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Renato Kehl, a eugenia alemã e a doença de Nietzsche

ROBERT WEGNER

1. Renato Kehl, um eugenista

Renato Kehl foi um dos principais divulgadores das idéias eugênicas no país
entre os fins dos anos 1910 e a década de 1930. Nasceu em 1889 no interior de São
Paulo, na cidade de Limeira. Seguindo a carreira do pai, graduou-se em Farmácia, pela
antiga Faculdade de Farmácia de São Paulo, em 1909 (MELO, 1954; Dados...). No ano
seguinte, mudou-se para a Capital Federal com o objetivo de estudar medicina na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde entrou em contato com as idéias e as
discussões que nas primeiras décadas do século XX moldavam o pensamento social e
científico brasileiros.

Durante os seis anos em que permaneceu na Faculdade de Medicina, Renato


Kehl travou contato com as obras de cientistas como Lamarck, Darwin, Spencer, Broca,
Lapouge, Agassiz, Galton e Weismann. O estreito contato com as diferentes concepções
extraídas destes autores teria despertado seu interesse pelas discussões sobre raça,
evolução, degeneração, hereditariedade e, principalmente, pelas idéias eugênicas. Vale
destacar que, dentre estes autores, o cientista britânico Francis Galton, o fundador da
“ciência eugênica”, foi quem exerceu maior fascínio sobre as idéias do jovem aluno de
medicina, do qual extraiu muito dos seus pressupostos.

A partir do final dos anos 1910 Renato Kehl assumiu a propaganda eugênica
como a sua missão política e intelectual. No período entre guerras publicou mais de
duas dezenas de livros diretamente relacionados à eugenia e a questão racial, além de
inúmeros artigos e entrevistas na imprensa e em revistas especializadas, tanto no Brasil
quanto no exterior. Foi também editor de revistas e periódicos nacionais, entre eles o
Boletim de Eugenia, que circulou entre 1929 a 1933. Em 1918, com a colaboração do


Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Saúde
e das Ciências.

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médico Arnaldo Vieira de Carvalho e de mais de uma centena de intelectuais paulistas,
fundou a Sociedade Eugênica de São Paulo e, em 1931, a Comissão Central Brasileira
de Eugenia, instituições que tiveram um papel central na promoção das idéias eugênicas
no país.

2. A aproximação da eugenia negativa

Embora Renato Kehl tenha, no início de sua carreira, compartilhado dos


pressupostos de uma eugenia mais “suave”, ao estilo neolamarckista, a partir de meados
da década de 1920 tornou-se descrente quanto às promessas reformadoras propostas
pelos médicos-sanitaristas.1 Sobretudo na virada dos anos 1920 para os anos 1930, seu
crescente pessimismo em relação ao futuro da nação o levou a uma radical reformulação
do seu programa eugênico. Conforme destacava durante o Primeiro Congresso
Brasileiro de Eugenia, realizado no Rio de Janeiro em 1929, nem o saneamento e a
saúde pública, nem a educação ou a religião conseguiriam tornar os homens nacionais
em seres “eugenicamente superiores”, capazes de colocar o país no trilho do progresso e
da civilização.2 Em seu ponto de vista, os problemas raciais, “os contrastes sociais e
individuais, as crises e ameaças à paz na família, na sociedade e entre as nações”
deveriam ser encarados do ponto de vista biológico, da hereditariedade, que é a força
motriz que subjuga o homem, “que lhe imprime o temperamento, o caráter, de modo
inexorável” (KEHL, 1929).

Neste sentido, ao invés de uma ampla reforma do meio, como propunha a


imensa maioria dos médicos, eugenistas e higienistas brasileiros, Renato Kehl entendia

1
Para um estudo sobre a eugenia no Brasil e seu caráter predominantemente neolamarckista e associado
ao sanitarismo ver STEPAN, Nancy (2005). “A hora da eugenia”: raça, gênero e nação na América
Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
2
Esta discussão sobre Renato Kehl e a radicalização de sua eugenia está ancorada em SOUZA, Vanderlei
Sebastião de. (2006). A política biológica como projeto: a “eugenia negativa” e a construção da
nacionalidade na trajetória de Renato Kehl (1917-1932). Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em
História das Ciências, Casa de Oswaldo Cruz. Há uma certa coincidência temporal entre este
movimento de radicalização de Renato Kehl e a reorientação da Liga Brasileira de Higiene Mental
detectada por Jurandir Freire Costa em História da Psiquiatria no Brasil. Observa o autor: “De 1923 a
1925, a LBHM seguiu a orientação que Riedel lhe havia imprimido, ou seja, a de procurar aperfeiçoar
a assistência aos doentes. A partir de 1926, no entanto, os psiquiatras começaram a elaborar projetos
que ultrapassavam as aspirações iniciais da instituição e que visavam a prevenção, a eugenia e a
educação dos indivíduos” (COSTA, 2007:46). Esta correspondência, bem como a própria participação
de Kehl na Liga, merece um estudo mais apurado.

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que a regeneração nacional só ocorreria a partir do momento em que o governo não
abrisse mão de uma radical política biológica, que envolvesse a esterilização dos
degenerados e o incentivo à procriação dos mais aptos.

3. A Alemanha como exemplo

De maneira geral, o programa eugênico de Renato Kehl sofreu forte


influência das discussões que os eugenistas norte-americanos, alemães e ingleses
vinham desenvolvendo desde o início do século XX. Essa aproximação com um modelo
de eugenia mais radical, sobretudo ao estilo da “higiene racial” alemã, ficou mais claro
a partir do final dos anos 1920, quando Renato Kehl realizou uma viagem de cinco
meses pela Alemanha. Seu contato com instituições eugênicas desse país, como o
Instituto de Eugenia de Berlin, e com eugenistas como Eugen Fischer, Herman
Muckermann, Herman Lundborg, despertou sua atenção para as principais questões que
dominavam os movimentos eugênicos no norte da Europa, quais sejam, a seleção social
e a aplicação da política eugênica como um programa para a política nacional.

O desejo dos eugenistas alemães em construir uma “raça forte”, preservando


a tradição arianista e o ideal de formação de um “super homem”, impressionou bastante
o eugenista brasileiro. Tanto é assim que, em Lições de Eugenia, livro publicado por
Kehl em 1929, já apareciam inúmeras referências elogiosas ao movimento eugênico
alemão. Mais sintomático ainda foi o fato do autor destacar na segunda edição deste
livro, publicado em 1935, a importância da criação do “Tribunal Eugênico” alemão, no
qual Hitler havia instituído “um verdadeiro Código de proteção racial”. Em suas
palavras, é na Alemanha “onde se pratica, atualmente, a eugenia com mais amplitude e
coragem” (KEHL, 1935).

4. Nietzsche e o homem eugenizado

Renato Kehl foi um leitor assíduo da obra de Nietzsche, tendo publicado


artigos especificamente sobre o autor e fazendo-lhe, em outros textos, diversas
referências. Em um artigo publicado em 1936, intitulado “Um super mental”, procura
traçar um esboço bibliográfico de Nietzsche em torno da idéia de que o filósofo seria o

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“profeta da sinceridade”. Como veremos, este não foi o primeiro artigo do eugenista
sobre o pensador alemão. Em nenhum momento deste artigo de 1936 Kehl faz
referências explícitas a afinidades entre idéias de Nietzsche e a eugenia. Não somos
instados a acreditar que o filósofo tenha sido um precursor do melhoramento biológico
do homem. Contudo, quando em um de seus últimos parágrafos, passa a obsevar que,
“filosofando, tendo em vista a moral com base na cultura da energia vital e na vontade
de poder, Nietzsche simboliza o profeta da sinceridade, personalidade impar de nobreza
espiritual, a anunciar o advento do homem renovado”, e – antes de encerrar a frase –
acrescenta, “do homem eugênico” (KEHL, 1936). Assim, por meio de uma estratégia
argumentativa que poderíamos chamar de “deslizamento”, Kehl apenas justapõe, lado a
lado, os termos “homem renovado”, que seria representado tanto pela obra quanto pela
vida de Nietzsche, a “homem eugênico”, que Kehl almejava para o Brasil por meio de
medidas como esterilização dos degenerados e incentivo à reprodução dos mais aptos. À
primeira vista pode soar surpreendente esta vinculação quase automática e naturalizada
entre a eugenia e Nietzsche. Esta surpresa, contudo, pode ser abrandada se voltarmos ao
contexto alemão.

5. O Nazismo e Nietzsche

Em seu livro The Nietzsche Legacy in Germany (1890-1990), o historiador


Steven Aschheim procura demonstrar que, para além do debate filosófico em torno da
existência ou não de afinidades entre idéias de Nietzsche e o nazismo, é preciso analisar
historicamente “a dimensão empírica da relação: localizando e analisando os caminhos
pelos quais Nietzsche foi integrado ao discurso nazista e as várias funções
desempenhadas pelo nietzscheanismo no Terceiro Reich” (ASCHHEIM, 1992: 233).
Conforme argumenta, Nietzsche foi incorporado ao panteão nazista dos gigantes
alemães e se tornou parte integrante da auto-definição nacional socialista.

Um dos autores discutidos por Aschheim é Kurt Kassler, que, em 1941,


publicou Nietzsche and the Law. O livro trata das fontes do Direito a partir do
pensamento de Nietzsche. Segundo argumenta, lei para Nietzsche não era uma
codificação abstrata de uma razão universal. Era um instrumento dinâmico na vida de
um povo e parte integrante do seu desenvolvimento biológico e antropológico que

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deveria servir as suas necessidades políticas e sua vontade de poder (Cf ASCHHEIM,
1992: 242).

Com este vínculo entre povo, vida e lei, Kassler deduz que “Nietzsche foi o
primeiro pensador a perceber a centralidade da raça e da higiene racial e
conscientemente aplicou seus imperativos à vida social” (ASCHHEIM, 1992: 243).
Perguntava-se o autor: “Nietzsche não era contrário à procriação dos degenerados?”
Seguindo seu raciocínio, Kassler exaltava a promulgação das leis do Estado nazista
concernentes à higiene racial e suas medidas de proteção contra taras e doenças
hereditárias estabelecidas a partir de 1933.3 Chega mesmo a considerar que estas leis
nada mais eram do que a implementação da visão de Nietzsche. Uma ordem social
calcada em Nietzsche implicava em um programa eugênico para criar o tipo superior
(Cf ASCHHEIM, 1992: 244).

6. A incômoda doença de Nietzsche

Segundo o estudo de Steven Aschheim, “Kassler não estava sozinho no uso


de Nietzsche como a justificação explícita para as medidas nazistas destinadas aos
doentes incuráveis e pervertidos sexuais” (ASCHHEIM, 1992: 243). Neste sentido,
podemos pensar que a associação direta feita por Renato Kehl entre o “homem
eugenizado” e o “super homem” não era tão inusitada, pois era uma justaposição
corrente nas discussões eugênicas da Alemanha da década de 1930, das quais Kehl
havia se aproximado desde fins da década anterior.4

Contudo, sabe-se que Nietzsche, nascido em 1844, passou a manifestar


sinais de insanidade a partir de 1888, vivendo seus últimos dez anos de vida em estado
de demência.5 Na realidade, como demonstra ainda Aschheim, na Alemanha, desde o
início do século XX, a doença de Nietzsche havia se tornado um terreno de luta entre
defensores e críticos de sua obra (Cf ASCHHEIM, 1992: 26-29). Por ora basta apontar

3
No mesmo ano em que era publicado na Alemanha, o livro de Kassler foi criticado por Geroge Seward,
professor da Universidade de Columbia, em uma resenha publicada em The Journal of Philosophy
(SEWARD, 1941).
4
Sobre as aproximações e diferenciações realizadas entre as idéias de Nietzsche e a eugenia na Inglaterra
ver STONE, 2002.
5
Sobre a loucura de Nietzsche ver PORTER, 1991, especialmente capítulo 7.

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para este tema no contexto de discussão das leis eugênicas. Como resumiu, não sem
ironia, o historiador alemão Werner Catel, a insanidade de Nietzsche poderia tê-lo feito
uma das vítimas das leis defendidas, muitas vezes, em seu nome (Cf ASCHHEIM,
1992: 243-244).

7. Kehl, a lei alemã e a doença de Nietzsche

Retornando ao Brasil, podemos abordar os dois pontos: a discussão sobre a


lei de esterilização de “quem padeça de doença hereditária” (Lei Alemã ..., 1934) e as
avaliações sobre a doença de Nietzsche. Em janeiro de 1934, o jornal O Globo, do Rio
de Janeiro, realizou um inquérito sobre a lei alemã de esterilização dos degenerados
que, decretada em julho do ano anterior, acabara de entrar em vigor. Participaram do
inquérito Oscar Fontenelle, Leitão da Cunha, Leonídio Ribeiro, Pacheco da Silva e
Renato Kehl.

Exceto Leitão da Cunha, todos elogiam a política alemã e a consideram um


caminho viável para o Brasil. Renato Kehl é o mais entusiasmado e, na verdade, o único
a conhecer a lei em detalhes. Inclusive, em sua resposta, conta que havia regressado
recentemente da “viagem que fiz ao norte do continente europeu”. Para ele, “dizer
alguém a voir d’oiseau que condena a esterilização por absurda, é, positivamente, uma
leviandade, sobretudo quando se sabe que ela foi adotada em um país como a
Alemanha, onde não se resolvem as coisas desta ordem como se fazem discursos de
improviso” (Devem ..., 1934).

Ao mesmo tempo, no seu primeiro número de 1934, os Archivos Brasileiros


de Hygiene Mental, periódico da Liga Brasileira de Higiene Mental, da qual Kehl
participava, publicou a tradução integral da lei de esterilização alemã. No artigo
primeiro da lei se declara: “quem padeça de doença hereditária pode ser esterilizado
mediante intervenção cirúrgica, desde que, segundo a experiência da ciência médica,
haja grandes probabilidades de que os seus descendentes vão sofrer de graves males
hereditários, corporais ou físicos” (Lei alemã..., 1934). A questão da hereditariedade e
da doença mental é crucial na lei, sendo que a primeira das oito doenças citadas no
artigo é a “debilidade mental congênita”.

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No mesmo número do periódico, quatro páginas após a transcrição da lei, há
a “inauguração” de uma nova seção da revista, intitulada “Os supra-normais e a
psiquiatria”. Não parece fortuito que o artigo de estréia tenha sido de autoria de Renato
Kehl, com o título “A Doença de Nietzsche”. Embora admita que não haja dados
suficientes para um diagnóstico conclusivo sobre as causas da sua loucura, o médico
parece considerar que é possível responder a questão de fato relevante, relacionada ao
fato de saber se Nietzsche havia nascido com a doença e se a havia herdado.

Renato Kehl considera que “qualquer indivíduo, sem a menor propensão


heredo-familiar para a loucura, pode chegar aos mesmos extremos” de um caso
congênito. Eliminada a possibilidade de Nietzsche ter herdado a doença, Kehl faz um
histórico dos seus problemas de saúde, a começar por 1870 e sua a participação na
guerra franco-prussiana, quando, “como enfermeiro, contraiu disenteria e difteria
graves” (KEHL, 1934: 60). Desde então, a vida de Nietzsche estaria marcada por
cefaléias, dores de estômago, náuseas e, ao mesmo tempo, pela busca de um clima
saudável e uma digestão regular. O fundamental é o seu desejo de saúde, de afirmação
da vida. Assim, na narrativa de Kehl, em março de 1888, Nietzsche “escreveu a um
amigo que se sentia, graças ao bom tempo, ao bom alimento e aos longos passeios a pé,
em bom estado de saúde.”

Contudo, prossegue o médico brasileiro, “pouco depois [...] sua saúde


perturbou-se de novo. Apresentou-se descontrolado, sempre apressado, sempre
preocupado em escrever os seus pensamentos. Manifestou-se com certa angustia e
inquietação”. Daí Kehl concluir que, apenas então, o seu estado mental “começou a
periclitar” (KEHL, 1934: 61). Está eliminada a possibilidade de uma “debilidade mental
congênita”. Nietzsche “pode ter falecido em estado de confusão mental, mas a sua obra
é de gênio” (KEHL, 1934: 61).

Retornando à ironia de Werner Catel, poderíamos resumir dizendo que, com


o atestado médico de Kehl, Nietzsche estaria absolvido perante o Tribunal de Eugenia.
O que é importante grifar é a associação entre a discussão sobre a esterilização dos
degenerados e as considerações sobre a doença de Nietzsche. Neste cruzamento, a ponte
de interseção é a “doença mental hereditária”. Neste ponto, podemos novamente
desmembrar as duas discussões e retomar outros pronunciamentos no debate.

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8. Hereditariedade e esterilização

Em primeiro lugar, especificamente sobre a lei de esterilização alemã,


voltamos ao inquérito de O Globo. Entre os médicos e psiquiatras consultados, a voz
dissonante é a de Leitão da Cunha, catedrático da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro. Embora concorde que, em tese, a esterilização poderia ser benéfica para o
indivíduo e para a sociedade, a execução não seria tão simples, pois não seria possível
pensar os seres-humanos a partir do sucesso do controle da reprodução de animais. Em
primeiro lugar, “a solução correntemente aplicada em zootécnica [...] não poderia ser
utilizada entre os homens porque nestes a atração heterossexual, garantia da procriação,
não é exclusivamente instintiva” (Devem..., 1934). Em segundo lugar, Leitão da Cunha
aponta também para a complexidade dos processos genéticos da espécie humana: “Há
indivíduos evidentemente anormais, cuja descendência nada apresenta que traduza os
vícios de origem e, por outro lado, há casais saudáveis, física e psiquicamente, cuja
descendência é invariavelmente degenerada.” E, para concluir, pergunta: “e quem
ignorará que gênios tem sido produtos de mais do que mediocridades?” (Devem...,
1934).

9. Doença e genialidade

Retornando a segunda discussão, em torno da doença de Nietzsche, vale


lembrar que, no fim do texto de Kehl, um outro tema se desdobrava a partir da
discussão da doença mental hereditária. Apenas após comprovar que Nietzsche havia
adquirido a doença durante a vida, pode-lhe imprimir a categoria de “gênio”. Kehl
parece querer afastar qualquer possibilidade de proximidade entre genialidade e loucura.
Como escreverá mais tarde, “os loucos e os gênios acham-se fora da humanidade, uns
[estão] acima e outros abaixo dos mortais vulgares” (KEHL, 1942).

No mesmo momento em que O Globo fazia seu inquérito, Pedro da Costa


Rego, jornalista, redator-chefe do Correiro da Manhã, do Rio de Janeiro, publica, em 5
de janeiro de 1934, um artigo intitulado “Matar”. Abre o seu artigo alertando que “uma
grave ameaça pesa hoje sobre o mundo”. Contudo, não se refere de imediato à lei alemã.
A ameaça é “a iminência do desaparecimento dos gênios”. Então defende que o
conhecimento e a invenção são obras de gênios: luz elétrica, energia a vapor,

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medicamentos, ondas de rádio resultam de homens que, antes do reconhecimento, eram
“vilipendiados com o epiteto de louco”. Daí a associação: “Aí da humanidade se não
existissem os loucos; quero dizer os gênios!” (COSTA REGO, 1934).

Só então, a partir desta associação, o jornalista faz referência ao tema central


do seu artigo: “ora, é isto [o progresso] o que se pretende acabar, com a teoria cientifica,
mas na verdade de pouca ciência, da esterilização dos anormais, erigida agora na
Alemanha em postulado de organização política.” Então o jornalista se ocupa do
assunto a partir do ponto de vista da medicina, afirmando que, mesmo aí, “a tese da
esterilização é muito discutível”. Então recorre a autoridade do médico e antropólogo
Roquette-Pinto referindo-se que “nenhum brado, entre os que a contrariam, me parece
tão eloqüente quanto o do professor Roquette Pinto, quando manifesta seus receios de
que esterilizar o anormal seja suprimir os gênios” (COSTA REGO, 1934).

Roquette-Pinto, Costa Rego e, também, Leitão da Cunha estabeleciam uma


proximidade entre loucura e genialidade, ligação que Renato Kehl fazia questão de
negar ao discutir a doença de Nietzsche. E é a partir desta ligação que os primeiros
constituem um dos principais argumentos para combater publicamente as propostas de
esterilização dos degenerados.6

10. Referência Bibliográficas

ASCHHEIM, Steven (1992). The Nietzsche Legacy in Germany (1890-1990). Berkeley, Los
Angeles, London: University of Califórnia Press.

COSTA REGO, Pedro (1934). “Matar”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, sexta-feira, 5 de
janeiro de 1934, p.2.

COSTA, Jurandir Freire (2007). História da Psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. 5.ed.
revista. Rio de Janeiro: Garamond.

Dados biográficos do Dr. Renato Ferraz Kehl. Revista Terapêutica. Rio de Janeiro, nº 4, 1959
(recorte avulso - Fundo Pessoal Renato Kehl, DAD-COC).

Devem ser esterilizados os enfermos incuráveis?. O Globo, Rio de Janeiro, quarta-feira, 3 de


janeiro de 1934. p.1

6
Na realidade, estamos começando a tocar em um tema caro para a própria história da psiquiatria: a
relação entre loucura e genialidade. Ver DUARTE, Luiz Fernando Dias. Da vida nervosa nas classes
trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Brasília: CNPq, 1986, p.116.

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DUARTE, Luiz Fernando Dias (1986). Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Brasília: CNPq.

KEHL, Renato (1929). A Eugenia no Brasil: esboço histórico e bibliográfico. In: Actas e
Trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Rio de Janeiro, Volume I.

_____. (1934). “A doença de Nietzsche”. Arquivos Brasileiros de Hygiene Mental. Março de


1934.

_____. (1935). Lições de Eugenia. 2 ed. Rio de Janeiro. Editora Livraria Francisco Alves.

_____. (1936). Um super mental: sinopse caracteriológica de Nietzsche. Jornal do Commercio,


20 dez. 1936.

_____. (1942). “Genialidade e Degeneração”. Revista Terapêutica. N.10-12. Outubro a


Dezembro de 1942.

Lei alemã de esterilização dos doentes transmissores de taras. Transcrita em Archivos


Brasileiros de Hygiene Mental. v. VII, n.1, janeiro-março de 1934, p.54.

MELO, Luis Correia (1954). Dicionário de autores paulistas. São Paulo: Editora Gráfica
Irmãos Andrioli.

PORTER, Roy (1991). Uma História Social da Loucura. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor.

SEWARD, George C. (1941) “Book Review”. The Journal of Philosophy. Vol.38, No.17,
Aug.1941, pp.470-474.

SOUZA, Vanderlei Sebastião de (2006). A política biológica como projeto: a “eugenia


negativa” e a construção da nacionalidade na trajetória de Renato Kehl (1917-1932). Rio de
Janeiro. Dissertação de Mestrado em História das Ciências, Casa de Oswaldo Cruz.

STEPAN, Nancy (2005). “A hora da eugenia”: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz.

STONE, Dan (2002). Breeding Superman: Nietzsche, Race and Eugenics in Edwardian and
Interwar Britain. Liverpool: Liverpool University Press.

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