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Volume 10
Obras do Autor
A Questão do Método
na Filosofia
Um estudo do m odelo heideggeriano
terceira edição
FICHA CATALOGRÁFICA
Bibliografia.
1. Ciência — Filosofia 2. Heidegger, Martin,
1889 — — Crítica e interpretação 3. Metodologia
I. Título.
CDD-101.8
-193
73-0355 -501
1991
Direitos desta edição reservados à
Editora Movimento
Banco Inglês, 252
Morro de Santa Tereza
90640 — Porto Alegre, RS — Brasil
ÍNDICE
Prefácio ........................................................ 7
Introdução — Os postulados metodológicos
da questão própria da Filoso
fia ......................................... 11
I
EXPOSIÇÃO E ANÁLISE
II
INTERPRETAÇÃO E CRÍTICA
7
heideggerianos. O Filósofo faz apenas uma exposição
provisória no § 7 de Ser e Tempo e, em seus trabalhos
posteriores, as referências à fenomenología tornam-se
cada vez mais raras. Além disso, o tipo de reflexão que
Heidegger realiza parece tirar vantagens do silêncio em
torno do método. Toda a temática da obra parece até
opor-se a qualquer discussão metodológica, sobretudo
com as ciências. Um certo pathos que perpassa a lin
guagem heideggeriana dá uma conotação claramente crí
tica às observações sobre a questão do método que se
desenvolveu desde a Modernidade. Tal estado de coisas
contribuiu para formar-se uma linha que predomina na
interpretação da obra de Heidegger e que se inspira nas
aparências antimetódicas. Para ele a Filosofia que leva
a sério a universalidade de seu objeto deve movimentar-
se fora e além dos estreitos limites do método.
É, entretanto, uma grande ilusão pensar que a Filoso
fia se distingue das ciências, porque se imagina que o
pensamento nela se exerce à margem de qualquer trans
parência metódica. Talvez a interpretação da obra de
Heidegger caia nesta ilusão porque se esposa uma falsa
concepção de método em Filosofia e por isso faltam as
condições para descobrir, na interrogação heideggeriana,
o movimento unitário de método e objeto. Quisera mos
trar, através das análises que seguem, como Heidegger
articula, na marcha de todo o seu pensamento, de tal ma
neira as relações entre objeto e método, que pensá-los
separados ou apenas destacar o objeto falha as próprias
intenções do Filósofo.
Na Introdução traço um roteiro que antecipa e resu
me meu projeto de interpretação. Para tal fim recorro ao
debate metodológico atual e confronto Hegel e Heidegger
para que se veja, de modo global, a solução que deram
ao problema das relações entre método e objeto no pen
samento filosófico e em que se distinguem. No capítulo
primeiro exponho, em breves traços, o movimento feno-
menológico, procurando determinar o lugar que Heideg
ger nele ocupa e que elementos foram para isso deter
minantes. O capítulo segundo se detém na articulação
do método fenomenológico, no contexto da obra de Hei
degger. O capítulo terceiro estuda o caráter hermenêu
tico da fenomenología heideggeriana. O capítulo quarto,
8
que abre a parte propriamente interpretativa e crítica,
analisa a ambigüidade do método heideggeriano que o
distingue dos outros métodos e mostra, ao mesmo tempo,
sua atualidade. No capítulo quinto, procuro delimitar o
modelo em que se funda a fenomenología heideggeriana
e exponho a maneira como este se faz presente na inter
pretação da Historia da Filosofia. Neste capítulo torna-se
manifesto o que separa o método especulativo-hermenéu-
tico dos métodos lógico-analítico e especulatívo-dialéti-
co, em face dos textos da tradição filosófica. O capítulo
sexto pretende ser um confronto global do pensamento
de Heidegger com a metafísica ocidental. Para realizá-lo
escolhi o problema da relação do pensamento heidegge
riano com a filosofia da subjetividade, analisando as con-
seqüências da radicalização da fenomenología husserlia-
na e com isto da superação da subjetividade, para a teo
ria do ser desenvolvida por Heidegger.
O leitor atento descobrirá sem dificuldade que o livro
não é apenas uma exposição da fenomenología heideg
geriana, nem só uma interpretação e discussão crítica
dos problemas do método e suas relações com a questão
do sentido do ser. A análise entra no debate metodoló
gico atual, para tomar urna determinada posição em face
da questão do método na Filosofia. A repetida confronta
ção a que levo os métodos lógico-analítico, especulativo-
dialético e especulativo-hermenêutico não é arbitrária nem
ocasional. Estas denominações marcam as três direções
em que as investigações filosóficas se desenvolvem atual
mente: a) a analítica da linguagem com suas múltiplas va
riantes; b) a escola da teoria crítica e as diversas tendên
cias que visam dar uma solução dialética ao problema
da relação entre teoria e praxis; c) a hermenéutica filosó
fica que procura mostrar como a compreensão não é pri
meramente um elemento metódico na interpretação dos
textos, mas urna forma de exercício da vida social, vida
que, em última análise, é uma comunidade de linguagem.
Estas três direções não são apenas áreas de discussões
imanentes à Filosofia como tal; por elas se canalizam as
diversas maneiras de compreender a relação da Filosofia
com as ciências, sobretudo com as ciências humanas.
Informações sobre a bibliografia utilizada podem ser
extraídas das notas apostas à Introdução e aos capítulos.
E.S.
9
NOTA PARA A SEGUNDA EDIÇÃO
Ernildo Stein
10
INTRODUÇÃO
OS POSTULADOS
METODOLÓGICOS DA QUESTÃO PRÓPRIA
DA FILOSOFIA
1 O controle metódico do exercício da razão huma
na é hoje, mais que em qualquer outra época, o ideal de
grande parte do pensamento filosófico. Cada vez mais o
poder da razão parece residir em sua capacidade de
orientar-se pelo método na exploração dos temas centrais
da Filosofia. Tal confiança no procedimento rigoroso e
crítico se inspira, antes de mais nada, nos resultados obti
dos pelas ciências, na aplicação de seus métodos especí
ficos, e se apóia no instrumental que a nova lógica, a ana
lítica da linguagem e a lingüística desenvolveram. É urna
verdadeira revolução que se observa em diversas áreas
da Filosofia, resultado já das múltiplas tentativas para apa
relhar a reflexão filosófica com estes novos recursos. Tem-
se a convicção de que finalmente também na Filosofia o
trabalho do pensamento e sua exteriorização na lingua
gem podem ser controlados, tanto em seu funcionamen
to como em seus resultados. Desta maneira, o nível crí
tico que se passa a exigir da Filosofia recebe sua mais
alta expressão no procedimento metódico que orienta o
uso da razão. Muitas direções do pensamento filosófico
preocupam-se em incorporar uma instância crítica ampia
e eficiente para garantir maior objetividade na análise de
suas questões fundamentais. A Filosofia espera libertar
se assim de uma espécie de complexo que sempre pare
cia acompanhá-la em seu contato com as ciências. O
trabalho filosófico não apenas não deve ficar devendo
mais em rigor às ciências; ele deve ser metodicamente
assim construído que se torne acessível para qualquer
um que tenha certa experiência no campo científico.
12
volvendo regras de procedimento metódico; de outro, se
alinham os que não corresponderam a esta exigência de
rigor e clareza. Descartes, Leibniz, Kant recuperam um
lugar de honra ao lado daqueles que, nas primeiras déca
das do século vinte, se mantiveram afastados do "renas
cimento da metafísica”, como Frege, Russel, Carnap, Wit-
tgenstein, Quine e outros. Todos estes dedicaram seus
talentos, primeiro a purificar a filosofia dos problemas
"aparentes e falsos”, para então construírem um pensa
mento metódico e controlável. Pensadores como Dilthey,
Husserl, Scheler, Merleau-Ponty, Heidegger são abandona
dos junto de Espinoza, Fichte, Schelllng, Hegel, Marx e
outros. Em todos estes, diz-se, falta o rigor na reflexão,
a consciência de um método que ponha ordem nos resul
tados, quando não se procura até encontrar sinais de irra
cionalismo em suas filosofias.
Mesmo que tenhamos carregado as linhas para acen
tuarmos o contraste e simplificado muito para sermos con
ciso, esta divisão pode ser observada pelo olhar atento
que se debruça sobre a paisagem da filosofia contempo
rânea. A questão do método em Filosofia domina em
grande proporção as discussões no campo filosófico, quer
para dividi-lo em duas facções, quer para dar a uma delas,
não apenas a hegemonia, mas a razão sobre a outra. E
não resta dúvida, no momento atual está com nítida van
tagem o grupo daqueles pensadores que persegue um
trabalho metódico na Filosofia e exige um controle críti
co dos resultados. Sua vantagem não resulta apenas da
combatividade e publicidade que lhe é garantida, aumen
tando sua audiência; há uma espécie de consenso tácito
de que neste campo a Filosofia deve ainda recuperar mui
to tempo perdido.
13
graus de formalização. Um tal pensamento filosófico uti
liza uma linguagem unívoca que promete ser a garantia
de máxima clareza e perfeita comunicação, além de asse
gurar o melhor rendimento com um máximo de economia.
Esta parcial transposição do método científico para
o campo filosófico trouxe consigo uma restrição indevida
do objeto da Filosofia. A escolha do método atua sobre
a delimitação do objeto; este se reduz a proporções com
patíveis com um método ao qual interessa primeiro que
tudo clareza e rigor no controle dos resultados da refle
xão filosófica. O método não se adequa ao objeto da Fi
losofia; da exterioridade ele reduz o objeto, dando-lhe a
sua medida.
Não é mais o confronto com o objeto da Filosofia
que dá a medida do método; o método impõe suas dimen
sões e determina a amplitude e o alcance da questão tipi-
ficadora da Filosofia. A busca de segurança e resultados
suprime a universalidade do questionamento filosófico e,
em casos extremos, elimina o conteúdo da Filosofia, re
servando-lhe apenas uma função crítica. Uma tal compre
ensão da questão do método em Filosofia suprime para
si mesma a possibilidade de ver que na História da Filoso
fia está atuante uma outra concepção de método, que
não se opõe necessariamente à primeira, nem se apre
senta como simples alternativa; ela pode antes incluir
aquela. Não precisa, portanto, renunciar ao controle crí
tico de seu modo de proceder e de seus resultados; pode
recorrer a todos os novos instrumentos que a lingüística,
a analítica da linguagem e os processos de formalização
da lógica põem à disposição do pensamento atual. É, no
entanto, um método que se adequa ao objeto do pensa
mento; que não é exterior ao questionamento filosófico,
mas acompanha o próprio movimento da questão propria
mente dita da Filosofia.
O método na Filosofia — que engioba e antecipa to
dos os outros métodos — não pode ser preparado de ma
neira exterior ao objeto da Filosofia, nem construído a
partir de um modelo de ciência particular. O pensamento
que analisa a questão propriamente dita da Filosofia, des
dobra, na intimidade do próprio questionamento do obje
to, os passos metódicos, numa unidade de pensamento,
método e objeto. É um processo especulativo e totaliza-
dor que respeita a universalidade da questão e da tarefa
da Filosofia e que se transfere para a linguagem filosófica.
Desta maneira, a linguagem filosófica carrega em seu
bojo algo da universalidade e inexauribilidade do próprio
objeto que exprime, não podendo, em momento algum, ser
reduzida à univocidade e transparência características dos
signos empregados pela ciência. A linguagem que corres
ponde ao movimento especulativo e totalizador tem um
funcionamento semântico que só se compreende através
de uma hermenêutica que toma em consideração o objeto
que tal linguagem exprime.
15
incontrolada da conversação e do debate como a mar
cha rígida do aparato científico”, ela não deve recorrer à
“negação do método que é o pressentimento e o entusias
mo e ao arbitrio do discurso profético, que despreza, não
apenas aquela Ciencia (a Filosofia, E .S .), mas a cientifi-
cidade como tal” (3). Hoje, diría Hegel, a Filosofia deve
evitar tanto a linguagem ordinária como a camisa de for
ça da linguagem unívoca das ciências e não deve cair,
no entanto, num tipo de linguagem poética e mítica, em
que a presença do objeto não comanda o movimento da
reflexão. A linguagem que corresponde ao método espe
culativo, próprio da Filosofia, se articula de maneira tal
que se deixa conduzir pela questão propriamente dita da
Filosofia, substituindo progressivamente a antecipação de
uma visão imprecisa pelo rigor de um dizer que reproduza
a amplitude e harmonia de um movimento de totalização.
Hegel só compreende o método especulativo enquan
to é simultaneamente dialético. Isto significa que o movi
mento que o pensamento realiza na interioridade do pró
prio objeto surge na auto-reflexão em que é suprimida a
dualidade sujeito-objeto e elevada para dentro da dinâ
mica do conceito e da idéia. Este processo de auto-refle
xão perpassa toda a complexidade da questão propria
mente dita da filosofia e se conduz pelo modelo triádico
(tese, antítese, síntese), para pensar o todo e cada um
dos momentos no movimento de totalização. O modelo
triádico não é, entretanto, um esquema exterior que o pen
samento utiliza para articular o objeto; o modelo triádico
já é o movimento unitário de pensamento e objeto propria
mente dito da filosofia. O caráter dialético do método es
peculativo de Hegel é a garantia de que pensamento, mé
todo e objeto da Filosofia mantenham uma unidade dinâ
mica que se articula em círculos até elevar-se à idéia
absoluta. É esta como télos propriamente a garantia da
unidade do lógos em todo o movimento. A idéia absoluta
possibilita o movimento de totalização através do método
especulativo-dialético, porque é a totalidade já sempre an
tecipada. Ainda que para Hegel esta totalidade seja um
aspecto constitutivo essencial do pensamento especulativo-
dialético, isto não significa que tudo seja dado a priori,
que se faça supérfluo o trabalho da razão, que esteja eli
minada a produtividade semântica, que se exclua a gênese
16
do sentido. O movimento, no entanto, está esboçado, aô
menos em sua direção fundamental. Uma questão essen
cial permanece por isto suspensa: Até que ponto os pres
supostos onto-teo-lógicos constituem o elemento de apoio
da filosofia hegeliana e, desta maneira, vinculam o objeto
da Filosofia e seu método a urna determinada concepção
da Filosofia: a onto-teo-logia e a metafísica da subjetivida
de?
3 Ao lado de Hegel foi Heidegger aquele que pro
curou distinguir, de maneira explícita, o método adequado
à questão própria da Filosofia. E neste esforço de separar
os campos, o Filósofo elaborou para o método em Filosofia
um estatuto especulativo que só permite comparação com
a empresa de Hegel. Afasta-se, porém, deste, sob dois
pontos de vista: a) Heidegger faz do caráter onto-teo-ló-
gico da metafísica ocidental o alvo mais importante de
sua crítica e dele faz depender a substância do método
especulativo-dialético de Hegel; b) do caráter onto-teo-ló-
gico e do predomínio do pensamento da subjetividade na
metafísica ocidental Heidegger faz depender o esqueci
mento da questão por excelência da filosofia: a questão
do ser. Sem sacrificar a dimensão especulativa do méto
do em Filosofia, deve o método ser determinado de ma
neira tal que se evite fazer do caráter onto-teo-lógico sua
substância e do pensamento da subjetividade seu veículo;
só assim o método se poderá comensurar com a questão
fundamental da Filosofia: a questão do ser.
Acompanhemos os momentos principais que marcam
a atitude de Heidegger em face da questão do método
em Filosofia. Para tal é importante que se observe que
o Filósofo fala de três concepções diferentes de método:
do método científico que toma formas específicas, depen
dendo das ciências que o utilizam; do método próprio da
Filosofia que se desenvolve desde Descartes e perpassa
toda a metafísica da subjetividade; e do método que o
Filósofo esboça de forma provisória no § 7 de Ser e Tempo
e que se revela em exercício nas principais instâncias de
sua obra filosófica, dando-lhe unidade e dimensão espe
culativa.
3.1 Heidegger fala do método científico apenas quan
do caracteriza o seu método ou a idéia de método que sur
17
giu com o movimento da subjetividade. Assim refere-se,
no início de Ser e Tempo, a ‘‘uma simples técnica para a
manipulação dos objetos, técnica da qual mesmo as ciên
cias teóricas oferecem muitos exemplos” (4). E mais adian
te, em Ser e Tempo, novamente procurando especificar o
seu método diz: “Autêntica reflexão metódica — que cer
tamente deve ser distinguida da vazia discussão da téc
nica — dá, por isso, ao mesmo tempo esclarecimento
sobre o modo de ser do ente tematizado” (5). Nas aná
lises em O Niilismo Europeu, o Filósofo explica: “Método
não deve ser aqui compreendido “metodológicamente”
como modo de investigação e pesquisa. . . (6). E noutra
passagem do mesmo livro, novamente procurando carac
terizar o método introduzido na Modernidade por Des
cartes, Heidegger afirma: “Método não é agora mais
apenas a ordenada sucessão dos diversos passos da refle
xão, demonstração, exposição e sistematização de co
nhecimentos. .. ” (7). Em sua conferência Hegel e os
Gregos o Filósofo faz, no entanto, depender o desenvolvi
mento das ciências modernas da absolutização do método
em Hegel e na Filosofia Moderna. Ao falar do “método”
como “a alma do ser”, ele aconselha que não se julgue
tal afirmação de Hegel tão fantástica, pois “quando a
física moderna vai em busca da fórmula do mundo, revela-
se nisto o seguinte: O ser do ente se dissolveu no método
da total calculabilidade” (8). Citemos, por fim, a passa
gem de uma carta de Heidegger que data de 1950. “Mas
para este diálogo entre Filosofia e Ciências o pressuposto
básico é que as ciências particulares exijam de uma vez
prestação de contas a si mesmas. Isto somente poderá
acontecer quando elas a partir de seu próprio trabalho, a
partir de seu objeto, deparem com o que ali é o incontor-
nável: que em toda parte já o ser é pensado e dito no ente.
Isto que para as ciências é o incontornáve! deve ser expe
rimentado como o inacessível para elas, com seus instru
mentos (metodológicos, E. S. ), para que assim se faça
ouvir o apelo do pensamento e do que é digno de ser
pensado. Perceber o incontornável como o inacessível, eis
a experiência da essencial lim itação das ciências” (9).
O método das ciências deve assumir a consciência
de seus limites; somente assim se evitará a tenta
tiva inútil de aplicá-lo ao objeto propriamente dito da Fi
18
losofia que lhe é inacessível. Não há, portanto, um sen
tido depreciativo nas referências ao método das ciências.
Heidegger procura salvar a autonomia do pensamento filo
sófico contra uma tendência metodológica que impera nas
ciências modernas e que pode ser desmascarada como o
imperar da subjetividade. Desta tendência nasce a pre
tensão de as ciências (não reconhecendo seus limites)
quererem impor seu método à Filosofia.
3 .2 O segundo conceito de método é analisado por
Heidegger a partir do início do pensamento da subjetivida
de. Com a decadência da Idade Média e o fim de uma se
gurança dogmaticamente fixada, inicia-se a “ procura de
novos caminhos”. ‘‘A questão do “método”, isto é, a ques
tão da “ escolha do cam inho", a questão da conquista e
fundamentação de uma segurança fixada pelo próprio
homem, passa para o primeiro plano. “Método” não deve
ser compreendido aqui “metodológicamente” como modo
de investigação e pesquisa, mas metafisicamente como
caminho para uma determinação essencial da verdade, que
pode ser fundamentada exclusivamente pela capacidade
do homem” (10). E numa outra passagem do livro O Niilis-
mo Europeu: “O verdadeiro é apenas o seguro, o certo.
Verdade é certitude e para esta permanece decisivo que
nela sempre o homem como sujeito esteja certo e seguro
de si mesmo. Por isso, para a garantia da verdade como
certitude, é necessário, em sentido essencial, o procedi
mento, o garantir previamente. O “método” recebe agora
um peso metafísico, que é, por assim dizer, suspenso na
essência da subjetividade.” . . . “método é agora o nome
para o pro-cedimento que assegura e conquista o ente
para pô-lo a seguro como objeto para o sujeito. Neste sen
tido metafísico entende Descartes “ methodus” quando
afirma: “ Necessária est methodus ad rerum veritatem in
vesti gandam” . Heidegger traduz: “Necessário (essencial
mente necessário) é o método para descobrir as pegadas
da verdade (certitude) do ente e para segui-las”. E con
clui: “Em comparação com o “método” assim entendido,
todo o pensamento medieval é essencialmente destituído
de método” (11).
3. 2. 1 Falando do método em Hegel, Heidegger o si
tua dentro do pensamento da subjetividade. Método não é
19
mais, no entanto, simplesmente o instrumento para garan
tir a verdade como certitude para o sujeito. Em sua con
ferência que traz o título Hegel e os Gregos, Heidegger
afirma: “Hegel designa a “dialética especulativa” também
simplesmente de “o método”. Com esta expressão ela não
se refere nem a um instrumento da representação, nem
apenas a uma particular maneira de a Filosofia proceder.
“O método” é o mais íntimo movimento da subjetividade,
“a alma do ser”, o processo de produção, através do qual
a tessitura da totalidade da realidade do absoluto é efe
tivada”. . . . “O primeiro livro de Descartes, Filósofo através
do qual, segundo Hegel, a Filosofia e, com ela, a Ciência
Moderna, pisou terra firme, traz o título: “ Discours de Ia
méthode” (1637). O método, quer dizer, a dialética espe
culativa, é para Hegel o rasgo fundamental de toda a rea
lidade. O método determina, por isso, enquanto tal movi
mento, tudo o que acontece, isto é, a história” (12).
Se Heidegger já fala com suficiente clareza da di
mensão especulativa e totalizadora do método hegeliano
na passagem citada, muito mais incisiva torna-se sua aná
lise do movimento unitário de pensamento, método e coisa
propriamente dita da Filosofia, em seu texto que traz o
título: O fim da Filosofia e a tarefa do pensamento. Para
diferenciar a dimensão da questão que investiga com o
modelo binário de seu método, Heidegger expõe sua inter
pretação do elemento especulativo do método de Hegel.
“O método (em Hegel) não se orienta apenas na questão
da Filosofia. Ele não apenas faz parte da questão como
a chave faz parte da fechadura. O método pertence muito
antes à questão, porque ele é “a questão mesma” (13).
Método e questão propriamente dita da Filosofia não
apenas se correspondem; eles coincidem e se identificam.
Noutra passagem Heidegger afirma ainda: “O todo se
mostra primeiramente apenas em seu vir-a-ser. Este acon
tece ao realizar-se a exposição da questão. Na ex-posi-
ção, tema e método tornam-se idênticos. Esta identidade
se denomina em Hegel: o pensamento pensado. Com ele
a questão propriamente dita da Filosofia chega a sua ma
nifestação. Esta questão é, contudo, historicamente deter
minada: a subjetividade” (14). “Apenas o movimento do
pensamento, o método, é a questão por excelência” (15)-
20
Estas passagens são suficientes para compreender
mos o lugar que Heidegger descobre para a questão do
método em Hegel. O método não é exterior à questão pró
pria da Filosofia; ele se adequa e coincide com ela. Sob
este ponto de vista, o método se conjuga com o próprio
movimento do pensamento; o método possui caráter tota
lizador e especulativo. Mas para Hegel, e Heidegger o
acentua, a questão da Filosofia é a subjetividade e na
medida em que esta determina o método, este também é
a subjetividade. Este elemento da subjetividade destacado
por Heidegger já resume também a crítica a Hegel: A filo
sofia da subjetividade é a causa do esquecimento do ser;
a ela se deve a dissimulação da questão fundamental da
Filosofia, a questão do ser. Em Hegel, onde a Filosofia
atingiu a sua plenitude metodológica pelo método espe-
culativo-dialético, realiza-se também a plenitude do vela-
mento da questão do ser.
21
culativo e totalizador a fenomenología heideggeriana se
aproxima formalmente de Hegel, dele se distancia, contu
do, enquanto o método hegeliano se torna dialético. A dia
lética sempre ronda um pensamento que se apóia num
modelo binário como no caso da fenomenología heideg
geriana. A dupla face do ser, o velamento e desvelamento,
facilmente poderiam sugerir uma solução dialética. “A
dialética se insinua constantemente lá, onde se nomeiam
elementos que se opõem” (16). Mas o recurso à dialética
significaria para Heidegger a renuncia a urna das críticas
fundamentais que faz à metafísica ocidental: de que sua
constituição é onto-teo-lógica e que leva ao esquecimento
da diferença ontológica. Pois Heidegger sabe que a dia
lética hegeliana despojada de seu caráter onto-teo-lógico
torna-se um movimento vazio. “Assistimos hoje a um re
nascimento do pensamento hegeliano; o pensamento do
minante dificilmente poderá ser libertado das engrenagens
da dialética. Mas é uma engrenagem que nada mais move,
porque a postura fundamental de Hegel, sua metafísica
cristão-teológica é abandonada; pois somente nela a dia
lética de Hegel possui seu elemento de apoio” (17). Acei
tar a dialética em sua plenitude seria assumir o pensa
mento onto-teo-lógico; isto a coerência de seu pensamen
to não permite. Recorrer à dialética sem o conteúdo onto-
teo-lógico seria buscar um método despojado da questão
fundamental que o movia. Desta dialética afirma Heideg
ger: “O método da mediação dialética falha os fenôme
nos. . . .A dialética é (então) a ditadura da ausência de
questionamento. Em sua rede se asfixia qualquer questão”
(18). Por tudo isto o modelo binário que constitui a base
do método fenomenológico heideggeriano não pode acei
tar parentesco algum com o modelo dialético (triádico).
Heidegger se afasta do método especulativo-dialético
de Hegel sobretudo porque a subjetividade constitui seu
estatuto fundamental. Desde o projeto de Ser e Tempo a
superação do pensamento da subjetividade é vista como o
caminho para o redimensionamento da questão do ser. E
o esboço do método fenomenológico recorre a um modelo
que o liberte das conotações subjetivas que apresentava
em Husserl. Hegel permanece, entretanto, o único autor
que é sempre lembrado quando se analisa Heidegger, ainda
que a questão da Filosofia na concepção de Hegel se dis
22
tancie, de certa maneira, mais da questão que move Hei
degger que qualquer outra posição metafísica. A ampli
tude do projeto de ambos e o poder especulativo que
conduz sua concretização torna-os, no entanto, muito pró
ximos. Um simples paralelo poderia talvez descobrir se
melhanças e correspondências entre os dois pensadores
referentes tanto aos conteúdos que abordam, quanto a seu
modo de enfrentar a História da Filosofia. Estas não se
riam, no entanto, mais que justaposições cujo caráter ex
terior se poderia comprovar facilmente. Por quê isto? De
maneira global se dirá: Porque Hegel é o maior dos meta
físicos e seu projeto é levar o pensamento metafísico à
sua plenitude; Heidegger se situa fora da metafísica e
persegue uma questão cujo esquecimento possibilitou o
surgimento da metafísica. Ambos realizam seus projetos
num movimento especulativo de amplitude e alcance úni
cos. Criticar aspectos de um com argumentos tirados de
outro conduz por isso a resultados discutíveis e significa
sempre mover-se numa discussão puramente exterior. O
que se pode observar de semelhante em ambos os pensa
dores é o movimento especulativo e totalizador dentro do
qual realizam seu questionamento fundamental. O caráter
unitário de método e questão propriamente dita da Filoso
fia é pressuposto básico tanto para Hegel como para Hei
degger. Isto constitui sua comum grandeza. Dois mundos
estranhos entre si, se revelam, no entanto, quando se de
termina a questão propriamente dita da Filosofia e o ele
mento que sustenta o método: Em Hegel se consuma a
Filosofia; em Heidegger se articula a tarefa do pensa
mento.
Ainda que tenham em comum o caráter especulativo
e totalizador, os métodos de Hegel e Heidegger estão com
prometidos com dois mundos diferentes: as duas concep
ções da questão propriamente dita da Filosofia. Em Hegel
o pensamento ocidental se encontra consigo mesmo na
auto-reflexão total e todas as instâncias da Filosofia rece
bem sua unidade no movimento da subjetividade. A Filo
sofia se consuma, na medida em que, ao passar por Hegel,
atinge sua possibilidade suprema. A filosofia de Hegel é o
momento da epifanía em que a razão toma consciência de
si mesma e pode acompanhar pela reflexão seu movimen
to unitário através da História da Filosofia. A passagem
23
da categoria centrai da substância para a categoria da
subjetividade resume o processo todo. Heidegger desco
bre neste mesmo movimento da tradição metafísica um
outro elemento que lhe dá unidade. Mas este elemento é
como que a outra face do pensamento da subjetividade. O
processo em cujo centro se move a subjetividade conduz,
segundo Heidegger, a um progressivo velamento do obje
to propriamente dito da Filosofia. Latente em todo o mo
vimento da razão, toma forma o esquecimento da questão
do sentido do ser. A radicalização da categoria da subjeti
vidade, através da interpretação existencial do ser-aí, con
duziu à descoberta deste processo paralelo.
Na medida em que o exercício da reflexão atinge em
Hegel um momento decisivo, Heidegger vê a necessidade
de articular como tarefa do pensamento aquilo que, na epi
fanía da razão, suporta sua mais radical dissimulação. En
quanto que em Hegel o que foi pensado chega à sua auto-
transparência, em Heidegger o que permaneceu impen
sado, naquilo que foi pensado, se manifesta. O elemento
da totalização afirma-se em ambos. Em Hegel, o método
especulativo torna-se dialético por força da questão por
excelência da Filosofia; por força desta mesma questão, o
método especulativo torna-se, em Heidegger, hermenêu
tico. Em Hegel, o pensamento onto-teo-lógico e a conse-
qüente subjetividade impõem a dialética na interpretação
do objeto do pensamento. Em Heidegger, a questão do
sentido do ser, levantada sem compromissos com a onto-
teo-logia e o problema da subjetividade, exige a hermenêu
tica para a realização da tarefa do pensamento. O método
especulativo-dialético somente é possível e necessário
para um pensamento que toma como questão fundamental
a mediação como caminho para a idéia absoluta. O mé
todo especulativo-hermenêutico (19) é o único possível e
necessário para um pensamento que articula sua nova
tarefa apoiado na estrutura binária de velamento e desve-
lamento: a questão do sentido do ser.
Para Hegel o organon do método, a partir do qual
se articula a questão da Filosofia, é a razão (sobretudo
como lugar da passagem da autoconsciência para a es
fera do espírito); para Heidegger o organon que susten
ta o método, a partir do qual se articula a questão da
Filosofia, é a compreensão (sobretudo como movimento
24
antecipador da analítica existencial e fio condutor para
a questão do sentido do ser). Em Hegel, a subjetividade
enquanto finitude é imersa num processo em que finito e
infinito são sobressumidos numa síntese suprema; por
isso a razão é sempre o lugar de passagem de um movi
mento que a ultrapassa. A razão enquanto especulativa
deverá ser por isso sempre dialética. Em Heidegger, o ser-
aí enquanto finitude está entregue a si mesmo; por isso
o movimento da compreensão é circular (o círculo herme
nêutico). A compreensão enquanto especulativa será sem
pre hermenêutica.
Em ambos os métodos, tanto no especulativo-dialé-
tico como no especulativo-hermenêutico, revela-se uma
pretensão de totalidade. Com uma diferença: enquanto
no primeiro esta totalidade é dada como real, no segundo
é apenas um movimento que jamais se plenifica, um mo
vimento de antecipação de sentido. A razão como Hegel
a compreende possui caráter onto-téo-lógico e seu suporte
é a subjetividade; a compreensão, na concepção de Hei
degger conduz necessariamente à superação da onto-teo-
logia e à radicalização da subjetividade. Entre o método
especulativo-dialético e o método especulativo-hermenêu
tico, na medida em que o primeiro dispõe, como organon,
da razão ligada à subjetividade e o segundo se constitui
a partir da compreensão ligada ao ser-aí, há um abismo.
Entretanto, o caráter especulativo e totalizador da concep
ção da questão propriamente dita da Filosofia dá-lhes uma
proximidade que sempre sugere a possibilidade de uma
comparação, da qual pode resultar a melhor compreensão
da especificidade de ambos, mas por isso mesmo, também
a descoberta da distância que os separa.
25
■
NOTAS — INTRODUÇÃO
26
I
EXPOSIÇÃO E ANALISE
1
AS INTUIÇÕES HEIDEGGERIANAS
E
O MOVIMENTO FENOMENOLÓGICO
1 Ainda que as experiências iniciais tenham deixa
do traços indeléveis no caminho de Heidegger, o fator de
terminante de seu pensamento foi, no entanto, o encon
tro com a fenomenologia. Seus primeiros trabalhos ma
nifestavam profundos laços com a problemática corrente
da tradição alimentada pelo neo-aristotelismo, neotomis-
mo e neokantismo e as soluções dadas pelo filósofo, dentro
deste horizonte, às questões básicas da filosofia, se con
duziam pelo esquema onto-teo-lógico (1). Foi a descoberta
da fenomenologia que desencadeou os novos recursos
que o conduziram às regiões distantes de um pensamento
que se afirma em confronto com toda a tradição filosófi
ca ocidental. É preciso, no entanto, reconhecer o vigor
das intuições de Heidegger quando se verifica quanto o
Filósofo marcou a fenomenologia com sua problemática.
Analisar sua posição dentro do movimento fenomenológi-
co será, portanto, destacá-lo como um pensador que ul
trapassou a situação concreta da corrente fenomenológi-
ca que o recebera e desenvolveu um método fenomeno-
lógico próprio.
O sopro de renovação da filosofia européia continen
tal trazido pela obra de um desconhecido livre-docente, as
Investigações Lógicas de Edmund Husserl, publicadas no
início deste século, só tem similar no movimento grandio
so do idealismo alemão, única corrente filosófica ¡media
tamente anterior que se aproxima, pela riqueza de suas
conseqüências, do movimento fenomenológico.
A história da fenomenologia começa com os traba
lhos de Husserl do século passado, que giravam em torno
da matemática e da psicologia. Os estudos realizados em
Leipzig, Berlim, Viena e Halle sofrem a influência de Franz
Brentano e Karl Stumpf. A atividade docente exercida em
Halle e, logo a seguir, em Gottingen não fazia suspeitar
a gestação da obra que subitamente conquistou os inte
resses acadêmicos, em 1900 e 1901: Investigações Lógicas.
30
O primeiro volume trazia como subtítulo: Prolegómenos à
Lógica Pura. No segundo volume o subtítulo para as Cin
co primeiras Investigações é: Pesquisas sobre a Fe
nomenologia e Teoria do Conhecimento. A Sexta Investi
gação trazia como subtítulo: Elementos de uma Elucida
ção Fenomenológica do Conhecimento. A introdução ao
segundo volume explica o papel da fenomenologia na bus
ca de uma lógica pura: “A fenomenologia pura representa
um domínio de pesquisas neutras, no qual as diferentes
ciências tem suas raízes. De um lado, ela é útil à psico
logia enquanto ciência empírica. Pelo seu método puro e
intuitivo ela analisa e descreve a generalidade de sua es
sência, — especialmente enquanto fenomenologia do pen
sar e conhecer — , as vivências da representação, do juízo,
do conhecimento, que a psicologia submete à sua investi
gação de ciência empírica, concebendo-os empíricamente
como classes de acontecimentos reais em relação com a
realidade natural animal. Por outro lado, a fenomenologia
revela as “fontes” de onde “decorrem” os conceitos fun
damentais e as leis ideais da lógica pura, até aos quais é
preciso fazê-los remontar se se quiser fornecer-lhes “a
clareza e distinção” necessárias para uma compreensão
crítica da lógica pura. A fundação da lógica pura sobre a
teoria do conhecimento, ou mais precisamente, sobre a
fenomenologia, compreende pesquisas de uma grande di
ficuldade, entretanto, também de uma importância sem
igual” (2).
Esta descrição do sentido e alcance da fenomenolo
gia já contém em germe todos os desdobramentos essen
ciais do pensamento de Husserl. Já trouxe, por isso mes
mo, a primeira decepção em meio aos encantos suscita
dos pelo primeiro volume no qual se perseguia uma lógi
ca pura, contra as pretensões do psicologismo. No segun
do volume vinha claramente exigida a descrição dos atos
conscientes, o que se revelava como apelo explícito à psi
cologia. Este contraste com o anti-psicologismo do pri
meiro volume das Investigações Lógicas seria compreen
dido a partir da publicação da obra programática de Hus
serl, em 1913: Idéias para uma Fenomenologia Pura e Filo
sofia Fenomenológica (3). No entanto, trazendo luzes para
a situação conflitante dos dois volumes das Investigações
Lógicas, as Idéias foram um escândalo ainda maior. Pra-
31
ticamente todos os discípulos que tinha em Gottingen viam
como impossível a conciliação entre as intenções descri
tivas das Investigações e as intenções transcendentais das
Idéias. A redução transcendental dividira ainda mais os
ânimos.
32
“fenomenología” consciente e decididamente se inserirá
na tradição filosófica moderna. Isto, no entanto, de tal
modo que a “subjetividade” “transcendental” alcançava
uma determinação mais originária e universal, através da
fenomenología. A fenomenología reteve como sua esfe
ra temática “as vivências da consciência”, mas, agora,
na exploração da estrutura dos atos da vivência, projeta
da e garantida sistematicamente, unida à exploração dos
objetos vivenciados nos atos, sob o ponto de vista de sua
objetividade. Neste projeto universal de uma Filosofia Fe
nomenológica podia ser apontado o lugar sistemático para
as Investigações Lógicas que filosoficamente tinham per
manecido neutras. Apareceram no mesmo ano de 1913,
em segunda edição. A maioria das Investigações havia
sido evidentemente submetida, neste meio tempo, a “pro
fundas reelaborações”. A Sexta Investigação, “a mais im
portante no que se refere à fenomenología”, contudo, foi
retida. Também o ensaio Filosofia como Ciência Rigorosa,
publicado no primeiro volume da recém-fundada revista
Lógos (1910/1911), recebeu também somente através das
Idéias para uma Fenomenología Pura, a suficiente funda
mentação de suas teses programáticas” (6).
33
portanto, o primeiro atestado de competência para o tra
balho fenomenológico (7).
Desta maneira múltiplas direções se uniam sob um
mesmo nome. O problema que surgia ¡mediatamente se
referia ao fato de que a fenomenología husserliana, que
se distinguía pelo seu método, servia para caracterizar
correntes que precisamente discordavam do método ori
ginal de Husserl. Não se contradizia tal filosofia, que se
distinguía pelo seu método, permitindo que com seu nome
fossem marcados outros métodos? Isto parecerá menos
paradoxal quando se observa que a própria fenomenolo
gía de Husserl apresenta diversas fases em sua evolução.
Oskar Becker distingue na filosofia de Husserl entre obje
tivismo fenomenal e constituição idealística transcenden
tal (8). Wilhelm Szilasi constata três fases: fenomenología
descritiva, fenomenología transcendental e fenomenología
transcendental-constitutiva (9). Walter Biemel distingue
quatro etapas do pensamento de Husserl: para a primeira
etapa seria marcante a Filosofia da Aritm ética (1891); para
a segunda etapa seriam decisivas as Investigações Lógicas
(1900); para a terceira etapa se deveria ver um sinal nas
Idéias para uma Fenomenología Pura e uma Filosofia Fe-
nomenológica (1913); a quarta etapa, enfim, seria a da
Crise das Ciências Européias e a Fenomenología Trans
cendental (1935) (10). Gerhard Funke distingue, finalmen
te, na fenomenología de Husserl, momentos que são ao
mesmo tempo diferentes sob o ponto de vista filosófico e
com relação ao objeto. Haveria um momento psicológico,
um momento formal-lógico e significativo-lógico, um mo
mento constitutivo transcendental, um momento de metafí
sica da consciência, e, afinal, um momento histórico-crí-
tico (11). Cada um destes momentos, além de mudar de
objeto, possui uma perspectiva determinante particular.
Estas etapas e momentos não se dão necessariamente
numa sucessão cronológica.
Assim, a fragmentação das escolas fenomenológicas
seria motivada pela atitude fundamental de Husserl. Esta
sucessão de momentos sugere mudanças profundas para
quem as observa de fora. Nas intenções de Husserl, po
rém, vinha bem definida desde o começo do século a meta
de suas reflexões. As diversas tendências que se mani
festaram no movimento fenomenológico devem ser loca-
34
tizadas nas experiências individuais de cada um dos que
aderiram ao movimento e na diversa recepção da fenome
nología. Esta, porém, enquanto chamado à sinceridade e
radicalidade na interrogação filosófica, veio abrir novos
horizontes para a elaboração das intuições e experiências
daqueles que a ela aderiram. Tendo presente isto se com
preenderão melhor os motivos da progressiva separação
entre Heidegger e Husserl.
Nas fenomenologías parciais, que passaram a cons
tituir as diferentes escolas fenomenológicas a partir da
fenomenología de Husserl, podem-se destacar cinco cor
rentes principais: 1) A fenomenología descritiva de Gottin-
gen, com: Adolf Reinach, Alexandre Koyré, Hedwig Con-
rad-Martius, Theodor Conrad, Johannes Daubert, Jean He-
ring, Herbert Leyendecker, Román ingarden, Kurt Sfave-
nhagen, Ernst W. Hocking, Wilhelm Schapp e Moritz Gei-
ger. 2) A fenomenología transcendental de Freiburg im
Breisgau, com: Edith Stein, Fritz Kaufmann, Oskar Becker,
Marvin Farber, Wilhelm Szilasi, Ludwig Landgrebe, Eugen
Fink e Martin Heidegger. 3) A fenomenología psicológico-
descritiva de Munique com: Alexandre Pfãnder, Aloys Fis-
cher, Gerda Walther, Moritz Geiger (numa fase de sua evo
lução), August Gallinger, Dietrich von Hildebrand e Herbert
Spiegelberg. 4) A fenomenología dos valores de Colônia
com: Max Scheler, Hendrick Gerardus Stocker, Heinrich
Lützeler, Paul Ludwig Landsberg e Nicolai Hartmann. 5)
A fenomenología hermenêutica de Marburgo (1923-1928)
e Freiburg im Breisgau (a partir de 1928), sob a orientação
de Martin Heidegger, com: Paul Tillich, Rudolf Bultmann,
Hans-Georg Gadamer, Gerhard Krüger, Karl Lõwith, Hel-
muth Kuhn, Franz Joseph Brecht, Karl-Heinz Volkmann-
Schluck e Walter Brocker (12).
“Olhando globalmente estas diversas tendências, per
cebe-se como é problemático determinar se é possível e
em que medida se deve designar tudo isto fenomenología.
Pois, o realismo ingênuo do grupo de Munique está a lé
guas de distância do idealismo transcendental do grupo
de Freiburg, e separa-se infinitamente do objetivismo dos
valores do grupo de Colônia o grupo de Marburgo, que se
caracteriza pela hermenêutica do ser, absolutamente de
sinteressada dos entes enquanto tais” (13).
35
4 Em meio a estas tendências tão diversas, a inten
ção profunda de Husserl de elaborar “uma filosofia como
ciência rigorosa” era esquecida, e Husserl rodeado de
discípulos já era um solitário diante de sua “tarefa infini
ta”. Todo o seu esforço para construir uma fenomenolo
gía transcendental, para chegar à filosofia como ciência
rigorosa que substituiría as múltiplas tentativas positivis
tas, psicologistas, historicistas e materialistas, desembo
cando numa luta de visões de mundo, era visto como uma
recaída no idealismo kantiano. Seus ex-colegas junto a
Brentano, Meinong e Kraus, os círculos de Gottingen e Mu
nique, Max Scheler e Nicolai Hartmann viam nas preferên
cias pelas análises da subjetividade um grande risco e o
conhecimento que tinham das ligações de Husserl com
Natorp parecia comprovar as tendências Kantianas do fun
dador da fenomenología.
Desta maneira Husserl terá visto sua mudança para
Freiburg, em 1916, como uma verdadeira libertação e como
a abertura de um novo horizonte de esperanças. Ele via
a nova cátedra como o lugar ideal para realizar o progra
ma traçado nas Idéias. “Também minha atividade acadê
mica em Freiburg impulsionava a orientação de meus in
teresses para a fundamental universalidade e o sistema”,
declara ele em 1921 (14).
36
Lógicas provocou nova inquietação que ignorava sua ra
zão de ser, ainda que permitisse pressentir que ela brota
va da impotência para chegar ao exercício do modo de
pensar chamado “fenomenología”, apenas pela literatura
filosófica. Só lentamente a perplexidade se esvaía e custo
samente se resolvia a confusão, desde o momento em que
eu pessoalmente tive permissão de me encontrar com Hus
serl, em seu lugar de trabalho” (15).
37
trina da “redução” à consciência pura, muito em breve
perdeu em interesse, enquanto as interrogações entusias-
madoras a que arrastava o jovem Heidegger cada vez nos
fascinavam mais. Ficamos, entretanto, devendo a maior
gratidão ao mais velho. Tinha sido ele que, através da
arte da análise metódica, da clareza na exposição e do
rigor humano da formação científica nos ensinava a to
marmos pé numa época de dissolução interna e externa
de tudo o que era estável, obrigando-nos a evitar toda a
linguagem grandiloquente, a provar cada conceito na intui
ção dos fenômenos e a lhe responder suas perguntas em
troco miúdo em lugar de grandes notas. Era um “cons
ciencioso espírito”, como Nietzsche descreve tal homem
no Zaratustra. Inesquecível é para mim como aquele gran
de pesquisador das menores coisas lecionava, naqueles
dias em que se temia uma ocupação de Freiburg pelas
tropas francesas, com grande tranqüilidade e segurança,
como se a seriedade da pesquisa científica por nada no
mundo pudesse ser perturbada” (17).
De Heidegger testemunha Gadamer: “O primeiro en
contro com seu olhar mostrava quem era e quem é: um
visionário. Um pensador que vê. Parece-me ser esta a qua
lidade que sustenta a originalidade de Heidegger em meio
a todos os professores de filosofia de nossa época. Isto
se revela no fato de que as coisas que expõe numa lin
guagem muito própria, que não evita o barbarismo e vai
contra os padrões em voga, sempre poderão ser vistas
como que intuitivamente. Tal não ocorre apenas em evo
cações momentâneas suscitadas pela palavra acertada e
que provocam lampejos intuitivos: isto se dá de tal modo
que toda a análise conceituai que é exposta não avança
de um pensamento a outro num processo discursivo li
near, mas, partindo dos diversos ângulos, sempre desem
boca no mesmo, dando com isto à descrição conceituai
por assim dizer a plasticidade da terceira dimensão do
real palpável. Quando Heidegger expunha, em sua cáte
dra, seus pensamentos preparados minuciosamente e vi
vamente apresentados até à minúcia no instante da expo
sição, ele via o que pensava e fazia com que os ouvintes
o vissem. Husserl tinha razão, quando nos primeiros anos
após a primeira guerra mundial, perguntado sobre a feno
menología, respondia: “A fenomenología — somos eu e
38
Heidegger” (18). E Gadamer conclui apontando para urna
possível ruptura entre Husseri e Heidegger motivada pelo
diverso horizonte humano de ambos. ‘‘Husseri terá logo
pressentido nos anos vinte que seu discípulo Heidegger
não era colaborador e continuador do paciente trabalho
intelectual de sua vida. O súbito impacto causado por
este, seu incomparável fascínio, seu temperamento vio
lento deviam tornar-se suspeitos para o paciente Husseri
do mesmo modo como, há muito, se Ihe tornara suspeito
o fogo vulcânico de Max Scheler. Realmente o discípulo
de urna tal arte do pensamento era bem diferente de seu
mestre. Era oprimido pelas grandes interrogações e pelas
coisas radicais, sacudido até as últimas fibras de sua exis
tência, inflamado pelo problema de Deus e da morte, do
ser e do nada, sentindo-se chamado para a tarefa do pen
samento imposta à vida. Os problemas cuja urgência pe
sava sobre uma geração revolvida, sacudida em sua edu
cação tradicional e no orgulho de sua cultura, mutilada
pelo horror das batalhas da primeira guerra mundial, to
dos estes eram também os seus problemas” (19).
39
escritos de Aristóteles. Não podia prever, em verdade, de
imediato, as conseqüências práticas que traria o recurso
renovado a Aristóteles” (20). Heidegger insistia sempre
no retorno às Investigações Lógicas. “Quando em 1919,
eu mesmo ensinando-aprendendo na proximidade de Hus-
serl, exercitava o ver fenomenológico e ao mesmo tempo
experimentava no seminário uma nova compreensão de
Aristóteles, mais uma vez meu interesse se voltou para a
Sexta Investigação. A distinção nela elaborada entre in
tuição sensível e intuição categorial revelava-me seu al
cance para a determinação do “múltiplo significado do
ente” (21). “Assim, pois, Husserl, magnânimo sem, no en
tanto, no fundo aceitar, viu como eu, paralelamente às mi
nhas aulas e exercícios de seminário, trabalhava semanal
mente nas Investigações Lógicas, com alunos mais adian
tados, em grupos de trabalho particulares. A preparação
deste trabalho se tornou para mim muito fecunda. Con
duzido mais por um pressentimento que guiado por uma
compreensão fundamentada, experimentei nela o seguin
te: O que se realiza para a fenomenología dos atos cons
cientes, como o auto-mostrar-se dos fenômenos, é mais
originariamente pensado por Aristóteles e por todo o pen
samento e existência dos gregos como alétheia, como des-
velamento do que se presenta, seu desocultamento, seu
mostrar-se. O que as investigações fenomenológicas re-
descobriram como a atitude básica do pensamento se
apresenta como o traço nodal do pensamento grego e tal
vez mesmo da filosofia enquanto tal. Quanto mais isto se
clarificava tanto mais insistentemente voltava a pergunta:
A partir de onde e como se determina o que, segundo o
princípio da fenomenología, deve ser experimentado como
“a coisa mesma”? É ela a consciência e sua objetividade,
ou é o ser do ente em seu desvelamento e velamento?
Assim fui levado ao caminho da pergunta pelo ser, ilumi
nado pela atitude fenomenológica, outra vez e de maneira
diferente que antes inquietado pelas questões que me en
volveram desde a leitura da dissertação de Brentano” (22).
Estas confissões bem revelam o clima em que Hei
degger participou da experiência de Husserl e em que
assimilou e praticou o ver fenomenológico. A questão
ontológica estava muito mais presente que no interesse
sistemático de Husserl; além disso, o exercício do ver
40
fenomenológico abrira-lhe novas perspectivas para o
questionamento do ser- Este que assim tomou corpo tor
nava-se simultaneamente uma problematização de toda a
sua experiência anterior, na medida em que as soluções
dadas a partir da tradição onto-teo-lógica não se mostra
vam genuinamente filosóficas, mas uma presença da teo
logia na filosofia. O fato de esta ser a resposta que toda
tradição dera, levou Heidegger a confrontar-se com toda
a metafísica ocidental. O problema do ser que lhe vinha
de Aristóteles e o método fenomenológico de o abordar
que herdara de Husserl instauraram um outro horizonte
de interrogação no espírito do Filósofo. À medida em
que se mostravam os frutos da análise dos pensadores
gregos, Heidegger descobria uma série de elementos no
vos. “Pela experiência imediata do método fenomenoló
gico nas conversas com Husserl, preparava-se o conceito
provisório de fenomenología que a Introdução a ‘‘Ser e
Tempo” (§ 7) exibe. Também a interpretação revolucioná
ria das palavras chaves do pensamento grego: Lógos (tor
nar manifesto) e phainestai (mostrar-se) muito contribuiu
para a determinação do conceito de fenomenología. Um
novo estudo de Aristóteles (em particular do Livro Nono
da Metafísica e Livro Sexto da Ética a Nicômaco) levou a
uma nova compreensão do aletheúein como desvelar e à
caracterização da verdade como desvelamento, ao qual
pertence todo o mostrar-se do ente. “Através da com
preensão de alétheia como desvelamento reconhecí o tra
ço fundamental da ousia, do ser do ente: a presença”.
( . . . ) “A inquietante pergunta, sempre viva, pelo ser en
quanto presença (presente) se transformou na pergunta
pelo ser sob o ponto de vista do seu caráter temporal”.
( . . . . ) “Com a provisória elucidação da alétheia e ousia
resultaram claros o sentido e alcance do princípio da feno
menología “às coisas mesmas”. No trabalho de penetra
ção não mais apenas literário, mas no exercício da feno
menología permanecia contudo em meu horizonte a per
gunta pelo ser suscitada por Brentano. Desta maneira
impôs-se a seguinte questão: deve-se determinar realmen
te a consciência intencional ou mesmo o eu transcenden
tal como “a coisa mesma”. Se a fenomenología define o
método característico da filosofia enquanto o mostrar “das
coisas mesmas” e se a questão-guia da filosofia perma
41
nece, desde a antiguidade e pelas mais diversas formas,
a pergunta pelo ser, então o ser deverá permanecer a pri
meira e última “coisa mesma” (23).
Compreendido o ser como velamento e desvelamen-
to, decidido que o ser é “a coisa mesma”, estabelecido
que o ser desde a antiguidade se dá como tempo, deter
minado que o método da filosofia é o mostrar fenomenoló-
gico, está resumida toda a problemática heideggeriana e
o que a separa das experiências e das intenções de Hus-
serl. Tarefa fundamental da filosofia será, portanto, para
Heidegger, captar o ser como velamento e desvelamento
através de um método e no horizonte adequados. O mé
todo será a fenomenología esboçada em Ser e Tempo.
O horizonte será o tempo que desde a antiguidade se liga
ao ser. Para analisar o ser vinculado ao tempo é preciso
partir daquele ente que esconde em suas estruturas o tem
po enquanto seu sentido: o ser-aí. É preciso, portanto,
partir da facticidade do ser-aí, em cujas estruturas radica
a temporalidade, para determinar o ser como tempo. Tal
é possível sem que se corra o risco de errar a analítica
porque o único ente cujo ser consiste em compreender o
ser, é o homem. Desta maneira, uma hermenêutica das
estruturas do ser-aí, realizada pelo método fenomenológi-
co hermenêutico, conduzirá ao horizonte em que se pode
rá questionar o sentido do ser que é o tempo. Porém,
questionar o ser no tempo e a partir da temporalidade do
ser-aí é movimentar-se na finitude: é compreender a ques
tão do ser fora do contexto da tradição metafísica. Assim
se estabelece uma interrogação ontológica que não visa
mais responder às questões básicas, apelando para uma
teologia natural cujo objeto, determinado a partir de uma
imagem temporal, não poderá explicar o tempo. Heideg
ger rompe, portanto, com suas primeiras respostas onto-
teo-lógicas e se debruça, mediante o método fenomenoló-
gico, sobre a finitude do ser-aí e a finitude do conceito
de ser. Esta interrogação se realizará através do círculo
hermenêutico que repousa na constituição circular do ser-
aí; este se movimenta no ser, enquanto o ser nele se ma
nifesta e simultaneamente o sustenta. No pensamento de
Heidegger instaura-se desta maneira uma ontologia sob o
signo da finitude.
42
Tal desenvolvimento necessariamente o situaria num
confronto com o pensamento de Husserl, na medida em
que este visava a redução transcendental, que se conduz
pela imagem do pensamento onto-teo-lógico da tradição
metafísica. “Entrementes, a “fenomenologia" no sentido
husserliano foi ampliada para uma determinada posição
filosófica prefigurada por Descartes, Kant e Fichte. Para
ela a historicidade do pensamento permanece absoluta
mente estranha. Contra esta posição filosófica se levan
tou a pergunta pelo ser desenvolvida em Ser e Tempo, e
isto, como hoje ainda o creio, com base numa fidelidade
mais concreta ao princípio da fenomenologia” (24).
43
ti va de resposta às alusões e críticas latentes que perpas
sam Ser e Tempo.
Para compreendermos como se instalou a divergên
cia entre Husserl e Heidegger a partir da idéia de mundo
da vida, vamos retroceder em nossa análise até o momen
to em que se prepara esta questão nos gregos. Mostrar-
se-á como, desta maneira, a idéia do mundo da vida é o
elemento axial da obra de Heidegger e a base para a crí
tica a seu mestre e, simultaneamente, o elemento que
ameaça toda a fenomenología transcendental porque pro-
blematiza a radicalidade da redução na filosofia de Hus
serl (27).
No livro De Anima, Aristóteles faz a seguinte consta
tação: “Já que nós percebemos o fato de vermos e ouvir
mos, é necessário que se perceba o fato de ver ou com a
vista ou com outro sentido: mas então o mesmo sentido
dirigirá sua atenção para o ver e para a cor que tem pela
frente. E assim dois sentidos dirigiríam sua atenção so
bre a mesma coisa ou um sentido prestaria atenção a si
mesmo” (28). O problema da consciência da percepção
a que Aristóteles se refere aqui é retomado, de passagem,
no livro doze da Metafísica, em que ele discute a possi
bilidade de o pensamento se ter a si mesmo como objeto;
isto parece impossível já que o ser do que pensa e do
que é pensado é diferente: “Entretanto, a ciência, a per
cepção sensível, a opinião e a inteligência tem mani
festamente um objeto sempre diferente delas mesmas e
somente se ocupam de si acessoriamente” (29). Portan
to, a reflexão sempre é passageira, jamais é total e a cons
ciência de si (autoconsciência) nunca é plena; pois mer
gulha de maneira permanente numa camada mais profun
da onde a consciência se exerce diretamente.
Os escolásticos designam esta mesma situação com
as expressões: actus exercitus e actus signatus. Estes
dois conceitos indicam o conhecimento reflexivo (actus
signatus) e o conhecimento direto (actus exercitus). É
possível perguntar, e perguntar porque se pergunta. O
ato de ouvir um som é a consciência direta, e a consciên
cia reflexa está no fato de dar-se conta de que se está
ouvindo um som. Portanto, é possível que nem todos os
actus exerciti sejam atingidos plenamente pelos actus
signati. Diferentes áreas dos atos diretos podem ficar ocul-
44
tas ou se tornar inacessíveis aos atos reflexos. Nem toda
a experiência pode ser recuperada pela reflexão por cau
sa da própria condição finita do homem.
Franz Brentano, baseando-se nas passagens supra
citadas de Aristóteles, distingue entre “percepção inte
rior” e “observação interior”. A percepção interior cor
responde aos actus exerciti e a observação interior aos
actus signati. Husserl se liga a esta distinção de Brenta
no, desenvolvendo a doutrina deste de que a consciência
interior já sempre é dada na memória pela existência de
uma estrutura “horizontal” da consciência. Husserl insis
te no horizonte retencional. “O conceito de intencionali-
dade da consciência, o conceito de constituição da cor
rente da consciência, mesmo o conceito do mundo da vida,
são elementos que servem para desenvolver esta estrutu
ra de horizonte da consciência” (30).
Entretanto, precisamente a distinção entre os actus
exerciti e os actus signati levanta um problema que se
resumiría para Husserl no problema do mundo da vida.
Se nem todo o actus exercitus pode transformar-se em
actus signatus ou ao menos só transformar-se parcialmen
te; se o esforço de reflexão não chega a esgotar constan
temente o conhecimento direto e as vivências concretas;
se o esforço de reflexão chega mesmo a ocultar dimen
sões dos actus exerciti; então, impõe-se a seguinte ques
tão: pode a redução transcendental ao ego atingir a exi
gida radicalidade? É possível que a reflexão e redução
transcendental recuperem radicalmente o mundo da vida
na consciência transcendental?
45
que Husserl reconhecesse que a suspensão geral da afir
mação ontológica da realidade que ele exigira para se
opor à consciência posicionai da ciência alcançara algo
definitivo e constante no ego transcendental. Este último
era, no entanto, algo vazio com o qual não se sabia bem
o que fazer. Husserl reconheceu de maneira particular
que ao menos dois pressupostos desapercebidos tinham
ficado retidos neste ponto de partida radical: De um lado
fora retido o pressuposto de que o eu transcendental en
cerrava em si o “todos nós” da comunidade humana e de
que a auto-interpretação transcendental da fenomenolo
gía de modo algum levantara expressamente o problema
de como era propriamente constituído pelo eu transcen
dental, além do mundo pessoal do eu, o ser do “tu” e do
“nós” (o problema da intersubjetividade). De outro lado,
Husserl reconheceu que a suspensão universal da tese da
realidade não bastava, na medida em que a suspensão
da afirmação sempre atinge apenas o objeto expresso do
que a intencionalidade tem em vista e não o que está im
plícito no que a intencionalidade visa e as implicações
anônimas que são constantemente dadas em todas aque
las intenções. Estas implicações tornam-se, entretanto,
comprometedoras para a radicalidade da redução trans
cendental, na medida em que a crítica ao objetivismo da
ciência pressupõe o valor do mundo da vida sem legiti
mação e prova constitutiva (IV, 136). Assim, Husserl che
gou a elaborar uma teoria dos horizontes, os quais no fim
se cerram no horizonte universal do mundo, que compre
ende toda a nossa vida intencional” (31). Tendo em vista
tudo isto, Husserl procura mostrar na obra, A Crise das
Ciências Européias, que todo o mundo da vida, da crença
do mundo que sustenta o chão da experiência natural da
vida do pensamento humano deve ser suspenso e encon
trar sua constituição no eu transcendental. Isto era abso
lutamente necessário para se salvar a radicalidade da re
dução transcendental. Por isso Husserl procura assumir
todos os actus exerciti do mundo da vida na consciência
transcendental.
Aqui pode ser surpreendido o núcleo em que reside
um elemento decisivo de ruptura entre Husserl e Heideg-
ger que se junta a todos aqueles que já analisamos. Ser
e Tempo se ocupa diretamente da analítica do mundo da
46
vida na medida em que o homem é um ser-no-mundo
como facticidade. A primeira vista a analítica transcen
dental que Heidegger realiza da quotidianeidade poderia
dar realmente a impressão de que a obra do discípulo de
Husserl se inseria na análise e nas intenções da fenome
nología husserliana. Que isto não passasse de aparência
devia-se às experiências e intuições profundas que o pró
prio Heidegger já trazia consigo de suas análises da his
tória da filosofia, enriquecidas por seu método fenomeno-
lógico. Sua preocupação essencialmente ontológica vi
sava a analítica do ser-aí como o ponto de partida privi
legiado para recolocar a questão do ser contra toda a
tradição transcendentalista e subjetivista da metafísica
ocidental. Por isso o filósofo rompia, em Ser e Tempo, o
círculo de ferro da reflexão e procurava mostrar a impor
tância de caráter decisivo da análise do ser-no-mundo no
qual mergulha toda a reflexão como em seu chão nunca
inteiramente retomado ou recuperável pela consciência
reflexa. O mundo da vida não se apresenta, portanto,
para Heidegger como um desafio para a radicalidade re
flexiva, mas antes a reflexão recebe dele seu objeto e
movimento. O mundo da facticidade do ser-aí era para
Heidegger a área em que se impunha o problema do ser
caso se quisesse fugir do objetivismo ingênuo.
Gadamer fala desta interpretação heideggeriana como
de um novo horizonte que se descerrava em meio ao ra
cionalismo da reflexão transcendental: “A possibilidade
de anular (fazer retroceder) esta passagem da intenção
imediata e direta para a intenção reflexiva, parecia, na
quela época, um caminho que se abria para a liberdade:
Era a promessa da libertação do inevitável círculo da re
flexão, a reconquista do poder evocador do pensamento
conceituai e da linguagem filosófica, a qual era capaz de
garantir à linguagem do pensamento uma posição digna
ao lado da linguagem da poesia” (32).
Heidegger descobriu nos actus exerciti uma camada
mais profunda da experiência humana do mundo, situada
além da atitude objetivante da consciência, que se deve
ria constituir em campo específico da filosofia. ‘‘Que com
isto, entretanto, se impunha uma tarefa ontológica de pen
sar o “ser” que não era o ser “objeto”, isto a consciência
filosófica em geral notou através da crítica de Heidegger
47
ao conceito de pura subsistência (Vorhandenheit) em
Ser e Tempo’’ (33).
48
Este âmbito é o lugar em que se dá a abertura do ser no
ser-aí. O Filósofo procura precaver-se principalmente
contra a tentação da constituição do eu transcendental
porque, além de julgar insustentável o acesso a este eu
pela via da redução ou por outro caminho, ele entrevê no
recurso ao eu transcendental uma repetição do modelo da
metafísica ocidental: a nóesis noéseos, o pensamento de
pensamento, o Deus na sua absoluta autopossessão, mo
delo inacessível da interrogação filosófica. A fenomenolo
gia transcendental, na medida em que era conduzida pelo
modelo de presença constante, visava precisamente eli
minar toda dimensão táctica, assumindo todo o mundo da
vida no eu transcendental. Além de Heidegger não admi
tir a possibilidade da redução ele criticava nela a ausência
de uma preocupação ontológica tanto em torno do ser
posto entre parênteses na redução, como do ser que cons
titui o ser-aí. A sua fenomenologia devia velar a manifes
tação do ser no âmbito da diferença ontológica, na ambi-
güidade de velamento e desvelamento, em que homem e
ser se comunicam.
49
preensão do ser prevalece o velamento; o homem somente
compreende o ser ligado ao velamento imposto péla fini-
tude do próprio homem. A compreensão do ser é o sinal
da finitude. A reflexão transcendental é apenas um alibi
da finitude e uma tentação de fugir ao ámbito ambivalente
do velamento e desvelamento em que mergulha a factici-
dade do ser-aí. O horizonte transcendental revela urna
indigência do ser-aí e a sua condenação à finitude. “Para
que se tome a sério a finitude como o chão de toda a ex
periência do ser parece-me essencial o fato de ela se negar
toda a complementação dialética. Sem dúvida, é “eviden
te” o fato de que a finitude é uma determinação privativa
do pensamento e que enquanto tal pressupõe uma infini-
tude, talvez também o seja o fato de que a “imanência fe-
nomenológica” pressupõe seu oposto, a transcendência, ou
a história (de outra maneira) a natureza. Quem negará isto?
Acho, porém, que de Kant aprendemos, de uma vez para
sempre, que tais caminhos “evidentes” do pensamento
não são capazes de mediar o conhecimento possível a
nós entes finitos. A dependência da experiência possível,
a legitimação através desta experiência, permanece o alfa
e omega de todo o conhecimento que obriga” (36).
É preciso ter claramente presente a opção de Hei-
degger por uma teoria do ser que se desenvolve, me
diante o método fenomenológico, na finitude da compre
ensão, no “a caminho” de um questionamento sempre
ligado ao tempo. Heidegger permanece na diferença
imánente do ser como velamento e desvelamento e não é
intenção sua resolver o problema metafísico pelo seu mo
vimento na finitude. Nele está, sobretudo, a busca de uma
fidelidade radical ao ser na sua ambiguidade, no seu vín
culo com o homem. Não se trata de fechar os horizontes
possíveis da transcendência; positivamente está em ques
tão um debruçar-se sobre os fundamentos em que mergu
lha toda a consciência transcendental, o escavá-los mos
trando a positividade da finitude. Disso só podia resultar
um choque frontal com as intenções de Husserl.
50
já em 1922, Heidegger via o problema da fenomenología
transcendental: “Concordo que o ente no sentido do que
o senhor designa “mundo” não pode ser explicado, em sua
constituição transcendental, pelo retorno a um ente da mes
ma espécie. Assim, entretanto, não se diz que o que cons
titui o lugar do transcendental não seja de modo algum
um ente; o problema que se anuncia é o seguinte: qual é
o modo de ser do ente, no qual se constitui “mundo” ? Este
é o problema central de Ser e Tempo, isto é, uma ontologia
fundamental do ser-aí. Trata-se de provar que o modo de
ser do ser-aí humano é totalmente diferente do modo de
ser dos outros entes e que, precisamente, enquanto é o
que é, esconde em si a possibilidade da constituição trans
cendental. Esta é uma possibilidade central da existência
do fáctico em si mesmo. Esta existência, o homem con
creto em si mesmo, jamais é um “fato mundano real”,
porque o homem jamais é puramente subsistente, mas,
existe. E o “admirável” consiste no fato de que a consti
tuição existencial do ser-aí possibilita a constituição trans
cendental de tudo o que é positivo. ( . . . ) Aquilo que cons
titui é não um nada, portanto, algo e um ente, ainda que
no sentido do positivo. A pergunta pelo modo de ser do
próprio constituinte não pode ser evitada. O problema do
ser tem, portanto, referência universal ao constituinte e
constituído. Que significa ego absoluto à diferença do pu
ramente anímico? Qual é o modo de ser deste ego abso
luto — em que sentido é o próprio eu fáctico; em que sen
tido não o é? Qual é o caráter da posição em que o ego
absoluto é posto? Em que medida não há aqui uma positivi-
dade?” (37). Estas perguntas de Heidegger mostram, com
suficiente clareza, como o problema do mundo da vida es
tava na raiz da discordância entre as concepções de Hus
serl e Heidegger no referente à fenomenología e à tarefa
do labor filosófico.
Portanto, ainda que tenha sido decisiva a presença de
Husserl na elaboração das intuições heideggerianas, nos
momentos decisivos os caminhos se separam. A fenome
nología que Heidegger elaborou, premido por grandes in
terrogações que trazia de sua juventude, se constituiría no
instrumento que aprofundaria sempre mais as diferenças
entre os dois filósofos. Por isso Husserl poderia dizer,
diante da acolhida triunfal de Ser e Tempo, cujo autor
51
Husserl acusava de “ter caído no antropologismo trans
cendental” (38): “Filosofia como ciência, como ciência
séria e exata, sim como ciência apoditicamente exata —
o sonho está no fim.” (39). A “tarefa infinita” deveria es
perar por melhores tempos, porque, justamente, viera per
turbar o projeto da fenomenología transcendental aquele de
quem Husserl poucos anos antes dissera: “A fenomenolo
gía — isto somos eu e Heidegger”.
Em 1962, voltando-se em seu espírito para a fenome
nología, Heidegger disse: “Hoje parece que o tempo da
filosofia fenomenológica passou. Já é julgada como algo
do passado, que apenas é consignado ainda historicamen
te ao lado de outros movimentos da filosofia. Entretanto,
em sua essência a fenomenología não é um movimento.
Ela é a possibilidade do pensamento — que periodicamen
te se transforma e somente assim permanece — de corres
ponder ao apelo do que deve ser pensado. Se a fenome
nología for assim compreendida e guardada, então pode
desaparecer como expressão em favor da questão do pen
samento cuja manifestação permanece um mistério” (40).
52
NOTAS — 1
53
17. Husserl, E. — Philosophie ais Strenge \Wissenschaft, Ed. por
Wilhelm Szilasi, Anhang 105-106.
18. Gadamer, H-G. — Martin Heidegger em: Neue Sammlung, 5.
Jahrgang, Heft 1, 1965, pp. 2-3.
19. Gadamer, H-G. — Martin Heidegger, p. 3.
20. Mein Weg in die Phaenomenologie, em: Zur Sache des Den-
kens, p. 86.
21. Mein Weg in die Phaenomenologie, em: Zur Sache des Den-
kens, p. 86.
22. Mein Weg in die Phaenomenologie, em: Sur Sache des Den-
kens, p. 87.
23. Ein Vorwort. Carta de Heidegger a William Richardson, em:
Philosophisches Jahrbuch, Freiburg Munchen 1965, Ano 72 — Vol. 2,
p. 398.
24. Ein Vorwort, p. 399.
25. Husserliana IV, p. 372 (Beilage XII).
26. Husserliana VI.
27. Gadamer, H-G. — Phaenomenologische Bewegung, passim.
28. Peri Psyches 425 b, 12-15.
29. Metafísica 1047b, 35-37.
30. Gadamer, H-G. — Phaenomenologische Bewegung, p. 23.
31. Gadamer, H-G. — Phaenomenologische Bewegung, p. 21-22.
32. Gadamer, H-G. — Heidegger und die marburber Theologie,
em: Zeit und Geschichte, Dankesgabe an R. Bultmann zum 80. Gebur-
tstag, p. 483.
33. Gadamer, H-G. — Phaenomenologische Bewegung, p. 24.
34. Sein und Zeit, p. 142.
35. Gadamer, H-G. — Phaenomenologische Bewegung, p. 39.
36. Gadamer, H-G. — Phaenomenologische Bewegung, p. 40.
37. Husserliana IX, pp. 601-602.
38. Husserliana V, p. 140.
39. Husserliana VI, Beilage XXVIII.
40. Mein Weg in die Phaenomenologie, em Zur Sache des Den-
kens, p. 90.
54
2
A RECEPÇÃO CRITICA
DA FENOMENOLOGIA
NA OBRA DE HEIDEGGER
1 Na introdução de Ser e Tempo, que trata da expo
sição da questão do sentido do ser, após mostrar a meta
da analítica ontológica do ser-aí e de apresentar a tarefa
de uma destruição da historia da antologia, Heidegger des
dobra o método de sua investigação (1).
Desde o inicio o autor previne contra a tentação que
é aproximar da tradição filosófica a análise esboçada.
Ainda que a “característica do objeto temático da inves
tigação (ser do ente, sentido do ser em geral)” (2) pareça
apontar para os métodos da ontologia tradicional, é pre
ciso atentar que o método da ontologia permanece muito
problemático se se procura conselho junto às ontologias
históricas da tradição ou tentativas congéneres. Heidegger
toma o termo ontologia num sentido formal e amplo. Assim,
o método não pode ser fornecido por nenhuma das onto
logias existentes. Isto porque Heidegger usa a palavra
ontologia num sentido que não coincide com nenhuma dis
ciplina filosófica até ai existente. Não quer corresponder á
tarefa de urna disciplina já constituida. Pelo contrário,
anuncia que aqui só é possível construir urna disciplina a
partir das necessidades inerentes a questões precisas e a
partir de um método inspirado pelas exigências das “coisas
mesmas” (3).
O filósofo não se liga a nenhuma posição ontológica
da História da Filosofia. Procura situar sua reflexão e aná
lise dentro da problemática fundamental da filosofia em
geral. Tomando a análise como guia, a questão do sentido
do ser se insere na questão fundamental da filosofia. Fe-
nomenologicamente será tratada esta questão, diz Heideg
ger; e acentua logo sua posição pessoal diante da fenome
nología, mostrando que em seu trabalho não seguirá um
ponto de vista qualquer ou urna determinada tendência.
“Porque a fenomenología, enquanto continuar a compre
ender a si mesma, não é nem pode tornar-se uma ou outra
coisa” (4). Com a expressão “fenomenología” Heidegger
56
determina um conceito de método. Ela não visa caracteri
zar os conteúdos dos objetos da pesquisa filosófica. Ape
nas caracteriza o “como”, a maneira de proceder da filo
sofia. Mas o método não é algo exterior e puramente téc
nico. Ele se liga tanto mais à discussão das coisas mesmas
quanto mais amplamente determina o movimento básico de
uma ciência. Com tais pressupostos recebe Heidegger o
conceito husserliano de fenomenología e o transforma cri
ticamente submetendo-o a um processo de interpretação
etimológica.
Para fugir às sistematizações infundadas, às desco
bertas casuais, ao uso de conceitos apenas aparentemen
te elaborados, às questões imaginárias, que durante gera
ções se divulgam como problemas, é que Heidegger as
sume a fenomenología enquanto lhe traz a máxima: “às
coisas mesmas”. Ainda que este apelo oculto na feno
menología pareça algo óbvio, enquanto expressão do prin
cípio de todo conhecimento científico, o Filósofo diz que
vai precisá-lo na medida em que se faz necessário para
iluminar a marcha de seu trabalho. “Exporemos apenas
um conceito provisório de fenomenología” (5). O motivo
que o leva a fazer esta exposição provisória do conceito
de fenomenología não é decisão arbitrária, mas imposição
do próprio caminho da reflexão. Somente a Terceira Seção
da Primeira Parte possibilitaria ir além de uma determi
nação provisória. No fim da segunda seção Heidegger ace
na para esta questão; somente quando elucidados o
sentido do ser e as relações entre ser e verdade a partir
da temporalidade da existência, seria possível o desenvol
vimento de “uma idéia da fenomenología diferente do con
ceito provisório exposto na Introdução” (6). Esta terceira
seção nunca apareceu como havia sido planejado. É talvez
por isso que uma ampla explicitação do conceito de feno
menología não foi realizada até hoje. Mas como veremos
mais adiante, é possível descobrir em obras posteriores de
Heidegger a presença implícita de um conceito de feno
menología que é mais definitivo que aquele elaborado na
obra Ser e Tempo. Este conceito que se faz presente,
sobretudo no Segundo Heidegger, vem profundamente im
bricado com a própria análise da questão do ser.
57
2 Heidegger fará a exposição provisória do conceito
de fenomenología partindo de uma interpretação etimoló
gica dos radicais que compõem a palavra: phainómenon e
lógos.
Aparentemente a palavra “fenomenología” se consti
tuiu de modo igual como teologia, biologia, sociologia e
seria assim a ciência dos fenômenos.
58
tações possuem a estrutura fundamental formal do fenôme-
no-índice no primeiro sentido. Em segundo lugar é o anún
cio enquanto ele próprio é um fenômeno — aquilo que,
em sua manifestação, aponta aquilo que não se manifesta.
Em terceiro lugar, fenómeno-índice pode ser usado para
designar o significado primário de fenômeno, entendido
como manifestação em si. Em quarto lugar, fenómeno-
índice pode ter o sentido de puro fenômeno. Isto acontece
quando o anúncio fenomenal que na manifestação de si
indica o não-manifesto é alguma coisa que surge ou ema
na do não-manifesto, de tal maneira que o não-manifesto
é pensado como aquilo que é essencialmente incapaz de
se manifestar. Assim o fenômeno-índice torna-se sinônimo
de produção ou coisa produzida, sem que estas constituam
o verdadeiro ser do que produz. “Esta não-manifestação
dissimuladora não é contudo uma simples aparência” (9).
Afinal o fenômeno-índice pode transformar-se em pura
aparência. Isto acontece quando este, enquanto anúncio
fenomenal, implica em sua constituição um fenômeno que
pode transformar-se privativamente numa aparência.
Mas o que Heidegger visa é a determinação do con
ceito fenomenológico de fenômeno. Se no conceito de
fenômeno enquanto aquilo que se mostra em si mesmo
permanece indeterminado qual o ente que é tido como fe
nômeno e se não se decide se o que se mostra é um ente
ou o caráter ontológico de um ente, então se conquistou
o sentido puramente formal do conceito de fenômeno. Tal
conceito formal pode ser aplicado e então tem-se o con
ceito vulgar e o conceito fenomenológico de fenômeno.
Heidegger traz dois exemplos elaborados no horizonte da
problemática kantiana. “Quando se entende por aquilo que
se manifesta o ente que segundo Kant é acessível à intui
ção empírica, faz-se uma aplicação correta da noção for
mal de fenômeno. Segundo este uso, a idéia de fenômeno
corresponde à noção vulgar desta palavra” (10). ( . . . ) “No
horizonte da problemática kantiana, se poderia caracte
rizar o que se entende fenomenologicamente por fenômeno
(reserva feita sobre outras distinções), dizendo-se: o que
no fenômeno, em sentido vulgar, se manifesta sempre de
modo prévio e implícito, ainda que não temáticamente,
pode ser levado a manifestar-se temáticamente; e o que
59
assim se manifesta por si mesmo (“as formas da intuição")
é fenómeno da fenomenología" (11).
Para a compreensão geral do conceito fenomenoló-
gico de fenômeno é necessário penetrar, segundo Heideg-
ger, no sentido formal do conceito de fenômeno e sua apli
cação correta no sentido vulgar.
2. 2 Antes de estabelecer o conceito provisorio de
fenomenología o Filósofo passa à determinação do signi
ficado de lógos. Mostra que as divergencias sobre o con
ceito de lógos resultam da falta de uma interpretação que
revele seu significado fundamental. Mesmo quando o sig
nificado fundamental é reduzido ao discurso, lógos só é
explicado, em sua denotação radical, pela determinação
do que se entende por discurso. A historia do significado
atribuido a lógos e as interpretações múltiplas e arbitrá
rias da filosofia mascaram de tal maneira o sentido de
discurso, que lógos passa a ser interpretado como razão,
juízo, conceito, definição, razão suficiente ou relação.
Enunciação e juízo eram o significado fundamental de
lógos. Isto ocorreu, sem dúvida, devido às variações se
mânticas por que passaram os diversos termos com que
lógos foi traduzido. A passagem do grego para o latim e
deste para as línguas nacionais terminou obstruindo pro
fundamente o acesso às dimensões originárias das pala
vras primitivas.
“Pois lógos, no sentido de discurso, significa deloun,
tornar manifesto aquilo sobre que se discorre no discurso.
Aristóteles explicou mais precisamente esta função como
apophainesthai. O lógos faz ver (phainesthai) alguma coisa,
a saber, aquilo sobre que se discorreu; ele o faz ver
àquele que discorre (forma média) ou àqueles que discor
rem entre si. O discurso “faz ver” apò. . ., a partir daquilo
sobre que se discorre. No discurso (apóphansis), enquanto
é autêntico, o que é dito se deve haurir daquilo de que se
laia, de tal modo que a comunicação discursiva torne ma
nifesto e assim acessível aos outros naquilo que é dito
aquilo de que se fala. Tal é a estrutura do lógos como
apóphansis’’ (12).
Após afirmar que a realização concreta do discurso
acontece na linguagem, na notificação vocal, em que algu
ma coisa é dada a ver; depois de mostrar que o lógos
60
somente é capaz de revestir a função estrutural de synthe-
sis porque como apóphansis consiste em fazer ver mos
trando, Heidegger liga o mesmo lógos a verdadeiro e falso.
O lógos pelo fato de fazer ver pode ser verdadeiro e falso.
O elemento original da alétheia não se encontra na ade
quação. “O ser-verdadeiro de lógos como aletheúeln sig
nifica que este lógos retira do velamento o ente do qual
fala, através do légein como apophaínesthai; ele o faz ver,
o descobre como desvelado (alethés)” (13). A importância
decisiva do sentido da alétheia para a elaboração do con
ceito de fenomenologia consiste no fato de ter conduzido
à descoberta do binômio velamento-desvelamento.
O lógos não é o lugar primordial da verdade porque
é um modo determinado de fazer ver. Ainda que se de
termine que a verdade faz parte do juízo, para os gregos
o verdadeiro reside mais originalmente na alsthesis, en
quanto apreensão sensível de alguma coisa. É nela e no
noein, incapaz de encobrir, que se dá o verdadeiro desve-
lamento. A síntese já explica e faz ver um ente mediante
outro ente e assim mais facilmente pode ocultar. Por isso
a verdade do juízo é sob muitos aspectos derivada. O lógos
não significa apenas légein; sendo também aquilo que ele
indica, o legómenon como hypokeimenon, pode significar
fundamento, ratlo.
Assim, Heidegger encerra a análise da interpretação
do discurso apofântico que procurou elucidar a função
primária do lógos.
61
baseiam-se elas na afirmação de que este não é o cami
nho adequado para analisar a questão do ser. O impulso
fenomenológico não seria capaz de romper a imanência,
e por isso toda sua interrogação se perdería no plano
finito e histórico. O método fenomenológico poderia ser
admitido como preparador do terreno para uma posterior
e necessária reflexão metafísica.
Husserl e alguns de sua escola viam por sua vez na
conceituação de fenomenología heideggeriana um perigo
so desvio para o antropologismo; sobretudo porque se
recusavam a aceitar a redução transcendental, não alcan
çando desta maneira a universalidade necessária para a
abordagem da questão do ser.
Ainda que o longo caminho de Heidegger tenha tra
zido novos elementos para a formulação do conceito de
fenomenología e tenha mesmo levado o autor a silenciar
sobre o método, acenando apenas de passagem para
alguns aspectos novos, devemos ver, contudo, na análise
que vem esboçada na letra C do § 7, ao mesmo
tempo uma resposta às objeções que vinham de ambos os
lados e uma abertura para uma nova posição dentro da
História da Filosofia. Aqui permanecem latentes elemen
tos que silenciosamente desabrocharão em trabalhos pos
teriores; sem eles as últimas posições do Filósofo são in
compreensíveis.
A simplicidade do esboço provisório da fenomenolo
gía é apenas aparente. O que desnorteia é que Heidegger
procede mais por afirmações taxativas que por explica
ções, o que muito esconde o clima histórico e o contexto
de problemas em que emergiu sua fenomenología. A vio
lência na interpretação etimológica do termo já indica a
decisão de impor um conceito novo. É preciso, aliás, que
se constate, já desde o início de Ser e Tempo, que o con
ceito de interpretação que nascerá das discussões do pro
blema hermenêutico já está presente na provisória elabo
ração do método. Por isso a própria análise do conceito
de fenomenología é projetiva e antecipadora. A palavra é
carregada com um sentido que progressivamente se im-
porá no contexto.
62
tarrnos depois para as considerações esparsas nas obras
posteriores.
Heidegger procura dar à dimensão formal da feno
menología aquela envergadura que a comensure com o
apelo para a volta às coisas mesmas, lançado pelo mo
vimento fenomenológico iniciado por Husserl. Mas no sen
tido que dá à fenomenología já vai implícita uma renúncia
ao movimento fenomenológico. A palavra não traz mais a
conotação objetiva das “coisas mesmas”, dos fenômenos
em seu sentido vulgar. Ela indica o modo de acesso, de
tratamento daquilo que deve ser questionado (15).
Heidegger, porém, procura transformar este conceito
formal de fenomenología no conceito fenomenológico. Fe
nômeno, em sentido privilegiado, é aquilo que, “primeira
mente e o mais das vezes, justamente não se manifesta,
o que está velado em face do que primeiramente e o mais
das vezes se manifesta, ainda que pertença ao mesmo
tempo e essencialmente àquilo que primeiramente e o mais
das vezes se manifesta, e de tal maneira que constitua seu
sentido e fundamento” (16). A fenomenología é, portanto,
o instrumento e método que dá acesso, não só ao fenôme
no no sentido vulgar, mas ao fenômeno no sentido feno
menológico (17). E este é o que primeiramente e o mais
das vezes não se dá como manifesto. A este visa a feno
menología heideggeriana.
Os primeiros parágrafos de Ser e Tempo mostraram
a situação concreta da questão do ser, a necessidade de
uma repetição explícita da questão do sentido do ser; pro
varam a necessidade de partir da analítica existencial; ex
puseram o sentido positivo da tarefa de uma destruição
da história da ontologia. A fenomenología pretende preci
samente ser o método que permita o encaminhamento
destas questões. Ela é assim formulada em sua estrutura
formal para poder ser aplicada no âmbito da obstrução
da questão do ser, na esfera do esquecimento do sentido
do ser, no horizonte da determinação desveladora do sen
tido do ser. O que em sentido mais próprio permanece
velado, cai no estado de dissimulação ou se manifesta de
maneira distorcida, não são determinados entes, mas o ser
do ente. "A fenomenología tomou como tarefa, como seu
objeto temático, aquilo que reclama ser fenômeno em sen
tido privilegiado e em virtude de seu conteúdo inalienável”
63
(18). O ser não é fenômeno. A fenomenología procurará
transformá-lo em fenómeno no sentido fenomenológíco,
como aquilo que se oculta no que se manifesta, e con
tudo, constitui o fundamento de tudo o que assim se ma
nifesta. O método deve adequar-se, portanto, ao modo de
manifestação do ser, deve ser o caminho para recolocar a
questão do sentido do ser.
A explicitação do sentido do ser será o papel da onto
logia em seu sentido lato. Esta explicitação não pode
tomar como instrumento nenhum método tradicional. Pois
foi a tradição que permitiu o velamento, a dissimulação e
a distorção do sentido do ser do ente. Desta maneira, a
ontologia que é a meta de Heidegger recebe um novo ins
trumento. “A fenomenología é o modo de acesso ao que
deve tornar-se o tema da ontologia; ela é o método que
permite determinar o objeto da ontologia, legitimando-o.
A ontologia somente é possível como fenomenología. O
conceito fenomenológíco de fenómeno visa o ser do ente
enquanto aquilo que se manifesta, seu sentido, suas mo
dificações e derivações” (19).
É difícil que esta afirmação tome seu sentido radi
cal e inequívoco neste contexto. Ela foi acompanhada
desde o começo de críticas vindas de várias direções.
Somente sua aplicação na análise da questão do ser po
dería mostrar em seus resultados a positividade desta
afirmação. O fato mais claro que vem atestar esta situa
ção talvez resida na aceitação dos resultados da refle
xão de Heidegger por parte daqueles que não admitem seu
método. Mesmo as profundas considerações de Heideg
ger sobre o ser são fruto da aplicação da fenomenología;
progressivamente, porém, esta vai sendo calada em favor
do próprio objeto da ontologia heideggeriana.
Os equívocos surgem particularmente da interpreta
ção da exposição provisória do conceito de fenomenolo
gía; esta parecia lançar o pensamento de Heidegger con
tra toda a tradição. Sua finalidade no entanto era pene
trar no chão esquecido da tradição, recolocando a ques
tão do sentido do ser. A ontologia na mente de Heidegger,
somente era possível como fenomenología. A determina
ção do horizonte para a manifestação do ser, através da
analítica existencial, somente podia ser realizada median
te o método fenomenológíco. A elaboração do sentido do
64
ser, partindo do modo de o ser se desvelar no homem, ve
lá n do se naquilo que constitui em sua radicalidade, so
mente era possívél como fenomenologia. O ser que se
manifesta de múltiplos modos somente podia ser captado
mediante um instrumento adequado às diversas condições
de sua eclosão. Afinal a ontologia no sentido lato que
Heidegger lhe dava exigia a fenomenologia para corres
ponder às exigências de seu objeto. Heidegger transfor
mou a fenomenologia husserliana radicalizando-a: Isto sig
nifica a superação da ontologia ingênua de Husserl por
uma nova ontologia.
Entretanto, a análise do sentido do ser não pode ser
visada diretamente. Ainda que o fenômeno em seu senti
do fenomenológico seja sempre o ser e as estruturas on-
tológicas, este, contudo, se apresenta enquanto ser do
ente. Assim, a manifestação do ser exige que primeiro
se analise o ente. Por isso o fenômeno em sentido vulgar
adquire relevância fenomenológica. Daí o sempre estar
incluída na meta de tal análise a tarefa preliminar de asse
gurar fenomenologicamente o ente exemplar de onde pos
sa partir o questionamento propriamente dito. Portanto,
ainda que a fenomenologia pretenda ser um instrumento,
o método da ontologia, ela exige, contudo, que seja pre
cedida por uma análise fenomenológica do ente privile
giado a partir do qual se possa então realizar a análise
fenomenológica do fenômeno do ser. Já no início Heideg
ger tem isto presente, quando as explicações dadas sobre
as tarefas da ontologia estabelecem a necessidade de uma
ontologia fundamental que tome por tema um ente privile
giado tanto no plano ontológico como no ôntico: o ser-aí.
As estruturas deste ente serão analisadas para que desve
lem o horizonte em que se afirma a questão do sentido do
ser em geral. É na analítica do ser-aí que a fenomenolo
gia assume uma dimensão hermenêutica, explicitadora.
Esta hermenêutica das estruturas fundamentais do ser-aí
adquire quatro dimensões como ainda se mostrará.
65
toda determinação ôntica possível que seja da ordem do
ente” (21). A transcendência do ser-ai implica privilegia
damente a possibilidade e necessidade da individuação
mais radical. "A questão do sentido do ser é a mais uni
versal e a mais vazia; contém, entretanto, ao mesmo tem
po, a possibilidade de se concretizar e de se concentrar
num ser-aí, individual” (22). É por isso que se torna pos
sível analisar o ser a partir do ser-aí. "A universalidade
do conceito de ser não exclui o caráter “especializado” de
nosso estudo; este se propõe, realmente, ascender ao ser
pelo caminho de uma interpretação particular, de um ente
determinado, o ser-aí, esperando obter através dele o ho
rizonte necessário a uma compreensão e a uma explici
tação possíveis do ser em geral” (23). Esta individualiza-
ção do estudo do ser no ser-aí, como ponto de partida, é
mesmo necessária. Desta maneira, a fenomenología deve
ser primeiramente hermenêutica. “Toda a exploração do
ser como transcendens é conhecimento transcendental. A
verdade fenomenológica (enquanto ela é uma revelação do
ser) é veritas transcendentalis” (24). Conhecimento trans
cendental é aquele que parte do ser-aí. Assim o estudo
e a análise do transcendente por excelência é transcen
dental, isto é, se individualiza na transcendência do ser do
ser-aí. A verdade fenomenológica, que é o desvelamento
fenomenológico do ser, somente é possível a partir do
desvelamento das estruturas do ser-aí, sendo por isso ver
dade transcendental.
“Ontologia e fenomenología não são duas disciplinas
diferentes, que, entre outras, pertencem à filosofia. Estas
duas expressões caracterizam a própria filosofia, segun
do seu objeto e seu método. A filosofia é ontologia feno
menológica universal, que parte da hermenêutica do ser-
aí; esta, enquanto analítica existencial, dá o fio condutor
de toda a problemática filosófica, fundamentando-a sobre
a existência, de onde brota toda a problemática e sobre a
qual ela repercute” (25).
O esboço provisório da fenomenología levou Heideg-
ger à elaboração formal do conceito de fenomenología,
que, no fim do § 7, recebe.seu conteúdo pela determinação
da hermenêutica. A analítica do ser-aí é a concretização
da dimensão formal da fenomenología, imposta pela pri
vilegiada situação ôntico-ontológica do ser-aí. A máxima
66
individualização do "ens como o transcendeos por exce
lência" é exigida como ponto de partida. Por isso a ver
dade (o horizonte, a abertura, o sentido) do ser será ne
cessariamente veritas transcendentalis que parte da ana
lítica do ser-aí. A fenomenología hermenéutica funda, por
tanto, a veritas transcendentalis, o horizonte de abertura
no ser-aí concreto, que permite a interrogação pelo senti
do, pela verdade do ser em si mesmo. A verdade que
emerge da fenomenología hermenêutica é verdade trans
cendental. Especialmente a fenomenología hermenéutica
do ser-aí, em suas estruturas e sua temporalidade, visa
urna abertura para a questão do ser. O tempo fundado na
temporalidade do ser-aí, analisada pela analítica existen
cial, é transcendental. A meta da fenomenología hermenéu
tica do ser-aí é a explicação do tempo como o horizonte
transcendental da questão do sentido do ser. O tempo
fundado na temporalidade do ser-aí é transcendental por
que conota a abertura do ser-aí. O desvelamento apofán-
tico das estruturas e da temporalidade do ser-aí descobre
as condições em que a transcendência do ser emerge na
transcendência do ser-aí. Isto, porém, não é uma análise
abstrata da origem da transcendência. É uma análise da
facticidade, da dimensão fenomenológica da existência
em seu acontecer concreto.
67
O problema reside na questão: é possível ou não que
a explicitação do tempo leve ao sentido do ser? A explica
ção do sentido de ousia no pensamento de Heidegger e
a análise da viravolta melhor situariam a questão. O que,
porém, nos interessa agora diretamente é a atitude de
Heidegger diante da fenomenología, depois que ela, en
quanto fenomenología hermenêutica, levou a um impasse.
As análises da fenomenología hermenêutica cessaram
após as tentativas nos trabalhos que surgiram em torno
de Ser e Tempo. Isto, porém, não representa uma renún
cia e uma rejeição da fenomenología como momento ne
cessário no caminho da reflexão.
No prefácio da nona edição de Ser e Tempo, Heideg
ger explica: “Entretanto, o caminho traçado, ainda hoje
permanece necessário, se a questão do ser deve inspirar
nessa existência’’ (26). Uma carta de 1962 confirma-o:
“A problematização de Ser e Tempo, contudo, de modo
algum é abandonada” (27). “A problematização de Ser e
Tempo é completada de modo decisivo no pensamento
da viravolta. Completar somente pode aquele que abarca
o todo. Somente esta complementação oferece a determi
nação suficiente do ser-aí, quer dizer da essência do ho
mem pensada a partir da verdade do ser enquanto tal” (28).
Ser e Tempo visava desdobrar a verdade do ser a
partir da analítica do ser-aí realizada pela fenomenología
hermenêutica. Já aí, porém, se afirmava a necessidade
de esta analítica ser refeita após uma profunda discussão
do conceito de ser (29). Nesta discussão do sentido do
ser não seria aplicável o método fenomenológico herme
nêutico. Continuaria Heidegger com o método fenomeno
lógico para determinar e esclarecer a idéia de ser em
geral? Os trabalhos posteriores mostram que o método
continua comandando a interrogação, apesar das poucas
referências explícitas.
68
ger realizara em 1923: Expressão e Fenômeno. Falava ele
de uma nova dimensão da hermenêutica enquanto esta
descobre uma nova relação do homem com a diferença
ontológica entre presença e presente. O professor japo
nês diz que Heidegger abandonou o âmbito da subjetivi
dade “através do aprofundamento da relação hermenêu
tica com a diferença ontológica” (30). "Procurei-o ao
menos, replica Heidegger. As representações principais,
que sob os nomes “expressão”, “vivência” e “consciên
cia”, determinam o pensamento moderno, se deveríam
tornar problemáticas no que se refere a seu papel deter
minante” (31). O interlocutor, porém, objeta que o título
da preleção de 1923: Expressão e Fenômeno, parece si
tuar a problemática dentro da relação sujeito-objeto. Hei
degger reconhece que muitas coisas ficaram obscuras na
quelas aulas e diz que não é possível sair de um salto da
esfera de representação dominante. Além disto o pensa
mento de Heidegger, na sua discussão com o pensamento
moderno, pretendia, antes de tudo, recuperar mais origina
riamente o passado-presente. Ele chama atenção para a
palavra “repetição” que vem no título do § 1 de Ser e
Tempo. Esta repetição aponta para um retomar, um re
cuperar, um reunir daquilo que se esconde no pensamen
to antigo. E para isto se exige “atenção para os indícios
que conduzem o pensamento para o âmbito de sua ori
gem” (32). Estes indícios não são do autor e são apenas
poucas vezes perceptíveis como o eco apagado de lon
gínquo apelo. Para mostrar que não mais coloca a rela
ção sujeito-objeto como fundamento da distinção Expres
são e Fenômeno ele recorre a Kant. O conceito de fenô
meno em Kant repousa no fato de que tudo o que se
apresenta já se transformou em objeto da representação.
Todo o fenômeno em Kant deve ser experimentado como
ligado à oposição ao sujeito. Isto é necessário para, an
tes de mais nada, podermos experimentar originariamente
o aparecer do fenômeno.
“Os gregos, diz Heidegger, foram os que, pela pri
meira vez, experimentaram, enquanto tais, os phainómena,
os fenômenos. Mas nisto é-lhes absolutamente estranha
a caracterização do que se presenta pela objetividade;
phainesthai significa para eles: chegar a se manifestar e
assim aparecer como fenômeno. O aparecer como fenô
69
meno permanece o traço básico da presença do que se
presenta, na medida em que o que se presenta emerge
no desvelamento” (33). O Filósofo usa a palavra “fenô
meno” no sentido grego, ao menos na medida em que
este exclui o sentido kantiano. Mas, a distinção feita con
tra Kant não basta. Quando se usa a palavra “objeto”
para o que se presenta, querendo dizer que o que se
presenta subsiste em si e por si, rejeitando-se assim a
explicação kantiana da objetividade, ainda não se pensa
o aparecer enquanto fenômeno no sentido grego; porém,
ainda que em sentido muito velado, no sentido cartesiano:
a partir do eu enquanto sujeito (34).
Heidegger, entretanto, também não pensa o aparecer
do fenômeno no sentido grego. “Nosso pensamento atual,
afirma ele, tem a tarefa de pensar mais radicalmente que
os gregos o que eles pensaram” (35). “Pensando a pre
sença mesma como o aparecer enquanto fenômeno, en
tão, reina na presença o emergir na clareira (abertura) no
sentido do desvelamento. Isto acontece no desvelar en
quanto abertura de uma clareira. Esta abertura de uma
clareira permanece, contudo, em si mesma, sob qualquer
ponto de vista enquanto acontecimento. Inserir-se no pen
samento deste impensado significa: ocupar-se mais ra
dicalmente daquilo que foi pensado em grego, descobri-
lo na origem de seu ser. O olhar que descobre isto é, a
seu modo, grego e, contudo, sob o ponto de vista do que
foi descoberto, não mais, nunca mais grego” (36).
Aquilo que é assim descoberto pelo olhar desvelador
apresenta-se como o fenômeno no sentido fenomenoló-
gico, no Segundo Heidegger, após a viravolta. Aqui se
mostra algo fundamental. Manifesta-se a mesma relação
que pouco acima fora apontada como resultado da nova
dimensão hermenêutica. O sentido fenomenológico de
fenômeno desponta aqui ligado novamente ao hermenêu
tico. Isto, porém, não acontece mais no horizonte de pro-
blematização de Ser e Tempo. Pode-se observar aqui cla
ramente a presença da viravolta. Nela a relação sujeito-
objeto está superada e a dimensão do método fenome
nológico, tanto como a da hermenêutica são transporta
das para outro plano. A dimensão hermenêutica brota
do próprio ser, assumindo o homem como mensageiro.
“Pois, na origem do aparecimento do fenômeno, dirige-
70
se ao homem aquilo em que se esconde a diferença de
presença e do que se presenta” (37). Esta diferença já
sempre se comunicou ao homem, ainda que ocultamente.
Na medida em que o homem é homem ele ouve esta men
sagem. O homem mesmo, sem prestar atenção, ouve esta
mensagem. Ele é obrigado a ouvi-la. Assim, o homem
está numa relação hermenêutica de sentido novo. Ele
traz a notícia da mensagem. “O homem é o mensageiro
da mensagem que lhe inspira o desvelamento da dife
rença” (38).
Esta análise realizada por Heidegger em A Caminho
da Linguagem entreabre o âmbito no qual podemos situar
o método fenomenológico após a viravolta. O fenômeno
no sentido fenomenológico se instaura numa nova relação
entre ser e homem em que o ser assume a hegemonia
na sua manifestação, fazendo com que o próprio homem
o atinja como fenômeno. A verdade transcendental mer
gulha agora na verdade fenomenológica enquanto onto-
lógica. A abertura transcendental emerge da clareira do
próprio ser, enquanto velamento e desvelamento. A ver
dade, o sentido, a abertura, a esfera do projeto do próprio
ser fazem do homem seu mensageiro.
71
pode estender sobre ele nenhuma ponte. Não há ponte
que conduza das ciências para o pensamento, a não ser
o salto” (39). O salto não nos revela apenas o outro lado,
porém, uma região absolutamente nova. A região do pen
samento nunca pode ser objeto de demonstração se esta
significa: “derivar proposições conforme a questão dada,
a partir de premissas adequadas, através de cadeias de
raciocínios”. Heidegger reduz assim o pensamento a uma
dimensão original. Falando da fuga do pensamento em
que se movimenta o homem moderno, distingue dois tipos
de pensamento: o pensamento que calcula e o pensamen
to que medita: “Existem dois tipos de pensamentos; am
bos por sua vez e a seu modo justificados e necessários:
o pensamento que calcula e o pensamento que medita o
sentido” (40). O pensamento que medita o sentido é o
pensamento “não científico”. É somente este pensamen
to que pode buscar o sentido do ser. Portanto, se a feno
menología visa o desvelamento do sentido do ser é deste
pensamento que ela se alimentará.
“Quando uma coisa se manifesta apenas enquanto
ela aparece a partir de si mesma, permanecendo ao mes
mo tempo velada, querer ainda provar ou exigir que seja
provada tal coisa, de modo algum é julgar conforme a
regra superior e mais rigorosa de conhecimento: é unica
mente fazer uma conta utilizando um certo sistema de
medida, um sistema inapropriado” (41). Eis um outro modo
de expressão do sentido heideggeriano de fenômeno. A
ontologia é fenomenología, porque seu “objeto”, o ser, é
o que se manifesta, velando-se nos entes. O ser somente
se manifesta quando a partir de si é mostrado, assim como
em si mesmo se mostra: isto é apophaínesthai tà phainó-
mena. O ser é fenômeno no sentido fenomenológico: mos-
tra-se, portanto, ocultando-se.
Heidegger aprofunda mais sua explicação: “Pois, há
uma coisa que somente se manifesta de modo que apare
ça no próprio ato pelo qual se esconde, nós só respon
demos bem se atraímos a atenção sobre ela e se nos im-
pomos a nós mesmos a regra de deixar aparecer, no des
velamento que lhe é próprio, aquilo que se mostra. Mos
trar assim simplesmente é um traço fundamental do pen
samento. É o caminho em direção daquilo que desde
sempre e para sempre dá que pensar ao homem” (42).
72
Demonstrar é a via comum de acesso a todas as verdades
científicas. Mostrar, porém, podemos poucas coisas. So
mente estas podem ser liberadas através de um ato indi
cador que as convida a vir ao nosso encontro. Mas estas
coisas não são apenas raras. Raramente elas se deixam
mostrar assim. Aquilo que faz o homem pensar é o ser, o
ser no estranho modo de entrar em relação com ele. Pois,
seu desvelamento próprio é ocultar-se. É por isso que o
método fenomenológico que se aplica ao fenómeno no
sentido fenomenológico consiste em mostrar aquilo que
em seu próprio ato de manifestação se vela.
Todo o pensamento se exerce, portanto, diante da-
quilo que se nos presenta enquanto se retrai. Este presen-
tar-se do ser se dá sempre no movimento de velamento,
de reserva. Ele sempre permanece enigma porque sua
plenitude mais reserva em si do que mostra. O homem
está envolto e atraído por aquilo que se mostra enquanto
se retira. Assim, ele é aquele que mostra o que se escon
de. A essência do homem consiste em mostrar no ente
o ser que nele se desvela e nele se retrai.
É preciso observar o fato de que Heidegger liga sua
fenomenología ao problema do pensamento. Pensar para
ele é, entretanto, pensar o ser. O verdadeiro, o único pen
samento essencial é o pensamento do ser. O ser enquan
to fenômeno no sentido fenomenológico é determinante
do pensamento. É o fenómeno do ser que nos faz pensar
e é o único digno de ser pensado. Heidegger resumirá
toda a sua posição diante do pensamento ocidental na
questão: Que significa pensar?
73
hermenêutica aplicada à analítica existencial teve uma
presença decisiva no ponto de partida de Heideg-
ger e no confronto do pensamento fenomenológico
deste com o de Husserl. Depois silenciou, para apenas
de passagem se referir a ela, apontando para uma radi
cal mudança de sentido da hermenêutica nos últimos anos.
Se continuou presente a inspiração primeira da fenomeno
logía como hermenêutica, a dimensão formal de fenome
nología no sentido fenomenológico se concretizou envolta
nas reflexões de Heidegger sobre o problema do ser. Já
não se tratava mais de discutir a analítica existencial como
ponto de partida escolhido para a interrogação pelo senti
do do ser; o decisivo então se tornara a análise e medi
tação do próprio sentido do ser. Nesta meditação a feno
menología tomou força nova e silenciosamente orientou
a lenta progressão da discussão do próprio sentido do ser.
O ser como fenômeno no sentido fenomenológico envol
ve em si os novos horizontes da fenomenología. Surge,
porém, uma terceira perspectiva do contexto da obra de
Heidegger como ontologia fenomenológica; suas análises
da História da Filosofia, enquanto procuram penetrar no
impensado dos textos da Tradição (o que se vela no que
foi pensado) são reflexões fenomenológicas sobre as es
peculações dos filósofos. A partir desta direção a feno
menología assume uma perspectiva riquíssima para a
compreensão da obra do Filósofo. Sem dúvida aqui se faz
notar a presença da destruição fenomenológica da histó
ria da ontologia que fora projetada em Ser e Tempo, so
bretudo em seu sentido positivo. O importante é verificar
que “a fenomenología oferecia as possibilidades de um
caminho" (43). Enquanto caminho ela se confunde com
o próprio caminhar. “Ela é a possibilidade do pensamen
to — que periodicamente se transforma e, somente assim,
permanece — de corresponder ao apelo do que deve ser
pensado. É a fenomenología assim compreendida e guar
dada, então, ela pode desaparecer como título, em favor
do objeto de pensamento, cuja manifestação permanece
um mistério” (44).
74
"Nossas explicações relativas ao conceito provisório de
fenomenología mostram que para ela o essencial não con
siste em se realizar como “movimento filosófico". Além
da atualidade situa-se a possibilidade. Compreender a fe
nomenología quer dizer: captar suas possibilidades” (45).
Antes de encerrarmos a análise da recepção crítica
da fenomenología na obra de Heidegger é necessário que
assinalemos a importância da alétheia na gênese da feno
menología heideggeriana. Em 1962 o Filósofo confessa:
“Com a provisória elucidação de alétheia esclareceram-
se o sentido e o alcance do princípio da fenomenología:
“às coisas mesmas” (46). E qual o sentido que Heidegger
descobriu na alétheia? “Um novo estudo dos tratados de
Aristóteles (em particular do Livro Nono da Metafísica e
Sexto Livro da Ética a Nicômaco) propiciou uma nova com
preensão do aletheúein como desocultar e a caracteriza
ção da verdade como desvelamento ao qual pertence todo
o mostrar-se do ente” (47). Com estas palavras Heideg
ger descreve sua evolução antes de Ser e Tempo. Por
tanto, a idéia de fenomenología como o mostrar das coi
sas mesmas, assim como a partir de si se mostram, está
vinculada à interpretação heideggeriana de alétheia. Da
alétheia advém, sobretudo, a dimensão de ambiguidade
da fenomenología, enquanto ela deve desvelar aquilo que
a partir de si sempre se oculta e vela nos entes.
Na Introdução de Ser e Tempo o Filósofo já aproxi
ma aletheúein e apophainesthai. “O “ser-verdadeiro” do
lógos como aletheúein significa que este lógos retira da
obscuridade o ente do qual fala, pelo légein como apo
phainesthai; ele o faz ver, o descobre como desvelado
(elethés)” (48). E no § 44 Heidegger repete: o ser-ver
dadeiro do lógos como apóphansis é o aletheúein confor
me o modo do apophainesthai: fazer ver o ente — retira
do da dissimulação — na sua não-dissimulação (ser-des-
coberto). A alétheia que Aristóteles identifica com o prãg-
ma, com os phainómena, significa as “coisas mesmas”, o
que se mostra, o ente segundo seu modo de ser-desco-
berto” (49).
Numa declaração de 1963 Heidegger confirma ainda
uma vez mais a ligação entre fenomenología e alétheia:
“O que se realiza para a fenomenología dos atos conscien
tes, como o automostrar-se dos fenômenos, é pensado
75
mais originariamente por Aristóteles e por todo o pensa
mento e existência dos gregos como alétheia, como des-
velamento do que se presenta, seu desocultamento, seu
mostrar-se” (50). Não é, entretanto, esta aproximação ex
terna que mostra a dependência essencial entre fenome
nología e alétheia em sua profundidade. Alétheia e fe
nomenología perpassam todo o movimento fundamen
tal do pensamento de Heidegger; da alétheia a ambivalên
cia passa pela fenomenología para caracterizar radical
mente a analítica da circularidade do ser-aí e o problema
da viravolta enquanto pensamento do ser como historia.
Não se pode conceber a fenomenología heídeggeríana sem
a presença da alétheia já no início da elaboração provi
soria de seu método fenomenológico. Somente na medida
em que a alétheia perpassa toda a obra de Heidegger está
nela também presente a fenomenología. A alétheia inspi
ra a fenomenología, mas, esta é a via de acesso ao ser
que acontece como alétheia, como velamento e desvela-
mento.
A fenomenología atingiu Heidegger não só quando
este já estava munido de poderosas intuições; a recepção
do método foi construída através de muitos anos. Como
resultado temos urna fenomenología levada a sua extre
ma radicalização e que com Husserl tem apenas em co
mum a mesma palavra de ordem: “às coisas mesmas”.
NOTAS — 2
77
36. US 135.
37. US 135.
38. US 136.
39. VA (Vortraege und Aulsaetze), 134.
40. Gelassenheit, 15.
41. VA 134.
42. VA 134.
43. US 92.
44. Mein Weg in die Phaenomenologie. em: Zar Sache des Denkens,
90.
45. SZ 38.
46. Ein Vorwort, p. 398.
47. Ein Vorwort, p. 398.
48. SZ 33.
49. SZ 219.
50. Mein Weg in die Phaenomenologie, 87.
78
3
A FENOMENOLOGIA
COMO
ONTOLOGIA HERMENÉUTICA
1 Kant resumiu os problemas da filosofia na ques
tão: que é o homem? Não tentou, porém, uma solução ra
dical. Segundo Heidegger, o fato de Kant não ter dado
uma resposta satisfatória à questão do ser e da verdade
se deve à insuficiente análise do homem. A ausência de
uma analítica do homem para atingir uma ontologia fun
damental levou Kant ao impasse. Já no projeto que fixou
a tarefa da segunda parte de Ser e Tempo: a destruição
da história da ontologia, Heidegger promete um estudo
do capítulo da doutrina do esquematismo para interpre
tar então, a partir daí, a questão do tempo. Só assim se
mostraria porque a investigação da problemática da tem-
poralidade não conduzira Kant a resultados definitivos.
Heidegger aponta para um duplo elemento que impediu
uma verdadeira compreensão do tempo: “primeiro, de
modo geral, a omissão do problema do ser e, paralela
mente, a falta de uma ontologia explícita do ser-aí, ou,
na linguagem kantiana, a falta de uma analítica ontológica
prévia da subjetividade do sujeito” (1).
O problema do esquematismo devia, segundo Heideg
ger, ser posto à luz, para que a palavra “ser” pudesse ter
um sentido suscetível de legitimação fenomenal. Kant o
entrevira na Crítica da Razão Pura: “Este esquematismo
de nosso entendimento no que se refere aos fenômenos
e suas formas puras é uma arte oculta nas profundezas
da alma humana e cujo mecanismo verdadeiro será difícil
arrancar um dia à natureza, para expô-lo descoberto
diante de nossos olhos” (2).
É pela analítica existencial que Heidegger queria che
gar ao fenômeno da temporalidade, para então abordar a
questão do sentido do ser. Para recolocar a questão do
sentido do ser, de modo expresso, era necessária uma
explicitação ontológica do ser-aí. Tal se fazia necessário
porque “compreensão do ser é em si mesma uma deter
minação ontológica do ser-aí”. Porque a “característica
80
ôntica do ser-aí consiste no fato do ser ontológico” (3),
— o que não quer dizer que tenha elaborado uma onto
logia, — e porque reservamos o nome ontologia para a
investigação explícita e teórica do sentido do ser, o ser-aí
assume uma característica pré-ontológica. Isto quer di
zer: o ser-aí é ao modo da compreensão do ser. Todas
as ontologias que se ocupam de questões ontológicas não
características do ser-aí radicam, portanto, na estrutura
ôntica do ser-aí que incluí em si uma compreensão pré-
ontológica do ser. Por isso, o nome ontologia fundamen
tal dado à analítica existencial. Esta ontologia fundamen
tal é ponto de partida para qualquer problematização
ontológica.
O ser do ser-aí é a existência. A explicitação da es
trutura ontológica da existência visa a compreensão da
constituição da existência. O conjunto das estruturas que
constituem a existência é a existencialidade. A analítica
destas estruturas tem o caráter da compreensão existen
cial. Estas estruturas tem o nome de existenciais. Heideg
ger os distingue radicalmente das categorias; estas são
determinações do ente que não é ser-aí (4). Os existen
ciais tem caráter dinâmico, enquanto as categorias são
extáticas. Para as ontologias antigas toda a explicitação
ontológica era realizada tendo por referência o modelo
da ontologia das coisas intramundanas. As coisas pura
mente subsistentes (Vorhandenheit) eram o elemento de
terminante também para a compreensão da existência.
Heidegger problematiza esta tendência do homem de se
orientar sempre, na interrogação pelo ser dos entes, pelos
entes subsistentes, pela ontologia da coisa (5).
Em Ser e Tempo o Filósofo critica e rejeita particular
mente a ontologia da coisa, enquanto modelo da compre
ensão ontológica do homem. Mais tarde, sua crítica se
volta também contra o transcendentalismo enquanto este
reduz a compreensão do ser em geral ao horizonte da sub
jetividade. A analítica existencial das estruturas do ser-aí
era o ponto de partida para qualquer questão ontológica.
Explicitamente, as análises se voltam contra o domínio da
ontologia da coisa, mas, implicitamente, já reside nelas
também a possibilidade de superação da posição da sub
jetividade transcendental. Esta superação só se tornou
possível pela radicalização do princípio da subjetividade;
81
sobretudo enquanto este era representado pela fenome
nología husserliana. O sentido positivo da analítica exis
tencial, porém, e sua meta determinante eram a retomada
da questão do sentido do ser. Assim, a elaboração na
constituição ontológica do ser-aí se apresentava como um
caminho (6) para a ontologia, no sentido amplo que Hei-
degger dava ao termo para fugir de qualquer determina
ção de escola (7).
82
geral. O sentido do ser que é buscado já é alcançado
pré-ontologicamente na compreensão do ser-aí. Isto é o
hermenêutico em si mesmo; dele irrompem todas as outras
dimensões da hermenêutica.
Os quatro sentidos que a hermenéutica recebe em
Ser e Tempo: — tudo o que se refere à explicitação, ela
boração das condições de possibilidade de toda análise
ontológica, analítica da exfstencialidade da existência e
metodologia das ciências históricas do espirito — residem
no hermenêutico em si mesmo, que é a condição do ser-
aí que já sempre se compreende em seu ser. Toda a obra
Ser e Tempo quer ser, primariamente, urna analítica da
existencialidade da existência que é possível graças à
condição hermenêutica do próprio ser-aí. Desta analíti
ca existencial emergem, então, os outros três sentidos: a
explicitação enquanto reside na própria compreensão; a
elaboração das condições de possibilidade de toda a aná
lise ontológica, enquanto a analítica existencial desco
bre o sentido do ser e as estruturas básicas do ser-aí
como horizonte para toda a pesquisa ontológica dos entes
que não são ser-aí; e, por fim, a metodologia das ciências
históricas, enquanto a analítica existencial elabora onto-
logicamente a historicidade do ser-aí como condição ônti-
ca da possibilidade da história (10).
É preciso atentar cuidadosamente para a dimensão
profunda do elemento hermenêutico na obra Ser e Tempo,
para se compreenderem as metamorfoses posteriores da
fenomenología enquanto ontologia hermenêutica. Apesar
de a fenomenología hermenêutica visar diretamente a ana
lítica existencial, penetra ela mais profundamente na obra
de Heidegger; silenciosamente talvez, como a análise pos
terior mostrará. Se em Ser e Tempo a fenomenología her
menêutica visa a explicitação das estruturas existenciais
do ser-aí, analisando o homem enquanto abertura para o
ser, posteriormente, esta fenomenología hermenêutica, já
explícitamente ontologia hermenêutica, orientará sua aten
ção para o ser, enquanto emerge na clareira que instau
ra no homem.
83
face, a partir da qual podemos falar da viravolta (Kehre)
ou do Segundo Heidegger. Esta mudança de visualização
em que o ser toma preponderância não é casual nem ar
bitrária, como mostra explícitamente o estudo do círculo
hermenêutico e da viravolta. Ela já vem prevista em Ser
e Tempo. Repetidas vezes observa Heidegger que a ana
lítica existencial somente pode ser plenamente sucedida
a partir da elaboração da própria questão do sentido do
ser.
Temos, já nas primeiras páginas, a afirmação de que:
“Assim, depende também a possibilidade do desenvolvi
mento da analítica do ser-aí do exame prévio da questão
do sentido do ser em geral” (11). Isto se faz necessário
porque a compreensão que o ser-aí tem de seu ser impli
ca constantemente numa certa compreensão do ser em
geral ou de uma idéia prévia do próprio ser.
Igualmente, quando analisa o problema dos existen
ciais e das categorias, ele mostra que o ente, que a eles
corresponde, reclama em cada caso um tipo primordial
mente diferente de interrogação: o ente é um quem (exis
tencia) ou um que (subsistência no sentido mais lato). Só
se poderá tratar das relações entre estes dois modos que
formam os caracteres do ser quando urna vez explicitado
o horizonte da questão do ser (12).
Quando Heidegger fala do ser-aí como compreensão,
como projeto; quando afirma que “todo o projeto do ser-aí
em direção a suas possibilidades já antecipa uma compre
ensão do ser” surge o mesmo problema. “Entretanto, a
explicitação última do sentido existencial desta compreen
são do ser somente será atingida quando forem também
atingidos os limites de todo este trabalho, sobre o funda
mento da interpretação temporal do ser” (13).
A elaboração da temporalidade do ser-aí, enquanto
quotidianeidade, historicidade e intratemporalidade, leva
Heidegger a insistir em que o ser-aí somente atinge sua
total transparência ontológica no horizonte da elucidação
do ser que não tem as características do ser-aí. “Todos
os seres disponíveis e subsistentes, porém, e tudo aquilo
de que podemos dizer “é”, além do ser-aí, somente po
dem ser explicitados mediante urna suficiente elucidação
da idéia de ser em geral” (14). Portanto, enquanto não
for conquistada esta idéia de ser em geral a análise do
84
ser-aí será incompleta e obscura. “A análise existencial-
temporal (do ser-aí) exige, por sua vez, uma repetição re
novada no âmbito da discussão básica do conceito de
ser” (15).
Ao falar da interpretação existencial da ciência, o Fi
lósofo diz que ela somente pode ser realizada ‘‘quando o
sentido do ser e a “unidade” entre ser e verdade forem
esclarecidos a partir da temporalidade da existência” (16).
Mesmo a fenomenología apenas receberá sua verda
deira dimensão como método, no interior do próprio mo
vimento de redimensionamento da questão central do sen
tido do ser e da exposição da “unidade” entre ser e ver
dade (17).
A quotidianeidade também somente atingirá sua de
limitação conceituai completa com a conquista do sentido
do ser em geral. “Todavia, pelo fato de com o nome quo
tidianeidade, em última análise, nada mais se visa que a
temporalidade, e esta constituir o ser do ser-aí, a suficien
te delimitação conceituai da quotidianeidade só pode ter su
cesso no âmbito da discussão básica do sentido do ser em
geral e suas possíveis modificações” (18).
A discussão da questão da historicidade também
aponta para a necessidade da presença da questão do
sentido do ser em geral, para ser compreendida em sua
radicalidade. Ao discutir o modo de como a historicidade
pode ser compreendida filosoficamente, em sua diferen
ça com o ôntico, e de como ela pode ser conceituada “ca-
tegorialmente”, Heidegger mostra que isto somente ocor
re se for possível reduzir a uma unidade originária o “ônti
co” e o “histórico”, unidade em que possam ser compa
rados e diferenciados. Isto, por sua vez, somente é pos
sível quando compreendido que a questão da historicida
de é uma pergunta ontológica pela constituição ontoló-
gica de um ente historial; que a questão do ôntico é urna
pergunta ontológica pela constituição ontológica do ente
que não tem a característica do ser-aí, do subsistente no
sentido mais ampio; que o ôntico é apenas urna área do
ente. “A idéia do ser compreende “o ôntico” e “o histó
rico”. É ela que deve poder ser “diferenciada generica
mente” (19). Mas, Heidegger conclui: “O problema da
diferença entre o ôntico e o histórico somente pode ser
elaborado, como objeto de pesquisa, se ele mesmo se ga-
85
rantiu antes, mediante a elucidação fundamental-ontoló-
gica da questão do sentido do ser em geral, o fio con
dutor” (20).
A questão da intratemporalidade novamente remete
para uma solução posterior: “A questão se de fato e como
ao tempo pertence um “ser”, porque e em que sentido o
chamamos de ente, somente pode ser respondida quan
do se mostrou em que medida a própria temporalidade,
na totalidade de sua temporalização, torna possível algo
tal como compreensão do ser e abordagem de ente” (21).
A discussão sobre o que é o ser e o que é o tempo
novamente nos situa no horizonte da questão do sentido
do ser em geral. Dá-se o ser — não o ente — somente
se há verdade. E verdade somente é na medida e enquan
to é ser-aí. Ser e verdade “são” co-originários. Somen
te se pode questionar, concretamente, o que significa que
o ser “é”, já que deve ser distinguido de todo o ente,
quando estiver elucidado o sentido do ser e o alcance da
compreensão do ser em geral. Somente então se poderá
explicar, adequadamente, o que constitui o conceito de
uma ciência do ser enquanto tal, as suas possibilidades
e modalidades. A delimitação de uma tal pesquisa e de
sua verdade desencadeará a determinação ontológica da
pesquisa que é descobrimento do ente e de sua verda
de” (22). “Tem (o tempo) afinal um “ser” ? E se não tiver,
é ele, então, um fantasma ou “mais ente” que qualquer
outro ente possível? A análise que progride na direção
de tais questões se chocará com as mesmas “barreiras”
que já se ergueram para a provisória discussão da uni
dade de verdade e ser” (23). Portanto, a discussão do
que “é ” ser e do que “é” tempo também é remetida para
o momento da elucidação do sentido do ser em geral.
No último parágrafo de Ser e Tempo Heidegger trans
fere ainda uma vez a solução da analítica existencial e de
outras perguntas básicas para o horizonte da resposta
ao problema do sentido do ser. “A analítica temática da
existência, por sua vez, necessita primeiro da luz que
emana da idéia do ser em geral, a ser antes elucida
da” (24). “Será mesmo possível procurar a resposta, en
quanto a questão do sentido do ser em geral permanece
obscura e informulada?” (25).
86
Esta longa série de procrastinações que emergem dos
diversos capítulos de Ser e Tempo, mostram a incomple-
tude da fenomenología hermenêutica, animam a procurar
outros aspectos da fenomenología hermenêutica que po
sam trazer nova luz sobre as análises feitas em Ser e Tem
po. Todos estes textos vem igualmente mostrar que a feno
menología só alcança seu pleno desdobramento como onto
logia hermenêutica, como interpretação do ser. Se exami
narmos apenas as passagens inventariadas, teremos os se
guintes problemas a serem explicitados posteriormente: as
relações entre ser-aí e os outros entes; a explicitação
última do sentido existencial da compreensão: o proble
ma dos entes subsistentes e disponíveis; a analítica exis-
tencial-temporal; o problema da interpretação existencial
da ciência; o desenvolvimento do conceito de fenomenolo
gía; a suficiente delimitação conceituai da quotidianei-
dade; o problema da diferença entre o ôntico e o histó
rico; o problema da intratemporalidade; o fato e o modo
de como o ser faz parte do tempo. A própria questão do
“ser” de Ser e Tempo é remetida para o horizonte da elu
cidação do sentido do ser em geral.
87
“A filosofia é ontologia fenomenológica universal, qué
parte da hermenéutica do ser-aí; esta, enquanto analítica
da existência, dá o fio condutor de toda problemática filo
sófica, fundando-a sobre esta existência, da qual toda
problemática irrompe e sobre a qual toda a problemática
repercute” (26).
A dimensão fenomenológica universal da ontologia já
foi antes analisada. Mas, esta ontologia reside e parte da
hermenéutica. Por isso a fenomenología é ontologia her
menêutica. O desvelamento do hermenêutico no ser-aí,
pela analítica existencial, é o ponto de partida necessário
para a ontologia. Este principio caracteriza toda a obra
de Heidegger. Toda a concepção das estruturas do ser-aí,
do problema da verdade, do ser e do tempo, das outras
ontologias, e mesmo o problema de Deus, somente podem
ser visualizados dentro da perspectiva que Ser e Tempo
estende sobre todo o pensamento de Heidegger. Tam
bém o Segundo Heidegger, em todas as suas considera
ções e projetos, está ligado ao princípio hermenêutico.
Por isso sua concepção de ser, sua posição relativa ao
vínculo entre ser e homem, tomam um cunho próprio,
que não pode ser confundido com outras posições da filo
sofia atual. O método fenomenológico marcou sua onto
logia com o caráter hermenêutico.
88
Já em sua obra intitulada Nietzsche, confessa a ne
cessidade de instaurar outro horizonte, para ser possível
auscultar o impensado na História da Filosofia, corres
pondendo mediante a destruição ao que nela vem oculto.
Diz textualmente: “A tradição da verdade sobre o ente,
que se desenvolve como “metafísica”, se desdobra numa
acumulação e obstrução da originária essência do ser,
que a si mesmo não mais conhece. Nisto reside a neces
sidade da destruição, tão logo se tenha tornado necessá
rio um pensamento da verdade do ser (confer. Ser e
Tempo). Mas esta destruição, assim como a “fenomeno-
logia” e toda interrogação hermenêutico-transcendental,
ainda não é pensada como história do ser” (27).
Em Ser e Tempo a interrogação gira em torno do ser
da verdade, enquanto abertura, compreensão do ser-aí.
O pensamento da verdade do ser, coincide com a história
do ser e se dirige à abertura e compreensão que o ser
instaura no homem. Então, emerge a questão do “ser e
sua verdade na relação com o homem” (28)- Neste âm
bito a fenomenología e a hermenêutica devem passar por
uma transformação. A analítica do ser-aí ainda apresenta
traços acentuados do pensamento transcendental, ainda
que a intenção seja superá-lo. A fenomenología herme
nêutica pode ser pensada na viravolta como história do
ser, onde a interrogação transcendental, “cujo caráter
de horizonte é apenas a face de um aberto que nos en
volve voltada para nós” (29), cede seu lugar ao acontecer
do ser que instaura e funda a transcendentalidade. O ca
minho que levou Heidegger até aqui passou pelo pensa
mento da subjetividade da Filosofia Moderna, superando-
o pela radicalização da fenomenología husserliana.
No diálogo, citado anteriormente, com o professor ja
ponês, Heidegger observa: "Não terá passado desaperce
bido que não emprego mais, em meus escritos posterio
res a Ser e Tempo, os nomes “hermenêutica” e “hermenêu
tico” . .. “Abandonei um ponto de vista anterior, não para
trocá-lo por um outro, mas, porque a posição de outrora
foi apenas uma interrupção na caminhada. O permanen
te no pensamento é o caminho. E os caminhos do pensa
mento escondem em si a possibilidade misteriosa de ne
les podermos avançar retrocedendo, de o próprio caminho
de retorno nos conduzir para frente” (30). A fenomenolo-
89
gia hermenêutica representa, portanto, uma etapa no pen
samento de Heidegger. Esta etapa se comensura com o
Primeiro Heidegger. Mas, na viravolta, esta etapa retorna
situando-se apenas num outro horizonte.
90
(wesen) enquanto fenômeno. 0 homem acontece então
como homem na medida em que corresponde à inspira
ção da diferença ontológica e, assim, a comunica na men
sagem que dela procede. O que prevalece e sustenta a
vinculação do ser humano com a diferença ontológica é
desta maneira a linguagem. Ela determina a relação her
menêutica” (36).
«)1
cação de sua mensagem. Heidegger explora a carga se
mântica do verbo “ wesen” , que precisamente exprime a
dimensão fenomenológica do acontecer do próprio ser. O
ser acontece como fenômeno enquanto presença do que
se presenta, enquanto clareira do que se manifesta; sem
pre, porém, se oculta como unidade simples de que emer
ge a diferença ontológica. O Filósofo afirma que o que
determina a vinculação hermenêutica do homem com o
acontecer do ser, enquanto fenômeno, é a linguagem. Em
outra passagem diz: “Naquela locução (a linguagem é a
casa do ser) não viso o ser do ente metafisicamente re
presentado, mas o acontecer fenomenológico (wesen) do
ser, mais exatamente, a diferença ontológica entre ser e
ente. Esta diferença ontológica, entretanto, sob o ponto
de vista do ser digno de ser pensado” (37). Para Heideg
ger o ser acontece como fenômeno na linguagem. Por
isso ela é a casa do ser. Isto toma seu sentido próprio
quando temos presente que ele distingue “entre “ser" en
quanto “ser do ente” e “ser” enquanto “ser” sob o ponto
de vista do sentido que lhe é próprio, isto quer dizer, sob
o ponto de vista da verdade (clareira) do ser (38). Este
acontecer do ser, sob o ponto de vista de seu sentido, é o
que se busca, segundo o projeto de Ser e Tempo, no acon
tecer do tempo.
Quando Heidegger fala da vinculação hermenêutica do
homem com o acontecer do ser como fenômeno, não fala
de um vínculo no sentido de relação. O fato de o homem
estar numa vinculação hermenêutica, é assim explicado:
“A palavra “vinculação” procura dizer que o homem é
utilizado em sua essência, que ele, enquanto acontece
como homem, pertence a um “uso”, que o solicita” (39).
Esta solicitação é hermenêutica. Isto quer dizer que o ho
mem é solicitado “para trazer uma comunicação”, “para
guardar uma mensagem” (40).
“O homem está “numa vinculação” diz o mesmo que:
o homem acontece como homem “num uso” que o chama
para guardar a diferença ontológica que não se deixa elu
cidar nem a partir da presença, nem a partir do que se
presenta, nem a partir da relação mútua entre ambos. Por
que somente a diferença ontológica desdobra a clarida
de, isto é, a clareira, na qual o que se presenta enquanto
tal e a presença podem ser distinguidos pelo homem que
92
pela sua própria essência está na vinculação, isto é, no
uso da diferença ontológica. Por isso também não pode
mos mais dizer: vinculação com a diferença ontológica,
pois, ela não é nenhum objeto da representação, mas o
imperar do “uso” (41).
Estas observações resumem muitas páginas. Não é
preocupação nossa explorar as filigranas da linguagem.
Interessa-nos, diretamente, ver nestas análises a nova di
mensão que a fenomenología hermenêutica atinge no Se
gundo Heidegger. O homem é efetivamente colocado a
serviço da manifestação do ser. É seu mensageiro. É usa
do para que o ser se possa manifestar enquanto fenômeno.
Mostrem estas observações com as quais o Filósofo pro
cura manifestar a multiplicidade de ângulos que exprimem
— aqui, do ponto de vista hermenêutico — , sua única
preocupação: o sentido do ser, a verdade do ser, a clarei
ra do ser, a manifestação do ser, o ser enquanto fenôme
no no sentido fenomenológico, acontecendo como vela-
mento e desvelamento (42). O método fenomenológico
visa abrir caminho para esta questão: Esta a razão porque
a fenomenología deve ser vista como ontologia herme
nêutica (43).
93
NOTAS — 3
1. SZ 24.
2. SZ 23.
3. SZ 12.
4. SZ 44.
5. SZ 437.
6. SZ 436.
7. SZ 27.
8. SZ 37. Desta maneira, a fenomenología é ontologia fundamental
em dols sentidos: urna vez enquanto analisa as estrutu
ras fundamentais do ser-aí e outra enquanto busca o
sentido do ser que então será o fundamento de qualquer
ontologia.
9. US 98.
10. SZ 37-38.
11. SZ 13.
12. SZ 45.
13. SZ 147.
14. SZ 333.
15. SZ 333.
16. SZ 357.
17. SZ 357.
18. SZ 372.
19. SZ 403.
20. SZ 403.
21. SZ 406.
22. SZ 230.
23. SZ 420. Estas questões serão objeto de exame e interpretação
da conferência Tempo e Ser publicada em: Zur Sache
des Denkens.
24. SZ 436.
25. SZ 38 e 437.
26. SZ 38 e 436.
27. Nietzsche II, 415.
28. E¡n Vorwort, 401.
29. Gelassenheit, 39.
30. US 99.
31. US 131.
32. US 120.
33. Platão — Ion 534 e.
34. US 121.
35. US 122.
36. US 122.
37. US 118.
38. US 110.
39. US 125.
40. US 126.
41. US 126.
42. Â base de todas estas expressões está o modelo binário em que
se fundamenta o método fenomenológico. Vide capítulo quinto.
43. A problemática estudada no presente capítulo pressupõe a inter
pretação heideggeriana do círculo hermenêutico e da constitui
ção circular do ser-aí. Para isto vide minha tese de livre-docên-
cia: Compreensão e finitude — Estrutura e movimento da inter
rogação heideggeriana, Ética Impressora, Porto Alegre 1967.
II
INTERPRETAÇÃO E CRITICA
4
A AMBIGUIDADE DO MÉTODO
HEIDEGGERIANO
E OS
MÉTODOS FILOSÓFICOS ATUAIS
1 Nas discussões metodológicas da filosofia atual
impõe-se, cada vez com mais clareza, o domínio do méto-
to dialético de um lado e do método lógico-analitico de
outro. O primeiro se perfila sob a influência sempre maior
das ciências sociais, sobretudo da sociologia; o segundo
Se apoia nas conquistas no campo da linguística, nos pro
cessos de formalização e nos domínios da lógica. A po
larização entre sociologism o dialético e positivismo lógico
parece cada vez maior. E, para um futuro não remoto,
anuncia-se uma “perfeita disjunção na oposição entre
dialética e lógica”. “Não há dúvida que se destacam dos
dogmáticos de viseira, de um e de outro arraial, aqueles
que têm em mira uma “síntese”. Mas, justamente esta meta
pode ser unicamente estabelecida com base na idéia de
que lógica e dialética juntas constituem o todo da filoso
fia que hoje ainda merece ser discutida. O que não se
resolve nesta alternativa, ou não é filosofia ou é “de on
tem” (1).
Heidegger é por muitos julgado como um filósofo “de
ontem” ; isto se dá particularmente por causa de seu mé
todo. É relativamente fácil distinguir entre o método feno-
menológico como Husserl o entendia e as pretensões me
todológicas dos analistas lógicos da linguagem. O primei
ro quer atingir a verdade mediante uma análise crítica da
intencionalidade da consciência. A analítica da lingua
gem procura a verdade pela análise crítica da linguagem.
Trata-se do deslocamento de interesses, de uma área para
a outra, com o qual se prometem melhores resultados e
mais rigor sob o ponto de vista do método. Mas a distân
cia que separa as duas posturas metodológicas é enorme.
A oposição chega a se basear no arbítrio; depende de
motivações. Exemplo para isto: quando Merleau-Ponty
perguntou a Ryle: "Não é nosso programa o mesmo?”,
este respondeu: “Espero que não” (2).
98
O método fenomenológico, assim como o entende
Heidegger, é ainda mais radicalmente recusado pelos ana
listas da linguagem; nem mesmo um tal diálogo sobre as
pretensões de ambos é possível. A fenomenología, assim
como Heidegger a formula sob o ponto de vista do méto
do, parece ser definitivamente “de ontem” para os que
se ocupam em pôr clareza e ordem nas proposições filo
sóficas.
99
Mas a frustração da lógica das proposições, ou me
lhor a problematização com que ela nada pode fazer, não
deve levar a urna tentativa de interpretar dialeticamente
o método heideggeriano. Nada há em seus pressupostos
que se aproxime do processo dialético, sobretudo de sua
necessidade e movimento teleológico. As proposições cen
trais da obra de Heidegger não são proposições especula-
tivo-dialéticas no sentido hegeliano.
100
tivismo lógico, sempre é um excesso que a clareza e a
linearidade da linguagem proíbem e para o método dialé
tico é muito pouco porque omite a pretensão de atingir o
absoluto.
Os dois métodos que monopolizam as atenções na
crista da onda de sua atualidade, tem razão, em suas crí
ticas contra o método fenomenológico heideggeriano. A
ambigüidade em que nele aparece a lógica: de um lado,
se afirma que falha o essencial, porque vem presa ao fenô
meno no sentido vulgar; de outro, subsiste, porém, a abso
luta necessidade de seu uso para poder-se dizer alguma
coisa daquele âmbito em que se vela o fenômeno no sen
tido fenomenológico. Tal ambigüidade está lonae da trans
parência que evitaria confundir questões filosóficas verda
deiras com aquelas que são apenas questões nascidas da
linguagem. Os que defendem o método dialético apontam
para a distância que separa o método fenomenológico da
história e da praxis: por mais que se analise a quotidianei-
dade, a existência, a angústia, a preocupação, sempre a
analítica existencial parece manter-se longe do concreto
acontecer histórico e das questões que agitam a socieda
de. Tem-se a impressão de assistir ao desfile de esque
mas, arquétipos; de estar caminhando num céu rarefeito
em que são decompostos e articulados os momentos es
senciais do acontecer humano, num ensaio que nunca
chega ao confronto definitivo com a vida.
No entanto, ambos os métodos assim flagrados em
sua crítica, movem-se sobre pressupostos que eles pró
prios não são capazes de explicitar; e estes necessaria
mente devem ser respeitados já que são condições de sua
própria possibilidade. Tal dependência não diminui a im
portância e o porte de seu trabalho e de seus resultados,
tanto no âmbito da clarificação da verdade na linguagem
para a comunicação intersubjetiva, como no âmbito da
operacionalização da verdade empírica para a praxis hu
mana. Estes pressupostos devem, porém, ser explicita
dos, se a filosofia não quiser renunciar à sua tarefa de
buscar metódica, crítica e sistematicamente, as razões
últimas. Esta explicitação não será certamente uma ex
plicação positiva nem se resumirá em “definições opera-
101
donáis” ; ela somente se dará por um processo de apro
ximações que não podem ser legitimadas por demonstra
ções e argumentos apodícticos. A clareza metódica será
sempre, em face dos outros métodos, turbada por um con
teúdo nunca esgotável nas proposições. É isto que dá
esta característica ambivalente ao método fenomenoló
gico como Heidegger o compreende.
102
O que penso ser o fator determinante e individuali-
zador do método fenomenológico é a descoberta que Hei
degger fez de que existe um prim ado da tendência para o
encobrimento (5). Se não levar em consideração tal es
tado de coisas a análise filosófica corre o risco de ser in
gênua e de falharem seus propósitos. Esta convicção do
Filósofo assume um papel importante na auto-compreen-
são de seu método. Ao invés de pensar, como Husserl e
outros filósofos, que diante de nós a realidade se estende
à espera da rede de nossos recursos metodológicos que
a aprisionem, Heidegger afirma que o homem e o essencial
nas coisas tendem para o disfarce ou estão efetivamente
encobertos. Por isso, ele se volta para o como, buscando
o modo de levar o objeto de sua investigação à revelação.
No começo o Filósofo ainda fala do “ser dado” (Gegeben-
sein)-, depois já se trata do “encontro” (Begegnung)-, mais
adiante já surge o termo “descoberta” (Entdecktheit)-, pa
ralelamente se usa a palavra “revelação” (Erschlossenheit);
enfim passa a dominar o “desvelamento” (Unverborge-
nheit)\ às vezes este último vem estilizado no termo “cla
reira” (Lichtung). Todos estes termos estão afinal ligados
à palavra phaínesthai. Trata-se sempre de um empenho
para abrir um ámbito em que aquilo que está velado se
mostra a partir de si mesmo. É o ser que se deve revelar
sob o ente.
Mas, já que o ser somente se revela sob o ente, num
retorno sobre o ser-ai, torna-se decisivo perseguir e pôr a
nu os modos de dissimulação em que primeiramente e o
mais das vezes se situa o próprio ser-aí, na sua cotidia-
neidade. Heidegger descobre o ser-aí no movimento de
fuga de si mesmo, numa tentativa de não se assumir na
sua totalidade, como preocupação, que se articula em
existência, facticidade e decaída ou ser-adiante-de-si, ¡á-
ser-em e ¡unto-dos-entes. O ser-aí se vela para si mesmo,
encobre suas possibilidades e assim barra a possibilida
de de uma revelação de ser. A atitude do Filósofo, para
contornar a fuga do ser-aí de si mesmo, é partir da análi
se da quotidianeidade e descobrir nela o homem no movi
mento de fuga. Somente, urna vez realizada a analítica do
ser-aí quotidiano, se descobre como o ser-aí pode assu-
mir-se, pela decisão enérgica, na sua verdade, para des
cobrir que sempre está simultaneamente na não-verdade.
103
Este interesse pela não-verdade é o sinal da fuga de si
mesmo.
O existencial em que se concentra a possibilidade de
sucesso do método fenomenológico é o da compreensão.
Desde sempre o homem é compreensão, compreende-se
em seu ser e nele já antecipa urna implícita compreensão
de ser em geral. O que importa é explicitar esta compre
ensão. É através déla que se atinge, não apenas o ser-aí
numa instância decisiva, mas ao mesmo tempo, “ a trans
parência metódica do processo compreensivo-explicativo
da interpretação do ser” (6).
Por que reside no compreender a possibilidade da
transparência metódica do método fenomenológico?
104
tendal “compreensão”. Este é tratado pela linguagem-
objeto. O Filósofo descreve algo. No § 63, entretanto,
ocorre urna parada metodológica, imposta pela circulari
dade do método fenomenológico. Nela Heidegger realiza
uma reflexão metateorética, que como metalinguagem se
distancia do objeto ser-aí, para se deter na importância
metodológica daquilo que foi exposto na analítica da com
preensão nos §§ 31 e 32. Desta maneira se revela então
toda a envergadura do círculo inevitável para quem utiliza
o método fenomenológico como Heidegger o faz, partindo
implicitamente da compreensão. O Filósofo só pôde an
tecipar uma exposição provisória do método (§ 7) porque
os dados para a compreensão mais profunda do método
só estariam disponíveis após a explicitação do ser-aí quo
tidiano. Portanto, o método é compreendido quando já se
analisou com ele aquilo para o qual foi elaborado. A cir
cularidade está em que se pressuponha aquilo que deve
ser atingido pelo método; o caminho que conduz ao obje
to só pode ser trilhado se pressuposto o conhecimento
do objeto. Toda a explicitação do ser-aí quotidiano repou
sa, portanto, num pressuposto. O caráter metódico da
analítica existencial não se evidencia ainda na exposição
provisória do método fenomenológico; só na segunda sec-
ção de Ser e Tempo a explicitação do método revela sua
situação e alcance.
105
ao encerrar a analítica da quotidianeidade. As razões da
análise da compreensão, na primeira secção de Ser e
Tempo, contudo, não são puramente temáticas, nelas se
esconde um interesse metodológico, que é explícitamente
referido no § 63.
No início do § 45, a situação hermenêutica é introdu
zida como conceito válido para o método fenomenológico
que Heidegger já utilizara em toda a primeira secção,
pressupondo-o provisoriamente. A situação hermenêutica
é ligada com a aquisição prévia, vista prévia e antecipa
ção, instâncias características da explicitação (interpreta
ção). Estas três componentes da explicitação são chama
das de “pressupostos". Destes “pressupostos" fala então o
Filósofo, no fim do § 62 (10), como passagem para o pa
rágrafo propriamente metodológico (§ 63) no corpo de
Ser e Tempo. “Mas não está na base da interpretação
ontológica da existência do ser-aí até aqui realizada, uma
determinada concepção ôntica da existência autêntica, um
ideal táctico do ser-aí? É, realmente, assim. Este fato não
pode apenas não ser negado e confessado obrigatoria
mente; ele deve ser compreendido, a partir do objeto te
mático de investigação, em sua positiva necessidade. A
filosofia não deverá jamais querer negar seus “pressu
postos", mas também não apenas confessá-los. Ela com
preende os pressupostos e conduz, justamente com éles,
aquilo para que são pressupostos para um radical desdo
bramento. Esta função tem a consideração metódica ago
ra exigida” (11).
No § 63, o Filósofo descreve, então, “a situação her
menêutica conquistada para a interpretação do sentido do
ser da preocupação e o caráter metódico da analítica exis
tencial em geral". O que sempre suscita estranheza ao se
reler este parágrafo tão surpreendente, é o fato de que
nele não se faz referência alguma ao § 7 em que o mé
todo fenomenológico é provisoriamente exposto. Os dois
§§ tem, sem dúvida nenhuma, vínculos inegáveis. Há,
porém, uma diferença que me parece não ser casual e
que dá outra dimensão ao § 63. Enquanto o § 7 é posto
na Introdução a Ser e Tempo, o § 63 surge no corpo da
exposição sistemática da analítica existencial. Foi o obje
to mesmo da análise que impôs “à marcha da investiga
ção uma parada” ? (12). Penso que Heidegger dá uma res-
106
posta rápida, mas suficiente para nos orientar na questão
que nos interessa. No § 61, que introduz o capítulo sobre
“o auténtico poder-ser-total do ser-aí e a temporalidade
como o sentido ontológico da preocupação”, o Filósofo
fala do “esboço do passo metódico” (13). “Método autén
tico se funda na adequada visão antecipadora sobre a
constituição fundamental do “objeto” a ser explorado, res
pectivamente, da área do objeto. Autêntica reflexão me
tódica — que certamente deve ser distinguida da vazia
discussão da técnica — dá, por isso, ao mesmo tempo
esclarecimento sobre o modo de ser do ente tematiza-
do”(14). As referências do § 7 ao ser-aí (ente tematizado)
são raras e exteriores. Tem-se mesmo a impressão que
aquele parágrafo serve muito mais para participação no
debate sobre o que é fenomenologia. O verdadeiro cará
ter do método fenomenológico não pode ser explicitado
fora do movimento e da dinâmica da própria análise do
objeto. O ser-aí impõe, por causa de sua estrutura parti
cular, que a consideração metódica se realize dentro da
sistemática análise de seu ser e sentido. A introdução ao
método fenomenológico é, portanto, somente possível, na
medida em que de sua aplicação se obtiveram os primei
ros resultados. Isto constitui sua ambigüidade e sua intrín
seca circularidade. A “constituição fundamental do obje
to” e “o modo de ser do ente tematizado” estão implica
dos na exposição do método. Mas, como a “constituição
e o modo de ser” do ser-aí só resultam de uma análise
existencial, deve primeiro ser suposto o método. Sua ex
plicitação só terá lugar no momento em que tiver sido
atingida a situação hermenêutica necessária.
Uma comparação poderá esclarecer a questão. Witt-
genstein diz na sentença número 6.54 de seu Tractatus:
“Minhas proposições se elucidam do seguinte modo: quem
me entende, por fim as reconhecerá como absurdas, quan
do graças a elas — por elas — tiver escalado para além
delas. (É preciso, por assim dizer, jogar fora a escada
depois de ter subido por ela).” (15) Tornadas claras as
proposições obscuras com o auxílio das análises do Trac
tatus, joga-se fora a escada que conduziu para a clareza.
A filosofia não trata propriamente de conteúdos. Ela im
porta como caminho, como método. Uma vez que o mé
todo prestou seu serviço torna-se inútil. Só se fala daquilo
107
de que se pode falar claramente, (discurso científico).
“Deve-se calar sobre aquilo de que não se pode (é impos
sível) falar”, é a última sentença do Tractatus (16).
A postura de Heidegger, em Ser e Tempo, é absoluta
mente diferente. O filósofo prepara provisoriamente seu
método para iniciar a analítica existencial. Urna vez rea
lizada parte da análise, isto é, atingida a situação herme
nêutica que permite determinar o sentido do ser do ser-aí,
o filósofo pára. Descobre que o método se determina a
partir da coisa mesma. A escada para penetrar nas estru
turas existenciais do ser-aí é manejada pelo próprio ser-aí
e não pode ser preparada fora para depois dar acesso ao
objeto. Não há propriamente escada que sirva para pene
trar no seu ‘‘sistema”. A escada já está implicada naquilo
para onde deveria conduzir. O objeto, o ser-aí, já sempre
traz consigo a escada. Há uma relação circular. Somente
se sobe para dentro das estruturas do ser-aí, porque a
gente já se move nelas. Esta antecipação não-crítica do
método é consequência inevitável da circularidade do pro
cesso hermenêutico. Quem, para desenvolver seu método,
parte da compreensão como estrutura fundamental do
homem, sempre pressupõe de algum modo em exercício
aquilo que visa com o método.
108
Este resumo do que fo¡ até então atingido mostra que
a antecipação realizada pelo filósofo, ao iniciar a análise
da quotidianeidade, realmente conduziu a um ponto em que
o método recebe, na verdade, sua transparência, a partir
de dentro da própria marcha da analítica. Por isso, a expo
sição do método só podia ser provisória e exterior, provi
sória porque exterior. “O caminho até aí percorrido” (18),
analisando o ser-aí, revelou também porque o método
fenomenológico foi, de inicio, provisorio. Heidegger expõe
como teve que lutar com o primado da tendência para o
encobrimento que reside no ser-ai. Era preciso romper
com a atitude da fuga e da recusa de se assumir em sua
nadificação que caracteriza seu ser quotidiano. “Metodica
mente se exigiu” (19) para isto “violência”.
Só após tal “violência” (20), que repousava sobre
uma hipótese, o método intimamente ligado ao ser-aí e à
pré-compreensão de ser, teria conquistado seu estatuto
fundamental. Só a descoberta da tendência para o enco
brimento e a fuga própria ao ser-aí daria razão ao método
antes apenas esboçado.
A ambigüidade e complexidade do método fenome
nológico heideggeriano funda-se certamente na hegemo
nia da tendência para encobrimento; mas, tal tendência é
destacada porque somente assim se pode instaurar uma
distância entre o fenômeno no sentido vulgar e o fenô
meno no sentido fenomenológico, entre os múltiplos entes
e o ser. Pois, não se trata de alcançar o ser por um pro
cesso de abstração (isto não é possível, por que já acom
panha e condiciona a abstração), mas a partir do ser-aí,
das estruturas originárias que o constituem. E este está,
primeiro e o mais das vezes, envolvido na articulação dos
entes, ocupado com a sua familiaridade. Assim que o mé
todo fenomenológico heideggeriano, em contraste com ou
tros métodos que se propõe em Filosofia, deve adequar-se
a um fenômeno que só se mostra sob o velamento. Distan
cia-se, assim, tanto do método do positivismo lógico, que
deliberadamente foge das análises de seus pressupostos,
para optar por um sistema fechado de reverências, em que
predomina a univocidade e clareza; como se diferencia
também do método dialético que aposta, de antemão, numa
totalidade, a partir da qual suas proposições se iluminam
e na qual se apoiam, mantendo, contudo, ao nível em que
109
são enunciadas, uma contradição que apenas se resolve
no todo.
A ambiguidade das proposições basilares do pensa
mento heideggeriano não nasce de algum secreto
amor ao crepuscular e nebuloso. Nem amplia o Filósofo o
conceito de verdade como desvelamento, até o indefi
nido, porque julgue supérflua a verdade que se legitima e
define operacionalmente. Nem pretendem suas tiradas pro
féticas e afirmações enfáticas abafar as conquistas deli
mitadas e restritas de uma linguagem que lida com moeda
miúda e só dá passos em regiões já iluminadas. A clareza
com que viu a fixidez de um pensamento ontológico e
a convicção de que contudo a ontologia ainda era de
algum modo necessária, fê-lo enveredar pelo caminho da
radicalização fenomenológica. O fato de seu método fe-
nomenológico ser sustentado entre as duas alternativas
metodológicas atuais, torna sua compreensão mais difícil,
mas não o dispensa de sua contribuição necessária.
110
mentar num circulo hermenêutico. Esta circularidade, que
não é apenas característica da compreensão, mas através
dela, do próprio ser-aí, também apresenta urna ambigüi
dade que acompanha toda a obra de Heidegger. Pelo
método fenomenológico se desvendou esta circularidade,
que passa, por sua vez, a possibilitar uma verdadeira pe
netração na fenomenologia. A estrutura circular da inter
rogação heideggeriana leva-o ao que chamará de viravolta
(Kehre). Na estrutura circular do ser-aí se revela que a
análise do ser-aí pressupõe uma compreensão do ser; mas,
uma compreensão do ser, supõe, quando quer ser explí
cita, urna analítica do ser-aí. A Kehre é um movimento
pelo qual o Filósofo, urna vez realizada a mediação pela
analítica, se volta para o ser e a partir dele analisa o ho
mem. A estrutura circular do ser-aí, de início reduzida
ao ámbito da analítica, se converte em movimento — na
historia de um pensamento — pelo qual este se volta
para o ser. O caráter hermenêutico da fenomenologia
toma então um sentido mais ampio e radical, determi-
nando-se a dimensão hermenêutica não mais só a partir
do homem, mas a partir do ser. Círculo hermenêutico e
Kehre não se sucedem na obra do filósofo, mas se entre
laçam, destacando-se um outro, conforme se queira enfa
tizar o problema do ser-aí ou o problema do ser. Se após
o movimento da Kehre, o filósofo retorna como que à sua
primigênia inspiração, que reside na alétheia, não se
pode falar de arbitrariedade. É ainda o impulso originário
da alétheia, como velamento e desvelamento, que comanda
a reflexão do último Heidegger.
Assim, alétheia, fenomenologia, circulo hermenêutico,
viravolta, podem ser designados: o momento de eclosão,
o método, a estrutura e o movimento da interrogação hei
deggeriana (21). Com isto apenas se assinala a dimensão
formal da questão para a qual se quis chamar a atenção
pelas observações até aqui feitas. Mas, os quatro ele
mentos formam uma unidade pela qual se pode apanhar
o pensamento do Filósofo como um todo disseminado em
múltiplas análises fragmentárias. Neste todo o método
fenomenológico não pode ser destacado como um instru
mento à parte. Se ele conduz o todo, recebe dele, por
sua vez, o que o individualiza como método.
111
NOTAS — 4
112
O CONFRONTO SISTEMÁTICO-CR1TICO
COM A HISTORIA DA FILOSOFIA
1 A quem leu com atenção os capítulos segundo e
terceiro, que se ativeram a uma exposição imánente do mé
todo fenomenológico heideggeriano, não terá passado de
sapercebido a quase exaustiva repetição de certos termos,
um ir e vir entre determinados modelos lingüísticos, a
queda em alguns estereótipos. São como que parâmetros
a partir dos quais se articula progressivamente o sentido
do todo, através de combinações e polarizações. Esta es
trutura vocabular é de tal maneira organizada que se for
mam verdadeiros campos semânticos em que uma palavra
só tem significação na relação com as outras palavras do
conjunto. Não apenas as palavras devem ser compreendi
das interrelacionadas, também as proposições são essen
cialmente determinadas pelo conjunto.
A idéia matriz do método repousa no binômio vela-
mento-desvelamento tirado da interpretação etimológica
da palavra alétheia — alfa privativo + velamento; inter
pretação que evolui e se radicaliza na obra do Filósofo,
até finalmente resumir nesta palavra grega o objeto da
filosofia. A tarefa da filosofia deve ser analisada no inte
rior do espaço criado pela tensão semântica resultante da
relação que os dois pólos velamento-desvelamento man
tém entre si. O modelo binário mantém-se, ainda que
mudem os termos polares: ocultar-mostrar, esquecer-lem-
brar, pensado-impensado, verdade-não-verdade, essência-
não-essência, dependendo sua força significativa sempre
de certas variáveis: homem, ser, História da Filosofia, Era
da Técnica. “Velar", “ocultar”, “esquecer”, têm sentido
positivo quando se referem a um comportamento do ser;
possuem, no entanto, sentido negativo quando resultam de
um comportamento do homem. “Desvelar”, “mostrar”,
“lembrar” possuem um sentido negativo quando se referem
apenas ao que é dado no sentido vulgar e superficial;
adquirem, no entanto, um sentido positivo quando apontam
a atitude fenomenológica em face do ser. Mas o poder ex
114
i
pressivo destes binômios não depende apenas das variá
veis; sua força significativa se modifica a partir de certos
contextos em que aparecem. Um é seu sentido na analítica
existencial, outro na interpretação da história do ser; e
outro ainda na análise da Era da Técnica. Sua tensão bipo
lar sustenta, no entanto, um vínculo que garante uma uni
dade profunda. Neste reside a compreensão especulativa
e totalizante em que o Filósofo resume a questão do pen
samento (1).
115
que tunda o discurso especulativo, isto é, que permite ex
por, num único movimento, e reciprocamente imbricados, a
dinâmica do pensamento, do método e da questão pro
priamente dita. Isto pode ser designado movimento de
totalização e tem seu próprio funcionamento semântico.
116
modo adequado a questão do ser, redimensionamento que
por sua vez depende dos resultados da analítica existencial.
117
logia do texto concordar de alguma maneira com a lingua
gem criticamente elaborada do leitor; b) ampliar o próprio
sistema de predicadores, quando no texto do autor apare
cerem determinados termos que até então haviam esca
pado ao leitor na análise sistemática do objeto; c) aban
donar termos já introduzidos em seu trabalho sistemático
quando surgir uma contradição entre a terminologia do
autor em questão e sua própria, se houver possibilidade
de comprovar que a do autor é preferível; quando isto
não puder ser comprovado rejeita-se a terminologia do
autor (5).
Este método, baseado no uso crítico da linguagem na
abordagem do objeto, tem, não há dúvida, uma contri
buição muito positiva a dar tanto para a elaboração de
uma linguagem rigorosa como para uma interpretação
cautelosa e sistemática dos textos. Quem, no entanto, pode
garantir que no movimento de análise do objeto o sistema
de predicadores não sofre mudança de sentido e de uso,
podendo o mesmo acontecer no movimento da História
da Filosofia? Não se pende aqui demasiadamente para o
terreno em que se elabora a linguagem científica, não se
respeitando assim o caráter específico da linguagem es
peculativa? No método lógico-analítico parece esconder-
se alguma coisa do preconceito do positivismo lógico
contra o pensamento especulativo, próprio da Filosofia.
No confronto de dois conjuntos de predicadores imánente
à linguagem perde-se a presença dinâmica da questão pro
priamente dita e trunca-se o movimento do pensamento
sempre comprometido, em seu exercício, com o objeto
mesmo da reflexão filosófica. A História da Filosofia é
usada para ampliar um sistema de predicadores que até
o momento do contato com os textos se construiu com
o controle da análise lógica. Não se é capaz de ver a
História da Filosofia como o acontecer unitário do
pensamento e da questão mesma conduzido pelo
método. Não apenas o método permanece exterior à coisa;
mas por causa do método a própria relação da linguagem
com a coisa é exterior. À clareza e ao esforço de facilitar
a comunicação sacrifica-se o movimento totalizante do
pensamento e da linguagem filosófica.
118
2. 2 Bem outra é a atitude do método especulativo-
dialético em seu confronto com a História da Filosofia. Pelo
fato de, no pensamento dialético, o método se adequar à
questão mesma, de desenvolver-se numa espécie de coin
cidência com a questão propriamente dita da Filosofia, a
interpretação da História da Filosofia deve ser realizada
como a esfera em que se processa a unidade de pensa
mento, método e objeto. Esta a razão porque o método
especulativo-dialético não aborda a História da Filosofia
nem de maneira exterior, nem de tal modo que a apresente
fragmentária. O pensamento da tradição é visto como um
todo, e cada intérprete já sempre se move neste todo, no
qual pode pensar adequadamente a questão mesma de
que se ocupa a filosofia. Ainda que o método dialético não
possa constituir-se desligado do próprio movimento do
pensamento que se desenvolve sobre o objeto e do cons
tante retorno do pensamento sobre si mesmo, não se pode
dizer que o pensamento dialético sacrifique a clareza à
totalização e a linguagem rigorosa à embriaguez da pa
lavra. Não deixa, no entanto, de ser extremamente penoso
desdobrar o funcionamento semântico da linguagem espe
culativa utilizada pelo pensamento dialético, devido às
múltiplas relações e conotações exigidas pelo esforço de
totalização.
Toda esta complexidade do pensamento especulativo-
dialético em si mesmo se transfere para o confronto sis-
temático-crítico com o pensamento da tradição filosófica.
Esta complexidade pode, entretanto, ser apresentada de
maneira tal que pareça muito simples, quando se destaca
o modelo triádico pelo qual se procura expressar esterioti-
padamente o movimento dialético. Para Hegel trata-se, por
exemplo, de pensar a História da Filosofia como um pro
cesso de posição, oposição e superação; tese, antítese e
síntese, na medida em que a questão mesma da Filosofia
progride desta maneira através dos diversos autores da
tradição. O movimento da questão mesma na História da
Filosofia é um progressivo sobressumir das contradições
num nível superior onde são mantidas numa unidade que
novamente será levada junto com sua antítese a uma
nova síntese. A razão se move neste suceder-se de opo-
sições e sínteses, unida ao objeto mesmo da Filosofia
que progride em direção de sua sempre maior explicitação.
119
Ainda que o pensamento dialético cultive o rigor da
linguagem, o controle metódico da palavra não se separa
da discussão da questão propriamente dita. É por isso
que o confronto crítico-sistemático com os autores da
História da Filosofia, sob o ponto de vista do método dia
lético, possui um caráter totalizante em que o controle da
linguagem não pode ser feito de maneira exterior ao pró
prio objeto; e o autor não pode ser visto isolado do movi
mento global da História da Filosofia, porque assim se
fragmentaria a questão que conduz o pensamento e o mé
todo.
Hegel e muitos outros pensadores dialéticos especi
ficam a questão propriamente dita para então afirmarem
que ela deve ser o ponto de referência de toda a inter
pretação do pensamento filosófico ocidental. A dificul
dade sempre reside na compreensão plena e adequada
desta questão da qual cada autor que utiliza o método
especulativo-dialético faz depender a unidade do movi
mento da História da Filosofia. Em todo caso parece-nos
que a compreensão dialética do todo da História da Filoso
fia é mediada pela exata e rigorosa determinação da ques
tão mesma, portadora tanto do movimento como da uni
dade em foco (6).
Desta cuidadosa determinação da questão mesma
através da linguagem adequada depende o nível crítico
do pensamento dialético; e o caráter sistemático do con
fronto com a História da Filosofia não consistirá em pri
meiro lugar na edificação de um conjunto rigoroso de pre
dicadores para emprego do intérprete dos autores da tra
dição, mas na capacidade de articular o sentido que
manifesta a questão mesma na história do pensamento.
Não temos a pretensão de ter dito o essencial para
a compreensão do que significa confronto sistemático-crí-
tico com a História da Filosofia. No caso do pensamento
especulativo-dialético devemos reconhecer que neste
pensamento se preserva o estatuto especulativo e totaliza
dor sem o qual a linguagem da filosofia dificilmente se
distingue do sistema de sinais próprio do pensamento
científico (7).
120
guindo-a da postura especulativo-dialética de Hegel. “Qual
é lá (em Hegel) e aquí (em Heidegger) a medida para o
diálogo com a historia do pensamento?”, pergunta o
Filósofo e responde: “Para Hegel a medida para o diálogo
com a Historia da Filosofia significa: penetrar na força
e no ámbito do que foi pensado pelos primeiros pensado
res.” . .. "Hegel encontra a força individual de cada pen
sador naquilo que por ele foi pensado, na medida em que,
como degrau singular, pode ser sobressumido no pensa
mento absoluto. Este somente é absoluto porque se move
em seu processo dialético-especulativo e para isto exige
a gradação” (8). O Filósofo passa então a delimitar sua
posição: “Para nós a medida para o diálogo com a tradição
historial é a mesma, enquanto se trata de penetrar na força
do pensamento antigo. Nós, porém, não procuramos a
força no que foi pensado, mas em algo impensado; o que
foi pensado recebe deste seu espaço essencial. Mas so
mente o já pensado prepara o ainda impensado que sempre
de modos novos se manifesta em sua superabundância.
A medida do impensado não conduz a uma inclusão do
anteriormente pensado, num desenvolvimento e sistemática
sempre mais altos e superadores, mas exige a libertadora
entrega do pensamento tradicional ao âmbito do que dele
já foi e continua assim reservado. Este passado-presente
perpassa originariamente a tradição, precede-a constan
temente, sem, contudo, ser pensado propriamente e en
quanto o originário” (9)
Este confronto que Heidegger estabelece entre si e
Hegel mostra, de maneira precisa, as semelhanças e dife
renças entre os dois modos de comportamento diante da
História da Filosofia. Ambos os filósofos descobrem no
movimento da história do pensamento uma presença cons
tante da questão propriamente dita da filosofia. Ambos
insistem na necessidade de o pensador penetrar neste
movimento do pensamento antigo para descobrir o elemen
to que lhe dá unidade. Em ambos a análise da questão
do pensamento não pode ser separada do confronto com
a História da Filosofia. Ambos, enfim, utilizam uma lin
guagem especulativa e totalizante, na qual o método se
desdobra em consonância com a questão propriamente
dita do pensamento.
121
O texto revela, entretanto, também os três aspectos
que separam profundamente os dois pensadores (10):
a) Hegel busca em cada pensador da História da Filo
sofia o elemento fundamental por este pensado; Heidegger
persegue em cada pensador da História da Filosofia algo
impensado no que este pensou, b) Para Hegel cada pen
sador é, com aquilo que pensou, um momento dentro de
um processo triádico em que as contradições são supri
midas (tiradas, elevadas e conservadas) num nivel superior;
para Heidegger o elemento impensado no pensamento de
cada autor da tradição é o mesmo que perpassa toda a
História da Filosofia e que é progressivamente encoberto,
c) O movimento triádico em Hegel exige como ponto de
referência e convergência um momento em que todas as
contradições se suprimem. Este ponto não precisa ser
objetivamente alcançável, mas deve constituir sempre o
horizonte a partir do qual os diversos momentos de opo
sição recebem seu sentido e unidade. O ponto de refe
rência e convergência, que para Hegel é a condição do
movimento ascensional do processo dialético, é interpre
tado por Heidegger justamente como aquilo que é a causa
radical do encobrimento do elemento impensado na Histo
ria da Filosofia. Para Heidegger jamais se suprime a ten
são entre pensado e impensado, velamento e desvela-
mento e para ele não existe a convergência para um ponto
determinado dentro de Historia da Filosofia a partir do
qual se pudesse pensar uma unidade. O que, no entanto,
novamente há de comum nesta extrema oposição é o fato
de cada um dos filósofos estar convicto de ser o momento
no qual a Historia da Filosofia pára para descobrir em si
mesma, ou o movimento do espírito em direção de si mes
mo, ou o fato de que nela se processa um progressivo
velamento da questão fundamental. Por isso em Hegel e
Heidegger, o pensamento especulativo — dialético e o pen
samento fenomenológico hermenêutico são tão próximos
e, contudo, residem “em montanhas separadas” (11).
122
tal. O modelo binário de velamento e desvelamento em
que se apóia o método fenomenológico hermenêutico para
o desenvolvimento da analítica existencial e para o redi
mensionamento da questão do ser é até mesmo transposto
para o ámbito da Historia da Filosofia que para Heidegger
é a Historia da Metafísica Ocidental. O confronto heideg-
geriano com esta, sob o ponto de vista tanto sistemático
quanto crítico, é realizado através do método fenomeno
lógico, o que significa que o Filósofo esquematiza, sé-
guindo o modelo binário, toda a História da Filosofia, ante
cipando e projetando um sentido que somente um longo
processo de interpretação pode confirmar ou rejeitar. É
verdade que o fio condutor da questão do ser representa
o constante ponto de referência para este processo de
interpretação, dando unidade e coerência a todo o projeto
sobre a Historia da Filosofia. Mas esta interpretação é tão
complexa, devido aos pressupostos que o Filósofo coloca,
que só dificilmente poderá escapar a generalizações infun
dadas e falsas ilações.
3 Vamos analisar agora os diversos passos que o
Filósofo percorre e sistematizar os resultados colhidos
pela sua interpretação da Historia da Metafísica Ocidental.
Uma passagem do livro Sendas Perdidas pode servir de
síntese para a postura que Heidegger assume diante da
Historia da Filosofia: “A metafísica funda urna época, na
medida em que Ihe dá o fundamento de sua forma essen
cial, através de urna determinada explicação do ente e de
urna determinada concepção da verdade. Este fundamento
perpassa todas as manifestações que caracterizam urna
época” (12).
Como funda a metafísica urna época e qual o modo
de ela caracterizar esta época? Heidegger o diz num
texto de sua obra intitulada Nietzsche: “A tradição da
verdade sobre o ente, que se desenvolve como “metafí
sica”, desdobra-se num encobrimento e obstrução da
originária manifestação do ser, que não tomam mais cons
ciência de si. Nisto reside a necessidade da “destruição”
desta obstrução, tão logo se tenha imposto como neces
sário um pensamento da verdade do ser. Esta destruição,
porém, do mesmo modo como a “fenomenologia” e toda
a interrogação hermenêutico-transcendental não é ainda
123
pensada como historia do ser” (13). E como se tornou
possível este encobrimento e esta obstrução da originária
manifestação do ser pela “metafísica” ? Heidegger o ex
plica; basta voltarmos mais para trás e determo-nos numa
passagem de Ser e Tempo: “A compreensão de ser, que
primeiro se impõe ao ser-aí e que ainda hoje não foi
superada fundamental e expressamente, encobre ela mes
ma o fenômeno original da verdade” (14).
A tendência do ser-aí é perder-se na articulação do
ente e assim encobrir o fenômeno original do próprio ser.
Esta tendência passou a predominar desde o começo da
metafísica ocidental, tornando-se esta assim a história do
encobrimento e da obstrução da questão do ser. Desta
maneira a metafísica marca toda a época que se estende
dos gregos até nós, através de uma explicação do ente
em que a questão do ser é encoberta e esquecida. Uma tal
explicação afeta todas as manifestações características
desta época. Assim a História da Metafísica Ocidental
será chamada por Heidegger de história do esquecimento
do ser, de niilismo, querendo o Filósofo dizer com isto que
nada mais há com o ser nesta história, na medida em
que nela o ser é velado.
124
porém, o mais das vezes encoberta, pois primeiro se impõe
ao ser-aí em sua quotidianeidade uma "compreensão de
ser que. . . encobre. . . o fenômeno original da verda
de” (17). Daí a tarefa da analítica das estruturas existen
ciais do ser-aí para arrancá-lo desta "compreensão q u e . ..
ainda hoje não foi superada fundamental e expressamen
te” (18). As duas secções da Primeira Parte de Ser e
Tempo que foram publicadas se propõem como finalidade
explicitar as estruturas do ser-aí para revelá-lo em sua
autêntica condição como ente que em seu ser compre
ende o ser. Heidegger empregou para este trabalho o
método fenomenológico baseado no binômio velamento-
desvelamento (19). Assim pôde mostrar a ambiguidade do
compoj-tamento do ser-aí sempre se movendo na tensão
entre abertura e dissimulação, autenticidade e inautenti-
cidade, existência e decaída, compreensão do ser e arti
culação dos entes. Esta ambigüidade característica do
ser-aí se transferirá para a História da Filosofia que Hei
degger interpreta como metafísica, porque o fundamento
desta emerge da ambivalente relação entre homem e ser.
125
a constituir-se numa tal história em que nada mais há com
o ser (niilismo) porque “toma o homem como um dado,
como natureza puramente subsistente, que então carrega
mos com a relação com o ser. A isto corresponde o
inevitável antropomorfismo que conseguiu até sua justifi
cação metafísica, através da metafísica da subjetivida
de” (22). A subjetividade que assim caracteriza a meta
física ocidental é por isso o sinal e a causa do esqueci
mento do ser. Causa porque nela se esconde a atitude
ingênua diante do ser-aí na medida em que este não é
visto em seu caráter ambíguo na relação com o ser; sinal
que é preciso ser interpretado para se compreender a
necessidade de uma analítica existencial que exponha a
estrutura binária e ambígua do ser-aí para então se
problematizar a “essência da metafísica” considerada
mesmo intocável como área que nenhum questionamento
filosófico pode ultrapassar” (23). Uma tal analítica do ser-aí
levaria necessariamente a uma “reflexão da metafísica
sobre a metafísica”, o que seria então uma “metafísica da
metafísica” (24). Esta é no fundo a meta da ontologia
fundamental de Heidegger, desenvolvida em Sem e Tempo.
O Filósofo afirma, porém: “Esta destruição, assim como
a “fenomenología” e todo o questionamento hermenêutico-
transcendental, não é ainda pensada como história do
ser” (25). A destruição, isto é, a penetração e o redimensio
namento da metafísica ocidental, deve ser interpretada
como tendo por finalidade atingir a questão por excelência
do pensamento que perpassa toda a metafísica: a questão
ser pensada como uma história que se desdobra à sombra
da subjetividade. Do mesmo modo a fenomenología e a
análise hermenêutico-transcendental não devem parar
numa analítica existencial, mas radicalizá-la de tal ma
neira que a questão da relação do homem com o ser se
transporte para o âmbito da História da Metafísica Oci
dental, para nela descobrir uma longa história do esque
cimento do ser.
Orientando-se pelo modelo binário de velamento-des-
velamento, esquecimento e lembrança, Heidegger conse
gue uma radicalização do método fenomenológico, mos
trando que a subjetividade carrega em si mesma a possi
bilidade de desvelar sua ambigüidade pela analítica
existencial e que é possível descobrir uma história desta
126
subjetividade que comanda a metafísica ocidental e está
nas raízes do esquecimento do ser. A radicalização da
fenomenología como Husserl a concebera conduziría o
pensamento de Heidegger não apenas a lançar de forma
nova a questão do ser, mas o faria descobrir que um tal
questionamento não é possível sem um confronto com a
metafísica ocidental (26).
127
plitude e apenas com uma radicalidade cujo sentido ainda
deve ser descoberto, suscita sempre novas críticas dos
que vêem no processo da mediação o elemento de aferição
da verdade de uma filosofia (29).
4 Da análise até agora realizada podem ser desta
cados os.momentos essenciais do confronto de Heidegger
com a História da Filosofia.
4 .1 A estrutura fundamental do método fenomeno-
lógico atravessa todas as análises dos autores da tradição,
explorando o Filósofo sempre o modelo binário de vela-
mento e desvelamento. Mas o emprego do método é espe
culativo, sendo desenvolvido constantemente em unidade
com a questão propriamente dita do pensamento.
4. 2 Heidegger desdobra seu pensamento em cons
tante diálogo com a História da Filosofia, mostrando
sempre como a questão do sentido do ser deve passar
também pela destruição (adentramento) da História da On
tologia que atravessa toda a metafísica ocidental.
4 .3 Já por causa do método fenomenológico, a in
terpretação heideggeriana da História da Filosofia não po
derá ser dialética no sentido hegeliano, sem contudo deixar
de ser especulativa. A unidade que o Filósofo aponta no
pensamento ocidental é a presença constante da mesma
questão fundamental, ainda que a história deste pensa
mento seja a história do esquecimento desta questão.
4. 4 O Filósofo descobre uma radicalização progres
siva do esquecimento do ser na História da Filosofia. Esta
radicalização não é, porém, conduzida, por uma neces
sidade e movimento teleológico. Heidegger procura de
tectar apenas o jogo de luz e sombras, de velamento e des
velamento que marca esta História da Filosofia, mostrando
um caminho para descobrir esta ambiguidade.
4. 5 Heidegger não procura o contato com a História
da Filosofia para ampliar um sistema filosófico pessoal.
Este contato possui um caráter sistemático que está disse
minado pela sua obra e que cresce organicamente dentro
do movimento tensional que lhe vem da visão totalizadora
da História do pensamento, como história que acontece no
128
processo de abertura e dissimulação, velamento e desve-
lamento.
4 .6 A visão sistemática de Heidegger é assim es
truturada porque se desdobra dentro do círculo hermenêu
tico. O elemento profundo que a expressão “círculo
hermenêutico” procura mostrar é a perene incompletude
do questionamento do ser e da História da Filosofia. A
impossibilidade de suprimir a polaridade de velamento
e desvelamento numa síntese, provoca uma tensão em que
o movimento de totalização sempre ancora no fragmen
tário e em que o fragmentário só adquire sentido quando
envolvido na antecipação de uma totalidade que sempre
está em movimento de auto-supressão.
4. 7 Deve-se ver, portanto, na interpretação siste
mática que Heidegger faz do pensamento ocidental, não
tanto a intenção de expor o fracasso de toda uma época;
o Filósofo quer chamar a atenção para uma condição
inelutável em que se movimenta toda a interrogação pelo
sentido do ser. Heidegger não abriu um caminho para a
supressão da História da Filosofia que se estende até
hoje; sua contribuição reside no fato de ter mostrado que
existe uma estrutura polar de velamento e desvelamento
perpassando não apenas o pensamento de cada pensador,
mas toda a História da Metafísica Ocidental.
129
realizar o controle da linguagem sem terminar numa rela
ção puramente exterior à questão fundamental e como fun
dir a linguagem com esta questão fundamental sem perder
o controle da linguagem? O confronto crítico com a lin
guagem dos filósofos da tradição metafísica tem a finali
dade de resolver esta questão. Permanece, entretanto,
aberto o problema: Não participa a linguagem especula
tiva da polaridade — velamento e desvelamento — da
questão do ser que perpassa a Historia da Metafísica Oci
dental? Onde estão os limites da crítica da linguagem e
onde começam as fronteiras da linguagem especulativa?
130 _
de visão flutuante, de esquema organizador que apenas
é sugerido por um sistema parcial. Trata-se de fazer pas
sar os termos escolhidos por uma metamorfose tal que eles
terminem por encontrar efetivamente uma articulação con
ceituai adequada à visão inicial. A arte do filósofo — pois
há incontestavelmente um aspecto estético na construção
especulativa — consiste em descobrir as frases que garan
tirão os encontros propícios, em dispor seu discurso de
maneira a fazer aparecer, definitivamente, um organon iné
dito de significações, capaz de substituir a incerteza de
uma visão pelo rigor objetivo de um dizer” (32).
A articulação dos termos, nas obras de Heidegger,
possui realmente esta capacidade de conduzir sua visão
inicial — sua antecipação de sentido — a uma expressão
especulativa, a um rigor no dizer que manifesta um campo
de significações que não se podia suspeitar nos termos
inicialmente escolhidos. É disto que advém uma certa
frustração que invade todas as tentativas de uma análise
puramente lógica da linguagem heideggeriana. Desfeita
a articulação conceituai, rompidos os vínculos estabeleci
dos entre os termos, nada mais resta que semantemas
vacantes. Por outro lado, nesta capacidade de acordar
novos campos de significação, de provocar metamorfoses
numa linguagem adormecida, está a originalidade e o valor
dos resultados que Heidegger conquistou no diálogo e
confronto sistemático-crítico com os autores da História
da Filosofia.
131
NOTAS — 5
132
5. Resumo aqui o modo de proceder diante da História da Filoso
fia, proposto por Paul Lorenzen.
6. Vide “ Üer spekulative Satz" na obra de Puntel, L. B. — Analogie
und Geschichtlichkéit, 1, Ed. Herder, Munique 1969, pp. 381-391.
7. Para a compreensão da diferença entre linguagem filosófica e
linguagem científica, vide o excepcional trabalho de Ladrière, J.
— Langage scientifique et langage spécuiatif, em: Revue Phi-
losophique de Louvain, números 1 e 2, 1971, pp. 92-132 e 150-282.
8. Que é isto — a filosofia? — Identidade e diferença, Livraria
Duas Cidades, São Paulo 1971, pp. 76-77.
9. Que é isto — a filosofia? — Identidade e diferença, pp. 77-78.
10. Estes aspectos parecem-me constituir as razões das discordân-
cias entre os seguidores da teoria critica de Frankfurt e aqueles
que se ligam a hermenêutica filosófica. Vide Hermeneutik und
ideoiogie Kritik, mit Beitraege von Apel, Bormann, Bubner, Gada-
mer, Giegel, Habermas, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main 1971.
11. As análises até agora feitas tinham sempre a finalidade de acen
tuar as diferenças entre ambos, ou para dar razão a um ou a
outro. Além disso foram sempre por demais exteriores ao ver
dadeiro ductus do pensamento de ambos.
12. Holzwege, Vittorio Klostermann, Frankfurt, a. M. 1950, p. 69.
13. Nietzsche II, p. 415.
14. Sein und Zeit, p. 225.
15. Sein und Zeit, p. 1.
16. Nietzsche II, pp. 199-200.
17. Sein und Zeit, p. 225.
18. Sein und Zeit, p. 225.
19. O uso do método fenomenológico para a analítica existencial
exigiu, entretanto, um desdobramento complexo de aspectos e
implicações que só uma profunda análise poderá mostrar. No
capítulo precedente procuramos mostrar o que significou a fide
lidade ao emprego especulativo do método; o primeiro grande
problema é a exposição do método fenomenológico hermenêu
tico, para que não seja compreendido como exterior ao movi
mento da questão propriamente dita.
20. Nietzsche II, 244.
21 . Nietzsche II, 245-246.
22. Nietzsche II, 246.
23. Nietzsche II, 246.
24. Nietzsche II, 246.
25. Nietzsche II, 415.
26. Ver Nietzsche II: Der Europaeische Nihilismus, pp. 7-232 e Die
Seinsgeschichíliche Bestimmung des Nihilismus, pp. 233-296.
27. Que é isto — a filosofia? — Identidade e diferença, p. 60.
28. Que é isto — a filosofia? — Identidade e diferença, p. 67
29. Assim como considero a interpretação heideggeriana da histó
ria da metafísica ocidental uma filosofia da História da Filoso
fia, assim penso que podem ser encontrados elementos de uma
filosofia da história nas interpretações que o Filósofo realiza do
niilismo europeu, sobretudo da Era da Técnica. Determinar se
uma tal filosofia da história possui caráter otimista ou pessi
mista seria questão de interpretação. Não há dúvida que na
133
linguagem de Heidegger se faz notar uma certa retórica expres-
sionista que parece sugerir urna escatologia do ser. Uma aná
lise do valor das metáforas usadas neste contexto deveriam abrir
caminho para a interpretação de sua visão da História.
30. O problema da exposição constitui sempre um dos momentos
cruciais de uma filosofia que possui caráter especulativo. Para
que a exposição não seja exterior ao próprio movimento do
objeto propriamente dito, o Filósofo se vê levado a situar-se
dentro do movimento da História da Filosofia, o que muitas
vezes dá a impressão de que toda a História da Filosofia se
desenvolveu em função dele e por ele passa.
31. A consciência que Heidegger tinha do problema da linguagem
mostra a seguinte passagem de Ser e Tempo, p. 39: "Acrescen
temos uma observação relativa a linguagem das análises que
seguem, a qual não é nem refinada nem “ bela” : uma coisa é
exprimir-se sobre o ente referindo e narrando, e outra coisa é
captar o ente em seu ser. Não são apenas as palavras que o
mais das vezes faltam para esta última tarefa, mas sobretudo a
“ sintaxe” ."
32. Langage scientilique et tangage spéculatit, em: Revue Philoso-
phique de Louvain, números 1 e 2, 1971, p. 279.
134
6
A RADICALIZAÇÃO DA FENOMENOLOGIA
HUSSERLIANA E UMA NOVA TEORIA
DO SER
1 Ainda que Kant tenha reduzido todo o conheci
mento racional a uma dimensão puramente formal e te
nha eliminado todo o conteúdo do pensamento que trans
cende a experiência sensível, tornando, portanto, impos
sível o conhecimento do ser, eremos, contudo, que os pro
blemas críticos por ele levantados trouxeram uma contri
buição definitiva para a ontologia. A impossibilidade de
retornar a uma situação pré-crítica deve ser levada a sé
rio por qualquer filosofia que tenta elaborar uma ontolo
gia da realidade que transcende o sujeito. O conheci
mento metafísico não se pode enclausurar em seus limi
tes históricos por temor da crítica do conhecimento. A
razão transcendental não deve afugentar a razão metafí
sica. A exploração positiva daquela deve conduzir a um
avanço nos problemas da ontologia. O envolvimento da
subjetividade na ontologia poderá confluir para novas pos
sibilidades da interrogação metafísica.
A filosofia transcendental cresceu muito além das pre
tensões de Kant, e revelou suas virtualidades escondidas,
na exploração que dela fizeram muitos pensadores. Em
Heidegger o processo de radicalização da fenomenología
husserliana conduziu estas virtualidades do pensamento
transcendental a um dos momentos mais altos de sua ex
pressão. Sigamos algumas etapas para ver qual o cami
nho que nos levou até lá (1).
2 Do transcendente ao transcendental
136
gem platônica) e no plano gnosiológico ele é pensado
pela analogia (de origem aristotélica). O ser aparece
numa tríplice perspectiva: é o horizonte em que se desen
volve o processo analógico, é o fundamento comum da
participação que sustenta os entes e é a realidade subsis
tente (Deus), causa última do ser dos entes. O ser possui
caráter lógico, ontológico e teológico. A realidade se
explica onto-teo-logicamente (2).
A possibilidade de o homem conhecer esta realidade
é deduzida da própria explicação dada pela ontologia.
O conhecimento humano participa da mesma origem do
homem: o conhecimento do ser tem sua raiz última no
intelecto agente que é uma certa participação da luz divi
na. Os problemas que permanecem insolvidos se resu
mem num: o homem explica a realidade pela ontologia e
esta explicação se torna a possibilidade de o homem po
der explicá-la (conhecê-la). O homem possui um conhe
cimento sistemático do real e a possibilidade deste co
nhecimento sistemático se explica pelo próprio conheci
mento. O círculo se torna justificável porque tem sua
origem e termo em Deus. Deus está no começo de mi
nha explicação (conhecimento), por isso, atinjo o real.
Eu não reconhecería Deus como fundamento das coisas
(e não haveria ontologia) se Deus não fosse, pelo fato de
eu participar de sua luz, o fundamento do meu reconhe
cimento dele nas coisas. Desta maneira, o problema do
conhecimento não tem propriamente consistência na tra
dição aristotélico-tomista. O conhecimento se explica
onto-teo-logicamente (3).
Toda filosofia que quiser dar uma explicação objeti
va da realidade como um todo e, ao mesmo tempo, justi
ficar esta explicação, move-se num círculo, porque o ho
mem faz parte da realidade como um todo. Ele não é
um espectador imparcial que comenta o espetáculo; faz
parte dele. Tal filosofia poderá fugir do absurdo na me
dida em que erige um ponto fixo que está no começo
do real a ser conhecido e, simultaneamente, no começo
do conhecimento que explora o real. Ela tenderá neces
sariamente ao sistema, porque possui um ponto de apoio
suficiente para levantar toda a realidade para dentro de
sua oculta sistematicidade. Uma ontologia deste tipo sem
pre guarda em si um determinado dogmatismo e implica
137
inelutavelmente num sacrifício da postura crítica. A apa
rente tranqüilidade desta ontologia nasce de seu funda
mento absoluto que lhe garante o domínio do real e a
certeza do conhecimento.
Esta concepção ontológica faz uso do método obje
tivo e não problematiza absolutamente a possibilidade de
acesso à realidade transcendente ao sujeito. Na explica
ção desta realidade ela se nivelará, sob o ponto de vista
do método, com as teorias científicas que também se
ocupam do mundo objetivo; isto conduzirá a contradi
ções inevitáveis (4).
138
dado. E estas são as condições que brotam da subjeti
vidade. O transcendental surge com o problema crítico.
O método transcendental deduz da subjetividade não ape
nas as condições de possibilidade de conhecimento, mas
a própria, condição de possibilidade dos fenômenos. O
problema do singular e do universal são resolvidos no
interior da subjetividade. Não há mais conhecimento me
tafísico; interessa apenas a metafísica do conhecimento.
O método transcendental torna-se a estrada real em
que se desenvolve todo o pensamento moderno. Ele igno
ra a ortodoxia aristotélico-tomista da escolástica, que, ao
longo de muitos séculos, se mantém numa torre de mar
fim e fora do verdadeiro movimento filosófico (6). Toda
reflexão filosófica se faz transcendentalmente e não de
modo objetivístico. É a partir do sujeito que se discutem
os problemas do real. Desaparece a preocupação de
desenvolver uma teoria do ser no sentido clássico de ex
plicação objetiva da realidade como um todo. A retoma
da da discussão do problema do ser também só poderá
ser feita transcendentalmente. A própria ontologia se tor
nará um problema de teoria do conhecimento.
A descoberta do método transcendental representa
um progresso do movimento filosófico e torna-se impos
sível ignorá-lo. Desviar-se dele é retroceder. Permanece
apenas a possibilidade de, através dele, ir além. Isto sig
nificaria concretamente: Depois que a ontologia se trans
formou em teoria do conhecimento é possível recuperar
através desta uma nova ontologia? Esta a ser elaborada
transcendentalmente, (tendo como centro o homem), se
tornaria simultaneamente o fundamento da ontologia tra
dicional e da própria teoria do conhecimento. Assim, o
problema do ser será levantado a partir do homem e a
pergunta pelo ser será sua condição privilegiada (7).
139
gicas. Isto torna o problema do conhecimento uma área
central da filosofia moderna. Não há, evidentemente, uma
evolução linear. A subjetividade, no entanto, permanece,
clara ou inconfessadamente, o eixo unificador de todos
os principais pensadores. Tanto a metafísica geral como
as três metafísicas especiais — cosmología, psicologia
racional e teologia natural — que resumem o objeto da
especulação, segundo Christian Wolff, eram concebidos
objetivisticamente, na linha de fidelidade ao pensamento
clássico, tudo é problematizado a partir do sujeito, que
toma muitas formas. Pensa-se transcendentalmente, isto
é, dentro do horizonte das possibilidades da consciência.
Na raiz da problemática transcendental se esconde a •
questão da responsabilidade crítica. Esta foi esquecida
pelo idealismo absoluto, que, em vez de uma progressiva
conquista da posição transcendental, coloca como dogma
e ponto de partida a transcendentalidade de todo o real,
(todo o real é racional, todo racional é real). Todo o co
nhecimento tem ainda, no idealismo, um fundamento abso
luto, mesmo que este seja posto de modo inverso ao da
tradição. Nesta o conhecimento se justifica a partir de
Deus e no idealismo Deus se justifica a partir do conheci
mento (8).
É no criticismo pós-hegeliano, elaborado pelos neo-
kantianos, que se retoma a verdadeira dimensão crítica e
se explora insistentemente a problemática gnosiológica.
Na filosofia ocidental podem ser tentadas três respostas
à pergunta pela garantia da validez do conhecimento: ela
é dada ou por um ente determinado real ou ideal, ou por
um princípio metafísico que reside além do ente, ou en
tão pelo próprio sujeito. O criticismo neokantiano opta
pela última instância. O pensamento não deve ter outra
origem que a si mesmo. É verdade que o neokantismo
se perdeu na busca unilateral de um fundamento do co
nhecimento científico. Reduziu sua preocupação com a
questão do conhecimento aos estreitos horizontes da epis
temología. Entretanto, o fermento da posição transcen
dental impediu toda esta época do movimento criticista
de cair no psicologismo. Esta foi a tentação constante
para resolver o problema do conhecimento, no fim do
século passado e no começo deste. Por entre tropeços
e descaminhos foi estabelecida a distinção entre a lógi
140
ca da filosofia e a lógica da experiência, entre a objeti
vidade lógica do objeto da experiência e o objeto em si
mesmo.
Lotze é o primeiro que distingue entre o significado
do ser e o conteúdo do ente. Emil Lask mostra a neces
sidade de se partir, no problema do conhecimento, não
da experiência, mas de categorias ontológicas. O ponto
de partida é a lógica da filosofia e não a lógica da expe
riência. Portanto, não o ente mas o ser é a questão pri
meira a ser resolvida. O ser era visto então como condi
ção de possibilidade da compreensão do ente. Deste
modo o ser se identificava com o sentido. Lask definia o
sentido como toda a esfera do compreensível em oposi
ção à opacidade do real. O ser devia ser interpretado,
desta maneira, como a condição de possibilidade do co
nhecimento dos entes (9).
141
por Husserl. Este procurou superar o psicologismo, cons
tituindo uma lógica pura através do método fenomenoló-
gico. A fenomenología de Husserl consiste no desvela-
mento universal e metódico da transcendentalidade da
consciência. Esta transcendentalidade é a própria inten-
cionalidade como Brentano a entendia. Husserl quer mos
trar pela sua fenomenología que tudo o que conhecemos
no quotidiano tem um sentido transcendental; este é dado
pela nossa consciência que possui em si a possibilidade
da relação objeto-sujeito. A transcendentalidade do nos-
so eu permite que algo se dé para nosso conhecimento.
Este eu, no entanto, não é o eu psicológico, por isso ele
pode tornar-se a sede da lógica pura, para assim se po
der fugir ao psicologismo.
Também em Husserl reina soberano o método trans
cendental e também nele a problemática dominante é a
do conhecimento. A dimensão crítica da fenomenología
husserliana oferecería possibilidades não previstas para
a discussão responsável dos problemas do conhecimento.
Não deixa de causar surpresa para o estudioso des
cobrir como Heidegger, que se iniciou em sua juventude
no pensamento da escolástica suareziana e scotista e
que manteve desde cedo contato com os gregos, recebeu
os impulsos mais decisivos da fenomenología husserlia
na e da problemática neokantiana. Mais surpreendente
ainda é o fato de Heidegger ter herdado um elemento
fundamental de seu pensamento dos arraiais neokantia-
nos (11). A diferença ontológica, cuja envergadura se
desdobrou muito com o labor do filósofo, Ihe foi ao me
nos possibilitada pelas análises de Emil Lask (12). O pen
samento de Heidegger que se quer nos antípodas do pro
blema gnosiológico deve-lhe, contudo, algo de essencial.
É certo que o filósofo supera de longe a problemática e o
estilo de análise dos neokantianos. Impõe-se, entretanto,
a pergunta: não há no pensamento do filósofo urna pro
blemática tipicamente transcendental, portanto, um pro
blema de metafísica do conhecimento? Então Heidegger
se situaria dentro do movimento da subjetividade do pen
samento moderno (13). É o que se deverá resolver pro-
gressivamente na análise.
142
i
4 A intenção heideggeriana e o problema do co
nhecimento
143
com a questão do sujeito na filosofia transcendental. A
procura de uma superação da relação sujeito-objeto é a
preocupação repetida nos meios neokantianos; o proble
ma da condição de possibilidade é tema central do pen
samento transcendental. Ambos são aspectos essenciais
das análises do Filósofo.
Se, ao lado disto, observarmos a influência que Hus-
serl recebeu dos neokantianos e a que exerceu, com sua
fenomenología, sobre Heidegger, completa-se o quadro
de fatores da filosofia transcendental que atingiram o fi
lósofo. Com isto não pretendemos excluir outras influên
cias, como as de Brentano e as da escolástica. Estas, no
entanto, receberam a tonalidade do contexto de interes
ses que giram em torno das questões gnosiológicas e
transcendentais.
144
mais será encontrado na onto-teo-logia. Depois das dú
vidas iniciais assume a herança neokantiana ali onde, em
Emil Lask, ela chegara a recolocar a questão do ser, a
questão da diferença ontológica. Por mais acerbas críti
cas que o Filósofo desenvolva em sua obra contra os
problemas da teoria do conhecimento, ele não poderá es
conder que foi dela que surgiram suas interrogações ini
ciais. Não apenas isto; como pensador da filosofia em
situação de crise do fundamento, o problema do conheci
mento sempre o perseguirá.
Dito isto, não se deve esquecer que Heidegger levou
toda a sua interrogação para muito além. Torna-se até
mesmo difícil, numa análise imánente, destacar em suas
obras a problemática do conhecimento. É que o filósofo
se move apenas na interrogação pelo sentido do ser e não
se detém para expor quais são a partir daí as conseqüên-
cias para o conhecimento dos entes. Que o sentido do
ser é a condição de possibilidade de qualquer conheci
mento ôntico fica, no entanto, evidenciado. Para a com
preensão disto é preciso captar mais claramente a inten
ção fundamental de Heidegger (14).
Tanto no pensamento neokantiano como na fenome
nología de Husserl a intenção fundamental se concentra
va na busca daquela esfera em que reside toda a expe
riência ôntica dos objetos. Além da lógica da experiência
deveria haver uma lógica pura. Por isso ambos fugiram
de todas as questões tácticas ou de conteúdo psicológico.
Husserl levou esta atitude até a radicalidade do eu trans
cendental. Só assim pensava encontrar a condição onto
lógica do conhecimento ôntico. A transcendentalidade da
consciência permitiría descobrir a correlação entre cogi-
tatio e cogitatum, entre sujeito e objeto.
Heidegger destaca-se de todas estas tentativas por
uma afirmação ousada e totalmente nova: já na minha
vida concreta estou ligado à questão do ser. Só posso
ser transcendentalmente, isto é, compreendendo a mim
mesmo em meu ser. O fato de me compreender em meu
ser é a primeira e originária abertura da qual deve partir
toda teoria sobre o ser. O que originária e implicitamente
já sempre acontece enquanto me compreendo em meu
ser deve se explicitado para que alcance o verdadeiro
horizonte para o questionamento do sentido do ser. Não
145
preciso, portanto, ir em busca da minha transcendentali-
dade recorrendo a um eu superior e puro, basta explicitar
minha existência concreta onde, desde que sou, aconte
ce compreensão de ser. Meu tato de ser homem repousa
nesta compreensão ontológica.
Toda a busca da transcendentalidade, e a própria
intencionalidade, tem como esfera anterior possibilitante
o fato da compreensão de ser. Todo o conhecimento dos
entes somente é possível nesta esfera da compreensão
do ser. A diferença ontológica é algo de absolutamente
inseparável da minha própria existência.
Esta transcendentalidade táctica pode ser comprova
da pela análise transcendental do ser-aí, que é o nome
para o homem enquanto abertura originária para a com
preensão do ser. É o que Heidegger realiza em sua obra
Ser e Tempo. Progressivamente, no entanto, o filósofo
descobre que eu mesmo emerjo da abertura originária da
compreensão do ser. Não apenas as coisas se dão no ho
rizonte da minha compreensão de ser. Não apenas as
coisas, eu mesmo sou o dom que é dado nesta compre
ensão. Assim, o ser torna-se o âmbito que não se dá sem
mim e do qual, contudo, emerjo. A fenomenología de
Heidegger constitui, desta maneira, uma dupla ontologia
fundamental: A ontologia do ser-aí e a ontologia do ser
que seria a condição de possibilidade de toda e qualquer
ontologia (regional).
Já o nome ontologia fundamental revela a idéia da
busca do fundamento, característica da filosofia moderna
e transcendental. A analítica existencial confluiría para
a ontologia fundamental na medida em que a análise do
ser-aí fosse o ponto de partida necessário para a busca
do sentido do ser. A análise do sentido do ser seria a
ontologia fundamental para todas as ontologias dos diver
sos entes. Em tudo isto torna-se inconcebível um retorno
ao objetivismo do pensamento tradicional. Tudo procede
transcendentalmente. Mesmo a ontologia fundamental
construída a partir da análise do sentido do ser pressupõe
a análise transcendental do ser-aí. Esta dupla ontologia
suscita, sem dúvida, enquanto constitui um círculo (her
menêutico), graves problemas de exposição. E as ques
tões da estrutura e do movimento da interrogação hei-
deggeriana bem o demonstram.
146
L
Surge, assim, no pensamento de Heidegger, uma teo
ria do ser elaborada a partir da problemática transcenden
tal e, num sentido radical, da do conhecimento. Como foi
isto possível? Que ser é este que é objeto da nova onto
logia, que se constitui nos antípodas do pensamento da
tradição clássica?
147
serl carregava consigo assim um implícito sentido de ser.
Era este que deveria ser buscado e que levaria a uma su
peração do estágio atingido por Husserl. Foi o que Hei-
degger fez. Segundo ele, a ontologia ultrapassada pela
fenomenología exigia uma nova ontologia. Ele criticava
Husserl em dois aspectos: a omissão do problema do ser
daquele ente posto entre parênteses na redução e cons
tituído na constituição e a omissão do problema do ser
daquele que constitui (o homem) (17). Heidegger pergun
ta então como se dá o ser do ente em geral e como se dá
o ser do homem. Isto de início se resumiría na problema-
tização daquele ente através do qual se abre qualquer
possibilidade de espaço em que algo se dá. Este é a aber
tura originária do ser-aí enquanto se compreende como
ser, o que quer dizer, do ser-aí enquanto ser-no-mundo.
No ser-aí se abre a possibilidade de qualquer encontro
(esta é a palavra que substitui, em Heidegger, a expres
são “¡mediatamente dado” de Husserl) (18).
Assim, a temática fenomenológica se situa, para Hei
degger, da seguinte maneira:
1 — O modo como se dão os entes intramundanos
não é a esfera do simplesmente objetivo.
2 — O modo como se dá aquele que constitui e seu
ser não podem ser pressupostos como objetivos.
3 — Não basta perguntar pelos diversos modos como
se dá o ente; o importante é perguntar como é possível
o próprio dar-se. Como é possível que algo esteja des
coberto? — perguntará Heidegger. O fato de algo estar
descoberto, manifesto e de poder ser encontrado se dá
porque tudo o que encontramos é experimentado enquan
to ente. Deste modo, a pergunta pelo sentido do ser e a
pergunta pela abertura do ser-aí coincidem. O sentido do
ser e a facticidade do ser-aí tornam-se questões inse
paráveis (19).
A questão do ser residirá, então, para Heidegger, na
abertura do ser-aí e na revelação do ente. Nelas deve
ser pensado o fato de algo dar-se e a possibilidade deste
dar-se. O ser não é mais abstraído objetivamente dos en
tes, chega-se a ele pelo recurso transcendental à com
preensão do ser pelo ser-aí. Sob este aspecto Heidegger
não foge, como tampouco Husserl, da problemática do
pensamento da subjetividade. Mas, Heidegger vai mais
148
longe. O ser é, de certo modo, projeto do ser-aí. Desta
maneira, forma este o horizonte em que todo o ente é com
preendido. O ser-aí, no entanto, não é presença originá
ria, como o eu transcendental de Husserl. Seu ser é tem-
poralidade, não é seu próprio fundamento, porque acon
tece como historicidade indisponível. O ai do ser-aí, que
é abertura sem a qual não se dá a revelação do ente, sur
ge dum ámbito a partir do qual o ser-aí se encontra con
sigo mesmo. Então se impõe claramente, que o ser-aí
não pode exercer a função de fundamento, o que ainda
era típico da subjetividade da filosofia moderna e da feno
menología de Husserl (20).
O espaço de onde emerge o ser-aí, e onde se revela
o ente, é o mundo, o desvelamento, a clareira, o aconteci-
mento-apropriação (Ereignis), ou o ser. Isto é experimen
tado pela compreensão radical da diferença ontológica.
O ser que é assim exposto por Heidegger surge da supe
ração e radicalização da subjetividade e da postura trans
cendental. Este ser não pode mais ser entendido como
determinação do ente. Pelo contrário, todo o ente é com
preendido enquanto emerge do ámbito do ser. O ser, para
Heidegger, é aquele espaço, abertura ou clareira, em que
acontece qualquer ente. Ele se manifesta como tempo (21).
As expressões usadas pelo filósofo para dizer o ser reve
lam que ele é o acontecer de uma clareira, em que se dá
o desvelamento de todo ente.
149
(desaparecida como expressão) se resume no papel de
vigiar a diferença ontológica e, nela, o acontecer de vela-
mento e desvelamento, que são duas faces do ser (23).
A idéia heideggeriana de ser é estranha a toda tradi
ção metafísica; e mesmo que nascida no contexto da ex
periência moderna da subjetividade, ultrapassa, contudo,
qualquer teoria de ser da filosofia transcendental. E, ain
da que radicado na problemática do conhecimento, (resol
vendo-a até em seu fundamento), ela permite a elabora
ção de uma ontologia fora da concepção onto-teo-lógica e
fora das tentativas do pensamento subjetivista. Tem Hei-
degger o direito de chamar seu “ser” de ser? Nisto, sem
dúvida, ele não insistiria muito. Mais de uma vez tem dito
que, ao usar outras palavras para dizer o que põe de
conteúdo na palavra “ser”, quer mostrar que nela(s) ex
prime algo bem diverso que o ser da tradição (24).
A idéia de ser que Heidegger amadureceu permite-
lhe a constituição de uma ontologia, (este nome também
não é imprescindível), que se alimenta de uma área não
tematizada da tradição. Esta área, aliás, é intematizável
sem a experiência transcendental concentrada no pensa
mento husserliano. Pouco afeitos à linguagem que emerge
da radicalização e, somente assim, superação da subje
tividade, assalta-nos a tentação de pôr Heidegger diante
da alternativa do subjetivismo e objetivismo. Isto seria
ignorar a distância que de ambos mantém o filósofo.
Tudo o que os pensadores da filosofia ocidental perse
guiram como objeto de sua meditação dava-se e se dá
numa abertura que, ela só, representa o espaço em que
jogam a luz e a sombra (25). É a clareira (Lichtung), na
palavra de Heidegger. Este termo não procede de uma
afirmação ingênua; ele traz em si todas as etapas da feno
menología. A clareira não é uma simples afirmação de
um espaço transcendente (fora o independente do ho
mem), nem simplesmente o horizonte transcendental (no
interior e dependente do homem). Enquanto surge da re
cíproca apropriação entre ser e homem ela é a reconcilia
ção da ontologia do transcendente com o pensamento
transcendental. A clareira, (enquanto palavra que resume
o legado heideggeriano), é a superação do objetivismo
e do subjetivismo (26).
150
6 O projeto que está na base de Ser e Tempo se
propunha a superação do esquema sujeito-objeto e o en
contro entre aquilo que transcende o homem e a dimen
são transcendental. O caminho para a realização de um
tal projeto seria a analítica existencial, isto é, a determi
nação da essência do homem a partir de sua relação com
o ser, sendo esta essência denominada em sentido claro
e preciso de ser-aí. A partir dos resultados desta analíti
ca existencial seria respondida a questão do sentido do
ser. Numa passagem de sua obra, Nietzsche, o Filósofo
fala do fato de um tal questionamento não ter sido com
preendido e aponta duas razões fundamentais: de um
lado, a tendência irresistível da maneira de pensar da Fi
losofia Moderna de sempre representar o homem como
sujeito, tomando toda reflexão sobre o homem como an
tropologia; de outro lado, a própria origem e contexto
histórico-filosófico em que surgiu Ser e Tempo. Anali
sando este segundo aspecto o Filósofo refere as dificul
dades de um pensamento que visa superar a filosofia da
subjetividade pela radicalização desta própria subjetivi
dade. “De outro lado, porém, a causa da não compreen
são reside no próprio ensaio, que pelo fato de talvez con
tudo, ser algo que amadureceu no contexto histórico e
não ser algo “artificial”, vem do que tem vigência até hoje
(o pensamento da subjetividade), mas disto se procura
libertar e por isso mesmo necessária e constantemente
aponta ainda para o caminho do que se desenvolveu
até o tempo presente; invoca até o seu auxílio, para con
tudo, dizer algo inteiramente diferente. Este caminho, po
rém, se interrompe num ponto decisivo. (Ser e Tempo per
manecería uma obra inacabada E. S.). Esta interrupção
se funda no fato de o caminho encetado e o próprio en
saio incidirem contra sua vontade no risco de novamente
tornarem-se apenas uma fortaleza da subjetividade e de
eles mesmos impedirem os passos decisivos, isto é, sua
satisfatória exposição num único movimento essen
cial” (27).
Mesmo inacabada, a tentativa de Ser e Tempo, como,
o próprio Filósofo o afirma, foi o primeiro passo necessá
rio para o projeto de superação da subjetividade pela ra
dicalização e adentramento na metafísica ocidental. A
continuação desta mesma tarefa constituem os elementos
151
nodais da obra do Segundo Heidegger. A interpretação
das obras posteriores que não levasse em conta os re
sultados da analítica existencial só levaria a equívocos.
Até os últimos trabalhos a questão do sentido do ser se
impõe como determinante e a estrutura binária do méto
do fenomenológico-hermenêutico comanda todas as
análises.
Um dos últimos textos, em que o Filósofo expõe de
maneira coerente e global sua visão do fim da filosofia e
da tarefa que resta para o pensamento, é apresentado
de maneira reveladora: “O texto que segue faz parte de
um contexto maior. É a tentativa sempre repetida desde
1930, de dar uma forma mais radical ao questionamento
de Ser e Tempo. Isto significa: submeter o ponto de par
tida da questão em Ser e Tempo a uma critica imánente.
Através disto deve esclarecer-se em que medida a
questão critica que pergunta pela questão do pensamen
to, pertence necessária e constantemente ao pensamento.
Em consequência disto se modificará o título da tarefa
Ser e Tempo” (28). E no fim da análise Heidegger per
gunta: “Seria a expressão para a tarefa do pensamento
em vez de Ser e Tempo: Clareira e Presença (Sein und
Zeit: Lichtung und Anwesenheit)" (29).
A nova teoria do ser, que no Segundo Heidegger con
duz à própria supressão do termo “ser”, recorre a nomes
cada vez mais descomprometidos com a onto-teo-logia,
para reduzir os riscos da subjetividade. O que Heidegger
pensa com a palavra “clareira” não foi efetivamente te-
matizado por nenhuma ontologia; na medida em que ser
é pensado como clareira, a ontologia que o Filósofo visa
constituir “coincide com a radicalização da fenomenolo
gía; o einai coincide com o phainesthai” (30).
152
NOTAS — 6
153
9. Ver Emil Lask — Gesammelte Scbritten, Editados por Eugen
Herrigel, Vols. I e II, Tübingen 1923.
10. Emil Lask — Die Logik der Philosophie und die Kategorienlehre
(1911), em: Gesammelte Schriften Vol. II. Ver Manfred Brelage -
Studien zur Transzendentalphilosophie, Berlim, 1965.
11. A presença da problemática do neokantismo é bem maior no
pensamento de Heidegger do que as referências explícitas do
Filósofo fazem suspeitar. Sobretudo nas discussões com Cas-
sirer mostra-se, entretanto, como foi crítica a recepção do neo
kantismo e como Heidegger não deixa de chamar constante
mente atenção para a unilateralidade das preocupações episte
mológicas dos neokantianos. As interpretações de Kant mos
tram como no fundo se abre, em Heidegger, uma nova visão
de Kant.
12. Heidegger mesmo fala de seu estudo de Emil Lask: “ É claro que
temporariamente este domínio (da preocupação com a relação
entre ontologia e teologia especulativa) retrocedia diante do
que Rickert tratava em seus exercícios de Seminário: Os dois
escritos de Emil Lask, seu aluno, que caiu como simples sol
dado, já em 1915, no front da Galicia. . . . Os dois escritos
de Emil Lask — A lógica da filosofia e a doutrina das Catego
rias. Um estudo sobre o âmbito do dominio das formas lógicas,
(1911) e A doutrina do iuizo, revelavam por sua vez. com sufi
ciente clareza, a influência das Investigações lógicas de Hus-
serl.” Ver Martin Heidegger — Zur Sache des Denkens, Max Nie-
meyer Verlag, Tübingen 1969, p. 83.
13. O contato de Heidegger com o movimento da subjetividade le-
vou-o a uma radicalização tal das intenções últimas do pensa
mento transcendental que o transformou por dentro. Mostrou
que a subjetividade carrega em si mesma a possibilidade de
auto-superação pela radicalização em que se assume como
círculo, rompendo desta maneira a tendência para a absolutiza-
ção de si mesma.
14. Ver a observação crítica que faz Dieter Henrich sobre a inter
pretação heideggeriana da autoconsciência e sobre o ponto de
partida de Heidegger, em: Selbstbewusstsein publicado no livro
de homenagem ao septuagésimo aniversário de H.-G. Gadamer,
intitulado Hermeneutik und Dialektik, 2 Vols., J. C. B. Mohr, Tü
bingen 1970, pp. 257-284 (em particular pp. 281-2).
15. Tugendhat E. — Der Wahrheitsbegriff bei Hussert und Heidegger,
Ed. Walter de Gruyter, Berlim 1967, p. 262.
16. Ver minhas observações sobre a mudança que sofreu o concei
to de ser em sua passagem pela filosofia transcendental em:
Nota do tradutor no volume de minhas traduções de Heidegger:
Sobre a essência da verdade — A tese de Kant sobre o ser,
Livraria Duas Cidades, São Paulo 1970, pp. 9-13.
17. Ver as observações que Heidegger fez à margem do artigo
Fenomenología escrito por Husseri para a Enciclopédia Britâ
nica Husserliana IX, p. 602.
18. Tugendhat E. — Der Wahrheitsbegriff bei Husseri und Heidegger,
p. 270.
154
19. Tugendhat E. — Ibidem p. 270.
20. Ainda que Heidegger utilize a expressão “ ontologia fundamen
tal", o termo “ fundamental” perdeu a conotação que possuía
na Filosofia Moderna. O ser-ai não poderá ser mais concebido
como fundamento porque sua constituição é circular. Ainda que
o acesso ao ser se realize através do ser-ai, este não se com
preende sem que seja pressuposta uma relação originária com
o ser. Para Heidegger esta relação já está sempre em exercí
cio no comportamento do ser-aí em face dos entes.
21. A referência ao supra-sensível e atemporal constituiu um ele
mento básico da idéia de ser desenvolvida pela metafísica. Hei
degger, entretanto, procurando conquistar o âmbito a partir do
qual fosse possivel compreender a intrínseca multiplicidade dos
modos de ser, através da unitária idéia de ser, ligou o ser ao
tempo. A temporalidade e historicidade tornam-se o estatuto
necessário de sua ontologia. A teoria heideggeriana do ser bus
ca o sentido do ser no horizonte do tempo. Assim Heidegger
supera os limites da metafísica e prenuncia uma nova interpre
tação do ser. A história é elevada ao nível da ontologia. Desta
maneira o Filósofo determina o elemento nodal do ser da tra
dição como presença.
22. Esta radicalização leva a uma nova concepção do método. Pen
samento, método e questão do ser são pensados numa unidade.
É isto que caracterizamos, em capitulo anterior como dimensão
especulativa da filosofia heideggeriana.
23. O conceito de fenomenologia no Segundo Heidegger coincide
com o pensamento do ser, enquanto o ser é pensado com o
modelo binário de velamento e desvelamento. No Segundo Hei
degger está quase totalmente ausente o processo de mediação
que se realizou em Ser e Tempo. Por isso muitos intérpretes de
Heidegger vêem na pura gratuidade da escuta do ser uma es
pécie de mística. Não concordo com tal interpretação; penso
ser possível apontar para elementos do Segundo Heidegger que
representam o papel de mediadores de sua teoria do ser.
24. De resto o Segundo Heidegger parece reter ainda o termo “ ser”
para não perder o contato com a tradição onto-teo-lógica e me
tafísica. Os termos Ereignis e Lichtung denotam uma dimen
são em que a idéia de ser está mediada e subsumida junto
com elementos nunca antes pensados pela metafísica ocidental.
25. Ver o ensaio Das Ende der Philosophie und die Aulgabe des
Denkens em: Zur Sache des Denkens de Heidegger, Max Nie-
meyer, Tübingen 1969. Neste ensaio o Filósofo estiliza, numa lin
guagem depurada e rigorosa, a sua Concepção de Lichtung
(clareira) a partir do conceito de alétheia.
26. “ A questão do ser como tal situa-se fora da relação sujeito-
objeto” afirma Heidegger em sua obra Nietzsche II Vol. p. 199.
27. Heidegger, M. — Nietzsche, vol. II, pp. 199-200.
28. Heidegger, M. — Zur Sache des Denkens, p. 61.
29. Heidegger, H. — Zur Sache des Denkens, p. 80.
30. Tugendhat, E. — Der Wahrheitsbegriff bei Husseri und Heideg
ger, p. 277.
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