutura o movimento “só-Iahweh”
que se concretizará, de maneira mais definida no
Deuteronômio e na Obra Histórica Deuteronomista. O
programa político deste “movimento” é a unificação de
todo o Israel, juntamente com a condenação de todo e
qualquer culto não-javista, na tentativa de dar uma
identidade exclusiva a Judá, diferenciando-o da região
ao redor.
Gostaria de lembrar que este suposto movimento
“só-Iahweh” é extremamente controvertido – aliás, seus
argumentos nunca me convenceram – e que a questão
da origem e prática do javismo e, mais ainda, do
monoteísmo, continuam gerando acirrado debate e
muita controvérsia entre os especialistas. Para um
panorama das propostas, de seus autores e algumas
centenas de obras, vale a pena a didática exposição de
GNUSE, R. K., No Other Gods. Emergent Monotheism in
Israel; Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997.
Especialmente as p. 62-128. Para uma confusa e nada
convincente exposição do “movimento”, pode se ler, em
português, o artigo de Bernhard Lang, o maior defensor
desta ideia: Só-Javé! Origem e forma do monoteísmo
bíblico, em Concilium 197 (1985/1), p. 45-53.
Sobre o reforma de Ezequias, enfim, em apenas uma
página no final do capítulo, ficam Finkelstein e
Silberman em superficial questionamento, pois, apesar
da insistência do Deuteronomista, do ponto de vista
arqueológico tal reforma é muito difícil de ser
detectada.
O capítulo décimo trata de Judá desde a invasão de
Senaquerib até a ascensão de Josias ao trono. Após
mostrar que a visão do Deuteronomista em 2 Reis é
teologicamente otimista – apesar da invasão terrível do
rei assírio, Iahweh salvou Jerusalém porque Ezequias
era fiel – os autores, fundando-se mais em Crônicas e
no testemunho da arqueologia do que em 2 Reis,
descrevem os preparativos do rei judaíta para o
enfrentamento: muralhas de Jerusalém reforçadas,
abastecimento de água garantido com a construção do
túnel de Siloé, defesas extremamente eficazes em
Lakish, os selos “lmlk” (= pertencentes ao rei)
encontrados em grandes jarros (que, de alguma
maneira, faziam parte do preparação de Judá para o
que viria)…
Contudo, Senaquerib acabou com Judá em 701 AEC,
como mostram os relatos assírios e os testemunhos
arqueológicos da devastação, encontrados em várias
escavações por todo o território. Especialmente
significativos são a representação assíria da tomada de
Lakish encontrada no palácio de Senaquerib em Nínive
– hoje está no British Museum – e a escavação, feita
pelos britânicos na década de 30 e por David Ussishkin,
da Universidade de Tel Aviv, na década de 70 do século
XX, da poderosa fortaleza, esta que era a segunda mais
importante cidade de Judá e ficava situada na Shefelá,
protegendo a entrada de Judá.
Os autores trazem à cena também os profetas Isaías e
Miqueias para mostrar, com seus oráculos, como a
destruição de Judá foi terrível, muito distante do
otimismo deuteronomista.
Manassés, filho e sucessor de Ezequias, para o
Deuteronomista, é o oposto do pai: governou 55 anos
como o pior rei de Judá, especialmente por ter
restaurado os cultos não-javistas. Por que teria
Manassés feito isto? Acreditam Finkelstein e Silberman
que a reorganização do território de Judá, agora sob a
sombra da Assíria, implicou em alianças com lideranças
clânicas que exigiram a volta aos cultos dos deuses da
terra. Não foi a “maldade” de Manassés que implodiu o
javismo, mas as suas necessidades econômicas é que
trouxeram de volta o pluralismo cultual.
Colaborando com a Assíria e deslocando a população
judaíta para outras regiões, depois de perder a fértil
Shefelá, Manassés, como a arqueologia pode comprovar,
desenvolveu significativa produção e exportação de
óleo de oliva e explorou as rotas de comércio por onde
passavam as caravanas que iam e vinham entre a
Assíria e a Arábia. Importante, neste sentido, foram as
escavações das instalações para a fabricação do óleo de
oliva em Tel Miqne (= Ekron) – as maiores existentes
em todo o Oriente Médio naquela época – e dos ossos
de camelos adultos em Tell Jemmeh, uma localidade
vizinha a Gaza.
Entretanto, o filho de Manassés, Amon, foi assassinado
ao sucedê-lo, certamente por grupos prejudicados com
o prosseguimento desta política. E Josias, com apenas
oito anos, é declarado rei de Judá.
O décimo-primeiro capítulo trata da história de Judá da
reforma de Josias à destruição de Jerusalém por
Nabucodonosor, rei da Babilônia. Após fazer uma
avaliação da descrição deuteronomista de Josias e de
sua reforma, onde Josias aparece como o ideal
concentrado das figuras de Moisés, Josué, Davi e até
mesmo de Salomão, os autores assumem a posição
tradicional e conhecida de que o “Livro da Lei” é o
Deuteronômio original, não descoberto no Templo, mas
escrito pouco antes ou durante o governo de Josias.
Descrevem, em seguida, o renascimento do poder
egípcio com Psamético I, o enfraquecimento da Assíria
e a expansão de Judá. Neste ambiente o
Deuteronomista construiu a saga épica da conquista de
Canaã, projetando para o início de Israel o que só
acontecia agora no século sétimo AEC.
Mas a arqueologia testemunha a reforma de Josias? Ora,
o templo de Betel, possivelmente destruído por Josias,
ainda não foi encontrado, as estatuetas da deusa da
fertilidade Asherá foram achadas em grande
quantidade nas residências… embora os sinetes da
época não contenham mais figuras divinas astrais,
como antes! Por outro lado, os sinais da expansão
territorial de Judá sob Josias são visíveis, a população
aumentou, fortalezas, como Lakish, foram restauradas.
Talvez Josias tenha conseguido um território
semelhante ao de Manassés, embora com outras
características.
Mas Josias e o faraó Necao II se desentenderam. 2Rs
23,29 é lacônico, 2Cr 35,20-24 fala de um conflito
militar – hipótese simpática a muitos historiadores, que
a adotam – mas, seguindo a explicação da Nadav
Naaman, os autores pensam que Necao II teria
simplesmente exigido a renovação da lealdade de Josias
aos egípcios, mas, existindo um conflito de interesses
quanto ao território, o resultado foi o desastroso fim de
Josias.
Sem muito novidade em relação ao que já se escreveu
em muitas “Histórias de Israel”, os autores descrevem
os últimos dias de Judá, terminando o capítulo com a
arqueologia da destruição de Jerusalém por
Nabucodonosor, que mostra a ferocidade do fatídico
cerco.
No décimo-segundo capítulo o livro trata do exílio e da
volta para a terra. Neste ponto, pareceu-me que os
autores utilizam as fontes bíblicas com pouco
questionamento, especialmente Jeremias, Ezequiel,
Esdras, Neemias, Ageu e Zacarias. Isto resulta na
descrição já conhecida em obras anteriores do que teria
sido o exílio, a volta e a reconstrução. Assumem a
hipótese de Frank Moore Cross de duas versões da
OHDtr, a primeira da época de Josias e a segunda uma
revisão feita durante o exílio, redimensionando a
anterior avaliação teológica face à novidade da
destruição: a justiça de Josias apenas adiou a catástrofe
que fatalmente atingiria Jerusalém, diz a revisão exílica,
não a eliminou do horizonte, como pensava a primeira
versão.
Denunciam, em seguida, o mito da “terra vazia” durante
o exílio – apenas 1/4 dos judaítas teriam sido exilados -,
calculam uma população de uns 30 mil habitantes para
o território do Templo na época de Esdras/Neemias e
explicam a política persa de repovoamento e controle
da região através do domínio sacerdotal.
Finalmente, chamam a atenção para a atualidade de
vários temas bíblicos que, neste momento, têm uma
função real: o êxodo, as tradições sobre Abraão, o
conflito de Jacó e Esaú (= Edom), os túmulos dos
patriarcas… estas leituras, projetadas como originantes,
foram, na verdade, originadas para criarem uma
identidade judaica na época persa.
O epílogo sintetiza em míseras quatro páginas os
acontecimentos a partir de Alexandre Magno, mas,
especialmente, procura mostrar a função da narrativa
bíblica, sua atualidade e seu valor.
No conjunto, um livro fascinante. Nos detalhes, muita
coisa pode ser discutida, porque pouco fundamentadas
quando ousadas, ou porque apenas repetem o texto
bíblico, sem entrar na discussão sobre o uso das fontes.
Muita credibilidade tem a arqueologia para os autores,
um pouco menos as fontes extrabíblicas, alguma as
fontes bíblicas, especialmente quando as lacunas não
podem ser preenchidas por outro material. Procuram
escapar do “construto erudito” denunciado por Philip R.
Davies, mas ele permanece à espreita…
Pouca análise da ideologia das fontes extrabíblicas dos
impérios da região? Com certeza, pois é claro que
impérios não nos legam apenas informações objetivas,
mas muita propaganda que possa legitimar o seu
domínio sobre os povos mais fracos. Pouca ênfase no
fato de que a arqueologia também é o resultado de uma
interpretação? Razoavelmente evidente. Conseguem
comprovar que os principais relatos bíblicos foram
escritos mesmo a partir do século VII AEC? Talvez em
parte…
Entretanto, é bom lembrar: esta é apenas uma obra de
divulgação. Talvez, por isso, tenha que evitar a análise
mais técnica e árida de fontes e a complexa discussão
metodológica que permeia hoje a historiografia do
Antigo Oriente Médio. Enfim, um livro que procura ser
honesto, o que já é um grande mérito.

Para terminar, algumas informações interessantes. O


livro de Finkelstein & Silberman teve enorme
repercussão. Segundo pude apurar, ele está traduzido
para as seguintes línguas:
. alemão: Keine Posaunen vor Jericho: Die
archäologische Wahrheit über die Bibel. München: C. H.
Beck, 2002.
. árabe: 2007.
. coreano: Songgyong: kogohak in’ga chonsol in’ga.
Soul-si: Kkach`i, 2002.
. espanhol: La Biblia Desenterrada: Una nueva visión
arqueológica del Antiguo Israel y de los origenes de sus
textos sagrados. Madrid: Siglo XXI, 2003.
. francês: La Bible dévoilée: Les nouvelles révélations
de l’archéologie. Montrouge: Bayard Editions, 2002;
Paris: Gallimard, 2004.
. italiano: Le tracce di Mosè: La Bibbia tra storia e mito.
Roma: Carocci, 2002.
. japonês: Tóquio, 2009.
. hebraico: Reshit Yisrael Arkheologyah Mikra
Ve-Zikaron Histori. Tel Aviv: Universit”at Tel Aviv, 2003.
. holandês: De Bijbel als mythe: opgravingen vertellen
een ander verhaal. Den Haag: Synthese Uitgeverij,
2006.
. polonês
. português: A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A
Girafa, 2003; A Bíblia desenterrada: A nova visão
arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus
textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018.
. tcheco: Objevovan Bible: Svata P sma Izraele ve sve‡tle
modern archeologie. Praha: Vys‡ehrad, 2007.
Uma apresentação da obra, feita pelos próprios autores,
pode ser lida na revista The Bible and Interpretation. E
um interessante documentário, baseado na obra, foi
lançado, em DVD, também no Brasil.
Histórias de criação e dilúvio na antiga Mesopotâmia
RESUMO
Milhares de tabuinhas de barro com escrita cuneiforme
foram recuperadas nas escavações arqueológicas da
antiga Mesopotâmia. Algumas delas narram histórias
de criação e dilúvio. Neste artigo vamos olhar mais de
perto três dessas histórias: o Enuma Elish, a Epopeia de
Gilgámesh e a Epopeia de Atrahasis. Algumas dessas
histórias são chamadas hoje de cosmogonias.
ABSTRACT
Thousands of clay tablets with cuneiform writing were
recovered in the archaeological excavations of ancient
Mesopotamia. Some of them tell stories of creation and
flood. In this paper I will look more closely at three of
these stories: Enuma Elish, Gilgámesh, and Atrahasis.
Some of these stories are now called cosmogonies.

Introdução
A planície situada nos vales dos rios Tigre e Eufrates,
no Oriente Médio, é a antiga Mesopotâmia, nome que
vem do grego e significa “terra entre rios”. Esta região
foi habitada, em tempos remotos, por povos como os
sumérios, os acádios, os assírios e os babilônios.
Os sumérios construíram sua civilização no sul da
Mesopotâmia a partir do IV milênio a.C. Foram
sucedidos pelos acádios e estes pelos assírios e
babilônios. As escavações arqueológicas revelaram o
uso da escrita cuneiforme desde o fim do IV milênio,
por volta de 3200 a.C. Foram os sumérios os inventores
da escrita. Além de toda a Mesopotâmia, a escrita
cuneiforme foi empregada também em partes da Síria,
da Ásia Menor e do Irã. Ela é chamada de “cuneiforme”
porque os sinais gravados na pedra ou no barro têm a
forma de cunha.
A assiriologia é o estudo das línguas, história e cultura
das pessoas que usaram a escrita cuneiforme. As fontes
para a assiriologia são todas arqueológicas, e incluem
artefatos com ou sem textos. A maioria dos
assiriologistas estuda os textos do Antigo Oriente
Médio, gravados principalmente em tabuinhas de
barro.
A assiriologia começou como uma disciplina acadêmica
com a recuperação dos monumentos da antiga Assíria e
a decifração da escrita cuneiforme, lá pela metade do
século XIX. Hoje a assiriologia é estudada em muitas
universidades mundo afora. O conhecimento das
culturas do Antigo Oriente Médio é importante para
estudantes de várias disciplinas, como, por exemplo, a
Arqueologia, a História, os Estudos Clássicos e os
Estudos Bíblicos.
O ano de 1842 marca o início da pesquisa arqueológica
no Antigo Oriente Médio, pois foi nesta data que Paul
Émile Botta, cônsul francês em Mossul, iniciou as
primeiras escavações na região. Logo em seguida
entrou em cena o inglês Austen Henry Layard. Ele
descobriu a cidade de Nínive, capital assíria, e em 1850
encontrou mais de 20 mil tabuinhas cuneiformes da
biblioteca do rei assírio Assurbanípal, que
correspondem a cerca de 5 mil textos. Narrativas hoje
consideradas importantes, como a Epopeia de
Gilgámesh, o Enuma Elish e a Epopeia de Atrahasis,
foram encontradas nestas escavações feitas por Layard
e seu assistente Hormuzd Rassam. Nesta época os
museus da Europa começaram a ser abastecidos com o
material que para lá foi transportado. Em 1847, o
Museu do Louvre, em Paris, inaugurou sua seção assíria,
sendo seguido pelo Museu Britânico, em Londres, em
1853. Importantes nesta empreitada foram igualmente
pesquisadores alemães e norte-americanos.
Duas forças motrizes levaram às primeiras escavações
no Oriente Médio no século XIX: o colonialismo e a
Bíblia.
A primeira foi o colonialismo, em seu esforço para
manter o controle sobre a produção do conhecimento
nas colônias e para se apropriar de recursos de todos
os tipos em benefício dos colonizadores. No caso da
arqueologia, o impacto do colonialismo é evidente na
corrida para abastecer os museus da Europa com
tesouros incomuns e exóticos e nas expedições que
buscam catalogar e sistematizar o conhecimento de
tudo o que for possível, como a fauna, a flora e os
monumentos antigos. Assim, quando falamos da antiga
Mesopotâmia, a ideia da pesquisa arqueológica que
reconstrói o “berço da civilização [ocidental]” precisa
ser problematizada. Sabemos hoje que o mito da “terra
vazia” ou dos “recursos não utilizados” pelos nativos é
um expediente típico do colonialismo: se houver
espaços, recursos e patrimônio que os nativos não
estejam usando por falta de interesse, ignorância ou
atraso técnico, então o colonizador está autorizado a
“descobrir” e se apropriar destas riquezas, que, de
outro modo, acabariam perdidas ou desperdiçadas. Isto
vale tanto para as riquezas materiais quanto para os
recursos culturais. O processo de apropriação colonial
do Oriente Médio que culminou no colapso do Império
Otomano foi preparado por operações mercantis,
financeiras e culturais, com destaque, entre estas
últimas, para a arqueologia.
A segunda inspiração para a pesquisa arqueológica no
Oriente Médio foi a Bíblia. Numerosos pesquisadores
ocidentais viajaram para a região em busca dos lugares
mencionados na Bíblia, buscando autenticar as
histórias bíblicas. Deste modo, amparados pelo direito
que lhes dava a herança religiosa judaico-cristã,
legitimaram a apropriação dos recursos do território
pela pesquisa arqueológica.
Entre os textos recuperados na antiga Mesopotâmia há
algumas histórias que falam de criação e dilúvio. Neste
artigo vamos olhar mais de perto três dessas histórias:
o Enuma Elish, a Epopeia de Gilgámesh e a Epopeia de
Atrahasis. Algumas dessas histórias são chamadas hoje
de cosmogonias[1].

1. Cosmogonias mesopotâmicas
A palavra “cosmogonia” vem do grego kósmos =
“organização”, “ornamento”, “o Universo”, e génesis =
“origem”, “nascimento”, “geração”, e significa “a origem
do mundo organizado”. Assim, cosmogonia tem a ver
com mitos, histórias ou teorias sobre o nascimento ou a
criação do Universo como algo organizado. Ou com a
descrição da ordem original do Universo. O oposto do
“mundo organizado”, ou seja, do cosmos, é o caos, a
desordem, a catástrofe. O caos existe antes da criação e
pode, eventualmente, voltar a existir com a destruição
da criação. O dilúvio é um caso típico de caos. É comum
caos e cosmos aparecerem na mesma narrativa, como
duas faces da mesma moeda. Por isso falamos de
“criação e dilúvio”.
Mas quando se fala em criação, os especialistas
procuram definir os vários tipos encontrados na
literatura do Antigo Oriente Médio, pois apenas dizer
que os deuses provocam o aparecimento de seres é
genérico demais. Há várias classificações possíveis,
como a seguinte:
criação a partir do nada
criação a partir do caos
criação a partir de um ovo cósmico
criação a partir da separação dos deuses primordiais
(como céu e terra, nos mitos sumérios)
criação a partir da emergência [ou aparecimento]
(por ex., a terra como mãe, sem preocupação com o pai)
criação a partir de uma descida (como alguém que
desce às profundezas à procura de um pedaço de terra).

Por isso precisamos distinguir entre as concepções de


criação existentes nas cosmogonias do Antigo Oriente
Médio e as modernas teorias sobre a origem do
Universo, as cosmologias. Quatro são as diferenças
principais, segundo R. J. Clifford: o processo, o produto,
a maneira de narrar e o critério de verdade.
. o processo: as cosmogonias do Antigo Oriente Médio
veem a criação segundo o padrão da atividade humana
ou dos processos da natureza, não fazendo distinção
entre natureza e humanidade, oferecendo, por isso,
explicações psíquicas e sociais para fenômenos não
humanos; as cosmologias modernas, entretanto, veem a
criação como uma interação impessoal de forças físicas
ao longo de bilhões de anos-luz, rejeitando, assim, a
psicologização do processo.
. o produto: no Antigo Oriente Médio do processo
criativo resulta uma sociedade humana organizada
para servir aos deuses, enquanto nas cosmologias
modernas a criação diz respeito ao mundo físico,
mesmo quando trata da vida, deixando de lado
considerações de ordem cultural e comunitária.
. a maneira de narrar: no Antigo Oriente Médio o
processo de criação é narrado como um drama, com
vontades em conflito que implicam uma estratégia,
detalhes psicológicos que envolvem os personagens e
levam a história a uma solução dramática, enquanto as
cosmologias modernas explicam as origens de modo
impessoal através da formulação de leis científicas.
. o critério de verdade: no Antigo Oriente Médio, as
cosmogonias selecionam alguns aspectos do drama da
criação e se concentram neles, de modo a tornar a
história plausível: assim, o Enuma Elish está
interessado na fundamentação divina da sociedade
babilônica, enquanto a Epopeia de Atrahasis se
concentra no equilíbrio das forças elementares
necessárias para a sobrevivência dos seres humanos; as
cosmologias modernas utilizam referências empíricas
que são testadas cientificamente para verificar se
explicam todos os dados observáveis, sendo rejeitadas
como hipóteses suspeitas ou errôneas caso falhem
neste teste.
Vamos olhar uma lista, deliberadamente parcial, de
cosmogonias mesopotâmicas.
Textos sumérios
Enki e a ordem do mundo
Enki e Ninhursag (ou Mito do Dilmun)
Enki e Ninmah
Gilgámesh, Enkídu e o Mundo Inferior
História do dilúvio
Louvor à enxada
O debate entre a árvore e o junco
O debate entre a ovelha e o trigo
O debate entre o pássaro e o peixe
O debate entre o verão e o inverno
O tempo antes da criação

Textos acádicos
A história do dilúvio na Epopeia de Gilgámesh
A teogonia Dunnu
Atrahasis
Cosmogonia caldeia ou Fundação de Eridu
Debate entre dois insetos
Debate entre o boi e o cavalo
Debate entre o tamarindo e a palmeira
Dois encantamentos contra a ferrugem
Encantamento contra dor de dente
Enuma Elish
Refundação de um templo na Babilônia
Por que estes textos foram escritos e copiados?
Muitos destes textos eram controlados, mantidos e
salvos por gerações de escribas profissionais. Além da
escrita exercida como aprendizado, os escribas
copiavam os textos para arquivos de templos e palácios.
As cosmogonias preservadas por esta corrente da
tradição são, neste sentido, “canônicas”.
Mas é importante observar que a descrição ou
explicação da origem do cosmos não é o objetivo
principal destes textos. Os relatos de criação e suas
reproduções rituais são metáforas que descrevem e
fundamentam a ordem política e religiosa da sociedade
da época da produção e reprodução dos textos. Não
basta ao rei assírio, por exemplo, ter o controle político
e militar sobre o território e suas populações. O
controle de um grande território exige um sistema
ideológico que possa fundamentar a ordem monárquica
em estruturas ideais e tradições religiosas. Ou seja, é
necessário ter uma legitimação religiosa da ordem
estabelecida e os relatos de criação servem para isso. A
ordem estabelecida nas origens é a ordem mantida na
atualidade do reino e vice-versa.
Os modos de narrar uma cosmogonia são variados.
Alguns textos têm uma temática cósmica, baseada na
percepção de que céu e terra não são entidades
separadas, mas interdependentes. A interdependência
é explicada por uma cosmogonia, na qual o universo
aparece através de um casamento cósmico em que o
Céu fertiliza a Terra e de sua união nascem deuses,
seres humanos, animais e vegetação. O cenário é o
seguinte: há um período anterior à criação seguido por
um dia de criação que inclui o surgimento de seres
humanos e a difusão da civilização. Já outros textos têm
uma temática ligada à terra, na qual a divindade dá vida
à terra através de sua inundação ou inseminação com
as águas subterrâneas que fluem pelos rios e canais. Os
seres humanos são criados, neste caso, da argila da
terra.
Como se vê na lista de cosmogonias mesopotâmicas
acima, há alguns textos na forma de debate. O debate é
um duelo de palavras entre dois protagonistas,
personificando, geralmente, um par contrastante de
animais, plantas, minerais, ocupações, estações do ano
e até instrumentos e ferramentas feitos pelo homem. A
discussão consiste principalmente em elogiar o valor e
a importância de si mesmo e em rebaixar o oponente. O
debate era frequentemente iniciado com a descrição da
criação dos protagonistas, por isso estão em nossa lista
de cosmogonias. É o caso do “Debate entre a árvore e o
junco”. O texto descreve a origem dos dois debatedores
e depois seu crescimento. Sendo as plantas enraizadas
na terra e vivendo de sua fertilidade, o texto salienta a
grande beleza da Terra e sua receptividade ao sêmen
do Céu. Além disso, é interessante observar que como
os sumérios não conheciam a abstração conceitual, o
texto liga os debatedores às suas origens e,
determinando seus destinos, faz da primeira ocorrência
de um fato o substituto de sua definição abstrata. Por
isso o debate não é entre uma árvore e um junco, mas
entre a árvore e o junco. Quer dizer: é um duelo entre a
primeira árvore e o primeiro junco, através do qual as
características de todas as árvores e de todos os juncos
aparecem.
Outro modo de narrar é através do encantamento. No
“Encantamento contra dor de dente”, por exemplo, o
texto era usado por um mágico que ia à casa da pessoa
afetada. Ele examinava o paciente e através de um
ritual descrevia o poder necessário para controlar o
mal. Nesta ocasião o mágico lembrava que quando o
mundo foi criado, ao verme coube comer a fruta podre,
manifestando, assim, a esperança de que a divindade
puna o verme que se desviou de seu destino original
danificando o dente. É bom lembrar que um
encantamento pode terminar com uma prece aos
deuses para que restaurem a ordem da criação[2].

2. O Enuma Elish
2.1. Os personagens
Á nshar + Kíshar: representam, respectivamente, “a
totalidade do mundo celeste” e “a totalidade do mundo
terrestre”
Á nu (ou Ánum): é o deus do “céu”
Apsu + Tiámat: Apsu representa a água doce,
subterrânea, da qual nascem fontes e rios; Tiámat é a
água salgada do mar
Ea (ou Nudímmud) + Damkina: pais de Marduk
É nlil: antigo chefe do panteão mesopotâmico
Lahmu + Lahamu: entes monstruosos?
Marduk: o herói da narrativa, também chamado de
Bel (= senhor)
Mummu: ministro e conselheiro de Apsu
Nannar: o deus lua
Qingu: esposo de Tiámat, líder de um grupo de
monstros que combatem por Tiámat
Shámash: o deus sol

Os personagens principais organizados de outra forma:


Apsu + Tiámat
Lahmu + Lahamu
Á nshar + Kíshar
Á nu
Nudímmud (= Ea)
Marduk

2.2. Descoberta e publicação


O Enuma Elish foi recuperado na metade do século XIX
pelo inglês Austen Henry Layard e seu assistente
Hormuzd Rassam quando a biblioteca do rei assírio
Assurbanípal foi descoberta em Nínive. Além de Nínive,
cópias do Enuma Elish foram encontradas nas cidades
assírias de Assur, Nimrud e Sultantepe e nas cidades
babilônicas de Borsippa, Kish, Sippar, Úruk e na própria
Babilônia. Quase uma centena de manuscritos gravados
em tabuinhas de barro, em escrita cuneiforme e língua
acádica foram preservados e hoje estão no Museu
Britânico, em Londres. Não temos nenhuma narrativa
completa, os textos estão fragmentados, mas é possível
reconstruir a narrativa usando as cópias duplicadas.
A publicação do Enuma Elish foi feita por George Smith
em 1876. O texto considerado padrão hoje, com
transliteração do acádico e tradução em inglês, é o de
Wilfred George Lambert[3].

2.3. A data da composição


O Enuma Elish está escrito em sete tabuinhas e contém
cerca de 1100 linhas. As cópias mais antigas que temos
podem ser datadas por volta de 900 a.C. E quando foi
escrito? A data mais provável: durante o reinado de
Nabucodonosor I (1125-1104 a.C.). Mas, sobre isso não
há acordo. Estudiosos competentes já opinaram por
datas que vão de 1700 a 750 a.C. Já se acreditou que o
Enuma Elish pertencia ao período mais antigo da
Babilônia, mas isto foi revisto. Uma das razões é que a
supremacia de Marduk sobre os outros deuses, como
aparece no Enuma Elish, não é testemunhada na época
babilônica antiga. Como no conhecido Código de
Hammurabi (1792-1750 a.C.), por exemplo, onde
Marduk aparece como supremo sobre a terra e não
sobre os deuses. Somente no reinado de
Nabucodonosor I da Babilônia é que a antiga tríade
composta por Ánu, Énlil e Ea se submete
completamente a Marduk. Além disso foi este rei que
recuperou a estátua de Marduk que havia sido levada
pelo elamitas quando Babilônia fora por eles saqueada
uns 50 anos antes.
O nome Enuma Elish corresponde às primeiras
palavras do texto e significa “Quando acima” ou
“Quando no alto”. O Enuma Elish é considerado, às
vezes, em uma ou outra publicação, como o texto
padrão da criação da Mesopotâmia, mas o assunto
central do texto não é a criação e sim a ascensão de
Marduk como chefe do panteão babilônico. Por isto o
título de “O poema babilônico da criação” não é
adequado. Apesar disso, esta é a mais bem elaborada
cosmogonia da antiga Mesopotâmia e são vários os
elementos criados por Marduk e por seu pai Ea.
O Enuma Elish era recitado na Festa do Ano Novo na
cidade de Babilônia. Esta festa, o Akitu, tem forte
componente político[4].

2.4. Resumo do poema


O poema começa falando de um tempo antes da
existência dos deuses quando as águas primordiais,
Apsu e Tiámat, constituíam uma massa indiferenciada e
nem céus, terra e deuses existiam. Então nasceram os
deuses: os casais Lahmu e Lahamu, Ánshar e Kíshar;
depois, este último casal gera o deus Ánu, que gera o
deus Ea (= Nudímmud).
A atividade dos deuses provoca a hostilidade de Apsu,
mas, antes que ele faça algo, Ea o mata com uma magia
enquanto ele dorme e constrói um palácio sobre seu
cadáver. Neste palácio Ea e Damkina geram Marduk,
que se manifesta como mais poderoso do que qualquer
um de seus antecessores. Por sua vez, o barulho dos
jovens deuses não deixa Tiámat repousar e ela
encarrega seu companheiro Qingu, no comando de um
grupo de monstros, de destruir os deuses, dando-lhe a
Tabuinha dos Destinos. Ánshar, o rei dos jovens deuses,
convida Ánu e depois Ea para comandar a resistência
dos deuses, mas ambos, amedrontados, se recusam. Ea
propõe, então, a Marduk que combata Qingu. Ele aceita
com a condição de que a assembleia dos deuses
transfira para ele o poder de determinar os destinos.
Isto feito, Marduk vence e mata Tiámat em combate
singular, fazendo de seu corpo dividido as duas partes
do universo, os céus e a terra. Marduk torna-se o chefe
dos deuses e anuncia que Babilônia será sua morada,
ordenando a Ea que faça do sangue do vencido Qingu
uma nova criatura, o homem. Os deuses constroem
para Marduk uma cidade e um templo e o honram com
50 nomes.

2.5. As sete tabuinhas explicadas


O texto do Enuma Elish pode ser lido em cinco etapas
ou seções. O número romano indica a tabuinha e os
números arábicos as linhas do poema[5].
a. I.1-20: teogonia ou nascimento dos deuses
As oito primeiras linhas falam de um tempo anterior ao
surgimento dos deuses, quando céus, terra e deuses
ainda não existiam. Não ter nome ou não ser nomeado
significa não existir. Mas dois elementos já estão aí:
Apsu e Tiámat. Eles são diferentes dos outros casais de
deuses: seus nomes não trazem o d, de dingir, que vem
ligado ao nome das divindades nos textos originais.
Eles não aparecem em nenhuma outra lista de deuses e
nem como chefes de nenhum panteão mesopotâmico.
Eles são elementos primordiais. Apsu representa a água
doce, subterrânea, da qual nascem fontes e rios; Tiámat
é a água salgada do mar. Entretanto, dessa massa
indiferenciada de águas, desse caos, começam a nascer
os deuses. O poder é exercido primeiro por Apsu e,
após a morte de Apsu, por Tiámat e Qingu. Este grupo
está em contraste com o outro grupo divino constituído
por Lahmu e Lahamu, Ánshar e Kíshar, Ánu, Ea e
Marduk. Esta genealogia dos deuses, esta teogonia, tem
um propósito: providenciar uma linhagem adequada
para Marduk, o herói do poema.
1. Quando, acima, os céus não haviam sido nomeados,
2. E embaixo, a terra por nome não fora chamada,
3. Existia já Apsu, o progenitor,
4. E também Tiámat, aquela que gerou a todos eles.
5. Quando suas águas eles misturavam,
6. Pastos não havia, pântanos não eram encontrados,
7. Quando nenhum dos deuses ainda existia,
8. Ninguém chamado pelo nome, nenhum destino
determinado.
b. I.21-78: o primeiro confronto entre Apsu e Ea, sua
solução pela vitória de Ea sobre Apsu e a construção de
seu santuário
Diz o texto que a atividade dos novos deuses irrita o
casal primordial e Apsu toma a decisão de destruí-los.
Os jovens deuses, quando souberam dos planos de
Apsu, ficaram consternados e sem ação. Mas Ea, o mais
hábil dos deuses, mata Apsu com uma magia e constrói
seu santuário sobre seu cadáver. Além de se apossar de
sua coroa e de sua faixa, adquirindo o seu poder. Esta
seção antecipa o grande conflito entre Marduk e Tiámat
e prepara o terreno para a ascensão de Marduk a deus
supremo do panteão babilônico. Marduk, entretanto, só
vai aparecer na linha 80. Talvez a demora em
mencionar Marduk tenha a função de criar um clima de
suspense.
35. Apsu abriu sua boca,
36. E disse a Tiámat:
37. “O comportamento deles me perturbou
profundamente,
38. Não consigo descansar de dia ou dormir de noite,
39. Vou destruir e quebrar o seu modo de vida,
40. Que reine o silêncio para que possamos dormir”.
59. Então aquele que sobressai em sabedoria, genial,
cheio de recursos,
60. Ea, que tudo sabe, descobriu seus planos.
61. Ele elaborou e estabeleceu um plano de mestre,
62. E o executou de forma magistral, com sua magia
69. Ele amarrou Apsu, ele o matou.
71. Ele fez sua morada sobre o Apsu.
77. Ele estabeleceu lá a sua residência,
78. Ea e Damkina, sua esposa, habitaram lá em
esplendor.
c. I.79-VI.120: o segundo confronto, entre Marduk, o
filho de Ea, e Tiámat, a companheira de Apsu, e sua
solução
Marduk, que nasce nesta residência no Apsu, filho de Ea
e Damkina, é caracterizado como o mais sábio e forte
dos deuses, poderoso desde criança, vestido com a aura
de dez deuses. Um deus em tudo superior aos outros
deuses.
87. Seu corpo era magnífico, seu olhar poderoso,
88. Nasceu viril, era poderoso desde o começo.
89. Quando Ánu, seu avô, o viu,
90. Ele se alegrou e sorriu, seu coração se encheu de
alegria.
91. Ánu tornou-o perfeito, sua divindade era notável,
92. Era muito alto, mais alto do que qualquer um,
93. Seus membros eram incompreensivelmente
maravilhosos,
94. Impossível entender, difícil até de olhar.
Entretanto, o jovem Marduk brincando com os quatro
ventos, presente de seu avô Ánu, e com a poeira que ele
mesmo [ou o avô?] criou, perturbava Tiámat com
tempestades. Após ouvir as queixas dos deuses
ancestrais, Tiámat decide reagir e quer vingar a morte
de seu antigo companheiro Apsu. Cria um grupo de 11
deuses monstruosos munidos de armas poderosas e
coloca seu segundo companheiro, o monstro Qingu, no
comando deste temível exército para enfrentar os
jovens deuses. A Tabuinha dos Destinos é dada a Qingu
e suas ordens não podem mais ser revogadas. Observo
que a ideia de monstros saindo de Tiámat é esperada,
pois o mar, que ela representa, era, no imaginário da
época do Enuma Elish, povoado por criaturas
fantásticas e monstruosas.
133. Mãe Hubur, que forma tudo,
134. Forneceu armas invencíveis e deu à luz serpentes
gigantes.
135. Tinham dentes afiados, eram implacáveis. . . ,
136. Com veneno em vez de sangue, ela encheu seus
corpos.
141. Ela criou a Serpente, o Dragão, o Herói Peludo
142. O Grande Demônio, o Cão Selvagem e o Homem
Escorpião.
143. Demônios ferozes, o Homem Peixe e o Touro
Poderoso,
144. Portadores de armas implacáveis, sem medo
diante da batalha.
145. Seus comandos eram tremendos, para não resistir.
146. No total, ela fez onze desse tipo.
147. Entre os deuses, seus descendentes, reunidos em
assembleia,
148. Ela exaltou Qingu e enalteceu-o entre eles.
157. Ela lhe deu a Tabuinha dos Destinos e a prendeu
em seu peito,
158. (dizendo:) “Sua ordem não pode ser alterada; que
o comando que sai de tua boca seja firme”.
A assembleia dos deuses – Ánshar e Kíshar, Ánu e Ea e
outros deuses não especificados – é incapaz de
enfrentar Tiámat como antes tinha enfrentado Apsu.
Quando Ea e Ánu se mostram incapazes, Marduk é
indicado. A assembleia proclama sua supremacia
durante a vigência da emergência. Os deuses lhe dão o
poder de destruir e criar, prerrogativas reservadas
somente aos grandes deuses. As demoradas
deliberações feitas pelos deuses sobre como enfrentar
Tiámat tomam as tabuinhas 2 e 3. Somente na tabuinha
4 Marduk é confirmado como líder dos deuses. Ali se
diz:
1. Eles prepararam um assento principesco para ele,
2. E ele se sentou diante de seus pais para receber a
realeza.
3. (Eles disseram:) “Você é o mais honrado entre os
grandes deuses,
4. Seu destino é inigualável, seu comando é como o de
Ánu.
7. Doravante sua palavra não será anulada,
8. Está em suas mãos engrandecer e rebaixar.
10. Nenhum deus ultrapassará os limites que você
traçar.
13. Você é Marduk, nosso vingador,
14. Nós lhe demos a realeza sobre todo o universo.
16. Que tua arma não falhe, que destrua teus inimigos”.
31. (Eles disseram:) “Vá, corte a garganta de Tiámat,
32. E deixe os ventos espalhar seu sangue para dar a
notícia”.
33. Os deuses, seus pais, decretaram o destino de Bel,
34. E o colocaram na estrada, no caminho da
prosperidade e do sucesso.
Marduk prepara suas armas para a batalha: arco, rede,
clava, ventos destruidores, relâmpagos e um carro
puxado por quatro temíveis animais.
61. Em seus lábios trazia um feitiço,
62. Em sua mão uma planta para combater o veneno.
Na descrição da batalha entre Marduk e Tiámat se diz,
entre outras coisas:
93. Tiámat e Marduk, o sábio entre os deuses, se
enfrentaram,
94. Eles se envolveram na batalha, eles se agarraram no
combate.
95. Bel jogou sua rede e capturou-a,
96. Ele jogou no rosto dela o vento destruidor que
trazia consigo,
97. Tiámat abriu a boca para o engolir,
98. (Porém Marduk) manejou o vento destruidor de
modo que ela não pode fechar os lábios.
99. Ventos ferozes encheram sua barriga,
100. Suas entranhas incharam e ela abriu a boca.
101. Ele disparou uma flecha e perfurou sua barriga,
102. Ele rasgou sua barriga e partiu seu coração,
103. A amarrou e acabou com sua vida.
104. Derrubou seu cadáver e ficou de pé sobre ele.
105. Depois de ter matado Tiámat, a líder,
106. (Marduk) dispersou a assembleia, dissolveu suas
tropas.
119. Quanto a Qingu, que havia subido ao poder entre
eles,
120. Ele o amarrou e o contou entre os deuses mortos.
121. Ele retirou dele a Tabuinha dos Destinos,
imprópria para ele,
122. Ele a selou com um selo e a fixou em seu próprio
peito.
Após sua vitória, Marduk, que tem sua supremacia
garantida para sempre, corta em dois o cadáver de
Tiámat e dele faz o universo. Diz o texto:
137. Ele a dividiu em duas partes como um peixe seco:
138. Com uma metade ele fez os céus,
139. Ele esticou sua pele e colocou guardas,
140. E lhes ordenou que não deixassem escapar as
águas.
Agora as moradas dos deuses estão assim distribuídas:
Ánu no céu, Énlil na terra e Ea no Apsu.
146. Ele instalou em seus santuários Ánu, Énlil e Ea.
Em seguida, já na tabuinha 5, diz o texto que Marduk
cria constelações, estabelece os limites do ano,
configura doze meses, modela sua própria estrela
Neberu, faz a lua e confia-lhe a noite e determina suas
fases e ciclos. Observo que o autor do Enuma Elish está
mais preocupado em fixar o calendário do que expor
princípios astronômicos: com as estrelas ele
regulamenta o ano; com a lua, o mês; com o sol, o dia.
Marduk cria também os fenômenos atmosféricos da
saliva de Tiámat: nuvens, vento, chuva e névoa. Abre
fontes subterrâneas e faz o Tigre e o Eufrates fluírem
dos olhos de Tiámat. Dos seios de Tiámat faz
montanhas e faz a amarração que mantém unidos as
três partes do universo, ou seja, o céu, a terra e o Apsu.
O texto é de difícil compreensão, mas parece que esta
amarração é feita com a cauda de Tiámat. E, em curta
descrição, se diz que Marduk faz, com a outra metade
de Tiámat, a terra. Depois de dar a seu avô Ánu a
Tabuinha dos Destinos, Marduk pega os 11 monstros
por ele capturados, esmaga suas armas, amarra as
criaturas e delas faz estátuas que coloca no Portão do
Apsu como um sinal.
1. Ele formou estações celestiais para os grandes
deuses,
2. E criou constelações, as imagens das estrelas.
3. Ele nomeou o ano, marcou divisões,
4. E designou três estrelas para cada um dos doze
meses.
12. Ele criou Nannar, confiando-lhe a noite.
Na sequência, Marduk unge seu corpo com óleo de
cedro, veste um traje principesco, usa uma coroa, é
descrito como possuindo atributos reais. Doravante sua
supremacia está garantida. Ele é proclamado rei pelos
deuses. Lugaldimmerankia, como o chamam agora, é
um título sumério e significa “o rei dos deuses do céu e
da terra”.
107. Lahmu e Lahamu…,
108. Abriram a boca e disseram aos deuses Igigi:
109. “Antes Marduk era nosso filho amado,
110. Agora ele é seu rei, fiquem atentos às suas ordens.
111. Em seguida, todos falaram juntos:
112. “Seu nome é Lugaldimmerankia, confiem nele”.
Dirigindo-se a seus progenitores, Marduk anuncia seus
planos. A primeira coisa que fará é construir um templo
para si mesmo. Um templo situado acima do Apsu e
abaixo do céu. O templo será construído na cidade de
Babilônia. Ora, sabemos que na geografia cósmica de
Babilônia, a cidade e o templo de Marduk nela
construído, o Eságil, estão no centro do universo. O
poema faz uma reinterpretação do nome Babilônia, que
significa “porta do deus”, como “as casas dos grandes
deuses”.
129. Eu quero pronunciar seu nome: Babilônia, “As
casas dos grandes deuses”.
No começo da tabuinha 6 é apresentada outra brilhante
ideia de Marduk: a criação da humanidade para que as
pessoas trabalhem e os deuses possam descansar. A
criação da humanidade é uma obra realizada por seu
pai Ea, que a executa com o sangue de Qingu. Em
agradecimento os deuses constroem Babilônia e o
Eságil, o santuário de Marduk, como uma replica do
Apsu.
5. Vou recolher sangue e formar ossos,
6. Vou fazer Lullu, cujo nome será “homem”,
7. Vou criar Lullu, o homem,
8. Para que sobre ele recaia o trabalho dos deuses e eles
possam descansar”.
33. De seu [Qingu] sangue, ele [Ea] criou a humanidade,
34. Sobre ela impôs as obrigações dos deuses, e delas os
libertou.
d. VI.121-VII.144: Os deuses proclamam Marduk como
deus supremo atribuindo-lhe 50 nomes
Pela localização e extensão, os nomes dados a Marduk
constituem o clímax da epopeia, embora o leitor
moderno possa até achar mais interessante a vitória de
Marduk sobre Tiámat e a criação da humanidade.
Obviamente nenhum deus precisava de 50 nomes para
ser identificado. O que conta são os significados
teológicos dos nomes. Especialmente importante é Énlil
dando-lhe o próprio título de “senhor das terras”
(VII.136) e Ea atribuindo-lhe o seu nome, Ea (VII.140).
121. Recitemos seus cinquenta nomes,
122. Que se conheça seu caráter, assim como seus atos.
143. Com a palavra “Cinquenta”, os grandes deuses (o
chamaram)
144. Pronunciaram seus cinquenta nomes e lhe deram
uma condição incomum.
e. VII.145-162: epílogo ou exortação para que se
estudem os nomes e se honre Marduk
145. Que sejam lembrados e que as pessoas
importantes os expliquem,
146. Os sábios e os eruditos devem falar sobre eles,
147. Um pai deve repeti-los e ensiná-los a seu filho,
148. É preciso explicá-los ao pastor e ao vaqueiro,
149. Se alguém não for negligente com Marduk, o Énlil
dos deuses,
150. Possa sua terra florescer e ele mesmo prosperar.
161. Este é o poema de Marduk,
162. Aquele que derrotou Tiámat e assumiu a realeza.
Andrea Seri observa que o Enuma Elish é um texto que
pode ser lido em diferentes níveis. Tem um enredo de
uma história de sucesso: uma teogonia, uma batalha
épica com magia, monstros, criaturas terríveis, um deus
heroico, a criação do universo, assim como a narrativa
da origem de Babilônia e do templo de Marduk. O tom
dramático do poema torna fascinante sua leitura no
Festival do Ano Novo na Babilônia.
Mas é necessário sublinhar que o Enuma Elish contém
várias criações que servem a diferentes propósitos e
que são introduzidas progressivamente ao longo do
texto. O surgimento dos deuses no começo do poema
prepara o palco para o nascimento de Marduk. Seu pai
Ea realiza a primeira criação artificial ao matar Apsu e
construir nele sua morada. Para lutar contra Tiámat,
Marduk faz, com habilidade, armas poderosas. Ele cria
o mundo matando Tiámat e usando seu corpo como
matéria-prima, assim como dá a Ea a ideia de criar a
humanidade. Enfim, as várias criações no Enuma Elish
permitem que Marduk, agora com cinquenta nomes,
assuma o lugar mais alto no panteão babilônico que
antes era de Énlil. Em uma palavra: Marduk se torna
Énlil[6].

3. A Epopeia de Gilgámesh
O texto mais completo da Epopeia de Gilgámesh foi
recuperado a partir da metade do século XIX na
biblioteca do rei assírio Assurbanípal, mas outras
cópias foram encontradas em acádio e sumério em
Assur, Nimrud, Sultantepe, Sippar, Ur, Úruk e outras
localidades do Antigo Oriente Médio. Em 1872 a leitura
da narrativa do dilúvio na Epopeia de Gilgámesh feita
por George Smith, em Londres, causou impacto.
Esta versão clássica da Epopeia de Gilgámesh, com o
nome de “Ele que o abismo viu”, suas primeiras
palavras, foi composta por Sin-léqi-unnínni por volta de
1200 a.C. e está gravada em 12 tabuinhas, sendo a
última apenas uma cópia de parte de outra composição
bem conhecida, Gilgámesh, Enkídu e o Mundo Inferior.
A atribuição do texto a Sin-léqi-unnínni encontra-se em
catálogo redigido no primeiro terço do primeiro
milênio a.C. e achado em Nínive, no qual se lê: “Série de
Gilgámesh: da boca de Sin-léqi-unnínni”. O autor
trabalhou com uma tradição muito antiga e muito
difundida na antiga Mesopotâmia, pois há fragmentos
de uma versão babilônica de 1700 a.C. e poemas em
sumério sobre Gilgámesh do fim do III milênio a.C.
Atualmente o texto acadêmico padrão da Epopeia de
Gilgámesh é o de Andrew R. George, publicado em
2003[7].
3.1. Resumo do poema
A Epopeia de Gilgámesh tem dois prefácios: o primeiro
(1,1-28) é o mais recente. O segundo (1,29-62),
incorporado na mais recente, é da versão babilônica
antiga.
1. Ele que o abismo viu, o fundamento da terra,
2. Seus caminhos conheceu, ele sábio em tudo,
3. Gilgámesh que o abismo viu, o fundamento da terra,
4. Seus caminhos conheceu, ele sábio em tudo,
5. Explorou de todo os tronos,
6. De todo o saber, tudo aprendeu,
7. O que é secreto ele viu, e o coberto descobriu,
8. Trouxe isto e ensinou, o que antes do dilúvio era.
9. De distante rota volveu, cansado e apaziguado,
10. Numa estela se pôs então o seu labor por inteiro.
11. Fez a muralha de Úruk, o redil,
12. E o sagrado Eanna, tesouro purificado.
29. Proeminente entre os reis, herói de imponente
físico,
30. Valente rebento de Úruk, touro selvagem
indomável:
31. Vai à frente, é o primeiro,
32. Atrás vai e protege os irmãos.
33. Margem firme, abrigo da tropa,
34. Corrente furiosa que destroça baluartes de pedra.
35. Amado touro de Lugalbanda, Gilgámesh perfeito em
força,
36. Cria da sublime vaca, a vaca selvagem Nínsun.
37. Alto é Gilgámesh, perfeito, terrível:
38. Abriu passagens nas montanhas,
39. Cavou cisternas nas encostas do monte,
40. Atravessou o mar, o vasto oceano, até onde nasce
Shámash,
41. Palmilhou os quatro cantos, em busca da vida,
42. Chegou, por sua força, ao remoto Uta-napíshti,
43. Repôs os templos arrasados pelo dilúvio,
44. Instituiu ritos para toda a humanidade.
45. Quem há que a ele se iguale em realeza
46. E como Gilgámesh diga: este sou eu, o rei?
47. A Gilgámesh, quando nasceu, renome lhe deram:
48. Dois terços ele é um deus, um terço é humano.
J. L. Brandão assinala que a narrativa se desenvolve, a
partir de 1,63, ao longo das 11 tabuinhas, em 4
movimentos[8]:
a. Os excessos de Gilgámesh e a criação de Enkídu
O arrogante e poderoso Gilgámesh, rei de Úruk, dois
terços divino e um terço humano, filho de um rei,
Lugalbanda, e de uma deusa, Nínsun, não deixa em paz
os jovens pois vive a desafiá-los para feitos esportivos,
e, por outro lado, atormenta as famílias com seu
insaciável apetite sexual por todas as jovens da cidade.
Para rivalizar com Gilgámesh, Enkídu é criado da argila
pela deusa mãe Bélet-Íli. Enkídu, criado selvagem e
vivendo entre os animais, será humanizado e civilizado
pelas ações da prostituta sagrada Shámhat, através do
sexo, da culinária e da vida em sociedade, passando a
viver em Úruk. Após uma feroz luta que acaba sem
vencedores, Gilgámesh e Enkídu tornam-se grandes
amigos, sendo esta amizade narrada com significativos
tons eróticos.
b. Os feitos de Gilgámesh e Enkídu
Os dois amigos saem em busca de glória. Em uma
expedição à floresta de cedros enfrentam o monstruoso
guardião da mata, Húmbaba e levam madeira para a
cidade. Após este feito glorioso, Gilgámesh desperta o
desejo da deusa do amor Ishtar, que se lhe oferece
como amante. Porém ele a recusa e dela desdenha
como alguém que só traz infelicidade a quem dela se
aproxima. Essa recusa leva a deusa a mandar contra
Úruk o touro do céu para devastá-la. Mas, sempre em
consequência da cooperação dos dois amigos, o touro é
trucidado.
c. Enfermidade e morte de Enkídu. Gilgámesh busca a
imortalidade
Os deuses decretam a morte de Enkídu em razão da
morte do touro do céu. No leito de morte, Enkídu se
lamenta e lança maldições. Após a morte de Enkídu,
entretanto, o lamento é de Gilgámesh que não se
conforma com a morte do amigo, pois reconhecendo
sua própria mortalidade através da morte de Enkídu,
passa a questionar o sentido da vida e o valor das
realizações humanas em face do fim. E Gilgámesh parte
para regiões remotas, para além do mundo dos homens,
onde vive Uta-napíshti, sobrevivente do dilúvio, em
busca do sentido da vida e, se possível, da imortalidade.
Enfrentando vários perigos, encontra uma taberneira
que lhe indica como chegar até Uta-napíshti. Após
narrar como se deu o dilúvio, Uta-napíshti submete
Gilgámesh a uma prova, na qual ele falha, mas também
lhe indica onde achar uma planta que dá a quem a
possui a eterna juventude. Entretanto uma serpente
rouba-lhe a planta. Com as esperanças destruídas,
Gilgámesh percebe que sua jornada foi em vão.
d. O retorno do herói a Úruk
Uta-napíshti o manda de volta para Úruk, com o
barqueiro Ur-shánabi, onde ele admira as grandes
muralhas que construíra. No final de sua jornada
Gilgámesh não consegue a imortalidade, mas adquire
sabedoria ao reconhecer os limites da condição
humana. Na versão antiga encontra-se uma bela
resposta da taberneira Shidúri à dor de Gilgámesh, que
não foi aproveitada no poema de Sin-léqi-unnínni, mas
que vale a pena considerar:
Gilgámesh, por onde vagueias?
A vida que buscas não a encontrarás:
Quando os deuses criaram o homem,
A morte impuseram ao homem,
A vida em suas mãos guardaram.
E Shidúri aconselha a Gilgámesh que aproveite a vida
presente e seus prazeres enquanto pode. Mas há uma
coisa interessante: como dito acima, este texto não está
na versão clássica do poema, pois para Sin-léqi-unnínni
o consolo de viver a alegria presente não é suficiente
para vencer a fatalidade da morte. A verdadeira
sabedoria é revelada, mais do que vivida. É a sabedoria
de um “segredo” antigo, um “mistério” dos deuses, de
tempos antigos, anterior ao dilúvio. A sabedoria
adquirida por Gilgámesh na versão clássica não é a
recomendada por Shidúri, mas a revelada por
Uta-napíshti e gravada para a posteridade. É uma
sabedoria transmitida pela palavra escrita, gravada na
pedra (estela) por Gilgámesh, gravada nas tabuinhas de
barro por Sin-léqi-unnínni.

3.2. A narrativa do dilúvio


Na tabuinha XI temos a narrativa do dilúvio feita por
Uta-napíshti. Os especialistas concordam que o texto é
uma adaptação de narrativa mais antiga, a Epopeia de
Atrahasis. O texto pode ser lido em seis etapas:
a. Os deuses decidem em segredo mandar o dilúvio mas
Ea o revela a Uta-napíshti
Assim começa Uta-napíshti o seu relato:
9. Descobrir-te-ei, Gilgámesh, palavras secretas
10. E um mistério dos deuses a ti falarei:
11. Shurúppak, cidade que tu conheces,
12. Cidade que às margens do Eufrates está
13. A cidade, ela é antiga e deuses dentro tem,
14. Ao proporem o dilúvio comandar a seu coração os
grandes deuses.
Os deuses Anu, Énlil, Ninurta, Ennugi e Ea, juraram
segredo sobre seu plano de mandar o dilúvio. Mas Ea
contou o plano deles para Uta-napíshti e lhe disse para
construir um barco. Ele lhe diz o que fazer:
27. Conserva a semente de tudo que vive no coração do
barco!
28. O barco que construirás tu:
29. Seja proporcional seu talhe,
30. Seja igual sua largura ao comprimento,
31. Como o Apsu seja sua cobertura!
Uta-napíshti executa as ordens de Ea. Ao povo de
Shurúppak ele diz que Énlil o odeia e ele não pode mais
morar na cidade ou pisar no território de Énlil e que
por isso irá para o Apsu para viver com Ea, seu senhor,
que lhes dará chuva abundante, muitas aves e peixes e
uma rica colheita de trigo e pão.
b. Construindo e lançando o barco
Os trabalhadores reuniram-se no portão de Atrahasis,
construíram e abasteceram o barco. Então Uta-napíshti
embarcou tudo o que tinha e, como determinara o deus
Shámash, a porta foi selada:
81. Quanto eu tinha embarquei nele,
82. Quanto tinha embarquei de prata,
83. Quanto tinha embarquei de ouro,
84. Quanto tinha embarquei da semente de tudo que
existe:
85. Fiz subir ao coração do barco toda minha família e
meu clã,
86. O rebanho da estepe, os animais da estepe, os filhos
dos artesãos.
95. Ao que calafetou o barco, Púzur-Énlil, o marinheiro.
c. A tempestade
Ao amanhecer uma nuvem negra surgiu no horizonte e,
dentro dela, estava Adad, senhor da tempestade,
enquanto os arautos da tempestade Shullar e Hanish
iam à sua frente por montanhas e planícies. Tudo virou
escuridão, os diques transbordaram, o vento soprou
violento e as pessoas já não se reconheciam na torrente.
Até os deuses ficaram apavorados com o dilúvio e se
encolheram num canto como cães assustados. A
inundação e o vento duraram seis dias e sete noites. A
terra foi destruída como um jarro de barro. As pessoas,
como peixes, boiavam nas águas.
128. Seis dias e sete noites
129. Veio vento, tempestade, vendaval, dilúvio.
d. Calma após a tempestade
No sétimo dia a tempestade passou, tudo ficou
silencioso e Uta-napíshti viu que a humanidade se
transformara em barro. Então ele chorou. Mas o barco
encalhou no monte Nimush e ali ficou por vários dias.
No sétimo dia, Uta-napíshti soltou uma pomba que
voou, mas não achando onde pousar, voltou. Ele soltou
uma andorinha, que também voltou. Então ele soltou
um corvo, e ele não voltou ao barco.
130. O sétimo dia ao romper,
131. Amainou o vendaval, amainou o dilúvio sua
guerra.
132. O que lutou como em trabalho de parto descansou,
o mar.
133. Calou-se a tormenta. O dilúvio estancou.
134. Olhei o dia: posto em silêncio
135. E a totalidade dos homens tornara-se barro.
e. O sacrifício
Úta-napíshti oferece, em seguida, um sacrifício aos
deuses que, atraídos por seu perfume, se reúnem como
moscas ao seu redor. Os deuses conversam, então,
sobre a responsabilidade do dilúvio e o extermínio dos
humanos.
161. Os deuses sentiram o aroma,
162. Os deuses sentiram o doce aroma,
163. Os deuses, como moscas, sobre o chefe da
oferenda amontoaram-se.
f. Uta-napíshti e sua esposa recebem a imortalidade e
são levados para longe
Énlil, inicialmente indignado pela sobrevivência de um
ser humano, acaba concordando em dar a Uta-napíshti
e sua esposa a imortalidade e em estabelecê-los em
terras longínquas. Énlil os abençoa, dizendo:
203. Antes Uta-napíshti era parte da humanidade,
204. Agora Uta-napíshti e sua mulher se tornem como
nós, os deuses!
205. Resida Uta-napíshti ao longe, na boca dos rios!
206. Levaram-nos para longe, na boca dos rios
puseram-nos.

4. A Epopeia de Atrahasis
4.1. O que é?
A Epopeia de Atrahasis (Supersábio) foi preservada em
acádico em três tabuinhas, numa versão escrita pelo
escriba Kasap-Aya no reinado de Ammi-Saduqa
(1646-1626 a.C.), bisneto de Hammurabi. Atrahasis tem
1245 linhas. Outros manuscritos do mesmo período ou
posteriores, dos períodos babilônicos médio e recente,
assim como do assírio recente, concordam com esta
versão de Kasap-Aya, embora existam algumas
diferenças.
As tabuinhas, que estão no Museu Britânico, só foram
totalmente publicadas em 1969 por W. G. Lambert e A.
R. Millard. Ainda existem lacunas e muitos dados
controvertidos são tema constante de debate entre os
assiriólogos[9].

4.2. Resumo do poema


A Epopeia de Atrahasis começa falando de um tempo
antes de existir a humanidade, quando o universo é
dividido entre os três deuses maiores: Ánu, controla o
céu; Énlil, a terra; Enki, o Apsu ou abismo. Há também
uma série de divindades menores, os Igigi, que têm que
trabalhar para os deuses mais antigos e superiores, os
Anunnaki, ficando responsáveis ​ ​ pela manutenção
da terra, escavando cursos de água, canais e os rios
Tigre e Eufrates. Na tabuinha I se lê:
1. Quando os deuses eram homens,
2. Eles fizeram trabalho forçado, eles suportaram
trabalho penoso,
3. Grande, na verdade, foi a labuta dos deuses,
4. O trabalho forçado era pesado, a miséria demais:
5. Os sete grandes Anunnaki sobrecarregaram os
deuses Igigi com trabalho forçado.
23. Os deuses Igigi escavaram cursos de água,
24. Canais eles abriram, a vida da terra.
25. Os Igigi escavaram o rio Tigre,
26. E, em seguida, o Eufrates.
27. Nascentes abriram das profundezas,
28. Poços … eles estabeleceram.
Insatisfeitos com o trabalho pesado, os Igigi rebelam-se
e sugerem criar seres humanos para cuidar da terra
para eles, bem como para fornecer os deuses com o
sustento através das oferendas de grãos, vinho e
sacrifícios animais. A deusa mãe Bélet-Íli concorda em
fazer o ser humano com a argila fornecida por Enki e o
sangue de um deus abatido. Este deus, Aw-ila, pode ter
sido um dos líderes da revolta dos Igigi, mas, mais
importante, é que o “espírito” deste deus torna-se parte
do ser humano.
189. Bélet-Íli, progenitora, está presente,
190. Deixe a deusa mãe criar um ser humano,
191. Que o homem assuma o trabalho dos deuses.
223. Abateram Aw-ila, que tinha o espírito,
224. Na assembleia,
225. Nintu misturou a argila com sua carne e sangue.
226. Esse mesmo deus e homem foram completamente
misturados no barro.
227. No tempo restante eles ouviram o tambor.
228. Da carne do deus o espírito permaneceu.
229. Faria os vivos saberem o seu sinal,
230. Para que não seja esquecido, o espírito permanece.
231. Depois de misturar a argila,
232. Ela convocou os Anunnaki, os grandes deuses,
233. Os Igigi e os grandes deuses,
234. Eles cuspiram na argila.
235. Mami abriu a boca,
236. E disse aos grandes deuses:
237. “Vocês me ordenaram a tarefa
238. E eu a conclui.
239. Vocês abateram o deus, juntamente com seu
espírito.
240. Eu afastei o vosso trabalho forçado pesado,
241. Eu transferi o vosso trabalho penoso para o
homem.
242. Depositastes o clamor sobre a humanidade.
243. Eu liberei o jugo, eu fiz a restauração”.
244. Eles ouviram este discurso dela,
245. Eles correram, aliviados, e beijaram os seus pés,
dizendo:
246. “Antes nós costumávamos chamá-la Mami,
247. Agora deixe o seu nome ser Senhora de todos os
deuses (Bélet-kala-íli)”.
Este plano funciona bem no início, mas, eventualmente,
os seres humanos multiplicam-se, e começam a fazer
muito barulho como consequência do aumento da
população. Énlil não suporta o distúrbio e decide
eliminar a fonte do ruído, destruindo toda a
humanidade.
Em primeiro lugar, Énlil envia uma praga, mas seu
plano é frustrado pelo mais inteligente do povo,
Atrahasis. Este é assistido por Enki, que é favorável à
humanidade. Atrahasis mostra às pessoas como
derrotar a praga – sacrificando ao deus específico que
Énlil encarregou da propagação da doença mortal. De
forma semelhante, ele leva as pessoas a derrotar as
tentativas de Énlil para matar a humanidade pela seca e
pela fome.
Finalmente, Énlil propõe inundar o mundo e afogar a
barulhenta humanidade. Desta vez, ele obriga todos os
deuses a jurar que vão aderir ao plano, a não
advertirem Atrahasis, e não se deixarem influenciar por
oferendas ou sacrifícios. Enki consegue avisar Atrahasis
sem tecnicamente quebrar o seu juramento: ele envia a
mensagem para as paredes da casa de Atrahasis, onde
Atrahasis não pode deixar de ouvir. Atrahasis constrói,
seguindo conselhos de Enki, um barco para ele, sua
família e os animais. Toda a terra é inundada por sete
dias e noites e todos morrem. Somente aqueles a bordo
do barco sobrevivem.
Embora Énlil resolva o problema do barulho da
humanidade, o dilúvio não é uma experiência positiva
para os deuses. Privados de seus servos humanos,
percebem, então, quanto estão dependentes de seus
trabalhadores. Por isso, eles providenciam o
repovoamento do mundo, tomando, entretanto,
medidas contra a superpopulação, como a mortalidade,
e limites para a reprodução, através da infertilidade das
mulheres, de demônios que atacam os bebês, de grupos
de mulheres celibatárias e, talvez, de outras medidas
que desconhecemos. Mortalidade e reprodução
limitada são, portanto, condições necessárias para que
os humanos possam viver em paz com os deuses na era
pós-diluviana.

Bibliografia
ABUSCH, T. Male and Female in the Epic of Gilgamesh:
Encounters, Literary History, and Interpretation.
Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2015.
AL-RAWI, F. N. H. ; GEORGE, A. R. Back to the Cedar
Forest: The Beginning and End of Tablet V of the
Standard Babylonian Epic of Gilgamesh. Journal of
Cuneiform Studies, v. 66, p. 69-90, 2014.
BOTTÉRO, J. ; KRAMER, S. N. Lorsque les dieux faisaient
l’homme: Mythologie Mésopotamienne. Paris:
Gallimard, 1993.
BRANDÃO, J. L. Como se faz um herói: as linhas de força
do poema de Gilgámesh. E-Hum, Belo Horizonte, v. 8, n.
1, p. 104-121, 2015.
BRANDÃO, J. L. Ele que o abismo viu: Epopeia de
Gilgámesh. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
BRANDÃO, J. L. Sin-leqi-unninni, Ele o abismo viu (Série
de Gilgámesh 1). Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. X,
n. 2, jul.-dez., p. 125-159, 2014.
CLIFFORD, R. J. Creation Accounts in the Ancient Near
East and in the Bible. Washington: The Catholic Biblical
Association of America, 1994.
FELIU MATEU, L. ; MILLET ALBÀ, A. Enuma Elish y
otros relatos babilónicos de la Creación. Madrid: Trotta,
2014.
FOSTER, B. R. Before the Muses: An Anthology of
Akkadian Literature. 3. ed. Bethesda, Md.: CDL Press,
2005.
GEORGE, A. R. The Babylonian Gilgamesh Epic:
Introduction, Critical Edition and Cuneiform Texts. 2
vols. Oxford: Oxford University Press, 2003.
GEORGE, A. R. The Epic of Gilgamesh: The Babylonian
Epic Poem and Other Texts in Akkadian and Sumerian.
Rev. ed. Harmondsworth: Penguin, 2016.
LAMBERT, W. G. Babylonian Creation Myths. Winona
Lake, Indiana: Eisenbrauns, 2013.
LAMBERT, W. G. ; MILLARD, A. R. Atra-Hasis: The
Babylonian Story of the Flood. Winona Lake, IN:
Eisenbrauns, 1999.
LIVERANI, M. Assiria: La preistoria dell’imperialismo.
Bari: Laterza, 2017.
LIVERANI, M. Imagining Babylon: The Modern Story of
an Ancient City. Berlin: Walter de Gruyter, 2016.
MALLEY, S. Layard enterprise: victorian archaeology
and informal imperialism in
Mesopotamia. International Journal of Middle East
Studies, Cambridge, 40(4), p. 623-646, 2008.
POLLOCK, S.; BERBECK, R. (eds.) Archaeologies of the
Middle East: Critical Perspectives. Hoboken, NJ:
Wiley-Blackwell, 2005.
PONGRATZ-LEISTEN, B. Religion and Ideology in
Assyria. Berlin: Walter de Gruyter, 2015.
POTTS, D. T. (ed.) A Companion to the Archaeology of
the Ancient Near East. 2 vols. Hoboken, NJ:
Wiley-Blackwell, 2012.
SERI, A. The Role of Creation in Enuma Elish. Journal of
Ancient Near Eastern Religions, v. 12, p. 4-29, 2012.
Para uma bibliografia mais ampla e comentada,
cf. Histórias do Antigo Oriente Médio: uma bibliografia,
post publicado no Observatório Bíblico em 27 de maio
de 2017.
>> Bibliografia atualizada em 10.01.2018
Artigos

[1]. Cf. POLLOCK, S.; BERBECK, R. (eds.) Archaeologies


of the Middle East: Critical Perspectives. Hoboken, NJ:
Wiley-Blackwell, 2005, p. 6; MALLEY, S. Layard
enterprise: victorian archaeology and informal
imperialism in Mesopotamia. International Journal of
Middle East Studies, Cambridge, 40(4), p. 623-646,
2008; LIVERANI, M. Imagining Babylon: The Modern
Story of an Ancient City. Berlin: Walter de Gruyter,
2016, p. 23-31; POTTS, D. T. (ed.) A Companion to the
Archaeology of the Ancient Near East. 2 vols. Hoboken,
NJ: Wiley-Blackwell, 2012, p. 48-69; FOSTER, B.
R.Before the Muses: An Anthology of Akkadian
Literature. 3. ed. Bethesda, Md.: CDL Press, 2005, p.
1-12. Para recursos online, cf. Histórias do Antigo
Oriente Médio: alguns recursos online, post publicado
no Observatório Bíblico em 14 de agosto de 2017.
[2]. Cf. CLIFFORD, R. J. Creation Accounts in the Ancient
Near East and in the Bible. Washington: The Catholic
Biblical Association of America, 1994, p. 7-98;
PONGRATZ-LEISTEN, B. Religion and Ideology in
Assyria. Berlin: Walter de Gruyter, 2015, p. 10-41;
LIVERANI, M. Assiria: La preistoria dell’imperialismo.
Bari: Laterza, 2017.
[3]. Cf. LAMBERT, W. G. Babylonian Creation Myths.
Winona Lake, Indiana: Eisenbrauns, 2013. Recomendo
também FELIU MATEU, L. ; MILLET ALBÀ, A. Enuma
Elish y otros relatos babilónicos de la Creación. Madrid:
Trotta, 2014. Saiba mais no Observatório Bíblico em O
Enuma Elish e outras histórias; O Enuma Elish e outras
histórias: notas de leitura e Enuma Elish e outras
histórias de criação.
[4]. Cf. uma descrição da festa em Akitu – Festival do
Ano Novo na Babilônia, post publicado no Observatório
Bíblico em 19 de outubro de 2017.
[5]. Quando, neste artigo, um bloco de texto for
transcrito será apenas a partir de traduções do inglês
ou outra língua e não uma tradução do original acádico.
Não recomendo sua reprodução. Para os textos,
recomendo: Lambert (2013) para o Enuma Elish,
George (2003) e Brandão (2017) para a Epopeia de
Gilgámesh e Foster (2005) mais Bottéro/Kramer (1993)
para a Epopeia de Atrahasis. Cf., sobre isso, Algumas
observações sobre a reunião dos biblistas mineiros em
2017, post publicado no Observatório Bíblico em 17 de
julho de 2017.
[6]. Cf. SERI, A. The Role of Creation in Enuma
Elish. Journal of Ancient Near Eastern Religions, v. 12,
2012, p. 25-26. Saiba mais em A importância das várias
criações no Enuma Elish, post publicado no
Observatório Bíblico em 4 de outubro de 2017.
[7]. Cf. GEORGE, A. R. The Babylonian Gilgamesh Epic:
Introduction, Critical Edition and Cuneiform Texts. 2
vols. Oxford: Oxford University Press, 2003; GEORGE, A.
R. The Epic of Gilgamesh: The Babylonian Epic Poem
and Other Texts in Akkadian and Sumerian. Rev. ed.
Harmondsworth: Penguin, 2016; AL-RAWI, F. N. H. ;
GEORGE, A. R. Back to the Cedar Forest: The Beginning
and End of Tablet V of the Standard Babylonian Epic of
Gilgamesh. Journal of Cuneiform Studies, v. 66, p. 69-90,
2014. Cf. também BRANDÃO, J. L. Ele que o abismo viu:
Epopeia de Gilgámesh. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
[8]. Os textos aqui reproduzidos são da tradução de
Brandão (2017). Cf. BRANDÃO, J. L. Ele que o abismo
viu: Epopeia de Gilgámesh. Belo Horizonte: Autêntica,
2017; BRANDÃO, J. L. Como se faz um herói: as linhas
de força do poema de Gilgámesh. E-Hum, Belo
Horizonte, v. 8, n. 1, p. 104-121, 2015; BRANDÃO, J. L.
Sin-leqi-unninni, Ele o abismo viu (Série de Gilgámesh
1). Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. X, n. 2, jul.-dez.,
p. 125-159, 2014; ; ABUSCH, T. Male and Female in the
Epic of Gilgamesh: Encounters, Literary History, and
Interpretation. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2015.
Saiba mais em Histórias do Antigo Oriente Médio: uma
bibliografia, post publicado no Observatório Bíblico em
27 de maio de 2017.
[9]. Cf. LAMBERT, W. G. ; MILLARD, A. R. Atra-Hasis:
The Babylonian Story of the Flood. Winona Lake, IN:
Eisenbrauns, 1999; FOSTER, B. R. Before the Muses: An
Anthology of Akkadian Literature. 3. ed. Bethesda, Md.:
CDL Press, 2005, p. 227-280; BOTTÉRO, J. ; KRAMER, S.
N. Lorsque les dieux faisaient l’homme: Mythologie
Mésopotamienne. Paris: Gallimard, 1993, p. 526-601;
CLIFFORD, R. J. Creation Accounts in the Ancient Near
East and in the Bible. Washington: The Catholic Biblical
Association of America, 1994, p. 74-82.

Yahweh e El: origem do deus de Israel e suas relações


com os deuses e deusas de Canaã
Yahweh, antes de se tornar o deus nacional de Israel e
tendo atributos monoteístas do século 6 a.C., era uma
parte do panteão cananeu no período antes do cativeiro
babilônico. Evidências arqueológicas revelam que
durante este tempo os israelitas foram um grupo de
tribos cananéias. Yahweh era visto como um deus da
guerra , e igualado com El . Asherah , que foi muitas
vezes visto como consorte de El , tem sido descrita
como uma consorte de Yahweh em numerosas
inscrições . O nome Yahwi pode possivelmente ser
encontrada em alguns nomes amoritas masculinos e
Yahu pode ser encontrado em um nome de lugar
(topônimo).
El é uma palavra semita significa “divindade " . Na
religião cananéia, ou na religião levantina como um
todo, El era o deus supremo , o pai da humanidade e de
todas as criaturas e era o marido da deusa Asherah
como registrado nos tabletes de argila de Ugarit.O
substantivo ʾel foi encontrado na parte superior de uma
lista de deuses como o " Ancião dos deuses " ou o "pai
de todos os deuses " , nas ruínas do arquivo real da
civilização Ebla , no sítio arqueológico de Tell Mardikh,
na Síria, e datado de 2300 a.C . O touro era simbólico
para El e seu filho BaalHadad , e ambos usavam chifres
de touro em seu cocar . Ele pode ter sido um deus do
deserto, em algum momento, já que os mitos dizem que
ele tinha duas esposas e construiu um santuário com
eles e seus novos filhos no deserto. El era pai de muitos
deuses, mas os mais importantes foram Ball- Hadad,
Yam e Mot.

Eram Yahweh e El originalmente a mesma deidade ou


não?
Qual era a relação entre Yahweh e o deus cananeu El?
No Antigo Testamento Yahweh é frequentemente
chamado El. A questão que surge é se Yahweh era uma
forma do deus El desde o começo ou se eles eram
deidades separadas que apenas se tornaram iguais
mais tarde. O próprio Antigo Testamento indica um
senso de descontinuidade como de continuidade, e
tanto nas fontes E e P implicam que os patriarcas não
conheciam o nome Yahweh até que este foi
primeiramente revelado à Moisés (Exod. 3.15-15, E;
6.2-3, P), em contraste com a fonte J, onde o nome
Yahweh já era conhecido desde os tempos primevos
(Gen. 4.26). A fonte P afirma especificamente que os
patriarcas já havia conhecido a Deus com o nome de
El-Shaddai (Exod. 6.3)
No século dezenove J. Wellhausen ¹ acreditava que
Yahweh era o mesmo que El, e mais recentemente isso
tem sido particularmente defendido por F. M. Cross e J.
C. de Moor ². Contudo, os seguintes argumentos podem
ser usados contra isso. Primeiro, nos textos ugaríticos o
deus El é revelado como sendo totalmente benevolente
em sua natureza, ao passo que Yahweh tem um lado
feroz bem como um lado amável ³. Segundo, como T. N.
D. Mettinger ⁴ enfatizou fortemente, a evidencia mais
antiga, tal como é encontrada em Juízes 5.4-5, associa
Yahweh com a chuva, a qual não está de maneira
alguma ligada com El. Pelo contrário, isso é uma
reminiscência de Baal. Terceiro,como a visão de F. M.
Cross de que Yahweh era originalmente uma parte do
título de culto de El, “El o que cria as hostes” (‘il ḏū
yahwi ṣaba’ōt), é pura especulação. A fórmula em
questão não é atestada em lugar algum, quer seja
dentro ou fora da bíblia. As razões para Cross pensar
que yhwh ṣb’t não podem simplesmente significar
“Senhor dos exércitos” , a saber, que um nome próprio
jamais deveria aparecer na construção, é incorreta.
Além disso, hyh (hwh) não é atestado no hebraico no
hiphil (“causa a ser”, “criar”), embora este seja o caso
no aramaico e no siríaco. Yahweh é em qualquer caso
algo mais parecido com “ele é” (qal), que explica o
nome Yahweh. Eu concluo, portanto, que El e Yahweh
eram deidades originalmente distintas que depois se
tornaram amalgadas. Este é o ponto de vista defendido
por muito tempo por F. K. Movers ⁷, e tem sido mantido
por estudiosos como O. Eissfeldt e T. N. D. Mettinger ⁸.

Referências Bibliográficas

1. J. Wellhausen, Prolegomena to the History of Israel, p.


433

2. F. M. Cross, Canaanite Myth and Hebrew Epic,


Cambride, MA: Harvard University Press, 1973, pp.
60-75; J. C. de Moor, The Rise of Yahwism ( BETL, 91:
Leuven: Leuven University Press and Peeters, 1990), pp.
223-60 (2nd edn, 1997, pp. 310-69)
QUEM ERAM OS ISRAELITAS POLITEÍSTAS?
Maiores enigmas da Bíblia, parte 2: Por que uma tumba
do século 8 a.C. faz referência a uma esposa de Javé, a
deusa Asherah?
Os israelitas tinham um deus que só eles seguiram. Mas
isso não quer dizer que esse foi seu único deus desde o
começo.
A própria Bíblia deixa claro que muitas vezes o povo
escolhido traiu a seu deus por outros deuses. O próprio
rei Salomão terminou a vida criando templos a deuses
cananeus: Quemós e o infame Moloque (1 Reis 11:7).
Mas não é a única dica que a Bíblia dá de que os
israelitas nem sempre viram seu deus como único. O
principal deus do panteão cananeu era El, e sua esposa
era Asherah. Entre os judeus, a palavra El se tornou o
termo genérico para "deus", usado para se referir ao
próprio deus da Bíblia, em versões como El Shaddai
("Deus todo-poderoso", Gênesis 17:1) ou o quase
suspeitamente politeísta Elohim ("Deus dos deuses").
Variações de El aparecem 217 vezes no Tanakh, o
Antigo Testamento judaico.
Asherah em alto-relevo cananeu British Museum
El e Yahweh acabaram sendo mesclados num só – e a
prova disso está em coisas como uma tumba do século
8 a.C., do Reino de Judá, que faz referência a "Yahweh e
sua esposa Asherah". Estátuas de Asherah continuam a
ser encontradas em Israel."Primeiro, houve uma fusão
de várias divindades na figura de Yahweh, entre elas El,
Asherah e Baal", diz Mark Smith, professor de estudos
bíblicos na Universidade de Nova York, autor de The
Origins of Biblical Monotheism ("As Origens do
Monoteísmo Bíblico", sem tradução). Segundo ele, basta
ler os poemas bíblicos mais antigos para perceber essa
fusão de deuses. Na Bíblia, Yahweh assume os atributos
de Baal como senhor da tempestade ("A voz do Senhor
despede relâmpagos", Salmos 29:7).
Yahweh não era então o deus único, mas o deus que era
único aos israelitas. Após o cativeiro babilônico, entre
586 e 539 a.C., isso mudou. Os outros deuses foram não
só banidos de vez entre os judeus, como declarados
inexistentes.
Shemá Israel. Adonai Eloheinu, Adonai Echad
("Ouve, Israel. O Senhor é nosso Deus. O Senhor é um.")

Assim começa o Shemá, a reza mais importante do


judaísmo. Ao repeti-la duas vezes ao dia, os judeus
professam sua fé exclusiva em Yahweh, deus único,
onipotente, onisciente. Esse é o deus mais popular do
mundo: entre cristãos, judeus e islâmicos, 3,6 bilhões
de pessoas professam uma das versões do culto a
Yahweh, mais de metade de todos os seres humanos.
Qual é a origem desse Deus com maiúscula, que
dominou meio mundo? E de onde surgiu essa ideia que
há apenas um deus, ao contrário do que quase todos os
povos acreditaram durante a História?

Segundo a Bíblia (e o Alcorão), é simples: Deus existe, e


só ele. Yahweh reinou desde sempre, tendo contato
direto com os primeiros homens, de Adão até Noé,
quando o Dilúvio matou toda a humanidade menos sua
família. Depois de Noé, seus filhos se dividiram para
repovoar o mundo e os povos passaram a cultuar
outros deuses, erroneamente. Há cerca de 4 mil anos,
Deus se revelou a Abrão, um sumério da cidade de Ur
(no atual Iraque), que mudou o nome para Abraão.
Após milênios de desventuras, incluindo um período de
escravidão no Egito, que termina com as sete pragas de
Moisés contra os egípcios, os descendentes de Abraão
conquistaram um pedaço de Canaã e fizeram dele sua
pátria. Desde Abraão até hoje, os hebreus seguem o
mesmo deus.

Fenícios e hebreus
Canaã era um território que correspondia às terras de
Israel, Palestina, Líbano, Jordânia e Síria. Os cananeus
se dividiam em pequenos reinos, como Moab, Amon e
Edom, e cidades-estado, como Tiro, Sidon e Biblos - os
habitantes dessas últimas ganharam dos gregos o
apelido de "fenícios" e fundaram um império. Cananeus
falavam línguas semíticas muito próximas, usavam o
mesmo alfabeto e cultuavam mais ou menos os mesmos
deuses. Cercados por todos os lados de pagãos
cananeus, falando quase a mesma língua e usando o
mesmo alfabeto, mesmas roupas e mesmos utensílios,
viviam os hebreus, no Reino de Israel - que, no entanto,
não se consideravam cananeus. Ou ao menos não se
consideravam na época em que a Tanakh (o Velho
Testamento) foi escrita, entre os séculos 6 e 5 a.C.,
contando sua origem estrangeira.

Essa migração não foi confirmada pela arqueologia.


Não há evidências de uma grande colonização
estrangeira na região. Não há menção egípcia ao
cativeiro dos hebreus. As campanhas militares do final
da Era do Bronze tinham outros protagonistas: os
egípcios, que tratavam a região como seu quintal, e os
povos do mar (veja mais na página 48), que a
invadiram pelo norte. Em 1400 a.C., quando Josué teria
conquistado Jericó, a cidade estava deserta havia 150
anos.

Em outras palavras, os hebreus não eram inimigos dos


cananeus. Eles eram cananeus. "O crescente consenso
entre os arqueólogos é que, no início, a maioria dos
israelitas era cananeu", diz Robert Gnuse, professor de
Velho Testamento na Universidade de Loyola, EUA.
"Aos poucos, as pessoas que desenvolveram uma
identidade israelita tenderam a viver no alto das
colinas de Canaã. Já as que mantiveram a identidade
canaanita habitavam as planícies."

Deus e sua esposa


A Bíblia narra a história dos hebreus como a imposição
de um deus estrangeiro a pagãos canaanitas. "Graças ao
relato bíblico, o monoteísmo da antiga Israel tem sido
considerado uma revolução contra o pensamento
religioso de seus vizinhos", diz Mark S. Smith, professor
de Estudos Bíblicos na Universidade de Nova York, no
livro The Origins of Biblical Monotheism (As Origens do
Monoteísmo Bíblico, inédito no Brasil). "Porém, estudos
mais recentes têm buscado situar a história bíblica do
monoteísmo em seu contexto cultural mais amplo", isto
é, o contexto do politeísmo canaanita.
Textos e artefatos encontrados em Ugarit (atual Ras
Shamra, na Síria), datados dos séculos 15 a 12 a.C.,
indicam que os hebreus cultuavam o panteão de deuses
cananeus. "As quatro camadas da sociedade humana -
rei, nobres, camponeses e escravos - eram espelhadas
em quatro camadas de divindades", diz o historiador
canadense K. L. Noll no artigo Canaanite Religion
("Religião Cananita"). O topo do panteão era ocupado
por um deus chefe, El, e por sua esposa, Asherah.
Abaixo vinham os deuses cósmicos, como Baal e Anath,
que controlavam a tempestade, a fertilidade e outros
aspectos naturais. Na terceira camada vinham os
deuses que auxiliavam na vida diária das pessoas, como
Kothar-wa-Khasis, o deus da habilidade. Por fim os
mensageiros, que não eram mencionados por nome.

Essa hierarquia de deuses é chamada de henoteísmo


(ou monolatria). "Há uma distância muito curta entre
essa noção henoteísta e a ideia monoteísta, ou seja, a de
que um deus é realmente Deus e quaisquer outros
seres sobrenaturais são criaturas insignificantes sob
seu comando", diz Noll. "A religião da Bíblia deu esse
passo." Entre os hebreus, os deuses das duas camadas
intermediárias foram eliminados, restando apenas o
deus-chefe e os mensageiros. "Anjo" vem do grego
angelos, tradução para o hebraico malak,
"mensageiro".
El, o deus-chefe cananeu, é um dos nomes de Deus na
Bíblia, geralmente com um adjetivo, como El Shaddai,
"deus todo poderoso" ou Elohim, "deus dos deuses". O
nome Yahweh, por sua vez, não aparece em textos de
outros cananeus. A primeira menção a Yahweh é em
inscrições egípcias do século 14 a.C., que se referem aos
"nômades de Yahweh" e o associam com pessoas que
viviam em Edom - não nas terras dos hebreus, mas um
pouco mais ao sul.

O Velho Testamento parece sugerir uma origem


politeísta, principalmente em seus livros mais antigos
(veja quadro). Existe várias passagens como "Senhor,
quem é como Tu entre os deuses?" (Êxodo 15:11). Ou:
"Terrível é Deus na assembleia dos santos, maior e mais
tremendo que todos os que o cercam" (Salmos 89:7),
que parece falar em algum tipo de panteão.

Quando o culto a Yahweh se expandiu ao norte, a


religião dos hebreus começou a mudar. "Primeiro,
houve uma fusão de várias divindades na figura de
Yahweh, entre elas El, Asherah e Baal", diz Mark Smith.
Basta ler os poemas bíblicos mais antigos para
perceber essa fusão de deuses. Na Bíblia, Yahweh
assume os atributos de Baal como senhor da
tempestade ("A voz do Senhor despede relâmpagos",
Salmos 29:7). Achados arqueológicos mostram sua
fusão com El, ao assumir a esposa dele: em um templo
hebreu do século 9 a.C., está escrito: "Yahweh de
Samaria e sua Asherah". Em uma tumba do século 8 a.C.
do reino de Judá, alguém deixou: "Yahweh e sua
Asherah". Pois é, os hebreus achavam que Deus era
casado.

Yahwehmania
Ao longo dos séculos, sacerdotes, profetas e monarcas
reforçaram o culto exclusivista a Yahweh. Por volta de
700 a.C., definitivamente havia uma religião separada
daquela praticada pelos vizinhos, com um grande foco
nesse deus. Mas não era universal. "Se você entrasse
numa máquina do tempo e voltasse à Palestina daquela
época, veria que a maioria das pessoas era politeísta.
Outras eram henoteístas. Mas elas não se definiam
assim. Não se preocupavam com isso", diz Gnuse.

No entanto, um acontecimento mudaria essa história


para sempre. Em 586 a.C., as muralhas de Jerusalém
vieram abaixo. O rei babilônio Nabucodonosor invadiu
a cidade, queimou o mítico Templo dedicado a Yahweh
e mandou boa parte dos judeus para o exílio na
Babilônia. "O exílio durou apenas meio século, mas teve
uma força criadora impressionante", diz o historiador
britânico Paul Johnson no livro História dos Judeus.
"Assim como os períodos de Abraão e Moisés haviam
produzido a religião de Yahweh, os anos durante e
pós-exílio desenvolveram e refinaram o judaísmo."
Durante o exílio, rabinos e escribas compilaram e
editaram as tradições orais e os pergaminhos trazidos
do templo destruído, agregando textos novos para
reverenciar Yahweh e condenar o culto a outros deuses
(leia quadro), dando origem ao Tanakh, o livro sagrado
do judaísmo, o que deu forma definitiva à religião. Em
539, o rei persa Ciro derrotou os babilônios e permitiu
a volta dos judeus para Canaã, o que foi visto como uma
intervenção direta de Yahweh. Nos anos que se
seguiram, os editores deram os últimos retoques no seu
novo projeto de fé.

O primeiro dos dez mandamentos afirma: "Não terás


outros deuses diante de mim" (Êxodo 20:3). O que era a
preferência por um deus torna-se uma lei vinda do céu,
escrita na pedra, e punível com morte.
Na Bíblia, um Deus em mutação
A Bíblia é como uma biblioteca: ela é formada por livros
escritos por diferentes autores ao longo de séculos,
reunidos fora de ordem cronológica. Os especialistas
distinguem quatro grupos de autores principais, cada
um deles identificado por uma letra. Os primeiros a
escrever, provavelmente na primeira fase da
monarquia israelita (922-722 a.C.), foram do grupo "J"
(do reino de Judá, que chamava seu deus de Yahweh) e
"E" (de Israel, que preferiam o título divino mais formal
Elohim). J deu a Yahweh características bastante
humanas. No Gênese, por exemplo, Deus se arrepende,
fica zangado e grita com Noé. Já a visão de E é mais
transcendente: Elohim quase não fala; prefere mandar
um anjo como mensageiro. "Mas nem J nem E
acreditavam que o deus israelita era totalmente
monoteísta", diz a historiadora das religiões Karen
Armstrong no livro A Bíblia - Uma Biografia. Isso
mudou com as duas escolas posteriores: "P" (priests,
"sacerdotes") e "D" (Deuteronomistas), que começaram
a escrever após a destruição do reino de Israel pela
Assíria (722 a.C.) e continuaram durante o exílio da
Babilônia (586-539 a.C.). Eles projetaram a imagem de
Yahweh como o Deus único. Quando os editores finais
da Bíblia Hebraica juntaram todo o material, em algum
momento entre os séculos 6 e 4 a.C., Deus havia se
transformado. O velho deus nacional de Israel, que
convivia com o panteão cananeu, tinha ficado para trás.
Ele agora era Yahweh, o Deus todo-poderoso do
Universo.

Tel Kashish, culto dos cananeus ou dos israelitas


pagãos?
9 de dezembro de 2012/em Arqueología, Arqueologia
Bíblica /por Diretor do Cafetorah

A surpreendente descoberta em Tel Kashish pode ser


na realidade mais uma prova histórica das páginas da
Bíblia. Seriam estes artefatos de culto pagãos dos
cananeus ou dos israelitas infiéis que são citados no
caso da importante batalha entre Elias e os profetas de
Baal?
Junto ao cruzamento de Hatishbi, na região do Profetas
Elias, está sendo revelada uma das maiores descobertas
arqueológicas atuais, no antigo sítio de Tel Kashish,
junto a cidade moderna de Yokneam, Jokeneam na
Bíblia.
Os primeiros resultados da pesquisa arqueológica estão
sendo revelados pelo Autoridade das Antigüidades de
Israel(AAI em português e IAA em Inglês), devido aos
trabalhos realizados na construção do gasoduto do
norte de Israel que deverá passar pelo local,
transportando gás natural, por empresa uma empresa
nacional.
No sopé do Tel Kashish (Tel Cassis, ou colina dos
idosos), as surpresas não cessaram desde o início das
operações. Durante duas semanas os arqueólogos da
AAI escavaram um grande espaço, o que os levou a
cerca de mais de 100 artefatos de cultos
impressionantes desde 3500 anos A.C. As escavadeiras
paravam cada vez que se aproximavam do fundo, mas
mais uma vez, novos elementos foram descobertos, e
uma fascinante camada de ferramentas intactas foi
revelada.
Dentro do poço estreito as ferramentas foram
encontradas intactas em uma cova, empilhadas umas
sobre as outras, e outras ferramentas foram quebradas
por aquelas que foram colocados sobre as primeiras.
Entre os resultados da pesquisa: uma ferramenta usada
para queimar incenso no culto, um rosto de uma
mulher que fazia parte uma taça ritual, esculpido em
cerâmica, onde era feita a dedicação de bebida ritual ao
deus cananeu El, copos e taças com bases altas, e outros
instrumentos para comer e beber. Além disso, foram
achados outros artefato normalmente encontradas de
Micena na Grécia e que foram importados, incluindo
artefatos para guardar óleos preciosos usados em culto
- uma prova das relações comerciais com a Grécia
antiga e encontra-se oculto.
Segundo os arqueólogo Dr. Edwin Van Dan Brink e Uzi
Ad, o diretor da escavação que é dirigida em nome da
Autoridade de Antiguidades de Israel, esta é uma
descoberta rara: Até agora não haviam sido conhecidas
invenções como as tais há 3.500 anos atrás.
É raro também encontrar dezenas de ferramentas tão
bem preservadas: A maioria das escavações estão
cheias de fragmentos de artefatos, mas aqui as
ferramentas estão praticamente intactas, cada uma foi
encontrada no lugar com grande cuidado, será retirada,
pintada e documentada, revelando o local onde mais
ferramentas poderão ser encontradas.
Artefatos de vários tipos foram postos juntos.
O arqueólogo Dr. Van Dan Brink disse haver duas
hipóteses sobre a finalidade do poço encontrado.
"Durante esse tempo, segundo a tradição, os filhos de
Israel ainda estavam no Egito ou no deserto, e as
ferramentas eram provavelmente utilizadas para a
adoração pagã de ídolos pelos cananeus.
Durante este período, era costume que cada cidade
tivesse o seu próprio templo, que utilizavam artefatos
especiais para a adoração.
No final da Idade do Bronze Final (período cananeu)
haviam muitas destruições na região, inclusive Tel
Kashish teria sido destruída pelo fogo, bem como Tel
Yokneam que está bem próxima. Portanto, uma
hipótese é a colocação dos artefatos ali, afim de
salvá-los da destruição após alguma batalha.
Outra possibilidade é que os artefatos tenham sido
utilizados para um culto específico templo, e a seguir,
teriam saído de uso: Como os artefatos pertenciam a
um ritual específico, provavelmente foi colocado em um
esconderijo especial, ao invés de serem jogados no lixo
como eram outros artefatos.
Esta não é primeira vez que obras de infra estrutura
nacional revelam verdadeiros tesouros da antiguidade,
nem provavelmente será a ultima.
Deus – Uma biografia
Pesquisadores revelam que Javé, o grande personagem
da Bíblia, não foi visto sempre como Deus único. Antes
do Livro Sagrado, ele era só mais um entre muitas
divindades. Saiba como Deus conquistou seu espaço no
céu. E na Terra
Por Reinaldo José Lopes
access_time31 out 2016, 18h35 - Publicado em 28 nov
2010, 22h00
chat_bubble_outlinemore_horiz
Deus criou o Universo.
Deus está em todos os lugares.
Deus é a força que nos une.
Cada sociedade vê a figura do Criador à sua maneira.
Cada indivíduo, até. Para Einstein, Ele era as leis que
governam o tempo e o espaço – a natureza em sua
acepção mais profunda. Para os ateus, Deus é uma
ilusão. Para o papa Bento 16, é o amor, a caridade.
“Quem ama habita Deus; ao mesmo tempo, Deus habita
quem ama”, escreveu em sua primeira encíclica.
Pontos de vista à parte, toda cultura humana já teve seu
Deus. Seus deuses, na maioria dos casos: seres divinos
que interagiam entre si em mitologias de enredo farto,
recheadas de brigas, lágrimas, reconciliações. Os deuses
eram humanos.
PUBLICIDADE
Mas isso mudou. A imagem divina que se consolidou é
bem diferente. Deus ganhou letra maiúscula na cultura
ocidental. Os panteões divinos acabaram. Deus
tornou-se único. É o Deus da Bíblia, Javé, o criador da
luz e da humanidade. O pai de Jesus. Essa concepção,
que hoje parece eterna, de tanto que a conhecemos, não
nasceu pronta. Ela é fruto de fatos históricos que
aconteceram antes de a Bíblia ter sido escrita. O
próprio Javé já foi uma divindade entre muitas. Fez
parte de um panteão do qual não era nem o chefe. O
fato de ele ter se tornado o Deus supremo, então, é
marcante: se fosse entre os deuses gregos, seria como
se uma divindade de baixo escalão, como o Cupido,
tivesse ascendido a uma posição maior que a de Zeus É
essa história que vamos contar aqui. A história de Javé,
a figura que começou como um pequeno deus do
deserto e depois moldaria a forma como cada um de
nós entende a ideia de Deus, não importando quem ou
o que Deus seja para você.
Criança
No princípio, Ele não sabia falar. Só chorava, grunhia e
balbuciava. Deus era uma criança. Uma não, muitas: um
deus era a chuva, outro deus, o Sol, mais outro, o
trovão… Os deuses eram as forças por trás de uma
natureza inexplicável para os primeiros humanos da
Terra. Facetas de divindades borbulhavam em
cachoeiras, galopavam com os cavalos selvagens,
voavam com o vento, escondiam-se em cada rochedo,
bosque ou duna do deserto. E do deserto veio a que
daria origem ao Deus para valer.
Deuses nasceram do pôquer. A crença em divindades
provavelmente vem da capacidade humana de detectar
as intenções das outras pessoas. Somos muito bons
nisso desde que surgimos, há 200 mil anos, e
precisamos ser mesmo, porque o Homo sapiens sempre
levou a vida social mais complicada do reino animal,
sempre em comunidades cheias de intrigas,
fingimentos, traições. Saber o que se passa na cabeça do
outro era questão de sobrevivência – e até certo ponto
ainda é.
E a melhor maneira de tentar se antecipar a um
adversário nos jogos mentais do dia a dia é imaginar as
intenções dele: “O que será que ele pensa que eu estou
pensando?” Nosso cérebro é uma máquina de pôquer.
Pesquisadores como o antropólogo francês Pascal
Boyer defendem que esse sistema de detecção de
intenções pode acabar aplicado a coisas que não têm
intenções de nenhum tipo – como a chuva, ou o Sol. A
ideia de que há espíritos de toda sorte da natureza seria,
assim, um efeito colateral do nosso sistema de detecção
de mentes, tão hiperativo.
Por esse ponto de vista, a espiritualidade faz parte dos
nossos instintos. É quase tão natural acreditar em
divindades quanto comer ou dormir.
Cada fenômeno da natureza, então, representava as
intenções de alguma divindade. É como ainda acontece
nas tribos de caçadores-coletores de hoje. Entre os
índios tupis, os trovões são a raiva do deus Tupã. E fim
de papo.
Obras de arte de mais de 30 mil anos atrás dão outra
pista sobre essa espiri-tualidade primitiva – que
podemos chamar de “infância de Deus” (no caso, dos
deuses). Elas mostram seres que misturam
características humanas e animais – sujeitos com
cabeça de leão ou de rena e corpo de gente, por
exemplo.
Acredita-se que essas criaturas híbridas representem
um tipo de crença que ainda é comum nas tribos
indígenas: a de que não haveria separação rígida entre
o mundo dos humanos, o dos animais e o dos espíritos.
Seria possível transitar entre essas esferas se você
possuísse o conhecimento correto, e, em tese, qualquer
falecido, seja pessoa, seja bicho, pode ter um papel
parecido com o que associamos normalmente a um
deus.
Os deuses abandonam de vez as feições animais quando
os bichos se tornam menos importantes no nosso
cotidiano. Foi precisamente o que aconteceu quando a
agricultura foi criada, há 10 mil anos, no Oriente Médio.
Graças a ela, montamos as primeiras cidades. E a nossa
espiritualidade progrediria junto: acabaria bem mais
centrada nas pessoas que na natureza selvagem.
Há sinais de que ancestrais mortos eram as grandes
entidades com status divino nessas primeiras cidades.
Um exemplo arqueológico vem de escavações em Jericó,
uma das mais antigas aglomerações humanas, que hoje
fica no território palestino da Cisjordânia. Os habitantes
de Jericó enterravam o corpo de seus mortos, mas
guardavam o crânio, que era recoberto com camadas de
gesso e tinta, simulando o rosto humano. Assim
preparada, a caveira talvez servisse de oráculo
doméstico – uma espécie de deus particular para cada
família.
Os artesãos de crânios de Jericó não tinham escrita –
aliás, passariam mais de 5 mil anos até que essa
tecnologia fosse inventada. Quando isso finalmente
aconteceu, em torno do ano 2000 a.C., os deus ficaram
bem mais sofisticados.
Entraram em cena criaturas ao estilo dos habitantes do
Olimpo na mitologia grega. Em parte, alguns deles até
eram mesmo personificações das forças da natureza,
mas agora eles ganhavam personalidades e biografias
complexas.
É aí que está a origem do grande personagem desta
história: Javé, uma divindade que provavelmente
começou como um deus menor, cultuado por nômades.
Bem antes de a Bíblia ser escrita.
Cabeça de leão
Estátuas e pinturas de povos caçadores, que viviam nas
cavernas da Europa há 30 mil anos, mostram figuras
que misturam formas de homens e de animais. Tudo
indica que esses foram os primeiros deuses a habitar a
mente humana.
Jovem
O rapaz era uma divindade dos desertos do sul. Junto
com seus poucos súditos, chegaria à pulsante Canãa,
domínio do deus El, o altíssimo. Ao lado do soberano, a
mãe de divindades e homens, Asherah, senhora de tudo
o que é fértil, e seu sucessor, Baal, o deus que dava
chuvas àquelas paisagens àridas. Tudo na santa paz.
Eles só não imaginavam que Javé tramava a destruição
deles.
Ele começou de baixo. Era só mais um deus entre vários
outros de sua região. Só que na Bíblia Javé é
identificado como o Deus único. Hoje, cogitar a
existência de outras divindades que teriam convivido
com o Senhor da Bíblia é um absurdo do ponto de vista
religioso. Mas não do ponto de vista científico.
Pesquisadores de várias áreas – arqueólogos, linguistas,
teólogos – estão encontrando pistas sobre uma
provável “vida pregressa” de Javé. Uma vida mitológica
que ele teve antes de seu nome ir parar na Bíblia como
o da entidade que criou tudo.
Onde pesquisar isso? A própria Bíblia é uma fonte. O
Livro Sagrado não foi feito de uma vez. Trata-se de uma
coleção de textos escritos ao longo de séculos. O
Pentateuco, os 5 primeiros livros da Bíblia, foi
finalizado por volta de 550 a.C. Mas há textos ali de
1000 a.C., ou de antes. E nada disso foi editado em
ordem cronológica – em grande parte, a Bíblia é uma
junção de textos independentes, cada um escrito em
tempos e realidades diferentes.
Como saber a que tempo e a que realidade cada um
pertence? Pela linguagem. Pesquisadores analisam as
expressões do texto original, em hebraico, e vão
comparando com a de documentos encontrados em
escavações arqueológicas, cuja datação é fácil de
determinar. Com esse método, chegaram a uma
descoberta reveladora. Alguns poemas da Bíblia dão a
entender que Javé era uma divindade de lugares
chamados Teiman ou Paran – dizendo literalmente que
o deus veio dessas regiões. E esses textos estão
justamente entre os mais antigos – se a língua do livro
fosse o português moderno, eles estariam mais para
Camões.
Teiman e Paran eram lugares desérticos fora das
fronteiras onde viviam os homens que escreveram a
Bíblia. Não se sabe exatamente que regiões eram essas,
já que os nomes dos territórios vão mudando ao longo
dos séculos. “Mas arqueólogos supõem que essa região
seja no noroeste da atual Arábia Saudita”, diz Mark
Smith, professor de estudos bíblicos da Universidade
de Nova York. E isso diz muito.
Os autores dos primeiros textos da Bíblia viviam na
antiga Canaã – uma região do Oriente Médio onde hoje
estão Israel, os territórios palestinos e partes da Síria e
do Líbano. Ali se formaram algumas das primeiras
civilizações da história, há 10 mil anos. E por volta de
1000 a.C. já era um território disputado (como nunca
deixou de ser, por sinal). Estava dividido numa miríade
de tribos, as dos israelitas, a dos hititas, a dos
jebedeus…
Apesar das rivalidades, todas tinham culturas parecidas.
Reverenciavam o mesmo panteão de deuses, por
exemplo. Mas Javé, pelo jeito, não era um deles. Teria
sido importado das áreas mais desérticas do sul.
Outra evidência disso é a associação de seu nome com
os chamados shasu. Shasu é um termo egípcio que
significa “nômade” ou “beduíno”. Algumas inscrições
egípcias mencionam um “Javé dos Shasu”.
Uma possibilidade, então, é que nômades do deserto
teriam se incorporado às tribos israelitas, trazendo o
novo deus com eles. Essa divindade se embrenharia no
meio da grande mitologia desse povo: o panteão de
deuses cananeus. Mas quem eram essas divindades? As
melhores pistas a esse respeito vêm de Ugarit, uma
antiga cidade encontrada durante escavações
arqueológicas na atual Síria. Ela foi destruída por
invasores em 1200 a.C., quando os israelitas ainda eram
um povo em formação. As inscrições encontradas ali,
então, servem como uma cápsula do tempo. Revelam o
contexto cultural em que nasceu a mitologia israelita,
mostra como era a mitologia dos antepassados dos
escritores da Bíblia. E os deuses em que eles
acreditavam seriam fundamentais para a biografia de
Javé. O panteão de Ugarit é bem grandinho, mas
algumas figuras se destacam. Há o pai dos deuses e dos
homens, o idoso, bondoso e barbudo El; sua esposa,
Asherah, deusa da vegetação e da fertilidade; a filha dos
dois, Anat, feroz deusa do amor; e o filho adotivo do
casal, Baal, deus da guerra e da tempestade que morre,
ressuscita e derrota as divindades malignas Yamm (o
Mar) e Mot (a Morte).
Muitos estudiosos especulam que as tribos is-raelitas
originalmente tinham El como seu deus supremo.
Afinal, o nome do povo bíblico também termina com o
elemento -el. “Esse tipo de nome próprio, conhecido
como teofórico (‘portador de um deus’, em grego),
costuma dar pistas sobre o ente divino que o dono do
nome venera”, diz Airton José da Silva, professor de
Antigo Testamento da Arquidiocese de Ribeirão Preto.
Mas os indícios a respeito de El vão além da
nomenclatura. O deus cananeu também tem uma
relação especial com os chefes de clãs,
prometendo-lhes uma vasta descendência –
exatamente o que Deus faria depois na Bíblia ao selar
uma aliança com os ancestrais dos israelitas, Abraão,
Isaac e Jacó. “El é o deus desses patriarcas”, diz
Christine Hayes, professora de estudos judaicos de
Yale.
Deus do deserto
Javé pode ter sido uma divindade trazida do deserto
por nômades que se embrenharam nas tribos is-raelitas,
quando elas ainda estavam em formação na região de
Canaã. Aí ele se junta aos deuses cananeus, como Baal e
El, o altíssimo.
Adulto
“Israel é a minha herança”, brada o impetuoso deus do
deserto. Diante dele, a assembleia dos deuses de Canaã
se sente cada vez mais intimidada. E, numa escalada de
poder sem precedentes, o guerreiro chega a ser
considerado idêntico ao próprio El como criador e
governador do mundo. A própria esposa do antigo
senhor dos deuses passa às mãos do novato.
Uma ameaça pairava sobre os deuses de Canaã. Era a
ambição de Javé. O novo deus começou a buscar seu
lugar entre as antigas divindades cananeias. E teve
sucesso. Com sua personalidade forte, foi ganhando
espaço dentro da mitologia israelita, tomando o terreno
dos deuses criados pelos povos cananeus.
A maior prova disso está em outro texto poético dos
mais antigos da Bíblia, o Salmo 82. Ele nos apresenta o
chamado “conselho divino”: uma espécie de Câmara
dos Deputados dos deuses, na qual eles se reúnem para
discutir assuntos importantes – um indício de que o
Salmo foi escrito antes do próprio início da Bíblia, que
já começa apresentando Javé como Deus único. A ideia,
ali, é que El preside o conselho e seus filhos ou
subordinados discursam. Lá, Javé aparentemente perde
a paciência: “Deus se levanta no conselho divino,/em
meio aos deuses ele julga:/”Até quando vocês julgarão
injustamente,/sustentando a causa dos injustos? (…)
“Eu declaro: embora vocês sejam deuses,/e todos filhos
do Altíssimo,/morrerão como qualquer homem”.
Trocando em miúdos menos rebuscados: “Quem manda
aqui sou eu”.
É difícil dizer a que período da história israelita
corresponde esse momento em que, na imaginação
religiosa das pessoas, Javé começou a impor sua
vontade perante os deuses cananeus. Talvez o
fenômeno tenha a ver com a consolidação de Israel
como povo distinto dos demais cananeus: a adoração a
uma divindade unicamente israelita pode ter emergido
como um elemento-chave nessa consciência
“nacionalista” dos ancestrais dos judeus.
Para completar essa nova fase na vida do Senhor, que
poderíamos chamar de começo da vida adulta, falta
ainda um elemento crucial. Lembre-se do impe-tuoso
deus guerreiro Baal. O que parece ocorrer, segundo
Mark Smith e outros especialistas, é que Javé se
“baaliza”, virando uma mistura de El e Baal, com ligeira
predominância do segundo.
As evidências: Javé e Baal estão associados a
tempestades, vulcões, fogo e terremoto; ambos são
guerreiros invencíveis que habitam o alto de
montanhas (Baal vive no lendário monte Zafon, Javé, no
Sinai). E a semelhança fica ainda mais detalhada.
Na tradição mitológica de Canaã, quem tinha triunfado
contra Yamm, o deus caótico do mar, era Baal, mas os
textos da Bíblia atribuem essa vitória – adivinhe só – a
Javé. Mais sugestivo ainda: alguns Salmos parecem ter
sido originalmente hinos a Baal que acabaram
adaptados para o culto ao Senhor dos israelitas. Só que
Javé vai muito além das intervenções típicas de Baal no
mundo. Na mitologia israelita, sua grande vitória não é
contra o mar, mas, sim, usando o mar como arma
contra o faraó que tinha escravizado o povo hebreu no
Egito. Escolhendo o profeta Moisés como seu emissário,
conforme conta o livro bíblico do Êxodo, o novo deus
guerreiro puniu os egípcios com uma sucessão de
pragas e, como grand finale, destruiu “carros de guerra
e cavaleiros” do faraó afundando-os no mar.
A diferença em relação a Baal é que o Senhor seria
capaz de agir não só num passado mítico mas na
própria história dos israelitas. Ele é literalmente “o
Senhor dos Exércitos de Israel”, aquele que promete a
vitória em batalha em troca da fidelidade religiosa do
povo. Daí em diante, Deus nunca deixa de ser, em
grande medida, um guerreiro.
Além de herdar o trono de El na mitologia israelita, Javé
também pode ter levado Asherah, a mulher do velho
deus. Eis aí uma possibilidade para a qual a Bíblia não
prepara seus leitores. Os profetas bíblicos vivem
chiando contra o fato de que os israelitas estariam se
“prostituindo” (metaforicamente, e talvez literalmente
também, via orgias rituais) nos altares de Asherah. Mas
inscrições achadas ao longo do século 20, como as de
Kuntillet Ajrud, um pit stop de caravanas no deserto do
Sinai, poderiam indicar que o deus e a deusa não eram
inimigos, e sim um casal.
As inscrições, datadas em torno do ano 800 a.C., dizem
coisas como “a bênção para ti por Javé de Teiman e sua
Asherah”. Seja como for, mesmo se o casamento ainda
existisse, Javé logo optaria por um divórcio – daqueles
litigiosos, barra-pesada, nos quais o pai joga os filhos
contra a mãe.

Casal maior
Inscrições do do século 9 a.C. dão a entender que Javé
tinha se casado com Asherah, a maior divindade
feminina de Canaã. Era uma interpretação israelita da
mitologia da região: o deus daquele povo tomava para
si a esposa de El.
Homem feito
A última resistência da antiga assembleia divina parte
de Baal. Sem pestanejar, Javé o elimina. Asherah tem o
mesmo destino trágico. Daqui por diante ele estará
sozinho nos céus. E alcança a serenidade. Hora de fazer
as pazes com a humanidade. E um sacrifício.
Seu grande momento estava chegando. Era a hora da
virada para Javé. Ele deixaria de ser mais um deus. E
viraria o Único. No mundo real, esse momento teve data:
foi a reforma religiosa introduzida por Josias (649 –
609 a.C.), rei de Judá. Antes, porém, um interlúdio
político.
Àquela altura, a nação das tribos israelitas de Canaã
tinha sido dividida em dois reinos. Um ao norte, o de
Israel, e um ao sul, o de Judá. E o de cima havia sido
derrotado e conquistado pelo Império Assírio.
Josias não queria o mesmo destino. E parte de seus
esforços para fortalecer a unidade interna de Judá e
resistir aos invasores foi uma maior centralização da
vida religiosa do reino. Para isso, ele começou a
transformar Javé no único deus adorado por seus
súditos. Por decreto: destruindo altares a outras
divindades, como El, Baal… E Asherah. Esse foi o
divórcio.
Também é possível que date do reinado de Josias o
ataque final dos fiéis de Javé ao culto a Baal, muito
criticado pelos profetas dessa época. Para a maior parte
dos israelitas, não era problema adorar a Javé e a Baal
ao mesmo tempo. É que outra especialidade do antigo
deus cananeu era a agricultura – ele mandava chuva
para regar as colheitas. Até então, embora Javé tivesse
tomado conta das funções guerreiras de Baal, nada
indicava que ele também pudesse bancar o regador de
plantas. Mas os profetas israelitas passam, então, a
afirmar que o mandachuva era ele.
Essa expulsão definitiva de Baal do panteão explica o
episódio do bezerro de ouro durante a passagem dos
israelitas pelo deserto. Para quem não se lembra: o
povo de Deus, cansado de esperar que Moisés volte do
monte Sinai, constrói uma estátua de ouro de um
bezerro (emblema de Baal). Tanto Moisés quanto Javé
ficam enfurecidos, e milhares de israelitas morrem
como punição pela infidelidade do povo.
As ideias de Josias marcariam para sempre a visão que
temos de Deus. E mais ainda depois que esse rei acabou
morto. Na geração dos filhos do monarca reformista, o
reino de Judá seria riscado do mapa e Jerusalém, a
capital, acabaria conquistada pela Babilônia. Mas a
adversidade do povo teve o efeito oposto em sua fé. No
mundo mitológico, Javé se fortalecia como nunca. Com
a nação agora indefesa militarmente, era a hora de
reafirmar que o deus da nação, ao menos, era
todo-poderoso. Nisso os profetas israelistas diziam que
só Javé tinha existência, vida e poder; os outros deuses
eram meras imagens de pedra, metal ou madeira. Era
nada menos que a inauguração do monoteísmo: um
momento tão importante na história da espiritualidade
quanto a adoção do cristianismo como religião oficial
do Império Romano seria bem mais tarde. E era esse
Javé único que iria para a Bíblia. E se tornaria a imagem
de Deus no mundo ocidental.
Um Deus, agora, não só dos israelitas. Mas da
humanidade inteira. O Deus que criou o mundo, que fez
o homem à sua imagem e semelhança. E que, de certa
forma, era a imagem e semelhança do Javé pré-Bíblia: o
Deus guerreiro, militar, que pune com rigidez os erros
de seus adoradores. O Velho Testamento está recheado
de castigos divinos: dos mais leves, como transformar o
fiel Jó, um milionário, em um mendigo, como um teste
para sua fé, até o dilúvio universal – praticamente um
restart no mundo depois de ter concluído que a
humanidade não tinha mais jeito. A justificativa para tal
comportamento está na própria história de Israel. A
ideia era acreditar que os maus bocados pelos quais a
nação passou nas mãos de assírios e babilônios eram
provações divinas, que, se o povo mantivesse sua fé,
tudo acabaria bem.
Mas Deus surge na Bíblia como algo mais complexo que
um mero feitor. Usando os paralelos deste texto, seria
como se Ele tivesse amadurecido depois que Josias e os
profetas o aclamam Deus único. Javé fica menos
humano, menos falível. Passa a ser uma entidade
transcendental de fato. Começa a afirmar aos seres
humanos que “os meus caminhos não são os seus
caminhos” – a ideia hoje familiar de que Deus escreve
certo por linhas tortas.
Mas o caráter divino só se completaria mesmo no
século 1. O primeiro século depois de seu filho, quando
o Novo Testamento foi escrito. É a metamorfose mais
radical do guerreiro Javé. Encarnado na figura de Jesus,
Deus apresenta uma nova solução para a humanidade.
Em vez de castigar ou destruir os homens mais uma vez,
decide purgar os pecados dos mortais com outro
sacrifício: o Dele próprio. Morre o corpo do Deus
encarnado, não o espírito divino. Este, agora mais
sereno, continuou zelando por nós. E assim será. Até o
fim dos tempos. E acaba assim a nossa história, certo?
Claro que não. A saga de Javé é só um dos reflexos de
uma epopeia maior: a da humanidade buscando um
sentido para a existência. Nesse aspecto, continuamos
tão perdidos quanto os antigos que não sabiam por que
o trovão trovejava ou o que as estrelas faziam pregadas
no céu. Ainda não sabemos por que estamos aqui. E a
única certeza é que vamos continuar buscando
respostas. Seja o que Deus quiser.

Único
Javé chega ao auge conhecendo cada detalhe do
passado e do futuro. Sua figura lembra El. Mas agora
Ele está só.

Para saber mais


The Early History of God
Mark Smith, Wm. B. Eerdmans Publishing.
Deus, uma Biografia
Jack Miles, Companhia das Letras.

Potrebbero piacerti anche