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Duns Scot
A infinitude
de Deus
Edição bilíngüe
Tradução:
Carlos Nougué
A infinitude de Deus, Duns Scot
© Editora Concreta, 2017
Título original:
Lectura, I, Distinctio 2, Pars 1
Quaestio 1 - utrum in entibus sit aliquod ens actu infinitum
Ficha Catalográfica
Scot, Duns, 1266-1308
D926a A infinitude de Deus / tradução de Carlos Nougué, edição de Renan Santos. –
Porto Alegre, RS: Concreta, 2017.
80p. :p&b ; 16 x 23cm
ISBN 978-85-68962-05-3
CDD-230.2
www.editoraconcreta.com.br
C OL EÇ ÃO ESC OL Á S T IC A
F
oram características marcantes do período escolástico a elevação da
dialética a um cume jamais superado – antes ou depois, na história
da filosofia –, o notável apuro na definição de termos e conceitos,
a clareza expositiva na apresentação das teses, o extremo rigor lógico nas
demonstrações, o caráter sistêmico das obras, a classificação das ciências a
partir de um viés metafísico e, por fim, a existência duma abóboda teológica
que demarcava a latitude e a longitude dos problemas esmiuçados pela ra-
zão humana, os quais abarcavam todos os hemisférios da ordem do ser: da
materia prima a Deus.
O leitor familiarizado com textos de grandes autores escolásticos, como
Santo Tomás de Aquino, Duns Scot, Santo Alberto Magno e outros, estranha
ao deparar com obras de períodos posteriores, pois identifica perdas de cunho
metodológico que transformaram a filosofia num enorme mosaico de idéias
esparzidas a esmo, nos piores casos, ou concatenadas a partir de princípios
dúbios, nos melhores. A confissão de Edmund Husserl ao discípulo Eugen
Fink de que, se pudesse, voltaria no tempo para recomeçar o seu edifício feno-
menológico serve como sombrio dístico do período moderno e pós-moderno:
o apartamento entre filosofia e sabedoria – entendida como arquitetura em
ordem ao conhecimento das coisas mais elevadas – acabou por gerar inúmeras
obras malogradas, mesmo quando nelas havia insights brilhantes.
Constatamos isto em Descartes, Malebranche, Espinoza, Kant, Hegel,
Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heiddegger, Ortega y Gasset, Wittgens-
tein, Sartre, Xavier Zubiri e vários outros autores importantes cujos princípios
filosóficos geraram aporias insanáveis, verdadeiros becos sem saída.
Na prática, o filosofar que se foi cristalizando a partir do humanismo renas-
centista está para a Escolástica assim como a música dodecafônica, de caráter
atonal, está para as polifonias sacras. Em suma, o nobre intuito de harmonizar
diferentes tipos de conhecimento foi, aos poucos, dando lugar à assunção da
desarmonia como algo inescapável. As conseqüências desta atitude intelectual
fragmentária e subjetivista, seja para a religião, seja para a moral, seja para a
política, seja para as artes, seja para o direito, foram historicamente funestas,
mas não é o caso de enumerá-las neste breve texto.
Neste ponto, vale advertir que a Coleção Escolástica, trazida à luz pela editora
Concreta em edições bilíngües acuradas, não pretende exacerbar um anacrônico
confronto entre o pensar medieval e tudo o que se lhe seguiu. O propósito maior
deste projeto é o de apresentar ao público brasileiro obras filosóficas e teológicas
pouco difundidas entre nós, não obstante conheçam edições críticas na grande
maioria das línguas vernáculas. Tal lacuna começa a ser preenchida por iniciati-
vas como esta, cujo vetor pode ser traduzido pela máxima escolástica bonum est
diffusivum sui (o bem difunde-se por si mesmo). Ocorre que esta espécie de bens,
para ser difundida, precisa ser plantada no solo fértil dos livros bem editados.
No mundo ocidental contemporâneo, plasmado de maneira decisiva na lon-
gínqua dúvida cartesiana, assim como nos ceticismos de todos os tipos e matizes
que se lhe seguiram; mundo no qual as certezas são apresentadas como uma es-
pécie de acinte ou ingenuidade epistemológica; mundo que se despoja de suas
raízes cristãs para dar um salto civilizacional no escuro; mundo, por fim, desfigu-
rado pelas abissais angústias alimentadas por filosofias caducas de nascença; em
tal mundo, não nos custa afirmar com ênfase entusiástica o quanto este projeto
foi concebido sem nenhum sentimento ambivalente. Ao contrário, moveu-nos a
certeza absoluta de que apresentar o Absoluto é um bálsamo para a desventurada
terra dos relativismos.
Vários autores do período serão agraciados na Coleção Escolástica com
edições bilíngües: Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo
de Cantuária, Santo Alberto Magno, Alexandre de Hales, Roberto Grossetes-
te, Duns Scot, Guilherme de Auvergne e outros da mesma altitude filosófica.
Em síntese, a Escolástica é uma verdadeira coleção de gênios. Procurare-
mos demonstrar isto apresentando-os em edições cujo principal cuidado será
o de não lhes desfigurar o pensamento.
Que os leitores brasileiros tirem o melhor proveito possível deste tesouro.
Sidney Silveira
Coordenador da Coleção Escolástica
Sumário
Apresentação
1. Duns Scot e a condenação de Paris em 1277 9
2. A infinitude divina como ápice da metafísica 14
A INFINITUDE DE DEUS
Questão 1 21
Bibliografia citada 75
Joannis Duns Scoti Opera omnia 77
Apresentação
Infinitude, espelho da
simplicidade divina
SIDNEY SILVEIRA
A
metafísica dá uma guinada histórica a partir dos problemas termino-
lógicos e conceptuais suscitados por Duns Scot. Estamos, pois, diante
do autor que assimila a tradição filosófica precedente para reorientá-la
em suas linhas gerais, sem nunca perder de vista as condenações ao averroísmo
latino – e também ao tomismo i – levadas a cabo em 1277 por autoridades da
Igreja Católica. ii Nas palavras de Éttienne Gilson, neste fatídico ano muda por
iiiÉttienne Gilson, La Philosophie au Moyen Age. Des origines patristiques à la fin du XIVème siècle,
Paris, Payot, 1944, p. 605.
iv “A filosofia é serva da teologia”.
v São Boaventura estabeleceu uma dicotomia entre a falibilidade da razão e a infalibilidade da fé,
com o bem-intencionado propósito de enfatizar a superioridade da teologia sobre a filosofia. Em
síntese, o Doctor Seraphicus acreditava que a filosofia separada da teologia destruía a si mesma numa
tríplice ordem: natural, intelectual e moral. Cf. Battista Mondin, Storia della Metafisica, Volume 2,
Edizioni Studio Domenicano, Bologna, Itália, 1998, p. 638. O intuito de Boaventura era reprovar
qualquer saber humano que aspirasse a conhecer a verdade de maneira autônoma com relação à
fé, porém ele o levou adiante de tal modo que acabou por abrir um hiato decisivo entre os saberes
filosófico e teológico. O grande Doutor franciscano não pretendia condenar a filosofia em si mesma,
diga-se, mas sim as impropriedades e os abusos nos quais pudesse incorrer. Em suas próprias palavras,
"não convém mesclar a água da filosofia com o vinho da Sagrada Escritura de modo que este último
se transforme em água; isto seria um péssimo milagre" (non igitur tantum miscendum est de acqua
philosophiae in vinum sacrae Scripturae, quod de vino fiat acqua; hoc pessimum miraculum esset). São
Boaventura, Collationes in Hexamerum, XIX, n. 14. Este declarado temor de Boaventura de mistu-
rar espuriamente filosofia e teologia deixará profundas marcas na alma de Duns Scot. Daí para este
último estabelecer uma separação rígida entre ambas não custará muito. A respeito deste complexo
tema, ver Gérard Sondag, Duns Scot: La théologie comme science pratique – Prologue de la “Lectura”,
Vrin, Paris, 1996, pp. 75-90.
vi Duns Scot trata da teologia como ciência prática na quarta parte do “Prólogo” da Lectura e na
quinta parte do “Prólogo” da Ordinatio.
A infinitude de Deus · Apresentação 11
teoréticas, vii o fato é que o hiato estabelecido por esta concepção teve como
conseqüência imediata a separação entre os objetos da filosofia, saber especu-
lativo acessível à razão, e da teologia, a qual passa então a ser concebida como
saber prático acessível pela fé. viii
Sem dúvida, Scot teve a coragem de desbravar novos horizontes para a
ciência metafísica, malgrado as aporias que o seu sistema implica, como por
exemplo o univocismo, baseado numa noção puramente negativa por meio
da qual ele acabou por chegar à problemática conclusão de que entre Deus
e as criaturas existe equivocidade de realidade e univocidade de conceito. ix Seja
como for, para o tópico que a seguir destacaremos – a saber, o caráter da
infinitude e a identificação desta com aquele a quem chamamos Deus –, vale
frisar que Duns Scot tem diante dos seus olhos 11 das 219 teses condena-
das em 1277 relativas, especificamente, ao necessitarismo x propugnado por
averroístas latinos.
Esquadrinhemos a questão a partir do que diz a tese 58 do texto conde-
natório:
vii Cf. José Luis Llanes, Estructura y función de la teología en Juan Duns Escoto, Pamplona, Univer-
sidad de Navarra, 2001, p. 73.
viii Neste ponto reside uma das incontáveis teses de Duns Scot escritas em contraposição direta a San-
to Tomás. Este último demonstrara que a teologia é saber prático e também especulativo; o frade inglês
reduziu-a a mero saber prático sem perceber o quanto este erro, levado às últimas consequências, tra-
zia em seu bojo a possibilidade de confundirem-se moral e religião, como sucedeu a Immanuel Kant
quatro séculos depois de Scot. Com relação ao parentesco filosófico entre Kant e Duns Scot, veja-se
Valentín Fernández Polanco, “Los precedentes medievales del criticismo kantiano”, Revista de
Filosofía, Madri, Universidad Complutense, 28 (2003), 305-323.
ix A univocidade em Scot leva-o a concluir que Deus e as criaturas se assemelham não com relação ao
ser, mas porque são não-nada. Para maiores detalhes sobre o método por cujo intermédio o Doutor
Sutil chega à ratio entis quidditativa, veja-se Sidney Silveira, Duns Scot, filósofo da ruptura, em Tra-
tado do Primeiro Princípio, São Paulo, É Realizações Editora, 2015, p. 10.
x O necessitarismo dos averroístas do século XIII reduzira o escopo da liberdade divina no ato cria-
dor, o que foi combatido com veemência por Duns Scot com o propósito de salvaguardar o caráter
libérrimo da vontade divina, assim como a sua onipotência. Em resumo, os entes não procedem de
Deus por nenhuma necessidade metafísica, assim como Deus também não pode depender de nada
extrínseco a Ele ao criar. Diz a propósito Roberto de Sousa Silva: “O Doutor Sutil condena veemente
as teses averroístas na medida em que essas ferem os conceitos de liberdade e vontade. Ao refutar as
teses de Averróis, Scotus procura defender a existência do intelecto pessoal contra o monopsiquismo,
mais ainda, coloca em evidência a vontade livre e individual, principalmente quando nega o agir
necessário e mecânico da ação divina. A tese do monopsiquismo, para Scotus, nega até mesmo a fé
na imortalidade da alma. Nessa medida ele concorda com as condenações de 1277. Quando Scotus
nega qualquer tese necessitarista, ele está defendendo os conceitos de liberdade e vontade”. Roberto
de Sousa Silva, A existência de Deus em Duns Scotus, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal
de São Paulo, 2014, p. 19, em: <http://ppg.unifesp.br/filosofia/dissertacoes-defendidas-versao-final/
dissertacao-roberto-de-sousa-silva>.
12 Duns Scot
xi “Quod Deus est causa necessaria prime intelligentie: quia posita ponit ut effectus, et sunt simul
duratione”. Chartularium Universitatis Parisiensis, Ed. Henricus Denifle et Aemilio Chatelain,
vol. 1, Paris, 1889, p. 547. Esta edição do “Chartularium Universitatis Parisiensis” pode ser consultada
no seguinte link: <https://archive.org/details/bub_gb_VmrMTNvijekC>. Ver também Roland His-
sette, Enquête sur les 219 articles condamnés à Paris le 7 mars 1277. Paris/Louvain, Vrin, 1977, p. 72.
xii A onipotência implica, simultaneamente, absoluta potência ativa e absoluta ausência de potência
passiva. Ora, a existência de dois seres onipotentes é contraditória, porque neste caso seria preciso
conceder que: a) ou a potência ativa deles é limitada (pois, sendo ambos onipotentes, um não poderia
mover o outro da potência ao ato); b) ou existe potência passiva em ambos (alcançável pela onipotên-
cia de um e de outro). Nestes dois casos, cai por terra o conceito de onipotência. Pois muito bem: em
decorrência de sua absoluta simplicidade quanto ao ser, a infinitude e a onipotência só podem atri-
buir-se a um ser; nunca a dois ou mais. A este ser eminentíssimo Duns Scot chama Primo Principio.
xiii “(...) se um ser é completamente simples, segue-se daí que será também infinito”. (quare si est in
se omnino simplex, sequitur quod erit etiam infinitum). Cf. Duns Scot, Tractatus de Primo Principio,
IV, n. 77.
xiv “Quod Deus non potest in effectum cause secundarie sine ipsa causa secundaria”. Cf. Chartula-
rium Universitatis Parisiensis, Op. cit., p. 547.
A infinitude de Deus · Apresentação 13
xv Cf. Rafael Ramón Guerrero, Historia de la Filosofía Medieval, Madrid, Ediciones Akal, 2002,
p. 218.
xvi No tempo em que o Doutor Sutil escreveu as suas obras, já se havia cristalizado a censura eclesiástica
aos escritos de Santo Tomás, sobretudo no tocante à tentativa deste em assimilar Aristóteles integran-
do-o – em várias teses de capital importância – ao corpo doutrinal da Igreja. Isto instaurou um clima
de desconfiança em relação a todo o conjunto dos escritos do Aquinate. Neste contexto, pode-se dizer
com segurança que, de alguma maneira, Duns Scot sempre esteve preso ao espírito das condenações de
1277. Tenhamos idéia disto na simétrica oposição que Scot faz a incontáveis teses de Santo Tomás: 1-
Tomás: o ser é análogo; Scot: o ser é unívoco; 2- Tomás: só pode haver uma forma substancial no ente
individual; Scot: pode haver uma pluralidade de formas substanciais no ente individual; 3- Tomás:
a forma substancial estabelece a corporeidade; Scot: a corporeidade é anterior à forma substancial;
4- Tomás: a materia prima é pura potência; Scot: a materia prima tem um ato próprio; 5- Tomás: o
princípio de individuação é a matéria assinalada pela quantidade (materia signata quantitate); Scot:
o princípio de individuação é a haecceitas; 6- Tomás: a vontade em seu ato primeiro, o querer (velle),
atua sob a razão de bem (ratio boni) subministrada pela inteligência; Scot: a vontade autodetermina-se;
7- Tomás: só existe um anjo em cada espécie; Scot: há diversos indivíduos angélicos em cada espécie;
etc. Em Scot, as alusões ao Aquinate são em geral indiretas, porém constantes. Eis, aqui, um módico
exemplo: ao criticar Santo Alberto Magno por defender teses aristotélicas contrárias ao univocismo, o
Doutor Sutil acrescenta ironicamente a expressão “e os seus sequazes” (et sequacium eius). Cf. Duns
Scot, Quaestiones in Librum Porphyrii Isagoge, q. 14.
xvii “Después de la condena del 7 de marzo de 1277, el ambiente cambió. Hubo maestros, principal-
mente franciscanos, que arremetieron no ya contra el averroísmo, sino contra Santo Tomás (grifo
nosso), que se transformó a partir de esa fecha en una especie de encarnación de los peores errores”.
Juan Antonio Widow, La libertad y sus servidumbres, Coleción Centro de Estudios Tomistas (CET),
Santiago de Chile, Ril Editores, 2014, p. 130.
xviii Cf. Rafael Ramón Guerrero, Op. cit., Madrid, Ediciones Akal, 2002, p. 218.
xix Idem ibid.
14 Duns Scot
xx Cf. Felix Alluntis, Duns Escoto, Tratado acerca del Primer Principio (Apéndice), Madrid, Biblio-
teca de Autores Cristianos (B.A.C.), 1989, p. 181.
xxi “Patet ergo quomodo conceptus entis nullo modo ponitur de quididate Dei (...)”. Cf. Duns Scot,
Quodlib. XIV, n. 21.
xxii A gnosiologia medieval – em suas mais variadas vertentes, com divergências marcantes que hou-
vesse entre as correntes filosóficas – tinha a clara noção de que um conceito é abstrato quando
assimila imaterialmente algo tangível a partir dos sentidos, ou seja, a matéria. Ora, não havendo em
Deus composição de matéria, é impossível chegarmos a um conceito abstrato perfeito acerca de Sua
natureza.
xxiii Cf. Felix Alluntis, Op. cit., p. 16.
xxiv Cf. Rodrigo Guerizoli, A Metafísica no Tractatus de Primo Principio de Duns Escoto, Porto
Alegre, edipucrs, 1999, p. 105.
A infinitude de Deus · Apresentação 15
que meramente potencial; precisa ser infinitude em ato. xxv O limite gnosio-
lógico ao qual se refere Guerizoli radica, pois, na circunstância de que, com
a demonstração de que o Primeiro Princípio é infinito, a metafísica alcança
uma espécie de “resultado final”, porque neste ponto vislumbra a omnímoda
simplicidade da ordem do ser. Trata-se do máximo conhecimento possível ao
intelecto humano acerca da realidade simplíssima. xxvi
De acordo com o Doutor Sutil, chega-se à consideração de Deus como ens
infinitum por dez diferentes vias, subdivididas em três grupos: vias intelectu-
ais; vias de ordenação essencial e via da simplicidade. xxvii A este respeito diz
Guerizoli, referindo-se às vias intelectuais:
“Partindo da evidência de que há, mesmo em relação a inteligências que
não apreendem todos os seus inteligíveis em ato, uma infinidade de inteligí-
veis potencialmente conhecidos (...), em havendo uma infinidade de objetos
potencialmente conhecidos deverá haver uma infinidade de objetos atualmente
conhecidos, conquanto que se tomem todos os membros desta infinidade si-
multaneamente em ato. Assim, o primeiro princípio, que tudo compreende de
modo atual (...), conhece um infinidade de inteligíveis”. xxviii
Em síntese, nenhum conhecimento da substância primeira pode ser
acidental, xxix pois a infinitude que a distingue é signo de um conhecimento
ilimitado, abarcante de todos os inteligíveis da ordem do ser. Melhor dizendo:
a propriedade da substância primeira é conhecer perfeitissimamente; para as
inteligências que, por sua vez, não são infinitas em ato – como a do homem e
a do anjo –, o conhecer será sempre, de modos distintos, um acidente imate-
rial de uma potência intelectiva. xxx Isto porque as inteligências finitas, por não
separada: su perfección y unidad según Tomás de Aquino, Pamplona, Ediciones Universidad de Navarra,
2016, pp. 108-109. No caso da tese de Duns Scot segundo a qual não existe acidente no intelec-
to da substância primeira, nosso intuito no corpo do texto foi sublinhar que nas demais inteligên-
cias há sempre alguma espécie de conhecimento acidental, porque se trata de intelectos com potência
para o conhecimento – diferentemente do intelecto divino, o qual conhece tudo em ato. Neste ponto,
porém, é preciso dizer que se trata de potências para o universo do inteligível radicalmente distintas,
pois os anjos, por não terem composição de matéria em sua forma entitativa, não possuem o que na
terminologia aristotélica se chama intelecto possível, instância de inteligibilidade virtual identificável
no homem. Reitere-se que estas considerações são a propósito de haver acidentes em todos os intelec-
tos que não sejam o do Primeiro Princípio, e não à angelologia de Scot, a qual considera a existência
de intelecto agente nos anjos e, com isto, traz novos horizontes ao problema da intelecção angélica.
xxxi Cf. Duns Scot, Ordinatio, I; e Lectura, I.
xxxii “O ente é dividido em infinito e finito antes que nas dez categorias, porque (só) um, a saber, o
‘finito’, é comum com respeito às dez categorias (supremas). O que sempre a partir disso se atribui
ao ente (...), atribui-se-lhe não como algo que se determina a um gênero, mas como um anterior e,
consequentemente, como um transcendente (transcendens), e como algo que está fora de todo gênero
(extra omne genus)”. Cf. Ludger Honnefelder, João Duns Scotus, São Paulo, Edições Loyola, 2010,
p. 128.
xxxiii Cf. Ludger Honnefelder, Op. cit, p. 128.
xxxiv Cf. Ludger Honnefelder, Op. cit, p. 129.
A infinitude de Deus · Apresentação 17
trar a Sua infinitude. xxxv Esta é a tese defendida com argumentos diversos,
tanto na Ordinatio quanto na Lectura, xxxvi textos nos quais Scot não perde de
vista a identificação da infinitude com a absoluta atualidade cognoscitiva, na
medida em que a inteligência divina, conforme foi assinalado anteriormente,
não possui, nem pode possuir, nenhum tipo de acidente. A intelecção de Deus
é ato puro sem mescla de potência passiva e, portanto, abarca objetos infinitos
em ato. xxxvii
Scot não demonstra a infinitude do Primeiro Princípio apenas pela capaci-
dade que Lhe é inerente de conhecer infinitos inteligíveis em ato. Refaçamos
parte do itinerário do autor medieval valendo-nos da clara exposição sinóp-
tica de Guerizoli, que entre outros aspectos também destaca, nas aludidas
“vias intelectuais”: a) as demonstrações de Scot quanto ao modo de causação,
considerando-se a perfeição absoluta da causa primeira; xxxviii e b) a suficiência
inteligente do Primeiro Princípio, que não pode ser aperfeiçoado por nada
exterior a Ele. xxxix
No tocante ao primeiro tópico, diz o frade franciscano:
“(...) é manifesto que a causa primeira tem a causalidade da causa próxima mais
perfeitamente do que a tem a causa próxima, porque [esta] não a tem senão da
primeira, e similarmente a causa segunda tem mais perfeitamente a causalidade da
causa terceira do que esta mesma a tem, porque não a tem senão da segunda, e as-
sim até à última; portanto, da primeira à última, a causa primeira tem mais perfei-
tamente as causalidades das causas médias do que as causas médias as têm em si”. xl
eficiente de todas as coisas, será também causa da intelecção delas”. xlii Disto
se deduz a insuficiência das inteligências que não são a de Deus. xliii
Vários são os percursos dialéticos de Duns Scot nesta obra que o leitor tem
em mãos. Leitura árdua, sim, dadas as sutilezas terminológicas e os caminhos
por vezes ínvios de que o notável metafísico não abre mão. Seja como for,
optamos pelo prefácio breve porque nada substitui o confronto direto com
os questionamentos suscitados não apenas neste, mas em todos os escritos do
autor que – inaugurando filosoficamente o século XIV – abriu as portas para
a modernidade, para o bem e para o mal.
Com a publicação deste importante trecho da Lectura, a Coleção Escolásti-
ca cumpre mais uma etapa do caminho (re)civilizatório do Brasil, o qual passa
pela disponibilização de clássicos da história da filosofia, alguns dos quais,
infelizmente, desconhecidos quase por completo entre nós.
xlii
Cf. Duns Scot, Lectura, I, n. 63.
xliii
“Às naturezas causadas (...) nem a inteligência nem nenhuma outra perfeição pode ser predicada
senão de modo acidental, e nunca essencialmente”. Cf. Rodrigo Guerizoli, Op. cit, pp. 110.
A infinitude
de Deus
QUAESTIO 1
QUESTÃO 11
Se entre os entes há algum infinito em ato
1. Acerca da distinção segunda, inquire-se primeiro se entre os entes há
algum infinito em ato.
Parece que não:
1. Se um dos contrários é infinito em ato, não compadece2 o outro; mas o
bem e o mal são contrários; portanto, se há algum bem infinito em ato, não
haverá nenhum mal em ato, o que é falso.
2. Diz-se que o mal no universo não é contrário a Deus nem ao bem infi-
nito, porque nada é contrário a Ele.
Contra: isso não dissolve [o argumento], porque, se um dos contrários é
infinito virtual ou formalmente, não padece com o outro contrário, nem que
este seja contrário a ele nem que o seja ao efeito, assim como, se o sol fosse
virtual ou formalmente de infinito calor, não haveria nada frio; se portanto há
algum bem infinito em ato virtual ou formalmente, segue-se que não haverá
no universo nenhum mal contrário a nenhum bem.
3. Ademais, um corpo infinito não compadece outro corpo;3 portanto, um
espírito infinito não compadece outro espírito. O antecedente patenteia-se do
livro IV da Física.4
4. A conseqüência mostra-se, porque, assim como dois corpos não podem
estar [num mesmo lugar] simultaneamente pela repugnância das dimensões,
assim parece que tampouco [o podem] dois espíritos simultaneamente pelas
atualidades dos espíritos.
Além disso, a mesma conseqüência mostra-se de outro modo, assim: se
com um corpo infinito [co]existisse outro corpo, então haveria algo maior que
o corpo infinito; portanto, parece que, se além do espírito infinito houvesse
outro, haveria algo maior que o infinito segundo virtude.
1 Duns Scot, Lectura I, d. 2, p. 1, q. 1: Opera Omnia (ed. Vaticana), vol. XVI (1900), p. 112 ss.
2 Lat. compatior, eris: “sofrer com”. Nesta objeção inicial, Scot usa a expressão “não compadece” (non
compatitur) no sentido de indicar que, em havendo um ente infinito, este não pode sofrer a ação de
nenhum ente finito, muito menos sofrer com ele moção extrínseca de qualquer outro ente, pois isto
repugna à razão de infinito. Noutras palavras, o infinito não padece com o finito; não sofre a sua ação.
[Nota do coordenador da Coleção Escolástica; doravante, N. C.]
3 Ver nota 2.
4 Aristóteles, Phys. III, c. 5 (204 b 19-22).
22 Duns Scot
[5] Praeterea, quod est hic et non alibi, est finitum loco, et quod est
nunc quod non tunc, est finitum tempore, et quod agit hac actione quod
non alia, est finitum actione, et sic de aliis; sed quidquid est, est ‘hoc’ ita
quod non aliud; igitur est finitum, quidquid est.
[6] Praeterea, si esset aliqua virtus infinita, illa moveret in instanti,
sicut probatur ex VIII Physicorum; igitur motus esset in instanti, quod
est impossibile.
[7] Contra: VIII Physicorum dicit Philosophus quod primum movens
est infinitum, et ideo non est virtus in magnitudine: non infinita, quia nulla
talis, - nec in magnitudine finita, quia maior magnitudo habet maiorem virtu-
tem. Sed ista ratio non valeret nisi intelligeret de infinito secundum virtutem,
quia corpus, ut sol, esset infinitum duratione.
[8] Iuxta hoc quaeritur utrum aliquod infinitum esse, ut Deum esse,
sit per se notum. Quod sic: Damascenus 1 cap.: “Eius, quod est Deum
esse, omnibus inserta est notitia”; sed illud est per se notum cuius notitia
omnibus inserta est, - sicut patet ex II Metaphysicae, quod prima princi-
pia, quae sunt quasi ianua, sunt per se nota.
A infinitude de Deus 23
5. Ademais, o que está aqui e não ali é finito no lugar, e o que é agora e
não é depois é finito no tempo, e o que age esta ação e não outra é finito na
ação, e assim com respeito aos outros; mas tudo o que é, é “isto” e não outro;
portanto, é finito tudo o que é.
6. Ademais, se houvesse alguma virtude infinita, essa moveria no instante,
como se prova do livro VIII da Física;5 portanto, haveria movimento no ins-
tante, o que é impossível.
7. Contra: No livro VIII da Física,6 diz o Filósofo que o primeiro mo-
vente [ou motor] é infinito, e por isso [sua] virtude não se dá em magnitude:
não [em magnitude] infinita, porque não há tal, nem em magnitude finita,
porque uma magnitude maior tem maior virtude. Mas esta razão só valeria
se se inteligisse de um infinito segundo virtude,7 porque um corpo, como o
sol, seria infinito em duração.
8. A par disso, inquire-se se algo, por ser infinito, como Deus o é, é
per se notum.8 O que se faz assim: Damasceno 1 cap.: “Este, que é o ser de
Deus, é notícia inserta em todas as coisas”; mas é per se notum aquilo cuja
notícia está inserta em todas as coisas – assim, patenteia-se do livro II da
Metafísica que os primeiros princípios, que são quase uma porta de entrada,
são per se nota.
5 Ibid., VIII, c. 10 (266 a 24-266 b6). Nesta passagem da Física, Aristóteles diz que nada finito
pode mover algo por tempo infinito, porque no movimento há três fatores a considerar: o moven-
te, o movido e aquilo em que se dá o movimento, ou seja, o tempo. Como não há comensurabilidade
entre o infinito e o finito, é impossível ao finito mover algo no infinito, ou seja, numa instância situada
para além do tempo, assim como é impossível ao finito mover algo no tempo infinitamente, numa
sucessão cronométrica interminável. Quanto a esta última hipótese, ainda no Livro VIII da Física o Es-
tagirita afirma não ser possível que uma magnitude finita tenha potência infinita, nem que uma força
finita mova algo, no tempo, da mesma maneira como o faz uma força infinita. Aqui entra o “instante”
considerado por Duns Scot, que está para o tempo e para a eternidade numa relação de simultaneida-
de, pois co-incidem na ordem do ser todos os instantes temporais e o instante eterno, o qual os supõe;
todos os agoras do tempo e o agora intemporal, o qual os abarca; todas as potências e o Ato Puro, no
qual radicam. Neste trecho da Lectura, a dificuldade de Scot (na dicotomia estabelecida entre “ins-
tante” e “movimento”) parece residir na circunstância de ele considerar impossível que todas as coisas
temporais sejam simultaneamente contempladas por Deus enquanto transcorrem, pois o Doutor Sutil
concebe que só as coisas temporalmente presentes são atuais. Diz a este respeito Hofmeister: “As tese
básica é a de que todas as coisas são presentes a Deus [apenas] no “agora” uno da eternidade”. Cf. Ro-
berto Hofmeister, “Tempo e eternidade: um modelo em Duns Scot (1265-1308) e uma nota sobre
Francisco de Meyronnes (1280-1327)”, Mirabilia, Revista Eletrônica de História Antiga e Medieval,
2010, nº. 11, coord. Ricardo da Costa (Universidade Federal do Espírito Santo – UFES). [N. C.]
6 Ibid. (266 a 10-24).
7 Com virtutem está implicado o conceito de potência. [N. C.]
8 Nestas passagens, entenda-se a expressão per se notum – e também as suas congêneres declinadas no
texto latino – com o sentido de “evidente”. [N. C.]
24 Duns Scot
[9] Praeterea, illud esse est per se notum quo maius cogitari non po-
test, quia detur oppositum praedicati, destruetur subiectum; si enim non
sit, igitur aliquid maius cogitari potest, quia esse quod est maius quam
non esse. Et haec videtur esse ratio Anselmi Proslogion 2.
[10] Praeterea, veritatem esse est per se notum, igitur etc.
Probatio antecedentis: illud est per se notum quod sequitur ex suo op-
posito; sed veritas est huiusmodi, quia si affirmas veritatem esse, tunc verum
est te hoc affirmare, et ita veritas est; si neges veritatem esse, tunc verum est
veritatem non esse. Et ita aliqua veritas est.
[11] Praeterea, complexiones quae habent necessitatem ex entitate ter-
minorum secundum quid, sunt per se notae; ergo multo plus complexio
quae habet necessitatem ex entitate rei simpliciter et ex entitate termi-
norum simpliciter, cuiusmodi est haec ‘Deus est’. Probatio antecedentis:
haec est vera et necessaria ‘omne totum est maius sua parte’ - licet nec
totum sit nec pars - ex habitudine terminorum in intellectu; unde solum
termini habent tunc esse in intellectu. et ita secundum quid.
[12] Contra: Per se notum negari non potest a mente alicuius; sed Deum
esse sic potest negari: Dixit insipiens in corde.
[13] Ad istam quaestionem secundam est primo dicendum. Ad cuius
solutionem primo videndum est quae est ratio propositionis per se notae;
et, secundo, erit manifestum si ista ‘Deus est’ sit per se nota, vel alia in qua
enuntiatur ‘esse’ de eo quod convenit Deo, ut ‘ens infinitum est’
[14] Ad intellectum primi est sciendum quod cum dicitur propositio
per se nota, per ‘per se’ non excluditur quaecumque causa, quia non noti-
tia terminorum, quia nulla propositio est per se nota nisi habeatur notitia
terminorum; sed excluditur quaecumque causa et ratio quae est extra per
A infinitude de Deus 25
9. Ademais, esse ser per se notum é aquilo que não se pode cogitar nada
maior, porque, se se dá o predicado oposto, se destrói o sujeito; se, com efeito,
não o é, então pode cogitar-se algo maior, porque o ser é maior que o não ser.
E esta parece ser a razão de Anselmo no Proslógio 2.
10. Ademais, a verdade do ser é per se notum, portanto, etc.
Prova do antecedente: é per se notum o que se segue de seu oposto; mas
a verdade é desse modo, porque, se afirmas que há a verdade, então tens de
afirmar que tal é verdadeiro, e assim há a verdade; se negas que há a verdade,
então é verdadeira a verdade de que não há. E assim alguma verdade há.
11. Ademais, as complexões que têm sua necessidade da entidade dos ter-
mos secundum quid são per se notae; logo, muito mais [o são] a complexão que
tem a necessidade da entidade da coisa simpliciter e da entidade dos termos
simpliciter, do modo como “Deus é”. Prova do antecedente: é verdadeiro e ne-
cessário que “qualquer todo é maior que sua parte” – ainda que não haja todo
nem parte – pela habitudo [respeito, relação] dos termos no intelecto; daí que
então só os termos tenham ser no intelecto. E assim secundum quid.9
12. Contra: A mente não pode negar algo per se notum;10 mas Deus pode,
sim, ser negado: Diz o insipiente no coração.
13. A esta segunda questão deve dizer-se primeiro o seguinte. Para sua
solução, deve ver-se em primeiro lugar o que é a razão de uma proposição
per se notae; e, em segundo, será manifesto se esse “Deus é” for per se nota,11
ou outros em que se enuncie um “ser” com respeito a qual convenha a Deus,
como “um ente é infinito”.12
14. Ao intelecto cumpre saber que, quando se diz proposição per se nota
por per se,13 não se exclui toda e qualquer causa por ausência de notícia dos
termos, porque nenhuma proposição é per se nota se não se tem notícia dos
termos; mas excluiu-se toda e qualquer causa e razão que esteja fora per se do
9 As palavras latinas simpliciter e secundum quid devem ser entendidas, nesta parte da Lectura, exa-
tamente como o são em Santo Tomás: “em sentido absoluto” e “em certo sentido”, respectivamente.
[N. C.]
10 Em suma, o intelecto não tem como negar uma evidência tal que seja acessível a todos os homens
(quoad nos omnes). [N. C.]
11 Dir-se-ia contemporaneamente: “Será manifesto se a existência de Deus for auto-evidente”. [N.
C.]
12 Ao fazer referência à proposição “um ente é infinito”, nesta passagem Duns Scot já dá por pressu-
posta a idéia de que a infinitude é o proprium metafísico de Deus. [N. C.]
13 Ou seja: quando se considera uma proposição mais evidente como se fosse uma menos evidente.
26 Duns Scot
conceito dos termos da proposição per se notae. E por isso é proposição per se
nota a que não tem notícia pedida de outro lugar,14 mas sim que pelos termos
conhecidos tem verdade evidente e não tem sua certeza senão de algo in se.
15. Agora, porém, outro termo é o nome, e o conceito implicado pelo
nome, de modo que um termo é o nome, e outro é a definição do nome. Pro-
va: porque a definição do outro extremo é meio na demonstração, e por isso a
outra das premissas é o mesmo com a conclusão, só diferindo como definição
e definido; se portanto fossem os mesmos o termo e o conceito da definição
e do definido, na demonstração haveria poderosa petição de princípio; além
disso, haveria ali só dois termos. Um portanto é o conceito da definição, e
outro o do definido como se exprime pelo nome da definição.
16. Além disso, no livro I da Física se diz que igualmente sustêm os nomes
às definições como o todo às partes: com efeito, o notum definido é anterior
à definição,15 que há de dividir-se em cada um em particular. Daí que, as-
sim como se exprime o conceito da definição pelo nome do definido, assim
é confuso e anterior ao conhecido; mas mais distintamente se exprime pelo
nome da definição, que tem distintamente cada uma das partes do definido;
e por isso um é o conceito do nome do definido que se implica, e outro o da
definição.
17. Disto se segue que tal proposição não é per se nota senão pela definição
dos termos: pois, como tal proposição só é per se nota porque tem sua evidên-
cia da notícia dos termos, e termos distintos são a definição e o nome, então
não é per se nota quanto aos nomes a que tem sua evidência da definição dos
termos, a qual pede sua evidência de outro lugar e pode ser conclusão com
respeito a outra.
18. Além disso, se fosse per se nota a que tivesse sua evidência das definições
dos termos, qualquer proposição no primeiro modo per se seria per se nota,16
como “o homem é animal”, e “corpo”, e assim até à substância: não é suficien-
te, portanto, a notícia da definição para que tal proposição seja per se nota.17
14 A proposição per se nota é, portanto, evidentíssima; é algo a que a mente humana anui porque
manifesta uma verdade que não precisa ser sustentada por nada além dela própria. Por sua vez, a
proposição per se é evidente em si mesma, mas não o é para todos os homens. [N. C.]
15 “Um nome significa um todo sem distinção de partes, como por exemplo ‘círculo’, enquanto a
sua definição é analisada em suas partes constitutivas”. Aristóteles, Ibid., I, 1, 184b. Ao fazer alusão
a esta passagem em Aristóteles, Duns Scot está a frisar que o “notum definido” – ou seja, o nome – é
anterior à definição nele implicada. [N. C.]
16 Noutros termos: qualquer proposição evidente seria evidentíssima. [N. C.]
17 Em síntese, para uma proposição ser per se nota não basta haver congruência lógica ente os seus
termos; é necessário que, além disso, ela não precise de nada além dos próprios termos para eviden-
28 Duns Scot
[19] Illa igitur propositio est per se nota quae ex sola notitia terminorum
habet evidentiam et non mendicatam ex evidentia aliorum conceptuum.
[20] Ex hoc patet quod frustra et vanae sunt huiusmodi distinctiones
propositionis per se notae, quod quaedam est per se nota nobis, et quae-
dam per se nota naturae; et eorum quae sunt per se nota nobis, quaedam
sunt per se nota sapientibus, et quaedam insipientibus; et similiter quae-
dam sunt per se nota primi ordinis, et quaedam secundi: quia non dicitur
propositio per se nota quia est nota cuicumque intellectui, sed quia termi-
ni nati sunt facere per se evidentem notitiam intellectui concipienti termi-
nos per se notos; et ideo nulla est per se nota quae alicui intellectui potest
demonstrari. Verumtamen in propositionibus per se notis sunt gradus se-
cundum dignitatem et ignobilitatem. Unde dignior est ista ‘impossibile
est idem esse et non esse’ quam ista ‘omne totum est maius sua parte’, etc.
[21] Secundo, ad propositum dico quod intelligendo per nomen Dei
aliquid quod nos non perfecte concipimus ut ‘hanc essentiam divinam’,
sic est haec per se nota, ut si Deus, videns se, imponat hoc nomen ‘Deus’
suae essentiae: tunc est quaerere an haec sit nota per se ‘Deus est’, et haec
‘essentia est’. Et dico quod sic, quia ista extrema nata sunt facere eviden-
tiam de ista complexione cuilibet apprehendenti perfecte extrema istius
complexionis, et esse nulli perfectius convenit quam huic essentiae.
[22] Sed quaeres an esse insit alicui conceptui quem nos concipimus
de Deo et per se, ita quod talis propositio sit per se nota in qua enuntia-
tur esse de tali conceptu, ut cum dicimus ‘infinitum est’. Et dico quod
non, quia illa non est per se nota ex notitia terminorum quae potest esse
conclusio demonstrationis; sed omnis propositio enuntians esse de aliquo
conceptu quem nos concipimus de Deo est huiusmodi, scilicet conclusio
demonstrationis. Probatio. Quod primo et per se convenit inferiori se,
natum est ostendi per se de suo superiore, sumpto inferiore pro medio, ut
A infinitude de Deus 29
19. É per se nota, portanto, a proposição que só tem sua evidência da notí-
cia dos termos e não é solicitada da evidência de outros conceitos.
20. Disto se patenteia que frustradas e vãs são semelhantes distinções
das proposições per se notae, a saber, que uma é per se nota para nós, outra
per se nota por natureza; e, das que são per se nota para nós, algumas são per
se nota para os sapientes, e algumas para os insipientes; e semelhantemente
algumas são per se nota da primeira ordem, e algumas da segunda: porque
não se diz proposição per se nota porque o seja para qualquer intelecto, mas
porque os termos nasceram para fazer per se a evidente notícia do intelecto
que concebe os termos per se notos; e por isso não é per se nota nenhuma que
algum intelecto possa demonstrar.18 No entanto, nas proposições per se notis
há graus segundo dignidade e ignobilidade. Daí que seja mais digna esta: “é
impossível que o mesmo seja e não seja”, do que esta: “qualquer todo é maior
que sua parte”, etc.
21. Em segundo [lugar], a propósito digo que se há de inteligir pelo nome
“Deus” algo que nós não concebemos perfeitamente como “esta essência di-
vina”, e assim esta é per se nota, como se Deus, que se vê a si, impusesse este
nome, “Deus”, à sua essência: há que inquirir, então, se é nota per se esta:
“Deus é”, e esta: “[sua] essência é”. E digo que sim, porque estes extremos
nasceram para fazer a evidência desta complexão para qualquer que apreenda
perfeitamente estes extremos da complexão, e o ser a nada convém mais per-
feitamente que a esta essência.
22. Mas inquirirás se o ser se dá em algum conceito que concebemos de
Deus e per se, assim como é per se nota a proposição em que se enuncia o ser
de tal conceito, do modo como dizemos “é infinito”. E digo que não, porque
não é per se nota pela notícia dos termos que pode haver conclusão da demons-
tração; mas toda proposição enunciadora de algum conceito que nós conce-
bemos de Deus é assim, ou seja, conclusão da demonstração.19 Prova. O que
primeiro e per se convém ao inferior nasceu per se para mostrar-se [a partir] de
ciar-se de maneira plena. Portanto, a evidência evidentíssima basta-se a si mesma. [N. C.]
18 Isto porque uma evidência – mormente se evidentíssima – não se demonstra; mostra-se. [N. C.]
19 Porque os graus de evidência acompanham os graus de ser, Deus – o ser em grau sumo – é eviden-
tíssimo em si mesmo. Resta saber se, sendo evidente em si, Deus o é para nós. Duns Scot admite que a
existência de Deus não é, para o homem, uma verdade per se nota, pois precisa ser demonstrada a pos-
teriori pelo conhecimento que temos das criaturas. “De ente infinito sic non potest demonstrari esse
demonstratione propter quid quantum ad nos, licet ex natura terminorum propositio est demons-
trabili propter quid. Sed quantum ad nos bene propositio est demonstrabilis demonstratione quia ex
creaturis”. Duns Scot, Ordinatio, I, 2. Em resumo, a existência de Deus precisa ser demonstrada jus-
tamente porque não se mostra, não se apresenta como evidência absoluta ao nosso intelecto. [N. C]
30 Duns Scot
seu superior, assumido pelo inferior como meio, assim como, se alguma pai-
xão se mostrasse primeiro do triângulo, tal poder-se-ia demonstrar da figura
pelo triângulo; mas todo conceito que nós concebemos de Deus é superior ou
posterior a esta essência; portanto, por esta essência, à qual primeiro convém
ser, pode demonstrar-se que é de todo conceito que nós concebemos de Deus.
Nenhuma pois assim, como “o ente é infinito”, é per se nota pela notícia dos
termos, senão que pede sua evidência de outro lugar, e por conseguinte não
é per se nota. – Esta razão, porém, pode tomar-se mais universalmente como
maior assim: o que convém a algo primeiramente não convém a outro senão
pela natureza daquele a que primeiramente convém; mas o ser convém primei-
ramente a esta essência divina; portanto, nem a nenhuma propriedade nem
a nenhum outro convirá senão pela natureza da essência. Portanto, nenhuma
complexão em que se enuncie de alguma propriedade que é desta essência
que nós concebemos é primeiramente verdadeira, senão que é verdadeira por
outro, e por conseguinte não é primeiramente e per se nota.20
23. Ademais, toda e qualquer proposição per se nota o é pelos termos, para
qualquer intelecto que concebe os termos; mas esta: “Deus é” – inteligindo
por Deus não esta essência que nós concebemos, mas inteligindo algum con-
ceito que nós concebemos desta essência –, ou ainda: “Deus é infinito”, ou:
“o ente é infinito”, não são [per se] nota pelos termos para qualquer [intelecto]
que concebe os termos; portanto, [tais proposições] não são per se nota. A
maior patenteia-se. A menor mostra-se: todo aquele que assente por fé ou por
credulidade ou por demonstração a alguma complexão tem apreensão dos
termos; mas nós assentimos a esta: “Deus é”, ou por fé ou por demonstração;
portanto, apreende-se o termo anterior antes da fé e da demonstração; mas
pela apreensão dos termos não assentimos, porque então não só por fé ou por
demonstração [o fazemos].
24. Ademais, argui-se ao terceiro. Para inteligi-lo, primeiramente deve sa-
ber-se que há algum conceito simpliciter simples e algum não simpliciter sim-
ples. É conceito simpliciter simples o que não se reduz a [outro] anterior nem
a [outro] mais simples, nem em geral se resolve em muitos conceitos, como é
o caso do conceito de ente e do conceito de diferença última. [Por sua vez] o
conceito não simpliciter simples é o que, conquanto se apreenda sem afirma-
20 Podemos dizer, quase ao modo platônico, que toda verdade que o homem é capaz de descobrir
acerca da essência divina é verdadeira por participação na Verdade mesma que é Deus. Se o ser ou a
existência de Deus fossem uma verdade per se nota para o homem, isto significaria que a inteligência
humana, finita, é capaz de esgotar a inteligibilidade do ser de Deus, infinito. [N. C.]
32 Duns Scot
ção e negação, se resolve todavia em muitos conceitos dos quais um pode ser
concebido sem o outro, assim como o conceito de espécie é resolúvel em gêne-
ro e em diferença específica. Daí que, ainda que o conceito seja simples porque
ali não há afirmação ou negação, há porém algum simpliciter simples e algum
não simpliciter simples, como se disse. Disso se patenteia de que modo se deva
inteligir e expor o dito pelo Filósofo no livro IX da Metafísica, onde se diz que
nos conceitos simples não se dá decepção como nos conceitos compostos:21
com efeito, não podem inteligir-se afirmando ou negando algo deles, porque
assim se enuncia verdadeiramente ou falsamente algo do composto, de modo
que pode haver erro no enunciar algo de um conceito simples. Mas por isso
diz isto: porque “a razão dos compostos é razão longa”, que agrega muitos
conceitos, acerca desta conjunção pode haver erro, e alguma vez também con-
tradição, como se se dissesse “homem morto” ou “homem irracional”; mas
não assim nos [conceitos] simples, porque ou tudo ali se apreende ou nada
[se aprende].
25. Declarado isso, argui-se assim: nenhuma proposição é per se nota quan-
to a conceito não simpliciter simples, a não ser que se unam de modo per se
notum as partes deste conceito não simpliciter simples, como se provará; mas
todo conceito próprio que nós concebemos de Deus é não simpliciter simples;
portanto, de nenhum conceito que nós concebemos de Deus haverá algo per se
notum se não se unirem de modo per se notum as partes deste conceito que nós
concebemos de Deus. Mas não é per se notum o unir-se destas partes, como se
provará; portanto, nenhuma [proposição] tal como “Deus é” será per se nota,
nem “Deus é infinito”, na qual se enuncia algo quanto a um conceito que nós
concebemos de Deus.
26. Prova da maior: nenhuma razão é com respeito a algo verdadeira se não
é em si verdadeira, porque, se em si é falsa, com respeito a nada será verdadei-
ra: o que se patenteia do livro V da Metafísica, cap. “Do falso”, onde quer o
Filósofo que o falso em si é o que inclui contradição; mas o falso com respeito
a algo é o que não é falso com respeito a tudo, ainda que isto aconteça quanto
ao falso em si; portanto, é necessário que se conheça em si a verdadeira antes
que à verdadeira com respeito a algo. Mas, se não se concebem as partes do
conceito não simpliciter simples como unindo-se entre si, não se concebe a ver-
dadeira em si; portanto, não se concebe como em algo ou com respeito a algo
21 Com a expressão “não se dá decepção” (non cadit deceptio), Scot refere-se à passagem da Metafísica
(IX, 1052a, 30-35) em que Aristóteles diz não haver falsidade nem engano quando se considera o ser
como verdadeiro e o não-ser como falso. [N. C.]
34 Duns Scot
vera. Nihil igitur est per se notum de conceptu non simpliciter simplici
nisi praecognoscantur partes illius conceptus uniri.
[27] Item, alia propositio assumpta est vera, quod ‘omnis conceptus
quem nos concipimus de Deo, est non simpliciter simplex’, quia omnis
conceptus meus de Deo est communis mihi et sibi, ut patebit infra.
[28] Item, alia propositio assumpta est vera, scilicet quod ‘non est per
se notum partes illius conceptus uniri quem nos de Deo concipimus’, quia
una pars potest demonstrari de alia, ut quod ‘Deus est infinitus’ et quod
‘Deus est’, prout nos Deum concipimus.
[29] Ex isto patet quod male dicunt dicentes huiusmodi esse per se; no-
tas ‘Deus est’, et ‘necesse esse est’, et ‘operans actu est, quia, ut dicunt,
oppositum praedicati repugnat subiecto, ergo propositio est per se nota.
Dico quod non sunt per se notae, quia quando ponitur conceptus non
simpliciter simplex in subiecto, oportet quod notum sit per se partes illius
conceptus uniri; quod non contingit hic ‘necesse esse est’ et ‘operans actu
est’, quia non est per se notum aliquid necessarium esse, sed hoc demons-
trari potest. Unde et heraclitici negabant ‘necesse esse’, et omnia esse in
continuo motu dicebant. Sic est de ista ‘operans actu est’, quia non est no-
tum per se operans esse in actu. Unde non sequitur ‘oppositum praedicati
repugnat subiecto, igitur est necessaria’, immo stat quod sit falsa, ut ista
‘homo irrationalis est animal’: non enim stant simul quod nullum animal
sit, et tamen quod homo irrationalis sit. Sic est de ista etiam ‘aliquid maius
Deo est’, quod est falsa, et tamen oppositum praedicati repugnat subiecto.
[30] Si dicas, in ista ‘necesse esse est’ ponitur praedicatum in subiecto, et
similiter hic ‘operans actu est’, igitur est per se nota, dico quod non sequitur,
quia non est per se nota habitudo inter ea quae ponuntur in subiecto.
A infinitude de Deus 35
verdadeira. Nada pois é per se notum com respeito ao conceito não simpliciter
simples se não se pré-conhecem que as partes de tal conceito se unem.
27. Além disso, é verdadeira outra proposição assumida, a saber, que “todo
conceito que nós concebemos de Deus é não simpliciter simples”, porque todo
conceito meu de Deus é comum a mim e a Ele, como se patenteará abaixo.
28. Além disso, é verdadeira outra proposição recebida, a saber, que “não é
per se notum que se unem as partes do conceito que nós concebemos de Deus”,
porque uma parte pode demonstrar-se da outra, como em “Deus é infinito” e
em “Deus é”, segundo o que nós concebemos de Deus.
29. Disto se patenteia que dizem mal os que dizem que são per se nota
“Deus é”, “é necessário que seja” e “é ato operante”, porque, como dizem, o
oposto do predicado repugna ao sujeito, logo a proposição é per se nota. Digo
que não são per se notae, porque, quando se põe um conceito não simpliciter
simples no sujeito, é necessário que seja em si evidente que as partes de tal
conceito se unem; o que não acontece aqui com “é necessário que seja” e “é
operante em ato”, porque não é per se notum que algo seja necessário, senão
que isto pode demonstrar-se. Daí que também os heraclitianos negassem o
“ser necessário”, e dissessem que tudo está em contínuo movimento. Assim
com respeito a esta: “é operante em ato”, porque não é notum per se que está
em ato. Daí que não se siga que “o oposto do predicado repugna ao sujeito,
portanto é necessária”; muito pelo contrário, dá-se que seja falsa, como esta:
“o homem irracional é animal”: não se sustentam simultaneamente, com efei-
to, que não seja nenhum animal e que, no entanto, o homem seja irracional.
Assim também com respeito a esta: “há algo maior que Deus”, que é falsa, e
no entanto o oposto do predicado repugna ao sujeito.
30. Se dizes que nesta: “é necessário que seja”, se põe o predicado no sujeito, e
similarmente aqui: “é operante em ato”, e que portanto é per se nota, digo que não
se segue, porque não é per se nota a habitudo22 entre esses que se põem no sujeito.
22 É impossível escapar ao jargão filosófico em textos escolásticos. No caso da Lectura, optamos por
não traduzir literalmente termos que fazem parte do glossário metafísico do Doutor Sutil, daí a manu-
tenção de alguns vocábulos latinos no corpo do texto em português, como habitudo. Nesta passagem,
por exemplo, está pressuposto o conceito de habitus em Scot, o qual deve ser entendido, no plano
ontológico, como o hábito dos primeiros princípios da razão especulativa por meio do qual esta se torna
apta a chegar a conclusões – seja por dedução, seja por indução. O princípio da não-contradição,
por exemplo, expressa um hábito entendido como postura fundamental da razão; trata-se, em certa
medida, de um hábito natural, ou melhor, é justamente este o hábito próprio da natureza racional.
Ocorre que a noção de hábito em Scot é ainda mais delicada. Diz Hofmeister: “(...) os hábitos teóricos
obtíveis de forma natural ou que tipificam a realização científica teórica do intelecto humano são
aqueles que, em diferença de um hábito prático ou ciência prática, têm como fim pura e simplesmente
o conhecimento da verdade, não a ação apropriada”. Roberto Hofmeister, “O anti-averroísmo de
36 Duns Scot
Duns Scotus no Prólogo da ‘Ordinatio’: o terceiro argumento”, Revista Dissertatio, Porto Alegre,
Universidade Federal de Pelotas, 2008, p. 168. No corpo do texto, ao frisar que a habitudo não é
evidentíssima (per se nota) nas proposições mencionadas, Scot está a indicar-nos que elas não são
suficientes para manifestar as verdades nelas contidas. [N. C.]
23 Ao contrário do que pode parecer ao leitor desafeiçoado ao rigor escolástico, Duns Scot não está
aqui a fazer um mero jogo de palavras. Ele tem em vista a sua própria doutrina acerca do modo como
se dá o conhecimento científico, à luz do Livro I dos Analíticos Posteriores de Aristóteles. O Doutor
Sutil, no rastro do Estagirita, diz que o conhecimento científico precisa obedecer a quatro condições:
1- que seja um conhecimento certo, sem erros formais nem dúvidas; 2- que tenha por objeto algo
necessário, e não contingente; 3- que a sua causa seja evidente para o intelecto; e 4- que o modo de
proceder do investigador seja silogístico. Cf. Duns Scot, Ordinatio, Prol., qq. 1-2. Nestas passagens
da Lectura, o seu cuidado em estabelecer com clareza o caráter da evidência evidentíssima (per se
nota), e em que medida este conceito se aplica a proposições cujo objeto seja a existência de Deus,
denota um louvável intuito demonstrativo, menos encontrável em textos filosóficos contemporâneos
de que gostaríamos de ver. [N. C.]
38 Duns Scot
24 É conhecida a boa acolhida que Duns Scot dá ao argumento ontológico de Santo Anselmo. Não
que o aceite por completo, mas também não o impugna; dá-lhe um colorido. “Per illud potest colorari
illa ratio Anselmi de summo cogitabili. Intelligenda est descriptio eius sic: Deus est quo cogitato sine
contradictione maius cogitari non potest. Sine contradiction: nam in cuius cogitation includitur
contradictio, illud dicitur non cogitabile, et ita est” (“Por isso pode ser colorida a razão anselmiana
do sumo cogitável. Deve entender-se assim sua descrição: ‘Deus é algo tal que, pensado sem contradi-
ção, não se pode conceber nada maior, sem contradição”). Duns Scot, De Primo Principio, IV, 134.
Também na presente passagem da Lectura, o Doutor Sutil busca justificar o argumento de Santo An-
selmo enquadrando-o num plano meramente lógico, não obstante Santo Tomás, antes dele, já tivesse
demonstrado que o problema do famoso argumento é justamente dar um salto indevido do plano
lógico ao ontológico. Muita tinta já foi lançada sobre o papel neste tema, e não é o nosso intuito
esmiuçá-lo nesta breve nota, mas apenas deixar uma indicação. [N. C.]
25 A fallacia consequentis resulta sempre de um raciocínio inválido. Ela consiste na afirmação inde-
vida do conseqüente – e tem a clássica forma “Se A, então B. B, logo A”. Ex.: Se José estudar muito,
passará no teste de química; José passou no teste de química; logo José estudou muito. O non sequitur
deste tipo de raciocínio deriva do fato de que, mesmo no caso de serem válidas as premissas, a conclusão
não se segue necessariamente delas. Mesmo tendo estudado muito, José pode ter passado no teste
de química valendo-se de um procedimento escuso, como copiar as respostas de um colega. [N. C.]
40 Duns Scot
1. Pela eficiência
40. Pode considerar-se a eficiência, porém, ou como uma paixão metafísica
ou como uma paixão física, e é [mais] in plus30 como paixão metafísica que
como física, porque in plus é [mais] dar o ser a outro [sem movimento] que
dar um ser por movimento e mutação,31 ainda que não houvesse nenhum ser
senão por movimento e mutação; no entanto, uma não é intenção da outra.
E a via da eficiência, enquanto pertence à metafísica, é mais eficaz para
concluir que Deus é32 do que como [o seria] a paixão física, porque há mais
paixões na metafísica pelas quais se pode mostrar que Deus é do que na física,
como pela composição e pela simplicidade, pelo ato e pela potência, e pelo
uno e por muitos, e pelas [propriedades] que se seguem ao ente. Daí que, se
dos extremos que dividem o ente uns se encontram imperfeitamente na cria-
tura, os extremos opostos se encerram perfeitamente em Deus.
E por isso diz mal Averróis no final do livro I da Física33 – contra Avicena
– que só ao físico pertence mostrar que Deus é porque isto só pode mostrar-se
pelo movimento e não por outro meio, como se a metafísica partisse de uma
conclusão provada pela física e carecesse dela, como se não existisse certa em si
(falso, com efeito, é o que diz ali, no final do livro I da Física); muito pelo con-
trário, com mais verdade e mais multiplamente tal pode mostrar-se pelas paixões
metafísicas, que se seguem ao ente. A prova disto é: o primeiro eficiente não só
dá este ser fluente,34 mas dá o ser simpliciter,35 que é mais comum e mais perfeito;
agora, porém, do primado do inferior não se segue a primazia do superior a não
ser que o inferior seja notabilíssimo (donde não seguir-se “é asno nobilíssimo,
portanto é animal nobilíssimo”, mas seguir-se “é homem nobilíssimo, portanto
é animal nobilíssimo”); e por isso da propriedade do ente nobilíssimo mais se
pode arguir a primazia do ente do que do primado do primeiro movente.
41. Omitindo, portanto, a razão física, pela qual se prova que há um pri-
meiro movente, argui-se da parte do ente que há um primeiro eficiente segun-
tra alguma conclusão por demonstração quia [do efeito para a causa], sempre
se pode fazer também uma demonstração conversa propter quid, da causa para o
efeito; mas de que a primeira causa é não pode concluir-se propter quid que ou-
tros sejam; portanto, tampouco em sentido contrário, por demonstração quia.
45. Para a solução destas [objeções], deve saber-se em primeiro lugar que
não são o mesmo as causas per accidens e as causas acidentalmente ordenadas,
nem são o mesmo as causas per se e as causas essencialmente ordenadas.39
Porque, quando digo causa per se ou causa per accidens, só se exprime a com-
paração de um a um, ou seja, da causa ao efeito; mas, quando se diz “causas
acidentalmente ou essencialmente ordenadas”, comparam-se duas causas a um
efeito, razão por que aí há comparação de dois a um. Daí que as causas “essen-
cialmente ordenadas” sejam causas que se ordenam uma à outra de modo que
causam um terceiro, o efeito; mas as causas “acidentalmente ordenadas” não
se ordenam uma à outra com respeito à causação do efeito, como o pai e o avô
com respeito ao filho.40
46. Em segundo lugar, disto se segue uma tripla diferença entre as causas
per se ordenadas e as causas acidentalmente ordenadas.
A primeira diferença é que uma causa per se depende de outra para causar
algum efeito; não assim nas causas acidentalmente ordenadas a um efeito. Daí
que uma causalidade de uma causa acidentalmente ordenada seja suficiente
para a produção de um efeito, mas não a causalidade de uma causa essencial-
mente ordenada.
47. E disto se segue a segunda diferença, ou seja, que nas causas essencial-
mente ordenadas não há causalidade sob uma só razão,41 [porque] nem sob
a mesma razão visam ao efeito; mas a causalidade nas causas acidentalmente
ordenadas é de uma razão, porque imediatamente podem visar ao mesmo
efeito.42
39 Nas causas essencialmente ordenadas, o efeito, para produzir-se e manter-se, precisa do influxo
causal atual de todas as causas da série. Nas causas acidentalmente ordenadas, o efeito, para produzir e
manter-se, não precisa do influxo causal atual de todas as causas da série em que está inserido. [N. C.]
40 Um filho insere-se numa série causal acidentalmente ordenada. Para que ele viva não é necessário,
por exemplo, que os seus tataravós – causas distantes do ser do filho, na série – estejam vivos. [N. C.]
41 “(...) causalitas unius rationis”. Na série essencialmente ordenada, o influxo causal se dá de dife-
rentes modos. Numa estante de livros, por exemplo, o modo causal dos parafusos que sustentam as
prateleiras é de natureza distinta, por exemplo, do modo causal decorrente do tipo de material de
que são feitas as prateleiras. A necessária concomitância no causar – típica das causas ordenadas per
essentiam – não implica que todos os elementos da série causem da mesma maneira, ou, no glossário
de Duns Scot, “sob uma só razão” (causalitas unius rationis). [N. C.]
42 Na causalidade per accidens não se remonta a causas distantes, mas apenas a causas próximas que
48 Duns Scot
tur causalitas earum est a primo. Sed si sint infinitae, tunc non est prima:
igitur est prima causa et non prima’!
Probatio consequentiae acceptae: Omnes causae qualitercumque me-
diae, sive positive sive negative, sunt causatae, tota igitur coordinatio causa-
rum mediarum est causata; ergo ab aliquo quod nihil est illius coordinationis,
- igitur est primum.
[52] Praeterea, causalitates omnium causarum essentialium simul con-
currunt ad causandum aliquod causatum, sicut praeostensum est; sed in-
finita non possunt concurrere in unum, non igitur sunt infinitae; est igitur
dare primam.
[53] Praeterea, causa prior in causando habet perfectiorem causali-
tatem, et quanto est prior tanto habet perfectiorem causalitatem, igitur
causa prior in infinitum habet causalitatem infinitam; sed si sit processus
in infinitum in causis essentialiter ordinatis, tunc est causa prior in infi-
nitum; igitur, hoc eodem dato, erit causa habens causalitatem infinitam.
Sed habens causalitatem infinitam in causando, non dependet ab alio, et
tale est primum; igitur etc.
[54] Praeterea, esse effectivum non ponit imperfectionem in entibus;
sed quidquid est perfectionis in entibus potest esse in aliquo sine imper-
fectione; igitur esse effectivum potest esse in aliquo sine imperfectione.
Sed hoc non est possibile nisi independenter causat, quod est esse causa
prima efficiens; igitur etc.
[55] Item, si ponitur infinitas in causis accidentaliter ordinatis, sequi-
tur ‘statum’ esse in causis essentialiter ordinatis: illae enim causae acci-
dentaliter ordinatae sunt in individuis eiusdem speciei. Tunc sic: nulla
deformitas est perpetua nisi a causa perpetua perpetuante - extra istam co-
ordinationem - istam deformitatem. Probatio: nihil huius coordinationis
potest esse causa totius perpetuae deformitatis, quia in talibus accidenta-
liter ordinatis unum est tantum causa unius; igitur ultra istam coordina-
tionem deformem oportet ponere aliquam causam primam et essentialem
perpetuantem. Unde deformitas est a causa deformi, sed uniformitas per-
petua istius deformitatis erit a causa extra istam coordinationem; et ita,
si sit processus in accidentaliter ordinatis, erit status ad aliquam causam
primam essentialem a qua omnes accidentaliter ordinatae dependent.
A infinitude de Deus 51
sua causalidade vem da primeira. Mas, se são infinitas, então não há primeira:
portanto, há causa primeira e não a há”.
Prova da conseqüência aceita: Todas as causas de qualquer modo mé-
dias, ou positivamente ou negativamente, são causadas, portanto toda a coor-
denação das causas médias é causada; logo, é causada por alguma que nada é
dessa coordenação – portanto, é a primeira.
52. Ademais, as causalidades de todas as causas essenciais concorrem si-
multaneamente para causar algo causado, como já se mostrou; mas infinitas
coisas não podem concorrer para uma coisa, portanto [as causas] não são infi-
nitas; portanto, há de dar-se uma primeira.
53. Ademais, uma causa anterior no causar tem causalidade mais perfeita,
e, quanto mais anterior é, tanto mais tem causalidade perfeita, portanto a
causa anterior no infinito tem causalidade infinita; mas, se há um processo
ao infinito nas causas essencialmente ordenadas, então há causa anterior ao
infinito; portanto, dado isto mesmo, haverá uma causa que tem causalidade
infinita. Mas que tenha causalidade infinita no causar não depende de outra,
e tal é a primeira; portanto, etc.
54. Ademais, o ser efetivo não põe imperfeição nos entes; mas tudo quanto
há de perfeição nos entes pode haver em algum sem imperfeição; portanto,
o ser efetivo pode haver em algum [ente] sem imperfeição. Mas isto não é
possível a não ser que cause independentemente, o que é o ser causa eficiente
primeira; portanto, etc.
55. Além disso, se se põe que há infinitas [causas] nas causas acidental-
mente ordenadas, segue-se que há uma “parada” nas causas essencialmente
ordenadas: com efeito, as causas acidentalmente ordenadas dão-se nos indi-
víduos da mesma espécie. Então, assim: nenhuma deformidade é perpétua
senão por uma causa perpétua que perpetue – fora de tal coordenação – essa
deformidade. Prova: nada de tal coordenação pode ser a causa de toda a per-
pétua deformidade, porque nas causas acidentalmente ordenadas uma só é
causa de um; portanto, fora de tal coordenação deforme é necessário pôr
alguma causa primeira e essencial que a perpetue. Daí que a deformidade
provenha da causa deforme, mas a uniformidade perpétua dessa deformidade
provirá de uma causa fora de tal coordenação; e desse modo, se há processo
[infinito] nas [causas] acidentalmente ordenadas, haverá parada [ou termo]
em alguma causa primeira essencial de que dependam todas as [causas] aci-
dentalmente ordenadas.
52 Duns Scot
Por isso se exclui a petição [de princípio] na parada e na ordem das causas
essenciais.
56. Quanto ao que em segundo lugar se argui contra a razão antes feita, ou
seja, que “se argui de contingente, ou seja, que há algum outro ente que Deus”,
os filósofos diriam que isto é necessário pela ordem essencial de causado a causa.
Digo primeiro, todavia, que, conquanto tal seja contingente com respeito
a Deus, é porém contingente evidentíssimo, de sorte que o que negue que
há algum ente que não seja eterno carece de sentido e de castigo; e por isso a
partir de tal contingente pode mostrar-se algum necessário, porque do contin-
gente se segue o necessário, ainda que não vice-versa.
57. Além disso, digo que, conquanto os entes outros que Deus sejam atual-
mente contingentes com respeito ao ser atual, não o são, contudo, com respeito
ao ser potencial. Daí que os que se dizem contingentes com respeito à existên-
cia atual sejam necessários com respeito à potencial, de sorte que, conquanto
seja contingente que o homem seja, que porém seja “possível ser” é necessário,
porque não inclui contradição ao ser; portanto, que algo seja “possível ser”, ou-
tro que Deus, é necessário, porque o ente se divide em possível e em necessário,
e, assim como ao ente é necessário que a necessidade provenha de sua habitudo
ou quididade, assim também ao ente possível a possibilidade provém de sua
quididade. Faça-se pois a razão anterior com a possibilidade de ser, e haverá
proposições necessárias, assim: “É possível que algo outro que Deus seja, e não
por si (porque então não seria possível que fosse) nem do nada; portanto, pode
ser por outro. Este outro ou pode agir em virtude de si, e não de outro, e ser
não por outro – ou não. Se sim, portanto pode ser o primeiro; e, se o pode, por-
tanto é, como antes se provou. Se não, e não há processo ao infinito, portanto
haverá que parar [na causa primeira]”.
58. Quanto à outra, “quando se argui com uma demonstração quia [ou
quia est], e contrariamente [ou conversamente] pode fazer-se uma demonstra-
ção propter quid, deve dizer-se que não é sempre verdadeira, porque do efeito
se conclui a causa não só segundo aquela razão pela qual causa tal efeito, mas
também segundo outras razões sem as quais não é causa; e por isso só há pro-
posição verdadeira quando do efeito se conclui a causa segundo aquela razão
segundo a qual causa o efeito.
59. Assim, pois, em primeiro lugar, pela eficiência se mostra que há algum
primeiro, porque, como se mostrou, há algo pelo qual podem ser todos os
possíveis; mas aquilo pelo qual podem ser todos os possíveis não pode não ser
por si, porque então seria do nada; portanto, é necessário que seja por si em
ato. E assim [se prova] o proposto.
54 Duns Scot
2. Pela finalidade
60. Em segundo lugar, isso se mostra pelo fim. Algo é naturalmente apto
ao fim, e portanto ou finit em virtude de si, ou de outro;46 se o primeiro, tem-
-se um [fim] primeiro; se em virtude de outro, este outro, portanto, é natural-
mente apto ao fim, e não há processo ao infinito; portanto, deve-se parar num
primeiro fim. Esta é a razão do Filósofo no livro II da Metafísica e no XII da
mesma obra quanto ao bem que é perfeitíssimo, e a de Agostinho no livro VIII
de De Trinitate, cap. 3: “Tira este bem”, etc.
3. Pela eminência
61. A terceira via é a pela eminência. Há algum bem que é excedido ou
naturalmente apto a ser excedido (se queres arguir com a possibilidade), por-
tanto há algo que excede ou é naturalmente apto a exceder; este, portanto, ou
é excedido ou é naturalmente apto a ser excedido, ou não: se não, é portanto
o primeiro em eminência de bondade; se sim, e como não há que proceder ao
infinito, o mesmo pois que antes.47
62. Assim, pois, mostra-se um tríplice primeiro, a saber, um primeiro em
eficiência, e um primeiro em eminência, e um primeiro cuius gratia [quanto ao
fim]. E este tríplice primeiro é o mesmo, porque o primeiro eficiente é atua-
líssimo, e o primeiro em eminência é ótimo; mas o que é atualíssimo é ótimo,
sem nenhuma mescla de mal ou de potência. Além disso, o primeiro eficiente
não tende a outro que ele mesmo, porque então [se o fizesse] este outro seria
mais nobre que ele; portanto, é o fim último, e desse modo o primeiro dos fins
em grau. São pois o mesmo.
63. Além disso, antes de mostrar-se que algum ente é infinito, prova-
-se que Deus é seu intelecto, porque, se sua intelecção é acidente e não sua
natureza,48 portanto, como o primeiro ente é causa eficiente de todas as coi-
sas, será causa de sua intelecção; mas Deus é agente por cognição, portanto
antes as terá conhecido.49 E quanto a esta cognição se inquire como antes,
46 Quanto à impossibilidade de remontar ao infinito nas séries causais, ver nota 41.
47 Duns Scot mostra por este raciocínio que, ao fim e ao cabo, a ordem do ser clama logicamente
pela existência de um ser inexcedível, eminentíssimo – aquele sem cuja existência toda a realidade
transformar-se-ia numa clamorosa absurdidade. [N. C]
48 Não sendo a intelecção de Deus um acidente, só poderá ser a Sua própria essência. Em sentido
estrito, Deus não conhece; Ele é o próprio conhecimento. N’Ele ser e conhecer identificam-se em
grau máximo. [N. C.]
49 O mais apropriado é dizer: Deus não conhece as coisas como são; as coisas são como são porque
56 Duns Scot
eadem virtute qua movet in uno die: igitur tantum habetur aeternitas
causae, et aeternitas non concludit infinitatem.
[71] Item, non maioris perfectionis est producere plura individua
eiusdem speciei successive quam unum simul, sicut calidum non habet
maiorem perfectionem in producendo plura calida successive quam in
productione unius; sed tota illa infinitas productorum per motum est
individuorum et non specierum diversarum; igitur non arguit maiorem
perfectionem quam productio unius individui.
[72] Ideo dicendum est quod ratio Philosophi bene tenet, quia licet
antecedens cum actuali inhaerentia sit falsum, tamen si accipitur cum
nota possibilitatis, verum est, et non refert sive accipitur sic sive sic. Nam
si primum movens possit movere tempore infinito et hoc non habet ab
alio, igitur a se: ex quo sequitur ulterius quod sit virtutis infinitae. Et sic
consequentia bona. Quae probatur sic:
Ubicumque pluralitas numeralis in uno extremo requirit maiorem per-
fectionem in alio extremo, ibi pluralitas infinita in uno extremo requi-
rit perfectionem infinitam in alio extremo, verbi gratia si ferre decem sit
maioris virtutis quam ferre unum, igitur ferre infinita erit virtutis infinitae;
sed producere plura simul requirit perfectiorem potentiam quam produ-
cere unum; igitur producere infinita simul requirit potentiam infinitam.
Sed primum movens, quantum est ex se, potest producere infinita simul,
ut probabitur, igitur in se erit potentiae infinitae. - Probatio propositionis
assumptae: manifestum est quod primum efficiens habet potentiam ut
causa remota ad producendum infinita simul, si essent producibilia; sed
si omnes illae causae proximae, quibus producuntur infinita successive,
essent simul cum causa prima remota, possent simul producere infinita;
cum igitur potentia primi efficientis includit omnes potentias formales
medias, infinitas in potentia, et omnes causalitates omnium causarum
mediarum perfectius quam si essent in actu, ut probabitur, sequitur quod
primum efficiens quantum est ex parte sui habet potentiam ad produ-
cendum infinita in actu. Probatio assumptae: manifestum est quod causa
prima habet causalitatem causae proximae perfectius quam causa proxima
habet, quia non habet eam nisi a prima, similiter secunda causa habet per-
fectius causalitatem causae tertiae quam ipsa habet, quia non habet nisi a
secunda, et sic usque ad ultimam; igitur a primo ad ultimum causa prima
A infinitude de Deus 59
50 Este argumento alude à causalidade de uma série per essentiam, na qual a causa anterior considera-
-se mais perfeita quanto ao modo de causar, e não apenas isto: a causa anterior perdura virtualmente
na posterior. Isto não ocorre nas causas acidentalmente ordenadas, em que o influxo causal não alcan-
ça efeitos distantes. A causa primeira da ordem do ser é onipresente, entre outros fatores, porque, por
sua virtude infinita, é mantenedora de todos os entes. Quando Scot, nesta passagem, diz que a causa
primeira “tem mais perfeitamente as causalidades das causas médias do que as causas médias as têm
em si”, refere-se a este alcance infinito da sua virtude – à qual podemos chamar “onipotência”. [N. C].
51 “(...) indigentiam causalitatis”. Em síntese, a causa segunda, sendo literalmente intermédia, parti-
cipa da perfeição da causa primeira, e o seu poder causativo é “indigente” – no sentido de participado
e dependente do poder da primeira causa. [N. C.]
62 Duns Scot
consequens minima est ibi latitudo et distantia; est tamen ibi maxima dis-
tantia virtute, quia omnes alias oppositiones certificat et distantias earum.
[77] Item, in alio deficit ratio, quia distantia dupliciter potest intelligi
infinita: vel in se, ita quod careat terminis, sicut si poneretur linea non
actu terminata; alio modo potest intelligi infinita distantia ex parte alte-
rius extremi, sicut dicimus quod creatura distat ininfinitum a Deo: hoc
solum est propter infinitatem alterius extremi, unde si poneretur creatura
suprema super quam non posset esse alia, adhuc esset infinita distantia
isto modo inter creaturam et Deum. Et isto modo intelligitur distantia
inter nihil et aliquid et inter negationem et affirmationem; unde tantum
distat negatio ab affirmatione, quantum est ipsa affirmatio, et ideo quod
potest super affirmationem, potest super illam distantiam: unde ratio non
concludit.
[78] Secundo, principaliter, hoc arguitur ex parte intellectionis di-
vinae, nam sicut prius, quando pluralitas numeralis requirit maiorem
perfectionem, et infinita infinitam; sed intellectio plurium distincte est
maioris perfectionis quam intellectio unius tantum, ut probabitur; igitur
intellectio actu infinitorum requirit infinitam perfectionem. Sed primum
intelligens et efficiens unica intellectione intelligit actu et distincte infini-
ta, ut probabitur; igitur est actu infinitae perfectionis.
[79] Probatio primae assumptae: intellectio cuiuslibet obiecti distincte
requirit aliquam perfectionem; igitur intellectiones plurium obiectorum dis-
tincte; sunt maioris perfectionis; si igitur sit una intellectio quae actu con-
tineat omnes, ipsa erit maioris perfectionis quam intellectio unius tantum.
Probatio secundae assumptae, quod intellectio Dei est infinitorum in actu,
ut infinitarum figurarum et numerorum: nam quaecumque infinita sunt in
potentia, ubi sunt simul, sunt actu infinita quia oppositum non stat, sicut pa-
tet; sed intelligibilia quae nos intelligimus intelligendo unum post aliud, sunt
infinita in potentia et actu sunt in intellectione Dei, quia potest intellectio sua
esse omnium quae possunt esse; igitur actu intelligit infinita.
[80] Tertio, hoc ostenditur ex parte essentiae divinae, quae est ratio
intelligendi: sicut enim intellectio quae est distincte plurium, est perfec-
tior illa quae est unius tantum, sic illud quod est principium intelligendi
distincte plura, est perfectius illo quod est tantum principium intelligen-
A infinitude de Deus 63
hoc non sequitur, quia spiritus finitus cum infinito non est maioris perfec-
tionis quam infinitus per se, cuius oppositum est in alio.
[93] Ad aliud dicendum quod non sequitur, nec tenet ille modus ar-
guendi, nisi illud quod demonstretur sit finitum; si autem sit infinitum,
non valet, ut quando ponitur ‘ubi’ infinitum et corpus infinitum, tunc non
sequitur ‘hoc corpus est in hoc loco ita quod non in alio, igitur est finitum
secundum ubi’; similiter ‘motus est in hoc tempore ita quod non in alio, igi-
tur est finitus secundum tempus’, non sequitur secundum opinionem Phi-
losophi, qui ponit motum esse aeternum. Et ita non sequitur in proposito:
‘Deus est haec essentia ita quod non est alia, igitur est finita’, non sequitur;
bene tamen sequitur quod non sit infinita numeraliter, sed non sequitur
quod non sit infinita intensive, quia illud quod demonstratur est infinitum.
[94] Ad aliud dicendum quod Philosophus non dicit quod si virtus
infinita moveat, quod movebit in non tempore, sed vult probare ibidem
quod virtus infinita non posset esse in magnitudine, quia si sic, tunc mo-
vebit in non tempore. Hoc autem sequitur sic: quia virtus infinita si mo-
veat secundum ultimum suae potentiae et ex necessitate naturae, movebit
in non tempore (probatio: quia si moveret in tempore, alia virtus finita
posset in tantum augmentari quod posset in aequali tempore aequalem
magnitudinem movere, et ita essent aequalis virtutis si agerent secundum
ultimum potentiae); sed si virtus infinita esset in corpore, esset virtus mo-
tiva, quia Philosophus loquitur ibi de virtute quae dividitur ad divisionem
corporis, quod maior virtus est in maiore et pars in parre, sicut satis patet
ibidem, - et etiam cum corpus habet divisibilitatem, et differunt secun-
dum situm, ibi est totum quod requiritur ad motum; igitur moveret in
non tempore. Sed nos licet ponamus virtutem infinitam, non tamen po-
nimus eam moveri secundum ultimum, et ideo non sequitur motum esse
in non tempore. Bene tamen sequitur quod quia est virtus infinita, quod
posset agere in non tempore et transferre corpus de loco ad locum in non
tempore, sed hoc non esset movere proprie, nec esset motus.
[95] Diceres quod Philosophus dicit primum movens movere ex ne-
cessitate suae naturae secundum ultimum suae potentiae, et ipsum osten-
dit esse infinitae potentiae, et tamen non sequitur quod moveat in non
tempore; ponit enim quod caelum movetur in tempore.
A infinitude de Deus 71
finito, isso não se segue, porque um espírito finito com um infinito não é de
maior perfeição que o infinito por si, enquanto [a perfeição do] oposto está
em outro.
93. Quanto à outra [razão], deve dizer-se que não se segue, nem se sustenta
tal modo de arguir a não ser que aquilo que se demonstra seja finito; se porém é
infinito, não vale, como quando se põe um “ubi” infinito e um corpo infinito:
então não se segue que “este corpo está neste lugar que não em outro, portanto é
finito segundo o ubi”; similarmente, “o movimento dá-se neste tempo e não em
outro, portanto é finito segundo o tempo” não se segue segundo a opinião do
Filósofo, que põe que o movimento é eterno. E assim não se segue no proposto:
“Deus é esta essência assim como não é outra, portanto é finita”, não se segue;
bem todavia se segue que não seja infinita numericamente, mas não se segue que
não seja infinita intensivamente, porque o que se demonstra é infinito.
94. Quanto à terceira, deve dizer-se que o Filósofo não diz que, se a virtude
infinita move, moverá no não-tempo,55 senão que quer provar ali mesmo que
a virtude infinita não pode estar na magnitude, porque, se estiver, então move-
rá no não-tempo. Isso porém se segue assim: porque a virtude infinita, se move
segundo o último de sua potência e por necessidade de natureza, moverá no
não-tempo (prova: porque, se movesse no tempo, outra virtude finita poderia
ser tão aumentada que pudesse mover em igual tempo igual magnitude, e
assim seriam de igual virtude se agissem segundo o último da potência); mas,
se uma virtude infinita estivesse num corpo, seria virtude motiva, porque o
Filósofo fala ali de uma virtude que se divide segundo a divisão de um corpo,
de modo que a maior virtude se encontra na [parte] maior e a menor na me-
nor, como se patenteia suficientemente ali mesmo – e, ademais, como o corpo
tem divisibilidade, e [as partes] diferem segundo a posição, ali é o [corpo] todo
o que se requer para o movimento; portanto, moveria no não-tempo. Mas
nós, conquanto ponhamos a virtude infinita, não pomos, todavia, que move
segundo o último [de sua potência], e por isso não se segue que o movimen-
to seja no não-tempo. Bem se segue, contudo, que, por ser virtude infinita,
poderia agir no não-tempo e levar um corpo de um lugar para outro lugar no
não-tempo; mas isto não seria mover propriamente, nem haveria movimento.
95. Dirias que o Filósofo diz que o primeiro movente move por necessida-
de de sua natureza segundo o último de sua potência, e mostra que é potência
infinita, e no entanto não se segue que mova no não-tempo; ele põe, com
efeito, que o céu se move no tempo.
55 Ou seja, na eternidade.
72 Duns Scot
96. Digo que, se o Filósofo põe que o primeiro movente age por necessi-
dade, não pode pôr que move algo imediatamente, mas mediante uma causa
finita, que pode mover no tempo. Com isso concorda Averróis [no Comen-
tário] ao livro XII56 da Metafísica, onde concede por isso que o céu é movido
por um duplo motor, a saber, um motor separado, pelo qual tem que se mova
sempiternamente, e outro movente que recebe [sua virtude] daquele; mas,
como se move no tempo, isto o tem do motor conjunto.
2017
Setembro Sobre a Profecia, vol. 1 S. Tomás de Aquino
Catena Aurea ed. especial (setembro, Ano A) S. Tomás/Diversos
Outubro Sobre a Profecia, vol. 2 S. Tomás de Aquino
Catena Aurea ed. especial (outubro, Ano A) S. Tomás/Diversos
2018 '
Janeiro Comentários aos Dez Mandamentos, vol. 1 S. Boaventura
Catena Aurea ed. especial (janeiro, Ano B) S. Tomás/Diversos
Fevereiro Comentários aos Dez Mandamentos, vol. 2 S. Boaventura
Catena Aurea ed. especial (fevereiro, Ano B) S. Tomás/Diversos